A Pratica Do Jejum PDF
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ISSN 0104-0073
eISSN 2447-7443
DOI 10.25188/FLT-VoxScript(eISSN2447-7443)vXXV.n1.p171-215.BBH.PAB
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Atribuição – Não Comercial – Sem Derivações 4.0 internacional
RESUMO
O jejum é um exercício espiritual que aparece na Bíblia e foi praticado ao longo da história
da Igreja, porém é assunto pouco debatido nas comunidades cristãs atuais, e em torno
dele circulam muitas dúvidas. Embora o jejum esteja presente em diversas religiões, esta
pesquisa focou no seu significado para a fé cristã, na intenção de oferecer respostas às
perguntas sobre este tema a partir de uma perspectiva bíblica. Para tal fim, num primeiro
momento buscou-se apreender a visão que o Antigo Testamento e o Novo Testamento têm
sobre o jejum. Em seguida, fez-se uma análise do jejum ao longo da história da Igreja,
de como acontecia e para quais fins era empregado desde a igreja antiga até a Reforma,
passando pelos monges e monjas do deserto e pelos mosteiros. Por fim, perguntou-se pelo
lugar do jejum na espiritualidade cristã, e em que o jejum diz respeito aos cristãos no
mundo atual.
Palavras-chave: Jejum. Espiritualidade. Ascese. Exercícios espirituais. Teologia prática.
1
Artigo recebido em 30 de janeiro de 2017, e aprovado pelo Conselho Editorial na
reunião realizada em 8 de fevereiro, com base nas avaliações dos pareceristas ad hoc.
2
Bruno Bernardi Hintz é estudante no 5º semestre do curso de Bacharelado em Teologia
na Faculdade Luterana de Teologia – FLT, com sede em São Bento do Sul, SC. E-mail:
bruno.hintz@flt.edu.br.
3
Paulo Afonso Butzke (Dr.) é professor de Teologia Prática na Faculdade Luterana de
Teologia, em São Bento do Sul, SC. E-mail: paulo.butzke@flt.edu.br.
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ABSTRACT
Fasting is a spiritual exercise that appears in the Bible and has been practiced throughout
the history of the Church, but it is little discussed in today’s Christian communities, and
around it many doubts circulate. Although fasting is present in several religions, this
research focused on its significance for the Christian faith, with the intention of offering
answers to questions on this subject from a biblical perspective. To this end, at first it was
sought to apprehend the vision that the Old Testament and the New Testament have on the
fast. Then an analysis of fasting was made throughout the history of the Church, how it
happened and for what purpose it was employed from the old church to the Reformation,
through the monks and nuns of the desert and the monasteries. Finally, we wondered about
the place of fasting in Christian spirituality, and how fasting concerns Christians in today’s
world.
Keywords: Fasting. Spirituality. Ascese. Spiritual Exercises. Practical theology.
INTRODUÇÃO
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ALLMEN, Jean-Jacques Von. Vocabulário Bíblico. 3 ed. São Paulo: ASTE, 2001, p.
266.
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a alma do morto ainda está próxima. O jejum também pode ser associado a ritos
de fertilidade: em Atenas, por exemplo, havia um dia de jejum, chamado de hê
Nestêia, durante o festival de fertilidade no mês da semeadura. Houve ocorrências
de sua prática como defesa contra desgraças, tendo o significado de oferta para
amenizar a ira divina. O potencial terapêutico do jejum, desvinculado da religião,
foi explorado tanto pelos egípcios como posteriormente pelos gregos5. Convém,
inicialmente, saber qual o sentido do jejum especificamente no povo escolhido do
Antigo Testamento.
5
IGREJA METODISTA. Jejum: o caminho da disciplina. [Carta Pastoral]. Disponível
em: <http://www.metodista.org.br/content/interfaces/cms/userfiles/files/documentos-
oficiais/Carta_Pastoral_Jejum.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2016, p. 2.
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o jejum de Daniel acompanha a oração de confissão dos pecados do povo (Dn 9).
A prática do jejum coletivo já é vista no Pentateuco. Os israelitas estavam
obrigados ao jejum apenas em um dia anual, o dia dez do sétimo mês do calendário
judaico, no qual acontecia o Yom Kippur, o Dia da Expiação, conforme se lê em Lv
16.19-21, Lv 23.27-32 e Nm 29.7. Nesses textos, o jejum é apresentado através da
expressão ֶהּנִָע ׁשֶפנ6, geralmente traduzida por “afligir a alma”. Contudo, o número
de dias anuais consagrados ao jejum nacional aumentou no período pós-exílico
para quatro dias (Zc 8.19), que relembram desastres da história judaica7. Ester
9.31 também indica outro dia de jejum regular, que acontece na celebração do
Purim. O jejum coletivo podia acontecer também fora do calendário litúrgico, em
determinadas situações. A nação israelita costumava jejuar em épocas de crise,
como ocasiões da ameaça militar (cf. Jz 20.26, 2 Cr 20.3). O jejum também era
praticado diante de empreendimentos difíceis. Esdras convocou os exilados a
jejuarem por motivo do retorno à terra de Israel (Ed 8.21-23), e Ester também
chamou o povo para o jejum quando iria falar com o rei persa em favor dos judeus,
para que se revertesse o decreto de Hamã (Et 4.16).
Quanto à execução do jejum, percebemos diferentes formas. Foster
afirma que “na Bíblia, a maneira normal de jejuar é abster-se de todo tipo de
comida, sólida ou líquida, mas não de água”8. O jejum pode ser parcial, em que são
evitados alimentos sólidos, mas não se deixa de consumir líquidos, ou, em casos
mais sérios, total, no qual nada é ingerido (Et 4.16). A abstinência permanente de
certos alimentos considerados proibidos não constitui jejum9. Geralmente o jejum
6
Lê-se inah néfesh.
7
DOUGLAS, J. D. (Ed. org.). O novo dicionário da Bíblia. 3 ed. rev. São Paulo: Vida
nova, 2006, p. 657.
8
FOSTER, Richard J. Celebração da Disciplina: o caminho do crescimento espiritual.
2. ed. São Paulo: Vida, 2007, p. 85.
9
ROTHENBERG, F. S. Jejuar. In: BROWN, Colin; COENEN, Lothar. Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova,
2000, p. 1066. DOUGLAS, 2006, p. 657. Porém, o DICIONÁRIO Internacional de
Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, SP: Vida Nova, 1998, p. 1272, indica o
texto de Dn 10.3 como prática de jejum parcial, no entanto, Daniel se abstém apenas
de determinados alimentos, mas ainda assim não é uma abstenção permanente, e sim
temporária. Entretanto, essa privação na alimentação já é citada em Dn 9.3, onde a
palavra jejum aparece. Assim sendo, o ato de evitar determinados alimentos (que não
são considerados proibidos) por certo período de tempo também pode constituir jejum
parcial, dependendo de sua finalidade. No caso de Daniel, essa abstenção foi praticada
com a intenção de voltar-se a Deus, podendo, dessa forma, ser considerada jejum.
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era feito do nascer ao pôr do sol (cf. Jz 20.26, 1 Sm 14.24, 2 Sm 1.12), e podia
durar apenas um dia, como se fazia nos dias anuais de jejum nacional, ou um
período maior, dependendo a situação e finalidade.
Conforme Allmen, “antes de ser prática cultual oficialmente estabelecida,
o jejum é, no A.T., primordialmente ato de piedade individual ou coletiva,
realizada por ocasião da circunstância particular, pessoal ou nacional”10. O jejum,
no sentido veterotestamentário, é uma expressão da fragilidade humana, é ato de
se humilhar diante de Deus, e reconhecendo quem somos perante ele, suplicar
por sua ajuda e perdão. Em muitas ocorrências no Antigo Testamento, o jejum é
maneira de expressar profundo arrependimento e a vontade de retornar a Deus.
Em Joel 2.12 lemos: “Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos
a mim de todo o vosso coração, e isso com jejuns, com choro e com pranto”11.
O povo hebreu jejuou em Mispa para demonstrar o arrependimento pelo pecado
contra Deus (1 Sm 7.6). Também como expressão de arrependimento, o rei Acabe
jejuou após ter sido condenado pelo profeta Elias, pela morte de Nabote (1 Rs
21.27). Diante do anúncio do juízo de Deus pelo profeta Jonas, os ninivitas se
arrependem e demonstram o arrependimento com jejum (Jn 3.4ss). Mesmo quando
o povo jejuava em situações de crise nacional, o jejum era feito para demonstrar
arrependimento, pois os israelitas compreendiam que seu pecado era o causador
de sua desgraça. Uma prática que acompanhava o jejum em muitos casos, como
mais um sinal externo do arrependimento, era a de vestir-se em panos de sacos e
jogar cinzas sobre si (Et 4.3, Dn 9.3, 1 Rs 21.27, Jn 3.5, Sl 69.10-11).
O jejum veterotestamentário não é uma prática feita como método
ascético para libertar a alma do corpo12, não é imposição de castigos para si na
intenção de pagar pelos próprios pecados, mas é em primeiro lugar humilhação
diante de Deus. O jejum não é uma chantagem, uma maneira de forçar Deus a
olhar para quem o pratica, e o jejum por si não tem a capacidade automática de
fazer com que Deus se volte para aquele que jejua (Jr 14.12). Texto bíblico muito
significativo nesse sentido é o de Isaías 58. Ele nos mostra que o povo deturpou o
entendimento do jejum, esquecendo seu verdadeiro propósito (Is 58.3), e afirma
que o jejum sozinho de nada vale se não for acompanhado de um desejo sério de
10
DOUGLAS, 2006, p. 657.
11
BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2006.
12
ALLMEN, 2001, p. 266.
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buscar justiça13.
13
HARTLEY, J. E. צוֹם. In: HARRIS, Laird; ARCHER, Gleason; WALTKE, Bruce.
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1998, p.1273.
14
Leitura dos vocábulos hebraicos: = צוֹםtsôm; = צּוםtsûm.
15
Lê-se néfesh.
16
Lê-se psychê.
17
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007,
p. 33-56.
18
Lê-se anah.
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atitude que envolve o ser humano integralmente. Não é ato unicamente interior,
pois envolve o ser humano na sua corporeidade. Contudo, também não é ato
somente corporal, não é simplesmente privar-se de alimento, mas é abstinência
com finalidades que vão para além das físicas. É o ser humano completo que é
afetado e envolvido de maneira profunda nessa prática.
19
Pronúncia dos vocábulos gregos: nhstei,a = nestéia; nhsteu,w = nestéyo; nh/stij = nêstis.
20
Outros termos que o Novo Testamento utiliza para o jejum é a;sitoj (At 27.33), que
significa “sem alimento”, e avsiti,a (At 27.21), que significa “falta de apetite”, porém
estas são suas únicas ocorrências.
21
KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary of the New Testament. Grand Rapids:
Eerdmans, 1964, v.4, p. 924-925.
22
ROTHENBERG, 2000, p. 1067.
23
Na segunda e quinta-feira conforme ROTHENBERG, 2000. e DOUGLAS, 2006.
ALLMEN, 2001, traz segunda e quarta-feira como dias do jejum.
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O jejum de 40 dias é entendido como uma referência ao jejum de Moisés quando ele
recebe a Lei (Êx 32.28) e da peregrinação de Elias até o Horebe, que durou também 40
dias (1 Rs 19.8). De acordo com Kittel, esse período de jejum é uma confirmação da
messianidade de Jesus Cristo. Cf. KITTEL, 1964, p. 931-932.
25
ALLMEN, 2001, p. 267.
26
Mt 4.2. BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006.
27
ALLMEN, 2001, p. 267.
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únicas menções, 2 Co 6.5 e 11.27, nas quais Paulo apenas cita o jejum como
experiência própria. Em nenhuma passagem o tema jejum é discutido como algo
que as comunidades devessem praticar ou explicando algo sobre o ato, o que dá a
impressão de que, pelo menos nas comunidades helênicas, ele não era observado.
Contudo, isso não significa que as comunidades não jejuassem, conforme Willard,
que entende que “era totalmente desnecessário que Paulo dissesse explicitamente,
no mundo em que ele vivia, que os cristãos deviam jejuar, estar sozinhos, estudar,
dar, etc.28”. Na opinião do mesmo autor “a efetividade de Paulo é inconcebível
sem o uso extensivo do jejum, da solitude e da oração”29. Provavelmente Paulo,
antes de chegar à fé cristã, jejuava dentro do costume do farisaísmo, e está relatado
que ele fez jejum integral enquanto estava sem visão, logo após sua conversão
(At 9.9). Embasando-se ainda nos versículos apresentados de 2 Coríntios, pode-se
afirmar então que Paulo tinha o hábito de jejuar.
O jejum neotestamentário segue na mesma linha do jejum visto no
Antigo Testamento, entretanto, nota-se diferenças. Já no judaísmo ele tem uma
tônica de prática de piedade, a qual é ainda mais presente em Jesus, que tem
uma posição nova quanto ao jejum30 e tira o caráter fúnebre da prática. Isso pode
ser dito especialmente a partir do texto de Mt 6.16-18: é algo que diz respeito
ao relacionamento direto com Deus, portanto não precisa ser notado, dispensa
sinais externos, o desleixo com a aparência, que era próprio do luto. Outro texto
expressivo é o de Lc 2.37, que relata que a profetisa Ana “adorava noite e dia em
jejuns e orações”31. O jejum, portanto, além de expressar arrependimento, pode
expressar adoração. E tal prática segue a mesma linha do Antigo Testamento por
estar sempre associada à oração, tanto de súplica e confissão, quanto na intenção de
obter orientação e render louvor: enfim, de preparar-se para o encontro com Deus.
É subentendido que o Novo Testamento dispensa o jejum no Dia da Expiação,
visto que o sacrifício de Cristo constitui a propiciação definitiva pelos pecados da
humanidade.
28
WILLARD, Dallas. O Espírito das disciplinas: entendendo como Deus transforma
vidas. [S.l.]: Danprewan, [2003?]. Disponível em: <http://nazarenopaulista.com.br/
estudos/O%20Espirito%20das%20Disciplinas%20-%20Dallas%20Willard.pdf>.
Acesso em: 25 fev. 2016, p. 101.
29
WILLARD, [2003?], p. 106.
30
KITTEL, 1964, p. 193.
31
Lc 2.37. BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006.
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32
DIDAQUÉ ou doutrina dos Apóstolos. Tradução do original grego e comentário de
Urbano Zilles. 5 ed. Vozes: Petrópolis, 1986, p. 31.
33
DIDAQUÉ, 1986, p. 62.
34
HIGUET, Etienne. Não comer e não beber como opção da espiritualidade religiosa:
jejum e abstinência nas religiões. In: Estudos de Religião. São Bernardo do Campo,
SP, ano XIX n.28, 2005, p. 106-127[117].
35
KITTEL, 1964, p. 933.
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BUTZKE, Paulo. A jornada da alma pelo deserto: depressão no monaquismo primitivo.
In: VII SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ACONSELHAMENTO E PSICOLOGIA
PASTORAL. Sombras da alma: tramas e tempos da depressão. São Leopoldo, RS:
Sinodal, 2012, p. 17.
37
GALILEA, Segundo. A sabedoria do deserto: atualidade dos padres do deserto na
espiritualidade contemporânea. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 53.
38
A ascese não foi invenção dos cristãos. A vida ascética já era conhecida no hinduísmo
indiano e também praticada por filósofos gregos. Entre os filósofos existia a ascese
chamada dualista (platônica e pitagórica), e tinha por objetivo libertar a alma do corpo;
e a ascese realista dos filósofos cínicos, que era um retorno à vida na natureza. Cf
HIGUET, 2005, p. 108.
39
COLLIANDER, Tito. O Caminho dos Ascetas: iniciação à vida espiritual. Paulinas:
São Paulo, 1986, p. 9.
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40
GALILEA, 1986, p. 58.
41
GALILEA, 1986, p. 59.
42
GALILEA, 1986, p. 58.
43
COLLIANDER, 1986, p. 65.
44
COLLIANDER, 1986, p. 65.
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também cita um Padre do deserto: “Santo Isaac, o Sírio, diz que uma oração em
que o corpo não esteja desconfortável e o coração aflito, permanece embrionária,
sem alma”45. O jejum, portanto, favorece a vigilância espiritual. Colliander chega
a afirmar que o jejum é um dom divino, que Deus deu ao ser humano o “poder
de jejuar”46, e através desse dom, quando posto em prática, ele ganha lucidez de
espírito para perceber a realidade espiritual, e assim tem uma nova perspectiva
para enxergar a vida. Em alguns casos, o jejum era uma forma de economia a fim
de partilhar alimento com os demais47.
Colliander afirma que, inclusive para a ascese monástica, o jejum tem
uma medida correta, e os exageros devem ser evitados, pois prejudicam a saúde
do corpo e da alma, e que não se devem evitar certos tipos de alimentos, pois
toda alimentação é dom de Deus48. Mas Galilea, apresentando o outro lado, diz
que muitas vezes os Padres do deserto praticavam jejum “de maneira excessiva
e às vezes aberrante”49, isso porque nesses casos a prática era compreendida
equivocadamente como ação santificadora por si mesma, e que alguns alimentos
eram considerados maus, como por exemplos as carnes, e por isso eram evitados50.
Ele completa que o jejum tem valor quando praticado por amor e com uma visão
positiva do corpo, e não prejudicial a este.
45
COLLIANDER, 1986, p. 62.
46
COLLIANDER, 1986, p. 66.
47
GALILEA, 1986, p. 58.
48
COLLIANDER, 1986, p. 66.
49
GALILEA, 1986, p. 59.
50
Nesse caso vale o ensino de Jesus expresso em Mt 15.11: “Não é o que entra pela boca
o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem”.
BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006. O alimento consumido pela pessoa não é capaz de
deixá-la automaticamente impura. Os cristãos acabam caindo nos mesmos erros que
Jesus já havia condenado nos judeus.
51
WEISUNG der Väter: Apophthegmata patrum, auch Gerontikon oder Alphabeticum
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gennant. Trier: Paulinus-Verlag, 1980. Foi utilizada a versão alemã da obra por não
haver a versão completa das Sentenças dos Padres do Deserto na língua portuguesa.
Existe uma versão reduzida, com ditos selecionados, porém nesta faltavam as sentenças
sobre jejum utilizadas nessa pesquisa (cf. PALAVRAS dos antigos: sentenças dos
Padres do deserto. São Paulo, SP: Paulinas, 1985.).
52
WEISUNG der Väter, 1980, p. 298, Apophtegmata 919: “Wiederum sprach er: ‘Das
Fasten ist für den Mönch ein Zügel gegen die Sünde. Wirft er es weg, dann erscheint er
als ein geiles Pfeard’”.
53
WEISUNG der Väter, 1980, p. 16, Apophtegmata 8: “Es gibt solche, die Ihren Leib mit
Buβübungen aufgerieben haben. Da sie aber die Unterscheidungsgabe nicht hatten,
haben sie sich von Gott weit entfernt”.
54
WEISUNG der Väter, 1980, p. 295, Apophtegmata 906: “Es gibt eine überspannte
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Askese, die vom Feinde ist. Denn auch seine Schüler üben sie. Wie nun unterscheiden wir
die göttliche, die königliche Askese von der tyrannischen, dämonischen? Offenkunding
durch das Maβ. Alle deine Zeit sollst du eine Norm für das Fasten haben. Faste nicht
vier oder fünf Tage, und brich es nicht die übrige Zeit durch eine Fülle der Speisen.
Denn überall ist die Maβlosigkeit verderbenbringend. Solange du jung und gesund bist,
faste. Es kommt das Alter mit seiner Schwäche. Soviel du kannst, häufe dir einen Schatz
na (geistlicher) Nahrung auf, damit du Ruhe findest, wenn du nicht mehr kannst”.
55
WEISUNG der Väter, 1980, p. 142, Apophtegmata 412: “Wenn ihr in den rechten Weise
durch Fasten Askese übt, dann werdet nicht aufgeblasen; denn wenn ihr euch dessen
rühmt, wäre es besser für euch, Fleisch zu essen. Es nützt dem Menschen mehr, Fleisch
zu essen, als sich aufzublasen und sich groβ zu rühmen”.
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o deserto viver como monge, porém não se contentou com a vida individualizada.
Ele foi o responsável pelo surgimento dos mosteiros: organizou um ambiente
para que os monges partilhassem de uma vida comunitária, orientada por regras56
rígidas bem definidas, baseadas nos mesmos valores do monaquismo eremita57.
No seu catecismo, Pacômio sempre menciona o jejum ao lado da oração, como
instrumentos de luta contra os desejos pessoais indispensáveis à vida monástica58.
A partir de Pacômio, diversas ordens religiosas foram criadas e passaram
a se organizar na vida compartilhada dos mosteiros, cada uma destas com suas
regras próprias. Basílio Magno (330-379) foi bispo de Cesareia, e também
elaborou uma regra para a vida monástica. Nela ele adverte que “qualquer juízo
por própria vontade não é seguro”59, o que também vale para o jejum: ninguém
pode estabelecer por conta própria a medida do seu jejum, mas esta deve ser
determinada pelo superior, e no caso de o monge ter desejo de jejuar mais, deve
primeiro comunicar os motivos a seu superior e então esperar por sua aprovação.
Jejuar mais do que os outros pode gerar motivo para vanglória, por isso é necessária
a liberação de um superior que analise o caso60. Conforme Basílio, o jejum, como
obra de piedade, deve ser feito com empenho e de boa vontade, se não, torna-se
perigoso61.
Bento de Núrsia (480-547) foi o fundador da Ordem dos Beneditinos,
que seguia a regra formulada por ele, e nesta, ele orienta a prática do jejum. Entre
os instrumentos de boas obras que ele cita, está “amar o jejum”62. Ele prescreve
o jejum em toda a sexta-feira63, porém da Páscoa até o Pentecostes ele deve ser
56
Buscou-se no processo de pesquisa resgatar a regra monástica pacominiana, o que,
contudo não foi possível.
57
SÃO PACÔMIO. Disponível em: <http://www.franciscanos.org.br/?p=59886>. Acesso
em: 19 maio 2016.
58
CATECISMO de São Pacômio: catequese a propósito de um monge rancoroso.
Sociedade das Ciências Antigas. Disponível em: <http://www.sca.org.br/uploads/news/
id504/Catecismo%20de%20Sao%20Pacomio.pdf>. Acesso em: 19 maio 2016, p. 2, 3,
5, 9, 10.
59
BASÍLIO Magno. As regras monásticas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983, p. 194.
60
BASÍLIO, 1983, p. 191, 194, 195.
61
BASÍLIO, 1983, p. 192.
62
A REGRA de São Bento: latim - português. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1992,
p. 29, Capítulo 4.
63
Provavelmente seguindo a lógica da morte e ressurreição de Cristo: o jejum da sexta-
feira relembra a morte de Cristo e prepara para a Ceia no domingo, que rememora sua
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O jejum mais intenso poderia ainda servir como castigo para os jovens,
de maneira disciplinar66. Contudo, os doentes estavam dispensados do jejum, e os
mais fracos poderiam inclusive alimentar-se de carne, alimento do qual os demais
deveriam se abster. Quando o mosteiro recebia hóspedes, o jejum deveria ser
rompido por ordem do superior, exceto em datas de jejum consideradas especiais67.
Outra conhecida ordem monástica é a franciscana, fundada pelo frade Francisco
de Assis (1182-1226). Na sua regra, ele também estabelece o jejum semanal na
sexta-feira e em dois períodos determinados no ano:
ressurreição.
64
A REGRA de São Bento, 1992, p. 93, Capítulo 41.
65
A REGRA de São Bento, 1992, p. 107, Capítulo 49.
66
A REGRA de São Bento, 1992, p. 77, Capítulo 30.
67
A REGRA de São Bento, 1992, p. 111, Capítulo 53.
68
BERNARDONE, Giovanni di Pietro di [Francisco de Assis]. Os escritos de São
Francisco de Assis. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982, p. 71. Cf. p. 101, 121.
69
BERNARDONE, 1982, p. 120.
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189
A prática do jejum na espiritualidade cristã
como conversão interior total a Cristo, assim, o jejum é uma prática que colabora
na conversão diária que o cristão deve viver70.
Há um consenso entre as regras monásticas em relação ao jejum. Ele faz parte
da vida compartilhada: os irmãos fazem as refeições juntos, mas também jejuam
juntos. As regras estabelecem dias semanais e épocas do ano para que o jejum seja
feito, mas como um exercício espiritual da vida consagrada, não como pesada
obrigação, tanto que os enfermos, em todos os casos estão dispensados do jejum.
A regulamentação do jejum nas regras não visa impor uma carga ou castigo ao
corpo, mas totalmente do contrário, estabelecer uma medida saudável, no mesmo
pensamento dos sábios do deserto, para que o jejum não venha a ser prejudicial.
70
BECKHÄUSER, Alberto. Comentário espiritual à regra da Ordem Franciscana
secular. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, p. 63.
71
COLLIANDER, 1986, p. 67.
72
A REGRA de São Bento, 1992, p. 89, Capítulo 39.
73
A REGRA de São Bento, 1992, p. 89-92, Capítulos 39 e 40.
74
BERNARDONE, 1982, p. 120.
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190
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
75
HIGUET, 2005, p. 110.
76
IGREJA CATÓLICA. Papa (1978-2005: João Paulo II). Código de Direito Canônico.
12 ed. rev. e ampl. com a Legislação Complementar da CNBB. Loyola: São Paulo,
1983, p. 429.
77
IGREJA CATÓLICA, 1983, p. 553, Cân.1249.
78
IGREJA CATÓLICA, 1983, p. 553, Cân. 1250.
79
IGREJA CATÓLICA, 1983, p. 533, Cân. 1251.
80
IGREJA CATÓLICA, 1983, p. 533, Cân. 1252.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
191
A prática do jejum na espiritualidade cristã
81
LUTERO, Martinho. Catecismo Menor. In: Livro de Concórdia. 6 ed. revisada e
atualizada. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: Ulbra; Porto Alegre: Concórdia, 2006, p.
379.
82
LUTERO, Martinho. Catecismo Maior do Dr. Martinho Lutero. São Leopoldo:
Sinodal/Concórdia, 2012, p. 123.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
192
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
é obra que Deus realiza na pessoa, que deve deixar Deus atuar, o que acontece de
duas maneiras: através do nosso próprio exercício, e através de impulsos alheios.
O jejum, juntamente com a vigília e o trabalho, compõem os “exercícios da
carne”, exercícios que o indivíduo desenvolve na intenção de mortificar os desejos
grosseiros e maus. Portanto este é o verdadeiro propósito do jejum: exercer controle
sobre a petulância da carne. Lutero tece uma forte crítica àqueles que buscam
obter méritos através do jejum. Ele afirma que pessoas praticavam cegamente os
exercícios da carne por crerem que eram obras que por si só concediam muito
mérito, a ponto de prejudicar o corpo. Estes mediam o valor do jejum conforme o
tipo de alimentos, e jejuavam conforme o santo do dia ou o dia da semana. Para
Lutero, “isto não é jejuar, e sim debochar do jejum e de Deus”83.
Lutero também traz a realidade de que havia aqueles que, quando
jejuavam, abstinham-se de um alimento, mas consumiam outros em abundância,
a ponto de inclusive embriagarem-se dentro da prática do jejum. Outros
consideravam uns alimentos melhores que outros, e a carne, por exemplo, deveria
ser evitada. Ilustrando essa situação, Lutero fala que se comer peixe causa mais
petulância do que comer carne, então o peixe é que deve ser evitado. Lutero critica
toda forma de jejum que seja exagerada e prejudicial. Ele afirma que gestantes e
doentes não devem jejuar, e se o jejum deixa a cabeça “doida e amalucada”84 e
deixa o estômago enjoado, deve ser deixado de lado. Quando o jejum ultrapassa os
limites, não é de maneira alguma boa obra, pois o praticante torna-se seu próprio
assassino.
Os alimentos, o dia e a duração do jejum Lutero deixa a critério de cada
um, enquanto que se volte para limitar a carne na sua petulância e não se excedam
as medidas. O que deve determinar o jejum, para ele, é a diminuição ou o aumento
do desejo carnal, visto que o jejum foi instituído para atenuar esses desejos.
Segundo Lutero, “não fosse esse desejo, o comer teria o mesmo valor que o jejuar,
dormir o mesmo que vigiar, ficar ocioso o mesmo que trabalhar, e um seria tão bom
como o outro, sem qualquer distinção”85, e completa que “nos exercícios de jejum,
vigília, trabalho não se deve atentar para as obras em si mesma, para os dias, para
a quantidade ou para o tipo de comida, mas unicamente para o Adão petulante e
83
LUTERO, Martinho et al. O Programa da Reforma: escritos de 1520. 2. ed. São
Leopoldo, RS: Sinodal, 2000, (Obras Selecionadas: 2) p. 141.
84
LUTERO, 2000, p. 141.
85
LUTERO, 2000, p. 141.
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193
A prática do jejum na espiritualidade cristã
lascivo, para que assim se lhe coíba o prurido”86. Fora desse propósito, não existe
necessidade para o jejum. Quando o desejo carnal cessa, também o jejum deve
ser interrompido. Contudo, Lutero alerta para que essa liberdade não seja usada
como desculpa para a preguiça de jejuar quando este é necessário, ou para que
seja interrompido cedo demais. Deve-se ainda ter cuidado para não escandalizar
aqueles que pensam ser pecado não jejuar, mas instruí-los sem arrogância na
compreensão correta.
Lutero vê no jejum o mesmo potencial que viam os Padres do deserto:
o de refrear e controlar os desejos. Ele quer, portanto, esclarecer que o jejum é
uma prática que nos muda enquanto indivíduos, mas nada muda em Deus, não o
força a nada e nem concede mérito diante dele. As críticas de Lutero dirigem-se
diretamente às formas de jejum praticadas no contexto do catolicismo romano
de sua época, desenvolvidas principalmente dentro dos mosteiros. O reformador
quer livrar a prática do jejum de todas as compreensões equivocadas geradas pela
noção medieval de mérito, e evitar que por conta destas as pessoas caiam em
exageros. O jejum tem seu lugar na mortificação dos desejos da carne, mas de
maneira alguma serve para mortificar o próprio corpo. Essa falta de clareza quanto
ao jejum é para Lutero “culpa dos pregadores, de se falar tão superficialmente
sobre o jejum, jamais indicando seu uso correto, sua medida, seu fruto, seu motivo
e sua finalidade”87. Essa citação serve de alerta para as comunidades cristãs atuais,
onde o jejum nem sequer é mencionado.
86
LUTERO, 2000, p. 141.
87
LUTERO, 2000, p. 142.
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194
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
88
MELANCHTHON, Filipe. Apologia da Confissão de Augsburgo. In: Livro de
Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 4. ed. São Leopoldo:
Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1993, p. 215, Artigo XII.143.
89
MELANCHTHON, 1993, p. 215, Artigo XII.142.
90
MELANCHTHON, 1993, p. 215, Artigo XII.143.
91
MELANCHTHON, 1993, p. 231, Artigo XV.22-24.
92
MELANCHTHON, 1993, p. 234, Artigo XV.47. Destaca-se aqui que “esses exercícios
devem ser empreendidos” (grifo nosso), ou seja, seu efeito é positivo quando realizado
na mentalidade correta e não na tentativa de se autojustificar.
93
MELANCHTHON, 1993, p. 234, Artigo XV.45.
94
CALVINO, João. Institutas. v.4. Disponível em: <http://ipuniao.org.br/biblioteca/
calvino_institutas4.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2016.
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195
A prática do jejum na espiritualidade cristã
95
CALVINO, p. 237.
96
CALVINO, p. 234.
97
CALVINO, p. 235.
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196
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
pública. Quando Deus aflige um povo de alguma maneira, ele deve praticar o
jejum de humilhação e penitência, que reconhece o pecado e clama pelo perdão e
favor de Deus, para que cesse a punição. Calvino deixa claro que o jejum associado
à oração (segunda finalidade) não se refere às orações diárias, mas àquelas que
requerem atenção mais séria por tratarem de assuntos mais importantes. Para
confirmar tal informação, ele usa o exemplo de Atos 13.3, ocasião em que Paulo e
Barnabé foram escolhidos para serem enviados.
Calvino resgata o sentido e o propósito bíblico do jejum e o liberta
das superstições da época. Ele destaca a sua função dentro do arrependimento
e na preparação para o encontro com Deus, que acontece na oração – propósito
presente no Antigo e Novo Testamento. É interessante que ele resgata na terceira
finalidade o sentido veterotestamentário do jejum: prática coletiva em situações de
crise nacional, que revela toda fraqueza humana e significa profunda humilhação.
Nisso ele destaca que não é o jejum em si algo de grande importância para Deus,
mas o arrependimento expresso nele é o que faz Deus voltar-se para o povo. Ainda
é importante ressaltar que desde o início de sua exposição sobre o tema, Calvino
enfatiza que é função dos pastores perceber quando é momento de jejuar e exortar
o povo para que coloque o jejum em prática.
98
IGREJA METODISTA, p. 17.
99
FOSTER, 2007, p. 87-88, 92; IGREJA METODISTA, p. 6-7.
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197
A prática do jejum na espiritualidade cristã
100
KITTEL, 1964, p. 934.
101
HIGUET, 2005, p. 109.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
198
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
102
FOSTER, 2007, p. 83-84.
103
MATHIS, David. Fasting for Beginners. August 26, 2015. Disponível em: <http://
www.desiringgod.org/articles/fasting-for-beginners>. Acesso em: 29 jun. 2016. “food
is so ubiquitous that we eat not only when we don’t need to, but sometimes even when
we don’t want to”.
104
WILLARD, [2003?], p. 134.
105
Desde 1990, a IECLB vem desenvolvendo um trabalho de orientação quanto ao je-
jum, e promovendo inúmeras vezes e em diversas localidades Retiros de Jejum e
Desintoxicação. Esses retiros duram em média cinco dias, e tem o propósito de ser
um tempo de descanso e purificação do organismo. Os retiros dão um grande enfoque
no aspecto terapêutico do jejum, e na renovação psicológica e espiritual. Cf. <http://
www.luteranos.com.br/busca-avancada/?palavra_chave=retiro+de+jejum&data_
inicial=&data_final=&expressao=1&conteudo_tipo=0&ambito=1&sinodo=0&paroqu
ia=0&comunidade=0&instancia_nacional=0&nivel_instancia_nacional=0&subnivel_
instancia_nacional=0&identificada_confessionalmente=0&nivel_civil=0&nivel_
ecumene=0&nivel_governamental=0&btnBuscaAvancada=Buscar>. Acesso em 29
jun. 2016.
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199
A prática do jejum na espiritualidade cristã
volta a ganhar sentido num mundo onde a superabundância de bens coexiste com
a extrema penúria”106, e completa que “o juízo atual, que qualifica a ascese de
masoquista e autodestruidora, focalizando sobretudo seus excessos e aberrações,
talvez deixe escapar seu sentido mais profundo”107, que é o rompimento com o
conforto e satisfação em prol de uma realidade maior.
Pudemos perceber que o jejum acompanhou a fé cristã ao longo da
história nos mais variados contextos, portanto, seu lugar não pode ser simplesmente
negado. Não é pelo fato de o jejum ser uma disciplina tão antiga quanto o povo
bíblico, ou até mais, que possa ser considerado como prática ultrapassada que
não deva ter espaço em nossa época. Ainda hoje o jejum quer fornecer enormes
contribuições na espiritualidade cristã, na vida pessoal de fé. Foster, em seu livro
“Celebração da Disciplina”, destaca o quanto disciplinas clássicas, entre elas o
jejum, nos ajudam a romper com o grande mau de nosso tempo: a superficialidade,
que é um problema também no nosso relacionamento com Deus108. Essas práticas
nos impulsionam a buscar o profundo da espiritualidade, a intimidade com Deus.
106
HIGUET, 2005, p. 107.
107
HIGUET, 2005, p. 107.
108
FOSTER, 2007, p. 29
109
FOSTER, 2007, p. 37.
110
FOSTER, 2007, p. 36.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
200
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
111
FOSTER, 2007, p. 85.
112
FALWELL, Jerry. O jejum bíblico. Venda Nova, MG: Betânia, [19--], p. 27.
113
Mt 6.16-18. Jesus critica o jejum feito com o objetivo primário de ser notado e obter
reconhecimento pela própria justiça e piedade, assim como era comum entre os fariseus.
A crítica de Jesus reside na intenção, não no jejum enquanto tal, que não é descartado
pelo Novo Testamento.
114
FOSTER, 2007, p. 92.
115
FOSTER, 2007, p. 92.
116
Cf. Is 58. O texto bíblico já advertiu contra a ideia de que o simples fato de praticar
jejum não influencia Deus, transparecendo que essa compreensão errada há muito
tempo já existiu. Portanto, esse texto ainda deve servir de alerta para todo aquele que
pretende praticar o jejum.
117
FOSTER, 2007, p. 92. Cf. Lc 2.37. O texto bíblico relata que a profetiza Ana adorava
a Deus através do jejum (associado à oração, ou seja, com finalidade espiritual). O
autor propõe que o jejum seja praticado nesse ânimo. Melanchthon critica os “jejuns
instituídos não para refrear a carne, mas para que por essa obra seja tributada honra
a Deus” (MELANCHTHON, 1993, p. 215, Artigo XII.143). Porém tal crítica não se
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
201
A prática do jejum na espiritualidade cristã
aplica a essa intenção do jejum sugerida por Foster. O culto através do jejum criticado
por Melanchthon é o culto justificante (cf. MELANCHTHON, 1993, p. 231, Artigo
XV.24; p. 234, Artigo XV.47). Os reformadores luteranos não instituíram nenhuma
outra finalidade no jejum, como a da adoração, devido à sua intenção de livrar a
igreja de concepções equivocadas quanto à salvação. Portanto, o jejum pode ser, sim,
praticado para cultuar e justificar a Deus, se isso acontece sem a intenção de obter
crédito para com Deus.
118
KITTEL, 1964, p. 932. “Fasting is service of God. It is a sign and symbol of the
conversion to God which takes place in concealment.”
119
HIGUET, 2005, p. 119.
120
HIGUET, 2005, p. 119.
121
CHAN, Francis; PLATT, David. Foreword to the New Edition of ‘A Hunger for
God’. Mai 6, 2013. Disponível em: <http://www.desiringgod.org/articles/foreword-
to-the-new-edition-of-a-hunger-for-god>. Acesso em 29 jun. 2016. “More than our
stomachs want food, our souls want you”.
122
FOSTER, 2007, p. 93.
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202
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
Jejum é, então, uma busca radical por Deus: abre-se mão das coisas que são
essenciais à sobrevivência do corpo, declarando que o sustento verdadeiro está em
Deus. Nas palavras de Kivitz, “o jejum é uma forma de lembrar nossa consciência
de que existe uma realidade mais importante do que a própria sobrevivência. O
jejum é um passo em direção a algo mais importante do que permanecer vivo”125.
E é por conta dessa busca intensa, que afirma que Deus é a maior necessidade do
ser humano, que ele é glorificado no jejum. É preciso destacar ainda que o jejum é
uma busca tão profunda porque ele rompe com a superficialidade da oração, revela
uma oração sincera, na qual o indivíduo está física e existencialmente envolvido.
123
Cf. Mt 4.4. Retomando palavras do Antigo Testamento, de Dt 8.3, Jesus demonstra,
nessa situação de fome e tentação, que a Palavra de Deus é sustento essencial, pois não
é somente do alimento que o homem precisa para viver, mas também das palavras que
provêm de Deus; as Escrituras fornecem sustento para a vida.
124
WILLARD, [2003?], p. 166.
125
KIVITZ, Ed René. Talmidim: o passo a passo de Jesus. São Paulo: Mundo Cristão,
2012, p. 73.
126
Cf. At 13.2-3.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
203
A prática do jejum na espiritualidade cristã
quando queremos ser edificados. Também nos momentos de crise pessoal estamos
permitidos a jejuar, assim como o salmista, e inclusive nas crises nacionais, tão
frequentes à nossa geração, podemos, enquanto Igreja cristã, jejuar, assim como
o povo israelita o fez. E o jejum sempre terá efeitos, mudará a pessoa do jejuador.
Sendo assim, foram listados e expostos alguns desses resultados do jejum.
127
WILLARD, [2003?], p. 165.
128
FOSTER, 2007, p. 93.
129
WILLARD, [2003?], p. 167.
130
HIGUET, 2005, p. 121.
131
Fp 3.19: “O destino deles é a perdição, e o deus deles é o ventre, e a glória deles está na
sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas” (grifo nosso). BÍBLIA
de Estudo Almeida, 2006.
132
O autocontrole, ou domínio próprio (na versão bíblica de Almeida), é um fruto que o
Espírito Santo produz, cf. Gl 5.23. O jejum, nesse caso, é como Foster disse: um meio
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
204
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
3.2.2 Humildade e fé
Jejuando, “adquirimos a consciência de nossas necessidades, limitações
e fragilidades humanas”133. É este o sentido do jejum veterotestamentário,
especialmente quando era acompanhado de vestes de pano de saco e cinzas.
Aquele que jejua admite sua fraqueza e reconhece que precisa de Deus, e quando
se admite ser dependente, não há espaço para o orgulho. E porque sabe das
próprias necessidades e de seus limites, o jejuador entrega-se completamente aos
cuidados de Deus, esperando dele a provisão, confiando totalmente nele e assim
desprendendo-se das preocupações menores. O jejum, conforme Willard, “ajuda
a suportar privações de todos os tipos. Jejuando, chegamos ao ponto de arrostar
as privações com facilidade e alegria”134, isso porque o orgulho não é ferido pela
privação, porque não há mais a pulsão por possuir e porque confia-se em Deus.
O jejum coloca o ser humano em seu lugar e o ensina a depender do sustento de
Deus.
para receber a graça (cf. FOSTER, 2007, p. 36.), para o Espírito frutificar na vida do
seu praticante.
133
IGREJA METODISTA, p. 8.
134
WILLARD, [2003?], p. 167.
135
IGREJA METODISTA, p. 8; FOSTER, 2007, p. 94.
136
HIGUET, 2005, p. 126.
137
MATHIS, David. Sharpen Your Affections with Fasting. June 4, 2014. Disponível
em: <http://www.desiringgod.org/articles/sharpen-your-affections-with-fasting>.
Acesso em: 29 jun. 2016. “ability, with the help of the Holy Spirit, to focus our feelings
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
205
A prática do jejum na espiritualidade cristã
de se impor sobre os outros. O autor afirma que esse jejum de injustiça substitui
o espírito egoísta do mundo pelo espírito de fraternidade e partilha e abre espaço
para relacionamentos mais profundos e verdadeiros. Entretanto, Cardonell parece
descartar o jejum como abstinência de alimento, o que não é nosso propósito.
Afirma-se, contudo, que o deixar de se alimentar como jejum cristão conduz a esse
jejum de injustiça, que está intimamente relacionado com o item acima comentado,
pois abster-se de praticar o mal e causar prejuízo ao próximo é intrínseco à nova
visão em relação aos outros, pois se volta a considerar a pessoa alheia, não apenas
a si mesmo. Tal assunto confirma que o jejum sempre adquire expressão externa.
143
BUTZKE, Paulo Afonso. Espiritualidade. In: FILHO, Fernando Botelho (org.). Di-
cionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE. 2008, p. 387.
144
HIGUET, 2005, p. 126.
Vox Scripturae – Revista Teológica Internacional – São Bento do Sul/SC – vol. XXV – n. 1 – jan-abr 2017 – p. 171-215
207
A prática do jejum na espiritualidade cristã
Embora a Bíblia fale muito de jejum, ela não traz orientações práticas
de como jejuar. Isso acontece porque, de acordo com Foster, o jejum “era tão
comum que ninguém precisava perguntar o que comer antes do jejum nem como
quebrar o jejum ou ainda como evitar as tonturas enquanto jejuava – todos sabiam
as respostas”145, isso porque o jejum, assim como outras disciplinas espirituais,
estavam presentes na prática diária e incorporadas na cultura. Justamente nesse
quesito de como executar o jejum existem muitas dúvidas que impedem o
indivíduo de jejuar, por não saber qual a maneira certa de proceder. Perdeu-se o
hábito de jejuar, e como consequência surgiu uma grande ignorância quanto ao
assunto. Inclusive, existe pouco material que forneça informações bem práticas.
Esse tópico, reunindo os conhecimentos encontrados, quer oferecer orientações
simples para guiar a ato do jejum.
Como não existem leis bíblicas que ordenem o jejum regular e determinem
períodos ou duração, estamos livres para jejuar em qualquer dia. A duração do
jejum também pode variar, porém Falwell recomenda que seja estabelecida
previamente146. O que Foster enfatiza é que o jejum deve seguir uma progressão
sensata, a fim de não prejudicar o organismo e permitir que ele se habitue aos
poucos com a falta de alimento. Por isso, Foster aconselha iniciar com um jejum
parcial de vinte e quatro horas, entre um almoço e outro, de maneira que não
sejam feitas apenas duas refeições principais. Nessa fase, os líquidos podem ser
ingeridos, e sucos de frutas frescas são ideais. Mathis também recomenda que os
primeiros jejuns sejam “jejuns de suco”, ou seja, consumindo apenas água e sucos,
pois os sucos naturais fornecem açúcar e nutrientes para que o corpo seja mantido
em funcionamento, sem que o corpo deixe de sentir os efeitos da falta de alimento
sólido147.
145
FOSTER, 2007, p. 32.
146
FALWELL, [19--], p. 29.
147
MATHIS, 2015.
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208
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
Depois de algumas vezes realizado com sucesso, o jejum de vinte e quatro horas
pode ser completo, ingerindo-se somente água. O desconforto resultante deve ser
ignorado, pois não é fome de verdade, apenas o estômago que está habituado a
emitir sinais de fome em momentos determinados, porém o jejuador deve exercer
domínio sobre seu estômago148. Quem determina o tempo de duração, na verdade,
é o jejuador. Existem outros períodos que podem ser usados para o jejum de
um dia: o jejum pode ser feito desde o amanhecer até às quinze horas, bebendo
apenas água, como faziam os metodistas, ou desde o amanhecer até o anoitecer,
sendo encerrado em uma refeição noturna. O jejum total, abstendo-se de qualquer
ingestão, até mesmo de água, pode ser feito, mas em períodos curtos, pois o corpo
humano não pode permanecer mais do que três dias sem água.
Falwell dá sua ênfase no que fazer enquanto se está em jejum. Deve-se
reservar um tempo maior à oração, começando com o arrependimento e o pedido
de perão, sentido que vem desde o Antigo Testamento. É importante também fazer
uso das Escrituras: ler trechos longos e memorizar versículos-chave, e meditar em
cima destes149. Foster recomenda que o tempo que seria gasto com as refeições
seja ocupado com a oração150. Contudo, o que se come antes de jejuar e como
quebrar o jejum é tão importante quanto saber o que fazer durante o jejum. Não
se deve comer em maiores quantidades antes de jejuar com o objetivo de “estocar
energias”, mas a última refeição deve ser leve. Para jejuns mais longos, convém
não consumir chá e café nos dias anteriores a fim de evitar dores de cabeça.
Deve-se ter enorme cuidado na quebra do jejum, pois o corpo está “vazio”.
Ele deve ser rompido com refeições leves e em pequenas porções, preferencialmente
com frutas e vegetais. Os alimentos gordurosos, muito doces, ricos em amido,
salgados ou com temperos fortes devem ser evitados. É imprescindível comer
devagar, fazendo maior uso da mastigação, e beber bastante água. O rompimento
não deve ser brusco nem na alimentação, nem na espiritualidade, de acordo com
Falwell. O jejum deve ser quebrado com o serviço ao próximo, louvor e comunhão
de mesa com Cristo, agradecendo a dádiva do alimento151.
Dependendo da situação, o indivíduo que já tem certa experiência no
jejum pode jejuar por períodos mais longos. Foster fala que o ideal seria entre
148
FOSTER, 2007, p. 94-95.
149
FALWELL, [19--], p. 29-32.
150
FOSTER, 2007, p. 95.
151
FALWELL, [19--], p. 33-36.
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três e sete dias. Os primeiros três são mais difíceis, por causa de o corpo estar se
livrando de toxinas acumuladas. Surgem sintomas desagradáveis como dores de
cabeça, tonturas, mau hálito e dores corporais. Como o corpo fica fraco, é essencial
descansar, porém no sexto ou sétimo dia o corpo volta a ficar mais forte e alerta.
Ainda é possível estender o jejum, que pode durar até quarenta dias sem alimentos
sólidos. Prosseguindo o jejum, no nono ou décimo dia as dores desaparecem e o
bem estar aumenta. Entre o vigésimo primeiro e o quadragésimo dia de jejum, as
dores podem reaparecer, o que significa o princípio da inanição, ou seja, o corpo
já esgotou suas reservas e passa a retirar energia dos tecidos. Nesse momento
o jejum precisa ser interrompido imediatamente. Quando se passa tempos mais
longos em jejum, o cuidado com sua quebra deve ser duplicado, pois o intestino
fica contraído. Em períodos estendidos, a perda de peso é inevitável152.
É necessários estar alerta aos perigos físicos do jejum. Ele pode causar
danos ao organismo se o corpo não estiver preparado para o período proposto.
Nem todos podem jejuar devido a condições físicas. Não devem jejuar aqueles
que possuem doenças como “diabetes, pressão arterial alterada, doenças cardíacas,
úlceras, câncer, hemopatias, doenças pulmonares ativas, gota, doenças do fígado
e dos rins, enfarto recente, doenças cerebrais”153, e ainda gestantes, pessoas de
idade avançada ou em tratamento médico. Na dúvida, é importante procurar
orientação médica. Vale destacar ainda que só devem saber do jejum as pessoas
imprescindíveis, pois, seguindo o ensino de Jesus, não se deve chamar atenção
para o fato de estar jejuando154.
Deve-se levar em conta não apenas os perigos físicos do jejum, que dizem
respeito à saúde, mas também outros perigos que o jejum traz consigo, que são de
natureza espiritual, e devem ser observados para que o jejum não se desvie do seu
propósito. Um deles é o legalismo. As disciplinas espirituais, inclusive o jejum,
têm o propósito de gerar liberdade, não de impor cargas e obrigações rígidas,
portanto, não devem ser transformadas em leis. O risco é que se crie um modelo de
152
Em jejuns longos, a perda de peso varia entre, em média, 400 e 900 gramas por dia. No
início do jejum a perda de peso é maior. FOSTER, 2007, p. 95-99.
153
IGREJA METODISTA, p. 6.
154
Mt 6.16-18.
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210
Bruno Bernardi Hintz e Paulo Afonso Butzke
155
FOSTER, 2007, p. 40. FALWELL, [19--], p. 25.
156
FALWELL, [19--], p. 24.
157
Cf. Jl 2.12-13a: “Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim
de todo o coração; isso com jejuns, com choro e com pranto. Rasgai o vosso coração,
e não vossas vestes”. BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006. O texto bíblico afirma que a
contrição do coração é muito mais necessária do que o sinal externo de rasgar as vestes.
158
GALILEA, 1986, p. 15, 55.
159
Cf. Lc 21.34; Rm 13.13; Gl 5.21; 1 Pe 4.3.
160
Pv 25.16. BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006. Cf. Pv 23.1-2; 20-21.
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glória de Deus”161, sendo assim, a maneira como nos alimentamos glorifica ou não
a Deus. Portanto, observar a medida do alimento é atitude sábia e prudente, que
também glorifica a Deus e gera liberdade.
161
1 Co 10.31. BÍBLIA de Estudo Almeida, 2006.
162
MATHIS, 2014. “It’s for the poor in spirit”.
163
FOSTER, 2007, p. 94.
164
FALWELL, [19--], p. 39.
165
LUTERO, 2000, p. 142.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
166
FOSTER, 2007, p. 87.
167
Cf. Mt 9.14-17; Mc 2.18-22; Lc 5.33-39.
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conclamou, sim, para o jejum, mas não de maneira autoritária. Não há lei para o
jejum, até porque o cristão não precisa de leis e nem está debaixo da lei, mas está
livre para, por amor, viver a fé e buscar a Deus. O cristão tem fome de sua presença
e pode expressá-la através do jejum, realizado, em primeiro lugar, para glorificar
a Deus. Louvamos a Deus ao passo que somos edificados. Não servimos a Deus
no jejum, mas somos servidos fartamente por ele em meio à fome, encontramos
abundância de Palavra.
Que, buscando uma vivência real da espiritualidade, possamos nos portar
com a mesma fé fervorosa que os primeiros cristãos possuíam e declarar: “Nós
jejuamos nesta vida porque cremos na vida que virá”168 (tradução nossa), vivendo
cada dia na espera pelo retorno do nosso Salvador.
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168
MATHIS, 2015. “We fast in this life because we believe in the life to come”.
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