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DEVOÇÃO (20 Páginas) Guto Leite

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DEVOÇÃO

guto leite

de assobiar pelos incisivos como os padeiros de antigamente,


anjos enfarinhados de cesto ao ombro que substituíam as
corujas cansadas dos guardas-noturnos, e cuja recordação
constitui uma das menos melancólicas fatias das minhas
lembranças de infância?
(os cus de judas, antonio lobo antunes)

às vezes eu queria ser como um pássaro que acompanha por alguns instantes
um ônibus de viagem, ser obstinado como esse pássaro, ou como um peixe,
melhor, eu queria ser como o pássaro que abocanha o peixe dentro de um lago,
é impossível ter certeza de que ele avista o peixe antes do mergulho, quem de
nós já esteve atrás dos olhos de um pássaro, mais do que ver o peixe, o pássaro
acredita que ele exista, atrás do muro de água, no futuro, um cálculo
rigorosamente biológico que pondera, não na razão, mas nas penas, que mais
valem tantos bicos cheios de azul e alga para um, com uma brilhante escama, a
limitar a dieta de rãs, esquilos e carne morta

há uma anedota chinesa, muito antiga portanto, que diz que a vida é o sonho de
um pássaro, de um emberiza aureola, ou de um dragão, as traduções são
imprecisas, em todos os séculos anteriores a tang taizong, a escrevedeira
planava tranquila sobre as relvas do norte, de lá pra cá mergulha, isso nos
causaria essa sensação intensa de vertigem

se você chega a porto alegre pelo aeroporto, e resolve pegar, em vez de um uber
ou um táxi, um T11, seguindo pela perimetral, na primeira parada, no alto do
viaduto josé eduardo utzig, há um abrigo de plástico, bege, sujo, parcialmente
derretido, por mais que os porto-alegrenses também se vangloriem de ter a maior
temperatura do mundo no verão, não é pra tanto, tampouco se trata da
brincadeira esporádica de jovens ricos quando veem um velho guarani mbya
dormindo no ponto
quem poderia contar essa história é mauro, há muito assim não chamado, ex-
biólogo, pai de dois filhos, ex-morador do menino deus, tipo comum desses que
dormem na rua, sem ânimo para a burocracia de albergues, depois de uma
década resistindo nas barras de são joão, no porão dos navegantes, em
farrapos, antiguidade é posto, conseguiu se estabelecer no abrigo de ônibus, fez
ali seu canto com caixas de papelão, dois cobertores, um copo de metal, uma
lanterna, eventualmente com pilhas gastas, e uma caprichosa estrela fosca de
plástico, que mauro amarrava na ponta da casa na época do natal

trinta anos antes, sua habilidade maior era contar mirabolantes histórias de ninar
aos dois filhos, o mais novo, hoje cirurgião de cabeça-pescoço no hospital de
clínicas, torturava o pai propondo combinações improváveis, he man com a
espada justiceira duelando com o vingador na casa de áries para salvar sara,
mauro costurava os enredos, o que mais acordava do que adormecia os
pequenos

por alguns meses mauro chamou o abrigo de painho, tímido a princípio, baixo,
boa noite, painho, como foi o dia, painho, se aninhando à parede, pouco falava
pra fora, como esses que nos obrigam a mudar de calçada mas têm medo de
criança, ficava todo o dia tricotando no peito rezas de microscópio, ralhas de
petri, cantilenas, dando nós, duas dúzias de crônicas repetidas, sequências de
dna, sem parar

na noite do crime acordou de súbito, painho, não pode, despencou três quadras
pra achar uma venda, quebrou a janela, disparou o alarme, saiu com álcool e
fósforos, painho, não pode, tremia quando jogou o álcool em tudo que tinha e
apoiou a pequena haste de madeira na superfície porosa, sssshhhhi, um eco
mínimo se fez no abrigo em chamas, eco mais de luz que de som, mauro ficou
parado vendo painho pegar fogo

o que se passou em sua cabeça é tão misterioso quanto as outras vidas que
existem, e desconhecemos, tomando formas efêmeras na fogueira, pirangas,
flavas, foi ali, uma criação sua, há tanto tempo gestada, desde que chegou na
cidade, de ônibus, órfão, pelo recém inaugurado viaduto da conceição

tem gente que é pássaro


se você chega a porto alegre pela rodoviária, pelo outro lado, quantos lados tem
uma cidade, experimenta a sensação de vir ladeando a linha de trem, as muretas
baixas, encaixadas como peças de colossais jogos de montar, sem aviso
percebe-se no alto, junto à grade protetora que voa velozmente pra trás, e
mergulha no lago em que dezesseis empresas vendem seu peixe, água branca,
cascavel, feliz, gramado, não me toque, riosinho, pra onde, se não dá pra dizer
que somos como a escrevedeira, diagramados na ferrugem de um ônibus-gaiola,
estamos livres, que seja, pra uma promessa de voo

ícaro mora desde sempre na voluntários da pátria, sua mãe é vendedora,


esganiçando o pregão de manhã e de tarde, chip da oi, chip da oi, seu avô faz
as vezes de pai e entretém o menino até que cresça e trabalhe, frequentador
assíduo da comunidade batista da floresta, o velho quer o paletó escovado e os
sabatos brilhando para as reuniões de terça e quinta, pros cultos de domingo,
por isso firmou-se um trato, cinco pila por semana pra deixar tudo nos trinques,
cedidas graxa, flanela e escovas

ícaro tinha um sonho, comprar cem pila de bala da colônia no mercado público,
quando pegou fogo em 2013, e ícaro já tinha em si esse sonho esparramado,
como estão em nós, desde que nascemos, todos os nossos sonhos, tentou ir
ajudar, menino, não bobeia, talvez nem seja esse o sonho, o ato, a coisa, mas o
sonho de dizer, simples, cem pila de bala, calhando de as balinhas da colônia
serem suas preferidas

o eito era duro com a tralha do vô e ícaro terceirizou o sonho, cauã, tu me ajuda,
a gente leva os pila e te dou metade, com lassos e faltas, de parte a parte, seis
meses depois, outra vida pra guris de nove anos, juntaram a grana, na lotérica
embaixo de casa, por capricho, trocaram por uma nota azul, soberba, no anverso
a garoupa, epinephelus marginatus, e foram

o ar espesso do mercado público encostou nos meninos assim que entraram, o


centro do centro, que já tem suas densidades, tácteis, como um outro planeta,
longe, antes, no mercado tudo se mistura, bichos vivos e mortos, ervas, couros,
olhos, rachaduras, pouca circulação de ar, o mercado está para o centro como
seu núcleo concentrado, seu microburaco negro, junto a uma rodoviária em
nebulosa
cem pila de bala, cem, caralho, guris, milton, passa um saco aí, peraí, gurizada,
ícaro, coincidindo consigo, levitava um pelo, cauã conferia o homem colocando
as balas no saco, voltaram pra casa zunindo, o mundo na mochila, moedas, já
sabiam, pesam mais do que balas, notas pesam tão pouco, que não pesam

tu já matou afogada uma borboleta, cauã, credo, difícil é tu pegar o bichinho, dá


pra improvisar com fio de arame e saco plástico, puçá, ali na dom feliciano tem
umas voando, se der, pega direto no copo, com ela pousada, daí coloca uma
folha de papel bem fininha debaixo do copo virado, põe o tampão na pia e enche,
devagar, coloca o copo na água e tira a folha, a borboleta vai ficar voando por
um tempo entre o copo e a água, tá entendendo, tu vai baixando o copo, tá louco,
tu fez isso, tu vai ver ela tentar pousar na água, não vai dar, quando tu baixar
mais o copo, ela vai bater as asas dentro da água, em câmera lenta, umas par
de vez, daí o corpinho começa a tremer, igual de gente, até parar, tu espera um
pouco, que ela pode sair voando quando tu tirar ela de lá, tu vai com o copo e
faz uma barreirinha com a mão pra jogar a água fora, pega ela, tira o corpinho e
põe as asas pra secar na janela, tá louco, mano, tá louco

na porta do prédio, dividiram as balas, a mochila era do cauã então ícaro ficou
com o saco, no quarto ia pegar algumas, mas resolveu adiar, curtir, deitou no
chão feito folha recém caída, acabou dormindo, não chegou a sonhar com
enredo, mas estava no mercado e o mercado era o céu

ícaro, ícaro, oi, mãe, que saco é esse aqui, tu tá sentindo, sentindo o quê, mãe,
esse cheiro, ó, funga aí, ícaro tomou ar, tinha mesmo um cheiro podre, horrível,
que isso, eu que te pergunto, menino, que isso, é um saco de bala, mãe, não é
daí o cheiro, é sim, ó, a mãe botou o saco no nariz do menino, que por pouco
não gorfou, de onde tu tirou esse saco, peguei no mercado, mãe, ícaro, isso é
cheiro de peixe morto, tu vai precisar jogar essas balas fora, não, ícaro puxou o
saco, filho, as balas estão com cheiro de peixe, ele ia virar o saco em cima da
cama, não, não, não, não, lá na pia, o menino pousou na cozinha como um raio,
enchendo a pia de balinhas da colônia

a mãe saiu do apartamento levando o saco numa pinça de dedos, ícaro, de frente
pras balas, parcialmente submerso no cheiro, sapo com os olhos de fora, levou
a mão à torneira várias vezes, onde se viu lavar bala, pegava desenxabido nas
embalagens tentando entender como podia estar impregnado desse modo, sem
vestígio de ser, começou a chorar, como as estátuas, de noite, silentemente,
começou a chorar, as lágrimas banharam sua boca, sua língua, nem viu a mãe
voltar lá de baixo e seguir pra dentro procurando o pai, fechou os olhos e estava
inteiro submerso, por alguns instantes, só com o ar dos peixes, desembrulhou
uma primeira bala e levou à boca, abacaxi, do resto do gosto remontava o sabor
em cima do cheiro, como os cardumes refazem o vento dentro do rio, morango,
uva, mate, a que ele mais gostava, ia chupando tudo as bala dentro da cabeça

tem gente que é pássaro

ajeitando o corpo, ele permanecia figurando à janela como se posasse a miró,


de quando em vez batia as asas, pareando as velocidades, para onde ia aquela
estranha baleia que nunca submergia seu cinza metálico pro fundo da terra, seria
possível beijá-la, como a uma abelha

quase na esquina da hilário com a santo inácio esconde-se fantine, uma


escolinha pra duas dúzias de pais que moram no moinhos, tocam-na uma
cozinheira, uma psico, uma nutri, uma faxineira, dois seguranças e quatro jovens
professoras escolhidas a dedo por margareth ruschell, setenta e oito anos,
aposentada da federal

em dia de semana, antes das nove, ela vai a pé até lá pra ver como estão as
coisas, sua secretária cuida das contas, o resto é consigo, projetos, estoque,
brinquedos, jogos, jardim, pátio e cardápio, pelas onze e quinze, terças e quintas,
um uber a leva pro everest, costume antigo, às sextas convida uma funcionária
pra almoçar em sua casa, nesses dias vai de carro, mercedez prata, câmbio
automático, trocada religiosamente de três em três anos

bela, isabela reis, é uma das profes, seus olhos pardos de gata se desviam da
franja e as crianças respondem como ratos à flautista, de todas, é a mais
convidada a comer às sextas com a dona, tem algo na jovem que ela não foi,
bela, isabela reis, será também, em vinte anos, professora universitária,
modestamente famosa ao aplicar winicott na lomba do pinheiro, vai se casar com
gaio, garrulus glandarius, um uruguaio que não quer ter filhos, não vão ter filhos
hoje encantada com a mercedez tinindo, a mesa de mogno a que as duas se
sentam, papeando de igual pra igual, a cada tanto a senhora ruschell balança
uma sineta pra chamar a criada, me dou ao direito de alguns caprichos, menina,
e passam a salada, o prato principal, a sobremesa, o café, de volta à escola, a
tarde vai leve no turno integral, pelas grades, como se preso ao chão nos outros
dias, tudo voa, por muitos anos, mesmo dormindo, bela vai se lembrar com
precisão do timbre deste sino

quando uma abelha não foi mais um pássaro, quando uma rã não foi baleia ou
peixe, quando ocorreu de sermos gente, amorfo, o ponto ancestral de todos os
caminhos, em seguida, puf, da pata nascem patos, das rãs, girinos, de pássaros,
ovos, de nós, bebês, quando não foi mais possível um outro rumo natural, antes
do programa, é quando, quantos andam por aí batendo pino com um pássaro
dentro do peito, uma rã na barriga, quantos procuram encostas pra bufar sobre
o mar, como baleias, os vírus, todos os dias, a reprogramar menos do que o
bastante as espécies

também podemos imaginar que nos vamos dentro deles, eventualmente, e talvez
este pássaro não persiga sua baleia, mas sonhe estar sentado numa das
poltronas gastas com a crina à mostra, um sapo que não larga de estar à beira
da casa, um cão à morte que te pergunta pelos olhos estalados, o que houve

todos os dias a natureza balança seu copinho de couro com infinitos dados e,
até agora, não vimos infinitos uns na toalha, uma mulher parir um búfalo, uma
cabra à luz dar a girafas, mas se há um ponto, bem no início, em que tudo pode
ser, tudo é, e um dia, de uma mulher, vão nascer, ou nasceram, milhões de
galáxias

recebeu impávida a notícia, dona maria de fátima, encontramos essa pequena


massa em seu cérebro, um pequeno silêncio, é caso de cirurgia, primeiro vamos
fazer uma biópsia, estereotáxica, as chapas na lâmpada, que são, não são fotos,
não tenho como adiantar nada antes dos resultados, mas a senhora fique
tranquila, não tem por que se alarmar

faz três anos que a graça morreu de leucemia, eram quatro marias, de lourdes,
da graça, de fátima, aparecida, hoje só duas trocam farpas com este mundo, na
época foi fátima que acompanhou a mana nos exames, nas consultas, no
sangue, no fígado e na cabeça, a coisa é mais difícil, deu dó de ver a gracinha
se desmanchando na cama, no fim um trapo guardado no moletom, dona maria,
na recepção a senhora já marca o exame

maria de fátima saiu da sala, passou pela recepção, entrou no elevador, descer
a pé do divina fez doer um pouco a coxa e os dedos dos pés, nem se conta da
força indômita da oscar pereira, as onças tirando uma fina de quem vai pelo
acostamento, uma pequena massa dentro da cabeça, de que tamanho, onde na
cabeça, teve sempre uma dor aqui na frente, das vistas, não acostumava com
os óculos e ali, no trato das miudezas, tirando isso, nunca, nada, nunca tirou
atestado, uma saúde de ferro

cruzou a perimetral, entrando na glória, moraram na boticário até saírem da


escola, a lourdes, a graça, a fátima e a nem de graça, quase não tinha idade
entre as meninas, andavam que nem carrapato, na ida, na volta, no intervalo, a
vida depois é que foi tirando, uma a uma, lourdinha fez magistério, deu aula por
trinta anos, recém aposentou, nunca volta do mercado sem ganhar um abraço,
ao que responde séria, impermeável, graça casou com um taxista e mudou pro
sarandi, era quem mais ligava pras manas e dava os melhores presentes de
aniversário, fátima terminou o primário e arrumou emprego numa casa boa no
vila jardim, ficou vinte anos até virar diarista, três vezes por semana pra criar
bem a filha, cida, tadinha, deus abençoe, morreu menina

pequena, é que pequena varia, uma pequena vespa é grande pra menina, uma
pequena loba desceu quase sem forças o rio, porque leva jesus nos braços, é
seu santo preferido, santo antônio, tudo fica grande dentro da cabeça, ô, que
lomba, assim chego no céu, antes também tinha, sempre teve aquela lomba,
sempre praguejava, ô, que lomba, mas nem via, praguejava mais porque é isso
que se faz quando tem subida, lá no alto um arrepio sobe pela espinha de ver
junto tanto cemitério, pra morrer não tem corrida, a cidinha, no miguel e almas,
de caixão fechado, como pode, tão miúda, fátima não conseguia tirar da cabeça
que ela estava segurando os joelhos dentro do caixão, nem um pio se ouvia
naquela capela, tirando a mãe que berrava os diabos lá de dentro

tudo doía mas já estava chegando, corpo de ninguém foi feito pra ser furado,
cortado, costurado, se deu, deu, deus quer e está dado, foi assim com as manas,
unha e carne por anos, depois não, e não teve isso de procurar as outras por
obrigação, fez-se um amor manso, de sair uma da outra, nunca que ia dizer não
quando a graça ligou, não era favor, são razões subterrâneas, morreu, mas ficou,
como cidinha, o arroio cruza a cidade, veia na cabeça, a cidade tem pulmão,
coração, mãos, pés, ligada por tripas a outras cidades, o guaíba é fora da gente,
o pai dizia quando chegou, cidade e gente têm conserto não

tremendo um pouco passou pela cerca, hexaprotodon liberiensis, nunca tinha


visto aquelas plantinhas magras, de beira, tirou os sapatos, bateu um no outro,
colocou de volta, com todo cuidado, meio deitada, pôs os pés na água, que alívio,
os tornozelos, os joelhos, o quadril, a barriga, os peitos, o rosto, por fim a cabeça,
com uma pequena massa dentro dela

é assim um desejo que faz este pássaro continuar conosco, que gente tem já
dentro dele, que não voa pro outro lado, a esmo, se esquece, somos águias,
camelos, quando nos esquecemos, são as outras pessoas que nos lembram de
nós, atados, sozinhos, eu e este pássaro confrontamos nossas naturezas, por
estar dentro da baleia tenho triunfado, é a baleia em mim que triunfa sobre o
pássaro, o peixe comendo a ave

quanto daquele início resta em nós amigavelmente, fios em curto, notas que só
os bichos escutam quebrando taças e pratos disfarçadas, a menina que olha o
aquário abrindo e fechando a boca, o moço que se eriça ao ver sotero a galope,
livre, afora, quantos de nós, olvidados, ganhamos novas formas

são tantas maneiras de tirar asa de gente, poucas de deixar, é comum que caia,
forçosamente, vida é pra levar com as patas bem fincadas no chão, prédio,
palácio, monumento, árvore não, que se movem feito doidas, peixes debaixo da
terra, por suas seivas, fica lá o sujeito estacado no amor, no trabalho, feito viga,
de nem olhar pra fora e achar os pássaros todos por aí, aranhas, pássaros
articulados, onde lhes dão quina, fazem teia, quantas tecem sua casa nesta
baleia, quer se guardar, ficar intacto, pode, mas a vida esta, disforme, vai te
trazer o outro, à noite, no gozo-farelo, de dia, a caçar sombras esguias, este
espanto, de tão perto haver algo, alguém que não sejas

lino faz a coleta, de segunda a sábado, do lixo reciclável, hípica, serraria,


guarujá, espírito santo, ipanema, pedra redonda, tristeza, o caminhão aberto,
jaula na metade, porta cerrada, na maior parte das vezes, da jaula-mundo,
guarda o lixo do céu, lino faz que não sente o cheiro desovado por citadinos que
não distinguem bem perecer de não perecer, com ele, breno e távio dividem a
lida de descer rápido, juntar os sacos, cacos, caixas, jogar por cima, subir, no
universo ao lado os três são atletas olímpicos, ashton eaton e seus amigos é que
coletam o lixo em west linn, portland, é preciso ainda saber restar, sem mais, na
calçada, se demasiado orgânico, prestes vai ao voltante como um paxá

ninguém sabe no trampo, tem duas semanas que o lino perdeu o mano mais
velho pro rubem berta, foi coisa de nada, fumava quando tinha uns pila a mais e
trampava prum outro, instalando ar condicionado, se passou, veio abril, quede o
trampo, moschata momelanotus, patinho avisou, não tem como a gente ficar no
preju, irmão, é pagar ou comer, me dá três meses, no fim de junho vem nova
leva, que as madame não gosta de passar frio, e não é que o chefe mudou de
ramo, elétrica tem trampo o ano inteiro, ninguém fica no aperto, o mano arrumou
uns bicos pra ter o que comer, sete de julho, domingo, levou chumbo

o rato na cozinha não adianta matar, ele volta pro ninho e conduz os outros, tu
espalha o veneno onde ele passa, adauto, ó, nas entrada, no cano, nas falha de
parede, debaixo da pia, o moço encosta no pozinho azul e leva embora, num dá
quinze dia, tá tudo morto, não tem segredo, tu sabe o tamanho de uma ninhada
de rato

lino tem usado fones de ouvido desde então, pouco falava, agora nada, ao
passar pela praia, pênsil, nos ferros, curte escutar alguma coisa que o mano
mostrou pra ele, música brasileira, quem sabe outro dia a gente possa se
encontrar de novo, tartareia, o vento nem dá tempo da água se formar no rosto
do menino

uma desilusão, menina, juro por deus, levo sempre desse bolo, acho que não
mudou nada, dona leonor, é, a confeiteira tá aí, vou ver com ela, só um
momentinho, desculpa falar, menina, mas é que eu compro esse bolo há quê,
cinco, seis anos, você estão aqui há quanto tempo, a padaria é de noventa e um,
dona leonor, então deve ter mais tempo, ela aqui sabe, venho todo dia, todo dia,
menos domingo, que vocês não abrem de manhã, minha filha ia passar em casa,
daí levei pão, suco, mussarela e bolo, sim, senhora
dava pra comer, dava, mas tava diferente, fiquei furiosa na hora, não tinha o que
dar pra minha filha, pra minha neta, improvisei, né, com um pacote de bolacha,
então, o que vocês mudaram, dona leonor, realmente, eu não tinha sentido
diferença, mas trocamos a marca da farinha nessa última leva, ah, lá, tá vendo,
eu sabia, ó, estava intragável, a gente não achou que tinha ficado diferente, mas
ficou, ficou, a gente prova tudo que sai da cozinha, principalmente quando muda
a marca de um ingrediente, menina, não dava pra comer, esfarelento, seco,
joguei o bolo inteiro fora, uma desilusão, quando as meninas vão lanchar em
casa, eu levo desse bolo, elas adoram, mas não deixei nem provarem

dona leonor, me desculpa, por favor, a senhora pode levar um bolo novo, de
graça, mas, menina, pra que que eu vou levar um bolo novo, eu quero é um bolo
velho, mil desculpas, dona leonor, nós vamos falar com a dona pra voltar pra
outra farinha, tá bem, tá bem, tá bem, vocês é que me desculpem, eu precisava
falar, venho aqui tem seis anos, sete, todo dia, menos domingo, que vocês não
abrem de manhã, claro, dona leonor, daí chego em casa e não dá pra comer o
bolo, juro por deus que pensei em voltar e esfregar o bolo na carinha redondinha
de vocês, a senhora nos desculpe, por favor, não precisa se desculpar não,
menina, a senhora não quer mesmo levar um bolo, pode ser outro, não, não,
obrigado, a senhora não quer nada mesmo, quero sim, quero quatro cacetinhos
e trezentas gramas de mussarela, por favor, tem aquele suco de bergamota, mas
eu vou pagar, hein, eu vou pagar

querido, tenho certeza que vou enlouquecer novamente, estas águas ousadas
lembram os cabelos de minha mãe, escuto sua voz, busque a presilha, estou
indo, sinto que não podemos passar de novo por aqueles tempos terríveis, há
em mim outra de mim, tamanha, atlântica, que torna impossível viver sem tantas
pedras nos bolsos, você tem me dado a maior felicidade possível, não imagino
duas pessoas mais felizes nestas condições, não posso mais lutar, não consigo
ler, não consigo ler, querido, você pode imaginar, se eu pudesse ser salva, teria
sido por você, paciente, justo e incrivelmente bom, mas porque sou duas, é
impossível que não salvasse só uma de mim, e a outra escapasse de suas firmes
mãos, não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós

dormi, este enigma, mesmo com a paisagem repetida, sabemos quando


dormimos, dormi, piscar é diferente, será uma maquinaria que nos engata de
novo ao que somos, vagões à locomotiva, ao que costumamos ser, será possível
o engano, preso por erro ao corpo de um outro, de outros bichos, estamos todos
guardados lado a lado, trilhos paralelos no fim do mundo, dormi, por quanto
tempo, está lá, ainda, a aparição, ou não, se desliguei simplesmente e liguei de
novo, me ligaram, é ele sim, ela, esta estrada imperiosa, em linha reta, toda vida,
enfraquece o milagre, mas se estive fora por mais tempo, se estive dentro por
mais minutos, por meia hora, não pode ser, nenhum ser nos persiguiria por tano
tempo

desenho em devaneio com a sujeira do vidro um pássaro mais próximo, brinco


comigo ao ver seus esforços, inquebrantáveis, pra coincidir com o irmão alado,
no êxito se cobre de uma penugem malva, um bico de creme, olhos esticados,
eventualmente, no mais é suplício, também inerte, procuro outras manchas na
areia em lava que possam servir ao pássaro ao vento para desenhar-me

há tempos concebo que viajar é ir do mesmo ao mesmo, que a rigor não há


viagens, todo voo começa onde termina, não há destino que se distinga o
suficiente da origem pra que eu o chame novo, outro, fresco, não mais, quando
vou neste estado então, onde tudo se parece, ou eu que não vejo, as gentes, as
lanchonetes, tudo pantano grande, camaquã, são gabriel, bossoroca, com seus
letreiros em cobre e topiaria, na carreira, o gaúcho, sempre, e seu cavalo,
singram imensas paragens, idênticas, interiores, o mesmo pastel assado, mas
outro, com ddd de canoas, rosa, apagado na borda

(...)

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