Sergio Bernardes - E-Book
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Sergio Bernardes - E-Book
Vice-Reitor
Pe. Francisco Ivern Simó SJ
Decanos
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz (CTCH)
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)
Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)
SERGIO BERNARDES
DOUTRINA DE UMA CIVILIZAÇÃO TROPICAL
FELIPE GUANAES
Editora PUC-Rio
Rua Marquês de S. Vicente, 225, casa Editora PUC-Rio/Projeto Comunicar
22451-900 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21)3527-1760/1838
edpucrio@puc-rio.br
www.puc-rio.br/editorapucrio
Conselho Gestor
Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando Sá, José Ricardo
Bergmann, Júlio Diniz, Luiz Alencar Reis da Silva Mello, Luiz Roberto
Cunha, Miguel Pereira e Sergio Bruni.
Guanaes, Felipe
CDD: 720.92
Sumário
Prefácio 7
Introdução 9
O humano 12
Um novo pacto com a Terra 17
As células urbanas 22
As artérias e os anéis de equilíbrio 27
A Cidade S.A. 32
O Arquipélago Brasileiro 38
Primeira civilização tropical 43
Concluindo 48
Homem!
Habitante do Planeta Azul,
radicado no Brasil como tantos outros.
És apenas o veículo de uma luz,
nascida na eternidade, de lugares sem tempo.
Tua missão precípua na Terra é buscar e achar o Tempo,
na passagem das horas, minutos e segundos por esse planeta.
Te agarra a cada segundo e deixa o máximo de ti,
novos minutos virão, te dando beleza.
Te agarra a cada hora e deixe-te amar,
novas horas virão, te dando amor.
Homem! Espera! Fica de vigília!
Vê o profundo azul cósmico.
A cada hora! A cada minuto! A cada segundo!
Seja a luz que vem do espaço sem tempo.
Acorda as estrelas que dormem na Terra.
Acorda, homem! Habitante do Planeta Azul,
radicado no Brasil, como tantos outros.
Acorda, Homem!
Sergio Bernardes
(Texto transcrito de um guardanapo num restaurante na Barra da Tijuca nos anos 1980)
Prefácio
Um olhar inédito sobre a prática criativa desse grande arqui-
teto e urbanista – Sergio Bernardes. É isso que Felipe Guanaes Rego
nos oferece nesta obra inspirada em suas memórias de enteado, con-
vivendo diariamente em casa com Sergio dos 13 aos 22 anos. Com
Sergio iniciou sua vida profissional, ainda adolescente, no Labora-
tório de Investigações Conceituais (LIC). Lá, Felipe trabalhou, com-
partilhando da vida criativa do Laboratório por sete anos, como um
“tradutor de ideias para as novas gerações”, função que Sergio lhe
designou.
Este livro é uma bem-sucedida intenção de fixar as memórias afe-
tivas e as muitas histórias de vida que, como o próprio autor alerta,
vão se diluindo com o tempo. É também o resgate da missão que Ser-
gio Bernardes delegou a Felipe quando o levou para trabalhar ofi-
cialmente no LIC.
As vivências e memórias de Felipe ao lado de Sergio são relíquias
únicas, como a poesia de Sergio escrita em um guardanapo, que vão
interessar não apenas a arquitetos e urbanistas que buscam compre-
ender a explosão criativa do Arquiteto, mas também a profissionais
de áreas afins, curiosos sobre os processos criativos ou amantes de
histórias do cotidiano bem contadas.
Felipe nos guia para uma reflexão, junto com Sergio, sua equipe
e amigos, sobre o homem, a sua relação com a natureza, o espaço,
o tempo, o cotidiano, a cidade, mas, principalmente, sobre a utopia
de um mundo melhor, mais sustentável, com um toque de extra-
ordinário, irreal e imaginativo. Até o espaço que abrigava o LIC, o
“navio”, e sua atmosfera, na descrição de Felipe, assume ares de re-
alismo fantástico.
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SERGIO BERNARDES • DOUTRINA DE UMA CIVILIZAÇÃO TROPICAL
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Introdução
Os anos se passam e as histórias vão se diluindo. Algumas ve-
zes, provocações externas nos fazem relembrar. Falo de lembranças
de 35 anos atrás: nos anos 1970, início uma longa relação de vida
com Sergio Bernardes, a partir do seu casamento com minha mãe,
Myriam Guanaes. Comecei a conviver diariamente com Sergio em
nossa casa a partir dos 13 anos de idade. Por volta dos 15 anos, já
influenciado pelas oportunas provocações de Sergio, me interessei
pelo Laboratório de Investigações Conceituais (LIC), um espaço de
ideias, dinâmico e muito vivo. Sem dúvida, aquele ambiente, para
um jovem inquieto como eu, era bastante sedutor. Hoje, percebo que
também a proximidade física de minha casa ao LIC, em torno de 800
metros, num bairro ainda pouco povoado, estimulou o meu envolvi-
mento. A situação fez o homem.
Assim, com algum prazer, acompanhava Bernardes, na parte da
manhã, rumo ao escritório. Várias vezes íamos a pé: o vento do mar
era bem estimulante. Com o status de enteado, pelo enorme afeto
e pela abertura de Sergio, passei a viver o dia a dia do mar de ideias
que existia naquele escritório de forte simbologia, em que os espaços
provocavam comportamentos e sensações.
O envolvimento de forma oficial ocorreu numa dessas cami-
nhadas para o escritório, quando Sergio comentou que estava pre-
cisando de jovens capazes de traduzir os conceitos e as propostas
desenvolvidas pelo LIC para as novas gerações. Nada mais lógico,
considerando que falávamos do além, do porvir, de um futuro me-
lhor. Sergio sempre olhava para a frente. Daí em diante, com uma
função, eu estaria com Bernardes de forma constante, participando
de todo o processo em que o LIC se articulava.
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SERGIO BERNARDES • DOUTRINA DE UMA CIVILIZAÇÃO TROPICAL
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INTRODUÇÃO
Não houve tempo para nada. Esse desenrolar radical de fatos impre-
visíveis e incontroláveis justifica, de longe, e torna importantíssimo o
esforço tanto de Kykah quanto de Thiago para resgatar a história dos
Bernardes.
Sergio era um homem corpulento que ficava pequeno ao lado dos
filhos, Serginho e Claudio. Homens imponentes. Os dois, no meu
olhar, representavam dois lados que compunham Sergio Bernardes.
Claudio era capaz de interpretar o espaço, e Serginho tinha uma rebel-
dia que fazia com que não parasse de se impor novos limites a romper
e novas percepções a experimentar.
Pensando em todos, senti que precisava resgatar minhas lembran-
ças do convívio mais próximo com suas ideias para tentar contribuir
com elementos que possam ajudar a interpretar a grande complexida-
de do arquiteto urbanista Sergio Bernardes e, ao mesmo tempo, cum-
prir de forma singela a função que ele me delegou na década de 1980.
Este pequeno livro está dividido em sete unidades que se articulam
e interagem entre si. Elas pretendem sintetizar as centenas de conver-
sas lideradas por Sergio que pude presenciar, pois eram essenciais ao
processo utilizado por ele no longo período de convívio que tivemos
no LIC, de troca e aprendizado de dimensões de conteúdo.
Essas lembranças se consolidam no agora, em trocas e vivências do
dia a dia...
Sem muitas ambições, espero apenas que este relato pessoal pro-
voque e estimule a revisitação ao trabalho e ao pensamento de Sergio
Bernardes, ainda que, para falar dele, se faça necessário perceber o
espaço que nos rodeava como parte do que estava sendo transmitido.
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1. O humano
A sala de trabalho de Sergio Bernardes ficava num mezanino
suspenso no ar, com vinte metros de comprimento por cinco de lar-
gura, seguro por duas paredes de concreto nas pontas e com duas
laterais de vidro que permitiam visualizar, à esquerda, os andares
abaixo e, à direita, o oceano Atlântico. Uma grande mesa retangu-
lar dominava o ambiente. Sentado na cabeceira, em geral enfurnado
nos desenhos à sua frente ou em empolgantes apresentações de no-
vos conceitos espaciais, ficava Bernardes, um homem forte, corpu-
lento, com uma presença marcante e olhos fraternos que chamavam
para perto, convidavam a uma boa conversa.
O convívio com Sergio me permitiu corroborar algumas visões
bem pessoais que, de alguma forma, se espelhavam nos projetos de
arquitetura e nos conceitos que borbulhavam na década de 1980,
no Laboratório de Investigações Conceituais (LIC). Bernardes criou
algumas simbologias bem definidas que tentavam representar a di-
mensão humana, envolvendo suas forças, fraquezas, coerências e
incoerências dentro de um contexto lógico-espacial peculiar.
As ideias eram apresentadas por Sergio em conversas que se es-
tendiam noite adentro, de forma tridimensional, espacial, com fra-
ses-conteúdo baseadas em alguns conceitos gráficos e croquis com
fortíssima carga informacional. Essas pérolas conceituais não foram
cadastradas, estudadas ou conectadas, perfazendo um conhecimen-
to complexo, disperso em símbolos, sem tradução nem discussão
acadêmica.
Por conta de sua visão e de sua leitura espacial fora do normal,
Sergio tinha quase que ojeriza pelo trabalho linear e fundamentado
desenvolvido no meio acadêmico: a limitação metodológica o impe-
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O HUMANO
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O HUMANO
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2. Um novo pacto com a Terra
Em seus projetos, Sergio utilizava formas para representar ideias e
conceitos. Símbolos se escondiam em ângulos e sombras. O escritó-
rio não fugia ao padrão.
O “Navio”, como um grande retângulo dividido em quatro andares
enterrados na areia, parecia ancorado em frente ao oceano Atlânti-
co, na avenida Sernambetiba, hoje avenida Lúcio Costa, na Barra da
Tijuca, bairro da cidade do Rio de Janeiro.
Na frente do retângulo, havia um grande volume triangular que
ocupava a construção de uma ponta à outra, como se fosse a proa da
embarcação a se projetar em direção ao mar: uma escadaria com uns
sete degraus, que compensava o desnível da rua. O reflexo dos de-
graus na estrutura de vidro fumê da fachada provocava, no olhar de
quem entrava ali, a visão de uma geometria singular: projetados na-
quele espelho, eles eram paredes externas de uma pirâmide virtual.
Porém, se subissem um pouco, os olhos veriam que o triângulo que
dava suporte à sala de comando onde Bernardes trabalhava também
se refletia na parede de vidro, compondo uma segunda pirâmide, in-
vertida.
A percepção da imagem virtual das duas pirâmides superpostas
impactava nossas mentes. As pirâmides, que compunham uma es-
pécie de grande ampulheta num sutil equilíbrio, estavam lá, mas não
existiam. O que significariam?
A primeira pirâmide, resultado da projeção da escada no vidro,
representava a Terra e o seu potencial, síntese que se expressaria
através dos recursos naturais e de sua conversão em benefícios so-
ciais e ambientais para a humanidade. Sua intenção simbólica era e
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UM NOVO PACTO COM A TERRA
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3. As células urbanas
A cidade-ameba, que, em seu crescimento descontrolado, era
um “câncer urbano”, como dizia Sergio, ocupava os espaços de forma
agressiva, comprometendo as características físico-biológicas, cultu-
rais e sociais do espaço.
“O somatório do improviso ganancioso do crescer urbano, agora
mais do que nunca, se mostra inconsistente. Os fins (moradia, se-
gurança, infraestrutura de saneamento, gestão de resíduos, energia,
água e lazer) estão em colapso e, quase de forma sistêmica, o agrava-
mento de um problema agrava e cria outros problemas. Esse aspecto
negativo pode se mostrar positivo quando se acerta. Assim, um acer-
to é estímulo e consolidação de outros acertos.”
Uma avenida perpendicular, entre o mar e o escritório, ia da praia
até a lagoa de Marapendi e, parecendo um fio com oitocentos metros
de comprimento, ligava O Navio a uma figura espacial, de novo sim-
bólica: um enorme quadrilátero, em forma de pirâmide maia, com
uma grande área central aberta.
A pirâmide-edifício se impunha de forma eloquente na paisagem
e O Navio, quase como um pequeno rebocador, representava o ir em
frente. As laterais apresentavam os quatro andares recuados em re-
lação ao andar logo abaixo deles, com os apartamentos, que tinham
duas visões: uma para dentro da geometria e uma para fora, para o
mundo.
O Village Oceânico, desenhado por Sergio, foi o primeiro prédio
a ser construído na Barra da Tijuca, no fim da década de 1960. Du-
rante quatro anos, vivemos na cobertura da lateral leste do edifício,
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4. As artérias e os anéis de equilíbrio
O Navio tinha um porão. O primeiro piso do prédio abrangia a área
inteira do retângulo e estava três metros abaixo do nível da rua que
confrontava o oceano Atlântico. Atrás dele, em função do desnível do
terreno, havia um muro de tijolos de cimento vazados que subia até
o quarto andar e servia de suporte a uma trepadeira de restinga: um
belo jardim vertical com flores roxas entremeadas pela farta folhagem
verde-escura.
Todos os andares superiores que compunham o escritório eram
recuados em relação ao piso inferior, permitindo a passagem da luz.
Três amendoeiras foram plantadas, numa varanda aberta no primei-
ro piso, junto ao muro de tijolos vazados, e elas cresceram e chegaram
a ultrapassar o nível do quarto andar. Um lindo monumento à vida.
Lembro que eu e Pavel Cavalcante, hóspede do escritório e grande
amigo, subíamos ao topo das amendoeiras em dias de tempestade.
Brincadeiras de jovem... Sentíamos a forte oscilação das árvores fin-
cadas ao solo, que se aproximavam e se afastavam dos muros que as
ladeavam, movidas pela fúria do vento do mar. Ao bater em nossos
corpos e provocar a agitação dos galhos em que nos agarrávamos, ele
nos fazia perceber a energia se convertendo em movimento.
Espaços amplos se configuravam no porão do escritório: um gran-
de auditório com os sofás-rampa, desenhados por Sergio, que davam
a impressão de que estavam ocupados mesmo quando vazios; o ar-
quivo de projetos, com mais de três mil itens; uma biblioteca de ar-
quitetura, geografia e meio ambiente; uma cozinha industrial e um
refeitório com amplas portas de vidro; uma varanda arborizada, para
descanso; e uma coleção de maquetes, que tornavam “reais” ou que,
pelo menos, faziam com que eu visse com mais facilidade as linhas e
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5. A Cidade S.A.
O dia a dia com Sérgio Bernardes era muito prazeroso: como
o sentido de sua vida se traduzia num sincero respeito ao outro e na
força que ele movia sintetizada na curiosidade, os momentos eram
espirituosos e cheio de provocações no universo que éramos. Lem-
bro-me de chegar ao escritório cedo, num domingo em que Bernar-
des lá pernoitou, coisa comum nos surtos criativos, e encontrá-lo
sereno em sua mesa, a ouvir, nas alturas, o Bolero de Ravel. O som,
ligado na sala principal em que se encontravam as pranchetas, pe-
netrava todos os cantos, criando uma atmosfera que se harmonizava
com os fachos de luz que se movimentavam através das várias estru-
turas envidraçadas que compunham o escritório.
Figuras mais que ricas lá estavam em dias e horas como esses,
aproveitando o clima da manhã. Manuel, carinhosamente chama-
do de Manuelzinho, participou da construção do escritório. Sergio,
desde sempre, viu muita energia naquele garoto que a vida fez so-
frer já na infância: no sertão, na ingenuidade do tempo, brincava de
se arrastar no rabo de um burro que, descontente, tentou se livrar
da criança e a acertou com um coice na face, afundando seus ossos
e tirando seu sorriso. Bernardes, em seu amor ao outro, contratou
Manuel para trabalhar no escritório ao fim da obra. Depois, o apre-
sentou a um velho amigo cuja casa projetou, o Dr. Ivo Pitanguy, que
operou pelo menos oito vezes, de graça, sua face destruída. Não vejo
há muitos anos aquele então jovem alegre que, além de trabalhar em
atividades gerais no escritório, treinava para a maratona. Minhas úl-
timas notícias sobre ele foram que morava em Nova York e ainda era
um corredor de maratonas.
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6. O Arquipélago Brasileiro
Num sábado de agosto, Sergio me convidou para visitarmos um
grande amigo dele em Niterói, cidade vizinha ao Rio de Janeiro. Lá
fomos, no “besouro verde”: um grande Puma rebaixado e turbina-
do, preto com adesivos verdes nos para-choques fosforescentes. A
velocidade fazia parte da personalidade de Bernardes e, num carro,
ele gostava de correr e sentir a força do motor. Sergio tinha um veí-
culo que comportava esses devaneios, mas era cauteloso, não perdia
a cabeça e o aproveitava com responsabilidade. Talvez pela idade.
Naquela época ele tinha cerca de 58 anos, já uma lembrança calma
do tempo em que corria de verdade, a ponto de ter participado do
IV Grande Prêmio de Portugal, em 1954, dirigindo uma Ferrari 225S.
Apesar do gosto pelo esporte, a alma de arquiteto rapidamente vol-
tou ao controle.
Sergio era um homem arrojado, tinha segurança e coerência para
ser e fazer o que falava. Naquela manhã fria de agosto, cruzamos a
ponte Rio-Niterói e ele, relembrando sua vida, me contou sobre o
tempo que passou a voar num pequeno avião que pilotava sobre
grandes e médios rios do Brasil. Um pouco depois, entenderia o por-
quê das lembranças de Sergio. No decorrer da manhã, o “velho ami-
go” que íamos visitar se mostrou bem mais do que isso. Somos todos
concatenados... Esse amigo, com seus oitenta anos, era um geógrafo
e foi o professor que provocou o Sergio jovem, estimulou sua cons-
trução mental do relevo do país e orientou a provocadora caminhada
aérea pelos rios de nossa nação.
O empolgado professor geógrafo falava na varanda de sua casa
não muito grande, antiga e rodeada por múltiplas árvores frutífe-
ras, ao lado de uma mesa cheia de mapas. Seu assunto: a interco-
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O ARQUIPÉLAGO BRASILEIRO
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7. A primeira civilização tropical
O ano de 1983 foi um ano de fechamento. Sergio estava diante
de um grande desafio: numa sequência de mostras individuais no
Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, em que primeiro viria Lúcio
Costa e em seguida Oscar Niemeyer, ele exporia por final. A tarefa
não seria simples, pois a criatividade e a força de trabalho de Bernar-
des produziram obras e projetos num espectro difícil de categorizar.
Ainda mais complicado seria escolher as obras mais representati-
vas entre os quase três mil projetos em arquivo no escritório. Os sa-
lões do museu, apesar de suas amplas dimensões, comportariam, no
máximo, trezentas peças e mais uma dezena de maquetes. As esco-
lhas teriam que esquecer muitas criações únicas e pessoais, e Sergio
não parava, tanto nos projetos em que se envolvia quanto no seu dia
a dia, sempre redesenhando uma janela, criando um novo conjunto
de cadeiras, como um olho d’água de criatividade que não secava. A
exposição no MAM partiu, então, de diferentes sensibilizações visu-
ais e escalas de representações.
Sergio vivia sob o auspício da dualidade humana que conceitua-
ra: a solidão e a curiosidade. Assim, estava sempre olhando à frente,
buscando provocações que gerassem o necessário estímulo a outra
forma, a outra solução, a outro lado. A exposição no MAM tinha que
ser algo mais do que o passado e do que as obras e projetos: era o
momento de um grande esforço para fechar as amarras de uma uto-
pia viável, o terrismo, um norte que poderia traçar novos caminhos.
Sergio acreditava no homem e na força da natureza; literalmente, via
outro mundo, onde o antagônico se tornaria complementar e possi-
bilitaria o surgimento de um verdadeiro desenvolvimento, em que
conseguiríamos uma sociedade capaz de incluir a natureza e propi-
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Concluindo
Quase de forma ritual, toda terça-feira partíamos da Barra da Tiju-
ca para Copacabana, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde
um antigo apartamento de cobertura abrigava um amplo espaço,
ocupado, de forma dramática, por muitos e muitos anos de história.
Ali, Wladimir Bernardes, pai de Sergio, um patriarca corpulento
como sua descendência, remador do clube Botafogo de Futebol e
Regatas – no que seria sucedido pelo filho – e jornalista crítico e pre-
ciso, transmitiu a ele, em suas primeiras décadas de vida, a sua visão
bem fina dos fatos, da política e das relações humanas.
Pratos e talheres já dispostos, Wladimir ocupava a cabeceira da
mesa, que se encontrava numa ampla sala de jantar. À sua esquerda
ficava Sergio; à direita, minha mãe; e, para o lado, lá estava o meu
lugar. Serginho, neto de Wladimir, também se juntava ao grupo de
quando em quando, e quase sempre sentava ao lado de Sergio. Era
um momento de prazer, de descanso, sem pressões. Wladimir, meio
que só, pois Dona Maria Bernardes, sua eterna companheira, havia
falecido havia um ano, aproveitava nossos ouvidos e costumava tecer
comentários de extrema inteligência e pertinência. Nós aproveitáva-
mos aquele fluir de ideias e ouvíamos. A História conectada, ali pre-
sente, num olhar profundo e bem construído da realidade.
Momento sutil e curioso. Bom ver Sergio de olhos baixos, ouvindo,
respeitoso, seu querido pai, o rio que deságua em outro, numa longa
corrente que, de alguma forma, liga os tempos e cria uma linha, um
sentido. Avô, pai e filho: bom equilíbrio. Era um prazer participar da-
queles momentos.
O humor e as críticas mais ácidas à atualidade eram constantes.
Serginho e Bernardes eram muito agradáveis e faziam a festa. Velho
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CONCLUINDO
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dicalizou seu caminho, mas acho que, no fundo, ele queria ser livre e
voar mais solto: uma grande lição de desapego.
Anos depois, o visitei num apartamento de uns 150 metros qua-
drados que havia sido projetado por ele, em frente à Lagoa Rodri-
go de Freitas. Estava bem, muito estimulado e concentrado, já meio
curvado pela idade avançada, mas com uma vivacidade constante,
o que bastava para ele: não precisava de quase nada para criar e ser
feliz.
Concluindo o que não se conclui, este pequeno livro, meio assim
como sete conversas, espera ter mostrado, além do Sergio gênio cria-
dor, outro, mais normal e de boa convivência, atento e cuidadoso,
mas que, como ele mesmo dizia, nunca havia trabalhado. Tendo feito
só o que gostava, tinha esse fantástico defeito de borbulhar ideias e
não ter medo de acreditar e persistir nelas.
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