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História Da Igreja

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1 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”


INTRODUÇÃO
Meu caro cursista, você está recebendo em mãos os primeiros módulos de um Curso de História
da Igreja. Antes de iniciar seus estudos, será oportuno que reflitamos juntos sobre o conteúdo e o
significado desse Curso.
1. A história da Igreja não pode ser equiparada à de outra sociedade. Com efeito; sabemos que a
Igreja não é apenas a soma de seus membros, mas é o Corpo de Cristo prolongado através dos séculos
(1Cor 12,12-21; Cl 1,24); é a continuação do mistério da Encarnação, pelo qual Deus quis revelar-se e
também ocultar-se mediante nossa fragilidade, a fim de comunicar sua santidade aos homens.
Conseqüentemente na história da Igreja vamos encontrar façanhas de enorme brilho (como a
evangelização dos bárbaros, a preservação e a transmissão da cultura antiga, os gestos dos mártires,
dos missionários, dos heróis da fé) como também nos defrontamos com momentos difíceis, como
foram os séculos X e XVI. A sucessão ou a simultaneidade de luz e sombras não surpreende o
estudioso cristão; para este, aliás, e também para o não cristão, o fato de que a Igreja até hoje subsiste
cheia de vitalidade apesar do contra-testemunho de muitos filhos seus, é o sinal mais evidente de que
Deus, e não os homens, sustenta a Igreja. Os bons mestres, à revelia dos inovadores, sempre fizeram
questão de dizer que a Igreja não consta apenas de santos, mas que nela existirão até o fim dos tempos
justos e pecadores, como o próprio Senhor predisse na parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13,24-30.36-
43). Fato interessante: nos períodos mais dolorosos da sua história, a Igreja encontrou o vigor da
renovação em seu próprio bojo, ou seja, na santidade dos seus membros que se dedicaram à oração e à
pureza de vida; foram os santos que, suscitados oportunamente por Deus, restauraram o fulgor da
Santa Mãe Igreja.
2. Caro cursista, você percorrerá vinte séculos de história, consciente de que cada época tem seu
tipo de cultura e civilização próprio Estes tipos próprios condicionaram freqüentemente a
compreensão das verdades do Evangelho; os antepassados fizeram, de boa fé e com zelo cândido,
coisas que hoje não seriam repetidas (a Inquisição, as Cruzadas, a escravatura...). Ora não podemos
julgar as gerações passadas com os critérios de hoje, mas temos que nos recolocar-no ambiente dos
antigos para compreender os fatos como eles os compreenderam ou dentro das coordenadas que a sua
época lhes oferecia. Não silenciaremos em nosso estudo os feitos escabrosos de homens da Igreja, mas
nem por isto condenaremos globalmente todos esses cristãos, como se eles tivessem o
desabrochamento cultural de nossos dias. Diz sabiamente um historiador contemporâneo:
"Se quisermos compreender a história, sentir as atitudes dos nossos maiores, muitas delas para o
homem de hoje chocantes e paradoxais, procuremos estudar a mentalidade de cada época, o sentido
social do tempo, os critérios em que se estribava a legislação vigente... Assim podemos melhor
entender certos episódios históricos, tais como a chamada intolerância religiosa, a Inquisição, a
distinção entre cristão-novo e cristão-velho, o fato da escravatura... Aduzimos tais exemplos não para
levantar loas aos aspectos menos evangélicos dessas instituições político-religiosas, mas para
descobrir menos má vontade ou ignorância nos homens do tempo. Aliás, nós homens do findar do
século XX somos, com freqüência, assaz ingênuos e incoerentes. Condenamos episódios passados que
nos parecem monstruosos e calamos fenómenos históricos em edições contemporâneas ainda mais
volumosas e cruéis, por que apresentados sob o disfarce de intenções aparentemente legítimas ou em
nome de leis sociais que parecem válidas e aceitáveis" (Arlindo Rupert, A Igreja no Brasil, vol. I,
Santa Maria 1981).
3. O estudo da história da Igreja deve decorrer do amor à Igreja e levar a um aumento desse
amor. Diz a sabedoria popular: "Ninguém ama o que não conhece"; por isto também mais amará a
Igreja aquele cristão que sabiamente a estudar em sua história bimilenar. Não se pode menosprezar o
passado, pois é nele que estão as raízes do presente e do futuro; a história vem a ser uma escola que
nos ensina a viver melhor hoje e a preparar o porvir da humanidade. Todo edifício deve ter sua base
para se equilibrar; toda renovação supõe o conhecimento daquilo que a precedeu: "O verdadeiro
progresso jamais condena as suas fases anteriores; passa de um bem para outro melhor, sem, porém,
considerar um mal aquilo que antigamente era um bem" (L.M. Carli, A Igreja Viva. São Paulo 1971,
p. 125).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 2

Aliás, a história dilata os horizontes, abre panoramas novos. Em particular, o estudo da história
da Igreja exige conhecimentos de geografia e de história gerais, sem os quais o estudioso se sentiria
desorientado.
4. Como dividiremos a História da Igreja?
A história universal foi dividida pelos renascentistas dos séculos XV / XVI em Antiga, Medieval
e Moderna. Os historiadores da Igreja, a partir do século passado, adotaram esta distribuição, que
continua em voga até hoje, com o acréscimo de mais um período: o contemporâneo.
As razões para assim dividir a História da Igreja são válidas: 1) a mudança de cenário e de
cultura acarretada pela invasão dos povos germânicos na Europa dos séculos V / VII foi pondo termo
à Idade Antiga; convencionalmente dizemos que em 692, data do Concílio regional de Trulos II,
começa a Idade Média; 2) o renascimento das ideias e da cultura greco-romanas no século XV, bem
como a Reforma Protestante e a descoberta de novos continentes, dão origem a nova fase da história -
a Idade Moderna, que convencionalmente começa em 1450; 3) o Tratado do Latrão entre a Santa Sé e
o Governo italiano assim como os rápidos progressos das ciências e da técnica no século XX obrigam
a assinalar o início de nova Idade - a Contemporânea - em 1929. Por conseguinte, temos:
I. História da Igreja Antiga: - 692. Distinguimos neste período duas sub-fases: - 313 e 313-692.
Até 313, a Igreja foi duramente perseguida: o Edito de Milão, concedendo a paz aos cristãos, permitiu
a evangelização mais sistemática das instituições e também dos povos bárbaros invasores; estes
imprimiram suas características próprias à vida cristã.
II. História da Igreja Medieval: 692-1450. Nesta distinguimos três sub-fases: a) 692-1054: Idade
Média Ascendente. Este período é de reconstrução após as invasões. O poder civil pratica a
investidura leiga, nomeando os bispos - o que prejudica seriamente a disciplina da Igreja. Esta, porém
vai-se implantando no plano da doutrina e da cultura, o que forma a sociedade medieval,
b) 1054-1294: Alta Idade Média. Estes são os séculos em que a Igreja mais se projeta tanto no
foro religioso como no civil; atinge o auge com o pontificado de Inocêncio III (1198-1215),
c) 1294-1450: Idade Média decadente. A Igreja vai perdendo influência no foro civil, ao mesmo
tempo que se dá o empobrecimento da teologia e da piedade.
III. História da Igreja Moderna: 1450-1929. Esta época se subdivide em duas sub-fases:
a) 1450-1789 (Revolução Francesa): novas ideias racionalistas vão-se difundindo, o que obriga a
Igreja a novas respostas; o século XVII é dito "o século dos Santos";
b) 1789-1929: o racionalismo e o materialismo se fazem sentir com toda a pujança, enquanto a
fé se propaga nos territórios de missão.
IV. História da Igreja Contemporânea: 1929 -. Desafiada por novas situações e correntes de
pensamento, a Igreja tira da sua vitalidade novas expressões de fé; tenhamos em vista o renascimento
bíblico-litúrgico-eclesiológico.
Eis, prezado cursista, o que temos a dizer-lhe ao entregar-lhe estes módulos.
Queira estudá-los com vagar e com amor ao Verbo que se encarnou em Maria Virgem para viver
no Corpo Místico da Igreja através dos séculos!
Estêvão Bettencourt O.S.B.
BREVE LÉXICO
Arquidiácono: O diaconato é o primeiro grau do sacramento da Ordem; é o primeiro serviço ao
altar e ao próximo que os clérigos assumem, participando, a seu modo, do sacerdócio de Cristo. -
Arquidiácono era, a partir do século VI, o chefe dos diáconos, encarregado de funções importantes:
administrar os bens da diocese, formar os jovens clérigos, cuidar da disciplina da Igreja, às vezes
governar a diocese na ausência do bispo. O arquidiácono chegou a ser um Vigário Geral do Bispo
(séc. VIII-IX). Aos poucos a palavra ficou sendo um título honorífico, que hoje é muito raro.
Arquimandrita: Título que designa o Superior de um mosteiro ou de um conjunto de mosteiros
no Oriente. Pode ser também título honorífico concedido a sacerdotes não casados no Oriente.
Cardeal: Esta palavra vem do latim cardo, gonzo, o que já exprime função importante.
Designava os clérigos que serviam estavelmente a uma igreja. A partir do século V, ficou sendo o
titulo dos sacerdotes e diáconos de Roma; desde o século VIII, o colégio dos Cardeais compreendia
também os bispos suburbicários de Roma. Atualmente são os conselheiros e eleitores do Papa; cada
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qual é titular de uma igreja de Roma ou dos seus subúrbios, mas pode viver fora da Cidade Eterna,
administrando outra diocese.
Cisma: Ruptura da unidade da Igreja por recusa de obediência ao Papa; às vezes é encabeçada
por um chefe dito antipapa e corre o perigo de se mesclar de heresia.
Comenda: Benefício (bispado, abadia, igreja...) outrora concedido a um eclesiástico ou a um
leigo. Este titular podia não ter a obrigação de administrar nem residir no seu benefício; entregava as
funções administrativas a um gerente seu.
Concílio: Reunião de bispos de uma região (Concílio regional) ou da Igreja inteira (Concílio
Ecumênico). Foram 21 os Concílios Ecumênicos da história. Ecumênico, no caso, significa
simplesmente universal; nada tem que ver com o diálogo entre católicos e cristãos não católicos. Todo
Concílio Ecumênico, se não é convocado pelo Papa, tem que receber do Papa a sua legitimidade e os
seus decretos precisam de aprovação do Papa para ter validade jurídica.
Conclave (= com chave): Reunião dos Cardeais eleitores do Papa. Tomou tal nome porque a
partir do século XIII os Cardeais eram trancados a chave na mesma residência com diminuição
gradual de alimentos à medida que demorassem para eleger o novo Pontífice. O Concílio de Lião
(1274) prescreveu tal procedimento, que, aliás, nem sempre foi observado.
Ecumênico: do grego oikouméne (== terra habitada). Significa originariamente "universal". No
século XX ecumenismo vem a ser o movimento que tende a reconstituir a unidade violada entre os
cristãos. Com os não cristãos os católicos mantêm diálogo religioso, que, por convenção, não deve ser
chamado ecumenismo.
Excomunhão: é a mais grave das penas eclesiásticas; deve ter sempre sentido medicinal ou
favorecer a conversão do delinqüente. Implica a exclusão não só dos sacramentos e de qualquer
ministério da Igreja, mas também a das demais graças de que usufruem os membros da Igreja por
estarem inseridos na comunhão dos méritos de Cristo (comunhão dos santos).
Heresia: Negação consciente e voluntária de uma verdade proposta pela Igreja como
pertencente ao patrimônio da fé.
Interdito: é uma pena eclesiástica que priva os cristãos, direta ou indiretamente, de benefícios
espirituais, todavia sem os privar da comunhão com a Igreja. Na Idade Média ocorria principalmente o
interdito local; este implicava que não se celebrassem a S. Missa, os sacramentos, a sepultura
eclesiástica ou algum ato litúrgico no território afetado pela censura. Esta penalidade hoje não existe
mais. Persiste, porém, o interdito pessoal, que proíbe determinado cristão de receber os sacramentos
ou de celebrar a S. Missa ou algum ato de culto divino. Trata-se de uma excomunhão mais branda.
Mitra e báculo: são as insígnias do bispo, do abade ou de quem tenha especial autorização para
as usar. A mitra é o sucedâneo de frigium ou do barrete que as autoridades utilizavam antigamente;
assemelha-se a um chapéu em forma de capacete. A partir do século XIV, os Papas traziam o
triregnum ou a tiara, mitra ornamentada de três coroas, que na época de Paulo VI (1963-1978) foi
abolida. O báculo é o cajado do pastor, próprio dos bispos, abades e abadessas, que hoje em dia tem
forma estilizadas, podendo lembrar a Cruz do Senhor.
Padre da Igreja: Já na antiguidade o mestre era chamado pai por seu discípulo, pois a
transmissão da verdade era tida "como transmissão da vida. Os bispos, por terem a missão de ensinar.
eram também chamados pais (cf. 1Cor 4,15). No sentido estrito. Padres da Igreja são os escritores
(não necessariamente presbíteros ou bispos) que nos primeiros séculos contribuíram para a exata
elaboração e a precisa formulação das verdades da fé em tempos de debates teológicos com escolas
heréticas. Devem atender a quatro notas características: 1) ortodoxia (comunhão de doutrina com a
Igreja); 2) santidade de vida; 3) aprovação da Igreja (deduzida das declarações do Magistério); 4)
antiguidade (até São Gregório Magno, 1604, no Ocidente; até São João Damasceno, +749, no
Oriente). - A tradição reconhece quatro grandes padres ocidentais e quatro grandes orientais: S.
Ambrósio (+ 397), S. Agostinho (+430), São Jerônimo (+ 421), São Gregório Magno (+604) no
Ocidente; S. Basílio ( +379), São Gregório de Nazianzo (+390). Santo Atanásio ( + 373) e São João
Crisóstomo (+407), no Oriente.
Papa: O nome vem do grego pappas, pai. Era o título de todos os bispos da antiga Igreja, visto
que todos exerciam uma paternidade espiritual. No século VI começou a ser reservado ao Bispo de
Roma, sucessor de São Pedro e detentor do primado de magistério e jurisdição na Igreja inteira.
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Patriarca: Na constituição da Igreja, é o Bispo das cinco principais sedes da antiguidade:


Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma, Bizâncio (Constantinopla). O titulo foi concedido
tardiamente a outros poucos Bispos por deferência às suas sedes (assim Lisboa em Portugal, Goa na
índia).
Prelado; Do latim praelatus, colocado à frente. É o clérigo (diocesano ou Religioso) que exerce
jurisdição ordinária no foro externo.
Sínodo: Concílio ou assembléia de Bispos chamados a estudar determinadas questões de fé ou
de disciplina. Pode ser regional ou universal.
Suspensão: é a pena medicinal pela qual um clérigo é proibido, em parte ou por completo, de
exercer as Ordens sacras ou a jurisdição eclesiástica.

MÓDULO 1: A IGREJA NASCE


Lição 1: O ambiente
Diz São Paulo que Cristo nasceu "na plenitude dos tempos" (Gl 4,4; Ef 1,10). Isto significa que a
humanidade foi preparada pelo Senhor Deus para receber o Salvador. A fim de esboçar os termos
dessa preparação, distinguiremos o mundo greco-romano e o mundo judeu.
1.1. O mundo greco-romano
O Império Romano, que se estendia desde a Síria até a Espanha e do rio Nilo ao rio Danúbio,
criou uma vasta organização política. Nesta desapareceram as barreiras que dividiam povos outrora
inimigos entre si: a mesma língua grega, o mesmo sistema jurídico e administrativo suscitavam certa
unidade nas condições de vida desses povos. O comércio intenso por mar e por terra tornava possível
o intercâmbio de bens materiais e de ideias. O Imperador Otávio Augusto (30 a.C. - 14 d.C.), pode-se
dizer, instaurou a paz (Pax Romana) e a normalidade dentro das suas fronteiras. Tais características,
por certo, haveriam de facilitar a propagação do Evangelho: os Apóstolos e discípulos de Cristo se
beneficiaram grandemente das estradas, dos meios de comunicação e da cultura do Império para
difundir a Boa-Nova; São Paulo recorreu, mais de uma vez, aos seus direitos de cidadão romano no
exercício de sua missão apostólica (ver At 16,35-39; 22,25-29; 25,10-12). Em conseqüência, podia o
cristão Orígenes de Alexandria escrever por volta de 248: "Deus preparou os povos e fez que o
Império Romano dominasse o mundo inteiro... porque a existência de muitos reinos teria sido um
obstáculo à propagação da doutrina de Deus sobre a terra" (Contra Celso II 30).
Todavia no plano da filosofia e da Moral, registrava-se decadência. O pensamento grego chegou
ao seu auge com Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a. C.). Depois foi declinando até o
ceticismo de Pirro, o cinismo de Diógenes e o ecleticismo. A razão deste declínio foi a frustração que
a Filosofia acarretou para os seus cultores: Platão e Aristóteles conceberam um deus que era "amado"
pelos homens, mas não retribuía o amor precisamente por ser Deus ou ser perfeito; após Aristóteles, a
confiança do homem na razão para descobrir as respostas aos seus anseios foi-se esvaindo.
Substituindo o intelectualismo, a partir do século I a.C., apareceram as chamadas "religiões de
mistérios", que apelavam não para o raciocínio, mas para a pureza de coração e a mística como vias de
encontro com a Divindade; não o acume intelectual do homem provocaria a descoberta da Divindade,
mas esta é que se revelaria a quem se lhe abrisse mediante um processo de iniciação ascética e ritual;
essas religiões falavam de culpa, expiação, renascimento, imortalidade, vida feliz no além-túmulo...;
seus sacerdotes praticavam a direção espiritual e a instrução dos devotos para que chegassem à
salvação.
Sem dúvida, as religiões de mistérios suscitavam nos seus devotos uma atitude muito propícia
para receber o Messias Jesus e sua graça; excitavam no homem a consciência (aliás, já despertada pela
própria experiência dos séculos anteriores) de que a criatura não pode, por si só, chegar até Deus, mas
precisa de que Este lhe venha ao encontro gratuitamente. Esta noção é básica na mensagem do
Evangelho. - Deve-se reconhecer também que a própria Filosofia grega, embora nas suas linhas gerais
não tenha podido satisfazer às aspirações fundamentais do homem, forneceu, todavia aos pensadores
cristãos um valioso instrumental para ilustrar as verdades da fé cristã; o platonismo com sua sede do
Transcendental e Invisível foi muito valorizado pela tradição teológica grega e latina até a Idade
Média ou até S. Boaventura (+1274); o aristotelismo, que nos primeiros séculos pareceu racionalista a
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muitos mestres cristãos, foi na Idade Média assumido por S. Tomás de Aquino (+1274), entrando
assim na Escolástica medieval e moderna; o estoicismo, representado principalmente por Sêneca (+65
d.C.), Epicteto (+138 d.C.) e o Imperador Marco Aurélio (+180 d.C.), influiu na formulação da Ética
cristã; esta encontrava ecos antecipados em certos princípios ascéticos do estoicismo, na aceitação da
lei natural, no reconhecimento de que todos os homens são iguais e devem ser solidários entre si; a
proximidade de normas do estoicismo e do Cristianismo deu ocasião a que um cristão anônimo
escrevesse em latim uma correspondência epistolar apócrifa entre Sêneca e São Paulo (há oito cartas
atribuídas a Sêneca, pretensamente convertido ao Cristianismo, e seis cartas ditas do Apóstolo, que
abordam a "conversão" de Sêneca e a missão deste filósofo como pregador do Evangelho na corte
imperial).
Em suma, alguns autores cristãos dos séculos II e III quiseram, ver na cultura grega a preparação
do Evangelho; assim, por exemplo. Clemente de Alexandria (+214) chamava a filosofia "um dom que
Deus concedeu aos gregos" (Stromata I 2,20); dizia outrossim: "A filosofia educou o mundo grego
como a Lei de Moisés educou os hebreus (Gl 3,24), orientando-os para Cristo" (Stromata I 5,28).
1.2. O mundo Judaico
Entre os demais povos da terra nos tempos anteriores a Cristo, distinguia-se o povo Judaico por
seu monoteísmo ou pelo culto estrito de um só Deus. Os estudiosos têm procurado explicar o surto e a
persistência do monoteísmo no povo de Israel desde Abraão (século XIX a.C.); não encontram
elucidação sociológica ou psicológica para tal fenômeno, pois Israel era um povo militar e
culturalmente inferior aos seus vizinhos politeístas; tendia a adotar os deuses e os costumes dos
pagãos...; não obstante, à revelia de todas as influências politeístas, Israel professou constantemente o
monoteísmo, suplantando assim, no plano da religião, os grandes reinos e impérios que o cercavam.
Este fato só se entende se Deus quis intervir na história, suscitando e conservando Ele mesmo o
monoteísmo em Israel (como, aliás, professa a Bíblia). Desta maneira a história de Israel é um
portento, que a Providência Divina quis realizar a fim de preparar a vinda do Messias ou do Senhor
Jesus. Este é o Prometido a Israel desde os tempos de Abraão.
Nos séculos anteriores próximos a Cristo, o povo israelita se achava em fase de declínio. Após o
apogeu de sua história sob Salomão (t 932 a.C.), as tribos de Israel conheceram duas deportações (721
e 587 a.C.); após esta última, viveram sempre sob domínio estrangeiro. Nos tempos de Cristo estavam
sob os romanos desde Pompeu e a tomada de Jerusalém em 63 a.C. A esperança de Israel se voltava
para o Messias prometido como Filho de Davi; todavia o ideal messiânico era assaz desvirtuado pelo
nacionalismo de Israel, que concebia um messianismo fortemente político, apto a restaurar a potência
e a grandeza temporal do povo de Deus (ver Lc 24,21; At 1,6).
A facção dos Fariseus predominava no país e inspirava ao povo uma observância escrupulosa da
Lei de Moisés e das respectivas tradições, ao mesmo tempo que incutia forte espírito nacionalista; os
fariseus "separavam-se" (tal é o sentido do nome perushim) de tudo o que fosse estrangeiro ou
impuro. - Ao lado dos fariseus, havia os Saduceus, grupo de elite, que se voltava para a cultura grega,
seguindo orientação racionalista (negavam a ressurreição dos mortos e os anjos, At 23,7s). - Fora das
cidades encontravam-se em colônias isoladas no deserto (principalmente à margem ocidental do Mar
Morto) os Essênios que esperavam a vinda do Messias para breve, observando celibato e renúncia à
propriedade particular; é possível que São João Batista è alguns dos discípulos de Jesus tenham tido
contato com os Essênios em Oumram (N.O. do Mar Morto). O nacionalismo judaico chegava ao
extremo nas correntes dos Zelotas (zelosos de suas tradições pátrias e religiosas) e dos Sicários
(dispostos a empreender a guerrilha).
Nos tempos do nascimento de Jesus, a Judéia era governada por Herodes o Grande (37-4 a.C.),
estrangeiro idumeu, rei vassalo de Roma. No ano 6 d.C. a Judéia foi incorporada à província romana
da Síria, cuja administração competia a um Procurador que residia em Cesaréia (Palestina).
Fora da sua terra-mãe, os israelitas se achavam esparsos na Diáspora (= Dispersão). Com efeito,
após as deportações para a Assíria (em 721) e para a Babilônia (em 587), muitos permaneceram no
estrangeiro, formando comunidades que não se misturavam com outros povos e mantinham contato
com Jerusalém mediante peregrinações freqüentes. Especialmente no Egito constituiu-se próspera
colônia judaica, com sua sede principal em Alexandria; nesta cidade viveram grandes pensadores
judeus, dos quais o mais famoso é Filon (+40 d.C.), filosofo que procurou fundir a Bíblia e a filosofia
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grega numa síntese harmoniosa. Embora se mantivessem segregados, os judeus não deixaram de
exercer influência sobre o mundo pagão; o monoteísmo e a Moral de Israel impressionavam os greco-
romanos, de modo que estes se aproximavam da religião Judaica... uns como prosélitos. At 2,11
(aceitavam a circuncisão e a Lei de Moisés), outros como tementes a Deus, At 10,2; 13,50; 16,14
(abraçavam o monoteísmo e apenas algumas práticas do Judaísmo como o repouso do sábado, a
distinção de alimentos, certas abluções rituais...).
Neste contexto de pagãos e judeus teve origem o Cristianismo.

Lição 2: Jesus e a Igreja


Jesus nasceu em Belém, cidade do rei Davi, como descendente de estirpe régia. A data de seu
nascimento foi calculada pelo monge Dionísio o Pequeno (+556), que se enganou fixando-a no ano
753 (25 de dezembro) da fundação de Roma; para tanto, baseou-se em Lc 3,1 e 3,23, que afirmam:
"No décimo quinto ano do Império de Tibério César... Jesus tinha aproximadamente trinta anos"; foi
então batizado e iniciou seu ministério público. Ora o 15o ano do Imperador Tibério corresponde ao
ano 782 da fundação de Roma; Dionísio entendeu que Jesus tinha 29 anos completos quando começou
a pregar; daí o cálculo 782-29 = 753. Jesus então teria nascido em 25/12/753 da era de Roma;
conseqüentemente, o ano de 754 foi o primeiro da era cristã. Todavia este cálculo de Dionísio é falho,
pois atribuiu a Lc 3,23 um sentido errôneo; Lucas apenas queria dizer que Jesus tinha a idade exigida
pelos judeus para exercer uma função pública (= 30 anos). Na verdade, Jesus nasceu antes de 753 de
Roma, pois nasceu antes da morte de Herodes (cf. Mt 2,1-22), que se deu em 4 a.C.; Jesus devia ter
talvez dois anos quando Herodes provocou a matança dos inocentes (cf. Mt 2,16), o que quer dizer
que nasceu em 6 ou 7 "antes de Cristo" (pois Herodes deve ter vivido um pouco, depois do morticínio
dos inocentes).
Após três anos de vida pública (27-30, provavelmente), Jesus morreu e ressuscitou, como havia
predito. Tinha chamado doze seguidores imediatos ou Apóstolos, dos quais Judas desertou (entrando
em seu lugar Matias; ver At 1,21-26); Pedro foi constituído chefe visível desse Colégio e da Igreja
inteira (ver Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 15,15-17).
A existência histórica de Jesus foi negada por autores como A. Kalthoff, P. Jensen, A. Drews, P.
L. Couchoud..., que quiseram equiparar Jesus a personagens míticos do Oriente antigo. Tal tese,
porém, não encontra ressonância mesmo nos ambientes mais racionalistas, pois a realidade histórica
de Jesus é atestada por autores romanos e judeus, além dos cristãos (ver Curso de Iniciação Teológica
por Correspondência, módulo 3, onde são citados os textos de Tácito, +116,Suetônio, +120, e Plínio o
Jovem,+112; são outrossim transcritos testemunhos do Talmud dos Judeus e de Flavio José,
historiador israelita, + 95).
A Igreja teve sua origem plena em Pentecostes, quando o Espírito Santo se deu aos Apóstolos
reunidos com Maria em oração no Cenáculo de Jerusalém. Os Apóstolos, pregando em diversas
línguas sob a ação do Espírito, fizeram a primeira proclamação de que se iniciava o Reino de Deus;
daí resultou a conversão de 3.000 judeus (cf. At 2). A Igreja era movida pelo Espírito, de sorte que o
número de fiéis aumentava de dia para dia (cf. At 2,47); os Atos dos Apóstolos atestam que levavam
vida fraterna, com desapego de seus bens, como se fossem um só coração e uma só alma (cf. At
4,32s). A princípio, os cristãos freqüentavam o Templo de Jerusalém, participando da oração dos
judeus e observando costumes israelitas; nas casas particulares, porém, "partiam o pão", isto é,
celebravam a Eucaristia, como lhes mandara o Senhor. Não pareciam ser mais do que um ramo
dissidente do Judaísmo oficial, o que lhes valeu perseguições da parte das autoridades Judaicas (cf. At
4,1-31). Em breve, porém, se evidenciaria a grande novidade trazida pelo Evangelho e assim
formulada por São Paulo: "Quando ainda éramos fracos. Cristo no tempo marcado morreu pelos
ímpios. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se
disponha a morrer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por
nós quando éramos ainda pecadores" (Rm 5,6-8).
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MÓDULO 2: OS APÓSTOLOS E A PROPAGAÇÃO DA IGREJA


Lição 1: O Apóstolo São Pedro
Sabe-se que São Pedro foi por Jesus constituído fundamento visível da Igreja (cf. Mt 16,16-19;
Jo 21,15-17). Os Atos dos Apóstolos mostram como este Apóstolo tomava a dianteira logo nos
primeiros tempos da Igreja: no dia de Pentecostes (At 2,14-40), no pórtico de Salomão (At 3,12-26),
diante do tribunal judeu (At 4,8-12), no caso de Ananias e Safira (At 5,1-11), ao receber o primeiro
pagão, Cornélio, na Igreja (At 10, 1-48), ao pregar na Samaria (At 9,32-43). No ano de 42, é
aprisionado em Jerusalém e, uma vez solto, "retira-se para outro lugar" (At 12,17). Para onde terá ido?
- Uma tradição em voga do século IV em diante refere que Pedro morou 25 anos em Roma, ou seja, de
42 a 67. Quem a aceita, dirá que Pedro passou logo de Jerusalém para Roma. Acontece, porém, que
Pedro é tido como fundador da sé episcopal de Antioquia na Síria; é certo que esteve presente ao
concílio de Jerusalém em 49 (cf. At 15.7-11); pouco depois estava em Antioquia (cf. Gl 2,11-14).
Estes dados levam a dizer que, se Pedro passou para Roma em 42, não permaneceu ininterruptamente
nesta cidade.
É certo, porém, que S. Pedro pregou em Roma, exercendo a plenitude dos poderes apostólicos, e
ali sofreu o martírio, provavelmente crucificado de cabeça para baixo no ano de 67. Esta tese está bem
documentada pela tradição, como se depreende dos seguintes testemunhos:
Em 1 Pd 5,13, o autor (S. Pedro) fala em nome dos cristãos da Babilônia, onde reside. Ora
Babilônia é a Roma pagã do séc. I d.C. (cf. Ap 18,2s).
S. Clemente de Roma, por volta de 96, em sua carta aos Coríntios, refere-se a Pedro e Paulo, que
lutaram até a morte e deram testemunho diante dos poderosos; supõe que ambos tenham morrido em
Roma (cf. cc. 5-6).
S. Inácio de Antioquia (+107) escreve aos romanos nestes termos: "Eu não vos ordeno como
Pedro e Paulo". Visto que não existe carta de Pedro aos romanos, admite-se o relacionamento oral de
Pedro com a comunidade.
Clemente de Alexandria (+215) narra que S. Marcos, intérprete de Pedro, redigiu por escrito a
pregação de Pedro a pedido de seus ouvintes romanos (cf. Eusébio, História Eclesiástica II 15; VI 14).
S. Irineu de Lião, por volta de 180-190, atribui a fundação da comunidade de Roma aos
apóstolos Pedro e Paulo e apresenta um catálogo dos bispos de Roma desde Pedro até sua época
(Contra as heresias II 3,2.3). Em conseqüência, afirma que, para guardar a autêntica tradição
apostólica, é preciso concordar com a doutrina da Igreja de Roma.
O presbítero romano Gaio, por cerca de 200, atesta que, ainda nos seus tempos, se podiam
mostrar em Roma os troféus (tropaia), isto é, os túmulos dos dois Apóstolos: o de Pedro na colina do
Vaticano, e o de Paulo na Via Ostiense (Eusébio. II 25).
As escavações realizadas debaixo da basílica de S. Pedro confirmaram, em nosso século, tal
tradição. Com efeito: verificou-se que a basílica foi construída pelo imperador Constantino em 324
por cima de um cemitério e sobre um terreno que corria em declínio de 11m de altura de Norte a Sul;
isto exigiu a colocação de uma laje sustentada por pilastras de 5m, 7m e 9m de altura, a fim de se
estabelecerem sobre tal laje os fundamentos do edifício. Ora uma construção em tais condições só
pode ser explicada pelo fato de que Constantino e os cristãos tinham a certeza de estar construindo
sobre o túmulo de São Pedro. Ademais os arqueólogos encontraram na camada mais profunda das
escavações ossos de quase metade de um indivíduo só, robusto, de uns 60-70 anos de idade, muito
mais provavelmente homem do que mulher; inscrições em grafito postas nas proximidades rezavam:
"Pedro está aqui" ou "Salve. Apóstolo" ou "Cristo Pedro".
Em 258 o Imperador Valeriano, perseguindo os cristãos, proibiu que estes se reunissem nos seus
cemitérios dentro da cidade de Roma para celebrar a memória dos mártires. Em conseqüência, os
cristãos levaram as relíquias de São Pedro para as catacumbas de São Sebastião na Via Ápia, e, uma
vez passada a era das perseguições, as trouxeram de volta ao Vaticano.

Lição 2: O Apóstolo São Paulo


A São Paulo tocou um papel de importância enorme na história do Cristianismo nascente.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 8

Judeu da Diáspora ou de Tarso (Cilícia), recebeu a cultura helênica vigente na sua pátria; aos 15
anos de idade foi enviado para Jerusalém, onde foi iniciado por Gamaliel nas Sagradas Escrituras e
nas tradições rabínicas. Era autêntico fariseu, quando Cristo o chamou a trabalhar em prol do
Evangelho por volta do ano 33 (cf. At 9,19). Realizou três grandes viagens missionárias em terras
pagãs, fundando várias comunidades cristãs na Ásia Menor e na Grécia. São Paulo não impunha aos
pagãos nem a circuncisão nem as obrigações da Lei de Moisés, mas concedia-lhes logo o Batismo
depois de evangelizados. Ora isto causou sérias apreensões a uma facção de judeo-cristãos chamados
"judaizantes"; queriam que os gentios abraçassem a Lei de Moisés e o Evangelho, como se este não
bastasse. Levantaram, pois, certa celeuma contra Paulo. A fim de resolver a questão, os Apóstolos que
estavam em Jerusalém, se reuniram com Paulo e alguns discípulos no ano de 49, como refere S. Lucas
em At 15: a assembléia houve por bem não impor aos gentios a Lei de Moisés, mas pediu que em
Antioquia, na Síria e na Cilícia os étnico-cristãos1 observassem quatro cláusulas destinadas a garantir
a paz das respectivas comunidades (que contavam numerosos judeo-cristãos): abster-se de carnes
imoladas aos ídolos (idolotitos), de sangue, de carnes sufocadas (cujo sangue não tivesse sido
eliminado) e de uniões ilegítimas. Essas cláusulas tinham caráter provisório, e visavam a não ferir a
consciência dos judeo-cristãos,2 que tinham horror aos ídolos, ao consumo de sangue e à fornicação.
Estava assim teoricamente resolvida a problemática levantada pelos Judaizantes; na prática, porém,
estes não se tranqüilizaram e procuraram destruir a obra apostólica de S. Paulo, caluniando-o como
impostor e oportunista; Paulo, diziam, queria facilitar o acesso dos pagãos ao Cristianismo para
ganhar a simpatia dos mesmos, já que não tinha a autoridade dos outros Apóstolos; não acompanhara
o Senhor Jesus, mas era discípulo dos Apóstolos; alegavam também que, se Paulo queria viver do
trabalho de suas mãos e não da obra de evangelização (cf. 1Cor 9,15-18; 1Ts 2,9), ele o fazia por
saber que não era Apóstolo como os demais e não tinha o direito de ser sustentado pelas comunidades
dos fiéis. São Paulo sofreu horrivelmente por causa dessas falsas acusações (cf. 2Cor 11,21-32), mas
não se abateu, pregando intrepidamente a liberdade dos cristãos frente à Lei de Moisés. E por que
tanto insistiu nisto?
Eis a resposta paulina: Deus chamou Abraão gratuitamente ou sem méritos de Abraão, e
prometeu-lhe a bênção do Messias; Abraão acreditou nesta Palavra do Senhor, e tornou-se justo ou
amigo de Deus por causa da sua fé; é certo, porém, que esta fé não foi inerte, mas traduziu-se em
obediência incondicional a todas as ordens do Senhor. Ora o modelo de Abraão é válido para todos os
homens, anteriores e posteriores a Cristo; ninguém é justificado ou feito amigo de Deus porque o
mereça, mas porque Deus tem a iniciativa de perdoar os pecados de sua criatura; esta acredita no
perdão de Deus e exprime sua fé em obras boas. - Sobre este pano de fundo a Lei de Moisés foi dada
ao povo de Israel a título provisório e pedagógico: ela propunha preceitos santos, que o israelita não
conseguia cumprir, vítima da desordem do pecado existente dentro de todo homem; assim a Lei tinha
o papel de mostrar à criatura que ela por si só é incapaz de praticar o bem e de fazer obras meritórias;
ela precisa da graça de Deus. ... graça que o Messias devia trazer; desta maneira (dura e paradoxal) a
Lei preparava Israel para receber o Salvador: aguçava a consciência do pecado, tirava qualquer ilusão
de auto-suficiência e provocava o desejo do dom gratuito de Deus prometido a Abraão. A intuição
desta verdade ou do grande desígnio de Deus na história da salvação se deve ao gênio de São Paulo,
que assim evitou que o Cristianismo se tornasse uma seita judaica, filiada à Lei de Moisés, e
preservou a autenticidade cristã: a Lei de Moisés era um elemento meramente provisório e
preparatório para Cristo.
Quanto ao fato de não querer viver do seu trabalho de evangelização, e de trabalhar com as mãos
para ganhar seu pão. São Paulo o justificava, dizendo que evangelizar para ele não era meritório
(como era meritório para os demais Apóstolos); Cristo o tinha de tal modo cativado que ele não podia
deixar de pregar a Boa-Nova ("ai de mim, se eu não evangelizar!", 1Cor 9,16); por isto devia fazer
algo mais para oferecer ao Senhor Deus. - Ademais São Paulo fazia questão de dizer que não era
discípulo dos Apóstolos, mas fora instruído e instituído diretamente por Deus (cf. Gl 1,1).

1
Cristãos de origem pagã, não judaica.
2
Cristãos provenientes do judaísmo.
9 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 3: A expansão do Cristianismo nascente


Sem demora, a pregação do Evangelho ultrapassou os limites do país de Israel e entrou em
território pagão.
Em Antioquia, capital da Síria, fundou-se uma comunidade muito próspera, que se tornou um
centro de irradiação missionária para o mundo helenista. Foi lá que pela primeira vez os Galileus (At
1,11) ou Nazarenos (At 24,5) receberam o nome de cristãos (em grego, christianoi); cf. At 11,26.
Em Roma o Cristianismo deve ter-se originado por obra de judeus residentes naquela cidade
que haviam peregrinado a Jerusalém por ocasião do primeiro Pentecostes cristão (cf. At 2.10); tendo
abraçado a fé naquele dia, regressaram a Roma e lá transmitiram a Boa-Nova aos seus compatriotas da
Diáspora. S. Pedro e S. Paulo devem ter encontrado a comunidade já estruturada quando chegaram a
Roma. Tácito refere que Nero em 64 mandou executar uma multitudo ingens (enorme multidão) de
cristãos.
O surto do Cristianismo na Gália é narrado através de histórias pouco seguras: os irmãos Lázaro,
Marta e Maria terão ido para a Provença, e Lázaro haverá sido bispo de Marselha (cf. Lc 10, 38-42);
Dionísio, convertido por S. Paulo no Areópago de Atenas (cf. At 17,34), terá sido o primeiro bispo de
Paris... É certo, porém, que no século II havia comunidades florescentes na Gália, fato testemunhado
por S. Irineu bispo de Lião (+202).
Na Espanha é possível que tenha estado São Paulo, consoante o desejo alimentado pelo
Apóstolo (cf. Rm 15,28). A noticia de que São Tiago Maior chegou à Espanha é pouco fidedigna, pois
tal Apóstolo morreu no ano de 42 em Jerusalém (cf. At 12.3); só no século VII se encontram os
primeiros testemunhos desta notícia.
Na Britânia (ou Inglaterra de hoje) supõe-se que o Cristianismo tenha penetrado por efeito do
zelo missionário de cristãos da Ásia Menor. Tertuliano (+222) falava da Britânia, que tinha "partes
não penetradas pelos romanos, mas sujeitas a Cristo" (Adversus Judaeos 7).
Na Alemanha sabe-se que o Evangelho Já tinha seguidores no séc. II, conforme S. Irineu
(Adversus haereses I 10,2), mas não se pode dizer como se originou o Cristianismo naquele
território.
A África norte-ocidental deve ter sido evangelizada por cristãos de Roma, visto que era grande
o intercâmbio entre um continente e outro. No século III, Tertuliano podia dizer retoricamente que os
cristãos constituíam a maioria das populações das cidades da região. Numerosas sedes episcopais (90)
aí foram fundadas.
Quanto ao Egito, diz-se que São Marcos deu origem à sede episcopal de Alexandria - o que é
duvidoso. É certo, porém, que toda a região foi rica em dioceses e colônias de monges nos séculos III /
V.
Na Palestina a evangelização foi muito dificultada pelos judeus até 70. Neste ano os romanos
venceram os israelitas rebeldes e os expulsaram da sua pátria. Em 130, o Imperador Adriano mandou
reconstruir a cidade de Jerusalém arrasada em 70, dando-lhe o nome pagão de Aelia Capitolina, e
dedicando o respectivo templo a Júpiter. O Calvário foi recoberto por um templo dedicado a Afrodite.
Somente a partir do século III a comunidade étnico-cristã de Jerusalém começou a ter certa
importância.
Na Índia, dizem escritos apócrifos que o Apóstolo São Tomé pregou o Evangelho, chegando até
a costa de Malabar na parte sul-ocidental daquele país. Terá morrido como mártir sob o rei Misdai.
Assim terão tido origem os Cristãos de S. Tomé até hoje existentes. - Esta tradição não é
inverossímil, pois havia intercâmbio comercial entre a Síria e a Índia. Todavia os melhores
historiadores se mostram reservados. O Cristianismo talvez só tenha chegado à Índia no século III pela
ação de viajantes persas e armenos.

MÓDULO 3: OS PRIMEIROS ESCRITORES CRISTÃOS


Após os escritos do Novo Testamento, houve, ainda no século I e no começo do II, os dos Padres
Apostólicos (assim chamados porque estiveram em contato direto com os Apóstolos). Sobrevieram,
nos séculos II / III, os Apologetas ou escritores que defenderam a fé cristã contra os pagãos e as
primeiras heresias.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 10

Lição 1: Os Padres Apostólicos


Dada a sua antiguidade, são muito estimados. Os seus escritos têm certa semelhança com os do
Novo Testamento, a ponto que alguns chegaram a ser considerados canônicos (assim a Didaquê, a
epístola de Clemente, a do Pseudo-Barnabé). Não escreveram tratados teológicos, mas geralmente
cartas em língua grega, que abordam assuntos de disciplina, recomendam a unidade da Igreja e a
autoridade dos Apóstolos. Eis os principais autores:
1) São Clemente de Roma (+102?) foi, a quanto parece, o terceiro bispo de Roma após São
Pedro. Pouco se sabe a respeito de sua vida, que nos foi narrada fantasiosamente por fontes espúrias.
Por cerca de 96, escreveu uma carta aos coríntios, exortando-os à concórdia e à submissão aos
legítimos pastores. O tom caloroso e firme desse escrito já manifesta a consciência que o bispo de
Roma tinha do sua autoridade. Foram atribuídos a Clemente outros escritos, hoje reconhecidos como
não autênticos.
2) S. Inácio, bispo de Antioquia (+107), foi condenado à morte na perseguição de Trajano (98-
117), Durante a viagem que, prisioneiro, fez da Síria a Roma, onde devia ser lançado às feras do
Coliseu em espetáculo público, Inácio escreveu seis cartas às comunidades de Éfeso, Magnésia.
Trales, Filadélfia, Esmirna, Roma respectivamente, e uma ao bispo Policarpo de Esmirna. - Nestes
escritos percebe-se o ardente amor de Inácio a Cristo e à Igreja; o autor professa clara doutrina da
Encarnação: Jesus é Deus, que se fez homem no seio de Maria Virgem; mostra que no começo do
século II já havia o episcopado monárquico, ou seja, o bispo como pastor supremo da sua diocese;
chama a igreja de Roma "aquela que preside na caridade".
3) São Policarpo (+156), bispo de Esmirna, viu e ouviu São João Evangelista. Escreveu uma
carta aos filipenses. Famoso é o relato do Martírio de São Policarpo, a mais antiga Ata de martírio que
tenhamos.
4) Pápias (+130 aproximadamente) foi bispo de Hierápolis na Ásia Menor. Redigiu cinco livros
intitulados "Explicações dos dizeres do Senhor", que infelizmente se perderam, excetuados poucos
fragmentos, muito preciosos porque referem datas e circunstâncias atinentes à redação dos
Evangelhos.
5) A Didaquê (Doutrina dos Doze Apóstolos), de autor desconhecido, é um catecismo simples
da vida cristã e um ritual, que trata do Batismo, da Eucaristia, da celebração do domingo, do Jejum...
Pode ter sido redigido ainda no fim do século I,
6) A Epístola do Pseudo-Barnabé foi erroneamente atribuída a este companheiro de São Paulo.
O autor quer valorizar o Antigo Testamento como mensagem dirigida aos cristãos e propõe as duas
vias - a da luz e a das trevas -, que levam respectivamente à vida e à morte.
7) O Pastor de Hermas deve-se a um personagem que não podemos identificar. Trata da
penitência sacramental, que era ministrada com grande rigor e uma só vez para cada cristão; os
antigos confiavam à misericórdia de Deus aqueles que, após a dura praxe penitenciai da época,
recaíssem nos mesmos pecados.

Lição 2: O combate escrito aos cristãos


Nos seus três primeiros séculos, os cristãos tiveram que enfrentar, além das heresias, dois tipos
de adversários: os pagãos e os gnósticos.
2.1. As acusações dos pagãos
Além dos judeus, os pagãos lançavam acusações contra os cristãos. Estes eram tidos como ateus,
porque não cultuavam os deuses do Império nem reconheciam César como deus; eram escarnecidos
por adorarem uma cabeça de asno (os pagãos apresentavam o Crucificado com cabeça de asno, visto
que a Cruz era, para eles, loucura); dizia-se que comiam crianças (pois recebiam sacramentalmente o
Corpo e o Sangue do Senhor Jesus) e que em suas assembléias apagavam as luzes para realizar uniões
incestuosas após o banquete. As calamidades (enchentes, incêndios, epidemias ...) eram atribuídas à
impiedade dos cristãos. Os intelectuais pagãos menosprezavam os cristãos porque não
compartilhavam das expressões mitológicas da cultura; muitas vezes na própria casa de família
abstinham-se das celebrações domésticas (aniversários, casamentos...), pois estas estavam
impregnadas de espírito religioso politeísta (havia os dii manes, deuses da família). Em grande parte,
11 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

os cristãos se recrutavam nas camadas mais humildes da população; por isto eram tidos como
ingênuos, vítimas de um ou mais exploradores da sua simploriedade.
Os preconceitos que assim corriam de boca em boca, levavam a crer que os cristãos constituiam
um perigo para o Império Romano. - De resto, as acusações levantadas contra eles tinham, às vezes,
fundamento nas crenças ou nas práticas de grupos dissidentes do Cristianismo (montanismo, correntes
gnósticas...); os pagãos não distinguiam entre a chamada "Grande Igreja" e os conventículos que
professavam apenas parte da mensagem cristã.
2. 2. O Gnosticismo
A gnose é uma corrente sincretista que funde entre si elementos das religiões orientais, da
mística grega e da revelação Judeo-cristã. Tentou envolver o Cristianismo no processo de fusão,
pondo em xeque a pureza da mensagem evangélica nos séculos II / III. Por isto já em 1Tm 6,20 há
uma advertência a Timóteo para que evite "as contradições de uma falsa gnose (pseudónymos
gnosis)".
Os gnósticos atraiam os homens prometendo-lhes um conhecimento superior ao da simples fé
cristã, reservado aos iniciados. Esse conhecimento (gnosis) forneceria a solução cabal dos problemas
fundamentais da filosofia (origem do mal, gênese do mundo, redenção e felicidade definitiva do
homem).
Os gnósticos eram, antes do mais, dualistas, isto é, admitiam um princípio bom, que seria a
Divindade (simbolizada pela Luz) e, em oposição, a matéria (simbolizada pelas trevas), má por si
mesma. Da Divindade emanariam os seres (cones) num sistema de (365?) ondas concêntricas, cada
vez mais distanciadas do bem e próximas do mal. O homem seria um elemento divino que, em
conseqüência de um acontecimento trágico, terá sido condenado a se revestir de matéria (corpo) e
viver na terra. O Criador do mundo material seria um eon inferior, que era identificado com o Deus
justiceiro do Antigo Testamento.
Para libertar as centelhas de luz ou de bem aprisionadas na matéria e levá-las ao reino da luz,
terá sido enviado ao mundo um eon superior, o Logos (Cristo). Este revelou aos homens o Deus Sumo
e Verdadeiro, que eles ignoravam; anunciou-lhes que o mundo da luz os espera e lhes transmitiu as
maneiras eficazes de vencer e eliminar a matéria.
O Salvador assim entendido tinha, conforme algumas escolas gnósticas, apenas um corpo
aparente (docetismo) ou, segundo outras, tinha um corpo real, no qual o Logos desceu e permaneceu
desde o Batismo até a Paixão de Jesus.
A salvação só pode ser obtida pelos homens pneumáticos (espirituais) ou gnósticos, nos quais
prevalece a luz. A maioria dos homens ou a massa é material (hílica) e será aniquilada como a
matéria. Entre os espirituais e os materiais haveria os psíquicos ou os simples crentes católicos, que
poderiam chegar a gozar de uma bem-aventurança de segunda ordem.
Os gnósticos admitiam o retorno de todas as coisas às condições correspondentes à sua natureza
originária.
Pelo fato de desprezarem a matéria, os gnósticos deveriam praticar severa ascese ou abstinência
de prazeres carnais. Facilmente, porém, passavam ao extremo oposto: recusando o Deus do Antigo
Testamento, que era também o autor da Lei, rejeitavam normas de conduta moral e caiam em
libertinismo desenfreado. Julgavam supérflua a confissão de fé perante as autoridades hostis, porque a
verdadeira profissão de fé, o martírio (testemunho, em grego) consistia na gnose; quem possui a esta,
não está obrigado a sacrifício algum.
O gnosticismo se ramificou em escolas diversas: a oriental, mais rígida, a helênica, mais
branda, a de Marcião, mais chegada ao Cristianismo, a dos Ofitas (cultores da serpente), a dos
Cainitas, a dos Setianos... Floresceu principalmente entre 130 e 180, contando com chefes de
capacidade notável (Basílides, Valentim, Carpócrates, Pródico...). Produziram rica bibliografia
(tratados de filosofia, comentários de textos bíblicos, hinos...), de que nos restam poucos fragmentos.
O confronto entre a gnose aparatosa e o Cristianismo nascente foi de enorme perigo para este; a
Igreja teve que desenvolver eloquente e densa apologética representada principalmente por S. Justino,
S. Irineu, Tertuliano, Hipólito de Roma... Os bispos se uniram entre si como autênticos guardas do
patrimônio da fé; Roma, onde os principais mestres da gnose queriam implantar-se, soube desenvolver
ação particularmente benemérita. Na confusão que entre os cristãos podia estabelecer-se no debate
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 12

doutrinário, o critério para julgar a veracidade de determinada sentença era a conformidade ou não
desta com os ensinamentos da Igreja de Roma; estes eram decisivos, pois a comunidade de Roma
estava fundada sobre a pregação e o martírio dos dois principais Apóstolos (Pedro e Paulo): "é com
esta igreja (de Roma), em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação, que deve
necessariamente concordar toda igreja, isto é, devem concordar os fiéis procedentes de qualquer parte;
nela sempre se conservou a Tradição que vem dos Apóstolos" (Contra as Heresias III, 3,1-3).

Lição 3: Os Apologetas
1) São Justino (+165 aproximadamente) recebeu o cognome de "filósofo". Desde jovem, passou
pelas principais escolas de filosofia de sua época (o Estoicismo, o Aristotelismo, o Pitagorismo. o
Platonismo); finalmente conheceu os Profetas do Antigo Testamento e assim chegou a Cristo, cuja
mensagem lhe satisfez plenamente; por isto dizia que o Cristianismo é a verdadeira filosofia; revestido
do pálio dos filósofos, deixou sua terra natal, a Palestina, e foi pelo mundo até estabelecer sua escola
em Roma. Deixou duas Apologias e o "Diálogo com Trifão judeu". Os principais pontos doutrinais ai
apresentados são:
- a teoria do Verbo seminal. Onde há verdade, esta foi comunicada pelo Verbo de Deus. A
filosofia grega contém gérmens de verdade, que o Verbo lhe transmitiu através do Antigo Testamento.
Também todo homem possui no seu íntimo um gérmen do Verbo, que o capacita a conhecer a
verdade. Após a vinda de Cristo, a plenitude da verdade se acha entre os cristãos.
- O paralelo Eva-Maria foi formulado por São Justino pela primeira vez. Eva virgem (antes de se
relacionar com Adão), pela desobediência, trouxe a morte ao mundo; Maria Virgem pela sua fé trouxe
a Vida-Cristo à humanidade.
2) Tertuliano (+após 220) fez-se cristão em idade adulta, quando já exercia a profissão de
advogado. Teve o grande mérito de criar uma terminologia precisa e afinada com as categorias do
Direito para exprimir a mensagem crista. Cheio de fantasia, sátira e eloqüência, tendia ao rigorismo,
que o levou a abandonar a Igreja para aderir ao Montanismo (que apregoava a proximidade de nova
era, a do Espírito). Deixou 31 obras dedicadas a reafirmar o Cristianismo frente aos adversários.
3) Minúcio Félix é o autor do diálogo Octavius, do século III. Apresenta a troca de ideias entre
o cristão Otávio e o pagão Cecílio; refuta as acusações contra os cristãos e traça um quadro atraente da
vida destes.
4) A Epístola a Diogneto é de autor anônimo, que se dirige a um pagão de alta categoria para
valorizar a ética dos cristãos: "Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como
estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e
procriam, mas nunca lançam fora o que geraram... Na terra vivem, participando da cidadania do'céu...
Para resumir numa palavra: o que a alma é no corpo, são os cristãos no mundo".
O estudioso muito lucrará se se dedicar à leitura de tais obras, pois lá encontrará fontes de
inestimável riqueza para a fé e a espiritualidade.

MÓDULO 4: AS PERSEGUIÇÕES
O Cristianismo expandiu-se com rapidez surpreendente, apesar dos obstáculos que encontrou no
mundo pagão. Vejamos, pois, quais os principais fatores que favoreceram a sua difusão e quais os
grandes obstáculos que se lhe opuseram.

Lição 1: Fatores positivos


Distinguiremos quatro pontos:
1) O mundo greco-romano estava decadente no plano da filosofia e dos costumes. Com efeito; o
fracasso da razão, mencionado no módulo 1, levava os cidadãos do Império a procurar uma resposta
diferente, que não fosse mero produto do gênio do homem, mas viesse "do Alto"; disto dão
testemunho as religiões de mistérios e certas tendências ao monoteísmo dentro do Império.
No plano ético, o gozo, a futilidade e a procura de prestígio predominavam, apesar da severa
doutrinação dos estóicos. O pobre era desprezado em favor do rico e poderoso; também a mulher
sofria marginalização; mais ainda, o escravo, tido como base econômica do Império, era tratado como
"coisa".
13 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Ora a essa sociedade o Evangelho propunha a valorização de toda e qualquer pessoa humana,
feita à imagem e à semelhança de Deus (cf. Gl 3,27-29; Cl 3,11), a caridade para com todos, o amor à
pobreza e à renúncia. Desvendava também o sentido da vida inspirado pelo amor daquele que
primeiro nos amou (1Jo 4,19) e que nos chamou ao consórcio da sua bem-aventurança a ser alcançada
pela configuração a Cristo.
2) Como foi insinuado, o Cristianismo aparecia aos pagãos como algo absolutamente novo e
inaudito (cf. 2Cor 5,17), mas correspondente às aspirações mais profundas do ser humano. Por isto
podia dizer Tertuliano, o jurista romano convertido à fé cristã no fim do século II: "A alma humana é
naturalmente cristã"; encontra no Evangelho a resposta aos seus anseios inatos.
Com outras palavras: o Cristianismo não tinha em seu favor nem dinheiro nem tropas nem o
apoio imperial, mas contava com o poder de atração e o fulgor da verdade: especialmente os
problemas do sofrimento, da retribuição e do além encontravam (e encontram) no Evangelho uma
solução que não é filosófica (a filosofia é incapaz de os resolver), mas que a sã razão pode aceitar pela
fé sem trair a sua dignidade. Muitos estudiosos greco-romanos, depois de haver percorrido diversas
escolas fitosófico-religiosas, encontraram finalmente na Igreja a verdadeira sabedoria, que eles
estimavam como a única na qual podiam confiar (S. Justino, Diálogo com Trifão n o 8).
3) Além de proferir a verdade, os cristãos a traduziam em vida. Embora não se fechassem em
grupos ou facções, os discípulos de Cristo primavam pela retidão de costumes, pelo amor fraterno,
pela castidade.... Tertuliano nos transmite a observação feita pelos pagãos: "Vede como se amam
mutuamente e como estão prontos a morrer um pelo outro!" (Apologeticum 39). Notório testemunho
da conduta santa dos cristãos é a epístola a Diogneto, dirigida por um cristão anônimo a um
interlocutor pagão.
Mesmo diante das ameaças dos perseguidores, muitos discípulos de Cristo se mantinham
intrépidos e aceitavam a própria morte. A sua firmeza heróica dissolvia calunias e convencia muitos
dos que lhes eram alheios, como notam alguns escritores antigos. Dizia Tertuliano (+220): "Plures
efficimur quoties metimur a vobis, semen est sanguis christianorum. - Mais numerosos nos tornamos
todas as vezes que somos por vós ceifados: o sangue dos cristãos é semente" (Apologeticum 50). E
Latâncio (+após 317): "Cresce a religião de Deus quanto mais é premida" (Instituições V 19,9).
4) Os cristãos tinham o zelo missionário, expressão do fervor de sua fé. Homens e mulheres,
livres e escravos, comerciantes e soldados sentiam o dever de transmitir a Boa-Nova, cientes de que
assim estavam servindo a seus irmãos.
Eis, porém, que a expansão do Cristianismo se defrontou com, sérios obstáculos, como se verá a
seguir.

Lição 2: Fatores negativos


Enumeraremos os cinco seguintes:
1) Já São Paulo notava que a mensagem da Cruz é "escândalo para os judeus e loucura para os
gregos" (1Cor 1,23). O Cristianismo exigia renúncia à vida devassa e morte ao velho homem para
possibilitar a formação da nova criatura em cada indivíduo; cf. Ef 4,22s.
2) O politeísmo era o culto oficial do Império; parecia ameaçado pelo monoteísmo cristão, que
parecia até mesmo ateísmo. Os cristãos pareciam infensos aos homens e ao Estado, pois estavam
solapando as bases destes. Notemos que os romanos eram tolerantes para com a religião dos povos
conquistados; colocavam os deuses destes no Panteon de Roma; teriam feito isto também com Jesus
Cristo, mas os cristãos de modo nenhum aceitavam pactuar com o politeísmo. Verdade é que o
judaísmo era estritamente monoteísta e, não obstante, conseguia bom relacionamento com as
autoridades romanas (cf. 1Mc 14,16-24); acontece, porém, que o judaísmo era uma religião nacional,
de pouco proselitismo, ao passo que o Cristianismo tinha destinação universal, voltada para todos os
homens.
3) Em particular, o culto do Imperador divinizado foi-se difundindo desde fins do século I. Veio
a ser a pedra de toque da lealdade civil e do patriotismo; quem o recusasse, era acusado de traição à
pátria.
4) Toda a vida civil, em família ou na sociedade, era impregnada do espírito e das expressões do
paganismo; assim as festas do lar comemoravam os deuses domésticos (penates e manes); os
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 14

espetáculos públicos, os torneios esportivos, as feiras de comércio, o regime militar... deixavam


transparecer a sua inspiração básica politeísta. - Os cristãos eram fiéis aos seus deveres de cidadãos,
como lhes ensinava o Evangelho: "Dai a César o que é de César" (Mt 22,21; cf. Rm 13.1; 1Pd 2.13-
17); mas não podiam participar de manifestações que, direta ou indiretamente, professassem o
politeísmo.
5) O modo de vida singular dos cristãos provocou-lhes, da parte dos pagãos, calúnias fantasiosas
e duras. Eram acusados a três títulos principais:
- ateísmo - o que seria também antipatriotismo e misantropia (ódio ao gênero humano);
- banquetes de orgia, nos quais se comia carne de criança; assim era entendida a Eucaristia, por
vezes celebrada às ocultas por causa dos perseguidores. O culto cristão se dirigiria a um asno
crucificado (tal era o mal-entendido que o Crucifixo suscitava; seria "burrice"!);
- causa de calamidades públicas, como pestes, inundações, fome, invasões de bárbaros... Eram
tidas como castigos dos deuses, que os cristãos irritavam por seu "ateísmo". Esta acusação persistiu
até o século V, mesmo quando as outras queixas iam cessando. Os cristãos pareciam inimigos do bem
comum, lucifuga natio (facção que foge à luz), recrutada nas classes mais desprezíveis da sociedade.
De modo especial, os comerciantes, os artistas, os sacerdotes pagãos, os adivinhos os hostilizavam,
pois a fé cristã prejudicava os seus interesses profissionais.
Compreende-se que o clima assim criado tenha suscitado violentas perseguições aos cristãos.
Estas, de fato, ocorreram desde 64 até 313.

Lição 3: A luta sangrenta


Distinguimos duas fases na era das perseguições: a primeira vai até o Imperador Filipe o Árabe
(244-249); a segunda começa com Décio, seu sucessor (249-251). A primeira fase foi mais longa,
contudo menos cruel; aos anos de perseguição se seguiam anos de paz. Ao contrário, a segunda fase
desenvolveu sistematicamente a sanha do Império contra o Cristianismo.
3.1. De Nero (54-68) a Filipe (244-249)
Nero foi um Imperador cruel. Na noite de 18 para 19/07/64 começou um incêndio em Roma, que
durou seis dias e devastou três quartos da cidade. A opinião pública atribuía - talvez erroneamente - a
desgraça à loucura de Nero. Este terá procurado desviar de si a suspeita oferecendo ao povo motivos
de divertimento: com efeito, mandou prender multidão de cristãos - acusados de ateísmo, orgias e
misantropia - e na noite de 15/08/64, dentro do Jardim imperial (circo de Nero, onde atualmente se
ergue a basílica de S. Pedro), submeteu-os a tormentos (crucifixão, tochas vivas, representação
cruenta de cenas mitológicas), à guisa de espetáculos para o povo. De então por diante o nome cristão
era banido; ser cristão equivalia a arriscar-se a morrer.
Após Vespasiano e Tito, imperadores mais tranqüilos, Domiciano (81-96) reacendeu a
perseguição, fazendo-se chamar oficialmente Dominus ac Deus (Senhor e Deus). O Apóstolo São
João foi então exilado para a ilha de Palmos (cf. Ap 1,9).
O Imperador Trajano (98-117) fixou uma norma de conduta para os oficiais do Império: os
cristãos são ateus; por isto, desde que convictos, hão de ser punidos; mas não devem ser procurados;
as denúncias anônimas não têm valor; caso reneguem a sua fé, sejam postos em liberdade. Esta norma
estabeleceu Jurisprudência para o futuro.
Marco Aurélio (161-180) desencadeou outra perseguição, em parte devida à insatisfação do
povo, que acusava os cristãos de responsáveis por calamidades que afligiam a sociedade.
Setímio Severo (193-211), em 202, assinou um decreto que atingia tanto os judeus como os
cristãos; estes últimos surpreendiam o Imperador por crescerem numericamente nas camadas elevadas
da sociedade. Proibiu, pois, as conversões ao Cristianismo; os magistrados não deveriam esperar
denúncias, mas haveriam de procurar os cristãos. Assim catecúmenos e neófitos (cristãos recém-
batizados) foram violentamente golpeados, especialmente no Norte da África, onde existiam em maior
número.
Seguiram-se quarenta anos de relativa paz.
3.2. Desde Décio (249-251) até Constantino (313)
Décio (249-251) quis restaurar o império em seu esplendor de tempos passados, consolidando-o
contra inimigos externos e internos. Para tanto haveria de reforçar a religião oficial do Império,
15 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

visando especialmente aos cristãos, que ele considerava como os inimigos mais perigosos do Estado.
Por conseguinte, em 250 decretou que todos os cidadãos do Império Romano deveriam manifestar
expressamente a sua adesão à religião do Estado, oferecendo aos deuses um sacrifício propiciatório;
quem o fizesse, receberia um certificado (libellus) de dever cumprido; quem resistisse, seria
submetido a penas diversas (cárcere, confiscação de bens, exílio, trabalhos forçados...) até à pena de
morte. Os Bispos estavam particularmente na mira do Imperador, que dizia tolerar mais facilmente um
rival no Império do que um Bispo cristão em Roma. Os cristãos, colhidos de surpresa por este decreto,
fraquejaram em parte; mas houve também uma multidão de mártires de todas as idades e de ambos os
sexos.
Após dois anos de paz sob o Imperador Galo (251 -253), Valeriano (253-260) em 257, vendo o
Estado em grande miséria, quis remediar-lhe mediante novo golpe contra os cristãos. Visou a
dissolver a organização das comunidades cristãs, ferindo Bispos, sacerdotes e diáconos; mandou, pois,
que estes oferecessem sacrifícios aos deuses sob pena de exílio; a visita aos cemitérios e a participação
nas reuniões de culto eram proibidas sob ameaça de morte. Naquela época já havia muitos cristãos
exercendo funções no palácio imperial; foram condenados a trabalhos forçados na condição de
escravos. Logo, porém, que Valeriano foi preso na guerra persa (259), a tormenta foi-se amainando.
Diocleciano (284-305) assumiu o governo imperial muito abalado por desordens internas. Por
isto promoveu profunda reforma administrativa, que haveria de implicar nova tentativa de restaurar ou
fortalecer a religião do Estado. O Cristianismo estava muito difundido, contando entre 7 e 10 milhões
de fiéis num total de 59 milhões de habitantes do Império; Prisca, a esposa de Diocleciano, e sua filha
Valéria eram provavelmente favoráveis ao Evangelho, além de altos oficiais do exército e da corte. -
Desencadeou-se assim a última, a mais grave e a mais longa perseguição, que tendia a aniquilar o
Cristianismo numa luta de vida ou morte: foram condenados à destruição os templos e os livros
sagrados cristãs. Em 304 um decreto imperial obrigava todos os cidadãos a sacrificar aos ídolos - o
que provocou o derramamento de copioso sangue ou execuções em massa.
Todo esse esforço perseguidor havia de ser vão; o Estado havia de capitular diante da tenacidade
dos discípulos de Cristo. Após muitas peripécias dentro de um Império esfacelado, Constantino, um
dos sucessores de Diocleciano, houve por bem publicar em 313 o Edito de Milão: este concedia a
todos os habitantes do Império e, em particular, aos cristãos plena liberdade de religião e de culto; às
comunidades cristãs se faria a restituição ou a indenização dos edifícios e das terras confiscadas
durante as perseguições. Assim dissolvia-se pela raiz o vinculo existente entre o Império Romano e o
culto pagão; abria-se uma era nova na política religiosa do Estado e inaugurava-se um novo segmento
de história do Cristianismo.
É difícil dizer ao certo o número de mártires que tombaram nos quase três séculos de
perseguição: 100.000 ou talvez apenas algumas dezenas de milhares? As Atas de Martírio que nos
chegaram às mãos, foram retocadas para servir à edificação dos leitores em vários casos, como as de
Sta. Cecília, S. Jorge, S. Cristóvão, S. Sebastião, S. Lourenço...; reconhecendo isto após um estudo
objetivo de tais documentos, a Igreja quis dizer aos fiéis que nem tudo o que se narra a respeito dos
mártires antigos é seguramente histórico; tal declaração nada tem que ver com "cassação de Santos";
os Santos serão sempre santos, mas hão de ser cultuados na base de informações históricas, e não na
de narrações fantasiosas. E de notar, porém, que temos também testemunhos de autenticidade
garantida, que nos referem a virtude heróica dos mártires cristãos.

MÓDULO 5: IGREJA E IMPÉRIO NO SÉCULO IV


Vimos que a era das perseguições à Igreja termina com a ascensão do Imperador Constantino
(306-337). Examinemos agora a figura deste monarca e as marcas que deixou na história.

Lição 1: Constantino e a Paz de Milão


Constantino era filho de Constâncio Cloro, Imperador Romano responsável pelo Ocidente da
Europa. Subiu ao trono na Gália em 306, ao passo que seu cunhado Licínio ficou com a parte oriental
do Império.
1. Em 312 Constantino teve que enfrentar Maxêncio, que do minava Roma. A sua religiosidade
não era a da mitologia fantasiosa dos antigos romanos, mas cultuava Apolo-Sol numa espécie de
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 16

monoteísmo ainda vago. Antes da batalha contra Maxêncio, Constantino aproximou-se mais do
Cristianismo. Diz o historiador Eusébio de Cesaréia, na sua Vida de Constantino escrita em 337, que,
antes de entrar em guerra, Constantino e seu exército viram sobre o sol, numa tarde, o sinal de uma
cruz luminosa acompanhada pelos dizeres Toutoi nika (com este sinal vencerás!). Na noite seguinte,
Cristo terá aparecido a Constantino, ordenando-lhe que fizesse um estandarte (lábaro) com o
monograma de Cristo (X atravessado por um P, isto é, P ou P).3 A notícia desta visão é discutida
pelos historiadores. O fato é que Constantino venceu o rival Maxêncio junto à Ponte Mílvia em Roma
aos 28/10/312. Embora ainda não fosse cristão, Constantino reconhecia cada vez mais o valor do
Cristianismo; por isto em fevereiro de 313 promulgou o Edito de Milão, que reconhecia a religião
cristã como lícita e dotada de plena liberdade (não, porém, religião do Estado - o que só aconteceria
em 380); em conseqüência, os templos e outros bens imóveis confiscados deveriam ser restituídos aos
cristãos. Este gesto teve enorme importância, pois desfazia o vínculo até então existente entre o
Estado Romano e a religião pagã.
Constantino governava apenas o Ocidente do Império.4 No Oriente seu cunhado Licínio assumiu
atitude oposta em relação ao Cristianismo por causa da rivalidade política com Constantino; embora
tenha aceito inicialmente o Edito de Milão, Licínio, a partir de 320, foi sufocando a vida dos cristãos;
dificultou-lhes até a celebração do culto sagrado. Constantino, porém, venceu e destronou Lícinio em
324, tornando-se único senhor do Império. Desde então o Imperador mais ainda favoreceu o
Cristianismo; embora suas concepções religiosas ainda fossem confusas, estava convencido da
superioridade da religião cristã. Em 324, o Imperador enviou um Manifesto aos súditos do Oriente, em
que exprimia o desejo de que cada um abandonasse "os templos do engano" e entrasse "na casa
radiante da vida"; proibia, porém, que se molestasse quem quer que fosse por causa das suas crenças
religiosas.
Belas igrejas puderam surgir em Roma (a de São Pedro foi construída por iniciativa do próprio
Constantino), em Jerusalém, Belém..., igrejas que tomaram o nome de basílicas (basiliké em grego é
o adjetivo de basileus. Imperador, e significa imperial igreja). Os templos pagãos foram caindo em
ruínas, especialmente os de Vênus, cujo culto era imoral; o matrimônio e a família receberam proteção
legal de acordo com os princípios do Cristianismo; o domingo, que os pagãos chamavam "dia do sol",
mas que era o dia da Ressurreição de Jesus, foi declarado dia festivo oficial. Constantino se dizia
publicamente adorador do Deus dos cristãos, embora só tenha recebido o Batismo no fim da vida (e
não antes, como se poderia crer).5
2. Muito importante, no reinado de Constantino, foi também a transferência da capital de Roma
para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou
cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a
cidade de Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi
mais e mais abandonada pelo poder imperial; tornou-se sempre mais importante pelo seu valor
religioso (nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a
quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros).
A transferência da capital para Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivessem
cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria - o que infelizmente resultou num cisma em 1054.
Após longo e próspero reinado, Constantino faleceu em 337.
Os cristãos orientais veneraram-no. Juntamente com sua mãe Helena, como Santo ou, melhor,
como o 13o Apóstolo. Os ocidentais foram mais sóbrios, atribuindo-lhe o título de "Magno", bem
Justificado, pois certamente Constantino realizou obra de imenso alcance para a história da
humanidade. Há, porém, quem julgue que a proteção concedida por Constantino ao Cristianismo

3
Em grego X equivale a Ch e P é o equivalente de R. XP, portanto, são as duas primeiras letras do nome grego Christós,
O o é, P ou P ou tornou-se comum entre os cristãos até hoje.
4
É de notar que o Império Romano, desde 286, era governado por quatro soberanos (dois Augustos e dois Césares), que
repartiam assim as responsabilidades da administração. Esse tipo de governo, introduzido por Diocleciano (284-305), foi
de pouca duração, mas ainda deixava vestígios de si nos tempos de Constantino e Licínio.
5
Uma lenda reza que Constantino foi batizado pelo Papa São Silvestre, que também o terá curado de lepra. Até o século
XVII foi tida como autêntica versão dos fatos; hoje, porém, é reconhecida como falsa.
17 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

desvirtuou a Igreja, contaminando-a com crenças e práticas do paganismo. E o que passamos a


considerar atentamente.

Lição 2: A época constantiniana


1. Quanto à pessoa de Constantino, pode-se dizer que passou por uma evolução religiosa
notável. Vagamente monoteísta, quando começou a governar, reconheceu no Cristianismo um fator
que lhe asseguraria êxito político; daí o apoio que em seus primeiros tempos de governo outorgou à
Igreja. Aos poucos, porém, Constantino foi assimilando a própria mensagem do Evangelho, de modo
que não pode ser tido como "hipócrita beato". Em 315, por exemplo, declarava: "Dedico pleno
respeito à regular e legítima Igreja Católica", e vinte anos mais tarde: "Professo a mais santa das
religiões... Ninguém pode negar que sou um fiel servidor de Deus" (ver Daniel-Rops, L’Eglise des
Apôtres et des Martyrs. Paris 1948, p. 495).
Constantino acreditava ter recebido uma missão especial de Deus para harmonizar o Estado e a
Igreja. Dizia ser o epískopos (vigilante) de fora; assim, por exemplo, falou a Bispos reunidos num
Concílio regional: "Vós sois epískopoi (= bispos) daqueles que estão dentro da Igreja; eu, porém, fui
constituído por Deus epískopos (= vigilante) daqueles que estão fora da Igreja". 6 Com tais palavras
Constantino queria afirmar que se considerava encarregado das populações ainda não cristãs, às quais
deveria levar o Evangelho; mas, através desse encargo, o Imperador se julgava habilitado a orientar
até mesmo as controvérsias teológicas, nas quais interveio mais de uma vez.
Não há dúvida de que Constantino, simultaneamente, trazia o título de "Grande Pontífice" da
religião pagã, título que seus antecessores já tinham usado. Pode-se crer que ele assim procedia por
motivos políticos e diplomáticos, mais do que por convicção íntima; como dito, tinha uma formação
doutrinária eclética ou incompletamente cristã e sujeita a temores supersticiosos. Além disto, deve-se
reconhecer que os instintos de violência persistiam na alma de Constantino apesar da sua adesão ao
Cristianismo; foi, por exemplo, responsável pelos morticínios de seu filho Crispo e de sua esposa
Fausta.
2. A ingerência de Constantino em assuntos internos da Igreja encontrou apoio em Bispos do
Oriente. A liberdade subitamente concedida por Constantino à Igreja deslumbrou muitos cristãos e os
tornou propensos não só a obedecer ao Imperador, mas, por vezes, também a pedir a intervenção do
mesmo em questões religiosas (como, por exemplo, os arianos e os donatistas). Estes fatos se
tornaram nocivos à Igreja Oriental nos séculos IV/VI, gerando o que se chamou "o Cesaropapismo"; 7
no Ocidente, o mesmo não ocorreu, pois as populações ocidentais não mereciam os cuidados dos
Imperadores bizantinos; estes chegaram a desprezá-las, de modo que a Igreja latina pode com
liberdade seguir o seu curso de expansão e implantação.
Deve-se ainda observar que o envolvimento dos Imperadores na ordem interna da Igreja não
deturpou a estrutura e a doutrina do Cristianismo. A mensagem do Evangelho foi, através de tais
vicissitudes, vivida pelo povo de Deus de modo a poder transmitir-se íntegra às gerações
subsequentes. O fato de terem cooperado entre si a Igreja e o Império não é um mal em si; não há por
que rejeitar de antemão o bom entendimento entre aquela e este, a menos que se professe um
maniqueísmo (dualismo) sócio-político. Se um Imperador se diz católico e nada prova que não é
sincero, a Igreja tem o direito e o dever de contar com ele como um filho seu, a quem compete
proclamar o Evangelho.

Lição 3: Juliano o Apóstata (361-3)


Os descendentes de Constantino - Constantino II (337-40) e Constâncio (337-61) - continuaram
a obra de cristianização do Império, recorrendo, não raras vezes, à força e intervindo na disputa ariana
(ver módulo 9).
Em 361 subiu ao trono Juliano, filho de um semi-irmão de Constantino Magno. Embora educado
no Cristianismo, recebeu influência de mestres helenistas e, em particular, do neoplatônico Máximo
6
A palavra grega epískopos significa originariamente "vigilante" ou "superintendente". Foi assumida pelos cristãos para
designar o vigilante credenciado pela sagrada Ordem do episcopado. A frase de Constantino foga com o dueto sentido da
palavra.
7
No Cesaropapismo, o Imperador (César) quer fazer as vezes de Papa.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 18

de Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, era pagão em seu íntimo. Uma vez entronizado,
declarou-se publicamente adepto da religião helenista antiga - o que lhe valeu o cognome de
"Apóstata" (desertor). Praticava fervorosamente o culto do Sol com os sacrifícios respectivos e a
magia.
Juliano quis promover a restauração da cultura paga transferindo da Igreja para instituições
pagãs favores e direitos diversos. Os "galileus" (assim eram chamados os cristãos) deveriam deixar os
cargos mais elevados do Império; proibiu aos mestres cristãos que explicassem aos seus alunos os
clássicos autores gregos - o que obrigava os jovens cristãos a freqüentar as escolas pagãs.
Juliano tentou criar uma Igreja de Estado neoplatônica,8 copiando de certo modo os moldes da
igreja Católica. Fundou, pois, asilos e orfanatos, albergues para os viandantes; promoveu instrução
religiosa para o povo e disciplina penitencial para os sacerdotes pagãos.
No intuito de prejudicar a Igreja, favoreceu as heresias e as cisões entre os cristãos. Para tentar
demonstrar que Cristo se havia enganado (cf. Mt 24,2), permitiu aos judeus que voltassem à Terra
Santa para reconstruírem o Templo de Jerusalém; todavia terremotos e incêndios frustraram tal
empreendimento. O próprio Imperador combateu com a pena o Cristianismo escrevendo três livros
"Contra os Galileus", dos quais só conhecemos fragmentos contidos na réplica aos mesmos escrita por
S. Cirilo de Alexandria.
Juliano não quis desencadear perseguição sangrenta, como tinham feito seus antecessores. Não
quis condenar à morte os cristãos, pois dizia: "Todos correriam ao martírio, como as abelhas voam
para a colméia" (ed. Migne, t. 50, 573); tal era o anseio, dos cristãos, de chegar à perfeição do
martírio. Contudo o zelo fanático dos funcionários e do povo pagão levou a conflitos e derramamento
de sangue. Os resultados obtidos pelo Imperador foram assaz escassos e efêmeros, em parte por causa
da breve duração do seu reinado, em parte também por causa da falta de ambiente no Império para o
retorno às antigas práticas pagas.
Juliano morreu durante uma expedição contra os persas, tendo 32 anos de idade. Reconheceu o
fracasso de sua tentativa, no leito de morte, onde terá exclamado: "Venceste, Galileu!" - o que não é
fato histórico, mas bem traduz o estado de ânimo do Imperador. Juliano era mais romântico do que
dado ao concreto; por isto o seu plano de reforma não suscitou entusiasmo entre os pagãos. S.
Atanásio o comparou a "uma pequena nuvem que se dissolveu rapidamente".

MÓDULO 6: IGREJA E IMPÉRIO NOS SÉCULOS IV/V


Continuaremos a percorrer a história das relações entre a Igreja e o Império Romano, desde 363
até o fim do século V. A história dos dogmas da fé que se desenvolveu contemporaneamente, ficará
para os módulos 8-13.

Lição 1:... até o fim do século IV


1. Sucederam a Juliano o Apóstata os Imperadores Joviano (363-4), Valentiniano I (364-375) no
Ocidente, e Valente (364-78) no Oriente; Graciano (375-83) e Valentiniano II (383-92) no Ocidente, e
Teodósio I o Grande (379-395) no Oriente.
Todos estes monarcas contribuíram para a restauração da vida e das instituições do Cristianismo
onde haviam sido interrompidas. A fé cristã foi-se implantando cada vez mais nas grandes cidades; era
nas aldeias ou pagi (em latim) que se encontravam redutos da antiga religião helenista, de modo que
os adeptos desta ficaram sendo os pagani (habitantes das aldeias); daí se deriva a palavra portuguesa
pagão para designar o cultor de mitos ou deuses. 9 E numa lei de 370 que pela primeira vez na história
ocorre o termo paganus para designar o não cristão.
2. O imperador Graciano (375-83), no Ocidente, recusou o título e a veste de Pontifex Maximus
(Pontífice Máximo). Mandou suspender as contribuições do Estado para o culto pagão e afastou do

8
O neoplatonismo teve origem em Alexandria no século III d.C. pela fusão do antigo pensamento de Platão com o de
egípcios, judeus e persas. Não era apenas filosofia, mas tinha caráter religioso e místico, praticando um culto próprio, que
incluía a teurgia (arte de fazer Deus descer à alma em êxtase).
9
Há Quem proponha outra explicação para o termo pagão. - Paganus, em latim, significava também o burguês (o não-
soldado ou paisano): em conseqüência, o cristão, sendo soldado de Cristo, deveria ser dito miles (soldado) e não paganus.
19 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Senado de Roma o altar da deusa Victória (382). Estas medidas suscitavam forte agitação na
sociedade não cristã. O alto patriciado de Roma, que ainda conservava muitas das suas tradições
mitológicas, enviou ao Palácio do Imperador em Milão uma delegação, chefiada, pelo celebre senador
e orador Símaco, a fim de solicitar a restituição do altar de Victória ao seu lugar no Senado. Graciano,
porém, recusou-se a receber em audiência tais legados.
A Graciano sucedeu seu irmão Valentiniano II (383-92), com 13 anos de idade. A facção pagã
da sociedade repetiu seu apelo, desta vez por escrito. Os conselheiros do Imperador estavam dispostos
a ceder, mas o Bispo de Milão, S. Ambrósio, em atitude prudente e enérgica, dissuadiu o Imperador de
aceitar a solicitação de restaurar a Ara Victoriae no Senado (384); o próprio S. Ambrósio, em uma de
suas cartas, afirmou que então a maioria dos membros do Senado já era cristã (ep. 17, 9,10).
3. Sob Teodósio I (379-95), que reinou no Oriente do Império, registraram-se acontecimentos
importantes. Aos 28/02/380, o Imperador assinou um decreto que tornava oficial a fé católica
"transmitida aos romanos pelo apóstolo Pedro, professada pelo Pontífice Dâmaso e belo Bispo de
Alexandria, ou seja, o reconhecimento da Santa Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Com
estas palavras, Teodósio abraçava, para si e para o Império, o Credo que, proveniente dos Apóstolos,
era professado então pelo Papa São Dâmaso (366-84) e pelo Bispo S. Atanásio de Alexandria, grande
defensor da fé ortodoxa na controvérsia contra os arianos (ver módulo 8). Assim o Cristianismo, que
Constantino I tornara lícito em 313, era feito religião oficial do Império Romano.
Teodósio continuou a extirpação dos resquícios do politeísmo pagão. De 388 em diante mandou
fechar numerosos templos; em Alexandria foi destruído o famoso Serapeion (391); o povo e os
monges por vezes tomavam parte ativa nessa campanha de extinção do paganismo. Em 392 Teodósio
deu ulterior passo: um decreto imperial equiparava os sacrifícios pagãos de animais imolados e o
aruspício (exame das vísceras de animais para adivinhar o futuro ou esclarecer dúvidas) a alta traição
e os punia com o confisco de bens.
No Ocidente, o assassínio de Valentiniano II (392) por parte do general franco Argobasto e a
ascensão do usurpador Eugênio (392-4) deram ocasião, por breve tempo, a novo surto do paganismo;
em Roma foi permitido o exercício da religião politeísta, e a Ara Victoriae foi devolvida ao Senado.
Teodósio, porém, interveio em Isonzo perto de Aquiléia (394) e pôs termo às expressões do
paganismo, que doravante Já não teria vitalidade para tentar reassumir a sua posição de outrora.
Os múltiplos favores concedidos pelos Imperadores à Igreja poderiam contribuir para lhe tirar a
autonomia, reduzindo-a à qualidade de feudo manipulado pelos interesses políticos da corte. Tal não
foi o caso, de modo geral. Tenha-se em vista, de modo especial, o comportamento do Bispo de Milão,
S. Ambrósio, frente ao Imperador Teodósio: este, em Tessalônica (Grécia), querendo vingar um
comandante morto num movimento revolucionário, mandou matar sete mil pessoas, inclusive
mulheres e crianças (390). Ao saber disto, S. Ambrósio condenou o crime e ameaçou excomungar o
Imperador. Este quis reagir diante da atitude do Bispo, mas caiu em si e se arrependeu. Na noite de
Natal de 390, o Imperador, poderoso como era, revestiu-se do hábito dos penitentes, acusou e
repudiou publicamente o seu pecado; em seguida, absolvido pelo Bispo, foi readmitido à Comunhão
Eucarística. S. Ambrósio assim lembrava um princípio muito antigo entre os cristãos, mas esquecido
na época: "O Imperador está dentro da Igreja, e não acima dela".
Ao morrer em 395, Teodósio deixou a Igreja consolidada neste mundo tanto em relação ao
paganismo, que a perseguira, como em relação à heresia ariana, que encheu o século IV por inteiro e
que o Imperador contribuiu para afastar, aderindo incondicionalmente ao Concílio de Constantinopla I
(381); ver módulo 8.

Lição 2: O Século V
Teodósio deixou o Império a seus dois Jovens filhos, assaz imaturos para governar: Arcádio
(395-408) no Oriente, e Honório (395-423) no Ocidente.
1. No Oriente novas medidas foram sendo tomadas para eliminares resquícios do paganismo.
Arcádio aboliu os privilégios de que gozavam os sacerdotes pagãos e mandou fechar os templos
construídos nas zonas rurais. Seu filho Teodósio II (408-450), influenciado por Pulquéria, irmã de
Teodósio II, excluiu os pagãos dos cargos estatais, e em 448 mandou que as obras do filósofo Porfírio,
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 20

contrárias ao Cristianismo, fossem queimadas. Em 423 um edito do Imperador dava a entender


(hiperbolicamente) que já não havia pagãos.
Sob Teodósio II deu-se o famoso caso da filósofa neoplatônica Hipáciade Alexandria (370-415).
Esta se dedicava à matemática, à astronomia e. principalmente, à filosofia; praticava, além do mais, a
teurgia (ritos destinados a mover os deuses e os demônios em favor de quem a eles recorria). Entre os
discípulos de Hipácia, havia um certo Sinésio de Cirene (+414 aproximadamente). Ainda não
batizado, Sinésio foi eleito em 411 Bispo de Ptolemaida; só aceitou o cargo à condição de não ter que
renunciar às suas concepções neoplatônicas referentes à preexistência das almas, à eternidade do
mundo e à interpretação alegórica da ressurreição dos corpos. Feito Bispo, Sinésio revelou-se pastor
zeloso e defensor da Igreja; aos poucos foi assimilando a doutrina cristã. É figura muito estranha na
antiguidade; representa bem o período de transição da cultura pagã para a fé cristã por que passavam
muitos intelectuais da época.
Quanto a Hipácia, sabe-se, pelas fontes antigas, que morreu assassinada: ao voltar de uma
viagem, foi, por um grupo de pessoas, puxada para fora de sua carreta, arrastada para uma igreja e
assassinada com pedras e cacos; o seu cadáver terá sido esquartejado e espalhado pelos arredores.
Sobre a causa deste atentado, refere a fonte mais minuciosa e segura10 o seguinte: a comunidade cristã
de Alexandria julgava que Hipácia tramava com o Prefeito Crestes de Alexandria contra o Bispo S.
Cirilo; ora, no ambiente de tensões então vigente, o leitor Pedro terá chefiado um punhado de gente
acalorada para cometer o morticínio; S. Cirilo não terá tomado parte na façanha, apesar do que refere
o filósofo Damásio, discípulo da escola neoplatônica como Hipácia. Não se pode deixar de condenar o
procedimento dos cristãos de Alexandria, que resolveram fazer justiça com as próprias mãos contra
Hipácia. De resto, naquele ambiente de animosidade também os pagãos se lançaram contra os cristãos;
narram as fontes, entre outros casos, o linchamento de um estudante cristão por volta de 485-7. Tais
fatos são típicos da época que estamos analisando; havia certo antagonismo entre o Cristianismo e a
cultura (letras, pintura, música, jogos, ciência, filosofia...) existente no Império, pois toda esta se
achava impregnada de mentalidade pagã; a própria filosofia em Alexandria estava associada a práticas
mágicas. Era preciso separar mitologia e cultura para que o Cristianismo pudesse assumir a cultura
clássica. Esta tarefa foi executada com muito zelo pelos mosteiros dos séculos VI-X: os monges
"copistas" transcreveram as obras dos autores romanos e as utilizaram para elaborar uma nova cultura
- a medieval -, que recorria copiosamente aos grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles.
2. No Ocidente, as invasões de tribos germânicas causaram devastações a partir do século IV;
houve em conseqüência, o despovoamento de algumas regiões. Em virtude da situação caótica assim
instaurada, a implantação do Cristianismo foi mais lenta do que no Oriente. Ainda em fins do século
VI, o Papa São Gregório Magno referia-se ao paganismo existente nas ilhas da Sardenha, da Córsega e
em regiões distantes. O número de cristãos no Ocidente, por volta do ano de 600, era de 7 a 8 milhões
numa população global de cerca de 10 milhões.
Nem todos esses cristãos haviam recebido sólida catequese; como se dirá no módulo 7, os povos
germânicos se convertiam ao Evangelho coletivamente, seguindo o exemplo de seu chefe. Havia, pois,
muitos batizados ministrados sem a devida doutrinação anterior. Tais cristãos guardaram algo das suas
práticas supersticiosas (magia, astrologia...) e não podiam dar o testemunho de vida fervoroso e
coerente que as comunidades dos primeiros séculos ofereciam ao mundo pagão.

Lição 3: A ação evangélica da Igreja


A Igreja, através dos seus bispos e missionários, dedicou-se à ação evangelizadora. Interessava-
se por converter em verdadeiros cristãos aqueles que haviam abraçado a fé superficialmente ou para
atender a pressões do Imperador, como também atingia os pagãos, romanos ou bárbaros, que
povoavam o Império.
A obra missionária foi grandemente favorecida pelo teor mesmo da mensagem evangélica. Esta
era de conteúdo muito superior ao das crenças pagãs: apresentava, sim, um só Deus, que por amor
criou o mundo e o homem, e exerce sábia providência em relação à história de cada criatura; o Pai
Celeste é Senhor de todos os maus espíritos ou demônios; exclui o fato ou o destino, e convida os

10
Trata-se do historiador Sócrates (+após 450) na sua História Eclesiástica VII 13-15.
21 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

homens a uma conduta filial, para a qual está reservado o prêmio da vida eterna. O anúncio destas
verdades, corriqueiras para quem Já nasceu em civilização cristã, era altamente significativo para os
pagãos.
Nos tempos entre Constantino I e Juliano as instituições e as normas do Direito Civil foram
sendo progressivamente impregnadas de espírito cristão, sobretudo no que diz respeito à mulher, à
criança, à família, ao trabalho...
Além da função estritamente evangelizadora, os Bispos tiveram que assumir tarefas de ordem
temporal, pois o Ocidente se achava sob os golpes das invasões e os Imperadores, residentes em
Bizâncio (Oriente), pouco se importavam com as sortes das populações ocidentais. Em meio à
desordem, os Bispos tiveram, por vezes, que administrar os bens materiais das suas comunidades,
como também foram levados a proteger, alimentar e abrigar as populações mais carentes. Em
particular, destaca-se a figura de São Leão Magno (440-461): era um autêntico romano, de caráter
nobre e corajoso. Foi ao encontro de Atila, chefe dos Hunos, nas proximidades de Mântua em 452,
persuadindo-o a tomar o caminho de volta; em 455, dirigiu-se ao rei dos vândalos, Genserico, que,
atendendo ao Papa, renunciou a depredar a cidade de Roma a ferro e fogo. Socorreu os romanos com
sua solicitude e seus bens, fazendo o que não fazia o representante do Imperador residente em Ravena.
Outra figura de Bispo notável foi a de São Martinho de Tours (316-397) na Galia.11 Recebeu o
Batismo aos dezoito anos de idade; tornou-se monge e. depois, foi feito Bispo. Introduziu o
monaquismo na França e mandou ordenar como presbíteros os seus monges;12 em conseqüência, os
monges na França se tornaram os mestres de espiritualidade e os responsáveis pela configuração da
Igreja. Além disto. São Martinho se dedicou intensamente à evangelização das zonas rurais, onde o
apego aos costumes próprios resistia à penetração do Evangelho: montado em jumentinho e
pobremente equipado, ia S. Martinho de aldeia em aldeia chamando para Cristo todos os homens
carentes.
Outros grandes nomes de Bispos defensores das populações e da civilização podem ser citados:
São Paulino de Nola (353-431), S. Máximo de Turim (+após 465), S. Agostinho de Hipona (+430), S.
Hilário de Poitiers (315-367), S. Pedro Crisólogo, de Ravena (+450). Pode-se dizer que foi a Igreja
que salvou a civilização na tempestade das invasões bárbaras e assegurou a união dos habitantes do
Império Romano. Como dissemos, na falta de um Governo forte no Ocidente, os Bispos tinham que
assumir não somente a pregação do Evangelho, mas também a administração dos bens da sua
Comunidade, o contato com os bárbaros, a proteção e a alimentação das populações carentes.

MÓDULO 7: A IGREJA E OS POVOS BÁRBAROS


A partir do século IV, deu-se o importante acontecimento das invasões bárbaras no Império
Romano, que contribuiu fortemente para constituir a Cristandade da Idade Média; os novos povos, a
princípio repelidos pelos habitantes do Império, acabaram fundindo-se com estes, resultando daí o
cristão medieval, que configurou a Igreja da sua época.
A origem de tais invasões está no fato seguinte: os hunos, saindo dos desertos da Mongólia
(Ásia), conquistaram uma parte da China, mas foram impelidos para o Ocidente por outros povos
invasores. Entraram, portanto, na Europa Oriental e Setentrional, onde estavam alojados povos não
conquistados pelos romanos: os godos, os alamanos, os francos, os lombardos... Estes, cedendo à
pressão dos hunos, tiveram que invadir o Império Romano. As primeiras tentativas foram repelidas
pelos romanos; mas na segunda metade do século IV o Império estava enfraquecido do ponto de vista
militar e administrativo, de modo que não pode resistir.
Em 376, os visigodos atravessaram o Danúbio; entraram na Grécia, na Ilíria (Iugoslávia) e
chegaram até Milão (Itália). Não se consideravam conquistadores do Império, mas afiados dos
romanos. Os vândalos, porém, os ostrogodos, os lombardos... se mostraram mais ferozes, de modo a
acelerar a derrocada do Império. Roma caiu finalmente em 476 sob os golpes dos ostrogodos,

11
Gália é o nome antigo do território hoje chamado "França". Gália se prende a gauleses, que eram os habitantes da região
anteriormente à invasão dos francos (donde França).
12
Monge é o cristão que se consagra a Deus numa vida de oração, ascese e trabalho; não recebe necessariamente o
sacramento da Ordem. - Presbítero (padre) é o cristão que recebe o sacramento da Ordem para ser pastor do povo de Deus.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 22

chefiados por Teodorico (471-526); um dos generais deste, Odoacro, destituiu o último Imperador,
Rômulo, e fez-se proclamar rei da Itália.

Lição 1: O receio dos cristãos


A população do Império Romano, embora resultasse da justaposição de povos diferentes
vencidos pelo Império, sentia-se una, pois compartilhava a mesma civilização, que era chamada "a
România". Esta era oposta à barbáries- palavra onomatopaica que tentava reproduzir a rudez e a
dureza características dos invasores (bar + bar). Aliás, os romanos já haviam sido considerados
bárbaros pelos gregos; transferiam então este tratamento para os germanos.
Para os romanos feitos cristãos, as invasões bárbaras eram motivo de especial pavor. Com efeito;
para os discípulos de Cristo, Roma fora, de certo modo, um esteio da propagação do Evangelho:
suscitara a pax romana e a fácil comunicação entre diversos povos, favorecendo assim a pregação
missionária. - Verdade é que o Império Romano pagão e perseguidor é mal visto em certos escritos do
Novo Testamento, que identificam Roma com a Babilônia prevaricadora; ver I Pd 5,13; Ap 17,5.
Todavia, apesar das perseguições, os cristãos eram beneficiados pelas estradas e pela unidade política
do Império, de modo que alguns escritores da Igreja atribuíam a este uma função providencial. Em
conseqüência, muitos pensadores julgavam que, se Roma caísse sob os golpes dos bárbaros, o mundo
acabaria; tal era a ligação que estabeleciam entre Roma e a história. O escritor Latâncio, por exemplo,
escrevia no começo do século IV:
É visível que o mundo está ameaçado de queda próxima. A única circunstância que pode
atenuar nossos receios, é o fato de que a cidade de Roma ainda subsiste em estado próspero. Mas,
quando esta capital do universo for vencida e dela não restar senão um acervo de ruínas..., não
teremos mais nenhum motivo para duvidar da iminência do fim do mundo. Esta cidade por si
conserva e sustenta tudo" (Instituições Divinas VII. XXV, 5).
Podemos sentir o estado de ânimo temeroso dos cristãos através das palavras de S. Jerônimo
(+420), que foi um dos homens mais eruditos do seu tempo:
"Meu coração estremece pensando nos desastres do nosso tempo. Eis mais de vinte anos que
entre Constantinopla e os Alpes Julianos o sangue romano é derramado diariamente... Quantas
damas, quantas virgens de Deus, quantos corpos nobres e delicados não foram foguetes dessas feras
selvagens? Os Bispos são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados Juntamente com clérigos
de diversas Ordens; as Igrejas são devastadas, os cavalos amarrados junto sós altares de Cristo
como em estrebaria; os despojos dos mártires são extraídos da terra. Em toda parte, há luto, gemidos
e a sombra da morte. O mundo romano desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra...
Tivesse eu cem línguas, cem bocas, uma voz de bronze, nunca, nunca eu poderia contar tantas
desgraças!" (epístola IX 16).
Em 410, o visigodo Alarico penetrou e saqueou Roma. S. Jerônimo comenta em 411:
"Hoje quis aplicar-me ao estudo de Ezequiel; mas, no momento preciso em que comecei a ditar,
senti tal perturbação pensando na catástrofe do Ocidente - e principalmente na devastação de Roma -
que, como diz o provérbio, as próprias palavras me faltaram. Por muito tempo fiquei em silêncio,
bem consciente de que estamos na época das lágrimas. Neste mesmo ano, depois que expliquei três
livros de Ezequiel, uma subitânea invasão dos bárbaros... desencadeou-se como uma torrente sobre o
Egito, a Palestina, a Fenícia, a Síria, tudo arrastando consigo. Foi graças à misericórdia de Cristo
que escapei das mãos deles" (ep. 126,2).
No citado comentário sobre Ezequiel, ainda escreve S. Jerônimo:
"Quem teria acreditado que essa Roma, construída sobre vitórias obtidas em todo o universo,
viesse um dia a desmoronar?... Quem teria acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser mãe
e sepulcro?... Que todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se cobririam de escravos
(homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do universo?" (Prefácio ao livro III, XXV).
Todavia o horror dos cristãos havia de ceder a outros sentimentos.

Lição 2: Olhar mais otimista


O pavor foi substituído por confiança e esperança em virtude dos seguintes fatores:
23 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

1) Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava... Os cristãos foram
vendo que se esboçava uma nova situação geral e que o Senhor parecia exigir deles que a assumissem,
em vez de se fecharem na perplexidade. - Uma nova atitude aflorava à mente dos cristãos, sugerida
pelo sacerdote Salviano de Marselha (+480): em vez de deterem sua atenção apenas na barbárie dos
novos povos, fizessem os cristãos o seu exame de consciência; não bastava professar a fé católica,
para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé; Salviano aponta então os
vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do Império são
coniventes com graves abusos, como a embriaguez, a luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o
orgulho... Ao contrário, dizia o escritor, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos
outros, ao passo que os romanos se odeiam mutuamente; são castos, principalmente os godos e os
saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para os
romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e
não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges, sim (professavam o arianismo), mas isto é culpa
dos romanos, que lhes transmitiram a heresia.
Os historiadores reconhecem exagero nos dizeres de Salviano. Pouco depois São Cesário, Bispo
de Arles (+452), descreveria vivamente as depravações dos bárbaros. Como quer que seja, as
observações de Salviano evidenciam que entre os cristãos ia ocorrendo uma sadia reconsideração dos
acontecimentos; esta levava ã emenda de vida pessoal e não ao desânimo. Os cristãos deveriam
adaptar-se à nova situação e procurar continuar a trabalhar, salvando dos escombros o que pudessem
salvar.
2) Os bárbaros levaram ao Império Romano envelhecido seus valores próprios: eram povos de
mentalidade inculta, infantil e carente; reconheciam a insuficiência de sua civilização e de suas
crenças e abriam-se com facilidade para o patrimônio da cultura romana, que evidentemente era
superior. Ao lado dos seus defeitos morais, tinham seus traços de dignidade: acentuado sentimento de
honra, espírito de solidariedade com a família e a sua estirpe, matrimônio rigidamente monogâmico,
fidelidade à palavra empenhada... A Igreja bem poderia valorizar esse patrimônio moral e lançar
dentro dos seus moldes as sementes do Evangelho.
3) As invasões bárbaras contribuíam para extinguir a cultura pagã do antigo Império romano,
que conservava seus redutos ainda no século VI. A mensagem de Cristo assumida pelos novos povos
permitiria construir um mundo relativamente novo, mais homogeneamente cristão. Para conseguir
isto, a Igreja dispunha de elementos importantes: grandes Bispos, dotados de irradiação, e os
mosteiros, que eram focos de espiritualidade, cultura e missão evangelizadora,

Lição 3: A evangelização dos bárbaros


Quase todos os povos germânicos reconheciam três divindades principais: Ziu (deus supremo do
céu), Donar ou Thor (deus do trovão) e Wodam ou Odin (deus das tempestades e dos mortos). As
suas crenças religiosas, porém, estavam abaladas por terem deixado as suas terras de origem e terem
entrado em contato com civilizações e religiões estrangeiras. Estavam, portanto, abertos ao anúncio de
uma mensagem religiosa mais sólida.
Não é possível reconstituir com minúcias o processo de conversão de cada povo germânico ao
Cristianismo. Apenas se podem apresentar os seguintes traços seguros:
1) Tal conversão não se deu, como na antiguidade, em virtude de ação missionária dos cristãos
Junto aos familiares e amigos, mas ocorreu por efeito da decisão do chefe da respectiva tribo; os
súditos costumavam seguir o exemplo do chefe.
2) Entre os germanos, a vida civil e o culto religioso estavam estritamente associados entre
si..Por isto a conversão de uma tribo não era apenas um fato religioso, mas constituía também um
acontecimento político.
3) Na conversão dos germanos ao Cristianismo, antes de Carlos Magno, não houve recurso a
meios violentos. Todavia algumas tribos, como as dos visigodos e dos vândalos, usaram de violência
contra os cristãos.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 24

4) Os germanos, com exceção dos francos, fizeram-se cristãos primeiramente sob a forma do
arianismo,13 seguindo o exemplo dos visigodos. Algumas hordes permaneceram arianas até o seu
ocaso (ostrogodos, vândalos); outras o abandonaram para tornar-se católicas, ainda que tardiamente
(visigodos, suevos, burgúndios...).
Examinemos em particular a conversão dos visigodos e a dos francos.
3.1. Os visigodos
Os visigodos foram os primeiros povos germânicos a abraçar o Cristianismo. No século III
alguns de seus indivíduos se tornaram católicos por obra de prisioneiros ou de missionários com quem
tiveram contato. Todavia o grande arauto da fé, entre eles, foi Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos
godos por Eusébio, Bispo ariano de Nicomédia, pregou durante mais de quarenta anos a fé ariana
entre os seus compatriotas; traduziu para o godo quase toda a Bíblia e admitiu a língua goda na
liturgia. Úlfilas assim trabalhou com o apoio dos Imperadores Constâncio (337-361) e Valente (364-
378), que procuravam fazer do arianismo a religião do Estado.
Os visigodos constituíram um foco missionário do mundo germânico oriental, de modo que, sob
o seu influxo, todos os povos germânicos orientais acolheram a doutrina de Cristo sob a forma ariana.
3. 2. Os francos
Dentre as tribos germânicas, a dos francos havia de desempenhar papel especialmente
importante na história da Igreja. Na segunda metade do século V passaram das margens do Reno para
a Gália. O seu rei Clodoveu ou Clóvis (481-511) casara-se com a princesa católica Clotilde. Esta o
persuadiu de mandar batizar os dois filhos. Mais tarde, Clodoveu achou-se em difícil situação ao
enfrentar o exército dos alamanos; fez então o voto de tornar-se cristão, caso vencesse. Tendo sido
bem sucedido, recebeu o Batismo das mãos do Bispo S. Remígio de Rheims no Natal de 496,
juntamente com 3.000 homens do seu séqüito. Entre os motivos da decisão do rei, estava o desejo de
obter o apoio dos Bispos para o jovem reino franco.
A conversão de Clóvis e dos francos teve enorme importância: visto que os outros chefes
germânicos eram ou pagãos ou arianos, Clóvis apresentou-se aos povos católicos do Ocidente como o
protetor da religião ortodoxa. Este fato mereceu, para a França, o título de "filha mais velha da Igreja".
Clóvis, também dito "o novo Constantino", e seus sucessores tiveram grande ingerência nos assuntos
internos da Igreja – ó que equivale a um certo cesaropapismo no Ocidente. A corte desses reis não
dava o exemplo de autêntica vida cristã, pois era afetada por crimes e impudicícia; a Igreja empenhou-
se por salvar da decomposição o reino dos francos e fazê-lo baluarte da história dos próximos séculos.

MÓDULO 8: AS HERESIAS TRINITÁRIAS


Tendo estudado a expansão do Cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história
das doutrinas da fé na antiguidade: módulos 8-13. Um dos mais sérios problemas doutrinários que se
puseram na Igreja antiga foi o da conciliação da unidade de Deus (firmemente professada pelo Antigo
Testamento) com a Trindade de Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo, tais como nos foram revelados
pelo Novo Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura de uma fórmula satisfatória, que,
após duras controvérsias, foi definida pelos Concílios de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a
história dessa longa reflexão que vamos estudar.

Lição 1: O monarquianismo
Nos séculos 11/111 alguns escritores cristãos julgavam que o Verbo (Lógos) ou o Filho de Deus
só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou emitido o Logos,
de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade. - Esta concepção negava a eternidade do
Filho de Deus e o subordinava ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do
Filho, de modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.
Podemos dizer que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus
professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto, monarquianismo,
expressão derivada da exclamação: "Monarchiam tenemus. - Conservamos a monarquia" (Tertuliano,
Adversus Praxeam 3). Apresentava duas fórmulas:

13
A respeito do arianismo ver módulo 08.
25 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

dinamista ou adopcionista
Monarquianismo
modalista ou patripassiano
1.1 O monarquianismo dinamista
O monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do
Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por Deus
como Filho, com intensidade especial. - O fundador desta corrente foi Teódoto de Bízâncio, cristão de
notável cultura grega, que o Papa São Vítor excomungou (190). Os seus discípulos, Asclepiódoto e
Teódoto o jovem, quiseram organizar uma comunidade própria, para a qual nomearam um Bispo
chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou ao seio da Igreja.
Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este
via em Jesus um mero homem no qual terá habitado "como num templo" o Logos ou a Sabedoria de
Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um concílio regional reunido em
Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua
doutrina, de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos
(325).
E de notar que o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho
ou Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora precisamente esta
expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como fórmula de fé. Para entender os fatos,
devemos observar que Paulo de Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou
o Filho era uma só pessoa com o Pai.
1.2. Monarquianismo modalista
Esta corrente ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se
manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater, pai:
passianismo, de passus, padecido).
Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna, foi levada para Roma e Cartago (África), dando
origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma. O Papa Zeferino (198-
217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência em Deus, sem,
porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de pessoas do Pai e do Filho.
O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava
três revelações de Deus: uma, como Pai, na criação e na legislação do Antigo Testamento; outra,
como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos homens.
Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega que significava
originariamente "máscara ou papel de ator de teatro";14 visto que posteriormente prósopon significou
também pessoa, a doutrina de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé
lhe aderiam sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus.
Como se vê, o grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair
no triteísmo ou sem professar três deuses.
A controvérsia havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população,
desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era
simpático ao Cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões teológicas; elas
assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os
esforços de numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram
decisivamente para a rela formulação da fé cristã. O período áureo da literatura cristã está
precisamente ligado às disputas teológicas.
Estudemos agora as controvérsias do século IV.

Lição 2: Arianismo e semiarianismo


Rejeitando o monarquianismo dinamista e modalista, a Igreja afirmava sua fé em Cristo. Pessoa
Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se relacionam entre si o Filho e

14
Posteriormente a palavra prósopon havia de significar "pessoa", ou seja, indivíduo racional. Tomada, porém, em seu
sentido originário, designava uma aparência ou uma modalidade de ser.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 26

o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade do Filho, subordinardo-o, porém, ao Pai; donde
resultou a tese do subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.
2.1. Arianismo
O presbítero Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores; afirmava que o
Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumento para a criação
de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos poderia ser chamado "Filho de Deus",
como reza a tradição.
O Bispo Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de cem Bispos, que
condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a outros
Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre.
Ário, porém, conseguiu novos defensores para a sua causa - o que tornou mais árdua a
controvérsia. Diante dos fatos, o Imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando-se
único senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o santo Bispo Ósio de
Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a
missão, porém, fracassou. Então Constantino resolveu convocar um Concílio ecumênico15 para Nicéia
na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as partes
do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois presbíteros seus representantes.
As discussões foram longas e agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo de Fé de
Nicéia, que afirmava ser o Filho "Deus de Deus, luz de luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado não feito, consubstanciai (homoousios) ao Pai; por Ele foram feitas todas as coisas".
A palavra homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava que o
Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde
toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza divina.
O Imperador Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio de Nicéia. Exilou Ário e
quatro Bispos que não queriam aceitar, na íntegra; a definição do Concílio. Condenou às chamas os
escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.
2. 2 As divisões do Arianismo
Infelizmente, porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns
suspeito de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram-se a combater o
Concílio, apoiados pelos Imperadores Constando (337-361) e Valente (364-78), sucessores de
Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que
sofreu vários exílios: e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constando; alguns
historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar à sua sede de Roma, subscrevendo uma
fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se isto é verdade, deve-se à fraqueza
humana, mas não se tratava de definição solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa
fazia. De resto, sabe-se que Libério, uma vez retornado a Roma, combateu eficazmente o arianismo.
Os antinicenos, com o respaldo do Imperador julgaram-se vencedores, depondo Bispos e
reunindo Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo negado a identidade de
substância entre o Pai e o Filho ou o homoousios, afirmaram uns que o Filho era semelhante
(homoiousios) ao Pai, enquanto outros o tinham como dissemelhante (anhomoios). A controvérsia
era alimentada também pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham
significados diferentes: assim homoousios e homoiousios; genetós (feito) e gennetós (gerado),
Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um Concílio
herético).
Finalmente, após mais de cinqüenta anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo,
especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor); S. Basílio de Cesaréia (+379),
S. Gregório de Nazianzo (+390) e S. Gregório de Nissa (+394). Estes elaboraram a fórmula grega:
mía ousía kaí treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia
fielmente o pensamento dos padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se
afirma três vezes ou em três Pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o
imperador Teodósio (379-395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os habitantes do

15
O primeiro de toda a história da igreja. Ecumênico, no caso, quer dizer "universal, abrangendo todos os Bispos".
27 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Império a aderir "àquela fé que professam Dâmaso em Roma e Atanásio em Alexandria"; mandou
também entregar as igrejas de Constantinopla aos católicos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla
I (381) havia de consolidar a proclamação da rota fé contra o arianismo. Isto, porém, não quer dizer
que tal heresia se tenha extinto logo; verias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do-
Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de
religião nacional.
Resta agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.

Lição 3: O Macedonianismo
O Espírito Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (como Jo 14.16), foi menos
considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem Julgava ser o Filho criatura do Pai
tinha o Espírito Santo na conta de criatura do Filho; seria um dos espíritos servidores (cf. Hb 1,14),
diferente dos anjos apenas por gradação.
S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do
Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade do Espírito Santo.
Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedônio, Bispo ariano de Constantinopla deposto em
360, era ferrenho adversário da
Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que se chamavam
macedonianos ou pneumatômacos ( pneuma = espírito; máchomai = combater).
Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos padres capadócios.
Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150
padres ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o macedonianismo e. para
explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo 3 o do Símbolo de fé niceno, que rezava
apenas: "Cremos no Espírito Santo"; foram-lhe acrescentadas as palavras: "Senhor e Fonte de Vida,
que procede do Pai (cf. Jo 15,26), é adorado e glorificado Juntamente com o Pai e o Filho, e falou
pelos Profetas". Assim teve origem o Símbolo de Fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a
heresia ariana quanto a macedônia.
Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se relaciona com
o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na
formulação do que na própria doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede
do Pai através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho (Filioque).
Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente
recitado, passando depois para outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal
inserção, que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI. Atualmente as dificuldades vão sendo
superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que de conteúdo.

MÓDULO 9: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (I)


Após verificar que o Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção
dos teólogos devia voltar-se mais detidamente para a questão: como Jesus pode ser autêntico Deus e
autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e a humanidade de Jesus?
A resposta a estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos estudiosos, que a formularam
em quatro etapas: 1) a fase apolinarista; 2) a fase nestoriana; 3) a fase monofisita; 4) a fase monotelita.
A seguir, estudaremos de per si as três primeiras destas etapas.

Lição 1: O Apolinarismo
Em plena controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se
fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana
carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de S. João 1,14: "O Lógos se fez carne",
entendendo carne no sentido estrito, com exclusão de alma. O Lógos de Deus faria as vezes de alma
humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo
Lógos. Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas completas (Divindade e
humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse. Ele teria duas pessoas ou dois eu -
o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 28

pecado tem origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a alma
espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário expôs suas ideias no livro "Encarnação do Verbo de Deus", que ele apresentou ao
Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. - Foram condenadas num sínodo de
Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Dâmaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de
Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se â
negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S. Gregório de Missa (1394) e outros autores lhe
responderam mediante belo princípio: "O que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido" - o que
quer dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou
pela união da Divindade com a humanidade; se, pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não
foi inteiramente salva.
Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo à frente o Bispo Vital. Por volta
de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os seus membros abandonaram o
erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.

Lição 2: O Nestorianismo
Afirmada a existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais
detidamente o modo como humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo.
Antes, porém, de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas
teológicas da antiguidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da
Cristologia.
A escola alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino e o
transcendental nos artigos da fé. Interpretava a S. Escritura em sentido alegórico, tentando desvendar
os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos cristológicos, portanto, era inclinada a
realçar o divino, com detrimento do humano.
Ao contrário, a escola antioquena era mais dada à filosofia e à razão: voltava-se mais para o
humano, sem negar o divino. Interpretava a S. Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus
os predicados humanos mais do que os atributos divinos. Era mais racional, ao passo que a de
Alexandria era mais mística.
Dito isto, voltemos à história do dogma cristológico.
A primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de
Constantinopla em 428. Afirmava que o Lógos habitava na humanidade de Jesus como um homem se
acha num templo ou numa veste; haveria duas pessoas em Jesus - uma divina e outra humana - unidas
entre si por um vínculo afetivo ou moral.
Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos), como diziam os antigos, mas
apenas Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa
da SS. Trindade com a sua Divindade.
Nestório propunha suas ideias em pregações ao povo, nas quais substituía o título "Mãe de
Deus" por "Mãe de Cristo" As suas concepções suscitaram reação não só em Constantinopla, mas em
outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este
escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a doutrina de Nestório.
As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório num
sínodo de 430. Deu ordem a S. Cirilo para que intimasse Nestório a retirar suas teorias no prazo de
dez dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao Patriarca de Constantinopla uma lista de doze
anatematismos que condenavam o nestorianismo. Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que
podia contar com o apoio do Imperador; além do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena,
entre os quais o próprio Bispo João de Antioquia.
Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o terceiro Concílio
Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. S, Cirilo, como representante do Papa Celestino I,
abriu a assembléia diante de 153 Bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos
da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado; daí se
seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a Divina); Maria se tornara Mãe de Deus pelo fato de que
Deus quisera assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431
29 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

chegou a Éfeso o Patriarca João de Antioquia, com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a
Nestório; não quiseram unir-se ao Concílio presidido por S. Cirilo, representante do Papa; por isto
formaram um conciliábulo, que depôs Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se
indeciso. S. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta
doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do Imperador. Este
finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os antioquenos não se renderam de
imediato; acusavam Cirilo de arianismo e apolinarismo. Após dois anos de litígio, em 433 puseram-se
de acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como Theotókos.
O Nestorianismo, porém, não se extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino,
foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana. Esta teve notável expansão até a
China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante foi definhando por causa das incursões dos
mongóis; em grande parte, os nestorianos voltaram à comunhão da Igreja universal (são hoje os
cristãos caldeus e os cristãos de São Tomé).
Em nossos dias muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que
parece ser autor de uma apologia intitulada "Tratado de Heraclides de Damasco": pode-se crer que
Nestório tenha tido reta intenção; mas certamente sustentou posições errôneas por se ter apegado
demasiadamente à Escola Antioquena.

Lição 3: O Monofísismo
A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu ocasião
ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofísitismo ("em Jesus há uma só natureza e
uma só pessoa: a divina").
O primeiro arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que
Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina
absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, só se poderia falar de uma natureza em Jesus: a
divina. Esta doutrina tornou-se a heresia mais popular e mais poderosa da antiguidade, pois, para os
orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada
cristão.
Eutiques foi condenado como herege no Sínodo do Constantinopla em 448, sob o Patriarca
Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o
Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.
Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio II Imperador convocou em 449 novo
Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era partidário de
Eutiques. Dióscoro tendo aberto o Concílio, negou a presidência aos legados papais; não permitiu que
fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno, que propunha a reta doutrina: as duas naturezas em Cristo
não se misturam nem confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a
outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pode ressuscitar mortos
como Deus. - Esse Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de
Constantinopla, e outros Bispos contrários à tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta
duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa
São Leão Magno, como "latrocínio de Éfeso"; pediam novo Concílio, que de fato foi convocado após
a morte de Teodósio II pela Imperatriz Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em
450 foi feito Imperador e se casou com Pulquéria.
O novo Concílio, desta vez legítimo, reuniu-se em Calcedônia, diante de Constantinopla, em
451; foi o mais concorrido da antiguidade, pois dele participaram mais de 600 membros, entre os
quais três legados papais. A assembléia rejeitou o "latrocínio de Éfeso"; depôs Dióscoro e aclamou
solenemente a Epístola Dogmática do Papa São Leão a Flaviano; esta serviu de base a uma confissão
de fé, que rejeitava os extremos do Nestorianismo e do Monofisismo, propondo em Cristo uma só
pessoa e duas naturezas;
"Ensinamos e professamos um único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não
transformadas, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças;
antes, cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra numa única
pessoa e numa única hipóstase",
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 30

Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e
duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora de Cristo; mas
também não há uma só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito à
dor e à morte para transfigurar estas nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina,
que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no seio de
Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, ora como homem, mas sempre e somente com
o seu eu divino.
O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da
atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges), propondo-lhes a
humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos explicam essa persistência da
heresia; com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas
tendências nacionalistas, opostas ao helenismo e à dominação bizantina. Por isto os monofisitas
continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de
punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém (ao menos
temporariamente). No século VII a situação se agravou, pois os muçulmanos ocuparam a Palestina, a
Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em conseqüência,
os monofisitas foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a Síria, a mesopotâmica, a egípcia e a
etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis.
No Egito, os monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da
palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se chamam melquitas (de
melek, Imperador), pois guardam a doutrina ortodoxa patrocinada pelo Imperador em Calcedônia. Há
coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto os outros permanecem monofisitas, mas professam
quase o mesmo Credo que os católicos. Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas
pois receberam forte influência do Egito. - Dentre os melquitas, grande parte aderiu ao cisma
bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão hoje unidos à Igreja universal;
ver módulo 21.
Na Síria e nos países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um
dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (= o homem da coberta de cavalo, alusão às suas vestes
maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa '(541-578), trabalhou com zelo e êxito para consolidar as
Comunidades monofisitas, às quais deu por cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544).

MÓDULO 10: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (II)


Continuemos a estudar as heresias cristológicas no intuito de compreender melhor a sutileza da
disputa e a ação do Espírito de Deus através das vicissitudes humanas.

Lição 1: O Henotikón e o Teopasquismo


Vinte e cinco anos após o Concílio de Calcedônia, em 476, deu-se nova investida dos
monofisitas contra a ortodoxia. Com efeito,; os Patriarcas Pedro Mongo, de Alexandria, e Acácio de
Constantinopla, adeptos do monofisismo, redigiram um Símbolo de fé que condenava tanto Nestório
quanto Êutiques; rejeitava o Concílio de Calcedônia e afirmava que as normas de fé deveriam ser o
símbolo niceno-constantinopolitano e as definições do Concílio de Éfeso (431). Tal fórmula de 476
podia ser interpretada de diversas maneiras.
O Imperador Zenão promulgou esse símbolo de fé, dito Henotikón (Edito de União), com o
vigor de lei do Estado. Assim esperava atingir a unidade religiosa dentro do Império. Infelizmente,
porém, causou mais acesas divisões. Muitos católicos e os monofisitas mais extremados recusaram
obedecer ao Imperador por causa da ambigüidade do Henotikón.
Ao saber das manobras do Imperador, o Papa Félix III enviou legados a Constantinopla para
pedir a Zenão e ao Patriarca Acácio fidelidade ao Concílio de Calcedônia. Como fossem vãs essas
solicitações, o Papa resolveu depor Acácio, Patriarca de Constantinopla. Tal medida era muito grave,
pois significava ruptura com os cristãos orientais em geral e com o Imperador, que os queria dirigir no
sentido do monofisismo. O Papa, porém, foi corajoso no cumprimento do dever de preservar a reta fé.
A ruptura durou 35 anos (484-519). Foi chamada "cisma acaciano", durante o qual o
monofisismo se propagou amplamente entre os orientais.
31 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Zenão morreu em 491, tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491-518), também simpático
aos monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca, foram infrutíferas.
A situação se tornou ainda mais sombria por causa da questão teopasquita. Com efeito; a
liturgia grega cantava a Triságion (três vezes santo) nos seguintes termos: "Santo (hágios) Deus,
Santo Forte, Santo imortal, tem piedade de nós". Ora o bispo monofisita Pedro Fulão de Antioquia
acrescentou-lhe as palavras "que foste pregado na cruz por causa de nós". O Imperador Anastásio
mandou recitar a fórmula ampliada em Constantinopla; donde resultou grande agitação. Diziam
alguns monges e fiéis: "Um16 da Santíssima Trindade padeceu na carne"; foram chamados
teopasquitas.17 A fórmula em foco podia ser entendida segundo a ortodoxia: a segunda Pessoa da SS.
Trindade, tendo-se feito homem, padeceu na carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era
monofisita, os ortodoxos desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os monofisitas lhes
favoreciam calorosamente.
Morto o Imperador Anastásio, sucedeu-lhe Justino (518-527), que se empenhou por restabelecer
a comunhão com a Sé de Roma. O Papa Hormisdas (514-523) acolheu o propósito de Bizâncio e
mandou legados a esta cidade com uma fórmula de união dita "Livro da Fé do Papa Hormisdas": esta
proclamava o símbolo de fé calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava o anátema
sobre Nestório, Eutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além disto, declarava que, conforme a
promessa de Cristo a Pedro em Mt 16,16-19, a fé católica se conservava intacta na Sé de Roma; por
isto os fiéis deviam obediência às decisões tomadas por esta. Era assim professado o primado do Papa
em 515. O Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes nesta cidade
assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo perdeu muito da sua voga, mas as
controvérsias continuaram.

Lição 2: Os Três Capítulos


O Imperador Justiniano (527-565) foi homem de grande ideal, que tencionou dar ao Império um
período de fausto como não o tivera até então. Era, ao mesmo tempo, prepotente, de modo que
exerceu forte cesaropapismo. Compreende-se então que as controvérsias teológicas tenham merecido
sua zelosa atenção. O Imperador, querendo conciliar os ânimos, só fez provocar maiores tumultos.
O bispo Teodoro Asquida de Cesaréia, muito influente na corte, sugeriu ao Imperador que
condenasse três nomes de autores antioquenos tidos como inspiradores do nestorianismo; dizia que
bastaria essa medida para obter a volta dos monofisitas à comunhão da Igreja Universal. Esses três
nomes constituíram Três Capítulos, a saber: 1) Teodoro de Mopsuéstia (+ 428), sua pessoa e seus
escritos; 2) os escritos de Teodoreto de Ciro (+458) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso; 3) a carta do
bispo Ibas de Edessa (t 435) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de Teodoro de Mopsuéstia e contra
os anatematismos de Cirilo.
O Imperador acolheu a proposta e publicou um edito que anatematizava os Três Capítulos em
543. Este decreto dividiu os ânimos, pois não se viam claramente os erros pretensamente cometidos
pelos três autores. Justiniano, porém, obrigou o Patriarca Menas e os bispes orientais a assinar o
anátema. Os ocidentais deviam seguir-lhes o exemplo, tendo o Papa Vigília à frente. Este relutou; por
isto o Imperador mandou buscá-lo de Roma para Constantinopla. Um ano após sua chegada, Vigílio
em 548 escreveu o ludicatum, em que condenava os Três Capítulos, ressalvando, porém, a autoridade
do Concílio de Calcedônia.
O gesto do Papa causou indignação entre os ocidentais, principalmente no Norte da África, pois
era uma estrondosa vitória do cesaropapismo. Em conseqüência, o Papa e o Imperador em 550
decidiram convocar um Concílio Ecumênico para resolver o caso; entrementes nenhuma inovação
seria praticada. Todavia em Julho de 551 Justiniano repetiu o anátema sobre os Três Capítulos - o que
provocou ruptura com o Papa Vigílio, que teve de procurar asilo em igrejas de Constantinopla e
Calcedônia.

16
Uma pessoa.
17
Theós = Deus; páscho = sofrer.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 32

A respeito do Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam entre si. Por isto Justiniano
convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de Eutíquio, novo
Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos (maio e junho de 553).
Vigílio então em 13/05/553, no decurso do próprio Concílio, publicou o Constitutum, que se
opunha à condenação dos Três Capítulos. Justiniano não aceitou a nova posição do Papa e mandou
cancelar o nome de Vigílio nas orações da Liturgia.
Finalmente, sob o peso das pressões e da doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu
Constitutum e aderiu às decisões do Concílio de Constantinopla de 553. Num segundo Constitutum
de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em conseqüência, o Imperador permitiu-lhe voltar para
Roma; todavia morreu em viagem (555). Era vítima da sua inconstância de caráter.
Os Papas que lhe sucederam, a começar por Pelágio I (556-561), reconheceram o Concílio de
553 como ecumênico; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos também o foram
reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma humilhação para o Papado.
Notemos que as hesitações do Papa Vigílio não versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas
sobre a oportunidade ou não de se condenarem três nomes de escritores antigos. - O episódio também
é interessante por evidenciar quanto era prestigiada a Sé Romana; o Imperador quis absolutamente
ganhar o consenso do Papa Vigílio; por isto mandou buscá-lo em Roma e pressionou-o repetidamente
para que subscrevesse ao decreto imperial, como se este precisasse da assinatura do Papa para ser
válido.

Lição 3: Monergetismo e monotelitismo


Os monofisitas insistiam em se auto afirmar. Por isto a heresia reapareceu no século VII sob
nova forma. O Patriarca Sérgio de Constantinopla desde 619 ensinava que em Jesus havia uma só
enérgeia ou uma só capacidade de agir (monergetismo); a capacidade humana estaria absorvida na
divina e não teria suas expressões naturais. O Imperador Heráclio (610-641) aceitou a nova fórmula e
conseguiu assim reconciliar grupos monofisitas com o Império.
Todavia o monge palestinense Sofrônio resolveu resistir à nova doutrina, denunciando-a como
monofisismo velado. O Patriarca Sérgio de Constantinopla deixou então de falar de uma só faculdade
operativa, para afirmar uma só vontade (a Divina tendo absorvido a humana) em Jesus
(monotelitismo). Muito habilmente Sérgio tentou ganhar os favores do Papa Honório I (625-638);
este, tendo recebido informações unilaterais, escreveu duas cartas ao Patriarca de Constantinopla, em
que aderia genericamente à sua posição, embora não compartilhasse propriamente nem o monergismo
nem o monofisismo; para evitar escândalos, ordenava que não se falasse de uma ou duas energias.
Levando adiante a causa de Sérgio, o Imperador Heráclio em 638 promulgou a profissão de fé
dita "Ectese", redigida pelo Patriarca, que reafirmava o monotelitismo. Os bispos orientais a aceitaram
quase unanimemente, ao passo que os sucessores do Papa Honório (morto em 638) a condenaram.
O Imperador Constante II (641-648), sobrinho de Heráclio, retirou a "Ectese", mas, aconselhado
pelo Patriarca Paulo de Constantinopla, publicou novo edito dogmático, chamado Typos, em 648, que
proibia falar de uma ou duas vontades em Cristo. O monarca tencionava assim pôr fim à contenda.
Ora no Ocidente o Papa Martinho I (649-653), percebendo a sutileza dos bizantinos, reuniu um
Concilio no Latrão (Roma) em 649, o qual declarou que em Cristo havia dois modos de operar e duas
vontades naturais, e puniu com a excomunhão os fautores das novas ideias. O Imperador, indignado,
mandou prender o Papa e levá-lo para Constantinopla (653); aí foi humilhado como traidor e, por fim,
exilado para a Criméia, onde morreu de maus tratos. Vários cristãos orientais foram tratados de modo
semelhante por resistirem ao Imperador, merecendo especial destaque o abade São Máximo o
Confessor, que foi cruelmente martirizado.
Constantino IV Pogonato (668-685), filho de Constante II, procurou a paz e, para tanto, decidiu
convocar um Concílio Ecumênico, ideia que o Papa Agatão (678-681) aprovou com solicitude. Tal foi
o sexto Concílio Ecumênico, o de Constantinopla III, celebrado de novembro de 680 a setembro de
681, com a presença de 170 participantes. Os conciliares elaboraram uma profissão de fé, que
completava a de Calcedônia:
"Nós professamos, segundo a doutrina dos santos Padres, duas vontades naturais e dois modos
naturais de operar, indivisos e inalterados, inseparados e não misturados, duas vontades diversas,
33 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

não, porém, no sentido de que uma esteja em oposição à outra, mas no sentido de que a vontade
humana segue e se subordina à divina".
Isto quer dizer que em Jesus havia duas faculdades de querer - a divina e a humana - de tal
modo, porém, que a vontade humana se sujeitava à divina, como atesta a oração no horto das
Oliveiras, conforme Mc 14,36.
O Concílio condenou os defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como
fautor de tal doutrina. - A condenação de Honório suscitou longos debates entre historiadores e
teólogos modernos. Na verdade, pode-se tranqüilamente dizer o seguinte:
O Papa Honório, intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra, nem quis
discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, Julgou que a discussão a respeito de
uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio de palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos;
por isto julgou que podia aprovar a posição de Sérgio sem afetar a rela fé. A expressão "uma vontade",
aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de conformidade do querer
humano com o divino. Quanto às faculdades de operar (energeias), Honório esclareceu seu ponto de
vista referindo-se à epistola dogmática de São Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam
na única pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas, aquilo que é próprio de cada
uma delas. - Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório pelo Concílio de 681 foi severo demais;
a Sé de Roma nunca o aprovou integralmente.

MÓDULO 11: ORÍGENES E REENCARNAÇÃO


Lição 1: Orígenes e origenismo
1. Orígenes (185-254) foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no séc.
III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos dados do Evangelho mediante o
instrumento da filosofia ou da sabedoria humana (grega) anterior a Cristo. A teologia ainda estava em
seus primórdios; as fórmulas oficiais da fé da Igreja eram então muito concisas; em conseqüência,
ficava margem assaz ampla para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na
medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a essa tarefa, servindo-se da filosofia do
seu tempo e, em particular, da filosofia platônica. Ao realizar isso, Orígenes fazia questão de
distinguir explicitamente entre proposições de fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação crista, e
proposições hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disto,
professava submissão ao magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das teses de Orígenes.
Ora, entre as suas proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que de fato vieram a ser
recusadas pelo magistério da Igreja.
2. Assim, inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos
(frio), e admitia que as almas humanas unidas à matéria, tais como elas atualmente se acham, são o
produto de um resfriamento do fervor de espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver
fora do corpo; a encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um
abuso da liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá punido, ligando tais
espíritos à matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem aqui a justa sanção e se vão
purificando a fim de voltar a Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão de ser purificados
pelo fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da história todos serão salvos e recuperarão o
seu lugar junto de Deus; o mundo visível terá então preenchido o seu papel e será aniquilado.
Note-se bem: Orígenes propunha essas ideias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a Igreja
não se tinha pronunciado (justamente porque pronunciamentos sobre tais assuntos ainda não haviam
sido necessários). Não havia, pois, da parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento
comum da Igreja a fim de constituir uma escola teológica própria ou uma heresia ("heresia" implica
obstinação consciente contra o magistério da Igreja).
3. A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes
atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o magistério da Igreja as
declarou contrárias aos ensinamentos da fé.
É preciso observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a preexistência
das almas humanas. Ora esta doutrina não significa necessariamente reencarnação; apenas quer dizer
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 34

que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se
depois...; daí não se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação
propriamente dita).
Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com efeito,
em certa passagem de suas obras considera a teoria do filósofo Basílides, o qual queria basear a
reencarnação nas palavras de São Paulo: "Vivi outrora sem lei..." (Rm 7,9). Observa então Orígenes:
Basílides não percebeu que a palavra "outrora" não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas
apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo; assim, concluía
Orígenes, "Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias" (cf. In
Rom VIII).
Contudo os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência
das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não
chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).
Os principais defensores destas ideias, os chamados "origenistas", foram monges que viveram
no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses monges, como se compreende, levando vida
muito retirada, entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia;
admiravam Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em
que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre
proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam cegamente como
dogma tudo que liam nos escrito de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e
buliçosos quanto mais simples e ignorantes.
3. A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou
decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária à fé. Um dos
testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza (+518), autor do "Diálogo sobre a imortalidade da
alma e a ressurreição", em que se lê o seguinte raciocínio:
"Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe várias
vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na
mesma falta. Sendo assim. Deus, que estipula... os supremos castigos, não haveria de esclarecer os
culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de
suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que
serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o
réu e levá-lo à demência. Uma tal vitima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem
ter consciência de haver cometido alguma falta?" (ed. Migne gr., t. LXXXV, 871).
Sem nos demorar sobre este e outros testemunhos contrários à reencarnação no séc, VI,
passamos imediatamente à fase culminante da controvérsia origenista.

Lição 2: "Não" à reencarnação


No início do séc. VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo como
principal centro de propagação o mosteiro da "Nova Laura" ao sul de Belém: aí se falava, com estima,
de preexistência das almas, reencarnação, restauração de todas as criaturas na ordem inicial ou na
bem-aventurança celeste. . .
Em 531, o abade São Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao
origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a Palestina devastada pelos
samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas. Contudo alguns dos monges que o
acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opiniões origenistas; regressou à Palestina, para aí
morrer aos 5 de dezembro de 532.
Após a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o mosteiro
do falecido abade (a "Grande Laura"); em conseqüência, o novo abade, Gelásio, expulsou do mosteiro
quarenta monges. Estes, unidos aos da "Nova Laura", não hesitaram em tentar tomar de assalto a
"Grande Laura". Por essa época, os origenistas (pelo fato de combater uma famosa heresia
cristológica, dita "monofisitismo") gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla.
Com o passar do tempo, a controvérsia entre os monges da Palestina foi-se tornando cada vez
mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539: o Patriarca de
35 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento contra o


origenismo (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões
de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado contra Orígenes, de tom
extremamente violento, que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Orígenes, dos quais
merecem atenção os seguintes:
1. Se alguém disser ou julgar que as almas humanas existiam anteriormente, como espíritos ou
poderes sagrados, os quais, desviando-se da visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este
motivo, perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um corpo á
guisa de punição, seja anátema.
5. Se alguém disser ou Julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos
ressuscitarão em forma de esfera, sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema.
9. Se alguém disser ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá
fim, e que se dará uma restauração apokatástasis, reabilitação dos demônios, seja anátema.
Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menos de Constantinopla,
a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de
mosteiros próximos igual pronunciamento.
Assim intimado, Menas reuniu logo o chamado "sínodo permanente" (conselho episcopal) de
Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais
os quatro primeiros nos interessam de perto:
1. Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas
(que é geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados Independentemente da
matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos
ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais,
outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e
que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram
dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao
passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e
tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema".
O Papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Como se vê, tal
condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543, e não pelo
Concílio ecumênico de Constantinopla II, o qual só se realizou em 553. Neste Concílio ecumênico, a
questão da pré-existência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à baila; verdade é que
Orígenes aí foi condenado juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a
Cristo.
Em conclusão, observamos o seguinte:
a) A doutrina da reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja Católica (atestam-no
os depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás mencionados);
b) Após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particulares de monges orientais,
pouco versados em teologia, os quais se prevaleciam de afirmações daquele mestre, exagerando-as
(daí a designação de "origenistas", que lhes coube):
c) Mesmo dentro da corrente origenista, a teoria da reencarnação não teve a voga que tiveram,
por exemplo, as teses da preexistência das almas e da restauração de todas as criaturas na suposta
bem-aventurança inicial;
d) Por isto as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo versam
explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das almas (o que naturalmente
implica a condenação da própria tese da reencarnação, na medida em que esta tese depende daquelas
doutrinas e era professada pelos origenistas);
e) A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja
(baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também pelo magistério
extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião em 1274 ("As almas... são imediatamente recebidas
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 36

no céu") e de Florença em 1439 ("As almas... passam imediatamente para o inferno a fim de aí
receber a punição") Cf. Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio no 857 [464] e 1306 [693]. Ver também
Concílio do Vaticano II, Const. Lumen Gentium n o 48: "Terminado o único curso de nossa vida
terrestre, possamos entrar nas bodas".

MÓDULO 12: O RE-BATISMO E O DONATISMO


Enquanto as disputas teológicas no Oriente versavam principalmente sobre Deus e Jesus Cristo,
envolvendo problemas altamente especulativos, no Ocidente o debate teológico se voltou mais para
questões de ordem prática, abordando especialmente o binômio "santidade e pecado" na Igreja. -
Examinaremos, a seguir, três controvérsias que, em última análise, desenvolveram essa temática.

Lição 1: O Re-batismo
A medida que se foram registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma
questão nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer converter-se à Igreja
Católica, deve ser batizado de novo?
Essas perguntas suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a tradição antiga,
admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois se dizia, com razão, que é Cristo quem
batiza, servindo-se do ministério dos homens. Na África do Norte, porém, a tendência era contrária:
em Cartago, o escritor Tertuliano (+após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o opúsculo
"Sobre o Batismo" (em grego e em latim), que rejeitava a validade do Batismo conferido pelos
hereges. Três Sínodos, um em Cartago (220) e dois na Ásia Menor (230), adotaram tal sentença, a
qual passou a ser observada na prática de muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou
mais grave quando o bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do re-batismo.
Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas batizavam "em nome do Pai, do
Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da corrente montanista)". Tal Batismo era
evidentemente inválido, pois não observava a fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (cf. Mt 28,18-20);
se, porém, o batismo dos montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo de
qualquer facção herética devia ser igualmente tido como inválido.
Em Roma o Papa S. Estêvão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os
cristãos da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges batizados fora da Igreja
Católica; apenas se deveria exigir que fizessem penitência para entrarem em comunhão com a Igreja
Católica. Dizia textualmente o Papa uma frase que ficou célebre: "Se os hereges vêm a nós, qualquer
que seja a sua seita, nada se inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que façam
penitência" (o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a fórmula do Evangelho). - O
mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos bispos da Ásia Menor que re-batizavam; em
256, informado de que 87 bispos reunidos em Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo,
o Papa os excomungou (não se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as instruções
de Estêvão I).
Em conseqüência, a tensão foi assaz forte entre Roma e os bispos da parte oposta. Não tardou,
porém, a se amainar, pois morreram mártires Estêvão em 257 e Cipriano em 258. O sucessor de
Estêvão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os bispos do Norte da África, o que significa
que atenderam às disposições da Santa Sé. Houve, porém, casos de re-batismo até o século IV, como
atesta o Concílio de Arles em 314.
A questão tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar. Tertuliano e os cristãos da
África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de modo que só seriam válidos os sacramentos
ministrados por pessoas ortodoxas e de reta conduta de vida; por conseguinte, quem estivesse fora da
Igreja ou em pecado mortal não poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de Roma era
outra: a Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo insinuou que nela o Joio e o trigo
devem permanecer até o fim dos tempos (cf. Mt 13,24-30); na Igreja quem ministra os sacramentos é
o próprio Cristo, que se serve dos homens como instrumentos seus; por isto o batismo conferido por
um ministro validamente ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é sempre válido.
Tal é a concepção até hoje vigente na Igreja Católica. Como se vê, os africanos insistiam mais no
elemento pessoal, ético e subjetivo da administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava
37 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

mais o aspecto objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S. Agostinho (ver
lição 3).

Lição 2: As controvérsias penitenciais


A Igreja antiga tinha viva consciência de que os cristãos deviam dar o testemunho de uma vida
pura. Esta consciência se manifestou de maneira extremamente rigorista em alguns momentos da
história;
Até o século VI só era concedido uma vez na vida o sacramento da Reconciliação. Os bispos
julgavam que quem precisasse de mais de uma Penitência sacramental, não estava interiormente
disposto a recebê-la; tal pecador era confiado diretamente à misericórdia de Deus.
Tertuliano (+após 220) parece ter sido o primeiro a falar de pecados irremissíveis, que seriam a
apostasia, o homicídio e o adultério. O Papa Calixto I (217-220), porém, concedia reconciliação a todo
pecador que fizesse a devida penitência.
Esta praxe foi confirmada pelos sínodos de Roma e de Cartago sob o Papa Cornélio (251-253).
Contra este levantou-se então o presbítero Novaciano, que abriu um cisma, encabeçando uma facção
de caráter rigorista: Novaciano negava a reconciliação aos apóstatas mesmo em perigo de morte;
estendeu esta severidade aos dois outros pecados ditos capitais na época (homicídio e adultério).
Queria constituir uma Igreja de puros e santos; por isto rebatizava os católicos que entrassem nas suas
fileiras.
Em 251 um Sínodo de Roma, reunindo 60 bispos, excomungou Novaciano e seus seguidores. S.
Cipriano de Cartago e Dionísio de Alexandria se lhes opuseram. Apesar disto, a facção novaciana se
difundiu largamente, encontrando eco especial no Oriente.
Em Cartago deu-se o movimento laxista, chefiado pelo presbítero Novato e pelo diácono
Felicíssimo. Pleiteavam a reconciliação dos apóstatas sem a penitência sacramental, desde que fossem
recomendados por confessores da fé, isto é, por cristãos que houvessem padecido por causa da fé sem
chegar à morte do martírio. S. Cipriano manteve-se firme à disciplina da Igreja, que readmitia, sim, os
apóstatas, mas após a prestação da devida penitência sacramental.

Lição 3: Os Donatistas
As controvérsias sobre o batismo dos hereges (lição 1) prolongaram-se na história do
Donatismo. Este reavivou a questão: a eficácia dos Sacramentos depende da santidade do respectivo
ministro ou é algo de objetivo, garantido pelo sacerdócio do próprio Cristo?
A problemática donatista teve origem com a morte do bispo Mensúrio de Cartago (311). Foi
eleito em seu lugar Ceciliano; este, porém, tinha opositores, pois na perseguição de Diocleciano (284-
305) se opusera a uma equívoca veneração e a exagerada exaltação dos confessores da fé. 18
Espalharam então o rumor de que os bispos sagrantes de Ceciliano, Felix de Aptunga, Fausto de
Tuburbo e Novelo de Tyzica foram traidores, isto é, tinham entregue os livros sagrados aos
perseguidores; em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, Felix, Fausto e Novelo não
podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago.
Diante dos rumores, 70 bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram em Cartago e elegeram
o antibispo Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande. Estava aberto o cisma donatista.
A expansão do cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar
as acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo Papa Milcíades (313),
reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os donatistas.
Estes não se davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do
Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e acrescentou
explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é válida; além do quê, reprovou o uso,
de cristãos da África, de rebatizar quem tivesse sido batizado por hereges.
Visto que os donatistas não se rendiam, Constantino mandou para ò exílio os chefes da facção e
tirou-lhes as igrejas. Todavia estas medidas só surtiram acréscimo de fanatismo. Os donatistas

18
Como dito, "confessores da fé" eram os cristãos que tinham sofrido tormentos por causa do Evangelho, mas não tinham
morrido. Havia quem lhes quissesse atribuir faculdades sacerdotais.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 38

puseram-se a questionar o direito, do Estado, de intervir em questões da Igreja; retomando o conceito


novaciano, declararam ser "a Igreja imaculada dos mártires", em oposição à Igreja "contaminada por
traidores" (os católicos); somente na facção donatista seriam ministrados validamente os sacramentos;
por isto também rebatizavam todos os que se lhes agregassem.
O número de donatistas foi aumentando a tal ponto que em 336 puderam celebrar um Sínodo em
Cartago com 270 bispos.
O Imperador Juliano (361-363), desejando restaurar a cultura pagã no Império, praticou uma
política simpática aos donatistas. Estes, em parte, se aliaram a grupos fanáticos, chamados "dos
circunceliões" (porque cercavam as habitações dos camponeses); praticavam a pilhagem e outros
delitos nas regiões campestres.
Finalmente dois grandes bispos se puseram a combater o donatismo no campo doutrinário: eram
Optato de Milevo (que expôs as origens e a história do cisma no De schismate Donatistarum) e
principalmente S. Agostinho de Hipona, que a partir de 393 foi escrevendo seus tratados teológicos
contra os donatistas, a respeito da Igreja e da eficácia dos sacramentos. Os bispos católicos em 404
pediram ao imperador Honório que aplicasse aos donatistas as leis do Estado referentes aos hereges -
o que de fato aconteceu. S. Agostinho, diante de tal procedimento, foi mudando de alvitre: a princípio
era contrário à intervenção do Estado em questões de doutrina e disciplina da Igreja; depois, passou a
aceitá-la, apoiando-se no texto do Evangelho de Lc 14,23 ("obriga a entrar"); o Estado teria a
obrigação de proteger a Igreja, mesmo aplicando medidas coercitivas, com exclusão da pena de morte.
Eis palavras do S. Doutor escritas ao donatista Vicente:
"Outrora era eu da opinião de que ninguém deve ser coagido à unidade do Cristo; dever-se-ia
recorrer à palavra, combater mediante discussão e vencer pela razão; caso contrário, teríamos entre
nós falsos católicos, em vez de ter contra nós hereges confessos. Tal era minha convicção. Ela teve de
se dobrar diante da reflexão de meus contraditores; não diante das palavras deles, mas diante dos
fatos que eles citavam. Primeiramente, apontavam-me a história da minha cidade natal, Tagaste, que
outrora pertenceu toda ao partido de Donato, e que fora de novo levada à unidade católica por força
das leis imperiais; agora Tagaste é tão alheia ao vosso partido de ódio e de morte que ela parece ter
sido sempre estranha a vós. Citavam-me também o exemplo de muitas outras cidades, cuja história
me era contada" (epist. XCIII 5,17).
Ademais as violentas incursões e os atentados dos donatistas pareciam a S. Agostinho exigir a
intervenção do Imperador, Esta atitude de S. Agostinho há de ser entendida no seu respectivo contexto
histórico: os donatistas eram os primeiros a apelar para a autoridade imperial. Em nenhuma de suas
outras polêmicas Agostinho pleiteou o apoio do braço civil; em mais de uma passagem de suas obras,
o mestre advogou o trato caridoso até dos adversários.
Em 411 reatizou-se em Cartago uma grande assembléia, da qual participaram 286 bispos
católicos e 279 donatistas. Durante três dias os debates não lograram resultado algum, apesar dos
esforços de S. Agostinho em prol da reconciliação. O poder civil aplicou suas léis repressivas, que
também pouco adiantaram. O donatismo só começou a desaparecer do mapa com a invasão dos
vândalos do Norte da África a partir de 429; a invasão muçulmana no século VII pôs o termo
definitivo à facção de Donato.
S. Agostinho, na polêmica antidonatista, teve a ocasião de desenvolver a noção de catoticidade
da Igreja; esta, sendo universal, deve compreender bons e maus; o Senhor fará a triagem no fim dos
tempos; a seita de Donato jamais se poderia dizer católica.

MÓDULO 13: AS CONTROVÉRSIAS SOBRE A GRAÇA


Como dito, o Ocidente se interessou especialmente por questões teológicas atinentes ao homem
e à sua salvação. Continuaremos os estudos do módulo anterior, abordando neste as controvérsias
sobre a graça, que muito mobilizaram o gênio de S. Agostinho (+430).

Lição 1: O Pelagianismo
Pelágio nasceu na Bretanha (Inglaterra de hoje) por volta de 354. Fez-se monge e vivia em
Roma, gozando de grande fama entre os cristãos da cidade. - Associou-se-lhe Celéstio, outro monge;
fora advogado e abraçara a vida ascética com grande ardor. Ambos se mostravam otimistas em relação
39 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

à natureza humana e confiavam na força da vontade. Ambos foram concebendo uma doutrina nova, a
saber: não existiu o pecado original ou o pecado dos primeiros pais, que teria deixado a natureza
humana inclinada para o mal; por conseguinte, o ser humano por si mesmo é capaz de se manter sem
pecado e de praticar o bem. A graça de que fala São Paulo, seria apenas a lei ou o exemplo de Cristo
ou, no máximo, uma iluminação do Espírito Santo a respeito dos mandamentos de Deus; não deveria
ser entendida como um impulso interior dado por Deus ao homem para que pratique o bem. Relendo
as primeiras páginas da Bíblia, Pelágio e Celéstio diziam: 1) Adão teria morrido mesmo sem o pecado,
isto é, não houve elevação dos primeiros pais a um estado especial de graça, graça perdida pela
desobediência dos primeiros homens; 2) o pecado de Adão prejudicou a ele só e não a todo o gênero
humano; 3) as crianças recém-nascidas encontram-se nas condições em que se achava Adão antes do
pecado, isto é, nenhuma graça especial foi concedida aos primeiros pais; 4) a queda de Adão não
acarretou a morte para todo o gênero humano, como a ressurreição de Cristo não é causa da
ressurreição dos demais homens; 5) a Lei de Moisés leva à salvação tanto quanto o Evangelho; 6) as
crianças conseguem a vida eterna mesmo sem o Batismo; 7) houve também antes de Cristo homens
sem pecado.
Em suma, a doutrina de Pelágio não se diferenciava de uma Moral filosófica, meramente
racional; dispensava qualquer intervenção de Deus na Obra de salvação do homem. O papel de Cristo,
que Pelágio não negava, reduzia-se ao do exemplo e ao do magistério, sem reforço para as naturais
capacidades do homem.
A celeuma não tardou a levantar-se em torno das novas ideias; Celéstio e Pelágio, tendo ido a
Cartago para difundir suas doutrinas, foram condenados por um Sínodo daquela cidade em 411.
S. Agostinho, que vivia em Hipona (Norte da África), empenhou-se então por dissipar os erros
pelagianos, merecendo por isto o título de "Doutor da Graça". O Santo elaborou doutrinas que já
estavam na consciência da Igreja, mas ainda não haviam sido aprofundadas, os primeiros pais, logo
depois de criados, foram elevados à filiação divina ou à justiça (santidade) original; este estado
ultrapassava as exigências da natureza; todavia os primeiros homens perderam a riqueza interior, pois
pecaram por soberba e desobediência. Conseqüentemente, só puderam transmitir a natureza humana
despojada da graça; assim toda criança que nasce carente de dons gratuitos que ela devia herdar dos
primeiros pais; essa carência é chamada "pecado original" nos pequeninos. Donde se vê que o pecado
dos primeiros pais transmite suas conseqüências mediante o ato de gerar, e não apenas porque é um
mau exemplo. Estes dados levam a dizer que todos os homens nascem marcados pelo pecado e
tendentes ao pecado; não há quem escape às invectivas do pecado; por isto todos precisam de especial
auxílio ou da graça de Deus para combater o mal e praticar o bem. Essa graça não é apenas um
modelo de vida, mas é o fortalecimento da vontade para optar pela virtude; ela não pode ser merecida,
mas é gratuita e anterior a qualquer mérito.
Enquanto S. Agostinho explanava a rela fé nestes termos, Pelágio na Palestina tentava ganhar
adeptos. Isto lhe era mais fácil no Oriente do que no Ocidente, porque os teólogos gregos viviam
sobre um pano de fundo diferente: o gnosticismo e o maniqueísmo tinham espalhado entre os cristãos
orientais concepções dualistas, que julgavam ser má, por si mesma, a natureza corpórea do homem;
em conseqüência, a teologia oriental tendia antes a exaltar o valor da natureza e a capacidade da
vontade livre para praticar o bem; não falavam tão enfaticamente da graça divina. - Pelágio soube-se
insinuar entre os bispos do Oriente a tal ponto que a sua doutrina foi declarada ortodoxa num sínodo
de Dióspolis (dezembro de 415).
Cientes disto, dois outros concílios regionais, um em Cartago e outro em Milevo (Norte da
África), em 416 condenaram novamente Pelágio e eléstio como hereges e obtiveram do Papa
Inocêncio l (402-417) a confirmação da sua sentença. Foi este gesto que moveu S. Agostinho a
pronunciar a famosa frase: "Agora chegaram da Santa Sé alguns rescritos e a questão está definida
(causa finita est). Oxalá seja eliminado definitivamente o erro (utinam aliquando finiatur error)!"
Com isto Agostinho proclamava a autoridade suprema da Sé de Roma; era suficiente para dirimir as
dúvidas teológicas.
Todavia a disputa se prolongou. O sucessor de Inocêncio I foi o Papa Zósimo (417-18), grego de
nascimento, que se deixou impressionar por profissões de fé apresentadas por Pelágio e Celéstio: visto
que estes admitiam a graça de Cristo, Zósimo os justificou. Contudo S. Agostinho e os bispos
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 40

africanos insistiram em apontar os erros pelagianos, de modo que em 418 Zósimo publicou longa
encíclica (dita epístula tractoria), em que intimava todos os bispos a condenar o pelagianismo. Tal
documento foi bem acolhido, o que implicou o fim da controvérsia pelagiana. Os poucos recalcitrantes
ocidentais refugiaram-se no Oriente, onde foram acolhidos por Teodoro de Mopsuéstia e Nestório; por
isto o Concílio de Éfeso (431), ao mesmo tempo que rejeitou o nestorianismo, renovou a condenação
da doutrina pelagiana.- Esta, porém, teve um apêndice no Ocidente.

Lição 2: A predestinação. O Semipelagianismo


S. Agostinho, combatendo o otimismo exagerado de Pelágio, teve que acentuar fortemente o
primado da graça e da ação de Deus na salvação do homem. Isto o levou a conceber rígida doutrina de
predestinação, que assim se pode resumir:
Após o pecado dos primeiros pais, todo o gênero humano vem a ser "uma massa condenada"
(massa perditionis). Ninguém pode por si escapar da condenação acarretada por Adão sobre o gênero
humano. Acontece, porém, que Deus, em sua insondável misericórdia e prescindindo dos méritos dos
homens, quer retirar alguns ou muitos do estado de condenação, levando-os à glória final; os restantes
são deixados na perdição que lhes é devida por Justiça. A esses escolhidos Deus confere a graça eficaz
e o dom da perseverança final para que se salvem realmente.
Tal doutrina, severa e rígida, suscitou contestação até mesmo dos discípulos de S. Agostinho.
Havia quem lhe opusesse os dizeres de S. Paulo: "Deus quer que todos os homens sejam salvos" (1Tm
2,4). O Mestre, porém, explicava artificiosamente tais palavras de três maneiras: 1) todos aqueles que
se salvam, salvam-se porque Deus o quer; 2) Deus quer salvar homens de todas as categorias (reis,
nobres, plebeus, iletrados...); 3) Deus nos leva a querer que todos os homens se salvem.
A resistência mais tenaz à doutrina de S. Agostinho sobre a predestinação partiu dos mosteiros
do Sul da Gália (Marselha e Lerins): o abade João Cassiano de S. Vítor, o grande organizador do
monaquismo naquela região, queria seguir uma via intermediária entre o pelagianismo e a doutrina
predestinacionista de S. Agostinho, que lhe parecia equivaler ao fatalismo. Nos mosteiros, portanto,
elaborou-se a doutrina seguinte:
Deus escolhe os homens para a vida eterna não de maneira absoluta e incondicionada, mas, sim,
em previsão dos méritos de cada um. Deus quer salvar todos os homens sem exceção, mas a sua
vontade não se realiza porque Ele mesmo sabe que nem todos corresponderão a esse desígnio divino.
Por conseguinte. Deus salva apenas aqueles que apresentam méritos para isto. - Esta doutrina ainda
hoje pode ser professada na Igreja; foi no século XVI reavivada por Luís Molina S. J. Donde tirou o
nome de Molinismo.
Todavia os monges de Marselha foram mais longe, e nisto incorreram em erro: o initium fidei
ou o primeiro passo para a salvação vem do homem só; a graça de Deus o levará adiante. Mais: não há
necessidade do dom particular da perseverança final para conseguir a salvação eterna. A doutrina
assim concebida foi, no século XVI, chamada "Semipelagianismo"; os antigos falavam apenas da
doutrina dos Massilienses (marselheses).
S. Agostinho defendeu sua posição até o fim da vida (28/08/430). Seus amigos Próspero de
Aquitânia e Hilário, ambos leigos, que haviam informado o mestre a respeito das ideias cultivadas na
Gália meridional prosseguiram a luta contra os erros "semipelagianos". Todavia no tocante à
predestinação foram abrandando o pensamento de Agostinho: Deus quer salvar todos os homens; se
na realidade não salva a todos, isto se deve à previsão dos deméritos de muitos, que põem obstáculos
voluntários à realização do plano de Deus.
Após a morte de S. Agostinho, a controvérsia durou ainda um século entre massilienses e
agostinianos. Houve exageros de parte a parte; é conhecido, por exemplo, o caso do presbítero
Lúcido, que chegava a negar o livre arbítrio e sustentava que Deus presdestina de maneira positiva e
direta certos homens para a condenação eterna. Tal doutrina foi rejeitada pelos sínodos de Arles e
Lião por volta de 473.
O debate semipetagiano chegou ao fim por obra do grande bispo S. Cesário de Arles (+543).
Este foi monge de Lerins, mas afastou-se dos erros teológicos de seus irmãos de hábito, o que supunha
muita coragem, visto que a Gália meridional era prevalentemente semipelagiana. Em julho de 529
reuniu importante Sínodo em Orange: baseado em documentos vindos de Roma e em parte elaborados
41 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

por Próspero da Aquitânia, condenou o pelagianismo e o semipelagianismo e propôs um agostinismo


mitigado: assim, por exemplo, afirmou a incapacidade natural do homem para realizar o bem
sobrenatural ou conseguir a salvação eterna, a absoluta gratuidade da graça (que por ninguém pode ser
merecida), a necessidade da graça para o início da salvação e para a perseverança final; todavia deixou
de lado a doutrina da predestinação incondicionada (anterior aos méritos ou deméritos do homem) e a
da predestinação direta para a condenação eterna.
Eis alguns tópicos dos cânones deste concílio:
"Que ninguém se glorie do que ele parede ter, como se não fosse um dom recebido" (c. 16). -
"Deus realiza no homem muitas coisas boas que o homem não realiza; mas o homem não cumpre
nenhum bem que Deus não lhe de os meios de cumprir" (c. 20). - "O homem só tem de seu mentira e
pecado; se o homem tem uma parte de verdade e de justiça, ela provém da fonte da qual nós devemos
beber neste árido deserto" (c. 20). - "Os homens executam a sua vontade própria quando fazem o que
Deus não quer; mas, quando cumprem a sua vontade de obedecer à vontade divina, embora
procedam voluntariamente, isto se deve ao querer daquele que prepara e dispõe a vontade dos
homens" (c. 23).
S. Cesário pediu à Santa Sé a confirmação dos cânones de Orange, obtendo-a da parte do Papa
Bonifácio II (530-32). De então por diante, essas declarações foram altamente respeitadas na teologia
católica, pois estabeleceram marcos definitivos. Um manuscrito dos cânones de Orange traz em
apêndice a seguinte observação: "Eis por que todo aquele que, a respeito da graça e do livre arbítrio,
acreditar diversamente daquilo que a autoridade do Papa e este Sínodo estabeleceram, saiba que se
coloca em contradição com a Sé Apostólica e com toda a Igreja no mundo inteiro".

MÓDULO 14: O MONAQUISMO


Lição 1: Origem do Monaquismo
A palavra "monaquismo" vem do grego monachós = aquele que está só; designa uma forma de
vida cristã totalmente consagrada a Deus no retiro, no silêncio, na oração, na penitência e no trabalho.
Houve formas de monaquismo pré-cristão na Índia, na Palestina (os essênios), no Egito (os
terapeutas, os neoplatônicos)... O monaquismo cristão tem, seus fundamentos imediatos no próprio
Evangelho, onde o Senhor Jesus aconselha a deixar tudo e seguir incondicionalmente o Cristo; ver Lc
9,57-62; Mt 19,16-22, 1Cor 7, 8s. 25-35. Pode-se crer, na base do testemunho de S. Paulo em 1Cor 7,
que já nas primeiras décadas do Cristianismo havia homens e mulheres que se abstinham do
casamento para poder-se consagrar mais plenamente ao Reino de Deus.
No século III essa modalidade de vida ascética tomou a forma eremítica; os cristãos retiraram-se
para o deserto, tendo como modelo S. Antão (251-356); este é considerado o "Patriarca do
monaquismo"; filho de família rica, ouviu o apelo do Senhor proclamado na igreja e resolveu deixar
tudo, retirando-se para o deserto do Egito, após ter providenciado a subsistência de sua irmã mais
jovem. A "Vida de S. Antão", escrita no século IV por S. Atanásio, exerceu grande influência sobre as
gerações posteriores.
A vida eremítica teve expressões de grande generosidade: os monges viviam em silêncio,
trabalhando com as mãos na confecção de cordames, cestas, esteiras e dedicando longas horas à
oração; os jovens iam consultar os anciãos a respeito de seu tipo de ascese. Alguns eremitas se
dedicaram a formas de penitência muito pessoais: por exemplo, S. Simão Estilha (+459) passou trinta
anos sobre o topo de uma coluna de 40 cúbitos de altura; era conselheiro espiritual e defensor dos
necessitados; teve vários imitadores, até mesmo entre as mulheres. Havia os monges reclusos, que
ficavam fechados em cela estreita por muito tempo ou para sempre; existiam também os pascolantes,
que vagueavam constantemente pelos campos e se alimentavam apenas de ervas. Mais: registravam-se
também os giróvagos, que passavam de um mosteiro para outro, ficando como hóspedes em cada qual
por três ou quatro dias; os sarabaítas, que, aos grupos de dois ou três, viviam em celas sem Superior
nem Regra.
A vida eremítica foi cedendo aos poucos à vida cenobítica ou comunitária. Esta apresentava suas
vantagens, a saber: mais freqüente ocasião de se praticar a caridade e controle da comunidade sobre
atitudes e comportamentos, às vezes esdrúxulos, dos monges eremitas. S. Pacômio (+346) foi o
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 42

primeiro organizador da vida cenobítica, que ele quis submeter a uma Regra e a um superior chamado
"Abade" (= pai); a Regra visava a regulamentar a disciplina dos monges na oração, no trabalho, no
vestuário, na alimentação..., apresentando um caminho de santificação concebida pela sabedoria do
Fundador. A casa dos cenobitas tomou o nome de monastérion em grego (donde mosteiro, em
português). O primeiro mosteiro data de 320; fundou-o S. Pacômio em Tabenisi, a 575 km ao sul da
moderna cidade do Cairo.
Os monges eram quase todos leigos, isto é, não recebiam as ordens sacras; o número de
sacerdotes nos mosteiros correspondia às necessidades do serviço interno da comunidade. Só na Idade
Média é que se difundiu o costume de conferir o presbiterado aos monges. São Pacômio era tão
rigoroso neste particular que excluía por completo a possibilidade de ordenar algum monge, pois
julgava que isto podia suscitar o desejo de honras e encargos de projeção. Conservam-se até hoje
coletâneas de historietas e dizeres (Apoftegmas) dos Padres do deserto, cuja feitura revela a sabedoria
e o heroísmo daqueles cristãos,
Estudada a origem do monaquismo, vejamos como evoluiu no Oriente e no Ocidente.

Lição 2: O monaquismo no Oriente


O Oriente foi o berço do monaquismo, que se difundiu pelos lugares retirados (se não desertos)
do Egito, da Palestina, da Síria...
Ao lado dos mosteiros masculinos, foi fundado grande número de mosteiros femininos. Estes
tinham suas raízes especiais na prática de consagrar a virgindade ao Senhor seja mediante voto
particular, seja mediante voto público de castidade (cf. 1Cor 7,37s); os escritores dos séculos III e IV
Tertuliano (+após 220), S. Cipriano (+258), Metódio de Olímpio (+311), S. Ambrósio (+397)
deixaram escritos que louvam e recomendam a virgindade consagrada. S. Pacômio mesmo fundou
dois mosteiros femininos. Geralmente tais mosteiros ficavam situados nas proximidades dos
cenóbios19 masculinos, a fim de facilitar o intercâmbio espiritual, o mútuo auxílio econômico e a
proteção em casos de assalto (como ocorriam às margens dos desertos). Houve mesmo mosteiros
duplos - o masculino e o feminino - separados entre si pela igreja conventual. Esta disposição
acarretava perigos de ordem moral; por isto o concílio regional de Agde (Gália) em 506 e o Imperador
Justiniano em 546 proibiram a existência de mosteiros duplos. O concílio de Nicéia H em 787 proibiu,
ao menos, a fundação de novos e baixou medidas relativas aos já existentes. Todavia no Ocidente esse
tipo de instituição perdurou até o fim da Idade Média, com bons frutos espirituais, principalmente no
século XII.
O grande legislador do monaquismo oriental foi S. Basílio Magno. Visitou as colônias de
monges da Síria, da Palestina, do Egito e da Mesopotâmia. Depois entregou-se à vida oculta às
margens do rio íris (Ásia Menor), com homens do mesmo ideal. Nesse retiro escreveu duas Regras
cenobíticas, que ficaram famosas na história da espiritualidade; louvava os cenóbios como lugares em
que se pode exercer a caridade fraterna mais do que no deserto, e como depositários da plenitude dos
carismas do Espírito Santo, como ocorre na grande Igreja. S. Basílio atribuiu grande importância não
só à oração, mas também ao estudo, especialmente ao da Teologia; procurou desta maneira fundir
entre si o ideal dos antigos monges e o gênio da cultura helenista. Ainda hoje existe a Ordem dos
monges basilianos (com casas no Paraná-Brasil).
Em certas regiões desenvolveu-se uma forma mista de monaquismo eremítico e cenobítico; os
monges viviam em colônias chamadas lauras sob a guia de um abade, mas ocupando habitáculos
distintos uns dos outros.

Lição 3: O Monaquismo no Ocidente


Começou sob a forma eremítica principalmente sob a inspiração de S. Atanásio, que escreveu a
vida do primeiro eremita: S. Antão. Em algumas ilhas do mar mediterrâneo e em lugares retirados da
Itália e da Gália registra-se a existência de anacoretas20 desde remotos tempos.

19
Cenóbio vem dos vocábulos gregos koinós (= comum) e bíos (vida). É, pois, a casa de vida comunitária, à diferença do
eremitério (de évemos = deserto), lugar de vida solitária.
20
Anacorota vem dos termos gregos aná (para trás) e choréo (caminhar). Significa aquele que se retira ou o eremita.
43 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Todavia os ocidentais, dotados de senso prático e ativo, deram mais ênfase à vida cenobítica.
Esta foi incentivada por grandes mestres como S. Ambrósio (+397),
S. Jerônimo (+420), S. Agostinho (+430), S. Paulino de Nola (+431)..., que tiveram de defender
a vida monástica contra adversários, como Elvídio, Joviniano e Vigilâncio; Joviniano, por exemplo,
levou vida austera no Oriente; mas no fim do século IV foi para Roma, onde desdisse o seu
comportamento anterior; alegava que aqueles que tivessem recebido o Batismo com fé, já não podiam
pecar; em conseqüência, não precisariam de ascese, mas antes poderiam satisfazer a todos os impulsos
naturais; isto o levou a uma conduta licenciosa, que o Papa S. Cirício condenou excomungando
Joviniano (392). S. Jerônimo respondeu a este num opúculo intitulado "Contra Joviniano" (393). Em
Joviniano revivia algo do gnosticismo dos séculos II e III.
Quatro figuras se destacam no monaquismo ocidental: S. Martinho de Tours, S. Agostinho, S.
Bento de Núrsia e S. Columbano.
3.1. S. Martinho (+397)
Martinho nasceu em 316 ou 317 na Panônia (Hungria de hoje). Recebeu o batismo aos 18 anos
de idade e tornou-se eremita em Ligugé (França). Feito bispo em 371, empenhou-se pela difusão do
monaquismo, ficando fiel ele mesmo ao seu ideal originário, pois uma coroa de monges se lhe Juntou,
levando vida comunitária com seu bispo.
Seu túmulo em Tours tornou-se um dos lugares mais visitados pelos peregrinos medievais; era o
santo nacional dos francos. O seu manto, a respeito do qual se contavam milagres, era uma relíquia
conservada em grande honra no reino dos francos.
A vida de S. Martinho escrita por Sulpício Severo, por volta de 400, compraz-se em exaltar a
figura do Santo e exerceu grande influência sobre as gerações posteriores.
3.2. S. Agostinho (+430)
Já antes de se converter, Agostinho, com trinta anos de idade, concebeu o projeto de levar com
alguns amigos uma vida comum, retirada do mundo e despreocupada de solicitudes materiais.
Todavia, quando quiseram executar tal ideal, verificaram que não poderiam contar com o
consentimento de suas esposas (os casados) ou de suas eventuais esposas (os que tencionavam casar-
se).
Uma vez convertido em Milão, voltou à África e, em Tagaste, tratou de reunir em torno de si
alguns irmãos dispostos a renunciar aos bens materiais para levar vida monástica: queria viver com
seus clérigos e irmãos leigos segundo a regra dos Apóstolos: nada possuíam de próprio; tudo era
comum, de modo que cada qual recebia da comunidade o que lhe fosse necessário. Da carta 121 de S.
Agostinho uma secção foi extraída, tornando-se a Regra de S. Agostinho, que ainda hoje inspira o
modo de viver de várias famílias religiosas (Agostinianos, Dominicanos ...). - Certa vez alguns
monges de Hadrumetum (Norte da África) não queriam trabalhar para poder dedicar-se inteiramente à
oração; ao saber disto, S. Agostinho escreveu o opúsculo De opere monachorum (sobre o trabalho
dos monges), que se apoiava nos dizeres de S. Paulo: "Quem não quer trabalhar, também não coma"
(2Ts 3,10); este opúsculo tornou-se um monumento da civilização ocidental.
3. 3. S. Bento de Núrsia (+547?)
É dito "o Patriarca dos monges ocidentais". Nasceu por volta de 480 em Núrsia (Itália), de nobre
família rural romana. Começou em Roma seus estudos de artes literárias, mas logo retirou-se para os
montes Sabinos (Subiaco), onde levou vida eremítica por três anos. Descoberto e procurado por
discípulos, fundou doze mosteiros na região de Vicevaro. Teve que deixar tal ambiente para ir residir
em Monte Cassino (529), onde fundou o mosteiro-berço da Ordem Beneditina. Foi af que escreveu a
sua Regra, inspirada pelo senso de equilíbrio e discrição dos romanos. Valeu-se da tradição monástica
anterior, tanto ocidental como oriental, e adaptou-a às condições de vida de sua época, procurando
oferecer uma disciplina que permitisse aos fortes desenvolver os seus dons e, ao mesmo tempo, não
afugentasse os fracos. Há quem Julgue que S. Bento realizou sua obra legislativa a pedido do Papa
Agapito ou até do Imperador Justiniano, desejosos de codificar e vivificar as diversas experiências de
vida monástica até então ocorrentes no Ocidente.
Pode-se dizer que o lema de São Bento é Ora et labora (Ora é trabalha). Por isto deu
importância primacial ao Ofício Divino ou à oração oficial da Igreja recitada no coro sete vezes
durante o dia e uma vez durante a noite. O espírito de oração deve, pois, impregnar toda a vida do
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 44

monge, inclusive o trabalho, que na época era principalmente o da lavoura e das oficinas (os monges
era de origem goda, de pouca cultura; além do quê, a Itália era cenário de guerras, que deixavam
pouca disposição para elevados estudos). A atividade intelectual nos mosteiros de S. Bento era
originariamente a da lectio divina, ou seja, a da leitura meditada da S. Escritura.
Uma das notas típicas da Regra beneditina é o voto de estabilidade que fixa o monge física e
Juridicamente no seu mosteiro. Era oportuno para pôr termo às divagações dos monges, que
redundavam não raro em fonte de decadência.
Aos poucos, os mosteiros beneditinos foram assumindo papel de relevo capital na história da
Igreja, tanto no setor missionário quanto no da cultura em geral. Foram, em grande parte, os monges
beneditinos que evangelizaram os anglo-saxões e outros povos germânicos (Inglaterra, Bélgica,
Holanda, Norte da Alemanha...); ensinaram aos povos bárbaros que viviam nos arredores dos
mosteiros, os princípios de nova cultura; transmitiram às crianças e aos adolescentes os
conhecimentos científicos e a formação cristã mediante as escolas "monasteriais". Foram também
eles os copistas que salvaram da ruína os tesouros da cultura romana, que, através dos seus códigos e
obras de arte, eles passaram para as gerações vindouras. Pode-se dizer que a grande obra cultural dos
monges começou no próprio século VI.
3.4. São Columbano (+615)
Este é um monge irlandês que em 590 emigrou do seu mosteiro de Bangor (Belfast, Irlanda do
Norte), e com doze companheiros exerceu sua atividade no território da Gália, fundando diversos
mosteiros, dos quais o principal foi o de Luxeuil. Era homem de ascese, que pregava a penitência. Aos
monges irlandeses se deve a difusão da prática da direção espiritual, que foi associada, muitas vezes, à
confissão sacramental. Contribuíram para a elaboração dos Códigos Penitenciais, que estabeleciam o
tipo de penitência devido a cada tipo de pecado.
A Regra monástica escrita por S. Columbano prescrevia rigorosos exercícios de mortificação;
até pequenas faltas eram punidas com penas corporais (que na época eram tidas como meio normal de
coerção). Tal Regra teve grande voga no reino dos francos e na Itália Setentrional; mas já no fim do
século VII foi cedendo o lugar à Regra de S. Bento, mais realista e mais adaptável a situações
diversas.
A Igreja (e, com ela, o mundo ocidental) teve no Monaquismo um fecundo foco de vida espiritual, de
teologia e de cultura geral.

MÓDULO 15: O ISLAMISMO E A IGREJA


Enquanto no Ocidente o Cristianismo se propagava sempre mais, no Oriente e no Norte da
África sofreu sérias restrições por parte do Islamismo fundado no século VII.

Lição 1: A pessoa de Maomé


Maomé (Muhammad-ibn-Abdailag-ibn-Mottalib) nasceu em Meca (Arábia Central)
provavelmente em 580. Faleceu com pouco mais de 50 anos, em 632. Desde adolescente, viajava com
seu tio comerciante em caravanas pela Arábia, a Assíria e a Mesopotâmia, o que lhe proporcionou o
contato com judeus e cristãos.
Por volta de 610/11, Maomé efetuou sua "conversão". Profundamente impressionado pela
desunião dos homens entre si, tornava-se cada vez mais meditativo: entregava-se a severas práticas de
mortificação e retirava-se para a montanha a fim de rezar a sós. Certa vez, na "Noite do Destino", terá
tido uma visão: em sonho, estranho personagem lhe apareceu trazendo nas mãos um rolo de pano
coberto de sinais e mandando-lhe que lesse; após relutar contra essa ordem no sonho, Maomé
acordou, consciente de que finalmente um livro descera em seu coração. Percebia uma voz que lhe
falava em nome de Deus, atribuindo-lhe a missão de reformar as crenças, pôr termo à idolatria e às
disputas religiosas do seu povo, indicando a todos o caminho do céu. Muito perturbado, contou o
ocorrido a sua esposa Kadija, que foi consultar um primo seu, Varaka, homem sensato e culto, que
exclamou: "Deus o escolhe para ser profeta de nova fé!" Após repetidas visões, ignorando quem era o
personagem que lhe aparecia, Maomé julgava-se perseguido por espíritos e pensava em suicidar-se,
quando, certa vez, a estranha voz lhe declarou: "Sou o anjo Gabriel e tu serás o apóstolo do Senhor".
45 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Doravante o "Iluminado" pôs-se a pregar nova forma de religião: o "Islam" ou, em árabe, a
Submissão, Dedicação à Vontade de Deus. Maomé apoiava-se na fé em um só Deus, Allah,
criticando-os cultos pagãos, predizendo iminente catástrofe e apresentando reivindicações sociais em
favor dos pobres. Tais proposições só fizeram irritar a aristocracia de Meca, de sorte que Maomé
granjeou para si adversários cada vez mais hostis, temerosos pela sorte de seus ídolos e de suas rendas
comerciais. Resolveu então transferir-se para a cidade de Medina na noite de 16/07/622. Tal
acontecimento tomou o nome de Hidjra ou Hegira, Fuga, e assinala o início da era maometana.
Em Medina Maomé, apoiado pela população local, revelou dotes de hábil chefe político.
Visando a unir numa só população coesa seus compatriotas árabes, começou a estender o seu domínio
por meio de expedições de ataque a caravanas comerciais. Os sucessos obtidos iam-lhe assegurando
crescente número de adeptos, até que finalmente em 629 Maomé conseguiu entrar em Meca e tomou
posse do famoso santuário desta cidade dito "a Caaba", donde removeu os ídolos. Nos anos seguintes,
foi dilatando o seu poder mediante guerras. Finalmente, aos 08/06/632, veio a morrer. A sua obra
estava suficientemente adiantada para despertar a consciência religiosa e nacional dos árabes e lançá-
los, coesos, à conquista de numerosas nações estrangeiras mediante a prática da "guerra santa".

Lição 2: As proposições do Islam


As fontes doutrinárias do Islam são o código sagrado do Corão (em árabe, recitação,
declamação, pois o texto devia ser recitado no culto) e a tradição oral dita Sunna.
O Islam é monoteísta, ou seja, reconhece um só Deus Criador, à diferença do politeísmo, que
professa muitos deuses, e do panteísmo, que identifica tudo com a Divindade. Acontece, porém, que o
monoteísmo do Islam não é originário da Arábia mesma, mas derivado do monoteísmo judaico-
cristão. Maomé nunca se apresentou como o fundador de uma religião nova. e, sim, como o novo
profeta de tradições mais antigas; a teologia que ele ensinou, deriva-se de três blocos religiosos
anteriormente existentes:
1) a antiga religião árabe, de índole politeísta. Cultuava pedras "divinas", consideradas como
mansões de seres superiores, cujas graças os homens procuravam atrair a si. Um resquício deste culto
é a veneração da "Pedra Negra", situada na Caaba em Meca;
2) a religião israelita, professada por judeus residentes na Arábia, onde se entregavam ao
comércio e à agricultura. Foi desse patrimônio Judaico que Maomé derivou as grandes linhas da sua
orientação religiosa: existe um só Deus, que se foi revelando aos profetas da humanidade: Adão,
Abraão, Moisés, Jesus Cristo, e consumou a sua revelação por meio de Maomé, o maior de todos os
profetas. A inserção de Maomé na linha do judaísmo explica o uso da Bíblia no ensinamento
islamítico assim como certos costumes muçulmanos (as purificações legais, a observância do talião, a
poligamia...). Maomé. porém, não se identificou com o pensamento bíblico, porque via em Jesus
Cristo não o Filho de Deus feito homem, mas um profeta eminente (coisa que os judeus não
aceitavam);
3) a religião dos cristãos: Maomé a conheceu principalmente em suas viagens. Tais cristãos
eram geralmente nestorianos e monofisitas (ver módulo 9), que lhe apresentaram um Cristianismo
debilitado; nunca chegou a ter os Evangelhos.
Sem se comprometer nem com o judaísmo nem com o Cristianismo, Maomé se definiu como
continuador da religião de Abraão e de seu filho imediato Ismael, personagens muito mais antigos do
que Moisés e Cristo na história sagrada (na verdade o povo árabe é descendente de Ismael, filho de
Abraão e Agar). Para justificar sua independência religiosa, Maomé atribuiu a Judeus e cristãos "o
grande erro de terem falsificado os livros sagrados e o monoteísmo de Abraão e Ismael".
A Moral maometana prescreve cinco grandes deveres, tidos como "pilastras da Religião": 1)
professar a fé (praticamente o maior pecado para os muçulmanos é a apostasia da fé ou a adesão à
idolatria e ao paganismo); 2) orar cinco vezes por dia (ao alvorecer, ao meio-dia, pelas 3/4 horas da
tarde, ao pôr do sol, no primeiro quarto da noite), cumprindo-se, de cada vez, as abluções rituais
prescritas; 3) jejuar durante o mês inteiro de Ramada, desde o nascer até o pôr do sol diariamente; 4)
dar esmola aos pobres (o que compreende também a obrigação de dar hospedagem momentânea seja a
quem for e a qualquer hora); 5) peregrinar a Meca uma vez na vida;
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 46

O Corão autoriza todo homem a ter quatro esposas legítimas e tantas concubinas escravas
quantas seus recursos financeiros lhe permitam. O conceito de guerra santa é central no Islamismo e
foi responsável pela rápida propagação árabe nos séculos VII e VIII; morrer em batalha armada torna
o maometano "mártir", ou seja, herói religioso; de resto, a noção de "predestinação", que
inevitavelmente assinala a cada indivíduo a hora da sua morte, muito concorreu para precipitar
destemidamente os discípulos de Maomé na aventura de fazer a guerra.

Lição 3: A expansão do Islamismo


1. Depois da morte de Maomé, os sucessores (califas = lugar-tenentes) chefiaram expedições
conquistadoras e predatórias a países vizinhos e distantes da Arábia. Esse avanço arrebatou ao Império
bizantino uma bela porção de seus territórios e ameaçou seriamente a própria cultura helenística.
Também o Cristianismo foi altamente prejudicado pela expansão maometana. Os califas Abu
Bekr (632-4) e Ornar (634-44) conquistaram a Palestina, a Síria, o Egito e a Pérsia. Assim os
Patriarcados de Antioquia (637), Jerusalém (638) e Alexandria (642) ficaram sob a dominação árabe.
Tornou-se instável a condição dos cristãos residentes naquelas regiões, especialmente caras à fé por
serem o berço do Cristianismo; tal situação explicará o surto das Cruzadas na Idade Média. A
expansão árabe foi facilitada pelo fato de que os cristãos estavam divididos entre si nos territórios
invadidos; os litígios cristológicos, em particular os monofisitas, jogavam população e governo
imperial um contra o outro. Em conseqüência, os monofisitas egípcios chegaram a saudar com alegria
as tropas árabes invasoras, pois estas lhes levavam a emancipação frente a Bizâncio!
O Califa Othmam (644-56) mandou invadir também a Armênia, Chipre e o Norte da África
(especialmente Cartago). Cartago, grande centro cristão, caiu em 698; as tropas muçulmanas foram
avançando para o Ocidente, atravessaram a Espanha de Sul a Norte e chegaram até Poitiers na França.
Constantinopla sofreu intenso cerco nos anos de 717-18, mas resistiu às pressões bélicas.
Finalmente os muçulmanos estabeleceram a sua capital ou a sede do seu Império no califado de
Bagdad (750-1258).
Os maometanos não sufocavam o Cristianismo nos territórios ocupados, embora lhe fizessem
restrições. Apenas na Arábia os cristãos e os judeus foram obrigados a emigrar. Como quer que seja, o
Cristianismo sofreu graves perdas em conseqüência da expansão islâmica; o Norte da África, que era
uma região de vida cristã intensa e férvida, foi aos poucos perdendo o seu cunho evangélico; isto, em
parte, se explica pela debilitação que as longas controvérsias teológicas acarretaram, como dito atrás.
Os muçulmanos não deixaram de procurar ganhar adeptos entre os cristãos; favoreciam as
conversões ao Islam e ocasionalmente praticavam pressões e proselitismo. Entre as medidas
proselitistas podem-se citar: isenção de impostos para os apóstatas, emancipação dos escravos que se
convertessem, e dos servos da gleba sujeitos a senhores cristãos. Muito ao contrário, quem se passasse
do Islamismo para o Cristianismo, era passível de morte; em conseqüência tornava-se difícil e estéril o
trabalho dos missionários da Igreja. Compreende-se que, em tais circunstâncias, tenha havido
numerosas deserções da fé cristã, sem possibilidade de se preencherem as lacunas abertas nos quadros
da Igreja.
O desaparecimento do Cristianismo implicava decadência cultural e até retorno à barbárie. Tal
foi o caso, certamente, do Norte-ocidental da África. Em 1055 contavam-se aí cinco sedes-diocesanas.
Já quase sem importância; a ultima delas, Cartago, extinguiu-se por completo em 1160
aproximadamente.
O ideal da teocracia até hoje é muito vivo entre os muçulmanos; preconizam um império
terrestre regido pelo poder religioso; tenha-se em vista o que ocorre atualmente no Ira e no Paquistão.
Este império terrestre, para defender-se ou expandir-se, conta com cidadãos belicosos, pois a bem-
aventurança celeste é prometida não propriamente aos pacíficos, mas àqueles que morrem na guerra
santa. Em tais condições torna-se instável a sobrevivência e, mais ainda, a expansão missionária dos -
cristãos;
2. As leis religiosas e morais do Islamismo têm em mira principalmente os pecados públicos
(mais suscetíveis de definição legal). O Islamismo reconhece quase exclusivamente o foro externo (ou
o comportamento visível da pessoa). Os ditames da consciência ou o foro interno são menos levados
em conta na avaliação da conduta humana. Ora precisamente este traço do Islamismo provocou no
47 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

decorrer dos tempos uma reação ou o surto e o cultivo da vida mística em ambientes islâmicos; assim
a Mística veio a ser inseparável da religião da lei em muitas correntes maometanas. Entre os dizeres
mesmos do Profeta não faltam os que inculcam a religião interior ou o predomínio dos bens do
espírito sobre os da carne. Maomé chegou a falar de purificação da alma, apresentou a vida presente
como "água que passa e erva que fenece" (Sur. X 25; XIII 18); afirmou a prevalência da devoção
interior sobre os sacrifícios rituais (Sur. XXII 28). Assim o Corão mesmo era capaz de inspirar não
somente uma religião formalista, mas também uma piedade muito intensa e profunda. Foi o que se deu
nos círculos árabes que entraram em contato com sistemas religiosos dos povos vizinhos, em
particular com o Cristianismo; criou-se assim uma autêntica mística muçulmana, da qual dois grandes
expoentes são Al-Hallaj (+ 922) e Al-Ghazali (+1111).
Especialmente a corrente sufita dedicou-se ao cultivo da vida interior. A palavra árabe que
corresponde a Mística é tasawwuf, derivada do termo suf, lã. Significa originariamente “vestir-se de
lã”; a roupa de lã era o traje que os antigos ascetas ou monges usavam. Designava, aos olhos do
público, a vida retirada do mundo que o asceta levava. Quem se veste assim, no Islamismo, é chamado
sufi. Deste vocábulo se deriva sofismo, o designativo da Mística islâmica.
A partir do século XII foram-se formando comunidades de sufitas ou derviches,21 que seguiam
os ensinamentos dos grandes mestres; observavam Regras de vida cenobítica, assemelhando-se às
Congregações religiosas do Catolicismo. Cada comunidade constava de um grupo relativamente
pequeno de sufitas, que no convento viviam de esmolas, e de um grupo maior de leigos, que
permaneciam no mundo, mas se reuniam oportunamente para cumprir certas práticas religiosas sob a
direção de seus mestres. Algumas destas comunidades subsistem até hoje.
Nos séculos XIII / XIV fizeram-se sentir no sufismo influências do Extremo-Oriente,
principalmente do hinduismo; caracterizaram-se em práticas como posições corporais e a repetição
amiudada do santo nome de Deus. O panteísmo assim se introduziu em vários círculos da mística
islâmica, acarretando certa degenerescência da mesma.

MÓDULO 16: INTRODUÇÃO À IDADE MÉDIA


Lição 1: Nome e limites
O nome "Idade Média" foi criado pelos autores liberais do século XVI para designar o período
que vai da Antiguidade clássica até o Renascimento nos séculos XV/XVI (escolhemos, por
convenção, o ano de 1450 como término da Idade Média).22 Esta expressão devia, na mente dos seus
criadores, designar uma etapa da história, sem cultura; o nome não revela a essência dessa época;
apenas diz que foi traço de união (obscuro e insignificante, como diziam) entre a brilhante cultura
greco-romana e o ressurgimento desta no século XV. Em nossos dias, embora se conserve a
denominação, reconhece-se que a Idade Média produziu valores culturais de primeira grandeza e
duradouros: forjou ânimos heróicos (os cavaleiros, os monges...), produziu notáveis estudos
especulativos (tenham-se em vista as Universidades Medievais e seus grandes doutores), produziu
obras de arte até hoje admiradas (o estilo românico, o gótico, o teatro...), progrediu no campo da
ciência e da técnica (especialmente no da navegação...). Os estudiosos contemporâneos que têm
estudado os documentos e monumentos medievais, vêm trazendo à tona testemunhos que dissipam os
preconceitos sobre a Idade Média e põem em relevo as suas notas positivas.
O ponto de partida da Idade Média é o fim do século VII.23 As invasões bárbaras abriram uma
nova época na vida política, cultural e eclesiástica do Ocidente. É verdade que os bárbaros começaram
suas invasões no Império Romano já no século III da nossa era; todavia só a partir do século VIII
exerceram influxo preponderante no desenrolar da história. É preciso, porém, reconhecer que os

21
A palavra derwih vem do persa e significa mendigo.
22
No século XVIII Christophorus Cellarius escreveu a obra Historiae Antiquae, Mediae, Novae nucleus. lenae 1675/6
(Núcleo de História antiga, média e nova). A expressão assim se tomou comum nas escolas.
23
Convencionalmente dizemos que esse ponto de partida é o Concilio regional Trulano (692), realizado em
Constantinopla. Interessou-se pela restauração da disciplina eclesiástica prejudicada pelas invasões dos persas e pelos
debates teológicos. Troullos, em grego, quer dizer cúpula; o Concílio foi celebrado sob a cúpula de um palácio.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 48

séculos IV / VII foram séculos de transição lenta, durante a qual elementos da história medieval Já
subsistiam ao lado dos da história antiga.
Foram, pois, as relações dos novos povos com a Igreja que deram a nota própria à Idade
Média, ou seja, ao período de tempo que vai do século VIII ao século XV. Este último representa a
dissolução do espírito medieval mais ou menos homogêneo, pois foram então trazidos ã baila
elementos da cultura greco-romana, que os renascentistas quiseram não somente estudar, mês
assimilar e viver, dando origem a nova fase da história, impregnada de mentalidade e conduta ética
sempre menos cristãs, tendente ao naturalismo e ao racionalismo (Idade Moderna, que vai até o
Tratado do Latrão em 1929).

Lição 2: A Igreja e os povos germânicos


O início da Idade Média tem de comum com o início da Idade Antiga o fato de que Igreja, em
ambos os casos, se via diante de um mundo não cristão, com o qual ela devia travar relações para
poder viver: eram, de um lado, o Império Romano pagão, e, de outro lado, os povos germânicos que
tinham derrubado o Império. Todavia dentro dessas situações comuns salientam-se diferenças
importantes:
No início da Idade Antiga, a Igreja era um grãozinho de mostarda, que se encontrava com três
culturas muito diversas: a judaica, a grega e a romana; só aos poucos, pela força que lhe era imanente,
o Cristianismo conseguiu vencer e assimilar esses três elementos adversos.
No início da Idade Média, ao contrário, o grãozinho está evoluído; é um organismo forte, que
não se encontra com uma potência que lhe possa fazer frente no campo da cultura. Os germanos eram
culturalmente pobres; a Igreja, que tinha seu centro em Roma, representava, para eles, a cultura
simplesmente dita; cultura (civilização) e Roma ainda eram termos equivalentes no fim da Idade
antiga.
Aconteceu, portanto, que os novos povos, postos em contato com a Igreja através dos
missionários, não só abraçaram a fé cristã, mas também a civilização mais elevada que lhes era
transmitida pelo Cristianismo. Na Idade Antiga a Igreja só conseguiu imprimir traços cristãos a uma
cultura já existente sobre bases pagãs. A Igreja medieval, ao contrário, elaborou desde os fundamentos
uma cultura e um ambiente de vida conformes ao espírito cristão (embora a fraqueza, humana também
se exercesse na Idade Média): o curso do ano civil passou a ser designado pela ocorrência das etapas
eclesiásticas; o fluxo da semana culminava no domingo (dia do Senhor); as etapas do dia eram
divididas pelo toque dos sinos; a configuração das cidades dependia da posição da igreja ou do
mosteiro que ficava no centro do povoado; as leis eram abertas com a profissão de fé no Deus Trino...
Em conseqüência, a cultura européia na Idade Média se tornou unitariamente cristã.
Esta penetração da Igreja na vida civil fez-se notar especialmente no setor da política: Estado e
Igreja se viram intimamente associados na procura de algo que, por causa da fragilidade humana,
nunca pôde ser devidamente realizado: a Cidade de Deus, em que o Papado e o Império deveriam
colaborar entre si para implantar o espírito do Evangelho em todas as manifestações da vida pública.
Assim em 800 sob Carlos Magno foi instaurado o Sacro Império Romano da Nação Franca, que
tentou viver o regime dito "de cristandade", mas foi prejudicado pelo cesaropapismo do Imperador. O
prestígio dos francos foi de pouca duração, cedendo em 962 ao Sacro Império Romano da Nação
Alemã, inaugurado por Oto o Grande. O próprio Papado, por razões óbvias e compreensíveis, passou
a ter o seu território independente (o Estado Pontifício) a partir de 756 - o que provocou litígios com
os Imperadores germânicos; estas divergências em vez de redundar na construção de uma única
sociedade cristã de âmbito universal, prepararam a ruptura religiosa entre a nação alemã, representada
por Lutero, e o Papado no século XVI.
Já que os germanos não tinham sistemas filosóficos a opor ao Cristianismo, abraçaram a fé
cristã numa atitude objetiva e fiel. Isto explica que a Idade Média não tenha conhecido grandes
heresias. Houve, sim, controvérsias sobre o Adopcionismo (resquício do Nestorianismo) na Espanha
do século VIII; ... sobre a predestinação no século IX; ... sobre a Eucaristia nos séculos IX e XI; ...
sobre a maneira de viver a pobreza no século XIV... Pode-se dizer, porém, que os medievais
usufruíram tranqüilamente das luzes projetadas definitivamente sobre as grandes verdades da fé pelos
Concílios dos primeiros séculos.
49 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Os germanos não deixaram de trazer sua contribuição para a configuração da Igreja e da


sociedade medievais:
- o espírito corporativo. Os novos povos organizavam sua vida segundo famílias, tribos,
povos, alianças de povos, corporações econômicas, confraternidades religiosas... Ora as corporações
formaram a trama da vida medieval: corporações de artes, ofícios, profissões liberais, estudantes,
associações religiosas... A própria instituição do Império, na Idade Média, era concebida como a
maior das corporações, que tinha por fim manter a paz na Europa. - No mundo romano, ao contrário, o
senso corporativo desaparecia diante do senso despótico: uma cidade aos poucos dominava as demais
cidades; as associações não eram bem vistas, mas constituíam iniciativas de direito privado apenas;
- a fantasia e o afeto. Estes marcaram profundamente a devoção medieval e a sua mística
exuberante (Mestre Eckhart, +1327; João Teuler, +1361; Henrique Suso, +1366; Matilde de
Magdeburgo, +1285; S. Angelo de Foligno, +1309; S. Catarina de Sena, +1380). A piedade popular
tornou-se rica em manifestações nem sempre devidamente iluminadas pela razão e pela fé (crença
fácil em fenômenos demoníacos, em aparição de defuntos, em eficácia de bruxaria...). O contato com
a Terra Santa decorrente das Cruzadas imprimiu à devoção dos fiéis grande amor à santíssima
humanidade de Cristo com sua Paixão dolorosa (daí o percurso da Via Sacra mesmo fora da Terra
Santa); a consideração da infância de Jesus e da figura da Virgem dolorosa também conheceu grande
incremento entre os medievais.

Lição 3: O ambiente geográfico da Idade Média


Além das invasões germânicas, outro acontecimento de grande importância na Idade Média foi
o cisma bizantino (1054): os cristãos do Oriente, em geral, foram-se separando dos do Ocidente,
formando comunidades eclesiais autocéfalas na Ásia Menor (Bizâncio), na Grécia, na Rússia...
O cisma foi, desde remotas épocas, preparado por tensões de ordem política, lingüística e
cultural. Já a transferência da capital do Império de Roma para Constantinopla fez que, aos poucos,
esta cidade assumisse o título de Segunda Roma, com direitos e prerrogativas iguais ou superiores aos
da antiga Roma; os mal-entendidos foram abrindo brechas crescentes entre os dois hemisférios da
Cristandade.
O Cisma reduziu enormemente o cenário geográfico da História da Igreja medieval. Ademais
as regiões não separadas foram recobertas pelos invasores muçulmanos, que, além de ocupar o Oriente
próximo, penetraram o Norte da África e a Península Ibérica. Assim o quadro da história da Igreja se
reduziu-aos países romano-germânicos, ânglicos, escandinavos e eslavos: Itália, França, Península
Ibérica. Inglaterra, Alemanha, Escandinávia, Polônia e um ou outro território a Leste da Europa. Aliás,
o deslocamento da história do Oriente para o Ocidente, verificado na história da Igreja, é fenômeno da
história universal; com efeito, notemos que a civilização originária da Mesopotâmia passou para a
Síria, a Palestina, o Egito; atravessou a Grécia e tomou sua sede mais notória em Roma; todavia,
enquanto o Oriente ia perdendo seu poder exterior e político, continuava a reger cultural e
religiosamente o Ocidente (os próprios Judeus tendo perdido sua independência política no Oriente,
comunicaram ao Ocidente o seu depósito religioso).
Notemos, porém, que, se o Oriente saiu do cenário da história medieval, ele não deixou de ter
sua importância para a Igreja como tal: 1) porque a capital do Império Oriental, Constantinopla, foi
sempre um muro forte, que, durante toda a Idade Média, protegeu o Ocidente cristão contra as
invasões dos não cristãos, possibilitando à Igreja Ocidental ter a sua vida livre; 2) porque o Oriente
sempre cultivou os valores mais antigos e tradicionais do Cristianismo (a Liturgia e a contemplação, o
monaquismo, a literatura dos Padres da Igreja); o Oriente, portanto, sempre foi um manancial, onde os
latinos se abeberaram e revigoraram.
Os cristãos orientais, embora muito prejudicados pela invasão muçulmana, continuaram a
desenvolver sua vida eclesial sem grandes mudanças. Por isto se diz que não tiveram Idade Média.
Costuma-se dividir a Idade Média em três períodos: 1) Idade Média Ascendente (692-1054);
2) Idade Média Alta (1054-1294); 3) Idade Média Decadente (1294-1450).
Na Idade Média Ascendente temos um período de formação, em que a Igreja vai penetrando
aos poucos a vida dos povos germânicos e constituindo com eles a cultura medieval. Surge o Estado
Medieval, um único e grande Império, que congrega germanos e romanos em duas fases sucessivas: a
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 50

dos carolíngios (francos) e a dos otônicos (germânicos). O Estado assume uma consagração
eclesiástica (unção do Imperador); a partir de 800 procura realizar o ideal de um Santo Império, o da
Civitas Dei sob Carlos Magno. Por seu lado, a Igreja assume oficialmente uma missão política: é
criado em 756 o Estado Pontifício na Itália, e muitos bispos são incumbidos de funções sociais e
políticas junto aos senhores do seu tempo. Todavia nesse entrelaçamento de Estado e Igreja é o Estado
quem predomina - o que aparece no mal das Investiduras e da simonia. - O que caracteriza este
período, é o universatismo: ... na política (um só grande Império, que quer continuar o Império
Romano universal),... na religião (o Papa é o, único Chefe religioso no Ocidente).
Na Alta Idade Média, a Igreja, tendo-se arraigado na vida européia, luta para libertar-se do
braço secular, e luta com sucesso sob a reforma monástica de Cluny e o Papa Gregório VII (1073,
Canossa). O Papa alcança um prestígio que até então nunca tivera na vida interna da Igreja e nas
relações com os soberanos seculares. A vida eclesiástica floresce em muitas manifestações brilhantes:
novas Ordens Religiosas, figuras de místicos, sábios e doutores que ilustram as grandes Universidades
do século XIII (século áureo da Escolástica), monumentos majestosos de arte românica e gótica...
Na Idade Média Decadente, o universalismo homogêneo, objetivo, que caracterizava as duas
épocas anteriores, cede a particularismo e nacionalismo na vida política (dissolve-se o Império
universal para dar lugar a Estados pequenos nacionais); cede também ao individualismo ou ao
esquecimento da Tradição na vida cristã. Esse nacionalismo e esse individualismo passaram
funestamente aos séculos posteriores; os povos evangelizados e disciplinados pela Igreja nos séculos
florescentes da Idade Média voltaram-se aos poucos, com progressiva violência, contra Ela. As
principais manifestações dessa época são: o Exílio de Avinhão (1305-78), que significa lamentável
sujeição do Papado ao poder francês, e o Grande Cisma Ocidental (1378-1417), que confundiu as
ideias sobre o primado romano e suscitou uma série de teorias eclesiológicas aberrantes da Tradição.
A própria disciplina da Igreja cedeu a relaxamento. Estes fatores prepararam, cada qual a seu modo, a
cisão protestante no século XVI.

MÓDULO 17: A CONTROVÉRSIA DAS IMAGENS


A controvérsia iconoclasta24 teve como uma de suas conseqüências um maior distanciamento da
Itália e do Império bizantino. Esse afrouxamento religioso, administrativo e político foi um dos
antecedentes do cisma de 1054 entre orientais e ocidentais. Estudemos agora o debate iconoclasta;
este ocorreu numa época em que os principais artigos da fé tinham acabado de ser formulados (em
681 o monotelitismo, fora condenado; ver módulo 10); versava sobre uma prática tradicional dos
cristãos.

Lição 1: Os inícios da controvérsia


Já os primeiros cristãos usavam imagens nos lugares de culto, nos cemitérios e nas catacumbas.
Sabiam que a proibição de fazer imagens em Ex 20,4 era contingente ou devida ao perigo de idolatria
que ameaçava o povo de Israel cercado de nações pagãs. Ademais o fato de que Deus apareceu sob
forma visível no mistério da Encarnação parece um convite a reproduzir a face humana do Senhor e
dos seus amigos. As primeiras imagens eram inspiradas pelo texto bíblico (cordeiro. Bom Pastor,
pomba, peixe, âncora. Daniel, Moisés); mas podiam também representar o Senhor, a Virgem Maria, os
santos Apóstolos e mártires.
Desde os inícios da arquitetura sacra, as igrejas foram enriquecidas com imagens tanto a título
de ornamentação quanto a título de instrução dos iletrados. No século IV, ouve-se uma ou outra voz
contrária às imagens; assim a do concílio regional de Elvira (cerca de 306). O Papa S. Gregório
Magno (1604), porém, escrevia a Severo, bispo de Marselha, que mandara destruir imagens por causa
do perigo de falso culto:
"Era preciso não as quebrar, pois as imagens não foram colocadas na igreja para ser adoradas,
mas apenas para instruir as mentes dos ignorantes" (ep. 9,105).
O culto das imagens foi-se ampliando na Igreja, principalmente no Oriente; os monges e os
simples fiéis muito as estimavam. Todavia no início do século VIII acendeu-se uma controvérsia

24
Em grego, eikon = imagen: kláo = quebrar. Donde iconoclasmo é a tendência a quebrar ou destruir as imagens.
51 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

sobre as mesmas, que durou mais de um século (com breve pausa) e deu ocasião à violência de toda
espécie.
A luta foi aberta pelo Imperador Leão III o Isáurico (717-741). Vejamos em que circunstâncias;
Em 723 o califa Yezid mandou destruir todas as imagens dos templos e casas de seus súditos,
quer muçulmanos, quer cristãos. Maomé mesmo não proibia as imagens, mas os seus sucessores o
fizeram. — A proibição da califa Yezid provocou entre os cristãos um movimento iconoclasta, que se
comunicou ao Imperador e a diversos bispos. As razões que devem ter movido o monarca, foram,
além da influência de judeus e muçulmanos, a própria personalidade do Imperador. Este queria
reorganizar o Império promovendo a unidade religiosa - condição da unidade política - no reino; ora
as imagens eram um ponto de discórdia entre judeus e maometanos, de um lado. e cristãos, do outro
lado. Leão III tinha índole fortemente absolutista e cesaropapista; dizia textualmente que era
"Imperador e sacerdote"; devia, portanto, subordinar ao seu poder a Igreja e, em particular, os monges,
sempre ciosos da liberdade. Quem considera esta tendência do Imperador, há de reconhecer que a
defesa das imagens por parte dos católicos era não somente uma questão de ortodoxia, mas também o
desejo de afirmar a independência da Igreja frente ao despotismo imperial.

Lição 2: A luta ardente


Por conseguinte, em 726 Leão III investiu contra as imagens por palavras e gestos violentos.
Procurou o apoio do Patriarca Germano de Constantinopla, que lhe resistiu. Escreveu também ao Papa
Gregório II, ameaçando depô-lo, caso defendesse as imagens. Gregório em duas cartas condenou a
conduta do Imperador, dizendo-lhe que a questão era da competência dos bispos. Ao saberem da
imposição do Imperador, as populações do Norte da Itália teriam eleito novo Imperador se o Papa não
as tivesse dissuadido. Havia na época motivos de animosidade entre bizantinos e ocidentais: o Império
acabrunhava de impostos a Itália; mais de uma vez, funcionários do Imperador haviam atentado contra
a vida do Papa; Gregório II, porém, manteve-se leal e exortou os italianos à sujeição. Também os
habitantes da Grécia se revoltaram, proclamando um anti-Imperador. Cosmas; mandaram a
Constantinopla uma frota numerosa, que foi vencida com seus chefes. Isto tudo só contribuía para
irritar cada vez mais o Imperador.
Em 730, Leão III depôs o Patriarca Germano e conseguiu a eleição de Anastásio, iconoclasta.
Este logo publicou um edito contra as santas imagens; clérigos, monges e monjas foram decapitados e
mutilados...
Em 731 o Papa Gregório III convocou um Sínodo em Roma, que puniu com a excomunhão
quem combatesse as imagens. Leão III, exasperado, mandou uma frota à Itália, que foi destruída no
Mar Adriático por violenta tempestade (732); confiscou os bens da Igreja Romana na Calábria e na
Sicília e, a quanto parece, quis subtrair à jurisdição de Roma territórios ocidentais, que ficariam
sujeitos ao Patriarcado de Constantinopla.
O filho de Leão III, Constantino V Coprônimo, subiu ao trono em 741. Queria convocar um
Concílio para decidir a questão; antes, porém, escreveu um tratado de índole iconoclasta, que chegava
a pôr em xeque definições dos Concílios de Éfeso e Calcedônia a respeito do mistério da Encarnação:
por exemplo, Maria não devia ser dita "Mãe de Deus", mas apenas "Mãe de Cristo".
O Concílio convocado pelo Imperador reuniu-se em 754 e em Constantinopla com a presença de
338 bispos, sem o Papa nem os Patriarcas orientais. Declarou o culto das imagens obra de Satã. e nova
idolatria. Tal Concílio não era legítimo; por isto, foi excomungado pelo Papa Estêvão III em 769. Em
conseqüência, a perseguição aos fiéis ortodoxos se tornou bárbara: em todas as igrejas as imagens
foram removidas ou substituídas por motivos profanos (árvores, pássaros...). Os monges eram quase
os únicos a opor resistência: muitos mosteiros foram destruídos ou transformados em quartéis,
arsenais. . . Fez-se tudo para tornar o monaquismo odioso aos cristãos: foi proibido o hábito
monásticos; os iconoclastas procuraram seduzir os monges para prevaricação com mulheres; muitos
tiveram os olhos crivados, a barba queimada, os cabelos arrancados... A situação era comparável à dos
piores dias do paganismo.
Finalmente Constantino V morreu em 775, recomendando-se à Mãe de Deus, da qual fora
adversário. Seu filho Leão IV mostrou-se mais tolerante que seu pai, mas não revogou os decretos
anteriores. Faleceu em 780, sucedendo-lhe a Imperatriz Inês, como regente do filho Constantino VI,
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 52

Inês era piedosa, amiga das imagens e dos monges, embora ambiciosa. Permitiu logo o culto das
imagens e, a conselho dos Patriarcas Paulo e Tarásio de Constantinopla, e de acordo com o Papa
Adriano, a regente convocou um Concílio ecumênico. Este, de fato, se reuniu em 787, com a presença
de dois legados papais, em Nicéia. Foi o sétimo ecumênico e o segundo de Nicéia, freqüentado por
350 bispos. Notemos que a primeira sessão desse Concílio se reuniu já em 786 em Constantinopla,
mas teve que se dissolver, porque os militares, iconoclastas, apoiados por alguns bispos, impediram os
trabalhos, que teriam sido um triunfo da ortodoxia. Em Nicéia, o falso Concílio de 754 foi rejeitado; a
intercessão dos Santos e o título "Mãe de Deus" foram reabilitados. Os conciliares declararam,
apoiados na Tradição, que às imagens de Cristo, de Maria Virgem, dos anjos e dos Santos convém
uma veneração honorífica com lamparinas, incenso, inclinações, pois essa veneração recai sobre o
protótipo (ou a pessoa representada); ao contrário, a verdadeira adoração compete a Deus só. A última
sessão desse Concílio realizou-se em Constantinopla, sob a presidência da Imperatriz regente e de seu
filho, que assinaram a definição conciliar; isto lhes valeu as aclamações dos padres conciliares e dos
fiéis, dirigidas ao novo Constantino e à nova Helena.25
As decisões de Nicéia II ficaram em vigor no Oriente durante quase trinta anos, ou seja, até 813.

Lição 3: Ecos tardios e fim


No Ocidente reinava Carlos Magno. O Papa Adriano procurou fazer que o monarca
reconhecesse os decretos de Nicéia II; mas o soberano se lhes opôs, porque:
— era ambígua ou errônea a tradução latina das atas de Nicéia II; os latinos conheciam cada vez
menos o grego; por isto deram a entender que o culto de adoração, devido exclusivamente à SS.
Trindade, havia de ser prestado às imagens;
— reinava forte tensão política entre o Ocidente e Bizâncio;
— a ufania de Carlos Magno não lhe permitia reconhecer um Concílio do qual não tivessem
participado bispos francos.
O rei então convocou um Concílio de 300 bispos francos para Francoforte em 794. Sob a
presidência de Carlos, os conciliares condenaram as decisões do Niceno II. O Papa Adriano I, que
defendia o Concílio de 787, tomou uma atitude de reserva e prudência para evitar ulteriores amarguras
ou mesmo represálias da parte do monarca.
Em breve, porém, também no Oriente foram atacadas as decisões do Niceno II. O Imperador
Leão V em 815 renovou o iconoclasmo, atribuindo ao culto das imagens as desgraças do Império na
guerra contra os sarracenos. Os decretos de 754 foram postos de novo em vigor; os monges, mais uma
vez, foram especialmente atingidos. Como na primeira fase da disputa se distinguira São João
Damasceno (+749) qual campeão da ortodoxia, nesta segunda etapa sobressaiu o monge Teodoro de
Studion, intrépido entre os maus tratos, a flagelação e o exílio. A perseguição durou cerca de três
decénios. Paralelamente à primeira fase do iconoclasmo, depois de três imperadores heterodoxos,
surgiu uma mulher, a Imperatriz viúva Teodora, como regente de seu filho menor Miguel III; Teodora
sempre fora amiga das imagens; conseguiu que um sínodo em Constantinopla (843) reabilitasse o
culto das mesmas. Para a perpétua recordação deste feito, os gregos introduziram no seu calendário a
"grande festa da ortodoxia", que todos os anos, no primeiro domingo da Quaresma, comemorava esta
vitória e todas as demais vitórias levadas sobre as heresias na Igreja. Sabe-se que até hoje os orientais
dedicam grande veneração aos seus ícones, símbolos de valores transcendentais.
O ardor da nova discussão comunicou-se também ao Ocidente. Em 824 o Imperador Miguel II
mandou uma legação ao rei Luís o Piedoso dos francos convidando-o a uma ação comum iconoclasta.
Luís, com a licença do Papa Eugênio II, em 825 reuniu bispos e teólogos em Paris a fim de estudarem
o assunto. Essa assembléia manifestou-se no sentido do Concílio de Francoforte (794), que, aliás,
tomou posição contrária ao Niceno II, mas em termos assaz ambíguos, como se depreende desta
fórmula: as imagens não devem ser nem adoradas nem veneradas nem destruídas, mas hão de ser
conservadas em memória daqueles ou daquilo que representam. — Não se sabe qual tenha sido a
atitude do Papa diante deste pronunciamento de Paris.

25
Mãe de Constantino, o Grande.
53 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Finalmente o bibliotecário Anastásio refez a tradução das atas do Concílio de Nicéia II sob o
Papa João VIII (872-882). Isto permitiu que as determinações conciliares fossem finalmente aceitas no
Ocidente; grande parte da problemática se achava na deficiência de tradução.
Como se percebe, a veemência e a duração da controvérsia iconoclasta se devem ao
cesaropapismo dos Imperadores. Os Papas perceberam que nada mais tinham a esperar dos
Imperadores bizantinos, pois, desde a época do arianismo (século IV), haviam freqüentemente
favorecido as heresias e perseguido os pastores e fiéis ortodoxos; as suas intervenções dogmatizantes
eram, muitas vezes, movidas por razões políticas. Pode-se, pois, dizer que ao iconoclasmo se ligam
intimamente a origem do Estado Pontifício, a proclamação do Império Romano do Ocidente e, de
maneira mais remota, mas não menos real, o cisma grego de 1054; por mais de um século Oriente e
Ocidente tinham estado em dissensão e, quando em 843 a luta iconoclasta terminava, já Fócio, o
campeão do cisma, aparecia na corte da Imperatriz Teodora, para em breve subir à cátedra patriarcal
de Constantinopla. Com toda a razão, Teodoro de Studion, um dos últimos grandes católicos de
Bizâncio, clamava ao Papa: "Salva-nos, arquipastor da Igreja que está debaixo do céu; pereceremos!"

MÓDULO 18: A FUNDAÇÃO DO ESTADO PONTIFÍCIO


Lição 1: Os precedentes
1. Sabemos que em 476 os ostrogodos tomaram a cidade de Roma, fazendo cair o Império
Romano antigo. De então por diante dominaram a Itália e procuraram estender seu poder a outros
territórios da Europa. Os bizantinos, a princípio, reconheceram o domínio ostrogodo na península
itálica. Todavia em 553 o reino ostrogodo, já muito debilitado interiormente, após vinte anos de guerra
acabou cedendo à pressão dos bizantinos. Estes então fizeram da península itálica uma província do
Império bizantino, que tinha seu exarca (= governador) em Ravena. Em 568 os lombardos
abandonaram a Panônia (Hungria) e invadiram o Norte da Itália; deixaram, porém, intata a cidade de
Ravena, sendo bizantina.
O jugo bizantino desagradava profundamente aos habitantes do Centro e do Sul da península,
porque exercia excessiva pressão fiscal, tinha funcionários corruptos e não dava a devida atenção às
populações constantemente ameaçadas pelos lombardos. Doutro lado, o Papado ia aumentando cada
vez mais o seu prestígio moral e político o Papa era tirado como o defensor dos pequeninos, que a ele
recorriam, atribulados e carentes. A estima devotada ao Bispo de Roma (= Papa) fazia que muitos
nobres, ao morrer ou ao ingressar no mosteiro, legassem seus bens e territórios ao Pontífice. Assim
teve origem, aos poucos, o chamado ´Patrimônio de São Pedro´, que constava de terras na Itália e nas
ilhas adjacentes.
Esses bens, de extensão cada vez maior, permitiam ao Papa assumir posição de certa
independência diante do Imperador bizantino e do representante deste em Ravena: o Pontífice tinha
sob a sua jurisdição civil grande número de cidadãos, que trabalhavam sob a tutela papal ou eram
socorridos por esta nos hospitais, asilos e orfanatos pontifícios. Em conseqüência, durante todo o
século VIl foi-se afirmando naturalmente o poder temporal do Papa, em virtude do desenrolar mesmo
dos acontecimentos.
2. No século VIII novos fatos se desencadearam.
Em 717 o Imperador bizantino Leão III abriu a discussão em torno do culto das imagens ( ver
capítulo 17). A posição iconoclasta dos monarcas aumentou muito a animosidade entre orientais e
latinos; teria produzido uma cisão política se os Papas não tivessem conservado sua lealdade ao
Imperador. Em 739 os lombardos, que não deixavam de hostilizar as populações itálicas, cercaram
Roma. O Papa Gregório III pouca esperança tinha de receber auxílio de Bizâncio, que se mostrava
avessa aos latinos, além de estar militarmente enfraquecida. Resolveu então, a conselho do Senado
Romano, recorrer aos francos, que constituiam um reino católico próspero; o seu mordomo, Carlos
Martelo, tinha, poucos anos antes, em 732, vencido os árabes muçulmanos em Poitiers. Era a primeira
tentativa de desviar o eixo Roma-Bizâncio para o Ocidente. Carlos Martelo, porém, não conferiu o
auxílio solicitado, por precisar dos lombardos na luta contra os sarracenos (árabes). O sucessor de
Gregório III, o Papa Zacarias (740´752) conseguiu ter paz com os lombardos durante vinte anos.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 54

Além disto, travou bom relacionamento com o reino dos francos, que eram o fundamento dos
eventos futuros.

Lição 2: A criação do Estado Pontifício


Em 747, Pepino, homem inteligente e ambicioso, mas religioso e bem intencionado com a
Igreja, tornou-se o mordomo do palácio real dos francos (os reis então reinavam, mas não
governavam, enquanto os mordomos governavam sem coroa). Pepino quis por termo à situação
ambígua do governo dos francos; por isto recorreu ao Papa Zacarias, pedindo-lhe que recobrisse com
a sua autoridade a falta de sangue real e reconhecesse a dinastia de Pepino e dos seus descendentes (os
carolíngios); o Pontífice concordou com Pepino, pois este, se não era o rei de direito, era o rei de fato.
Em 751 Pepino foi eleito rei dos francos na dieta (= assembléia política) de Soissons, e, a seguir,
ungido por S. Bonifácio e outros bispos. Sucedeu assim ao último rei da dinastia anterior
(merovíngia): Quilderico III.
Pepino em breve teve a ocasião de mostrar sua gratidão ao Papa. O rei Lombardo Aistulfo
(749´56), depois de ter tomado Ravena aos bizantinos, ameaçava Roma. De novo abandonado pelo
Imperador Constantino V Coprônimo, o Papa Estêvão II26 pediu o auxílio dos francos; foi mesmo à
França, aparecendo em 754 no palácio régio em Ponthion (perto de Paris). Pepino recebeu-o com
todas as honras e prometeu-lhe proteção contra os lombardos; era movido a isto não por meros
interesses políticos, mas por veneração sincera para com o sucessor de S. Pedro. De Ponthion o rei
levou o Papa para Paris, onde este o ungiu, assim como aos seus dois filhos Carlos e Carlomano, reis
dos francos; além disto, conferiu-lhes o título de ´patrícios romanos´, título que implicava o dever de
proteger Roma e a sua Igreja. Finalmente a amizade entre Pepino e o Papa deu ocasião a novo pacto
travado em 754 em Quierzy: Pepino se obrigava não somente a defender a Igreja em Roma, mas
também a libertar os territórios bizantinos ocupados pelos lombardos. Em duas campanhas militares
(755 e 756) Pepino venceu Aistulfo e, apesar dos protestos de Bizâncio, doou solenemente por escrito
ao Papa os territórios de Comacchio, o exarcado e a Pentápole (Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia,
Ancona); o documento de doação foi colocado sobre o túmulo de São Pedro. Estava assim fundado o
Estado Pontifício (756), praticamente independente de Bizâncio, sob a jurisdição do Papa e a proteção
dos francos. Na verdade, tal gesto correspondia ao papel que o Pontífice já vinha exercendo em favor
das populações ameaçadas da península itálica.
Existe um documento intitulado Constitutum ou Donatio Constantini segundo o qual o
Imperador Constantino Magno doava ao Papa S. Silvestre (314´335) e a seus sucessores, em
agradecimento pelo batismo e a cura da lepra, poder e dignidade imperiais; além disto, conferia-lhe o
domínio sobre o palácio do Latrão, sobre Roma e todas as cidades dos territórios ocidentais; pelo quê,
Constantino transferia a sua residência para Bizâncio. Este documento faz parte de uma coleção falsa
de leis ´ os decretais do Pseudo-isidoro´, que teve origem no século IX. Por toda a Idade Média a
Donatio Constantini foi considerada autêntica. Todavia a partir do século XV a sua genuidade foi
contestada, de modo que hoje em dia é reconhecida como falso documento.

Lição 3: A Consolidação do Estado Pontifício


No reino dos francos, Pepino reinou até a morte, mantendo sempre boas relações com o Papado.
Sucederam-lhe os dois filhos, Carlos (Magno) e Carlomano, que dividiram o reino entre si. Em 771,
porém, Carlomano faleceu, deixando como único soberano Carlos Magno, homem violento, mas de
boas intenções, que teve significado indelével na história.
A princípio Carlos desenvolveu política pouco favorável ao Papa; queria aproximar-se dos
lombardos, inclusive mediante uma aliança matrimonial ilegítima (Carlos Magno repudiara sua esposa
Himiltrude para unir-se a uma princesa lombarda). Censurado pelo Papa, Carlos separou-se da mulher
ilegítima e continuou a política de seu pai, propícia ao Estado Pontifício.
A grande figura de Carlos correspondia a do Papa Adriano I, eleito em 772, pouco depois da
unificação dos francos. O rei Desidério, dos lombardos, resolveu atacar de novo os territórios

26
Logo antes de Estevão II foi eleito Papa um presbítero Estevão, que não chegou a ser sagrado, mas morreu quatro dias
após ser eleito (de apoplexia). Daí Estevão II ou III, o título do Papa que se lhe seguiu.
55 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

pontifícios, inclusive marchando sobre Roma. O Pontífice apelou para os francos: em 773, Carlos
interveio cercando Pavia, a capital dos lombardos; durante o sítio, na Páscoa de 774 o rei dos francos
foi a Roma e lá confirmou a doação que Pepino fizera a Estêvão II, além disto, doou-lhe as cidades de
Imola, Bolonha e Ferrara.
Poucos meses após estes fatos, caiu Pavia; o rei Desidério, dos lombardos, entregou-se e assim
extinguiu-se definitivamente o reino autônomo dos lombardos; Carlos assumiu oficialmente o título,
de ´Rei dos francos e dos lombardos e Patrício dos Romanos´.
Em 781 desapareceu também todo vestígio de dominação bizantina sobre o Estado Pontifício;
aliás, esse domínio já era mais teórico do que real nos últimos decênios; os legados de Carlos Magno
expulsaram os bizantinos de seus últimos redutos na península. Os Papas desde então datam os seus
documentos, contando os anos do seu pontificado, e mandam cunhar as suas moedas.
Todavia, emancipando-se dos bizantinos, o Papa caiu sob a influência, cada vez mais penetrante,
dos francos. Ninguém negava, naquele fim de século, que o Estado Pontifício fazia parte do Reino
franco. Fazia parte, porém, de modo diferente do que ligava os demais territórios aos francos; com
efeito, os outros príncipes da Itália eram vassalos do rei dos francos e dos lombardos; nomeados por
este, administravam em nome dele. Quanto ao Papa, não era vassalo nem funcionário do rei; o que o
ligava ao rei dos francos, era um ´pacto de amor e fidelidade´, pacto que ligava mais do que uma
aliança entre iguais, menos porém do que um ato de vassalagem. Era o título de ´Patrício´, o cargo de
Protetor do Estado Pontifício, que abria a Carlos Magno a porta para se ingerir continuamente neste:
freqüentemente aparecem missi (enviados) francos no território papal, que representam o rei nas
eleições de bispos, transmitem desejos ou protestos do rei não somente em matéria de administração
temporal, mas também no tocante ao governo interno da Igreja.

Lição 4: Carlos Magno Imperador


Em 795 morreu o Papa Adriano I, que teve por sucessor Leão III. Este comunicou logo sua
eleição a Carlos Magno, mandando-lhe as chaves do túmulo de S. Pedro e a bandeira da cidade de
Roma, ao mesmo tempo que lhe prometia fidelidade. Carlos Magno respondeu felicitando o Papa;
depois disto, mandava-lhe conselhos e instruções, como se fosse o verdadeiro chefe político e
religioso dos cristãos.
A posição de Leão III era insegura, por causa de acusações que contra ele levantavam os
sobrinhos do seu antecessor. Carlos Magno então foi a Roma em novembro de 800 a fim de por termo
à controvérsia. Aos 23/12/800 reuniu-se um Sínodo em Roma, sob a presidência de Carlos: fiel à
antiga norma do Direito eclesiástico (´a Sé Apostólica por ninguém pode ser julgada´), a assembléia
absteve-se de julgar o Papa; este repeliu com juramento as acusações que lhe eram feitas.
Dois dias depois, ocorreu acontecimento de enorme importância. Na noite de Natal de 800,
quando na basílica de S. Pedro Carlos se levantava após ter rezado diante do túmulo de S. Pedro, Leão
III impôs sobre a sua cabeça preciosa coroa, enquanto o povo aclamava: ´A Carlos Augusto, coroado
por vontade de Deus, grande e pacífico Imperador Romano, vida e vitória!´ ´ Esta cerimônia não
causou surpresa; parecia preparada. Se de fato foi previamente combinada, julga-se que a iniciativa
partiu de Carlos, pois este não era homem que deixasse que lhe impusessem um acontecimento de tal
envergadura.
Este evento significava a renovação do Império Romano Ocidental, que perecera em 476 e que
era restaurado em sentido novo: o ´Patrício Romano´ se tornava Imperador Romano no Sacro Império
Romano, como era chamado a partir do século XIII Como se compreende, a Itália e o Papado ficavam
definitivamente subtraídos à jurisdição de Constantinopla. O novo título implicava, para Carlos, um
aumento de autoridade moral e política diante dos demais soberanos do Ocidente e uma dignidade
religiosa que o confirmava na função de proteger a Igreja.
Após a coroação, as relações de Carlos com o Papa continuaram amistosas, embora o Papa
tivesse que se queixar, não raro, da intrusão de funcionários francos no Estado Pontifício, enquanto os
legados papais com dificuldade eram ouvidos na corte imperial.
O Imperador muito se interessou pela formação do clero; mandou elaborar um repertório de
sermões típicos para facilitar a pregação; incentivou o canto-chão. Mas em geral nomeava bispos e
abades (mesmo dentre os leigos) e exigia dos prelados serviço ao Estado (hospedagem do rei em
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 56

viagem, missões políticas, participação em certas campanhas...). Exortava bispos e Papa ao


cumprimento de seus deveres, sendo que ao Papa atribuía a função de rezar como Moisés (ef. Ex
17,10´13). Dos leigos exigia que soubessem ao menos o Pai-Nosso e o Credo.
Em síntese, Carlos Magno foi um herói cristão, que teve suas fraquezas, mas a quem a
posteridade deve reconhecer o mérito de haver tentado criar um Ocidente cristão.

MÓDULO 19: PAPADO E IMPÉRIO DE 891 A 1003

Lição 1: Observações prévias


O Imperador Carlos Magno (800-814) embora cesaropapista, conseguiu realizar o que se chama
"o Renascimento Carolíngio" ou um surto de cultura profana e religiosa importante naqueles tempos
de baixo nível cultural. O monarca cercou-se de homens sábios, que com ele colaboraram para a
expansão da fé, dos bons costumes e da instrução nos territórios francos.
Todavia foi efêmera a prosperidade carolíngia. Logo com o sucessor de Carlos, Luís o Piedoso
ou o Bonachão (814-40), começou a decadência do Império, que repercutiu na própria vida da Igreja.
Quanto mais o Império perdia sua influência no Ocidente, tanto mais o Papa se via desprovido do
apoio necessário para fazer frente aos senhores locais e nobres da Itália; estes se mostravam cada vez
mais ambiciosos e perturbavam a vida da Igreja, pois se imiscuíam nas eleições dos Papas e no
governo da Igreja. Além disto, as igrejas e os bens eclesiásticos iam-se tornando bens de família; os
leigos eram nomeados bispos e abades, que, sem vocação sacerdotal ou monástica, administravam
núcleos importantes da Igreja.
Os decênios de decadência cultural e morai do século IX levaram ao triste estado de coisas que
faz do século X o século "obscuro" ou o século "de ferro" (árido) da Igreja; este foi um dos períodos
mais dolorosos da história do Cristianismo por causa da interferência de famílias nobres e cobiçosas
na vida do Papado.
A situação de declínio era agravada pelas invasões de estrangeiros, às quais a Itália, por sua
posição geográfica (exposta aos mares), estava sujeita; os Normandos27, os Sarracenos28 e os
Húngaros pilhavam cidades e campos da região — o que dava lugar a furtos, morticínios, vinganças,
adultérios...
Relataremos alguns dos traços mais notáveis de época tão denegrida da história da Igreja. é de
notar, porém, o seguinte: a principal fonte de conhecimentos que temos da época, é a chamada
Antapódosis (= Retribuição ou Vingança) da autoria do bispo Liutprando de Cremona; como o
próprio nome o diz, esta obra é passional ou tendenciosa; a quanto parece, o seu autor era figura
aduladora e temperamental, que exagerou os males do Papado para mais exaltar a ação dos
imperadores. — Além do mais, não se pode ignorar que, simultaneamente com a decadência moral,
houve homens e mulheres de elevado calor cristão, santos que dignificaram a sua época: assim S.
Ulrico de Augsburgo (+973), Bruno, arcebispo de Colônia (1965), Conrado e Gebardo de Constança
(+975 e 995), Volfgango de Ratisbona (1994), Adalberto de Praga (+997), Viligisde Mogúncia,
Chanceler dos Imperadores Oto l e Oto II (11011) . Bernardo (+1022) e Godehardode Hildesheim (t
1038), Burcardo de Worms (+1025). Seja mencionada também a fundação do mosteiro de Cluny em
911 (logo no início do século obscuro), casa-mãe de muitas outras Abadias e foco de renovação
progressiva. Aliás, em todas as fases da história da Igreja houve, ao lado de pecadores, santos que
testemunharam a presença e a ação de Cristo em seu Corpo Místico; foi geralmente dos claustros, da
vida unida a Deus pela oração e a ascese, que brotou a seiva nova para revitalizar os ramos da S.
Igreja.

27
Normando (= homens do Norte) eram os povos oriundos da Escandinávia – suecos, noruegueses e dinamarqueses –
também chamados viquíngios (vikings). Hábeis navegadores como eram, entre os séculos VIII e XI invadiram a Europa
Ocidental e Oriental, estabelecendo-se na região francesa da Normandia (séc. X) e invadiram a Inglaterra (séc. XI).
Convertidos ao Cristianismo no século X, desempenharam importante papel nas cruzadas e na reconquista cristã do Sul da
Itália, da Sicília e da Espanha.
28
Sarracenos (do árabe xarki, oriental) era o nome que os cristãos medievais davam aos mulçumanos árabes e turcos que
conquistaram antigos territórios cristãos na península ibérica, no Norte da África e na Sicília.
57 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Examinaremos agora os principais quadros da época focalizada.

Lição 2: Fim do século IX; o Papa Formoso


No fim do século IX governaram a Igreja os Papas João VIII (872-882), Marino I (882-4),
Adriano III (884-5), Estêvão V (885-91). Sucedeu-lhes uma figura que suscitou controvérsias, a saber:
o Papa Formoso (891-6). Este era, já antes da eleição de João VIII, bispo suburbicário do Porto.29 O
Papa Nicolau I mandou-o como missionário à Bulgária, mas não o quis nomear Patriarca dos
búlgaros, como desejavam estes. Por isto, voltou para a sua diocese do Porto. Todavia João VIU o
considerava seu inimigo pessoal e o depôs, principalmente por motivos políticos.
O sucessor de João VIII — Marino I — reabilitou Formoso e o restituiu ao bispado do Porto.
Por fim, em 891 Formoso conseguiu subir à cátedra papal. Contudo a pressão dos nobres de
Espoleto (Itália) contra o Papa era tal que este resolveu chamar Arnulfo, rei da Alemanha, contra os
"maus cristãos". Arnulfo desceu à Itália, tomou Roma e foi por Formoso coroado Imperador em 896;
mas, acometido de paralisia, não pôde impor' b domínio germânico na Itália. Em conseqüência.
Formoso viu-se novamente desprotegido frente aos adversários, que não lhe perdoavam ter coroado o
"bárbaro nórdico". O Papa morreu em 896.
Os espoletanos conseguiram neste mesmo ano eleger Papa um dos seus partidários: Estêvão VI.
e aproveitaram-se dele para se vingar da política germanófila de Formoso. Estêvão VI em 896 reuniu
um Sínodo em Roma para julgar o falecido Pontífice: desenterraram o seu cadáver, sepultado havia
nove meses, e o acusaram como réu da ambição de ocupar a Sé de Roma quando era bispo do Porto.
Formoso foi condenado; o seu pontificado foi declarado ilegal, nulas as ordenações que conferiu; o
seu cadáver foi despojado das vestes sagradas; cortaram-lhe dois dedos; depois, puseram-no num
túmulo de peregrinos e, por último, atiraram-no ao Tibre.
Estêvão VI, porém, não teve melhor sorte do que o seu antecessor: em 897 o povo revoltou-se
contra ele, encarcerou-o e, por fim, estrangulou-o!
Os Papas que se lhe seguiram (Teodoro II, 897 e João IX, 897-900) procuraram apagar as
infâmias cometidas contra Formoso; foram reabilitados os clérigos que detinha ordenado; queimaram-
se as atas do Sínodo de 896, dito "do cadáver". Novo Sínodo romano de 898 decretou que a eleição
dos Papas, para o futuro, seria realizada pelos bispos subsidiários e pelo clero de Roma; o eleito
deveria ser aprovado pelo Senado e pelo povo romanos e sagrado em presença de legados imperiais
(isto tudo, a fim de se evitar a ingerência de interesses políticos estranhos).

Lição 3: De 904 a 1003


Os nobres da Toscana e de Espoleto não cessavam de cobiçar a cátedra de Pedro. Por isto em
904 obtiveram a eleição do Papa Sérgio III (+911), que lhes era aparentado. Passaram então a exercer
influxo extraordinário na vida dos Papas os membros de uma família romana: Teofilacto, Dux,
Magister Militum, Cônsul et Senator Romanorum; sua esposa Teodora Júnior, e suas duas filhas
Marócia e Teodora Júnior, principalmente estas três mulheres, muito ambiciosas e imodestas,
exerceram, durante decénios, ação predominante sobre o Papado. — O Papa Sérgio til mostrou-se
avesso à memória do Papa Formoso, declarando inválidas as suas ordenações; isto originou uma
polêmica escrita contra a facção dos formosianos.
Após Sérgio III, governou João X (914-28), que a "senadora" Teodora Júnior conseguiu elevar
ao Papado. Tendo procurado reagir contra a demasiada ingerência dos nobres na Igreja, foi
encarcerado por ordem de Marócia e, dentro de poucos meses, morreu sufocado na prisão.
Em 931 Marócia fez subir à cátedra de Pedro seu próprio filho, com o nome de João XI (931-5);
segundo Liutprando, era filho de Marócia e Sérgio III (o que pode ser posto em dúvida, pois Sérgio
parece ter sido homem honesto e íntegro). Em 932, Alberico II. um filho de Marócia, irritado pela
política ambiciosa de sua mãe. excitou contra ela a nobreza romana; encarcerou Marócia e pôs sob
vigilância o Papa João XI (filho de Marócia e irmão de Alberico II por parte de mãe); passou então a
reger o Estado Pontifício até 954 (por 22 anos'), ficando o Papa apenas com o regime espiritual.
Alberico II era piedoso (apesar de ambicioso); criou cinco Papas, todos dignos e piedosos: Leão VII

29
Isto é, bispo da cidade do Porto, vizinha a Roma, ou “suburbe” de Roma.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 58

(936-9). Estêvão VIII (939-42), Marino II (942-6), Agapito II (946-55). No seu leito de morte, em
954, Alberico fez os nobres romanos prometer que, após a morte de Agapito II, elevariam ao
Pontificado o filho Otaviano, de Alberico. A promessa foi cumprida: Otaviano assumiu o cargo com o
nome de João XII (primeiro caso de mudança de nome), que governou de 955 a 964. Tinha 17 anos de
idade ao assumir; era personalidade incapaz, que encarava a sua nova posição como a de um príncipe
mundano (acumulava em suas mãos o governo espiritual e a administração temporal da Igreja).
Sob o pontificado de João XII deu-se um acontecimento de grande relevo: em 962 Oto I, rei da
Germânia. tendo vencido adversários e rivais, foi coroado Imperador do Sacro Império Romano da
Nação Germânica. Este ato restaurava em favor de Oto os privilégios outrora concedidos a Carlos
Magno: ao Imperador tocava a suprema instância Judiciária assim como a superintendência sobre os
funcionários do Estado Pontifício; o Papa, antes de ser sagrado, deveria Jurar-lhe fidelidade. Oto I foi
louvado como sendo "o 3o Constantino". embora tenha sido menos brilhante do que Carlos Magno.
Apenas, porém, Oto deixou a Itália, João XII começou a tramar contra o Imperador. Oto então
voltou a Roma; reuniu um Sínodo em 963, que depôs o Papa por acusações gravíssimas,
provavelmente exageradas (homicídio, sacrilégio, perjúrio. . .). No seu lugar foi eleito Leão VIII, um
leigo, que num só dia recebeu todas as Ordens; era um antipapa, pois o Papa legítimo nunca pode ser
deposto por um Sínodo. Depois que Oto partiu, João XII, que fugira, voltou a Roma e foi reconhecido
como Papa legítimo; Leão VIII então fugiu e foi excomungado por um Sínodo Romano de 964.
Morto João XII, os romanos elegeram Bento V (964), Pontífice douto e digno. Oto, porém,
compareceu novamente em Roma; restabeleceu Leão VIII, que ele criara, e exilou Bento V, que
morreu em 968.
Em 965 sucedeu a Leão VIII João XIII, provavelmente filho de Teodora Júnior, homem digno,
que foi encarcerado por membros da aristocracia romana. João conseguiu fugir e. com o auxílio de sua
família, recuperar a cátedra papal. Por essa ocasião, Oto foi mais uma vez à Itália, e lá ficou de 966 a
972, a fim de estabelecer â ordem. Isto proporcionou a João XIII um pontificado tranqüilo.
Oto faleceu em 973. Recomeçaram então as perturbações e rivalidades em Roma. À frente dos
nobres passou a família dos Crescentius, sob o novo Papa Bento VI (973-4). O Dux Crescentius
mandou encarcerar o Papa, que morreu estrangulado. Foi eleito em seu lugar o Cardeal Bonifácio
Franco com o nome de Bonifácio Vil (974); após seis semanas, porém, foi deposto por um legado do
Imperador Oto II e fugiu para Constantinopla. Crescendo morreu como monge num mosteiro de
Roma!
Sob a tutela de Oto II, subiu ao Pontificado Bento Vil em 974, que governou tranqüilamente até
a morte em 983. Neste ano assumiu o governo da Igreja João XIV; Bonifácio Vil voltou de
Constantinopla; apoderou-se da cátedra papal, e deixou seu rival João XIV morrer de fome (984). Um
ano depois, porém, faleceu repentinamente e seu cadáver foi transpassado por lanças e arrastado pela
cidade de Roma sob os ultrajes do povo revoltado.
Em 985 começou a governar o Papa João XV (985-96), sob cujo pontificado Crescendo
Nomentano (filho do anterior Crescendo) assumiu o governo temporal de Roma como Senator, Dux et
Cônsul Romanorum. Este exerceu tal tirania que o Papa resolveu chamar em seu auxílio o jovem
Imperador Oto III (que tinha 16 anos de idade). Antes que chegasse a Roma, recebeu a notícia da
morte de João XV (996). Oto III colocou então sobre a cátedra de Pedro o primeiro Papa alemão: o
capelão real Bruno de Caríntia, de 24 anos de idade, que tomou o nome de Gregário V (996-99); era
homem zeloso, favorável à reforma dos costumes, estranho à política dos pobres de Roma e da Itália.
Logo, porém, que o Imperador se retirou de Roma, Crescendo, que fora anistiado a pedido do Papa,
revoltou-se contra Gregório, que teve de fugir; o mesmo Crescendo instituiu o antipapa João XVI, de
origem grega. Oto. porém, recolocou Gregório V na cátedra por força das armas (998) e pronunciou
terrível juízo sobre João XVI, que foi cegado, mutilado e encarcerado num mosteiro, enquanto
Crescendo e outros revoltosos foram decapitados em Roma, no Castel Sant’Angelo.
A Gregório V Oto fez suceder o primeiro Papa francês: Silvestre II (999-1003), versado em
Filosofia, Matemática e Astronomia. O Papa e o Imperador se entendiam otimamente. Oto era
profundamente religioso e homem capaz; hesitava entre fuga do mundo e grandiosos planos imperiais;
queria restaurar o Império Romano sobre bases totalmente cristãs. Muito trabalhou, de acordo com o
Papa, pela Igreja na Hungria e na Polônia; mas poucos resultados obteve na política porque os
59 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

romanos em 1001 o obrigaram â fugir de Roma com Silvestre; este morreu em 1003, após a morte do
Imperador com 22 anos em 1002.
A aproximação do ano 1000 suscitou pavores pela apregoada vinda do Anticristo e do fim do
mundo. O historiador César Barônio (+1607), porém, exagerou as cores do quadro então vigentes,
como se o medo tivesse paralisado a vida pública. Na verdade, os cristãos/ impelidos pela expectativa
do fim do mundo, parecem ter-se entregue com mais afinco às tarefas de reforma religiosa, de
construção de igrejas e de evangelização; os dois Papas Gregório V (996-9) e Silvestre II (999-1003)
foram pastores zelosos, mas infelizmente de pouca duração.
Assim chegamos ao fim do século X. A história nos mostra que Deus quis conduzir a sua Igreja
através de vicissitudes humanas. A consideração dos fatos evidencia que não são os homens que
sustentam a Igreja, mas é o próprio Cristo, que nela vive indefectivelmente. A Igreja havia de superar
tal situação no século seguinte a partir da própria vitalidade, guardada intata nos seus mosteiros e
santuários.

MÓDULO 20: A DITA "PAPISA JOANA”


Lição 1: A estória
Nos debates concernentes à Papisa Joana são evocados onze textos ou fontes escritas, que se
escalonam entre os anos de 886 e 1279. Esses onze textos se reduzem a duas famílias de documentos:
uma família é a da Chronica universalis Mettensis, devida ao dominicano João de Mailly e redigida
por volta de 1250. A outra família é a do Chronicon pontificum et imperatorum, documento
confeccionado pelo confrade dominicano Martinho de Tropau, dito "Polono" (+ 1279). Os relatos da
estória encontrados em documentos mais antigos do que os dois atrás citados são devidos a
interpolações posteriores ao século XIII (interpolações, pois, tardias, feitas em documentos dos
séculos IX - XII).
Que dizem as duas fontes sobre a Papisa Joana?
1) A recensão da Chronica universalis Mettensis refere o seguinte:
Em Roma, uma mulher simulou o sexo masculino; e, muito inteligente como era, veio a ser
notário da Cúria pontifícia, Cardeal e Papa. Um belo dia tendo montado a cavalo, foi acometida de
dores de parto. A justiça de Roma então a condenou a ser amarrada pelos pés ao rabo de um cavalo,
que a arrastou por meia-légua de distância, enquanto o povo a apedrejava. Foi sepultada no lugar
mesmo em que morreu.
Um cronista posterior, Estêvão de Bourbon, acrescentou dois traços a essa narrativa: Joana fora
ter a Roma (a crônica anterior nada dizia sobre a origem da "heroína"), e se tomara Cardeal e Papa
com o auxílio do demônio.
Posteriormente, um cronista de Erfurt observou, em acréscimo, que Joana era uma bela mulher;
também modificou o papel do demônio, dizendo que este denunciara num consistório que Joana
estava grávida.
A crônica de Metz coloca tal episódio logo após o pontificado do Papa Vítor III (+ 1087).
Estêvão de Bourbon diz que ocorreu por volta de 1100, após a morte de Urbano II (1099), ao passo
que o cronista de Erfurt retrocede até 915, depois do governo de Sérgio III (f 914)!
2) A recensão de Martinho Polono é mais complexa do que a anterior.
Refere que João da Inglaterra, nascido em Mogúncia (Alemanha), ocupou a cátedra papal
durante dois anos, sete meses e quatro dias. Era uma mulher. Jovem fora por seu amante levada, em
trajes masculinos, para Atenas, onde granjeou grande erudição. Transferiu-se para Roma, onde
ensinou o "trivium"30, tendo entre os seus ouvintes e discípulos grandes mestres da época. Já que
gozava de boa reputação e elevado saber, foi eleita Papisa (ou pretensamente Papa) por consentimento
de todos os eleitores, com o nome de João Ânglico. Grávida, ela se dirigia certa vez de São Pedro à
basílica do Latrão; entre o Coliseu e a igreja de São Clemente, deu à luz, morreu e foi sepultada no
mesmo lugar. Isto tudo se terá verificado após o pontificado de Leão IV (+855). Todavia um
interpolador, Otão de Freising, coloca a eleição da Papisa Joana em 705!

30
O “trivium” eram as três matérias lingüísticas da Idade Média: gramática, retórica, dialética.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 60

A versão de Martinho Polono foi modificada pelo autor de um manuscrito do século XIV
(publicado por Doellinger em Die Papstfabeln des Mittelalters, Munique 1863, p. 503). Tal autor
põe em foco uma jovem chamada Glância, oriunda não de Mogúncia, mas da Tessália, a qual se terá
tornado Papa, não, porém, com nome de Joana, e, sim, com o de Jutta.
Nos séculos XIV e XV a estória gozava de crédito mais ou menos geral: no domo de Sena, por
exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o da Papisa Joana. No
Concilio de Constança (1414-1418), o herege João Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestação
alguma. Humanistas e adversários da Igreja, principalmente após o cisma protestante (século XVI),
muito exploraram a narrativa, multiplicando livros e folhetos que propagavam a estória.
Deve-se ainda notar que, com o decorrer do tempo, a lenda da Papisa Joana foi acrescida de
outra, não menos repugnante. - Com efeito, forjaram-se documentos segundo os quais os Cardeais da
S. Igreja, receando que fosse de novo eleita uma mulher Papisa, recorriam a uma cadeira de assento
perfurado a fim de se assegurar do sexo do candidato eleito. Tal cadeira era chamada "stercoraria"
(palavra que provém de stercus, esterco).
Esta outra narrativa se encontra nos escritos de autores medievais, dos quais alguns protestam
contra ela. Tenham-se em vista Godofredo de Courlon, em cerca de 1295; o dominicano Roberto de
Uzès, + 1296; Tiago Angeli de Scarpia, em 1400 (o qual contradiz à insana fabula); Félix Hemmerlin,
+ 1460...

Lição 2: A denúncia da falsidade


Apesar de leves dúvidas sobre a veracidade dessas estórias, dúvidas proferidas desde o século
XIII, somente a partir de meados do século XVI se reconheceu o caráter lendário das mesmas. O
século XVI, com a Renascença, foi justamente o século da crítica aos falsos documentos da história
anterior.
O primeiro a denunciar a falsidade da estória de Joana foi João Thurmaier, cognominado
"Aventino" (oriundo de Abensberg na Baviera), falecido em 1534, e autor de Annales Boiorum. Esse
escritor era publicamente católico, mas ocultamente luterano, A sinceridade, porém, levava-o a
reconhecer a fraude da lenda.
Seguiu-se Onófrio Panvínio (+ 1568), que escreveu anotações sobre a vida dos Papas publicadas
em Veneza em 1557.
A refutação da lenda foi cabalmente empreendida por Florimundo de Remond, que escreveu o
livro Erreur populaire de la papesse Jeanne, editado em Paris (1558), Bordéus (1592, 1595) e Lião
(1595). O autor mostrava a impossibilidade de tal "estória" e as contradições das diversas recensões.
Notem-se ainda o autor protestante D. Blondel (“Familier esclaircissement de la question, si une
femme a está assise au siège papal de Rome entre Léon IV et Benoit III”. Amsterdam 1647) e o
erudito Ignaz Von Doellinger (Die Papstfabeln des Mittelalters. Sluttgart 1890), o qual não era muito
amigo do Papado, pois se separou de Roma por não querer reconhecer a infalibilidade pontifícia
definida em 1870 pelo Concílio do Vaticano I.
As razões pelas quais não se admite mais a estória da Papisa Joana são:
a) as incertezas e vacilações das diversas versões, principalmente ao assinalarem a data do
pretenso episódio.
b) o fato de que até meados do século XIII a extraordinária e interessante estória da Papisa Joana
(que teria vivido no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada pelos cronistas medievais.
Os primeiros que se referem, são o dominicano João de Mailly na sua Chronica universalis
Mettensis redigida por volta de 1250, e seu confrade Martinho Polono (+1279), autor de Chronicon
pontificum et imperatorum. Averiguou-se que os relatos da lenda encontrados em documentos mais
antigos do que estes foram inseridos aí depois do século XIII;
c) a série dos Papas, como hoje é conhecida, não admite interrupção entre Leão IV e Bento II!
(século IX), como tão pouco a comporta entre Pontífices dos séculos X / XI. - Com efeito, Leão IV
morreu aos 17 de julho de 855 e Bento III foi eleito antes do fim de julho de 855. Por conseguinte,
entre Leão IV e Bento III é impossível intercalar o pontificado da pretensa Papisa, que teria durado
dois anos, sete meses (ou cinco meses ou um mês, segundo os diversos narradores) e quatro dias. A
61 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

mesma impossibilidade se verifica, caso se queira transferir o "pontificado" de Joana para outra fase
dos séculos VII / XI; não há brecha na série dos Papas para intercalar uma Papisa.

Lição 3: Como explicar?


1. Julga-se que a estória é uma alusão às tristes condições em que se achava o Papado no século
X: vários Pontífices caíram então sob a influência de três mulheres prepotentes em Roma; Teodora,
esposa de Teofilacto, e suas filhas Teodora e Marócia. Na mesma época houve sete Papas com o nome
de João: João IX (898-900), João X (914-929), João XI (931 -935), João XII (955-964), João XIII
(965-972), João XIV (983-984), João XV (985-996), sendo que a respeito de João XI escreveu um
cronista seu contemporâneo: "Foi subjugado em Roma pela prepotência de uma mulher" (Bento de S.
André de Sorate, Chronicon em Monumenta Germaniae Histórica III 714). Tal notícia por si só
podia bastar para fazer crer que realmente uma mulher ocupara a Sé de Pedro. Podia também sugerir o
nome de Joana para essa mulher, pois a mulher de que fala o cronista Bento de S. André era tida como
familiar de João XI (era a mãe deste Papa); ora "muito naturalmente" uma mulher aparentada do Papa
João deveria chamar-se Joana! Compreende-se, pois, que o século X, fase difícil da história do
Papado, tenha sido ilustrado (ou caricaturado) de maneira muito eloquente pela narrativa fictícia de
que uma mulher chegou a subir ao trono pontifício.
2. Em particular, a lenda da cadeira estercorária explica-se do seguinte modo: Uma vez eleito o
Papa, os Cardeais e o povo iam à basílica de São João do Latrão. O
Pontífice se sentava numa cadeira de mármore colocada sob o pórtico da igreja; os dois Cardeais
mais antigos o sustentavam pelos braços e o levantavam, ao canto da antífona "Suscitans a terra
inopem et de stercore erigens pauperem. - Levantas da terra o indigente e do esterco ergues o pobre"
(Salmo 112,7). Em conseqüência, tal cadeira se chamava "estercorária" (o canto sugeria o adjetivo...)
A cadeira não possuía assento perfurado. A cerimônia tinha seu simbolismo claramente enunciado
pela antífona; apresentava o Papa como o pobre servidor que Deus se dignava de exaltar ao
pontificado.
A seguir, o Pontífice era levado ao batistério do Latrão. Sentava-se sobre urna cátedra de
Porfírio e recebia as chaves da basílica, sinal de suas faculdades pastorais. Depois, sentado sobre outra
cadeira de Porfírio, devolvia as chaves. Essas duas cadeiras de Porfírio tinham assento perfurado;
eram cadeiras antigas, que haviam servido aos banhos dos romanos e que eram utilizadas em tal
cerimônia papal não por causa da sua forma, mas por causa do respectivo valor. Ora a lenda confundiu
esses diversos elementos, imaginando a cadeira estercorária como cadeira de assento perfurado e
associando-a à estória da Papisa Joana.
3. De resto, a lenda foi reforçada pela existência de uma estátua de mulher com criança nas
mãos, que na Idade Média se achava junto à igreja de São Clemente em Roma. Essa estátua seria,
conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; estaria acompanhada de uma inscrição, da qual
quatro variantes nos são referidas pelos historiadores da Idade Média:
"Parce pater patrum papissae prodito partum".
"Parce pater patrum papissae prodere partum".
"Papa pater patrum papissae pandito partam".
"Papa pater patrum peperit papissa papellum".
Ora os arqueólogos admitem, seja a estátua mencionada a que se encontra hoje no Museu
Chiaramonti de Roma; seria uma estátua de origem pagã a representar talvez Juno que amamenta
Hércules.
As diversas formas da inscrição acima parecem não ser mais do que tentativas medievais para
reconstituir uma frase fragmentária assim encontrada ao pé dessa estátua de origem pagã:
P... PATER PATRUM P P P
Sabe-se que Pater Patrum era o título característico dos sacerdotes de Mitra (justamente
debaixo da igreja de São Clemente em Roma foi encontrado grandioso santuário de Mitra). Mais
ainda: sabe-se que a abreviação P P P é freqüente na epigrafia latina, significando muitas vezes
própria pecunia posuit, ou seja, construiu à custa própria. Donde se conclui com verossimilhança
que a "estátua da Papisa Joana" não é senão uma efígie em uso no culto de Mitra, colocada no
santuário respectivo pelo sacerdote pagão P... (talvez Papinus) em inícios da era cristã. A inscrição
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 62

abreviada e mutilada pela injúria dos tempos, prestando-se a interpretações diversas, teria dado lugar
às conjeturas dos poetas medievais que corroboravam a lenda da Papisa Joana.

MÓDULO 21: O CISMA GREGO (SÉC. IX E XI)


A ruptura entre bizantinos e ocidentais, que tomou sua forma definitiva no século XI, não é
senão o último episódio de uma longa história ou da história das diferenças de duas mentalidades: a
grega e a latina. Sobre a união na fé e no amor de Cristo, que estreitavam orientais e ocidentais,
prevaleceu, infelizmente, a desunião humana natural.
Comecemos, pois, por examinar as raízes do cisma.

Lição 1: As diferenças entre bizantinos e latinos


1. Há uma diversidade fundamental, que se manifestava de maneiras diversas:
a) O gênio. Os gregos eram intelectuais, cultores da filosofia, das letras e das artes. A
elaboração das grandes verdades da fé a respeito da SS. Trindade e de Jesus Cristo deu-se no Oriente
(até o Concílio de Constantinopla III, 680/1). Por isto tendiam a desprezar os romanos e, mais ainda,
os bárbaros invasores, como rudes e incultos. — Os latinos eram mais amigos da prática, da
disciplina, do Direito; por isto tinham os gregos na conta de frívolos, inconstantes e tagarelas (cf. At
17,21); dizia-se no Ocidente: "Graeca fides, nulla fides", isto é, "palavra de grego, palavra nula". Essa
diversa índole suscitou, a partir do século V, um antagonismo crescente entre orientais e ocidentais.
b) A língua. Os primeiros documentos da Roma cristã eram redigidos em grego. Depois do
século IV, porém, esta língua desaparece do Ocidente, dando lugar ao latim (= dialeto do Lácio ou da
região de Roma). O latim era desprezado e desconhecido no Oriente, especialmente após o Imperador
Justiniano (+565). É de notar, por exemplo, que o arquidiácono latino Gregório (depois Papa),
certamente homem de valor intelectual passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado
papal, sem aprender o grego; julgava que isto não valia a pena (fim do século VI). — Ora a ignorância
mútua de línguas muito contribuiu para que as comunicações entre Oriente e Ocidente se tornassem
mais raras e sujeitas a mal-entendidos; era preciso recorrer a intérpretes, que nem sempre eram fiéis
(tenham-se em vista as atas do Concílio Niceno II referentes às imagens; módulo 17).
c) Liturgia e disciplina. Havia tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante, por
exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de Jejum (os latinos jejuavam no sábado; os gregos, não),
à matéria da Eucaristia (pão sem fermento ou ázimo no Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao
celibato do clero, ao uso da barba (muito caro aos orientais). . . Essas tradições, por não afetarem as
verdades da fé. eram perfeitamente aceitáveis; haveriam, porém, de tornar-se motivo de debates em
tempos de controvérsia.
2. Ao lado da diversidade fundamental, levemos em consideração a mentalidade que se foi
formando em Bizâncio ou o "bizantinismo".
Em 330 Constantino transferiu a capital de Roma para Bizâncio, que ele quis chamar "a nova
Roma". Esta fora até então uma localidade insignificante, que muito sofrera por parte dos Imperadores
Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também carecia de significado; a sua comunidade
crista não fora fundada por algum dos Apóstolos (como as de Jerusalém, Antioquia, Alexandria,
Roma...); o primeiro bispo que se lhe conhece. Metrófanes, é do início do século IV (315-325) e
sufragâneo31 do metropolita de Heracléia.
Compreende-se então que, o prestígio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os bizantinos
o quisessem obter por suas reivindicações. De modo geral, ia-se tornando difícil aos bizantinos
reconhecer a autoridade religiosa de Roma, já que todo o esplendor da corte imperial se havia
transferido para Constantinopla.

31
A palavra sufragâneo supõe o seguinte: outrora as dioceses ou os bispados se reuniam em províncias; os bispos da
província escolhiam seu metropolita (seu coordenador) e emitiam seu sufrágio no concílio provincial; daí o nome
sufragâneo. Atualmente sufragâneo é o bispo dependente de um arcebispo (numa dependência assaz tênua).
63 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Acresce que os Imperadores bizantinos, herdeiros do conceito pagão de Pontifex Maximus


(Pontífice Máximo no plano religioso), se ingeriam demasiadamente em questões eclesiásticas,
procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle. Os monarcas, nas controvérsias teológicas,
muitas vezes favoreciam as doutrinas heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que
difundiam a reta fé. Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependentes do Imperador,
procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam rivalizar com o
Patriarca de Roma, sucessor de Pedro, aderindo à heresia e provocando cismas: dos 58 bispos de
Constantinopla desde Metrófanes até Fócio (858), um dos vanguardeiros da ruptura, 21 foram
partidários da heresia; do Concílio de Nicéia l (325) até a ascensão de Fócio (858), a sede de Bizâncio
passou mais de 200 anos em ruptura com Roma.
Registraram-se mesmo atos de violência cometidos por Imperadores contra alguns Papas:
Justino I mandou buscar à força o Papa Vigílio em Roma e quis obrigá-lo a subscrever normas
religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante II procedeu de forma análoga contra o
Papa Maninho I, que em Roma (649) se opusera à heresia monotelita. favorecida pelo Imperador;
Justiniano II mandou prenderem Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações
promulgadas pelo Concílio Trulano II (692); Leão III, iconoclasta, em 731 subtraiu a Roma a
Jurisdição sobre a Ilíria e sobre parte do "Patrimônio de S. Pedro" (Itália meridional).
3. O distanciamento entre orientais e ocidentais ainda foi acentuado pela criação do "Sacro
Império Romano da Nação dos Francos", cujo primeiro Imperador Carlos Magno recebeu a coroa, em
800, das mãos do Papa Leão III. - O descaso ou a hostilidade dos bizantinos associados à opressão dos
lombardos no Norte da Itália, dera motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar
simpático, para o povo recém-convertido dos francos, pedindo-lhes o auxílio necessário para instaurar
nova ordem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a Carlos Magno visava a prestigiar os
francos nessa sua missão. Como se compreende, em Bizâncio tal ato foi mal acolhido,; os orientais
Julgavam que só podia haver um Império cristão,como só pode haver um Deus; o Imperador reinava
em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja; daí grande surpresa e
escândalo quando souberam que o bispo de Roma sagrara em 800 um "bárbaro" para governar um
segundo Império cristão!
Apesar de tudo, deve-se dizer que até o século IX o primado de Roma ainda era
satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou em termos novos e
funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio (+897) e Miguel Cerulário (+1059).

Lição 2: A ruptura sob Fócio


Em 858 foi ilegitimamente deposto por adversários políticos o Patriarca Inácio de
Constantinopla. Em seu lugar, subiu à cátedra episcopal um comandante da guarda imperial, Fócio,
que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco dias todas as ordens sacras e foi
empossado, sem que a sé estivesse vaga (pois Inácio não renunciara).
Não conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído das funções
pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha contra os cristãos ocidentais.
A situação se tornou mais tensa pelo fato de que o Papa Nicolau I enviou missionários latinos à
Bulgária, cujo rei Bóris. recém-batizado, hesitava entre a obediência a Roma e a obediência a
Constantinopla. A entrada dos latinos em território tão próximo das fronteiras gregas irritou os
bizantinos; a cólera chegou ao auge quando estes souberam que legados de Roma estavam a caminho
de Constantinopla, onde deveriam informar o Imperador de que a Bulgária se tornara decididamente
latina. Presos antes de penetrarem em território imperial, os legados do Papa foram expulsos (866);
Fócio enviou uma carta aos bispos do Oriente condenando a conduta dos "ocidentais bárbaros": além
da evangelização da Bulgária, censurava-os por praticarem o jejum no sábado, celebrarem a Eucaristia
com pão ázimo e,. . . principalmente, por terem acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé. Como
sabemos (ver módulo 8). o credo niceno-constantinopolitano professava: "Creio no Espírito Santo,
que procede do Pai. . .". Todavia a partir de fins do século VI, a Igreja na Espanha propagou a
fórmula:". . . que procede do Pai e do Filho (Filioque)". Na França este acréscimo foi sendo aceito;
Carlos Magno patrocinou-o. Os monges francos o cantavam no Monte das Oliveiras em Jerusalém,
ainda que por isto fossem duramente atacados pelos gregos e acusados de heresia (808). O Papa Leão
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 64

III (795-816), em atenção aos gregos, desaprovou o uso dos latinos e aconselhou os francos a deixar
de o fazer; mas não foi atendido. — Ora Fócio levantou com veemência contra os ocidentais a
acusação de terem alterado o Credo.32
Por conseguinte, um Concílio reunido em Constantinopla em 867 depôs Nicolau I, que morreu
naquele mesmo ano, dez dias depois que o Patriarca Fócio fora destituído por uma revolução
palaciana. Inácio foi recolocado na sé patriarcal. Em 869/70 celebrou-se o oitavo Concílio Ecumênico
em Constantinopla, sob a direção de três legados papais; foi excomungado Fócio e a comunhão com
Roma foi restabelecida. Mas de novo em 879 Fócio assumiu a sé de Constantinopla; reuniu um sínodo
nesta cidade em 879/80, que rejeitou o de 869/70 e hostilizou os latinos (os gregos consideram este o
oitavo Concílio Ecumênico). Fócio morreu num mosteiro em 897 ou 898. Os Patriarcas seguintes
restauraram e confirmaram a união com Roma, a qual, porém, estava gravemente abalada após tantas
discórdias.

Lição 3: A cisão definitiva em 1054


O século X foi marcado pela criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a
dinastia dos Otos (962) - o que muito irritou os bizantinos, que viam nesse fato a renovação do gesto
de 800 (coroação de Carlos Magno Imperador). As relações com Roma eram frias; bastaria um
pequeno incidente para reavivar as acusações feitas no passado. Isto, de fato, aconteceu em 1014: o
Papa Bento VIII introduziu o Filioque no canto da Igreja Romana a pedido do Imperador Henrique II.
O Patriarca bizantino Sérgio II reagiu propagando os escritos de Fócio sobre o assunto. Em 1043
tornou-se Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário, homem ambicioso, que deu livre curso à
paixão anti-romana; em 1053 mandou fechar as igrejas dos latinos em Constantinopla e confiscou os
mosteiros destes; acusava-os principalmente de usar pão ázimo na Eucaristia; um dos funcionários
imperiais parece ter calcado aos pés as hóstias dos "azimitas" como não consagradas. Estes fatos
causaram grande agitação no Ocidente; o Cardeal Humberto da Silva Cândida, erudito e talentoso,
escreveu um "Diálogo", em que refutava as objeções dos gregos e os acusava de Macedonismo (por
não aceitarem o Filioque); ver módulo 8.
Todavia o Imperador bizantino Constantino IX desejava boas relações com o Papa Leão IX para
que este o ajudasse a combater os normandos, que devastavam as possessões bizantinas na Itália
Meridional; em resposta a uma carta do Imperador, Leão IX enviou uma legação a Constantinopla em
1054, composta pelo Cardeal Humberto da Silva Cândida e por dois outros prelados. O Imperador
mandou queimar um libelo acusatório anti-romano para favorecer o diálogo. Mas Miguel Cerulário se
mostrou intransigente; chegou a proibir os Ocidentais de celebrar Missa em Constantinopla. À vista
disto, os legados romanos reagiram com o recurso extremo: aos 16/07/1054, em presença do clero e
do povo depositaram sobre o altar-mor da basílica de Santa Sofia em Constantinopla uma Bula de
excomunhão contra Cerulário e seus seguidores; despediram-se do Imperador e tomaram o caminho
de volta para Roma. — Os legados papais julgavam que, diante deste gesto, o Patriarca retrocederia.
Em vão, porém. Miguel Cerulário excitou tumulto em Constantinopla contra o Imperador acusado de
cumplicidade com os romanos; Constantino IX reagiu violentamente. Num Sínodo o Patriarca
pronunciou o anátema sobre o Papa e seus legados e promulgou um manifesto que convidava os
demais bispos do Oriente a se lhe associarem. Na verdade, o proceder de Cerulário foi em breve
imitado pelos outros bispos orientais e pelos povos evangelizados por Bizâncio (serbos, búlgaros,
rumenos, russos), acarretando a grande divisão que até hoje perdura apesar das tentativas de
reatamento que se deram nos séculos XIII e XV.
Quanto a Cerulário, levou sua paixão ao ponto de reivindicar para si as, insígnias imperiais; por
isto em 1057 foi exilado pelo Imperador Isaac l e morreu no desterro em 1059.
Em nossos dias verifica-se que a cisão não se fundamenta apenas em motivos teológicos, mas
também em razões de rivalidade cultural e política acobertadas por pretextos religiosos. A profissão
do Filioque decorre de um estudo mais preciso do dogma trinitário, plenamente consentâneo com as
verdades da fé; não é necessário que os orientais o introduzam no seu canto litúrgico. A excomunhão

32
A teologia latina explica que o Espírito procede não somente do Pai, mas também do Filho; em caso contrario, não se
distinguiria do Filho, já que “em Deus tudo é um só a não ser que haja oposição relativa”.
65 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

mútua de Roma e Constantinopla foi cancelada após o Concílio do Vaticano II e o caminho está
aberto para bom entendimento entre orientais e latinos. Aqueles têm o título de ortodoxos, porque
ficaram fiéis à reta doutrina durante as controvérsias cristológicas dos séculos V-VII.
A Santa Igreja, representada pelo sucessor de Pedro em Roma e pelos fiéis que estão em
comunhão com ele, continua a ser, mesmo após a separação de Bizâncio, a depositária junto à qual os
homens encontram incontaminados os meios necessários à sua santificação.

MODULO 22: O SÉCULO XI. GREGÓRIOVII


Lição 1: A primeira metade do século XI
Os primeiros decénios do século XI ainda foram humilhantes para o Papado; ver módulo 19. O
despreparo moral dos que subiram à cátedra de S. Pedro, em boa parte, se devia à intromissão de
grupos estranhos, que lutavam entre si para manipular o Papado: os nobres de Roma e arredores, os
príncipes de Espoleto e da Toscana, os Imperadores da Germânia. Não poucos dos Papas da época
obscura da Igreja foram homens de vida digna e doutrina ortodoxa, sufocados, porém, pela ingerência
de facções civis. — O povo de Deus tinha consciência dos males que afetavam seus pastores: as
crônicas de Liutprando de Cremona, tidas como tendenciosas, dão a entender que entre os cristãos
havia horror perante os insucessos do Papado; estimavam o Papa e percebiam o hiato entre o ideal e a
realidade.
Pode-se dizer que a réplica à dolorosa situação começa com a eleição do bispo Suidgero de
Bamberga, que tomou o nome de Clemente II (1046-47). Os romanos conferiram então ao Imperador
o título de Patrício Romano, que permitia ao monarca designar o Papa nas próximas vacâncias da sede
pontifícia. Esta ficava, mais do que nunca, subordinada à ação do Imperador. Este estado de coisas
não duraria muito, pois não era o ideal. Clemente II iniciou a obra de reforma da disciplina da Igreja,
mas faleceu prematuramente.
S. Leão IX (1048-1054) foi um dos mais dignos Papas da história, dotado de energia e do desejo
de reforma. Chamou para junto de si conselheiros de diversas regiões, entre os quais o monge
Hildebrando, de Cluny, que ele constituiu arquidiácono e tesoureiro da Igreja Romana. Três males
afetavam o clero na época, prejudicando duramente a vida da Igreja:
1) as investiduras leigas. Os bispados eram feudos ou territórios que deviam vassalagem ao
monarca. Quando o senhor feudal era um leigo nobre, este desenvolvia a política que atendia aos seus
interesses e aos de sua família, não raro em oposição à política do rei ou Imperador. Ao contrário,
quando o senhor feudal era um bispo, este, não tendo descendentes, era mais disposto a colaborar com
o soberano; além do que, morto o bispo, o feudo voltava ao monarca, que tinha a liberdade de instituir
o senhor feudal do seu agrado. Por isto os reis e Imperadores da época praticavam abusivamente o que
se chamava "a investidura leiga", isto é, nomeavam os bispos e conferiam-lhes as insígnias do poder
temporal; ficava à Igreja apenas a tarefa de conferir a ordem sacra ao nomeado, isto é, o báculo e a
mitra. Como se compreende, este costume, que teve origem no reino dos francos, acarretava não raro a
escolha de bispos sem vocação, mais políticos do que pastores. — A Igreja tinha que se libertar de tal
abuso;
2) a simonia33 ou a compra e a venda de bispados e outros bens eclesiásticos. Este mau costume
estava freqüentemente ligado ao anterior;
3) o nicolaísmo (ver Ap 2,6.15)34 ou o concubinato dos clérigos.
São Leão IX viajou pela Itália, a França e a Alemanha, disseminando, com resultado, os
princípios de renovação da disciplina eclesiástica. O Papado assim ganhou prestígio e autoridade.
A obra iniciada por S. Leão IX devia frutificar plenamente no pontificado de S. Gregório VII.

33
A palavra simonia se prende ao episódio narrado em At 8, 18s: Simão Mago ofereceu a São Pedro dinheiro para adquirir
o poder de comunicar o Espírito Santo. Significa compra ou venda de bens espirituais: sacramentos, jurisdição sobre uma
diocese, uma abadia... É falta muito grave, que a Igreja, por seus cânones, tem sabido evitar.
34
Nicolaítas eram hereges, que mal conhecemos, do tempo dos Apóstolos. A quanto parece, celebravam banquetes rituais,
durante os quais carne imolada aos ídolos. Na Idade Média, nicolaísmo significava a doutrina e a prática dos que não
admitiam o celibato dos clérigos.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 66

Lição 2: S. Gregório VII e Canossa


No mesmo dia do enterro de seu antecessor Alexandre II, aos 22/04/1073, foi aclamado Papa,
pela voz do povo romano, o cardeal-arquidiácono35 Hildebrando, com o nome de Gregório VII. Os
cardeais eleitores confirmaram o voto popular.
Gregório era nativo da Toscana. Fez-se monge na famosa abadia de Cluny (França), que era um
foco ardente de piedade e virtude. Quando S. Leão IX passou por esse mosteiro, levou consigo o
jovem monge, que serviu à Igreja sob cinco Papas consecutivos. Era homem ardoroso e enérgico, que
tinha um grande programa, ao qual consagrou toda a sua vida: estabelecer a reta ordem, na qual os reis
e príncipes, sob o primado do Papa, colaborassem concordes na construção de uma sociedade cristã.
Era este, aliás, o ideal já acalentado por S. Agostinho (+430) na sua obra "Da Cidade de Deus" e,
depois, por S. Gregório Magno (590-604) e S. Nicolau I (858-67). Duas palavras condensavam o
programa de Gregório Vil: justiça (o direito de Deus) e paz (a união do poder eclesiástico e do poder
civil); o Papa dizia que, como o corpo humano é dirigido por dois olhos, assim a Igreja deve ser
guiada pelo Sacerdócio e o Império em harmonia.
A intenção de Gregório se formulava como se segue: "Que a Santa Igreja, Esposa de Deus,
Senhora e Mãe Nossa, retomando o seu brilho originário, permaneça livre, casta e católica (universal)"
(epístola 46).
Na execução deste plano, Gregório era movido por um zelo sincero, que se depreende das
seguintes palavras: "Muitas vezes roguei ao Senhor Jesus que ou me tire desta vida ou me torne útil à
Mãe de todos" (Registr. II 49).
Quando Gregório assumiu o pontificado, o rei Henrique IV da Alemanha estava excomungado,
pois mantinha contatos com bispos simoníacos, que haviam sido excomungados. Além disto, era
ameaçado por uma revolta dos saxões. Por isto prestou penitência e prometeu colaborar com o Papa
na reforma da disciplina.
Logo em 1074 Gregório Vil reuniu um Sínodo no Latrão (Roma), que 1) proibia o exercício do
ministério a todo clérigo simoníaco; 2) proibia a celebração da Liturgia a qualquer clérigo fornicador,
e exigia dos fiéis que não participassem das cerimônias celebradas por um concubino. Estas normas
tinham suas raízes em determinações de Concílios regionais dos séculos IV/VI. Nada inovavam,
portanto, embora a praxe contrária estivesse muito espalhada.
No seguinte Sínodo (1075) Gregório deu mais um passo, voltando-se contra a investidura leiga;
a liberdade da Igreja exigia a instituição canônica dos bispos em lugar da nomeação por príncipes
seculares, e exigia que a Igreja dispusesse dos seus bens sem impedimento.
Esta legislação devia levar a um conflito com Henrique IV. Em Junho de 1075 o Imperador
conseguiu vencer os saxões e esqueceu quanto prometera ao Papa: ocupou e distribuiu bispados da
Itália, inclusive o de Milão, que não estava vago, e voltou a se relacionar com seus conselheiros
excomungados. Diante disto, o Papa propôs conversações a Henrique, ao mesmo tempo que o
ameaçava de excomunhão e deposição, caso se mostrasse recalcitrante. O monarca respondeu
convocando um Sínodo para Worms (janeiro 1076). que, com a participação de 26 bispos, declarou o
Papa deposto; Henrique mesmo escreveu um violento manifesto "a Hildebrando, não Papa, mas falso
monge", exortando-o a título de Patrício Romano, a descer da cátedra apostólica. Mais: numa carta ao
povo romano, o Imperador estimulava os fiéis a fazer nova eleição papal. Num Sínodo de Piacenza, os
bispos locais consentiram na sentença de Worms. Gregório, porém, estava apoiado por diversas
correntes de cristãos. Intrépido, no Sínodo quaresma! de 1076 pronunciou a excomunhão sobre
Henrique, desligou os seus súditos do juramento de fidelidade e proibiu a obediência ao soberano
excomungado. Os bispos favoráveis a Henrique foram suspensos ou excomungados.
Henrique percebeu então que sua posição era arriscada. A maioria dos bispos e dos príncipes
leigos da Alemanha resolveram considerá-lo deposto, caso não estivesse absolvido da excomunhão
dentro de um ano. Em conseqüência, o rei, em pleno inverno de 1077, desceu â Itália e foi bater ás
portas do castelo da Condessa Matilde em Canossa (Apeninos), para onde o Papa se tinha retirado.
Passou três dias consecutivos (25-27/01 / 1077), diante das portas, descalço e revestido de cilícios,
pedindo a absolvição; depois de longas conversações, nas quais Matilde e o abade Hugo de Cluny

35
Os títulos Cardeal e arquidiácono são explicados no Léxico que encabeça este curso.
67 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

(padrinho de Henrique) patrocinaram a causa do monarca, o Papa no quarto dia concedeu ao rei a
reconciliação e a Eucaristia. O Imperador jurou ainda submeter seu litígio com os príncipes alemães
ao arbítrio do Papa.
Gregório Vil, ao absolver Henrique, foi movido por intenções pastorais, e não políticas. A
humilhação do monarca redundaria em vantagens para este, porque de certo modo o reabilitava e
fortalecia perante os príncipes alemães.
Os príncipes e bispos alemães, que se tinham oposto a Henrique, não se deram por satisfeitos
com a absolvição deste; por causa de interesses políticos, queriam desembaraçar-se do rei. Em
conseqüência, elegeram rei o duque Rodolfo da Suábia, que logo prometeu ao Papa obediência e
eleições canônicas. Assim estourou a guerra civil na Alemanha, que terminou com a vitória de
Henrique. Este exigiu do Papa a excomunhão do seu adversário e ameaçava eleger um antipapa, caso
não fosse atendido. Gregório VII não se dobrou, mas o Sínodo quaresma! de 1080 de novo
excomungou Henrique e desligou os súditos do Juramento de fidelidade; além disto, renovava a
proibição de investidura leiga.
A segunda excomunhão de Henrique não causou a mesma impressão que a primeira. A maioria
dos bispos alemães colocou-se do lado do rei. Este, assim apoiado, conseguiu que um Sínodo em
Brixen decretasse a excomunhão e a deposição do Papa acusado de simonia, heresia, necromancia e
subversão da ordem! Em seu lugar, foi eleito o antipapa Clemente III (1080-1100). Este foi logo
excomungado por Gregório VII; Henrique desceu então com suas tropas para a Itália e em 1083, após
três anos de cerco e
distribuição de muito dinheiro, logrou apoderar-se de Roma. exceto o Castel Sant’Angelo. onde
se refugiara o Papa. Este Justificava sua resistência perseverante, dizendo: "Evidentemente é mais
nobre lutar durante muito tempo em favor da liberdade da Santa Igreja do que submeter-se a mísera e
diabólica servidão" (Registr. VIII 26).
O antipapa Celemente III, secundado por treze cardeais, foi instalado no palácio do Latrão e na
Páscoa de 1084 coroou Henrique Imperador na basílica de São Pedro. Gregório VII parecia
condenado a cair nas mãos dos adversários, quando lhe foi em auxílio o duque normando Roberto de
Guiscard. O numeroso exército de Roberto obrigou os alemães a se afastar de Roma. Todavia o saque
também sofrido por obra dos normandos excitou grandemente a população contra Gregório; este,
conseqüentemente, não pôde mais permanecer na sua cidade, mas teve de se refugiarem Salerno (Itália
meridional), que estava sob domínio normando (1085). No seu exílio, o Papa gozava de liberdade; em
fins de 1084 reuniu um Sínodo, que renovou a excomunhão de Clemente III e Henrique IV; depois
disto, mandou legados a diversos países para proclamarem a sentença.
Em 1085, Gregório, alquebrado por muitas fadigas, mas de ânimo ainda enérgico, veio a falecer.
Atribuem-lhe como últimas palavras: "Dilexi iustitiam e odivi iniquitatem; propterea morior in exsilio.
— Amei a justiça e odiei a iniquidade; por isto morro no exílio". A morte no exílio não era senão uma
derrota aparente: o plano de purificação e libertação da Igreja não seria mais entravado; os sucessores
de Gregório colheram os frutos" que este semeou; o Papado creceu em prestígio moral, jurídico e
político, devendo atingir o apogeu da sua influência nos tempos de Inocêncio III (1198-1216).
Num juízo objetivo, deve-se dizer que Gregório VII foi um dos maiores Papas da Idade Média,
embora tenha sido combatido posteriormente como ditador e imperialista. Soube subordinar todos os
interesses da Santa Sé à sua função pastoral, pois não hesitou em absolver e reabilitar o adversário que
havia de desferir o golpe mortal contra o Papa; soube ser um mau político para ser um bom sacerdote;
desde que, em consciência, julgou que Henrique podia merecer a reconciliação, concedeu-lha, ainda
que em detrimento dos interesses temporais do Papado, Na realidade, Gregório procurou dar a César o
que é de César: aspirou a criar, dentro de um Estado cristão, a harmonia entre o poder espiritual e o
temporal; haveria a existência paralela do Sacerdócio e do Império, cada qual colaborando em sua
esfera para realizara síntese da Cidade de Deus: o Estado deveria proteger materialmente a Igreja, e
esta haveria de sustentar espiritualmente o Estado. Tais princípios estão espalhados pela ampla
correspondência deixada por Gregório.
O pontificado de Gregório VH teve outros aspectos, além do que foi até aqui apresentado. O
Papa não se descuidou da Igreja universal esparsa em toda a Europa, na Ásia e na África, como
atestam as suas cartas; estas manifestam a amplidão, de seus horizontes e a energia com que sempre
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 68

abordou os desafios da sua missão. Foi o primeiro a conceber a ideia de uma Cruzada (coisa muito
santa naquela época): à frente de grande exército, queria pessoalmente dirigir-se à Terra Santa, afim
de libertar p Sepulcro do Senhor em Jerusalém e promover a união com os gregos cismáticos (1074);
na sua ausência, confiaria o patrimônio da Igreja Romana ao rei Henrique IV da Alemanha — o que
bem mostra,quão pouco pensava em conflito no início do seu pontificado.

MÓDULO 23: INOCÊNCIO III. O APOGEU DO PODER


TEMPORAL
Lição 1: Os antecedentes
Deixamos a história do Papado em 1085, quando morreu Gregório Vil. Após esta data, a Idade
Média entra mais decididamente na sua fase ascendente, pois a Igreja está mais livre da ingerência do
poder secular. Com efeito, os reis e nobres ainda tentaram entravar a reforma de costumes
empreendida por Gregório Vil, mas não o conseguiram. Realizaram-se o 9o o 10o e o 11o Concílios
Ecumênicos no Latrão (o 1o em 1123, o 2o em 1139 e o 3o em 1179) destinados a reafirmar a
disciplina da Igreja e a autonomia do Papado frente aos Imperadores e nobres, que procuravam
dominar a Itália (o reino de Nápoles e Sicília estava sob o domínio dos alemães, o que facilitava a
estes o cerco do Estado Pontifício); os monarcas da época, embora professassem a fé cristã, nem
sempre se comportaram como filhos da Igreja, fazendo prevalecer os seus interesses políticos sobre os
da ideal "Cidade de Deus".
Nos séculos XI e XII deu-se também o surto e o desenvolvimento da heresia cátara, em
conseqüência da qual foi instituída a Inquisição em etapas sucessivas (tema dos módulos 32 e 33). O
módulo 52 oferecerá uma visão gera! dos vinte Concílios Ecumênicos, permitindo ao estudioso
repassar os séculos XI e XII, que sobrevoamos neste momento para abordar diretamente o século XIII,
ponto culminante da ascensão anterior.
O século XIII foi uma fase privilegiada da história da Igreja, marcada por cinco personagens de
grande vulto: o Papa Inocêncio III (1198-1216), o rei São Luís da França (1226-70). o teólogo doutor
São Tomás de Aquino (1225-1274), e dois frades: São Francisco de Assis (1181-1226) e São
Domingos de Gusmão (1170-1234).
Examinaremos a figura e o pontificado de Inocêncio III, que foi o mais bem sucedido da Idade
Média.
Lotário de Segnei era filho de família nobre da Itália, nascido em 1161 e dotado de muito
talento. Estudou em Roma e Bolonha Teologia, Filosofia e Direito. Seu tio Clemente III 36 nomeou-o
Cardeal-diácono em 1189. Afastou-se, porém, dos negócios públicos da Igreja para se dedicar à
reflexão; donde resultaram diversas obras, principalmente de ascética; sobressai o seu tratado "Sobre o
Sagrado Mistério do Altar". Aos 37 anos de idade foi unanimemente eleito Papa; no dia dos funerais
mesmos de seu antecessor Celestino III, foi arrancado ao seu recolhimento; era o membro mais jovem
do colégio cardinalício. A eleição unânime e tão rápida era testemunho da confiança que nele
depositavam o clero e os fiéis. Sendo apenas diácono, foi eleito Papa aos 08/01/1198; ordenado
presbítero aos 21/02 e sagrado bispo de Roma (Papa) aos 22/02.
Embora a sua idade juvenil surpreendesse a muitos,37 Inocêncio revelou o entusiasmo, a energia
e a capacidade de trabalho da juventude assim como a prudência, a sabedoria, a ciência teológica e
jurídica de experimentado homem da Igreja. As circunstâncias em que assumia o governo da Igreja,
eram difíceis; a disciplina interior e a ortodoxia eram abaladas pelos catares ou albigenses dualistas
(ver módulo 32); os Imperadores germânicos ameaçavam a liberdade da Igreja e o Patrimônio de São
Pedro, pois desejavam cercar Roma pelo Norte e pelo Sul (tinham um ponto de apoio na Sicília); a
Terra Santa era ocupada pelos muçulmanos. Inocêncio soube lutar com Justiça e dignidade, levando
ao auge a obra concebida por Gregório VII (+1085) em prol da liberdade da Igreja.

36
O Papa Clemente II (1187-91) está cronologicamente longe do antipapa Clemente III (1080-1100), mencionado no
módulo 22.
37
Por ocasião de sua eleição, escreveu o cronista Walter Von der Vogelweide: "O Papa é jovem demais!... Senhor, ajuda a
Tua Cristandade! "Todavia historiadores chamavam-no lux mundi, stupor mundi (luz e maravilha do mundo).
69 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 2: O pontificado
Como se desenvolveu o pontificado de Inocêncio III?
Estava convencido de que a principal condição para a liberdade da Igreja era emancipá-la do
poder imperial. — Ora o Imperador Henrique VI morreu em 1198 (ano da eleição do Papa); redigia
um testamento que fazia grandes concessões ao Papa, a,fim de obter para seu filhinho Frederico II
Rogério (nascido em 1194) a coroa imperial e o título de rei da Sicília. Logo após a morte do
Imperador, Constança, a Imperatriz viúva, renunciou a muitos direitos sobre a Igreja, que Henrique e
seus antecessores tinham reivindicado para si; a Imperatriz e seu filhinho se reconheciam vassalos do
Papa; ao morrer, em novembro de 1198, Constança pediu a Inocêncio que assumisse a tutela e a
regência sobre seu filho Frederico até a maioridade deste; Inocêncio então seria o administrador do
reino da Sicília (que pertencia aos Imperadores germânicos); por dez anos, o Papa administrou as
funções assim confiadas para o bem do príncipe, com sabedoria e desprendimento; o próprio
Frederico, declarado de maioridade por Inocêncio aos 14 anos em 1208, proclamou ser o Papa seu
protetor e benfeitor, embora mais tarde este monarca se revelasse pouco fie! ao Papa e às suas
diretrizes. — Já estes fatos asseguravam a Inocêncio uma posição temporal nunca vista anteriormente.
O Papa teve que intervir em questões internas dos reinos da Europa.
Na Alemanha, por exemplo, o partido dos Staufen — com seu pretendente Filipe da Suábia — e
o partido dos Guelfos — com seu candidato Oto de Braunschweig - disputavam entre si o trono real.
Solicitado para fazer a arbitragem, o Papa preferiu deixar que os interessados se entendessem entre si.
Após três anos, porém, resolveu intervir dando razão a Oto, que se tornou o rei dos germanos;
infelizmente, porém, este monarca não cumpriu seus propósitos de respeito à Igreja; pelo que foi
excomungado em 1210. Os príncipes alemães, então, abandonaram Oto e aclamaram Frederico H
como rei; Inocêncio deixou partir para a Alemanha o seu antigo pupilo, que também não manteve
promessas feitas ao Pontífice a respeito dos direitos da Igreja.
Na Inglaterra, de 1199 a 1216 reinou João sem Terra,38 senhor ambicioso. Em 1207 recusou-se a
reconhecer o novo bispo de Cantuária, Estêvão Langton, eleito por recomendação do Papa. Já que as
admoestações ficavam sem resultado, Inocêncio lançou o interdito 39 sobre a Inglaterra (1208); o rei
revidou com violência contra igrejas e clérigos; por isto foi excomungado (1209) e deposto do trono
(1212); João, por prudência, resolveu submeter-se ao Papa; em 1213 prometeu reparar os males
cometidos e reconhecer Estêvão Langton. Mais: colocou a Inglaterra e a Irlanda sob a proteção do
Papa. na qualidade de feudos. Em conseqüência, foi absolvido da excomunhão em 1213, ao passo que
o interdito só foi levantado em 1214 por causa de dificuldades na restituição dos bens usurpados. Por
essa ocasião, eclesiásticos leigos da Inglaterra se reuniram para proclamar uma série de
reivindicações, que restringiam o poder do rei na administração dos feudos e garantiam maior
liberdade aos cidadãos. Tal é a famosa Magna Charta Libertatum, que constava de 63 artigos e se
tornou um dos primeiros modelos de
Constituições democráticas.
Com a França Inocêncio teve que usar de energia, não por motivos políticos, mas para defender
a Moral crista. O rei Filipe Augusto (1180-1223) tinha esposado a princesa Ingeburga, que, depois do
casamento, ele repudiou em favor da Condessa Inês de Merano (alemã); já que o rei não se rendia às
admoestações pontifícias, Inocêncio lançou o interdito sobre o reino da França (1200). Em
conseqüência, Filipe em 1203 reassumiu Ingeburga como esposa e rainha, mas só depois que Inês
morreu (em 1201) e após muito relutar contra o cumprimento de sua promessa.
Com os reis Pedro II da Aragônia (Espanha) e Afonso IX de Leão (Espanha) o Papa também
teve divergências por motivos matrimoniais; Pedro II queria separar-se de sua legítima esposa, Maria
de Montpeilier, e Afonso (X queria casar-se com uma sobrinha sua. Por fim, Pedro II acabou
reconhecendo-se vassalo do Papa, como João sem Terra. - Ao rei Sancho I de Portugal (1185-1211)
Inocêncio infligiu a excomunhão por ter violado a liberdade da Igreja. Ainda mais: com os soberanos
da Boêmia, da Bulgária, da Sérbia, da Hungria, da Albânia, da Polônia, da Suécia, da Dinamarca ... o

38
Sem Terra porque seu pai não lhe deixara território como herança.
39
Interdito era a proibição de celebrar culto público em todo o território atingido por tal censura. Só poderia haver Missas
a portas fechadas.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 70

Pontífice teve relacionamento mais ou menos intenso, que visava a garantir a liberdade da Igreja, a
boa disciplina do clero e dos fiéis naqueles países; combateu os abusos tanto dos grandes como dos
pequenos com igual destemer.
Até o Oriente foi objeto dos cuidados de Inocêncio. A quarta cruzada foi essencialmente obra
deste Papa; erigiu, com sede em Constantinopla, um Império e um Patriarcado latinos no Oriente
(1204).
Digno fecho do pontificado de Inocêncio III foi o Concílio do Latrão IV, reunido em três sessões
aos 11, 20 e 30 de novembro de 1215. Foi o maior e mais imponente Concílio da Idade Média,
freqüentado por mais de 1200 prelados (412 bispos, 800 abades e priores, grande número de
representantes de bispos e de capítulos catedrais) e por quase todos os príncipes cristãos (Frederico II,
Henrique imperador latino de Constantinopla, os reis da França, da Inglaterra, de Jerusalém, de
Aragão, da Hungria. . .). Tinha em vista tríplice finalidade: condenar as heresias (especialmente a
catara), sanar e favorecer a disciplina eclesiástica e promover nova expedição contra os turcos.
Inocêncio abriu o Concílio em famosa oração, na qual parafraseava as palavras de Lc 22,15: dizia
quanto desejara celebrar essa Páscoa antes de morrer, a fim de realizar um tríplice trânsito (= Páscoa):
corporal ou local, do Ocidente para o Oriente (a fim de libertar Jerusalém); espiritual, do estado dos
vícios ao das virtudes, ou seja. a reforma da disciplina da Igreja; eterno, da vida temporal para a vida
eterna e bem-aventurada. Este Concílio baixou decretos importantes na vida da Igreja: comungar ao
menos na Páscoa da Ressurreição (os medievais eram certamente muito devotos, mas, por motivo de
respeito ao "tremendo mistério" da Eucaristia, pouco se aproximavam da Comunhão); confessar-se ao
menos uma vez por ano; legislação precisa sobre o hábito clerical e a pobreza dos monges, sobre o rito
do casamento, tido como algo muito santo. Foi o Concílio do Latrão IV que, pela primeira vez, usou o
termo "transubstanciação" na linguagem oficial da Igreja, para designar teologicamente algo que
desde o século l estava na crença dos cristãos: a conversão do pão e do vinho no corpo e sangue do
Senhor (cf. Jo 6,51-58; 1Cor 11,23-29; Mt 26,26-29 par.).
Pouco depois do Concílio, Inocêncio III, de viagem para a Lombardia, foi colhido por febre
maligna, que o vitimou aos 16/07/1216.

Lição 3: O pensamento de Inocêncio III


O pontificado de Inocêncio III representa o apogeu do Papado na Idade Média; muitas das suas
manifestações não seriam entendidas em nossos dias, nem podem ser reproduzidas, mas hão de ser
consideradas no contexto da respectiva época, que tendia a realizar o ideal da Cidade de Deus
mediante a estreita colaboração do Papado e do Império sob a hegemonia daquele.
Pela primeira vez na história, o Papa, na pessoa de Inocêncio III, se denominou "Vigário de
Deus" na terra. Até então os Pontífices Romanos se haviam designado "vigários de Pedro"; este
último título não se encontra na coleção de Bulas de Inocêncio III. O clero espontaneamente recorria a
Inocêncio para resolver problemas administrativos ou pastorais. Assim dava-se uma centralização
progressiva do governo da Igreja, que na época podia acarretar inconvenientes, pois havia dificuldades
de comunicação e a Cúria Romana estava ainda em fase de organização e, portanto, de trabalho lento.
Perante os soberanos deste mundo, o Papa era o "representante de Cristo, ou seja, do Rei dos reis
e do Senhor dos senhores" (cf. Ap 19.16); mais de vinte vezes ocorre esta fórmula nos documentos do
Pontífice. Daí se seguia que o poder do Império devia estar subordinado ao Sacerdócio, ao menos no
foro ético ou na medida em que o comportamento do Imperador estava sujeito às normas da
moralidade. A Igreja seria o "luzeiro maior", que ilumina o dia, ao passo que o Estado seria o "luzeiro
menor", que ilumina a noite (cf. Gn 1,16). Por isto Inocêncio chegava a dizer que é o Papa quem
confere e tira as coroas dos soberanos.
Estas ideias não deixaram de suscitar protestos mesmo na sua época; assim os partidários de
Filipe da Suábia (os Staufen) reclamavam contra a intervenção pontifícia na eleição do rei da
Alemanha, afirmando a separação nítida do Sacerdócio e do Império. Inocêncio podia ignorar esses
protestos, pois o século XIII acariciava, apesar de tudo, o ideal da teocracia (ou do regime de Deus).
Em breve, o ambiente estaria mudado, pois, quando Bonifácio VIU (1294-1303) quis repetir os
dizeres e as atitudes de Inocêncio III perante Filipe IV o Belo da França, foi desrespeitado e
perseguido pelo monarca.
71 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Embora exercesse função de grande autoridade, Inocêncio III cultivou as virtudes, entre as quais
a simplicidade e a pobreza pessoal: cortou gastos inúteis, dispensou a maioria dos porteiros e
servidores que o cercavam, a fim de que três vezes por semana qualquer pessoa o pudesse abordar;
substituiu vasos e talheres de metal por outros de vidro e madeira; refreou a avareza e a ambição dos
cortesãos, que procuravam gorgetas no exercício de suas funções. Foi também o amigo dos frades
mendicantes, especialmente de S. Francisco de Assis, que "esposara a Dama Pobreza" e cuja Regra
Inocêncio III aprovou oralmente. O vulto deste Pontífice merece a reverência dos pósteros, embora
tenha sido fortemente criticado por haver sido aparentemente a antítese do "Poverello de Assis".

MÓDULO 24: O PAPA BONIFÁCIO VIII


Continuamos a história das relações do Papa com o poder civil do seu tempo. O século XIV foi
de lutas político-religiosas, explicáveis pelo fato de que os Papas alimentavam o ideal da Cidade de
Deus sob a hegemonia do Sacerdócio, desta vez, porém, sem contar com o ambiente mais ou menos
favorável dos séculos XI-XIII. O fim do século XIII conheceu acontecimentos inéditos.

Lição 1: Celestino V, o eremita


Após a morte de Nicolau IV (1288-92Ï a sede papal ficou vacante por dois anos e três meses,
porque o Colégio cardinalício estava dividido-e o rei Carlos II de Nápoles procurava influir na eleição.
Finalmente resolveram eleger, um Papa apolítico, que se ocupasse estritamente da santificação do
povo de Deus; escolheram, pois, o eremita Pedro do Monte Morrone (Abruzos). Este, realmente,
aceitou a eleição e tomou o nome de Celestino V, mas governou apenas de julho a dezembro de 1294;
a sua inexperiência política e a sua bondade simplória o tomavam inepto para as suas funções.
Atendendo ao rei Carlos II de Nápoles, transferiu sua residência para esta cidade; as nomeações de
cardeais que fez, estavam subordinadas a interesses franceses. Reconhecendo-se incapaz, renunciou
espontaneamente à cátedra papal. A sua abdicação provocou aplausos e censuras; alguns julgavam que
era inválida. Por isto o seu sucessor, o Papa Bonifácio VIII, desejoso de evitar um cisma provocado
pelos partidários de Celestino V, manteve este ancião detido até a morte (1296) no castelo de Fumone
(Anagni); foi canonizado em 1313 pelo Papa Clemente IV.

Lição 2: Bonifácio VIII — o pontificado


Após a renúncia de Celestino V, num só dia de conclave foi eleito o mais digno dos cardeais,
Bento Gaetani, com o nome de Bonifácio VIII (1294-1303), Era versado em Teologia, em Direito
Romano e Direito Eclesiástico. Possuía grande força de vontade e alimentava elevados ideais, mas
tinha um trato duro, impetuoso nas suas decisões e ações. Quis pôr em prática as ideias de Gregório
VII e Inocêncio III, mas não percebeu que os tempos eram outros, pois os reis Já começavam a
cultivar um nacionalismo absolutista, que não condizia bem com a imagem de uma teocracia. Além
disto, desde o início do seu regime a autoridade de Bonifácio VIII era enfraquecida e minada por
dentro, dado que fora eleito em lugar de um Papa que ainda vivia e cuja renúncia era controvertida por
alguns juristas; estes afirmavam que o Papa está indissoluvelmente ligado à Igreja durante toda a sua
vida como o esposo à esposa. — Na verdade, porém, Celestino tinha o direito de renunciar, de modo
que a eleição de Bonifácio VIII fora válida.
Pouco após assumir o pontificado, Bonifácio entrou em conflito com os monarcas do seu tempo.
Desde 1293 estavam em guerra entre si Filipe IV o Belo (1285-1314) da França e Eduardo I da
Inglaterra por ambições territoriais. Ora Bonifácio tinha em vista uma nova Cruzada no Oriente; pelo
quê, queria harmonizar os príncipes do Ocidente entre si; toda via as suas mediações de paz ficaram
sem resultado. Acontecia que na França e na Inglaterra, contra as prescrições canônicas, se exigiam
impostos dos clérigos para fins bélicos; Bonifácio resolveu coibir este abuso pela Bula Clericis laicos
de 1296, em que, sob pena de excomunhão, proibia aos eclesiásticos pagar qualquer tributo aos leigos,
e a estes cobrar o que fosse, sem licença papal. Eduardo I, depois de muita indignação, sujeitou-se à
Bula; Filipe o Belo, porém, reagiu tomando medidas contrárias: proibiu a exportação de ouro, prata,
alimentos, cavalos, armas da França, com os quais Bonifácio contava para a Cruzada; além disto,
expulsou os estrangeiros da França, visando aos legados pontifícios, que recolhiam rendas papais. - O
Papa, diante desses decretos, retrocedeu: declarou que as obrigações vassalares do clero para com o
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 72

rei não cessavam com a Bula; permitia mesmo que se fizessem doações espontâneas ao rei, ainda que
provocadas por um "amável convite"; reconhecia casos de necessidade urgente em que (a critério do
rei) os clérigos poderiam contribuir para o poder civil, sem recorrer à Santa Sé.
Enquanto as coisas se apaziguavam com a França, Bonifácio entrou em conflito cono a poderosa
família italiana dos Colonna, irritada pela tendência dominadora do Pontífice. Em 1297, o Conde
Estêvão Colonna cometeu rapina em parte do Tesouro papal. Então o Pontífice chamou os Cardeais
Tiago e Pedro Colonna ao tribunal papal – o que provocou aberta revolta contra Bonifácio; os
Colonna publicaram libelos que impugnavam a legitimidade da eleição de Bonifácio, visto que,
diziam, não era lícito a Celestino V renunciar; apelavam para um Concílio Ecumênico e postulavam
nova eleição papal. Aos Colonna aliaram-se os Espirituais, rigoristas franciscanos, que tinham tido em
Celestino um sustento para suas ideias, assim como os joaquimitas; todos estes esperavam a "era do
Espírito Santo" para breve40. — Bonifácio reagiu com uma Bula, que despojava os Colonna dos seus
cargos e posses. Com os bens dos Colonna enriqueceram-se os Gaetani, sobrinhos do Papa. Alguns
nobres Colonna fugiram para a França, onde continuaram a hostilizar o Papa.
Em 1300 Bonifácio proclamou pela primeira vez um ano de jubileu,41 que foi solenemente
celebrado. Os peregrinos afluíram a Roma de todo o Ocidente; Bonifácio podia avaliar quanto os
príncipes dos Apóstolos (S. Pedro e S. Paulo) e o bispo de Roma eram estimados pelos cristãos; não
observava, porém, que entre os peregrinos não havia um só rei!
Em breve explodiria novo conflito com a França, prejudicial para o Papa. — Em 1301 o bispo
Bernardo de Saisset compareceu, em nome do Papa, diante de Filipe, recordando-lhe uma Cruzada
planejada e censurando-o por violar direitos da Igreja. Filipe possuía um temperamento audaz, que só
conhecia uma finalidade: o poder político; os seus conselheiros lhe propunham fundar uma monarquia
universal, que compreendesse o Estado Pontifício, o Império bizantino, a maior parte da Alemanha e
da Itália; na prática, Filipe aplicava a fins políticos contribuições dadas para as Cruzadas; depunha e
nomeava bispos ao seu arbítrio.
O legado Bernardo foi preso. O Papa protestou; exigiu a libertação do bispo; renovou a
proibição de impostos ao clero. Convocou os bispos e teólogos da França para um Sínodo a se reunir
em Roma a 1o /11/1302; o próprio Filipe foi intimado a comparecer mediante a Bula Ausculta fili
(Ouve, filho). O rei, porém, soube ganharas simpatias do clero e do povo francês, ajudado por juristas,
que sonhavam com um reino independente da Igreja e até com uma Igreja dependente do Estado
francês; os juristas eram os grandes mentores da época; no Direito Romano descobriam os
fundamentos para todas as ambições do rei. Por conseguinte, a Bula Ausculta fili foi queimada na
França depois de (ida em presença do monarca; em seu lugar confeccionou-se outra falsificada, que
incitava o povo francês contra o Papa.
Estes acontecimentos muito excitavam o sentimento nacional francês. Em Paris (abril de 1302)
reuniu-se grande assembléia da nobreza, do clero e da burguesia, que aprovou o procedimento do rei.
A ida dos prelados ao Sínodo de Roma foi proibida por Filipe. Apesar de tudo, esta reunião realizou-

40
Joaquimistas são os discípulos do abade cistercience Joaquim de Fiore (Calábria, falecido em 1202). Concebeu a
história do mundo dividida em três períodos: 1) a época do Pai, anterior a Cristo, dominada pela letra da Lei de Moisés e
pela carne: terá sido a fase dos leigos e dos casados; 2) a época do Filho ou cristã, que deveria durar 42 gerações (cf. Mt
1,17) de trinta anos cada uma, ou seja, 1260 anos, seria o período dos clérigos, intermediário entre o espírito e a carne; 3)
em 1260 devia inaugurar-se a época do Espírito Santo, na qual o "Evangelho Eterno" (Ap 14,6) ou uma interpretação
espiritual do Evangelho seria apregoada por nova Ordem monástica; haveria assim a Igreja do Espírito, depois da Igreja da
carne. Essas profecias apocalípticas estavam em oposição ao ideal corrente da "Cidade de Deus". Todavia encontraram boa
aceitação especialmente entre os franciscanos rigoristas ditos "Espirituais"; alguns destes julgavam ser a nova Ordem
inspirada pelo Espírito Santo, e predita por Joaquim de Fiore, para anunciar o fim da era crista ou do Filho. A expansão de
tais ideias revela a preocupação, existente em muitos fiéis, de chegar a uma Igreja despojada de tarefas temporais e
políticas. Esta mesma aspiração sugeriu a eleição do eremita Celestino V, dito "o Papa Angélico".
41
O Jubileu tem fundamento na Bíblia (cf. Lv 25,8-55). Esta prescrevia que de 50 em 50 anos os homens deixassem de
trabalhar, os escravos fossem libertados, as terras compradas fossem devolvidas aos seus proprietários de origem e o povo
se sentisse chamado a recomeçar a história sem os desgastes que o cotidiano acarreta. Com a vinda de Cristo, esta
instituição, tão ligada à geografia do povo de Israel, deixou de ser observada. No ano de 1300, porém, o Papa Bonifácio
VIII, atendendo a pedido de fiéis, introduziu a prática na vida da Igreja, dando-lhe um sentido espiritual. Seria um ano em
que muitas oportunidades se ofereceriam aos pecadores para receber a absolvição de censuras e faltas e, em geral, os
cristãos se renovariam na sua vivência de fé.
73 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

se aos 30/10/1302, com a presença de quarenta prelados franceses, que votaram as disposições do rei.
O Sínodo preparou a famosa Bula Unam Saneiam de 18/11/1302; esta retoma argumentos
tradicionais de teólogos e canonistas (S. Bernardo, Hugo de S. Vítor, S. Tomás de Aquino, Egídio
Romano. . .) em favor de uma teocracia papal, como já havia sido concebida por Gregório Vil e
Inocêncio III. Nesse documento, assinado pelo Papa, há uma passagem que é definição de fé, a saber:
"Declaramos e dizemos a toda criatura humana que ela deve estar sujeita ao Pontífice Romano;
definimos que isto é absolutamente necessário para a salvação" (Denzinger — Schönmetzer,
Enchiridion. n o 875 [469]).
Estas frases têm sido muito discutidas. Significam que até mesmo no plano temporal todos os
homens (inclusive os reis) devem submeter-se ao Papa? Ou só se pode afirmar isto no plano espiritual,
isto é, no plano dos valores éticos (que decorrem da Lei de Deus)? A segunda interpretação é a única
correia; a sujeição se dá tão somente ratione peccati, isto é, quando o pecado entra em jogo; o
fundamento para se preferir a segunda interpretação é o início da própria Bula Unam Saneiam, que
afirma ser a Igreja necessária para a salvação eterna; além disto, é no sentido espiritual que S. Tomás
de Aquino entende tal subordinação no opúsculo Contra errores graecorum c. 32, fonte do texto de
Bonifácio VIII. Prevalece assim a tese do poder indireto do Papa sobre os monarcas: a atividade
política destes não deve ser controlada pela Igreja na medida em que é especificamente política; como,
porém, toda atividade humana, além das suas notas específicas, tem características éticas (é virtuosa
ou pecaminosa), a Moral cristã, cujo porta-voz é o Papa, deve pronunciar-se sobre ela (na medida em
que toca a Moral).
Filipe o Belo mostrou-se muito irritado com a Bula papal e pôs-se a trabalhar para derrubar o
Papa. Um assembléia. de prelados e barões em Paris (junho 1303) proferiu em presença do rei as mais
graves acusações: Bonifácio era dito herege, simoníaco, fornicador. . . Do seu lado, Bonifácio VIII
Jurava que falsas eram tais censuras. Aos 08/09/ 1302, queria proclamar a excomunhão sobre o rei. Na
véspera, porém, o chanceler francês Guilherme de Nogaret, acompanhado de alguns Colonna e nobres
italianos descontentes, assaltaram a residência pontifícia em Agnani e ameaçaram o Pontífice preso de
ser julgado por um Concílio Ecumênico, caso não renunciasse em breve (Nogaret fora professor de
Direito romano; dizia-se que era um corpo sem alma, que só pensava em enriquecer os cofres do rei).
O Papa manteve-se firme; os seus concidadãos conseguiram libertá-lo no terceiro dia e fazê-lo voltar a
Roma. A sua saúde, porém, não resistiu às emoções, vindo Bonifácio a falecer aos 12/1'0/1303.

Lição 3: Avaliação do pontificado de Bonifácio VIII


Muito se tem comentado a figura de Bonifácio VIII.
As acusações de heresia são infundadas. Os adversários do Pontífice as formularam porque,
segundo a doutrina dos teólogos medievais, um herege não podia ser Papa. Os documentos do
pontificado de Bonifácio VIU revelam um espírito ortodoxo; o próprio Dante, que na "Divina
Comédia" coloca Bonifácio no inferno, nada refere contra a sua ortodoxia. De resto, Bonifácio VIII
morreu após ter recebido os últimos sacramentos e emitido uma profissão de fé católica.
Com razão, porém, pode-se dizer que o Papa sofria de nervosismo doentio.
Nas suas lutas políticas parece ter sido guiado por intenções nobres, apartidárias, mesmo no caso
da França. O que, porém, arruinou a sua atuação, foi o caráter impetuoso do Pontífices animado pelo
ideal de seus antecessores, não se deu conta de que os tempos haviam mudado; os reis e nobres,
mesmo ditos "católicos", não eram tão dóceis ao seu Pastor. O Papa estava na situação análoga à do
pai de família diante dos filhos que chegaram à adolescência e, depois da docilidade dos primeiros
tempos, querem afirmar a sua independência; em tais condições as punições aplicadas à infância já
não têm sentido; se, não obstante, continuam a ser infligidas, revelam-se contraproducentes, podendo
afugentar para sempre os adolescentes e os jovens.
O insucesso de Bonifácio VIII foi mais do que uma derrota pessoal; foi, sim, o enfraquecimento
da autoridade papal no foro político e a rejeição da tese do poder universal do Romano Pontífice. A
perda sofrida por Bonifácio VII no plano temporal teria suas últimas repercussões no Galicanismo dos
séculos XVII/XVIII; os reis da França, principalmente Luís XIV (1643-1715), e outros monarcas da
época quiseram recusar ao Papa não somente o poder temporal universal, mas também o poder
espiritual universal, apelando para a criação de igrejas nacionais controladas pelo poder régio.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 74

MÓDULO 25: CLEMENTE V. AVINHÃO E VIENA


Morto Bonifácio VIII, foi logo eleito seu sucessor Bento XI, (1303-1304), que fora o Cardeal
Nicolau Boccassini, Bispo de Ostia. Começou sua vida eclesiástica como frade dominicano, chegando
a ser Mestre Geral da Ordem. Conservou-se sempre manso e pacífico e, embora fosse fiel a Bonifácio
VIII, Julgou dever trilhar outras vias. Com efeito; recordando-se de que era o representante daquele
"de quem é próprio compadecer-se e perdoar", absolveu o rei Filipe IV e seus cúmplices (exceto
Nogaret) de todas as censuras; da mesma forma, os nobres Pedro e Tiago Colonna, que contudo não
foram restaurados no Cardinalato. Rejeitou o pedido de adversários de Bonifácio VIII, que queriam
fosse aquele Papa condenado como intruso e herege num Concílio Ecumênico. Tendo intimado em
vão os agressores de Anagni a comparecer diante de um tribunal, excomungou-os. Morreu, porém, em
breve após oito meses-e poucos dias de pontificado (22/10/1303 a 7/7/1304). A sua morte repentina
ocasionou o rumor popular de que tinha sido envenenado. Na verdade. Bento XI deixava a seu
sucessor uma difícil herança.
O Conclave subseqüente durou quase onze meses, pois os Cardeais estavam divididos em
partido bonifaciano, que desejava um Papa italiano, e partido filipino, favorável a um Papa francês.
Finalmente a vitória foi dos franceses, que elegeram o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, com o
nome de Clemente V (1305-14); na luta de Bonifácio com a França, fizera as vezes de intermediário.
Foi coroado Papa em Lião (França). Repetidas vezes prometeu aos Cardeais transferir-se para Roma.
Não o fez, porém, em parte por pressão de Filipe, em parte porque as facções na Itália agitada faziam-
no recear por sua liberdade.
Desde 1309 fixou residência em Avinhão, dando assim início ao chamado "Exílio de Avinhão",
que durou quase setenta anos (1309-1376). Avinhão era uma cidade pequena, de ruas estreitas e sujas,
na qual o séqüito pontifício só dificilmente conseguia encontrar morada. Era um feudo do reino
alemão, que estava nas mãos da casa de Anjou de Nápoles. Clemente VI (1342-52) comprou Avinhão
em 1348, tornando-a domínio papal, mas não conseguiu subtraí-la à influência francesa. Filipe IV o
Belo dava-se por contentíssimo com o fato; o Papa, fraco de ânimo e doentio de corpo, caia cada vez
mais sob o domínio do monarca. Não era intenção, de Clemente V transferir definitivamente a sede do
Papado para a França, mas criou-se uma situação de fato, sustentada por sete Papas consecutivos,
todos franceses.
O Exílio de Avinhão foi grandemente pernicioso para a Igreja:
1) os Papas viram-se mais entravados em sua ação do que em Roma; tornaram-se maleáveis
instrumentos da política francesa - o que suscitava a suspeita de partidarismo nos italianos e em outros
povos, muito diminuindo o prestígio papal. O Pontífice era considerado responsável pelas discórdias
crescentes entre as cidades italianas.
2) No Estado Pontifício a confusão aumentou; o poder temporal dos Papas de- crescia, pois
muitas cidades se declaravam Repúblicas autônomas. Isto acarretava diminuição de rendas papais e
exigia novas despesas para debelar os revoltosos. Estas circunstâncias levaram os Papas a levantar
novos impostos eclesiásticos e a cobrar taxas por serviços prestados - o que dava lugar a
descontentamento entre os prelados.
3) O Exílio de Avinhão foi a preparação imediata do Cisma do Ocidente (1378-1417), pois a
Igreja se "gaficizou" por espírito nacionalista, faccioso, tornando-se instrumento da ascensão política
francesa. Quando os Papas quiseram reagir contra este mal, já não o puderam, pois franceses e não
franceses, movidos por nacionalismo, queriam um Pontífice que correspondesse às suas aspirações
nacionais e, em caso de necessidade, o criaram. Daí o cisma ou a divisão da cristandade.
Todavia não se pode negar que o Exílio de Avinhão tenha tido seus aspectos positivos: o
desenvolvimento da organização da Igreja e o progresso das artes. Estes méritos, porém, não atenuam
os pontos negros, pois a Igreja é essencialmente uma instituição religiosa; o Papado é um Serviço
pastoral e não um Ministério da Cultura.

Lição 2: O Papa e os Templários


A política de Clemente V foi a de ceder às exigências destemidas de Filipe o Belo. O número de
franceses aumentou no Colégio cardinalício (na primeira nomeação foram nove entre dez designados).
No caso do Papa Bonifácio cedeu o mais que pôde: aos Colonna Tiago e Pedro restituiu o cardinalato
75 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

e os demais direitos; revogou a Bula Clericis laicos;mediante o Breve Meruit declarou que a Bula
Unam Sanctam não prejudicava Filipe e seu reino, que não eram obrigados a maior obediência à Santa
Sé do que antes.
Na sua sede de vingança, Filipe o Belo, desde 1307, insistia na instauração de um processo
contra o defunto Papa Bonifácio VIII. Esta exigência, além de finalidade vingativa, tinha um objetivo
político muito concreto: se se demonstrasse, mesmo depois de morto, que Bonifácio fora intruso,
todos os atos do seu pontificado seriam inválidos, inclusive as nomeações de cardeais italianos,
antifilipinos, que havia feito. Clemente V, porém, não queria consentir na reivindicação do rei; foi
fazendo outras concessões, entre as quais a de um processo contra os Templários.
Os Templários (Milites ou Equites Templi) constituíam uma Ordem de Cavaleiros militares,
sendo a mais antiga de todas. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens e oito cavaleiros franceses,
que se uniram numa família religiosa, ligada pelos votos habituais de pobreza, castidade e obediência,
além do voto especial de defender com as armas e proteger os peregrinos que se dirigissem a
Jerusalém. O seu nome se deve ao fato de que o rei Balduíno II de Jerusalém colocou à disposição dos
cavaleiros uma habitação no palácio real, que se achava na esplanada do Templo de Salomão. - A
Ordem dos Templários foi inicialmente muito pobre, mas em breve atingiu seu apogeu, especialmente
depois que S. Bernardo demonstrou grande interesse por ela, tomando parte notável na redação da sua
Regra. Os Cavaleiros foram favorecidos pelo Papa Inocêncio II, e altamente beneficiados por doações,
que tornaram a Ordem muito rica. O seu hábito era um manto branco sobre o qual estava traçada uma
cruz vermelha. Juntamente com os Joanitas ou Cavaleiros Hospitalários (porque tinham um hospital
em Jerusalém dedicado a S. João Batista), os Templários se dedicaram com suma abnegação e
coragem à defesa da Terra Santa; mais tarde, porém, foram vítimas de discórdias entre si.
Ora Filipe IV, movido pela cobiça do poder e dos bens dos Templários, queria provocar a
extinção dos mesmos. Em vista disto, desde 1305 começou a propagar terríveis acusações contra os
irmãos: dizia-se que, por ocasião da recepção na Ordem, os cavaleiros deviam cuspir e calcar a cruz,
negar a Cristo, adorar um Ídolo chamado Bafomet, obrigar-se à sodomia e a outras práticas
vergonhosas.
Em 1307, Clemente V, instado por Filipe, prometeu a este fazer um inquérito a respeito dos
pretensos crimes dos Templários. O rei, porém, não esperou o procedimento papal, e mandou prender
aos 13/10/1307 todos os Templários da França, inclusive o seu Grão-Mestre Jaime ou Tiago de Molay
(cerca de 2000 homens), confiscando todos os seus bens (fora da França ficavam uns 1000 ou 2000
Templários ainda). Filipe exortou outros reis a seguir o seu exemplo, e mandou aplicar a tortura aos
irmãos para extorquir deles todas as confissões de interesse do rei. O próprio Grão-Mestre,
alquebrado, e talvez sob a pressão da tortura, exortava por carta os seus súditos a confessar logo.
Filipe dava a crer que essas medidas eram tomadas de acordo com o Papa, quando na verdade eram
todas de iniciativa e responsabilidade do rei.
A princípio. Clemente V protestou e exigiu a libertação dos encarcerados. Deixou-se, porém,
convencer pelas confissões extorquidas e, em fins de 1307, mandou aos outros soberanos que
prendessem os Templários e confiscassem os seus bens em favor da Igreja. O próprio Papa em
Poitiers (1308) ouviu o depoimento de 72 Templários, que Filipe lhe mandara. Cada vez mais
convencido da culpabilidade da Ordem, ordenou nova perseguição; em 1310 foram de uma só vez
queimados como hereges 54 Templários em Paris; outros morriam no cárcere ou sob a tortura.
A decisão última foi confiada a um Concílio Ecumênico, que se reuniu em Viena (França) de
outubro 1311 a maio 1312 (15o Concílio Ecumênico). Além da causa dos Templários, o Sínodo devia
examinar as acusações contra Bonifácio VIII, tratar das necessidades da Terra Santa e de uma reforma
da disciplina da Igreja.
A figura de Bonifácio VIII defunto, apesar de todas as concessões feitas por Clemente V, ainda
era objeto de rancor do rei. Em 1310 este começou a ouvir o depoimento de testemunhas. Todavia o
Concílio de Viena rejeitou as acusações de heresia contra o falecido Papa; o rei. então, por
conveniência própria, desistiu da perseguição difamatória. Em troca disto. Clemente, agradecido, o
declarou inocente no atentado de Anagni, reconheceu que somente "zelo bom" o movera; o próprio
Guilherme de Nogaret foi absolvido a pedido de Filipe. Assim terminava a triste história de Bonifácio
VIII, com a vitória absoluta do rei.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 76

Quanto aos Templários, os conciliares queriam que se continuasse o processo, pois até então
nada se havia encontrado que motivasse a supressão da Ordem. Todavia o Papa Clemente, premido
pelo rei presente ao Concílio, houve por bem abolir a Ordem mediante a Bula Vox in excelso de
22/03/1312, "não em sentença judiciária, mas como medida de prudência administrativa baseada nas
faculdades da Sé Apostólica". Com outras palavras: o Papa não quis julgar os Templários do ponto de
vista ético ou disciplinar; Julgou, porém, que a existência dos Templários era um foco de distúrbios no
mundo cristão da época. Esta distinção obteve o consentimento da maioria dos conciliares. Os bens
dos Templários foram, em parte, atribuídos a outras Ordens Religiosas, em parte caíram nas mãos dos
príncipes. Filipe ainda conseguiu do Papa um processo especial contra alguns dignitários da Ordem:
uma comissão de eclesiásticos, que eram do seu beneplácito, os condenou à prisão perpétua; o Grão-
Mestre da Ordem e o Grão-Preceptor da Normandia foram queimados vivos aos 11/03/1314 por terem
retratado confissões anteriores e terem declarado a Ordem inocente.
A tragédia dos Templários é mais um testemunho do predomínio do poder régio sobre a Igreja;
de modo especial evidencia que a Inquisição (a qual funcionou no caso) se foi tornando mais e mais
um instrumento nas mãos do poder político para eliminar todos os adversários dos reis e príncipes (ver
módulos 32 e 33 sobre a Inquisição). Os Templários podiam apresentar suas falhas - o que é humano;
mas certamente estas não eram tão graves nem universais quanto diziam os adversários; as confissões
extorquidas nada significam. Nos países que não dependiam do rei da França, as acusações colhidas
contra os Templários foram insignificantes; na Espanha (Aragão, Barcelona) e em Chipre o processo
demonstrou claramente a sua inocência. Embora tenha havido historiadores desfavoráveis à dignidade
dos Templários, hoje em dia não resta dúvida de que foram vítimas de graves calúnias. Certas
sociedades em nossos tempos dizem-se herdeiras dos Templários medievais, com os quais teriam uma
vinculação secreta; teriam uma gnose ou conhecimentos esotéricos reservados aos iniciados. Ora estas
afirmações são fantasiosas e alheias à verdade.
O Concílio de Viena ainda baixou outras determinações importantes: 1) relativamente à teoria de
corpo e alma professada por Pedro João Olivi, chefe dos Franciscanos Espirituais no litígio sobre a
pobreza; foi condenada qualquer teoria que admitisse intermediários entre a alma (forma) e o corpo
(matéria); 2) mandou que se introduzisse nas Universidades o estudo das línguas hebraica, árabe e
caldaica (o que era grande novidade na época); 3) Clemente V promulgou a Bula Exivi de Paradiso
em favor dos franciscanos de observância mais rigorosa.
Finalmente, após triste Pontificado, o Papa veio a falecer aos 20/04/1314.
Para se entender a história dos Pontificados seguintes, devemos ainda referir a atuação de
Clemente V na Alemanha:
Em 1308 foi eleito rei da Alemanha Henrique de Luxemburgo (1308-13). Este sofreu logo a
oposição dos franceses, que queriam colocar sobre o trono alemão o príncipe Carlos de Valois, irmão
de Filipe IV o Belo. Em particular, o rei Roberto de Nápoles, sucessor de Carlos II de Anjou, se
insurgiu contra Henrique VII, quando este desceu a Roma para ser coroado Imperador por três
Cardeais delegados do Papa em 1312. Henrique Vil aliou-se a Frederico da Sicília, inimigo da casa de
Anjou e da Cúria Papal; Clemente V, porém, favorecia a Roberto e aos franceses contra Henrique VII
da Alemanha e Frederico da Sicília; antes que se chegasse a um conflito sério, Henrique VII morreu
em 1313, ficando o trono alemão sujeito à disputa dos candidatos. O Papa então nomeou em 1314
Vigário do Império Alemão na Itália Roberto de Nápoles, fazendo uso de uma lei, segundo a qual a
regência da Itália, em caso de vacância do trono alemão, tocava ao Papa.

MÓDULO 26: O PAPADO E LUÍS IV (1314-47)


O módulo anterior descreveu a transferência do Papado para Avinhão (França) em 1309, sob
Clemente V. A influência do rei da França tendia a dominar os Papas. Os primeiros decénios do
Papado em Avinhão foram marcados por sério conflito com o rei Luís IV da Alemanha. 42

42
É precisamente esta época que Umberto Eco tomou como fundo do seu romance "O Nome da Rosa".
77 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 1: João XXII e Luís IV


A Clemente V sucedeu, após um interregno de dois anos e quatro meses, João XXII (1316-
1334), francês, de 72 anos de idade, apoiado pelos reis da França e de Nápoles.43 Era um prelado
simples, dotado, porém, de personalidade enérgica, disposta a superar todos os obstáculos; dotado de
extraordinária capacidade de trabalho, nunca deixou Avinhão; durante os dezoito anos do seu
pontificado redigiu 60.000 documentos, que versavam geralmente sobre a administração dos bens da
Igreja. Além disto, era muito interessado por questões teológicas. Teve que sustentar árdua
controvérsia com os príncipes alemães.
Com efeito. Em 1314 foi eleito rei pela maioria dos príncipes alemães Luís IV o Bávaro (1314-
47); uma minoria, porém, escolheu Frederico o Belo da Áustria. Ambos os eleitos pediam o
reconhecimento do Papa, que primeiramente se mostrou neutro. Luís IV, porém, conseguiu em. 1322
derrotar o seu competidor e prendê-lo, tornando-se único senhor da Alemanha. Nem assim o Papa
João XXII o quis reconhecer, afirmando que nos casos de eleição dividida, a decisão tocava
soberanamente ao Pontífice.
O conflito tornou-se mais grave por causa da administração da Itália. – Era norma do Direito
Eclesiástico que, em caso de vacância do trono imperial na Alemanha, a administração da Itália cabia
à Santa Sé. Ora, dada a cisão do governo da Alemanha (Luís IV lutava com Frederico o Belo da
Áustria), o Papa fez uso deste direito, confirmando como administrador da 4tália setentrional e central
o rei Roberto de Nápoles (da dinastia francesa de Anjou). Ora Luís IV, uma vez tendo vencido o seu
adversário, não quis tolerar tal estado de coisas; por isto em 1323 nomeou seu representante na Itália o
Conde Bertoldo de Neiffer. João XXII então intimou-o, sob pena de excomunhão, a depor o Governo
dentro de três meses e aguardar que a Santa Sé decidisse a questão da sua legitimidade de rei. Luís IV,
porém, protestou, dizendo que o Papa não tinha o direito de examinar a eleição dos reis da Alemanha;
além disto, acusava o Pontífice de favorecer os hereges; finalmente apelava para um Concílio
Ecumênico a fim de julgar o caso.44
Em resposta, João XXII excomungou o rei (23/03/1324). Luís IV reagiu publicando um libelo
em que de novo acusava o Papa de heresia e, portanto, de não ser o Papa legítimo; seria um inimigo
do reino alemão e um perturbador da ordem na Igreja, que deveria ser Julgado por um Concílio
Ecumênico. Assim entrou em curso o último grande conflito entre Papado e Império na Idade Média;
só terminaria com a morte de Luís IV (1347). - A esta altura, é preciso digamos algo sobre a "heresia"
de que era acusado João XXII.

Lição 2: Os Franciscanos e a pobreza


Pouco após a morte de São Francisco (1226), os franciscanos se dividiram em duas correntes: 1)
os Espirituais ou Observantes ou Fraticelli, desejosos .de rígida observância da pobreza franciscana
sem privilégios, e impregnados de ideias apocalípticas (em breve começaria a era do Espírito Santo),45
e 2) os Comunitários, mais moderados. Depois de apelar para os Papas anteriores, os Espirituais
dirigiram-se a João XXII, que se lhes mostrou desfavorável e os condenou. Foi então que os
Comunitários também entraram em luta com o Papado: o Capítulo Geral da Ordem dos Comunitários
em 1322 declarava ser sadia doutrina que "Cristo e os Apóstolos não possuíam propriedade nem
individual, nem comum e não tinham direito sobre coisa alguma; por isto os filhos de São Francisco
deveriam assim viver, não possuindo (nem comunitariamente) o que quer que fosse". Desta maneira
abria-se "a controvérsia teórica sobre a pobreza de Cristo e dos Apóstolos". - João XXII rejeitou tal
sentença como herética mediante a Bula Cum inter nonnullos (1323); um dos argumentos em
contrário afirmava que os bens de consumo, como os alimentos, não podem ser utilizados sem que
haja pleno domínio sobre os mesmos (quem come, está exercendo um direito de propriedade e
domínio sobre os seus alimentos). A condenação agitou muito os ânimos: em 1328, o Geral da Ordem,

43
Nápoles pertencia à dinastia dos Anjou, que eram franceses.
44
A tendência a apelar para um Concílio Ecumênico contra as disposições do Papa ou a colocar o Concílio acima do Papa
tornar-se-ia sempre mais forte nos decênios seguintes.
45
A propósito destas ideias apocalípticas-joaquimitas, ver o módulo 24.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 78

Miguel de Cesena, e os frades Bonagratia de Bérgamo e Guilherme de Occam passaram-se de


Avinhão para o partido de Luís IV. com o qual se puseram a combater o Papa.
Ora precisamente por ter condenado a sentença dos conventuais é que João XXII era acusado de
heresia por seus adversários.
Guilherme de Occam era um dos mais influentes teólogos do seu tempo. Escreveu tratados que
afirmavam que o primado do Sumo Pontífice não é uma instituição necessária, derivada de Cristo;
ver" o diálogo De Imperatorum et Pontificum potestate (Sobre o Poder dos Imperadores e dos
Pontífices). Na corte de Luís IV, junto com Occam, viviam outros teólogos como Marsílio de Pádua (t
1342 ou 43} e João de Janduno (+ 1328), que adotavam a filosofia de Aristóteles interpretada de
maneira naturalista e um tanto cética segundo a escola do árabe Averroés; em 1324 publicaram a obra
Defensor Pacis, que significava revolução na Constituição da Igreja, pois concebia a Igreja à
semelhança de uma sociedade meramente humana (preludiando a Reforma protestante); com efeito,
segundo o Defensor Pacis, todo poder eclesiástico reside originariamente na comunidade dos fiéis;
esta tem seu representante principal no Imperador. Da comunidade o poder é transferido para o clero;
a hierarquia da Igreja é obra humana, que subsiste por concessão da comunidade e do Imperador. A
suprema instância na Igreja é o Concílio Ecumênico convocado pelo Imperador, no qual também os
leigos se sentam e se pronunciam; não há primado papal. A Igreja em tudo está subordinada ao
Estado, que a controla; não tem poder judiciário nem legislativo; nada possui; a sua esfera de
atividade é meramente espiritual. - Tais sentenças na sua época encontraram fraco eco; mais tarde,
porém, tornaram-se muito propagadas.
Em extrema oposição ao Defensor Pacis, havia os agostinianos Egídio Romano e Tiago de
Viterbo, que estendiam o poder do Papa sobre o espiritual e o temporal. As suas ideias, que inspiraram
Bonifácio VHI. foram retomadas com mais energia por Agostinho Triunfo, agostiniano, que em 1322
dedicou a João XXII a Summa de Potestate Ecclesiastica (Suma relativa ao poder na Igreja), e pelo
franciscano espanhol João Álvaro Pelagio na obra De Statu et Planctu Ecclesiae (A respeito do estado
e do pranto da Igreja); segundo estes, o Papado é a fonte de todo poder na terra; possui poderes
ilimitados sobre os assuntos temporais; os príncipes políticos são todos seus vassalos.
Outros teólogos preferiam uma via média reconhecendo a autonomia do Estado no plano
temporal. Assim João Quidort O.P., de Paris,46 Engeiberto de Admont O.S.B.47 e também Dante
Alighieri no seu De monarchia (1310-12).

Lição 3: O Papado e a Alemanha


Aconselhado e acompanhado por Marsílio de Pádua, o rei Luís IV desceu à Itália em 1327 para
se fazer coroar Imperador. Em Avinhão as sentenças e censuras se multiplicavam contra Luís. Não
obstante, aos 17/01/1328 foi coroado Imperador na basílica de São Pedro por Sciarra Colonna,
prefeito de Roma, "em nome do povo romano". Pouco depois, o Imperador declarou João XXII
deposto "por heresia e outros crimes", estabelecendo como antipapa o franciscano "espiritual" Pedro
de Covara, com o nome de Nicolau V (1328-30). O cisma, porém, foi de breve duração; Luís IV e o
antipapa, coagidos por penúria de tropas e dinheiro, tiveram que deixar Roma em breve; os romanos
não aceitavam o antipapa, de modo que este se submeteu a João XXII em 1330. Assim a política de
Luís IV na Itália acabava sem sucesso. Na Alemanha, porém, era firme, apoiada pelos nobres e
burgueses, apesar das censuras eclesiásticas.
Em 1330 Luís IV quis reconciliar-se com o Papa. A tentativa, porém, foi frustrada, pois João
XXII exigia que renunciasse ao trono. De resto, o Papa, Já muito idoso, viu-se entravado em sua ação,
porque se envolveu na controvérsia sobre a visão beatífica, que movia os teólogos da época. Com
efeito; na festa de Todos os Santos (01/11) de 1331, João XXII pregava que as almas dos justos,
mesmo a de Maria SS. e as dos Apóstolos, só gozarão da visão de Deus após o juízo final (teriam
apenas a visão da humanidade de Cristo enquanto corresse a história deste mundo); da mesma forma,
os demónios e os homens maus só teriam as penas do inferno após o juízo universal. A Universidade
de Paris se moveu contra tal sentença. O Papa então nomeou uma comissão de Cardeais e teólogos

46
De Potestate regia et papali, 1302/3 (Sobre o poder do rei e o do Papa).
47
De ortu, progressu et fine Romani Imperii (Sobre a origem, o desenvolvimento e o fim do Império Romano).
79 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

que, tendo estudado o assunto, levou o Papa a dizer que retrataria a sua opinião caso fosse contrária à
doutrina comum da Igreja. João XXII foi além; na véspera de sua morte, já acamado, perante os
Cardeais revogou a sua posição anterior e professou claramente que as almas purificadas de seus
pecados gozam da visão de Deus face-a-face mesmo antes do fim dos tempos; também os réprobos
sofrem a sua condenação antes do juízo final. Estas afirmações foram definidas como sentenças de fé
pelo sucessor de João XXII, o Papa Bento XII, na Constituição Benedictus Deus de 1336. A sentença
anterior de João XXII não tinha o peso de uma definição de fé ex cathedra, mas era pronunciamento
pessoal de João XXII em estilo de homilia.
João XXII morreu em 1334 sem chegar a algum resultado nas conversações com luís IV. Por sua
parcimônia e sua capacidade de trabalho, deixou as finanças papais em boas condições, não por
avareza, mas para servir aos interesses de uma Cruzada no Oriente e das missões.
O seu sucessor foi Bento XII (1334-42), homem amigo da reforma da disciplina, que mais de
uma vez desejou voltar a Roma (pois via quão nocivo era o exílio de Avinhão e a preponderância
francesa na Cúria papal), mas não o conseguiu por causa da oposição dos Cardeais e do rei da França
Filipe VI. Combateu abusos na distribuição dos cargos eclesiásticos e o nepotismo (favorecimento dos
"sobrinhos"), dizendo que o Papa deve ser como Melquisedeque, isto é, sem pa-f, sem mãe, sem
genealogia...
Procurou entrar em paz com Luís IV; todavia Filipe VI da França e Roberto de Nápoles
impediram seus esforços, por temerem que da paz resultasse diminuição da sua influência e o regresso
do Papa para Roma. Diante disto, os príncipes alemães em 1338 declararam que o rei da Alemanha,
eleito por maioria, não precisaria, para o futuro, de aprovação papal para assumir as suas funções;
Luís IV acrescentou a isto que a dignidade e o poder do Imperador vêm imediatamente de Deus; ao
Papa é reservada apenas a coroação do eleito. Pouco depois Luís IV lançava outra proclamação,
declarando nulas todas as censuras que sofrera, e exortando, sob severas ameaças, os seus súditos a
não respeitar o interdito papal lançado, desde muito, sobre a Alemanha. Esta atitude do rei suscitou
confusão e perplexidade em muitas consciências.
Em 1341 foram iniciadas novas conversações de paz entre o rei e a Cúria Pontifícia; vãs, porém,
por causa da ambição do monarca: para dilatar seus domínios, este dissolveu por própria autoridade,
inspirado pelos princípios de Occam e Marsílio, o matrimônio de João Henrique da Boêmias com
Margarete Maultasch, herdeira do Tirol e da Caríntia, e casou-a com o filho de Luís IV - Luís de
Brandenburgo, que era consangüíneo de Margarete (1342)!
Bento XII teve como sucessor Clemente VI (1342-52), francês, prudente e erudito, bom
pregador, mas mundano e disposto a fazer a política dos franceses. Para chegar à reconciliação com
Luís IV, impôs condições muito severas, que foram rejeitadas. Daí seguiu-se novo anátema sobre o rei
e a exortação do Papa aos eleitores alemães para procederem à eleição de novo rei (1346). A
admoestação do Papa encontrou eco na Alemanha; a vida se complicava cada vez mais no país;
desejava-se a paz, pois havia mais de vinte anos que o território alemão estava sob interdito; a
autoridade da Igreja ia diminuindo; os fiéis desconfiavam do Papa tão influenciado pelos franceses;
isto ocasionava decadência religiosa e moral e o surto de seitas heréticas; em muitas dioceses dois
bispos se enfrentavam, um papal e outro imperial. O próprio Luís IV ia-se tornando impopular. Por
isto em julho de 1346 cinco príncipes alemães elegeram Carlos da Morávia por rei, com o nome de
Carlos IV (1346-78). A guerra ia estourar entre Luís IV e o eleito, quando aquele morreu em 1347.
Então, privados do seu tutor, os Fraticelli e Guilherme de Occam submeteram-se ao Papa.
Em 1355, a mandato do Papa, Carlos IV foi em Roma coroado Imperador pelo Cardeal de Óstia.
Todavia Carlos IV não restabeleceu a ordem na Itália. A ausência dos Papas era mortal para o Estado
Pontifício; em vários lugares surgiram chefes autônomos, que sacudiam o domínio papal; em Roma
reinava a anarquia: lutas cruéis entre os partidos dos Colonna, dos Orsini e outras famílias. Aliás, em
1347 o povo romano constituiu seu tribuno (governador) um certo Nicolau (Cola) de Rienzo, filho de
vendedor de vinho, modesto, mas eloquente e perspicaz, precursor do humanismo do século XV; quis
dominar a Itália como novo Augusto e restabelecer a ordem no mundo. Todavia o seu prestígio durou
pouco, porque incorreu no ódio do povo e foi preso pelas autoridades do Estado Pontifício.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 80

MÓDULO 27: FIM DO EXÍLIO DE AVINHÃO. O CISMA


Entramos agora numa das fases mais dolorosas da história da Igreja, na qual se verifica muito
claramente que a Igreja subsiste porque a força de Deus a sustenta.

Lição 1: O fim do Exílio


O módulo anterior mencionou as tristes condições do Papado, influenciado em Avinhão pelos
interesses da França, enquanto o Estado Pontifício na Itália sofria desordens e revoltas do povo
descontente.
Em 1362 foi eleito em Avinhão o Papa Urbano V (1362-70), antigo abade beneditino de
Marselha (França). Era homem piedoso, amigo da reforma, que hoje é venerado como Bem-
aventurado.48 As mais respeitáveis personalidades da época pediam-lhe o regresso para Roma; este
seria mais eficaz do que qualquer missão militar na Itália (semelhante às que Inocêncio VI
empreendera em 1353-7 e 1358-67, visando a pacificar pela força o Estado Pontifício). Instavam junto
ao Papa para que voltasse a Roma o Imperador Carlos IV da Alemanha, que visitou Avinhão em 1365;
o poeta Petrarca, representante dos patriotas italianos, que, em nome de "Roma viúva", dirigiu ao Papa
uma carta comovida (1366), e S. Brígida, viúva sueca, que vivia em Roma e com destemer flagelava
os abusos e o luxo da corte de Avinhão. Havia perto de setenta anos que os Papas residiam em
Avinhão, período comparado ao exílio dos judeus na Babilônia e chamado "cativeiro dos Papas na
Babilônia". Os cristãos tinham consciência de que a Cúria Pontifícia estava sob o domínio de
interesses temporais daninhos. - Em abril de 1367, apesar da resistência do rei da França, o Papa
Urbano V deixou Avinhão e em outubro do mesmo ano estabeleceu-se em Roma com grande alegria
para os italianos. Todavia as facções políticas agitavam a Itália; então os Cardeais franceses
convenceram o Papa de que devia regressar a Avinhão - o que aconteceu em setembro de 1370. O
Papa, porém, faleceu pouco depois (dezembro de 1370), tendo como sucessor Gregório XI, bom
jurista e piedoso.
Na Itália, o Estado Pontifício era ameaçado pela agitação dos italianos, descontentes com os
administradores estrangeiros (principalmente franceses) na Itália. A poderosa República de Florença
explorava a insatisfação dos seus súditos contra o Papa. Gregório XI resolveu proceder com energia;
lançou a excomunhão e o interdito sobre Florença e enviou soldados bretões para a Itália, que
cometeram façanhas cruéis contra a população local. Foi então que entrou em cena uma mulher de
condições humildes, mas de profunda santidade; era Catarina de Sena (1347-80), o 23o rebento do
tintureiro Benincasa de Sena; aos 17 anos de idade ingressara na Ordem Terceira de São Domingos e
gozava de grande prestígio por suas virtudes e seus escritos: Diálogo e 400 cartas. Empenhou-se com
energia inquebrantável pela melhora da situação na Igreja e na Itália. Em 1376 compareceu
pessoalmente diante do Papa em Avinhão, dizendo-lhe com toda a franqueza que sentia na sua corte o
odor vicioso do inferno. A paz da Santa Sé com os florentinos acabou tornando-se realidade em 1378.
Todavia já no fim de 1376 o Papa começou a mobilizar-se de Avinhão para Roma, onde chegou aos
17/01/1377, aclamado pela população em júbilo. A residência dos Papas é desde então o Vaticano, e
não mais o Latrão. A entrada do Papa em Roma aos 17/01/1377 foi aclamada com Júbilo
extraordinário da população. Catarina argumentara junto a Gregório XI que, se este não regressasse a
Roma, os romanos elegeriam o seu próprio Papa. criando um cisma na Igreja. Embora o Papa tenha
dado ouvidos a Catarina, nem por isto foi possível evitar o cisma, como se dirá a seguir.
Aconteceu, porém, que o espírito pernicioso de Avinhão acompanhou a Cúria pontifícia para
Roma; além disto, as agitações persistiam na Itália e na própria Roma. Foi nessas circunstâncias que
morreu Gregório XI em 1378. tendo sido o último Papa francês.

Lição 2: Os inícios do cisma (1378)


Aos 7/04/1378 reuniu-se o conclave para eleger o novo Papa; constava de 11 cardeais franceses,
4 italianos e um espanhol. Os franceses, embora fossem maioria, não estavam de acordo entre si
quanto ao candidato. O povo de Roma fez então veemente demonstração exigindo um Papa romano

48
Bem-aventurado é o título conferido pela igreja a alguém antes de ser declarado Santo ou antes da canonização. Supõe
a certeza de Que praticou heroicamente as virtudes.
81 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

ou, ao menos, italiano. Na manhã do dia 8, por treze votos foi eleito às pressas não um francês nem
um romano, mas um italiano de Nápoles, isto é, o arcebispo Bartolomeu Prignano, que tomou o nome
de Urbano VI (1378-89). Depois do almoço do mesmo dia, os Cardeais (com exceção de três)
reuniram-se de novo numa capela e, por prudência, reelegeram o arcebispo Prignano.
Os Cardeais, porém, não ousaram publicar o resultado da eleição, já que não recairá sobre um
romano. O povo então, no mesmo dia, pôs-se a exigir a divulgação do resultado do conclave. Os
eleitores, diante disto, pediram ao ancião Cardeal Tibaldeschi, que se deixasse revestir das insígnias
papais e se apresentasse ao povo como Papa; o prelado consentiu a contra-gosto e foi bem aceito pelo
povo.
Contudo o próprio Cardeal Tibaldeschi encarregou-se de dissipar o erro. Os romanos deram-se
por satisfeitos com a eleição do Cardeal napolitano. Sobre este pano de fundo, os doze Cardeais
presentes em Roma na tarde do dia 9/04/ afirmaram solenemente a Urbano que ele era o Papa legítimo
e o empossaram no dia 10/04/1378. Na verdade. Urbano VI deve ser considerado o Papa legítimo,
verdadeiro sucessor de São Pedro.
Pensava-se que Urbano VI, austero e experiente jurista, fosse sanear os males da Cristandade,
Faltavam-lhe, porém, a paciência e a moderação necessárias; talvez, acabrunhado pelas
responsabilidades, não fosse mais senhor de seus nervos; tomou atitudes de homem doentio. Com
efeito, pôs-se a censurar intempestivamente os costumes dos Cardeais; S. Catarina de Sena exortava-o
à moderação e à calma. Irritados, treze Cardeais reuniram-se em Anagni aos 02/08/1378 e declararam
inválida – porque pressionada pelo povo - a eleição de Urbano VI; a seguir, sob a tutela de Joana I de
Nápoles e Carlos V da França, elegeram como novo Papa o cardeal Roberto de Genebra, que tomou o
nome de Clemente VII (1378-94); era primo do rei da França. Depois de luta armada pela posse de
Roma, Clemente Vil retirou-se para Avinhão, estabelecendo lá sua Cúria com novos Cardeais. A ele
aderiram a França, Nápoles, a Sicília, a Espanha, a Escócia, pequenas partes da Alemanha, a
Dinamarca e a Noruega. Entrementes Urbano era sustentado pela Itália do Centro e do Norte, a
maioria da Alemanha, a Inglaterra (que era inimiga da França), a Hungria e a Suécia. - Urbano
excomungou Clemente, que era Papa ilegítimo ou antipapa; este, por sua vez, declarou Urbano
excomungado.
Estava assim aberto o Grande Cisma Ocidental, que durou quase quarenta anos (1378-1417) e
causou enormes danos à Igreja. A opinião pública estava confusa. As pessoas mais dignas e santas Já
não sabiam distinguir o Papa legítimo: em favor de Urbano VI havia S. Catarina de Sena, que o queria
fazer reconhecer; em prol de Clemente VII trabalhavam eficazmente o dominicano S. Vicente Ferrer e
o Bem-aventurado Pedro de Luxemburgo... Com isto não só diminuía o respeito ao Papa, mas ia-se
atenuando a convicção da necessidade do Papado. Já as teorias de Occam haviam começado a lançar o
descrédito, (ver módulo 26). Na Inglaterra João Wiclef (1320-84), precursor da Reforma protestante,
punha em dúvida a instituição do Papado e da Igreja visível. O descontentamento era agravado pela
cobrança de taxas e impostos que o Papa e o antipapa exigiam para desenvolver a sua ação política e
fazer frente aos tumultos na Itália. Quanto mais se enfraquecia a autoridade eclesiástica, tanto mais
forte se fazia o influxo dos monarcas na vida da Igreja, já que os prelados, a fim de obter o apoio dos
governantes civis, tendiam a fazer-lhes concessões sempre mais avultadas.
A confusão despertava a expectativa de próximo fim do mundo; seria para o ano de 1400. Em
conseqüência, grandes grupos de penitentes da Inglaterra, da França, da Espanha afluíam para Roma,
que os atraia como cidade santificada pelo sangue dos apóstolos Pedro e Paulo e de numerosos
mártires.
Os teólogos procuravam uma solução. Então veio à tona, com mais pujança, a teoria conciliar ou
o conciliarismo, já apregoado por Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua e revigorado pela
Universidade de Paris."que era a terceira grande potência da época (após o Papa e o antipapa):
estabelecia acima do Papa um Concílio Ecumênico, capaz de julgar e depor o Papa, se necessário; a
Igreja deixaria de ser uma monarquia sagrada instituída e assistida por Cristo, para ser uma república,
fundada sobre o arbítrio dos homens.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 82

Lição 3: O auge do Cisma


Urbano VI morreu em outubro de 1389, deixando triste recordação de seus feitos e litígios, que o
incompatibilizaram com seus próprios partidários. Sucederam-lhe Bonifácio IX (1389-1404).
Inocêncio VII (1404-6) e Gregório XII (1406-15). Em Avinhão, após Clemente Vil (1378-94), foi
eleito o antipapa Bento XIII (1394-1423).
Sob esses Pontífices, houve diversas tentativas de reatamento do regime de Avinhão com a Santa
Sé (Roma); em vão, porém. Nos tempos de Gregório XII deu-se algo de novo. Este era um ancião
douto, que, durante o conclave, se comprometera rigidamente a trabalhar pela união das partes da
Cristandade, caso fosse eleito. Logo depois de assumir o pontificado, entrou em contato com Bento
XIII; combinaram encontrar-se em Savona (perto de Gênova) para tratarem da reconciliação. A
notícia deste acordo causou grande alegria aos cristãos, alegria efêmera, porém, pois o encontro
previsto não se realizou, visto que pessoas ambiciosas tudo fizeram para impedi-lo: seus familiares
ambiciosos e o rei Ladislau de Nápoles eram contrários aos propósitos de Gregório XII, que. por isto,
só chegou até Lucca, enquanto Bento desceu pela Itália abaixo de Savona, até Porto Venere. Assim a
possibilidade de próxima união se dissipava. A instabilidade de Gregório XII irritou os Cardeais
romanos, que deixaram de o apoiar (exceto um só). A França também deixou de prestigiar Bento XIII
por motivo semelhante (1408). Em conseqüência, treze Cardeais (de Roma e de Avinhão), reunidos
em Livorno. resolveram convocar um Concílio Ecumênico para Pisa no dia 25/03/1409. Convidaram a
comparecer o Papa e o antipapa; todavia nenhum deles aceitou a convocação.
O Concílio de Pisa (março-julho 1409)49 foi muito freqüentado: Cardeais, bispos, abades,
teólogos e canonistas de diversos países tomaram parte no mesmo. Eram inspirados pela teoria
conciliarista, que foi posta em prática nas sessões do Concílio; este se declarou perfeitamente
canônico e legítimo; proclamou cismáticos, heréticos e depostos o Papa e o antipapa; houve então
nova eleição, da qual resultou um segundo antipapa: o Cardeal Pedro Philarghi, de Milão, com o nome
de Alexandre V (1409-10), eleito aos 26/06/1409; era grego de nascimento e lecionara Teologia na
Universidade de Paris. A reforma da disciplina da Igreja, que estava programada para o Concílio de
Pisa, não pôde ser estudada, pois muitos prelados partiram logo; ficou adiada para um próximo
Concílio Ecumênico, que deveria realizar-se dentro de três anos.
Embora muito aspirasse à união dos cristãos, o Concílio de Pisa não só não a conseguiu, mas
agravou a situação, criando um terceiro partido dentro da Cristandade; daí só poderia originar-se mais
confusão e mal-estar. Alexandre V resolveu fixar sua sede em Bolonha, e foi reconhecido por boa
parte dos cristãos (França e Inglaterra). A Gregório XII permaneciam fiéis os reis Ruperto da
Alemanha, Ladislau de Nápoles e parte da Itália central. Bento XIII tinha a obediência da Península
Ibérica e da Escócia.

Lição 4: O fim do Cisma (1417)


Alexandre V faleceu em 1410 tendo por sucessor o antipapa João XXIII (1410-15), homem
inteligente e ambicioso, que julgava ser o Papa legítimo. Precisando do apoio do Imperador
Sigismundo da Alemanha, acedeu ao desejo do monarca, convocando um Concílio Ecumênico para
Constança (Alemanha).
Este, de fato, se reuniu de 1414 a 1418, congregando numerosos prelados e doutores. O Concílio
começou decepcionando João XXIII, pois pediu ao Papa e aos dois antipapas que renunciassem. João
XXIII resolveu então retirar-se secretamente de Constança e foi tido como deposto. Pouco depois, isto
é, aos 04/07/1415, o Papa legitimo, Gregório XII, quase nonagenário, fez saber aos conciliares que ele
os convocava para o Concílio e dava legitimidade a este; a seguir, renunciou, deixando a sede papal
vacante. Os padres conciliares aceitaram essa convocação; os partidários da teoria conciliarista não
protestaram contra ela, deixando-a passar como mera formalidade; todavia foi precisamente essa
convocação feita pelo Papa legítimo sob a ação do Espírito Santo e aceita pelas conciliares que
legitimou o Concílio de Constança e tornou os seus atos válidos para o futuro da Igreja; o Papa a ser
eleito seria legítimo, pois a sede pontifícia estava vacante e havia um órgão juridicamente habilitado a
eleger o Papa. O outro antipapa, Bento XIII, não querendo renunciar, foi também deposto pelo

49
Concílio destituído de legitimidade, pois tora convocado sem a anuência do Pape legítimo.
83 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Concílio; não reconheceu a sentença e manteve-se como antipapa com alguns partidários na fortaleza
de Peñiscola (perto de Valença) até a morte (23/05/1423). Finalmente, aplainado o caminho, os
conciliares puderam eleger por unanimidade, aos 11/11/1417, o novo Papa legítimo, que foi Cardeal
Odo Colonna, com o nome de Maninho V (1417-31). Imenso foi o júbilo dos cristãos pelo
restabelecimento da paz e da legalidade dentro da Igreja. Estava terminado o cisma por feliz
disposição da Providência Divina, que resolveu uma situação de angústia e perplexidade mesmo para
os doutores e os santos.

MÓDULO 28: OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414-18),


BASILEIA (1431-37) E FERRARA-FLORENÇA (1438-42)
Falamos do Concílio de Constança na medida em que contribuiu para o fim do grande Cisma em
1417. Devemos tornar a considerar essa assembléia, pois deixou decretos disciplinares.

Lição 1: O Concílio de Constança (1414-18)


Além de se ocupar com o término da cisão e a eleição de novo Papa, o Concílio de Constança
promulgou medidas importantes, entre as quais se destaca a seguinte: Antes que o Papa Gregório XII
desse legitimidade ao Concílio de Constança (que começara sem convocação legal), isto é, nas sessões
de 26/03 e 06/04/1415, os conciliares sancionaram o conciliarismo nos termos abaixo:
"Este Sínodo declara ter sido legitimamente congregado no Espírito Santo e constituir Concílio
Ecumênico representativo da Igreja Católica; recebe imediatamente de Cristo o seu poder. Todos,
qualquer que seja o seu estado ou dignidade, até mesmo o Papa, lhe devem obediência no que se
refere à fé, à extirpação do cisma e à reforma da Igreja (cabeça visível e membros)".
Tal decreto, promulgando a superioridade de um Concílio Ecumênico sobre o Papa, carece de
valor, "pois se deve a uma assembléia que não tinha legitimidade e nunca foi aprovado por algum
Papa. Houve mesmo Conciliares que protestaram contra tal declaração. É norma muito antiga do
Direito Eclesiástico: "Prima sedes a nemine iudicatur. - A sé primacial não pode ser julgada por
instância alguma".50
A respeito da reforma da disciplina da Igreja, o Concílio de Constança baixou algumas normas,
aprovadas pelo Papa Martinho V: 1) deveriam reunir-se freqüentes Concílios Ecumênicos: o próximo,
dentro de cinco anos; o seguinte, dentro de sete anos; os posteriores, de dez em dez anos; 2) em caso
de discórdia numa eleição papal, convocar-se-ia logo um Concílio Ecumênico; 3) o Papa recém-eleito,
antes da promulgação da sua eleição, deveria fazer profissão de fé diante dos eleitores e jurar que
convocaria os Concílios Ecumênicos nas datas previstas.
Além disto, o Concílio assinou concordatas com diversas nações (Alemanha, França, Inglaterra.
. .), que visavam à composição do Colégio Cardinalício aos direitos do Papa na nomeação dos
dignitários eclesiásticos, ao arrecadamento de impostos...
O Conciliarismo foi condenado na sessão de 10/03/1418 como segue: "A ninguém é lícito apelar
do Supremo Juiz, isto é, da Sé Apostólica ou do Romano Pontífice, Vigário de Jesus Cristo, ou
contestar o juízo do mesmo em assuntos de fé, que pela sua importância devem ser submetidos ao
Vigário de Jesus Cristo e à Sé Apostólica."
O sucessor de Martinho V, o Papa Eugênio IV, em 1446 declarou reconhecer e venerar o
Concílio Ecumênico de Constança "na medida em que os seus decretos não se opõem aos direitos, à
dignidade e à primazia da Sé Apostólica". O Pontífice procurou assim dissipar qualquer dúvida sobre
o Conciliarismo, que ficava, desta forma, excluído da aprovação da Igreja.

Lição 2: O Concílio de Basileia (1431-7)


Martinho V, tendo encerrado o Concílio de Constança em abril de 1418, só pôde voltar para
Roma em setembro de 1420, quando se pacificaram os ânimos da população. Tomou a si a tarefa de
elevar o prestígio da Santa Sé, restabelecer a ordem em Roma e nos Estados Pontifícios, que viviam

50
O Papa Gelásio I declarou em 493 e 495 que a Sé de Pedro (romana) tinha o direito de julgamento sobre todas ss outras
sedes episcopais, ao passo que ela mesma não está sujeita a algum julgamento humano. Em 501, o Synodus Palmaris de
Roma reafirmou este princípio, que entrou no Código de Direito Canônico (ver cânon 1629).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 84

flagelados por guerras e agitações. Todavia não conseguiu promover a reforma da disciplina da Igreja
como devia, embora o seu pontificado tenha sido salutar e feliz.
O Concílio de Constança estabelecera a celebração de novo Concílio dentro de cinco anos. A
Cristandade mostrava grande interesse por esse novo Sínodo; o Papa, porém, n,ão, pois estava
intimidado pela posição arrogante que os Sínodos anteriores haviam adotado frente ao Papado, assim
como pela difusão da teoria conciliarista. — Apesar de tudo, o Pontífice convocou o Concílio em
1423 para Pavia; todavia peste, guerras e outras calamidades dificultaram os trabalhos da assembléia.
Por isto, o Papa a dissolveu em 1424, sem que produzisse algum decreto. O próximo Concílio foi
marcado para Basileia (1431).
Tendo falecido Martinho V em fevereiro de 1431, sucedeu-lhe o Papa Eugênio IV (1431 -47),
homem de zelo e costumes austeros, mas dotado de pouca habilidade administrativa, pois fora eremita
agostiniano.
O Concílio previsto abriu-se em Basileia (julho de 1431), com a presença de poucos prelados,
motivada por guerras. Esta notícia foi levada ao Papa Eugênio, ao qual disseram outrossim que em
Basileia reinava inquietação. Ora o Pontífice já não via com bons olhos o Concílio, do qual receava
um golpe. Em conseqüência, o Papa decidiu dissolver o Concílio de Basileia (18/12/1431) e convocar
novo Sínodo para 1433 em Bolonha. Este passo foi precipitado; o Papa estava insuficientemente
informado. Os conciliares já tinham programado seus trabalhos sem animosidade contra a Santa Sé.
Por isto pediram ao Papa a revogação do decreto de dissolução e continuaram a se reunir; em
14/02/1432, o Concílio se declarou Ecumênico e renovou a teoria conciliarista, apoiado pelo rei
Sigismundo da Alemanha, por príncipes e nobres; foi mesmo exigido, sob ameaça de processo
judiciário, o compareci mento pessoal de Eugênio IV e dos seus Cardeais em Basileia no prazo de três
meses. Crescia o interesse do público pelo Concílio, pois todos sabiam que era preciso empreender a
reforma da disciplina da Igreja; ia aumentando o número de prelados presentes ao Concílio.
O Papa Eugênio IV deixou-se vencer pelas instâncias do rei Sigismundo da Alemanha e outros
governantes; revogou, pois, a transferência do Concílio, reconheceu a legitimidade do Concílio de
Basileia (não, porém, de todos os seus atos). Estava assim restabelecida a paz entre o Papa e o
Concílio, mas em termos efêmeros. Com efeito; o Pontífice, desejoso de tratar do reatamento com os
gregos cismáticos, transferiu o Concílio para Ferrara (Itália) aos 18/09/1437, de acordo com
entendimentos havidos com os orientais. Ora isto desagradou à maioria dos conciliares de Basileia,
que ficavam nesta cidade, enquanto a parte menor se deslocou para Ferrara.

Lição 3: O Concílio de Ferrara-Florença (1438-42)


O Concílio se reabriu em Ferrara aos 08/01/1438 como legítima continuação do Sínodo de
Basileia, com o qual constituiu o 17° Ecumênico. O Papa Eugênio IV tomou parte pessoalmente nas
assembléias. Logo de início foram declaradas nulas as sentenças de Basileia contra o primado do
Romano Pontífice e proibiu-se a continuação daquele conciliábulo.
Os gregos compareceram em número aproximado de 700, tendo à frente o Imperador João VIII
o Paleólogo (1425-48); o motivo que os movia a procurara união com os latinos, era a ameaça que os
maometanos exerciam sobre o Império bizantino, já em parte desmoronado; queriam obter o auxílio
dos ocidentais, entrando em união religiosa com eles, por motivos políticos; intencionavam, porém,
comprometer-se o menos possível em matéria de dogma e disciplina religiosa, ficando em fórmulas
genéricas.
Em princípio de 1439 o Concílio foi transferido para Florença, pois grassava a peste em Ferrara.
Calorosas foram as discussões entre latinos e gregos; finalmente os orientais aceitaram todos a
doutrina do Filioque,51 excetuando-se apenas o arcebispo Marcos de Éfeso. Houve acordo ainda sobre

51
A doutrina do Filioque ensina que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (ex Patre Filioque). Não estava no Símbolo
de fé niceno-constantinopolitano promulgado em 381 (ver módulo 8), mas decorre dos princípios da teologia trinitária,
segundo a qual, "se o Espírito não procede do Filho, não se distingue deste, pois em Deus tudo é uma só realidade onde
não haja oposição relativa". Os latinos começaram a introduzir o Filioque no Símbolo de fé no século V, à revelia dos
orientais. O Patriarca Fócio no século IX fez desta atitude sério motivo de acusação aos latinos, preparando assim o cisma
de 1054 (ver módulo 21). Atua/mente a Santa Sé mantém o Filioque no Credo (pois professa uma verdade), mas não
85 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

outros pontos, como o purgatório, o início da visão beatífica, o primado do Romano Pontífice, o uso
do pão ázimo na Eucaristia...
Os gregos se retiraram em 1439 pouco depois de assinar a união com os latinos (que, aliás não
durou muito, porque havia resistência no Oriente à execução das decisões de Florença). O Concílio
continuou, mantendo duas sessões até 1442, em parte por causa da oposição do Sínodo de Basileia
(que continuava), em parte para tratar de novos casos de união. Com efeito; em novembro de 1439
uniram-se à Igreja Romana os armênios (o chamado "Decreto para os Armênios" é de grande
importância); em fevereiro de 1442 os jacobitas (monofisitas) da Etiópia e do Egito também se
uniram. Em fins de 1442 o Concílio foi finalmente transferido para o palácio do Latrão em Roma: aí
uniram-se ainda com a Igreja Romana os jacobitas da Síria (1444) .grupos caldeus (nestorianos) e
maronitas (monoteletistas) da ilha de Chipre (1445). A maior parte dos nestorianos permaneceu no
cisma.
Entrementes os conciliares de Basileia continuavam reunidos em número de 300, tendo como
presidente o único Cardeal-arcebispo Luís d'Aleman, de Arles. Abriram processo contra Eugênio IV e
suspenderam o Papa. Este respondeu excomungando os conciliares. A rebeldia destes não causou
grande impressão na Cristandade, pois ainda estavam muito vivas as tristes conseqüências do cisma
anterior. Na França, o rei Carlos VII (1422-61) convocou clérigos e leigos para Bourges (1438); af
resolveram apoiar o Papa Eugênio IV; não obstante, adotaram 23 dos decretos de Basileia com
algumas modificações. Tais decretos, promulgados como leis do Estado sob o título de "Pragmática
Sanção de Bourges". constituem o fundamento do Galicanismo ou da teoria da Igreja nacional
francesa dos séculos XVII / XVIII: professam o conciliarismo (o concílio acima do Papa), impedem a
apelação judiciária para Roma, ficando a Igreja sob o controle do rei, restringem as taxas papais...
Na Alemanha, em 1439 os príncipes reunidos promulgaram um documento semelhante ao dos
franceses, adotando vários decretos de Basileia, entre os quais o da teoria conciliarista.
Enquanto os príncipes europeus assim reagiram, os conciliares de Basileia continuaram a
hostilizar Eugênio IV; em junho de 1439 "depuseram-no" como herege e cismático, e em novembro
elegeram um antipapa: o duque viúvo Amadeu de Savoia, fundador da Ordem dos Cavaleiros de S.
Maurício; Félix V (1439-49), assim constituído, encontrou pouco apoio entre os cristãos; obedeceram-
lhe apenas a Savoia, a Suíça e alguns príncipes alemães. A França, Aragão e a Escócia declararam-se
logo por Eugênio IV; os alemães fizeram o mesmo pouco mais tarde, embora guardassem tradicional
animosidade contra o Papado (pensemos em Henrique IV, Frederico Barba-roxa. Frederico II. .., ver
módulos 22, 23 e 26).
O sucessor de Eugênio IV, Nicolau V (1447-55), conseguiu aproximar os alemães na
Concordata de Viena (1448). Este acordo, resultado de grande prudência por parte do Papa, tornou-se
famoso, pois durou até o século XIX, regrando, com vantagens para o Papa, a colação de benefícios
eclesiásticos e o pagamento de taxas à Santa Sé. Para o Sínodo de Basileia, esta Concordata foi o
golpe mortal; o rei alemão Frederico III de Habsburgo expulsou os conciliares, que já levavam
existência lânguida e se transferiram para junto do seu antipapa Félix em Lausanne (Suíça). Em abril
de 1449 este renunciou, e em 1451 faleceu; é o último antipapa que a história conhece. Os sinodais,
depois disto, elegeram ainda o antipapa Nicotau V, ao menos para dar a si mesmos uma aparência de
autoridade, e declararam dissolvido o infeliz anticoncílio de Basileia.
Assim estava terminada, ao menos em seus termos essenciais, a grave crise que o conciliarismo
suscitara na Igreja. A autoridade papal recuperara prestígio. Com efeito; apesar dos recentes clamores
por reforma mediante um Concílio Ecumênico, pairava certo descrédito sobre esta via de solução; o
cisma de Basileia fora uma triste e definitiva experiência; a arrogância dos sinodais de Basileia fora
para este o golpe mortal; nos círculos fiéis à Santa Sé os avanços relacionados com o Concílio
Ecumênico eram suspeitos e condenáveis. O Papado possuía, desta forma, a primazia absoluta sobre o
Concílio; se os Pontífices que se seguiram, tivessem usado essa sua autoridade para realizar a tão
almejada reforma da disciplina da Igreja, teriam evitado novos surtos de descontentamento e revolta
como foram os do século XVI (o cisma protestante).

exigiria dos cristãos orientais que o introduzissem no Símbolo de fé, que eles cantam. Os orientais preferem dizer que o
Espírito procede do Pai pelo Filho — o que, em última análise, é equivalente.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 86

É de notar que, apesar da ascendência da autoridade papal, despontavam no horizonte do século


XV as tendências a formar Igrejas nacionais, que muito marcaram os séculos XVII / XVIII; na França,
na Alemanha, na Espanha e na Inglaterra, os Papas, para pacificar os ânimos, tiveram que fazer
concessões aos monarcas, que corroboraram o poder dos príncipes regionais sobre a Igreja.
A Idade Média termina em 1450 (ou 1448, Concordata de Viena) com um certo mal-estar em
toda a Europa devido às condições de instabilidade, em que se achavam as relações entre a Igreja e os
governos civis. Clamavam todos por reforma, e reforma urgente, da disciplina da Igreja. Esta
renovação devia partir do poder central da Igreja, que havia de tomar medidas enérgicas para corrigir
os males patentes da hierarquia e dos fiéis. Veremos, porém, que o Papado se viu envolvido pelo
Renascimento e a promoção das artes, sofrendo assim desvios de atenção. Mais uma vez, como no
século XI, a renovação se daria a partir dos Santos que, levando vida de oração e penitência (muitas
vezes nos claustros), contribuíram poderosamente para que a seiva vital da Igreja subisse das raízes ou
das fontes até a mais alta cúpula.

MÓDULO 29: OS MOVIMENTOS EM PROL DA POBREZA


Terminamos a história das relações da Igreja com os Imperadores e reis na Idade Média. Antes
de entrar na Idade Moderna, devemos considerar ainda algumas manifestações da vida crista
medieval, como os movimentos em prol da pobreza (módulo 29), as Cruzadas (módulos 30-31), a
Inquisição Medieval (módulos 32-33), o processo de Joana d’Arc (módulo 34) e as doutrinas de
Wiclef e Hus (módulo 35).
O brilho exterior da Igreja,sempre crescente até a Alta Idade Média, suscitou escrúpulos e
receios em cristãos sinceramente religiosos, que viam nesse esplendor o perigo de mundanização e
desviamentos. Não somente o prestígio do Papa era grande no campo político, mas ainda a riqueza e o
luxo, espalhados na Europa pelo comércio marítimo das cidades italianas, invadiam os bispados e as
próprias Abadias. - Tais escrúpulos nos séculos XII / XIII, que tendiam a libertar a Igreja do seu
enorme envolvimento em assuntos temporais, não eram senão a continuação da reforma que procurara
emancipar a Igreja do poder do Estado na luta das Investiduras (ver módulo 19).
Esses escrúpulos concretizam-se em duas correntes diametralmente opostas:
1) uma que se tornou nociva, porque se revoltou não só contra a opulência da Igreja, mas contra
a própria Igreja; não sabia distinguir o acidental (luxo vicioso, mas passageiro) do essencial (o Corpo
Místico de Cristo). Dessa corrente fazem parte, entre outros, os cátaros e os valdenses;
2) a outra corrente propugnadora da pobreza é a dos reformadores mendicantes, ortodoxos, que
souberam manter-se fiéis à Igreja, embora não hesitassem em combater o seu luxo. Entre estes,
devemos citar S. Francisco de Assis e S. Domingos de Gusmão, além de Roberto de Arbrissel
(+1117), fundador da Ordem de Frontevault, e S. Norberto de Xanten (+1134), fundador da Ordem
Premonstratense. Estudaremos, a seguir, as expressões mais características de cada qual destes dois
movimentos em prol da pobreza da Igreja.

Lição 1: Movimentos desviados


1. Os Cátaros ou Albigenses ou Bugros eram dualistas, continuadores do pensamento
maniqueu. Admitiam um Princípio mau, criador da matéria, que se manifestou no Antigo Testamento;
e um Princípio bom, que criou os espíritos e se manifestou no Novo Testamento. Diziam que o
Princípio mau conseguiu seduzir parte dos espíritos celestes, que foram encarcerados em corpos
humanos e aqui precisam de Redenção. O Redentor foi Cristo, Espírito superior aos anjos e
subordinado a Deus, que morreu apenas em aparência. — Conseqüentemente os cátaros rejeitavam
tudo que é material: o aparato visível da Igreja, o sacerdócio e a hierarquia, os sacramentos, os altares,
as imagens, as relíquias; além disto,. . . o Juramento, a guerra e a própria autoridade civil. Era-lhes
lícito praticar a endura, isto é, deixar-se morrer de fome ou fazer-se matar pelos próprios parentes.
Como se vê, os cátaros destruíam não somente a Igreja, mas também a sociedade civil, rejeitando o
matrimônio, os sacramentos e a autoridade. Voltaremos ao assunto quando tratarmos da Inquisição;
ver módulos 32 e 33.
2. Os Valdenses durante muitos séculos afirmaram ter origem apostólica (em Tiago Maior ou
em Paulo) ou disseram ter surgido no tempo de Constantino em réplica à famosa Donatio Constantini
87 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

(ver módulo 5). Na verdade, o seu fundador é o rico comerciante Pedro (?) Valdes, Valdo ou Vaux, de
Lião (França). Este, impressionado pela leitura da Bíblia, distribuiu o que tinha no ano de 1176 e
começou a peregrinar, pregando penitência; a ele se Juntaram homens e mulheres, que ele mandava a
pregar em grupos de dois; eram chamados "os Pobres de Lião" ou "Sabbati" (por usarem calçados de
lenho ou sabots). Visto que pregavam sem licença do bispo de Lião, criticando os costumes do clero,
este prelado proibiu-lhes a pregação. Recorreram, porém, ao Concílio do Latrão III (1179), que lhes
permitiu pregar, caso tivessem mandato episcopal, Osvaldenses, porém, não se sujeitaram a esta
cláusula, de modo que foram excomungados. Passaram então a viver às ocultas, granjeando adeptos
secretos. Proferiam votos de pobreza, obediência e castidade e submeteram-se aos bispos, presbíteros
e diáconos ordenados por Valdes. — Servia-lhes de norma suprema a S. Escritura, que eles traduziam
para o vernáculo e recomendavam ao povo. Foram-se distanciando cada vez mais da tradição católica;
talvez por influência dos cátaros na Itália, os valdenses negaram o culto dos Santos, os sufrágios pelos
defuntos, o juramento, o serviço militar, a pena de morte; tornaram-se muito atuantes, expandindo-se
para a Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Hungria. .. No século XVI, os Valdenses da Lombardia
anexaram-se ao Calvinismo e subsistem até hoje em pequeno número,
3. O Joaquimismo deve-se a Joaquim de Fiore (+1202). Em fins do século XI, era abade
cisterciense, muito acatado por sua ascese. é autor de uma teoria sobre a história do mundo e da Igreja;
haveria três fases da história:
1) a era pré-cristã seria a do Pai, idade da letra, da carne, dos casados e dos leigos; 2) a era
cristã seria a do Filho, intermediária entre a carne e o espírito, entre servidão e liberdade; seria a época
dos clérigos, que duraria 42 gerações de 30 anos cada qual (cf. Mt 1,17); 3) terminado este período em
1260, viria a era do Espírito Santo e dos monges (carismáticos); seria a época da liberdade e a
plenitude dos tempos, sem clérigos nem sacramentos.
Estas ideias opunham-se ao conceito de "Igreja-Cidade de Deus", tão difundido e acariciado na
Idade Média. Encontraram, porém, apoio, dada a exaltação da época, na corrente dos Franciscanos
ditos "Espirituais"; estes proclamaram São Francisco como o novo legislador e profeta enviado por
Deus, e os Franciscanos Espirituais como a Ordem dos tempos finais. Embora as obras de Joaquim
tenham sido condenadas num Sínodo de Arles após 1263, o movimento joaquimista não se extinguiu;
a ideia de renovar a Igreja, subtraindo-lhe o poder temporal, dominou até o fim da Idade Média, se
bem que não raro fomentada por motivos políticos. Assim, por exemplo, as teorias joaquimistas foram
professadas por flagelados (grupos que peregrinavam e se flagelavam em público) em 1260/1; a
eleição de um "Papa angélico", como seria o eremita Pedro de Morone (= Celestino V), foi, em parte,
inspirada pelo Joaquimismo; não poucos dos adversários dos Papas do século XIV (Bonifácio VIII,
João XXII. . .) estavam impregnados de Joaquimismo; ver módulo 24.
O próprio Joaquim de Fiore morreu muito acatado por seus contemporâneos, que o tinham na
conta de Profeta; antes de falecer, sujeitou-se ao Juízo da Santa Igreja,
4. Podem-se citar ainda:
- a Ordem dos Apóstolos ou dos Irmãos Apostólicos, fundada por Gerardo Segarelli, rejeitado
pela Ordem Franciscana. Com alguns companheiros, pregava a pobreza agressivamente; anunciavam
o fim da Igreja para breve. Tiveram que se refugiar no monte Zebello (perto de Vercelli, Itália), donde
saiam a saquear as fazendas vizinhas para se sustentar; viviam em comunhão de bens e de mulheres;
- os Irmãos e Irmãs do Espírito Livre afirmavam que quem está unido a Deus, não peca,
quaisquer que sejam as suas ações; isto lhes permitia entregar-se às paixões. Oração e sacramentos
seriam inúteis ou mesmo prejudiciais para os irmãos perfeitos.
Vejamos agora a corrente ortodoxa favorável à pobreza.

Lição 2: Movimentos ortodoxos


Mencionaremos a Patária e as Ordens Mendicantes.
2.1.A Patéria
A Patária (do milanês patta = trapo; donde pattari = trapeiros) teve origem na segunda metade
do século XI na Lombardia, especialmente em Milão; congregava o povo simples contra a rica
nobreza e o alto clero a ela aparentado. Apregoavam pobreza, tendo em vista especialmente a simonia
e o matrimônio dos clérigos, males freqüentes na Lombardia. Entre os chefes do movimento pátaro,
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 88

destaca-se Anselmo, bispo de Lucca, que foi feito Papa Alexandre II (1061-73), precedendo S.
Gregório VII na luta contra as investiduras (ver módulo 19).
2.2. As Ordens Mendicantes
As nobres aspirações à pobreza dentro da Igreja não haviam de perecer por completo no
fanatismo e na agressividade. Para salvá-las. Deus quis suscitar no início do século XIII os fundadores
das Ordens ditas "Mendicantes" (porque viviam, em grande parte, de esmolas), também eles
pregadores ambulantes, mas integrados dentro da S. Igreja. Estes deram origem a famílias que, entre
outras, apresentavam as seguintes notas:
1) o culto da pobreza não só individual, mas também comunitária; os irmãos viviam de trabalho
manual ou de esmolas; eram provavelmente todos leigos, de inicio;
2) para tornar mais eficaz a sua pregação, renunciaram a habitar em montes ou vales retraídos,
como os antigos monges, a fim de estabelecer-se em centros populosos; renunciavam também à
estabilidade no mesmo lugar, que os antigos monges praticavam;
3) constituíram as chamadas "Ordens Terceiras" (a Primeira era a dos frades; a Segunda, a das
freiras), que se abriam às pessoas casadas, proporcionando-lhes algo da vida regular; no mundo
obrigavam-se a observar normas de oração e práticas de penitência e caridade. Ainda existem essas
Ordens, que podem contar entre os seus membros São Luís, rei da França, S. Elisabete da Turíngia, S.
Catarina de Sena. . . Entre os Terciários inscreveram-se no fim do século XIII pessoas solteiras, que
renunciavam à propriedade e viviam em comum; do que resultaram novas Ordens, ditas "dos
Terciários Regulares".
2.2.1. Os Franciscanos
São Francisco, "um dos Santos que abalaram o mundo", nasceu em Assis (1181). Até os 23 anos
de idade levou vida leviana, à procura da glória do mundo; queria ser cavaleiro, como era freqüente na
Idade Média. Todavia um período de cativeiro e uma doença grave contribuíram para que se
convertesse totalmente para Deus. Passou a ser o cavaleiro da pobreza, que amava as aventuras
heróicas. - A partir de 1204, pôs-se a levar vida de penitência e oração, tratando de pobres e doentes e
reerguendo capelas caídas na região de Assis. Juntaram-se-lhe doze companheiros, com os quais foi a
Roma pedir ao Papa Inocêncio III a licença de pregar — o que lhe foi concedido, contanto que se
limitasse à pregação de penitência. Em 1214 quis ir para o Marrocos evangelizar os muçulmanos, mas
só chegou até a Espanha. Em 1219/20, foi ao Egito com a intenção de converter o Sultão. Durante esta
sua ausência, os irmãos já começavam a disputar entre si sobre a possibilidade de realizar o ideal de
Francisco. Este teve que conceder mitigações do seu projeto de vida, o que lhe foi muito custoso. Por
isto abandonou o governo da Ordem em 1221. Em 1223 o Papa Honório III aprovou a terceira e
última redação da Regra de S. Francisco. Em sua simplicidade, Francisco rejeitava os estudos; queria
que os irmãos rezassem mais do que estudassem. Todavia estes pediam licença para utilizar livros e
estudar, Já que deviam preparar-se para a pregação; tal desejo era vivo especialmente entre aqueles
que, vindo das Universidades, se agregavam a Francisco. Finalmente aos 14/09/1224 Francisco, já
enfermo, recebeu os estigmas do Senhor Jesus, vindo a falecer aos 03/10/1226.
A Ordem difundiu-se com rapidez extraordinária. No Capítulo geral de 1282 em Estrasburgo, já
contava 1583 fundações em 34 Províncias. A sua principal tarefa tornou-se a pastoral e as missões.
Embora o fundador tivesse rejeitado os estudos, os seus discípulos adquiriram grandes méritos nas
Universidades. O conflito, porém, entre o ideal da pobreza e a realidade, que se iniciou quando vivia
S. Francisco, desdobrou-se em longos litígios sobre a pobreza (ver módulo 26).
2.2.2. A Ordem dos Pregadores Dominicanos
São Domingos nasceu em Caleruega (Espanha) no ano de 1170. Fez-se cônego regular
agostiniano, bem formado em Teologia. Por este último atributo, muito diferia de Francisco;
Domingos conhecia os erros doutrinários (especialmente os dos cátaros) de seu tempo e quis opor-lhes
uma barreira, utilizando seu senso organizador e prático. Francisco, ao contrário, possuía uma alma de
poeta, que queria dirigir-se aos corações, ao passo que Domingos visava às inteligências,
Em 1215 Domingos fundou em Tolosa (França), onde mais forte era a heresia dos cátaros, a
primeira célula de sua futura Ordem: constava de um grupo de pregadores que, após boa preparação
teológica e ascética, se dedicariam à pregação. Domingos foi a Roma pedir a aprovação do seu
Instituto; recebeu-a de Inocêncio III em 1215, sob a condição de que adotasse uma das Regras )á
89 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

existentes, pois já eram muitas as Regras Religiosas existentes na época. O fundador escolheu a de S.
Agostinho.
A Ordem Dominicana ou dos Frades Pregadores foi declarada "Mendicante" em 1220 pelo seu
primeiro Capítulo Geral; todavia a prática da pobreza era aí mais branda do que entre os franciscanos -
o que preservou a Ordem dos litígios que agitaram os discípulos de S. Francisco. — S. Domingos
morreu em 1221, deixando uma instituição que logo se propagou até a Escócia e a Síria; o Papa
Gregório IX confiou-lhe a Inquisição contra as heresias.
2.2.3. Os Carmelitas
Devem a sua origem a um cruzado, Bertoldo da Calábria (ti 195), que em 1156 se retirou com
dez companheiros para a gruta do profeta Elias no monte Carmelo (Palestina), a fim de levar vida
eremítica; o Patriarca Alberto de Jerusalém deu-lhes uma regrado vida estritamente contemplativa,
que Honório III Papa confirmou em 1226. Em 1238 os carmelitas, repelidos pelo Islã, estabeleceram-
se, em grande parte, no Ocidente, onde trocaram a vida eremítica pela cenobítica, segundo o modelo
dos Mendicantes.
2.2.4. Os Eremitas de S. Agostinho
Sob a Regra de S. Agostinho, originaram-se na Itália dos séculos XI l e XI 11 diversas
Congregações de Eremitas. O Papa Alexandre IV em 1256 resolveu fundir todas essas famílias
religiosas na Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, que se difundiu por diversos países e, nos séculos
XI V-X V l, se distinguiram pelo estudo das obras de S. Agostinho.
Paralelamente ao ramo masculino, desenvolvia-se em cada Ordem antiga e medieval um ramo
feminino, que se submetia à mesma Regra; era a Ordem Segunda dos Franciscanos (Clarissas), dos
Dominicanos, dos Carmelitas, dos Agostinianos...

MÓDULO 30: AS CRUZADAS (I)


Por "Cruzadas medievais" entendemos, as expedições empreendidas pelos cristãos do Ocidente
para libertar do domínio muçulmano o S. Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Têm início em fins do séc.
XI (1095) e terminam em 1291, quando os últimos bastiões dos cruzados no Mediterrâneo oriental
sucumbiram sob os ataques dos turcos. Recobrem, pois, os séculos XII e XIII. Verdade é que houve
expedições bélicas para libertar a Terra Santa ou o Oriente da Europa ameaçado pelos turcos também
nos séculos XIV e XV, como antes de 1095 se falava de reconquistar a Espanha ocupada pelos
árabes... Antes de entrarmos no tema propriamente dito, importante observação deve ser feita, a saber:
não se pode entender um episódio do passado sem se reconstituírem previamente o quadro geral
respectivo e as categorias de pensamento dos atores desse episódio. A propósito damos a palavra à
Profa Régine Pernoud no seu livro "Les Croisades" (Paris 1960, p. 7):
"É de notar quanto a historiografia nos tempos modernos se tomou moratizante e quão poucos
historiadores resistem à tentação de se transformar em Juizes e censores dos acontecimentos que eles
referem. Ora os julgamentos que os historiadores possam proferir sobre o passado, arriscam-se muitas
vezes a ser inadequados ou injustos, porque, sem que o próprio estudioso tenha sempre consciência
disto, ele julga segundo critérios que datam da sua época, e não da época analisada. Especialmente
estranho é o fato de que esse moralismo histórico se tenha propagado precisamente nos séculos XIX e
XX, quando se registra admirável esforço em prol da historiografia objetiva, imparcial, configurada às
ciências exalas, que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos dos historiadores acarretam o
inconveniente de introduzir um dos elementos mais subjetivos, ou seja, as opiniões políticas ou
religiosas abraçadas pelo estudioso...
Essas sentenças arbitrárias, simplistas demais para poder ser verídicas, não provêm do fato de
jque em geral o estudioso está mais apressado para julgar do que para compreender?"
Conscientes do valor destas advertências, procuraremos, nas páginas que se seguem, antes do
mais compreender - o que não significa legitimar indistintamente - os fatos narrados.

Lição Única: Causas da "Viagem da Cruz"


1.1. O fundo de cena histórico
1. O termo "Cruzada" mesmo nunca ocorre nos documentos medievais; é vocábulo posterior,
como também moderno é o vocábulo corporação, utilizado de maneira um tanto inadequada quando se
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 90

fala de instituições medievais. Na Idade Média falava-se de "caminho de Jerusalém, passagem,


viagem, via da cruz, peregrinação".
E, pois, a partir deste vocabulário que havemos de começar o estudo do que posteriormente foi
chamado "Cruzadas".
"Peregrinação" é uma das práticas mais ancoradas na Bíblia ou - ainda – na tradição judaica, na
tradição cristã e na tradição muçulmana; ver Deuteronômio 16,16; Lucas 2,41.
Em particular, a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos da Redenção do gênero humano
foi sempre uma das expressões de fé mais caras aos cristãos. No séc. IV, após a era das perseguições,
quando o Cristianismo começou a usufruir de liberdade no Império Romano, vê-se a Imperatriz
Helena, mãe de Constantino, ir à Palestina para descobrir e restaurar os testemunhos da vida, da morte
e da ressurreição de Cristo, que haviam sido sufocados pela ocupação romana a partir de 70 e.
máxime, após 135 d.C.
Pouco depois de Helena, mãe de Constantino, tem-se a figura de S. Jerônimo (+421), que
resolveu estudar a Bíblia na Terra Santa, estabelecendo-se na gruta de Belém. Aos poucos, no país
bíblico foram-se constituindo numerosos mosteiros de homens e mulheres, que queriam beneficiar-se
do contato com os lugares sagrados.
Do séc. IV em diante, o movimento de peregrinações à Terra Santa não cessou entre os cristãos:
Jerusalém, Roma e Compostela eram os principais pontos de atração da piedade. Têm-se mesmo ainda
hoje numerosos "Itinerários" de Terra Santa escritos em latim através dos séculos por cristãos de
nomeada, como o peregrino de Placência, Sílvia, Etéria...
Na Idade Média tão arraigado era o hábito de peregrinar que até mesmo o servo da gleba (o
homem estático por excelência, porque ligado ao campo, que ele não podia deixar e que ninguém
tinha o direito de lhe tirar) gozava do direito de sair da sua terra para realizar uma peregrinação, sem
que ninguém se lhe opusesse.
2. No séc. VII a expansão árabe fez perecer as numerosas comunidades cristãs esparsas pela
Síria, a Palestina, o Egito, o norte da África. Jerusalém em 638 foi ocupada e, em parte, transformada
em cidade árabe muçulmana. As condições dos cristãos que lá viviam ou que lá iam ter a fim de
visitar os lugares santos, tornaram-se difíceis, embora oscilantes segundo as épocas; a tensão do
ambiente foi às vezes abrandada por acordos, como, por exemplo, os de Carlos Magno (+814) com o
califa Haroun al-Rachid; esses pactos, porém, nem sempre foram respeitados, como no caso do califa
Hakim, fundador da religião drusa, que em 1009 mandou destruir a basílica do S. Sepulcro em
Jerusalém e durante dez anos moveu perseguição a cristãos e Judeus.
Pouco depois, ou seja, a partir de 1055, os Turcos seldjucitas entraram no próximo Oriente. Em
1071, Jerusalém caia em suas mãos. Os cristãos, em conseqüência, sofreram opressão. Os peregrinos
que voltavam da Terra Santa, narravam no Ocidente a ingrata situação em que se achavam os irmãos e
os santuários na Terra Santa de Cristo. As condições de peregrinação eram extremamente penosas. Os
relatos falam de peregrinos colocados no cárcere, sequestrados em troca de dinheiro, torturados,
durante a viagem para a Terra Santa. Uma das crônicas mais impressionantes era a da peregrinação de
Bünther, bispo de Bamberga (Alemanha), que, com milhares de companheiros, a pequena distância de
Jerusalém, sofreu duro ataque dos beduínos da região durante três dias.
Certamente muitos episódios e casos particulares circulavam de boca em boca na Europa a
respeito do que ocorria em Jerusalém e nos arredores; tais episódios constituiam o teor do que o
cristão podia conhecer a respeito da Terra Santa. Dessas informações temos um espécimen ainda hoje
numa crônica de Guilherme de Tiro, historiador do século XI):
"Aconteceu, por permissão de Nosso Senhor e para provação do povo, que um homem desleal e
cruel se tomou senhor e califa do Egito. Tinha por nome Hakim e quis ultrapassar toda a malícia e a
crueldade que tinham estado em seus ancestrais. Ele foi tal que os homens da sua lei o tinham
também na conta de eivado de orgulho, de furor e de deslealdade. Entre outras deslealdades, mandou
abater a santa igreja do Sepulcro de Jesus Cristo, que fora construída anteriormente por ordem de
Constantino Imperador, pelo patriarca de Jerusalém chamado Máximo e que fora refeita por
Modesto, outro patriarca do tempo de Heráclio.52

52
Trata-se aqui da reconstrução da basílica do Santo Sepulcro após a destruição de Jerusalém pelos persas em 614.
91 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Então começou a situação de nossa gente a ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois
grande luta lhes entrara no coração por causa da Igreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles
viam assim destruída. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e tarefas,
contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos príncipes incrédulos. Até mesmo o
que jamais lhes fora imposto, chegou a ser-lhes proibido: a celebração das suas festas. No dia que
soubessem ser a maior festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o Jugo e
a força; proibiam-lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que eles eram encerrados para
que não pudessem celebrar festa alguma. Em suas casas mesmas não gozavam de paz nem segurança,
pois se atiravam sobre elas grandes pedras e petas janelas lançavam excrementos, lama e toda
espécie de lixo. Se acontecesse que algum cristão dissesse uma só palavra capaz de desagradar a
esses incrédulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio, era arrastado à prisão e lhe cortavam
o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser confiscados pelo califa... Muitas vezes, os incrédulos
tomavam os filhos e as filhas dos cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam; ora
mediante golpes, ora mediante adulação, os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a fé...
Os bons cristãos esforçavam-se por sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram
maltratados.
Seria longo contar todos os vexames e as desgraças em que o povo de Nosso Senhor se
encontrava então. Eu vos contarei um episódio, para que mediante esse possais compreender muitos
outros. Um dos incrédulos, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava certa
vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém) tinha grande honra e reverência
pelo Templo que fora refeito53... Diante do Templo há uma praça que se chama a esplanada do
Templo, que eles (os muçulmanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantêm limpas
as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que alguém c visse, um
cão morto, pútrido e fétido, e colocou-o nessa esplanada, diante do Templo. De manhã, quando os
homens da cidade foram ao Templo para orar, encontraram esse cão. Fez-se então um grande grito,
rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram-se e não tiveram
ouvida em dizer que os cristãos haviam feito is- to. Todos concordaram em passar ao fio da espada
todos os cristãos; já estavam mesmo desembainha das as espadas que a todos deviam cortar a
cabeça.
Entre os cristãos havia um jovem de coração generoso e de grande piedade. Falou ao povo e
disse: 'Meus senhores, verdade é que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como aliás nenhum
de nós a tem; isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos assim e se
todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos libertar a todos com o auxílio de
Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas
preces e que tomeis sob os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. Pois eu assumirei a
causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós''
Os que lamentavam morrer, tiveram grande alegria então e prometeram ao jovem fazer orações
e honrar os seus familiares de tal modo que estes, no domingo de Fiamos, trouxessem sempre a
oliveira, que significa o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. - O jovem, portanto, foi ao encontro
dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no ocorrido e que ele era o autor
da façanha. Quando os incrédulos ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros, e somente ele
teve a cabeça talhada."
Faça-se o desconto devido possivelmente ao estilo panegirista do cronista... É certo, porém, que
ainda no séc. XII havia em Jerusalém uma família encarregada de fornecer aos fiéis as palmas para o
domingo de Ramos, em memória (diziam) da dedicação desse antepassado generoso, que se teria
sacrificado em prol da comunidade.
1. 2. Concepções e características medievais
1. Note-se agora que os relatos concernentes aos vexames da Terra Santa ecoavam nos ouvidos
de sociedade e povos caracterizados por dois traços profundamente marcantes:
a) Eram populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmavam a
regra) tinham - ou ao menos Julgavam ter - e professavam a fé cristã. Essa fé não procedia de uma

53
Alusão ao antigo templo de Salomão, transformado pelos árabes em mesquita de Ornar.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 92

autoridade exterior (do Papa ou do Imperador), mas era uma convicção profundamente ancorada no
coração de todos. Os valores da fé eram, para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de
ser vivida. O calendário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de acidentes
geográficos e instituições, além de numerosos outros dados, atestam o profundo impacto que a
mensagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as minúcias da vida cotidiana.
Não há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa a demonstrações exuberantes. como
também a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes de Deus... Ao lado
das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha, Nápoles, havia também muita simploriedade e
infantilidade na piedade cristã. Mas inegavelmente tudo que se ligasse com a fé, revestia-se de grande
significado para os medievais.
b) A sociedade na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos cavaleiros.
Efetivamente, a espiritualidade germânica, franca, celta, goda legou à civilização medieval o ideal do
cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra
(caso julgasse que a honra de Deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro
retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas heróicas em nome da fé.
Mais: deve-se lembrar que na" Idade Média também os monges desenvolveram papel
importante, professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto o
cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim a unir-se a Deus e chegar
à vida eterna, o monge se separava do mundo secular para penetrar diretamente em Deus e na
contemplação. Enquanto o cavaleiro aplicava os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para
servir ao seu Senhor, o monge, professando pobreza e silêncio, recusava o recurso a tais expedientes.
Ora os medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal cristão - o do
cavaleiro e o do monge -, criando no século XII as chamadas "Ordens Militares". Nestas o cavaleiro
se consagrava a Deus para O servir com destemer e galhardia num quadro de pobreza, castidade e
obediência.
Referindo-se aos Templários, dizia S. Bernardo (+1153):
"Não sei se os devo chamar monges ou cavaleiros; talvez seja necessário dar-lhes um e outro
nome, pois eles unem à brandura do monge a coragem do cavaleiro" (De laude novae militiae (IV 8).
2. É, portanto, nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoarem os relatos,
de estilo simples e pungente, dos peregrinos da Terra Santa, no séc. XI. Compreende-se que tenham
desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o
vigor comunicados pela fé (e que só a fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se
abalaram, prontificando-se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e
ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos de viagem muito definidos, mas
conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de que Deus o queria; "Deus Io volt", eis o brado que
em Clermont, no ano de 1095, impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos
outros que lhes seguiram o exemplo. Cosiam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde as
expressões que se tornaram técnicas: "assumir a cruz" e "fazer a cruzada". O Ímpeto inicial teve suas
repercussões durante os dois séculos de duração do movimento de Cruzadas.
Aliás, os medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor, que os cronistas
lhes apresentavam sujeito a vexames. Era tido como o maior santuário do mundo cristão, como o
centro do universo, segundo os sermões e os noticiários da época.
É somente a partir de tais concepções, muito vivas e significativas para os medievais, que se
podem entender as Cruzadas. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a chamada "guerra santa"
(jihad) dos muçulmanos, pode servir de ponto de referência para se entenderem a inspiração e a force
motriz dos cruzados.
É mister, porém, reconhecer que as ideias religiosas dos primeiros expedicionários foram sendo,
aos poucos, no decorrer de dois séculos, solapadas, de sorte que a imagem do cavaleiro que em seu
fervor tomava sobre si a cruz para ir libertar o S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa
imagem posterior que muitas vezes predomina em certos tratados sobre as Cruzadas.
93 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

MÓDULO 31: AS CRUZADAS (II)


Lição 1: As Cruzadas em resenha
Foi o Papa Urbano II quem, no Concílio de Clermont (França) em 1095, lançou o programa de
expedições destinadas a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O ambiente, como vimos, estava
assaz motivado para receber tal apelo. Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo
delirante; muitos pregadores puseram-se a percorrer a Europa, incitando os homens a cerrar fileiras.
Grande multidão de ouvintes, de origem social diversa, assumiu então a cruz, emblema da campanha.
Os expedicionários, provenientes da França, da Inglaterra, da Itália, eram dotados de benefícios
espirituais pelo Papa; a quem ousasse violar ou roubar as suas propriedades durante a respectiva
ausência, tocaria a pena de excomunhão.
Em resposta imediata ao apelo e sem esperar a organização de exércitos devidamente
constituídos (coisa que levaria tempo), grande número de simples fiéis pôs-se logo em marcha para o
Oriente sem o equipamento necessário. Essa Cruzada Popular, chefiada por Pedro o Eremita e
Gualtero "sem Haveres" (Gauthier sans Avoir), fracassou, pois os seus membros ou pereceram na
estrada ou foram exterminados pelos turcos.
1a Cruzada: Em fins de 1096, quatro exércitos de senhores feudais chegavam a Constantinopla:
1) os lorenos e alemães, com Balduíno de Hainaut e Godofredo de Bouillon; 2) os franceses do norte,
sob o conde de Vermandois e o duque de Normandia; 3) os provençais, com o conde de Tolosa e o
legado Ademar de Monteil; 4) os normandos da Itália, com Boemundo de Taranto e Tancredo.
Nenhum rei os acompanhava, nem esses exércitos cuidaram de instituir um Chefe geral para todos. O
Imperador bizantino Aléxis Comnene, em Constantinopla, esperava servir-se desses guerreiros para
reconquistar parte da Ásia Menor, que fora arrebatada pelos turcos. A cidade de Nicéia perto de
Constantinopla foi então realmente reconquistada, mas, em vez de ser atribuída aos ocidentais, voltou
a ser domínio do Imperador bizantino. Este fato frustrou os latinos e concorreu para que doravante
latinos e bizantinos concebessem desconfiança mútua! - Após dois anos e meio de lutas e sofrimentos
atrozes, os cruzados, tendo vencido o exército de Solimão em Doriléia, havendo tomado Edessa
(1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusalém e dela se apoderaram (1099). Essa
sangrenta expedição, que custara a vida a cerca de meio-milhão de homens, terminou com a fundação
de quatro centros latinos: o reino de Jerusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e de
Trípolis, aos quais foram atribuídos governantes latinos. As grandes cidades da costa palestinense
foram ocupadas por navegantes e comerciantes ocidentais. Os peregrinos recomeçaram a afluir à Terra
Santa. Para protegê-los e defendê-los, foram criadas as Ordens de Cavaleiros Militares (Hospitalários.
Templários, etc.).
Como se compreende, os territórios latinos no Oriente eram constantemente ameaçados e só
podiam subsistir com o auxílio de reforços vindos do Ocidente. É o que explica uma série de
expedições, ora mais, ora menos vultosas, colocadas entre as grandes Cruzadas. Somente estas, em
número de oito, serão aqui recenseadas.
2a Cruzada: Os turcos tendo reconquistado e destruído Edessa, preparou-se nova Cruzada, que
partiu do Ocidente em 1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de França, Luís VII, e o da Germânia,
Conrado III, tomaram a cruz sobre si e fundiram suas tropas num só exército. Mas não conseguiram
tomar nem mesmo Damasco, e regressaram sem êxito em 1149.
3a Cruzada: O sultão Saladino apoderou-se de Jerusalém em 1187. Respondendo então a um
apelo do Papa Urbano III, Filipe Augusto da França, Frederico Barbaroxa da Alemanha, e Ricardo
Coração de Leão, da Inglaterra, apresentaram-se para partir. Os alemães tendo seguido por terra,
chegaram até a Ásia Menor; mas a morte de Frederico, afogado nas águas do rio Cydnus (Cilícia),
provocou a dispersão do seu exército (1190). Os reis da França e da Inglaterra dirigiram-se por mar a
S. João de Acre, que conseguiram ocupar (julho de 1191). Embora lutassem juntos, os dois monarcas
nutriam desconfiança mútua. Filipe Augusto, tendo caído doente, voltou à Europa, e, apesar da
palavra dada, pôs-se a tramar com João sem Terra a invasão dos domínios do rei da Inglaterra.
Ricardo viu-se assim compelido a voltar (1192).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 94

Naquela época, os cristãos já não possuíam senão o litoral, desde Tiro até Jafa, com S. João de
Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia Ricardo Coração de
Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino próspero.
4a Cruzada: O Papa Inocêncio III (1198-1216) aspirava ardentemente à libertação de Jerusalém.
Suscitou nova expedição, a qual, porém, se afastou da sua orientação, sob a influência de Filipe da
Suábia, de Veneza e dos gregos. Os cruzados empreenderam a conquista de Constantinopla (!), que
eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um Império latino. Esse Império, que compreendia a
península dos Balcãs, durou até 1261, quando Miguel o Paleótogo retomou Constantinopla.
5a Cruzada: Entre 1219 e 1221, alemães e húngaros assumiram a cruz. Dirigiram-se para o
Egito; mas a cheia do Nilo, que os cristãos não previam, obrigou-os a retirar-se.
6a Cruzada: É também chamada "peregrinação sem fé" (1228-1229). Excomungado pelo Papa.
Frederico II resolveu empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepulcro, quanto para unir
em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciência e da cultura
árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de sorte que obteve do sultão do Egito, por
dez anos, o domínio sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo. Jerusalém recaiu nas
mãos dos árabes.
7a e 8a Cruzadas: São Luís IX, rei da França, resolveu reconquistar a Cidade Santa. Em 1248,
atacou o sultão Eyoub, não na Síria, mas no Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos
tomaram Damieta, mas caíram diante de Mansourah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a
liberdade mediante enorme preço de resgate.
Em 1270, S. Luís renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército para
empreender nova expedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu-o de ir primeiramente a
Túnis; diante desta cidade, o monarca, acometido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.
Após estes fatos, a pressão dos exércitos turcos se intensificou, visando aos últimos redutos
cristãos da Ásia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando-se assim a era das Cruzadas propriamente
ditas.
Ainda, a título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das crianças, pois são significativas do
espírito da época.
Em 1212, um jovem pastor, chamado Estêvão, dizendo-se enviado por Deus, convocou as
crianças da França para empreenderem uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que assim se
formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de frota haviam-se comprometido a transportá-los
ao Oriente gratuitamente; todavia venderam-nos aos mercadores de escravos no Egito. A maioria dos
participantes pereceu; um pequeno número recuperou mais tarde a liberdade.
Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte mil jovens, dirigidos por
certo Alexandre, tão imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em
Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram-se sem êxito algum.
Depois desta visão panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar
compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.

Lição 2: Cruzadas: idealismo ou decadência?


2.1. Os motivos de duvidar
Quem leva em conta a história das Cruzadas, à primeira vista é levado a dizer que constituíram
um fracasso ou até mesmo um contra testemunho dos cristãos. Têm-se catalogado vários capítulos de
censura aos cruzados: ambição, traição, vileza de costumes...
É interessante notar que não somente historiadores modernos denunciam falhas tais, mas
também pregadores e cronistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séculos XII e XII),
perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele exército de seus servidores ou
por que consentira na perda da Cidade Santa Jerusalém. - Em resposta, julgavam que o pecado devia
ser a causa de tais insucessos; em conseqüência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados.
Entre outras instâncias, o Concílio de Lião I em 1245 também fez advertências a procedimentos
indignos dos cruzados; cf. Mansi, Condiiorum amplíssima collectio XXIII, p. 628. À vista destes
dados, dir-se-á que as Cruzadas representam um ponto negro da história Medieval?... Quem assim
julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo injusto.
95 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

2.2. Quadro geral: apreciação


Não se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas representam.
Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental
na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espírito cavaleiresco,
corajoso e magnânimo.
A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram às armas para se exprimir
concretamente... Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a
condená-la. Atualmente os homens têm meios de confrontar suas divergências mediante reuniões,
assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teoria...) as soluções violentas (na prática,
porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos motivos).
Contudo na Idade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituíam barreiras quase
intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação física e a superação de suas
divergências; julgavam em muitos casos ter que recorrer às armas para preservar seus valores e
garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas
mereceria censura.
Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira
duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por
dois séculos, à custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e
tenazmente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que
outros não haviam conseguido realizar plenamente. Assim deixaram eles à posteridade o testemunho
de sua fé.
Não se poderiam silenciar, outrossim, os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural
e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasionou incremento para a
matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu
a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande
surto das artes e das ciências ditas "exalas" nos séculos XV / XVI.
2.3. Fatores negativos
O entusiasmo que desencadeou as Cruzadas era mais idealista do que realista; os seus arautos
não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta do programa devia
acarretar. É o que explica que os cruzados, após haver obtido os seus primeiros resultados, tenham
experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:
1) A amplidão da tarefa empreendida pelos cruzados exigiu, com o passar do tempo, o recurso a
subsídios novos e necessariamente heterogêneos, a saber:
- Os cavaleiros e outros cristãos que entusiasticamente se ofereciam para assumir a cruz, já não
bastavam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercenários, que pugnariam não tanto por
ideal cristão, mas, sim, por interesses pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram
antigos criminosos detentos, a quem se dava a liberdade à condição de que fossem lutar no Oriente.
Ora compreende-se que tais soldados, vendo-se livres, facilmente voltavam aos maus hábitos e
prejudicavam o conjunto da tropa. Assim foi sendo cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que
galhardamente partia para a Terra Santa às próprias custas, porque amava o Senhor Jesus.
- As despesas com os soldados mercenários e seus equipamentos eram ingentes, exigindo dos
responsáveis que procurassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes. Ora onde entra
dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas paixões, que levam a abusos e
desatinos.
Infelizmente não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma
expedição de cruzados. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em média percebia, quanto os reis
davam do seu erário e quanto o Papa empenhava nas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida,
notícias a respeito. Todavia os diversos dados supõem épocas diversas, as quantias são expressas em
moedas heterogêneas, as noticias são parceladas, de sorte que é difícil ter ideias claras do conjunto.
Apenas as duas Cruzadas de S. Luís IX têm cena contabilidade escrita em livros; sabe-se, pois, que o
total das despesas da campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570 libras de Tours. Mesmo assim
há dúvidas: outra documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu
1.053.476 libras de Tours!
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 96

- De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais
indicado e preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta
Cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para
Constantinopla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que
procuraram servir aos seus interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico
II e Luís IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham
que utilizar os navios das cidades comerciantes da Itália ou da França (Veneza, Gênova, Pisa,
Marselha...), que, em troca, exigiam para si direitos e privilégios nos portos da Palestina.
- O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis,
príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cavaleiros,
organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis e grandes senhores nem sempre se
entendiam entre si; objetivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças
previamente contraídas (levem-se em conta a primeira e a terceira Cruzadas). - Notório é o caso de
Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.
2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres
e outros males, que já os pregadores e o Concilio de Lião l censuravam...
O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas a
nota característica ou uma das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados
como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas
"compensações" depois de haver sofrido os rigores da fome, da sede, do frio e de severa disciplina
durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chegavam finalmente à costa da Palestina
doentes, vitimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e gozo.
- Nem por isto tais "compensações" são legítimas.
Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em
síntese, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram
indicados nestas páginas.
Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas,
ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da época) a unidade e a
homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé - valor que eles não
discutiam - o estimulo e o dinamismo para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela
virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas...!

MÓDULO 32: A INQUISIÇÃO (I)


A Inquisição não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos
séculos. Por isto distinguem-se: 1) A Inquisição Medieval, voltada contra as heresias catara e valdense
nos séculos XII / XIII e contra falsos misticismos nos séculos XIV / XV;
2) A Inquisição Espanhola, instituída em 1478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando
principalmente aos Judeus e muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos
monarcas espanhóis até o século XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição
eclesiástica (não raro a Inquisição Espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo à
intervenção da Santa Sé, porque o rei de Espanha a esta se opunha);
3) A Inquisição Romana (também dita "o Santo Ofício"), instituída em 1542 pelo Papa Paulo III,
em vista do surto do protestantismo.
Apesar das modalidades próprias, a Inquisição medieval e a romana foram movidas por
princípios e mentalidade características. Passamos a examinar essa mentalidade e os procedimentos de
tal instituição, principalmente como nos são transmitidos por documentos medievais.

Lição 1: Antecedentes da Inquisição


Contra os hereges a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão; não
pensava em usar a força bruta.
Quando, porém, o Imperador romano se tornou cristão, a situação dos hereges mudou. Sendo o
Cristianismo religião de Estado, os Césares quiseram continuar a exercer para com este os direitos dos
Imperadores romanos (Pontífices maximi) em relação à religião paga; quando arianos, perseguiam os
97 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

católicos; quando católicos, perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo
atentado contra a religião oficial como atentado contra a sociedade; não se deveria ser mais clemente
para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para com os crimes de lesa-majestade
humana.
As penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de fazer testamento, a
confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida pelo poder civil aos maniqueus e aos
donatistas; aliás. Já Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os
maniqueus, que eram contrários à matéria e aos bens materiais.
S. Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os
danos causados pelos donatistas (circumceiliones), propugnava os açoites e o exílio, não a tortura
nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia,
pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides, fé) a Deus do que a mulher trair o
marido (epist. 185, no 21, a Bonifácio). Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a
abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade.
As sentenças dos Padres da Igreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João
Crisóstomo (1407), bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a
execução de um herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A execução
de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em Tréviris (385), foi geralmente condenada pelos
porta-vozes da Igreja, principalmente por S. Martinho e S. Ambrósio.
Das penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem
nos mosteiros, donde foi transferida para a vida civil.
Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos com penas civis assim como
aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois,

Lição 2: As origens da Inquisição


No antigo Direito Romano, o Juiz não empreendia a procura dos criminosos; só procedia ao
julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta Idade Média, o mesmo se deu na
Igreja; a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não lhe fossem previamente
apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se insuficiente. Atém disto, no séc.
XI apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária,
como não houvera até então: o catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses
(de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal). Considerando a
matéria por si má, os cátaros rejeitavam não somente a face visível da Igreja, mas também instituições
básicas da vida civil — o matrimonio, a autoridade governamental, o serviço militar — e enalteciam o
suicídio. Destarte constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida
pública; ver módulo 29.
Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam tumultos,
ataques às igrejas, etc,, por todo o decorrer do séc. XI até 1150 aproximadamente, na França, na
Alemanha, nos Países-Baixos. . . O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil se
encarregavam de os reprimir com violência; não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e
a contra-gosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que solapavam os
fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo, em Orleães (1017), onde o rei
Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame
dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se identificava com
a fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão,
interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido
combatida por violência física; S. Agostinho (+ 430) e antigos bispos, S. Bernardo (+1154), S.
Norberto (+1134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força ("Sejam os hereges
conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São Bernardo, In Cant, serm. 64).
Não são casos isolados os seguintes; em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente
um grupo de inovadores que aí se introduzira: o clero, porém, os salvou, desejando a sua conversão, e
não a sua morte. Em 1077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 98

populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana, à qual
atearam o fogo!
Contudo em meados do século XII a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: os
magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo. Muito significativo,
por exemplo, é o episódio seguinte; o Papa Alexandre III, em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e
ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens:
“Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes... A
mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza... Não queiras ser justo demais / noli
nimium esse iustus)”
Informado desta admoestação pontifícia, o rei Luís VII de França, irmão do referido arcebispo,
enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam
simultaneamente:
"Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que
possa crescer. Suplico-vos para bem da fé crista: concedei todos os poderes neste campo ao arcebispo
(de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua justa severidade será louvada por
todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as
queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas
recriminações da opinião pública" (Martène, Amplíssima Collectio // 683s).
As conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o concílio regional
de Tours em 1163, tomando medidas repressivas à heresia, mandava inquirir (procurar) os seus
agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Itália), à qual compareceram o Papa Lúcio
III, o Imperador Frederico Barba-roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou em 1184 um
decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido
independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este recorrendo à força física),
deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: os hereges seriam doravante
não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por
pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, barões e as
demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado
sobre as suas terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço
secular, que lhes imporia a sanção devida.
Assim era instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram os precedentes,
atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do
povo cristão; independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a repressão física
das heresias.
No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era insuficiente para
deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes; além disto,
tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente.
À vista disto, os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de
plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte surgiu a "Inquisição
pontifícia" ou "legatina", que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a
tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em
1233, quando o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante,
para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de
numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários. . .), em geral independentemente do
bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo
sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de Concílios.
Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra os sectários.
Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos
adversários que o Papado teve no séc, XIII. Em 1220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu
governo, prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela Igreja; declarou a heresia
crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224 publicou
decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: as autoridades
civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo
99 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado
a vida. E possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens
confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo entrado em luta contra o
arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não
obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por
exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los,
marcá-los com ferro vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu
aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento
contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro
desencadeado independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a própria Igreja. A
Inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência
das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.
Em síntese, pode-se dizer o seguinte:
1) A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas
recorria às espirituais (excomunhão, interdito, suspensão...).
Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais. E por quê?
2) As heresias que surgiram no século XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser
problemas de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem
vigente e convulsionavam as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.
3) O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da pátria e da família hoje.
Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte, as
heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.
4) Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades — a civil e a eclesiástica - tenham
finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época
aos grandes delitos.
5) A Igreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela
exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da
Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII da França.
6) De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada
por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus
adversários políticos.
7) Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao
antigo estado de coisas, em que as populações faziam Justiça pelas próprias mãos. é de notar que
nenhum dos Santos medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da mansidão)
levantou a voz contra a Inquisição, embora soubessem protestar contra o que lhes parecia destoante do
ideal na Igreja.

MÓDULO 33: A INQUISIÇÃO (II)


Lição 1: Procedimentos da Inquisição
As táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois ainda se conservaram
Manuais de instruções práticas entregues ao uso dós referidos oficiais. Quem lê tais textos, verifica
que as autoridades visavam a fazer dos juízes inquisitoriais autênticos representantes da Justiça e da
causa do bem. Bernardo de Gui (séc. XIV), por exemplo, tido como um dos mais severos
Inquisidores, dava as seguintes normas aos seus colegas:
"O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das
almas e pela extirpação das heresias. Em meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá à
cólera nem à indignação... Nos casos duvidosos, seja circunspecto, não dê fácil crédito ao que parece
provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o
que parece improvável freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor da verdade
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 100

e a piedade, que devem residir no coração de um juiz. brilhem nos seus olhos, a fim de que suas
decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade" /'Prática VI p.. . ed. Douis 232s).
Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia
crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo eqüitativo e bom, se realizou com
mais freqüência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém, (como adiante mais
explicitamente se dirá) que as categorias pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram
exatamente as da época moderna... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do Juiz, sempre
difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e as autoridades civis estavam
profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo que, não raro exerciam pressão para
obter a sentença mais favorável a caprichos ou a interesses temporais; às vezes, a população obcecada
aguardava ansiosamente o dia em que o veredictum do Juiz entregaria ao braço secular os hereges
comprovados. Em tais circunstâncias não era fácil aos Juízes manter a serenidade desejável.
Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção a tortura e a entrega ao
poder secular (pena de morte).
A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem obrigar um
escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em 866, porém,
dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente.
Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios do
séc. XII, dado o renascimento do Direito Romano. Nos processos inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV
acabou por introduzi-la em 1252, com a cláusula: "Não haja mutilação de membros, nem perigo de
morte" para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu
tempo (Bullarum amplíssima collectio II 326).
Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram restringir a
aplicação da tortura; só seria lícita depois de esgotados os outros recursos para investigar a culpa e
apenas nos casos em que já houvesse meia-prova do delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois
"índices veementes" deste, a saber: o depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro
lado, a má fama, os maus constumes ou tentativas de fuga do réu. O Concílio de Viena (França) em
1311 mandou, outrossim, que os Inquisidores só recorressem à tortura depois que uma comissão
julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular. - Apesar de tudo
que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido conciliada com a mentalidade do mundo moderno...;
ainda estava oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos
dias. . .
Quanto à pena de morte, reconhecida pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição
civil da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias à sua aplicação
em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo (séc. XII), alguns canonistas
começaram a Julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do Imperador Justiniano, que no séc. VI a
infligira aos maniqueus. Em 1199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos
seguintes termos:
"Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus bens são
confiscados. . . Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a Jesus, o
Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de seus bens. pois muito
mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana" (epist. 2, V.
Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas Justificar a excomunhão e a
confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova praxe.
. . O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas conseqüências: tendo lembrado numa
Constituição de 1220 a frase final de Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a
Lombardia a pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais
casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido
à cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa
Gregório IX, que tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo;
transcreveu em 1230 ou 1231 a Constituição imperial de 1224 para o Registro das Cartas Pontifícias e
em breve editou uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem
101 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação de
Frederico II, seria a morte pelo fogo.
Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia S.
Tomás de Aquino:
"É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificara moeda, que é um
meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom
direito. condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que
sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser
condenados à morte" (Suma Teológica II / II 11, 3c).
A argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida
da alma mais vale do que a do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do
próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a
remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II / II 11,4c).
Contudo as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente
faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de Pamiers, de 1303 a
1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao
poder civil (o que equivalia à morte); o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323,
proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no
segundo caso, de 1/22.
Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos Juizes
inquisitoriais. Tais males se devem à conduta de pessoas que. em virtude da fraqueza humana, não
foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os Inquisidores trabalhavam a distâncias mais ou
menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e comunicações,
não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da Igreja. Esta, porém, não deixava
de os censurar devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em tal ou tal
região.
Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto o Bugro. Inquisidor-Mor de França no século XIII. O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo aderido outrora à
heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da mesma. Informado dos desmandos
praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e mandou encarcerar. — Inocêncio IV,
o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV,
respectivamente em 1246e 1256, mandaram aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e
Franciscanos, depusessem os Inquisidores de sua Ordem que se lhes tornassem notórios por sua
crueldade.
O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes,
foi um dos que mais reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando examinar, ou simplesmente
anulando, sentenças proferidas por estes.
O Concílio regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir
abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só proferissem sentença
condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta, "pois mais vale deixar
um culpado impune do que condenar um inocente" (cânon 23).
Dirigindo-se ao Imperador Frederido II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX
aos 15 de Julho de 1233 lhe lembrava que "a arma manejada pelo imperador não devia servir para
satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das populações, com detrimento da
verdade e da dignidade imperial" (ep. saec. XIII 538-550).

Lição 2: Avaliação
Procuremos agora formular um juízo sobre a Inquisição medieval.
Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. é preciso, porém, que
se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a instituir a
Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas,
diríamos até: deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os
fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 102

1) os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande
era o amor à fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um
dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de S. Tomás e do Imperador
Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse
alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.
2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia muito
mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os
medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio
abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se
quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens
modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios relativos
e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).
3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da
Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da pena de morte aos
hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos
abusos motivados peta cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o
temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese. tão unidos entre si que lhes parecia normal,
recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios do séc.
XIV a Inquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus
interesses particulares, subtraindo-a às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a
contra este; é o que aparece claramente no processo inquisitório dos Templários, movido por Filipe o
Belo da França (1285-1314) à revelia do Papa Clemente V; cf. módulo 25.
4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria
lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses atos de fraqueza; ao
contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais
oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à
Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na
execução concreta das leis.
Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio: na
antiguidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No Império
Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu Império (oikouméne
— orbe habitado — Imperium), nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época
contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da técnica para
"lavar o crânio", desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os
medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem
moderno, com razão, julga demasiado violentas?
Quanto a Inquisição Romana, instituída no séc, XVI, era herdeira das leis e da mentalidade da
Inquisição medieval. No tocante à Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais por influência dos
monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema autoridade da Igreja. Ver módulo 42.

MODULO 34: SANTA JOANA D’ARC


Lição 1: A figura de Joana d’Arc
1.1. Os precedentes
O cenário histórico em que aparece Joana d'Arc, é o da guerra dita "dos Cem Anos" (1337-1453)
entre a França e a Inglaterra.
Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI.
Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique
V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental
estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422,
morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu
sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade
103 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

de Orleaes. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário,
permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
1.2. Intervenção de Joana
Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler
e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes,
que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida;
exortavam-na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se
repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? - Note-se que a alucinação
significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora
em toda a conduta de Joana d'Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual
ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram.
Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das "alucinações".
Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio
levou-a então à presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a,
o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o
capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a ter com o rei Carlos VII, acompanhada
por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A
donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que
ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado
entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleaes. Todavia aquela
jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo insistido, Joana foi
submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo
resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a
nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de
Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um
estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio
de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleaes, dando entrada na cidade a
Joana d'Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia — o
que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: "Gentil
roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus".
Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil,
muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne, foi
presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e
a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser Julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a
donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. — Este plano haveria
de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais
persuasivos.

Lição 2; Mentalidade do século XV


Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidos contra
Joana d'Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:
a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu
intermédio libertar a França. — Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam
demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influência do
demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. — Caso isto ficasse comprovado, também o rei Carlos
VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual
havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.
b) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de
que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 104

Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um
soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a
colaboração do céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos
sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações. . . As calamidades que assolavam a
França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de
falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la
Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? — Além disto, o
espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a
cavalgar Junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma
virgem crista se ou desse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos
contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito-
c) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de grande
autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores
dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais
moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente
contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões
mais do que pelas ideias dos professores; queira passar por mais perita do que os capitães do exército,
sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
A luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora

Lição 3: O desfecho da história de Joana


Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira,
encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa
dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas
mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi
constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da
Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão,
Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, aos quais o governo
inglês fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas
aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo
diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de
tal tribunal.
Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a
interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu
sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: "Peço que me leveis à
presença do Senhor nosso, o Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder". "Tudo que
eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!" Em vão,
porém, apelou.
Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege,
relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de
1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a
Cauchon: "Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja, . . . isto não
teria acontecido."
A opinião pública viu se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a
massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos. Conseqüentemente,
pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos Vil deu início a uma
revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável à jovem. Seguiu-se em 1455 o
inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após
numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa
105 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do "processo do processo",


reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d'Arc, reconhecendo-lhe os
méritos e a santidade em 1920.
Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da -Idade
Média: na época da Renascença o adjetivo "gótico" vinha a ser sinônimo de "bárbaro"; quebravam-se
os vitrais das catedrais para substituí-los por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard
(+1585), imitador dos clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de "séculos
grosseiros"; mais tarde, Voltaire (+1778) e ainda Anatole France (+1924) mostravam-se diretamente
infensos à jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um
juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente
medieval de Joana d'Arc.
Em conclusão: a condenação de Joana d'Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais,
porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.
Trata-se de um processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a
opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela
época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de Juizes de Joana
d'Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade suprema da Igreja, mas, sim, por autoridade a
eles conferida pelo rei da Inglaterra.
Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e
canonização de Joana d'Arc.

MÓDULO 35: WICLEF E HUS


A decadência da disciplina eclesiástica, as desgraças do tempo do Grande Cisma (1378-1417)
eram circunstâncias propícias a que se originassem e programassem heresias populares nos séculos
XIV / XV, Os seus fundadores são ditos "Reformadores antes da Reforma", pois de certo modo
antecipam os princípios básicos dos Reformadores do século XVI: exaltação unilateral da S. Escritura
como fonte de fé, rejeição da Tradição e da hierarquia, nacionalismo em oposição à Igreja Romana
Universal.
Desses pré-reformadores, Já vimos Guilherme Occam e Marsílio de Pádua (cf. módulo 26).
Outros foram, além destes dois, a saber: o inglês John Wiclef (1320-84) e o feneço Jan Hus (1370-
1416).

Lição 1: O Wiclefismo
John Wiclef (1320-84) era um nobre inglês que se fez sacerdote, professor de Filosofia e
Teologia na Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um espiritualismo
exagerado. Os cristãos na Inglaterra sempre, tenderam a se isolar do resto da Igreja (talvez por sua
posição geográfica insular)54; ora o separatismo dos ingleses fornecia clima propício às ideias de
Wiclef,
Em 1366 o Parlamento inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João
sem Terra a Inocêncio III em 1213,... impostos que, havia 33 anos, já não eram pagos; ver módulo 23.
Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef afirmava que os bens
temporais são nocivos à Igreja e que os príncipes têm o direito de se apossar dos mesmos quando os
clérigos não os utilizam devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades
da Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero. Wiclef tinha em mira especialmente os
mosteiros.

54
Podem-se mencionar a propósito os artigos de Clarendon, promulgados sob Henrique II da Inglaterra, que em 1164
proibiam o clero de apelar para Roma, limitavam as viagens dos prelados ao exterior. e concediam ao rei grande
autoridade sobre a Igreja. Lembremos também as figuras de. S. Anselmo, que lutou contra Guilherme II e Henrique I em
1093-1109, e de S. Tomás Becket (1162-70) contra Henrique II.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 106

Tais ideias encontravam eco na corte e entre os nobres. A Inglaterra estava debilitada por causa
de seus insucessos na guerra dos Cem Anos contra a França; por isto era tentada a apoderar-se dos
bens da Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou dezoito teses de Wiclef; todavia a hierarquia
inglesa receava proceder contra o herege por causa do seu prestígio na Inglaterra.
Depois da irrupção do Grande Cisma do Ocidente (setembro de 1378), Wiclef atacou o Papado,
afirmando que a Igreja não subsiste com a hierarquia, mas é uma comunidade invisível de
predestinados; o verdadeiro Papa é Cristo e cada crente é um verdadeiro presbítero diante de Deus; o
Papado seria mesmo uma instituição do Anticristo. A S. Escritura seria a única norma de fé; Wiclef
mandou traduzir o texto da Vulgata latina para o inglês, merecendo por isto ser chamado "o Doutor
Evangélico". Rejeitava a real presença de Cristo na Eucaristia; o cristão só receberia espiritualmente o
corpo e o sangue de Cristo; a confissão auricular seria uma instituição tardia. Mandava sacerdotes
pobres e leigos dois a dois a pregar a "Lei de Deus"; os fiéis católicos chamavam esses pregadores
tolardos (de lollium, joio), denominação esta que provinha dos Países-Baixos, onde designava
sectários e hereges inflamados.
As ideias de Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em
1381 moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef foi responsabilizado por essa
revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um Sínodo de Londres em 1382 condenou sua doutrina.
Wiclef retirou-se então para a sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando
escritos polêmicos em latim e em inglês. O Wiclefismo continuou a se propagar, mesmo perseguido,
criando o ambiente receptivo às ideias do século XVI.

Lição 2: João Hus


A messe do wiclefismo, que não pôde amadurecer na Inglaterra, amadureceu melhor no
continente. Ana, irmã do rei Venceslau da Boêmia, estava casada com o rei Ricardo II da Inglaterra.
Isto permitia que no século XIV muitos boêmios fossem estudar em Oxford, e muitos ingleses em
Praga. Assim vários wiclefistas perseguidos na Inglaterra encontravam refúgio em Praga. O cidadão
Jerônimo, da Boêmia, que estudava em Paris e Oxford, levou para Praga as principais obras de
Wiclef; ele e seu amigo João Hus tomaram a peito propagar o wiclefismo. Também o solo da Boêmia
estava preparado para a fermentação de tais ideias, pois, além de vestígios de antigas seitas (cátaros,
valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram notáveis.
João Hus era sacerdote, professor de Filosofia na Universidade de Praga, e exercia as funções de
diretor espiritual na corte. Era homem de costumes irrepreensíveis, bom orador e fanático tanto por
motivos religiosos como por razões nacionalistas (os boêmios começavam a se erguer contra o
domínio político e cultural dos alemães); certamente as tendências nacionalistas da população muito
favoreceram as ideias de Hus.
O wiclefismo encontrou, a princípio, resistência. O arcebispo Sbinko de Praga mandou queimar
escritos de Wiclef, excomungou Hus e seus partidários em 1410 e lançou o interdito sobre Praga em
1411. Tais medidas, porém, tiveram pouco êxito. O pregador retirou-se então para o castelo de um
nobre seu amigo, para onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O hussismo em breve alcançou
influxo predominante na Boêmia.
A apostasia de quase um povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental. O Imperador
Sigismundo da Alemanha, irmão do rei Venceslau da Boêmia, convidou Hus a comparecer no
Concílio de Constança; o herege, de fato, lá apareceu em novembro de 1414, esperando ganhar os
conciliares para a sua doutrina; ver módulo 28. Hus, porém, só encontrou adversidade e rejeição; foi
encarcerado e, como não quisesse renunciar às suas teses, foi condenado como herege em 1415. A
mesma sorte sofreu o seu companheiro Jerônimo de Praga onze meses mais tarde.

Lição 3: A história do hussismo


É história assaz complicada.
A execução de Hus foi recebida na Boêmia como uma ofensa à nação. A reação hussista-
nacionalista foi violenta; os sacerdotes não hussistas foram, em grande número, expulsos. A rainha
Sofia e damas nobres tomaram aberto partido por Hus como herói e mártir nacional. Quase toda a
nobreza da Boêmia e da Morávia mandou um protesto para Constança, afirmando que Hus fora
107 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma "heresia boêmia" eram invenção do inferno. Ao mesmo
tempo formou-se uma Liga para a defesa da liberdade de pregação, para a proteção contra a
autoridade episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a praxe do "cálice dos leigos" (comunhão
sob as duas espécies)55 como símbolo da facção hussista. Esta dominou a Boêmia quase totalmente
durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau restabeleceu os sacerdotes expulsos — o que deu lugar
a revolução violenta; foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do
coração em conseqüência deste golpe. Ao seu irmão e sucessor. Sigismundo os hussistas negaram
obediência, como perjuro e assassino de Hus. Assim começaram as guerras hussistas (1420-31). O
Papa Martinho V convocou uma cruzada contra tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas
de Sigismundo foram derrotados por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam os hussitas
extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). Os hussistas mitigados foram chamados
utraquistas (de sub utraque specie, sob ambas as espécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e
Sigismundo. Os Taboristas, ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar os
sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia, abraçaram ideias
apocalíptico-milenarista56; proclamavam a abolição de todas as diferenças de classes; na região que
eles dominavam, dava-se total transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de
igrejas e de mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os Taboristas devastaram a
Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o mar do Norte, sob a direção de André Procópio o Velho,
sacerdote católico apóstata.
Já que não era possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas
procuraram a via das conversações. O Concílio de Basileia convidou os hussistas a comparecer — o
que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por quinze delegados de ambos os partidos
(taboristas e utraquistas), formularam suas reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos
leigos, proibição de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos abusos contra a "lei
de Deus". As conversações no Concílio foram úteis, mas terminaram em Praga com um acordo dito
Compactata Pragensia (30/11/1433); os quatro postulados hussistas foram aceitos com certas
restrições: 1) o cálice dos leigos, desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que Cristo está todo
presente sob ambas as espécies; 2) a pregação livre desde que realizada por sacerdotes aprovados; 3) a
punição dos pecados mortais, desde que públicos, por iniciativa das autoridades competentes, e não de
pessoas particulares; 4) a administração idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.
Os taboristas recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os católicos
em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e reconheceu Sigismundo
como rei.
O nome "hussista" foi desaparecendo aos poucos. Aqueles que faziam uso do cálice dos leigos,
foram chamados simplesmente "utraquistas" ou "calixtinos", enquanto os outros católicos da Boêmia
eram ditos "subunistas ou "unistas". A situação da Igreja ainda ficou agitada por muito tempo na
Boêmia; até os nossos dias há vestígios de hussismo no nacionalismo tcheco.
Alguns utraquistas não se deram por satisfeitos com o acordo oficial e procuraram novas formas
de religião; eram camponeses que apregoavam uma vida de trabalho manual agrícola, retirada do
convívio social e político, e urna Igreja despojada e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido
da "Unidade dos Irmãos" (Unitas Fratrum) ou dos Irmãos Boêmios; muitos deles incorporaram-se
finalmente aos luteranos no século XVI.
Somente em 1629 o edito de "Restituição" do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as
duas espécies entre os católicos da Boêmia.
Reflexão final: como se vê da exposição feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias
relacionadas não só com a teologia, mas também com os problemas sociais dos séculos XIV / XV. —
As guerras devastaram a Europa nestes dois séculos; a de Cem Anos (1337-1453), entre a França e a
Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre as Casas da Borgonha e de
Orleães, na França; os Países Baixos eram sacudidos por guerras civis entre nobres e democratas; na

55
Em linguagem teológica, chamam-se "espécies eucarísticas" os acidentes do pão e do vinho (tamanho, cor, odor. . .) que
acompanham o corpo e o sangue de Cristo realmente presente.
56
Ideias apocalípticas = ideias que anunciavam catástrofes iminentes e próxima intervenção do Senhor na terra. Ideias
milenaristas = ideias que previam um reino de mil anos de bonança na terra sob a chefia de Cristo.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 108

Alemanha, havia guerras entre príncipes, cavaleiros e cidades. À medida que os príncipes iam
centralizando o seu poder, a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes eram
os que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e angustiados ainda queriam viverá
custa destes.
Assim os tempos se tornaram cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos fortes
que obtinham vitórias, tomava proporções extraordinárias; em conseqüência, as insurreições dos
camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da sociedade; quem obtivesse vitória,
crivava os olhos e incendiava as casas dos adversários vencidos. O correr dos acontecimentos havia de
levar à revolução religiosa e social do século XVI, associada principalmente ao nome de Martinho
Lutero,... Revolução à qual se oporia a obra de renovação católica associada ao Concílio de Trento e à
floração de Santos que encheram o mesmo século XVI.

MODULO 36: VISÃO GERAL DA IDADE MODERNA. O


RENASCIMENTO
Lição 1: Introdução à História Moderna
Convencionalmente chamamos "História Moderna da Igreja" o período que vai de 1450 (início
do Renascimento) até 1929 (Tratado do Latrão entre o Vaticano e o Estado Italiano). Examinemos
algumas características desse período.
1.1. Marco inicial e conseqüências
Como linha divisória entre a Idade Antiga e a Idade Média, assinalamos as invasões bárbaras,
que modificaram o cenário humano no qual a Igreja teve que exercer sua ação evangelizadora; ver
módulo 16. - No limiar da Idade Moderna, porém, não se pode registrar um acontecimento militar
paralelo ao das invasões bárbaras, mas nota-se uma mudança de mentalidade que faz a divisa entre a
época medieval e a moderna. Essa mudança se deve ao Renascimento, que, aliás, foi preparado na
baixa Idade Média pelas críticas ao Papado e pela afirmação clamorosa de interesses nacionais da
França, da Alemanha, da Inglaterra...
Com outras palavras: na Idade Média reinou uma certa unidade entre os povos ocidentais —
unidade de cultura e de aspirações, fomentada pelo ideal da cidade de Deus, em que o Papado e o
Império colaborariam entre si. Na Idade Moderna, esta vasta unidade se dissolve sob os golpes do
nacionalismo e até do individualismo. A nova mentalidade desfere sucessivamente três golpes contra
o universalismo da Idade Média:
1) O Não à Igreja Católica é dito pela Reforma protestante (séc. XVI). Muitos homens
continuam a crer no Evangelho e em Jesus Cristo, não, porém, na Igreja fundada por Cristo. O
princípio subjetivo do "livro exame" estabelecido por Lutero dá lugar a um esfacelamento crescente
da Cristandade pela multiplicação de novas "igrejas";
2) No século XVIII foi dito um Não à religião revelada por parte do Racionalismo; este, aliás,
teve sua expressão mais pujante na Revolução Francesa (1789). Muitos pensadores passaram a
professar o deísmo (crença em Deus como ser reconhecido pela razão natural apenas), em lugar do
teísmo (crença em Deus que se revelou pelos profetas bíblicos e por Jesus Cristo).
3) No século XIX registrou-se finalmente o Não ao próprio Deus oriundo do ateísmo em suas
diversas modalidades (positivismo, socialismo, marxismo...). A tomada de consciência da história e da
sua influência, ta como Darwin e os evolucionistas a propuseram, contribuiu para disseminar o
historicismo, isto é, o apelo para a história, que parece opor-se à verdade perene e inabalável. Daí o
relativismo e o ceticismo, que impregnaram muitas correntes de pensamento de então até os nossos
dias.
A mudança de mentalidade foi-se realizando em velocidade crescente, principalmente a partir de
meados do século passado (1850): o desenvolvimento das ciências e da técnica deixou os homens
mais ou menos atordoados diante de perspectivas inéditas, sem que soubessem, de imediato, fazer a
síntese dos novos valores com os clássicos,
4) Em nossos dias, Já na Idade contemporânea, registra-se um retorno aos valores perenes, que a
Igreja guardou fielmente através da borrasca. Muitos se dão por desiludidos do cientificismo e do
109 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

tecnicismo, e procuram de novo no Transcendental os grandes referenciais do seu pensar e viver. A


guinada para o ateísmo cede lugar de novo à consciência do mistério de Deus e dos valores místicos,
sem os quais a vida humana se auto-destrói.
1.2. A face visível da Igreja
A Reforma protestante fez que o cenário da história da Igreja na Europa se restringisse, pois uma
parte dos povos anglo-saxônicos e germânicos se tornou protestante. - De outro lado, porém, esse
cenário se dilatou enormemente, pois as novas terras descobertas ao Ocidente, ao Oriente e na África
se tornaram campo da ação missionária da Igreja, com novos e novos desafios para a evangelização.
Diante das questões lançadas pelos acontecimentos modernos, a Igreja teve que tirar do seu bojo
as respostas adequadas, entre as quais:
1) organização cada vez mais minuciosa; com tendência a centralizar sempre mais o governo da
Igreja; em conseqüência, no ano de 1870 foi definido o primado de jurisdição e de magistério do
Romano Pontífice (de acordo, aliás, com as convicções vigentes desde a Idade Antiga da Igreja);
2) especialização das forças da Igreja para atender aos novos problemas — o que se deu
especialmente pela fundação de novas famílias religiosas, de objetivos bem definidos (a Companhia
de Jesus, as Congregações Missionárias, as dedicadas ao ensino, aos doentes, à infância
abandonada...);
3) a distinção sempre mais nítida entre a missão espiritual (perene) e as funções temporais ou
políticas (passageiras) do Romano Pontífice. O Estado Pontifício caiu em 1870, ano preciso em que se
afirmava o primado espiritual do Papa, e só se reergueria em termos diminutos no ano de 1929;
4) a teologia passou a preocupar-se com o rigor das fórmulas de fé; tomou também um caráter
apologético (ou defensivo) diante das objeçÕes de cristãos não católicos e de ateus;
5) a expansão da Igreja na América, na África e no Oriente deu nova vitalidade à Igreja,
garantindo-lhe o apoio de povos Jovens.
Como as demais épocas, a fase moderna da História da Igreja teve seus traços luminosos e seus
momentos sombrios. A Igreja se viu aos poucos despojada do apoio do braço secular (que muitas
vezes a sufocou) e de recursos humanos, para ter que agir mais e mais a partir da sua vitalidade
própria; esta veio à tona especialmente na figura de santos e heróis, que souberam dar coerente
testemunho de Cristo nesses quatro séculos.

Lição 2: Renascimento
2.1. Renascimento ou Humanismo
O nome Renascimento designa a redescoberta da cultura clássica greco-latina, que parecia ter
adormecido na Idade Média e que nos séculos XIV / XV vieram de novo à tona.
Houve na Idade Média mais de um Renascimento; assim o anglo-saxão, com S. Beda o
Venerável (673-735); o carolíngio, sob Carlos Magno (século VIII / IX); o do Direito Romano, em
fins do século XII. O Renascimento, porém, dos séculos XV / XVI diferia dos anteriores pelo fato de
que os eruditos não somente descobriam e estudavam manuscritos e monumentos da cultura greco-
latina pré-cristã, mas também queriam viver de acordo com a mentalidade que eles inspiravam,...
mentalidade pagã, naturalista e antropocêntrica. — A natureza humana, como tal, tornou-se o critério
ou o Supremo Arbitro de todos os valores; era considerada com otimismo. Os estóicos, no fim da
Idade pré-cristã, exclamavam: "Segui a natureza!"; tal era o seu ideal de vida. Ora os renascentistas do
século XVI proclamavam: "Voltai à natureza!". Isto significava um adeus em grau ora maior, ora
menor, aos valores cristãos, que apregoam a salvação pela Cruz e pela renúncia aos apetites
desregrados da natureza.
É esse culto à natureza humana que explica a designação "Humanismo" dada ao Renascimento;
esse humanismo tinha por modelo, em grande parte, o homem antigo pré-cristão.
2.2. Renascimento: traços típicos
A Itália foi o principal berço e cenário do humanismo renascentista, pois lá estavam guardados
em bibliotecas empoeiradas os manuscritos e documentos dos homens greco-romanos. A navegação
freqüente da Itália para a Grécia e o Oriente facilitou, Já na Idade Média, a entrada de homens e
valores bizantinos em Veneza, Gênova, Florença. Alguns italianos foram, nos séculos XIV / XVI,
estudar em Constantinopla a filosofia e a literatura gregas. Mais: o Concilio de Ferrara-Florença
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 110

(1438-42) fez que muitos eruditos gregos e bizantinos fossem para a Itália; a queda de Constantinopla,
sob os golpes dos turcos, em 1453, obrigou vários sábios bizantinos a emigrar para o Ocidente. A
invenção da imprensa, no século XV, facilitou enormemente a difusão dos textos clássicos. Em
conseqüência, foram-se formando Academias em Roma e em Florença, cujos membros continuavam a
professar o Cristianismo, mas viviam, ora mais, ora menos, segundo os costumes do paganismo,
especialmente no tocante à libertinagem sexual: em lugar da humildade cristã manifestava-se a
consciência do próprio eu, árbitro de todas as coisas; em lugar do transcendente e do Reino dos céus,
procurava-se o terrestre com sua beleza ou a eternidade realizada na fama de um nome célebre; em
lugar da meditação e da oração, tomaram voga a ação e a violência.
Não há dúvida de que essa redescoberta dos valores clássicos beneficiou a Igreja: houve
humanistas cristãos que estudaram o grego e o hebraico (línguas quase desconhecidas na Idade Média)
para poder ler os originais da S. Escritura e as obras de filosofia dos mestres antigos. Os Papas e os
Cardeais tornaram-se freqüentemente os patrocinadores de obras de arte renascentista, que até hoje
podem ser contempladas; mas nem sempre souberam distinguir o que havia de sadio e o que havia de
deteriorado nas expressões do humanismo, como será dito no módulo seguinte. O Renascimento
causou defecções entre cristãos; vários destes, empolgados pelos valores clássicos, desprezavam a
Igreja, criticando o seu latim (que não era o dos clássicos romanos) e o seu método de ensino.
Consideremos alguns dos expoentes do Renascimento.
2.3. Vultos mais famosos
1) Nicolò Macchiàvelli (1469-1527) era férvido patriota italiano, que levou ao extremo as ideias
do Imperador Frederico II (1215-50), da Alemanha, e de Filipe IV o Belo (1285-34), da França: o
Estado não só não está ligado à Igreja, mas também não à Moral. O Estado é soberano e constitui a
medida de todas as coisas; fica, pois, relegado o ideal da "Cidade de Deus"; as virtudes cristãs da
caridade e da humildade são fontes de fraqueza; a religião deve servir de meio para reforçar a
autoridade do Estado. Ao Príncipe é muito desastroso ser sempre honesto, mas é muito útil parecer
fiel, sincero, religioso... "A massa considera apenas as aparências e os resultados de um
empreendimento" (II Príncipe 18). Tais ideias haviam de nortear a política dos séculos XVI / XVII,
embora fossem na sua época teoricamente rejeitadas.
2) Pietro Pomponazzi (Pomponatius), 1462-1525, era um adepto dos sistemas filosóficos de
Aristóteles e dos Estóicos, contrariando assim a filosofia predominante na época, que era o
Platonismo. Professava a teoria da dupla verdade: o que é válido aos olhos da fé pode não o ser aos
olhos da razão; tal doutrina já fora proposta por seguidores de Aristóteles na Idade Média, entre os
quais o árabe Averroés (+1198Ï. Escreveu em 1516 a obra De immortalitate animae, que nega a
imortalidade da alma, e De Incantationibus (Sobre a Magia), negando a Providência Divina e os
milagres. As teorias de Pomponazzi foram condenadas pelo Concílio do Latrão V em 1513.
3) Desidério Erasmo de Rotterdam (1466-1536) è o principal dos humanistas germânicos;
brilhou pela multiplicidade do seu saber, pela vasta produção literária e pelo seu prestígio nos círculos
eruditos e nas cortes dos reis. Era ótimo conhecedor do grego e do latim. Difícil, porém, é caracterizar
a sua personalidade, pois o que o distingue é precisamente a ambigüidade; diante de um dilema, dizia
que nenhuma das partes opostas exprime perfeitamente a verdade; por isto proferia simultaneamente
um cético sim e não. Sentia-se fraco para confessar publicamente a fé cristã em caso de perseguição;
justificava-se, porém, e tranquilizava-se, afirmando que houve muitos mártires no Cristianismo, mas
os sábios e eruditos foram poucos.
Erasmo teve seus méritos, editando o Novo Testamento em grego assim como obras teológicas
gregas da antiguidade. Mas faltava-lhe fé profunda; era relativista; muito concorreu para a revolução
religiosa do protestantismo pela sua ironia mordaz e sua crítica a instituições e personalidades da
Igreja.
Em síntese, as atitudes dos humanistas podiam tornar-se afetadas e artificiais como dá a entender
o texto seguinte de Enéas Silvio Piccolomini, que, convertido, se tornou o Papa Pio II (1458-64):
"Somos aduladores, e não amigos... Creio que me entendes bem. Mas é preciso ser hipócrita, já que
todo o mundo o é, porque mesmo Jesus 'parecia querer ir mais adiante' (Lc 24,28). Tomemos os
homens tais como são" (carta de 28/12/1443).
111 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

MODULO 37: PAPAS DO RENASCIMENTO


A expressão "Papas do Renascimento" designa os Pontífices que governaram a Igreja na época
do Humanismo, favorecendo as artes em geral. Trata-se de: Nicolau V (1447-55), Calixto III (1455-8),
Pio II (1458-64). Paulo N (1464-71), Sixto IV (1471-84), Inocêncio VIII (1484-92), Alexandre VI
(1492-1503), Pio III (1503), Júlio II (1503-13) e Leão X (1513-21). Esta série foi gloriosa no seu
aspecto mundano e renascientista; mas não se pode dizer o mesmo do ponto de vista moral-
eclesiástico. Dedicaram-se ao brilho das artes, aumentando despesas com artistas e produções
artísticas; isto, porém, contribuiu para assemelhar a corte papal à de soberanos meramente temporais,
ficando de lado as necessidades urgentes da Igreja, que clamava por renovação de sua disciplina.
Criava-se assim o ambiente no qual o brado de Lutero encontraria particular ressonância. Se não se
tivessem envolvido de tal maneira em assuntos de ordem mundana e política, os Papas da época
teriam tido condições de evitar o doloroso cisma protestante.
Em nosso estudo destacamos três nomes, que mais atenção merecem.

Lição 1: Sixto IV (1471-84)


Francesco della Rovere era filho de família empobrecida. Fez-se franciscano, chegando a ser
Ministro Geral da sua Ordem; gozava de boa reputação por sua ciência teológica e sua vida
impecável. Por isto foi feito Cardeal. Todavia não tinha as aptidões necessárias para ser Papa, pois, na
sua simplicidade franciscana, nunca aprendera a administrar bens temporais. Ora, como Papa,
dispunha de grandes quantias, que ele distribuía sem muito refletir, com grandes vantagens para seus
familiares, na maioria pobres.
No tocante ao Renascimento, quis continuar o papel de seus antecessores, que visavam a fazer
de Roma o centro fulgurante da renovação artística. Muito enriqueceu a Biblioteca Vaticana, que ele
abriu ao uso público; construiu a Capela Sixtina, que foi ornada com belíssimas pinturas (tenha-se em
vista o quadro do Juízo Final de Michelangelo). Muito embelezou a cidade de Roma.
Contra o perigo dos turcos — que haviam tomado Constantinopla em 1453 —, planejou uma
Cruzada; mas os seus apelos pouca ressonância encontraram.
O nepotismo (favorecimento dos familiares) prejudicou grandemente o pontificado de Sixto IV.
Conferiu muitos e apreciáveis benefícios (cargos rentáveis) a quinze sobrinhos e familiares; um destes
era Giuliano delia Rovere (depois Papa Júlio III); outro era Girolamo Riaro, a quem entregou o
principado de Imola (parte do Estado Pontifício) e permitiu demasiado influxo nas suas próprias
decisões — o que levou o Papa a imiscuir-se desastrosamente nas contendas italianas da sua época.
Em reação contra os males que afetavam a corte pontifícia insurgiu-se o arcebispo André
Zamometic O.P., de Granea (Albânia). Em 1482 este foi a Basileia (Suíça), e procurou o apoio secreto
de diversas potências (França, Nápoles, Florença) para convocar um Concílio Ecumênico contra Sixto
IV; contava, aliás, com a simpatia de Basileia e outras forças políticas. Mas o Papa lançou o interdito
sobre Basileia, e André Zamometic lá morreu assassinado.
A situação de Sixto IV foi-se tornando cada vez mais lamentável. Para satisfazer aos seus
protegidos, aumentava os cargos na Cúria e elevava os impostos — o que fez que, por ocasião da
morte do Pontífice (1484), reinasse verdadeira anarquia em Roma.

Lição 2: Inocêncio VIII (1484-92)


Sucedeu a Sixto IV o nobre genovês Cardeal João Batista Cibò, que Giuliano della Rovere
(sobrinho do Papa defunto) quis impor aos eleitores. Tomou o nome de Inocêncio VIII (1484-92), Em
sua juventude levava vida de baixo teor moral, como, aliás, os nobres de sua época levavam; era pai
de dois filhos naturais (um rapaz e uma moça). Mas depois de sua ordenação nada se podia objetar à
sua conduta moral.
Os dois filhos lhe inspiraram muitos cuidados: a princípio não queria que seu filho Franceschetto
penetrasse no Vaticano, temendo escândalo. Aconselharam-lhe, porém, por razões políticas que
casasse Franceschetto com a filha de Lorenzo dei Medici (que tivera contendas com Sixto IV).
Inocêncio então quis que essas núpcias fossem celebradas no Palácio pontifício e presenteou a jovem
esposa com jóias no valor de 10.000 ducados. Quando a filha natural de Inocêncio IV se casou, o pai
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 112

tomou parte no banquete festivo. Isto tudo podia parecer aprovar feitos de juventude do nobre
genovês, francamente pecaminosos. Em agradecimento a Lorenzo dei Mediei, Inocêncio VIII nomeou
Cardeal seu segundo filho, Giovanni, de treze anos de idade (1489), o qual se tornou, mais tarde, o
Papa Leão X.
Na Cúria os funcionários eram freqüentemente corruptos. Em 1489 foi descoberta uma banda de
pessoas que falsificavam Bulas papais, ganhando enormes quantias de dinheiro. O número de
secretários papais foi elevado de 6 a 24 e, depois, a 30. A cobiça movia os cortesãos, sendo um dos
mais ávidos o próprio Franceschetto, que não poupava as casas dos burgueses de Roma nos assaltos
noturnos que ele dirigia.
Os Cardeais viviam em luxo e frivolidades; entregavam-se à caça, arriscando grandes
importâncias; promoviam festas, davam banquetes, participavam de jogos carnavalescos. — O de pior
fama era o espanhol Rodrigo Borja, desde jovem (em 1456) nomeado Cardeal e Vice-Chanceler por
seu tio Calixto III; vivia rodeado de mulheres. O Papa Pio II lhe chamara a atenção para tal vida
escandalosa, mas sem resultado. Nada mudou quando foi ordenado presbítero em 1468; de uma
senhora romana casada, Vanozza de Cataneis, o presbítero Rodrigo Borja teve quatro filhos: César,
Juan, Godofredo e Lucrécia, que não eram, aliás, os seus únicos filhos ilegítimos. Mandou legitimar
todos, conforme o Direito da época, e ocupou-se solicitamente do futuro deles. A mãe dos quatro
filhos vivia não longe do palácio do Cardeal.

Lição 3: Alexandre VI (1492-1503)


Os escândalos chegaram ao auge quando, por maquinações simoníacas, Rodrigo Borja subiu à
cátedra papal, que ele já antes cobiçava, com o nome de Alexandre VI (1492-1503).
A eleição deste Pontífice não causou surpresa nem sensação em Roma, Era tido como um dos
Cardeais mais dotados de inteligência e tino diplomático; dele se esperava bom regime, de mais a
mais que fizera muitas promessas neste sentido antes da eleição e no início do seu pontificado. A
coroação desse Papa sexagenário fez eco à mentalidade renascentista da época, pois uma inscrição
rezava: "Roma foi elevada à glória por um César; agora é elevada ao auge por Alexandre, Aquele foi
um homem, este é Deus".
O estado de ânimo do mundo contemporâneo a Alexandre VI reflete-se numa notícia devida ao
cronista alemão Hartmann Schedel, que escreveu poucos dias após a coroação do Pontífice:
"O eleito é varão de grande caráter e grande sabedoria, prudência e experiência política. Em
juventude estudou na Universidade de Bolonha, onde ganhou fama crescente de virtude, aplicação ao
trabalho e habilidade em todas as coisas, de sorte que o Papa Calixto III, irmão de sua mãe, o nomeou
Cardeal...; graças à sua experiência e ao conhecimento de todas essas coisas, ele se tornou mais apto
que qualquer outro para governar e dirigir o barco de São Pedro. Nele estão associadas a nobreza dos
modos, a veracidade, a sã razão, a piedade e o conhecimento de todas as coisas que convêm a tão
elevada dignidade e situação. Bem-aventurado aquele que é ornado por tantas virtudes e elevado a tão
alto grau de superioridade. Esperamos que trabalhe com utilidade para o bem comum da Cristandade,
que saiba encontrar seu caminho em meio aos furiosos assaltos da tempestade e através dos altos e
perigosos escolhos do mar, e atingir a desejada senda da glória celeste" (Chron. Chronicarum, 1493,
Jo 277b).
Este Juízo é certamente unilateral, mas revela algo da mentalidade da época: a consciência moral
parecia debilitada, de sorte que, sem grande embaraço, a sociedade passava por cima dos vícios e mais
atendia aos valores técnicos e intelectuais dos homens públicos.
Os primeiros atos do governo de Alexandre VI confirmaram os contemporâneos nas suas
esperanças. Procurou organizar a administração e a justiça em Roma (nos últimos tempos haviam sido
cometidos 220 assassinatos em Roma), e entrou em regime de economia tal que seus antigos convivas
se subtraiam aos convites para se sentar à mesa do Papa. Escrevia o embaixador de Ferrara, por
exemplo:
"O Papa manda servir um só prato... Ascagno, Sforza e outros... convivas ordinários de Sua
Santidade, julgando desagradável essa parcimônia, furtam-se à sua companhia e fogem todas as vezes
que o podem" (citado por Gregorius, L. Borja 87-88).
113 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

No tocante aos assuntos de ordem interna da Igreja, não se podem fazer graves censuras a
Alexandre; deixava as coisas correr conforme o costume e pouco se importava com eles. Todos os
cuidados do Pontífice cederam a uma preocupação dominante; conquistar para a família Borja um
poderio duradouro.
Em 1497 o Papa foi seriamente abalado pelo misterioso assassinato de seu filho Juan, cujo
cadáver foi atirado ao Tibre.57 Sob a impressão da dor, declarou num Consistório público: "Deus nos
submeteu a estas provas por causa dos nossos pecados". Tomou então providências para reformar sua
vida pessoal e os costumes da sociedade; chegou a nomear, para este fim, uma comissão dy seis
Cardeais, o que muito alegrou o povo cristão. Os projetos, porém, ficaram sendo letra morta, pois
Alexandre carecia da força de vontade necessária a tal tarefa.
A filha Lucrécia Borja, predileta do pai, era graciosa e meiga. Em torno dela cometeram-se
gravíssimos crimes, que lhe foram atribuídos, como se fosse uma maquinadora de assassínios. Na
verdade, Lucrécia cedeu aos costumes depravados do seu tempo, mas manteve-se melhor do que a
descreve a sua fama. Casou-se três vezes; o primeiro matrimônio foi dissolvido por não ter sido
consumado, o segundo acabou com o assassinato do marido; o terceiro foi feliz; Lucrécia tornou-se
então esposa e cristã fiel; morreu em 1519, filiada à Ordem Terceira de S. Francisco, amada peos
pobres, louvada pelos artistas; com seus próprios meios fundou um convento para jovens da alta
nobreza.
Papel especialmente angustioso na vida de Alexandre VI toca a César Borja, seu filho mais
velho, cheio de dotes naturais e força de vontade associados à ambição e à imoralidade. Pai e filho
nutriam o plano de criar um grande reino na Itália Central, plano que ameaçava o Estado Pontifício em
favor da família Borja. César começou a obra planejada cometendo assassínios e movendo a guerra,
que era financiada pelo dinheiro da Santa Sé. O plano estava para se tornar realidade quando
Alexandre VI morreu aos 18/08/1503, não envenenado, mas vítima de malária perniciosa; expirou
após ter-se confessado e haver recebido a Comunhão. A morte de Alexandre VI pôs termo ao sonho
de César Borja, bem como a um pontificado calamitoso para a Igreja.
Ainda é preciso mencionar a figura do frade dominicano Girolamo Savonarola O.P., que desde
1491 foi Prior do convento de S. Marcos em Florença; era um dos maiores pregadores de sua época.
Postulava com a energia de um profeta do Antigo Testamento a reforma da disciplina da Igreja;
conseguiu a melhora de costumes em Florença. Mas perturbava os planos e interesses de Alexandre
VI, que acabou por excomungá-lo. Savonarola declarou a excomunhão inválida e apelou para um
Concílio Ecumênico contra o Papa. O povo, porém, depois de apoiar Savonarola, voltou-se contra ele,
que finalmente foi condenado a morte pela própria gente de Florença.
Deve-se fazer referência ainda à arbitragem de Alexandre VI entre Portugal e Espanha: por Bula
de 1493 o Papa atribuía à Espanha as terras descobertas ou ainda por descobrir, situadas a Oeste de
um meridiano imaginário fixado a cem léguas das ilhas de Cabo Verde e Açores. Portugal sentiu-se
prejudicado, pois desta forma a América passaria a pertencer à Espanha, e assim procurou reformular
as disposições da Bula — o que foi feito pelo Tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal.
Em suma, não se pode justificar o procedimento deste Papa. Ao examiná-lo, o estudioso toma
consciência, mais uma vez, de que não são os homens que, em última análise, governam a Igreja, mas
é o próprio Deus, Alexandre VI não publicou uma só lei que deturpasse a disciplina da Igreja,
nenhuma definição que servisse para fundamentar as suas desordens morais. O ouro de Deus na Igreja
passa incontaminado aos homens, mesmo quando entregue por mãos sujas e indignas.

MÓDULO 38: A REFORMA PROTESTANTE (I)


A Reforma protestante, embora amplamente preparada, surgiu na história quase de repente;
parecia tratar-se, a princípio, de uma questão pessoal e puramente religiosa do frade Martinho Lutero,
mas, dado o clima em que ressoou, tomou vastas proporções eclesiásticas e políticas, que ninguém
imaginava. Infelizmente a obra de Lutero não se tornou aquilo que, havia muito, o povo e os príncipes

57
Para Juan Borja, duque de Gandia, foi criado o ducado de Benevento em 1497, composto de partes do Estado Pontifício;
Juan, porém, foi assassinado numa saída noturna, cinco semanas após investido, talvez por seu irmão César Borja.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 114

cristãos esperavam; a renovação da Igreja pela eliminação dos abusos, sem alteração da fé e da
constituição da Igreja; veio a ser uma revolução eclesiástica e um cisma. — Estudemos os fatos.

Lição 1: Lutero: evolução das ideias


Martinho Lutero nasceu aos 10/11/1483 em Eisleben (Sachsen). Teve infância dura, sujeita, em
casa e na escola, a disciplina severa. A partir de 1501, na Universidade de Erfurt estudou a filosofia
nominalista de Occam, com tendência antimetafísica e relativista; tal sistema dissolvia a harmonia
entre a ciência e a fé, pois tinha as verdades da fé como irracionais ou impenetráveis à razão; a Moral
se fundaria unicamente na livre vontade de Deus.
Certa vez, a caminho da Universidade (02/07/1505), foi quase fulminado por um raio; em
conseqüência, fez o voto de entrar no convento (Hilf, St. Anna, ich will ein Mönch werden! —
Ajuda, St'Ana, quero tornar-me um monge!). Esta decisão era fruto do temperamento escrupuloso e
pessimista de Lutero, que receava o Juízo de Deus sobre os seus pecados (Lutero muito se preocupava
com a sua fraqueza e os seus pecados, que o deixavam inquieto).
Em julho de 1505, à revelia do pai e dos amigos, Lutero entrou no convento dos Agostinianos de
Erfurt. Em 1507 foi ordenado presbítero. Em 1510 ou 1511 passou quatro semanas em Roma, onde
conheceu a vida da Cúria e,a exuberância das devoções populares. Isto tudo, porém no momento não o
impressionou muito nem abalou a sua fidelidade à Igreja. Foi nomeado professor de S. Escritura em
Wittenberg. Vivia, porém, inquieto ao pensar na sua fragilidade mora! e nos insondáveis Juízos de
Deus; jejuava, praticava vigílias de oração, mas sem conseguir paz. O contato com as epístolas de S.
Paulo (especialmente aos Romanos e aos Gaiatas) foi-lhe oferecendo uma solução; viu que não se
devia importar tanto com aquilo que fazia ou deixava de fazer, e precisava de ficar firme na fé-
confiança em Jesus Salvador; afinal, dizia ele, é a fé, e não as obras boas, que salvam o homem. Este
foi totalmente corrompido pelo pecado original e não pode senão pecar; o livre arbítrio está vendido
ao pecado; não se pode apelar para etc. De resto, a concupiscência desregrada, que é o próprio pecado,
é inextinguível no homem. Só lhe resta confiar (ter fé) nos méritos de Cristo, porque ninguém tem
mérito próprio. Quando Deus declara o homem justo ou reto, não lhe está apagando os pecados, mas
apenas resolve não os imputar, cobrindo-os com o manto da Justiça ou da santidade de Cristo. Lutero
baseava-se especialmente em Rm 1,17; Gl 3,12.22... textos tidos à luz das obras de S. Agostinho, que
se revelara pessimista em relação à natureza humana; cf. módulo 13.
Tal doutrina passou a ser o "Evangelho" de Lutero. Implicava autêntica revolução dentro do
Cristianismo. Lutero havia de lhe associar outras teses, a saber: a rejeição dos sacramentos, do
sacerdócio ministerial, do sacrifício da Missa, da hierarquia, enfim... de tudo aquilo que fazia a vida
da Igreja Católica.

Lição 2: As indulgências
Lutero era, pois, professor de S. Escritura em Wittenberg, quando surgiu a questão das
indulgências.
Antes de continuar a história do frade agostiniano, compete-nos explicar o que sejam
indulgências. Observemos o seguinte:
1) Todo pecado acarreta consigo a necessidade da expiação depois de ter sido perdoado. Com
outras palavras:
O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é a violação de uma ordem de coisas
estabelecida pelo Criador; é sempre um dano infligido tanto ao indivíduo que peca, como à
comunidade dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissão, do pecado, não somente é
necessário que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas requer-se também que repare a ordem
violada. Assim, por analogia, quem rouba um relógio violando a ordem da propriedade, não precisa
apenas de pedir perdão a quem foi prejudicado, mas deve também restaurar a ordem ou devolver o
relógio ao respectivo proprietário. A reparação da ordem há de ser sempre dolorosa, pois significa
mortificação do velho homem pecador ou das concupiscências desregradas que o pecado só faz
aguçar.
A própria S. Escritura atesta tal doutrina. Por exemplo, Davi recebeu o perdão dos pecados de
homicídio e adultério, mas teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12,13s).
115 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Moisés e Aarão foram privados de entrar na Terra prometida, embora a sua culpa lhes tenha sido
perdoada (cf. Nm 20,12; 27,12-14; Dt 34,4s). Ver também Tb 4,11s; Dn 4,24; Jl 2,12s.
2) Consciente disto, a Igreja antiga ministrava a reconciliação dos pecadores em duas fases. Sim,
o pecador confessava seus pecados a um ministro de Deus. Este não o absolvia imediatamente (cf. Jo
20,20-22), mas impunha-lhe uma satisfação adequada, correspondente à gravidade das suas faltas; este
exercício de penitência devia proporcionar ao cristão o domínio sobre si, a vitória sobre as paixões e a
liberdade interior. A satisfação assim imposta, para ser realmente medicinal, costumava ser penosa:
assim, por exemplo, uma quaresma de Jejum, em que o penitente se vestia de peles de animais (para
praticar tal penitência, o cristão tinha que excitar dentro de si um vivo amor a Deus e um profundo
horror do pecado). Somente depois de terminar a respectiva satisfação, era o pecador absolvido.
Julgava-se então que estava isento não apenas da culpa, mas também de toda expiação devida aos seus
pecados; estaria livre não só da culpa do pecado, mas também das raízes e das conseqüências deste.
Esta prática penitencial conservou-se até fins do século VI. Tornou-se, porém, insustentável,
pois exigia especiais condições de saúde e acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida
de quem a ela se submetera. Eis por que aos poucos foi sendo modificada.
3) No século IX a Igreja Julgou oportuno substituir certas obras penitenciais muito rigorosas por
outras mais brandas; a estas a Igreja associava os méritos satisfatórios de Cristo, num gesto de
indulgência. Tais obras foram chamadas "obras indulgenciadas", porque enriquecidas de indulgências:
podiam ser assim indulgenciadas orações, esmolas, peregrinações. . .
Está claro, porém, que estas obras mais brandas enriquecidas pelos méritos de Cristo só tinham
valor satisfatório se fossem praticadas com as disposições interiores que animavam os penitentes da
Igreja antiga a prestar uma quarentena de jejum ou outras obras rigorosas. Não bastava, pois, rezar
uma oração ou dar uma esmola para se libertar das conseqüências do pecado, mas era preciso fazê-lo
com o amor a Deus e o repúdio ao pecado que encorajavam os penitentes da Igreja Antiga. Vê-se,
pois, que era (e é) muito difícil ganhar indulgências.
Mais: ninguém podia (ou pode) ganhar indulgência sem que tivesse (ou tenha) anteriormente
confessado as suas faltas e houvesse (ou haja) recebido o perdão das mesmas. A instituição das
indulgências não tinha em vista apagar os pecados, mas contribuir (mediante a provocação de um ato
de grande amor) para eliminar as conseqüências ou os resquícios do pecado.
Por conseguinte, a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados nem vendeu indulgências. O
perdão dos pecados sempre foi pré-requisito para as indulgências. Quando a Igreja indulgenciava a
prática de esmolas, não tencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas
estimular a caridade ou as disposições íntimas do cristão para que conseguisse libertar-se das escórias
remanescentes do pecado. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos
dos séculos XV e XVI usaram de -linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgências. Foi o
que deu ocasião aos protestos de Lutero e dos reformadores.
4) As indulgências podem ser adquiridas também em favor das almas do purgatório. Estas
precisam de se libertar das escórias dos pecados com as quais deixaram a vida presente; para tanto,
necessitam da graça de Deus, que os fiéis viventes neste mundo podem solicitar mediante a prática de
boas obras indulgenciadas. Todos os fiéis que foram enxertados em Cristo pelo Batismo e vivem em
plena comunhão com a Igreja, constituem uma grande família, solidária e unida em si pela caridade.
Em conseqüência, os méritos de uns redundam em benefício de outros; os atos satisfatórios que as
almas retas prestam a Deus, podem auxiliar a outros cristãos, que precisem de expiar, seja aqui na
terra, seja no purgatório. Em outros termos: pelas nossas preces, pelas nossas boas obras e pelos
nossos atos de mortificação, unidos aos méritos de Cristo, podemos ser úteis não só a nós mesmos,
mas também aos nossos irmãos, que devem prestar satisfação a Deus por seus pecados. É esta
solidariedade que se chama "Comunhão dos Santos". Esta expressão designa a comunhão de bens
espirituais ou de coisas santas segundo a qual vivem os filhos da Igreja. "Uma alma que se eleva (que
se enriquece de Deus), eleva o mundo inteiro" (Elizabeth Leseur).
Eis como se deve entender a prática das indulgências, até hoje recomendada pela S. Igreja, mas
freqüentemente mal entendida.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 116

Lição 3: Lutero e as indulgências


Voltemos agora à história de Lutero.
A fim de custear a construção da nova basílica de S. Pedro em Roma, Júlio II em 1507 e Leão X
em 1514 promulgaram indulgência plenária para qualquer cristão que recebesse os sacramentos e
desse esmola. Foi nomeado Comissário da indulgência para grande parte da Alemanha em 1515 o
jovem príncipe Alberto de Brandenburgo, desde 1513 arcebispo de Magdeburgo e administrador do
bispado de Halberstadt, desde 1514 também arcebispo de Mogúncia. Alberto era homem frívolo e
mundano; contraíra uma dívida de 29.000 florins com os banqueiros Fugger de Augsburgo a fim de
pagar as taxas de vidas à Santa Sé por estar acumulando três bispados; então, de acordo com os
representantes papais, resolveu que metade das esmolas indulgenciadas ficaria para a construção da
basílica de São Pedro, enquanto a outra metade serviria para saldar a dívida junto aos banqueiros.
Ora na Alemanha já reinava prevenção contra as indulgências por causa de abusos de oficiais
eclesiásticos. O pregador de indulgências nomeado por Alberto, o dominicano João Tetzel, incorria
também ele nesses abusos: afirmava que, para adquirir a indulgência em favor dos defuntos, bastava a
esmola sem o estado de graça do doador (o que era errôneo). Quando, certa vez, Tetzel perto de
Wittenberg pregava. Lutero resolveu insurgir-se contra o pregador: na tarde de 31/10/1517, à porta da
igreja de Wittenberg afixou, conforme o costume das disputas acadêmicas, uma lista de 95 teses em
latim sobre as indulgências e pontos conexos (a culpa, a pena, a penitência, o purgatório, o primado
papal). A intenção de Lutero era apenas a de combater abusos e pôr em clara luz a doutrina ortodoxa;
na realidade, porém, as suas teses significavam a rejeição não somente das indulgências, mas também
do ministério da Igreja em prol da salvação dos homens. Entre outras coisas, o frade agostiniano
afirmava: 1) o Papa só pode perdoar penas que ele mesmo, conforme o seu juízo ou conforme as leis
eclesiásticas, tenha imposto (tese 5); 2) as indulgências não podem ser aplicadas às almas no
purgatório (tese 8 a 29); 3) a verdadeira contrição, sem decreto de indulgências, confere ao cristão
plena remissão do pecado e da culpa (teses 36 e 37); 4) à Igreja hierárquica, na remissão das culpas,
toca apenas uma função declaratória, isto é, a Igreja apenas pode reconhecer que o penitente já foi
diretamente perdoado por Deus no seu íntimo em virtude do seu arrependimento; Ela não transmite o
perdão de Deus (teses 6 e 7); 5) Lutero negava o tesouro de graças de Cristo e dos Santos (o assim
chamado "tesouro da Igreja"), que é o pressuposto da doutrina das indulgências (tese 58).
Nesta lista de Wittenberg, não aparece a tese da fé fiducial (fé-confiança, mediante a qual o
cristão seria salvo), mas ocorre um conceito equivalente: o da penitência meramente subjetiva; a
contrição pessoal substituiria a Penitência sacramental; a mediação da" Igreja como Sacramento
primordial era posta de lado, em benefício de uma atitude meramente subjetiva do cristão diante de
Deus. A Reforma protestante se achava toda em gérmen na atitude e nas teses de Lutero.

MÓDULO 39: A REFORMA PROTESTANTE (II)


Lição 1: Lutero de 1517 a 1546
As teses de Lutero espalharam-se rapidamente pela Alemanha e o estrangeiro, chegando até
Roma. A Santa Sé mandou o Cardeal Caetano, bom teólogo da época, a Augsburgo para ouvir Lutero
(12-14/10/1518); não conseguiu, porém, demovê-lo de suas posições doutrinárias.
O brado de revolta de Lutero encontrou ressonância fácil entre os príncipes da Alemanha, que
tinham antigos ressentimentos contra a Santa Sé por questões políticas. Também a pequena nobreza
apoiava Lutero, porque da revolução religiosa esperava uma revolução social que satisfizesse aos seus
anseios. Entre os protetores de Lutero, começou a destacar-se o príncipe Frederico o Sábio, da
Saxônia.
Em 1519 deu-se em Leipzig famosa disputação pública, em que Lutero expôs mais claramente
sua doutrina: só é verdade religiosa aquilo que se pode provar pela S. Escritura (princípio básico do
protestantismo); atacou outrossim o primado do Papa. — Os ânimos se acendiam cada vez mais
mediante panfletos com caricaturas e sátiras.
Em 1520 (15/06), o Papa Leão X publicou a Bula Exsurge, que condenava 41 sentenças de
Lutero, ordenava a combustão dos seus escritos e ameaçava Lutero de excomunhão, caso não se
117 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

submetesse dentro de sessenta dias. Em dezembro desse mesmo ano o frade queimou a Bula e um
livro de Direito Eclesiástico em praça pública. Em resposta, o Papa excomungou formalmente Lutero
aos 03/01/1521; este gesto do Papa exigia tomada de posição clara da parte dos seguidores do
reformador.
Lutero interpelava calorosamente os seus compatriotas alemães, principalmente mediante três
obras que se tornaram clássicas: O Manifesto à Nobreza Alemã, no qual exortava os príncipes a
assumir a reforma da Cristandade, constituindo uma Igreja alemã independente; o Cativeiro da
Babilônia, que considerava os sacramentos, regulamentados pela Igreja, como um cativeiro; só
ficariam o Batismo e a Ceia, operando pela fé do sujeito; Da Liberdade Cristã, que concebe a Igreja
como uma comunidade invisível, da qual só fazem parte os que vivem da verdadeira fé.
Em 1521 deu-se a Dieta58 de Worms, à qual Lutero compareceu na presença do Imperador
Carlos V; recusou retratar-se; pelo que foi condenado à morte. Todavia Frederico o Sábio escondeu o
frade rebelde no Castelo de Wartburg, onde ficou dez meses (maio 1521 — março 1522) sob o
pseudônimo de "Cavaleiro Jorge"; começou então a tradução da Bíblia para o alemão a partir dos
originais, obra de linguagem magistral, traço de união entre os partidários do reformador; só foi
completada em 1534. No castelo de Wartburg Lutero sofreu crises nervosas assaz violentas, que ele
considerava como assaltos diabólicos.
Enquanto Lutero se conservava oculto em Wartburg, a agitação crescia em Wittenberg; os
clérigos casavam se; a Missa era substituída pelo rito da Ceia do Senhor, em que se recebiam pão e
vinho sem confissão prévia nem jejum eucarístico; as imagens dos santos eram removidas. . , Mais:
apareceu a corrente dos anabatistas, que interpretavam ousadamente o pensamento de Lutero, negando
o batismo às crianças (já que o sacramento só é eficaz pela fé de quem o recebe) e batizando de novo
os adultos; preconizavam uma "Igreja de Santos", cujos membros estariam em contato direto com o
Espírito Santo. Posto a par da confusão, Lutero deixou seu esconderijo e voltou a Wittenberg, indo
morar no seu antigo convento, já esvaziado de frades e doado por Frederico o Sábio a Lutero como
residência; ali o reformador em 1525 casou-se com Catarina de Bora, monja cisterciense apóstata, e
teve seus filhos.
Lutero conseguiu, com o apoio do braço secular, restabelecer a ordem em Wittenberg. Mas teve
que enfrentar a revolta dos camponeses (1524-25), que, esmagados por tributos, valiam-se da
proclamação de liberdade feita por Lutero para reivindicar sua liberdade frente aos senhores civis e
eclesiásticos. Thomas Münzer, chefe dos anabatistas, incitava os camponeses à revolta. Lutero hesitou
diante dessa insurreição, mas acabou optando pela sufocação violenta dos revoltosos; Thomas Münzer
foi decapitado. Esta atitude fez que Lutero perdesse parte da sua popularidade; a sua nova "Igreja" não
seria de povo e comunidade, mas de príncipes e regiões. Os anabatistas mereceriam a adesão das
classes mais humildes (são os Batistas de nossos tempos).
A situação religiosa e política fervilhava cada vez mais. Muitas vozes de reis, príncipes e nobres
se levantaram, ora para defender, ora para combater Lutero. Muitos apregoaram a convocação de um
Concílio Ecumênico.
Em 1529 realizou-se uma Dieta em Espira (Alemanha): determinou que não se fariam mudanças
religiosas nos territórios do país, de modo que ficaria estabilizada a onda de reforma luterana até se
reunir um Concílio Ecumênico. Esta resolução favorecia, de certo modo, os católicos, pois os avanços
do luteranismo eram contínuos. Em conseqüência, seis príncipes e quatorze cidades imperiais, aos
19/04/1529, protestaram contra a decisão. Este gesto lhes valeu o nome de "protestantes" em lugar da
expressão viri boni (ou crentes) que eles davam a si mesmos.
Os últimos anos de vida de Lutero foram angustiosos para o reformador por diversos motivos: os
aborrecimentos e as decepções se somavam aos achaques corporais; via que se alastravam a
indisciplina e a procura de interesses particulares nos territórios reformados; os príncipes dominavam
as questões religiosas. Lutero depositava suas esperanças num próximo fim de mundo. Em 1543
escreveu ansioso: "Vinde, Senhor Jesus, vinde,.. os males ultrapassaram a medida. é preciso que tudo
estoure. Amém". — Finalmente morreu aos 18/02/1546 em sua cidade natal de Eisleben.

58
Assembléia política.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 118

Após ter jantado pela última vez, diz uma narração duvidosa, Lutero com giz escreveu o verso
que outrora compusera em Schmalkalde durante grave enfermidade: "Pestis eram vivus; moriens ero
mors tua, Papa! - Papa, minha vida era a tua peste; minha morte será a tua morte!". Em nossos dias a
animosidade que Lutero nutriu para com o Papado e a Igreja, muito se atenuou; têm-se realizado
frutuosas conversações teológicas entre católicos e luteranos, que vêm mais e mais aproximando os
irmãos entre si.

Lição 2: Avaliação da figura de Lutero


Martinho Lutero é certamente um dos personagens que mais influíram no curso da história
moderna não só da Igreja, mas do mundo. Canalizou ideias que vinham do fim da Idade Média: o
ocamismo, que dava prioridade à vontade sobre o intelecto, originando um certo antiintelectualismo; o
nominalismo, segundo o qual não existem conceitos gerais ou noções universais, mas apenas palavras,
que designam realidades individuais; o subjetivismo, que foi tomando o lugar do objetivismo (ou dos
valores metafísicos).
Lutero foi certamente um homem profundamente religioso, dotado de firme confiança em Deus,
diligente no trabalho e desinteressado de si. A estes dons, porém, associava-se um temperamento
apaixonado, que podia chegar às raias do doentio; uma convicção cega de que tinha recebido de Deus
a missão de um profeta; uma propensão à discussão, ao exagero trágico e ao cinismo- Deixava-se
guiar pelas emoções mais do que pela razão, principalmente em matéria teológica — o que decorre do
princípio luterano de que a fé é alheia à razão. Ele mesmo dizia que "nenhuma obra boa se faz por
sabedoria, mas que tudo se realiza como que por uma espécie de vertigem ou torpor".
Infelizmente as boas intenções de Lutero não levaram ao objetivo almejado, pois dividiram os
cristãos e geraram um princípio de divisão até hoje fecundo; o protestantismo se esfacela em novas e
novas comunidades, segundo o princípio subjetivo estabelecido por Lutero: cada crente é livre para
interpretar a Bíblia como lhe pareça, sem dar atenção a instâncias extrínsecas.
Um dos traços que muito exaltam Lutero aos olhos dos protestantes alemães, é a sua posição na
história nacional alemã. Tem-se dito que Lutero era alemão até a medula dos ossos; o seu ódio
antipapal correspondia ao ódio anti-romano e ao nacionalismo alemão da época; era alemão também
pelo uso magistral da língua pátria, da qual a tradução luterana da Bíblia é um monumento.
As ideias e o movimento de Lutero tiveram seus ecos fora da Alemanha. Vários reformadores
surgiram, partindo todos do mesmo princípio: a única fonte de fé é a Bíblia, lida independentemente
do magistério da Igreja. Entre esses chefes destacam-se: Ulrico Zwingli (1484-1531), que pregou em
Zürich (Suíça) e cujos seguidores sem demora se agregaram ao Calvinismo. Outro reformador notável
foi João Calvino, que vai apresantado a seguir.

Lição 3: O Calvinismo
Em 1532 apareceu em Genebra (Suíça Francesa) o pregador francês Guilherme Farei, que
pregava ideias semelhantes às de Lutero e deixou a população local em grande agitação. Preparava
assim o caminho para outro francês: João Calvino (1509-64).
Calvino estudou Direito na França antes de se domiciliar em Genebra. Era sistemático,
organizador, mais consciente do alcance de sua obra do que Lutero, Possuía enorme capacidade de
trabalho e sabia ser coerente até o extremo, não se deixando abater por dificuldade alguma; isto o
tornou insensível e duro em relação aos seus semelhantes.
Em 1527/8, Calvino, educado na religião católica, passou pela conversão às novas ideias; tendo-
as professado, caiu sob a perseguição antiprotestante movida pelo Governo francês. Emigrou então
para Basileia (Suíça), onde escreveu sua obra principal: Religionis Christianae institutio, que se
opunha fortemente à doutrina católica relativa aos dogmas, aos sacramentos e ao culto. De Basileia,
querendo voltar à França para breve visita, passou por Genebra, onde foi detido por Farei, que lhe
pediu servisse à igreja local convulsionada. Tendo acedido, Calvino instaurou em Genebra severa
disciplina, cerceando a liberdade de consciência e de conduta dos cidadãos.
A oposição em 1538 conseguiu expulsar de Genebra Calvino e Farei; mas, após três anos de
ausência, voltou aquele, gloriosamente chamado por representantes da cidade. Passou então a
desenvolver atividade cada vez mais intensa como teólogo e organizador.
119 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

A teologia de Calvino, embora se assemelhe à de Lutero, tem seu ponto característico no


conceito de Deus. Colocou a ênfase sobre a Majestade e a Soberania divinas, a ponto de dizer que há
duas predestinações: uma para a salvação e outra, explícita, para a condenação eterna; Deus não
apenas permite a perda dos pecadores, mas impele-os para o abismo. Deus, segundo consta, proíbe o
pecado a todos, mas na verdade quer que alguns pequem, porque devem ser condenados. Calvino,
embora propusesse doutrina tão espantadora, sabia atrair discípulos, pois afirmava: todo aquele que
crê realmente na justificação por Cristo, é do número dos predestinados e pode viver tranqüilamente
porque a salvação lhe está garantida.
Ao organizar a Igreja, Calvino instituía duas comissões: a Venerável Companhia de pastores e
doutores, encarregada do magistério, e o Consistório composto de pregadores e doze senadores leigos,
que tinha a tarefa de zelar pela disciplina, à semelhança da Inquisição Medieval: essa Comissão
visitava as casas, servia-se de denúncias e espionagem paga; os réus gravemente culpados, se
persistissem no erro, eram entregues a um tribunal. Este proferiu, de 1541 a 1546, 58 sentenças de
morte; a tortura era aplicada com freqüência.
A população de Genebra teve que se submeter à disciplina calvinista: as festas eclesiásticas
foram reduzidas aos domingos; o culto limitou-se à oração, à pregação e ao canto de salmos, com a
celebração da Santa Ceia quatro vezes por ano. A vida social tomou um aspecto tristonho, pois foram
abolidos o teatro, as danças, o jogo de cartas, a pompa das vestes. O espírito calvinista é pessimista;
por isto afastava-se de tudo o que pudesse ornamentar a natureza humana corrompida pelo pecado.
Calvino declarou a guerra aos humanistas, que eram os libertinos no plano moral; Lutero os
aceitara, porque ao menos combatiam o Papado. Os calvinistas tornaram-se, em seus primeiros
tempos, inimigos da ciência, da arte e da literatura, concebendo uma verdadeira fobia do prazer.
Em 1555 estava consolidada a posição de Calvino como ditador religioso e, em certo grau,
político da "Roma protestante", para onde confluíam fugitivos da França, da Itália e da Inglaterra. O
reformador fundou uma Academia teológica, cuja direção foi confiada ao nobre francês Teodoro de
Beza (+1605), o mais fiel cooperador de Calvino e seu sucessor. Neste instituto formaram-se jovens
de diversas nacionalidades, de modo que se tornou um foco de missões calvinistas. Até a morte
(27/05/1564) Calvino exerceu grande influência, tendo sido denominado Já por seus contemporâneos
“Papa protestante”.
Os calvinistas se propagaram pela França, a Inglaterra, a Escócia, a Holanda, países
navegadores, que levaram as novas ideias para as terras orientais e ocidentais recém-descobertas,
principalmente para a América do Norte. A partir da segunda metade do século XVI, foi-lhes dado o
nome de "Igreja Reformada", que se tornou importante força no campo da economia, do comércio e
da política, respondendo pelo puritanismo e pelo espírito de conquista de povos anglo-saxões e
germânicos.

MÓDULO 40: O CISMA ANGLICANO


O movimento reformador chegou à Inglaterra em condições singulares. O Cristianismo britânico
sempre teve suas características próprias, em parte por causa da sua posição geográfica (a Inglaterra é
uma ilha!); as tendências a formar uma Igreja nacional foram-se acentuando através dos séculos; John
Wiclef no século XIV e os humanistas nos séculos XV e XVI prepararam a via para a aberta
revolução religiosa. Esta se deu realmente no século XVI: a princípio tinha apenas o aspecto de um
cisma sem heresia (cisma devido à ambição pessoal de um rei, sem que o povo participasse da
revolta); só aos poucos é que as ideias protestantes foram entrando na comunidade britânica.

Lição 1: Henrique VIII (rei de 1509 a 1547)


Henrique VIII, nos primeiros tempos do seu governo, mostrou-se zeloso pela fé tradicional. Em
1521, contra a obra de Lutero sobre "O Cativeiro babilônico" escreveu uma "Afirmação dos Sete
Sacramentos", que lhe valeu do Papa Leão X o título de "Defensor da Fé". Não obstante, havia de ser
arrastado por seus afetos.
Em 1509 Henrique esposou Catarina de Aragão, viúva de seu irmão Artur. Deste casamento teve
vários filhos, dos quais um só — Maria Tudor — ficou em vida, Com o tempo, Henrique apaixonou-
se por uma cortesã: Ana de Boleyn, Por isto procurou dissolver o seu casamento com Catarina,
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 120

alegando que fora nulo, porque os nubentes eram cunhados em primeiro grau. Tal pretexto era falso,
porque o Papa Júlio II dera a Henrique explícita dispensa para se casar com Catarina; somente após
dezoito anos de vida conjugal, Henrique trazia à tona esse "impedimento". A corte real favorecia os
anseios do rei. A rainha Catarina apelava para a Santa Sé, pedindo justiça. O Papa Clemente VII
resolveu entregar o exame do processo a um tribunal de Roma (julho 1529).
Em janeiro de 1531 o Papa proibiu a Henrique novas núpcias enquanto a causa estivesse sob
julgamento. O rei, vendo que pouca esperança lhe restava, quis obter a dissolução do seu casamento
da parte da hierarquia da Inglaterra; Thomas Cromwell, obscuro advogado, que adquirira influência
sobre o rei, aconselhava a Henrique que, a exemplo dos príncipes alemães, se separasse de Roma. Em
fevereiro de 1531 uma assembléia do clero, instigada pelo rei, proclamou Henrique "Chefe Supremo
da Igreja da Inglaterra", com a cláusula "na medida em que a Lei de Cristo o permite". Em 1532 o rei
elevou à sé arquiepiscopal de Cantuária Thomas Cranmer, que numa viagem à Alemanha tinha
entrado em contato com o luteranismo; Cranmer resolveu declarar nulo o casamento de Henrique
VIII, de modo que este se casou em 1533 com Ana Boleyn, O Papa respondeu excomungando o
monarca e finalmente declarando válido o casamento com Catarina. O cisma estava às portas: em
novembro de 1534, o Parlamento inglês votou o "Ato de Supremacia", que proclamava ser o rei o
Único e Supremo Chefe da Igreja na Inglaterra; os súditos que não reconhecessem este Ato, seriam
punidos com a morte. A grande maioria do clero submeteu-se, talvez porque acostumada ao conceito
de Igreja Nacional e bastante mundanizada. Resistiram, porém, até a morte vários leigos e clérigos,
dos quais se destacam o leigo Tomás Moro e o bispo John Fisher. Muitos mosteiros foram fechados,
relíquias e imagens foram destruídas.
Apesar do cisma e das pressões luteranas, o rei queria conservar íntegra a fé católica na
Inglaterra; combatia tanto a adesão ao Papa quanto as inovações religiosas do continente.
Este estado de coisas permaneceu até a morte de Henrique VIII.

Lição 2: Eduardo VI (1547-53)


Henrique teve por sucessor um filho de dez anos, que lhe nascera do seu terceiro matrimônio.
Este menino, Eduardo VI, teve como tutores o duque de Somerset e o de Northumberland, que.
Juntamente com o arcebispo Cranmer, muito trabalharam pela introdução da teologia protestante na
Inglaterra.
Cranmer proclamou o jovem príncipe rei por direito divino imediato, com plenos poderes no
plano espiritual e no temporal. Foram chamados do continente teólogos protestantes, como Bernardino
Ochino (capuchinho que apostatara em 1542), Martinho Bucer, João Laski; o próprio Calvino deu
instruções escritas para se efetuar a protestantização da Inglaterra. Os novos mentores elaboraram o
Book of Common Prayer (Livro de Oração Comum), que introduzia uma nova liturgia em inglês,
abolia o caráter sacrifical da Missa, prescrevia a comunhão sob as duas espécies, mas ainda guardava
muitos elementos do Missa! e do Ritual católicos.
Em 1553 foi promulgada uma Confissão de Fé em 42 artigos, que seguia principalmente Calvino
no tocante à predestinação e à Eucaristia, mostrando-se em outros pontos luterana, zwingliana e até
católica; com algumas modificações, ainda é a regra de fé da Comunhão Anglicana (também dita
episcopaliana, porque não aboliu a hierarquia da Igreja, com seus bispos).
As inovações assim introduzidas tiveram seus adversários no reino. Em 1549 William Paget
escrevia que "o exercício da antiga religião era proibido peia lei, mas a nova ainda não se tinha
assentado no estômago de onze das doze partes do reino". Houve revoltas em diversos condados. Os
pobres esfomeados vagueavam aos bandos, sem poder recorrer aos mosteiros, que iam sendo
fechados; contra essa população carente foram promulgadas leis desumanas. Na corte, havia
rivalidades, ambições e corrupção moral; as posições teológicas dividiam sempre mais os
responsáveis pela reforma no país. O mal-estar se tornou tamanho que, quando Eduardo VI morreu
(aos 16 anos de idade) em 1553, a nação em massa se pronunciou pela princesa Maria a Católica, filha
de Henrique VIII e Catarina, contrariando a designação que Eduardo fizera em favor de Joana, cortesã
de sangue real, protestante.
121 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 3: Maria Tudor e Elisabete


3.1. Maria Tudor
Maria Tudor (1553-8) revolveu a situação; era católica convicta e pôs-se a trabalhar apoiada por
seu primo, o Cardeal Reginaldo Pole, legado papal.
Em 1554 o Parlamento votou a nova união da Inglaterra com a Santa Sé. Os prelados depostos
por Eduardo VI foram restituídos às suas sedes, enquanto os hereges, vindos do estrangeiro, foram
expulsos.
A rainha Maria, no seu zelo restaurador, adotou medidas extremas, semelhantes às que Henrique
VIII tomara contra os católicos; foram condenados à morte 280 dissidentes, entre os quais Thomas
Cranmer. Esse zelo excessivo era, em parte, favorecido pelo povo, mas encontrou desaprovação da
parte de católicos, que se tornaram avessos à rainha, chamada "Maria, a Sanguinária". Esta tornou-se
impopular também por seu casamento com Filipe, filho de Carlos V, que pouco depois subiu ao trono
da Espanha com o nome de Filipe II. Morreu prematuramente (1558); pouco depois do seu
desaparecimento, extinguia-se a restauração católica na Inglaterra.
3.2. Elisabete
Seguiu-se-lhe no trono uma filha de Ana de Boleyn com Henrique VIII: a rainha Elisabete
(1558-1603), visto que Maria não deixara herdeiros. A nova soberana elevou a Inglaterra a
extraordinário poder político e econômico, bem assegurado contra a França e a Espanha. A sua
religiosidade era misteriosa: convertera-se ao catolicismo sob Maria, e, elevada ao trono, continuava a
freqüentar a Missa, confessar-se e comungar. Estas atitudes, porém, não eram profundas e cediam a
interesses políticos. No dia de sua coroação, jurou conservar a religião católica no país; não obstante,
motivos de conveniência levaram-na a violar a sua palavra. Os católicos a consideravam rainha
ilegítima, e propunham Maria Stuart da Escócia como herdeira legítima do trono. Isto fazia Elisabete
inclinar-se cada vez mais para o protestantismo. Em conseqüência, sob as aparências de católica, foi
tomando medidas anticatólicas e antipapais. Libertou os teólogos presos na Inglaterra, e chamou de
volta os pregadores de novidade outrora expulsos.
Em 1559 foi publicado o "Ato de Uniformidade", que renovava a liturgia única no reino,
promulgada por Eduardo VI. O Parlamento declarou a rainha Suprema Autoridade do reino em
assuntos espirituais e temporais. Exigiu-se o "juramento de supremacia" de todos os servidores do
Estado e da Igreja na Inglaterra. De dezesseis bispos católicos, quinze o recusaram e foram depostos e
encarcerados; só ficou solto o bispo Kitchen, de Llandaff, que, tendo dado resposta evasiva, conseguiu
conservar a sua sé, mas de então por diante se absteve de qualquer função episcopal. Do baixo clero só
pequena parte teve a coragem de resistir.
Para restaurar a hierarquia episcopal na Inglaterra, foi escolhido como arcebispo de Cantuária
um antigo capelão da rainha, Mateus Parker, que recebeu a ordenação episcopal aos 17/12/1559, às 5
horas da manhã, na capela de Lambeth, segundo um Ritual novo, chamado Ordinal, confeccionado
sob o rei Eduardo VI. O sagrante foi um bispo deposto, que se prestou a tal ofício: William Barlon,
ex-titular da diocese de Bath, ordenado ainda sob Henrique VIII validamente. Mateus Parker, uma vez
ordenado bispo, ordenou outros bispos, reconstituindo assim a hierarquia na Inglaterra. Após longos
estudos de peritos, que investigaram de perto os fatos, o Papa Leão XIII em 1896 declarou inválidas
as ordenações anglicanas, baseando-se em dois motivos principais: 1) insuficiência do rito (o Ordinal
de Eduardo VI excluía qualquer alusão à Missa como sacrifício de Cristo perpetuado sobre os altares
pelo ministério dos sacerdotes); 2) falta de intenção devida (William Barlon queria constituir uma
hierarquia diversa daquela que Cristo fundou, desvinculada do Santo Sacrifício da Missa). É por isto
que até hoje a Igreja Católica não reconhece as ordenações anglicanas, embora o assunto possa ser
reestudado na base de novos aspectos que os estudiosos têm trazido à tona em ampla bibliografia. Este
ponto é decisivo para o reatamento entre a Santa Sé e o Anglicanismo, que de resto vai sendo
facilitado por conversações teológicas bem sucedidas.
Em 1563 os 42 artigos de Eduardo VI, reduzidos a 38, foram promulgados de novo como
confissão de fé oficial. Aos insubordinados era imposta a perda dos bens e da liberdade. Em 1570 o
Papa Paulo IV excomungou e declarou deposta Elisabete - o que provocou, da parte da rainha, novas
leis, mais rigorosas, e execuções capitais. Os católicos ingleses sofriam duramente, considerados
como traidores do Estado; as conspirações contra a rainha eram cruelmente punidas. Em 1588 Filipe
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 122

II, da Espanha, armou uma frota formidável (a Armada) com o fim de ir estabelecer na Inglaterra o
domínio espanhol e a fé católica; mas a expedição foi destroçada por uma tempestade. Isto só fez
aumentar a violência de Elisabete, de tal modo que, em conseqüência de execuções e apostasias, os
católicos se viram reduzidos a minoria insignificante.
As leis repressivas anticatólicas foram sendo abrandadas nos dois últimos séculos. Mas
conservaram seu rigor no Estado de Ulster, que equivale a 20% do território da ilha da Irlanda. Em
1921, 80% da ilha tornou-se independente da Inglaterra. A região de Ulster, porém, com sua capital
em Belfast, é governada por um Partido protestante dito "de Orange", que mantém até hoje a antiga
legislação discriminatória em matéria de religião, favorecendo a população protestante, com prejuízo
de 500.000 católicos lá residentes. É o que explica os constantes choques entre católicos e protestantes
na Irlanda do Norte.
Ainda é de notar que o Ato de Uniformidade da rainha Elisabete, prescrevendo uma Liturgia
ainda apegada às tradições, provocou a oposição de protestantes impregnados do severo espírito do
calvinismo: queriam abolir o canto eclesiástico, o som do órgão, o sinal da cruz, os paramentos
sacerdotais, os dias festivos. . . Já que desejavam uma Igreja "absolutamente pura" e "conforme as
Escrituras", independente do Estado e isenta de todo "fermento papista", receberam o predicado de
"puritanos". As suas pretensões foram repelidas pelo Governo inglês, de modo que sofreram
perseguições. Constituíram a Low Church, Baixa Igreja, em oposição à High Church, Alta Igreja,
oficial. Desde 1567 começaram a fundar Igrejas por conta própria, entre as quais se destaca o
Congregacionalismo (não há hierarquia, mas a congregação se governa mediante seus representantes).
Esses grupos de "não conformistas" (dissenters) eram tenazes, resistindo às repressões empreendidas
por Elisabete I e Jaime I. Em conseqüência, mais de 20.000 puritanos, entre os quais os 102 "Pais
peregrinos" de 1620 embarcados na nave Mayflower, abandonaram a pátria-mãe e foram fundar suas
colônias na Nova Inglaterra ou América do Norte; aí sofreram intolerância durante algum tempo, mas
foram posteriormente aceitos. São as denominações protestantes domiciliadas ou fundadas nos
Estados Unidos que enviam pregadores para o Brasil, com traços mais ferrenhos e proselitistas do que
as denominações clássicas do protestantismo europeu (luterano, anglicano).

MÓDULO 41: O CONCÍLIO DE TRENTO (1545-1563)


Lição 1: Considerações gerais
A obra do Concílio de Trento tem sido chamada "Contra-Reforma", em oposição à Reforma
protestante. Esta designação, porém, é inadequada. O Concílio foi, sim, uma resposta às proposições
do protestantismo, mas, muito mais do que isto foi uma expressão da vitalidade da Igreja, que no
século XVI se manifestou em Trento e num movimento de eflorescência prolongado até o século
XVII. Esta eflorescência brotava do íntimo da Igreja ou dos seus setores dados à oração e à mística;
tenhamos em vista o fervor da piedade cultivada por S. Felipe Neri, Sta. Teresa de Jesus, S. João da
Cruz, S. Inácio de Loyola, S. Pedro de Alcântara, S. Francisco de Sales...; chegou-se a dizer que os
séculos XVI e XVII foram séculos de santos. O renascimento interior da Igreja despertou muitas
forças católicas adormecidas, inclusive o alto clero, e acelerou o seu curso de ação, indicando-lhes
indiretamente a orientação a tomar.
Ao contrário dos humanistas, que criticaram (sem construir) as instituições religiosas, os santos
do século XVI tinham por programa: não criticar a outrem, mas emendar a si mesmos, não mudar as
estruturas da Igreja estabelecidas por Cristo, mas reformar os homens detentores de cargos e funções;
já que o mal estava principalmente na mundanização do clero, falava-se, antes de tudo, em reforma do
clero. Muito sabiamente dizia o teólogo Egídio de Viterbo na sua alocução introdutória ao Concílio do
Latrão V (1512): "Homines per sacra immutari fas est, non sacra per homines. – Os homens é que
devem ser transformados pela religião, e não a religião pelos homens".
Assim nota-se um paralelo entre o século XVI e os séculos XI-XIII: na Idade Média as forças
renovadoras da Igreja não partiram diretamente do Papado, mas de círculos não pertencentes à
hierarquia (Cluny, Cister, as Ordens Mendicantes); também no século XVI o impulso renovador
partiu, antes do mais, das comunidades dadas à ascese e à mística (Carmelitas, Jesuítas, Teatinos,
Capuchinhos, Barnabitas, Angélicas, Ursulinas, Somascos...), que com humildade aderiram
123 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

incondicionalmente à hierarquia e ao Papado. Só aos poucos este foi entrando na renovação ativa do
século XVI, afetado como estava pelo espírito renascentista e mundano. Até 1530 aproximadamente,
Roma vivia em quase inconsciência dos males que afetavam a Igreja; Leão X, por exemplo,
considerava a tempestade luterana como uma querela entre monges, e, dessas querelas de monges,
estava acostumado a ver muitas peças no seu teatro de Roma. Somente a partir de Paulo V (1555-9), o
mais severo entre os severos, o Papado se tornou o esteio da renovação da Igreja. Esta teria por Magna
Carta os documentos do Concílio de Trento e como força executora a Companhia de Jesus.
As origens da renovação católica estão na Itália; o terreno, porém, mais fecundo em frutos para a
Igreja Universal foi a Espanha, que produziu não somente santos, mas teólogos e doutores, que muito
trabalharam pelo bom êxito do Concílio de Trento.

Lição 2: Os antecedentes do Concílio


Em 1534 fo.i eleito Papa o Cardeal Alexandre Farnese, com o nome de Paulo III (1534-49). Este
caracteriza a transição do Renascimento humanista para a Restauração católica. A sua vida anterior se
ressentiu dos males da época: devia a sua nomeação cardinalícia às relações ilegítimas de sua irmã
Giulia com Rodrigo Borja (futuro Alexandre VI); quando Cardeal, mandou legitimar quatro filhos
naturais. Como Papa, ainda cedeu ao luxo, aos divertimentos e ao nepotismo.
Não obstante, mostrou-se mais consciente da necessidade de Reforma do que os Pontífices
anteriores. Por isto favoreceu as novas Ordens Religiosas dos Teatinos, Capuchinhos, Barnabitas,
Somascos, Ursulinas, e em 1540 aprovou a Companhia de Jesus. Chamou para o Colégio Cardinalício
homens doutos e dignos, e nomeou uma comissão de nove membros, que elaborou para o Papa um
relatório dos males da Igreja e uma sugestão de remédios a opor-lhes.
A consciência de Roma era despertada ainda por outro fato. As ideias revolucionárias
"transalpinas" iam penetrando na Itália, especialmente em Nápoles; as obras de Lutero, Zvínglio,
Calvino e Erasmo difundiam-se entre o clero e o povo, conseguindo a apostasia do Padre Geral
Ochino dos Capuchinhos em 1542; apareciam personagens ambíguos que, sem romper com a Igreja,
se compraziam nas obras dos Reformadores protestantes. Para conter tais avanços, Paulo III
reorganizou a Inquisição, inspirado pelo Cardeal Carafa (futuro Paulo IV) e por S, Inácio de Loyola:
uma comissão de seis Cardeais recebeu a faculdade de nomear sacerdotes "inquisidores" em qualquer
lugar onde o julgasse necessário. Assim se originou a Congregação do Santo Ofício, que, após o
Concílio do Vaticano II, tem o nome de Congregação para a Doutrina da Fé, visto que nada tem de
comum com a Inquisição. Esta procedeu energicamente contra os inovadores, conseguindo exterminar
por completo as novas ideias na Itália.
Muito se falava (como, aliás, em tempos anteriores também) da necessidade de se convocar um
Concílio Ecumênico, Havia, porém, obstáculos à realização concreta deste ideal; com efeito, ficava
em muitos homens da época (inclusive no Papa Clemente VII, 1522-34) o receio do Conciliarismo;
além disto, o Imperador Carlos V queria que o Concílio se realizasse em território alemão, para
facilitar a participação dos luteranos, que Carlos queria trazer de novo à unidade da Igreja; o Papa,
porém, preferia uma cidade da Itália; em suma. Imperador, Papado, protestantes, Espanha e França
tinham algo a dizer sobre a convocação do Concílio, mas em termos divergentes.
Após as frustradas convocações para Mântua (1536) e Vicenza (1537) e depois de dez anos de
tentativas, Paulo III fixou a abertura do Concílio para Trento (território alemão) em março de 1545;
mas só em dezembro deste ano se abriu a grande assembléia na catedral de Trento. O Concílio durou
dezoito anos, interrompido longamente por duas pausas; durante o mesmo, morreram quatro Papas. As
três fases do Concílio são: 1545-47; 1551-52; 1562-63. O grupo preponderante foi o dos espanhóis,
dotados de profundo senso eclesiástico, sem os quais não teriam sido elaborados os decretos
dogmáticos do Concílio.

Lição 3: As peripécias do Concílio


3.1. Primeiro período (1545-47)
O presidência do Concílio sempre foi dada aos legados papais, que mantinham estreito contato
com Roma. Já no início do Concílio houve divergência entre o Papa e o Imperador; este queria que se
abordassem logo as questões disciplinares e jurídicas por causa das posições inovadoras dos
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 124

protestantes na Alemanha. O Papa, ao contrário, queria começar pelas questões dogmáticas; ficou
finalmente determinado que os dois grandes temas seriam tratados simultaneamente. - Os decretos
dogmáticos do Concílio, em suas três sessões, tiveram sempre em mira o protestantismo, que
afirmava: 1) a unicidade da fonte de fé (a S. Escritura); 2) um conceito espiritualista (e, por isto,
subjetivo) de Igreja.
Muito importante foi a sessão de abril de 1546; definiu, mais uma vez, o cânon da S. Escritura
(que desde 397, Concílio de Hipona, fora definido nos mesmos termos); afirmou que as tradições
apostólicas (ou a Palavra de Deus oral que não foi consignada nas Escrituras) devem ser acolhidas
com o mesmo respeito que as Escrituras; declarou autêntica a tradução latina da Bíblia dita "Vulgata"
(deveria ser considerada isenta de erros teológicos em meio às muitas traduções tendenciosas da
época). Em janeiro e março de 1547 foi abordada a questão dos sacramentos: estes não são meros ritos
simbólicos, mas são canais transmissores da graça, graça que não é mero revestimento da alma do
pecador, mas que opera uma transformação (Justificação) intrínseca. A vontade humana não é
meramente passiva nem escrava do pecado, mas é chamada a colaborar com a graça de Deus. A Missa
é a perpetuação do sacrifício da Cruz sob forma sacramental.
Os conciliares também decretaram medidas disciplinares; ficava proibido o acúmulo de mais de
um benefício (cargo) eclesiástico nas mãos de um só titular; foi abolido o ofício de coletor de esmolas
(que pregava as indulgências!); tornou-se obrigatório o casamento sacramental dentro de moldes bem
definidos e na presença do pároco ou do vigário. Foram estipuladas normas rígidas para a formação do
clero nos Seminários.
Já que uma febre contagiosa se propagou em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha.
O Imperador, porém, opôs-se ao traslado de modo que, para evitar maiores males, Paulo III resolveu
suspender o Concílio.
3. 2. Segundo período (1551-52)
Tendo morrido Paulo III em 1549, teve por sucessor Júlio III (1550-55), que acedeu aos desejos,
do Imperador, de continuar o Concílio em Trento, à revelia dos desejos da França. - Reaberto o
Concílio em 1o/05/51, promulgou longa exposição sobre a Eucaristia (presença real,
transubstanciação, culto...). Também tratou dos sacramentos da Penitência e da Unção dos Enfermos.
Os franceses não tomaram parte nesta sessão por motivos políticos. Todavia apareceram legados
dos príncipes alemães protestantes, que cederam ao convite do Imperador Carlos V, desde outubro de
1551 até março de 1552. Apesar da boa vontade manifestada pelos católicos, as negociações com eles
ficaram frustradas, porque exigiam a ab-rogação dos decretos até então promulgados e a realização de
novos estudos sobre os respectivos assuntos; ainda queriam a renovação dos decretos dos Concílios de
Constança e -Basileia sobre o Conciliarismo; por fim, pleiteavam que os membros do Concílio fossem
desligados do juramento de obediência ao Papa.
Aconteceu que, quando os legados protestantes deixaram Trento, as tropas luteranas na
Alemanha faziam uma perigosa incursão no Sul do país - o que levou os conciliares, aos 28/05/1552, a
decretar a suspensão do Concílio por dois anos..., dois anos que, na realidade, durariam quase um
decênio.
3. 3. Terceiro período (1562-1563)
Pio IV reabriu o Concílio em Trento, apesar da França e da Alemanha, que queriam novo
Concílio em outro lugar, com total abandono das definições e resoluções até então promulgadas. As
discussões neste terceiro período foram muito vivas, pois os príncipes católicos alemães promulgaram
a Comunhão sob as duas espécies e a permissão de casamento para o clero. Esta última proposição foi
enérgica e constantemente rejeitada pelos conciliares, ao passo que a primeira foi entregue ao Juízo do
Sumo Pontífice; em 1564 Pio IV resolveu permiti-la sob certas condições em algumas dioceses da
Alemanha; mas em breve caiu em desuso.
O Concílio se encerrou aos 3 e 4/12/1563, Pio IV confirmou os seus decretos pela Bula
Benedictus Deus. Atendendo a um pedido do Concílio, publicou um index de Livros Proibidos e uma
Profissão de Fé tridentina.
O Concílio de Trento durou mais que todos os outros e foi o que mais dificuldades encontrou
para se realizar. Mas nenhum exerceu influxo tão profundo e duradouro sobre a fé e a disciplina da
Igreja. Verdade é que a unidade de fé não foi restabelecida, mas a doutrina católica foi elucidada e
125 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

consolidada em todos os pontos ameaçados. O programa de reforma tridentino foi a base de renovação
do clero e do povo católico, embora a execução desses decretos tenha sido, por vezes, lenta e
controvertida; Concílio comunicou nova união e confiança aos católicos abalados pelos acontecimento
dos últimos decênios.
O Concílio de Trento foi também o mais papal de todos os Concílios antes do Vaticano I (1870);
preparou assim a via para a definição do primado do Romano Pontifico, definição que no século XVI
seria prematura, pois ainda eram fortes as tendências a formar Igrejas nacionais. O Concilio confiou,
outrossim, ao Papa o desejo de que promovesse a publicação de um novo Catecismo, de um novo
Missal e de novo livro de Liturgia das Horas (o que, debato, foi executado pelos sucessores de Pio
IV).
Numa palavra, pode-se dizer que o Concílio de Trento foi a auto-afirmação da Igreja como
sociedade universal de salvação contra as diversas formas de individualismo e subjetivismo que se
faziam sentir fortemente no limiar da Idade Moderna.
Verdade é que em nossos dias o Concílio de Trento nem sempre é aplaudido. Opõem-lhe o
Concílio do Vaticano II, como se houvesse antítese entre um e outro. Ora o Vaticano II se refere
freqüentemente ao Tridentino e nele se apóia, trazendo para os nossos tempos as verdades que o
Concílio e Trento definiu segundo a linguagem e as exigências do século XVI.

MÓDULO 42: A INQUISIÇÃO ESPANHOLA


Já estudamos a inquisição Medieval nos módulos 33 e 34. Passamos à Inquisição Espanhola,59
que teve suas características próprias.

Lição 1: Origem da Inquisição Espanhola


Os reis Fernando e Isabel, visando à plena unificação de seus domínios, tinham consciência de
que existia uma instituição eclesiástica — a Inquisição - oriunda na Idade Média com o fim de
reprimir um perigo religioso e civil dos séculos XI/XII (a heresia catara ou albigense); a este perigo
pareciam assemelhar-se as atividades dos marranos (judeus) e mouriscos (árabes) na Espanha do
século XV.
1. A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na península ibérica, achava-se ai mais ou
menos adormecida na segunda metade do séc. XV. . . Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa
de 1478 foi descoberta em Sevilha uma conspiração de marranos, a qual muito exasperou o público.
Então lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a
reavivasse sobre novas bases, mais promissoras para o reino, confiando sua orientação ao monarca
espanhol.
Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois
de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha o Breve de 1°de
novembro de 1478, pelo qual "conferia plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou
três Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua
prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de
costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou licenciados em Direito
Canônico, os quais deveriam passar de maneira satisfatória por um exame especial. Tais Inquisidores
ficariam encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e contra todos
os demais culpados de apostasia, O Papa delegava a esses oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária
para instaurar os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os
soberanos espanhóis a destituir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse
oportuno" (L. Pastor, Histoire des Papes IV 370).
Note-se bem que, conforme este edito, a Inquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados,
não a judeus que jamais houvessem pertencido à Igreja; a instituição era, pois, concebida como órgão
promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instrumento de intolerância em relação às
crenças não-cristãs.

59
Sobre a Inquisição em Portugal e no Brasil, ver módulo 55.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 126

Lição 2: Procedimentos da Inquisição


Apoiados na licença pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1480 nomearam
Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo e Juan Martins, dando-lhes
como assessores dois sacerdotes seculares. Os monarcas promulgaram também um compêndio de
"Instruções", enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da
Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado civil.
Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com grande energia. Parecia que
a Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais
procuravam atingir criminosos mesmo de categoria meramente política.
Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos
Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha, mostrando-lhes
profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e baixando instruções de moderação
para os juizes tanto civis como eclesiásticos.
Merece especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto de 1482, que o Papa, depois de
promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:
“Visto que somente a caridade nos torna semelhantes a Deus..., rogamos e exortamos o Rei e a
Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico
ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com os seus súditos
da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia!”
Contudo, apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando
mais e mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto,
basta lembrar o seguinte: a Inquisição no território espanhol ficou sendo instituto permanente durante
três séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em
vista determinados erros oriundos em tal e tal localidade, A manutenção permanente de um tribunal
inquisitório impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se
deu na Espanha: os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens
confiscados) e pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se
à Inquisição Espanhola, denominaram-na "Inquisição Régia!"

Lição 3: Emancipada de Roma


A fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do
mesmo.
Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo
de Roma... Conceberam então a ideia de dar à instituição um chefe único e plenipotenciário — o
Inquisidor-Mor —, o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo,
propuseram à Santa Sé um religioso dominicano, Tomás de Torquemada ("a Turrecremata", em
latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territórios de
Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação, escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada:
"Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para
que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim
como no principado de Catalunha" (Bullar. Ord. Praedicatorum III 622).
O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco
prudente...
Com efeito; a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos
avanços destes: os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor Já não foram nomeados
pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com critérios nem sempre louváveis). Para
Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem os Inquisidores regionais,
subordinados ao Inquisidor-Mor.
Mais ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado "Conselho Régio da Inquisição", comissão de
consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que a controlar os processos da Inquisição;
gozavam de voto deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito
Canônico.
127 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso
processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza,
de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito
anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao
Concílio Ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do séc. XVI.
Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constituiu outra
figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente
entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença
prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O inquisidor-Mor
tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a doze
horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou, declarando:
"O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo; aceito agora os agradecimentos do
tribunal; protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra
qualquer tentativa de desobediência" (cf. Desdevises du Dezart, L’Espagnede l’Ancien Regime. La
Société 101s).
A história atesta, outrossim, como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam a
defender os acusados frente à dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se
nitidamente da Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.
Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de
absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote poderia tentar
subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de
sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos
Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos
senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546, Paulo III
declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades
eclesiásticas. Aos 18 de Janeiro de 1556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissão
sacramental os mouriscos.
Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes
mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que se deu
realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I
interveio no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808.
O rei Fernando Vil, porém, restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam
colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do absolutismo de
Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cadiz foi
a extinção definitiva da Inquisição em 1820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois
punha termo a uma situação humilhante para a Sta. Igreja.

Lição 4: Tomás de Torquemada


Tomás de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de
1420. Fez-se Religioso dominicano, exercendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-
Cruz em Segóvia. Já aos 11 de fevereiro de 1482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos
Inquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou Primeiro Inquisidor de todos os
territórios de Fernando e Isabel.
Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano usou de semelhante severidade
nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham
como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad) Real. Em 1484 redigiu,
para uso dos Inquisidores, uma "Instrução", opúsculo que propunha normas para os processos
inquisitoriais, inspirando-se em trâmites já usuais na Idade Média; esse libelo foi completado por dois
outros do mesmo autor, que vieram a lume respectivamente em 1490 e 1498.
O rigor de Torquemada foi levado ao conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como
dizem algumas fontes históricas, pensou então em destituí-lo de suas funções; só não o terá feito por
deferência à corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem diminuir os poderes de
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 128

Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de
Junho de 1494).
Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas
pelos cronistas são tão pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto.
Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da intolerância religiosa,
homem de mãos sanguinolentas... Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa
maneira de conceituá-lo; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam que este
Religioso foi movido por sincero amor à verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida
pelos falsos cristãos; daí o zelo extraordinário com que procedeu. A rela intenção de Torquemada ter-
se-á traduzido de maneira pouco feliz.
De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade
dominicano: em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a proposta de se impor aos
muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois
queria conservar o clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser extorquida pela
violência; por conseguinte, a Inquisição deveria restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e
somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Igreja Católica. Como se
vê, Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto. Exerceu suas
funções até a morte, aos 16/09/1498.

MÓDULO 43: O PROCESSO DE GALILEU


Segue-se famoso caso de história da Igreja, que há de ser entendido dentro do respectivo
contexto.

Lição 1: O ambiente religioso e científico dos séculos XVI/XVII


O Humanismo ou Renascimento do século XVI foi afirmando os valores do homem em termos
ora mais, ora menos autônomos. No início do século XVII, os sintomas de mentalidade leiga, mesmo
ateia, já eram tantos que começaram a inquietar os ânimos tradicionais.
Sem dúvida, a ciência progredira muito no século XVI; já se apoiava em observações precisas,
levadas a efeito segundo métodos novos, afastando-se assim das conclusões formuladas de antemão,
sem muito contato com a realidade concreta, como eram as conclusões da Filosofia e da Física
medievais. Enfim, a ciência, dotada de instrumentos de trabalho cada vez mais esmerados, tendia a se
emancipar da Filosofia e de qualquer argumento de autoridade (inclusive da fé). A "vertigem da
inteligência" ia-se apoderando de alguns pensadores, que de maneira mais ou menos confessada
chegavam a lançar um brado de "morte a Deus"; tal é, por exemplo, a exclamação de Campanella
(1568-1639), frade que chegou a abandonar momentaneamente a sua profissão religiosa (mas que
acabou tranqüilamente os seus dias no convento de Saint-Honoré em Paris):
"Alguns cristãos descobriram a imprensa, Colombo descobriu um novo mundo, Galileu novas
estrelas... Acrescentai o uso dos canhões, da bússola, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas
invenções maravilhosas. Os pensadores de ontem eram crianças junto a nós' Nós somos livres!"
A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de adulto, julgava que, para o futuro,
poderia dispensar a "tutela de Deus".
Ao lado dos que nos termos atrás se entusiasmavam por uma ciência quase absoluta, havia os
céticos, representados principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que não menos
perigosamente cor roíam as tradicionais concepções cristas. Montaigne peregrinava pelos grandes
santuários da Europa, mas, como dizia um seu contemporâneo, o Pe. Garasse S.J., "sufocava
suavemente, como que com um cordel de seda, o senso religioso", mediante as suas proposições
ambíguas.
Diante dessas novas correntes de pensamento, que atitude tomavam as autoridades eclesiásticas?
Nos casos de flagrante impiedade e ateísmo, reagiam fortemente, desconfiando da nova ciência,
movidas pelo desejo de preservar a verdade e os valores da cultura (daí a sua reação contra
Campanella, Tanini, Teófilo de Viau...). Quando, porém, a contestação era habilmente dissimulada
por seus autores, parece que os eclesiásticos não avaliavam plenamente a gravidade do perigo;
Montaigne, por exemplo, submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos censores
129 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

eclesiásticos; estes em resposta delicada lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que
julgasse dever retocar!...
Estas reações são sintomáticas, pois revelam bem um período de transição e incertezas em que
os pensadores (tanto os tradicionais como os invasores) ainda não vêem plenamente o significado de
valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte
dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar à justa assimilação dos elementos
em causa ou à incorporação dos elementos novos na síntese antiga.
Ora foi precisamente num ambiente de certa reação contra a fé, reação encabeçada por uma
ciência aparente, que viveu Galileo Galilei (1564-1642).

Lição 2: O processo de Galileu


O sistema geocêntrico de Ptolomeu (+150 d.C.) estivera em vigor durante toda a Idade Média,
quando em 1543 o cônego Nicolau Copérnico publicou o livro "De revolutionibus orbium
caelestium", em que sugeria outra concepção: a Terra e os demais planetas giram em torno do sol. A
obra foi dedicada ao Papa Paulo III, que a aceitou sem contradição. Os doze Pontífices Romanos
subsequentes não se mostraram em absoluto infensos a Copérnico; verdade é que, por falta de provas
seguras, ninguém atribuía grande verossimilhança à nova teoria. Quando, porém, Galileu entrou no
cenário da história, esta mudou notavelmente de face.
Galileu, depois de ter aderido ao sistema ptolomaico, a partir de 1610 professou as ideias de
Copérnico, baseadas sobre observações de astronomia recém-realizadas. Com isto mereceu numerosos
elogios, principalmente por parte de sábios jesuítas (Clavius, Griemberger e outros), que o aplaudiram
como "um dos mais célebres e felizes astrônomos do seu tempo". Em março de 1611, tendo ido a
Roma (era natural de Pisa), lá foi recebido pelo Papa Paulo V em audiência particular: prelados e
príncipes pediram-lhe que lhes explicasse as maravilhas que havia descoberto. O Cardeal Dei Monte
em carta ao Grão-Duque de Florença atestava:
"Galileu convenceu cabalmente da veracidade de suas descobertas todos os sábios de Roma. E,
se estivéssemos ainda nos tempos da antiga República Romana, não há dúvida de que, em
homenagem às suas obras, lhe mandariam erguer uma estátua no Capitólio" (Favaro, Le opere di
Galilei XI 119).
Até essa época Galileu se mantivera exclusivamente no domínio da astronomia. Era inevitável,
porém, que entrasse no da Teologia. Com efeito, havia quem desconfiasse das teses de Galileu e o
quisesse impugnar em nome de textos bíblicos, como SI 103,4; Js 10. 12-14; Ecl 1,4-6. Foi o que fez
Ludovico delle Colombe.
Galileu defendeu-se em carta a seu discípulo Benedetto Castelli O.S.B., fazendo considerações
escriturísticas que foram posteriormente ratificadas pelos exegetas e até hoje conservam seu pleno
valor na Igreja:
"A Sagrada Escritura não pode nem mentir nem se enganar. A veracidade das suas palavras é
absoluta e inatacável. Aqueles, porém, que a explicam e interpretam, podem-se enganar de diversas
maneiras; cometer-se-iam funestos e numerosos erros se se quisesse sempre seguir o sentido literal das
palavras; chegaríamos a contradições grosseiras, erros, doutrinas ímpias, porque seriamos forçados a
dizer que Deus tem pés, mãos, olhos, etc... Em questões de ciências naturais, a Sagrada Escritura
deveria ocupar o último lugar. A S. Escritura e a natureza provém ambas da Palavra de Deus; aquela
foi inspirada pelo Espírito Santo, esta executa fielmente as leis estabelecidas por Deus. Mas, ao passo
que a Bíblia, acomodando-se à compreensão do comum dos homens, fala em muitos casos, e com
razão, conforme as aparências, e usa de termos que não são destinados a exprimir a verdade absoluta,
a natureza se conforma rigorosa e invariavelmente às leis que lhe foram dadas; não se pode, pois, em
nome da S. Escritura, pôr em dúvida um resultado manifesto adquirido por maduras observações ou
por provas suficientes... O Espírito Santo não quis ensinar-nos se o céu está em movimento ou se é
imóvel: se tem forma de globo ou forma de disco; se ele ou a terra se move ou permanece em
repouso... Já que o Espírito Santo não intencionou instruir-nos a respeito dessas coisas, porque isto
não importava aos seus desígnios, que são a salvação das nossas almas, como se pode, agora,
pretender que é necessário sustentar nesses assuntos tal ou tal opinião, que uma é de fé e a outra é
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 130

errônea? Uma opinião que não diz respeito à salvação da alma. poderá ser herética?" (Favaro, Opere
V 279-288).
Por mais sábias que fossem as ponderações de Galileu, a muitos católicos pareciam naquela
época inovações inspiradas pelo princípio do "livre exame da Bíblia" propugnado por Lutero. Foi o
que deu novo aspecto ao curso da história, motivando a intervenção do Santo Ofício: uma comissão de
teólogos tendo examinado as teses do heliocentrismo de Copérnico, acabou por dar parecer contrário
às mesmas aos 24 de fevereiro de 1616; em conseqüência, o Santo Ofício comunicou a Galileu a
ordem de "abandonar por inteiro a opinião que pretende que o sol é o centro do mundo e imóvel, e que
a terra se move", assim como lhe proibiu "sustentasse essa opinião como quer que fosse, a ensinasse
ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena de ser processado pelo S. Ofício" (Favaro,
Galilei e I’Inquisizione 62).
O astrônomo aceitou docilmente a intimação. Em conseqüência, aos 5 de março de 1616 a
Congregação do Índice condenou as obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até que fossem
corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de Galileu. O processo do S. Ofício fora secreto e o
sábio astrônomo voltou para Florença. a fim de continuar seus estudos, plenamente prestigiado pela
Santa Sé.
Terminou assim a primeira fase da história de Galileu.
Compreende-se, porém, que, continuando a estudar astronomia, o famoso autor não podia deixar
de se envolver no novo sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se pronunciar sobre o
assunto, passou a defender em termos cautelosos o heliocentrismo; em 1623 chegava a propugná-lo no
escrito II Saggiatore; este opúsculo, ofertado ao novo Papa, Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu
(ambos eram poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontífice. O Cardeal Hohenzollern, por essa
ocasião, pediu mesmo a Sua Santidade que se pronunciasse em favor do heliocentrismo; Urbano VIII
respondeu que esta doutrina Jamais fora condenada como herética e que pessoalmente ele nunca a
mandaria condenar, embora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de importância, pois
sugere que o decreto da Congregação do índice emanado em 1616 era tido como decreto meramente
disciplinar, não como decisão doutrinária).
Muito estimulado pelos sucessos, Galileu pôs-se a escrever nova obrei em favor do
copernicismo: o célebre Diálogo dei due Massimi Sistemi. Tendo-a submetido à censura eclesiástica,
esta lhe concedeu o Imprimatur com a condição de que propusesse o heliocentrismo não como tese
certa (os argumentos apresentados ainda não eram tais que fornecessem certeza), mas como hipótese.
Galileu, porém, não o fé; em 1632 publicou o livro como estava, incluindo, além do mais, a aprovação
dos censores de Roma e Florença!
Este gesto causou grande agitação em Roma; o sábio deixava naturalmente de gozar da
confiança da autoridade eclesiástica.
Chamado perante o Santo Ofício, Galileu respondeu insistentemente que em consciência jamais
admitira como certo e definitivo o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia apurar, o processo
foi encerrado em junho de 1633: o astrônomo teve então que abjurar publicamente o heliocentrismo e
foi condenado a prisão branda, onde, com alguns amigos, continuou a se dedicar aos estudos. Morreu
finalmente em Florença aos 8 de janeiro de 1642, tendo recebido em seu leito de morte a bênção do
Sumo Pontífice. Galileu, tido como réu, foi tratado de maneira que, à luz da praxe vigente na época,
era notavelmente benigna (foi detido como prisioneiro em palácios de nobres e embaixadores).

Lição 3: Observações complementares


1. A oposição dos teólogos e do Sumo Pontífice á tese de Galileu não compromete a infabilidade
do magistério da Igreja, que tem por âmbito tão-somente os temas de fé e de Moral, Ora é certo que o
caso Galileu versava sobre assuntos de ordem científica, aparentemente associados à autoridade da S.
Igreja. Em tal matéria nem o Papa nem os bispos em sua colegialidade têm garantia de infalibilidade.
Pergunta-se, porém; como entender tão drástica reação dos homens da Igreja contra Galileu, que
objetivamente tinha razão?
- Na Idade Média e ainda no início da Idade Moderna, a Bíblia era o manual utilizado para todos
os estudos (psalmos discere, aprender os salmos, significava então "aprender a ler"; a alfabetização já
era feita com a Bíblia na mão). Era, por conseguinte, à Bíblia que os medievais iam pedir um Juízo
131 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

sobre as suas noções de astronomia. Ora eis que no início do século XVII, depois de alguns
inovadores, apareceu Galileu, que defendia uma tese de astronomia em aparente contradição com a
Bíblia. Naquela época Galileu só podia apresentar argumentos fracos, ainda sujeitos a discussão
científica; apesar de tudo, não cedia às intimações da autoridade, que lhe pedia que apresentasse as
suas ideias como simples hipóteses. Além disto, Galileu intervinha no terreno da exegese, formulando
princípios para a interpretação da Escritura. Ora esse proceder não podia deixar de suscitar suspeita e
réplica por parte dos homens da Igreja. Quem lê depoimentos de escritores do século XVII mesmo,
pode chegar à conclusão de que, se Galileu tivesse ficado no plano de uma hipótese e não se tivesse
explicitamente envolvido em questões de exegese bíblica, não teria provocado a intervenção do S.
Ofício.
As descobertas da ciência aos poucos deram a ver aos teólogos que a Bíblia não quer ensinar
conhecimentos profanos: passaram então a distinguir e aceitar o que no século XVII parecia
monstruoso, isto é, dois planos que não se contradizem mutuamente, mas não interferem um no outro:
o plano das ciências naturais e o da Bíblia ou da Teologia.
A fim de ilustrar quão difícil devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séculos
XVI/XVII admitir o heliocentrismo, seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do
novo sistema; a estes, assim como aos católicos, foi custoso compreender que a Bíblia não ensina
cosmologia, de modo que durante dois séculos resistiram ao heliocentrismo. Com efeito, Lutero
julgava que as ideias de Copérnico eram ideias de louco, que tornavam confusa a astronomia.
Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e significava a
rebordosa das ciências.
Kepler (1581-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar a sua
terra, o Wurttemberg, por causa de suas ideias copernicianas.
Em 1659, o Superintendente Geral de Wittenberg, Calovius, proclamava altamente que a razão
se deve calar quando a Escritura falou; verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o
último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.
Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Estrasburgo afirmou estar o
sistema de Copérnico em contradição com a Sagrada Escritura.
Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter
defendido o sistema de Copérnico.
Ainda no século XVIII a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1744 o
pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que a teoria do heliocentrismo era abominável
invenção do diabo.

MÓDULO 44: BAIANISMO E JANSENISMO


Os Reformadores protestantes lançaram de novo o problema da graça divina e da liberdade do
homem, já estudado por S. Agostinho; ver módulo 13. Apoiando-se na doutrina deste mestre, eram
pessimistas em relação á natureza humana e às suas capacidades. Esta temática, complexa como é,
continuou a ser debatida dentro da igreja Católica após o Concilio de Trento (que apenas falara de
cooperação entre graça e liberdade), gerando as controvérsias do Baianismo e do Jansenismo. 60

Lição 1: Baianismo
Miguel de Bay ou Baius (+1583) era professor de Exegese Bíblica na Universidade de Louvain
(Bélgica) desde 1552. Desejava reconciliar os reformados com os católicos, valendo-se dos escritos de
S. Agostinho, que Lutero e os reformadores muito tinham respeitado. Relendo S. Agostinho a seu
modo, passou a negar o caráter gratuito e sobrenatural do estado paradisíaco (a graça, os dons do
Espírito Santo e a visão beatífica seriam devidos à natureza humana como tal). Em conseqüência,
afirmava que a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado de Adão, não é mais livre;
nem é capaz de realizar o bem, como também não pode resistir à graça de Deus. Juntamente com
muitos adeptos. Baio teve numerosos adversários, especialmente entre os franciscanos belgas e os
jesuítas; os Padres Lessius S.J. e Hamel S.J. foram por Baio acusados de semipelagianismo, porque

60
Este módulo há de ser estudado em intima conexão com o seguinte (módulo 45).
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 132

pareciam enfatizar demais o livre arbítrio do homem. Em 1567 o Papa Pio V, sem citar nome algum,
condenou 79 proposições de Baio e dos seus seguidores, parte como heréticas parte como
escandalosas ou suspeitas; Baio retrucou ao Papa; por isto Gregório XIII em 1579 voltou a condená-
las - o que levou Baio a sujeitar-se em 1580, sem, porém, abraçar as doutrinas de seus adversários
Franciscanos e jesuítas. O assunto não estava encerrado, como passamos a ver:

Lição 2: O Jansenismo (1)


Jansen, um professor da Universidade de Louvain, continuou a difundir secretamente as ideias
de Baio, querendo combater os jesuítas (especialmente Lessius), que pareciam dar preponderância às
forças humanas na conquista da salvação eterna. Jansen encontrou dois discípulos famosos: o
holandês Cornélio Jansênio e o francês Duvergier de Hauranne. O primeiro se tornou professor de
Teologia na Universidade de Louvain (1617) e morreu como bispo de Ypres (1638), Hauranne foi
nomeado abade comendatário de Saint-Cyran e procurava influenciar o público pela direção de
consciência e a publicação de escritos anônimos e pseudônimos.
Ao morrer, Jansênio deixou seu livro "Augustinus" inédito, que saiu em edição póstuma em
1640, sem a autorização de Roma e à revelia dos jesuítas. Era uma reafirmação dos erros de Baius sob
o manto de S. Agostinho; o autor lera trinta vezes todos os escritos de Agostinho contra os pelagianos
e trabalhara vinte anos na redação respectiva; professava logo no início do livro submissão à Santa Sé
e à infalibilidade do Papa.
Em 1642 Urbano VIII proibiu a leitura dessa obra. Os amigos de Jansênio tomaram isto como
um ataque à doutrina de S. Agostinho. Saint-Cyran procurou ganhar para a sua causa os círculos
influentes: conseguiu a adesão do famoso teólogo António Arnauld (+1694) e das monjas
cistercienses de Port-Royal (perto de Paris), das quais Saint-Cyran era confessor e cuja abadessa.
Angélica era irmã de António Arnauld. Formou-se aos poucos um partido jansenista, que tinha seus
principais adversários entre os jesuítas: estes eram tidos como semipelagianos e laxistas pelos adeptos
de Jansênio.
Visando a defender sua causa, A, Arnauld publicou em 1643 um livrinho "Sobre a Comunhão
Freqüente", em que combatia a recepção amiudada dos sacramentos recomendada pelos Jesuítas;
estabelecia condições rigorosas para que alguém pudesse receber a Eucaristia ou mesmo a absolvição
dos pecados (a comunhão seria prêmio da virtude praticada pelo cristão); o autor julgava estar assim
restaurando a disciplina da antiga Igreja. Teve grande sucesso; o Parlamento de Paris colocou-se ao
lado dos jansenistas. A situação foi levada ao conhecimento da Santa Sé com o pedido de intervenção.
Depois de longas deliberações, o Papa Inocêncio X, na Bula Cum occasione de 31/05/1653,
condenava como heréticas as cinco proposições seguintes, tiradas do "Augustinus":
"1. Alguns preceitos de Deus são Impraticáveis mesmo para os homens justos e de boa vontade,
que tentem cumpri-los segundo suas forças. Falta a esses homens a graça que tome os mandamentos
exeqüíveis.
2. Nas condições da natureza decaída, nunca alguém pode resistir à graça interior.
3. Para merecer e desmerecer no estado da natureza decaída, não é necessária liberdade interior,
mas basta a isenção de coação extrínseca.
4. O homem nunca pode resistir à graça de Deus.
5. Cristo não morreu por iodos os homens".
Esta condenação não pôs termo aos debates. Arnauld e seus amigos reconheceram o caráter
herético das sentenças condenadas, mas negaram que elas fossem a doutrina de Jansênio; o Papa as
teria entendido em sentido calvinista, que não era o sentido de Jansênio. O Papa, porém, declarou que
quisera condenar a doutrina de Jansênio como tal. Os jansenistas replicaram, distinguindo "questão de
direito" e "questão de fato": a Igreja, diziam, é infalível ao decidir se uma doutrina em si é herética ou
não, mas não é infalível ao julgar um mero fato histórico, isto é, se um teólogo proferiu esta ou aquela
doutrina; neste último caso, a Igreja não poderia exigir um assentimento interior ao juízo que ela
profere, mas apenas um "silêncio obsequioso" (com discordância interior). Esta distinção deu novo
alimento à luta. Depois de discussões acesas, a Sorbona (Universidade de Paris fundada em 1253 por
Roberto de Sorbon) expulsou em 1656 Arnauld e sessenta outros mestres.
133 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Entrementes entrou em cena o famoso filósofo e matemático Blaise Pascal. Irmão da monja
Jacqueline, de Port-Royal, agregou-se em 1654 ao grupo dos Solitários, perto de Paris: estes eram
homens austeros, que, mesmo sem votos religiosos, oravam, trabalhavam e se mortificavam,
mantendo o Ofício Divino à noite e períodos de silêncio; hospedavam visitantes que com eles
quisessem passar alguns dias de retiro - o que muito impressionava o público de Paris. Pascal resolveu
dedicar sua atenção aos problemas religiosos que fervilhavam no ambiente; assimilou as doutrinas
apregoadas por Arnauld e seus adeptos, e colocou sua pena mordaz a serviço dos jansenistas contra os
seus adversários, principalmente os jesuítas. Usando o pseudônimo Louis de Montalde, escreveu as
suas famosas "Cartas Provinciais" (1656/7), dirigidas contra a imoralidade da sociedade de Paris e a
Companhia de Jesus, tida como laxista em Moral. As sátiras de Pascal foram traduzidas para outras
línguas e causaram enorme mal à Companhia, que não merecia tal tratamento.
A partir de 1660, o rei Luís XIV da França, por motivos políticos, pôs-se a combater o
jansenismo, o que agravou a situação. Em 1665 apareceu uma Carta Pastoral de quatro bispos
franceses, que recomendavam apenas o silêncio obsequioso61... O Papa Alexandre VII condenou os
quatro bispos e instituiu uma comissão de nove bispos para julgá-los; os quatro prelados protestaram
em nome das "liberdades galicanas", segundo as quais o Papa não tinha o direito de julgar os bispos
do reino,62 Assim o jansenismo e o nacionalismo francês (galicanismo) se associaram no combate a
Roma. Mas, sob o sucessor de Alexandre VII, inesperadamente os quatro bispos assinaram um
formulário de sujeição à Santa Sé; ao mesmo tempo, porém, professaram a sua convicção jansenista
num protocolo que devia ficar secreto (1668), O Papa deu-se por satisfeito com o gesto público dos
quatro prelados e em 1669 concedeu a reconciliação a todos os jansenistas; era a Paz Clementina, que
os rebeldes receberam em atitude de triunfo; o Papa Clemente XI teria anulado os atos de seus
predecessores e aprovado o silêncio obsequioso.

Lição 3: O jansenismo (2)


Nos decénios seguintes, o Jansenismo às ocultas continuou a se difundir. Mas no início do
século XVIII reabriu-se a luta pública e calorosa.
Começou-se a discutir de novo a questão: pode ser absolvido em confissão quem observa apenas
um silêncio obsequioso? Quarenta doutores da Sorbona responderam afirmativamente. Diversos
bispos e o próprio Papa Clemente XI rejeitaram essa sentença em 1703. Em 1705 o Pontífice publicou
a Bula Vincam Domini, em que mais uma vez declarava insuficiente o silêncio obsequioso e exigia a
condenação das cinco sentenças do livro "Augustinus" de boca e de coração. A Bula não teve o
efeito desejado. O clero francês, impregnado de nacionalismo separatista, na assembléia geral de 1705
declarou que as instruções papais só obrigam os fiéis quando reconhecidas e confirmadas pelos bispos
locais. O Papa protestou contra esta atitude, mas com pouco sucesso. Também as monjas de Port-
Royal, "puras como os anjos, mas orgulhosas como os demônios" resistiram ao Papa; então o Governo
Francês em 1705, com 3 aprovação do Pontífice, mandou fechar o Mosteiro, destruir o respectivo
edifício e a igreja.
A esta altura, novo foco se acendeu para alimentar a discussão jansenista. O Padre oratoriano
Pascásio Quesnel (+1719) publicou o livro "Reflexões morais sobre o Novo Testamento", tendo a
aprovação do bispo Luís António de Noailles. Era obra imbuída de jansenismo, que encontrou larga
aceitação. Os jesuítas conseguiram que Clemente XI censurasse o livro em 1708 e proibisse, sob pena
de excomunhão, a sua leitura. Diante da resistência à ordem do Papa, Clemente XI mandou
reexaminar o livro e condenou 101 sentenças do mesmo mediante a Bula Unigenitos de 1713.
Recomeçou então o jogo dialético: já que muitas sentenças extraídas do seu contexto pareciam ter
sentido ortodoxo, o Cardeal de Paris e sete bispos recusaram-se a aceitar a decisão papal; a corrente
destes contestatários foi-se avolumando e apelou para um Concílio Ecumênico. Assim dividiu-se a
França em partido dos "Aceitantes" e partido dos "Apelantes" ou "Anticonstitucionistas"; aqueles
usavam faixas de seda castanha e branca, e estes, faixas pretas e vermelhas.

61
Isto é, não se deveria criticar a atitude antijansenista do Papa, mas não seria necessário dar-lhe consentimento interior.
62
Esta atitude tem suas raízes no espírito nacionalista, testemunhado já pela "Pragmática Sanção de Bourges" (1438): ver
módulo 29.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 134

A situação foi-se agravando até o perigo de um cisma. Em 1718 Clemente XI excomungou os


Apelantes. Muitos deles rejeitaram a decisão papal. O acirramento das posições chamou a atenção do
novo rei Luís XV, pois o fanatismo dos jansenistas constituía uma ameaça não só à Igreja, mas
também à nação. O poder civil adotou medidas repressivas, que chegaram a reduzir o Cardeal
Noailles, de Paris, à submissão; a maioria dos outros Apelantes seguiu-lhe o exemplo.
Os obstinados apelaram então para sinais do céu em favor da sua causa: um diácono jansenista,
Francisco de Paris, morreu em 1727 e foi sepultado no cemitério de S. Medardo; ora os devotos que
iam rezar junto ao túmulo, afirmavam que lá se produziam milagres, visões e êxtases; as curas eram
obtidas por meio de convulsões em torno do túmulo, enquanto se recitavam imprecações contra o
Papa, a Bula e os Bispos. O apelo a esses critérios extraordinários não conseguiu deter o
desmoronamento do jansenismo. Em 1732 o rei mandou fechar o cemitério e um humorista escreveu
no portão:
"Por ordem do rei, Deus está proibido de fazer milagres neste lugar".
A ação conjunta do rei e da Igreja conseguiu extinguir aos poucos o jansenismo na França. A
tarefa não foi fácil por causa das paixões e porque os Parlamentos de Paris e das províncias se
opunham às medidas repressivas do rei;... opunham-se por causa do galicanismo (nacionalismo
eclesiástico), que o rei Luís XIV havia fomentado; quando o monarca quis agir com Roma contra o
Jansenismo, sentiu a resistência.
Todavia, enquanto o jansenismo propriamente dito desaparecia, ficava na piedade do povo
acentuada tendência rigorista, associada a ideias galicanas, como se verá em módulos seguintes. Até
S. Pio X (1903-1914) os fiéis pouco recebiam a Comunhão Eucarística por causa do temor incutido
pelo Jansenismo.
Na Holanda o Jansenismo conseguiu produzir o cisma ao qual escapou a França de Luís XIV.
Vários jansenistas de renome, entre os quais Quesnel, para lá se retiraram. Em 1723 quatro sacerdotes
jansenistas de Utrecht lembraram-se de restaurar o arcebispado dessa cidade, que se convertera ao
calvinismo. Um deles, Cornélio Steenhoven, foi encolhido como titular; encontrou-se quem o
ordenasse arcebispo - o bispo Varlet, das Missões Estrangeiras de Paris, jansenista suspenso. O
terceiro sucessor de Steenhoven ressuscitou os bispados de Harlem (1742) e Deventer (1758), criando
assim a Igreja cismática de Utrecht, que ainda hoje existe. Os velhos-católicos alemães (dos quais
falará o módulo 49) entraram em relação com os Jansenistas de Utrecht, formando união com eles em
1889.

MÓDULO 45: GALICANISMO E FEBRONIANISMO


A França tornou-se nos séculos XVII/XVIII o principal ponto de referência dos acontecimentos
da história da Igreja. Além da questão jansenista, tomou grande vulto então a do Galicanismo.

Lição 1: Galicanismo
O absolutismo dos reis da França começou a se afirmar com Filipe IV o Belo (1285-1314); e
manifestou-se fortemente no Exílio de Avinhão e no Grande Cisma do Ocidente (séculos XIV/XV);
cristalizou-se na Pragmática Sanção de Bourges sob Carlos VII em 1438, tendendo sempre a subtrair
ao Papado a Igreja na França e professando implicitamente a teoria conciliarista. Tal estado de coisas
chegou ao seu auge no reinado de Luís XIV (1643-1715), o Rei-Sol, que dizia: "L'Etat c'est moi! -O
Estado sou eu".
Luís XIV era católico, sob a condição de dominar tudo, mesmo a Igreja e o Papado, ao qual ele
não poupou humilhações. Interessa-nos considerar como o nacionalismo eclesiástico se desenvolveu
sob esse rei.
Em 1680 as Religiosas de S. Pedro Fourier (subúrbio de Paris) estavam para eleger
legitimamente a sua Superiora. Luís XIV, porém, quis impor-lhes uma Superiora de outra Ordem. As
Irmãs apelaram para Inocêncio XI, que mandou proceder à eleição, todavia a Bula papal foi rejeitada
pelo Parlamento francês, — O rei resolveu então recorrer a uma assembléia geral do clero francês, que
se reuniu em Paris de 1681 a 1682. Alguns prelados e o rei mostraram-se irritados pela "intromissão"
do Papa na Igreja da França..., intervenção que eles Julgavam contrária a uma concordata de 1516,
firmada com o Papa Leão X. Por isto o bispo Jacques - Bénigne Bossuet (1627-1704), encarregado
135 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

pela assembléia, redigiu quatro artigos que definiam os limites do poder papal na França. Tais artigos,
aprovados pelos presentes, constituem a "Declaração do Clero Galicano", que tomou o vigor de lei:
1) O Papa recebeu de Deus um poder meramente espiritual. Os reis, em questões temporais, não
estão sujeitos, nem direta nem indiretamente, a alguma autoridade eclesiástica; por isto não podem ser
depostos em nome do poder das chaves, nem os seus súditos desligados do juramento de fidelidade.
2) Os decretos do Concílio de Constança que estabeleceram a supremacia do Concílio sobre o
Papa, têm vigor de lei perene.
3) O exercício da autoridade papal é regrado pelos cânones da Igreja Universal, pelos princípios
e os usos que, desde época remota, se observam na Igreja Galicana.
4) Em decisões de fé o Papa tem voz preponderante, mas só irreformável após obter o
consentimento da Igreja inteira.
Bossuet, que redigiu estes artigos, era, de resto, um bispo zeloso, promotor da união de católicos
e protestantes e grande orador sacro. Todavia nutria profunda admiração pelo poder absoluto de Lui's
XIV, que ele apresentava nos seguintes termos:
“Todo poder reside inteiramente na pessoa do rei, não podendo existir outra autoridade além
da sua. Poder tão grande não emana dos homens, mas sim de Deus, que estabeleceu os reis para
governar o mundo em seu nome, os quais a mais ninguém senão a Ele devem prestar contas dos seus
atos. Os súditos devem ao rei obediência e respeito; toda desobediência é grave falta cometida contra
ele.”
Ao tomar conhecimentos da promulgação dos artigos galicanos, o Papa Inocêncio XI protestou,
mas não impôs aos franceses alguma censura eclesiástica para evitar a iminente ruptura de relações.
Aliás, o próprio Luís XIV não queria separar-se da Igreja Católica, pois sabia que isto lhe tiraria muito
do seu prestígio; também as suas convicções religiosas eram assaz firmes para não lhe permitir que
fosse tão longe no seu absolutismo. Diz-se mesmo que declarou a galicanos que impeliam a novas
violências: "Se eu quisesse seguir essas ideias, deveria pôr o turbante sobre a cabeça (isto é, eu me
faria turco muçulmano)". Em resposta ao rei, o Papa Inocêncio XI recusou confirmar dois candidatos
a bispo que o rei lhe apresentou e que haviam participado da assembléia galicana. O rei declarou que
isto era uma violação da Concordata e proibiu aos bispos que ele nomeava, fossem buscar a sua Bula
de confirmação em Roma. A conseqüência deste litígio é que, durante seis anos, os titulares de trinta e
cinco dioceses francesas não possuíram a ordenação episcopal (ou não eram bispos). Ainda que o rei
nomeasse bispos, somente o Papa podia autorizar a ordenação episcopal desses candidatos.
O Jansenismo, suscitando atitude de indiferença e frieza nos cristãos, criava clima próprio ao
Galicanismo, como também o Galicanismo favoreceu o Jansenismo, pois ambos lutavam contra
Roma.

Lição 2: Febronianismo
Da França o Galicanismo passou para a Alemanha, onde Lutero tinha denunciado os vexames da
nação alemã, queixosa das intervenções de Roma na nomeação de prelados, no arrecadamento de
taxas, no cerceamento de liberdades, das quais gozavam a França e a Espanha.
No século XVIII o descontentamento se fez ouvir de novo modo. Um dos principais
transmissores dos erros franceses foi um professor de Direito Canônico em Louvain, Bernardo van
Espen (t 1728), que por seus escritos e discípulos exerceu grande influxo na Alemanha; as suas obras
foram postas repetidas vezes no index a partir de 1704. Propagava entre os prelados alemães uma
onda de episcopalismo, tendência que queria restringir, em favor dos bispos, os direitos do Papa e de
seu representante, o Núncio. Essa onde era fomentada por uma antipatia contra a Cúria Romana
suscitada pela Concordata de Viena (1448); ver módulo 28. As ideias de van Espen foram
desenvolvidas na Alemanha por um discípulo deste mestre em Louvain, doutor em Direito Canônico e
bispo auxiliar de Tréviris: João Nicolau de Hontheim (1701-1790). Empreendeu estudar a situação da
Igreja na Alemanha do ponto de vista jurídico. Como fruto de suas reflexões, publicou em 1763.
"Justini Febronii de Statu Ecclesiae et Legitima Potestate Romani Pontificis liber singularis ad
reuniendos dissidentes in religione christiana compositus. — Livro singular de Justino Febrônio a
respeito do estado da Igreja e do legítimo poder do Pontífice Romano, redigido para reunir os cristãos
dissidentes na religião". O autor usou de pseudônimo: Justina era o nome de sua sobrinha, que no
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 136

mosteiro era chamada Febrônia. Propunha os princípios galicanos de 1682 reforçados por teses de
canonistas de Louvain, como se pode ver a seguir.
Para restabelecer a unidade entre os cristãos, dizia Febrônio, é preciso reproduzir a constituição
da Igreja nascente. Isto implica restituir aos bispos e aos Concílios os seus direitos e limitar os poderes
do Papa. Este não é monarca absoluto nem infalível. O poder na Igreja toca, primeiramente, ao
conjunto dos bispos ou ao Concílio Ecumênico. As decisões papais só têm vigor quando aprovadas
pela Igreja inteira e introduzidas em cada uma das dioceses pelo respectivo bispo. Ao sucessor de
Pedro, portanto, só compete um primado de honra em relação aos outros bispos. Os únicos direitos
que lhe assistem, são os direitos necessários ao exercício da sua tarefa, que é: vigiar pela observância
dos cânones, conservar a fé e a unidade da Igreja. Confirmação e deposição de bispos, preenchimento
de cargos, eclesiásticos, concessão de dispensas, reservas são falsificações do Direito devidas a
evolução errônea. Por conseguinte, os bispos deveriam arrebatar para si essas funções. Como meios
aptos para obter a emancipação dos bispos eram recomendados: propaganda no grande público,
convocação de Concilio Ecumênico livre. Sínodos provinciais, união dos bispos com os príncipes
seculares; a estes tocaria o direito de sancionar ou não as leis do Papa e de receber as apelações em
Tribunal.
A obra de Hontheim se difundiu rapidamente e em várias traduções, provocando grave crise na
Alemanha. Obteve os aplausos dos príncipes civis e dos inimigos da Igreja, principalmente na Áustria,
cujo Imperador José II a aprovou três vezes, as normas de Febrônio foram introduzidas nos manuais
de Direito Eclesiástico.
Clemente XIII pôs o livro no Index e exortou os bispos alemães a combatê-lo - o que só
encontrou execução parcial e hesitante. Em dezembro de 1769 os arcebispos de Tréviris, Mogúncia e
Colônia mandaram elaborar um documento em 31 artigos (Avisamenta) sob a presidência de
Hontheim, que tinha sabor febroniano. Todavia em 1778, depois de haver triunfado, Hontheim,
instado pela Cúria Romana e pelo Arcebispo de Tréviris, declarou que se retratava. Em 1781, porém,
publicou o "Comentário à Retratação", que discretamente manifestava os mesmos princípios de
Febrônio: usando de estilo atormentado e cheio de restrições, Hontheim não queria nem ofender a
verdade nem retratar abertamente uma obra que ele julgava ser a glória de sua carreira.
Poucos anos mais tarde, o febronianismo produziu seus efeitos mais nocivos. Em 1785, Pio VI, a
pedido do príncipe Carlos Teodoro da Baviera, erigiu uma Nunciatura 63 em Munique. Isto muito
inquietou os citados arcebispos de Tréviris, Mogúncia e Colônia, assim como o príncipe-bispo de
Salzburgo, que temiam uma restrição de sua jurisdição. Mediante delegados seus, elaboraram a
"Pontuação de Ems" (1786), que eram 23 artigos de Febronianismo exaltado: exigiam a revogação da
jurisdição dos Núncios, o beneplácito dos bispos para as Bulas papais, além de reformas na liturgia, na
vida conventual e na pastoral em geral. O documento terminava solicitando ao Imperador José II que
dentro de dois anos reunisse um Concílio nacional para abolir os "vexames" da nação alemã.
Em breve evidenciou-se a impossibilidade de executar tais postulados. Quando os arcebispos
citados quiseram autonomamente conceder certas dispensas, opos-se-lhes o Núncio Pacca, de Colônia,
hábil defensor das funções papais, que escreveu uma carta aos párocos; os bispos sufragâneos 64 se
associaram ao Núncio, pois queriam defender seus interesses ameaçados pela preponderância dos
arcebispos. Estes então tiveram que retroceder; ainda pleitearam um acordo a respeito da Nunciatura
em Munique — o que o Papa rejeitou energicamente (1789).
O febronianismo teve sua aplicação concreta mais rigorosa na Áustria sob Maria Teresa a
Católica (1740-1780) e principalmente sob D. José II (1780-90), que Frederico It da Prússia chamava
"Meu Irmão o Sacristão" ou "o Arqui-sacristão do Império Romano". Este monarca teria levado a
Áustria a um cisma, se não o tivesse dissuadido o embaixador espanhol Azara. O Papa Pio VI foi a
Viena para entender-se com o monarca; foi muito aclamado pelas populações durante a viagem; teve
brilhante recepção na corte imperial, mas, após quatro semanas de permanência, teve que regressar
sem ter conseguido demover o monarca de seus propósitos febronianos e de outras medidas drásticas

63
O Núncio é um representante da Santa Sé que, além de exercer as funções de embaixador, está encarregado de
acompanhar, em nome do Santo Padre, a vida da Igreja no país em que está credenciado.
64
O bispo sufragâneo é o que depende de um arcebispo; outrora este laço era rígido, ao passo que hoje é praticamente
nulo.
137 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

(redução do número de Seminários a cinco ou seis, nos quais só ensinariam professores da confiança
do Imperador; supressão das Ordens contemplativas e de conventos de outras Ordens; proibição, aos
bispos, de contato direto com Roma...).

Lição 3:0 Sínodo de Pistola


D. José II da Áustria tinha um irmão que era o Grão-Duque Leopoldo U, da Toscana (Itália). A
partir de 1780, Leopoldo resolveu introduzir, no seu território reformas semelhantes às de D. José II.
A princípio, era moderado; em 1786, porém, publicou um Regulamento para o clero toscano, que
continha medidas radicais; devia ser confirmado por um Sínodo nacional. Dos dezoito bispos do
Grão-Ducado, poucos se mostravam simpáticos à reforma, Todavia à frente dos que as apoiavam,
colocou-se o bispo jansenista e galicano Cipião de Ricci, de Pistoia e Prato. Cipião reuniu o Sínodo
diocesano de Pistoia em setembro de 1786, que adotou os quatro artigos galicanos de 1682 e o corpo
de doutrinas teológicas, morais e disciplinares do Jansenismo; rejeitou as indulgências, as espórtulas
ou honorários do culto, e exigiu que se fechassem todas as Ordens Religiosas para se criar uma só,
conforme o exemplar de Port-Royal; de modo especial, o Sínodo de Pistoia condenou a devoção ao
Sagrado Coração de Jesus, pois esta afirmava o amor misericordioso do Salvador oferecido
gratuitamente a Todos os homens, lembrando a todos que o amor de Deus aos homens é anterior ao
amor dos homens a Deus (precisamente Jesus apareceu a S. Margarida Maria, 1647-1690, mostrando-
lhe o Coração que tanto ama os homens, numa época em que o Jansenismo desacreditava esse amor).
Para confirmar as resoluções de Pistoia, foi convocado o Concílio Nacional de Florença (1787);
mas quatorze dos dezessete bispos reunidos repeliram os projetos. O Grão-Duque Leopoldo,
indignado, dissolveu a assembléia e publicou decretos reformistas por sua própria autoridade.
Aconteceu, porém, que, em 1790, foi chamado para a Áustria a fim de ocupar o trono imperial vacante
pela morte de seu irmão D. José. O bispo Cipião de Ricci, temendo o povo irritado, fugiu da sua
diocese e renunciou à mesma (1791). As leis de reforma foram, em grande parte, revogadas. Em 1794,
Pio VI, pela Bula Auctorem fidei, censurou 85 proposições do Sínodo de Pistoia. Ricci, que passou a
viver discreta e moderadamente submeteu-se à Santa Sé em 1805. Nos anos seguintes, o Jansenismo
ainda contou um ou outro adepto no clero italiano. Mais duradouras foram as conseqüências do
Jansenismo na piedade católica; a exígua freqüência aos sacramentos e a perda do sentido de Igreja
universal só começaram a ser superadas pelo movimento de volta às fontes proclamado por S. Pio X
(1903-1910).

MÓDULO 46: A SUPRESSÃO DA COMPANHIA DE JESUS. A


REVOLUÇÃO FRANCESA
O século XVIII foi marcado pelo racionalismo, também chamado "Iluminismo", tendência que
só aceita as luzes da razão em detrimento da fé e dos valores transcendentais; entrou em sérios
conflitos com a Igreja. Destes destacaremos dois dos mais importantes.

Lição 1: A supressão da Companhia de Jesus


Os jesuítas no século XVIII haviam-se tornado um dos principais sustentáculos da Igreja na
Restauração Católica frente ao protestantismo, ao galicanismo, ao jansenismo e à incredulidade
racionalista. Em 1749 havia, em 39 Províncias, 669 colégios jesuítas e grande número de pequenos
institutos, aos quais serviam 22.600 Religiosos. Essa preeminência não deixava de ser perigosa para
os jesuítas; alguns, conscientes do seu próprio valor, negaram mais de uma vez a obediência à Santa
Sé, aderindo, por exemplo, às Declarações Galicanas de 1682. — Numa palavra: o zelo dos jesuítas
granjeou-lhes muitos adversários entre acatólicos e católicos, ora por motivos arbitrários, ora com
certo fundamento: eram acusados de moral relaxada, pelagianismo, intromissão na política, cobiça de
domínio temporal, violação de decretos da Santa Sé, desprezo dos bispos, orgulho, etc. Essa onda de
ódio tornou-se fatal para a Companhia, quando conseguiu penetrar nas cortes reais do século XVIII.
A tempestade explodiu em Portugal. O Primeiro-Ministro Sebastião José de Carvalho, Marquês
de Pombal, era um livre pensador ambicioso. Combatia o clero como inimigo do absolutismo; visava
principalmente à "Companhia de Jesus, à qual atribuía a culpa dos males que afetavam Portugal.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 138

Sobreveio o caso do Paraguai: em 1750, a Espanha cedeu a Portugal, em troca da colônia de San
Sagramento, sete distritos do Paraguai, onde Pombal esperava encontrar minas de ouro. Os 30 mil
índios que habitavam esses distritos eram suspeitos de amizade com os jesuítas; por isto receberam a
ordem de retirar-se; os índios, porém, resistiram; em conseqüência, os jesuítas foram acusados de
fomentar a revolta (falava-se de um "Estado jesuíta" no Paraguai), transportados para a Europa e,
encarcerados. - A pedido do Governo português, Bento XIV nomeou o Cardeal Saldanha, parente de
Pombal, Visitador da Companhia de Jesus em Portugal; Saldanha fez que os Jesuítas fossem
suspensos da pregação e do confessionário por causa de "ilícitos negócios financeiros" (1758). Pouco
depois, o rei D. José era ferido num atentado, e a culpa do crime foi lançada sobre os Jesuítas; em
conseqüência, os bens da Companhia foram confiscados e a própria Companhia foi supressa no reino
e nas colônias (1759). Muitos jesuítas foram encarcerados; outros atirados, sem recursos, ao litoral do
Estado Pontifício; o Pe. Malagrida, de 72 anos, foi queimado vivo em 1761, acusado de traição e
heresia. - Em vão o Papa Clemente XIII elevou a voz em favor dos perseguidos; a sua intervenção só
serviu para que se rompesse por dez anos as relações entre a Santa Sé e Portugal.
Outras nações seguiram o exemplo de Portugal: a França, a Espanha, Nápoles e Sicília. . . A
pressão tornou-se tal que pediram ao Papa Clemente XIII a extinção total da Companhia. O sucessor
deste Pontífice, Clemente XIV (1769-74), franciscano conventual, fez largas concessões às cortes
reais, na esperança de salvar os jesuítas. Isto, porém, só fez aguçar as pressões, que chegavam a
ameaçar de cisma a Igreja. Por isto o Pontífice viu-se obrigado a extinguir a Companhia pelo Breve
Dominus ac Redemptor de 21/07/1773; alegava que a Companhia, caluniada como era, Já não podia
dar os frutos almejados, mas, ao contrário, se tornara causa de constantes cisões e rixas entre os povos.
Enquanto os Governos católicos se regozijavam com a extinção da Companhia, a, Prússia protestante
de Frederico II e a Rússia cismática de Catarina II se opuseram à execução do Breve papal, de modo
que os Jesuítas continuaram a trabalhar nesses dois reinos (na Prússia, ao menos até Frederico
Guilherme II, que em 1776 confiscou os bens da Companhia). Os Jesuítas impunham-se como mestres
e educadores, reconhecidos por soberanos não católicos.
O juízo dos historiadores sobre Clemente XIV reconhece que foi piedoso e irrepreensível em sua
vida particular; tinha tanto receio de cair no nepotismo que nem queria receber em visita o seu
sobrinho pobre que estudava em Roma. De boa consciência extinguiu a Companhia de Jesus, mas foi,
por este gesto, muito difamado e hostilizado; os seus adversários dizem que, após assinar o Breve de
supressão, o Papa caiu desmaiado, tendo exclamado: "A condenação é minha herança; eu o fiz
forçado". Dizem também que o Papa temia ser envenenado e que o foi realmente - afirmação
destituída de fundamento. Clemente XIV expirou nos braços de São Paulo da Cruz, fundador dos
Clérigos Passionistas, tão santamente como vivera. Os seus mais acirrados adversários nunca
encontraram uma objeção contra a sua vida privada.
Em 1814, Pio VII restaurou a Companhia de Jesus, que havia de voltar a ser valioso esteio do
Papado nos tempos modernos.

Lição 2: A Revolução Francesa: antecedentes


A Revolução Francesa (1789) é o desfecho das ondas de desagregação que solapavam a Igreja e
a sociedade desde o século XVI. Em particular, é o termo final do movimento racionalista que desde
1750 se propagava pela França sob a orientação de Voltaire, Diderot, d'Alembert, Montesquieu,
Rousseau. . . Tal movimento se explica do seguinte modo:
a) O progresso das ciências, a descoberta de novos continentes nos séculos XVI / XVII
revolveram profundamente as noções de geografia, cosmologia, antropologia, etnologia... dos homens
da época. . . e passaram a influir também na filosofia dos mesmos. Estes não souberam, de imediato,
fazer a síntese entre os novos dados da ciência e as perenes verdades do Cristianismo. A mensagem
cristã pareceu-lhes, em parte, ultrapassada ou sujeita a interrogações e dúvidas; daí originou-se um
clima de indiferentismo aos valores cristãos como também de racionalismo (a razão é o critério
supremo), agnosticismo (não podemos conhecer o transcendental), naturalismo (só vale o que é
natural ou aceitável pela razão natural) e materialismo. Apareceram, entre outras, obras de viajantes
que faziam o elogio do "bom selvagem" ou do "bom pagão", em oposição ao bom cristão.
139 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

O Iluminismo apregoava a luz da razão em lugar do "absolutismo" da fé. Espalhou-se pela


Inglaterra, a Alemanha e a França, preparando nesta a Revolução de 1789.
b) A Revolução Francesa foi provocada também pelas graves desordens sociais que afetavam o
país. A corte real vivia em luxo extremo; a nobreza era uma classe privilegiada, que usufruía dos
prazeres e festas do palácio régio. O clero, principalmente os prelados, também era privilegiado. O
povo, porém, sofria de miséria, acabrunhado por impostos, dos quais as outras classes eram isentas.
As ideias de liberdade que impulsionavam os Estados Unidos da América (independentes em 1783),
concorriam para disseminar desejos de mudanças na própria França. - Impunham-se reformas.

Lição 3: Revolução Francesa: desenrolar


Procedeu por etapas.
Em 1789, o rei Luís XVI convocou os Estados Gerais ou representantes da nobreza, do clero e
da burguesia. Estes se declararam Assembléia Constituinte, que começou a legislar.
Aos 13/02/1790 foram supressas todas as Ordens e Congregações Religiosas, excetuadas as que
se dedicavam aos enfermos, à educação e à ciência.
Aos 12/07/1790 foi desferido outro golpe mais forte, a saber: a Constituição Civil do Clero, que
prescrevia, entre outras coisas:
— as sedes episcopais e paroquiais seriam preenchidas por eleição, sendo eleitores as mesmas
pessoas que elegeriam seus representantes civis, qualquer que fosse a respectiva religião:
— o bispo eleito seria confirmado pelo metropolitano ou pelo mais antigo bispo da província,
não pelo Papa. Os párocos seriam confirmados pelo bispo respectivo.
Todos os clérigos foram obrigados a jurar essa nova Constituição. Houve, porém, atitudes,
opostas: uma terça parte do Clero (25 / 30.000 eclesiásticos) prestou o Juramento, tendo à frente o
bispo Talleyrand e cem deputados eclesiásticos; a outra parte do Clero e todos os bispos (com exceção
de cinco) recusaram o Juramento, tendo o povo a seu favor; os fiéis desertavam as igrejas dos
sacerdotes juramentados e procuravam o, clero refratário. Assim a Igreja na França se viu dividida em
"constitucionais" ou "juramentados" e "refratários".
Aos 13/04/1791 Pio VI condenou oficialmente a Constituição Civil do Clero; declarou
suspensos os clérigos juramentados, caso não se retratassem dentro de quarenta dias (muitos o
fizeram) e declarou inválidas as eleições eclesiásticas que obedecessem às normas civis.
Conta-se que Expilly, vigário nomeado bispo por Talleyrand, ofereceu ao seu coadjutor a
paróquia de S. Martinho de Morlaix; o coadjutor, refratário, tendo recusado, Expilly lhe perguntou:
"Como fará você para viver?" O refratário lhe respondeu: "Sr. Reitor, como fará V.S. para morrer?"
A Assembléia Constituinte tendo terminado a sua missão, deu lugar à Assembléia Legislativa,
composta de deputados extremistas, com menos de trinta anos de idade na maioria, entre os quais
dezessete sacerdotes constitucionais.
Os clérigos refratários foram encarcerados e deportados; as restantes Congregações Religiosas
fechadas. Em setembro de 1792, deu-se terrível massacre nas prisões de Paris (191 dos assassinados
foram beatificados como mártires em 1926).
À Assembléia Legislativa seguiu-se a Convenção Nacional. Mandou executar o rei Luís XVI.
Introduziu o divórcio e tornou o casamento civil obrigatório.
Para cancelar as recordações do passado cristão, foi criado o Calendário Republicano:
compreendia doze meses de trinta dias, divididos em três décadas. No fim dos anos ordinários
acrescentar-se-iam cinco dias suplementares; no fim dos bissextos, haveria seis dias a mais. — Aos
07/11/1793 o Cristianismo foi oficialmente renegado, e em seu lugar aclamada a religião da razão e da
natureza. A catedral Notre-Dame de Paris foi transformada em templo da Razão, que, sob a forma de
uma mulher frivolamente vestida, recebeu honras divinas em seu novo santuário; a deusa foi colocada
no altar-mor do templo; cantaram-lhe hinos apropriados, enquanto os deputados e o povo dançavam.
Houve profanações abomináveis nessa e em muitas outras igrejas da França; os sinos foram
transformados em canhões, a praiana dos templos fundida em moedas; as relíquias, queimadas ou
atiradas ao vento.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 140

O clero deixou de ter existência legal. Muitos presbíteros, após muitos maus tratos, foram
deportados para a Guiana ou para a África. Outros conseguiram escapar ao controle, e exerciam o
culto sagrado às escondidas.
A situação estava tensa demais para que se pudesse conservar por muito tempo. A solução
proveio do desentendimento entre os próprios revolucionários, que se dividiam em girondinos e
montanhardos. Estes, tendo à frente Robespierre, tomaram as rédeas do Governo e começaram a
atenuar as tensões. O ateísmo foi repelido como algo de aristocrático; a Convenção votou a crença no
Ente Supremo e na imortalidade da alma. Foi de novo permitida a abertura de igrejas; os sacerdotes
refratários receberam licença para celebrar a Missa, desde que jurassem obedecer à República e às
suas leis, entre as quais já não constava a Constituição Civil do Clero.
À Convenção sucedeu o Diretório, Governo de cinco membros, que durou de 04/11/1795 a
09/11/1799. Neste período ainda houve deportações, execuções de sacerdotes e crueldades diversas.
Foi então que surgiu uma figura de militar jovem e ousado: Napoleão Bonaparte. Pôs-se a
serviço dos revolucionários, que desejavam expandir-se para f ora das fronteiras da França e moviam
a guerra no exterior. Como general das tropas francesas, Napoleão tomou parte do Estado Pontifício; o
Papa Pio VI teve que renunciar a alguns territórios deste, assim como a manuscritos e obras de arte,
obrigando-se ainda a pagar 35 milhões de francos.
Certos tumultos provocados em Roma contra os franceses deram ocasião a que estes ocupassem
a Cidade Eterna; proclamaram a deposição do Papa como Senhor temporal e a República Romana; as
cenas de libertinagem ocorridas em Paris deram-se também em Roma: na entrada da ponte
Sant’Angelo foi colocada a estátua da liberdade calcando aos pés as insígnias papais; despojaram-se
igrejas, capelas e conventos.
Pio VI, com seus oitenta anos de idade, foi levado de cidade em cidade. Fizeram-no atravessar
os Alpes e deixaram-no finalmente em Valença, à margem do rio Ródano, onde veio a falecer aos
29/08/1799.
No fim deste mesmo ano, Napoleão regressou do Egito vitorioso como um novo Alexandre ou
César. Deu um golpe de Estado em Paris aos 09/09/1799, apossando-se do Governo. Pela quinta vez
em dez anos, mudava-se o regime francês: o Governo caberia a um Consulado de três membros.
Napoleão foi eleito Primeiro Cônsul por dez anos, depois vitalício; os outros dois cônsules estavam
dispostos a obedecer lhe, de modo que ele se tornava ditador.

MÓDULO 47: PIO VII E NAPOLEÃO BONAPARTE


Lição 1: A ascensão de dois homens
Quando Pio VI morreu aos 29/08/1799 em Valença (França), para onde tinham deportado o
"cidadão Papa", a Igreja se via em situação crítica tat como nunca dantes. Com efeito, a França, a
"filha primogênita", caíra na incredulidade; a Itália estava invadida e convulsionada; a Alemanha,
contaminada pelo Iluminismo (Aufklärung); a Bélgica, incorporada à República francesa
revolucionária; a Polônia, retalhada por três potências vizinhas; a Espanha e Portugal eram
governados por Ministros hostis à Igreja; na Inglaterra e nos Países Baixos, os católicos eram minorias
flutuantes. O Catolicismo parecia em agonia; dir-se-ia que Pio VI fora o último Papa. Oradores
irônicos faziam a oração fúnebre da Igreja com frases blasfematórias. Como eleger novo Pontífice em
ambiente tão agitado e rebelde? Os Cardeais estavam ou prisioneiros ou deportados ou dispersos em
liberdade.
Apesar de tudo, o Conclave reuniu-se. Não em Roma ocupada pelos franceses, mas em Veneza,
território que os austríacos e russos haviam conquistado aos franceses. Após três meses e meio saiu
eleito o Cardeal Barnabé Chiaramonti, monge beneditino, que tomou o nome de Pio VII (1800-23). —
Assim quase simultaneamente subiam ao cenário europeu duas figuras importantes: Pio VII e
Napoleão Bonaparte. O novo Papa era homem profundamente religioso, ao serviço de Deus e da
Igreja. Quando bispo de Imola, dizia aos seus diocesanos: "A forma de governo democrático por vós
adotada não se opõe em absoluto ao Evangelho; exige, ao contrário, todas as virtudes sublimes que só
se aprendem na escola de Jesus Cristo. . . Sede bons cristãos, e sereis bons democratas". Tinha boa
formação teológica e por toda a vida quis ser o pobre monge Chiaramonti.
141 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Quanto a Napoleão, não queria ser um ateu, mas um deísta (isto é, alguém que segue a religião
natural); na Córsega recebera de sua mãe educação católica, que o tornava sensível aos valores
religiosos. Podia ter uma capela no palácio, como os reis de outrora, e aí assistir á Missa, mas só por
conveniência ou por respeito ás tradições.65 Como quer que seja, queria um entendimento com a Santa
Sé. Percebia que, para fortalecer sua posição na França, precisava do apoio dos católicos, que
continuavam a ser uma força no país. Quando a religião fora de novo permitida pelos revolucionários,
o júbilo do povo fora imenso, de modo que a Polícia chegava a denunciar em 1798 o "fanatismo" que
fizera progressos na sombra.
Os austríacos e napolitanos em breve conseguiram expulsar os franceses da maior parte da Itália
- o que permitiu a Pio VII voltar a Roma.

Lição 2: Acordos e conflitos


Em breve Napoleão fez saber ao Papa que queria entrar em negociações. Estas se realizaram,
mas com grandes dificuldades por causa das tendências galicanas dos franceses. Finalmente a Cúria
Romana fez concessões, e foi assinada uma Concordata em Paris aos 15/07/1801: em 17 artigos
atribuía grandes poderes ao Estado sobre a Igreja; entre outros, é de notar que todos os bispos,
juramentados ou não, seriam pelo Papa obrigados a renunciar; Napoleão nomearia todos os novos
diocesanos e o Papa daria a estes apenas a instituição canônica, isto é, a ordem sagrada.
Aos 18/04/1802 Napoleão mandou promulgar essa Concordata acrescida de 77 artigos, ditos
"orgânicos", impregnados de Galicanismo ainda mais avançado (os professores de Seminários eram
obrigados a ensinar os quatro artigos galicanos...). - Pio VII protestou, mas sem êxito. Napoleão os
apresentava como frutos das conversações com a Santa Sé—o que era evidentemente falso: tais
artigos exigiam o beneplácito do Governo para a publicação, na França, de qualquer decreto do Papa
ou de Sínodo realizado no estrangeiro; proibia os Bispos de usar outro título a não ser o de "cidadão"
ou "senhor" (citoyen, monsieur); Sínodos e Legados papais na França não poderiam agir sem a
autorização do Governo.
Na execução da Concordata. 38 dos 81 bispos católicos não juramentados recusaram-se a
resignar às suas dioceses. Não obstante, o Papa os depôs — o que era acontecimento inédito na
história da Igreja! Partes das dioceses de Lyon e Poitiers não quis reconhecer a Concordata, contando
com o apoio de bispos enérgicos; isto deu origem ao cisma da Petite Eglise (Pequena Igreja),
alimentado por teorias jansenistas; desde 1847, porém, o cisma carecia de sacerdotes e os seus
membros voltaram quase todos à comunhão da Igreja.
A ambição de Napoleão levou o a novos conflitos com a Santa Sé. Com efeito; em maio de
1804, o monarca, por plebiscito, foi aclamado Imperador dos franceses. Convidou Pio VII para sagrá-
lo e coroá-lo em Paris. O Papa, após hesitar, acabou aceitando: na Catedral de Notre-Dame, aos
02/12/1804 sagrou o Imperador, mas, a coroa, foi este mesmo quem a colocou sobre a sua cabeça (não
queria que se dissesse que recebera do Papa o poder imperial). Tal procedimento contrariava o
Cerimonial e era grave afronta ao Pontífice. Este aturou o gesto, esperando receber alguma
compensação ou a retratação de artigos galicanistas. Iludia-se, porém: Napoleão apenas restaurou
algumas Congregações Religiosas (Irmãs de Caridade, Lazaristas...) e aboliu o Calendário
Republicano. Quis deter o Papa na França, afim de melhor utilizá-lo como seu instrumento; mas Pio
VII, prevendo o golpe, fora prudente: antes de deixar Roma, havia assinado a sua renúncia ao Papado,
válida para o caso de não voltar à Cidade Eterna dentro de um ano. Assim em abril de 1805 regressou
à sua sede, um tanto humilhado pelo tratamento que Napoleão lhe impusera.
Novos conflitos surgiram. Napoleão quis que o Pontífice dissolvesse o casamento de seu irmão
Jerônimo Bonaparte. Diante da recusa do Papa, mandou invadir o Estado Pontifício, inclusive a cidade
de Roma. Aos 17/05/1809 o Estado da Igreja era incorporado ao Império francês "para sempre".

65
Aos 16/08/1800, Napoleão declarava ao Conselho de Estado: "A minha política é a de governar homens como a maioria
quer ser governada. Aí está. Creio eu, o melhor modo de reconhecer a soberania do povo. Fazendo-me católico é que
ganhei a guerra da Vendeis; fazendo-me muçulmano é que me estabeleci no Egito; tornando-me ultramontano é que
ganhei os espíritos na Itália; se eu governasse um povo judeu, eu reconstruiria o Templo de Salomão". Estas palavras
exprimem bem o maquiavelismo do monarca. Todavia Napoleão conservava certa sensibilidade crista que recebera de sua
família na Córsega; confessava que o toque dos sinos ao meio-dia lhe evocava impressões da sua infância.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 142

Napoleão sentia-se como o sucessor de Carlos Magno, Imperador Romano. Pio VII respondeu
lançando a excomunhão contra os usurpadores, a partir de Napoleão até o último executor das ordens
imperiais. O monarca se inquietou com o fato, mas quis mostrar-se intrépido: na noite de 5 a 6 de
Julho de 1809 o Papa foi preso e levado a Savona (Itália do Norte); os Cardeais também foram presos,
e vinte e seis deles foram transportados para Paris, a fim de ser mais rigorosamente controlados.
Nova animosidade surgiu quando Napoleão quis separar-se de sua esposa Josefina, estéril;
alegava a nulidade do matrimônio por falta da forma canônica e do consentimento devido. Para julgar
o caso, recorreu a tribunais franceses, que lhe deram razão. O caso, porém, era de competência papal
exclusiva (os casos de matrimônio de famílias reais são exclusivamente da alçada do Pontífice para se
evitarem maquinações desonestas). Na base desse parecer inválido, Napoleão contraiu novas núpcias
com Maria Luísa da Áustria aos 02/04/1810; treze dos Cardeais residentes em Paris recusaram-se a
comparecer, pelo que Napoleão os "descardinalizou", obrigando-os a vestir-se de preto e espalhar-se
pela França.

Lição 3: Novas lutas e desfecho


Em Savona, o Papa continuava detido, sofrendo vexames por parte do Imperador excomungado.
Foi indignamente maltratado, pois lhe tiraram livros, pena, tinta e anel.
Como houvesse muitas dioceses sem bispo na França (visto que o Papa não queria aceitar as
nomeações feitas pelo Imperador), o monarca reuniu em Paris um Concílio nacional de 104 bispos
(1811) sob a presidência do Cardeal Fesch, tio do Imperador. O Concílio começou por jurar fidelidade
ao Papa. Foi então dissolvido e de novo convocado; cedeu à pressão, decretando que aos metropolitas
caberia o direito de confirmar os candidatos episcopais, caso o Papa não o quisesse fazer dentro de
seis meses. Pio VII acabou aceitando esta resolução e publicando-a em seu próprio nome (1811).
Napoleão não se deu por satisfeito com o fato de que o Papa não aprovara apenas, mas usara de
sua autoridade publicando o decreto em seu próprio nome. Declarou então a Concordata de 1801 e
dissolveu o Concílio. Tinha em vista várias outras reivindicações, inclusive a de que 2/3 dos Cardeais
fossem nomeados pelos reis e a de fazer o Papa residir na França. Tais reivindicações, ele as
proclamaria quando voltasse vitorioso da Rússia (como esperava!).
Entrementes Napoleão mandou que o Pontífice fosse levado de Savona para Fontainebleau perto
de Paris (junho de 1812), alegando que os cruzadores ingleses poderiam levar embora o Papa
residente no litoral da Itália. Na verdade, Napoleão queria entrar em novas negociações com o
Pontífice. Estas ocorreram realmente, mas em termos mais fáceis do que as anteriores, porque o
Imperador fora infeliz na sua campanha militar da Rússia. Em janeiro de 1813 Napoleão e Pio VII
definiram onze artigos preliminares de nova Concordata: o Papa renunciaria ao poder temporal e
residiria na França ou na Itália com uma renda de dois milhões de francos anuais. As nomeações de
Bispos seriam feitas pelo Imperador; os Metropolitas lhes dariam a validade canônica, sem a
intervenção do Papa. O Imperador tinha outras pretensões, que Pio VII rejeitou; Já concedera muita
coisa, porque estava fisicamente muito abatido. Napoleão aos 13/02/1813 publicou esse projeto de
Concordata como se fosse algo de definitivo (a Concordata de Fontainebleau), mandando que se
celebrasse a reconciliação em todas as igrejas da França com o canto do Te Deum. Os Cardeais
"negros" tendo podido aproximar-se novamente do Papa, fizeram-lhe ver que tão exorbitantes
concessões não podiam ser mantidas (principalmente a renúncia ao Estado Pontifício). Diante disto,
Pio VII, inquieto, aos 23/03/1813 escreveu uma carta em que retirava as concessões e convidava o
Imperador para novas negociações. Napoleão irritou-se furiosamente, mas teve que se conter porque a
situação política lhe era desfavorável: os aliados inimigos já se tinham apoderado de quase toda a
Itália e possuíam parte da França. Viu-se assim obrigado a dar liberdade ao Papa aos 10/03/1814.
Neste dia o Pontífice pôs-se a caminho de Roma, onde entrou aos 24 de maio, tendo passado por
Savona. Ao deixar esta cidade, depositou uma coroa de ouro sobre uma imagem de Nossa Senhora; e
mais tarde instituiu a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a ser celebrada aos 24/05, dia do seu
regresso a Roma.
Enquanto os romanos preparavam uma ovação ao Pontífice na Cidade Eterna, Napoleão no
mesmo castelo de Fontainebleau, testemunha das dores do Papa era obrigado a abdicar (11/04/1814),
recebendo em compensação a Ilha de Elba com o título de Imperador. — No ano seguinte, Napoleão
143 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

escapou de Elba e reassumiu o governo da França por cem dias. Nessa ocasião o Papa se transferiu
para Gênova, temendo a invasão de Roma por Joaquim Mural, rei de Nápoles e aliado de Napoleão.
Todavia este foi definitivamente vencido em Waterloo (18/06/1815) e relegado para a ilha de Santa
Helena. Nos restantes seis anos de vida do monarca, o Papa empenhou-se nobremente por aliviar a
sorte do exilado, hospedando os familiares deste; venceu moralmente o herói do seu século,
adquirindo grande prestígio junto aos seus contemporâneos.
Uma vez livre das pressões napoleônicas, Pio VII aplicou-se à organização do Estado Pontifício,
depredado pela guerra e a pilhagem dos franceses. Não conseguiu, porém, restituir completa
tranqüilidade à Itália. O regime pontifício tradicional era tido como um obstáculo à unificação da
península, que os italianos almejavam especialmente por inspiração das campanhas napoleônicas.
Surgiu então a sociedade secreta dos Carbonari, aos quais se opunham os Sanfedistas, defensores da
Santa Fé. Para apoiar a Igreja, Pio VII, aos 07/08/1814, restaurou a Companhia de Jesus na Igreja
Universal, convencido de que ela tinha sua missão a cumprir no século XIX.
Com a França e outros países da Europa as relações da Santa Sé melhoraram; foram assinadas
diversas Concordatas que regeriam a situação da Igreja neste ou naquele país. Estes acordos
testemunhavam o prestígio do Papa, que de novo era acatado como centro inabalável do governo da
Igreja. Aliás, é de notar que o Congresso de Viena realizado em 1815 entre as potências européias
quis restaurar o Estado Pontifício quase na íntegra e reconheceu aos Núncios Apostólicos o direito de
precedência em relação aos demais embaixadores.
Pio VII morreu em 1823 com 81 anos de idade, após um pontificado de mais de 23 anos. O seu
governo ressentiu-se da falta de energia, que teria sido absolutamente necessária, mas assinala-se pela
grande caridade do Pontífice para com seu adversário Napoleão. A história desse Papa é mais uma vez
o testemunho de quanto infeliz foi, para a Igreja, a união com o Estado; em vez de colaborar com os
grandes projetos pastorais do Papa, os regimes monárquicos procuraram aproveitar-se da Igreja para
realizar seus planos políticos.

MÓDULO 48: PIO IX. A QUEDA DO ESTADO PONTIFÍCIO


Lição 1: A figura de Pio IX
Pio Vil, ao falecer em 1823, deixou o Estado Pontifício assaz agitado, pois se faziam, ouvir
vozes em favor da unificação da península itálica — o que implicaria a extinção do Estado Pontifício.
Os Papas seguintes Leão XII (1823-29), Pio VIII (1829-30) e Gregório XVI (1831-46) tiveram que
enfrentar os movimentos nacionalistas italianos, sendo que Gregório XVI resistiu severamente aos
mesmos. A Áustria tinha interesse em manter o Estado Pontifício; por isto ajudava o Papa a reprimir
as revoluções internas; temia a eleição de um Pontífice que favorecesse às aspirações italianas. Quanto
aos Cardeais, eram, na maioria, do parecer de que o Governo papal se devia mostrar mais aberto.
Em tão difíceis circunstâncias, foi eleito Papa o Cardeal Mastai-Ferretti (16/06/1846), que tomou
o nome de Pio IX. Tinha vivo sentimento nacional e largueza de espírito; conseguira tornar-se popular
mesmo nas regiões em que o Governo pontifício era menos estimado. Por isto o povo italiano
regozijou se com tal eleição, na expectativa de ser libertado do jugo austríaco e experimentar
instituições liberais. Aliás, a propósito deste Papa, corre até hoje a notícia de que foi filiado à
Maçonaria; quem primeiro espalhou este rumor, foi Carlos Gasola, no jornal Positivo de Roma, aos
23/03/1849 (ao menos, é o que parece); todavia neste mesmo periódico o próprio articulista se retratou
aos 18/06/1857. Este "boato" se baseava na confusão do nome de Giovanni Mastai-Ferretti (o de Pio
IX) com o de Giovanni Ferretti Mastai, Jovem de vida livre e conhecido em Roma por seus desvarios.
Pio IX era um pastor afável, simpático e jovial; sofria, porém, de indecisão e hesitação nas horas
mais importantes; inseguro como era, adotava meias-medidas, que a ninguém satisfaziam. Era
pessoalmente alheio aos recursos da diplomacia; por isto confiou grande parte da administração do
Estado Pontifício ao seu Secretário de Estado, o Cardeal Antonelli, a quem muito obedeceu. Se Pio IX
é criticável como chefe de Estado, ele não merece censura como Pastor: com grande energia e plena
dedicação entregou-se às suas tarefas de guardião da S. Igreja, elevando extraordinariamente o
prestígio do Papado, durante o mais longo pontificado de toda a história (1846-1878 = 32 anos). Este
longo período é assinalado por quatro grandes façanhas, entre outras: a entrega do Estado Pontifício
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 144

(1870), o Concílio do Vaticano I(1869/70), a definição do dogma da Imaculada Conceição (1854) e a


publicação do Syllabus (compêndio de proposições errôneas a época) em 1864. Veremos, a seguir, as
vicissitudes do Estado Pontifício ou a Questão Romana.

Lição 2: O declínio do Estado Pontifício


Pio IX abriu o seu pontificado concedendo anistia aos desordeiros encarcerados sob Gregório
XVI; mostrava assim que seguiria orientação mais liberal que a de seus antecessores. Mandou
construir estradas de ferro, autorizou a publicação de jornais novos; abrandou a censura política. A
Roma concedeu a estrutura de municipalidade; abriu o acesso de seu Ministério a vários leigos; criou
duas Câmaras Legislativas, das quais uma seria nomeada pelo Papa e a outra eleita pelo povo; ambas
estariam subordinadas ao Colégio Cardinalício como Senado. A população italiana se regozijou
profundamente com estas medidas, enquanto a Áustria as via com maus olhos e a França as apoiava.
O ano de 1848 foi um período de agitações em vários países da Europa. Em abril, o rei Carlos
Alberto, do Piemonte-Sardenha, que encabeçava o movimento de unificação da península itálica
declarou guerra à Áustria (que apoiava o Estado Pontifício). Pio IX, diante do conflito, declarou-se
neutro, pois não ousava contraditar os patriotas italianos nem queria magoar a Áustria católica. O
Papa procedia assim como Pai comum. Todavia a sua atitude provocou a ira dos nacionalistas
italianos. Cercaram o palácio do Quirinal, onde morava o Pontífice e o ameaçaram seriamente. Para
salvar-se, Pio IX, dissimulado sob outros trajes, fugiu para Gaeta no Reino de Nápoles (24/11/1848).
Aos 09/12/1849, uma Assembléia Constituinte em Roma proclamou a República. Houve
dolorosas profanações cometidas pelos chefes revolucionários: Armellini, por exemplo, incensou o
Povo, "único Soberano e verdadeiro Deus"; Mazzini, no dia de Páscoa, sentado no trono papal em S.
Pedro, mandou celebrar a liturgia por sacerdotes depravados. Igrejas foram saqueadas e muitos
clérigos maltratados.
Pio IX em Gaeta apelou para as potências européias, pois o Congresso Internacional de Viena
(1815) tinha reconhecido e confirmado as fronteiras do Estado Pontifício. - A Áustria e a França
(aquela por ambição; esta, em parte, por rivalidade) acorreram ao chamado. Após duras lutas, o
general francês Oudinot ocupou Roma (julho de 1849), proclamando aí de novo a soberania pontifícia.
O Papa voltou à sua capital em 1850 preocupado com o desencadear dos acontecimentos.
As ocorrências recentes fizeram que o Papa e o Cardeal Antonelli rejeitassem a abertura política
iniciada; por seu lado, os austríacos e os franceses mantiveram as tropas na Itália, a fim de evitar
novas insurreições. Isto irritou muito os ânimos dos patriotas, que se concentravam no reino do
Piemonte-Sardenha; cada vez mais desejosos de mudar a situação, afirmavam "Igreja livre no Estado
livre"; o espiritual e o temporal deveriam ser independentes um do outro; a casa de Savoia entraria em
Roma e o Papado, desembaraçado de cuidados temporais, teria plena autonomia para realizar sua
missão evangelizadora no mundo. Tais ideias foram plenamente assumidas pelo Primeiro-Ministro
Camillo Cavour, homem genial, mas maquiavélico, que de 1852 a 1861 dirigiu a política do
Piemonte-Sardenha; aliás, nos territórios deste reino, os jesuítas (defensores do Papa) foram expulsos,
muitos mosteiros contemplativos fechados e o clero destituído de suas prerrogativas.
Cavour, no seu maquiavelismo, resolveu lutar pela expulsão dos austríacos da Itália, embora
estes fossem mais numerosos do que as tropas piemontesas. Para tanto, recorreu a um sonhador,
aventureiro, que era Napoleão III, Imperador da França; conseguiu realmente entrar em acordo com
este monarca, declarando a guerra à Áustria (notemos que a França fora aliada da Áustria em 1848).
A campanha bélica foi favorável aos franco-piemonteses; expulsaram os austríacos e os italianos
tomaram posse de grandes porções do Estado Pontifício. Pio IX, destituído de apoio, resolveu formar
o exército dos "zuavos pontifícios", voluntários (em parte estrangeiros), comandados pelo general La
Moricière. Este exército, improvisado e despreparado, foi vencido em Castelfidardo (18/09/1860), de
modo que Vítor-Émanuel II (1849-1870) do Piemonte ocupou novas províncias pontifícias e foi
proclamado "rei da Itália" aos 27/03/1861, com sua capital em Florença.
Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam no Norte e no Centro da Itália, surgia ao Sul um
novo perigo: o patriota Giuseppe Garibaldi, inimigo fanático do poder temporal do Papa, após
derrubar o rei de Nápoles, fundou a República Napolitana, e anunciou a marcha sobre Roma.
145 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Em 1861, portanto, o Estado Pontifício via se despojado de dois terços dos seus territórios,
reduzido a Roma e à parte mais antiga do Patrimônio de S. Pedro, praticamente impossibilitado de
subsistir em virtude do esgotamento financeiro. Cavour reivindicava Roma como capital da Itália;
prometia aos católicos respeito à autonomia espiritual da Santa Sé; antes, afirmava que o Papa
exerceria sua ação pastoral com mais liberdade e eficácia, porque, renunciando ao poder temporal,
teria contribuído para a pacificação da Itália.
Nos anos seguintes, o Piemonte fez várias propostas ao Papa, incitando-o a ceder o resto dos
seus Estados. Pio IX e Antonelli respondiam firmemente; "Non possumus. Não podemos!"; ceder o
território da Igreja, diziam, não está em poder do Papa ou dos Cardeais; apelavam para a Constituição
de São Pio V, que Pio IX tivera de jurar e que proibia ao Papa alienar, direta ou indiretamente, os bens
da Igreja; nem indenizações financeiras nem acordos e garantias internacionais poderiam demover a
Santa Sé dos seus princípios. — Esta resistência há de ser entendida também à luz de fatos passados
da história do Papado: a independência territorial era condição para que o Papa não estivesse sujeito às
influências e ao controle de soberanos estrangeiros; o exílio de Avinhão, tirando os Pontífices do seu
território próprio, redundara em descrédito dos Papas, pois o mundo percebia que eram
freqüentemente inspirados pelo domínio dos reis de França.
A Pio IX só restava uma esperança; a intervenção de potências estrangeiras em favor do Estado
Pontifício. Estas, porém, pareciam cansadas e desinteressadas do assunto.
Entrementes, continuavam as operações bélicas. Em 1867, Garibaldi, por instigação secreta do
Piemonte, fez nova incursão sobre Roma com 6 mil homens. Por pouco não tomou a cidade; não
tendo atacado no momento oportuno, as tropas papais e francesas o venceram em 03/11/1867.
A Questão Romana ficou estacionária até 1870, quando rebentou a guerra franco-alemã.
Alegando precisar das suas tropas, Napoleão III retirou-as da Itália, onde guardavam o pequeno
Estado Pontifício. Assim mais nenhum obstáculo se opunha ao golpe final da corte de Florença. Em
breve, apareceram diante de Roma 60 mil piemonteses, comandados pelo general Cardona. A defesa
pontifícia, sob o general Kanzier, só contava 10 mil soldados, de modo que a resistência era
impossível. Depois de alguns golpes de artilharia piemontesa. Pio IX mandou capitular aos
20/09/1870. O poder temporal do Papa assim caía — note-se — poucos meses depois que fora
definido pelo Concílio do Vaticano I (junho 1870) o primado de magistério e jurisdição do Romano
Pontífice. Reconhecera-se o papel capital do Papa no plano espiritual.
Os protestos de Pio IX e do Cardeal Antonelli de nada serviram. Em junho de 1871 Vítor
Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam morado os Papas, ficando o
Pontífice no Vaticano.

Lição 3: Após a queda...


Para dar aspecto de legalidade aos acontecimentos, o rei mandou realizar um plebiscito em
Roma, que lhe deu razão por 40 mil vozes contra 46. Em março de 1871 publicou a "lei das
garantias", que declarava inviolável a pessoa do Papa e lhe reconhecia as honras de soberano;
concedia-lhe os palácios do Vaticano, do Latrão e de Castel Gandolfo com uma renda anual de
3.225.000 liras; o rei se empenhava por garantir a livre administração pontifícia, inclusive a realização
de futuros conclaves e Concílios Ecumênicos, — Pio IX rejeitou a lei das garantias, assim como a
renda anual, pois a aceitação equivaleria a reconhecer a usurpação; confiava na solidariedade dos fiéis,
que para o futuro, como até então, haveria de suprir as deficiências do erário pontifício. O governo
italiano, inspirado peta Maçonaria, mostrou-se hostil aos sacerdotes e à religião até a guerra de 1914.
Desde 1870 até o fim da Questão Romana (11/02/1929), os Papas se consideraram prisioneiros no
Vaticano.
A perda do poder temporal teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações
dilaceradoras da administração de um Estado. Pôde sobressair mais na singularidade da sua missão
espiritual.
Depois das tendências centrífugas ou nacionalistas dos séculos XVII / XVIII, Roma tornou-se
um ponto de convergência dos bispos e dos fiéis do mundo inteiro. Um Concílio Ecumênico e quatro
grandes assembléias de bispos e fiéis realizaram-se sob Pio IX: 1) a primeira por ocasião da definição
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 146

da Imaculada Conceição em 185466; 2) a segunda em Pentecostes (08/06) de 1862, quando foram


canonizados 26 mártires japoneses, dos quais 23 franciscanos e 3 jesuítas. Mais de 300 bispos então
reunidos protestaram contra as violências cometidas contra a Santa Sé; redigiram um documento, que
de várias partes do mundo recebeu adesões, justificando o poder temporal do Papa para o livre
exercício do seu pontificado 3) aos 29/06/1867 comemorou-se o 18o centenário do martírio dos
Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, com a presença de mais de 500 bispos e cerca de 10.000 peregrinos; 4)
a quarta assembléia foi a mais concorrida; em 1877, ano anterior ao- da morte do Papa, celebrou-se o
50o aniversário da sua ordenação episcopal. O Pontífice; já muito idoso, despojado de todo poder
temporal, foi alvo de especial, deferência dos peregrinos, que lhe levaram dons naturais e dinheiro no
valor de 7 milhões de francos; amavam-no sinceramente, considerando-o "o mártir", "a cruz da cruz".
Antes que Vítor Emanuel morresse (09/01/1878), Pio IX absolveu-o da excomunhão, permitindo
que recebesse os últimos sacramentos. Apesar das suas façanhas, o rei nutrira sempre no fundo da
alma os sentimentos religiosos da casa de Savoia.

MÓDULO 49; O CONCILIO DO VATICANO I


O Concílio do Vaticano I foi o acontecimento de maior relevo na História da Igreja do século
XIX.

Lição 1: Os preparativos
Mais de trezentos anos haviam decorridos após a última assembléia do Concílio de Trento (3-
4/12/1563), quando Pio IX, em dezembro de 1864, comunicou secretamente aos cardeais a sua
intenção de reunir novo Concílio Ecumênico: os tempos, ingratos como eram, o exigiam; era preciso
deliberar sobre os remédios a oferecer-lhes – o que se faria por excelência num Concílio.67
A Bula de convocação saiu aos 29/06/1868, convidando também os protestantes e os ortodoxos
separados; estes, porém, não compareceram. A notícia de um próximo Concílio suscitou entusiasmo e

66
A definição do dogma da Imaculada Conceição foi cercada de fatos muito significativos. Já existia a devoção dos fiéis a
esse privilégio de Maria, afirmado na S. Liturgia e em obras teológicas, quando aos 17/11/1830 uma Irmã de Caridade de
Paris, Catarina Labouré, em oração viu Nossa Senhora: os seus pés repousavam sobre o globo terrestre; de suas mãos
voltadas para a terra forravam feixes de luz. Formou-se em torno da Virgem uma moldura oval, sobre a qual se liam em
letras de ouro estas palavras: "Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a vós". A Religiosa recebeu
também a ordem de mandar cunhar uma medalha de acordo com tal modelo. Informado da ocorrência, o arcebispo de
Paris, Mons. de Quélen, permitiu a cunhagem da medalha, que se propagou rapidamente, — Tais fatos só fizeram
aumentar no espírito dos cristãos a devoção à Imaculada e o desejo de que se definisse o dogma respectivo. Numerosos e
insistentes pedidos foram encaminhados à Santa Sé nesse sentido. Pio IX mandou estudar o assunto por parte de bispos e
teólogos e resolveu finalmente proceder à definição aos 8/12/1854 na basílica de São Pedro em presença de mais de
duzentos bispos e enorme multidão de fiéis. Ora menos de quatro anos após a definição da Imaculada, deu-se um
acontecimento, que contribuiu extraordinariamente para confirmar a palavra do Papa: as dezoito aparições de Lourdes, de
11/02 a 16/07 de 1858, sendo que a 25/03 a Bem-aventurada Virgem declarou expressamente ser a Imaculada Conceição;
era como que o eco da aparição a S. Catarina Labouré e uma resposta à declaração do Papa em 1854. Note-se ainda: ao
definir o dogma da Imaculada Conceição, Pio IX afirmava também que estaria excluído do seio da Igreja de Cristo todo
aquele que dai em diante ousasse rejeitar tal definição... Assim procedendo. Pio IX já estava implicitamente proclamando a
infalibilidade papal em matéria de fé e de Moral. - A definição desta verdade devia ocorrer pouco depois, por ocasião do
Concílio do Vaticano I (1870).
67
Aliás, aos 08/12/1864 Pio IX, diante dos numerosos erros doutrinários que campeavam na sua época, publicou a
encíclica Quanta Cura, tendo anexo um Syllabus ou resumo das falsas doutrinas contemporâneas, que o Papa reprovava;
são oitenta sentenças, mais ou menos concisas, distribuídas em dez parágrafos: § 1 - Panteísmo, naturalismo, racionalismo
absoluto: § 2 - nacionalismo moderado; § 3 - Indiferentismo. latitudinarismo (laxismo ou liberalismo moral): § 4 —
Socialismo, comunismo, sociedades clandestinas. Sociedades Bíblicas, sociedades clérico-liberais; §5 — Erros sobre a
Igreja e seus direitos; § 6 — Erros sobre a sociedade civil considerada em si e em suas relações com a Igreja; § 7 — Erros
sobre Ética natural e Ética crista; § 8 — Erros sobre o matrimônio cristão; § 9 — Erros sobre o poder temporal do Romano
Pontífice; § W — Erros que se referem ao liberalismo do século XIX. Trata-se de proposições já anteriormente
condenadas em trinta e dois documentos do próprio Pio IX. A origem dessa coletânea remonta ao arcebispo de Perugia
Gioacchino Pecci, depois Papa Leão XIII, que solicitara ao Pontífice uma súmula portadora de todos os erros do momento
rotativos à Igreja e à sua autoridade. O Syllabus impressionou os adversários da Igreja, que julgaram estar assim
anatematizada a civilização moderna. Tal interpretação era falsa; Pio IX tencionava apenas repudiar a cultura meramente
naturalista, que pretende compreender e orientar o homem sem Deus. A prova disto é que o inspirador do Syllabus, o Papa
Leão XIII, procurou eficazmente conciliara cultura do seu tempo e o Catolicismo; ver módulo 50.
147 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

também... apreensões; o público só sabia que seriam condenados erros contemporâneos, reafirmada a
doutrina da Igreja, revistas a disciplina, a obra missionária, a formação dos seminaristas. . . Mas na
Cúria Romana reinava um certo mistério sobre os intensos preparativos do Concílio. A agitação
pública aumentou quando em fevereiro de 1869 a revista jesuíta La Civiltà Cattolica anunciou que o
Concílio estava para definir a infalibilidade papal. O mundo não católico imbuído de liberalismo
proclamava-se defensor da liberdade dos simples fiéis católicos, "subjugados pelo domínio obscuro e
obscurantista dos eclesiásticos". Na Alemanha, o historiador
Pe. Inácio Döllinger (1799-1890) colocou-se à frente do movimento antiinfalibilista, com
diversos escritos contrários à definição. O Presidente de Ministros da Baviera, Clodoveu de
Hohenhole, procurou suscitar uma intervenção dos Governos europeus contra os pretensos perigos do
Concílio, Os bispos alemães reunidos em Fulda (setembro de 1869) enviaram um escrito ao Papa em
que declaravam não julgar oportuna a definição, embora não se opusessem à doutrina; temiam as
reações dos Governos e cisões entre os próprios católicos. Em verdade, a definição desse dogma podia
parecer ousadia numa época em que se respirava o liberalismo.

Lição 2: O decorrer do Concílio


O Concílio foi aberto aos 08/12/1869 na basílica de São Pedro, com a presença de 764 prelados.
— No mesmo dia e na mesma hora, abria-se em Nápoles, sob a presidência de Ricciardi, um
anticoncílio, do qual participaram 700 delegados maçônicos do mundo inteiro; a Polícia dispersou
esse conciliábulo após poucos dias, tal era a indignação popular provocada por blasfêmias contra
Cristo e sua Mãe Imaculada.
Quatro foram as sessões públicas do Concílio. A terceira, aos 24/04/1870, promulgou uma
Constituição Dogmática Dei Filius, unanimemente aprovada: o cap. 1o afirma a existência de um
Deus pessoal, livre, Criador de todas as coisas e independente do mundo criado (contra o materialismo
e o panteísmo); o capítulo 2P ensina que certas verdades religiosas, como a existência de Deus,
"podem ser conhecidas com certeza pela luz natural da razão humana" (contra o ateísmo e contra o
fideísmo;68 num século em que a fé cristã era escarnecida pelo racionalismo, o Concílio defendia a
razão!); o texto desse 2o capítulo acrescenta que houve uma Revelação Divina, a qual chega até nós
mediante tradições orais e Escrituras Sagradas. O capítulo 3°proclama que a fé é uma adesão livre do
homem a Deus, que supõe um dom da graça divina. O capítulo 4 o define os setores próprios da razão e
da fé e lembra que qualquer aparente desacordo entre razão e fé só pode vir de falsa compreensão das
proposições da fé ou das conclusões da razão.
A quarta sessão do Concílio, aos 18/07/1870, definiu a infalibilidade do Papa e seu primado de
jurisdição sobre a Igreja inteira. O texto proposto à discussão dos padres conciliares foi debatido de
março a julho; a assembléia se dividiu em dois campos: a grande maioria julgava a definição oportuna
e necessária (eram apoiados por uma corrente de leigos franceses, encabeçados por Louis Veuillot,
que, repudiando os resquícios de galicanismo, eram ditos ultramontanos, pois ultrapassavam a
cordilheira dos Alpes para aderir a Roma); os demais eram contrários à definição; destes, poucos se
opunham ao dogma como tal; outros apenas negavam a oportunidade de o proclamar, por causa das
reações que isto poderia provocar. Entre os adversários da definição, citam-se o bispo Strossmayer de
Djakovar (Eslavônia), que, depois da definição, aceitou fielmente a sentença do Concílio; e o bispo
Hefele, que aduzia o caso do Papa Honório contra a infalibilidade.
Este caso já foi abordado no módulo 10: sabe-se que Honório I (625-38), homem pouco
especulativo, foi solicitado pelo Patriarca Sérgio de Constantinopla para aderir ao monenergismo e ao
monotelitismo;69 Honório parece ter dado razão a Sérgio em suas cartas, ordenando que não se falasse
mais nem de uma nem de duas energias (atividades) em Cristo; o Concílio Ecumênico de
Constantinopla III em 681 condenou, por isto, o Papa Honório O. Ora deve-se dizer que Honório não
tencionou pronunciar definições dogmáticas no caso; além disto, depreende-se do contexto mesmo das
duas famosas cartas que, quando Honório fala de uma só vontade em Cristo, ele se refere ao plano
moral e não ao plano físico (a vontade humana e a vontade divina em Jesus queriam sempre a mesma
68
O fideísmo ensina que as verdades religiosas só podem ser conhecidas pé f a fé.
69
Monenergismo == em Cristo haveria uma só atividade (enérgeia em grego) — a divina. Monotelitismo = em Cristo
haveria uma só vontade (Thélema, em grego). Estas doutrinas eram resquícios do monofisismo.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 148

coisa). O mal de Honório não foi ter aderido ao erro, mas foi permitir, por descuido, que este se
propagasse.
Os argumentos da oposição foram sendo desfeitos. Quando viram a causa perdida, 56 dos
oposicionistas se retiraram de Roma, tendo pedido e obtido a licença do Papa, aos 17/07/1870;
deixaram, porém, uma carta ao Santo Padre, em que afirmavam seu propósito de conservar sempre
fidelidade e submissão à Santa Sé. No dia seguinte, 18/07, 533 padres conciliares deram voto
favorável à Constituição Pastor Aeternus; dois apenas se manifestaram contrários, mas logo se
anexaram à sentença positiva. Pio IX promulgou logo a Constituição, o que provocou calorosa
aclamação em toda a basílica de São Pedro.
A Constituição assim aprovada consta de quatro capítulos, que afirmam o fundamente bíblico e
patrístico, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano assim como a infalibilidade do
magistério papal. A autoridade do Papa foi definida como sendo sumo e imediato poder de jurisdição
sobre toda a Igreja, ficando assim condenados o galicanismo e o febronianismo (cap. 3°)- O capítulo
4°define, como dogma revelado por Deus, que as definições do Romano Pontífice proferidas ex
cathedra, isto é, na qualidade de Mestre da Igreja inteira, em questões de fé e de Moral, gozam de
especial assistência do Espírito Santo; são, pois, infalíveis e irreformáveis por si mesmas, sem
necessitar da aprovação da Igreja.
Após esta memorável sessão, o Concílio ainda estava no início das suas atividades. Dos 51
projetos de decreto, só tinha estudado e publicado dois; das questões disciplinares, só quatro haviam
sido discutidas, mas não definidas. Não obstante, o Concílio teve que ser interrompido abruptamente,
pois no dia seguinte, 19/07, estourou a guerra franco-alema, que obrigou muitos prelados a regressar à
pátria. Sobreveio a ocupação de Roma aos 20/09/1870, que tornou praticamente impossível a
continuação dos trabalhos. Em conseqüência, aos 20/10/1870 o Papa suspendeu o Concílio, que
deveria voltar a reunir-se em época mais apropriada, mas na verdade nunca foi reaberto; o Concílio do
Vaticano II (1962-65) havia de completar os seus trabalhos.
A importância do Concílio do Vaticano I é enorme para a Igreja. A definição da infalibilidade
papal era a conclusão lógica de premissas contidas na própria Escritura (Mt 16,16-19; Lc 22,31; Jo 21,
15-17) e desenvolvidas através dos tempos; principalmente por ocasião dos litígios que afetavam a
Igreja, foi emergindo na consciência dos cristãos a preeminência do magistério dos sucessores de
Pedro. Precisamente as tendências galicanas e febronianas dos séculos XVII/XVIII serviram para
aguçar essa tomada de consciência de modo mais vivo; humanamente falando, os católicos podiam ter
optado pelo nacionalismo eclesial, mas o desenrolar dos embates e a ação do Espírito Santo levaram a
Igreja como tal a reafirmar a antiga verdade do primado papal tanto em matéria de jurisdição quanto
em matéria de doutrina. Numa época de descrença, a fé se afirmava de maneira corajosa. A própria
Igreja aparecia como algo de transcendente ou como um sacramento, que o homem recebe de Deus, à
diferença de outras sociedades e instituições.
A centralização explicitada pelo Concílio do Vaticano I teve expressões sempre mais
perceptíveis durante os pontificados seguintes. Era preciso que ocorresse o Concílio do Vaticano II
(1962-65) para terminar a obra que o anterior deixara inacabada, O Vaticano I só pôde abordar a
função do Romano Pontífice, dentro do exíguo espaço de sua duração; o Vaticano II abordou também
o papel dos bispos e dos presbíteros na Igreja, pondo em relevo o conceito de colegialidade que, sem
apagar o primado de Pedro, enriquece a estrutura da Igreja.
Claro está que a agitação pública que precedeu e acompanhou o Vaticano I, não se apaziguou
logo. — Os bispos da minoria oposicionista submeteram-se pouco depois, inclusive Hefele de
Rottenburg (10/04/1871). Também a maior parte dos teólogos reconheceram a definição. No cenário
político, a definição do Vaticano I não foi tão focalizada e discutida como o teria sido se não fora a
guerra franco-alemã; todavia alguns "Estados e Estadistas tomariam atitude de suspeita diante da
Igreja; a Prússia e alguns cantões da Suíça adotaram fortes medidas contra os católicos, que levaram
ao Kultur-kampf (secularização de bens eclesiásticos). Estas conseqüências desagradáveis, que
culminaram no cisma dos Velhos-Católicos, não chegam a extinguir as vantagens que da definição
resultaram para a Igreja.
149 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 3; Os Velhos-Católicos
O sacerdote Inácio Düllinger, já mencionado como adversário da definição, desde cedo se
mostrara favorável ao sistema febroniano. Era famoso historiador e teólogo de Munique, que
professava ideias liberais em matéria de doutrina e um certo relativismo ou historicismo.
Após a definição da infalibilidade, continuou a manifestar-se hostil ao Papado, que ele julgava
desnecessário. A sua posição professada publicamente valeu-lhe a excomunhão da parte do arcebispo
de Munique em 1871 — censura este que em 1872 atingiu outros professores de Faculdades alemãs,
por se terem agregado a Döllinger. Aos poucos esses adeptos do mestre, à revelia do próprio mestre,
resolveram fundar uma Igreja própria, cujo chefe era o professor João. Frederico Von Schulte, de
Praga. A partir de 1872 foram sendo criadas paróquias de "Velhos-Católicos". Esta designação se
deve ao fato seguinte: quando o arcebispo de Munique voltou de Roma, após o Concílio, convidou
Inácio Döllinger a "trabalhar para a Santa Igreja"; este respondeu secamente: "Sim, para a antiga
Igreja) — Há uma só Igreja, replicou o arcebispo, não existe nova nem antiga Igreja! — Mas fizeram
uma nova!", retrucou o professor. Por conseguinte, Döllinger pertencia à Velha Igreja; resolveram
também instituir um bispo para si em 1873 na pessoa do professor de Teologia Joseph Hubert
Reinkens, que foi receber a ordenação episcopal das mãos do arcebispo Jansenista de Utrecht na
Holanda.
Em Pentecostes de 1874 um Sínodo em Bonn aprovou a constituição eclesiástica traçada por
Schulte; cada povo tem sua Igreja nacional autônoma; as Igrejas nacionais estão ligadas pela
"Conferência" de seus bispos. A autoridade suprema é o Sínodo, do qual fazem parte todos os
eclesiásticos e os deputados dos leigos de cada paróquia; o Sínodo promulga leis e examina a
administração. Na paróquia a autoridade suprema toca à assembléia dos fiéis, que elege o seu pároco;
a este assiste o Conselho Paroquial.
Os Velhos-Católicos aos poucos foram sendo penetrados por teses protestantes, que lhes
pareciam corresponder à disciplina da Igreja dos oito primeiros séculos (donde o nome "Velhos-
Católicos"): rejeitaram, portanto, além do primado do Papa, o celibato sacerdotal, a confissão
auricular, as indulgências, o culto dos santos, as procissões e peregrinações, a Imaculada Conceição.
Introduziram a língua alemã na liturgia da Missa. Estas inovações causaram descontentamento dentro
da própria comunhão cismática; dos Velhos-Católicos faziam-se Neo-protestantes. O próprio Inácio
Döllinger abandonou publicamente a facção que ele inspirara.
Aliás, a figura de Döllinger ficou sendo misteriosa. Ele não teria levado suas ideias a tais
conseqüências práticas; não queria o cisma formal. Conservou-se sempre fiel aos votos do seu
sacerdócio; absteve-se de celebrar a S. Missa após a excomunhão. Sempre levou vida muito modesta,
de severa sobriedade e muito trabalho. Parece que no fim da vida sentia saudades da Igreja de sua
juventude. Desaconselhou mesmo a um de seus discípulos, Blennerhasset, que o seguisse no caminho
tomado após o Vaticano I. O fato é que morreu em 1890 sem se ter reconciliado com a Igreja.
Em 1889, os Velhos-Católicos e os Jansenistas se aliaram na chamada "União de Utrecht". As
tendências liberais se fizeram sentir muito especialmente na Suíça, onde os Velhos-Católicos são
chamados "Igreja Cristã Católica", dirigida por leigos e não por teólogos, como na Alemanha, porque
as razões da oposição ao Vaticano I eram mais políticas do que teológicas.

MÓDULO 50: DE LEÃO XIII A PIO XI (1878-1939)


A queda do Estado Pontifício permitiu mais livre exercício das funções do Papado. Os
sucessores de Pio IX até hoje têm sido grandes vultos, respeitados internacionalmente, Estudaremos,
neste módulo, os quatro primeiros; Leão XIII (1878-1903) Pio-X (1903-14), Bento V (1914-1922),
Pio XI (1922-39).

Lição 1: Leão XIII (1878-1903»


Após a morte de Pio IX, o conclave durou dois dias apenas em circunstâncias tranqüilas, apesar
das apreensões de vários Cardeais, receosos de que o Governo da Itália ou outra potência quisesse
intervir na eleição do novo Papa. O rei da Itália fez questão de mostrar ao mundo que observava a "lei
das Garantias", que a Cúria papal havia rejeitado. O Colégio Cardinalício quis manter-se forte e
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 150

independente de qualquer tutela estranha. Elegeu o Cardeal Joaquim Pecci, que já tinha 68 anos de
idade e devia governar durante 25 anos com o nome de Leão XIII, Era homem de sólida formação
teológica e humanista, que se dedicava ao estudo de S. Tomás de Aquino e à literatura latina. Passava
por "moderado"; na verdade. Leão XIII foi firme na defesa da verdade e do direito; mas soube
também ser ponderado e conciliador, de modo que se tornou uma das mais brilhantes figuras de sua
época, como se poderá depreender do que será dito adiante; o mundo dava ouvidos a esse Papa tão
prestigiado.
Frente ao Estado italiano, reafirmou a sentença de Pio IX logo na sua primeira encíclica
(21/04/1879): "O Estado da Igreja é uma instituição indispensável da Providência Divina para
assegurar o livre exercício da autoridade eclesiástica". Os "conciliadores" procuravam a aproximação
do Estado Italiano e do Vaticano; em vão, porém, pois a Maçonaria movia aquele e não cessava de
hostilizar a Santa Sé. A partir de 1890, as relações entre o Quirinal e o Vaticano esfriaram mais ainda:
este ignorou oficialmente a morte do rei Humberto e o governo italiano ignorou as bodas de ouro
(1887) de sacerdócio do Papa.
Na Alemanha Leão XIII teve que enfrentar o Kulturkampf (política antieclesial); comportou-se
tão sabiamente em relação ao Primeiro-Ministro Bismarck que este recuou e até convidou o Pontífice
para arbitrar um litígio da Alemanha com a Espanha a respeito das ilhas Carolinas; a sentença de Leão
XIII (1885) foi acatada por ambas as partes.
Por duas vezes (1888 e 1903) recebeu a visita do Imperador protestante Guilherme II no
Vaticano, ao passo que aos príncipes e estadistas católicos a visita de Roma em forma oficial estava
proibida desde 1870. Em 1888 Leão XIII recebeu a visita do rei da Inglaterra. Em 1895 foi criada a
Embaixada da Rússia junto à Santa Sé. Por ocasião das bodas de ouro e diamante do Pontífice, quase
todos os soberanos do mundo lhe mandaram felicitações e belos presentes (abstiveram-se, porém, a
Itália e a Suécia).
Apesar de tudo, a Holanda não convidou a Santa Sé para a Conferência Internacional de Haia em
1899, pois o Governo italiano exigiu que assim fosse. Na última sessão da Conferência, foi lida uma
carta do Papa à rainha Guilhermina a respeito da missão pacificadora que o Papado sempre exerceu na
história e sobre o modo como "ele sabe inclinar à concórdia tantos povos de gênio diverso"; a
mensagem foi acolhida com deferência, mas, não obstante, as conversações de Haia sobre a paz e a
guerra não puderam ter a assinatura do Pontífice.
No regime interno da Igreja, Leão XIII revelou-se grande pastor e mestre: em 1879 escreveu a
encíclica Aeterni Patris, que recomendava São Tomás de Aquino aos estudantes de Filosofia e
Teologia, numa época de certo desatino filosófico, que prejudicava a própria teologia (o racionalismo,
o fideísmo, o existencialismo... prejudicavam a penetração mesma das verdades da fé). Em 1891, deu
início à serie de encíclicas papais referentes à questão social, escrevendo a Rerum Novarum, depois
que vários eclesiásticos e leigos (Joseph de Maistre, Montalembert, Lacordaire, Ozanam, Veuillot,
Ketteler...) haviam abordado o problema. Em 1902 criou a Pontifícia Comissão Bíblica para
acompanhar as novas pesquisas exegéticas empreendidas por pensadores de diversas correntes! Em
1883 abriu aos estudiosos do mundo inteiro o Arquivo e a Biblioteca do Vaticano, querendo significar
que a Igreja não teme a publicação de sua história. Em 1891 renovou e ampliou o Observatório do
Vaticano, para onde ele se retirava com prazer a fim de trabalhar e repousar.
Leão XIII faleceu com 93 anos de idade, ainda lúcido e enérgico. Fizera do Papado uma
potência moral universal, com a qual deviam contar os estadistas. Já em 1883 Windthorst no
Parlamento prussiano afirmava: "A autoridade moral da Santa Sé nunca foi maior em período algum
da história". Leão XI 11 só fez aumentar essa herança.

Lição 2: Pio X (1903-14) e Bento XV (1914-22)


2.1. Pio X
As probabilidades de eleição, no conclave seguinte, recaiam sobre o Cardeal Rampolla,
Secretário de Estado de Leão XHI. Todavia o Governo austríaco, restaurando um antigo abuso, vetou
essa candidatura, intimidando alguns Cardeais. Os eleitores então se voltaram para a figura de um
pastor muito estimado pela sua grei e alheio à diplomacia: era o Cardeal José Sarto, que tomou o
nome de Pio X se tornou um Santo Pontífice. Logo no início do seu pontificado anunciou o seu lema:
151 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Instaurare omnia in Christo (Instaurar tudo em Cristo). Propunha a si mesmo três tarefas: 1) conservar
em estado puro a doutrina da fé, preservando-a de qualquer contaminação; 2) estimular a ação social
dos católicos, continuando a obra de Leão X III; 3) intensificar e reorganizar a espiritualidade e a
pastoral da Igreja. Na política externa, seria também o firme defensor dos direitos de Deus e da Igreja,
Logo no início do seu pontificado, publicou normas referentes à eleição do Sumo Pontífice, a
fim de evitar que se repetisse a atitude assumida anteriormente pela Áustria.
Deu início ao trabalho de codificação do Direito da Igreja, cujas leis se achavam esparsas em
diversas coletâneas e que precisava de ser compilado de maneira orgânica e sistemática. Em 1904 foi
nomeada para este fim uma Comissão, presidida por Mons. Pedro Gasparri, a qual trabalhou até 1917,
quando Bento XV promulgou o novo Código de Direito Canônico (hoje substituído pelo Código de
1983).
Foi muito importante a ação de Pio X nos setores da Liturgia e da piedade. Até a época do seu
pontificado, perduravam entre os fiéis resquícios de Jansenismo e Galicanismo, que afastavam dos
sacramentos e dificultavam o "sentir com a Igreja" ou ter um senso eclesial apurado. Consciente disto.
Pio X empreendeu a reforma do Missal e da Liturgia das horas canônicas (Breviário), impregnando
estes livros do espírito de "volta às fontes" (S. Escritura, escritos dos antigos Padres da Igreja e
documentos da Tradição). Incentivou também a Comunhão Eucarística freqüente ou mesmo cotidiana;
determinou que a Primeira Comunhão fosse ministrada às crianças desde o uso da razão. Estas
medidas públicas e numerosas cartas particulares deste Papa atestam quanto estimava a vida espiritual
e a procura dos meios de santificação.
No setor doutrinário, o Pontífice teve que enfrentar o Modernismo, que reinterpretava toda a
mensagem da fé, dando aos seus clássicos vocábulos sentido totalmente novo; as fórmulas dogmáticas
seriam meros e mutáveis símbolos da verdade religiosa, que, como tal, não poderia ser conhecida.
Refutando tais erros. Pio X publicou a encíclica Pascendi (1907), que caracterizava claramente as
exigências da autêntica fé católica.
Na Questão Romana, o Papa manteve a atitude firme de seus antecessores; permitiu, porém, que
os católicos tomassem parte nas eleições italianas, ab-rogando um veto emanado de Pio IX.
Ainda conheceu o início da guerra mundial de 1914-18, que o entristeceu profundamente. Veio a
falecer aos 20/08/1914. Cativara a todos por sua simplicidade, piedade e meiguice. Foi canonizado em
1954.
2.2. Bento XV
Em plena guerra mundial, foi eleito Papa aos 03/09/1914 o Cardeal Giacomo della Chiesa, com
o nome de Bento XV, escolhido, em grande parte, por causa da sua experiência nos setores da
diplomacia internacional. Parecia ser o homem indicado para governar a Igreja nas circunstâncias do
conflito mundial. Era de pequena estatura, mas piedoso e prudente como também dotado de grande
capacidade de trabalho, de perseverança férrea e notável eloqüência.
Conseguiu melhorar a sorte de populações e prisioneiros de guerra, sem distinção de confissão
religiosa ou nacionalidade. Protestou contra meios bélicos desumanos. A 19/08/1917 dirigiu a todos
os beligerantes concretas propostas de paz, procurando aproximar as nações entre si. Após a guerra,
colaborou para que, debaixo da paz das armas, se realizasse a paz das mentes. Estes esforços muito
aumentaram o prestigio da Santa Sé; o número de representações diplomáticas junto a esta subiu de 14
a 25; entre as novas, estava a da França, que sob Pio X separara a Igreja e o Estado e rompera as
relações diplomáticas. A tensão entre a Itália e o Vaticano foi muito aliviada após a guerra mundial; o
Estado italiano, vendo-se a braços com agitações internas, recebeu certo apoio do Papa, que concedeu
aos católicos liberdade de atividade política. Em janeiro de 1919 formou-se, com o consentimento
tácito da Santa Sé, o Partito Popolare Italiano sob a direção do sacerdote D. Luigi Sturzo, que em
breve conseguiu numerosas cadeiras no Parlamento. Aliás, o conflito de 1914-18, embora tenha
causado dolorosas devastações humanas no plano temporal, ocasionou alvissareiro florescimento da
vida católica (renovação bíblica, litúrgica, teológica, Ação Católica...). Bento XV fica na memória dos
homens como o intrépido Apóstolo da paz de Cristo durante a primeira guerra mundial.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 152

Lição 3: Pio XI e o Tratado do Latrão


Aos 06/02/1922 foi eleito Papa o Cardeal Aquiles Ratti, de Milão, com o nome de Pio XI. Era
bem versado em Bibliotecas, em estudos de história e na diplomacia. Reunia em si as qualidades da
prudência, da energia com a confiança em Deus e o otimismo.
O mais vultoso acontecimento eclesiástico-político do seu pontificado foi a solução da
prolongada Questão Romana; esta se deve à iniciativa pessoal e à grande coragem de Pio XI. Foi
possibilitada também pela mudança do Governo italiano: em outubro de 1922 deu-se o advento do
Fascismo, que tomou posição favorável à Igreja: o ensino da religião tornou-se de novo obrigatório
nas escolas, os clérigos foram dispensados do serviço militar, foi oferecida assistência religiosa às
Forças Armadas, os crucifixos foram recolocados nas escolas, nos hospitais e tribunais; igrejas e
mosteiros profanados foram, em parte, restituídos, os dias santos católicos reconhecidos. . . Benito
Mussolini, o chefe do Governo, percebeu a grande conveniência política de conciliar a Itália com o
Vaticano. As negociações levaram dois anos e meio, terminando com a assinatura do Tratado do
Latrão aos 11/02/1929, que encerrava sessenta anos de querela entre o Vaticano e o Quirinal.
Este Tratado reconhecia a absoluta soberania do Papa sobre a pequena Cidade do Vaticano, que
é o menor de todos os Estados independentes: O, 44km 2, quando a República de San Marino tem
61km2 e a de Andorra 465km2. Ao Vaticano tocaria o direito de representação diplomática ativa e
passiva. O Papa, de seu lado, reconhecia o reino da Itália sob a dinastia de Savoia e com a capital em
Roma (reconhecia, portanto, a secularização dos antigos territórios pontifícios). Além da Cidade do
Vaticano, o Pontífice dispõe de "lugares extraterritoriais", como as principais basílicas de Roma,
edifícios da Cúria, a Vila de Castel Gandotfo... - Num acordo separado, o Estado italiano se
comprometia a pagar à Santa Sé a quantia de 1.750 milhões de liras a título de indenização.
O Papa Pio XI, por ocasião do Tratado do Latrão, quis explicar o porquê da insistência de cinco
Pontífices em não aceitar simplesmente a perda do Estado da Igreja:
Podemos dizer que não há uma linha, uma expressão do Tratado (do Latrão) que não tenham
sido, ao menos durante uns trinta meses, objeto particular de nossos estudos, de nossas meditações e,
mais ainda, de nossas orações, que pedimos, outrossim, a grande número de almas santas e mais
amadas por Deus.
Quanto a nós, sabíamos de antemão que não conseguiríamos contentar a todos, coisa que
geralmente nem o próprio Deus consegue...Alguns talvez achem exíguo demais o território temporal.
Podemos responder, sem entrar em pormenores e precisões pouco oportunas, que é realmente pouco,
muito pouco; foi deliberadamente que pedimos o menos possível nessa matéria, depois de ter
refletido, meditado e orado bastante. E isso, por vários motivos, que nos parecem válidos e sérios.
Antes do mais, quisemos mostrar que somos sempre o Pai que trata com seus filhos; em outros
termos: quisemos manifestar nossa intenção de não tornar as coisas mais complicadas e, sim, mais
simples e mais fáceis.
Além disto, queríamos acalmar e dissipar toda espécie de inquietação; queríamos tornar
totalmente injusta, absolutamente infundada, qualquer recriminação levantada em nome de. . .
iríamos dizer: uma superstição de integridade territorial do país (Itália).
Em terceiro lugar, quisemos demonstrar de modo peremptório que espécie nenhuma de ambição
terrestre inspira o Vigário de Jesus Cristo, mas unicamente a consciência de que não é possível não
pedir, pois uma certa soberania territorial é a condição universal reconhecida como indispensável a
todo autêntico poder de jurisdição.
Por conseguinte, um mínimo de território que baste para o exercício da jurisdição, o território
sem o qual não poderia subsistir. . . Parece-nos, em suma, ver as coisas tais como elas se realizavam
na pessoa de São Francisco: este tinha apenas o corpo estritamente necessário para poder deter a
alma unida a si. O mesmo se deu com outros santos: seu corpo estava reduzido ao estrito necessário
para servir à alma, para continuar a vida humana e,.com a vida, sua atividade benfazeja. Tornar-se-á
claro a todos, esperamo-lo, que o Sumo Pontífice não possui como território material senão o que lhe
é indispensável para o exercício de um poder espiritual confiado a homens em proveito de homens.
Não hesitamos em dizer que Nos comprazemos neste estado de coisas; comprazemo-Nos por ver o
domínio material reduzido a limites tão restritos que...os homens o devem considerar como que
espiritualizado pela missão espiritual imensa, sublime e realmente divina que ele é destinado a
153 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

sustentar e favorecer" (trecho da alocução publicada por L'Osservatore Romano de 13 de fevereiro


de 1929).
As palavras acima definem bem a mente da Igreja a respeito do poder temporal. Em última
análise, vê-se que o Papa considera a sua soberania territorial como o corpo imprescindível ao
exercício das atividades de uma alma ou como condição indispensável para o cumprimento de sua
missão; assim como a alma neste mundo não age normalmente sem corpo, assim a tarefa espiritual da
Igreja seria impedida, caso lhe faltasse tal suporte temporal.

MÓDULO 51: DE PIO XII AO VATICANO II


Lição 1: Pio XII (1939-1958)
As boas relações de Pio XI com o Estado Italiano esfriaram muito quando este adotou princípios
do nacional-socialismo, especialmente no tocante ao racismo.
O Papa seguinte a Pio XI foi Pio XII, antigo Secretário de Estado do falecido Pontífice. Era
homem austero, profundamente religioso, de vasta cultura, perito em diplomacia e política
internacionais, assim como afável e cordial. O seu pontificado apresenta várias facetas:
1) Os seis primeiros anos foram marcados pela Segunda Guerra Mundial (1939-45), que muito
absorveram Pio XII. Procurou até a última hora (03/09) deter o conflito, mas a Alemanha e a Itália
pouca atenção lhe dispensaram. Durante a guerra, escreveu mensagens, especialmente por ocasião do
Natal de cada ano, que se tornaram documentos de Justiça social. Os seus esforços foram
reconhecidos pelo Presidente Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos da América, que nomeou junto
à Santa Sé um representante pessoal seu, o embaixador Myron C. Taylor. Pio XII foi acusado de não
haver sido suficientemente enérgico em relação ao nacional-socialismo de Hitler; Rolf Hochhuth, na
peça de teatro O Vigário (Der Stellvertreter), censurou-o severamente por não haver defendido os
judeus. A este propósito pode-se observar: Pio XII abrigou no Vaticano, nas igrejas e nos mosteiros de
Roma mais de 5.000 judeus e outros perseguidos políticos; trabalhou discretamente para evitar mais
fortes represálias do nacional-socialismo, que dominava quase a Europa inteira e podia ter causado
ainda maiores danos, se provocado. O Serviço de Pesquisas e Informações do Vaticano funcionou
ativamente em favor dos prisioneiros de guerra e dispersos, obtendo mais de onze milhões de
respostas de pessoas afastadas. No dia seguinte ao da libertação de Roma, que estava sob o domínio
nazista, o povo acorreu à Praça São Pedro e aclamou Pio XII como defensor civitatis (defensor da
cidade), pelo muito que fizera em prol da preservação de Roma.
2) Após a guerra, Pio XII procurou assistir aos refugiados, exilados e demais vítimas mediante
grandiosa obra caritativa. Teve, porém, que lamentar os avanços do comunismo na Europa central e
oriental e na China, na Coréia, no Vietnã..., em conseqüência das quais se formou "a Igreja do
Silêncio"; os regimes marxistas tenderam e tendem a fundar "Igrejas nacionais" ou "patrióticas", que
esfacelam o povo de Deus. Também se deve notar a onda de descolonização, especialmente forte na
África: se. De um lado, teve a vantagem de pôr fim a situações de exploração, de outro lado, suscitou
perseguições e restrições à Igreja Católica, como se esta fosse uma peça integrante do sistema de
colonização; as novas condições impeliram as autoridades eclesiásticas a procurar desocidentalizar
mais a Igreja e encarná-la nas culturas aborígines da África, da Ásia e da Oceania. Pio XII muito
incentivou o trabalho missionário na África, pedindo compreensão e respeito para com as tradições
locais na Encíclica Africae Donum (1951).
3) Sob Pio XII, o movimento de "Volta às fontes" (S. Escritura, Tradição antiga, Liturgia),
desencadeado por S. Pio X, continuou a se desenvolver. Muitos teólogos quiseram reabastecer-se
através de uso mais freqüente e adequado dos textos bíblicos e patrísticos, dando origem a uma
corrente dita "nova Teologia" (Daniélou, De Lubac, Chenu...).-que causou certa estranheza a
princípio, mas posteriormente corrigiu algum exagero seu e foi reconhecida como sadia. A piedade
dos fiéis tornou-se assim mais nutrida e sólida. Pio XII contribuiu para isto mediante famosas
encíclicas: Mediator Dei, sobre a Liturgia, em 1947; Divino Afflante Spiritu sobre a S. Escritura, em
1943, e Mystici Corporis Christi, sobre a Igreja e a piedade crista, em 1943. Assim se preparava a
grande revitalização da Teologia e da espiritualidade católicas que o Concílio do Vaticano II (1962-
65) havia de promover.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 154

4) Pio XII declarou o ano de 1954 ano mariano a fim de celebrar o centenário da proclamação do
dogma da Imaculada Conceição. No Ano Santo de 1950, quando Roma recebeu milhões de
peregrinos, o S. Padre definiu o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao céu (sem se manifestar
sobre a morte ou a preservação da morte de Maria), tencionando com isto não só confirmar a antiga
crença dos cristãos, mas também incutir a dignidade do corpo humano, vilipendiado pelos horrores da
guerra e pela libertinagem dos costumes.
5) Pio XII manifestou sua ampla cultura geral em alocuções e mensagens sobre os mais diversos
temas: medicina, esporte, direito, educação, feminismo, ciências físicas... Insistiu sobre o valor da
pessoa humana e da democracia frente aos Estados totalitários do seu tempo.
O prestígio internacional do Papado subiu a novos índices sob Pio XII. Disto dão testemunho as
homenagens que lhe foram prestadas por ocasião do seu octogésimo aniversário (1956) e,
principalmente, as que recebeu após a morte aos 9 de outubro de 1958. Pio XII soube incutir a
fidelidade aos princípios da doutrina e da moral católicas numa época em que o mundo, cansado das
ideias que haviam levado a duas guerras sucessivas, se precipitava no ceticismo, no desespero e na
cega procura de novidades; soube, porém, abrir-se para o futuro, preparando remotamente o Concílio
do Vaticano II com mente larga e acolhedora.

Lição 2: João XXIII


Após três dias de conclave foi eleito aos 28/10/1958 o Cardeal Angelo Roncalli, com o nome de
João XXIII (1958-1963) e a idade de 77 anos. Diziam todos que seria um Papa de transição, meio-
apagado, entre Pio XII e o futuro Pontífice. João XXIII era conhecido como um homem bom e
cordial, dotado de inteligência viva e boa experiência na diplomacia internacional. Aos poucos,
porém, foi-se revelando "o milagre Roncalli" a diversos títulos.
O principal mérito de João XXIII foi o de ter convocado o Concílio do Vaticano II, a fim de
terminar os estudos do Concílio do Vaticano l, interrompidos prematuramente pela guerra franco-
alemã de 1870 e atualizar a disciplina e a vida da Igreja num mundo de rápidas mudanças. Este gesto
supunha coragem e clarividência da parte do Pontífice, que se abria a uma tarefa penosa e longa.
Oito foram as encíclicas de João. XXIII, das quais duas tiveram especial repercussão: Mater et
Magistra (Mãe e Mestra) de 15/05/1961, e Pacem in Terris (11/04/1963), ambas versando sobre a
questão social em termos cada vez mais nítidos. Esta última proclamava como pilastras da paz
internacional: a verdade, a justiça, o amor, a liberdade.
Tal Pontífice teve também marcada preocupação ecumênica; tudo fez para aproximar os cristãos
entre si ou mesmo os homens em comunhão fraterna; por isto recebeu em visita o chefe da Igreja
Presbiteriana da Escócia, os presidentes das comunidades episcopal e batista dos Estados Unidos, o
metropotita Damaskinos e até a filha e o genro de Kruschev, Chefe do Governo da Rússia soviética.
Com os judeus quis consolidar a amizade que nascera entre cristãos e israelitas nos campos de
concentração nazista, onde eram conjuntamente perseguidos; daí o encontro do Papa com o
representante judeu Jules Israel, que redundou em fatos concretos; o Papa se esforçou por fazer
desaparecer dos meios cristãos os resquícios de anti-semitismo.
João XXIII mudou também o estilo do Papado: saía a pé, caminhava pelas ruas da cidade;
visitava sacerdotes, doentes e prisioneiros, mostrando sempre fisionomia amiga bonachã e bem
humorada; estes seus traços foram consignados nos Fioretti do "Papa Buono".
A abertura de mente de João XXIII deu ocasião a que se forjassem falsas narrativas a seu
respeito. Assim, por exemplo, tem sido espalhada uma oração deste Papa aos Maçons, oração espúria,
pois contém anacronismos.70 Além disto, certos órgãos da imprensa divulgaram que João XXIII foi
membro de Loja maçônica (mas ninguém sabe de qual...). Mais: correu também a versão de que tal
Pontífice foi membro de sociedade esotérica (a quanto parece... da Rosa-Cruz), quando Delegado
Apostólico na Turquia e na Grécia; terá até escrito profecias naquela ocasião, que se estendiam até
2033. Ora também este rumor é totalmente falso; entende-se que a Rosa-Cruz tenha procurado "filiar"

70
Atribui, por exemplo, a João XXIII o conhecimento da declaração do Concílio sobre a Liberdade Religiosa, declaração
que ainda não existia quando o Papa morreu.
155 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

João XXIII aos seus quadros, já que ela enumera nestes Moisés, Salomão, Jesus Cristo, Descartes,
Leibnitz...
Falecido em 1963, João XXIII foi pranteado por milhões de pessoas, católicas e não católicas.

Lição 3: O Concílio do Vaticano II


João XXIII inaugurou o Concílio do Vaticano II aos 11/10/1962; era o 21 o da história. Fora
preparado desde 1959 por Comissões diversas, que elaboraram estudos e textos a ser apresentados aos
conciliares sobre os principais problemas da Igreja daquela época. Foram convidados, como
observadores, representantes dos protestantes, dos ortodoxos orientais e dos demais cristãos
separados. Por ocasião da inauguração do Concílio, contavam-se dois mil quinhentos e quarenta
participantes; os observadores não católicos eram cerca de cinqüenta; houve senhoras, como
observadoras, a partir de 1964. Como programa dos trabalhos conciliares, o Papa indicava a tarefa de
"tornar a Igreja presente no mundo e sua mensagem sensível à razão e ao coração do homem
envolvido na revolução técnica do século XX".
O Concílio decorreu em quatro fases, respectivamente de outubro a dezembro de 1962, 1963,
1964 e 1965. Nos intervalos entre essas fases, as Comissões de peritos trabalhavam arduamente para
atender às sugestões e às diretrizes emanadas dos padres conciliares.
Tendo João XXIII falecido em junho de 1963, foi-lhe dado por sucessor o Cardeal Giovanni
Battista Montini, com o nome de Paulo VI (1963-1978), que imediatamente assumiu o encargo de
levar adiante os trabalhos conciliares em curso.
Os debates nas sessões do Concílio foram árduos e candentes - o que se explica pelo fato de que
era preciso integrar nas expressões da Igreja valores modernos sem contradizer os valores essenciais
do passado. Finalmente o Concílio deixou à posteridade quatro Constituições básicas (sobre a Igreja
como tal, sobre a Igreja e o mundo moderno, sobre a Revelação Divina e sobre a Liturgia), nove
Decretos (sobre os Bispos, os Presbíteros, os Leigos, o Ecumenismo, a Vida Religiosa, as Igrejas
Orientais, as Missões, a Formação dos Clérigos, os Meios de Comunicação Social) e três Declarações
(sobre a Liberdade Religiosa, sobre as Religiões Não-cristãs, sobre a Educação Católica). Todos esses
documentos têm índole pastoral, isto é, visam à vida cristã e à sua disciplina, em vez de se voltar para
definições de fé e de moral. Entre os traços mais significativos desses textos, salientam-se; a
reafirmação da Igreja como sacramento (realidade divino-humana), estruturado por Pedro e a
hierarquia, mas envolvendo a responsabilidade de todo o povo de Deus (o senso de colegialidade
voltou muitas vezes à baila); renovação da Liturgia, a ser celebrada em estilo mais comunitário e
acessível aos fiéis; abertura para os demais cristãos, numa atitude de diálogo baseado sobre a verdade
e o amor; reconhecimento de valores contidos nas Religiões Não-Cristãs; desejo de integrar dentro da
cultura católica tudo o que de lícito apresenta o mundo de hoje (a ciência, o esporte, a política, a
economia, os esforços em prol da paz...).
Paulo VI encerrou o Concílio aos 08/12/1965, dirigindo mensagens a todos os homens,
convidados a colaborar com a Igreja na implantação de uma ordem mais digna e fraterna neste mundo.
- As conseqüências do Concílio foram enormes. A fim de executar as resoluções do mesmo, Paulo VI
criou novos organismos na Igreja: os Secretariados para a Unidade dos Cristãos, para o Diálogo com
os Não-Cristãos, para o Diálogo com os Ateus, o Conselho para as Comunicações Sociais, o Conselho
para a Revisão da Liturgia. Além disto, como estipulado, o Papa reuniu (e reúne) regularmente o
Sínodo Mundial dos Bispos (representantes do episcopado do mundo inteiro) para estudar assuntos
candentes da vida da Igreja: a família, a penitência, o celibato sacerdotal, a catequese, a
evangelização...
Paulo VI esteve em Genebra, na sede do Conselho Mundial das Igrejas, para se encontrar com os
representantes do protestantismo e da ortodoxia oriental; foi a Jerusalém, onde se encontrou com o
Patriarca Atenágoras, que ele beijou fraternalmente. Os contatos entre católicos e cristãos não
católicos têm-se amiudado e intensificado, a fim de derrubarem preconceitos e obstáculos à unidade.
Dignas de nota são também a Encíclica Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos)
de 1967, e a Carta Octogésima Adveniens (O Próximo Octogésimo Aniversário) de 1971, ambas a
respeito da questão social e da participação dos cristãos na transformação do mundo iníquo.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 156

Infelizmente os documentos conciliares nem sempre foram corretamente interpretados, de modo


que muitos cristãos cometeram graves abusos em nome do Concílio. Isto provocou o fechamento de
outros filhos da Igreja, que constituem a corrente integrista, chefiada principalmente pelo arcebispo
Marcel Lefèbvre. - O Sínodo Extraordinário dos Bispos reunidos em 1985 para avaliar os vinte anos
de pós-concílio lamentou essas desordens, e confirmou os dizeres do Concílio; este não fez senão
haurir das fontes da mensagem cristã as respostas exigidas por nossos tempos; toda árvore só pode dar
fruto se mantém vivas as suas raízes e se o tronco e os ramos se conservam em continuidade com
estas; qualquer ruptura é mortal. Possam estas apostilas contribuir para avivar a consciência disto em
seus leitores!
Os quatro módulos seguintes oferecerão alguns pontos de História da Igreja no Brasil: 1) A
Igreja e as Missões; 2)... a escravidão; 3) Pombal, os Jesuítas e a Inquisição; 4) a Questão Religiosa (-
1871-75).

MÓDULO 52: A IGREJA E AS MISSÕES


Lição 1: O Padroado
A Igreja no Brasil, durante quase quatro séculos, foi marcada pela instituição do padroado.
Tratava-se de uma estreita ligação do rei de Portugal (e, após a independência, dos Imperadores do
Brasil) com o poder eclesiástico, no sentido de que aquele teria certos direitos e privilégios, como
nomear bispos, conferir benefícios eclesiásticos ou receber dízimos das igrejas sob sua jurisdição. —
A origem do padroado situa-se na Idade Média, ligada a dois fatores: o sistema feudal e as Ordens
Religiosas militares.
O sistema feudal: Durante a Idade Média, especialmente no séc. X, desenvolveu-se a praxe
segundo a quai o Senhor do feudo era o patrono das igrejas situadas em seu domínio. Desse modo, os
senhores feudais escolhiam os vigários e curas para as ditas igrejas. No séc. XVI, visto que os reis de
Espanha e Portugal se tinham empenhado na propagação da fé católica nas terras então descobertas,
foram-lhes concedidos pela Santa Sé privilégios semelhantes.
As Ordens Militares: Outro fator que se encontra na origem do padroado consiste na formação
de Ordens Militares, compostas de leigos que seguiam uma regra de vida aprovada pela Santa Sé.
Tendo surgido no tempo das Cruzadas, muito se desenvolveram na Idade Média. Entre elas, destaca-
se a Ordem dos Templários, a qual, com o passar do tempo, acumulou muitos bens. Estes foram
cobiçados por Filipe, o Belo, rei da França (Séc. XIV), que pressionou o Papa, com diversas
acusações à Ordem, para obter a supressão da mesma. Esta, de fato, ocorreu na França em 1312. Em
Portugal, o rei D. Diniz, com o fim de aproveitar os bens da dita Ordem, formou contra semelhante, a
Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo (em 1313, aprovada em 1319), mais tarde unida às
Ordens de Aviz e de Santiago.
Em 1456 foi outorgada, pelo Papa Calixto 111, à Ordem de Cristo, a jurisdição espiritual nas
terras conquistadas (Bula "Inter Coetera"), Com isto o Prior do Convento de Tomar, da Ordem de
Cristo, recebia, sobre as regiões conquistadas, os mesmos poderes de um bispo em sua diocese. Este
poder, reservado ao Prior de Tomar, foi logo cobiçado pelos reis, que para isso procuraram para si o
título de Grão-Mestre da Ordem.
Em Bula de 1516 o papa Leão X concedeu ao rei de Portugal o Padroado sobre todas as igrejas
das terras conquistadas. A Jurisdição espiritual, porém, era reservada ao Prior do Convento de Tomar.
Muitos, porém, interpretaram erroneamente a Bula papal, outorgando a prerrogativa da jurisdição
espiritual aos reis de Portugal, que possuíam o título de Grão-mestre da Ordem.
Houve assim abusos da parte da Coroa, especialmente em certas épocas, como o exigir que as
Bulas pontifícias (exceto as de "foro da consciência") fossem aprovadas pela Coroa antes de chegar ao
clero português e que os bispos tivessem a concessão da Corte para manter relações com a Santa Sé.
O Sistema do padroado, a par desses aspectos negativos, teve também seu saldo positivo, quando
exercido dentro dos limites das Bulas: facilitou a ereção de igrejas; providenciou a remuneração do
clero e dos missionários e a dotação de dioceses, paróquias, colégios...; favoreceu ainda as missões e a
unidade da Igreja nas terras conquistadas.
157 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Quando da independência do Brasil, o Papa Leão XII separou de Portugal a Ordem de Cristo e
atribuiu a ela e a seus Grão-mestres (então, os Imperadores), o padroado (Bula Praeclara
Portugaliae, 1827). Permaneceu assim estreitamente unida a Igreja ao Estado no Brasil. Isto levou a
ingerência indevidas do poder civil na Igreja; no tempo do Império, um dos casos mais graves foi o
dos Padres Feijó e António Maria de Moura, apresentados peta Regência, em 1833, para bispos; a sua
indicação não foi aceita pela Santa Sé, visto terem os referidos padres certas ideias discordes da Igreja.
Houve fortes tensões, chegando um membro da Câmara a propor o desvinculamento da Igreja no
Brasil frente do Vaticano, cuja autoridade se tranferiria para o Governo. Esta proposta não foi
aprovada e a questão se resolveu com a renúncia de Pé. Feijó e Pe. Moura à mitra episcopal, tendo
então o Governo apresentado novos nomes.
Outro grave conflito foi a chamada "Questão Religiosa", durante o segundo Império, que será
estudada no módulo 56.

Lição 2: A evangelização no Brasil Colônia


1. Os índios
Ao chegarem os portugueses ao Brasil, aqui encontraram os habitantes nativos, dispersos pelo,
território, em vida semi-nômade e agrupados em diversas tribos. Em sua religião, possuíam vaga ideia
de um Ser supremo e muito poderoso, a quem chamavam Tupã; criam também em espíritos bons e
maus (o espírito mau era denominado Anhangá). Algumas tribos cultuavam o Sol (Guaraci) e a Lua
(Jaci). Não possuíam ídolos, templos ou sacerdotes, embora admitissem um feiticeiro ou curandeiro (o
pagé).
Muitas teorias consideravam os índios seres inferiores, irracionais, incapazes de
autodeterminação e assim destinados a ser dominados. Contra estas teorias lutou a Igreja, destacando-
se nesse contexto o Breve do Papa Paulo III (Veritas ipsa, de 29.5.1537), que defendia a
racionalidade dos indígenas, sua capacidade, por conseguinte, de se abrir à fé cristã e a abraçar; sendo
seres livres, não poderiam ser obrigados à conversão nem submetidos à escravidão.
2. Primeira evangelização
Embora estivesse os principais objetivos da ação da Coroa na terra recém-descoberta, não houve,
até 1549, evangelização sistemática e continuada dos indígenas.
O primeiro trabalho de evangelização foi realizado certamente pelos degredados ou vítimas de
naufrágio, talvez já pelos dois degredados aqui deixados por Cabral, pois é dito no relatório da
expedição de Gonçalo Coelho (entre 1502 e 1503) que o capelão da nau batizou a muitos indígenas.
Isto supõe um trabalho anterior de evangelização. Também os capelães das naus portuguesas e
espanholas que aqui aportavam e permaneciam por algum tempo, dedicavam-se à evangelização,
como, por exemplo, os padres Francisco Lemos e Francisco Garcia, no ano 1526 e seguintes.
Um número maior de indígenas, entretanto, foi evangelizado e batizado na época das feitorias
(1516-1534). Como as condições eram ainda muito precárias, a evangelização foi bastante rudimentar.
A partir da formação de Capitanias, com a fundação das primeiras paróquias (1535), o trabalho
de evangelização tornou-se mais organizado. A primeira missão se deu por iniciativa de franciscanos
espanhóis, chefiados por Frei Bernardo de Armênia, que se dirigiam ao Rio Prata. Desembarcando em
Santa Catarina no ano de 1538, iniciaram uma missão entre os índios Carijós: a missão de Mabiaçá ou
Imbiaça. Houve muitos convertidos, o trabalho prosperou, mas a missão acabou em 1548 quando os
aprisionadores de índios os levaram para São Vicente e Ilhéus.
3. Os jesuítas
A evangelização sistemática dos indígenas começou propriamente com a chegada dos membros
da Companhia de Jesus ao Brasil, a quem se deve de fato o maior mérito na evangelização neste
período. Os primeiros jesuítas chegaram com o Governador-Geral Tomé de Souza à Bahia em 1549.
Vieram em número de seis, sendo quatro padres e dois irmãos: Pé. Manoel da Nóbrega (superior). Pé.
Leonardo Nunes, Pé. João de Azpilcueta Navarro, Pé. António Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e
Diogo Jácome, mais tarde ordenados.
Os primeiros contatos com os indígenas se deram nas aldeias próximas a Salvador. De início,
limitaram-se a batizar crianças e adultos em perigo de vida. Pouco depois dedicaram-se a preparar os
adultos para o batismo. Seu ensino consistia, segundo o costume da época, numa breve explicação das
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 158

verdades fundamentais da fé. Os maiores problemas, porém, concentraram-se no combate a hábitos


arraigados entre os indígenas, como a antropofagia e a poligamia. Quanto a isto, do catecúmeno adulto
era exigido, para o batismo; não matar seus semelhantes, não comer carne humana, viver com apenas
uma mulher. O costume de mais árduo combate foi a antropofagia, para o quê foram necessárias leis
proibitivas de Tomé de Souza e Mém de Sá.
No início de 1550 chegaram mais quatro jesuítas, que se localizaram em São Vicente, com sete
meninos órfãos que vinham para ajudar na catequese. Em julho de 1553, chegaram outros sete
missionários à Bahia, entre os quais o Pe. Luís da Grã, futuro provincial, e o Ir, José de Anchieta, mais
tarde ordenado sacerdote, e que foi beatificado em 1980, pelo Papa João Paulo II.
O método utilizado pelos jesuítas consistia em contatos diretos com os índios e na formação de
aldeamentos indígenas, com a finalidade de atraí-los para hábitos mais civilizados e para a fé cristã;
Há quem julgue atualmente que os jesuítas teriam imposto o Cristianismo reprimindo os indígenas e
usando a força. Ora, devemos observar em primeiro lugar que os índios possuíam um caráter belicoso,
que os levava a numerosos ataques aos brancos, o que era duramente punido pela autoridade civil. Por
outro lado, os portugueses agiam muitas vezes somente com o intuito de explorar. Tais abusos sempre
foram condenados pelos missionários, de modo que não lhes podem ser atribuídos os desmandos da
autoridade civil. Se muitas vezes os missionários aproveitaram da relativa pacificação dos índios,
devida à força civil, para estender seu trabalho de evangelização, isto não significa obrigar à fé e
impor o Cristianismo à força. Pelo contrário, era norma da Santa Sé respeitar a liberdade dos
ameríndios adultos no tocante à aceitação ou não da fé cristã.
Em síntese, neste período o trabalho de evangelização foi repleto de dificuldades e não chegou a
ser muito profundo: havia falta de pessoas aptas que conhecessem a língua e os costumes dos nativos;
faltava também apoio mais expressivo (quando não havia hostilidade) dos colonizadores; além disso,
o caráter semi-nômade das populações indígenas e as enormes distâncias criaram outros tantos
obstáculos.
4. Carmelitas, beneditinos, franciscanos
O trabalho de catequese, embora entregue principalmente aos jesuítas, contou ainda com
colaboradores. A par dos padres diocesanos e da missão franciscana em Santa Catarina, vieram
estavelmente, após a chegada dos jesuítas, outras Ordens Religiosas, que se fixaram no fim do séc.
XVI: carmelitas, beneditinos, franciscanos.
Os Carmelitas foram os primeiros a se fixar após os jesuítas. Chegaram a Pernambuco, com a
expedição de Frutuoso Barbosa, em 1580. Fixaram-se em Olinda. Outro grupo, chegado pouco mais
tarde, dirigiu-se para a capitania de São Vicente. Não se dedicaram às missões indígenas, mas ao
trabalho com os brancos.
Os Beneditinos tiveram em 1581 autorizada a fundação de um Mosteiro na cidade de Salvador,
o qual foi elevado a Abadia em 1584. Com as vocações da terra e os auxílios provenientes de
Portugal, foram feitas novas fundações: Rio de Janeiro (1585), Olinda (1590), Paraíba (1596) e São
Paulo (1598). Por serem Ordem monástica, não se dedicaram às missões indígenas, mas muito
contribuíram para o aprofundamento doutrinal e espiritual dos habitantes da terra.
Os Franciscanos estiveram presentes já bem cedo, na missão de Imbiaça (1538-48), bem como
em Porto Seguro em 1520 e 1546. Em 1583 trabalharam perto de São Paulo e também no Espírito
Santo. Sua fixação, porém, deu-se a partir de 1585, quando Frei Melquior de Santa Catarina chegou ao
Brasil com a permissão de aqui fundar conventos. Neste mesmo ano foi fundado o Convento de Nossa
Senhora das Neves em Olinda. Posteriormente a Ordem passou à Bahia, Igaraçu, Paraíba, Espírito
Santo, dedicando-se à catequese indígena e aos colonos brancos.
Lançando um olhar panorâmico sobre esta época, podemos ver que o trabalho dos missionários
foi rico de boa vontade e desenvolvido de acordo com os meios e o pensamento de então. Não é
correio dizer que a cultura indígena não foi respeitada. A par do combate árduo, mas necessário, aos
costumes indígenas, como a antropofagia, a poligamia, as bebedeiras, houve grande respeito aos
valores positivos da cultura indígena e grande capacidade no tratar com os índios. Por outro lado,
nunca houve uso da força para converter ao Cristianismo. A ação missionária da Igreja no Brasil nessa
época tem, portanto, valioso saldo positivo.
Eis como, em sua visita ao Brasil, o S. Padre João Paulo II apreciou o trabalho missionário:
159 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Numa carta de 1o de junho de 1560, revelando a sua ânsia de conduzir ao Senhor os povos deste
país, o Padre Anchieta escrevia textualmente: 'Por este motivo, sem nos deixar intimidar pelas
calmarias, tempestades, chuvas, correntezas espumantes e impetuosas dos rios, procuramos sem
descanso visitar todas as aldeias e vilas, quer dos Índios, quer dos portugueses; e mesmo de noite
acorremos aos doentes, atravessando florestas tenebrosas, a custo de grandes fadigas, tanto pela
aspereza dos caminhos como pelo mau tempo.'
Com esta mesma finatidade, levando em consideração os dotes e qualidades naturais dos índios.
a sua sede de saber, a sua generosidade, hospitalidade e o seu senso comunitário, Anchieta promoveu
e desenvolveu as 'aldeias', centros onde a vida de cada um se fundia com a dos outros, de maneira
adequada, no trabalho, na solidariedade, na cooperação. Coração de cada um desses centros era
sempre a Casa de Deus, onde o Sacrifício Eucarístico era celebrado regularmente e onde o Senhor
Sacramentado permanecia presente.
Apreciando a sede de saber dos 'brasis', o seu acentuado talento para a música, a sua
habilidade e outros dotes, criou para eles centros de formação cultural e artesanal que, pouco a
pouco, contribuíram para elevar o nível geral das gerações futuras".
Homilia proferida durante a Missa em São Paulo, 3 de julho de 1980.

MÓDULO 53: A IGREJA E A ESCRAVIDÃO


Lição 1: Os índios
Era corrente na época moderna a ideia de que os índios não eram plenamente humanos, mas
seres irracionais, destituídos de capacidade de autodeterminação e, por conseguinte, de liberdade.
Com isto era justificada a sua escravidão. No Brasil, serviram também como justificativa as
circunstâncias da terra, inculta, que deveria ser trabalhada e submetida, necessitando-se para isso,
como condição de sobrevivência, de mão-de-obra para a lavoura.
Os escravos índios foram conseguidos pelos portugueses, primeiramente, através do resgate dos
membros de uma tribo vencida numa guerra indígena. Os índios vencidos eram normalmente
subjugados e escravizados ou devorados pelos vencedores. Para evitá-lo, os portugueses os comprados
aos vencedores em troca de pequenos objetos. Mais tarde, como o número de escravos se mostrasse
insuficiente, recorreram os colonizadores aos índios capturados em "guerras justas" (provocadas pelos
índios contra os brancos). Posteriormente começaram a fazer incursões, assaltos a tribos, com o fim de
escravizá-los.
Merece atenção especial o ocorrido com os índios Caetés. Mataram e devoraram o bispo D.
Pedro Fernandes, três cônegos e cerca de cem outras pessoas, vítimas de naufrágio. E vangloriavam-se
disto, proclamando que haviam matado o chefe religioso dos brancos; ora, tal atitude foi tomada como
ignomínia ao nome cristão. Em conseqüência, o Governador Mém de Sá (1557-1572) mandou contra
os Caetés uma expedição que fossem reduzidos à escravidão em castigo modelar. Este fato
desencadeou, da parte dos colonos, outros assaltos a Índios de tribos diversas, como se todos fossem
réus do mesmo crime — o que mereceu imediata reprovação do Governador.
Diante dos fatos, registraram-se protestos da parte das autoridades eclesiásticas e de autoridades
civis. — No início do século XVI o dominicano Domingos de Minaja viajou da América Espanhola a
Roma, a fim de relatar ao Papa Paulo III os abusos ocorrentes com relação aos índios. Em
conseqüência, o Pontífice escreveu a Bula Veritas Ipsa (1537), em que expõe o equivoco subjacente à
instituição da escravatura:
O comum inimigo do gênero humano, que sempre se opõe às boas obras para que pereçam,
inventou um modo, nunca dantes ouvido, para estorvar que a Palavra de Deus não se pregasse às
gentes, nem elas se salvassem.
Para isso moveu alguns ministros seus que, desejosos de satisfazer às suas cobiças, presumem
afirmar a cada passo que os índios das partes ocidentais e meridionais e as mais gentes que nestes
nossos tempos têm chegado à nossa notícia, hão de ser tratados e reduzidos a nosso serviço como
animais brutos, a título de que são inábeis para a Fé católica; e, com pretexto de que são incapazes
de recebê-la, os põem em dura servidão em que têm suas bestas, apenas é tão grande como aquela
com que afligem a esta gente. /.. ./
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 160

Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes
que aqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão
privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser
reduzidos à servidão."
As determinações da Bula lograram efeitos positivos, mormente porque observadas pelos
jesuítas, que defenderam a liberdade dos nativos e agiram contra os abusos dos brancos. Com isto
contribuíram para moderar e retirar o costume dos assaltos a aldeias. Porém não chegaram a rejeitar
qualquer cativeiro,
Esta possibilidade era defendida em caso de extrema necessidade e para o melhor bem das
almas. Considere-se, contudo, que o tratado dos indígenas pelos Jesuítas diferia, e muito, do dos
colonos brancos.
A 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que abolia por completo a escravidão indígena:
"Declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu
nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa santa fé católica, como os que
ainda servirem como gentios, conforme a pessoas livres como são".
Aos 24.4.1639 o Papa Urbano VIII publicou o Breve Commissum Nobis, incutindo a liberdade
dos índios da América. Este documento chegou ao Rio por meio do Pe. Francisco Dias, que iria até
Buenos Aires com mais trinta companheiros. Trazia também uma nova lei de Sua Majestade o Rei,
que mandava dar liberdade a todos os cativos sob pena de castigo do Santo Ofício e de confiscação de
bens. — No seu Breve, o Papa ordenava, sob pena de excomunhão reservada ao Pontífice, que
ninguém prendesse, vendesse, trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra.
Dispunha, outrossim, que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento dos
mesmos.
Contra isto insurgiram-se colonos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santos e no Maranhão.
Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só
puderam voltar tempos depois.
Por outro lado, o segundo bispo do Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30.7.1566
na Bahia, com o Governador Mém de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em defesa dos
índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior apoio aos aldeamentos instaurados
pelos jesuítas. O Pe. Anchieta elogiou o bispo pelo zelo em prol da liberdade dos aborígines.
Também o primeiro prelado do Rio de Janeiro, Pe. Bartolomeu Simões Pereira (1578-1603), foi
rígido defensor dos índios, sempre contrário à escravidão dos mesmos. O quarto prelado do Rio de
Janeiro, o Pe. Lourenço de Mendonça, dizia que "mandou guardar as Constituições Eclesiásticas dos
antecessores... que sempre se opuseram a estas tão iníquas vendas (de escravos)" (Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil, L. 219. dc. 17).
Estão assim expostos alguns dos fatos históricos mais importantes para se reconstituir o papel
desempenhado peta hierarquia da Igreja frente à escravidão dos índios. Houve empenho por respeitar
tal população — o que exigiu sacrifícios da parte de clérigos. Verdade é que esse esforço não se
voltou contra a escravatura como tal; nem se deve crer que os clérigos não tivessem escravos a serviço
das suas obras; não lhes passava pela mente a ideia de abolir por completo o trabalho escravo, pois
isto redundaria em colapso tanto da vida econômica da sociedade como das atividades humanitárias e
evangelizadoras da Igreja.
Importa, porém, registrar que, dentro das categorias de pensamento e cultura dos séculos XVI-
XVIII, a Igreja opôs resistência à exploração dos indígenas, na medida em que esta podia parecer
ilegítima a um cristão da época (de consciência bem formada).

Lição 2: Os negros
Diferentemente da indígena, a escravidão negra foi aceita mais pacificamente no Brasil. Muitos
foram aqueles que a defenderam, pois se constituía a principal forma de trabalho. Várias e
significativas vezes, entretanto, levantaram-se contra a escravidão negra;
a) Pe. António Vieira (1608-1697) - tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra
os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura
161 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

dirige-se, em última análise, ao próprio regime escravagista. Em mais de um sermão o grande


pregador expõe o seu modo de pensar:
'"Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua. .., porque num mesmo
Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos Judeus ou gentios, ou
servos ou livres" (Sermão XIV).
"Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os
comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se
vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercancia são homens\ Oh\ mercancia diabólica, em
que os interesses se tiram das almas alheias e os riscos são das próprias" (Sermão XXVII).
Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e
nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata,
os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e
temendo-os como deuses. /.../ Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas
almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem
como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o
mesmo só/? Que estréia é logo aquela que os domina, tão cruel? /.../
Oh! Como temo que o oceano seja para vós Mar Vermelho, as vossas casas como as de faraó, e
todo o Brasil como o Egito! Ao último castigo do Egito precederam as pragas, e as pragas já as
vemos, são repetidas umas sobre as outras e algumas são novas e desusadas, quais nunca se viram na
clemência deste clima. Se elas bastarem para abrandar os corações, razão teremos para esperar
misericórdia na emenda; mas se os corações, como o de faraó, se endurecerem mais, ainda mal,
porque sobre elas não pode faltar o último castigo. Queira Deus que eu me engane neste triste
pensamento, que sempre aqui, e na nossa corte, os mais alegres são os mais cridos. Sabei, porém, que
é certo — e fique-vos isto na memória — que se Jeconias e seus irmãos cressem em Jeremias, não
seriam cativos; mas, porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele, como
seus irmãos, todos acabaram no cativeiro de Babilônia" (Sermão XXVII sobre o Rosário, in Sermões,
vol. 12, Porto, 1951, p.333-371)
b) Pe. Jorge Benci, SJ — escreveu em 1700 um livro importante e corajoso intitulado
"Economia crista dos Senhores no Governo dos Escravos". Tal obra tornou-se base para a elaboração
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. O censor do livro, Fr. Emanuel da
Silva, emitiu a respeito o seguinte parecer:
"Julgo tratar-se de muito útil e necessário clamor contra a ímpia tirania dos senhores da nossa
América para com os escravos".
c) As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia — promulgadas em 1707, estiveram em
vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVII e XIX. Esse documento dedicou vinte e
três tópicos à situação dos escravos. Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores
proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dias santos. Interessou-se
também pela catequese a ser ministrada aos escravos, todavia sem que se lhes impusesse o Batismo.
c) A Bula "Immensa Pastorum" de Bento XIV (1741) - nesta Bula era censurada a escravidão.
Assim redigida, foi endereçada aos bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que
tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.
e) Pe. André João Antonil, SJ - ante o fato da escravatura no Brasil, escreveu a obra intitulada
"Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas" (1711), onde toma a defesa dos escravos
vítimas de abusos dos senhores.
f) Gregório XVI — aos 3.12.1839 o Papa quis corroborar em seu século as declarações de seus
antecessores. Escreveu, pois, taxativamente: "Admoestamos os fiéis para que se abstenham do
desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam".
g) A epístola "In Plurimis" - aos 5.5.1888 o Papa Leão XIII enviou aos bispos do Brasil uma
epístola atinente à escravatura:
"E profundamente deplorável s miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita
uma parte não pequena da família humana".
Papel de relevo no tocante à sorte dos escravos coube também às Irmandades e confrarias
Religiosas, estendidas pela Igreja também aos escravos. Surgem assim Confrarias especialmente para
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 162

os negros, principalmente sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Tais instituições exerceram
importante papel na consciência a da igualdade de todos os homens entre si; afirmando os direitos dos
escravos aos benefícios em Pe de igualdade com os senhores, tornavam-se fator de educação e
formação das mentalidades.
Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos patrões,
certos de que gozavam, diante de Deus, das mesmas prerrogativas que estes, tanto durante esta vida
quanto após a morte.
O papel da Igreja frente à escravatura, porém, não se limitou a estes episódios. De fato, foi todo
um contexto de ideias cristãs que, influindo no espírito do povo, preparou a libertação dos escravos,
assinada finalmente em 13/05/1888 pela Regente. Princesa Isabel. A fim de comemorar enfaticamente
tal evento, o Papa Leão XIII enviou à Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e benevolência de
Sua Santidade.

MÓDULO 54: POMBAL, OS JESUÍTAS E A INQUISIÇÃO


Lição 1: Pombal e os Jesuítas
Primeiro-ministro do rei D. José I. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi
quem praticamente governou Portugal e suas possessões de 1750a 1777. Sua grande autoridade e seu
poder estabilizaram-se quando por ocasião do terremoto de Lisboa, em 1755, tomando a frente na
reconstrução da cidade, Pombal viu crescer seu prestígio frente ao rei. Imbuído das ideias filosóficas
do Iluminismo (= racionalismo) e dos conceitos de progresso e modernidade, procurou implantar em
Portugal e nas colônias novas formas sociais e econômicas. Voltou-se, porém, contra a Igreja,
chegando a opor-lhe grave resistência no que concerne a sua ação pastoral. A oposição se fez sentir
em especial contra os jesuítas. Com efeito; o iluminismo, combatia com afinco aqueles membros da
Igreja que se distinguiam como sua grande força moral e intelectual. São palavras de Voltaire
(+1778): "Uma vez que tenhamos os Jesuítas, a Infame (= a Igreja) será nossa presa fácil".
A isto acrescente-se o mesmo episódio do terremoto de Lisboa.
Diante da catástrofe de tão grandes dimensões, generalizou-se no povo a ideia de ser o terremoto
castigo divino, ideia esta defendida também por alguns eclesiásticos. Destacou-se neste ponto o Pe.
Gabriel Malagrida, da Companhia de Jesus, que acusava a Corte e o Estado de culpas morais. Já que
isto atingia ò Primeiro-ministro, pôs-se este a lutar contra os Jesuítas. Assim sendo, em 1/05/1758,
pediu à Santa Sé a reforma da Companhia, sob a acusação de não respeitarem mais, os Jesuítas, os
estatutos e o espírito de Santo Inácio de Loyola, seu fundador. Aos 8/05/1758 acusou os jesuítas de
incitarem os índios das colônias contra os portugueses, e emitiu um alvará que estendia a todo o Brasil
a lei de liberdade para os indígenas. Desvinculava, assim, os jesuítas das missões indígenas.
Para intensificar a atitude de Pombal frente aos jesuítas, somou-se o atentado contra o rei D. José
I (1757), em punição do qual foram levados à morte muitos nobres. O Primeiro ministro acusou (sem
provas) os jesuítas de cumplicidade. Com isto, em 1759, emitiu o decreto de expulsão dos membros
da Companhia de Portugal e das Colônias. Os padres tiveram confiscados os seus bens. No Brasil, o
decreto foi aplicado no ano seguinte, causando a saída de mais de 600 jesuítas. Sofreu, desse modo,
grave perda a evangelização, bem como a educação na Colônia. Nessa época, de fato, havia 25
residências, 36 missões e 17 Colégios e Seminários, além das escolas de ler e escrever e dos
Seminários menores. Com a retirada dos jesuítas, todo o sistema educacional ficou em crise. O
Marquês de Pombal não preencheu a lacuna nem promoveu reformas para o ensino. Simplesmente,
retirando os jesuítas, aboliu o sistema existente. Também a obra evangelizadora sofreu muitíssimo,
com o decréscimo súbito de grande parte de seus missionários.
Tendo protestado contra o decreto, viu a Santa Sé expulsos também o Núncio, com os seus
funcionários em Portugal,
A medida de Pombal teve repercussão internacional; sob sua influência, foram expulsos os
jesuítas da França em 1762 e da Espanha em 1767. Por fim, sob ameaças de cismas por parte de
alguns países católicos, foi a Companhia extinta pelo Papa Clemente XIV em 1773. Ao saber do fato,
exultou Voltaire: "Dentro de vinte anos não haverá mais Igreja! "Ora a Companhia foi restabelecida
em 1814, tendo os jesuítas voltado para o Brasil em 1841.
163 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 2: O Santo Ofício no Brasil


2.1. A Inquisição em Portugal
O Tribunal da Inquisição em Portugal, apesar de insistentes pedidos da Corte, não foi instalado
senão em 1536. Já anos antes, o rei D. João III havia requerido a instituição do Santo Ofício, mas
encontrou muita resistência por parte da Santa Sé, dadas as notícias de abusos ocorrentes na
Inquisição espanhola, na qual já interviera. Vista a insistência dos pedidos, o Papa Clemente Vil
nomeou uma Comissão do Santo Ofício em Portugal, a qual se limitava a ser um tribunal eclesiástico.
Não contente com a resolução, o rei proibiu aos cristãos-novos (Judeus recém-convertidos) saírem do
país por três anos. Em contraposição, a Santa Sé vedou qualquer ação contra os novos convertidos e
concedeu-lhes um perdão geral. Houve novas pressões por parte da Coroa Portuguesa, mas sem lograr
efeito.
Junto ao Papa seguinte, Paulo III, renovaram-se as insistências.
De início o Vaticano manteve a conduta precedente, mas, em vista das fortes pressões da Corte,
foi por fim autorizada a instituição do Santo Ofício em Portugal. A Bula de autorização limitava a
ação do Tribunal, reservando aos bispos as questões de fé, dando aos acusados direito de defesa e
proibindo o confisco de bens por dez anos. Com isto procurava-se defender o Tribunal da ingerência
do poder civil, que agia muitas vezes com o fito de se apossar dos bens dos acusados. Ainda assim
ocorreram arbitrariedades, que levaram à suspensão das atividades do Tribunal de 1544 a 1547.
A Inquisição de Portugal contava três distritos: Évora, Coimbra e Lisboa, tendo este a jurisdição
sobre o Brasil.
2.2. A Inquisição no Brasil
2.2.1. Século XVI
Como a Inquisição no Brasil estivesse sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa, não houve na
colônia, em nenhuma época, um tribunal próprio. Assim sendo, os processos eram levados para a
Corte. No Brasil, os inquisidores eram os Bispos. Mas, visto o grande número de novos convertidos,
foi nomeado Inquisidor Apostólico D. António Barreiros. Seus poderes limitavam-se aos cristãos-
novos; era-lhe recomendado usar de prudência, moderação e respeito. A ação do Santo Ofício foi
discreta, sendo conhecidos três processos e uma visita do Inquisidor de Portugal.
Os processos
a) Processo de Pero de Campo Tourinho, donatário da capitania de Porto Seguro, acusado de
opor-se ao clero e ao Papa, e de desrespeitar as leis da Igreja. O processo iniciou-se no Brasil (1546) e
terminou em Lisboa (1547). Não se sabe a conclusão. Supõe-se que o acusado tenha sido absolvido.
b) Processo de João de Boles (Jean Cointha, seigneur des Boulez), francês que viera com
Villegaignon. Em 1557 começou a difundir doutrinas calvinistas e luteranas em São Paulo e depois na
Bahia. O processo, iniciado no Brasil (1560), foi levado a Portugal, tendo João de Boles lá chegado
em 1563. Retratou-se, mas pouco depois começou novamente a difundir suas ideias, sendo então
desterrado para as índias, onde foi condenado à morte, em 1572, como relapso e herege.
c) Processo do Pe. António de Gouveia. Oriundo dos Açores foi ordenado sacerdote em
Portugal. Em 1555 entrou na Companhia de Jesus, sendo dela despedido tempos depois. Deu-se à
necromancia e, por isto, foi acusado no Tribunal da Inquisição. Preso, fugiu em 1564. Recapturado,
foi degredado para os Açores. Tendo novamente fugido, foi descoberto em 1567 e desterrado para
Pernambuco. Aqui conseguiu uso de ordens, mas, continuando as atividades "mágicas", foi preso e
enviado ao Santo Ofício de Lisboa, embarcando em 1571. Em 1575 seu processo continuava, mas a
partir desta data nada mais se sabe dele.
A primeira visitação do Santo Ofício
De 1591 a 1595 deu-se a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil. A causa próxima foi a
passagem da Colônia ao domínio espanhol em 1580. Como o rei da Espanha possuísse ideias mais
rígidas quando aos cristãos-novos, julgou necessária uma visita do Santo Ofício.
O Visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, chegou à Bahia em julho de 1591, Poucos
dias depois publicou o "Edito da Graça", período de trinta dias (de 28.7 a 27.8) em que haveria "muita
moderação e misericórdia" aos que fossem acusados ou se viessem acusar. Houve muitas denúncias,
versando sobre suspeitas de heresia, de judaísmo, escravização dos indígenas, bigamia etc. Em 1594o
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 164

Visitador passou a Pernambuco onde, após um período de "Graça", inicou as audiências, seguindo até
o ano de 1595, quando retornou a Lisboa.
A par de algum erro ou imprevidência, não parece ter sido severo, usando, em muitos casos, de
moderação.
2.2.2. Século XVII
Data deste século a segunda visita do Santo Ofício. Esta ocorreu entre setembro de 1618 e
janeiro de 1619, sendo Inquisidor D. Marcos Teixeira. Os motivos devem prender-se à preocupação
da Coroa Espanhola com os cristãos-novos, temendo que pudessem aliar-se aos holandeses, que
naquele tempo pressionavam o Reino Unido. A colônia, de fato, tornara-se lugar de refúgio e de
degredo para os novos convertidos, que aqui se achavam em grande número.
O Pe. António Vieira, nessa época, defendeu a tolerância para com os Cristãos novos, ideia que
se generalizou e continuou viva mesmo após a restauração, em 1640.
2.2.3. Século XVIII
Surgindo as minas de ouro, para as quais ia grande número de estrangeiros de todos os Credos, a
política de tolerância vigente no século anterior começou a mudar. Intensificou-se a ação da
Inquisição no Brasil.
No reinado de D. José l (1750-77), a Inquisição decaiu, chegando praticamente a anular-se. Dois
fatores contribuíram para a sua queda, ambos ligados à personalidade do Marquês de Pombal.
Primeiramente, o Primeiro-ministro considerou-a contrária aos interesses da Corte, embora anos antes
(1761) a tivesse utilizado contra o Pe. Gabriel Malagrida, por ter este, na ocasião do terremoto de
Lisboa (1755), acusado de erros morais os membros da Corte. Além disto, em virtude de um
desentendimento entre Pombal e o Santo Ofício em Portugal, chegou o rei D. José I a procurar
minorar a ação do Tribunal.
Assim é que em 1773 foram baixadas leis que acabaram com a distinção entre cristãos-novos e
outros cristãos, e que proibiam qualquer discriminação por ascendência judaica.
Em 1744 o Santo Ofício foi transformado num tribunal régio, sem autonomia, completamente
dependente da Coroa, o que significou na prática a sua desativação.
Não obstante as falhas que se podem apontar contra todo e qualquer sistema repressivo, não é
lícito nem honesto ver na atuação da Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa. Houve
também vantagens para a fé e os bons costumes, evitando-se tolerância em demasia com
desvantagens para a pureza da fé ou com tropeies dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição
não empregava somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou nos
costumes. Ademais, para muita gente que se deixa levar mais pelo temor que pelo amor, por muitas
causas que não é o caso de abordar, toda ação coercitiva, quando psicologicamente bem orientada,
pode ter seus reflexos positivos. Aliás, o Santo Ofício era, antes do mais, um tribuna! eclesiástico que
tinha em mente mover o culpado a reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer emenda. Só em casos
de pertinácia agia com penas que variavam segundo a gravidade do delito e a renúncia ao perdão.
No Brasil, felizmente, durante o século XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na
terra, mesmo quando encaminhados ao tribunal de Lisboa (RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil,
Origem e desenvolvimento (Século XVI), vol. 1. Santa Maria, Pallotti, 1981, p. 284).

MÓDULO 55: A QUESTÃO RELIGIOSA (1871-75)


No final do Império deu-se importante incidente envolvendo as relações entre Estado e Igreja,
incidente que, de certa forma, fez convergir as tensões que quatro séculos de história haviam
acumulado. Nesta luta conjugou-se a ação da Maçonaria, então bastante arraigado no Governo, em sua
aversão à Igreja Católica.

Lição 1. O início da Questão


O ponto de partida do conflito está num episódio ocorrido em reunião da Loja Maçônica
"Grande Oriente" do Vale do Lavradio, no Rio de Janeiro. A Loja reunira-se para homenagear o
Visconde do Rio Branco, seu Grão-Mestre, Presidente do Conselho de Ministros do Imperador, por
ocasião da vitória alcançada com a Lei do Ventre Livre (de 28/09/1871). Nessa ocasião, o Pe. José
Luís de Almeida Martins, seguidor da Maçonaria, pronunciou um discurso comemorando a data,
165 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

discurso este publicado nos jornais em março de 1872.71 O Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria
de Lacerda, impôs ao padre retratação pelo seu ato, visto não ser lícito a um clérigo participar da
Maçonaria. Tal retratação não foi prestada e, após outros incidentes, o Pe. Martins foi suspenso de
ordens pelo Bispo.
A punição do sacerdote causou grande impacto. As Lojas Maçônicas protestaram. Uniram-se a
Loja do Vale do Lavradio e a do Vale dos Beneditinos, antes desunidas, com o fim de defender a
Maçonaria contra o Bispo do Rio de Janeiro. Foram publicados diversos artigos em jornais, com
calúnias e agressões ao Bispo e ao clero em geral. Também no Pará e em Pernambuco divulgaram-se
acusações contra a Igreja e os dogmas católicos.
Em 1871, tomando posse como Bispo de Olinda, o capuchinho Frei Vital Maria Gonçalves de
Oliveira deparou-se logo com o problema das Irmandades, que possuíam, entre seus membros,
numerosos maçons. Admoestou-as seguidamente, lembrando-lhes a impossibilidade de ser, ao mesmo
tempo, católico e maçon. Em 28 de dezembro do ano seguinte, enviou a diversos Vigários carta
circular sobre a necessidade de abjuração da maçonaria por parte dos irmãos maçons. Caso contrário,
deveriam ser expulsos. No mês seguinte foram enviadas, tratando do mesmo assunto, mais duas
circulares.
A medida foi de grande impacto. As Lojas Maçônicas se revoltaram, começando a lutar
fortemente contra o Bispo. A 9 de janeiro de 1873 reuniram-se com o objetivo de formar uma
representação no Poder Legislativo. D. Vital, porém, não se intimidava e a 19 de janeiro lançou
interdito geral às Irmandades. Ficava proibido às Confrarias comparecer em público com suas
insígnias e receber novos membros. Os irmãos maçons deveriam abjurar ou então se retirar das
confrarias.
A questão tomou maiores proporções quando atingiu eclesiásticos que ocupavam cargos
elevados: assim o Pe. Joaquim Francisco de Faria, decano da Sé de Olinda, e o Pe. Francisco João
Azevedo, inventor da máquina de escrever, que publicamente defenderiam a atitude dos maçons. Estes
foram, entretanto, os únicos clérigos a se mostrar renitentes. Os outros que pudessem ter alguma
ligação com a Maçonaria, a abandonaram.
Na população, os ânimos se agitavam sempre mais. Os chefes maçônicos começaram a agir
também contra os Jesuítas, fiéis ao Bispo. Ocorreram assaltos e depredações em igrejas e colégios
jesuítas.
Era a hora do mês mariano, a capela estava repleta de fiéis. Os energúmenos invadiram-na e 3
saquearam. Quebraram o púlpito, os confessionários, os painéis, os quadros, até a estátua da
Santíssima Virgem, 'que lançaram no chão, espancando e ferindo os fiéis, pisando e mutilando tudo e
furtando os objetos preciosos. Pareciam iconoclastas das eras bárbaras e brutais.
Penetrando no colégio, estragaram os móveis e utensílios, invadiram a tipografia de O
Católico. Agrediram violentamente os padres jesuítas, expulsaram alguns, apunhalaram outros,
inclusive um que jazia acamado e que pouco depois morreu; exigiram silêncio a respeito dos
acontecimentos, sob ameaças... Durante duas horas puderam fazer o que quiseram e destruir tudo à
sua vontade. A uns vinte passos do colégio havia um quartel; mas a ordem era de roncar ou dormir,
tranqüilamente, como se nada houvesse de anormal ao derredor" (Bihímeyer - Tüchele, História da
Igreja 3, p. 727).
Isto mereceu veemente protestos por parte de D. Vital. A 2 de julho mandou publicar a Bula
Quamquam dolores, de Pio IX, datada de 29 de maio. Nesta Bula o Santo Padre afirmava estar a
Maçonaria brasileira sujeita à excomunhão, devendo as Irmandades ser dissolvidas.

71
As razões por que alguns clérigos aderiram à Maçonaria no Brasil, são: 1) em virtude da lei do padroado, as normas da
Santa Sé tinham a força de leis do Estado brasileiro, mas, para tanto, deviam ser promulgadas pelo Governo. Ora, o
Imperador e muitos Ministros eram maçons, de modo que a proibição papal referente à Maçonaria não foi promulgada no
Brasil; isto podia dar a impressão de que tal determinação pontifícia não valia para o nosso país; 2) a Maçonaria teve
grande influência na causa da independência do Brasil - o que lhe granjeou a simpatia de muitos cidadãos, inclusive
clérigos, que talvez de boa fé aderiram às Lojas.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 166

Lição 2: O processo
Um novo incidente veio agravar a questão. Foi enviado ao Governo um recurso da Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo António do Recife. A 3 de maio reuniu-se o Conselho de
Estado para examinar a pendência. Após longa discussão, foi aceito o recurso, A 12 de junho,
portanto, seguiu para D. Vital a ordem de levantar os interditos no prazo de um mês. D. Vital,
entretanto, consciente de se tratar de assunto interno da Igreja, não sujeito à ingerência do Estado,
manteve firme sua decisão. Em conseqüência, foi acusado de transgredir ordens do Governo, Por se
tratar se assuntos religiosos esperava D, Vital ser julgado em Tribunal eclesiástico, seu processo,
contudo, seguiu para o Supremo Tribunal.
Neste Ínterim D. Vital já notificara o Sumo Pontífice a respeito de suas atitudes, que foram
aprovadas pelo Papa, o qual que deu plenos poderes, inclusive para dissolver Confrarias. Visto o apoio
de Pio IX ao Bispo de Olinda, começou a agir também, nos mesmos moldes de D. Vital, o Bispo do
Pará, D. António de Macedo Costa.
Foi enviado a Roma, para defender o Estado brasileiro na questão do Bispo de Olinda, o
embaixador Francisco de Carvalho Moreira, Barão de Penedo. Encarregado para esta missão pelo
Visconde de Caravelas, Ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha a recomendação de convencer o
Papa de que deveria induzir os bispos a obedecer à Constituição brasileira. A missão, de fato, não
tinha a finalidade de dialogar, mas de dar ciência ao Santo Padre do andamento da questão e prevenir
incidentes mais graves. O Governo tencionava, de antemão, condenar o Bispo. Em outubro de 1873 o
Barão de Penedo entrou em contato com o Cardeal Antonelli, Secretário de Estado do Vaticano,
pedindo-lhe audiência com o Santo Padre. Junto ao Papa, defendeu Penedo a Maçonaria brasileira e
propôs fazer-se um Memorandum sobre o caso dos Bispos, a ser submetido ao parecer dos Cardeais.
Foi aceita a proposta. Analisada a questão, chegaram às seguintes conclusões:
- as Irmandades eram associações mistas; tinham, portanto, compromisso com o Governo e não
só com a Igreja;
o procedimento de D. Vital não fora correto; os interditos e as suspensões impostos pelos Bispos
de Olinda e do Pará foram desabonados.
O Cardeal Antonelli, sob a influência da diplomacia brasileira, tornou-se contrário a D. Vital.
Enviou-lhe carta censurando-o por falta de moderação e prudência. Mandava que revogasse os
interditos e reunisse as Irmandades, exortando os maçons a delas se retirarem.
No início do ano seguinte, foi preso D. Vital no Recife, Três dias depois embarcou para o Rio de
Janeiro, onde chegou a 13 de janeiro, em segredo, para que se evitasse qualquer manifestação popular.
Entrementes conseguiu o Barão de Penedo a carta do Cardeal Antonelli contra os dois Bispos
brasileiros. A carta chegou ao Rio quando já estava preso D. Vital. Foi então entregue ao Internúncio
D. Domingos Sanguigni. A carta devia ficar secreta, mas o prelado, de boa-fé, informou o Governo do
seu recebimento. Este passou então a urgir D.Sanguigni para que entregasse a carta, que deveria ser
publicada.
A missiva foi entregue a D. Vital no final do mesmo mês de janeiro. Ao lê-la, reconheceu o
Bispo de Olinda ser fruto de informações deturpadas; precisava de explicações concretas de Roma e,
por isto, não a publicaria. Além do quê, teria por efeito, sua publicação, apenas semear confusão entre
o povo. Por ser correspondência particular, nenhuma obrigação havia de a publicar. Escreveu então ao
Papa uma carta narrando pormenorizadamente os acontecimentos. Temendo quebra de sigilo, enviou-
a através de seu secretário. Pe. José de Lima e Sá.
Ao receber a correspondência de D, Vital e tomando conhecimento da verdadeira versão da
Questão, o Santo Padre anulou a carta do Cardeal Antonelli. Com este ato, tornou sem efeito as
decisões da missão Penedo. Entrementes o Governo insistia na publicação da carta. Não conseguindo,
porém, a missiva, os jornais teceram considerações sobre seu suposto conteúdo: noticiaram que a
Santa Sé reprovava as atitudes do Bispo e dava ordem de retirar as interdições.
O processo contra D. Vital, entretanto, seguia. O Julgamento da Questão deu-se em fevereiro de
1874. D. Vital foi condenado a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, sentença depois
comutada para quatro anos simples.
Eis como Perilo Gomes, em nosso século, se refere ao processo condenatório de D. Vital:
167 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

"A defesa provou que o governo se desmandava em violência: a) dando provimento ao recurso
das frmandades, sem competência para o fazer; b) dando ordem à autoridade eclesiástica em matéria
em que era a mesma soberana; c) fingindo desconhecer que o apelo em casos desta natureza só podia
ser para o metropolita ou para a Santa Sé; d) ordenando o processo sem forma legal, visto ser a
Constituição do Império omissa quanto aos preceitos a seguir para o julgamento dos dignitários da
Igreja; nem havia nenhum ato legislativo posterior corrigindo esta omissão; e) desprezando
elementos substanciais na formação do processo, dado que fosse possível aceitar a hipótese da sua
legitimidade, o que só por si bastava para o invalidar, f) apoiando uma acusação formulada no
domínio do vago, do incoerente e das analogias forçadas, em virtude de não ter podido a promotoria
pública caraterizar o delito do prelado segundo a legislação penal vigente: artigo 128 ou artigo 96?;
g) submetendo o bispo a um tribunal incompetente, quer perante os dispositivos do Direito Canônico,
quer perante a letra e o espírito da Carta Política do Império". (D. Vital. Ed. Centro D. Vital, p. 285).
Ao saber da condenação de D. Vital, o Papa Pio IX lamentou o fato e elogiou o Bispo de Olinda,
reprovando as Lojas Maçônicas. Enviou-lhe ainda carta especial. O Cardeal Antonelli, de sua parte,
protestou contra o Governo brasileiro, por, não ter cumprido a promessa de que nada de desagradável
aconteceria ao prelado de Olinda.
Quanto ao Bispo do Pará. foi também preso e levado para o Rio de Janeiro, em fins de abril de
1874. Julgado, recebeu sentença igual à de D. Vital.

Lição 3: O fim do conflito


A contenda prosseguiu. Em setembro de 1874 o Governo intimou os prelados administradores
das dioceses de Pernambuco e do Pará, aí deixados pelos Bispos, a levantarem os interditos. Estes se
negaram, pois não possuíam tal direito, que havia sido reservado pelos Bispos para si. Foram abertos
contra eles processos por desobediência à autoridade civil.
Em novembro do mesmo ano, o Nordeste foi abalado por diversas revoltas populares. Tratava-se
de motins, contra o Governo, por insatisfação quanto aos impostos, à conscrição militar e aos pesos e
medidas- O Governo acusou os católicos, em especial os jesuítas, de responsáveis pelas rebeliões.
Prendeu nove padres em Olinda e os deportou, sem processo e sem Julgamento.
Finalmente, caiu o ministério do Visconde do Rio Branco em junho de 1875. O novo Primeiro-
ministro, Duque de Caxias, decretou em 17 de setembro de 1875, a anistia aos Bispos e
administradores de diocese. D. Vital viajou a Roma, sendo recebido em audiência por Pio IX. O Papa
retribuiu a visita através de Monsenhor Jacobini, o que foi sinal de grande deferência para com o
Bispo brasileiro. Regressando ao Brasil em novembro de 1876, reassumiu o governo de sua diocese.
Contudo, doente, cinco meses depois embarcou para a Europa, em busca de tratamento médico. E no
Convento da Ordem Capuchinha em Paris, morreu a 4 de junho de 1878, de tísica pulmonar aguda.
Seu nome, assim como o de D. Macedo Costa, estarão para sempre gravados nos anais da
história dá Igreja e do Brasil. A República, proclamada em 15/11/1889, extinguiu o Padroado, que,
concebido outrora como estimulo à propagação e conservação da fé, se tornou asfixiante para a Igreja.

Caro cursista, você acaba de percorrer um roteiro de história da Igreja. Possa ajudá-lo a mais
ainda amar "Aquela que foi chamada a anunciar o mistério de Deus, embora entre sombras, mas
com fidelidade, até que no fim seja manifestado em plena luz"! (Const. Lumen Gentium no 8).

MÓDULO 56: OS 21 CONCÍLIOS ECUMÉNICOS (I)


A guisa de recapitulação de toda a história da Igreja apresentamos uma síntese da história dos
Concílios.
1. Concílio de Nicéia I (325)
O primeiro Concílio Ecumênico foi o de Nicéia I, reunido de 26/05 a 25/07/325.
Desde o século II, os cristãos voltaram a sua atenção para as verdades da fé reveladas pelo
Evangelho, procurando penetrar-lhes o sentido. Sem dúvida, uma das que mais se impunham à
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 168

reflexão dos fiéis, era a questão do relacionamento de Jesus Cristo com Deus Pai ou com o único Deus
(revelado no Antigo Testamento): seria Jesus realmente Deus ou apenas criatura?
Após correntes que concebiam Jesus como inferior ao Pai, o presbítero Ario de Alexandria em
312 começou a ensinar que o Logos (ou o Filho) era, como criatura, subordinado ao Pai; daí os nomes
de sua escola: arianismo ou subordinacionismo.
O Imperador Constantino, que concedera a paz aos cristãos mediante o Edito de Milão em 313,
quis contribuir para a solução da controvérsia teológica assim originada, convocando um Concílio
universal para Nicéia (Ásia Menor) em 325. O Papa S. Silvestre, idoso como era, fez-se representar na
assembléia, dando-lhe a autoridade legítima. Os padres conciliares, após acalorados debates, 1)
definiram que o Filho de Deus é consubstanciai (homoousios) ao Pai — o que significa que não é
criado, mas compartilha a essência do Pai (ou a Divindade). Esta verdade foi expressa no Símbolo de
Nicéia;
2) fixaram a data de Páscoa, que seria celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia
da primavera;
3) estabeleceram a ordem de dignidade dos Patriarcados: Roma, Alexandria, Antioquia,
Jerusalém.
O Papa S. Silvestre confirmou as decisões do Concílio.
2. Concílio de Constantinopla l (381)
Após a controvérsia sobre a divindade do Logos, os cristãos se voltaram para a do Espírito
Santo: houve quem professasse ser o Espírito Santo mera criatura. O arauto principal desta tese foi
Macedônio, bispo de Constantinopla; donde o nome de Macedonismo ou Pneumatomaquismo que lhe
foi dado. O Imperador Teodósio (379-395), zeloso da reta fé, houve por bem convocar novo Concílio
Ecumênico, desta vez para Constantinopla. Esta assembléia reuniu-se de maio a Julho de 381. Firmou
três decisões principais:
1) O Espírito Santo é Deus, da mesma substância que o Pai e o Filho. Em conseqüência, o
Símbolo de fé Niceno foi completado com as palavras:
"Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, que é adorado e
glorificado com o Pai e o Filho e que falou pelos Profetas".
2) Foram condenados todos os defensores do arianismo sob qualquer das suas modalidades.
3) À sede de Constantinopla ou Bizâncio foi atribuída uma preeminência sobre as demais logo
após a de Roma, pois Bizâncio era considerada "a segunda Roma".
O Concílio de Constantinopla I não contou com a presença do Papa ou de algum legado deste.
Todavia foi reconhecido explicitamente pela Sé de Roma a partir do século VI, no que concerne às
suas proposições de fé (divindade do Filho e do Espírito Santo).
3. Concílio de Éfeso (431)
Após o estudo da SS. Trindade, os cristãos se detiveram sobre Jesus Cristo: como poderia ser
Deus e homem ao mesmo tempo?
Levando adiante ideias de autores anteriores, Nestório, bispo de Constantinopla, pôs-se a
combater o título Theotokos, Mãe de Deus, que os cristãos desde o século 111 atribuíam a Maria SS., .
Tal título significava que em Jesus havia uma só pessoa — a divina — que, além de possuir tudo o
que Deus possui, dispunha de verdadeira natureza humana. Para Nestório, a humanidade de Jesus
seria apenas o templo ou o revestimento do Filho de Deus; a divindade teria passado por Maria, mas
não nascera de Maria, o que implicava uma pessoa humana em Jesus distinta da segunda pessoa da
SS. Trindade. Tal doutrina causou celeuma entre os cristãos, de modo que o Imperador Teodósio II
(408-450) convocou um Concílio Ecumênico a se realizar em Éfeso (Ásia Menor) de junho a
setembro de 431. O Papa S. Celestino l (422-432) fez-se representar por S. Cirilo de Alexandria. O
Concílio de Éfeso.
1) condenou e depôs Nestório, rejeitando a sua doutrina. Não elaborou fórmula de fé, mas
aprovou a segunda carta de S. Cirilo a Nestório;
2) condenou o pelagianismo (doutrina excessivamente otimista no tocante à natureza humana) e
o messalianismo (corrente de espiritualidade que apregoava a total apatia ou uma Moral
indiferentista).
O Papa S. Celestino I confirmou as decisões do Concílio de Éfeso.
169 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

4. Concílio de Calcedônia (451)


O pensamento teológico tendo superado o Nestorianismo (que cindia Jesus Cristo, atribuindo-lhe
dois eu ou duas pessoas) esteve sujeito a movimento pendular. A tese da ortodoxia, que rejeitava a
dualidade de pessoas, foi exageradamente enfatizada no chamado "monofisismo" ou "monofisitismo".
Com efeito, Eutiques de Constantinopla, adversário de Nestório e seguidor de S. Cirilo ultrapassou o
seu mestre, ensinando o seguinte: em Cristo, não havia apenas uma só pessoa (um só eu), mas havia
também uma só natureza, visto que a natureza divina absorvera a humana.
Tal posição suscitou ardente controvérsia, pois se lhe opunham Teodoreto de Ciro. Domno de
Antioquia e o próprio Papa Leão I (440-461).
O Imperador Marciano (450-457) convocou então um Concílio Ecumênico para Éfeso, o qual,
iniciado nesta cidade, foi transferido para Calcedônia (junto a Constantinopla); durou de 8"de outubro
a novembro de 451. São Leão Magno, Papa, enviou seus legados, assim como uma carta que definia a
doutrina ortodoxa: em Cristo há uma só pessoa, mas duas naturezas (a divina e a humana) não
confundidas entre si. Tal doutrina foi aclamada pelos padres conciliares, que condenaram Eutiques e o
monofisismo aos 25/10/451.
O Concílio de Calcedônia também se voltou para questões disciplinares, condenando a simonia,
os casamentos mistos e proibindo as ordenações absolutas (isto é, realizadas sem que o novo clérigo
tivesse determinada função pastoral).
Em seu famoso cânon 28, o Concílio reconheceu à sé de Constantinopla, a cidade imperial, os
mesmos privilégios que à de Roma; O Papa S. Leão Magno recusou-se a aprovar este cânon, visto que
Roma é a sede dos Apóstolos Pedro e Paulo, ao passo que Constantinopla não foi sede de Apóstolo,
mas derivava sua importância do simples fato de ser sede do Imperador.
5. Concílio de Constantinopla II (553)
O Concílio de Calcedônia não conseguiu pôr termo às controvérsias cristológicas. Em 527 subiu
ao trono imperial de Bizâncio Justiniano I, que muito se interessava por assuntos teológicos; em
conseqüência, julgou que serviria à causa da verdade e da Igreja se condenasse três autores do século
V tidos como nestorianos: Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa. Originou-se
assim a controvérsia dos Três Capítulos, visto que os bispos orientais e ocidentais assumiram atitudes
diversas diante da posição de Justiniano. Este constrangeu o Papa Vigílio a ir de Roma a
Constantinopla para apoiar o Imperador. Finalmente Justiniano resolveu convocar um Concílio
Ecumênico para dirimir a controvérsia. Este, reunido em Constantinopla de 5/05 a 2/06/553, condenou
os Três Capítulos.
O Papa Vigílio aprovou tal condenação depois de proclamada pelo Concílio, dando assim foros
de legitimidade tanto ao Concílio de Constantinopla II quanto ao seu decreto condenatório.
O Papa S. Gregório I, em 591, confirmou o mencionado Concílio, que foi fortemente agitado por
causa da indevida ingerência do Imperador.
6. Concílio de Constantinopla III (680/1)
O monofisitismo, que não se extinguiu após o Concílio de Calcedônia, assumiu nova forma
(assaz sutil) chamada monotelitismo. Este ensinava que em Cristo havia uma só vontade (a divina) e
um só princípio de atividade ou energia (o divino) — o que redundaria em unidade de natureza ou
monofisismo. O protagonista desta tese era o Patriarca Sérgio de Constantinopla, ao qual se opunha
Sofrônio de Jerusalém. A disputa suscitou, da parte do Imperador Constantino IV Pogonato (668-685),
a convocação de bispos, inclusive legados papais, para Constantinopla; assim teve origem mais um
Concílio Ecumênico (7/11/680 a 16/09/681). O monotelitismo foi então condenado e afirmou-se a
existência, em Cristo, de duas vontades (a divina e a humana) moralmente unidas entre si, e de dois
princípios de atividade.
Os Papas S. Agatão (678-681) e São Leão II (682-683) confirmaram as sentenças do Concílio.
7. Concílio de Nicéia II (787)
O Concílio de Constantinopla III encerrou a série de controvérsias teológicas sobre Jesus Cristo,
sua Divindade e sua humanidade; os pontos essenciais referentes à SS. Trindade e à Encarnação do
Filho estavam definidos. Todavia os teólogos não cessaram de estudar as verdades da fé. Movo
motivo de disputas veio a ser o uso de imagens nas igrejas, dando ocasião à controvérsia iconoclasta.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 170

Desde os primeiros séculos os cristãos costumavam pintar e esculpir as figuras de Cristo e dos
santos, não a fim de adorá-las, mas no intuito de melhor poder voltar sua atenção para o Senhor e seus
irmãos mártires ou confessores da fé. Todavia, sob a influência do judaísmo e do Islamismo, houve
cristãos no século VIII que se puseram a combater o uso das imagens; os Imperadores Leão III o
Isáurico (717-741), Constantino V Coprónimo (741-775), Leão IV (775-780) favoreceram o
iconoclasmo. O principal defensor das imagens foi São João Damasceno (+749), que, juntamente com
outros cristãos, padeceu árdua perseguição por causa de sua fidelidade à Tradição cristã. Morto Leão
IV, a rainha-mãe regente, que patrocinava o culto das imagens, resolveu, de comum acordo com o
Papa Adriano I (772-795), convocar um Concílio Ecumênico para Nicéia. Este reatizou-se de 24/09 a
23/10/787; foi então lida a carta do Papa ao Patriarca Tarásio de Constantinopla e a Irene em favor das
imagens; o Concílio declarou outrossim que reconhecia a intercessão de Maria, dos anjos,e dos santos,
assim como o culto da Cruz e das imagens; tal culto seria relativo ao Senhor Jesus e aos santos, de
modo tal que ao primeiro (Jesus Cristo) se prestaria adoração e aos santos veneração.
Após o Concílio, a luta ainda continuou, salientando-se então o patriarca Nicéforo de
Constantinopla e o monge Teodoro Studita como defensores das imagens.
No Ocidente o Imperador Carlos Magno (800-814) mostrou-se propício ao iconoclasmo, o que
não teve graves conseqüências na vida do povo cristão.
8. Concílio de Constantinopla IV (869/870)
A exposição até aqui mostra como os cristãos orientais eram propensos a discussões teológicas,
às vezes de índole sutil. Tais controvérsias punham não raro o Oriente em confronto com o Ocidente,
especialmente com a sé de Roma, onde havia menos acume dialético.
As tensões foram, a partir de 859, alimentadas pela atitude do patriarca Fócio de Constantinopla.
Este em 867 reuniu um Sínodo em Constantinopla, que, sob a inspiração de Fócio, proferiu a
condenação da sé de Roma. Então o Papa Adriano II (867-872) e o Imperador Basílio I (867-886)
entenderam-se sobre a convocação de um Concílio Ecumênico, que teve lugar em Constantinopla de
5/10/869 a 28/02/870; os padres conciliares assinaram um documento que prescrevia a todos a
submissão à Igreja de Roma, "na qual a fé sempre se conservou sem mancha". Fócio foi condenado
por fomentar o cisma. O Concílio reafirmou, outrossim, a ordem de precedência das cátedras
patriacais: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.
O culto das imagens foi confirmado.
O Papa Adriano II aprovou as decisões do Concílio.
9- Concílio do Latrão I (1123)
Com o Concílio de Constantinopla IV termina a série dos Concílios Ecumênicos realizados no
Oriente. Em 1054 deu-se o cisma de Constantinopla, que perdura até hoje (excetuados breves períodos
de reatamento). De então por diante, os Concílios Ecumênicos serão todos celebrados no Ocidente.
Nos séculos X e XI, a Igreja latina sofreu do mal da ingerência do poder político na distribuição
dos bispados; os Imperadores e os senhores feudais queriam nomear os prelados de acordo com os
seus interesses políticos, praticando assim o que se chama "a investidura leiga"; à autoridade
eclesiástica tocaria apenas dar a ordem sacra ao candidato designado exclusivamente pelo poder civil.
Como se compreende, desta prática resultavam bispos sem vocação pastoral e, conseqüentemente, o
clero se ressentia de relaxamento da respectiva disciplina; havia outrossim simoniae nicolaísmo. 72 Em
Roma, a própria cátedra de Pedro era cobiçada pelas famílias nobres da cidade e das redondezas, que
tentavam impor-lhe os seus favoritos.
Com o Papa Gregório Vil (1073-85) começou a forte réplica da Igreja a tal situação ou a luta do
sacerdócio e do Império, que redundaria em fortalecimento do Papado. Em 1122 o Papa Calixto II
(1119-1124) e o Imperador Henrique V assinaram a Concordata de Worms, que assegurava à igreja
plena liberdade na escolha e ordenação de seus bispos. Tal resultado foi promulgado pelo Concílio do
Latrão I, convocado pelo Papa Calixto II para Roma e celebrado de 18/03 a 16/04/1123 por cerca de
trezentos bispos e abades.

72
A palavra nicolaísmo designa o concubinato do clero, que os medievais julgavam estivesse indiretamente mencionado
em Ap 2, 6.15, onde há referência aos seguidores de Nicolau.
171 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Os cânones definidos pelo Concílio versavam todos sobre a disciplina eclesiástica. Com efeito.
voltaram-se contra a simonia, o nicolaísmo e proibiram a ordenação de bispos que não tivessem sido
escolhidos canonicamente.
Em particular no tocante ao celibato sacerdotal, note-se que desde os primeiros séculos foi
abraçado espontaneamente pelos clérigos; o Concílio de Elvira (Espanha), por volta de 306, foi o
primeiro a promulgar tal praxe em âmbito regional; no decorrer dos séculos, subsequentes Concílios
regionais confirmaram o celibato dos clérigos. O Concílio do Latrão I não criou a lei do celibato, mas
apenas corroborou a legislação vigente nas diversas regiões da igreja, usando os seguintes termos:
"Proibimos expressamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos viver com concubinas e
esposas como coabitar com outras mulheres; excetuam-se apenas aquelas com as Quais o Concílio
de Nicéia permitiu habitar unicamente por motivo de necessidade, a saber: mãe, irmã, tia paterna e
outras a respeito das quais não pode haver suspeita".
As decisões do Concílio do Latrão I foram confirmadas pelo Papa Calixto II.
10. Concílio do Latrão II (1139)
Este dista do anterior apenas dezesseis anos. Foi convocado pelo Papa Inocêncio II (1130-1143)
para reafirmar a unidade e a disciplina da Igreja após o cisma do antipapa Anacleto II. Na verdade, em
1130, quando morreu o Papa Honório II, foi eleito o Papa legítimo Inocêncio II; todavia uma facção
elegeu ilegitimamente Pedro de Leão como antipapa Anacleto II. Este conseguiu prevalecer em Roma
— o que levou Inocência II a deixar a cidade eterna. São Bernardo tendo reconhecido Inocêncio como
Pontífice legítimo, moveu reis, nobres e todo o povo de Deus a apoiarem o Papa. Este conseguiu
voltar a Roma em 1133; finalmente, Anacleto faleceu aos 25/01/1138. Foi então que Inocêncio,
desejoso de consolidar a unidade da Igreja, reuniu mais de quinhentos bispos e abades no Concílio do
Latrão li, de 4 a 30/04/1139. Esta assembléia corroborou os cânones do Concílios regionais anteriores,
proibindo a simonia e o nicolaísmo; aos clérigos vetou outrossim o exercício da medicina e da
advocacia. Rejeitou a usura ou os juros; quem cedesse a esta prática, seria tido como infame.
Os decretos do Concílio foram confirmados por Inocência II.
11. Concilio do Latrão III (1179)
A luta da Igreja medieval contra os Imperadores, de um lado, e contra males internos, de outro
lado, prosseguiu mesmo após os Conciliares anteriores.
Alexandre III teve um pontificado longo (de 1159a 1181), durante o qual quatro antipapas se
sucederam por instigação dos Imperadores germânicos, especialmente de Frederico I Barbarroxa
(1152-1190). Eram Vítor IV (1159-64), Pascoal III (1164-68), Calisto III (1168-78), Inocêncio III
(1178-80). Durante o mesmo pontificado agravou-se o movimento dos Catares ou albigenses, hereges
dualistas, que assolavam regiões do Norte da Itália e do Sul da França.
No final do seu pontificado Alexandre III quis reunir um Concílio Ecumênico para tomar as
providências exigidas pelas circunstâncias. Tal assembléia se reuniu na basílica do Latrão de 5 a 19 de
março de 1179. Entre outras medidas promulgadas então, destacam-se - a regulamentação das eleições
papais; doravante seriam exigidos 2/3 dos votos, ficando excluído qualquer recurso a autoridades
leigas para dirimir dúvidas oriundas no processo eleitoral;
- rejeição do acúmulo de benefícios ou funções dentro da Igreja por parte de uma só pessoa;
- recomendação da disciplina da Regra aos monges e aos cavaleiros regulares, que interferiam
indevidamente no governo da Igreja;
- promoção e organização do ensino, em favor de estudantes que não pudessem pagar seus
mestres;
-condenação das heresias da época, que tinham um fundo dualista (catarismo) ou de pobreza mal
entendida (a Pattária, o movimento dos Pobres de Lião ou Valdenses).
O Papa Alexandre III confirmou as decisões do Concílio.

MÓDULO 57: OS 21 CONCÍLIOS ECUMÉNICOS (II)


12. Concílio do Latrão IV (1215)
O pontificado de Inocêncio III (1198-1216) representa o apogeu do prestígio papal em toda a
história da Igreja.
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 172

Ao termo da sua gestão, marcada, entre outras coisas, pelo surto das Ordens mendicantes, pelo
combate aos albigenses, pela intervenção em questões da Igreja da Inglaterra..., Inocêncio III quis
reunir um Concílio Ecumênico. Convocado desde 19/04/1213 para abrir-se a 19/11/1215, o Concílio
teve sua primeira sessão aos 11/11/1215, com a presença de 412 bispos, 800 abades e Superiores de
Ordens Religiosas, embaixadores de reis e nobres, que perfaziam uma bela imagem da grandeza da
Igreja governada por Inocêncio. O Concílio decretou
- a condenação dos albigenses e valdenses, assim como a dos erros de Joaquim de Fiore, que
esperava o fim do mundo para breve, apoiando-se em falsa exegese bíblica; o Concílio professou a
existência dos demônios como sendo anjos bons que abusaram do seu livre arbítrio pecando;
- a realização de mais uma cruzada para libertar o Santo Sepulcro de Cristo, que se achava nas
mãos dos muçulmanos;
- a profissão de fé na Eucaristia, tendo sido então usada a palavra "transubstanciação";
- a obrigação da confissão e da comunhão anuais.
O Concílio legislou ainda sobre vários pontos da disciplina e da Liturgia da Igreja, abrangendo
ampla área da vida eclesial. Aprovado pelo Papa Inocêncio III, é o mais importante dos Concílios
antes do de Trento.
13. Concílio de Lião I (1245)
Ao grande Papa Inocêncio III sucederam-se Honório III (1216-1227), Gregório IX (1227-1241),
Celestino IV (1241), Inocêncio IV (1243-1254). Este período foi, sem dúvida, glorioso para o Papado,
mas caracterizou-se pela recrudescência da luta entre o Sacerdócio e o Império. Na Alemanha, o
Imperador Frederico II (1215-50) foi pessoa marcante; afilhado do Papa Inocêncio III, teve uma corte
de soberano oriental ou sultão, dada ao luxo desenfreado e um tanto recoberta pelo véu do mistério.
Inocêncio IV, sentindo-se inseguro em Roma, transferiu sua resistência para Lião na França,
onde poderia contar com a tutela do rei São Luís IX. Lá o Papa quis reunir os bispos da Igreja
universal para considerar o procedimento do Imperador, as invasões dos árabes e dos mongóis no
Oriente e a reunião dos cristãos gregos com os latinos. O Concílio durou de 28/06 a 17/07/1245,
limitando-se quase unicamente a ouvir o depoimento de Tadeu de Suessa, delegado do Imperador;
após o que o monarca foi excomungado.
14. Concílio de Lião II (1274)
Após Frederico II a luta entre o Sacerdócio e o Império declinou — o que levou Gregório X
(1271-1276), um santo Pontífice, a procurar o reatamento de cristãos bizantinos e ocidentais. Para
tanto, escreveu ao Imperador Miguel VIII o Paleólogo, de Constantinopla, mostrando-lhe que a
reunião de todos os cristãos fortalecidos fortaleceria a presença dos mesmos no Oriente. O Imperador
Miguel mostrou-se disposto a aceitar a união com Roma, apesar dos protestos de dignitários da corte
bizantina. Por isto, enviou legados a Lião, aonde o Papa convocara todos os bispos da Igreja. O
Concílio durou de 7/05 a 17/07/1274. Conseguiu realmente a reunião de latinos e bizantinos sob o
primado do Papa.
A fim de evitar as constantes intervenções políticas de Imperadores e nobres na eleição dos
Papas, o Concílio promulgou novas medidas para garantir a liberdade dos eleitores, entre as quais a
prescrição de permanecerem em local fechado a chave ou conclave.
O Papa Gregório X abriu e encerrou o Concílio dando plena aprovação aos seus atos.
15. Concílio de Viena-Prança (1311-12)
O Papa Clemente V (1305-1314) teve que enfrentar o rei da França Filipe IV o Belo, que
representava, na época, o surto do absolutismo dos monarcas independentes do Sacro Império
Romano.
O rei cobiçava os bens da Ordem dos Templários. Esta era constituída por cavaleiros que,
mediante votos religiosos, se consagravam a Deus e se comprometiam a defender os peregrinos da
Terra Santa. No fim do século XIII os Templários haviam perdido a sua finalidade específica de
cavaleiros; enriquecidos por doações, começaram a provocar a ambição do rei. Este então pôs-se a
pressionar o Papa, levando-lhe acusações contra os Templários, a fim de obter a extinção da Ordem.
Clemente V, não querendo assumir a sós a responsabilidade de tal atitude, convocou para "16 de
outubro de 1311 o Concílio Ecumênico de Viena (França); o local se deve ao fato de que os Papas
residiam em Avinhão desde 1305. - A assembléia se reuniu até 6/05/1312. Acabou cedendo às
173 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

instâncias da situação criada pelo rei, declarando supressa a Ordem dos Templários. Estiveram na
pauta conciliar também os Franciscanos, dos quais uma corrente, dita "dos Espirituais", alimentava
ideias exageradas ou mesmo heréticas sobre a maneira de viver a pobreza. O franciscano Pedro Olivi
foi outrossim condenado por sua doutrina, que admitia no ser humano elementos intermediários entre
a alma e o corpo.
O Papa Clemente V confirmou as decisões do Concílio.
16. Concílio de Constança (1417)
A crescente ingerência da França na história do Papado levou não somente ao exílio de Avinhão
(1305-1378), já mencionado anteriormente, mas também ao Grande Cisma do Ocidente. Com efeito,
quando o Papado voltou a fixar residência em Roma no ano de 1378, o primeiro conclave realizado na
Cidade Eterna elegeu o Papa Urbano VI (1378-89), ao qual um grupo de Cardeais, influenciado pelo
rei da França... depôs o antipapa Clemente VII (1378-94), que ocupou a sede de Avinhão. Houve
então, daí por diante, duas obediências na Igreja: a de Roma, autêntica, e a de Avinhão, espúria.
Desejosos de remediar a este mal, vários Cardeais e bispos se reuniram em Pisa num "pseudo-
Concílio ecumênico" de 1409; declararam depostos o Papa e o antipapa e elegeram Alexandre V, que
se tornou o segundo antipapa, com sede em Pisa.
A situação perplexa assim oriunda foi superada aos poucos pela intervenção do Imperador
Sigismundo (1410-37). Este resolveu convocar um Concílio para Constança em 1414. Tal assembléia
não era legítima, pois se reunia sem a aquiescência do Papa ou do bispo de Roma; os bispos e teólogos
reunidos começaram por afirmar o conciliarismo ou declarar (ilegitimamente) a supremacia do
Concílio Ecumênico sobre o Papa, de tal modo que o Romano Pontífice deveria submeter-se às
decisões do Concílio. Em conseqüência, depuseram o antipapa João XXIII. Quanto a Gregório XII, o
Papa legítimo, resolveu convocar os Padres Sinodais reunidos em Constança, para que doravante
pudessem constituir autêntico Concílio Ecumênico; tendo os referidos bispos aceito o mandato,
Gregório XII renunciou às funções papais, de modo que a cátedra de Pedro ficou vacante. Por sua vez.
Bento XIII, o antipapa residente na Catalunha, foi deposto pelo Concílio. Estava assim aberta a via
para a legítima eleição do sucessor de Gregório XII. O novo Papa foi finalmente escolhido aos
11/11/1417 com o nome de Martinho V.
O Concílio de Constança só se tornou legítimo a partir da sua 36 a sessão, ou seja, depois que
Gregório XII lhe conferiu autoridade para agir. Donde se vê que a apologia de conciliarismo feita
anteriormente não tem valor teológico ou jurídico. Após a eleição de Martinho V, os padres
conciliares ainda condenaram a doutrina de João Wiclef, João Hus e Jerônimo de Praga, que eram
precursores de Lutero. Tomaram medidas relativas à disciplina do clero e estipularam que
periodicamente se realizariam Concílios Ecumênicos para atender ao governo da Igreja.
17. Concílio de Ferrara-Florença (1438-1445)
Martinho V, desejoso de continuar a obra dos Concílios anteriores, convocou um Concílio
Ecumênico para Basileia (Suíça) em 1431. Eis, porém, que os padres em Basileia reafirmaram o
conciliarismo, rejeitado anteriormente — o que provocou conflitos entre a assembléia de Basileia e o
sucessor de Martinho V, que era Eugênio IV. Em conseqüência, este Papa resolveu dissolver o
Concílio de Basileia e convocar outro para Ferrara em 1438; esta assembléia teria por principal
objetivo promover a reunião de gregos e latinos.
O Concílio de Ferrara, aberto aos 10/01/1438, contou com a presença do Imperador bizantino
João o Paleólogo e de sua comitiva. Desabonou as resoluções do Concílio de Basileia. A peste tendo
surgido em Ferrara, o Papa Eugênio IV transferiu a assembléia para Florença. O tema principal dos
estudos foi a extinção do cisma: após prolongadas conversações, os conciliares puseram-se de acordo
sobre os pontos teológicos e disciplinares controvertidos, assinando a Bula Laetentur caeli de
06/07/1439. Também voltaram à unidade da Igreja cristãos monofisitas (coptas, etíopes e armênios).
Em fins de 1442, Já tendo partido os gregos, o Papa transferiu o Concílio para Roma. Nesta
cidade, ainda voltaram à unidade da Igreja osmonofisitas da Mesopotâmia, alguns grupos de
nestorianos (caldeus) e de maronitas (monotelitas) da ilha de Chipre.
Infelizmente, a união com Bizâncio foi efêmera, pois os prelados do Patriarcado de
Constantinopla se recusaram a aceitá-la.
18. Concílio do Latrão V (1512-1517)
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 174

A vida da Igreja, após o Concílio de Ferrara-Florença, viu-se agitada por causas diversas:
persistência de correntes conciliaristas, que eram fomentadas pelos monarcas desejosos de criar
Igrejas nacionais independentes de Roma...; além do que, havia necessidade de sérias medidas
disciplinares.
Diante disto, o Papa Júlio II convocou mais um Concílio Ecumênico, que foi inaugurado aos
03/05/1512 e só se encerrou aos 16/03/1517 sob o pontificado do Papa Leão X. Condenou a
Pragmática Sanção de Bourges, declaração que favorecia a criação de uma Igreja Nacional de França.
Com isto o conciliarismo foi mais uma vez rejeitado. Em lugar de tal documento, a Santa Sé e a
França assinaram uma Concordata-que regulamentava as relações entre os dois Estados.
No setor doutrinal, o Concílio tomou posição de grande importância, condenando a tese segundo
a qual a alma humana é mortal e uma só para todos os homens; tal tese, segundo o seu autor Pietro
Pomponazzi, seria verídica no plano filosófico, ainda que falsa no plano teológico. — Foram outros-
sim tomadas medidas disciplinares relativas ao clero (seus estudos e sua formação) e à pregação;
exigiu-se o Imprimatur para livros que versassem sobre fé ou teologia; seria queimado todo livro não
munido da devida permissão.
Infelizmente, as resoluções do Concílio, oportunas como eram, não encontraram eco nos
diversos países católicos, pois o clima da época, bafejado por cultura pagã, dificultava uma séria e
profunda conversão dos cristãos. Como quer que seja, o Concílio do Latrão V preparou a grande
Reforma da Igreja, promulgada pelo de Trento.
19. Concílio de Trento (1545-47, 1551-52, 1562-63)
Este foi o mais importante Concílio de toda a história, importância esta que se explica pela
problemática que enfrentou (a Reforma protestante) e as soluções que adotou.
Pouco depois de lançar o seu brado de protesto contra a Igreja em 1517, Lutero apelou para a
realização de um Concílio Ecumênico que considerasse os pontos por ele lançados em rosto à Igreja.
Todavia este apelo só começou a encontrar resposta sob o pontificado de Paulo III (1550-55).
As razões do adiamento eram várias: o Papa Leão X não deu grande importância ao gesto de Lutero;
além disto, havia certa resistência, da parte dos clérigos, a uma reforma dos costumes na Igreja;
ademais a situação geral da Europa era de agitação política. Foi precisamente a agitação religiosa e
política da Europa que cindiu a realização do Concílio em três etapas na cidade de Trento:
A primeira fase (1545-47) definiu mais uma vez o cânon das S. Escrituras e declarou a Vulgata
latina isenta de erros teológicos. Abordou as questões discutidas sobre o pecado original, a
Justificação. os sacramentos, a residência dos bispos nas respectivas dioceses. A peste tendo
começado a grassar em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha. O Imperador Carlos V
tendo-se oposto a esta determinação, foi necessário suspender o Concilio.
A segunda fase continuou em Trento (1551-52) sob o Papa Júlio III (1550-55). Promulgou longa
exposição e cânones sobre a Eucaristia (presença real. Transubstanciação. culto. . .). Algo de
semelhante ocorreu no tocante ao sacramento da Penitência (necessidade, partes essenciais, satisfação)
e ao da Unção dos Enfermos (origem, efeitos, ministro, sujeito...). O Concílio, aos 28/04/1552, foi
mais uma vez suspenso por motivo de pressões políticas.
O Papa Pio IV (1559-1565) reabriu o Concílio aos 18/01/1562. Esta terceira fase reafirmou as
verdades referentes ao S. Sacrifício da Missa, aos sacramentos da Ordem, do Matrimônio, ao
purgatório, à invocação dós santos, às imagens e às indulgências. Promulgou também resoluções a
respeito dos Religiosos e das monjas.
Pela Bula Benedictus Deus (26/01/1564) Pio IV confirmou todos os textos conciliares, dando
por encerrado o Concílio que havia de marcar profundamente o catolicismo dos tempos modernos.
20. Concílio do Vaticano I (1869-70)
Após o Concilio de Trento, a tendência ao esfacelamento dos valores da Idade Média mais e
mais se fez sentir. A Revolução Francesa (1789) significou o brado da razão e do nacionalismo contra
a fé. Seguiu-se-lhe o século XIX, que foi marcado pelo materialismo e o ateísmo fora da Igreja, e
dentro da Igreja pelos ecos das tendências conciliaristas e do separatismo, que solapavam a autoridade
papal e a unidade da Igreja. Foram estes fatores que induziram o Papa Pio IX (1846-78), aconselhado
por eminentes figuras do episcopado e do laicato católicos, a convocar o 20 o Concílio Ecumênico para
o Vaticano. A grande assembléia de 764 padres conciliares se reuniu de 8/12/1869 a 20/10/1870,
175 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

tendo por objetivo fazer frente ao racionalismo do século XX, como o Concílio de Trento fizera frente
ao protestantismo do século XVI.
Infelizmente o Concílio foi suspenso (não encerrado, porém) prematuramente por causa do
início da guerra franco-alemã em setembro de 1870. Promulgou, porém, duas Constituições
Dogmáticas de real importância;
- uma, a Dei Filius, sobre a fé católica ensina que Deus se revela através da criação como
também através de Jesus Cristo; por conseguinte, pode ser reconhecido tanto pela razão como pela fé,
as quais não podem estar em desacordo entre si;
- a outra, a Pastor Aeternus, referente à Igreja, definiu a infalibilidade do Pontífice Romano
quando fala ex cathedra sobre assuntos de fé e de Moral.
O Concílio trataria também dos bispos e dos demais membros da Igreja se não tivesse sido
interrompido abruptamente. Tal tarefa haveria de ser a do Concílio do Vaticano II.
21. Concílio do Vaticano II (1962-65)
Como dito, o Concílio do Vaticano l ficou incompleto, deixando em suspenso diversas questões
teológicas e pastorais.
Os Papas desde São Pio X (1903-14) pensaram em reativar os trabalhos do Concílio: todavia as
circunstâncias não favoreciam tarefa de tal envergadura. Foi a coragem do idoso Papa João XXIII -
(1958-63) que convocou o 21° Concílio Ecumênico da história aos 25/01/1961. Este certame foi
inaugurado aos 11/10/1962 sob João XXIII, e encerrado aos 7/12/1965, sob o Papa Paulo VI. Tinha
em mira, de modo geral, realizar o aggiornamento ou a atualização da Igreja numa época em que os
costumes e as mentalidades evoluem com rapidez surpreendente. O alcance deste Concílio foi enorme;
sem perder o contato com a Tradição, os padres conciliares promulgaram dezesseis documentos
(Constituições, Decretos, Declarações), que levaram em consideração os principais temas que se
impunham à reflexão da Igreja. O Concílio teve Índole eminentemente pastoral, isto é, visou à vida
crista e à sua disciplina, em vez de se voltar para definições de fé ou de Moral. A abertura equilibrada
dos documentos conciliares pode ser percebida em seus traços marcantes:
- renovação da Liturgia, que deveria ser celebrada em estilo mais comunitário e acessível aos
fiéis;
- reafirmação, da Igreja como sacramento, estruturado por Pedro e a hierarquia, sem deixar de
responsabilizar, na medida precisa, todo o povo de Deus;
- abertura para os demais cristãos (protestantes, ortodoxos e outros) que não se acham em plena
comunhão com a Igreja de Cristo entregue a Pedro e seus sucessores;
- declaração sobre as religiões não cristas, nas quais os padres conciliares realçaram a existência
de elementos positivos;
- declaração sobre a liberdade religiosa, que significa o direito, inerente a todo homem, de
formar livremente a sua consciência diante de Deus e da fé;
- tomanda de posição da Igreja frente às diversas facetas que o mundo de hoje lhe apresenta:
família. comunidade política, economia, cultura, paz e guerra. . .
Em síntese, pode-se dizer que o Concílio do Vaticano II foi uma das mais significativas
realizações da Igreja nos tempos modernos, portadora de amplas conseqüências (das quais algumas
foram menos felizes em virtude de falsa compreensão dos textos e da mente dos padres conciliares).

CONCLUSÃO
Quatro observações parecem oportunas à margem da história dos Concílios:
1) Os Concílios refletem nitidamente a história da Igreja e seus embates. Foram solenes
assembléias em que a Igreja comunitariamente se voltou para os desafios que a caminhada através dos
tempos lhe suscitava. As decisões dos Concílios, por isto, hão de ser lidas e compreendidas sempre à
luz do respectivo contexto histórico,
2) Os primeiros Concílios eram convocados pelos Imperadores e não pelo bispo de Roma ou o
Papa. A Igreja, em seus primeiros séculos, embora fosse confiada a Pedro, não podia ter governo tão
centralizado como o teve a partir da Idade Média, visto que as comunicações eram outrora difíceis
entre Oriente e Ocidente. Contudo, para que as definições dos Concílios tivessem autoridade, foi
sempre necessário que o bispo de Roma as aprovasse e confirmasse. Nenhum Concílio tem poder de
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 176

decisão sem a participação e o apoio do Papa, ainda que esta aprovação lhe seja dada depois de
realizado o Concílio.
3) A teoria conciliarista, que pretendia estabelecer os Concílios acima dos Papas, não
representava o pensamento tradicional da igreja e, por isto, não prevaleceu.' Violava o conceito de
Igreja, sacramento e dom de Deus, em favor da concepção de Igreja, sociedade meramente humana ou
"república".
4) Quem estuda a história dos Concílios (infelizmente a que vai proposta nestas páginas, teve de
ser resumida ao extremo), tem a ocasião de reconhecer a ação de Deus entre os homens. A Igreja
subsiste até hoje não por causa dos valores dos homens que a integram (estes valores existiram e
existem, sem dúvida!), mas por causa da presença eficaz de Deus que a sustenta através dos séculos.

SUMÁRIO
ESCOLA “MATER ECCLESIAE” ............................................................................................................. 1
MÓDULO 1: A IGREJA NASCE ............................................................................................................. 4
Lição 1: O ambiente .................................................................................................................................. 4
Lição 2: Jesus e a Igreja ............................................................................................................................ 6
MÓDULO 2: OS APÓSTOLOS E A PROPAGAÇÃO DA IGREJA ...................................................... 7
Lição 1: O Apóstolo São Pedro ................................................................................................................ 7
Lição 2: O Apóstolo São Paulo ................................................................................................................. 7
Lição 3: A expansão do Cristianismo nascente ........................................................................................ 9
MÓDULO 3: OS PRIMEIROS ESCRITORES CRISTÃOS .................................................................. 9
Lição 1: Os Padres Apostólicos .............................................................................................................. 10
Lição 2: O combate escrito aos cristãos .................................................................................................. 10
Lição 3: Os Apologetas........................................................................................................................... 12
MÓDULO 4: AS PERSEGUIÇÕES......................................................................................................... 12
Lição 1: Fatores positivos ....................................................................................................................... 12
Lição 2: Fatores negativos ...................................................................................................................... 13
Lição 3: A luta sangrenta ........................................................................................................................ 14
MÓDULO 5: IGREJA E IMPÉRIO NO SÉCULO IV ....................................................................... 15
Lição 1: Constantino e a Paz de Milão ................................................................................................... 15
Lição 2: A época constantiniana ............................................................................................................. 17
Lição 3: Juliano o Apóstata (361-3)........................................................................................................ 17
MÓDULO 6: IGREJA E IMPÉRIO NOS SÉCULOS IV/V ............................................................. 18
Lição 1:... até o fim do século IV............................................................................................................ 18
Lição 2: O Século V................................................................................................................................ 19
Lição 3: A ação evangélica da Igreja ...................................................................................................... 20
MÓDULO 7: A IGREJA E OS POVOS BÁRBAROS ......................................................................... 21
Lição 1: O receio dos cristãos ................................................................................................................. 22
Lição 2: Olhar mais otimista ................................................................................................................... 22
Lição 3: A evangelização dos bárbaros .................................................................................................. 23
MÓDULO 8: AS HERESIAS TRINITÁRIAS ..................................................................................... 24
Lição 1: O monarquianismo.................................................................................................................... 24
Lição 2: Arianismo e semiarianismo ...................................................................................................... 25
Lição 3: O Macedonianismo ................................................................................................................... 27
MÓDULO 9: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (I) ....................................................................... 27
Lição 1: O Apolinarismo ........................................................................................................................ 27
Lição 2: O Nestorianismo ....................................................................................................................... 28
Lição 3: O Monofísismo ......................................................................................................................... 29
MÓDULO 10: AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (II) .................................................................. 30
Lição 1: O Henotikón e o Teopasquismo ............................................................................................... 30
Lição 2: Os Três Capítulos ..................................................................................................................... 31
Lição 3: Monergetismo e monotelitismo ................................................................................................ 32
177 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

MÓDULO 11: ORÍGENES E REENCARNAÇÃO ................................................................................... 33


Lição 1: Orígenes e origenismo .............................................................................................................. 33
Lição 2: "Não" à reencarnação................................................................................................................ 34
MÓDULO 12: O RE-BATISMO E O DONATISMO ............................................................................ 36
Lição 1: O Re-batismo ............................................................................................................................ 36
Lição 2: As controvérsias penitenciais ................................................................................................... 37
Lição 3: Os Donatistas ............................................................................................................................ 37
MÓDULO 13: AS CONTROVÉRSIAS SOBRE A GRAÇA .................................................................. 38
Lição 1: O Pelagianismo ......................................................................................................................... 38
Lição 2: A predestinação. O Semipelagianismo ..................................................................................... 40
MÓDULO 14: O MONAQUISMO ............................................................................................................. 41
Lição 1: Origem do Monaquismo ........................................................................................................... 41
Lição 2: O monaquismo no Oriente ........................................................................................................ 42
Lição 3: O Monaquismo no Ocidente ..................................................................................................... 42
MÓDULO 15: O ISLAMISMO E A IGREJA ..................................................................................... 44
Lição 1: A pessoa de Maomé .................................................................................................................. 44
Lição 2: As proposições do Islam ........................................................................................................... 45
Lição 3: A expansão do Islamismo ......................................................................................................... 46
MÓDULO 16: INTRODUÇÃO À IDADE MÉDIA................................................................................. 47
Lição 1: Nome e limites .......................................................................................................................... 47
Lição 2: A Igreja e os povos germânicos ................................................................................................ 48
Lição 3: O ambiente geográfico da Idade Média .................................................................................... 49
MÓDULO 17: A CONTROVÉRSIA DAS IMAGENS ............................................................................ 50
Lição 1: Os inícios da controvérsia ......................................................................................................... 50
Lição 2: A luta ardente ............................................................................................................................ 51
Lição 3: Ecos tardios e fim ..................................................................................................................... 52
MÓDULO 18: A FUNDAÇÃO DO ESTADO PONTIFÍCIO ................................................................ 53
Lição 1: Os precedentes .......................................................................................................................... 53
Lição 2: A criação do Estado Pontifício ................................................................................................. 54
Lição 3: A Consolidação do Estado Pontifício ....................................................................................... 54
Lição 4: Carlos Magno Imperador .......................................................................................................... 55
MÓDULO 19: PAPADO E IMPÉRIO DE 891 A 1003 .................................................................. 56
Lição 1: Observações prévias ................................................................................................................. 56
Lição 2: Fim do século IX; o Papa Formoso .......................................................................................... 57
Lição 3: De 904 a 1003 ........................................................................................................................... 57
MÓDULO 20: A DITA "PAPISA JOANA” ........................................................................................ 59
Lição 1: A estória .................................................................................................................................... 59
Lição 2: A denúncia da falsidade ............................................................................................................ 60
Lição 3: Como explicar? ......................................................................................................................... 61
MÓDULO 21: O CISMA GREGO (SÉC. IX E XI) ....................................................................... 62
Lição 1: As diferenças entre bizantinos e latinos.................................................................................... 62
Lição 2: A ruptura sob Fócio .................................................................................................................. 63
Lição 3: A cisão definitiva em 1054 ....................................................................................................... 64
MODULO 22: O SÉCULO XI. GREGÓRIOVII................................................................................. 65
Lição 1: A primeira metade do século XI ............................................................................................... 65
Lição 2: S. Gregório VII e Canossa ........................................................................................................ 66
MÓDULO 23: INOCÊNCIO III. O APOGEU DO PODER TEMPORAL ........................................ 68
Lição 1: Os antecedentes ........................................................................................................................ 68
Lição 2: O pontificado ............................................................................................................................ 69
Lição 3: O pensamento de Inocêncio III ................................................................................................. 70
MÓDULO 24: O PAPA BONIFÁCIO VIII ........................................................................................ 71
Lição 1: Celestino V, o eremita .............................................................................................................. 71
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 178

Lição 2: Bonifácio VIII — o pontificado ............................................................................................... 71


Lição 3: Avaliação do pontificado de Bonifácio VIII ............................................................................ 73
MÓDULO 25: CLEMENTE V. AVINHÃO E VIENA ......................................................................... 74
Lição 2: O Papa e os Templários ............................................................................................................ 74
MÓDULO 26: O PAPADO E LUÍS IV (1314-47) ....................................................................... 76
Lição 1: João XXII e Luís IV ................................................................................................................. 77
Lição 2: Os Franciscanos e a pobreza ..................................................................................................... 77
Lição 3: O Papado e a Alemanha ............................................................................................................ 78
MÓDULO 27: FIM DO EXÍLIO DE AVINHÃO. O CISMA ........................................................... 80
Lição 1: O fim do Exílio ......................................................................................................................... 80
Lição 2: Os inícios do cisma (1378) ....................................................................................................... 80
Lição 3: O auge do Cisma ....................................................................................................................... 82
Lição 4: O fim do Cisma (1417) ............................................................................................................. 82
MÓDULO 28: OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414-18), BASILEIA (1431-37) E
FERRARA-FLORENÇA (1438-42) ...................................................................................................... 83
Lição 1: O Concílio de Constança (1414-18) ......................................................................................... 83
Lição 2: O Concílio de Basileia (1431-7) ............................................................................................... 83
Lição 3: O Concílio de Ferrara-Florença (1438-42) ............................................................................... 84
MÓDULO 29: OS MOVIMENTOS EM PROL DA POBREZA ............................................................. 86
Lição 1: Movimentos desviados ............................................................................................................. 86
Lição 2: Movimentos ortodoxos ............................................................................................................. 87
MÓDULO 30: AS CRUZADAS (I) ...................................................................................................... 89
Lição Única: Causas da "Viagem da Cruz" ............................................................................................ 89
MÓDULO 31: AS CRUZADAS (II) .................................................................................................... 93
Lição 1: As Cruzadas em resenha ........................................................................................................... 93
Lição 2: Cruzadas: idealismo ou decadência? ........................................................................................ 94
MÓDULO 32: A INQUISIÇÃO (I) .................................................................................................... 96
Lição 1: Antecedentes da Inquisição ...................................................................................................... 96
Lição 2: As origens da Inquisição ........................................................................................................... 97
MÓDULO 33: A INQUISIÇÃO (II) ................................................................................................. 99
Lição 1: Procedimentos da Inquisição .................................................................................................... 99
Lição 2: Avaliação ................................................................................................................................ 101
MODULO 34: SANTA JOANA D’ARC ............................................................................................... 102
Lição 1: A figura de Joana d’Arc .......................................................................................................... 102
Lição 2; Mentalidade do século XV ..................................................................................................... 103
Lição 3: O desfecho da história de Joana.............................................................................................. 104
MÓDULO 35: WICLEF E HUS ........................................................................................................... 105
Lição 1: O Wiclefismo .......................................................................................................................... 105
Lição 2: João Hus.................................................................................................................................. 106
Lição 3: A história do hussismo............................................................................................................ 106
MODULO 36: VISÃO GERAL DA IDADE MODERNA. O RENASCIMENTO............................... 108
Lição 1: Introdução à História Moderna ............................................................................................... 108
Lição 2: Renascimento .......................................................................................................................... 109
MODULO 37: PAPAS DO RENASCIMENTO ...................................................................................... 111
Lição 1: Sixto IV (1471-84).................................................................................................................. 111
Lição 2: Inocêncio VIII (1484-92)........................................................................................................ 111
Lição 3: Alexandre VI (1492-1503) ..................................................................................................... 112
MÓDULO 38: A REFORMA PROTESTANTE (I) ............................................................................ 113
Lição 1: Lutero: evolução das ideias .................................................................................................... 114
Lição 2: As indulgências....................................................................................................................... 114
Lição 3: Lutero e as indulgências ......................................................................................................... 116
MÓDULO 39: A REFORMA PROTESTANTE (II) .......................................................................... 116
179 Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja

Lição 1: Lutero de 1517 a 1546 ............................................................................................................ 116


Lição 2: Avaliação da figura de Lutero ................................................................................................ 118
Lição 3: O Calvinismo .......................................................................................................................... 118
MÓDULO 40: O CISMA ANGLICANO ............................................................................................... 119
Lição 1: Henrique VIII (rei de 1509 a 1547) ........................................................................................ 119
Lição 2: Eduardo VI (1547-53)............................................................................................................. 120
Lição 3: Maria Tudor e Elisabete.......................................................................................................... 121
MÓDULO 41: O CONCÍLIO DE TRENTO (1545-1563) ........................................................... 122
Lição 1: Considerações gerais .............................................................................................................. 122
Lição 2: Os antecedentes do Concílio ................................................................................................... 123
Lição 3: As peripécias do Concílio ....................................................................................................... 123
MÓDULO 42: A INQUISIÇÃO ESPANHOLA ................................................................................... 125
Lição 1: Origem da Inquisição Espanhola ............................................................................................ 125
Lição 2: Procedimentos da Inquisição .................................................................................................. 126
Lição 3: Emancipada de Roma ............................................................................................................. 126
Lição 4: Tomás de Torquemada ........................................................................................................... 127
MÓDULO 43: O PROCESSO DE GALILEU ...................................................................................... 128
Lição 1: O ambiente religioso e científico dos séculos XVI/XVII ....................................................... 128
Lição 2: O processo de Galileu ............................................................................................................. 129
Lição 3: Observações complementares ................................................................................................. 130
MÓDULO 44: BAIANISMO E JANSENISMO ................................................................................... 131
Lição 1: Baianismo ............................................................................................................................... 131
Lição 2: O Jansenismo (1) .................................................................................................................... 132
Lição 3: O jansenismo (2) ..................................................................................................................... 133
MÓDULO 45: GALICANISMO E FEBRONIANISMO ....................................................................... 134
Lição 1: Galicanismo ............................................................................................................................ 134
Lição 2: Febronianismo ........................................................................................................................ 135
Lição 3:0 Sínodo de Pistola .................................................................................................................. 137
MÓDULO 46: A SUPRESSÃO DA COMPANHIA DE JESUS. A REVOLUÇÃO FRANCESA .... 137
Lição 1: A supressão da Companhia de Jesus ...................................................................................... 137
Lição 2: A Revolução Francesa: antecedentes...................................................................................... 138
Lição 3: Revolução Francesa: desenrolar ............................................................................................. 139
MÓDULO 47: PIO VII E NAPOLEÃO BONAPARTE ..................................................................... 140
Lição 1: A ascensão de dois homens .................................................................................................... 140
Lição 2: Acordos e conflitos ................................................................................................................. 141
Lição 3: Novas lutas e desfecho............................................................................................................ 142
MÓDULO 48: PIO IX. A QUEDA DO ESTADO PONTIFÍCIO .................................................. 143
Lição 1: A figura de Pio IX................................................................................................................... 143
Lição 2: O declínio do Estado Pontifício .............................................................................................. 144
Lição 3: Após a queda........................................................................................................................... 145
MÓDULO 49; O CONCILIO DO VATICANO I............................................................................... 146
Lição 1: Os preparativos ....................................................................................................................... 146
Lição 2: O decorrer do Concílio ........................................................................................................... 147
Lição 3; Os Velhos-Católicos ............................................................................................................... 149
MÓDULO 50: DE LEÃO XIII A PIO XI (1878-1939) ......................................................... 149
Lição 1: Leão XIII (1878-1903» ........................................................................................................... 149
Lição 2: Pio X (1903-14) e Bento XV (1914-22) ................................................................................. 150
Lição 3: Pio XI e o Tratado do Latrão .................................................................................................. 152
MÓDULO 51: DE PIO XII AO VATICANO II ............................................................................ 153
Lição 1: Pio XII (1939-1958) ............................................................................................................... 153
Lição 2: João XXIII .............................................................................................................................. 154
Lição 3: O Concílio do Vaticano II....................................................................................................... 155
Escola “Mater Ecclesiae” – História da Igreja 180

MÓDULO 52: A IGREJA E AS MISSÕES ...................................................................................... 156


Lição 1: O Padroado ............................................................................................................................. 156
Lição 2: A evangelização no Brasil Colônia......................................................................................... 157
MÓDULO 53: A IGREJA E A ESCRAVIDÃO ................................................................................. 159
Lição 1: Os índios ................................................................................................................................. 159
Lição 2: Os negros ................................................................................................................................ 160
MÓDULO 54: POMBAL, OS JESUÍTAS E A INQUISIÇÃO....................................................... 162
Lição 1: Pombal e os Jesuítas ............................................................................................................... 162
Lição 2: O Santo Ofício no Brasil......................................................................................................... 163
MÓDULO 55: A QUESTÃO RELIGIOSA (1871-75)................................................................... 164
Lição 1. O início da Questão................................................................................................................. 164
Lição 2: O processo .............................................................................................................................. 166
Lição 3: O fim do conflito .................................................................................................................... 167
MÓDULO 56: OS 21 CONCÍLIOS ECUMÉNICOS (I) ................................................................ 167
MÓDULO 57: OS 21 CONCÍLIOS ECUMÉNICOS (II) .............................................................. 171
CONCLUSÃO ............................................................................................................................................. 175

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