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Eb Direito Garantias

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Os Temas de Direito Civil e Processual Civil integrados nos Planos de Formação

Anual do Centro de Estudos Judiciários produzem um manancial de conteúdos


jurídicos de altíssima qualidade, que importa deixar usufruir a toda a Comunidade
Jurídica.

Os textos que aqui se juntam correspondem a comunicações sobre o regime das


garantias no direito civil, os quais, pela sua qualidade científica e utilidade
prática, vão - por certo - ajudar os que no dia-a-dia dos Tribunais se confrontam
com realidades factuais que podem merecer outra(s) leitura(s) e enquadramento(s).

Fica assim a disposição de juízes/as, magistrados/as do Ministério Público,


auditores/as de Justiça, advogados/as, académicos e restantes profissionais
do Direito, mais este e-book da "Coleção Formação Contínua".

Que todos/as dele tirem proveito!

(ETL)
Ficha Técnica
Nome:
Direito das Garantias

Jurisdição Civil:
Gabriela Cunha Rodrigues (Juíza Desembargadora, Docente do CEJ e Coordenadora da
Jurisdição)
Laurinda Gemas (Juíza Desembargadora e Docente do CEJ)
Estrela Chaby (Juíza de Direito e Docente do CEJ)
Margarida Paz (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Ana Rita Pecorelli (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Patrícia Helena Costa (Juíza de Direito e Docente do CEJ∗)

Coleção:

Formação Contínua

− Plano de Formação 2014/2015:

Temas de Direito Civil: Direito das Garantias, Direito dos Seguros e Propriedade Horizontal
(programa)

Conceção e organização:
Gabriela Cunha Rodrigues
Laurinda Gemas
Margarida Paz

Intervenientes:
Carolina Cunha (Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
Hugo Ramos Alves (Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Filipe Santos Barata (Advogado e Docente Universitário do ISEG, Universidade de Lisboa)

Revisão final:
Edgar Taborda Lopes – Juiz Desembargador, Coordenador do Departamento da Formação do
CEJ
Filipe Alves – Departamento da Formação do CEJ
Ana Caçapo – Departamento da Formação do CEJ

Notas:

Para a visualização correta dos e-books recomenda-se o seu descarregamento e a utilização do


programa Adobe Acrobat Reader.

Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.

Os conteúdos e textos constantes desta obra, bem como as opiniões pessoais aqui expressas, são
da exclusiva responsabilidade dos seus Autores não vinculando nem necessariamente
correspondendo à posição do Centro de Estudos Judiciários relativamente às temáticas
abordadas.


Desde 15 de setembro de 2017.
A reprodução total ou parcial dos seus conteúdos e textos está autorizada sempre que seja
devidamente citada a respetiva origem.

Forma de citação de um livro eletrónico (NP405‐4):

AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de
edição.
[Consult. Data de consulta]. Disponível na internet:<URL:>. ISBN.

Exemplo:
Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015.
[Consult. 12 mar. 2015].
Disponível na
internet:<URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
ISBN 978-972-9122-98-9.

Registo das revisões efetuadas ao e-book

Identificação da versão Data de atualização


1.ª edição – 20/12/2017
Direito das Garantias

Índice

1. A garantia cambiária do aval


11
Carolina Cunha

2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação 25


Hugo Ramos Alves

3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias


59
(covered bonds)
Filipe Santos Barata
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

A GARANTIA CAMBIÁRIA DO AVAL 1

Carolina Cunha∗

1. Quadro geral dos problemas: selecção dos mais relevantes.


2. As relações entre co-avalistas: conflitos e regime aplicável.
3. O regime do art. 10º LU e a dupla subscrição em branco por avalista e avalizado.
3.1. O art. 10º da LU: estrutura da norma e ónus da prova.
3.2. Tipos de preenchimento abusivo e suas consequências.
3.3. Crítica à aplicação do art 17º LU aos casos de dupla subscrição em branco por avalista e avalizado.
3.4. Solução defendida.
4. O aval omnibus: condições de admissibilidade.
4.1. Caracterização do aval omnibus.
4.2. Condições de admissibilidade.
4.3. Interface com o acordo de preenchimento.
5. O aval omnibus (cont.): consequências da cessão da quota do avalista.
5.1. Os termos do problema.
5.2. A faculdade de desvinculação existe unicamente quando houver sido prestado um aval omnibus.
5.3. Justificação da faculdade de desvinculação do avalista omnibus face ao acordo de preenchimento.
5.4. Alcance da desvinculação do avalista omnibus.
5.5. Qualificação, condições de exercício e de eficácia da faculdade de desvinculação.
5.6. Consequências sobre uma eventual futura execução baseada no título.
5.7. A (auto-)tutela dos interesses do banco credor.
5.8. Alcance da fixação de jurisprudência pelo AUJ STJ n.º 4/2013.
Bibliografia.
Vídeo.

1. Quadro geral dos problemas: selecção dos mais relevantes

Esta curta intervenção irá abordar alguns dos problemas suscitados pelo aval cambiário, a
saber:

i) As relações entre co-avalistas;

ii) A dupla subscrição em branco por avalista e avalizado;

iii) O aval omnibus.

Deixarei de fora outras questões igualmente interessantes, às quais me limito a fazer, aqui,
uma breve referência. Desde logo, a da identificação da relação subjacente ao aval, bem como
dos meios de defesa oponíveis pelo avalista ao credor do avalizado – em termos telegráficos, o
avalista só poderá opor as excepções que resultem da relação imediata que eventualmente o
1
O presente texto corresponde, com meras alterações de pormenor, à conferência que proferi na acção
de formação do Centro de Estudos Judiciários sobre “Temas de Direito Civil e Processual Civil - Direito
das Garantias”, o que explica o seu carácter sintético. Para maiores desenvolvimentos e referências
bibliográficas, poderá consultar-se CAROLINA CUNHA, Lições de Letras e Livranças (em curso de
publicação), capítulo 4 (todos os números) e capítulo 5 (n.ºs 5.3.1 e 5.3.3).

11
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

ligue ao credor (o que supõe a prévia determinação da sua existência) ou de uma convenção
extracartular ad-hoc que preveja oponibilidade de meios de defesa do avalizado. Caso
contrário, o princípio res inter alios acta e o 32ºII LU obstam a sua invocação. A menos, claro,
que se trate do pagamento realizado pelo avalizado ao credor – porque nesse caso, apesar do
facto ser alheio, o meio de defesa é próprio e cambiário.

Também não iremos aqui abordar as dificuldades levantadas pelo aval incompleto, i.e., aquele
que não indica a pessoa por quem se dá. A resposta convoca a interpretação da declaração de
aval enquanto negócio jurídico formal, bem como a questão de saber se e até que ponto é
atendível a vontade real do declarante que não tenha um mínimo de correspondência no texto
do documento. Aplicando-se, como defendo, o regime do art. 238º, 2, CCiv., a vontade real
(para mais, conhecida do declaratário) pode ser feita valer se as razões determinantes da
exigência de forma não se opuserem – o mesmo é dizer, se o título não circulou.

Quanto à questão da necessidade de protesto para accionar o avalista do aceitante, sou de


opinião que o avalista é um obrigado de garantia como qualquer outro (cfr. art. 30ºI LU) e que
protesto é a comprovação formal do preenchimento da condição a que está sujeita a sua
efectiva responsabilização – o não pagamento da letra pelo aceitante no vencimento – logo é
sempre necessário. A alusão do art. 32ºI ao facto de ser responsável “da mesma maneira que”
o avalizado apenas vale para aferir a extensão objectiva (montante por que responde) e
subjectiva (posição na cadeia cambiária) da responsabilidade do avalista.

Finalmente, quanto a saber se poderá uma declaração de aval valer como fiança, nos casos em
que a questão se levanta porque o direito cambiário prescreveu nos termos do art. 70º da LU a
resposta (dificilmente positiva) passará pela interpretação da declaração de vontade à luz das
circunstâncias envolventes. Já nas hipóteses em que o problema eclode porque o título
cambiário é inválido por carência de requisitos essenciais (art. 2º LU), tudo está em apurar se é
viável a conversão do aval nulo em fiança nos termos do art. 293º CCiv. – e aqui uma resposta
positiva terá de superar dificuldades quanto à demonstração de que o aval nulo contém, ainda
assim, os requisitos essenciais de substância do negócio sucedâneo de fiança (identificação do
credor e da dívida fundamental), sem deixar de notar que a melhor solução teria sido o credor
haver preenchido os elementos em falta (falta que se deve, normalmente, a lapso) antes de se
lançar no exercício do direito cambiário.

2. As relações entre co-avalistas: conflitos e regime aplicável

Conforme fixado pelo AUJ do STJ n.º 7/2012, “sem embargo de convenção em contrário, há
direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime
previsto para as obrigações solidárias”.

Como também esclarece o acórdão uniformizador, não existem pretensões cambiárias entre co-
avalistas na fase de liquidação que corresponde ao exercício do direito de regresso: porque são
obrigados de idêntico grau, nenhum é garante do outro (cfr. os arts. 32ºIII e 49ºII LU).

12
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

Também não é correcto pretender aplicar o regime da pluralidade de fiadores, pois não só não
ocorre qualquer lacuna na Lei Uniforme, como falta a identidade de situações susceptível de
justificar uma analogia. Repare-se que, ao contrário do fiador, o avalista garante um resultado
(o pagamento da letra – art. 30ºI LU), não cauciona a vinculação cambiária do avalizado, e que
a responsabilidade do avalista não é acessória (a sua obrigação é invulnerável a vicissitudes
que afectem a obrigação do avalizado com a única excepção do vício de forma – art. 32º III LU).
Além do mais, as concretas normas cuja aplicação se pretende revelam desadequações
concretas. O art. 650º, 1, CCiv. iria reconhecer, ao arrepio do que resulta da LU, o direito de
accionar cambiariamente os restantes co-avalistas, por subrogar o avalista solvens no próprio
direito cambiário. E o art. 650º3 (meio de defesa interno previsto para os co-fiadores) supõe
que o solvens tenha renunciado a fazer valer o benefício da divisão; ora, o co-avalista nunca
goza do benefício da divisão, pois segundo o art. 47º LU responde solidariamente para com o
portador.

O que (justamente) existe entre os diversos avalistas de um mesmo avalizado é solidariedade


passiva, mesmo na ausência de qualquer convenção prévia das partes, já que decorre da lei –
do art. 47º da LU (“Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos
solidariamente responsáveis para com o portador”) e do próprio art. 100º do CCom. (a norma
estabelece a solidariedade como regra nas obrigações comerciais e os negócios cambiários são
actos de comércio).

Diversos outros argumentos reforçam esta conclusão – o argumento histórico (os trabalhos
preparatórios da Convenção de Genebra apontam nesse sentido) e o racional- sistemático:
recusando esta solução iríamos introduzir um elemento de aleatoriedade (v.g., o credor
escolhia demandar o avalista que tivesse mais bens penhoráveis), além de penalizar
comportamentos diligentes (obrigando o avalista cumpridor a suportar em definitivo a
totalidade do pagamento efectuado) e correndo o risco de recompensar eventuais
“infractores” (v.g., os avalistas que se conluiassem com o credor para não serem por este
demandados).

Assente que o avalista solvens possui direito de regresso contra os outros co-avalistas através
de uma acção declarativa nos termos do art. 524º CCiv., resta esclarecer qual a medida do
reembolso que lhes pode exigir. Aqui vale a regra do art. 516º CCiv.: em princípio, no plano
interno, a responsabilidade está dividida em parcelas iguais, a menos que se demonstre o
contrário. Desde logo, podem os avalistas ter celebrado uma convenção expressa procedendo à
repartição da responsabilidade segundo um critério não igualitário. E também é adequado
valorar certas circunstâncias como revelando um acordo tácito de repartição não igualitário
(v.g., grande desproporção na dimensão da participação social de que cada um dos sócios
avalistas é titular; prova por um dos avalistas de que os restantes lhe asseguraram que a sua
assinatura seria “de favor” e que nada teria a desembolsar na eventualidade de um
incumprimento do avalizado).

13
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

3. O regime do art. 10º LU e a dupla subscrição em branco por avalista e avalizado

3.1. O art. 10º da LU: estrutura da norma e ónus da prova

Dispõe o art. 10 da LU que “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido
completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos
ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou,
adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.

De acordo com o preceito, portanto, à partida o subscritor em branco suporta o risco do


eventual preenchimento abusivo – solução justificada pela tutela da circulação e da confiança
de terceiros, sobretudo daqueles que recebam o título já preenchido e nada saibam da sua
origem.

Só não será assim se ocorrer má-fé ou falta grave do portador na aquisição do título, pois aí o
desvalor da sua conduta (ao pretender fazer valer o direito tal como está documentado,
sabendo ou devendo saber que o preenchimento foi abusivo) deixa de justificar o sacrifício dos
interesses subscritor em branco.

Mas sobre este, naturalmente, recai o ónus da prova, que podemos subdividir em dois
segmentos.

Desde logo, terá se ser demonstrada a discrepância entre o preenchimento de que o título foi
alvo e a vontade objectivamente manifestada pelo subscritor em branco. É certo que o art. 10º
utilização da expressão desconformidade com os “acordos realizados”, mas o acordo de
preenchimento não tem de ser expresso (embora frequentemente seja, sobretudo quando
consta de um formulário composto por cláusulas contratuais gerais). Pode perfeitamente ser
tácito – v.g., deduzido dos termos da relação fundamental – e pode, inclusive, nem existir
tecnicamente um acordo mas uma mera manifestação unilateral de vontade. Porque, na
verdade, se houve emissão voluntária do título em branco, a vontade de preenchimento é
quase sempre reconstituível em termos objectivos com as ferramentas hermenêuticas à
disposição no nosso ordenamento jurídico (arts. 236º e 239º CCiv.).

Cabe, em seguida, ao subscritor em branco a prova de que o portador adquiriu o título de má-
fé ou cometendo falta grave – se conhece aquela vontade objectivamente manifestada, está de
má-fé; se só por negligência grosseira não a conhece, mas devia conhecer, comete falta grave.
Note-se que esta prova é normalmente muito simples quando o título não circula e permanece
em poder do credor originário (o que corresponde à situação-tipo na maioria dos casos).

Saliente-se, por último, que a “aquisição” do título de que fala o art. 10º LU não tem de ser
uma aquisição por endosso: basta aquisição de facto, i.e., o título chegar às mãos do credor por
entrega (como sucede quando as assinaturas são apostas pelo obrigado principal e seu avalista
antes de remeter o título ao sacador à própria ordem, que o conserva em branco).

14
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

3.2. Tipos de preenchimento abusivo e suas consequências

Existem duas modalidades de preenchimento abusivo de uma letra ou livrança em branco.

A mais radical corresponde ao preenchimento injustificado, ou seja, aquele que é realizado


apesar de não se verificar a ocorrência que legitimava o portador a fazê-lo. Os exemplos mais
frequentes incluem a ausência de incumprimento da relação fundamental garantida ou os
casos em que essa relação se extingue satisfatoriamente mas o credor conserva indevidamente
o título em branco, que depois mobiliza para garantia de outro contrato.

Preenchendo o demandando o ónus da prova acima discriminado, logrará o afastamento da


pretensão cambiária nos termos do art. 10º LU e a concomitante extinção total da execução
(art 732º, 4, 1ª parte, CPCiv.).

A segunda modalidade de preenchimento abusivo traduz-se na incorrecta configuração das


menções introduzidas no título, sendo o exemplo mais comum o da inscrição de um valor
superior ao devido.

Nestas hipóteses, provando o demandando os requisitos do art. 10º logrará não o afastamento
mas a redução e/ou reconfiguração da pretensão cambiária, que defendo dever seguir os
termos do art. 238º, 2, CCiv. Quer isto dizer que deve proceder-se à interpretação da
declaração negocial, tal como foi completada, por forma a atribuir-lhe o sentido que
corresponde à vontade real manifestada pelo declarante. Ainda que este sentido não tenha no
conteúdo do documento um mínimo de expressão (embora haja quem defenda que sim, na
medida em que o valor superior inserido “contém” a soma inferior realmente devida), o certo é
que as razões determinantes da exigência de forma não se opõem, uma vez que não há
terceiros a proteger.

Por conseguinte, a execução prosseguirá nos termos correspondentes àquela vontade (v.g., por
um valor inferior), operando-se uma extinção parcial conforme previsto no art 732º, 4, 2ª
parte, CPCiv.

3.3. Crítica à aplicação do art 17º LU aos casos de dupla subscrição em branco por avalista e
avalizado

São frequentes os casos em que uma letra ou livrança em branco ostenta duas assinaturas: a
do obrigado principal (aceitante ou emitente) e a do seu avalista.

E é nítida a tendência de uma substancial corrente de jurisprudência e doutrina para resolver o


problema através da aplicação do art. 17º LU – norma que faz depender a oponibilidade de
meios de defesa da existência de relações imediatas.

Claro que esta tese se debate, desde logo, com dificuldades na identificação de relações
imediatas entre avalista e credor portador do título – ou porque entre ambos não existe
qualquer ligação extracambiária (o avalizado limitou-se a recolher a assinatura e entregou o

15
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

título ao credor), ou, mesmo quando o avalista subscreveu acordo de preenchimento


(normalmente uma cláusula do contrato fundamental) porque adopta um rígido critério formal
de sequência cambiária na identificação daquelas relações.

Mas o que é mais grave é que esta corrente ignora em absoluto a solução legal decorrente da
LU: a subscrição em branco tem um regime especial no art. 10º o qual, como vimos, é
totalmente alheio ao conceito de relações imediatas. Por outras palavras, é incorrecto resolver
o problema através do art. 17º, uma vez que a norma especial (art. 10º LU) afasta a norma
geral.

3.4. Solução defendida

Em meu entender, e no quadro legal fornecido pelo art. 10º LU, o avalista pode perfeitamente
invocar em sua defesa a desconformidade reportada ao acordo de preenchimento celebrado
entre credor e avalizado. Se não, vejamos.

Se o avalista também outorgou no acordo de preenchimento, podemos dizer que a sua vontade
foi expressamente manifestada (o que facilita aquela primeira prova exigida pelo art. 10º) e
que o credor-portador estará certamente de má-fé (segunda prova), porque seguramente
conhece o acordo de preenchimento, incorrendo quando muito em falta grave caso se haja
“enganado” a completar o título.

Nos casos em que o avalista não outorgou no acordo de preenchimento, podemos não
obstante reconstruir objectivamente a sua vontade de preenchimento unilateralmente
manifestada. Recorrendo à doutrina da impressão do destinatário consagrada no art. 236º
CCiv., um declaratário normal na posição do concreto credor que exige um avalista para título
em branco há-de deduzir que esse sujeito (ainda que nunca tenha tido qualquer contacto com
ele) quer garantir a relação fundamental nos mesmos termos que vierem a valer para o
avalizado. E esta dedução é reforçada pelo art. 32ºI da própria LU, quando prescreve que “o
dador de aval e responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.” Com isto
consegue o avalista superar o ónus da primeira prova exigida pelo art. 10º LU e haverá, pelo
menos, cognoscibilidade patente da manifestação daquela vontade pelo avalista (o que
equivale a falta grave do credor para efeitos da segunda prova requerida).

Cabe perguntar, por último, se avalista em branco também pode (ao contrário do que será o
padrão da normalidade) manifestar em concreto uma vontade diferente da do avalizado no
que toca ao preenchimento da letra – em particular limitando a sua responsabilidade a certo
montante, como aliás permite art. 30ºI LU.

A resposta em abstracto é claramente positiva, mas o avalista deverá ter em concreto um


especial cuidado em fazer chegar semelhante manifestação de vontade ao credor. De outro
modo, ser-lhe-á extremamente difícil realizar a segunda prova exigida pelo art. 10º LU, isto é,
demonstrar a cognoscibilidade dessa limitação pelo credor.

16
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

4. O aval omnibus: condições de admissibilidade

4.1. Caracterização do aval omnibus

Trata-se de um aval prestado sobre título cambiário em branco, mas não é qualquer aval em
branco: apenas aquele de cujo acordo de preenchimento consta uma cláusula segundo a qual
o título se destina à garantia de “todas e quaisquer dívidas, emergentes de relações actuais ou
a constituir no futuro” entre o avalizado e um certo credor (que é tipicamente, um banco,
sendo os avalistas tipicamente os sócios da sociedade garantida).

4.2. Condições de admissibilidade

Ora semelhante aval terá de se justificar (tal como é geralmente admitido para a fiança
omnibus) à luz daquele princípio de ordem pública de protecção que torna inadmissíveis as
garantias de extensão inabarcável pelo garante (cfr. art. 280º CCiv.).

Assim, podemos genericamente apontar como condições de admissibilidade da prestação de


um aval omnibus:

i) Que o garante esteja em condições de controlar o fluxo de endividamento (v.g., por ser
sócio maioritário ou gerente);

ii) Ou então que haja aposição de um limite máximo à responsabilidade (um plafond
quantitativo)

4.3. Interface com o acordo de preenchimento

Escusado será dizer que este controlo incide sobre o acordo de preenchimento e não
propriamente sobre título, seja antes seja depois de preenchido

Note-se, aliás, que antes de preenchido o título o aval não existe enquanto negócio jurídico: o
que existe é a vinculação jurídica decorrente do acordo de preenchimento, o que implica
conjugar a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta no
título) e o poder de o portador do título o vir a preencher nos termos previstos naquele acordo.

Ora, se o acordo de preenchimento for de reputar nulo por infringir as condições acima
enunciadas, então o exercício do simples poder de facto de preencher o título, consolidando a
vinculação cambiária, irá cair nas malhas do art. 10º da LU.

Dito de forma mais simples: o preenchimento será abusivo porque o título foi completado
“contrariamente aos acordos realizados” – uma vez que o acordo está ferido de nulidade, os
seus efeitos não se produzem e deixa de existir qualquer justificação para o credor preencher o
título. Acresce que o credor-portador, ao preencher neste contexto, age de má-fé ou pelo
menos com falta grave: conhece o acordo de preenchimento, pois que o celebrou, e se não
sabe, devia saber que é contrário ao art. 280º CCiv. (como prescreve o art.º do CCiv., “a

17
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as
pessoas das sanções nela estabelecidas”).

5. O aval omnibus (cont.): consequências da cessão da quota do avalista

5.1. Os termos do problema

Um dos maiores problemas suscitados pelo aval omnibus, a par com o da sua admissibilidade,
é o de saber qual a sua sorte em caso de cessão de participações sociais.

Quid iuris se um sócio que prestou um aval omnibus sobre letra ou livrança em branco
transmite a sua quota: continuará, não obstante, vinculado a garantir cambiariamente ad
aeternum as dívidas daquela sociedade perante o banco, ou devemos equacionar uma
faculdade de desvinculação do ex-sócio avalista? Defendo a existência desta faculdade, nos
termos que passo a explicar.

5.2. A faculdade de desvinculação existe unicamente quando houver sido prestado um aval
omnibus

Desde logo, é importante frisar que a admissibilidade de desvinculação só se deve equacionar


quando exista um aval omnibus válido, e não já nas hipóteses em que nos deparamos com aval
simples prestado sobre um título em branco (v.g., um aval em branco aposto sobre título que
garante uma locação financeira ou um mútuo simples).

Nestas hipóteses, tudo que o cedente pode fazer é regular a questão da responsabilidade no
plano interno, i.e., nas suas relações com o cessionário da quota. Permanece, todavia,
responsável perante o credor na qualidade de avalista mesmo que deixe de ser sócio, pois não
existe qualquer justificação para o reconhecimento da faculdade de desvinculação nos termos
em que a propomos.

5.3. Justificação da faculdade de desvinculação do avalista omnibus face ao acordo de


preenchimento

A faculdade de desvinculação que em minha opinião deverá ser reconhecida assenta em alguns
pressupostos fundamentais (muito semelhantes, aliás, aos que se reconhece valerem no caso
de haver sido prestada uma fiança omnibus).

Para começar, supõe a existência de uma indissociável ligação entre a qualidade de sócio e a
prestação do aval. Ora tal ligação está tipicamente presente nas situações que analisamos, já
que a prestação da garantia pessoal pelos sócios é uma das formas preferenciais de os credores
curto-circuitarem o mecanismo legal da responsabilidade limitada (o sujeito acaba por
responder por dívidas sociais não enquanto sócio, mas enquanto avalista).

Depois, assenta na ideia basilar de inexigibilidade: é inexigível, no horizonte negocial do pacto

18
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

(o acordo de preenchimento) que o avalista firmou com o credor, continuar a garantir a


devolução de financiamentos societários cuja concessão não lhe vai ser dado apreciar,
controlar ou sequer conhecer e dos quais não vai beneficiar minimamente, perdida que seja a
sua qualidade de sócio.

E trata-se, concomitantemente e pelo menos em parte 2, também de uma exigência daquela


mesma ordem pública de protecção que, como vimos, baliza as fronteiras da admissibilidade do
aval omnibus: ao sair da sociedade, mantendo-se avalista, o sujeito iria ficar sujeito a um fluxo
de responsabilidade por si doravante inabarcável e incontrolável

5.4. Alcance da desvinculação do avalista omnibus

É preciso frisar, contudo, que mesmo que o ex-sócio avalista se desvincule, responde sempre
por dívidas constituídas até à sua saída da sociedade – rectius, por dívidas cujo concreto facto
constitutivo (v.g., libertação de uma a tranche de financiamento) ocorra antes do momento em
que a desvinculação se torna eficaz.

Isto porque, quanto a essas dívidas anteriores, obviamente não colhe a ratio assinalada à
desvinculação; com essas responsabilidades poderia e deveria contar no momento em que
deixou a sociedade.

5.5. Qualificação, condições de exercício e de eficácia da faculdade de desvinculação

Sob o ponto de vista da qualificação jurídica, estará em causa uma faculdade de resolução do
acordo de preenchimento por justa causa objectiva (a inexigibilidade de permanecer vinculado
nas concretas circunstâncias). Não me parece adequado ver aqui uma denúncia ad libitum,
com fundamento na inadmissibilidade de vínculos perpétuos; a ser assim, qualquer sócio se
poderia desvincular a qualquer momento, mesmo permanecendo na sociedade, desde que
houvesse decorrido o chamado período de duração razoável.

Quanto ao modo de exercício, supõe uma declaração (de preferência) escrita ao credor
garantido, com quem o avalista celebrou o acordo de preenchimento, comunicando a cessão
de quotas e a sua intenção de se desvincular daquele acordo.

Esta declaração é dotada de eficácia meramente ex nunc, ou seja, produz efeitos à data da sua
recepção (nos termos do art. 224º CCiv.): só a partir desse instante cessa a responsabilidade do
avalista omnibus.

5.6. Consequências sobre uma eventual futura execução baseada no título

Quid iuris, perguntar-se-á, se o banco ignora a declaração de resolução recebida e executa, no


futuro, o ex-sócio com base no título cambiário preenchido? A solução depende das
responsabilidades abrangidas pelo concreto preenchimento do título.

2
Dizemos “pelo menos em parte” porque esta específica objecção poderia ser afastada pela existência de um
tecto de responsabilidade.

19
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

Assim, se tal preenchimento se reportar apenas a dívidas posteriores à desvinculação, dá-se a


extinção total da execução contra aquele executado (mas não, naturalmente, contra a
sociedade ou contra os outros sócios-avalistas).

Caso o preenchimento do título abranja igualmente dívidas anteriores à desvinculação, pelas


quais o ex-sócio ainda responde, a extinção da execução será apenas parcial (relativa às dívidas
posteriores).
Já se todas as dívidas vertidas no título forem anteriores à desvinculação do ex- sócio, é óbvio
que execução também procede integralmente contra ele.

5.7. A (auto-)tutela dos interesses do banco credor

A solução que defendo não desprotege intoleravelmente a posição do banco credor, que tem
ao seu alcance diversos expedientes para defender os seus próprios interesses.

Desde logo, ex ante, pode prever no formulário do acordo de preenchimento as consequências


de uma desvinculação – embora não possa afastá-la ou penalizar o seu exercício: semelhantes
estipulações seriam nulas pelas razões acima apontadas, ou seja, iam sujeitar o avalista a um
fluxo de responsabilidade inabarcável e incontrolável, violando a ordem pública (art. 280º
CCiv.). Mesmo que tivesse sido fixado um tecto quantitativo à responsabilidade, o que poderia
afastar a objecção da falta de limites e da violação do art. 280º CCiv., subsiste intocada a ideia
de inexigibilidade, pedra angular do mecanismo de desvinculação. Por conseguinte, qualquer
afastamento ou entrave ao exercício de uma faculdade fundada nesta ideia constituiria uma
cláusula contrária à boa fé e logo nula pelos arts. 15º e 16º do diploma que rege a utilização de
cláusulas contratuais gerais.

Seja como for convém não esquecer que a perda de garantias pelo banco credor apenas se
projecta para o futuro, logo estará perfeitamente ao seu alcance reagir ex post à ocorrência de
uma diminuição. Na hipótese de continuar a interessar-lhe a manutenção da relação jurídico-
negocial com a sociedade, poderá introduzir nela modificações aptas a reforçar a sua posição
credora – por exemplo, reduzir o plafond da abertura de crédito ou exigir a prestação de
garantias adicionais (pelos novos sócios, pelos antigos ou pela própria sociedade).

Semelhante modificação das relações jurídicas em vigor tanto pode corresponder ao exercício
de uma faculdade unilateral contratualmente prevista (realçando, uma vez mais, a importância
da previsão inicial deste tipo de ocorrências), como ao expediente da resolução-salvo-
modificação (ou seja, declaração de resolução sob a condição suspensiva de a outra parte
rejeitar a alteração que é proposta). Aliás, como mecanismo de defesa (e de pressão) até as
modificações serem concretizadas, poderá o banco recusar a libertação de novas tranches
pecuniárias relativas à execução do financiamento contratado.

Se nenhuma destas soluções for exequível ou desejável, permanece no horizonte do banco a


possibilidade de resolver o(s) contrato(s) subjacente(s) por justa causa, se, com a alteração do
substrato pessoal da sociedade associada à eliminação da garantia prestada pelo ex-sócio,

20
DIREITO DAS GARANTIAS
1. A garantia cambiária do aval

perder objectivamente o interesse a manutenção daquela relação comercial, nomeadamente


pela elevação do patamar de risco.

5.8. Alcance da fixação de jurisprudência pelo AUJ STJ n.º 4/2013

Neste contexto, a uniformização de jurisprudência levada a cabo pelo AUJ do STJ n.º 4/2013
não me parece impedir uma solução na linha da que defendo.

Na verdade, o AUJ vem estabelecer a inadmissibilidade da denúncia do aval pelo sócio-avalista


que cede a sua quota. Ora, não só não ocorre qualquer denúncia (mas sim uma resolução com
justa causa), como a desvinculação não incide sobre o aval (é produzida em face do acordo de
preenchimento extracambiário e não do negócio jurídico unilateral cambiário). Aliás, à data da
cessão da quota não existe sequer um aval que possa ser denunciado, uma vez que ainda não
estamos perante um título completo (arts. 2º e 76º LU).

Bibliografia

CUNHA, CAROLINA, Letras e livranças: paradigmas actuais e recompreensão de um regime,


Almedina, Coimbra, 2012

CUNHA, CAROLINA, “Vinculação cambiária de sociedades: algumas questões”, Nos vinte


anos do Código das Sociedades Comerciais - Homenagem aos Prof. Doutores A. Ferrer
Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. I, “Congresso Empresas e
Sociedades” Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 361-393.

CUNHA, CAROLINA, “Pluralidade de avalistas e direito de regresso” anotação ao Acórdão


de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2012, de 5.6.2012, Cadernos de Direito Privado, n.º
40, Janeiro/Março 2013

CUNHA, CAROLINA, “Nulidade do contrato garantido e aval em branco – anotação ao


Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2013”, Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 143º, Setembro-Outubro 2013, n.º 3982, p. 53-80

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/1z2acwajct/flash.html

21
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

COMPENSAÇÃO VOLUNTÁRIA E FUNÇÃO DE GARANTIA DA COMPENSAÇÃO* **


1
Hugo Ramos Alves

1. Introdução.
2. A Compensação.
2.1. Os requisitos da compensação legal.
2.2. A Compensação convencional.
2.3. A estrutura do regulamento compensatório convencional.
2.4. O pactum de compensando.
2.5. Ex professo: a compensação nas contas bancárias.
3. O cruzamento da compensação com o penhor.
3.1. O penhor de créditos.
3.2. O penhor financeiro.
4. A função de garantia da compensação.
4.1. O recurso a mecanismos com fins de garantia.
4.2. A função de garantia da compensação.
4.3. O Regime do CIRE.
5. À guisa de conclusão.
Bibliografia.
Jurisprudência.
Vídeo.

1. Introdução

I. O mecanismo da compensação permite que duas pessoas, nos casos em que sejam
reciprocamente credor e devedor, possam livrar-se da sua obrigação, através da compensação
da sua obrigação com a obrigação do seu credor, contanto que se verifiquem determinados
requisitos.

“Compensação” é um termo polissémico, porquanto o termo compensação pode traduzir:

(i) O instituto da compensação, globalmente considerado,

(ii) O acto que desencadeia a aplicação deste instituto, e

* Os preceitos legais em que não seja indicada a fonte pertencem ao Código Civil Português actualmente em
vigor. Abreviaturas mais utilizadas: art. – artigo; AAVV – Autores Vários; BFD – Boletim da Faculdade de
Direito (Coimbra); BGB – Bürgerliches Gesetzbuch; BMJ – Boletim do Ministério da Justiça; CC – Código Civil;
CCIt. – Codice Civile (Itália); cfr. – confira; cit. – citado; CIRE – Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas; CPEREF – Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência; DIGESTO –
Digesto delle Discipline Privatistiche; ED – Enciclopedia del Diritto; ed. – edição; GCo – Giurisprudenza
Commerciale, n.º - número; Nm -. Número de margem; NssDI – Novissimo Digesto Italiano; p. – página; p. ex.
– por exemplo; pp. – páginas; RDC – Rivista di Diritto Civile; RDCo – Rivista del Diritto Commerciale – Diritto
Generale delle obbligazioni; ROA – Revista da Ordem dos Advogados; RTDC – Revue Trimestrielle de Droit Civil;
RTDPC – Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile; reimp. – reimpressão; vol. – volume.
** O presente escrito tem por base o nosso “Sobre a função de garantia da compensação”, in O Direito, ano
142, 2010 – V, pp. 1019-1956, tendo sido objecto de adaptações para efeitos da presente exposição.
1
Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Jurisconsulto.

25
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

(iii) O efeito extintivo provocado pela compensação 2.

O ordenamento jurídico atribui relevo e confere dignidade a uma função económico-social


expressa através da síntese dos efeitos substanciais que definem este instituto 3.
Efectivamente, podemos assentar no facto de a compensação ter ínsita uma actuação da
autotutela privada, pois a compensação legal, ao atribuir ao devedor-credor a possibilidade de
obviar a realização da prestação através da extinção da obrigação por mera declaração,
configura uma autotutela unilateral executiva, ao passo que a compensação voluntária ou
convencional representa uma autotutela consensual, em virtude de a satisfação do credor se
fundar no consenso preventivo do outro sujeito da relação jurídica 4.

A compensação prescinde de um juízo de valor, pois permite que o credor resolva uma
situação de forma praticamente automática, não carecendo de ficar investido nas vestes de
demandante. Destarte, o credor coloca-se ao abrigo da insolvência do devedor e,
simultaneamente, evita fluxos de pagamentos, atento o facto de a compensação se consumir
em abstracto, nas esferas respectivas dos intervenientes 5. Aliás, a circunstância de a
compensação evitar pagamentos permite igualmente colocar em realce o facto de se evitar a
circulação de moeda e, assim, agilizar o tráfego jurídico 6.

Prima facie, podemos assentar na circunstância de a compensação apenas ser possível


contanto que, de um prisma objectivo, os objectos dos créditos em questão tenham uma
grandeza homogénea e, de um prisma estritamente subjectivo, a circunstância de se prescindir
do valor económico dos créditos, dado que o mecanismo compensatório apenas tem em linha
de consideração os montantes nominais dos créditos compensandos 7. Dito de outro modo, a
compensação é uma expressão da supremacia da lei económica do menor esforço 8, porquanto
visa evitar uma dupla transferência de fundos, permitindo, igualmente que a parte que
efectiva a compensação se coloque ao abrigo de um eventual risco de insolvência da
contraparte 9.

Mais concretamente, conforme assinala Redenti, a compensação de créditos encontra a sua


razão de ser em considerações de puro bom senso, suscitando apenas problemas de técnica
jurídica no tocante ao modo pelo qual será executada, rectius, ao modo pelo qual actuará 10.

2
MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p.
9.
3
Similarmente, PERLINGIERI, Modi di estinzione delle obbligazioni diversi dall’adempimento, Roma-Bolonha:
Nicola Zanelli, 1975, p. 267.
4
PETRONE, La compensazione tra autotutela e autonomia, Milão: Giuffrè, 1997, p. 12.
5
Seguimos, no essencial, a síntese de MENEZES CORDEIRO, Da compensação, cit., p. 11.
6
Similarmente, COSENTINO PATTI, La compensazione nei suoi aspetti giuridici, Nápoles: Jovene Editore, 1983, p.
5.
7
GIULIANO, La compensazione – con particolare riguardo alle procedure concorsuali, Milão: Giuffrè, 1955, pp.
5-6.
8
CUTURI, Trattato delle compensazioni nel diritto privato italiano. Milão: Società Editrice Libraria, 1909, p. 109.
9
MENDEGRIS, La nature juridique de la compensation, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence,
1969, p. 11. Acrescenta o autor que a compensação confere um privilégio de facto (“véritable privilège de
fait”), afastando o credor-compensante do concurso de credores em relação ao seu devedor.
10
REDENTI, La compensazione dei debiti nei nuovi codici, in RTDPC I (1947), pp. 10-45 (p. 10).

26
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

II. Afigura-se conveniente ter presente que não se pode confundir a compensação com a figura
da dedução, a qual consiste em abater ao montante de um crédito, para o reduzir à sua justa
expressão numérica, a importância de certos factores, dado que, nestas circunstâncias, não
existem dois créditos recíprocos que se extingam mutuamente, mas tão-somente um crédito
cujo montante tem de ser diminuído de certas dívidas 11.

Trata-se, aliás, de uma definição que sói ser adoptada espaço jurídico alemão, onde é comum
distinguir entre a Aufrechnung e a Anrechnung, a qual por vezes é designada por compensação
imprópria, dado que nesta figura estamos perante, aquando do acerto do crédito – scilicet, a
sua determinação final – um crédito independente que será deduzido para determinar o valor
final do crédito “compensado” 12.

O que equivale a dizer que na Anrechnung lidamos com a necessidade de tomar em


consideração um único crédito, aquando da fixação final do valor de outro, motivo pelo qual
esta figura encontra tradução, em sede de responsabilidade civil na compensatio lucro cum
damno, pois o autor do facto ilícito não é credor da vítima desse facto, pelo que apenas se
reduz o crédito da indemnização, em virtude do lucro conseguido com o facto ilícito, de molde
a ser determinado o montante exacto do prejuízo sofrido 13. Ou seja, a Anrechnung mais não é
do que uma pura operação de contabilidade (“reine Rechnenoperation”) relativamente aos
valores envolvidos 14.

2. A Compensação

2.1. Os requisitos da compensação legal

Não sendo esta a sede adequada para nos alongarmos sobre os requisitos da compensação 15,
limitar-nos-emos, por comodidade de exposição, a elencar, sumariamente, os requisitos da
compensação legal.

De acordo com o disposto no artigo 847.º, é mister que os créditos compensandos sejam
recíprocos, ou, na expressão de Brandão Proença 16, sejam cruzados. Atenta a importância
deste requisito, o mesmo é o objecto de densificação no artigo 851.º, que determina:

11
Assim, p. ex., ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. II, Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 199 e
ISABEL FIGUEIREDO, A compensação como garantia de cumprimento das obrigações, in O Direito 139 (2007), pp.
380-437 (p. 387).
12
Assim, p. ex., SCHLÜTTER, Anotação ao § 387 BGB in Münchener, 4.ª ed., Munique: C. H. Beck, 2003, Nm. 50.
13
LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 14.ª ed., Munique: C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1987, pp.
255-256, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, cit. , p. 199.
14
Similarmente, GERNHÜBER, Die Erfüllung und ihre Surrogate sowie das Erlöschen der Schuldverhältnisse aus
anderen Gründen, Tubinga: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1983, p. 208.
15
Para uma primeira aproximação, cfr., VAZ SERRA, Compensação in BMJ 31 (1951), pp. 13-209, ANTUNES VARELA,
Das Obrigações em Geral, Vol. II, cit. , p. 195 e segs., ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 10.ª ed., Coimbra:
Livraria Almedina, 2006, p. 1099 e segs., MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito
bancário, cit.
16
BRANDÃO PROENÇA, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra: Coimbra editora,
2011, p. 35.

27
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

(i) A compensação apenas pode abranger dívidas do declarante e

(ii) O devedor apenas pode livrar-se da obrigação utilizando créditos seus e não de terceiro.

Ademais, é mister que o crédito compensando, aquando da declaração de compensação, seja


exigível judicialmente e não esteja sujeito a nenhuma excepção, peremptória ou dilatória, de
origem material. Dito de outro modo, o crédito activo terá de estar vencido, sendo certo que,
no tocante ao crédito passivo, a compensação será possível quando este puder ser cumprido 17.
O que implica que não possa ocorrer a compensação de um crédito natural nem a
compensação de um crédito sujeito a condição ou termo, enquanto a condição não se verificar
ou o prazo não se vencer 18. Mais concretamente, o crédito deve ser susceptível de ser
reconhecido em acção de cumprimento, i.e., que haja exigibilidade forte 19, nada obstando a
que tal reconhecimento apenas ocorra na fase declarativa de um litígio 20.

As obrigações a compensar terão de ser fungíveis 21, o que representa um corolário manifesto
do princípio de que o credor não pode ser forçado a receber coisa diferente da que lhe seja
devida, ainda que de valor equivalente ou mesmo superior. O legislador não terá ignorado o
facto de a fungibilidade assentar na consideração social que se faz das coisas em termos
físicos, já que não existem duas coisas corpóreas absolutamente iguais, motivo pelo qual,
nesta linha de raciocínio, existirá fungibilidade quando para os sujeitos seja indiferente deter
uma ou outra coisa da mesma espécie 22. Em suma, as dívidas terão de ser homogéneas, i.e.,
terão de ser equivalentes de um ponto de vista económico-social, motivo pelo qual se pode
concluir que estamos perante obrigações fungíveis e, como tal, substituíveis.

17
MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, cit., p. 113.
18
Assim, p. ex., PAULA PONCES CAMANHO, Do contrato de depósito bancário (reimp.), Coimbra: Livraria Almedina,
2005, pp. 218-219, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, cit., vol. II, pp. 204-205. Salienta MENEZES
CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, cit., p. 113, que uma obrigação natural pode
extinguir-se por compensação com uma obrigação civil, sendo que, ademais, admite a compensação de um
crédito natural com outro crédito natural, embora neste caso alerte para a necessidade de ter de se defender
uma interpretação restritiva do art. 847, número 1, alínea a).
19
Em abono deste entendimento, na jurisprudência recente, cfr. o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24
de Fevereiro de 2015 (Proc. N.º 91832/12.3YIPRT-A.C) (MOREIRA DO CARMO) (apud http://www.dgsi.pt/), o Ac.
do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 2008 (Proc. N.º 07B4401) (PEREIRA DA SILVA) (apud
http://www.dgsi.pt/) ou o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Dezembro de 2009 (Proc. N.º
436/07.6TBTMR.C1) (FALCÃO DE MAGALHÃES) (apud http://www.dgsi.pt/).
20
Cfr., por exemplo, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2013 (Proc. N.º
5478/06.6TVLSB.L1.S1) (SILVA GONÇALVES) (apud http://www.dgsi.pt/).
21
A expressão coisas fungíveis (“res fungibiles”) tem origens romanas, tendo sido introduzida no século XVI
por ZASIUS, a propósito de um texto de PAULO relativo ao contrato de mutui datio. Assim MENEZES CORDEIRO,
Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo II, p. 151 e RAÚL VENTURA, O Contrato de compra e
venda no Código Civil in ROA 43 (1983), pp. 587-643 (p. 599).
22
LACERDA BARATA, Ensaio sobre a natureza jurídica do contrato de depósito bancário, (polic) Lisboa, 1993, p.
174. Acrescenta ainda BIONDI, Cosa fungibile e non fungibile, cit., p. 1020 (2.ª coluna) que a fungibilidade
caracteriza-se pela identidade/equivalência das coisas, motivo pelo qual considera que é vedado à autonomia
privada considerar como fungíveis as coisas que, de um ponto de vista meramente social, não o são. Já GETE-
ALONSO Y CALERA, Función y estructura del tipo contratual, Barcelona: Bosch, 1979, p. 360 considera que o
conceito de fungibilidade é um conceito estritamente jurídico que assenta, na maioria dos casos, num critério
essencialmente económico.

28
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Neste particular, o dinheiro avulta como exemplo paradigmático de fungibilidade, já que, com
o desenvolvimento da economia, passou a ser entendido como valor, rectius, como
denominador comum de valores, pelo que se atende não às espécies singulares – como as
notas ou as moedas – mas também à sua quantidade 23. Dito de outro modo, a obrigação
pecuniária acaba por ser concebida como um débito de quantia monetária, centrando-se o
nosso interesse não tanto na coisa em si, mas no seu valor considerado em abstracto 24

Finalmente, o crédito compensando terá de existir e ser válido. Dito de outro modo, as dívidas
terão de ser líquidas, ou seja, terão de estar determinadas, tendo igualmente de estar fixada a
sua quantia, id est o montante máximo que poderá ser objecto de compensação.

Finalmente, cabe notar que, contrariamente ao disposto no artigo 765.º, número 1 do Código
de Seabra, o CC não exige que as obrigações compensandas sejam líquidas. Com efeito, de
acordo com o artigo 847.º, número 3, a iliquidez da dívida não impede a compensação,
alegando Vaz Serra em abono desta solução que o credor não pode ser prejudicado pelo facto
de o crédito não estar liquidado 25.

2.2. A compensação convencional

I. É frequente depararmos com convenções destinadas a permitir a compensação de créditos.


Trata-se, aliás, de contratos de grande importância prática, porquanto tanto são utilizados em
câmaras de compensação (as clearing houses) como em situações comerciais normais, como é
o caso de contratos de conta-corrente 26.

De um ponto de vista meramente descritivo, tais convenções podem ser caracterizadas da


seguinte forma: um credor, geralmente um Banco, concede crédito a um seu cliente,
convencionando a possibilidade de compensar o crédito garantido com os saldos ou depósitos
que o cliente tiver junto do referido banco. Adicionalmente, é frequente que tal convenção
permita a compensação de créditos mesmo que não estejam vencidos ou ainda não sejam
exigíveis os créditos do cliente perante o Banco 27.

23
JOSÉ TAVARES, Os princípios fundamentais do direito civil, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1922, p. 363.
24
LACERDA BARATA, Ensaio sobre a natureza jurídica do contrato de depósito bancário, cit., p. 177.
25
VAZ SERRA, Compensação (estudo de política legislativa), separata do BMJ 31 (1952), p. 73. Este requisito
consta de alguns ordenamentos como é o caso do ordenamento italiano, onde é communis opinio que um
crédito tem de ser líquido, i.e., quando é determinado pelo seu montante ou quando é determinável
mediante um puro processo de cálculo aritmético. Sobre este aspecto, com referências à orientação
jurisprudencial neste ordenamento, cfr. MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, in Tratatto
delle obbligazioni dirigido por LUIGI GAROFALO e MARIO TALAMANCA, Vol. III – I modi di estinzione, Pádua: CEDAM,
2008, pp. 189-357 (pp. 197-200).
26
Similarmente, SCHLÜTTER, Anotação ao § 387, Nm. 52.
27
A este propósito afigura-se pertinente chamar a atenção para o facto de, summo rigore, não podermos
confundir a compensação convencional com a compensação facultativa, uma modalidade em que uma das
partes renúncia a opor qualquer obstáculo à extinção do crédito. Neste sentido CUTURI, Trattato delle
compensazioni nel diritto privato Italiano, cit., p. 41. Já MENDEGRIS, La nature juridique de la compensation, cit.,
p. 159, identifica a compensação facultativa como uma modalidade de compensação em que é conferida a
apenas uma das partes a faculdade de extinguir dívidas. Trata-se, aliás, de uma distinção conhecida entre nós
e patente em GUILHERME MOREIRA, Instituições do direito civil, Vol. II – Das Obrigações, Coimbra, 1911, pp. 275.

29
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Estamos, assim, perante uma situação em que o Banco invoca eficazmente a compensação a
partir da simples coexistência dos créditos, levando a que sua eficácia retroaja ao momento da
celebração, i.e., ao momento em que tenha sido celebrada tal convenção, sendo certo que, no
que diz respeito às garantias, a prioridade dependerá da data da sua constituição.
Adicionalmente, é frequente convencionar-se a desnecessidade de os créditos compensandos
não terem de reunir os requisitos plasmados pelo legislador no artigo 847.º, o que equivale a
dizer que esta compensação é possível, contanto que:

(i) Estejamos perante créditos exigíveis judicialmente e desde que

(ii) As obrigações em questão tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e
qualidade 28.

Trata-se da compensação convencional, figura que não encontrou acolhimento expresso no


CC, contrariamente ao que ocorre no ordenamento italiano, mas que tem sido admitida tendo
por base o princípio da liberdade contratual 29. Com efeito, a priori, nada obsta a que tal
suceda, já que o princípio da liberdade contratual vertido no art. 405.º dá cobertura a estas
actuações que procuram dispensar alguns dos requisitos da compensação legal. Assim, poderá,
p. ex., prescindir-se do benefício do prazo ou de outras prerrogativas, bem como admitir a
compensação de créditos que não sejam homogéneos, podendo mesmo ser dispensada a
própria declaração de compensação, de modo que esta opere automaticamente ou em função
de quaisquer factores a que se apele 30. Em qualquer caso, e pese embora a guarida oferecida
pela liberdade da autonomia privada, é mister não olvidar que, em abstracto, a admissibilidade
da compensação convencional terá de ter como limites a própria licitude da convenção e,
sobretudo, a particular função do negócio 31 que as partes pretendem derrogar 32.

Como é facilmente perceptível, a compensação convencional 33 é útil para o credor


compensante já que, pelo seu exercício, faz uso de uma “preferência” ou prioridade” no

28
Para uma análise destes requisitos, por todos, cfr., MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no
direito bancário, cit., pp. 105-120.
29
LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 265, HUBERT KADUK, Anotação prévia ao § 387 BGB, Nm. 59, in
STAUDINGER, 12.ª ed, Berlim: J. Schweitzer Verlag KG Walter de Gruyter & Co; ISABEL FIGUEIREDO, A compensação
como garantia de cumprimento das obrigações, cit., p. 417. A este propósito, é lapidar GERNHÜBER, Die
Erfüllung un ihre Surrogate, cit., p. 297, afirmando “Die Zulässigkeit von Aufrechnungverträgen ist zu keiner
Zeit bezweifelt worden.”. Na jurisprudência, cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Janeiro de
2013 (Proc. N.º 147/11.8TBGVA.C1) (TELES PEREIRA) (apud http://www.dgsi.pt/).
30
MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, cit., pp. 150-151.
31
FIKENTSCHER/ANDREAS HEINEMANN, Schuldrecht, 10.ª ed., cit., p. 331. Sobre a causa, monograficamente, cfr., a
título de exemplo, na literatura germânica, WESTERMANN, Die causa im französichen und deutschen Zivilrecht,
Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967 e BREMKAMP, Causa – Der Zweck als Grundpfeiler des Privatrechts,
Berlim: Duncker & Humblot, 2008, passim. Para o ordenamento italiano, cfr. LA PORTA, Il problema della causa
del contratto, Turim: Giapichelli, 2000, ROLLI, Causa in astratto e causa in concreto, Pádua: CEDAM, 2008. Para
a literatura francesa, cfr., por todos, GHESTIN, Cause de l’engagement et validité du contrat, Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 2006, passim
32
COSENTINO PATTI, La compensazione nei suoi aspetti giuridici, Nápoles: Jovene Editore, 1983, p. 37.
33
Esta modalidade de convenção é expressamente prevista pelo art. 1252 do CCIt, onde podemos ler: “Per
volontà delle parti puo aver luogo compensazione anche se non ricorrono le condizione previste dagli articoli
precedenti. Le parti possono anche stabilire preventivamente le condizioni de tale compensazione”
A este propósito, salienta DALBOSCO, La compensazione convenzionale, in RDC 1996, p. 179 que estamos
perante uma qualificação ambígua e incompleta, dado que qualquer forma de compensação asssenta numa

30
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

pagamento, que deriva da simples coexistência de créditos cruzados, sendo certo que tal
coexistência, por via de regra, não é causal, mas tão-somente querida pelas partes 34, motivo
pelo qual há que procurar balizar quais os limites ou requisitos para que esta possa ser oposta
eficazmente perante os restantes credores 35.

II. Na compensação convencional estamos perante um acordo que não está vocacionado
directamente para tornar possível a efectivação da compensação legal, mas, outrossim, está
vocacionado para prever a extinção imediata de créditos recíprocos, pois, por via de regra, é
um contrato mediante o qual as partes regulam uma remissão (scilicet, extinção) de créditos
recíproca 36, dado que a compensação, na sua essência, tem eficácia liberatória. Assim, em
abstracto, a compensação convencional permite que as partes, uma vez verificada a existência
de dois débitos contrapostos, os quais não têm os requisitos exigidos pela lei para efectuar a
declaração de compensação:

(i) Logrem compensar os créditos em função do acordo obtido e

(ii) Estabeleçam as qualidades que os débitos devem ter para que a compensação possa
ocorrer 37. Estamos, pois, perante uma situação em que a compensação é o produto e
efeito da vontade das partes, sendo configurável, em teoria, a possibilidade de serem
previstas situações de compensação meramente facultativa, a qual ficará a depender
da vontade da parte que dela pode lançar mão. Independentemente de esta
modalidade ser ou não recondutível a uma modalidade de compensação legal, a
compensação facultativa encontra a sua justificação no poder dispositivo reconhecido
às partes, ou seja, a faculdade que cada uma das partes de um negócio tem de
renunciar uma situação que obstaria à compensação, como é o caso, p. ex., em que os
créditos compensandos não são totalmente exigíveis 38 39.

conduta voluntária [a declaração de compensação], motivo pelo qual propõe a adopção do binónimo
compensação por acto negocial unilateral (abarcando quer a compensação legal quer a compensação judicial)
e compensação por acto negocial bilateral, a qual abarcará a compensação convencional.
34
GARCIA VICENTE, La prenda de créditos, Madrid: Thomson-Civitas, 2006, p. 228. Não obstante, cumpre
salientar igualmente que a compensação convencional permite que sejam compensados créditos que não
poderiam ser objecto deste modo extintivo de obrigações. Com efeito, a compensação convencional permite,
por via de regra, que as partes possam celebrar um acordo através do qual sejam removidos os obstáculos
que impediam a compensabilidade de créditos já existentes.
35
VAZ SERRA, Penhor in BMJ 59 (Outubro de 1956), pp. 13-269 (p. 210), entende que a compensação apenas
pode ser declarada nos casos em que os requisitos dela existissem já antes de ao terceiro ser notificada, dado
que após esse momento o empenhador não pode exigir o crédito em virtude de já se encontrar vinculado à
garantia do crédito pignoratício
36
SCHLESINGER, Compensazione (diritto civile) in NssDI, tomo III, Turim: Unione Tipografico-Editrice Torinese,
1954, pp. 722-731 (p. 730, 1.ª coluna).
37
DE LORENZI, Compensazione in DIGESTO – Sezione Civile, tomo III, Turim: Unione Tipografico-Editrice
Torinese, pp.65-77 (p. 77, 2.ª coluna). A autora salienta que no primeiro caso a extinção dos créditos efectua-
se ex nunc, enquanto na segunda hipótese tal sucederá no momento em que se verifique a coexistência dos
débitos recíprocos.
38
Considera SCHLESINGER, Compensazione (diritto civile), cit., p. 730 (1.ª e 2.ª colunas) que esta modalidade de
compensação não deve ser autonomizada, dado que não se provoca uma extinção automática do crédito,
sendo apenas criada a situação com base na qual, com um acto voluntário sucessivo de oposição à excepção,
ocorrerá a extinção dos créditos. No mesmo sentido, DE LORENZI, Compensazione, cit., p. 77 (2.ª coluna). Já
COSENTINO PATTI, La compensazione nei suoi aspetti giuridici, cit., p. 43, salienta que a compensação facultativa
apenas tem lugar quando estão reunidos os requisitos da compensação convencional, salientando que a

31
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Em qualquer caso, frise-se desde já que é requisito essencial ou, pelo menos, tendencial, da
compensação convencional a existência de créditos recíprocos 40, já que este é o único
requisito capaz de justificar a concreta ligação das partes na operação negocial, uma vez que
este requisito não só dita a concreta ligação das dívidas compensandas como, também, dita a
ligação das partes, permitindo aferir da causa (hoc sensu, motivo) do contrato celebrado. Isto
porque, caso não exista reciprocidade dos créditos, resultará impossível o efeito
compensatório, porquanto ambos os créditos permanecem incólumes, em virtude de o
objecto de satisfação visado pela regulamento compensatório permanecer inalterado. Não
obstante, esta conclusão deve ser temperada, pois, na eventualidade de o terceiro assentir no
acordo compensatório, será imperioso relevar a respectiva declaração negocial e, como tal,
neste caso a compensação convencional valerá plenamente 41, motivo pelo qual qualificamos
este requisito como tendencial.

III. Na praxis bancária é comum o recurso a cláusulas possibilitando a compensação


convencional. Dado que, o mais das vezes, estaremos perante cláusulas contratuais gerais, as
mesmas são regidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de outubro. Conforme é
comummente assinalado pela doutrina, estes contratos de adesão colocam problemas de três
ordens: no plano da formação do contrato, aumentam consideravelmente o risco de o
aderente desconhecer cláusulas que vão fazer parte do contrato; no plano do conteúdo,
favorecem a inserção de cláusulas abusivas e no plano processual mostram a inadequação e
insuficiência do normal controlo judiciário, que atua a posteriori, depende da iniciativa
processual do lesado e tem os seus efeitos circunscritos ao caso concreto 42.

Como é sabido, o regime das cláusulas contratuais gerais assenta na previsão de um conjunto
de cláusulas que proíbe em termos absolutos (artigos 18.º e 21.º) e de cláusulas que proíbe em
termos relativos (artigos 19.º e 22.º). De igual modo, é efetuada a destrinça entre as relações
entre empresários ou entidades equiparadas e as relações com consumidores finais. Assim,
enquanto nas relações entre empresários, as cláusulas absoluta ou relativamente proibidas

possibilidade de obviar à eficácia da compensação é uma mero poder atribuído a uma das partes, não sendo,
por conseguinte, um caso em que os requisitos legais não estão reunidos.
39
Saliente-se que temos em mente, apenas, os casos em que são reduzidos os requisitos legais para operar a
compensação. A priori, afigura-se igualmente possível que as partes convencionem um agravamento dos
mesmos.
40
PERLINGIERI, Regolamento compensativo volontario e compensazione volontaria, in Scritti in onore di
Salvatore Pugliatti, vol. I. tomo II, Milão, Giuffrè, pp. 1729-1750 (pp. 1729-1730) e, mais recentemente,
MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, cit., p. 233. Em sentido contrário, GERNHÜBER, Die
Erfüllung un ihre Surrogate, cit., p. 299, defendendo que quem pode cumprir obrigações alheias pode
igualmente estipular a compensação convencional de créditos alheios.
41
Abordando um caso similar, cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Janeiro de 2013 (Proc.
N.º 147/11.8TBGVA.C1) (TELES PEREIRA) (apud http://www.dgsi.pt/).
42
Assim, PINTO MONTEIRO, Contratos de adesão – O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído
pelo D.L. n.º 446/85, de 25 de outubro, in ROA 46 (dezembro 1986), pp. 735-769 (pp. 742-745). Similarmente,
ALMENO DE SÁ, Cláusulas contratuais gerais e direciva sobre cláusulas abusivas, 2.ª ed., Coimbra: Livraria
Almedina, 2005, p. 59. Trata-se, no essencial, de um sistema ancorado na verificação de três requisitos
cumulativos: (i) predisposição unilateral, (ii) indeterminação e (iii) rigidez. Assim, ALMEIDA COSTA/MENEZES
CORDEIRO, Cláusulas contratuais gerais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, Coimbra:
Livraria Almedina, 1987, p. 17. FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I – Conceito. Fontes. Formação, 5.ª ed., Coimbra:
Livraria Almedina, 2013, p. 171, sustenta que o sistema assenta apenas nas características da predisposição
unilateral e de generalidade.

32
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

são apenas as que constam dos artigos 18.º e 19.º, tratando-se de relações com consumidores,
também serão proibidas, de modo absoluto ou relativo, as que constam dos artigos 21.º e
22.º, conforme decorre do disposto no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 446/85.

Mais concretamente, no âmbito das cláusulas absolutamente proibidas, o artigo 18º, alínea h),
do Decreto-Lei n.º 446/85 determina a proibição das cláusulas que excluam a faculdade de
compensação, quando admitida pela lei. Daqui decorre que não é proibida a agilização da
compensação ou, em termos mais, amplos a adopção de clausulados destinados a balizar os
termos e condições que presidiram a um digamos, acerto de contas entre o banco e o
respectivo cliente 43.

2.3. A estrutura do regulamento compensatório convencional

I. À partida, o princípio da autonomia privada encontra a sua maior expressão no poder


conferido aos privados de estabelecerem, a título preventivo, as condições da compensação,
desenvolvendo, deste modo, uma actividade meramente regulamentar e normativa 44. Ora, no
que à compensação diz respeito, é de crer que, por via de regra, a autonomia privada incidirá
sobre a compensação de duas formas distintas:

(i) Modificando o regulamento legal ou voluntário vigente para a extinção das


obrigações, deixando, assim, à fonte precedente a qualificação do efeito, sendo a
situação o facto ao qual a norma liga o efeito extintivo compensativo, e

(ii) Incidindo directamente não sobre o regulamento compensativo, mas, outrossim,


realizando de forma directa a extinção por compensação 45.

Atento o silêncio do legislador perante esta particular modalidade de compensação, é assaz


comum construir o respectivo regime tendo por referência o regime da compensação legal.
Mais concretamente, o regime legal deverá ser convocado para aferir da eventual
supletividade, pois convém não olvidar que a compensação convencional, passe a expressão,
enfraquece/molda o regime vigente, dificultando uma eventual aplicação analógica. Com
efeito, o intuito perseguido pelas partes aponta para o, digamos, enfraquecimento do regime
legal, motivo pelo qual, a priori, a analogia apenas relevará caso estejamos perante normas
destinadas a proteger terceiros, sendo vedada nos casos em que a norma em questão apenas
tenha em consideração o interesse de uma das partes 46.

II. Numa primeira aproximação, afigura-se conveniente delimitar o campo de aplicação da


compensação convencional tendo por referência a compensação legal. Efectivamente, não
havendo disposição expressa no CC sobre esta figura, caberá aferir da eventual

43
Summo rigore, poderão igualmente ser construídos regimes mais gravosos para a compensação de créditos,
pese embora o instituto vise a simplificação de pagamentos.
44
REDENTI, La compensazione dei debiti nei nuovi codici, cit., p. 38.
45
PERLINGIERI, Regolamento compensativo volontario e compensazione volontaria, cit., pp 1736-1737.
46
Neste sentido, GERNHÜBER, Die Erfüllung und ihre Surrogate, cit. p. 298.

33
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

dispensabilidade dos requisitos vertidos na lei a propósito da compensação legal para, desse
modo, procurar balizar os limites da compensação convencional 47.

Antes do mais, não será despiciendo sublinhar que na compensação legal existe o poder de
determinar unilateralmente a extinção da relação obrigacional mediante a declaração de
compensação, contanto que esta seja efectuada de acordo com o estipulado pelo CC, ao passo
que a compensação convencional coincidirá com a possibilidade de derrogar as condições
vertidas no regime legal, o que permitiria a produção do efeito compensatório (scilicet, a
eficácia liberatória do negócio), mesmo nos casos em que não estejam verificados os requisitos
legais 48.

Destarte, facilmente se compreende que assume relevância central o pactum de


compensando, o qual terá de ser erigido a elemento essencial desta modalidade de
compensação, porquanto tende a realizar a extinção das posições recíprocas por via da
compensação, mesmo que tal seja logrado (i) através da derrogação dos requisitos legais de
compensação ou (ii) através da fixação prévia das condições em que o efeito compensatório
poderá operar. Tudo se resume, pois, a que o pactum de compensando seja uma expressão
directa da auto-regulação de interesses das partes 49.

Em qualquer caso, na eventualidade de o concreto quadro negocial das partes se revelar


deficiente, rectius, lacunar, regerá o mecanismo da compensação legal, mas, também, a
proibição do pacto comissório 50.

III. O pacto comissório é, conforme decorre das suas raízes romanistas, uma convenção
mediante a qual ocorre a perda ou a extinção da propriedade de uma coisa do devedor a favor
do respectivo credor. Sendo assim, facilmente se percebe que o legislador pretenda vedar
comportamentos abusivos e/ou fraudulentos do credor, pelo que sanciona a nulidade do
pacto comissório 51. Com efeito, a proibição do pacto comissório, por um lado, assenta numa
razão de teor ético-moral que visa evitar o destroçamento do devedor que, o mais das vezes,

47
A estes limites acrescerão, como nota JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos comerciais, Coimbra: Livraria
Almedina, 2012, p. 185, limites intermédios, como a proibição do negócio usurário ou do pacto comissório.
48
Similarmente, PETRONE, La compensazione tra autotutela e autonomia, cit., pp. 115-116.
49
PETRONE, La compensazione tra autotutela e autonomia, cit., pp. 120-121.
50
Sobre o pacto comissório, numa primeira aproximação, Cfr., p. ex., ISABEL ANDRADE DE MATOS, O pacto
comissório – contributo para o estudo do âmbito da sua proibição, cit., CATARINA PIRES CORDEIRO, Do pacto
comissório (ao pacto marciano): entre a eficiência e a Justiça comutativa nas relações creditícias, Lisboa, 2004,
JÚLIO GOMES, Sobre o âmbito da proibição do pacto comissório, o pacto autónomo e o pacto marciano – Ac. do
STJ de 30.1.2003, Rec. 3896/02, in CDP 8 (Outubro/Dezembro 2004), pp. 57-72, JANUÁRIO GOMES, Assunção
fidejussória de dívida, cit., p. 90 e segs., LOJACONO, Il patto commissorio nei contratti di garanzia, Milão:
Giuffrè, 1952, passim, BIANCA, Patto commissorio in NssDI, tomo XII, Turim: Unione Tipografico-Editrice
Torinese, 1966, PP. 712-721, LUMINOSO, Alla ricerca degli arcani confini del patto commissorio in RDC XXXVI
(1990), pp. 219-242, DI PAOLO, Patto commissorio in DIGESTO – Sezione Civile, tomo XIII, Turim: Unione
Tipografico-Editrice Torinese, 1993, pp. 309-314 ou CIPRIANI, Patto commissorio e patto marciano.
Proporzionalità e legitimità delle garanzie, Nápoles: Edizione Scientifiche Italiane, 2000, passim.
51
Na expressão lapidar de JURGEN DAMRAU, Anotação ao §1229 BGB, Nm. 2 in Münchener, 4.ª ed. Vol. VI
Sachenrecht §§ 854-1296, Munique: C.H. Beck, 2004, para efeitos de proibição do pacto comissório
(“Verfallvereinbarung”) é indiferente estarmos perante uma transmissão de propriedade condicionada ou
uma obrigação de transmitir a propriedade que se vença automaticamente.

34
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

pode ser uma vítima da sua necessidade de solvência económica, acreditando na possibilidade
de resgatar o objecto da garantia em momento futuro.

Não sendo esta a sede para nos debruçarmos sobre a natureza da proibição do pacto
comissório, sempre diremos que o fundamento de tal proibição é plúrimo e complexo 52,
relevando a um tempo o propósito de proteger o devedor da (hipotética) extorsão do credor,
bem como a necessidade a que corresponde um interesse geral do tráfego, mormente o
interesse de não serem falseadas as regras que ditam a conduta dos agentes, através da
atribuição injustificada de privilégios a alguns credores em detrimento dos demais 53.

Ora, precisamente por este motivo, deve entender-se que a proibição do pacto comissório é a
manifestação de um princípio geral, o qual veda a sujeição convencional do devedor a um
poder de autotutela e de auto-satisfação do credor 54. Caso assim não se entenda, nas
situações em que não haja uma total equivalência dos valores dos créditos compensandos,
apenas será possível, a priori, o recurso à figura do negócio usurário. O que equivale a dizer
que apenas admitimos a compensação convencional nas situações em que haja uma total
equivalência entre os valores dos créditos compensandos, sob pena de, em caso contrário,
estarmos a abrir a porta a eventuais comportamentos fraudulentos e/ou destinados a
aproveitar uma situação de inferioridade de uma das partes envolvidas, situação que a
proibição de pacto comissório visa obviar.

2.4. O pactum de compensando 55

I. Através do acordo compensativo, as partes, por via de regra, programam a extinção imediata
de obrigações recíprocas, mesmo que tais obrigações ainda não existam ou, pelo contrário,
mesmo que não estejam verificados os requisitos da compensação. Destarte, a causa do
negócio não radicará na extinção das posições debitórias, mas, outrossim, na aplicação do
mecanismo extintivo através da previsão de condições de compensabilidade distintas
daqueloutras previstas pelo legislador 56.

52
JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória de dívida, cit., p. 94. Um exemplo desta fundamentação plúrima da
proibição do pacto comissório é-nos dada na doutrina italiana por LUMINOSO, Alla ricerca degli arcani confini
del patto commissorio in RDC XXXVI (1990), pp. 219-242, (p. 234).
53
Similarmente, CATARINA PIRES CORDEIRO, Do pacto comissório (ao pacto marciano): entre a eficiência e a
Justiça comutativa nas relações creditícias, Lisboa, 2004, pp. 35-36. Para uma apreciação crítica dos
fundamentos da proibição do pacto comissório veja-se, entre nós, IDEM, Ibidem, cit., pp. 24-42 e ANDRADE DE
MATOS, O pacto comissório, cit., pp. 56-75.
54
BETTI, Su gli oneri e i limiti dell’autonomia privata in tema di garanzia e modificazione di obbligazioni in RDCo
XXIX (1939), Parte Seconda, pp. 689-715 (p. 699).
55
Saliente-se que, por comodidade, utilizaremos a expressão pacto de compensando relativamente a todo e
qualquer acordo de compensação. Note-se que, summo rigore, apenas se poderá falar de pactum de
compensando nos casos em que lidemos com a regulação da compensação de créditos futuros. Neste sentido,
p. ex., HUBERT KADUK, Anotação prévia ao § 387 BGB, Nm. 77, in STAUDINGER, cit.
56
PETRONE, La compensazione tra autotela e autonomia, cit., p. 134. Saliente-se que não abordaremos a
hipótese de compensação comummente designada como “compensação cumulativa” pela doutrina italiana, a
qual permite que haja lugar à compensação não entre dois sujeitos distintos, respectivamente credor e
devedor, mas sim entre vários sujeitos, como sucede, ademais, nas câmaras de compensação. Para uma
primeira aproximação, cfr., COSENTINO PATTI, La compensazione nei suoi aspetti giuridici, cit., pp. 38-39.

35
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Adicionalmente, o pactum de compensando que tenha por objecto a fixação das condições em
que poderão ser compensados créditos em momentos futuros perseguirá uma actividade
regulamentar/normativa destinada a regular a extinção, por compensação, de relações
obrigacionais futuras ou, pura e simplesmente, a modificar um concreto regulamento pré-
existente entre as partes 57.

Conforme pudemos verificar no número anterior, a compensação convencional tem o seu


campo de aplicação (i) através da derrogação dos requisitos legais de compensação ou (ii)
através da fixação prévia das condições em que o efeito compensatório poderá operar.
Cumpre, nesta sede, tecer algumas considerações adicionais.

II. No tocante à primeira situação, somos do entendimento que o pactum de compensando


terá por efeito a extinção imediata dos débitos aquando da verificação do facto
contratualmente acordado 58, dado que nestas situações a compensação convencional terá na
sua origem um acordo concluído num momento em que o binómio crédito-débito já existe,
pese embora ambos não sejam legalmente compensáveis entre si, cabendo ao pactum de
compensando a tarefa de remover os obstáculos que impedem a compensação de créditos 59.
Assim, haverá ainda que concluir que a compensação não terá, em princípio, efeitos ex tunc,
mas sim ex nunc, porquanto o negócio tem como efeito a cessação da exigência de pagamento
dos débitos através da sua “anulação” por força da compensação. Em abono desta solução
tem sido sustentado que o pactum de compensando tem natureza constitutiva, estando os
respectivos efeitos intrinsecamente relacionados com a declaração de vontade das partes,
motivo pelo qual está vedada a retroactividade da compensação 60.

Em qualquer caso, cumpre salientar que não podem ser derrogados requisitos injuntivos,
como é o caso, designadamente, da proibição de compensação de créditos impenhoráveis,
plasmado no artigo 853.º, número 1, alínea b) 61. Na verdade, é mister ter em mente que, por
via de regra, estes créditos visam garantir a subsistência do credor e da respectiva família. Ora,
se não podem os próprios tribunais extinguir estes direitos, também não poderão as partes
fazê-lo através do regulamento compensativo 62. De igual modo, também será vedada a
compensação convencional sempre que estejam em causa direitos de terceiro 63.

III. Já na segunda situação, o efeito extintivo perseguido pela compensação convencional não
será recondutível à factiespécie contratual, sendo, assim, um efeito natural e automático que

57
PETRONE, La compensazione tra autotuttela e autonomia, cit., p. 135. A este propósito, A propósito da
possibilidade de a compensação convencional ter por objecto, cfr., GERNHÜBER, Die Erfüllung un ihre Surrogate,
cit., pp. 300, defende, como princípio geral, que aquilo que pode ser objecto de antecipação/previsão pelas
partes, pode igualmente ser objecto de estipulação compensatória prévia.
58
GIULIANO, La compensazione con particular riguardo alle procedure concursuali, Milão: Giuffrè, p. 87.
59
REDENTI, La compensazione dei debiti neo nuovi codici, cit., p. 36.
60
MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, cit., p. 239.
61
Summo rigore, os limites vertidos no artigo 853.º não poderão ser derrogados. Cfr. JANUÁRIO DA COSTA GOMES,
Contratos comerciais, cit., pp. 185-186.
62
Neste sentido, ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., p. 228, nota de pé-de-página 1.
63
Cfr., por exemplo, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2013 (Proc. N.º
2/11.1TVPRT.P1.S1) (GRANJA DA FONSECA) (apud http://www.dgsi.pt/).

36
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

encontra a sua justificação, rectius, a sua razão de ser no pactum de compensando 64. Isto
porque as partes, com a celebração do contrato, adquirem um direito a compensar, o qual
apenas poderá ser exercido a partir do momento em que estejam verificados os requisitos
contratualmente previstos 65.

Com efeito, enquanto no primeiro dos casos estamos defronte uma compensação em sentido
próprio, no segundo lidamos com uma situação em que as partes operam a modificação das
condições legalmente previstas para o exercício da declaração de compensação, prevendo
situações de futuras compensações relativamente a obrigações que ainda não existem
aquando da celebração do contrato ou que, pura e simplesmente, ainda não foram assumidas
pelas partes 66. Adicionalmente, há que concluir que também nesta situação a compensação
terá efeito ex tunc a partir do momento em que os créditos possam ser compensáveis 67. Aliás,
seguindo a distinção terminológica comummente adoptada no espaço jurídico italiano,
podemos dizer que a compensação convencional apenas se refere aos casos em que se regula
a compensação de créditos já existentes, pois, no caso de créditos futuros, estaremos perante
um regulamento normativo destinado a tornar possíveis futuras compensações 68.

Em qualquer, podemos concluir que mesmo nos casos em que as partes se limitam a fixar as
situações em que poderá ocorrer a compensação, maxime, no caso em que regula a
compensabilidade de créditos futuros, o negócio persegue ainda uma função compensativa,
dado que o intuito das partes é regular o modo pelo qual os créditos poderão ser extintos 69.
Efectivamente, a compensação convencional será ainda um contrato extintivo na medida em
que as eventuais derrogações ao regime legal previstas pelas partes destinam-se a legitimar o
exercício do direito potestativo de compensar 70.

IV. Para além da hipótese que temos estado a analisar, i.e., a de o pactum de compensando ser
um acordo constitutivo, nada obsta a que o pactum de compensando seja o produto de um
acordo de natureza modificativa 71.

64
SCHLESINGER, Compensazione, cit., p. 730 (1.ªcoluna), PETRONE, La compensazione tra autotutela e autonomia,
cit., p. 164.
65
GIULIANO, La compensazione con particular riguardo alle procedure concursuali, cit., p. 88.
66
PERLINGIERI, Regolamento compensativo volontario e compensazione volontaria, cit., p. 1741 e
MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, cit., p. 240.
67
Em sentido contrário, se bem que de forma genérica, GUILHERME MOREIRA, Instituições do Direito Civil, Vol. II
– Das Obrigações, cit., p. 276, salientando que a compensação voluntária extingue, tal como a legal, dois
créditos total ou parcialmente. Todavia, uma vez que a fonte desta compensação radica na vontade das
partes e não na Lei, não poderá ter efeito retroactivo.
68
Assim, p. ex., COSENTINO PATTI, La compensazione nei suoi aspetti giuridici, cit., p. 40.
69
Note-se, não obstante, que o pactum de compensando deverá conhecer limites, dado que a sua
admissibilidade sem mais pode vir a lesar terceiros. Precisamente por este motivo, o artigo 99.º, número 4 do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê que a compensação não é admissível se (i) a
dívida à massa se tiver constituído após a data da declaração de insolvência, designadamente em
consequência da resolução de actos em benefício da massa insolvente; e se (ii) o credor da insolvência tiver
adquirido o seu crédito de outrem, após a data da declaração de insolvência.
70
PERLINGIERI, Modi di estinzione delle obbligazioni diversi dall’adempimento, cit., p. 338, PETRONE, La
compensazione tra autotutela e autonomia, p. 122.
71
MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, cit., p. 241. Sobre o negócio modificativo da
obrigação, cfr. HAU, Vertragsanpassung und Anpassungsvertrag, Tubinga: Mohr Siebeck, 2003, passim.

37
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

A este propósito, importa ter presente que a modificação da obrigação, ou, em termos mais
amplos, do negócio jurídico, pode ser objeto de gradação, porquanto podem ser modificados
apenas certos aspetos do negócio obrigacional (modificação stricto sensu) ou, inclusive, o
próprio negócio jurídico (modificação lato sensu) 72, bem como, ainda, a modificação do
negócio jurídico perspectivado em termos meramente económicos (modificação latissimo
sensu). Ora, nesta última modalidade, podemos ter alterações do objeto negocial (que podem
compreender a dação em cumprimento, dado que o objeto negocial inicial é substituído por
um aliud), das partes (por via da assunção de dívida ou de cessão de créditos) ou, em termos
ainda mais amplos, pela substituição da obrigação por outra, situação que poderá abranger o
instituto da novação. Isto porque a modificação, em geral, abrange, no que à obrigação diz
respeito, o dever primário de prestar ou mesmo os deveres acessórios, nomeadamente a
identidade, qualidade e quantidade do objeto da prestação, mas, também, sujeições,
faculdades ou exceções, situações enquadráveis na obrigação considerada enquanto unidade
complexa 73.

Para efeitos da qualificação como negócio modificativo, o intérprete terá de ser capaz de
afirmar a continuidade do complexo negocial, o que terá como pressuposto que não se
verifique o animus novandi 74.

Nos casos em que a compensação convencional seja o produto de um acordo modificativo,


tem sido assinalado pela doutrina italiana que a extinção da obrigação ocorre na sequência da
excepção de compensação, salvo se as partes tiverem previsto a desnecessidade de alegar tal
excepção 75. Sem prejuízo desta asserção, importa ter presente o perigo da generalização, pelo
que terá de se aferir casuisticamente da natureza do acordo sub judice, bem como aferir da
fonte do acordo objecto da modificação 76. Não obstante, por via de regra, estes acordos não
se limitarão a remeter para os requisitos legais e curarão de prever que a extinção ocorre no
momento da coexistência de créditos, motivo pelo qual não se poderá falar de retroactividade
do negócio, mas tão somente de eficácia ex nunc77.

2.5. Ex professo: a compensação em contas bancárias

I. Conforme assinala Menezes Cordeiro, a abertura de conta é o acto nuclear da relação


jurídico-bancária 78. Com efeito, o mero compulsar de um contrato de abertura de conta,
rectius, das condições gerais de abertura de conta, permite concluir que este contrato tende a

72
HAU, Vertragsanpassung und Anpassungsvertrag, cit., p. 11.
73
HAU, Vertragsanpassung und Anpassungsvertrag, cit., pp. 11-12.
74
Em termos similares, analisando os limites à continuidade do negócio, HAU, Vertragsanpassung und
Anpassungsvertrag, cit., p. 26 e segs.
75
Cfr., por todos, PERLINGIERI, Modi di estinzione delle obbligazioni diversi dall’adempimento, cit., p. 393.
76
Em suma terá de ser efectuada uma ponderada interpretação do negócio jurídico. Sobre esta, cfr. SANTOS
JÚNIOR, A interpretação dos negócios jurídicos, Lisboa: AAFDL, 1989, passim, bem como o clássico FERRER
CORREIA, Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico (reimp.), Coimbra: Livraria Almedina, 2001, passim
e RAQUEL REI, Da interpretação negocial no direito civil português (diss.), Lisboa, 2010, passim.
77
MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO, La compensazione, cit., p. 241. No entanto, os autores, op. cit., p. 242,
afirmam que esta modalidade pode ter eficácia ex tunc fora dos casos em que o pactum de compensando
corresponda a um negócio modificativo da obrigação.
78
MENEZES CORDEIRO, Direito bancário, 5.ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2014, p. 532 e segs.

38
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

regular, com particular desenvoltura, os principais aspectos que regerão as relações entre o
banco e o cliente, sendo a compensação de saldos um desses aspectos.

Assim, indicaremos sumariamente os termos em que a compensação de contas bancárias 79


pode ocorrer. Para o efeito, teremos de ter como ponto de partida a circunstância de, da
perspectiva do banqueiro, a compensação ser expedita, atenta a existência de um princípio de
unidade da conta, i.e., da possibilidade de ser possível cotejar as várias contas tituladas pelo
cliente para aferir do respectivo saldo global, o que conflitua com a unidade, rectius,
autonomia da conta que, a priori, determina que cada conta deve ter um regime jurídico
próprio. Em termos práticos, as cláusulas que enumerámos supra determinam, na prática, a
derrogação desta autonomia, em detrimento de uma unidade de conta 80.

II. A primeira questão que se coloca é a de aferir da possibilidade de o banqueiro declarar a


compensação relativamente a uma ou mais contas que o titular tenha aberto junto do banco.
A priori, esta compensação não levanta quaisquer problemas, contanto que estejam
verificados os requisitos da compensação legal.

No tocante à compensação convencional, a adopção de uma cláusula destinada a aligeirar os


requisitos da compensação legal deverá ser regida pelos limites assinalados previamente. Na
prática, uma cláusula deste jaez não é dotada de carácter bilateral, funcionando, outrossim,
como um modo de extinção das obrigações destinado a favorecer o banco, motivo pelo qual,
nestes casos, se acentua o carácter de privilégio ou de garantia que estas cláusulas
representam 81, motivo pelo qual não será despiciendo alertar para a necessidade estas
cláusulas não poderem ser utilizadas de forma abusiva e, naturalmente, ter de relevar o
princípio da boa fé.

III. Como é sabido, a conta solidária é aquela em que cada titular pode, individualmente,
proceder à movimentação da conta sem o concurso dos demais titulares, não carecendo de
demonstrar ao banco a autorização destes para a realização de movimentos a débito ou a
crédito na conta 82.

Tipicamente, nestas contas o titular pode, individualmente, esgotar o saldo e constituir débitos
junto do banco. Inversamente, por maioria de razão, seria tentador argumentar-se com a
possibilidade de o banco poder utilizar a totalidade do saldo para extinguir uma dívida de um
dos titulares. No caso vertente, assentando a conta bancária solidária, previamente, num
depósito feito pelo(s) cliente(s) é forçoso concluir que, sendo estes titulares de um crédito
restituitório, estamos perante uma situação de solidariedade activa e não passiva. Sendo
assim, acompanhamos Januário da Costa Gomes quando sustenta que a solidariedade serve

79
Acerca da conta bancária e das respetivas modalidades, cfr., por todos, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos
comerciais, cit., p. 114 e segs.
80
Sobre este aspeto, BAENA BAENA, La compensación en las cuentas bancárias, Madrid: Marcial Pons, 1999, p.
53.
81
Assim, por exemplo, BAENA BAENA, La compensación en las cuentas bancarias, cit., p. 53.
82
Sobre estas, SOFIA MALTEZ, As contas bancárias colectivas (diss.), Lisboa, 2008, p. 68 e segs.

39
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

primacialmente os interesses dos clientes e não do banco 83, situação que obsta a uma
aplicação qua tale do regime das obrigações solidárias vertido no CC 84.

Por este motivo, nos casos de compensação legal, o banco estará limitado pelo carácter
colectivo da conta, sendo de aplicar o princípio de que valerá a regra da igualdade
participação, que resulta dos artigos 534.º, 1403.º, número 2 e 1404.º do CC 85. Assim, nos
casos em que não for possível determinar qual a quota parte de cada um dos titulares da conta
no crédito, deve presumir-se que os credores solidários comparticipam em partes iguais no
crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulta que sejam diferentes
as suas partes ou que só um deles deve obter o benefício do crédito 86.

Este princípio deverá valer igualmente nas situações de compensação convencional. Com
efeito, se não for determinada (ou determinável) a quota parte de cada um dos titulares da
conta – maxime, ao nível das situações de paraconta 87 –, deverá valer a regra da igualdade de
participações 88.

IV. A conta conjunta é aquela em que se verifica uma situação de plurisubjectividade que, no
tocante à movimentação de contas, representa uma situação de incindibilidade, i.e., apenas
pode ocorrer a movimentação da conta com a intervenção dos vários titulares 89.

À imagem do que sucede nas contas solidárias, também aqui o banco estará limitado pelo
carácter colectivo da conta, sendo de aplicar o princípio de que valerá a regra da igualdade
participação, que resulta dos artigos 534.º, 1403.º, número 2 e 1404.º do CC 90, valendo
igualmente as considerações acerca da situação de paraconta.

V. Cabe, ainda, aferir da possibilidade de compensar com saldos de depósitos a prazo. Como é
sabido, nestas situações, quer o banco quer o cliente são beneficiários do prazo, devendo, por
conseguinte ser aplicável o artigo 1147.º do CC, atento o disposto no artigo 1206.º do CC.

Nesta particular caso, coloca-se a questão de saber se o banco é obrigado a aguardar o


decurso do prazo e apenas nesse momento declarar a compensação. Seguindo Menezes

83
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos comerciais, cit., p. 189.
84
Prevenindo contra a importação automática deste regime, MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito
civil e no direito bancário, cit., p. 251.
85
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos comerciais, cit., p. 189. Em sentido contrário, MENEZES CORDEIRO, Da
compensação no direito civil e no direito bancário, cit., p. 256, sustentando que o banqueiro, numa conta
solidária, pode compensar o crédito que tenha até à totalidade do saldo.
86
Cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Setembro de 2012 (Proc. N.º 1622/12.2TBVCT.G1(
(ROSA TCHING) (apud http://www.dgsi.pt/).
87
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos comerciais, cit., p. 124 e segs.
88
Cfr., no entanto, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Junho de 2009 (Proc. N.º 09A0662) (MÁRIO
CRUZ) (apud http://www.dgsi.pt/), sustentando que perante uma conta solidária, pode o banqueiro
compensar o crédito que tenha sobre algum dos seus contitulares, até à totalidade do saldo, ou o Ac. do
Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Maio de 2004 (Proc. N.º 511/2004-7) (JORGE SANTOS) (apud
http://www.dgsi.pt/), asseverando que perante uma conta solidária, o banqueiro pode compensar o crédito
que tenha sobre algum dos seus contitulares, até à totalidade do saldo.
89
Para maiores desenvolvimentos, SOFIA MALTEZ, As contas bancárias colectivas (diss.), p. 81 e segs.
90
MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, cit., p. 257 e JANUÁRIO DA COSTA
GOMES, Contratos comerciais, cit., p. 189.

40
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Cordeiro 91 e Januário da Costa Gomes 92, pensamos que não: uma vez que, em última análise,
lidamos com dinheiro, estamos perante créditos homogéneos. Assim, para operar a
compensação, o banqueiro terá de pagar antecipadamente os juros antes do vencimento, i.e.,
creditar na conta os juros que o cliente auferiria até ao vencimento do depósito a prazo 93.

3. O cruzamento da compensação com o penhor 94

3.1. O Penhor de Créditos

I. A constituição em garantia de um crédito desempenha uma função em tudo análoga à do


penhor de coisas, dado que o credor pignoratício adquire um poder directo e imediato sobre o
direito de crédito, destinado a permitir a actuação da preferência e, posteriormente à do
crédito, a satisfação sobre o objecto do mesmo em termos em tudo análogos ao penhor de
coisas 95. Com efeito, o CC prevê um modelo de garantia mobiliária convencional unitário,
aplicável independentemente do objecto. Mais importante, o facto de o penhor de créditos
conferir uma preferência na satisfação do crédito dificilmente permite explicar a figura fora da
realidade 96. O penhor de créditos é dotado de eficácia real, dado que é conferida ao credor
pignoratício a faculdade de opor a terceiros o seu direito de penhor, mesmo nos casos em que
tenha ocorrido a transmissão do crédito 97.

Ora, sucede que, a par desta particular afectação do crédito à satisfação do interesse do
credor pignoratício, pensamos ser possível extinguir o crédito empenhado através de
declaração de compensação, motivo pelo qual julgamos ser conveniente determo-nos um
pouco neste ponto particular.

Uma vez constituído o penhor de créditos, o credor pignoratício não fica titular de qualquer
crédito, encontrando-se antes legitimado, em casos circunscritos, a agir sobre o crédito
empenhado. Por este motivo, e devido ao facto de o objecto da prestação ser representado
por créditos, nada obstará a que o credor pignoratício declare a compensação do crédito de
que seja titular contra o empenhador nos casos em que estejam verificados os requisitos legais
da compensação 98.

91
MENEZES CORDEIRO, Da compensação no direito civil e no direito bancário, cit., p. 251.
92
JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Contratos comerciais, cit., p. 188.
93
Cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Maio de 2004 (Proc. N.º 511/2004-7) (JORGE SANTOS)
(apud http://www.dgsi.pt/).
94
Se bem que num campo parcialmente distinto, cfr. o interessantíssimo caso decidido no Ac. do Tribunal da
Relação de Lisboa de 6 de Março de 2014 (Proc. N.º 961/08.1TYLSB.K.L1-2) (TERESA ALBUQUERQUE) (apud
http://www.dgsi.pt/).
95
Sobre este aspecto, remetermos para o nosso Do penhor, Coimbra: Livraria Almedina, 2010, p. 134 e segs. e
334 e segs.
96
MARINO Y BORREGÓ, La prenda de derechos in AAVV, Homenaje a Don Antonio Hernandez Gil, Madrid:
Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, S.A., 2001, pp. 2022-2047 (p. 2029). O autor acrescenta ainda,
com razão, que a teoria que vê no penhor uma sucessão apenas tem como mérito permitir mostrar o
fenómeno através do qual se produz o direito.
97
RIEDEL/WIEGAND, Anotação prévia ao § 1273 BGB, Nm. 6 in STAUNDINGER, 12.ª ed., Berlim, Walter de Gruyter
& Co., 1981, vol. III – Sachenrecht - §§ 854-1296.
98
Similarmente, DI PACE, Il pegno dei crediti, Pádua: Cedam, 1939, pp. 182-184.

41
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

II. Em alguns casos, a convenção de compensação poder reduzir-se a uma cláusula de


vencimento antecipado futuro de um ou ambos os créditos correspectivos, pelo que, nestes
casos, a compensação apenas terá eficácia contra terceiros a partir do momento em que, por
efeito do vencimento da obrigação, se tenha produzido uma situação em tudo análoga ao
vencimento e exigibilidade de ambos os créditos 99. Efectivamente, no caso de compensações
que ocorram no futuro, estas apenas terão eficácia ex tunc, i.e., no momento em que o
binómio débito-crédito com as características contratualmente previstas venha a existir 100.

Ora, sucede que pode ser acordado um efeito geral e antecipado de compensação,
independentemente do momento em que se produza a situação futura de compensabilidade,
efeito esse que pode ficar na dependência do seu exercício. Como princípio geral, haverá que
entender que estas convenções de compensação apenas poderão ser consideradas um penhor
de créditos desde que as partes tenham procurado produzir um bloqueio do crédito com
efeitos retroactivos até ao momento da celebração da convenção. O que equivale a dizer que a
simples automaticidade ou a simples faculdade de poder proceder à compensação de créditos
não pode ser considerada imediatamente um penhor101, porquanto não existe uma afectação
preferencial do crédito para garantia de uma obrigação. Pura e simplesmente, estaremos
perante um acordo tender, digamos, a permitir o acerto de contas entre credor e devedor, i.e.,
através da contraposição entre crédito e contra-crédito.

3.2. O Penhor Financeiro

O artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 105/2004 estabelece que, sem prejuízo do acordado pelas
partes, a execução da garantia pelo beneficiário não está sujeita a nenhum requisito,
nomeadamente a notificação prévia ao prestador da garantia da intenção de proceder à
execução. Daqui resulta que:

(i) Foi deixado ao arbítrio das partes a decisão sobre o modo como se processará a
execução,

99
CARRASCO PERERA/ CORDERO LOBATO/ MARÍN LÓPEZ, Tratado de los Derechos de Garantía, Navarra: Editorial
Aranzadi, 2002, p. 869. Neste particular, entende ROJO AJÚRIA, La compensación como garantia, Madrid:
Editorial Civitas, 1992, p. 161 que a compensação convencional tem uma eficácia garantística fraco, dado que
só produziria efeitos a partir do momento em que é declarada, sem retroagir ao momento em que a
convenção de compensação foi acordada, pelo que não seria oponível aos credores e cessionários que
tivessem adquirido direitos antes da data em que a compensação foi declarada.
100
REDENTI, La compensazione dei debiti neo nuovi codici, cit., p. 38. O autor salienta ainda que, para tornar os
créditos compensáveis, será necessário recorrer aos critérios de modificação ou de conversão dos termos e
do objecto, conforme acordados previamente pelas partes.
101
A este propósito, entendem CARRASCO PERERA/ CORDERO LOBATO/ MARÍN LÓPEZ, Tratado de los Derechos de
Garantía, cit., pp. 869-870, que, na eventualidade de vir a ser acordada uma convenção deste teor seria
obtida uma garantia em tudo similar ao penhor de créditos. Precisamente por este motivo, entendem que as
partes celebraram não uma convenção de compensação, mas sim um verdadeiro e próprio contrato de
penhor de créditos, dado que é de presumir que o credor quis obter a garantia mais consistente, não
existindo, também, motivo para privilegiar uma interpretação restritiva do acordo tendo como base o simples
facto de, com tal interpretação, o acordo não se fazer sentir com tanta intensidade junto de terceiros. Os
autores salientam, ainda, que (i) carece de sentido negar que a autonomia da vontade seja suficiente para
criar direitos reais com privilégios creditícios através de convenções de compensação e que (ii) não se
entende qual o motivo para presumir que o acordo foi celebrado em benefício de terceiros, prevendo uma
garantia mais débil (a compensação) em detrimento do penhor.

42
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

(ii) Que o legislador não impõe a observância de qualquer procedimento específico para
executar o penhor financeiro e

(iii) No silêncio das partes, a execução do penhor financeiro deverá efectuar-se


mediante a utilização de mecanismos que permitam uma execução rápida e eficaz,
sem sujeição a formalidades especiais 102.

Ademais, há que concluir que, no silêncio do legislador em relação aos mecanismos de


execução da garantia a que o credor pode recorrer, é mister entender que foi dada preferência
à autonomia das partes, as quais serão livres para definir os respectivos mecanismos de
execução 103. Ora, no que à execução da garantia diz respeito, revela-se fundamental o disposto
no art. 11.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, preceito que prevê a faculdade de apropriação do
bem empenhado, a qual constitui o meio mais célere de execução da garantia 104.

Neste particular, é digno de realce, desde logo, o facto de o legislador, no artigo 11.º do
Decreto-Lei n.º 105/2004, ter reconhecido o direito de disposição do objeto da garantia por
parte do beneficiário do penhor financeiro, contanto que tal tenha sido convencionado pelas
partes. Contrariamente ao que a epígrafe do artigo em questão indiciava na sua versão inicial,
não estávamos perante um pacto comissório, mas sim perante um pacto marciano, já que o
legislador fazia referência expressa à avaliação efetuada pelas partes 105.

Co efeito, o preâmbulo do referido diploma, onde se pode ler: “(…) Outra das novidades mais
significativas deste diploma respeita ainda ao contrato de penhor financeiro e corresponde à
aceitação do pacto comissório, em desvio da regra consagrada no artigo 694.º do Código
Civil(…)”. Todavia, esta disposição foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 85/2011, de 29 de janeiro, o

102
ANDRADE DE MATOS, O pacto comissório, cit., pp. 150-151.
103
PATRÍCIA FONSECA, O Penhor financeiro – Contributo para o estudo do seu regime jurídico, (polic.), Lisboa,
2005, p. 42. A autora refere ainda que tal definição deve ser efectuada tendo em consideração os limites
impostos pelos princípios vigentes no nosso ordenamento jurídico, como é o caso da boa fé. Ora, num
contexto tão vago, não vislumbramos qual o alcance desta remissão vazia para um princípio estruturante do
ordenamento e que, em princípio, apenas deve ser invocado de forma subsidiária, i.e, quando não exista
outra explicação/solução à mão do intérprete.
104
No tocante a modalidades de execução, entende TAROLLI, Le Garanzie Finanziarie: il diritto di utilizzazzione
dell’oggetto della garanzia in GCo 32.6 (Novembro-Dezembro de 2005), I, pp. 872-882 (p. 879-880), que são
conformes ao normativo das garantias financeiras as seguinte: (i) cláusula de liquidação (close-out netting), a
qual permite que a realização do crédito seja reduzida a uma operação de cálculo e consequente pagamento
do saldo líquido, uma vez verificado o acontecimento que desencadeou a execução da garantia; (ii) Execução
da garantia equivalente, caso em que o credor pignoratício deve proceder à reconstituição da garantia
constituída pelo devedor, podendo proceder à venda ou à apropriação da mesma, nos termos acordados
pelas partes, contanto que, em ambos os casos, não seja excedido o valor da obrigação garantida. Trata-se,
pois, de cláusulas que visam limitar ao mínimo o risco de crédito.
105
Cfr. PATRÍCIA FONSECA, O penhor financeiro – Contributo para o estudo do seu regime jurídico, (polic.), Lisboa,
2005, p. 34, ANDRADE DE MATOS, O pacto comissório, cit., pp. 156-157, JOANA PEREIRA DIAS, Mecanismos
convencionais da garantia do crédito: contributo para o estudo da garantia “rotativa” mobiliária no
ordenamento jurídico português, (polic.), Lisboa, 2005, 172-173 e ROMANO MARTÍNEZ/ FUZETA DA PONTE,
Garantias de cumprimento, 5.ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2006, p. 186.

43
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

qual alterou a epígrafe deste artigo, que passou a ser “Execução dos acordos de penhor
financeiro”, pondo termo à incorrecção terminológica vigente até então 106.

De modo a garantir a licitude da cláusula prevendo a apropriação dos bens dados em garantia,
reveste especial importância a concretização dos termos em que será efectuada a avaliação.
Neste particular, somos do entendimento que esta só pode ser alcançada se forem observados
determinados pressupostos, designadamente:

(i) Que no contrato de penhor financeiro sejam claramente identificados os critérios a


que deve obedecer a avaliação e os prazos dentro dos quais a mesma deverá realizar-
se,

(ii) Que tais critérios sejam objectivos e conformes com os ditames da boa fé, e

(iii) Que o credor apenas possa exercitar o seu direito de apropriação até ao montante
das obrigações financeiras garantidas que se encontre em dívida 107.

Ademais, a verificação destes pressupostos visa igualmente salvaguardar os interesses do


devedor e de terceiros, pelo que quer a liquidação por compensação, quer a própria avaliação
das garantias deve ser efectuada de uma forma comercialmente correcta, havendo, assim, a
necessidade de as valorações terem de ajustar-se ao valor de mercado dos instrumentos dados
em garantia no momento em que se procederá à sua execução, sem prejuízo do concreto
acordo existente no contrato de garantia 108.

Cabe notar que esta faculdade de alienação é configurada no âmbito do direito de utilização
dos bens empenhados, não sendo uma decorrência legal imediata, pois tem de ser
expressamente prevista pelas partes 109. Ademais, importará igualmente ter presente que a
modalidade de execução da garantia dependerá da natureza dos bens dados em garantia. Com

106
Para maiores desenvolvimentos, CALVÃO DA SILVA, Banca, bolsa e seguros, cit., p. 217-251, MENEZES CORDEIRO,
Direito bancário, 5.ª ed., cit., pp. 804-825, PESTANA DE VASCONCELOS, O contrato de garantia financeira. O
dealbar do direito europeu das garantias, in AAVV, Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira
Ascensão, Vol. II, Coimbra: Livraria Almedina, pp. 1274-1305 e DIOGO MACEDO GRAÇA, Os contratos de garantia
financeira, Coimbra: Livraria Almedina, 2010, passim. Na doutrina estrangeira, cfr. MASTROPAOLO, La nuova
normativa europea sui contratti di garanzia finanziaria (direttiva 2002/47/CE del 6 Giugno 2002), in RDCo CI
(2003), pp. 519-536 e PAOLO CARRIÈRE, La normativa sui contratti di garanzia finanziaria. Analisi critica, in BBTC
LVIII (2005), Parte Prima, pp. 184-196.
107
ANDRADE DE MATOS, O pacto comissório, cit., p. 154. Sentindo a necessidade de acautelar os interesses do
prestador da garantia, defende CALVÃO DA SILVA, Banca, Bolsa e Seguros – Direito Europeu e Português, tomo I,
cit., pp. 209-211 a possibilidade de o prestador da garantia intentar uma acção judicial destinada a controlar a
posteriori o exercício dos poderes do beneficiário da garantia ou a devolver-lhe os montantes que sejam
resultado de um enriquecimento injustificado.
108
ZUNZUNEGUI, Una aproximación a las garantías financieras (Comentarios al capítulo segundo del Real
Decreto-ley 5/2005) in AAVV, AAVV, Garantias reales mobiliarias en Europa, Madrid: Marcial Pons, 2006, pp.
415-429, p. 428.
109
LOIACONO/CALVI/BERTANI, Il trasferimento in funzione di garanzia tra pegno irregolare, riporto e diritto di
utilizzazione, cit., pp 54-55 entendem que esta faculdade não briga com a configuração real do penhor
regular. Pronunciando-se à luz do Decreto 170/2004 que operou a transposição em Itália da Directriz
Comunitária n.º 2002/47/CE, os Autores, op. cit., p. 60 consideram que o legislador italiano previu uma
subespécie do penhor regular do CCIt, que constitui o conjunto de normas primárias e, consequentemente,
aplicáveis ao penhor financeiro.

44
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

efeito, tratando-se de instrumentos financeiros, o beneficiário da garantia poderá proceder à


execução dando ordens de venda ou apropriando-se da garantia, enquanto nos casos em que
estejamos perante activos depositados em contas bancárias, o credor poderá proceder à
compensação dos créditos ou à transferência dos montantes em dívida para a sua conta 110.

Concluímos salientando que não existe um dever incondicionado por parte do credor
pignoratício de reproduzir a situação antecedente ao exercício do direito de utilização na conta
do empenhador. Efectivamente, sobre o credor pignoratício impenderá apenas o dever de
criar a disponibilidade de instrumentos financeiros equivalente na conta a seu cargo com o
objectivo de proceder à restituição ao empenhador aquando da realização da garantia, não
existindo qualquer obrigação de proceder à sua reconstituição antes do vencimento da
obrigação garantida 111.

4. A função de garantia da compensação

4.1. O recurso a mecanismos com fins de garantia

I. Paralelamente a esta garantia geral, podem ser constituídas garantias especiais que tenham
como objeto bens específicos do património do devedor ou bens de terceiro, destinando-se a
assegurar, de modo particular, a satisfação dos direitos do credor. Ergo, a garantia especial das
obrigações atua como um reforço da massa patrimonial responsável com providências que
dizem respeito a obrigações determinadas, aumentando, quanto a estas obrigações, os bens
responsáveis pelo cumprimento das obrigações a cargo do devedor 112.

Temos por correta a asserção de que as garantias especiais podem ser garantias pessoais ou
garantias reais, consoante haja, respetivamente, um reforço quantitativo ou um reforço
qualitativo das obrigações a garantir 113.

110
ZUNZUNEGUI, Una aproximación a las garantías financieras, cit., p. 427. O autor salienta ainda que, uma vez
verificado o incumprimento, a ordem de alienação dada pelo credor pignoratício deve adoptar a forma de
requerimento dirigido à entidade encarregada da conta, devendo o referido requerimento conter declaração
do credor relativa à verificação do incumprimento e, por conseguinte, em conformidade com o acordo das
partes, deu-se o vencimento das obrigações garantidas, havendo lugar à liquidação nos termos acordados.
Acrescenta PESTANA DE VASCONCELOS, O Contrato de garantia financeira. O dealbar do Direito Europeu das
Garantias, cit., p. 1288, que a compensação apenas poderá operar se o contrato de penhor assim o previr,
sendo que, nos casos de compensação, uma vez feita a avaliação do crédito do prestador da garantia,
vencendo-se a obrigação garantida não há cumprimento por parte do devedor, mas o
credor/garantido/beneficiário opera a compensação.
111
TAROLLI, Le Garanzie Finanziarie: il diritto di utilizzazzione dell’oggetto della garanzia, cit., p. 882.
112
PAULO CUNHA, Da garantia nas obrigações, II, cit., p. 3 e LUÍS MENEZES LEITÃO, Garantias das obrigações, 4.ª
ed., cit., p. 85.
113
Nestes termos, GALVÃO TELLES, Garantia bancária autónoma, in O Direito 120 (1988, pp. 275-293 (pp. 76-
277), JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção fidejussória de dívida, cit., p. 19 e, mais recentemente, PESTANA DE
VASCONCELOS, Direito das garantias, 2.ª. ed, cit., pp. 59-60, pese embora utilize este binómio para se referir à
generalidade das garantias, independemente de serem típicas ou atípicas. Note-se, porém, que o reforço da
garantia pode ser feito de vários modos, não se limitando a esta destrinça entre garantias reais e garantias
pessoais das obrigações.

45
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Assim, a garantia pessoal é um reforço da garantia geral das obrigações que torna responsável,
perante o devedor, outra pessoa através da adjunção de um novo património pelo qual o
credor pode satisfazer o seu crédito. Ou seja, a característica da garantia pessoal radica no
facto de responderem pela obrigação dois ou mais patrimónios, pertencendo a pessoas
diferentes, sem que, quanto à obrigação assegurada, essas pessoas sejam todas reais
devedoras 114. Trata-se, no essencial, da criação de uma responsabilidade patrimonial adicional
por parte do garante, através de contrato 115.

A garantia real, por seu turno, encontra o seu centro gravitacional na vinculação ou afetação
de bens quer do próprio devedor, quer de terceiro ao pagamento preferencial de certas
dívidas 116. Estamos, assim, perante uma afectação de uma coisa, i.e., na expressão de
Rimmelspacher, da captura de um objecto patrimonial com vista à satisfação do credor 117.
Obviamente, esta afectação coloca problemas de tutela de terceiros, dado que estes podem
ignorar a existência da garantia, pelo que, por via de regra, procura assegurar-se alguma
publicidade a propósito da sua constituição. Essa publicidade pode fazer-se de várias formas,
como seja o caso da publicidade registal, conforme sucede nos casos da hipoteca ou da
consignação de rendimentos, ou a atribuição da posse sobre a coisa ao credor, maxime nos
casos do penhor de coisas e do direito de retenção. A este propósito, não é despiciendo
assinalar que algumas garantias especiais ou mesmo figuras utilizadas com função de garantia
não gozam de qualquer publicidade, como sucede nos privilégios creditórios, na reserva de
propriedade sobre bens não registáveis e na alienação fiduciária em garantia desses bens,
circunstância que coloca problemas específicos de tutela de credores.

À guisa de síntese, diremos que a garantia especial releva funcionalmente com o escopo de
agilizar a satisfação do interesse de obter novos bens ou utilidades, para, assim, obter um
acréscimo da consistência da esfera patrimonial do credor 118. Aliás, será a necessidade, ditada
pela prática, de procurar assegurar o interesse do credor que explicará igualmente o proliferar
de novas formas de garantia que coexistem com as clássicas, cujos esquemas de atuação estão
vertidos nas normas plasmadas na lei.

II. Paralelamente às garantias especiais vertidas na lei, é frequente que os intervenientes no


tráfego jurídico-comercial, mormente Bancos, recorram a mecanismos expeditos com o intuito
de reforçar 119 a segurança do seu crédito.

Com efeito, a priori, bastaria o recurso a garantias reais para assegurar a efectivação dos
créditos concedidos por parte do Banco. Ora, nesta sede, é assaz comum salientar-se o facto
de, numa sociedade industrializada, os direitos reais de garantia inspirados no modelo

114
PAULO CUNHA, Da garantia nas obrigações, II, cit., p. 13. Para o autor, op. cit., p. 14, a garantia pessoal é uma
reprodução da garantia geral, uma vez que consiste no processo de se declarar que uma pessoa é
responsável, a seguir reconhecer que o credor tem poder sobre os bens e, finalmente, a garantia consistir em
toda a esfera patrimonial da pessoa em questão.
115
RIMMELSPACHER, Kreditsicherungsrecht, cit., p. 1.
116
PAULO CUNHA, Da garantia nas obrigações, II, cit., pp. 112-113.
117
RIMMELSPACHER, Kreditsicherungsrecht, cit., p. 1.
118
Similarmente, GRISI, Il deposito in funzione di garanzia, cit., p. 3.
119
Sem que tal signifique, obviamente, que em todo e qualquer caso estaremos perante uma garantia
especial das obrigações.

46
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

hipotecário romano e na necessidade do desapossamento do bem dado em garantia


carecerem de utilidade económica, dado que a necessidade de entregar a posse do bem dado
em garantia ao próprio credor ou a um terceiro justifica-se como condição de publicidade da
situação de solvência do devedor e como meio de procurar evitar uma possível alienação do
bem por parte deste 120. Na verdade, o ordenamento jurídico tem de ter em conta as várias
solicitações exigidas pela praxis relativamente à pesquisa de técnicas cada vez mais ágeis de
tutela de financiamentos, acompanhando igualmente a velocidade e aceleração progressivas
da circulação da riqueza mobiliária.

Assim, perante a rigidez do sistema das garantias reais típicas e da consequente incapacidade
para seguir os sinais dos tempos, em função da manutenção de princípios como a
inderrogabilidade da par condictio creditorum ou o princípio da tipicidade dos direitos reais de
garantia 121, tem sido comum o recurso a garantias anómalas ou impróprias, bem como a
utilização de certos institutos jurídicos com fins de garantia 122.

Ademais, é igualmente comum a afirmação que as garantias reais não conseguem fazer face às
exigências conexas à tutela do crédito numa sociedade amplamente caracterizada pelo
financiamento externo da empresa, circunstância que determina um recurso cada vez mais
maciço às garantias pessoais, as quais, tradicionalmente, prevêem a intervenção de um
terceiro, de molde a que seja reforçada a garantia geral do credor garantido 123.

III. Neste contexto, o recurso à compensação surge como algo, digamos, natural, dado que os
bancos encontram nos créditos que o cliente tem sobre o banco uma fórmula de pagamento
mais ou menos segura dos créditos que têm contra o cliente 124. Acresce ainda que é mister
não olvidar que a actividade bancária incide, primacialmente, sobre um objecto específico: o
dinheiro, motivo pelo qual a compensação é encarada como um dos meios mais seguros para
proceder à cobrança de créditos, porquanto, mediante simples declaração, é possível operar a
extinção de um débito 125, evitando-se, assim, pagamentos e a inerente necessidade de haver
circulação de moeda. Neste âmbito, a compensação convencional opera um papel fulcral,
porquanto uma vez admitida a sua licitude, esta permite remover os obstáculos legais à

120
SANCHEZ LORENZO, Garantias Reales en el Comercio Internacional (reserva de domínio, venta en garantia y
leasing) Madrid: Editorial Civitas, 1993, p.31.
121
FIORENTINI, Garanzie reali atipiche in RDC XLVI (2000), pp. 253-292 (pp. 254-255).
122
No campo bancário, de acordo com MAIMERI, Le garanzie bancarie “improprie”, Turim: G. Chiapichelli,
2004, pp. 11-12, tem-se assistido a um processo tríplice: (i) a praxis bancária introduziu instrumentos de
garantia com importantes modificações ao seu esquema tradicional, sem, no entanto, alterar a sua natureza,
como é o caso da fiança omnibus ou do penhor omnibus; (ii) foram criadas garantias atípicas em função da
intensificação das relações internacionais, como é o caso, p. ex., das cartas de conforto; e (iii) foram utilizados
institutos já existentes com função de garantia, como é o caso da cessão de créditos em garantia ou o
mandato para cobrança.
123
LOBUONO, I contratti di Garanzia, Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2007, pp. 3-4. Acrescenta o autor,
IDEM, Ibidem, cit., p. 5, que tal situação resulta do facto de as garantias reais serem caracterizadas pela sua
maior rigidez no plano estrutural, enquanto as garantias pessoais são susceptíveis de expansão constante em
virtude da capacidade de elaboração reconhecida às partes no exercício da sua autonomia.
124
Assim, p. ex., FÍNEZ RATÓN, Garantias sobre cuentas y depósitos bancarios. La prenda de créditos, Barcelona:
J. M. Bosch Editor, S.A., 1994, p. 107.
125
FÍNEZ RATÓN, Garantias sobre cuentas y depósitos bancários, cit., p. 108.

47
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

compensação de créditos, deixando ao critério do Banco a apreciação da verificação dos factos


que, por força do acordo com o seu cliente, permitem a possibilidade de compensar 126.

Com efeito, é assaz comum a inclusão de cláusulas com o seguinte teor nos contratos
celebrados com os respectivos clientes:

Exemplo 1:
“O Banco fica, desde já, irrevogavelmente autorizado a proceder à compensação de quaisquer
dívidas vencidas emergentes deste Contrato com quaisquer saldos credores do Cliente em
contas abertas junto do Banco e de que seja titular, independentemente da verificação dos
pressupostos legais da compensação.”

Exemplo 2:
“Sem prejuízo da faculdade de exercer a compensação de créditos nos termos legalmente
previstos, é expressamente reconhecida ao Banco a possibilidade de extinguir, total ou
parcialmente, o crédito que detenha sobre o titular da conta ou qualquer um dos contitulares,
procedendo ao débito, sem necessidade de aviso prévio, das importância que lhe sejam devidas
por qualquer um dos referidos titulares da conta ou contitulares, em qualquer conta em que
qualquer deles seja titular único ou contitular.”

Exemplo 3:
3. Compensação
3.1. Para pagamento de quaisquer montantes, incluindo os resultantes de qualquer
Ultrapassagem de Crédito, juros, comissões, taxas, impostos ou quaisquer outros encargos ou
despesas legalmente admissíveis relativamente à Conta D/O, a qualquer das Contas Associadas
ou à execução de ordens, o Cliente autoriza o Banco a:
3.1.1. Debitar sem notificação prévia a Conta D/O, que se obriga a manter provisionada para o
efeito;
3.1.2. Debitar qualquer das Contas Associadas com depósitos a prazo ou qualquer Conta
Poupança ainda que o respetivo prazo não se tenha vencido;
3.1.3. Debitar qualquer outra conta D/O, de que seja ou venha a ser titular junto do Banco, ou
qualquer das respetivas Contas Associadas com depósitos a prazo ou Contas Poupança, ainda
que o respetivo prazo não se venha vencido;
3.1.4. Com 15 (quinze) dias de antecedência, e em seu nome e representação, vender a
totalidade ou parte das aplicações financeiras ou dos Instrumentos Financeiros que estejam
depositados ou registados em nome do Cliente nas Contas IFs ou em contas de regularização.
3.2. Qualquer penalização ou perda de juros que decorra da venda, levantamento ou resgate
de ativos, aplicações ou valores do Cliente, realizados pelo Banco ao abrigo dos poderes que
lhe são conferidos, são da responsabilidade do Cliente.
3.3. O disposto nos números anteriores é aplicável ainda que as obrigações do Cliente sejam
expressas em moeda diferente da moeda da Conta D/O (…).

126
BAENA BAENA, La compensación en las cuentas bancarias, cit., p. 53.

48
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Assim, tendo como pano de fundo extes exemplos e, sobretudo, o que vai dito nos parágrafos
anteriores a propósito da compensação, curaremos, no número seguinte, de procurar aferir da
função de garantia da compensação.

4.2. A função de garantia da compensação

I. Conforme demonstrámos, a compensação pode ser a forma de execução de uma garantia 127
– o penhor de créditos -, nada obstando a que desempenhe funções de garantia, pois, para
além de facilitar a extinção dos créditos, assegura ao credor um meio supletivo de realização
do seu crédito, porquanto este pode ser extinto não apenas pelo pagamento, mas através da
declaração de compensação com o contra-crédito que sobre ele tem o devedor 128. Com efeito,
a compensação tem consideração, sobretudo, o cumprimento 129. Não obstante, a
compensação tem uma natureza dupla, sendo, simultaneamente, um sucedâneo do
cumprimento e uma execução privada do crédito, pois pode operar contra a vontade da outra
parte 130, o que não significa, porém, que se trate uma mera simplificação do cumprimento 131.
Dito de outro modo, a compensação simplifica pagamentos, na medida em que evita
pagamentos recíprocos e garante pagamentos, uma vez que se o instituto não funcionasse,
estaria sempre latente o risco de não se ser integralmente pago caso ocorresse a insolvência
da contraparte 132.

Assim, e à guisa de síntese provisória, podemos dizer que o penhor de créditos confere um
direito na satisfação preferencial do crédito, cabendo à compensação a sua modalidade
arquetípica de execução, motivo pelo qual não poderá ser configurada como um direito real de
garantia 133. Vejamos porquê.

II. Atendendo à função que o direito é chamado a desempenhar, é comum distinguir entre:

(i) Direitos reais, os quais permitem o desfrute de uma coisa,

(ii) Os direitos reais de garantia, que visam a garantia de um crédito e

127
O que não implica, obviamente, que o credor pignoratício decida executar o penhor através da
compensação, preferindo, p. ex., accionar judicialmente o empenhador. Neste sentido, GARCIA VICENTE, La
prenda de créditos, cit., p. 144. Sobre as modalidades de execução do penhor de créditos, cfr. CARRASCO
PERERA/ CORDERO LOBATO/ MARÍN LÓPEZ, Tratado de los Derechos de Garantía, cit., pp. 889-892.
128
Assim, MENEZES LEITÃO, Garantias das Obrigações, 2.ª ed., cit. p. 315, FÍNEZ RATÓN, Garantias sobre cuentas y
depósitos bancários, cit., p. 132. Similarmente, ROMANO MARTÍNEZ/FUZETA DA PONTE, Garantias de cumprimento,
5.ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2006, p. 254.
129
Assim, p. ex., FIKENTSCHER/HEINEMANN, Schuldrecht, 10.ª ed., Berlim: De Gruyter Recht, Nm. 337.
130
FIKENTSCHER/HEINEMANN, Schuldrecht, cit., p. 329.
131
MEDICUS, Schuldrecht I – Allgemeiner Teil, 16.ª ed., Munique: Verlag C. H. Beck, 2005, p. 103.
132
PAULA PONCES CAMANHO, Do contrato de depósito bancário, cit., pp. 215-216.
133
Em sentido contrário, ISABEL FIGUEIREDO, A compensação como garantia de cumprimento das obrigações, cit.
p. 420, defendendo que a compensabilidade legal e convencional (mas não a compensação) é uma garantia
real, pois prevalece em caso de cessão, penhor, usufruto, penhora, insolvência ou outros direitos de terceiros
nos termos do disposto no artigo 853.º, número 2. Trata-se, salvo o devido respeito, de uma distinção
artificial, porquanto a compensabilidade mais não é do que a latência inerente ao potencial exercício do
direito potestativo atribuído às partes logo que estejam reunidos os requisitos da compensação.

49
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

(iii) Os direitos reais de aquisição, os quais visam a aquisição de um direito real de gozo ou
de um crédito relativo ao gozo de uma coisa, nos ónus reais que forem direitos
reais 134.

Ora, a essência do direito real de garantia incide na afectação da coisa ao crédito


“privilegiado”, dado que não estamos perante um direito assente na alienação da coisa 135. À
partida, poderíamos ser tentados a afirmar que o simples facto de o credor pignoratício ter o
poder de dar certa coisa à execução para depois levantar preferencialmente a parte do crédito
garantido sobre o produto da venda, seria suficiente para considerar que estamos defronte de
uma afectação real, que mais não é do que a vinculação da coisa ao crédito privilegiado e,
também, a tradução dos poderes atribuídos pelo ordenamento jurídico ao credor para este
poder mostrar que é titular de um direito real 136.

Com efeito, na compensação, por força do requisito da homogeneidade dos créditos, não
lidamos com uma afectação real ou, sequer, com um direito de preferência na satisfação de
um crédito. Limitamo-nos, pura e simplesmente, a lidar com um mecanismo que agiliza a
extinção de uma obrigação, facto que é manifesto na compensação convencional, dado que as
partes prevêem, por via de regra, a agilização e/ou simplificação do esquema legal da
compensação. Estamos, assim, perante um contrato de efeitos extintivos (“Erlaβvertrag”),
dado que cada uma das partes satisfaz o seu crédito, não havendo qualquer renúncia a uma
satisfação do crédito, dado que as partes limitam-se a recorrer a tipos contratuais próprios
para atingir esse desiderato 137. In casu, à modelação do instituto da compensação.
Efectivamente, o afastamento de alguns dos requisitos plasmados na lei é a tradução da
função de garantia do negócio que as partes visam atribuir à operação negocial, porquanto
tornam mais seguro, rectius, agilizam a possibilidade de o credor (por via de regra, o banco)
satisfazer o seu crédito.

Acresce ainda que, nos casos em que um banco intervém, lidamos com uma lógica
ligeiramente diversa: através do concurso do contrato de depósito irregular, que permite
operar a passagem dos bens empenhados para a propriedade do credor (banco), não estamos
perante a típica função de custódia que este contrato persegue. Com efeito, tal função é
transcendida pela garantia visada pelas partes, sendo que, adicionalmente, a cláusula de
compensação não deixa de assegurar a tutela do cliente, pois com a celebração do contrato de
depósito nasce um crédito referente à restituição do tantundem e a compensação, como

134
Trata-se, pois, de um critério implícito, que é o da função que o direito desempenha. Assim, OLIVEIRA
ASCENSÃO, Direito civil – Reais, 5.ª ed., p. 176.
135
Trata-se da posição sustentada entre nós por CARNEIRO PACHECO, Dos privilégios creditórios, 2.ª ed.,
Coimbra: França & Arménio, 1914, pp. 9 e segs. e 42 e segs, autor que defendia que o direito real de garantia
consistiria na alienação do valor da coisa, dado que o direito real de garantia se caracterizaria pela alienação
feita pelo credor preferencial do valor da coisa sobre que recai a preferência. À guisa de curiosidade, saliente-
se que não estamos perante uma teorização original. Veja-se, p. ex., CHIRONI, Tratatto dei privilegi, delle
ipoteche e del Pegno, Turim: Fratelli Boca Editori, Vol. I – Parte Generale, 1894, pp. 56 e segs.
136
PAULO CUNHA, Da garantia das obrigações, II, cit., pp. 131.
137
LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 266, HUBERT KADUK, Anotação prévia ao § 387 BGB, Nm. 71, in
STAUDINGER, cit.

50
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

vimos, não poderá exceder o montante da dívida. Trata-se, pois, de uma manifestação da
proibição do pacto comissório 138.

Contrariamente ao que sucede nas garantias especiais, a compensação não é acessória, dado
que não é dependente de uma dívida principal. Com efeito, na esteira de Becker-Eberhard,
diremos que nos direitos de garantia regulados pela Lei rege um princípio de ligação da
garantia ao crédito (“Prinzip der Forderungsgebundenen Sicherung”). Nestes casos, estamos
tendencialmente perante situações em que o direito de garantia se encontra numa situação de
dependência relativamente ao crédito 139, sendo certo que a referência que dita a ligação ao
crédito pertence à essência do fundamento do acto (“essentialia des Begründungsaktes”),
havendo a registar, ainda, uma dependência estrutural relativamente ao crédito (“Strukturelle
Abhänhigkeit”) 140. Nada disto se passa na compensação, pois não há qualquer acessoriedade
no momento da constituição ou, sequer, uma ligação ao crédito 141, porquanto, por definição, a
compensação é efectivada através de mera declaração.

A ser assim, resta-nos apenas o aparente Adamastor representado pelo artigo 853.º, número
2. Ora, o artigo em questão limita-se excluir a possibilidade de compensação nos casos em que
os direitos de terceiro tenham sido constituídos antes de os créditos se tornarem
compensáveis. Trata-se, pois, do respeito do princípio prior in tempore. Aliás, trata-se também
do motivo que permite justificar a subsistência/oponibilidade da compensação nos restantes
casos: o legislador limita-se a respeitar os créditos constituídos inicialmente, motivo pelo qual
nos casos em que os direitos de terceiro tenham sido constituídos após o momento em que
poderia ocorrer a compensabilidade, a compensação será eficaz e válida. Não se trata do
carácter absoluto do direito real de garantia, mas, pura e simplesmente, o respeito pelo
princípio prior in tempore 142.

138
O facto de estarmos perante uma figura de aplicação geral leva a que seja desnecessária a sua inclusão nos
eventuais traços da compensabilidade como garantia, argumentação que é levada a cabo por ISABEL
FIGUEIREDO, A compensação como garantia de cumprimento das obrigações, cit., p. 422.
139
A propósito, cite-se MEDICUS, Schuldrecht II – Besonderer Teil, 13.ª ed., Munique: Verlag C. H. Beck, 2006,
pp. 193-194, que, a propósito da fiança, distingue cinco graus de acessoriedade, a saber: no nascimento
(“Entstehung”), no conteúdo (“Inhalt”), na manutenção (“Zuständigkeit”), na execução (“Durchsetzung”) e na
extinção (“Erlöschen”). Trata-se, cremos, de uma teorização que pode ser exportada para outros direitos de
garantia. Efectivamente, já STEINMEYER, Die Akzessorischen Sculdverhältnisse des BGB, Göttingen, 1933, pp. 9-
10 houvera defendido que, a par de um conceito quadro (“Oberbegriffe”) de acessoriedade, poderíamos
distinguir dois conceitos inferiores (“Unterbegriffe”): a acessoriedade no nascimento e a acessoriedade plena.
A primeira seria uma acessoriedade limitada (“beschränkte Akzessorietät”) enquanto a segunda modalidade,
em virtude de cobrir as fases subsequentes ao nascimento seria uma acessoriedade ilimitada (“unbeschränkte
oder Strenge Akzessorietät”).
140
BECKER-EBERHARD, EKKEHARD, Die forderungsgebundenheit der Sicherungsrechte, Bielefeld: Verlag Ernst und
Werner Gieseking, 1993, cit., p. 7. Trata-se de uma teorização que, entre nós, encontra como defensor e
divulgador, JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória de dívida, cit., pp. 106-107.
141
Neste sentido, NICOLE CLAIRE-NDOKO, Les mystères de la compensation in RTDC 90 (1991), pp. 661-694 (p.
693) quando afirma que nem todas as garantias são garantias especiais (“sûretés”), sendo que a autora nega o
carácter de garantia real à compensação em virtude de esta não ser dotada de acessoriedade relativamente a
uma dívida principal.
142
Similarmente, ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações, Vol. II., 7.ª ed., cit., p. 213, salientando que o art.
853.º atribui importância decisiva não à declaração de compensação, mas ao momento em que os créditos se
tornam objectivamente compensáveis.

51
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Destarte, uma vez delimitados os termos em que a compensação é chamada a desempenhar


uma função de garantia no Direito substantivo, é chegada a altura de testar as soluções
provisórias a que chegámos à luz, designadamente, do CIRE.

4.3. O Regime do CIRE

I. O artigo 99.º, número 1 do CIRE veio admitir a possibilidade de, a partir da declaração de
insolvência, os titulares de créditos sobre a insolvência poderem operar a compensação dos
seus créditos com dívidas à massa insolvente desde que (i) tenha ocorrido o preenchimento
dos pressupostos legais da compensação antes da data da declaração da insolvência ou (ii) se o
crédito sobre a insolvência tiver preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos
estabelecidos no artigo 847.º 143. Trata-se, naturalmente de uma forma de extinção das
obrigações para além do cumprimento, com a particularidade de ser regida pelas normas que
regulam o processo insolvencial e não uma forma atípica de cumprimento, atento o facto de o
regime-padrão do CC continuar a ter de ser respeitado 144.

Trata-se de uma ruptura com o regime do CPEREF, dado que ao abrigo deste normativo os
credores perdiam o direito de proceder à compensação a partir da declaração de falência.
Todavia, estamos perante uma ruptura aparente 145, dado que no CPEREF os credores eram
citados de imediato aquando da declaração de falência, tendo, por conseguinte, tempo
suficiente para fazer valer o seu crédito. Ora, no CIRE a insolvência apenas é tornada pública
com a declaração da insolvência, motivo pelo qual o direito de compensar subsiste para além
da declaração de insolvência. Note-se, porém, que se trata de um direito condicionado, pois
apenas pode ser exercido nos casos previstos no artigo 99.º, número 1 e 4 do CIRE.

Em qualquer caso, a admissibilidade da compensação em sede insolvência representa um


afastamento do princípio da paridade de credores, dado que, com a declaração de
compensação, o declarante obtém em termos económicos o valor do seu crédito sendo
subtraído ao concurso de credores 146. Se é certo que estamos perante um desvio ao princípio
par condictio creditorum, afigura-se conveniente ter em linha de consideração que a
consagração desta possibilidade de compensar contribui igualmente para a estabilização do

143
Note-se que, de acordo com o número 2 do artigo 99 do CIRE, não relevam a perda de benefício de prazo
prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil ou o vencimento antecipado e a conversão em dinheiro
resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo 91.º e no artigo 96.º
144
Sustentando a existência de uma forma atípica de cumprimento, HUGO ROSA FERREIRA, Compensação e
insolvência, in Direito e insolvência (coordenação de Rui Pinto), Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 9-54 (pp.
38-39).
145
CATARINA SERRA, O novo regime português da Insolvência – uma introdução, 3.ª ed., Coimbra: Livraria
Almedina, 2008, p. 69. Sobre o regime da compensação na insolvência, cfr., por todos, ALEXANDRE SOVERAL
MARTINS, Um curso de direito da insolvência, Coimbra: Livraria Almedina, 2015, pp. 139 e segs.
146
MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 178. Acrescenta o autor,
op. cit., p. 171, que o declarante apenas terá necessidade de reclamar o seu crédito quando o valor do mesmo
ultrapasse o montante do crédito insolvente, sendo tal reclamação efetuada apenas pelo remanescente.
Similarmente, PESTANA DE VASCONCELOS, A cessão de créditos em garantia e a insolvência – em particular da
posição do cessionário na insolvência do cedente, cit, p. 919 (nota 1699). Salientando que a admissibilidade da
compensação no campo insolvencial representa um prémio para o devedor do insolvente moroso, cfr. MARIA
DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de direito da insolvência, 5.ª ed., cit., pp. 174-175. CATARINA SERRA, O regime
português da insolvência,3.ª ed., cit., pp. 91-92, entende que o direito do credor não é reforçado, sustentando
que tem de ser exercido na observância do princípio par condictio creditorum.

52
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

passivo do insolvente, dado que na eventualidade de os credores do insolvente poderem


recorrer ilimitadamente à compensação após a declaração da insolvência ditariam a
diminuição e, eventualmente, a extinção da própria massa insolvente 147.

A previsão do artigo 99.º do CIRE mais não é do que a tradução da actuação do mecanismo da
compensação, pois, como tivemos oportunidade de verificar, a compensação opera por
declaração, não havendo necessidade de obter a cooperação da contraparte. Ora, a questão
faz-se igualmente sentir com acuidade a propósito da compensação convencional. Tendo em
consideração que as partes podem afastar contratualmente alguns do requisitos da
compensação, é de crer que, mesmo nesses casos, a compensação apenas poderá operar em
sede de insolvência caso sejam observados todos os requisitos previstos no CIRE, pois, em caso
contrário, estaria aberta a possibilidade de, por mero contrato, existir o sério risco de a massa
insolvente ficar desprovida de bens.

II. Cabe igualmente ter presente que o artigo 99.º tem ínsita uma outra restrição: não pode
invocar a compensação de créditos sobre a insolvência o credor que não tenha visto o seu
crédito reconhecido em conformidade com o disposto nos artigos129.º e seguintes, do CIRE.

Com efeito, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas podem


exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do próprio CIRE. Se esta afirmação
pode, ictu oculi, parecer redundante, dela resulta que os credores, forçosamente, têm de
exercer os seus direitos no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados
no CIRE. Por conseguinte, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem,
na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os
direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que
sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo. Em suma,
decorre do artigo 99.º, número 1 do CIRE que apenas pode ser considerado titular de créditos
sobre a insolvência, quem como tal tenha sido reconhecido no processo de insolvência, sob
pena de não poder compensar créditos 148.

5. À guisa de conclusão

Chegados a este ponto, concluímos que a compensação, maxime a compensação


convencional, mau grado aumentar a probabilidade de satisfação na cobrança de créditos e
não depender da colaboração do devedor, apenas tem efeitos inter partes, motivo pelo qual
não pode ser considerada uma garantia real qua tale 149.

Em qualquer caso, e uma vez que a compensação opera por simples declaração, cumpre
salientar que tal situação consubstancia um desvio ao princípio par condictio creditorum, pois
permite a satisfação imediata do credor, importando a extinção de créditos. Neste particular,

147
PESTANA DE VASCONCELOS, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, cit., p. 871 (nota 1607).
148
Neste sentido, cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Janeiro de 2010 (Proc. N.º
20463/09.8YIPRT.C1.(GONÇALVES FERREIRA) (apud http://www.dgsi.pt/).
149
Assim, por exemplo, BAENA BAENA, La compensación en las cuentas bancárias, cit., p. 109.

53
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

convém não olvidar que o artigo 604.º apenas se refere à criação de outras causas de
preferência sobre os bens do devedor, impedindo a criação de outras para além das previstas
na lei. Com efeito, o legislador tem, sobretudo, em mente as garantias reais, sendo que nada
obsta a que as partes procurem uma tutela acrescida da posição do credor, o que ocorre nos
casos de compensação convencional.

A ser assim, somos do entendimento que o artigo 604.º tem, afinal, um âmbito de aplicação
assaz reduzido, dado que se centra, praticamente em exclusivo, nas causas de preferência
sobre os bens do devedor – maxime, direitos reais de garantia ou privilégios mobiliários gerais
– ou na existência de bens separados, admitindo a possibilidade de serem modelados
institutos típicos, dotando-os de funções de garantia 150, como é o caso da compensação
convencional.

No tocante ao regime insolvencial, se é certo que o artigo 99.º do CIRE consagra um desvio ao
princípio par condictio creditorum, também é igualmente certo que o regime aí previsto
respeita a configuração da compensação, dado que permite extinguir créditos
independentemente da vontade da contraparte. Aliás, o argumento utilizado em sede de
insolvência pode igualmente ser utilizado à luz do Direito substantivo, porquanto a declaração
de compensação permite a satisfação imediata do credor compensante em detrimento dos
demais credores.

Bibliografia sumária

ALVES, HUGO RAMOS – Sobre a função de garantia da compensação, in O Direito, ano 142,
2010 – V, pp. 1019-1956.

BAENA BAENA, PEDRO – La compensación en las cuentas bancárias, Madrid: Marcial Pons,
1999.

BECKER-EBERHARD, EKKEHARD – Die forderungsgebundenheit der Sicherungsrechte,


Bielefeld: Verlag Ernst und Werner Gieseking, 1993.

CLAIRE-NDOKO, NICOLE – Les mystères de la compensation in RTDC 90 (1991), pp. 661-


694.

CAMANHO, PAULA PONCES – Do contrato de depósito bancário (reimp.), Coimbra:


Livraria Almedina, 2005.

CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES – Da compensação no direito civil e no direito bancário,


COIMBRA: Livraria Almedina, 2003.

150
Seguimos, na íntegra, PESTANA DE VASCONCELOS, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, cit., 834-
859 (maxime, pp. 854-855).

54
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

CUTURI, TORQUATO – Trattato delle compensazioni nel diritto privato italiano. Milão:
Società Editrice Libraria, 1909.

FIGUEIREDO, ISABEL MOUSINHO – A compensação como garantia de cumprimento das


obrigações, in O Direito 139 (2007), pp. 380-437.

GERNHUBER, JOACHIM – Die Erfüllung und ihre Surrogate sowie das Erlöschen der
Schuldverhältnisse aus anderen Gründen, 2.ª ed., Tubinga: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1994.

GIULIANO, ENRICO – La compensazione – con particolare riguardo alle procedure


concorsuali, Milão: Giuffrè, 1955.

GOMES, JANUÁRIO DA COSTA – Contratos comerciais, Coimbra: Livraria Almedina, 2012.

LEITÃO, LUÍS MENEZES – Direito da Insolvência, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012.

MASCIANGELO/MORACAVALLO/VOMERO – La compensazione, in Tratatto delle


obbligazioni dirigido por LUIGI GAROFALO e MARIO TALAMANCA, Vol. III – I modi di
estinzione, Pádua: CEDAM, 2008, pp. 189-357.

MENDEGRIS, ROBERT – La nature juridique de la compensation, Paris: Librairie Générale de


Droit et de Jurisprudence, 1969.

PATTI, COSENTINO – La compensazione nei suoi aspetti giuridici, Nápoles: Jovene Editore,
1983.

PERLINGIERI, PIETRO – Modi di estinzione delle obbligazioni diversi dall’adempimento,Roma-


Bolonha: Nicola Zanelli, 1975.

PETRONE, MARIA – La compensazione tra autotutela e autonomia, Milão: Giuffrè, 1997.

Jurisprudência

A – SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 2008 (Proc. N.º 07B4401)


(PEREIRA DA SILVA) (apud http://www.dgsi.pt/)

Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Junho de 2009 (Proc. N.º 09A0662)


(MÁRIO CRUZ) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2013 (Proc. N.º


5478/06.6TVLSB.L1.S1) (SILVA GONÇALVES) (aupd http://www.dgsi.pt/).

55
DIREITO DAS GARANTIAS
2. Compensação voluntária e função de garantia da compensação

Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2013 (Proc. N.º


2/11.1TVPRT.P1.S1) (GRANJA DA FONSECA) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015 (Proc. N.º


91832/12.3YIPRT-A.C) (MOREIRA DO CARMO) (apud http://www.dgsi.pt/).

B – RELAÇÕES

Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Maio de 2004 (Proc. N.º 511/2004-7)


(JORGE SANTOS) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Dezembro de 2009 (Proc. N.º


436/07.6TBTMR.C1) (FALCÃO DE MAGALHÃES) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Janeiro de 2010 (Proc. N.º


20463/09.8YIPRT.C1) (GONÇALVES FERREIRA) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Setembro de 2012 (Proc. N.º


1622/12.2TBVCT.G1( (ROSA TCHING) (apud http://www.dgsi.pt/).

Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de Janeiro de 2013 (Proc. N.º


147/11.8TBGVA.C1) (TELES PEREIRA) (apud http://www.dgsi.pt/).

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/1iozxdigkh/flash.html

56
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

AS GARANTIAS ESPECIAIS NO REGIME DAS OBRIGAÇÕES HIPOTECÁRIAS (COVERED BONDS) 1

Filipe Santos Barata ∗

1. Delimitação conceptual.
2. Perfil funcional das obrigações hipotecárias.
3. Os pressupostos da emissão de obrigações hipotecárias.
4. Princípio da Afectação e da Segregação.
5. Os activos elegíveis como património autónomo.
6. O privilégio creditório especial conferido aos titulares das obrigações hipotecárias.
7. As obrigações hipotecárias como obrigações com garantia especial.
Anexo I.
Anexo II.
Vídeo.

1. Delimitação conceptual

As obrigações hipotecárias são um instrumento financeiro por excelência, largamente


divulgado e consagrado em regimes legais especiais nos diversos países da União Europeia
(“UE”). As obrigações hipotecárias são designadas e conhecidas, recorrendo à expressão anglo-
saxónica, como covered bonds, no sentido de obrigações a cujo cumprimento se encontram
associados activos especificamente afectos.

A figura das obrigações hipotecárias foi regulada pela primeira vez no ordenamento jurídico
nacional com o DL n.º 125/90, de 16 de Abril 2. Em 2006, este regime foi expressamente
revogado com a publicação do DL n.º 59/2006, de 20 de Março (doravante “LOH”). A LOH visou
a plena inserção deste instrumento financeiro num movimento a que podemos apelidar de
revitalização do mercado de dívida português 3.

Com a entrada em vigor da LOH, o mercado português de emissão de obrigações hipotecárias


sofreu de imediato uma dinamização, tendo sido aprovados diversos programas de emissões 4.

*Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Advogado GÓMEZ-ACEBO &
POMBO; Docente Universitário do ISEG, Universidade de Lisboa.
1
Texto que serviu de base à sessão de apresentação que decorreu no dia 22 de Maio de 2015, em Lisboa, no
Centro de Estudos Judiciários, no âmbito do Curso de Especialização Temas de Direito Civil e Processual Civil.
2
Com as alterações introduzidas pelo DL n.º 17/95, de 27 de Janeiro, pelo DL n.º 343/98, de 6 de Novembro e
pelo DL n.º 52/2006, de 15 de Março.
3
Sobre as obrigações sobre o sector público, cfr. FLORBELA DE ALMEIDA PIRES E FILIPE SANTOS BARATA,
Obrigações sobre o sector público – Alguns problemas, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos
Ferreira de Almeida, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 789-859.
4
Em 23 de Novembro de 2006, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. lançou um Programa de Emissões de
obrigações hipotecárias no valor de € 10.000.000.000,00. Posteriormente, em 9 de Novembro de 2007, o
Banco Espírito Santo, S.A. e o Banco Comercial Português, S.A. lançaram também um Programa de Emissões
de obrigações hipotecárias de igual valor. O Banco BPI, S.A. lançou igualmente um Programa de Emissão de
obrigações hipotecárias (€ 7.000.000.000), bem como a Caixa Económica Montepio Geral, em Novembro de
2008 (até € 5.000.000.000,00). Por último, o Banco Popular Portugal, SA publicou, em 30 de Junho de 2010, o
Prospecto base relactivo à admissão à negociação, em mercado regulamentado, de obrigações hipotecárias
ao abrigo de um programa no montante global € 1,500,000,000.

59
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Com a LOH, o legislador não procedeu a uma definição legal de “obrigações hipotecárias”.

Apenas com a Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, que alterou recentemente o Regime Geral
das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”, aprovado pelo Decreto-lei n.º
298/92, de 31 de dezembro) foi recentemente introduzida uma definição de “(…) obrigações
cobertas: as obrigações, nomeadamente hipotecárias (itálico nosso), emitidas por uma
instituição de crédito sediada num Estado membro da União Europeia, quando resulte das suas
condições de emissão que o valor por elas representado está garantido por activos que cubram
completamente, até ao vencimento das obrigações, os compromissos daí decorrentes e que
sejam afectos por privilégio ao reembolso do capital e ao pagamento dos juros devidos em
caso de incumprimento do emitente; (…)”.

Em primeira instância, falamos de “Obrigações”, uma vez que se trata de um instrumento de


dívida emitido por uma instituição de crédito que assegura o pagamento integral do capital
mutuado e de juros em condições definidas à data da emissão. O capital mutuado e os juros
surgem, nesta conformidade, como um dos principais direitos constitutivos da posição jurídica
do credor obrigacionista. As obrigações hipotecárias assumem os contornos das obrigações
clássicas, com a especificidade de as entidades emitentes terem que ser instituições de crédito
legalmente autorizadas pelo Banco de Portugal (“BP”), sendo o pagamento do capital e dos
juros uma obrigação decorrente da emissão e respectiva subscrição. Adicionalmente, têm a
especificidade de o pagamento de capital e de juros, devidos aos detentores das obrigações
hipotecárias, ser garantido por privilégio creditório especial.

Trata-se de obrigações que permanecem no balanço (on balance sheet) da entidade emitente,
sendo, assim, uma responsabilidade assumidamente sua, o que, aliado a uma estrutura legal
específica e à garantia da qualidade dos activos que lhes estão afectos, converte as obrigações
hipotecárias num instrumento de fácil implementação e muito atractivo, sobretudo devido às
elevadas notações de risco que lhe estão comummente associadas.

No entanto, convém esclarecer que a designação “obrigações hipotecárias” afigura-se-nos


equívoca na medida em que entendemos que não espelha correctamente a realidade
subjacente.

As obrigações hipotecárias são assim designadas pelo facto de serem garantidas por débitos
hipotecários constituídos por terceiros a favor da respectiva entidade emitente. As obrigações
hipotecárias não constituem, portanto, instrumentos de dívida garantidos por hipoteca
constituída pela entidade emitente ou por terceiros. Constituem, sim, um instrumento de
dívida que visa a captação de recursos financeiros, com base na afectação de créditos
hipotecários ou outros activos definidos por lei da titularidade da entidade emitente ao
respectivo reembolso, não sendo elas próprias garantidas por hipoteca.

Nos termos da LOH, a designação “obrigações hipotecárias” apenas poderá ser utilizada
relativamente às obrigações que cumpram os requisitos nela previstos (art. 1.º, n.º 3, da LOH).
No Direito Comunitário não existe qualquer instrumento legislativo que, expressamente,
regule a figura das obrigações hipotecárias e que trace os aspectos essenciais do seu regime,

60
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

sem prejuízo de os Estados-Membros, nos últimos anos, terem legiferado activamente no


sentido de consagrar nos ordenamentos jurídicos internos um regime especial para as
obrigações hipotecárias. Na actualidade, encontramos leis sobre obrigações hipotecárias na
maioria dos ordenamentos jurídicos europeus (Pfandbriefe alemãs, as Obligations Foncières
francesas, as Obbligazioni Bancarie Garantite italianas, as Cédulas Hipotecarias espanholas, as
Mortgage Cover Assets Securities irlandesas, as Realkreditobligationer dinamarquesas). O
ordenamento jurídico português não fugiu a essa regra.

A Directiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que


coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns
organismos de investimento colectivo em valores mobiliários, cuja alteração mais recente foi
efectuada pela Directiva 2014/91/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de
2014 (“Directiva OICVM”) não é uma directiva pensada para regular as obrigações hipotecárias
tendo antes por escopo regulamentar os Organismos de Investimento Colectivo em Valores
Mobiliários na UE e definir os montantes das participações patrimoniais de uma sociedade de
investimentos.

O art. 52.º, n.º 4 da Directiva OICVM assume particular relevância dado que contém uma
disposição especial para formas específicas de obrigações de dívida bancária, definindo os
pressupostos que as mesmas têm que cumprir de forma a poderem ser consideradas como
instrumentos de dívida seguros 5. Aliás, será o cumprimento dos requisitos traçados pelo art.
52.º, n.º 4, da Directiva OICVM que permitirá aos investidores sujeitos à supervisão do BP a
aplicação de uma ponderação de risco de 10%.

Dispõe o art. 52.º, n.º 4, da Directiva OICVM que “[O]s Estados-Membros podem elevar o limite
de 5% a que se refere o primeiro parágrafo do n.º 1 até um máximo de 25% no caso de
obrigações emitidas por uma instituição de crédito com sede estatutária num Estado- Membro
e sujeita por lei a supervisão pública especial destinada a proteger os detentores de
obrigações. Nomeadamente, os valores resultantes da emissão dessas obrigações devem ser
investidos nos termos da legislação aplicável a activos que, durante todo o período de validade
das obrigações, possam cobrir direitos relacionados com as mesmas e que, no caso de falência
do emitente, sejam utilizados prioritariamente para reembolsar o capital e pagar os juros
vencidos.(…)”.

De acordo com o disposto, podemos sintetizar as principais características das obrigações


hipotecárias como sendo as seguintes:

(1) Obrigações emitidas por uma instituição bancária europeia (“obrigações emitidas por
uma instituição de crédito com sede estatutária num Estado-Membro”);

(2) Em caso de incumprimento da entidade emitente, nomeadamente nas situações de


liquidação, os titulares das obrigações hipotecárias gozam de prioridade nos

5
Uma vez cumpridos estes requisitos, um Organismo de Investimento Colectivo (OIC) poderá investir num
volume mais elevado nestas obrigações, em comparação com obrigações bancárias sem cobertura.

61
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

pagamentos que lhes são devidos (“activos que […], no caso de falência do emitente,
sejam utilizados prioritariamente para reembolsar o capital e pagar os juros vencidos);

(3) Os fundos obtidos com a emissão de obrigações hipotecárias apenas poderão ser
investidos em activos elegíveis, a definir por lei (“os valores resultantes da emissão
dessas obrigações devem ser investidos nos termos da legislação aplicável a activos”);

(4) As pretensões dos titulares de obrigações hipotecárias devem estar garantidas por
activos elegíveis (“activos que, durante todo o período de validade das obrigações,
possam cobrir direitos relacionados com as mesmas”);

(5) A emissão de obrigações hipotecárias encontra-se sujeita a supervisão pública especial


(“uma instituição de crédito com sede estatutária num Estado-Membro e sujeita por lei
a supervisão pública especial destinada a proteger os detentores de obrigações.”). 6

Sempre que uma obrigação cumpra os critérios traçados pelo art. 52.º, n.º 4, da Directiva
OICVM, usufruirá de um tratamento preferencial, considerando-se que possui uma qualidade
mais elevada.

2. Perfil funcional das obrigações hipotecárias

Do ponto de vista da entidade emitente, a emissão de obrigações hipotecárias permite a


obtenção de financiamento em moldes relativamente baratos, uma vez que o risco com a
emissão das mesmas se encontra coberto por activos de qualidade devidamente
supervisionada.

Uma instituição de crédito que detenha créditos hipotecários e outros activos legalmente
elegíveis pode emitir obrigações hipotecárias, garantidas por esses activos subjacentes, as
quais serão subscritas pelos investidores interessados.

A entidade emitente obtém, deste modo, disponibilidades líquidas dos subscritores das
obrigações hipotecárias, com base numa antecipação temporal significativa relativamente à
recepção dos créditos vincendos, cujo prazo não tenha ainda atingido o seu termo 7.

As entidades emitentes vêem, mediante a emissão de obrigações hipotecárias, a possibilidade


de obterem fundos, de forma a fazerem face às necessidades de financiamento por prazos
relativamente longos. Os montantes recebidos com a emissão e respectiva subscrição habilita
os emitentes a utilizá-los em ajustamentos nas suas estruturas de capitais. Numa perspectiva
estritamente económica, as obrigações hipotecárias consistem numa modalidade de captação
de recursos com base na afectação de créditos garantidos por hipoteca e de outros activos
definidos pela LOH ao respectivo reembolso.

6
Cfr. Anexo I (síntese esquemática da emissão de obrigações hipotecárias).
7
CARLOS COSTA PINA, Instituições e Mercados Financeiros, Almedina, Coimbra, 2005, p. 472.

62
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Com a emissão de obrigações hipotecárias pode a entidade emitente obstaculizar a prolongada


imobilização decorrente da concessão de créditos hipotecários, desempenhando este
instrumento financeiro um papel crucial na dinamização do mercado imobiliário e da
actividade da entidade emitente.

Nesta conformidade, a emissão de obrigações hipotecárias constitui uma inegável modalidade


de financiamento das entidades emitentes, de modo a poderem continuar a conceder mais
crédito, apurando concomitantemente, e cada vez melhor, a qualidade dos créditos a conceder
aos seus clientes 8.

Em suma, as obrigações hipotecárias constituem um instrumento de dívida que permite a


captação de recursos, ao mesmo tempo que propiciam à entidade emitente uma diversificação
da respectiva carteira de clientes, constituindo uma forma estável e pouco onerosa de
financiamento.

Na perspectiva dos titulares das obrigações hipotecárias, vulgo investidores, torna-se aliciante
o investimento num produto financeiro que apresenta um risco reduzido, atendendo ao
sistema de protecção instituído na LOH, i.e., os activos de cobertura, no contexto da respectiva
emissão, constituem um património autónomo especialmente afecto ao cumprimento das
obrigações hipotecárias, com base num sistema de supervisão prudencial rigoroso, sendo-lhes
igualmente conferido um privilégio creditório especial.

A segurança inerente à emissão de obrigações hipotecárias apresenta-se como uma condição


fundamental para a confiança dos investidores, que, no fundo, assumem o papel de
financiadores da entidade emitente aquando da subscrição das obrigações hipotecárias. É
natural que, quanto mais elevado for o grau de confiança depositado pelos investidores numa
emissão de obrigações hipotecárias, ao qual a protecção conferida por um regime jurídico
sólido é indissociável, maior será o investimento. Consequentemente, mais elevado será o
refinanciamento e melhores serão as condições de concessão de empréstimos hipotecários por
parte da entidade emitente aos seus clientes.

Em suma, os investidores podem encontrar um produto financeiro de risco reduzido, sendo


que os recursos obtidos permitirão a dinamização do mercado imobiliário. Por outro lado,
atenta a liquidez que as obrigações hipotecárias apresentam, não podemos desconsiderar a
existência de um mercado secundário activo.

Acresce que a obrigação que impende sobre as instituições de crédito de constituir fundos
próprios, atendendo ao risco assumido pelos activos que constituem o balanço, e na medida
em que se cumpram os requisitos vertidos no art. 52.º, n.º 4, da Directiva OICVM, os critérios
de ponderação aplicáveis ao risco subjacente a obrigações hipotecárias são distintos quando
comparados com uma emissão de obrigações clássicas por parte das instituições de crédito.

8
Conforme expendem RALF GROSSMAN/OTMAR STÖCKER, Generica Section, European Covered Bond Fact
Book, European Covered Bond Council, 2.ª ed., 2007, pp. 65-76, p. 67, as obrigações hipotecárias conferem
aos emitentes um eficiente instrumento de financiamento a longo prazo (“an efficient long-term funding
instrument”) para as respectivas actividades de financiamento.

63
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

As obrigações que cumpram os requisitos vertidos no art. 52.º, n.º 4, da Directiva OICVM são
analisadas como detendo um perfil de risco atractivo, o que justifica a facilitação em termos de
limites prudenciais de investimento nesses instrumentos financeiros, o que constitui uma
vantagem para os subscritores de obrigações hipotecárias que sejam supervisionados pelo BP.

3. Os pressupostos da emissão de Obrigações Hipotecárias

A LOH define critérios subjectivos rigorosos quanto à legitimidade da respectiva entidade


emitente para efeitos de emissão de obrigações hipotecárias. Nos termos do referido diploma,
apenas poderão ser emitidas por instituições de crédito que:

(i) Estejam autorizadas a conceder créditos hipotecários (créditos garantidos por


hipoteca) e

(ii) Disponham de fundos próprios não inferiores a € 7.500.000 (sete milhões e


quinhentos mil euros) 9.

Em primeiro lugar, referimos que a entidade emitente deverá ser uma instituição de crédito.
Esta noção legal enquadra-se preferencialmente na noção de banco, instituição de crédito
paradigmática, de tipo universal, sem restrições ao pleno exercício da respectiva actividade
(art. 4.º, n.º 1, do RGICSF), por contraposição às demais instituições de crédito, que apenas
poderão efectuar as operações permitidas pelas normas legais e regulamentares que regem a
sua actividade (art. 4.º, n.º 2, do RGICSF).

A entidade emitente de obrigações hipotecárias deverá, por outro lado, estar autorizada a
conceder créditos hipotecários.

Uma das novidades da LOH foi a consagração das Instituições de Crédito Hipotecário – nova
espécie de Instituições de Crédito – como emitentes de obrigações hipotecárias, sendo que,
até à presente data, não temos conhecimento que tenha sido constituída nenhuma Instituição
de Crédito Hipotecário.

Não é aplicável à emissão de obrigações hipotecárias o disposto no art. 169.º do Código dos
Valores Mobiliários (“CVM”), ou seja, o lançamento de nova emissão não se encontra
dependente do pagamento prévio da totalidade do preço de subscrição ou da colocação em
mora dos subscritores remissos e do cumprimento das formalidades associadas à emissão ou a
séries anteriores.

A emissão de obrigações hipotecárias pode ser realizada por oferta pública (artigo 109.º do
CVM) ou particular ( art. 110.º, n.º 1, do CVM).

9
Art. 2.º da LOH.

64
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Em caso de oferta pública aplicar-se-ão às emissões de obrigações hipotecárias as disposições


do CVM 10 e, mais concretamente, a exigência de elaboração de Prospecto, nos termos do art.
134.º do CVM, e a intermediação financeira obrigatória 11. O Prospecto, tratando-se de oferta
pública de distribuição, está sujeito a aprovação por parte da Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários (“CMVM”) (art. 114.º, n.º 1, do CVM).

Acresce que a publicidade relativa a ofertas públicas, sujeita à aprovação prévia pela CMVM 12,
deve, segundo o previsto no art. 121.º, n.º 1, al. a), do CVM, obedecer aos requisitos
enunciados no art. 7.º do CVM, i.e., a informação publicitária respeitante a ofertas públicas de
valores mobiliários deve ser completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita.

No caso da oferta particular, não será aplicável à respectiva emissão a alínea l) do art. 3.º do
Código de Registo Comercial 13, que dispõe que se encontra sujeita a registo a emissão de
obrigações, quando realizada através de oferta particular (excepto se tiver ocorrido, dentro do
prazo para requerer o registo, a admissão das mesmas à negociação em mercado
regulamentado de valores mobiliários).

Não será igualmente aplicável às emissões de obrigações hipotecárias o disposto no Capítulo IV


(Obrigações) do Título IV (Sociedades Anónimas) do Código das Sociedades Comerciais ("CSC"),
referente à emissão de obrigações 14 por sociedades anónimas, não obstante a aplicação das
disposições relativas ao representante comum dos obrigacionistas 15.

As obrigações hipotecárias são transmitidas segundo o previsto no CVM, bem como de acordo
com os termos e condições aplicáveis ao Sistema de Depósito e Liquidação em que se
encontrem integradas (v.g. Interbolsa), sendo que a sua transmissibilidade, nos termos da LOH,
não se encontra sujeita a quaisquer restrições.

Nos termos da legislação e regulamentação em vigor, as obrigações hipotecárias podem ser


admitidas à negociação em mercado regulamentado 16. Tal como os demais valores mobiliários,
as obrigações hipotecárias, se admitidas à negociação em mercado regulamentado, são
obrigatoriamente integradas em sistema centralizado.

10
Art. 10.º, n.º 1, da LOH.
11
Dispõe o art.113.º do CVM que “as ofertas públicas relativas a valores mobiliários em que seja exigível
prospecto devem ser realizadas com intervenção de intermediário financeiro [...].”
12
Art. 121.º, n.º 2, do CVM. Segundo o art. 122.º do CVM, “quando a CMVM, após exame preliminar do
pedido, considere que a aprovação do prospecto ou o registo da oferta é viável, pode autorizar publicidade
anterior à aprovação do prospecto ou à concessão do registo, desde que daí não resulte perturbação para os
destinatários ou para o mercado”.
13
Código de Registo Comercial, aprovado pelo DL n.º 403/86, de 3 de Dezembro, na sua versão actualizada.
14
Arts. 348.º a 372.º do CSC. Efectivamente, não são aplicáveis às obrigações hipotecárias as restrições
previstas no art. 354.º do CSC relactivo à aquisição de acções próprias; no entanto, as obrigações
hipotecárias, enquanto estiverem na posse da entidade emitente não beneficiam do princípio da afectação e
segregação patrimonial, nem do privilégio creditório, nos termos do art. 21.º, n.º 1, da LOH. Por outro lado, os
direitos de crédito conferidos aos titulares de obrigações hipotecárias não têm que ser iguais (art. 348.º, n.º 1,
do CSC a contrario).
15
Arts. 355.º a 359.º do CSC, em conjugação com o art. 14.º da LOH.
16
Art. 13.º, n.º 1, da LOH.

65
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

A admissão em mercado regulamentado pressupõe também a elaboração de um prospecto,


nos termos do art. 236.º do CVM, que determina que o requerente deve divulgar um prospecto
aprovado pela CMVM, previamente à admissão de valores mobiliários à negociação.

As obrigações hipotecárias não podem ser emitidas com maturidade inferior a dois nem
superior a cinquenta anos 17.

As obrigações hipotecárias são obrigações não subordinadas, sendo-lhes conferido um


tratamento pari passu com todas as obrigações que venham a ser emitidas pela entidade
emitente.

O art. 16.º da LOH elenca os activos que poderão ser afectos às obrigações hipotecárias. Assim,
estas poderão ter subjacentes créditos pecuniários vincendos, que não estejam sujeitos a
condição ou onerados (dados em garantia, judicialmente penhorados ou apreendidos) da
titularidade da entidade emitente, garantidos por primeiras hipotecas sobre bens imóveis
destinados à habitação ou com fins comerciais situados num Estado-Membro da UE.

Assim, refere a LOH que os créditos deverão ser créditos pecuniários vincendos, ou seja,
créditos que ainda não tenham atingido a maturidade na data da respectiva inclusão no
património de cobertura das obrigações hipotecárias.

No que respeita aos créditos hipotecários, e à exigência de que os mesmos estejam garantidos
por primeira hipoteca, foi esclarecido pelo legislador que nada impede que sejam afectos
créditos garantidos por hipoteca de grau inferior, mas apenas na medida em que os créditos
que beneficiem de hipoteca de grau superior sobre o mesmo imóvel também sejam da
titularidade da entidade emitente e se encontrem igualmente afectos à garantia da mesma
emissão. Nos termos da LOH, o que releva para efeitos da respectiva elegibilidade é que a
primeira hipoteca tenha sido concedida a favor da entidade emitente e integre o leque de
activos afectos à cobertura das obrigações emergentes da emissão obrigacionista, tudo se
passando, nesta hipótese, como se de um mesmo grau se tratasse.

De acordo com a LOH, a noção de crédito abrange igualmente os créditos garantidos por fiança
prestada por uma instituição de crédito ou os créditos garantidos por contrato de seguro
adequado, em ambos os casos desde que os mesmos beneficiem de contragarantia por
hipoteca e preencham os requisitos supra descritos.

O art. 16.º, n.º 4, da LOH consagra um princípio de fundamental importância em sede de


emissão de obrigações hipotecárias – trata-se do princípio loan-to-value, tal como é conhecido
na gíria financeira, traduzindo o valor máximo que o empréstimo concedido por uma
instituição de crédito a um cliente pode ter em relação ao valor do imóvel oferecido em
garantia.

17
Art. 12.º da LOH

66
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Segundo este preceito, o valor de um crédito hipotecário afecto, como activo subjacente, a
uma emissão de obrigações hipotecárias não pode exceder o valor das hipotecas, nem:

(i) A percentagem de 80% do valor do bem hipotecado, no caso de imóveis destinados à


habitação, nem

(ii) 60% do valor do bem hipotecado, no caso de imóveis para fins comerciais.

A avaliação do valor dos bens hipotecados é, nos termos do art. 22.º, n.º 1, da LOH, e à
semelhança do que sucedia no regime anterior, da exclusiva responsabilidade da entidade
emitente de obrigações hipotecárias.

O Aviso do BP n.º 5/2006 18 regulamenta os termos da avaliação dos bens imóveis hipotecados
em garantia dos créditos afectos às obrigações hipotecárias, com o propósito de encontrar uma
harmonização das normas sobre a avaliação de garantias constituídas por bens imóveis e o
regime aplicável para outros fins prudenciais.

Nos termos da LOH, poderão igualmente ser afectos em garantia das obrigações hipotecárias
outros activos, a saber 19:

(i) Depósitos junto do BP, de moeda (dinheiro) ou títulos elegíveis no âmbito das
operações de crédito do Eurosistema;

(ii) Depósitos à ordem ou a prazo junto de outras instituições de crédito com notação de
risco (rating) igual ou superior a “A-”, ou equivalente, que, no entanto, não podem
estar numa relação de domínio ou de grupo com a entidade emitente de obrigações
hipotecárias;

(iii) Outros activos que preencham os requisitos de baixo risco e elevada liquidez, a
definir pelo BP 20.

No entanto, relativamente a estes, a LOH estabelece uma limitação relevante, i.e., a soma do
seu valor não pode exceder 20% do valor total do património afecto à garantia das obrigações
hipotecárias (o denominado asset cover) 21.

Outro aspecto de particular importância em sede de obrigações hipotecárias prende-se com a


possibilidade conferida pela LOH às entidades emitentes de contratarem linhas de crédito
irrevogáveis, de forma a fazerem face a necessidades temporárias de liquidez 22. Por exigência
legal, as linhas de crédito terão que ser contratadas com instituições de crédito com notação
de risco igual ou superior a “A-”, ou equivalente. A LOH esclarece que a finalidade exclusiva de

18
Publicado no DR n.º 196, 1.ª série, de 11 de Outubro de 2006.
19
Art. 17.º, n.º 1, da LOH, als. a) a c).
20
Relativamente a esta matéria, até à data da conclusão do presente texto, o BP ainda não tinha
regulamentado a alínea c) do art. 17.º da LOH.
21
Art. 17.º, n.º 3, da LOH.
22
Art. 18.º da LOH.

67
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

tais fundos será o “pagamento de reembolsos e juros devidos no âmbito das emissões de
obrigações hipotecárias” 23, uma vez mais sempre numa óptica de protecção dos credores
obrigacionistas.

A LOH, atendendo aos desenvolvimentos verificados no sector bancário, e à semelhança da


experiência consagrada noutros ordenamentos jurídicos, veio permitir a utilização de
instrumentos financeiros derivados para cobertura dos riscos cambiais, de taxa de juro ou de
liquidez 24 25. Nestes termos, e para os efeitos de cobertura de risco supra referidos – a saber,
risco de taxa de juro, cambial ou de liquidez – poderão ser celebradas operações sobre
instrumentos financeiros derivados:

(i) Num mercado regulamentado de um Estado membro da UE;

(ii) Num mercado reconhecido de um membro de pleno direito da Organização para a


Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE); ou

(iii) Que tenham por contraparte instituições de crédito com notação de risco igual ou
superior a “A-” ou equivalente (art. 20.º, n.º 2, da LOH).

Os instrumentos financeiros derivados fazem parte do acervo patrimonial afecto às respectivas


obrigações hipotecárias e devem ser considerados para efeitos do registo de cobertura (art.
20.º, n.º 1, da LOH) 26.

Estas operações terão em vista, sobretudo, ultrapassar situações de não convergência de prazo
e/ou de taxas de juro entre os créditos e as obrigações hipotecárias.

4. Princípio da Afectação e da Segregação

Para garantia das obrigações hipotecárias encontram-se afectos à referida emissão (i.e.,
compõem o respectivo acervo de activos subjacentes) os créditos hipotecários – incluindo o
produto de juros e reembolsos –, bem como outros activos, cuja elegibilidade se encontra
legalmente definida.
Deste modo, decorre da LOH um princípio de afectação nos termos do qual tanto os créditos
hipotecários (respectivos juros e reembolsos), como os outros activos se encontram especifica
e prioritariamente destinados ao cumprimento das obrigações assumidas perante os credores
obrigacionistas, constituindo este princípio um aspecto nuclear da respectiva garantia.

23
Art. 18.º, n.º 1, da LOH.
24
Cfr. Preâmbulo da LOH.
25
Nos termos do art. 20.º, n.º 3, da LOH, o BP pode definir, por Aviso, os termos em que os instrumentos
derivados serão considerados para efeitos do apuramento dos limites prudenciais (art. 19.º da LOH), ou impor
outras condições à utilização de instrumentos financeiros derivados. Até à presente data, o BP ainda não
regulamentou esta matéria, apesar de se encontrarem definidos no Aviso do BP n.º 6/2006, em cumprimento
do disposto no art. 23.º da LOH, os métodos de avaliação dos instrumentos financeiros derivados.
26
Nos termos do ponto n.º 9, al. d), da Instrução do BP n.º 13/2006, os instrumentos financeiros derivados
devem ser considerados pelo seu valor de mercado ou, na ausência deste, pelo valor calculado com base em
métodos de avaliação adequados.

68
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

A LOH exige, para efeitos dessa afectação, que os créditos hipotecários e os outros activos,
bem os instrumentos financeiros derivados, sejam adequadamente registados em contas
segregadas da entidade emitente 27 e identificados sob a forma codificada nos documentos das
respectivas emissões 28.

A emissão de obrigações hipotecárias é uma emissão no balanço (“on balance sheet”,


recorrendo à terminologia anglo-saxónica, que se nos afigura sugestiva). Este aspecto distingue
claramente a operação de emissão de obrigações hipotecárias das operações de titularização
de créditos.

5. Os activos elegíveis como património autónomo

Nos termos do disposto no art. 601.º do CC, “pelo cumprimento da obrigação respondem
todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente
estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (itálico nosso). A garantia geral
das obrigações é, assim, constituída por todos os bens que integram o património do devedor
(universalidade objectiva) 29 e que, na sua totalidade, respondem pelas respectivas dívidas.

No entanto, a regra indicada comporta excepções e o art. 601.º do CC acima transcrito dá-nos
conta disso. A doutrina distingue, a este propósito, a limitação legal e a limitação
convencional 30.

No que respeita à limitação do devedor de origem legal, a primeira excepção compreende os


bens insusceptíveis de penhora ou, por outras palavras, não se encontram incluídos na garantia
geral ou comum 31 das obrigações os bens ou direitos insusceptíveis de penhora, nos termos do
art. 601.º, 1.ª parte, a contrario 32. Por seu turno, a segunda excepção compreende regimes
especialmente previstos em consequência da separação de patrimónios. Estamos, nesta
segunda situação, perante um outro caso de limitação da garantia patrimonial, no sentido dos

27
Embora tal não decorra directamente da LOH, afigura-se-nos que a entidade emitente deverá internamente
criar grelhas contabilísticas adequadas para o efeito, devendo os activos elegíveis ser marcados nos sistemas
informáticos da mesma, permitindo a contabilização nas contas segregadas exigidas pela LOH, sendo que o
registo das cobranças efectuadas relativamente a capital e a juros deverá ser realizado numa conta interna ad
hoc.
28
Art. 4.º, n.º 3, da LOH e 20.º, n.º 5.
29
MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 1.º Vol., AAFDL, Lisboa, 2001, p. 167, seguindo de perto o
estudo de PAULO CUNHA, define património como um complexo de direitos e obrigações (avaliáveis em
dinheiro) que o Direito sujeita a um regime comum no que respeita a responsabilidade por dívidas. Este
autor, Tratado de Direito Civil Português–Parte Geral, Tomo II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 180, aponta um
conceito de património recorrendo a uma fórmula sintética: “massas de responsabilidade”.
30
ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10.ª ed. reelaborada, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 845 e 846.
Quanto à limitação convencional, cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 846-847.
31
JANUÁRIO COSTA GOMES, Assunção fidejussória de dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como
fiador, Coimbra, Almedina, 2000, p. 14, entende que a expressão garantia comum, por oposição à expressão
garantia geral, é mais enfática, uma vez que releva o princípio par condicio creditorum e a circunstância de a
garantia ser pertença de todos os credores; ou então, simplesmente, a expressão garantia patrimonial.
32
Os bens e direitos não susceptíveis de penhora são os previstos nos arts. 736.º e ss. do Código de Processo
Civil.

69
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

bens sobre os quais é possível incidir a execução, e não no sentido de limitação da


responsabilidade do devedor 33.

Como expende JANUÁRIO COSTA GOMES34, a vantagem do art. 601.º do CC traduz-se no facto
de este artigo fazer um “duplo rappel”, por um lado, entre a existência de bens que a lei
processual qualifica de impenhoráveis e, por outro, a existência de situações que a lei
substantiva define como de separação de patrimónios.

No regime das obrigações hipotecárias, em sede de garantia das obrigações assumidas no


contexto da respectiva emissão, o legislador consagrou o princípio de afectação ao
cumprimento das referidas obrigações de activos elegíveis para esse efeito, nos termos
descritos no capítulo anterior. Nesta medida, a noção doutrinária de património autónomo,
enquanto esquema de beneficiação de credores em termos de responsabilidade patrimonial,
assume uma importância fundamental.

Quanto ao conceito de património autónomo, MANUEL DE ANDRADE 35 analisa a possibilidade


de, dentro do acervo patrimonial de uma pessoa, poder existir uma espécie de “centro
patrimonial à parte” ou, até, de diversos centros patrimoniais similares, sendo que a este
complexo patrimonial à parte se dá o nome de património separado ou autónomo 36.

O critério apontado por MANUEL DE ANDRADE 37 para se reconhecer a existência de um


património autónomo, i.e., para sabermos se estamos perante um património distinto e
autónomo, sob a perspectiva do tratamento jurídico que lhe é conferido, é o da
responsabilidade por dívidas, ou seja, património autónomo será “o conjunto patrimonial a
que a ordem jurídica dá um tratamento especial, distinto do restante património do titular, sob
o ponto de vista da responsabilidade por dívidas”. Determinante será, então, que o património
em questão “só responda e responda só ele por certas dívidas”, tratando-se de um “complexo
patrimonial com dívidas próprias e privativamente suas, com dívidas que nele, e só nele, se
localizam, e que ao mesmo tempo se conserva imune a quaisquer outras responsabilidades do
titular 38.

33
Art. 601.º do CC, in fine. Assim se pronuncia ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 845.
34
MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção fidejussória de dívida..., ob. cit., p. 17.
35
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1992, p.
217 e ss.
36
Nas sugestivas palavras de FERRARA, apud MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral..., ob. cit., p. 217, trata-se
de um património “juridicamente distinto do restante património da pessoa, capaz de próprias relações e de
dívidas próprias, e insensível às flutuações e alternativas que atinjam o património que lhe está ao lado e em
cujo seio ele vive. O património separado é um centro autónomo que não tem outra relação com o
património que lhe está vizinho afora o liame extrínseco de ter o mesmo sujeito”.
37
MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral..., ob. cit., pp. 218, 219 e 220. Para este autor, Teoria Geral..., ob. cit.,
p. 219, para que se possa falar de uma verdadeira e própria autonomia, absoluta e integral, o património
deverá aparecer como “completamente separado”, formando um “compartimento estanque”, sendo que a
qualificação de património autónomo implica que uma determinada massa patrimonial só seja sensível a
certas dívidas, e não às outras dívidas do respectivo titular. O património principal ou geral permanece
estranho e insensível à primeira classe de obrigações. Não bastará que sobre um dado conjunto de bens
certas dívidas tenham um tratamento preferencial.
38
ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1995, p. 423, refere-se aos
casos em que a lei, dentro da massa de bens pertencentes a determinada pessoa (singular ou colectiva),
segrega uma parte deles para os submeter a uma afectação especial.

70
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Para MOTA PINTO 39, a existência de plena autonomia patrimonial exige o concurso de ambas as
características (só responder e responder só ele por certas dívidas), não bastando a verificação
de uma delas apenas.

As dívidas que são próprias de um património autónomo são as que se encontram em conexão
com a função específica desse mesmo património, com base numa afectação especial nos
termos da qual esse património foi criado, por contraposição à afectação geral do restante
património.

Finalmente, ALMEIDA COSTA 40 define património autónomo ou separado como aquele que
tem dívidas próprias, distinguindo entre situações de autonomia completa ou total de parcial
ou incompleta. Assim, a autonomia completa verifica-se quando “uma determinada massa de
bens está exclusivamente afectada ao cumprimento de certas dívidas” numa dupla perspectiva,
a saber:

(i) A massa de bens apenas responde por essas dívidas, e não por outros débitos do
titular do património autónomo, e

(ii) Por essas mesmas dívidas só ela responde, não se incluindo outros bens do seu
titular.

Nos termos do art. 4.º, n.º 2, da LOH, os créditos hipotecários e outros activos afectos às
emissões de obrigações hipotecárias, incluindo o produto dos respectivos juros e reembolsos,
constituem um património autónomo. Assumindo uma clara posição de protecção dos titulares
de obrigações hipotecárias, a LOH refere neste preceito que o património autónomo, composto
pelos referidos créditos hipotecários e outros activos, não responde por “quaisquer dívidas da
entidade emitente até ao pagamento integral dos montantes devidos aos titulares das
obrigações hipotecárias” 41. Este isolamento patrimonial, como facilmente se depreende,
apresenta vantagens inequívocas na garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela
entidade emitente perante os credores obrigacionistas e, consequentemente, no que à
notação de risco das emissões diz respeito.

Atendendo às considerações doutrinárias supra expendidas quanto à noção de património


autónomo, é nosso entendimento que o património autónomo consagrado na LOH constitui
um património autónomo imperfeito. Senão vejamos.

A responsabilidade pelas dívidas do património autónomo encontra-se afecta, prima facie, ao


cumprimento das obrigações hipotecárias e, num segundo plano, uma vez e apenas quando
satisfeitas as dívidas da entidade emitente de obrigações hipotecárias pode ser utilizado para
satisfação das dívidas dos demais credores da entidade emitente. Deste modo, se é certo que

39
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, ed. por António Pinto Monteiro e Paulo
Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 348, nota (408).
40
ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 845, referindo que “a lei admite diversas situações de
autonomia patrimonial”.
41
Art. 4.º, n.º 2, da LOH.

71
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

os créditos hipotecários e outros activos afectos ao cumprimento das obrigações hipotecárias


apenas respondem, em primeira instância, por essas dívidas, uma vez satisfeitas as obrigações
da entidade emitente perante os credores obrigacionistas e demais beneficiários, não é menos
verdade que o remanescente reverterá para o património geral da entidade emitente, uma vez
que os créditos afectos são pertença desta última. Quanto a este aspecto, a disponibilização do
património a favor dos credores gerais apenas ocorrerá uma vez extinta a afectação, sendo que
os bens deixam de constituir um património autónomo. Mas esta análise é parcelar, uma vez
que atende apenas ao cenário em que o património autónomo cumpre plenamente a sua
função, em virtude da suficiência dos créditos elegíveis especialmente afectos.

No entanto, e aqui sim reside o argumento que se nos afigura decisivo, em caso de
insuficiência dos activos compreendidos no património autónomo para efeitos de pagamento
de capital e juros aos titulares das obrigações hipotecárias, estes poderão concorrer na
qualidade de credores comuns com os restantes credores da entidade emitente, retirando-lhe,
quanto a nós, a natureza de património autónomo perfeito. Uma vez que o património geral da
entidade emitente se encontra, num segundo plano, à disposição dos titulares das obrigações
hipotecárias em caso de insuficiência do património autónomo, não podemos afirmar que as
dívidas da entidade emitente perante aqueles são dívidas pelas quais o património autónomo
responde e só ele responde, sem prejuízo de os credores obrigacionistas beneficiarem ex ante
de um património autónomo especialmente afecto ao cumprimento das suas dívidas.

Nesta medida, consideramos poder caracterizar este património, não como um património
absolutamente autónomo (como sucede com a herança), mas propendemos a qualificá-lo
como sendo autónomo imperfeito 42. MANUEL DE ANDRADE, a par da autonomia absoluta e
integral, não deixou de referir cenários de autonomia relativa ou parcial, com distintas
gradações 43.

Concluímos, portanto, no sentido da qualificação do património autónomo afecto ao


cumprimento das obrigações hipotecárias como um património autónomo imperfeito.

Sem prejuízo do exposto, o património autónomo, consagrado na LOH, ainda que imperfeito,
não perde a sua autonomia, constituindo uma efectiva garantia especial 44, na medida em que,
atenta a massa patrimonial em si mesma, os respectivos beneficiários têm acesso a esse acervo
patrimonial em pé de igualdade. A garantia dos credores obrigacionistas aparece, assim,
evidenciada, pois embora concorram com os demais credores, no âmbito do património geral
da entidade emitente (na situação de insuficência do património autónomo afecto), sempre
serão, com prioridade, beneficiários de um reforço específico dessa garantia que resulta da

42
Neste sentido, PEDRO FERREIRA MALAQUIAS, O Novo Regime Jurídico das Obrigações Hipotecárias,
Actualidad Jurídica, Uría Menéndez, Madrid, 2006 (número extraordinário), p. 102, que afirma, na linha do
que defendemos, que, se é certo que o património autónomo apenas responde pelas dívidas relativas às
obrigações hipotecárias, a responsabilidade por tais dívidas não se encontra limitada a esse património, uma
vez que, caso se revele insuficiente para dar cumprimento à satisfação dos credores obrigacionistas, estes
últimos sempre poderão exigir o pagamento, na qualidade de credores comuns, da parte insatisfeita dos seus
créditos ao restante património da entidade emitente.
43
MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral..., ob. cit., p. 220, embora o autor não deixasse de caracterizar este
tipo de autonomia patrimonial como tendo “natureza mal definível”.
44
MENEZES LEITÃO, Garantia das Obrigações, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 295.

72
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

circunstância de o património autónomo aparecer primordialmente afecto à satisfação dos


respectivos créditos, em cumprimento das obrigações da entidade emitente emergentes da
emissão de obrigações hipotecárias 45. Assim sendo, embora imperfeito, o património
autónomo com esta configuração surge como mais vantajoso para os investidores,
precisamente atendendo ao double recourse que lhe está subjacente.

Outra questão que se poderá colocar prende-se com a configuração deste património
autónomo como um património estático ou como um património dinâmico.

No nosso entendimento, o património autónomo afecto ao cumprimento das obrigações


hipotecárias não constitui um património estático, antes adquirindo uma configuração
dinâmica, na medida em que, caso os créditos hipotecários, incluindo os juros, bem como os
outros activos afectos às obrigações hipotecárias, se revelem insuficientes, a entidade emitente
poderá afectar novos créditos, registando-os em contas segregadas, de forma a assegurar o
pagamento aos investidores, com base num mecanismo de substituição que operará durante a
vida das obrigações hipotecárias.

Tal configuração dinâmica tem por objectivo tornar as obrigações hipotecárias avessas ao risco
do incumprimento das obrigações da entidade emitente perante os credores obrigacionistas, a
saber, o pontual pagamento do capital e dos juros que se encontrem em dívida. O
cumprimento das obrigações da entidade emitente perante os titulares das obrigações
hipotecárias mantém-se, com prioridade, até à excussão dos créditos destes últimos, não
respondendo o património autónomo, conforme analisámos supra, por quaisquer outras
dívidas até à referida excussão. A letra da lei aponta claramente nesse sentido, nomeadamente
atento o facto de o art. 4.º, n.º 3, da LOH referir expressamente que os créditos e outros
activos que em cada momento integrem o património autónomo devem ser registados em
contas segregadas da entidade emitente, de forma a cumprirem a sua função.

Nos termos da Instrução do BP n.º 13/2006, as instituições de crédito emitentes de obrigações


hipotecárias deverão enviar ao BP, com a antecedência de um mês relativamente à data da
emissão:

(i) Um relatório previsonal com a descrição da organização e política de gestão dos


riscos inerentes ao património autónomo afecto às obrigações, indicando, em
particular, os procedimentos ou modelos de gestão de risco e de controlo de
eventuais desfasamentos entre activos e passivos; e

(ii) No contexto da definição do portfolio inicial associado à emissão, indicar a


composição prevista do património autónomo e outros elementos que demonstrem
o cumprimento do regime prudencial aplicável.

A composição previsional do património autónomo para efeitos de emissão de obrigações


hipotecárias, bem como os outros elementos que demonstrem o cumprimento do regime

45
MENEZES LEITÃO, Garantia das Obrigações, ob. cit., p. 296.

73
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

prudencial aplicável, deverá ser posteriormente aferida, devendo ser novamente enviado ao BP
o detalhe relativo à composição do património afecto às obrigações hipotecárias pelas
instituições de crédito emitentes com a antecedência mínima de cinco dias úteis relativamente
à data daquelas emissões 46 47.

O órgão de administração deverá, relativamente às informações relativas ao património


autónomo supra referidas, remeter ao BP uma declaração que ateste que se encontram
preenchidos todos os requisitos aplicáveis. Estes requisitos respeitam ao registo do património
autónomo nos termos legais e regulamentares 48. Por outro lado, o BP deverá igualmente
receber um parecer do auditor independente que certifique as asserções do órgão de
administração na sua declaração.

Em caso de divergência entre o parecer emitido pelo auditor independente (a ser comunicado
com a antecedência de cinco dias úteis em relação à data da emissão) e a composição
previsional do património autónomo (comunicada ao BP com a antecedência de mínima de um
mês em relação à referida data), será necessário proceder-se à revisão deste parecer 49.

Houve, por parte do BP, o reconhecimento de que se tornaria praticamente impossível com a
antecedência de um mês fixar de forma definitiva a composição final do património autónomo.
No entanto, a exigência de novo dever de informação, cinco dias antes da emissão, também
não parece resolver o problema da “cristalização” do referido património. Parece-nos
indubitável que o BP pretende receber a informação relevante sobre os créditos afectos com a
maior antecedência possível, salvaguardando-se o princípio da transparência ao nível da
emissão. No entanto, não podemos ignorar as exigências burocráticas inerentes à solução
legalmente consagrada, nomeadamente o facto de ser necessário duplicar o parecer do auditor
independente para este efeito, num contexto em que a composição do património autónomo
pode ser alterada pela entidade emitente, com base na substituição de créditos.

Em suma, é nosso entendimento que a LOH veio consagrar um património autónomo


(imperfeito) afecto ao cumprimento das obrigações assumidas pela entidade emitente perante
os credores obrigacionistas, património esse que adquire uma configuração dinâmica em
função do mecanismo de substituição dos créditos hipotecários e outros activos especialmente
afectos à emissão previsto na lei.

Em caso de não verificação dos limites prudenciais fixados nos arts. 19.º, n.º 1 a 3 e 16.º, n.º 4
da LOH – princípio loan-to-value – ou em caso de suspeição da ultrapassagem dos referidos

46
N.º 2.2. da Instrução do BP n.º 13/2006. Cfr. o Relatório Final sobre a Consulta Pública n.º 1/2006, onde se
reconhece expressamente as dificuldades práticas de, com a antecedência de um mês, fixar ou cristalizar,
com o detalhe requerido, a composição do património autónomo a afectar às obrigações.
47
Note-se que, no que diz respeito a emissões subsequentes, não integradas em programa de emissões
anterior, deverão as instituições de crédito enviar ao BP a composição previsional do património autónomo e
outros elementos que demonstrem o cumprimento do regime prudencial aplicável (no prazo de um mês e
nos cinco dias úteis relativamente à data da emissão respectivamente), bem como declaração e parecer do
auditor independente.
48
N.º 3 da Instrução do BP n.º 13/2006.
49
N.º 3, 2.ª frase, da Instrução do BP n.º 13/2006.

74
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

limites, o art. 21.º da LOH determina que a entidade emitente deverá lançar imediatamente
mão das seguintes medidas correctivas:

(i) Afectar novos créditos hipotecários, com ou sem substituição dos créditos
hipotecários afectos às obrigações hipotecárias;

(ii) Adquirir as obrigações hipotecárias no mercado secundário 50;

(iii) Afectar outros activos (que não créditos hipotecários), sempre com respeito pelos
limites previstos na LOH, ou seja, de forma a que o valor total dos referidos activos
não exceda 20% do valor total do acervo patrimonial afecto à garantia das obrigações
hipotecárias.

6. O privilégio creditório especial conferido aos titulares das obrigações hipotecárias

A obtenção de crédito desde sempre esteve associada à capacidade de o devedor cumprir


tempestivamente com as suas obrigações, não se compadecendo com a mera palavra de
honra. A relação de confiança encetada entre credores e devedores exige a afectação de bens
do devedor, de forma a assegurar o pontual cumprimento das respectivas obrigações. As
garantias associadas ao crédito desempenham, portanto, um papel de fundamental
importância.

A emissão de obrigações hipotecárias não foge a esta realidade. Reconhecendo a necessidade


de proteger os credores obrigacionistas no âmbito da emissão e até à maturidade da mesma, o
legislador consagrou um mecanismo legal capaz de assegurar o cumprimento das obrigações
assumidas pela entidade emitente perante os credores obrigacionistas, de forma a dotar o
mercado, vulgo investidores, da necessária confiança. A susceptibilidade de liquidação da
entidade emitente justifica, no limite, esta preocupação, sendo portanto nesse cenário que a
protecção conferida pela LOH se coloca com maior acuidade.

Para os investidores em obrigações hipotecárias é essencial compreender qual é a real


protecção que lhes é conferida aquando da emissão e respectiva subscrição de obrigações
hipotecárias, i.e., identificar exactamente a garantia de que beneficiam e o objecto sobre o
qual ela incide.

Nesta decorrência, para além da regra geral de que todos os bens compreendidos no
património do devedor respondem pela totalidade das suas dívidas, salvo os casos de limitação
legal (ou convencional), e da qual a separação de patrimónios é uma excepção, o art. 604.º, n.º

50
A aquisição de obrigações hipotecárias conduz à diminuição do valor dos empréstimos consubstanciados
nessas obrigações. Nessa medida, enquanto as mesmas se mantiverem na esfera jurídica da entidade
emitente, ocorrendo confusão (temporária) entre credor e devedor, não beneficiarão, nos termos do art.
21.º, n.º 2, da LOH do princípio da separação e segregação patrimonial do privilégio creditório especial. No
mesmo sentido, embora se pronunciando acerca do regime anterior, cfr. ARMINDO RIBEIRO MENDES, Um
novo instrumento financeiro: as obrigações hipotecárias, Revista da Banca, N.º 15, Julho-Setembro, Lisboa,
1990, p. 95 e nota (48).

75
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

1, do CC prevê que, havendo concurso de credores do mesmo devedor, e não existindo causas
legítimas de preferência, os credores têm direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço
dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação do seu crédito.

Consagra-se, assim, uma outra perspectiva no que à garantia geral do património do devedor
diz respeito, ou seja, a garantia do património do devedor constitui uma garantia comum a
todos os credores, dado que todos eles possuem uma garantia no património daquele –
princípio do par conditio creditorum. No entanto, a lei ressalva as chamadas causas legítimas
de preferência que, são, inter alia, para além da separação de patrimónios analisada, os
privilégios creditórios conferidos por lei, que atribuem ao credor que delas beneficie o direito
de ser pago com prioridade relativamente aos restantes credores do mesmo devedor sobre o
valor de todos os bens ou de certos bens daquele 51.

O art. 733.º do CC define o privilégio creditório como a faculdade que a lei, em atenção à causa
do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com
preferência relativamente a outros 52 53. Todos os privilégios têm fonte legal, não existindo
privilégios nascidos de negócio jurídico 54, estando a ratio da sua consagração ligada ou à
qualidade dos credores, ou à natureza do crédito em si mesmo.

O efeito da preferência conferido manifesta-se quando é intentada acção executiva em que são
penhorados os bens sujeitos à garantia, sendo que só nesse momento o credor poderá fazer
valer o seu direito.

Nos termos da LOH, os titulares de obrigações hipotecárias gozam de privilégio creditório


especial sobre os créditos hipotecários que lhes subjazem, bem como sobre os outros activos
(itálico nosso), com precedência sobre quaisquer outros credores, para efeitos de reembolso
do capital e recebimento dos juros correspondentes às obrigações hipotecárias.

51
O art. 604.º, n.º 2, aponta ainda como causas de preferência a consignação de rendimentos, o penhor, a
hipoteca e o direito de retenção.
52
Sobre os privilégios creditórios no direito português, vide VAZ SERRA, Privilégios, BMJ, N.º 64, 1957, pp. 41-
337; SALVADOR DA COSTA, O concurso de credores, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 163-212; ANTÓNIO
SILVA RITO, Privilégios creditórios na nova legislação sobre recuperação e falência da empresa, RB, N.º
27,Lisboa, Julho-Setembro 1993, pp. 93-106; MIGUEL LUCAS PIRES, Dos Privilégios Creditórios: Regime
Jurídico e sua influência no Concurso de Credores, Almedina, Coimbra, 2005; ALMEIDA COSTA, Direito das
Obrigações, ob. cit., pp. 959-973; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª ed., Almedina,
Coimbra, 1995, pp. 571-577; A. LUÍS GONÇALVES, Privilégios creditórios: Evolução Histórica. Regime. Sua
inserção no tráfico creditício, BFDUC, Vol. LXVII, 1991, pp. 29-46; MENEZES LEITÃO, Garantia das Obrigações,
2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, pp. 233-239; OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil. Reais, 5.ª ed. (reimp.),
Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 140 e ss.; MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, Lex, Lisboa, 1993, pp. 768-
770.
53
Conforme refere ANTÓNIO SILVA RITO, Privilégios creditórios..., ob. cit., pp. 93-94, a lei pode conceder a
determinados credores a faculdade de serem pagos com preferência a outros, atendendo à causa do crédito.
Trata-se de um desvio relativamente à regra da par conditio creditorum e daí entender-se que as disposições
que criam privilégios são sempre de natureza excepcional. Segundo este Autor, “por via excepcional surge a
figura dos credores privilegiados, expressão que prefiro substituir por créditos privilegiados, pois é a
ponderação da natureza e da origem do crédito que motiva o legislador a criar a sua especial protecção
jurídica e não qualquer consideração relacionada com o titular do crédito”.
54
ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, ob. cit., p. 571.

76
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Assim sendo, atendendo à causa do respectivo crédito, os credores obrigacionistas no âmbito


da emissão de obrigações hipotecárias, são pagos de forma preferencial relativamente aos
demais credores da entidade emitente.

Na linha do previsto no art. 733.º do CC (“independentemente de registo”), dispõe a LOH que o


privilégio creditório não se encontra sujeito a registo 55.

A LOH, contrariando o regime anterior, não exige que os créditos hipotecários afectos ao
cumprimento das obrigações hipotecárias sejam registados na conservatória do registo predial,
aquando da inscrição da respectiva hipoteca 56.

A LOH confere aos titulares das obrigações hipotecárias um privilégio creditório especial sobre
os créditos hipotecários subjacentes à emissão de obrigações hipotecárias, bem como sobre os
outros activos que integram o património autónomo.

Acresce que o referido privilégio creditório é extensível às contrapartes das operações sobre
instrumentos financeiros derivados no que diz respeito aos créditos emergentes dessas
operações 57.

Por outro lado, importa também salientar, a respeito do privilégio creditório especial, que a
remuneração do representante comum dos obrigacionistas, os custos e encargos subjacentes
ao exercício das respectivas funções, bem como as despesas de convocação e realização de
assembleias de obrigacionistas, quando incorridas em cumprimento das condições da emissão,
constituirão encargos do património autónomo e também beneficiam, consequentemente, do
privilégio creditório consagrado na LOH 58.

A LOH não estendeu este privilégio creditório às entidades financeiras que concedam linhas de
crédito irrevogáveis à entidade emitente, de forma a superar situações temporárias de liquidez.
Esta ausência de previsão legal, no nosso entendimento, poderá colocar alguns problemas de
ordem prática no que diz respeito à obtenção do referido financiamento, sendo certo que a
própria LOH exigiu uma determinada notação de risco à entidade financiadora, de certa forma
impondo requisitos adicionais que deverão ser necessariamente respeitados, sem que
correlativamente lhes tenha atribuído qualquer garantia especial. No entanto, entendemos que
a não extensão do privilégio creditório especial a estas entidades se deve essencialmente ao
facto de se tratar de instituições que, no contexto da operação de emissão de obrigações
hipotecárias, assumem uma função circunscrita no tempo, sendo participantes ocasionais que
poderão eventualmente surgir (caso se coloquem questões de liquidez), mas que tenderão a
desaparecer num curto espaço de tempo, em virtude do reembolso da dívida contraída.

O privilégio creditório especial também não foi conferido pelo legislador nacional à instituição
de crédito designada para efeitos de gestão do património autónomo, em caso de liquidação

55
Art. 3.º, n.º 3, da LOH.
56
Assim previa o art. 6.º, n.º 3, do DL n.º 125/90, de 16 de Abril.
57
Art. 20.º, n.º 3, da LOH.
58
Art. 14.º, n.º 6, da LOH.

77
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

da entidade emitente. É nosso entendimento que o legislador, em futuras alterações à LOH,


deveria consagrar expressamente a extensão do referido privilégio creditório a esta última
entidade, sob pena de se suscitarem obstáculos práticos não despiciendos, a saber, a
dificuldade de se encontrar no mercado uma instituição de crédito que aceite ser responsável
pela gestão do património autónomo, sem ter uma posição pelo menos paritária com os
titulares das obrigações hipotecárias, contrapartes dos instrumentos financeiros derivados e
representante comum dos obrigacionistas.

O art. 735.º do CC admite duas modalidades de privilégios: por um lado, os privilégios


mobiliários, que poderão ser gerais ou especiais e, por outro, os privilégios imobiliários, sendo
que relativamente a estes últimos apenas encontramos no CC privilégios especiais 59.

Os privilégios mobiliários serão especiais ou gerais, consoante abranjam o valor da totalidade


dos bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora, ou incidam apenas
sobre certos e determinados bens móveis.

O privilégio conferido aos titulares das obrigações hipotecárias é um privilégio mobiliário


especial 60, uma vez que abrange apenas os bens compreendidos no património autónomo
afecto à emissão de obrigações hipotecárias, não abrangendo todo o património da
titularidade do devedor 61. É precisamente atendendo ao conjunto de créditos afectos à
emissão de obrigações hipotecárias, e à relação de especial e indissociável ligação que se
consagra o referido privilégio creditório especial a favor dos respectivos titulares, apenas
respondendo pelo cumprimento das obrigações hipotecárias os créditos afectos registados em
contas segregadas da entidade emitente. O privilégio creditório traduz-se, assim, no direito que
assiste aos credores obrigacionistas no âmbito de emissões de obrigações hipotecárias de
serem pagos com preferência relativamente aos demais credores da entidade emitente, em
caso de liquidação, sendo que, após o integral pagamento desses créditos, o eventual
remanescente deverá ser devolvido à massa insolvente, a fim de satisfazer os créditos dos
credores comuns da referida entidade. Note-se que também os credores obrigacionistas, em
caso de insuficiência do património autónomo para efeitos de satisfação dos créditos
respectivos, poderão recorrer ao restante património da entidade emitente, embora na

59
Sobre a consagração de privilégios imobiliários em legislação avulsa, vide, ALMEIDA COSTA, Direito das
Obrigações, ob. cit., p. 961, nota (4) e p. 962. De facto, embora o art. 735.º do CC refira que os privilégios
imobiliários são sempre especiais, o certo é que encontramos em legislação avulsa privilégios imobiliários
gerais.
60
RUI PINTO DUARTE, Curso de Direitos Reais, Principia, 2007, p. 247, refere os privilégios creditórios
especiais inerentes às obrigações hipotecárias (privilégios mobiliários) que conferem preferência sobre os
créditos hipotecários afectos (bem como sobre outros tipos de direitos), mencionando este autor que o
privilégio concedido apresenta uma “invulgar estrutura”.
61
Discordamos assim de LUCAS PIRES, Dos Privilégios Creditórios..., ob. cit., p. 339, que afirma que este
privilégio se deve qualificar como imobiliário (por incidir sobre a coisa hipotecada) e especial (por se
circunscrever a esse mesmo objecto). De facto, se a qualificação como privilégio especial nos parece
adequada, já a qualificação feita pelo autor de que se trata de um privilégio imobiliário nos suscita as Maiores
dúvidas nomeadamente quando este autor afirma que a qualificação como privilégio imobiliário reside na
circunstância de que apenas hipotecas sobre imóveis podem ser objecto de obrigações hipotecárias. Já
SALVADOR DA COSTA, O concurso de credores, ob. cit., pp. 194-195, o qualifica (bem, no nosso entender),
como privilégio mobiliário especial.

78
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

qualidade de credores comuns, concorrendo em igualdade de circunstâncias com os demais


credores que se encontrem na mesma posição.

Neste âmbito gostaríamos ainda de chamar a atenção para uma disposição de particular
importância em sede de obrigações hipotecárias que prevê que as hipotecas que garantam os
créditos (hipotecários) prevalecem sobre quaisquer privilégios creditórios imobiliários 62 63.

Nos termos do art. 686.º do CC, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor
de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com
preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de
registo 64.

A hipoteca é um direito real de garantia que permite ao credor hipotecário ser ressarcido
através da realização do valor do bem imóvel ou coisa equiparada sobre os quais incide 65.

Enquanto garantia, a hipoteca é um direito acessório, acompanhando a obrigação garantida,


extinguindo-se com a extinção daquela (art. 730.º do CC). A eficácia da hipoteca (não a sua
validade), mesmo em relação às partes, fica dependente de registo (art. 687.º do CC).

A referida disposição, especialmente prevista na LOH, que prevê que as hipotecas que
garantam os créditos (hipotecários) prevalecem sobre quaisquer privilégios creditórios
imobiliários, vem consagrar um desvio relativamente ao regime traçado no art. 751.º do CC,
que prevê que os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o
prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao
direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores, contrariando a regra geral
vertida no CC de que os privilégios imobiliários prevalecem sobre qualquer hipoteca (ainda que
anterior) 66.

62
Art. 3.º, n.º 2, LOH.
63
ARMINDO SARAIVA MATIAS, Direito Bancário, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 107, refere, a este
respeito, que as obrigações hipotecárias são dotadas de uma dupla garantia: por um lado, são dotadas de
privilégio creditório especial e, por outro, as hipotecas que as garantem prevalecem sobre quaisquer
privilégios creditórios imobiliários.
64
A hipoteca a que nos reportamos é a hipoteca convencional, que resulta de contrato entre o credor e quem
se encontre legitimado para constituir a garantia real sobre os bens, sem prejuízo da existência de outras
duas espécies de hipoteca, a saber, a hipoteca legal e a judicial. Sobre a Hipoteca no direito português, cfr.
VAZ SERRA, BMJ, N.º 62, pp. 5-356 e BMJ N.º 63, Janeiro – Fevereiro, 1957, pp. 193-396; ALMEIDA COSTA,
Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 936-959; ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações I, ob cit., pp. 549-571;
A. SANTOS JUSTO, Direitos Reais, ob. cit., pp. 468-477; RUI PINTO DUARTE, Direitos Reais, ob. cit., pp. 217-
228; PEDRO ROMANO MARTINEZ/FUZETA DA PONTE, Garantias de cumprimento, 5º ed., Coimbra, Almedina,
2006, pp. 189-207; MARIA ISABEL HEBLING CAMPOS, Da Hipoteca – Caracterização, Constituição e Efeitos,
Almedina, Coimbra, 2003; MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, ob. cit., pp. 754-766; OLIVEIRA ASCENSAO,
Direito Civil. Reais, ob. cit., pp. 545 e ss.
65
Conforme notava VAZ SERRA, Hipoteca, BMJ, n.º 62, pp. 5 e ss., a hipoteca sempre esteve associada à tutela
do crédito, “facilitando ao proprietário com base nos seus bens imobiliários, a aquisição de crédito, que lhe
permita, com o mínimo de encargos e pelo prazo conveniente, dispor dos capitais de que carece para
desenvolver o aproveitamento do solo”.
66
MIGUEL LUCAS PIRES, Dos Privilégios Creditórios..., ob. cit., p. 399, considera que a prevalência consagrada
na LOH é uma “circunstância que acarreta um prejuízo para os credores dos ditos privilégios”.

79
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

De acordo com o regime geral, a hipoteca cede perante os privilégios imobiliários (art. 751.º do
CC), o direito de retenção (art. 759.º, n.º 2, do CC) e os privilégios mobiliários por despesas de
justiça (art. 746.º do CC). Por força da LOH, as hipotecas que garantam os créditos hipotecários,
afectos ao cumprimento das obrigações hipotecárias, são excepcionadas do regime geral
previsto no CC 67.

Verificando-se uma situação de incumprimento da entidade emitente de obrigações


hipotecárias, os credores obrigacionistas dispõem de um privilégio sobre os créditos de
cobertura. Não só os créditos afectos constituem um património autónomo ao serviço dos
titulares das obrigações hipotecárias, mas também a LOH lhes assegura a necessária
prioridade, sendo que, de forma a tornar o privilégio creditório eficaz, prevê que as hipotecas
que garantam esses créditos hipotecários prevalecem sobre quaisquer privilégios imobiliários.
De forma a impedir que a garantia conferida aos titulares das obrigações hipotecárias seja
desfalcada da sua plenitude no momento em que se revela mais necessária, a LOH eleva – de
forma excepcional – o grau de graduação da hipoteca subjacente aos créditos objecto do
privilégio creditório especial, colocando-a em primeiro lugar em relação aos próprios
privilégios creditórios imobiliários 68.

Surgem, deste modo, dois sistemas de graduação de créditos com garantia real: o geral, vertido
no art. 751.º do CC, e o especial, que emerge do regime jurídico aplicável às obrigações
hipotecárias.

A prioridade da hipoteca que garanta créditos hipotecários suscitou alguma divergência


doutrinária, ao abrigo do anterior regime das obrigações hipotecárias, quanto à prevalência da
hipoteca sobre o direito de retenção, previsto no art. 754.º do CC.

Caso o direito de retenção incida sobre coisa imóvel, prevê o art. 759.º do CC que o respectivo
titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar nos mesmos
termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais
credores do devedor. Acresce que, se existirem credores hipotecários, o direito de retenção
prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta última tenha sido registada anteriormente 69 70.

Em resposta a esta questão, o raciocínio formulado pela doutrina foi o seguinte: uma vez que
as hipotecas que garantem os créditos hipotecários afectos ao cumprimento das obrigações
hipotecárias prevalecem sobre quaisquer privilégios creditórios imobiliários, as referidas
hipotecas também prevalecerão sobre o direito de retenção que o art. 755.º, n.º 1, alínea f), do

67
Neste sentido ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 961 e SALVADOR DA COSTA, O concurso
de credores, ob. cit., p. 195.
67
Art. 3.º, n.º 2, LOH.
68
ARMINDO RIBEIRO MENDES, Um novo instrumento financeiro..., ob. cit., p 88, afirma, de modo bastante
esclarecedor, que esta hipoteca tem preferência sobre a totalidade das garantias reais (ainda que anteriores),
uma vez que prevalece sobre a que se encontra graduada em primeiro lugar.
69
Art. 759.º, n.º 2, do CC.
70
Como nota ARMINDO RIBEIRO MENDES, Um novo instrumento financeiro..., ob. cit., p. 85, as instituições
que concediam financiamentos com garantia hipotecária constataram o enfraquecimento da garantia
hipotecária em virtude da concessão de um direito de retenção aos promitentes compradores que tivessem
recebido (por tradição) a posse da coisa prometida vender.

80
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

CC concede ao beneficiário da promessa de transmissão ou de constituição de direito real que


obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido no caso de promessa
sinalizada, uma vez que o direito de retenção se gradua abaixo dos privilégios creditórios 71 72.

Para ALMEIDA COSTA, da preferência atribuída às hipotecas no âmbito do regime jurídico das
obrigações hipotecárias resulta um tanto prejudicada a garantia atribuída no art. 755.º, n.º 1,
al. f), do CC a um relevante segmento do contrato-promessa 73. Note-se, porém, que o
legislador não revogou a prevalência concedida ao direito de retenção sobre a hipoteca;
apenas criou um regime excepcional para certas hipotecas, a saber, as que garantam créditos
hipotecários afectos ao cumprimento de obrigações hipotecárias 74.

Também no sentido de que a hipoteca de que beneficiam os créditos do titulares de obrigações


hipotecárias prevalecem sobre o direito de retenção, nomeadamente no caso do art. 755.º, n.º
1, alínea f), do CC, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (“TRP”), de 2 de
dezembro de 2004 75, no contexto de penhora registada sobre fracção autónoma, sendo que as
hipotecas constituídas a favor da instituição de crédito, para cumprimento das obrigações da
executada em resultado de mútuos concedidos pela referida instituição, se encontravam
registadas com data anterior ao da penhora efectuada na execução. Estava em discussão, no
recurso de apelação, a questão de saber se o crédito reclamado pela apelante instituição de
crédito tinha sido ou não correctamente graduado na posição relativa constante da decisão
apelada, após a quantia exequenda. O TRP pronunciou-se no sentido de que o legislador

71
Neste sentido, LUÍS MIGUEL D.P. PESTANA DE VASCONCELOS, A Cessão de Créditos em garantia e a
Insolvência – Em particular da Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, p. 999, nota (1808). Segundo o autor, “desta forma removem-se os principais obstáculos à eficácia da
hipoteca (os privilégios imobiliários especiais e o direito de retenção), criando-se na verdade um sistema
diferente, e muito mais favorável, para a graduação de créditos garantidos por hipotecas quando estejamos
face a obrigações hipotecárias. O que evidentemente fortalece os créditos”, idem, ob. cit., p. 1000. Também
CALVÃO DA SILVA, Titul[ariz]ação, ob. cit., p. 153, afirma que: “[...] se prevalece sobre privilégio imobiliário, a
hipoteca que garante crédito hipotecário prevalece também sobre o direito de retenção, visto que este não
prefere aos privilégios imobiliários, assim se afastando a regra comum da prevalência do direito de retenção
sobre a hipoteca ainda que registada anteriormente (art. 759.º, n.º 2 do Código Civil)”. Igualmente, ALMEIDA
COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 981, nota (1), refere que excepcionam o regime geral do art. 759.º,
n.º 2 do CC as hipotecas que garantam os denominados créditos hipotecários, de harmonia com o art. 3.º, n.º
2 da LOH
72
Cumpre destacar o facto de o direito de retenção, à semelhança dos privilégios creditórios, não se
encontrar sujeito a registo.
73
ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 981, nota (1). Também A. LUÍS GONÇALVES, Privilégios
creditórios..., ob. cit., pp. 34-35, nota (3), refere que “[e]ste novo privilégio, diga-se de passagem, por muito
ou pouco justificado que seja, pode constituir uma forma de atenuar os efeitos do direito de retenção,
concedido pela al. f) do art. 755.º do CC ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de
direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre a coisa, pelo crédito
resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º [...] uma vez que esse
privilégio, nos termos, do art. 751.º do CC, prefere ao referido direito de retenção”.
74
No mesmo sentido, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E SAPUILE, Prevalência do direito de retenção sobre a
hipoteca, AA.VV, Garantia das Obrigações (Coord. Jorge Ferreira Sinde Monteiro), Almedina, Coimbra, 2007,
pp. 87-136, p. 131. Sobre o direito de retenção e a situação do credor hipotecário, cfr. PEDRO SAMEIRO, O
direito de retenção e a situação do credor hipotecário, Revista da Banca n.º 26, Abril-Junho 1993, pp. 89-97.
75
Acórdão do TRP (Juíz Relator: Amaral Ferreira), Processo n.º 0436048, de 2 de Dezembro de 2004,
disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/63a0ee0300188ad080256f6c0052ca2b?O
penDocument&Highlight=0,Obriga%C3%A7%C3%B5es,Hipotec%C3%A1rias.
Cfr. Anexo II para outras indicações jurisprudenciais.

81
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

ordinário excepciona à preferência do direito de retenção sobre a hipoteca, as hipotecas que


garantam os denominados créditos hipotecários que prevalecem sobre quaisquer privilégios
creditórios imobiliários. Pronunciou- se igualmente o mesmo Acórdão no sentido de que o
crédito hipotecário reclamado pela instituição de crédito e afecto ao cumprimento de
obrigações hipotecárias ao abrigo do DL n.º 125/90, de 16 de Abril, deve ser graduado antes do
crédito exequendo, garantido pelo direito de retenção. Este tribunal foi do entendimento, que
se nos afigura mais correcto, de que tal preferência apenas beneficia um dos empréstimos
concedidos pela instituição de crédito, dado que apenas num deles consta a menção de que se
encontra afecto ao cumprimento de obrigações hipotecárias, inexistindo semelhante cláusula
no respectivo documento complementar à escritura relativamente ao outro empréstimo
concedido, o qual deveria portanto ser graduado após o crédito exequendo.

Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), de 11 de Janeiro de 2005 76, no


âmbito de processo de execução em que foi penhorada fracção autónoma, se pronunciou no
sentido de que as hipotecas que garantam os créditos hipotecários abrangidos pelo regime do
DL n.º 125/90, de 16 de Abril, têm preferência sobre todas as demais garantias reais, ainda que
anteriores, pois que se sobrepõem à que cabe o primeiro lugar na graduação. Segundo esta
decisão “passam a vigorar, para a hipoteca, duas diferentes garantias, a que correspondem dois
sistemas de graduação, consoante os créditos que garante estejam ou não afectos ao
cumprimento de “obrigações hipotecárias”: – neste caso, o resultante do regime geral dos arts.
686º, 751º e 759º-2 CC; naquele, o do mencionado regime especial do art. 6º-2 do DL n.º
125/90”. Conclui o STJ que as hipotecas de garantia de créditos hipotecários prevalecem sobre
o direito de retenção.

Por outro lado, o STJ, neste Acórdão, expende considerações assaz importantes em sede de
obrigações hipotecárias, ou seja, refere que nas obrigações hipotecárias “[e]m causa estão,
realmente, as preferências concedidas às hipotecas que garantem os créditos concedidos pelo
Banco, enquanto credor hipotecário, e que [...] prevalecem sobre quaisquer privilégios
imobiliários, embora o benefício da preferência possa estar também instrumentalmente ao
serviço do privilégio concedido aos titulares das obrigações hipotecárias [...] a hipoteca garante
os créditos que, por sua vez, garantem as obrigações”.

Por último, o entendimento perfilhado no Acórdão do STA de 3 de julho de 2002 77 forneceu um


importante contributo no que ao entendimento da jurisprudência nacional em sede de
obrigações hipotecárias diz respeito, ainda que se reportando, à semelhança dos dois Acs.
anteriormente citados, ao regime vertido no DL n.º 125/90. Expende este Acórdão que, para
que o credor hipotecário (i.e., a entidade emitente de obrigações hipotecárias) goze do
privilégio hipotecário, que se traduz na prevalência da hipoteca sobre privilégios creditórios
imobiliários, torna-se necessário que demonstre que procedeu efectivamente à emissão e

76
Acórdão do STJ (Juíz Relator: Alves Velho), Processo n.º 04A4146, de 11 de Janeiro de 2005, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5788ca8544ee028a802570060052b1d6?O
penDocument&Highlight=0,obriga%C3%A7%C3%B5es,hipotec%C3%A1rias.
77
Acórdão do STA (Juíz Relator: Benjamim Rodrigues), Processo n.º 0773/02, de 3 de Julho de 2002,
disponível em:
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6f7b36350edbb11180256bf8004e29e9?O
penDocument&ExpandSection=1&Highlight=0,Obriga%C3%A7%C3%B5es%20,Hipotec%C3%A1rias#_Section1.

82
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

subscrição de obrigações hipotecárias com afectação do crédito concedido aos executados nos
termos do regime jurídico das obrigações hipotecárias, identificando-as. Não alegando ter
procedido à emissão ou emissões dessas obrigações hipotecárias, mas apenas referindo que os
créditos hipotecários estão afectos a obrigações hipotecárias nos termos do DL n.º 125/90, não
poderá o banco ser graduado com preferência sobre o credor que esteja munido de um
privilégio creditório imobiliário ou sobre o credor com direito de retenção.

Reconhece o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) que o regime das obrigações
hipotecárias veio instituir ex novo, no plano normativo, garantias especiais, tanto no que
respeita ao pagamento da obrigação de capital e de juros que se encontra formal e
abstractamente corporizada nas obrigações hipotecárias, como no que se refere à cobrança
dos créditos hipotecários que constituem o substracto económico que é afecto à emissão de
tais obrigações hipotecárias. Foi com o intuito de tornar tal comércio merecedor da confiança
geral dos investidores, “confiança esta que varia na razão directa da consciência económico-
jurídica dos bens que lhes estão afectos ou que constituem o seu suporte económico” que
levou o legislador a consagrar tais garantias especiais.

Refere ainda este Acórdão que o privilégio creditório concedido aos titulares das obrigações
hipotecárias e o facto de as hipotecas que garantam créditos hipotecários prevalecerem
sobre quaisquer privilégios creditórios imobiliários são garantias absolutamente distintas. O
privilégio creditório concedido aos titulares das obrigações hipotecárias incide apenas sobre
os créditos hipotecários afectos à sua emissão, “sobre o bem jurídico que é constituído
pelo direito de crédito, em si próprio, coenvolvendo o direito à prestação e o direito de
garantia hipotecária, não tornando, todavia, o titular da obrigação hipotecária num titular
de direito de crédito hipotecário, pelo que, deste modo, vale sobre o produto da venda de tais
créditos hipotecários e não sobre o produto da venda dos bens dados em hipoteca”.

O beneficiário da norma que estabelece que as hipotecas que garantam créditos


hipotecários prevalecem sobre quaisquer privilégios creditórios imobiliários “é o titular do
crédito hipotecário que esteja afecto à emissão de obrigações hipotecárias”.

Conclui o Acórdão que “só quando o titular da obrigação hipotecária que goza do privilégio
creditório especial sobre os créditos hipotecários os venha a adquirir, também, por qualquer
modo, mesmo em processo de execução em que sejam penhorados e vendidos, é que poderá
haver uma situação de sobreposição de beneficiário (titular) das duas garantias: privilégio
especial e hipoteca especial”. Desde que tenha existido uma emissão de obrigações
hipotecárias e os créditos hipotecários tenham sido afectados a essa emissão, o credor
hipotecário, i.e, a entidade emitente, fica a gozar da garantia hipotecária especial conferida
por lei78. No entanto, caberá à entidade emitente fazer prova em juízo dos elementos factuais

78
Segundo o Acórdão citado, a concepção da garantia especial é “justificada pelo interesse do comércio
jurídico em criar a confiança geral de que realmente existe o substracto económico que constituiu o suporte
jurídico da emissão das obrigações hipotecárias, em virtude dos seus reflexos na atitude de avaliação do risco
de subscrição por parte do investidor, sendo que aquele é constituído pelos montantes dos créditos
hipotecários de que são titulares as entidades bancárias ou parabancárias. Para que a consistência económica
de um tal suporte se mantenha, torna-se necessário que a hipoteca funcione juridicamente nos mesmos
termos, independentemente de quem seja o titular do direito de crédito hipotecário, dado que só por esse

83
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

que caracterizam a concreta afectação e da emissão e respectiva subscrição de obrigações


hipotecárias, nomeadamente, a deliberação de emissão, que instrumentos de dívida foram
emitidos por cada emissão, que créditos hipotecários foram afectos (número, valor,
quantidade) e que número de emissões ocorreram.

Como é referido no Acórdão sub judice, afirmações genéricas, vagas e imprecisas, relativas à
hipótese de ter havido, ou de não ter ocorrido ainda, uma emissão de obrigações hipotecárias,
ou situações em que um banco invoque ser titular de créditos hipotecários, sem que permita
às demais partes e ao tribunal saber e controlar se, em concreto, se procedeu ou não a uma
emissão e houve ou não subscrição de obrigações hipotecárias a que os créditos exequendos
tenham sido afectados, constituirão uma falta de alegação necessária dos factos constitutivos
do direito, impossibilitando ao tribunal o reconhecimento da existência do mesmo na esfera
jurídica da entidade emitente 79.

Ainda a respeito do privilégio creditório especial e do princípio da afectação e segregação


patrimonial, cumpre salientar que, nos termos do art. 21.º, n.º 2, da LOH, enquanto as
obrigações hipotecárias permanecerem na posse da entidade emitente, i.e., antes que haja
lugar à subscrição de obrigações hipotecárias, não gozam do privilégio creditório especial
(art. 3.º da LOH), nem do princípio da afectação e segregação patrimonial (art. 4.º da LOH).

Na decorrência do exposto, não podemos avançar sem que nos pronunciemos sobre a
realidade sobre a qual incide o privilégio creditório especial em análise. Nesta medida,
teremos que centrar a nossa atenção nos bens objecto do privilégio. Identificámos já que
o privilégio creditório especial incide sobre os créditos hipotecários e outros activos afectos
ao cumprimento das obrigações hipotecárias, ou seja, tal privilégio incide sobre um direito
de crédito. Nessa medida, a posição conferida pela LOH aos titulares das obrigações
hipotecárias, especificamente quando lhes confere o privilégio creditório especial em análise,
consiste na atribuição de uma preferência que incide sobre os referidos direitos. O direito
de crédito surge como um direito a uma conduta do devedor. Os credores obrigacionistas

modo a solidez da instituição bancária emissora pode continuar a merecer a mesma confiança. Por outro
lado, só por essa mesma razão, que se afigura de relevante interesse económico e público, é que se justifica
que o legislador abandone, no caso destes títulos, o princípio da preferência dos privilégios imobiliários sobre
a hipoteca que adoptou como regra geral no art. 751.º do C. Civil e que, outros, prejudica, abstracta e
economicamente, mais intensamente o Estado, pois que este é o grande titular de privilégios creditórios
imobiliários (sisa, c. autárquica, segurança social, etc.)”.
79
A este respeito, cumpre notar que o art. 6.º, n.º 4, do DL 125/90, de 16 de Abril, com a redacção conferida
pelo DL 17/95, de 27 de Janeiro, previa que “o extracto da inscrição da hipoteca deverá conter a menção
especial de que o crédito por ela garantido fica afecto ao cumprimento de obrigações hipotecárias, sempre
que tal afectação resulte do título constitutivo ou de declaração da entidade emitente anexa ao pedido de
registo”. Dispunha o n.º 5 do referido art. que “no caso de hipotecas já constituídas, a menção a que se refere
o número anterior será efectuada por averbamento com base em declaração da entidade emitente”. Nesta
conformidade, a prova em juízo da afectação dos créditos era realizada com base no extracto de inscrição da
hipoteca e demais informação respeitante à emissão. Sucede, porém, que a LOH não consagrou a referida
necessidade de inscrição predial dos créditos afectos ao cumprimento de obrigações hipotecárias. Nesta
medida, é nosso entendimento, que, sem prejuízo de o novo regime ser mais flexível numa perspectiva
operacional, não é menos verdade que a realização da prova dos créditos afectos a uma emissão de
obrigações hipotecárias é, na prática, dificultada. De facto, a lista de créditos registados em contas segregadas
da entidade emitente, constituirá a única forma de o emitente provar a real afectação, cabendo ao BP, na
qualidade de entidade de supervisão, suprir quaisquer outros obstáculos de índole prática.

84
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

detêm, portanto, tão- somente um direito de crédito, melhor dizendo, o direito a uma
conduta, que se traduz na realização de uma prestação. O direito de crédito dos titulares
das obrigações hipotecárias surge como o direito a uma prestação, e é essa a realidade sobre
a qual incide o privilégio creditório especial constante da LOH. Em suma, os titulares das
obrigações hipotecárias detêm, assim, um direito de natureza creditícia sobre o objecto do
crédito que é a prestação, sobre o qual incide o privilégio 80 enquanto situação de
preferência atribuída aos beneficiários do mesmo no pagamento do respectivo crédito.

Nestes termos, o privilégio creditório especial previsto na LOH é um privilégio mobiliário. A


posição jurídica dos beneficiários será de preferência no pagamento, em caso de execução 81.

7. As obrigações hipotecárias como obrigações com garantia especial

As obrigações hipotecárias são valores mobiliários, verdadeiras e próprias obrigações.

As pessoas colectivas, perante as respectivas necessidades de financiamento, emitem – a


par do recurso ao crédito bancário, mediante a contracção de empréstimos a curto,
médio ou longo prazo (capitais alheios) ou situações de aumento de capital (capitais
próprios) –, instrumentos de dívida, como é o caso das obrigações 82, como forma de
colmatar as referidas necessidades.

As obrigações são uma fonte de financiamento externa, consubstanciando-se verdadeiros e


próprios instrumentos privilegiados do hetero-financiamento de empresas83. Com a emissão,
opera uma transferência de quantias monetárias por parte de uma entidade com excedente
de disponibilidades para outra entidade que delas necessita 84, sendo que, como
contrapartida, a entidade financiada entrega ao subscritor um valor mobiliário que o
habilita a exigir prestações em dinheiro ao longo da emissão até à sua maturidade. O
obrigacionista surge, deste modo, como um credor da sociedade emitente. Igual situação
ocorre com a emissão de obrigações hipotecárias, uma vez que se atribui ao seu titular um
direito de crédito, que recai sobre uma certa quantia monetária, exequível perante a
entidade emitente.

80
Também neste sentido, SERGIO NASARRE AZNAR, La Garantía de los Valores Hipotecarios, Centro de
Estudios Registrales de Cataluña, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., Madrid/ Barcelona, 2003,
p. 414, na sua análise da preferência no pagamento conferida aos credores obrigacionistas em distintas
jurisdições europeias.
81
Cfr. RUI PINTO DUARTE, Curso de Direitos Reais, ob. cit., p. 249.
82
Para CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Valores Mobiliários Conceito e Espécies, Universidade Católica
Portuguesa, Porto, 1998, p. 140, as obrigações são valores mobiliários que conferem ao seu titular um direito
ou feixe de direitos de crédito, tendo por objecto uma ou várias prestações em dinheiro, determinadas ou
determináveis. Para o autor, as obrigações representam partes alíquotas e prefixadas de uma só emissão,
com o mesmo valor nominal e conferindo direitos de crédito iguais.
83
Assim, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos II - Conteúdo/Contratos de Troca, Almedina, Coimbra,
2007, p. 161.
84
FLORBELA ALMEIDA PIRES, Direito e Organização dos Obrigacionistas em Obrigações Internacionais
(Obrigações Caravela e Eurobonds), Lex, Lisboa, 2001, p. 46.

85
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

O esquema das obrigações hipotecárias, no nosso entendimento, não foge, mutatis


mutandis, à estrutura típica das emissões de obrigações comuns 85. O empréstimo
obrigacionista constitui, portanto, à luz destas considerações, um indiscutível meio de
financiamento de pessoas colectivas, ou seja, uma forma típica de financiamento.

Assim, a relação jurídica obrigacional encetada entre a entidade emitente e o credor


obrigacionista, em relação à qual o credor tem direito de ser reembolsado pelo capital
investido, bem como ao pagamento de juros, parece conduzir à sua caracterização como um
contrato de mútuo (art. 1142.º/1145.º CC) 86. Porque os fundos recolhidos pela entidade
emitente junto dos investidores visam a sua utilização em operações comerciais, estamos
perante um contrato de empréstimo comercial, nos termos dos arts. 362.º e 394.º do
Código Comercial, com base na existência de tantos créditos quantos os títulos que
resultem da emissão de obrigações hipotecárias, ainda que sujeitas a um regime unitário 87.
85
AMADEU JOSÉ FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários, AAFDL, Lisboa, 1997, p. 181, afirma que “é o
financiamento da sociedade e aplicação da poupança dos particulares que está em causa [...] talvez fosse
mais adequado falar em contrato de financiamento, dadas as características específicas que assume”. No
entanto, para este autor, este tipo de valor mobiliário assume “grande diversidade [...] sendo muito difícil
isolar o núcleo substancial do seu conteúdo para além do mútuo”. No entanto, avançando com o exemplo das
obrigações convertíveis em acções e analisando a questão de saber se o reembolso é ou não elemento
essencial do montante mutuado (situação que não se verifica nas obrigações convertíveis), o autor inclina-se
para a qualificação de contrato de financiamento. Contra, ANTÓNIO SILVA DIAS, Financiamento de Sociedades
por Emissão de Obrigações, Quid Juris, Lisboa, 2002, p. 34 nota (41), para quem o exemplo demonstra
exactamente o contrário, na parte referente às obrigações convertíveis, uma vez que o que está em causa não
é saber se o reembolso se verifica na prática, mas antes se a entidade emitente se encontra vinculada ao
reembolso, concluindo no sentido de que as obrigações convertíveis “conservam sempre a possibilidade de
reembolso, visto que se o obrigacionista não exercer, por qualquer motivo voluntário ou involuntário, o
direito de conversão no respectivo período, continua a ter direito ao reembolso do capital investido”. Sobre
as obrigações convertíveis em acções, cfr. FÁTIMA GOMES, Obrigações Convertíveis em Acções, Universidade
Católica Portuguesa, Lisboa, 1999.
86
A doutrina tem-se pronunciado tendencialmente neste sentido. Assim, ANTÓNIO SILVA DIAS,
Financiamento de Sociedades..., ob. cit., p. 33, que vê o mútuo como causa típica das obrigações, visto ser ele
que se encontra sempre presente no momento da deliberação da emissão; no entanto, se é certo que na fase
de colocação das obrigações se poderão apontar diversas funções económicas às obrigações, tal facto não
implica que a causa da emissão não tenha sido a vontade de obter um financiamento através de uma
operação de mútuo. L. BRITO CORREIA, Direito Comercial, Vol. II – Sociedades Comerciais, AAFDL, Lisboa,
1989, p. 499, afirma que tradicionalmente, a emissão de títulos de obrigações é qualificável como um
contrato de mútuo. Para MIGUEL J. A. PUPO CORREIA, Direito Comercial, Direito da Empresa, EDIFORUM, 10.ª
ed. (revista e actualizada), Lisboa, 2007, p. 468, as obrigações, em regra, têm como causa ou fundamento um
contrato de mútuo. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, 4.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2006, p. 635, entende que as obrigações são títulos representactivos de um mútuo. CARLOS
FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos II..., ob. cit., p. 160 afirma que o “empréstimo obrigacionista é outro
subtipo do mútuo oneroso, com as seguintes particularidades: pluralidade de mutuantes com posições
jurídicas iguais, especial natureza jurídica do mutuário (sociedade comercial ou entidade pública),
representação do direito do mutuante em valores mobiliários (títulos de crédito em massa) com a designação
de obrigações”. Para este autor “o empréstimo obrigacionista é portanto o contrato subjacente à emissão de
obrigações, acto pelo qual o mutuante (obrigacionista) entrega, ou se obriga a entregar, uma quantia em
dinheiro, recebendo do mutuário em troca (salvo rateio)um documento (a obrigação) que representa os seus
direitos (a juro e ao reembolso) em conformidade com as obrigações assumidas pelo emitente no acto da
emissão”. No direito espanhol, SERGIO NASARRE AZNAR, La Garantía de los Valores Hipotecarios, ob. cit., pp.
360 e 366, também defende esta posição, afirmando que a relação que se estabelece entre o obrigacionista e
a entidade emitente não é mais do que um contrato de empréstimo, sendo que o negócio que dá vida às
obrigações é o empréstimo mercantil.
87
ANTÓNIO SILVA DIAS, Financiamento de Sociedades, ob. cit., p. 42, refere que, embora se trate de uma
operação de financiamento unitário, uma vez que todo o empréstimo obedece às mesmas condições e
assenta num único acto de vontade da entidade emitente, não se deve configurar o empréstimo como débito

86
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

O empréstimo obrigacionista apresenta-se com uma feição unitária, sendo que a entidade
emitente perspectiva os subscritores como uma única contraparte, com base numa
identidade de tratamento oferecida aos mesmos no âmbito de cada emissão 88.

Atento o exposto, as obrigações hipotecárias são valores mobiliários representativos de dívida


ou de relações de financiamento (mútuo) que conferem aos respectivos titulares o direito
de reembolso do capital mutuado e dos respectivos juros e cuja emissão funciona como
forma de captação de financiamento baseado em capitais alheios89.

As obrigações hipotecárias pressupõem, após a emissão e respectiva subscrição, o


pagamento de capital e juros aos respectivos titulares. Assim, são verdadeiras e próprias
obrigações, à semelhança das obrigações clássicas. Acresce que a LOH atribui uma situação
jurídica especial 90 ao direito de crédito detido pelos titulares das obrigações hipotecárias (e
aos demais beneficiários), a saber, um privilégio creditório especial, nos termos analisados, o
qual lhes permite posicionarem-se com total preferência e prioridade relativamente aos
demais credores da entidade emitente no ressarcimento de capital e juros, incidindo sobre
um património autónomo especialmente afecto a esse cumprimento.

Também as obrigações ditas clássicas podem ser configuradas de modo a conceder


garantias especiais aos respectivos titulares, na medida em que a concessão das referidas
garantias é livre e surge com a fixação das condições de emissão constantes da respectiva
ficha técnica. No entanto, as obrigações hipotecárias são um exemplo claro de um regime
legal que visa atribuir aos credores obrigacionistas mecanismos especiais de preferência no
reembolso de capital e pagamento de juros91.

O privilégio creditório especial, consagrado na LOH, confere, neste âmbito, uma especial
protecção aos titulares das obrigações hipotecárias, incidindo sobre os activos que
compõem o património autónomo e representando uma inegável vantagem sobre os
restantes credores da entidade emitente.

Os investidores, antes da tomada de decisão de subscreverem obrigações hipotecárias,


pretendem saber em que medida o seu investimento se encontra salvaguardado durante
a respectiva emissão, em particular em caso de ocorrência de situações patológicas que
possam pôr em perigo o reembolso de capital e juros nas datas de vencimento fixadas nas

único, uma vez que, depois de emitida cada uma das obrigações, representa um débito autónomo e cada
obrigacionista é um credor distinto da sociedade.
88
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, As Obrigações no Financiamento da Empresa, Problemas do Direito das
Sociedades, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 321-329, p. 323, refere-se ao empréstimo obrigacionista como “um
tipo de cooperação entre capital e empresa no âmbito do comércio”.
89
CARLOS COSTA PINA, Instituições..., ob. cit., p. 470. Como expende este autor, os credores obrigacionistas
beneficiam, em pé de igualdade, das mesmas garantias, das mesmas condições de subscrição, da mesma
retribuição e do mesmo programa de reembolso (idem, p. 41).
90
PAULO CÂMARA, O regime jurídico das obrigações e a protecção dos credores obrigacionistas, in AA.VV.,
Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 309-345, p. 330, refere-se aos
titulares das obrigações hipotecárias como “obrigacionistas com garantias especiais a rodear o seu crédito”.
91
Assim, FLORBELA ALMEIDA PIRES, Direito e Organização dos Obrigacionistas..., ob.cit., p. 143. Também
neste sentido, ANTÓNIO SILVA DIAS, Financiamento de Sociedades, ob. cit., p. 66.

87
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

respectivas condições de emissão, como seja a liquidação da entidade emitente. Como


refere PAULA COSTA E SILVA, o sistema mobiliário assenta na tutela do investimento-
poupança 92.

O investimento realizado pelos subscritores de obrigações hipotecárias encontra-se


salvaguardado precisamente pelo privilégio creditório especial conferido aos titulares das
obrigações. A eficácia desse privilégio assume uma importância fundamental ao nível da
emissão e subscrição de obrigações hipotecárias. Assim, resulta que a pedra de toque das
obrigações hipotecárias está centrada na concessão aos respectivos titulares de um
privilégio que incide sobre os créditos hipotecários e outros activos previstos na LOH,
pertença da entidade emitente de obrigações hipotecárias. Este privilégio creditório
especial apresenta especificidades quando comparado com os privilégios creditórios traçados
no regime legal comum do CC, tendo em conta que não incide sobre os bens (móveis ou
imóveis) da entidade emitente, mas sobre uma categoria especial de direitos de crédito do
devedor 93.

As obrigações hipotecárias encontram a sua especial garantia precisamente na preferência


de pagamento que incide sobre créditos da titularidade da entidade emitente, créditos esses
a cujos devedores a entidade emitente tem direito de exigir o cumprimento das prestações
a que se encontram adstritos. Em suma, as obrigações hipotecárias conferem privilégio
sobre o valor de determinadas prestações a que a entidade emitente tem direito.

À luz destas considerações, convém referir que, sem prejuízo de os créditos hipotecários e os
demais activos elegíveis nos termos da LOH integrarem um património especialmente afecto
ao cumprimento das obrigações da entidade emitente perante os credores obrigacionistas,
não existe, no entanto, qualquer tipo de relação entre os devedores da entidade emitente,
cujos créditos integram o referido património autónomo e os titulares das obrigações
hipotecárias. De facto, com a emissão e subscrição das obrigações hipotecárias, não opera
qualquer cessão dos créditos para os credores obrigacionistas que lhes permita actuar
directamente contra os devedores da entidade emitente, nomeadamente em caso de
incumprimento das respectivas obrigações.

Não existe, portanto, qualquer relação entre o titular das obrigações hipotecárias e os
devedores da entidade emitente. O direito de crédito do titular das obrigações hipotecárias
existe unicamente contra a entidade emitente e não contra o devedor hipotecário. Nesta
medida, os credores obrigacionistas não detêm qualquer direito de crédito sobre os
devedores hipotecários, partes devedoras dos créditos que se encontram afectos à garantia

92
PAULA COSTA E SILVA, Direito dos Valores Mobiliários, Relatório, Lisboa, 2005, p. 127. Para a autora,
investidor é “todo aquele que realiza, por conta própria ou por conta de outrem, operações sobre valores
mobiliários”, sendo que “porque são investidores, tanto aqueles que realizam operações por conta própria,
como os que as realizam por conta de outrem, vão cair directamente sob a alçada do conceito de investidor
os prestadores de serviços de investimento” (idem, p. 155). Sobre a protecção dos investidores, cfr. JOSÉ DE
OLIVEIRA ASCENSÃO, A protecção do investidor, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, Coimbra Editora,
Coimbra, 2003, pp.13-40; SOFIA NASCIMENTO RODRIGUES, A protecção dos investidores em valores
mobiliários, Almedina, Coimbra, 2001.
93
Assim, FLORBELA ALMEIDA PIRES, Direito e Organização dos Obrigacionistas..., ob. cit., p. 144.

88
DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

das obrigações hipotecárias. A satisfação dos credores obrigacionistas baseia-se, em suma, na


prestação/conduta a que se encontra adstrito o devedor dos créditos hipotecários, no
âmbito da relação de crédito estabelecida entre ele e a entidade emitente.

Por outro lado, não opera qualquer subrogação activa entre as partes envolvidas, ou seja,
os titulares das obrigações hipotecárias, após a respectiva subscrição, não assumem a
posição contratual da entidade emitente na relação contratual estabelecida com os
devedores hipotecários. A entidade emitente permanece, nesta conformidade, como a única
titular dos direitos de crédito que garantem os créditos representados pelas obrigações
hipotecárias.

Deparamo-nos, assim, com um distanciamento claro e evidente entre as obrigações


hipotecárias e os créditos garantidos por hipoteca, que lhes servem de garantia 94. A
hipoteca, dada em garantia aquando da concessão de créditos hipotecários, apenas garante
estes últimos.

A posição do titular das obrigações hipotecárias, apesar da protecção que lhe é conferida
pela LOH, encontra-se, no entanto, limitada ao seu direito de crédito sobre a entidade
emitente. Nesta medida, a garantia do credor obrigacionista não poderá incidir sobre o
imóvel dado em garantia aquando da concessão do crédito hipotecário, mas apenas sobre
o direito à prestação que emerge do referido negócio jurídico.

A vantagem especial conferida pela LOH aos credores obrigacionistas reside no facto de o
direito de crédito que detêm a seu favor se tratar de um direito privilegiado, no sentido de
preferencial, e que incide sobre um património autónomo, composto pelos créditos
hipotecários e outros activos especialmente afectos ao cumprimento das obrigações
hipotecárias, nos termos do princípio da cobertura analisado, segundo o qual se garante a
especial afectação dos créditos hipotecários e outros activos à emissão de obrigações
hipotecárias em caso de incumprimento por parte da entidade emitente, tanto num
cenário de normalidade como de liquidação da referida entidade, o que, em última instância,
se consubstancia no princípio da continuidade das emissões de obrigações hipotecárias. Neste
sentido é configurada a dimensão temporal do privilégio, que opera desde a subscrição até
à amortização final destes valores mobiliários.

Em conclusão, as obrigações hipotecárias são obrigações especialmente garantidas uma vez


que detêm um privilégio creditório concedido ex lege aos respectivos beneficiários,
conferindo-lhes um direito preferencial de pagamento face aos demais credores da
entidade emitente.

94
Segundo SERGIO NASARRE AZNAR, La Garantía de los Valores Hipotecarios, ob. cit., p. 412, na sua análise
de direito comparado relativamente à cobertura afecta ao cumprimento das obrigações hipotecárias em
diversas jurisdições, refere que outra das características comuns a todas as regulamentações é que não existe
uma ligação estreita entre as obrigações hipotecárias e os créditos hipotecários, sem prejuízo das obrigações
se encontrarem garantidas por todos os créditos que se encontrem especialmente afectos.

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DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

ANEXO I

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DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

ANEXO II

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça / Processo: 07A3680 / Relator: SILVA SALAZAR


Data do Acórdão: 27-11-2007

Quem invoca a garantia prevista no n.º 2 do art. 6.° do DL n.º 125/90, de 16-04, em vigor à
data dos factos (hoje art. 3.°, n.º 2, do DL n.º 59/06, de 20-03), tem de alegar e provar
(art. 342.°, n.º 1, do CC), por se tratar de elemento constitutivo do seu direito, que emitiu os
títulos de crédito que integram as obrigações hipotecárias com afectação do crédito
concedido aos executados, garantido pela hipoteca, ao cumprimento daquelas obrigações,
não sendo suficiente prova de tanto o facto de constar por averbamento que o crédito se
encontra afecto ao cumprimento de obrigações hipotecárias.

Nada disso, porém, o recorrente invocou oportunamente no seu articulado, não resultando
sequer deste que tenha instaurado a execução com base nos denominados créditos
hipotecários, antes se baseando apenas na hipoteca a graduar segundo o sistema dos
citados dispositivos do CC, pelo que não provou os requisitos de que depende a garantia
que só em recurso invoca, não podendo em consequência beneficiar dela.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto / Processo: 114-A/2001.P1 / Relator: TEIXEIRA


RIBEIRO / Data do Acórdão: 25-02-2010

A hipoteca que garante os créditos (hipotecários) concedidos nos termos dos arts. 1º, al. c),
6º, nº3 e 11º, todos do DL nº 125/90, de 16.04 (na redacção introduzida pelo DL nº 17/95,
de 27.01) prefere sobre todas as demais garantias reais, ainda que anteriores, e prevalece
sobre o direito de retenção, como resulta do disposto no nº2 daquele art. 6º.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça / Processo: 114-A/2001.P1.S1 / Relator: JOÃO


CAMILO / Data do Acórdão: 19-10-2010

A prioridade de pagamento que o art. 6.º do DL n.º 125/90, de 16-04, confere ao titular de
obrigações hipotecárias prevalece sobre os créditos garantidos pelo direito de retenção.

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DIREITO DAS GARANTIAS
3. As garantias especiais no regime das obrigações hipotecárias

Vídeo da apresentação

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Título:
Direito das Garantias

Ano de Publicação: 2017

ISBN: 978-989-8815-81-1

Série: Formação Contínua

Edição: Centro de Estudos Judiciários

Largo do Limoeiro

1149-048 Lisboa

cej@mail.cej.mj.pt

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