História Da Igreja
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Aliás, a história dilata os horizontes, abre panoramas novos. Em particular, o estudo da história
da Igreja exige conhecimentos de geografia e de história gerais, sem os quais o estudioso se sentiria
desorientado.
4. Como dividiremos a História da Igreja?
A história universal foi dividida pelos renascentistas dos séculos XV / XVI em Antiga, Medieval
e Moderna. Os historiadores da Igreja, a partir do século passado, adotaram esta distribuição, que
continua em voga até hoje, com o acréscimo de mais um período: o contemporâneo.
As razões para assim dividir a História da Igreja são válidas: 1) a mudança de cenário e de
cultura acarretada pela invasão dos povos germânicos na Europa dos séculos V / VII foi pondo termo
à Idade Antiga; convencionalmente dizemos que em 692, data do Concílio regional de Trulos II,
começa a Idade Média; 2) o renascimento das ideias e da cultura greco-romanas no século XV, bem
como a Reforma Protestante e a descoberta de novos continentes, dão origem a nova fase da história -
a Idade Moderna, que convencionalmente começa em 1450; 3) o Tratado do Latrão entre a Santa Sé e
o Governo italiano assim como os rápidos progressos das ciências e da técnica no século XX obrigam
a assinalar o início de nova Idade - a Contemporânea - em 1929. Por conseguinte, temos:
I. História da Igreja Antiga: - 692. Distinguimos neste período duas sub-fases: - 313 e 313-692.
Até 313, a Igreja foi duramente perseguida: o Edito de Milão, concedendo a paz aos cristãos, permitiu
a evangelização mais sistemática das instituições e também dos povos bárbaros invasores; estes
imprimiram suas características próprias à vida cristã.
II. História da Igreja Medieval: 692-1450. Nesta distinguimos três sub-fases: a) 692-1054: Idade
Média Ascendente. Este período é de reconstrução após as invasões. O poder civil pratica a
investidura leiga, nomeando os bispos - o que prejudica seriamente a disciplina da Igreja. Esta, porém
vai-se implantando no plano da doutrina e da cultura, o que forma a sociedade medieval,
b) 1054-1294: Alta Idade Média. Estes são os séculos em que a Igreja mais se projeta tanto no
foro religioso como no civil; atinge o auge com o pontificado de Inocêncio III (1198-1215),
c) 1294-1450: Idade Média decadente. A Igreja vai perdendo influência no foro civil, ao mesmo
tempo que se dá o empobrecimento da teologia e da piedade.
III. História da Igreja Moderna: 1450-1929. Esta época se subdivide em duas sub-fases:
a) 1450-1789 (Revolução Francesa): novas ideias racionalistas vão-se difundindo, o que obriga a
Igreja a novas respostas; o século XVII é dito "o século dos Santos";
b) 1789-1929: o racionalismo e o materialismo se fazem sentir com toda a pujança, enquanto a
fé se propaga nos territórios de missão.
IV. História da Igreja Contemporânea: 1929 -. Desafiada por novas situações e correntes de
pensamento, a Igreja tira da sua vitalidade novas expressões de fé; tenhamos em vista o renascimento
bíblico-litúrgico-eclesiológico.
Eis, prezado cursista, o que temos a dizer-lhe ao entregar-lhe estes módulos.
Queira estudá-los com vagar e com amor ao Verbo que se encarnou em Maria Virgem para viver
no Corpo Místico da Igreja através dos séculos!
Estêvão Bettencourt O.S.B.
BREVE LÉXICO
Arquidiácono: O diaconato é o primeiro grau do sacramento da Ordem; é o primeiro serviço ao
altar e ao próximo que os clérigos assumem, participando, a seu modo, do sacerdócio de Cristo. -
Arquidiácono era, a partir do século VI, o chefe dos diáconos, encarregado de funções importantes:
administrar os bens da diocese, formar os jovens clérigos, cuidar da disciplina da Igreja, às vezes
governar a diocese na ausência do bispo. O arquidiácono chegou a ser um Vigário Geral do Bispo
(séc. VIII-IX). Aos poucos a palavra ficou sendo um título honorífico, que hoje é muito raro.
Arquimandrita: Título que designa o Superior de um mosteiro ou de um conjunto de mosteiros
no Oriente. Pode ser também título honorífico concedido a sacerdotes não casados no Oriente.
Cardeal: Esta palavra vem do latim cardo, gonzo, o que já exprime função importante.
Designava os clérigos que serviam estavelmente a uma igreja. A partir do século V, ficou sendo o
titulo dos sacerdotes e diáconos de Roma; desde o século VIII, o colégio dos Cardeais compreendia
também os bispos suburbicários de Roma. Atualmente são os conselheiros e eleitores do Papa; cada
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qual é titular de uma igreja de Roma ou dos seus subúrbios, mas pode viver fora da Cidade Eterna,
administrando outra diocese.
Cisma: Ruptura da unidade da Igreja por recusa de obediência ao Papa; às vezes é encabeçada
por um chefe dito antipapa e corre o perigo de se mesclar de heresia.
Comenda: Benefício (bispado, abadia, igreja...) outrora concedido a um eclesiástico ou a um
leigo. Este titular podia não ter a obrigação de administrar nem residir no seu benefício; entregava as
funções administrativas a um gerente seu.
Concílio: Reunião de bispos de uma região (Concílio regional) ou da Igreja inteira (Concílio
Ecumênico). Foram 21 os Concílios Ecumênicos da história. Ecumênico, no caso, significa
simplesmente universal; nada tem que ver com o diálogo entre católicos e cristãos não católicos. Todo
Concílio Ecumênico, se não é convocado pelo Papa, tem que receber do Papa a sua legitimidade e os
seus decretos precisam de aprovação do Papa para ter validade jurídica.
Conclave (= com chave): Reunião dos Cardeais eleitores do Papa. Tomou tal nome porque a
partir do século XIII os Cardeais eram trancados a chave na mesma residência com diminuição
gradual de alimentos à medida que demorassem para eleger o novo Pontífice. O Concílio de Lião
(1274) prescreveu tal procedimento, que, aliás, nem sempre foi observado.
Ecumênico: do grego oikouméne (== terra habitada). Significa originariamente "universal". No
século XX ecumenismo vem a ser o movimento que tende a reconstituir a unidade violada entre os
cristãos. Com os não cristãos os católicos mantêm diálogo religioso, que, por convenção, não deve ser
chamado ecumenismo.
Excomunhão: é a mais grave das penas eclesiásticas; deve ter sempre sentido medicinal ou
favorecer a conversão do delinqüente. Implica a exclusão não só dos sacramentos e de qualquer
ministério da Igreja, mas também a das demais graças de que usufruem os membros da Igreja por
estarem inseridos na comunhão dos méritos de Cristo (comunhão dos santos).
Heresia: Negação consciente e voluntária de uma verdade proposta pela Igreja como
pertencente ao patrimônio da fé.
Interdito: é uma pena eclesiástica que priva os cristãos, direta ou indiretamente, de benefícios
espirituais, todavia sem os privar da comunhão com a Igreja. Na Idade Média ocorria principalmente o
interdito local; este implicava que não se celebrassem a S. Missa, os sacramentos, a sepultura
eclesiástica ou algum ato litúrgico no território afetado pela censura. Esta penalidade hoje não existe
mais. Persiste, porém, o interdito pessoal, que proíbe determinado cristão de receber os sacramentos
ou de celebrar a S. Missa ou algum ato de culto divino. Trata-se de uma excomunhão mais branda.
Mitra e báculo: são as insígnias do bispo, do abade ou de quem tenha especial autorização para
as usar. A mitra é o sucedâneo de frigium ou do barrete que as autoridades utilizavam antigamente;
assemelha-se a um chapéu em forma de capacete. A partir do século XIV, os Papas traziam o
triregnum ou a tiara, mitra ornamentada de três coroas, que na época de Paulo VI (1963-1978) foi
abolida. O báculo é o cajado do pastor, próprio dos bispos, abades e abadessas, que hoje em dia tem
forma estilizadas, podendo lembrar a Cruz do Senhor.
Padre da Igreja: Já na antiguidade o mestre era chamado pai por seu discípulo, pois a
transmissão da verdade era tida "como transmissão da vida. Os bispos, por terem a missão de ensinar.
eram também chamados pais (cf. 1Cor 4,15). No sentido estrito. Padres da Igreja são os escritores
(não necessariamente presbíteros ou bispos) que nos primeiros séculos contribuíram para a exata
elaboração e a precisa formulação das verdades da fé em tempos de debates teológicos com escolas
heréticas. Devem atender a quatro notas características: 1) ortodoxia (comunhão de doutrina com a
Igreja); 2) santidade de vida; 3) aprovação da Igreja (deduzida das declarações do Magistério); 4)
antiguidade (até São Gregório Magno, 1604, no Ocidente; até São João Damasceno, +749, no
Oriente). - A tradição reconhece quatro grandes padres ocidentais e quatro grandes orientais: S.
Ambrósio (+ 397), S. Agostinho (+430), São Jerônimo (+ 421), São Gregório Magno (+604) no
Ocidente; S. Basílio ( +379), São Gregório de Nazianzo (+390). Santo Atanásio ( + 373) e São João
Crisóstomo (+407), no Oriente.
Papa: O nome vem do grego pappas, pai. Era o título de todos os bispos da antiga Igreja, visto
que todos exerciam uma paternidade espiritual. No século VI começou a ser reservado ao Bispo de
Roma, sucessor de São Pedro e detentor do primado de magistério e jurisdição na Igreja inteira.
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muitos mestres cristãos, foi na Idade Média assumido por S. Tomás de Aquino (+1274), entrando
assim na Escolástica medieval e moderna; o estoicismo, representado principalmente por Sêneca (+65
d.C.), Epicteto (+138 d.C.) e o Imperador Marco Aurélio (+180 d.C.), influiu na formulação da Ética
cristã; esta encontrava ecos antecipados em certos princípios ascéticos do estoicismo, na aceitação da
lei natural, no reconhecimento de que todos os homens são iguais e devem ser solidários entre si; a
proximidade de normas do estoicismo e do Cristianismo deu ocasião a que um cristão anônimo
escrevesse em latim uma correspondência epistolar apócrifa entre Sêneca e São Paulo (há oito cartas
atribuídas a Sêneca, pretensamente convertido ao Cristianismo, e seis cartas ditas do Apóstolo, que
abordam a "conversão" de Sêneca e a missão deste filósofo como pregador do Evangelho na corte
imperial).
Em suma, alguns autores cristãos dos séculos II e III quiseram, ver na cultura grega a preparação
do Evangelho; assim, por exemplo. Clemente de Alexandria (+214) chamava a filosofia "um dom que
Deus concedeu aos gregos" (Stromata I 2,20); dizia outrossim: "A filosofia educou o mundo grego
como a Lei de Moisés educou os hebreus (Gl 3,24), orientando-os para Cristo" (Stromata I 5,28).
1.2. O mundo Judaico
Entre os demais povos da terra nos tempos anteriores a Cristo, distinguia-se o povo Judaico por
seu monoteísmo ou pelo culto estrito de um só Deus. Os estudiosos têm procurado explicar o surto e a
persistência do monoteísmo no povo de Israel desde Abraão (século XIX a.C.); não encontram
elucidação sociológica ou psicológica para tal fenômeno, pois Israel era um povo militar e
culturalmente inferior aos seus vizinhos politeístas; tendia a adotar os deuses e os costumes dos
pagãos...; não obstante, à revelia de todas as influências politeístas, Israel professou constantemente o
monoteísmo, suplantando assim, no plano da religião, os grandes reinos e impérios que o cercavam.
Este fato só se entende se Deus quis intervir na história, suscitando e conservando Ele mesmo o
monoteísmo em Israel (como, aliás, professa a Bíblia). Desta maneira a história de Israel é um
portento, que a Providência Divina quis realizar a fim de preparar a vinda do Messias ou do Senhor
Jesus. Este é o Prometido a Israel desde os tempos de Abraão.
Nos séculos anteriores próximos a Cristo, o povo israelita se achava em fase de declínio. Após o
apogeu de sua história sob Salomão (t 932 a.C.), as tribos de Israel conheceram duas deportações (721
e 587 a.C.); após esta última, viveram sempre sob domínio estrangeiro. Nos tempos de Cristo estavam
sob os romanos desde Pompeu e a tomada de Jerusalém em 63 a.C. A esperança de Israel se voltava
para o Messias prometido como Filho de Davi; todavia o ideal messiânico era assaz desvirtuado pelo
nacionalismo de Israel, que concebia um messianismo fortemente político, apto a restaurar a potência
e a grandeza temporal do povo de Deus (ver Lc 24,21; At 1,6).
A facção dos Fariseus predominava no país e inspirava ao povo uma observância escrupulosa da
Lei de Moisés e das respectivas tradições, ao mesmo tempo que incutia forte espírito nacionalista; os
fariseus "separavam-se" (tal é o sentido do nome perushim) de tudo o que fosse estrangeiro ou
impuro. - Ao lado dos fariseus, havia os Saduceus, grupo de elite, que se voltava para a cultura grega,
seguindo orientação racionalista (negavam a ressurreição dos mortos e os anjos, At 23,7s). - Fora das
cidades encontravam-se em colônias isoladas no deserto (principalmente à margem ocidental do Mar
Morto) os Essênios que esperavam a vinda do Messias para breve, observando celibato e renúncia à
propriedade particular; é possível que São João Batista è alguns dos discípulos de Jesus tenham tido
contato com os Essênios em Oumram (N.O. do Mar Morto). O nacionalismo judaico chegava ao
extremo nas correntes dos Zelotas (zelosos de suas tradições pátrias e religiosas) e dos Sicários
(dispostos a empreender a guerrilha).
Nos tempos do nascimento de Jesus, a Judéia era governada por Herodes o Grande (37-4 a.C.),
estrangeiro idumeu, rei vassalo de Roma. No ano 6 d.C. a Judéia foi incorporada à província romana
da Síria, cuja administração competia a um Procurador que residia em Cesaréia (Palestina).
Fora da sua terra-mãe, os israelitas se achavam esparsos na Diáspora (= Dispersão). Com efeito,
após as deportações para a Assíria (em 721) e para a Babilônia (em 587), muitos permaneceram no
estrangeiro, formando comunidades que não se misturavam com outros povos e mantinham contato
com Jerusalém mediante peregrinações freqüentes. Especialmente no Egito constituiu-se próspera
colônia judaica, com sua sede principal em Alexandria; nesta cidade viveram grandes pensadores
judeus, dos quais o mais famoso é Filon (+40 d.C.), filosofo que procurou fundir a Bíblia e a filosofia
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grega numa síntese harmoniosa. Embora se mantivessem segregados, os judeus não deixaram de
exercer influência sobre o mundo pagão; o monoteísmo e a Moral de Israel impressionavam os greco-
romanos, de modo que estes se aproximavam da religião Judaica... uns como prosélitos. At 2,11
(aceitavam a circuncisão e a Lei de Moisés), outros como tementes a Deus, At 10,2; 13,50; 16,14
(abraçavam o monoteísmo e apenas algumas práticas do Judaísmo como o repouso do sábado, a
distinção de alimentos, certas abluções rituais...).
Neste contexto de pagãos e judeus teve origem o Cristianismo.
Judeu da Diáspora ou de Tarso (Cilícia), recebeu a cultura helênica vigente na sua pátria; aos 15
anos de idade foi enviado para Jerusalém, onde foi iniciado por Gamaliel nas Sagradas Escrituras e
nas tradições rabínicas. Era autêntico fariseu, quando Cristo o chamou a trabalhar em prol do
Evangelho por volta do ano 33 (cf. At 9,19). Realizou três grandes viagens missionárias em terras
pagãs, fundando várias comunidades cristãs na Ásia Menor e na Grécia. São Paulo não impunha aos
pagãos nem a circuncisão nem as obrigações da Lei de Moisés, mas concedia-lhes logo o Batismo
depois de evangelizados. Ora isto causou sérias apreensões a uma facção de judeo-cristãos chamados
"judaizantes"; queriam que os gentios abraçassem a Lei de Moisés e o Evangelho, como se este não
bastasse. Levantaram, pois, certa celeuma contra Paulo. A fim de resolver a questão, os Apóstolos que
estavam em Jerusalém, se reuniram com Paulo e alguns discípulos no ano de 49, como refere S. Lucas
em At 15: a assembléia houve por bem não impor aos gentios a Lei de Moisés, mas pediu que em
Antioquia, na Síria e na Cilícia os étnico-cristãos1 observassem quatro cláusulas destinadas a garantir
a paz das respectivas comunidades (que contavam numerosos judeo-cristãos): abster-se de carnes
imoladas aos ídolos (idolotitos), de sangue, de carnes sufocadas (cujo sangue não tivesse sido
eliminado) e de uniões ilegítimas. Essas cláusulas tinham caráter provisório, e visavam a não ferir a
consciência dos judeo-cristãos,2 que tinham horror aos ídolos, ao consumo de sangue e à fornicação.
Estava assim teoricamente resolvida a problemática levantada pelos Judaizantes; na prática, porém,
estes não se tranqüilizaram e procuraram destruir a obra apostólica de S. Paulo, caluniando-o como
impostor e oportunista; Paulo, diziam, queria facilitar o acesso dos pagãos ao Cristianismo para
ganhar a simpatia dos mesmos, já que não tinha a autoridade dos outros Apóstolos; não acompanhara
o Senhor Jesus, mas era discípulo dos Apóstolos; alegavam também que, se Paulo queria viver do
trabalho de suas mãos e não da obra de evangelização (cf. 1Cor 9,15-18; 1Ts 2,9), ele o fazia por
saber que não era Apóstolo como os demais e não tinha o direito de ser sustentado pelas comunidades
dos fiéis. São Paulo sofreu horrivelmente por causa dessas falsas acusações (cf. 2Cor 11,21-32), mas
não se abateu, pregando intrepidamente a liberdade dos cristãos frente à Lei de Moisés. E por que
tanto insistiu nisto?
Eis a resposta paulina: Deus chamou Abraão gratuitamente ou sem méritos de Abraão, e
prometeu-lhe a bênção do Messias; Abraão acreditou nesta Palavra do Senhor, e tornou-se justo ou
amigo de Deus por causa da sua fé; é certo, porém, que esta fé não foi inerte, mas traduziu-se em
obediência incondicional a todas as ordens do Senhor. Ora o modelo de Abraão é válido para todos os
homens, anteriores e posteriores a Cristo; ninguém é justificado ou feito amigo de Deus porque o
mereça, mas porque Deus tem a iniciativa de perdoar os pecados de sua criatura; esta acredita no
perdão de Deus e exprime sua fé em obras boas. - Sobre este pano de fundo a Lei de Moisés foi dada
ao povo de Israel a título provisório e pedagógico: ela propunha preceitos santos, que o israelita não
conseguia cumprir, vítima da desordem do pecado existente dentro de todo homem; assim a Lei tinha
o papel de mostrar à criatura que ela por si só é incapaz de praticar o bem e de fazer obras meritórias;
ela precisa da graça de Deus. ... graça que o Messias devia trazer; desta maneira (dura e paradoxal) a
Lei preparava Israel para receber o Salvador: aguçava a consciência do pecado, tirava qualquer ilusão
de auto-suficiência e provocava o desejo do dom gratuito de Deus prometido a Abraão. A intuição
desta verdade ou do grande desígnio de Deus na história da salvação se deve ao gênio de São Paulo,
que assim evitou que o Cristianismo se tornasse uma seita judaica, filiada à Lei de Moisés, e
preservou a autenticidade cristã: a Lei de Moisés era um elemento meramente provisório e
preparatório para Cristo.
Quanto ao fato de não querer viver do seu trabalho de evangelização, e de trabalhar com as mãos
para ganhar seu pão. São Paulo o justificava, dizendo que evangelizar para ele não era meritório
(como era meritório para os demais Apóstolos); Cristo o tinha de tal modo cativado que ele não podia
deixar de pregar a Boa-Nova ("ai de mim, se eu não evangelizar!", 1Cor 9,16); por isto devia fazer
algo mais para oferecer ao Senhor Deus. - Ademais São Paulo fazia questão de dizer que não era
discípulo dos Apóstolos, mas fora instruído e instituído diretamente por Deus (cf. Gl 1,1).
1
Cristãos de origem pagã, não judaica.
2
Cristãos provenientes do judaísmo.
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os cristãos se recrutavam nas camadas mais humildes da população; por isto eram tidos como
ingênuos, vítimas de um ou mais exploradores da sua simploriedade.
Os preconceitos que assim corriam de boca em boca, levavam a crer que os cristãos constituiam
um perigo para o Império Romano. - De resto, as acusações levantadas contra eles tinham, às vezes,
fundamento nas crenças ou nas práticas de grupos dissidentes do Cristianismo (montanismo, correntes
gnósticas...); os pagãos não distinguiam entre a chamada "Grande Igreja" e os conventículos que
professavam apenas parte da mensagem cristã.
2. 2. O Gnosticismo
A gnose é uma corrente sincretista que funde entre si elementos das religiões orientais, da
mística grega e da revelação Judeo-cristã. Tentou envolver o Cristianismo no processo de fusão,
pondo em xeque a pureza da mensagem evangélica nos séculos II / III. Por isto já em 1Tm 6,20 há
uma advertência a Timóteo para que evite "as contradições de uma falsa gnose (pseudónymos
gnosis)".
Os gnósticos atraiam os homens prometendo-lhes um conhecimento superior ao da simples fé
cristã, reservado aos iniciados. Esse conhecimento (gnosis) forneceria a solução cabal dos problemas
fundamentais da filosofia (origem do mal, gênese do mundo, redenção e felicidade definitiva do
homem).
Os gnósticos eram, antes do mais, dualistas, isto é, admitiam um princípio bom, que seria a
Divindade (simbolizada pela Luz) e, em oposição, a matéria (simbolizada pelas trevas), má por si
mesma. Da Divindade emanariam os seres (cones) num sistema de (365?) ondas concêntricas, cada
vez mais distanciadas do bem e próximas do mal. O homem seria um elemento divino que, em
conseqüência de um acontecimento trágico, terá sido condenado a se revestir de matéria (corpo) e
viver na terra. O Criador do mundo material seria um eon inferior, que era identificado com o Deus
justiceiro do Antigo Testamento.
Para libertar as centelhas de luz ou de bem aprisionadas na matéria e levá-las ao reino da luz,
terá sido enviado ao mundo um eon superior, o Logos (Cristo). Este revelou aos homens o Deus Sumo
e Verdadeiro, que eles ignoravam; anunciou-lhes que o mundo da luz os espera e lhes transmitiu as
maneiras eficazes de vencer e eliminar a matéria.
O Salvador assim entendido tinha, conforme algumas escolas gnósticas, apenas um corpo
aparente (docetismo) ou, segundo outras, tinha um corpo real, no qual o Logos desceu e permaneceu
desde o Batismo até a Paixão de Jesus.
A salvação só pode ser obtida pelos homens pneumáticos (espirituais) ou gnósticos, nos quais
prevalece a luz. A maioria dos homens ou a massa é material (hílica) e será aniquilada como a
matéria. Entre os espirituais e os materiais haveria os psíquicos ou os simples crentes católicos, que
poderiam chegar a gozar de uma bem-aventurança de segunda ordem.
Os gnósticos admitiam o retorno de todas as coisas às condições correspondentes à sua natureza
originária.
Pelo fato de desprezarem a matéria, os gnósticos deveriam praticar severa ascese ou abstinência
de prazeres carnais. Facilmente, porém, passavam ao extremo oposto: recusando o Deus do Antigo
Testamento, que era também o autor da Lei, rejeitavam normas de conduta moral e caiam em
libertinismo desenfreado. Julgavam supérflua a confissão de fé perante as autoridades hostis, porque a
verdadeira profissão de fé, o martírio (testemunho, em grego) consistia na gnose; quem possui a esta,
não está obrigado a sacrifício algum.
O gnosticismo se ramificou em escolas diversas: a oriental, mais rígida, a helênica, mais
branda, a de Marcião, mais chegada ao Cristianismo, a dos Ofitas (cultores da serpente), a dos
Cainitas, a dos Setianos... Floresceu principalmente entre 130 e 180, contando com chefes de
capacidade notável (Basílides, Valentim, Carpócrates, Pródico...). Produziram rica bibliografia
(tratados de filosofia, comentários de textos bíblicos, hinos...), de que nos restam poucos fragmentos.
O confronto entre a gnose aparatosa e o Cristianismo nascente foi de enorme perigo para este; a
Igreja teve que desenvolver eloquente e densa apologética representada principalmente por S. Justino,
S. Irineu, Tertuliano, Hipólito de Roma... Os bispos se uniram entre si como autênticos guardas do
patrimônio da fé; Roma, onde os principais mestres da gnose queriam implantar-se, soube desenvolver
ação particularmente benemérita. Na confusão que entre os cristãos podia estabelecer-se no debate
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doutrinário, o critério para julgar a veracidade de determinada sentença era a conformidade ou não
desta com os ensinamentos da Igreja de Roma; estes eram decisivos, pois a comunidade de Roma
estava fundada sobre a pregação e o martírio dos dois principais Apóstolos (Pedro e Paulo): "é com
esta igreja (de Roma), em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação, que deve
necessariamente concordar toda igreja, isto é, devem concordar os fiéis procedentes de qualquer parte;
nela sempre se conservou a Tradição que vem dos Apóstolos" (Contra as Heresias III, 3,1-3).
Lição 3: Os Apologetas
1) São Justino (+165 aproximadamente) recebeu o cognome de "filósofo". Desde jovem, passou
pelas principais escolas de filosofia de sua época (o Estoicismo, o Aristotelismo, o Pitagorismo. o
Platonismo); finalmente conheceu os Profetas do Antigo Testamento e assim chegou a Cristo, cuja
mensagem lhe satisfez plenamente; por isto dizia que o Cristianismo é a verdadeira filosofia; revestido
do pálio dos filósofos, deixou sua terra natal, a Palestina, e foi pelo mundo até estabelecer sua escola
em Roma. Deixou duas Apologias e o "Diálogo com Trifão judeu". Os principais pontos doutrinais ai
apresentados são:
- a teoria do Verbo seminal. Onde há verdade, esta foi comunicada pelo Verbo de Deus. A
filosofia grega contém gérmens de verdade, que o Verbo lhe transmitiu através do Antigo Testamento.
Também todo homem possui no seu íntimo um gérmen do Verbo, que o capacita a conhecer a
verdade. Após a vinda de Cristo, a plenitude da verdade se acha entre os cristãos.
- O paralelo Eva-Maria foi formulado por São Justino pela primeira vez. Eva virgem (antes de se
relacionar com Adão), pela desobediência, trouxe a morte ao mundo; Maria Virgem pela sua fé trouxe
a Vida-Cristo à humanidade.
2) Tertuliano (+após 220) fez-se cristão em idade adulta, quando já exercia a profissão de
advogado. Teve o grande mérito de criar uma terminologia precisa e afinada com as categorias do
Direito para exprimir a mensagem crista. Cheio de fantasia, sátira e eloqüência, tendia ao rigorismo,
que o levou a abandonar a Igreja para aderir ao Montanismo (que apregoava a proximidade de nova
era, a do Espírito). Deixou 31 obras dedicadas a reafirmar o Cristianismo frente aos adversários.
3) Minúcio Félix é o autor do diálogo Octavius, do século III. Apresenta a troca de ideias entre
o cristão Otávio e o pagão Cecílio; refuta as acusações contra os cristãos e traça um quadro atraente da
vida destes.
4) A Epístola a Diogneto é de autor anônimo, que se dirige a um pagão de alta categoria para
valorizar a ética dos cristãos: "Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como
estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e
procriam, mas nunca lançam fora o que geraram... Na terra vivem, participando da cidadania do'céu...
Para resumir numa palavra: o que a alma é no corpo, são os cristãos no mundo".
O estudioso muito lucrará se se dedicar à leitura de tais obras, pois lá encontrará fontes de
inestimável riqueza para a fé e a espiritualidade.
MÓDULO 4: AS PERSEGUIÇÕES
O Cristianismo expandiu-se com rapidez surpreendente, apesar dos obstáculos que encontrou no
mundo pagão. Vejamos, pois, quais os principais fatores que favoreceram a sua difusão e quais os
grandes obstáculos que se lhe opuseram.
Ora a essa sociedade o Evangelho propunha a valorização de toda e qualquer pessoa humana,
feita à imagem e à semelhança de Deus (cf. Gl 3,27-29; Cl 3,11), a caridade para com todos, o amor à
pobreza e à renúncia. Desvendava também o sentido da vida inspirado pelo amor daquele que
primeiro nos amou (1Jo 4,19) e que nos chamou ao consórcio da sua bem-aventurança a ser alcançada
pela configuração a Cristo.
2) Como foi insinuado, o Cristianismo aparecia aos pagãos como algo absolutamente novo e
inaudito (cf. 2Cor 5,17), mas correspondente às aspirações mais profundas do ser humano. Por isto
podia dizer Tertuliano, o jurista romano convertido à fé cristã no fim do século II: "A alma humana é
naturalmente cristã"; encontra no Evangelho a resposta aos seus anseios inatos.
Com outras palavras: o Cristianismo não tinha em seu favor nem dinheiro nem tropas nem o
apoio imperial, mas contava com o poder de atração e o fulgor da verdade: especialmente os
problemas do sofrimento, da retribuição e do além encontravam (e encontram) no Evangelho uma
solução que não é filosófica (a filosofia é incapaz de os resolver), mas que a sã razão pode aceitar pela
fé sem trair a sua dignidade. Muitos estudiosos greco-romanos, depois de haver percorrido diversas
escolas fitosófico-religiosas, encontraram finalmente na Igreja a verdadeira sabedoria, que eles
estimavam como a única na qual podiam confiar (S. Justino, Diálogo com Trifão n o 8).
3) Além de proferir a verdade, os cristãos a traduziam em vida. Embora não se fechassem em
grupos ou facções, os discípulos de Cristo primavam pela retidão de costumes, pelo amor fraterno,
pela castidade.... Tertuliano nos transmite a observação feita pelos pagãos: "Vede como se amam
mutuamente e como estão prontos a morrer um pelo outro!" (Apologeticum 39). Notório testemunho
da conduta santa dos cristãos é a epístola a Diogneto, dirigida por um cristão anônimo a um
interlocutor pagão.
Mesmo diante das ameaças dos perseguidores, muitos discípulos de Cristo se mantinham
intrépidos e aceitavam a própria morte. A sua firmeza heróica dissolvia calunias e convencia muitos
dos que lhes eram alheios, como notam alguns escritores antigos. Dizia Tertuliano (+220): "Plures
efficimur quoties metimur a vobis, semen est sanguis christianorum. - Mais numerosos nos tornamos
todas as vezes que somos por vós ceifados: o sangue dos cristãos é semente" (Apologeticum 50). E
Latâncio (+após 317): "Cresce a religião de Deus quanto mais é premida" (Instituições V 19,9).
4) Os cristãos tinham o zelo missionário, expressão do fervor de sua fé. Homens e mulheres,
livres e escravos, comerciantes e soldados sentiam o dever de transmitir a Boa-Nova, cientes de que
assim estavam servindo a seus irmãos.
Eis, porém, que a expansão do Cristianismo se defrontou com, sérios obstáculos, como se verá a
seguir.
visando especialmente aos cristãos, que ele considerava como os inimigos mais perigosos do Estado.
Por conseguinte, em 250 decretou que todos os cidadãos do Império Romano deveriam manifestar
expressamente a sua adesão à religião do Estado, oferecendo aos deuses um sacrifício propiciatório;
quem o fizesse, receberia um certificado (libellus) de dever cumprido; quem resistisse, seria
submetido a penas diversas (cárcere, confiscação de bens, exílio, trabalhos forçados...) até à pena de
morte. Os Bispos estavam particularmente na mira do Imperador, que dizia tolerar mais facilmente um
rival no Império do que um Bispo cristão em Roma. Os cristãos, colhidos de surpresa por este decreto,
fraquejaram em parte; mas houve também uma multidão de mártires de todas as idades e de ambos os
sexos.
Após dois anos de paz sob o Imperador Galo (251 -253), Valeriano (253-260) em 257, vendo o
Estado em grande miséria, quis remediar-lhe mediante novo golpe contra os cristãos. Visou a
dissolver a organização das comunidades cristãs, ferindo Bispos, sacerdotes e diáconos; mandou, pois,
que estes oferecessem sacrifícios aos deuses sob pena de exílio; a visita aos cemitérios e a participação
nas reuniões de culto eram proibidas sob ameaça de morte. Naquela época já havia muitos cristãos
exercendo funções no palácio imperial; foram condenados a trabalhos forçados na condição de
escravos. Logo, porém, que Valeriano foi preso na guerra persa (259), a tormenta foi-se amainando.
Diocleciano (284-305) assumiu o governo imperial muito abalado por desordens internas. Por
isto promoveu profunda reforma administrativa, que haveria de implicar nova tentativa de restaurar ou
fortalecer a religião do Estado. O Cristianismo estava muito difundido, contando entre 7 e 10 milhões
de fiéis num total de 59 milhões de habitantes do Império; Prisca, a esposa de Diocleciano, e sua filha
Valéria eram provavelmente favoráveis ao Evangelho, além de altos oficiais do exército e da corte. -
Desencadeou-se assim a última, a mais grave e a mais longa perseguição, que tendia a aniquilar o
Cristianismo numa luta de vida ou morte: foram condenados à destruição os templos e os livros
sagrados cristãs. Em 304 um decreto imperial obrigava todos os cidadãos a sacrificar aos ídolos - o
que provocou o derramamento de copioso sangue ou execuções em massa.
Todo esse esforço perseguidor havia de ser vão; o Estado havia de capitular diante da tenacidade
dos discípulos de Cristo. Após muitas peripécias dentro de um Império esfacelado, Constantino, um
dos sucessores de Diocleciano, houve por bem publicar em 313 o Edito de Milão: este concedia a
todos os habitantes do Império e, em particular, aos cristãos plena liberdade de religião e de culto; às
comunidades cristãs se faria a restituição ou a indenização dos edifícios e das terras confiscadas
durante as perseguições. Assim dissolvia-se pela raiz o vinculo existente entre o Império Romano e o
culto pagão; abria-se uma era nova na política religiosa do Estado e inaugurava-se um novo segmento
de história do Cristianismo.
É difícil dizer ao certo o número de mártires que tombaram nos quase três séculos de
perseguição: 100.000 ou talvez apenas algumas dezenas de milhares? As Atas de Martírio que nos
chegaram às mãos, foram retocadas para servir à edificação dos leitores em vários casos, como as de
Sta. Cecília, S. Jorge, S. Cristóvão, S. Sebastião, S. Lourenço...; reconhecendo isto após um estudo
objetivo de tais documentos, a Igreja quis dizer aos fiéis que nem tudo o que se narra a respeito dos
mártires antigos é seguramente histórico; tal declaração nada tem que ver com "cassação de Santos";
os Santos serão sempre santos, mas hão de ser cultuados na base de informações históricas, e não na
de narrações fantasiosas. E de notar, porém, que temos também testemunhos de autenticidade
garantida, que nos referem a virtude heróica dos mártires cristãos.
monoteísmo ainda vago. Antes da batalha contra Maxêncio, Constantino aproximou-se mais do
Cristianismo. Diz o historiador Eusébio de Cesaréia, na sua Vida de Constantino escrita em 337, que,
antes de entrar em guerra, Constantino e seu exército viram sobre o sol, numa tarde, o sinal de uma
cruz luminosa acompanhada pelos dizeres Toutoi nika (com este sinal vencerás!). Na noite seguinte,
Cristo terá aparecido a Constantino, ordenando-lhe que fizesse um estandarte (lábaro) com o
monograma de Cristo (X atravessado por um P, isto é, P ou P).3 A notícia desta visão é discutida
pelos historiadores. O fato é que Constantino venceu o rival Maxêncio junto à Ponte Mílvia em Roma
aos 28/10/312. Embora ainda não fosse cristão, Constantino reconhecia cada vez mais o valor do
Cristianismo; por isto em fevereiro de 313 promulgou o Edito de Milão, que reconhecia a religião
cristã como lícita e dotada de plena liberdade (não, porém, religião do Estado - o que só aconteceria
em 380); em conseqüência, os templos e outros bens imóveis confiscados deveriam ser restituídos aos
cristãos. Este gesto teve enorme importância, pois desfazia o vínculo até então existente entre o
Estado Romano e a religião pagã.
Constantino governava apenas o Ocidente do Império.4 No Oriente seu cunhado Licínio assumiu
atitude oposta em relação ao Cristianismo por causa da rivalidade política com Constantino; embora
tenha aceito inicialmente o Edito de Milão, Licínio, a partir de 320, foi sufocando a vida dos cristãos;
dificultou-lhes até a celebração do culto sagrado. Constantino, porém, venceu e destronou Lícinio em
324, tornando-se único senhor do Império. Desde então o Imperador mais ainda favoreceu o
Cristianismo; embora suas concepções religiosas ainda fossem confusas, estava convencido da
superioridade da religião cristã. Em 324, o Imperador enviou um Manifesto aos súditos do Oriente, em
que exprimia o desejo de que cada um abandonasse "os templos do engano" e entrasse "na casa
radiante da vida"; proibia, porém, que se molestasse quem quer que fosse por causa das suas crenças
religiosas.
Belas igrejas puderam surgir em Roma (a de São Pedro foi construída por iniciativa do próprio
Constantino), em Jerusalém, Belém..., igrejas que tomaram o nome de basílicas (basiliké em grego é
o adjetivo de basileus. Imperador, e significa imperial igreja). Os templos pagãos foram caindo em
ruínas, especialmente os de Vênus, cujo culto era imoral; o matrimônio e a família receberam proteção
legal de acordo com os princípios do Cristianismo; o domingo, que os pagãos chamavam "dia do sol",
mas que era o dia da Ressurreição de Jesus, foi declarado dia festivo oficial. Constantino se dizia
publicamente adorador do Deus dos cristãos, embora só tenha recebido o Batismo no fim da vida (e
não antes, como se poderia crer).5
2. Muito importante, no reinado de Constantino, foi também a transferência da capital de Roma
para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou
cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a
cidade de Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi
mais e mais abandonada pelo poder imperial; tornou-se sempre mais importante pelo seu valor
religioso (nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a
quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros).
A transferência da capital para Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivessem
cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria - o que infelizmente resultou num cisma em 1054.
Após longo e próspero reinado, Constantino faleceu em 337.
Os cristãos orientais veneraram-no. Juntamente com sua mãe Helena, como Santo ou, melhor,
como o 13o Apóstolo. Os ocidentais foram mais sóbrios, atribuindo-lhe o título de "Magno", bem
Justificado, pois certamente Constantino realizou obra de imenso alcance para a história da
humanidade. Há, porém, quem julgue que a proteção concedida por Constantino ao Cristianismo
3
Em grego X equivale a Ch e P é o equivalente de R. XP, portanto, são as duas primeiras letras do nome grego Christós,
O o é, P ou P ou tornou-se comum entre os cristãos até hoje.
4
É de notar que o Império Romano, desde 286, era governado por quatro soberanos (dois Augustos e dois Césares), que
repartiam assim as responsabilidades da administração. Esse tipo de governo, introduzido por Diocleciano (284-305), foi
de pouca duração, mas ainda deixava vestígios de si nos tempos de Constantino e Licínio.
5
Uma lenda reza que Constantino foi batizado pelo Papa São Silvestre, que também o terá curado de lepra. Até o século
XVII foi tida como autêntica versão dos fatos; hoje, porém, é reconhecida como falsa.
17 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
de Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, era pagão em seu íntimo. Uma vez entronizado,
declarou-se publicamente adepto da religião helenista antiga - o que lhe valeu o cognome de
"Apóstata" (desertor). Praticava fervorosamente o culto do Sol com os sacrifícios respectivos e a
magia.
Juliano quis promover a restauração da cultura paga transferindo da Igreja para instituições
pagãs favores e direitos diversos. Os "galileus" (assim eram chamados os cristãos) deveriam deixar os
cargos mais elevados do Império; proibiu aos mestres cristãos que explicassem aos seus alunos os
clássicos autores gregos - o que obrigava os jovens cristãos a freqüentar as escolas pagãs.
Juliano tentou criar uma Igreja de Estado neoplatônica,8 copiando de certo modo os moldes da
igreja Católica. Fundou, pois, asilos e orfanatos, albergues para os viandantes; promoveu instrução
religiosa para o povo e disciplina penitencial para os sacerdotes pagãos.
No intuito de prejudicar a Igreja, favoreceu as heresias e as cisões entre os cristãos. Para tentar
demonstrar que Cristo se havia enganado (cf. Mt 24,2), permitiu aos judeus que voltassem à Terra
Santa para reconstruírem o Templo de Jerusalém; todavia terremotos e incêndios frustraram tal
empreendimento. O próprio Imperador combateu com a pena o Cristianismo escrevendo três livros
"Contra os Galileus", dos quais só conhecemos fragmentos contidos na réplica aos mesmos escrita por
S. Cirilo de Alexandria.
Juliano não quis desencadear perseguição sangrenta, como tinham feito seus antecessores. Não
quis condenar à morte os cristãos, pois dizia: "Todos correriam ao martírio, como as abelhas voam
para a colméia" (ed. Migne, t. 50, 573); tal era o anseio, dos cristãos, de chegar à perfeição do
martírio. Contudo o zelo fanático dos funcionários e do povo pagão levou a conflitos e derramamento
de sangue. Os resultados obtidos pelo Imperador foram assaz escassos e efêmeros, em parte por causa
da breve duração do seu reinado, em parte também por causa da falta de ambiente no Império para o
retorno às antigas práticas pagas.
Juliano morreu durante uma expedição contra os persas, tendo 32 anos de idade. Reconheceu o
fracasso de sua tentativa, no leito de morte, onde terá exclamado: "Venceste, Galileu!" - o que não é
fato histórico, mas bem traduz o estado de ânimo do Imperador. Juliano era mais romântico do que
dado ao concreto; por isto o seu plano de reforma não suscitou entusiasmo entre os pagãos. S.
Atanásio o comparou a "uma pequena nuvem que se dissolveu rapidamente".
8
O neoplatonismo teve origem em Alexandria no século III d.C. pela fusão do antigo pensamento de Platão com o de
egípcios, judeus e persas. Não era apenas filosofia, mas tinha caráter religioso e místico, praticando um culto próprio, que
incluía a teurgia (arte de fazer Deus descer à alma em êxtase).
9
Há Quem proponha outra explicação para o termo pagão. - Paganus, em latim, significava também o burguês (o não-
soldado ou paisano): em conseqüência, o cristão, sendo soldado de Cristo, deveria ser dito miles (soldado) e não paganus.
19 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Senado de Roma o altar da deusa Victória (382). Estas medidas suscitavam forte agitação na
sociedade não cristã. O alto patriciado de Roma, que ainda conservava muitas das suas tradições
mitológicas, enviou ao Palácio do Imperador em Milão uma delegação, chefiada, pelo celebre senador
e orador Símaco, a fim de solicitar a restituição do altar de Victória ao seu lugar no Senado. Graciano,
porém, recusou-se a receber em audiência tais legados.
A Graciano sucedeu seu irmão Valentiniano II (383-92), com 13 anos de idade. A facção pagã
da sociedade repetiu seu apelo, desta vez por escrito. Os conselheiros do Imperador estavam dispostos
a ceder, mas o Bispo de Milão, S. Ambrósio, em atitude prudente e enérgica, dissuadiu o Imperador de
aceitar a solicitação de restaurar a Ara Victoriae no Senado (384); o próprio S. Ambrósio, em uma de
suas cartas, afirmou que então a maioria dos membros do Senado já era cristã (ep. 17, 9,10).
3. Sob Teodósio I (379-95), que reinou no Oriente do Império, registraram-se acontecimentos
importantes. Aos 28/02/380, o Imperador assinou um decreto que tornava oficial a fé católica
"transmitida aos romanos pelo apóstolo Pedro, professada pelo Pontífice Dâmaso e belo Bispo de
Alexandria, ou seja, o reconhecimento da Santa Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Com
estas palavras, Teodósio abraçava, para si e para o Império, o Credo que, proveniente dos Apóstolos,
era professado então pelo Papa São Dâmaso (366-84) e pelo Bispo S. Atanásio de Alexandria, grande
defensor da fé ortodoxa na controvérsia contra os arianos (ver módulo 8). Assim o Cristianismo, que
Constantino I tornara lícito em 313, era feito religião oficial do Império Romano.
Teodósio continuou a extirpação dos resquícios do politeísmo pagão. De 388 em diante mandou
fechar numerosos templos; em Alexandria foi destruído o famoso Serapeion (391); o povo e os
monges por vezes tomavam parte ativa nessa campanha de extinção do paganismo. Em 392 Teodósio
deu ulterior passo: um decreto imperial equiparava os sacrifícios pagãos de animais imolados e o
aruspício (exame das vísceras de animais para adivinhar o futuro ou esclarecer dúvidas) a alta traição
e os punia com o confisco de bens.
No Ocidente, o assassínio de Valentiniano II (392) por parte do general franco Argobasto e a
ascensão do usurpador Eugênio (392-4) deram ocasião, por breve tempo, a novo surto do paganismo;
em Roma foi permitido o exercício da religião politeísta, e a Ara Victoriae foi devolvida ao Senado.
Teodósio, porém, interveio em Isonzo perto de Aquiléia (394) e pôs termo às expressões do
paganismo, que doravante Já não teria vitalidade para tentar reassumir a sua posição de outrora.
Os múltiplos favores concedidos pelos Imperadores à Igreja poderiam contribuir para lhe tirar a
autonomia, reduzindo-a à qualidade de feudo manipulado pelos interesses políticos da corte. Tal não
foi o caso, de modo geral. Tenha-se em vista, de modo especial, o comportamento do Bispo de Milão,
S. Ambrósio, frente ao Imperador Teodósio: este, em Tessalônica (Grécia), querendo vingar um
comandante morto num movimento revolucionário, mandou matar sete mil pessoas, inclusive
mulheres e crianças (390). Ao saber disto, S. Ambrósio condenou o crime e ameaçou excomungar o
Imperador. Este quis reagir diante da atitude do Bispo, mas caiu em si e se arrependeu. Na noite de
Natal de 390, o Imperador, poderoso como era, revestiu-se do hábito dos penitentes, acusou e
repudiou publicamente o seu pecado; em seguida, absolvido pelo Bispo, foi readmitido à Comunhão
Eucarística. S. Ambrósio assim lembrava um princípio muito antigo entre os cristãos, mas esquecido
na época: "O Imperador está dentro da Igreja, e não acima dela".
Ao morrer em 395, Teodósio deixou a Igreja consolidada neste mundo tanto em relação ao
paganismo, que a perseguira, como em relação à heresia ariana, que encheu o século IV por inteiro e
que o Imperador contribuiu para afastar, aderindo incondicionalmente ao Concílio de Constantinopla I
(381); ver módulo 8.
Lição 2: O Século V
Teodósio deixou o Império a seus dois Jovens filhos, assaz imaturos para governar: Arcádio
(395-408) no Oriente, e Honório (395-423) no Ocidente.
1. No Oriente novas medidas foram sendo tomadas para eliminares resquícios do paganismo.
Arcádio aboliu os privilégios de que gozavam os sacerdotes pagãos e mandou fechar os templos
construídos nas zonas rurais. Seu filho Teodósio II (408-450), influenciado por Pulquéria, irmã de
Teodósio II, excluiu os pagãos dos cargos estatais, e em 448 mandou que as obras do filósofo Porfírio,
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 20
10
Trata-se do historiador Sócrates (+após 450) na sua História Eclesiástica VII 13-15.
21 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
homens a uma conduta filial, para a qual está reservado o prêmio da vida eterna. O anúncio destas
verdades, corriqueiras para quem Já nasceu em civilização cristã, era altamente significativo para os
pagãos.
Nos tempos entre Constantino I e Juliano as instituições e as normas do Direito Civil foram
sendo progressivamente impregnadas de espírito cristão, sobretudo no que diz respeito à mulher, à
criança, à família, ao trabalho...
Além da função estritamente evangelizadora, os Bispos tiveram que assumir tarefas de ordem
temporal, pois o Ocidente se achava sob os golpes das invasões e os Imperadores, residentes em
Bizâncio (Oriente), pouco se importavam com as sortes das populações ocidentais. Em meio à
desordem, os Bispos tiveram, por vezes, que administrar os bens materiais das suas comunidades,
como também foram levados a proteger, alimentar e abrigar as populações mais carentes. Em
particular, destaca-se a figura de São Leão Magno (440-461): era um autêntico romano, de caráter
nobre e corajoso. Foi ao encontro de Atila, chefe dos Hunos, nas proximidades de Mântua em 452,
persuadindo-o a tomar o caminho de volta; em 455, dirigiu-se ao rei dos vândalos, Genserico, que,
atendendo ao Papa, renunciou a depredar a cidade de Roma a ferro e fogo. Socorreu os romanos com
sua solicitude e seus bens, fazendo o que não fazia o representante do Imperador residente em Ravena.
Outra figura de Bispo notável foi a de São Martinho de Tours (316-397) na Galia.11 Recebeu o
Batismo aos dezoito anos de idade; tornou-se monge e. depois, foi feito Bispo. Introduziu o
monaquismo na França e mandou ordenar como presbíteros os seus monges;12 em conseqüência, os
monges na França se tornaram os mestres de espiritualidade e os responsáveis pela configuração da
Igreja. Além disto. São Martinho se dedicou intensamente à evangelização das zonas rurais, onde o
apego aos costumes próprios resistia à penetração do Evangelho: montado em jumentinho e
pobremente equipado, ia S. Martinho de aldeia em aldeia chamando para Cristo todos os homens
carentes.
Outros grandes nomes de Bispos defensores das populações e da civilização podem ser citados:
São Paulino de Nola (353-431), S. Máximo de Turim (+após 465), S. Agostinho de Hipona (+430), S.
Hilário de Poitiers (315-367), S. Pedro Crisólogo, de Ravena (+450). Pode-se dizer que foi a Igreja
que salvou a civilização na tempestade das invasões bárbaras e assegurou a união dos habitantes do
Império Romano. Como dissemos, na falta de um Governo forte no Ocidente, os Bispos tinham que
assumir não somente a pregação do Evangelho, mas também a administração dos bens da sua
Comunidade, o contato com os bárbaros, a proteção e a alimentação das populações carentes.
11
Gália é o nome antigo do território hoje chamado "França". Gália se prende a gauleses, que eram os habitantes da região
anteriormente à invasão dos francos (donde França).
12
Monge é o cristão que se consagra a Deus numa vida de oração, ascese e trabalho; não recebe necessariamente o
sacramento da Ordem. - Presbítero (padre) é o cristão que recebe o sacramento da Ordem para ser pastor do povo de Deus.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 22
chefiados por Teodorico (471-526); um dos generais deste, Odoacro, destituiu o último Imperador,
Rômulo, e fez-se proclamar rei da Itália.
1) Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava... Os cristãos foram
vendo que se esboçava uma nova situação geral e que o Senhor parecia exigir deles que a assumissem,
em vez de se fecharem na perplexidade. - Uma nova atitude aflorava à mente dos cristãos, sugerida
pelo sacerdote Salviano de Marselha (+480): em vez de deterem sua atenção apenas na barbárie dos
novos povos, fizessem os cristãos o seu exame de consciência; não bastava professar a fé católica,
para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé; Salviano aponta então os
vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do Império são
coniventes com graves abusos, como a embriaguez, a luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o
orgulho... Ao contrário, dizia o escritor, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos
outros, ao passo que os romanos se odeiam mutuamente; são castos, principalmente os godos e os
saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para os
romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e
não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges, sim (professavam o arianismo), mas isto é culpa
dos romanos, que lhes transmitiram a heresia.
Os historiadores reconhecem exagero nos dizeres de Salviano. Pouco depois São Cesário, Bispo
de Arles (+452), descreveria vivamente as depravações dos bárbaros. Como quer que seja, as
observações de Salviano evidenciam que entre os cristãos ia ocorrendo uma sadia reconsideração dos
acontecimentos; esta levava ã emenda de vida pessoal e não ao desânimo. Os cristãos deveriam
adaptar-se à nova situação e procurar continuar a trabalhar, salvando dos escombros o que pudessem
salvar.
2) Os bárbaros levaram ao Império Romano envelhecido seus valores próprios: eram povos de
mentalidade inculta, infantil e carente; reconheciam a insuficiência de sua civilização e de suas
crenças e abriam-se com facilidade para o patrimônio da cultura romana, que evidentemente era
superior. Ao lado dos seus defeitos morais, tinham seus traços de dignidade: acentuado sentimento de
honra, espírito de solidariedade com a família e a sua estirpe, matrimônio rigidamente monogâmico,
fidelidade à palavra empenhada... A Igreja bem poderia valorizar esse patrimônio moral e lançar
dentro dos seus moldes as sementes do Evangelho.
3) As invasões bárbaras contribuíam para extinguir a cultura pagã do antigo Império romano,
que conservava seus redutos ainda no século VI. A mensagem de Cristo assumida pelos novos povos
permitiria construir um mundo relativamente novo, mais homogeneamente cristão. Para conseguir
isto, a Igreja dispunha de elementos importantes: grandes Bispos, dotados de irradiação, e os
mosteiros, que eram focos de espiritualidade, cultura e missão evangelizadora,
4) Os germanos, com exceção dos francos, fizeram-se cristãos primeiramente sob a forma do
arianismo,13 seguindo o exemplo dos visigodos. Algumas hordes permaneceram arianas até o seu
ocaso (ostrogodos, vândalos); outras o abandonaram para tornar-se católicas, ainda que tardiamente
(visigodos, suevos, burgúndios...).
Examinemos em particular a conversão dos visigodos e a dos francos.
3.1. Os visigodos
Os visigodos foram os primeiros povos germânicos a abraçar o Cristianismo. No século III
alguns de seus indivíduos se tornaram católicos por obra de prisioneiros ou de missionários com quem
tiveram contato. Todavia o grande arauto da fé, entre eles, foi Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos
godos por Eusébio, Bispo ariano de Nicomédia, pregou durante mais de quarenta anos a fé ariana
entre os seus compatriotas; traduziu para o godo quase toda a Bíblia e admitiu a língua goda na
liturgia. Úlfilas assim trabalhou com o apoio dos Imperadores Constâncio (337-361) e Valente (364-
378), que procuravam fazer do arianismo a religião do Estado.
Os visigodos constituíram um foco missionário do mundo germânico oriental, de modo que, sob
o seu influxo, todos os povos germânicos orientais acolheram a doutrina de Cristo sob a forma ariana.
3. 2. Os francos
Dentre as tribos germânicas, a dos francos havia de desempenhar papel especialmente
importante na história da Igreja. Na segunda metade do século V passaram das margens do Reno para
a Gália. O seu rei Clodoveu ou Clóvis (481-511) casara-se com a princesa católica Clotilde. Esta o
persuadiu de mandar batizar os dois filhos. Mais tarde, Clodoveu achou-se em difícil situação ao
enfrentar o exército dos alamanos; fez então o voto de tornar-se cristão, caso vencesse. Tendo sido
bem sucedido, recebeu o Batismo das mãos do Bispo S. Remígio de Rheims no Natal de 496,
juntamente com 3.000 homens do seu séqüito. Entre os motivos da decisão do rei, estava o desejo de
obter o apoio dos Bispos para o jovem reino franco.
A conversão de Clóvis e dos francos teve enorme importância: visto que os outros chefes
germânicos eram ou pagãos ou arianos, Clóvis apresentou-se aos povos católicos do Ocidente como o
protetor da religião ortodoxa. Este fato mereceu, para a França, o título de "filha mais velha da Igreja".
Clóvis, também dito "o novo Constantino", e seus sucessores tiveram grande ingerência nos assuntos
internos da Igreja – ó que equivale a um certo cesaropapismo no Ocidente. A corte desses reis não
dava o exemplo de autêntica vida cristã, pois era afetada por crimes e impudicícia; a Igreja empenhou-
se por salvar da decomposição o reino dos francos e fazê-lo baluarte da história dos próximos séculos.
Lição 1: O monarquianismo
Nos séculos 11/111 alguns escritores cristãos julgavam que o Verbo (Lógos) ou o Filho de Deus
só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou emitido o Logos,
de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade. - Esta concepção negava a eternidade do
Filho de Deus e o subordinava ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do
Filho, de modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.
Podemos dizer que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus
professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto, monarquianismo,
expressão derivada da exclamação: "Monarchiam tenemus. - Conservamos a monarquia" (Tertuliano,
Adversus Praxeam 3). Apresentava duas fórmulas:
13
A respeito do arianismo ver módulo 08.
25 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
dinamista ou adopcionista
Monarquianismo
modalista ou patripassiano
1.1 O monarquianismo dinamista
O monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do
Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por Deus
como Filho, com intensidade especial. - O fundador desta corrente foi Teódoto de Bízâncio, cristão de
notável cultura grega, que o Papa São Vítor excomungou (190). Os seus discípulos, Asclepiódoto e
Teódoto o jovem, quiseram organizar uma comunidade própria, para a qual nomearam um Bispo
chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou ao seio da Igreja.
Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este
via em Jesus um mero homem no qual terá habitado "como num templo" o Logos ou a Sabedoria de
Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um concílio regional reunido em
Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua
doutrina, de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos
(325).
E de notar que o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho
ou Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora precisamente esta
expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como fórmula de fé. Para entender os fatos,
devemos observar que Paulo de Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou
o Filho era uma só pessoa com o Pai.
1.2. Monarquianismo modalista
Esta corrente ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se
manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater, pai:
passianismo, de passus, padecido).
Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna, foi levada para Roma e Cartago (África), dando
origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma. O Papa Zeferino (198-
217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência em Deus, sem,
porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de pessoas do Pai e do Filho.
O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava
três revelações de Deus: uma, como Pai, na criação e na legislação do Antigo Testamento; outra,
como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos homens.
Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega que significava
originariamente "máscara ou papel de ator de teatro";14 visto que posteriormente prósopon significou
também pessoa, a doutrina de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé
lhe aderiam sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus.
Como se vê, o grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair
no triteísmo ou sem professar três deuses.
A controvérsia havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população,
desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era
simpático ao Cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões teológicas; elas
assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os
esforços de numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram
decisivamente para a rela formulação da fé cristã. O período áureo da literatura cristã está
precisamente ligado às disputas teológicas.
Estudemos agora as controvérsias do século IV.
14
Posteriormente a palavra prósopon havia de significar "pessoa", ou seja, indivíduo racional. Tomada, porém, em seu
sentido originário, designava uma aparência ou uma modalidade de ser.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 26
o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade do Filho, subordinardo-o, porém, ao Pai; donde
resultou a tese do subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.
2.1. Arianismo
O presbítero Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores; afirmava que o
Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumento para a criação
de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos poderia ser chamado "Filho de Deus",
como reza a tradição.
O Bispo Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de cem Bispos, que
condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a outros
Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre.
Ário, porém, conseguiu novos defensores para a sua causa - o que tornou mais árdua a
controvérsia. Diante dos fatos, o Imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando-se
único senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o santo Bispo Ósio de
Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a
missão, porém, fracassou. Então Constantino resolveu convocar um Concílio ecumênico15 para Nicéia
na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as partes
do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois presbíteros seus representantes.
As discussões foram longas e agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo de Fé de
Nicéia, que afirmava ser o Filho "Deus de Deus, luz de luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado não feito, consubstanciai (homoousios) ao Pai; por Ele foram feitas todas as coisas".
A palavra homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava que o
Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde
toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza divina.
O Imperador Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio de Nicéia. Exilou Ário e
quatro Bispos que não queriam aceitar, na íntegra; a definição do Concílio. Condenou às chamas os
escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.
2. 2 As divisões do Arianismo
Infelizmente, porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns
suspeito de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram-se a combater o
Concílio, apoiados pelos Imperadores Constando (337-361) e Valente (364-78), sucessores de
Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que
sofreu vários exílios: e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constando; alguns
historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar à sua sede de Roma, subscrevendo uma
fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se isto é verdade, deve-se à fraqueza
humana, mas não se tratava de definição solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa
fazia. De resto, sabe-se que Libério, uma vez retornado a Roma, combateu eficazmente o arianismo.
Os antinicenos, com o respaldo do Imperador julgaram-se vencedores, depondo Bispos e
reunindo Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo negado a identidade de
substância entre o Pai e o Filho ou o homoousios, afirmaram uns que o Filho era semelhante
(homoiousios) ao Pai, enquanto outros o tinham como dissemelhante (anhomoios). A controvérsia
era alimentada também pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham
significados diferentes: assim homoousios e homoiousios; genetós (feito) e gennetós (gerado),
Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um Concílio
herético).
Finalmente, após mais de cinqüenta anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo,
especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor); S. Basílio de Cesaréia (+379),
S. Gregório de Nazianzo (+390) e S. Gregório de Nissa (+394). Estes elaboraram a fórmula grega:
mía ousía kaí treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia
fielmente o pensamento dos padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se
afirma três vezes ou em três Pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o
imperador Teodósio (379-395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os habitantes do
15
O primeiro de toda a história da igreja. Ecumênico, no caso, quer dizer "universal, abrangendo todos os Bispos".
27 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Império a aderir "àquela fé que professam Dâmaso em Roma e Atanásio em Alexandria"; mandou
também entregar as igrejas de Constantinopla aos católicos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla
I (381) havia de consolidar a proclamação da rota fé contra o arianismo. Isto, porém, não quer dizer
que tal heresia se tenha extinto logo; verias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do-
Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de
religião nacional.
Resta agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.
Lição 3: O Macedonianismo
O Espírito Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (como Jo 14.16), foi menos
considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem Julgava ser o Filho criatura do Pai
tinha o Espírito Santo na conta de criatura do Filho; seria um dos espíritos servidores (cf. Hb 1,14),
diferente dos anjos apenas por gradação.
S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do
Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade do Espírito Santo.
Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedônio, Bispo ariano de Constantinopla deposto em
360, era ferrenho adversário da
Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que se chamavam
macedonianos ou pneumatômacos ( pneuma = espírito; máchomai = combater).
Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos padres capadócios.
Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150
padres ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o macedonianismo e. para
explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo 3 o do Símbolo de fé niceno, que rezava
apenas: "Cremos no Espírito Santo"; foram-lhe acrescentadas as palavras: "Senhor e Fonte de Vida,
que procede do Pai (cf. Jo 15,26), é adorado e glorificado Juntamente com o Pai e o Filho, e falou
pelos Profetas". Assim teve origem o Símbolo de Fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a
heresia ariana quanto a macedônia.
Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se relaciona com
o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na
formulação do que na própria doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede
do Pai através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho (Filioque).
Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente
recitado, passando depois para outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal
inserção, que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI. Atualmente as dificuldades vão sendo
superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que de conteúdo.
Lição 1: O Apolinarismo
Em plena controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se
fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana
carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de S. João 1,14: "O Lógos se fez carne",
entendendo carne no sentido estrito, com exclusão de alma. O Lógos de Deus faria as vezes de alma
humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo
Lógos. Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas completas (Divindade e
humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse. Ele teria duas pessoas ou dois eu -
o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 28
pecado tem origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a alma
espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário expôs suas ideias no livro "Encarnação do Verbo de Deus", que ele apresentou ao
Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. - Foram condenadas num sínodo de
Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Dâmaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de
Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se â
negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S. Gregório de Missa (1394) e outros autores lhe
responderam mediante belo princípio: "O que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido" - o que
quer dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou
pela união da Divindade com a humanidade; se, pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não
foi inteiramente salva.
Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo à frente o Bispo Vital. Por volta
de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os seus membros abandonaram o
erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.
Lição 2: O Nestorianismo
Afirmada a existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais
detidamente o modo como humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo.
Antes, porém, de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas
teológicas da antiguidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da
Cristologia.
A escola alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino e o
transcendental nos artigos da fé. Interpretava a S. Escritura em sentido alegórico, tentando desvendar
os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos cristológicos, portanto, era inclinada a
realçar o divino, com detrimento do humano.
Ao contrário, a escola antioquena era mais dada à filosofia e à razão: voltava-se mais para o
humano, sem negar o divino. Interpretava a S. Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus
os predicados humanos mais do que os atributos divinos. Era mais racional, ao passo que a de
Alexandria era mais mística.
Dito isto, voltemos à história do dogma cristológico.
A primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de
Constantinopla em 428. Afirmava que o Lógos habitava na humanidade de Jesus como um homem se
acha num templo ou numa veste; haveria duas pessoas em Jesus - uma divina e outra humana - unidas
entre si por um vínculo afetivo ou moral.
Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos), como diziam os antigos, mas
apenas Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa
da SS. Trindade com a sua Divindade.
Nestório propunha suas ideias em pregações ao povo, nas quais substituía o título "Mãe de
Deus" por "Mãe de Cristo" As suas concepções suscitaram reação não só em Constantinopla, mas em
outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este
escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a doutrina de Nestório.
As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório num
sínodo de 430. Deu ordem a S. Cirilo para que intimasse Nestório a retirar suas teorias no prazo de
dez dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao Patriarca de Constantinopla uma lista de doze
anatematismos que condenavam o nestorianismo. Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que
podia contar com o apoio do Imperador; além do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena,
entre os quais o próprio Bispo João de Antioquia.
Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o terceiro Concílio
Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. S, Cirilo, como representante do Papa Celestino I,
abriu a assembléia diante de 153 Bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos
da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado; daí se
seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a Divina); Maria se tornara Mãe de Deus pelo fato de que
Deus quisera assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431
29 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
chegou a Éfeso o Patriarca João de Antioquia, com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a
Nestório; não quiseram unir-se ao Concílio presidido por S. Cirilo, representante do Papa; por isto
formaram um conciliábulo, que depôs Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se
indeciso. S. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta
doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do Imperador. Este
finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os antioquenos não se renderam de
imediato; acusavam Cirilo de arianismo e apolinarismo. Após dois anos de litígio, em 433 puseram-se
de acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como Theotókos.
O Nestorianismo, porém, não se extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino,
foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana. Esta teve notável expansão até a
China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante foi definhando por causa das incursões dos
mongóis; em grande parte, os nestorianos voltaram à comunhão da Igreja universal (são hoje os
cristãos caldeus e os cristãos de São Tomé).
Em nossos dias muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que
parece ser autor de uma apologia intitulada "Tratado de Heraclides de Damasco": pode-se crer que
Nestório tenha tido reta intenção; mas certamente sustentou posições errôneas por se ter apegado
demasiadamente à Escola Antioquena.
Lição 3: O Monofísismo
A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu ocasião
ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofísitismo ("em Jesus há uma só natureza e
uma só pessoa: a divina").
O primeiro arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que
Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina
absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, só se poderia falar de uma natureza em Jesus: a
divina. Esta doutrina tornou-se a heresia mais popular e mais poderosa da antiguidade, pois, para os
orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada
cristão.
Eutiques foi condenado como herege no Sínodo do Constantinopla em 448, sob o Patriarca
Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o
Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.
Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio II Imperador convocou em 449 novo
Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era partidário de
Eutiques. Dióscoro tendo aberto o Concílio, negou a presidência aos legados papais; não permitiu que
fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno, que propunha a reta doutrina: as duas naturezas em Cristo
não se misturam nem confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a
outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pode ressuscitar mortos
como Deus. - Esse Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de
Constantinopla, e outros Bispos contrários à tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta
duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa
São Leão Magno, como "latrocínio de Éfeso"; pediam novo Concílio, que de fato foi convocado após
a morte de Teodósio II pela Imperatriz Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em
450 foi feito Imperador e se casou com Pulquéria.
O novo Concílio, desta vez legítimo, reuniu-se em Calcedônia, diante de Constantinopla, em
451; foi o mais concorrido da antiguidade, pois dele participaram mais de 600 membros, entre os
quais três legados papais. A assembléia rejeitou o "latrocínio de Éfeso"; depôs Dióscoro e aclamou
solenemente a Epístola Dogmática do Papa São Leão a Flaviano; esta serviu de base a uma confissão
de fé, que rejeitava os extremos do Nestorianismo e do Monofisismo, propondo em Cristo uma só
pessoa e duas naturezas;
"Ensinamos e professamos um único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não
transformadas, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças;
antes, cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra numa única
pessoa e numa única hipóstase",
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 30
Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e
duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora de Cristo; mas
também não há uma só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito à
dor e à morte para transfigurar estas nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina,
que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no seio de
Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, ora como homem, mas sempre e somente com
o seu eu divino.
O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da
atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges), propondo-lhes a
humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos explicam essa persistência da
heresia; com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas
tendências nacionalistas, opostas ao helenismo e à dominação bizantina. Por isto os monofisitas
continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de
punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém (ao menos
temporariamente). No século VII a situação se agravou, pois os muçulmanos ocuparam a Palestina, a
Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em conseqüência,
os monofisitas foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a Síria, a mesopotâmica, a egípcia e a
etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis.
No Egito, os monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da
palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se chamam melquitas (de
melek, Imperador), pois guardam a doutrina ortodoxa patrocinada pelo Imperador em Calcedônia. Há
coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto os outros permanecem monofisitas, mas professam
quase o mesmo Credo que os católicos. Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas
pois receberam forte influência do Egito. - Dentre os melquitas, grande parte aderiu ao cisma
bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão hoje unidos à Igreja universal;
ver módulo 21.
Na Síria e nos países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um
dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (= o homem da coberta de cavalo, alusão às suas vestes
maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa '(541-578), trabalhou com zelo e êxito para consolidar as
Comunidades monofisitas, às quais deu por cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544).
Zenão morreu em 491, tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491-518), também simpático
aos monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca, foram infrutíferas.
A situação se tornou ainda mais sombria por causa da questão teopasquita. Com efeito; a
liturgia grega cantava a Triságion (três vezes santo) nos seguintes termos: "Santo (hágios) Deus,
Santo Forte, Santo imortal, tem piedade de nós". Ora o bispo monofisita Pedro Fulão de Antioquia
acrescentou-lhe as palavras "que foste pregado na cruz por causa de nós". O Imperador Anastásio
mandou recitar a fórmula ampliada em Constantinopla; donde resultou grande agitação. Diziam
alguns monges e fiéis: "Um16 da Santíssima Trindade padeceu na carne"; foram chamados
teopasquitas.17 A fórmula em foco podia ser entendida segundo a ortodoxia: a segunda Pessoa da SS.
Trindade, tendo-se feito homem, padeceu na carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era
monofisita, os ortodoxos desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os monofisitas lhes
favoreciam calorosamente.
Morto o Imperador Anastásio, sucedeu-lhe Justino (518-527), que se empenhou por restabelecer
a comunhão com a Sé de Roma. O Papa Hormisdas (514-523) acolheu o propósito de Bizâncio e
mandou legados a esta cidade com uma fórmula de união dita "Livro da Fé do Papa Hormisdas": esta
proclamava o símbolo de fé calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava o anátema
sobre Nestório, Eutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além disto, declarava que, conforme a
promessa de Cristo a Pedro em Mt 16,16-19, a fé católica se conservava intacta na Sé de Roma; por
isto os fiéis deviam obediência às decisões tomadas por esta. Era assim professado o primado do Papa
em 515. O Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes nesta cidade
assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo perdeu muito da sua voga, mas as
controvérsias continuaram.
16
Uma pessoa.
17
Theós = Deus; páscho = sofrer.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 32
A respeito do Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam entre si. Por isto Justiniano
convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de Eutíquio, novo
Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos (maio e junho de 553).
Vigílio então em 13/05/553, no decurso do próprio Concílio, publicou o Constitutum, que se
opunha à condenação dos Três Capítulos. Justiniano não aceitou a nova posição do Papa e mandou
cancelar o nome de Vigílio nas orações da Liturgia.
Finalmente, sob o peso das pressões e da doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu
Constitutum e aderiu às decisões do Concílio de Constantinopla de 553. Num segundo Constitutum
de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em conseqüência, o Imperador permitiu-lhe voltar para
Roma; todavia morreu em viagem (555). Era vítima da sua inconstância de caráter.
Os Papas que lhe sucederam, a começar por Pelágio I (556-561), reconheceram o Concílio de
553 como ecumênico; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos também o foram
reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma humilhação para o Papado.
Notemos que as hesitações do Papa Vigílio não versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas
sobre a oportunidade ou não de se condenarem três nomes de escritores antigos. - O episódio também
é interessante por evidenciar quanto era prestigiada a Sé Romana; o Imperador quis absolutamente
ganhar o consenso do Papa Vigílio; por isto mandou buscá-lo em Roma e pressionou-o repetidamente
para que subscrevesse ao decreto imperial, como se este precisasse da assinatura do Papa para ser
válido.
não, porém, no sentido de que uma esteja em oposição à outra, mas no sentido de que a vontade
humana segue e se subordina à divina".
Isto quer dizer que em Jesus havia duas faculdades de querer - a divina e a humana - de tal
modo, porém, que a vontade humana se sujeitava à divina, como atesta a oração no horto das
Oliveiras, conforme Mc 14,36.
O Concílio condenou os defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como
fautor de tal doutrina. - A condenação de Honório suscitou longos debates entre historiadores e
teólogos modernos. Na verdade, pode-se tranqüilamente dizer o seguinte:
O Papa Honório, intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra, nem quis
discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, Julgou que a discussão a respeito de
uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio de palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos;
por isto julgou que podia aprovar a posição de Sérgio sem afetar a rela fé. A expressão "uma vontade",
aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de conformidade do querer
humano com o divino. Quanto às faculdades de operar (energeias), Honório esclareceu seu ponto de
vista referindo-se à epistola dogmática de São Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam
na única pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas, aquilo que é próprio de cada
uma delas. - Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório pelo Concílio de 681 foi severo demais;
a Sé de Roma nunca o aprovou integralmente.
que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se
depois...; daí não se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação
propriamente dita).
Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com efeito,
em certa passagem de suas obras considera a teoria do filósofo Basílides, o qual queria basear a
reencarnação nas palavras de São Paulo: "Vivi outrora sem lei..." (Rm 7,9). Observa então Orígenes:
Basílides não percebeu que a palavra "outrora" não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas
apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo; assim, concluía
Orígenes, "Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias" (cf. In
Rom VIII).
Contudo os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência
das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não
chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).
Os principais defensores destas ideias, os chamados "origenistas", foram monges que viveram
no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses monges, como se compreende, levando vida
muito retirada, entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia;
admiravam Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em
que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre
proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam cegamente como
dogma tudo que liam nos escrito de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e
buliçosos quanto mais simples e ignorantes.
3. A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou
decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária à fé. Um dos
testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza (+518), autor do "Diálogo sobre a imortalidade da
alma e a ressurreição", em que se lê o seguinte raciocínio:
"Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe várias
vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na
mesma falta. Sendo assim. Deus, que estipula... os supremos castigos, não haveria de esclarecer os
culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de
suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que
serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o
réu e levá-lo à demência. Uma tal vitima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem
ter consciência de haver cometido alguma falta?" (ed. Migne gr., t. LXXXV, 871).
Sem nos demorar sobre este e outros testemunhos contrários à reencarnação no séc, VI,
passamos imediatamente à fase culminante da controvérsia origenista.
no céu") e de Florença em 1439 ("As almas... passam imediatamente para o inferno a fim de aí
receber a punição") Cf. Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio no 857 [464] e 1306 [693]. Ver também
Concílio do Vaticano II, Const. Lumen Gentium n o 48: "Terminado o único curso de nossa vida
terrestre, possamos entrar nas bodas".
Lição 1: O Re-batismo
A medida que se foram registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma
questão nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer converter-se à Igreja
Católica, deve ser batizado de novo?
Essas perguntas suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a tradição antiga,
admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois se dizia, com razão, que é Cristo quem
batiza, servindo-se do ministério dos homens. Na África do Norte, porém, a tendência era contrária:
em Cartago, o escritor Tertuliano (+após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o opúsculo
"Sobre o Batismo" (em grego e em latim), que rejeitava a validade do Batismo conferido pelos
hereges. Três Sínodos, um em Cartago (220) e dois na Ásia Menor (230), adotaram tal sentença, a
qual passou a ser observada na prática de muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou
mais grave quando o bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do re-batismo.
Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas batizavam "em nome do Pai, do
Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da corrente montanista)". Tal Batismo era
evidentemente inválido, pois não observava a fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (cf. Mt 28,18-20);
se, porém, o batismo dos montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo de
qualquer facção herética devia ser igualmente tido como inválido.
Em Roma o Papa S. Estêvão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os
cristãos da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges batizados fora da Igreja
Católica; apenas se deveria exigir que fizessem penitência para entrarem em comunhão com a Igreja
Católica. Dizia textualmente o Papa uma frase que ficou célebre: "Se os hereges vêm a nós, qualquer
que seja a sua seita, nada se inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que façam
penitência" (o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a fórmula do Evangelho). - O
mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos bispos da Ásia Menor que re-batizavam; em
256, informado de que 87 bispos reunidos em Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo,
o Papa os excomungou (não se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as instruções
de Estêvão I).
Em conseqüência, a tensão foi assaz forte entre Roma e os bispos da parte oposta. Não tardou,
porém, a se amainar, pois morreram mártires Estêvão em 257 e Cipriano em 258. O sucessor de
Estêvão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os bispos do Norte da África, o que significa
que atenderam às disposições da Santa Sé. Houve, porém, casos de re-batismo até o século IV, como
atesta o Concílio de Arles em 314.
A questão tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar. Tertuliano e os cristãos da
África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de modo que só seriam válidos os sacramentos
ministrados por pessoas ortodoxas e de reta conduta de vida; por conseguinte, quem estivesse fora da
Igreja ou em pecado mortal não poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de Roma era
outra: a Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo insinuou que nela o Joio e o trigo
devem permanecer até o fim dos tempos (cf. Mt 13,24-30); na Igreja quem ministra os sacramentos é
o próprio Cristo, que se serve dos homens como instrumentos seus; por isto o batismo conferido por
um ministro validamente ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é sempre válido.
Tal é a concepção até hoje vigente na Igreja Católica. Como se vê, os africanos insistiam mais no
elemento pessoal, ético e subjetivo da administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava
37 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
mais o aspecto objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S. Agostinho (ver
lição 3).
Lição 3: Os Donatistas
As controvérsias sobre o batismo dos hereges (lição 1) prolongaram-se na história do
Donatismo. Este reavivou a questão: a eficácia dos Sacramentos depende da santidade do respectivo
ministro ou é algo de objetivo, garantido pelo sacerdócio do próprio Cristo?
A problemática donatista teve origem com a morte do bispo Mensúrio de Cartago (311). Foi
eleito em seu lugar Ceciliano; este, porém, tinha opositores, pois na perseguição de Diocleciano (284-
305) se opusera a uma equívoca veneração e a exagerada exaltação dos confessores da fé. 18
Espalharam então o rumor de que os bispos sagrantes de Ceciliano, Felix de Aptunga, Fausto de
Tuburbo e Novelo de Tyzica foram traidores, isto é, tinham entregue os livros sagrados aos
perseguidores; em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, Felix, Fausto e Novelo não
podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago.
Diante dos rumores, 70 bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram em Cartago e elegeram
o antibispo Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande. Estava aberto o cisma donatista.
A expansão do cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar
as acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo Papa Milcíades (313),
reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os donatistas.
Estes não se davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do
Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e acrescentou
explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é válida; além do quê, reprovou o uso,
de cristãos da África, de rebatizar quem tivesse sido batizado por hereges.
Visto que os donatistas não se rendiam, Constantino mandou para ò exílio os chefes da facção e
tirou-lhes as igrejas. Todavia estas medidas só surtiram acréscimo de fanatismo. Os donatistas
18
Como dito, "confessores da fé" eram os cristãos que tinham sofrido tormentos por causa do Evangelho, mas não tinham
morrido. Havia quem lhes quissesse atribuir faculdades sacerdotais.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 38
Lição 1: O Pelagianismo
Pelágio nasceu na Bretanha (Inglaterra de hoje) por volta de 354. Fez-se monge e vivia em
Roma, gozando de grande fama entre os cristãos da cidade. - Associou-se-lhe Celéstio, outro monge;
fora advogado e abraçara a vida ascética com grande ardor. Ambos se mostravam otimistas em relação
39 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
à natureza humana e confiavam na força da vontade. Ambos foram concebendo uma doutrina nova, a
saber: não existiu o pecado original ou o pecado dos primeiros pais, que teria deixado a natureza
humana inclinada para o mal; por conseguinte, o ser humano por si mesmo é capaz de se manter sem
pecado e de praticar o bem. A graça de que fala São Paulo, seria apenas a lei ou o exemplo de Cristo
ou, no máximo, uma iluminação do Espírito Santo a respeito dos mandamentos de Deus; não deveria
ser entendida como um impulso interior dado por Deus ao homem para que pratique o bem. Relendo
as primeiras páginas da Bíblia, Pelágio e Celéstio diziam: 1) Adão teria morrido mesmo sem o pecado,
isto é, não houve elevação dos primeiros pais a um estado especial de graça, graça perdida pela
desobediência dos primeiros homens; 2) o pecado de Adão prejudicou a ele só e não a todo o gênero
humano; 3) as crianças recém-nascidas encontram-se nas condições em que se achava Adão antes do
pecado, isto é, nenhuma graça especial foi concedida aos primeiros pais; 4) a queda de Adão não
acarretou a morte para todo o gênero humano, como a ressurreição de Cristo não é causa da
ressurreição dos demais homens; 5) a Lei de Moisés leva à salvação tanto quanto o Evangelho; 6) as
crianças conseguem a vida eterna mesmo sem o Batismo; 7) houve também antes de Cristo homens
sem pecado.
Em suma, a doutrina de Pelágio não se diferenciava de uma Moral filosófica, meramente
racional; dispensava qualquer intervenção de Deus na Obra de salvação do homem. O papel de Cristo,
que Pelágio não negava, reduzia-se ao do exemplo e ao do magistério, sem reforço para as naturais
capacidades do homem.
A celeuma não tardou a levantar-se em torno das novas ideias; Celéstio e Pelágio, tendo ido a
Cartago para difundir suas doutrinas, foram condenados por um Sínodo daquela cidade em 411.
S. Agostinho, que vivia em Hipona (Norte da África), empenhou-se então por dissipar os erros
pelagianos, merecendo por isto o título de "Doutor da Graça". O Santo elaborou doutrinas que já
estavam na consciência da Igreja, mas ainda não haviam sido aprofundadas, os primeiros pais, logo
depois de criados, foram elevados à filiação divina ou à justiça (santidade) original; este estado
ultrapassava as exigências da natureza; todavia os primeiros homens perderam a riqueza interior, pois
pecaram por soberba e desobediência. Conseqüentemente, só puderam transmitir a natureza humana
despojada da graça; assim toda criança que nasce carente de dons gratuitos que ela devia herdar dos
primeiros pais; essa carência é chamada "pecado original" nos pequeninos. Donde se vê que o pecado
dos primeiros pais transmite suas conseqüências mediante o ato de gerar, e não apenas porque é um
mau exemplo. Estes dados levam a dizer que todos os homens nascem marcados pelo pecado e
tendentes ao pecado; não há quem escape às invectivas do pecado; por isto todos precisam de especial
auxílio ou da graça de Deus para combater o mal e praticar o bem. Essa graça não é apenas um
modelo de vida, mas é o fortalecimento da vontade para optar pela virtude; ela não pode ser merecida,
mas é gratuita e anterior a qualquer mérito.
Enquanto S. Agostinho explanava a rela fé nestes termos, Pelágio na Palestina tentava ganhar
adeptos. Isto lhe era mais fácil no Oriente do que no Ocidente, porque os teólogos gregos viviam
sobre um pano de fundo diferente: o gnosticismo e o maniqueísmo tinham espalhado entre os cristãos
orientais concepções dualistas, que julgavam ser má, por si mesma, a natureza corpórea do homem;
em conseqüência, a teologia oriental tendia antes a exaltar o valor da natureza e a capacidade da
vontade livre para praticar o bem; não falavam tão enfaticamente da graça divina. - Pelágio soube-se
insinuar entre os bispos do Oriente a tal ponto que a sua doutrina foi declarada ortodoxa num sínodo
de Dióspolis (dezembro de 415).
Cientes disto, dois outros concílios regionais, um em Cartago e outro em Milevo (Norte da
África), em 416 condenaram novamente Pelágio e eléstio como hereges e obtiveram do Papa
Inocêncio l (402-417) a confirmação da sua sentença. Foi este gesto que moveu S. Agostinho a
pronunciar a famosa frase: "Agora chegaram da Santa Sé alguns rescritos e a questão está definida
(causa finita est). Oxalá seja eliminado definitivamente o erro (utinam aliquando finiatur error)!"
Com isto Agostinho proclamava a autoridade suprema da Sé de Roma; era suficiente para dirimir as
dúvidas teológicas.
Todavia a disputa se prolongou. O sucessor de Inocêncio I foi o Papa Zósimo (417-18), grego de
nascimento, que se deixou impressionar por profissões de fé apresentadas por Pelágio e Celéstio: visto
que estes admitiam a graça de Cristo, Zósimo os justificou. Contudo S. Agostinho e os bispos
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 40
africanos insistiram em apontar os erros pelagianos, de modo que em 418 Zósimo publicou longa
encíclica (dita epístula tractoria), em que intimava todos os bispos a condenar o pelagianismo. Tal
documento foi bem acolhido, o que implicou o fim da controvérsia pelagiana. Os poucos recalcitrantes
ocidentais refugiaram-se no Oriente, onde foram acolhidos por Teodoro de Mopsuéstia e Nestório; por
isto o Concílio de Éfeso (431), ao mesmo tempo que rejeitou o nestorianismo, renovou a condenação
da doutrina pelagiana.- Esta, porém, teve um apêndice no Ocidente.
primeiro organizador da vida cenobítica, que ele quis submeter a uma Regra e a um superior chamado
"Abade" (= pai); a Regra visava a regulamentar a disciplina dos monges na oração, no trabalho, no
vestuário, na alimentação..., apresentando um caminho de santificação concebida pela sabedoria do
Fundador. A casa dos cenobitas tomou o nome de monastérion em grego (donde mosteiro, em
português). O primeiro mosteiro data de 320; fundou-o S. Pacômio em Tabenisi, a 575 km ao sul da
moderna cidade do Cairo.
Os monges eram quase todos leigos, isto é, não recebiam as ordens sacras; o número de
sacerdotes nos mosteiros correspondia às necessidades do serviço interno da comunidade. Só na Idade
Média é que se difundiu o costume de conferir o presbiterado aos monges. São Pacômio era tão
rigoroso neste particular que excluía por completo a possibilidade de ordenar algum monge, pois
julgava que isto podia suscitar o desejo de honras e encargos de projeção. Conservam-se até hoje
coletâneas de historietas e dizeres (Apoftegmas) dos Padres do deserto, cuja feitura revela a sabedoria
e o heroísmo daqueles cristãos,
Estudada a origem do monaquismo, vejamos como evoluiu no Oriente e no Ocidente.
19
Cenóbio vem dos vocábulos gregos koinós (= comum) e bíos (vida). É, pois, a casa de vida comunitária, à diferença do
eremitério (de évemos = deserto), lugar de vida solitária.
20
Anacorota vem dos termos gregos aná (para trás) e choréo (caminhar). Significa aquele que se retira ou o eremita.
43 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Todavia os ocidentais, dotados de senso prático e ativo, deram mais ênfase à vida cenobítica.
Esta foi incentivada por grandes mestres como S. Ambrósio (+397),
S. Jerônimo (+420), S. Agostinho (+430), S. Paulino de Nola (+431)..., que tiveram de defender
a vida monástica contra adversários, como Elvídio, Joviniano e Vigilâncio; Joviniano, por exemplo,
levou vida austera no Oriente; mas no fim do século IV foi para Roma, onde desdisse o seu
comportamento anterior; alegava que aqueles que tivessem recebido o Batismo com fé, já não podiam
pecar; em conseqüência, não precisariam de ascese, mas antes poderiam satisfazer a todos os impulsos
naturais; isto o levou a uma conduta licenciosa, que o Papa S. Cirício condenou excomungando
Joviniano (392). S. Jerônimo respondeu a este num opúculo intitulado "Contra Joviniano" (393). Em
Joviniano revivia algo do gnosticismo dos séculos II e III.
Quatro figuras se destacam no monaquismo ocidental: S. Martinho de Tours, S. Agostinho, S.
Bento de Núrsia e S. Columbano.
3.1. S. Martinho (+397)
Martinho nasceu em 316 ou 317 na Panônia (Hungria de hoje). Recebeu o batismo aos 18 anos
de idade e tornou-se eremita em Ligugé (França). Feito bispo em 371, empenhou-se pela difusão do
monaquismo, ficando fiel ele mesmo ao seu ideal originário, pois uma coroa de monges se lhe Juntou,
levando vida comunitária com seu bispo.
Seu túmulo em Tours tornou-se um dos lugares mais visitados pelos peregrinos medievais; era o
santo nacional dos francos. O seu manto, a respeito do qual se contavam milagres, era uma relíquia
conservada em grande honra no reino dos francos.
A vida de S. Martinho escrita por Sulpício Severo, por volta de 400, compraz-se em exaltar a
figura do Santo e exerceu grande influência sobre as gerações posteriores.
3.2. S. Agostinho (+430)
Já antes de se converter, Agostinho, com trinta anos de idade, concebeu o projeto de levar com
alguns amigos uma vida comum, retirada do mundo e despreocupada de solicitudes materiais.
Todavia, quando quiseram executar tal ideal, verificaram que não poderiam contar com o
consentimento de suas esposas (os casados) ou de suas eventuais esposas (os que tencionavam casar-
se).
Uma vez convertido em Milão, voltou à África e, em Tagaste, tratou de reunir em torno de si
alguns irmãos dispostos a renunciar aos bens materiais para levar vida monástica: queria viver com
seus clérigos e irmãos leigos segundo a regra dos Apóstolos: nada possuíam de próprio; tudo era
comum, de modo que cada qual recebia da comunidade o que lhe fosse necessário. Da carta 121 de S.
Agostinho uma secção foi extraída, tornando-se a Regra de S. Agostinho, que ainda hoje inspira o
modo de viver de várias famílias religiosas (Agostinianos, Dominicanos ...). - Certa vez alguns
monges de Hadrumetum (Norte da África) não queriam trabalhar para poder dedicar-se inteiramente à
oração; ao saber disto, S. Agostinho escreveu o opúsculo De opere monachorum (sobre o trabalho
dos monges), que se apoiava nos dizeres de S. Paulo: "Quem não quer trabalhar, também não coma"
(2Ts 3,10); este opúsculo tornou-se um monumento da civilização ocidental.
3. 3. S. Bento de Núrsia (+547?)
É dito "o Patriarca dos monges ocidentais". Nasceu por volta de 480 em Núrsia (Itália), de nobre
família rural romana. Começou em Roma seus estudos de artes literárias, mas logo retirou-se para os
montes Sabinos (Subiaco), onde levou vida eremítica por três anos. Descoberto e procurado por
discípulos, fundou doze mosteiros na região de Vicevaro. Teve que deixar tal ambiente para ir residir
em Monte Cassino (529), onde fundou o mosteiro-berço da Ordem Beneditina. Foi af que escreveu a
sua Regra, inspirada pelo senso de equilíbrio e discrição dos romanos. Valeu-se da tradição monástica
anterior, tanto ocidental como oriental, e adaptou-a às condições de vida de sua época, procurando
oferecer uma disciplina que permitisse aos fortes desenvolver os seus dons e, ao mesmo tempo, não
afugentasse os fracos. Há quem Julgue que S. Bento realizou sua obra legislativa a pedido do Papa
Agapito ou até do Imperador Justiniano, desejosos de codificar e vivificar as diversas experiências de
vida monástica até então ocorrentes no Ocidente.
Pode-se dizer que o lema de São Bento é Ora et labora (Ora é trabalha). Por isto deu
importância primacial ao Ofício Divino ou à oração oficial da Igreja recitada no coro sete vezes
durante o dia e uma vez durante a noite. O espírito de oração deve, pois, impregnar toda a vida do
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 44
monge, inclusive o trabalho, que na época era principalmente o da lavoura e das oficinas (os monges
era de origem goda, de pouca cultura; além do quê, a Itália era cenário de guerras, que deixavam
pouca disposição para elevados estudos). A atividade intelectual nos mosteiros de S. Bento era
originariamente a da lectio divina, ou seja, a da leitura meditada da S. Escritura.
Uma das notas típicas da Regra beneditina é o voto de estabilidade que fixa o monge física e
Juridicamente no seu mosteiro. Era oportuno para pôr termo às divagações dos monges, que
redundavam não raro em fonte de decadência.
Aos poucos, os mosteiros beneditinos foram assumindo papel de relevo capital na história da
Igreja, tanto no setor missionário quanto no da cultura em geral. Foram, em grande parte, os monges
beneditinos que evangelizaram os anglo-saxões e outros povos germânicos (Inglaterra, Bélgica,
Holanda, Norte da Alemanha...); ensinaram aos povos bárbaros que viviam nos arredores dos
mosteiros, os princípios de nova cultura; transmitiram às crianças e aos adolescentes os
conhecimentos científicos e a formação cristã mediante as escolas "monasteriais". Foram também
eles os copistas que salvaram da ruína os tesouros da cultura romana, que, através dos seus códigos e
obras de arte, eles passaram para as gerações vindouras. Pode-se dizer que a grande obra cultural dos
monges começou no próprio século VI.
3.4. São Columbano (+615)
Este é um monge irlandês que em 590 emigrou do seu mosteiro de Bangor (Belfast, Irlanda do
Norte), e com doze companheiros exerceu sua atividade no território da Gália, fundando diversos
mosteiros, dos quais o principal foi o de Luxeuil. Era homem de ascese, que pregava a penitência. Aos
monges irlandeses se deve a difusão da prática da direção espiritual, que foi associada, muitas vezes, à
confissão sacramental. Contribuíram para a elaboração dos Códigos Penitenciais, que estabeleciam o
tipo de penitência devido a cada tipo de pecado.
A Regra monástica escrita por S. Columbano prescrevia rigorosos exercícios de mortificação;
até pequenas faltas eram punidas com penas corporais (que na época eram tidas como meio normal de
coerção). Tal Regra teve grande voga no reino dos francos e na Itália Setentrional; mas já no fim do
século VII foi cedendo o lugar à Regra de S. Bento, mais realista e mais adaptável a situações
diversas.
A Igreja (e, com ela, o mundo ocidental) teve no Monaquismo um fecundo foco de vida espiritual, de
teologia e de cultura geral.
Doravante o "Iluminado" pôs-se a pregar nova forma de religião: o "Islam" ou, em árabe, a
Submissão, Dedicação à Vontade de Deus. Maomé apoiava-se na fé em um só Deus, Allah,
criticando-os cultos pagãos, predizendo iminente catástrofe e apresentando reivindicações sociais em
favor dos pobres. Tais proposições só fizeram irritar a aristocracia de Meca, de sorte que Maomé
granjeou para si adversários cada vez mais hostis, temerosos pela sorte de seus ídolos e de suas rendas
comerciais. Resolveu então transferir-se para a cidade de Medina na noite de 16/07/622. Tal
acontecimento tomou o nome de Hidjra ou Hegira, Fuga, e assinala o início da era maometana.
Em Medina Maomé, apoiado pela população local, revelou dotes de hábil chefe político.
Visando a unir numa só população coesa seus compatriotas árabes, começou a estender o seu domínio
por meio de expedições de ataque a caravanas comerciais. Os sucessos obtidos iam-lhe assegurando
crescente número de adeptos, até que finalmente em 629 Maomé conseguiu entrar em Meca e tomou
posse do famoso santuário desta cidade dito "a Caaba", donde removeu os ídolos. Nos anos seguintes,
foi dilatando o seu poder mediante guerras. Finalmente, aos 08/06/632, veio a morrer. A sua obra
estava suficientemente adiantada para despertar a consciência religiosa e nacional dos árabes e lançá-
los, coesos, à conquista de numerosas nações estrangeiras mediante a prática da "guerra santa".
O Corão autoriza todo homem a ter quatro esposas legítimas e tantas concubinas escravas
quantas seus recursos financeiros lhe permitam. O conceito de guerra santa é central no Islamismo e
foi responsável pela rápida propagação árabe nos séculos VII e VIII; morrer em batalha armada torna
o maometano "mártir", ou seja, herói religioso; de resto, a noção de "predestinação", que
inevitavelmente assinala a cada indivíduo a hora da sua morte, muito concorreu para precipitar
destemidamente os discípulos de Maomé na aventura de fazer a guerra.
decorrer dos tempos uma reação ou o surto e o cultivo da vida mística em ambientes islâmicos; assim
a Mística veio a ser inseparável da religião da lei em muitas correntes maometanas. Entre os dizeres
mesmos do Profeta não faltam os que inculcam a religião interior ou o predomínio dos bens do
espírito sobre os da carne. Maomé chegou a falar de purificação da alma, apresentou a vida presente
como "água que passa e erva que fenece" (Sur. X 25; XIII 18); afirmou a prevalência da devoção
interior sobre os sacrifícios rituais (Sur. XXII 28). Assim o Corão mesmo era capaz de inspirar não
somente uma religião formalista, mas também uma piedade muito intensa e profunda. Foi o que se deu
nos círculos árabes que entraram em contato com sistemas religiosos dos povos vizinhos, em
particular com o Cristianismo; criou-se assim uma autêntica mística muçulmana, da qual dois grandes
expoentes são Al-Hallaj (+ 922) e Al-Ghazali (+1111).
Especialmente a corrente sufita dedicou-se ao cultivo da vida interior. A palavra árabe que
corresponde a Mística é tasawwuf, derivada do termo suf, lã. Significa originariamente “vestir-se de
lã”; a roupa de lã era o traje que os antigos ascetas ou monges usavam. Designava, aos olhos do
público, a vida retirada do mundo que o asceta levava. Quem se veste assim, no Islamismo, é chamado
sufi. Deste vocábulo se deriva sofismo, o designativo da Mística islâmica.
A partir do século XII foram-se formando comunidades de sufitas ou derviches,21 que seguiam
os ensinamentos dos grandes mestres; observavam Regras de vida cenobítica, assemelhando-se às
Congregações religiosas do Catolicismo. Cada comunidade constava de um grupo relativamente
pequeno de sufitas, que no convento viviam de esmolas, e de um grupo maior de leigos, que
permaneciam no mundo, mas se reuniam oportunamente para cumprir certas práticas religiosas sob a
direção de seus mestres. Algumas destas comunidades subsistem até hoje.
Nos séculos XIII / XIV fizeram-se sentir no sufismo influências do Extremo-Oriente,
principalmente do hinduismo; caracterizaram-se em práticas como posições corporais e a repetição
amiudada do santo nome de Deus. O panteísmo assim se introduziu em vários círculos da mística
islâmica, acarretando certa degenerescência da mesma.
21
A palavra derwih vem do persa e significa mendigo.
22
No século XVIII Christophorus Cellarius escreveu a obra Historiae Antiquae, Mediae, Novae nucleus. lenae 1675/6
(Núcleo de História antiga, média e nova). A expressão assim se tomou comum nas escolas.
23
Convencionalmente dizemos que esse ponto de partida é o Concilio regional Trulano (692), realizado em
Constantinopla. Interessou-se pela restauração da disciplina eclesiástica prejudicada pelas invasões dos persas e pelos
debates teológicos. Troullos, em grego, quer dizer cúpula; o Concílio foi celebrado sob a cúpula de um palácio.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 48
séculos IV / VII foram séculos de transição lenta, durante a qual elementos da história medieval Já
subsistiam ao lado dos da história antiga.
Foram, pois, as relações dos novos povos com a Igreja que deram a nota própria à Idade
Média, ou seja, ao período de tempo que vai do século VIII ao século XV. Este último representa a
dissolução do espírito medieval mais ou menos homogêneo, pois foram então trazidos ã baila
elementos da cultura greco-romana, que os renascentistas quiseram não somente estudar, mês
assimilar e viver, dando origem a nova fase da história, impregnada de mentalidade e conduta ética
sempre menos cristãs, tendente ao naturalismo e ao racionalismo (Idade Moderna, que vai até o
Tratado do Latrão em 1929).
dos carolíngios (francos) e a dos otônicos (germânicos). O Estado assume uma consagração
eclesiástica (unção do Imperador); a partir de 800 procura realizar o ideal de um Santo Império, o da
Civitas Dei sob Carlos Magno. Por seu lado, a Igreja assume oficialmente uma missão política: é
criado em 756 o Estado Pontifício na Itália, e muitos bispos são incumbidos de funções sociais e
políticas junto aos senhores do seu tempo. Todavia nesse entrelaçamento de Estado e Igreja é o Estado
quem predomina - o que aparece no mal das Investiduras e da simonia. - O que caracteriza este
período, é o universatismo: ... na política (um só grande Império, que quer continuar o Império
Romano universal),... na religião (o Papa é o, único Chefe religioso no Ocidente).
Na Alta Idade Média, a Igreja, tendo-se arraigado na vida européia, luta para libertar-se do
braço secular, e luta com sucesso sob a reforma monástica de Cluny e o Papa Gregório VII (1073,
Canossa). O Papa alcança um prestígio que até então nunca tivera na vida interna da Igreja e nas
relações com os soberanos seculares. A vida eclesiástica floresce em muitas manifestações brilhantes:
novas Ordens Religiosas, figuras de místicos, sábios e doutores que ilustram as grandes Universidades
do século XIII (século áureo da Escolástica), monumentos majestosos de arte românica e gótica...
Na Idade Média Decadente, o universalismo homogêneo, objetivo, que caracterizava as duas
épocas anteriores, cede a particularismo e nacionalismo na vida política (dissolve-se o Império
universal para dar lugar a Estados pequenos nacionais); cede também ao individualismo ou ao
esquecimento da Tradição na vida cristã. Esse nacionalismo e esse individualismo passaram
funestamente aos séculos posteriores; os povos evangelizados e disciplinados pela Igreja nos séculos
florescentes da Idade Média voltaram-se aos poucos, com progressiva violência, contra Ela. As
principais manifestações dessa época são: o Exílio de Avinhão (1305-78), que significa lamentável
sujeição do Papado ao poder francês, e o Grande Cisma Ocidental (1378-1417), que confundiu as
ideias sobre o primado romano e suscitou uma série de teorias eclesiológicas aberrantes da Tradição.
A própria disciplina da Igreja cedeu a relaxamento. Estes fatores prepararam, cada qual a seu modo, a
cisão protestante no século XVI.
24
Em grego, eikon = imagen: kláo = quebrar. Donde iconoclasmo é a tendência a quebrar ou destruir as imagens.
51 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
sobre as mesmas, que durou mais de um século (com breve pausa) e deu ocasião à violência de toda
espécie.
A luta foi aberta pelo Imperador Leão III o Isáurico (717-741). Vejamos em que circunstâncias;
Em 723 o califa Yezid mandou destruir todas as imagens dos templos e casas de seus súditos,
quer muçulmanos, quer cristãos. Maomé mesmo não proibia as imagens, mas os seus sucessores o
fizeram. — A proibição da califa Yezid provocou entre os cristãos um movimento iconoclasta, que se
comunicou ao Imperador e a diversos bispos. As razões que devem ter movido o monarca, foram,
além da influência de judeus e muçulmanos, a própria personalidade do Imperador. Este queria
reorganizar o Império promovendo a unidade religiosa - condição da unidade política - no reino; ora
as imagens eram um ponto de discórdia entre judeus e maometanos, de um lado. e cristãos, do outro
lado. Leão III tinha índole fortemente absolutista e cesaropapista; dizia textualmente que era
"Imperador e sacerdote"; devia, portanto, subordinar ao seu poder a Igreja e, em particular, os monges,
sempre ciosos da liberdade. Quem considera esta tendência do Imperador, há de reconhecer que a
defesa das imagens por parte dos católicos era não somente uma questão de ortodoxia, mas também o
desejo de afirmar a independência da Igreja frente ao despotismo imperial.
Inês era piedosa, amiga das imagens e dos monges, embora ambiciosa. Permitiu logo o culto das
imagens e, a conselho dos Patriarcas Paulo e Tarásio de Constantinopla, e de acordo com o Papa
Adriano, a regente convocou um Concílio ecumênico. Este, de fato, se reuniu em 787, com a presença
de dois legados papais, em Nicéia. Foi o sétimo ecumênico e o segundo de Nicéia, freqüentado por
350 bispos. Notemos que a primeira sessão desse Concílio se reuniu já em 786 em Constantinopla,
mas teve que se dissolver, porque os militares, iconoclastas, apoiados por alguns bispos, impediram os
trabalhos, que teriam sido um triunfo da ortodoxia. Em Nicéia, o falso Concílio de 754 foi rejeitado; a
intercessão dos Santos e o título "Mãe de Deus" foram reabilitados. Os conciliares declararam,
apoiados na Tradição, que às imagens de Cristo, de Maria Virgem, dos anjos e dos Santos convém
uma veneração honorífica com lamparinas, incenso, inclinações, pois essa veneração recai sobre o
protótipo (ou a pessoa representada); ao contrário, a verdadeira adoração compete a Deus só. A última
sessão desse Concílio realizou-se em Constantinopla, sob a presidência da Imperatriz regente e de seu
filho, que assinaram a definição conciliar; isto lhes valeu as aclamações dos padres conciliares e dos
fiéis, dirigidas ao novo Constantino e à nova Helena.25
As decisões de Nicéia II ficaram em vigor no Oriente durante quase trinta anos, ou seja, até 813.
25
Mãe de Constantino, o Grande.
53 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Finalmente o bibliotecário Anastásio refez a tradução das atas do Concílio de Nicéia II sob o
Papa João VIII (872-882). Isto permitiu que as determinações conciliares fossem finalmente aceitas no
Ocidente; grande parte da problemática se achava na deficiência de tradução.
Como se percebe, a veemência e a duração da controvérsia iconoclasta se devem ao
cesaropapismo dos Imperadores. Os Papas perceberam que nada mais tinham a esperar dos
Imperadores bizantinos, pois, desde a época do arianismo (século IV), haviam freqüentemente
favorecido as heresias e perseguido os pastores e fiéis ortodoxos; as suas intervenções dogmatizantes
eram, muitas vezes, movidas por razões políticas. Pode-se, pois, dizer que ao iconoclasmo se ligam
intimamente a origem do Estado Pontifício, a proclamação do Império Romano do Ocidente e, de
maneira mais remota, mas não menos real, o cisma grego de 1054; por mais de um século Oriente e
Ocidente tinham estado em dissensão e, quando em 843 a luta iconoclasta terminava, já Fócio, o
campeão do cisma, aparecia na corte da Imperatriz Teodora, para em breve subir à cátedra patriarcal
de Constantinopla. Com toda a razão, Teodoro de Studion, um dos últimos grandes católicos de
Bizâncio, clamava ao Papa: "Salva-nos, arquipastor da Igreja que está debaixo do céu; pereceremos!"
Além disto, travou bom relacionamento com o reino dos francos, que eram o fundamento dos
eventos futuros.
26
Logo antes de Estevão II foi eleito Papa um presbítero Estevão, que não chegou a ser sagrado, mas morreu quatro dias
após ser eleito (de apoplexia). Daí Estevão II ou III, o título do Papa que se lhe seguiu.
55 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
pontifícios, inclusive marchando sobre Roma. O Pontífice apelou para os francos: em 773, Carlos
interveio cercando Pavia, a capital dos lombardos; durante o sítio, na Páscoa de 774 o rei dos francos
foi a Roma e lá confirmou a doação que Pepino fizera a Estêvão II, além disto, doou-lhe as cidades de
Imola, Bolonha e Ferrara.
Poucos meses após estes fatos, caiu Pavia; o rei Desidério, dos lombardos, entregou-se e assim
extinguiu-se definitivamente o reino autônomo dos lombardos; Carlos assumiu oficialmente o título,
de ´Rei dos francos e dos lombardos e Patrício dos Romanos´.
Em 781 desapareceu também todo vestígio de dominação bizantina sobre o Estado Pontifício;
aliás, esse domínio já era mais teórico do que real nos últimos decênios; os legados de Carlos Magno
expulsaram os bizantinos de seus últimos redutos na península. Os Papas desde então datam os seus
documentos, contando os anos do seu pontificado, e mandam cunhar as suas moedas.
Todavia, emancipando-se dos bizantinos, o Papa caiu sob a influência, cada vez mais penetrante,
dos francos. Ninguém negava, naquele fim de século, que o Estado Pontifício fazia parte do Reino
franco. Fazia parte, porém, de modo diferente do que ligava os demais territórios aos francos; com
efeito, os outros príncipes da Itália eram vassalos do rei dos francos e dos lombardos; nomeados por
este, administravam em nome dele. Quanto ao Papa, não era vassalo nem funcionário do rei; o que o
ligava ao rei dos francos, era um ´pacto de amor e fidelidade´, pacto que ligava mais do que uma
aliança entre iguais, menos porém do que um ato de vassalagem. Era o título de ´Patrício´, o cargo de
Protetor do Estado Pontifício, que abria a Carlos Magno a porta para se ingerir continuamente neste:
freqüentemente aparecem missi (enviados) francos no território papal, que representam o rei nas
eleições de bispos, transmitem desejos ou protestos do rei não somente em matéria de administração
temporal, mas também no tocante ao governo interno da Igreja.
27
Normando (= homens do Norte) eram os povos oriundos da Escandinávia – suecos, noruegueses e dinamarqueses –
também chamados viquíngios (vikings). Hábeis navegadores como eram, entre os séculos VIII e XI invadiram a Europa
Ocidental e Oriental, estabelecendo-se na região francesa da Normandia (séc. X) e invadiram a Inglaterra (séc. XI).
Convertidos ao Cristianismo no século X, desempenharam importante papel nas cruzadas e na reconquista cristã do Sul da
Itália, da Sicília e da Espanha.
28
Sarracenos (do árabe xarki, oriental) era o nome que os cristãos medievais davam aos mulçumanos árabes e turcos que
conquistaram antigos territórios cristãos na península ibérica, no Norte da África e na Sicília.
57 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
29
Isto é, bispo da cidade do Porto, vizinha a Roma, ou “suburbe” de Roma.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 58
(936-9). Estêvão VIII (939-42), Marino II (942-6), Agapito II (946-55). No seu leito de morte, em
954, Alberico fez os nobres romanos prometer que, após a morte de Agapito II, elevariam ao
Pontificado o filho Otaviano, de Alberico. A promessa foi cumprida: Otaviano assumiu o cargo com o
nome de João XII (primeiro caso de mudança de nome), que governou de 955 a 964. Tinha 17 anos de
idade ao assumir; era personalidade incapaz, que encarava a sua nova posição como a de um príncipe
mundano (acumulava em suas mãos o governo espiritual e a administração temporal da Igreja).
Sob o pontificado de João XII deu-se um acontecimento de grande relevo: em 962 Oto I, rei da
Germânia. tendo vencido adversários e rivais, foi coroado Imperador do Sacro Império Romano da
Nação Germânica. Este ato restaurava em favor de Oto os privilégios outrora concedidos a Carlos
Magno: ao Imperador tocava a suprema instância Judiciária assim como a superintendência sobre os
funcionários do Estado Pontifício; o Papa, antes de ser sagrado, deveria Jurar-lhe fidelidade. Oto I foi
louvado como sendo "o 3o Constantino". embora tenha sido menos brilhante do que Carlos Magno.
Apenas, porém, Oto deixou a Itália, João XII começou a tramar contra o Imperador. Oto então
voltou a Roma; reuniu um Sínodo em 963, que depôs o Papa por acusações gravíssimas,
provavelmente exageradas (homicídio, sacrilégio, perjúrio. . .). No seu lugar foi eleito Leão VIII, um
leigo, que num só dia recebeu todas as Ordens; era um antipapa, pois o Papa legítimo nunca pode ser
deposto por um Sínodo. Depois que Oto partiu, João XII, que fugira, voltou a Roma e foi reconhecido
como Papa legítimo; Leão VIII então fugiu e foi excomungado por um Sínodo Romano de 964.
Morto João XII, os romanos elegeram Bento V (964), Pontífice douto e digno. Oto, porém,
compareceu novamente em Roma; restabeleceu Leão VIII, que ele criara, e exilou Bento V, que
morreu em 968.
Em 965 sucedeu a Leão VIII João XIII, provavelmente filho de Teodora Júnior, homem digno,
que foi encarcerado por membros da aristocracia romana. João conseguiu fugir e. com o auxílio de sua
família, recuperar a cátedra papal. Por essa ocasião, Oto foi mais uma vez à Itália, e lá ficou de 966 a
972, a fim de estabelecer â ordem. Isto proporcionou a João XIII um pontificado tranqüilo.
Oto faleceu em 973. Recomeçaram então as perturbações e rivalidades em Roma. À frente dos
nobres passou a família dos Crescentius, sob o novo Papa Bento VI (973-4). O Dux Crescentius
mandou encarcerar o Papa, que morreu estrangulado. Foi eleito em seu lugar o Cardeal Bonifácio
Franco com o nome de Bonifácio Vil (974); após seis semanas, porém, foi deposto por um legado do
Imperador Oto II e fugiu para Constantinopla. Crescendo morreu como monge num mosteiro de
Roma!
Sob a tutela de Oto II, subiu ao Pontificado Bento Vil em 974, que governou tranqüilamente até
a morte em 983. Neste ano assumiu o governo da Igreja João XIV; Bonifácio Vil voltou de
Constantinopla; apoderou-se da cátedra papal, e deixou seu rival João XIV morrer de fome (984). Um
ano depois, porém, faleceu repentinamente e seu cadáver foi transpassado por lanças e arrastado pela
cidade de Roma sob os ultrajes do povo revoltado.
Em 985 começou a governar o Papa João XV (985-96), sob cujo pontificado Crescendo
Nomentano (filho do anterior Crescendo) assumiu o governo temporal de Roma como Senator, Dux et
Cônsul Romanorum. Este exerceu tal tirania que o Papa resolveu chamar em seu auxílio o jovem
Imperador Oto III (que tinha 16 anos de idade). Antes que chegasse a Roma, recebeu a notícia da
morte de João XV (996). Oto III colocou então sobre a cátedra de Pedro o primeiro Papa alemão: o
capelão real Bruno de Caríntia, de 24 anos de idade, que tomou o nome de Gregário V (996-99); era
homem zeloso, favorável à reforma dos costumes, estranho à política dos pobres de Roma e da Itália.
Logo, porém, que o Imperador se retirou de Roma, Crescendo, que fora anistiado a pedido do Papa,
revoltou-se contra Gregório, que teve de fugir; o mesmo Crescendo instituiu o antipapa João XVI, de
origem grega. Oto. porém, recolocou Gregório V na cátedra por força das armas (998) e pronunciou
terrível juízo sobre João XVI, que foi cegado, mutilado e encarcerado num mosteiro, enquanto
Crescendo e outros revoltosos foram decapitados em Roma, no Castel Sant’Angelo.
A Gregório V Oto fez suceder o primeiro Papa francês: Silvestre II (999-1003), versado em
Filosofia, Matemática e Astronomia. O Papa e o Imperador se entendiam otimamente. Oto era
profundamente religioso e homem capaz; hesitava entre fuga do mundo e grandiosos planos imperiais;
queria restaurar o Império Romano sobre bases totalmente cristãs. Muito trabalhou, de acordo com o
Papa, pela Igreja na Hungria e na Polônia; mas poucos resultados obteve na política porque os
59 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
romanos em 1001 o obrigaram â fugir de Roma com Silvestre; este morreu em 1003, após a morte do
Imperador com 22 anos em 1002.
A aproximação do ano 1000 suscitou pavores pela apregoada vinda do Anticristo e do fim do
mundo. O historiador César Barônio (+1607), porém, exagerou as cores do quadro então vigentes,
como se o medo tivesse paralisado a vida pública. Na verdade, os cristãos/ impelidos pela expectativa
do fim do mundo, parecem ter-se entregue com mais afinco às tarefas de reforma religiosa, de
construção de igrejas e de evangelização; os dois Papas Gregório V (996-9) e Silvestre II (999-1003)
foram pastores zelosos, mas infelizmente de pouca duração.
Assim chegamos ao fim do século X. A história nos mostra que Deus quis conduzir a sua Igreja
através de vicissitudes humanas. A consideração dos fatos evidencia que não são os homens que
sustentam a Igreja, mas é o próprio Cristo, que nela vive indefectivelmente. A Igreja havia de superar
tal situação no século seguinte a partir da própria vitalidade, guardada intata nos seus mosteiros e
santuários.
30
O “trivium” eram as três matérias lingüísticas da Idade Média: gramática, retórica, dialética.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 60
A versão de Martinho Polono foi modificada pelo autor de um manuscrito do século XIV
(publicado por Doellinger em Die Papstfabeln des Mittelalters, Munique 1863, p. 503). Tal autor
põe em foco uma jovem chamada Glância, oriunda não de Mogúncia, mas da Tessália, a qual se terá
tornado Papa, não, porém, com nome de Joana, e, sim, com o de Jutta.
Nos séculos XIV e XV a estória gozava de crédito mais ou menos geral: no domo de Sena, por
exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o da Papisa Joana. No
Concilio de Constança (1414-1418), o herege João Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestação
alguma. Humanistas e adversários da Igreja, principalmente após o cisma protestante (século XVI),
muito exploraram a narrativa, multiplicando livros e folhetos que propagavam a estória.
Deve-se ainda notar que, com o decorrer do tempo, a lenda da Papisa Joana foi acrescida de
outra, não menos repugnante. - Com efeito, forjaram-se documentos segundo os quais os Cardeais da
S. Igreja, receando que fosse de novo eleita uma mulher Papisa, recorriam a uma cadeira de assento
perfurado a fim de se assegurar do sexo do candidato eleito. Tal cadeira era chamada "stercoraria"
(palavra que provém de stercus, esterco).
Esta outra narrativa se encontra nos escritos de autores medievais, dos quais alguns protestam
contra ela. Tenham-se em vista Godofredo de Courlon, em cerca de 1295; o dominicano Roberto de
Uzès, + 1296; Tiago Angeli de Scarpia, em 1400 (o qual contradiz à insana fabula); Félix Hemmerlin,
+ 1460...
mesma impossibilidade se verifica, caso se queira transferir o "pontificado" de Joana para outra fase
dos séculos VII / XI; não há brecha na série dos Papas para intercalar uma Papisa.
abreviada e mutilada pela injúria dos tempos, prestando-se a interpretações diversas, teria dado lugar
às conjeturas dos poetas medievais que corroboravam a lenda da Papisa Joana.
31
A palavra sufragâneo supõe o seguinte: outrora as dioceses ou os bispados se reuniam em províncias; os bispos da
província escolhiam seu metropolita (seu coordenador) e emitiam seu sufrágio no concílio provincial; daí o nome
sufragâneo. Atualmente sufragâneo é o bispo dependente de um arcebispo (numa dependência assaz tênua).
63 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
III (795-816), em atenção aos gregos, desaprovou o uso dos latinos e aconselhou os francos a deixar
de o fazer; mas não foi atendido. — Ora Fócio levantou com veemência contra os ocidentais a
acusação de terem alterado o Credo.32
Por conseguinte, um Concílio reunido em Constantinopla em 867 depôs Nicolau I, que morreu
naquele mesmo ano, dez dias depois que o Patriarca Fócio fora destituído por uma revolução
palaciana. Inácio foi recolocado na sé patriarcal. Em 869/70 celebrou-se o oitavo Concílio Ecumênico
em Constantinopla, sob a direção de três legados papais; foi excomungado Fócio e a comunhão com
Roma foi restabelecida. Mas de novo em 879 Fócio assumiu a sé de Constantinopla; reuniu um sínodo
nesta cidade em 879/80, que rejeitou o de 869/70 e hostilizou os latinos (os gregos consideram este o
oitavo Concílio Ecumênico). Fócio morreu num mosteiro em 897 ou 898. Os Patriarcas seguintes
restauraram e confirmaram a união com Roma, a qual, porém, estava gravemente abalada após tantas
discórdias.
32
A teologia latina explica que o Espírito procede não somente do Pai, mas também do Filho; em caso contrario, não se
distinguiria do Filho, já que “em Deus tudo é um só a não ser que haja oposição relativa”.
65 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
mútua de Roma e Constantinopla foi cancelada após o Concílio do Vaticano II e o caminho está
aberto para bom entendimento entre orientais e latinos. Aqueles têm o título de ortodoxos, porque
ficaram fiéis à reta doutrina durante as controvérsias cristológicas dos séculos V-VII.
A Santa Igreja, representada pelo sucessor de Pedro em Roma e pelos fiéis que estão em
comunhão com ele, continua a ser, mesmo após a separação de Bizâncio, a depositária junto à qual os
homens encontram incontaminados os meios necessários à sua santificação.
33
A palavra simonia se prende ao episódio narrado em At 8, 18s: Simão Mago ofereceu a São Pedro dinheiro para adquirir
o poder de comunicar o Espírito Santo. Significa compra ou venda de bens espirituais: sacramentos, jurisdição sobre uma
diocese, uma abadia... É falta muito grave, que a Igreja, por seus cânones, tem sabido evitar.
34
Nicolaítas eram hereges, que mal conhecemos, do tempo dos Apóstolos. A quanto parece, celebravam banquetes rituais,
durante os quais carne imolada aos ídolos. Na Idade Média, nicolaísmo significava a doutrina e a prática dos que não
admitiam o celibato dos clérigos.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 66
35
Os títulos Cardeal e arquidiácono são explicados no Léxico que encabeça este curso.
67 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
(padrinho de Henrique) patrocinaram a causa do monarca, o Papa no quarto dia concedeu ao rei a
reconciliação e a Eucaristia. O Imperador jurou ainda submeter seu litígio com os príncipes alemães
ao arbítrio do Papa.
Gregório Vil, ao absolver Henrique, foi movido por intenções pastorais, e não políticas. A
humilhação do monarca redundaria em vantagens para este, porque de certo modo o reabilitava e
fortalecia perante os príncipes alemães.
Os príncipes e bispos alemães, que se tinham oposto a Henrique, não se deram por satisfeitos
com a absolvição deste; por causa de interesses políticos, queriam desembaraçar-se do rei. Em
conseqüência, elegeram rei o duque Rodolfo da Suábia, que logo prometeu ao Papa obediência e
eleições canônicas. Assim estourou a guerra civil na Alemanha, que terminou com a vitória de
Henrique. Este exigiu do Papa a excomunhão do seu adversário e ameaçava eleger um antipapa, caso
não fosse atendido. Gregório VII não se dobrou, mas o Sínodo quaresma! de 1080 de novo
excomungou Henrique e desligou os súditos do Juramento de fidelidade; além disto, renovava a
proibição de investidura leiga.
A segunda excomunhão de Henrique não causou a mesma impressão que a primeira. A maioria
dos bispos alemães colocou-se do lado do rei. Este, assim apoiado, conseguiu que um Sínodo em
Brixen decretasse a excomunhão e a deposição do Papa acusado de simonia, heresia, necromancia e
subversão da ordem! Em seu lugar, foi eleito o antipapa Clemente III (1080-1100). Este foi logo
excomungado por Gregório VII; Henrique desceu então com suas tropas para a Itália e em 1083, após
três anos de cerco e
distribuição de muito dinheiro, logrou apoderar-se de Roma. exceto o Castel Sant’Angelo. onde
se refugiara o Papa. Este Justificava sua resistência perseverante, dizendo: "Evidentemente é mais
nobre lutar durante muito tempo em favor da liberdade da Santa Igreja do que submeter-se a mísera e
diabólica servidão" (Registr. VIII 26).
O antipapa Celemente III, secundado por treze cardeais, foi instalado no palácio do Latrão e na
Páscoa de 1084 coroou Henrique Imperador na basílica de São Pedro. Gregório VII parecia
condenado a cair nas mãos dos adversários, quando lhe foi em auxílio o duque normando Roberto de
Guiscard. O numeroso exército de Roberto obrigou os alemães a se afastar de Roma. Todavia o saque
também sofrido por obra dos normandos excitou grandemente a população contra Gregório; este,
conseqüentemente, não pôde mais permanecer na sua cidade, mas teve de se refugiarem Salerno (Itália
meridional), que estava sob domínio normando (1085). No seu exílio, o Papa gozava de liberdade; em
fins de 1084 reuniu um Sínodo, que renovou a excomunhão de Clemente III e Henrique IV; depois
disto, mandou legados a diversos países para proclamarem a sentença.
Em 1085, Gregório, alquebrado por muitas fadigas, mas de ânimo ainda enérgico, veio a falecer.
Atribuem-lhe como últimas palavras: "Dilexi iustitiam e odivi iniquitatem; propterea morior in exsilio.
— Amei a justiça e odiei a iniquidade; por isto morro no exílio". A morte no exílio não era senão uma
derrota aparente: o plano de purificação e libertação da Igreja não seria mais entravado; os sucessores
de Gregório colheram os frutos" que este semeou; o Papado creceu em prestígio moral, jurídico e
político, devendo atingir o apogeu da sua influência nos tempos de Inocêncio III (1198-1216).
Num juízo objetivo, deve-se dizer que Gregório VII foi um dos maiores Papas da Idade Média,
embora tenha sido combatido posteriormente como ditador e imperialista. Soube subordinar todos os
interesses da Santa Sé à sua função pastoral, pois não hesitou em absolver e reabilitar o adversário que
havia de desferir o golpe mortal contra o Papa; soube ser um mau político para ser um bom sacerdote;
desde que, em consciência, julgou que Henrique podia merecer a reconciliação, concedeu-lha, ainda
que em detrimento dos interesses temporais do Papado, Na realidade, Gregório procurou dar a César o
que é de César: aspirou a criar, dentro de um Estado cristão, a harmonia entre o poder espiritual e o
temporal; haveria a existência paralela do Sacerdócio e do Império, cada qual colaborando em sua
esfera para realizara síntese da Cidade de Deus: o Estado deveria proteger materialmente a Igreja, e
esta haveria de sustentar espiritualmente o Estado. Tais princípios estão espalhados pela ampla
correspondência deixada por Gregório.
O pontificado de Gregório VH teve outros aspectos, além do que foi até aqui apresentado. O
Papa não se descuidou da Igreja universal esparsa em toda a Europa, na Ásia e na África, como
atestam as suas cartas; estas manifestam a amplidão, de seus horizontes e a energia com que sempre
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 68
abordou os desafios da sua missão. Foi o primeiro a conceber a ideia de uma Cruzada (coisa muito
santa naquela época): à frente de grande exército, queria pessoalmente dirigir-se à Terra Santa, afim
de libertar p Sepulcro do Senhor em Jerusalém e promover a união com os gregos cismáticos (1074);
na sua ausência, confiaria o patrimônio da Igreja Romana ao rei Henrique IV da Alemanha — o que
bem mostra,quão pouco pensava em conflito no início do seu pontificado.
36
O Papa Clemente II (1187-91) está cronologicamente longe do antipapa Clemente III (1080-1100), mencionado no
módulo 22.
37
Por ocasião de sua eleição, escreveu o cronista Walter Von der Vogelweide: "O Papa é jovem demais!... Senhor, ajuda a
Tua Cristandade! "Todavia historiadores chamavam-no lux mundi, stupor mundi (luz e maravilha do mundo).
69 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Lição 2: O pontificado
Como se desenvolveu o pontificado de Inocêncio III?
Estava convencido de que a principal condição para a liberdade da Igreja era emancipá-la do
poder imperial. — Ora o Imperador Henrique VI morreu em 1198 (ano da eleição do Papa); redigia
um testamento que fazia grandes concessões ao Papa, a,fim de obter para seu filhinho Frederico II
Rogério (nascido em 1194) a coroa imperial e o título de rei da Sicília. Logo após a morte do
Imperador, Constança, a Imperatriz viúva, renunciou a muitos direitos sobre a Igreja, que Henrique e
seus antecessores tinham reivindicado para si; a Imperatriz e seu filhinho se reconheciam vassalos do
Papa; ao morrer, em novembro de 1198, Constança pediu a Inocêncio que assumisse a tutela e a
regência sobre seu filho Frederico até a maioridade deste; Inocêncio então seria o administrador do
reino da Sicília (que pertencia aos Imperadores germânicos); por dez anos, o Papa administrou as
funções assim confiadas para o bem do príncipe, com sabedoria e desprendimento; o próprio
Frederico, declarado de maioridade por Inocêncio aos 14 anos em 1208, proclamou ser o Papa seu
protetor e benfeitor, embora mais tarde este monarca se revelasse pouco fie! ao Papa e às suas
diretrizes. — Já estes fatos asseguravam a Inocêncio uma posição temporal nunca vista anteriormente.
O Papa teve que intervir em questões internas dos reinos da Europa.
Na Alemanha, por exemplo, o partido dos Staufen — com seu pretendente Filipe da Suábia — e
o partido dos Guelfos — com seu candidato Oto de Braunschweig - disputavam entre si o trono real.
Solicitado para fazer a arbitragem, o Papa preferiu deixar que os interessados se entendessem entre si.
Após três anos, porém, resolveu intervir dando razão a Oto, que se tornou o rei dos germanos;
infelizmente, porém, este monarca não cumpriu seus propósitos de respeito à Igreja; pelo que foi
excomungado em 1210. Os príncipes alemães, então, abandonaram Oto e aclamaram Frederico H
como rei; Inocêncio deixou partir para a Alemanha o seu antigo pupilo, que também não manteve
promessas feitas ao Pontífice a respeito dos direitos da Igreja.
Na Inglaterra, de 1199 a 1216 reinou João sem Terra,38 senhor ambicioso. Em 1207 recusou-se a
reconhecer o novo bispo de Cantuária, Estêvão Langton, eleito por recomendação do Papa. Já que as
admoestações ficavam sem resultado, Inocêncio lançou o interdito 39 sobre a Inglaterra (1208); o rei
revidou com violência contra igrejas e clérigos; por isto foi excomungado (1209) e deposto do trono
(1212); João, por prudência, resolveu submeter-se ao Papa; em 1213 prometeu reparar os males
cometidos e reconhecer Estêvão Langton. Mais: colocou a Inglaterra e a Irlanda sob a proteção do
Papa. na qualidade de feudos. Em conseqüência, foi absolvido da excomunhão em 1213, ao passo que
o interdito só foi levantado em 1214 por causa de dificuldades na restituição dos bens usurpados. Por
essa ocasião, eclesiásticos leigos da Inglaterra se reuniram para proclamar uma série de
reivindicações, que restringiam o poder do rei na administração dos feudos e garantiam maior
liberdade aos cidadãos. Tal é a famosa Magna Charta Libertatum, que constava de 63 artigos e se
tornou um dos primeiros modelos de
Constituições democráticas.
Com a França Inocêncio teve que usar de energia, não por motivos políticos, mas para defender
a Moral crista. O rei Filipe Augusto (1180-1223) tinha esposado a princesa Ingeburga, que, depois do
casamento, ele repudiou em favor da Condessa Inês de Merano (alemã); já que o rei não se rendia às
admoestações pontifícias, Inocêncio lançou o interdito sobre o reino da França (1200). Em
conseqüência, Filipe em 1203 reassumiu Ingeburga como esposa e rainha, mas só depois que Inês
morreu (em 1201) e após muito relutar contra o cumprimento de sua promessa.
Com os reis Pedro II da Aragônia (Espanha) e Afonso IX de Leão (Espanha) o Papa também
teve divergências por motivos matrimoniais; Pedro II queria separar-se de sua legítima esposa, Maria
de Montpeilier, e Afonso (X queria casar-se com uma sobrinha sua. Por fim, Pedro II acabou
reconhecendo-se vassalo do Papa, como João sem Terra. - Ao rei Sancho I de Portugal (1185-1211)
Inocêncio infligiu a excomunhão por ter violado a liberdade da Igreja. Ainda mais: com os soberanos
da Boêmia, da Bulgária, da Sérbia, da Hungria, da Albânia, da Polônia, da Suécia, da Dinamarca ... o
38
Sem Terra porque seu pai não lhe deixara território como herança.
39
Interdito era a proibição de celebrar culto público em todo o território atingido por tal censura. Só poderia haver Missas
a portas fechadas.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 70
Pontífice teve relacionamento mais ou menos intenso, que visava a garantir a liberdade da Igreja, a
boa disciplina do clero e dos fiéis naqueles países; combateu os abusos tanto dos grandes como dos
pequenos com igual destemer.
Até o Oriente foi objeto dos cuidados de Inocêncio. A quarta cruzada foi essencialmente obra
deste Papa; erigiu, com sede em Constantinopla, um Império e um Patriarcado latinos no Oriente
(1204).
Digno fecho do pontificado de Inocêncio III foi o Concílio do Latrão IV, reunido em três sessões
aos 11, 20 e 30 de novembro de 1215. Foi o maior e mais imponente Concílio da Idade Média,
freqüentado por mais de 1200 prelados (412 bispos, 800 abades e priores, grande número de
representantes de bispos e de capítulos catedrais) e por quase todos os príncipes cristãos (Frederico II,
Henrique imperador latino de Constantinopla, os reis da França, da Inglaterra, de Jerusalém, de
Aragão, da Hungria. . .). Tinha em vista tríplice finalidade: condenar as heresias (especialmente a
catara), sanar e favorecer a disciplina eclesiástica e promover nova expedição contra os turcos.
Inocêncio abriu o Concílio em famosa oração, na qual parafraseava as palavras de Lc 22,15: dizia
quanto desejara celebrar essa Páscoa antes de morrer, a fim de realizar um tríplice trânsito (= Páscoa):
corporal ou local, do Ocidente para o Oriente (a fim de libertar Jerusalém); espiritual, do estado dos
vícios ao das virtudes, ou seja. a reforma da disciplina da Igreja; eterno, da vida temporal para a vida
eterna e bem-aventurada. Este Concílio baixou decretos importantes na vida da Igreja: comungar ao
menos na Páscoa da Ressurreição (os medievais eram certamente muito devotos, mas, por motivo de
respeito ao "tremendo mistério" da Eucaristia, pouco se aproximavam da Comunhão); confessar-se ao
menos uma vez por ano; legislação precisa sobre o hábito clerical e a pobreza dos monges, sobre o rito
do casamento, tido como algo muito santo. Foi o Concílio do Latrão IV que, pela primeira vez, usou o
termo "transubstanciação" na linguagem oficial da Igreja, para designar teologicamente algo que
desde o século l estava na crença dos cristãos: a conversão do pão e do vinho no corpo e sangue do
Senhor (cf. Jo 6,51-58; 1Cor 11,23-29; Mt 26,26-29 par.).
Pouco depois do Concílio, Inocêncio III, de viagem para a Lombardia, foi colhido por febre
maligna, que o vitimou aos 16/07/1216.
Embora exercesse função de grande autoridade, Inocêncio III cultivou as virtudes, entre as quais
a simplicidade e a pobreza pessoal: cortou gastos inúteis, dispensou a maioria dos porteiros e
servidores que o cercavam, a fim de que três vezes por semana qualquer pessoa o pudesse abordar;
substituiu vasos e talheres de metal por outros de vidro e madeira; refreou a avareza e a ambição dos
cortesãos, que procuravam gorgetas no exercício de suas funções. Foi também o amigo dos frades
mendicantes, especialmente de S. Francisco de Assis, que "esposara a Dama Pobreza" e cuja Regra
Inocêncio III aprovou oralmente. O vulto deste Pontífice merece a reverência dos pósteros, embora
tenha sido fortemente criticado por haver sido aparentemente a antítese do "Poverello de Assis".
rei não cessavam com a Bula; permitia mesmo que se fizessem doações espontâneas ao rei, ainda que
provocadas por um "amável convite"; reconhecia casos de necessidade urgente em que (a critério do
rei) os clérigos poderiam contribuir para o poder civil, sem recorrer à Santa Sé.
Enquanto as coisas se apaziguavam com a França, Bonifácio entrou em conflito cono a poderosa
família italiana dos Colonna, irritada pela tendência dominadora do Pontífice. Em 1297, o Conde
Estêvão Colonna cometeu rapina em parte do Tesouro papal. Então o Pontífice chamou os Cardeais
Tiago e Pedro Colonna ao tribunal papal – o que provocou aberta revolta contra Bonifácio; os
Colonna publicaram libelos que impugnavam a legitimidade da eleição de Bonifácio, visto que,
diziam, não era lícito a Celestino V renunciar; apelavam para um Concílio Ecumênico e postulavam
nova eleição papal. Aos Colonna aliaram-se os Espirituais, rigoristas franciscanos, que tinham tido em
Celestino um sustento para suas ideias, assim como os joaquimitas; todos estes esperavam a "era do
Espírito Santo" para breve40. — Bonifácio reagiu com uma Bula, que despojava os Colonna dos seus
cargos e posses. Com os bens dos Colonna enriqueceram-se os Gaetani, sobrinhos do Papa. Alguns
nobres Colonna fugiram para a França, onde continuaram a hostilizar o Papa.
Em 1300 Bonifácio proclamou pela primeira vez um ano de jubileu,41 que foi solenemente
celebrado. Os peregrinos afluíram a Roma de todo o Ocidente; Bonifácio podia avaliar quanto os
príncipes dos Apóstolos (S. Pedro e S. Paulo) e o bispo de Roma eram estimados pelos cristãos; não
observava, porém, que entre os peregrinos não havia um só rei!
Em breve explodiria novo conflito com a França, prejudicial para o Papa. — Em 1301 o bispo
Bernardo de Saisset compareceu, em nome do Papa, diante de Filipe, recordando-lhe uma Cruzada
planejada e censurando-o por violar direitos da Igreja. Filipe possuía um temperamento audaz, que só
conhecia uma finalidade: o poder político; os seus conselheiros lhe propunham fundar uma monarquia
universal, que compreendesse o Estado Pontifício, o Império bizantino, a maior parte da Alemanha e
da Itália; na prática, Filipe aplicava a fins políticos contribuições dadas para as Cruzadas; depunha e
nomeava bispos ao seu arbítrio.
O legado Bernardo foi preso. O Papa protestou; exigiu a libertação do bispo; renovou a
proibição de impostos ao clero. Convocou os bispos e teólogos da França para um Sínodo a se reunir
em Roma a 1o /11/1302; o próprio Filipe foi intimado a comparecer mediante a Bula Ausculta fili
(Ouve, filho). O rei, porém, soube ganharas simpatias do clero e do povo francês, ajudado por juristas,
que sonhavam com um reino independente da Igreja e até com uma Igreja dependente do Estado
francês; os juristas eram os grandes mentores da época; no Direito Romano descobriam os
fundamentos para todas as ambições do rei. Por conseguinte, a Bula Ausculta fili foi queimada na
França depois de (ida em presença do monarca; em seu lugar confeccionou-se outra falsificada, que
incitava o povo francês contra o Papa.
Estes acontecimentos muito excitavam o sentimento nacional francês. Em Paris (abril de 1302)
reuniu-se grande assembléia da nobreza, do clero e da burguesia, que aprovou o procedimento do rei.
A ida dos prelados ao Sínodo de Roma foi proibida por Filipe. Apesar de tudo, esta reunião realizou-
40
Joaquimistas são os discípulos do abade cistercience Joaquim de Fiore (Calábria, falecido em 1202). Concebeu a
história do mundo dividida em três períodos: 1) a época do Pai, anterior a Cristo, dominada pela letra da Lei de Moisés e
pela carne: terá sido a fase dos leigos e dos casados; 2) a época do Filho ou cristã, que deveria durar 42 gerações (cf. Mt
1,17) de trinta anos cada uma, ou seja, 1260 anos, seria o período dos clérigos, intermediário entre o espírito e a carne; 3)
em 1260 devia inaugurar-se a época do Espírito Santo, na qual o "Evangelho Eterno" (Ap 14,6) ou uma interpretação
espiritual do Evangelho seria apregoada por nova Ordem monástica; haveria assim a Igreja do Espírito, depois da Igreja da
carne. Essas profecias apocalípticas estavam em oposição ao ideal corrente da "Cidade de Deus". Todavia encontraram boa
aceitação especialmente entre os franciscanos rigoristas ditos "Espirituais"; alguns destes julgavam ser a nova Ordem
inspirada pelo Espírito Santo, e predita por Joaquim de Fiore, para anunciar o fim da era crista ou do Filho. A expansão de
tais ideias revela a preocupação, existente em muitos fiéis, de chegar a uma Igreja despojada de tarefas temporais e
políticas. Esta mesma aspiração sugeriu a eleição do eremita Celestino V, dito "o Papa Angélico".
41
O Jubileu tem fundamento na Bíblia (cf. Lv 25,8-55). Esta prescrevia que de 50 em 50 anos os homens deixassem de
trabalhar, os escravos fossem libertados, as terras compradas fossem devolvidas aos seus proprietários de origem e o povo
se sentisse chamado a recomeçar a história sem os desgastes que o cotidiano acarreta. Com a vinda de Cristo, esta
instituição, tão ligada à geografia do povo de Israel, deixou de ser observada. No ano de 1300, porém, o Papa Bonifácio
VIII, atendendo a pedido de fiéis, introduziu a prática na vida da Igreja, dando-lhe um sentido espiritual. Seria um ano em
que muitas oportunidades se ofereceriam aos pecadores para receber a absolvição de censuras e faltas e, em geral, os
cristãos se renovariam na sua vivência de fé.
73 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
se aos 30/10/1302, com a presença de quarenta prelados franceses, que votaram as disposições do rei.
O Sínodo preparou a famosa Bula Unam Saneiam de 18/11/1302; esta retoma argumentos
tradicionais de teólogos e canonistas (S. Bernardo, Hugo de S. Vítor, S. Tomás de Aquino, Egídio
Romano. . .) em favor de uma teocracia papal, como já havia sido concebida por Gregório Vil e
Inocêncio III. Nesse documento, assinado pelo Papa, há uma passagem que é definição de fé, a saber:
"Declaramos e dizemos a toda criatura humana que ela deve estar sujeita ao Pontífice Romano;
definimos que isto é absolutamente necessário para a salvação" (Denzinger — Schönmetzer,
Enchiridion. n o 875 [469]).
Estas frases têm sido muito discutidas. Significam que até mesmo no plano temporal todos os
homens (inclusive os reis) devem submeter-se ao Papa? Ou só se pode afirmar isto no plano espiritual,
isto é, no plano dos valores éticos (que decorrem da Lei de Deus)? A segunda interpretação é a única
correia; a sujeição se dá tão somente ratione peccati, isto é, quando o pecado entra em jogo; o
fundamento para se preferir a segunda interpretação é o início da própria Bula Unam Saneiam, que
afirma ser a Igreja necessária para a salvação eterna; além disto, é no sentido espiritual que S. Tomás
de Aquino entende tal subordinação no opúsculo Contra errores graecorum c. 32, fonte do texto de
Bonifácio VIII. Prevalece assim a tese do poder indireto do Papa sobre os monarcas: a atividade
política destes não deve ser controlada pela Igreja na medida em que é especificamente política; como,
porém, toda atividade humana, além das suas notas específicas, tem características éticas (é virtuosa
ou pecaminosa), a Moral cristã, cujo porta-voz é o Papa, deve pronunciar-se sobre ela (na medida em
que toca a Moral).
Filipe o Belo mostrou-se muito irritado com a Bula papal e pôs-se a trabalhar para derrubar o
Papa. Um assembléia. de prelados e barões em Paris (junho 1303) proferiu em presença do rei as mais
graves acusações: Bonifácio era dito herege, simoníaco, fornicador. . . Do seu lado, Bonifácio VIII
Jurava que falsas eram tais censuras. Aos 08/09/ 1302, queria proclamar a excomunhão sobre o rei. Na
véspera, porém, o chanceler francês Guilherme de Nogaret, acompanhado de alguns Colonna e nobres
italianos descontentes, assaltaram a residência pontifícia em Agnani e ameaçaram o Pontífice preso de
ser julgado por um Concílio Ecumênico, caso não renunciasse em breve (Nogaret fora professor de
Direito romano; dizia-se que era um corpo sem alma, que só pensava em enriquecer os cofres do rei).
O Papa manteve-se firme; os seus concidadãos conseguiram libertá-lo no terceiro dia e fazê-lo voltar a
Roma. A sua saúde, porém, não resistiu às emoções, vindo Bonifácio a falecer aos 12/1'0/1303.
e os demais direitos; revogou a Bula Clericis laicos;mediante o Breve Meruit declarou que a Bula
Unam Sanctam não prejudicava Filipe e seu reino, que não eram obrigados a maior obediência à Santa
Sé do que antes.
Na sua sede de vingança, Filipe o Belo, desde 1307, insistia na instauração de um processo
contra o defunto Papa Bonifácio VIII. Esta exigência, além de finalidade vingativa, tinha um objetivo
político muito concreto: se se demonstrasse, mesmo depois de morto, que Bonifácio fora intruso,
todos os atos do seu pontificado seriam inválidos, inclusive as nomeações de cardeais italianos,
antifilipinos, que havia feito. Clemente V, porém, não queria consentir na reivindicação do rei; foi
fazendo outras concessões, entre as quais a de um processo contra os Templários.
Os Templários (Milites ou Equites Templi) constituíam uma Ordem de Cavaleiros militares,
sendo a mais antiga de todas. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens e oito cavaleiros franceses,
que se uniram numa família religiosa, ligada pelos votos habituais de pobreza, castidade e obediência,
além do voto especial de defender com as armas e proteger os peregrinos que se dirigissem a
Jerusalém. O seu nome se deve ao fato de que o rei Balduíno II de Jerusalém colocou à disposição dos
cavaleiros uma habitação no palácio real, que se achava na esplanada do Templo de Salomão. - A
Ordem dos Templários foi inicialmente muito pobre, mas em breve atingiu seu apogeu, especialmente
depois que S. Bernardo demonstrou grande interesse por ela, tomando parte notável na redação da sua
Regra. Os Cavaleiros foram favorecidos pelo Papa Inocêncio II, e altamente beneficiados por doações,
que tornaram a Ordem muito rica. O seu hábito era um manto branco sobre o qual estava traçada uma
cruz vermelha. Juntamente com os Joanitas ou Cavaleiros Hospitalários (porque tinham um hospital
em Jerusalém dedicado a S. João Batista), os Templários se dedicaram com suma abnegação e
coragem à defesa da Terra Santa; mais tarde, porém, foram vítimas de discórdias entre si.
Ora Filipe IV, movido pela cobiça do poder e dos bens dos Templários, queria provocar a
extinção dos mesmos. Em vista disto, desde 1305 começou a propagar terríveis acusações contra os
irmãos: dizia-se que, por ocasião da recepção na Ordem, os cavaleiros deviam cuspir e calcar a cruz,
negar a Cristo, adorar um Ídolo chamado Bafomet, obrigar-se à sodomia e a outras práticas
vergonhosas.
Em 1307, Clemente V, instado por Filipe, prometeu a este fazer um inquérito a respeito dos
pretensos crimes dos Templários. O rei, porém, não esperou o procedimento papal, e mandou prender
aos 13/10/1307 todos os Templários da França, inclusive o seu Grão-Mestre Jaime ou Tiago de Molay
(cerca de 2000 homens), confiscando todos os seus bens (fora da França ficavam uns 1000 ou 2000
Templários ainda). Filipe exortou outros reis a seguir o seu exemplo, e mandou aplicar a tortura aos
irmãos para extorquir deles todas as confissões de interesse do rei. O próprio Grão-Mestre,
alquebrado, e talvez sob a pressão da tortura, exortava por carta os seus súditos a confessar logo.
Filipe dava a crer que essas medidas eram tomadas de acordo com o Papa, quando na verdade eram
todas de iniciativa e responsabilidade do rei.
A princípio. Clemente V protestou e exigiu a libertação dos encarcerados. Deixou-se, porém,
convencer pelas confissões extorquidas e, em fins de 1307, mandou aos outros soberanos que
prendessem os Templários e confiscassem os seus bens em favor da Igreja. O próprio Papa em
Poitiers (1308) ouviu o depoimento de 72 Templários, que Filipe lhe mandara. Cada vez mais
convencido da culpabilidade da Ordem, ordenou nova perseguição; em 1310 foram de uma só vez
queimados como hereges 54 Templários em Paris; outros morriam no cárcere ou sob a tortura.
A decisão última foi confiada a um Concílio Ecumênico, que se reuniu em Viena (França) de
outubro 1311 a maio 1312 (15o Concílio Ecumênico). Além da causa dos Templários, o Sínodo devia
examinar as acusações contra Bonifácio VIII, tratar das necessidades da Terra Santa e de uma reforma
da disciplina da Igreja.
A figura de Bonifácio VIII defunto, apesar de todas as concessões feitas por Clemente V, ainda
era objeto de rancor do rei. Em 1310 este começou a ouvir o depoimento de testemunhas. Todavia o
Concílio de Viena rejeitou as acusações de heresia contra o falecido Papa; o rei. então, por
conveniência própria, desistiu da perseguição difamatória. Em troca disto. Clemente, agradecido, o
declarou inocente no atentado de Anagni, reconheceu que somente "zelo bom" o movera; o próprio
Guilherme de Nogaret foi absolvido a pedido de Filipe. Assim terminava a triste história de Bonifácio
VIII, com a vitória absoluta do rei.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 76
Quanto aos Templários, os conciliares queriam que se continuasse o processo, pois até então
nada se havia encontrado que motivasse a supressão da Ordem. Todavia o Papa Clemente, premido
pelo rei presente ao Concílio, houve por bem abolir a Ordem mediante a Bula Vox in excelso de
22/03/1312, "não em sentença judiciária, mas como medida de prudência administrativa baseada nas
faculdades da Sé Apostólica". Com outras palavras: o Papa não quis julgar os Templários do ponto de
vista ético ou disciplinar; Julgou, porém, que a existência dos Templários era um foco de distúrbios no
mundo cristão da época. Esta distinção obteve o consentimento da maioria dos conciliares. Os bens
dos Templários foram, em parte, atribuídos a outras Ordens Religiosas, em parte caíram nas mãos dos
príncipes. Filipe ainda conseguiu do Papa um processo especial contra alguns dignitários da Ordem:
uma comissão de eclesiásticos, que eram do seu beneplácito, os condenou à prisão perpétua; o Grão-
Mestre da Ordem e o Grão-Preceptor da Normandia foram queimados vivos aos 11/03/1314 por terem
retratado confissões anteriores e terem declarado a Ordem inocente.
A tragédia dos Templários é mais um testemunho do predomínio do poder régio sobre a Igreja;
de modo especial evidencia que a Inquisição (a qual funcionou no caso) se foi tornando mais e mais
um instrumento nas mãos do poder político para eliminar todos os adversários dos reis e príncipes (ver
módulos 32 e 33 sobre a Inquisição). Os Templários podiam apresentar suas falhas - o que é humano;
mas certamente estas não eram tão graves nem universais quanto diziam os adversários; as confissões
extorquidas nada significam. Nos países que não dependiam do rei da França, as acusações colhidas
contra os Templários foram insignificantes; na Espanha (Aragão, Barcelona) e em Chipre o processo
demonstrou claramente a sua inocência. Embora tenha havido historiadores desfavoráveis à dignidade
dos Templários, hoje em dia não resta dúvida de que foram vítimas de graves calúnias. Certas
sociedades em nossos tempos dizem-se herdeiras dos Templários medievais, com os quais teriam uma
vinculação secreta; teriam uma gnose ou conhecimentos esotéricos reservados aos iniciados. Ora estas
afirmações são fantasiosas e alheias à verdade.
O Concílio de Viena ainda baixou outras determinações importantes: 1) relativamente à teoria de
corpo e alma professada por Pedro João Olivi, chefe dos Franciscanos Espirituais no litígio sobre a
pobreza; foi condenada qualquer teoria que admitisse intermediários entre a alma (forma) e o corpo
(matéria); 2) mandou que se introduzisse nas Universidades o estudo das línguas hebraica, árabe e
caldaica (o que era grande novidade na época); 3) Clemente V promulgou a Bula Exivi de Paradiso
em favor dos franciscanos de observância mais rigorosa.
Finalmente, após triste Pontificado, o Papa veio a falecer aos 20/04/1314.
Para se entender a história dos Pontificados seguintes, devemos ainda referir a atuação de
Clemente V na Alemanha:
Em 1308 foi eleito rei da Alemanha Henrique de Luxemburgo (1308-13). Este sofreu logo a
oposição dos franceses, que queriam colocar sobre o trono alemão o príncipe Carlos de Valois, irmão
de Filipe IV o Belo. Em particular, o rei Roberto de Nápoles, sucessor de Carlos II de Anjou, se
insurgiu contra Henrique VII, quando este desceu a Roma para ser coroado Imperador por três
Cardeais delegados do Papa em 1312. Henrique Vil aliou-se a Frederico da Sicília, inimigo da casa de
Anjou e da Cúria Papal; Clemente V, porém, favorecia a Roberto e aos franceses contra Henrique VII
da Alemanha e Frederico da Sicília; antes que se chegasse a um conflito sério, Henrique VII morreu
em 1313, ficando o trono alemão sujeito à disputa dos candidatos. O Papa então nomeou em 1314
Vigário do Império Alemão na Itália Roberto de Nápoles, fazendo uso de uma lei, segundo a qual a
regência da Itália, em caso de vacância do trono alemão, tocava ao Papa.
42
É precisamente esta época que Umberto Eco tomou como fundo do seu romance "O Nome da Rosa".
77 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
43
Nápoles pertencia à dinastia dos Anjou, que eram franceses.
44
A tendência a apelar para um Concílio Ecumênico contra as disposições do Papa ou a colocar o Concílio acima do Papa
tornar-se-ia sempre mais forte nos decênios seguintes.
45
A propósito destas ideias apocalípticas-joaquimitas, ver o módulo 24.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 78
46
De Potestate regia et papali, 1302/3 (Sobre o poder do rei e o do Papa).
47
De ortu, progressu et fine Romani Imperii (Sobre a origem, o desenvolvimento e o fim do Império Romano).
79 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
que, tendo estudado o assunto, levou o Papa a dizer que retrataria a sua opinião caso fosse contrária à
doutrina comum da Igreja. João XXII foi além; na véspera de sua morte, já acamado, perante os
Cardeais revogou a sua posição anterior e professou claramente que as almas purificadas de seus
pecados gozam da visão de Deus face-a-face mesmo antes do fim dos tempos; também os réprobos
sofrem a sua condenação antes do juízo final. Estas afirmações foram definidas como sentenças de fé
pelo sucessor de João XXII, o Papa Bento XII, na Constituição Benedictus Deus de 1336. A sentença
anterior de João XXII não tinha o peso de uma definição de fé ex cathedra, mas era pronunciamento
pessoal de João XXII em estilo de homilia.
João XXII morreu em 1334 sem chegar a algum resultado nas conversações com luís IV. Por sua
parcimônia e sua capacidade de trabalho, deixou as finanças papais em boas condições, não por
avareza, mas para servir aos interesses de uma Cruzada no Oriente e das missões.
O seu sucessor foi Bento XII (1334-42), homem amigo da reforma da disciplina, que mais de
uma vez desejou voltar a Roma (pois via quão nocivo era o exílio de Avinhão e a preponderância
francesa na Cúria papal), mas não o conseguiu por causa da oposição dos Cardeais e do rei da França
Filipe VI. Combateu abusos na distribuição dos cargos eclesiásticos e o nepotismo (favorecimento dos
"sobrinhos"), dizendo que o Papa deve ser como Melquisedeque, isto é, sem pa-f, sem mãe, sem
genealogia...
Procurou entrar em paz com Luís IV; todavia Filipe VI da França e Roberto de Nápoles
impediram seus esforços, por temerem que da paz resultasse diminuição da sua influência e o regresso
do Papa para Roma. Diante disto, os príncipes alemães em 1338 declararam que o rei da Alemanha,
eleito por maioria, não precisaria, para o futuro, de aprovação papal para assumir as suas funções;
Luís IV acrescentou a isto que a dignidade e o poder do Imperador vêm imediatamente de Deus; ao
Papa é reservada apenas a coroação do eleito. Pouco depois Luís IV lançava outra proclamação,
declarando nulas todas as censuras que sofrera, e exortando, sob severas ameaças, os seus súditos a
não respeitar o interdito papal lançado, desde muito, sobre a Alemanha. Esta atitude do rei suscitou
confusão e perplexidade em muitas consciências.
Em 1341 foram iniciadas novas conversações de paz entre o rei e a Cúria Pontifícia; vãs, porém,
por causa da ambição do monarca: para dilatar seus domínios, este dissolveu por própria autoridade,
inspirado pelos princípios de Occam e Marsílio, o matrimônio de João Henrique da Boêmias com
Margarete Maultasch, herdeira do Tirol e da Caríntia, e casou-a com o filho de Luís IV - Luís de
Brandenburgo, que era consangüíneo de Margarete (1342)!
Bento XII teve como sucessor Clemente VI (1342-52), francês, prudente e erudito, bom
pregador, mas mundano e disposto a fazer a política dos franceses. Para chegar à reconciliação com
Luís IV, impôs condições muito severas, que foram rejeitadas. Daí seguiu-se novo anátema sobre o rei
e a exortação do Papa aos eleitores alemães para procederem à eleição de novo rei (1346). A
admoestação do Papa encontrou eco na Alemanha; a vida se complicava cada vez mais no país;
desejava-se a paz, pois havia mais de vinte anos que o território alemão estava sob interdito; a
autoridade da Igreja ia diminuindo; os fiéis desconfiavam do Papa tão influenciado pelos franceses;
isto ocasionava decadência religiosa e moral e o surto de seitas heréticas; em muitas dioceses dois
bispos se enfrentavam, um papal e outro imperial. O próprio Luís IV ia-se tornando impopular. Por
isto em julho de 1346 cinco príncipes alemães elegeram Carlos da Morávia por rei, com o nome de
Carlos IV (1346-78). A guerra ia estourar entre Luís IV e o eleito, quando aquele morreu em 1347.
Então, privados do seu tutor, os Fraticelli e Guilherme de Occam submeteram-se ao Papa.
Em 1355, a mandato do Papa, Carlos IV foi em Roma coroado Imperador pelo Cardeal de Óstia.
Todavia Carlos IV não restabeleceu a ordem na Itália. A ausência dos Papas era mortal para o Estado
Pontifício; em vários lugares surgiram chefes autônomos, que sacudiam o domínio papal; em Roma
reinava a anarquia: lutas cruéis entre os partidos dos Colonna, dos Orsini e outras famílias. Aliás, em
1347 o povo romano constituiu seu tribuno (governador) um certo Nicolau (Cola) de Rienzo, filho de
vendedor de vinho, modesto, mas eloquente e perspicaz, precursor do humanismo do século XV; quis
dominar a Itália como novo Augusto e restabelecer a ordem no mundo. Todavia o seu prestígio durou
pouco, porque incorreu no ódio do povo e foi preso pelas autoridades do Estado Pontifício.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 80
48
Bem-aventurado é o título conferido pela igreja a alguém antes de ser declarado Santo ou antes da canonização. Supõe
a certeza de Que praticou heroicamente as virtudes.
81 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
ou, ao menos, italiano. Na manhã do dia 8, por treze votos foi eleito às pressas não um francês nem
um romano, mas um italiano de Nápoles, isto é, o arcebispo Bartolomeu Prignano, que tomou o nome
de Urbano VI (1378-89). Depois do almoço do mesmo dia, os Cardeais (com exceção de três)
reuniram-se de novo numa capela e, por prudência, reelegeram o arcebispo Prignano.
Os Cardeais, porém, não ousaram publicar o resultado da eleição, já que não recairá sobre um
romano. O povo então, no mesmo dia, pôs-se a exigir a divulgação do resultado do conclave. Os
eleitores, diante disto, pediram ao ancião Cardeal Tibaldeschi, que se deixasse revestir das insígnias
papais e se apresentasse ao povo como Papa; o prelado consentiu a contra-gosto e foi bem aceito pelo
povo.
Contudo o próprio Cardeal Tibaldeschi encarregou-se de dissipar o erro. Os romanos deram-se
por satisfeitos com a eleição do Cardeal napolitano. Sobre este pano de fundo, os doze Cardeais
presentes em Roma na tarde do dia 9/04/ afirmaram solenemente a Urbano que ele era o Papa legítimo
e o empossaram no dia 10/04/1378. Na verdade. Urbano VI deve ser considerado o Papa legítimo,
verdadeiro sucessor de São Pedro.
Pensava-se que Urbano VI, austero e experiente jurista, fosse sanear os males da Cristandade,
Faltavam-lhe, porém, a paciência e a moderação necessárias; talvez, acabrunhado pelas
responsabilidades, não fosse mais senhor de seus nervos; tomou atitudes de homem doentio. Com
efeito, pôs-se a censurar intempestivamente os costumes dos Cardeais; S. Catarina de Sena exortava-o
à moderação e à calma. Irritados, treze Cardeais reuniram-se em Anagni aos 02/08/1378 e declararam
inválida – porque pressionada pelo povo - a eleição de Urbano VI; a seguir, sob a tutela de Joana I de
Nápoles e Carlos V da França, elegeram como novo Papa o cardeal Roberto de Genebra, que tomou o
nome de Clemente VII (1378-94); era primo do rei da França. Depois de luta armada pela posse de
Roma, Clemente Vil retirou-se para Avinhão, estabelecendo lá sua Cúria com novos Cardeais. A ele
aderiram a França, Nápoles, a Sicília, a Espanha, a Escócia, pequenas partes da Alemanha, a
Dinamarca e a Noruega. Entrementes Urbano era sustentado pela Itália do Centro e do Norte, a
maioria da Alemanha, a Inglaterra (que era inimiga da França), a Hungria e a Suécia. - Urbano
excomungou Clemente, que era Papa ilegítimo ou antipapa; este, por sua vez, declarou Urbano
excomungado.
Estava assim aberto o Grande Cisma Ocidental, que durou quase quarenta anos (1378-1417) e
causou enormes danos à Igreja. A opinião pública estava confusa. As pessoas mais dignas e santas Já
não sabiam distinguir o Papa legítimo: em favor de Urbano VI havia S. Catarina de Sena, que o queria
fazer reconhecer; em prol de Clemente VII trabalhavam eficazmente o dominicano S. Vicente Ferrer e
o Bem-aventurado Pedro de Luxemburgo... Com isto não só diminuía o respeito ao Papa, mas ia-se
atenuando a convicção da necessidade do Papado. Já as teorias de Occam haviam começado a lançar o
descrédito, (ver módulo 26). Na Inglaterra João Wiclef (1320-84), precursor da Reforma protestante,
punha em dúvida a instituição do Papado e da Igreja visível. O descontentamento era agravado pela
cobrança de taxas e impostos que o Papa e o antipapa exigiam para desenvolver a sua ação política e
fazer frente aos tumultos na Itália. Quanto mais se enfraquecia a autoridade eclesiástica, tanto mais
forte se fazia o influxo dos monarcas na vida da Igreja, já que os prelados, a fim de obter o apoio dos
governantes civis, tendiam a fazer-lhes concessões sempre mais avultadas.
A confusão despertava a expectativa de próximo fim do mundo; seria para o ano de 1400. Em
conseqüência, grandes grupos de penitentes da Inglaterra, da França, da Espanha afluíam para Roma,
que os atraia como cidade santificada pelo sangue dos apóstolos Pedro e Paulo e de numerosos
mártires.
Os teólogos procuravam uma solução. Então veio à tona, com mais pujança, a teoria conciliar ou
o conciliarismo, já apregoado por Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua e revigorado pela
Universidade de Paris."que era a terceira grande potência da época (após o Papa e o antipapa):
estabelecia acima do Papa um Concílio Ecumênico, capaz de julgar e depor o Papa, se necessário; a
Igreja deixaria de ser uma monarquia sagrada instituída e assistida por Cristo, para ser uma república,
fundada sobre o arbítrio dos homens.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 82
49
Concílio destituído de legitimidade, pois tora convocado sem a anuência do Pape legítimo.
83 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Concílio; não reconheceu a sentença e manteve-se como antipapa com alguns partidários na fortaleza
de Peñiscola (perto de Valença) até a morte (23/05/1423). Finalmente, aplainado o caminho, os
conciliares puderam eleger por unanimidade, aos 11/11/1417, o novo Papa legítimo, que foi Cardeal
Odo Colonna, com o nome de Maninho V (1417-31). Imenso foi o júbilo dos cristãos pelo
restabelecimento da paz e da legalidade dentro da Igreja. Estava terminado o cisma por feliz
disposição da Providência Divina, que resolveu uma situação de angústia e perplexidade mesmo para
os doutores e os santos.
50
O Papa Gelásio I declarou em 493 e 495 que a Sé de Pedro (romana) tinha o direito de julgamento sobre todas ss outras
sedes episcopais, ao passo que ela mesma não está sujeita a algum julgamento humano. Em 501, o Synodus Palmaris de
Roma reafirmou este princípio, que entrou no Código de Direito Canônico (ver cânon 1629).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 84
flagelados por guerras e agitações. Todavia não conseguiu promover a reforma da disciplina da Igreja
como devia, embora o seu pontificado tenha sido salutar e feliz.
O Concílio de Constança estabelecera a celebração de novo Concílio dentro de cinco anos. A
Cristandade mostrava grande interesse por esse novo Sínodo; o Papa, porém, n,ão, pois estava
intimidado pela posição arrogante que os Sínodos anteriores haviam adotado frente ao Papado, assim
como pela difusão da teoria conciliarista. — Apesar de tudo, o Pontífice convocou o Concílio em
1423 para Pavia; todavia peste, guerras e outras calamidades dificultaram os trabalhos da assembléia.
Por isto, o Papa a dissolveu em 1424, sem que produzisse algum decreto. O próximo Concílio foi
marcado para Basileia (1431).
Tendo falecido Martinho V em fevereiro de 1431, sucedeu-lhe o Papa Eugênio IV (1431 -47),
homem de zelo e costumes austeros, mas dotado de pouca habilidade administrativa, pois fora eremita
agostiniano.
O Concílio previsto abriu-se em Basileia (julho de 1431), com a presença de poucos prelados,
motivada por guerras. Esta notícia foi levada ao Papa Eugênio, ao qual disseram outrossim que em
Basileia reinava inquietação. Ora o Pontífice já não via com bons olhos o Concílio, do qual receava
um golpe. Em conseqüência, o Papa decidiu dissolver o Concílio de Basileia (18/12/1431) e convocar
novo Sínodo para 1433 em Bolonha. Este passo foi precipitado; o Papa estava insuficientemente
informado. Os conciliares já tinham programado seus trabalhos sem animosidade contra a Santa Sé.
Por isto pediram ao Papa a revogação do decreto de dissolução e continuaram a se reunir; em
14/02/1432, o Concílio se declarou Ecumênico e renovou a teoria conciliarista, apoiado pelo rei
Sigismundo da Alemanha, por príncipes e nobres; foi mesmo exigido, sob ameaça de processo
judiciário, o compareci mento pessoal de Eugênio IV e dos seus Cardeais em Basileia no prazo de três
meses. Crescia o interesse do público pelo Concílio, pois todos sabiam que era preciso empreender a
reforma da disciplina da Igreja; ia aumentando o número de prelados presentes ao Concílio.
O Papa Eugênio IV deixou-se vencer pelas instâncias do rei Sigismundo da Alemanha e outros
governantes; revogou, pois, a transferência do Concílio, reconheceu a legitimidade do Concílio de
Basileia (não, porém, de todos os seus atos). Estava assim restabelecida a paz entre o Papa e o
Concílio, mas em termos efêmeros. Com efeito; o Pontífice, desejoso de tratar do reatamento com os
gregos cismáticos, transferiu o Concílio para Ferrara (Itália) aos 18/09/1437, de acordo com
entendimentos havidos com os orientais. Ora isto desagradou à maioria dos conciliares de Basileia,
que ficavam nesta cidade, enquanto a parte menor se deslocou para Ferrara.
51
A doutrina do Filioque ensina que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (ex Patre Filioque). Não estava no Símbolo
de fé niceno-constantinopolitano promulgado em 381 (ver módulo 8), mas decorre dos princípios da teologia trinitária,
segundo a qual, "se o Espírito não procede do Filho, não se distingue deste, pois em Deus tudo é uma só realidade onde
não haja oposição relativa". Os latinos começaram a introduzir o Filioque no Símbolo de fé no século V, à revelia dos
orientais. O Patriarca Fócio no século IX fez desta atitude sério motivo de acusação aos latinos, preparando assim o cisma
de 1054 (ver módulo 21). Atua/mente a Santa Sé mantém o Filioque no Credo (pois professa uma verdade), mas não
85 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
outros pontos, como o purgatório, o início da visão beatífica, o primado do Romano Pontífice, o uso
do pão ázimo na Eucaristia...
Os gregos se retiraram em 1439 pouco depois de assinar a união com os latinos (que, aliás não
durou muito, porque havia resistência no Oriente à execução das decisões de Florença). O Concílio
continuou, mantendo duas sessões até 1442, em parte por causa da oposição do Sínodo de Basileia
(que continuava), em parte para tratar de novos casos de união. Com efeito; em novembro de 1439
uniram-se à Igreja Romana os armênios (o chamado "Decreto para os Armênios" é de grande
importância); em fevereiro de 1442 os jacobitas (monofisitas) da Etiópia e do Egito também se
uniram. Em fins de 1442 o Concílio foi finalmente transferido para o palácio do Latrão em Roma: aí
uniram-se ainda com a Igreja Romana os jacobitas da Síria (1444) .grupos caldeus (nestorianos) e
maronitas (monoteletistas) da ilha de Chipre (1445). A maior parte dos nestorianos permaneceu no
cisma.
Entrementes os conciliares de Basileia continuavam reunidos em número de 300, tendo como
presidente o único Cardeal-arcebispo Luís d'Aleman, de Arles. Abriram processo contra Eugênio IV e
suspenderam o Papa. Este respondeu excomungando os conciliares. A rebeldia destes não causou
grande impressão na Cristandade, pois ainda estavam muito vivas as tristes conseqüências do cisma
anterior. Na França, o rei Carlos VII (1422-61) convocou clérigos e leigos para Bourges (1438); af
resolveram apoiar o Papa Eugênio IV; não obstante, adotaram 23 dos decretos de Basileia com
algumas modificações. Tais decretos, promulgados como leis do Estado sob o título de "Pragmática
Sanção de Bourges". constituem o fundamento do Galicanismo ou da teoria da Igreja nacional
francesa dos séculos XVII / XVIII: professam o conciliarismo (o concílio acima do Papa), impedem a
apelação judiciária para Roma, ficando a Igreja sob o controle do rei, restringem as taxas papais...
Na Alemanha, em 1439 os príncipes reunidos promulgaram um documento semelhante ao dos
franceses, adotando vários decretos de Basileia, entre os quais o da teoria conciliarista.
Enquanto os príncipes europeus assim reagiram, os conciliares de Basileia continuaram a
hostilizar Eugênio IV; em junho de 1439 "depuseram-no" como herege e cismático, e em novembro
elegeram um antipapa: o duque viúvo Amadeu de Savoia, fundador da Ordem dos Cavaleiros de S.
Maurício; Félix V (1439-49), assim constituído, encontrou pouco apoio entre os cristãos; obedeceram-
lhe apenas a Savoia, a Suíça e alguns príncipes alemães. A França, Aragão e a Escócia declararam-se
logo por Eugênio IV; os alemães fizeram o mesmo pouco mais tarde, embora guardassem tradicional
animosidade contra o Papado (pensemos em Henrique IV, Frederico Barba-roxa. Frederico II. .., ver
módulos 22, 23 e 26).
O sucessor de Eugênio IV, Nicolau V (1447-55), conseguiu aproximar os alemães na
Concordata de Viena (1448). Este acordo, resultado de grande prudência por parte do Papa, tornou-se
famoso, pois durou até o século XIX, regrando, com vantagens para o Papa, a colação de benefícios
eclesiásticos e o pagamento de taxas à Santa Sé. Para o Sínodo de Basileia, esta Concordata foi o
golpe mortal; o rei alemão Frederico III de Habsburgo expulsou os conciliares, que já levavam
existência lânguida e se transferiram para junto do seu antipapa Félix em Lausanne (Suíça). Em abril
de 1449 este renunciou, e em 1451 faleceu; é o último antipapa que a história conhece. Os sinodais,
depois disto, elegeram ainda o antipapa Nicotau V, ao menos para dar a si mesmos uma aparência de
autoridade, e declararam dissolvido o infeliz anticoncílio de Basileia.
Assim estava terminada, ao menos em seus termos essenciais, a grave crise que o conciliarismo
suscitara na Igreja. A autoridade papal recuperara prestígio. Com efeito; apesar dos recentes clamores
por reforma mediante um Concílio Ecumênico, pairava certo descrédito sobre esta via de solução; o
cisma de Basileia fora uma triste e definitiva experiência; a arrogância dos sinodais de Basileia fora
para este o golpe mortal; nos círculos fiéis à Santa Sé os avanços relacionados com o Concílio
Ecumênico eram suspeitos e condenáveis. O Papado possuía, desta forma, a primazia absoluta sobre o
Concílio; se os Pontífices que se seguiram, tivessem usado essa sua autoridade para realizar a tão
almejada reforma da disciplina da Igreja, teriam evitado novos surtos de descontentamento e revolta
como foram os do século XVI (o cisma protestante).
exigiria dos cristãos orientais que o introduzissem no Símbolo de fé, que eles cantam. Os orientais preferem dizer que o
Espírito procede do Pai pelo Filho — o que, em última análise, é equivalente.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 86
(ver módulo 5). Na verdade, o seu fundador é o rico comerciante Pedro (?) Valdes, Valdo ou Vaux, de
Lião (França). Este, impressionado pela leitura da Bíblia, distribuiu o que tinha no ano de 1176 e
começou a peregrinar, pregando penitência; a ele se Juntaram homens e mulheres, que ele mandava a
pregar em grupos de dois; eram chamados "os Pobres de Lião" ou "Sabbati" (por usarem calçados de
lenho ou sabots). Visto que pregavam sem licença do bispo de Lião, criticando os costumes do clero,
este prelado proibiu-lhes a pregação. Recorreram, porém, ao Concílio do Latrão III (1179), que lhes
permitiu pregar, caso tivessem mandato episcopal, Osvaldenses, porém, não se sujeitaram a esta
cláusula, de modo que foram excomungados. Passaram então a viver às ocultas, granjeando adeptos
secretos. Proferiam votos de pobreza, obediência e castidade e submeteram-se aos bispos, presbíteros
e diáconos ordenados por Valdes. — Servia-lhes de norma suprema a S. Escritura, que eles traduziam
para o vernáculo e recomendavam ao povo. Foram-se distanciando cada vez mais da tradição católica;
talvez por influência dos cátaros na Itália, os valdenses negaram o culto dos Santos, os sufrágios pelos
defuntos, o juramento, o serviço militar, a pena de morte; tornaram-se muito atuantes, expandindo-se
para a Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Hungria. .. No século XVI, os Valdenses da Lombardia
anexaram-se ao Calvinismo e subsistem até hoje em pequeno número,
3. O Joaquimismo deve-se a Joaquim de Fiore (+1202). Em fins do século XI, era abade
cisterciense, muito acatado por sua ascese. é autor de uma teoria sobre a história do mundo e da Igreja;
haveria três fases da história:
1) a era pré-cristã seria a do Pai, idade da letra, da carne, dos casados e dos leigos; 2) a era
cristã seria a do Filho, intermediária entre a carne e o espírito, entre servidão e liberdade; seria a época
dos clérigos, que duraria 42 gerações de 30 anos cada qual (cf. Mt 1,17); 3) terminado este período em
1260, viria a era do Espírito Santo e dos monges (carismáticos); seria a época da liberdade e a
plenitude dos tempos, sem clérigos nem sacramentos.
Estas ideias opunham-se ao conceito de "Igreja-Cidade de Deus", tão difundido e acariciado na
Idade Média. Encontraram, porém, apoio, dada a exaltação da época, na corrente dos Franciscanos
ditos "Espirituais"; estes proclamaram São Francisco como o novo legislador e profeta enviado por
Deus, e os Franciscanos Espirituais como a Ordem dos tempos finais. Embora as obras de Joaquim
tenham sido condenadas num Sínodo de Arles após 1263, o movimento joaquimista não se extinguiu;
a ideia de renovar a Igreja, subtraindo-lhe o poder temporal, dominou até o fim da Idade Média, se
bem que não raro fomentada por motivos políticos. Assim, por exemplo, as teorias joaquimistas foram
professadas por flagelados (grupos que peregrinavam e se flagelavam em público) em 1260/1; a
eleição de um "Papa angélico", como seria o eremita Pedro de Morone (= Celestino V), foi, em parte,
inspirada pelo Joaquimismo; não poucos dos adversários dos Papas do século XIV (Bonifácio VIII,
João XXII. . .) estavam impregnados de Joaquimismo; ver módulo 24.
O próprio Joaquim de Fiore morreu muito acatado por seus contemporâneos, que o tinham na
conta de Profeta; antes de falecer, sujeitou-se ao Juízo da Santa Igreja,
4. Podem-se citar ainda:
- a Ordem dos Apóstolos ou dos Irmãos Apostólicos, fundada por Gerardo Segarelli, rejeitado
pela Ordem Franciscana. Com alguns companheiros, pregava a pobreza agressivamente; anunciavam
o fim da Igreja para breve. Tiveram que se refugiar no monte Zebello (perto de Vercelli, Itália), donde
saiam a saquear as fazendas vizinhas para se sustentar; viviam em comunhão de bens e de mulheres;
- os Irmãos e Irmãs do Espírito Livre afirmavam que quem está unido a Deus, não peca,
quaisquer que sejam as suas ações; isto lhes permitia entregar-se às paixões. Oração e sacramentos
seriam inúteis ou mesmo prejudiciais para os irmãos perfeitos.
Vejamos agora a corrente ortodoxa favorável à pobreza.
destaca-se Anselmo, bispo de Lucca, que foi feito Papa Alexandre II (1061-73), precedendo S.
Gregório VII na luta contra as investiduras (ver módulo 19).
2.2. As Ordens Mendicantes
As nobres aspirações à pobreza dentro da Igreja não haviam de perecer por completo no
fanatismo e na agressividade. Para salvá-las. Deus quis suscitar no início do século XIII os fundadores
das Ordens ditas "Mendicantes" (porque viviam, em grande parte, de esmolas), também eles
pregadores ambulantes, mas integrados dentro da S. Igreja. Estes deram origem a famílias que, entre
outras, apresentavam as seguintes notas:
1) o culto da pobreza não só individual, mas também comunitária; os irmãos viviam de trabalho
manual ou de esmolas; eram provavelmente todos leigos, de inicio;
2) para tornar mais eficaz a sua pregação, renunciaram a habitar em montes ou vales retraídos,
como os antigos monges, a fim de estabelecer-se em centros populosos; renunciavam também à
estabilidade no mesmo lugar, que os antigos monges praticavam;
3) constituíram as chamadas "Ordens Terceiras" (a Primeira era a dos frades; a Segunda, a das
freiras), que se abriam às pessoas casadas, proporcionando-lhes algo da vida regular; no mundo
obrigavam-se a observar normas de oração e práticas de penitência e caridade. Ainda existem essas
Ordens, que podem contar entre os seus membros São Luís, rei da França, S. Elisabete da Turíngia, S.
Catarina de Sena. . . Entre os Terciários inscreveram-se no fim do século XIII pessoas solteiras, que
renunciavam à propriedade e viviam em comum; do que resultaram novas Ordens, ditas "dos
Terciários Regulares".
2.2.1. Os Franciscanos
São Francisco, "um dos Santos que abalaram o mundo", nasceu em Assis (1181). Até os 23 anos
de idade levou vida leviana, à procura da glória do mundo; queria ser cavaleiro, como era freqüente na
Idade Média. Todavia um período de cativeiro e uma doença grave contribuíram para que se
convertesse totalmente para Deus. Passou a ser o cavaleiro da pobreza, que amava as aventuras
heróicas. - A partir de 1204, pôs-se a levar vida de penitência e oração, tratando de pobres e doentes e
reerguendo capelas caídas na região de Assis. Juntaram-se-lhe doze companheiros, com os quais foi a
Roma pedir ao Papa Inocêncio III a licença de pregar — o que lhe foi concedido, contanto que se
limitasse à pregação de penitência. Em 1214 quis ir para o Marrocos evangelizar os muçulmanos, mas
só chegou até a Espanha. Em 1219/20, foi ao Egito com a intenção de converter o Sultão. Durante esta
sua ausência, os irmãos já começavam a disputar entre si sobre a possibilidade de realizar o ideal de
Francisco. Este teve que conceder mitigações do seu projeto de vida, o que lhe foi muito custoso. Por
isto abandonou o governo da Ordem em 1221. Em 1223 o Papa Honório III aprovou a terceira e
última redação da Regra de S. Francisco. Em sua simplicidade, Francisco rejeitava os estudos; queria
que os irmãos rezassem mais do que estudassem. Todavia estes pediam licença para utilizar livros e
estudar, Já que deviam preparar-se para a pregação; tal desejo era vivo especialmente entre aqueles
que, vindo das Universidades, se agregavam a Francisco. Finalmente aos 14/09/1224 Francisco, já
enfermo, recebeu os estigmas do Senhor Jesus, vindo a falecer aos 03/10/1226.
A Ordem difundiu-se com rapidez extraordinária. No Capítulo geral de 1282 em Estrasburgo, já
contava 1583 fundações em 34 Províncias. A sua principal tarefa tornou-se a pastoral e as missões.
Embora o fundador tivesse rejeitado os estudos, os seus discípulos adquiriram grandes méritos nas
Universidades. O conflito, porém, entre o ideal da pobreza e a realidade, que se iniciou quando vivia
S. Francisco, desdobrou-se em longos litígios sobre a pobreza (ver módulo 26).
2.2.2. A Ordem dos Pregadores Dominicanos
São Domingos nasceu em Caleruega (Espanha) no ano de 1170. Fez-se cônego regular
agostiniano, bem formado em Teologia. Por este último atributo, muito diferia de Francisco;
Domingos conhecia os erros doutrinários (especialmente os dos cátaros) de seu tempo e quis opor-lhes
uma barreira, utilizando seu senso organizador e prático. Francisco, ao contrário, possuía uma alma de
poeta, que queria dirigir-se aos corações, ao passo que Domingos visava às inteligências,
Em 1215 Domingos fundou em Tolosa (França), onde mais forte era a heresia dos cátaros, a
primeira célula de sua futura Ordem: constava de um grupo de pregadores que, após boa preparação
teológica e ascética, se dedicariam à pregação. Domingos foi a Roma pedir a aprovação do seu
Instituto; recebeu-a de Inocêncio III em 1215, sob a condição de que adotasse uma das Regras )á
89 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
existentes, pois já eram muitas as Regras Religiosas existentes na época. O fundador escolheu a de S.
Agostinho.
A Ordem Dominicana ou dos Frades Pregadores foi declarada "Mendicante" em 1220 pelo seu
primeiro Capítulo Geral; todavia a prática da pobreza era aí mais branda do que entre os franciscanos -
o que preservou a Ordem dos litígios que agitaram os discípulos de S. Francisco. — S. Domingos
morreu em 1221, deixando uma instituição que logo se propagou até a Escócia e a Síria; o Papa
Gregório IX confiou-lhe a Inquisição contra as heresias.
2.2.3. Os Carmelitas
Devem a sua origem a um cruzado, Bertoldo da Calábria (ti 195), que em 1156 se retirou com
dez companheiros para a gruta do profeta Elias no monte Carmelo (Palestina), a fim de levar vida
eremítica; o Patriarca Alberto de Jerusalém deu-lhes uma regrado vida estritamente contemplativa,
que Honório III Papa confirmou em 1226. Em 1238 os carmelitas, repelidos pelo Islã, estabeleceram-
se, em grande parte, no Ocidente, onde trocaram a vida eremítica pela cenobítica, segundo o modelo
dos Mendicantes.
2.2.4. Os Eremitas de S. Agostinho
Sob a Regra de S. Agostinho, originaram-se na Itália dos séculos XI l e XI 11 diversas
Congregações de Eremitas. O Papa Alexandre IV em 1256 resolveu fundir todas essas famílias
religiosas na Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, que se difundiu por diversos países e, nos séculos
XI V-X V l, se distinguiram pelo estudo das obras de S. Agostinho.
Paralelamente ao ramo masculino, desenvolvia-se em cada Ordem antiga e medieval um ramo
feminino, que se submetia à mesma Regra; era a Ordem Segunda dos Franciscanos (Clarissas), dos
Dominicanos, dos Carmelitas, dos Agostinianos...
52
Trata-se aqui da reconstrução da basílica do Santo Sepulcro após a destruição de Jerusalém pelos persas em 614.
91 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Então começou a situação de nossa gente a ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois
grande luta lhes entrara no coração por causa da Igreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles
viam assim destruída. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e tarefas,
contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos príncipes incrédulos. Até mesmo o
que jamais lhes fora imposto, chegou a ser-lhes proibido: a celebração das suas festas. No dia que
soubessem ser a maior festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o Jugo e
a força; proibiam-lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que eles eram encerrados para
que não pudessem celebrar festa alguma. Em suas casas mesmas não gozavam de paz nem segurança,
pois se atiravam sobre elas grandes pedras e petas janelas lançavam excrementos, lama e toda
espécie de lixo. Se acontecesse que algum cristão dissesse uma só palavra capaz de desagradar a
esses incrédulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio, era arrastado à prisão e lhe cortavam
o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser confiscados pelo califa... Muitas vezes, os incrédulos
tomavam os filhos e as filhas dos cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam; ora
mediante golpes, ora mediante adulação, os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a fé...
Os bons cristãos esforçavam-se por sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram
maltratados.
Seria longo contar todos os vexames e as desgraças em que o povo de Nosso Senhor se
encontrava então. Eu vos contarei um episódio, para que mediante esse possais compreender muitos
outros. Um dos incrédulos, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava certa
vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém) tinha grande honra e reverência
pelo Templo que fora refeito53... Diante do Templo há uma praça que se chama a esplanada do
Templo, que eles (os muçulmanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantêm limpas
as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que alguém c visse, um
cão morto, pútrido e fétido, e colocou-o nessa esplanada, diante do Templo. De manhã, quando os
homens da cidade foram ao Templo para orar, encontraram esse cão. Fez-se então um grande grito,
rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram-se e não tiveram
ouvida em dizer que os cristãos haviam feito is- to. Todos concordaram em passar ao fio da espada
todos os cristãos; já estavam mesmo desembainha das as espadas que a todos deviam cortar a
cabeça.
Entre os cristãos havia um jovem de coração generoso e de grande piedade. Falou ao povo e
disse: 'Meus senhores, verdade é que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como aliás nenhum
de nós a tem; isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos assim e se
todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos libertar a todos com o auxílio de
Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas
preces e que tomeis sob os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. Pois eu assumirei a
causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós''
Os que lamentavam morrer, tiveram grande alegria então e prometeram ao jovem fazer orações
e honrar os seus familiares de tal modo que estes, no domingo de Fiamos, trouxessem sempre a
oliveira, que significa o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. - O jovem, portanto, foi ao encontro
dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no ocorrido e que ele era o autor
da façanha. Quando os incrédulos ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros, e somente ele
teve a cabeça talhada."
Faça-se o desconto devido possivelmente ao estilo panegirista do cronista... É certo, porém, que
ainda no séc. XII havia em Jerusalém uma família encarregada de fornecer aos fiéis as palmas para o
domingo de Ramos, em memória (diziam) da dedicação desse antepassado generoso, que se teria
sacrificado em prol da comunidade.
1. 2. Concepções e características medievais
1. Note-se agora que os relatos concernentes aos vexames da Terra Santa ecoavam nos ouvidos
de sociedade e povos caracterizados por dois traços profundamente marcantes:
a) Eram populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmavam a
regra) tinham - ou ao menos Julgavam ter - e professavam a fé cristã. Essa fé não procedia de uma
53
Alusão ao antigo templo de Salomão, transformado pelos árabes em mesquita de Ornar.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 92
autoridade exterior (do Papa ou do Imperador), mas era uma convicção profundamente ancorada no
coração de todos. Os valores da fé eram, para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de
ser vivida. O calendário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de acidentes
geográficos e instituições, além de numerosos outros dados, atestam o profundo impacto que a
mensagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as minúcias da vida cotidiana.
Não há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa a demonstrações exuberantes. como
também a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes de Deus... Ao lado
das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha, Nápoles, havia também muita simploriedade e
infantilidade na piedade cristã. Mas inegavelmente tudo que se ligasse com a fé, revestia-se de grande
significado para os medievais.
b) A sociedade na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos cavaleiros.
Efetivamente, a espiritualidade germânica, franca, celta, goda legou à civilização medieval o ideal do
cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra
(caso julgasse que a honra de Deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro
retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas heróicas em nome da fé.
Mais: deve-se lembrar que na" Idade Média também os monges desenvolveram papel
importante, professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto o
cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim a unir-se a Deus e chegar
à vida eterna, o monge se separava do mundo secular para penetrar diretamente em Deus e na
contemplação. Enquanto o cavaleiro aplicava os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para
servir ao seu Senhor, o monge, professando pobreza e silêncio, recusava o recurso a tais expedientes.
Ora os medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal cristão - o do
cavaleiro e o do monge -, criando no século XII as chamadas "Ordens Militares". Nestas o cavaleiro
se consagrava a Deus para O servir com destemer e galhardia num quadro de pobreza, castidade e
obediência.
Referindo-se aos Templários, dizia S. Bernardo (+1153):
"Não sei se os devo chamar monges ou cavaleiros; talvez seja necessário dar-lhes um e outro
nome, pois eles unem à brandura do monge a coragem do cavaleiro" (De laude novae militiae (IV 8).
2. É, portanto, nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoarem os relatos,
de estilo simples e pungente, dos peregrinos da Terra Santa, no séc. XI. Compreende-se que tenham
desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o
vigor comunicados pela fé (e que só a fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se
abalaram, prontificando-se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e
ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos de viagem muito definidos, mas
conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de que Deus o queria; "Deus Io volt", eis o brado que
em Clermont, no ano de 1095, impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos
outros que lhes seguiram o exemplo. Cosiam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde as
expressões que se tornaram técnicas: "assumir a cruz" e "fazer a cruzada". O Ímpeto inicial teve suas
repercussões durante os dois séculos de duração do movimento de Cruzadas.
Aliás, os medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor, que os cronistas
lhes apresentavam sujeito a vexames. Era tido como o maior santuário do mundo cristão, como o
centro do universo, segundo os sermões e os noticiários da época.
É somente a partir de tais concepções, muito vivas e significativas para os medievais, que se
podem entender as Cruzadas. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a chamada "guerra santa"
(jihad) dos muçulmanos, pode servir de ponto de referência para se entenderem a inspiração e a force
motriz dos cruzados.
É mister, porém, reconhecer que as ideias religiosas dos primeiros expedicionários foram sendo,
aos poucos, no decorrer de dois séculos, solapadas, de sorte que a imagem do cavaleiro que em seu
fervor tomava sobre si a cruz para ir libertar o S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa
imagem posterior que muitas vezes predomina em certos tratados sobre as Cruzadas.
93 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Naquela época, os cristãos já não possuíam senão o litoral, desde Tiro até Jafa, com S. João de
Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia Ricardo Coração de
Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino próspero.
4a Cruzada: O Papa Inocêncio III (1198-1216) aspirava ardentemente à libertação de Jerusalém.
Suscitou nova expedição, a qual, porém, se afastou da sua orientação, sob a influência de Filipe da
Suábia, de Veneza e dos gregos. Os cruzados empreenderam a conquista de Constantinopla (!), que
eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um Império latino. Esse Império, que compreendia a
península dos Balcãs, durou até 1261, quando Miguel o Paleótogo retomou Constantinopla.
5a Cruzada: Entre 1219 e 1221, alemães e húngaros assumiram a cruz. Dirigiram-se para o
Egito; mas a cheia do Nilo, que os cristãos não previam, obrigou-os a retirar-se.
6a Cruzada: É também chamada "peregrinação sem fé" (1228-1229). Excomungado pelo Papa.
Frederico II resolveu empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepulcro, quanto para unir
em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciência e da cultura
árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de sorte que obteve do sultão do Egito, por
dez anos, o domínio sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo. Jerusalém recaiu nas
mãos dos árabes.
7a e 8a Cruzadas: São Luís IX, rei da França, resolveu reconquistar a Cidade Santa. Em 1248,
atacou o sultão Eyoub, não na Síria, mas no Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos
tomaram Damieta, mas caíram diante de Mansourah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a
liberdade mediante enorme preço de resgate.
Em 1270, S. Luís renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército para
empreender nova expedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu-o de ir primeiramente a
Túnis; diante desta cidade, o monarca, acometido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.
Após estes fatos, a pressão dos exércitos turcos se intensificou, visando aos últimos redutos
cristãos da Ásia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando-se assim a era das Cruzadas propriamente
ditas.
Ainda, a título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das crianças, pois são significativas do
espírito da época.
Em 1212, um jovem pastor, chamado Estêvão, dizendo-se enviado por Deus, convocou as
crianças da França para empreenderem uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que assim se
formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de frota haviam-se comprometido a transportá-los
ao Oriente gratuitamente; todavia venderam-nos aos mercadores de escravos no Egito. A maioria dos
participantes pereceu; um pequeno número recuperou mais tarde a liberdade.
Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte mil jovens, dirigidos por
certo Alexandre, tão imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em
Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram-se sem êxito algum.
Depois desta visão panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar
compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.
- De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais
indicado e preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta
Cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para
Constantinopla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que
procuraram servir aos seus interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico
II e Luís IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham
que utilizar os navios das cidades comerciantes da Itália ou da França (Veneza, Gênova, Pisa,
Marselha...), que, em troca, exigiam para si direitos e privilégios nos portos da Palestina.
- O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis,
príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cavaleiros,
organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis e grandes senhores nem sempre se
entendiam entre si; objetivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças
previamente contraídas (levem-se em conta a primeira e a terceira Cruzadas). - Notório é o caso de
Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.
2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres
e outros males, que já os pregadores e o Concilio de Lião l censuravam...
O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas a
nota característica ou uma das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados
como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas
"compensações" depois de haver sofrido os rigores da fome, da sede, do frio e de severa disciplina
durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chegavam finalmente à costa da Palestina
doentes, vitimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e gozo.
- Nem por isto tais "compensações" são legítimas.
Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em
síntese, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram
indicados nestas páginas.
Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas,
ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da época) a unidade e a
homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé - valor que eles não
discutiam - o estimulo e o dinamismo para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela
virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas...!
católicos; quando católicos, perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo
atentado contra a religião oficial como atentado contra a sociedade; não se deveria ser mais clemente
para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para com os crimes de lesa-majestade
humana.
As penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de fazer testamento, a
confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida pelo poder civil aos maniqueus e aos
donatistas; aliás. Já Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os
maniqueus, que eram contrários à matéria e aos bens materiais.
S. Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os
danos causados pelos donatistas (circumceiliones), propugnava os açoites e o exílio, não a tortura
nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia,
pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides, fé) a Deus do que a mulher trair o
marido (epist. 185, no 21, a Bonifácio). Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a
abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade.
As sentenças dos Padres da Igreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João
Crisóstomo (1407), bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a
execução de um herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A execução
de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em Tréviris (385), foi geralmente condenada pelos
porta-vozes da Igreja, principalmente por S. Martinho e S. Ambrósio.
Das penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem
nos mosteiros, donde foi transferida para a vida civil.
Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos com penas civis assim como
aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois,
populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana, à qual
atearam o fogo!
Contudo em meados do século XII a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: os
magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo. Muito significativo,
por exemplo, é o episódio seguinte; o Papa Alexandre III, em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e
ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens:
“Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes... A
mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza... Não queiras ser justo demais / noli
nimium esse iustus)”
Informado desta admoestação pontifícia, o rei Luís VII de França, irmão do referido arcebispo,
enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam
simultaneamente:
"Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que
possa crescer. Suplico-vos para bem da fé crista: concedei todos os poderes neste campo ao arcebispo
(de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua justa severidade será louvada por
todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as
queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas
recriminações da opinião pública" (Martène, Amplíssima Collectio // 683s).
As conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o concílio regional
de Tours em 1163, tomando medidas repressivas à heresia, mandava inquirir (procurar) os seus
agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Itália), à qual compareceram o Papa Lúcio
III, o Imperador Frederico Barba-roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou em 1184 um
decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido
independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este recorrendo à força física),
deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: os hereges seriam doravante
não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por
pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, barões e as
demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado
sobre as suas terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço
secular, que lhes imporia a sanção devida.
Assim era instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram os precedentes,
atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do
povo cristão; independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a repressão física
das heresias.
No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era insuficiente para
deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes; além disto,
tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente.
À vista disto, os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de
plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte surgiu a "Inquisição
pontifícia" ou "legatina", que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a
tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em
1233, quando o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante,
para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de
numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários. . .), em geral independentemente do
bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo
sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de Concílios.
Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra os sectários.
Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos
adversários que o Papado teve no séc, XIII. Em 1220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu
governo, prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela Igreja; declarou a heresia
crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224 publicou
decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: as autoridades
civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo
99 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado
a vida. E possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens
confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo entrado em luta contra o
arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não
obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por
exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los,
marcá-los com ferro vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu
aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento
contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro
desencadeado independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a própria Igreja. A
Inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência
das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.
Em síntese, pode-se dizer o seguinte:
1) A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas
recorria às espirituais (excomunhão, interdito, suspensão...).
Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais. E por quê?
2) As heresias que surgiram no século XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser
problemas de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem
vigente e convulsionavam as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.
3) O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da pátria e da família hoje.
Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte, as
heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.
4) Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades — a civil e a eclesiástica - tenham
finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época
aos grandes delitos.
5) A Igreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela
exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da
Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII da França.
6) De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada
por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus
adversários políticos.
7) Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao
antigo estado de coisas, em que as populações faziam Justiça pelas próprias mãos. é de notar que
nenhum dos Santos medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da mansidão)
levantou a voz contra a Inquisição, embora soubessem protestar contra o que lhes parecia destoante do
ideal na Igreja.
e a piedade, que devem residir no coração de um juiz. brilhem nos seus olhos, a fim de que suas
decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade" /'Prática VI p.. . ed. Douis 232s).
Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia
crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo eqüitativo e bom, se realizou com
mais freqüência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém, (como adiante mais
explicitamente se dirá) que as categorias pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram
exatamente as da época moderna... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do Juiz, sempre
difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e as autoridades civis estavam
profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo que, não raro exerciam pressão para
obter a sentença mais favorável a caprichos ou a interesses temporais; às vezes, a população obcecada
aguardava ansiosamente o dia em que o veredictum do Juiz entregaria ao braço secular os hereges
comprovados. Em tais circunstâncias não era fácil aos Juízes manter a serenidade desejável.
Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção a tortura e a entrega ao
poder secular (pena de morte).
A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem obrigar um
escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em 866, porém,
dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente.
Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios do
séc. XII, dado o renascimento do Direito Romano. Nos processos inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV
acabou por introduzi-la em 1252, com a cláusula: "Não haja mutilação de membros, nem perigo de
morte" para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu
tempo (Bullarum amplíssima collectio II 326).
Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram restringir a
aplicação da tortura; só seria lícita depois de esgotados os outros recursos para investigar a culpa e
apenas nos casos em que já houvesse meia-prova do delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois
"índices veementes" deste, a saber: o depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro
lado, a má fama, os maus constumes ou tentativas de fuga do réu. O Concílio de Viena (França) em
1311 mandou, outrossim, que os Inquisidores só recorressem à tortura depois que uma comissão
julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular. - Apesar de tudo
que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido conciliada com a mentalidade do mundo moderno...;
ainda estava oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos
dias. . .
Quanto à pena de morte, reconhecida pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição
civil da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias à sua aplicação
em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo (séc. XII), alguns canonistas
começaram a Julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do Imperador Justiniano, que no séc. VI a
infligira aos maniqueus. Em 1199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos
seguintes termos:
"Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus bens são
confiscados. . . Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a Jesus, o
Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de seus bens. pois muito
mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana" (epist. 2, V.
Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas Justificar a excomunhão e a
confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova praxe.
. . O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas conseqüências: tendo lembrado numa
Constituição de 1220 a frase final de Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a
Lombardia a pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais
casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido
à cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa
Gregório IX, que tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo;
transcreveu em 1230 ou 1231 a Constituição imperial de 1224 para o Registro das Cartas Pontifícias e
em breve editou uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem
101 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação de
Frederico II, seria a morte pelo fogo.
Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia S.
Tomás de Aquino:
"É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificara moeda, que é um
meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom
direito. condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que
sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser
condenados à morte" (Suma Teológica II / II 11, 3c).
A argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida
da alma mais vale do que a do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do
próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a
remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II / II 11,4c).
Contudo as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente
faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de Pamiers, de 1303 a
1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao
poder civil (o que equivalia à morte); o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323,
proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no
segundo caso, de 1/22.
Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos Juizes
inquisitoriais. Tais males se devem à conduta de pessoas que. em virtude da fraqueza humana, não
foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os Inquisidores trabalhavam a distâncias mais ou
menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e comunicações,
não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da Igreja. Esta, porém, não deixava
de os censurar devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em tal ou tal
região.
Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto o Bugro. Inquisidor-Mor de França no século XIII. O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo aderido outrora à
heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da mesma. Informado dos desmandos
praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e mandou encarcerar. — Inocêncio IV,
o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV,
respectivamente em 1246e 1256, mandaram aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e
Franciscanos, depusessem os Inquisidores de sua Ordem que se lhes tornassem notórios por sua
crueldade.
O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes,
foi um dos que mais reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando examinar, ou simplesmente
anulando, sentenças proferidas por estes.
O Concílio regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir
abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só proferissem sentença
condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta, "pois mais vale deixar
um culpado impune do que condenar um inocente" (cânon 23).
Dirigindo-se ao Imperador Frederido II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX
aos 15 de Julho de 1233 lhe lembrava que "a arma manejada pelo imperador não devia servir para
satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das populações, com detrimento da
verdade e da dignidade imperial" (ep. saec. XIII 538-550).
Lição 2: Avaliação
Procuremos agora formular um juízo sobre a Inquisição medieval.
Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. é preciso, porém, que
se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a instituir a
Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas,
diríamos até: deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os
fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 102
1) os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande
era o amor à fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um
dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de S. Tomás e do Imperador
Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse
alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.
2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia muito
mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os
medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio
abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se
quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens
modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios relativos
e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).
3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da
Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da pena de morte aos
hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos
abusos motivados peta cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o
temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese. tão unidos entre si que lhes parecia normal,
recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios do séc.
XIV a Inquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus
interesses particulares, subtraindo-a às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a
contra este; é o que aparece claramente no processo inquisitório dos Templários, movido por Filipe o
Belo da França (1285-1314) à revelia do Papa Clemente V; cf. módulo 25.
4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria
lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses atos de fraqueza; ao
contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais
oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à
Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na
execução concreta das leis.
Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio: na
antiguidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No Império
Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu Império (oikouméne
— orbe habitado — Imperium), nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época
contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da técnica para
"lavar o crânio", desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os
medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem
moderno, com razão, julga demasiado violentas?
Quanto a Inquisição Romana, instituída no séc, XVI, era herdeira das leis e da mentalidade da
Inquisição medieval. No tocante à Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais por influência dos
monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema autoridade da Igreja. Ver módulo 42.
de Orleaes. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário,
permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
1.2. Intervenção de Joana
Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler
e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes,
que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida;
exortavam-na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se
repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? - Note-se que a alucinação
significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora
em toda a conduta de Joana d'Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual
ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram.
Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das "alucinações".
Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio
levou-a então à presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a,
o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o
capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a ter com o rei Carlos VII, acompanhada
por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A
donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que
ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado
entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleaes. Todavia aquela
jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo insistido, Joana foi
submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo
resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a
nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de
Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um
estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio
de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleaes, dando entrada na cidade a
Joana d'Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia — o
que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: "Gentil
roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus".
Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil,
muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne, foi
presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e
a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser Julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a
donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. — Este plano haveria
de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais
persuasivos.
Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um
soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a
colaboração do céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos
sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações. . . As calamidades que assolavam a
França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de
falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la
Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? — Além disto, o
espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a
cavalgar Junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma
virgem crista se ou desse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos
contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito-
c) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de grande
autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores
dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais
moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente
contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões
mais do que pelas ideias dos professores; queira passar por mais perita do que os capitães do exército,
sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
A luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora
Lição 1: O Wiclefismo
John Wiclef (1320-84) era um nobre inglês que se fez sacerdote, professor de Filosofia e
Teologia na Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um espiritualismo
exagerado. Os cristãos na Inglaterra sempre, tenderam a se isolar do resto da Igreja (talvez por sua
posição geográfica insular)54; ora o separatismo dos ingleses fornecia clima propício às ideias de
Wiclef,
Em 1366 o Parlamento inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João
sem Terra a Inocêncio III em 1213,... impostos que, havia 33 anos, já não eram pagos; ver módulo 23.
Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef afirmava que os bens
temporais são nocivos à Igreja e que os príncipes têm o direito de se apossar dos mesmos quando os
clérigos não os utilizam devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades
da Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero. Wiclef tinha em mira especialmente os
mosteiros.
54
Podem-se mencionar a propósito os artigos de Clarendon, promulgados sob Henrique II da Inglaterra, que em 1164
proibiam o clero de apelar para Roma, limitavam as viagens dos prelados ao exterior. e concediam ao rei grande
autoridade sobre a Igreja. Lembremos também as figuras de. S. Anselmo, que lutou contra Guilherme II e Henrique I em
1093-1109, e de S. Tomás Becket (1162-70) contra Henrique II.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 106
Tais ideias encontravam eco na corte e entre os nobres. A Inglaterra estava debilitada por causa
de seus insucessos na guerra dos Cem Anos contra a França; por isto era tentada a apoderar-se dos
bens da Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou dezoito teses de Wiclef; todavia a hierarquia
inglesa receava proceder contra o herege por causa do seu prestígio na Inglaterra.
Depois da irrupção do Grande Cisma do Ocidente (setembro de 1378), Wiclef atacou o Papado,
afirmando que a Igreja não subsiste com a hierarquia, mas é uma comunidade invisível de
predestinados; o verdadeiro Papa é Cristo e cada crente é um verdadeiro presbítero diante de Deus; o
Papado seria mesmo uma instituição do Anticristo. A S. Escritura seria a única norma de fé; Wiclef
mandou traduzir o texto da Vulgata latina para o inglês, merecendo por isto ser chamado "o Doutor
Evangélico". Rejeitava a real presença de Cristo na Eucaristia; o cristão só receberia espiritualmente o
corpo e o sangue de Cristo; a confissão auricular seria uma instituição tardia. Mandava sacerdotes
pobres e leigos dois a dois a pregar a "Lei de Deus"; os fiéis católicos chamavam esses pregadores
tolardos (de lollium, joio), denominação esta que provinha dos Países-Baixos, onde designava
sectários e hereges inflamados.
As ideias de Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em
1381 moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef foi responsabilizado por essa
revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um Sínodo de Londres em 1382 condenou sua doutrina.
Wiclef retirou-se então para a sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando
escritos polêmicos em latim e em inglês. O Wiclefismo continuou a se propagar, mesmo perseguido,
criando o ambiente receptivo às ideias do século XVI.
virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma "heresia boêmia" eram invenção do inferno. Ao mesmo
tempo formou-se uma Liga para a defesa da liberdade de pregação, para a proteção contra a
autoridade episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a praxe do "cálice dos leigos" (comunhão
sob as duas espécies)55 como símbolo da facção hussista. Esta dominou a Boêmia quase totalmente
durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau restabeleceu os sacerdotes expulsos — o que deu lugar
a revolução violenta; foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do
coração em conseqüência deste golpe. Ao seu irmão e sucessor. Sigismundo os hussistas negaram
obediência, como perjuro e assassino de Hus. Assim começaram as guerras hussistas (1420-31). O
Papa Martinho V convocou uma cruzada contra tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas
de Sigismundo foram derrotados por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam os hussitas
extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). Os hussistas mitigados foram chamados
utraquistas (de sub utraque specie, sob ambas as espécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e
Sigismundo. Os Taboristas, ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar os
sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia, abraçaram ideias
apocalíptico-milenarista56; proclamavam a abolição de todas as diferenças de classes; na região que
eles dominavam, dava-se total transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de
igrejas e de mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os Taboristas devastaram a
Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o mar do Norte, sob a direção de André Procópio o Velho,
sacerdote católico apóstata.
Já que não era possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas
procuraram a via das conversações. O Concílio de Basileia convidou os hussistas a comparecer — o
que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por quinze delegados de ambos os partidos
(taboristas e utraquistas), formularam suas reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos
leigos, proibição de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos abusos contra a "lei
de Deus". As conversações no Concílio foram úteis, mas terminaram em Praga com um acordo dito
Compactata Pragensia (30/11/1433); os quatro postulados hussistas foram aceitos com certas
restrições: 1) o cálice dos leigos, desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que Cristo está todo
presente sob ambas as espécies; 2) a pregação livre desde que realizada por sacerdotes aprovados; 3) a
punição dos pecados mortais, desde que públicos, por iniciativa das autoridades competentes, e não de
pessoas particulares; 4) a administração idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.
Os taboristas recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os católicos
em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e reconheceu Sigismundo
como rei.
O nome "hussista" foi desaparecendo aos poucos. Aqueles que faziam uso do cálice dos leigos,
foram chamados simplesmente "utraquistas" ou "calixtinos", enquanto os outros católicos da Boêmia
eram ditos "subunistas ou "unistas". A situação da Igreja ainda ficou agitada por muito tempo na
Boêmia; até os nossos dias há vestígios de hussismo no nacionalismo tcheco.
Alguns utraquistas não se deram por satisfeitos com o acordo oficial e procuraram novas formas
de religião; eram camponeses que apregoavam uma vida de trabalho manual agrícola, retirada do
convívio social e político, e urna Igreja despojada e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido
da "Unidade dos Irmãos" (Unitas Fratrum) ou dos Irmãos Boêmios; muitos deles incorporaram-se
finalmente aos luteranos no século XVI.
Somente em 1629 o edito de "Restituição" do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as
duas espécies entre os católicos da Boêmia.
Reflexão final: como se vê da exposição feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias
relacionadas não só com a teologia, mas também com os problemas sociais dos séculos XIV / XV. —
As guerras devastaram a Europa nestes dois séculos; a de Cem Anos (1337-1453), entre a França e a
Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre as Casas da Borgonha e de
Orleães, na França; os Países Baixos eram sacudidos por guerras civis entre nobres e democratas; na
55
Em linguagem teológica, chamam-se "espécies eucarísticas" os acidentes do pão e do vinho (tamanho, cor, odor. . .) que
acompanham o corpo e o sangue de Cristo realmente presente.
56
Ideias apocalípticas = ideias que anunciavam catástrofes iminentes e próxima intervenção do Senhor na terra. Ideias
milenaristas = ideias que previam um reino de mil anos de bonança na terra sob a chefia de Cristo.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 108
Alemanha, havia guerras entre príncipes, cavaleiros e cidades. À medida que os príncipes iam
centralizando o seu poder, a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes eram
os que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e angustiados ainda queriam viverá
custa destes.
Assim os tempos se tornaram cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos fortes
que obtinham vitórias, tomava proporções extraordinárias; em conseqüência, as insurreições dos
camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da sociedade; quem obtivesse vitória,
crivava os olhos e incendiava as casas dos adversários vencidos. O correr dos acontecimentos havia de
levar à revolução religiosa e social do século XVI, associada principalmente ao nome de Martinho
Lutero,... Revolução à qual se oporia a obra de renovação católica associada ao Concílio de Trento e à
floração de Santos que encheram o mesmo século XVI.
Lição 2: Renascimento
2.1. Renascimento ou Humanismo
O nome Renascimento designa a redescoberta da cultura clássica greco-latina, que parecia ter
adormecido na Idade Média e que nos séculos XIV / XV vieram de novo à tona.
Houve na Idade Média mais de um Renascimento; assim o anglo-saxão, com S. Beda o
Venerável (673-735); o carolíngio, sob Carlos Magno (século VIII / IX); o do Direito Romano, em
fins do século XII. O Renascimento, porém, dos séculos XV / XVI diferia dos anteriores pelo fato de
que os eruditos não somente descobriam e estudavam manuscritos e monumentos da cultura greco-
latina pré-cristã, mas também queriam viver de acordo com a mentalidade que eles inspiravam,...
mentalidade pagã, naturalista e antropocêntrica. — A natureza humana, como tal, tornou-se o critério
ou o Supremo Arbitro de todos os valores; era considerada com otimismo. Os estóicos, no fim da
Idade pré-cristã, exclamavam: "Segui a natureza!"; tal era o seu ideal de vida. Ora os renascentistas do
século XVI proclamavam: "Voltai à natureza!". Isto significava um adeus em grau ora maior, ora
menor, aos valores cristãos, que apregoam a salvação pela Cruz e pela renúncia aos apetites
desregrados da natureza.
É esse culto à natureza humana que explica a designação "Humanismo" dada ao Renascimento;
esse humanismo tinha por modelo, em grande parte, o homem antigo pré-cristão.
2.2. Renascimento: traços típicos
A Itália foi o principal berço e cenário do humanismo renascentista, pois lá estavam guardados
em bibliotecas empoeiradas os manuscritos e documentos dos homens greco-romanos. A navegação
freqüente da Itália para a Grécia e o Oriente facilitou, Já na Idade Média, a entrada de homens e
valores bizantinos em Veneza, Gênova, Florença. Alguns italianos foram, nos séculos XIV / XVI,
estudar em Constantinopla a filosofia e a literatura gregas. Mais: o Concilio de Ferrara-Florença
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 110
(1438-42) fez que muitos eruditos gregos e bizantinos fossem para a Itália; a queda de Constantinopla,
sob os golpes dos turcos, em 1453, obrigou vários sábios bizantinos a emigrar para o Ocidente. A
invenção da imprensa, no século XV, facilitou enormemente a difusão dos textos clássicos. Em
conseqüência, foram-se formando Academias em Roma e em Florença, cujos membros continuavam a
professar o Cristianismo, mas viviam, ora mais, ora menos, segundo os costumes do paganismo,
especialmente no tocante à libertinagem sexual: em lugar da humildade cristã manifestava-se a
consciência do próprio eu, árbitro de todas as coisas; em lugar do transcendente e do Reino dos céus,
procurava-se o terrestre com sua beleza ou a eternidade realizada na fama de um nome célebre; em
lugar da meditação e da oração, tomaram voga a ação e a violência.
Não há dúvida de que essa redescoberta dos valores clássicos beneficiou a Igreja: houve
humanistas cristãos que estudaram o grego e o hebraico (línguas quase desconhecidas na Idade Média)
para poder ler os originais da S. Escritura e as obras de filosofia dos mestres antigos. Os Papas e os
Cardeais tornaram-se freqüentemente os patrocinadores de obras de arte renascentista, que até hoje
podem ser contempladas; mas nem sempre souberam distinguir o que havia de sadio e o que havia de
deteriorado nas expressões do humanismo, como será dito no módulo seguinte. O Renascimento
causou defecções entre cristãos; vários destes, empolgados pelos valores clássicos, desprezavam a
Igreja, criticando o seu latim (que não era o dos clássicos romanos) e o seu método de ensino.
Consideremos alguns dos expoentes do Renascimento.
2.3. Vultos mais famosos
1) Nicolò Macchiàvelli (1469-1527) era férvido patriota italiano, que levou ao extremo as ideias
do Imperador Frederico II (1215-50), da Alemanha, e de Filipe IV o Belo (1285-34), da França: o
Estado não só não está ligado à Igreja, mas também não à Moral. O Estado é soberano e constitui a
medida de todas as coisas; fica, pois, relegado o ideal da "Cidade de Deus"; as virtudes cristãs da
caridade e da humildade são fontes de fraqueza; a religião deve servir de meio para reforçar a
autoridade do Estado. Ao Príncipe é muito desastroso ser sempre honesto, mas é muito útil parecer
fiel, sincero, religioso... "A massa considera apenas as aparências e os resultados de um
empreendimento" (II Príncipe 18). Tais ideias haviam de nortear a política dos séculos XVI / XVII,
embora fossem na sua época teoricamente rejeitadas.
2) Pietro Pomponazzi (Pomponatius), 1462-1525, era um adepto dos sistemas filosóficos de
Aristóteles e dos Estóicos, contrariando assim a filosofia predominante na época, que era o
Platonismo. Professava a teoria da dupla verdade: o que é válido aos olhos da fé pode não o ser aos
olhos da razão; tal doutrina já fora proposta por seguidores de Aristóteles na Idade Média, entre os
quais o árabe Averroés (+1198Ï. Escreveu em 1516 a obra De immortalitate animae, que nega a
imortalidade da alma, e De Incantationibus (Sobre a Magia), negando a Providência Divina e os
milagres. As teorias de Pomponazzi foram condenadas pelo Concílio do Latrão V em 1513.
3) Desidério Erasmo de Rotterdam (1466-1536) è o principal dos humanistas germânicos;
brilhou pela multiplicidade do seu saber, pela vasta produção literária e pelo seu prestígio nos círculos
eruditos e nas cortes dos reis. Era ótimo conhecedor do grego e do latim. Difícil, porém, é caracterizar
a sua personalidade, pois o que o distingue é precisamente a ambigüidade; diante de um dilema, dizia
que nenhuma das partes opostas exprime perfeitamente a verdade; por isto proferia simultaneamente
um cético sim e não. Sentia-se fraco para confessar publicamente a fé cristã em caso de perseguição;
justificava-se, porém, e tranquilizava-se, afirmando que houve muitos mártires no Cristianismo, mas
os sábios e eruditos foram poucos.
Erasmo teve seus méritos, editando o Novo Testamento em grego assim como obras teológicas
gregas da antiguidade. Mas faltava-lhe fé profunda; era relativista; muito concorreu para a revolução
religiosa do protestantismo pela sua ironia mordaz e sua crítica a instituições e personalidades da
Igreja.
Em síntese, as atitudes dos humanistas podiam tornar-se afetadas e artificiais como dá a entender
o texto seguinte de Enéas Silvio Piccolomini, que, convertido, se tornou o Papa Pio II (1458-64):
"Somos aduladores, e não amigos... Creio que me entendes bem. Mas é preciso ser hipócrita, já que
todo o mundo o é, porque mesmo Jesus 'parecia querer ir mais adiante' (Lc 24,28). Tomemos os
homens tais como são" (carta de 28/12/1443).
111 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
tomou parte no banquete festivo. Isto tudo podia parecer aprovar feitos de juventude do nobre
genovês, francamente pecaminosos. Em agradecimento a Lorenzo dei Mediei, Inocêncio VIII nomeou
Cardeal seu segundo filho, Giovanni, de treze anos de idade (1489), o qual se tornou, mais tarde, o
Papa Leão X.
Na Cúria os funcionários eram freqüentemente corruptos. Em 1489 foi descoberta uma banda de
pessoas que falsificavam Bulas papais, ganhando enormes quantias de dinheiro. O número de
secretários papais foi elevado de 6 a 24 e, depois, a 30. A cobiça movia os cortesãos, sendo um dos
mais ávidos o próprio Franceschetto, que não poupava as casas dos burgueses de Roma nos assaltos
noturnos que ele dirigia.
Os Cardeais viviam em luxo e frivolidades; entregavam-se à caça, arriscando grandes
importâncias; promoviam festas, davam banquetes, participavam de jogos carnavalescos. — O de pior
fama era o espanhol Rodrigo Borja, desde jovem (em 1456) nomeado Cardeal e Vice-Chanceler por
seu tio Calixto III; vivia rodeado de mulheres. O Papa Pio II lhe chamara a atenção para tal vida
escandalosa, mas sem resultado. Nada mudou quando foi ordenado presbítero em 1468; de uma
senhora romana casada, Vanozza de Cataneis, o presbítero Rodrigo Borja teve quatro filhos: César,
Juan, Godofredo e Lucrécia, que não eram, aliás, os seus únicos filhos ilegítimos. Mandou legitimar
todos, conforme o Direito da época, e ocupou-se solicitamente do futuro deles. A mãe dos quatro
filhos vivia não longe do palácio do Cardeal.
No tocante aos assuntos de ordem interna da Igreja, não se podem fazer graves censuras a
Alexandre; deixava as coisas correr conforme o costume e pouco se importava com eles. Todos os
cuidados do Pontífice cederam a uma preocupação dominante; conquistar para a família Borja um
poderio duradouro.
Em 1497 o Papa foi seriamente abalado pelo misterioso assassinato de seu filho Juan, cujo
cadáver foi atirado ao Tibre.57 Sob a impressão da dor, declarou num Consistório público: "Deus nos
submeteu a estas provas por causa dos nossos pecados". Tomou então providências para reformar sua
vida pessoal e os costumes da sociedade; chegou a nomear, para este fim, uma comissão dy seis
Cardeais, o que muito alegrou o povo cristão. Os projetos, porém, ficaram sendo letra morta, pois
Alexandre carecia da força de vontade necessária a tal tarefa.
A filha Lucrécia Borja, predileta do pai, era graciosa e meiga. Em torno dela cometeram-se
gravíssimos crimes, que lhe foram atribuídos, como se fosse uma maquinadora de assassínios. Na
verdade, Lucrécia cedeu aos costumes depravados do seu tempo, mas manteve-se melhor do que a
descreve a sua fama. Casou-se três vezes; o primeiro matrimônio foi dissolvido por não ter sido
consumado, o segundo acabou com o assassinato do marido; o terceiro foi feliz; Lucrécia tornou-se
então esposa e cristã fiel; morreu em 1519, filiada à Ordem Terceira de S. Francisco, amada peos
pobres, louvada pelos artistas; com seus próprios meios fundou um convento para jovens da alta
nobreza.
Papel especialmente angustioso na vida de Alexandre VI toca a César Borja, seu filho mais
velho, cheio de dotes naturais e força de vontade associados à ambição e à imoralidade. Pai e filho
nutriam o plano de criar um grande reino na Itália Central, plano que ameaçava o Estado Pontifício em
favor da família Borja. César começou a obra planejada cometendo assassínios e movendo a guerra,
que era financiada pelo dinheiro da Santa Sé. O plano estava para se tornar realidade quando
Alexandre VI morreu aos 18/08/1503, não envenenado, mas vítima de malária perniciosa; expirou
após ter-se confessado e haver recebido a Comunhão. A morte de Alexandre VI pôs termo ao sonho
de César Borja, bem como a um pontificado calamitoso para a Igreja.
Ainda é preciso mencionar a figura do frade dominicano Girolamo Savonarola O.P., que desde
1491 foi Prior do convento de S. Marcos em Florença; era um dos maiores pregadores de sua época.
Postulava com a energia de um profeta do Antigo Testamento a reforma da disciplina da Igreja;
conseguiu a melhora de costumes em Florença. Mas perturbava os planos e interesses de Alexandre
VI, que acabou por excomungá-lo. Savonarola declarou a excomunhão inválida e apelou para um
Concílio Ecumênico contra o Papa. O povo, porém, depois de apoiar Savonarola, voltou-se contra ele,
que finalmente foi condenado a morte pela própria gente de Florença.
Deve-se fazer referência ainda à arbitragem de Alexandre VI entre Portugal e Espanha: por Bula
de 1493 o Papa atribuía à Espanha as terras descobertas ou ainda por descobrir, situadas a Oeste de
um meridiano imaginário fixado a cem léguas das ilhas de Cabo Verde e Açores. Portugal sentiu-se
prejudicado, pois desta forma a América passaria a pertencer à Espanha, e assim procurou reformular
as disposições da Bula — o que foi feito pelo Tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal.
Em suma, não se pode justificar o procedimento deste Papa. Ao examiná-lo, o estudioso toma
consciência, mais uma vez, de que não são os homens que, em última análise, governam a Igreja, mas
é o próprio Deus, Alexandre VI não publicou uma só lei que deturpasse a disciplina da Igreja,
nenhuma definição que servisse para fundamentar as suas desordens morais. O ouro de Deus na Igreja
passa incontaminado aos homens, mesmo quando entregue por mãos sujas e indignas.
57
Para Juan Borja, duque de Gandia, foi criado o ducado de Benevento em 1497, composto de partes do Estado Pontifício;
Juan, porém, foi assassinado numa saída noturna, cinco semanas após investido, talvez por seu irmão César Borja.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 114
cristãos esperavam; a renovação da Igreja pela eliminação dos abusos, sem alteração da fé e da
constituição da Igreja; veio a ser uma revolução eclesiástica e um cisma. — Estudemos os fatos.
Lição 2: As indulgências
Lutero era, pois, professor de S. Escritura em Wittenberg, quando surgiu a questão das
indulgências.
Antes de continuar a história do frade agostiniano, compete-nos explicar o que sejam
indulgências. Observemos o seguinte:
1) Todo pecado acarreta consigo a necessidade da expiação depois de ter sido perdoado. Com
outras palavras:
O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é a violação de uma ordem de coisas
estabelecida pelo Criador; é sempre um dano infligido tanto ao indivíduo que peca, como à
comunidade dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissão, do pecado, não somente é
necessário que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas requer-se também que repare a ordem
violada. Assim, por analogia, quem rouba um relógio violando a ordem da propriedade, não precisa
apenas de pedir perdão a quem foi prejudicado, mas deve também restaurar a ordem ou devolver o
relógio ao respectivo proprietário. A reparação da ordem há de ser sempre dolorosa, pois significa
mortificação do velho homem pecador ou das concupiscências desregradas que o pecado só faz
aguçar.
A própria S. Escritura atesta tal doutrina. Por exemplo, Davi recebeu o perdão dos pecados de
homicídio e adultério, mas teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12,13s).
115 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Moisés e Aarão foram privados de entrar na Terra prometida, embora a sua culpa lhes tenha sido
perdoada (cf. Nm 20,12; 27,12-14; Dt 34,4s). Ver também Tb 4,11s; Dn 4,24; Jl 2,12s.
2) Consciente disto, a Igreja antiga ministrava a reconciliação dos pecadores em duas fases. Sim,
o pecador confessava seus pecados a um ministro de Deus. Este não o absolvia imediatamente (cf. Jo
20,20-22), mas impunha-lhe uma satisfação adequada, correspondente à gravidade das suas faltas; este
exercício de penitência devia proporcionar ao cristão o domínio sobre si, a vitória sobre as paixões e a
liberdade interior. A satisfação assim imposta, para ser realmente medicinal, costumava ser penosa:
assim, por exemplo, uma quaresma de Jejum, em que o penitente se vestia de peles de animais (para
praticar tal penitência, o cristão tinha que excitar dentro de si um vivo amor a Deus e um profundo
horror do pecado). Somente depois de terminar a respectiva satisfação, era o pecador absolvido.
Julgava-se então que estava isento não apenas da culpa, mas também de toda expiação devida aos seus
pecados; estaria livre não só da culpa do pecado, mas também das raízes e das conseqüências deste.
Esta prática penitencial conservou-se até fins do século VI. Tornou-se, porém, insustentável,
pois exigia especiais condições de saúde e acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida
de quem a ela se submetera. Eis por que aos poucos foi sendo modificada.
3) No século IX a Igreja Julgou oportuno substituir certas obras penitenciais muito rigorosas por
outras mais brandas; a estas a Igreja associava os méritos satisfatórios de Cristo, num gesto de
indulgência. Tais obras foram chamadas "obras indulgenciadas", porque enriquecidas de indulgências:
podiam ser assim indulgenciadas orações, esmolas, peregrinações. . .
Está claro, porém, que estas obras mais brandas enriquecidas pelos méritos de Cristo só tinham
valor satisfatório se fossem praticadas com as disposições interiores que animavam os penitentes da
Igreja antiga a prestar uma quarentena de jejum ou outras obras rigorosas. Não bastava, pois, rezar
uma oração ou dar uma esmola para se libertar das conseqüências do pecado, mas era preciso fazê-lo
com o amor a Deus e o repúdio ao pecado que encorajavam os penitentes da Igreja Antiga. Vê-se,
pois, que era (e é) muito difícil ganhar indulgências.
Mais: ninguém podia (ou pode) ganhar indulgência sem que tivesse (ou tenha) anteriormente
confessado as suas faltas e houvesse (ou haja) recebido o perdão das mesmas. A instituição das
indulgências não tinha em vista apagar os pecados, mas contribuir (mediante a provocação de um ato
de grande amor) para eliminar as conseqüências ou os resquícios do pecado.
Por conseguinte, a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados nem vendeu indulgências. O
perdão dos pecados sempre foi pré-requisito para as indulgências. Quando a Igreja indulgenciava a
prática de esmolas, não tencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas
estimular a caridade ou as disposições íntimas do cristão para que conseguisse libertar-se das escórias
remanescentes do pecado. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos
dos séculos XV e XVI usaram de -linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgências. Foi o
que deu ocasião aos protestos de Lutero e dos reformadores.
4) As indulgências podem ser adquiridas também em favor das almas do purgatório. Estas
precisam de se libertar das escórias dos pecados com as quais deixaram a vida presente; para tanto,
necessitam da graça de Deus, que os fiéis viventes neste mundo podem solicitar mediante a prática de
boas obras indulgenciadas. Todos os fiéis que foram enxertados em Cristo pelo Batismo e vivem em
plena comunhão com a Igreja, constituem uma grande família, solidária e unida em si pela caridade.
Em conseqüência, os méritos de uns redundam em benefício de outros; os atos satisfatórios que as
almas retas prestam a Deus, podem auxiliar a outros cristãos, que precisem de expiar, seja aqui na
terra, seja no purgatório. Em outros termos: pelas nossas preces, pelas nossas boas obras e pelos
nossos atos de mortificação, unidos aos méritos de Cristo, podemos ser úteis não só a nós mesmos,
mas também aos nossos irmãos, que devem prestar satisfação a Deus por seus pecados. É esta
solidariedade que se chama "Comunhão dos Santos". Esta expressão designa a comunhão de bens
espirituais ou de coisas santas segundo a qual vivem os filhos da Igreja. "Uma alma que se eleva (que
se enriquece de Deus), eleva o mundo inteiro" (Elizabeth Leseur).
Eis como se deve entender a prática das indulgências, até hoje recomendada pela S. Igreja, mas
freqüentemente mal entendida.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 116
submetesse dentro de sessenta dias. Em dezembro desse mesmo ano o frade queimou a Bula e um
livro de Direito Eclesiástico em praça pública. Em resposta, o Papa excomungou formalmente Lutero
aos 03/01/1521; este gesto do Papa exigia tomada de posição clara da parte dos seguidores do
reformador.
Lutero interpelava calorosamente os seus compatriotas alemães, principalmente mediante três
obras que se tornaram clássicas: O Manifesto à Nobreza Alemã, no qual exortava os príncipes a
assumir a reforma da Cristandade, constituindo uma Igreja alemã independente; o Cativeiro da
Babilônia, que considerava os sacramentos, regulamentados pela Igreja, como um cativeiro; só
ficariam o Batismo e a Ceia, operando pela fé do sujeito; Da Liberdade Cristã, que concebe a Igreja
como uma comunidade invisível, da qual só fazem parte os que vivem da verdadeira fé.
Em 1521 deu-se a Dieta58 de Worms, à qual Lutero compareceu na presença do Imperador
Carlos V; recusou retratar-se; pelo que foi condenado à morte. Todavia Frederico o Sábio escondeu o
frade rebelde no Castelo de Wartburg, onde ficou dez meses (maio 1521 — março 1522) sob o
pseudônimo de "Cavaleiro Jorge"; começou então a tradução da Bíblia para o alemão a partir dos
originais, obra de linguagem magistral, traço de união entre os partidários do reformador; só foi
completada em 1534. No castelo de Wartburg Lutero sofreu crises nervosas assaz violentas, que ele
considerava como assaltos diabólicos.
Enquanto Lutero se conservava oculto em Wartburg, a agitação crescia em Wittenberg; os
clérigos casavam se; a Missa era substituída pelo rito da Ceia do Senhor, em que se recebiam pão e
vinho sem confissão prévia nem jejum eucarístico; as imagens dos santos eram removidas. . , Mais:
apareceu a corrente dos anabatistas, que interpretavam ousadamente o pensamento de Lutero, negando
o batismo às crianças (já que o sacramento só é eficaz pela fé de quem o recebe) e batizando de novo
os adultos; preconizavam uma "Igreja de Santos", cujos membros estariam em contato direto com o
Espírito Santo. Posto a par da confusão, Lutero deixou seu esconderijo e voltou a Wittenberg, indo
morar no seu antigo convento, já esvaziado de frades e doado por Frederico o Sábio a Lutero como
residência; ali o reformador em 1525 casou-se com Catarina de Bora, monja cisterciense apóstata, e
teve seus filhos.
Lutero conseguiu, com o apoio do braço secular, restabelecer a ordem em Wittenberg. Mas teve
que enfrentar a revolta dos camponeses (1524-25), que, esmagados por tributos, valiam-se da
proclamação de liberdade feita por Lutero para reivindicar sua liberdade frente aos senhores civis e
eclesiásticos. Thomas Münzer, chefe dos anabatistas, incitava os camponeses à revolta. Lutero hesitou
diante dessa insurreição, mas acabou optando pela sufocação violenta dos revoltosos; Thomas Münzer
foi decapitado. Esta atitude fez que Lutero perdesse parte da sua popularidade; a sua nova "Igreja" não
seria de povo e comunidade, mas de príncipes e regiões. Os anabatistas mereceriam a adesão das
classes mais humildes (são os Batistas de nossos tempos).
A situação religiosa e política fervilhava cada vez mais. Muitas vozes de reis, príncipes e nobres
se levantaram, ora para defender, ora para combater Lutero. Muitos apregoaram a convocação de um
Concílio Ecumênico.
Em 1529 realizou-se uma Dieta em Espira (Alemanha): determinou que não se fariam mudanças
religiosas nos territórios do país, de modo que ficaria estabilizada a onda de reforma luterana até se
reunir um Concílio Ecumênico. Esta resolução favorecia, de certo modo, os católicos, pois os avanços
do luteranismo eram contínuos. Em conseqüência, seis príncipes e quatorze cidades imperiais, aos
19/04/1529, protestaram contra a decisão. Este gesto lhes valeu o nome de "protestantes" em lugar da
expressão viri boni (ou crentes) que eles davam a si mesmos.
Os últimos anos de vida de Lutero foram angustiosos para o reformador por diversos motivos: os
aborrecimentos e as decepções se somavam aos achaques corporais; via que se alastravam a
indisciplina e a procura de interesses particulares nos territórios reformados; os príncipes dominavam
as questões religiosas. Lutero depositava suas esperanças num próximo fim de mundo. Em 1543
escreveu ansioso: "Vinde, Senhor Jesus, vinde,.. os males ultrapassaram a medida. é preciso que tudo
estoure. Amém". — Finalmente morreu aos 18/02/1546 em sua cidade natal de Eisleben.
58
Assembléia política.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 118
Após ter jantado pela última vez, diz uma narração duvidosa, Lutero com giz escreveu o verso
que outrora compusera em Schmalkalde durante grave enfermidade: "Pestis eram vivus; moriens ero
mors tua, Papa! - Papa, minha vida era a tua peste; minha morte será a tua morte!". Em nossos dias a
animosidade que Lutero nutriu para com o Papado e a Igreja, muito se atenuou; têm-se realizado
frutuosas conversações teológicas entre católicos e luteranos, que vêm mais e mais aproximando os
irmãos entre si.
Lição 3: O Calvinismo
Em 1532 apareceu em Genebra (Suíça Francesa) o pregador francês Guilherme Farei, que
pregava ideias semelhantes às de Lutero e deixou a população local em grande agitação. Preparava
assim o caminho para outro francês: João Calvino (1509-64).
Calvino estudou Direito na França antes de se domiciliar em Genebra. Era sistemático,
organizador, mais consciente do alcance de sua obra do que Lutero, Possuía enorme capacidade de
trabalho e sabia ser coerente até o extremo, não se deixando abater por dificuldade alguma; isto o
tornou insensível e duro em relação aos seus semelhantes.
Em 1527/8, Calvino, educado na religião católica, passou pela conversão às novas ideias; tendo-
as professado, caiu sob a perseguição antiprotestante movida pelo Governo francês. Emigrou então
para Basileia (Suíça), onde escreveu sua obra principal: Religionis Christianae institutio, que se
opunha fortemente à doutrina católica relativa aos dogmas, aos sacramentos e ao culto. De Basileia,
querendo voltar à França para breve visita, passou por Genebra, onde foi detido por Farei, que lhe
pediu servisse à igreja local convulsionada. Tendo acedido, Calvino instaurou em Genebra severa
disciplina, cerceando a liberdade de consciência e de conduta dos cidadãos.
A oposição em 1538 conseguiu expulsar de Genebra Calvino e Farei; mas, após três anos de
ausência, voltou aquele, gloriosamente chamado por representantes da cidade. Passou então a
desenvolver atividade cada vez mais intensa como teólogo e organizador.
119 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
alegando que fora nulo, porque os nubentes eram cunhados em primeiro grau. Tal pretexto era falso,
porque o Papa Júlio II dera a Henrique explícita dispensa para se casar com Catarina; somente após
dezoito anos de vida conjugal, Henrique trazia à tona esse "impedimento". A corte real favorecia os
anseios do rei. A rainha Catarina apelava para a Santa Sé, pedindo justiça. O Papa Clemente VII
resolveu entregar o exame do processo a um tribunal de Roma (julho 1529).
Em janeiro de 1531 o Papa proibiu a Henrique novas núpcias enquanto a causa estivesse sob
julgamento. O rei, vendo que pouca esperança lhe restava, quis obter a dissolução do seu casamento
da parte da hierarquia da Inglaterra; Thomas Cromwell, obscuro advogado, que adquirira influência
sobre o rei, aconselhava a Henrique que, a exemplo dos príncipes alemães, se separasse de Roma. Em
fevereiro de 1531 uma assembléia do clero, instigada pelo rei, proclamou Henrique "Chefe Supremo
da Igreja da Inglaterra", com a cláusula "na medida em que a Lei de Cristo o permite". Em 1532 o rei
elevou à sé arquiepiscopal de Cantuária Thomas Cranmer, que numa viagem à Alemanha tinha
entrado em contato com o luteranismo; Cranmer resolveu declarar nulo o casamento de Henrique
VIII, de modo que este se casou em 1533 com Ana Boleyn, O Papa respondeu excomungando o
monarca e finalmente declarando válido o casamento com Catarina. O cisma estava às portas: em
novembro de 1534, o Parlamento inglês votou o "Ato de Supremacia", que proclamava ser o rei o
Único e Supremo Chefe da Igreja na Inglaterra; os súditos que não reconhecessem este Ato, seriam
punidos com a morte. A grande maioria do clero submeteu-se, talvez porque acostumada ao conceito
de Igreja Nacional e bastante mundanizada. Resistiram, porém, até a morte vários leigos e clérigos,
dos quais se destacam o leigo Tomás Moro e o bispo John Fisher. Muitos mosteiros foram fechados,
relíquias e imagens foram destruídas.
Apesar do cisma e das pressões luteranas, o rei queria conservar íntegra a fé católica na
Inglaterra; combatia tanto a adesão ao Papa quanto as inovações religiosas do continente.
Este estado de coisas permaneceu até a morte de Henrique VIII.
II, da Espanha, armou uma frota formidável (a Armada) com o fim de ir estabelecer na Inglaterra o
domínio espanhol e a fé católica; mas a expedição foi destroçada por uma tempestade. Isto só fez
aumentar a violência de Elisabete, de tal modo que, em conseqüência de execuções e apostasias, os
católicos se viram reduzidos a minoria insignificante.
As leis repressivas anticatólicas foram sendo abrandadas nos dois últimos séculos. Mas
conservaram seu rigor no Estado de Ulster, que equivale a 20% do território da ilha da Irlanda. Em
1921, 80% da ilha tornou-se independente da Inglaterra. A região de Ulster, porém, com sua capital
em Belfast, é governada por um Partido protestante dito "de Orange", que mantém até hoje a antiga
legislação discriminatória em matéria de religião, favorecendo a população protestante, com prejuízo
de 500.000 católicos lá residentes. É o que explica os constantes choques entre católicos e protestantes
na Irlanda do Norte.
Ainda é de notar que o Ato de Uniformidade da rainha Elisabete, prescrevendo uma Liturgia
ainda apegada às tradições, provocou a oposição de protestantes impregnados do severo espírito do
calvinismo: queriam abolir o canto eclesiástico, o som do órgão, o sinal da cruz, os paramentos
sacerdotais, os dias festivos. . . Já que desejavam uma Igreja "absolutamente pura" e "conforme as
Escrituras", independente do Estado e isenta de todo "fermento papista", receberam o predicado de
"puritanos". As suas pretensões foram repelidas pelo Governo inglês, de modo que sofreram
perseguições. Constituíram a Low Church, Baixa Igreja, em oposição à High Church, Alta Igreja,
oficial. Desde 1567 começaram a fundar Igrejas por conta própria, entre as quais se destaca o
Congregacionalismo (não há hierarquia, mas a congregação se governa mediante seus representantes).
Esses grupos de "não conformistas" (dissenters) eram tenazes, resistindo às repressões empreendidas
por Elisabete I e Jaime I. Em conseqüência, mais de 20.000 puritanos, entre os quais os 102 "Pais
peregrinos" de 1620 embarcados na nave Mayflower, abandonaram a pátria-mãe e foram fundar suas
colônias na Nova Inglaterra ou América do Norte; aí sofreram intolerância durante algum tempo, mas
foram posteriormente aceitos. São as denominações protestantes domiciliadas ou fundadas nos
Estados Unidos que enviam pregadores para o Brasil, com traços mais ferrenhos e proselitistas do que
as denominações clássicas do protestantismo europeu (luterano, anglicano).
incondicionalmente à hierarquia e ao Papado. Só aos poucos este foi entrando na renovação ativa do
século XVI, afetado como estava pelo espírito renascentista e mundano. Até 1530 aproximadamente,
Roma vivia em quase inconsciência dos males que afetavam a Igreja; Leão X, por exemplo,
considerava a tempestade luterana como uma querela entre monges, e, dessas querelas de monges,
estava acostumado a ver muitas peças no seu teatro de Roma. Somente a partir de Paulo V (1555-9), o
mais severo entre os severos, o Papado se tornou o esteio da renovação da Igreja. Esta teria por Magna
Carta os documentos do Concílio de Trento e como força executora a Companhia de Jesus.
As origens da renovação católica estão na Itália; o terreno, porém, mais fecundo em frutos para a
Igreja Universal foi a Espanha, que produziu não somente santos, mas teólogos e doutores, que muito
trabalharam pelo bom êxito do Concílio de Trento.
protestantes na Alemanha. O Papa, ao contrário, queria começar pelas questões dogmáticas; ficou
finalmente determinado que os dois grandes temas seriam tratados simultaneamente. - Os decretos
dogmáticos do Concílio, em suas três sessões, tiveram sempre em mira o protestantismo, que
afirmava: 1) a unicidade da fonte de fé (a S. Escritura); 2) um conceito espiritualista (e, por isto,
subjetivo) de Igreja.
Muito importante foi a sessão de abril de 1546; definiu, mais uma vez, o cânon da S. Escritura
(que desde 397, Concílio de Hipona, fora definido nos mesmos termos); afirmou que as tradições
apostólicas (ou a Palavra de Deus oral que não foi consignada nas Escrituras) devem ser acolhidas
com o mesmo respeito que as Escrituras; declarou autêntica a tradução latina da Bíblia dita "Vulgata"
(deveria ser considerada isenta de erros teológicos em meio às muitas traduções tendenciosas da
época). Em janeiro e março de 1547 foi abordada a questão dos sacramentos: estes não são meros ritos
simbólicos, mas são canais transmissores da graça, graça que não é mero revestimento da alma do
pecador, mas que opera uma transformação (Justificação) intrínseca. A vontade humana não é
meramente passiva nem escrava do pecado, mas é chamada a colaborar com a graça de Deus. A Missa
é a perpetuação do sacrifício da Cruz sob forma sacramental.
Os conciliares também decretaram medidas disciplinares; ficava proibido o acúmulo de mais de
um benefício (cargo) eclesiástico nas mãos de um só titular; foi abolido o ofício de coletor de esmolas
(que pregava as indulgências!); tornou-se obrigatório o casamento sacramental dentro de moldes bem
definidos e na presença do pároco ou do vigário. Foram estipuladas normas rígidas para a formação do
clero nos Seminários.
Já que uma febre contagiosa se propagou em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha.
O Imperador, porém, opôs-se ao traslado de modo que, para evitar maiores males, Paulo III resolveu
suspender o Concílio.
3. 2. Segundo período (1551-52)
Tendo morrido Paulo III em 1549, teve por sucessor Júlio III (1550-55), que acedeu aos desejos,
do Imperador, de continuar o Concílio em Trento, à revelia dos desejos da França. - Reaberto o
Concílio em 1o/05/51, promulgou longa exposição sobre a Eucaristia (presença real,
transubstanciação, culto...). Também tratou dos sacramentos da Penitência e da Unção dos Enfermos.
Os franceses não tomaram parte nesta sessão por motivos políticos. Todavia apareceram legados
dos príncipes alemães protestantes, que cederam ao convite do Imperador Carlos V, desde outubro de
1551 até março de 1552. Apesar da boa vontade manifestada pelos católicos, as negociações com eles
ficaram frustradas, porque exigiam a ab-rogação dos decretos até então promulgados e a realização de
novos estudos sobre os respectivos assuntos; ainda queriam a renovação dos decretos dos Concílios de
Constança e -Basileia sobre o Conciliarismo; por fim, pleiteavam que os membros do Concílio fossem
desligados do juramento de obediência ao Papa.
Aconteceu que, quando os legados protestantes deixaram Trento, as tropas luteranas na
Alemanha faziam uma perigosa incursão no Sul do país - o que levou os conciliares, aos 28/05/1552, a
decretar a suspensão do Concílio por dois anos..., dois anos que, na realidade, durariam quase um
decênio.
3. 3. Terceiro período (1562-1563)
Pio IV reabriu o Concílio em Trento, apesar da França e da Alemanha, que queriam novo
Concílio em outro lugar, com total abandono das definições e resoluções até então promulgadas. As
discussões neste terceiro período foram muito vivas, pois os príncipes católicos alemães promulgaram
a Comunhão sob as duas espécies e a permissão de casamento para o clero. Esta última proposição foi
enérgica e constantemente rejeitada pelos conciliares, ao passo que a primeira foi entregue ao Juízo do
Sumo Pontífice; em 1564 Pio IV resolveu permiti-la sob certas condições em algumas dioceses da
Alemanha; mas em breve caiu em desuso.
O Concílio se encerrou aos 3 e 4/12/1563, Pio IV confirmou os seus decretos pela Bula
Benedictus Deus. Atendendo a um pedido do Concílio, publicou um index de Livros Proibidos e uma
Profissão de Fé tridentina.
O Concílio de Trento durou mais que todos os outros e foi o que mais dificuldades encontrou
para se realizar. Mas nenhum exerceu influxo tão profundo e duradouro sobre a fé e a disciplina da
Igreja. Verdade é que a unidade de fé não foi restabelecida, mas a doutrina católica foi elucidada e
125 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
consolidada em todos os pontos ameaçados. O programa de reforma tridentino foi a base de renovação
do clero e do povo católico, embora a execução desses decretos tenha sido, por vezes, lenta e
controvertida; Concílio comunicou nova união e confiança aos católicos abalados pelos acontecimento
dos últimos decênios.
O Concílio de Trento foi também o mais papal de todos os Concílios antes do Vaticano I (1870);
preparou assim a via para a definição do primado do Romano Pontifico, definição que no século XVI
seria prematura, pois ainda eram fortes as tendências a formar Igrejas nacionais. O Concilio confiou,
outrossim, ao Papa o desejo de que promovesse a publicação de um novo Catecismo, de um novo
Missal e de novo livro de Liturgia das Horas (o que, debato, foi executado pelos sucessores de Pio
IV).
Numa palavra, pode-se dizer que o Concílio de Trento foi a auto-afirmação da Igreja como
sociedade universal de salvação contra as diversas formas de individualismo e subjetivismo que se
faziam sentir fortemente no limiar da Idade Moderna.
Verdade é que em nossos dias o Concílio de Trento nem sempre é aplaudido. Opõem-lhe o
Concílio do Vaticano II, como se houvesse antítese entre um e outro. Ora o Vaticano II se refere
freqüentemente ao Tridentino e nele se apóia, trazendo para os nossos tempos as verdades que o
Concílio e Trento definiu segundo a linguagem e as exigências do século XVI.
59
Sobre a Inquisição em Portugal e no Brasil, ver módulo 55.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 126
Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso
processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza,
de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito
anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao
Concílio Ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do séc. XVI.
Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constituiu outra
figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente
entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença
prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O inquisidor-Mor
tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a doze
horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou, declarando:
"O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo; aceito agora os agradecimentos do
tribunal; protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra
qualquer tentativa de desobediência" (cf. Desdevises du Dezart, L’Espagnede l’Ancien Regime. La
Société 101s).
A história atesta, outrossim, como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam a
defender os acusados frente à dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se
nitidamente da Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.
Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de
absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote poderia tentar
subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de
sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos
Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos
senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546, Paulo III
declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades
eclesiásticas. Aos 18 de Janeiro de 1556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissão
sacramental os mouriscos.
Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes
mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que se deu
realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I
interveio no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808.
O rei Fernando Vil, porém, restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam
colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do absolutismo de
Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cadiz foi
a extinção definitiva da Inquisição em 1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois
punha termo a uma situação humilhante para a Sta. Igreja.
Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de
Junho de 1494).
Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas
pelos cronistas são tão pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto.
Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da intolerância religiosa,
homem de mãos sanguinolentas... Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa
maneira de conceituá-lo; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam que este
Religioso foi movido por sincero amor à verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida
pelos falsos cristãos; daí o zelo extraordinário com que procedeu. A rela intenção de Torquemada ter-
se-á traduzido de maneira pouco feliz.
De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade
dominicano: em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a proposta de se impor aos
muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois
queria conservar o clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser extorquida pela
violência; por conseguinte, a Inquisição deveria restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e
somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Igreja Católica. Como se
vê, Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto. Exerceu suas
funções até a morte, aos 16/09/1498.
eclesiásticos; estes em resposta delicada lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que
julgasse dever retocar!...
Estas reações são sintomáticas, pois revelam bem um período de transição e incertezas em que
os pensadores (tanto os tradicionais como os invasores) ainda não vêem plenamente o significado de
valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte
dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar à justa assimilação dos elementos
em causa ou à incorporação dos elementos novos na síntese antiga.
Ora foi precisamente num ambiente de certa reação contra a fé, reação encabeçada por uma
ciência aparente, que viveu Galileo Galilei (1564-1642).
errônea? Uma opinião que não diz respeito à salvação da alma. poderá ser herética?" (Favaro, Opere
V 279-288).
Por mais sábias que fossem as ponderações de Galileu, a muitos católicos pareciam naquela
época inovações inspiradas pelo princípio do "livre exame da Bíblia" propugnado por Lutero. Foi o
que deu novo aspecto ao curso da história, motivando a intervenção do Santo Ofício: uma comissão de
teólogos tendo examinado as teses do heliocentrismo de Copérnico, acabou por dar parecer contrário
às mesmas aos 24 de fevereiro de 1616; em conseqüência, o Santo Ofício comunicou a Galileu a
ordem de "abandonar por inteiro a opinião que pretende que o sol é o centro do mundo e imóvel, e que
a terra se move", assim como lhe proibiu "sustentasse essa opinião como quer que fosse, a ensinasse
ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena de ser processado pelo S. Ofício" (Favaro,
Galilei e I’Inquisizione 62).
O astrônomo aceitou docilmente a intimação. Em conseqüência, aos 5 de março de 1616 a
Congregação do Índice condenou as obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até que fossem
corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de Galileu. O processo do S. Ofício fora secreto e o
sábio astrônomo voltou para Florença. a fim de continuar seus estudos, plenamente prestigiado pela
Santa Sé.
Terminou assim a primeira fase da história de Galileu.
Compreende-se, porém, que, continuando a estudar astronomia, o famoso autor não podia deixar
de se envolver no novo sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se pronunciar sobre o
assunto, passou a defender em termos cautelosos o heliocentrismo; em 1623 chegava a propugná-lo no
escrito II Saggiatore; este opúsculo, ofertado ao novo Papa, Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu
(ambos eram poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontífice. O Cardeal Hohenzollern, por essa
ocasião, pediu mesmo a Sua Santidade que se pronunciasse em favor do heliocentrismo; Urbano VIII
respondeu que esta doutrina Jamais fora condenada como herética e que pessoalmente ele nunca a
mandaria condenar, embora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de importância, pois
sugere que o decreto da Congregação do índice emanado em 1616 era tido como decreto meramente
disciplinar, não como decisão doutrinária).
Muito estimulado pelos sucessos, Galileu pôs-se a escrever nova obrei em favor do
copernicismo: o célebre Diálogo dei due Massimi Sistemi. Tendo-a submetido à censura eclesiástica,
esta lhe concedeu o Imprimatur com a condição de que propusesse o heliocentrismo não como tese
certa (os argumentos apresentados ainda não eram tais que fornecessem certeza), mas como hipótese.
Galileu, porém, não o fé; em 1632 publicou o livro como estava, incluindo, além do mais, a aprovação
dos censores de Roma e Florença!
Este gesto causou grande agitação em Roma; o sábio deixava naturalmente de gozar da
confiança da autoridade eclesiástica.
Chamado perante o Santo Ofício, Galileu respondeu insistentemente que em consciência jamais
admitira como certo e definitivo o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia apurar, o processo
foi encerrado em junho de 1633: o astrônomo teve então que abjurar publicamente o heliocentrismo e
foi condenado a prisão branda, onde, com alguns amigos, continuou a se dedicar aos estudos. Morreu
finalmente em Florença aos 8 de janeiro de 1642, tendo recebido em seu leito de morte a bênção do
Sumo Pontífice. Galileu, tido como réu, foi tratado de maneira que, à luz da praxe vigente na época,
era notavelmente benigna (foi detido como prisioneiro em palácios de nobres e embaixadores).
sobre as suas noções de astronomia. Ora eis que no início do século XVII, depois de alguns
inovadores, apareceu Galileu, que defendia uma tese de astronomia em aparente contradição com a
Bíblia. Naquela época Galileu só podia apresentar argumentos fracos, ainda sujeitos a discussão
científica; apesar de tudo, não cedia às intimações da autoridade, que lhe pedia que apresentasse as
suas ideias como simples hipóteses. Além disto, Galileu intervinha no terreno da exegese, formulando
princípios para a interpretação da Escritura. Ora esse proceder não podia deixar de suscitar suspeita e
réplica por parte dos homens da Igreja. Quem lê depoimentos de escritores do século XVII mesmo,
pode chegar à conclusão de que, se Galileu tivesse ficado no plano de uma hipótese e não se tivesse
explicitamente envolvido em questões de exegese bíblica, não teria provocado a intervenção do S.
Ofício.
As descobertas da ciência aos poucos deram a ver aos teólogos que a Bíblia não quer ensinar
conhecimentos profanos: passaram então a distinguir e aceitar o que no século XVII parecia
monstruoso, isto é, dois planos que não se contradizem mutuamente, mas não interferem um no outro:
o plano das ciências naturais e o da Bíblia ou da Teologia.
A fim de ilustrar quão difícil devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séculos
XVI/XVII admitir o heliocentrismo, seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do
novo sistema; a estes, assim como aos católicos, foi custoso compreender que a Bíblia não ensina
cosmologia, de modo que durante dois séculos resistiram ao heliocentrismo. Com efeito, Lutero
julgava que as ideias de Copérnico eram ideias de louco, que tornavam confusa a astronomia.
Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e significava a
rebordosa das ciências.
Kepler (1581-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar a sua
terra, o Wurttemberg, por causa de suas ideias copernicianas.
Em 1659, o Superintendente Geral de Wittenberg, Calovius, proclamava altamente que a razão
se deve calar quando a Escritura falou; verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o
último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.
Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Estrasburgo afirmou estar o
sistema de Copérnico em contradição com a Sagrada Escritura.
Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter
defendido o sistema de Copérnico.
Ainda no século XVIII a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1744 o
pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que a teoria do heliocentrismo era abominável
invenção do diabo.
Lição 1: Baianismo
Miguel de Bay ou Baius (+1583) era professor de Exegese Bíblica na Universidade de Louvain
(Bélgica) desde 1552. Desejava reconciliar os reformados com os católicos, valendo-se dos escritos de
S. Agostinho, que Lutero e os reformadores muito tinham respeitado. Relendo S. Agostinho a seu
modo, passou a negar o caráter gratuito e sobrenatural do estado paradisíaco (a graça, os dons do
Espírito Santo e a visão beatífica seriam devidos à natureza humana como tal). Em conseqüência,
afirmava que a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado de Adão, não é mais livre;
nem é capaz de realizar o bem, como também não pode resistir à graça de Deus. Juntamente com
muitos adeptos. Baio teve numerosos adversários, especialmente entre os franciscanos belgas e os
jesuítas; os Padres Lessius S.J. e Hamel S.J. foram por Baio acusados de semipelagianismo, porque
60
Este módulo há de ser estudado em intima conexão com o seguinte (módulo 45).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 132
pareciam enfatizar demais o livre arbítrio do homem. Em 1567 o Papa Pio V, sem citar nome algum,
condenou 79 proposições de Baio e dos seus seguidores, parte como heréticas parte como
escandalosas ou suspeitas; Baio retrucou ao Papa; por isto Gregório XIII em 1579 voltou a condená-
las - o que levou Baio a sujeitar-se em 1580, sem, porém, abraçar as doutrinas de seus adversários
Franciscanos e jesuítas. O assunto não estava encerrado, como passamos a ver:
Entrementes entrou em cena o famoso filósofo e matemático Blaise Pascal. Irmão da monja
Jacqueline, de Port-Royal, agregou-se em 1654 ao grupo dos Solitários, perto de Paris: estes eram
homens austeros, que, mesmo sem votos religiosos, oravam, trabalhavam e se mortificavam,
mantendo o Ofício Divino à noite e períodos de silêncio; hospedavam visitantes que com eles
quisessem passar alguns dias de retiro - o que muito impressionava o público de Paris. Pascal resolveu
dedicar sua atenção aos problemas religiosos que fervilhavam no ambiente; assimilou as doutrinas
apregoadas por Arnauld e seus adeptos, e colocou sua pena mordaz a serviço dos jansenistas contra os
seus adversários, principalmente os jesuítas. Usando o pseudônimo Louis de Montalde, escreveu as
suas famosas "Cartas Provinciais" (1656/7), dirigidas contra a imoralidade da sociedade de Paris e a
Companhia de Jesus, tida como laxista em Moral. As sátiras de Pascal foram traduzidas para outras
línguas e causaram enorme mal à Companhia, que não merecia tal tratamento.
A partir de 1660, o rei Luís XIV da França, por motivos políticos, pôs-se a combater o
jansenismo, o que agravou a situação. Em 1665 apareceu uma Carta Pastoral de quatro bispos
franceses, que recomendavam apenas o silêncio obsequioso61... O Papa Alexandre VII condenou os
quatro bispos e instituiu uma comissão de nove bispos para julgá-los; os quatro prelados protestaram
em nome das "liberdades galicanas", segundo as quais o Papa não tinha o direito de julgar os bispos
do reino,62 Assim o jansenismo e o nacionalismo francês (galicanismo) se associaram no combate a
Roma. Mas, sob o sucessor de Alexandre VII, inesperadamente os quatro bispos assinaram um
formulário de sujeição à Santa Sé; ao mesmo tempo, porém, professaram a sua convicção jansenista
num protocolo que devia ficar secreto (1668), O Papa deu-se por satisfeito com o gesto público dos
quatro prelados e em 1669 concedeu a reconciliação a todos os jansenistas; era a Paz Clementina, que
os rebeldes receberam em atitude de triunfo; o Papa Clemente XI teria anulado os atos de seus
predecessores e aprovado o silêncio obsequioso.
61
Isto é, não se deveria criticar a atitude antijansenista do Papa, mas não seria necessário dar-lhe consentimento interior.
62
Esta atitude tem suas raízes no espírito nacionalista, testemunhado já pela "Pragmática Sanção de Bourges" (1438): ver
módulo 29.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 134
Lição 1: Galicanismo
O absolutismo dos reis da França começou a se afirmar com Filipe IV o Belo (1285-1314); e
manifestou-se fortemente no Exílio de Avinhão e no Grande Cisma do Ocidente (séculos XIV/XV);
cristalizou-se na Pragmática Sanção de Bourges sob Carlos VII em 1438, tendendo sempre a subtrair
ao Papado a Igreja na França e professando implicitamente a teoria conciliarista. Tal estado de coisas
chegou ao seu auge no reinado de Luís XIV (1643-1715), o Rei-Sol, que dizia: "L'Etat c'est moi! -O
Estado sou eu".
Luís XIV era católico, sob a condição de dominar tudo, mesmo a Igreja e o Papado, ao qual ele
não poupou humilhações. Interessa-nos considerar como o nacionalismo eclesiástico se desenvolveu
sob esse rei.
Em 1680 as Religiosas de S. Pedro Fourier (subúrbio de Paris) estavam para eleger
legitimamente a sua Superiora. Luís XIV, porém, quis impor-lhes uma Superiora de outra Ordem. As
Irmãs apelaram para Inocêncio XI, que mandou proceder à eleição, todavia a Bula papal foi rejeitada
pelo Parlamento francês, — O rei resolveu então recorrer a uma assembléia geral do clero francês, que
se reuniu em Paris de 1681 a 1682. Alguns prelados e o rei mostraram-se irritados pela "intromissão"
do Papa na Igreja da França..., intervenção que eles Julgavam contrária a uma concordata de 1516,
firmada com o Papa Leão X. Por isto o bispo Jacques - Bénigne Bossuet (1627-1704), encarregado
135 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
pela assembléia, redigiu quatro artigos que definiam os limites do poder papal na França. Tais artigos,
aprovados pelos presentes, constituem a "Declaração do Clero Galicano", que tomou o vigor de lei:
1) O Papa recebeu de Deus um poder meramente espiritual. Os reis, em questões temporais, não
estão sujeitos, nem direta nem indiretamente, a alguma autoridade eclesiástica; por isto não podem ser
depostos em nome do poder das chaves, nem os seus súditos desligados do juramento de fidelidade.
2) Os decretos do Concílio de Constança que estabeleceram a supremacia do Concílio sobre o
Papa, têm vigor de lei perene.
3) O exercício da autoridade papal é regrado pelos cânones da Igreja Universal, pelos princípios
e os usos que, desde época remota, se observam na Igreja Galicana.
4) Em decisões de fé o Papa tem voz preponderante, mas só irreformável após obter o
consentimento da Igreja inteira.
Bossuet, que redigiu estes artigos, era, de resto, um bispo zeloso, promotor da união de católicos
e protestantes e grande orador sacro. Todavia nutria profunda admiração pelo poder absoluto de Lui's
XIV, que ele apresentava nos seguintes termos:
“Todo poder reside inteiramente na pessoa do rei, não podendo existir outra autoridade além
da sua. Poder tão grande não emana dos homens, mas sim de Deus, que estabeleceu os reis para
governar o mundo em seu nome, os quais a mais ninguém senão a Ele devem prestar contas dos seus
atos. Os súditos devem ao rei obediência e respeito; toda desobediência é grave falta cometida contra
ele.”
Ao tomar conhecimentos da promulgação dos artigos galicanos, o Papa Inocêncio XI protestou,
mas não impôs aos franceses alguma censura eclesiástica para evitar a iminente ruptura de relações.
Aliás, o próprio Luís XIV não queria separar-se da Igreja Católica, pois sabia que isto lhe tiraria muito
do seu prestígio; também as suas convicções religiosas eram assaz firmes para não lhe permitir que
fosse tão longe no seu absolutismo. Diz-se mesmo que declarou a galicanos que impeliam a novas
violências: "Se eu quisesse seguir essas ideias, deveria pôr o turbante sobre a cabeça (isto é, eu me
faria turco muçulmano)". Em resposta ao rei, o Papa Inocêncio XI recusou confirmar dois candidatos
a bispo que o rei lhe apresentou e que haviam participado da assembléia galicana. O rei declarou que
isto era uma violação da Concordata e proibiu aos bispos que ele nomeava, fossem buscar a sua Bula
de confirmação em Roma. A conseqüência deste litígio é que, durante seis anos, os titulares de trinta e
cinco dioceses francesas não possuíram a ordenação episcopal (ou não eram bispos). Ainda que o rei
nomeasse bispos, somente o Papa podia autorizar a ordenação episcopal desses candidatos.
O Jansenismo, suscitando atitude de indiferença e frieza nos cristãos, criava clima próprio ao
Galicanismo, como também o Galicanismo favoreceu o Jansenismo, pois ambos lutavam contra
Roma.
Lição 2: Febronianismo
Da França o Galicanismo passou para a Alemanha, onde Lutero tinha denunciado os vexames da
nação alemã, queixosa das intervenções de Roma na nomeação de prelados, no arrecadamento de
taxas, no cerceamento de liberdades, das quais gozavam a França e a Espanha.
No século XVIII o descontentamento se fez ouvir de novo modo. Um dos principais
transmissores dos erros franceses foi um professor de Direito Canônico em Louvain, Bernardo van
Espen (t 1728), que por seus escritos e discípulos exerceu grande influxo na Alemanha; as suas obras
foram postas repetidas vezes no index a partir de 1704. Propagava entre os prelados alemães uma
onda de episcopalismo, tendência que queria restringir, em favor dos bispos, os direitos do Papa e de
seu representante, o Núncio. Essa onde era fomentada por uma antipatia contra a Cúria Romana
suscitada pela Concordata de Viena (1448); ver módulo 28. As ideias de van Espen foram
desenvolvidas na Alemanha por um discípulo deste mestre em Louvain, doutor em Direito Canônico e
bispo auxiliar de Tréviris: João Nicolau de Hontheim (1701-1790). Empreendeu estudar a situação da
Igreja na Alemanha do ponto de vista jurídico. Como fruto de suas reflexões, publicou em 1763.
"Justini Febronii de Statu Ecclesiae et Legitima Potestate Romani Pontificis liber singularis ad
reuniendos dissidentes in religione christiana compositus. — Livro singular de Justino Febrônio a
respeito do estado da Igreja e do legítimo poder do Pontífice Romano, redigido para reunir os cristãos
dissidentes na religião". O autor usou de pseudônimo: Justina era o nome de sua sobrinha, que no
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 136
mosteiro era chamada Febrônia. Propunha os princípios galicanos de 1682 reforçados por teses de
canonistas de Louvain, como se pode ver a seguir.
Para restabelecer a unidade entre os cristãos, dizia Febrônio, é preciso reproduzir a constituição
da Igreja nascente. Isto implica restituir aos bispos e aos Concílios os seus direitos e limitar os poderes
do Papa. Este não é monarca absoluto nem infalível. O poder na Igreja toca, primeiramente, ao
conjunto dos bispos ou ao Concílio Ecumênico. As decisões papais só têm vigor quando aprovadas
pela Igreja inteira e introduzidas em cada uma das dioceses pelo respectivo bispo. Ao sucessor de
Pedro, portanto, só compete um primado de honra em relação aos outros bispos. Os únicos direitos
que lhe assistem, são os direitos necessários ao exercício da sua tarefa, que é: vigiar pela observância
dos cânones, conservar a fé e a unidade da Igreja. Confirmação e deposição de bispos, preenchimento
de cargos, eclesiásticos, concessão de dispensas, reservas são falsificações do Direito devidas a
evolução errônea. Por conseguinte, os bispos deveriam arrebatar para si essas funções. Como meios
aptos para obter a emancipação dos bispos eram recomendados: propaganda no grande público,
convocação de Concilio Ecumênico livre. Sínodos provinciais, união dos bispos com os príncipes
seculares; a estes tocaria o direito de sancionar ou não as leis do Papa e de receber as apelações em
Tribunal.
A obra de Hontheim se difundiu rapidamente e em várias traduções, provocando grave crise na
Alemanha. Obteve os aplausos dos príncipes civis e dos inimigos da Igreja, principalmente na Áustria,
cujo Imperador José II a aprovou três vezes, as normas de Febrônio foram introduzidas nos manuais
de Direito Eclesiástico.
Clemente XIII pôs o livro no Index e exortou os bispos alemães a combatê-lo - o que só
encontrou execução parcial e hesitante. Em dezembro de 1769 os arcebispos de Tréviris, Mogúncia e
Colônia mandaram elaborar um documento em 31 artigos (Avisamenta) sob a presidência de
Hontheim, que tinha sabor febroniano. Todavia em 1778, depois de haver triunfado, Hontheim,
instado pela Cúria Romana e pelo Arcebispo de Tréviris, declarou que se retratava. Em 1781, porém,
publicou o "Comentário à Retratação", que discretamente manifestava os mesmos princípios de
Febrônio: usando de estilo atormentado e cheio de restrições, Hontheim não queria nem ofender a
verdade nem retratar abertamente uma obra que ele julgava ser a glória de sua carreira.
Poucos anos mais tarde, o febronianismo produziu seus efeitos mais nocivos. Em 1785, Pio VI, a
pedido do príncipe Carlos Teodoro da Baviera, erigiu uma Nunciatura 63 em Munique. Isto muito
inquietou os citados arcebispos de Tréviris, Mogúncia e Colônia, assim como o príncipe-bispo de
Salzburgo, que temiam uma restrição de sua jurisdição. Mediante delegados seus, elaboraram a
"Pontuação de Ems" (1786), que eram 23 artigos de Febronianismo exaltado: exigiam a revogação da
jurisdição dos Núncios, o beneplácito dos bispos para as Bulas papais, além de reformas na liturgia, na
vida conventual e na pastoral em geral. O documento terminava solicitando ao Imperador José II que
dentro de dois anos reunisse um Concílio nacional para abolir os "vexames" da nação alemã.
Em breve evidenciou-se a impossibilidade de executar tais postulados. Quando os arcebispos
citados quiseram autonomamente conceder certas dispensas, opos-se-lhes o Núncio Pacca, de Colônia,
hábil defensor das funções papais, que escreveu uma carta aos párocos; os bispos sufragâneos 64 se
associaram ao Núncio, pois queriam defender seus interesses ameaçados pela preponderância dos
arcebispos. Estes então tiveram que retroceder; ainda pleitearam um acordo a respeito da Nunciatura
em Munique — o que o Papa rejeitou energicamente (1789).
O febronianismo teve sua aplicação concreta mais rigorosa na Áustria sob Maria Teresa a
Católica (1740-1780) e principalmente sob D. José II (1780-90), que Frederico It da Prússia chamava
"Meu Irmão o Sacristão" ou "o Arqui-sacristão do Império Romano". Este monarca teria levado a
Áustria a um cisma, se não o tivesse dissuadido o embaixador espanhol Azara. O Papa Pio VI foi a
Viena para entender-se com o monarca; foi muito aclamado pelas populações durante a viagem; teve
brilhante recepção na corte imperial, mas, após quatro semanas de permanência, teve que regressar
sem ter conseguido demover o monarca de seus propósitos febronianos e de outras medidas drásticas
63
O Núncio é um representante da Santa Sé que, além de exercer as funções de embaixador, está encarregado de
acompanhar, em nome do Santo Padre, a vida da Igreja no país em que está credenciado.
64
O bispo sufragâneo é o que depende de um arcebispo; outrora este laço era rígido, ao passo que hoje é praticamente
nulo.
137 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
(redução do número de Seminários a cinco ou seis, nos quais só ensinariam professores da confiança
do Imperador; supressão das Ordens contemplativas e de conventos de outras Ordens; proibição, aos
bispos, de contato direto com Roma...).
Sobreveio o caso do Paraguai: em 1750, a Espanha cedeu a Portugal, em troca da colônia de San
Sagramento, sete distritos do Paraguai, onde Pombal esperava encontrar minas de ouro. Os 30 mil
índios que habitavam esses distritos eram suspeitos de amizade com os jesuítas; por isto receberam a
ordem de retirar-se; os índios, porém, resistiram; em conseqüência, os jesuítas foram acusados de
fomentar a revolta (falava-se de um "Estado jesuíta" no Paraguai), transportados para a Europa e,
encarcerados. - A pedido do Governo português, Bento XIV nomeou o Cardeal Saldanha, parente de
Pombal, Visitador da Companhia de Jesus em Portugal; Saldanha fez que os Jesuítas fossem
suspensos da pregação e do confessionário por causa de "ilícitos negócios financeiros" (1758). Pouco
depois, o rei D. José era ferido num atentado, e a culpa do crime foi lançada sobre os Jesuítas; em
conseqüência, os bens da Companhia foram confiscados e a própria Companhia foi supressa no reino
e nas colônias (1759). Muitos jesuítas foram encarcerados; outros atirados, sem recursos, ao litoral do
Estado Pontifício; o Pe. Malagrida, de 72 anos, foi queimado vivo em 1761, acusado de traição e
heresia. - Em vão o Papa Clemente XIII elevou a voz em favor dos perseguidos; a sua intervenção só
serviu para que se rompesse por dez anos as relações entre a Santa Sé e Portugal.
Outras nações seguiram o exemplo de Portugal: a França, a Espanha, Nápoles e Sicília. . . A
pressão tornou-se tal que pediram ao Papa Clemente XIII a extinção total da Companhia. O sucessor
deste Pontífice, Clemente XIV (1769-74), franciscano conventual, fez largas concessões às cortes
reais, na esperança de salvar os jesuítas. Isto, porém, só fez aguçar as pressões, que chegavam a
ameaçar de cisma a Igreja. Por isto o Pontífice viu-se obrigado a extinguir a Companhia pelo Breve
Dominus ac Redemptor de 21/07/1773; alegava que a Companhia, caluniada como era, Já não podia
dar os frutos almejados, mas, ao contrário, se tornara causa de constantes cisões e rixas entre os povos.
Enquanto os Governos católicos se regozijavam com a extinção da Companhia, a, Prússia protestante
de Frederico II e a Rússia cismática de Catarina II se opuseram à execução do Breve papal, de modo
que os Jesuítas continuaram a trabalhar nesses dois reinos (na Prússia, ao menos até Frederico
Guilherme II, que em 1776 confiscou os bens da Companhia). Os Jesuítas impunham-se como mestres
e educadores, reconhecidos por soberanos não católicos.
O juízo dos historiadores sobre Clemente XIV reconhece que foi piedoso e irrepreensível em sua
vida particular; tinha tanto receio de cair no nepotismo que nem queria receber em visita o seu
sobrinho pobre que estudava em Roma. De boa consciência extinguiu a Companhia de Jesus, mas foi,
por este gesto, muito difamado e hostilizado; os seus adversários dizem que, após assinar o Breve de
supressão, o Papa caiu desmaiado, tendo exclamado: "A condenação é minha herança; eu o fiz
forçado". Dizem também que o Papa temia ser envenenado e que o foi realmente - afirmação
destituída de fundamento. Clemente XIV expirou nos braços de São Paulo da Cruz, fundador dos
Clérigos Passionistas, tão santamente como vivera. Os seus mais acirrados adversários nunca
encontraram uma objeção contra a sua vida privada.
Em 1814, Pio VII restaurou a Companhia de Jesus, que havia de voltar a ser valioso esteio do
Papado nos tempos modernos.
O clero deixou de ter existência legal. Muitos presbíteros, após muitos maus tratos, foram
deportados para a Guiana ou para a África. Outros conseguiram escapar ao controle, e exerciam o
culto sagrado às escondidas.
A situação estava tensa demais para que se pudesse conservar por muito tempo. A solução
proveio do desentendimento entre os próprios revolucionários, que se dividiam em girondinos e
montanhardos. Estes, tendo à frente Robespierre, tomaram as rédeas do Governo e começaram a
atenuar as tensões. O ateísmo foi repelido como algo de aristocrático; a Convenção votou a crença no
Ente Supremo e na imortalidade da alma. Foi de novo permitida a abertura de igrejas; os sacerdotes
refratários receberam licença para celebrar a Missa, desde que jurassem obedecer à República e às
suas leis, entre as quais já não constava a Constituição Civil do Clero.
À Convenção sucedeu o Diretório, Governo de cinco membros, que durou de 04/11/1795 a
09/11/1799. Neste período ainda houve deportações, execuções de sacerdotes e crueldades diversas.
Foi então que surgiu uma figura de militar jovem e ousado: Napoleão Bonaparte. Pôs-se a
serviço dos revolucionários, que desejavam expandir-se para f ora das fronteiras da França e moviam
a guerra no exterior. Como general das tropas francesas, Napoleão tomou parte do Estado Pontifício; o
Papa Pio VI teve que renunciar a alguns territórios deste, assim como a manuscritos e obras de arte,
obrigando-se ainda a pagar 35 milhões de francos.
Certos tumultos provocados em Roma contra os franceses deram ocasião a que estes ocupassem
a Cidade Eterna; proclamaram a deposição do Papa como Senhor temporal e a República Romana; as
cenas de libertinagem ocorridas em Paris deram-se também em Roma: na entrada da ponte
Sant’Angelo foi colocada a estátua da liberdade calcando aos pés as insígnias papais; despojaram-se
igrejas, capelas e conventos.
Pio VI, com seus oitenta anos de idade, foi levado de cidade em cidade. Fizeram-no atravessar
os Alpes e deixaram-no finalmente em Valença, à margem do rio Ródano, onde veio a falecer aos
29/08/1799.
No fim deste mesmo ano, Napoleão regressou do Egito vitorioso como um novo Alexandre ou
César. Deu um golpe de Estado em Paris aos 09/09/1799, apossando-se do Governo. Pela quinta vez
em dez anos, mudava-se o regime francês: o Governo caberia a um Consulado de três membros.
Napoleão foi eleito Primeiro Cônsul por dez anos, depois vitalício; os outros dois cônsules estavam
dispostos a obedecer lhe, de modo que ele se tornava ditador.
Quanto a Napoleão, não queria ser um ateu, mas um deísta (isto é, alguém que segue a religião
natural); na Córsega recebera de sua mãe educação católica, que o tornava sensível aos valores
religiosos. Podia ter uma capela no palácio, como os reis de outrora, e aí assistir á Missa, mas só por
conveniência ou por respeito ás tradições.65 Como quer que seja, queria um entendimento com a Santa
Sé. Percebia que, para fortalecer sua posição na França, precisava do apoio dos católicos, que
continuavam a ser uma força no país. Quando a religião fora de novo permitida pelos revolucionários,
o júbilo do povo fora imenso, de modo que a Polícia chegava a denunciar em 1798 o "fanatismo" que
fizera progressos na sombra.
Os austríacos e napolitanos em breve conseguiram expulsar os franceses da maior parte da Itália
- o que permitiu a Pio VII voltar a Roma.
65
Aos 16/08/1800, Napoleão declarava ao Conselho de Estado: "A minha política é a de governar homens como a maioria
quer ser governada. Aí está. Creio eu, o melhor modo de reconhecer a soberania do povo. Fazendo-me católico é que
ganhei a guerra da Vendeis; fazendo-me muçulmano é que me estabeleci no Egito; tornando-me ultramontano é que
ganhei os espíritos na Itália; se eu governasse um povo judeu, eu reconstruiria o Templo de Salomão". Estas palavras
exprimem bem o maquiavelismo do monarca. Todavia Napoleão conservava certa sensibilidade crista que recebera de sua
família na Córsega; confessava que o toque dos sinos ao meio-dia lhe evocava impressões da sua infância.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 142
Napoleão sentia-se como o sucessor de Carlos Magno, Imperador Romano. Pio VII respondeu
lançando a excomunhão contra os usurpadores, a partir de Napoleão até o último executor das ordens
imperiais. O monarca se inquietou com o fato, mas quis mostrar-se intrépido: na noite de 5 a 6 de
Julho de 1809 o Papa foi preso e levado a Savona (Itália do Norte); os Cardeais também foram presos,
e vinte e seis deles foram transportados para Paris, a fim de ser mais rigorosamente controlados.
Nova animosidade surgiu quando Napoleão quis separar-se de sua esposa Josefina, estéril;
alegava a nulidade do matrimônio por falta da forma canônica e do consentimento devido. Para julgar
o caso, recorreu a tribunais franceses, que lhe deram razão. O caso, porém, era de competência papal
exclusiva (os casos de matrimônio de famílias reais são exclusivamente da alçada do Pontífice para se
evitarem maquinações desonestas). Na base desse parecer inválido, Napoleão contraiu novas núpcias
com Maria Luísa da Áustria aos 02/04/1810; treze dos Cardeais residentes em Paris recusaram-se a
comparecer, pelo que Napoleão os "descardinalizou", obrigando-os a vestir-se de preto e espalhar-se
pela França.
escapou de Elba e reassumiu o governo da França por cem dias. Nessa ocasião o Papa se transferiu
para Gênova, temendo a invasão de Roma por Joaquim Mural, rei de Nápoles e aliado de Napoleão.
Todavia este foi definitivamente vencido em Waterloo (18/06/1815) e relegado para a ilha de Santa
Helena. Nos restantes seis anos de vida do monarca, o Papa empenhou-se nobremente por aliviar a
sorte do exilado, hospedando os familiares deste; venceu moralmente o herói do seu século,
adquirindo grande prestígio junto aos seus contemporâneos.
Uma vez livre das pressões napoleônicas, Pio VII aplicou-se à organização do Estado Pontifício,
depredado pela guerra e a pilhagem dos franceses. Não conseguiu, porém, restituir completa
tranqüilidade à Itália. O regime pontifício tradicional era tido como um obstáculo à unificação da
península, que os italianos almejavam especialmente por inspiração das campanhas napoleônicas.
Surgiu então a sociedade secreta dos Carbonari, aos quais se opunham os Sanfedistas, defensores da
Santa Fé. Para apoiar a Igreja, Pio VII, aos 07/08/1814, restaurou a Companhia de Jesus na Igreja
Universal, convencido de que ela tinha sua missão a cumprir no século XIX.
Com a França e outros países da Europa as relações da Santa Sé melhoraram; foram assinadas
diversas Concordatas que regeriam a situação da Igreja neste ou naquele país. Estes acordos
testemunhavam o prestígio do Papa, que de novo era acatado como centro inabalável do governo da
Igreja. Aliás, é de notar que o Congresso de Viena realizado em 1815 entre as potências européias
quis restaurar o Estado Pontifício quase na íntegra e reconheceu aos Núncios Apostólicos o direito de
precedência em relação aos demais embaixadores.
Pio VII morreu em 1823 com 81 anos de idade, após um pontificado de mais de 23 anos. O seu
governo ressentiu-se da falta de energia, que teria sido absolutamente necessária, mas assinala-se pela
grande caridade do Pontífice para com seu adversário Napoleão. A história desse Papa é mais uma vez
o testemunho de quanto infeliz foi, para a Igreja, a união com o Estado; em vez de colaborar com os
grandes projetos pastorais do Papa, os regimes monárquicos procuraram aproveitar-se da Igreja para
realizar seus planos políticos.
Em 1861, portanto, o Estado Pontifício via se despojado de dois terços dos seus territórios,
reduzido a Roma e à parte mais antiga do Patrimônio de S. Pedro, praticamente impossibilitado de
subsistir em virtude do esgotamento financeiro. Cavour reivindicava Roma como capital da Itália;
prometia aos católicos respeito à autonomia espiritual da Santa Sé; antes, afirmava que o Papa
exerceria sua ação pastoral com mais liberdade e eficácia, porque, renunciando ao poder temporal,
teria contribuído para a pacificação da Itália.
Nos anos seguintes, o Piemonte fez várias propostas ao Papa, incitando-o a ceder o resto dos
seus Estados. Pio IX e Antonelli respondiam firmemente; "Non possumus. Não podemos!"; ceder o
território da Igreja, diziam, não está em poder do Papa ou dos Cardeais; apelavam para a Constituição
de São Pio V, que Pio IX tivera de jurar e que proibia ao Papa alienar, direta ou indiretamente, os bens
da Igreja; nem indenizações financeiras nem acordos e garantias internacionais poderiam demover a
Santa Sé dos seus princípios. — Esta resistência há de ser entendida também à luz de fatos passados
da história do Papado: a independência territorial era condição para que o Papa não estivesse sujeito às
influências e ao controle de soberanos estrangeiros; o exílio de Avinhão, tirando os Pontífices do seu
território próprio, redundara em descrédito dos Papas, pois o mundo percebia que eram
freqüentemente inspirados pelo domínio dos reis de França.
A Pio IX só restava uma esperança; a intervenção de potências estrangeiras em favor do Estado
Pontifício. Estas, porém, pareciam cansadas e desinteressadas do assunto.
Entrementes, continuavam as operações bélicas. Em 1867, Garibaldi, por instigação secreta do
Piemonte, fez nova incursão sobre Roma com 6 mil homens. Por pouco não tomou a cidade; não
tendo atacado no momento oportuno, as tropas papais e francesas o venceram em 03/11/1867.
A Questão Romana ficou estacionária até 1870, quando rebentou a guerra franco-alemã.
Alegando precisar das suas tropas, Napoleão III retirou-as da Itália, onde guardavam o pequeno
Estado Pontifício. Assim mais nenhum obstáculo se opunha ao golpe final da corte de Florença. Em
breve, apareceram diante de Roma 60 mil piemonteses, comandados pelo general Cardona. A defesa
pontifícia, sob o general Kanzier, só contava 10 mil soldados, de modo que a resistência era
impossível. Depois de alguns golpes de artilharia piemontesa. Pio IX mandou capitular aos
20/09/1870. O poder temporal do Papa assim caía — note-se — poucos meses depois que fora
definido pelo Concílio do Vaticano I (junho 1870) o primado de magistério e jurisdição do Romano
Pontífice. Reconhecera-se o papel capital do Papa no plano espiritual.
Os protestos de Pio IX e do Cardeal Antonelli de nada serviram. Em junho de 1871 Vítor
Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam morado os Papas, ficando o
Pontífice no Vaticano.
Lição 1: Os preparativos
Mais de trezentos anos haviam decorridos após a última assembléia do Concílio de Trento (3-
4/12/1563), quando Pio IX, em dezembro de 1864, comunicou secretamente aos cardeais a sua
intenção de reunir novo Concílio Ecumênico: os tempos, ingratos como eram, o exigiam; era preciso
deliberar sobre os remédios a oferecer-lhes – o que se faria por excelência num Concílio.67
A Bula de convocação saiu aos 29/06/1868, convidando também os protestantes e os ortodoxos
separados; estes, porém, não compareceram. A notícia de um próximo Concílio suscitou entusiasmo e
66
A definição do dogma da Imaculada Conceição foi cercada de fatos muito significativos. Já existia a devoção dos fiéis a
esse privilégio de Maria, afirmado na S. Liturgia e em obras teológicas, quando aos 17/11/1830 uma Irmã de Caridade de
Paris, Catarina Labouré, em oração viu Nossa Senhora: os seus pés repousavam sobre o globo terrestre; de suas mãos
voltadas para a terra forravam feixes de luz. Formou-se em torno da Virgem uma moldura oval, sobre a qual se liam em
letras de ouro estas palavras: "Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a vós". A Religiosa recebeu
também a ordem de mandar cunhar uma medalha de acordo com tal modelo. Informado da ocorrência, o arcebispo de
Paris, Mons. de Quélen, permitiu a cunhagem da medalha, que se propagou rapidamente, — Tais fatos só fizeram
aumentar no espírito dos cristãos a devoção à Imaculada e o desejo de que se definisse o dogma respectivo. Numerosos e
insistentes pedidos foram encaminhados à Santa Sé nesse sentido. Pio IX mandou estudar o assunto por parte de bispos e
teólogos e resolveu finalmente proceder à definição aos 8/12/1854 na basílica de São Pedro em presença de mais de
duzentos bispos e enorme multidão de fiéis. Ora menos de quatro anos após a definição da Imaculada, deu-se um
acontecimento, que contribuiu extraordinariamente para confirmar a palavra do Papa: as dezoito aparições de Lourdes, de
11/02 a 16/07 de 1858, sendo que a 25/03 a Bem-aventurada Virgem declarou expressamente ser a Imaculada Conceição;
era como que o eco da aparição a S. Catarina Labouré e uma resposta à declaração do Papa em 1854. Note-se ainda: ao
definir o dogma da Imaculada Conceição, Pio IX afirmava também que estaria excluído do seio da Igreja de Cristo todo
aquele que dai em diante ousasse rejeitar tal definição... Assim procedendo. Pio IX já estava implicitamente proclamando a
infalibilidade papal em matéria de fé e de Moral. - A definição desta verdade devia ocorrer pouco depois, por ocasião do
Concílio do Vaticano I (1870).
67
Aliás, aos 08/12/1864 Pio IX, diante dos numerosos erros doutrinários que campeavam na sua época, publicou a
encíclica Quanta Cura, tendo anexo um Syllabus ou resumo das falsas doutrinas contemporâneas, que o Papa reprovava;
são oitenta sentenças, mais ou menos concisas, distribuídas em dez parágrafos: § 1 - Panteísmo, naturalismo, racionalismo
absoluto: § 2 - nacionalismo moderado; § 3 - Indiferentismo. latitudinarismo (laxismo ou liberalismo moral): § 4 —
Socialismo, comunismo, sociedades clandestinas. Sociedades Bíblicas, sociedades clérico-liberais; §5 — Erros sobre a
Igreja e seus direitos; § 6 — Erros sobre a sociedade civil considerada em si e em suas relações com a Igreja; § 7 — Erros
sobre Ética natural e Ética crista; § 8 — Erros sobre o matrimônio cristão; § 9 — Erros sobre o poder temporal do Romano
Pontífice; § W — Erros que se referem ao liberalismo do século XIX. Trata-se de proposições já anteriormente
condenadas em trinta e dois documentos do próprio Pio IX. A origem dessa coletânea remonta ao arcebispo de Perugia
Gioacchino Pecci, depois Papa Leão XIII, que solicitara ao Pontífice uma súmula portadora de todos os erros do momento
rotativos à Igreja e à sua autoridade. O Syllabus impressionou os adversários da Igreja, que julgaram estar assim
anatematizada a civilização moderna. Tal interpretação era falsa; Pio IX tencionava apenas repudiar a cultura meramente
naturalista, que pretende compreender e orientar o homem sem Deus. A prova disto é que o inspirador do Syllabus, o Papa
Leão XIII, procurou eficazmente conciliara cultura do seu tempo e o Catolicismo; ver módulo 50.
147 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
também... apreensões; o público só sabia que seriam condenados erros contemporâneos, reafirmada a
doutrina da Igreja, revistas a disciplina, a obra missionária, a formação dos seminaristas. . . Mas na
Cúria Romana reinava um certo mistério sobre os intensos preparativos do Concílio. A agitação
pública aumentou quando em fevereiro de 1869 a revista jesuíta La Civiltà Cattolica anunciou que o
Concílio estava para definir a infalibilidade papal. O mundo não católico imbuído de liberalismo
proclamava-se defensor da liberdade dos simples fiéis católicos, "subjugados pelo domínio obscuro e
obscurantista dos eclesiásticos". Na Alemanha, o historiador
Pe. Inácio Döllinger (1799-1890) colocou-se à frente do movimento antiinfalibilista, com
diversos escritos contrários à definição. O Presidente de Ministros da Baviera, Clodoveu de
Hohenhole, procurou suscitar uma intervenção dos Governos europeus contra os pretensos perigos do
Concílio, Os bispos alemães reunidos em Fulda (setembro de 1869) enviaram um escrito ao Papa em
que declaravam não julgar oportuna a definição, embora não se opusessem à doutrina; temiam as
reações dos Governos e cisões entre os próprios católicos. Em verdade, a definição desse dogma podia
parecer ousadia numa época em que se respirava o liberalismo.
coisa). O mal de Honório não foi ter aderido ao erro, mas foi permitir, por descuido, que este se
propagasse.
Os argumentos da oposição foram sendo desfeitos. Quando viram a causa perdida, 56 dos
oposicionistas se retiraram de Roma, tendo pedido e obtido a licença do Papa, aos 17/07/1870;
deixaram, porém, uma carta ao Santo Padre, em que afirmavam seu propósito de conservar sempre
fidelidade e submissão à Santa Sé. No dia seguinte, 18/07, 533 padres conciliares deram voto
favorável à Constituição Pastor Aeternus; dois apenas se manifestaram contrários, mas logo se
anexaram à sentença positiva. Pio IX promulgou logo a Constituição, o que provocou calorosa
aclamação em toda a basílica de São Pedro.
A Constituição assim aprovada consta de quatro capítulos, que afirmam o fundamente bíblico e
patrístico, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano assim como a infalibilidade do
magistério papal. A autoridade do Papa foi definida como sendo sumo e imediato poder de jurisdição
sobre toda a Igreja, ficando assim condenados o galicanismo e o febronianismo (cap. 3°)- O capítulo
4°define, como dogma revelado por Deus, que as definições do Romano Pontífice proferidas ex
cathedra, isto é, na qualidade de Mestre da Igreja inteira, em questões de fé e de Moral, gozam de
especial assistência do Espírito Santo; são, pois, infalíveis e irreformáveis por si mesmas, sem
necessitar da aprovação da Igreja.
Após esta memorável sessão, o Concílio ainda estava no início das suas atividades. Dos 51
projetos de decreto, só tinha estudado e publicado dois; das questões disciplinares, só quatro haviam
sido discutidas, mas não definidas. Não obstante, o Concílio teve que ser interrompido abruptamente,
pois no dia seguinte, 19/07, estourou a guerra franco-alema, que obrigou muitos prelados a regressar à
pátria. Sobreveio a ocupação de Roma aos 20/09/1870, que tornou praticamente impossível a
continuação dos trabalhos. Em conseqüência, aos 20/10/1870 o Papa suspendeu o Concílio, que
deveria voltar a reunir-se em época mais apropriada, mas na verdade nunca foi reaberto; o Concílio do
Vaticano II (1962-65) havia de completar os seus trabalhos.
A importância do Concílio do Vaticano I é enorme para a Igreja. A definição da infalibilidade
papal era a conclusão lógica de premissas contidas na própria Escritura (Mt 16,16-19; Lc 22,31; Jo 21,
15-17) e desenvolvidas através dos tempos; principalmente por ocasião dos litígios que afetavam a
Igreja, foi emergindo na consciência dos cristãos a preeminência do magistério dos sucessores de
Pedro. Precisamente as tendências galicanas e febronianas dos séculos XVII/XVIII serviram para
aguçar essa tomada de consciência de modo mais vivo; humanamente falando, os católicos podiam ter
optado pelo nacionalismo eclesial, mas o desenrolar dos embates e a ação do Espírito Santo levaram a
Igreja como tal a reafirmar a antiga verdade do primado papal tanto em matéria de jurisdição quanto
em matéria de doutrina. Numa época de descrença, a fé se afirmava de maneira corajosa. A própria
Igreja aparecia como algo de transcendente ou como um sacramento, que o homem recebe de Deus, à
diferença de outras sociedades e instituições.
A centralização explicitada pelo Concílio do Vaticano I teve expressões sempre mais
perceptíveis durante os pontificados seguintes. Era preciso que ocorresse o Concílio do Vaticano II
(1962-65) para terminar a obra que o anterior deixara inacabada, O Vaticano I só pôde abordar a
função do Romano Pontífice, dentro do exíguo espaço de sua duração; o Vaticano II abordou também
o papel dos bispos e dos presbíteros na Igreja, pondo em relevo o conceito de colegialidade que, sem
apagar o primado de Pedro, enriquece a estrutura da Igreja.
Claro está que a agitação pública que precedeu e acompanhou o Vaticano I, não se apaziguou
logo. — Os bispos da minoria oposicionista submeteram-se pouco depois, inclusive Hefele de
Rottenburg (10/04/1871). Também a maior parte dos teólogos reconheceram a definição. No cenário
político, a definição do Vaticano I não foi tão focalizada e discutida como o teria sido se não fora a
guerra franco-alemã; todavia alguns "Estados e Estadistas tomariam atitude de suspeita diante da
Igreja; a Prússia e alguns cantões da Suíça adotaram fortes medidas contra os católicos, que levaram
ao Kultur-kampf (secularização de bens eclesiásticos). Estas conseqüências desagradáveis, que
culminaram no cisma dos Velhos-Católicos, não chegam a extinguir as vantagens que da definição
resultaram para a Igreja.
149 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Lição 3; Os Velhos-Católicos
O sacerdote Inácio Düllinger, já mencionado como adversário da definição, desde cedo se
mostrara favorável ao sistema febroniano. Era famoso historiador e teólogo de Munique, que
professava ideias liberais em matéria de doutrina e um certo relativismo ou historicismo.
Após a definição da infalibilidade, continuou a manifestar-se hostil ao Papado, que ele julgava
desnecessário. A sua posição professada publicamente valeu-lhe a excomunhão da parte do arcebispo
de Munique em 1871 — censura este que em 1872 atingiu outros professores de Faculdades alemãs,
por se terem agregado a Döllinger. Aos poucos esses adeptos do mestre, à revelia do próprio mestre,
resolveram fundar uma Igreja própria, cujo chefe era o professor João. Frederico Von Schulte, de
Praga. A partir de 1872 foram sendo criadas paróquias de "Velhos-Católicos". Esta designação se
deve ao fato seguinte: quando o arcebispo de Munique voltou de Roma, após o Concílio, convidou
Inácio Döllinger a "trabalhar para a Santa Igreja"; este respondeu secamente: "Sim, para a antiga
Igreja) — Há uma só Igreja, replicou o arcebispo, não existe nova nem antiga Igreja! — Mas fizeram
uma nova!", retrucou o professor. Por conseguinte, Döllinger pertencia à Velha Igreja; resolveram
também instituir um bispo para si em 1873 na pessoa do professor de Teologia Joseph Hubert
Reinkens, que foi receber a ordenação episcopal das mãos do arcebispo Jansenista de Utrecht na
Holanda.
Em Pentecostes de 1874 um Sínodo em Bonn aprovou a constituição eclesiástica traçada por
Schulte; cada povo tem sua Igreja nacional autônoma; as Igrejas nacionais estão ligadas pela
"Conferência" de seus bispos. A autoridade suprema é o Sínodo, do qual fazem parte todos os
eclesiásticos e os deputados dos leigos de cada paróquia; o Sínodo promulga leis e examina a
administração. Na paróquia a autoridade suprema toca à assembléia dos fiéis, que elege o seu pároco;
a este assiste o Conselho Paroquial.
Os Velhos-Católicos aos poucos foram sendo penetrados por teses protestantes, que lhes
pareciam corresponder à disciplina da Igreja dos oito primeiros séculos (donde o nome "Velhos-
Católicos"): rejeitaram, portanto, além do primado do Papa, o celibato sacerdotal, a confissão
auricular, as indulgências, o culto dos santos, as procissões e peregrinações, a Imaculada Conceição.
Introduziram a língua alemã na liturgia da Missa. Estas inovações causaram descontentamento dentro
da própria comunhão cismática; dos Velhos-Católicos faziam-se Neo-protestantes. O próprio Inácio
Döllinger abandonou publicamente a facção que ele inspirara.
Aliás, a figura de Döllinger ficou sendo misteriosa. Ele não teria levado suas ideias a tais
conseqüências práticas; não queria o cisma formal. Conservou-se sempre fiel aos votos do seu
sacerdócio; absteve-se de celebrar a S. Missa após a excomunhão. Sempre levou vida muito modesta,
de severa sobriedade e muito trabalho. Parece que no fim da vida sentia saudades da Igreja de sua
juventude. Desaconselhou mesmo a um de seus discípulos, Blennerhasset, que o seguisse no caminho
tomado após o Vaticano I. O fato é que morreu em 1890 sem se ter reconciliado com a Igreja.
Em 1889, os Velhos-Católicos e os Jansenistas se aliaram na chamada "União de Utrecht". As
tendências liberais se fizeram sentir muito especialmente na Suíça, onde os Velhos-Católicos são
chamados "Igreja Cristã Católica", dirigida por leigos e não por teólogos, como na Alemanha, porque
as razões da oposição ao Vaticano I eram mais políticas do que teológicas.
independente de qualquer tutela estranha. Elegeu o Cardeal Joaquim Pecci, que já tinha 68 anos de
idade e devia governar durante 25 anos com o nome de Leão XIII, Era homem de sólida formação
teológica e humanista, que se dedicava ao estudo de S. Tomás de Aquino e à literatura latina. Passava
por "moderado"; na verdade. Leão XIII foi firme na defesa da verdade e do direito; mas soube
também ser ponderado e conciliador, de modo que se tornou uma das mais brilhantes figuras de sua
época, como se poderá depreender do que será dito adiante; o mundo dava ouvidos a esse Papa tão
prestigiado.
Frente ao Estado italiano, reafirmou a sentença de Pio IX logo na sua primeira encíclica
(21/04/1879): "O Estado da Igreja é uma instituição indispensável da Providência Divina para
assegurar o livre exercício da autoridade eclesiástica". Os "conciliadores" procuravam a aproximação
do Estado Italiano e do Vaticano; em vão, porém, pois a Maçonaria movia aquele e não cessava de
hostilizar a Santa Sé. A partir de 1890, as relações entre o Quirinal e o Vaticano esfriaram mais ainda:
este ignorou oficialmente a morte do rei Humberto e o governo italiano ignorou as bodas de ouro
(1887) de sacerdócio do Papa.
Na Alemanha Leão XIII teve que enfrentar o Kulturkampf (política antieclesial); comportou-se
tão sabiamente em relação ao Primeiro-Ministro Bismarck que este recuou e até convidou o Pontífice
para arbitrar um litígio da Alemanha com a Espanha a respeito das ilhas Carolinas; a sentença de Leão
XIII (1885) foi acatada por ambas as partes.
Por duas vezes (1888 e 1903) recebeu a visita do Imperador protestante Guilherme II no
Vaticano, ao passo que aos príncipes e estadistas católicos a visita de Roma em forma oficial estava
proibida desde 1870. Em 1888 Leão XIII recebeu a visita do rei da Inglaterra. Em 1895 foi criada a
Embaixada da Rússia junto à Santa Sé. Por ocasião das bodas de ouro e diamante do Pontífice, quase
todos os soberanos do mundo lhe mandaram felicitações e belos presentes (abstiveram-se, porém, a
Itália e a Suécia).
Apesar de tudo, a Holanda não convidou a Santa Sé para a Conferência Internacional de Haia em
1899, pois o Governo italiano exigiu que assim fosse. Na última sessão da Conferência, foi lida uma
carta do Papa à rainha Guilhermina a respeito da missão pacificadora que o Papado sempre exerceu na
história e sobre o modo como "ele sabe inclinar à concórdia tantos povos de gênio diverso"; a
mensagem foi acolhida com deferência, mas, não obstante, as conversações de Haia sobre a paz e a
guerra não puderam ter a assinatura do Pontífice.
No regime interno da Igreja, Leão XIII revelou-se grande pastor e mestre: em 1879 escreveu a
encíclica Aeterni Patris, que recomendava São Tomás de Aquino aos estudantes de Filosofia e
Teologia, numa época de certo desatino filosófico, que prejudicava a própria teologia (o racionalismo,
o fideísmo, o existencialismo... prejudicavam a penetração mesma das verdades da fé). Em 1891, deu
início à serie de encíclicas papais referentes à questão social, escrevendo a Rerum Novarum, depois
que vários eclesiásticos e leigos (Joseph de Maistre, Montalembert, Lacordaire, Ozanam, Veuillot,
Ketteler...) haviam abordado o problema. Em 1902 criou a Pontifícia Comissão Bíblica para
acompanhar as novas pesquisas exegéticas empreendidas por pensadores de diversas correntes! Em
1883 abriu aos estudiosos do mundo inteiro o Arquivo e a Biblioteca do Vaticano, querendo significar
que a Igreja não teme a publicação de sua história. Em 1891 renovou e ampliou o Observatório do
Vaticano, para onde ele se retirava com prazer a fim de trabalhar e repousar.
Leão XIII faleceu com 93 anos de idade, ainda lúcido e enérgico. Fizera do Papado uma
potência moral universal, com a qual deviam contar os estadistas. Já em 1883 Windthorst no
Parlamento prussiano afirmava: "A autoridade moral da Santa Sé nunca foi maior em período algum
da história". Leão XI 11 só fez aumentar essa herança.
Instaurare omnia in Christo (Instaurar tudo em Cristo). Propunha a si mesmo três tarefas: 1) conservar
em estado puro a doutrina da fé, preservando-a de qualquer contaminação; 2) estimular a ação social
dos católicos, continuando a obra de Leão X III; 3) intensificar e reorganizar a espiritualidade e a
pastoral da Igreja. Na política externa, seria também o firme defensor dos direitos de Deus e da Igreja,
Logo no início do seu pontificado, publicou normas referentes à eleição do Sumo Pontífice, a
fim de evitar que se repetisse a atitude assumida anteriormente pela Áustria.
Deu início ao trabalho de codificação do Direito da Igreja, cujas leis se achavam esparsas em
diversas coletâneas e que precisava de ser compilado de maneira orgânica e sistemática. Em 1904 foi
nomeada para este fim uma Comissão, presidida por Mons. Pedro Gasparri, a qual trabalhou até 1917,
quando Bento XV promulgou o novo Código de Direito Canônico (hoje substituído pelo Código de
1983).
Foi muito importante a ação de Pio X nos setores da Liturgia e da piedade. Até a época do seu
pontificado, perduravam entre os fiéis resquícios de Jansenismo e Galicanismo, que afastavam dos
sacramentos e dificultavam o "sentir com a Igreja" ou ter um senso eclesial apurado. Consciente disto.
Pio X empreendeu a reforma do Missal e da Liturgia das horas canônicas (Breviário), impregnando
estes livros do espírito de "volta às fontes" (S. Escritura, escritos dos antigos Padres da Igreja e
documentos da Tradição). Incentivou também a Comunhão Eucarística freqüente ou mesmo cotidiana;
determinou que a Primeira Comunhão fosse ministrada às crianças desde o uso da razão. Estas
medidas públicas e numerosas cartas particulares deste Papa atestam quanto estimava a vida espiritual
e a procura dos meios de santificação.
No setor doutrinário, o Pontífice teve que enfrentar o Modernismo, que reinterpretava toda a
mensagem da fé, dando aos seus clássicos vocábulos sentido totalmente novo; as fórmulas dogmáticas
seriam meros e mutáveis símbolos da verdade religiosa, que, como tal, não poderia ser conhecida.
Refutando tais erros. Pio X publicou a encíclica Pascendi (1907), que caracterizava claramente as
exigências da autêntica fé católica.
Na Questão Romana, o Papa manteve a atitude firme de seus antecessores; permitiu, porém, que
os católicos tomassem parte nas eleições italianas, ab-rogando um veto emanado de Pio IX.
Ainda conheceu o início da guerra mundial de 1914-18, que o entristeceu profundamente. Veio a
falecer aos 20/08/1914. Cativara a todos por sua simplicidade, piedade e meiguice. Foi canonizado em
1954.
2.2. Bento XV
Em plena guerra mundial, foi eleito Papa aos 03/09/1914 o Cardeal Giacomo della Chiesa, com
o nome de Bento XV, escolhido, em grande parte, por causa da sua experiência nos setores da
diplomacia internacional. Parecia ser o homem indicado para governar a Igreja nas circunstâncias do
conflito mundial. Era de pequena estatura, mas piedoso e prudente como também dotado de grande
capacidade de trabalho, de perseverança férrea e notável eloqüência.
Conseguiu melhorar a sorte de populações e prisioneiros de guerra, sem distinção de confissão
religiosa ou nacionalidade. Protestou contra meios bélicos desumanos. A 19/08/1917 dirigiu a todos
os beligerantes concretas propostas de paz, procurando aproximar as nações entre si. Após a guerra,
colaborou para que, debaixo da paz das armas, se realizasse a paz das mentes. Estes esforços muito
aumentaram o prestigio da Santa Sé; o número de representações diplomáticas junto a esta subiu de 14
a 25; entre as novas, estava a da França, que sob Pio X separara a Igreja e o Estado e rompera as
relações diplomáticas. A tensão entre a Itália e o Vaticano foi muito aliviada após a guerra mundial; o
Estado italiano, vendo-se a braços com agitações internas, recebeu certo apoio do Papa, que concedeu
aos católicos liberdade de atividade política. Em janeiro de 1919 formou-se, com o consentimento
tácito da Santa Sé, o Partito Popolare Italiano sob a direção do sacerdote D. Luigi Sturzo, que em
breve conseguiu numerosas cadeiras no Parlamento. Aliás, o conflito de 1914-18, embora tenha
causado dolorosas devastações humanas no plano temporal, ocasionou alvissareiro florescimento da
vida católica (renovação bíblica, litúrgica, teológica, Ação Católica...). Bento XV fica na memória dos
homens como o intrépido Apóstolo da paz de Cristo durante a primeira guerra mundial.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 152
4) Pio XII declarou o ano de 1954 ano mariano a fim de celebrar o centenário da proclamação do
dogma da Imaculada Conceição. No Ano Santo de 1950, quando Roma recebeu milhões de
peregrinos, o S. Padre definiu o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao céu (sem se manifestar
sobre a morte ou a preservação da morte de Maria), tencionando com isto não só confirmar a antiga
crença dos cristãos, mas também incutir a dignidade do corpo humano, vilipendiado pelos horrores da
guerra e pela libertinagem dos costumes.
5) Pio XII manifestou sua ampla cultura geral em alocuções e mensagens sobre os mais diversos
temas: medicina, esporte, direito, educação, feminismo, ciências físicas... Insistiu sobre o valor da
pessoa humana e da democracia frente aos Estados totalitários do seu tempo.
O prestígio internacional do Papado subiu a novos índices sob Pio XII. Disto dão testemunho as
homenagens que lhe foram prestadas por ocasião do seu octogésimo aniversário (1956) e,
principalmente, as que recebeu após a morte aos 9 de outubro de 1958. Pio XII soube incutir a
fidelidade aos princípios da doutrina e da moral católicas numa época em que o mundo, cansado das
ideias que haviam levado a duas guerras sucessivas, se precipitava no ceticismo, no desespero e na
cega procura de novidades; soube, porém, abrir-se para o futuro, preparando remotamente o Concílio
do Vaticano II com mente larga e acolhedora.
70
Atribui, por exemplo, a João XXIII o conhecimento da declaração do Concílio sobre a Liberdade Religiosa, declaração
que ainda não existia quando o Papa morreu.
155 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
João XXIII aos seus quadros, já que ela enumera nestes Moisés, Salomão, Jesus Cristo, Descartes,
Leibnitz...
Falecido em 1963, João XXIII foi pranteado por milhões de pessoas, católicas e não católicas.
Quando da independência do Brasil, o Papa Leão XII separou de Portugal a Ordem de Cristo e
atribuiu a ela e a seus Grão-mestres (então, os Imperadores), o padroado (Bula Praeclara
Portugaliae, 1827). Permaneceu assim estreitamente unida a Igreja ao Estado no Brasil. Isto levou a
ingerência indevidas do poder civil na Igreja; no tempo do Império, um dos casos mais graves foi o
dos Padres Feijó e António Maria de Moura, apresentados peta Regência, em 1833, para bispos; a sua
indicação não foi aceita pela Santa Sé, visto terem os referidos padres certas ideias discordes da Igreja.
Houve fortes tensões, chegando um membro da Câmara a propor o desvinculamento da Igreja no
Brasil frente do Vaticano, cuja autoridade se tranferiria para o Governo. Esta proposta não foi
aprovada e a questão se resolveu com a renúncia de Pé. Feijó e Pe. Moura à mitra episcopal, tendo
então o Governo apresentado novos nomes.
Outro grave conflito foi a chamada "Questão Religiosa", durante o segundo Império, que será
estudada no módulo 56.
Numa carta de 1o de junho de 1560, revelando a sua ânsia de conduzir ao Senhor os povos deste
país, o Padre Anchieta escrevia textualmente: 'Por este motivo, sem nos deixar intimidar pelas
calmarias, tempestades, chuvas, correntezas espumantes e impetuosas dos rios, procuramos sem
descanso visitar todas as aldeias e vilas, quer dos Índios, quer dos portugueses; e mesmo de noite
acorremos aos doentes, atravessando florestas tenebrosas, a custo de grandes fadigas, tanto pela
aspereza dos caminhos como pelo mau tempo.'
Com esta mesma finatidade, levando em consideração os dotes e qualidades naturais dos índios.
a sua sede de saber, a sua generosidade, hospitalidade e o seu senso comunitário, Anchieta promoveu
e desenvolveu as 'aldeias', centros onde a vida de cada um se fundia com a dos outros, de maneira
adequada, no trabalho, na solidariedade, na cooperação. Coração de cada um desses centros era
sempre a Casa de Deus, onde o Sacrifício Eucarístico era celebrado regularmente e onde o Senhor
Sacramentado permanecia presente.
Apreciando a sede de saber dos 'brasis', o seu acentuado talento para a música, a sua
habilidade e outros dotes, criou para eles centros de formação cultural e artesanal que, pouco a
pouco, contribuíram para elevar o nível geral das gerações futuras".
Homilia proferida durante a Missa em São Paulo, 3 de julho de 1980.
Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes
que aqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão
privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser
reduzidos à servidão."
As determinações da Bula lograram efeitos positivos, mormente porque observadas pelos
jesuítas, que defenderam a liberdade dos nativos e agiram contra os abusos dos brancos. Com isto
contribuíram para moderar e retirar o costume dos assaltos a aldeias. Porém não chegaram a rejeitar
qualquer cativeiro,
Esta possibilidade era defendida em caso de extrema necessidade e para o melhor bem das
almas. Considere-se, contudo, que o tratado dos indígenas pelos Jesuítas diferia, e muito, do dos
colonos brancos.
A 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que abolia por completo a escravidão indígena:
"Declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu
nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa santa fé católica, como os que
ainda servirem como gentios, conforme a pessoas livres como são".
Aos 24.4.1639 o Papa Urbano VIII publicou o Breve Commissum Nobis, incutindo a liberdade
dos índios da América. Este documento chegou ao Rio por meio do Pe. Francisco Dias, que iria até
Buenos Aires com mais trinta companheiros. Trazia também uma nova lei de Sua Majestade o Rei,
que mandava dar liberdade a todos os cativos sob pena de castigo do Santo Ofício e de confiscação de
bens. — No seu Breve, o Papa ordenava, sob pena de excomunhão reservada ao Pontífice, que
ninguém prendesse, vendesse, trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra.
Dispunha, outrossim, que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento dos
mesmos.
Contra isto insurgiram-se colonos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santos e no Maranhão.
Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só
puderam voltar tempos depois.
Por outro lado, o segundo bispo do Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30.7.1566
na Bahia, com o Governador Mém de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em defesa dos
índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior apoio aos aldeamentos instaurados
pelos jesuítas. O Pe. Anchieta elogiou o bispo pelo zelo em prol da liberdade dos aborígines.
Também o primeiro prelado do Rio de Janeiro, Pe. Bartolomeu Simões Pereira (1578-1603), foi
rígido defensor dos índios, sempre contrário à escravidão dos mesmos. O quarto prelado do Rio de
Janeiro, o Pe. Lourenço de Mendonça, dizia que "mandou guardar as Constituições Eclesiásticas dos
antecessores... que sempre se opuseram a estas tão iníquas vendas (de escravos)" (Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil, L. 219. dc. 17).
Estão assim expostos alguns dos fatos históricos mais importantes para se reconstituir o papel
desempenhado peta hierarquia da Igreja frente à escravidão dos índios. Houve empenho por respeitar
tal população — o que exigiu sacrifícios da parte de clérigos. Verdade é que esse esforço não se
voltou contra a escravatura como tal; nem se deve crer que os clérigos não tivessem escravos a serviço
das suas obras; não lhes passava pela mente a ideia de abolir por completo o trabalho escravo, pois
isto redundaria em colapso tanto da vida econômica da sociedade como das atividades humanitárias e
evangelizadoras da Igreja.
Importa, porém, registrar que, dentro das categorias de pensamento e cultura dos séculos XVI-
XVIII, a Igreja opôs resistência à exploração dos indígenas, na medida em que esta podia parecer
ilegítima a um cristão da época (de consciência bem formada).
Lição 2: Os negros
Diferentemente da indígena, a escravidão negra foi aceita mais pacificamente no Brasil. Muitos
foram aqueles que a defenderam, pois se constituía a principal forma de trabalho. Várias e
significativas vezes, entretanto, levantaram-se contra a escravidão negra;
a) Pe. António Vieira (1608-1697) - tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra
os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura
161 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
os negros, principalmente sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Tais instituições exerceram
importante papel na consciência a da igualdade de todos os homens entre si; afirmando os direitos dos
escravos aos benefícios em Pe de igualdade com os senhores, tornavam-se fator de educação e
formação das mentalidades.
Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos patrões,
certos de que gozavam, diante de Deus, das mesmas prerrogativas que estes, tanto durante esta vida
quanto após a morte.
O papel da Igreja frente à escravatura, porém, não se limitou a estes episódios. De fato, foi todo
um contexto de ideias cristãs que, influindo no espírito do povo, preparou a libertação dos escravos,
assinada finalmente em 13/05/1888 pela Regente. Princesa Isabel. A fim de comemorar enfaticamente
tal evento, o Papa Leão XIII enviou à Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e benevolência de
Sua Santidade.
Visitador passou a Pernambuco onde, após um período de "Graça", inicou as audiências, seguindo até
o ano de 1595, quando retornou a Lisboa.
A par de algum erro ou imprevidência, não parece ter sido severo, usando, em muitos casos, de
moderação.
2.2.2. Século XVII
Data deste século a segunda visita do Santo Ofício. Esta ocorreu entre setembro de 1618 e
janeiro de 1619, sendo Inquisidor D. Marcos Teixeira. Os motivos devem prender-se à preocupação
da Coroa Espanhola com os cristãos-novos, temendo que pudessem aliar-se aos holandeses, que
naquele tempo pressionavam o Reino Unido. A colônia, de fato, tornara-se lugar de refúgio e de
degredo para os novos convertidos, que aqui se achavam em grande número.
O Pe. António Vieira, nessa época, defendeu a tolerância para com os Cristãos novos, ideia que
se generalizou e continuou viva mesmo após a restauração, em 1640.
2.2.3. Século XVIII
Surgindo as minas de ouro, para as quais ia grande número de estrangeiros de todos os Credos, a
política de tolerância vigente no século anterior começou a mudar. Intensificou-se a ação da
Inquisição no Brasil.
No reinado de D. José l (1750-77), a Inquisição decaiu, chegando praticamente a anular-se. Dois
fatores contribuíram para a sua queda, ambos ligados à personalidade do Marquês de Pombal.
Primeiramente, o Primeiro-ministro considerou-a contrária aos interesses da Corte, embora anos antes
(1761) a tivesse utilizado contra o Pe. Gabriel Malagrida, por ter este, na ocasião do terremoto de
Lisboa (1755), acusado de erros morais os membros da Corte. Além disto, em virtude de um
desentendimento entre Pombal e o Santo Ofício em Portugal, chegou o rei D. José I a procurar
minorar a ação do Tribunal.
Assim é que em 1773 foram baixadas leis que acabaram com a distinção entre cristãos-novos e
outros cristãos, e que proibiam qualquer discriminação por ascendência judaica.
Em 1744 o Santo Ofício foi transformado num tribunal régio, sem autonomia, completamente
dependente da Coroa, o que significou na prática a sua desativação.
Não obstante as falhas que se podem apontar contra todo e qualquer sistema repressivo, não é
lícito nem honesto ver na atuação da Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa. Houve
também vantagens para a fé e os bons costumes, evitando-se tolerância em demasia com
desvantagens para a pureza da fé ou com tropeies dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição
não empregava somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou nos
costumes. Ademais, para muita gente que se deixa levar mais pelo temor que pelo amor, por muitas
causas que não é o caso de abordar, toda ação coercitiva, quando psicologicamente bem orientada,
pode ter seus reflexos positivos. Aliás, o Santo Ofício era, antes do mais, um tribuna! eclesiástico que
tinha em mente mover o culpado a reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer emenda. Só em casos
de pertinácia agia com penas que variavam segundo a gravidade do delito e a renúncia ao perdão.
No Brasil, felizmente, durante o século XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na
terra, mesmo quando encaminhados ao tribunal de Lisboa (RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil,
Origem e desenvolvimento (Século XVI), vol. 1. Santa Maria, Pallotti, 1981, p. 284).
discurso este publicado nos jornais em março de 1872.71 O Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria
de Lacerda, impôs ao padre retratação pelo seu ato, visto não ser lícito a um clérigo participar da
Maçonaria. Tal retratação não foi prestada e, após outros incidentes, o Pe. Martins foi suspenso de
ordens pelo Bispo.
A punição do sacerdote causou grande impacto. As Lojas Maçônicas protestaram. Uniram-se a
Loja do Vale do Lavradio e a do Vale dos Beneditinos, antes desunidas, com o fim de defender a
Maçonaria contra o Bispo do Rio de Janeiro. Foram publicados diversos artigos em jornais, com
calúnias e agressões ao Bispo e ao clero em geral. Também no Pará e em Pernambuco divulgaram-se
acusações contra a Igreja e os dogmas católicos.
Em 1871, tomando posse como Bispo de Olinda, o capuchinho Frei Vital Maria Gonçalves de
Oliveira deparou-se logo com o problema das Irmandades, que possuíam, entre seus membros,
numerosos maçons. Admoestou-as seguidamente, lembrando-lhes a impossibilidade de ser, ao mesmo
tempo, católico e maçon. Em 28 de dezembro do ano seguinte, enviou a diversos Vigários carta
circular sobre a necessidade de abjuração da maçonaria por parte dos irmãos maçons. Caso contrário,
deveriam ser expulsos. No mês seguinte foram enviadas, tratando do mesmo assunto, mais duas
circulares.
A medida foi de grande impacto. As Lojas Maçônicas se revoltaram, começando a lutar
fortemente contra o Bispo. A 9 de janeiro de 1873 reuniram-se com o objetivo de formar uma
representação no Poder Legislativo. D. Vital, porém, não se intimidava e a 19 de janeiro lançou
interdito geral às Irmandades. Ficava proibido às Confrarias comparecer em público com suas
insígnias e receber novos membros. Os irmãos maçons deveriam abjurar ou então se retirar das
confrarias.
A questão tomou maiores proporções quando atingiu eclesiásticos que ocupavam cargos
elevados: assim o Pe. Joaquim Francisco de Faria, decano da Sé de Olinda, e o Pe. Francisco João
Azevedo, inventor da máquina de escrever, que publicamente defenderiam a atitude dos maçons. Estes
foram, entretanto, os únicos clérigos a se mostrar renitentes. Os outros que pudessem ter alguma
ligação com a Maçonaria, a abandonaram.
Na população, os ânimos se agitavam sempre mais. Os chefes maçônicos começaram a agir
também contra os Jesuítas, fiéis ao Bispo. Ocorreram assaltos e depredações em igrejas e colégios
jesuítas.
Era a hora do mês mariano, a capela estava repleta de fiéis. Os energúmenos invadiram-na e 3
saquearam. Quebraram o púlpito, os confessionários, os painéis, os quadros, até a estátua da
Santíssima Virgem, 'que lançaram no chão, espancando e ferindo os fiéis, pisando e mutilando tudo e
furtando os objetos preciosos. Pareciam iconoclastas das eras bárbaras e brutais.
Penetrando no colégio, estragaram os móveis e utensílios, invadiram a tipografia de O
Católico. Agrediram violentamente os padres jesuítas, expulsaram alguns, apunhalaram outros,
inclusive um que jazia acamado e que pouco depois morreu; exigiram silêncio a respeito dos
acontecimentos, sob ameaças... Durante duas horas puderam fazer o que quiseram e destruir tudo à
sua vontade. A uns vinte passos do colégio havia um quartel; mas a ordem era de roncar ou dormir,
tranqüilamente, como se nada houvesse de anormal ao derredor" (Bihímeyer - Tüchele, História da
Igreja 3, p. 727).
Isto mereceu veemente protestos por parte de D. Vital. A 2 de julho mandou publicar a Bula
Quamquam dolores, de Pio IX, datada de 29 de maio. Nesta Bula o Santo Padre afirmava estar a
Maçonaria brasileira sujeita à excomunhão, devendo as Irmandades ser dissolvidas.
71
As razões por que alguns clérigos aderiram à Maçonaria no Brasil, são: 1) em virtude da lei do padroado, as normas da
Santa Sé tinham a força de leis do Estado brasileiro, mas, para tanto, deviam ser promulgadas pelo Governo. Ora, o
Imperador e muitos Ministros eram maçons, de modo que a proibição papal referente à Maçonaria não foi promulgada no
Brasil; isto podia dar a impressão de que tal determinação pontifícia não valia para o nosso país; 2) a Maçonaria teve
grande influência na causa da independência do Brasil - o que lhe granjeou a simpatia de muitos cidadãos, inclusive
clérigos, que talvez de boa fé aderiram às Lojas.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 166
Lição 2: O processo
Um novo incidente veio agravar a questão. Foi enviado ao Governo um recurso da Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo António do Recife. A 3 de maio reuniu-se o Conselho de
Estado para examinar a pendência. Após longa discussão, foi aceito o recurso, A 12 de junho,
portanto, seguiu para D. Vital a ordem de levantar os interditos no prazo de um mês. D. Vital,
entretanto, consciente de se tratar de assunto interno da Igreja, não sujeito à ingerência do Estado,
manteve firme sua decisão. Em conseqüência, foi acusado de transgredir ordens do Governo, Por se
tratar se assuntos religiosos esperava D, Vital ser julgado em Tribunal eclesiástico, seu processo,
contudo, seguiu para o Supremo Tribunal.
Neste Ínterim D. Vital já notificara o Sumo Pontífice a respeito de suas atitudes, que foram
aprovadas pelo Papa, o qual que deu plenos poderes, inclusive para dissolver Confrarias. Visto o apoio
de Pio IX ao Bispo de Olinda, começou a agir também, nos mesmos moldes de D. Vital, o Bispo do
Pará, D. António de Macedo Costa.
Foi enviado a Roma, para defender o Estado brasileiro na questão do Bispo de Olinda, o
embaixador Francisco de Carvalho Moreira, Barão de Penedo. Encarregado para esta missão pelo
Visconde de Caravelas, Ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha a recomendação de convencer o
Papa de que deveria induzir os bispos a obedecer à Constituição brasileira. A missão, de fato, não
tinha a finalidade de dialogar, mas de dar ciência ao Santo Padre do andamento da questão e prevenir
incidentes mais graves. O Governo tencionava, de antemão, condenar o Bispo. Em outubro de 1873 o
Barão de Penedo entrou em contato com o Cardeal Antonelli, Secretário de Estado do Vaticano,
pedindo-lhe audiência com o Santo Padre. Junto ao Papa, defendeu Penedo a Maçonaria brasileira e
propôs fazer-se um Memorandum sobre o caso dos Bispos, a ser submetido ao parecer dos Cardeais.
Foi aceita a proposta. Analisada a questão, chegaram às seguintes conclusões:
- as Irmandades eram associações mistas; tinham, portanto, compromisso com o Governo e não
só com a Igreja;
o procedimento de D. Vital não fora correto; os interditos e as suspensões impostos pelos Bispos
de Olinda e do Pará foram desabonados.
O Cardeal Antonelli, sob a influência da diplomacia brasileira, tornou-se contrário a D. Vital.
Enviou-lhe carta censurando-o por falta de moderação e prudência. Mandava que revogasse os
interditos e reunisse as Irmandades, exortando os maçons a delas se retirarem.
No início do ano seguinte, foi preso D. Vital no Recife, Três dias depois embarcou para o Rio de
Janeiro, onde chegou a 13 de janeiro, em segredo, para que se evitasse qualquer manifestação popular.
Entrementes conseguiu o Barão de Penedo a carta do Cardeal Antonelli contra os dois Bispos
brasileiros. A carta chegou ao Rio quando já estava preso D. Vital. Foi então entregue ao Internúncio
D. Domingos Sanguigni. A carta devia ficar secreta, mas o prelado, de boa-fé, informou o Governo do
seu recebimento. Este passou então a urgir D.Sanguigni para que entregasse a carta, que deveria ser
publicada.
A missiva foi entregue a D. Vital no final do mesmo mês de janeiro. Ao lê-la, reconheceu o
Bispo de Olinda ser fruto de informações deturpadas; precisava de explicações concretas de Roma e,
por isto, não a publicaria. Além do quê, teria por efeito, sua publicação, apenas semear confusão entre
o povo. Por ser correspondência particular, nenhuma obrigação havia de a publicar. Escreveu então ao
Papa uma carta narrando pormenorizadamente os acontecimentos. Temendo quebra de sigilo, enviou-
a através de seu secretário. Pe. José de Lima e Sá.
Ao receber a correspondência de D, Vital e tomando conhecimento da verdadeira versão da
Questão, o Santo Padre anulou a carta do Cardeal Antonelli. Com este ato, tornou sem efeito as
decisões da missão Penedo. Entrementes o Governo insistia na publicação da carta. Não conseguindo,
porém, a missiva, os jornais teceram considerações sobre seu suposto conteúdo: noticiaram que a
Santa Sé reprovava as atitudes do Bispo e dava ordem de retirar as interdições.
O processo contra D. Vital, entretanto, seguia. O Julgamento da Questão deu-se em fevereiro de
1874. D. Vital foi condenado a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, sentença depois
comutada para quatro anos simples.
Eis como Perilo Gomes, em nosso século, se refere ao processo condenatório de D. Vital:
167 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
"A defesa provou que o governo se desmandava em violência: a) dando provimento ao recurso
das frmandades, sem competência para o fazer; b) dando ordem à autoridade eclesiástica em matéria
em que era a mesma soberana; c) fingindo desconhecer que o apelo em casos desta natureza só podia
ser para o metropolita ou para a Santa Sé; d) ordenando o processo sem forma legal, visto ser a
Constituição do Império omissa quanto aos preceitos a seguir para o julgamento dos dignitários da
Igreja; nem havia nenhum ato legislativo posterior corrigindo esta omissão; e) desprezando
elementos substanciais na formação do processo, dado que fosse possível aceitar a hipótese da sua
legitimidade, o que só por si bastava para o invalidar, f) apoiando uma acusação formulada no
domínio do vago, do incoerente e das analogias forçadas, em virtude de não ter podido a promotoria
pública caraterizar o delito do prelado segundo a legislação penal vigente: artigo 128 ou artigo 96?;
g) submetendo o bispo a um tribunal incompetente, quer perante os dispositivos do Direito Canônico,
quer perante a letra e o espírito da Carta Política do Império". (D. Vital. Ed. Centro D. Vital, p. 285).
Ao saber da condenação de D. Vital, o Papa Pio IX lamentou o fato e elogiou o Bispo de Olinda,
reprovando as Lojas Maçônicas. Enviou-lhe ainda carta especial. O Cardeal Antonelli, de sua parte,
protestou contra o Governo brasileiro, por, não ter cumprido a promessa de que nada de desagradável
aconteceria ao prelado de Olinda.
Quanto ao Bispo do Pará. foi também preso e levado para o Rio de Janeiro, em fins de abril de
1874. Julgado, recebeu sentença igual à de D. Vital.
Caro cursista, você acaba de percorrer um roteiro de história da Igreja. Possa ajudá-lo a mais
ainda amar "Aquela que foi chamada a anunciar o mistério de Deus, embora entre sombras, mas
com fidelidade, até que no fim seja manifestado em plena luz"! (Const. Lumen Gentium no 8).
reflexão dos fiéis, era a questão do relacionamento de Jesus Cristo com Deus Pai ou com o único Deus
(revelado no Antigo Testamento): seria Jesus realmente Deus ou apenas criatura?
Após correntes que concebiam Jesus como inferior ao Pai, o presbítero Ario de Alexandria em
312 começou a ensinar que o Logos (ou o Filho) era, como criatura, subordinado ao Pai; daí os nomes
de sua escola: arianismo ou subordinacionismo.
O Imperador Constantino, que concedera a paz aos cristãos mediante o Edito de Milão em 313,
quis contribuir para a solução da controvérsia teológica assim originada, convocando um Concílio
universal para Nicéia (Ásia Menor) em 325. O Papa S. Silvestre, idoso como era, fez-se representar na
assembléia, dando-lhe a autoridade legítima. Os padres conciliares, após acalorados debates, 1)
definiram que o Filho de Deus é consubstanciai (homoousios) ao Pai — o que significa que não é
criado, mas compartilha a essência do Pai (ou a Divindade). Esta verdade foi expressa no Símbolo de
Nicéia;
2) fixaram a data de Páscoa, que seria celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia
da primavera;
3) estabeleceram a ordem de dignidade dos Patriarcados: Roma, Alexandria, Antioquia,
Jerusalém.
O Papa S. Silvestre confirmou as decisões do Concílio.
2. Concílio de Constantinopla l (381)
Após a controvérsia sobre a divindade do Logos, os cristãos se voltaram para a do Espírito
Santo: houve quem professasse ser o Espírito Santo mera criatura. O arauto principal desta tese foi
Macedônio, bispo de Constantinopla; donde o nome de Macedonismo ou Pneumatomaquismo que lhe
foi dado. O Imperador Teodósio (379-395), zeloso da reta fé, houve por bem convocar novo Concílio
Ecumênico, desta vez para Constantinopla. Esta assembléia reuniu-se de maio a Julho de 381. Firmou
três decisões principais:
1) O Espírito Santo é Deus, da mesma substância que o Pai e o Filho. Em conseqüência, o
Símbolo de fé Niceno foi completado com as palavras:
"Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, que é adorado e
glorificado com o Pai e o Filho e que falou pelos Profetas".
2) Foram condenados todos os defensores do arianismo sob qualquer das suas modalidades.
3) À sede de Constantinopla ou Bizâncio foi atribuída uma preeminência sobre as demais logo
após a de Roma, pois Bizâncio era considerada "a segunda Roma".
O Concílio de Constantinopla I não contou com a presença do Papa ou de algum legado deste.
Todavia foi reconhecido explicitamente pela Sé de Roma a partir do século VI, no que concerne às
suas proposições de fé (divindade do Filho e do Espírito Santo).
3. Concílio de Éfeso (431)
Após o estudo da SS. Trindade, os cristãos se detiveram sobre Jesus Cristo: como poderia ser
Deus e homem ao mesmo tempo?
Levando adiante ideias de autores anteriores, Nestório, bispo de Constantinopla, pôs-se a
combater o título Theotokos, Mãe de Deus, que os cristãos desde o século 111 atribuíam a Maria SS., .
Tal título significava que em Jesus havia uma só pessoa — a divina — que, além de possuir tudo o
que Deus possui, dispunha de verdadeira natureza humana. Para Nestório, a humanidade de Jesus
seria apenas o templo ou o revestimento do Filho de Deus; a divindade teria passado por Maria, mas
não nascera de Maria, o que implicava uma pessoa humana em Jesus distinta da segunda pessoa da
SS. Trindade. Tal doutrina causou celeuma entre os cristãos, de modo que o Imperador Teodósio II
(408-450) convocou um Concílio Ecumênico a se realizar em Éfeso (Ásia Menor) de junho a
setembro de 431. O Papa S. Celestino l (422-432) fez-se representar por S. Cirilo de Alexandria. O
Concílio de Éfeso.
1) condenou e depôs Nestório, rejeitando a sua doutrina. Não elaborou fórmula de fé, mas
aprovou a segunda carta de S. Cirilo a Nestório;
2) condenou o pelagianismo (doutrina excessivamente otimista no tocante à natureza humana) e
o messalianismo (corrente de espiritualidade que apregoava a total apatia ou uma Moral
indiferentista).
O Papa S. Celestino I confirmou as decisões do Concílio de Éfeso.
169 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Desde os primeiros séculos os cristãos costumavam pintar e esculpir as figuras de Cristo e dos
santos, não a fim de adorá-las, mas no intuito de melhor poder voltar sua atenção para o Senhor e seus
irmãos mártires ou confessores da fé. Todavia, sob a influência do judaísmo e do Islamismo, houve
cristãos no século VIII que se puseram a combater o uso das imagens; os Imperadores Leão III o
Isáurico (717-741), Constantino V Coprónimo (741-775), Leão IV (775-780) favoreceram o
iconoclasmo. O principal defensor das imagens foi São João Damasceno (+749), que, juntamente com
outros cristãos, padeceu árdua perseguição por causa de sua fidelidade à Tradição cristã. Morto Leão
IV, a rainha-mãe regente, que patrocinava o culto das imagens, resolveu, de comum acordo com o
Papa Adriano I (772-795), convocar um Concílio Ecumênico para Nicéia. Este reatizou-se de 24/09 a
23/10/787; foi então lida a carta do Papa ao Patriarca Tarásio de Constantinopla e a Irene em favor das
imagens; o Concílio declarou outrossim que reconhecia a intercessão de Maria, dos anjos,e dos santos,
assim como o culto da Cruz e das imagens; tal culto seria relativo ao Senhor Jesus e aos santos, de
modo tal que ao primeiro (Jesus Cristo) se prestaria adoração e aos santos veneração.
Após o Concílio, a luta ainda continuou, salientando-se então o patriarca Nicéforo de
Constantinopla e o monge Teodoro Studita como defensores das imagens.
No Ocidente o Imperador Carlos Magno (800-814) mostrou-se propício ao iconoclasmo, o que
não teve graves conseqüências na vida do povo cristão.
8. Concílio de Constantinopla IV (869/870)
A exposição até aqui mostra como os cristãos orientais eram propensos a discussões teológicas,
às vezes de índole sutil. Tais controvérsias punham não raro o Oriente em confronto com o Ocidente,
especialmente com a sé de Roma, onde havia menos acume dialético.
As tensões foram, a partir de 859, alimentadas pela atitude do patriarca Fócio de Constantinopla.
Este em 867 reuniu um Sínodo em Constantinopla, que, sob a inspiração de Fócio, proferiu a
condenação da sé de Roma. Então o Papa Adriano II (867-872) e o Imperador Basílio I (867-886)
entenderam-se sobre a convocação de um Concílio Ecumênico, que teve lugar em Constantinopla de
5/10/869 a 28/02/870; os padres conciliares assinaram um documento que prescrevia a todos a
submissão à Igreja de Roma, "na qual a fé sempre se conservou sem mancha". Fócio foi condenado
por fomentar o cisma. O Concílio reafirmou, outrossim, a ordem de precedência das cátedras
patriacais: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.
O culto das imagens foi confirmado.
O Papa Adriano II aprovou as decisões do Concílio.
9- Concílio do Latrão I (1123)
Com o Concílio de Constantinopla IV termina a série dos Concílios Ecumênicos realizados no
Oriente. Em 1054 deu-se o cisma de Constantinopla, que perdura até hoje (excetuados breves períodos
de reatamento). De então por diante, os Concílios Ecumênicos serão todos celebrados no Ocidente.
Nos séculos X e XI, a Igreja latina sofreu do mal da ingerência do poder político na distribuição
dos bispados; os Imperadores e os senhores feudais queriam nomear os prelados de acordo com os
seus interesses políticos, praticando assim o que se chama "a investidura leiga"; à autoridade
eclesiástica tocaria apenas dar a ordem sacra ao candidato designado exclusivamente pelo poder civil.
Como se compreende, desta prática resultavam bispos sem vocação pastoral e, conseqüentemente, o
clero se ressentia de relaxamento da respectiva disciplina; havia outrossim simoniae nicolaísmo. 72 Em
Roma, a própria cátedra de Pedro era cobiçada pelas famílias nobres da cidade e das redondezas, que
tentavam impor-lhe os seus favoritos.
Com o Papa Gregório Vil (1073-85) começou a forte réplica da Igreja a tal situação ou a luta do
sacerdócio e do Império, que redundaria em fortalecimento do Papado. Em 1122 o Papa Calixto II
(1119-1124) e o Imperador Henrique V assinaram a Concordata de Worms, que assegurava à igreja
plena liberdade na escolha e ordenação de seus bispos. Tal resultado foi promulgado pelo Concílio do
Latrão I, convocado pelo Papa Calixto II para Roma e celebrado de 18/03 a 16/04/1123 por cerca de
trezentos bispos e abades.
72
A palavra nicolaísmo designa o concubinato do clero, que os medievais julgavam estivesse indiretamente mencionado
em Ap 2, 6.15, onde há referência aos seguidores de Nicolau.
171 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
Os cânones definidos pelo Concílio versavam todos sobre a disciplina eclesiástica. Com efeito.
voltaram-se contra a simonia, o nicolaísmo e proibiram a ordenação de bispos que não tivessem sido
escolhidos canonicamente.
Em particular no tocante ao celibato sacerdotal, note-se que desde os primeiros séculos foi
abraçado espontaneamente pelos clérigos; o Concílio de Elvira (Espanha), por volta de 306, foi o
primeiro a promulgar tal praxe em âmbito regional; no decorrer dos séculos, subsequentes Concílios
regionais confirmaram o celibato dos clérigos. O Concílio do Latrão I não criou a lei do celibato, mas
apenas corroborou a legislação vigente nas diversas regiões da igreja, usando os seguintes termos:
"Proibimos expressamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos viver com concubinas e
esposas como coabitar com outras mulheres; excetuam-se apenas aquelas com as Quais o Concílio
de Nicéia permitiu habitar unicamente por motivo de necessidade, a saber: mãe, irmã, tia paterna e
outras a respeito das quais não pode haver suspeita".
As decisões do Concílio do Latrão I foram confirmadas pelo Papa Calixto II.
10. Concílio do Latrão II (1139)
Este dista do anterior apenas dezesseis anos. Foi convocado pelo Papa Inocêncio II (1130-1143)
para reafirmar a unidade e a disciplina da Igreja após o cisma do antipapa Anacleto II. Na verdade, em
1130, quando morreu o Papa Honório II, foi eleito o Papa legítimo Inocêncio II; todavia uma facção
elegeu ilegitimamente Pedro de Leão como antipapa Anacleto II. Este conseguiu prevalecer em Roma
— o que levou Inocência II a deixar a cidade eterna. São Bernardo tendo reconhecido Inocêncio como
Pontífice legítimo, moveu reis, nobres e todo o povo de Deus a apoiarem o Papa. Este conseguiu
voltar a Roma em 1133; finalmente, Anacleto faleceu aos 25/01/1138. Foi então que Inocêncio,
desejoso de consolidar a unidade da Igreja, reuniu mais de quinhentos bispos e abades no Concílio do
Latrão li, de 4 a 30/04/1139. Esta assembléia corroborou os cânones do Concílios regionais anteriores,
proibindo a simonia e o nicolaísmo; aos clérigos vetou outrossim o exercício da medicina e da
advocacia. Rejeitou a usura ou os juros; quem cedesse a esta prática, seria tido como infame.
Os decretos do Concílio foram confirmados por Inocência II.
11. Concilio do Latrão III (1179)
A luta da Igreja medieval contra os Imperadores, de um lado, e contra males internos, de outro
lado, prosseguiu mesmo após os Conciliares anteriores.
Alexandre III teve um pontificado longo (de 1159a 1181), durante o qual quatro antipapas se
sucederam por instigação dos Imperadores germânicos, especialmente de Frederico I Barbarroxa
(1152-1190). Eram Vítor IV (1159-64), Pascoal III (1164-68), Calisto III (1168-78), Inocêncio III
(1178-80). Durante o mesmo pontificado agravou-se o movimento dos Catares ou albigenses, hereges
dualistas, que assolavam regiões do Norte da Itália e do Sul da França.
No final do seu pontificado Alexandre III quis reunir um Concílio Ecumênico para tomar as
providências exigidas pelas circunstâncias. Tal assembléia se reuniu na basílica do Latrão de 5 a 19 de
março de 1179. Entre outras medidas promulgadas então, destacam-se - a regulamentação das eleições
papais; doravante seriam exigidos 2/3 dos votos, ficando excluído qualquer recurso a autoridades
leigas para dirimir dúvidas oriundas no processo eleitoral;
- rejeição do acúmulo de benefícios ou funções dentro da Igreja por parte de uma só pessoa;
- recomendação da disciplina da Regra aos monges e aos cavaleiros regulares, que interferiam
indevidamente no governo da Igreja;
- promoção e organização do ensino, em favor de estudantes que não pudessem pagar seus
mestres;
-condenação das heresias da época, que tinham um fundo dualista (catarismo) ou de pobreza mal
entendida (a Pattária, o movimento dos Pobres de Lião ou Valdenses).
O Papa Alexandre III confirmou as decisões do Concílio.
Ao termo da sua gestão, marcada, entre outras coisas, pelo surto das Ordens mendicantes, pelo
combate aos albigenses, pela intervenção em questões da Igreja da Inglaterra..., Inocêncio III quis
reunir um Concílio Ecumênico. Convocado desde 19/04/1213 para abrir-se a 19/11/1215, o Concílio
teve sua primeira sessão aos 11/11/1215, com a presença de 412 bispos, 800 abades e Superiores de
Ordens Religiosas, embaixadores de reis e nobres, que perfaziam uma bela imagem da grandeza da
Igreja governada por Inocêncio. O Concílio decretou
- a condenação dos albigenses e valdenses, assim como a dos erros de Joaquim de Fiore, que
esperava o fim do mundo para breve, apoiando-se em falsa exegese bíblica; o Concílio professou a
existência dos demônios como sendo anjos bons que abusaram do seu livre arbítrio pecando;
- a realização de mais uma cruzada para libertar o Santo Sepulcro de Cristo, que se achava nas
mãos dos muçulmanos;
- a profissão de fé na Eucaristia, tendo sido então usada a palavra "transubstanciação";
- a obrigação da confissão e da comunhão anuais.
O Concílio legislou ainda sobre vários pontos da disciplina e da Liturgia da Igreja, abrangendo
ampla área da vida eclesial. Aprovado pelo Papa Inocêncio III, é o mais importante dos Concílios
antes do de Trento.
13. Concílio de Lião I (1245)
Ao grande Papa Inocêncio III sucederam-se Honório III (1216-1227), Gregório IX (1227-1241),
Celestino IV (1241), Inocêncio IV (1243-1254). Este período foi, sem dúvida, glorioso para o Papado,
mas caracterizou-se pela recrudescência da luta entre o Sacerdócio e o Império. Na Alemanha, o
Imperador Frederico II (1215-50) foi pessoa marcante; afilhado do Papa Inocêncio III, teve uma corte
de soberano oriental ou sultão, dada ao luxo desenfreado e um tanto recoberta pelo véu do mistério.
Inocêncio IV, sentindo-se inseguro em Roma, transferiu sua resistência para Lião na França,
onde poderia contar com a tutela do rei São Luís IX. Lá o Papa quis reunir os bispos da Igreja
universal para considerar o procedimento do Imperador, as invasões dos árabes e dos mongóis no
Oriente e a reunião dos cristãos gregos com os latinos. O Concílio durou de 28/06 a 17/07/1245,
limitando-se quase unicamente a ouvir o depoimento de Tadeu de Suessa, delegado do Imperador;
após o que o monarca foi excomungado.
14. Concílio de Lião II (1274)
Após Frederico II a luta entre o Sacerdócio e o Império declinou — o que levou Gregório X
(1271-1276), um santo Pontífice, a procurar o reatamento de cristãos bizantinos e ocidentais. Para
tanto, escreveu ao Imperador Miguel VIII o Paleólogo, de Constantinopla, mostrando-lhe que a
reunião de todos os cristãos fortalecidos fortaleceria a presença dos mesmos no Oriente. O Imperador
Miguel mostrou-se disposto a aceitar a união com Roma, apesar dos protestos de dignitários da corte
bizantina. Por isto, enviou legados a Lião, aonde o Papa convocara todos os bispos da Igreja. O
Concílio durou de 7/05 a 17/07/1274. Conseguiu realmente a reunião de latinos e bizantinos sob o
primado do Papa.
A fim de evitar as constantes intervenções políticas de Imperadores e nobres na eleição dos
Papas, o Concílio promulgou novas medidas para garantir a liberdade dos eleitores, entre as quais a
prescrição de permanecerem em local fechado a chave ou conclave.
O Papa Gregório X abriu e encerrou o Concílio dando plena aprovação aos seus atos.
15. Concílio de Viena-Prança (1311-12)
O Papa Clemente V (1305-1314) teve que enfrentar o rei da França Filipe IV o Belo, que
representava, na época, o surto do absolutismo dos monarcas independentes do Sacro Império
Romano.
O rei cobiçava os bens da Ordem dos Templários. Esta era constituída por cavaleiros que,
mediante votos religiosos, se consagravam a Deus e se comprometiam a defender os peregrinos da
Terra Santa. No fim do século XIII os Templários haviam perdido a sua finalidade específica de
cavaleiros; enriquecidos por doações, começaram a provocar a ambição do rei. Este então pôs-se a
pressionar o Papa, levando-lhe acusações contra os Templários, a fim de obter a extinção da Ordem.
Clemente V, não querendo assumir a sós a responsabilidade de tal atitude, convocou para "16 de
outubro de 1311 o Concílio Ecumênico de Viena (França); o local se deve ao fato de que os Papas
residiam em Avinhão desde 1305. - A assembléia se reuniu até 6/05/1312. Acabou cedendo às
173 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
instâncias da situação criada pelo rei, declarando supressa a Ordem dos Templários. Estiveram na
pauta conciliar também os Franciscanos, dos quais uma corrente, dita "dos Espirituais", alimentava
ideias exageradas ou mesmo heréticas sobre a maneira de viver a pobreza. O franciscano Pedro Olivi
foi outrossim condenado por sua doutrina, que admitia no ser humano elementos intermediários entre
a alma e o corpo.
O Papa Clemente V confirmou as decisões do Concílio.
16. Concílio de Constança (1417)
A crescente ingerência da França na história do Papado levou não somente ao exílio de Avinhão
(1305-1378), já mencionado anteriormente, mas também ao Grande Cisma do Ocidente. Com efeito,
quando o Papado voltou a fixar residência em Roma no ano de 1378, o primeiro conclave realizado na
Cidade Eterna elegeu o Papa Urbano VI (1378-89), ao qual um grupo de Cardeais, influenciado pelo
rei da França... depôs o antipapa Clemente VII (1378-94), que ocupou a sede de Avinhão. Houve
então, daí por diante, duas obediências na Igreja: a de Roma, autêntica, e a de Avinhão, espúria.
Desejosos de remediar a este mal, vários Cardeais e bispos se reuniram em Pisa num "pseudo-
Concílio ecumênico" de 1409; declararam depostos o Papa e o antipapa e elegeram Alexandre V, que
se tornou o segundo antipapa, com sede em Pisa.
A situação perplexa assim oriunda foi superada aos poucos pela intervenção do Imperador
Sigismundo (1410-37). Este resolveu convocar um Concílio para Constança em 1414. Tal assembléia
não era legítima, pois se reunia sem a aquiescência do Papa ou do bispo de Roma; os bispos e teólogos
reunidos começaram por afirmar o conciliarismo ou declarar (ilegitimamente) a supremacia do
Concílio Ecumênico sobre o Papa, de tal modo que o Romano Pontífice deveria submeter-se às
decisões do Concílio. Em conseqüência, depuseram o antipapa João XXIII. Quanto a Gregório XII, o
Papa legítimo, resolveu convocar os Padres Sinodais reunidos em Constança, para que doravante
pudessem constituir autêntico Concílio Ecumênico; tendo os referidos bispos aceito o mandato,
Gregório XII renunciou às funções papais, de modo que a cátedra de Pedro ficou vacante. Por sua vez.
Bento XIII, o antipapa residente na Catalunha, foi deposto pelo Concílio. Estava assim aberta a via
para a legítima eleição do sucessor de Gregório XII. O novo Papa foi finalmente escolhido aos
11/11/1417 com o nome de Martinho V.
O Concílio de Constança só se tornou legítimo a partir da sua 36 a sessão, ou seja, depois que
Gregório XII lhe conferiu autoridade para agir. Donde se vê que a apologia de conciliarismo feita
anteriormente não tem valor teológico ou jurídico. Após a eleição de Martinho V, os padres
conciliares ainda condenaram a doutrina de João Wiclef, João Hus e Jerônimo de Praga, que eram
precursores de Lutero. Tomaram medidas relativas à disciplina do clero e estipularam que
periodicamente se realizariam Concílios Ecumênicos para atender ao governo da Igreja.
17. Concílio de Ferrara-Florença (1438-1445)
Martinho V, desejoso de continuar a obra dos Concílios anteriores, convocou um Concílio
Ecumênico para Basileia (Suíça) em 1431. Eis, porém, que os padres em Basileia reafirmaram o
conciliarismo, rejeitado anteriormente — o que provocou conflitos entre a assembléia de Basileia e o
sucessor de Martinho V, que era Eugênio IV. Em conseqüência, este Papa resolveu dissolver o
Concílio de Basileia e convocar outro para Ferrara em 1438; esta assembléia teria por principal
objetivo promover a reunião de gregos e latinos.
O Concílio de Ferrara, aberto aos 10/01/1438, contou com a presença do Imperador bizantino
João o Paleólogo e de sua comitiva. Desabonou as resoluções do Concílio de Basileia. A peste tendo
surgido em Ferrara, o Papa Eugênio IV transferiu a assembléia para Florença. O tema principal dos
estudos foi a extinção do cisma: após prolongadas conversações, os conciliares puseram-se de acordo
sobre os pontos teológicos e disciplinares controvertidos, assinando a Bula Laetentur caeli de
06/07/1439. Também voltaram à unidade da Igreja cristãos monofisitas (coptas, etíopes e armênios).
Em fins de 1442, Já tendo partido os gregos, o Papa transferiu o Concílio para Roma. Nesta
cidade, ainda voltaram à unidade da Igreja osmonofisitas da Mesopotâmia, alguns grupos de
nestorianos (caldeus) e de maronitas (monotelitas) da ilha de Chipre.
Infelizmente, a união com Bizâncio foi efêmera, pois os prelados do Patriarcado de
Constantinopla se recusaram a aceitá-la.
18. Concílio do Latrão V (1512-1517)
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 174
A vida da Igreja, após o Concílio de Ferrara-Florença, viu-se agitada por causas diversas:
persistência de correntes conciliaristas, que eram fomentadas pelos monarcas desejosos de criar
Igrejas nacionais independentes de Roma...; além do que, havia necessidade de sérias medidas
disciplinares.
Diante disto, o Papa Júlio II convocou mais um Concílio Ecumênico, que foi inaugurado aos
03/05/1512 e só se encerrou aos 16/03/1517 sob o pontificado do Papa Leão X. Condenou a
Pragmática Sanção de Bourges, declaração que favorecia a criação de uma Igreja Nacional de França.
Com isto o conciliarismo foi mais uma vez rejeitado. Em lugar de tal documento, a Santa Sé e a
França assinaram uma Concordata-que regulamentava as relações entre os dois Estados.
No setor doutrinal, o Concílio tomou posição de grande importância, condenando a tese segundo
a qual a alma humana é mortal e uma só para todos os homens; tal tese, segundo o seu autor Pietro
Pomponazzi, seria verídica no plano filosófico, ainda que falsa no plano teológico. — Foram outros-
sim tomadas medidas disciplinares relativas ao clero (seus estudos e sua formação) e à pregação;
exigiu-se o Imprimatur para livros que versassem sobre fé ou teologia; seria queimado todo livro não
munido da devida permissão.
Infelizmente, as resoluções do Concílio, oportunas como eram, não encontraram eco nos
diversos países católicos, pois o clima da época, bafejado por cultura pagã, dificultava uma séria e
profunda conversão dos cristãos. Como quer que seja, o Concílio do Latrão V preparou a grande
Reforma da Igreja, promulgada pelo de Trento.
19. Concílio de Trento (1545-47, 1551-52, 1562-63)
Este foi o mais importante Concílio de toda a história, importância esta que se explica pela
problemática que enfrentou (a Reforma protestante) e as soluções que adotou.
Pouco depois de lançar o seu brado de protesto contra a Igreja em 1517, Lutero apelou para a
realização de um Concílio Ecumênico que considerasse os pontos por ele lançados em rosto à Igreja.
Todavia este apelo só começou a encontrar resposta sob o pontificado de Paulo III (1550-55).
As razões do adiamento eram várias: o Papa Leão X não deu grande importância ao gesto de Lutero;
além disto, havia certa resistência, da parte dos clérigos, a uma reforma dos costumes na Igreja;
ademais a situação geral da Europa era de agitação política. Foi precisamente a agitação religiosa e
política da Europa que cindiu a realização do Concílio em três etapas na cidade de Trento:
A primeira fase (1545-47) definiu mais uma vez o cânon das S. Escrituras e declarou a Vulgata
latina isenta de erros teológicos. Abordou as questões discutidas sobre o pecado original, a
Justificação. os sacramentos, a residência dos bispos nas respectivas dioceses. A peste tendo
começado a grassar em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha. O Imperador Carlos V
tendo-se oposto a esta determinação, foi necessário suspender o Concilio.
A segunda fase continuou em Trento (1551-52) sob o Papa Júlio III (1550-55). Promulgou longa
exposição e cânones sobre a Eucaristia (presença real. Transubstanciação. culto. . .). Algo de
semelhante ocorreu no tocante ao sacramento da Penitência (necessidade, partes essenciais, satisfação)
e ao da Unção dos Enfermos (origem, efeitos, ministro, sujeito...). O Concílio, aos 28/04/1552, foi
mais uma vez suspenso por motivo de pressões políticas.
O Papa Pio IV (1559-1565) reabriu o Concílio aos 18/01/1562. Esta terceira fase reafirmou as
verdades referentes ao S. Sacrifício da Missa, aos sacramentos da Ordem, do Matrimônio, ao
purgatório, à invocação dós santos, às imagens e às indulgências. Promulgou também resoluções a
respeito dos Religiosos e das monjas.
Pela Bula Benedictus Deus (26/01/1564) Pio IV confirmou todos os textos conciliares, dando
por encerrado o Concílio que havia de marcar profundamente o catolicismo dos tempos modernos.
20. Concílio do Vaticano I (1869-70)
Após o Concilio de Trento, a tendência ao esfacelamento dos valores da Idade Média mais e
mais se fez sentir. A Revolução Francesa (1789) significou o brado da razão e do nacionalismo contra
a fé. Seguiu-se-lhe o século XIX, que foi marcado pelo materialismo e o ateísmo fora da Igreja, e
dentro da Igreja pelos ecos das tendências conciliaristas e do separatismo, que solapavam a autoridade
papal e a unidade da Igreja. Foram estes fatores que induziram o Papa Pio IX (1846-78), aconselhado
por eminentes figuras do episcopado e do laicato católicos, a convocar o 20 o Concílio Ecumênico para
o Vaticano. A grande assembléia de 764 padres conciliares se reuniu de 8/12/1869 a 20/10/1870,
175 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja
tendo por objetivo fazer frente ao racionalismo do século XX, como o Concílio de Trento fizera frente
ao protestantismo do século XVI.
Infelizmente o Concílio foi suspenso (não encerrado, porém) prematuramente por causa do
início da guerra franco-alemã em setembro de 1870. Promulgou, porém, duas Constituições
Dogmáticas de real importância;
- uma, a Dei Filius, sobre a fé católica ensina que Deus se revela através da criação como
também através de Jesus Cristo; por conseguinte, pode ser reconhecido tanto pela razão como pela fé,
as quais não podem estar em desacordo entre si;
- a outra, a Pastor Aeternus, referente à Igreja, definiu a infalibilidade do Pontífice Romano
quando fala ex cathedra sobre assuntos de fé e de Moral.
O Concílio trataria também dos bispos e dos demais membros da Igreja se não tivesse sido
interrompido abruptamente. Tal tarefa haveria de ser a do Concílio do Vaticano II.
21. Concílio do Vaticano II (1962-65)
Como dito, o Concílio do Vaticano l ficou incompleto, deixando em suspenso diversas questões
teológicas e pastorais.
Os Papas desde São Pio X (1903-14) pensaram em reativar os trabalhos do Concílio: todavia as
circunstâncias não favoreciam tarefa de tal envergadura. Foi a coragem do idoso Papa João XXIII -
(1958-63) que convocou o 21° Concílio Ecumênico da história aos 25/01/1961. Este certame foi
inaugurado aos 11/10/1962 sob João XXIII, e encerrado aos 7/12/1965, sob o Papa Paulo VI. Tinha
em mira, de modo geral, realizar o aggiornamento ou a atualização da Igreja numa época em que os
costumes e as mentalidades evoluem com rapidez surpreendente. O alcance deste Concílio foi enorme;
sem perder o contato com a Tradição, os padres conciliares promulgaram dezesseis documentos
(Constituições, Decretos, Declarações), que levaram em consideração os principais temas que se
impunham à reflexão da Igreja. O Concílio teve Índole eminentemente pastoral, isto é, visou à vida
crista e à sua disciplina, em vez de se voltar para definições de fé ou de Moral. A abertura equilibrada
dos documentos conciliares pode ser percebida em seus traços marcantes:
- renovação da Liturgia, que deveria ser celebrada em estilo mais comunitário e acessível aos
fiéis;
- reafirmação, da Igreja como sacramento, estruturado por Pedro e a hierarquia, sem deixar de
responsabilizar, na medida precisa, todo o povo de Deus;
- abertura para os demais cristãos (protestantes, ortodoxos e outros) que não se acham em plena
comunhão com a Igreja de Cristo entregue a Pedro e seus sucessores;
- declaração sobre as religiões não cristas, nas quais os padres conciliares realçaram a existência
de elementos positivos;
- declaração sobre a liberdade religiosa, que significa o direito, inerente a todo homem, de
formar livremente a sua consciência diante de Deus e da fé;
- tomanda de posição da Igreja frente às diversas facetas que o mundo de hoje lhe apresenta:
família. comunidade política, economia, cultura, paz e guerra. . .
Em síntese, pode-se dizer que o Concílio do Vaticano II foi uma das mais significativas
realizações da Igreja nos tempos modernos, portadora de amplas conseqüências (das quais algumas
foram menos felizes em virtude de falsa compreensão dos textos e da mente dos padres conciliares).
CONCLUSÃO
Quatro observações parecem oportunas à margem da história dos Concílios:
1) Os Concílios refletem nitidamente a história da Igreja e seus embates. Foram solenes
assembléias em que a Igreja comunitariamente se voltou para os desafios que a caminhada através dos
tempos lhe suscitava. As decisões dos Concílios, por isto, hão de ser lidas e compreendidas sempre à
luz do respectivo contexto histórico,
2) Os primeiros Concílios eram convocados pelos Imperadores e não pelo bispo de Roma ou o
Papa. A Igreja, em seus primeiros séculos, embora fosse confiada a Pedro, não podia ter governo tão
centralizado como o teve a partir da Idade Média, visto que as comunicações eram outrora difíceis
entre Oriente e Ocidente. Contudo, para que as definições dos Concílios tivessem autoridade, foi
sempre necessário que o bispo de Roma as aprovasse e confirmasse. Nenhum Concílio tem poder de
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 176
decisão sem a participação e o apoio do Papa, ainda que esta aprovação lhe seja dada depois de
realizado o Concílio.
3) A teoria conciliarista, que pretendia estabelecer os Concílios acima dos Papas, não
representava o pensamento tradicional da igreja e, por isto, não prevaleceu.' Violava o conceito de
Igreja, sacramento e dom de Deus, em favor da concepção de Igreja, sociedade meramente humana ou
"república".
4) Quem estuda a história dos Concílios (infelizmente a que vai proposta nestas páginas, teve de
ser resumida ao extremo), tem a ocasião de reconhecer a ação de Deus entre os homens. A Igreja
subsiste até hoje não por causa dos valores dos homens que a integram (estes valores existiram e
existem, sem dúvida!), mas por causa da presença eficaz de Deus que a sustenta através dos séculos.
SUMÁRIO
ESCOLA “MATER ECCLESIAE” ............................................................................................................. 1
MÓDULO 1: A IGREJA NASCE ............................................................................................................. 4
Lição 1: O ambiente .................................................................................................................................. 4
Lição 2: Jesus e a Igreja ............................................................................................................................ 6
MÓDULO 2: OS APÓSTOLOS E A PROPAGAÇÃO DA IGREJA ...................................................... 7
Lição 1: O Apóstolo São Pedro ................................................................................................................ 7
Lição 2: O Apóstolo São Paulo ................................................................................................................. 7
Lição 3: A expansão do Cristianismo nascente ........................................................................................ 9
MÓDULO 3: OS PRIMEIROS ESCRITORES CRISTÃOS .................................................................. 9
Lição 1: Os Padres Apostólicos .............................................................................................................. 10
Lição 2: O combate escrito aos cristãos .................................................................................................. 10
Lição 3: Os Apologetas........................................................................................................................... 12
MÓDULO 4: AS PERSEGUIÇÕES......................................................................................................... 12
Lição 1: Fatores positivos ....................................................................................................................... 12
Lição 2: Fatores negativos ...................................................................................................................... 13
Lição 3: A luta sangrenta ........................................................................................................................ 14
MÓDULO 5: IGREJA E IMPÉRIO NO SÉCULO IV ....................................................................... 15
Lição 1: Constantino e a Paz de Milão ................................................................................................... 15
Lição 2: A época constantiniana ............................................................................................................. 17
Lição 3: Juliano o Apóstata (361-3)........................................................................................................ 17
MÓDULO 6: IGREJA E IMPÉRIO NOS SÉCULOS IV/V ............................................................. 18
Lição 1:... até o fim do século IV............................................................................................................ 18
Lição 2: O Século V................................................................................................................................ 19
Lição 3: A ação evangélica da Igreja ...................................................................................................... 20
MÓDULO 7: A IGREJA E OS POVOS BÁRBAROS ......................................................................... 21
Lição 1: O receio dos cristãos ................................................................................................................. 22
Lição 2: Olhar mais otimista ................................................................................................................... 22
Lição 3: A evangelização dos bárbaros .................................................................................................. 23
MÓDULO 8: AS HERESIAS TRINITÁRIAS ..................................................................................... 24
Lição 1: O monarquianismo.................................................................................................................... 24
Lição 2: Arianismo e semiarianismo ...................................................................................................... 25
Lição 3: O Macedonianismo ................................................................................................................... 27
MÓDULO 9: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (I) ....................................................................... 27
Lição 1: O Apolinarismo ........................................................................................................................ 27
Lição 2: O Nestorianismo ....................................................................................................................... 28
Lição 3: O Monofísismo ......................................................................................................................... 29
MÓDULO 10: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (II) .................................................................. 30
Lição 1: O Henotikón e o Teopasquismo ............................................................................................... 30
Lição 2: Os Três Capítulos ..................................................................................................................... 31
Lição 3: Monergetismo e monotelitismo ................................................................................................ 32
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