Dodi Leal Revista Sala Preta PDF
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DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v19i2p179-196
sala preta
Sala Aberta
Dodi Leal
Dodi Leal
Doutora em Psicologia Social e Licenciada em Artes Cênicas pela
Universidade de São Paulo (USP). Professora do curso Artes do Corpo em
Cena da Universidade Federal do Sul da Bahia
Resumo
Qual o potencial das fronteiras da cena em expor os ditames políticos
vigentes no sistema educacional de um país? Que visualidades da
cena são interditadas na contemporaneidade? De que modo as censu-
ras vividas na cena teatral transgênera no Brasil do século XXI mati-
zam as normatividades de uma pedagogia antidemocrática de Estado?
E, por fim, qual poderia ser o papel da arte da performance na defesa da
educação democrática? Este artigo propõe uma reflexão teórica sobre a
luta por Direitos Humanos no campo da Educação, desenrolada a partir
do olhar sobre os processos recentes de pedagogia teatral e da arte da
performance. Com base no texto de Boal (2009), no qual a Estética é
qualificada como um Direito Humano, pretendemos levantar nos atributos
de liminaridade da arte da performance vetores democráticos que pos-
sam subsidiar as práticas pedagógicas da cena. Para tanto, retomamos o
conceito de liminar, proveniente da Antropologia Social (TURNER, 1974),
e indicamos como sua aproximação ao campo das Artes, por Caballero
(2011), promoveu-lhe expansão e sutileza ao sublinhar que a efemerida-
de do fenômeno cênico liquefaz as tensões políticas em modo de uma
pedagogia fronteiriça. Como indicativos críticos do texto, aventamos três
proposições de liminaridade da cena: a excentricidade, a ética da cora-
lidade votiva e o pensamento situado. Pretende-se perceber de que ma-
neira esses dispositivos visuais da arte da performance estão no bojo do
ataque e da resistência no contexto da defesa da educação democrática.
Palavras-chave: Visualidades da cena, Arte da performance, Liminaridade,
Educação democrática, Pedagogias da cena.
Abstract
What is the potential of the scene boundaries in exposing the political
characteristics prevailing in the educational system of a country?
What visualities of the scene are communicated in contemporaneity?
How does the censorship of the transgender theater scene in 21st
century Brazil affect the norms of an anti-democratic State pedagogy?
What could be the role of performance arts in defending democratic education?
This article analyzes the struggle for human rights in the field of Education
developed by observing the recent processes of theatrical pedagogy and
performance arts. Based on the study by Boal (2009), in which aesthetics
is qualified as a human right, we verify the democratic ways that could
foster pedagogical practices in the scene within the liminality attributes
of performance arts. For such, we use the concept of liminality which is
derived from social anthropology (TURNER, 1974), and indicate how its
approximation to the Arts field by Caballero (2011) promoted its expansion
and subtlety by emphasizing that the temporary nature of the scenic
phenomenon liquefies political tensions through a boundaries pedagogy.
We note three propositions of scene liminality: eccentricity, the ethics of
votive corality and situated thought. The aim is to understand how such
visual devices are central to attack and resistance in the context of the
defense of democratic education.
Keywords: Scene visualities, Performance arts, Liminality, Democratic
education, Scenic pedagogy.
Introdução
3 Aqui o neologismo “pedragogia” tem a força da pedra como destaque semântico visando
indicar o caráter topográfico em que se dão os processos pedagógicos da cena, ou seja,
os condicionantes de espaço.
4 O neologismo “semfronteirismo” se refere à substantivação da perspectiva que lida com
complexos sociais superficialmente, sem relacionar os condicionantes entre as fronteiras
ou nas fronteiras.
5 A expressão “capitaliCISmo” visa notar as correlações entre a cisgeneridade compulsória
e os processos de dominação social de classe a partir das forças econômicas liberais
capitalistas. (LEAL, 2018)
“Uma imagem da/o outra/o é uma contradição. Mas talvez nos reste uma
imagem do encontro com a/o outra/o” (Idem, p. 197). Se a transgeneridade6
é a outra da cisgeneridade7, aqui não nos interessa tratar da excentricidade
enquanto imagem da transgeneridade, mas da excentricidade como imagem
liminar do encontro de pessoas cis com pessoas trans. Nesse sentido, a arte
da performance só pode ser trans na medida em que revela o excêntrico
subjacente e resistente apesar da cisnormatividade. E, importante, isso se dá
mesmo quando performers não estão perceptivos à compreensão da trans-
generidade da performance e, mesmo ainda, que performers se digam cis.
A transgeneridade da performance não é ontológica. É liminar. Está no ato
de decidir a mais aguda presentificação daquilo que excede o centro: por isso
a arte excêntrica é trans; para além do centro cisnormativo. As normas de
gênero não se restringem a uma especulação do que pode para quem des-
fazendo estereótipos do que podem ou não podem homens e do que podem
ou não podem mulheres. As normas de gênero, estas sim, em toda sua
abissalidade estão em ontologizar o que é ser homem e o que é ser mulher
em padrões cis. A performance enquanto periferia de gênero, por sua vez,
é trans não apenas por causar ruído na ontologia cisnormativa, mas porque,
ao despi-la no encontro, traz ao presente a liminaridade das equações entre
expressão e recepção.
O reconhecimento recíproco não pode ser romantizado. De acordo com
Pavis (2017, p. 118), exercendo o paradigma da excentricidade, “o teatro nada
faz senão reproduzir a situação do ser humano frente a seu corpo e ao univer-
so”. Processos recentes de performance, por sua vez, têm elevado os disposi-
tivos de suspensão teatrais aos limites do confronto onde o ser humano não
está apenas diante do seu próprio corpo e do universo, mas já não os aceita
acriticamente. A arte da performance alcança o desafio democrático da edu-
cação exatamente por não parametrizar que há igualdades em processo, mas
que o encontro do cêntrico com o excêntrico promove decisões que precisam
ser testadas. Mas quais os laboratórios do risco? O que a democratização
da excentricidade como modo de saber acaba por nos ensinar não é que
precisamos procurar o perigo, é o perigo que nos procura. O perigo é trans-
gênero. A transgeneridade é perigosa não porque se programou para ser,
mas porque convoca a centricidade cis8 a decidir-se sobre sua performati-
vidade. E a arte da performance tanto não pode ser romantizada quanto
não pode ser parcelada no cartão de crédito. Ela funciona sempre à vista
sobre o que é visto, ainda que não se veja, ainda que não se possa ver e
ainda que não se queira ver.
Não querer ver, no entanto, é um ato performativo de ruptura. Ao reco-
lher-se no cêntrico, a cisgeneridade, que vê a sua transgeneridade latente
equacionada com a transgeneridade expressa na(o) outra(o), recolhe-se ao
centro enquanto zona de conforto e não enquanto uma transgeneridade me-
nor. Talvez uma transgeneridade potencial ou não experimentada, mas muito
que sabe enfrentar o/a outro/a enquanto que outro/a e está disposto a
perder o pé e a se deixar tombar e arrastar por aquele/a que lhe vai ao
encontro: o sujeito da experiência está disposto a se transformar numa
direção desconhecida. (LARROSA, 2016, p. 197)
escândalos, devemos levar em conta quais os vetos que dão sustentação aos
votos. Quando se conclama a ditadura instaurada pelo Golpe de 1964 como
mecanismo de salvação do país de comunistas, essa elaboração rasa de mun-
do, ora sustentada pelo voto, ao mesmo tempo veta manifestações e experiên-
cias que rompem com os processos hegemônicos da branquitude cisgênera.
A elaboração coletiva de sentido, portanto, depende de uma tessitura de
intersubjetividades que cultivam a ideia de quais vidas importam mais de serem
vividas, quais corpos merecem mais trabalho e respeito que outros, quais cor-
pos merecem mais amor e atração que outros. Os regimes ficcionais em voga,
constantemente denunciados pela arte da performance, apresentam ideais de
beleza, ideais de corpo, ideais de espiritualidade, ideais de vida muito espe-
cíficos que sustentam a lógica da dominação de alguns grupos sobre outros.
Podemos dizer que essa relacionalidade é estética, ainda que sejam as obras
de arte contemporâneas avessas a tais favoritismos. Estamos falando da estéti-
ca do cotidiano em sua formulação de experiência pública e de como os ideais
mencionados não apenas informam o projeto de educação do país atual como
são eles mesmos o próprio projeto de educação do país atual.
Diante de tais circunstâncias, elaboramos uma pergunta que talvez nos
aproxime da maior ordem estética de coralidade relacional na atualidade:
como podemos situar-nos enquanto pensamentos que se contrapõem aos
modos de governar não democráticos?
10 Com a expressão “atitude épica” referimos aqui à narratividade e pontuação dos nodos
de uma ação, em associação das atitudes narrativas do teatro épico de Bertolt Brecht
com a noção de desmontagem cênica (CABALLERO, 2014).
criação das ficções de mundo político, mas nos provoca a reinventar a poética
do que somos.
Referências bibliográficas
BOAL, A. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
BOURRIAUD, N. Estética relacional. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
CABALLERO, I. D. Cenários liminares: teatralidades, performances e política.
Tradução de Luis Alberto Alonso e Angela Reis. Uberlândia: EDUFU, 2011.
CABALLERO, I. D. Desmontagem cênica. Rascunhos – Caminhos da Pesquisa em
Artes Cênicas, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 5-12. jan-jun 2014.
COSTA, F. S. da. A poética do ser e não ser: procedimentos dramatúrgicos do teatro
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GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmi-
tir. Rio de Janeiro: Contraponto: EdPUC-Rio, 2010.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução de
Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
LEAL, D. Performatividade transgênera: equações poéticas de reconhecimento re-
cíproco na recepção teatral. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
Recebido em 31/03/2019
Aprovado em 31/10/2019
Publicado em 09/03/2020