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Profissional

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2.4. Da Filosofia Profissional para Subdesenvolvidos.

A distinção entre a filosofia acadêmica e as outras correntes talvez possa induzir em erro
no que diz respeito ao seu carácter institucional. Todas as correntes nascem e estão situadas,
sobretudo na universidade, à exceção talvez do pensamento filosófico político e nacionalista que
surge em parte, mas também não exclusivo, na práxis do confronto político, sendo, porém,
também os seus representantes intelectuais com formação acadêmica ocidental.

A quarta definição da filósofa brasileira Marilena Chauí (2013) sobre filosofia consiste
em descrevê-la como uma fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. Sob
esta perspectiva, fundamentar significa ‘encontrar, definir e estabelecer racionalmente princípios,
causas e condições que determinam a existência, a forma e os comportamentos de alguma coisa,
bem como as leis e as regras de suas mudanças’. A fundamentação crítica significa, portanto,
‘examinar, avaliar e julgar racionalmente os princípios, as causas e condições de alguma coisa’.
Como fundamentação teórica e crítica, a filosofia ocupa-se com os princípios, causas e condições
do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos
valores éticos, políticos, religiosos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das
formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com os princípios, causas e
condições das transformações históricas dos conceitos, das ideias, dos valores e das práticas
humanas.

A correspondência que esta investigação estabelece nesse caso é com o quarto estágio da
filosofia africana denominada de filosofia africana profissional. Seus compromissos,
procedimentos e objetivos guardam forte ligação e é evidente a semelhança entre as duas
concepções. A filosofia acadêmica ou também filosofia profissional, entende a filosofia como
uma área do saber humano que se caracteriza por um caminho particular de pensar, refletir e
raciocinar, dentro de uma orientação geral.

A Filosofia profissional se fundamenta na perspectiva europeia de pensar, refletir e


raciocinar, uma vez que tal forma pode ser considerada relativamente nova na maioria da África.
Esse entendimento seria a resposta mais comum da maioria dos filósofos ocidentais. A filosofia

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africana tende a crescer cada vez mais em termos de volume e qualidade de trabalhos filosóficos
e em formas de sua aplicação na realidade africana.

Em relação à África, não é tarefa fácil traçar um perfil dessa filosofia acadêmica moderna
devido à dificuldade de comunicação. Assistimos ainda na fase da época colonial à
institucionalização da etnofilosofia e teologia africanista como pensamento filosófico em
algumas universidades sob influência da Igreja católica. Encontramos a filosofia analítica em
universidades da área colonial britânica, a filosofia de origem francesa na respectiva área
colonial e uma filosofia com forte influência da Igreja católica e da teologia nas áreas de
colonização portuguesa ou, parafraseando as palavras iniciais de Fanon, as bandeiras filosóficas
das nações colonizadoras marcam presença nas poucas universidades que o poder colonial
institui.

O pós-independência, com o boom de construção de universidades como símbolo de


afirmação nacional (vide tb. Mudimbe 1988; Depelchin 2005), traz uma multiplicidade de
tendências teóricas, conforme fora o percurso independentista e, ou o alinhamento do país. O
destaque talvez vá para a chegada da influência do marxismo, embora com a manutenção das
filiações anteriores e uma forte tendência etnofilosófica que exerça alguma influência na corrente
do afrocentrismo. Encontramos assim a corrente do “universalismo” com representantes como
Towa, Bodunrin, Lalèye, Sodipo, a “hermenêutica” de Okere, Ntumba, Serequeberhan, o
“esteticismo” de Ngal e Bidima, o “diopianismo” de Obenga, Bilolo, Olela, o “autenticismo” de
Gyékyè, o “feminismo criticista” de Eboh, Oluwele, Boni, Ngoyi, Mangena, Abdel-Wahhab e
Thiam (vide Mabe 2005, p. 277/278). Ao longo dos anos 80, com a entrada de intelectuais
africanos nos cursos relativamente recentes dos “African Studies” (Martin 2007) nas
universidades dos EUA ou do Canadá, também o pós-modernismo passa a ter alguma difusão em
África (Mudimbe 1988, Wamba-dia-Wamba 2003).

Durante o período em que Mobutu esteve no poder, presenciamos uma forte implantação
das tendências etnofilosófica e afrocêntrica no Congo-Zaire, onde a igreja católica conta com
uma presença institucional significativa, também a nível acadêmico. Desenvolve-se aqui uma
escola afrocêntrica significativa, enfrentando alguma crítica pelo setor católico e uma forte

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contestação marxista a partir do exílio. Mudimbe (1988) é o intelectual congolês no exterior
provavelmente mais conhecido da corrente pós-modernista nos EUA.

Nas colônias portuguesas, concretamente em Angola e Moçambique, as tentativas de


construção de um sistema acadêmico sofrem grandes reveses. Em Moçambique regista-se uma
concentração, sobretudo nas ciências naturais (Gómez 1999), em detrimento de outras disciplinas
que possam constituir uma fonte de reflexão crítica. O catolicismo exerce uma forte influência
acadêmica, à semelhança do que se regista no próprio país colonizador.

O pós-independência com as suas convulsões de guerra, não obstante, traz para


Moçambique um avanço contínuo na instituição de um sistema universitário nacional, com
alguma influência de academias ocidentais; inglesas, italianas, dos países nórdicos europeus e do
Bloco de Leste, mas também da Tanzânia, do Zimbábue e, mais tarde, da África do Sul. Na
universidade, sobretudo na sua fase inicial, a filosofia está presente pelo marxismo como
resultado do desenvolvimento histórico e político do país. Entretanto entram também outros
conteúdos e orientações africanos. A principal Universidade Eduardo Mondlane não oferece o
curso de filosofia, ao contrário da sua concorrente católica, a Universidade São Tomás. Na Itália,
a Universidade Gregoriana prepara, à semelhança do tempo colonial, os seus discípulos
moçambicanos em teologia e filosofia, como, por exemplo, Ngoenha (1993). Como filósofos
devem ser mencionados ainda Castiano e Macamo.

No período da colonização, a educação em Angola era organizada por níveis. E estes


priorizavam o conhecimento eurocêntrico e a submissão ao colonizador. Era dividido em dois
grupos: a dos colonizadores europeus, os "civilizados" e o outro aos nativos africanos. Foi a
partir desta separação que surgiu a desigualdade entre "as cores" (brancos, mestiços e pretos). O
preconceito e a discriminação na área educacional mostra a força do colonizador, que é refletido
ainda hoje.

A liberdade educacional em Angola aconteceu junto à independência do país, uma luta


contra o colonizador. Quando surge o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) que
luta pela independência da Nação Angola, começando assim, a modificar a ideologia de toda
uma sociedade segregada.

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Então, nota-se que a separação do antigo modelo colonial de universidade, onde o
preconceito e a discriminação ditavam as regras em relação ao povo de Angola, foi modificado
para uma educação onde são preservados e respeitados os valores nacionais para que assim, a
formação acadêmica possa de fato vir a corroborar com o crescimento e desenvolvimento social
deste país.

Por outro lado, percebe-se um esforço conjunto para a superação das dificuldades
deixadas pelo período da colonização. A partir da sistemática metodológica educacional
"herdada na tradição centralista da administração colonial portuguesa", desenvolvendo-se um
ensino voltado ao catolicismo. Por causa desta imigração, criou-se uma ideologia política
portuguesa, havendo um tratamento educacional diferençado aos povos nativos, levando-os ao
esquecimento. Neste processo, os costumes e tradições alusivos ao conceito de construção de
comunidade, tendo como base suas origens, eram substituídos por um modelo conceitual
característico da comunidade a qual estava integrada, a portuguesa.

Relacionado a essas bases ideológicas, "a dimensão cultural do ensino passava pela
desnaturalização do indígena, negando-lhe os seus próprios valores culturais, o seu saber, e
cerceando, pela raiz, o desenvolvimento natural do seu saber-fazer, considerado selvagem". A
partir desta desnaturalização cultural do indígena - Africanos Angolanos - as práticas
educacionais nesta década eram totalmente voltadas à memorização dos conteúdos, tornando-se
dificultoso para os Africanos a construção de um conhecimento positivo, como forma de
reafirmar a sua inferioridade.

A história do estabelecimento da educação ocidental em angola percorreu cinco períodos


distintos ate chegarmos à situação atual. A primeira fase foi quando houve o processo inicial da
colonização, onde os jesuítas tiveram um papel de destaque, inserindo obrigatoriamente o
cristianismo aos angolanos. Assim, os angolanos eram considerados povos bárbaros e sem alma,
os africanos foram submetidos a um longo período de doutrinamento católico, que foi de 1575 a
1975. Denominados bárbaros devido a diferenças representadas pelas línguas nativas e culturas
tradicionais que não estava de acordo com a doutrina cristã e com os padrões ditados pela Igreja
católica e assim já inicialmente posicionados em um condição inferiorizada em relação à
civilização ocidental.

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A segunda fase, a Pombalina (1759 - 1792), surge após o iluminismo europeu, onde o
Marquês de Pombal, inspirado por novas ideias burguesas, trouxe a construção de diversas
fábricas a Portugal, "expulsando os jesuítas e abolindo a escravatura em Portugal". E assim,
"libertando" os primitivos escravos africanos. Fato que só ocorreu em pleno século XX. A
designação de primitivos parece que durará bem mais e a sua única função é de invalidar
completamente qualquer aspecto da identidade africana e do conhecimento que possa existir em
suas comunidades e anular a possibilidade de autonomia africana.

O terceiro período foi o Junino (1792 - 1845). Neste Angola se consolidava como
colônia, com o grande aumento do comércio de escravos com o Brasil e Portugal. Com a vinda
da família real ao Brasil, o país foi invadido pela França e posteriormente pelos holandeses e foi
exatamente neste período em "que floresceu, no seio da grande massa de escravos angolanos, a
consciência da necessidade de uma melhor organização nacional para a luta de libertação".

A quarta etapa deste processo foi a chamada Educação Falcão e Rebelo da Silva (1845 -
1926), caracterizada pela criação de alguns centros escolares no país; seguida pela quinta fase, a
Salazarista (1926 - 1961), conhecido como Estado Novo. Neste período, a visão de Salazar em
relação aos povos angolanos era de uma população escrava e que deveria continuar desta
maneira como uma massa de subdesenvolvidos, considerando assim as colônias portuguesas da
África como um complemento natural da agricultura metropolitana. O subdesenvolvimento
como qualificação inerente às nações africanas estabeleceu-se dessa maneira como uma condição
imposta pelo colonialismo europeu de forma a perpetuar todas as formas de dependência,
principalmente a subordinação intelectual das colônias africanas ao raciocínio eurocentrista
ocidental.

Sendo assim, a partir desta década (1930), o ensino direcionado aos indígenas em
Angola, seguia um modelo educacional, divididos em classes e idades. Entre outras modalidades
de ensino, havia um Ensino Profissional, apresentando um modelo europeu, baseado em modo
que viesse a permitir ao discente a prosseguir os seus estudos até ao ensino superior. Como foi o
caso de Boaventura Cardoso, autor estudado nessa investigação.

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Posteriormente, em função das exigências da exploração capitalista e para justificar a
ocupação efetiva das colônias, por pressão da Comunidade das Nações, o regime passou a
fomentar o capital humano como "semelhantes", considerados estatutariamente como
"colonizador".

Dessa forma, percebemos o quanto a colônia portuguesa deteve a comunidade angolana,


reforçando assim, a desumanidade desses povos nativos. Partindo deste pressuposto, no século
XX, surgiram fortes organizações com propostas reivindicadoras, que pretendiam mudanças nas
reformas coloniais, entre essas reivindicações está à proposta Educacional Do Movimento De
Libertação Popular De Angola (MPLA).

Nesse contexto, a formação universitária angolana surgida pós 1962, numa concepção de
formação de profissionais que viessem a atender as necessidades mais imediatas da população,
principalmente a portuguesa. Assim, as políticas educacionais, nesse contexto histórico,
voltavam-se apenas para o bem estar dessa elite que monopolizava os direcionamentos
econômicos desse país.

A propósito, a Educação Superior em Angola, em seu período mais crítico (1975-1979)


configurou-se como um momento que houve uma grande evasão de seu quadro docente e
discente. Podendo ser citado como causas a mudança de um quadro político elitista da educação
colonial para um modelo de uma concepção de educação independente, com a centralização da
economia de gerência governamental e muitos outros motivos.

É válido ressaltar que na contemporaneidade, o ensino superior público em Angola é


formado por uma única instituição, a Universidade Agostinho Neto, que concentra as principais
faculdades na capital de Angola; e os institutos superiores sediados nas províncias de Lubango,
Huambo, Benguela e Uíge. É muito pouco para que Angola torne-se uma nação na linha do
desenvolvimento científico e sócio-econômico. Relata-se neste o papel expressivo de António
Agostinho Neto, combatente, líder do MPLA, e primeiro presidente negro de Angola e a justa
homenagem ao batizar a universidade com seu nome.

Compreender os processos educativos simplesmente com a intenção do ensinar o que foi


produzido pela sociedade é não possibilitar que a educação faça seu verdadeiro papel. O

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pensamento estagnado de que a independência dos países africanos e obviamente Angola faz
parte deste contexto, é a única e possível forma da África crescer. Porém, também são os
Movimentos Sociais, seja de vertente política, educacional, cultural ou econômica que vem
agregar à liberdade e assim, fazer parte da reconstrução dessas nações. Logo, com o passar dos
séculos, percebeu-se que os acordos, quaisquer que sejam com outros países, seriam uma "troca
simbólica" de diversos conhecimentos, para que finalmente a comunidade internacional comece
a reconhecer de fato e de direito, respeitando-os e não mais interferindo, principalmente na
política, nesses países afamados como antidemocráticos. O emprego do termo visa a permitir e
institucionalizar a influência e a intervenção neocolonialista nas nações africanas, impondo um
padrão ocidentalista de orientação política sobre qualquer variação nacionalista que venha a
surgir ou invalidar qualquer crítica à centralização do poder por parte das elites africanas ou
segmento da sociedade seja profissional, étnico, religioso ou cultural.

Deste modo, podemos ressaltar que a educação é, assim, o resultado da consciência viva
duma norma, que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de
uma profissão, quer se trate dum agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado. A
educação faz parte de qualquer sociedade, e seu papel é desenvolver a mão de obra qualificada,
assim como inserir e preservar os valores culturais de um povo.

Todavia, precisamos compreender que o desenvolvimento, o seu processo educativo, e a


política educacional vem objetivando um país democrático, justo e de paz. Dentro desta linha, a
formação para a construção do meio social digno e de respeito pelo Ser, não acontece somente
pela técnica, pelo fechado, mas que tenha uma transformação política, cultural e filosófica,
indissolúvel na prática escolar e na perspectiva educacional.

A propósito, a construção do processo educativo em Angola, ainda é um grande desafio


para a sua sociedade, pois, existem muitas barreiras a serem quebradas, inclusive a de seus
problemas sociais. Dentro desta perspectiva, percebemos que é um grande desejo almejado por
muitos, porém, ainda é difícil chegar ao nível superior em um país como Angola por todos os
seus problemas sociais e econômicos.

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Dessa forma, é de fato importante reanalisar dentro do contexto social angolano as
políticas educacionais para o nível superior, e que estas visem à justiça e uma cultura de paz para
o país.

Por certo, sabemos que as Universidades são locais em que a produção acadêmica é
importantíssima. E é através desta que podemos conhecer variados estudos e poder visionar a
produção de outros países porque o conhecimento científico - acadêmico de instituições de
pesquisas podem ajudar em projetos que visam o desenvolvimento social e econômico dos países
em desenvolvimento, ou em países subdesenvolvidos, como é o caso de Angola.

Portanto, é importante ressaltar que este processo educacional volta-se para a


preocupação em construir uma educação superior autônoma na perspectiva de formar um corpo
técnico intelectual na construção de uma nova Angola independente e soberana. Este, por fim,
deve tratar das dificuldades encontradas na sociedade angolana de libertar-se dos grilhões do
período colonial ainda bastante arraigado nas elites, procurando superar as diversas
precariedades do sistema educacional ainda vigente no país.

Os nomes na Filosofia Profissional angolana são Pedro Miguel, Kakimoto Simon,


Malungo Belo, Domingos da Cruz, Jaka Jamba, Miguel Bondo, Padre Ibana e Muanamosi
Matumona ambos de notada influência católica.

Angola foi eleita em 2013, membro do Comitê que vai trabalhar para a criação do
Conselho Africano das Sociedades de Filosofia durante o 23º Congresso Mundial de Filosofia,
que decorreu de 4 a 10 de Agosto, em Atenas, Grécia. O Comitê, presidido pelo filósofo
beninense Paulin Houtoudji, coadjuvado por cinco representantes da África do Sul, Angola,
Argélia e Etiópia vai além de trabalhar no sentido da criação do Conselho, impulsionar a
pesquisa e divulgação da produção filosófica ao nível do continente africano.

O filósofo angolano Malungo Belo, representou o país no Congresso que teve como tema
central “A Filosofia enquanto questionamento e modo de vida”. O Conselho Africano das
Sociedades de Filosofia é um projeto pensado há algumas décadas, mas que nunca havia chegado
a ser concretizado, segundo Belo. Ele também afirma que o momento de se dar corpo a essa
estrutura é chegado. Os membros do comitê já começaram a trabalhar na criação de um website

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para divulgar os seus projetos, produzir legislação específica e mobilizar outros países africanos
para a concretização da iniciativa. O comitê vai trabalhar com o Conselho Mundial de Filosofia
para criar e estruturar esse órgão importantíssimo que vai defender os interesses de África no
domínio da filosofia. Malungo Belo acrescenta que a eleição de Angola para o referido Comité é
um passo dado no sentido de integrar o futuro Conselho e desta forma fazer passar a sua visão
sobre a filosofia em África. O filósofo angolano considera a África, através do Egito antigo,
como o berço da filosofia, enquanto a Grécia apenas a sistematizou. O historiador congolês
Teophille Obenga escreveu um livro importante sobre a filosofia africana na época faraônica
onde demonstrou as origens da filosofia indiscutivelmente africanas.

A filosofia africana atual debate a influência ocidental no pensamento africano e vice-


versa, o possível contributo da filosofia para o desenvolvimento africano, a relação entre a
questão da desconstrução do conceito pós-colonial de África e a orientação da modernização
africana com as suas implicações no sistema econômico, ecológico, político, social e
educacional. As filósofas africanas também assumem um destaque cada vez maior no debate
filosófico no espaço público do seu continente.

No nosso trabalho, Hountondji e Wiredu representam diferenças do pensamento


filosófico acadêmico, para além também do seu enraizamento nas e do relacionamento
intelectual real com as suas respectivas culturas de origem. Houtondji vem do marxismo
acadêmico francês, Wiredu, em contrapartida, da filosofia analítica inglesa, proveniências
acadêmicas e culturais essas que também se traduzem nos modos de referenciar as suas origens
culturais.

Paulin Jidenu Hountondji é considerado o ‘Decano’ da filosofia acadêmica moderna em


África por muitos intelectuais africanos - sobretudo por aqueles radicados em países europeus e
americanos -, constituindo o seu trabalho um indiscutível ponto de referência.

As suas publicações principais mostram o percurso de um acadêmico modernista sob a


influência do marxismo acadêmico para um pensador africano moderadamente nacionalista, com
uma posição consciente e crítica relativa ao papel dos elementos culturais históricos no

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desenvolvimento africano atual. Ultimamente concentra-se no pensamento científico endógeno
africano.

Hountondji publica o seu primeiro livro em 1977 em francês, com o título “Sur la
philosophie africaine: Critique de l’ethnophilosophie”. Como o próprio título indica, trata-se
duma crítica às características da etnofilosofia que, na altura, se encontra presente em ou
subjacente a todas as correntes filosóficas em África. Para Mudimbe (1988, p.158), o livro é “a
Bíblia de todos os anti-etnofilósofos”. Ele publica ainda, como coordenador, dois volumes
bibliográficos sobre a “Philosophical Research in Africa” (1987/1988), virando-se depois para
questões epistemológicas dos saberes africanos em “Les savoirs endogènes: pistes pour une
recherche” (1994). Em 1997 traça, em forma de um auto-retrato explicativo e crítico, o seu
caminho pessoal cultural, filosófico e político em “Combats pour le sens” (1997) Hountondji
publica também diversos artigos em revistas africanas e ocidentais de especialidade ou nas áreas
de cultura ou educação.

Hountondji define como filosofia africana: “(...) uma totalidade de textos, ou mais exato,
essa totalidade de textos compostos por africanos e que os próprios autores definem como
filosóficos.” (1977: p. 21). Por conseguinte, os seus elementos constitutivos configuram-se para
Hountondji; 1º: na intenção consciente de, 2º: escrever um texto de carácter filosófico, 3º: cujo
autor é de origem ou da diáspora africana.

Neste ponto de vista formal, qualquer que seja o conteúdo de um texto intencionalmente
filosófico e escrito por um africano, no passado ou no presente, será assim entendido como parte
integral de uma filosofia africana (1977: p.22). No entanto, o fato de ser um africano a escrever
um texto filosófico, acrescenta apenas um aspecto de carácter geográfico ou empírico relativo à
origem desse autor, pelo que pensa que a sua “(...) [a] nova definição destrói a construção
mitológica dominante de africanidade e coloca em seu lugar a simples verdade de que a África é,
antes de mais nada, um continente (...).“(1977: p.69)

O autor alega que uma suposta africanidade não acrescenta nenhum dado metafísico ao
debate filosófico. Será necessária a desconstrução do conceito mítico de África como um sistema
de valores eterno, único, simplificado, indiferenciado e generalizante que, em princípio, retoma a

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invenção colonial do primitivismo africano. Apenas assim os africanos conseguiriam sair do
beco culturalista sem êxito para onde o discurso colonial os conduziu.

O filósofo Marcien Towa observa pertinentemente;

Filosofia africana é o exercício, pelos africanos de um tipo específico de


atividade intelectual (o exame crítico dos problemas fundamentais) aplicado à
realidade africana. O tipo de atividade intelectual em questão é, como tal, nem
africano, europeu, grego, nem alemão; é a filosofia em geral. O que é africano
são os homens de carne e ossos que existem e que evocam os problemas de
suprema importância e sobre os quais estes mesmos problemas são aplicáveis
imediatamente. (TOWA, 1991, p.195)

Por conseguinte, Hountondji argumenta que, numa perspectiva de conteúdo, não se pode
falar de uma filosofia de características africanas. Segundo ele, existe apenas um discurso
filosófico que entende que deve ser científico. Considera que

(...) [que] a nossa filosofia reside principalmente no processo da própria análise.


Por conseguinte, trata-se de um discurso em que temos de reconhecer o caráter
ideológico. Depende então de nós de o libertar – no sentido altamente político do
termo -, a fim de nós nos equiparmos com um discurso verdadeiramente teórico
que será indissociavelmente filosófico e científico. (1977: p.22)

O caráter de filosofia consiste no seu procedimento analítico embora este esteja


condicionado pelos seus elementos ideológicos constituintes que, por sua vez, assentam nos
pressupostos sociais e culturais. Daí que Hountondji enalteça uma ideia de filosofia científica
como forma de libertação da ideologia de si própria, construindo a teoria como uma unidade
entre filosofia e ciência. Seguindo Althusser, Hountondji situa a filosofia próxima das ciências
da natureza e da literatura científica, provavelmente para salientar o seu caráter exato. Ao longo
dos artigos, sublinha um caráter teórico da filosofia que tem o seu objeto definido e segue as suas
próprias regras.

Demarca-a de uma concepção popular e espontânea que tome por filosofia cada elemento
de sabedoria, individual ou coletiva, de qualquer pensamento coerente com princípios que
tencionam orientar a vida cotidiana de um povo. Hountondji encontra essa concepção subjacente
à literatura filosófica africana (1977: p.44,45). Ao mesmo tempo opõe-se ao seu carácter
metafísico e especulativo que, na sua perspectiva, nada de científico tem, nem apresenta provas
pelas suas asserções (1977: p.98).

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Uma verdadeira filosofia africana pode existir apenas enquanto forma específica de uma
literatura científica universal, contudo, Hountondji é omisso sobre o seu objeto particular e
também não oferece nenhuma justificação substancial sobre essa omissão dentro da sua
perspectiva filosófica.

Para ele, a história, também da filosofia, não passa por um processo de desenvolvimento
contínuo e linear em que os novos elementos apenas se juntam aos já existentes, seguindo a
lógica metafísica do sempre igual, da existência de uma disposição natural. A filosofia sucede
por saltos qualitativos a que correspondem níveis descontínuos e diferentes dos modos e
conteúdos do pensamento filosófico.

É nos eventos linguísticos que uma verdadeira ciência se manifesta: “Nenhuma ciência,
nenhum ramo de aprendizagem consegue manifestar-se a não ser como um evento linguístico, ou
melhor, como um produto de discussão” (1977: p.71).

A verdadeira filosofia africana surge neste processo, não no sentido de uma substância
uniformizada, mas como afirmação plural. A liberdade de opinião constitui um elemento chave
para a construção da filosofia em África.

Hountondji argumenta ainda que a filosofia é, por definição, uma forma de literatura, de
escrita. A sua ideia de textualidade pressupõe, na verdade, a escrita alfabética o que, nos anos
70/80, significa o uso de uma língua europeia, mesmo que tenha como característica de ser ou ter
sido língua de opressão colonial. Contudo, a literatura apresenta essa mudança de representação
do africano do simples selvagem para um ser educável para o trabalho sob a tutela europeia
como prova da modernidade, da capacidade inovadora europeia ou como uma aptidão
especificamente portuguesa de adaptação aos trópicos, como nos tenta convencer a teoria do
luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1940).

Seguindo as regras europeias, os etnofilósofos constroem, a partir de elementos culturais


da comunicação oral, uma filosofia africana que se manifesta implicitamente, entre outros, nas
fábulas, contos, provérbios, lendas, mitos, provérbios e narrativas dinásticas. Hountondji (1994)
classifica o resultado desse trabalho como cosmologia, poesia ou de “belles-lettres”, mas não
como filosofia. Ele refuta a mumificação do pensamento africano que vê a sua única tarefa atual

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na reconstrução do passado, na criação de uma história de filosofia africana. Considera esta
insistência no passado como um prolongamento do discurso colonial do eterno atraso do
africano, a continuação da escravatura mental passadista e a não-admissão do direito a um
pensamento livre.

Hountondji critica a concentração e limitação dos filósofos africanos à investigação


exclusiva dos respectivos sistemas de pensamento locais ou regionais, satisfazendo deste modo –
à semelhança de Tempels - o exotismo de um público ocidental. Assevera que o próprio público
africano não se interessa pelas suas culturas e que, em vez disso, prefere ocupar-se com ideias
vindas de extramuros como forma de entrar num diálogo com o mundo (1994: p.53).

Os seus argumentos de crítica aos etnofilósofos evidenciam, porém, uma grande


preocupação com a atuação e a influência ideológica da igreja colonial no processo
independentista africano, com a sua capacidade ensaiada ainda no período colonial de
reaproximação às populações africanas com uma representação e um discurso renovados, não
obstante, a sua colagem ao respectivo poder. Hountondji constrói a sua ideia de etnofilosofia
com fundamento nesses laços a que apresenta a filosofia acadêmica como boia de ‘salvação’
iluminada.

Nessa altura, também não penetra de fundo nos conteúdos do próprio pensamento
histórico e atual africano que ele próprio deposita, de forma generalizante, no seu grande saco de
etnofilosofia. Wamba-dia-Wamba (1985), no estudo sobre o “palaver”, mostra a sua importância
e o dogmatismo acadêmico elitista de Hountondji. Hountondji sublinha a necessidade de que a
filosofia se torna ciência através da sua libertação da ideologia. Invocando os escritos de Karl
Marx, por volta de 1845, rejeita a filosofia como parte da ideologia a favor da criação de uma
relação científica com a realidade no sentido das ciências empíricas (HOUNTONDJI 1993,
p.106-107). Argumenta que existe uma ligação intrínseca entre as ciências e a filosofia pelo que,
em África, a criação das ciências condiciona a existência da filosofia.

Bertrand Russell, no texto de A Filosofia Entre a Religião e a Ciência (1935), define a


filosofia como algo - uma ponte onde transitam encontros e desencontros - entre a religião e a

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ciência. Essa definição, da qual nos apropriaremos neste trabalho, traz elementos importantes
para entendermos o papel dos filósofos dentro de uma sociedade. As palavras do filósofo são:

A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a


ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o
conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela
mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da
revelação. Todo conhecimento definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e
todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à
teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta
aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia.
(RUSSELL, 1935, pg.1).

E de acordo com a observação em artigo de Pedro Lucas Dulce:

Segundo Bertrand Russell, as questões da vida e do mundo que nós chamamos de


“filosóficas” são produtos de duas naturezas: (1) dos fatores religiosos e éticos
herdados de nossa cultura e (2) da investigação chamada “científica”. Mesmo que
haja divergências entre os filósofos, para Russell a filosofia se caracteriza pela
presença, em certo grau, de ambos. Sendo assim, sua proposta é que a filosofia
sirva de ponte entre a religião e a ciência. (DULCE, 2010; pg.1)

Bertrand Russsell ainda confirma a natureza inexata da filosofia amparada por duas bases
distintas; uma religiosa e a outra científica:

Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em


que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que,
em certo grau, caracteriza a filosofia. (RUSSELL, 1935, pg.1).

Para a sua constituição como ciência, será primordial a presença generalizada da escrita
enquanto contributo para a criação sistemática de uma prática acadêmica (1994: p.112). Uma
verdadeira filosofia africana, caracterizada pela especificidade dos seus temas, poderá existir
apenas como literatura em forma de um texto escrito. A literatura escrita encontra-se no centro
da abordagem epistemológica da filosofia em Hountondji.

No entanto, no seu esforço de mostrar o papel da escrita como fundamental para o


desenvolvimento científico da filosofia em África, ele não consegue iludir o impacto cultural da
comunicação oral ao longo da história e na atualidade da vida e do pensamento africanos.
Hountondji admite a acumulação e a transmissão milenares de um fundo enorme de
conhecimentos e técnicas que, desde a África pré-colonial até aos nossos tempos, garante a
subsistência de uma grande parte da população africana na cidade e no campo. Mas conclui daí

44
que seja necessário proceder à documentação, avaliação e sistematização dos saberes que, por si
só, não conseguem chegar ao ponto onde se encontra o saber moderno ocidental. Reconhece-o
como a tarefa talvez mais urgente para a filosofia africana na atualidade “(...) a transcrição
sistemática dos discursos dos nossos velhos, sábios e eruditos que ainda estão vivos” (1994:
p.37).

Um procedimento muito semelhante à prática que podemos encontrar entre os


acadêmicos que trabalham com a orientação da sagacidade filosófica. Esta tarefa consistia em
uma das preocupações centrais do trabalho de queniano Henry Odera Oruka.

Etnofilósofos tentam mostrar que a Filosofia Africana é distinta reiterando fortemente a


"Africana" e quase perdendo a "Filosofia". Seus principais rivais, os filósofos profissionais,
adotam a visão de que a filosofia é uma forma particular de pensar, refletir, raciocinar, que tal
maneira para a maioria da África é relativamente recente, e que a Filosofia Africana deve evoluir
em condições de produção filosófica realizada por africanos e aplicando-se, talvez não
exclusivamente, às preocupações africanas. Assim, ao enfatizarem fortemente a "Filosofia"
correm o risco de perder a "Africana"; esse risco, no entanto, não é de forma nenhuma inevitável,
e muitos filósofos africanos têm conseguido evitá-lo com sucesso, incluindo Kwame Anthony
Appiah, Kwame Gyekye, Kwasi Wiredu, Oshita O. Oshita, Lansana Keita, Peter Bodunrin e
Chukwudum B. Okolo.

De qualquer modo, uma coisa é certa, seja o que for que a expressão “Filosofia Africana”
designe hoje, certamente inclui o debate prolongado e muitas vezes passional das últimas três
décadas sobre o que é “Filosofia Africana”. Como diz o autor de um livro de “leituras
essenciais” todas elas tratando deste tema.

A filosofia africana profissional é predominantemente uma metafilosofia. Seu


tema central é a questão ‘o que é filosofia?’, [e seu] corolário... ‘o que é filosofia
africana?’ (ORUKA, 1991; pg.48)

Sartre afirma que o “oprimido pela técnica, quer-se técnico, porque sabe que a técnica
será seu instrumento de libertação” (SARTRE, 1965, pg. 96). Para o filósofo francês, o caminho

45
da libertação exige o reconhecimento da consciência: o reconhecimento de si, não como parte,
mas como um todo.

O pensamento em África vive uma espécie de interregno antropotécnico. Interregno é


oriundo do latim interregnum (entre reinados), é o termo que indica o intervalo temporal entre
dois reinados ou monarcas. Genericamente, serve para fazer menção a qualquer interrupção na
continuidade de poderes, governos, organizações, dinastias e ordens sociais.

Trata-se, no presente caso, de um intervalo histórico único e paradoxal que separa duas
épocas distintas da humanidade, dois “reinados”, mas também, duas lógicas igualmente díspares,
em termos de valores e simbolismos a serem cultuados ou rejeitados socialmente. De fato, havia
uma maneira que regia forçosamente a percepção e compreensão africanas do mundo e de si
mesmo até então, que compreendia o âmbito do natural, divino, misterioso, que existe por si, que
emerge espontaneamente, que se originaria na mãe natureza ou, segundo os crentes, em Deus
(“reinado” decadente, que se perde); por outro lado, o tecnológico, humano, mundano, que é
produzido intencional e artificialmente por nós, seres humanos, por meio de nossas técnicas e
tecnologias ancestrais (“reinado” ascendente, que se conquista).

Essa asserção metafórica de interregno antropotécnico dualista entre natural e artificial,


mítico e tecnológico, sagrado e instrumentalizável, interdito e profanável, reverência e
intrusividade, respeito e subjugação, mostra-se bastante condizente com a própria realidade
africana, já que podemos constatar uma significativa transformação na maneira dos africanos
perceberem a natureza que os gerou e contêm. Nesse sentido a sagacidade filosófica representa o
interregno entre a etnofilosofia e a filosofia profissional africana e uma dimensão indispensável
para a comunicação e transição entre os dois planos e suas constituições conjuntamente com a
filosofia ideológico-nacionalista e a filosofia literário-artística que de acordo com King (2006) e
com a presente investigação podem ser vistas como casos especiais de sagacidade filosófica. É
nessa área que alojamos a narrativa de Mãe Materno Mar de Boaventura Cardoso ao
relacionarmos a sua obra literária e seu projeto político a estas duas orientações filosóficas
africanas.

46
O método de sagacidade filosófica na filosofia sagacidade Philosophic Africano é uma das
abordagens da filosofia Africano. Ele foi desenvolvido como um projeto para alguns fins, e mais tarde
evoluiu como um intermediário entre os dois dominante, embora abordagens antagônicas à filosofia
Africano - os métodos de etnofilosofia e filosofia profissional (Oruka 1990, 65). Por um lado, ele
procurou contestar a implicação negativa de etnofilosofia (o que é que há a existência de filosofia
Africano sem figuras filosóficas africanos identificáveis). Por outro lado, procurou-se afirmar que os
sábios indígenas satisfazem as características necessárias de filosofia como identificado por defensores
da escola profissional ou universalista em filosofia Africano.

No que diz respeito a esta distinção, Oruka afirma: Sage-Filosofia no meu uso consiste nos
pensamentos expressos por homens sábios e mulheres em qualquer comunidade ... Sage-Filosofia é
uma maneira de pensar e de explicar o mundo que oscila entre a sabedoria popular ( bem conhecido
máximas comunais, aforismos e verdades gerais do senso comum) e sabedoria didática, uma sabedoria
e expôs um pensamento racionalizado de algumas pessoas que têm dentro de uma comunidade.
Enquanto a sabedoria popular é frequentemente conformista a sabedoria didáctica é, por vezes crítica
do comunal set-up e a sabedoria popular (Oruka 1990, 51).

Em resposta ao debate sobre a existência de filosofia Africano, o filósofo queniano tarde, H.


Oruka, identificou seis abordagens para a resposta para o que a filosofia Africano é ou poderia ser, ou
seja, etno-filosofia, sagacidade filosófica, ideológica nacionalista- filosofia, filosofia profissional, filosofia
hermenêutica e da filosofia artística ou literária (Oruka 1998, 101). Essas abordagens têm sido
invariavelmente referido como tendências em filosofia Africano (Oruka 1997, 182), escolas de
pensamento Africano / Filosofia (Oruka 1987, 55), ou correntes de filosofia Africano (Outlaw 1987, 24).
No entanto, Oruka claramente delineada apenas o primeiro de quatro dessas abordagens.

No plano da filosofia acadêmica, Wamba-dia-Wamba entra numa disputa cerrada com


Paulin Houndontji, inventor e crítico do termo etnofilosofia e proclamado decano da
modernidade filosófica em África. Mostrando o adversário como vacilante nas posições relativas
ao complexo cultural-histórico e político africano, as críticas incidem sobre três aspectos teóricos
fundamentais de Houndontji. Nomeadamente o seu academicismo ocidentalizado nas questões
da individualidade do filosofar em um ato intelectual considerado autônomo, negando assim o
pensamento na sua relação com a situação cultural e social, especificamente o pensar comunal
africano, o que implica a desresponsabilização do intelectual face ao social concreto. Na ênfase

47
do rigor do pensamento como um método sem enquadramento concreto, nem finalidade, o rigor
pelo rigor; da escrita como condição do pensamento crítico, como forma de restringir o
pensamento a um modo comunicacional único como prolongamento da sua posição de que os
“africanos são indiferentes à reflexão1” (1979: p.237), que perpetua a afirmação senghoriana
segundo a qual o pensamento seria uma característica helênica: aos africanos resta assim apenas
a emoção.

Wamba-dia-Wamba considera que Houndontji presta um péssimo serviço ao


desenvolvimento do pensamento a favor da África, cortando-o das suas raízes históricas e sócio-
culturais particulares (WAMBA-DIA-WAMBA 1979, 1985, 2003) e substituindo-o por uma
lógica acadêmica meramente formal. Na sua crítica das afirmações de Houndontji, Wamba-dia-
Wamba coloca a questão: “Quem deve liberar a criatividade teórica do nosso povo?2”
(WAMBA-DIA-WAMBA 1979, p. 237).

Na sua própria resposta, o autor mostra como o sistema capitalista-colonial muda o


caráter do trabalho em África através da introdução da divisão social e consequente
especialização, pela criação de trabalhos de caráter manual e intelectual, colocando o segundo
tipo de trabalho funcionalmente, hierarquicamente e em termos de valorização material e
simbólica acima do primeiro. Por conseguinte, o trabalhador manual, o camponês africano, o
trabalhador rural nas roças, os soldadores mecânicos dos Caminhos-de-Ferro, os vendedores
ambulantes, o operário nas pequenas indústrias, a camada de administrativos nos baixos escalões
do comércio e da função pública, as mulheres nos campos, na limpeza, as criadas, as quitandeiras
no mercado, as crianças e os jovens – todos ficam estilhaçados comunitariamente e privados de
desenvolver, individualmente e em conjunto, as suas capacidades intelectuais e teóricas. Ficam
submersos num espaço enorme de saberes em relação ao qual o poder neocolonial reserva um
profundo silêncio na sua esfera pública e a que os próprios africanos respondem com o silêncio
emudecedor.

Contudo, os seus conhecimentos, as suas teorias, os modos e métodos de desenvolver o


seu sentir e pensar, experimentados, refletidos e validados ao longo da história, despertam a
cobiça intelectual acadêmica. Passam a constituir a base de teorização do intelectual
1
“africains [sont] indifferents à la réflexion.”
2
Qui doit libérer la créativité théorique de nos peuples?

48
neocolonializado na respectiva disciplina acadêmica de antropologia ou, mais tarde, em estudos
de área africanos, atualmente também na linguística, sociologia, história, cultura etc., mas,
sobretudo em biologia, farmacêutica, como forma de “bio-pirataria”. Sobretudo na fase atual,
que o mainstream acadêmico designa por pós-colonial, assistimos a uma autêntica caça aos
saberes indígenas - africanos e de outras partes do mundo -, em nome de um direito universal ao
saber (vide Smith 1999; Depelchin 2005; Bala & Joseph 2007) que, por sua vez, é
regulamentado pelos direitos intelectuais - do autor ocidental ou ocidentalizado.

O seu saber, porém, é fragmentado e, por conseguinte, separado do seu verdadeiro


significado social e cultural. A interpretação acadêmica segue conceitualizações padronizadas
ocidentais. Os históricos instrumentos para apurar a verdade tornam-se o domínio do poder
acadêmico ocidental. Um racionalismo multi-facetado constitui a norma do saber admitido. O
conhecimento vira-se então contra os que, na verdade, estão no início desse processo de
produção intelectual.

Sob essas condições, ser inteligente, razoável, racional, civilizado... é para ser
permeável à lógica e à racionalidade inscritos nessas estruturas. As massas
estruturalmente marginalizadas são desse modo declaradas imbecis, ignorantes,
surdo-mudas, etc...3 (WAMBA-DIA-WAMBA 1979, p.241).

Wamba-dia-Wamba questiona a história filosófica na academia africana que não tem em


consideração o saber desenvolvido pelo debate africano ao longo da história, orientando-se
apenas ao modelo exclusivista da academia ocidental.

A Ciência parece ter sido adotada como sendo essencialmente ocidental. O


conhecimento científico tradicional, os fractais africanos, por exemplo, não
foram apreendido pela filosofia africana. Esta é uma das razões por que a
filosofia tende a ser uma projeção no espelho ocidental4 (WAMBA-DIA-
WAMBA 2003, p.3).

É importante notar que, à medida que o tempo foi passando, o mais ferrenho crítico da
etnofilosofia, Paulin Hountondji, modificou sua posição. Ele refletiu sobre o debate que foi
iniciado por sua crítica à etnofilosofia e disse em 2002 que sua rejeição anterior do pensamento
3
“Dans ces conditions, être intelligent, raisonnable, rationnel, civilisé... c’ést être perméable à la logique et à la rationalité
inscrites dans ces structures. Les masses structurellement marginalisées sont de ce fait même déclarées imbéciles, ignorantes,
sourdes-muettes, etc...”
4
“Science seems to have been assumed to be essentially Western. Traditional scientific knowledge, African fractals for example,
has not been seized by African philosophy. This is one reason why philosophy has tended to be a projection on the Western
mirror.”

49
coletivo foi excessiva. Ele explicou que a cultura coletiva deve ser levada a sério, e que a
individualidade é formada a partir de uma personalidade básica, que tem raízes. Enquanto ele
concordou que o pensamento individual deve ser visto no contexto cultural, ele observou que ele
não deve ficar preso lá. Raízes não devem se tornar uma "prisão" (HOUNTONDJI, 2002; 128,
151-52, 204-05).

Além disso, uma das maiores queixas de Hountondji sobre os etnofilósofos como
Tempels era que eles eram estrangeiros, ou se não estrangeiros, pelo menos, eles estavam
escrevendo para um público estrangeiro, respondendo aos debates e critérios criados no exterior.
Hountondji chamou isso de "extroversão", e queria em vez disso ter a Filosofia Africana sendo
escrito por africanos e respondendo aos interesses e necessidades dos africanos (HOUNTONDJI,
1997). Certamente, a trajetória dos interesses de Oruka nos sábios africanos mostrou que ao
longo do tempo, a questão de provar algo para os estrangeiros diminuiu em importância, de
modo que a questão de como a filosofia dos sábios e sua reflexão poderiam ajudar a África
assumiu o centro do palco (OCHIENG'-ODHIAMBO 2006, pg.21, 2002, pg.29, e 2009, pg.78).

Em 1931, Kwasi Wiredu nasce em Kumasi, então sob o domínio colonial britânico em
Gana. Ele é originário e membro da sociedade Akan. Durante a sua frequência do ensino
secundário, confronta-se com Platão e Russell. Diferente da maioria dos restantes pensadores que
apresentamos neste trabalho, Wiredu restringe-se ao exercício da sua atividade acadêmica, se
incluir aqui também a sua função de vice-presidente do “Inter-African Council for Philosophy”.

Nas suas obras principais, “Philosophy and an African culture” (1980), “Person and
community” (1992, com Gyékyè), “Cultural universals and particulars” (1996) e “A companion
to African philosophy” (2003), Wiredu aborda comparativamente, na perspectiva da filosofia
analítica, questões sobre conceitos e categorias filosóficos africanos, tendo a sua própria cultura
Akan como base de abordagem e de questionamento conceitual crítico. Debruça-se sobre o
relacionamento entre conceitos filosóficos universais e particulares, o caráter da comunicação
intercultural, sobre a personalidade africana e a religião, além da questão política do consenso
democrático como possível forma de governação africana. Defende a necessidade de
descolonizar conceitualmente a filosofia africana.

50
A experiência contemporânea da filosofia em África é constituída por uma característica
pouco comum: o continente está exposto a uma interação entre um legado cultural indígena
africano e culturas de caráter colonial com origem no estrangeiro. Também a filosofia moderna
africana se encontra amarrada, de forma dupla, por uma dependência conceitual do Ocidente que,
por outro lado, também tem a sua expressão em relação ao pensamento africano antigo e na sua
representação filosófica colonial.

Durante a história colonial, a descrição dos pensamentos e das culturas africanos pelos
viajantes, militares, missionários e antropólogos europeus sucede nas suas línguas e conforme os
seus paradigmas ocidentais, passando depois para a linguagem e o pensamento africanos no
processo de missionação e sobretudo de educação na língua colonizadora (Wiredu 1998). Daí
que os intérpretes da filosofia moderna africana pensem habitualmente as suas conceitualizações
em línguas não africanas.

(...) Se você é instruído em filosofia em uma determinada língua estrangeira, esta


linguagem tende a se tornar não só o seu meio de expressão, mas também o seu
meio de pensamento. Consequentemente, as categorias de pensamento embutidas
estão adequadas a lhe parecerem naturais e inevitáveis.5 (WIREDU 2007, p.75).

Assim a também autoimposição conceitual na perspectiva filosófica da língua estrangeira


ao próprio pensamento torna-se quase inevitável. No entanto, esse modo de pensar passa a ser
problemático no momento em que o “instruído” (WIREDU 1996) africano começa a refletir os
conceitos na sua própria língua materna. Aqui vai sentir de imediato que os conceitos europeus
não se adequam ao pensamento africano, às suas estruturas de raciocínio.

O pensamento filosófico relativo ao e o próprio pensamento antigo africano engolem


esses conceitos filosóficos e religiosos ocidentais que, por sua vez, são reproduzidos por
pensadores africanos ou da diáspora: utilizam a língua colonizadora e conceitualizações coloniais
na sua análise, afirmando o produto final do seu pensamento como um pensar originariamente
africano. Mas o lastro filosófico tradicional que é tido como oposição natural, imediata e visível
ao colonial, como a aceitação acrítica da sobreposição de categorias e valores estrangeiros pelo

5
“[I]f you are instructed in philosophy in a given foreign language, that language tends to become not only your
medium of expression, but also your medium of thought. Consequently, the categories of thought embedded are apt
to seem to you natural and inescapable.”

51
próprio filósofo, acabam por ter o seu efeito na repetição da lógica colonizadora que conduz a
uma mentalidade colonial (WIREDU 1996, p.4; MASOLO 2006).

Kwasi Wiredu foi um dos primeiros filósofos africanos a explorar este campo de
mudança de crenças religiosas aonde Boaventura Cardoso conduz o seu comboio de Mãe,
Materno Mar. Na verdade, ele insistiu que a mudança tinha que vir para a África tradicional,
porque ele sentia que algumas idéias antigas eram prejudiciais. Por exemplo, ele delineou três
principais obstáculos à regeneração cultural africana: anacronismo, o autoritarismo, e
supernaturalismo. Mas ele também insistiu que a África tinha pessoas muito sábias e filosóficas,
de quem se pode aprender muito, especialmente se nós prestarmos atenção nas nuances dos
significados dos conceitos em línguas africanas (WIREDU, 1980).

Daí que Wiredu deduza a necessidade de investigar as línguas africanas num processo de
avaliação cultural, cruzando os conceitos do pensamento africano e europeu no nível da
linguagem. Trata-se de desmantelar as conceitualizações impostas ou assimiladas sob a
influência colonial como passo para proceder à avaliação intercultural das ideias filosóficas,
independente do conteúdo concreto das respectivas línguas (KRESSE 2000b, § 27). A
descolonização do pensamento africano torna-se uma questão central: “Por descolonização,
quero dizer desinvestir o pensamento filosófico Africano de todas as influências indevidas que
emanam do nosso passado colonial6” (WIREDU, 1998).

Sendo essa dualidade estranha ao pensamento Akan. A sua existência terminológica


deve-se à missionação protestante no Gana (vide MASOLO 2006).

Wiredu não apresenta a ideia de descolonização como modo de fazer tábula rasa de todo
o pensamento existente em relação à África, mas pretende integrar no espólio filosófico tudo que
seja benéfico para o desenvolvimento do pensamento africano como pensamento humano.
Pretende criar uma atitude crítica relativa às categorias filosóficas ocidentais, mas também
questionar as construções ultrapassadas do pensamento africano antigo. Ele mostra a necessidade
do aproveitamento universal das virtudes do pensamento africano, concretamente o conceito de
“Ser em comunidade”, segundo o qual nenhum indivíduo se consegue desenvolver por si só ou
em isolamento dos outros. Este conceito não questiona apenas a posição filosófica kantiana do
6
“By decolonization, I mean divesting African philosophical thinking of all undue influences emanating from our colonial past.”

52
desenvolvimento autônomo do indivíduo, como também constitui uma esperança para o
relacionamento humano no mundo.

Mas Wiredu reivindica também a necessidade da modernização do pensamento para que


a África consiga adaptar-se às mudanças do mundo atual, sobretudo no que diz respeito ao papel
das ciências e da tecnologia. Vê a sua imprescindibilidade para acompanhar a evolução no
restante mundo, condição essa para que as ideias filosóficas africanas se possam afirmar
universalmente como síntese entre o antigo, válido e descolonizado e o moderno, africano ou
não, mas sem cunho neocolonial.

O filósofo ganês mostra-se como um defensor tenaz do universalismo, não obstante,


muitos dos seus próprios resultados de análise concretos apontarem no seu sentido oposto. O
próprio Wiredu, aliás, introduz essa ambiguidade em relação aos ‘universalismos ocidentais’,
quando diz que “Na maioria das vezes, os alegados universais têm sido elementos particulares de
fabricação própria” (Wiredu 1996, p.8). Pela sua constituição regrada, a linguagem é o sistema
que possibilita a criatividade conceitual da pessoa, como também a sua inteligibilidade e
articulação. É também a linguagem que relaciona os estímulos externos aos processos cerebrais
no ato da transferência do conteúdo de pensamento de uma pessoa para a outra.

Para ele, são os universais de cultura que permitem o diálogo intercultural como condição
essencial para o entendimento entre os diversos grupos humanos. O universal humano mostra-se
na presença comum das capacidades intelectuais constituintes de percepção reflexiva, de
abstração e inferência que, por sua vez, reencontramos como competências linguísticas
fundamentais constituindo as raízes da compreensibilidade entre as diversas línguas.

Wiredu salienta a existência de filósofos indígenas africanos que ainda pouco sofreram a
influência de ideias filosóficas de origem estrangeira. Relata a sua capacidade individual de se
pronunciar de forma profunda e pormenorizada sobre problemas filosóficos no contexto do
pensamento africano antigo, contudo, indo para além do seu limite descritivo: “Apenas a
narração não é boa o suficiente, nós temos que interpretar. Tentar a interpretação é que é
efetivamente se tornar conceitual7” (WIREDU apud KRESSE 2000b, p.18).

7
“Just narrating is not good enough, we have to interpret. Trying to interpret is actually getting conceptual.”

53
Tsenay Serequeberhan salienta uma concepção filosófica extremamente pertinente neste
ponto:
Para um corpus de pensamento ser legitimamente associado com determinada
raça, povo, região ou nação é sufiente que seja, ou deva tornar-se, uma tradição
viva naquele lugar. É indiferente se desenvolvida localmente ou tomada
emprestada inteiramente ou parcialmente de outros povos.
SEREQUEBERETAN, 1991 pg.106)

Os filósofos africanos acrescentam as suas ideias originais, críticas e inovadoras em


resultado do seu raciocínio sistemático pessoal o que, por sua vez, é classificado, por exemplo,
entre os Yoruba, em “conhecimento” ou “crença”, como nos mostram Hallen & Wiredu (s.d., p.
12-18), havendo uma exclusão rígida entre um e o outro.

Apoiando-se na conceitualização de Oruka sobre a Sage-Philosophy, ele aborda as fontes


vivas do pensamento africano, ‘as fontes das fontes’, os próprios criadores do saber como os
pensadores filósofos indígenas, mas também as filosofias elaboradas comunalmente.

À semelhança dos outros filósofos acadêmicos, Wiredu reconhece a existência de uma


diferença entre o pensamento filosófico popular e o pensamento individual de um filósofo.
Apresenta ainda a linguagem como uma fonte suplementar do saber filosófico africano. Todavia,
reconhece, a nível sintático e lexical das línguas africanas, a incorporação de conceitos oriundos
da descrição literária e interpretação ocidentais. “(...) estes antecedentes na literatura
estabeleceram paradigmas que (...) permanecem operantes até hoje8” (WIREDU 1996, p.118).
Encontram-se hoje naturalizados e operacionais como elementos essenciais na linguagem dos
próprios pensadores africanos.

Wiredu argumenta que é importante distinguir entre crenças populares e visões de mundo
que podem ser encontrados inerentemente e são distintivas em todas as culturas e filosofias. Ele
é, portanto, opositor das abordagens da Etnofilosofia e da Sagacidade Filosófica para a Filosofia
Africana; tal “filosofia popular”, como ele denomina, pode formar parte de uma filosofia genuína
- de fato, ele disse sobre seu próprio trabalho que era “devedor ao pensamento dos metafísicos
anônimos que legaram à cultura Akan enigmas cosmológicos na linguagem dos tambores”
WIREDU, 2004, p.204) -, mas apenas com a adição de argumentação rigorosa e análise crítica
essa própria filosofia se estabelecerá firmemente posicionada no campo da filosofia profissional.
8
“[T]hese antecedents in the literature established paradigms which (...) remain operative to this day.”

54
Ele mesmo é um dos maiores e mais talentosos realizadores nesse campo da moderna filosofia
africana através do desenvolvimento científico do pensamento oriundo da sua filosofia
tradicional Akan.

Este processo foi registrado por Peter J. King em seu livro Filósofos: Um Guia dos 100
Pensadores Mais Importantes do Mundo:

De acordo com seu entendimento da natureza da filosofia, a metodologia de


Wiredu envolve a aplicação de métodos de análise e argumentação na rica fonte
linguística e cultural de seu próprio povo (Os Akan), em áreas como verdade e
direitos humanos, o resultado é totalmente filosófico, e de interesse para qualquer
filósofo proveniente de qualquer herança cultural; ao mesmo tempo, contudo, ela
é centralmente e essencialmente africana (KING, 2006, p.173).

Ligar Boaventura e wiredu

A figura do ancião, desde o início dos relatos das primeiras civilizações, é muito controversa e
discutida. No mundo ocidental, o senso comum das principais culturas muitas vezes discordava dos
ensinamentos das filosóficas clássicas sobre as contribuições da velhice para a sociedade. O estudo das
reais condições trazidas pelo avanço da idade gerou diversas discussões éticas sobre as percepções
biossociais dos processos de mudança do corpo. Médicos, biólogos, psicólogos e antropólogos ainda
hoje não conseguem obter consenso sobre esse fenômeno em suas respectivas áreas.

Muitas culturas ocidentais descrevem o estereótipo do jovem como corajoso, destemido, forte e
indolente. Já a figura do idoso é retratada como um peso morto, um chato em decadência corporal e
mental. Percepção preconceituosa que foi levada ao extremo no século XX pelos portugueses durante a
ditadura de antonio salazar, notório por usar a perseguição aos idosos como bandeira política. Atletas e
artistas cotidianamente debatem o avanço da idade com medo e desgosto, enquanto especialistas da
saúde questionam se há deteriorização ou mudança adaptativa no corpo humano.

Nas culturas africanas e orientais, assim como na maioria das filosofias clássicas, a velhice é vista
de um ângulo positivo, sendo fonte de sabedoria e meta para uma vida guiada com prudência. O sábio
ancião, que personifica a figura do homem calmo, austero, e que muitas vezes é capaz de prever certas
situações e aconselhar, se destaca em relação ao jovem cheio de energia e de hormônios instáveis.
Porém apesar dos filósofos apreciarem o avanço da idade, nem todos eles tinham a mesma opinião
sobre a velhice.

55
O jovem platão tinha como inspiração o velho sócrates. Apesar de ser desfavorecido
materialmente, sócrates possuía muita experiência e uma sabedoria ímpar que marcou a história do
pensamento. Na sociedade ideal desse filósofo, jovens muitas vezes eram retratados como
inconsequentes e ingênuos. Nesta sociedade ideal, crianças e adolescentes não recebiam diretamente o
ensino da Filosofia. Por ser um conhecimento difícil, era somente ensinada para pessoas de idade mais
avançada.

Aristóteles, discípulo do velho platão, não se posicionou muito diferentemente a respeito.


Apesar de não conceber uma sociedade ideal. A idéia de sabedoria baseada na experiência da idade era
defendida. Ele dizia que aos jovens era preferível ensinar Gramática, Retórica e Matemática; já para os
mais velhos deveria se ensinar a ética e a política. Como o centro das virtudes morais é a prudência, só
uma pessoa experiente e “calejada” poderia entender as emoções e o “meio-termo” das virtudes. Afinal
o conceito de velhice não é um fenômeno puramente biológico, mas também fruto de uma construção
social e psicoemocional.

O quadro que nos é aqui apresentado por Hofstede assemelha-se perfeitamente àquele que
está implícito na Sagacidade Filosófica (Filosofia da Sagacidade), uma das correntes da Filosofia Africana,
na proposta de Oruka (1990). É verdade que a Filosofia e a Epistemologia africanas constituem uma área
sobre a qual há ainda pouco consenso (NASSEEN, 1992). No entender de Hountondji (1996), isso se deve
ao fato de se tratar de esferas do plano cultural, sendo que, pela sua natureza, “as tradições culturais
são sempre uma herança complexa, contraditória e heterogénea; um conjunto de opções, algumas das
quais são atualizadas por uma certa geração que, ao adotar uma escolha, sacrifica todas as outras”
(HOUNTONDJI, op. cit, p.161 – tradução do autor).

Apesar disso, a corrente da Sagacidade Filosófica se apresenta como sendo a que melhor pode
ancorar o nosso argumento. Com efeito, esta corrente sustenta que as verdadeiras fontes e agentes do
conhecimento e valores em sociedade africanas sob o peso da tradição são os seus ‘sábios’(sages) e não
toda a comunidade. Os ‘sábios’ são indivíduos cuja sabedoria é vista como transcendendo a da
comunidade, sugerindo-se, inclusive, que eles possuam capacidade inata de reflexão crítica. Sob tal
percepção, os ‘sábios’ são encarados não só como conhecedores reconhecidos mas também como
pensadores eleitos, cujas opiniões e recomendações devem ser (e efectivamente são) tácita e
comummente aceites e respeitadas (Oruka, op. cit.). É caso para dizer que não é por acaso que, mesmo
na atualidade, no continente africano, persiste a prática de nomear os chamados “Comités de Sábios”.

56
Sobre o livro e o comitê de sábios

Tshiamalenga Ntumba nasceu em 1932 no Zaire. Teólogo e Filósofo deixou sua marca na
busca filosófica e teológica na África, especialmente na República Democrática do Congo.
Desenvolveu uma filosofia baseada na categoria de "Nós". A concepção de si mesmo como
membro integrante de um social, de uma comunidade que protege e apoia toda a existência
humana é a condição prévia para qualquer nova percepção humana.

Desde que o filólogo e antropólogo alemão Wilhelm Bleek (1927-1875) cunhou o


conceito “bantu9”, pensando em uma certa unidade linguística de muitas línguas africanas sub-
saharianas, o termo bantu foi tomando cada vez mais proporções. Na África do Sul onde Bleek
esteve trabalhando como filólogo, antropólogo e político, os brancos começaram a chamar os
negros sul-africanos de bantu, de tal maneira que hoje em dia esse termo acabou com algumas
conotações racistas naquele país. Contudo, a nível intelectual, em muitos países se adotou este
conceito, com fins de investigações científicas ou de autoafirmações identitárias de parte dos
africanos da região. Nesta linha podemos situar os trabalhos do padre franciscano belga, Placide
Tempels, que desembocaram em seu multicitado livro “Filosofia Bantu”, publicado em 1945, o
qual abriu, por assim dizer, as investigações em filosofia africana. Outro dado irrefutável na
mesma linha é precisamente a apropriação oficial do “ser bantu”, por conta de alguns governos
de países do espaço linguístico bantu que, em 08 de janeiro de 1983, criaram o “Centro
Internacional das Civilizações Bantu (CICIBA)”, para promover as investigações
interdisciplinares sobre os povos bantu.

Agora na África do Sul, país onde se aplicou muito precocemente e de maneira racista, o
termo bantu, tem sido um dos lugares onde se tem feito distintas investigações afins. Pois em um
ambiente onde os autóctones, em sua maioria bantu, eram discriminados, marginalizados e
estigmatizados pela cor de sua pele, a tal ponto de ser negado a eles sua humanidade (ubuntu);
em um ambiente onde o branco era sinônimo da força (armas), do poder, do bem estar e do belo,
em detrimento do negro; em um país onde “negro era não apenas a ausência de luz na África do
Sul, mas a ausência de identidade”10; obviamente a reação dos nativos sul-africanos deveria ser
diversa: aceitar humilhações do homem branco e todos os valores “brancos”, ou buscar uma
9
http://es.wikipedia.org/wiki/Lenguas_bant%C3%BAes
10
Battle, Michael, Reconciliation. The Ubuntu theology of Desmond Tutu, the Pilgrim Pres, Cleveland, Ohio, 2009, p.2.

57
terceira via que, mutatis mutandis, poderíamos definir com uma analogia ao personagem de
Shakespeare, “Caliban”; aprender os valores e a língua impostos, para logo servir-se deles para
operar uma “transmutação axiológica” (ROIG,1991 pg.51) dos mesmos. Muitas dessas reações
foram articuladas por alguns intelectuais e políticos sul-africanos como Steve Biko, Nelson
Mandela, Masolo, Desmond Tutu, entre outros.

Este último é também, como Mandela, prêmio nobel da paz. Este prêmio foi a apoteose
de sua luta contra o sistema do Apartheid, cujos muros foram derrubados pela abertura daquele
país ao multipartidarismo que levou à eleição de Nelson Mandela, como primeiro presidente
negro, em 1994. Sendo Tutu um bispo anglicano da etnia Xhosa, e conhecendo tão bem tanto a
cultura e a tradição de seu povo como a cultura e tradição dos brancos, tem funcionado como
uma verdadeira dobradiça na luta empreendida por seu povo, e logo na reconciliação de uma
África pós-apartheid. O fato de ser um pastor anglicano africano tem sido determinante na
elaboração de um pensamento arraigado tanto na tradição e cultura africana bantu, como na
tradição cristã anglicana. O conceito chave que tem manejado é o de “Ubuntu”.

Falando deste conceito, o expoente mais cabal do pensamento de Desmond Tutu, Michael
Battle aponta:

Ubuntu é a forma plural da palavra africana Bantu, cunhada por Wilhelm Bleek
para identificar uma ligação linguística similar entre falantes africanos. Ubuntu
significa “humanidade” e é relacionada tanto a umuntu, a qual é uma categoria da
força humana inteligente que inclui espítritos, os mortos humanos, e os vivos,
como a ntu, que é o Ser de Deus como metadinâmico (mais ativo do que
metafísico). Tutu é do povo Xhosa, e seu senso de ubuntu deriva da proverbial
expressão Xhosa “ubuntu ungamuntu ngabanye abantu”, a qual, traduzida
significa “cada humanidade individual é idealmente expressa em relação com
outros” ou “uma pessoa depende de outras pessoas para ser uma pessoa”
(BATTLE, Op.Cit., pg.39)

Havendo uma unidade linguística comprovada entre os povos bantu, poderíamos


encontrar em quase todos estes povos, uma expressão similar. Assim por exemplo, em zulu se
diz: “umuntu ngumuntu ngabantu”; em mashi (língua falada no leste da República Democrática
do Congo) se diz: “O’muntu ajirwa n’owabo” (“a pessoa se faz no outro” ou “a pessoa é feita
pela outra”); em swahili (a primeira língua negroafricana e bantu que tem mais falantes) se diz:
“Mtu ni mtu kati ya watu” (a pessoa é pessoa no meio [ou em relação com] as outras pessoas).

58
Essas expressões ou ditados tem um campo muito amplo de aplicação, já que resume em si um
pensamento e uma prática ética que, nas sociedades africanas, são considerados como a base do
entendimento do ser humano e do humano mesmo. Muitas das traduções que tem sido dadas a
essas máximas são as seguintes “A pessoa é [faz-se] humano através de outras pessoas”, “Eu sou
eu porque nós somos” (Desmond Tutu), “Humanidade pelos outros”, “Uma pessoa é pessoa em
razão das outras pessoas”, “A crença é um enlace universal de compartilhamento que conecta
toda a humanidade”, etc...

Dessas concepções se desprende uma visão comunitária que assenta a comunidade


humana como base do ser, do existir e da realização de todos os seres humanos. Na prática isso
se traduz, por exemplo, na concepção de família na África. Esta não se reduz somente a papai,
mamãe e filhos, mas se estende aos demais membros distantes da família. Com efeito, é muito
comum na África escutar alguém presentear sua prima ou primo como sua irmã ou irmão. Outro
exemplo, é o que nos traz Buatu Batubenge em sua tese de doutorado 11, quando mostra que os
africanos resolvem seus problemas em comunidade, onde todo mundo tem direito à palavra. São
os “intermináveis palavreares” dos africanos. Na era do Multipartidarismo na África (anos 90)
muitos países lançaram mão a essa prática tradicional para buscar o consenso em questões muito
relevantes de seus respectivos países. Foram as famosas “Conferências Nacionais Soberanas
Africanas”. Um último exemplo que bem ilustra essa prática é o que concerne a suposta prática
de escravidão “intra-africana”. Segundo o congolês-brasileiro, Kabengele Munanga 12 e segundo
o brasileiro Eugênio Platão de Carvalho13, na escravidão “africana-africana” ou “intra-africana”
houve um forte sentido comunitário. Pois os cativos de guerras ou as pessoas “empenhadas” por
suas famílias, integravam a comunidade que as recebia, de tal maneira que com o passar do
tempo se convertiam já nos membros completos da dita comunidade. Desse modo, segundo De
Carvalho, o reino do Daomé se fortaleceu muito por todos os cativos de guerras que haviam
integrado completamente a comunidade daomeana. Tudo isso mostra a importância da

11
Buatu, Batubenge, Omer, Elementos historico-culturales en la construccion de la democracia para Africa y su importância
para America Latina. El caso de la Conferencia Nacional Soberana Africana (tesis doctoral en Estudios Latinoamericanos,
FFyL/UNAM, 2003)
12
Munanga, Kabengele, Origens africanas do Brasil contemporâneo. História, línguas, culturas e civilizações, Ed. Global, São
Paulo, 2009, PP. 88-90.
13
De Carvalho, Platão Eugênio, A Conquista da África meridional e o tráfico de escravos para o Brasil, Grupo Editorial
Scortecci, Sao Paolo, 2007, p.86.

59
comunidade nas sociedades africanas. O mesmo que Tempels aponta, na sua “Filosofia Bantu”,
que o pior dos castigos que poderia acontecer a um muntu é ser excluído de sua comunidade14.

Esta visão comunitarista tem sido criticada por vários autores tanto africanos como
estrangeiros, e também tem sido abusada por alguns dirigentes “oportunistas” africanos. A crítica
mais importante consiste em “sacrificar” o indivíduo no aras da comunidade. Como nossas
propostas vão pela linha do pensamento de Tutu, pensamos com ele que se pode contestar a
partir de uma aproximação com a interdependência. Foi desta forma que Tutu transcendeu
algumas aproximações com a filosofia africana que, no seu afã da busca da “originalidade”
africana frente a uma imponente filosofia ocidental, tem ressaltado sobretudo o comunitário em
detrimento do individual. Tutu parte de um horizonte cristão, para respaldar seu pensamento.
Assim aponta Battle:

“Tutu enfatiza a definição cristã de relacionamento, como


oposta a outras formas de comunalismo, para definir ubuntu.
Profundamente influenciado pela espiritualidade Anglicana,
Tutu é capaz de superar a tendência da filosofia africana de ir
ao oposto extremo de monosprezando o indivídual pelo bem
da comunidade. Para ele, o ser propriamente relacionado à
teologia ubuntu não deprecia a individualidade. Ao invés
disso, constrói uma comunidade interdependente.”(BATTLE,
Op.Cit.pg.42).

Para Tutu, pois, a interdependência é primordial entre os seres humanos. Estes se


convertem em pessoas somente vivendo em um ambiente onde há uma interação entre diversas
pessoas e culturas. Isto leva a pensar, segundo Tutu, que se não existe tal ambiente, a pessoa não
pode sobreviver. Esta ideia “ubuntuista” da interdependência consagra um princípio fundamental
a partir do qual se entenderia o que alguns autores tem chamado “ontologia relacional”. Isto é,
um conceito que remete a uma inteligibilidade dos entes a partir da sua relação e não a partir de
sua substância, como havia acertado a metafísica tradicional.

A partir de lugares de enunciação distintos muitos têm conseguido superar a metafísica


tradicional ou substancial-aristotélica, a partir da aproximação da “ontologia relacional”. O
primeiro, Forester15, desde as aproximações da filosofía africana sobre o “Ubuntu”, enfatiza a
14
Tempels, Placide, La Philosophie bantoue, Éditions Africaines, Paris, 1949.
15
O filósofo-teólogo sul-africano Forester A. Dion (obra de referência: Validation of individual consciousness in strong artificial
intelligence: An African Theological contribution [Tesis de doctorado en Teología sistemática], University of South Africa, June
2006).

60
importância da intersubjetividade no processo de definição e apropiação de uma identidade; os
dois últimos, Peter16 e Bárbara17, por seu lado, a partir de um enfoque antropológico-teológico,
trazem alívio ao mistério da Santa Trindade, onde se vive uma feliz interdependência sem a qual
não se pode entender ao Deus de Jesus Cristo, ou o Deus cristão: o Pai não é o Filho, e o Filho
não é o Espírito, como tampouco este é o Pai e nem o Filho; mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo
não são senão o mesmo Deus. Através da encarnação do Deus-Filho, fomos feitos partícipes
dessa divindade, ou em outros termos, fomos incorporados na comunidade trinitária, isto é,
temos recebido o abraço trinitário, ou seja, do Pai, pelo Filho, no Espírito; por tanto, desde então
nossa identidade de filhos e filhas de Deus se definem a partir da relação entre Deus e nós, e
entre nós mesmos.

Em sua tese de doutorado, o filósofo-teólogo sul-africano Forester Dion aborda o ubuntu


a partir do enfoque da ontologia relacional. Frente ao dilema metodológico que tem sempre se
apresentado no momento de estudar as identidades, ele sugere o conceito de ubuntu como o
melhor ponto de partida. Pois, metodologicamente falando, muitos estudiosos das identidades
dos seres humanos têm partido, fenomenologicamente, desde um horizonte objetivista que se
resume no “tu és”, que se entende em termos levinasianos como a exterioridade ou a alteridade; e
a partir de um horizonte subjetivista que se resume na frase “eu sou”, que evocaria as
aproximações heideggerianos da mesmidade. Então, para resolver este problema, Forest pensa
achar no “Umuntu ngumuntu ngabantu”, uma via de saída, uma terceira via, por dizer assim,
para reaproximar a questão das identidades. Sendo um crente cristão, lança mão da antropologia
cristã e da teologia trinitária, e assevera que:

[A] verdadeira identidade é ambos, definida por e descoberta no relacionamento


com outros. A expressão mais nítida desta realidade é encontrada no provérbio
africano Umuntu ngumuntu ngabantu [Uma pessoa é uma pessoa através de
outras pessoas] (Dion, A.Forester, 2006, pg. 218-326.).

Conceitualizando mais sua proposta, Forester formula algumas categorias para entender
melhor o Ubuntu: fala da objetividade, da interobjetividade, da subjetividade e da
intersubjetividade.

16
O teólogo jesuíta alemão Peter Knauer (obra de referência: “Para comprender nuestra fé”, UIA Librería Parroquial, México,
1989).
17
A teóloga mexicano-alemã Bárbara Andrade (obra de referência: “Dios en medio de nosotros”, Secretariado Trinitario,
Salamanca, 1999).

61
Fig.1 (Forester, 2006)

A objetividade e a subjetividade estariam no âmbito individual, enquanto a interobjectividade e a


intersubjetividade ficariam no âmbito comunitário; mas a objetividade e a interobjetividade se
entenderiam pura e simplesmente através da exterioridade, enquanto a subjetividade e a intersubjetividade
seriam inteligíveis através de uma interioridade, mas com uma diferença muito importante: a
subjetividade se entende a partir do que chamaríamos de “mesma mesmidade”, enquanto a
intersubjetividade se faz inteligível através de uma “mesmidade comunitária” ou uma “mesmidade
‘nósica’”, parafraseando Lenkersdorf (2002). Não é nem uma negociação da individualidade, mas ao
invés disso uma forma de sua inteligibilidade intersubjetiva. Isto é o Ubuntu que consagra o princípio da
ontologia relacional, porque o “eu” não se entende, não se faz, não existe, senão através do “nós”. O qual
estaria nos dizendo que o “nós” antecede metafisicamente o “eu”.

As grandes transformações e os avanços tecnológicos que caracterizaram o século XXI


trouxeram em seu bojo muitas vantagens e também grandes ameaças. A sociedade
contemporânea naufraga em um grande mar de desprovidos, de milhões de miseráveis do sul
subdesenvolvido. As injustiças sociais, o desemprego, a violência, a fome, as guerras e os
desastres ecológicos, por exemplo, apontam para uma situação degradante. O planeta inteiro
corre o risco de entrar em colapso.

Inúmeras pesquisas apontam que a doença do século XXI é o stress conjugado à


depressão, e isto ocorre como consequência do enfraquecimento das relações humanas e da
“obrigação diária” estabelecida pelo mercado de as pessoas provarem que são competentes.
Assistimos atualmente a um processo de enrijecimento gradual do individualismo. Os avanços

62
tecnológicos e o crescimento das cidades têm ocasionado o isolamento das pessoas em
detrimento do diálogo com o outro. Podemos caracterizar o homem deste início de século como
um ser isolado, preocupado consigo e longínquo da realidade ao seu redor.

Não queremos, ao apresentar os problemas citados acima, firmar uma acepção pessimista
sobre o homem atual, mas enfatizar como ele vem se distanciando de um princípio relevante para
sua própria realização enquanto ser humano, a relação. O homem atual restringe-se a proferir a
palavra-princípio Eu-Isto, colocando-se diante das coisas em vez de confrontá-las no fluxo da
ação recíproca, preferindo um relacionamento unidirecional entre o Eu (egótico) e um objeto
manipulável (Isto). Buber, contudo, posicionou-se de maneira radical quando ao analisar a
atitude Eu-Isto, para ele assim como para o Ubuntu “aquele que vive somente com Isto não é
homem” (BUBER, 1977:39).

A filosofia hermenêutica caracteriza-se como aquela que faz análises das línguas
africanas em torno da busca de conteúdos filosóficos. Uma filosofia de interpretação do contexto
africano, ou seja, segue um modelo universal, mas parte do intrínseco do ser africano, tornando-o
objeto do seu pensamento, intentando responder o questionamento sobre o ser africano no mundo
e sua ligação com o divino, com o outro e consigo mesmo. Encontramos os trabalhos de Kwame
Gyekye, Sodipo Jo, Maurier, Laleye, Barry Hallen e Tshiamalenga dentro dessa perspectiva.

Como uma arqueóloga das ideias, Séverine Kodjo-Grandvaux explora nos seus trabalhos
as camadas de uma epistomologia que, ao longo do último século, foi construída essencialmente
em reação ao Ocidente. Num primeiro momento, sob o jugo da influência imperialista colonial, e
posteriormente, em uma reação contra esse domínio. Na medida em que os movimentos de
independência se espalhavam pelo continente (nos anos 50), a filosofia de busca do retorno à
“identidade africana” e de afastamento do molde ocidental tornou-se mais forte. Kodjo-
Grandvaux argumenta que tal ideologia de “retorno às origens” é uma proposta arriscada. Ela
escreve: “À medida que a filosofia se encaixa na busca de um padrão ‘regionalista’, isto é,
continental, nacional ou étnico, ela deve evitar várias armadilhas, entre elas, a do pensamento
homogêneo e do isolamento excessivo”. A contribuição da filosofia ocidental e de outras
correntes de pensamento não devem ser rejeitadas. 

63
Kodjo-Grandvaux destaca o debate sobre etnofilosofia, com o qual filósofos africanos
vêm lidando por muito tempo: a ideia de que uma cultura ou região em particular possui uma
filosofia específica, fundamentalmente diferente de outras tendências filosóficas, é em si
controversa. No entanto, muitos filósofos africanos modernos argumentam que o trabalho deles é
uma reflexão crítica sobre lideranças africanas e de seus impactos nas vidas diárias de seus
compatriotas. Consequentemente, é fundamental que a filosofia africana se desenvolva no
contexto do continente africano e que se comunique com uma audiência africana.

Inicialmente no deparamos com o título: Mãe, Materno Mar. Primeiro fica clara a
referência ao universo matriarcal africano em contraste com o sistema de mundo patriarcal
ocidental que o suplantou de maneira abrupta e ineficiente. Sobre essa perspectiva esta
investigação vem explicitar que a narrativa inicia-se e desenvolve-se sob a égide da mulher
(mãe), da água (mar), da filosofia (coruja) e do negro (letra M). Esses são os semagramas
determinantes principais que impulsionam a compreensão em direção à consciência do saber
criador feminino, da força elementar da natureza, da busca pela abedoria humana e do
conhecimento de si próprio e das relações de alteridade.

Retomando o título segundo outro de seus aspectos, o elemento água está associado à
palavra mar. A diferença geográfica entre mar e oceano é que os oceanos tem profundidade
desconhecida e delimitam as terras emersas e já os mares têm profundidades conhecidas em
algumas centenas de metros. Os mares são, por sua vez, delimitados pelos continentes, aqueles
trechos do oceano mais próximos aos acidentes geográficos terrestres, possuindo uma grande
importância para inúmeros povos que se localizam nas proximidades. O mar possui um caráter
mais nacional e particular que oceano.

Outra observação que pode ser feita é a repetição deliberada da letra M nas iniciais das
três palavras que constituem o sintagma-título do livro. Essa estruturação remete à gramática da
língua bantu. O radical inicial da palavra que tem a função sintática de sujeito na oração permeia
as outras palavras que a compõe para indicar a importância e a dominação sintática, semântica e
morfológica sobre as outras com as quais se relaciona. Esse vínculo fica expresso semântica e
morfologicamente também além das evidências sintáticas reveladas pelo enunciador. As línguas
bantu juntam as palavras com características semânticas comuns numa classe e não, como as

64
línguas europeias, por gênero. Cada classe tem prefixos diferentes para designar o singular ou o
plural que, nos outros elementos da frase, antecedem a raiz de cada palavra, reaparecendo nos
prefixos. A sistemática dessa estrutura pode ser constatada através deste exemplo retirado do
ensaio brilhante de Pedro Miguel que inspirou este trabalho intitulado Da Foz à Fonte: A
Literatura Angolana como Antropologia Filosófica (2002).

Tomemos o Kimbundu como língua de referência e, a título de exemplo,


consideremos as seguintes frases:
 Ditadi didi dingezanadiu dianeme = Esta pedra que eu trouxe é pesada
 Kialu kiki kingezanakiu kianeme = Esta cadeira que eu trouxe é pesada

Nessas frases cabe notar o seguinte: enquanto no idioma português o adjetivo “esta” e a
frase relativa integrante permaneceram inalterados nas três frases, no idioma kimbundu, já não
acontece o mesmo. Não só isso, mas também em português pode-se mudar a ordem dos adjetivos
sem alterar nada. Significa que estamos perante uma estrutura universal e universalizante. Em
outras palavras, estamos perante uma língua conceitual. À equivalência de condições, semelhante
arbitrariedade não se pode efetuar na língua kimbundu. Esta é uma estrutura que caracteriza as
línguas do tronco bantu, registrando-se uma diferenciação apenas no plano lexical (MIGUEL
2002).

Nos exemplos acima citados em kimbundu notamos que a partícula com a qual uma frase
inicia repercute-se em todas as palavras que têm relação com a palavra inicial. E assim se
procede, por mais longa que seja a frase: pedindo a consequente de uma partícula, ela é
encontrada no seu correlato antecedente. Assim sendo, é igualmente legítimo perguntar qual é o
correlato antecedente da partícula da palavra inicial do sintagma-título.

A significação de uma realização análoga no sintagma Mãe, Materno Mar pode ser a de
uma interferência linguística reversa onde a gramática autóctone subvalorizada e subjugada da
língua bantu se materializa como forma dominante dos vocábulos do vernáculo português
imposto pelos colonizadores. A letra M (eme) é a décima terceira letra do alfabeto português e é
também a décima consoante. É utilizada em 4,74% das palavras portuguesas. A letra M na
escrita hierática egípcia é a transliteração do sinal representado pela coruja e depois no alfabeto
fenício recebeu a denominação de "mem" que significava água e era simbolizada por uma linha

65

Hieróglifo Egípcio >>> Escrita Hierática >> Proto-Semítico > Fenício > Etrusco > Grego
ondulada representando as ondas do mar, dando origem ao "mi" dos gregos e à letra M que
utilizamos atualmente.

Hieróglifo Egípcio

Fig.2
Preto (adjetivo) Mar (substantivo) Água (substantivo)

[escrita hieroglífica] [escrita hierática]

O sinal identificado com a coruja é um fonograma unilítero, tem o som de “M” e é usado
para escrever palavras que tenham o som de “M”. Em egípcio a palavra preto é lida “kem”, e o
sinal da coruja nesse caso é usado como um fonograma (complemento fonético) para escrever a
palavra preto. O ideograma da coruja, por exemplo, é uma maneira de se referir a uma coruja
sem ter que escrever as letras C – O – R – U – J – A. Nesse caso o sinal representa o que ele é.
Então já sabemos que um mesmo sinal poderá ser um fonograma em uma frase ou um ideograma
em outra, e isso dependerá apenas do contexto em que ele está inserido.

Na mitologia egípcia, Neith (também denominada de Nit, Net e Neit) é a deusa da guerra
e da caça, criadora de Deuses e homens, divindade funerária e deusa inventora. Neith, também
chamada Tehenut, é uma antiga Deusa egípicia cujo culto provém do período pré-dinástico, na
qual tinha forma de escaravelho, depois foi deusa da guerra, da caça e deusa inventora além de
protetora dos mortos. Platão afirmou que em Saís, Atena fundia-se com Neith, pelos atributos da
guerra e da tecelagem, e tinham um mesmo animal simbólico, a coruja. O símbolo da Deusa
grega da sabedoria, Atena, é uma coruja do género Athene: o mocho-galego. Também
considerada o símbolo da filosofia.

A escrita hieroglífica constitui provavelmente o mais antigo sistema organizado de escrita


no mundo, e era vocacionada principalmente para inscrições formais nas paredes de templos e
túmulos. Com o tempo evoluiu para formas mais simplificadas, como o hierático, uma variante
mais cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro.

A escrita hierática no Antigo Egito permitia aos escribas escrever rapidamente,


simplificando os hieróglifos quando o faziam em papiros, e estava intimamente relacionada com

66
a escrita hieroglífica. Hieróglifo é um termo originário de duas palavras gregas: hierós
"sagrado", e glýphein "escrita". Apenas os sacerdotes, membros da realeza, altos cargos, e
escribas conheciam a arte de ler e escrever esses sinais "sagrados".

Outra orientação importante dentro da filosofia africana profissional é a investigação e


divulgação do lugar ocupado pelo Egito Antigo na importância do pensamento africano e
mundial. Dois importantes filósofos da tradição ocidental, Agostinho de Hipona e Plotino eram
africanos. Ao longo de sua história, a filosofia africana contribuiu significantemente à filosofia
grega, notadamente através do filósofo egípcio Plotino - figura fundamental na continuação da
tradição da Academia filosófica de Platão, e à filosofia cristã, através do pensador argelino
Agostinho de Hipona, que estabeleceu a noção do pecado original. A revelação de que o Egito e
a África ocupam um papel de central importância para a ciência moderna e as tecnologias que
alegadamente distinguem o pensamento do homem de uma sociedade desenvolvida do
pensamento do homem pertencente a sociedades subdesenvolvidas constitui-se como importante
fator de mudança da realidade científica africana.

Mesmo que não existissem filósofos africanos conhecidos, a filosofia foi praticada na
África. Isso pode ser apoiado através da observação da literatura grega. Na Ilíada e em outras
obras podem ser observados conceitos filosóficos como a arrogância, o heroísmo e a
superioridade da cultura grega vigentes antes do período final da Antiguidade Clássica Grega.
Assim, uma forma de filosofia natural sempre esteve presente na África desde tempos muito
antigos.

Quando os africanos terminaram de construir as pirâmides em 2500 a.C., mil e setecentos


anos antes de Homero, o primeiro escritor grego, aparecer. E quando ele aparece e começa a
escrever A Ilíada não passa muito tempo antes que ele escreva sobre o que aconteceu na África,
ou o que estava acontecendo na África. Os deuses gregos estavam reunidos na Etiópia. Sobre
Homero é dito que passou sete anos na África. O que ele poderia ter aprendido nas aulas com os
professores sábios fica sujeito à nossa especulação. Ele poderia ter aprendido direito, filosofia,
religião, astronomia, literatura, política e medicina.

67
Etiópia é um termo geográfico que aparece pela primeira vez nas fontes arcaicas e
clássicas da Grécia Antiga referindo-se à região do Alto Nilo, bem como a todas as regiões
situadas ao sul do deserto do Saara. Sua primeira menção ocorre nas obras de Homero: duas
vezes na Ilíada, e três vezes na Odisseia.

O historiador grego Heródoto também a usa para descrever especificamente toda a


região da África Subsaariana. Homero (por volta de 800 a.C.) é o primeiro autor a mencionar
os "etíopes"; ele afirma que eles se encontravam nas extremidades meridionais do mundo,
divididos pelo mar em "ocidentais" (onde o sol nascia) e "orientais" (onde o sol se punha).
Segundo Heródoto, nas Histórias, Livro II, os Colchianos eram egípcios "porque como os
egípcios tinham a pele negra e cabelo lanoso." Aristóteles diz em Physiognomonica que "os
egípcios e os etíopes são muito negros". Elisa Larkin Nascimento também menciona a
citação do conde Constantino Volney, membro da Academia Francesa:

Lembrei-me da notável passagem onde diz Heródoto: "E quanto a mim, julgo
serem os colchianos uma colônia dos egípcios porque, iguais a estes, são
negros de cabelo lanudo". Em outras palavras, os antigos egípcios antigos
eram verdadeiros negros, do mesmo tipo que todos os nativos africanos. (...)
Pensem só, que esta raça de negros, hoje nossos escravos e objeto de nosso
desprezo, é a própria raça a quem devemos nossas artes, ciências e até mesmo
o uso da palavra! (apud NASCIMENTO, 1996, p. 43)
 

As contribuições das diversas nações africanas, ao longo da história, para o


desenvolvimento cultural, econômico, político, científico e tecnológico da humanidade são
vastas e complexas, muito embora esse reconhecimento seja prejudicado pela perspectiva
preconceituosa que o ocidente europeu-norte-americano e sob sua influência cultural e
científica nutre em relação ao continente negro. Essa cultura do norte da África tem sido
extremamente importante para toda a humanidade até os dias de hoje, particularmente pelos
conhecimentos que ainda revela.

Plínio, o Velho descreveu Adulis, porto que segundo ele era o principal centro comercial
dos etíopes. Segundo ele, o termo "Etiópia" seria derivado de um indivíduo chamado Étiops, que
seria filho de Hefesto (o Vulcano dos romanos). Esta etimologia foi adotada com unanimidade
até por volta de 1600, quando Jacob Salianus, no primeiro tomo de seus Annales, propôs pela

68
primeira vez uma hipótese alternativa, que derivava a designação das palavras gregas aithein,
"queimar", e ops, "rosto"; o fato é mencionado a um padre espanhol chamado Francisco Colin
(1592–1660), que o menciona em seu livro Sacra India, que contém um longo capítulo sobre a
Etiópia. Colin menciona a opinião de Salianus como uma possível nova hipótese para a origem
do nome. O significado de 'rosto queimado' aparece em seguida nas obras dos autores alemães
Christopher Von Waldenfels (1677) e Johannes Minellius (1683), e logo foi adotada como
padrão pela maior parte dos estudiosos europeus.

Pelo lado da ciência e da tecnologia, mais especificamente o das ciências exatas como a
matemática que representam a base do desenvolvimento tecnológico da civilização ocidental
encontramos o discurso que denuncia a incompatibilidade, a incapacidade para a ciência e
evidencia a incompetência do povo subdesenvolvido da África. A questão surge durante a
narrativa: “Que ganhariam eles com a visão científica do mundo?” (CARDOSO, 2001; pg.203).

Subdesenvolvido seria um estágio anterior ao desenvolvimento e não um "não


desenvolvimento". Indica o estágio de um país não correspondente ao de país avançado que
apresenta uma deficiência em recursos humanos com base em indicadores de nutrição, saúde,
educação e da alfabetização de adultos ou escassez de um ou mais fatores econômicos.
Obviamente não por razões naturais, pois 80% da riqueza geológica da Terra se localizam no
continente africano, logo as causas seriam históricas. Homens e mulheres eternamente fustigados
pela escassez e preocupados constantemente com sua sobrevivência nunca possuíram condições
pra dedicarem-se satisfatoriamente à ciência e a tecnologia.

Léonce Ndikumana cresceu em Burúndi e hoje é professor de Economia da Universidade


de Massachusetts em Amherst. Em seu livro “Africa’s Odious Debt: How Foreign Loans and
Capital Flight Bled a Continent” (A dívida odiosa da África: Como os empréstimos eternos e a
fuga de capital sangraram um continente). Ndikumana se dedica a combater muitas narrativas
sobre a África que são lugar comum e tidas como fato no mundo todo, como, por exemplo, a
crença de que a ajuda eterna subsidia o continente. Na realidade, a fuga de capital do continente
africano (US$ 1.44 trilhão desaparecem de países africanos sem deixar rastros e acabam
aparecendo em paraísos fiscais ou em outros países ricos) excede em muito o capital de ajuda
externa (US$ 50 bilhões para a África). Ndikumana também é um dos principais líderes da

69
opinião na África que rejeita as diretrizes das agências internacionais que frequentemente vão de
encontro á vontade dos cidadãos africanos.

A mudança social provocada pelo fato colonial faz parte dessa história, mesmo que a
intenção da colonização fosse acabar com ela. O período colonial africano é recente, durando de
1883-1885 até pouco mais da metade do século XX. Nesse período, os governos europeus
dividiram e reagruparam as sociedades tradicionais da África em colônias, cujas fronteiras não
correspondiam aos seus territórios originais.

Nas décadas de 1950 e 1960, depois das independências conquistadas individualmente,


mas em um grande movimento de solidariedade entre nações, as linhas da divisão colonial foram
de modo geral absorvidas na configuração dos países atuais, a partir de então com seus próprios
governos. Mesmo assim, até hoje são países que lutam com dificuldade, tentando recuperar suas
origens ancestrais, e prosseguir suas vidas dentro do quadro da globalização imposto
mundialmente. As lutas civis e a presença de ditadores compactuados com potências estrangeiras
na África atual refletem ainda os problemas que a exploração europeia e a ideologia do
desenvolvimento causaram aos povos africanos, esgotando seus minérios e florestas, degradando
seu meio ambiente, alterando seu ecossistema, estabelecendo uma ordem completamente
diferente sobre uma experiência milenar de vida.

A degeneração da imagem das sociedades africanas, de suas ciências e de seus produtos é


resultado do projeto do capitalismo que difundiu a ideia de que o continente africano é tórrido e
cheio de tribos perdidas da História e da Civilização. É resultado também do egocentrismo das
ciências europeias do século XIX. É necessário, pois, ver de que História e de que Civilização se
trata. E do ponto de vista histórico-econômico, o imperialismo colonial na África é meio e
produto do Capital, uma das grandes invenções que vem desde a era dos Descobrimentos
reforçada ainda mais pela consolidação do Liberalismo.

O viés econômico da História é um importante instrumento da Ideologia do


Desenvolvimento, tipicamente ocidental. Dentro dessa linha de raciocínio, o Capital emerge de
fora das sociedades de que tratamos para regrar suas atividades econômicas de modo diferente,

70
conforme interesses externos aos dessas sociedades produtoras e dos povos que as constituem,
modificando as relações sociais e impondo um novo modelo de pensar e agir.

As sociedades africanas tradicionais ou pré-coloniais tinham em suas atividades


econômicas uma das formas de sobrevivência, de acordo com o meio ambiente em que viviam,
de suas necessidades materiais e espirituais e de toda uma tradição anterior de várias técnicas e
tipos de produção. Havia muitos povos nômades, que precisavam se deslocar periodicamente, e
havia povos sedentários, que fundando seus territórios, chegaram a constituir grandes reinos,
desenvolvendo atividades econômicas produtivas, tanto de bens científicos; da engenharia e
medicina como bens de consumo e bens de prestígio, em que se destacam várias de suas artes de
escultura, metalurgia e arquitetura.

Um dos grandes pensadores moçambicanos, Castiano, faz uma crítica aos críticos, ou os
que dizem não à existência da filosofia africana, pois para ele, “a filosofia dos críticos parece ser
uma filosofia envergonhada”. Pois, eles recusam os textos orais, e esqueceram que “à boa
maneira platônica que, graças a isso, conseguimos saber o que Sócrates andava a apregoar pelos
mercados de Atenas”. Para Cheikh Anta Diop a origem da filosofia deve ser procurada em
África, especial na civilização egípcia, ou seja, o lugar que a Grécia ocupa na história do
pensamento científico filosófico, deveria ser ocupado pelo Egito antigo.

O que a Grécia explorou mais do Egito foi, porém o campo de ideias,


particularmente o das ideias filosóficas. Começa-se, por exemplo, pelos nomes
dos deuses gregos que foram emprestados do Egito, seguindo-se também os
conceitos, as conexões entre os conceitos e até o ambiente.

Castiano na sua obra referenciais da filosofia africana salienta que é preciso desmitificar,
por exemplo, o mito de que Grécia é o berço do saber universal mostrando como muitos gregos
tiveram ímpeto de viajar para o Egito porque consideravam, naquela altura, este território como a
fonte do saber e do conhecimento.

Se nós falarmos de um pensamento racional dos antigos egípcios, concluímos que sempre
existiram os pensadores africanos com certo nível de desenvolvimento reflexivo como o logos
helênico, isto em diversos campos de saber e de ser.

71
Tal declaração corrobora com o testemunho matemático conhecido mais antigo que é o
“osso Ishango, com mais de 8000 anos de idade, encontrado em Ishango, às margens do lago
Edward, no Zaire (atualmente República Democrática do Congo) no continente africano,
mostrando números preservados por meio de entalhes no osso” (EVES, 2004, p. 26). O bastão de
Ishango, como também é conhecido esse osso petrificado, nos sugere pensar que encontraremos
na África um dos berços das mais antigas experiências matemáticas. Na ciência matemática, há
um volume enorme de conhecimento africano. Sem mencionar as pirâmides egípcias, cuja
construção exigiu o desenvolvimento de um conhecimento avançadíssimo de matemática,
geometria e engenharia (capaz de projetar, 2.700 anos antes de Cristo, ângulos com 0,07° de
precisão), podemos citar o sistema iorubá de matemática, baseado, como outros na África, em
múltiplos de 20. Uma visão geral do desenvolvimento da ciência matemática na África está no
trabalho de Cláudia Zaslavski (1973).

A civilização egípcia foi – e ainda é – alvo de distorções científicas como o deslocamento


histórico-cultural do Egito da África para o Oriente Médio, uma prática universalmente repetida
acriticamente nas mais consagradas obras de referência em História. Cheikh Anta Diop afirma
que, uma vez que o Egito compartilha vários aspectos culturais com diversos países africanos;

A antiguidade egípcia é, para a cultura africana, o que é a Antiguidade greco-


romana para a cultura ocidental. A construção de um corpus de ciências humanas
deve ter isso como base. (DIOP, 1983, p.68).

O epistemicídio antiafricano que retirou o Egito dos mentefatos e artefatos africanos está
intimamente ligado ao paradigma científico da natureza greco-européia, que contribui para um
processo de educação e desenvolvimento marcadamente eurocêntrico e associados a uma
sistemática de dominação e a estrutura de poder desse processo. Diante disso, George G. M.
James citado por Nascimento (1996, p.46) indica a apropriação indébita do patrimônio cultural
africano pela civilização greco-romana, que urge por uma revisão histórico-epistemológica.

George G. M. James (1954) documenta o fato de que, na verdade, grande parte


desse conhecimento foi levado para a Grécia através de processos desonestos ou
violentos. Os escritores gregos, em vários casos, se apresentavam como autores
de conceitos ou teorias que haviam aprendido com mestres africanos. O saque da
biblioteca de Alexandria foi um episódio central nesse processo, pois a destruição
ou deslocamentos dos textos antigos destituiu o Egito de suas fontes primárias.

72
O legado egípcio nos é apresentado como “primitivo” e o legado grego é diametralmente
oposto e assimetricamente empoderado. É evidente o enaltecimento valorativo do mundo grego e
de suas identidades culturais. Tradicionalmente, o pai da matemática e filosofia gregas é Tales de
Mileto, um mercador que visitou a Babilônia e o Egito na primeira metade do século VI a.C.
(STRUIK, 1997, p.73). Esta afirmativa – no singular – desvela um pouco da presença do ideário
colonizador que escreve a história propondo uma ideia de marco inaugural ou ponto de origem.
Utilizando-se de dados “ficcionais”, o discurso colonial produz sentidos com marcas ideológicas.
Mesmo quando reconhecido seu aspecto ficcional ou lendário, o “mito histórico” confunde-se
com o “realismo histórico”. Uma infinidade de lendas existe em torno das descobertas de Tales
de Mileto, como também, pouco pode afirmar ou comprovar da matemática e logo filosofia
gregas daquela época, como afirma Boyer (1994):

Da matemática grega da época nada sabemos. [...] passaram-se ainda quase dois
séculos até haver alguma citação, mesmo indireta, da matemática grega. [...]
Tales e Pitágoras também são figuras imprecisas historicamente, [...]. não
sobreviveu nenhuma obra de qualquer deles, nem se sabe se Tales ou Pitágoras
jamais compuseram tal obra. O que fizeram deve ser reconstituído com base
numa tradição não muito digna de confiança, que se formou em torno desses dois
matemáticos antigos. [...] as mais antigas referências gregas à história da
matemática, que não sobreviveram, atribuem a Tales e Pitágoras um bom número
de descobertas matemáticas definidas [...] mas o leitor deve entender que é sobre
tradições persistentes e não sobre documentos históricos que o relato se baseia.
(BOYER, 1994, p.31)

Nas palavras de Certeau;

O discurso historiográfico não segue o real, não fazendo senão significa-lo


repetindo sem cessar aconteceu, sem que esta asserção possa jamais ser outra
coisa do que o avesso significado de toda a narração histórica. (2006, p.52).

O apagamento civilizatório africano no desenvolvimento histórico é condicionado, além


de outros, pelo fato de a África ser e estar narrada numa história eurocentrista como um
continente sem civilização. Uma história que ainda hoje produz estereótipos e estigmas negativos
contra os africanos e seus descendentes na diásporas. Os processos civilizatórios são mostrados
como resultantes de apenas duas matrizes culturais, dicotomizadas entre, Oriente e Ocidente.

A região do norte africano seria reconhecida como oriental ou asiática, enquanto


a região subsaariana seria reconhecida como a verdadeira África, negra e
destituída de civilização. (NASCIMENTO, 2008,p.47).

73
Aquilo que não nos contam e o que a história que aprendemos na escola esconde. O que a
história nos conta sobre a filosofia, a ciência e a própria civilização ocidental é que elas surgem
abruptamente na Grécia Antiga, negando suas raízes no Egito Antigo, ou seja, negando suas
raízes na África. Cheikh Anta Diop afirma que:

Enquanto ignorarmos a cultura egípcia – a mais antiga manifestação de uma


Civilização Africana -, seremos incapazes de criar, no domínio das ciências
humanas, qualquer coisa que possa ser considerada como científica. É somente
através de uma referência sistemática ao Egito que poderemos introduzir uma
dimensão histórica às ciências sociais. (DIOP apud MOORE, 2007a, p. 308).

Diop segue afirmando que “O Antigo Egito esteve na origem de um sistema filosófico
elaborado e não de uma mera cosmogonia, como muitos ainda sustentam” (Idem, p. 308).
Seguindo o mesmo texto, o autor ainda nos diz que “os gregos foram forçados a vir
humildemente beber na fonte da cultura egípcia” (ibidem, p.312).

Diversas pesquisas provam que já não há como questionar essa realidade. Tal negação
entende-se desde o ponto de vista de que “‘filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo
ocidental” (APPIAH, 1997, p. 131). A filosofia eurocêntrica apropriou-se dos conhecimentos
vindouros não apenas do Egito, mas também de outros países africanos. Aprendemos, dentre
tantas outras coisas, que a origem da filosofia está na Grécia Antiga.

Colocar filosofia antiga egípcia e grega idades

Desse modo pode-se resumir, pretensiosamente, a filosofia ocidental como uma


sequência de considerações a respeito das impressões e, ou interrogativas sobre o que seria a
cosmologia, a cosmogonia, a vida e o ser humano ou ainda reflexões sobre os pontos de vistas
em torno de determinadas experiências científicas num determinado período e localizada no seu
lugar de fala.

Claro que a Filosofia Ocidental não se resume apenas a essa consideração e dela também
se pode beber, ou seja, não renegar o pensamento europeu, apenas escolher, como não poderia
deixar de ser, pensar desde o seu próprio lugar de fala, lugar este que advém da ancestralidade
entranhada em corpos africanos.

74
Partilhamos a compreensão de que: não há nenhuma base ontológica para negar a
existência de uma filosofia africana. Também argumentamos que, frequentemente, a luta pela
definição de filosofia é, em última análise, o esforço para adquirir poder epistemológico e
político sobre os outros (RAMOSE, 2011, p.14).

Sabemos que em consequência do pensamento eurocêntrico, alimentado por um


capitalismo desenfreado com uma necessidade descomedida de aquisição de poder, o mundo foi
impregnado de preconceitos em relação aos povos africanos e seus descendentes, colocou-se em
dúvida a sua capacidade de filosofar, de pensar e exercer atividades intelectuais. O que se opõe
ao significado da própria filosofia, esta que é amor fraterno, respeito ao saber...

Os conquistadores da África durante as injustas guerras de colonização se arrogaram a


autoridade de definir filosofia. Eles fizeram isto cometendo epistemicídio, ou seja, o assassinato
das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados. O epistemicídio não nivelou e
nem eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas
introduziu, entretanto, numa dimensão muito sustentada através de meios ilícitos e “justos”, a
tensão subsequente na relação entre as filosofias africana e ocidental na África (Idem, p. 9).

Severino Elias Ngoenha, moçambicano, considera que colonizar, para o Ocidente, era
arrebatar os povos africanos de sua perdição, libertando-os de suas trevas, trazendo-os à luz
natural da razão que eles ainda não possuíam, os colonizadores consideravam que estavam
humanizando os colonizados.

Esses preconceitos escondem fatos históricos que nos mostram o quanto devemos ao
Continente Africano, a história que nos é ensinada não nos conta fatos como: As pirâmides do
Egito Antigo foram construídas ao longo de vários milênios, sendo feitas com um intenso e
desenvolvido conhecimento; também não expõe que o calendário do Egito Antigo era mais exato
que o moderno e os hieróglifos egípcios e seus antecedentes são os primeiros sistemas da escrita.
Tinham conhecimento de uma avançada matemática abstrata 13 séculos antes de Euclides,
desenvolviam sofisticadas técnicas de geometria, matemática e engenharia. Dois milênios e meio
antes do grego Hipócrates ser considerado fundador da medicina, os egípcios Imhotep e Atótis
juntamente com seus sucessores desenvolveram os fundamentos da medicina.

75
O conhecimento tecnológico estava presente em diversos ambientes culturais e sociais
África antiga. O saber médico, sanitário, os cálculos matemáticos e o universo astronômico
eram em graus diferenciados parte deste continente. A medicina egípcia, por exemplo, tinha
seu conhecimento a partir dos experimentos e estudos voltados para o interior do organismo
humano, elaborado em função da prática da mumificação, do embalsamento do corpo dos
faraós e de pessoas influentes desta sociedade. Deste modo se a medicina tem um pai é o
cientista clínico egípcio Imhotep, que acerca de 3.000 anos antes de Cristo já aplicava os
conhecimentos médicos e de cirurgia (SOUZA e MOTTA, 2003; NASCIMENTO, 1996).

O conhecimento médico não esteve situado apenas no norte africano, na região que
hoje compreende Uganda, país da África Central, encontramos os Banyoro que já fazia a
cirurgia de cesariana antes do ano de 1879, quando o Dr. R. W. Felkin, cirurgião inglês
conheceu essa técnica desempenhada com extrema eficácia e técnicas de assepsia, anestesia,
hemostasia e cauterização. O conhecimento médico cirúrgico antigo e tradicional na África,
também, operava os olhos removendo as cataratas. Essa técnica foi encontrada no Mali e no
Egito, bem como acerca de 4.600 anos atrás, neste último país mencionado, já se fazia a
cirurgia para a retirada dos tumores cerebrais (NASCIMENTO, 1996, p. 26). Os Banyoro,
também, detinham séculos atrás o conhecimento acerca da vacinação e da farmacologia,
logo as técnicas médicas e terapêuticas africanas não estavam voltadas, somente, para o
mundo mágico, mas eles produziam conhecimento científico, pela a observação atenta do
paciente (NASCIMENTO, 1996, p. 27).

Existe um vasto conteúdo do conhecimento e avanços tecnológicos alcançados pela


civilização egípcia, porém há uma projeção da história que aniquila essa verdade. Outra forma de
negação é a persistente negativa da identidade africana e negra dos egípcios, chegando até
mesmo a caracterizar essa civilização como realização de outros povos. Essas conquistas
caracterizam o desenvolvimento dos estados africanos, não estando restrita apenas ao Egito, há
todo um cabedal de conhecimento, de tecnologias de metalurgia e mineração, agricultura e
criação de gado, matemática, engenharia, astronomia, ciência e medicina, espalhados pelo
continente. Cheikh Anta Diop nos chama atenção afirmando que:

A história da humanidade permanecerá na escuridão até que seja vislumbrada a


existência de dois grandes berços – o meridional, que inclui toda a África, e o

76
setentrional, que corresponde ao espaço euro-asiático – onde o clima forjou
atitudes e mentalidades específicas. (DIOP apud MOORE, 2007, p. 106 -107).

Elisa L. Nascimento nos diz:

[...] está cada vez mais comprovada a anterioridade da evolução do continente


africano dos elementos citados (agricultura, criação de gado, metalurgia,
especialização ocupacional) que convergem no desenvolvimento da
civilização. (1996, p. 42).

Deu-se na África a primeira revolução tecnológica da humanidade, a passagem de


caçador e coletor de frutos e raízes para a agricultura e pecuária. A agricultura africana, no vale
do rio Nilo, há cerca de 18 mil anos atrás, sendo duas vezes mais antiga do que no sudoeste
asiático (apud NASCIMENTO, 1996, p. 42). A pecuária aparece há 15 mil anos atrás, perto da
atual Nairobi (Quênia), sendo uma técnica sofisticada de domesticação de animais que deve ter
se espalhado para os vales dos rios Tigre e Eufrates séculos depois (apud, NASCIMENTO, 1996,
p. 42).

Diop afirma, dessa forma, que a humanidade tinha desembocado, em consequência de ser
resultado da interação do homem com meios ambientais completamente opostos, em duas
lógicas de evolução socioeconômicas opostas. A obra de Cheikh Anta Diop irá reestabelecer, por
meio de rigorosa pesquisa científica, as verdades negadas, apresentando-se como referência
básica do resgate desse legado egípcio, esse legado civilizatório. Ele nos diz que: “o Egito
Antigo foi o berço científico de onde emergem muito tempo depois, as contribuições científicas
dos gregos” (MOORE, 2007a, p. 309, Entrevista com Cheikh Anta Diop).

Ao não fazer mistério acerca das suas fontes e do lugar de sua formação filosófica, é que
alguns filósofos e historiadores gregos confirmam a tese da origem egípcia da filosofia, das
ciências e das artes em geral. O fundador da Egiptologia africana Cheikh Anta Diop foi aquele
que dedicou maior tempo a essa questão fundamental da história e da filosofia, sua pesquisa fora
continuada pelo seu discípulo Théophile Obenga, este demonstrou em sua obra L’Egypte, La
Gréce et l’Ecole d’Alexandrie (O Egito, a Grécia e a Escola de Alexandria) que muitos filósofos
e homens da ciência grega estiverem no Egito para serem instruídos pelos sacerdotes dos
Templos da Vida nas diversas Escolas do pensamento filosófico egípcio-faraônico, demonstrou
ainda a influência do pensamento egípcio nas reflexões de muitos filósofos e pensadores gregos.

77
Podemos citar vários nomes que beberam das fontes egípcias, tais como: Tales, Platão, Pitágoras,
Sólon, Anaximandro, Anaxímenes, Demócrito, Anaxágoras, Aristóteles e tantos outros. Não se
pode negar a dívida da Filosofia Grega com o Egito Antigo, ou seja, o Egito Africano.

Credita-se que a história só começa à medida que o homem se põe a escrever, a registrar
os acontecimentos, desse modo, o passado africano antes do início do imperialismo europeu, só
podia ser reconstituído a partir dos testemunhos de restos materiais, dos costumes primitivos e da
linguagem. Mas, não dizem que a escrita tem origem no Egito e na Suméria.

É importante dizer que, na atualidade, as diversas maneiras de fazer filosofia não deixam
dúvida do caráter polissêmico do termo. Mas, sem dúvida, tudo leva a crer que mesmo que
filósofos pragmatistas discordem muito de filósofos continentais, que tratam das mesmas
questões por vias distintas e caminhos especulativos, nos dois casos, a Filosofia ainda é
entendida como atividade, exercício, aventura do espírito humano ou protocolos intelectuais que
têm origem grega. Maldonado-Torres identifica na leitura do filósofo Frantz Fanon uma das mais
contundentes críticas à mentalidade racista e colonial que demarca a formação da maioria das
pessoas que se dedicam à Filosofia no Ocidente. Nós estamos de acordo com Maldonado-Torres;
é muito sintomático que a “Filosofia” se recuse a examinar a interferência do espaço na produção
de conhecimento, e o esquecimento da espacialidade e das disputas geopolíticas apenas reiteram
e reforçam a Europa como lugar epistêmico privilegiado. Ou seja, a Europa, e por tabela, a
cultura ocidental, é a referência fundamental para a produção de conhecimento filosófico.

O racismo epistêmico recusa a validade científica, filosófica e cultural dos discursos de


alguns grupos étnico-raciais. Ora, essa dimensão do racismo que atravessa a produção filosófica
e a tese de negação dos textos da Antiguidade que não sejam gregos, tais como os textos astecas,
maias, chineses, indianos e africanos, dentre outros, é denominada “racismo epistêmico”. Essa é
a dimensão do racismo que recusa a validade epistemológica e intelectual do conhecimento
produzido por alguns povos, a saber, os não brancos, os não ocidentais.

A Filosofia é tomada, seja diretamente, explicitamente ou de modo tácito, seja como


atividade acadêmica, aventura do espírito, exercício intelectual, análise crítica da Linguagem,
reflexão sistemática, visão de mundo produtora de conceitos rigorosos ou modo de problematizar

78
a realidade mais elaborado, sofisticado da humanidade, digno de povos mais “civilizados” ou
mais “desenvolvidos”. Existe um pressuposto embutido: a dominação política, econômica e
social que o Ocidente empreendeu por meio da invasão, colonização, trocas assimétricas e
assujeitamento não só dos povos africanos, mas dos ameríndios, asiáticos e da Oceania vem
sempre articulada com a dominação intelectual, com o estabelçecimento de cânones acadêmicos
ocidentais e com a recusa da validade epistêmica dos povos “colonizados”. Por isso, a tese de
que a Filosofia – essa área tão sofisticada que funciona como signo do refinamento e suprassumo
do humanismo ocidental – poderia ter uma origem fora da Grécia e logo, da Europa, é tão
rechaçada. O que também é motivo para reunir as mais diferentes escolas, linhas e perspectivas
(ocidentais) da Filosofia numa aliança pragmática contra a emergência de outras vozes
filosóficas, vozes que dizem que referenciais de filosofia não são exclusividade do ocidente. A
coalizão ocidental usa o epistemicídio, isto é, o assassinato das formas de conhecer, pensar e agir
de outros povos, ou ainda, a recusa sistemática da validade dos argumentos, mesmo que esses
sejam consistentes, em favor da blindagem de uma perspectiva intelectual.

A pluriversalidade é um modelo que reconhece a Filosofia como a multiplicidade das


Filosofias particulares em vez de eleger um modelo particular como representante do universal.
Afinal, se a Música é a multiplicidade de sons locais, de gêneros, subgêneros, ritmos e estilos
que não tem uma origem específica, um local privilegiado, por que a Filosofia deveria ter? Não
seria o caso de levar-se em consideração que existem elementos geopolíticos que atravessam e
constituem os discursos filosóficos, e que pretendem manter e reforçar uma posição
conservadora? Uma postura que, assentada num modelo explicativo ariano, reforça o
epistemicídio e pretende sustentar uma suposta neutralidade, que só corrobora para manter o
status quo de que na Antiguidade só os gregos eram “capazes” de fazer Filosofia. Ora, por vezes,
os defensores dessa posição comungam com uma ingenuidade que isso não tem nenhuma
consequência negativa.

As imagens veiculadas pelo cinema, literatura e pelo aparato midiático em nada ajudam a
elucidar ou ampliar nossa compreensão sobre o Egito africano, principalmente se quisermos
sustentar nossa hipótese de que os textos egípcios anteriores aos gregos já eram filosóficos. Tal
como dizem Cheikh Diop, George James, Molefi Asante, Maulana Karenga, Martin Bernal,
Théophile Obenga, Marimba Ani, Nkolo Foé, Mogobe Ramose e José Nunes Carreira, o racismo

79
antinegro que questionava os avanços técnicos, filosóficos, científicos e culturais do Egito
faraônico deu origem a discursos que desacreditavam a capacidade dos egípcios de construir
pirâmides e aquedutos, embalsamar corpos, represar rios, criar sistemas sofisticados de cultivo e
agricultura.

Parte da ficção literária ocidental dos séculos XIX e XX perguntava se os responsáveis


pelo desenvolvimento intelectual, cultural e científico dos antigos egípcios não teria sido obra de
extraterrestres. É do mesmo naipe a definição do Egito como uma sociedade asiática por alguns
autores. Sem dúvida, o Egito fica na África e, além das informações disponíveis, os dados
incontestes recolhidos por Cheikh Anta Diop diante dos testes de melanina feitos em múmias
pelo físico e historiador senegalês não deixam margem para contradição: os egípcios eram
negros.

O que está em jogo aqui é a autoridade ocidental por classificar alguns discursos como
filosóficos e outros como “pensamento”, uma perspectiva política de valorização dos gregos na
Antiguidade, dando supremacia ao Ocidente. Existem contra-argumentos que defendem que a
filosofia não precisa ser tão valorizada, e que não deveríamos nos preocupar em enquadrar um
pensamento africano ou asiático em seu modelo ocidental. Por que não questiona-se quem
autorizou o Ocidente a ser a “régua” da Filosofia? Isto não seria resultado de uma disputa
geopolítica, como nos ensinam Fanon e Maldona-Torres? Afinal, na maior parte das instituições
universitárias e de pesquisa do Brasil e do Mundo, a área de Filosofia agrega e reúne incentivos,
investimentos, reconhecimento público, mas a área “Pensamento” permanece livre e fora da
disputa dos recursos e reconhecimento social. A recusa do caráter filosófico ao pensamento
africano, assim como a tantos outros, faz parte de um projeto geopolítico de manutenção do
status quo. Um projeto tão bem articulado que filósofos que discordam em quase tudo
convergem quando se trata da primazia grega.

A origem e o berço da humanidade assim como a emergência da civilização do mundo


devem ser procurados em África. O Egito é a mãe da civilização mundial. A civilização egípcia é
especificamente negra. Ela evoluiu e floresceu de tal forma que se tornou reconhecível como a
base do humanismo de toda África. Por conseguinte, a África não só é a origem da civilização
como também o berço do desenvolvimento social, cultural, científico e político. Diop aponta

80
como sendo características comuns de toda África o matriarcado, a espiritualidade, o humanismo
e o pacifismo.

O continente africano ainda continua sendo visto como categoria unificada e coerente,
negando sua diversidade, olhando o contexto folclórico e escravista, localizando a filosofia e a
cultura em grupos étnicos. Mudimbe (1988) articula isso defendendo que a África foi uma
construção da Europa, no sentido de que a Europa necessitava dos seus outros para projetar seus
medos e suas aspirações. Historiadores do século XIV até início do XX ponderam que a história
da África, teria principiado no período em que os europeus começaram a ter contato com aquele
continente. Não apenas pelo registro e relato feito pelos viajantes, comerciantes, administradores
e missionários que passavam por lá, do século XV ao XIX, mas especialmente pelas mudanças
introduzidas pelos europeus na África. Confabulam que todos os elementos de destaque da
cultura africana seriam frutos de interferências de outras civilizações, cópias inferiores e não uma
criação propriamente africana.

A história colonial da África é muito diferente da sua verdadeira história. É então, que no
fim do século XIX os africanos começam a deixar por escrito o que conheciam sobre a história
de seus povos para evitar que os europeus tragassem as suas histórias, contando uma história que
não os pertencia, além de uma história que vangloriaria os colonizadores europeus inferiorizando
os demais, especialmente a África e América Latina.

No respeitante aos pensadores afrocêntricos como Diop, Diawara e Obenga, Wiredu


reconhece-lhes os méritos na desconstrução da história colonial do continente africano através do
desmantelamento dos mitos do eurocentrismo e da reabertura científica ao passado histórico e
cultural africano como se manifesta, por exemplo, no uso das linguagens simbólicas e das
diversas escritas do Antigo Egito, da Núbia e de outras regiões africanas (Obenga). Todavia,
critica, como perspectiva para o futuro, a pretensa reconstrução civilizacional da África através
de uma ida às fontes clássicas, ideia essa que parte primordialmente do conceito da existência de
uma eterna unidade civilizacional africana.

Wiredu mostra a inexistência de um Todo africano, de uma autenticidade cultural única e


permanente face à realidade africana fragmentada pela decadência cultural e dependência do

81
exterior da camada dirigente africana, face ao desenraizamento dos intelectuais, ao menosprezo
social e cultural dos próprios poderes pelas massas africanas, mas sobretudo pelas profundas
mudanças estruturais sociais e econômicas ocorridas no processo de neocolonialização. A
exigência de um retorno constitui assim apenas um modo idealista de não enfrentar as ou, no
caso de Mobutu, o mentor da “autenticidade” (TUTASHINDA 1978), de esconder as realidades
políticas africanas (WAMBA-DIA-WAMBA 1979). Fanon (1975) caricatura essa posição da
seguinte maneira:

Ficaríamos muito contentes por saber que existiu uma correspondência entre tal
filósofo negro e Platão. Mas em absoluto não vemos em que é que esse fato
poderia modificar a situação das crianças de oito anos que trabalham nos campos
de cana na Martinique ou em Guadalupe. (p.240).

Assim, os referenciais de subjetivação na filosofia africana são, de fato, uma teorização das
diferentes fases de tomada de consciência e de ação para a liberdade do continente. Tão somente.

Vladimir Lenin, fundador do Estado Soviético, quando indagado, certa vez, porque motivo
os fundamentos da filosofia libertária do operariado na sociedade capitalista, o marxismo,
haviam sido desenvolvidos por filósofos “burgueses” respondeu mais ou menos nos seguintes
termos: “nos palácios pensa-se de forma diferente do que nas palhotas”, ou seja, o
desenvolvimento mais amplo, menos militante, do pensamento científico, só será possível depois
de vencermos a fase das necessidades básicas: da fome e da pobreza em geral, da liberdade
política e da liberdade intelectual.

Apenas a liberdade política é uma realidade para toda a África, porém, a pobreza é ainda
um grande desafio para todos e, em alguns países, mesmo a liberdade intelectual não foi
conseguida.

Ao longo do texto somos confrontados diversas vezes com questionamentos e afirmações que
possuem extrema relevância para a filosofia acadêmica profissional africana. Entre elas podemos
destacar algumas que ocupam posições fundamentais para o debate filosófico profissional
africano:

 Que ganhariam eles com a visão científica de mundo?

82
 Em África meu senhor, as águas de baixo se unem às aguas de cima.
 Regressavam assim a terra para renascer.
 Isto é uma terra de pretos e está tudo dito.
 Sofrer até o extremo é morrer?
 Depois da capital o resto do país eram os selváticos ares.
 Então foi surgindo entre os crentes a ideia de paz, que a violência não era a melhor forma
de resolver os casos.
 Somos todos africanos e sabemos que muitas vezes fazemos às escondidas aquilo que
publicamente não pode ser feito, nem sequer dito.

Esta última com teor altamente religioso e teológico que podemos relacionar com latinismos
originários da cultura ocidental católica erudita. São empregados ao constatar-se a falácia das
Igrejas Africanas e seus pastores e profetas. Os exemplos recolhidos concernentes a essa tradição
são:

 In vino veritas. [No vinho, a verdade].


 Errare humanum est. [Errar é humano].
 Cuivis potest accidere, quod cuidam potest. [O que pode acontecer a uma determinada pessoa
pode acontecer a qualquer um].
 Errando corrigitur error! [Errando, corrige-se o erro].

Por último é adequado destacar os questionamentos e afirmações que guardam pertinência a


uma dimensão da filosofia acadêmica profissional africana que nos últimos anos tem se afirmado
cada vez mais como referência a uma nova tecnologia no pensamento social, religioso, político e
econômico africano. As possibilidades que residem nesse campo de produção de conhecimento
podem transformar verdadeiramente as relações interpessoais, internacionais e intercâmbios
entre culturas, religiões, gêneros e os próprios campos de conhecimento que servem de base para
a civização africana e onde jazem suas oportunidades de desenvolvimento. Podemos elencar
alguns exemplos aqui:

 A mulher na rua é sempre uma excelentíssima senhora dona, mesmo que não o
merecendo e quando na alcova, nos íntimos ares, devia de dar livre curso a todos os
velados instintos.

83
 Sempre o mesmo fingimento, a discrição que os homens gostam de ver nas mulheres que
se prezam.
 A mulher é como o antílope, consegue de apanhar até no cão mais magro!
 Uma santa preta? Santa preta só podia ser uma bruxa, que ele se lembrou do que sempre
tinha ouvido dizer.
 É preferível confiá-lo [segredo] ao vento, mas nunca à mulher.
 Os homens gostam de abusar nas mulheres que lhe são inteiramente submissas.

'Humanismo', porém, não significa 'humanidade', mas 'homem'. As mulheres ainda vão
esperar muito tempo antes que os movimentos feministas comecem a lutar para incluí-las em
igualdade de condições no mundo dos 'seres humanos'. Segundo o filósofo Roberto Romano, em
seu livro Lux in Tenebris: meditações sobre filosofia e cultura, “o mesmo Kant, que defendeu a
saída corajosa da humanidade de seu estado infantil, menor, mantém este último para a mulher”
(ROMANO, 1987, p. 125).

Para comprovar o que diz, cita um trecho onde o filósofo do séc. XVIII define o estatuto
da mulher na sociedade:

Para a [...] indissociabilidade de uma união, o encontro ocasional de duas pessoas


não basta; um elemento deve ser submetido ao outro, e, reciprocamente, este
deve ser superior para poder comandar e governar [...] o homem deve ser
superior à mulher pela força corporal e coragem, a mulher, pela faculdade natural
de submeter-se à inclinação que o homem tem por ela, para dominá-la (KANT
apud ROMANO, 1987, p. 126).

Kant não está sozinho entre os grandes filósofos que destacam a inferioridade das
mulheres. Entre muitos outros como Platão, Kierkegaard e Schopenhauer, temos Hegel (1770-
1831), que na sua Filosofia do Direito diz:

As mulheres [...] podem ser cultivadas, mas não foram feitas para as ciências
nobres, nem para a filosofia, nem para certas formas artísticas, que exigem o
universal. As mulheres podem ter pensamento, gosto, elegância, mas o Ideal não
lhes é acessível [...] Se as mulheres estão no ápice do governo, o Estado corre
perigo, pois elas não agem segundo as exigências do Universal mas segundo
inclinações e opiniões contingentes [...] (HEGEL apud ROMANO, p.126 e 131).

Se a mulher está distante do "Ideal" e do "Universal", não é possível estar em igualdade


de condições dentro de grandes conceitos como 'Homem', 'Humanidade' e 'Humanismo'. A

84
doutora em filosofia Rosa Maria Rodríguez Magda (RODRÍGUEZ MAGDA, 2007) estende a
crítica aos filósofos mais recentes, começando pela clara e reconhecida misoginia de Nietzsche e
incluindo, em sua crítica, autores considerados pós-modernos, referindo-se a uma ausência de
estudos sobre a mulher na História da Sexualidade de Foucault, embora ressalte a importância
desse autor para o pensamento feminista, ao 'esquecimento' da diferença sexual na noção de
corpo em Deleuze, ao uso que Baudrillard faz do 'feminino' como puro artifício a partir de uma
ritualidade masculina.

O feminismo do século XX foi precursor de mudanças significativas não apenas nas


relações sociais e políticas entre mulheres e homens, mas igualmente na filosofia e na teologia,
embora de formas bastante diferentes. 

A teologia, desde a Antiguidade, quase sempre se caracterizou por um pensamento


monoteísta com base filosófica transcendente, ou seja, uma base racional fundada numa visão
metafísica da existência de um ser superior que seria o Outro de todos os seres criados. Esse
Outro, Deus, entretanto, não fugia de uma concepção antropológica a partir dos parâmetros
masculinos, revelando assim seus limites ontológicos.

O feminismo na teologia desenvolveu-se a partir da segunda metade do século XX


inicialmente em alguns países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. As teólogas tomaram
consciência do quanto o Deus criador e todo-poderoso era cúmplice do bloqueio masculino de
suas reivindicações sociais, políticas e religiosas assim como expressão da opressão e dominação
sexual que viviam. O Deus anunciado em sua cultura e cultuado nas igrejas não era aliado da
emancipação feminina. Ao contrário, era usado como um entrave para as conquistas das
mulheres. A opressão feminina e a manutenção dos privilégios masculinos eram legitimadas por
uma ideologia religiosa que naturalizou certos papeis sociais e funções biológicas e as elevou às
expressões da vontade divina para a humanidade.

Diante da constatação crescente da dominação do ídolo divino masculino sobre suas


vidas, as teólogas feministas começaram a introduzir a metodologia da suspeita e da
desconstrução de conceitos teológicos (Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, Pecado, Bem
e Mal, Encarnação, Redenção etc.) para verificar-lhes a origem e a pertinência em relação à

85
experiência histórica e feminina. O feminismo teológico convida a pensar de novo as próprias
crenças e a situá-las a partir das necessidades dos diferentes grupos e dos diferentes tempos.

A teologia feminista desenvolveu-se na América Latina, África e Ásia a partir da década


de 1980. Seu campo de atuação social é limitado. As teólogas feministas não são aceitas nos
espaços institucionais dominados pelo clero e por pessoas convencidas da superioridade da
imagem patriarcal de Deus. Uma das batalhas atuais importantes das teólogas feministas na
América Latina é em relação ao poder religioso que domina os corpos femininos. Por isso,
introduzem a questão da dominação sexual na teologia, falam dos corpos destroçados pelo abuso
sexual, sua redução a um produto do mercado, sua culpabilização religiosa como instrumento de
manutenção da mesma lógica de dominação.

A teologia feminista é parte de uma revolução cultural dos séculos XX e XXI, uma
revolução que ainda está em seus primeiros passos. Se persistir nessa luta de desnudamento de
certos conceitos religiosos em favor da dignidade feminina, estará sinalizando um novo
momento criativo na história das religiões, visto que as mulheres estarão expressando dentro das
diferentes tradições religiosas sua experiência, seus valores e sentidos. É o movimento
caracterizado por uma teologia humanista como orientação filosófica.

O feminismo é um termo genérico para uma gama de pontos de vista sobre a injustiça
perpetrada contra as mulheres. Ele pode ser definido como um movimento que busca igualdade
de direitos entre homens e mulheres; daí a sua convicção básica de que as mulheres estão em
desvantagem em relação aos seus direitos na sociedade. No entanto, como a filosofia feminista é
variável e de grande alcance que se torna inviável falar sobre feminismo sem especificar as
particularidades de um determinado grupo de feministas ou estudiosos individuais. A este
respeito, Omofolabo Ajayi-Soyinka afirma que:

[...] Para além dos objetivos comuns fundamentais do feminismo para acabar
com a opressão, a impotência e a exploração patriarcal das mulheres, cada
feminista deve identificar, definir e adotar estratégias de resistência dentro de
seus limites culturais. (AJAYI-SOYINKA 2003: 168)

86
Mesmo que as especificidades do feminismo diferem de acordo com um determinado
contexto cultural, o princípio fundamental, para ajudar as mulheres a se libertar opressões com
base no gênero, é universal.

No debate entre Feministas do Terceiro Mundo e Feministas Ocidentais, “uma


perspectiva coloca a responsabilidade em teóricas feministas ocidentais para silenciar a mulher
africana no próprio discurso destinado a libertá-la da opressão” (LYONS 2004, p.3).

Essa perspectiva não termina no nível da responsabilização inativa; mulheres afro-


americanas têm levado a discussão a outro nível e estruturaram uma teoria que permite uma
discussão específica sobre a existência da mulher de ascendência africana na sua realidade e na
sua existência imaginada.

O esforço realizado por Hudson-Weems para a criação de um paradigma "devidamente


nomeado e definido oficialmente" de acordo com os povos da "matriz única e cultural" de
ascendência africana (Hudson-Weems de 2007, 289) se encaixa bem no discurso pós-colonial. O
‘Africana Womanist’ (Mulherismo Africano) entra no discurso pós-colonial, enfraquecendo o
discurso orientalista do Feminismo Ocidental e expõe suas insuficiências, tentando incluir o que
tende a ser deixado de fora. Hudson-Weems não criou o legado do Mulherismo Africano, mas
tem:

observado as mulheres africanas, documentou sua realidade, e aperfeiçoou um


paradigma em relação a quem elas são, o que fazem, e aquilo em que acreditam,
como um povo. (2007, pg.289)

O Mulherismo Africano rejeita "os começos cáusticos e sua inaplicabilidade para


mulheres de ascendência africana" da corrente principal do feminismo (Hudson-Weems de 2007,
291). A corrente principal do feminismo é formada por mulheres brancas e é em grande parte
estruturado sob medida e de acordo com as suas próprias necessidades. A raça como ela afeta a
existência das mulheres negras é subestimada em integrar o feminismo cuja principal agenda é o
empoderamento centrado no feminino.

Ao estabelecer esta teoria Hudson-Weems também critica a posição de feministas negras


"que continuaram a usar o termo feminismo como uma construção teórica para sua análise"

87
(HUDSON-WEEMS 2007, 293) para benefícios óbvios que incluíram a visibilidade,
possibilidades de emprego e de publicação.

Configura-se interessante rever os primórdios corrosivos do feminismo para os Negros


em meados do século XIX, quando a segregação racial e a opressão estavam na ordem do dia. O
Feminismo e Movimento da Mulher pelo Direito ao Voto teve seu início com um grupo de
mulheres liberais brancas, que estavam preocupadas com a abolição da escravidão e a concessão
de direitos iguais para todas as pessoas independentemente de raça, classe e sexo.

No entanto, quando a XVª Emenda da Constituição dos Estados Unidos foi ratificada em
1870, concedendo aos homens africanos o direito ao voto e negando ainda esse privilégio para as
mulheres – a atitude destas mulheres brancas, em particular, mudou em relação aos negros. Ao
contrário das mulheres negras, que estavam exultantes com essa vitória para a raça negra, por
saberem que a possibilidade do voto podeia melhorar as condições da comunidade negra, as
mulheres brancas em geral ficaram desapontadas, e com razão, pois o fato de terem assumido
com benevolência a seguridade de cidadania plena para as pessoas africanas acabaria por
beneficiá-los. Assim, um movimento organizado entre as mulheres brancas da década de 1880
mudou o pêndulo de uma postura liberal para uma conservadora radical.

A Associação Americana Nacional do Sufrágio da Mulher (NAWSA) foi fundada em


1890 por mulheres brancas do norte; entretanto, “as mulheres do sul foram vigorosamente
cortejadas por esse grupo” (GIDDINGS, 1981) o que demonstrou o crescimento do nacionalismo
no final do século XIX. Partindo da postura original das mulheres em favor do sufrágio, Susan B.
Anthony reuniu a organização NAWSA, protestando que o voto da classe média de mulheres
brancas ajudaria os homens a preservar as virtudes da república da ameaça dos homens negros,
inferiores biologicamente e incompetentes, que com o poder de voto poderiam adquirir poder
político dentro do sistema americano.

Carrie Chapman Catt, líder sufragista conservadora ferrenha e outras mulheres em seu
grupo social insistiram nos valores anglo-saxões e na supremacia branca. Quiseram unir-se com
homens brancos para fixar o voto para brancos puros, excluindo tanto imigrantes pretos quanto

88
imigrantes brancos. No livro de Peter Carrol e Noble Davi Livres, ‘The Free and the Unfreet’(Os
Livres e os Não libertos), Carrie Catt é citada:

Há apenas uma maneira de evitar o perigo. Cortar o voto das favelas e dar-lhe as
mulheres brancas. [Os homens brancos devem perceber] a utilidade do sufrágio
para a mulher como um contrapeso à votação estrangeira, e como um meio de
preservar legalmente a supremacia branca no sul do país. (Citado em The Free
and the Unfreet, p. 296).

Abraçando uma firme crença na inferioridade inerente aos negros, estas mulheres
acreditavam que estes não deviam ser autorizados ao direito do voto antes delas, como não
aconteceu até 1920, na XIXª Emenda. Embora seja compreensível que as mulheres brancas se
sentiram excluídas da agenda política do direito ao voto, sua hostilidade racista e atitudes racistas
para com os africanos foram injustificáveis e, portanto, não podem ser negligenciadas.

Claramente, sua lealdade mudou quando a questão do direito do homem negro ao voto
tornou-se central para o poder político global na comunidade negra. Anna Julia Cooper
reconhece em, ‘A Voice from the South’(Uma voz do Sul) que “a causa das mulheres é a causa
dos homens: (nós) emergimos ou afundamos juntos, diminuímos ou ascendemos, seremos
escravos ou livres. (Cooper, pg.61). Além disso, Mary Church Terrell, presidente da Associação
Nacional de Mulheres de Cor, afirmou que

não somos apenas mulheres de cor... deficientes por causa de nosso sexo, mas
somos perplexamente ridicularizadas por causa de nossa raça. Não só porque
somos mulheres, mas porque somos mulheres de cor. (FREEMAN 531).

O resultado final é refletido na afirmação de Iva Carruthers, que resgatou em especial


Rosa Parks da arena feminista, no início dos anos 80, afirmando que na experiência norte-
americana o movimento feminista havia efetivamente deslocado a unidade negra, tanto no
contexto do movimento abolicionista, quanto no movimento de direito ao voto e no movimento
dos direitos civis. E assim cruzam-se os braços e permite-se que os brancos transformem Harriet
Tubman e Rosa Parks em partidárias do feminismo branco ao invés de defensoras da raça.
(Carruthers, pg.18). Coletivamente, todas estas afirmações anteciparam amplamente a ativista
nigeriana Taiwo Ajai, que, um século depois, sustentou que para mulheres de África a
“emancipação é inatingível até que os direitos básicos sejam fornecidos a todo povo [Negro].”
(Citado em Nitiri’s One is Not a Woman, pg.62-63).

89
No centro do Mulherismo Africano está a necessidade de auto-nomeação; Nommo.
Nommo destaca a necessidade de nomeação adequada de uma disciplina por mulheres de
ascendência africana e sua rejeição ao feminismo construído. Além de nomno, teóricas do
Mulherismo Africano insistem em uma agenda orientada aos africanos que "prioriza raça, classe
e gênero" (HUDSON – WEEMS 2007, p.302). O Mulherismo Africano é lucidamente
caracterizado como um princípio

auto-nomeador e auto-definidor que também é centrada na família com uma base


forte em irmandade e uma crença inabalável no relacionamento masculino-
feminino positivo como fundações para a sobrevivência dos povos africanos e da
humanidade (ALDRIDGE, 2004).

Os principais aspectos da teoria incluem a auto-nomeação e definição, centralidade da


família, irmandade genuína e uma crença em relacionamento positivo masculino-feminino, pois:

As mulheres que estão chamando-se feministas negras precisam de outra palavra


que descreva quais são suas preocupações. Feminismo Negro não é uma palavra
que descreve a situação das mulheres negras. A raça branca tem um problema
feminino, porque as mulheres são oprimidas. As pessoas negras têm um
problema masculino e feminino porque os homens negros são tão oprimidos
quanto suas mulheres. (HARE, 1993, p.15)

Na cosmologia africana, o termo nommo significa a nomeação apropriada de uma coisa


que a traz à existência. Os povos de África têm sido durante muito tempo impedidos não
somente de se autonomear, mas, além disso, de se autodefinir. Em seu livro ‘A bem amada’,
Toni Morrison reflete sobre essa situação peculiar entre os escravizados: “As definições
pertenciam aos definidores, e não aos definidos” (Morrison, 190). A impotência dos negros
durante o período colonial deve ser superada, sendo agora de extrema importância aproveitar-se
a oportunidade de tomar o controle desses dois fatores determinantes que, se interconectados em
nossas vidas, poderão evitar o isolamento, degradação e aniquilação em um mundo perdido de
ganância e violência.

Por causa do fator racial crítico para os negros, outra estudiosa, Audrey Thomas
McCluskey, conclui que "as mulheres negras devem adotar um termo culturalmente específico
para descrever a sua experiência racializada", na medida em que ela é astutamente ciente de que,
para as mulheres negras, estando dispostas ou não de perseguir esta questão ao ponto de nomear-
se de forma independente, “o debate sobre os nomes reflete questões mais profundas do direito à

90
auto-validação e das reivindicações de suas próprias tradições intelectuais" (McCLUSKEY,
1994, p.2). Daí, a necessidade crucial de auto-nomeação e auto-definição, um fenômeno
interligante, tornar-se crucial conforme devemos entender que quando você dá nome a uma coisa
particular, você dá simultaneamente significado. Nommo, então, um termo que o teórico cultural
africano, Molefi Asante, chama de "o poder gerador e produtivo da palavra falada" (ASANTE,
1997, p.17), significa a nomenclatura adequada de uma coisa que por sua vez revela a sua
essência. Ao particularizar o conceito,

“Nommo, no poder da palavra... ativa todas as forças de seu estado congelado de


modo que estabelece uma concretude da experiência... sejam elas felizes ou
tristes, trabalho ou lazer, prazer ou dor, de uma forma que preserva a humanidade
[do indivíduo]" (HARRISON, 1972, xx).

Há ceticismo entre algumas ativistas africanas em relação ao conceito de feminismo no


contexto Africano. Seu argumento é que as feministas do Ocidente têm diferentes motivos e
meios em comparação com as mulheres africanas. À luz dessa contemplação, Mikell (1999)
afirma: a nova abordagem africano-feminista difere radicalmente das formas ocidentais de
feminismo que se tornaram familiares desde os anos 1960.

Quando colocamos as mulheres no centro de nosso pensamento, constituimos a criação


de uma matriz histórica e cultural a partir da qual as mulheres podem reivindicar autonomia e
independência sobre suas próprias vidas. Para mulheres da cor, tal autonomia não pode ser
conseguida em condições de opressão racial e de genocídio cultural. Em suma, “feminismo”, no
sentido moderno, significa empoderamento das mulheres. Para as mulheres de cor, tal igualdade,
enquanto poder, não pode ocorrer a menos que as comunidades em que vivem possam
estabelecer com sucesso sua própria integridade racial e cultural. (Aptheker,19).

Aptheker deixa claro que tratar de questões de raça para mulheres negras é um pré-
requisito para abordar as questões de gênero. O reconhecimento das diferenças na luta específica
das mulheres brancas contra a dominação masculina branca dentro e fora de seu domínio privado
e das mulheres negras em uma luta de libertação compartilhada com os seus pares do sexo
masculino torna-se crucial para a discussão. Linda LaRue, cinco anos antes de  Bettina Aptheker,
compreendeu os vários graus de dominação branca masculina em relação aos homens negros e
mulheres brancas. LaRue diz:

91
os negros são oprimidos e isso significa excessivamente sobrecarregados, injusta,
severa, cruel e duramente agrilhoados pela autoridade branca. As mulheres
brancas, por outro lado, só são suprimidas, e isso significa que são verificadas,
contidas e excluídas da atividade consciente e evidente. Esta é uma diferença
(LaRue, 218).

A Mulherismo Africano deve sua origem a uma dinâmica diferente do que aquela que
gerou o Feminismo Ocidental. Tem sido amplamente moldada pela resistência das mulheres
africanas em face da hegemonia ocidental e seu legado na cultura africana. (Mikell 1997: 4) Ela
especifica mais as diferenças entre as mulheres ocidentais e africanas: as mulheres ocidentais
foram enfatizando a autonomia feminina indivídual, enquanto as mulheres africanas têm
enfatizado as formas culturalmente relacionadas de participação pública (ibid.). Portanto, mesmo
o termo feminismo parece inadequado para muitas teóricas femininas africanas; como eles
preferem usar o termo womanism (mulherismo).

Como Hudson-Weems escreve:

A Mulherista africana é significativamente diferente da feminista convencional,


particularmente na sua perspectiva sobre e abordagem das questões da sociedade.
Isto é de se esperar, pois, obviamente, as suas realidades históricas e presentes
posições na sociedade não são as mesmos. Mulheres africanas e as mulheres
brancas vêm de diferentes segmentos da sociedade e, assim, o feminismo como
uma ideologia não é igualmente aplicável a ambos. (Hudson-Weems 1998: 154)

Marie Pauline Eboh especifica a diferença entre feministas ocidentais e mulheristas


africanas:

Mulheristas negras, ao contrário das feministas brancas, evitam amargura em sua


confrontação e de relacionamento com os homens. Eles não negam os homens,
ao contrário, elas acomodam-nos; homens são centrais para as suas vidas não
apenas como maridos, mas também como filhos e irmãos e sua presença contínua
é assegurada. (...) O sucesso do Mulherismo Africano deriva da consciência
descoberto por mulheres de sua indispensabilidade para o sexo masculino (Eboh
1998: 335f.).

Nem todas as mulheres africanas ativistas se opõem ao termo feminismo embora seus
esforços divirjam do feminismo ocidental. Pode-se dizer que o 'mulherismo' africano não é
totalmente diferente de 'feminismo' ocidental, especialmente à luz da vida moderna, onde a
mulher africana está relativamente enfrentando os mesmos desafios que a ocidental; violência
doméstica, direitos das mães solteiras cujos números estão crescendo diariamente e

92
discriminação no local de trabalho. Nós não só precisamos concentrar nossa atenção sobre a
mulher africana tradicional que é a guardiã real da sua cultura, mas que também sofreu imensa
transformação e está enfrentando os desafios da globalização e exigências da vida moderna
assim como a mulher ocidental. No entanto, tanto o feminismo ocidental e o mulherismo
africano são teorias que favorecem um grupo na sociedade, o das mulheres, e uma perspectiva
feminista reveste-se de um caráter essencialmente tendencioso.

Um dos principais pontos fortes da Teoria Mulherista Africana é a constatação de que "as
mulheres não são um bloco monolítico; eles são divididos por raça, classe, cultura e por
experiências de vida" (Ferris, 2006). As diferenças entre essas categorias são muito grandes e,
portanto, generalizar sobre elas pode ser difícil embora às vezes as conexões surjam nos
elementos mais inesperados como na "linguagem comum de opressão" (Tanya 2004, 3). Como
ponto de partida, mulheristas africanas isolam as mulheres africanas da categoria geral que inclui
as mulheres não-africanas.

A teoria não só isola mulheres africanas do resto da categoria mulher, também permite às
mulheres de ascendência africana uma oportunidade para conectar umas com as outras e unir
forças a partir de suas condições compartilhadas ao explorar os laços que as unem, levando à
solidariedade internacional. Este é o caso, porque a teoria refere-se às realidades das mulheres
africanas no continente, bem como na sua diáspora. O termo e a disciplina do mulherismo
africano

preenche uma lacuna criada pela desvinculação das mulheres africanas dos
movimentos promovem desigualdade e os mantêm definhando nos limites do
mundo branco (Ntiri-Quenum de 2007, 315).

A Teoria Mulherista Africana tem, portanto, o potencial de efetuar a mudança e fazer


"contribuições para o discurso afrocêntrico sobre homens e mulheres africanos" significativas
(Hudson-Weems, 2007, pg.294-295) Melhor do que o esperado, referindo-se aos elementos
opressivos que afetam as mulheres africanas, a teoria é forte em sua abordagem afrocêntrica. Não
apenas proporcionou às mulheres africanas uma oportunidade de falar sobre suas vidas em seus
próprios termos, mas aqui há uma oportunidade para elas demonstrarem todas as suas qualidades
positivas. Na medida em que elas são violadas de diversas maneiras que elas são "o próprio
fundamento da vida, quer saibam disso ou não" (Hudson-Weems 2004, pg.66) e "o gênero

93
feminino é o centro da vida, o ímã que mantém o centro do cosmos intacto" (Sofola citado em
Hudson-Weems, 2004, pg.66).

Mulheristas africanas voltam na história e recuperam mulheres africanas que são


testemunhos da centralidade das mulheres africanas para a existência humana. Em busca da
verdade histórica mulheres africanas levantam questões sobre as idéias que a história pode
oferecer em suas lutas tanto contra o racismo e o sexismo (Wheeler de 2007, 321), mas o grande
desafio continua sendo que a mulher africana, assim como o termo mulher não é um bloco
monolítico. O que é particularmente problemático é a combinação e a posse de uma abordagem
que elenca os problemas de uma categoria, mas duas realidades separadas, a do continente
africano e o da sua diáspora. Na medida em que as mulheres do continente e da diáspora
pertencem à mesma categoria, as suas realidades são bem diferentes. Considerando que as
mulheres africanas na diáspora ainda estão existindo nas sociedades racistas, aquelas no
continente podem não identificar a raça como um problema imediato em seus encontros diários
porque a maioria dos países africanos é independente do domínio político imperial.

Talvez seja por isso que a maior parte dos trabalhos das escritoras negras opera dentro da
cultura ideologicamente dominante do feminismo convencional. O aspecto racial não é apenas
mínimo em seus escritos, mas nem sempre faz parte dos desafios diários para as mulheres
africanas contemporâneas do continente africano. Assim, configura-se como se essas escritoras
africanas no continente não estivessem operando dentro das paredes do mulherismo africano; isto
pode ser discernido dos vários trabalhos literários escritos por mulheres em alguns países da
África.

A maioria dos trabalhos existentes que podem ser classificados como literatura feminista
africana hoje são principalmente o resultado de pesquisas pioneiras sobre as condições das
mulheres africanas, tanto no passado quanto na contemporaneidade. Muitos estudiosos e
escritores que trabalham dentro das disciplinas sócio-históricas têm se engajado na crítica
feminista de um tipo rigoroso. Mas quando se trata da filosofia propriamente dita, parece que as
principais figuras na disciplina, têm quase, de forma conspiratória, evitado a discussão feminista.
O feminismo no Ocidente de hoje refere-se a uma ampla gama de abordagens e teorias, os quais
abordam diferentes aspectos da discriminação social contra as mulheres.

94
Já vimos o funcional, estrutural, marxista, socialista, psicanalítico, e, mais recentemente,
o feminismo pós-modernista. Estes movimentos sociopolíticos e teorias às vezes levantam e
discutem questões filosóficas. No entanto, seu objetivo comum é identificar políticas e
programas que serão úteis para promover a emancipação social, econômica e política das
mulheres. A Filosofia Feminista, no entanto, é um envolvimento na análise crítica direta e
análise de diferentes visões de mundo e posições filosóficas sobre a natureza da realidade, do
homem e da mulher, e como estas servem como justificativas para o tipo de relação que existe
entre os dois sexos. O principal objetivo é expor as diferentes teorias cientificamente falsas, e os
princípios racionalmente injustificáveis.

Seja como for, os problemas das mulheres Africanas além do racismo, incluindo
brutalidade física, assédio sexual, e subjugação do sexo feminino em geral, exercida tanto dentro
quanto fora da comunidade Africana, em última instância tem que ser resolvidos numa base
coletiva dentro de suas comunidades. Porque

“os homens africanos, infelizmente, internalizaram o sistema patriarcal, em certa


medida”, eles devem se reunir com os seus homólogos do sexo feminino e
trabalhar para eliminar influências racistas em suas vidas em primeiro lugar, com
a percepção de que eles não podem tolerar nenhuma forma de subjugação do
sexo feminino (Hudson-Weems, Africana Womanism, pg.63).

Na mesma linha, Ntiri resume a posição de Mompati de que o sexismo “é basicamente


um problema secundário que surge de preconceitos de classe e  raça” (Citado em Africana
Womanism, pg.5). Ainda que Steady seja falha em seu auto-posicionamento ou em estabelecer
sua posição, ela demonstra, no entanto, um forte senso de prioridades na seguinte citação, que é
claramente alinhada com o sentido de priorizar as questões raciais inerentes à Africana
Womanism.

Independentemente do cargo, as implicações do movimento feminista para a mulher


negra são complexas. Vários fatores colocaram a mulher negra à parte, tendo uma ordem
diferente de prioridades. Ela é oprimida não simplesmente por causa de seu sexo, mas
ostensivamente por causa de sua raça e, para a maioria, essencialmente por causa de sua classe.

As mulheres pertencem a diferentes grupos sócio-econômicos e não representam uma


categoria universal. Devido à maioria das mulheres negras serem pobres, não é provável que haja

95
alguma alienação do movimento de mulheres proviniente de um aspecto de classe média, que
percebe o feminismo como um ataque aos homens ao invés de um ataque a um sistema que
prospera na desigualdade (Steady, The Black Woman, 23-24)

Além disso, em seu artigo Women in Africa and the African Diaspora (Mulheres em
África e na Diáspora Africana), ela afirma ainda que:

Para a maioria das mulheres negras, a pobreza é um modo de vida. Para a maioria
das mulheres negras o racismo também tem sido o obstáculo mais importante na
aquisição das necessidades básicas para a sobrevivência. Através da manipulação
do racismo, as instituições da economia mundial têem produzido uma situação
que afeta negativamente os negros, especialmente as mulheres negras […] O que
temos, então, não é simplesmente uma questão de diferenças de sexo ou classe,
mas uma situação que, por causa do fator racial, foi moldada em escala nacional
e global (Steady, African Feminism 18-19).

Apesar da posição geral na academia, as mulheres africanas não veem os seus homólogos
masculinos como seu principal inimigo como o faz a feminista branca, que está travando uma
batalha milenar com o seu homólogo por subjugá-la como sua propriedade. De acordo com a
primeira mulher dramaturga da Nigéria, ‘Zulu Sofola:

Isto [o sistema dicotômico de gênero entre homens e Mulheres Africanas] não é


uma batalha onde a mulher luta para conquistar alguns poderes dos homens, mas
[que], conseqüentemente, ajustou-se ao perpétuo conflito de gênero que tem
envenenado agora a saudável ordem social anterior da África tradicional (Citado
por Sofola em Africana em womanism, pg.47).

Awa Thiam, nascida no Senegal em 1950, uma feminista africana. Thiam é


especialmente reconhecida por sua obra de denúncia sobre a situação das mulheres no
Continente Africano. Escreveu um livro extremadamente importante: La Parole aux négresses
(1978), publicado no Reino Unido chamado "Black Sisters Speak Out" (Hablan las hermanas
negras) (1978), uma análise feminista sobre a opressão das mulheres africanas. Com diversas
entrevistas e ensayos e um capítulo de denúncia sobre a Mutilação Genital Femenina e por ter
falado tão franca e abertamente, foi condenada ao ostracismo no Senegal. As pessoas a
criticaram massivamente, questionando-a: "Por que expõe nossa cultura desta maneira
negativa?". En 1983 publicou outro estudo sobre a mulher africana: Continents noirs. Thiam
alega que as forças políticas que vêem as mulheres somente como nudez sempre vão fazer vistas
grossas porque essas ocorrências só reforçam seu ponto de vista negativo sobre as mulheres.

96
O manifesto de Awa Thiam “La parole aux négresses” (1978) mostrou que o momento
havia chegado, para as mulheres, de sair do silêncio e  de expor “seus males” através das
“palavras”. Awa Thiam reivindica com brio a liberação das mulheres, como atestam as
expressões que utiliza ao longo de sua obra: “agir”, “extinguir”, “tomar a palavra”, “encarar”,
“afirmar a recusa”, “revolta”, “não se sujeitar”, etc...

Pela palavra das mulheres, Awa Thiam questiona o patriarcado que avilta as mulheres e
lhes confere um papel secundário na sociedade:

É sabido que, nas sociedades patriarcais, as mulheres não tem opinião. Sob uma
poligamia institucionalizadas, quando não têm uma atividade remunerada,
dedicam-se, de acordo com tal ou tal etnia, à agricultura de arroz, algodão, milho,
amendoim e desempenham as tarefas domésticas. Os homens tem a supremacia
do poder, as grandes decisões lhes cabem, sem que as mulheres sejam a elas
associadas (Thiam, 1998: 21-22).

Awa Thiam intervém e exige a reconsideração da condição das mulheres:

As mulheres devem e podem tomar posição em relação à condição que lhes é


atribuída. A renúncia, face aos problemas, pode parecer cômoda, mas, na
realidade, é infrutífera (Thiam, 1998: 9).

Não se pode perder de vista, porém, que o manifesto de Awa Thiam havia levantado uma
vaga de reprovação. Como todas as mulheres que tomam posição para denunciar a dominação
masculina, Awa Thiam era considerada como uma mulher “desenraizada”, guiada pelas idéias
vindas do Ocidente.

O elitismo, no cerne destes movimentos, não permitiu que se levassem em conta as outras
camadas da sociedade, o que os tornou mais frágeis. Apesar do excelente  trabalho realizado por
estes movimentos, não houve, entretanto, uma renovação de seus membros para assegurar a
continuidade com as jovens gerações.

Sophie Bosede Oluwole é professora da Universidade de Lagos, Nigéria. Oluwole studou


em Moscou, Colônia, Lagos e Ibadan, onde ela obteve PhD in 1984. Depois de ter estudado
filosofia na Alemanha voltou para seu país e lecionou Egiptologia, considerada como a filosofia
africana da Antiguidade, fonte onde os europeus antigos, e, sobretudo os gregos, beberam.

97
Uma vez atuando como chefe do departamento de filosofia da universidade de Lagos,
Nigéria, e Presidente da Associação Nigeriana Filosófica, ela recente se aposentou como
Professora de Filosofia na Universidade de Lagos. Para Oluwole, o pensamento filosófico
acontece em todas as partes do mundo, em toda África, mas em cada contexto tem suas
peculiaridades. A questão seria saber se há algum componente filosófico que esteja permeando e
abarcando todas as diferenças culturais, uma vez que não é possível continuar considerando os
sistemas ocidentais de argumento e racionalidade como aqueles que trazem as verdades
apodíticas. Ela é fundadora do Imódòye: Jornal de Filosofia Africana e editora da Coleção de
Filosofia Africana publicada pela Excel (Lagos). Ela tem publicado sobre tradições orais Yoruba
e filosofia, especialmente o corpus Ifá, e sobre perspectivas africanas relativas às mulheres e ao
desenvolvimento.

Interessada na questão da história do pensamento africano, ela identifica a tradição oral


nativa como o arcabouço suficiente para uma investigação filosófica. Sophie Oluwole procurou
nas tradições da linguagem Ifá, conhecida por se referir à feitiçaria, as máximas que busca
sistematizar e compreender na forma de pensamento racional. Dentro de um panorama de
pobreza, guerra civil, degradação ambiental, vive um grande continente, a África. Rica em
cultura, pessoas, danças, cores, natureza e sons, a África sobrevive. Nesse contexto surgem
grandes mulheres, que lutam, criam seus filhos, que pensam e escrevem. Em um ambiente de
embate entre o teórico e a prática, surge uma nova visão de filosofia. Pensamento enquanto ação,
a investigação que estrutura a práxis.

Sophie Oluwele, diz que:

não é um eufemismo dizer que a principal área da filosofia africana hoje


permanece basicamente indefinida. Isto é porque não há um acordo geral sobre a
natureza da filosofia africana ou acerca de uma visão de mundo específica, que é
geralmente aceita como representante da ideologia intelectual africana (1998:
96).

Os primeiros negros africanos que defendiam a cultura africana e visão de mundo contra
a intimidação ocidental foram Edward Wilmot Blyden (1832-1912) Aimé Césaire (1912-) e
Léopold Sédar Senghor (1906). (1998: 97). Eles foram, contudo, acusados por Wole Soyinka
pela formulação de uma visão de mundo africano simplesmente em oposição e, portanto, em

98
termos de uma visão ocidental do mundo (Soyinka). De acordo com Oluwele, o Padre Placide
Tempels, com seu livro Filosofia Bantu (1959) pode justificadamente ser considerado como:

pai da etno-filosofia, tendo postulado a existência de uma única e primitiva


filosofia compartilhada por, pelo menos, todos os membros de uma sociedade
africana (1998: 98).

Tempels tem sido respondido ou duramente criticado por, entre outros F. Crahay de
Kinshasha, P. Hountondji, Henry Oruka, Lucius Outlaw, a própria S. B. Oluwele e Zulu Sofala.
Sophie Oluwele sugere que os textos orais fornecem uma entrada importante para a consciência
africana.

Seu trabalho intitulado Witchcraft, Reincarnation and the God-Head; Issues in African
Philosophy (Feitiçaria, Reencarnação e a Cabeça-Divina; Questões da Filosofia Africana, Lagos,
1992), contém ensaios e palestras a partir de 1976 até a década de 1990. Ele é dividido em duas
seções: Problemas Eternos (1) e Questões Políticas (2).

Na primeira seção, Oluwole aplica-se à investigação de duas questões que desempenham


um papel importante na vida cotidiana africana: a análise da magia, a crença em Deus, e os
princípios da moralidade Yoruba. A autora enfatiza que esses fenômenos não vão ser abordados
a partir de uma perspectiva rígida, científica que exclui qualquer coisa que não se encaixa dentro
do sistema. Mistérios são fenômenos que ainda não são compreendidos, no entanto, isso não
significa que eles nunca poderão ser entendidos. A ciência não deve simplesmente ignorá-los ou
declará-los não reais, mas deve analisar e documentar esses fenômenos em vez disso, tentando
entender o seu funcionamento. Assim Oluwole, influenciada pela teoria cognitiva, faz tentativas
de verificar os processos de pensamento que estão na base dessas abordagens para o mundo e
como elas influenciam as estruturas sociais.

Os ensaios na segunda parte de seu volume, são um tanto provocativos no concernente às


questões políticas. No artigo "A Neutralidade Institucional e Liberdade Acadêmica", ela propõe
que a reivindicação das universidades por liberdade acadêmica não pode ser separada da questão
da neutralidade individual de cada acadêmico. O núcleo da liberdade acadêmica e integridade
intelectual é simplesmente a indiferença para com os resultados das investigações. Desde que a

99
liberdade política é exercida sob a égide da liberdade acadêmica, o engajamento das instituições
políticas se justifica, na opinião de Oluwole.

Sua análise sobre "Democracia ou Mediocridade" é igualmente provocante. A


democracia está baseada no sufrágio universal e na elegibilidade, mas, enquanto o direito ao voto
como um direito político básico é inquestionável, a elegibilidade universal é um pouco mais
problemática. Os seres humanos são diferentes em ambas as qualidades e habilidades, portanto,
nem todos os seres humanos são igualmente qualificados para exercer o poder. Assim, o
problema das sociedades modernas e democráticas é sua negligência das diferenças individuais
das pessoas. Elas são vistas como tendo que ser "iguais". Oluwole argumenta que é a tarefa da
ciência política moderna para encontrar uma solução para este problema.

A intelectualização de gênero tem sido globalmente emoldurada pela guerra de idéias,


ideologias, raças e conhecimento. O feminismo moderno tem como premissa o princípio central
de que "todas as mulheres são oprimidas" (Hooks, 1998: 340). Essa crença fornece a justificativa
para a simbolização da "terra conquistada" com "corpos femininos" por escritores ocidentais
coloniais e pós-coloniais e artistas visuais (Loomba, 1998: 152). O objetivo do movimento
feminista, então, é o de garantir a libertação das mulheres das restrições artificiais da histórica
desigualdade de gênero (Baradat, 2003: 284).

Nas culturas ocidentais, a diferença é estritamente implícita na conceituação social de


gênero. Desde a influência que o gênero tem sido capaz de controlar na política mundial dos
sexos assenta-se em ser um sistema estruturante da vida social; ela só pode ser organizada de
acordo com "dois status de gênero socialmente e legalmente reconhecidas, homem e mulher"
(Lorber, 1994 : 26). Posteriormente, então, ao insistir que o macho e a fêmea são imagens de
diferença, a humanidade moderna torna-se polarizada, portanto mis-gênero. Essa politização do
gênero, e da consequente politização da humanidade, atravessa os corredores das torres de ébano
e de marfim do mundo, e até mesmo, das páginas de documentos estratégicos das Nações
Unidas.

O discurso feminista pós-colonial está mergulhado no mal da politização da


representação e da representação de uma estreita e contrária política de gênero. Este fator tem

100
jogado a África em um monólogo patriarcal em que o componente matricentrista da humanidade
africana tem notoriamente desaparecido. Infelizmente, muitos estudiosos africanos do feminismo
encontraram-se enredados nesse dilema intelectual como seus mentores europeus. Uma via de
ascenção de gênero foi mesmo construído no discurso pós-colonial de "forma cuidadosamente
hierárquica" de tal forma que "o outro racial, figurou como a fêmea ou afeminado", sempre foi
falocolonizado. Aqui cabe uma reflexão sobre o personagem Manecas, um menino-feminino.
Esta orientação de reflexão do gênero e diferenciação sexual tem sua conceituação arquetípica na
genuína fonte da própria ortodoxia feminista, o Ocidente, onde "as mulheres foram colocadas em
um papel subordinado em textos judiciários, culturais e históricos" (Quayson, 2000: 109). A
óbvia definição errônea por gêneros na África pela erudição ocidental, e seus asseclas africanos,
não é alheia à subordinação do intelecto cultural do continente em relação à máquina de guerra
das realizações dos estudos acadêmicos euro-americanos. A visão da diferença está atrelada com
a intenção de polarizar.

Epistemologicamente, o enquadramento social, de gênero e feminista têm seriamente se


interseccionado com a análise global de gênero. Problemas conceituais e teóricos, tais como
"relações de intimidade; reflexividade e identidade de gênero; relações entre sexo, gênero e
forma de realização; e masculinidades e sexualidades" são o que Ann Brooks (2006: 211)
considera crucial para estes problemas de interseções epistemológicas. A conceituação
tradicional de gênero através de classe, raça, etnia, nacionalidade e paradigmas epistemológicos
foi desconstruída pelo que, de acordo com Brooks (2006), Beck e Beck-Gernsheim (1995) foi
vista como "nova modernidade" - "uma noção altamente ocidentalizada de modernidade (2001).
Esta posição é o que Brooks critica em seu ensaio; "O conhecimento produtor de gêneros", que
problematiza a relação entre a modernidade, a reflexividade e gênero como criticada por Gole
(2000) e Roces e Edwards (2000). Este último tinha notado que, no processo de construção de
uma forma de modernidade que é conceitualmente não-ocidental, as mulheres asiáticas estão
reafirmando "o caráter distintivo de uma subjetividade nacional específica a partir de uma
suposta identidade ocidentalizante hegemônica " (4-5).

Chandra Mohanty (1994) é da opinião de que através de discursivamente produzir uma


"mulher do terceiro mundo" separada, estudos feministas ocidentais que podem ser acusadas de
bairrismo tem criado uma espécie homogeneizada que coincide com o imaginado "Outros" da

101
fêmea cultural e material ocidental. Ao criticar o estudo feminista de Julia Kristeva de mulheres
chinesas pela sua fundação histórica superficial e generalização especulativa, Gayatri Spivak
(1981) expressa desgosto com a forma como o discurso feminista ocidental opera através de um
prisma estreito e superficialmente marca o universal através do específico.

A sugestão de Patrick Wilmot (2007) que "os primeiros intelectuais foram,


provavelmente, as mulheres" (pg.101) é outra das muitas declarações de diferença para tal
monologismo patriarcal eurocêntrico. Ifi Amadiume (1997) também observa um sistema ausente
do matriarcado no estudo das sociedades africanas por intelectuais europeus, insistindo em que a
unidade de produção matricentrista é "a estrutura material básica do matriarcado africano"
(pg.29), que foi difundida em todos os sistemas sociais tradicionais africanos. Sua observação de
que o princípio matriarcal que defende "a presença básica desta unidade de produção
matricêntrica" torna "mesmo o culto aos ancestrais patrifocado, embora separado e em oposição
binária ao matriarcado, não monoliticamente masculino", é bastante correto. Ambos os Egungun
e Sango cultos em que ritualidade, arte e socialização não podem ser isoladas dos símbolos
femininos, corpos, princípios e valores que a Iya Agan e Iya Sango representam são fortes provas
desta submissão no mundo Yoruba. Exatidão Cultural é, portanto, essencial na explicação
escolástica de pessoas, sistemas e experiências.

Nzegwu (2004) adverte, assim, contra as "más interpretações do ethos cultural das
sociedades africanas", especialmente por feministas africanos para quem,

a tese impressionante de opressão oferece uma poderosa ferramenta analítica que


fornece uma explicação essencialmente abrangente para desvantagens óbvias das
mulheres nas sociedades (pg.565).

Politização do gênero precipitadas e representações decorrentes de "deturpações do ethos


cultural" em muitas sociedades do mundo e como ele é capaz de minar a radicalidade potencial
da própria luta feminista é o que os estudiosos como Marie Eboh (1998), Helen Chukwuma
(1990) e Bell Hooks (1998) objetivamente criticaram. Obtendo os quadros analíticos endireitados
por escritoras feministas africanas e críticas, então, não seria apenas o gênero correto, também
ajudaria na luta contra o que Papoulias (2006: 231) observa como os "impasses metodológicos
na teorização de gênero em todas as disciplinas".

102
Até mesmo na própria cosmologia Bantu, o coração feminino e o corpo, assim como o
masculino, é equilibrado por ser um depósito de províncias criativo-destrutivas da natureza - um
paradigma cujo misticismo influenciou muito o matricentrismo e o patricentrismo na produção
literária de Boaventura Cardoso. O ativismo de gênero de Boaventura Cardoso, então, depende
da norma correspondente que postula uma respiração no cruzamento entre o macho-fêmea e em
seções e resoluções de conflitos de natureza bem-mal da humanidade.

Estudiosos africanos, então, tem o mandato para serem cautelosos com a bolsa de estudos
da moda e seus enquadramentos, por vezes estereotipados. Ser verdadeiro à realidade metafísica
do continente é recomendado como o antídoto mais potente para o furioso dilema intelectual
afro-modernista e seu enlaçamento com a via da legislação feminista ortodoxa. Um profundo
conhecimento de filosofia operativa de um escritor é imperativo para críticos que escolherem o
caminho feminista, para fazer declarações e contribuições críticas profundas e bem afiadas para
as realizações dos estudos acadêmicos literários e teatrais africanos. A crítica afro-feminista deve
levar em conhecer a metafísica de gênero, em vez de políticas de gênero. Na verdade, isso é o
que a criatividade de Soyinka e alguns outros escritores neo-primitivistas africanos exploram.
Soyinka é um místico de gênero. É nessa categoria que pretendemos enquadrar a partir desta
investigação o próprio Boaventura Cardoso com Mãe, Materno Mar.

A mudança social e espiritual são tão necessárias quanto necessitadas de um catalisador


(Mosse, 1993) e as mulheres, assim como os homens, tenham sido comprovadamente utilizados
como catalisadores de mudança sócio-espiritual na obra de Boaventura Cardoso. Não só eles são
vasos de esteio revolucionário de suas obras, são vozes introspectivas do protesto, cultivadores
do valor comum e preservadores da ética revolucionária com forte implicação para o futuro da
sociedade. Mosse está convencido de que "o ressurgimento das mulheres como atores no palco
mundo é uma das dinâmicas mais potentes na luta contra uma ordem social injusta" (2002). Esta
posição teórica autentica o pragmatismo criativo de gênero de Boaventura Cardoso.

Além de personagens fictícios, Boaventura Cardoso apresenta personagens factíveis para


ressaltar sua crença de que a mulher é tão intelectual, religiosa e sócio-politicamente capaz e
entusiasmada quanto os homens. Sua obra reflete os espaços inscritos de liderança matricentrista

103
dentro do qual as mulheres código integralmente funcionam como parceiros iguais e capazes no
projeto social de desenvolvimento. Este é um fato histórico incontestável.

Durante a narração constatamos o apagamento das mulheres próximas tanto no nome,


imagem, atitudes, importância e a valorização ou idealização das mulheres distantes como a mãe,
a ex-namorada e a esposa decapitada. Embora imagens femininas, como a mãe e a primeira
namorada, a noiva e as divas kamasutras, dentro de um tecido social que reconhece homens e
mulheres como parceiros no progresso comunitário, tornem-se instrumentos do simbólico e da
desmasculinização do então Manecas, o menino-feminino do olhar de águas incontroláveis que
explicita um olhar feminino sobre a questão desagradável das tribulações das mulheres. Esse viés
perceptivo evidencia-se no personagem também pelo fato de ter sido amamentado até os 13 anos
de idade, no tempo de 14 anos consumidos pelos Caminhos-de-Ferro para serem construídos e
que se repete na viagem que dura 15 anos; tempo da maturação sexual humana. Tal característica
do seu desenvolvimento indica que o feminino desempenha um papel constitutivo predominante
tanto no seu ser e na sua ontologia matrifocal quanto na relação de depêndencia e na busca de
suas tradições culturais que reconecta o seu ser à epistemologia matrilinear tradicional.

O Clássico de Clarissa Pinkola Estes Mulheres que correm com os lobos: Mitos e
Histórias da Arquétipo da Mulher Selvagem (1992), visa restaurar a vitalidade de sinalização das
mulheres através de extensas "escavações arqueológicas psíquicos nas ruínas do submundo do
sexo feminino". O que Estes faz referência como o companheiro de Eu-Infantil/Eu-Alma
associado à feminilidade nunca é uma força em falta na originária sistematização matriarcal ou
patriarcal de gênero sócio-espiritual africano. Para "Womanity" (Mulheridade, em oposição à
Humanidade) ser resgatada da tendência ao esquecimento do que ela é e do que são suas
responsabilidades, que ela deve ser constantemente interrogada.

A observação de Wole Soyinka de que a obrigação do artista-filósofo no domínio


humano necessita ter sua resposta sócio-mitopoética através da dimensão criativa. A
Mulheridade (Womanity) continua a ser um local ancestral de ruínas antigas. Convertendo o
espaço em um sítio arqueológico de descobertas surpreendentes e rentáveis para a continuidade
da humanidade é a responsabilidade de uma mitógrafa como Pinkola Estes e um mito-autor
como Boaventura Cardoso. Escavações e descobertas arqueológicas e filosóficas, não só

104
preservam a memória, elas igualmente validam as verdades sobre os mitos, lendas e outros fatos
remotos. Eles validam a verdade sobre nós: a verdade sobre a única humanidade da mulher e do
homem. A literatura é indubitavelmente uma das vias imprescindíveis para uma aproximação
deles à realidade social, política e cultural do continente africano.

Ao longo da história da humanidade, os encontros entre culturas diferentes foram quase


sempre marcados pela superioridade de umas sobre as outras, pela hierarquização, inferioridade,
desqualificação e invisibilidade, transformando-as em não existentes porque diferentes. Com a
expansão europeia e a construção da racionalidade científica ocidental, os povos que se foram
encontrando e subjugando, e a maior parte das vezes exterminando, porque diferentes e com
formas de organização social diversas das que prevaleciam na Europa, foram sendo considerados
o outro, o ignorante, o residual, o local, o improdutivo (Santos 2002). Durante muito tempo, as
sociedades ditas tradicionais foram envoltas em concepções de intemporalidade, como se
estivessem paradas no tempo, impossibilitadas de se desenvolver por concepções atávicas dos
seus povos (Gentili 1999).

As informações e análises produzidas sobre as sociedades matrilineares até aos anos 70-
80 do século XX revelam alguma ignorância, uma visão distorcida e preconceitos, tanto da parte
de investigadores homens como mulheres, devido ao modelo de sociedade dominante de que se
parte e à dificuldade de entender e aceitar sociedades com características diferentes. Nestas
análises, a matrilinearidade é muitas das vezes entendida como a contraparte da patrilinearidade,
ou como uma forma primordial de organização social desaparecida no contexto de relações de
produção capitalistas e patriarcais, de acordo com uma visão evolucionista.

As análises feministas sobre a história das mulheres em várias partes do mundo, a maior
visibilidade e reconhecimento das feministas do chamado Terceiro Mundo no estudo das suas
sociedades, no passado e no presente, e o acumulo de informações acerca de sociedades na
Europa, no período do Paleolítico, entre 6500-3500 AC, permitiram que o campo de estudos
sobre as sociedades matricêntricas voltasse a estar no centro das atenções.

A literatura consultada sobre algumas sociedades matrilineares – características de


sociedades agrárias – na África Austral e Central, na África Ocidental e na Indonésia, para referir

105
apenas alguns exemplos, dá conta da sua existência, num contexto de relações capitalistas de
produção, que provocaram mudanças e processos de negociação e de acomodação com outras
formas de organização da sociedade, mas também da sua resistência contra a perda da terra e de
outros recursos importantes, contra as mudanças no estatuto das mulheres.

Alguns autores adiantam como uma das possíveis razões para a sua resistência o fato de a
matrilinearidade minimizar o controle masculino individual do poder e dos recursos e implicar a
percepção de abundância e de acesso irrestrito aos recursos, enquanto a patrilinearidade está
associada à percepção de escassez econômica e acesso restrito aos recursos, em contextos de
instabilidade provocada pelas mudanças na divisão de trabalho, pela perda gradual dos recursos,
especialmente a terra, pelas transformações na constituição das famílias e nas relações de poder
entre os seus membros, mulheres e homens, jovens e idosos, com ou sem posições de poder.

O ressurgir dos estudos sobre as sociedades matrilineares tem revelado que as formas
matrilineares de organização e ideologia dão maior espaço social e político às mulheres, o que
contradiz a ideia prevalecente de que a matrilinearidade não assegura maior autoridade para as
mulheres, mas que esta apenas circula através do irmão da mãe e não através do pai (Bonate
2003a, 2003b, 2005, 2006). Os investigadores fazem igualmente referência ao maior grau de
independência, autonomia, autoridade formal nas políticas locais e nos rituais, no controle de
rendimento, nas decisões respeitantes à educação dos filhos e relações familiares, vividos pelas
mulheres nos grupos matrilineares (Amadiume 1987, 1997, 2005, Arnfred 1999, Peters 1997a,
1997b).

Existem, na atualidade, sociedades matricêntricas ou de filiação matrilinear que vivem da


agricultura, com uma história que se prolonga no passado, em que as mulheres têm autonomia,
controlam a sua vida econômica, social e sexual. O modelo ocidental androcrático tornou-se
dominante com a expansão europeia e tem sido reforçado com a globalização neo-liberal dos
últimos vinte anos, mas o desenvolvimento das sociedades não é linear, como postulado pelas
teorias evolucionistas, defendendo a evolução das sociedades primitivas para sociedades
industriais altamente desenvolvidas, de acordo com determinados estágios, e em que a sociedade
patriarcal é considerada a mais apta à transformação econômica e social rumo a um futuro
glorioso.

106
As sociedades matrilineares ainda existentes não são transitórias, foram capazes de se
adaptar a sistemas competitivos e não se desenvolveram do mesmo modo, em direção ao
patriarcado, sendo reveladoras de variadas dinâmicas entre diferentes forças na sociedade. A
variedade de sociedades humanas é infinita e tem até agora sido difícil compreender a sua
diversidade ‘[...] a partir de quadros teóricos e analíticos que foram construídos pelas ciências
sociais hegemônicas noutros espaços geopolíticos [...]’ (Santos 2004).

A literatura feminista permitiu um novo olhar sobre as sociedades matrilineares a partir


de três questões: a relação entre matrilinearidade e relações de gênero; o papel da análise
histórica; a matrilinearidade como um conjunto de características e não como uma totalidade.
Nestes estudos, a organização matrilinear:

• é analisada como um conjunto de características e não como uma totalidade sistêmica;


• postula que o parentesco, a descendência ou o casamento funcionam mais como um
conjunto de estratégias discursivas ou de ação, arenas de interpretação, negociação e contestação,
e menos como determinantes para a vida social;
• fala de multiplicidade, contingência, indeterminação e contestação, por oposição ao
conceito de colapso;
• refere que diferentes princípios, normas e práticas aceitas pela organização matrilinear
mudam de diferentes maneiras e que estas sociedades não são sistemas fechados e totalizantes;
• defende que as mudanças em direção à herança pai-filho e à residência virilocal nem
sempre ocorrem em detrimento da mulher;
• recorda que a característica mais marcante deste tipo de organização é a flexibilidade,
contestação e indeterminação;
• alerta para o fato de que as mudanças associadas ao colonialismo, comercialização e
capitalismo não seguiram sempre a mesma direção;
• constata a existência de diferenças consideráveis para as mulheres em sociedades
matrilineares comparadas com as sociedades patrilineares e cognáticas;
• observa a existência de definições de gênero que são relativamente independentes dos
princípios matrilineares, mas que se interseccionam;
• destaca a necessidade de analisar as ideologias e as práticas da organização matrilinear a
partir de condições históricas específicas, dada a sua sujeição a variadas influências, a maior
parte das quais pela negativa.

A investigação realizada por antropólogos e sociólogos revelou a manutenção e a prática


da matrilinearidade, em ambiente urbano e rural, numa complexidade e interação de situações e
mudanças (algumas das quais podendo igualmente beneficiar outros tipos de sociedade),
parecendo refletir a necessidade de “reinventar o passado de modo a restituir-lhe a capacidade de
explosão e de redenção” (Santos 1996:8). Santos cita Walter Benjamim, referindo que ‘articular

107
o passado historicamente não significa reconhecê-lo “como verdadeiramente foi”. Significa
apoderarmo-nos de uma memória tal como ela relampeja num momento de perigo’.

No caso das sociedades matrilineares de Angola, o “momento de perigo” parece estar


relacionado com o desaparecimento de determinados valores e normas, o individualismo, a falta
de recursos ou a sua perda, o que pode levar as pessoas a recolherem-se no passado matrilinear
onde tal não era ou não parecia ser tão acentuado. A matrilinidade pode estar, pois, a funcionar
também como ideologia, como representação cultural dum grupo ou de pessoas, mulheres e
homens, perante a necessidade de manter aspectos de equilíbrio e de maior partilha de recursos,
em situações de concentração de riqueza para uns poucos e empobrecimento para a maioria.

A pesquisa nesta área é reveladora de situações múltiplas e contingentes, de flexibilidade,


indeterminação e heterogeneidade, de processos de negociação e de contestação, de um leque
variado de práticas e normas, características da sua diversidade e das mudanças internas que lhes
são inerentes, como resultado da sua interpretação e prática por parte dos vários atores e em
momentos históricos diversos.

As sociedades progrediram, através de processos sociais que combinam dinâmicas


internas e externas, processos de destruição e de adaptação ou integração, em função de fatores
relacionados com a avaliação das forças, da capacidade de manobra por parte dos diversos
grupos e das suas possibilidades de beneficiar com as mudanças. Mulheres e homens viveram e
vivem estas mudanças, procurando manter ou alterar as estruturas em seu benefício, tendo em
conta a sua posição social, económica e política, as potencialidades contraditórias que se lhes
apresentam no sentido de escolher modos de viver diferentes.

As práticas, saberes e conhecimentos acumulados e reproduzidos ao longo de décadas


pelas mulheres, acabaram por ficar ocultos, remetidos ao silêncio do doméstico, ainda que a
maior parte das vezes tenham jogado um papel importante nas estratégias de resistência por si
adotadas, devido às transformações ocorridas desde o período colonial e que tiveram como
consequência a ‘invisibilização’ do papel das mulheres na esfera produtiva, na subvalorização
das suas atividades reprodutivas e no reflexo desproporcional dos efeitos da crise econômica,

108
social, política e ambiental, para mulheres e homens (Meena 1992b, Elson 1997, Casas et all
1998).

As transformações ocorridas durante a fase estudada, colonialismo, influências das


religiões islâmicas e cristãs, a monetarização da economia, a educação, a urbanização, as
políticas seguidas depois da independência e a guerra de desestabilização, a democracia
representativa, provocaram alterações nas instituições da sociedade angolana, com implicações
para as alianças dentro e entre as linhagens e entre estas e os poderes formais que foram sendo
instituídos, mas também provocaram processos contra-hegemônicos, abrindo novos espaços e
relações de gênero diferentes, com potencialidades de exercícios diversos de emancipação social.
Contrariamente ao que alguns cientistas sociais têm expressado, não existe apenas uma maneira
de viver e de pensar que pareça expressar a especificidade das culturas africanas, omitindo o
pluralismo interno e a existência de um leque variado de práticas e normas sociais marginais que
reflectem a sua diversidade e as mudanças internas que as tornam culturas vivas. “Nenhuma
cultura tem apenas um sistema de normas em qualquer momento”18 (Hountondji 2001:13).

No seu livro Male Daughters, Female Husbands (Filhas masculinas, maridos femininos),
de 1987, Ifi Amadiume pôs em causa grande parte dos discursos de gênero das décadas
precedentes, precisamente porque colocou as dinâmicas societais dos Nnobi (da Nigéria
Oriental), que forneceram os dados de campo, nos seus próprios termos, sem embarcar em
inquietações injustificadas acerca do que teriam a dizer ou a pensar sobre este fato, os autores
das narrativas universais de gênero.

Embora gozando de uma dualidade sexual, a comunidade Nnobi era predominantemente


matricêntrica, aspecto que se alastrava do seu mito de origem até ao agregado familiar, do modo
de organização da produção econômica até ao seu sistema de governação. Amadiume identificou
uma

forte orientação feminina e matrifocal... [na qual] mãe e filhos formaram


unidades sub-compostas distintas, economicamente auto-suficientes,
classificadas como femininas relativamente à frente masculina do agregado
(Amadiume 1987:27).

18
No culture has just one system of norms at any time.

109
Na obra Mãe, Materno Mar o personagem Manecas é diversas vezes referido como
“menino-feminino”, podemos fazer uma analogia inversa em relação ao papel que um ser
andrógino, mesmo que apenas em sua essência, pode representar dentro de uma comunidade
política e culturalmente. Ele representa o ‘filho-feminino’. Uma graduação entre o ‘menino-
masculino’ e a ‘menina-feminina’. Certamente ‘menino-feminino’ simboliza uma identidade que
não é nem uma nem outra das referidas anteriormente.

O livro de Oyeronke Oyewumi, The Invention of Women (A Invenção das Mulheres), de


1997, centra-se na sociedade Yorùbá. O livro representa decididamente um diálogo frontal com
as narrativas de gênero totalizantes do discurso Ocidental. Como argumenta Oyewumi, ‘a lógica
cultural das categorias sociais ocidentais baseia-se na ideologia do determinismo biológico...
Uma ‘bio-lógica’ (1977: ix); uma tendência para impor papéis sociais e categorias ao
anatomicamente feminino, ou àquilo que ela chama de ‘ana-femininas’ enquanto distintas de
‘ana-masculinos’.

Este ‘raciocínio baseado no corpo’, argumenta ela, foi imposto à leitura das sociedades
africanas e dos dados etnográficos, mesmo que nessas sociedades a interação entre o biológico e
o social apontasse numa direção diferente. Colocado de forma mais simples,

na sociedade Yorùbá pré-colonial a forma corporal não fundava uma base da


hierarquia social: os homens e mulheres não eram classificados segundo
distinções anatômicas (1997:xxii).

Na verdade, argumentava ela (contrariando o sentido geral do discurso feminista


ocidental), no sub-grupo Oyo-Yurùbá do qual ela extraiu os dados, ‘não havia mulheres na
definição estrita de gênero.’ Para Oyewumi, esta situação explica-se porque o conceito tem a sua
origem nos ‘discursos filosóficos acerca das distinções entre o corpo, a mente e a alma, e nas
ideias acerca do determinismo biológico e das ligações entre o corpo e o ‘social’.’ (1997: xiii).
Colocado de uma forma simples,

antes da colonização pelo Ocidente, o conceito gênero não fazia parte dos
princípios organizativos da sociedade Yorùbá... Pelo contrário, o princípio
fundamental da organização social era a senioridade definida pela idade relativa
(Oyewumi 1997:31).

110
A linguagem Yorùbá não é genderizada, e categorias como ‘masculino’ e ‘feminino’ são
de difícil tradução linguística uma vez que há muito pouco sobre a associação de tais categorias
socialmente construídas com a masculinidade ou feminilidade anatômicas (1997:33). ‘Okùnrin’ e
‘Obinrin’ (a tradução das noções de masculino e feminino, respectivamente) ‘não se referem a
categorias de gênero conotadas com privilégios ou desvantagens sociais... [:] não expressam
dimorfismo sexual’ (1997:34-5). ‘Um superior é um superior independentemente da forma do
corpo’ (1997:38).

Entretanto, a ‘senioridade é excessivamente relacional e situacional, e ninguém ocupa


permanentemente uma posição sênior ou júnior: tudo depende de quem está presente numa dada
situação.

Assim, nada é rigidamente fixado ou dicotomizado pelo corpo (1997:43). Tal como nos
dados de Amadiume, Oyewumi encontrou também uma matrifocalidade marcante e uma situação
de estatuto de senioridade baseado em relações consanguíneas, por oposição a diferenciações
biológicas. O princípio da maternidade informa o quadro ideológico da ordem e relações sociais
a ponto de serem atribuídos poderes sagrados e míticos à condição da mulher enquanto grávida
ou educadora dos filhos (Oyewumi 1997:38). A rede de parentesco baseia-se em princípios
idênticos aos dos que compartilham o mesmo ventre; o parentesco uterino definido à volta da
maternidade. Mesmo sendo patrilineares na maioria dos caos, os Oyo Yòrúba, tal como a
generalidade das sociedades Yòrúbas, são melhor compreendidos numa espécie de linhagem
dupla.

No seu artigo intitulado ‘Theorizing matriarchy in Africa’ (Teorizando o matriarcado em


África) de 2005, Ifi Amadiume assume a tarefa de teorizar

o enfadonho conceito de matriarcado, não como um sistema totalitário – ou seja,


dizendo respeito às regras totais de governação da sociedade – mas como um
sistema estrutural em justaposição com outro sistema numa estrutura social
(2005:83).

O ponto de partida de Amadiume consiste em distinguir ‘entre a academia eurocêntrica e


uma perspectiva afrocêntrica’, sendo esta última constituída pelos estudos que assumem como
ponto de partida o lugar africano. Ela identifica os trabalhos de Cheikh Anta Diop como

111
exemplos de segunda instância, particularmente porque se relacionam com ‘as instituições de
parentesco, ideologias de parentesco e o Estado’ (2005:83).

Relativamente à maioria dos trabalhos antropológicos dos séculos XIX e XX sobre


parentesco e sua origem, Amadiume argumenta que ‘decorrem especificamente de histórias indo-
europeias’ que serviram para mapear experiências não-europeias, onde: ‘outros povos e culturas,
foram vistos através de olhos europeus’ (Amadiume 2005:83). O recurso de Fortes à família
nuclear patrifocal como norma, a partir da qual os outros foram avaliados, constitui um exemplo
desta abordagem eurocêntrica.

A ideia de linearidade da evolução humana – na qual as relações individuais e sociais


com raízes familiares no patriarcado constituem a forma mais eminente – é uma ilustração do
que acaba de ser afirmado; uma ideologia patriarcal que Cheikh Anta Diop identificou como
tendo sido reproduzida ao nível do Estado (Diop, 1991; Amadiume 2005:84). Este é o contexto
em que Fortes, na evolução, deu primazia à família nuclear monogâmica e patriarcal. Embora
Smith se oponha ao discurso racialista de Fortes, a sua compreensão dos agregados familiares
matrifocais como o Outro não canónico, persiste numa concepção linear típica dos antropólogos.

Em todas as chamadas reconstruções científicas comparativas levadas a cabo


pelos teóricos do século XIX, os dados relativos à África foram colocados de
lado... [e] foram os dados de África que efectivamente modificaram as teorias da
evolução geral do parentesco (Amadiume 2005:85).

Diop demonstrou que, no contexto africano, mais que a patrifocalidade, a norma é a


matrifocalidade. Na sua vasta história de África, Diop (1991) mapeou o que aflorou como
‘sistemas justapostos’ de filiação. O sentido que adveio de tal justaposição é o de ‘ausência de
matrius oposta a patrius no papel jurídico’ (Diop 1991:121; Amadiume 2005:89). O que muitos
dos dados etnográficos sobre África revelam, e estes dados incluem os trabalhos de Fortes, é que
‘a unidade matricêntrica é uma unidade de produção autônoma; é também uma unidade
ideológica’ (Amadiume 2005: 88), que gera ‘códigos morais’ distintos. Em muitas sociedades
africanas denominadas patrilineares são as lógicas matrifocais que definem as normas das
relações sociais.

112
Ao contrário de Wendy James (1998), Amadiume argumenta que é preciso dar um passo
em frente e estabelecer uma ligação com o matriarcado mesmo em contextos patrilineares e
patriarcais. É comum perder-se tal ligação. Para perceber o matriarcado e a matrilinhagem, assim
como a recusa fácil da “ligação entre gênero e um tipo particular de descendência, especificamente as
possibilidades de autoridade e poder das mulheres na matrilinhagem” (Amadiume 2005:90).

Amadiume sugere que é necessária uma

análise estrutural do simbolismo metafórico de matrilinhagem (conexão biológica


entre gerações ou maternidade) e da construção ideológica matriarcal gerada por
este simbolismo (2005:95).

Como ela argumenta;

O papel invisível, transitório ou distante do homem enquanto pai, no sistema de


parentesco africano, foi extremamente difícil de aceitar pelos europeus. Ao
contrário dos europeus, Diop, sendo africano, não teve qualquer dificuldade em
falar de um ‘regime matriarcal’. O paradoxo é particularmente evidente no caso
de James, uma antropóloga feminista que parece incapaz de ‘compreender a ideia
de matriarcado’, naquilo a que Amadiume chamou de ‘recusa de ver o que está
em frente aos nossos olhos! (Amadiume 2005:91-2).

O espaço de manobra entre eles é um terceiro sistema classificatório: a humanidade


coletiva não genderizada,

Esta é baseada num coletivismo matriarcal não discriminatório com um código


moral unificador e uma cultura que gera relações de afetividade opostas à cultura
política patriarcal, ao imperialismo e à violência. (Amadiume 2005:94-95).

O paradoxo consiste em que a mesma confusão analítica enraizada numa leitura


eurocêntrica específica orienta a maior parte das respostas hostis ao trabalho de acadêmicos
como Amadiume, Oyewumi e Nkiru Nzeogwu.

Eis como Amadiume previu tais respostas (1997:153-4):

A matrifocalidade é uma construção cultural, mesmo se a metáfora utilizada


deriva do papel reprodutivo feminino. Isto leva-nos à questão da recusa e do
descrédito destas ideias por parte das feministas europeias, que as consideram
essencialistas e limitativas das escolhas das mulheres. Parece-me que o
importante aqui é a mensagem ideológica que gera a noção de um colectivismo
de amor, a criação e a proteção derivadas de um simbolismo materno. Como diz

113
James sobre a maioria das sociedades africanas, quer sejam patrilineares ou
matrilineares, ‘existe um nível mais profundo e historicamente duradouro em que
a natureza e capacidade das mulheres têm a primazia na definição da condição
humana, ela própria.

Em vez de constituir um desvio da norma da família nuclear, patriarcal e chefiada por


homens, os agregados familiares matrifocais e matricêntricos representam a premissa da
diversidade das comunidades e formações sociais africanas, sejam elas assentes na
patrilinhagem, na matrilinhagem ou numa dupla linhagem. Em muitos destes casos, não é a
ausência da pessoa masculina que imprime a matrifocalidade do agregado; é a primazia dada às
relações maternas ou uterinas.

É a maternidade partilhada que permite o sentido de uma condição partilhada mesmo


entre irmãos de pais diferentes. Nos sistemas de parentesco matrilineares, a figura do pai não é a
base igualitária a partir da qual as crianças adquirem o seu estatuto. Nos sistemas matrilineares e
matrifocais, a matrifocalidade é ainda mais forte a esse respeito.

O que Diop, Amadiume e Oyewumi pretendem demonstrar é a importância da sociologia


histórica; uma sociologia que recua a períodos anteriores ao colonialismo tardio e mostra como
as influências indo-europeias remodelaram profundamente muitas sociedades africanas – um
processo que está ainda em curso.

Muito foi já escrito para denunciar os estudos centrados na origem. Todavia, para os
povos colonizados, a profundidade e continuidade histórica das quais depende o estatuto não
colonial constitui um imperativo fortemente demonstrado por Diop.

A vantagem em olhar o parentesco sob uma perspectiva de origens históricas está


naquilo que isso significa para localizar a origem de um conceito ou fenómeno
social (Amadiume, 2005:96)

O valor das ideias seminais dos estudos de gênero na África representados pelos
trabalhos de Amadiume, Oewumi e outros autores não se limita apenas à ruptura epistêmica no
que se refere ao como nós compreendemos as relações de gênero, para além do determinismo
biológico ou bio-lógico. Por si, isto já constituiria um notável contributo para os estudos
sociológicos universais. Mas a matrifocalidade, nos estudos de gênero na África, tem um valor

114
heurístico que vai para além da forma como teorizamos gênero. Ela oferece um quadro analítico
que dá sentido a uma gama de outros fenômenos sociais: repensar o quadro de parentesco, como
teorizar a ‘identidade’, etc...

Grande parte dos discursos dos últimos vinte anos, centrados na identidade, procuraram
destacar questões de etnicidade, raça, religião, etc., do conceito de classe. Quando se fala em
políticas de identidade, por exemplo, refere-se geralmente a formas de construção do Eu
(individual ou coletivo) distintas da classe, e às suas implicações para o ativismo social.

Em sua análise a respeito da problemática do homem, Buber enfrentou a atitude do


individualismo e do coletivismo, afirmando que o primeiro só entende uma parte do homem e o
segundo entende o homem só como uma parte. Para ele nenhum dos dois alcança a totalidade. O
individualismo vê o homem em relação consigo mesmo, e o coletivismo nem vê o homem, pois
vê apenas a “sociedade”. O primeiro distorce o rosto do homem, o segundo o mascara.
Consoante ao nosso filósofo, ambos são a expressão e conclusão da união do abandono cósmico
e social, do medo do universo e da vida, que tem por resultado uma constituição existencial de
solidão tal como nunca existiu antes.

Mas, para Buber, somente quando o indivíduo conhece o outro em toda a sua alteridade
como a si próprio, como homem ou como mulher, experiência a partir da qual irrompe na direção
do outro, conseguirá romper sua solidão, em um encontro estrito e transformador. Ele insiste que
o fato fundamental da existência humana não é nem o indivíduo, como tal, nem agregado como
tal. Cada uma dessas categorias, considerada em si, não passa de uma abstração.

O indivíduo é um fato da existência, só na medida em que ele se coloca em uma relação


viva com outros indivíduos. O que é peculiarmente característico do mundo humano é, antes de
tudo, que nele algo acontece entre um ser e outro. A característica existencial do mundo humano
é enraizada no voltar de um ser em direção do outro para comunicar-se dentro de uma esfera
comum, mas que ao mesmo tempo transcende a esfera especial de cada um. Essa categoria
existencial é a categoria relacional do entre, que é estabelecida a partir da existência do homem.
É essa categoria primordial da realidade humana.

115
  Para exprimir a realidade, que liga o homem à mulher, Buber criou o termo especial
inter-humano ou entre os homens (zwischenmenschlich). No interhumano um sujeito se defronta
efetivamente com o outro, e nesse confronto, que não é simples experiência psicológica, há uma
realidade em que os dois sujeitos convivem. Como enfatizamos, a principal característica dessa
esfera é a espontaneidade, em que toda aparência, toda “dissimulação” seria fatal. O inter-
humano é oriundo de um referencial intersubjetivo de pensamento. No inter-humano a verdade
assume uma dimensão quase corpórea, pois, o homem se comunica com a mulher (o outro)
naquilo que eles são. Somente assim a intercomunicação existencial se torna possível, isto é, o
diálogo autêntico, em que o outro se afirma como aquilo que realmente é e se confirma em sua
natureza de criatura.

No pensamento buberiano a existência do homem e da mulher emerge do diálogo, do


encontro dialógico, da esfera do interhumano. Consoante essa análise, o diálogo determina a
palavra como a interação entre homens, trata-se de uma categoria antropológica, porque instaura
o desvelar do entre-dois, do Eu e Tu. No diálogo a palavra não é mais logos, puramente
anunciador, pois fundamenta a existência; ela vai além da subjetividade, estabelecendo uma
dimensão ontológica; o interhumano. O logos não é simplesmente razão, princípio de ordem,
porém em virtude de seu vínculo essencial com a práxis, ele é a palavra responsável pelo
desvendar da existência humana como coexistência. O ser humano existe mediante o encontro, a
relação.

O homem como ser-ao-mundo não é um ser-em-si, mas essencialmente uma abertura. Ele
é abertura graças à palavra originária. O homem instaura o emergir dinâmico de sua existência
pela palavra. Como manifestação do si mesmo, o logos torna-se uma abertura ao outro, dia-
logos. E somente quem toma a decisão de proferir a palavra da relação, a palavra-princípio Eu-
Tu, poderá fundar o “nós essencial”, do autêntico interhumano. Aproximação, contatos,
experiências e reações comuns definem o social, este implica um estar-um-ao-lado-do-outro,
enquanto que proximidade, relação dialógica, responsabilidade, decisão, liberdade, presença no
face a face definem o interhumano que é o estar-junto-com-o-outro.

Muitas das lógicas subjacentes aos discursos identitários, especialmente quando tratam de
raça e gênero, derivam de uma lógica patrifocal e patriarcal. É dentro desta lógica de

116
descendência patrifocal e patrilinear que a obsessão com a certeza da ligação biológico-genética
do filho em relação ao pai se transforma na base para a construção das fronteiras de inclusão e
exclusão. No quadro destas demarcações raciais, a pigmentação e os atributos fisiológicos
tornam-se os sinais de tal certeza genética, e o fundamento de ideologias e práticas sociais
racistas.

Os sistemas de parentesco matrifocais e matricêntricos oferecem uma base diferente de


pensamento através da identidade. O princípio da matrifocalidade está não só em transcender o
bio-lógico (determinismo biológico) que inscreve inexoravelmente os atributos sociais no
biológico, mas também nas suas implicações para a identidade e a ordem social inclusivas. Se a
criança é uma criança do agregado, ela pertence ao agregado independentemente do seu
patrimônio. Isto torna ridículas as categorias de ‘mestiço’ ou ‘bi-racial’, ou pior ainda, de
‘mulato’. Exemplos destes podem ser verificados na África Ocidental, na rede de parentesco
afro-americana ou entre diversos povos da África Austral. O princípio da maternidade partilhada
– consequentemente, da matrifocalidade – é central para este caso.

Igualmente significativas são as implicações dos trabalhos de Amadiume e Oyewumi, e


da ideia de matrifocalidade, para a equidade de gênero. Em primeiro lugar, a biologia não
determina a sociabilidade e o patriarcado, a patrilinearidade e a patrifocalidade não são as
primeiras formas de associação humana.

Em segundo lugar, desde a unidade primária do agregado familiar e dos sistemas de


parentesco, da produção econômica e da propriedade, à administração política da esfera pública,
a matricentricidade sugere uma lógica diferente da patrifocalidade e do patriarcado. A exclusão
das mulheres da esfera econômica e pública da política e da sociabilidade, não é inerentemente
humana ou africana. Mesmo nos casos em que podemos falar de patrilinhagem, tal não sugere
subordinação ou inferioridade ana-feminina. Muitas das chamadas sociedades patrilineares são,
de fato, ‘multilineares’, onde as crianças são capazes de obter recursos para o estatuto social e
posição a partir das múltiplas permutas de descendência disponíveis em ambos os lados do
parentesco – social ou biológico.

117
Finalmente, as ativistas africanas a favor da igualdade de gênero não necessitam de
recorrer a discursos feministas ocidentais para a organização normativa e fontes de códigos desta
luta social singularmente importante. Os trabalhos de Amadiume e Oyewumi fornecem a base
para a apropriação de um ‘passado útil’ em termos de diversidade de histórias africanas pré-
coloniais, para a igualdade de gênero no contexto africano contemporâneo. Fica uma última
palavra, dita por Amadiume (1997:23):

Se as feministas europeias procuram maneiras possíveis de se libertarem das suas


estruturas familiares patriarcais historicamente opressivas através da invenção da
mono-parentalidade e de relações afetivas alternativas, no caso africano não
temos de inventar nada. Temos já a história e um legado de uma cultura de
mulheres – o matriarcado baseado em relações afetivas – e esta realidade deveria
ocupar um lugar central na análise e pesquisa social.

A orientação filosófica representada pelo feminismo criticista das pensadoras e ativistas


africanas ou Mulherismo Africano (Africana Womanism) certamente é a tendência que melhor
representa uma possibilidade real da prática de um pensamento intersubjetivo dentro do ambiente
acadêmico profissional africano e de uma prática social consciente mais adequada às
comunidades africanas. Perante a incapacidade de resolução dos impasses e questões africanas
apenas pelo filosofar, serve de consolo que o desenvolvimento e a articulação desse modelo de
pensamento que privilegia a visão feminina negra tradicional pode realmente regenerar o tecido
social, cultural, político e filosófico africano, tarefa que tem logrado o insucesso por parte de
suas contrapartes masculinas.

Um referencial intersubjetivo na posição de orientador de toda uma realidade ontológica


e epistemológica africana é o trabalho em que têm se empenhado diversas carreiras na literatura
africana tanto em sua vertente artística quanto no ambiente acadêmico. O reconhecimento por
parte da intelectualidade, tanto dos membros da elite quanto das comunidades que formam a
nação angolana e a divulgação desses valores é o mínimo que se podem esperar nas
manifestações sociais, políticas e culturais africanas no século XXI.

A existência da filosofia africana é um dado bem documentado e referenciado, não há


dúvidas da afirmação do povo africano como um povo que possui um pensamento bem
sistematizado e desenvolvido, onde o nível intelectual e discursivo é bastante elevado.

118
A filosofia africana tem os mesmo estatutos epistemológicos que os da filosofia helênica,
já referiu-se Ferreira na sua análise sobre o pensamento do africano. A filosofia africana deve ser
vista como as outras filosofias, isto é, as filosofias ocidentais.

O pensamento africano tem uma referência objetiva, subjetiva, interobjetiva e


intersubjetiva pois é preciso desmistificar que a África não possui filosofia ou a negação da
funcionalidade da filosofia africana. E este é o tempo de colocar as ideias africanas no centro de
qualquer análise que envolve a cultura e o comportamento africano (afrocentrismo).

Realizar uma experiência que cria e recria identidades, conceitos e ideologias, uma
valorização da cultura e não a sua exotização, re-conhecimento do seu valor e da sua
grandiosidade. Então;

Se a história não é feita pelos historiadores, mas pela sociedade, do mesmo


modo, a elaboração científica não se deve unicamente aos cientistas, mas ao
conjunto da coletividade. (MAZRUI; AJAYI, 2010, P.761)

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