Zé Trindade
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Zé Trindade - Alex Casanova
Zé Trindade
O filho do Diabo desde guri...
Por Alex Casanova
Dedicatória
A todos os amigos e familiares; em especial aos filhos amados que tenho...
Aos leitores, amantes de narrativas e contos, por valorarem a literatura brasileira.
Zé Trindade
O filho do Diabo desde guri...
Frio? Uma barbaridade... Lá pros tempos de anteontem, que se sucedeu. Os simples causos de alguns, retratados como a essência pura de uma vida difícil. A história que conto é real. A geada era como farinha, no campo. Era, na verdade, a mais brava que existia. Até o cusco teve a face congelada certa feita, pois naquele lugar, não onde o Diabo perdeu a bota, mas sim onde achou, o orvalho petrificado partia a alma. Na região eram poucas as casas. As tarefas, simples: acordar cedo, tirar o leite da vaca, alimentar os animais. Talvez a vida fosse mais branda, não fosse a incerteza humana. Tinha trabalho para alguns. Outros viviam na carpeta e o que conheciam do mundo eram os causos das percantas e, quem sabe, no otimismo, a esperança de melhora na crença no profeta maior. Sim, a fé era endereço. Quanto maior a pobreza, maior a necessidade do conforto. O divino? Sempre retratado. Vá com Deus, fique com Deus, Deus te abençõe! Aquelas coisas ditas sem muito esforço do pensamento. Rotina da humilde sina, regada a uma certeza: a vida vai melhorar.
Os campos ficavam brancos. Gelo. Era necessário acender o fogo de chão no meio da cozinha. Bom mesmo, na verdade, é que mosquitos não existiam naquele local do Iguatemi. Terra do esquecido. Algo assim meio cinzento, na definição, se é que posso me fazer entender. Esquecido porque era o apelido que os moradores davam a redondeza.
_ Onde moras, peão?
_ Lá pras bandas do Esquecido!
Podia saber que era no Iguatemi. Terra de ninguém, no papel. Bem definida, entretanto, pela cartucheira carregada do coronel. A lei, sempre tendenciosa, fazia encontro à vontade dos mandantes que, bem pilchados, ostentavam fortunas num sorriso. Coronel Zé Brito tinha a boca coberta de ouro, nos dentes escondidos entre o palheiro aceso. Era também chamado Zé Capataz, tipo os chefes d'alguns serviços.
A moda sempre existiu. Trocar um dente natural por um do divino metal era sinônimo de riqueza e poder. Fartura esta jamais dividida entre os coitados miseráveis que o destino não premiou. Em troca de favores, a exploração era certa. Os que trabalhavam no campo deviam obrigação aos referidos que, como proteção, ganhavam parte do suor da labuta como quinhão merecido.
Naquela época a polícia limitava-se a um pequeno casebre. Geralmente, apenas um policial para dirimir qualquer questão de conflito. Tinha que ser um homem de coragem. Ainda assim, simples pião que obedecia ao poder paralelo. Se criasse causo, boca cheia de formigas. Prêmio? Sete palmos de terra. Era assim a vida de qualquer um que confrontasse o poder do coronel. A força da intimidação nem era disfarçada. O medo se fazia presente e era bom que assim o fosse. O reinado era mantido. Melhor que não pensassem...
Ah, mas o verão... Era de lascar! Os campos, agora amarelos da seca, pareciam tremer. Quando olhando o horizonte, ao longe, tinha-se a nítida impressão que assim acontecia. Era o calor fervilhando a terra na mordida firme da mutuca. Para quem não sabe, explico sem delonga: a mutuca é um inseto, tipo uma mosca grande, que tem uma picada irritante. Dá uma coceira danada. E naquele lugar tinha de tocha. O sossego, só à noite acobertado pelo lampião. Dormia-se com as galinhas. Invadir a madrugada só mesmo nas noites de pescaria ou nas caçadas da molita.
Seu nome era Zé Trindade; o filho do Diabo desde guri. Uns o chamavam de Piorra; piorra, porque quando bêbado, girava tal qual o brinquedo infantil. De relance, presente minha testemunha, João, então meu avô, explanava acerca deste personagem curioso. Em meu compreender, o tal Trindade tinha dias de gênio. Não os tais intelectuais da sabedoria; digo gênio, porque vivia dentro da garrafa. Ainda assim, não era, como diz o ditado sem sal e sem açúcar
. Era apimentado. Melhor: tinha a língua apimentada no comentário certeiro quando discursava nos botecos da vida.
_ Da taspa, da laspa! Do torrão da ponta do osso da pata da vaca!
João nunca entendeu o que esta expressão queria dizer. Confessava que ficava surpreso ao ver seu modo de expressão.
_ Isto até parece louco! Não que professasse a palavra. Apenas mentalizava, tentando compreender. Jamais conseguiu.
O estranho, tipo sapo em baile de cobra, era que Piorra em meio a qualquer assunto sério, simplesmente parava a conversa e, de pronto, atirava ao chão seu chapéu de aba larga soltando a voz:
_ Da taspa, da laspa! Do torrão da ponta do osso da pata da vaca!
Tão logo ditas as palavras de seu transe interior, esticava o braço para arrebanhar sua coberta. Vestia em sua cabeça o adorno e continuava a conversa normalmente. Pode parecer esquisito, mas tudo se acostuma. Óbvio que os viventes do lugar notavam a presente insanidade, mas nada falavam. Era como que um endereço do comum.
Frio? Uma barbaridade... de renguear cusco!
Língua enrolada. Travada. Mas todos compreendiam o ébrio, na expressão. Falava de um mundo difícil em que a morte estava a espreita.
_ Sabe, João! Deus, quando a gente nasce, dá uma corda no relógio da vida. A gente nunca sabe quando ele vai parar e todos têm o tempo certo. Nascer, viver, morrer. Mas eu, na verdade, sou filho do Diabo... acho que Deus esqueceu de mim! Estou cansado da lida.
Dizia isto pela vida que conheceu. Sofrimento aflorado na linguagem. Voz cansada pelos anos em que ficou preso. Enfrentou o coronel. Nem parecia mais o mesmo homem destemido. Como que se o cansaço lhe tivesse dominado. A idade se prolongou e estava apenas na espera de que a corda do relógio acabasse.
Foi criado solto pelo correr do mundo. Mãe não conheceu e pai, ausente, nunca teve. Vivia pelos bolichos, carpetas de outrora. Sempre um gole da pura. Bebia desde os dezesseis anos de idade e, tal qual as cobras dos laboratórios, vivia sempre dentro do álcool. De pequeno, a única ajuda que conheceu foi de Rute.
No Iguatemi havia o rancho Três Marias. Foi lá que aconteceu a tragédia.
_ Isso já passou! O tempo é capaz de apagar qualquer dor.
_ Não, João! Tem coisa que não se esquece!
Na delegacia, anos antes, já na cidade, lembrava o tempo das conversas com o delegado. Uma cela pequena... parecia um passarinho engaiolado pelas histórias que viveu. Lembrava de seu cavalo, o alazão. Lembrava de sua sombra, outrora caído no chão dominado pelo vício. Das vivências, o Trinta de Espadas. Era o nome de seu cavalo. Assim era chamado porque foi numa mesa de jogo que ganhou o animal e foi com uma trinca deste naipe a aposta vencedora. O pingo era do Antônio Tadeu. Rebenque pela paleta ou onde pegasse. Apanhava mais que ladrão em carpeta e encontrou em Zé a salvação. Dizia ele que bicho tinha alma; que vira coisas que pouca gente viu. Cedinho, relinchava perto da janela do dono na ânsia de acordá-lo. Na tristeza, lembrava também que o cavalo foi morto covardemente. A única alegria, como lembrança do bicho, era das histórias que, quando pequeno, ouvia acerca de contos de cavalos alados. Sabia que seu alazão agora devia acompanhar algum anjo, na cavalgada. Isto, de certa forma, manifestava alento e conforto. Também tinha o cusco amigo. Bicho magro, campeiro, mal alimentado. Vivia de sobras ou da providência divina quando arrumava alguma caça. O cusco era esperto e teve que aprender a se virar sozinho. Por isso caçava. A fome era responsável e a necessidade é mãe da criação. Certa vez enroscou-se com uma cobra. Deu sorte. A danada não tinha veneno e acabou como refeição do famigerado. Era farto, sim, de carinho. Zé Trindade, homem solitário, se relacionava melhor com os animais. Dizia que quanto mais conhecia o bicho homem, mais admirava os cachorros. Salvo exceções, é claro. Como não defender meu avô?
No lampião, uma surumbamba de balas. Tiro para todos os lados, dentro da casa. Nem o acordeão escapou. O cachorro saiu dali ligeiro que nem lebre assustada e, quanto mais os animais da casa gritavam, mais tiro Zé Trindade dava. Porco, galinha, pato e tantos outros, no meio da noite, berrando desespero. O revólver 38 e a espingarda, companhia das caçadas de antes, agora eram instrumentos da revolta e dor. Tiros com explicação. Uns diziam, na redondeza, que até o santo que estava no quadro da parede fugiu... que havia ficado só a moldura. Mas que mal? Dizia Zé que quem precisava de santo eram as paredes da igreja. Só respeitava mesmo, no medo, alguma assombração. Homem não. Dizia que tinha a trindade no nome e portanto jamais se intimidava. Não era do tipo magrão cola fina
, que quando bate o trovejo na porta, dispara pra casa.
Uma fera desde piá. Assim era o personagem desta narrativa, o qual meu avô descrevia. Por fim, nem parecia o mesmo. Talvez tenha sucumbido ao tempo, apesar de feridas abertas. O cansaço, quando chega, domina o peão.
_ Aquela vez era pra ter terminado com aquele desgraçado! Sabe, meu amigo, se a gente soubesse o destino... mas a formiga sabe a erva que corta, assim como a vida um dia se destrincha!
Chapéu no chão!
_ Da taspa, da laspa! Do torrão da ponta do osso da pata da vaca!
Chapéu na cabeça.
_ Mas que coisa, tchê! Se acaso eu pudesse ter imaginado...
O arrependimento ainda dominava Piorra. Não um remorso do ato, mas sim da falta deste. Vivia atarantado tipo milico em zona. Por terra...
No rancho Três Marias trabalhava a peonada. Alguma plantação e gado eram tarefas da rotina. Aos 30 anos, Trindade tinha virado trabalhador, o que para ele, era novidade. Tinha abandonado os goles da pura e esquecido das loucuras que fazia. Até o Diabo duvidava, mas assim era. Nesta época, o santo estava firme e vigilante no quadro da parede.
Voltou com toda força. Furioso como cruzeira com cria, procurava todo santo dia alguma arruaça. Não tinha pra depois. Era na hora. Estourava a peleia e ele, podia saber, estava lá.
Os dias se passavam assim. Carpeta, bebida, confusão. Corpo estendido em qualquer lugar, pois bebia até não agüentar mais. Tornara-se um farrapo humano, tendo a sina de colher o que plantou. Por testemunha, este relato do acontecido.
O cabo Adão era o único policial do casebre, lá no Iguatemi. A Terra do Esquecido, como assim a chamavam, tinha por responsável pela lei este senhor. Seu antecessor, Pedro Bento, fora morto e ficou por isso mesmo. Diziam, como cochicho, no local, que o responsável fora o tal de coronel Zé Brito. Falavam, é claro, às escondidas porque o medo dominava. O assassinato deu-se por interesse da terra. Na época, um morador das redondezas reivindicou parte de um pedaço de chão e teve apoio do brigadiano. O tal morador fugiu rápido que nem tatu arisco e nunca mais se ouviu falar. Entretanto, Pedro Bento quis bancar a aposta e enfrentar o coronel. Suas fichas eram poucas e o prêmio foi um indesejado caixão. É claro que tudo isto era simples especulação, como diziam aqueles que se tinham por amigos de Brito. Mas todos sabiam a verdade, como dita, nua e crua. Como exemplo, para que todos entendessem o recado, no terreiro da casa de Pedro, sua família também fora encontrada morta. Esposa e um filho dizimados a golpes de facão. A residência deixou de existir, pois a incendiaram. Nas entrelinhas, o real manifesto da autoridade paralela e da certeza da impunidade.
Adão tinha vindo da capital. Era homem do campo, mas conheceu as infâmias da cidade grande. Estava acostumado com peças daquele tipo. Não poderia se intimidar, mas a situação era perigosa. Logo, ficava em cima do muro, como diz o gaúcho.
_ Tu não vai fazer nada? - perguntavam alguns, mais corajosos.
_ Mas fazer o quê? Não existem provas e tampouco testemunhas.
Adão se esquivava de perguntas. Evidente que não poderia fazer algo. Sabia que os autores certamente jamais entregariam o mandante. Ainda que enojado, como enfrentar uma situação desfavorável, sem apoio da capital. Estava sozinho. Aqueles que ousavam inquirir, certamente iriam recuar no primeiro sinal que o coronel manifestasse.
_ Isso é um absurdo, cabo! Parece que tu não queres honrar a memória de teu companheiro.
_ Em boca fechada não entra mosca! Se tiveres alguma prova, apresenta! Do contrário, te cala.
E a coisa continuou assim, o dito pelo não dito. A tarefa do brigadiano se resumia a pequenos conflitos de vizinhos e encrencas do bolicho. Era como peça decorativa de um governo que, para se mostrar presente, o enviou. Mas que presença, que nada! A lei, naquele local, era outra. Imperava o silêncio de gente frouxa, como dizia Piorra.
Até então, Trindade nunca havia cruzado destino com Zé Brito. A ele, pouco importavam as falas das gentes do lugar. Vivia solitário em seu ranchinho. Com uns poucos cobres no bolso, oriundos da venda de galinhas, estava alheio ao mundo. Só bebia e, como resumo de vida, o maior trecho que percorria a cavalo era até o bar. Lá passava o dia. E tudo acontecia lá. O jogo, confusões, etc. Ás vezes, algum baile na casa de alguém. Músicos não faltavam. Uns tocavam acordeão, outros, pandeiro. Outros, violão. E era diferente naqueles idos. Não existiam salões próprios para eventos, nem tampouco bandas musicais como nos dias de hoje. Era simples assim. Se reuniam na casa de tal fulano. Chamavam sicrano que tocava gaita e, às vezes, embaixo da parreira, a festa se formava. Antes, o discurso do dono da casa:
_ Aqui é um lugar de muito respeito. Quero os moços respeitando as moças, que não podem dar carão.
Carão
era a negação da dança. Jamais a prenda poderia recusar um pedido do moço, quanto ao bailado.
Seguia o dono da casa:
_ Não quero agarrão aqui dentro, nem os casais dançando muito próximos. Isto é uma casa de família honrada.
Acontece que o dono da casa tinha um apelido. E ele detestava ser chamado por tal. Seu nome era Tenório, mas sua alcunha era Bem-te-vi. Assim tal qual o pássaro. Porém, se alguém assim o chamasse, perdia a estribeira.
O discurso seguiu antes do baile. Tenório sempre enaltecendo o respeito, que foi por água abaixo. No encerramento das palavras, em meio à peonada, na penumbra, alguém disparou:
_ Muito bem, seu Bem-te-vi!
_ Bem-te-vi é a puta da tua mãe!Homi sem respeito, sem vergonha!
As palavras não foram bem estas. Eram bem piores. Apenas amenizei as expressões. Como dito, pronunciamento por água abaixo... O tal do respeito? Se havia perdido. O profanador ficou isento em meio aos muitos e disfarçado na fraca luz do lampião. E Tenório continuou, bravo. Proferindo vocábulos pesados, até que por fim deu-se por satisfeito.
Bueno. Seguiu-se o baile, que quase não ocorreu.
Em dado momento da noite, era a hora da janta que o dono da casa oferecia. Matava-se um porco para acompanhar o pão caseiro e o café. Havia fartura. A música parava. Formavam-se grupos de moçoilas nos cantos. Por outros, rapazes solteiros a conversar e beber. Os velhos sempre vigilantes na casa cheia, em razão da raposa que espreita a galinha. Vigilantes em razão dos moços quanto às donzelas.
_ Aquele, de lenço maragato, tá muito abusado!
Eram as ditas palavras dos idosos. Eventualmente, um dedo em riste. Se fosse o caso, o malvado era expulso no machismo presente. A honra era defendida a qualquer preço.
O coronel, muitas vezes, era o padrinho da festa. Numa dessas ocasiões, cruzar-se-iam os destinos de Piorra e Zé Brito. Mas não foi nessa.
O dia amanhecia. Já era sábado. Um caldo forte para recuperar o ânimo era serventia ideal, pois os