Resenha de "A Nova Razão Do Mundo"
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RESENHA
A subsunção dos direitos humanos à nova razão do mundo
LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira1
1
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
pedro.pistelli.ferreira@gmail.com. ORCID: 0000-0002-2532-8593.
Resenha recebida em 8/01/2019 e aceita em 13/01/2019
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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 02, 2019, p. 1583-1593.
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Entre os diversos autores que se inspiraram nessas considerações, a ênfase no tema do homo oeconomicus
foi adotada por Brown (2015, p. 33-35), que, ao defender que a revolução neoliberal implica o
desmantelamento do demos, constata o desaparecimento da cidadania e do homo politicus. Assim, o
homem econômico pode reinar sozinho no neoliberalismo.
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No caso, os autores explicitamente entram em confronto com as teses de Harvey (2005) e de Duménil e
Lévy (2004), incluindo-as dentro dessas explicações que reduzem a racionalidade neoliberal a política
econômicas e ideologias que significam mais capitalismo, de modo a reduzir a história à repetição sucessiva
de velhos roteiros (p. 21-24).
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extensa revisão bibliográfica e análise documental, que inclui desde obras clássicas do
receituário liberal (como as de Locke e Bentham, por exemplo) a programas políticos da
esquerda neoliberal (como os da terceira via britânica).
Assim, na primeira parte (“A refundação intelectual”), a trajetória do livro
começa com a constatação da crise do liberalismo, decorrente da ascensão do
movimento operário e da questão social, e com os primeiros germéns da racionalidade
neoliberal, que os autores encontrarão no neoevolucionismo spenceriano, marcado pela
ultravalorização da competição (entendida como seleção e não mais como
especialização) entre indivíduos como chave ao progresso da humanidade (p. 52-53).
Depois, tal como Foucault (2008), elege-se o Colóquio Walter Lippmann, realizado em
1938, como o evento fundador da proposta neoliberal de sociedade 3. A partir daí,
listam-se as contribuições de várias tradições para assentar as bases dessa forma de
pensar: a noção de que o mercado é algo que deve ser construído, inclusive com
intervenção estatal (Lippmann [p. 71-100]), a necessidade de formular um quadro
jurídico e normativo que permita o florescimento de um espaço para a concorrência,
implicando a modelagem da própria sociedade (ordoliberais alemães [p. 101-132]), a
transformação do ser humano de acordo com a imagem da empresa, como um capital
humano que deve sempre buscar a autovalorização (Von Mises [p. 133-156]) e a
proposta de submeter o Estado às normas de direito privado, de modo a colocar o
liberalismo e os direitos civis do mercado acima de qualquer democracia (Hayek [p. 157-
185]). Apesar de suas particularidades, todos esses pensadores trazem em comum o
ímpeto de generalização dos princípios da concorrência e do livre mercado para todos
os âmbitos da existência humana.
Na segunda parte (“A nova racionalidade”), por sua vez, os autores procuram
analisar como se deu a aplicação concreta de todos esses princípios e reflexões teóricas
nas sociedades do chamado Primeiro Mundo. Passam, primeiro, pelo estudo dos
governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido, que surgem como resposta à
crise do Welfare State e introduzem uma nova política monetarista e de sociedade, que
culmina na construção da comunidade financeira internacional. A partir dessas políticas,
3
Em geral, a bibliografia costuma indicar a gênese do neoliberalismo como conjunto mais articulado de
ideias a partir do congresso de fundação da Sociedade de Mont-Pèlerin (1947). Apesar de terem alguns
participantes em comum (Hayek e Von Mises), o Colóquio Walter Lippmann incluía também a vertente
ordoliberal alemã (Eucken, Röpke e Böhm) e autores que pregavam um intervencionismo estatal para
construir a sociedade neoliberal (Lippmann e Rougier).
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mundo’ por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana” (p.
16). Logo, o neoliberalismo é uma racionalidade marcada pela generalização da
concorrência (como norma de conduta) e da empresa (como modelo de subjetivação) a
todas as esferas da vida (p. 17). Tal processo ocorre a partir de uma proposição
intelectual que entende, primeiramente, que o mercado é uma realidade construída e,
portanto, dependente de uma intervenção construtivista. Em segundo lugar, intepreta a
essência do mercado como a concorrência e não mais a troca. Como terceiro ponto,
submete o Estado à ordem concorrencial, visto como empresa e inserido dentro do
direito privado. Por fim, essa universalização da competição aterrissa nos indivíduos,
que, responsáveis pelo governo-de-si, tornam-se sujeitos-empresa e “cada indivíduo é
uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar” (p. 377-378).
Conclusivamente, Laval e Dardot discorrem sobre o principal efeito dessa nova
racionalidade na contemporaneidade: a des-democratização, a corrosão dos
fundamentos da democracia liberal e o surgimento de sociedades ademocráticas4 (p.
379-381). Tal processo ocorre por causa da demolição da noção de cidadania e pela
adoção de critérios de avaliação estritamente gerenciais, que descrevem a
administração pública como um processo meramente técnico e a ascensão social como
um mérito puramente individual, nascido do esforço de um “ator autoempreendedor
que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores”
(p. 378-381).
Feita a exposição do conteúdo do trabalho e do horizonte teórico dos autores,
partimos agora para uma análise crítica da obra e, posteriormente, para uma discussão
acerca das possbilidades de uso de seus postulados no estudo dos direitos humanos em
sua relação com o neoliberalismo.
Quanto ao primeiro ponto, devemos asseverar que, malgrado a existência de
uma profunda coerência interna no decorrer de todo o texto, as opções metodológicas
(análise documental e revisão bibliográfica dos atores neoliberais) e os recortes
adotados pelos autores (foco apenas nos EUA e na Europa) levam a uma descrição da
racionalidade neoliberal que, em muitos momentos, parece deixar de lado a natureza de
4
Os autores, no caso, empregaram o conceito de des-democratização, formulado por Brown (2006).
Recentemente, no entanto, eles têm preferido se referir aos sistemas políticos atuais como pós-
democráticos (LAVAL, 2016).
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Especificamente, os autores chegam a reconhecer a imbricação do neoliberalismo em muitos momentos
com a violência, mas defendem que nem sempre os caminhos tomados são ligados a uma “terapia de
choque” (em referência ao trabalho clássico de KLEIN, 2008) (p. 20). Se, de fato, nem toda implantação
neoliberal exige golpes de Estado, não nos parece, no entanto, que prescindam de elementos
desorganizadores, crises e de momentos de espoliação da maioria da população.
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Harvey vincula a virada neoliberal a um projeto de “restauração ou reconstrução do poder das elites
econômicas” (HARVEY, 2005, p. 19) e defende que um dos seus principais mecanismos de instalação
consiste na acumulação por espoliação: uma forma contemporânea e relevante atualmente do que Marx
chamou de acumulação primitiva do capital, mas que, em Harvey, não é vista como algo externo ao
capitalismo como sistema fechado e que adota formas de coerção e de consenso (HARVEY, 2003, p. 143-
145). Para uma apresentação e avaliação crítica dos conceitos de Harvey, Cf. FONTES, 2017.
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Duménil e Lévy (2004, p. 1-2, 210-211) conceituam o neoliberalismo como um conjunto de transformações
no capitalismo que causou uma restauração das características violentas da acumulação capitalista e dos
lucros e poder de classe de um setor capitalista específico: a burguesia financeira. Assim, “o neoliberalismo
é fruto de uma volta por cima bem-sucedida de um segmento das classes dominantes”, formando uma nova
hegemonia das finanças. Para um comentário recente sobre esse processo de restauração de forças da
classe capitalista e seus efeitos no direito, Cf. GONÇALVES, 2014, p. 311-312.
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Essa mesma crítica é empregada por Dean (2016) ao comentar o livro de Brown (2015) e julgamos que
também se aplica à obra de Laval e Dardot.
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Para uma exposição da Teoria marxista da dependência e suas contribuições para o estudo do direito, Cf.
PAZELLO, 2016.
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Para uma outra bibliografia em que as reflexões de Laval e Dardot auxiliaram a pensar a dinâmica dos
direitos humanos na sociedade neoliberal, Cf. DELUCHEY, 2016, p. 210-211 e ss.
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