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Doutrina Social Da Igreja e Sua Inspiração Bíblica e Patrística

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DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E SUA INSPIRAÇÃO

BÍBLICA: POLÍTICA E PROFETISMO COMO MEIO DE JUSTIÇA


SOCIAL
A Doutrina Social da Igreja, que para a Igreja Católica é um
elemento fundamental, baseou-se, inicialmente, nos ensinamentos dos
profetas do Antigo Testamento que evocavam a justiça como referência
para a conduta social e religiosa (BIGO, 1969). Nessa época, o santo era o
justo. Quando Deus chamou a Abraão para fazer um pacto, foi para que
Abraão mantivesse os seus métodos fazendo o reto e o justo com aquelas
descendentes e lhes ensinar a fazer o mesmo. Portanto, a retidão é o
propósito divino de Abraão e sua descendência (Gn 18,19).
Os profetas bíblicos apuraram muito o sentido de um Deus vivo e das
suas exigências éticas e sociais. Foram os paladinos da justiça social e a
consciência moral dos dirigentes do povo. E, quando exigiam justiça ao
povo, não ditavam um código de moral; apontavam como exigente a
vontade de Deus contemplada pela fé.
No séc. X a.C., no famoso encontro de Natan com o rei David, o
profeta da corte acusou o rei de ter abusado do poder que Deus lhe dera
(2Sm 12,1-15). Julgou-o, não com base na moral correntemente aceite,
mas com base na vontade de Deus captada e revelada no contexto da fé
de Israel: “Eis o que diz Yahvé”. No séc. IX a.C. a intervenção do profeta
Elias na história da vinha de Nabot, assassinado pela corte/tribunal local
por mandato do rei Acab, que manipulou a justiça (1Re 21), mostra que o
rei pode estar por cima dos tribunais humanos, mas não escapa ao juízo
divino. Esta história de injustiça social deixa emergir um significado
profundo: quando tudo e todos estão contra a razão do ser humano, ele
pode ter a certeza de que há um logos/razão superior que está do lado dele e
por ele. Essa razão, que cadencia toda a narrativa, exprime-se com o ato de
fé do narrador: “A palavra de Yahvé chegou a Elias dizendo…”. É o logos
que Paulo de Tarso verá exercido a favor da vítima da injustiça que foi
Jesus de Nazaré e de todos os que a ele aderirem pela fé: “Se Deus está por
nós, quem estará contra nós?” (Rm 8,31).
No povo de Israel o apelo a um comportamento ético na vida,
especialmente pela prática da Justiça, da retidão, da autenticidade e da
verdade, levava à ideia de que o ser humano, fazendo o bem e fugindo do
mal (praticando a şedāqāh), estava a estabelecendo no mundo a şedeq, a
“justa ordem” deixada por Deus na criação do cosmo e do ser humano, pois
a criação tem de fundo um plano divino universal de harmonia entre todos
os seres (Gn 2,15).
Não existe doutrina social cristã que não tenha sua fonte na Escritura
e na Tradição. A doutrina social da Igreja não escapa a esta regra. Muitos a
representam como uma criação do magistério, no fim do século XIX, para
não ser ultrapassada pelos acontecimentos. Este é um esquema inaceitável.
O magistério não tem outra missão senão a de anunciar a palavra de Deus.
E todo ensinamento doutrinal que não tiver um vínculo com a única
revelação, será inadmissível (Cf. BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja.
São Paulo; Loyola, 1969, p. 21).
Deus não existe sem a Justiça. Precisamente por isso, a pessoa que
ama Deus não pode ser tocada pela injustiça. A tal ponto se dá essa
identidade entre Deus e Justiça que a palavra “justo” desloca a seu
significado da pessoa que pratica a Justiça nas relações humanas para a
pessoa que está em paz com Deus e que, por isso, não pode ser atingida
pelo fracasso ou pelas injustiças humanas (Cf. Sb 2). A şedāqāh significa
um ato de bondade e compaixão, neste sentido é libertar o oprimido,
reivindicar ao órfão, à viúva, ao imigrante, ao pobre contra seus opressores.
Por isso a Justiça olha para o contexto de relações sociais para expressar
algum tipo de reinvindicação (Is 11,5). Deus revela sua retidão, dando a
conhecer sua vontade e sua palavra ao mundo, a través da nação de Israel.
Praticar a Justiça está intimamente ligado com conhecer o Senhor, o
verdadeiro Deus, que ama a Justiça (Jr 22,16; Is 45,21-24).
Portanto, pensamos ser importante, para esta reflexão, antes de
passarmos aos ensinamentos que brotam do Magistério da Igreja sobre a
política na DSI, procurarmos nas raízes bíblicas da Revelação e da
Tradição da Igreja os fundamentos a respeito desta questão.
As relações sociais, dentro do ensinamento profético do Antigo
Testamento, ocupam um lugar de grande destaque. No sentido do “plano
social, tem que reservar-se um lugar primordial aos Profetas, que
denunciaram a injustiça, proclamaram os direitos do pobre e o do humilde,
pregaram a justiça no seu aspecto religioso e social”1. Para H. Dodd, a
nação judaica somente sobreviveu aos diversos ataques dos grandes
impérios e conseguiu se reconstruir e transmitir sua tradição graças aos
seus profetas que souberam induzir o povo a uma particular interpretação
da história, imprimindo uma nova direção à sua história para o futuro 2.
1
Cf. REIFLER, Hans Ulrich. A ética dos dez mandamentos. São Paulo: Vida Nova, 2ª imp. 2007, p. 244.
2
Cf. C. H. Dodd, The Bible Today, appud HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia: a revelação,
a promessa, a realização. São Paulo: Paulus, 1985, p. 266.
Mas, além de garantir a sobrevivência do seu povo, os profetas fomentaram
a tradição religiosa herdada, tendo-a enriquecido e legando-a ao judaísmo.
Profeta é um termo proveniente do hebraico nabi, que significa “o que é
chamado”; na etimologia grega, a palavra profeta vem do verbo phémi =
dizer, falar, que, quando acrescentado de prefixo pro (falar em lugar de, em
nome de) – significa aquele que “é chamado por Deus para ser seu porta-
voz”3. Estes arautos de Deus “foram inteiramente fiéis ao dogma fixado na
era mosaica – o monoteísmo ético como crença em um só Deus, que impõe
uma ordem moral; o único Deus de Israel é um Deus justo que exige do seu
povo obediência à sua santa lei”4.
À luz da Palavra de Deus (antigo testamento), podemos dizer que o
que inspira a doutrina social da Igreja na literatura profética é pratica da
justiça5 na pregação, pois “a justiça é um tema indissoluvelmente religioso
e social. O Santo é o justo. O pecado é a iniquidade. Estas equivalências
são carregadas de sentido”6.
A principal atenção dos profetas estava na ética social, mais
precisamente a justiça social. Segundo Schwantes, “o direito do pobre é a
preocupação central e constante de quase todos os textos proféticos que
mencionam o pobre. (...) O pobre tem seu direito ameaçado não apenas na
3
HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. São Paulo:
Paulus, 1985, p. 267.
4
Ibidem, p. 268.
5
Justiça: 1) do Gr. dikaiosýnê, traduz um grupo de palavras do hebraico baseado em sdq = sädaqah. O
substantivo dikaióma (regulamento, mandamento, ato de justiça, exigência), ocorre no AT cerca de 70
vezes. O grupo de palavras com dikaios (reto, justo equitável), que traduz o hebraico sdq (sädäq) aparece
462 vezes entre 476 possibilidades. A justiça no AT não é questão de ações que se conformam a um
determinado conjunto de padrões absolutos, mas, sim de comportamento que está em conformidade com
o relacionamento bidirecional entre Deus e o homem. Desta forma, a justiça de Deus aparece no Seu
modo divino de tratar com Seu povo, i.é. na redenção e na salvação (Is 45,21; 51,5-6; 56,1; 62,1). Cf. H.
Seebass, in BROWN, Colin; COENEN, Lothar (Orgs.). Dicionário internacional de teologia do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2ª ed. 2000, p. 1119-1120. 2) Não há um único termo hebraico para
expressar a nossa idéia de justiça; o significado justiça está contido nos conceitos de juízos e retidão. O
conceito de justiça (hebraico çedaqah e termos cognatos) é um tanto complexo. [...] Na linguagem
comum, o grupo de palavras ligadas a çedeq é usado nos processos judiciários e normalmente o seu uso
está na base de sua aplicação e outras situações; está nesse uso aquilo que é frequentemente melhor
traduzido por justo ou justiça. Os juízes não devem julgar com parcialidade, mas com justiça (Lv 19,15;
Dt 1,16). [...] Visto que çedeq é uma qualidade enraizada na lei e se encontra precisamente nos
legisladores e nos administradores da lei, ela adquire facilmente o significado de conduta de acordo com a
lei; e esse é o sentido mais específico do português “justo”, “justiça”. Çedeq como conduta reta opõe-se
ao pecado, à impiedade etc. [...] Procurar a justiça é paralelo, em poesia, a “procurar Iahweh”, pois é
através da boa conduta que Iahweh é encontrado (Is 51,1; Sf 2,3). Mais precisamente, a conduta reta é
honestidade contraposta a engano e veracidade contraposta a falsidade (Gn 30,33; Jr 4,2). Fazer justiça é
normalmente a conduta reta em geral e não a administração da justiça (Ml 3,18). Cf. MACKENZIE, John
L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, p. 525-526.

6
BIGO, Pierre; ÁVILA, Fernando B. de. Fé cristã e compromisso social – Elementos de reflexão sobre
a
América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 159.
prática da justiça, mas também no âmbito econômico” (2013, p. 246-47).
Há na pregação profética uma profunda preocupação com a situação dos
pobres, que remete às mais calorosas manifestações sociais pelos direitos
das minorias:
No séc. VIII a.C. Amós é por excelência o profeta da justiça social.
Na restauração dela concentra todas as energias de arauto da vontade Deus.
Manifesta reservas e até repúdio pelo culto prestado nos santuários em
festas religiosas. Mas o problema que ele detecta não estava no culto;
estava na incoerência abissal entre piedade e relações humanas, entre culto
e justiça social. A sua mensagem é: Deus não aceita oferendas de quem não
praticar a justiça nas relações humanas. Põe Deus a dizer ao povo:
Odeio e desprezo as festas religiosas que celebrais…
Não quero os holocaustos que ofereceis em minha honra” (Am 5,21-22).
“Corra a equidade [mišpāţ] como água da fonte,
E a justiça [şedāqāh] como torrente que não seca” (Am 5,24).
Para Amós, o critério decisivo que marca a autenticidade daquilo que
o orante diz ao céu é a justiça que ele faz na terra. Se o culto é autêntico, o
que o orante diz ao céu produz justiça na terra. O que torna verdadeiro o
culto não é só o que o fiel diz ao céu mas a justiça que ele pratica na terra.
A falta de justiça e de retidão era gravíssima, porque a fé bíblica via Israel
como tendo sido eleito e libertado para ser modelo de justiça e equidade
entre os povos (Am 3,1-2). Ora, Israel violava a justiça tanto como outros
povos:
“Assim diz Yahvé: vendem o justo por dinheiro
e o pobre por um par de sandálias” (Am 2,6).
Ao fazer este diagnóstico, o profeta avançava como terapêutica um
apelo à conversão (5,4.6.14), que acarretasse a prática da justiça e da
equidade para com os pobres, e o reto funcionamento dos tribunais, que
ditassem sentenças justas (Am 5,7.15.24). A atualidade de Amós é
flagrante. Podemos dizer que, à distância de vinte e oito séculos, «hoje é a
hora de Amós»
Amós, que pregou no Norte, denunciou com veemência a violência
contra os fracos que contrapõe a ação libertadora de Deus em prol dos
próprios israelitas nos inícios (Am 2,6-12), bem como o fato dos israelitas
estarem escravizando seus irmãos por quase nada (Am 8,6). Em Am 5,14-
15 o profeta faz um apelo para toda a sociedade: “Buscai o bem, e não o
mal (...), Odiai o mal e amai o bem...” Segunda Célia Patriarca, esse texto
“evidencia que se identifica com o pobre, fraco e oprimido, e desperta-nos
para a adoção de uma conduta social responsável condizente com a
promoção da vida e da dignidade” (PATRIARCA, In: REB n. 125, p.32);
Isaías, mesmo sendo um livro que reproduz diversas vozes de uma
escola, tem a constante preocupação pela justiça na terra, e uma religião
que seja menos ritualística e mais ética. Logo no início do livro fica patente
essa denúncia, quando afirma: “Estou farto dos holocaustos de carneiros,
da gordura de cevados; o sangue de bezerros, cordeiros e bodes não me
agrada” (Is 1,11), para em seguida determinar: “Aprendei afazer o bem;
atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão,
pleiteai a causa das viúvas” (Is 1,17). A denúncia contra os opressores é
severa em Is 3,14-15 e 10,1-4, e na seção do Trito Isaías o que caracteriza o
chamado do profeta é a libertação dos oprimidos pela injustiça social (Is
61,1-4), onde aparece a palavra euangelisasthai [evangelizar] pela primeira
vez.
Jeremias, o profeta que sempre questionou os poderosos, denuncia o
lucro desenfreado e a ganância dos ricos de Jerusalém, que oprime os
necessitados. Ele chama essas pessoas de criminosos, e afirma que suas
casas prosperaram graças à fraude (Jr 5,25-29). Em sua ousadia, ele
denuncia diretamente o rei Joaquim, pelo fato deste obrigar as pessoas a
trabalhos forçados para construir uma casa para ele (Jr 22,13-19). A
indignação é tanta que a proclamação começa com um “ai”, evidenciando a
gravidade da situação.
Oseias, por sua vez, afirma cabalmente que o desejo de Deus é por
misericórdia, e não por sacrifícios (Os 6,6). Assim como Isaías, Oseias
questiona o culto formal que é praticado no Norte enquanto a situação
social é deplorável. Além disso, ele denuncia ouso das filhas dos sacerdotes
no culto de fertilidade à Asherah (Os 4,13,14). Por isso, Oseias faz um
apelo à conversão, com plena confiança no amor de Deus. Oseias declara
que a conversão autêntica exige a prática da Justiça şedāqāh e da
misericórdia na vida social (Os 10,12; 12,6), que torna possível a ordem
şedeq na comunidade. Ao juntar a bondade à Justiça, Oseias sugere que
praticar a Justiça não é, simplesmente, uma ação impessoal e fria que
cumpre normas estabelecidas; é antes uma ação que implica o calor
humano do apreço pela pessoa atendida.
Por sua vez, Habacuc denuncia o fato de estarem destruindo o
oprimido ocultamente ao mesmo tempo em que celebra o Deus que impede
os injustos de triunfarem para sempre (Hc 3,14); Mesmo os profetas tardios
como Ezequiel e Daniel, mais associados a visões e oráculos apocalípticos,
fazem referências à questão social envolvendo as desigualdades.
Ezequiel, vinculado ao grupo sacerdotal, declara que a queda de
Jerusalém aconteceu devido à exploração dos pobres pelas elites, que ele
chama de “povo da terra” (Ez 22,29). Segundo ele, inclusive, o grande
pecado de Sodoma nada teve a ver com comportamento sexual, mas com a
falta de solidariedade para com os empobrecidos: “Eis que esta foi a
iniquidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera
tranquilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o
necessitado” (Ez 16,49). Finalmente, Daniel, quando interpreta o sonho de
Nabucodonosor, o aconselha a auxiliar os pobres, para que possa reinar
tranquilo: “Portanto, ó rei, aceita o meu conselho e põe termo, pela justiça,
em teus pecados e em tuas iniquidades, usando de misericórdia para com os
pobres; e talvez se prolongue a tua tranquilidade (Dn 4,27).
Quando falta a Justiça şedāqāh, o culto fica vazio, deformado, torna-
se execrável e criminoso (Sl 50; Is 1,10-20; Ecl 34-35). Praticar a Justiça
está intimamente ligado com conhecer o Senhor, o verdadeiro Deus, que
ama a Justiça (Jr 22,16; Is 45,21-24); mas os falsos deuses não defendem a
Justiça e são destronados (Sl 82) vice-versa, o falso conceito de Deus
acarreta a injustiça (Sb 1,1; 14,23-31). Deus faz Justiça ao fraco e
oprimido, e assim quer ser conhecido. Deus restabelece a Justiça em seus
julgamentos históricos.
A conclusão a que se chega é que os profetas de Israel, tanto do
Norte quanto do Sul, tanto os independentes quanto os ligados à corte ou ao
templo, sabiam que a vontade Deus expressa na Torá era de que houvesse
justiça e equidade para com os desamparados socialmente, em especial os
pobres, como os órfãos e as viúvas. Essa convicção que perpassa os livros
dos profetas teve reflexo em diversos movimentos judaicos posteriormente,
o que se percebe claramente em Jesus e na forma como seu movimento é
descrito nos evangelhos.
O livro dos Salmos também é uma expressão bem peculiar dentro do
contexto veterotestamentária e via de regra indica em sua literatura uma
ação que se conforma à ordem estabelecida, seja dando ao outro o que lhe
corresponde, seja restaurando-o na sua devida dignidade. Neste sentido, a
Justiça não estava feita: era realizada por ação divina e por comportamento
humano (colaboração humana). Nos Sl 35,5 e 99,4 Deus ama o mišpāţ e a
şedāqāh, isto é, a ordem estabelecida no mundo e posta em ação no povo
eleito de Israel. Consequentemente, os que praticam o mišpāţ e a şedāqāh
são abençoados por Deus (Sl 106,3).
No livro dos salmos, se sobressai a frequente relação de justiça com
os pobres (139 vezes), além da ideia de ordem a justiça contém geralmente
um aspecto dinâmico: indica uma ação que se conforma à ordem
estabelecida, seja dando ao outro o que lhe corresponde, seja restaurando-o
na sua devida dignidade. Assim, diz nos Sl 35,5 e 99,4 que Deus ama o
mišpāţ e a şedāqāh, isto é, a ordem estabelecida no mundo e posta em ação
no povo eleito. Consequentemente, os que praticam o mišpāţ e a şedāqāh
são abençoados por Deus (Sl 106,3). O salmista do Sl 72,1-2 pede:
Concede, ó Deus, o teu juízo [mišpāţ] ao rei
E a justiça [şedāqāh: sentido da ordem divinamente estabelecida] ao
filho do rei,
Para que governe/julgue o teu povo com justiça [şedeq]
E os teus humildes/pobres com retidão [mišpāţ].
Os montes produzam paz/prosperidade
E as colinas, justiça [şedāqāh] para o teu povo.
O Sl 119,142 faz uma ligação direta entre a şedeq e a şedāqāh:
A tua şedāqāh é şedeq [a tua justiça é ordem, ou é justa].
Noutros versículos do mesmo salmo diz-se que:
Os teus decretos [mišpāţîm] são şedeq [são a ordem que Ele estabeleceu]
(v. 75).
A conexão da şedeq e da şedāqāh com a ação divina salvífica
aparecem muitos salmos. O salmista do Sl 40 reza:
Proclamei a tua justiça [şedeq] perante a grande assembleia.
Não fechei os meus lábios, Yahvé, tu o sabes.
Não ocultei a tua justiça [şedāqāh] no meu coração.
Falei da tua fidelidade [’ěmûnāh] e salvação.
Nunca ocultei a tua bondade [hesed] e a tua fidelidade [’emet] à grande
assembleia (10-11).
Aqui o orante fala da justiça de Deus como expressão da sua
bondade amorosa e permanente, da sua misericórdia [hesed], e como
manifestação da sua fidelidade [’emet] à ordem por Ele estabelecida para
bem da sua comunidade humana.
A concepção hebraica da justiça não se baseia na concordância das
ações humanas com certas normas jurídicas de carácter absoluto, mas num
comportamento adequado dentro de uma relação bilateral. O qualificativo
«justa» reconheceu gostosamente a Lei como um princípio de orientação da
vida quotidiana. Assim, no juízo das relações meramente humanas não se
diz que se castiga justamente o culpável; o que se diz é que se faz justiça ao
justo e se condena o culpável (Dt 25,1).
O Novo Testamento dá outra dimensão a essa questão, pois, para
Cristo, a base é o amor. A caridade aperfeiçoa toda a justiça, é seu
cumprimento e sua superação. Como consequência dessa nova visão, o
tema do humilde e do pobre passou a ocupar lugar essencial no Evangelho.
A questão da propriedade também passou a ser analisada. Ela, em si
mesma, não é condenada, mas a acumulação e o uso dos bens além da
necessidade constituem pecado.
Os evangelhos mostram um quadro sobre Jesus de alguém que se
envolveu profundamente com as mazelas do povo sofrido, que anunciava o
império (ou reino) de Deus contra o império opressor dos romanos e que
pregava uma nova sociedade baseada em relacionamentos justos e
igualitários. Em relação aos pobres ele estava sempre cercado de pessoas
muito carentes e necessitadas, e tinha sempre forte crítica aos ricos,
chegando a afirmar a dificuldade e um rico alcançar o reino de Deus: “Em
verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus” (Mt
19,23b).
Essa palavra foi dita após um jovem rico sair de sua presença triste
porque tinha sido desafiado a dar seus bens aos pobres. Assim, Jesus
reverbera a pregação profética e o ideal da Torá de que os que têm posse
precisam cuidar dos desvalidos. Mas ele vai além, e sua pregação e
ministério toma proporções gerais de novos relacionamentos que valorizam
a pessoa, especialmente as mais fracas socialmente, marginalizadas e
fragilizadas pelo sistema. Na sociedade em que viveu Jesus demonstra que
ele tinha essa preocupação com o ser humano em termos de segurança, vida
em condições adequadas e justiça.
Essas atitudes e a pregação dele, na verdade, tinham relação com o
projeto do “reino de Deus”, ou o domínio de Deus, que se contrapunha ao
domínio do César. Os evangelhos foram escritos numa perspectiva política
de subversão ao poder do império e seus aliados na Palestina, como
demonstra Richard Horsley em seu trabalho “Jesus e o Império” (2004).
Para ele, a chave para compreender a visão política no Evangelho de
Marcos está na entrada de Jesus em Jerusalém: “Quando Jesus então entra
em Jerusalém e enfrenta as autoridades, todo o enredo do evangelho fica
claro. A história de Marcos retrata Jesus realizando uma renovação de
Israel em oposição (e como condenação) aos governantes de Israel e aos
seus protetores romanos” (HORSLEY, 2004, p.80).
Jesus se depara com a ideia de uma Justiça muito diferente daquela
que Ele viera pregar e exemplificar na sua vida. A Justiça do fariseu era
uma Justiça legalista, adquirida pelo indivíduo mediante obediência às
exigências da letra da lei. Era a Justiça própria da pessoa que a possuía.
Jesus substituiu essa relação para com a lei, pela relação pessoal que o
homem tem para com Deus e para com a humanidade (Lc 10.26,27). Em
vez da lei então, existem duas grandes relações pessoais, uma com Deus e
outra com a humanidade.
Ao transferir a Justiça de uma relação legal para uma relação pessoal,
Jesus afirmou que o coração é o lugar donde sai a força que dá
cumprimento às exigências das relações pessoais, segundo amor (Lc 10,27;
Mt 5,23;24;48). Segundo a concepção de Jesus não só todo o mandamento,
mas toda a lei resumem-se no amor que está no coração (Mt 22,36-40).
A Justiça do Novo Testamento é vinculada com o tema Reino de
Deus, onde se vê uma ligação inseparável (Mt 6,33; Rm 14,17). Esta é uma
Justiça justificadora, segunda a qual Deus declara um pecador justo (Rm
3,22), e que aquele que foi alcançado por esta Justiça, vive a Justiça,
lutando por igualdade, liberdade e o bem do próximo (Ef 4,24; Fp 1,11).
Este é o padrão de Justiça na qual todo cristão deve andar, pois foi isto que
Jesus Cristo ensinou e deixou para a Igreja em seus primórdios.

Justiça em Mt 25,31-46
O Sermão Escatológico de Mateus narra o triunfo da justiça. Nele
encontram-se as normas que fundamentam a absolvição ou a condenação
no juízo final. Os critérios do julgamento estão relacionados com as
atitudes dos julgados em relação às pessoas que estão em vivências
marginalizadas, vítimas de um sistema social e político injusto e que
dificilmente conseguiriam sair dele sem a ajuda de alguém.
Todavia, no Sermão Escatológico, justiça é atender as necessidades
do marginalizados e promover práxis para reversão dos seus status
(STORNIOLO, 2011, p. 181-182). Entende-se como ações de justiças,
entre outras, as lutas para derrotar sistemas políticos-religiosos injustos, a
reintegração dos marginalizados na dignidade da vida, denunciar as ordens
injustas e os agentes construtores e fomentadores delas. Enfim, para o
julgador escatológico, o cerne da religião bíblica é a prática da justiça e,
quem assim fizer não será condenado. Storniolo (2011, p. 181-183)
comenta:
Pelo contrário. Jesus chegou a esse trono [juiz] porque
escolheu a prática da justiça. [...] e justiça é atender às
necessidades dos que precisam [...] Deus é justo, quer a
justiça, e seu Filho mostrou o que é justiça. [...] ele quer
a justiça, e é diante disso que seremos julgados. Na
verdade, aí está o verdadeiro ecumenismo: praticar a
justiça.

Na lógica de Cristo os herdeiros do Reino são aqueles que praticaram


a justiça a favor dos pequeninos.
O Evangelho de Mateus é estruturado a partir de cinco sermões
(FERREIRA, 2009, p. 179). Capítulos de 3-7 (capítulo doravante poderá
ser citado como cap. para o singular ou plural) onde encontra-se o Sermão
da Montanha; nos cap. 8-11,1 o Sermão Missionário; nos cap. 11,2-13,52 o
Sermão das Parábolas; nos cap. 13,53-18,35 o Sermão da Igreja e, por
último, nos capítulos 19-25 o Sermão do Futuro do Reino. Os capítulos 1-2
são introdutórios e os cap. 26-28 finalizam o Evangelho.
Então, tomando como referência a divisão dos cinco sermões
temáticos do Evangelho, o texto em exegese (Mt 25,34-36.40) está inserido
no Quinto Sermão (cap. 19-25). No entanto, esses sete capítulos abordam
diversos assuntos e assim, eles não formam uma perícope. Então o início
do cap. 19 e o final do cap. 25 não são os limites do texto.
As categorias fome, sede, prisão, nudez e doença no Sermão
Escatológico de Mateus denunciam um status de carências básicas
generalizadas, portanto é uma forte denúncia de Jesus ao sistema sócio-
político e, não apenas um problema religioso. As metas propostas no
programa político-religioso de Jesus, se seguidas, alterariam a situação
vigente de caos para um status de bem-estar social. A comunidade mateana
estava inserida em um contexto social e político de pauperização da base da
pirâmide que era provocada por Roma, pelos governos dependentes e pelos
religiosos. Entende-se que os principais mecanismos que contribuíram para
a pauperização do campesinato, a classe palestinense que melhor
representava a base produtora da pirâmide, foram a carga tributária
excessiva e a política agrária da época que privilegiava os latifundiários.

Para alterar esse status Jesus fez opção pelos pobres e nos convoca a
fazer a mesma opção. A principal meta social do “programa” de Jesus era
acabar com esse sistema egoísta e injusto que utilizava a terra e as pessoas
como mecanismo de dominação e de empoderamento e não como
ferramenta para produção de víveres necessários à sobrevivência de todos.
Sua proposta era reintegrar e incluir os marginalizados aos benefícios
socioeconômicos da época como, p. ex. a titularidade de terras. A
comunidade mateana, pelos anos 90 d.C., estava em uma situação pior do
que do tempo de Jesus, provavelmente no sul da Síria. É nesse contexto que
Mateus redigiu e atualizou o Sermão Escatológico.
O Evangelista Mateus era aberto aos estrangeiros. Embora o seu
evangelho seja dirigido aos judeus, do início ao final da sua narrativa
querigmática há uma preocupação explícita do escritor em inserir no seu
evangelho atuações de povos e etnias que não faziam parte do judaísmo.
Assim, nota-se no evangelho e no seu conteúdo uma orientação oposta ao
nacionalismo. A pré-disposição do autor para com os étnicos pode ser
observada na genealogia de Jesus (Mt 1,3;5), no relato da visita que os reis
magos fizeram em Belém (Mt 2,1-12), no encontro de Jesus com a mulher
cananeia (Mt 15,21-28), no julgamento escatológico (Mt 25,31- 46) e no
epílogo do relato evangelístico onde Jesus comissionou os seus discípulos
para expandir o Reino dos Céus aqui na terra (Mt 28,18-20). Em todos
esses eventos o evangelista colocou em destaque atores que não eram
descentes de Abraão demonstrando assim uma abertura aos étnicos.
Para Mateus, a práxis da busca pela justiça de Deus passa pela
política em favor dos excluídos de seu famoso sermão do capítulo 5. No
‘quinto’ sermão, encontra-se a vinda definitiva do Reino que é fundamento
na justiça. Nele Jesus entra em ruptura total com o “povo antigo de Deus” e
passa ensinar a seus seguidores com o foco que eles serão os
disseminadores da justiça do Reino. Há grande tensão entre Jesus e os
mantenedores da injustiça social como os sacerdotes, escribas, fariseus,
representes do Império, governadores dependentes, ricos e outros aderentes
ao poder. O julgamento escatológico do quinto sermão destrói a ordem
injusta vigente e implanta definitivamente o Reino de justiça. O critério
para participar do Reino é a misericórdia que faz a justiça para aqueles que
estão oprimidos e marginalizados.
O Sermão Escatológico de Mateus narra o triunfo da justiça. Nele
encontra-se o conteúdo que fundamenta a absolvição ou a condenação no
juízo final. Os critérios do julgamento estão diretamente relacionados com
as atitudes dos julgados (práxis política) em relação às pessoas que estão
em vivências marginalizadas, vítimas de um sistema social injusto e que
dificilmente conseguiriam sair dele sem a ajuda de alguém. De acordo com
o Sermão Escatológico, justiça é atender as necessidades do marginalizados
e promover praxis para reversão dos seus status (STORNIOLO, 1990, p.
181-182). Entende-se como ações de justiças, entre outras, as lutas para
derrotar sistemas políticos-religiosos injustos, a reintegração dos
marginalizados na dignidade da vida, denunciar as ordens injustas e os
agentes construtores e fomentadores delas. É a partir dessas praxis que as
pessoas serão julgadas (STORNIOLO, 2011, p. 183).
Os políticos do nosso tempo beijam quase diariamente a palavra
«justiça». Como se a amassem!... Só a ama quem dá o peito às injustiças
que se cevam nas relações sociais. Exigir justiça lutando contra a injustiça,
com palavras e atitudes proféticas, libertadoras é estar convencido de que
só o amor ao ser humano é construtivo e forte. Nessa luta bíblica também
entra a oração dos salmistas. O orante que pede justiça divina não luta
contra a própria desgraça, mas contra o mal feito a seres humanos. A forma
de viver segundo a justiça [şedāqāh] e a bondade [hesed] convida a
contribuir para a construção de uma ordem planetária [şedeq], fundada na
fidelidade aos valores da justiça.
A PATRÍSTICA E A DOUTRINA SOCIAL: JUSTIÇA E
POLÍTICA
Os “pais” liam, refletiam e elaboravam suas homilias, preparavam a
catequese sempre com as Escrituras nas mãos. Enorme quantidade de seus
escritos são paráfrases bíblicas, tecidos de repetidas citações bíblicas ou
longos comentários dos livros bíblicos. Em primeiro lugar, deve-se evitar o
“endeusamento” dos “Pais e Mães da Igreja”. Eles não disseram tudo. Têm
de ser compreendidos no contexto histórico, social, político e econômico
em que viveram. Não podem ser modelos para tudo e para todos. Não
deram a última palavra teológica. O estudo dos “Pais e Mães da Igreja”
pode ajudar a compreender a Igreja de hoje e seus problemas, pois mostram
como as raízes do presente estão fincadas no passado e permitem
acompanhar sua evolução. Permitem entender melhor a complexidade dos
problemas atuais, as tensões, os conflitos.
O capítulo IV do Compêndio da Doutrina Social da Igreja tratados
princípios7 que norteiam a DSI8. Coloca em primeiro lugar a dignidade da
pessoa humana, o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade. Tais
princípios têm um caráter geral e fundamental, por referirem-se às relações
interpessoais e grupais; aquelas dadas na política, na economia, direito
entre os povos e nações. Esses princípios promanam da mensagem
evangélica, resumidos no mandamento do amor 9 de Cristo que diz: “Amai-
vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). A Igreja tem uma palavra
em relação à sociedade onde as pessoas vivem e as autoridades exercem o
seu poder. Esses eixos são parte essencial da mensagem cristã, pois
indicam os diversos caminhos possíveis para a edificação de uma vida
social verdadeira, autêntica e renovada10, num tempo em que estamos
vivendo, de desigualdades sociais, de injustiças e de exclusões, mas
também de muita esperança, empenho pastoral, entrega aos outros e de
edificação do Reino de Deus.
7
O artigo A Doutrina Social da Igreja e a Política de 05/09/2008, de artigo Dom Orlando Brandes, atual
arcebispo de Aparecida nos apresenta ainda mais 8. Consultado em 19/09/2019 http://www.cnbb.org.br/a-
doutrina-social-da-igreja-e-a-politica/
8
DSI = Doutrina Social da Igreja. Em abril de 2004, vinha lançado no Vaticano, Roma, o Compêndio da
DSI, espécie de síntese do Ensinamento Social da Igreja. Tal obra tinha sido requerida por João Paulo II
ao Cardeal François-Xavier NguyênVan Thuan, que possibilitou uma importante fase preparatória; com
sua enfermidade e morte, o término do compêndio e a sua publicação aconteceram com o Cardeal Renato
Raffaele Martino. Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA EPA Z”. Compêndio da Doutrina Social da
Igreja, São Paulo: Paulinas, 2005 p. 13-14.
9
Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São
Paulo: Paulinas, 2005, p. 99.
10
Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações para o estudo e o ensino da
doutrina social da Igreja na formação sacerdotal, 47: Tipografia Poliglota Vaticana, Cidade do Vaticano
1988, 45. In: Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 100.
Os Padres da Igreja, os primeiros teólogos no início do cristianismo,
tiveram uma atuação social e política muito forte, capaz de questionar a
estrutura imperial que mantinha os pobres, os escravos na exclusão social
dos primeiros séculos, mas também eles tiveram uma palavra profética,
denunciando as coisas inconvenientes ao evangelho e à dignidade da
pessoa humana. Tanto são verdadeiros esses aspectos que a reação pagã e
imperial veio logo com perseguições e a tentativa de eliminar os cristãos e
a organização da Igreja após a segunda metade do século III11.Vimos que o
êxodo, os profetas, o reino anunciado por Jesus, são os grandes horizontes
da relação entre fé e política como bem comum. Nos padres da Igreja
encontramos também as mais nobres inspirações para nos educar sobre
nossa participação sócio-política, ou seja, nossa educação para a prática da
justiça, da consciência social, da relação entre fé e política. A participação
na política faz parte da missão dos cristãos, ensinará a Igreja, a partir dos
padres.
Assim sendo, vejamos alguns dos princípios da Doutrina Social da
Igreja que são caros aos escritos e tempos Patrísticos, que, por conseguinte,
iluminam nossos paradigmas de leitura da realidade atual, no campo social,
e político.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Este princípio possui a sua fundamentação bíblica: “Deus criou o


homem à sua imagem, à imagem ele o criou, homem e mulher os criou”
(Gn 1,26-27). O ser humano, homem e mulher, tem a sua protologia ligada
ao alto, ao seu Criador, por serem criados com uma dignidade
incomparável às outras criaturas; imagem de Deus 12. Esse aspecto
teológico-antropológico esteve presente nos Padres da Igreja. Tertuliano
possuía uma concepção objetiva do ser humano13, do qual ele diz que foi
modelado por Deus como um grande bem, uma obra maravilhosa, dada a
sua liberdade. Esse autor caracterizou bem a forma como Deus criou o ser
humano. Quando o Senhor tocava a carne, essa recebia honra, dignidade.
Deus era todo dedicado àquela substância e ocupado com o seu
pensamento, trabalho, sabedoria, previdência e, em primeiro lugar, com
amor mesmo que lhe inspirava todos os delineamentos para conferir o
melhor ao ser humano. A criação do homem estava ligada à encarnação do
11
Cf. SORDI, M. I cristiani e L’impero romano, Milano: Jaca Book, 19912, p. 122-125
12
Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 72-73.
13
TERTULLIANO. La Resurrezione dei morti, VII, 3-4. Traduzione, Introduzione e Note a cura di C.
MICAELLI, Roma: Città Nuova Editrice, 1990.
Filho de Deus. Dessa forma, qual fosse a forma que Deus lhe imprimia no
lodo, tinha em mente Cristo que se tornaria homem, isto é lodo, que o
Verbo teria sido feito carne e também terra.
Tertuliano fala também da glória que Deus deu ao ser humano,
criando-o como imagem e semelhança. “Estando as coisas assim, eis,
portanto, o lodo recebeu glória da mão de Deus e a carne uma glória ainda
maior pelo sopro de Deus em virtude do qual depôs as imperfeições do
lodo e se enriqueceu com a presença da alma”14.
Irineu de Lião dizia que Deus será glorificado na sua criatura, pelas
mãos do Pai, o Filho e o Espírito Santo. O homem na sua integridade
tornar-se-á semelhante a Deus, porque, com o corpo, alma e espírito,
totalmente íntegro, ele participará do dom de Deus, criado à sua imagem e
semelhança15.
Gregório de Nissa, fala da importância do ser humano criado à
imagem de Deus. Ele diz que todo o ser humano é honrado também pelo
Criador, mais que qualquer outra criatura, pelo fato de que não foi o céu,
nem a lua, nem o sol, nem a beleza das estrelas, nem alguma das outras
coisas que se conservam na natureza às quais foram dados os dons divinos,
mas só à criatura predileta foi possível dizer: “Tu foste criado à imagem
daquela essência do intelecto, à semelhança daquela beleza da qual não há
defeito, representação da verdadeira divindade, receptáculo da vida bem-
aventurada, simulacro da autêntica luz”16.
Agostinho fala que a imagem de Deus está no íntimo do homem:
“Volta ao teu coração, verás então a idéia que fizeste de Deus, porque no
teu coração é a imagem. No íntimo do homem habita Cristo, no íntimo de
si, o homem remove a imagem de Deus, na sua imagem reconhece o seu
Criador”17.
Gregório de Nazianzo denunciava, no seu tempo, a opressão dos
pobres, por parte de quem dispunha do poder e dos meios econômicos e
políticos sobre os outros. Esses acumulam casa sobre casa, campo sobre
campo, fazendo de tudo para que os vizinhos não tenham nada, como se
fossemos únicos a habitar a terra. Outros ainda não têm piedade com os

14
Idem, VII, 7.
15
Cf. IRENEU DE LIÃO. Contra as Heresias, V, 6. São Paulo: Paulus, 1995.
16
GREGORIO DI NISSA. Omelie sul cantico dei cantici, II. Traduzione, Introduzione e Note a cura di C.
MORESCHINI. Roma: Città Nuova Editrice, 1988.
17
Cf. Commento al Vangelo di Giovanni, 18,10. In: OPERE DI SANT’AGOSTINO, XXIV, 2. Roma:
Città Nuova Editrice, 1952.
órfãos e as viúvas, não dando o pão necessário para as suas básicas
necessidades18.
O desrespeito pelo outro, como imagem de Deus, reforça o egoísmo
como uma atitude das pessoas, onde um se aproveita do outro (a deturpação
da política leva a isso). Se os bens particulares estão na primazia em
relação à pessoa do outro há a buscada ambição, do dinheiro, usufruindo de
cada um (outro) até ao fim. Para superar tal situação é preciso dar lugar à
mensagem de Cristo, sua presença salvadora, afastando, dessa forma, toda
ambição, para que ele se hospede na pessoa.

DESTINAÇÃO UNIVERSAL DOS BENS


O Compêndio da Doutrina Social da Igreja tem presente o Vaticano
II que afirma que Deus destinou os bens criados para todos os homens,
seguindo a regra da justiça e da caridade19. A fundamentação primeira é
bíblica, porque Deus criou a terra, dando-a ao homem para que este a
dominasse com o trabalho e gozasse de seus frutos (cf. Gn 1,28-29). O
desígnio divino é que não haja privilégio para alguns e exclusão dos meios
na grande maioria. Por isso, à luz da Doutrina Social da Igreja, podemos
afirmar categoricamente que toda e qualquer política governamental ou
ideologia que visa implementar uma parcial, insuficiente ou discriminatória
visão de que os bens obedecem uma destinação privada, voltada a
particulares ou a grupos, ela é uma política contrária ao ensinamento social
da Igreja e, portanto, deveria ser combatida e refutada pelos ministros e
fiéis.
O documento coloca o sentido da destinação universal dos bens pela
afirmação de que tal princípio não significa que tudo esteja à disposição de
cada um ou de todos e a mesma coisa pertença a todos, mas é a asseguração
do exercício equitativo e ordenado das coisas para todos usufruírem os bens
de todos20. João Paulo II fala que o direito à propriedade privada nunca foi
considerado, conforme a tradição cristã, como algo absoluto e intocável: tal
direito está subordinado ao direito do uso comum dos bens, à sua
destinação universal21. Os escritos patrísticos insistem em que os bens

18
Cf. NAZIANZO Gregorio Di. Tutte le Orazioni, XVI, 18. A cura di C. MORESCHINI. Milano:
Bompiani, Il Pensiero Occidentale, 2000.
19
Cf. CONCILIO VATICANO II. Const. Past. Gaudium et Spes, 69: AAS 58(1966)1090. In:
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 104.
20
Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 104 e 105.
21
Cf. Carta enc. Laborem Exercens, 14. In: ENCÍCLICAS DE JOÃO PAULO II, 4. São Paulo: Paulus,
1997.
criados por Deus foram dados a todos. As pessoas deveriam usufruir os
bens criados sem exclusão de ninguém. No entanto, esses (os escritos
patrísticos) não deixam de ressaltar também o egoísmo. Quando vigora o
direito humano, a pessoa diz: esta propriedade e essas terras pertencem a
mim. Pelo direito divino, a perspectiva é totalmente contrária.
Agostinho segue o Sl 23,11: ao Senhor pertence a terra e a sua
plenitude; com uma mesma terra, Deus sustém os pobres e os ricos 22. Os
bens que Deus nos concedeu são dons, tratando-se de seu amor, para todo o
gênero humano. Esse benefício não é um mérito pessoal, mas um
agradecimento a Deus pelos bens dados a todos23. O uso universal dos bens
ganhou valor, porque toda a criação é obra de Deus. Ele não deve nada a
ninguém, porque ele dá tudo ao ser humano, de uma forma gratuita; por
isso mesmo os bens não deveriam ser apropriados. O uso universal dos
bens ganhou valor, porque toda a criação é obra de Deus. Ele não deve
nada a ninguém, porque ele dá tudo ao ser humano, de uma forma gratuita;
por isso mesmo os bens não deveriam ser apropriados24.
A Carta a Diogneto também coloca aspectos da destinação universal
dos bens. Ela fala do mistério cristão, onde os cristãos se distinguem das
outras pessoas, não por terras, língua, costumes; mas eles vivem como os
outros, em cidades gregas e bárbaras, e, adaptando-se aos costumes do
lugar, testemunham um modo de vida social e político admirável. Vivem na
sua pátria como forasteiros, participam de tudo como cristãos e suportam
tudo como estrangeiros: “Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada
pátria é estrangeira”25.
João Crisóstomo entendia o dado da destinação universal dos bens,
não como algo pertencente ao ser humano, porque as coisas foram feitas
por Deus. A criatura humana não pode apropriar-se das coisas como se
fossem dela, porque tudo o que temos provém do Criador, em Jesus Cristo.
Tudo aquilo que somos, o devemos a ele, juntamente coma vida, o respiro,
a luz, o ar, a terra. Quando a pessoa fala de uma coisa como se fosse dela
ou dele, significa palavras que expressam uma realidade sem sentido. O
verdadeiro autor da criação é Deus. Manifestamos o nosso reconhecimento,
por sermos estimados dignos instrumentos da obra do Senhor26.

22
Cf. Commento al Vangelo di Giovanni, 6,25. In: OPERE DI SANT’AGOSTINO, XXIV, 2.
23
Cf. Commento al Vangelo di Giovanni, 28,7. In: OPERE DI SANT’AGOSTINO,XXIV, 2.
24
Cf. SANTO AGOSTINHO. O Livre-arbítrio, III, 16,45. São Paulo: Paulus, 1995.
25
CARTA A DIOGNETO, 5,1-5. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995.
26
Cf. GIOVANNI CRISOSTOMO. “Omelie sulla prima lettera ai Corinti”, 10, 4,3-4. In: La Teologia dei
Padri II. Roma: Città Nuova Editrice, 1974.
O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
O Compêndio afirma que o princípio da subsidiariedade é uma das
características diretrizes da Doutrina Social da Igreja, presente desde a
primeira encíclica social. A promoção da pessoa não acontece sem o
cuidado com a família, grupos, associações. Assim as sociedades de ordem
superior devem ajudar e apoiar as que são inferiores27.
Os Padres colocaram a importância da subsidiariedade, no sentido
de que cada ser humano deve dar ao outro ajuda e àqueles que mais
necessitam. Clemente tem presente o cuidado que o homem cristão deve ter
com a sua família. Se ele possui o governo da mesma, nunca deve se
afastar do amor de Deus, porque tem forças para superar as tentações sem
que são atingidos os filhos e a sua mulher28.
São João Crisóstomo diz que cada um de nós possui uma ovelha
para cuidar. Procuremos conduzi-la às pastagens convenientes. Desde a
manhã é preciso cuidar do bem do outro. Se, na vida pública, procuramos
estar em dia pagando os débitos, também nas coisas espirituais devemos
observar essa regra e pagar aquilo que nós devemos a Deus, procurando,
dessa forma, a salvação para nós na utilidade para o próximo, porque a
salvação é dada, quando a pessoa procura o bem comum29.
Teodoreto de Ciro tem presente o princípio da subsidiariedade,
porque quem está mais alto deve ajudar os necessitados. Quem tem mais
meios deve servir aqueles que mais precisam. Da mesma forma, na Igreja
há aqueles que têm uma maior responsabilidade e outros que são a estes
subordinados; a Polis (o governo, a política) tem também um dever para
com os menos favorecidos (comentar os planos de assistência do governo).

A PARTICIPAÇÃO
Esse é um outro princípio da DSI, consequência da subsidiariedade
na qual o cidadão participa da vida familiar, eclesial, cultural, econômica,
política e social, na sociedade civil a que pertence. O crescimento humano
acontece em nível pessoal e comunitário pela própria contribuição, mas
também pela edificação de uma comunidade internacional solidária30. A
27
Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 112.
28
Cf. ALESSANDRINO, Clemente. Gli Stromati, note di vera filosofia, VII, 70, 7-8. Introduzione,
Traduzione e Note di G. PINI. Milano: Paoline, 1985.
29
Cf. CRISOSTOMO, Giovanni. “Commento al Vangelo di san Matteo”, 77, 6. In: La Teologia dei Padri
III.
30
Cf. JOÃO PAULO II. Carta enc. Centesimus annus, 46: AAS 83 (1991) 850-851.In: Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, p. 115.
participação em todas as esferas da vida deve levar as pessoas à construção
de uma vida digna para todos e de um governo democrático, de modo que a
democracia seja participativa31. O Compêndio manifesta uma grade
preocupação pelos regimes totalitários ou ditatoriais em que a
participação política das camadas populares é negada na raiz, porque essa
pode ameaçar o próprio Estado32.
Ainda que a participação seja um termo da modernidade, ela teve a
sua fundamentação patrística. Gregório de Nissa diz que ao homem foi-
lhe dada a vida para que ele participasse dos bens divinos de modo que ele
pudesse gozar de tais riquezas33. A participação significava também
envolvimento dos cristãos no mundo. Tertuliano dizia que os cristãos
estavam presentes em todas as instâncias sociais e políticas do império:
“Somos de ontem, no entanto temos já invadido toda a terra e os vossos
domínios; as cidades, as ilhas, os vales, os municípios, os burgos, os
próprios acampamentos, as tribos, a coorte, o mundo e foro”34.
A Carta a Diogneto dizia que os cristãos estão em todas as cidades,
testemunhando um modo de vida social admirável e paradoxal 35. Tal
consideração dá a entender como os cristãos não estavam alheios à vida
social, fazendo o mundo melhor do que as pessoas concebiam e
encontravam pela sua convivência. Esse escrito diz que eles são ativos,
participativos na realidade comunitária e social: “Como a alma está no
corpo, assim os cristãos estão no mundo”36.

A SOLIDARIEDADE
É vista como virtude social do evangelho que é o perder-se para o
outro; para ter a verdadeira vida (cf. Mt 10,40-42; Mc 10,42-45; Lc 22,25-
27)37. A solidariedade aqui uma ação/postura que deve permear todas as
esferas (política, economia, social, cultural). Com Jesus de Nazaré, pode-se
perceber o nexo entre solidariedade e caridade; a solidariedade reveste-se
31
Cf. JOÃO PAULO II. Carta enc. Centesimus annus, 46: AAS 83 (1991) 850-851.In: Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, p. 115.
32
Cf. JOÃO PAULO II. Carta enc. Centesimus annus, 44-45: AAS 83 (1991) 851-852.In: Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, p. 115.
33
Cf. NISSA, Gregorio Di. La Grande Catechesi, V, 5.
34
Cf. TERTULLIANO. Apologético, XXXVII, 4. A cura di A.R. BARRILE. Bologna: Oscar Mondadori,
1992.
35
Cf. CARTA A DIOGNETO, 5,4. In: Padres Apologistas.
36
Idem, 6,1.
37
Cf. JOÃO PAULO II. Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 38: AAS 80 (1988) 566.Cf. ainda: JOÃO
PAULO II, Carta enc. Laborem exercens, 8: AAS 73 (1981)594-598; JOÃO PAULO II, Carta enc.
Centesimus annus, 57,57: AAS 83 (1991)862-863. In: Compêndio da Doutrina Social da Igreja, p. 117.
da gratuidade total, o perdão e a reconciliação; o próximo é visto como
imagem viva de Deus Pai, resgatado pelo sangue de Jesus Cristo e a
presença do Espírito Santo. Dessa forma, a pessoa deve ser amada como o
Senhor amou a todos, chegando ao sacrifício supremo que foi aquele de dar
a vida pelos próprios irmãos (cf. 1 Jo 3,16;).
Esse ponto foi bastante considerado pelos Padres da Igreja, porque,
pelo depoimento de muitos deles, a atuação das comunidades visava a
caridade para com todos. Tertuliano fala da solidariedade de Jesus com os
sofredores, através da paciência. Na sua paixão, ele sofreu insultos, foi
flagelado, desprezado e coroado de espinhos, mas ele foi perseverante até
ao fim. Ele, sendo humano, porque encarnado, não imitou em nada a
impaciência do homem38.
Cipriano, seguindo os passos de Tertuliano, também dizia que é
preciso ficar com Cristo para alcançar a Deus. Com Cristo é possível viver
a solidariedade do sofrimento, porque ele foi conduzido como uma ovelha
ao sacrifício, como um cordeiro sem voz não abriu a sua boca. Ele não
gritou, e a sua voz não se ouviu sobre as praças, não subtraiu a sua face aos
insultadores (cf. Is 53,7)39.
Tertuliano fala de uma espécie de caixa comum, onde cada um
levava ali quanto queria e podia. Era sua modesta contribuição mensal e
cada um a oferecia de uma forma espontânea. “Esses depósitos da comum
piedade não são usados para banquetes, bebidas, mas para dar alimento e
sepultura aos necessitados, socorrer os meninos e meninas privados de
sustentação e de seus pais pobres e também escravos em estado final de
vida, náufragos. A comunidade ajuda também os condenados às minas,
deportados nas ilhas e aqueles jogados nos cárceres”40.
Os Padres da Igreja tiveram, não só uma percepção dos problemas
sociais e políticos de sua época que encontravam em suas comunidades e
na sociedade imperial, mas realizaram algo em vista da mudança da vida
daqueles povos. Eles tinham como ponto fundamental a Palavra de Deus e
o paradigma de Jesus Cristo, o Salvador da humanidade, a sua atuação em
favor de todos, mas sobretudo dos pobres. Dessa forma, eles (os Padres)
procuraram estar ao lado dos que mais sofrem, dos últimos da sociedade,

38
Cf. TERTULLIANO. “La pazienza”, 2-3. In: La Teologia dei Padri III. Roma: Città Nuova Editrice,
1975.
39
Cf. CIPRIANO. “Il bene della pazienza”, 20-24. In: La Teologia dei Padri III. Roma: Città Nuova
Editrice, 1975.
40
Cf. TERTULLIANO. Apologetico, XXXIX, 5-6.
buscando alternativas de transformação da realidade, reforçando a
conversão das pessoas e autoridades.

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