O Melhor de Voce - Mia Sheridan PDF
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O melhor
de você
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Most of all you
Copyright © 2017 by Mia Sheridan
Cover copyright © 2017 by Hachette Book Group, Inc.All rights reserved
ELLIE
CRYSTAL
Dias atuais
Ele não pertencia a este lugar. Por que esse pensamento me surgiu no
instante em que pousei os olhos nele, eu não sabia. Mas foi o que
aconteceu. Não foi pela sua aparência – eu já vira homens bonitos,
arrumados e aparentemente íntegros aqui antes. Depois de ingerirem
algumas gotas de álcool, ou aspirarem a atmosfera do grupo que permeava
o ar, eles acabavam agindo exatamente como os outros tolos ébrios
dispostos a gastar seu dinheiro e dispensar qualquer medida de decência
que tivessem. E ele não parecia deslocado por estar com medo. Também já
tinha visto isso antes – olhos disparando ao redor, nervosos e excitados
pelo ambiente. Não, o homem sentado sozinho na mesa perto dos fundos
do salão, segurando uma Miller Lite, não parecia assustado, apenas
curioso. Sua cabeça girou lentamente conforme ele observava o ambiente,
e não pude evitar que meu olhar acompanhasse o dele, imaginando sua
avaliação.
Minha própria curiosidade me confundia e me perturbava. Eu não ficava
curiosa a respeito dos homens que vinham ali e não conseguia encontrar
uma explicação para isso. Fechei os olhos, empurrando os pensamentos
para longe enquanto a música tomava conta da minha mente. Quando
minha apresentação chegou ao fim, os aplausos explodiram e fixei um
sorriso no rosto.
Anthony caminhou por trás da multidão, garantindo que ninguém
tomaria sequer um pouco de liberdade e puxando para longe de mim os
que tomavam, enquanto protestavam. Cinco minutos depois, quando me
virei para sair, meus olhos se depararam com os do homem nos fundos,
ainda sentado na mesma mesa, observando-me. Endireitei a coluna, algo
em seu rosto espicaçou minha mente. Eu sabia que nunca o vira ali antes.
Eu o conhecia? Seria isso o que ficou atiçando minha atenção?
Assim que me vi nos bastidores, tirei o dinheiro de dentro da minha
roupa de baixo, desamassando as notas até dobrá-las num bolo grosso.
– Bom trabalho, amor – Cherry disse ao se aproximar de mim, indo na
direção do palco.
– Obrigada. – Sorri, apertando-lhe o braço de leve quando nos
cruzamos.
Destranquei meu armário no corredor e enfiei as gorjetas na bolsa antes
de seguir para o camarim que eu dividia com duas outras garotas. Como
era a noite de folga delas, para variar eu tinha o espaço sempre lotado
demais só para mim. Afundei na cadeira diante da pequena penteadeira
tomada por caixinhas, tubos e estojos de maquiagem, potes de creme e
frascos de loções e perfumes. No silêncio do cômodo, os sons dos homens
na plateia que me assistiram dançar encheram minha mente – os gritos, os
chamados e os assobios que descreviam em detalhes lúgubres o que eles
queriam fazer comigo. Ainda sentia o bafo impregnado de cerveja, o
cheiro de perfume pungente e de suor que me oprimiam quando eu me
inclinara e dançara na direção de todos aqueles gritos masculinos e das
mãos que tentavam me apalpar.
Por um instante fantasiei usar o braço para empurrar tudo sobre a
superfície diante de mim para o chão, observando tudo se quebrar e se
derramar, misturando-se numa bagunça de cores, texturas e fragrâncias.
Sacudindo a cabeça, encarei o reflexo no espelho, tomada por uma
necessidade de agarrar uma toalha para esfregar e borrar toda a
maquiagem que cobria meu rosto. Deus, o que há comigo? Um nó se
formou na minha garganta e fiquei de pé rápido demais, derrubando a
cadeira em que estava sentada com um estrondo.
– Crystal?
Virei na direção da voz do Anthony, e o que quer que estivesse no meu
rosto o fez franzir o seu.
– Você está bem, menina?
Assenti, num movimento brusco de cima para baixo com a cabeça.
– Sim, sim, estou bem. Só estou com sede. – Andei até o bebedouro,
peguei um copo descartável e o enchi e esvaziei antes de voltar a olhar
para o Anthony. – O que foi?
– Você tem dois pedidos de dança particular.
Enchi o copo de novo e sorvi um gole.
– Está bem.
– Dinheiro extra nunca faz mal, não? – Um canto dos lábios dele estava
curvado para cima.
– Nunca – murmurei.
Anthony permaneceu imóvel, com os lábios apertados de novo enquanto
me estudava solenemente.
– Posso dizer que você está doente.
E estou. Estou cansada. Cansada disto. De viver. Meneei a cabeça,
tentando me livrar dos pensamentos sombrios que estavam me
incomodando.
– Não, só me dê um minuto que já saio.
Anthony inclinou a cabeça e fechou a porta atrás de si. Inspirei fundo e
voltei para perto da penteadeira, inclinando-me e usando o dedo para
ajeitar os pontos em que a maquiagem havia borrado. Endireitei a postura
e ofereci um sorriso forçado para o espelho.
– Hora do show – sussurrei antes de me virar, abrindo a porta e
caminhando pelo corredor, onde um cara magrelo de cabelos loiros e
despenteados e rosto alongado me aguardava. Ele se moveu quando me
aproximei, empertigando-se, com o pomo de Adão se movendo na
garganta. A bile subiu pela minha. Lancei-lhe um sorriso tentador.
– Olá, docinho. Pronto pra mim?
GABRIEL
Ferrei com tudo de um jeito federal. Você pode me ajudar a praticar ser
tocado por uma mulher. Pelo amor de Deus. Não foi surpresa ela ter me
mandado embora. Pareci algum tipo de sociopata. Mudei o câmbio para o
ponto morto, desliguei a caminhonete e esperei junto à calçada por um
minuto. Que diabos estive pensando? Não só fiz uma tremenda confusão
da coisa toda e me apresentei como um completo pateta, mas também a
insultei.
Crystal.
Qual seria o nome verdadeiro dela? Fiquei imaginando quem ela era e
por que meu coração começou a bater insistentemente dentro do peito –
como se quisesse chamar minha atenção – quando ela subiu no palco com
aquela expressão distante, remota, no lindo rosto. Como se ela fosse feita
de pedra. No entanto, seu corpo se movia com fluidez, com muita
graciosidade. Ela me fascinou. Não fui até lá para nada além de encontrar
uma mulher que pudesse estar disposta a aceitar um trabalho extra com
muito menos “mão na massa” – por assim dizer – do que nos quartos dos
fundos de um lugar como a Pérola Platinada. Mas ela me intrigara,
prendera minha atenção e não a soltara. Algo nela… me atraía. Algo que
não tinha nada a ver com a sua roupa diminuta nem com sua sexualidade
franca. Algo que não tinha a ver com o motivo de eu ter ido até lá, para
começo de conversa. Dei uma risada débil e sem graça, que se tornou um
gemido quando passei as mãos pelos cabelos.
Não podia negar que me senti atraído por ela, mas nem mesmo eu era
burro ou inexperiente o bastante para pensar que desenvolver uma paixão
por uma stripper seria boa ideia.
Em retrospecto, foi um plano ruim desde o início. E percebi isso no
momento em que dei voz ao motivo de eu estar ali e observei a expressão
no rosto dela passar de desconfiada para surpresa… e depois mágoa. Sim,
foi mágoa que vi transparecer nas suas feições antes de ela se endurecer de
novo. Se os olhos são as janelas da alma, testemunhei uma placa de
FECHADO sendo virada na velocidade de um piscar de olhos. Quanto tempo
ela levou para dominar essa arte?
Disse a ela que não teria de tirar as roupas, como se ela devesse se sentir
grata pela oportunidade de não ser desmoralizada. Entretanto, não foi
exatamente isso que o meu plano fez? Usá-la? Não havia pensado muito na
mulher sem nome quando essa ideia me surgiu – só pensara em mim.
Deus, agi como um cretino. Foi uma ideia horrível. Uma ideia
constrangedora. Tornada ainda pior pelo fato de que ela se lembrara da
minha história, provavelmente do meu nome completo também.
Eu não havia antecipado isso. A maioria das pessoas que não me viu
com certa regularidade nos últimos doze anos não me reconhecia. Fiquei
afastado dos holofotes, não dei entrevistas, cresci. Não me preocupei
muito com o fato de as pessoas de uma cidadezinha a tantos quilômetros
de distância – que eu não visitava desde que era criança – saberem que eu
era. Mas ela sabia. Fiquei pensando se isso não foi parte do motivo de ter
rejeitado meu pedido…
Sacudi a cabeça numa tentativa de me livrar dos meus pensamentos e
saí da caminhonete, fechando a porta o mais silenciosamente possível.
Fiquei parado sob o fraco luar por um momento, inspirando lentamente e
fechando os olhos ao expirar. Minha noite foi para o saco num piscar de
olhos, mas tirei um instante para mergulhar na gratidão que sentia pelo
frescor da brisa noturna, pelo ar que enchia meus pulmões, pela vastidão
que me rodeava.
Minha casa estava escura, a não ser pelo brilho da TV ligada na sala de
estar. Sem dúvida meu irmão estava cochilando na poltrona reclinável,
como na maioria das noites. Eu passaria por ele pelo corredor, e ele jamais
saberia até que horas estive fora. Não estava com vontade de responder a
perguntas. Ainda mais esta noite.
– Onde você esteve?
O ar me escapou numa lufada de surpresa quando larguei as chaves na
cesta junto à porta.
– Só fui tomar uns drinques na cidade.
– Na cidade? – Ele pareceu surpreso. E por que não estaria? Ele sabia
que eu evitava a cidade.
– Havenfield.
Dominic tomou um gole da cerveja que tinha em mãos e coçou a barriga
desnuda.
– Ah, a cidade que fica a quarenta e cinco minutos daqui. – Fez uma
pausa. – Eu teria ido com você.
– Estava com vontade de ficar sozinho.
Uma sobrancelha se ergueu quando ele sorveu mais um gole.
– Foi encontrar uma mulher, irmãozão? – A voz dele era brincalhona,
mas também ligeiramente esperançosa, e fez com que me sentisse patético
mais uma vez. Atrás dele uma mulher gemeu alto, e meus olhos se
desviaram para o filme pornô que estava passando. Ele seguiu meu olhar,
depois se virou para mim com um amplo sorriso.
– Você não pode assistir a isso no seu quarto?
– Por quê? Você não estava em casa.
– Porque me sento nessa mobília também, e agora vou pensar duas
vezes antes de fazer isso.
Ele assentiu, lançando um sorriso desprovido de arrependimento.
– É, isso provavelmente não seria uma boa ideia.
– Boa, Dominic – murmurei antes de seguir para o meu quarto.
– Ei, Gabe, você deixou isto na sala de estar.
Virei, parando de pronto ao ver o envelope grande que ele segurava,
aquele com o emblema da Universidade de Vermont na frente, endereçado
a mim. Movi-me com rapidez, tirando-o da mão dele.
– Não deixei isto na sala de estar. Ele estava no meu quarto, junto ao
computador. – Encarei-o com fúria.
Ele deu de ombros e soltou um grunhido bravo quando voltei a me virar,
andando na direção do quarto.
– Ela lhe escreveu uma bela carta. Você vai aceitar? – ele perguntou.
Parei na soleira da porta, sem virar a cabeça.
– Não sei. Não me decidi.
– Poderia ser bom.
– Poderia.
– Ela é gostosa. Dei uma olhada – ele disse. – Claro, foi moleza. Vi que
você também foi procurar. Encontrei lá no histórico de busca. Percebi que
entrou nos dados dela algumas vezes. É com ela que tem ficado ao
telefone nos últimos tempos?
Jesus.
– Tente se ocupar apenas com os seus assuntos, para variar. – Fechei a
porta atrás de mim ante o som da risada do Dominic.
– Você é assunto meu, Gabriel Dalton – ouvi-o gritar.
Cerrando o maxilar, fiquei de pé do lado oposto da porta, refreando meu
aborrecimento com relação ao meu irmão caçula intrometido. Eu amava o
Dominic, mas odiava me sentir constantemente circundado por ele.
Baixei o olhar para o envelope nas mãos, a carta de Chloe Bryant saindo
pela abertura, demonstrando que Dominic evidentemente a tirara. Larguei-
o na escrivaninha e fui para junto da janela, abrindo-a bem. Precisava que
o ar noturno entrasse, com o som das árvores balançando e dos sapos
coaxando ali por perto. Paz. Tranquilidade.
Deitei na cama, visualizando a imagem de Chloe mentalmente – a foto
da biografia dela, publicada em um artigo de sua autoria. Ela sugeriu que
eu o lesse como parte de seu currículo digital. Chloe, com seus cachos
castanhos e grandes olhos verdes. Chloe, com seu sorriso franco e sem
malícia.
Muitos meses antes, Chloe me contatara a respeito da possibilidade de
eu conceder uma entrevista para seu projeto de trabalho de conclusão de
curso, sobre os efeitos a longo prazo em crianças que foram sequestradas e
posteriormente fugiram ou foram libertadas pelos seus raptores. Não havia
muitos casos assim nos Estados Unidos, mas eu era um deles e, por
coincidência, vivia no mesmo Estado que Chloe.
Os modos dela e sua personalidade amigável e aberta me atraíram. E
algo a respeito de dar uma entrevista para o trabalho de uma aluna da
graduação, e não para revistas ou programas de televisão, fez com que me
sentisse muito mais confortável. Eu não sofreria sensacionalismos, não
seria usado para aumento de índices de audiência, não seria assunto para
um público. De novo.
Trocamos e-mails, algumas informações básicas; cheguei até a pensar
que ela tivesse flertado um pouco pelo telefone, apesar de a minha
experiência no assunto ser desgraçadamente esparsa. Ela era bonita e
inteligente, e eu teria de passar bastante tempo com ela, se aceitasse seu
pedido. Havia permitido que meus pensamentos fossem para um lugar em
que, se houvesse atração entre nós, eu seria capaz de agir em resposta a
essa atração.
Pensei em Chloe durante mais uns instantes, refletindo se deveria dar
essa entrevista. Uma vez mais, pesei os prós e os contras, para
compreender o nervosismo que surgia sob uma fina camada de excitação,
de possibilidade. Mas, em vez de fantasiar sobre possibilidades e
esperanças, sobre a expressão tranquila da bela garota que nunca
encontrei, o rosto de outra moça ficava invadindo meus pensamentos. Uma
moça que, pelo que eu poderia dizer, era o exato oposto de Chloe Bryant.
Crystal, com os cabelos longos cor de mel e os olhos solitários e
desconfiados. Crystal, com seu sorriso relutante e reservado.
Crystal, a garota que eu nunca mais veria.
Algo em meus pensamentos me incomodou e eu me levantei, passando a
mão pelos cabelos, sentindo-me estranhamente à deriva. Talvez o que eu
precisasse fazer era me forçar a sair da minha zona de conforto. Escondi-
me nas sombras tempo demais. Passei anos demais apreciando nada além
da natureza previsível da minha existência diária: trabalho, casa, passeios
ocasionais na cidade, onde eu interagia com alguns poucos. Eu me
confortava com o esperado, sentia-me seguro na companhia dos livros que
lia e ainda encontrava alegria na minha própria liberdade, mas também
não podia negar que levava uma vida meio solitária.
Fiquei de pé novamente diante da janela aberta, ponderando se poderia
expandir as paredes que erguera ao meu redor. Se eu deveria. Foram
erguidas por mim, mas, mesmo assim, não acabei construindo uma prisão
particular? Seria hora de fazer algo para mudar isso?
Antes que eu pudesse me convencer a não fazer nada, sentei-me diante
do computador, acessei meu e-mail e cliquei na última mensagem enviada
por Chloe. Digitei uma resposta curta:
Chloe, minha resposta é sim. Qualquer data está boa para mim.
Só me avise quanto aos seus planos de viagem. Estou ansioso
para conhecê-la. Gabriel
E apertei o botão de enviar antes que pudesse mudar de ideia.
CAPÍTULO TRÊS
CRYSTAL
GABRIEL
GABRIEL
CRYSTAL
GABRIEL
CRYSTAL
Não pensei que fosse possível me odiar mais do que já odiava. Mas ver
Gabriel fugindo da Pérola Platinada com uma expressão de horror no rosto
provou que eu estava errada. Eu causei isso a ele. Armei uma situação em
que ele enfrentaria o seu pior pesadelo. Depois de já ter sofrido tanto. Eu
era cruel e egoísta – uma vadia imprestável. Se alguém merecia sofrer,
esse alguém era eu.
Foi só que… foi só que ele não parava de vir, não parava de insistir
comigo. Pare de tentar se justificar. Simplesmente pare. A verdade é que a
presença incansável dele fez com que eu tivesse esperança de ter coisas
das quais desistira há muito tempo, e a lembrança dos meus sonhos
esquecidos me fez sentir uma dor que eu não sentia havia muito tempo. As
apalpadas, os olhares de desejo, ser usada, as dispensas, nada disso doeu
tanto quanto Gabriel Dalton me pedindo que tomasse café com ele. Por
quê? Foi como se ele estivesse me provocando com um delicioso bocado
de comida bem diante de mim – mas fora do meu alcance –, e eu estava
com fome. Deus, estava faminta. Ele me fizera pensar nisso, e foi como
uma tortura lenta, a desintegração final do último pedaço intacto do meu
coração. Agora eu desejava coisas que não poderia nunca, jamais, ter. E
estava cansada, Deus, estava tão cansada dessa vida vazia que levava.
Sentei no alto da minha escada à espera da Kayla. Meu carro ainda
estava na oficina, mas finalmente sendo consertado, agora que pagara a
última conta que eu devia. Ainda bem que o que precisava ser reparado
dessa vez não era tão caro. Ainda assim, eram duzentos e cinquenta
dólares que eu não tinha, mas que seria capaz de arranjar, se atrasasse o
aluguel do mês seguinte. A visão de um aviso de despejo preso na porta da
frente passou pela minha mente, e meu estômago se contraiu com essa
lembrança.
O que vou fazer agora? Ah, Deus, o que vou fazer agora?
A desolação se abateu sobre mim como se essa lembrança fosse um
cobertor pesado e úmido. Tentei me livrar dela, mas não consegui. Não
hoje, não com a expressão atormentada do Gabriel na minha mente.
O meu apartamento ficava no terceiro andar de uma construção com
escadas externas. O que antes fora a casa de uma única família foi dividido
em três apartamentos, e um conjunto de degraus frágeis de madeira nos
fundos do prédio conduziam ao meu. Espiei a parte de concreto logo
abaixo; a pequena garagem deve ter sido uma área ajardinada onde as
crianças brincavam. Havia muitas poças da chuva que caíra na noite
anterior, e outra lembrança surgiu. A senhora Hollyfield segurando minha
mão enquanto eu ria e pulava de poça em poça, espirrando nela a água
parada.
Fechei os olhos por um momento, tentando bloquear o assalto de
emoção. Deus, por que todas essas lembranças, todas essas palavras, de
repente dispararam pela minha mente? Afastei-as por tanto tempo e agora,
por algum motivo inexplicável, foi como se todas elas tivessem aparecido
à soleira da minha porta ao mesmo tempo, exigindo que eu as deixasse
entrar, exigindo que as examinasse quando na verdade não queria fazer
isso.
Ainda assim, a lembrança das poças de água persistiu. Jurei poder sentir
a água fria que escorria pelos buracos das solas das minhas galochas de
segunda mão, a descarga distante de alegria enquanto a senhora Hollyfield
me repreendia, rindo, e depois me puxava para a suavidade reconfortante
ao seu lado e beijava o topo da minha cabeça. Lembrei-me de ter tentado
agarrar os arcos-íris que flutuavam na superfície das poças como se elas
fossem mágicas, e a senhora Hollyfield concordara e me dissera que
existia magia em todos os lugares, bastava estarmos dispostos a procurar.
Aprendi mais tarde que aqueles arcos-íris não passavam de óleo sujo
flutuando na superfície da água, e me senti ludibriada. O que parecia
mágico não passava de sujeira. Havia uma metáfora em algum ponto ali a
respeito da direção que minha vida tomara, mas eu estava cansada demais
para tentar descobrir qual era.
Sentada ali, senti a tristeza que ainda habitava em mim pela perda da
senhora Hollyfield, ainda que tão distante. Ponderei o quanto minha vida
teria sido diferente caso ela não tivesse morrido. Mas ela morreu. Porque
era isso o que acontecia com as pessoas. Elas morriam, iam embora sem
ao menos dar adeus – no fim, todas elas iam embora. Se você se apegasse,
se esperasse pelo amor, seria sua própria maldita culpa e mereceria as
consequências.
O carro de Kayla parando na garagem descoberta me arrancou dos meus
pensamentos sombrios, e me levantei, descendo a escada.
– E aí? – eu disse, deslizando no banco de passageiros do Chevy branco
da Kayla, que era uma verdadeira sucata. O carro dela estava em pior
condição do que o meu, o que era um tremendo feito. Apoiei o cotovelo na
moldura da janela aberta enquanto o carro estrepitou ao sair do
estacionamento.
– Graças a Deus está mais fresco – Kayla disse. A corrente de ar que
entrava pelas janelas abertas invadiu o carro quando ele ganhou
velocidade. Apenas assenti.
Depois de alguns minutos de silêncio, Kayla perguntou:
– Tá tudo bem?
– Tá. Tudo bem. Acho que só preciso de um descanso. Ainda bem que
hoje é meu último turno antes de uns dias de folga. Sei lá… Acho que
estou cansada.
Kayla suspirou.
– E não estamos todas?
– É. Acho que sim.
Chegamos à Pérola Platinada e fomos até o camarim para trocar de
roupa e nos maquiar. Senti como se estivesse meio entorpecida, apenas
agindo no automático, o que não era exatamente uma novidade. Mas
também me sentia um tanto abalada e muito cansada.
– Ei, Crystal – Rita me cumprimentou, entrando no camarim uns
minutos depois de Kayla ter saído. Eu detestava noites assim, em que nós
três, que dividíamos o espaço, estávamos trabalhando. Sentia como se não
houvesse nenhum lugar onde pudesse ficar sozinha, nem mesmo por um
ou dois minutos. Em certas noites, esses minutos eram a diferença entre
manter o sorriso fixo no rosto ou ser a megera que Rodney me acusara de
ser.
– E aí, Rita. – Voltei a passar pó compacto sobre a base que acabara de
espalhar no rosto.
– Acha que o meu namorado vai voltar hoje para me dar mais uma
chance? – Rita deu um sorriso malicioso.
A raiva atravessou meu corpo, mas mantive a expressão tranquila. Além
do mais, a raiva não estava exatamente direcionada à Rita. Estava
direcionada a mim.
– Duvido.
– O que tem de errado com ele, afinal? Um homem bonito que não curte
mulheres? Um desperdício, não acha?
– Quem disse que ele não curte mulheres?
– Ele agiu como se estivesse morrendo de medo que eu o tocasse.
Começou a respirar que nem um louco. No começo não entendi se estava
com medo ou excitado. – Uma vergonha doentia me atravessou
lentamente. Fingi estar concentrada, prendendo os cílios postiços,
inclinada na direção do espelho, prestando muita atenção ao que estava
fazendo. Mas minhas mãos começaram a tremer e larguei os cílios. Inútil.
A tira ficou na mesa diante de mim, parecendo uma aranha triste e morta.
– Acho que ele não deve ter gostado de você – comentei com
desinteresse.
Rita olhou para mim de relance ao subir a parte de baixo do biquíni.
Virou-se e inspecionou a bunda no espelho. Desviei o olhar quando ela
começou a ajeitar o fio-dental. Ela deu um tapa na nádega firme e perfeita
e depois riu.
– Não. Não pode ser isso. – Riu de novo. – Mas estou disposta a dar
mais uma chance para ele criar coragem e aproveitar o meu equipamento.
Um homem bonito como aquele merece pelo menos mais uma. Tão alto e
bem definido. Belos e grandes… pés e mãos. Hummm. – Ela piscou, e eu
me vi querendo muito chutá-la para fora dali.
– Já chega, Rita – eu disse, e minha voz saiu bem hostil. Ou talvez
comunicasse exatamente o que eu estava sentindo.
Rita olhou para mim de modo afiado.
– O que foi? – queixou-se. – Você o deu pra mim.
– Eu não o dei para você – repliquei, pegando a tira de cílios de novo. –
Ele não pertence a mim.
– Hum – ela disse, olhando para mim pensativamente enquanto eu
tentava mais uma vez colar os cílios, tendo mais sucesso dessa vez. – Você
parece aborrecida, Crystal. O que foi?
– Não foi nada. Aquele cara me irrita. Estou feliz por ele não voltar.
Ela riu para mim de maneira falsa.
– Ok. Se você diz… Se você não o quer, outra pessoa vai acabar
pegando rapidinho.
Sim. Sim, isso era verdade. E era isso o que eu queria. Era disso que ele
precisava, mesmo que fosse burro demais para perceber. Senti-me
ligeiramente melhor ao colar a segunda tira de cílios, ficando de pé para
me vestir.
Rita se sentou no sofá e começou a afivelar os sapatos.
– Ele parece conhecido – comentou. – Acho que deve ter frequentado a
escola com a minha irmã mais velha. Acho que ela namorou com ele no
ginásio.
Não, ele estava trancado num porão quando deveria ter frequentado o
ginásio. Tal pensamento fez minha garganta se contrair, mas assenti para
Rita, murmurando uma resposta qualquer, depois de um momento olhando
ao redor:
– Você viu meus sapatos brancos?
Eu queria mudar de assunto. Não queria mais falar sobre Gabriel
Dalton. Não queria mais pensar em Gabriel Dalton.
– Sim, estão ali perto da porta.
– Obrigada. – Peguei os sapatos e comecei a falar da música que
usaríamos naquela noite e, cinco minutos mais tarde, ela saiu para sua
primeira dança. Usei os quinze minutos que tinha para tentar levar meus
pensamentos para além do Gabriel, além da vergonha que ainda sentia,
além dos sorrisos tímidos e do olhar derradeiro do choque da traição. Mas
não deu certo. Não cheguei nem perto disso.
Eu só tinha mais uma hora antes que meu turno terminasse quando
abordei uma mesa com três rapazes que aparentavam ter idade para estar
na faculdade, do tipo que eu imaginava que a maioria das garotas
considerava atraente. Eles evidentemente se exercitavam e queriam se
certificar de que o mundo notasse, com suas camisetas justas, cujas
mangas curtas ficavam enroladas para revelar o máximo de bíceps
possível. Distribuí uma rodada de guardanapos na mesa.
– O que posso trazer para vocês, rapazes?
– Você – o de cabelos castanhos com maxilar extremamente quadrado
disse, me cobiçando. Vá pro inferno.
– O mesmo para mim – o loiro de barba curta concordou, encarando
meus seios. – Vou querer uma porção grande. – Seus olhos estavam
vidrados, ou seja, ele já havia sido muito bem servido.
Sorri com afetação.
– Bem, tem muito de mim para ser partilhado, rapazes. Voltem daqui a
três noites e eu descolo um tempo para dançar só para vocês dois. –
Pisquei.
O terceiro cara – o de cabelos pretos espetados, que estava
negligentemente recostado na cadeira – gargalhou, inclinando-se para a
frente.
– Também quero entrar nessa. – Lançou-me o que tenho certeza de que
considerava um sorriso charmoso.
– E se a gente não quiser esperar? E se quisermos você hoje à noite? – o
moreno interrompeu, estendendo a mão e apertando minha bunda com
força. Cerrei os dentes. Deus, como isso é cansativo.
– Lamento, a boate fecha daqui a uma hora, docinho, mas vocês têm
tempo para uma rodada de drinques. O que vão querer? – Desviei deles o
olhar, tentando esconder a irritação da voz.
– Acho que teremos que tomar o que queremos – disse o loiro, puxando-
me para o seu colo e agarrando meus seios. – Gosta disso, gostosa? – ele
sussurrou, plantando o rosto na minha nuca, com a barba me pinicando e a
respiração úmida e quente contra minha pele. – Sei que você gosta.
Emiti um gritinho com o susto e tentei me levantar. Onde diabos está o
Anthony? O homem me prendeu no colo. Senti a ereção dele na minha
bunda, enquanto ele empurrava o quadril, se enterrando em mim.
Enterrando. Puxando. Se esticando. Pegando. Como todo homem antes
dele. E como todos os outros que ainda viriam… exceto Gabriel Dalton.
Por que a simples honestidade do seu sorriso me veio à mente – seu toque
hesitante, o tom respeitador da sua voz –, não entendi. Aquilo era o jogo
de sempre. Eu conhecia esse jogo. No entanto, o contraste entre Gabriel e
esse homem inspirou um tipo de ira imediata, quase irracional dentro de
mim.
Olhei ao redor enquanto eles riam, aqueles homens lascivos, enquanto o
cara em cujo colo eu estava sentada tomava todo tipo de liberdade que
queria. O ódio súbita e rapidamente tomou conta de mim – um ódio sem
limites e sem fim – e levantei a mão, dei um tapa tão forte que a cabeça
dele foi lançada para trás. Ele me soltou e eu saltei de pé, cambaleando
para trás, chocada com meu próprio comportamento. Nunca bati em
ninguém em toda a minha vida. Os amigos começaram a rir como loucos,
apontando para o homem que eu estapeara.
– Sua cadela maldita – ele grunhiu entredentes, com a mão cobrindo a
face.
– O que está acontecendo aqui, cavalheiros?
Anthony. Girei na direção dele.
– Onde você estava? – perguntei, com uma pontada de pânico evidente
na voz.
– Fui dar uma mijada. Desculpe, menina. – Ele se virou para os homens.
– Pra fora – ordenou. – Não me obriguem a arrastá-los.
O loiro apontou para mim, com os olhos brilhando de humilhação.
– Essa vadia me deu um tapa!
– Já chega – Anthony determinou, segurando o cara pelo colarinho da
camiseta.
– Ok, ok – disse o moreno, ficando de pé e cambaleando de leve. – A
gente já estava de saída mesmo. Calma aí, porra.
Afastei-me da cena com um giro, indo para os fundos, onde larguei
minha bandeja e me apoiei contra a bancada por alguns minutos,
recuperando o fôlego e tentando controlar a raiva.
– Você está bem, Crys? – Janet perguntou, aparecendo atrás de mim e
me dando um tapinha no ombro. – Aqueles caras são uns verdadeiros
babacas.
Dei uma risada curta.
– Sim, estou; e sim, eles são.
– Deixa isso pra lá, amor. É só mais uma noite. Não muda nada.
– É. Obrigada, Janet. – Respirei fundo, sentindo-me tão exausta que
considerei a ideia de escorregar até o chão ali mesmo. Aquele aperto no
coração voltou, e eu só queria ir para casa.
– Ah, escute – Janet disse, virando-se para mim. – Quase esqueci, já que
ontem foi minha noite de folga, mas isto foi deixado para você numa das
mesas, na noite anterior. Eu ia jogar fora para poupar você do trabalho,
mas lembrei dele e ele era bem bonitinho. – Ela sorriu, piscou e me
entregou um guardanapo dobrado.
Sorrindo debilmente para Janet, peguei-o e, quando ela se afastou, abri e
vi o nome do Gabriel e o que deduzi que fosse o número do seu celular.
Uma dor atravessou meu coração, um desejo estranho misturado com
remorso, e eu o amassei e enfiei no bolsinho do meu avental de garçonete,
onde guardava o dinheiro reservado para o troco.
Quando voltei ao salão, os caras que estavam me assediando já tinham
ido embora, de volta para suas namoradas, sem dúvida. Janet estava certa.
Nada mudava.
Terminei a última meia hora servindo mais algumas bebidas para
homens que, graças a Deus, comportaram-se bem. Quando terminei, deixei
o dinheiro no caixa, hesitando quando tirei o guardanapo do bolso do
avental. Amassei-o e o segurei no punho fechado, com a intenção de jogá-
lo fora, e fui encontrar Kayla, que acabara de descer do palco.
– Pronta? – Peguei minha blusa de moletom e a vesti por cima do
uniforme. Eu nem queria me dar ao trabalho de trocar de roupa esta noite.
Tomaria uma longa chuveirada quente e tentaria limpar o desespero que
grudara na minha pele junto aos dedos engordurados dos cretinos que me
apalparam.
Kayla estava se despindo e se virou na minha direção.
– Aham. Só preciso de cinco minutos. Ouvi o que aconteceu. Você tá
bem?
– Estou. – Fiz um gesto com a mão como se não tivesse sido nada. E, na
realidade, não foi nada. Aquele tipo de coisa acontecera centenas de vezes
antes e provavelmente aconteceria outra centena. – Estou bem. Espero
você na entrada.
– Ok. Chamo o Anthony quando estiver indo para lá.
Assenti, fechando a porta do camarim atrás de mim. Peguei a bolsa no
meu armário e segui para a entrada. Ouvi uma algazarra vinda do salão e
olhei de relance. Vi o Anthony apartando mais uma briga, dessa vez entre
duas garotas. Jesus Cristo. Essa noite nunca chegaria ao fim?
Era regra da casa que o segurança acompanhasse as garotas até nossos
carros e, em circunstâncias normais, eu teria esperado que o Anthony
terminasse de acertar a situação com que estava lidando. Mas hoje… um
cansaço profundo me assolava, e me virei para a porta da frente,
empurrando-a para o ar noturno de verão. Ele cheirava a asfalto e chuva, e
segui para o carro da Kayla. Não conseguia ficar dentro da Pérola
Platinada nem mais um maldito segundo.
– Ei, vadia.
Meu coração tremulou, e me virei em direção à voz. O homem que eu
estapeara saiu das sombras das árvores que cresciam nos fundos do
estacionamento, com seus amigos logo atrás dele, todos parecendo
nervosos, mas excitados e ainda embriagados. Respirei fundo, um alerta
me deixando subitamente fraca. Olhei de relance para o carro da Kayla e
depois de novo para a porta. O carro dela estava mais próximo, mas eu não
tinha a chave. Ai, merda.
– Cadê a coragem agora?
Virei para ficar totalmente de frente para ele. Cerrei os punhos junto ao
corpo, sentindo o guardanapo amassado como uma bolinha. Parada ali,
olhando para o homem que falava, senti como se a peça final da minha
força de vontade tivesse se dissolvido no nada, evaporando no ar noturno,
no estacionamento da Pérola Platinada. Não me importava com o que ele
fizesse comigo. Deus, simplesmente não me importava mais. Apertei o
guardanapo com mais força. Aqueles olhos de anjo surgiram na minha
mente de novo, trazendo vergonha, mas paz também. Merecia o que quer
que aqueles caras estivessem prontos para fazer. Merecia. Mas, antes que
eu passasse por isso, eu faria com que soubessem o que de fato pensava a
respeito deles. Sorri. Um sorriso sereno. Ante minha expressão, uma
centelha de confusão atravessou o rosto do líder do pequeno grupo.
– Sabe o que penso a seu respeito?
– Estou pouco me lixando pro que pensa de mim.
– Eu sei que não está nem aí. Sei disso. Só fico pensando se você sabe.
Se consegue imaginar.
Ele gargalhou, escarnecendo.
– A única coisa que me importa é que você se desculpe chupando o meu
pau.
Sorri de novo. Pareceu irreal, como se eu não passasse de uma
caricatura bidimensional de uma mulher. Um torpor me perpassou, e a
sensação anestesiante foi bem-vinda. Não importava. Nada importava.
Eles iam fazer o que quer que fosse comigo, e não havia nada que eu
pudesse fazer para impedir. E, se não eles, alguém na semana seguinte, ou
na outra. Num quarto qualquer, num caminhão no acostamento de uma
estrada, numa cama, ou mesmo num estacionamento escuro. Eles nunca
deixariam de tirar algo de mim. Nunca.
– Vocês são maus – disse num tom neutro. – Vocês três são revoltantes.
O único motivo pelo qual deixei que olhassem para mim é porque pagam
por esse prazer. Vocês nem são homens; são animais repulsivos e
horrendos, e seu cheiro me dá vontade de vomitar. – Cuspi no chão e
depois exibi o mesmo sorriso de quem não está se importando com nada.
– Vagabunda – o loiro disse devagar, com uma nota de descrença na voz,
como se não pudesse conceber que alguém como eu os insultasse. – Vadia.
– Inteligente também – comentei. – Que pacote completo que você é. –
Feio e burro.
O cara de cabelos pretos cambaleou, mas logo se equilibrou, rindo.
– Caras, vamos deixar pra lá. Essa vaca não vale a pena.
Por um segundo de esperança, pensei que eles fossem embora. Meus
ombros se relaxaram minimamente, e foi então que o de cabelos castanhos
grunhiu e avançou tão rápido que não tive tempo para reagir. Ele me
agarrou e tapou a minha boca com a mão, arrastando-me para trás.
– Vamos foder essa vadia. Ela vai levar o que merece – ele grunhiu.
O que ela merece, o que ela merece…
O instinto me fez tentar mordê-lo, mas a palma dele estava estendida
contra a minha boca, e não consegui prender nada. Tentei chutar, mas o
loiro segurou meu pé. Eles me levaram rápido para trás da lixeira mais
próxima, e aquele que segurava meu tronco me forçou a ficar de joelhos,
empurrando meu rosto na direção da virilha do loiro. Ali eu tinha onde
cravar os dentes, por isso mordi com toda a força que consegui. Minha
boca basicamente se encheu com o jeans, mas devo ter pegado um pouco
de pele também, porque ele soltou um grito de dor pouco antes de eu ser
puxada para trás e de um punho me acertar no rosto.
– Filha da puta! – ele urrou. Senti algo me acertar na lateral do corpo,
um pé ou talvez um joelho, e gritei ante o súbito golpe, o asfalto subindo
para me receber.
– Caras, esperem, isso… – Ouvi o cara de cabelo preto dizer, mas os
dois amigos dele estavam enlouquecidos demais, por conta do álcool e do
orgulho ferido, para ouvi-lo. Fui rolada e antes que minha visão se
clareasse, outro soco me acertou de surpresa. O mundo girou, e cores
pipocaram diante dos meus olhos. Tudo pareceu acontecer rápido demais.
Eles estavam em toda parte, me prendendo no chão, me atacando. Um se
inclinou sobre mim e outro segurou minhas pernas enquanto eu tentava
chutar.
Quem quer que estivesse segurando minhas pernas as soltou, e senti o
meu blusão sendo erguido. Aproveitei o momento para chutar, acertando
alguém. Ele gritou e praguejou profusamente, e uma dor horrível explodiu
na minha perna. Tentei gritar, mas algo feito de tecido sufocava minha
boca. Quase vomitei ao levar mais um golpe, sentindo os shorts sendo
puxados pelas minhas pernas. Briguei, mas havia dois deles e eles eram
muito mais fortes. Não sabia onde o terceiro cara estava, mas ele não
estava me ajudando. Até onde eu podia saber, ele estava esperando sua
vez. A escuridão se fechou sobre mim de novo e, dessa vez, deixei que ela
me envolvesse e flutuei, flutuei e flutuei para longe, para onde ninguém
poderia me machucar, um lugar sem dor, só de paz.
Despertei com o som de uma sirene berrando ao longe, vozes por perto,
gritando, parecendo em pânico. Tantas vozes. Um coro. As estrelas
estavam tão brilhantes no céu, e só havia movimento e luz e um som
sibilando suavemente nos meus ouvidos.
De repente, estava sendo movida. Pensei que estava viajando, mas não
sabia para onde e não ligava para isso. Havia um barulho alto de choro ao
meu redor, e flutuei mais uma vez.
Quando voltei a abrir os olhos, estreitei-os, pois as luzes acima eram
claras demais, como se eu tivesse me aproximado das estrelas. Havia
pessoas ao meu redor, todas embaçadas e indistintas. Então alguém surgiu
diante de mim, segurando minha mão enquanto nos movíamos; a
respiração dele estava acelerada e bem forte perto do meu rosto. Será que
eu estava mesmo flutuando? Passei o olhar para quem quer que estivesse
ali junto de mim e vi aqueles olhos angelicais. Gabriel. Comecei a respirar
mais rápido. Aqueles olhos lindos. Só que eles estavam tomados por algo
que parecia pesar. Por quê? Estava tudo bem… Eu estava no paraíso, onde
as ruas eram pavimentadas com ouro. Ele afagou meus cabelos.
– Ah, querida, estou tão… – Gabriel arquejou como se as palavras
tivessem ficado presas na garganta. – Você vai ficar bem. Não se mexa.
As luzes cintilaram, como se o próprio ar tremulasse. Havia um halo
dourado ao redor da cabeça dele. Ele era tão lindo. O homem mais belo
que já vi. Tentei sorrir, mas meu rosto não parecia estar funcionando muito
bem.
– Eu sabia que você era um anjo – sussurrei. – Sabia que era. – Estendi a
mão e toquei o rosto dele, pegando uma lágrima no polegar. – Não chore,
meu anjo. Não chore. Não por mim. – Nunca por mim.
Falar me deixou muito fraca. Fechei os olhos e deixei que a escuridão
tomasse conta de mim mais uma vez.
CAPÍTULO NOVE
GABRIEL
CRYSTAL
ELLIE
GABRIEL
ELLIE
Não sei por que fiquei revelando pedacinhos de mim para o Gabriel. Eu
ficava ainda mais confusa porque ele não parecia olhar para mim de um
jeito diferente. Eu ficava tentando chocá-lo com a realidade de quem eu
sou, mas ele voltava sempre com a mesma expressão plácida, com a
bondade brilhando no olhar, como se nada que eu dissesse pudesse abalá-
lo. O que ele queria comigo? Eu não tentava fingir ser outra pessoa, como
fiz com outros homens, ainda que eles tivessem ido embora mesmo assim.
Não, Gabriel ainda cuidava de mim um dia depois do outro. Por quê? Por
que eu ainda estava ali, naquela casa maravilhosa, sendo cuidada,
recebendo arcos-íris, como se eu fosse alguém especial?
Ele evidentemente não me queria por causa do meu corpo. Eu não tinha
nada a oferecer nesse aspecto – pelo menos não agora. Além disso, ele
ficava tenso toda vez que se aproximava de mim – apesar de eu ter notado
que seu desconforto diminuía a cada dia. Ainda assim, não era isso. Era
algo diferente. Mas o quê? Não entendia os motivos do Gabriel e me sentia
confusa e perdida, quase com medo dele. O medo entrava fundo em meus
ossos porque eu sentia que ele ameaçava algo vital, só que eu não sabia o
quê.
Eu não crio beleza, Eloise, apenas revelo o que já está na pedra.
Depois do dia em que lhe contei a respeito do meu pai, resolvi que não
me sentaria mais no pátio com ele. De todo modo, era cedo demais para
me levantar. No entanto, na manhã seguinte, quando aquele brilho dourado
invadiu meu quarto e uma centena de arcos-íris apareceu, saí da cama. O
apelo era grande demais. Disse a mim mesma que era o chamado do café e
do ar fresco da manhã, da paz que eu sentia vendo a madrugada se tornar
dia; entretanto, eu sabia que não estava sendo completamente honesta
comigo mesma. A verdade era que o que me atraía para o pátio era o
próprio Gabriel. Ele, com seu lindo rosto e seus olhos ainda entreabertos
pelo sono, com seus ombros largos e lindas mãos de artista, e aquele ar
forte de gentileza que o rodeava.
Quando abri as portas francesas, esperei que se surpreendesse ao me
ver, pelo modo como nos despedimos no dia anterior, mas isso não
aconteceu. Ele apenas sorriu e me cumprimentou como sempre fazia, e
tomamos nosso café juntos enquanto as árvores balançavam com a brisa e
o céu da manhã ficava rosado.
Passamos os dias subsequentes dessa maneira, eu o observando por
horas enquanto ele trabalhava no William, revelando as feições
pequeninas e meigas do querubim, detalhe a detalhe. As batidas do cinzel
eram a nossa música de fundo, enquanto fios de poeira dançavam ao redor
dele, dissipando-se no ar. Eu ficava fascinada conforme William surgia,
quase perdia o ar, maravilhada ao vê-lo ganhar forma.
– Como você sabe? – perguntei enquanto ele trabalhava.
– Sei o quê?
– Como ele deve ser?
Gabriel deu de ombros.
– Eu não sei. Ele me conta à medida que avanço. – Ele parou. – Isso
parece estranho? O que eu quero dizer é que tenho uma ideia geral da
forma dele e uso isso como esboço, mas, por exemplo, não sei como será o
rosto dele. – Voltou a trabalhar enquanto falava. – Imagino que seja assim
com muitos artistas. Escritores… Pintores… Você começa com uma vaga
noção, e os detalhes aparecem ao longo do processo. Quanto mais você
faz, mais confia nas suas mãos para que elas o levem na direção correta.
Gostei disso. Gostei da confiança com que ele trabalhava, a fé que tinha
em seu próprio talento. E fiquei com inveja. Como seria ter um dom como
esse? Ser capaz de revelar a beleza com as mãos? Eu não tinha dom
algum. Não a menos que ser capaz de deslizar em uma barra fosse algo
notável. Cruzei os braços sobre as costelas sensíveis, com uma sensação
de inutilidade me percorrendo.
– Ele tem cabelos cacheados – Gabriel disse, arrancando-me da minha
névoa de desânimo. Assisti enquanto Gabriel movia o cinzel e o martelo
para criar uma mecha sobre a testa do William. A ternura substituiu a
depressão para a qual me encaminhava. Eu me sentia irracionalmente
ligada a William, como se vê-lo ganhar vida me tornasse de algum modo
responsável.
Testemunhei William emergir de um bloco quadrado de pedra e agora
ele era esse rapazinho gorducho e precioso, com olhos risonhos e sorriso
doce. Meu coração batia de amor por ele. Que idiotice! Ridículo mesmo.
Não se pode amar uma estátua. Quase ri de mim mesma, mas não queria
emitir um som que incitasse Gabriel a fazer perguntas. Sim, não só estou
toda quebrada e inútil, também estou louca. Amo o anjinho de pedra que
você criou mais do que já amei qualquer coisa em muito, muito tempo.
– Ellie, quero que saiba uma coisa.
Meus olhos dispararam para Gabriel ante a seriedade no tom dele.
– Sim?
– Antes que você viesse para cá, fiz planos com uma estudante da
Universidade de Vermont para que ela me entrevistasse para a execução de
sua monografia. Ela chega a Morlea amanhã.
Inclinei a cabeça; minhas sobrancelhas se uniram de maneira
interrogativa.
– Monografia?
Gabriel assentiu.
– É. Sobre crianças sequestradas que escaparam ou foram resgatadas.
– Ah. – Engoli em seco. – Hum, isso parece… difícil. Vai ser? O que
quero dizer é: vai ser difícil para você? – Estremeci ao pensar como seria
responder a perguntas detalhadas a respeito das piores partes da sua vida.
Sempre procurei não pensar nas coisas que me magoaram.
Ele parou de trabalhar por um instante, como se levasse uns segundos
para refletir sobre a minha pergunta.
– Não, acho que não. Não falo com frequência sobre o que aconteceu
comigo, mas isso também já não me incomoda mais.
Franzi a testa de novo, observando-o. Como é que ele conseguiu chegar
ao ponto de não se afetar mais com a lembrança de ter sido trancado num
porão por seis anos e de ser torturado de maneiras odiosas que eu nem
queria saber? Como foi que ele conseguiu isso?
Seus lindos olhos sensíveis e sábios encontraram os meus.
– O meu problema é a proximidade. Como você bem sabe.
– Ah… é – disse baixinho, sentindo-me subitamente… honrada por ser
talvez a única mulher na face da terra a saber disso. Parecia um… um
segredo, algo pessoal e particular que só eu sabia a respeito desse homem.
Isso fez com que me sentisse acolhida e confiável. E também me lembrei
de como abusei dessa confiança ao enviar Rita enquanto ele esperava por
mim. Senti a vergonha emergir, aquecendo meu rosto e fazendo com que
me sentisse fraca de tanto remorso.
– Gabriel…
Suas mãos pararam e ele olhou para mim preocupado.
– O que foi?
Cutuquei as unhas por um momento, juntando as palavras que eu
precisava dizer. As palavras devidas há muito tempo.
– Me desculpe. – Elas saíram num sussurro rouco, e pisquei para ele. –
Pelo que fiz na boate… Me desculpe.
Os olhos dele percorreram meu rosto, descendo para minhas mãos, que
ainda se remexiam, e depois voltando para meus olhos.
– Eu perdoo você.
Inclinei a cabeça. Minhas mãos pararam de se cutucar.
– Por quê? – sussurrei.
O sorriso dele foi breve, meio triste.
– Porque o que você fez me magoou… mas acho que também lhe fez
mal.
Soltei o ar de uma vez. A verdade das suas palavras percorreu meu
corpo. Sim, aquilo me fez mal. Como ele sabia? Ainda assim, a questão ali
não era eu. Eu o fiz sofrer de propósito e, se me senti mal por isso, foi
merecido. Balancei a cabeça de leve, incapaz de decidir se estava ou não
feliz por ele ter me perdoado e querendo voltar para o assunto sobre o qual
estávamos conversando. A entrevista. Limpei a garganta e continuei:
– Hã, bem… Legal da sua parte dar essa entrevista. Parece uma causa
nobre. Uma contribuição para… para a educação, não?
Ele me olhou por alguns instantes antes de voltar a sorrir, de leve, e
continuar a trabalhar no William, movendo as mãos pelos cachos do
querubim.
– Eu lhe contei porque combinei que ela viria até aqui, para eu estar
disponível se você precisar de mim.
– Ah, mas você não precisava ter se…
– Eu quis. Mas também quis avisar você antes para que saiba o que está
acontecendo.
– Obrigada. – Era a casa dele, portanto ele não me devia nada. Eu sabia
que estava atrapalhando a sua vida de muitas maneiras, e mesmo assim ele
era gentil e flexível. Por quê? Essa era uma pergunta que me vinha sempre
à cabeça e que eu não queria fazer porque não tinha certeza de como a
resposta me afetaria. – Devo voltar para casa em mais alguns dias…
Gabriel parou de trabalhar de novo, inclinando a cabeça.
– Por que, Ellie? Por que vai querer subir três lances de escada e ficar
num apartamento vazio, onde ninguém poderá ajudá-la se você precisar?
Você ainda tem que melhorar. Só faz duas semanas.
– Não quero depender de você – murmurei.
Gabriel suspirou.
– Isso seria tão ruim assim?
Abri a boca para dizer alguma coisa, quando o som de um carro se
aproximando da casa fez as palavras morrerem na minha boca. Gabriel
abaixou as ferramentas e tirou as luvas devagar. Suas costas subitamente
ficaram rígidas, e pensei se não era apenas a minha imaginação. Quem
quer que fosse, tinha estacionado fora do campo de visão das portas da
garagem, e ouvi o motor sendo desligado. Gabriel saiu para receber a
pessoa cujos passos eu ouvia no cascalho.
– Dom – ouvi Gabriel dizer.
O irmão dele voltara para casa.
– Fala, maninho.
– Como estavam os peixes?
– Eles morderam bem. Trouxe uma geladeira cheia. Peixe frito mais
tarde?
Os dois caminharam até a parte iluminada das portas abertas, Gabriel e
um homem que se parecia um pouco com ele, embora não tanto quanto eu
imaginara. Tinha cabelos mais escuros e não era tão forte. Era bonito, mas
definitivamente não tinha a beleza atordoante do Gabriel. Ele parou
quando me viu, estreitando o olhar.
O maxilar do Gabriel endureceu.
– Dominic, esta é a Ellie. – Ele o encarava com um alerta no olhar.
Dominic pareceu confuso por um momento.
– Pensei que tivesse dito que o nome dela era Crystal.
Meus olhos passaram de um para o outro, tentando entender o que
estava acontecendo ali. Gabriel evidentemente contara ao irmão sobre
mim. Contara que eu viria. Foi por isso que ele viajou?
– Crystal é o meu nome artístico – informei baixinho. Parte de mim
desejava que Gabriel tivesse lhe contado o que eu fazia, assim eu não teria
de contar, mas outra parte desejava que ele não soubesse.
A expressão dele era tão desdenhosa que fiquei tentada a desviar o
olhar, mas não o fiz. Ficou claro que ele sabia muito bem o que eu fazia.
Por fim, ele murmurou, com uma inflexão hostil:
– Ellie.
Eu me retraí por dentro ao ouvir meu verdadeiro nome em sua voz
desaprovadora. Estampei um sorriso impassível no rosto, aquele que
aperfeiçoara há tanto tempo. Por algum motivo, foi difícil. Só se passaram
duas semanas, e eu já perdera a prática. Senti-me agitada e aflita como me
sentia a cada início de ano letivo, quando aparecia nas minhas roupas
velhas e feias e com meus sapatos pequenos demais, às vezes com
hematomas que eu tentava esconder como podia. Meu distanciamento
gélido fora a minha armadura, e agora eu me sentia como se a tivesse
perdido em algum lugar. Eu a queria de volta. Precisava dela.
– Dominic. É um prazer conhecê-lo. Desculpe por não me levantar. –
Apontei para o gesso e contorci os lábios.
Dominic grunhiu e se virou para o Gabriel.
– Vou guardar meu equipamento. – Em seguida, saiu sem dizer mais
nada, passando pelas portas da garagem em direção à casa.
Gabriel exalou o ar com força e passou as mãos pelos cabelos. Olhou
para mim, evidentemente pesando as palavras que viriam a seguir.
– Ele não está feliz comigo aqui – eu disse, para que ele não precisasse
fazê-lo.
Ele suspirou.
– Dom é… é protetor com relação a mim. Ele acha que está cuidando do
meu bem-estar.
– Ele não está feliz por você ser amigo de uma stripper. – Odiei a onda
de vergonha que me envolveu. Eu tinha esquecido quem eu era? Que
estupidez.
Gabriel deu a volta na minha espreguiçadeira e se sentou na beirada.
Perto. Tão perto. Ele respirou fundo e segurou minhas mãos. Meus olhos
desceram para o ponto em que nossos dedos se entrelaçavam, e meu
coração falhou. As mãos dele tremiam ligeiramente, mas ele estava
relaxado; a expressão em seu rosto era de determinação. Ah, Gabriel.
– Ellie, ele não conhece você. Ele vai superar isso.
Bufei.
– Assim que ele conhecer a minha personalidade cativante, quer dizer?
Ele abriu um amplo sorriso e meu coração tolo falhou de novo. Se
continuasse assim, acabaria com arritmia.
– Sim.
Foi só uma palavra, mas ele a disse com enorme convicção.
Surpreendi-me ao rir de leve.
– Você é… Deus, nem sei o que você é. – Recostei o corpo na
espreguiçadeira. – Não é justo eu continuar aqui se isso o deixa
constrangido. Esta é a casa dele.
Ele apertou minhas mãos com suavidade.
– Esta é a minha casa. Eu sou o dono. E, de qualquer forma, nos últimos
tempos andei pensando que talvez meu irmão e eu precisemos de mais
espaço.
– Não por minha causa.
Ele meneou a cabeça.
– Não. Na verdade, não tem nada a ver com você. Mas, se o Dom não
acolhe meus hóspedes, então esse é mais um motivo. – Ele soltou minhas
mãos e se levantou. Senti a perda do calor do seu corpo perto do meu, da
sua pegada carinhosa. Ele voltou a trabalhar, concentrado no William,
porém sua expressão permaneceu intensa.
ELLIE
ELLIE
GABRIEL
ELLIE
Eu tremia tanto que mal conseguia respirar. Ai, meu Deus, o que eu fiz?
E por quê? Eu não conseguia clarear as ideias. Sentia-me tão cheia de
sofrimento e pesar que era como se tudo isso estivesse porejando da minha
alma.
Eu só queria fazer o jantar e uma sobremesa para o Gabriel. Pensei que
poderia fazer o que Chloe fizera com tanta facilidade – era só preparar
uma refeição. Nunca cozinhei de verdade – só preparava coisas que
podiam ser feitas no micro-ondas –, mas pensei que “não devia ser tão
difícil assim”. Uma simples refeição e uma sobremesa idiota. E então tudo
começou a descer ladeira abaixo. Comecei pela torta, mas a massa ficou
aguada e o merengue não deu certo, mas pensei: “Bem, pelo menos
teremos o jantar”. Daí queimei o macarrão, e eu nem sabia que isso era
possível, e o pesto que eu batia no liquidificador explodiu e me atingiu em
cheio.
Eu gritei, e a derrota e a infelicidade formaram um nó horrível no meio
da minha garganta. Não conseguia fazer nada certo, nunca faria nada
certo. Eu era tão inútil, e Gabriel dissera que me amava, mas eu não
merecia isso. Chloe preparara o jantar e aquilo pareceu tão simples, tão
fácil de fazer, mas não para mim.
Tínhamos ido ao supermercado, e todos olharam para mim com tanto
desdém. Lembrei-me das palavras do Dominic, de como Gabriel merecia
ter a vida que lhe fora reservada. Ficou claro que as pessoas na cidade não
acreditavam que meu lugar fosse junto dele, e eu descartara isso. Mas
então a torta, o jantar e todas as escolhas horríveis que fiz na vida, o fato
de nunca fazer nada certo, nem uma coisinha, veio com tudo para cima de
mim e…
– Oi. – A palavra soou suave, e olhei para trás, assustada com meus
pensamentos maníacos e dolorosos. Gabriel me lançou um sorriso triste ao
fechar as portas francesas que davam para o pátio, para onde eu me
refugiara. Dei-lhe as costas, abaixando os braços ao longo do corpo,
incerta quanto ao que fazer, ao que dizer, sabendo apenas que ele me diria
que fosse embora, pois não me queria mais ali. Mas ele faria isso de uma
maneira educada, porque Gabriel era assim. Ele me ofereceria uma carona,
me diria que não me preocupasse com a cozinha suja. E isso doeria, ah,
como doeria, mas…
Senti-o se aproximar de mim, o corpo grande assomando sobre o meu, o
calor dele permeando o frio que percorria minhas veias. Estremeci. Ele
pressionou o corpo contra o meu, e inspirei rápido, surpresa quando seus
braços me envolveram e me levaram para junto dele, que inclinou a cabeça
para a frente de modo que sua bochecha ficou colada à minha têmpora.
Fiquei imóvel ante o contato. Ah, Gabriel. Ele parecia tão firme, tão certo,
tão confiante; e, apesar de eu estar nauseada pelo terror da minha
confissão, algo dentro de mim se rejubilou com essa vitória dele. Ele
estava me abraçando. Estávamos tão próximos quanto duas pessoas
poderiam ficar, e não senti nenhuma hesitação no seu abraço. Fechei os
olhos ante a intensidade do momento, e lágrimas surgiram e escorreram
pelo meu rosto.
– Estraguei o jantar – sussurrei.
Senti seu sorriso acima da minha orelha.
– Eu vi.
Assenti, num movimento rígido contra o peito dele.
– A torta também.
– Também percebi isso.
– Ah.
Ficamos calados por um momento enquanto meu corpo parava de
tremer, no abrigo cálido dos seus braços. Ele continuou a me abraçar
enquanto minha respiração se acalmava.
– Eu devo cansar você – comentei, e consegui ouvir uma nota de
desespero no meu tom. Eu precisava lhe dar uma via de escape, mas isso
doía tanto. Ele disse que me amava, que me queria, mas por certo não
haveria de querer isto. Ele não deveria querer isto. A mim.
– Não. Mas isso é o que há de pior para hoje?
Senti-o sorrir de novo. Ele estava brincando comigo, e a realidade disso
tanto me surpreendeu quanto me acalmou. Ele não estava horrorizado. Por
quê?
– Eu… Por hoje – respondi, virando a cabeça ligeiramente,
envergonhada demais para enfrentar seu olhar. Eu me sentia vazia e
sensível; sensível demais.
Ele riu com suavidade e, dessa vez, estremeci de prazer com o som
masculino da sua risada no meu ouvido, na minha pele.
Gabriel. Assim como o anjo. Meu anjo. Quero que ele seja meu anjo.
Fechei os olhos e visualizei seus braços como asas imensas ao meu redor,
me protegendo do mundo, e essa visão provocou um sorriso.
A verdade era que o que lhe contei era o pior de tudo. Aquilo de que
mais me envergonhava. A coisa que ficara enterrada bem fundo, como um
segredo doentio. Aquilo que, até agora, nunca havia partilhado com
nenhuma outra alma viva.
– Eu amo você, Eloise. Isso não vai mudar.
Abri os olhos. Ele era a única coisa sólida em todo o vasto mundo, e
cedi ao seu encontro, com um sonzinho estrangulado escapando da
garganta.
– Por que isso a assusta tanto?
– Por que… por que tenho medo de que você desista.
– Eu pareço um homem que ama precipitada e descuidadamente?
– Não. – A palavra saiu num sussurro entrecortado. Gabriel não me
parecia um homem que fizesse nada assim.
– Não vou desistir.
Ele disse isso com tanta determinação, com tanta certeza, como se essa
simplesmente não fosse uma opção. Eu queria acreditar nisso. Deus, como
eu queria acreditar, mas não sabia como.
– Posso lhe mostrar uma coisa? – ele sussurrou.
Eu me sentia enormemente desajustada, frustrada e assustada. E
distorcida. Tão incerta dos motivos pelos quais Gabriel ainda me amava…
e pelos quais começara a me amar, para começo de conversa.
– T-tudo bem.
Ele se afastou e me pegou pela mão, apanhando as muletas, que eu
deixara largadas no chão, e entregando-as a mim. Passei pela cozinha,
onde parecia ter havido uma guerra de paintball amarela e verde.
– Antes posso só trocar de blusa?
– Claro.
Enfiei-me no quarto, peguei uma camiseta limpa e usei uma toalha
úmida para limpar o máximo de sujeira do rosto e dos cabelos. Quando
terminei, me encontrei com Gabriel, que esperava no corredor, e saímos
em direção à caminhonete dele.
– Para onde estamos indo?
– Vamos nos mudar em vez de limpar a cozinha.
Surpreendi a mim mesma ao rir, e Gabriel sorriu. Dirigimos em silêncio
por uns dez minutos. Eu ainda tentava apaziguar meu coração acelerado,
procurando chegar a um acordo com meu colapso emocional, ainda com
um pouco de vergonha e de incerteza, mas também com uma sensação de
que algo dentro de mim inflara além da capacidade e se rompera. Senti
uma leveza que não sabia explicar.
Gabriel olhou de relance para mim e sorriu calorosamente, estendendo a
mão para pegar a minha, segurando-a até chegarmos à saída de uma
estradinha perimetral. Pensei em outra estradinha como aquela, na qual
estivera recentemente – em como Tommy Hull exigira o “pagamento” pela
carona e depois batera em mim. Uma sensação distante de raiva me pegou
ante essa lembrança, e desejei ter brigado com ele, desejei tê-lo socado
como George me ensinara. Ou, melhor ainda, desejei não ter subido no
caminhão dele.
Nem todos os homens tirarão vantagem de você só porque têm a
oportunidade, mas você tem que aprender a identificá-los e se manter
afastada.
Acho que tinha muita dificuldade em saber quem eles eram. Os homens
que se aproveitavam eram o que eu conhecia. Minha normalidade. Eram os
homens bons que me eram desconhecidos, estranhos. Parecia irônico, mas
eram os homens bons que me assustavam. Como Gabriel.
Gabriel fez uma série de curvas e depois encostou a caminhonete,
sorrindo antes de descer e dar a volta para me ajudar a descer também.
Olhei ao redor enquanto caminhávamos para a parte da frente do veículo.
Aquela área era densamente arborizada, e as folhas das árvores eram de
tantas cores diferentes – dourado-claro, vermelho e alguns pontos de roxo.
Mais adiante havia uma ponte vermelha coberta passando por cima de
um riacho. À medida que nos aproximávamos dela, inalei o ar fresco do
outono e da água corrente.
– Era isso que queria me mostrar?
– Ali adiante. Tudo bem com a sua perna?
– Sim, tudo certo.
Observei a ponte enquanto nos aproximávamos. Para mim, sempre
houve algo de singular e antigo nas pontes cobertas, algo simples e
romântico. Mas, até então, eu não passara muito tempo pensando em
romance. Não antes do Gabriel.
Ele me conduziu até a beirada da ponte e caminhamos ao longo dela
pelo lado de fora, onde havia uma borda pequena logo acima do riacho
raso, sombreada pela projeção do teto. Olhei para Gabriel curiosa, e ele
tirou os sapatos e começou a enrolar o jeans. Observei enquanto ele fazia
isso e franzi a testa de leve, mas o imitei em seguida, chutando o meu
único sapato. Ele se sentou, enfiou os pés na água e riu. Então sorriu para
mim, que ainda estava de pé, com um olho semicerrado. Borboletas
farfalharam na minha barriga, e me sentei ao lado dele, acomodando o
quadril para que o gesso não tocasse na água, enquanto molhava o outro
pé. Um jorro de riso subiu pela minha garganta enquanto a água fria
rodopiava pelos meus dedos.
– Ai, que frio! – Ri de novo. Mas aquilo era gostoso, como seda fresca
deslizando pela minha pele para fazer cócegas no tornozelo. Fez com que
me sentisse presente e viva.
Gabriel se encostou na lateral da ponte e apontou para baixo, para a
nossa frente. Ali havia um vale de flores silvestres de cada matiz, cercado
pelas árvores vibrantes que mudavam suas cores. Vivi em Vermont a vida
toda e nunca passei mais de um minuto admirando a beleza da paisagem.
Sentada ali com Gabriel, eu estava encantada – quase desarmada – por ela.
– Existem arco-íris em todas as partes – Gabriel disse, inclinando a
cabeça na minha direção, sorrindo.
Ri de leve, observando-o, sentindo-me de súbito tímida com a
proximidade dele, pelo modo como olhava para mim. Uma brisa levou
uma mecha de cabelo para meu rosto, e a afastei, fechando os olhos e
inspirando fundo enquanto o perfume das flores silvestres abaixo
encontrava seu caminho até nós.
– Quero lhe dar tudo isso – Gabriel disse com suavidade.
Abri os olhos e olhei para ele, para a expressão séria do seu lindo rosto,
para o modo como seus olhos pareciam penetrar minha alma. O jeito como
ele parecia saber tudo a meu respeito. E, agora, imagino que realmente
saiba. Da maior parte, pelo menos.
Meu coração acelerou, e desviei o olhar ao sentir o rosto corar ante a
proximidade dele, o amor em suas feições. Eu não sabia o que fazer com
isso ainda, pois nunca vivenciara algo assim. Voltei a me perder na
paisagem, sentindo a corrente de água enquanto movia o pé
langorosamente dentro dela, com a brisa acariciando meu rosto e
bagunçando meus cabelos.
– Você não pode me dar o vento, Gabriel – comentei com suavidade,
fitando-o novamente, capturada pelo seu olhar.
Ele estendeu os braços e tocou meu rosto com as duas mãos, e meu
coração estremeceu quando me inclinei instintivamente em direção ao seu
toque. Assim como no pátio, antes, não parecia haver hesitação nele,
apenas uma certeza amorosa. Seus lábios formaram um doce sorriso.
– Posso tentar. Deixe-me tentar, Ellie.
Suspirei quando meus próprios lábios formaram um sorriso. Entendi o
que ele queria dizer. Ele queria me dar a paz desse momento, a… poesia
desse lugar, o romance, os perfumes, os sons e o cenário da beleza que nos
cercava. Ele queria me dar amor. E, Deus, eu queria aceitar, eu só estava
com medo demais de estender a mão para pegar. Ainda temia que isso me
fosse tirado. E, se fosse, eu jamais seria capaz de seguir em frente. Jamais
me recuperaria.
Algumas folhas saíram voando das árvores, rodopiando
preguiçosamente na brisa suave, e senti um desprendimento ligeiro dentro
de mim também. Fiquei imaginando como as árvores conseguiam se
libertar das coisas de que já não precisavam mais, e pensei se eu também
conseguiria fazê-lo.
– Como você consegue? – perguntei. – Como consegue se desprender do
medo?
Ele também foi ferido antes. Muito, mas muito profundamente. Como
foi que conseguiu superar aquilo, enquanto eu não parecia ser capaz?
Ainda me apegava com tanta firmeza ao medo.
– Do medo? – ele me perguntou, percorrendo meu rosto com os olhos.
– Do medo de amar.
Um olhar de triste compreensão surgiu.
– Porque, Ellie – ele disse, e sua voz estava tão carregada de convicção
que me fez piscar de surpresa –, eu venço toda vez que ouso amar. Quero
dizer que venço cem vezes por dia, mil vezes, ao amar o nascer do sol e o
vento, e o modo como a chuva bate na minha janela. – Fez uma pausa, o
polegar deslizando com suavidade pelo meu maxilar, acariciando meu
rosto como se eu fosse preciosa. – E você, acima de tudo, você. Quero
olhá-la e dizer que um homem mau não me impediu de presentear com o
meu coração a garota que o clamou para si. Você recebe o meu coração,
Eloise. Você. E, puxa, como espero que você o queira. Mas, se não quiser,
ainda assim não lamentarei dá-lo a você. Mesmo assim, não me
arrependerei de amá-la, porque isso significa que eu venço.
Senti um salto no peito e arquejei. As palavras dele, o modo como
olhava para mim com tanta intensidade, me partiram ao meio, me
rasgaram e, ainda assim, juntaram meus pedaços, tudo ao mesmo tempo.
Ah, Gabriel.
Seu polegar continuou a se mover no meu rosto, seu toque tão
dolorosamente carinhoso que me fez sentir vontade de chorar. Ele me
procurara como um homem que entrava em pânico toda vez que alguém se
aproximava dele e agora tocava em mim com tanta certeza, com força e
segurança. Deus, como eu tinha orgulho dele, mas, mais do que isso, eu
me sentia profundamente honrada por ele ter me escolhido, profundamente
grata por ele ter sabido do pior de mim e me amar mesmo assim. Eu me
sentia sem ar com o absoluto milagre disso.
O olhar do Gabriel se moveu para a minha boca e se demorou nela. Vi
que ele engolia com esforço e sabia que ia me beijar. As borboletas na
minha barriga começaram a bater as asas quando ele se inclinou na minha
direção, parecendo hesitante, mas certo, e mais lindo do que qualquer
outro homem que já vi. Seus lábios se entreabriram de leve e, em seguida,
pressionaram os meus, macios e suaves, e gemi com o prazer do encontro
das nossas bocas. Ele deslizou para perto de mim até não haver mais
espaço entre nós, e enrolei meus braços devagar ao redor do seu pescoço,
entrelaçando os dedos na maciez dos seus cabelos bastos.
Inclinei a cabeça e abri a boca para que ele pudesse me explorar, e ele
gemeu, lançando uma centelha de desejo entre minhas pernas. Ele aceitou
meu convite, resvalando a língua ao longo da minha, experimentando, e
depois com mais confiança, à medida que nossas línguas dançavam e se
saboreavam.
Quando, por fim, ele se afastou, arfando um pouco, precisei de um
minuto para entender onde eu estava, de tanto que me envolvi no beijo.
Um sorriso surgiu no meu rosto antes de eu abrir os olhos e, quando enfim
os abri, ele me observava, parecendo feliz e um pouco aturdido. Seus
lábios ainda estavam entreabertos, úmidos e rosados por causa do nosso
beijo, e ele estava ligeiramente corado. Pensei comigo: “Sou o primeiro
beijo desse homem lindo. Os lábios dele só tocaram nos meus”. E desejei
que fosse o meu primeiro também; embora, de certa forma, tenha ficado
me questionando se já havia beijado alguém algum dia, pois não conseguia
me lembrar agora. Talvez porque esse fosse o primeiro beijo em que estive
de fato presente – não só com o corpo, mas com a mente e o coração
também.
Ele levantou a mão e enxugou a umidade do meu lábio inferior com o
polegar. Ri com leveza; senti-me mais feliz do que nunca, maravilhada
pela delicadeza quase insustentável do momento, e dele.
Ficamos sentados ali mais um tempo, movendo os pés na água, com
Gabriel prendendo o tornozelo no meu e, de novo, ri e me apoiei nele.
Observamos as árvores começarem a se despir – as folhas coloridas
flutuando até o chão – e conversamos sobre nada importante, sentindo a
paz do momento, a alegria extraída da companhia do outro.
Será que um dia cheguei a sonhar com romance e com cavaleiros
brancos? Ainda menina, será que imaginei que um dia um belo príncipe
com o coração no olhar seguraria meu rosto nas mãos e me beijaria? Não
conseguia me lembrar disso agora, mas desejei que pudesse, porque queria
imaginar que aquela garotinha estava em algum lugar dentro de mim e que
aquele momento era para nós duas, e por todos os sonhos que achei que
estivessem perdidos. Perdidos para alguém como eu.
Secamos os pés ao sol e depois voltamos para a estrada. Fiquei
pensando em como aquele dia passara do sofrimento e das lágrimas e de
um jantar destruído para a alegria e a paz, e também a caminhada sob uma
ponte coberta. E o nosso primeiro beijo. O beijo mais belo que já
experimentei.
CAPÍTULO DEZOITO
GABRIEL
ELLIE
Chloe ficou em Morlea naquele fim de semana, por isso teve tempo de
fazer um pouco de turismo na região. Ela foi até a casa do Gabriel naquela
noite para se despedir e agradecer-lhe o tempo que lhe concedera.
Saí da sala para que tivessem privacidade para conversar por alguns
minutos e, quando voltei, eles estavam se abraçando. Chloe estava de
frente para mim, de modo que pude ver a expressão de afeto e de tristeza
em seu rosto. Seus olhos estavam fechados, bem apertados, e por um
momento apenas os observei, com um traço de ciúme que fazia com que
me sentisse mesquinha. Desviei o olhar bem quando se soltaram e, quando
me avistou, Chloe se apressou para junto de mim e também me envolveu
num abraço apertado.
– Não conseguimos passar muito tempo juntas, Ellie. Fica para a
próxima vez?
Ela recuou e segurou minhas mãos, apertando-as e sorrindo.
– Você vai voltar? – perguntei.
– Ah, com certeza. Venho entregar pessoalmente uma cópia publicada
da pesquisa quando ela estiver concluída. – Seu sorriso se ampliou. – Vou
deixar Gabriel orgulhoso dela.
Retribuí o sorriso.
– Tenho certeza de que vai.
Ela hesitou por um momento, parecendo levemente incerta.
– Conversei com o Dominic a respeito do que ele fez. Acho que ele está
muito confuso por dentro…
– Está tudo bem, Chloe, de verdade.
– Não está, não. Não há nada de bom nisso. Eu só… eu só queria poder
ajudar.
Sorri para ela.
– Você ajudou sendo uma amiga para mim.
O sorriso dela foi amplo e contagioso.
– Ligue para mim quando quiser conversar, está bem? Se precisar de um
ouvido. Gabe tem o meu número.
Gabe.
– Pode deixar.
Ela sorriu de novo.
– Ok, certo. Cuide-se.
– Você também, Chloe.
Ela se voltou para Gabriel, inclinou-se e se equilibrou nas pontas dos
pés para beijá-lo no rosto.
– Obrigada de novo – ela sussurrou. Havia tanto sentimento em seu tom
que quase fiquei envergonhada por estar ali.
Ele ama você, Ellie, lembrei.
Só porque ele acabou não conhecendo a Chloe antes, aquela vozinha
zombeteira dentro de mim ralhou. Bloqueei-a o melhor que pude.
Eu não a culpava nem um pouco pelo afeto evidente que sentia pelo
Gabriel, talvez até pelo amor. Ela sabia o que eu sabia – que ele
sobrevivera a seis anos no inferno cercando-se de amor. De esperança. O
quanto a mente dele devia ser forte – e o quanto seu coração devia ser belo
– para ele se apegar a isso? Para escolher o amor em vez do medo um dia
após o outro? Claro, ele teve sorte de ter um monte de amor em que se
apoiar. Nem todos são tão abençoados assim. Mas, pensando bem, tenho a
sensação de que Gabriel teria feito uso de qualquer ínfima centelha de
amor – de esperança – para permanecer forte. Era simplesmente quem ele
era.
Gabriel, um menino que não se permitira esquecer como era o amor, e
eu, uma garota que se certificou de não se lembrar.
Preparamos o jantar naquela noite – uma lasanha pré-cozida que era
praticamente impossível de estragar, ainda que, caso eu estivesse sozinha,
provavelmente teria sido capaz disso, e comemos no pátio. As noites
estavam ficando mais frias, por isso Gabriel acendeu um aquecedor
externo e o levamos para perto da mesa.
Depois que limpamos a cozinha, nos enroscamos no sofá e assistimos a
TV, mas resolvemos nos deitar cedo, já que eu começaria a trabalhar na
pedreira na manhã seguinte e queria estar bem descansada. Também estava
um pouco nervosa. E se não conseguisse dominar o sistema de telefonia e
acabasse passando vergonha?
Só tive dois empregos na vida. Quando saí da casa do meu pai, trabalhei
num cinema por pouco mais de um ano, mas não conseguia pagar mais do
que o aluguel de um quartinho dos fundos, de uma mulher que o havia
anunciado no jornal. Quando chegara lá, percebi o motivo de ele ainda
estar vago. Ela devia ter uns vinte e cinco gatos, e o lugar inteiro cheirava
a peixe e areia para gatos suja. Mas era só o que eu conseguia pagar, e era
melhor do que continuar na casa do meu pai, por isso aceitara ficar lá.
No ano seguinte, conheci Kayla por intermédio de alguns conhecidos, e
ela me contara a respeito da Pérola Platinada. Ficava relutante em me
despir para qualquer um, mas, dessa maneira, consegui poupar quinhentos
dólares para comprar um carro, o valor do depósito necessário para alugar
um apartamento e, com isso, consegui sair da casa dos gatos.
Por isso, agora, minha experiência profissional incluía tirar pipocas do
chão e deslizar seminua por uma barra.
Fui me deitar, mas não consegui dormir e, depois de vinte minutos me
virando e me mexendo na cama, levantei e abri a janela, inspirando o
frescor da noite. Ajoelhei e apoiei os braços no parapeito, observando o
céu limpo e estrelado por alguns instantes, tentando absorver a beleza,
como Gabriel parecia fazer com tanta facilidade. Em vez disso, a beleza da
noite pareceu dolorosa de alguma maneira e fez com que me sentisse mais
vazia por dentro.
Suspirando, fechei a janela e fui cambaleando para fora do quarto até a
garagem, o mais silenciosamente que consegui. William estava ali, liso e
branco, e seu rosto risonho fez com que meu coração pesasse um pouco
menos.
Passei um dedo pela sua cabeça, maravilhando-me uma vez mais ante o
que aquilo fora mais ou menos um mês atrás. A rapidez com que Gabriel
deu vida ao que antes não parecia absolutamente nada de mais. Senti-me
quase como se conhecesse aquele rapazinho, como se ele pudesse ter
personalidade própria. Suspirei.
– E se eu não me sair bem amanhã? E se eu meter os pés pelas mãos?
William continuou a sorrir e me a encarar com aqueles seus olhos
encorajadores. Soltei o ar.
– Bem, claro que você diria isso.
Ouvi um barulho e me virei rápido. Vi Gabriel parado na entrada, de
camiseta e calças largas de moletom, apoiando o quadril na soleira e me
observando com curiosidade. Senti um calor subir ao pescoço e ri, um som
envergonhado feito basicamente de ar. Gabriel sorriu. Dei-lhe as costas
quando o calor do pescoço chegou às bochechas.
Senti Gabriel se aproximar de mim por trás, e ele desceu as mãos pelos
meus braços, beijando o topo da minha cabeça.
– Você vai se sair muito bem.
Virei a cabeça para o lado, mas não o olhei.
– Como sabe disso?
– Porque você é inteligente e pode aprender qualquer coisa.
Você é inteligente e pode aprender qualquer coisa.
Você é uma menina tão boa, tão inteligente, Ellie. Não se esqueça disso,
está bem? Não importa o que aconteça, não se esqueça disso.
Senti uma dor profunda no coração e empurrei aquelas palavras para
longe, sem querer pensar nelas – ou de onde elas vieram –, não quando me
sentia tão vulnerável.
Passei a mão por trás da cabecinha dura do William e senti a força
sólida do Gabriel nas minhas costas. A dor dentro de mim aumentou de
repente, e a honestidade saiu rolando pela minha língua.
– Sempre fingi ser feita de pedra, mas, na verdade, eu me sinto como se
fosse de areia, capaz de desmoronar a qualquer segundo. – Eu sentia isso
há tanto, mas tanto tempo que chegava a doer.
Gabriel, ainda atrás de mim, passou os braços ao meu redor, como
fizera no dia em que eu arruinara o jantar. Esticou-se e apoiou a mão sobre
a minha, no topo da cabeça do William.
– Mas é disso que as pedras são feitas, Eloise. Areia e pressão – ele
apertou de leve o braço que me envolvia –, e tempo. É só isso, meu doce
amor. Apenas areia, pressão e tempo.
Deixei que suas palavras rolassem dentro de mim, querendo
desesperadamente a pressão – o amor – dos seus braços ao meu redor para
me ajudar a conquistar a mesma confiança em mim que ele parecia ter.
Isso era parte do que me preocupava. Por quanto tempo? Quanto tempo até
que eu me sentisse firme e competente? Quanto tempo até que eu não
estivesse mais fingindo?
Gabriel me ensinara tantas lições, e todas elas eram importantes para
mim porque ele as passara com honestidade. O que ele dissera não foram
apenas palavras e chavões – eram verdades que ele conquistara ao longo
do seu próprio trajeto de dor e de sofrimento.
Apenas areia, pressão e tempo.
– Tentei olhar para as estrelas – murmurei depois de um momento,
querendo que ele soubesse que eu prestara atenção a cada palavra que me
dissera. Queria que ele entendesse que o admirava mais do que qualquer
pessoa; mesmo que nem sempre eu conseguisse viver as suas palavras do
modo como ele fazia. – Tentei apreciar a beleza ao meu redor, mas acho
que não fiz direito.
Gabriel soltou o ar, suspirando.
– Gratidão não é um Band-Aid, Ellie. Você ainda tem que viver seus
sentimentos para processá-los. A gratidão foi feita para tornar as coisas
suportáveis. Às vezes, ela faz você chegar ao fim do dia e, às vezes, apenas
ao momento seguinte. É só isso.
– Eu estava querendo mesmo é um Band-Aid – disse, tentando inserir
um pouco de bom humor no meu tom.
Ele riu e isso me confortou.
Ficamos calados por um instante.
– Você deve estar me achando uma louca por vir aqui conversar com
uma estátua.
– Não. Elas são boas ouvintes. Mas eu também sou – ele murmurou
contra meu ouvido, atraindo-me de modo que meu corpo se apoiasse no
dele. – Por que você é tão dura consigo mesma? Não precisa ser.
Eu não tinha uma resposta para isso, portanto apenas sorri, fitando-o.
– Obrigada.
Ele assentiu, e seus olhos percorreram meu rosto como se em busca de
ler meus pensamentos. Por fim, simplesmente me beijou e segurou minha
mão, me levando de volta para casa, onde fui para a cama e, então,
adormeci.
Comecei a trabalhar na manhã seguinte. George simplesmente me
entregou o manual de instruções do sistema de telefonia antes de sair em
direção à pedreira, de onde eu já ouvia o som das máquinas e dos
caminhões começando a fazer o que quer que fosse.
Gabriel riu de leve ante a minha expressão de surpresa e disse:
– Não tem ninguém atendendo os telefonemas agora. Mesmo que você
só consiga atender a metade, já estaremos no lucro. – Sabia que ele só
estava dizendo isso para que me sentisse melhor, mas deu certo e, assim
que ele saiu do showroom, abri o manual de instruções e comecei a
descobrir como tudo funcionava.
Dominic chegou às nove e meia, e meu coração deu um pulo de nervoso,
mas ele simplesmente deu um sorriso reservado e foi para seu escritório.
Nenhum pedido de desculpas, nada.
O dia passou rápido enquanto eu aprendia sozinha sobre o sistema,
atendia os telefonemas, deixando passar alguns e só desligando na cara de
dois. Antes que me desse conta, Gabriel voltou, para perguntar se eu
queria almoçar com ele e, depois, várias horas mais tarde, para me buscar
e voltarmos para casa.
Ele olhou para mim na cabine da caminhonete, com seu sorriso amplo.
– Gostou?
Assenti, e uma sensação de conquista fez com que me sentisse feliz e
relaxada.
A semana voou e, apesar de eu melhorar, aprendendo a operar o fax e a
copiadora e me tornando apta a fazer os agendamentos com o calendário
on-line, a frieza do Dom diminuía o meu contentamento no trabalho. Além
de não falar comigo, ele literalmente me dava as costas quando eu entrava
na saleta de descanso para pegar café enquanto ele estava ali, ou fingia não
me ouvir quando eu lhe fazia uma pergunta direta. Tentei desconsiderar
sua imaturidade, mas sentia seu absoluto desdém por trás dela, o que
tornava mais difícil não me sentir afetada. Recusei-me a contar qualquer
coisa para o Gabriel, na esperança de que Dominic superasse sua birra e
desistisse.
Mas Gabriel cobria a pequena distância de seu estúdio até o showroom
toda noite, e eu fugia para o estúdio dele sempre que possível, a fim de
observar suas lindas mãos trabalhando num bloco de pedra, ciente de que,
apesar de a peça ter começado do nada, logo seria algo milagroso.
Observar suas mãos se movendo sobre um pedaço de pedra me fazia
estremecer, imaginando qual seria a sensação de tê-las se movendo sobre
mim.
À noite, depois do jantar, namorávamos no sofá como dois adolescentes,
e eu o incitava mentalmente a colocar a mão debaixo da minha blusa, a me
despir, a tocar na minha pele, a liberar o desejo refreado que mais parecia
uma fogueira dentro de mim. Mas, noite após noite, apesar do seu desejo
evidente, ele se afastava, e eu dizia a mim mesma que ele simplesmente
não estava pronto ainda.
Na sexta-feira daquela semana, Gabriel me levou para a minha consulta
após o trabalho, durante a qual examinaram minha perna e chegaram à
conclusão de que o gesso podia ser retirado. Ri alto quando todo aquele
peso saiu de mim.
– Liberdade! – eu disse, e Gabriel riu do outro lado do consultório.
– Agora você pode literalmente fincar os dois pés no chão – ele
comentou.
Sorri, mas, por dentro, suas palavras provocaram incerteza e medo, que
me atravessaram.
Paramos a caminho de casa e compramos champanhe para comemorar
minha independência e planejamos pedir pizza para o jantar.
Fiquei feliz em não ter mais de arrastar uma perna que pesava o dobro
da outra para todo canto, mas também me senti vagamente triste. Gabriel
tinha razão. Eu estava literalmente de pé agora. Não havia mais um motivo
real para continuar na casa dele. Afastei esse pensamento por enquanto.
Queria aquele fim de semana com ele, mesmo que fosse o último.
Assim que passei pela porta, anunciei ao Gabriel que depilaria a perna.
Vê-la sob a luz brilhante do consultório médico me garantiu que sem
dúvida já passara da hora. Para falar a verdade, as duas pernas precisavam
de um pouco de cuidado. Fazia semanas que eu não dava muita atenção à
minha aparência, o que foi bom para variar um pouco das depilações
constantes que uma stripper precisa fazer, mas eu não queria pensar nisso
agora. Não estava me depilando por motivos estéticos. Estava me
depilando, com toda a honestidade, porque minhas pernas estavam
horríveis.
– Deixe-me ajudar – Gabriel pediu.
Eu ri.
– A depilar minhas pernas?
Ele deu um sorriso com o canto da boca.
– É.
Dei de ombros.
– Se você quiser.
Demoramos um pouco mais no jantar, com nossas doses de champanhe
para comemorar, Gabriel rindo porque me levantei várias vezes para
correr sem sair do lugar e pular, simplesmente porque podia, e também
porque precisava fortalecer a musculatura. Jurei que nunca mais deixaria
de tomar cuidado do meu corpo.
Depois de limparmos a cozinha, ele me puxou pela mão.
– Venha. – Eu o segui para o seu quarto. Olhei de relance para a mobília
simples, para as prateleiras repletas de pilhas de livros de capa dura ou
brochura, para a pequena escrivaninha, onde havia um laptop aberto, e
para a cama, arrumada com uma colcha azul-marinho e com uma série de
travesseiros apoiados contra a cabeceira.
Gabriel me levou direto para o banheiro, onde havia uma banheira
grande. Ele abriu a torneira e eu me sentei na beirada, rolando a barra da
minha calça de ioga para cima e pondo as pernas dentro da banheira. Ri.
– Isso definitivamente é uma coisa que nunca fiz.
Gabriel sorriu ao enrolar a barra do seu jeans e entrar na banheira, se
ajoelhando. Ri de novo.
– Vai molhar seus jeans.
– Não ligo. Relaxe. Deixe-me mimar você.
Apoiei na parede, assistindo enquanto ele tirava a proteção de uma
lâmina descartável e ensaboava as mãos. Suspirei. Apenas sentir os pés
mergulhados na água quente enquanto eu relaxava já estava bom demais.
Ele espalhou a espuma do sabão com gentileza numa perna, e observei
suas mãos deslizarem pela minha pele. Não consegui deixar de pensar no
trabalho dele. Devia ser assim que filhotinhos de cachorro, e, coelhos
anjos deviam se sentir. Cuidados. Apreciados. Levados à vida. Devia ser
assim que as folhas e flores e as vinhas entremeadas que costumavam ser
blocos de pedra se sentiam. Libertadas. Renovadas. Tornadas belas por
suas mãos habilidosas.
Engoli em seco. O momento subitamente se tornou tão intenso, tão
íntimo, tão erótico, enquanto as mãos deslizavam pelas minhas pernas,
massageando com suavidade, até me fazer gemer. Vi o pomo de adão do
Gabriel se mover quando ele também engoliu com força. Sua expressão
estava muito concentrada, muito absorta na tarefa.
Ergueu o olhar para mim ao apanhar a lâmina, e suas pupilas pareciam
levemente dilatadas. Ocorreu-me que aquela não era apenas a primeira vez
que ele tocava na minha pele. Aquela era a primeira vez que ele tocava
numa mulher. Uma ternura explodiu no meu peito enquanto eu o via
deslizar a lâmina lentamente pela minha perna. Fiquei sem ar.
A lâmina se movia com suavidade pela minha perna, os dedos seguindo
logo atrás, certificando-se de não ter sobrado nenhum pelo. Os joelhos dos
jeans já estavam encharcados àquela altura, mas Gabriel não parecia ter
notado. O vapor subia no ar, e percebi que nunca fora tocada de tal
maneira. Nenhuma vez. Jamais. Acariciada. Amada.
Gabriel enxaguou a lâmina e virou a perna depilada para um lado e para
o outro, avaliando o seu trabalho do mesmo jeito que fazia quando
esculpia. Seus dedos se moveram pelo meu tornozelo e depois até os pés,
que suas mãos massagearam com adoração. Foi tão gostoso que gemi de
novo, um gemido mais longo dessa vez. Os olhos do Gabriel dispararam
para os meus, parecendo levemente vidrados.
– Você é tão linda, Eloise. Cada pedacinho seu. – Ele passou um dedo no
ossinho do tornozelo de novo e por cima do arco do meu pé. – Você é uma
obra de arte.
Uma obra de arte.
Já haviam dito que eu era bonita antes. Já me disseram que eu era linda,
sexy, irresistível, mas, de alguma maneira, nenhuma dessas palavras foi
absorvida. Foram apenas… palavras. Como se só tivessem se acomodado
sobre a superfície da minha pele. Mas senti as palavras do Gabriel
entrando pelos meus poros, no meu sangue, nos ossos. Chegando à minha
alma. Senti suas palavras como se fossem uma bênção. E ele só havia se
referido ao meu tornozelo.
Borboletas farfalharam no meu estômago, e minhas roupas pareceram
me apertar de tanto que minha pele estava sensível. A cada movimento,
minha camiseta resvalava nos mamilos, tornando-os rijos e sensíveis. Um
pulso ritmado de desejo vibrava no meu interior, e minha calcinha estava
úmida e apertada.
– Gabriel…– sussurrei. Quis que ele me beijasse. Quis que emergisse
daquela poça rasa de água, se inclinasse sobre mim e me beijasse, e depois
me pegasse no colo e me levasse para a cama, mas eu não sabia como
pedir.
Parecia que ele queria também, então por que não o fazia? Ele não tinha
que supor se eu me prevenia contra uma gravidez. Ele sabia tudo sobre
mim, depois de ter cuidado de mim enquanto estive doente demais para
fazê-lo sozinha. Qual era o problema então? O que o impedia? Será que
duvidava que eu fosse saudável? Será que pensava que eu ia para a cama
com os homens da boate? Que estivesse manchada? Já fiz muitas escolhas
imbecis na vida, mas nunca arrisquei minha saúde. Será que eu devia
certificá-lo disso?
Ou ele hesitava por causa da sua própria inexperiência? Estaria
preocupado que eu fosse recusar? Que não saberia o que fazer?
Ele passou as mãos ensaboadas pela outra perna e arrastou a lâmina do
mesmo modo. Quis arquear as costas com a sensação, de pronto tão
estimulada que pensei em eu mesma deslizar para dentro da água e beijá-
lo. Mas a dúvida também me assolou, portando permaneci sentada
enquanto ele terminava o trabalho e depois enxaguava minhas pernas e
pés, erguendo-se e saindo da banheira com as calças encharcadas
molhando o tapete do banheiro.
Ele apanhou uma toalha e, quando pus as pernas para fora da banheira,
ele as enxugou.
Observei seu rosto enquanto fazia isso, e ele parecia tão intenso, tão
concentrado. Tive certeza de que ele ia pedir que passasse a noite com ele,
ou que faria algum movimento nessa direção. Portanto, quando ele se
inclinou, me beijou no rosto e sussurrou um “boa-noite”, fiquei imóvel, só
piscando.
Gabriel se levantou e saiu com passos meio rígidos para o quarto. Eu o
segui e sussurrei meu “boa-noite” ao passar por ele, na porta do quarto.
Hesitei alguns segundos, para que ele tivesse a oportunidade de me pedir
que ficasse, e nós dois nos encaramos por alguns momentos antes de eu
virar a cabeça e sair. Ouvi quando ele soltou o ar aos trancos atrás de mim.
Voltei para o meu quarto e tomei uma chuveirada fria, depois fui para a
cama, ainda me sentindo frustrada e confusa. Enquanto ficava deitada no
silêncio, percebi que eu não sabia o que era desejar tanto assim. Nunca
vivi nada parecido antes. Nunca soube o que era desejar, não de verdade,
e, de repente… fiquei maravilhada. E algo caloroso e gostoso se moveu
dentro de mim. Ai, meu Deus. Gabriel dera isso para mim. E, por mais que
isso tivesse me deixado meio louca, também fez com que me sentisse
poderosa e viva.
Ergui-me na cama, com um sorriso leve no rosto enquanto eu levava o
lençol ao peito. Ele estava esperando que eu estivesse pronta? Seria aquele
mais um presente que Gabriel tentava me dar? A experiência de saber que
eu queria um homem e me oferecia a ele, em vez de ser tomada? Gemi.
Claro que seria bem a cara do Gabriel estar pronto há semanas e esperar
até que eu também estivesse.
Saí da cama, nervosa e incerta, mas mesmo assim sentindo um desejo
tão intenso que me consumia.
Abri a porta devagar e fui para o corredor, olhando para a porta fechada
do seu quarto. Meus nervos estavam à flor da pele, sentia como se algo
zunisse dentro das veias e quase fui embora, mas juntei coragem e andei
rápido até a porta dele; girei a maçaneta e entrei.
Seu quarto estava escuro, com apenas o abajur aceso ao lado da cama.
Ele estava deitado debaixo do lençol, com o peito nu e um livro na mão.
Quando me viu, a preocupação cobriu seu rosto. Ele se apoiou num
cotovelo.
– Ellie? Você está bem?
Assenti num movimento duro, com o coração batendo tão forte que
parecia ecoar nos meus ouvidos.
– Você está lendo…
Ele deixou o livro de lado.
– Não. – Balançou a cabeça. – Já li a mesma frase quinze vezes.
– Ah… – Minha voz saiu num sussurro rouco, e limpei a garganta.
Gabriel estava imóvel, esperando. – Eu quero você – disse numa torrente
sussurrada de palavras. – Pensei que talvez você… você me quisesse
também. – Engoli em seco, pressionando as mãos contra a porta fechada
atrás de mim.
Uma expressão de afeto puro percorreu as feições do Gabriel, e deixei
de respirar por um segundo antes de minha respiração se tornar acelerada.
Quis me embebedar com aquele olhar, torná-lo parte de mim para sempre.
– Eu quero – ele disse. – Eu quero… também. – Seu sorriso leve e torto,
cheio de amor e de uma pontada de provocação trouxe relaxamento aos
meus ombros.
Ele afastou o lençol e saiu da cama. Estava de cueca boxer, e meu
coração deu um salto quando vi o contorno da sua ereção através do tecido
fino. Engoli de novo; sua beleza me afetou em dobro dessa vez, em
comparação com a primeira em que o vi semi-nu. Dessa vez… ah, dessa
vez, eu tocaria nele e muito mais.
Se nos virmos sem roupa de novo, que não seja por causa de um
trabalho ou de um acidente. Que seja porque nós dois queremos e que
tenha algum significado.
Sim.
Sim, sim!
Com o quadril, ele me pressionou suavemente contra a porta e levou as
mãos ao meu rosto, beijando-me enquanto eu me derretia nele e meu corpo
se suavizava para se moldar à firmeza dele.
– A gente se encaixa direitinho, não acha? – ele murmurou, e uma onda
de desejo percorreu meu sangue com as suas palavras.
Gabriel foi beijando meu pescoço com suavidade, resvalando os lábios
na minha pele, e senti algo nele que não notara antes: ele não estava mais
se contendo. Não havia nenhuma reserva no seu toque, nenhuma incerteza
no seu beijo. Eu me oferecera a ele, e ele pretendia se entregar por inteiro
também.
Ele me levou para a cama e me cobriu com o corpo quando me deitei.
– Talvez você tenha de me mostrar como fazer isso. Nunca fiz antes –
sussurrou com um sorriso tímido nos lábios e certa vulnerabilidade nos
olhos.
Levei a mão ao seu rosto.
– Acho que também nunca fiz isso antes. Não assim. Vamos descobrir o
que fazer juntos.
Ele me olhou com muita intensidade antes de me beijar de novo.
Despimos um ao outro devagar, sob o brilho suave do abajur. Não senti
um segundo de vergonha enquanto seu olhar percorria meu corpo nu e, por
um instante, a ausência de desconforto me confundiu. Mas então entendi:
era assim que se sentir mulher devia ser. Nunca havia imaginado.
Nós nos tocamos e nos beijamos com mãos amorosas e coração aberto,
e tive razão ao pensar que nunca vivi nada parecido antes. Foi algo
generoso e gentil, e foi tudo. Tudo o que eu nunca conheci.
Queria tocar em cada parte dele, conhecer seu corpo do modo como
passei a conhecer seu coração. Explorar um homem pela primeira vez
porque eu queria, manter os olhos abertos e a mente concentrada no
momento porque não havia nenhum outro lugar em que eu gostaria de
estar. Queria mesmo sentir prazer, conhecer a excitação de me entregar
totalmente à pessoa com quem eu estava.
Comecei pelos pés dele, e Gabriel riu de leve quando passei as mãos
pelos dedos, subindo pelas panturrilhas. Também sorri, mas não porque ele
riu, mas porque eu nunca soube que o riso e a alegria podiam acompanhar
o sexo. Tudo era novo e maravilhoso, e eu sentia uma espécie de
reverência selvagem ante a descoberta da minha paixão. Eu também podia
sentir isso. Nunca havia imaginado. Puxa, nunca antes.
O riso do Gabriel se transformou em gemido quando fui subindo pelas
coxas, massageando os músculos, observando seu rosto para me certificar
de que ele estava bem com o meu toque, vendo-o inchar e endurecer e
sentindo, em reação, um jorro úmido entre minhas coxas.
Fui subindo, deslizando as mãos sobre a solidez do seu peito, ao longo
dos ombros largos, tracejando com um dedo o contorno do abdome rijo até
ele sugar o ar e levar os lábios aos meus.
Gabriel me virou e deslizou as mãos pela minha pele como se eu fosse
um tesouro que ele acabara de descobrir – aquelas lindas mãos de artista
que tinham o poder de trazer à tona a beleza interna. E era assim que eu
me sentia: bela, adorada, amada.
Ele me beijou e tocou cada pedacinho meu, e fiquei com a sensação de
que ele estava me consertando enquanto eu o consertava. Nos exploramos
pelo que pareceram horas, até eu estar suada e desesperada, e o olhar meio
sofrido dele me revelou que se sentia do mesmo modo.
Quando ele se pressionou para dentro do meu corpo, nós dois arfamos,
nossos olhos se encontraram na luz fraca do quarto, e ali estava a mesma
sensação de conexão que tanto me aterrorizara, só que agora multiplicada
por mil.
Tentei me focar no rosto dele, na beleza da sua concentração, no modo
como seus olhos se fecharam e os cílios formaram arcos escuros acima das
bochechas, no modo como os lábios se entreabriam de prazer. Tentei
observá-lo enquanto ele se movia, primeiro devagar, encontrando o ritmo,
e depois acelerando, mas o meu prazer crescente era tão grande que me
perdi enquanto ele me assolava e me cobria, fazendo com que eu gritasse
seu nome uma vez depois da outra. Agarrei o lençol e pressionei a cabeça
contra o travesseiro.
– Sim, Eloise – eu o ouvi dizer. – Assim. – Logo antes de ele gemer e
estremecer, despencando sobre mim, com a respiração entrecortada junto
ao meu pescoço e um leve latejar onde ainda estávamos unidos.
Mais tarde, ainda deitada nos braços dele, com seus dedos descendo
langorosamente pelo meu braço, quis gargalhar de alegria. Estava certa:
cada parte do seu corpo parecia ter sido feita exatamente para o meu.
Posteriormente, enquanto eu olhava para o teto, ouvindo a respiração do
Gabriel se aprofundar, percebi que ele me dera exatamente o que dissera
que daria. Sua respiração junto ao meu pescoço era como um vento
tranquilizador; seu sorriso, a luz do sol; seu toque, mil arcos-íris dançando
sobre minha pele, e o amei tanto que pensei que meu coração poderia
explodir.
CAPÍTULO VINTE
GABRIEL
ELLIE
ELLIE
GABRIEL
ELLIE
Não fiz muita coisa além de chorar naqueles primeiros dias. Entrar no
meu apartamento me pareceu surreal – como se aquele espaço tivesse
existido em outra vida. Sob alguns aspectos, acho que era bem isso
mesmo.
O sofrimento de deixar o Gabriel foi tão agudo que chegou a ser uma
dor física; senti como se meu corpo e minha alma estivessem presos
debaixo de uma rocha pesada. Tudo me doía, a pele e os ossos, e até o
fundo da minha alma. Eu sabia, em meu coração, que fiz o que era certo
para nós dois, mas isso não queria dizer que não fosse agonizante.
Tive medo e senti-me tão incrivelmente sozinha; imaginei que acabaria
afundando. Mas eu soubera, sentada junto à janela do quarto do Gabriel à
noite, ouvindo o barulho suave da sua respiração, que, se eu afundasse,
teria de fazer isso sozinha. Não era justo para nenhum de nós eu me
esconder atrás dele – tanto física quanto emocionalmente – em vez de
enfrentar o mundo.
Eu tinha de libertá-lo para escolher Chloe, caso ela fosse a mulher
destinada a ficar com ele, se as coisas tivessem tomado outro rumo.
Visualizei-os juntos de novo, como estiveram no Festival de Outono de
Morlea – o quanto estavam bonitos e alegres –, e soube instintivamente
que lhes negar a oportunidade de uma vida como aquela seria egoísmo. Eu
o amava, de corpo e alma, e me preocupava com a sua felicidade acima da
minha. Mesmo assim, visualizá-lo amando-a era como ter uma faca afiada
cravada nas minhas partes mais sensíveis; imaginar as mãos dele se
movendo pelo corpo dela como se moveram pelo meu, vê-los casados,
com lindas criancinhas de cabelos castanhos. Cerrei os olhos contra essa
imagem, afastando-a. Não me faria bem algum ficar pensando nessas
coisas.
Eu ligara para a minha senhoria assim que cheguei, para lhe agradecer
por ter sido tão paciente comigo e dizer que já tinha o dinheiro do aluguel
atrasado e que estava postando o cheque para saldar a dívida. Eu só
recebera três semanas pelo meu trabalho no escritório da pedreira, e
precisava me certificar de ter o bastante para tirar o carro da oficina e
fazer compras de supermercado até conseguir encontrar outro emprego.
Com o pensamento imerso nas contas a pagar e na procura por um
emprego, uma onda renovada de medo e de solidão me assolou, mas eu
estava determinada a resolver a questão. Eu tinha de fazer isso,
simplesmente tinha. Se Gabriel me ensinara alguma coisa foi que a vida
não precisava ser repleta de sofrimento e de incerteza o tempo inteiro.
Havia algo merecedor de amor em mim; Gabriel também me mostrara
isso. Eu só precisava descobrir o que era e, quem sabe – ah, Deus –, quem
sabe encontrar um modo de me amar.
Minha vida inteira passara sob meus pés, e eu não soube a que me
agarrar, em que me segurar para não cair. Não sabia como me aprumar. E
então me apeguei à única coisa sólida em minha vida: Gabriel. Tornara-me
emocionalmente dependente dele de uma maneira que eu não considerava
saudável para nenhum de nós. Cada coisinha me fazia duvidar e sofrer, e
eu sentia mil inseguranças que talvez nem fossem reais. Perdi a
capacidade de discernir e, em meu coração, entendi que o meu tipo
desesperado de amor sufocante acabaria se tornando uma prisão para o
Gabriel. Eu o amava demais para sujeitá-lo a uma segunda prisão
perpétua. Ele já passara por uma sentença semelhante. Deixá-lo foi a coisa
mais difícil que já fiz, mas foi a mais certa. Eu sabia que era certo.
Então, depois de alguns dias, nos quais me permiti afundar na tristeza,
levantei e limpei o apartamento, esfregando cada cantinho e abrindo as
janelas por um tempo para arejá-lo com o ar frio do outono.
Liguei para a oficina onde estava o meu carro e disse ao rapaz que
atendeu o telefone que iria até lá para buscá-lo. Calcei os tênis e vesti uma
jaqueta para caminhar os cinco quilômetros de distância. Eu acordara com
torcicolo, e o desconforto foi piorando à medida que eu andava. Minha
perna doía um pouco, e minhas passadas foram ficando cada vez mais
lentas, mas, apesar das minhas dores, foi ótimo me exercitar, e o ar fresco
fez maravilhas aos meus pulmões.
Ricky estava na recepção quando entrei na oficina, e o cheiro de café e
de óleo automotivo me golpeou, e o ar quente do interior logo me aqueceu.
Ricky sorriu para mim com alegria.
– Ora, ora, veja quem apareceu. Você está ótima.
Retribuí o sorriso enquanto Ricky dava a volta no balcão para me
abraçar.
– Oi, Ricky. Muito obrigada por abrigar o meu carro. E desculpe por ter
demorado tanto para vir buscá-lo.
Ele sacudiu a cabeça e voltou para trás do balcão, procurando numa
gaveta até encontrar uma chave com o meu nome escrito numa etiqueta
grande. Ele a deu para mim por cima da bancada.
– Quando contei para o meu pai que você estava vindo, ele me disse que
não cobrasse de você. Disse que você já passou por coisa demais.
Pisquei de surpresa.
– Obrigada. Eu, uau… Eu não poderia…
– Você pode. E, sério, cai fora daqui logo, antes que o sovina do meu pai
mude de ideia. – Ele riu, e uma onda de calor invadiu meu peito. Levei a
mão ao coração, como se conseguisse sentir o calor que emanava de dentro
dele.
– Obrigada, Ricky. Não tenho como dizer o quanto isso significa para
mim. Eu… Poderia agradecer ao seu pai por mim, também?
– Pode deixar. O seu carro está no estacionamento de trás. Vê se se
cuida, está bem?
Assenti, fazendo um esforço tremendo para conter as lágrimas.
– Vou fazer isso – falei com sinceridade. Ou, pelo menos, eu daria o
meu melhor ao tentar.
Assim que entrei no carro, virei a chave na ignição e ouvi o motor ligar
com facilidade. Recostei a cabeça no banco, grata por isso. O dinheiro que
o Ricky e seu pai me pouparam significava muito para mim naquele
momento.
Ao passar pelo centro da cidade a caminho de casa, vi uma propaganda
anunciando um desconto de dez dólares no serviço de pedicure numa
esmalteria a que eu ia à vezes, quando dispunha de um dinheirinho extra.
Aquela era uma pequena extravagância a que eu me dava o direito de vez
em quando. Claro que eu não tinha dinheiro sobrando agora, mas mesmo
assim estacionei numa vaga do outro lado da rua, girando o meu pescoço
duro por sobre os ombros. Deus, sentar naquela cadeira de massagem
enquanto meus pés ficavam submersos em água quente parecia tão bom;
encarei a vitrine da esmalteria com anseio, como se estivesse atravessando
o deserto e o estabelecimento fosse um oásis verdejante.
Eu não deveria gastar vinte e cinco dólares em algo desnecessário; no
entanto, pensei que gastaria duzentos e cinquenta no carro, e agora esse
dinheiro estava no meu bolso. Por certo Ricky e seu pai não se
importariam se eu gastasse uma pequena porção dele em uma hora de
mimos. Só isso e nada mais.
Atravessei a rua e entrei no salão cheio. Lien Mai me saudou do seu
lugar, à mesa de pedicure, onde usava uma lixa elétrica nas unhas acrílicas
de uma senhora.
– Faz tempo, Crystal. Precisa de uma pedicure?
– Olá, Lien. Sim, mas parece que você está ocupada.
– Não, não. Desmarcaram. Senta, senta. – Ela apontou para uma cadeira
massageadora grande ao fim de uma fileira. Ah, o paraíso. Fui até ela, e
uma moça pequenina de cabelos pretos e muito lisos sorriu educadamente
e começou a encher a cuba com água quente e sabão. Sentei-me e liguei a
massagem, suspirando ao me acomodar e submergir os pés na água.
– Que cor? – a moça perguntou, referindo-se ao esmalte.
Fechei os olhos.
– Tanto faz. Pode escolher.
Ela riu, alegre.
– Tá precisando disso, né?
Sorri sem abrir os olhos.
– Nem me fale.
Quando ela esfregou um creme esfoliante nos pés e nas panturrilhas,
uma dor se elevou forte demais no meu peito, e quase arquejei. Visualizei
as mãos lindas do Gabriel se movendo pela minha pele e, por um segundo,
a dor da saudade foi tão intensa que eu não sabia o que fazer em seguida.
Concentrei-me na minha respiração e, depois de alguns minutos, o pior
passou, e achei que conseguiria seguir em frente.
Fiquei ouvindo as conversas do salão enquanto meus músculos
relaxavam na cadeira massageadora. O telefone tocava incessantemente e,
algumas vezes, alguém atendia, mas parecia que a maioria das ligações
não era atendida.
– Vocês não têm ninguém para atender ao telefone? – perguntei à moça
no banquinho à minha frente.
Ela balançou a cabeça.
– Não. Lien quer contratar alguém, mas é muito ocupada.
Um farfalhar de excitação me percorreu.
– Tenho experiência nisso.
Ela olhou para mim.
– Mesmo? – Virou-se para Lien. – Lien, ela quer emprego para atender
telefone.
Lien estava se despedindo da mulher diante dela e as duas se
levantaram; Lien, com certo esforço. Quando a mesa deixou de esconder
seu corpo, notei que ela estava grávida. Meus olhos se arregalaram.
– Verdade? Quer emprego, Crystal? – Ela veio andando até a minha
cadeira e parou perto de mim, com a mão na cintura.
– Sim, eu adoraria ter um emprego. E tenho experiência atendendo
telefonemas. Recentemente trabalhei numa pedreira em Morlea. Posso lhe
dar referências.
– Hum. Bom. Volta amanhã para teste.
Senti a preocupação dentro de mim, mas sorri e concordei. Eu poderia
fazer isso. Eu poderia tentar. Senti que essa oportunidade havia me caído
no colo, quase como se fosse algo predestinado.
Quando Lien se afastou de novo, sussurrei para a moça:
– Em que mês ela está?
– Ela ainda tem oito semanas.
Refreei um arquejo. Puxa vida. O corpo pequenino dela não tinha como
ficar maior do que estava agora.
No dia seguinte, quando cheguei ao salão, estava nervosa, mas, depois
de uma ou duas horas, consegui dominar o sistema de telefonia e já
anotava recados e marcava horários como se estivesse ali houvesse meses.
O salão era bem movimentado e constantemente havia pessoas entrando
sem hora marcada, mas dei conta do recado.
Conforme o dia foi passando, eu me sentia mais realizada e, quando
Lien se aproximou do balcão, lá pelas três da tarde, ela me disse que fosse
ao escritório, nos fundos, para assinar o contrato de trabalho. Fiquei tonta
de felicidade, e o primeiro pensamento que cruzou minha mente foi “tenho
que ligar para o Gabriel para contar a novidade”. Mas a realidade logo
voltou, fazendo com que eu estremecesse de leve e fechasse os olhos de
tristeza. Dei uma passada no banheiro para me recuperar antes de ir para a
sala dos fundos que servia como escritório para a Lien.
– Lien, tenho que contar uma coisa antes de assinar a documentação.
– O quê?
– Bem, meu nome não é Crystal. É Eloise. Ellie, como apelido.
Ela me observou por um momento, depois assentiu.
– É bom. Você fica melhor como Ellie.
Uma risada curta borbulhou na minha garganta. Deus, como eu queria
que fosse assim. Queria de verdade.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
ELLIE
Querida Ellie,
Espero que esteja passando o Natal de uma maneira que traga paz ao
seu coração. Sentimos sua falta por aqui. Chloe veio para o Natal e vai
passar duas semanas conosco – ela também sente saudades. Penso muito
em você, pequena Ellie, e espero que esteja bem.
Com amor,
George
GABRIEL
Mergulhe fundo.
Gambit, o Duque dos Ladrões
GABRIEL
ELLIE
Mia Sheridan é uma autora listada entre os mais vendidos do New York
Times, do USA Today e do Wall Street Journal. Sua paixão é tecer histórias
de amor a respeito de pessoas destinadas a ficar juntas. Mia mora em
Cincinnati, no Estado de Ohio, com seu marido. Eles têm quatro filhos
aqui na terra e uma no céu.
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