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CANTO ORFEÔNICO VOLUMES I E II: A MÚSICA CORAL DE VILLA-LOBOS

ESCRITA COM PROPÓSITO PEDAGÓGICO

Heitor Villa-Lobos (1887-1959) criou com os dois volumes de Canto Orfeônico


um corpo de música coral com propósito pedagógico que constitui um marco na história
da educação musical brasileira. O compositor escreveu estas peças corais quando
organizou um programa governamental para introduzir música no currículum das escolas
públicas. O volume I da coleção Canto Orfeônico foi publicado em 1937 e o volume II
em 1951. Estas canções parecem ser um tipo de sumário das idéias de educação musical
do projeto de Villa-Lobos, nas quais o compositor empregou principalmente materiais
folclóricos e textos de cunho politico.
Este estudo começa com um resumo das atividades pedagógicas do compositor
carioca, e se concentra a seguir em uma análise geral das peças corais integrantes dos
dois volumes do Canto Orfeônico, apresentando uma classificação baseada nos textos das
mesmas. O estudo conclui com comentários sobre a viabilidade das peças do Canto
Orfeônico no repertório coral corrente.

Projeto de Educação Musical liderado por Villa-Lobos

Em 1931 Villa-Lobos propôs ao Secretário de Educação do Estado de São Paulo


um grande programa de educação musical para introduzir música no currículum das
escolas públicas. Um ano depois o Estado apoiou o projeto em escala nacional. Getulio
Vargas convidou Villa-Lobos para ser o diretor da Superintendência de Educação
Musical e Artística (SEMA) no Rio de Janeiro; posto que o compositor ocupou até 1945.
De acordo com Vassberg, “Villa-Lobos evidentemente exagerou o significado
nacionalista do seu programa a fim de capturar a atenção do governo, mas sem dúvida
seu canto orfeônico foi de enorme importância tanto como instrumento de educação
musical quanto de doutrinação patriótica e formação cívica”.1 Villa-Lobos conseguiu o

1. David E. Vassberg, “Villa-Lobos as Pedagogue: Music in the Service of the State,”


Journal of Research in Music Education XXIII/3 (1975), 170.
projeto de educação musical, e o governo um instrumento de doutrinação política em uma
mesma ação.
O projeto educacional de Villa-Lobos deu uma ênfase ao canto orfeônico- um
termo derivado do francês orphéon, palavra que originalmente designava qualquer
performance coral à cappella. Para Villa-Lobos canto orfeônico significava canto coral
com ou sem acompanhamento. Ele distinguia canto orfeônico do canto coral comum.2 O
primeiro é marcado por uma ligação com idéias de educação cívica; o segundo é uma
manifestação artística regido por idéias estéticas. Ele acreditava no canto coletivo não
somente como um instrumento de educação musical mas também como um fator
educacional socializante.
Outros fatores influenciaram Villa-Lobos na escolha do canto coletivo como base
de seu programa de educação musical, como: a habilidade vocal do povo brasileiro,3 a
tradição brasileira no canto coral, cujo apogeu aconteceu no final do século XVIII,4 e o
baixo custo da implantação de um programa coral se comparado à música instrumental.
Os estudantes eram ensinados pela manossolfa, um sistema de sinais manuais que
indicavam altura, ritmo e níveis de dinâmica.5
Villa-Lobos organizou o Curso de Pedagogia e Canto Orfeônico para treinar
professores em Canto Orfeônico. Estes futuros professores cantavam no Orfeão dos
Professores. Cada escola participante do programa criava um Orfeão de cerca de 70
estudantes que se juntavam reunindo multidões de 30.000 a 40.000 cantores. O governo

2. Heitor Villa-Lobos, “Educação Musical,” Presença de Villa-Lobos (Rio de Janeiro:


MEC-Museu Villa-Lobos, 1971), 105.

3. Lisa Peppercorn, Villa-Lobos: Collected Studies (Cambridge: Cambridge University


Press, 1992), 6.

4. Simon Wright se refere às atividades corais acontecidas em Minas Gerais durante o


grande período de extração de ouro

5. Eero Tarasti, Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959 (Jefferson, N.C.:
McFarland, 1995), 158.

1
deu apoio entusiástico a estas manifestações públicas, pelo seu forte apelo ao patriotismo
e solidariedade nacional6.

Composições de Villa-Lobos criadas para o programa de educação musical

Appleby enumera 99 peças corais escritas por Villa-Lobos entre 1930 e 1945,
entre peças isoladas e coleções.7 Cinco itens representam coleções: Canto Orfeônico I
(1937), Guia Prático (1932), Solfejos I (1940), Solfejos II(1946) e Canto Orfeônico II
(1951). Juntas, as cinco coleções totalizam mais de 400 peças corais (muitas delas em
uníssono). O Orfeão dos Professores estreou cerca de 28 destes trabalhos corais.8
O Guia Prático foi a primeira coleção de peças escrita por Villa-Lobos com
propósito pedagógico. O compositor completou apenas o primeiro volume dos seis
concebidos. Béhague afirma que nesta coleção o compositor usou “repertório comum,
com foco em canções infantis, e não o material regional, exótico, que as referências às
viagens de Villa-Lobos parecem implicar.”9 As 137 melodias são apresentadas em
diversas formações musicais: para piano solo, voz em uníssono com piano, coro a duas
ou três partes a cappella ou acompanhados.
Os dois volumes de Solfejos são antologias de exercícios para a voz solo e
algumas peças corais, com alguns arranjos de fugas usando temas de Bach e Handel. 10 O
Guia Prático e os dois volumes de Solfejos parecem prover necessidades musicais na sala
de aula.

6. David E. Vassberg, “Villa-Lobos as Pedagogue,” 168.

7. Ibid., 66-103.

8. Ibid., 66.

9. Gerard Béhague, Heitor Villa-Lobos, 14.

10. Simon Wright, Villa-Lobos and His Position, 110.

2
Canto Orfeônico, Volumes I e II

Os dois volumes do Canto Orfeônico contém 86 peças corais- 41 no primeiro e 45


no segundo volume - no estilo de marchas, canções cívicas e folclóricas adequadas tanto
para a instrução de música nas escolas quanto para apresentações. Há uma complexidade
crescente do primeiro para o segundo volume, especialmente nas peças que usam motivos
folclóricos.
O primeiro volume do Canto Orfeônico mostra uma escrita coral onde 50% das
peças são à duas vozes para coro de vozes iguais, 11% de canções são em uníssono e
10% pedem uma divisão SATB. O Volume II do Canto Orfeônico mostra uma
distribuição mais uniforme das canções para 2, 3 ou 4 vozes, cada uma com cerca de 28%
do total.
O texto era um componente importantíssimo no programa de educação musical de
Villa-Lobos. Ele deveria servir a interesses musicais e políticos. Seus autores são
identificados em cada peças, e entre eles há poetas conhecidos como Manuel Bandeira,
Humberto de Campos e Viriato Correa.
Pode-se classificar as peças da coleção Canto Orfeônico de acordo com as
categorias de texto encontradas. Souza identifica quatro categorias sob uma idéia geral
de valores cívicos baseado no texto: nacionalismo, militarismo, virtudes fundamentais e
culto aos líderes.11 A mesma estudiosa coloca na subcategoria „orgulho da raça
Brasileira” aquelas canções cujo texto se relacionam com melodias folclóricas. A autora
deste estudo defende a idéia de que as canções folclóricas merecem uma categoria
independente, assim como as canções infantis e as de cordialidade. Obviamente as
categoria não são estanques. Assim, as peças no Canto Orfeônico podem ser divididas de
acordo com o texto da seguinte maneira: valores cívicos (nacionalismo, militarismo,
virtudes morais e canções de trabalho), canções infantis, canções de cordialidade e
canções folclóricas.
Percebe-se uma evolução no conteúdo do texto a partir da comparação dos dois
volumes do Canto Orfeônico. No primeiro, cerca de 73% dos trabalhos se relacionam
com conteúdo cívico, número que cai a 37% no segundo volume. Em contrapartida há um

11. Jusamara Souza, “Política,” 18.

3
aumento do número de peças inspiradas por motivos folclóricos, presentes em 10% das
composições no Volume I e 33% no Volume II. O exemplo I mostra esses dados em
tabela.
Ex. 1: Número de peças do Canto Orfeônico em cada categoria de texto.
Categorias de texto Volume I Volume II
Valores Cívicos - 16 7
Nacionalismo
Valores Cívicos – 1 3
Militarismo
Valores Cívicos –virtudes 16 7
morais e canções de trabalho
Canções infantis 4 6
Canções de cordialidade - 5
Canções folclóricas 3 14
Outras 1 3
Total 41 45

Parece que a força política inicial e o intenso interesse cívico do programa de


educação musical gradualmente deram lugar ao estilo nacionalista inato de Villa-Lobos.
Por exemplo, todas as canções de trabalho do Volume I são marchas, mas encontra-se
uma embolada na peça “As Costureiras”, uma das três canções de trabalho do Volume II.
O nacionalismo é invocado no texto pelo uso de temas históricos, homenagem à
bandeira nacional, culto aos heróis brasileiros e referências à unidade nacional. Marchas
em tonalidade maiores, com harmonizações simples são comuns aqui, servindo bem aos
propósitos de educação cívica. A exceção é “Meu Brasil” (I-14) onde Villa-Lobos junta
um texto nacionalista com um gênero popular, o samba, coletado a partir de um jornaleiro
carioca, e cujo arranjo foi feito em uníssono com acompanhamento de percussão e banda.
Textos militaristas dão ênfase a virtudes militares, a glorificação da guerra, força
da raça, prontidão para luta e alusão de vitória. Isto se reflete em 5 marchas da coleção
Canto Orfeônico. A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial a partir de 1942

4
parece refletir-se na presença de maior número de peças com texto militar no segundo
volume da coleção.
Canções de exaltação ao trabalho e aos valores morais aparecem como eixo
temático de 18 canções. Nove canções do Canto Orfeônico tem textos infantis. Oito são
para vozes iguais. “O Trenzinho” (II-31) é a mais desafiante, quase um trabalho virtuoso,
para 3 vozes iguais a cappella. Villa-Lobos cria uma imitação dos sons de trens, usando
sílabas onomatopaicas, como “ta, ca, tch xa, ca xa ca ta,” e outras.
No segundo volume do Canto Orfeônico, Villa-Lobos criou uma série de cinco
canções de cordialidade, para encontros sociais, tais como aniversários, Natal, Festa de
Ano Novo e canções de hospitalidade. O objetivo destas canções era ocupar o espaço das
canções européias tradicionais em tais eventos. Todas tem texto de Manuel Bandeira.
Canções inspiradas em melodias folclóricas ou usando linguagem folclórica
somam 17 nos dois volumes do Canto Orfeônico. Algumas destas canções são as mais
difíceis da coleção por causa dos esquemas rítmicos complexos. Em algumas o dialeto
original negro ou indígeno foi preservado, como em “Nozaniná” (I-32), “Canide Ioune-
Sabath” (II-22), “Cantos de Çairé”, ou são misturados com o português como em “Estrela
é lua nova”. A repetição de um esquema rítmico pelo coro com uma voz solista cantando
a melodia é uma solução de Villa-Lobos para “Jaquibau” (II -39), “Remeiro de São
Francisco” (II-44), e “Estrela é lua nova” (II-37).
As peças que constituem o corpo do Canto Orfeônico foram cantadas pelo Orfeão
dos professores, os coros escolares e pelas grandes massas de cantores nas concentrações
cívicas. A importância histórica do Canto Orfeônico não impediu que a coleção fosse
esquecida. Quando o governo Vargas caiu do poder, e tão logo a sociedade brasileira
sentiu-se unida como nação, as canções com texto de conteúdo político não
permaneceram mais no repertório dos grupos corais. A baixa porcentagem de peças para
coro misto, que é o mais comum no Brasil hoje, é outro fator que isola as peças de Canto
Orfeônico de performance- somente seis peças na coleção são para SATB. Uma terceira
razão para a ausência destas músicas corais no repertório comum dos coros brasileiros é a
dificuldade de se encontrar as partituras. A última edição de Canto Orfeônico foi feita em

5
1970, e os dois volumes estão esgotados hoje.12 Eles não podem ser xerocados por
direitos de copyright, e só resta a sorte de encontrá-los em sebos. Uma nova edição da
coleção, talvez uma edição crítica, selecionando somente as peças mais interessantes
musicalmente, poderiam ser o primeiro passo para o retorno deste repertório à sala de
concerto.
Por outro lado, o grupo de peças baseado nos motivos folclóricos são
representativos do estilo modernista de composição da primeira metade do século XX;
permaneceram no repertório coral até a década de 80, quando o principal interesse dos
grupos corais brasileiros mudaram para a música popular, mas possuem vitalidade de
performance ainda hoje.

12. Eu consegui uma cópia feita pela editora Vitale a partir da prova mestre que eles têm
lá. O gerente me afirmou que eles não pretendem imprimir uma nova edição da coleção
nos próximos anos.

6
Bibliografia

Appleby, David P. 1988. Heitor Villa-Lobos: A Bio-Bibliography. Westport, Conn,


Greenwood Press.

Béhague, Gerard. 1994. Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazil’s Musical Soul.
University of Texas at Austin, Institute of Latin American Studies.

Peppercorn, Lisa M. 1992. Villa-Lobos: Collected Studies. Cambridge, University


Press.

Souza, Jusamara. 1991.Política na Prática da Educação Musical nos anos trinta. Em


Pauta – Revista do Curso de Pós Graduação – Mestrado em Música da UFRGS,
III/4:17-32.

Tarasti, Eero. 1995. Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959. Jefferson,
N.C, McFarland.

Vassberg, David E. 1975. Villa-Lobos as Pedagogue: Music in the Service of the State.
Journal of Research in Music Education, XXIII/3: 163-70.

Villa-Lobos, Heitor. 1971. Educação musical. Presença de Villa-Lobos, Vol. VI: 95-129.
Rio de Janeiro, MEC-Museu Villa-Lobos.

Wisnick, José Miguel. 1977. O Coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22.
São Paulo, Duas Cidades.

Wright, Simon. 1992. Villa-Lobos. Oxford, Oxford University Press.

7
___________. 1987. Villa-Lobos and His Position in Brazilian Music after 1930.
University College of Wales, Cardiff, Ph.D. dissertation.
Partituras

Villa-Lobos, Heitor. 1940. Canto Orfeônico. Vol. I. São Paulo, Vitale.

___________. 1951. Canto Orfeônico. Vol. II. São Paulo, Vitale.

___________. 1941. Guia Prático. São Paulo, Vitale.

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