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Temas e Problemas de Direitos Humanos PR

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TEMAS E PROBLEMAS DE DIREITOS

HUMANOS, PROTEÇÃO AMBIENTAL E


SUSTENTABILIDADE NA SOCIEDADE
GLOBALIZADA
CAPÍTULO VII

DEILTON RIBEIRO BRASIL


LUIZ GUSTAVO GONÇALVES RIBEIRO
SÉRGIO HENRIQUES ZANDONA FREITAS
Deilton Ribeiro Brasil
Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro
Sérgio Henriques Zandona Freitas
(Organizadores)

TEMAS E PROBLEMAS DE DIREITOS HUMANOS,


PROTEÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE NA
SOCIEDADE GLOBALIZADA

PRIMEIRA EDIÇÃO

MARINGÁ – PR
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Temas e problemas de direitos humanos,


T278 proteção ambiental e sustentabilidade na
sociedade globalizada / organizadores,
Deilton Ribeiro Brasil, Luiz Gustavo
Gonçalves Ribeiro, Sérgio Henrique Zandona
Freitas. – 1. ed. – Maringá, Pr: IDDM,
2018.
659 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:


<https://www.uit.br/mestrado/>
Rosimarizy Linaris
ISBN:Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-
978-85-66789-74-4
1610
1. Direitos humanos. 2. Direito ambiental. 3.
Bens culturais. 4. Inclusão. 5. Meio ambiente. I.
Título.

CDD 22.ed. 344.046

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os Direitos Reservados à

Rua Joubert de Carvalho, 623 – Sala 804


CEP 87013-200 – Maringá – PR
www.iddmeducacional.com.br
iddmeditora@gmail.com
AGRADECIMENTOS

Agradecimento à Instituição de Fomento à Pesquisa


Científica, FAPEMIG, em especial aos Programas de Pós-
Graduação em Direito Stricto Sensu da Universidade de Itaúna-
FUIT, Universidade FUMEC, Escola Superior Dom Helder
Câmara-ESDHC, Universidade Federal do Espírito Santos-UFES,
Universidade do Estado do Amazonas-UEA, Universidade Federal
do Amazonas-UFAM, Centro Universitário do Pará-CESUPA,
Universidade Federal da Bahia-UFBA, Universidade Nove de
Julho-UNINOVE, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro-PUCRio, Universidade Estácio de Sá-UNESA/RJ,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ, Universidade
Federal Fluminense-UFF, Universidade Estadual Paulista-
UNESP/FRANCA, Universidade Federal do Pará-UFPA, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais-PUCMinas, Faculdade de
Direito Milton Campos-FDMC, Universidade Estadual de
Campinas-UNICAMP.
O apoio diretamente realizado pela FAPEMIG –
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
decorre das pesquisas desenvolvidas pelo Professor Doutor Sérgio
Henriques Zandona Freitas, integrante do Programa de Mestrado
em Direito da Universidade FUMEC, com pesquisas em
andamento com os mestrandos em Proteção dos Direitos
Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG.
Copright 2018 by IDDM Editora Educacional Ltda.

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Dr. Alessandro Severino Valler Zenni, Professor da


Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5969499799398310

Prof. Dr. Alexandre Kehrig Veronese Aguiar, Professor Faculdade


de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2645812441653704

Prof. Dr. José Francisco Dias, Professor da Universidade Estadual


do Oeste do Paraná, Campus Toledo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231

Profª Drª Sônia Mari Shima Barroco, Professora da Universidade


Estadual de Maringá (UEM).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0910185283511592

Profª Drª Viviane Coelho de Sellos-Knoerr, Coordenadora do


Programa de Mestrado em Direito da Unicuritiba.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4609374374280294

Profº Drº Fabrício Veiga Costa, Pós-Doutor em Educação.


Professor de Direito da PUC-MG
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7152642230889744
APRESENTAÇÃO

Apresentar este livro “Temas e Problemas de Direitos


Humanos, Proteção Ambiental e Sustentabilidade na Sociedade
Globalizada”, organizado pelos Professores Pós-doutores: Luiz
Gustavo Gonçalves Ribeiro, da Escola Dom Helder de Direito;
Deilton Ribeiro Brasil, da Universidade de Itaúna e Sérgio
Henrique Zandona Freitas da Universidade Fumec é uma honra,
pois, afinal, é obra que trata com riqueza de detalhes o
desenvolvimento humano e a proteção ambiental em um mundo
globalizado, e em crise.
A complexidade e a novidade desse trabalho são
imprescindíveis nas mãos de todos aqueles entusiasmados pelos
direitos humanos, ambiental e pelo desenvolvimento sustentável,
que são discutidos em âmbitos nacional e internacional já que todos
os caminhos do desenvolvimento humano levam ao consumo de
recursos naturais. Ademais, não se pode esquecer de que todos os
seres são consumidores de bens ambientais.
Fazendo uso de teorias estrangeiras, Ribeiro e Ferreira
discorrem sobre a teoria alexyana acerca de princípios e regras para
dialogar sobre o ativismo judicial no Brasil e seus desdobramentos
no que concerne à concretização da proteção ambiental.
Ainda na vertente judicial, Lemos, Cruz e Freitas
enfrentam o assunto sobre a judicialização das políticas públicas no
sistema prisional brasileiro tendo por escopo uma decisão judicial
que os apoia a desenvolver a matéria de forma muito mais eficiente,
e aprofundam sobre a efetividade do cumprimento da pena
privativa de liberdade.
E por falar em liberdade no mundo globalizado no qual
vivemos, é fundamental que a informação, que é libertadora, seja
sempre rápida, fidedigna e revertida em favor também da educação
ambiental. Neste diapasão, Thomas e Pozzetti analisam as regras
jurídicas que estabelecem o direito ao acesso à informação
ambiental, verificam se o acesso é efetivo e se ele contribui para a
educação do cidadão e a construção de um meio ambiente urbano
sustentável. A informação passa a ser fundamental para vida
humana para evitar tragédias, como foi o caso de “Bento
Rodrigues” em Minas Gerais. Por isso, Paulo Velten, de forma
filosófica, desenvolve o capítulo sobre a forma de desenvolvimento
que adotamos, porque o progresso pode ser, na verdade, uma
grande tempestade!
Por sua vez, Ana Beatriz e Loiane Prado desenvolvem o
tema sobre direitos humanos, mais objetivamente sobre a
cidadania universal e sua inadequação quando se trata de pessoas
que romperam o vínculo com seu Estado. O capítulo aborda o
assunto que tem sido muito sensível tanto na Europa como na
América Latina, principalmente no que concerne aos refugiados
ambientais.
De outro giro, e ratificando a transdisciplinaridade do
livro, Pereira discorre sobre as licenças, os impactos ambientais e a
flexibilização da proteção das patentes farmacêuticas tanto no
México quanto na Argentina. Patentes diz respeito, portanto, a uma
questão importante de saúde pública para os países envolvidos.
O olhar para este mundo globalizado revela que existem
muitas crises instaladas. Não se pode pensar em crise pior do que a
escassez de água, ou seja, a falta de água que nos mantém vivos. É
com este mote que Silva Filho e Artur Gomes debatem como se
deve considerar a água: como um bem público ou como um bem
econômico no direito internacional. No Brasil, de forma
paradigmática, a Lei 9.433 de 1997 considerou a água um bem
econômico e também um recurso esgotável. E não distante dessa
problemática, Benacchio e Oliveira tratam da responsabilidade de
empresas transnacionais e o impacto que provocam ao meio
ambiente, sem considerar os direitos humanos envolvidos.
Sendo os direitos humanos um dos tripés deste livro,
Marina F. Santos, de forma paradigmática, delineia os direitos das
mulheres e sua visão crítica quanto à neutralidade do sistema
jurídico brasileiro, realçando o que seja liberdade e igualdade entre
seres humanos. Ainda na vertente dos direitos humanos, Gama faz
questionamentos pertinentes e provocativos sobre a competência
da Justiça Federal em julgamentos relacionados com as questões
ambientais.
Camila Graça e Pedro Curvello, com originalidade,
examinam perfunctoriamente um tema de importância
fundamental para o Brasil: a proteção dos indígenas após a
Constituição de 1988. Para esta análise os autores utilizam os
principais marcos legais e julgados do Supremo Tribunal Federal.
Um tema também de grande relevância, e muitas vezes
esquecido, mas que foi tratado neste livro é o que diz respeito ao
direito de pessoas com problemas de mobilidade física para se
locomoverem nas cidades. Atualmente os administradores das
cidades devem, por meio de políticas urbanas, promover a
acessibilidade; esta é a preocupação de Flávia Piva A. Leite.
Fazendo uma análise da evolução do direito ambiental no
Brasil, Fabrício Costa demonstra se existe uma justiça
intergeracional, ou seja, se as gerações existentes se preocupam
realmente com a proteção do meio ambiente para as gerações
futuras. Pensando também em proteção ambiental para futuras
gerações, Verbicaro e Thury analisam a questão do consumo
humanitário que está relacionada à compatibilização da proteção
do consumidor e meio ambiente, porque são duas faces da mesma
moeda, portanto indissociáveis.
Capítulo desenvolvido com muita relevância é de autoria
de Cléber Almeida e Wânia Guimarães, que trata sobre a reforma
trabalhista e o acesso à justiça, sendo um assunto pertinente
porquanto importante e atual na vida de todos os brasileiros.
Também com a mesma temática sobre acesso à justiça, Cruz e
Brasil destacam a mediação como uma das formas de resolução de
conflitos ambientais. A mediação, com certeza, será a forma mais
rápida para resolução de causas ambientais que aliviará os tribunais
brasileiros.
Finalizando este livro eclético, de temas importantes e
fundamentais para a sociedade, Rafael Costa Freiria traz o tema
interessante sobre a proteção da paisagem comparando Brasil e
Espanha de forma doutrinária e legislativa.
Lançando mão de temas inovadores, os autores, com
clareza, objetividade e profundidade ímpares, expõem uma série de
matérias essenciais em direito ambiental e direitos humanos para
alertar sobre a necessidade de proteger e conservar o meio
ambiente e, ao mesmo tempo, despertar as consciências
adormecidas pelos desenvolvimentos humano e econômico. Há
um verdadeiro convite à profunda mudança de paradigmas afim de
alertar a humanidade das ações que possam ser inapropriadas.
Gostaria de parabenizar aos colegas Luiz Gustavo, Deilton
Brasil e Sérgio Zandona pela organização e produção científica de
nível nacional e internacional de forma rigorosa e competente. Este
livro é de leitura obrigatória para todos da área do Direito,
mormente porque motivará advogados e pesquisadores ao debate
sobre os temas de fundamental importância para o
desenvolvimento de uma justiça ambiental brasileira.

Beatriz Souza Costa


Doutora e Mestre pela UFMG em Direito Constitucional.
Pós-doutorado pela Universidade de Castilla-La Mancha,
Espanha. Pró-Reitora de Pesquisa da Escola Superior
Dom Helder Câmara. Professora da Pós-Graduação no
Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável da ESDHC. Líder do Grupo de Pesquisa
Estratégico da Pan-Amazônia. Professora da Graduação
na disciplina Direito Ambiental.
PREFÁCIO

Sinto-me embevecido pelo convite de prefaciar obra de


tamanha envergadura, que trata de temas complexos e modernos
relacionados à efetividade dos direitos humanos, à tutela do
ambiente e à sustentabilidade. Compartilhamos, afinal, uma
sociedade que, há muito, rompeu barreiras territoriais e espaciais e
passou a vivenciar uma comunitária preocupação com a
sobrevivência e com a dignidade das presentes e futuras gerações.
Manifesto, assim, enorme júbilo pelo produto ora oferecido à
comunidade jurídica nacional e internacional.
Os textos que compõem a obra e que são titularizados, na
condição de autores ou coautores, por doutores e pós-doutores dos
mais diversos Estados brasileiros, seja por serem ecléticos, pelo
relevante conteúdo ou mesmo por constituírem uma plêiade de
temas atuais e muito importantes, encontram-se engajados no
maior e melhor propósito de sobrelevar a dignidade dos seres. Com
igual relevância, foram tratados os direitos fundamentais ao meio
ambiente e à sustentabilidade, entendida esta não apenas em sua já
tradicional acepção de crescimento com justiça social e dignidade
ambiental, mas também de respeito à cultura dos povos e ao espaço
temporal e geográfico necessário para a confecção de políticas
públicas consagradoras, nacional e internacionalmente, do
adequado desenvolvimento.
Diversos foram os programas de pós-graduação em
direito que, por seus professores, colaboraram com a obra e
frutificaram uma sinergia de interesses que revelam, ainda que num
microcosmos da realidade da pesquisa em direito encetada no
Brasil e no exterior, a preocupação da academia com a dignidade
dos seres e com a efetividade dos direitos metaindividuais
necessários à sobrevivência e perpetuação das espécies.
E essa preocupação não se estabeleceu sem motivos, pois,
afinal, os temas que compõem o livro são dignos de muitos
investimentos em pesquisa, porquanto pródigos em importância
na qualidade da vida no globo.
Como um grande desafio à assunção dos direitos
humanos nos planos nacional e internacional, contempla-se a
emancipação do ser humano e a abolição de todo e qualquer
reducionismo que afete a sua dignidade. Nos dizeres de Cançado
Trindade 1, o alcance de tais objetivos advém da própria consciência
jurídica universal, aquela que tem como e por responsabilidade
última a evolução de todo o direito na busca pela realização de
Justiça.

Segundo o autor:

Embora as relações jurídicas reguladas pelo


Direito Internacional dos Direitos Humanos
sejam sobretudo as que contrapõem os
indivíduos como seres humanos ao poder
público, nestas não se exaure a aplicação do
mencionado corpus juris de proteção. Dada a
diversificação das fontes (inclusive as não-

1
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito
internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/esp/407-
490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf. Acesso em: 7 jul.
2018, p. 412.
identificadas) de violações dos direitos
humanos - outro grande desafio
contemporâneo, - o raio de ação do Direito
Internacional dos Direitos Humanos se
estende também à proteção contra terceiros
(grupos clandestinos, paramilitares, grupos
detentores do poder econômico, dentre
outros) - configurando-se o Drittwirkung;
nesta hipótese, pode-se comprometer a
responsabilidade do Estado por omissão (a
responsabilidade internacional objetiva) 2.

No tocante aos desafios impostos a todos, Estado e


comunidades, quanto à tutela ambiental, o maior deles está na
conscientização de que se trata de um bem jurídico difuso e
universal e cuja expansão por tutela deve advir da compreensão de
que sua realidade tradicionalmente abundante começa a manifestar
sua finitude, em flagrante prejuízo à qualidade de vida dos seres,
mormente diante da complexidade da sociedade que hoje
partilhamos.

2
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito
internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/esp/407-
490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf. Acesso em: 7 jul.
2018, p. 412.
Segundo Figueiredo Dias,

assistimos ao advento de uma forma nova de


sociedade, que assumiu o significado de uma
ruptura epocal com um passado ainda recente,
face à ameaça global causada por novos e
grandes riscos, por riscos globais, que pesam
sobre a humanidade: o risco atômico, a
diminuição da camada de ozônio e o
aquecimento global, a destruição dos
ecossistemas, a engenharia e a manipulação
genéticas, a produção maciça de produtos
perigosos ou defeituosos, a criminalidade
organizada dos senhores do crime, individuais
e colectivos – que dominam à escala planetária
o tráfico de armas e de droga, de órgãos e dos
próprios seres humanos –, o terrorismo
nacional, regional e internacional, o
genocídio, os crimes contra a paz e a
humanidade. Com isto, é um choque
antropológico brutal que estamos a sofrer,
devido ao colapso iminente dos instrumentos
técnico-institucionais de segurança. Choque
tornado ainda mais dramático porque talvez
descortinemos os remédios radicais que a
situação exige, mas não temos a coragem (ou
a possibilidade...) nem de os usar, nem de
requerer a sua aplicação aos níveis
comunitários em que nos inserimos. Com
tudo isto é, em definitivo, o valor da
solidariedade que sofre
inapelavelmente.Perante esta situação, ao
pensamento, à ciência, à acção, exige-se que
dêem passos radicais: trata-se de ganhar a
consciência, porventura dolorosa, de que a
crença na razão técnico-instrumental
calculadora morreu. De uma crença filha da
racionalidade que nos iluminou durante três
séculos, trouxe um progresso espiritual e
material espantoso à humanidade e lhe deixou
um legado irrenunciável de razão crítica, de
secularização, de direitos humanos; mas que
ao mesmo tempo a colocou nos becos sem
saída do modelo do homo œconomicus e da
crença ingênua no progresso material
ilimitado. Não é preciso indicar outros
exemplos que o da terrível crise ecológica
actual para oferecer base incontroversa a esta
afirmação. Torna-se indispensável pois, neste
tempo pós-moderno, uma nova ética, uma
nova racionalidade, uma nova política. Porque
em causa está a própria subsistência da vida no
planeta e é preciso, se quisermos oferecer uma
chance razoável às gerações vindouras, que a
humanidade se torne em sujeito comum da
responsabilidade pela vida 3

No tocante à sustentabilidade, o desafio está em


compreendê-la em homogênea sintonia entre economia,
preservação ambiental e justiça social, de forma que essa axialidade
proporcione no presente e projete para o futuro os maiores e

3
DIAS, Jorge de Figueiredo. O papel do direito penal na protecção das
gerações futuras. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.defenseso
ciale.org/02/9.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2018, p. 45-46.
melhores frutos de diminuição de desigualdades e fraternidade de
propósitos entre pujança econômica e consolidação dos direitos
fundamentais. Afinal, como salientam Bacha, Santos e Shaun, com
lastro em Al Gore, sobre a preocupação do capital com o meio
ambiente e a justiça social,

o tema sustentabilidade tem apresentado


crescente interesse entre pesquisadores
acadêmicos. Sua importância se deve
principalmente à atenção despertada face às
mudanças climáticas causadas pela ação
predatória do homem no meio ambiente
causando uma emergência planetária.
Finalmente se reconhece o preço de fatores
como o meio ambiente, o impacto sobre as
comunidades e a longevidade dos
funcionários, o que pode significar uma visão
mais ampla de sustentar a lucratividade da
empresa ao longo do tempo 4.

O livro é, pois, bastante rico, já que ricos e densos são os


temas que aborda. Os textos, correspondem, com responsabilidade
e desenvoltura, os anseios da comunidade acadêmica e dos
profissionais do Direito.
Cumpriram os autores a grande missão que se requer
daqueles que desejam passar ao leitor uma mensagem
independente e educativa no sentido de que estejam todos

4
BACHA, Maria de Lourdes; SANTOS, Jorgina; SHAUN, Ângela.
Considerações teóricas sobre o conceito de sustentabilidade. Disponível em:
<https://www.aedb.br/seget/arquivos/artigos10/31_cons%20teor%20bacha.pdf>
Acesso em: 10 ago. 2018.
conscientes e engajados no propósito atual e futurista de aliar
dignidade, preservação planetária e justiça social.
Brindados serão, dessarte, todos os leitores, a quem desejo
uma frutífera e crítica leitura.

Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro


Pós-doutor em Direito Constitucional pela Universitá
degli Studi di Messina/IT. Doutor e Mestre em Ciências
Penais pela UFMG. Professor de Direito Penal do curso
de Graduação e de Direito Penal Ambiental do curso de
Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara.
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais. Membro do Conselho Científico e
Acadêmico do Ministério Público. Examinador de Direito
Penal e Direito Processual Penal (GT II) do LII, LIII e LIV
Concursos para ingresso na carreira do Ministério
Público de Minas Gerais. Membro Avaliador da Revista
Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São
Paulo, da Revista Brasileira de Ciências Criminais, da
Revista de Direito Público IDP, da Revista do Mestrado
em Direito da Universidade Católica de Brasília e do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Direito - CONPEDI. Editor Adjunto da Revista Direito
Penal, Processo Penal e Constituição. Autor de obras
jurídicas de direito penal, processual penal, criminologia
e direito ambiental.
SUMÁRIO

O ativismo judicial em demandas ambientais e o princípio da


separação de poderes sob a ótica da teoria de princípios e regras
de Robert Alexy.........................................................................22
Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro
Leandro José Ferreira

Direitos humanos, desenvolvimento sustentável, execuções


penais e inteligência artificial...................................................70
Magno Federici Gomes
Izadora Gabriele dos Santos Oliveira

Direitos culturais e epistemologia............................................99


Marcelo Kokke

A judicialização de políticas públicas no sistema prisional


brasileiro face ao princípio da separação dos poderes: uma
análise do Recurso Especial nº 580.282/MS...........................137
Laís Freire Lemos
Daniela Martins da Cruz
Sérgio Henriques Zandona Freitas

O direito à informação ambiental na construção do


desenvolvimento urbano sustentável.....................................164
Carla Thomas
Valmir César Pozzetti
Temporal de aço......................................................................197
Paulo Velten

Vida nua, refugiados ambientais e a desmistificação do cidadão


universal.................................................................................223
Ana Beatriz Silva de Sá
Loiane da Ponte Souza Prado Verbicaro

La dinámica inclusiva del desarrollo tecnológico en las patentes


farmacéuticas. La actualidad mexicana y argentina..............252
Marta Carolina Giménez Pereira

A crise mundial da água: uma análise sobre o cenário atual e os


efeitos de sua gestão global.....................................................285
Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho
Artur Amaral Gomes

Responsabilidade social das companhias transnacionais


enquanto paradigma de proteção da condição humana.......320
Marcelo Benacchio
Jeferson Sousa Oliveira

Direitos humanos das mulheres: críticas feministas à


neutralidade do sistema jurídico............................................350
Marina França Santos
Direitos humanos, Direito Ambiental e competência da Justiça
Federal....................................................................................384
Guilherme Calmon Nogueira da Gama

Reflexões sobre a proteção jurídica dos indígenas 30 anos após


a Constituição de 1988............................................................417
Camila Graça Camatta
Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Cidades acessíveis como instrumento da sustentabilidade...458


Flávia Piva Almeida Leite

Justiça intergeracional: a efetividade das gerações atuais e


futuras na busca pela reciprocidade e solidariedade na
preservação do meio ambiente...............................................496
Carla Aliny Peres Dias
Fabrício Veiga Costa

Consumo humanitário e sustentabilidade ambiental...........527


Dennis Verbicaro
Carolina Thury

A reforma trabalhista na perspectiva do direito humano de


acesso à justiça e do direito a ter direitos...............................557
Cléber Lúcio de Almeida
Wânia Guimarães Rabêllo de Almeida
A aplicabilidade da mediação em conflitos ambientais como
garantia de acesso à justiça.....................................................592
Daniela Martins da Cruz
Deilton Ribeiro Brasil

Tutela da paisagem: perspectivas de proteção à luz do direito


ambiental brasileiro e espanhol..............................................626
Rafael Costa Freiria
O ATIVISMO JUDICIAL EM DEMANDAS AMBIENTAIS E
O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES SOB A
ÓTICA DA TEORIA DE PRINCÍPIOS E REGRAS DE
ROBERT ALEXY

JUDICIAL ACTIVISM IN ENVIRONMENTAL DEMANDS


AND THE PRINCIPLE OF THE SEPARATION OF POWERS
UNDER THE OPTICS OF THE THEORY OF PRINCIPLES
AND RULES BY ROBERT ALEXY

Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro 1


Leandro José Ferreira2

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo trabalhar o


fenômeno do ativismo judicial no Brasil, seus aspectos e
desdobramentos no que tange à busca pela proteção do direito
fundamental ao meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de
vida. Na mesma linha, uma incursão sobre o princípio da separação
de poderes será realizada e abordada como limitador ao citado

1
Pós-Doutor pela Università Degli Studi di Messina, Itália. Doutor e Mestre pela
UFMG. Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado em Direito Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável da ESDHC. Promotor de Justiça em Belo
Horizonte-MG.
2
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Pós-Graduado em Direito Processual pelo IEC – Instituto de Educação
Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrando em
Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior Dom
Helder Câmara – ESDHC. Pesquisador. Advogado sócio da CDG Consultoria
Especializada Ltda.
22
ativismo judicial. Diante da colisão entre os direitos fundamentais
apontados, uma incursão pela teoria de princípios e regras
desenvolvida por Robert Alexy se fará necessária. Para tanto, foram
utilizados, na realização desta pesquisa, o método vertente jurídico-
teórico e raciocínio dedutivo com técnica de pesquisa bibliográfica.
Ao final da pesquisa, pode-se evidenciar que o direito fundamental
ao meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida se
apresenta como princípio de maior peso frente ao princípio da
separação de poderes no que tange a aplicação da teoria de
princípios e regras elaborada por Robert Alexy, pois a proteção
ambiental deve ser devidamente desenvolvida e efetivada no Estado
Democrático de Direito, de modo a objetivar e consubstanciar a
efetivação dos direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Ativismo Judicial; Direitos Fundamentais;


Meio ambiente; Separação de poderes; Princípios e regras.

ABSTRACT: The present study aims to work on the phenomenon


of judicial activism in Brazil, its aspects and consequences in
relation to the search for protection of the fundamental right to the
environment balanced to the healthy quality of life. In the same
vein, an incursion into the principle of separation of powers will be
carried out and approached as limiting the aforementioned judicial
activism. Faced with the collision between the fundamental rights
pointed out, an incursion for the theory of principles and rules
developed by Robert Alexy will become necessary. For this purpose,
the juridical-theoretical approach and deductive reasoning with a
bibliographic research technique were used in this research. At the
end of the research, it can be evidenced that the fundamental right
to the balanced environment to the healthy quality of life presents
itself as a principle of greater weight in front of the principle of

23
separation of powers in what concerns the application of the theory
of principles and rules elaborated by Robert Alexy, because
environmental protection must be properly developed and
enforced in the Democratic State of Law, in order to objectify and
substantiate the realization of fundamental rights.
KEYWORDS: Judicial Activism; Fundamental rights;
Environment; Separation of powers; Principles and rules.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. O ativismo judicial e o princípio da separação de poderes.
3. O meio ambiente como direito fundamental (direito à vida).
4. A teoria de regras e princípios de Robert Alexy.
5. O ativismo judicial para a proteção do meio ambiente e a teoria
de regras e princípios de Robert Alexy.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo trabalhar o princípio


da separação de poderes e o fenômeno do ativismo judicial no
Brasil. O propósito é averiguar se o ativismo judicial poderá ter
prevalência sob o princípio da separação de poderes quando no
enfrentamento de demandas que versem sobre o direito
fundamental ao meio ambiente equilibrado mediante a utilização
da teoria de regras e princípios de Robert Alexy.
Num primeiro momento serão apresentados os conceitos
de ativismo judicial e de separação de poderes, bem como suas

24
nuances e seus desenvolvimentos no Estado Democrático de
Direito.
Após, desenvolver-se-á o que se tem entendido por direito
fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado no Estado
Democrático de Direito. Será realizada uma incursão histórica do
conceito de formação do direito fundamental ao meio equilibrado
à sadia qualidade de vida na esfera internacional e nacional, até
desaguar no conceito de meio ambiente como direito fundamental
à vida.
No quarto tópico será apresentada a teoria dos princípios
e regras desenvolvida por Robert Alexy. Serão abordados o
conceito de normas, de princípios, e de regras segundo essa teoria
e explicado o fenômeno da colisão entre princípios através da
dimensão de peso e o conflito entre regras pela validade da norma.
No quinto item serão condensados todos os temas
expressos nos capítulos anteriores de modo a tentar encontrar uma
possível solução para a seguinte indagação: por meio da teoria de
regras e princípios de Robert Alexy, é possível autorizar um maior
ativismo judicial, mediante o afastamento do princípio da
separação de poderes, para promover a proteção e a concretude do
direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à sadia
qualidade de vida?
Para tanto, foram utilizados na realização deste artigo o
método vertente jurídico-teórico e raciocínio dedutivo com a
técnica de pesquisa bibliográfica teórica documental. A pesquisa se
justifica na medida em que o fenômeno do ativismo judicial vem
permeando debates na esfera acadêmica, doutrinária e

25
jurisprudencial. A discussão vai além, pois o enfrentamento da
questão se faz necessário na medida em que a sociedade anseia por
uma adequada promoção da proteção do direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida, mediante a
implementação de políticas públicas adequadas à concretização
dessa proteção.
Ao final, será reconhecido que, pelo fato de o meio
ambiente equilibrado, o direito à vida e a dignidade da pessoa
humana serem direitos fundamentais conexos e indissociáveis, em
determinados casos concretos, mediante a aplicação da teoria de
princípios e regras de Robert Alexy, mais precisamente no que
tange à colisão entre os princípios, será permitida uma maior
atividade judicial com o objetivo de promover a efetiva e concreta
execução do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à
sadia qualidade de vida, mediante o afastamento ponderado do
princípio da tripartição de poderes.

2. O ATIVISMO JUDICIAL E O PRINCÍPIO DA


SEPARAÇÃO DE PODERES

O debate proposto se estende pela doutrina e pela


academia na busca por uma resolução que venha a ser mais
adequada segundo os postulados constitucionais. O tema é árduo e
requer uma maior análise crítica em desapego às paixões que o
debate sobre os temas propõem em favor das distintas posições.
Inegavelmente, nas últimas décadas, o Poder Judiciário
tem abandonado a esfera de coadjuvante para, em alguns casos, se

26
tornar o ator principal na resolução de temas complexos, árduos e
legitimados pelo ordenamento constitucional vigente.
Quando se fala em Poder Judiciário como protagonista, o
princípio que deve ser analisado é aquele da tripartição de poderes,
que está insculpido na Constituição Federal de 1988 (CRFB de
1988) em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
(BRASIL, 1988).
O princípio da separação dos poderes é princípio de
direito constitucional que fundamenta o Estado Democrático de
Direito, responsável por determinar a tripartição de poderes, que
se desdobra em executivo, legislativo e judiciário, cada qual com
suas atribuições constitucionais. Conforme doutrina abalizada
sobre o tema, é possível apontar as funções de cada poder da
seguinte forma:

Ao Poder Legislativo cabe a função legislativa,


que abrange a edição de regras gerais,
abstratas, impessoais e inovadoras da ordem
jurídica, portanto, as leis. Ao Judiciário
cumpre a função jurisdicional. Sua finalidade
é aplicar o direito ao caso concreto, dirimindo
conflitos de interesse. Por fim, a função
executiva, a cargo do Poder Executivo, resolve
os problemas concretos e individualizados, de
acordo com as leis. Ao Poder Executivo não
cabe somente a execução das leis. Ele abrange
prerrogativas, envolvendo todos os atos e fatos
jurídicos que não tenham caráter geral ou

27
imparcial (CAMARGO; MEYER-PFLUG,
2016, p. 155-156).

Sem o objetivo de esgotar o tema, mas fazendo uma rasa


leitura da história que nos permitirá introduzir ao tema central do
trabalho proposto, é importante evidenciar que foi Maquiavel
quem desenvolveu de forma embrionária a teoria da tripartição de
poderes, conforme evidencia a doutrina:

Foi nessa época que Maquiavel escreveu sua


mais importante obra, “O Príncipe”. Apesar
de ser um manual para a manutenção e o
crescimento do poder de um monarca, o título
também estabeleceu uma espécie de
sistematização do poder: o texto defende um
parlamento (como um Poder Legislativo),
dividindo poderes com o rei (o Poder
Executivo) e um Judiciário independente
(CAMARGO; MEYER-PFLUG, 2016, p. 156-
157).

No entanto, foi Montesquieu o grande divulgador dessa


teoria conforme concebida no modelo atual, portanto, não é
possível tratar o princípio da separação de poderes disposto no
texto constitucional sem cotejar os ensinamentos de seu divulgador
mais assíduo e mais preocupado em assegurar a liberdade dos
indivíduos. “Foi Charles de Montesquieu que, em 1748, estabeleceu
a separação dos poderes tal como se conhece até hoje. Impossível,
pois, tratar do tema sem fazer alusão a esse pensador”
(CAMARGO; MEYER-PFLUG, 2016, p. 157).

28
Nesse mesmo sentido, importante os ensinamentos
delineados por Isabella Saldanha de Sousa e Magno Federici Gomes
(2015):

Por ser um representante do liberalismo


político, Montesquieu preocupava-se com a
garantia da liberdade a partir da
desconcentração do poder político, já que as
funções estatais não deveriam estar
concentradas nas mãos de uma única pessoa.
Deveriam, sim, estar separadas em instituições
e pessoas distintas, sob pena de gerar, como
consequência, a desordem social e o
despotismo no poder político (SOUSA;
GOMES, 2015, p. 30).

Aos desenvolvimentos que se sucederam à teoria da


separação de poderes, o sistema de freios e contrapesos se tornou
grande instrumento na assertiva de que os poderes deveriam ser
harmônicos entre si, “além do critério dúplice de separação
horizontal e vertical dos poderes, Montesquieu foi o responsável
pela sistematização da teoria de freios e contrapesos...” (SOUSA;
GOMES, 2015, p. 33).
Inegável, portanto, considerar a importância do princípio
da separação de poderes como princípio de sustentação do Estado
Democrático de Direito, que deve ser devidamente respeitado e
consubstanciado em prol dos direitos fundamentais, afinal, “na
existência plena do Estado Democrático de Direito, o
funcionamento do Estado depende da existência de poderes
independentes e harmônicos entre si” (FREIRE, 2015, p. 284).
29
Contudo, após anos de debates e discussões, doutrina e
jurisprudência vêm constantemente avançando e sofrendo
modificações interpretativas no sentido de se permitir uma maior
flexibilização entre as atividades atribuídas a cada Poder, com fito
de objetivar mais propagação e respeito aos direitos fundamentais,
no objetivo de garantir a supremacia da Constituição. Desse modo,
evidenciou-se nas últimas décadas a obrigação central do Estado
com o desenvolvimento dos direitos fundamentais, não
importando quais dos poderes venham efetivamente concretizar tal
desenvolvimento.
Portanto, verifica-se um enfraquecimento da separação
rígida das funções dos poderes: “A doutrina da separação rígida
tornou-se, nessa perspectiva, um dos “pontos mortos do
pensamento político, incompatível com as formas mais adiantadas
do progresso democrático contemporâneo”.” (ZANETI JÚNIOR,
2013, p. 48).
Até porque, no Estado Democrático de Direito todo
poder emana do povo, “[...] sendo apenas distribuídas as funções
pelos diversos órgãos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário”
(ZANETI JÚNIOR, 2013, p. 48).
No Brasil, a partir da redemocratização ocorrida com a
promulgação da CRFB de 1988, e principalmente a partir da
Emenda Constitucional 45/04, evidencia-se um enfraquecimento
da separação clássica dos poderes por meio de uma maior atividade
judicial.

30
-Conforme leciona a doutrina:

[...] o ativismo judicial foi conceituado a partir


de um comportamento próprio dos juízes de
se imiscuírem na esfera de atuação política,
especialmente após a concepção de efetividade
de fruição dos direitos e garantias
fundamentais capitaneada pela Emenda
Constitucional 45/04, que incentivou o
processo de judicialização da política (VIEIRA
apud SOUSA; GOMES, 2015, p. 47-48).

A redemocratização estendeu o rol de direitos


fundamentais imediatamente judicializáveis e permitiu uma maior
interpretação do texto constitucional e uma maior extensão do rol
de seus intérpretes. Isabella Saldanha de Sousa e Magno Federici
Gomes evidenciam que:

[...] o acesso à justiça e o alargamento do


número de intérpretes da Constituição
fizeram com que o Poder Judiciário passasse a
se posicionar em relação às inúmeras questões
de natureza política sobre as quais vinham se
omitindo os Poderes Legislativo e Executivo
(SOUSA; GOMES, 2015, p. 50).

No afã de uma maior proteção e implementação dos


direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, onde o
centro das atenções deve estar voltado para o texto constitucional e
para os princípios que dele emanam, surge então o que a doutrina
denomina de Ativismo Judicial.
31
O ativismo judicial aponta uma maior interferência do
Poder Judiciário nas funções do legislativo e do executivo, de modo
a propalar uma verdadeira e concreta implementação dos direitos
fundamentais não efetivados em sua inteireza pelo executivo e
legislativo, ampliando o sentido e o alcance das normas e princípios
do texto constitucional. Conforme leciona Luís Roberto Barroso
(2009):

Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha


de um modo específico e proativo de
interpretar a Constituição, expandindo o seu
sentido e alcance. Normalmente ele se
instala em situações de retração do Poder
Legislativo, de um certo descolamento entre a
classe política e a sociedade civil, impedindo
que as demandas sociais sejam atendidas de
maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial
está associada a uma participação mais ampla
e intensa do Judiciário na concretização dos
valores e fins constitucionais, com maior
interferência no espaço de atuação dos outros
dois Poderes. A postura ativista se manifesta
por meio de diferentes condutas, que incluem:
(i) a aplicação direta da Constituição a
situações não expressamente contempladas
em seu texto e independentemente de
manifestação do legislador ordinário; (ii) a
declaração de inconstitucionalidade de atos
normativos emanados do legislador, com base
em critérios menos rígidos que os de patente e
ostensiva violação da Constituição; (iii) a
imposição de condutas ou de abstenções ao

32
Poder Público, notadamente em matéria de
políticas públicas (BARROSO, 2009, p. 22).

Segundo delimita Barroso (2009), a maior interferência


do Poder Judiciário em temas como implementação de políticas
públicas, se dá em razão do afastamento existente entre o Poder
Legislativo e a sociedade civil, e também na ineficiência do Poder
Executivo na execução de suas atividades e na distribuição de
recursos. Não raramente o Poder Judiciário é chamado para suprir
omissões do legislativo e executar políticas públicas não
devidamente implantadas pelo executivo.
Na visão de Sadek (2013, p. 19), “[...] essas balizas levam a
concluir que a relação entre o poder judiciário e as políticas
públicas é indissociável e previsível”.
O que vem sendo demasiadamente discutido na
contemporaneidade é exatamente saber se essa interferência do
judiciário nas funções dos demais poderes, legislativo e executivo,
seria aceitável no Estado Democrático de Direito de maneira
benéfica ou simplesmente tolerável pela atual conjuntura da
realidade social do Brasil.
Ocorre que a própria evolução dos direitos fundamentais
e dos modos e modelos interpretativos do texto constitucional,
somados ao fato da crise de representatividade que está instalada
no país, propagam e possibilitam uma maior interferência do Poder
Judiciário na concretização de políticas públicas na busca
incessante por uma real aplicação dos direitos fundamentais. Nesse
ponto, destaca a doutrina que:

33
Na verdade, a crise que assola a democracia
representativa – tanto pela retração do espaço
de tomada de decisões políticas, em razão da
dificuldade de obtenção de consenso para a
formação de uma maioria parlamentar em
temas complexos quanto pela falta de interesse
da maioria dos parlamentares em deliberar
sobre eles – representou um incentivo para o
protagonismo assumido pela jurisdição
constitucional brasileira (SOUSA; GOMES,
2015, p. 52).

A doutrina refere-se justamente ao ponto mais sensível da


democracia representativa existente no Brasil, pois a sociedade não
consegue ver seus anseios devidamente representados no âmbito
do Poder Legislativo. Uma vez terminado o processo eleitoral cada
representante eleito passa a legislar mediante seus próprios
interesses, esquivando-se de legislar em favor da população que
anseia pelo acesso adequado à saúde, à educação, à segurança e à
proteção ao meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida.
O ponto central da discussão proposta no presente estudo
está diametralmente direcionado a analisar se no Estado
Democrático de Direito o ativismo judicial pode ser aceito para
implantar a concreta proteção ao direito fundamental ao meio
ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida quando da inércia
dos demais poderes. Para tanto, uma discussão sobre o direito
fundamental ao meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de
vida se faz necessária, o que passaremos a tratar no tópico a seguir.

34
3. DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
EQUILIBRADO À SADIA QUALIDADE DE VIDA (MEIO
AMBIENTE COMO DIREITO À VIDA)

Antes do século XX não se evidenciava maiores discussões


em torno de um meio ambiente equilibrado que pudesse abrigar a
vida. Naquele momento, a discussão não era demasiadamente de
grande importância, particularmente pelo fato de que a
humanidade não havia encontrando o caminho do pleno
desenvolvimento tecnológico, industrial e econômico. Jaques
(2014) complementa que, “naquela época, em virtude dos baixos
níveis de poluição, acreditava-se que a natureza possuía elevado
grau de regeneração e que por isso o ser humano poderia explorá-
la como melhor lhe conviesse” (JAQUES, 2014, p. 301).
Esse contexto começa a se modificar a partir da Revolução
Industrial, onde a humanidade passa a experimentar um
desenvolvimento pautado na utilização dos recursos ambientais
primários. Com o advento da Revolução Industrial há um evidente
avanço no que tange à ciência, tecnologia e à economia, em razão
do surgimento do capitalismo que começa a ganhar corpo e espaço
para se difundir no cenário mundial. A doutrina relata que, “o
capitalismo, pautado pela busca incessante de produção para o
acúmulo de riqueza e a utilização da tecnologia para propiciar
conforto, luxo e prazeres aos homens, até os dias de hoje carece de
atenção aos efeitos dos meios empregados” (JAQUES, 2014, p.
301).

35
Com a modificação do cenário e o advento do sistema
capitalista que se alastrou pelo globo, o meio ambiente começa a ser
depredado ao máximo, diante da necessidade da produção em
massa para satisfazer os anseios do sistema que trabalha apenas em
função do lucro incondicional.
Desastres ambientais que se sucederam foram cruciais
para o despertar de uma consciência de proteção e preservação
ambiental. Os relatos de Rachel Carson, em seu livro Silent Spring
(Primavera silenciosa) de 1962, foram uma demonstração clara de
que alguma coisa deveria ser feita para modificar o cenário da
degradação ambiental que trazia sérias consequências para a vida
na terra (COSTA, 2013).
Outro evento danoso no curso da história que deu ensejo
à preocupação ambiental foi a tragédia ocorrida em Minamata no
Japão, onde centenas de pessoas foram envenenadas em
decorrência do consumo de peixes da baía de Minamata que
estavam contaminados por metais como o mercúrio, que eram
despejados no mar pela Chisso Minamata, uma indústria fabricante
de plástico (COSTA, 2013).
Esses desastres deram ensejo à primeira Conferência
Internacional das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, que
ocorreu no ano de 1972, em Estocolmo, na Suécia. Sem dúvida, essa
conferência representa um marco da tônica da proteção ambiental
no mundo. Beatriz Souza Costa destaca, sobre o tema, que “[...] a
Conferência de Estocolmo não aconteceu por acaso. Foi
consequência de debates sobre os riscos de degradação do meio
ambiente, que, de forma esparsa, iniciou na década de 1960 e que
ganhou na década de 1970 certa densidade (COSTA, 2013, p. 33).
36
Vinte anos após a Conferência de Estocolmo, e dada a
necessidade de continuar permeando o avanço das discussões
ambientais, foi realizada, no ano de 1992, na cidade do Rio de
Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento:

Assim, 20 anos após Estocolmo, era realizada


a Rio 92 com a denominação oficial de
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento – também
conhecida por Eco 92 ou Cúpula da Terra -,
contando com a participação de 178 governos
e a presença de aproximadamente 100 Chefes
de Estado ou de Governos (JAQUES, 2014, p.
309).

A Conferência Rio 92 representou grande avanço sobre as


discussões ambientais, principalmente em razão da adoção da
Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a
Convenção sobre Diversidade Biológica e a formação da Agenda
21.
No ano de 2002 houve novamente uma grande
conferência mundial para tratar de assuntos relacionados ao meio
ambiente e à sua proteção. Ocorreu a Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável, Rio + 10, na cidade de
Johannesburgo, África do Sul. Essa Convenção foi importante por
fomentar maiores discussões no que tange à Agenda 21,
principalmente pela atenção ao desenvolvimento sustentável. “A
finalidade maior da “Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento

37
Sustentável” era discutir novos acordos sobre vários artigos da
“Agenda 21”, objetivando sua implementação” (COSTA, 2009, p.
36).
Em 2009, ocorreu nova conferência mundial organizada
pela ONU, Organização das Nações Unidas, desta vez para tratar
de assuntos sobre as Mudanças Climáticas. “Em dezembro de 2009,
em Copenhague, Dinamarca, houve mais uma reunião organizada
pela ONU, Organização das Nações Unidas, para discutir sobre as
emissões de gases estufa” (COSTA, 2013, p. 40).
No último capítulo sobre as grandes Conferências
Mundiais sobre o meio ambiente, traz-se à baila a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio + 20
ocorrida em 2012. Essa Conferência teve como objetivo central a
implementação do desenvolvimento sustentável, tornar a
economia mais verde, trabalhar mundialmente a sustentabilidade e
fortalecer o Programa das Nações Unidas para o maio Ambiente,
principalmente para a promoção dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS). “A Rio + 20 foi outra grande
Conferência onde vários países foram representados por 53 Chefes
de Estado, 8 Vice-Presidentes, 31 Chefes de Governo e 9 Primeiros-
Ministros, além de 30 mil participantes de 13 a 22 de junho”
(COSTA, 2013, p. 42).
Ante a toda essa preocupação ambiental internacional o
Brasil não permaneceu inerte, e já em 1981 foi editada, no âmbito
infraconstitucional, a Lei nº 6.938/81, que implementou a Política
Nacional do Meio Ambiente no cenário nacional. No entanto, o
grande avanço epistemológico brasileiro no que tange à
preocupação ambiental veio com a promulgação da Constituição
38
Federal de 1988, vista por alguns como a Constituição
ambientalista: “Esse pioneirismo fez dela um documento
essencialmente ambientalista” (BULOS, 2017, p. 1639).
A preocupação ambiental expressada na Constituição
Federal representa grande avanço no que tange a proteção
ambiental, haja vista que o bem ambiental é elevado ao status de
norma constitucional de direito fundamental. O fato de o tema
sobre meio ambiente não encontrar-se expressamente elencado no
Título II, “Dos direitos e garantias fundamentais”, do texto
constitucional, não retira seu caráter de direito fundamental,
conforme ensina Beatriz Souza Costa: “O fato de o tema meio
ambiente, no corpo da Constituição, encontrar-se no Título VIII,
“Da ordem social”, e não no Título II, “Dos direitos e garantias
fundamentais”, não retira deste o status de um direito
fundamental...” (COSTA, 2013, p. 60).
A temática da proteção ambiental encontra-se
expressamente delineado no artigo 225 da Constituição Federal da
seguinte forma: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações” (BRASIL, 1988).
Extrai-se da norma constitucional que o direito ao meio
ambiente equilibrado é responsável por gerir a vida em todas as
suas formas, e que tal equilíbrio deve ser consubstanciado no
Estado Democrático de Direito com fito de abarcar e agasalhar a
vida. Portanto, pode-se afirmar que o direito ao meio ambiente

39
equilibrado e o direito à vida são princípios constitucionais
indissociáveis, pois não existe vida sem que antes possa existir um
meio ambiente adequado para que ela se desenvolva.
Nesse sentido, observa-se que o direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado é condição basilar para a confirmação e
a efetivação do direito à vida, que é princípio base estruturante da
Constituição Federal.
Não há vida sem respeito à dignidade da pessoa humana,
sem meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida não há
dignidade da pessoa humana. Portanto, “[...] do ponto de vista
material cabe ressaltar, inicialmente, que o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é, sem sombra de dúvida, um
direito fundamental” (MIRRA, 2011, p.103).
O meio ambiente equilibrado é direito fundamental
porque rege e abriga a vida. Direito ao meio ambiente e direito a
vida são temas conexos, pois o segundo não existe sem o primeiro.
A pessoa humana precisa de um ambiente adequado para viver e
para se desenvolver, precisa de água, precisa de ar, precisa de terra.
Não de qualquer água, ou de qualquer ar, ou de qualquer terra.
Precisa de água limpa adequada ao consumo humano, precisa de ar
limpo sem poeira mineral e sem gases tóxicos, e precisa da terra
com os minerais adequados para plantio de alimentos. Ou seja, é
fundamental a existência de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado capaz de abrigar a vida com dignidade.
Certa de que o meio ambiente equilibrado, o direito à vida
e a dignidade da pessoa humana são direitos fundamentais conexos
e indissociáveis em todas as suas formas, a doutrina assim discorre:

40
De fato, o Direito ao Ambiente sadio e
ecologicamente equilibrado é há muito
considerado pela doutrina e pela
jurisprudência como uma extensão do direito
à vida. Assim, quando se fala em tutela do
meio ambiente, têm-se em jogo formas de
garantir a qualidade de vida humana, pois lhe
é essencial. O equilíbrio ecológico nessa
relação tão direta com o ser humano faz do
direito ao ambiente um direito fundamental
da pessoa humana, em função dos elementos
e valores que congrega, como saúde,
segurança, cultura, identidade. Preservar o
patrimônio ambiental é garantir vida sadia e
com qualidade. Garantir vida com qualidade é
promover a dignidade da pessoa humana
(REIS, 2013, p. 304).

A doutrina congrega que o direito ao meio ambiente


equilibrado à sadia qualidade de vida é um direito fundamental de
terceira geração, ou de terceira dimensão, pois condensa o
desenvolvimento dos direitos de solidariedade e de fraternidade.
“Em conformidade com a doutrina autorizada, o direito ao meio
ambiente é um direito fundamental de terceira geração ou
dimensão, incluído entre os chamados ‘direitos de solidariedade’
ou ‘direitos dos povos’”. (MIRRA, 2011, p. 104).
Não há, portanto, como negar a natureza de direito
fundamental à qual foi elevada a disciplina da proteção ao meio
ambiente equilibrado á sadia qualidade de vida. Nesses termos,
Costa (2013) promove importante assertiva: “Já se pode, com toda
certeza, ir além deste, e conceituar o meio ambiente essencial à
41
sadia qualidade de vida como direito à própria vida, mas vida com
dignidade, como dispõe a Constituição da República” (COSTA,
2013, p. 78).
Resta demonstrado, portanto, que o direito fundamental
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de
vida constitui-se em direito fundamental de terceira geração, que
se solidifica como o próprio direito á vida.
Dito isso, uma incursão sobre a teoria de princípios e
regras de Robert Alexy se fará necessária, na medida em que o
objetivo central do estudo é evidenciar o ativismo judicial em
demandas ambientais frente ao princípio da separação dos poderes,
conforme se verá adiante.

4. A TEORIA DE REGRAS E PRINCÍPIOS DE ROBERT


ALEXY

O que se demonstrou até o momento é que em algumas


circunstâncias o Poder Judiciário tem se imiscuído nas funções do
Poder Executivo e do Poder Legislativo, principalmente no que
tange a aplicação e consecução de políticas públicas. A essa
discussão, foram acrescentados dois princípios de direito
fundamental que regem e moldam o Estado Democrático de
Direito, cada qual com seu elevado grau de importância no
ordenamento jurídico: o princípio da separação de poderes e o
princípio de direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado á sadia qualidade de vida.
Revela-se, portanto, uma possível tensão entre dois
princípios de direito fundamental, que, em determinado caso
42
concreto, poderão entrar em colisão. Como afirma Luís Roberto
Barroso (2015), “A existência de colisões de normas
constitucionais, tanto as de princípios como as de direitos
fundamentais, passou a ser percebida como um fenômeno natural
– até porque inevitável – no constitucionalismo contemporâneo”
(BARROSO, 2015, p. 545).
Para tanto, uma das possíveis soluções a ser aplicada
encontra-se calcada na teoria de regras e princípios de Robert Alexy
(2008), a quem agora serão dedicadas as linhas seguintes.
André Rufino do Vale (2006) demonstra que Robert
Alexy desenvolveu sua teoria a partir de Dworkin, apontando a
diferenciação entre regras e princípios e elaborando uma teoria dos
princípios composta por três teses fundamentais: a tese da
otimização, a tese da colisão e a lei da ponderação:

Robert Alexy introduziu suas teses no artigo


“Sobre o conceito de princípios jurídicos”, no
qual, apontando os defeitos da teoria de
Dworkin, tomou-a como base para uma
reformulação da distinção entre princípios e
regras. Segundo Alexy, a tese de Dworkin de
que os conflitos entre regras – tendo em vista
sua aplicação disjuntiva ou de tudo-ou-nada –
possuem uma estrutura inteiramente distinta
das colisões entre princípios – pois estas
normas possuem uma dimensão de peso,
ausente nas regras – oferece um ponto de
apoio para a obtenção de critérios de distinção
adequados. Observa Alexy, no entanto, que os
critérios utilizados por Dworkin, apesar de

43
importantes, não atingem o núcleo da
diferenciação entre regras e princípios. Com
efeito, Dworkin não explica porque os
princípios entram em colisão da maneira por
ele descrita, isto é, numa dimensão de peso. O
ponto decisivo para a distinção entre regras e
princípios, olvidado pela teoria de Dworkin,
está em esclarecer as razões que justificam o
fato de os princípios e as regras entrarem em
colisão de forma diferenciada. Para tanto,
Alexy elabora uma teoria dos princípios
composta por três teses fundamentais: a) a tese
da otimização; b) a lei da colisão e c) a lei da
ponderação. (VALE, 2006, p. 81-82).

Para Alexy (2008) a distinção entre regras e princípios


constitui-se em uma premissa inarredável no contexto dos direitos
fundamentais: “a distinção entre regras e princípios é uma das
colunas-mestras do edifício da teoria dos direitos fundamentais”
(ALEXY, 2008, p. 85). Nesse sentido, a primeira questão que deve
desde já ser uniformizada é a de que ambos, regras e princípios, são
espécies de normas, porque dizem o que deve ser: “a distinção entre
regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies
de normas” (ALEXY, 2008, p. 87).
Na concepção de Alexy as normas podem ser distinguidas
em regras e princípios e entre ambos não existe apenas uma
diferença gradual, mas uma diferença qualitativa.
O primeiro ponto que diferencia os princípios das regras
é que os princípios são normas que determinam que algo seja
realizado na maior medida possível dentre as possibilidades
jurídicas e fáticas colocadas à disposição (ALEXY, 2008). Por isso,
44
os princípios exprimem mandamentos de otimização.
Mandamentos são ordens ou comandos que devem ser seguidos em
todas as ordens éticas. Já otimização é o conjunto de técnicas para
a seleção das melhores alternativas com o propósito de alcançar fins
determinados. Essa é a tese da otimização de Alexy.
Além disso, os princípios podem ser satisfeitos em graus
variados e essa satisfação depende das possibilidades fáticas e
jurídicas do caso concreto. O princípio não possui um
mandamento definitivo e só o caso concreto vai dizer o que o
princípio significa mediante a colisão com outros princípios.
Ao contrário, as regras são normas que podem ou não ser
satisfeitas. “Regras contêm, portanto, determinações no âmbito
daquilo que é fática e juridicamente possível” (ALEXY, 2008, p. 91).
Uma regra é válida ou não. Não existe no âmbito das regras a
possibilidade de uma gradação da norma, ou a regra é válida e deve
ser respeitada, ou a regra é declarada inválida e deve ser extirpada
do ordenamento.
No conflito entre regras, o embate pode ser resolvido de
dois modos: ou se introduz uma cláusula de exceção em algumas
das regras que elimine o conflito, ou pelo menos uma das regras
deve ser declarada inválida. De modo que a resolução se dá em
torno do plano da validade da norma.
No que tange à colisão entre princípios, a resolução se dá
de maneira diversa daquela das regras, pois a colisão não se resolve
no plano da validade, pois quando dois princípios colidem um
deles deverá ceder. Em determinado caso concreto, em razão de
questões fáticas e jurídicas, um dos princípios poderá ter

45
precedência em face de outro princípio sob determinadas
condições. Portanto, a resolução se dá na dimensão do peso entre
os princípios, sendo que aquele de maior peso terá precedência
sobre aquele de menor peso, mediante determinadas condições
concretas. Gonçalves (2015), nesse sentido, confirma que “nunca é
demais lembrar que, na teoria neoconstitucionalista, o choque
entre regras se resolve com base na validade e a colisão de
princípios na base da ponderação do peso do princípio para o caso
concreto” (GONÇALVES, 2015, p. 679).
Não haverá a declaração de validade ou de invalidade de
determinado princípio, nem ao menos a introdução de uma
cláusula de exceção, pois isso só ocorre na dimensão da validade
das regras. Portanto, é possível emitir a seguinte afirmação: o
conflito entre regras resolve-se no plano da validade e a colisão
entre princípios resolve-se pela dimensão do peso mediante a
técnica da ponderação e sopesamento. Em rasa explanação está
devidamente apresentada lei da colisão em Alexy.
Observa-se que a tória dos princípios está estritamente
ligada ao exame da proporcionalidade, desaguando na formulação
da lei da ponderação, conforme sustenta Alexy (2015):

A ideia fundamental da otimização em relação


às possibilidades jurídicas, ou seja, o exame da
proporcionalidade, pode ser formulada em
uma regra que pode ser denominada “lei da
ponderação”. Ela reza: Quanto maior o grau
de descumprimento de ou de interferência em
um princípio, maior deve ser a importância do

46
cumprimento de outro princípio (ALEXY,
2015, p. 154).

Nessa mesma ótica é plausível afirmar que diante a da


análise do caso concreto o interprete ao valer-se da teoria dos
princípios terá o caminho aberto para a realização e aplicação da lei
da ponderação, pois terá de realizar a interpretação mediante o
sopesamento das normas postas em discussão. Nas palavras de
André Rufino do Vale (2006):

Alexy estabelece uma conexão entre a teoria


dos princípios e o princípio da
proporcionalidade, que pode ser descrita da
seguinte forma: “a teoria dos princípios
implica o princípio da proporcionalidade e
este implica aquela”. Isso significa que o
princípio da proporcionalidade e seus três
subprincípios, adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito
(ponderação propriamente dita), decorrem
logicamente da teoria dos princípios. Esse
relacionamento com o princípio da
proporcionalidade baseia-se na própria
definição dos princípios. Como mandatos de
otimização, os princípios devem ser
cumpridos na maior medida possível,
segundo as possibilidades fáticas e jurídicas.
Os subprincípios da adequação e necessidade
implicam que os princípios são mandatos de
otimização com relação às possibilidades
fáticas. Por outro lado, o subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito indica

47
que os princípios são mandatos de otimização
com relação às possibilidades jurídicas, é
dizer, a medida de seu cumprimento depende
dos princípios que jogam em sentido
contrário. Trata-se, neste caso, de ponderação
de princípios em conflito. A ponderação será
indispensável quando o cumprimento de um
princípio significar o descumprimento do
outro, ou seja, quando um princípio somente
puder ser realizado à custa de outro princípio
(VALE, 2006, p. 86).

Outra questão que não pode passar despercebido na teoria


dos princípios de Alexy é o caráter prima facie das regras e dos
princípios, Os princípios não contêm mandamentos definitivos,
apenas prima facie. “Princípios exigem que algo seja realizado na
maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas
existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento
definitivo, mas apenas prima facie” (ALEXY, 2008, p. 103-104). Os
princípios representam razões que podem ser afastadas por razões
contrárias e opostas. Um determinado princípio pode, prima facie,
apresentar maior dimensão de peso em detrimento de outro
princípio, no entanto, esse destaque só se confirmará mediante
análise das razões e contrarrazões, ou seja, diante do caso concreto.
No que tange às regras ocorre o oposto, pois como as
regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam,
elas têm uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito
das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar
diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não

48
ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve.
(ALEXY, 2008).
Portanto, os princípios são sempre razões prima facie e
regras são, não havendo o estabelecimento de alguma exceção,
razões definitivas. Assim, regras e princípios continuam a ter um
caráter prima facie distinto. (ALEXY, 2015).
Nesse sentido, alguns destaques podem ser apontados: I -
A divisão estabelecida por Alexy entre mandamentos definitivos e
mandamentos de otimização revela uma distinção qualitativa entre
regras e princípios; II - Os princípios podem ser satisfeitos em graus
variados; III - A medida de sua satisfação depende de possibilidades
fáticas e jurídicas; IV - O grau de satisfação não é determinado pelo
próprio princípio; V - Só o caso concreto, mediante análise das
razões e contrarrazões, poderá determinar o grau de satisfação do
princípio.
Destaca-se do debate proposto até o momento que Alexy
propõem que no caso de colisão entre princípios fundamentais a
solução estaria na aplicação do critério de ponderação, a qual
deveria ser aplicada a partir do princípio da proporcionalidade
mediante a realização do sopesamento entre os princípios
colidentes.
Na apresentação dessas premissas, o próximo tópico irá
permear e condensar os efeitos desta teoria para analisar a colisão
existente entre o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado
à sadia qualidade de vida, patrocinado por uma maior atividade
judicial, e o princípio fundamental da separação de poderes.

49
5. O ATIVISMO JUDICIAL PARA A PROTEÇÃO DO MEIO
AMBIENTE E A APLICAÇÃO DA TEORIA DOS
PRINCÍPIOS DE ROBERT ALEXY

O chamado ativismo judicial, conforme demonstrado


anteriormente, amolda-se a uma maior atividade judicial nas
esferas do Poder Executivo e do Poder Legislativo na busca pela
efetivação e execução de políticas públicas adequadas ao
cumprimento e desenvolvimento dos direitos fundamentais
insculpidos na Constituição de 1988. Na visão de Rodrigo
Monteiro da Silva (2017), o ativismo judicial pode ser visto como:

[...] uma atitude, uma forma escolhida pelo


Juiz de interpretar as normas constitucionais
que acontecem quando há uma não atuação
do Poder Legislativo, ou seja, quando há um
impedimento em que as demandas sociais não
são atendidas de modo efetivo. O ativismo
judicial está associado à ideia de uma
participação intensa do magistrado para
concretizar direitos e garantias fundamentais
(SILVA, 2017, p. 7).

Portanto, o ativismo judicial consubstancia-se numa


maior vocação judicial para a interpretação dos direitos
fundamentais que permeiam o contexto constitucional.
Todavia, parcela da doutrina não coaduna com a postura
da pró-atividade judicial por entender que esta estaria em constante
embate com o princípio da separação de poderes (artigo 2º da
CF/88), principalmente porque o Poder Judiciário não estaria
50
democraticamente legitimado a tratar de políticas públicas, pois os
julgadores não foram eleitos democraticamente pelo povo como os
membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Sousa e
Gomes (2015) destacam que:

[...] este processo pode representar uma perda


democrática, na medida em que exige o
rompimento do equilíbrio entre os poderes,
quando o Poder Judiciário é convocado pela
sociedade civil para suprir as funções típicas
que deveriam ser exercidas pelos Poderes
Executivo e Legislativo. Isso pode gerar um
completo esvaziamento funcional desses
poderes e a retirada da soberania nacional que
lhes é atribuída constitucionalmente na
representação do poder estatal (SOUSA;
GOMES, 2015, p. 57).

Ocorre que, noutro vértice, parcela da doutrina e da


jurisprudência nacional permitem uma maior atividade judicial
naqueles temas em que restem caracterizadas a omissão e falta de
concretude no que tange a aplicação dos direitos fundamentais
previstos na CF/88 pelo Poder Público. Camilo Zufelato (2013) ao
adotar posição favorável à maior atividade judicial critica a opinião
dos opositores da seguinte forma:

Nenhuma das críticas, contudo, se coaduna


com o perfil contemporâneo de Estado
Democrático de Direito e com a noção atual
de Jurisdição que dele decorre, de forma que
esses argumentos revelam-se incompatíveis
51
com os fins do Estado brasileiro e com a
necessidade premente de judicialização dos
conflitos envolvendo violações de direitos
fundamentais decorrentes da não
implementação de políticas públicas por parte
do próprio Estado (ZUFELATO, 2013, p.
310).

Nesse sentido, percebe-se a envergadura do


posicionamento em prol de prestigiar o acesso á jurisdição para
solucionar aqueles conflitos que envolvam violações aos direitos
fundamentais. Com exatidão é possível perceber que não se fala em
“governo dos juízes” ou se autoriza tal situação. O que se depreende
é exatamente o contrário, pois o que se permite com o ativismo
judicial é uma jurisdição decorrente da força normativa da
Constituição Federal e dos princípios que dela emanam. Sendo
patente que esse ativismo só se dará em determinadas
circunstâncias, particularmente, onde os direitos fundamentais não
estiverem devidamente contemplados pelo Poder Público.
A concepção doutrinária é a de que “[...] não são os
direitos fundamentais que devem andar no quadro determinado
pela lei e pelo administrador, mas a lei e o administrador público
que devem ser conformados pelos direitos fundamentais”
(ZANETI JR, 2013, p. 34).
Evidencia-se ainda que o Poder Judiciário ao ser acionado
pelo jurisdicionado deve ofertar uma resposta capaz de solucionar
a demanda em questão, cumprindo, inclusive o princípio da
inafastabilidade da jurisdição contido no artigo 5º, XXXV, da
CF/88. Princípio consagrador do livre acesso à jurisdição, pois “[...]

52
se o Judiciário deixar de agir ele mesmo estará incorrendo na
proibição de proteção insuficiente, vez que deve assegurar a
efetivação dos direitos fundamentais” (ZANETI JÚNIOR, 2013, p.
66).
Essa é uma das premissas inarredáveis que devem ser
consagradas no presente estudo, pois o Poder Judiciário não
exercita a jurisdição sozinho, ao contrário, ele deve ser acionado e
provocado a ingressar na matéria de fato e de direito para
posteriormente prolatar a decisão. Se o Poder Judiciário está
interferindo e está praticando atividade judicial é porque ele está
sendo provocado a fazê-la.
Naquilo que merece destaque, o direito fundamental ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de
vida, previsto no artigo 225 da CF/88, deve ser concretizado pela
via de políticas públicas adequadas capazes de promover a sua
inteira proteção em favor das presentes e das futuras gerações.
Quando isso não ocorrer, aqueles legitimados podem
provocar a jurisdição para resguardar e promover a proteção deste
direito fundamental que é inerente à dignidade da pessoa humana,
pois se consubstancia como o próprio direito à vida.
O Poder Judiciário também é um Poder do Estado, e
como tal tem o dever de promover a proteção ambiental. E aqui não
há que se alegar a falta de legitimidade do judiciário para atuar em
temas de políticas públicas ambientais sob o argumento de que seus
representantes não são democraticamente eleitos; afinal, o Poder
Judiciário também se mostra como um espaço de participação
popular, “[...] do mais inovador espaço institucional de

53
participação popular na proteção do meio ambiente, cuja
importância não pode deixar de ser salientada no modelo do Estado
Democrático-Participativo adotado pela Constituição de 1988”
(MIRRA, 2011, p. 167).
O que se evidencia é que o Poder Judiciário também se
apresenta como um ator democrático responsável pela promoção
da proteção ambiental, portanto, sua atividade em políticas
públicas na esfera do Poder Executivo e do Legislativo é legítima,
conforme preceitua de forma singular Mirra (2011):

À evidência, se a função jurisdicional é uma


das funções essenciais no Estado
constitucional, ao lado das funções legislativa
e administrativa, não há dúvida de que os
reclamos e as reivindicações de democracia
participativa devem, igualmente, estender-se a
ela, tanto quanto já se encontram admitidos
no tocante ás demais. Ressalta-se que tal
participação política, exercida no contexto da
atividade judicial, tem plena justificativa
atualmente, como forma de assegurar
vigilância e controle mais amplos sobre a
legitimidade da ação ou omissão do Estado e
de outras entidades, estatais ou não, no
tocante a valores extremamente sensíveis,
como os abarcados pelos interesses e direitos
metaindividuais, entre os quais se inclui o
direito ao meio ambiente, cuja proteção ou
sacrifício repercute inevitavelmente sobre
toda a sociedade (MIRRA, 2011, p. 167).

54
Importante contribuição é apresentada por Ada Pellegrini
Grinover (2013), a qual autoriza a intervenção do Poder Judiciário
em políticas públicas desde que respeitados alguns limites de
atuação, sendo eles: “a razoabilidade da pretensão individual/social
deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha
da lei ou do agente público; a reserva do possível, entendida tanto
em sentido orçamentário-financeiro como em tempo necessário
para o planejamento da nova política pública” (GRINOVER, 2013,
p. 149).
No entanto, Grinover (2013) defende que a garantia do
mínimo existencial autoriza a intervenção do Poder Judiciário nas
políticas públicas para corrigi-las e implementá-las. Por mínimo
existencial a jurista aponta: “Costuma-se incluir no mínimo
existencial, entre outros, o direito à educação fundamental, o
direito à saúde básica, o saneamento básico, a concessão de
assistência social, a tutela do ambiente, o acesso à justiça”
(GRINOVER, 2013, p. 132).
Veja-se que a tutela ao meio ambiente equilibrado é vista
pela autora como condição de mínimo existencial, o que não
poderia ser diferente, haja vista tratar-se de direito fundamental
que se confunde com o próprio direito à vida, pois o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é condição essencial para o abrigo e
desenvolvimento da vida. Trata-se, como dito anteriormente, de
considerar o abrigo e o desenvolvimento da vida com dignidade. O
princípio da dignidade humana permeia o direito à vida e ao meio
ambiente equilibrado. Hermes Zaneti Jr (2015) discorre que:

55
Nesse sentido, em síntese, podemos resumir o
direito fundamental ao meio ambiente como
um direito de múltiplas funções, justamente
caracterizado por uma multifuncionalidade
pervasiva na sua interpretação e aplicação, que
autoriza deduzir sua natureza jurídica e
possibilidade de ampla judicialização como
forma de garantia dos patamares
constitucionalmente e legalmente assegurados
de tutela (ZANETI JÚNIOR, 2015, p. 1376).

Importante demonstrar, no mesmo contexto de ideias,


posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp
1.150.392/SC, onde se objetivou o ativismo judicial para a
resguardar o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado:

AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL.


AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA
CONTRA A MUNICIPALIDADE.
CONJUNTO HABITACIONAL
IMPLANTADO ÀS MARGENS DE CURSO
D'ÁGUA. DEGRADAÇÃO DE BACIA
FLUVIAL E DE AUSÊNCIA DE SISTEMA
DE REDE COLETORA DE ESGOTO
SANITÁRIO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO
DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
PRETENSÃO AUTORAL QUE VISA
CONFORMAR POLÍTICA PÚBLICA COM
A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE.
INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS
PODERES. PRECEDENTES DO STF.
ARTIGO 267, VI, DO CPC. PEDIDO

56
JURIDICAMENTE POSSÍVEL. RECURSO
ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PROVIDO.
1. A promoção da ação civil pública, com o
objetivo de conformar a implantação de
políticas públicas com a proteção do meio
ambiente, encontra previsão no próprio texto
constitucional (artigo 129, II e III, da CF), por
isso se revelando, na espécie, inadequada a
aplicação do artigo 267, VI, do CPC, sob o
argumento da ausência de possibilidade
jurídica do pedido.
2. Como explica HUGO NIGRO MAZZILLI,
"A ação civil pública ainda se presta para que
o Ministério Público possa questionar
políticas públicas, quando do exercício de suas
funções no zelo para que os Poderes Públicos
e os serviços de relevância pública observem
os direitos assegurados na Constituição" (A
defesa dos interesses difusos em juízo. 27. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014, p. 141).
3. Em caso assemelhado ao presente, a
Primeira Turma do STJ decidiu que "O
Ministério Público detém legitimidade ativa
para o ajuizamento de ação civil pública que
objetiva a implementação de políticas públicas
ou de repercussão social, como o saneamento
básico ou a prestação de serviços públicos"
(AgRg no AREsp 50.151/RJ, Rel. Ministro
BENEDITO GONÇALVES, DJe 16/10/2013),
ao passo que sua Segunda Turma, também em
tema análogo, assentou que "A omissão
injustificada da administração em efetivar as
políticas públicas constitucionalmente

57
definidas e essenciais para a promoção da
dignidade humana não deve ser assistida
passivamente pelo Poder Judiciário" (REsp
1.041.197/MS, Rel. Ministro HUMBERTO
MARTINS, DJe 16/09/2009). Nesse mesmo
rumo, a Excelsa Corte assentou que "Mostra-
se consentâneo com a ordem jurídica vir o
Ministério Público a ajuizar ação civil pública
visando ao tratamento de esgoto a ser jogado
em rio. Nesse caso, não cabe cogitar da
impossibilidade jurídica do pedido e da
extinção do processo sem julgamento do
mérito."(RE 254.764/SP, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de
18/2/2011).
4. Da mesma sorte, em se cuidando de ação
civil pública direcionada contra a
Administração Pública, objetivando a
implementação de políticas públicas, o STF
tem entendimento consolidado no sentido de
ser lícito ao Poder Judiciário "determinar que
a Administração Pública adote medidas
assecuratórias de direitos constitucionalmente
reconhecidos como essenciais, sem que isso
configure violação do princípio da separação
dos Poderes" (AI 739.151 AgR, Rel.ª Ministra
ROSA WEBER, DJe 11/06/2014 e AI
708.667 AgR, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI,
DJe 10/04/2012), cuja compreensão, não há
negar, afasta, no presente caso, o argumento
relativo à impossibilidade jurídica dos pedidos
formulados pelo Parquet autor.
5. Recurso especial do Ministério Público
catarinense provido. (BRASIL, 2016).

58
Verifica-se que uma parcela significativa da doutrina e da
jurisprudência avançou no sentido de permitir e validar uma maior
atividade judicial com fito de promover e implantar concretamente
os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de
1988.
Contudo, as discussões sobre os limites dessa intervenção
judicial ainda são notórios no cenário nacional. Como dito, a
doutrina contrária a essa intervenção judicial evoca na maioria das
vezes o princípio da separação dos poderes que se encontra
delineado no artigo 2º da CF/88. Tratando-se de um direito
fundamental consagrado constitucionalmente, o princípio da
separação de poderes requer sua aplicação imediata assim como os
demais contidos no texto constitucional.
Evidencia-se, por isso, no caso da matéria ambiental aqui
tratada, uma colisão de princípios, especialmente entre o princípio
do meio ambiente ecologicamente equilibrado á sadia qualidade de
vida, e sua concretização pela via do ativismo judicial, e o princípio
da separação de poderes.
Com o objetivo de solucionar a colisão o julgador poderá
se valer da teoria dos princípios de Robert Alexy para aplicar o
critério da ponderação pela via do princípio da proporcionalidade
e realizar o devido sopesamento entre os princípios colidentes, o
que conduz à própria ponderação (BARROSO, 2015).
Destaca-se, pois no conjunto de ideias realizado nessa
pesquisa, que, em determinado caso concreto, diante de
circunstâncias concretas, o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida deverá ter

59
precedência frente ao princípio da separação de poderes, ainda que
o primeiro esteja sob o manto do ativismo judicial.
Afinal, como explicitado algures, o direito ao meio
ambiente equilibrado imbrica-se com o próprio direito à vida e a
dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o meio ambiente
equilibrado e o direito à vida se enquadram e se fundam no eixo da
dignidade da pessoa. Essa assertiva poderá possibilitar ao intérprete
que, por meio do critério da ponderação e do sopesamento,
estabeleça uma relação de precedência do direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado em detrimento do princípio da
separação de poderes. Afinal:

No direito, em sede de ponderação, há de se


fazer uso de uma balança jurídico-axiológica
denominada princípio da dignidade humana.
Na balança da dignidade humana, devem ser
pesadas todas as normas: elaboradas,
interpretadas e aplicadas. Dentre aquelas que
se encontrem em situação de colisão, deve
prevalecer a norma que pese mais na
concreção do princípio da dignidade (SAES,
2015, p. 721).

Destaca-se que o critério da aplicação da ponderação


entre os princípios fundamentais relacionados ao direito ao meio
ambiente equilibrado pode ter uma relação de precedência frente
ao princípio da separação de poderes, pois o meio ambiente sadio
é condição irrefutável para a existência da vida com dignidade. O
eixo central em estabelecer a precedência do direito ao meio

60
ambiente ecologicamente equilibrado e sadio está fixado no
próprio direito à vida e na dignidade da pessoa humana.
Não se fala em invalidar o princípio da separação de
poderes para que o ativismo judicial possa se tornar uma regra
irrefutável, pois, afinal, como destacado por Zufelato (2013), “a
intervenção do Judiciário nessa seara, assim sendo, embora
indispensável em casos de omissão ou de desvirtuamento dos
poderes políticos, deve ser sempre a ultima ratio” (ZUFELATO,
2013, p. 314).
O que se considera é que, em determinado caso concreto,
mediante análise das razões e contrarrazões, com a aplicação da
regra de colisão entre princípios pela via ponderação e do
sopesamento, o princípio da separação de poderes poderá ser
ponderadamente afastado para possibilitar uma maior atividade
judicial na concreta e efetiva implementação do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida.
Não será promovida a invalidação do princípio da
tripartição de poderes. Será promovido apenas o seu afastamento
moderado segundo análise das razões e contrarrazões do caso
concreto. A relação de precedência que se admite é apenas aquela
tendente a realizar a completa e concreta proteção do meio
ambiente equilibrado, por meio do ativismo judicial, quando o
executivo e o legislativo não o fizerem conforme os preceitos
constitucionais.

61
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Restou evidenciado que o ativismo judicial vem se


tornando cada vez mais uma prática usual no cenário nacional,
devido a omissão e à ineficiência do Poder Legislativo e do Poder
Executivo no que tange a efetivação e a materialidade de políticas
públicas capazes de implementar os direitos fundamentais
expressos no texto constitucional e os princípios que dela emanam.
No cenário nacional encontramos posições favoráveis e
desfavoráveis ao ativismo judicial. Os desfavoráveis argumentam
uma quebra do princípio da tripartição de poderes contido no
artigo 2º da CF/88. Afirmam que o Poder Judiciário não estaria
legitimado a realizar políticas públicas em razão de não ser um
poder legitimamente democrático, pois os juízes não são eleitos
pelo sistema do sufrágio universal. Anotam que ao Poder
Legislativo e ao Poder Executivo cabem a análise da aplicação das
políticas públicas por propiciarem escolhas democráticas.
As posições favoráveis ao ativismo judicial admitem que
no Estado Democrático de Direito os direitos fundamentais
expressos no texto constitucional e os princípios que dele emanam
são normas que demandam sua aplicação imediata e por isso o
Poder Judiciário estaria autorizado a intervir quando da omissão
ou da inércia dos Poderes Legislativo e Executivo. A doutrina
sustenta que os direitos fundamentais estão no centro do Estado
Democrático de Direito e que por isso a lei e o administrador
público devem ser conformados pelos mesmos e não o contrário.
A vocação do ativismo judicial está consubstanciada
numa interpretação expansiva do texto constitucional, numa busca
62
progressiva por uma jurisdição decorrente da Constituição Federal
e dos princípios que dela irradiam, sendo indubitável que o
ativismo só se dará em determinadas circunstâncias em que os
direitos fundamentais não estiverem devidamente contemplados e
implantados pelo Poder Público.
Defendeu-se no texto que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida insculpido no
artigo 225 da CF/88 constitui direito fundamental de terceira
geração, que se confunde com o próprio direito à vida e com a
dignidade da pessoa humana e como tal merece aplicação imediata
no Estado Democrático de Direito.
Por isso, vislumbrada a colisão entre princípios
fundamentais que cerceiam a importância da vitalidade ambiental,
apresentou-se como possível solução para dirimir o embate a
aplicação dos conceitos adotados na teoria de princípios e regras de
Robert Alexy. Foram apresentados os conceitos da teoria proposta,
pautando-se principalmente na tese da otimização, na lei da colisão
e na lei da ponderação.
Pela aplicação da teoria dos princípios de Robert Alexy é
possível considerar que, em determinado caso concreto, sobre
certas circunstâncias, mediante análise das razões e contrarrazões,
pela utilização da lei da ponderação e através da via da
proporcionalidade, valendo-se das técnicas do sopesamento, seria
possível permitir o ativismo judicial para, dada a precedência do
direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, afastar a
limitação imposta pelo princípio da tripartição de poderes.

63
Certo de que essa premissa e o seu resultado não são
vinculantes, haja vista que a relação de precedência entre os
princípios fundamentais podem variar mediante as circunstâncias
fáticas e jurídicas do caso concreto, o ativismo judicial deve ser
visto e tratado com responsabilidade jurídica concreta.
O ativismo judicial não deve ser utilizado a todo o tempo
para a aplicação ou correção de políticas públicas ambientais, pois
isso cabe diretamente aos Poderes democráticos, Executivo e
Legislativo, em que a atuação do Poder Judiciário deve ser vista
como a última alternativa, ou seja, a última ratio.
No entanto, em momentos tais em que o Poder Executivo
e o Poder Legislativo não estejam cumprindo seus respectivos
papéis, o Poder Judiciário estará legitimado a atuar para promover
a aplicação dos direitos fundamentais consubstanciados no texto
constitucional e em seus princípios, pois o princípio da
inafastabilidade da jurisdição é princípio basilar do Estado
Democrático de Direito.
O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à
sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações é um
bem único e singular que precisa ser protegido pelo Estado e por
toda a sociedade, porque empresta subsídios ao princípio da
dignidade da pessoa humana e se confunde como o próprio direito
à vida. Portanto, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder
Judiciário e toda a sociedade estão autorizados, sujeitos e obrigados
a promover sua completa proteção e preservação, mediante
atitudes positivas e concretas.

64
REFERÊNCIAS

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69
DIREITOS HUMANOS, DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL, EXECUÇÕES PENAIS E INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL *

HUMAN RIGHTS, SUSTAINABLE DEVELOPMENT,


CRIMINAL JUSTICE AND ARTIFICIAL INTELLIGENCE

Magno Federici Gomes1


Izadora Gabriele dos Santos Oliveira2
RESUMO: O processo consubstancia-se como um instrumento de
garantia do direito do cidadão frente às adversidades vivenciadas.
Por isso, o Poder Judiciário recebe uma porção elevada de ações,

*
Trabalho financiado pelo Projeto FAPEMIG nº 5236-15, resultante dos Grupos
de Pesquisas (CNPQ): Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável
(REGA), NEGESP, Metamorfose Jurídica e CEDIS (FCT-PT).
1
Estágio de Pós-doutorado em Direito Público e Educação pela Universidade
Nova de Lisboa-Portugal (Bolsa CAPES/BEX 3642/07-0). Pós-doutor em Direito
Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pela
Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas.
Professor do Mestrado Acadêmico em Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável na Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor Adjunto da PUC
Minas e Professor Titular licenciado da Faculdade de Direito Arnaldo Janssen.
Advogado Sócio do Escritório Moraes & Federici Advocacia Associada. Líder do
Grupo de Pesquisa: Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável
(REGA)/CNPQ-BRA e integrante dos grupos: Centro de Investigação &
Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS)/FCT-PT, Núcleo de
Estudos sobre Gestão de Políticas Públicas (NEGESP)/CNPQ-BRA e
Metamorfose Jurídica/CNPQ-BRA. ORCID: <http://orcid.org/0000-0002-4711-
5310>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1638327245727283>. Endereço
eletrônico: federici@pucminas.br
2
Graduanda em Direito pela PUC Minas. Currículo Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/1970992584585714>. Endereço eletrônico:
iza_oliveira123@hotmail.com
70
não conseguindo extirpar as pendentes. Diante desse problema,
objetivou-se analisar se a Inteligência Artificial (IA) é capaz de ser
usada na redução do volume de demandas, especialmente nos feitos
de execução penal, bem como evitar a perpetuação de injustiças aos
direitos dos cidadãos presos. Utilizou-se o método teórico
documental, com técnica dedutiva. Concluiu-se que a IA pode
promover uma celeridade e efetividade procedimentais sustentável,
se adotada correta e coordenadamente nas execuções penais.

PALAVRAS-CHAVE: Inteligência Artificial; execuções penais;


efetividade processual sustentável; direitos humanos do preso.

ABSTRACT: The process consubstantiates itself as an instrument


of guarantee of the right of the citizen on the adversities
experienced. Because of this, the Judiciary receives daily a high
number of actions, not being able to terminate the outstanding
ones. The objective was to analyze if AI is capable of being used in
reducing the volume of judicial demands, especially in the
execution of criminal proceedings, as well as to prevent the
perpetuation of injustices with regard to the right of prisoners. The
documentary theoretical method was used, with deductive
technique. It was concluded that AI is capable of promoting
procedural speed, such as a sustainable effectiveness, if adopted in
a correct and coordinated way in criminal executions.

KEYWORDS: Artificial Intelligence; criminal executions;


sustainable procedure effectiveness; human rights of the inmate.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Desenvolvimento sustentável.

71
3. Dignidade da pessoa humana: uma análise dos direitos humanos
do preso.
4. Contornos acerca das execuções penais.
5. Efetividade processual e celeridade procedimental.
6. O uso de algoritmos para viabilização da celeridade
procedimental nas execuções penais: um caminho para a
efetividade sustentável.
Considerações Finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

O processo constitui-se como instrumento cabal para a


preservação e garantia do direito material dos cidadãos, podendo
ser entendido como um procedimento em contraditório, vez que é
dada à parte a oportunidade de se manifestar nos autos, ter acesso
prévio aos elementos apresentados, bem como ter seus argumentos
levados em consideração no debate processual. Entretanto, tal
instrumento não é um “mar de rosas”, já que, atualmente, o Poder
Judiciário (PJ) enfrenta um grande problema com a morosidade no
trâmite dos feitos judiciais, tendo por objeto, nesse trabalho, as
execuções penais.
De forma diretamente proporcional ao crescimento do
número de demandas no PJ, há uma evolução de novas tecnologias,
em especial a Inteligência Artificial (IA) que, por sua vez, pode
auxiliar os juristas nas mais diversas tarefas do cotidiano forense.
Com base nessas informações, surgiu a preocupação com
o seguinte problema: diante da morosidade da justiça e da possível
ausência de tutela célere e efetiva, em que medida as novas
72
tecnologias, mais especificamente os algoritmos, podem auxiliar
para garantia de um processo de execução penal em consonância
com os princípios constitucionais, com os direitos humanos e
fundamentais (liberdade individual), bem como com a efetividade
sustentável?
O tema central perpassa a questão da possível utilização
de tecnologias sofisticadas para solucionar os problemas de
acúmulo de execuções penais e as injustiças perpetradas nas Varas
de Execução Penal. O objetivo geral do presente trabalho é delinear
os contornos acerca das novas tecnologias existentes no mundo
moderno, bem como sua possível aplicação no campo do direito, a
fim de auxiliar na celeridade procedimental das execuções penais e
em sua efetividade processual.
A importância da pesquisa se justifica na medida em que
a Constituição Federal de 1988 (CF/88) garante o direito do
cidadão a uma tutela judicial justa e efetiva, bem como a um
procedimento célere baseado no princípio da sua razoável duração
do processo, mas esse direito não é garantido, dentre outros fatores,
por ausência de investimentos em tecnologias e em mão de obra,
podendo ser considerada letra morta dentro da lei se não for
resolvida de maneira inteligente e eficaz. Além disso, o preso fica,
por diversas vezes, mais tempo do que deveria permanecer na
prisão, em razão de erros de contagem e equívocos procedimentais,
o que não deve persistir.
A metodologia adotada foi a teórico documental, com
técnica dedutiva, a partir da vertente jurídico-sociológica, com uso

73
de fontes bibliográficas, cujo marco teórico empregado foi a obra
de Gomes e Pinto (2017, p. 77-109).
No primeiro tópico, será feito um breve delineamento
acerca do desenvolvimento sustentável. Em seguida, serão
estabelecidos os contornos no que tange à dignidade da pessoa
humana, com especial atenção aos direitos humanos do preso. Na
terceira parte será abordado o procedimento das execuções penais
seguido da análise da efetividade processual e da celeridade
sustentável. Por fim, verificar-se-á a influência que os algoritmos,
decorrentes das novas tecnologias, podem gerar nas execuções de
pena para uma possível efetividade sustentável do processo.

2. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu em


decorrência de pesquisas realizadas, com o fito de solucionar
problemas ambientais concernentes ao aquecimento global e
alterações qualitativas do ar, da água e da terra, em virtude de densa
degradação ambiental.
O desenvolvimento sustentável, em seu aspecto geral,
pauta-se na ideia de utilização dos recursos naturais de forma
consciente, a fim de que as necessidades das presentes gerações
sejam supridas, assegurando que as futuras gerações também
tenham acesso a um ambiente equilibrado e habitável. Logo, trata-
se de um aspecto “socialmente includente, ambientalmente
sustentável e economicamente sustentado no tempo” (BERTOLDI,
2017, p. 322). Dessa forma, o desenvolvimento sustentável se
desdobra no conceito de sustentabilidade, na medida em que esta
74
pressupõe um aspecto multidimensional. Neste sentido, Freitas
estabelece que a sustentabilidade:

Trata-se do princípio constitucional que


determina, com eficácia direta e imediata, a
responsabilidade do Estado e da sociedade
pela concretização solidária do
desenvolvimento material e imaterial,
socialmente inclusivo, durável e equânime,
ambientalmente limpo, inovador, ético e
eficiente, no intuito de assegurar,
preferencialmente de modo preventivo e
precavido, no presente e no futuro, o direito
ao bem-estar [e admite múltiplas dimensões]
(FREITAS, 2016, p. 43).

Cumpre ressaltar, que a multidimensionalidade, ora


mencionada, caracteriza-se pelas dimensões social, ética, jurídico-
política, econômica e ambiental.
A dimensão social perpassa a ideia de uma sociedade mais
íntegra em consonância com os direitos fundamentais dos
indivíduos, levando em consideração a promoção do bem-estar
humano, a partir da adequação do meio ambiente à qualidade de
vida dos cidadãos e de toda sociedade, tendo em vista que tais
conceitos são indissociáveis. Nessa concepção, o desenvolvimento
sustentável revela-se como um catalisador para garantia de direitos
essenciais inerentes à qualidade de ser humano e que estão
positivados constitucionalmente.
A dimensão ética destaca-se pela responsabilidade das
gerações presentes no que tange à preservação dos recursos
75
naturais, atualmente existentes, para as futuras gerações, a fim de
perpetuar uma herança marcada não só pela continuidade de um
mundo qualitativamente habitável, como também pelo plexo de
solidariedade e fraternidade intergeracional. Dessa forma,
preceitua Freitas: “dimensão ética, no sentido de que todos os seres
possuem uma ligação intersubjetiva e natural, donde segue a
empática solidariedade como dever universalizável de deixar o
legado positivo da fase da terra” (FREITAS, 2016, p. 64).
No que tange à dimensão jurídico-política, insta ressaltar
que ela se traduz como o aspecto jurídico e normativo do direito
fundamental à um ambiente equilibrado e saudável. Feitas tais
considerações, no que concerne a essa dimensão, “[...] a
sustentabilidade determina, com eficácia direta e imediata,
independentemente de regulamentação, a tutela jurídica do direito
ao futuro e, assim, apresenta-se como dever constitucional de
proteger a liberdade de cada cidadão [...]” (BERTOLDI, 2017, p.
321). Ainda a respeito da dimensão jurídico-política, estabelecem
Gomes e Ferreira:

A dimensão jurídico-política visa a efetivar e


desenvolver os direitos fundamentais das
presentes e futuras gerações, com o objetivo de
asseverar e reforçar o plexo de
desenvolvimento consubstanciado na
preservação e proteção ambiental, sem,
contudo, perder de vista a promoção social, o
respeito à dignidade humana e aos direitos
humanos, a melhor e adequada distribuição
da renda e os conceitos de origem ética, que
são vertentes indissociáveis do conceito de
76
sustentabilidade (GOMES; FERREIRA, 2017,
p. 96).

A dimensão econômica, por sua vez, revela a necessidade


de avanços econômicos na sociedade, tendo em vista que a mesma
não consegue gerar avanços sociais sem o crescimento econômico
adequado, respeitando os recursos naturais existentes e não
criando óbices para a perpetuação da vida no planeta. Logo, um
desenvolvimento sustentável pautado na sustentabilidade deve ser
capaz de correlacionar o crescimento econômico à imperiosa
salvaguarda do meio ambiente.
Por fim, no que diz respeito à dimensão ambiental, a
preservação da natureza e seus recursos diversos, é medida que se
impõe, a fim de que as presentes e futuras gerações possam usufruir
de um meio ambiente adequado e equilibrado. Como disciplina
Freitas: “quer-se aludir, com a dimensão [...] ambiental da
sustentabilidade, ao direito das gerações atuais, sem prejuízo das
futuras, ao ambiente limpo, em todos os aspectos (meio
ecologicamente equilibrado, como diz o artigo 225 da CF)”
(FREITAS, 2016, p. 68).
Importa salientar, que a sustentabilidade não se limita à
aplicação no que tange ao meio ambiente. Isto porque o
desenvolvimento sustentável prevê diretrizes que vão além do
direito ambiental, a fim de propiciar, no que diz respeito ao
processo, uma efetividade da tutela jurisdicional fornecida, em
consonância com os direitos humanos.

77
3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA ANÁLISE
DOS DIREITOS HUMANOS DO PRESO

Os direitos humanos e fundamentais se consubstanciam


em garantias essenciais e fundamentais à existência humana e ao
seu desenvolvimento regular e digno. Assim, o bem estar do
homem, bem como sua dignidade, constituem-se como o ápice,
como direito máximo à condição de pessoa. “O termo direitos
fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional
positivo de determinado Estado” (SARLET, 2010, p. 29). Nesse
sentido, Silva expressa que:

Direitos fundamentais do homem constitui a


expressão mais adequada a este estudo,
porque, além de referir-se à princípios que
resumem a concepção do mundo e informam
a ideologia política de cada ordenamento
jurídico, é reservada para designar no nível do
direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de
uma convivência digna, livre e igual de todas
as pessoas [...] (SILVA, 2018, p. 178).

Ainda no que tange à definição de direitos humanos e


fundamentais, conclui-se que esses são assim compreendidos, em
razão do próprio direito natural, vez que nasce “da premissa do
direito à vida, que decorre do reconhecimento da dignidade de todo
ser humano [e] [...] são universais, acima das fronteiras
geopolíticas” (TSUNODA; BORGES, 2009, p. 68).
78
Cumpre salientar que os direitos humanos passam por
uma catalogação, sendo divididos em dimensões3, as quais serão
esmiuçadas a seguir.
A relação dos direitos humanos em dimensões decorre de
um contexto histórico em que cada uma é observada de acordo com
seu surgimento. As dimensões ainda são chamadas de gerações por
alguns autores, embora tal expressão se mostre destoante da
doutrina contemporânea. Com base no exposto, primordialmente,
se faz necessária uma diferenciação acerca dos conceitos de
dimensão e geração.
Destaca-se que, em se tratando dos teóricos adeptos à
adoção de dimensão para referir-se aos direitos humanos, o termo
gerações em detrimento da nomenclatura dimensões reforçaria a
noção de superação dos direitos fundamentais, como se tais direitos
fossem evoluções se comparados aos anteriores. Tal perspectiva vai
em desencontro ao adotado atualmente, tendo em vista que não se
pode utilizar os direitos de maneira excludente, mas sim de forma
complementar, respeitando o direito atinente a cada época.
Os direitos humanos de primeira dimensão são os
chamados direitos civis e políticos, os quais contemplam as
liberdades individuais como direito à liberdade e à propriedade.
Como explicita Tsunoda e Borges, “trata-se das liberdades de
locomoção, propriedade, segurança, acesso à justiça, associação,
opinião e expressão, crença religiosa, integridade física”
(TSUNODA; BORGES, 2009, p. 68). Tais direitos tiveram seu

3
Em razão de recorte metodológico serão abordadas apenas as três primeiras
dimensões.
79
surgimento a partir de conquistas liberais do século XVIII,
organização política que previa a supremacia das liberdades
individuais com a interferência mínima do Estado na vida do
cidadão.
Nesse cenário, destaca-se a Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, que surgiu a partir da Revolução
Francesa e teve um papel importantíssimo no que concerne à
universalização de direitos fundamentais, ainda que com cunho
extremamente individualista. Neste sentido aponta Lucia:

não restam dúvidas que a influência dessa


revolução na vida constitucional (tanto no
ocidente como no oriente) representou um
considerável progresso na história da
asseveração dos valores fundamentais da
pessoa humana. No entanto, [...] sendo ela um
produto do século XVIII, por evidente que
seja, seu cunho é nitidamente individualista,
subordinando a vida social ao indivíduo e
arrogando ao Estado a finalidade de
preservação dos direitos individuais (LUCIA,
2002, p. 04).

Os direitos de segunda dimensão são os chamados


direitos econômicos, sociais e culturais e surgiram através de uma
postura mais ativa do Estado, como forma de suavizar as
desigualdades perpetradas pelo sistema político anteriormente
adotado. Dessa forma, observa-se que o Estado Social, então
vigente, lançava mão de direitos de cunho prestacional a fim de
permitir o alcance à igualdade material dos cidadãos.

80
Os direitos de terceira dimensão estão em consonância
com os princípios da solidariedade e da fraternidade, são
caracterizados pela transindividualidade destacando-se na defesa
de direitos coletivos e difusos. Tais direitos surgiram “no período
do pós-guerra do século XX e [são exemplificados] pelos direitos
ao meio ambiente sadio, à paz, à independência, ao patrimônio
genético intocável, ao desenvolvimento, autonomia e cultura dos
povos” (LUCIA, 2002, p. 08).
Nesse contexto, destacam-se alguns documentos que
trazem em sua redação a consagração do direito à dignidade da
pessoa humana e suas consequentes garantias decorrentes da sua
condição de pessoa.
O primeiro documento a ser observado é a Carta das
Nações Unidas, estabelecida em 1945, e que prevê a preservação das
gerações presentes e futuras, bem como a dignidade da pessoa
humana de forma universal. Outro documento que desponta-se
como de extrema relevância é a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), considerado o marco da implementação dos
direitos e garantias fundamentais do homem e que em seu artigo 1º
disciplina que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, artigo 1º). Por
fim, ressalta-se a Convenção contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, a qual estabelece a

81
preservação da dignidade da pessoa humana, ainda que na
condição de preso 4.
Todos esses documentos destacam-se pela ênfase dada
aos direitos humanos, em especial à preservação da dignidade da
pessoa humana. Um ponto digno de nota e que se constitui como
um dos principais objetos do presente estudo, consubstancia-se nos
vastos erros formais que ocorrem nas execuções penais e que geram
prejuízos substanciais para o preso. A título de exemplo, tem-se o
erro na contagem de prazos, acarretando excessos no cumprimento
da pena e configurando-se como flagrante violação aos direitos
humanos e fundamentais do cidadão preso. Neste sentido, tem-se:

Ao analisar os processos, [...] frequentemente


se dá conta de erros cometidos por cartórios,
por exemplo, pela transposição equivocada de
certas datas. Idealmente, o cartório deveria
fazer esse trabalho com precisão e caberia ao
MP – não ao defensor – zelar pela acuidade do
processamento. No entanto, como os erros
quase sempre acabam prejudicando o
condenado, o trabalho de correção do
processo se confunde com o trabalho de defesa
(GODOI, 2017, p. 403).

Baseado no disposto acima, percebe-se que as secretarias


dos Juízos, em face do acúmulo de processos e razões outras que
não cabe trazer à baila, acabam cometendo erros que, por mais
ínfimos que sejam, guardadas as devidas proporções, acabam

4
Nesse sentido, o inteiro teor da: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1984.
82
surtindo um efeito devastador na vida do detento. Elaboradas tais
considerações, necessário se faz traçar o procedimento das
execuções penais.

4. CONTORNOS ACERCA DAS EXECUÇÕES PENAIS

O processo de execução penal decorre do cumprimento


de uma decisão proferida em uma ação penal, tendo por objetivo
executar a pena imposta a determinada pessoa, garantindo-lhe que
sejam observados todos os deveres e direitos a ela inerentes,
consubstanciados na Lei nº 7.210/1984 – Lei de Execuções Penais
(LEP). Conforme Lima e Peralles, a execução penal é:

Um conjunto de normas e princípios


jurídicos, de natureza complexa, isto é, de
direitos: constitucional, penal, processual
penal e administrativo, que regulam e ensejam
a concretização das sentenças condenatórias
ou das que impuseram medidas de segurança,
aos condenados, internados ou sujeitos a
tratamento ambulatorial, respectivamente
(LIMA; PERALLES, 2002, p. 13).

Cumpre salientar que o PJ padece de um problema efetivo


de morosidade da justiça e consequente enfraquecimento da
qualidade da tutela jurisdicional fornecida, fato que não foge à
realidade executiva penal. Dentre outros fatores, após proferida a
sentença de condenação do réu, uma guia de execuções penais deve
ser criada, bem como toda montagem do processo instruído com
83
cópias da sentença, da denúncia, da certidão de trânsito em julgado
da decisão, sem prejuízo de outras peças que julgar convenientes.
Tal processo deve ser organizado pelo escrivão com ajuda de toda
a secretaria do Juízo, como faz saber a disposição legal a seguir:

Artigo 105 da LEP. Transitando em julgado a


sentença que aplicar pena privativa de
liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o
Juiz ordenará a expedição de guia de
recolhimento para a execução (BRASIL,
1984).

Artigo 106 da LEP. A guia de recolhimento,


extraída pelo escrivão, que a rubricará em
todas as folhas e a assinará com o Juiz, será
remetida à autoridade administrativa
incumbida da execução e conterá: I - o nome
do condenado; II - a sua qualificação civil e o
número do registro geral no órgão oficial de
identificação; III - o inteiro teor da denúncia e
da sentença condenatória, bem como certidão
do trânsito em julgado; IV - a informação
sobre os antecedentes e o grau de instrução; V
- a data da terminação da pena; VI - outras
peças do processo reputadas indispensáveis ao
adequado tratamento penitenciário (BRASIL,
1984).

Assim, “não se pode esquecer que antes que as ações


estejam prontas para o julgamento é necessário que elas passem por
algumas etapas primárias, as quais envolvem pessoas para recebê-
las nas secretarias e organizá-las” (GOMES; PINTO, 2017, p. 103).

84
Além disso, a própria LEP estabelece uma série de trâmites que
podem ocorrer durante a execução da pena, alterando a situação
fática do réu e necessitando de trabalho a mais pelo juiz e pelos
servidores. A título de exemplo, tem-se a progressão ou regressão
de regimes de cumprimento penal.
Insta observar que tal fenômeno ocorre por diversos
motivos, com especial atenção, no presente trabalho, para a
ausência de tecnologias que facilitem o procedimento das
execuções penais em face do acúmulo de processos no PJ, fato que
será melhor trabalhado no tópico que se segue.

5. EFETIVIDADE PROCESSUAL E CELERIDADE


PROCEDIMENTAL

Percebe-se que o homem é um ser social e, como tal,


necessita do convívio com outros indivíduos para garantir sua
subsistência. Ao se ter tal premissa como verdadeira, nota-se que
ao ser humano é imprescindível o estabelecimento de relações de
convívio entre si, por meio da formação de grupos. Contudo, é
natural que esse contato gere inúmeros conflitos em razão da
própria natureza humana. Neste sentido, o direito surge como uma
ferramenta de controle social, para regular as relações humanas e
tutelar o direito material dos indivíduos.
A referida tutela é efetivada pela utilização do processo,
aqui entendido o judicial, que se constitui como um procedimento
em contraditório, com a presença de ampla defesa e de isonomia
das partes. Dessa maneira, o processo é uma “instituição

85
constitucionalizada” (LEAL, 2012, p. 181), na medida em que se
sustenta pelo devido processo legal garantido na CF/88 e “deve ser
entendido como alavanca propulsora ou chave que aciona a
inteligência coletiva para atuar cooperativamente na definição dos
destinos da humanidade” (BODNAR, 2009, p. 104).
Ainda no que tange ao direito instrumental, foi
introduzido na CF/88, pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o
inciso LXXVIII, do artigo 5º, que diz respeito à razoável duração do
procedimento. Percebe-se que tal princípio é um conceito muito
caro no que tange à discussão aqui pretendida, em razão do
acúmulo quase asfixiante de processos judiciais, que decorrem de
“n” motivos, impossibilitando, em regra, a aplicação plena desse
direito fundamental/princípio/garantia processual5. Com isso:

[...] se não combatido o fenômeno da


morosidade do Poder Judiciário na entrega da
tutela jurisdicional, de modo a efetivar o
princípio fundamental da razoável duração do
procedimento, não será possível evidenciar o
desenvolvimento do plexo da
sustentabilidade, por falta de efetivação de sua
dimensão jurídico-política (GOMES;
FERREIRA, 2017, p. 110).

Importante ressaltar que, com o abarrotamento do PJ e a


sobrecarga de trabalho, a tutela jurisdicional fica comprometida no

5
Não se pretende estudar a natureza jurídica da razoável duração do
procedimento neste estudo, motivo pelo qual se considerou o instituto ora como
princípio, ora como garantia processual, ora como direito fundamental.
86
que tange à sua efetividade e à qualidade. A título de exemplo, cita-
se a pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
em 2015, acerca da alta quantidade de processos em trâmite nas
comarcas brasileiras. Depreendeu-se que o maior número de
demandas está presente no primeiro grau de jurisdição e, em razão
disso, sua efetividade é afetada (BRASIL, Conselho Nacional de
Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias, 2015).
Um dos motivos da lentidão da justiça e,
consequentemente, da ausência de efetividade da tutela
jurisdicional, é a existência de trabalhos repetitivos e exaustivos que
sobrecarregam o servidor e a ausência de infraestrutura dispendida
para melhorar o PJ. Tem-se que “o fato das condições de trabalho
no sistema judiciário estarem muito aquém do que se espera, [se
dá] principalmente em virtude da falta de tecnologia e da carência
de mão de obra” (GOMES; PINTO, 2017, p. 102). Posto isto, tendo
em vista que todas essas alterações são feitas pelos servidores
manualmente, ainda que em processo virtual eletrônico, o uso de
tecnologias sofisticadas para atender às demandas da execução de
pena mostram-se necessárias.
Nesta senda, novas tecnologias surgem como uma
promessa de facilitar a vida dos servidores públicos, sendo capazes
de executar ações repetitivas para que os funcionários possam se
dedicar a tarefas mais sofisticadas. Tais tecnologias serão tratadas
no tópico que se segue, ora relacionadas ao processo de execução
penal.

87
6. O USO DE ALGORITMOS PARA VIABILIZAÇÃO DA
CELERIDADE PROCEDIMENTAL NAS EXECUÇÕES
PENAIS: UM CAMINHO PARA A EFETIVIDADE
SUSTENTÁVEL

Em atendimento à necessidade do estabelecimento de


novas técnicas, como apontado alhures, a IA desponta como uma
tecnologia para aplicação do direito. Ela relaciona-se ao fato de
atribuir às máquinas capacidade de pensarem como humanos ou
chegarem a atingir um grau de sofisticação elevado para executar
determinadas atividades.
Uma das primeiras contribuições para esse tipo de
tecnologia foi o teste de Turing, que consistia em uma espécie de
reprodução do homem pela máquina, por meio de uma conversa
entre dois humanos e um robô, sendo que um dos humanos deveria
identificar se quem falava era robô ou não 6. Entretanto, nota-se que
o ápice da IA se deu em 1956, quando John McCarthy, “um
professor universitário, criou o termo para descrever um mundo
em que as máquinas poderiam ‘resolver os tipos de problemas que
hoje são reservados para humanos’” (ENTENDA..., 2016, internet).
Com os avanços da ciência, diversas melhorias foram
implementadas. No que tange à IA, atualmente, um ramo muito
estudado e que se constitui de essencial interesse para o direito é o
algoritmo baseado no Machine Learning (ML), sistema
“incrivelmente poderoso para fazer previsões ou sugestões
calculadas com base em grandes quantidades de dados”

6
Para aprofundamentos, ver: ZILIO, 2009, p. 208-218.
88
(MONACO, 2017, internet). O recurso é extremamente
interessante e trabalha com a lógica das “árvores de decisão”. Dessa
forma, o controlador alimenta a máquina com informações
relevantes, ela processa os dados obtidos e é capaz de se realimentar
a partir de novos elementos inseridos, como aponta Valentini:

Em uma máquina computacional, a


informação deve ser passada para o
computador em meio digital (bits). Do mesmo
modo, é necessário ter um mecanismo para a
saída ou retorno dos dados trabalhados
(output). Um algoritmo deve ter um ou mais
meios para retorno dos dados, os quais devem
estar relacionados de modo específico com o
input [dados inseridos no algoritmo]. [...] O
output decorre do input, sendo papel do
algoritmo fornecer o retorno dos dados
corretos a partir dos dados de entrada
(VALENTINI, 2017, p. 42).

Ressalta-se que quanto melhor a qualidade das


informações, mais qualitativo será o resultado obtido 7. É
justamente essa habilidade de realimentação da máquina que
estabelece uma rotina de aprendizagem e que faz com que tal
processo aprimore as decisões.

7
É importante destacar que os dados e informações inseridos no algoritmo não
podem possuir ideias pré-concebidas ou prejulgamentos que possam influenciar
de maneira negativa o resultado da análise, tais como cor de pele, opção religiosa
e classe social, por exemplo.
89
No entanto, despontam-se diversos pesquisadores
contrários à ideia de que de fato exista IA e que o computador seja
capaz de realizar certas ações como humanos, ou melhor que eles.
Tais pesquisadores acreditam que a máquina não tem capacidade
de pensar e inventar algo, apenas reproduzem os dados que lhe são
injetados. Neste sentido, Cossa dispõe que “sem o operador
humano que elabora o programa e coloca em código, a máquina
não pode fazer nada. Sem que o operador humano leia e interprete
o resultado, a máquina é inútil” (COSSA, 1957, p. 90) 8.
Alguns autores alertam, ainda, para o perigo da utilização
das máquinas, tendo em vista que ela pode levar o cidadão a erros
cabais. Nesse sentido se destaca O’Neil, a qual apresenta alguns
modelos de ML como sendo armas de destruição matemática, a
partir do momento em que possuem três elementos: obscuridade,
escala e dano. Ela acredita que as informações reservadas em
bancos de dados obscuros e misteriosos, combinado a uma atuação
do algoritmo em escala, pode causar danos gigantescos para a
humanidade, especialmente para os mais pobres. Dessa forma,
argumenta a autora utilizando como exemplo a crise financeira de
2008 ocorrida nos Estados Unidos da América (EUA), em
decorrência de facilitações de créditos imobiliários que contou com
a forte presença de algoritmos para as especulações nas bolsas de
valores. Assim:

8
Tradução livre de: “Sans l’opérateur humain qui elabore le programme et le met
em code, la machine ne peut rien. Sans l’opérateur humain qui lit et interprète le
résultat, la machine ne sert à rien”.
90
Paradoxalmente, os algoritmos supostamente
poderosos que criaram o mercado, os que
analisaram o risco em parcelas de dívida e
classificou-os em títulos, acabou por ser inútil
quando chegou a hora de limpar a bagunça e
calcular o que todo o papel valia de fato. A
matemática poderia multiplicar os problemas,
mas não poderia decifrá-la. Este foi um
trabalho para os seres humanos (O’NEIL,
2016, p. 43) 9.

Todavia, cumpre estabelecer, que o objetivo deste artigo é


reservar as tarefas mais complexas para os humanos, deixando os
algoritmos responsáveis apenas por atividades singelas do
cotidiano forense. Ao pensar uma aplicação prática dessa espécie
de IA com o fito de resolver o problema da execução penal, se faz
necessária a instauração de um algoritmo capaz de, alimentado
com alguns dados fidedignos, fornecer elementos de distinção das
execuções, sendo programado para analisar requisitos para
progressão, regressão de regime, detração da pena, prazos de
abatimento de pena, através do trabalho e/ou do estudo, dentre
tantas movimentações que assolam as varas de execução, em
especial as secretarias desses Juízos.
Com isso, objetiva-se gerar o que se conhece atualmente
como efetividade sustentável, já que “[...] a efetividade da tutela

9
Tradução livre de: “Paradoxically, the supposedly powerful algorithms that
created the market, the ones that analyzed the risk in tranches of debt and sorted
them into securities, turned out to be useless when it came time to clean up the
mess and calculate what all the paper was actually worth. The math could multiply
the horseshit, but it could not decipher it. This was a job for human beings”.
91
jurisdicional e a razoável duração do processo, hoje erigidos a
direito fundamental do cidadão [...], têm íntima relação com o
princípio, atualmente simbólico, do desenvolvimento sustentável,
não aplicável apenas ao direito ambiental” (GOMES; PINTO, 2017,
p. 84). Depreende-se de tal afirmação que um processo
efetivamente sustentável deve se pautar pela qualidade da tutela
fornecida, atributo que é concebido a partir do condão estabelecido
entre os princípios constitucionais e a celeridade procedimental
(GOMES; PINTO, 2017, p. 100).
Pensa-se que o plexo de sustentabilidade nos processos de
execução de pena será alcançado graças a implementação de
algoritmos, que farão, a partir de chaves previamente programadas,
as tarefas menos sofisticadas na execução penal, para que as mais
complexas sejam realizadas por humanos de forma mais atenta,
sustentada, aprimorada e com a tão almejada qualidade na tutela
jurisdicional. Essa medida também impedirá que injustiças sejam
perpetradas nas Varas de Execução Penal, evitando, de modo
eficaz, que pessoas permaneçam presas por mais tempo do que o
determinado, o que acaba por efetivar também as dimensões social,
econômica, ética e jurídico-política da sustentabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O PJ brasileiro conta, atualmente, com uma carga extensa


de processos acumulados, estejam eles estagnados ou não. Diversas
ações são ajuizadas diariamente, contribuindo ainda mais para o
aprofundamento da asfixia judicial (taxa de congestionamento).
Diante desse quadro, buscou-se verificar quais as soluções cabíveis
92
para a diminuição dos processos na execução penal, bem como a
redução de erros procedimentais que acarretam violação dos
direitos humanos do preso, utilizando-se de tecnologias modernas
e sofisticadas, em especial a IA, por meio de algoritmos.
Em um primeiro momento, foi apresentado o conceito de
desenvolvimento sustentável, enfatizando as dimensões da
sustentabilidade, concluindo-se que a sustentabilidade não diz
respeito apenas ao meio ambiente, aplicando-se, no presente
estudo, ao processo de execução penal. Em um segundo momento,
estabeleceu-se o conceito de direitos humanos e fundamentais, com
apresentação das três dimensões dos direitos humanos e
diferenciação entre as nomenclaturas dimensão e geração.
Posteriormente, foram apresentados documentos importantes no
que tange à proteção dos direitos humanos e traçadas algumas
violações dos direitos dos presos.
No terceiro tópico delineou-se acerca do procedimento de
execuções penais, sua conceituação e natureza jurídica. No quarto
tópico, definiram-se as causas de aumento das litigiosidades, a
partir de uma análise quanto à natureza do homem e seu natural
comportamento conflituoso, bem como estabeleceu uma breve
análise acerca do processo em geral, entendido como procedimento
em contraditório. Logo após, passou-se a um exame geral no que
tange às novas tecnologias que podem ser, e são, aplicadas ao
direito para facilitar a vida dos juristas.
Buscou-se, ainda, avaliar a morosidade judicial a partir
dos processos de execução penal. Verificou-se que uma das causas
da demora da tutela jurisdicional nesse ramo é a ausência de

93
tecnologias que auxiliem o servidor no comando de tarefas
repetitivas e menos complexas, para que ele possa se dedicar a
atividades que exijam um nível de sofisticação mais aprimorado.
Ato contínuo constatou-se a aplicação de novas
tecnologias no direito, especialmente no campo da execução da
pena. Conceituou-se IA e algoritmos, bem como foi dada uma
singela explicação a respeito da técnica mais propícia a ser adotada
nesse ramo, em razão da excelência do seu processo inteligente que
consegue, a partir de uma amostragem, criar modelos mais
consistentes de aplicação, com base em um processo de
realimentação de dados.
Por fim, diante de todo o exposto, a solução para o dilema
apontado no início da pesquisa logrou êxito, na medida em que é
possível, ao menos em nível teórico, estipular os parâmetros de
abrangência da IA, com a criação do algoritmo baseado no processo
de ML, bem como de padrões específicos para serem aplicados ao
processo de execução da pena. O objetivo será torná-lo mais
efetivo, em consonância com os ditames constitucionais e,
consequentemente, atento ao desenvolvimento sustentável,
obstando, ainda, que apenados fiquem presos imotivadamente por
mais tempo do que o imputado.

94
REFERÊNCIAS

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95
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98
DIREITOS CULTURAIS E EPISTEMOLOGIA

CULTURAL RIGHTS AND EPISTEMOLOGY

Marcelo Kokke 1

RESUMO: A compreensão dos bens culturais e sua proteção, por


meio dos direitos culturais, está afeta ao redimensionamento
epistemológico. A epistemologia dominante é excludente, traça
parâmetros de desprendimento fundados em um modelo
racionalista denominado por Charles Taylor de dominante ou
hegemônico. A partir da crítica ao modelo dominante
empreendida por Taylor, é possível compreender o ser humano
como ser autointerpretativo, articulado em seu contexto de
interação racional enlaçado ao expressivismo. Apoiado na linha
metodológica crítico-propositiva e em viés expositivo, os bens
culturais assim como os direitos culturais são redesenhados para
um caráter ativo de projeção e efeitos. Os direitos culturais passam
a ser articulados para concentrar a perspectiva do ser humano de se
autorreconhecer e autoidentificar em contato com a diversidade,
em contato consigo mesmo, proporcionando a efetivação de sua
natureza autointerpretativa.

1
Pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de
Compostela – ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em
processo constitucional. Pós-graduando em Ecologia e Monitoramento
Ambiental. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Professor de
Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor de Pós-graduação da
PUC-MG. Professor da Escola da Advocacia-Geral da União. Professor do IDDE
– MG. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.
Membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental.
99
PALAVRAS-CHAVE: Autointerpretação; Bens culturais; Charles
Taylor; Direitos culturais; Epistemologia.

ABSTRACT: The understanding of cultural goods and their


protection, through cultural rights, is affected by the
epistemological resizing. The dominant epistemology is exclusive,
traces parameters of detachment based on a rationalist model
denominated by Charles Taylor of dominant or hegemonic. From
the critique of the dominant model undertaken by Taylor, it is
possible to understand the human being as a self-interpretive being,
articulated in its context of rational interaction linked to
expressivism. Based on the critical-propositional methodological
line and expository bias, cultural goods as well as cultural rights are
redesigned for an active character of projection and effects.
Cultural rights begin to be articulated to focus the perspective of
the human being to self-recognize and self-identify in contact with
diversity, in contact with himself, providing the realization of his
self-interpretative nature.

KEYWORDS: Self-interpretation; Cultural assets; Charles Taylor;


Cultural rights; Epistemology.

SUMÁRIO:
Introdução.
1. Crítica epistemológica em Charles Taylor.
2. O expressivismo e o ser humano como ser autointerpretativo.
3. Os direitos culturais como direitos à autointerpretação.
Considerações finais.
Referências bibliográficas

100
INTRODUÇÃO

O presente trabalho se concentra em três núcleos de


desenvolvimento fundamentais, entrelaçados e argumentados de
forma a permitir uma visualização da compreensão epistemológica
a partir das diretrizes desenvolvidas por Charles Taylor com o
objetivo de proceder à análise dos direitos culturais. A
compreensão epistemológica nas matrizes taylorianas
proporcionará um redirecionamento no enquadramento do ser
humano para com o mundo que o envolve, e assim situa os direitos
culturais não como manifestações periféricas e suportadas pela
razão, mas sim como componente elementar à própria
identificação do ser humano em sua realização, inclusive em uma
perspectiva de teoria do conhecimento.
O trabalho se inicia pela crítica de Taylor em prol da
superação da epistemologia, no sentido e forma como a ela é
compreendida em balizas racionalistas excludentes, abordando as
características determinantes do modelo epistemológico
dominante. A referência à epistemologia dominante é adotada para
nomear a perspectiva teórica que se infiltrou em proeminência na
contemporaneidade e colonizou o senso comum e científico da
civilização ocidental. Taylor se contrapõe a esse eixo hegemônico.
Em sequência, aborda-se a configuração do ser humano como ser
autointerpretativo e a influência das bases epistemológicas na
realização da compreensão humana não-fragmentada em favor de
rechaçar a rotulação do ser humano como ser puramente racional,

101
no que tange à perspectiva monológica e envolta em solipsismo que
por vezes a encobre.
Busca-se compreender o ser humano a partir da
perspectiva de ser no mundo, ser em expressividade, e aqui situar
os direitos culturais não como um apanágio de simples tolerância
da diversidade de manifestações, mas sim em base sustentadora da
manifestação humana em articulação interpretativa. Almeja-se
desta forma viabilizar a manifestação da liberdade individual em
suas dimensões mais complexas, mas fora de marcos mecanicistas
ou atomistas. Situar os direitos culturais em uma busca de novos
padrões de compreensão e identidade é situar os direitos culturais
como permeados de sentido pela virada expressivista.
Não aspira ao presente trabalho a discorrer sobre a teoria
tayloriana em sua ampla extensão, proposta que embora instigante
revela-se como árdua e para além das proposições a que este se
volta. A linha metodológica que se utiliza é a crítico-propositiva,
sempre articulada com um viés expositivo para a caracterização da
abordagem de Taylor. Perceber a manifestação humana em um
contexto compreensivo que envolve o padrão epistemológico
acolhido no tempo e no espaço e as repercussões que isso acarreta
à autovisão do ser humano em coletividade, exaltando-se a figura
dos direitos culturais, leva-nos a interrogações diretas: 1) como se
orienta a epistemologia dominante segundo a crítica de Taylor? 2)
qual a posição de Taylor e como ela se sustenta? 3) em que consiste
a compreensão do ser humano como ser autointerpretativo? 4) em
que consiste a virada expressivista e como ela orienta a perspectiva
de visualização dos direitos culturais?

102
2. CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA EM CHARLES TAYLOR

O modelo de compreensões e conhecimentos propagado


na modernidade e na contemporaneidade enraíza-se em uma
verdadeira luta do ser humano contra si, enfeixando
argumentações e formulações que se destinam a veicular os
mesmos efeitos de um colírio ardente e dissipador dos obstáculos a
uma visão clara do conhecimento, límpida e certa. Por vezes,
postulou o ser humano contra o próprio ser humano, como se fosse
ele o empecilho à conquista do conhecimento resplandecente e
imaculado, ao que o maior dos desafios chegou a ser afastar o
elemento humano (considerando sua instabilidade) para alcançar-
se a possibilidade do conhecimento da verdade. Olvidando que o
conhecimento somente se produz e reproduz em uma escala
humana, o modelo epistemológico dominante constantemente
assumiu o ser humano como seu desafio a ser superado, ao invés de
assumi-lo como seu pressuposto.
Aprisionado em padrões conceituais e classificações
ávidas de neutralidade, pretensamente amparadas em solidez
empírica, o ser humano lançado foi em um empreendimento de
decantação, com vistas a possibilitar a realização de bases
representacionais do conhecimento. A epistemologia moderna,
denominação por vezes utilizada por Taylor (2000), igualmente
caracterizada por Boaventura de Sousa Santos (2005) como
hegemônica, assume o perfil acima traçado, constituindo-se em um
modelo de racionalidade fundado na revolução científica do século

103
XVII, e desenvolvido nos séculos que se seguiram, caracterizado
essencialmente pelos ditames metodológicos das ciências naturais.
As bases epistemológicas até então prevalentes centravam-se no
modelo aristotélico, no qual a apreensão se efetiva pelo
conhecimento de causas, dos fatores que ocasionam determinado
fato ou constatável propriedade, permissivos assim da captação da
essência necessariamente existente. Para Taylor, o modelo
aristotélico pode ser caracterizado como participacional, ao que a
mente participa do objeto conhecido, não se restringindo a
descrevê-lo:

A mais importante concepção tradicional era


a de Aristóteles, de acordo com o qual quando
chegamos a conhecer algo, a mente (nous)
forma unidade com o objeto do pensamento.
Isso naturalmente não quer dizer que estes se
tornem materialmente a mesma coisa, mas
que mente e objeto são informados pelo
mesmo eidos. (2000, p. 15)

As limitações explicativas da realidade e os novos padrões


cientificistas fizeram por emergir a epistemologia moderna em
contraste e repúdio às construções aristotélicas. Apoiando-se em
uma racionalidade científica inabalável, o padrão de racionalidade
moderno, exaltado principalmente a partir do século XIX,
vislumbra o senso comum e os estudos humanísticos como
potencialmente perturbadores do conhecimento, conforme destaca
Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 60-61). Os saberes
tradicionais, a expressão da cultura como uma face que intercadeia

104
e completa a ciência é repelida pela perspectiva de ciência
tradicional, como destaca Leff (2009).
As ciências naturais são assumidas como um padrão para
a cientificidade, as leis naturais revelam-se como a construção
calcada em base empírica, positiva do saber ordenado
cientificamente. O conhecimento científico somente é possível por
meio do positivismo de que são dotadas as ciências naturais,
solidificando-se em bases excludentes, em um repúdio mesclado
com desprezo por aquelas composições que não perfilhassem o
modelo de recepção e assimilação representativo desenhado em um
quadro-filtro da teoria do conhecimento. É neste sentido que José
Ricardo Cunha (2002) refere-se a uma acomodação do
pensamento, a uma padronização do mesmo em estandartes de
manifestação e aceitação. O padrão epistemológico assume-se em
mecanicismo de premissas construídas e endereçamentos
exaustivos que permitiriam um fundacionismo das explicações. A
epistemologia aprisiona o próprio conhecimento, e assim tem-se o
próprio ser humano aprisionado em um padrão teleguiado de
reconhecimento que se afasta da humana para fins de legitimar-se.
A imagem de uma necessária ligação entre ciência e valorização dos
bens culturais é praticamente inviabilizada nesse roteiro. José
Ricardo Cunha destaca:

O sujeito livre da história parece ter sido


aprisionado no reino da natureza onde os
acontecimentos são definidos não pela
liberdade, mas pela necessidade, onde não há
possibilidade de escolha, apenas de

105
contemplação de uma condição que não é
construída, mas necessariamente dada pelas
circunstâncias; da mesma maneira que ocorre
na lógica analítica em que o pensamento não
é livre para escolher ou deliberar, mas apenas
conclui um resultado necessário da
articulação de premissas. (2002, p. 301)

Perde-se o ser humano enquanto agente definidor de sua


essência histórica, ao que a essência humana passa a ser formulação
alheia à própria autonomia, em pré-definição estipulada e trilhada
em enquadramentos conceituais. Segundo Hilton Japiassu (1978) o
ser humano passa a se afirmar obliquamente em uma limitação
modeladora, auferida em potencial afastamento da contaminação
de contingências e contextualizações. Esse modelo confronta-se
justamente por tender a uma inviável redução do ser humano ou
da ciência a postulados prévios e formatados em coisificação, em
dimensão estática estereotipada. Destaca Japiassu:

O homem cai em sua própria armadilha, pois


passa a ser ordenado às suas próprias obras,
cuja paternidade lhe é recusada. Torna-se
presa daquilo que o ultrapassa. Fica
submetido a uma lógica que não é a lógica da
história, mas a lógica de um pensamento de
ninguém, pois o cientista se anula diante de
seu saber. (1978, p. 10)

Neste contexto, emerge a crítica tayloriana, pregando o


autor canadense a necessidade de superação da epistemologia, não
para destruição, mas uma superação com afastamento
106
argumentativamente sustentado das bases que amparam a
construção do conhecimento e da própria compreensão como celas
que encarceram o ser humano e o mundo vivido. O ataque
argumentativo de Taylor dirige-se ao racionalismo, especialmente
ao intelectualismo. Uma das possíveis formas que o racionalismo
assume é o intelectualismo. A partir da razão, o intelecto estrutura
em percepção os conceitos da realidade, desprendendo-se desta e
forjando-se em autônomo.
Lado outro, a direção dos argumentos de Taylor
igualmente repele o comprometimento epistemológico gerado pelo
empirismo, o qual por vezes afasta o racionalismo ou maquia-se
enquanto tal. A superação da epistemologia em Taylor consiste no
transpasse da epistemologia hegemônica em prol de uma nova
concepção epistemológica. Taylor procura uma naturalização da
epistemologia, a fim de que "a privemos de seu caráter apriórico e
a consideremos uma ciência entre outras, um de muitos setores
mutuamente dependentes de nosso quadro do mundo" (2000, p.
14). É neste sentido que ele se apoia sobre a perspectiva
heideggeriana de "trazer-à-luz", de revelar suportes ocultados ou
ignorados pela epistemologia que identifica como dominante,
inclusive quanto à complexa interação conhecedor-conhecido. Em
via de consequência, o dualismo compreensivo, pertinente ao ser
humano como agente conhecedor apartado de sua cumulada
situação de objeto conhecido, é rejeitado pela teoria tayloriana.
A articulação dos bens culturais como coligados
necessariamente ao prisma de ciência e percepção de mundo
permite justamente o trazer à luz, o revelar como o perfil histórico

107
e compreensivo do ser humano afeta as próprias matrizes
científicas de uma sociedade. Os bens culturais não são assim
objetos de ação, são agentes de influência, influência por vezes
ignorada por não ser articulada. O racionalismo, particularmente o
intelectualismo, a que dirige Taylor seu ataque, caracteriza-se por
pilares centrais, funcionais na sustentação da visão epistemológica
dominante. Constituem referidos pilares o fundacionismo, a
concepção representacional (repercutindo no mecanicismo), o
atomismo e o desprendimento (repercutindo este na neutralidade
e objetivação).
A epistemologia dominante ascende em uma crença que
Taylor (2000) denomina por "empreendimento fundacional". As
reivindicações de verdade estariam sujeitas a uma disciplina
estabelecida em filtro de aprovação, cujo resultado depende da
sustentação diante do padrão de conhecimento. O estabelecimento
de uma fonte de reconhecimento do conhecimento, fonte última e
inconsútil em caráter apriorístico, erige-se como o próprio núcleo
temático da epistemologia. A perspectiva intelectualista procura
um conhecimento seguramente fundado: a explicação seria uma
auto-homologação da conclusão, tal qual um selo de aptidão,
derivado do procedimento de avaliação epistemológica. Em
correlação com o fundamento de emanação do conhecimento,
apresenta-se a concepção representacional, caracterizada com a
fixação de um quadro do mundo, dotando a ciência de um
arquétipo mecanicista de apreciação da realidade.
As expressões do mundo externo são captadas em uma
postura passiva, em observação, sujeitas a uma triagem intelectiva
que executa rotulações de sentido segundo a própria representação
108
previamente ornamentada. Neste sentido, afirma Taylor que o
conhecimento se posta mecanicamente, aliando-se à representação,
lançando a compreensão em uma seqüencial "recepção passiva de
impressões do mundo externo" (TAYLOR, 2000, p. 16). Desta
forma, o mecanismo que permite o conhecimento imprime-se pela
existência externa ao ser humano em uma sequencial captação
desta exterioridade, por meio de estruturas representacionais. Esse
marco epistemológico mitiga e circunscreve os bens culturais, tal
como renega a valia dos saberes tradicionais.
Ainda sob influência de Descartes, o conhecimento atrela-
se a determinado método confiável e proporcionador de certeza e
evidência. A certeza é encontrada em um trabalho mental de
verificação, na própria mente humana, o qual perquire o
fundamento do conhecimento. A mente deve ser destacada do
corpo, é preciso evitar erros e purificar o conhecimento, decantar o
conhecimento em relação ao próprio ser humano. Aduz Taylor: "o
próprio fato da clareza reflexiva tende a aprimorar nossa posição
epistêmica, desde que se entenda o conhecimento em termos
representacionais" (2000, p. 17).
Para o mecanicismo o "pensar é um evento realizado num
corpo entendido mecanisticamente" (2000, p. 79). A concepção
representacional, o fundacionismo e o mecanicismo coligam-se em
um arquétipo de purificação do conhecimento face o risco das
impressões humanas, deturpadoras e fonte de insegurança
inaceitável frente à perquirição da verdade. Enfeixando-se em um
padrão autocomplementado, a epistemologia dominante atrela-se
a noções vinculadas, proporcionando a concepção representacional

109
e o fundacionismo a imagem do sujeito como idealmente
desprendido, livre e racional, separado e imunizado dos mundos
natural e social, não dependendo sua identidade ou seu
pensamento do que está fora dele. A identidade proporcionada pela
vinculação do ser à cultura é fenômeno arredio ao padrão evolutivo
científico, sob essa linha de pensamento.

A primeira noção emerge originalmente no


dualismo clássico, em que o sujeito se aparta
até mesmo de seu próprio corpo, que ele pode
olhar como objeto, mas continua depois da
queda do dualismo na atual exigência de uma
ciência neutra e objetificante da vida e da ação
humanas. (TAYLOR, 2000, p. 19)

A visão racionalista proporcionou um modelo de


pensamento desprendido, desvinculado do próprio ser humano em
contexto, arguindo a partir daí o alcance da neutralidade, que prevê
uma irrelevância avaliativa em relação ao objeto, buscando apenas
o registro científico e da objetividade, na qualidade de apreensão
do mundo tal como ele é com a própria procura da condição
subjacente das coisas. A epistemologia desaguaria aqui na figura de
um self desprendido, ou seja, do "eu" como identidade do agente
destituído de um contexto histórico-cultural ínsito à compreensão,
afastado da experiência corporificada, pois são esses fatores alheios
à concepção representacional. Patrícia Mattos mapeia o conceito,
vindo a afirmar que "por self desprendido deve-se entender o self
construído fora de suas fontes morais, tornando, dessa forma,

110
invisível a configuração moral que o constituiu" (MATTOS, 2006,
p. 35).
Desenvolve-se aqui uma visão pontual do self, idealmente
configurado como livre e racional diante dos mundos natural e
social em que está envolvido. O conhecimento tomado pelo
desprendimento deságua na trilha atomista de apreciações da
sociedade como que construída com propósitos individuais, ou
explicável em função da própria individualidade não encadeada em
intersubjetividade. O entrecruzamento dos pilares do modelo
epistemológico dominante proporciona uma teia aparentemente
fechada e coesa, estabelecendo um padrão de compreensão que se
infiltra mesmo no senso comum. É neste sentido que Taylor afirma
que o modelo racionalista em questão possui o ônus da prova a seu
favor:
Quando digo que esse modelo racionalista
penetrou no senso comum, digo em parte que
a primeira reação da maioria das pessoas
quando lhes é pedido que teorizem sobre o
pensamento toma a forma desse modelo,
porém afirmo ainda que ele se beneficia de ter
o ônus da prova a seu favor. Isto é, sua posição
é a padrão. Faz-se necessário elaborar fortes
argumentos filosóficos para convencer as
pessoas a pensar sobre isso de outro modo,
para fazê-las recusar algo que parece óbvio.
Mas na ausência de uma refutação com esse
feitio, o modelo não precisa de defesa.
(TAYLOR, 2000, p. 81)

111
A elaboração dos argumentos de Taylor para confrontar a
epistemologia dominante parte de expoentes filosóficos na cultura
ocidental, trilhando um caminho de síntese construtiva
direcionada a lançar seus pilares par terre. Segundo Taylor, os
quatro pensadores mais importantes na crítica à epistemologia são
Hegel, Merleau-Ponty, Wittgenstein e Heidegger. Consideram-se
aqui dois pontos argumentativos substanciais. O primeiro se refere
ao pressuposto do reconhecimento como experiência a respeito de
algo, algo este que demandaria sua prévia compreensão. O segundo
argumento, referente às representações, afirma que sendo as
representações afetas a um objeto, vinculadas estão em um
relacionamento entre si.

Apesar dessa mudança extremamente


importante do centro de gravidade daquilo
que tomamos como ponto de partida, há uma
continuidade entre Kant e Heidegger,
Wittgenstein ou Merleau-Ponty. Todos eles
partem da intuição de que esse fenômeno
central da experiência, ou o 'trazer-à-luz', não
é tornado inteligível na concepção
epistemológica, nem em sua variante
empirista nem racionalista. A concepção
epistemológica oferece um relato de estágios
do conhecedor que consiste num amálgama
em última análise incoerente de duas
características: (a) esses estados (as idéias) são
autocontidos no sentido de que podem ser
acuradamente identificados e descritos em
abstração do mundo 'exterior' (trata-se
naturalmente de um ponto essencial para todo

112
o impulso racionalista de verificação reflexiva
das bases do conhecimento); e (b) eles assim
apontam para as coisas desse mundo exterior
e as representam. (TAYLOR, 2000, p. 20-21)

Superar a epistemologia dominante em Taylor converte-


se na tarefa de solucionar a incoerência ínsita àquela,
demonstrando a falível alegação de abstração para com o mundo
exterior assim como a insuficiência do desprendimento e da
representação. Podem-se visualizar duas formulações que são
tomadas por Taylor para desenvolvimento e ataque ao padrão
epistemológico dominante, o "trazer-a-luz" e o "estar-no-mundo",
ambos afetos ao desenvolvimento filosófico de Heidegger (2002).
Igualmente, municia-se Taylor em Wittgenstein (1994),
construindo assim um arcabouço argumentativo abastecido pela
teoria da linguagem, amparando-se na virada linguística ou giro
hermenêutico. Explicita Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz a
dimensão do giro hermenêutico, que proporcionou a reorientação
do processo de compreensão humana:

no lugar de investigações em torno do método


mais seguro para que se possa obter sucesso
no conhecimento, a atividade hermenêutica
passou a investigar o que efetivamente
acontece em todo processo de compreensão
humana, porque esta é a estrutura própria do
homem inserido no mundo. (DINIZ, 1998, p.
212)

113
Lançando-se através da teoria da linguagem enquanto
núcleo da compreensão, Taylor renega o atomismo de sentido, que
consistia na visão de que as palavras recebem sentido por estarem
vinculadas com um objeto numa relação de nomeação ou
significação. Os significados não são oriundos de uma
representação imputada e pré-definida, mas sim estão imersos no
contexto da própria vida, no contexto do próprio mundo, lançando
a representação para uma imersão de sentido vivenciado. Os
significados são afetados pela projeção e composição de sentido que
os bens culturais projetam em sociedade.

A ideia de que o significado de uma palavra


consiste apenas em sua relação ao objeto que
nomeia, concepção atomista por natureza, cai
por terra quando se percebe que essa relação
se apóia numa compreensão advinda de um
'pano de fundo', não tendo sentido sem ela.
Mas a compreensão não se refere a ações
individuais, mas aos jogos de linguagem em
que estas figuram e eventualmente a todo o
modo de vida em que esses jogos têm sentido.
(TAYLOR, 2000, p. 87)

A ofensiva à epistemologia dominante está desenhada. O


"estar-no-mundo", a contextualização histórico-cultural, impede
que se admita as bases da concepção representacional. A
representação destaca a compreensão do sujeito como situado
mundo, histórica e culturalmente influenciado, presumindo-se
para além do próprio mundo existencial. Entretanto, a própria
representação igualmente está situada histórico-culturalmente. É
114
nessa dinâmica que os bens culturais assumem o relevo da
afirmação do sentido e da identidade, assim como influem nos
saberes tradicionais e nos ditos saberes científicos.
É nesta linha de interpenetração que Taylor afirma que
"podemos traçar uma nítida linha entre meu quadro de um objeto
e esse objeto, mas não de minhas relações com o objeto e esse
objeto" (2000, p. 24). O atomismo é afastado pela própria condição
de compreensão e orientação em engajamento, pois a interação
produtora do contínuo fazer-sentido situa-se não no interior do ser
humano, mas na vida em coletividade, na sociedade. A construção
tayloriana caracteriza o agente humano como finito e engajado,
proporcionando a libertação do racionalismo a partir da
contextualização do ser humano em determinado pano de fundo.
Os bens culturais integram a arquitetura compreensiva da conexão
humana entre o passado, o presente e o futuro, confrontando o
aspecto desprendido para enfatizar o potencial de articulação,
mesmo que fragmentada.

É nesse sentido que desejo usar o termo 'pano


de fundo'. Trata-se daquilo que não só não
percebo, como não percebo o que se passa
neste momento do outro lado da lua, porque
ele torna inteligível aquilo que
incontestavelmente percebo, como, ao mesmo
tempo, não o percebo explícita e focalmente,
porque esse status já é ocupado por aquilo que
ele está tornando inteligível. Outra maneira de
enunciar a primeira condição, a de que não
percebo o pano de fundo, é dizer que este

115
constitui aquilo que sou capaz de articular, ou
seja, aquilo de que posso tirar a condição de
facilitador contextual implícito e não-dito –
em outras palavras, aquilo que posso tornar
articulado. Nessa atividade de articulação,
aproveito minha familiaridade com o pano de
fundo. (2000, p. 81)

A compreensão situada no pano de fundo não se efetiva


em uma dimensão individual insular, está enlaçada em práticas e
ações intersubjetivas, em uma síntese coletiva produtora e
receptora, em constante mutabilidade. A consideração do pano de
fundo envolvendo a própria compreensão e sua condição de espaço
intersubjetivamente compartilhado afasta uma apreciação
monológica do engajamento do agente, remetendo a uma
apreciação dialógica de ações, a qual informa, conforma e reforma
sua própria identidade em uma pertinência coletiva, contrária ao
atomismo. Para Taylor (1997), a conformação em identidade do ser
engajado está afeta à coletividade e seu contexto. Assim, não é
possível entender o estreito vínculo entre identidade e o
reconhecimento de forma monológica, posto que "a característica
crucial da vida humana é seu caráter fundamentalmente dialógico"
(ARAÚJO, 2004, p. 175).

3. O EXPRESSIVISMO E O SER HUMANO COMO SER


AUTOINTERPRETATIVO

A superação da epistemologia dominante acarreta


considerações profundas sobre a própria confecção da imagem

116
humana, sobre o enquadramento do ser humano como animal
racional, baluarte do racionalismo e afeiçoada pelo intelectualismo.
A crítica à pretensa pureza racional do ser humano é algo
consequencial da teoria tayloriana. Na obra "As Fontes do Self",
Taylor refere-se à virada expressivista. O desprendimento, a
neutralidade, objetividade e a concepção representacional afastam
o conhecimento do próprio ser humano, produzem um quadro
frágil e insuficiente que somente é compreensível e sustentável a
partir de um pano de fundo com substância inarticulada e
excludente.
O sentimento humano e as manifestações do agente
engajado como ser que se expressa não podem ser renegadas ou
destituídas de valor por parte da epistemologia. A contextualização
significativa toca ao ser humano para além da razão. O pano de
fundo que envolve o agente engajado não se limita a compreender
e sustentar manifestações da "razão", a expressão humana é
articulada e fonte de compreensão contextualizada, o todo cultural
implica a forma da própria ciência. Uma mesma informação pode
ser transmitida com cargas de expressão diversas, derivando
igualmente compreensões diversas e perspectivas de sentido
divergentes.
Taylor (1997) inicia a abordagem do ser humano como
ser que se expressa em coletividade, remetendo à filosofia da
natureza e do período romântico. A fim de evitar-se ambiguidades
quanto à expressão utilizada, tem-se por romantismo o
pensamento de combate ao racionalismo em prol da exaltação dos
direitos de afirmação do indivíduo, da imaginação e do sentimento,

117
em uma relação com a natureza estabelecida na vivência e não na
observação. A filosofia da natureza, focando o contato do ser
humano como integrante da natureza que o envolve, confere
relevância ao sentimento em viés de primazia. Está ela direcionada
à "determinada forma de experimentar nossa vida, nossos desejos e
realizações comuns e a ordem natural maior em que estamos
inseridos" (TAYLOR, 1997, p. 477).
Desta forma, destaca Taylor que o modo de vida ou a ação
não são determinados por uma previsão racional calculista, mas
por sentimentos. A intersubjetividade que desenvolve o pano de
fundo é assim inerentemente impregnada de sentimentos humanos
em sua configuração e contextualização. Reconhecer o pano de
fundo e o engajamento do ser humano é tê-lo para além de uma
racionalidade neutra e objetiva em mecanicismo. A expressão
humana em sua interpretação para com o mundo vivenciado e sua
própria conformação para com o modo de vida deslocam o
conhecimento e a própria ciência para infiltrações de
expressividade, tal como todas as construções elaboradas sob o
envolvimento do pano de fundo. Aqui figura o denominado
expressivismo, ao que Taylor esclarece:

Se nosso acesso à natureza ocorre por meio de


um impulso ou voz interior, só podemos
conhecer plenamente essa natureza pela
articulação do que encontramos dentro de
nós. Isso está ligado a outro traço crucial dessa
nova filosofia da natureza, a idéia de que sua
realização em cada um de nós é também uma
forma de expressão. Essa visão que chamei em

118
outra parte de 'expressivismo'. Estou
focalizando características particulares de
expressão ao usar este termo. Expressar algo é
torná-lo manifesto em determinado meio.
Expresso meus sentimentos no rosto; expresso
meus pensamentos nas palavras que falo ou
escrevo. Expresso minha visão das coisas em
uma obra de arte, talvez num romance ou
numa peça de teatro. Em todos esses casos,
tenho a noção de estar tornando algo
manifesto e, em cada um deles, em um meio
que tem certas propriedades específicas.
(TAYLOR, 1997, p. 480)

A ideia de que cada ser humano é original e diferente,


manifestando-se e expressando-se em cognição e expressão,
articulada a determinado contexto que cerca sua vida, em cultura e
integração social, desenvolve-se já no fim do século XVIII, segundo
Taylor (1997). A característica relevante não é tanto a consciência
da peculiaridade da diversidade humana, mas sim os liames
estabelecidos desta última para com os modos de vida expressados
em sociedade. O expressivismo contrasta com o desprendimento
da epistemologia dominante, fundada em mescla de racionalismo
intelectualista e empirismo. Realiza-se aquele por manifestações de
construção, de trazer à existência, e não em representação em uma
sede de observação. Contrapõe Taylor o expressivismo à ótica
iluminista. Destaca Araújo:

O confronto entre expressivistas e


designativos leva Taylor a pôr os primeiros no

119
campo dos herdeiros dos românticos e os
segundos no campo dos herdeiros dos
iluministas. Com essa separação, Taylor
pretende tornar claras as raízes que fundam a
cultura tecnocrata e a cultura sensível, ou
ainda a diferença entre a razão instrumental e
o valor intrínseco humano de certas formas de
vida que precisam necessariamente ser
reconhecidas. A batalha entre esses dois
campos acaba criando uma cisão na cultura
ocidental moderna. (ARAÚJO, 2004, p. 31)

O expressivismo volta-se para o desenvolvimento do


contato com o ambiente, para a superação da artificial separação
entre razão e sensibilidade. Mais uma vez a questão remete para a
formação do pano de fundo, principalmente no aspecto da
corporificação, para a superação das divisões entre os seres
humanos em uma solidariedade do processo de vivência. Os
contornos de relevância e projeção de importância dos bens
culturais faz-se perceptível. Mas essa relevância não flui da
consideração dos bens como objeto de apreciação, mas da
componente de integração que propiciam, no vetor e dinamismo
que propiciam por meio do caráter dialógico das interrelações
humanas.

Uma das grandes objeções ao desprendimento


iluminista era que criava barreiras e divisões
entre os seres humanos e a natureza e, talvez
mais deploravelmente ainda, dentro dos
próprios seres humanos; e também, como
conseqüência, entre os seres humanos. Esta

120
última divisão parece se seguir tanto por causa
das afinidades atomistas do naturalismo como
pelo fato de que a postura puramente
instrumental em relação às coisas não permite
na sociedade uma unidade mais profunda do
que o compartilhamento de certos
instrumentos. (TAYLOR, 1997, p. 492)

Estabelecido um liame entre conhecimento e sentimento,


negada a perspectiva isolada e desprendida do ser humano como
ser puramente racional e neutro, a perspectiva epistemológica
tradicional é abalada. Ela se mostra frágil principalmente após a
guinada linguística, a experiência e a consciência da ação e da
significação implicam em um novo referencial. A guinada
linguística é também uma guinada para a esfera pública. Levanta
ela a potencialidade de articulações dos saberes e pretensões
científicas, assim como sua interação com o contexto social crítico
que se encadeia progressivamente. Nesse panorama, “a linguagem
é o elemento estratégico para se compreender a construção das
articulações significativas que constituem a tomada de decisão de
um agente humano diante das questões ético-políticas que ocorrem
no espaço público." (ARAÚJO, 2004, p.23)
O acesso ao conhecimento não pode ficar restrito ou
apartado de uma compreensão do pano de fundo contextualizador,
agregando-se necessariamente o encadeamento cultural e histórico
na formulação de visões do mundo e significação. Como aduz
Araújo (2004, p. 116), criticando o ser humano enquanto animal
racional, Taylor afirma um expressivismo na compreensão do
humano por suas referências significativas sentimentais,
121
determinantes em modos de apreciação e viver. Evidentemente,
inclusive como consequência do caráter dialógico, há diversas
críticas manejadas em face da teoria tayloriana, comumente
voltadas à de perda da cientificidade e reflexão. Paulo Roberto M.
de Araújo afirma que há em Taylor uma excessiva valorização das
referências significativas centradas nos sentimentos, sem que se
esclareça com clareza o acesso ao conhecimento com base naquelas,
permanecendo o conhecimento em amálgama à reflexão racional
(ARAÚJO, 2004, p. 118). A par das críticas, Taylor se esforça em
sua obra por uma conexão não conflituosa entre o expressivismo,
principalmente no que tange às manifestações de sentimento, e o
conhecimento.
Ele procura fazer emergir uma razão situada e
compreendida contextualmente – a razão afasta-se do padrão
fundacionista e representacional, como critério de neutralidade e
objetividade. O centro de atenção será o ser humano em suas
relações desenvolvidas no espaço público, donde "a sua
preocupação, então, é ver o homem numa perspectiva realista
fenomenal, sem o pano de fundo das filosofias procedimentais, que
idealizam o sujeito moral através de processos, fundados nas
abstrações racionais, destituídos do caráter incorporado dos
sentimentos valorativos da identidade (self)" (2004, p. 120).
O humano é compreendido como ser que reflete sobre si,
em sua expressividade e segundo a superação epistemológica,
caracteriza Taylor (1997) o ser humano como ser que se
autointerpreta, ou animal que se autointerpreta, "a self-interpreting
animal". O ser humano encontra-se em articulação constante para
consigo e com o contexto que lhe envolve, encadeando-se e
122
fazendo-se agente engajado através do processo de interpretação,
para o qual são componentes imprescindíveis os bens culturais, que
desaguam e inspiram a elaboração dos direitos culturais. A
autointerpretação forma-se, conforma-se e reforma-se em uma
prática expressivista de manifestações dotadas de sentido e de
significado. A compreensão de significados e o estabelecimento de
intelegibilidade dos atos por meio do pano de fundo
contextualizam a compreensão das ações humanas, inclusive das
ações morais.
O núcleo da experiência humana não pode ser
compreendido em balizas desprendidas, pretensamente neutras e
objetivas. As ações humanas estão para muito além de uma
mecanização de ações ou pensamentos, o saber se encontra
constantemente comprometido com as condições de
intelegibilidade que lhe permeiam. Portanto, "a ação humana não
pode ser vista como mera elaboração de leis universais
desvinculadas das formas significativas que expressam valores por
meio de quem age." (ARAÚJO, 2004, p. 23). O conhecimento
humano é produto e produtor interpretativo dos contextos de
compreensão. Neste sentido afirma Patrícia Mattos que "o pano de
fundo da tese do animal que se autointerpreta é a denúncia do
enfoque que não leva em conta o papel constitutivo da
interpretação que temos de nós mesmos e da nossa experiência para
a definição daquilo que somos" (2006, p. 47).
Patrícia Mattos destaca que a interinfluência determina
uma constante articulação e rearticulação, tanto do sentido e da
intelegibilidade quanto dos sentimentos que geram interpretações

123
e concomitantemente são gerados por elas. O intelectualismo
sufoca a dinâmica da compreensão do ser engajado, o empirismo
proporciona um reducionismo e perde-se de sentido sem um piso
pré-estabelecido, que é mantido em inarticulação. A partir do
expressivismo, em uma nova sustentação epistemológica, razão e
sentimentos agregam-se na compreensão do ser engajado no
mundo, do ser humano atuante no espaço público em
autointerpretação.

São esses sentimentos referidos ao sujeito que


nos abrem para o universo humano. Não se
pode ter uma consciência desapaixonada do
bem humano e a qualidade dessa consciência
tem a ver com a relação que temos com nossos
sentimentos. É a articulação dos nossos
sentimentos vivenciados que permite montar
uma hierarquia entre eles, o surgimento de
uma escala superior e inferior, nobre e vulgar,
ou até a percepção da falsidade ou ilusão de
outros tantos (TAYLOR, 1985a: 63). É neste
sentido que se pode pensar o homem como
animal que se autointerpreta. (MATTOS,
2006, p. 47)

A compreensão do ser humano como ser


autointerpretativo vincula-se assim à perspectiva do expressivismo,
transpondo concepções enfeixadas em padrões fechados de
conhecimento e fomentando incômodos à perspectiva que se tenha
de trazer-à-luz. A superação epistemológica visualiza o
conhecimento não tendo em conta o humano puramente racional,
mas sim o ser autointerpretativo. O ser que interage com sua
124
cultura, que nela recolhe as raízes de sua compreensão de existência
e instituições. O conhecimento "no mundo", histórica e
culturalmente inteligível, captado não por máquinas de
processamento, mas por seres que vivem, interpretam, sentem e
produzem vida e interação, está irrefreavelmente ligado aos bens
culturais de dada sociedade.

4. OS DIREITOS CULTURAIS COMO DIREITOS À


AUTOINTERPRETAÇÃO

A superação epistemológica pregada pela teoria


tayloriana faz por refletir seus efeitos pela dinâmica da
interpretação jurídica. Ela exige o transpasse da epistemologia
denominada por Taylor de dominante em prol da assunção do
expressivismo, da visualização do sujeito engajado como ser
autointerpretativo, em uma coletividade igualmente
autointerpretativa, englobados ambos em um pano de fundo de
articulação fragmentada. Em tal perspectiva, transbordam de
importância os bens culturais. Os bens culturais são o alicerce de
significação e raiz de preservação do pano de fundo que permite
compreender formas de pensar, instituições e a própria matriz de
condução científica.
A articulação de valor dos bens reputados como
significativos para demandar uma proteção imperativa de seu valor
e preservação, a demandar a conformação de escudos para fins de
serem mantidos na sucessão geracional em uma sociedade, resulta
na proclamação dos direitos culturais. Os direitos culturais são

125
resultado da articulação de sentido significativo de determinados
bens chancelados por uma sociedade, ou mesmo pela própria
humanidade, como merecedores de proteção pelas normas
jurídicas. Os bens culturais possibilitam o exercício e a formação de
liames de interrelação humana, de alteridade e da compreensão dos
panos de fundo vivenciados. Os bens culturais são o alicerce para o
curso reflexivo e para a radicação do ser humano em sua condição
de animal que se autointerpreta.
Se por vezes são os direitos culturais, e consequentemente
os bens culturais escanteados ou postos em segundo plano de
relevo, isso se deve às inflexões ainda existentes do modelo
hegemônico de percepção epistemológica. A pretensão de tutela
liga-se ao fato de que não basta ser racional, a pureza racional não
existe, e inclusive para a compreensão da racionalidade é necessário
contextualizar o ser humano em face do cenário sociocultural que
lhe envolve ou envolveu. Não podem, portanto, os direitos culturais
serem confinados a apêndice jurídico. Sua relevância está afeta à
própria formação da identidade e interação comunicativa em
constante reformulação. A configuração de identidade, por sua vez,
está afeta às manifestações expressivistas, à própria explicitação de
sentimentos de engajamento, estabelecendo parâmetros de sentido
e intelegibilidade. Gisele Cittadino destaca:

Assim, nos identificamos como membros de


um grupo quando somos capazes de ver
nossos próprios sentimentos e ações com o
mesmo olhar com que os demais também
veriam. É precisamente por isso que a idéia de
'outro generalizado' formulada por G. H.
126
Mead é tão cara ao pensamento de Charles
Taylor e Habermas. (2005, p. 259)

Os direitos culturais advêm na órbita constitucional na


qualidade de garantias à identidade, à expressão não atômica do ser.
Cimentam-se em conjunturas de convivência coletivas, permitindo
a elaboração em articulação do pano de fundo da expressão
humana, que desencadeará e tornará inteligível em sentido a
liberdade de expressão e comportamento em escala individual. Os
direitos individuais somente podem ser compreendidos a partir de
um pano de fundo contextualizador, englobando compreensões e
significados, e por sua vez a amparar em sentido a elaboração e
delineamento daqueles.
A densificação da importância dos direitos culturais está
intimamente atachada à superação da epistemologia dominante, do
afastamento do fundacionismo e da concepção representacional,
ou qualquer pretensa objetividade ou neutralidade. Assim, os
direitos individuais se encontram submersos em um pano de fundo
inarticulável em sua integralidade e configurado em
intelegibilidade e sentido a partir de bases histórico-culturais
dinâmicas em contínua formação, conformação e reformulação. Os
direitos culturais permitem uma interação dialógica e corporificada
dos seres humanos reconhecidos antes de tudo como seres
autointerpretativos. Nesses trilhos, os direitos culturais se
configuram como direitos fundamentais 2, afetos às interações

2
Para os efeitos do presente trabalho, consideram-se os direitos fundamentais sob
a perspectiva delineada por Gilmar Ferreira Mendes: "Os direitos fundamentais
são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem
127
intersubjetivas. Em mesma gravitação, Pierré-Caps situa os direitos
culturais tendo em conta a projeção no indivíduo e seu caráter
dialógico, firmando-o como direito à identificação cultural e direito
à autodeterminação cultural coletiva. Explicita-se:

Direitos individuais, os direitos culturais


exprimem-se, de forma genérica, pelo direito
à diferença. Direito individual a ser si mesmo,
'à identificação cultural', este direito está
inscrito no jogo dos princípios da igualdade e
de não discriminação sem os quais não pode
existir um verdadeiro direito fundamental do
homem. (1995, p. 231)

Não paralelamente, mas de forma integrada à face


individual dos direitos culturais, situa-se autor a face coletiva, a
qual possui seu fluxo de realização por meio do grupo, em uma
interação de expressões. A partir desta perspectiva, “os direitos
culturais são também direitos colectivos, restituindo assim o
indivíduo à sua própria existência social. De forma simétrica, a
dimensão colectiva dos direitos do homem pode ser dada pelo
direito genérico à 'autodeterminação cultural', no sentido que nós

constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais


outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos
órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem
constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que não
asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto aqueloutros, concebidos
como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um
Estado de Direito democrático." (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 2)
128
próprios damos ao conceito de autodeterminação. (PIERRÉ-CAPS,
1995, p. 231). Os direitos culturais se espelham na condição de
direitos à autointerpretação, afetos à compreensão de sentido do
ser engajado, em sua plena afirmação expressivista.
As formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver
são manifestações expressivistas que consubstanciam diversos
modos de sentir, diversas avaliações fortes manifestadas através da
linguagem, postas em compreensão pelos envolvidos em ações
dialógicas, onde os sentimentos são interpretados e são fontes de
interpretação, em que o ser humano enquanto ser
autointerpretativo é reconhecido e constrói-se em identidade.
Justamente em razão da variedade dessa projeção os bens culturais
podem ser materiais ou imateriais.
Somente com a consideração do ser humano como ser
autointerpretativo, somente acolhendo-se a superação
epistemológica empreendida por Taylor, na compreensão pelo
expressivismo, pode-se imputar sentido e intelegibilidade em
determinadas expressões e contextos, o que abrange o
compreender normativo. Exemplificativamente, verifica-se o
disposto no artigo 215, em seus §1º e § 2º, da Constituição da
República3. A determinação de que a lei disponha sobre datas

3
Artigo 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
129
comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais remete a uma consideração expressivista: não se
pode atribuir sentido ou intelegibilidade a "alta significação" sem
perquirir junto aos agentes engajados, restando-se insuficiente e
débil qualquer pretensão interpretativa fundada na epistemologia
dominante.
Somente através da manifestação humana de
sentimentos, ancorada aqui na dimensão expressivista, somente
tomando o ser humano como ser que se autointerpreta em um
espaço público dotado de dialogicidade, pode-se estabelecer quais
são as datas comemorativas de alta significação para cada segmento
étnico. Irresolúvel seria a questão pelo fundacionismo, pelo
primado do atomismo e do desprendimento.
Igualmente, a caracterização do que sejam manifestações
culturais, arte, manifestações artísticas, dentre outras, depende
fundamentalmente de uma abordagem expressivista, em uma
exaltação da compreensão de uma linguagem sentimental e
articulada pela razão que proporcione intelegibilidade. O próprio
artigo 216 da Constituição 4, ao mencionar bens portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, está a demandar a
compreensão do ser humano, em sua interação dialógica e

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação


para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
4
Artigo 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
130
corporificada. Há uma imperativa abordagem das bases
autointerpretativas, pois é a própria interpretação expressivista que
irá definir quando um bem se revela portador de identidade
construída histórico-culturalmente por um povo.
Não é a matéria ou objeto em si, não é a consideração
objetiva do bem em si, é o significado que se constituiu para
determinada pessoa ou grupo de pessoas. A insuficiência do padrão
epistemológico dominante aclara-se. A superação da epistemologia
da concepção representacional-fundacional é assim pressuposto
para a formação e coerente compreensão do conhecimento, e
igualmente pressuposto na interpretação normativa, em uma
crescente que avance em prol do rompimento para com a
epistemologia dominante. Os direitos culturais permitem a
manutenção de liames de representação e significação, em uma
reconstrução do ser humano em contextualização imersa em um
pano de fundo posto em interpretações comumente fragmentadas.
Os direitos culturais concentram a perspectiva do ser humano se
autorreconhecer e autoidentificar em contato com a diversidade,
em contato consigo mesmo, proporcionando a efetivação de sua
natureza autointerpretativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A epistemologia dominante se revela insuficiente frente à


complexidade da sociedade contemporânea, insuficiente em seu
padrão atomístico e na consideração externa e desfocada do ser
humano, reduzindo-o em padrões mecanicistas a um modelo de

131
processamento comportamental. O fundacionismo e a concepção
representacional não viabilizam uma apreciação engajada do ser
humano, impedindo sua compreensão como ser que vive em uma
comunidade na qual está engajado.
A crítica epistemológica de Charles Taylor é a crítica da
superação do padrão dominante em prol de uma nova
compreensão da articulação do conhecimento em relação à razão e
sua interlocução com o sentimento e expressividade. Ela se funda
em bases histórico-culturais, em um pano de fundo que permite
intelegibilidade e sentido ao mundo vivido assim como com ele
interage e se projeta. A construção desenvolvida viabiliza a
expressão da alteridade e da referenciabilidade do ser humano,
alicerçada nos bens culturais que assim se afigurem ao longo do
processo dialógico de interação intergeracional.
O engajamento humano está anteparado para além de
bases puramente racionais, revelando e reconhecendo o ser
humano como um ser que se expressa, um ser que se manifesta em
um conjunto inarticulado, mas passível de articulação, de relações
pressupostas. Nesse prisma, os bens culturais, e, portanto, a
proteção jurídica neles irradiada, não possui vertente passiva, mas
sim ativa em sua produção de efeitos e significados. O ser humano,
tanto individual quanto coletivamente, não é objeto, é criador e
receptor no mundo em que vive. O ser humano é ser
autointerpretativo, construindo e reconstruindo a si e a
coletividade em que vive. Nega-se o atomismo, o ser é visto como
ser engajado, ser em intersubjetividade comunicativa. A
epistemologia reformulada situa-se no próprio contexto histórico

132
cultural, liberta-se do mecanicismo, e reconstrói-se em
interatividade.
A virada expressivista, a compreensão do ser humano na
condição de ser autointerpretativo, reorienta a percepção dos
direitos culturais. Erigidos a direitos fundamentais, os direitos
culturais se despertam de bases racionais desprendidas para sua
compreensão, exigindo o teor expressivista em seu sentido e
intelegibilidade. Arquiteta-se a necessária compreensão das
interações humanas como implicadas em instituições, normas e
processos comunicativos voltados para uma constante reflexão e
autointerpretação de fins, objetivos e autorrealização, individual e
coletiva. O deslocamento do intérprete para o próprio agente
engajado é o que permite o sentido, a apreensão da dinâmica
contextual, o padrão histórico-cultural que confere a condição de
possibilidade na compreensão.

133
REFERÊNCIAS

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TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. Trad. Adail


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135
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moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu
Azevedo. Rev. Renato da Rocha Carlos. São Paulo: Edições Loyola,
1997.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad.


Marcos Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 1994.

136
A JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO
SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO FACE AO PRINCÍPIO
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA ANÁLISE DO
RECURSO ESPECIAL 580.282/MS

THE JUDICIALIZATION OF PUBLIC POLICIES IN THE


BRAZILIAN PRISON SYSTEM PRESENTS THE PRINCIPLE
OF SEPARATION OF POWERS: AN ANALYSIS OF THE
SPECIAL REMEDY 580.282 / MS

Laís Freire Lemos1


Daniela Martins da Cruz 2
Sérgio Henriques Zandona Freitas 3

RESUMO: Diante das deficiências e disfunções enfrentadas pelo


sistema prisional brasileiro em especial a violência no cárcere e as
violações dos direitos fundamentais dos aprisionados, a
comunidade jurídica passou a indagar as políticas públicas voltadas
ao setor prisional e a efetividade do cumprimento da pena privativa

1
Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
2
Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
3
Pós-Doutor em Direito pela UNISINOS. Pós-Doutorando em Direito pela
Universidade de Coimbra. Doutor, Mestre e Especialista em Direito pela PUC
MINAS. Professor do PPGD – Mestrado em Instituições Sociais, Direito e
Democracia da Universidade FUMEC. E-mail: sergiohzf@fumec.br Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2720114652322968. Pesquisa desenvolvida como
resultado do ProPic 2016-2017 na Universidade FUMEC, com apoio da
FAPEMIG, tendo como coordenador o co-autor
137
de liberdade. Partindo do pressuposto de que vivemos sob a égide
do Estado Democrático de Direito, onde os direitos humanos
devem ser plenamente assegurados, passou-se a discutir a
responsabilização civil do Estado em virtude de sua ineficiência
como único detentor do direito de punir e das degradações aos
direitos fundamentais dos aprisionados. Diante de tal fato, houve a
judicialização da situação prisional brasileira, onde o Poder
Judiciário foi invocado a dirimir o litígio, por intermédio do RE
580.282/MS. Dessa forma, busca-se analisar a atuação do Poder
Judiciário frente ao princípio da separação de poderes e quais são
os limites para a sua atuação. Utiliza-se para o desenvolvimento do
estudo o método descritivo e analítico, a partir do qual foi possível
fazer a conceituação do princípio da separação de poderes, ativismo
judicial e judicialização, em consonância com o ordenamento
jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; separação de poderes;
Supremo Tribunal Federal; políticas públicas; sistema prisional
brasileiro.
ABSTRACT: Faced with the deficiencies and dysfunctions faced
by the Brazilian prison system, especially the violence in the prison
and violations of the fundamental rights of prisoners, the legal
community started to investigate the public policies focused on the
prison sector and the effectiveness of the custodial sentence. Based
on the assumption that we live under the aegis of the Democratic
State of Right, where human rights must be fully ensured, the civil
responsibility of the State has been discussed because of its
inefficiency as the sole holder of the right to punish and of the rights
of the prisoners. Faced with this fact, there was the judicialization
of the Brazilian prison situation, where the Judiciary was invoked
to settle the litigation, through RE 580.282 / MS. In this way, it is
sought to analyze the Judiciary Power's action against the principle
of separation of powers and what are the limits to its performance.
138
The descriptive and analytical method is used for the development
of the study, from which it was possible to conceptualize the
principle of separation of powers, judicial activism and
judicialization, in accordance with the Brazilian legal system.
KEYWORDS: Human rights; Separation of powers; Federal Court
of Justice; public policy; Brazilian prison system.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Análise do mérito do reconhecimento da responsabilidade do
Estado pelas violações no cárcere no Supremo Tribunal Federal.
3. O princípio da separação dos poderes face aos aspectos inerentes
à judicialização de políticas públicas.
4. A judicialização no Brasil aplicada nos Tribunais brasileiros.
5. Os limites constitucionais para a intervenção do judiciário nas
políticas públicas.
6. A judicialização no sistema penitenciário brasileiro.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

O presente estudo analisa a posição do Supremo Tribunal


Federal no julgamento de mérito das demandas submetidas a sua
apreciação em consonância com o princípio da separação de
poderes e a judicialização de questões atinentes às esferas dos
Poderes Legislativo e Executivo para efetivação e resguardo dos
direitos fundamentais.
Fundamenta-se o estudo na Constituição Brasileira,
prevalência dos direitos fundamentais, aspectos inerentes à
139
judicialização e ativismo judicial, em conjugação com as
competências inerentes de cada um dos poderes.
Partindo do pressuposto insculpido sob a égide do Estado
Democrático de Direito, o qual confere aos indivíduos o resguardo
de seus direitos e garantias fundamentais conquistados ao longo
dos séculos, onde se reconheceu as liberdades individuais no
Estado Liberal, os direitos econômicos, sociais e culturais no Estado
Social e, por fim, os direitos inerentes à solidariedade, fraternidade,
integração, busca pela paz, meio ambiente equilibrado,
consagrando por fim, o Estado Democrático de Direito.
No Estado Democrático de Direito, de acordo com o
ordenamento jurídico brasileiro, existem três poderes
independentes e harmônicos entre si, com atribuições específicas
destinadas a cada um deles 4.
De tal forma, o sistema constitucional brasileiro adotou
nitidamente a tripartição dos poderes, existindo os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, de forma autônoma e
independente, de modo que a não admitira interferência de poder
no campo de atuação de outro, sob pena de ferir o principio
constitucional da separação de poderes.
Sob esse aspecto, o Estado, por meio de seu Poder
Legislativo cria e edita leis, o Poder Executivo a sanciona ou realiza
o veto e, por sua vez, o Poder Judiciário, a aplica ao caso concreto,
em face dos fatos apresentados.
Ocorre que, à medida que os poderes executivo e

4
Constituição Federal Brasileira de 1988 – Artigo 2º São Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
140
legislativo se mostravam ineficientes em suas funções precípuas, o
Poder Judiciário foi sendo invocado a dirimir questões envolvendo
repercussões políticas e sociais, sobretudo a efetivação e resguardo
dos direitos fundamentais, acarretando o que se denominou
judicialização.
Nesse espeque, questiona-se se a atuação do Poder
Judiciário em matérias precípuas atinentes aos Poderes Legislativo
e Executivo, viola ou não o princípio da separação dos poderes
insculpido na Constituição Federal.
Como plano de fundo do debate, utilizaremos o
julgamento do Recurso Extraordinário 580.232/MS, onde o
Supremo Tribunal Federal reconheceu que o Estado é civilmente
responsável pelos danos morais comprovadamente causados aos
presos em decorrência da violação de sua dignidade provocados
pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições
desumanas ou degradantes, sendo esta uma deficiência crônica de
políticas públicas prisionais adequadas (STF, 2017).
O problema que permeia a pesquisa é justamente a
possibilidade do Supremo Tribunal Federal, como órgão do Poder
Judiciário, decidir demandas que atinjam diretamente a autonomia
dos Poderes Legislativo e Executivo, como no caso acima suscitado,
e, havendo tal possibilidade, quais seriam os limites frente ao
resguardo dos direitos fundamentais do indivíduo dentro do
Estado Democrático de Direito.
O objetivo do presente trabalho é analisar a atuação do
Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso
Extraordinário 580.282/MS, considerando a proteção e resguardo

141
dos direitos fundamentais, separação de poderes, Estado
Democrático de Direito, judicialização e ativismo judicial.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do
estudo baseou-se no método descritivo e analítico, a partir do qual
foi possível fazer a conceituação do princípio da separação de
poderes, ativismo judicial e judicialização, em consonância com o
ordenamento jurídico brasileiro e a prevalência dos direitos
fundamentais.
Utilizou-se pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, onde
se busca elementos de convicção suficientes para perquirir e
analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal no julgamento de
mérito em demandas atinentes à esfera de atuação dos Poderes
Legislativo e Executivo.

2. ANÁLISE DO MÉRITO DO RECONHECIMENTO DA


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELAS
VIOLAÇÕES NO CÁRCERE NO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal, invocado pela Defensoria


Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, em virtude do
descumprimento do dever estatal de conferir aos indivíduos presos
condições dignas de encarceramento, julgou no início do ano de
2017 o Recurso Extraordinário 580.282/MS, conferindo
procedência ao pedido, e, reconhecendo que o Estado é civilmente
responsável pelos danos morais comprovadamente causados aos
presos em decorrência da violação de sua dignidade, provocados
pela superlotação prisional e encarceramento em situações
142
desumanas e degradantes.
No caso em comento, o Estado do Mato Grosso do Sul foi
condenado a arcar com o pagamento a título de danos morais ao
Recorrente no valor pecuniário de R$2.000,00 (dois mil reais), em
decorrência do encarceramento em condições degradantes e da
superlotação. Decidiu-se também pela aplicação da cláusula da
reserva do possível, reconhecendo a necessidade de implementação
de políticas públicas voltadas ao setor prisional, o que, exigiria
disponibilização de verba orçamentária.
Sendo voto vencido, o Ministro Luís Roberto Barroso
(STF, 2017) votou contrariamente ao pagamento da indenização
pecuniária, uma vez que não resolveria o caos da situação
penitenciária, e apenas geraria gastos ao Estado para custeio das
indenizações, mantendo o indivíduo nas mesmas situações
degradantes. Para ele, tais valores deveriam ser revertidos em
função da implementação de políticas públicas destinadas à
melhoria das condições de encarceramento.
Propôs dessa forma, a substituição da indenização
pecuniária pela compensação dos danos sofridos com a remição da
pena aplicada na proporção de um a três dias para cada sete dias
cumpridos em condições degradantes, o que, na visão de muitos
estudiosos do direito, caracteriza uma típica atuação ativista por
parte do Ministro Barroso.
Frente às graves disfunções e deficiências existentes no
setor prisional e a efetiva lesão aos direitos fundamentais dos
indivíduos submetidos ao cárcere, a questão antes pertencente às
esferas de atuação dos Poderes Legislativo e Executivo, por

143
intermédio da judicialização visando a prevalência e resguardo dos
direitos fundamentais, veio agora à apreciação do Poder Judiciário.
Assim, como plano de fundo o julgamento do Recurso
Especial 580.282/MS (STF, 2017), analisaremos os preceitos
fundamentais constitucionais inerentes à separação dos poderes
frente ao avanço da judicialização das políticas públicas.

3. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES FACE


AOS ASPECTOS INERENTES À JUDICIALIZAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS.

Quando tratamos de decisões judiciais, principalmente as


que referem à alocação de recursos e orçamentos, é costumeiro vir
a tona a violação do princípio da divisão ou separação dos poderes,
uma vez que há interferência em decisões administrativas ou
legislativas.
A Constituição brasileira de 1988 instituiu o princípio da
separação dos poderes no artigo 2º, segundo o qual: “São Poderes
da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário”.
As primeiras bases teóricas para a ideia de tripartição de
Poderes foram lançadas na antiguidade grega por Aristóteles, em
sua obra intitulada “Política”, onde se considerava a existência de
três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam:
a de editar normas gerais a serem observados por todos, a de
aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a
função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da
execução das normas gerais aos casos concretos.
144
Posteriormente, Thomas Hobbes em sua obra intitulada
“o Leviatã”, considerava que o poder deveria estar concentrado nas
mãos do soberano. Discordando de seu pensamento, John Locke,
considerava que havia a necessidade de separar a titularidade do
poder de editar leis da titularidade dos recursos e meios de governo,
aí incluindo o poder de coação sobre os indivíduos. Para ele,
quando o homem saía do “estado de natureza” e passava a instituir
a sociedade política, necessitava de um legislador racional, um juiz
certo e imparcial e um poder executivo com a força necessária para
fazer cumprir as sentenças (MAURICIO JÚNIOR, 2009).
Seguindo os mesmos posicionamentos de Locke,
Montesquieu trouxe à tona a clássica divisão dos poderes hoje
conhecida, onde ele considerava que, o poder deveria refrear o
poder, estabelecendo limitações recíprocas, sendo que, só assim,
poderia se garantir a liberdade política dos indivíduos.
No constitucionalismo moderno, a divisão dos poderes
apresenta duas dimensões complementares, além da clássica de
legislar, executar e julgar, sendo as dimensões negativas e positivas
(MAURÍCIO JÚNIOR, 2009).
A dimensão negativa está relacionada com a limitação dos
poderes, a política do “checksand balances”, visando assegurar a
liberdade dos cidadãos frente ao Estado, prevenindo uma expansão
totalitária e um exercício incontrolado do poder.
A dimensão positiva dos poderes, por sua vez, não tem a
preocupação em controlar o poder, mas sim, a de promover uma
adequada ordenação das funções do Estado. Funciona como
gerenciadora das funções específicas atribuídas a cada órgão estatal.

145
Para esta teoria, os órgãos estatais devem desempenhar as
funções para as quais foram desempenhadas. Assim sendo, o
legislativo não poderia intervir no judiciário uma vez que não
possui atribuição jurídica; o judiciário por sua vez, não poderia
intervir no legislativo ou no executivo, uma vez que não são
dotados de discricionariedade.
Sob este aspecto, discute-se a judicialização, em especial
no ordenamento jurídico brasileiro, que se mostra quando o Poder
Judiciário é chamado a dizer o direito e solucionar conflitos
atinentes a determinada matéria, cujo qual, o âmbito de atuação é
pertencente ao Poder Legislativo e/ou Executivo.
A finalidade precípua da judicialização é a de assegurar e
garantir a prevalência de um determinado direito fundamental,
quando os poderes legitimados para assegurá-lo se mostram
omissos, insuficientes ou ineficazes.

4. A JUDICIALIZAÇÃO NO BRASIL APLICADA NOS


TRIBUNAIS BRASILEIROS

A judicialização tem ganhado cada vez mais espaço nos


tribunais brasileiros, onde, diante da ineficácia dos Poderes
Legislativo e Executivo no cumprimento de suas funções precípuas,
o poder Judiciário é chamado a dizer o direito, sendo que, a maioria
dos casos são de grande repercussão, e atingem de sobremaneira a
atuação de outros poderes, afetando sobretudo suas questões
orçamentárias.
Nesse sentido Luís Roberto Barroso (2017) define
judicialização nos seguintes termos:
146
Judicialização significa que algumas questões
de larga repercussão política ou social estão
sendo decididos por órgãos do Poder
Judiciário, e não pelas instâncias políticas
tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder
Executivo – em cujo âmbito se encontram o
Presidente da República, seus ministérios e a
administração pública em geral.

Uma das maiores causas da judicialização nos tribunais


têm sido pela prevalência da vida e pela garantia dos direitos e
garantias fundamentais da pessoa humana quando os responsáveis
nos poderes originários são falhos, omissos ou insuficientes em sua
missão de resguardá-los e protegê-los. Assim, são cotidianas as
ações nos tribunais brasileiros que versam sobre direito à saúde,
educação, moradia, resguardo da dignidade e proteção como um
todo dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Com a judicialização, é conferindo aos juízes e tribunais
poderes para decidir questões que deveriam ser discutidas no
campo do Poder Legislativo e Poder Executivo, onde seus membros
foram eleitos pelo povo e suas escolhas os representam.
Lado outro, os membros do Poder Judiciário não são
agentes públicos eleitos pelo povo e suas decisões não representam
a vontade da maioria, o que abre um leque de discussão da
participação da sociedade no processo de tomada de decisão.
Diante de tal fato, BARROSO (2017), utilizando a
expressão de Alexander Bickel de “dificuldade contramajoritária”,
e frente à possibilidade de argui-se a ilegitimidade do Poder
147
Judiciário para invalidar decisões daqueles que representam o
povo, esclarece que, de acordo com o modelo institucional
brasileiro, a judicialização tem aqui três grandes causas, que devem
ter seu estudo aprofundado para que assim se possa falar em
efetivação de tais direitos.
A primeira grande causa apontada por BARROSO (2017)
foi a redemocratização do país que teve como ponto culminante a
promulgação da Constituição de 1988, fazendo com que se
recuperasse as garantias da magistratura, e deixando o Poder
Judiciário de ser um órgão técnico especializado, para se tornar um
poder político, garantindo a supremacia da Constituição, inclusive
em face dos outros poderes.
Como segunda causa, traz a constitucionalização
abrangente, que trouxe para a Constituição matérias que antes não
eram por ela abrangidas, ficando a cargo da legislação ordinária.
Por fim, como terceira causa, aponta o sistema brasileiro
de controle de constitucionalidade, que faz com que qualquer
questão política ou moralmente relevante possa ser alçada pelo
Supremo Tribunal Federal.
Ao lado da judicialização, aparece o ativismo judicial, que
se afigura como um modo específico e proativo de interpretar a
Constituição, buscando uma participação mais ampla e efetiva do
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais,
interferindo em maior escala no campo de atuação de outros
poderes.
O ativismo, muito criticado pela doutrina
constitucionalista, perpassa o processo político majoritário quando
ele se mostra inerte, deficiente, omisso ou insuficiente, sendo
148
incapaz de produzir consenso.
Os críticos do ativismo judicial apontam uma afronta aos
princípios constitucionais e democráticos, uma vez o Poder
Judiciário assume uma função proativa, realizando interferência de
maneira incisiva e significativa nas opções políticas dos demais
poderes.
Deve-se ter em mente, que tanto a judicialização quanto o
ativismo judicial envolvem riscos para a legitimidade democrática,
uma vez que os membros do Poder Judiciário não são eleitos pelo
povo, e, nessa medida, o que julgam não dizem respeito à vontade
da maioria popular.
Considerando o preceituado na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, onde dispõe em seu artigo
5º, XXXV que não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça de direito, faz-se uma ponderação de valores e
princípios constitucionais, admitindo-se que o Poder Judiciário
intervenha nas políticas públicas quando invocado, para dizer o
direito quando o seu titular se mostrar prejudicado ou lesionado no
gozo de algum ou alguns de seus direitos fundamentais.
Assim, deve a judicialização ser utilizada com a devida
prudência e moderação, a fim de evitar que demandas atinentes aos
outros poderes sejam propostas diretamente no Poder Judiciário,
ultrapassando suas instâncias originárias, bem como, para que não
haja violação ao princípio da separação dos poderes, devendo ser
utilizada como última e não única alternativa.

149
5. OS LIMITES CONSTITUCIONAIS PARA A
INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS

As diretrizes sobre os recursos e políticas públicas são de


competência originária dos poderes Executivo e Legislativo, de
modo que, o que concerne à execução orçamentária cabe
primordialmente ao Poder Executivo, fazendo com que, nenhuma
despesa estatal possa ser realizada fora dos limites orçamentários.
A Constituição Federal de 1988 não conferiu ao Poder
Judiciário mecanismos para intervir nas questões orçamentárias,
mas, vale aqui ressaltar que, a Constituição em seu artigo 5º, XXXV,
estabelece no rol dos direitos fundamentais que a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
O Judiciário por si só não pode intervir nas competências
dos outros poderes, mas somente quando provocado por um
legítimo interessado, para impedir uma lesão ou a reparação a um
direito, sendo tais poderes, considerados como implícitos.
O conceito de poderes implícitos surgiu como precedente
na doutrina no caso M’Culloch x Maryland, onde o estado de
Maryland havia tentado impedir a operação de um banco dos
Estados Unidos impondo impostos sobre todas as notas não
fretadas em Maryland. O Tribunal invocou a Cláusula Necessária e
Adequada da Constituição, que permitiu ao governo federal
aprovar leis não expressamente previstas na lista de poderes
expressos da Constituição, desde que essas leis fossem úteis aos
poderes expressos do Congresso nos termos da
Constituição(LAGES, 2016).
150
Este caso estabeleceu dois princípios importantes no
direito constitucional. Primeiro, a Constituição concedeu ao
Congresso poderes implícitos para implementar os poderes
expressos da Constituição, a fim de criar um governo nacional
funcional. Segundo, a ação do Estado não pode impedir os
exercícios constitucionais válidos de poder pelo governo federal
(SCHIMTT, 2017).
A decisão da Suprema Corte norte-america no Marbury
vs. Madison, marcou o nascimento do controle de
constitucionalidade de caráter repressivo, segundo o qual, para
Cíntia Garabini Lages (2016), analisando a decisão, a Constituição
é hierarquicamente superior a qualquer outro ato normativo,
devendo ser observada como suprema para os órgãos do Poder
Judiciário na apreciação de qualquer conflito submetido a
julgamento.
A grande controvérsia é se pode ou não o judiciário
intervir na alocação dos recursos, uma vez que não é dotado de
discricionariedade, contando apenas com os poderes implícitos,
conferidos a ele por meio da Constituição.
Vale a ressalva de que os poderes conferidos pela
Constituição ao julgador são os necessários para reparar ou evitar
a lesão a direitos, não sendo eles poderes absolutos, uma vez que o
juiz não pode atuar de forma ativa, substituindo a vontade do
legislador pela sua.
Portanto, questiona-se a legitimidade do Poder Judiciário
em estabelecer condutas atinentes a outros Poderes, por meio das
decisões judiciais. Destaca-se neste sentido o princípio

151
democrático, insculpido pelo artigo 1º da Constituição da
República de 1988, onde estabelece que a soberania popular é
exercida pelo povo por meio de seus representantes eleitos.
Lado outro, é reconhecido também como uma dificuldade
enfrentada pelo Poder Judiciário suas deficiências funcionais, no
que tange a determinação judicial para a aplicação de determinada
política no caso concreto, uma vez que não é dotado de
discricionariedade e não conta a supremacia do voto popular.

6. A JUDICIALIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO


BRASILEIRO

O direito penal brasileiro visa punir àqueles que violam


ou violaram bens jurídicos e materiais de terceiros, tais como a
vida, a honra, a integridade, a propriedade, liberdade, dentre
outros. Porém, ao punir o transgressor, o direito penal não se
atentou para as condições degradantes e a falta de infraestrutura do
sistema carcerário, o que acaba indo ao desencontro do ideal de
ressocialização pretendido.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
estabelece em seu artigo V, que: “Ninguém será submetido à tortura
ou a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”(ONU,
1948).
O Sistema Prisional brasileiro é o retrato da infringência
da DUDH. Necessita-se com urgência de políticas públicas voltadas
para a proteção e resguardo dos direitos humanos dos
aprisionados, a fim de não lhes suprimir mais do que lhes é
imposto, do que é devido à sociedade.
152
O ambiente carcerário é deplorável, com más instalações,
má qualidade na alimentação, superlotação e ambiente favorável a
maior prática de crimes, tonando-se uma verdadeira escola de
transgressores. O cenário das rebeliões e fugas são em sua maior
parte, resultados da situação degradante em que se encontra o
sistema penitenciário brasileiro.
Não se deve eximir o preso de pagar sua dívida com a
sociedade, porém, o Estado como detentor e aplicador da pretensão
punitiva, deve fornecer as devidas condições para que o
aprisionado seja reeducado e ressocializado, para que assim, a pena
imposta tenha cumprido o seu devido objetivo.
Ao contrário do que é idealizado nesse sistema, se vê o
presídio como uma verdadeira escola do crime, onde os presos são
amontoados com outras pessoas que praticaram os mais variados
tipos de crimes, de diferentes idades, e temperamento, fazendo com
que, o que se objetivava ressocializar, acaba por gerar
conhecimentos a mais das práticas criminosas, acarretando
reincidência.
Outro fato que merece destaque é a falta de segurança
existente no interior dos presídios, propiciando frequentes brigas,
rebeliões e mortes. O artigo III da DUDH estabelece que: “Todo ser
humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal”(ONU, 1948), o que é constante violado nos presídios.
É iminente o desrespeito pelas políticas públicas
carcerárias brasileiras ao estabelecido na DUDH, uma vez que, o
preso não conta com nenhuma segurança, o que deveria ser
ofertado pelo poder público, uma vez que se torna o guardião de

153
sua liberdade.
Fatalmente, essa situação não é de forma isolada e
pontual. Ela afeta todo o Sistema Prisional Brasileiro, denotando
grandes problemas estruturais e sistêmicos, que resultam nas
graves deficiências e disfunções vividas.
Diante de tamanhas deficiências e ineficiências
enfrentadas pelo sistema prisional, passou a ser discutida no Poder
Judiciário, as políticas públicas voltadas ao setor, caracterizando
assim, a judicialização da matéria.
No caso em comento – Recurso Especial 580.282/MS, o
Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever do Estado em
indenizar o indivíduo aprisionado pelas violações oriundas das
degradações de seus direitos humanos e fundamentais em virtude
das condições desumanas do cárcere e da superlotação. Fixou-se
como parâmetro indenizatório o valor pecuniário de 2 mil reais.
Na oportunidade, concluiu-se também pela aplicação da
cláusula da reserva do possível, reconhecendo a necessidade de
implementação de políticas públicas voltadas ao setor, o que,
exigiria disponibilização de verba orçamentária.
É inegável a responsabilidade civil do Estado pelas
violações aos direitos fundamentais sofridas no cárcere, uma vez
que, cabe ao Estado o dever de punir, restringindo a liberdade do
indivíduo, mas, por outro lado, como contrapartida, deve assegurar
a prevalência de sua dignidade e direitos fundamentais.
O Estado no papel de detentor do direito de punir tem
origem remota, e teve grande influência da Revolução Francesa e as
influências do iluminismo, como bem destacado na obra de Michel
Foucault, Vigiar e Punir (2000).
154
Ao não se admitir mais as penas aflitivas e corporais, o
Estado trouxe para si a responsabilidade da punição. Ao restringir
a liberdade do indivíduo, o Estado deve dar a ele a garantia e
resguardar seus outros direitos fundamentais, como o direito à vida
digna, educação, saúde e educação.
Ressalte-se que o Estado pode restringir apenas a
liberdade como forma de repreensão, reeducação e punição crime
praticado, e não a dignidade, como se tem vivenciado nos presídios
brasileiros.
O escopo maior da restrição da liberdade é retirar o
indivíduo da sociedade, para poder reeducá-lo e, após cumprida
sua pena, voltar para o convívio em sociedade de forma sadia.
Tal objetivo soa como uma utopia, uma vez que os
indivíduos são devolvidos à sociedade com comportamento
totalmente diverso do esperado, sabededir de todas as práticas
criminais e suas formas de execução, uma vez que são misturados
nas celas com criminosos de todas as categorias – homicidas,
estupradores, latrocínio, furto, roubo, estelionato - voltando em
grande maioria a delinquir novamente, e, de forma ainda mais
grave, gerando o grande percentual de reincidência que temos hoje.
Se houvessem realmente políticas públicas capazes de
sanar esse grave problema penitenciário, não teríamos altos índices
de reincidência, rebeliões, violência, moléstias, e absurdamente, os
massacres, que vitimaram milhares de presos ao longo da história
do sistema prisional brasileiro.
Sob tal espeque, vem à tona, a cláusula da reserva do
possível e a possibilidade de afastamento da responsabilidade civil

155
do Estado.
A cláusula da reserva do possível significa aquilo que o
indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Ricardo Lobo
Torres, citado por Maurício Júnior (2009), considera que os
direitos sociais existem sob a reserva do possível, equiparando-a a
“reversa da lei orçamentária”, “arrecadação dos ingressos previstos
nos planos anuais ou plurianuais”, ou ainda, da “soberania
orçamentária do legislador”.
A grande questão atinente à reserva do possível consiste
no fato de se arguir se o destinatário da imposição de cumprir o
direito prestacional possui condições reais de disponibilidade
financeira e orçamentária, sendo portanto, uma condicionante à
efetivação dos direitos sociais pleiteados.

A reserva do possível impõe um complexo


balanceamento de razões, que envolve o
conjunto de necessidades de dispêndios
públicos, exigibilidade jurídica desses
dispêndios e possibilidade fática de sua
realização. (MAURICIO JÚNIOR, 2009)

A problematização da efetivação dos direitos


fundamentais muito se liga às questões relativas à esfera de atuação
dos Poderes Legislativo e Executivo, cabendo a discussão se o Poder
Judiciário teria legitimidade para atuar nessa seara ou se seria uma
afronta ao princípio da separação dos poderes esculpidos na
Constituição.
A atuação do Poder Judiciário nas demandas que
envolvem direitos sociais prestacionais, ligados à reserva do
156
possível, dar-se-á em maior ou menor grau, observando sempre a
natureza e complexidade da demanda, e, jamais deve ser
desconsiderada sua participação, considerando apenas argumentos
repetitivos de que um poder não deve interferir em outro.
O Estado não pode se valer da cláusula da reserva do
possível para se eximir de sua responsabilidade civil, atribuindo a
culpa de sua ineficácia a outros poderes ou a decisões políticas, que
foram incompetentes ou negligentes na elaboração da lei de
diretrizes orçamentárias e não priorizaram os recursos devidos a
cada setor.
No julgamento do RE 580.282/MS, o Ministro Luis
Roberto Barroso, asseverou que:
A cláusula é comumente invocada como
limite à efetivação de direitos sociais de caráter
prestacional. Isso se deve ao fato de que a
concretização desses direitos se dá por meio de
um processo gradual que envolve gastos
públicos consideráveis, de modo que, em um
contexto de escassez de recursos, O Estado
deve adotar políticas públicas e eleger critérios
para a alocação desses recursos. [...] Por sua
vez, no campo da responsabilidade civil
impera um racional diverso, fundado na
realização da justiça comutativa ou corretiva.
O que se busca com a reparação civil não é
distribuição de bens sociais, mas o
restabelecimento de um estado ou equilíbrio
anterior rompido pela conduta danosa. Exige-
se, assim, uma relação de equivalência entre o
dano sofrido e a reparação atribuída (STF,
2017)

157
Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 45 proferida pelo Ministro Celso de Mello, ele entendeu que a
cláusula da reserva do possível não poderia ser invocada pelo
Estado com a finalidade de se exonerar de suas obrigações
constitucionais, principalmente quando essa conduta resultar em
nulificação ou aniquilação de direitos constitucionais (STF, 2017).
Admitir a cláusula da reserva do possível nas demandas
que versam sobre direitos fundamentais, seria o mesmo que anular
a existência desses direitos e atribuir ao Estado o poder de infringi-
los.
O fato de não se conceder a indenização ao preso com
fundamento na aplicação da cláusula da reserva do possível não
confere a garantia de implementação de políticas públicas
direcionadas ao setor, tampouco, que o valor que lhe seria atribuído
a título indenizatório seja destinado a melhorias do sistema, sendo,
portanto, indevida sua aplicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Sistema Penitenciário Brasileiro está em um grande


colapso. O Estado que deveria ser o guardião dos direitos e
garantias fundamentais dos que aprisiona, é o seu primeiro
transgressor, o que vai de desencontro ao postulado do Estado
Democrático de Direito, onde os direitos humanos devem ser
preservados e assegurados.
A superlotação passou a ser regra dentro das
penitenciárias, e, com ela, surgem as rebeliões, promiscuidade,
trocas de experiências criminosas, prática de diversos crimes no
158
interior das celas e no complexo penitenciário, violência, contágio
por doenças, dentre outras atrocidades.
Acrescidas às deficiências do sistema prisional pelos
danos da superlotação, aponta-se também as falhas de natureza
estrutural, material ou sistêmica, que, em conjunto, ocasionaram a
judicialização das políticas públicas aplicadas ao sistema
penitenciário brasileiro.
O Estado busca dar a sociedade uma resposta de que está
cumprindo seu efetivo papel e punindo os criminosos, porém, não
tem aparato para fazer o preso cumprir com dignidade o que lhe é
imposto. Pelo contrário, se mostra ineficaz, insuficiente, arbitrário
e desumano ao restringir a liberdade do indivíduo e não lhe
assegurar o mínimo existencial quando, como saúde, educação e
principalmente, segurança, sendo largados a própria sorte e
obedientes a lei do mais forte.
Acrescente-se o fato de o Estado não realizar intervenções
e investimentos nas políticas públicas para melhoria do sistema
penitenciário brasileiro, sendo omisso, ineficaz e moroso quando
do cumprimento de seu dever primordial ao restringir a liberdade.
Sua falha não é apenas em relação ao preso, mas também,
em relação à sociedade, à medida que o Estado não efetiva o ideal
cumprimento da pena – a ressocialização do indivíduo – e o
devolve para convívio coletivo muitas das vezes, de maneira pior
que antes do cárcere.
Se houvessem realmente políticas públicas capazes de
sanar esse grave problema penitenciário, não teríamos altos índices
de reincidência, rebeliões, violência, moléstias, e absurdamente, os

159
massacres, que vitimaram milhares de presos ao longo da história
do sistema prisional brasileiro.
Apesar de muito se discutir acerca da possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas e
orçamentárias, em especial no sistema penitenciário brasileiro, em
uma análise um pouco mais aprofundada sobre o tema, conclui-se
que a realidade prisional brasileira é um problema generalizado,
oriundo de omissões dos três Poderes, que resultam hoje, em uma
urgente e necessária implementação de medidas para ao menos,
atenuar as consequências das violações dos direitos.

160
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Martins Fontes, 2007.

163
O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL NA
CONSTRUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO URBANO
SUSTENTÁVEL

THE RIGHT TO ENVIRONMENTAL INFORMATION IN


THE CONSTRUCTION OF SUSTAINABLE URBAN
DEVELOPMENT

Carla Thomas1
Valmir César Pozzetti 2

RESUMO: O objetivo dessa pesquisa foi o de analisar as regras


jurídicas que estabelecem o direito ao acesso à informação
ambiental e verificar se esse acesso é efetivo e se ele contribui para
a educação do cidadão e a construção de um meio ambiente urbano
sustentável. A metodologia utilizada na construção da pesquisa foi
a do método dedutivo, sendo que, quanto aos meios a pesquisa foi
a bibliográfica, com uso da doutrina, legislação e jurisprudência e,
quanto aos fins, a pesquisa foi a qualitativa. A conclusão a que se
chegou foi a de que há farta legislação no âmbito nacional e
internacional; entretanto, compatibilizar o desenvolvimento

1
Mestranda em Direito Ambiental, Universidade do Estado do Amazonas -
UEA.
2
Doutor em Direito Ambiental pela Université de Limoges/França; Mestre em
Direito Urbanístico e Ambiental pela Université de Limoges/França; Bacharel em
Direito e em Ciências Contábeis; Professor do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da UEA e Professor do Programa de Doutorado em Ciências
Ambientais da UFAM. Professor Adjunto da UEA – Universidade do Estado do
Amazonas e da UFAM – Universidade Federal do Amazonas.
164
econômico com o ambientalmente sustentável tem sido uma tarefa
difícil e não conquistada pelo Poder Público, sendo necessário mais
esforços nesse sentido.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso à Informação; Desenvolvimento


Econômico; Desenvolvimento Urbano Sustentável; Meio
Ambiente Urbano.

ABSTRACT: The objective of this research was to analyze the legal


rules that establish the right to access environmental information
and verify if this access is effective and selective contributes to
citizen education and the construction of a sustainable urban
environment. The methodology used in the construction of the
research was that of the deductive method. In terms of the means
the research was the bibliographical one, with use of the doctrine,
legislation and jurisprudence and, for the purposes, the research
was qualitative. The conclusion reached was that there is a lot of
legislation at national and international level; however, to reconcile
economic development with the environmentally sustainable has
been a difficult task not won by the Public Power, and more efforts
are needed.

KEYWORDS: Access to Information; Economic development;


Sustainable Urban Development; Urban Environment.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. O direito à informação no âmbito internacional.
3. O direito à informação ambiental no âmbito do direito brasileiro.
4. O desenvolvimento urbano sustentável.

165
5. O direito à informação ambiental para um desenvolvimento
urbano sustentável.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

O ambiente urbano no Brasil, de acordo com pesquisas


públicas realizadas, tem sido o lugar de morada da maioria da
população e essa concentração populacional acarreta inúmeros
desafios ao administrador público, mormente ao municipal,
responsável por gerir diretamente a cidade; uma vez que, ao
deparar-se com a necessidade de promover e organizar o acesso a
diversos serviços a um elevado número de pessoas (tais como
saúde, moradia e transporte público) todos vinculados diretamente
à garantia de direitos individuais e sociais assegurados pela
Constituição Federal (artigos 3º ao 6º).
O Desenvolvimento Sustentável, cujo objetivo primordial
é conciliar o desenvolvimento econômico com higidez ambiental,
foi disciplinado pela Constituição brasileira no artigo 225 e se
aplica, também, ao meio ambiente urbano.
A preocupação com o ambiente frente ao
desenvolvimento urbano acentua-se na medida em que as mazelas
oriundas do descuido ambiental causam catástrofes que destroem
vias, moradias e, até, ceifam vidas. Não são poucas as notícias
enunciadas diariamente pelos canais de comunicação, sobre
alagamentos,terremotos, secas, nos grandes centros e outras
tragédias, evidenciam a distância entre norma legal e práxis.

166
Dessa forma, problemática que envolve essa pesquisa é: de
que forma o acesso à informação ambiental pode auxiliar na
sustentabilidade ambiental urbana?
A pesquisa se justifica em virtude de que a ausência de
planejamento urbano ou omissão do Poder Público em fornecer
informações ambientais à população acaba por permitir ou
incentivar condutas errôneas da população que constrói de forma
irregular, ou ocupa espaços protegidos e frágeis, que deviam ser
conservados ao invés de ocupados irregularmente. Essa
permissibilidade do Poder Público acaba gerando diversos
prejuízos materiais, de salubridade e ambientais à população
economicamente desfavorecida.
Nesse contexto, exsurge, no âmbito interno do direito
pátrio, o direito de acesso à informação ambiental e, revisitar os
precedentes jurídicos na esfera nacional e internacional, bem como
perceber a relação da informação ambiental com o
desenvolvimento urbano sustentável, revela-se como forma de
instar o debate do tema, de molde a que se discutam formas e
medidas para que se concretize o acesso à informação ambiental e
para que este possa contribuir na construção do desenvolvimento
urbano sustentável.
Assim, o objetivo dessa pesquisa é o de investigar sobre o
avanço desenfreado da urbanização, analisando a legislação
protetiva e o direito de informação da população sobre o direito de
construir e de saber onde constrói e se esse local é seguro e
ambientalmente correto e identificar a relação do direito de acesso
à informação na construção do urbano sustentável.

167
Quanto à metodologia que se utilizará nessa pesquisa, será
o método dedutivo: quanto aos meios a pesquisa será a
bibliográfica, com consulta àdoutrina, legislação e jurisprudência;
quanto aos fins a pesquisa será qualitativa.

2. O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL NO ÂMBITO


INTERNACIONAL

A Declaração dos Direitos do Homem de 1948 surge em


um momento importante da história, para assegurar direitos e
dignidade, tirando o homem de séculos de escuridão, ao
estabelecer:

XIX: Todo ser humano tem direito à liberdade


de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e
de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e
independentemente de fronteiras (Grifo
nosso)

Embora não preveja especificamente o direito à


informação ambiental, a Declaração dos Direitos Humanos
estabelece o direito geral à informação e, tal previsão revela a
preocupação por parte das Nações Unidas, já nos idos de 1948, num
ambiente de pós-guerra, em regular e assegurar o direito a obter e
repassar informações.
Observa-se que o dispositivo abarca a ideia da informação
ligada à ideia de “liberdade”, isto é, o ser livre envolve “saber” e o

168
saber pressupõe “informação”. Pode-se extrair que a informação é
pressuposto para que o indivíduo possa firmar um entendimento,
compreensão e, consequentemente, expressar suas opiniões e
ideias. Desta forma, percebe-se que a informação é um elemento
essencial para que o ser humano obtenha conhecimento e possa
contribuir, a partir dela, mediante o exercício de sua cidadania,
para a transformação social.
A concepção da informação como instrumento de poder
é inerente à cultura popular, ou seja, quem possui informação anda
à frente daquele que não a possui.
Infere-se, que a informação é elemento constitutivo do
conhecimento e este promove, consequentemente, ao seu detentor,
maior poder de decisão, sendo esta mais coerente e consciente, de
forma a concretizar a melhor escolha possível.
Assim, sem informação o indivíduo pode ser posto como
que numa brincadeira de jogo às cegas em que o jogador é
provocado a trocar um objeto por outro, sem, contudo, enxergar o
que está sendo proposto e induzido a trocar algo de grande valor
por algo de reduzido valor. Ou seja, o cidadão desinformado passa
a ser manipulado negativamente; pois a falta de conhecimento
informado lhe tira o poder de decisão consciente.
Dessa forma, no meio ambiente urbano vamos verificar
cidadãos sem teto, ocupando áreas verdes, de preservação e
proteção que não poderiam ser ocupadas porque geram riscos aos
próprios ocupantes; entretanto, como são manipulados por forças
políticas eleitoreiras, acabam sendo vítimas e algozes ao mesmo
tempo. Esse é o grande perigo da desinformação ambiental.

169
Com o uso desenfreado dos bens ambientais, para atender
ao lucro desmedido e às necessidades inexistentes, o planeta
começa a aquecer e inicia-se um processo global de desastres
ecológicos, com grandes inundações, maremotos, furacões, etc.
Nesse sentido a comunidade científica se manifesta suscitando a
todos, sem distinção, que realizem esforços para cessar a destruição
do planeta e iniciar-se um plano de educação ambiental com base
em informações sólidas à população, para que ela contribua nesse
aspecto; além dos Programas de governo que deveriam iniciar
imediatamente.
Dessa forma, a ONU – organização das Nações Unidas –
promoveu no ano de 1.972 uma conferência Internacional sobre
meio ambiente, na cidade de Estocolmo, na Suécia, onde se tratou
dessas necessidades de se mudar comportamentos ambientais.
Dessa conferência, resultou-se uma carta de princípios que iriam
nortear a ação dos Estados soberanos, para diminuir a poluição e
reduzir o crescimento econômico. Há um destaque importante
nessa Carta, no tocante à informação:

Artigo 20. Devem-se fomentar em todos os


países, especialmente nos países em
desenvolvimento, a pesquisa e o
desenvolvimento científicos referentes aos
problemas ambientais, tanto nacionais como
multinacionais. Neste caso, o livre
intercâmbio de informação científica
atualizada e de experiência sobre a
transferência deve ser objeto de apoio e de
assistência, a fim de facilitar a solução dos
problemas ambientais. As tecnologias
170
ambientais devem ser postas à disposição dos
países em desenvolvimento de forma a
favorecer sua ampla difusão, sem que
constituam uma carga econômica para esses
países.

Assim, a Declaração de Estocolmo assegurouo


conhecimento público acerca das questões ambientais, através da
instituição do Princípio Ambiental da Informação. Embora de
forma limitada, ao prever o intercâmbio de informações científicas
entre países com o fim de facilitar a solução dos problemas
ambientais.
Esse princípio foi ratificado pela Convenção
Internacional do Meio Ambiente – ECO / 92, realizada na cidade
do Rio de Janeiro/Brasil, em 1992. Dessa Conferência elaborou-se
uma carta de Princípios denominada Declaração do Rio/92, que
assim previu:

Artigo 10 A melhor maneira de tratar as


questões ambientais é assegurar a
participação, no nível apropriado, de todos os
cidadãos interessados. No nível nacional, cada
indivíduo terá acesso adequado às
informações relativas ao meio ambiente de
que disponham as autoridades públicas,
inclusive informações acerca de materiais e
atividades perigosas em suas comunidades,
bem como a oportunidade de participar dos
processos decisórios. Os Estados irão facilitar
e estimular a conscientização e a participação
popular, colocando as informações à
171
disposição de todos. Será proporcionado o
acesso efetivo a mecanismos judiciais e
administrativos, inclusive no que se refere à
compensação e reparação de danos. (Grifo
nosso)

Dessa forma, o Princípio da Informação descrito na


Declaração da Rio/92 foi consubstanciado na Convenção da
Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas
(CEE/ONU) sobre Acesso à Informação, Participação do Público
no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria
de Ambiente – Convenção de Aarhus - adotada em 25 de junho de
1998 na Dinamarca, foi subscrita inicialmente por países europeus,
mas aberta aos demais membros integrantes da ONU, entrou em
vigor a partir de 30 de outubro de 2001.
Destaca-se que a Convenção de Aahrus foi estruturada
num tripé: informação, participação e justiça ambiental.
Evidencia-se, desta forma, que tem sido destacada a
importância da informação ambiental, reiteradamente reconhecida
no âmbito internacional, para que, a partir dela, possa-se formar o
conhecimento e com ele efetivar a educação e participação nas
decisões e obter a almejada justiça ambiental.
Assim, as Normativas Internacionais, das quais o Brasil é
signatário, garantem ao cidadão e impõem ao Poder Público a
obrigação de fornecer à população, informações ambientais
adequadas e que lhes permitam optar e tomar decisões de forma
consciente e responsável.

172
3. O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL NO ÂMBITO
DO DIREITO BRASILEIRO

No âmbito interno do ordenamento jurídico a


Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88
estabelece que:

Artigo 1º A República Federativa do Brasil,


formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:

(...) omissis

Tal dispositivo constitucional denota os Princípios,


adotados pelo Estado brasileiro, dentre os quais o Princípio
Republicano, o Princípio Democrático e o Princípio do Estado de
Direito.
Montesquieu (1996, p. 10), em “O espírito das leis”,
explica que os governos podem ser de três formas: republicano,
monárquico ou despótico. Subdividindo, ainda, o primeiro, em
aristocrático ou democrático:

Existem três espécies de governo: o


REPUBLICANO, O MONÁRQUICO e o
DESPÓTICO. Para descobrir sua natureza,
basta a ideia que os homens menos instruídos
têm deles. Suponho três definições, ou
melhor, três fatos: “o governo republicano é
173
aquele no qual o povo em seu conjunto, ou
apenas uma parte do povo, possui o poder
soberano; [...]
Quando, na república, o povo em conjunto
possui o poder soberano, trata-se de uma
Democracia. Quando o poder soberano está
nas mãos de uma parte do povo, chama-se
Aristocracia.
O povo, na democracia, é, sob certos aspectos,
o monarca; sob outros é súdito.

Verifica-se, então, que o princípio republicano origina-se


da forma de governo em que opovo detém o poder, em
contraposição a governos de um só.
A democracia, segundo Montesquieu (1.996, p. 11), liga-
se à República, isto é, “está atrelada à forma de governo republicana
em que o povo detém o poder divergindo da Aristocracia em que
apenas parcela do povo deteria o poder”.
Assim, o Princípio Democrático decorre dessa ideia de
que o povo é o detentor do poder e, nesse sentido, sendo o povo
composto pela coletividade de indivíduos, requer a busca do
consenso e a adoção de um critério no dissenso, qual seja o
princípio majoritário, sem, contudo, olvidar dos direitos das
minorias vencidas, a fim de evitar a transmudação da democracia
numa, coloquialmente nominada, “ditadura da maioria”.
Ao tratar do princípio democrático Sarlet (2017, p. 269-
270) esclarece que:

O Princípio Democrático equivale o Estado


Constitucional ao Estado Democrático de

174
Direito e caracteriza-o como aquele em que o
poder deva ser adquirido e exercido de forma
legítima, e, além disso, como um Estado
intimamente relacionado com a dignidade da
pessoa humana e os direitos fundamentais em
geral, mormente políticos e de liberdade, tais
como liberdade de expressão, reunião,
manifestação e, ainda, a nacionalidade.

Neste sentido, Antunes (2017, p. 21) esclarece que “o


Direito Ambiental possui, dentre suas principais origens, os
movimentos reivindicatórios dos cidadãos, o que denota que a
democracia configura uma de suas bases mais caras e consistentes”.
E continua Antunes (2017, p. 22) afirmando que “O princípio
democrático encontra a sua expressão normativa especialmente
nos direitos à informação e à participação. Tais direitos estão,
expressamente, previstos no texto da Lei Fundamental e em
diversas leis esparsas”.
Assim, pode-se concluir que o Princípio Democrático
pauta-se na legitimação do Poder e seu exercício, de forma
articulada com outros princípios, tais como o da dignidade da
pessoa humana, e tem abarcado em seu cerne, o princípio da
informação.
O princípio do Estado de Direito, segundo Sarlet (2017, p.
278), contemporaneamente, congrega elementos formais e
materiais:

O Estado formal de Direito (ou em sentido


formal) já se configura mediante a previsão e

175
garantia de uma divisão (separação) de
poderes, a legalidade da administração
pública, a garantia de acesso à justiça e a
independência judicial no plano do controle
dos atos administrativos, bem como a
pretensão por parte do particular de ser
indenizado quando de uma intervenção
estatal indevida no âmbito de sua esfera
patrimonial.
[...] a noção de Estado material de Direito (ou
em sentido material) exige que a legalidade
esteja orientada (e vinculada) por parâmetros
materiais superiores e que informam a ordem
jurídica e a ação estatal, papel que é exercido
por princípios jurídicos gerais e estruturantes
e pela vinculação do poder público (dos
agentes e dos seus atos) a um conjunto de
direitos e garantias fundamentais [...]

Diante de tais princípios constitucionais pode-se observar


que o povo, como corpo formado por indivíduos unidos entre si e
com o Estado por um vínculo jurídico, constituindo o elemento
humano do próprio Estado Democrático de Direito, é o legítimo
detentor do poder estatal, exercido por ele diretamente ou
mediante representante, e, desta forma, credor e merecedor de toda
a transparência quanto aos atos praticados em nome de seu próprio
poder, e, portanto, legítimo destinatário de informações das quais
necessita, quer seja para o próprio exercício de seu poder, quer seja
para sua própria sobrevivência.
Dessa forma, não há como afastar o direito do povo às
informações ambientais: seja porque o indivíduo que compõe o
povo integra o meio em que está inserido, sofrendo as
176
consequências decorrentes das condições desse meio que habita –
o que denota o direito à informação daquilo que lhe afeta; seja
porque o poder do Estado é do povo, o que denota que, como
detentor do poder, também o é das informações ligadas a tal poder.
Entrementes, ainda que a própria principiologia do
Estado Democrático de Direito, por si só, já abarque o direito à
informação, inclusive ambiental, porquanto o povo – incluído nele
o indivíduo – detém o poder e, ainda, a Constituição confira-lhe
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – artigo 225,
da CRFB/88 – introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a
Lei nº 12.527/11, denominada de Lei de Acesso à Informação – LAI,
com expressa previsão de transparência ativa:

Artigo 8º. É dever dos órgãos e entidades


públicas promover, independentemente de
requerimentos, a divulgação em local de fácil
acesso, no âmbito de suas competências, de
informações de interesse coletivo ou geral por
eles produzidas ou custodiadas.

Pode-se, assim, perceber que, mais uma vez, restou


explicitado e reafirmado, na seara do ordenamento jurídico
brasileiro, o direito do indivíduo à informação ambiental,
revelando-se importante senão indispensável instrumento para o
exercício do poder constitucionalmente conferido ao povo.

177
4. O DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL

É importante destacar que a Constituição Federal acolheu


o Princípio do Desenvolvimento Sustentável, o qual conjuga dois
valores fundamentais: o do desenvolvimento econômico e o do
ambiente saudável para uma vida humana digna:

Artigo 1º A República Federativa do Brasil,


formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
(...) omissis
IV –os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa (Grifo nosso)

Artigo 170. A ordem econômica, fundada na


valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da
justiça social. (Grifo nosso)

Neste sentido, Beltrão (2014, p. 37) esclarece que:

O direito ao meio ambiente compreende a


saúde em sentido amplo: não consiste apenas
em mero antagonismo a possuir doenças, mas
visa garantir a qualidade de vida do ser
humano em relação ao meio em que se
encontra inserido. Portanto, como direito
fundamental que é, o meio ambiente sadio
deve ser prioridade de todos os governantes,

178
assim como deve estar inserido em todas as
políticas públicas, para garantir o direito à
vida com qualidade. (Grifo nosso)

A previsão do Princípio do ambiente sadio como direito


fundamental do ser humano encontra guarida no texto
Constitucional:

Artigo 225. Todos têm direito ao meio


ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações. (Grifo nosso)

Neste sentido, ao dissertar sobre Desenvolvimento


Sustentável, Bobbio ((2004, p. 63) esclarece acerca da distância
entre o que diz a norma e o que revelam os fatos:

Num discurso geral sobre os direitos do


homem, deve-se ter a preocupação inicial de
manter a distinção entre teoria e prática, ou
melhor, deve-se ter em mente, antes de mais
nada, que teoria e prática percorrem duas
estradas diversas e a velocidades muito
desiguais. Quero dizer que, nestes últimos
anos, falou-se e continua a se falar de direitos
do homem, entre eruditos, filósofos, juristas,
sociólogos e políticos, muito mais do que se
conseguiu fazer até agora para que eles sejam
reconhecidos e protegidos efetivamente, ou
179
seja, para transformar aspirações (nobres, mas
vagas), exigências (justas, mas débeis), em
direitos propriamente ditos (isto é, no sentido
em que os juristas falam de “direito”).

Dessa forma, o grande desafio contemporâneo é a busca


pela efetividade dos direitos declarados, porquanto o mero
discurso, por si só, não transforma. Por outro lado, vale lembrar
que assim como o direito ao meio saudável para a vida digna
encontra-se previsto na Constituição brasileira, também o está
igualmente estabelecido o direito ao desenvolvimento econômico,
nesse sentido aduz Leite (2012, p. 166):

O Direito é produzido por humanos e voltado


para os seus valores. Assim, sendo o aspecto
econômico um dos mais valorizados e
presentes em boa parte do mundo (chegando
a ser, inclusive, indicado por muitos como
razão de ser do Estado e do próprio Direito), é
compreensível que o ambiente ainda fique, na
esfera jurídica, refém das necessidades de
ordem econômica. Não seria diferente na
Constituição da República Federativa do
Brasil (CFRB), que, mesmo consagrando um
Estado Social de Direito, não deixa de
contemplar amplamente pressupostos de um
Estado Liberal, considerando a perspectiva
vigente nessa sociedade atual de mercado mais
globalizado.

Assim, segundo a principiologia normativa


constitucional, a República Federativa do Brasil pauta-se na ideia
180
de um Desenvolvimento Sustentável, isto é, ao mesmo tempo em
que preconiza o desenvolvimento econômico também prevê que se
observe a qualidade ambiental, pois sem esta não há como
assegurar o direito fundamental a vida humana digna, princípio
mor previsto no artigo 1º, III, da Constituição brasileira.
Dessa forma, imerso nesse contexto, nota-se que o Estado
brasileiro busca estabelecer as bases de sua organização, pautando-
se pelo viés econômico e social; isto é, incentiva e assegura o
desenvolvimento econômico, mas assenta limites com o
estabelecimento dos direitos sociais, dentre os quais, notadamente
o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, o que,
aponta para a direção do desenvolvimento sustentável, cujo
conceito jurídico extrai-se dos dizeres do artigo 225 da CFRB/88.
Contudo, não se pode ignorar que a temática envolve
discussões diante de sua aparente contradição, porquanto o
princípio do desenvolvimento sustentável estaria a conciliar dois
valores frontalmente opostos. Nesse sentido, Gadotti (2000, p. 59):

Parece claro que entre sustentabilidade e


capitalismo existe uma incompatibilidade de
princípios. Essa é uma contradição de base
que está inclusive no centro de todos os
debates da Carta da Terra e que pode
inviabiliza-la. Tenta-se conciliar dois termos
inconciliáveis. Não são inconciliáveis em si,
metafisicamente. São inconciliáveis no atual
contexto da globalização capitalista. O
conceito de desenvolvimento sustentável é
impensável e inaplicável neste contexto. [...]

181
a utopia ou projeto do “desenvolvimento
sustentável” coloca em questão não só o
crescimento econômico ilimitado e predador
da natureza, mas o modo de produção
capitalista. Ele só tem sentido numa economia
solidária, numa economia regida pela
compaixão e não pelo lucro. A compaixão
deve ser entendida aqui na sua concepção
etimológica original de “compartilhar o
sofrimento”. [...] O sofrimento precisa ser
distribuído mais democraticamente. E isso só
se fará pela justiça social. (Grifo nosso)

Destarte, a discussão travada envolve a indagação de


como seria possível preservar e conservar o meio ambiente,
garantindo-o saudável, quando ele próprio é objeto de apropriação
e valoração monetária para fins de desenvolvimento econômico?
Daí apontar-se que a expressão desenvolvimento sustentável
representaria um conceito vazio, incapaz de se concretizar, diante
dos objetivos e moldes do sistema capitalista em que nos incluímos.
De toda forma, ainda que se trate de projeto utópico,
consoante palavras de Gadotti (2000, p. 60), o desenvolvimento
sustentável pode servir para:

Lutar por um mundo menos malvado, menos


feio e mais justo. A utopia do
“desenvolvimento sustentável” é certamente
contraditória e parece não servir para grandes
coisas, mas ela nos prestará um bom serviço,
desde já, se nos guiar para uma sociedade do
futuro na construção da solidariedade.

182
Pois bem, em que pesem as críticas dirigidas ao
Desenvolvimento Sustentável, o comando constitucional importa à
população, mormente a urbana, atualmente a maioria no Brasil, já
que, frente ao direito de Desenvolvimento Econômico está o direito
à vida digna, o qual, por sua vez, pressupõe um meio ambiente
urbano saudável, de forma que se busque um equilíbrio que
permita a coexistência de ambos.
Nesse sentido, Fiorillo (2017, p. 68) esclarece que:

A busca e a conquista de um ‘ponto de


equilíbrio’ entre o desenvolvimento social, o
crescimento econômico e a utilização dos
recursos naturais exigem um adequado
planejamento territorial que tenha em
conta os limites da sustentabilidade. O
critério do desenvolvimento sustentável deve
valer tanto para o território nacional na sua
totalidade, áreas urbanas e rurais, como para a
sociedade, para o povo, respeitadas as
necessidades culturais e criativas do país.
(Grifo nosso).

Os centros urbanos são os locais em que a maioria da


população brasileira hodiernamente encontra residência ou
moradia e, quiçá seja onde mais o indivíduo pode sofrer as
consequências do embate travado entre desenvolvimento
econômico e higidez ambiental.
A Lei nº 10.257/01, denominada de Estatuto da Cidade, é
importante instrumento jurídico a regular a vida da sociedade em
centros urbanos e traz expressamente o direito à cidade sustentável
183
e à gestão democrática com participação de sua população; tanto na
formulação, quanto na execução e acompanhamento de ações
públicas de desenvolvimento urbano:

Artigo 2º A política urbana tem por objetivo


ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana,
mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis,
entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para
as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da
participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da
comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano;(Grifo
nosso)

A normativa é vital para o desenvolvimento urbano


sustentável das cidades, mormente em grandes conglomerados
urbanos, em que ocorre expressiva ação antrópica.
Nesse contexto, em que o homem modifica
constantemente o meio que habita, tomando os recursos
ambientais como objeto do mercado depara-se com problemas
ambientais, como conviver num ambiente com altos graus de
poluição do ar, escassez ou falta de água, intempéries climáticas que

184
provocam secas, temporais e alagamentos, são corriqueiros nos
grandes centros urbanos.
Tais condições de vida muitas vezes trazem por
consequências a destruição de vias de acesso, inviabilizando a
locomoção, a destruição de moradias, causando o desabrigo, o
acometimento de doenças que retira a saúde etc., ou seja, afeta o
direito de ir e vir, o direito a moradia e a uma vida saudável num
ambiente hígido.
Além disso, o próprio ambiente do trabalho, por vezes
inadequado e sem a mínima higidez, revela ao trabalhador a
importância de se viver num meio saudável que seja respeitado
frente à busca incessante do Desenvolvimento Econômico a
qualquer custo.
Dessa forma, as Políticas Públicas urbanas devem se
pautar nas informações adequadas para garantir ao cidadão um
ambiente urbano de qualidade, livre de inundações, de terremotos,
desabamentos, falta de água etc.
Outro exemplo está na exploração da propriedade urbana
com inobservância – quer pelo particular, quer pela administração
pública – das áreas sensíveis, tais como a mata ciliar, ao se permitir
a construção urbana em tais áreas. Por vezes, tal acarreta em
destruição da vegetação ao longo de rios e igarapés, com a
consequência de provocar futuro assoreamento e alagamentos.
Ainda, a inexistência de um planejamento no zoneamento
urbano ou mesmo, quando há, a falta de observância, com
consequente falta de saneamento básico, ausência de tratamento
adequado ao lixo produzido. Tais exemplos denotam fatores de

185
desenvolvimento urbano não sustentável e afetam elementos que
compõem o ambiente natural, de forma a causar poluição da água
e do solo.
Tem-se, assim, que o indivíduo urbano, ao viver
coletivamente em centros urbanos, acaba construindo um novo
ambiente, em que conjuga os aspectos natural e artificial – neste
incluído o cultural e o do trabalho. Neste sentido, Silva (2013, p. 22)
explica que “o meio não permanece estanque, seus aspectos se
integram “numa visão unitária a serviço da qualidade de vida
humana, convergindo para a formação do meio ambiente urbano”.
Dessa forma, a construção do meio ambiente urbano, sem
planejamento oriundo das informações ambientais adequadas,
revelam algumas das mazelas urbanas que escancaram a
problemática promovida pela exploração econômica de recursos
ambientais para o desenvolvimento econômico desenfreado sem a
devida preocupação com a sustentabilidade. Por outro lado,
reverberam a necessidade de uma tomada de consciência para que
se promova uma mudança comportamental e, neste ponto, é que se
faz primordial a informação ambiental à população urbana para
que, possa, assim, num primeiro momento tomar conhecimento
sobre a situação para se informar através da Educação e, num
segundo momento, participar da gestão pública para a construção
de um Desenvolvimento Urbano Sustentável.
Assim, verifica-se a importância de uma reflexão quanto
aos problemas ligados ao Desenvolvimento das Cidades, pois
afetam diversos direitos do indivíduo que vive em centros urbanos
– moradia, saúde e transporte – os quais podem ser tidos como
consequências de uma nítida inobservância da ideia do
186
desenvolvimento urbano sustentável e que merecem que sejam
olhados com maior preocupação e cuidado.

5. O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL PARA UM


DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL

É importante destacar que o direito de acesso à


informação ambiental, assim como o desenvolvimento sustentável,
encontra-se estabelecidos na CRFB/88 e ambos podem ser vistos
como importantes instrumentos necessários à promoção da
higidez do meio – natural, artificial, cultural e do trabalho – na
busca pela concretização da vida humana digna.
Entretanto, tal não pode ser tomado como novidade da
Constituição de 1988 ou da Lei de Acesso à Informação, pois ao
revisitar a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – Lei nº
6.938, surgida nos idos de 1981, percebe-se que esta já previa dentre
os seus objetivos:

Artigo 4º - A Política Nacional do Meio


Ambiente visará:
I - à compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a preservação da
qualidade do meio ambiente e do equilíbrio
ecológico;
(...) omissis
V - à difusão de tecnologias de manejo do
meio ambiente, à divulgação de dados e
informações ambientais e à formação de uma
consciência pública sobre a necessidade de

187
preservação da qualidade ambiental e do
equilíbrio ecológico;

Significa dizer que, no Brasil, mesmo antes da CRFB/88,


já se tinha norma jurídica, diga-se, que permanece vigente, a
estabelecer o desenvolvimento sustentável e a informação
ambiental como política nacional do meio ambiente, de forma a
vincular a atuação da administração pública ao comando
normativo.
Porém, foi com o advento da Constituição brasileira em
1988 que se evidenciou o acolhimento da ideia do desenvolvimento
sustentável, bem como, sua necessária articulação com o instituto
da informação ambiental, da mesma forma, agora,
constitucionalmente consagrado e reiterado na Lei nº 12.527/11,
porquanto não há como falar em desenvolvimento sustentável,
sem, com isso, pressupor que haja informação ambiental, ou seja,
têm-se ambos por indissociáveis.
Insta mencionar que a Constituição Federal veio marcada
com a previsão do acesso à informação, o que se confirma diante
dos princípios que norteiam o Estado brasileiro, mormente o
Princípio Republicano, o Princípio do Estado de Direito e o
Princípio Democrático, anteriormente ventilado, que estabelecem
o poder nas mãos do povo e traduzem, necessariamente, o
pressuposto de que este mesmo povo seja, ao menos, informado,
pois não é razoável compreender um Estado que se diz republicano,
de Direito e Democrático diferente disso, ou seja, que adote o sigilo
e a desinformação pública como ideais, evidentemente, não seria
um Estado assim qualificado.

188
Veja-se, por exemplo, que o artigo 5º, XIV e XXXIII, da
CRFB/88, dispõe sobre o direito à informação:

Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem


distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...) omissis
XIV - é assegurado a todos o acesso à
informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional;
(...) omissis
XXXIII - todos têm direito a receber dos
órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no
prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado; (Grifo nosso)

Já o artigo 37, da CRFB/88, estabelece dentre os princípios


da administração pública, o da publicidade, incluindo em seu § 3º,
inciso II, o direito de acesso a informações:

Artigo 37. A administração pública direta e


indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade,

189
publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
(...)omissis
§ 3º A lei disciplinará as formas de
participação do usuário na administração
pública direta e indireta, regulando
especialmente:
(...) omissis
II - o acesso dos usuários a registros
administrativos e a informações sobre atos
de governo, observado o disposto no artigo
5º, X e XXXIII; (grifo nosso)

Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional,


reafirma-se o direito à informação, além do disposto na Lei nº
6.938/81, também na Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003,
ingressou no ordenamento jurídico a confirmar acerca do direito à
informação e previu o direito ao acesso público a dados e
informações existentes em órgãos e entidades do SISNAMA –
Sistema Nacional do Meio Ambiente.
Ainda, no âmbito do Direito à Informação Ambiental,
cumpre destacar que a Lei nº 9.795/99, estabelece a Política
Nacional da Educação Ambiental e traz dentre seus objetivos:

Artigo 5o São objetivos fundamentais da


educação ambiental: [...]
II - a garantia de democratização das
informações ambientais;
III - o estímulo e o fortalecimento de uma
consciência crítica sobre a problemática
ambiental e social; (Grifo nosso)

190
Também podemos encontrar o acesso à Informação na
Lei nº 12.527, que disciplinou o direito ao acesso à informação, e,
de forma inédita, trouxe expressamente a obrigatoriedade da
atuação ativa estatal no dever de informação, a denominada
transparência ativa:

Artigo 8o. É dever dos órgãos e entidades


públicas promover, independentemente de
requerimentos, a divulgação em local de fácil
acesso, no âmbito de suas competências, de
informações de interesse coletivo ou geral
por eles produzidas ou custodiadas. (Grifo
nosso)

Desta forma, percebe-se que há no ordenamento jurídico


brasileiro a previsão de que cabe aos órgãos e entidades públicas
promover a divulgação das informações de interesse coletivo ou
geral, o que não exige muito esforço para se concluir que deve ser
franqueado ao público, incluídos os munícipes de uma cidade, as
informações ambientais que lhes são úteis e necessárias à
construção do desenvolvimento urbano sustentável.
Contudo, embora a Lei exista e toda a principiologia
constitucional brasileira reforce a necessidade de que a população
de um modo geral, incluída a urbana, tenha franqueada, de forma
fácil, evidente e simplificada, informações de interesse coletivo ou
geral, nelas incluídas as informações ambientais, mormente a fim
de que possa tomar consciência e haja uma sensibilização quanto à
questão ambiental para a promoção do desenvolvimento urbano
sustentável, na prática, é preciso que sejam tomadas ações
191
coordenadas por parte das administrações públicas municipais a
assegurar o exercício do direito de acesso à informação ambiental.
Nesse sentido Salgado (2015, p. 109) esclarece que “a
exigência de transparência ativa ainda é um desafio para os sujeitos
submetidos à Lei, e não faltam informações categorizadas como de
interesse público para melhorar o controle social sobre o Poder
Público”.
Assim, embora existam algumas ações esparsas por parte
de Administrações Públicas municipais, a difundir a informação
ambiental, no geral, o que ocorre é a ausência de efetivação do
direito de acesso à informação ambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática desta pesquisa centrou-se na necessidade


de se verificar de que forma a população poderia ter acesso à
informação ambiental, para efetivar o Desenvolvimento
sustentável urbano. Os objetivos da pesquisa foram cumpridos, na
medida em que se fez uma análise criteriosa das diretrizes
internacionais e da legislação nacional, bem como do
posicionamento doutrinário, a respeito do efetivo direito e acesso à
informação ambiental.
Da pesquisa realizada pôde-se inferir primeiramente que
o ordenamento jurídico brasileiro acompanha as diretrizes
principiológicas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas
quanto ao acesso à informação ambiental, de modo a prever o
direito tanto na Constituição quanto especificamente em legislação

192
infraconstitucional, o que denota a preocupação, ao menos no
âmbito legislativo, com tal direito à população.
Também se observou que foi acolhido pelo texto
constitucional brasileiro o desenvolvimento sustentável, quando a
Constituição Federal previu expressamente esse princípio no artigo
170, VI, bem como disciplinou o direito ao desenvolvimento
econômico e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, no artigo 225.
Dessa forma, compatibilizar o Desenvolvimento
Econômico com a sustentabilidade Ambiental é tarefa para o Poder
Executivo através de Políticas Públicas.
Neste sentido, o que se pôde concluir foi que, embora haja
previsão no ordenamento jurídico brasileiro do direito ao acesso à
informação ambiental, a práxis ainda distancia-se da norma.

193
REFERÊNCIAS

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Disponível em:
194
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2963710/mod_resou
rce/content/0/Montesquieu-O-espirito-das-leis_completo.pdf>
Acesso em: 12 jan 2018

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de


Estocolmo sobre o ambiente humano. Publicada pela
Conferência das Nações Unidas em junho de 1972. Disponível
em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/ Meio-
Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-
humano.html> Acesso em: 12 jan. 2018.

_______. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e


Desenvolvimento. Publicada pela Conferência das Nações
Unidas em junho de 1992.Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/ Meio-
Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-
humano.html> Acesso em: 12 jan. 2018.

________. Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Disponível em:
<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf> Acesso em: 12
jan. 2018.

_______. Convenção de Aahrus. Disponível em:


<https://www.apambiente.pt/index.php?ref=16
&subref=142&sub2ref=726&sub3ref =727> Acesso em: 12 jan.
2018.

SALGADO, Eneida Desiree. Lei de acesso à informação –LAI:


comentários à Lei nº 12.527/2011 e ao Decreto nº 7.724/2012.
São Paulo: Atlas, 2015.

195
SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São
Paulo: Malheiros, 2013.

196
TEMPORAL DE AÇO

STEEL STORM

Paulo Velten 5

PRÓLOGO: Existe um quadro de Klee intitulado “AngelusNovus”.


Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-
se de algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua
boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem
de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde
uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única
catástrofe, que sem cessar amontoa escombros e os arremessa a seus
pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e
juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se
emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais
fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro,
para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros
diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é a
tempestade.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. O quadro benjaminiano descrito na tese IX.
3. O mito de Er e a ideia de justiça ligada ao que é natural.
4. O risco da naturalização do “acidente” de Mariana.
5. A relação entre o anjo da história benjaminiana e o progresso. 6.
O salto para fora do trem do progresso.

5
Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá-UNESA. Professor da
Universidade Federal do Espírito Santo-UFES.
197
7. A continuidade histórica como método de dominação da política
“progressista”.
8. Outras possibilidades.
9. Remissão mitológica.
Referências.

INTRODUÇÃO

Este é o prólogo da tese IX de Walter Benjamin 6, escrito


na década de 1930 e é um de seus textos que provoca as maiores
inquietações em seus intérpretes, no dizer de Michael Löwy 7 (2005,
p.87) “[...] toca de maneira profunda na crise da cultura moderna,
além de ser um prenúncio trágico de Auschwitz e Hiroshima, duas
grandes catástrofes humanas”. A propósito, vale ressaltar que a
obra de Löwy é o marco teórico fundamental para entender a
complexidade contemporânea, bem como para decifrar as
herméticas alegorias benjaminianasque, adaptadas com base em
suas teses, serviram como prenúncio das tragédias comentadas
acima. Outrossim, tais alegorias poderão lançar luz ao dilema
ambiental produzido pela maior catástrofe ecológica produzida

6
“As teses ‘sobre o conceito de história’ de 1940, são os últimos escritos de Walter
Benjamin, redigidos um pouco antes de seu suicídio – logo após o fracasso de sua
tentativa de escapar da Gestapo na França vichysta. Em sua carta a Adorno dizia
que as teses – que foram escritas sob o impacto da ocupação da Europa pelos
nazistas e tiveram uma intrincada história entre seu ‘salvamento’ (uma cópia dada
para Hannah Arendt), a primeira publicação e o reconhecimento – não seriam
destinadas a publicação pois temia que isso ‘abriria as portas a incompreensão
entusiasta’”. (orelhado livro Aviso de incêndio)
7
Michael Löwy é diretor do centro de pesquisas do CNRS (Centre National de la
recherche scientifique e leciona na École dês Hautes Études Sciences Sociales),
Paris. Autor de inúmeras obras traduzidas para 29 línguas.
198
pelo homem no Brasil, a comumente chamada “tragédia de
Mariana”. Faz-se necessário salientar, a partir dessa perspectiva,
que este trabalho abordará as possibilidades advindas da vida e
morte do rio doce, local da tragédia. Para isso, contextualizaremos
nosso estudo a partir do berço pré-socrático, na Grécia antiga, visto
que, o contexto vida e morte já era presente desde lá, seja na
discussão e criação de mitos “naturais” relativos ao teatro grego,
seja na relação da mitologia com a humanidade.
Desta forma, relacionam-se o rio Lettes (rio do
esquecimento) com o rio doce, 8 uma vez que, esse, tanto como
aquele, poderá vir a se tornar um lugar mítico, de esquecimento.
Esse esforço imaginativo demonstra o objetivo de advertir
contra o processo de naturalização de uma catástrofe ambiental,
fenômeno que se dá pela entrega da solução do problema ambiental
produzido no mundo das compensações financeiras e
responsabilizações pessoais. Essa prática é comum na civilização
moderna que se materializa com a confecção de um documento
jurídico que cristaliza o esquecimento do bem ambiental
propriamente dito.
Nesta perspectiva, a primeira alegoria:

8
Lugar que emprestava o nome originário para a Cia Vale do Rio Doce, acionista
majoritária e controladora da mineradora Samarco (empresa de mineração
responsável pelo desastre). Por ironia, a Cia do Rio Doce abdicou do seu nome a
referência ao rio cerca de três anos antes da tragédia ambiental, optando por
retirar de sua razão social a alusão ao rio doce, passando a denominar-se apenas
como VALE, como uma premonição de que sepultaria o rio que lhe dera origem.
Vale ressaltar, ainda, que a expressão “vale” é utilizada amplamente como
empréstimo, de onde a Cia deveria retirar seus insumos.
199
2. O QUADRO BENJAMINIANO DESCRITO NA TESE IX

No quadro descrito no prólogo, o que em primeiro lugar


salta aos olhos na ilustração (LOWY, 2005, p.89) é que o anjo olha
para o passado, e que, do paraíso, sopra uma tempestade que se
constituí numa “catástrofe sem trégua” a qual se torna responsável
por um “amontoado de escombros que cresce até o céu”. Esta
tempestade para Benjamin é o progresso, ele a dá um caráter
profano “o anjo da história tem de parecer assim”. Ele (o anjo) olha
com os olhos arregalados, assustado, pois se distancia do paraíso.
Aqui, neste texto, profanaremos essa interpretação, como simples
possibilidade retórica, em nada vinculada com uma interpretação
séria vinculada a obra de Benjamin. A sugestão é que o olhar do
anjo não seja voltado para o paraíso (cristão), mas que se volte para
tempos ainda mais remotos, como para tempos homéricos,
descritos por Platão em A República, 9 em que relata o mito de Er.
10

9
Livro X, de 614b a 621b. Trata-se de um relato, transmitido oralmente, de
alguém que retornou do Hades.
10
No conto, o soldado Er foi encontrado depois de uma batalha que durou doze
dias, ainda vivo sob uma montanha de cadáveres. Contou ele a viagem que os
deuses haviam lhe permitido testemunhar, foi o único que se atreveu a descrever
o lugar do julgamento das almas dos mortos.O lugar de julgamento, narra o
personagem, seria uma pradaria denominada Hades, entre as aberturas do céu e
da terra. Nela, haveriam duas crateras vizinhas e acima dessas duas aberturas
apresentavam-se buracos simétricos na abóboda do céu.As almas saiam da terra
pela segunda abertura, as almas dos eleitos subiam para o céu e a dos condenados
desciam para o fundo da terra pela segunda abertura.Voltando após mil anos do
céu ou dos infernos, as almas recebiam das mãos da deusa Moirat (necessidade)
a sorte que elas mesmas escolhessem e dali partiam para se reencarnar, a fim de
recomeçarem a nova vida. No Hades, todos aqueles que fossem reencarnar
200
3. O MITO DE ER E A IDEIA DE JUSTIÇA LIGADA AO QUE
É NATURAL

Como referido na introdução, a pretensão deste artigo é


alertar contra a naturalização do acidente. Para tanto, buscou-se
neste estudo o motivo para essa tendência à “naturalização” dos
eventos trágicos, fenômeno cada vez mais corriqueiro na
contemporaneidade, daí o porquê da alusão à narrativa do mito de
Er.
Apesar de dramáticas e confusas as histórias na Grécia
antiga, Segundo Flamarion Tavares Leite, é lá que o sentimento de
justiça/injustiça começa a surgir 11 (2008, p.19) “[...] dessa relação
do homem com os deuses, da relação do forte com o débil, como
uma característica aristocrática própria de heróis”.
No teatro e nos poemas gregos, como por exemplo em
Ilíada, esse sentimento foi adquirindo conteúdo, principalmente
através de histórias mitológicas como a da união de Themis 12com

deveriam beber da água do rio Letes (esquecimento) para reencarnar, exceto Er a


quem não foi permitido beber. Ocorre que, a possibilidade proporcionada pela
deusa, deveria ser submetida às suas filhas, a deusa Láquesis (futuro), a deusa
Clótos (presente) e a deusa Átropos (partes) a quem cabia, fazer apagar o passado
e selar o futuro escolhido, tornando-o, assim, irreversível.
11
“A noção de justiça parece seguir o pensamento filosófico na Grécia, razão para
o jònios que pretendiam explicar o universo por um princípio físico, pura ideia
(espírito) para os eleáticos ou ainda, números (ideia de igualdade na
contraprestação) para os pitagóricos, seguindo assim a necessidade de ser um
produto da necessidade física, da metafísica ou da ordem governante do cosmos”
(LEITE, 2008, p. 19).
12
“Do ponto de vista etimológico, em Homero, Themis é empregada na frase que
consta da Ilíada como da Odisséia: ‘e thémisesti’, significando aquilo que é
201
Zeus 13 começa a ser legitimada a possibilidade de intimidade entre
a divindade e a justiça, e da referida união nasce diké 14 de modo
que, daí em diante conforme Bittar e Almeida (2015, p. 81):
[...] o Olimpo não somente governava a si
próprio, mas também a ordem das coisas no
kósmos, como também a relação dos homens
uns com os outros. Entretanto, neste estágio
do desenvolvimento, o homem fazia parte de
uma ordem estabelecida e que era vã a
tentativa de se desvencilhar do destino, da
ordem divina, predefinida, imutável,

estabelecido pelo costume. Ou seja, thémisdesigna algo cuja significação reporta


à conservação, à permanência, à tradição, fazendo apelo à dimensão de um
passado cuja conservação se dá na continuidade dos costumes, dos hábitos
sociais, das tradições ancestrais. Vem revestida, portanto, de uma pressão
tradicional, de uma pesada herança de antepassados, significando o liame entre o
que era e o que será, não somente num sentido temporal, mas também moral,
como medida de dever-ser do comportamento das novas gerações. ” (BITTAR,
ALMEIDA, 2015, p.78)
13
Na teogoniade Hesíodo, Zeus, desde o seu nascimento as escondidas de Crónos
(que comia seus filhos com medo de que o destronassem) sob a proteção de
Urano (céu) e Gaia (terra), pais de Thémis¸ passa por inúmeras batalhas, ora
contra titãs, ora contra o dragão, até sua vitória e ascensão na condição de rei dos
imortais, em cuja condição toma por esposa Métis e Thémis, assim, de seu
casamento nascem alguns filhos: 1) Bom Governo (Eunomia), Justiça (Diké) e
Paz (Eirene);2) As Parcas ou Moirat ou partes (Proto, Laquesis e Átropos)
(BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.80)
14
Segundo Bittar, Almeida (2015, p.79): “Pela expressão Diké“é possível entendê-
lo em dois sentidos: um de regra, costume, significando algo mais distante e
sagrado (usado mais ou menos de modo indistinto com thémis), que aparece em
Odisséia 11,218 e 14,59; outro, de justiça em seu caráter mais humano, mais
carnal, mais vivo (oposto a thémis), que aparece em Ilíada 19,180 e oposto a força-
bía (Ilíada 16, 388). Na Ilíada a expressão tinha incorporado um certo sentido de
transgressão, algo que se associa a ideia de resistência a estrutura de classes e
paulatinamente a partir do séc. VI a. C. considerada como algo mais universal”.
202
conduzida por deuses que revelavam um lugar
para cada um, uma ideia de existência
compatível e ajustada a esse cosmos.

Para além, o que há de característico dessa época é que, de


todas as tragédias, é possível verificar a conexão com elementos
naturais, ou seja, o sentimento de justiça ainda era primitivo e
resumia-se na sua concordância com a natureza, assim a condição
de cada ser o atrelava a um determinado natural. Dessa forma, a
condição de escravidão de alguém tinha relação com ordem natural
das coisas, de modo que isso seria o justo, isto é, a vida vinculada a
um destino “natural” em relação ao cosmos, afinal, o homem
procurava ainda entender-se naquela imensidão. Para exemplificar
ainda melhor: o peixão come o peixinho e isso é naturalmente justo,
jamais irá acontecer o inverso, da mesma forma, era justo o forte
dominar o fraco porque isso era de acordo com a “natureza”.
Assim, o homem naquela época procurava suas origens
nos elementos da natureza, entretanto das indignações provocadas
pela opressão do forte sobre o fraco começam a produzir a dúvida
daquele critério de justiça vinculada à adequação ao que é natural.
Ainda nos dias atuais essa naturalização é muito utilizada nos
julgamentos em que se quer legitimar o domínio do forte sobre o
fraco.
Mas, voltando a perspectiva da naturalização da “tragédia
de Mariana”, comumente referida como “acidente”, o evento
carrega consigo essa tendência, afinal um temporal a haveria
provocado e pode dar azo a utilização de um conceito de justiça

203
relativo aos tempos homéricos15, surgindo, assim, a possibilidade
de se vislumbrar o rio doce como um afluente do mitológico rio
Lettes, e, como sugere o nome, relegado ao esquecimento.

4. O RISCO DA NATURALIZAÇÃO DO “ACIDENTE” DE


MARIANA

Há uma relação entre a história de Er e o evento ocorrido


em Mariana. Para os gregos, do hadesderiva o rio Lettesque por sua
vez, corria das profundezas da terra (infernos - uma dimensão para
onde as almas iriam após a morte) do subterrâneo até os limites
exteriores, Da mesma forma, o vale que dá nome ao rio doce,
deságua no oceano atlântico (limites exteriores) vindo das
profundezas da terra explorada pelas mineradoras nos vales das
minas gerais; um lugar que faria fronteira entre os mundos
superiores e os inferiores.
Como se pode verificar, daí nasce uma ameaça mitológica,
já que, assim como no mito de Ermenciona o rio Lettes, na versão
de Dante Alighieri em A divina Comédia, igualmente o mesmo rio
conduzia ao terceiro círculo do inferno, onde ficavam aqueles
arrastados pela ventania (2002, p.25),que condenados (p.29) “[...]
ficavam prostrados sob forte chuva de granizo, água e neve para

O estado da arte desse primeiro período do pensamento grego (pré-socrático)


15

anterior ao Séc. VIII a. C., se preocupava prioritariamente em buscar o princípio


único de explicação do mundo, em buscar “[...] A ação que de si gera tudo, a
chama eterna que se acende e se apaga sem cessar” (SOUZA; KUHNEN, 2005, p.
25, fragmento D. 30). Desse fogo teriam vindo todas as coisas e para ele todas
devem regressar. A ideia de um eterno retorno. Para lá, tudo reflui, porém não
de forma caótica, arbitrária, mas seguindo uma lei única, da natureza.
204
serem dilacerados pelas garras de Cérbero”,lembrando que
injustiça na perspectiva primitiva grega, era a dissonância com a
natureza, e, neste caso a almas dos causadores da “tragédia de
Mariana” estariam condenados ao círculo do “cão” 16.
Mas o que há de tão grave nesta perspectiva de naturalizar
o acidente para além da ameaça mitológica? - O grave aqui é
considerar o progresso tecnológico e econômico, representado
pelas empresas causadoras da tragédia, como algo natural e do qual
não seria possível de se desvincular.

5. ARELAÇÃO ENTRE O ANJO DA HISTÓRIA


BENJAMINIANA E O PROGRESSO

Walter Benjamin (LÖWY, 2005, p.90) já antevia, mesmo


antes da ascensão de Hitler, a vinculação do nazismo com a noção
de progresso, ele já qualificava como característica da modernidade
a criação de um “consumismo eterno como uma condenação
infernal uma catástrofe sem tréguas”, e ressalta-se que naquela
época o consumismo era inócuo se comparado ao atual.
Esse pessimismo, apontava para a necessidade de uma
ruptura com “o vento do progresso” que era responsável pelos
“escombros da destruição”. Aliás, são vários os trabalhos que

A expressão “cão” é em alusão a Cérbero, cão furioso e horrendo que ladrava


16

escancarando suas três colossais bocarras, para as turbas submersas dos


pecadores. Seus olhos são vermelhos, seu ventre desmedido; traz a barba suja e as
garras muito aguçadas – rasga lanha, despedaça a infeliz gente. (A divina comédia,
2002, p.29)
205
apontam a vinculação das empresas de tecnologia de ponta que
cooperaram com o nazismo e seus experimentos 17.
Embora as teses de Walter Benjamin tenham sido
interpretadas como prenúncio da segunda guerra e principalmente
de Auschwitz e Hiroshima,a tese IX ganha uma atualização
impressionante quando acrescida das tragédias ambientais
contemporâneas, na medida em que o louvor a ciência progressista
como solução para problemas, em especial relativos a meio
ambiente, encontra-se novamente em evidência, vale dizer, tanto
como o nacional socialismo alemão da década de 1930, nesse
sentido Löwy afirma (2005, p.93) “[...] é traço comum da cultura
desenvolvimentista que o progresso é associável a fenômenos
naturais, e, como tais, regidos por leis da natureza irresistíveis”,
portanto, sob essa ótica, acidentes naturais seriam tidos como algo
inevitável no contexto do progresso.
A alegoria benjaminiana ainda sugere que as asas do anjo
da história estariam enrijecidas, impedidas de voar e sendo
empurrado para longe do paraíso. Na versão sugerida neste artigo,
impediria o seu retorno ao lugar do julgamento, que na
configuração proposta, caracteriza-se na constatação de que, após
mais de um ano da tragédia consumada, as providências tomadas
no sentido da recuperação do bioma do Rio Doce ainda muito
tímidas, as providências se limitam a providências jurídicas sobre

Giorgio Agamben (Homo Sacer, 2002, p.152) igualmente denuncia a relação


17

próxima entre o nazismo e a ciência médica da época, narra as atrocidades feitas


utilizando os prisioneiros como cobaias humanas durante a guerra e mesmo
depois durante o julgamento dos médicos que participaram dos monstruosos
“experimentos científicos nazistas”.
206
competência, atribuições e responsabilidades, 18e a participação dos
que foram diretamente vitimados é muito limitada, tanto que a
homologação do acordo realizado entre o Estado do Espírito Santo
e o de Minas Gerais for suspenso no Superior Tribunal de Justiça 19.
Enquanto isso, tudo continua o mesmo, o rio morto como se fosse
um fato naturalmente consumado.
Por outro lado, as sirenes bradando como em um “aviso
de incêndio”, 20a necessidade de se preservar a continuidade a
empresa causadora da tragédia, 21 que a retomada de seu
funcionamento seria essencial para a humanidade, para as cidades
ribeirinhas, e até, para a natureza por ela explorada, e todo
progresso que ela representa. Vale ressaltar a advertência
benjaminiana (LÖWY, 2005, p.90) que “[...] a quintessência do

18
Embora tenha sido criada a Fundação Renova com o objetivo de produzir
projetos de recuperação do rio, as ações nesse sentido podem ser acessadas no
seguinte site:
http://www.fundacaorenova.org/Acesso em 21 fev. 2017
19
Conforme notícia vinculada pelo Correio do Brasil o inquérito que apura as
responsabilidades foi suspenso pelo Superior Tribunal de Justiça até que se
decidam as discussões sobre competência.
Por Redação, com ABr – de Brasília.
Disponível em:http://www.correiodobrasil.com.br/justica-suspende-
temporariamente-inquerito-sobre-tragedia-em-mariana/Acesso em: 23 mar.
2016
20
Referência ao título do livro de Walter Benjamin que já na década de 30 previa
o período obscuro que o nacional socialismo representava para o mundo e para
Alemanha.
21
Reportagem publicada em 15.03.2016, Por Redação, com Reuters – de Mariana
Disponível em:
http://www.correiodobrasil.com.br/mariana-ve-retorno-da-samarco-como-
alternativa/Acesso em:20 mar. 2017
207
inferno é a eterna repetição do mesmo e a sociedade moderna
dominada pela mercadoria, disfarçada de novidade e moda, que
condena as pessoas ao inferno da repetição do passado”. 22
Diante da gravidade das admoestações, é de se indagar
qual seria o antídoto, a antítese, a possibilidade de remissão desta
perspectiva infernal. O próprio Benjamin responde: (LÖWY, 2005,
p.39) “[...] o fim da opressão se dá por um salto para fora do trem
do progresso. O anjo não suporta o progresso”.

6. O SALTO PARA FORA DO TREM DO PROGRESSO 23

Esta opção de saltar do trem advém da vinculação


marxista de Benjamin (LÖWY, 2014, p.23,24) e ao trazer os textos

22
Michel Löwy em outra obra: O que é o ecossocialismo? (2014, p.40), lembra que
mesmo antes, em 1928, no seu livro “sentido único” Benjamin já denunciava a
dominação da natureza por meio da tecnologia com um “ensino imperialista”.
23
Chega a ser irônico o fato de a forma usada pela empresa de transportar o
minério retirado das profundezas das minas gerais ser o transporte férreo.
208
de Engels 24 e Marx25 alerta para a advertência de que o progresso
pode ser destrutivo 26 e que é necessária a “[...] ruptura com a

24
Löwy (2014, p. 23,24) traz um texto célebre de Engels de 1876 “o papel do
trabalho na transformação do macaco em homem” em que ele aborda a relação
homem/natureza de modo que não seja unilateral: “Nós não devemos nos
vangloriar das nossas vitórias sobre a natureza. Para cada uma dessas vitórias, a
natureza se vinga de nós. É verdade que cada vitória nos dá em primeira instância,
os resultados esperados, mas em segunda e terceira instâncias ela tem efeitos
diferentes, inesperados, que muito frequentemente anulam o primeiro. As
pessoas na Mesopotâmia, Grécia e Ásia Menor destruíram florestas para obter
terra cultivável, nunca imaginaram que eliminando junto com as florestas os
centros de coleta e reservas de umidade lançaram as bases para o atual estado
desolador destes países. Quanto aos italianos dos alpes cortaram as florestas de
pinheiros da encosta sul, tão amadas na encosta norte, eles não tinham a menor
ideia de que agindo assim cortavam as raízes da indústria láctea da sua região,
previam menos ainda que pela sua prática eles privaram de água suas fontes
montanhesas durante a maior parte do ano[...]. Os fatos nos lembram a todo
instante que nós não reinamos sobre a natureza como um colonizador reina sobre
o povo estrangeiro, como alguém que está fora da natureza, mas que nós lhe
pertencemos com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que nós estamos em
seu seio e que toda nossa dominação sobre ela reside na vantagem que levamos
sobre o conjunto das outras criaturas por conhecer suas leis e por podermos nos
servir dela judiciosamente. (Engels, 1968, p. 180-181).”
25
Löwy (2014, p.29) também lembra um trecho de Marx no qual menciona em
livro I d’O capital as devastações feitas pelo capitalismo sobre o ambiente natural:
“[...] E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso da arte de
saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período
é simultaneamente um progresso na ruína nas fontes permanentes dessa
fertilidade. Quanto mais um país como, por exemplo, os Estados Unidos da
América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento de seu
desenvolvimento, tanto mais rápido esse processo de destruição. Por isso, a
produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de
produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e
o trabalhador. ” Segundo o próprio autor assegura em nota de rodapé, a tradução
deste trecho a partir da edição em português: Marx, Karl. O capital. São Paulo.
Abril Cultural, 1984. V.I. t.2 (Col. Os Economistas).
209
ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e
industrial da civilização moderna”.
O exemplo para fora do trem, a irrupção dos oprimidos, a
revolução, o caminho de volta (a contrapelo da história), dos
processos históricos continuados que induz a tese IX é
demonstrada por Benjamin quando cita a revolução francesa como
exemplo, uma vez que interrompeu mil anos de continuidade real
na Europa, ainda que por um breve período.
Em uma época em que a vida é relacionada a aplicativos e
celulares, é quase impensável, quase uma ingenuidade que, em
pleno século dominado pela tecnologia, se advogue a ideia de um
rompimento com ela. Entretanto, é relevante ressaltar que não se
trata de um rompimento puro e simples, mas de uma
desmistificação da ideia de produção voltada unicamente para
atender a um padrão consumerista como baliza do sistema
econômico. Trata-se ainda de afastar-se de teses que dão validade
aos jargões que reconhecem o desenvolvimento como algo
sustentável, cujas externalidades negativas possam ser controladas
por eco taxas ou impostos sem alterar em nada a estrutura
exploratória/consumidora de bens ambientais.

26
Löwy (2014, p.39). “O crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes
cidades, da água potável e do meio ambiente em geral; aquecimento do planeta,
começo da fusão das geleiras polares, multiplicação das catástrofes naturais, início
da destruição da camada de ozônio; destruição, numa velocidade cada vez maior
das florestas tropicais e rápida redução da biodiversidade pela extinção de
milhares de espécies; esgotamento dos solos, desertificação; acumulação de
resíduos, notadamente nucleares, impossíveis de controlar; multiplicação dos
acidentes nucleares e ameaça de um novo Chernobyl; poluição alimentar,
manipulações genéticas, vaca louca, gado com hormônios. Todos os faróis estão
no vermelho”
210
Obviamente que não se deve desprezar inúmeros esforços
no sentido de uma economia mais harmoniosa com o meio
ambiente, ao contrário, tudo que se possa fazer para melhorar o
ambiente natural deve ser posto em prática, entretanto, sem que se
altere as bases de produção e consumo, o efeito é apenas paliativo.
Neste sentido, Löwy (2014, p.46):

A racionalidade limitada do mercado


capitalista, com o seu cálculo imediatista de
perdas e lucros, é intrinsecamente
contraditória com uma racionalidade
ecológica, que leve em conta a longa
temporalidade dos ciclos naturais. Não se trata
de opor os ‘maus’ capitalistas e ecocidas ao
‘bons’ capitalistas verdes: é o próprio sistema,
fundado na impiedosa competição, nas
exigências de rentabilidade, na corrida atrás
do lucro rápido que destruidor dos equilíbrios
naturais. O pretenso capitalismo verde não
passa de uma manobra publicitária, de uma
etiqueta que visa vender uma mercadoria, ou,
na melhor das hipóteses, de uma iniciativa
local equivalentes a uma gota de água sobre o
solo árido do deserto capitalista.

Trata-se de uma advertência contra a crença de que o uso


da tecnologia não produziria consequências e que seu uso seria algo
neutro, que, apesar das terríveis catástrofes contemporâneas como
Chernobyl, Fukushima, e agora, Mariana, todas elas seriam preços
a serem pagos para obter o progresso. Apesar da

211
contemporaneidade dos exemplos a advertência é antiga,
novamente Löwy (2005, p.101) demonstra Benjamin:

O culto ao trabalho e à indústria é, ao mesmo


tempo, o culto ao progresso técnico – tema
que ocupa Benjamin intensamente desde os
anos 1920. No entanto, nos ensaios sobre
Fuchs de 1937, um texto que já contém os
principais temas da tese XI, ele insiste no
contraste entre o ‘otimismo duvidoso’ da
social-democracia, que ignora a energia
destruidora da técnica, em particular a militar
e a‘intuição fulgurante’ de Marx e Engels sobre
a evolução possível do capitalismo em direção
à barbárie.

E parafraseando Enzo Travesso arremata (2005, p.103,


nota 89) “[...] nos campos de concentração nazistas encontramos
uma combinação de diferentes instituições típicas da
modernidade”.

7. A CONTINUIDADE HISTÓRICA COMO MÉTODO DE


DOMINAÇÃO DA POLÍTICA “PROGRESSISTA”

A referida crença na neutralidade dos efeitos da


tecnologia do progresso produz um modus operandi que tem
servido de modelo e que reproduz a continuidade da dominação de
matriz ideológico-política positivista/progressista,a qual se
manteve hegemônica durante todo o século XX, presente desde a
proclamação da república, eternizada na expressão “ordem e

212
progresso” da bandeira brasileira, que (re)significada no mantra
“desenvolvimento sustentável” parece dar continuidade àquele
ideal positivista hegemônico que aprisiona o Estado brasileiro, com
raros momentos de emancipação e, deste então, sempre através de
uma ciência, de uma tecnologia a serviço do progresso predador
dos bens ambientais.

8. OUTRAS POSSIBILIDADES

Para além da advertência contra o que se denominou aqui


como naturalização de uma catástrofe, que se materializapor meio
de um documento jurídico quando relegado ao esquecimento em
alguma prateleira empoeirada de algum fórum competente e pela
exclusão popular na solução do problema, é importante destacar
que existe em cada acontecimento uma possibilidade de que ele se
trone revolucionário, singular na história, para Michael
Löwybaseado em Benjamin (2005, p.136) há em momentos trágicos
a possibilidade deste se tornar um movimento motriz que quebre o
continuísmo,para ele,

[...] cada momento histórico tem suas


potencialidades revolucionárias que conforme
o apêndice “A” da tese XVIII, nenhum fato,
por ser causa, já é, só por isso, um fato
histórico. Ele se tornou tal postumamente,
graças a eventos que dele podem estar
separados por milhares de anos”. Benjamin
está sempre conectado a figura messiânica,
afinal era judeu, para ele o ‘o messias quebra a
213
história, ele não está no fim da história’, assim
como aqueles oprimidos que de tempos em
tempos ‘revoltam-se’ e a revolucionam, para
Benjamin, “estilhaços de um tempo
qualitativo em oposição ao tempo progressivo
histórico.

Esses (LÖWY, p.140) “estilhaços do tempo” são os breves


momentos em que os oprimidos conseguem revoltarem-se contra
a continuidade histórica, e “salvando um momento do passado”
quebram o cerne do presente.
A interrupção, o rompimento, constitui-se na chance
revolucionária de cada evento histórico, e caso não seja exercido,
dão azo a continuidade do vento irresistível que imobiliza as asas
do anjo da história, aberta e cristalizada. Para Benjamin (LÖWY,
2005, p.135) esse “momento revolucionário” significa a “entrada no
compartimento fechado do passado” e a entrada se dá pela ação
política, na medida em que interrompe a continuidade “natural” do
tempo histórico.
A possibilidade de romper com o progresso é a
possibilidade de romper com a passividade o imobilismo político,
com a inércia produzida pela transferência da responsabilidade na
resolução da tragédia pelos instrumentos jurídicos e seu
pseudomodernismo técnico processual, na medida em que esta
promete através de seus procedimentos a restauração, a
conciliação, a negociação amigável entre o progresso predatório e a
morte da natureza.
A referida transferência transforma sujeitos históricos (os
afetados pela morte do rio) em autômatos, e por sua vez as
214
entidades responsáveis por esses atos tornam-se entes produtores e
consumidores de novas tecnologias produtoras de oráculos
modernos, como nos tempos antigos, e todos (LÖWY, 2014 p.142)
“[...] são seduzidos pelo charme maléfico do futuro previsível”.
Nesta perspectiva, ao se transformar a morte jurídica do Rio Doce
comoum evento natural, acidental e indenizável, corre-se o risco de
se repetir erros do passado recente de continuísmo estéril. Deve-se
aproveitar este instante histórico e transformá-lo num instante
revolucionário onde se lute contra a dominação continuísta em
nome da ordem e do progresso.
A morte do rio doce é um momento de abertura histórica,
e as consequências disso não são previsíveis, elas ainda serão
produzidas pelo homem, como ensina,Löwy (2005, p.151) “[...] a
história não estava dada, pronta e acabada, é pela ação política que
se constrói a história dos revolucionários, dos oprimidos, dos que
num momento fugaz se emancipam” assim como em julho de 1789
ninguém poderia prever a queda da Bastilha que aconteceu na
sequência. Por outro lado, apesar dos prenúncios de Benjamin na
década de 1930, de suas advertências para que se saltasse para fora
do trem da história do continuísmo que levaram a Auschwitz e
Hiroshima, maculando irremediavelmente o progresso científico
como um método de controle e opressão que levou a morte e
sofrimento de milhões de pessoas, naturalizado pela história como
se fosse algo irremediável, o temporal de aço e bombas que varreu
a Europa durante a segunda guerra poderia ter sido evitado.
Benjamin não foi o único a prever a tragédia que se
constituiuna segunda guerra, igualmente Trotski profetizava em 30

215
de janeiro de 1933 (DEUTSCHER, 2006,p.184) “[...] oacesso de
Hitler ao poder é um golpe terrível para a classe operária, mas ainda
não é a derrota final 27, irresistível” ele já alertava para a fato de que
(2006, p.231):

O que estava em jogo não eram apenas as


conquistas do movimento trabalhista alemão,
mas o futuro da civilização, com o nazismo as
sombras medievais voltariam a pairar sobre a
Europa. O nazismo, se vitorioso, Hitler não só
preservaria o capitalismo, como o reduziria à
barbárie. O nazismo recolheria todo o lixo do
pensamento político para fazer com ele o
tesouro intelectual do novo messianismo
alemão. Fomentava todas as forçar da barbárie
que palpitavam sob a tênue superfície da
sociedade de classes civilizada.

Igualmente a morte do rio doce pode se tornar o estopim


de uma insurreição capaz de romper com o continuísmo histórico,
para Trotski (DEUTSCHER, 2006, p.269) “[...] A mais indubitável
característica de uma revolução é a intervenção direta das massas
nos acontecimentos históricos. A revolução está ali, em seus nervos,
antes de sair as ruas” e o historiador dever entrar “nos nervos” e na

27
A esse respeito ressalte-se o comentário de Deutscher (2006, p.231) “Sabemos
agora, pelos numerosos arquivos e diários alemães, como era realmente grande a
vulnerabilidade do primeiro governo de Hitler ao ser constituído. Ainda meses
depois, em 5 de março depois do ataque nazista a Casa Karl Liebknecht em Berlim
e depois do incêndio do Reichstag, em eleições realizadas sob o terror nazista sem
limites, os socialistas e comunistas ainda tiveram 12 milhões de votos, para não
falarmos dos 6 milhões de votos dados à oposição católica”.
216
mente de bilhões de pessoas para sentir e transmitir o impulso
vigoroso que derruba a ordem estabelecida 28.
Mais do que uma visão pessimista, o artigo aponta para
uma possibilidade de, no presente momento, a ação política dos
atingidos inconformados com o progresso linear transformarem o
fato histórico representado na tragédia de Mariana, a morte do Rio
Doce. É importante sublinhar que este fato era evitável, mas que
essa possibilidade não está relegada ao passado, inexoravelmente,
pois a abertura histórica pode não coincidir com a história continua
como se viu acima, ela pode ser transformada, mesmo após o fato
histórico.
Nesta perspectiva Michael Löwy indica ainda
possibilidades que poderiam ser úteis para a referida ação política,
em sua perspectiva, a exigência popular por adoção de medidas eco
socialistas 29poderiam dar um novo sentido ao Estado democrático,

28
Ainda segundo Deutscher comentando Trotski (2006, p.269) “A história é,
portanto, em grande parte um estudo da psicologia das massas revolucionárias.
Detendo-se na ligação entre os fatores ‘constante’ e ‘variável’ demonstra que a
revolução não se aplica simplesmente pelo fato de estarem as instituições sociais
e políticas, há longo tempo, em decadência e prontas a serem derrubadas, mas
pelas circunstâncias de que muitos milhões de pessoas percebem tal coisa pela
primeira vez. Os homens só se levantam em massa, quando percebe, de subido
que estão mentalmente atrasados em relação aos tempos e desejam reparar o
atraso de imediato. As grandes convulsões da sociedade seguem-se
automaticamente da decadência de uma velha ordem; gerações podem viver
numa ordem decadente, sem terem consciência disso. Mas quando, sob o impacto
de alguma catástrofe ou guerra ou colapso econômico, adquirem consciência, há
uma explosão gigantesca de desespero, esperança e atividades”.
29
“Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as
aquisições fundamentais do marxismo ao mesmo tempo em que o livra de suas
escórias produtivistas. Para o eco socialistas a lógica do mercado e do lucro assim
217
uma vez que possibilitariam novas experiências sociais que
levassem a uma efetiva gestão coletivizada de bens ambientais,
orientadas primordialmente a partir do interesse ambiental, da
coletividade emdetrimento do mercado privado ou do lucro, em
suas palavras (2014, p.41), diz respeito,

[...] acolocar a questão ambiental entre as


forças de produtivas e as condições de
produção, representando assim uma ruptura
com a ideologia da neutralidade ambiental do
progresso, subordinando a produção às
necessidades sociais, por meio de um controle
democrático, que exproprie, ainda que
temporariamente, os meios de produção de
modo a submete-los aos interesses ambientais
e sociais, de modo que, o uso e a gestão dos
bens ambientais coletivizados e
principalmente, com objetivos e métodos de
produção definidos democraticamente, tendo
como norte uma
reorientação/democratização do uso da
tecnologia/produção, baseada não mais na
produção do lucro mas do bem estar
ambiental/social, onde o uso seja mais
importante do que o valor da troca (do lucro).

Assim, a possibilidade a que o autor se refere é de uma


mudança de paradigma, de um rompimento com o continuísmo
histórico vinculado a liberalismo econômico e ao interesse

como do autoritarismo burocrático de ferro do socialismo real são incompatíveis


com o meio ambiente natural”. (2014, p.44).
218
exclusivo do lucro, apontando para a possibilidade de se reescrever
a história ambiental de um ecossistema terrivelmente afetado, a
partir de objetivos que levem em consideração a restauração da vida
do bem ambiental e não da perspectiva humana, jurídica e ou
empresarial.
A administração de bens ambientais destruídos por uma
produção irresponsável deve ser coletivizada, devendo sair do
domínio do Estado propriamente dito, bem como das empresas
exploradoras dos referidos bens, atitudes como estas atenderiam
aos mais modernosprincípios de justiça social, submeter à
aprovação da sociedade o modo de produção e de consumo que
levou a destruição ambiental pode ser essencial para restauração do
patrimônio ambiental afetado.
Dito assim parece utopia marxista? – Pois bem, essa
dúvida é a materialização do continuísmo histórico que vincula o
modo de vida ao destino trágico.

9. A REMISSÃO MITOLÓGICA

Como se sabe após a morte há um julgamento, e se for


verdade que a morte do rio doce seja uma realidade inexorável, há
neste fato uma terrível ameaça mitológica, pois “escombros sem
conta que chegam até ao céu arregalam os olhos do anjo da
história” 30 estão postos, expondo todos os que puseram em risco os
bens ambientais que compõem a bacia hidrográfica do rio doce,e,

30
Alusão ao anjo da história descrito na tese IX de Walter Benjamin e narrado no
prólogo deste trabalho.
219
como visto alhures, o rio do Letes levava pelo vento do progresso,
pela naturalização dos atos injustos para serem devorados por
Cérbero, cão que guardava as portas do inferno, assim também o
esquecimentos(lettes)desta tragédia pode trazer consigo esta
ameaça.
Por outro lado, o curso da história não para, e em A divina
comédia, Virgílio diz que o (DANTE, 2002, p.63) o rio Lettes“[...]
há de ser visto fora do inferno pois é onde as almas, já redimidas
hão de purificar-se”, além disso foi (p.265) “[...] caminhando pelas
margens do Lettes” que Matelda (p.283) “[...] conduziu Dante ao
Rio Eunoé, o rio da Boa Memória, onde mergulha, para assim
purificado, poder subir ao paraíso”.
Como se viu na introdução desde trabalho, desde os
primórdios são os rios, como o RioDoce a fonte da vida, e agora,
após a “tragédia de Mariana”, está prestes a tornar-se fonte de
morte, mas assim como o rio Lettesque representa o esquecimento
que pode conduzir ao inferno de Dante e a Cérberonas profundezas
da terra, pode conduzir igualmente ao paraíso pela remissão.
Oxalá consigamos, navegando, por suas águas saltar para
fora do trem do progresso a tempo.

220
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio.HomoSacer: o poder soberano e a vida


nua I / Tradução de Henrique Burigo. 2.ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.

ALIGHIERI, Dante.A divina comédia. Tradução Fábio M.


Alberti. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002.

BENJAMIN, Walter: Aviso de incêndio: uma leitura das teses


“Sobre o conceito de história”/ Michael Löwy. Tradução de
Wanda Nogueira Cadeira Brant, (tradução de teses) Jeanne Marie
Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.

_______. O que é ecossocialismo / Michael Löwy, 2.ed. São


Paulo: Cortez, 2014. – (coleção questões da nossa época; v.54)

BITTAR, Eduardo C.B., Guilherme Assis de Almeida. Curso de


Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2016.

DEUTSCHER, Isaac, Trotski: o profeta bandido, 1929-1940 /


Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.

LEITE, Flamarion Tavares. Manual de filosofia geral e jurídica


das origens a Kant. Rio de Janeiro:Forense, 2008.

PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo:


Nova Cultural, 2004a.

221
SOUZA, José Cavalcante de; KUHNEN, Remberto Francisco
(Orgs.). Os pré-socráticos: fragmentos, doxográfias e
comentários. Tradução de José Cavalcante de Souza et al. São
Paulo: Nova Cultural, 2005.

222
VIDA NUA, REFUGIADOS AMBIENTAIS E A
DESMISTIFICAÇÃO DO CIDADÃO UNIVERSAL

BARE LIFE, ENVIRONMENTAL REFUGEES AND


DEMYSTIFICATION OF THE UNIVERSAL CITIZEN

Ana Beatriz Silva de Sá1


Loiane Prado Verbicaro 2

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo desmistificar a


figura do cidadão universal, utilizando-se, para isso, do conceito de
vida nua, de Giorgio Agamben, encarnado na figura do refugiado.
Pretende demonstrar como a criação de uma cidadania universal
acaba sendo um conceito inadequado para aqueles que rompem o
vínculo com seu Estado-Nação e, portanto, nocivo para a
concretização de direitos, mesmo em um contexto de supremacia
dos Direitos Humanos. Ademais, trata da figura do refugiado
ambiental e da falta de proteção para ampará-lo. Para tal, a pesquisa
analisou os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para

1
Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário do Pará- CESUPA.
Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPQ): Democracia, Poder Judiciário e
Direitos Humanos. E-mail: abssa08@gmail.com.
2
Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de Salamanca, Mestra em
Direitos Fundamentais e Relações Sociais pela Universidade Federal do Pará, com
período sanduíche na Universidade de São Paulo, Mestra em Ciência Política pela
Universidade Federal do Pará, Graduada em Direito pela Universidade Federal
do Pará - suma cum laude, Coordenadora do Curso de Graduação em Direito.
Professora da Graduação e do PPGD do Centro Universitário do Pará.
Atualmente cursa Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Pará. Líder
do grupo de pesquisa (CNPQ): Democracia, Poder Judiciário e Direitos
Humanos.
223
Refugiados. Além disso, abordou o estado de exceção personificado
na crise humanitária dos refugiados, notadamente os ambientais.

PALAVRAS-CHAVE: Refugiados, Vida nua, Direitos Humanos e


Agamben.

ABSTRACT: This work aims to demystifiy the ideal of a universal


citizen, using the concept of bare life, by Giorgio Agamben,
personified in the figure of refugees and to demonstrate how the
creation of a universal citizen can be harmful to the concretization
of rights to those who lose the connection with their home State,
even in a context of supremacy of Human Rights. In addition it
highlights the concept of environmental refugees and the lack of
international protection. For this purpose, it was used data from
United Nations High Commissioner for Refugees. Besides that, it
addresses about the importance of testimony and about the
existence of a State of exception, nowadays, personified in the
refugees crisis

KEYWORDS: Refugees, Bare Life, Human Rights, Agamben.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Homo sacer e vida nua.
3. O mito do cidadão universal.
3.1 Refugiados ambientais.
4. O Estado de exceção.
4.1 O testemunho.
Considerações finais.
Referências.

224
INTRODUÇÃO

O cidadão universal, por intermédio do conceito de vida


nua, do italiano Giorgio Agamben, é personificado na imagem dos
refugiados e demonstra que a criação de uma “cidadania
generalizada” pode, na verdade, ser insuficiente para a
concretização de direitos daqueles que se encontram fora da tutela
estatal, mesmo em um contexto de supremacia dos Direitos
Humanos. Nesse sentido, cabe a desmistificação deste cidadão
universal, desnudando-o, ao expor a vida nua por trás de um
conceito, apesar da sua importância para a estrutura humanística
de nosso tempo.
O filósofo Giorgio Agamben apresenta o conceito de vida
nua quando trata do homo sacer, ou homem sacro, um ser que vive
na tênue linha da dupla exceção, saindo da jurisdição humana, sem,
contudo, passar para a divina; matável, porém insacrificável. A
partir dessa delimitação conceitual, a pesquisa trabalha comos
refugiados, de modo especial, os refugiados ambientais a partir da
ideia de vida nua e os seus impactos no que conhecemos como
cidadão universal.
O refugiado ambiental, o qual precisa se evadir de seu país
em decorrência de desastres naturais ou ambientais apresenta-se
hoje, como um novo conceito. Sua proteção ainda não é
consolidada, ou mesmo amparada juridicamente, mostrando-se,
assim, como principal expoente da vida nua.
Sendo assim, para que seja possível compreender o papel
dos refugiados na desmistificação do cidadão universal, o trabalho,

225
por intermédio de pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa,
propõe-se a analisar o conceito de vida nua, o seu desenrolar
histórico e a relação com o soberano e a figura do refugiado.

2. HOMO SACER E VIDA NUA

Inicialmente, a figura do homo sacer seria a de um


homem amaldiçoado, tendo sua sacralidade ligada à soberania,
uma espécie de “exceção original”, um ser que poderia vagar na
frágil linha da exclusão e da inclusão, provido de uma dupla
exceção intrínseca: matável, saindo assim da jurisdição humana, e
insacrificável, não podendo acessar a jurisdição divina. Ademais,
por estar atrelado à soberania, torna-se parte integrante da
dimensão política.
Para explicar essa ideia fundamental de seu pensamento,
Agamben traz o exemplo dos dois corpos do rei, o qual diz que o
soberano carregaria dentro de si a vida natural e a vida sacra.Dessa
forma, quando morre, é necessário que sejam realizados dois
funerais, o primeiro para seu corpo, o qual representaria a vida
natural e matável e o segundo apenas de uma imagem (no contexto
francês), a qual é tratada como se fosse o próprio monarca,
representando assim a perpetuidade da dignidade real, uma vez que
“le roi ne meurt jamais” 3. O excedente de vida sacra do rei, então,
seria isolado pela imagem e passado para seu sucessor através de
um ritual, para que fosse dada continuidade e absolutez à
sacralidade. Sendo assim, o rei nunca morreria e é criada, assim, a

3
“O rei não morre jamais”.
226
figura de um homem sacro, o qual vive a dupla exceção de seu
antecessor, como podemos observar:

Cada homem é sepultado uma só vez, assim


como morre uma só vez. Na idade dos
Antoninos, em vez disso, o imperador
consagrado é queimado na pira duas vezes,
uma primeira vez in corpore e uma segunda in
effigie... O cadáver do soberano arde de modo
solene, mas não oficial (...) A efígie de cera,
que “se assemelha perfeitamente” ao morto é
o próprio imperador, cuja vida foi transferida
ao manequim de cera (BICKERMANN apud
AGAMBEN, 2010, p. 95-96)

De acordo com Agamben, é neste momento que “os


corpos do soberano e do homo sacer entram em uma zona de
indistinção na qual parecem confundir-se” (AGAMBEN, 2010, p.
96), uma vez que a dupla exceção trazida pelo homem sacro estaria
encarnada na figura do soberano.
A vida nua, por sua vez, seria a base do corpo político, a
mais frágil vida e digna de proteção pelo Estado. Na passagem da
soberania régia para a soberania nacional, acaba por ser encarnada
no cidadão, o qual vira, também, portador de soberania, mas
limitado ao vínculo nascimento-nação e ao próprio Estado-Nação
que o tutela.
Dessa maneira, quando os direitos do homem começaram
a ser concretizados, na forma de declarações e afins, como a

227
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), acabaram por atrelá-
los à ideia de cidadão universal, protegido e respeitado por todos.
Todavia, esse conceito é falho, uma vez que o cidadão é limitado
por seu vínculo com o seu Estado-Nação, deixando-se de proteger,
assim, aqueles que não se encontram vinculados e revelando o que
Agamben chamará de “resíduo entre nascimento e nação”, os
refugiados (AGAMBEN, 2010, p. 128).

3. O MITO DO CIDADÃO UNIVERSAL

Os refugiados, por não encontrarem respaldo dentro do


que foi estabelecido como homem universal, uma vez que estão
atrelados à cidadania, precisaram ser amparados por documentos
jurídicos, o que ocorreu com o advento da Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados(CRER) de 1951 e do Protocolo Relativo ao
Estatuto dos Refugiados (PRER) de 1967.
Todavia, os supracitados estatutos não são suficientes
para abarcar todas as situações, uma vez que o cenário mundial e o
social é suscetível a mudanças, como o advento de uma nova guerra
ou mesmo novos conceitos, a exemplo dos “refugiados
ambientais”, conceito ainda discutido doutrinariamente. Além
disso, a Convenção dos refugiados protege apenas aqueles que se
enquadram em algumas categorias, tais como: temor de
perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião
política.
Dessa forma, podemos observar que não há inclusão de
deslocados internos, apátridas ou mesmo “refugiados ambientais”,
228
tornando ainda mais frágil a proteção daqueles que deveriam ter
sua dignidade protegida, uma vez que seriam “cidadãos universais”,
mas que ao romperem o vínculo com o Estado, acabam sendo
deixados em uma espécie de vácuo, de acordo com Arendt,“o
prolongamento de suas vidas é devido à caridade e não ao direito”
(ARENDT, 2012, p.403).
Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados):

O número de refugiados, (...) ao alcançar a


marca de 22,5 milhões tornou-se o mais alto
de todos os tempos. Destes, 17,2 milhões estão
sob a responsabilidade do ACNUR (ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA REFUGIADOS, 2017).

A maioria destes refugiados vem através de guerras,


sobretudo sírios, palestinos e sudaneses do sul. A Síria mostra-se,
atualmente, como o foco central da crise humanitária, uma vez que
vive uma guerra civil desde 2011, tendo parte de sua população se
evadido do país em busca de refúgio e melhores condições de vida.
Preceitos basilares do Direito Humanitário, como o não ataque a
hospitais e escolas, bem como a proibição do uso de armas
químicas têm sido reiteradamente desrespeitados, criando uma
atmosfera caótica e colocando em evidência a necessidade de
políticas de refúgio mais amplas e eficazes.
Os conflitos, apesar de ainda serem um dos principais
motivos que levam à procura de refúgio, não são os únicos, no

229
cenário atual, tendo-se, ainda, o crescimento do contingente de
refugiados ambientais, uma vez que os impactos do
desenvolvimento industrial e econômico, durante décadas, passou
a ter efeitos mais visíveis no meio ambiente, como a crescente
escassez de recursos, o que, consequentemente, origina novos
conflitos e novos ciclos migratórios.

Além dos conflitos e perseguições, os fatores


ambientais vêm ganhando cada vez mais
visibilidade com a discussão em relação aos
refugiados ambientais, embora não sejam
reconhecidos juridicamente. A implantação
de grandes obras de infraestrutura, como as
hidrelétricas, ou o desenvolvimento de
grandes empreendimentos agrícolas
tornaram-se, também, fatores de formação de
fluxos de refugiados (SILVA, 2017, p. 03).

A falta de recursos, decorrente de conflitos, acaba, ainda,


por ferir direitos fundamentais, como o acesso à alimentação e
proteção contra fome, consagrados no Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em seu artigo 11.
Dessa forma, a partir de uma decisão que demonstra a intrínseca
ligação entre guerra e fome, o Conselho de Segurança da ONU
aprovou, em maio de 2018, uma resolução para proibir países em
conflito de atacar localidades necessárias à produção e distribuição
de alimentos, uma vez que, de acordo com as Nações Unidas:

Atualmente, pessoas em zonas de conflito


representam 60% dos 815 milhões de

230
indivíduos vivendo com fome crônica. Quem
está em meio à guerra tem mais do que o
dobro de chances de ser subnutrido, na
comparação com quem mora em países em
paz. Das 13 maiores crises alimentares no
mundo hoje, dez — Afeganistão, Burundi,
República Centro-Africana, República
Democrática do Congo, Iraque, Nigéria,
Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen — são
relacionadas a conflitos.

Ademais, destaca a inaplicabilidade prática da figura do


cidadão universal, pois o grande fluxo de refugiados não tem
encontrado, em geral, o apoio global necessário para que se
reestabeleçam em outras localidades, saindo, assim, das situações
de perigo. É evidente que o pensamento Estatal, e não globalizado,
ainda é muito presente, apesar de significativa absorção dos
refugiados por parte dos Estados,sendo os países mais voltados para
sua própria proteção econômica e equilíbrio interno, apesar da
evidente necessidade de solidariedade internacional, como se pode
vislumbrar:

A proteção da população é tema de grande


preocupação dos governos, de maneira que, em torno
de 13,5 milhões de pessoas estavam em necessidade
de proteção e de assistência no ano de 2016. As
Nações Unidas documentam relatórios de grandes
violações de direitos de crianças, incluindo mortes e
mutilações, ataques em escolas e hospitais, violência

231
sexual, abdução e recrutamento de crianças
(BENTES; NEVES; LOBATO (Orgs.), 2018, p. 62).

Hoje já há políticas internacionais que protegem os


refugiados, como o princípio do non refoulement4, o qual se traduz
pela impossibilidade dos Estados de devolver pessoas que estejam
sofrendo perseguições para seus Estados de origem, o que acaba por
reafirmar a proteção internacional dos direitos humanos e a
proteção internacional dos refugiados. Este princípio se estabeleceu
como uma norma jus cogens, que não pode ser desrespeitada por
nenhum Estado, mesmo que este não seja signatário de tratados
que abordem o tema, sendo assim, norma imperativa de direito
internacional. De acordo com o ACNUR:

Como parte inerente da proibição da tortura


em virtude do direito consuetudinário
internacional, o qual alcançou o domínio de
jus cogens, a proibição da devolução que possa
expor a um indivíduo ao perigo de sofrer tal
trato é vinculante para todos os Estados,
incluídos aqueles que ainda não são partes dos
tratados pertinentes (ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA REFUGIADOS, 2008).

Além disso, de acordo com os artigos 53 e 64 da


Convenção de Viena, de 1969, tais normas (jus cogens) devem ser
respeitadas, de forma que devem prevalecer sobre qualquer tratado

4
Traduz-se para “não devolução”.
232
que venha a contrariá-las, salvaguardando-se os casos em que haja
ampliação de direitos, uma vez que são normas inderrogáveis.
Todavia, apesar da existência de tais políticas
internacionais, ainda é possível vislumbrar situações em que os
refugiados não conseguem ter acesso a um país que o acolha ou
mesmo sair da situação de conflito de seu país de origem, como é
possível perceber através de tais relatos:

Em 22 de Novembro, as Nações Unidas realizaram o


salvamento humanitário de cerca de 85.000 sírios
abandonados no caminho da Jordânia. (BENTES;
NEVES; LOBATO, (Orgs.), 2018, p. 59).

Os refugiados acabam por vir, de forma mais intensa, do


novo contexto de um mundo globalizado, em que até os fluxos
migratórios tornam-se compartilhados.

Eles trazem consigo uma territorialidade “extra” (sua


extraterritorialidade)10 na esperança de conquistar
outra, e seguir em frente criando novos laços. Em sua
complexa dinâmica territorial vivida, eles
territorializam-se também, por meio de seus fluxos,
virtuais, a partir dos territórios-rede,11 ou in situ,
constituindo assim, “territórios em trânsito”, pois “o
território, assim como o próprio espaço, antes de ser
uma matéria estanque, é um movimento, um ato”
(HAESBAERTapud SILVA, 2017)

Neste atual paradigma, pós Guerras Mundiais, o crescente


de refugiados acaba por tomar proporções suficientes para alterar

233
o entendimento territorial dos Estados, pois trazem sua própria
carga cultural, o que gera um maior protecionismo por parte destes,
como podemos observar:

3.1 Refugiados ambientais

Hoje se discute uma nova categoria de refugiado, os


“refugiados ambientais”, os quais não são amparados nem pela
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (CRER) de 1951,
nem pelo Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados (PRER) de
1967. Logo, não há qualquer proteção positivada que os abarque.
Inicialmente, cabe destacar a diferença entre desastres
naturais e desastres ambientais. O primeiro refere-se a eventos
decorrentes da própria natureza, podendo acontecer de forma lenta
e gradual (climáticos) ou de forma abrupta e inesperada
(catastróficos), como terremotos e tsunamis.
Um caso emblemático, que terá grande impacto em um
futuro próximo, é o das Ilhas Maldivas, as quais estão
desaparecendo em decorrência do aumento do nível do mar e, por
isso, vem investindo em terras para o momento em que terá de
deslocar toda a sua população. Tal acontecimento é consequência
de uma situação global que poderá ter efeitos em todas as cidades
costeiras do planeta. De acordo com as Nações Unidas:

A agência meteorológica das Nações Unidas


alertou que a pressão contínua sobre o Ártico
em 2017 terá “repercussões profundas e
duradouras no nível do mar e nos padrões
climáticos em outras partes do mundo”,
234
intensificando por exemplo os eventos
climáticos extremos.
Análise da Organização Meteorológica
Mundial mostrou que, enquanto 2016
mantém o recorde de ano mais quente (1,2°C),
2017 – que chegou a aproximadamente 1,1°C
acima da era pré-industrial – foi o ano mais
quente sem o ‘El Niño’. Segundo a agência,
isso pode impulsionar as temperaturas globais
a cada ano.

O segundo, desastres ambientais, refere-se a eventos


provenientes da ação humana, antropogênicos, que ocorrem
quando o homem interage de forma nociva com o meio, causando
um desequilíbrio, como desastres nucleares, acidentes que resultem
poluição das águas, secas como consequências da mudança
climática.
Em nosso país, no Estado do Pará, temos o caso do
naufrágio do navio Haidar, o qual tombou ainda no cais do porto
de Vila do Conde, em Barcarena. A embarcação estava
transportando cinco mil bois vivos e ia em direção à Venezuela. O
desastre ocasionou o derramamento de óleo nas águas locais,
poluindo-as, e a morte de boa parte dos bois, que afundaram junto
ao navio. Tal catástrofe causou um chamado “dano ricochete”, em
que os infortúnios ocorrem como um elo de ações que causam
novos danos. No caso em tela, as carcaças dos bois mortos, que
chegaram às praias, foram consumidas pela população, o que
causou danos à saúde da população local e as águas poluídas por
óleo acabaram por diminuir o fluxo de turistas e afetar a economia

235
dos pescadores locais. Logo, tal caso causou enorme dano sócio-
ambiental. Contudo, trata-se um raro episódio em que houve
reparação ao dano causado, uma vez que, através de um acordo
judicial, as empresas responsáveis ficaram incumbidas de pagar 13
milhões de reais para a comunidade, a título de indenização
(MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ, 2015).
Acidentes como este, em geral, acabam por criar um fluxo
de saída do local afetado, uma vez que a população alvo busca
melhoras condições de vida ou mesmo pela completa inutilização
da área anteriormente habitada, forçando-lhes a saída.
As duas formas de desastres acarretam a saída de
indivíduos de seus locais de origem.Todavia, nem todos podem ser
considerados refugiados, uma vez que para isso é necessária a saída
de seu país de origem. Sendo assim, aqueles que permanecem no
país, mantendo seu vínculo com o Estado, são classificados como
deslocados internos, os quais são abarcados pelo direito
humanitário.
A ACNUR traz o segundo conceito acerca dos deslocados
internos:

Os deslocados internos, pessoas deslocadas


dentro de seu próprio país, muitas vezes são
erroneamente chamadas de refugiadas. Ao
contrário dos refugiados, os deslocados
internos (IPDs em seu acrônimo inglês) não
atravessaram uma fronteira internacional
para encontrar segurança mas permaneceram
em seu país natal. Mesmo se fugiram por
razões semelhantes às dos refugiados (conflito
armado, violência generalizada, violações de
236
direitos humanos), legalmente os deslocados
internos permanecem sob a proteção de seu
próprio governo, ainda que este governo possa
ser a causa da fuga. Como cidadãos, elas
mantêm todos os seus direitos e são
protegidos pelo direito dos direitos humanos
e o direito internacional humanitário.

Quanto aos refugiados ambientais, ainda há um embate


conceitual sobre como classificá-los e sobre o que tal conceito
abarcaria e o que limitaria, uma vez que um conceito amplo poderia
significar uma crise na política migratória internacional, pois sua
generalidade acabaria por abranger um grande número de pessoas.
O primeiro conceito acerca do tema surgiu na década de
1980, com Essan El-Hinnawi, professor do Centro de Pesquisas
Egípcias, o qual foi adotado pelo Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA):

Refugiados ambientais são pessoas que foram


obrigadas a abandonar temporária ou
definitivamente a zona tradicional onde
vivem, devido ao visível declínio do ambiente
(por razões naturais ou humanas)
perturbando a sua existência e/ou a qualidade
da mesma de tal maneira que a subsistência
dessas pessoas entra em perigo.

Apesar da adoção deste conceito, os refugiados


ambientais ainda não possuem proteção positivada e, além da
dificuldade para conceituá-los, são de difícil quantificação, pois

237
muitos destes refugiados pedem refúgio sob motivações diversas,
como política. Sendo assim, os estudos quantitativos não são muito
coesos, contudo, estima-se que o número de refugiados ambientais
até 2050 irá variar entre 250 milhões e 1 bilhão de pessoas.
Tais refugiados podem facilmente ser vistos como vida
nua no momento em que, ao sair de seu país de origem, perdem o
vínculo com o seu Estado-Nação e consequentemente perdem a
proteção garantida pela ideia de cidadão universal. Contudo, além
de já se encontrarem em uma situação de fragilidade, os Estados
aos quais se dirigem não possuem obrigações legais de recebê-los,
uma vez que não se enquadram no artigo 33 da Convenção Relativa
ao Estatuto dos Refugiados de 1951, ficando, assim, a vida de
milhões de pessoas dependente da decisão arbitrária dos Estados.
Atualmente, apenas a Convenção de Kampala (Uganda,
2009) traz, indiretamente, proteção aos refugiados ambientais,
pois, apesar de não citá-los diretamente, apresenta a ideia de
situações de calamidade natural, nas quais estão incluídos. Sua
finalidade é estabelecer uma perspectiva de cooperação entre os
países, representando a responsabilidade de proteger (R2P –
Responsability to protect), por conseguinte, compatibilizando a
soberania nacional com o dever de proteção ao inferir que, na falta
de cuidado estatal, deve-se recorrer à proteção coletiva,
aproximando-se do ideal de cidadão universal.
O sistema de cooperação, então, deveria contar com a
prevenção de danos, analisando-se as sociedades de riscos, para
possibilitar, através de early warnings, 5 conceito trazido do direito

5
Traduz-se para alertas imediatos
238
ambiental, a previsão do fluxo de migrações ou a melhora da
situação (em casos em que a migração já se iniciou), tal conceito
busca:

O estabelecimento de um sistema de alerta imediato


com base na coleta imparcial de informações de
modo a advertir para êxodos em potencial e a
considerar medidas preventivas antes do início do
movimento em massa (CANÇADO TRINDADE,
1993, p. 135 e 136).

De acordo com estudos realizados pelo Internal


Displacement Monitoring Centre’s6 (IDMC), desde 2008, há uma
média que equivale a uma pessoa sendo deslocada por motivos
ambientais por segundo, sendo tempestades um dos principais
motivos. Ademais, a maioria das 59,5 milhões de pessoas sob
proteção da ACNUR já se encontra em risco de um segundo
deslocamento devido a mudanças climáticas.
Sendo assim, visualiza-se a necessidade da criação de
instrumentos internacionais que respaldem este tipo de refúgio, a
criação de uma consciência coletiva que se aproxime da proteção
prometida pela ideia de cidadão universal, porém sem o requisito
de vinculação com um Estado-Nação, o qual tornaria ineficiente
tais instrumentos e a criação de uma sistemática global que possa
atender aqueles que já se encontram em situação de risco ou mesmo
que já estejam na situação de refúgio.

6
Centro de Monitoramento de Deslocados Internos
239
Cabe ainda ressaltar que o número de refugiados
ambientais, atualmente, se equipara ao de outras formas de refúgio,
pois decorrem das constantes mudanças climáticas e conflitos em
busca de recursos, principalmente no continente Africano.

4. O ESTADO DE EXCEÇÃO

Agamben traz a ideia de que o paradigma atual traria


consigo o advento do Estado Biopolítico, em que o Estado estaria
baseado em vida nua, colocando-se o valor humano, de suas vidas,
nas mãos de médicos e cientistas. O filósofo preleciona: “no
horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o
cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora,
somente o soberano podia penetrar” (AGAMBEN, 2002, p. 166).
Dessa forma, nasce um Estado de exceção, trazendo
consigo os campos, espaços em que as vidas nuas habitam, onde a
biopolítica é absoluta, nos campos de concentração, encarna-se nos
mulsemann, aqueles abandonados de qualquer esperança, na
exceção entre a vida e a morte.
É aberto um espaço de violência generalizada, pautada na
necessidade de se assegurar o “bem comum”, o que acaba por
banalizar a vida humana, tornando-a descartável. Atualmente, os
campos, focos de vida nua, tem se expandido, sendo, portanto, uma
realidade:

Isso nos levará a olhar o campo não como um fato


histórico e uma anomalia pertencente ao passado,
mas de algum modo, como a matriz oculta, o nómos

240
do espaço político em que ainda vivemos”
(AGAMBEN, 2004, p.173).

O refugiado como figura expoente deste cenário,


apresenta-se dentro de um campo, espaço de exceção permanente,
limitado por ser considerado um perigo à segurança estatal, uma
vez que põe em xeque sua soberania e o expõe à comunidade
internacional e ao desafio de receber um novo contingente de
pessoas.
Ora, o estado de exceção generalizado acaba por provocar
um fluxo migratório nunca antes visto, pois gera violência e
consequentemente a saída de um grande número de pessoas de seu
país de origem. Sendo assim, acaba-se normalizando tais campos,
banalizando a vida nua inserida neste espaço, a dos refugiados.

Hoje, vislumbra-se a tentativa de saídas destes campos, a


mobilização de refugiados, a expansão de direitos e, em
contrapartida a tentativa de repressão, de construção de muros e
políticas de migração mais severa. Um embate entre os dois lados
deste campo.
Logo, ainda vivemos em um Estado de Exceção, pautado
nas ondas de violência, que originam os fluxos migratórios e
baseado no advento do Estado Biopolítico, que, por sua vez, está
atrelado ao crescimento de vida nua. Tornando, assim, evidente a
inexistência de um conceito universal, que abarque todos de forma
igualitária e que independa de vínculos estatais, ou seja, a cidadania
universal não transcende os limites do campo.

241
4.1 O testemunho

Em “O que resta de Auschwitz”, Agamben traz o conceito


de testemunho, ressaltando sua importância para a construção
histórica, mas demonstrando que o real testemunho nunca, de fato,
poderá ser dado, pois o ambiente hostil do campo de concentração
acabava por criar os chamados “mulçumanos” ou mulsemann.
Tais pessoas são aquelas indefinidas, desprovidas de vida,
cadáveres ambulantes que, em meio à exceção, perdem a essência
humana, sobrevivendo por mero automatismo, sem estar
conectados com a realidade, “sua morte começa antes da morte
corporal” (AGAMBEN, 2008, p. 43).
O conceito surgiu a partir da seguinte analogia:

Observando de longe um grupo de enfermos, tinha-


se a impressão de que fossem árabes em oração.
Dessa imagem derivou a definição usada
normalmente em Auschwitz para indicar os que
estavam morrendo de desnutrição: os mulçumanos.
(AGAMBEN, 2008, p. 51).

Apenas essas pessoas seriam dotadas de plena capacidade


de testemunhar sobre os males da exceção, todavia, no estado em
que se encontram, tal testemunho torna-se impossível, fadando a
história ao desconhecimento.
O estado de mulçumano se dava por “intrínseca
incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles
foram esmagados antes de conseguir adaptar-se” (AGAMBEN,
2008, p.51). Sendo assim, os refugiados encarnariam o papel do
242
“mulçumano”, de vida nua extremada, que não conseguem se
adaptar às mudanças em seu próprio país, as quais ocorreram por
mero acidente, como nos casos de refúgio ambiental, por vontade
natural, ou por azar, como no caso dos refugiados de guerra.
Agamben descreve os mulçumanos como “aqueles que
não podem nem devem ser vistos, tampouco lembrados, porque
sua mera existência ameaça nossas representações mínimas do
humano” (AGAMBEN, 2008, p. 14), tal qual os refugiados, que
ameaçam o conceito de cidadão universal, bem como a soberania
dos Estados, uma vez que estes são obrigados a recebê-los quando
preenchem os requisitos descritos na legislação internacional.
Logo, os refugiados são aqueles que perdem sua voz e que
dependem dos Estados para que seus direitos sejam concretizados,
pois tornam-se vida nua ao perder o vínculo com seu Estado-
Nação, transformando-se assim, em mulçumanos que o cenário
mundial acaba por desviar a visão e se esquecer de sua existência,
pois não faz parte de sua realidade, bem como são uma constante
lembrança da fragilidade da proteção Estatal. Dessa forma, é
necessário que se abram meios para seus testemunhos e para que
suas histórias não sejam perdidas, nem esquecidas e para que a
criação de novas sistemáticas de amparo, jurídico e social, possam
ser criadas.

En The Use of bodies, Agamben avanza hacia


una ontología del estilo que “nombre el modo
en el que una singularidad se da testimonio de
sí al ser, y en la que el ser se exprese en el
cuerpo singular”(...) En este contexto, no

243
sorprende encontrar una referencia a
Nietzsche en el capítulo titulado “Por una
ontología del estilo”. Agamben reflexiona
sobre un modo de vida en el que zoè y bios
coincidan en todo punto: “Qué cosa puede ser
un modo de vida que tenga por objeto
únicamente la vida, esa que nuestra tradición
política ha separado desde siempre como vida
desnuda?” (LEMM, 2017, p. 07). 7

Cabe ainda ressaltar que Agamben possui uma grande


influência de Nietzsche e, portanto, reafirmar, em diversas obras
suas, que o testemunho é personalíssimo, o que o leva,
posteriormente, a desenvolver seus questionamentos acerca da vida
nua que embasaria o sistema biopolítico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, a criação de um ambiente internacional mais


próximo à ideia de cidadão universal é necessária, uma vez que se
vive uma crise humanitária, como na guerra civil da Síria e,
consequentemente, um grande fluxo de pessoas saindo de seus
países de origem em razão dos conflitos, ocasionando, assim, uma

7
Traduz-se para “Em ‘O uso dos corpos’, Agamben avança em direção a uma
ontologia de estilo que ‘nomeia a maneira pela qual uma singularidade dá
testemunho de si mesmo ao ser, e na qual o ser se expressa no corpo singular’ (...)
Neste contexto, não é surpreendente encontrar uma referência a Nietzsche no
capítulo intitulado "Por uma ontologia de estilo". Agamben reflete sobre um
modo de vida em que zoé e bios coincidem em todos os pontos: "O que pode ser
um modo de vida que tenha como objeto apenas a vida, aquilo que nossa tradição
política sempre separou como vida nua?".
244
crise de refugiados, agravada, ainda, pela necessidade de outros
tipos de refúgio, como o ambiental.
Para isso, torna-se essencial que se respeite alguns
princípios, como o da proteção internacional da pessoa humana, da
cooperação e da solidariedade internacional e da não
discriminação, bem como certos preceitos do Direito
Internacional, tais como os trazidos pelo CRER, em seu preâmbulo:

(...) a solução satisfatória dos problemas cujo alcance


e natureza internacionais a Organização das Nações
Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida
sem cooperação internacional; Exprimindo o desejo
de que todos os Estados, reconhecendo o caráter
social e humanitário do problema dos refugiados,
façam tudo o que esteja ao seu alcance para evitar que
esse problema se torne causa de tensão entre os
Estados.

Dessa forma, se estaria moldando uma comunidade


internacional, pautada em cooperação e solidariedade, visando a
tutela do indivíduo, protegendo e amparando-o, não por sua
nacionalidade, mas por ser humano, ou seja, no aspecto qualitativo,
deixando-se para trás a função inicial do Direito Internacional,
criado para regular negociações e cooperações entre Estados,
partindo de uma visão economicista e voltada apenas para seus
próprios interesses. Neste novo paradigma, o Direito Internacional
se basearia no homem, em especial na figura do refugiado, no afeto
e no sentimento de “nação global”, humanizando-o.

245
O refugiado, por sua vez, rompe com a continuidade entre
homem e cidadão, entre a ordem nascimento-nacionalidade, como
preleciona Agamben: “O humanitário separado do político não
pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra sobre o qual se
baseia a soberania” (AGAMBEN, 2010, p.130), dessa forma, o já
então excluído refugiado distancia-se ainda mais do político,
criando um fenômeno de massa: “crise dos refugiados”.
A figura do refugiado, portanto, seria uma matéria
constante na política, que teve reconhecimento gradual, a partir da
concretização dos Direitos Humanos, sem, contudo, ser
plenamente amparada, uma vez que é pautada em um mito, ou seja,
o cidadão universal, uma vez que após saírem da égide do Estado-
Nação, deixam de ser amparados, restando apenas organizações
internacionais para amenizar a crescente onda de vida nua.
Cabe ressaltar, novamente, que os refugiados possuem
diversos “núcleos”, tais como aqueles que advêm de guerras,
perseguições políticas ou mesmo por consequências ambientais, os
quais, por sua vez, ainda não são ponto pacífico, inclusive quanto à
sua nomenclatura, podendo ser chamados, também, de
“ecomigrantes” ou refugiados climáticos.
Tais refugiados tornam-se de grande relevância nos dias
atuais, uma vez que vivemos as consequências de décadas de
desenvolvimento industrial e econômico advindos da exploração
desenfreada e desregulada do meio ambiente, como o derretimento
das calotas polares, que ocasionou o aumento dos níveis do mar e,
por consequência, fez com que alguns países, como Tuvalu,
submergissem de forma mais rápida. Sendo assim, os refugiados

246
ambientais seriam os principais afetados pelo uso desregrado do
meio ambiente.
Dessa forma, observa-se que a figura do refugiado vive
constantes mudanças e ressignificações, adaptando-se à nova
realidade local e mundial.
Logo, os refugiados seriam “um conceito-limite que põe
em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação”
(AGAMBEN, 2010, p.130), os quais deixam a vida nua evidente,
rompendo, inclusive, com o conceito basilar dos Direitos
Humanos, o cidadão universal.
Sendo assim, é necessária a criação de um ponto em
comum, de estabilidade, entre vida nua e Direitos Humanos para
que estes possam ser, de fato, concretizados, sem que o vínculo a
um Estado, por meio da cidadania, seja requisito para a proteção de
direitos básicos.

247
REFERÊNCIAS

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AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo,


2004.

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http://www.acnur.org/t3/index.php?id=523. Acesso em: 13
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248
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Companhia das Letras, 2012.
BENTES, Natália Mascarenhas Simões; NEVES, Rafaela Teixeira
Sena; LOBATO, Luísa Cruz (Orgs.). Síria: da história à crise
humanitária. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

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meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional.
Porto Alegre, S.A. Fabris, 1993.

CASTRO, Edgardo. Introduçãoa Giorgio Agamben: uma


arqueologia da potência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

CLARO, Carolina de Abreu Batista. A Proteção dos “Refugiados


Ambientais” no Direito Internacional. Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, São Paulo, Tese de Doutorado em
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LEMM, Vanessa. Agamben como lector de Nietzsche: uma


visión de conjunto. 2017. Disponível em:
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Acesso em: 30 abr. 2018.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ. MPF/PA,


MP/PA, Procuradoria do Estado e Defensoria Pública também
pedem prazo máximo de
48 horas para que os responsáveis pelo navio resolvam a
retirada das 3,9 mil carcaças de bois que permanecem no
navio contaminando a água. 2015. Disponível em:
http://www.mppa.mp.br/index.php?action=Menu.interna&id=62
33&class=N. Acesso em: 01 mai. 2018.

249
NAÇÕES UNIDAS. Ritmo das mudanças climáticas é ‘ameaça
existencial para o planeta’, diz ONU. 2018. Disponível em:
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mundo e o atual cenário complexo das migrações forçadas.
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3098a0001.pdf. Acesso em: 01 mai. 2018.
250
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Barboza. A proteção dos deslocados ambientais no regime
internacional dos refugiados. 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/remhu/v22n43/v22n43a09.pdf. Acesso
em: 10 set. 2017.

251
LA DINÁMICA INCLUSIVA DEL DESARROLLO
TECNOLÓGICO EN LAS PATENTES FARMACÉUTICAS.
LA ACTUALIDAD MEXICANA Y ARGENTINA

INCLUSIVE DYNAMICS OF TECHNOLOGICAL


DEVELOPMENT IN PHARMACEUTICAL PATENTS.
MEXICO AND ARGENTINA UPDATES

Marta Carolina Giménez Pereira1

RESUMEN: El objetivo del trabajo es describir las Licencias


Obligatorias y presentar los impactos producidos en la
flexibilización de la protección de las patentes farmacéuticas al
reconocer un derecho a medidas alternativas a favor la salud
pública y la promoción del acceso a las medicinas. Además,
introduce la noción de Producción Pública de Medicamentos por
el sector público como instrumento de política pública y que trata
puntos estratégicos del sector salud, intentando reforzarlo con
respeto a la propiedad intelectual, estimulando la I+D, conectando
sector público y privado, garantizando abastecimiento y
distribución y resultando el reforzamiento de la dinámica de
innovación nacional.Método: comparativo y deductivo y la
investigación bibliográfica.

1
Doctora en Derecho, Instituto de Investigaciones Jurídicas, UNAM, México.
Pos-Doctora en Derecho, PNPD CAPES PPGDireito IMED, Brasil. Profesora
Investigadora Visitante en Universidad Federal da Bahía (UFBA), Brasil. Email:
magipe@hotmail.com. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/6905306640861147>.
252
PALABRAS-CLAVE: Producción pública de medicamentos;
Innovación tecnológica; Propiedad intelectual; Patentes
farmacéuticas; Licencias obligatorias o compulsivas.

ABSTRACT: This paper has as goal to describe the mandatory


licenses and presenting the impacts produced by the flexibilization
of drugs patents protection, recognizing the right for alternative
measures for public health and promoting the access to
pharmaceutical drugs. Beyond that, it introduces the notion of
drugs production by the public sector as an instrument of public
policies and strategic management of health, in a way to reinforce
it on the matter of intellectual property, Stimulating research and
development, connecting the public and private sectors, assuring
the provision and distribution, and resulting in the fortification of
the dynamics of national innovation. The used methods are
comparative and deductive and the research is made
bibliographically.

KEYWORDS: Public production of pharmaceutical drugs;


Technological innovation; Intellectual property; Pharmaceutical
patents; Compulsory license.

SUMARIO:
Introducción.
2. Licencias obligatorias.
3. El caso de las licencias obligatorias en el campo de la salud. La
experiencia internacional y el caso Mexicano.
4. Relevancia de la noción de salud dentro de las políticas públicas:
la producción pública de medicamente (PPM) y redefinición del
concepto de burocracia en el sistema de salud.

253
5. La innovación terapéutica, la investigación médica con la
contribución del paciente y las unidades productoras de
medicamentos (UPM) en Argentina.
Conclusiones.
Bibliografía.

INTRODUCCIÓN

Dentro de los conceptos de la “producción” y


“abastecimiento” de medicamentos, la tendencia actual en la
doctrina esboza una idea de innovación inclusivaque denomino
“Dinámica Inclusiva del Desarrollo Tecnológico”, es decir, un
desarrollo de dinámicas con miras a incluir todos los sectores que
participan en la cadena productiva de la invención dentro de un
política integrada y articulada, caracterizada por las premisas de
eficiencia del gasto público y privado en la producción de
medicamentos dentro de un conjunto amplísimo de estrategias, así
como la garantía de acceso a la salud en igualdad de condiciones y
de manera oportuna y la no menos importante distribución de
fármacos dentro de una zona geográfica trazada como parte de la
mencionada política.
El beneficio último de la ‘dinámica inclusiva del
desarrollo tecnológico’, según la experiencia internacional
enfatizada en este apartado en la Argentina, país de altos índices en
la PPM, es que en definitiva se logre que exista un instrumento de
política pública capaz de remediar y de ser posible homogeneizar,
en términos de funcionamiento adecuado, el acceso a la salud en
igualdad de condiciones hacia todos los sectores de la población.

254
Para poder entender mejor lo que significa “suavizar” los
derechos de propiedad industrial con miras a la satisfacción de
políticas públicas, comenzaremos por abarcar el concepto de
licencias obligatorias, también llamadas compulsivas, figura ya más
conocida dentro de la citada rama del derecho, que ha cobrado
relevancia en importantes acontecimientos del derecho comparado
(Brasil, entre los países a citarse).

2. LICENCIAS OBLIGATORIAS

Por licencias obligatorias se entiende el permiso que se


atribuye un gobierno para producir un producto o procedimiento
patentado o para importarlo, sin el consentimiento del titular de la
patente. Se trata de una de las flexibilidades en la protección de las
patentes que contempla el Acuerdo de la Organización Mundial del
Comercio (OMC) sobre Propiedad Intelectual, a saber, el Acuerdo
sobre los Aspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual
relacionados con el Comercio (ADPIC) a través de la Declaración
de Doha de 2001 y sus modificaciones posteriores, en las que se
suaviza el derecho de protección de que gozan los fármacos, al
reconocer a los países su derecho a tomar medidas tendientes a la
protección de la salud pública y la promoción del acceso a las
medicinas, conforme lo han reclamado los países en desarrollo y las
organizaciones no gubernamentales.
En estricto sentido, a través del contrato de licencia el
licenciante autoriza a un tercero –el licenciatario-, con o sin

255
contraprestación, a explotar una invención protegida, mediante el
otorgamiento de un derecho de naturaleza personal (JOLIET, 1982,
p. 294). Normalmente vendrá a ser la autoridad gubernamental
quien concederá la licencia a empresas o personas distintas del
titular de la patente a fin de que éstas hagan uso de los derechos de
la patente para fabricar, usar, vender o importar el producto o
procedimiento protegido sin hacerse necesaria la autorización del
titular.
A pesar de hallarse contemplada esta figura en la
normativa internacional y haber sido consecuentemente adoptada
por la mayoría de los países adherentes a la OMC en su legislación
interna, su puesta en marcha ha generado controversias sobre todo
en el ámbito de la salud ante el caso de emergencias de salud
pública.
A priori, la misma doctrina no se muestra unánime en
cuanto a su naturaleza jurídica de si se trata de una mera tolerancia
o de una contraprestación que asegure un goce económico para el
licenciante. A posteriori, se suscitan numerosas dudas a la hora de
intentar hacerla efectiva, generándose incertidumbres tanto para el
licenciante como para el licenciatario, temores que incluyen hasta
problemas de terminología. Por otra parte, una vez celebrado el
contrato,los casos de éxito resultan escasos, por lo que la
jurisprudencia aún es insuficiente para brindar soluciones sólidas y
a largo plazo y, en consecuencia, se regresa errónea e
irremediablemente a los principios generales del derecho
contractual, en la intención de llegar a solucionar en forma íntegra
el problema concreto que se plantea.

256
De hecho, la doctrina especializada indica el caso de los
contratos de licencia y de transferencia de tecnología como un caso
típico de incertidumbre en el derecho privado ante la falta de
normativa directamente aplicable al tema (DE LAS CUEVAS, 1994,
p. 12) que además resulte adecuada y correcta en el sentido de
ajustarse a la realidad del país de que se trata, más allá de a los
requerimientos del marco legal internacional, que se limita a
estipular conceptos básicos de manera similares y homogénea para
todos los países miembros de la OMC. Es que el derecho
comparado ofrece soluciones limitadas en la materia pues habrá de
tenerse en cuenta la específica y particular estructura económica del
país en que se celebre el contrato.

3. EL CASO DE LAS LICENCIAS OBLIGATORIAS EN EL


CAMPO DE LA SALUD. LA EXPERIENCIA
INTERNACIONAL Y EL CASO MEXICANO

En septiembre de 2009 se ha formulado en México una


propuesta de reforma del segundo párrafo del artículo 77 de la Ley
de Propiedad Industrial, en el sentido de acortar el plazo estipulado
para la resolución de la concesión de licencias por la autoridad. La
iniciativa no prosperó.
El artículo ya había sido reformado en el año 2004 y
anteriormente en 1994. La iniciativa de reforma del segundo
párrafo del artículo 77 hecha por el Senador Adolfo Toledo
Infanzón del Partido Revolucionario Institucional (PRI), de fecha
8 de septiembre de 2009, rezaba textualmente: En los casos de

257
enfermedades graves que sean causa de emergencia o atenten
contra la seguridad nacional, el Consejo de Salubridad General hará
la declaratoria de atención prioritaria, por iniciativa propia o a
solicitud por escrito de instituciones nacionales especializadas en la
enfermedad, que sean acreditadas por el Consejo, en la que se
justifique la necesidad de atención prioritaria, en esta se ordenará
el otorgamiento de licencias de utilidad pública. Publicada la
declaratoria del Consejo en el Diario Oficial de la Federación, las
empresas farmacéuticas podrán solicitar la concesión de una
licencia de utilidad pública al Instituto y éste la otorgará, en un
plazo no mayor a tres días, a partir de la fecha de presentación de la
solicitud ante el Instituto 2.
La intención de la propuesta era darle mayor aplicabilidad
a la figura de la licencia obligatoria por causa de emergencia
nacional y específicamente de enfermedades graves, reduciendo el
plazo previsto por el actual segundo párrafo del aludido artículo.
La propuesta establecía un plazo máximo de 3 días para
que la autoridad se pronuncie, dejando sin efecto la disposición
vigente, que es su parte pertinente reza: ...a la brevedad que el caso
lo amerite de acuerdo con la opinión del Consejo de Salubridad
General en un plazo no mayor a 90 días... y que además exige que
sea audita parte. Cabe destacar que el texto vigente extrañamente
tampoco incluye la frase expresamente propuesta en la iniciativa de
reforma de que en los casos aludidos el objetivo de la orden será el
“otorgamiento de licencias de utilidad pública” 3.

2
Cfr. segundo párrafo del artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial vigente.
3
Cfr. artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial vigente.
258
La exposición de motivos daba especial relieve a la
emergencia sanitaria con motivo del brote del virus de la influenza,
advirtiendo además la presencia de otras enfermedades como el
dengue, que ameritan la posibilidad de importar medicamentos
patentados bajo el régimen de licencias obligatorias, al no contar
con capacidad de fabricación suficiente a nivel local, una
problemática repetida en países en vías de desarrollo.
Cabe acotar que la esencia de la licencia obligatoria
supone hacer siempre subsistir el requisito que establece el primer
párrafo del referido artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial
mexicana4 de que las licencias se otorgarán mientras dure la causa
de emergencia o de seguridad nacional que haya motivado su
celebración pero olvida el caso de los medicamentos huérfanos, que
trataremos más adelante en el capítulo de Unidades Productoras de
Medicamentos (UPM) en la Producción Pública de Medicamentos
(PPM).

Dentro de la exigua experiencia internacional


existente en el campo de las referidas licencias
obligatorias, en el ámbito del derecho
comparado revisaremos la especial relevancia

4
Por su importancia transcribimos: “Por causas de emergencia o seguridad
nacional y mientras duren éstas, incluyendo enfermedades graves declaradas de
atención prioritaria por el Consejo de Salubridad General, el Instituto, por
declaración que se publicará en el Diario Oficial de la Federación, determinará
que la explotación de ciertas patentes se haga mediante la concesión de licencias
de utilidad pública, en los casos en que, de no hacerlo así, se impida, entorpezca
o encarezca la producción, prestación o distribución de satisfactores básicos o
medicamentos para la población”.
259
de la experiencia brasileña con el retroviral
denominado Efavirenz, producido por la
farmacéutica Merck Sharp &Dohme,
considerado en la actualidad como el más
eficaz para combatir la infección del SIDA o
VIH. A pesar de las fuertes críticas
provenientes de la Federación Internacional
de la Industria del Medicamento, el gobierno
de Brasil, a través de su Presidente en ejercicio
LuizInácio Lula da Silva, en base a lo que
dispone su Ley de Propiedad Industrial
9279/96 en su controvertido artículo 68 que
regula las “licencias compulsivas”, determinó
imponer tal flexibilidad sobre la patente del
citado fármaco por considerarla “legítima y
necesaria, de interés nacional y demasiado
caro”, permitiendo con un amplio respaldo
del Congreso la importación del genérico
producido en laboratorios de la India que se
hallan certificados por la Organización
Mundial de la Salud (entre esos laboratorios
genéricos están Ranbaxy, Cipla y Aurobindo)
quienes ya cuentan con producción del
genérico del Efavirenz y lo comercializan a un
costo inferior que oscila en la tercera parte del
producido por el laboratorio titular de la
patente.
Mientras Merck cotizaba en 1.65 USD cada
unidad del fármaco en territorio brasileño el
costo por unidad del genérico fabricado en la
India es de 0.44 USD. El tratamiento por
paciente tiene un costo por año de 580 USD
utilizando el medicamento de patente
mientras que el tratamiento utilizando el
genérico alcanza la suma de 165 USD anuales,
260
es decir, menos de un tercio, lo cual implica un
ahorro de 240 millones USD hasta el año 2012,
fecha en que expira la patente. Antes de la
imposición de la licencia obligatoria sobre el
fármaco, Lula había mantenido dos
negociaciones con el laboratorio titular, en las
que participó además el gobierno
norteamericano. Brasil rechazó en la segunda
de ellas la oferta de comercializar el producto
con un 30% menos del precio fijado
originalmente por parecerle insuficiente y
considerar que al menos debía reducirse en un
60%. En las negociaciones, Lula propuso el
mismo precio pagado por Tailandia, que es de
0.65 USD por cada comprimido del fármaco
en dosis de 600 miligramos, lo cual no fue
aceptado por Merck.

Estados Unidos denunció ante a la OMC el artículo 68 de


la ley de patentes brasileña por considerar que era violatorio del
ADPIC, requiriendo ante tal organismo un Panel de Resolución de
Conflictos con el objeto de que éste pueda dirimir las diferencias
entre estos dos países. Brasil se defendió ante la OMC alegando
justificación en la medida por el alto número existente de enfermos
de SIDA o VIH y, en consecuencia, considerar un caso de
emergencia sanitaria nacional. Finalmente, el 25 de junio de 2001
Estados Unidos retiró ante la OMC la solicitud del panel.

La medida del Presidente Lula buscaba


asegurar el tratamiento de unos 75 mil
infectados en el territorio brasileño, siendo

261
este país uno de los mayores compradores
mundiales del medicamento, con más de 500
mil infectados de SIDA o VIH. A juicio del
gobierno, más allá de demostrar el fracaso en
la negociación del precio del fármaco de
patente, la medida se convirtió más bien en
una prueba de la firmeza gubernamental de
apostar por el mercado de los genéricos ante
una situación de emergencia nacional.
Cabe destacar que el argumento también se ha
apoyado en el tratamiento que actualmente
reciben unas 200 mil personas que reciben del
Estado un conjunto de 17 medicamentos, de
los cuales 8 son fabricados en Brasil dentro del
marco de un programa gubernamental de
lucha contra la enfermedad que ha recibido un
sinnúmero de elogios a nivel internacional.
Como precedente, ya en la Asamblea Mundial
de 1999, Brasil había ejercido fuerte presión a
fin de que la Organización Mundial de la
Salud (OMS) llevara mejor a cabo su labor de
control de precios de los medicamentos en
todo el mundo y de evaluación en el impacto
de las normas sobre patentes de la OMC. En
abril de 2001, en la reunión anual de la
Comisión de Derechos Humanos de las
Naciones Unidas fue aprobada por 52 votos a
favor, 0 en contra y 1 en abstención (Estados
Unidos) la propuesta brasileña que vincula el
adecuado acceso a los medicamentos con los
derechos humanos fundamentales. Estados
Unidos consideró al respecto que tal
propuesta era violatoria de las normas
internacionales de protección de los derechos
de propiedad intelectual. Brasil ya había
262
anunciado en el año 2005 la quiebra de la
patente del principio activo “kaletra”,
propiedad del laboratorio Abbot, pero ambas
partes pudieron llegar a un acuerdo para la
reducción del precio del medicamento.
En el caso del Efavirenz, el contrato de licencia
se ha llevado a cabo cumpliendo cabalmente el
procedimiento previsto a tal efecto en la
Declaración de Doha, el cual consta de tres
etapas, a saber, la negociación, la declaración
de la situación que justifica su utilización y el
pago de royalties al titular afectado, que en
este caso específico se pactó en la entrega del
1.5% sobre el valor de importación de los
medicamentos similares al Efavirenz 5.

Por otra parte, Tailandia también anunció la imposición


de una licencia obligatoria a fin de que los enfermos de SIDA o VIH
en este país pudieran recibir tratamiento con el genérico del
Efavirenz que se produce en laboratorios de la India, país conocido
en los últimos tiempos por su alta producción de medicamentos
genéricos.
La organización no gubernamental Médicos Sin Fronteras
utiliza casi en su totalidad medicamentos producidos en la India
para tratar a enfermos de SIDA o VIH en 30 países del mundo.

5
INSTITUTO ESPAÑOL DE COMERCIO EXTERIOR (ICEX), Oficina
Económica y Comercial de la Embajada de España en Brasilia, Patentes y acceso
a los medicamentos, año 2009, edición en
internet,<http://www.fedeto.es/area_internacional/marco_politico_datos_brasil.
pdf>, consultada en octubre de 2009.
263
La postura tailandesa se mantuvo a pesar de fuertes
presiones provenientes la industria farmacéutica, sentando
precedentes en la materia para el caso de emergencias sanitarias.
Posteriormente, este país rompió además la patente de otros dos
fármacos útiles también en el tratamiento de SIDA o VIH. Otros
países como Canadá e Italia cuentan con experiencia en licencias
obligatorias sobre productos farmacéuticos y en la década anterior
llamó la atención general la decisión del Presidente de Ecuador,
Rafael Correa, de emitir en estos días un decreto que derogue por
completo las patentes farmacéuticas y agroquímicas de las
trasnacionales que tengan efecto en este país, con excepción de las
patentes cosméticas, a fin de que todas las medicinas sean
producidas en el país y así se logre su abaratamiento, al considerar
que la salud es un tema prioritario y primero está el derecho
humano antes que “el bolsillo de las trasnacionales”, enfatizando el
caso de los fármacos que combaten el SIDA o VIH y el cáncer.

Hecho el balance de la actual situación de las licencias


obligatorias en el ámbito doméstico y comparado, surge que tal
figura presenta varios aspectos positivos, entre los que se cuentan,
además del acceso a los medicamentos a un menor precio, el
fomento de la competencia y el desarrollo de la producción
nacional. Ahora bien, hay que tener muy presente que un país que
no reconoce las patentes de las farmacéuticas trasnacionales no
contará con la presencia de estos laboratorios en su territorio y,
consecuentemente, se verá desabastecido de medicinas esenciales
de alta complejidad producidas exclusivamente por ellos en virtud
a su tecnología y amplia experiencia en investigación y desarrollo
264
que ostentan y con la que no cuentan los emergentes laboratorios
de producción local. Por otro lado, con tal medida y al no
reconocerse las patentes, tampoco podrá realizarse la importación
por la industria local de farmoquímicos necesarios para la
fabricación de las medicinas. Todo ello sin mencionar las sanciones
de las que podría ser objeto el país por la OMC y la imposibilidad
de poder abastecer de medicinas a todo un país con la sola
producción nacional, que en el caso de Ecuador alcanza en la
actualidad apenas un 22% del total de ventas. De hecho, se advierte
que un crecimiento desmesurado de medicamentos genéricos
requeriría en un futuro de un control exhaustivo por parte de la
Secretaría de Salud (JALIFE DAHER, 2005, p. 332).
El caso de Ecuador se presentaría con tal decreto como
uno excepcional y hasta violatorio de las normas previstas para la
celebración de la licencia obligatoria pues al parecer no contempla
la requerida y previa primera etapa de negociación. Además, resulta
absurda la idea de generalizar la medida para todas las patentes de
medicinas producidas por laboratorios que no sean locales. Al
menos, esta no es la función de la licencia obligatoria, la cual se
concede para cada caso específico y para atender determinados
problemas de salud, por un tiempo determinado, previa
justificación por el gobierno de la situación que la motive. La
postura que asume este país, a través de su gobernante, deberá
encuadrarse en otra figura –inexistente, por cierto- que justifique
una total supresión de la protección conferida a todo inventor no
local de un medicamento. Es el caso extremo de la defensa de la
salud pública, la cual va en detrimento del fomento de la

265
investigación y desarrollo, únicas herramientas capaces de
propiciar avances tecnológicos y mejores medicinas.

4. RELEVANCIA DE LA NOCIÓN DE SALUD DENTRO DE


LAS POLÍTICAS PÚBLICAS: LA PRODUCCIÓN PÚBLICA
DE MEDICAMENTOS (PPM) Y REDEFINICIÓN DEL
CONCEPTO DE BUROCRACIA EN EL SISTEMA DE SALUD

A principios de los años 2000 la moderna doctrina


francesa advertía que el ejercicio de la medicina había mutado en
su naturaleza con el desarrollo de nuevas especialidades médicas y
la multiplicación del número de especialistas, es decir, los médicos.
En paralelo, en razón de tal crecimiento y de una oferta de cuidados
cada vez más sofisticados según el avance de la ciencia y la
tecnología, el volumen de consumo y de gasto médico también ha
tenido un aumento significativo. De ello se colige que la extensión
de la protección social a toda la población ha sido el sostén de esta
evolución: la palabra “salud” pasó a ser actualmente uno de los
principales sectores de actividad de los países (ADAM &
HERZLICH, 1994, p. 36). En otras palabras, dentro de las políticas
de salud, los resultados revelan que en las últimas décadas tales
políticas se vieron orientadas hacia la inversión creciente en
tecnologías médicas cada vez más complejas siendo el puntapié
inicial y determinante en esta evolución el mismo peso que revisten
los profesionales médicos y el progreso de la ciencia médica, como
se apuntó.
Dentro de este contexto, la noción de “medicalización de
la sociedad”, como llama la sociología francesa, ha estado
266
íntimamente relacionada con el desarrollo de leyes sobre la
protección social. Ya en el siglo XX esta noción traducía en Francia
el hecho de que el “modelo médico” se impone en la definición y
toma de responsabilidad de numerosos problemas públicos
contemporáneos, citando algunos padecimientos a título de
ejemplo: alcoholismo, enfermedades mentales, drogas. De esta
manera, en una sociedad medicalizada, el sector salud cobra
relevancia como factor de políticas públicas estatales y, dentro de
las grandes interrogantes sobre los diversos mecanismos y
programas a desarrollar o acentuar dentro de las políticas de salud
establecidas, existe la nueva tendencia de la Producción Pública de
Medicamentos (PPM en adelante).
Ahora bien, antes de ahondar en el tema propio del
artículo que aquí nos ocupa, habrá que establecer el lugar que ocupa
el concepto “burocracia” en la administración pública de la salud,
tan sólo a modo referencial.
Propio de sistemas normativos, algunos países como
Brasil refieren la burocracia como característica destacada dentro
del proceso administrativo, aunque en sentido peyorativo y propio
del poder público, desde tiempos muy antiguos y características
negativas son suyas: paternalismo, nepotismo, corrupción. Sin
embargo y paradójicamente, la evolución histórica del proceso
administrativo enfatiza la importancia de implementación de
procesos burocráticos adecuados a fin de garantizar la
manutención de padrones de calidad de los servicios en las
estructuras de las instituciones privadas y públicas. La burocracia
es, en sentido amplio, un medio de perfeccionamiento de políticas

267
administrativas capaz de alcanzar niveles de eficiencia compatibles
con la modernidad (CAMPOS & PRESOTO, 2002, p. 5).
Ejemplificando dentro del contexto de salud la función de
la comentada palabra burocracia, tenemos que la política de salud
como directriz que emana del poder público debe abarcar, entre
otras funciones principales, la esencial de promover la estructura y
el funcionamiento del sistema de los servicios de salud, según lo
establece el propio Centro Panamericano de Planificación de la
Salud, perteneciente a la Organización Panamericana de la Salud
(OPS), siendo sus miembros fundadores Argentina, Brasil,
Colombia, Costa Rica, Chile, Ecuador, El Salvador, Honduras,
Nicaragua, Panamá, Paraguay, Perú, Uruguay y Venezuela 6. Ya en
1972 el documento denominado Tema 27, que abarca el proyecto
del Programa del mismo Centro, establecía como
objetivo: “Fortalecer la asesoría de la OPS a los gobiernos para
perfeccionar sus procesos de planificación de la salud”. Luego
nombra entre sus actividades: “Programa de investigaciones con los
países:…análisis de las relaciones entre salud y el resto del sistema
socioeconómico” 7 como una suerte de domesticación del
programa, con adecuación a la realidad de cada país miembro y a
su normativa propia.

6
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 8,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.
7
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 9,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.
268
Más adelante, ya en referencia al propio Centro, se
establece entre sus responsabilidades una propia de
“Investigación”, normando sobre la necesidad de apoyar en los
países el desarrollo de la misma con miras a elaborar o perfeccionar
técnicas de planificación para completar y mejorar la metodología
de planificación de la salud, a través del estudio de áreas o variables
que deban considerarse y de los países que pudieran elaborarlas,
dando además asesoría periódica hasta la fase final de dicha
investigación.
Seguidamente, aparece el apartado de “Información”
donde se dispone que toda información que se refiera a la
planificación de la salud y a la evolución de los procesos respectivos
en los países americanos como de otras regiones debe ser recabada,
promovida en su recolección y analizada. Destaco además que la
misma debe ser difundida y divulgada a modo de promover,
orientar y motivar procesos de planificación y niveles de decisión
políticos y administrativos, informando y estimulando a aquellos
que realizan la labor directa de planificación en salud, enfatizando
las experiencias de terreno conocidas 8.
Dentro del Programa del Centro puede vislumbrarse la
posibilidad de contemplar como política pública de salud nacional
la Dinámica Inclusiva de Desarrollo Tecnológico, que se verá
explicado más adelante en detalle y sobre lo cual anticipo en este

8
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 13,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.

269
apartado que se describe como una real necesidad de política
pública de salud íntegra y que merece ser adecuadamente
formulada y plasmada en su planeación, su proyecto y sus
resultantes programas que deberán ser coordinados con miras a su
ejecución. Esta Dinámica se plasma en esta propuesta a través de
Unidades Productoras de Medicamentos (UPM) a nivel público, es
decir, la Producción Pública de Medicamentos (PPM).
Volviendo al término burocracia, utilizado en sentido
amplio, vendrá entonces en consecuencia a utilizarse para englobar
y describir todo aquello que implica el trazado integral del sistema
de salud de un país, con sus normativas y organigramas, su
contexto social y hasta político, en sentido amplio. En sentido
estricto, estamos frente a una burocracia de un sistema de salud
circunscripto a una implementación efectiva de las mencionadas
UPM.

5. LA INNOVACIÓN TERAPÉUTICA, LA INVESTIGACIÓN


MÉDICA CON LA CONTRIBUCIÓN DEL PACIENTE Y LAS
UNIDADES PRODUCTORAS DE MEDICAMENTOS (UPM)
EN ARGENTINA

En este campo, la socióloga Renée Fox acentúa la


posibilidad de un rol activo del paciente contribuyente al desarrollo
de la ciencia médica en el mismo hospital, siendo un caso de
referencia la utilización de medicamentos de prueba en hospitales
como la cortisona o la ciclosporina, principio activo empleado
comúnmente en el trasplante de órganos. Su teoría esboza que el
médico está desarrollando investigación en el mismo hospital, a
270
través de su práctica con el paciente y dentro de lo que ella
denomina “dilema entre experimentación y terapéutica” pues se
trata de probar la eficacia de su innovación a través del mismo
paciente con un doble objetivo: curar la enfermedad o tratarla por
lo menos y también realizar su propia labor de investigación con el
enfermo, quien pasa de ser un sujeto pasivo a ser uno activo desde
el momento en que conoce que el procedimiento no sólo persigue
su curación o alivio sino además el mismo progreso de la ciencia 8.
En el caso que ocupa a los medicamentos en los hospitales
y su relación con la innovación tecnológica a través de su título de
protección, a saber, las patentes, la propuesta de la función de una
UPM es de naturaleza social en el sentido de que, tal como apunta
Oro Boff, un sistema de patentes también puede constituirse en un
instrumento de fomento y de erradicación de la pobreza porque
estamos frente a un papel considerando dentro de un conjunto más
amplio de medidas políticas nacionales de desarrollo tecnológico y
obedeciendo a los mismos intereses del país. En efecto, tal como
ella lo sostiene, diseminar la cultura de salvaguarda de los derechos
de propiedad intelectual, priorizando sobre todo la disponibilidad

8
FOX, Renée, Experiment perilous, physicians and patients facing the
unknown, The free Press, 1959, ediciónen internet,
<https://books.google.com.br/books?id=VjN_al6lZoC&pg=PA2&lpg=PA2&dq
=ren%C3%A9e+fox,+experiment+perilous,+physicians+and+patients+facing+t
he+unknown,+The+free+Press,+1959&source=bl&ots=_N7CmOh0DB&sig=g
mBhAbW1NDpDnjuHxHoyB10akbI&hl=es&sa=X&ved=0ahUKEwj0uvnDof7
OAhUBDZAKHaCWAN8Q6AEIJjAB#v=onepage&q=ren%C3%A9e%20fox%2
C%20experiment%20perilous%2C%20physicians%20and%20patients%20facing
%20the%20unknown%2C%20The%20free%20Press%2C%201959&f=false>,
consultada el 7 de septiembre de 2016.
271
de recursos y garantizando una infraestructura necesaria, parece
ser el camino para que pensar que la propiedad intelectual pueda
contribuir al desarrollo económico y social (BOFF, 2009, p. 57).
La propiedad intelectual, importante mecanismo para la
protección de invenciones derivadas del intelecto humano es un
área diferenciada de la propiedad material y hoy en día cuenta con
un importante estímulo cuando se relaciona con la utilidad
colectiva, aquí incluidas las invenciones (BOFF & LIPPSTEIN,
2015, p. 30).
Como factor de puesta en marcha del punto anterior en
específico así como en general de lo hasta aquí expuesto, es preciso
poner en conocimiento una teoría desarrollada en Argentina, país
que más se ha preocupado en el tema de la PPM. Esta teoría ha sido
recientemente en ese país por especialistas en estudios sociales de
tecnología e innovación que propone abordar la PPM con un
enfoque de tecnología organizacional y política pública y como un
instrumento que busca como fin dinamizar procesos de desarrollo
inclusivo. Santos, Guillermo y Becerra, Lucas, Investigadores del
Área de Estudios Sociales de la Tecnología y la Innovación del
Instituto de Estudios sobre la Ciencia y la Tecnología (Universidad
Nacional de Quilmes) sobre cuyo trabajo se basa el presente
artículo.
Hablar de desarrollo inclusivo significa despuntar la
ciencia y la tecnología propia de una región y subsecuentemente de
un país pero en esferas que van más allá de la privada o la mixta.
Nos referimos a la PPM a través del trabajo articulado de
laboratorios públicos y de farmacias hospitalarias y es que, ya en los
albores del año 2000, el hospital público ha pasado de ser durante
272
siglos el asilo de los pobres a convertirse en una institución
prototipo de las sociedades modernas, lugar de referencia
privilegiada en la investigación médica y en el desarrollo de técnicas
de punta (ADAM & HERLIZCH, 1994, p. 37).
En Argentina, la cuestión va más allá de la ya compleja
provisión de medicamentos, enfocándose a puntos estratégicos que
plantea actualmente el sector salud y que incluyen: la política
pública integrada, como factor en sí mismo y como factor capaz de
desarrollar políticas públicas transformadoras dentro de la
‘dinámica inclusiva del desarrollo tecnológico’; la eficiencia del
gasto público y privado que se genera en la producción de
medicamentos, lo cual implica un conjunto amplísimo de
estrategias a desarrollar; una garantía de acceso a la salud en
igualdad de condiciones para todos; el factor de la innovación con
su desafío de generar dinámicas con miras al desarrollo inclusivo.
A partir de esos cuatro puntos estratégicos mencionados que
plantea el sector salud citan los especialistas tres preguntas-
problema:¿qué capacidad tiene el actual sector público productor
de medicamentos y cuál es la relación entre política de salud y
mercado de medicamentos?; como factor de implementación y de
transformación, ¿es posible configurar una política integral de
producción pública de medicamentos que conviva con la compra
privada?; ¿bajo qué condiciones una política pública de PPM puede
desplegar dinámicas concretas de desarrollo inclusivo? (SANTOS
& BECERRA, 2016, p. 251)
El panorama debe ser visto el sector general tanto con sus
complejidades como con sus oportunidades.

273
Existe una fuerte crítica al sistema privado y a la industria
farmacéutica que éste desarrolla por adueñarse del presupuesto
general destinado al sector salud y de la cadena de provisión de
medicamentos, pero esto no es visto desde la raíz del problema: si
se tuviera un mayor escenario presupuestario destinado a la
eficiencia innovadora por las UPM y una participación concreta y
eficiente de éstas dentro del aparato legal y regulatorio, podría verse
más abierta gran parte de tal hegemonía privada.
La pregunta resaltante que hemos de hacernos es ¿cuál es
la importancia que adquiere el mercado de los medicamentos y su
dinámica dentro del concepto de gasto en salud? Existen muchas y
conocidas inconsistencias como por ejemplo la baja en la capacidad
de compra frente a la permanencia alcista de la capacidad de venta
lo cual es producto de la propia estructura y diseño del sistema de
salud y su consecuente dinámica.
El secreto para el desarrollo inclusivo las UPM pareciera
radicar en los conceptos de Presupuesto + Participación Eficiente
de la UPM, no respecto la eterna discusión entre el sector genérico
y el innovador sino frente a la apropiación y hegemonía de todo el
sector farmacéutico privado en el presupuesto público, dándose en
consecuencia una altísima concentración en laboratorios privados
nacionales y trasnacionales con el consecuente control de precios
determinado por el sector dominante resultando la fórmula: a
mayor concentración, mayor control de precios.
Las UPM conforman el sector de la PPM y se subdividen
en laboratorios públicos y en farmacias hospitalarias. Ambos tipos
producen medicamentos pero dirigidos a un público distinto ya
que las segundas destinan sus productos generalmente a los
274
pacientes a cuyo hospital pertenecen, mientras que los laboratorios
públicos surten medicamentos a una extensa red de sistemas de
salud a lo largo del territorio del país, abarcando hospitales públicos
o privados, planes y programas de provisión pública de
medicamentos o inclusive venta minorista en farmacias.
Es de tener en cuenta además que entre esos laboratorios
podemos encontrar lo que dependen del gobierno nacional, de
universidades nacionales, de gobiernos provinciales e incluso de
municipios (SANTOS & BECERRA, 2016, p. 255-259).
Analizando lo que contempla el estudio de las farmacias
hospitalarias, en la PPM, basándose en la Resolución Ministerial
argentina 286/08, la salud es un derecho y el medicamento un bien
social siendo una función del Estado garantizar la accesibilidad y
ordenar la distribución de recursos y el aprovechamiento de
capacidades instaladas y de recursos humanos9.
Frente al problema del acceso a los medicamentos como
producto por ejemplo de una crisis, siempre es el esfuerzo público,
a través del Estado, el que acaba respondiendo con medidas
alternativas, por ejemplo, la provisión gratuita de medicamentos en
determinado tiempo y lugar a través de planes concretos. Una vez
recuperada la actividad económica, la producción privada vuelve a
estar en alza, incrementando su facturación (control de precios en
consecuencia) y trayendo como consecuencia que la crisis haya sido

9
HOYA, Arturo, en informe del XIV Congreso Argentino y II Congreso
Sudamericano de Farmacia Hospitalaria, Producción Pública de Medicamentos:
una respuesta a los medicamentos huérfanos pediátricos, disponible en internet
en <http://www.aafhospitalaria.org.ar/imagenes/descargas/2014-6-b.pdf>,
consultado el 7 de septiembre de 2016.
275
finalmente absorbida en forma total por el sector público (SANTOS
& BECERRA, 2016, p. 257-258). Como ejemplo se cita el Plan
Remediar del año 2002 a través de la provisión de medicamentos
en forma gratuita para 15 millones de personas.
Las propuestas son varias y pertenecerían a otro capítulo
pero entre las posibles soluciones cobra especial relevancia UPM.
Garantizar el abastecimiento oportuno de medicamentos, si bien
forma parte de la agenda pública y es una obligación del Estado,
esto no implica forzosamente que estos bienes deban ser
comprados al sector privado. En consecuencia, debería vincularse
la política pública a una estrategia de producción y no de compra
directa, conforme explican los estudiosos argentinos.
La elaboración de especialidades medicinales por
laboratorios públicos acabaría con el pensamiento radical de la
naturaleza del medicamento como un bien de mercado,
transformándolo en un bien social (SANTOS & BECERRA, 2016,
p. 281) pero existen realidades de las UPM en cuanto a: la
producción y el abastecimiento, las patentes como traba al
desarrollo de las UPM 10; un adecuado mecanismo de distribución
de medicamentos elaborados por esas UPM; número UPM

10
Las UPM fabrican medicamentos con principios activos cuyas patentes se
encuentran vencidas y cuentan con restricción para elaborar medicamentos con
patente vigente.El argumento de la protección de la patente se encuentra
desarrollado ampliamente en la doctrina actual pero encuentra un gran vacío en
el caso de la PPM, caso en que la producción –y distribución aludida- del
medicamento por las UPM debiera considerar políticas de excepción, máxime si
se trata de medicamentos huérfanos, a través de oportunas previsiones legales
como las licencias obligatorias, sobre lo cual las legislaciones aún encuentran
importantes vacíos a la hora de ponerlas en marcha.
276
existentes11; tecnología e infraestructura local. Sobre este último
punto, sigue siendo un obstáculo importante el hecho de que los
principios activos o farmoquímicos sean adquiridos en el exterior
por falta de producción local suficiente que se traduce en una
capacidad inventiva limitada por parte de la industria nacional
importadora de aquellas fórmulas, dicho de otra manera, se refleja
en las cifras una reducida dinámica de innovación local.
Al respecto esgrimen los autores como causa del
problema las racionalidades que imperan en las políticas y
programas de ciencia y tecnología en el sentido de que éstas
responden al modelo lineal de innovación. Así, si bien existe un
número importante de institutos y centros de investigación médica,
todavía cuentan con bajos niveles de interacción con las unidades
de producción. Aquí cobra una excepción importante los
laboratorios que pertenecen a las universidades nacionales sin que
por ello el producido global de la dinámica innovativa del país

11
Parte de esta política lineal debe también culpa a la concentración excesiva en
manos de algunas UPM estatales. En Argentina, se citan veinte UPM como parte
integrante de la Red Nacional de Productores Públicos de Medicamentos, siendo
su objetivo la producción conjunta de medicamentos de manera coordinada pero
cuyos bajos resultados saltan a la vista por falta de acciones concretas en materia
de producción y también de posicionamiento de la producción pública entre los
temas principales de la agenda política del sector salud pública. No se puede dejar
de mencionar sin embargo que en el año 2011, en un esfuerzo más defensivo que
proactivo de las UPM y del Grupo de Gestión de Políticas de Estado en Ciencia y
Tecnología, se obtuvo la Ley 26.688 que declaró de interés nacional la
investigación y producción pública de medicamentos, sus materias primas, las
vacunas y los productos médicos. Esta ley argentina aún carece de reglamento
pero puede resultar un sugerente a la normativa de otros países en la materia por
sus líneas estratégicas de acción.
277
resulte más feliz por tal excepción (SANTOS & BECERRA, 2016, p.
261, 262).
Resaltemos ahora que entre los principales principios
activos elaborados por laboratorios públicos argentinos se
encuentran analgésicos y antibióticos de uso habitual y también
drogas utilizadas para tratar enfermedades crónicas. La provincia
con mayor abastecimiento de medicamentos de producción
pública es la de Santa Fe y le siguen San Luis y Río Negro 12. En el
año 2014 se planificó un financiamiento por la Agencia Nacional
de Promoción Científica y Tecnológica del Fondo Argentino
Sectorial (FONARSEC) para la producción pública de
medicamentos tuberculostáticos integrando el trabajo conjunto de
la Universidad del Litorial y el Laboratorio Industrial Farmacéutico
S.E. (LIF) cubriendo áreas estratégicas y de vacancia en la provisión
de especialidades medicinales prioritarias12.

12
MINISTERIO DE ECONOMÍA Y FINANZAS PÚBLICAS DE LA
SECRETARÍA DE POLÍTICA ECONÓMICA Y PLANIFICACIÓN DEL
DESARROLLO, SUBSECRETARÍA DE PLANIFICACIÓN ECONÓMICA,
DIRECCIÓN NACIONAL DE PLANIFICACIÓN REGIONAL – DIRECCIÓN
NACIONAL DE PLANIFICACIÓN SECTORIAL, Complejo Farmacéutico. Serie
Complejos Productivos, junio 2015, disponible en internet en
<http://www.economia.gob.ar/peconomica/docs/Complejo_Farmaceutico.pdf>,
consultado el 7 de septiembre de 2016.
12
MINISTERIO DE CIENCIA, TECNOLOGÍA E INNOVACIÓN
PRODUCTIVA, Nuevo financiamiento para producción pública de
medicamentos tuberculostáticos, Presidencia de la Nación, año 2014, disponible
en internet en <http://www.mincyt.gob.ar/noticias/nuevo-financiamiento-para-
produccion-publica-de-medicamentos-tuberculostaticos-10181>, consultado el
7 de septiembre de 2016..
278
CONCLUSIONES

Dentro de la “Dinámica Inclusiva del Desarrollo


Tecnológico”, la Producción Pública de Medicamentos (PPM)
llevada a cabo a través de sus Unidades Productoras juega un rol
preponderante en la agenda pública del sector salud del país.
Cuando es puesta en marcha de manera coordinada y positiva,
conlleva en sí misma fines de inclusión y desarrollo social y
productivo y es un instrumento de política pública de salud
integrada y dinámica innovativa con capacidad de producir bajo
demanda específica obedeciendo a un trazado territorial nacional
preestablecido, con límites demográficos. De esta manera, cumple
la función de asegurar la provisión y distribución adecuadas a la
población y desarrollar los medicamentos huérfanos.
Visto como lo que es y aunque le pese la realidad de la
desventura de los problemas propios del necesario aparato
burocrático legal, la PPM es una opción a la elaboración tradicional
privada de medicamentos, llevada a cabo por laboratorios
nacionales, con principios activos que sean accesibles en el mercado
nacional y extranjero. Es una herramienta que conlleva en sí misma
la noble acción a la que está destinado un fármaco, que es no es otra
que cumplir con un bien social de acceso a la salud más allá de su
valor patrimonial, sin desmerecer la propiedad intelectual de la
patente de la que goza el medicamento, lo cual puede lograrse con
un Plan de Acción que prevea no sólo mecanismos legislativos
oportunos sino por sobre todo, estrategias de puesta en marcha en

279
los distintos ciclos de la innovación farmacéutica vista, en sus
distintas fases y hasta llegar a manos del consumidor final.
Finalmente, en cuanto al primer tema que hemos
abordado, dejamos por sentada la tarea positiva que conllevaría una
licencia obligatoria bien estructurada, celebrada y
fundamentalmente concedida respetando cualesquiera de sus dos
principales finalidades, a saber, la de salvar una situación de
emergencia nacional o la de garantizar su efectiva explotación si
ésta no se ha producido en el territorio. Sin embargo, no se debe
olvidar que muchas veces la promoción de esta figura encubre una
finalidad encubierta, en el sentido de que más allá de garantizar la
salud pública lo que realmente busca es facilitar y patrocinar la
copia ilegal de medicamentos, lo cual constituye un flagrante
ataque a la propiedad intelectual que se traduce en falta de
seguridad jurídica para el inversor, provocando este hecho un gran
desaliento a la inversión extranjera en cualquier país del mundo.

280
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284
A CRISE MUNDIAL DA ÁGUA: UMA ANÁLISE SOBRE O
CENÁRIO ATUAL E OS EFEITOS DE SUA GESTÃO
GLOBAL

THE WORLD WATER CRISIS: AN ANALYSIS OF THE


CURRENT SCENARIO AND THE EFFECTS OF ITS
GLOBAL MANAGEMENT

Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho 1


Artur Amaral Gomes2

RESUMO: Dentre as inúmeras problemáticas ambientais que


atormentam o mundo hoje, a crise da água assusta por envolver um
recurso indispensável para a manutenção não só da vida humana,
mas de todo o planeta. Os conflitos entre enxergar a água como um
bem público ou como um bem econômico e a discrepância entre a
distribuição natural da água e sua distribuição político-geográfica
permeiam o cenário da crise e estabelecem uma complicada tarefa
para o Direito Internacional: a formulação de uma política de
gestão global da água capaz de prevenir e reprimir conflitos. A
partir da realização de uma pesquisa qualitativa combinada com o
método de pesquisa bibliográfico, o presente artigo tem como
objetivo principal expor os conflitos e obstáculos ideológicos que
permeiam a crise mundial da água na atualidade, destacando as

1
Professor Doutor do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas - UEA, líder de pesquisa do Grupo de
Estudos em Direito de Águas - GEDA. E-mail: erivaldofilho@hotmail.com
2
Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas –
UEA.
285
implicações negativas da ausência de uma legislação internacional
forte e abrangente sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Água; Direito
Internacional.

ABSTRACT: Among the many environmental problems that


plague the world today, the water crisis is scaring because it
involves an indispensable resource for the maintenance not only of
human life, but of the entire planet. Conflicts between seeing water
as a public good or as an economic good and the discrepancy
between the natural distribution of water and its political and
geographical distribution permeate the crisis scenario and establish
a complicated task for international law: the formulation of a policy
of global water management capable of preventing and repressing
conflicts. The main objective of this article is to expose the conflicts
and ideological obstacles that permeate the current global water
crisis, highlighting the negative implications of the absence of
strong international legislation and comprehensive on the subject.
KEYWORDS: Environment; Water; International Law.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Aspectos gerais da crise da água.
3. Água: vida e lucro.
4. A água e o direito internacional.
5. Soberania estatal em tempos de crise.
Considerações finais.
Referências.

286
INTRODUÇÃO

A água é e sempre foi um recurso com muitos papeis em


todos os níveis da sociedade planetária, suas inúmeras
propriedades e possibilidades de uso a colocam como um dos
recursos naturais mais valiosos do planeta. A água é também
indispensável para a vida e insubstituível neste que é o seu principal
papel. Uma verdade como essa quando somada à natureza do ser
humano só poderia desaguar (com o perdão do trocadilho) em
conflitos.
Dentre os problemas que podem ser considerados como
componentes da crise atual do meio ambiente, a necessidade de
preservação e controle do uso da água é o que apresenta as
consequências mais graves, visto que, como muitos dizem, água é
sinônimo de vida. Consequentemente, a água é a base para a
eficácia de muitos direitos e está intimamente conectada a ideais de
justiça, democracia e dignidade.
Antes de ir mais além, cabe esclarecer que neste artigo o
termo “água” será utilizado como sinônimo de água doce, a água
própria para o consumo. Esta é a “modalidade” de água que está no
centro das discussões da chamada “crise da água”, um quadro que
conta com indicadores pessimistas, porém críveis, no que se refere
à qualidade e à quantidade do estoque de água doce restante no
mundo. Quadros de escassez e estresse hídrico colocam em risco a
qualidade de vida de muitos habitantes do planeta, dificultando a
concretização da justiça social em muitos pontos do globo.

287
A crise acaba colocando estudiosos e pesquisadores para
trabalhar no sentido de procurar soluções para previsões
pessimistas e tristes realidades, é daí que surgem conflitos de ideias
como o embate entre as formas de encarar a água e definir quais
suas propriedades e usos mais relevantes, o que, mesmo que
indiretamente, pode acabar tornando a crise ainda mais grave
quando novas discussões ideológicas são introduzidas. O embate
entre água como bem público e água como bem privado com seu
suposto valor econômico priorizado é um dos mais latentes da
crise, trazendo à tona as consequências de entregar a água nas mãos
do mercado e o que isso pode significar para as classes de baixa
renda.
A crise da água é algo que afeta todo o mundo, não sendo
algo restrito a certos pontos geográficos, o que evidencia o papel
que o Direito internacional e seus instrumentos deverão
desempenhar mais incisivamente em um futuro não muito
distante, o que revela a necessidade de avaliar o quão bem servido
está o planeta hoje no que diz respeito às normas internacionais
sobre água, restando a questão: existe na atualidade uma legislação
internacional capaz de evitar e solucionar conflitos originados a
partir da disputa pelo acesso e pela distribuição de água?
Para responder tal questão, foi realizada uma pesquisa de
caráter qualitativo em conjunto com o método de pesquisa
bibliográfico, ou seja, uma pesquisa com ênfase em material
literário já produzido acerca do tema e seus principais subtemas.
A fim de avaliar as principais facetas desta crise, a
primeira seção deste artigo apresentará os seus aspectos gerais,
indicando as oposições centrais de ideias que permeiam toda a
288
problemática. A seguir, a segunda seção terá como foco reunir as
principais formas de se enxergar a água e como o conflito dessas
formas contribui para o agravamento da crise. A terceira seção
tratará sobre a forma como a água se relaciona com o direito
internacional, com ênfase nas tentativas de criação de uma política
global de água e nas motivações para o fracasso destas. Por fim, a
quarta seção abordará a principal razão para o já citado fracasso e
como esta funciona como entrave para a formulação de normas
internacionais tão almejadas.

2. ASPECTOS GERAIS DA CRISE DA ÁGUA

A crise ecológica na qual o planeta encontra-se


mergulhado é uma realidade concreta e que não pode mais ser
ignorada ou ter suas medidas amenizadoras ou repressivas
postergadas. Guerra (2016, p. 588) salienta que:

os problemas ambientais trazem prejuízos


enormes para o desenvolvimento da
humanidade e, o que é pior, colocam em risco
a própria existência da pessoa humana e de
outros seres vivos.

A crise ambiental pode ser acompanhada a partir de


fenômenos como a evolução das mudanças climáticas, a ocorrência
de enchentes e secas em níveis alarmantes, o desaparecimento de
espécies e outros exemplos.

289
No que diz respeito aos recursos naturais e a sua
disponibilidade para atender às necessidades e aos desejos dos seres
humanos, Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 69) alertam que a soma
dos problemas que alteram a qualidade e o equilíbrio do meio
ambiente tem como primeira vítima a água, uma vez que as reservas
de água doce de todo o planeta encontram-se em constante estado
de ameaça por fatores como a mudança do clima, o aumento da
demanda acompanhado do crescimento econômico, o processo de
degradação e poluição do meio ambiente, como a contaminação de
lençóis freáticos pelo esgoto doméstico ou pela utilização de
pesticidas, e a falta de eficiência dos sistemas atuais de
abastecimento de água doméstico e de irrigação para a agricultura.
Os autores ainda destacam que, com a água ameaçada, resta sob
alerta a saúde dos humanos que a consomem, abrindo caminho
para as mais diversas doenças transmitidas a partir de água
contaminada.
Mas a crise da água não tem na qualidade o seu único
problema, sobrando também para a quantidade de água disponível
e própria para consumo. Ribeiro (2008, p. 32) explica:

a crise da água também é resultado de sua


distribuição pelo planeta. Ela combina
natureza a história, dando-lhe um caráter
eminentemente geográfico. A soberania dos
países sobre seus territórios tem sido
empregada para a solução da crise da
distribuição da água.

290
Ou seja, é fácil verificar que, com o passar dos anos, a crise
da água terá como principal problemática a questão da distribuição,
colocando a qualidade para segundo plano, uma vez que a água é
um recurso tão abundante em certas partes do planeta e tão escasso
em outras.
Com o problema da distribuição em mente, outra questão
que também preocupa é o papel que a água cumpre nas economias
local e global. Shiva (2006, p. 32) afirma que “a crise da água é uma
crise ecológica com causas comerciais, mas sem soluções de
mercado. As soluções de mercado destroem a terra e agravam a
desigualdade. A solução para uma crise ecológica é ecológica, e a
solução para a injustiça é democracia”. Nota-se, a partir desta forte
crítica, que a visão da água como uma peça de mercado também faz
parte do quadro da crise, fator que será abordado mais à frente.
Observa-se que a água pode ser enxergada a partir de
vários prismas. Soma-se a isto, o fato de água possuir inúmeras
propriedades que tornam possíveis os seus variados usos pelo ser
humano, este conhecido pela avidez e pela pressa que tem para
realizar suas vontades. Com isto em mente, Ribeiro (2008, p. 24)
define uma das principais tensões da crise atual: “a diferença entre
o ritmo natural de reposição da água e o de desenvolvimento da
sociedade consumista de bens materiais”.
Analisando os aspectos principais da crise da água,
Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 68) destacam que o problema vai
além de pontos comuns como sustentabilidade, governança ou
necessidade de investimentos. Para os autores, a crise da água é
uma crise epistêmica, pois escancara a necessidade de superação da

291
percepção do meio ambiente por meio do dualismo entre homem
e natureza, isto é, de que a última existe apenas para servir o
primeiro. Neste sentido, Ribeiro (2008, p. 54) assevera que a
escassez de água doce no planeta tem no uso do recurso pela esfera
privada o seu principal impulsionador, sobretudo no uso com fins
de acumulação de capital, ou seja, a camada dominante da
sociedade atual deixou de considerar o caráter público da água.
Existem hoje muitos organismos multilaterais destinados a estudar
a situação atual de acesso à agua, mas tais organismos não parecem
agir de forma a mudar a situação atual, como se existissem apenas
para observá-la.
Ainda neste lado epistêmico da crise, Petrella (2002, p. 34)
salienta que é preciso trabalhar para evitar que a água siga o mesmo
caminho do petróleo, ou seja, evitar que a água se torne prisioneira
de conceitos tecnoeconomistas, passando a ser considerada como
coisa de ninguém e não mais como um bem público, ou melhor,
um bem público global. Sobre a relação entre água e petróleo,
Viegas (2005, p. 36) afirma que assim como ocorre com o petróleo,
aqueles que detiverem controle sobre a água se tornarão poderosos
e será inevitável o surgimento de conflitos, armados ou não. No
entanto, o autor destaca que a forma de solução destes citados
conflitos não poderá ser a mesma utilizada para dar fim aos
conflitos originados pelo petróleo, uma vez que a água não pode ser
substituída por outro bem, natural ou artificial. Verifica-se,
portanto, que a sociedade de consumo, que enxerga a água como
uma peça no tabuleiro do mercado e que não vê problema na
apropriação privada de um recurso necessário para a manutenção
da vida, constitui grande parte do problema aqui tratado. Ribeiro
292
(2008, p. 71) resume a questão: “A crise da água deve ser associada
às demandas cada vez maiores por recursos naturais para o
desenvolvimento do modo capitalista de produção”.
Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 68), em uma conclusão
não menos importante, também encaram a crise da água como uma
crise política, isto é, um problema que para ser solucionado requer
o desenvolvimento de uma cooperação internacional com
fundamento em um caráter de solidariedade, destacando a água
como um direito humano fundamental. Sobre este aspecto, a
questão da distribuição natural da água também encontra peso,
Ribeiro (2008, p. 133) aponta que em um suposto sistema
internacional de gestão de recursos hídricos, o controle do
fornecimento de água poderá ser facilmente manobrado como
instrumento de pressão política. Como consequência disto, Ribeiro
(2008, p. 151) prevê que muitos conflitos ainda surgirão, até mesmo
entre países que não são vizinhos, conflitos que serão iniciados por
potências militares em graves situações de escassez contra os países
que possuírem um considerável acervo de água em contrapartida.
É neste momento que o lado epistêmico se funde com o
lado político. A fim de evitar que a água possa ser utilizada como
vantagem política, alterações na visão atual sobre água e seu uso
precisam ser realizadas. Petrella (2002, p. 129) defende a água como
um bem social e, portanto, planetário, não sendo possível
considerar tal recurso sem destacar a sua sustentabilidade e
solidariedade, sendo a comunidade humana mundial o verdadeiro
sujeito primário do patrimônio comum da água. Nesta esteira,
Ribeiro (2008, p. 145) insiste na estratégia de mudança de

293
pensamento quanto à água: “em vez de torná-la uma mercadoria,
com preços definidos a partir de uma ética para acumulação de
capital, é necessário reafirmar sua importância à sobrevivência
humana e garantir seu acesso a todos”.
Viegas (2005, p. 44) afirma que o processo de minoração
da crise da água terá início com o estabelecimento de uma política
global eficiente de gerenciamento de recursos hídricos. De fato,
uma política global que leve em consideração a proposta de
alteração de pensamento apresentada anteriormente seria um
grande passo. Antes de tratar sobre a ausência de tal política global,
faz-se necessário abordar de forma mais aprofundada as formas
como a água tem sido considerada na atualidade, para, assim,
tornar mais claro o nível de gravidade da crise.

3. ÁGUA: VIDA E LUCRO

Para Petrella (2002, p. 24) o caráter de


imprescindibilidade da água neste pensamento: “Podemos viver
sem a Internet, sem petróleo, até mesmo sem um fundo de
investimentos ou uma conta bancária. Mas – um argumento banal,
embora frequentemente esquecido – não nos é possível viver sem
água”. Wolkmer, Augustin e Wolkmer (2012, p. 56)
complementam: “Enquanto componente da natureza, a água é
indispensável para a vida. Expressa a possibilidade da existência, da
continuidade da vida em nosso planeta”.
Reafirmando a importância da água, Petrella (2002, p.
128) destaca ainda a inexistência de alternativas que possam
substituir a água, o que a torna um bem vital para todos os seres do
294
planeta, assim como para o próprio planeta em si. A partir desta
conclusão, o autor conclui que todo ser humano tem o direito a ter
acesso à água, sendo incabível a apropriação individual privada,
uma vez que esta ação concretizaria uma violação de um direito da
coletividade humana planetária. Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 68)
salientam que em qualquer abordagem sobre água, sobre o acesso
a esta, confirmado o seu status de necessidade vital, deve ser
considerado o tema de forma integral, ou seja, somente através de
um diálogo de saberes é possível abordar e fortalecer a ideia de água
como bem humano, contribuindo de igual forma para a sua
conservação.
Tratando sobre a definição e classificação da água,
Fonseca (2011, p. 149) aponta que:

a água pode ser definida a partir de quatro


visões: a) substância inorgânica natural; b)
recurso natural essencial para a manutenção
da vida na Terra; c) recurso hídrico, isto é,
com enfoque no seu valor econômico; e d)
recurso estratégico, uma vez que desempenha
papel importante em atividades como a
produção de alimentos, geração de energia e
meios de transporte.

No entanto, sobre a relação entre Estado e água, Shiva


(2006, p. 36) defende que a água deve ser encarada como um direito
natural, um direito que nasce da natureza humana, de noções de
justiça e em um contexto ecológico, não se originando com o
Estado ou a partir do Estado. É possível afirmar então que cabe ao
295
Estado cuidar para que o acesso à água seja eficaz, existindo limites
para a liberdade da atuação estatal no que diz respeito à água, uma
vez que, conforme Ribeiro (2008, p. 112) explica, no momento em
que a água é reconhecida como um item fundamental para a
existência humana, o direito à água também ganha status de direito
humano, devendo a busca por uma vida saudável e com qualidade
para os seres humanos estar acima de qualquer outro interesse
estatal.
No mundo atual, não é difícil imaginar como conflitos
podem surgir a partir das ideias supracitadas. Petrella (2002, p. 31)
afirma não existir razão tecnológica, financeira, cultural, política ou
religiosa capaz de tornar a água em uma fonte de conflito, visto que
a água e seu papel na manutenção da vida humana escancara uma
grande oportunidade de cooperação e desenvolvimento comum
dentro de um suposto sistema de regulamentação que enxergue a
água como um bem comum. Entretanto, segundo Ribeiro (2008, p.
17) a água é uma fonte de riqueza e de conflitos, uma vez que,
respectivamente, foi transformada em uma mercadoria em escala
internacional de amplo interesse para grandes grupos do mercado
e porque sua distribuição natural não é compatível com sua
distribuição política.
Quanto à transformação da água em mercadoria,
Granziera (2006, p. 28) afirma que a água, como o petróleo, é um
elemento natural do planeta, sem valor econômico inerente,
situação que se altera quando tal elemento é necessário para uma
destinação específica de interesse dos homens. As muitas
propriedades da água possibilitam muitas destinações, sendo quase
impossível evitar a sua mutação em mercadoria. Tratando sobre as
296
necessidades humanas, outro ponto interessante que surge junto
com a problemática da água como mercadoria, é a tentativa de
delimitar uma quantidade mínima de água por ser humano
individualizado. Nesta seara, Ribeiro (2008, p. 66) aponta que para
definir um volume mínimo de água é preciso ir além da
manutenção do corpo, alcançando aspectos da vida social de
muitos grupos espalhados pelo globo, sendo que as necessidades
básicas que são as mesmas para todo ser humano devem ser
encaradas como o mínimo do mínimo.
A tentativa de definição de um volume mínimo é apenas
uma forma de tentar amenizar os pontos negativos da visão da água
como bem econômico. Hoje, conforme colocam Wolkmer e
Wolkmer (2012, p. 73), a água é um dos negócios mais lucrativos,
ocupando lugar de destaque em estratégias econômicas e
globalizadoras, o que afasta a água do âmbito público e a insere na
lógica da economia mundial, uma lógica que pouco dá importância
para a perseguição do bem comum e para o fortalecimento de uma
solidariedade global ambiental. Petrella (2002, p. 33) destaca as
parcerias público-privadas como origem da implementação de uma
visão da água como principal fonte de lucro do futuro, um dos
últimos recursos naturais a ser dominado pelo processo de
acumulação privada de capital. Shiva (2006, p. 35) resume a
problemática nos seguintes termos: “com o aprofundamento da
crise, novos esforços para redefinir os direitos à água estão a
caminho. A economia globalizada está mudando a definição de
água, de propriedade pública para um bem privado, a ser
livremente extraída e comercializada”.

297
Outra forma de encarar a questão da valoração econômica
da água é apresentada por Granziera (2006, p. 26) ao defender que
a cobrança pelo uso da água também precisa ser enxergada como
uma evolução do direito no sentido de evitar e facilitar a solução de
conflitos por água que nascem a partir da simultaneidade de usos
diferenciados e por pessoas diferentes, uma vez que nem todos os
usos da água são compatíveis e podem ser concretizados ao mesmo
tempo. Para Petrella (2002, p. 29) já é possível observar os frutos de
um processo marcado por fortes pressões exercidas sobre líderes
políticos e sobre a opinião pública, frutos que indicam a aceitação
da água como um ativo econômico com valor, propriedade e uso
ditados pelo mercado, não existindo mais uma oposição a este
quadro tão forte quanto antes. Shiva (2006, p. 119) complementa:
“a privatização dos serviços da água é o primeiro passo em direção
à privatização de todos os aspectos relacionados à água”. A
privatização dos serviços de água tem sido concretizada com cada
vez mais facilidade e, apesar das supostas melhorias no serviço de
distribuição de água, os efeitos negativos não deixam de ser
alarmantes.
Sobre a privatização dos serviços de água e seus efeitos,
Petrella (2002, p. 150) defende que as tendências de
comercialização de todas as atividades e necessidades humanas
sejam freadas: “O controle da água não pode ser entregue à lógica
das finanças e do mercado, pois esses garantem o direito à vida
somente a consumidores solventes e poupadores/proprietários de
imóveis/acionistas”. Shiva (2006, p. 117) também destaca pontos
que contribuem para a desigualdade no acesso à água: “A água
tornou-se um grande negócio para as corporações globais, pois
298
estas enxergam no aumento da escassez de água e da sua demanda
mercados sem limites”.
Também tratando sobre efeitos perigosos, Ribeiro (2008,
p. 36) dispõem:

que o consumo de água aumenta junto com o


aumento de renda, ou seja, onde existe mais
recursos financeiros, mais consumo de água se
dá, outra máxima que escancara o inevitável
problema da desigualdade de acesso.

Como exemplo, no Brasil, as leis que tratam sobre meio


ambiente e água dispõem os seguintes pontos: a) Lei nº 6.938/1981,
ou Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, detém como
princípio, em seu artigo 2.º, inciso II, a racionalização do uso da
água; e b) Lei nº 9.433/1997, ou Lei da Política Nacional de
Recursos Hídricos, apresenta, em seu artigo 1º, entre os seus
fundamentos: I – a água é um bem de domínio público; II – a água
é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; e IV –
a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso
múltiplo das águas. Observa-se a preocupação em colocar a água e
sua conservação como prioridades, mas em mesmo grau de
preocupação, também está presente o valor econômico da água.
Internacionalmente, destaca-se a Declaração de Dublin de
1992, que reconheceu de forma clara em um dos seus princípios o
valor econômico da água. É fácil perceber como a frente contrária
à água como mercadoria vem enfraquecendo, Ribeiro (2008, p. 152)
demonstra que cada vez mais as empresas conhecidas como

299
“gigantes da água” têm tomado as rédeas do controle da água, o que
possibilita a criação e repetição de cenários conflituosos como o
ocorrido na cidade de Cochabamba na Bolívia, quando a
privatização dos serviços de água tornou a água-produto muito
cara, principalmente para a população de baixa renda.
São muitos os argumentos contrários a água como
mercadoria, mas também existem pontos positivos, mesmo que
não completamente. Fonseca (2011, p. 157) apresenta o lado bom:
“Apesar das divergências em torno do tema, pode-se admitir que o
modelo de cobrança pelo uso da água é um importante instrumento
de valor incitativo que facilita o gerenciamento e manejo desse
recurso escasso, direcionando o controle para a via econômica”. O
autor expõe um aspecto positivo que acaba se fragilizando quando
colocado diante dos males da prática analisada. Ribeiro (2008, p.
154) apresenta um ultimato: “Esse cenário também impede a
sonhada sociedade sustentável. Não dá para ser sustentável
começando pela cobrança de uma substância vital aos seres
humanos”.
Por fim, acerca do controle da água, Petrella (2002, p. 124)
discorre que tarefas como distribuição, saneamento e conservação
estão sendo transferidas para o setor privado, o que expõe a
transformação da água de bem público para bem econômico
guiado pelas diretrizes do mercado capitalista, este quadro, como
dito anteriormente, é o resultado das pressões exercidas sobre as
comunidades locais e sobre os Estados somadas aos gastos públicos
que seriam necessários para gerir apropriadamente a água sem a
ajuda das “gigantes da água”.

300
O cenário para os conflitos resta formado, o embate da
água enquanto bem público e enquanto bem econômico agrava a
realidade das diferenças entre a distribuição natural da água pelo
planeta e a distribuição política, o que aponta para o conflito entre
países que nem mesmo são vizinhos. Ribeiro (2008, p. 151)
acrescenta: “Pode-se imaginar uma guerra de conquista por água,
em especial pelas potências militares que devem apresentar
escassez nas próximas décadas. Seus alvos serão países que possuem
estoque hídrico considerável”. O Direito Internacional dispõe dos
mecanismos e instrumentos para trabalhar e criar formas de evitar
a concretização e os efeitos destes conflitos, as chamadas “guerras
por água”. No entanto, a formação de uma política global de gestão
da água requer a cooperação dos Estados espalhados pelo globo, é
justamente este o cerne das duas próximas seções, avaliar as
tentativas e o estado atual deste suposto sistema de regulamentação
da gestão da água em nível global, assim como os principais
entraves para a sua concretização e eficácia.

4. A ÁGUA E O DIREITO INTERNACIONAL

Tratar especificamente sobre água no direito


internacional, de forma a abranger não só países vizinhos, mas
reunindo estados de todo o globo, é uma tarefa ainda sem sucesso,
o que chega a espantar, quando considerada a relevância da água
para a manutenção da vida. Nesta esteira,
Rebouças (2002, p. 690), destacando a situação de
desigualdade atual do planeta somada à sujeição do mundo a

301
catástrofes de natureza ambiental, afirma que chama atenção a falta
de gerenciamento da “gota d’água disponível” no planeta e a falta
de compromisso na busca por uma forma de garantir mais
produtividade com cada vez menos quantidade de água. Granziera
(2006, p. 44) também salienta a necessidade da existência de
normas de direito internacional que tenham como preocupação e
finalidade a garantia da manutenção de um equilíbrio no que diz
respeito ao acesso à água e sua conservação, principalmente em
quadros de bacias hidrográficas compartilhadas.
Contudo, apesar de a necessidade do estabelecimento de
normas globais mais abrangentes, Ribeiro (2008, p. 75) explana
sobre como a questão da água, diferentemente de outras questões
ambientais, aparentemente não foi capaz de mobilizar as camadas
dirigentes dos países o suficiente para levar ao estabelecimento de
uma convenção internacional específica sobre gestão de águas. O
autor ainda sublinha que, no decorrer da história, houveram
tentativas de acordos, mas que poucos foram ratificados em
número suficiente para entrar em vigência, uma situação que
facilita o surgimento de conflitos e fortalece o comércio
internacional indiscriminado de água. Shiva (2006, p. 94) apresenta
uma crítica muito forte ao apontar que as leis internacionais atuais
e a maioria das leis nacionais não atendem adequadamente aos
desafios, sejam eles políticos ou ecológicos, suscitados pelos
conflitos por água, ou seja, não existe um arcabouço legal capaz de
solucionar tais conflitos. E, como já delineado anteriormente,
Ribeiro (2008, p. 75) conclui: “No caso da água, a ausência de
regulamentação deve despertar a atenção para países que detêm
grande estoque hídrico. Eles podem vir a ser alvo de cobiça
302
internacional e precisam preparar-se para enfrentar novos
desafios”.
O histórico de tentativas de discussão do problema da
água em nível internacional está repleto de falhas, mas que também
podem ser encaradas como valiosos pontos de partida que não
renderam frutos. Reconhece-se que criar uma política global é uma
tarefa complicada, visto que a água é um tema multidisciplinar e
exige esforços acadêmicos e políticos. Redigir um documento que
consiga conciliar a importância da água para a manutenção da vida
e a sua visão enquanto bem econômico e que encontre soluções
amistosas para os conflitos óbvios de distribuição não é algo que
pode ser feito da noite para o dia. No entanto, a imagem passada
pelos “esforços” apresenta uma falta de comprometimento que
revela motivações egoístas, ou seja, totalmente desalinhadas do
ideal de solidariedade ambiental.
Acerca deste histórico, é possível destacar algumas
passagens, documentos e reuniões. A primeira passagem, apesar de
não tratar de um documento proveniente de uma reunião, é o
conflito entre França e Espanha no que diz respeito às águas do
Lago Lanoux. De forma simplificada, o conflito tem como cerne o
desejo da França de utilizar as águas do lago como fonte de energia,
enquanto a Espanha se preocupa com a qualidade e com a
quantidade de água que irá receber após a implementação deste
novo uso das águas do lago pela França. A sentença arbitral de 1957
decidiu a questão em favor da França, apontando que esta não
estaria violando as regras internacionais em vigor ao realizar o
desvio das águas do lago para a geração de energia. Entre os

303
fundamentos da decisão, é possível citar a ausência clara de
prejuízos previsíveis para a Espanha, assim como a impossibilidade
de golpear tão fortemente a soberania territorial da França ao negar
o desvio que seria realizado totalmente em território francês.
O segundo ponto a ser citado é o Regulamento de Uso da
Água de Rios Internacionais, resultado de uma reunião realizada na
cidade de Helsinque em 1966. Destaca-se deste documento a
definição das chamadas “bacias de drenagem internacionais”,
basicamente áreas geográficas que abrangem dois ou mais estados,
o que já apontava para a necessidade de umagestão cooperativa. A
seguir, como terceiro ponto destaca-se a Conferência das Nações
Unidas sobre Água de Mar Del Plata, realizada na Argentina em
1977. Em sua análise desta reunião, Ribeiro (2008, p. 78) a
considera como ponto de inauguração de um subsistema da ordem
ambiental internacional voltado especificamente para os recursos
hídricos. Como decorrências da reunião, o autor destaca a difusão
da gravidade da crise da água e a consequente criação de diversos
ministérios de recursos hídricos em todo o mundo, assim como o
estabelecimento de novos programas de pesquisa e de cooperação
internacional voltados para o problema da água.
Em seguida a Declaração de Dublin, já citada
anteriormente, resultado da Conferência Internacional sobre Água
e Meio Ambiente realizada em 1992. Desta declaração, cabe
salientar um princípio do seu conteúdo que causou muita
polêmica, o princípio de reconhecimento do valor econômico da
água. Ribeiro (2008, p. 81), em sua análise do documento, explana
os efeitos negativos de dotar a água de uma característica
excludente, delimitando o acesso à água somente para aqueles que
304
possam pagar por ela, com a justificativa de que o uso da coerção
pela economia é mais eficaz que tentar educar a população a usar a
água de forma responsável. Também de 1992, destaca-se a
Convenção Internacional de Cursos D’Água Transfronteiriços e
Lagos Internacionais, também conhecida como Convenção de
Helsinque (assim como a de 1966), na qual são enfatizados
princípios como o da precaução e do poluidor-pagador.
Como sexto ponto é possível citar a Convenção de
Regulamentação dos Usos Não-Navegáveis de Cursos D’Água
Internacionais de 1997, documento considerado idealista demais
por tratar abertamente sobre teorias de soberania, abrindo espaço
para um processo evidente de flexibilização, o que,
consequentemente, acabou diminuindo consideravelmente o
interesse de muitos países em ratificá-lo. Ribeiro (2008, p. 99)
protesta que “uma convenção idealista que encontre dificuldades
em ser ratificada mantém o problema sem solução”. E, por fim,
quase como curiosidade, importa citar que a Convenção
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
teve incorporado ao seu texto, em 2002, o direito à água, o que para
alguns pode ter significado que novos avanços no âmbito do direito
internacional estavam por vir, mas o “vazio” persiste, uma situação
que atende aos interesses das “gigantes” que encaram a água
somente como uma fonte de riquezas e ajudam a perpetuar e
agravar situações de desigualdade.
A solução para evitar o surgimento de conflitos por água
e facilitar a solução destes continua sendo a mesma, a criação de
uma política global de gestão, mas o histórico de tentativas não é

305
muito esperançoso. De qualquer forma, os trabalhos neste sentido
não podem ser esquecidos ou zerados. Viegas (2005, p. 43) afirma
que o panorama de conflitos iminentes “pode muito bem ser
revertido se os países firmarem compromissos de redução dos
níveis de poluição e de adoção de medidas de recomposição das
áreas degradadas, estabelecendo protocolos que constituam
verdadeira política mundial de gerenciamento de recursos
hídricos”.
Uma observação interessante feita por Petrella (2002, p.
131) é a de que:

a água não pode ser objeto de convenções ou


tratados puramente financeiros ou de maior
interesse para a Organização Mundial do
Comércio, visto que, sobretudo, a água é um
bem comum de todo ser humano, devendo,
acima de tratados econômicos, ser priorizada
a formulação de uma convenção mundial com
o objetivo de regulamentar e proteger a água
de forma que todos os seus membros restem
legalmente obrigados a tanto.

Uma proposta de um Contrato Mundial da Água é


apresentada por Petrella (2002, p. 128), trata-se de um instrumento
que colocaria os interesses da comunidade global acima de
interesses individualizados ou de grupos sociais específicos, tendo
como finalidade principal o cultivo da solidariedade entre todos as
pessoas quando do acesso à água e utilizando como base a ideia de
manutenção da paz por meio da água. A solidariedade como
fundamento também é apontada por Wolkmer, Augustin e
306
Wolkmer (2012, p. 63) quando a colocam como pressuposto para
o reconhecimento da água como um bem maior e de toda a
humanidade.
Observa-se que as bases de uma possível política global de
água são claras (solidariedade, sustentabilidade, água como
patrimônio humano). No entanto, também não é difícil perceber
qual o principal obstáculo para a concretização desta política: os
esforços empreendidos para se proteger um ideal clássico de
soberania estatal que quando ameaçado faz com que os estados
esqueçam os objetivos iniciais de caráter ecológico e solidário,
voltando a colocar interesses egoístas em primeiro lugar, como os
de caráter econômico e militar. A necessidade de relativização da
soberania estatal clássica a fim de possibilitar a criação de um
sistema internacional de regras sobre águas é o núcleo da próxima
seção.

5. SOBERANIA ESTATAL EM TEMPOS DE CRISE

A crise ecológica atual e, mais especificamente, a crise da


água é um problema que atormenta todo o planeta. Para Petrella
(2002, p. 121), esta é uma verdade que não perde força mesmo
quando consideradas as diferenças de padrão de vida entre os
países, as características de zonas do globo específicas, a
composição e a renda dos grupos sociais ou os diferentes usos da
água empregados pelo mundo. Segundo o autor, esta
homogeneidade da crise da água afeta a sustentabilidade das
relações humanas com o meio ambiente, uma vez que é uma crise

307
que envolve todas as pessoas do mundo e que ninguém pode
afirmar que não é afetado pelo problema da água da mesma forma
que ninguém pode afirmar que está livre da ameaça nuclear.
Bosselmann (2015, p. 21) assevera que “o meio ambiente é o maior
unificador da humanidade, ao menos no senso de uma
preocupação compartilhada. A proteção ambiental e, por sinal, o
princípio da sustentabilidade, são definitivamente desafios
globais”. Entra em cena o debate sobre como a ideia de soberania
estatal pode atrasar tanto a busca por soluções preventivas e
repressivas para conflitos que nascem a partir da crise da água, uma
crise global.
Maluf (1995, p. 29) conceitua soberania como “uma
autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro
poder”. Nos termos de Teixeira (2011, p. 69): “O conceito político-
jurídico de soberania encontra-se intimamente vinculado à noção
de poder político estatal, ou seja, o poder de comando máximo em
uma sociedade política”. Para Acquaviva (2010, p. 51), “soberania
é o atributo do poder do Estado que o torna independente no plano
interno e interdependente no plano externo”. Por último, Miranda
(2011, p. 131) destaca “a cumulação da soberania territorial com a
supremacia territorial (posse do território): o Estado, senhor do
território, exerce, de harmonia com o Direito internacional, um
poder geral e efetivo sobre esse território”.
Os conceitos apresentados no parágrafo anterior são
considerados clássicos de soberania e evidenciam um elemento
fechado e fossilizado. Não é difícil verificar que qualquer conceito
clássico do tema não deveria mais encontrar espaço na atualidade,
sobretudo quando se discute como amenizar a crise da água.
308
Bosselmann (2015, p. 192) explica que “a ‘exportação’ de
interferências ambientais para o território ‘soberano’ de outros
estados é compensada pela ‘importação’ de interferências de outros
estados do ambiente em seu próprio território ‘soberano’”, ou seja,
tudo aquilo que um estado faz em seu território com consequências
ambientais também afeta o território de outros estados e, de forma
mais ampla, afeta todo o território planetário, trata-se de uma
questão inevitável. Bosselmann (2015, p. 189) conclui: “se é verdade
que a territorialidade nacional está em desacordo com a
indivisibilidade do meio ambiente global, a única opção que resta é
reajustar a ficção legal à realidade ecológica”.
O supracitado necessário ajuste é algo de muito interesse
para o Direito Internacional, âmbito que mais tem a ganhar com
uma necessária relativização do conceito de soberania, o suficiente
para a criação de novas medidas ambientais. Kelsen (1998, p. 545)
explica:

A única ordem que se poderia supor como


sendo superior à ordem jurídica nacional é a
ordem internacional. Assim, a questão de
saber se o Estado é soberano ou não coincide
com a questão de saber se o Direito
internacional é ou não ordem superior ao
Direito nacional.

Sobre esta questão, Anjos Filho (2013, p. 139) confirma


que a natureza da soberania clássica constitui um verdadeiro
entrave para o sucesso das relações e reuniões internacionais, “pois
em última e radical interpretação nem mesmo os tratados
309
internacionais teriam força obrigatória, podendo ser afastados pelo
argumento de que a soberania ilimitada do Estado o torna imune
até mesmo ao pacta sunt servanda”. Em outro giro, sobre a posição
da ordem internacional, Boson (2011, p. 301) afirma que o direito
internacional se faz presente e vigente nos domínios territoriais de
cada Estado, diretamente, quando se trata de norma autoaplicável,
e, indiretamente, quando seu conteúdo jurídico penetra as
Constituições ou outras leis estatais.
Relativização ou flexibilização do conceito clássico de
soberania é o nome do processo que precisa ganhar cada vez mais
força na atualidade. Figueiredo (2011, p. 510) afirma que “a falência
do modelo conceitual clássico de soberania ligado à unidade
interna e fechada dos Estados reflete uma imposição da sociedade
de risco atual, que, a qualquer momento, pode sofrer as
consequências da incerteza ambiental”. No mesmo sentido,
Teixeira (2011, p. 143) defende que “a soberania entendida como
princípio da organização política do Estado se encontra em um
processo de perda de extensão, intensidade e capacidade de
controle sobre o destino e os propósitos que servem para orientar e
agregar os cidadãos de um Estado nacional”.
Canotilho (2003, p. 90) enumera como razões para a crise
da ideia clássica de unidade política soberana os fenômenos da
globalização, da internacionalização e da integração interestatal.
Com este mesmo pensamento, Guerra (2016, p. 138) também
esclarece que “com as mudanças ocorridas no plano das relações
internacionais, a definição de Estado vem sofrendo uma ‘mutação’,
exigindo, portanto, flexibilidade de interpretação no que tange à
independência referida na definição de soberania”. Sobre o
310
processo de relativização do conceito de soberania, Teixeira (2011,
p. 131) acrescenta que é possível enxergar como seu resultado a
transferência de prerrogativas dos Estados para agentes impessoais
ou indefinidos, como “mercado internacional” ou “interesses
internacionais”, sendo esta uma visão que explica a resistência de
muitos estados em aprofundar o processo de flexibilização.
Verifica-se que o processo abordado é algo que só vai
seguir em frente e possibilitar a formação de uma política global de
gestão da água quando a ideia de solidariedade ambiental global for
aceita pelos estados, o que evidenciaria que a única forma de sair da
crise é agir de forma cooperativa. Como já foi sublinhado antes,
Viegas (2005, p. 42) destaca que “a Terra constitui uma grande
porção de área separada politicamente em territórios
independentes, mas interligados quando se trata de questões
envolvendo a degradação ambiental, que repercute sem respeitar
fronteiras”. Portela (2014, p. 447) acrescenta ainda que “uma das
mais evidentes características das questões ambientais é a grande
capacidade de que problemas no meio ambiente ocorridos em um
país gerem desdobramentos em outras partes do mundo ou,
inclusive, em escala global”.
Sobre a solidariedade ambiental e o Direito internacional,
Soares (2001, p. 892) salienta que a indivisibilidade do meio
ambiente passa por cima das fronteiras dos limites físicos entre
interno e internacional e, consequentemente, todos os assuntos
relacionados, incluindo a crise da água, necessitam da cooperação
entre política interna e diplomacia entre os Estados. Quanto à
negociação de responsabilidades ambientais, Bosselmann (2015, p.

311
187) afirma que compromissos ambientais não podem ser
negociados, mas esta não é a realidade, uma vez que existem muitos
acordos que tratam sobre o clima global e outros temas ambientais.
No entanto, o autor destaca que tais acordos falham ao validar a
soberania dos Estados, uma vez que estes utilizam de uma liberdade
sem limites para não se comprometer e não restringir, por exemplo,
suas ambições econômicas.
A partir dos argumentos já explorados, é impossível
encontrar uma solução para a crise da água sem a criação de uma
política global de gestão combinada e formada por instrumentos de
cooperação entre Estados, sem que estes se recusem a relativizar a
sua soberania estatal em prol do bem ambiental e da manutenção
do bem-estar humano. Maliska (2013, p. 117) afirma que a
soberania estatal deve ser compreendida a partir de ideais de
abertura, cooperação e integração, não sendo mais possível ser
entendida como o isolamento dos Estados que apenas se
autorreconhecem como sujeitos internacionais, isto é, os Estados
fechados devem dar lugar aos Estados constitucionais cooperativos,
sujeitos que estão em constante e permanente diálogo no âmbito da
comunidade internacional. Figueiredo (2011, p. 506) apresenta as
características do Estado constitucional cooperativo: a) abertura
para relações internacionais, possibilitando a adoção de medidas
no âmbito interno, sobretudo medidas voltadas para os direitos
humanos; b) finalidade de realização internacional cooperativa de
atividades incluída no texto constitucional; e, c) cooperação
internacional com fundamento no ideal de solidariedade estatal.
Sobre a solidariedade estatal, Silva (2008, p. 971) exemplifica a sua
concretização, ilustrando que uma bacia hidrográfica
312
compartilhada por vários países, como a Bacia Amazônica, deve ter
as águas gerenciadas considerando todas os tipos de usos
envolvidos, uma gestão onde todos os atores envolvidos tenham
voz e onde a união dessas vozes representem um avanço para a
conservação da água.
Por fim, cabe destacar as seguintes palavras de
Bosselmann (2015, p. 211), ao tratar sobre a sustentabilidade do uso
dos recursos naturais disponibilizados pelo meio ambiente e ao
criticar a atitude de alguns Estados que ignoram as leis da física e
colocam a soberania como principal razão pela qual uma
determinada porção de meio ambiente compõe o seu território: “o
ambiente não pertence nem aos Estados, nem à humanidade, mas
apenas a si mesmo devido ao seu valor intrínseco. Estados,
portanto, não podem reivindicar a soberania ou propriedade sobre
o meio ambiente. O ambiente é um privilégio, não um direito”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário da crise ecológica e, em específico, da crise da


água ficou evidenciado como inevitável e gritante no mundo atual.
É tarde demais para voltar atrás e colocar um freio na corrida pelo
desenvolvimento industrial e econômico que custou tanto para o
meio ambiente do planeta. A água doce, própria para o consumo,
espalhada pela Terra é indiscutivelmente um objeto de urgência e
desejo dos Estados e das grandes empresas do ramo, ou seja,
interesses de muitas naturezas estão em jogo, o que torna certo o
surgimento de conflitos de escala internacional, sobrando para o

313
Direito internacional a tarefa de encontrar soluções. Mas o
problema se torna mais complexo quando os atores dos conflitos
são os mesmos que deveriam e devem trabalhar para criar e
implementar normas para a solução destes conflitos, tal como um
ciclo formado por concessões e decisões que anulam umas às
outras.
A necessidade de se criar uma política global de gestão de
águas é latente, mas como alcançar este objetivo? Os passos para
tanto são evidentes, mas difíceis de serem concretizados. O
primeiro deles está no âmbito da disputa entre água como
patrimônio da humanidade e a água como bem econômico, como
bem que só está disponível para aqueles que podem arcar com os
custos colocadospelas diretrizes de mercado. Os benefícios da
privatização da água, ou melhor, dos serviços de água, são muitos,
mas repassar o controle da água para as mãos das grandes empresas
sem critérios é sedimentar situações de desigualdade que não são
compatíveis com a relevância do acesso à água como pressuposto
vital. A água enquanto bem humano precisa ser vangloriada e
defendida, este é o raciocínio mais próximo de uma perspectiva
ecológica e de direitos humanos.
O segundo passo está na mudança de pensamento dos
dirigentes dos países que estão sempre com um pé atrás quando das
tentativas de se estabelecer normas internacionais sobre água. O
que existe hoje é o raciocínio enraizado de que as guerras por água
são completamente inevitáveis, logo, as atitudes da atualidade
devem ser vistas como uma preparação para conflitos futuros. A
possibilidade de evitar que tais guerras sequer venham a existir nem
mesmo é considerada, por este motivo muitos países preferem não
314
se comprometer com normas internacionais que podem
representar fragilidades em conflitos armados no futuro. É aqui que
se faz presente o problema da soberania. Uma soberania estatal
absoluta representa força em um conflito com outros países,
enquanto abraçar ideais de solidariedade ambiental e de
sustentabilidade seria um ato de fraqueza.
A relativização ou flexibilização da soberania estatal em
prol da prevenção e resolução de conflitos por água é a melhor
forma de se amenizar a crise e evitar a proliferação de conflitos
locais e internacionais. O Direito internacional já conta com
instrumentos de solução de conflitos de muito sucesso em outros
âmbitos, o caminho para o estabelecimento de novos instrumentos
na seara ambiental deve ser facilitado. A cooperação, ou o
fortalecimento de índoles cooperativas para os Estados, é o melhor
atalho para a criação de uma política global de gestão de água que
ajude o planeta a garantir o acesso à água a todos os seres humanos,
evitando conflitos por água que podem acabar delapidando o
estoque de água doce restante ou destruindo a qualidade deste.

315
REFERÊNCIAS

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319
RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS COMPANHIAS
TRANSNACIONAIS ENQUANTO PARADIGMA DE
PROTEÇAO DA CONDIÇÃO HUMANA

SOCIAL RESPONSIBILITY OF TRANSNATIONAL


COMPANIES AS A PARADIGM FOR PROTECTING
HUMAN CONDITION

Marcelo Benacchio 1
Jeferson Sousa Oliveira2

RESUMO: Com a presença das companhias transnacionais em


diversos países, muito tem se questionado quanto à amplitude de
sua responsabilidade social, notadamenteem Estados não
desenvolvidos, onde vários direitos têm sido gradativamente
sobrepostos por interesses econômicos, sacrificando inclusive o
meio ambiente, elemento essencial à vida no planeta. Assim, o
estudo faz ponderações quanto ao respeito aos valores humanos em
detrimento dos interesses puramente econômicos da
atualidade.Utilizou-se, o método hipotético-dedutivo, a partir de
revisão bibliográfica. Concluiu-se que combater as inúmeras
violações a direitos praticadas pelas companhias é uma necessidade

1
Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Professor permanente do Mestrado em Direito e da Graduação da
Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Professor Titular de Direito Civil da
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Juiz de Direito em São Paulo.
2
Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
Especialista em Direito Tributário pelo Complexo Educacional das Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU). Pesquisador bolsista do Programa de Suporte à
Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP).

320
imediata, cujo intuito é garantir o bem-estare a dignidade daqueles
que habitam os Estados não desenvolvidos.

PALAVRAS-CHAVE: Empresas Transnacionais; Direito


Econômico; Direitos Humanos; Direito Ambiental; Estado.

ABSTRACT: With the presence of transnational companies in


several countries, much has been questioned about the extent of
their social responsibility, notably in undeveloped states, where a
range of rights have been gradually overlapped by economic
interests, sacrificing even the environment, an essential element to
life on the planet. Thus, the essay talks about the respect to human
values to the detriment of the purely economic interests of the
present time. The hypothetical-deductive method was used, based
on a bibliographic review. It was concluded that combating the
numerous violations of rights praticed by the companies is an
immediate necessity, which is intended to guarantee the well-being
and dignity of those who live in undeveloped States.

KEYWORDS: Transnational Companies; Economic Law; Human


Rights; Environmental Law; Rule of Law State.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Globalização e o transnacionalismo das companhias modernas.
3. A atuação das transnacionais na defesa de seus interesses.
4. Responsabilidade social das transnacionais e a proteção da
dignidade humana.
Considerações finais.
Referências.

321
INTRODUÇÃO

Com o avançar dos séculos, a humanidade passou por


diversas transformações moldando seus valores e a forma de
relacionamento entre os seres humanos, o que culminaria, ante o
desenvolvimento tecnológico, com a integração internacional de
milhares de pessoas e o surgimento de grandes empreendimentos
comerciais por todo o planeta.
Tais empreendimentos começaram a ganhar maior
notoriedade a partir da década de 1990, quando se iniciou uma
nova tendência comercial que acompanhou a globalização, a
transnacionalização das empresas.
Esse modelo de gestão empresarial buscou alcançar
melhores condições operacionais para as companhias,
acarretandoo aumento do seu lucro e o consequente ganho de
influênciapolítica.
No entanto, o principal alvo das transnacionais foram os
países não desenvolvidos, devido a maior fragilidade de seu sistema
normativo, falhas fiscalizatórias, entre outros fatores que
permitiram as empresas sobrepor seus interesses aos do Estado,
ensejando assim, inúmeras violações aos direitos e garantias
fundamentais, em especial ao meio ambiente, haja vista sua relação
direta com o sistema produtivo através da extração de recursos
naturais.
Os danos causados à sociedade em decorrência da
atividade das transnacionais, em muitos casos, são irreversíveis,
notadamente os lesivos ao meio ambienteou as relações laborais,
deixando os Estados não desenvolvidos em uma situação delicada
322
ante a sua dependência às companhias, o que tem aumentado o
número de questionamentos a respeito da responsabilidade social
dessas nos locais onde atuam.
Destarte, conscientizar a população, os acionistas e
gestores empresariais, bem como os líderes políticos dos Estados,
tornou-se uma necessidade imediata, haja vista que o sacrifico de
direitos sociais afeta negativamente milhões de pessoas ao redor do
planeta, privando-os do desenvolvimento e da manutenção de sua
dignidade.
Com isso, o presente trabalho objetiva contribuir com as
discussões sobre o tema, de modo que se acredita que o acumulo de
capital não deve ser tido como um fim em si, mas um instrumento
para efetivar políticas de proteção e desenvolvimento social nos
países menos abastados, notadamente nas localidades atingidas
porproblemas sociais e ambientaisdecorrentes da atuação das
companhias transnacionais.
Com isso, busca-se ainda, reafirmar valores humanos na
tentativa de contribuir com a conscientização quanto à necessidade
de adoçãode um modelo econômico mais humanizado, na tentativa
de preservaro bem-estar de diferentes povos.
Para tanto, será utilizado com metodologia a análise
bibliográfica a partir do modelo metodológico hipotético-dedutivo,
bem como do estudo de elementos históricos e normativos, com o
intuito de facilitar a compreensão quanto à extensão e
complexidade do tema tratado.

323
2. GLOBALIZAÇÃO E O TRANSNACIONALISMO DAS
COMPANHIAS MODERNAS

Nas últimas décadas o mundo vivenciou diversas


mudanças que alteraram significativamente a maneira com a qual
os povos se relacionam, implicando na emergência de um novo
contexto político, econômico e social.
Como é de se imaginar, tais mudanças são fruto de
importantes passagens da história humana, direta e indiretamente
relacionadas com a exploração da atividade econômica por aqueles
que detinham à época a propriedade dos meios de produção.
Ante o advento do iluminismo e o fim de uma Era
marcada pelos monarcas, pôde-se vislumbrar a ascensão de
inúmeras empresas nos diversos Estados europeus, notadamente
na Inglaterra, o que implicaria posteriormente na Revolução
Industrial devido à maneira desumana que os funcionários das
inúmeras fábricas estavam sendo explorados.
Não se deve olvidar que nessa época os Direitos
Humanos, como se conhece atualmente, estavam em fase de
formação, motivo que assentou maior destaque histórico a este
importante evento.
No mais, o acelerado nível de produção fez com que o
mundo moderno iniciasse seu trajeto rumo à globalização,
demandando novos meios de escoamento da produção e o ganho
de novos mercados.
Anos mais tarde, já na década de 1990, o processo de
integração entre os povos se tornou mais latente devido à difusão a

324
internet entre a sociedade civil, inaugurando uma nova fase nas
relações políticas, econômicas e sociais.
A esse crescente estado de integração entre povos,
convencionou-se chamar de globalização. Desde então,
gradativamente as relações comerciais tem se intensificado,
pautando-seprimordialmente na transferência de bens, capital e
mão-de-obra (WEINSTEIN, 2005).
Atentas as novas tendências negociais diversas
companhias investiram na transnacionalização de sua atividade
visando explorar mercados emergentes na nova conjuntura
mundial, a qual passaram a estar mais conectadas, garantindo
assim, melhor gestão de suas filiais e assimetria em suas políticas.
“Como prueba de ello, valgan estos dados del World
Investiment Roport de la ONU del año 2000: en el mundo operan
un total de 63.000 empresas multinacionales que tienen 800.000
filiales y puponen conjuntamente el 35 por 100 del PIB munidal.”
(SANTONJA, 2009, p. 39)
Diversas empresas, por vezes dotadas de apoio financeiro
do seu Estado de origem, cresceram rapidamente, ganhando força
política suficiente para negociar com diferentes Estados os termos
de sua alocação, quase sempre em condições de igualdade ou até
mesmo de superioridade na prevalência de interesses.
Como assinala Antoni Verger (2003), as corporações
transnacionais são uma das formas mais desenvolvidas de
organização capitalista, concentrando grande poder. Essas
empresas não são novos empreendimentos, mas empresas que se
consolidaram ao longo de muitos anos, acumulando conhecimento

325
e tecnologia. Além disso, ao agir contrariamente à ideia de livre
comércio, as grandes transnacionais conseguiram concentrar
poder e dinheiro graças ao protecionismo estatal.
O referido autor expõe ainda que dentre os diversos
motivos que levam uma companhia a se tornar uma transnacional,
estão a possibilidade de conquistar novos mercados; dispor de
matérias-primas locais, bem como do baixo custo da mão-de-obra;
o investimento financeiro dado pelo Estado anfitrião e a
especialização de cada unidade da companhia, seguindo um
modelo de gestão comumente adotado na atualidade.
A força política das companhias transnacionais, advinda
do seu poderio econômico, despertou o interesse de muitos países,
principalmente daqueles menos abastados, envoltos na esperança
de que tais empresas os auxiliassem no desenvolvimento de seu
povo, mesmo que indiretamente.
“Desta forma, as companhias passam a ditar as regras da
atividade econômica em países não desenvolvidos e, que por vezes,
dependem da presença daquelas para gerar um mínimo de renda e
empregos.” (OLIVEIRA e BENACCHIO, 2017, p. 81)
Ocorre que tais instituições, por adotarem um
posicionamento alheio aos interesses estatais, optaram por
negligenciar na execução de um modelo de gestão voltado aos fins
sociais e ao bem-estar coletivo, haja vista sua essência estar baseada
no mero acumulo de capital e na divisão deste com seus
investidores.
Como é de se esperar, isso gerou certo descontentamento
por parte dos governos anfitriões ao notarem a ausência de

326
desenvolvimento, e em certos casos, um agravamento das
condições a que seu povo estava submetido.
“Em anos recentes, a América Latina e a Rússia também
ficaram desapontadas com a globalização. Elas abriram seus
mercados, mas a globalização não cumpriu suas promessas,
especialmente para os pobres.” (STIGLITZ, 2007, p. 71-72)
Vislumbrando tal situação, ao longo dos anos, diversos
grupos ao redor do mundo, conectados através de mídias sociais,
passaram a divulgar notícias e discutir sobre a atuação das
transnacionais, em especial nas violações a direitos ocorridas em
países mais pobres, o que refletiu diretamente na imagem de muitas
empresas, causando-lhes abalos econômicos de milhões de dólares,
tanto em receita quanto no valor de seus ativos financeiros
negociados no mercado de capitais.
Tal situação é capaz de demonstrar que os agentes
exploradores da atividade econômica ao redor do mundo passaram
a estar sendo vigiados por aqueles que consomem seus produtos e
utilizam seus serviços, inaugurando uma nova tendência de
controle sobre as atividades das companhias, principalmente
porque “[...] a pobreza no mundo em desenvolvimento aumentou
nas duas últimas décadas.” (STIGLITZ, 2017, p.71).
Assim, tem-se que houve a consolidação de uma
sociedade civil global, mais preocupada com os fins da atividade
econômica no mundo, a partir de um posicionamento mais crítico,
sem que isso desvirtue outras formas de atuação na busca pela
proteção social.

327
Com isso, mesmo que as companhias transnacionais
sejam autênticos frutos da globalização econômica, a sociedade,
pautada no maior acesso à informação, surge como agente
fiscalizador das condutas empresariais, assim como exige cada vez
mais que o Estado atenda a seus anseios, o que tem ganhado
destaque desde o advento da segunda dimensão de Direitos
Humanos.
Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que o Estado
possui um papel de destaque no cenário comercial moderno, pois
além de atuar diretamente como agente econômico, muitos países
dependem diretamente da atividade exercida pelas empresas
privadas, o que os condicionam, em certos casos, aos caprichos
dessas.
Destarte, diversos governos se veem em meio ao impasse
gerado entre os interesses das companhias – requerendo maiores
benesses de diferentes naturezas – e as exigências coletivas na busca
por justiça social e uma melhor qualidade de vida.

3. A ATUAÇÃO DAS TRANSNACIONAIS NA DEFESA DE


SEUS INTERESSES

As companhias transnacionais sempre se pautaram em


diversos fatores para selecionar os países nos quais se alocaram, tais
como estudos sobre os custos da mão de obra, insumos e o retorno
financeiro estimado.
Tais instrumentos continuam sendo utilizados
diariamente, pois a atividade comercial moderna exige uma grande
atenção das empresas, assim como a mobilidade de suas unidades,
328
a fim de se manterem presentes no concorrido cenário econômico
mundial (BAUMAN, 1999).
No entanto isso não basta para as transnacionais, pois as
mesmas buscam também adquirir poder político nos países onde
visam se estabelecer, de modo a facilitar a sua atuação, e em certos
casos, influenciar os governos a tolerarem determinadas condutas
violadoras de direitos e garantias fundamentais.
Estados não desenvolvidos ganharam a atenção de
companhias internacionais devido às inúmeras carências que esses
possuem. Pautadas nessas fragilidades, as empresas se valem, por
vezes, da corrupção para alcançar seus interesses e expandir sua
influência na região onde estão alocadas.

Una de las cuestiones más preocupantes de la


corrupción es que afecta todo a la población
más empobrecida, em concreto a aquella
que vive en los países del Sur. Esto ocurre
porque el dinero que podría haber sido
invertido en servicios para el bienestar de la
población, se gasta en lucrativas comissiones o
en proyectos que benefician, sobre todo, a los
gobernantes de estos países y a los inversores
extranjeros. (VERGER, 2003, p.45, grifos do
autor).

Desta forma, as companhias adentram ao território desses


países coma promessa de criação de novos postos laborais e uma
nova fonte de arrecadação tributária, constituindo-se em um
agente capaz de auxiliar no desenvolvimento local.

329
Entretanto, cada vez mais a atuação das companhias tem se
distanciado do modelo esperado pelo Estado anfitrião, pois com a
célere mobilidade comercial, múltiplas empresas menores acabam
sendo afetadas negativamente pela presença daquelas de maior
porte, desestabilizando a concorrência na região e submetendo
centenas de pessoas a novas condições de labor por medo de serem
atingidas pelo desemprego.
No mais, com o aumento das relações comerciais via
internet e a terceirização da mão de obra, milhares de trabalhadores
ao redor do mundo se viram prejudicados pelas demissões em
massa, afastando assim uma das funções esperadas pelo Estado
quanto ao ingresso das companhias em seu território.
Esse modelo de gestão ascende consideravelmente o
número de famílias afetadas pela pobreza decorrente da falta de
oportunidades laborais, implicando em certos casos, na migração
destas para outras regiões.
Esse problema torna-se ainda maior quando se tem que“[...]
más de dos terceras partes de los habitantes del planeta han de
subsistir con menos de dos dólares al día (la mitad de ellos con
menos de un dólar diario).” (SANTONJA, 2009, p. 34)
Como se isso não bastasse, os Estados têm deixado de
arrecadar milhões de dólares anualmente devido ao planejamento
tributário das transnacionais, considerado em muitos casos uma
medida agressiva, ultrapassando os limites legais e morais.
Internacionalmente, esse fator ganhou destaque nos
últimos anos por conta dos estudos e mobilização da comunidade
internacional encabeçada pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE (Organisation for
330
EconomicCo-operationandDevelopment– OECD),almejando
combater a erosão da base tributável e transferência de lucros (Base
ErosionandProfit Shifting– BEPS)3.

Embora as multinacionais clamem por


cooperação na elaboração de normas
internacionais para minorar a bitributação
decorrente de divergências nas legislações
nacionais, essas mesmas empresas não raro
valem-se dessas discrepâncias para recolher
menos impostos ou simplesmente não pagar
nada. (OECD, 2013, p. 7-8)

Internamente, quando incorrem nos fatos geradores dos


diversos tributos nacionais, as companhias optam por adotar meios
de discutir o referido encargo judicial e extrajudicialmente, visando
postergar tal dispêndio, o que gera danos severos ao erário do
Estado, pois, este deixa de possuir condições de financiar suas
políticas, possuindo apenas mera expectativa de percepção de tais
recursos.
Isso acaba impactando na população, porquanto muitas
políticas sociais acabam sendo restringidas a determinadas
categorias de pessoas ou contingenciadas na tentativa de

3
Versando sobre os problemas com a tributação, o Information Brief publicado
pela OCDE dispõe que “research undertaken since 2013 confirms the potential
magnitude of the BEPS problem, with estimates indicating annual losses of
anywhere from 4-10% of global corporate income tax (CIT) revenues, i.e. USD
100 to 240 billion annually. In developing countries, where reliance on corporate
tax as a source of revenue is generally higher than in developed countries, the
potential impacts are particularly stark.” (OECD, 2015, p. 3)
331
redirecionar os escassos recursos a programas de saúde, educação e
assistência social, tidos como prioridades em muitos países.
Esses não são os únicos efeitos aos quais a sociedade e o
Estado estão submetidos em decorrência da atuação das
companhias transnacionais, havendo ainda violações de natureza
consumerista e ambiental.
As primeiras ocorrem quando as companhias, visando
incentivar o consumo a qualquer custo, exploram as fragilidades de
determinados grupos sociais, principalmente daqueles mais
vulneráveis, como idosos e crianças.
Não apenas os atos negociais, mas também a publicidade
emanada das companhias merece destaque,vez quesão
consideravelmente capazes de induzir nas ações de seu público
alvo, criando em muitos casos, a ideologização do consumo, ou
seja, o surgimento de supostas essencialidades verdadeiramente
desnecessárias. (STEFANIAK, 2016)
Assim, o impacto causado por alguns meios de
publicidade requer, em certos casos, a adoção de um
posicionamento estatal ativo, visando regular o alcance de
determinadas informações na tentativa de proteger grupos sociais
sujeitos a sofrerem maior influência publicitária, de modo que tais
pessoas não acabem tendo seu sustento comprometidoousejam
lançadas ao rol de inadimplentes.
Contudo, a elevação do consumo está diretamente
relacionada a questões ambientais, haja vista a produção de bens e
prestação de serviços demandar a extração e utilização de recursos
naturais advindos de diferentes regiões do planeta.

332
Assim, um dos motivos que levam as empresas
transnacionais a migrarem rumo a Estados não desenvolvidos é a
fragilidade do seu sistema legal, o quepossibilita maior degradação
do meio ambiente e menor responsabilização do agente
degradador. 4
Visando se contrapor a todos esses pontos negativos, que
somados a muitos outros não citados, são capazes de exercer forte
influência negativa sobre a maneira com a qual as companhiassão
vistas por seus stakeholders,muitas empresas têmadotem um
modelo de gestão mais preocupado com o bem-estar coletivo.
Esse modelo de gestão empresarial mais preocupado com
o bem-estar social é, em muitos casos, utilizado como instrumento
de promoção da companhia visando destaca-la perante os seus
concorrentes, sem que tal preocupação componha os reais valores
das transnacionais.
Essa gestão que dissimula seus reais interesses é tida como
uma estratégia de marketing social (CUNHA e DOMINGOS, 2011,
p. 152-153), ou seja, consiste em atos que visam ser apresentados à
coletividade com intuito de demonstrar valores que beneficiam o
meio no qual as companhias estão insertas, mas que realmente não
compõem sua cultura empresarial.

4
Um grande problema com relação à responsabilização por danos ambientais
recai sobre a recuperação da área degrada, pois embora essa seja preferível, em
considerável parcela dos casos isso demonstra ser algo impossível de se realizar,
restando ao Poder Público apenas imputar ao agente degradador uma prestação
pecuniária cujovalor se aproxime daquele necessário a uma suposta reparação às
vítimas do incidente. (ATALLA e RIBEIRO, 2017)
333
Atualmente o marketing social tem seu destaque em ações
que visam preservar o meio ambiente, notadamente através do uso
de certificações verdes, além de outras como as promovidas pela
Organização Internacional de Normalização (International
Organization for Standardization–ISO).
Cumpre esclarecer que esse modelo de gestão não é regra,
mas sim uma exceção, pois diversas companhias ainda detêm o
lucro como um fim em si, um objetivo a ser conquistado mesmo
com o sacrifício de direitos e garantias sociais nacional ou
internacionalmente reconhecidos.
A partir desses tipos de condutas, conforme preconiza
Max Weber (2004), entende-se que cada vez mais auferir lucro tem
sido encarado como o objetivo final do exercício da atividade
econômica pelo mundo, distanciando-se da promoção do bem-
estar coletivo e do desenvolvimento social.
Sob essa óptica, atualmente as pessoas costumam
relacionar o ganho de capital com a posterior capacidade de
consumo, ou seja, conseguir mais para gastar mais. No entanto,
essa filosofia apenas mantém ou agrava a já fragilizada situação
daqueles que vivem em países pautados meramente pelo
desenvolvimento econômico sem considerar a preservação do
ecossistema.
Ante toda a influência do capital na sociedade moderna,
preconiza Jose Renato Nalini,que isso ocorre porque “o dinheiro
anestesia a consciência. Em nome dele, tudo se legitima.” (2015, p.
11).
Destarte, indaga-se se de fato as companhias
transnacionais têm agido de forma a contribuir com o meio no qual
334
se fazem presentes, principalmente considerando todo o dano
causado em virtude da atividade por elas desempenhada.
A resposta é negativa, sobretudo ao se considerar que
grande parte da riqueza produzida no mundo a elas pertence.
Assim, além de não contribuírem com o desenvolvimento dos
Estados, acabam por violarem direta e indiretamente diversos
aspectos da dignidade humana, seguindo um modelo de gestão
economicamente desumanizado.
Por isso, um número crescente de pessoas tem
questionado os limites da atuação das companhias transnacionais,
assim como a amplitude de sua responsabilidadepara com o meio
no qual se fazem presentes, em especial, devidoàlarga exploração
de recursos naturais e da mão de obra local,sem qualquer
comprometimento em sanar os danos causados no exercício da
atividade econômica.

4. RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS TRANSNACIONAIS


E A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA

Em diversos países a dignidade humana é entendida como


uma característica inata a todas as pessoas, o que contribuiu para
diversas discussões envolvendo os limites da responsabilidade
social das companhias transnacionias.
Com isso, tal discussão tomou proporções que lhe deram
ampla notoriedade, haja vista sua interrelação com os interesses
próprios do capitalismo. Conforme destaca Aldo Olcese Santonja
(2009, p. 27), “el modelo capitalista y la Responsabilidad Social de

335
la Empresa (RSE), también llamada Responsabilidad Corporativa
(RC), está en el centro del debate económico, social y político en
todo el mundo desarrollado.”
Ao decorrer dos últimos anos, os debates relacionados à
responsabilidade das companhias tem tomado por base os aspectos
que cercam o ambiente de atuação das transnacionais,
principalmente porque estas conduzem sua atividade com o
consumo de recursos regionais, sem que com isso, adotem medidas
de contrapartida que beneficiem à coletividade, criando uma
disparidade na justiça social, o que pode gerar questionamentos e
manifestações contrárias àsua presença no território de um Estado.
Tais questionamentos emergem ante a contraposição
entre os ideais liberalistas e os anseios sociais por proteção frente
ao abuso do poder econômico das empresas transnacionais, em
especial, nos países não desenvolvidos.

La empresa es, sin duda, una de las


instituciones sociales más importantes y con
un mayor poder de influir, positiva o no tan
positivamente, en el sistema económico,
natural y social. En este sentido, no cabe duda
de que sobre la empresa recae parte de la
responsabilidad de la situación actual de dicho
sistema. (SANTONJA, 2009, p. 35-36)

O abuso do poder econômico pelas corporações


transnacionais é capaz de oprimir as reivindicações daqueles que
não têm meios de prover sua subsistência de forma autônoma,

336
existindo apenas uma opção, aceitar as condições e os interesses
daqueles que são os donos do capital.
Sobre essa condição, Joseph E. Stigltiz (2007, p. 72-73)
aponta que “os pobres têm poucas oportunidades para se
manifestar. Quando falam, ninguém escuta; quando alguém escuta,
a resposta é que nada pode ser feito; quando lhes dizem que algo
pode ser feito, isso nunca acontece.”
Inegavelmente, muitas transnacionais ainda se pautam
em uma filosofia empresarial antiga, construída com base no
capitalismo liberal idealizado por Adam Smith em A Riqueza das
Nações, publicado em 1776 e republicado até os dias atuais, na qual
se acredita que o desenvolvimento da região advém naturalmente
com o exercício de sua atividade típica.
No entanto,essa nova tendência, filiada à adoção de
medidas ativas por parte das companhias na promoção do bem-
estar social, emergiu juntamente com a globalização, pois com o
maior acesso às informações, logo tornou-se perceptível sua
capacidade financeira e a dimensão dos danos por elas causados na
constante tentativa de acumular capital.
Como referido, a função social está fundada basicamente
no respeito à dignidade humana, uma condição inata a todas as
pessoas no planeta, reconhecida a partir da evolução histórica dos
Direitos Humanos.Isso torna a função social algo bastante amplo,
possuindo segmentos de diversas naturezas.
Assim, ante o modelo de atuação empresarial
descompromissado com o bem-estar social, inúmeros países
passaram a prever princípios e normas constitucionais

337
einfraconstitucionais visando ampliar o dirigismo estatal frente à
atuação das empresas no cenário econômico interno, sem que isso
inviabilize as relações comerciais ou ceda espaço para a
sobreposição de interesses das companhias em detrimento dos
interesses coletivos.
No entanto, os Estados não desenvolvidos têm
encontrado dificuldades em conciliar ambos os interesses, ainda
mais quando se veem sem os recursos financeiros necessários, não
restando outra opção senão contar com a voluntariedade das
empresas no auxílio à promoção de suas políticas públicas de cunho
social.
Grande parte das transnacionais, por possuírem uma
economia consolidada, com receita anual maior do que a de muitos
países (SANTONJA, 2009), detêm sob a perspectiva moderna da
função social, uma significativa responsabilidade na promoção do
bem-estar coletivo, vez que são capazes de contribuir com a
evolução tecnológica de um país, além deviabilizar a cessão de parte
desua experiência adquirida ao redor do mundo, as tornando
excelentes instrumentos de desenvolvimentonacional.
Buscar o desenvolvimento tecnológico e educacional é
algo de significativa importância para os Estados não
desenvolvidos, pois tornar seu povo autossuficiente tecnológica e
educacionalmente representa romper com a relação de
dependência estes e os países já desenvolvidos (GRAU, 2015).
Isso auxilia também na consolidação de empresas
nacionais no cenário econômico internacional, permitindo que as
mesmas atuem em condições de igualdade com as já consolidadas
transnacionais.
338
Outro ponto importante é a defesa do meio ambiente, vez
que constantemente há notícias a respeito da deterioração da
qualidade ambiental no planeta em decorrência do aquecimento
global, dos buracos na camada de ozônio,do efeito estufa, entre
outros problemas naturais causados pelo homem.
A degradação ambiental não é um problema exclusivo dos
países não desenvolvidos, mas seus efeitos são sentidos
principalmente por estes, pois como referido, a legislação lacunosa
e a fiscalização deficitária possibilitam maiores danos ao
ecossistema.
Permitir que o meio ambiente seja sacrificado em prol do
mero acumulo de capital nada mais é do que negar os ideais de
desenvolvimento econômico sustentável, violando seu aspecto
social e ambiental, retornando o mercado aos seus primórdios
liberais.
É importante destacar ainda que a proteção à dignidade
humana deve ser observada também nas relações civis e
consumeristas, impedindo assim que milhares de pessoas se
submetam aos caprichos das companhias ante as suas práticas
comerciais abusivas.
A proteção civil e consumerista não deve se ater apenas à
iniciativa do Estado, a partir da atividade de regulação do mercado,
mas também das próprias companhias, ensejando o que a doutrina
costuma chamar de eficácia horizontal dos Direitos Humanos
(SARMENTO, 2008).Ou seja, os Direitos Humanos devem ser
dotados de uma base protetiva tanto nas relaçõesentreEstado e

339
cidadão (eficácia vertical), quanto nas relações entre entes da
iniciativa privada (eficácia horizontal).
As relações laborais não são exceção à regra, pois a
disparidade negocial entre empregadores e empregados também
deve ser levada em consideração. Não é incomum encontrar
notícias de companhias que exploram a mão de obra de centenas
de pessoas, em sua grande maioria, em países não desenvolvidos,
submetendo diversos trabalhadores acondições de escravidão ou
análogas a esta.
Mesmo em países onde existem normas protetivas
positivadas é possível encontrar polos regionais onde a fiscalização
estatal se mostra ineficiente, ensejando uma gama de violações a
direitos internacionalmente reconhecidos.
Esse tipo de conduta empresarial consiste claramente em
violações aos Direitos Humanos, promovida exclusivamente na
defesa de interesses econômicos, subjugando o ser humano a mera
condição de insumo, facilmente substituível em outras partes do
globo.
Segundo Joseph E. Stiglitz (2007) a globalização não
cumpriu o que prometeu, vez que trouxe injustiças à sociedade e
colocou valores materiais acima de valores humanos, como a
proteção ao meio ambiente e a vida. Com isso, a ascensão da
pobreza nas últimas décadas pôde ser sentida principalmente nos
países menos desenvolvidos da América Latina.
Considerando a América do Sul, o Brasil enquanto
potência regional, buscou combater os abusos ao poder econômico
praticados pelas companhias atuantes em seu território a partir da

340
positivação de princípios regentes da ordem econômica em sua
Constituição Federal, datada de 1988.
O artigo 170 do referido diploma elencou dentre seus
princípios a observância à função social da propriedade, a defesa do
consumidor e do meio ambiente a fim assegurar a todos uma
existência digna.
Isso demonstrou certo dirigismo político sobre as
atividades econômicas desenvolvidas no país, notadamente na
tentativa de alcançar seus objetivos (artigo 3º), dentre eles, a
erradicação da pobreza e a busca pelo desenvolvimento nacional.
Cumpre esclarecer ainda, que a Constituição Federal
brasileira adotou a dignidade humana como um dos fundamentos
da República (artigo 1º, III), visando ratificar seu posicionamento
humanista quanto ao planejamento e execução das políticas
gerenciais no país.
Não se distanciando da preocupação em manter a
dignidade humana frenteà exploração da atividade econômica, a
Constituição Mexicana de 1917, também demonstrou interesse em
buscar o desenvolvimento nacional a partir de um viés sustentável,
de modo que seja possível o pleno exercício da liberdade e da
dignidade das pessoas a partir da justa distribuição de renda,
manutenção do emprego e da competitividade de mercado (artigo
25).
Assim como o Brasil, o México demonstra certo dirigismo
político da ordem econômica, vez que imputa ao Estado o dever de
planejar, conduzir e orientar a atividade econômica nacional,
regulando aquelas de interesse coletivo.

341
A Constituição Mexicana é expressa em reconhecer –
ainda no artigo supra citado – que o desenvolvimento nacional está
condicionado à responsabilidade social do setor público, do setor
social e do setor privado, sem desconsiderar outras atividades
econômicas que contribuam para o desenvolvimento da nação.
Já no plano do direito internacional, outro motivo de
grande discussão é a ausência de normatização que regule o
exercício da atividade das transnacionais de maneira comum nos
diferentes países, havendo apenas códigos de ética facultativamente
seguidos pelas companhias, sem a tipificação de qualquer sanção
pelas práticas violadoras a direitos sociais.
Por outro lado, a União Europeia, na década de 1990,
publicou uma Resolução que dispõe sobre normas de conduta para
as empresas europeias que operam nos países em desenvolvimento,
visando instituir um Código de Conduta Europeu (UNIÃO
EUROPEIA, 1999). Ocorre que instituir um código internacional
para esse fim é algo bastante complexo, o que resultou em meras
recomendações às transnacionais.
É almejando acabar com esse tipo de situação, que cada
vez mais se tem buscado meios de conscientizar a sociedade, os
governantes e aqueles que detêm o poder de influir na tomada de
decisões das grandes companhias, buscando com isso, construir
um modelo econômico mais humanizado, sem que a dignidade
humana seja sacrificada em prol do acumulo de capital.
A já fragilizada proteção aos Direitos Humanos nos países
não desenvolvidos deve ser complementada pela adoção de boas
condutas por parte das empresas transnacionais, de modo a não

342
violarem a dignidade da pessoa humana, repercutindo na proteção
de seus próprios funcionários.
Assim, defende-se que a atuação das companhias
transnacionais em países não desenvolvidos, propriamente no
exercício de sua atividade econômica ou não, necessita
imediatamente de mudanças, moldando-se em um paradigma
humanista, pautado no respeito à dignidade de cada indivíduo, não
apenas por meio da melhor distribuição de renda, mas também pela
preservação dos recursos naturais, sem deixar de lado os ideais de
desenvolvimento sustentável ou outros elementos capazes de
propiciar melhorias na qualidade de vida das pessoas.
Contudo, caso inexistam mudanças, tem-se que a
humanidade caminhará rumo à total destruição do meio ambiente,
deixando às gerações seguintes apenas resquícios de uma sociedade
pautada em um progresso econômico irresponsável, cujo sacrifício
do planeta e a degradação da qualidade de vida foram o preço pago
na busca desenfreada pelo acumulo de capital.
Por fim, cabe esclarecer que não se busca converter as
companhias transnacionais em entidades beneficentes, mas apenas
incentivar a adoção de um modelo de gestão empresarial mais
preocupado com o bem-estar coletivo, sem que o acumulo de
riqueza seja entendido como um fim em si, mas apenas um
instrumento para a promoção do desenvolvimento social nos
países menos abastados.
Desta maneira, entende-se que tais companhias, mesmo
agindo em benefício da coletividade em algumas situações, podem
atuar com maior amplitude e efetividade, de modo a melhor

343
conduzir o desenvolvimento social no meio que as cercam,
impedindo a ocorrência de violaçõesa direitos fundamentais, bem
como auxiliandoo Estado na implementação de suas políticas
econômicas voltadas à promoção do bem-estare da manutenção da
dignidade daqueles que habitam seu território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como aduzido, aos longos das décadas, a humanidade


passou por diversas mudanças na maneira de se relacionar com
outros povos, de forma a moldar o que se chamaria posteriormente
de globalização.
Com o advento das empresas após o fim da Era dos
monarcas e a consequente exploração dos trabalhadores, começou-
se a questionar a real finalidade do capital e a verdadeira função
social das empresas, em virtude da degradação trazida por essas.
À medida que os meios de comunicação e transporte
evoluíram as relações entre os seres humanos e suas sociedades se
intensificou a uma velocidade nunca antes vislumbrada, atingindo
seu ápice com o advento da internet na década de 1990.
Visando acompanhar as tendências de mercado, muitas
companhias transnacionalizaram suas atividades com a ajuda de
recursos financeiros provenientes dos seus Estados de origem,
alocando-as no competitivo cenário econômico internacional.
Dentre os motivos que as levaram a adotar tal postura,
estão a possibilidade de explorar matéria prima local e valer-se da
barata mão-de-obra nos Estados não desenvolvidos, fato este que
os tornou alvo das companhias transnacionais.
344
Com poder econômico, logo as companhias optaram por
conquistar poder político, agindo, em certos casos, de forma
improba e baseada em atos de corrupção, de modo que seus
interesses sejam preservados quando conflitarem com os do
Estado.
Dessa sobreposição de interesses, decorrem inúmeros
danos à coletividade, não apenas na seara ambiental, mas também
trabalhista e social, atingindo o Estado no que toca ao
financiamento de suas políticas públicas.
Ante a todos esses pontos negativos, com o aumento dos
questionamentos e do clamor social pelo combate às suas mazelas,
algumas empresas passaram a adotar um posicionamento mais
humanizando, mesmo que isso não reflita sua filosofia interna,
compondo-se em mero instrumento de promoção comercial.
Ocorre que a proteção ao bem-estar coletivo deve serum
objetivo intrínseco a todos aqueles que exercem atividades
comerciais, pois atuar de modo a se distanciar dos valores humanos
é auxiliar no aumento da discrepância financeira entre o seleto
grupo daqueles que possuem muito e o grande grupo dos que
possuem pouco.
Visando reduzir os danos causados à coletividade, alguns
países têm buscado normatizar princípios regentes da atividade
comercial em seu território, a fim de proteger o mercado interno e
promover o desenvolvimento nacional, sem que haja o sacrifício do
bem-estar e da dignidade humana em prol deum modelo capitalista
que beira o liberalismo econômico.

345
Destarte, cada vez mais se tem buscado conscientizar os
dirigentes estatais e os gestores das companhias transnacionais
sobre a responsabilidade que essas possuem perante as pessoas que
dependem direta e indiretamente das respectivas empresas, pois o
acumulo de capital não deve ser buscado como um fim em si, mas
de modo que sirva à promoção do desenvolvimentonacional,
conforme os ditames da justiça social e do respeito aos valores
humanos.
A inclusão de valores humanos no exercício da atividade
econômica das transnacionais redundará no desenvolvimento dos
seres humanos em todas as partes do planeta permitindo um
paradigma sustentável de proteção ao meio ambiente, de proteção
social e melhor distribuição da riqueza.
Não há dúvidas do exercício da atividade econômica
permitir o atendimento das necessidades humanas em todas as suas
dimensões, assim, a atuação das empresas transnacionais tem de
ser pautada pelos direitos humanos, enquanto normas jurídicas,
voltadas à ordenação de sua atuação para concretização da
realização dos valores humanistas, pois, o capital e meio e não fim
da atividade empresarial.

346
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349
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: CRÍTICAS
FEMINISTAS À NEUTRALIDADE DO SISTEMA JURÍDICO

WOMEN’S HUMAN RIGHTS: FEMINIST CRITIQUES TO


THE NEUTRALITY OF THE LEGAL SYSTEM

Marina França Santos1

RESUMO: O presente artigo objetiva, a partir das teorias


feministas do direito, trazer contribuições críticas ao pensamento
jurídico ao apontar a fragilidade da noção de neutralidade do
sistema. Pontua, com tal análise, a validade e a utilidade das
indagações relativas à influência do sexo/gênero no status social
dos sujeitos de direito. Busca, assim, reunir elementos para
aprofundar caminhos de real efetivação dos ideais de igualdade e
de liberdadea todos os seres humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Direitos Humanos; Neutralidade;


Liberdade; Igualdade.

ABSTRACT: The present article aims, from the feminist theories


of law, to bring critical contributions to the juridical thought by
pointing out the fragility of the notion of system neutrality. It
analyzes, with such analysis, the validity and usefulness of inquiries
regarding the influence of gender / gender on the social status of
subjects of law. It seeks, therefore, to gather elements to deepen
ways of real realization of the ideals of equality and freedom to all
human beings.

1
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-
PUCRio.
350
KEYWORDS: Gender; Human rights; Neutrality; Freedom;
Equality.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. O gênero como construção social.
3. Teorias feministas do direito: uma crítica à neutralidade do
sistema jurídico.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

As últimas três décadas trouxeram marcantes conquistas


normativas para os direitos das mulheres no Brasil, a começar pela
Constituição da República de 1988, que atestou, definitivamente, a
igualdade jurídica formal entre homens e mulheres (artigo 5º, I),
acolhendo uma série de reivindicações formuladas pelos
movimentos feministas no contexto da Assembleia Constituinte,
como a garantia de incentivos específicos para a proteção do
mercado de trabalho da mulher (artigo 7º, XX), a proibição de
diferença de salários por motivo de sexo ou estado civil (artigo 7º,
XXX), o reconhecimento da união estável como entidade familiar
(artigo 226, parágrafo 3º), a igualdade de direitos e deveres na
relação conjugal (artigo 226, §5º), a garantia do planejamento
familiar como livre decisão do casal (artigo 226, parágrafo 7º) e o
dever do Estado de coibir a violência doméstica (artigo 226,
parágrafo 8º).

351
Tal inequívoco avanço normativo coexiste, porém, ainda
no século XXI, com uma sociedade profundamente marcada pela
opressão, pela desigualdade e pela discriminação de gênero.
Segundo o Global Gender Gap Report de 2014 (HAUSMANN et
al., 2014), ranking que mede a magnitude da disparidade de gênero
em todo o mundo, atribuindo a primeira posição ao país que
apresenta o maior padrão de igualdade e a última ao maior quadro
social de desigualdade, o Brasil ocupa o longínquo 71º lugar, em
um ranking de 142 países. A título comparativo, outros latino-
americanos, como Nicarágua, Equador, Cuba e Argentina,
ocuparam, no mesmo ano, respectivamente, o 6º, 21º, 30º e o 31º
lugar. O índice avalia a participação e as oportunidades econômicas
entre homens e mulheres, o nível comparativo de instrução, de
saúde e o empoderamento político em cada sociedade.
No Brasil, apesar de terem, em média, mais tempo de
estudo superior do que os homens (7,9 anos entre as mulheres e 7,4
anos entre os homens), as mulheres seguem percebendo, em média,
73,7% do rendimento por eles recebido (IBGE, 2011, p. 37). As
mulheres continuam, também, de forma majoritária,
desigualmente presentes nos espaços públicos e privados. Em 2009,
49,1% dos homens declararam cuidar dos afazeres domésticos
contra 88,2% das mulheres (IPEA, 2011, p. 37). A taxa de
participação no mercado de trabalho é praticamente invertida,
58,9% das mulheres possuem ocupações profissionais fora do seu
próprio ambiente doméstico contra 81,6% dos homens (IPEA,
2011, p. 27). De se ressaltar também que, no mesmo período,
apenas 26,1% das mulheres chefes de família participavam de
entidades familiares formadas por casais, enquanto a maioria,
352
49,4% das mulheres nessa posição, encontravam-se em famílias
monoparentais. Em 2013, reforçando esse cenário de desigualdade,
quase 64% dos brasileiros e brasileiras entrevistados pelo Ipea
afirmaram concordar total ou parcialmente com a ideia de que “os
homens devem ser a cabeça do lar” (IPEA, 2014, p. 4).
O tipo de violência a que estão predominantemente
submetidas as mulheres também é um sinal de sua condição ainda
profundamente assimétrica na sociedade. A taxa de estupros
cometidos no Brasil, em 2012, ultrapassou a quantidade de
homicídios no país (FBSP, 2013, p. 8) e em 2013, mais de 58%, entre
3.810 brasileiros entrevistados, concordaram, total ou
parcialmente, com a afirmativa de que “se as mulheres soubessem
como se comportar, haveria menos estupros” (IPEA, 2014, p. 23).
Em pesquisa realizada com aproximadamente 8.000 mulheres
brasileiras em 2013, 99,6% das participantes afirmaram que já
sofreram assédio e 81% informaram que já tiveram cerceada sua
liberdade de ir e vir por medo de sofrê-lo (THINK OLGA, 2013).
No período de 2009 a 2011, estima-se que ocorreram no Brasil, em
média, 5.664 feminicídios (mortes de mulheres decorrentes de
conflitos de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres) a cada
ano. Esse número representa uma taxa de 472 a cada mês, 15,52 a
cada dia ou 1 mulher morta, pelo fato de ser mulher, a cada hora e
meia (GARCIA et al., s.d., p.1 e 3).
Esses dados extremamente recentes compilados de
pesquisas e de instituições variadas revelam de forma eloquente a
persistência, no Brasil, de um notório abismo entre direito e eficácia
social no que tange à posição da mulher na sociedade. Mais do que

353
isso, eles revelam aquilo que de agora em diante denominaremos
sistema sexo/gênero, assim nomeado originalmente por Gayle
Rubin (1975) e aqui adotado no sentido exposto por Joan Scott,
como sistema de significados que articulam normas de relações
sociais e “processos de diferenciação e de distinção” entre sujeitos
em razão do seu gênero (SCOTT, 1995, p. 82). Em outras palavras,
a existência do sistema sexo/gênero se observa quando se faz
reiterados determinada construção sociocultural e aparato
semiótico que atuam como um sistema de atribuição de
“significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco,
status dentro da hierarquia social, etc.) a indivíduos dentro da
sociedade” (LAURETIS, 1994, p. 212) pelo só fato de serem homens
ou mulheres. Esse sistema social, claramente demonstrado na
realidade brasileira pelos dados acima, possui inegável impacto na
conformação e na vivência desigual dos direitos pelos seres
humanos.

2. O GÊNERO COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

O sistema sexo/gênero, tal como definido na seção


anterior, apesar de valorar desigualmente as pessoas em função do
gênero, é forjado, paradoxalmente, em torno de noções de
universalidade, de neutralidade e de abstração da ideia de sujeito,
noções que escondem construções sociais específicas e
contrapostas do feminino e do masculino (OLSEN, 1990). Mais
especificamente, nota-se, nesse sistema, a associação de caracteres
tidos como naturalmente masculinos a uma concepção de sujeito
universal e neutro, enquanto que características consideradas
354
naturalmente femininas são tidas como singulares e concretas.
Como Simone de Beauvoir já apontava, em 1949, trata-se de uma
dualidade entre o homem como ser sem marcação social e
indefinível em oposição à mulher como ser específico, singular e
determinado (BEAUVOIR, 2009, p.16-17).
A colocação da mulher na posição do “outro”, tomando-
se o homem como referência de pessoa e de ser humano, ao mesmo
tempo em que implica a universalização daquilo que se concebe
como masculino, resulta no esquecimento ou no apagamento das
perspectivas e interesses dos sujeitos femininos. Torna-se, a partir
dessa ideia, por conseguinte, facilmente justificável que homens
falem em nome de mulheres, substituindo-as ou representando-as
na esfera pública e em espaços de poder. Em outros termos, se
características tidas como masculinas são justamente aquelas
consideradas universais e neutras, o sujeito masculino se torna uma
categoria normativa e opressora em relação às mulheres.
No direito brasileiro, a reiteração desse discurso dual
pautado pelo reforço da diferença e da afirmação de especificidades
femininas, de um lado, e pela supressão da diferença e sustentação
das universalidades masculinas, do outro, pode ser observada em
diversos momentos. Cita-se, por exemplo, a expressão “mulher
honesta”, vigente até 2005 no Código Penal brasileiro, de quem se
valorava um recato e uma moral considerados exclusivamente
femininos, ou o “homem médio”, fartamente utilizado como
parâmetro para a presunção de normalidade e de razoabilidade das
condutas de todos os sujeitos de direito. Vale notar, ainda, a
expressão “direitos do homem”, que representa todos os direitos da

355
personalidade, enquanto que os “direitos das mulheres” são
restritos àqueles que exclusivamente dizem respeito às questões de
gênero.
Os estudos feministas foram/são responsáveis,
justamente, por lançar uma luz sobre essas representações
femininas e masculinas, tal como elas apareciam – aparecem –
naturalizadas nas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive
no discurso jurídico. Da observação de que as noções de masculino
e de feminino são reiteradamente pautadas pela abstração, pelo
essencialismo e pelo binarismo surge, então, o questionamento do
papel da cultura e da natureza na formação do que se entende por
mulher(es). Passa-se a evidenciar, desse modo, o caráter
socialmente construído da identidade de gênero e a sua
irredutibilidade a uma essência naturalista ou biologizada. Eis o
fundamento do seu célebre enunciado: “ninguém nasce mulher:
torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p. 361).
A noção de gênero, proposição elaborada por volta dos
anos 1950 pelos estudos feministas, e constantemente discutida e
repensada desde então, surge exatamente como um contraponto à
explicação pretensamente natural dada às identidades subjetivas a
partir do sexo. A ideia de que os seres humanos detêm sexo e gênero
veio, assim, de encontro ao determinismo biológico considerado
implícito na sexualidade (SCOTT, 1995, p. 72) de que mulheres são
mulheres porque assim são biologicamente constituídas e, desse
modo, distinguem-se naturalmente dos homens, que também o são
porque nasceram como tais.
Com o desenvolvimento dos estudos feministas, o gênero
passa a ser vislumbrado não como uma qualidade ou como um
356
predicado de corpos, ou mesmo como condições dadas
aprioristicamente aos seres humanos (LAURETIS, 1994, p. 208),
mas como resultado de uma sutil tecnologia, que conduz à
percepção do caráter social e culturalmente construído dos papéis
e representações do masculino e do feminino (SCOTT, 1995, p. 75).
Nesses termos, até mesmo condições historicamente tidas como
inequivocamente dadas a priori e essenciais a uma definida
condição feminina, como, por exemplo, a gravidez, não podem
mais ser tidas como decorrências exclusivas das condições
biológicas que as permitem. Revelam-se, todas elas, de alguma
maneira, como construtos moldados socialmente, frutos “do lugar
social que ocupa[m] - como as estruturas do mercado de trabalho,
os arranjos domésticos, os sistemas de responsabilidade civil, as
escolas, as prisões” (BARTLETT, 2012, p.104, tradução nossa).
A vida social passa a ser percebida e passível de ser
qualificada como generizada (HARDING, 1996, p. 17), pois
produzida por meio destes três processos, dinâmicos e
interdependentes entre si, sintetizados por Harding (1996, p.17 e
47-51): o simbolismo de gênero, ou totemismo de gênero, a
estrutura de gênero, ou divisão do trabalho em consonância com o
sexo, e o gênero individual. O simbolismo de gênero é a
consequência da assignação de metáforas dualistas de gênero a
dicotomias que frequentemente não têm qualquer relação com
diferenças de sexo, na associação da racionalidade, da objetividade,
da abstração e da universalidade ao masculino e da irracionalidade,
da subjetividade, da contextualização e da singularidade à condição
feminina. A estrutura de gênero, por sua vez, é o resultado do

357
recurso a esses dualismos para a justificação de uma divisão do
trabalho, das atividades e dos próprios lugares sociais de acordo
com o gênero, como ocorre na associação da jurisdição e da ciência
ao universo masculino e das atividades que exigem o cuidado e o
afeto ao feminino. Por fim, o gênero individual é a construção
social da subjetividade, dos traços da personalidade, das crenças,
dos valores e das condutas correspondentes a homens e a mulheres,
forjando “as identidades e desejos generizados em uma cultura
particular” (HARDING, 1996, p. 50, tradução nossa).
O estudo do gênero como nova categoria analítica foi
capaz, desse modo, de desconstruir a ideia de pessoa como algo
dado e estável e de revelá-la como produto constante, contingente
e múltiplo, sujeito às inflexões dos símbolos e representações
culturais, das instituições e organizações sociais e políticas e das
subjetividades identitárias (SCOTT, 1995, p. 86). A construção ou
a materialização do gênero feminino é, como elucidou Donna
Haraway, distinção que tem um lugar social, histórico e semiótico
(HARAWAY, 1995, p. 35) e que é constantemente marcada por
referências de toda a ordem, não excluindo, entre vários, fatores
religiosos, científicos, jurídicos, familiares, educacionais,
econômicos e políticos. Nesses termos, necessariamente instável e
histórico, a noção de gênero passa a não identificar, ou pelo menos
a questionar, a ideia de um ser a priori, unívoco e substantivo,
considerando como pessoa, ao contrário, um fenômeno dotado de
inconstância e de contextualidade (BUTLER, 2013, p. 29).
Em suma, ao insistir sobre a condição substancialmente
social das diferenças fundadas no sexo, o gênero se torna uma
categoria central para a compreensão da própria sociedade
358
(SCOTT, 1995). Observa-se, assim, uma virada epistemológica
(LOURO, 2002, p. 15), em que se passa de um cenário de produções
de conhecimento que têm por objeto seres definíveis
atemporalmente, para outro que não poderia mais deixar de levar
em conta as construções contextualizadas e os poderes incidentes
sobre as identidades de gênero. Permitem-se, por conseguinte,
novas investigações acerca dos processos de construção e de
conformação sociais e culturais dos homens e das mulheres, com
foco para as maneiras pelas quais os sujeitos se constituem em meio
às relações de poder (LOURO, 2002, p.15).

3. TEORIAS FEMINISTAS DO DIREITO: UMA CRÍTICA Á


NEUTRALIDADE DO SISTEMA JURÍDICO

O reconhecimento do gênero como construção social


permite perceber a condição de sujeição a que estão, de forma
generalizada, submetidas às mulheres em todas as formas de
interação humana na sociedade (política, científica, econômica,
social, familiar, educacional, jurídica, culturaletc). Os estudos
feministas se voltam, justamente, à percepção crítica dessa
realidade. Podem ser considerados, ainda que sua origem seja
difusa e sua história não possa ser traçada de modo linear e
estruturado, como o resultado da tomada de consciência das
mulheres e da busca pela concretização da igualdade de gênero por
meio da libertação dos padrões opressores e discriminatórios a que
se submetem pelo fato de serem mulheres.

359
As teorias feministas do direito identificam-se em um
propósito compartilhado de estudar, de modo crítico, a relação
entre o direito e a posição social subordinada ocupada pelos
sujeitos de direito em razão do sexo/gênero. Lacey (2004)
organizou as diferentes premissas e propostas do pensamento
crítico-filosófico do direito em cinco grupos: o feminismo liberal, o
feminismo marxista ou socialista, o feminismo radical, o
feminismo da diferença ou cultural e o feminismo pós-moderno ou
pós-estruturalista, a partir de cuja divisão se procederá à análise
proposta.
O primeiro grupo de teorias, o das feministas liberais,
insere-se no âmbito do movimento feminista liberal igualitário.
Tem como objetivo o combate da desigualdade entre homens e
mulheres e a busca pela igualdade formal, política e civil. Defende,
para tanto, a expansão às mulheres dos direitos conferidos
historicamente somente aos homens, especialmente os relativos à
liberdade e à igualdade, como o acesso à educação e ao mercado de
trabalho, a igualdade de salários e de direitos no casamento, a plena
capacidade jurídica, o direito ao sufrágio, etc. (TOUPIN, 1998, p.
11). As feministas liberais foram responsáveis por explicitar e
desconstruir o argumento, subjacente à não equiparação às
mulheres dos direitos titularizados pelos homens, de que as
mulheres seriam distintas – leia-se: inferiores – quanto à sua
capacidade racional e que, portanto, o direito deveria cuidar,
paternalmente, de sua proteção, ao invés de igualar direitos.
De fundamental e basilar importância é, portanto, o foco
da crítica ao direito por parte das feministas liberais, que centram a
sua construção teórica e luta política na igualdade de homens e
360
mulheres em suas capacidades e direitos (JARAMILLO, 2000, p.
41). As teorias inseridas nesse grupo variam entre aquelas mais
voltadas ao alcance da igualdade formal, como igualdade perante o
direito, e as que denunciam casos de denegação da igualdade
material, sublinhando a permanência de desigualdade a despeito de
sua afirmação legal (OLSEN, 1990, p.10-11). Todas, porém, unem-
se no propósito de identificação das condições sexistas do direito
manifestadas pela exclusão das mulheres e pela sua manutenção em
uma posição desfavorecida, propondo, como estratégia, a reforma
da ordem jurídica para reversão dessa condição injusta.
As reflexões desenvolvidas pela corrente liberal apontam
também para a crítica aos processos de socialização e de educação,
que, ao rotular as mulheres como seres inferiores, determinam a
desigualdade de gênero. A crítica à ordem jurídica reside, pois, no
indevido acolhimento, pelo direito, dessa diferenciação social
opressiva, demonstrada pela não atribuição às mulheres dos
mesmos direitos facultados aos homens. A diferenciação, ao ser
endossada e produzida pelo direito, garante aos homens a plenitude
de participação na vida pública da sociedade, enquanto mantém as
mulheres cingidas ao papel de mãe e de esposa na esfera doméstica
familiar e subordinadas aos homens na prática dos atos da vida
civil. A norma jurídica, desse modo, torna-se fator da desigualdade
de gênero na medida em que é forjada sob os influxos da opressão
social e, por consequência, não prevê direitos iguais a homens e
mulheres. O direito é reconhecido, pelas feministas liberais, como
um instrumento passível de empoderar todos os sujeitos, homens e
mulheres, estando a sua falha, acidental, não essencial e corrigível,

361
no plano dos destinatários das normas, na medida em que ainda
deixa de acolher as mulheres como sujeitos de todos os direitos e
de inseri-las, equivalentemente aos homens, no exercício pleno da
cidadania.
O pensamento acima explicitado conduz ao
questionamento do senso comum de que o direito é racional,
abstrato e objetivo, identificando a sua irracionalidade,
subjetividade e não universalidade no fato de ele próprio lesionar,
excluir e negar direitos às mulheres (OLSEN, 1990, p.10). Em
outras palavras, ressalta-se no direito o problema da colocação do
sexo como critério legal, em desfavor das mulheres, por meio de leis
discriminatórias que estabelecem diferenças de gênero inexistentes
(WOLLSTONECRAFT, 1972), ao invés de reconhecer a
desigualdade das mulheres na sociedade e de atuar no sentido de
combatê-la. A colocação das mulheres em situação de desvantagem
pelo próprio direito é percebida, por exemplo, ao serem a elas
atribuídas, como no casamento e no divórcio, menores porções de
recursos materiais, ou ao serem julgadas por meio de parâmetros
diferentes e prejudiciais em comparação com os homens, como na
aferição da promiscuidade sexual, e ao não serem reconhecidos, em
relação a elas, determinados danos sofridos (justamente aqueles
que outorgam “vantagens” aos homens), como na não
regulamentação da prostituição ou na impunibilidade do assédio,
ou, ainda, na dupla vitimização da mulher no estupro. Reclama-se
do direito, a partir dessa reflexão, que abandone a dualização
sexuada que associa às mulheres valores inferiorizados
socialmente, e que passe a reconhecê-las como iguais aos homens e
portadoras das capacidades de racionalidade, de objetividade, de
362
abstração e de universalidade, atribuídos injustificadamente
somente a eles.
Contribui, portanto, o pensamento liberal feminista, com
a exigência de que se cumpram, efetivamente, as promessas do
liberalismo, com extensão dos ideais liberais também às mulheres.
Figura o modelo, desse modo, como um apontamento do não
acolhimento por parte do direito das premissas universais do
liberalismo, a pressupor o tratamento igual a todos os seres
humanos em condições de igualdade (LACEY, 2004, p. 7). Destaca-
se, assim, a incongruência do pensamento liberal, que em sua forma
excludente de vários grupos, apresenta-se incompatível com suas
premissas supostamente inclusivas: “a promessa liberal foi
cumprida mais tardiamente para alguns grupos do que para outros,
e para alguns está ainda longe de se tornar uma realidade” (LACEY,
2004, p. 6, tradução nossa). Questiona-se, em suma, a ausência de
abertura efetiva do direito às mulheres, defendendo-se que
usufruam da mesma condição normativa injustificadamente
atribuída apenas aos homens e asseverando-se que sexo/gênero não
devem ser tomados como características suficientemente relevantes
para a diferenciação da proteção jurídica.
Já o marxismo e a contestação à opressão socioeconômica
inspiraram por sua vez a corrente feminista marxista, ou feminismo
igualitário, que discute a relação entre a exploração sexual, a
desigualdade de gênero e a estrutura econômica capitalista fundada
na divisão de classes e na propriedade privada. Analogamente ao
que ocorre com o feminismo liberal, o feminismo marxista
constitui-se na crítica à própria teoria marxista e na sua

363
reformulação a partir da observação do esquecimento da
especificidade da condição das mulheres na sociedade capitalista.
Nota esse conjunto de teorias que a compreensão marxista de que
as divisões sociais são um reflexo condicionado da base econômica
material da sociedade, consistente essa nas formas pelas quais se
produzem os bens necessários à vida humana, é insuficiente para
explicar a circunstância de que todos os homens, ricos ou pobres,
obtêm vantagem da exploração das mulheres (LACEY, 2004, p.11).
Propondo uma mudança na construção elaborada por
Marx, a teoria feminista marxista identifica no direito a reprodução
do patriarcado, concebido esse como “um sistema de pensamento
e uma prática social de afirmação do poder dos homens contra as
mulheres, que se expressa principalmente sobre o corpo delas”
(RABENHORST, 2009, p. 26). O patriarcado, subproduto do
capitalismo, impõe a divisão sexual do trabalho, atribuindo ao
homem a produção social por meio do trabalho assalariado e à
mulher o cuidado doméstico e a garantia do desenvolvimento da
prole. Apresenta-se, assim, como a razão da subordinação das
mulheres aos seus maridos na esfera privada familiar (inserindo-se
a instituição monogâmica do casamento e a família como o local
dessa subordinação) e, conseguintemente, como produtor do
desvalor social feminino (TOUPIN, 1998, p.14).
Inauguram esses estudos uma perspectiva teórica que
aproxima a exploração no processo de produção econômica ao que
ocorre no processo de reprodução sexual. Observa-se que, na
estrutura social baseada na divisão sexual do trabalho, o processo
de reprodução é explorado pelos homens da mesma maneira que o
trabalho produtivo da classe trabalhadora é explorado pelos
364
capitalistas (LACEY, 2004, p.11), apontando-se, assim, que a
subordinação de classe não pode ser analisada com a
desconsideração de outra forma de opressão social que é a
subordinação de caráter sexual. Contribuem as teorias feministas
marxistas, desse modo, para o aprofundamento das reflexões
jurídicas a partir da crítica do poder masculino e da produção da
alienação em relação às mulheres, na medida em que identificam o
papel do direito, produto dessa infraestrutura, como reprodutor da
dominação e da exploração capitalistas.
O foco na igualdade é transferido a um estudo da
diferença com o denominado feminismo radical, que surge do
reconhecimento de que a igualdade jurídica entre homens e
mulheres não alterou substancialmente a realidade da submissão
feminina na sociedade. Buscando retornar à raiz do sistema social
para a compreensão da persistência da subordinação das mulheres
aos homens (TOUPIN, 1998, p. 22), a corrente radical inicia se
contrapondo ao individualismo do feminismo liberal, que
ignoraria, ao focar exclusivamente nos indivíduos, a condição das
mulheres enquanto classe. O feminismo radical identifica
profundas diferenças na vivência dos sujeitos socialmente
construídas de modo a permitir a dominação a partir do sexo [o
feminismo radical frequentemente se concentra na diferença sexual
e não na dimensão de gênero (LACEY, 2004, p. 9). Essas diferenças,
que passariam pela gravidez e pela maternidade, e que chegam à
baixa proporção de mulheres nos espaços de poder e nas profissões
de prestígio social, à remuneração inferior para o exercício das
mesmas funções, à jornada de trabalho mais longa em razão da

365
vinculação aos afazeres domésticos e à feminização da pobreza,
devem ser levadas em conta sob pena de se obter uma igualdade
esvaziada de sentido prático.
À análise crítica do direito, o feminismo radical
acrescenta o aprofundamento da discussão sobre o patriarcado,
deslocando o foco do debate para uma discussão sobre o papel das
normas jurídicas e da ordem estatal como essencial e
deliberadamente opressor e responsável pela perpetuação da
dominação de mulheres. Enquanto para as marxistas, o capitalismo
ocupa um espaço central na explicação da dominação masculina e
o patriarcado um espaço secundário, para as radicais, o que
acontece é exatamente o oposto: o patriarcado passa à posição
central das reflexões (TOUPIN, 1998, p. 23) ou, nos termos
colocados por Catherine MacKinnon: "a sexualidade é para o
feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que é mais
próprio do indivíduo e ao mesmo tempo mais dele retirado”
(MACKINNON, 1989, p. 4, tradução nossa).
As reflexões empreendidas por esses estudos destacam
como as instituições no patriarcado - e junto delas as normas
jurídicas – são moldadas a partir da linguagem, das perspectivas e
dos interesses masculinos (sendo esses centrados na apropriação da
sexualidade e na modelação do desejo femininos). Reforça-se, por
conseguinte, a crítica da insuficiência da afirmação dos direitos das
mulheres para que um ordenamento jurídico seja efetivamente
pautado pela igualdade e chama-se atenção para a atuação do
próprio direito na produção da dominação das mulheres
(MACKINNON, 1989, p. 161-162). Indagam as feministas radicais,
assim, quanto à possibilidade de a igualdade e a liberdade
366
efetivamente empoderadoras das mulheres serem alcançadas com
a assimilação e a homologação (LORETONI, 2006, p. 493) de um
direito feito pelos e para os homens.
O feminismo radical contribui, portanto, para a reflexão
filosófica-jurídica ao assinalar uma faceta intrinsecamente
masculina do direito (SMART, 2000, p. 36-37), investigando seu
comprometimento com a dominação heterossexual das mulheres
(RABENHORST, 2009, p. 30) e com uma necessária distinção, seja
política, seja biológica, de gênero. Questiona essa corrente o
verdadeiro benefício da expansão dos direitos das mulheres
(RABENHORST, 2011, p. 20) - não sem reconhecer conquistas
como o direito à penalização do estupro entre cônjuges e a
regulamentação do assédio sexual - e propõe estratégias diversas,
desde o desenvolvimento de uma cultura feminina alternativa, até
a ruptura direta com o patriarcado (TOUPIN, 1998, p. 23-24).
A perspectiva da diferença levou, ainda, a outra vertente
de pensamento, mais conhecida como feminismo cultural,
marcada pelos estudos, conduzidos entre outras por Carol Gilligan
(1982), das distinções na socialização feminina e masculina, da sua
diversa formação moral e, por consequência, das formas como
homens e mulheres passam a realizar específicos e distintos
julgamentos morais. As autoras sustentam a existência de dois
padrões de raciocínio distintos e reiterados, respectivamente, entre
homens e mulheres. Aquele considerado tipicamente masculino
consistiria na solução de dilemas por meio da verificação abstrata
da relativa posição de um princípio universal em relação a outro e
pela premissa de que todos devem ser tratados como iguais. O

367
padrão feminino se voltaria para a verificação concreta da melhor
forma de se manter a pacificidade das relações sociais, com base na
premissa de que não se deve ferir ninguém (GILLIGAN, 1982,
p.100-105).
Discordando da ideia de que a reforma jurídica é
suficiente ao fim da opressão feminina, essa corrente também
enxerga no direito, ao contrário, uma condição intrinsecamente
masculina. Em primeiro lugar, pela manifesta preponderância de
homens no universo jurídico, o que inclui desde legisladores,
advogados, juízes e promotores, até doutrinadores e professores.
Em segundo lugar, pela adoção, pelo direito, de uma linguagem
exclusivamente masculina, tanto em sua elaboração, quanto em sua
hermenêutica e aplicação, alijando-se a voz das mulheres e, por
conseguinte, ocultando-se valores tidos como socialmente
desejáveis, como a interdependência, a confiança, a ausência de
hierarquia e a colaboração (TONG, 1998, p. 49).
Identifica o feminismo da diferença, desse modo, a
reprodução, pelo direito, dos valores da racionalidade, da
objetividade, da abstração e da universalidade, que seriam
características tidas como propriamente masculinas (SMART,
2000, p.36-37) e elevadas à condição de superioridade em relação
aos valores contrapostos como típicos do feminino (GILLIGAN,
1982). Essa reprodução é observada, por exemplo, nas estruturas
hierarquizadas do direito, centradas no litígio e dependentes de
categorias abstratas, racionais e objetivas, em detrimento de
estruturas horizontalizadas ou em rede, centradas na conciliação e
na mediação e voltadas para soluções que incorporam o valor da
emoção, das particularidades e da contextualidade do caso.
368
Argumenta-se, nesses termos, que o papel de gerar, de amamentar
e de criar filhos é responsável por conferir às mulheres uma
capacidade distintiva de empatia com o outro e com o mundo
natural (GILLIGAN, 1982, p.10), capacidade essa que é, no entanto,
subaproveitada ou injustificadamente desprezada pelas instituições
jurídicas vigentes.
Sustenta essa teoria, por conseguinte, que o direito, ao se
basear em critérios e categorias amoldados à realidade dos homens,
atua não apenas refletindo a dominação existente na sociedade,
mas, também, como parte de um sistema de dominação masculina.
Portanto, muito mais do que as leis, é o poder masculino no direito
que deve ser desafiado e transformado (OLSEN, 1990, p.9 e 14). O
problema identificado pelo feminismo cultural, como se vê, não
está na diferença entre homens e mulheres, mas na construção do
pensamento jurídico sobre as bases do ponto de vista e dos
interesses masculinos (supostamente centrados na compreensão do
sujeito como ser isolado, que teme a intimidade e valora a
violência), deixando-se de usufruir plenamente das contribuições
provenientes das experiências e perspectivas das mulheres
(MORRISON, 2012, p. 594). Em resumo, ao contrário do
prevalecente, defende-se que o modo de raciocínio e de atuação no
mundo masculino não constitui nem a única nem a melhor forma
de se pensar ou de se resolver problemas, mas, simplesmente, a
maneira pela qual os homens, preferencialmente, fazem-no. A
contribuição crítica ao direito pelo feminismo cultural está,
portanto, no questionamento tanto da exclusão explícita das
mulheres pela lei, quanto das presunções implícitas e das exclusões

369
também dessas decorrentes (LACEY, 2004, p. 13), centrando-se o
foco de análise na busca pelo desenvolvimento de direitos especiais
reconhecedores dos pontos de vista e de práticas particulares das
mulheres.
Finalmente, as correntes pós-estruturalistas feministas,
inscritas no contexto de reflexões contestadoras das metateorias e
das grandes narrativas (LACEY, 2004, p. 12), vêm interpelar a
própria questão identitária e as categorias centrais do direito e do
feminismo. Suas reflexões partem de uma compreensão do gênero
como o produto do discurso de poder que, ao invés de empoderar
os sujeitos, oprime-os por meio das próprias noções de masculino
e de feminino. As correntes pós-feministas chamam atenção para a
consciência do pluralismo, da instabilidade e da heterogeneidade
das categorias normativas, criticando, igualmente, a persistência da
opressão no próprio discurso e sujeito feministas ao esconder, por
traz de uma ideia unívoca de mulher, um padrão ocidental, branco,
cisgênero e heterossexual. Judith Butler, por exemplo, adverte que
o gênero não pode ser considerado a despeito de sua intrínseca
inconstância e contextualidade, não indicando jamais um ser
definido, definitivo, substantivo, mas “um ponto relativo de
convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes” (BUTLER, 2013, p. 29). Preocupam-
se essas correntes, desse modo, com a multiplicidade de identidades
e de subjetividades (LACEY, 2004, p.12), que não são nada mais do
que “o resultado de interações sociais que se refletem e se criam na
linguagem” (JARAMILLO, 2000, p. 50, tradução nossa). O sexo,
como propõe Butler, não pode ser tido como algo estático, nem
dado, mas sim como um processo de materialização sempre
370
incompleto e produzido pela reiteração temporal de normas
regulatórias (BUTLER, 2000, p. 111).
Os estudos pós-estruturalistas vêm, assim, confrontar o
essencialismo da categorização de homens e mulheres feita por
meio de valores distintos e duais, sustentando que tal normatização
é a própria origem das formas de opressão. Repudia-se tanto a
vinculação do direito à racionalidade, à objetividade, à abstração e
à universalidade, quanto a prevalência desses valores em face da
irracionalidade, da subjetividade, da concretude e da
particularidade, por se rejeitar, antes de tudo, todas as formas de
dualismo - como coloca Olsen: “o direito é tão irracional, subjetivo,
concreto e particular como racional, objetivo, abstrato e universal”
(OLSEN, 1990, p.14, tradução nossa). O direito seria, portanto,
opressivo para os sujeitos, e especialmente para as mulheres, não
por ser essencialmente masculino ou sexista, mas por funcionar
como um processo produtor de identidades fixas (SMART, 2000,
p. 40) ou, nos termos postos por Butler, como um processo
normativo e reiterado de materialização de subjetividades
(BUTLER, 2000, p.111). O direito tem gênero, nas palavras de
Smart, porque “insiste sobre uma versão específica da diferenciação
de gênero” (SMART, 2000, p. 39, tradução nossa), que o fixa em
padrões rígidos de significados (SMART, 2000, p. 39),
determinando subjetividades e identidades que não são pensadas
senão como atreladas necessariamente a um gênero (SMART, 2000,
p. 40-41). Instiga-se, assim, a investigação da maneira como o
gênero opera dentro do direito e como ele próprio opera para
produzir o gênero (SMART, 2000, p. 40), propondo que, em última

371
análise, a concretização da liberdade depende do desfazimento do
binarismo gerador de gêneros polarizados e redutor das
possibilidades de existência.
O feminismo pós-estruturalista atribui ao sistema
jurídico, em síntese, mais do que uma condição masculina, o papel
de ser um dos principais instrumentos dessa constituição do
sexo/gênero (RABENHORST, 2011, p .20), funcionando como
uma tecnologia a conformar e produzir subjetividades
(LAURETIS, 1994). A heteronormatividade e o binarismo homem
e mulher são críticas especialmente direcionadas ao direito por essa
corrente que, ao desconstruir a neutralidade e a naturalidade das
noções de sexo, de gênero e de sexualidade, passa a questionar o
tratamento jurídico rígido e limitante dado às mulheres, aos
homossexuais, aos transexuais e a todas as várias possibilidades de
existência identitária, de expressão corporal e de vivência do desejo.
Em suma, o feminismo pós-estruturalista, ao desafiar os conceitos
de emancipação, de autonomia, de sujeito e também de mulher,
tenciona o próprio feminismo a subverter as identidades de gênero
tradicionais para que se possa, efetivamente, pensar em um projeto
filosófico-jurídico que garanta a todos seres humanos livres
possibilidades de existência (EICHNER, 2001, p. 4 e 30).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As críticas feministas do direito, independentemente da


vertente teórica adotada, permitem desvelar a necessidade de um
questionamento das diversas maneiras por meio das quais o
pensamento jurídico produz, reforça ou oprimeas identidades
372
subjetivas. Esse potencial de transformação trazido pelas teorias
feministas passa pelo direito e o transcende, atuando tanto na busca
por caminhos para aprofundar os direitos humanos das mulheres,
quanto, em sentido diametralmente oposto, na busca de estratégias
para a superação do próprio direito no que concerne à regulação
das identidades de gênero. De um jeito ou de outro, os estudos
feministas destacam-se por apontar nitidamente a fragilidade da
noção de neutralidade trazida ao direito pelo projeto científico e
filosófico da modernidade (LORETONI, 2006, p.492),
demonstrando o ocultamento, por trás dessa ideia, de falsas
igualdades e de diferenças opressoras, do sexismo das normas e das
instituições e da insuficiência de suas categorias centrais, o que
coloca em cheque as próprias premissas do discurso e do sistema
jurídicos.
As reflexões em relação ao direito trazidas pelas
feministas conduzem, entre outros caminhos, ao ato de desafiar o
pensamento, a conformação e a aplicação jurídicas em sua
exteriorizada face racional, objetiva, abstrata e universal (OLSEN,
1990, p. 3-4). Permitem, desse modo, a partir da compreensão da
opressão de gênero e da busca por estratégias para o enfrentamento
do sistema de desigualdade dominante, à formulação de
proposições voltadas a uma normatização mais compatível com a
vivência da liberdade e da igualdade pelos sujeitos de direito. Esses
aportes trazem a identificação e a discussão do desfavorecimento
dos sujeitos não dominantes no processo de elaboração e de
aplicação das normas jurídicas, em decorrência da persistência de

373
uma ideologia patriarcal conformadora de instituições e de
indivíduos (JARAMILLO, 2000, p. 52).
Preocupa-se com a afirmação, expressa ou implícita, de
uma neutralidade da natureza humana que encobre, como
asseverado por Lacey (2004), as diferenças socialmente construídas
entre sexos e gêneros. A percepção desse silenciamento em relação
à diversidade e à desigualdade faz surgir, por consequência, em
relação ao direito, “questionamentos quanto à pertinência dos
direitos universais e quanto à aptidão do sistema jurídico de fazer
justiça para sujeitos posicionados de formas distintas na sociedade”
(LACEY, 2004, p. 8). Por outro lado, chama-se a atenção, também,
para um disseminado sistema de dualismos atrelado ao sistema
sexo/gênero que opõe e contrasta elementos como a razão à
emoção, o ativo ao passivo, o pensamento ao sentimento, a cultura
à natureza, o objetivo ao subjetivo, o abstrato ao concreto e o
universal ao particular (OLSEN, 1990, p.3). Essas divisões
valorativas binárias guardam uma importante diferenciação de
poder entre homens e mulheres, apresentando-se o sistema social
de modo fortemente hierarquizado e sexualizado: “o homem sendo
lembrado e representado pelos primeiros elementos de cada par e a
mulher pelos segundos, estes rigidamente menos valorizados que
aqueles” (LACEY, 2004, p.10).
É, de fato, corrente a atribuição e a vinculação de uma
suposta natureza feminina, de forma tanto descritiva quanto
normativa, a uma série de elementos tidos como inferiores – a
emoção, a passividade, o sentimento, a natureza, o subjetivo, o
concreto, o particular. Em contraste, associam-se à natureza
masculina os elementos contrapostos, que além de considerados
374
hierarquicamente superiores, são tidos como mais adequados à
vida pública (e, consequentemente, à política e ao direito).
No âmbito do direito, é importante considerar como,
historicamente, a imagem das mulheres é representada em
associação a um parco senso de justiça ou, simplesmente, vinculada
à inaptidão para o exercício da prudência. Em contraponto, vale
observar como a construção simbólica da identidade do juiz e do
profissionalismo na magistratura, supostamente calcados em uma
ideia de neutralidade, está consistentemente atrelada à ideia de
homem ou a caracteres tidos como masculinos.
Os questionamentos aqui suscitados, ao servirem à crítica
quanto ao caráter neutro do sistema jurídico, suscitam
investigações quanto à forma como esse sistema, mesmo quando
fundado em ideais de igualdade e de liberdade de todos os sujeitos,
deixa de responder à realidade e às demandas das mulheres
(DAHL, 1993, p. 5). Identifica-se no direito o caráter ilusório de sua
aparência de universalidade e de imparcialidade, a revestir, como
apontado por Anna Loretoni, “categorias teóricas que, na realidade,
implicam a adesão a um modelo político-ideológico” (LORETONI,
2006, p. 492).
Inaugura-se, assim, a necessidade de construção de novas
concepções, relações e aproximações entre as ideias de igualdade e
de diferença, problematizando-se o distanciamento do direito da
esfera privada e das implicações existentes entre essa e a esfera
pública e censurando-se a forma discriminatória de atuação do
direito em face dos corpos, das identidades e dos modos de
existência. Os estudos feministas aprofundam o reconhecimento de

375
que os discursos jurídicos de igualdade e de liberdade carecem de
eficácia social, na medida em que as atuações e os silêncios
produtores e reprodutores da opressão feminina podem ser
encontrados em todos os âmbitos da atividade jurídica (legislação,
hermenêutica e aplicação). Desconstrói-se, desse modo, o discurso
de neutralidade quanto às questões de gênero, hábil a ocultar uma
atuação voltada à conservação da hegemonia tradicional da
sociedade (DAHL, 1993, p.18).
A reflexão promovida pela teoria feminista do direito
parte, então, dessas premissas acima alinhavadas, que podem ser
reunidas, como dispôs Claudia de Lima Costa, na assunção da
“necessidade de construção de articulações entre as diversificadas
posições de sujeito” (COSTA, 2002, p. 61). Conduz, assim, ao
desvelamento da falsa univocidade e abstração das noções de
pessoa e de sujeito de direito e ao destaque da impossibilidade de o
direito se ver distanciado da política, da moral e do resto das
atividades humanas, abrindo espaço para se pensar sobre as
questões de forma mais propositiva e criativa (OLSEN, 1990, p.19).
Mais além, permite sublinhar a existência de um confronto, ainda
em disputa no Estado Democrático de Direito brasileiro, entre o
ideário individualista da modernidade e os processos identitários
de grupo, reafirmando a necessidade de se pensar diferenças no
espaço público, especialmente no espaço jurídico, para sujeitos que
apresentam uma específica identidade coletiva (LORETONI, 2006,
p. 489-490).
A investigação crítica feminista do direito ora proposta,
ao duvidar da “estabilidade abstrata das categorias jurídicas”
(RABENHORST, 2009, p.23), permite apontar que a ideia de
376
neutralidade, assumida como fator de isonomia e de objetividade
pelo Estado de Direito, possui também outra face, a do reforço às
desigualdades sociais estruturais antecedentes ao direito e inerentes
à sua própria jurisprudência (MORRISON, 2012, p. 585). O direito
não pode ser avesso às questões de sexo/gênero (RABENHORST,
2011, p. 19), sob pena de se opor à própria sociedade, já que ao se
fazer passar por neutro nesse campo, funciona, ao contrário, como
fator de aniquilamento, de silenciamento ou de invisibilização de
diferenças concretamente vividas na realidade. Todas essas
constatações encontram-se fartamente demonstradas em diversos
momentos da vivência jurídica brasileira, seja em leis
discriminatórias, seja em interpretações e construções doutrinárias
fundadas em estereótipos (RABENHORST, 2009, p. 31), seja,
finalmente, em decisões judiciais que silenciam ou mitigam as
perspectivas e experiências das mulheres 2.
Conclui-se, desse modo, que após a luta e a afirmação
jurídicas dos direitos de liberdade e de igualdade entre homens e
mulheres (conquista não exaurida, porém, nem no plano das
normas, nem no da efetividade do direito brasileiro), a crítica ao
direito deve ser aprofundada com a investigação da própria
concepção e formação dos sujeitos de direito a partir do gênero.
Necessário reconhecer que, ainda que homens e mulheres possam,
universalmente, reclamar o amparo da lei diante de uma violação,

2
Vide nesse sentido pesquisa em que analisei decisões recentes dos tribunais
brasileiros envolvendo direitos das mulheres, que mostrou como elas ainda são
reconhecidas e construídas como sujeitos de direito subvalorizados (SANTOS,
2014).
377
essa reivindicação se faz diante de algo já construído e estabelecido
segundo uma perspectiva prevalecente – e sutilmente apagada pelo
esforço de neutralização – que é androcêntrica.
Impõe-se, por conseguinte, a partir do reconhecimento
do sistema sexo/gênero e do seu impacto na subjetividade e na
vivência social, a reflexão sobre o concreto significado, para as
mulheres protegidas por esse direito, da igualdade, da diferença e
da liberdade.
Em síntese, para o debate de uma construção mais
efetivamente emancipatória e libertária do direito brasileiro, a
partir das contribuições trazidas pelas teorias críticas feministas, é
ponto de partida reconhecer que, historicamente, a elaboração, a
hermenêutica e a aplicação jurídicas apoiam-se em um falso
discurso de neutralidade de gênero (LORETONI, 2006, p. 492).
Esse discurso é sustentado por uma aparente igualdade legal,
fundada, no Brasil, na premissa de que a Constituição da República
de 1988 apenas admite distinções normativas entre homens e
mulheres que visem a atenuar as desigualdades sociais –
especialmente as relativas às discriminações no mercado de
trabalho e no âmbito familiar –, sabidamente constituídas
historicamente em desfavor da mulher. O aprofundamento da
análise das desigualdades de gênero, porém, permite chamar a
atenção justamente para a permanência de discriminações
ostensivas e indiretas no direito, incitando à investigação
minuciosa da “existência de arranjos que, embora aparentemente
neutros, servem, na verdade, para excluir ou colocar em
desvantagem um desproporcional número de mulheres” (LACEY,
2004, p.15).
378
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383
DIREITOS HUMANOS, DIREITO AMBIENTAL E
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

HUMAN RIGHTS, ENVIRONMENTAL LAW AND


JURISDICTION OF FEDERAL JUSTICE

Guilherme Calmon Nogueira da Gama1

RESUMO: O trabalho objetiva abordar o sistema brasileiro de


proteção dos direitos humanos, inclusive no segmento do Direito
Ambiental, a partir de uma perspectiva da competência da Justiça
Federal no julgamento das causas relacionadas à tal temática.
Proceder-se-á a análise de regras constitucionais na divisão de
competência relacionada à atuação da Justiça Federal para, em
seguida, fazer a verificação de alguns julgados brasileiros a respeito
do tema.
PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição constitucional e divisão de
competência; Julgados brasileiros; Sistema de justiça e efetividade.

ABSTRACT: The core of this work is to approach the Brazilian


system of protection of human rights, including in the
Environmental Law segment, from a perspective of the competence
of the Federal Justice in the judgment of the causes related to this
subject. The analysis of constitutional rules will be carried out in
the division of jurisdiction related to the Federal Justice's action,

1
Professor Titular de Direito Civil da UERJ, Professor Permanente do PPGD da
UNESA/RJ e Professor Titular de Direito Civil do IBMEC/RJ. Mestre e Doutor
em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Desembargador
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF 2). Ex Conselheiro do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ).
384
and then the verification of some Brazilian legal decisions about the
subject.

KEYWORDS: Constitutional Jurisdiction and Division of


Competence; Brazilian legal decisions; System of justice and
effectiveness.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Tribunais Regionais Federais.
3. Justiça Federal de Primeira Entrância.
4. Direito concreto.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, no


Brasil, vem crescendo a atuação da Justiça Federal como ramo do
Poder Judiciário brasileiro na temática relacionada à proteção e
promoção dos direitos humanos e do meio ambiente. A mera
declaração da existência dos direitos humanos em documentos
jurídicos internacionais – via tratados e convenções internacionais
– representa apenas uma parcela do sistema jurídico de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, pois se faz necessário buscar
concretamente a efetividade das normas jurídicas que tratam dos
direitos humanos. Devido a tal circunstância revela-se importante
cuidar, no âmbito do Direito brasileiro, da competência da Justiça
Federal e sua relevância em tema de direitos humanos.

385
A história da Justiça Federal no Brasil se divide em duas
fases na República. A primeira se iniciou com o Decreto 848/1890,
mantendo-se com a Constituição de 1891, até ser concluída com a
promulgação da Constituição de 1937. A segunda fase se iniciou
com o advento da Constituição de 1946 (artigo 103), com a previsão
do Tribunal Federal de Recursos (TFR) como órgão recursal para
as causas em que houvesse interesse da União, além de ter
competência originária para as ações rescisórias de seus acórdãos e
os mandados de segurança quando a autoridade coatora fosse
Ministro de Estado, o próprio Tribunal ou o seu Presidente (artigo
104).
Na primeira fase a estrutura da Justiça Federal era bem
simples: o Supremo Tribunal Federal e Juízes inferiores
denominados Juízes de Secção, inspirada na experiência
estadunidense (MENDES, 2009, p. 25). A despeito da previsão na
Constituição de 1891 (artigo 55) quanto à possibilidade de o
legislador criar tribunais e juízes federais, não houve concretização
de tal regra. Em 1937 houve a extinção da Justiça Federal no Brasil.
O Tribunal Federal de Recursos foi criado pela Constituição de
1946 para o fim de reduzir a competência do Supremo Tribunal
Federal, sendo que o texto constitucional da época ainda previu a
criação de outros tribunais federais de recursos, o que não veio a
ocorrer. A Constituição de 1967 também previu a criação de outros
tribunais federais de recursos (artigo 116, § 1°), inclusive
estabelecendo suas futuras sedes em São Paulo e Recife.
Devido ao Ato Institucional 02/1965 e ao advento da Lei
n. 5.010/1966, a Justiça Federal de primeira instância ressurgiu e,
assim, recebeu os acervos dos feitos que até então vinham
386
tramitando nas Justiças Estaduais, em especial os das “Varas
Privativas da Fazenda Nacional”.
A organização da Justiça Federal na década de 80 foi
originada do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos (BULOS,
2015, p. 1367). A Constituição Federal de 1988 inovou ao criar
cinco Tribunais Regionais Federais (artigo 27, § 6°, ADCT), com
jurisdição e sede estabelecidas na Lei n. 7.727/1989, e manteve a
previsão quanto aos Juízes Federais de primeiro grau. O artigo 106,
CF, não contempla, contudo, os Juizados Especiais Federais quanto
à sua estrutura da Turma Nacional de Uniformização de
Jurisprudência, das Turmas Regionais de Uniformização de
Jurisprudência e das Turmas Recursais, devido à alteração referente
ao artigo 98, I, CF, com a posterior edição da Lei n. 10.259/2001.
Em 2013 houve a edição da EC 73 que previu a criação dos
Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões. Contudo,
em razão de liminar concedida na Medida Cautelar na Ação Direta
de Inconstitucionalidade 5.017/DF, houve a suspensão dos efeitos
da EC 73/2013.
A Justiça Federal brasileira, relativamente à estrutura dos
seus órgãos, é dividida em 5 (cinco) regiões no território nacional
de acordo com a previsão contida na Resolução 1/1988, do extinto
Tribunal Federal de Recursos. Assim, o TRF da 1ª Região, com sede
em Brasília, tem jurisdição sobre o Distrito Federal e os Estados do
Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso,
Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins. Por sua
vez, o TRF da 2ª Região, sediado no Rio de Janeiro, exerce
jurisdição sobre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo,

387
enquanto o TRF da 3ª Região, localizado em São Paulo, tem
jurisdição sobre os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Ainda, o TRF da 4ª Região, cuja sede é em Porto Alegre, exerce
jurisdição sobre os Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa
Catarina. Finalmente, o TRF da 5ª Região, sediado em Recife, tem
jurisdição sobre os Estados de Pernambuco, Alagoas, Ceará,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe. A Lei n. 7.727/1989 dispôs
sobre a composição inicial dos Tribunais Regionais Federais,
criando os cargos de “juízes” dos TRF’s e os respectivos quadros de
pessoal.
No ano de 2013 houve a aprovação da EC 73 que criou
mais quatro TRF’s com sedes em Curitiba, Belo Horizonte,
Salvador e Manaus, sendo que à época houve a previsão na referida
Emenda Constitucional do prazo de seis meses para a instalação
dos novos Tribunais Regionais Federais. Contudo, devido à liminar
concedida pelo Presidente do STF, houve suspensão dos efeitos da
referida EC 73, tendo sido invocados os argumentos do vício de
iniciativa da EC e do enfraquecimento da independência do Poder
Judiciário como relevantes e plausíveis para o reconhecimento do
fumus boni iuris. Considerou-se, em análise provisória, que toda
alteração que possa criar encargos para o Poder Judiciário ou que
afete sua estrutura deve ter por iniciativa o órgão jurisdicional
competente, segundo a própria Constituição.
Quanto à Justiça Federal de primeira instância, a Justiça
Federal foi dividida em seções judiciárias correspondentes às
unidades da Federação - Distrito Federal e Estados membros. Há
quem critique tal divisão eis que pode gerar prejuízos ao
jurisdicionado, pois há casos nos quais, apesar de existir vara
388
federal mais próxima ao domicílio do autor situado em Estado
vizinho ao seu, o autor precisa se dirigir à vara federal de seu
próprio Estado, apesar de a Justiça Federal ser uma Justiça da União
(CAVALCANTI, 2009, p. 1458).
A Justiça Federal, nos últimos trinta anos, se consolidou
no cenário do sistema de justiça do país, não apenas em razão da
abrangência de sua competência, mas principalmente devido às
várias decisões que vêm repercutindo em termos de políticas
públicas em determinadas ações coletivas, além dos julgamentos
realizados na jurisdição penal envolvendo crimes contra a
Administração Pública federal, contra o sistema financeiro
nacional, contra a ordem tributária, de lavagem de ativos. Assim,
por exemplo, tornou-se emblemática a decisão da Justiça Federal
no Rio Grande do Sul a respeito da ordem dirigida ao INSS de, na
concessão de benefícios previdenciários, não distinguir as famílias
homoafetivas das heteroafetivas, bem antes do julgamento do STF
ocorrido em 2011. Também são paradigmáticas várias sentenças e
alguns acórdãos da Justiça Federal brasileira em casos conhecidos
como Operações desenvolvidas pela Polícia Federal, como no
exemplo mais recente da Operação “Lava Jato”.

2. TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS

A Justiça Federal em segunda instância, a partir da


Constituição Federal de 1988, passou a ser composta pelos
Tribunais Regionais Federais que, desse modo, substituíram o
extinto Tribunal Federal de Recursos. Houve a regionalização da

389
competência recursal da Justiça Federal, além de se tratar das ações
impugnativas contra atos praticados pelos próprios tribunais ou
pelos juízes a eles vinculados funcionalmente – sejam os juízes
federais, sejam os juízes estaduais no exercício da competência
federal delegada. O termo “desembargadores federais” decorre de
processo de mutação constitucional ocorrida em razão do passar
dos anos desde o advento da CF/88.
A composição dos Tribunais Regionais Federais foi o
objeto de atenção do artigo 107, da Constituição Federal, com o
mínimo de sete desembargadores federais, escolhidos
preferencialmente entre os profissionais da respectiva região, com
mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos de idade, observado
a reserva do quinto constitucional destinado aos membros da
advocacia e do Ministério Público Federal (artigo 108, II). Quanto
à promoção aos juízes federais ao TRF, manteve-se os critérios da
alternância dos critérios de antiguidade e de merecimento, desde
que tenha mais de cinco anos de exercício.
A Lei n. 7.727/1989 estabeleceu que os TRFs das 1ª e 3ª
Regiões teriam 18 desembargadores, ao passo que os TRFs das 2ª e
4ª Regiões, 14 desembargadores, e o da 5ª Região, 10
desembargadores. Posteriormente houve aumento da composição
dos TRFs que, assim, atualmente observa o seguinte quantitativo:
a) TRFs das 1ª, 2ª e 4ª Regiões – 27 desembargadores; b) TRF da 3ª
Região – 43 desembargadores; c) TRF da 5ª Região – 15
desembargadores. O TRF da 1ª Região é, sem sombra de dúvida,
atualmente o mais congestionado, inclusive em razão da
abrangência de sua jurisdição, o que motivou a aprovação da EC
73/2013 com a criação de mais quatro Tribunais Regionais. Há
390
quem defenda a criação de um Tribunal Superior Federal para se
proceder à uniformização da interpretação da lei federal no que se
refere às questões da competência da Justiça Federal, em especial
no âmbito do Direito Tributário e do Direito Administrativo
(CAVALCANTI, 2009, p. 1443).
A previsão quanto à eventual recrutamento de juízes fora
da região do respectivo TRF, atualmente, é de difícil aplicação
prática, mas se justificou quando da elaboração da Constituição
Federal de 1988, pois naquela época era bastante limitado o quadro
de juízes federais. Na composição original dos Tribunais Regionais
Federais houve investidura de juízes federais de seções judiciárias
pertencentes a outro Tribunal Regional, como nos exemplos dos
TRFs das 2ª e 5ª Regiões exatamente em razão da previsão contida
no artigo 107, CF.
A questão da faixa etária – entre 30 e 65 anos de idade –
para provimento dos cargos de desembargador federal foi objeto de
controvérsia no que tange à hipótese de promoção de juiz federal.
O STF acabou se orientando no sentido da desnecessidade de se
observar o limite máximo quando se tratava de hipótese de
promoção de juiz federal, diversamente do que se verifica em
relação às vagas do quinto constitucional. A esse respeito, também
houve questionamento sobre, se no caso de promoção por
merecimento ao cargo de desembargador, o juiz federal deveria
integrar a primeira quinta parte da lista de antiguidade de juízes
federais. Também sobre este tema o STF se orientou quanto à
inaplicabilidade da regra do artigo 93, II, b, CF/88. O STF também
concluiu ser legítima a prática de se formar listas quádruplas, nos

391
casos da existência simultânea de duas vagas para serem providas
pelo critério de merecimento.
A respeito do quinto constitucional dos TRFs, devem ser
formadas listas sêxtuplas nos órgãos de classe (OAB e MPF), nos
termos do artigo 94, CF, de modo a que o respectivo Tribunal
Regional Federal consiga constituir a lista tríplice para fins de
encaminhamento ao Presidente da República. No caso da vaga do
quinto constitucional não se aplica a regra da investidura
obrigatória em havendo repetição em três listas consecutivas ou
cinco alternadas, pois tal regra constitucional somente é dirigida
para os casos de promoção na carreira da magistratura. A forma do
cálculo do quinto constitucional, quando não houver número
divisível por cinco, deve considerar o arredondamento para cima
em favor do preenchimento da vaga pelo quinto constitucional.
A regra do artigo 107, § 1°, CF, ao tratar das remoções e
permutas dos juízes e desembargadores, remete à disciplina legal
que, no entanto, ainda não ocorreu. O Conselho da Justiça Federal
editou regulamentação a respeito, prevendo que ambos os
Tribunais Regionais devem autorizar a remoção ou a permuta,
sendo que o magistrado transferido de região passará para o final
da lista de antiguidade da sua classe – desembargador, juiz federal
titular ou juiz federal substituto.
A possibilidade de descentralização das turmas do
Tribunal Regional Federal (artigo 107, § 3°, CF) foi introduzida pela
EC 45/2004, e veio no movimento de acesso à justiça também no
âmbito da justiça federal de 2ª instância. Levando-se em conta que
a Justiça Federal tem apenas cinco tribunais regionais federais
localizados em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e
392
Recife, a previsão quanto à implantação de turmas (ou câmaras)
regionais permite que haja maior proximidade dos advogados e, em
especial do próprio jurisdicionado, no julgamento de suas
demandas também pelos órgãos de segundo grau da Justiça
Federal. Daí a experiência realizada no Município de Florianópolis
por iniciativa do TRF da 4ª Região ser emblemática quanto à
efetividade da norma constitucional (CONSULTOR JURÍDICO,
“Justiça Federal em SC inaugura sua primeira turma
descentralizada”, 4-8-2017).

3. JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

A Justiça Federal de primeira instância tem competência


em matéria cível e também competência em matéria criminal. A
competência dos juízes federais abrange um número
razoavelmente amplo de hipóteses em razão da pessoa, da matéria
e da função, como bem ressaltam os doutrinadores (MENDES,
2009, p. 31; CARVALHO, 2007, p. 25; PERRINI, 2011, p. 17;
BOCHENEK, 2004, p. 95; OLIVEIRA, 2002, p. 32-33).
A Justiça Federal vem se consolidando desde a sua criação
– mais especialmente nestes trinta anos desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988 – como uma ferramenta
indispensável ao cidadão para fins de realização da justiça, não
apenas na competência cível, mas também na competência
criminal. Algumas mudanças se fizeram sentir de modo claro no
exercício das competências dos juízes federais com a massificação
e a coletivização das demandas, com a interiorização das varas e

393
juízos federais, com a criação e o desenvolvimento dos juizados
especiais federais, com a instauração e desfecho de demandas
relacionadas aos direitos humanos, com a informatização dos
autos, além da maior visibilidade para a sociedade e para a mídia
quanto aos casos iniciados e julgados na competência criminal,
sendo possível citar as ações penais relacionadas à denominada
“Operação Lava Jato”, que já conduziu vários políticos e
empresários à prisão – provisória e, em alguns casos, definitiva -,
com o emprego de certos instrumentos como a colaboração
premiada, redução de penas.
Relativamente à competência em matéria cível dos juízes
federais, há as hipóteses de sua determinação em razão da pessoa
(artigo 109, I, II e VIII) e em razão da matéria (artigo 109, III e XI),
tendo inovado na competência para a disputa sobre direitos
indígenas. Com o advento da EC 45/2004, foi acrescentada nova
hipótese de competência dos juízes federais de primeira instância
nos casos de grave violação de direitos humanos (artigo 109, V-A),
introduzindo o incidente de deslocamento de competência para a
Justiça Federal (artigo 109, § 5°). Apesar de a novidade, em termos
práticos, envolver provavelmente casos relacionados à competência
criminal, a regra constitucional, em tese, também abrange as causas
cíveis relativas a direitos humanos nos casos de deslocamento da
competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal. A regra é a
competência da Justiça Estadual para as causas relativas a direitos
humanos, mas em caso de grave violação de direitos humanos e
para o fim de assegurar o cumprimento das obrigações assumidas
pela República brasileira no cenário internacional, o Procurador
Geral da República pode requerer, junto ao STJ, o deslocamento da
394
causa para a Justiça Federal em qualquer fase do caso (inquérito,
procedimento preparatório, ação já proposta).
O rol dos casos de competência dos Juízes Federais é
taxativo – elenco numerus clausus -, não sendo possível que norma
infraconstitucional amplie as hipóteses, sem prejuízo, obviamente
da legislação infraconstitucional passar a ampliar, por exemplo, os
tipos considerados crimes contra o sistema financeiro ou contra a
ordem econômico-financeira. A competência em razão da matéria,
da pessoa ou da função, como se sabe, é inderrogável – já que
absoluta – e, por isso, não se mostra possível a atração de causa da
competência da Justiça Federal para outro ramo do Poder
Judiciário brasileiro, ainda que sob o fundamento da continência
ou conexão.
Relativamente à competência cível em razão da pessoa –
critério ratione personae -, cabe à Justiça Federal aferir a existência
de interesse e de legitimidade da pessoa jurídica (União, suas
autarquias, fundações ou empresas públicas), conforme orientação
consolidada na Súmula 150, do STJ. Somente estão excepcionadas
da competência cível federal em razão da pessoa as causas de
falência (Lei n. 11.101/2005, acidentes de trabalho (Lei n.
8.213/1991, artigos 19 a 21) e aquelas sujeitas à Justiça Eleitoral e à
Justiça do Trabalho. A competência referente à Justiça do Trabalho
nas causas envolvendo uma pessoa jurídica do artigo 109, I, CF, não
era prevista na Constituição revogada, tanto assim o é que havia
empregados públicos da União, suas autarquias e fundações
(ADCT, artigo 17, § 10). A EC 45/2004 transferiu para a Justiça do
Trabalho a competência para os mandados de segurança, habeas

395
corpus e habeas data quando o ato impugnado se relacionar à
matéria de sua jurisdição, para as ações de reparação de dano moral
e/ou patrimonial decorrente das relações de trabalho, e para as
ações referentes à aplicação de penalidades administrativas
impostas aos empregadores pela fiscalização das relações de
trabalho.
As ações referentes aos conselhos de fiscalização
profissional se inserem na competência dos juízes federais em razão
da sua condição de autarquias sui generis federais, daí haver sido
editada a Súmula 66, do STJ. A Caixa de Assistência dos
Advogados, por integrar a estrutura da OAB, também atrai a
competência dos juízes federais. As Agências Reguladoras – ANP,
ANS, ANEEL, ANATEL, entre outras -, por serem classificadas
como autarquias federais, também atraem a competência dos juízes
federais. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI),
por força da Lei n. 5.648/1970, tem a atribuição de promover a
execução das normas de propriedade industrial, em especial o
registro de marcas, a concessão de patentes, a averbação de
contratos de transferência de tecnologia (know how), entre outras
medidas e, por isso deve integrar os feitos referentes às ações de
nulidade de patente e registro de marcas, razão pela qual atrai a
competência dos juízes federais.
Há fundado questionamento sobre a competência para as
causas nas quais há a presença do Ministério Público Federal,
devendo prevalecer a orientação segundo a qual o MPF integra a
União Federal e, por isso, será de competência dos juízes federais
as causas ajuizadas pelo Procurador da República desde que,
obviamente, se identifique interesse federal na questão litigiosa a
396
ser resolvida. Os juízes federais não são competentes para as ações
nas quais sociedades de economia mista federais sejam partes ou
mesmo terceiras interessadas. A condição de sujeito processual –
autor, réu, assistente ou opoente – das pessoas jurídicas elencadas
no artigo 109, I, CF, abrange qualquer caso de intervenção de
terceiro, a despeito da literalidade da regra constitucional
(MENDES, 2009, p. 103).
As causas entre Estado estrangeiro (ou organismo
internaciona) e Município ou pessoa domiciliada ou residente no
País (artigo 109, II, CF) encerra peculiaridade quanto à
competência recursal, pois neste caso será o STJ o competente para
julgar recurso ordinário contra sentença do juiz federal (artigo 105,
II, c, CF).
A competência dos juízes federais para conhecer e julgar
mandado de segurança e habeas data é determinada em razão da
pessoa, levando em conta ficar configurado que o ato foi de
autoridade federal e que a causa não é de competência de algum
tribunal (TRF, STJ ou STF). Os atos praticados por gestores das
pessoas da Administração Pública indireta federal – como
sociedades de economia mista e empresas públicas – só são
considerados atos de autoridade quando houver delegação de
função, como também ocorre nos casos de delegação para pessoa
jurídica estadual, municipal, privada ou, mesmo de pessoa física,
como nos exemplos dos diretores de escolas particulares ou mesmo
reitores de universidades privadas.
As causas de competência cível dos juízes federais em
razão da matéria são em número bem mais reduzido, sendo que

397
algumas hipóteses se relacionam ao Direito Internacional devido à
República Federativa do Brasil ter assumido o compromisso
internacional de fazer cumprir as normas dos tratados e
convenções internacionais, e outras hipóteses se vinculam às
pressões de organismos de direitos humanos, como é o exemplo das
causas que envolvam disputas sobre direitos indígenas, além das
causas referentes à nacionalidade e à naturalização. Quanto ao
inciso III, do artigo 109, CF, tem-se considerado ser competente o
juiz federal para as causas decorrentes dos denominados “tratados-
contratos” nos quais o Brasil se compromete a cooperar no plano
internacional através de alguns mecanismos, com por exemplo a
cooperação desenvolvida entre as autoridades centrais e os juízes
de ligação, como ocorre na Convenção da Haia sobre aspectos civis
do Sequestro Internacional de Crianças ou na Convenção da ONU
sobre prestação de Alimentos no estrangeiro (e mais recentemente
sobre a Convenção sobre a Cobrança Internacional de Alimentos
para Crianças e outros membros da Família e o Protocolo sobre a
lei aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos).
A competência dos juízes federais para as causas que
envolvam disputas sobre direitos indígenas (artigo 109, XI, CF) não
se restringe à esfera coletiva e ao âmbito cível, abrangendo também
a matéria de competência criminal quando o índio for vítima em
razão da sua condição indígena. As causas referentes à
nacionalidade e à naturalização também são de competência dos
juízes federais em razão da matéria, sendo que a Lei n. 818/1949
regulou a aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade.
O cumprimento de carta rogatória, após a concessão do
exequatur pelo STJ, e a execução de sentença estrangeira, após sua
398
homologação pelo STJ, também são de competência dos juízes
federais (artigo 109, X, CF) em razão da função – competência
funcional no sentido vertical. É apenas relevante a ressalva de que
as cartas rogatórias não são hábeis para realização de atos de
constrição de bens ou de prisão de pessoas, devido à soberania dos
Países e, por isso, para tais atos deverá haver a homologação de
sentença estrangeira que, por sua vez, não pode ser ofensiva à
soberania nacional e à ordem pública.
Relativamente à competência referente à jurisdição penal,
os juízes federais são competentes para conhecer e julgar as ações
relativas aos crimes previstos em tratados ou convenções
internacionais cuja execução tenha ocorrido no território
brasileiro, sendo que uma das fases se relaciona a outro território,
tais como ocorre no tráfico internacional de entorpecentes e no
tráfico internacional de pessoas (especialmente mulheres e
crianças), além dos casos de divulgação de imagens pornográficas
na rede mundial de computadores, hipóteses nas quais o agente
hospeda sítio eletrônico em outro País, veiculando fotos ou cenas
de sexo explícito envolvendo criança e adolescente (OLIVEIRA,
2002, p. 87-88). Também são competentes os juízes federais para os
crimes relacionados aos bens e interesses da União, suas autarquias,
fundações e empresas públicas (artigo 109, IV, CF) e a
determinados bens jurídicos fundamentais para a higidez da
economia e da proteção a determinados direitos humanos, tais
como ocorre nos crimes contra o sistema financeiro, a ordem
econômica e a organização do trabalho.

399
Além dessas, também há competência dos juízes federais
para o julgamento dos crimes políticos – contra a segurança
nacional (fruto de tradição no Direito brasileiro) –, dos crimes
perpetrados a bordo de navios ou aeronaves (nacionais ou
estrangeiras), com exceção das infrações de competência da Justiça
Militar, e dos crimes de ingresso ou permanência irregular de
estrangeiro em território nacional (devido à política de imigração,
ou seja atingem interesses e serviços tutelados pela União). Os
crimes políticos são os que lesam ou expõem a perigo de lesão a
integridade territorial do País e a soberania nacional, o regime
representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, a
pessoa dos Chefes dos Poderes da União (PERRINI, 2011, p. 176).
Os §§ 1° e 2°, do artigo 109, CF, cuidam da competência
territorial dos juízes federais nas ações nas quais a União for autora
ou ré, considerando a atuação da Advocacia Geral da União – órgão
de representação processual – em todo o território nacional. Desse
modo, se a União for autora da ação, a demanda deverá ser ajuizada
no foro de domicílio da parte ré, ao passo que se a União for ré o
autor poderá optar em ajuizar a demanda no foro do seu domicílio,
no foro do ato ou do fato litigioso, no foro da localização do bem
ou no Distrito Federal. Tais regras objetivam dar efetividade ao
princípio da igualdade material no processo em que a União for
parte, pois se sabe que a parte contrária não tem as mesmas
condições da União no que se refere à sua representação processual
em todo o território nacional. Nas ações que objetivem a obtenção
de benefício previdenciário (Regime Geral da Previdência Social),
e o local seja sede comarca na qual não haja vara da Justiça Federal,
é prevista a competência delegada dos juízes estaduais do foro do
400
domicílio do autor da demanda, sendo que eventual recurso contra
decisões e sentenças será de competência do Tribunal Regional
Federal da respectiva área (artigo 109, §§ 3° e 4°, CF). Neste caso
considera-se que, mesmo que a localidade tenha sido abrangida
pela jurisdição de uma vara federal localizada em comarca
contígua, a competência delegada existirá em favor do juiz estadual,
pois apenas se exclui a competência delegada se a comarca for sede
de vara da Justiça Federal. Ademais, trata-se de uma faculdade da
parte autora, pois é possível a opção pelo ajuizamento da ação
perante o foro da vara federal cuja sede não seja na comarca, não
sendo o caso de o juiz federal declinar de sua competência em favor
do juiz estadual que exerça jurisdição na comarca onde for
domiciliada a parte autora.

4. DIREITO CONCRETO

Este item tem por objetivo apresentar e analisar alguns


casos julgados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal a respeito da competência da Justiça
Federal relativa ao tema de direitos humanos. O primeiro deles
refere-se ao crime de homicídio do Promotor de Justiça Thiago
Soares no âmbito de investigações que o profissional realizava
quanto às ações de grupo de extermínio no Estado de Pernambuco.
É oportuna a transcrição de parte significativa da Ementa do
referido julgado:

401
INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE
COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO INSERIDO
EM CONTEXTO DE GRUPOS DE
EXTERMÍNIO. GRAVE VIOLAÇÃO DE
DIREITOS HUMANOS. CONFIGURAÇÃO.
DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES
DECORRENTES DE TRATADO
INTERNACIONAL. ESTADO-MEMBRO.
AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES DE APURAR
VIOLAÇÕES E RESPONSABILIZAR O(S)
CULPADO(S). EXCEPCIONALIDADE
DEMONSTRADA. DESLOCAMENTO DE
COMPETÊNCIA QUE SE MOSTRA
DEVIDO. 1. A Emenda Constitucional n. 45,
de 31.12.2004, relativa à reforma do Poder
Judiciário, inseriu no ordenamento jurídico
brasileiro a possibilidade de deslocamento da
competência originária para a investigação, o
processamento e o julgamento dos crimes
praticados com grave violação de direitos
humanos, com a finalidade de assegurar o
cumprimento de obrigações decorrentes de
tratados internacionais de direitos humanos
dos quais o Brasil seja parte. 2. A Terceira
Seção deste Superior Tribunal explicitou que
os requisitos do incidente de deslocamento de
competência são três: a) grave violação de
direitos humanos; b) necessidade de assegurar
o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações
decorrentes de tratados internacionais; c)
incapacidade – oriunda de inércia, omissão,
ineficácia, negligência, falta de vontade
política, de condições pessoais e/ou materiais
etc. – de o Estado-membro, por suas
instituições e autoridades, levar a cabo, em
402
toda a sua extensão, a persecução penal (IDC
n. 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves
Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005). 3.
A violação de direitos humanos que enseja o
deslocamento de competência, além de grave,
deve ser relacionada a obrigações decorrentes
de tratados internacionais dos quais o Brasil
seja parte. 4. Para o deslocamento da
competência, deve haver demonstração
inequívoca de que, no caso concreto, existe
ameaça efetiva e real ao cumprimento de
obrigações assumidas por meio de tratados
internacionais de direitos humanos firmados
pelo Brasil, resultante de inércia, negligência,
falta de vontade política ou de condições reais
de o Estado-membro, por suas instituições e
autoridades, proceder à devida persecução
penal. 5. A confiabilidade das instituições
públicas envolvidas na persecução penal –
Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário –
, constitucional e legalmente investidas de
competência originária para atuar em casos
como o presente, deve, como regra,
prevalecer, ser apoiada e prestigiada. 6. O
incidente de deslocamento de competência
não pode ter o caráter de prima ratio, de
primeira providência a ser tomada em relação
a um fato (por mais grave que seja). Deve ser
utilizado em situações excepcionalíssimas, em
que efetivamente demonstrada a sua
necessidade e a sua imprescindibilidade, ante
provas que revelem descaso, desinteresse,
ausência de vontade política, falta de
condições pessoais e/ou materiais das

403
instituições – ou de uma ou outra delas –
responsáveis por investigar, processar e punir
os responsáveis pela grave violação a direito
humano, em levar a cabo a responsabilização
dos envolvidos na conduta criminosa, até para
não se esvaziar a competência da Justiça
Estadual e inviabilizar o funcionamento da
Justiça Federal. 7. A ideia de excepcionalidade
do incidente não pode, contudo, ser de
grandeza tal a ponto de criar requisitos por
demais estritos que acabem por inviabilizar a
própria utilização do instituto de
deslocamento. 8. O caso dos autos aponta
fatores relacionados à região onde ocorreu a
morte do Promotor de Justiça estadual Thiago
Faria Soares, com indicativos de que o
assassinato provavelmente resultou da ação de
grupos de extermínio que atuam no interior
do Estado de Pernambuco (como tantos
outros que ocorreram na região conhecida
como "Triângulo da Pistolagem", situada no
agreste pernambucano), bem como ao certo e
notório conflito institucional que se instalou,
inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos
com a investigação e a persecução penal dos
ainda não identificados autores do crime
noticiado. (...) 10. O pedido de deslocamento
de competência encontra-se fundamentado
em afronta a tratado internacional de proteção
a direitos humanos. O direito à vida, previsto
na Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), é
a pedra basilar para o exercício dos demais
direitos humanos. O julgamento justo,
imparcial e em prazo razoável é, por seu turno,
404
garantia fundamental do ser humano,
previsto, entre outros, na referida Convenção,
e dele é titular não somente o acusado em
processo penal, mas também as vítimas do
crime (e a sociedade em geral) objeto da
persecução penal, dada a redação ampliativa
dada ao inciso LXXVIII do artigo 5º da CF: "a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e
os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação". Ademais, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos tem, reiteradamente,
asseverado que a obrigação estatal de
investigar e punir as violações de direitos
humanos deve ser empreendida pelos Estados
de maneira séria e efetiva, dentro de um prazo
razoável. 11. No caso vertente, encontram-se
devidamente preenchidos todos os requisitos
constitucionais que autorizam e justificam o
pretendido deslocamento de competência,
porquanto evidenciada a incontornável
dificuldade do Estado de Pernambuco de
reprimir e apurar crime praticado com grave
violação de direitos humanos, em
descumprimento a obrigações decorrentes de
tratados internacionais de direitos humanos
dos quais o Brasil é parte. 12. Incidente de
deslocamento de competência julgado
procedente, para que seja determinada a
imediata transferência do Inquérito Policial n.
07.019.0160.00158/2013-1.1 para a Polícia
Federal, sob o acompanhamento e controle do
Ministério Público Federal, e sob a jurisdição,
no que depender de sua intervenção, da Justiça

405
Federal, Seção Judiciária de Pernambuco.
(STJ, IDC 5/PE, rel. min. Rogério Schietti
Cruz, j. 13-8-2014, DJe 1-9-2014).

Tal caso, julgado no âmbito do Superior Tribunal de


Justiça no Incidente de Deslocamento de Competência n. 5, revela
a ausência de condições dos órgãos estaduais de Pernambuco de
apurar e efetivamente reprimir crime perpetrado em grave violação
aos direitos humanos, devido à identificação de elementos que
apontavam para homicídio praticado por grupo de extermínio no
interior do Estado de Pernambuco em localidade conhecida como
“Triângulo da Pistolagem”. Considerou-se a presença dos
requisitos constitucionais que autorizaram o deslocamento da
competência da justiça estadual para a justiça federal, a saber: i)
grave violação de direitos humanos; ii) indispensabilidade do
cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados
internacionais; c) inviabilidade – oriunda de inércia, omissão,
ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições
pessoais e/ou materiais etc. – de o Estado-membro, por suas
instituições e autoridades, conseguir conduzir, em toda a sua
extensão, a persecução penal relativamente ao caso.
Mas, além da competência da Justiça Federal decorrente
da procedência do incidente de deslocamento de competência em
caso de graves violações aos direitos humanos, há hipóteses já
julgadas que se referem à apuração e responsabilização dos agentes
por violações a direitos humanos de competência originária da
Justiça Federal. Veja o seguinte caso relativo à redução da pessoa à
condição análoga à de escravo:

406
Recurso extraordinário. Constitucional.
Penal. Processual Penal. Competência.
Redução a condição análoga à de escravo.
Conduta tipificada no artigo 149 do Código
Penal. Crime contra a organização do
trabalho. Competência da Justiça Federal.
Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal.
Conhecimento e provimento do recurso. 1. O
bem jurídico objeto de tutela pelo artigo 149
do Código Penal vai além da liberdade
individual, já que a prática da conduta em
questão acaba por vilipendiar outros bens
jurídicos protegidos constitucionalmente
como a dignidade da pessoa humana, os
direitos trabalhistas e previdenciários,
indistintamente considerados. 2. A referida
conduta acaba por frustrar os direitos
assegurados pela lei trabalhista, atingindo,
sobremodo, a organização do trabalho, que
visa exatamente a consubstanciar o sistema
social trazido pela Constituição Federal em
seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os
postulados do artigo 5º, cujo escopo,
evidentemente, é proteger o trabalhador em
todos os sentidos, evitando a usurpação de sua
força de trabalho de forma vil. 3. É dever do
Estado (lato sensu) proteger a atividade
laboral do trabalhador por meio de sua
organização social e trabalhista, bem como
zelar pelo respeito à dignidade da pessoa
humana (CF, artigo 1º, inciso III). 4. A
conjugação harmoniosa dessas circunstâncias
se mostra hábil para atrair para a competência
407
da Justiça Federal (CF, artigo 109, inciso VI) o
processamento e o julgamento do feito. 5.
Recurso extraordinário do qual se conhece e
ao qual se dá provimento. (STF, RE
459510/MT, rel. Min. Dias Toffoli, j. 26-11-
2015, DJe de 11-4-2016).

Neste caso concreto, devido à incidência da regra


constitucional do artigo 109, VI, CF, o Supremo Tribunal Federal
considerou que a conduta violou claramente a dignidade da pessoa
humana e os direitos trabalhistas e previdenciários da vítima do
crime previsto no artigo 149, CP e, por isso, a competência é da
Justiça Federal para conhecimento e julgamento da ação penal
referente à imputação de redução da vítima à condição análoga à
de escravo.
Em outra hipótese concreta, também apreciada pelo
Supremo Tribunal Federal em sede de Recurso Extraordinário,
reconheceu-se a competência da Justiça Federal em relação a crime
ambiental transnacional que envolvia o envio de animais silvestres
brasileiros para o exterior. Mostra-se oportuna a transcrição de
parte substancial da ementa do julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL
PENAL. CRIME AMBIENTAL
TRANSNACIONAL. COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA FEDERAL. INTERESSE DA
UNIÃO RECONHECIDO. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO A QUE SE DÁ
PROVIMENTO. 1. As florestas, a fauna e a
408
flora restam protegidas, no ordenamento
jurídico inaugurado pela Constituição de
1988, como poder-dever comum da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios (artigo 23, VII, da Constituição da
República). (...) 3. A competência de Justiça
Estadual é residual, em confronto com a
Justiça Federal, à luz da Constituição Federal e
da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. 4. A competência da Justiça Federal
aplica-se aos crimes ambientais que também
se enquadrem nas hipóteses previstas na
Constituição, a saber: (a) a conduta atentar
contra bens, serviços ou interesses diretos e
específicos da União ou de suas entidades
autárquicas; (b) os delitos, previstos tanto no
direito interno quanto em tratado ou
convenção internacional, tiverem iniciada a
execução no país, mas o resultado tenha ou
devesse ter ocorrido no estrangeiro - ou na
hipótese inversa; (c) tiverem sido cometidos a
bordo de navios ou aeronaves; (d) houver
grave violação de direitos humanos; ou ainda
(e) guardarem conexão ou continência com
outro crime de competência federal;
ressalvada a competência da Justiça Militar e
da Justiça Eleitoral, conforme previsão
expressa da Constituição. 5. As violações
ambientais mais graves recentemente
testemunhadas no plano internacional e no
Brasil, repercutem de modo devastador na
esfera dos direitos humanos e fundamentais
de comunidades inteiras. E as graves infrações
ambientais podem constituir, a um só tempo,

409
graves violações de direitos humanos, máxime
se considerarmos que o núcleo material
elementar da dignidade humana “é composto
do mínimo existencial, locução que identifica
o conjunto de bens e utilidades básicas para a
subsistência física e indispensável ao desfrute
da própria liberdade. Aquém daquele
patamar, ainda quando haja sobrevivência,
não há dignidade”. (...) 7. (a) Os
compromissos assumidos pelo Estado
Brasileiro, perante a comunidade
internacional, de proteção da fauna silvestre,
de animais em extinção, de espécimes raras e
da biodiversidade, revelaram a existência de
interesse direto da União no caso de condutas
que, a par de produzirem violação a estes bens
jurídicos, ostentam a característica da
transnacionalidade. (b) Deveras, o Estado
Brasileiro é signatário de Convenções e
acordos internacionais como a Convenção
para a Proteção da Flora, da Fauna e das
Belezas Cênicas Naturais dos Países da
América (ratificada pelo Decreto Legislativo
nº 3, de 1948, em vigor no Brasil desde 26 de
novembro de 1965, promulgado pelo Decreto
nº 58.054, de 23 de março de 1966); a
Convenção de Washington sobre o Comércio
Internacional das Espécies da Flora e da Fauna
Selvagens em Perigo de Extinção (CITES
ratificada pelo Decreto-Lei nº 54/75 e
promulgado pelo Decreto nº 76.623, de
novembro de 1975) e a Convenção sobre
Diversidade Biológica CDB (ratificada pelo
Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 2, de
8 de fevereiro de 1994), o que destaca o seu
410
inequívoco interesse na proteção e
conservação da biodiversidade e recursos
biológicos nacionais. (c) A República
Federativa do Brasil, ao firmar a Convenção
para a Proteção da Flora, da Fauna e das
Belezas Cênicas Naturais dos Países da
América, em vigor no Brasil desde 1965,
assumiu, dentre outros compromissos, o de
“tomar as medidas necessárias para a
superintendência e regulamentação das
importações, exportações e trânsito de
espécies protegidas de flora e fauna, e de seus
produtos, pelos seguintes meios: a) concessão
de certificados que autorizem a exportação ou
trânsito de espécies protegidas de flora e fauna
ou de seus produtos”. (d) Outrossim, o Estado
Brasileiro ratificou sua adesão ao Princípio da
Precaução, ao assinar a Declaração do Rio,
durante a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(RIO 92) e a Carta da Terra, no “Fórum
Rio+5”; com fulcro neste princípio
fundamental de direito internacional
ambiental, os povos devem estabelecer
mecanismos de combate preventivos às ações
que ameaçam a utilização sustentável dos
ecossistemas, biodiversidade e florestas,
fenômeno jurídico que, a toda evidência,
implica interesse direto da União quando a
conduta revele repercussão no plano
internacional. 8. A ratio essendi das normas
consagradas no direito interno e no direito
convencional conduz à conclusão de que a
transnacionalidade do crime ambiental,

411
voltado à exportação de animais silvestres,
atinge interesse direto, específico e imediato
da União, voltado à garantia da segurança
ambiental no plano internacional, em atuação
conjunta com a Comunidade das Nações. 9.
(a) Atrai a competência da Justiça Federal a
natureza transnacional do delito ambiental de
exportação de animais silvestres, nos termos
do artigo 109, IV, da CF/88; (b) In casu, cuida-
se de envio clandestino de animais silvestres
ao exterior, a implicar interesse direto da
União no controle de entrada e saída de
animais do território nacional, bem como na
observância dos compromissos do Estado
brasileiro perante a Comunidade
Internacional, para a garantia conjunta de
concretização do que estabelecido nos acordos
internacionais de proteção do direito
fundamental à segurança ambiental. 10.
Recurso extraordinário a que se dá
provimento, com a fixação da seguinte tese:
“Compete à Justiça Federal processar e julgar
o crime ambiental de caráter transnacional
que envolva animais silvestres, ameaçados de
extinção e espécimes exóticas ou protegidas
por Tratados e Convenções internacionais”.
(STF, RE 835558/SP, rel. min. Luiz Fux, j. 9-
2-2017, DJe de 7-8-2017).

O caso acima transcrito referiu-se ao envio de animais


silvestres para o exterior, tendo o STF pronunciado a competência
da Justiça Federal com fulcro no artigo 109, IV, CF (“infrações
penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da

412
União”) devido aos compromissos internacionais assumidos pela
República brasileira e em razão da prática de crimes ambientais
transnacionais representarem violações na esfera dos direitos
humanos, levando em conta especialmente o núcleo material
elementar da dignidade da pessoa humana composto do mínimo
existencial – composto pelos bens e utilidades para a subsistência
física e fundamental para o exercício da liberdade.
Os três casos acima analisados retratam a importância da
atuação da Justiça Federal no segmento relativo à proteção e
promoção dos direitos humanos sob o viés da efetividade.
Relativamente às garantias constitucionais referentes ao processo,
o momento atual desvela a necessidade de o sistema de justiça atuar
eficaz e prontamente para a solução das questões que cheguem ao
seu conhecimento para julgamento. Daí a necessidade do
aperfeiçoamento do sistema de justiça como um todo com o
emprego de instrumentos, procedimentos, mecanismos de
produção de prova cada vez mais desenvolvidos, inclusive no
campo da cooperação jurídica internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência brasileira em matéria de proteção e


promoção dos direitos humanos e dos direitos ambientais ainda se
revela bastante distante do modelo ideal para fins de promover a
efetividade da solução judicial. De todo modo algumas conclusões
se revelam fundamentais na direção do atingimento do referido
modelo perfeito de tutela jurídica dos direitos humanos e

413
ambientais: a) a consolidação do modelo democrático de Estado e,
consequentemente, da sociedade civil; b) a repartição das
competências jurisdicionais, notadamente com a previsão dos
casos de competência da Justiça Federal em matéria de direitos
humanos, inclusive por meio do incidente de deslocamento de
competência nos casos de grave violação a direitos humanos; c) o
aperfeiçoamento do sistema de justiça com a clareza das regras de
competência, a especialização dos órgãos jurisdicionais de primeira
e segunda instâncias, além da busca de concretizar a razoável
duração do processo.
O trajeto para a obtenção do modelo ideal de
funcionamento do sistema de proteção dos direitos humanos via
atuação dos órgãos do Poder Judiciário brasileiro está em curso,
talvez ainda em patamar inicial, mas sem dúvida apresenta
características que revelam a correção de rumos anteriormente
seguidos. Oxalá que as próximas gerações brasileiras e mundiais
possam vivenciar um modelo de proteção e promoção efetivas dos
direitos humanos e ambientais no planeta Terra, pois somente
assim a civilização humana terá motivos para se orgulhar no que
tange aos mecanismos de funcionamento do sistema jurídico que
envolve a tutela dos direitos humanos.

414
REFERÊNCIAS

BOCHENEK, Antônio César. Competência cível da justiça


federal e dos juizados especiais cíveis. São Paulo: RT, 2004.

BRASIL, STF, RE 835558/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 9-2-2017, DJe


de 7-8-2017.

BRASIL, STF, RE 459510/MT, rel. Min. Dias Toffoli, j. 26-11-


2015, DJe de 11-4-2016.

BRASIL, STJ, IDC 5/PE, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13-8-
2014, DJe 1-9-2014.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed.


São Paulo: Saraiva, 2015.

CARVALHO, Vladimir Souza. Competência da Justiça Federal.


7. ed. 2. tir. Curitiba: Juruá, 2007.

CAVALCANTI, Francisco. Artigos 106 a 110. In: BONAVIDES,


Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords.).
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CONSULTOR JURÍDICO. “Justiça Federal em SC inaugura sua


primeira turma descentralizada”, 4-8-2017, visitado em
20.07.2018.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da


justiça federal. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

415
OLIVEIRA, Roberto da Silva. Competência criminal da Justiça
Federal. São Paulo: RT, 2002.

PERRINI, Raquel Fernandez. Competência da Justiça Federal.


Salvador: JusPodium, 2011, p. 17

416
REFLEXÕES SOBRE A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS
INDÍGENAS 30 ANOS APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

THOUGHTS ON THE LEGAL PROTECTION OF


INDIGENOUS 30 YEARS AFTER THE CONSTITUTION OF
1988

Camila Graça Camatta1


Pedro Curvello Saavedra Avzaradel 2

RESUMO: O presente artigo possui o objetivo trazer um panorama


da proteção constitucional dos povos originários, também
conhecidos como indígenas, com destaque para a demarcação das
terras que tradicionalmente ocupam, 30 anos após a vigência da
Constituição Federal de 1988. Para realizar tal análise serão
analisados os principais marcos legais, e constitucionais sobre o
tema, bem como os principais julgados da Suprema Corte nesta
seara. Como veremos apesar dos avanços com a Constituição
Cidadã, na pratica a garantia dos direitos constitucionais desses
povos segue morosa e repleta de obstáculos.
PALAVRAS-CHAVE: Povos originários; Constituição Federal;
Procedimento demarcatório.

1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-
Doutor em Direito Ambiental pela Universidade Paris I Pantheón Sorbonne, com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES/BRASIL). E-mail: pedroavzaradel@id.uff.br
417
ABSTRACT: The purpose of this article is to provide an overview
of the constitutional protection of native people, also known as
indigenous people, especially the demarcation of the lands they
traditionally occupy, 30 years after the 1988 Federal Constitution.
To carry such analysis will be considered the main legal
frameworks, and constitutional issues on the subject as well as the
legal decisions of the Supreme Court in this area. As we will see in
spite of the advances with the Citizen Constitution, in practice the
guarantee of the constitutional rights of these people remains too
slow and filled of obstacles.
KEYWORDS: Original people; Federal Constitution; Demarcatory
procedure.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. O instituto do indigenato no direito brasileiro e a importância
para a demarcação das terras indígenas.
3. Procedimento para a demarcação das terras indígenas previsto
no Decreto 1.775/96.
4. Natureza jurídica do decreto que reconhece a demarcação das
terras indígenas. 5. As salvaguardas constitucionais previstas pelo
Supremo Tribunal Federal e a tese do marco temporal.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil


destinou um capítulo próprio para o tratamento da temática dos
povos indígenas e sistematizou uma série de garantias em seu texto
418
para a proteção destes povos. Tais direitos são frutos de diversas
lutas e articulações tanto dos povos indígenas quanto de setores da
sociedade civil e representam uma grande conquista, já que a tutela
constitucional se mostra como um mecanismo, ao menos do ponto
de vista teórico, assecuratório de direitos e garantias para estes
povos.
A Constituição Cidadã deixou de lado a visão
integracionista que os textos constitucionais anteriores tinham
previsto e assumiu como princípio da República Federativa do
Brasil a “autodeterminação dos povos” (artigo4, III, CF). Com isto,
foi garantido aos povos indígenas a possibilidade de utilizar no
ensino fundamental, sua língua materna e processos próprios de
aprendizagem para assegurar o respeito a valores culturais e
artísticos, tanto nacionais quanto regionais (artigo 210, CF).
Igualmente, o Estado brasileiro se comprometeu em proteger as
manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras
(artigo 215, CF). Neste ponto, a Constituição Federal visa dar
suporte para a permanência das tradições que são próprias dos
povos indígenas. Sobre o substantivo índios e seu alcance, vale
trazer à baila o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal, segundo o qual:

O substantivo "índios" é usado pela


Constituição Federal de 1988 por um modo
invariavelmente plural, para exprimir a
diferenciação dos aborígenes por numerosas
etnias. Propósito constitucional de retratar
uma diversidade indígena tanto interétnica

419
quanto intra-étnica. Índios em processo de
aculturação permanecem índios para o fim de
proteção constitucional. Proteção
constitucional que não se limita aos silvícolas,
estes, sim, índios ainda em primitivo estádio
de habitantes da selva (BRASIL, 2009a).

A Constituição estabelece a União como ente competente


para legislar sobre populações indígenas (artigo 22, XIV), e atribui
a este ente o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios (artigo 20, IX). Recentemente, foi editado o Decreto
7.747/12 | Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012, que estabelece
a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras
Indígenas, tendo em conta o direito à consulta prévia, livre e
informada dos povos indígenas sobre os projetos e ações no
território que ocupam em consonância com a Convenção nº 169 da
Organização Internacional do Trabalho.
Para maior proteção dos interesses dos povos originários
a Constituição Federal inseriu dentre as funções institucionais do
Ministério Público a defesa dos direitos e interesses dessas
populações (artigo 129, V), e atribuiu competência aos juízes
federais para julgar disputas sobre direitos indígenas (artigo109,
XI).
O Capítulo VIII, que versa especificamente sobre os
direitos dos povos indígenas, está inserido dentro do Título VIII da
Constituição Federal, que se destina ao tratamento da temática da
Ordem Social. Tal capítulo contém dois artigos que são
fundamentais para a defesa dos direitos destes povos. Os artigos
231 e 232.
420
Prevê o artigo 231:

Artigo 231. São reconhecidos aos


índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente


ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos


hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em
terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da
lavra, na forma da lei.

421
§ 4º As terras de que trata este
artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos


indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe
ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do
País, após deliberação do Congresso Nacional,
garantido, em qualquer hipótese, o retorno
imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não


produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a
posse das terras a que se refere este artigo, ou
a exploração das riquezas naturais do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado
relevante interesse público da União, segundo
o que dispuser lei complementar, não gerando
a nulidade e a extinção direito a indenização
ou a ações contra a União, salvo, na forma da
lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa-fé.

Em sua sistemática, o artigo reconhece aos índios o direito


de perpetuarem sua cultura, seu modo de vida e reconhece o direito
originário que os povos indígenas possuem sobre as terras que
tradicionalmente ocuparam. Este artigo também confere à União a
competência de demarcar tais terras e fazer respeitar todos os seus
bens, tanto materiais quanto imateriais.

422
José Afonso da Silva (2010, p. 858) em análise sobre a
temática de proteção das terras indígenas afirma,

A outorga constitucional dessas terras ao


domínio da União visa precisamente
preservá-las e manter o vínculo que se acha
embutido na norma, quando fala que são bens
da União as terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios, ou seja, cria-se aí uma
propriedade vinculada ou propriedade
reservada com o fim de garantir os direitos dos
índios sobre ela. Por isso, são terras
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre
elas são imprescritíveis.

A proteção das terras indígenas está intimamente ligada


com a manutenção e preservação da cultura e do modo de vida
próprio dos povos indígenas, por isto a Constituição Federal trouxe
uma regulamentação própria para proteção destas terras. Para
Carvalho Filho (2010, p. 1226) estas terras são afetadas com
finalidade de proteção da cultura, integridade e interesse social na
manutenção destes povos. Vale aqui trazer o entendimento do
Supremo Tribunal Federal a respeito:

A importância jurídica da demarcação


administrativa homologada pelo Presidente
da República - ato estatal que se reveste de
presunção juris tantum de legitimidade e de
veracidade - reside na circunstância de que as
terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios, embora pertencentes ao patrimônio da
423
União (CF, artigo 20, XI), acham-se afetadas,
por efeito de destinação constitucional, a fins
específicos voltados, unicamente, à proteção
jurídica, social, antropológica, econômica e
cultural dos índios, dos grupos indígenas e das
comunidades tribais.

[...]
A Carta Política, com a outorga dominial
atribuída à União, criou, para esta, uma
propriedade vinculada ou reservada, que se
destina a garantir aos índios o exercício dos
direitos que lhes foram reconhecidos
constitucionalmente (CF, artigo 231, §§ 2º, 3º
e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às
comunidades indígenas bem-estar e
condições necessárias à sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições (BRASIL, 2009b).

As terras indígenas possuem previsão legal diferente


daquela prescrita no Código Civil para os bens imóveis devido a
necessidade de maior proteção destas terras, com isto, os institutos
clássicos dos direitos reais não têm aplicação para estas terras, já
que a sua proteção visa a proteção de um interesse social.
Desta forma, as terras indígenas são imprescritíveis, que é
o regime jurídico que resguarda os bens públicos da prescrição
aquisitiva provinda da usucapião, desta forma, as terras indígenas
não serão adquiridas por meio da posse ininterrupta (CARVALHO
FILHO, 2010, p.1171). Em relação ao atributo da inalienabilidade,
significa dizer que a própria Constituição decidiu preservar a
utilização deste bem, sem que possa ser disponível, ou seja, não
424
pode ser vendido nem negociado, nem mesmo por força de lei
ordinária, como acontece com os demais bens públicos
(CARVALHO FILHO, 2010, p. 1170).
Mesmo o aproveitamento de recursos estratégicos para o
Estado está sujeito a diversas restrições constitucionais. Conforme
Avzaradel (2016, p. 164):

Veda-se no Texto Maior a remoção dos povos


indígenas das terras tradicionalmente por eles
habitadas, "salvo, "ad referendum" do
Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco sua população,
ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional,
garantido, em qualquer hipótese, o retorno
imediato tão logo cesse o risco"(§ 5o).
Pela leitura do dispositivo parece claro que os
indígenas apenas poderão ser removidos de
suas terras em caráter excepcional e
temporário, quando houver risco grave o
bastante para o eles ou para a soberania do
país (por exemplo, em regiões de fronteira), o
que reforça o dever do Estado de respeitar a
posse e o uso por eles das terras que
tradicionalmente habitam.
O artigo 231 sujeita à aprovação pelo
Congresso Nacional e à oitiva das
comunidades indígenas afetadas "o
aproveitamento dos recursos hídricos,
incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa
e a lavra das riquezas minerais" em suas terras,

425
sendo-lhes "assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei" (§ 3º).

Ou seja, a Carta Constitucional elencou entre os direitos


indígenas o direito a posse sobre suas terras e o direito de usufruto,
ou seja, é exclusividade destes povos se valer das riquezas advindas
do solo, dos rios e dos lagos que se situam nestas terras.
O artigo 232 da CFRB atribuiu aos índios, suas
comunidades e organizações, capacidade postulatória para
ingressar em juízo, sendo que o Ministério Público será chamado
para intervir em todos os atos do processo como fiscal da lei. Desta
forma a Constituição Federal concede aos povos indígenas a
possibilidade de participar, não como figuras a serem tuteladas,
mas com jus postulandi para a defesa de seus interesses e direitos.
Letra morta, o artigo 67 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias estabeleceu um prazo de 5 anos para
que as terras indígenas fossem demarcadas, o que de fato, nunca
ocorreu. Não obstante a importância de tal instituto para a proteção
dos povos indígenas, ea despeito de todos os avanços positivados
texto Constitucional, a concretização deste direito esbarra em
diversos empecilhos que expõem estes povos a variadas formas de
violência.
A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios é tema de longos debates tanto na doutrina quanto nas cortes
brasileiras, sendo um dos principais assuntos em relação aos
mecanismos de defesa e proteção aos povos indígenas.

426
2. O INSTITUTO DO INDIGENATO NO DIREITO
BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA PARA A DEMARCAÇÃO
DAS TERRAS INDÍGENAS

Para compreender o texto constitucional, no que tange ao


reconhecimento do direito originário dos povos indígenas às terras
que tradicionalmente ocuparam, é necessário recorrer ao instituto
do indigenato e o seu conceito.
O indigenato é instituto luso-brasileiro desenvolvido por
João Mendes de Almeida Júnior em 1912, o autor analisa os direitos
territoriais indígenas com base nas atividades desenvolvidas antes
da chegada dos portugueses, afirmando que o acesso à terra pelos
povos indígenas é um direito originário e congênito e que
independe de qualquer outro título para ser legitimado.
Conforme afirma em seu livro “Os indígenas no Brazil
seus direitos individuaes e políticos” (ALMEIDA JÚNIOR, 1912, p.
58),

[...] o indigenato é um titulocongenito, ao


passo que a occupação é um titulo adquirido.
Com quanto o indigenato não seja a unica
verdadeira fonte jurídica da posse territorial,
todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de
1º de Abril de 1680, << a primaria,
naturalmente e virtualmente reservada >>, ou,
na phrase de Aristoteles (Polit. 1, n. 8). Por
conseguinte, o indigenato não é um facto
dependente de legitimação, ao passo que a
occupação, como facto posterior, depende de

427
requisitos que a legitimem [...]ora, a
occupação, como titulo de acquisição, só póde
ter por objecto as cousas que nunca tiveram
dono, ou que foram abandonadas por seu
antigo dono. A occupação é uma
apprehensiorei nullisou rei derelictce
(confiram-se os civilistas com referencia ao
Dig., til. De acq. rerum domin., L. 3, e tit.
deacq. vel. amitt. poss., L. 1); ora, as terras de
indios, congenitamente apropriadas, não
podem ser consideradas nem como res
nullius, nem como res derelictce; por outra,
não se concebe que os indios tivessem
adquirido, por simples ocupação, aquilo que
lhes é congênito e primario, de sorte que,
relativamente aos indios estabelecidos, não ha
uma simples posse, ha um tituloimmediato de
domínio; não ha, portanto, posse a legitimar,
ha dominio a reconhecer e direito originario e
preliminarmente reservado.

Afirma o autor que as terras ocupadas pelos índios não se


confundem com res nullius ou res derelicta, eles são, de fato, os
primeiros ocupantes destas terras, e,por isto, prescinde de título
constitutivo a apuração do domínio destas áreas, sendo necessário
somente o reconhecimento de um direito que é originário e
anterior a qualquer outro direito que repouse sobre estas áreas.
O reconhecimento do direito originário dos índios sobre
as terras que tradicionalmente ocuparam faz menção ao Alvará
Régio de 1 de Junho de 1680, primeiro estatuto jurídico que
garantiu aos povos indígenas o direito de se fixarem nas terras sem
sofrerem realocações por serem “naturais senhores delas”.
428
O instituto do indigenato compreende a terra indígena
como um direito originário, que antecede e prevalece sobre
qualquer outro título de natureza civil. Conforme afirma José
Afonso da Silva (2010, p. 861),

o indigenato não se confunde com a ocupação,


com a mera posse. O indigenato é fonte
primária e congênita da posse territorial; é um
direito congênito, enquanto a ocupação é
título adquirido. O indigenato é legítimo por
si não é um fato dependente de sua
legitimação, ao passo ocupação, como dato
posterior, depende de requisitos que a
legitimem. (...) O reconhecimento do direito
dos índios ou comunidades indígenas à posse
permanente das terras por eles ocupadas, nos
termos do artigo 231, § 2º, independe de sua
demarcação, e cabe ser assegurada pelo órgão
federal competente, atendendo à situação
atual e ao consenso histórico.

Partindo deste pressuposto, para que as comunidades


indígenas tenham suas terras demarcadas é realizado um
procedimento especial, com a aplicação de uma regulamentação
própria exercido pelo poder executivo com atuação do Ministro da
Justiça e do Presidente da República, que será visto adiante.
No ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a
Constituição Federal e o Estatuto do Índio,foi positivado tal
instituto, que garante aos povos indígenas o direito de

429
permanecerem nas terras que tradicionalmente ocuparam
(FREITAS, p. 58).
Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, este direito
recai sobre quatro esferas: as terras habitadas em caráter
permanente; as terras utilizadas para atividades produtivas; as
terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao bem-estar dos índios; as terras necessárias à
reprodução física e cultural dos índios.
Desta forma, o indigenato não garante apenas o acesso à
terra, mas concebe esta como um elemento necessário para a
manutenção do modo de vida próprio, de características culturais
e produtivas destas comunidades, o que faz com que o
reconhecimento deste direito seja, sobretudo, necessário para a
persecução de um direito fundamental destes povos.
A relação dos povos indígenas com a terra em que estão
inseridos ultrapassa a simples ideia de habitação e moradia, pois é
na relação com a terra e com natureza - que é um fator gerador de
suas manifestações culturais - que os índios são capazes de manter
seu modo de vida, seus usos, costumes, rituais e aspectos ligados à
ancestralidade que são particularidades destes povos.
O reconhecimento do instituto do indigenato é um
importante mecanismo para garantir que os povos indígenas
tenham acesso as suas terras, sobretudo dentro do cenário
brasileiro que historicamente tolera esbulhos e violações de direitos
humanos contra os povos originários.

430
3. PROCEDIMENTO PARA A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS
INDÍGENAS PREVISTO NO DECRETO 1.775/96

O Estatuto do Índio determinou que a regulamentação do


procedimento de demarcação das terras indígenas deveria ser
regulado através de decreto emitido pelo Poder Executivo,
atualmente o Decreto 1.775 de 1996 que desempenha este papel. O
Decreto regulamenta como se dará a atuação do poder público no
procedimento de demarcação, os prazos para as devidas
manifestações e os estudos que deverão ser realizados para
determinar a área a ser demarcada.
O decreto não encerra por completo o tema, já que
existem ainda portarias do Ministério da Justiça, portarias da
FUNAI, previsões no Estatuto dos Índios e ainda, decisões do
Supremo Tribunal Federal que dão respaldo a atuação do poder
público. Devido à grande variedade de atos normativos que
norteiam o tema, não será possível desenvolver de forma exaustiva
a análise de todos estes mecanismos. Abordaremos o procedimento
previsto pelo Decreto 1.775/96 e pelo Estatuto do Índio, passando
ainda pela análise da decisão do STF sobre a demarcação das terras
indígenas, que levantou a tese do chamado “marco temporal” e que
criou um novo paradigma para a demarcação das terras indígenas.
Conforme previsto no corpo do Decreto 1.775/96, a
demarcação começa com a edição de uma portaria pela FUNAI
nomeando um antropólogo com qualificação reconhecida para
elaborar um estudo antropológico de identificação da terra
indígena (artigo 2º). Este estudo de identificação é realizado por

431
meio de um grupo técnico especializado, que trabalha analisando a
natureza sociológica, jurídica, etno histórica, cartográfica e
ambiental e um levantamento fundiário do local para traçar os
limites que compreende aterra indígena (artigo 2º, §1). O grupo de
trabalho será composto preferencialmente com técnicos servidores
do próprio órgão federal.

É preciso ressaltar que o trabalho do Grupo


Técnico (GT) responsável pela identificação e
delimitação de uma determinada área
constitui-se fundamentalmente em
comprovar a tradicionalidade da ocupação
indígena, o que impõe certo esforço teórico,
visto que, embora haja uma definição no texto
constitucional, a tradicionalidade não é um
conceito autoexplicativo (CAVALCANTE, p.
11).

É assegurado aos grupos indígenas envolvidos no estudo


participar do procedimento em todas as suas fases. Após a
conclusão do estudo pelo grupo técnico, dever ser apresentado um
relatório circunstanciado caracterizando a terra indígena a ser
demarcada (artigo 2º, § 6), este relatório atenderá aos critérios
estabelecidos pela Portaria nº 14/96 da FUNAI que define regras e
tudo que deve conter sua versão final.
Após a conclusão, o relatório será encaminhado para a
análise do órgão indigenista para ser aprovado ou, caso necessário,
poderão ser requisitadas novas informações. Após sua aprovação,
o relatório deverá ser publicado no Diário Oficial da União e deverá
ser fixada na sede da prefeitura local (§ 7).
432
Com o término da fase de estudo técnico é aberta a fase de
contraditório administrativo, em que os respectivos interessados
poderão apresentar provas e documentos comprovando a razões
pertinentes ao seu interesse, e contestar as informações trazidas no
relatório com a respectiva documentação, conforme previsto nos
parágrafos 8 do artigo 2 do Decreto 1.775/96

Artigo2 (...)
§ 8° Desde o início do procedimento
demarcatório até noventa dias após a
publicação de que trata o parágrafo anterior,
poderão os Estados e municípios em que se
localize a área sob demarcação e demais
interessados manifestar-se, apresentando ao
órgão federal de assistência ao índio razões
instruídas com todas as provas pertinentes,
tais como títulos dominiais, laudos periciais,
pareceres, declarações de testemunhas,
fotografias e mapas, para o fim de pleitear
indenização ou para demonstrar vícios, totais
ou parciais, do relatório de que trata o
parágrafo anterior.

Ainda que o Decreto regulamente a fase de contraditório


administrativo, muitos procedimentos de demarcação acabam por
serem contestados no judiciário “em 2010 foram identificadas mais
de 150 ações sobre demarcação de terras indígenas pendentes de
decisão no STF” segundo Yamada; Burity (2017), que se torna mais
um elemento que contribui para a demora do procedimento de

433
demarcação, já ingressando dentro do sistema judiciário, a
demanda atenderá aos seus ritos e procedimentos próprios .
Após as manifestações de todos os interessados, a FUNAI
deverá, dentro de 60 dias, elaborar pareceres sobre as razões dos
interessados, analisando as provas e demais questões suscitadas e
encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça, que deverá
§ 10. Em até trinta dias após o
recebimento do procedimento, o Ministro de
Estado da Justiça decidirá:
I - declarando, mediante portaria, os limites da
terra indígena e determinando a sua
demarcação;
II - prescrevendo todas as diligências que
julgue necessárias, as quais deverão ser
cumpridas no prazo de noventa dias;
III - desaprovando a identificação e
retornando os autos ao órgão federal de
assistência ao índio, mediante decisão
fundamentada, circunscrita ao não
atendimento do disposto no § 1º do artigo 231
da Constituição e demais disposições
pertinentes.

Caso o Ministro da Justiça opte por declarar a os limites


da área por meio de portaria, a FUNAI deverá promover a
demarcação física da área, enquanto o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) deverá proceder ao
reassentamento dos ocupantes não índios que se encontravam no
local (artigo4º), ressalta se que a medida por parte do INCRA
deverá ser adotada de forma preferencial.

434
Após a declaração, o procedimento deverá ser
encaminhado ao Presidente da República para homologar a
demarcação por meio de Decreto (artigo5º), posteriormente a terra
demarcada deverá ser registrada em até 30 dias, no cartório de
imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio
da União.
É de competência da FUNAI, no exercício do poder de
polícia, disciplinar o ingresso e o trânsito de terceiros em áreas em
que se constate a presença de índios isolados assim como tomar as
providências necessárias à proteção aos índios (artigo 7).
Embora o Decreto defina os prazos a serem seguidos pelos
órgãos envolvidos, o procedimento para demarcação acontece de
forma lenta e burocráticadevido a diversos fatores, como falta de
estrutura e funcionários do órgão indigenista, os conflitos
existentes em algumas terras e, não por vezes, pela falta de vontade
política em realizar a demarcação por parte do poder executivo
federal.

4. NATUREZA JURÍDICA DO DECRETO QUE RECONHECE


A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS

O Decreto editado pelo Presidente da República para a


homologara demarcação das terras indígenas é um ato
administrativo e, como tal, possui os atributos que lhe são próprios
conforme Mendonça; Araújo (2015, p. 13), presunção de
legitimidade e veracidade; executoriedade; imperatividade;
exigibilidade.

435
Estas prerrogativas distinguem os atos administrativos
dos atos de direito privado, a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di
Pietro (2015), no estudo do tema, conceitua tais atributos da
seguinte forma: a presunção de legitimidade é a conformidade do
ato com a lei, desta forma, presume-se até prova em contrário, que
os atos administrativos foram emitidos em conformidade com a lei.
A imperatividade é o atributo pelo qual os atos
administrativos se impõem a terceiros, independentemente de sua
concordância e decorre da prerrogativa que o poder público tem de
impor obrigações a terceiros. A autoexecutoriedade é o atributo
pelo qual a Administração pode pôr em prática seus atos sem que
seja necessária a intervenção do judiciário. A executoriedade são os
meios que a Administração pública pode autoexecutar suas
decisões com os meios coercitivos que lhe são próprios (PIETRO,
2015, p. 240-243).
Tal Decreto encerra o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas e tem natureza jurídica de ato
declaratório (CAVALCANTE, 2016, p. 6), ou seja, reconhece e
atesta uma situação jurídica preexistente. Desta forma, afasta-se a
natureza jurídica de ato constitutivo, já que a mesma não tem o
condão de criar, extinguir ou modificar uma relação jurídica
preexistente.
O raciocínio lógico de compreender as terras indígenas
dentro do seu aspecto de direito originário e a caracterização do ato
administrativo de natureza declaratória, faz com que a técnica
empregada para a garantia de acesso às terras pelos povos
indígenas, seja realizada de forma a dar maior eficácia a este direito.

436
Embora na prática, tais aspectos não sejam suficientes para garantir
sua concretização.
O Estatuto do Índio, em seu artigo 26, afirma que o
reconhecimento do direito dos povos indígenas da posse
permanente das terras que tradicionalmente ocupam se dará
independentemente de sua demarcação, visando atender ao
consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação.
Paulo Bessa Antunes (1994, p. 20), em análise a este
instituto afirma,

É preciso estar atento ao fato de que as terras


indígenas foram reconhecidas como
pertencentes aos diversos grupos étnicos, em
razão da incidência de direito originário, isto
é, direito precedente e superior a qualquer
outro que, eventualmente, se possa ter
constituído sobre o território dos índios. A
demarcação das terras tem única e
exclusivamente a função de criar uma
delimitação espacial da titularidade indígena e
de opô-la a terceiros. A demarcação não é
constitutiva. Aquilo que constitui o direito
indígena sobre suas terras é a própria presença
indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo
reconhecimento foi efetuado pela
Constituição Brasileira

Conforme afirmado, antes mesmo do final do


procedimento de demarcação das terras indígenas, os índios já
possuem direito ao acesso à terra que tradicionalmente ocuparam,

437
sendo que o procedimento tem função especial de apenas delimitar
espacialmente os limites da titularidade indígena.
Embora o ordenamento jurídico realize um esforço para
assegurar a efetividade deste direito, sabe se que na prática, a
efetivação da demarcação das terras indígenas vem acontecendo
muito aquém do necessário para dar segurança aos povos
originários. Enquanto tal medida não se concretiza, estes povos
ficam expostos a situações de vulnerabilidade e violência.
Tão cediço (e tolerado) é o quadro que o ordenamento
jurídico traz regras e é interpretado no sentido de “emendar”, sem
resolver, o problema. A título de exemplo, ao julgar a
constitucionalidade da lei 12.651/2012 (atual Código Florestal),
especificamente ao analisar ao parágrafo único do artigo 3º, o
Supremo Tribunal Federal entendeu que não se poderia sujeitar o
regime de equiparação das terras indígenas às pequenas
propriedades ou posses rurais familiares (tratamento jurídico mais
flexível no que tange às obrigações ambientais) à demarcação
dessas terras (BRASIL, 2018).

5. AS SALVAGUARDAS CONSTITUCIONAIS PREVISTAS


PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A TESE DO
MARCO TEMPORAL

Conforme afirmado acima, muitas vezes, a questão da


demarcação das terras indígenas acaba por ser contestada no
judiciário e o Supremo Tribunal Federal (STF) é chamado a se
manifestar sobre o assunto, em julgamento histórico sobre a terra
indígena Raposa/Serra do Sol em Roraima a corte estabeleceu
438
diversas salvaguardas constitucionais para o julgamento de casos
que envolvam a análise do procedimento de demarcação.
O procedimento para a demarcação da área que hoje se
conhece como Raposa Serra do Sol começou em 1977 sob a égide
do Decreto 76.999/76 e foi encerrado com a publicação do Decreto
de 15 de Abril de 2005, no qual o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva homologou sua demarcação e encerrou o procedimento.
Os conflitos que envolviam esta área incluíam índios,
não-índios, fazendeiros e o próprio governo de Roraima conforme
Farias; Micheletto (2004), a referida demarcação foi objeto de
inúmeras contestações judiciais, a que gerou maior impacto foi a
decisão referente a Petição 3.388, interposta pelo senador da
república Augusto Affonso Botelho Neto, tratava-se de uma ação
popular que pleiteava a anulação da Portaria do Ministério da
Justiça nº 534/2005 que determinou a área a ser demarcada.
O julgamento foi encerrado em março de 2009 e o STF
estabeleceu dezenove salvaguardas constitucionais sobre o tema,
realizando um exercício de inovação hermenêutica e estabelecendo
critérios para o procedimento da demarcação, sendo eles:

I) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e


dos lagos existentes nas terras indígenas
(artigo 231, § 2º, da Constituição Federal)
pode ser relativizado sempre que houver,
como dispõe o artigo 231, § 6º, da
Constituição, relevante interesse público da
União, na forma de lei complementar;
II) o usufruto dos índios não abrange o
aproveitamento de recursos hídricos e
439
potenciais energéticos, que dependerá sempre
de autorização do Congresso Nacional;
III)o usufruto dos índios não abrange a
pesquisa e lavra das riquezas minerais, que
dependerá sempre de autorização do
Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a
participação nos resultados da lavra, na forma
da lei;
(IV)o usufruto dos índios não abrange a
garimpagem nem a faiscação, devendo, se for
o caso, ser obtida a permissão de lavra
garimpeira;
V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao
interesse da política de defesa nacional; a
instalação de bases, unidades e postos
militares e demais intervenções militares, a
expansão estratégica da malha viária, a
exploração de alternativas energéticas de
cunho estratégico e o resguardo das riquezas
de cunho estratégico, a critério dos órgãos
competentes (Ministério da Defesa e
Conselho de Defesa Nacional), serão
implementados independentemente de
consulta às comunidades indígenas
envolvidas ou à FUNAI;
VI)a atuação das Forças Armadas e da Polícia
Federal na área indígena, no âmbito de suas
atribuições, fica assegurada e se dará
independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à
FUNAI;
VII) o usufruto dos índios não impede a
instalação, pela União Federal, de
equipamentos públicos, redes de
comunicação, estradas e vias de transporte,
440
além das construções necessárias à prestação
de serviços públicos pela União,
especialmente os de saúde e educação;
VIII) o usufruto dos índios na área afetada por
unidades de conservação fica sob a
responsabilidade do Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade;
IX)o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade responderá pela
administração da área da unidade de
conservação também afetada pela terra
indígena com a participação das comunidades
indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-
se em conta os usos, tradições e costumes dos
indígenas, podendo para tanto contar com a
consultoria da FUNAI;
X) o trânsito de visitantes e pesquisadores não
índios deve ser admitido na área afetada à
unidade de conservação nos horários e
condições estipulados pelo Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade;
XI) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito
e a permanência de não-índios no restante da
área da terra indígena, observadas as
condições estabelecidas pela FUNAI;
XII) o ingresso, o trânsito e a permanência de
não índios não pode ser objeto de cobrança de
quaisquer tarifas ou quantias de qualquer
natureza por parte das comunidades
indígenas;
XIII) a cobrança de tarifas ou quantias de
qualquer natureza também não poderá incidir
ou ser exigida em troca da utilização das
estradas, equipamentos públicos, linhas de

441
transmissão de energia ou de quaisquer outros
equipamentos e instalações colocadas a
serviço do público, tenham sido excluídos
expressamente da homologação, ou não; pelo
código 00012017072000011
XIV) as terras indígenas não poderão ser
objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou
negócio jurídico que restrinja o pleno
exercício do usufruto e da posse direta pela
comunidade indígena ou pelos índios (artigo
231, § 2º, Constituição Federal, c/c artigo 18,
caput, Lei nº 6.001/1973);
XV) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer
pessoa estranha aos grupos tribais ou
comunidades indígenas, a prática de caça,
pesca ou coleta de frutos, assim como de
atividade agropecuária ou extrativa (artigo
231, § 2º, Constituição Federal, c/c artigo 18, §
1º, Lei nº 6.001/1973);
XVI) as terras sob ocupação e posse dos
grupos e das comunidades indígenas, o
usufruto exclusivo das riquezas naturais e das
utilidades existentes nas terras ocupadas,
observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231,
§ 3º, da CR/88, bem como a renda indígena
(artigo 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de
plena imunidade tributária, não cabendo a
cobrança de quaisquer impostos, taxas ou
contribuições sobre uns ou outros;
XVII) é vedada a ampliação da terra indígena
já demarcada;
XVIII) os direitos dos índios relacionados às
suas terras são imprescritíveis e estas são
inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, § 4º,
CR/88); e
442
XIX) é assegurada a participação dos entes
federados no procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas, encravadas
em seus territórios, observada a fase em que se
encontrar o procedimento.

No julgamento deste leading case a Suprema Corte


conceituou a tese do “marco temporal” que estabeleceu um novo
critério a ser considerado no momento de demarcação das terras
indígenas, este novo entendimento impacta diretamente em
processos de demarcação em curso. O Ministro Ayres Brito, relator
do processo, definiu o marco temporal como,

I – o marco temporal da ocupação. Aqui é


preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou
com data certa: a data da promulgação dela
própria (5 de outubro de 1988) como
insubstituível referencial para o
reconhecimento, aos índios, “dos direitos
sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Terras que tradicionalmente ocupam, atente-
se, e não aquelas que venham a ocupar.
Tampouco as terras já ocupadas em outras
épocas, mas sem continuidade suficiente para
alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro
de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido
propósito constitucional de colocar uma pá de
cal nas intermináveis discussões sobre
qualquer outra referência temporal de
ocupação da área indígena. Mesmo que essa
referência estivesse grafada em Constituição
anterior. É exprimir: a data de verificação do

443
fato em si da ocupação fundiária é o dia 5
de outubro de 1988, e nenhum outro. (...)
Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei
Fundamental Brasileira é a chapa
radiográfica da questão indígena nesse
delicado tema da ocupação das terras a
demarcar pela União para a posse permanente
e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia
aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é
isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às
“riquezas do solo, dos rios e dos lagos”
existentes na área objeto de precisa
demarcação (§ 2º do artigo 231), devido a que
“os recursos minerais, inclusive os do
subsolo”, já fazem parte de uma outra
categoria de “bens da União” (inciso IX do
artigo 20 da CF) (grifo nosso);

Segundo o relator, tal tese tem o condão de afastar “a


fraude da subitânea proliferação de aldeias” e possíveis esbulhos
dos índios para descaracterizar o aspecto da tradicionalidade de sua
ocupação.
Exceção a esta hipótese, segundo o voto do relator, se
configuraria quando na data de 5 de outubro de 1988 (momento da
ocorrência do marco temporal) a população indígena não estivesse
no território objeto de análise, por ter sofrido renitente esbulho por
parte dos não-índios. Com isto, o relator argumenta que a
inalienabilidade e imprescritibilidade das terras indígenas não
seriam alteradas, já que a posse dos povos originários estaria
assegurada como ordena o mandamento constitucional.

444
Em momento posterior em 2014, no julgamento do
Agravo no Recurso Extraordinário 803.462/MS que analisava o
conflito na terra indígena “Limão Verde”, sob relatoria do Ministro
Teori Zavascki foi conceituada a terminologia usada no “renitente
esbulho” como,

Renitente esbulho não pode ser confundido


com ocupação passada ou com desocupação
forçada ocorrida no passado. Há de haver,
para configuração de esbulho, situação de
efetivo conflito possessório que, mesmo
iniciado no passado, ainda persista até o
marco demarcatório temporal atual (vale
dizer, na data da promulgação da Constituição
de 1988), conflito que se materializa por
circunstâncias de fato ou, pelo menos, por
uma controvérsia possessória judicializada

A Suprema Corte, portanto, levantou a tese do marco


temporal e definiu o renitente esbulho como aspecto necessário
para excetuar as hipóteses que não se enquadrariam na tese do
marco de 5 de Outubro de 1988.
Ainda no voto da Petição 3.388 o Min. Ayres Brito
assevera que para reconhecer a demarcação das terras indígenas,
além da sua presença no ano do marco temporal é necessário que
exista tradicionalidade da ocupação. Neste aspecto afirma

Mas um tipo qualificadamente tradicional de


perdurabilidade da ocupação indígena, no
sentido entre anímico e psíquico de que viver

445
em determinadas terras é tanto pertencer a
elas quanto elas pertencerem a eles, os índios
(“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa
Mãe”). (...) Um bem sentidamente congênito,
porque expressivo da mais natural e sagrada
continuidade etnográfica, marcada pelo fato
de cada geração aborígine transmitir a outra,
informalmente ou sem a menor precisão de
registro oficial, todo o espaço físico de que se
valeu para produzir economicamente,
procriar e construir as bases da sua
comunicação lingüística e social genérica.

O STF entende que a questão da tradicionalidade trazida


pelo artigo 231 da Constituição Federal diz respeito a relação
existente entre o índio e a terra, não apenas na questão temporal
mas, sobretudo, em uma relação cultural e antropológica e, embora
ressalte a importância da relação índio-terra como elementos que
se relacionam numa “sagrada continuidade etnográfica” a Suprema
Corte condiciona a demarcação a um elemento factual - o marco
temporal - e ainda estabelecem requisitos para a sua configuração.
A decisão adotada neste julgamento passou a ser fruto de
diversos debates sobre a aplicabilidade destas condicionantes em
demais processos que versassem sobre demarcação das terras
indígenas. O Min. Ayres Brito no momento do julgamento da
Petição 3.388 afirma que “a presente ação tem por objeto tão
somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.
Inclusive, no julgamento dos Embargos de Declaração,
opostos em face do acórdão proferido do julgamento da Petição

446
3.388, foi novamente afirmado que as condicionantes não
possuíam efeitos vinculantes

Salientou que a decisão proferida em ação


popular é desprovida de força vinculante, em
sentido técnico, e que os fundamentos
adotados pela Corte não se estendem, de
forma automática, a outros processos em que
se discuta matéria similar. (PEREIRA, 2017,
p.14)

Embora afirmado expressamente pela não aplicação


destas salvaguardas nos demais processos para a demarcação das
terras indígenas, tal entendimento tem sido adotado em outros
julgamentos e tem se mostrado como um óbice à demarcação das
terras indígenas. O Min. Roberto Barroso em voto dos embargos de
declaração afirmou que “o acórdão embargado ostenta força moral
e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que
decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da
superação de suas questões”.
Após a formulação destas salvaguardas o STF vem
aplicando as condicionantes formuladas nos casos submetidos a
sua apreciação, por exemplo, para anular as demarcações da Terra
Indígena Guyararoka, da etnia Kaiowa (RMS 29.087, 2014) e da
terra indígena Limão Verde, da etnia Terrena, ambas no Mato
Grosso do Sul, no julgamento da (ARE 803.462 AgR), elas foram
impossibilitadas de terem suas terras demarcadas pela
condicionante do marco temporal, assim como a Terra Indígena
Porquinhos, da etnia Kanela Apanyekrá, no Maranhão (RMS
447
29.542, 2014), que teve seu reconhecimento obstado pela
condicionante que veda a ampliação das terras demarcadas.
(PEREIRA, 2017, p. 16)
Inclusive no julgamento do RMS 29.087 o Ministro
Gilmar Mendes afirma que “na PET 3.388, o Supremo Tribunal
Federal estipulou uma série de fundamentos e salvaguardas
institucionais relativos à demarcação de terras indígenas”
mencionando ainda “o precedente de Raposa Serra do Sol não se
dirige apenas ao caso de Raposa Serra do Sol. Basta ler os
enunciados para saber que muitos deles não se aplicam à Raposa
Serra do Sol, até porque já estava realizado”.
Com isto, embora tenha sido afirmado no julgamento que
as salvaguardas constitucionais redigidas teriam somente aplicação
no caso concreto e que funcionaria apenas como um auxílio de
exercício hermenêutico, a Suprema Corte vem aplicando tais
salvaguardas a outros julgamentos, conforme apontado.
O caso do julgamento do RMS 29.087 trata da análise da
demarcação da Terra Indígena Guyararoka, que no momento da
promulgação da constituição (5 de Outubro de 1988) não estavam
povoando parte da terra que pleiteavam. Dentro da perspectiva do
marco temporal estes indígenas só teriam direito a essa demarcação
caso comprovassem que não ocupavam a terra por renitente
esbulho.
No julgamento do caso concreto o STF decidiu
desfavoravelmente aos indígenas, pois entendeu que os índios
residiram na área somente até a década de 40. O Ministro Celso de
Mello no em seu voto, analisando a validade da aplicação das

448
salvaguardas produzidas no julgamento da Petição 3.388 para este
caso em concreto afirmou,

É importante enfatizar, neste ponto, que essas


diretrizes, tais como definidas pelo Supremo
Tribunal Federal, acentuam a força normativa
da Constituição Federal, pois derivam,
essencialmente, do próprio texto de nossa Lei
Fundamental (...) Plenário do Supremo
Tribunal Federal, ao julgar os embargos de
declaração opostos ao acórdão proferido na
PET 3.388/RR, reafirmou a extração
eminentemente constitucional desses
requisitos, assinalando-lhes a condição de
pressupostos legitimadores da validade do
procedimento administrativo de demarcação
das terras indígenas

Desta forma, embora o julgamento da Petição 3388 opere


efeitos inter partes as salvaguardas arroladas pelo STF neste
julgamento, ainda servem de parâmetro quando a Corte Superior é
chamada a se manifestar sobre o tema.
A abordagem que o STF utilizou no julgamento foi alvo
de inúmeras críticas, sobretudo pela inovação que estas medidas
representam dentro do ordenamento jurídico. O jurista José
Afonso da Silva em parecer sobre o Julgamento da Petição 3.388
sustentou a inconstitucionalidade do marco temporal e da
aplicação do conceito de renitente esbulho

449
A Constituição de 1988 é o último elo do
reconhecimento jurídico constitucional dessa
continuidade histórica dos direitos dos índios
sobre suas terras e, assim, não é o marco
temporal desses direitos, como estabeleceu o
acórdão da Pet. 3.388. O termo “marco” tem
sentido preciso. Em sentido espacial, marca
limites territoriais. Em sentido temporal,
marca limites históricos, ou seja, marca
quando se inicia situação nova na evolução de
algo. Pois bem, o documento que deu início e
marcou o tratamento jurídico dos direitos dos
índios sobre suas terras foi a Cata Régia de
1611 (...) aqui temos inequivocamente um
marco temporal – o reconhecimento jurídico-
formal dos direitos originários dos índios
sobre as terras que ocupam. Outro marco
nessa continuidade histórica está no
reconhecimento constitucional daqueles
direitos. Por que, neste caso, temos um marco
temporal? Porque se dá àqueles direito uma
nova configuração jurídico-formal, retirando-
os das vias puramente ordinárias para
consagrá-las como direito fundamentais
dotados de supremacia constitucional. Isso,
como visto, se deu com a Constituição de 1934
(...) As demais constituições deram
continuidade a essa consagração formal até a
Constituição de 1988 que acrescentou o
reconhecimento de outros direitos (...)
(SILVA, 2015, p. 9)

Apesar da aplicação destas salvaguardas não serem


pacíficas, existe ainda a tentativa do governo executivo em integrar

450
estas salvaguardas ao procedimento de demarcação, o que colocaria
um fim em todas as divergências que as mesmas suscitam.
Nesta tentativa, já foram editadas diversas portarias pela
AGU, com diferentes entendimentos quanto a aplicação ou não
destas salvaguardas. Em 2012 foi editada a portaria nº 303 que
determinou que todas as dezenove salvaguardas definidas no
julgamento da PET. 3.388 integrassem o procedimento para a
demarcação das terras indígenas, inclusive para as terras que já
haviam sido demarcadas3- entretanto este instrumento normativo
foi alvo de diversas críticas consoante a sua validade, ao seu
conteúdo e eficácia, sendo posteriormente suspensa pela Portaria
da AGU n. 308 de 2012.
Quando foram opostos embargos de declaração da
decisão proferida na PET. 3.388, a portaria da AGU ainda estava
suspensa, sendo que em 2014 foi editada a Portaria 27 que
determinou à Consultoria-Geral da União e à Secretaria-geral de
Contencioso a análise da validade da Portaria 303 de 2012 com a
decisão proferida nos embargos. Sendo que em 2016 o Advogado-
Geral da União por meio do Despacho n.
358/2016/GABAGU/AGU determinou que enquanto os estudos
solicitados na Portaria 27 não fossem concluídos a portaria 303
teria sua eficácia suspensa.

3
Artigo1 (...). Artigo 2º. Os procedimentos em curso que estejam em desacordo
com as condicionantes indicadas no artigo 1º serão revistos no prazo de cento e
vinte dias, contado da data da publicação desta Portaria. Artigo 3º. Os
procedimentos finalizados serão revisados e adequados a presente Portaria.
451
E assim esta portaria teve sua eficácia suspensa até Julho
de 2017, quando foi editado o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU
que determinou que “nos processos de demarcação de terras
indígenas, os órgãos da Administração Pública Federal, direita e
indireta, deverão observar” as salvaguardas elaboradas pelo STF no
julgamento da Petição 3.388.
Este parecer foi aprovado pelo Presidente da República
em Julho de 2017, com isto, após a publicação do despacho
presidencial, o respectivo parecer assume caráter normativo e passa
a vincular todos os órgãos e entidades da Administração Federal,
que ficam obrigados a cumprir suas determinações.
Com isto todas as salvaguardas definidas pelo STF agora
compõem o procedimento de demarcações de terras indígenas.
Importante ressaltar que esta portaria foi objeto de uma
Representação interposta perante a Procuradoria Geral da
República pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil – APIB
questionando a legalidade de tal parecer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo trazer um panorama


da demarcação de terras indígenas 30 anos após a vigência da
Constituição de 1988, trazendo os principais julgados da Suprema
Corte nesta matéria.
Como visto, apesar das conquistas alcançadas no plano
jurídico constitucional, na pratica os povos originários ou
indígenas ainda encontram sérias dificuldades e obstáculos à
efetivação do texto maior. De um lado, chama atenção o número
452
decrescente ao longo desses últimos anos de terras demarcadas. De
outro, avulta o fato de a Suprema Corte ter criado uma série de
fatores limitadores do procedimento demarcatório, agora
incorporados enquanto orientação jurídica da Advocacia Geral da
União.
Não obstante todo o quadro normativo constitucional, os
povos originários seguem, ao que tudo indica, marginalizados e
vulneráveis diante da não efetivação dos seu direitos, juntamente
com toda uma série de pressões exógenas sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, e nas quais baseia-se a possibilidade de
sua existência digna.

453
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Dispõe sobre o Estatuto do índio. Brasília. Distrito Federal. 1973.

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Relatada pelo Min. Carlos Britto e julgada pelo Tribunal Pleno em
19 mar. 2009a.

454
________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.
183.188. Relatado pelo Min. Celso de Mello e julgada pelo
Tribunal Pleno em 19 mar. 2009b.

__________. Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012, que


estabelece a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental
de Terras Indígenas.

_________ Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de


Inconstitucionalidade n. 4903. Relatada pelo Min. Luiz Fux e
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demarcação de terras indígenas. Portal Justificando. 18 de Jun
de 2017. Disponível em
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/28/o-supremo-e-
nao-demarcacao-de-terras-indigenas/>.

457
CIDADES ACESSÍVEIS COMO INSTRUMENTO DA
SUSTENTABILIDADE

ACCESSIBLE CITIES AS AN INSTRUMENT OF THE


SUSTAINABILITY

Flávia Piva Almeida Leite 1

RESUMO: O objetivo deste estudo é analisar o direito que às


pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida têm de se
locomoverem de forma livre e autônoma pelos espaços das cidades
como uma forma de concretizar a cidadania social. O direito de
acesso ao meio físico da cidade, sobretudo para essas pessoas foi
assegurado na Constituição Federal brasileira, na Convenção dos
Direitos da Pessoa com Deficiência e, em diversas normas
infraconstitucionais. Cabe ao Município a promoção do adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo, sendo, portanto, o
responsável por formular a política urbana e fazer cumprir, as
funções sociais e ambientais da cidade, possibilitando acesso e
garantindo o direito a todos os que nela vivem à moradia, aos
serviços e equipamentos urbanos, ao transporte público, ao
saneamento básico, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer e,
notadamente, o acesso ao meio físico aos que vivem na cidade
(artigo 30, VIII e 182 da CF). Para regulamentar o artigo 182 da CF,
é aprovada Lei n. 10.257, de 2001 denominada Estatuto da Cidade,

1
Doutora em Direito pela PUC-SP. Professora da Faculdade de Arquitetura, Artes
e Comunicação - no Departamento de Ciências Humanas da
FAAC/UNESP/Bauru. Professora do Programa de Mestrado em Direito da
UNESP/Franca.
458
que traz em seu artigo 2º o direito a cidades sustentáveis, como
sendo aquelas em que o desenvolvimento urbano deve possibilitar
a seus habitantes uma vida digna, mediante o direito à terra urbana,
ao transporte, aos serviços, em nosso trabalho, o direito à
acessibilidade, para as presentes e futuras gerações. A metodologia
utilizada na elaboração da pesquisa constitui-se em estudo
descritivo-analítico, desenvolvido por meio de pesquisa do tipo
bibliográfica, pura quanto à utilização dos resultados, e de natureza
qualitativa. A partir de pesquisas doutrinárias e bibliográficas,
conclui-se que a acessibilidade funciona como um instrumento
para que se alcance a sustentabilidade nas cidades. E uma cidade
acessível é uma cidade de e para todos, uma cidade que contempla
a diversidade. Todavia, o que se constata ainda é que a maioria das
cidades ainda continua sendo projetada e adaptada sem considerar
a diversidade.
PALAVRAS-CHAVE: Pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida; Direito à acessibilidade; Cidades; Cidades sustentáveis,
Lei Brasileira de Inclusão.

ABSTRACT: The core of this study is to analyze the right of


persons with disabilities or reduced mobility to move freely and
autonomously through city spaces as a way of achieving social
citizenship. The right of access to the physical environment of the
city, especially for these people was ensured in the Brazilian Federal
Constitution, the Convention on the Rights of Persons with
Disabilities, and in various infraconstitutional issues. It is the
responsibility of the Municipality to promote adequate land
planning, through planning and control of land use, land
subdivision and occupation, and is therefore responsible for
formulating urban policy and enforcing the city's social and
environmental functions, providing access and guaranteeing the

459
right to all those who live in it, housing, urban services and
facilities, public transport, basic sanitation, health, education,
culture and leisure, and especially access to the physical
environment for those who live in the city (article 30, VIII and 182
of the Federal Constitution). In order to regulate article 182 of the
Federal Constitution, Law 10.257 of 2001, called the Statute of the
City, which includes in its article 2 the right to sustainable cities,
such as those in which urban development must enable its
inhabitants to live a dignified life, through the right to urban land,
transportation, services , in our work, the right to accessibility, for
present and future generations. The methodology used in the
elaboration of the research is a descriptive-analytical study,
developed through research of the bibliographic type, pure as to the
use of the results, and of a qualitative nature. Based on doctrinal
and bibliographical research, it is concluded that accessibility
works as a tool to achieve sustainability in cities. And an accessible
city is a city of and for all, a city that contemplates diversity.
However, it remains to be seen that most cities are still being
designed and adapted without regard to diversity.
KEYWORDS: People with disabilities or reduced mobility; Right
to accessibility; Cities; Sustainable Cities, Brazilian Inclusion Law.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Conceito de pessoa com deficiência e pessoa com Mobilidade
Reduzida.
3. Direito à acessibilidade: breves considerações sobre sua
normatização no Brasil.
3.1 Acessibilidade como instrumento da sustentabilidade.
Considerações Finais.
Referências.

460
INTRODUÇÃO

A cidade, desde sua gênese, é marcada pela necessidade


que os serem humanos têm de se agregar, para se interrelacionar,
para se proteger, para produzir e trocar bens e serviços. Enfim, a
cidade é o lugar da realização do bem comum, vez que há
sentimentos e anseios que só se concretizam na diversidade que a
vida em comunidade proporciona.
Com o fenômeno da industrialização, a sociedade tornou-
se essencialmente urbana. Todavia, ela produz metrópoles,
conurbações, cidades industriais, grandes conjuntos habitacionais.
No entanto, fracassa na ordenação dos seus espaços. Esses
fenômenos levaram a uma ocupação caótica, irracional e ilegal do
solo urbano; aliado a esses fatores, dá-se também a falta de
orientação, execução e fiscalização eficiente para as obras e
edificações e calçadas, resultando um cenário não muito positivo
para a qualidade de vida das pessoas que habitam as cidades.
A concentração nas grandes cidades tende a se acentuar.2
No Brasil, essa tendência também acontecerá. 3 E, quanto maiores

2
De acordo com estimativas da Organização das Nações Unidas - ONU, entre
1990 e 2025, haverá nas cidades cinco bilhões de pessoas, sendo que 80% vão estar
nesta parte do planeta.
3
Nesse sentido o Ministério das Cidades em seu Caderno de Referencia para
Elaboração de Plano de Mobilidade Urbana – PlanMob, assevera em sua pagina
18 que:“segundo o censo do IBGE de 2010, mais de 80% da população brasileira
vive em cidades. A Organização das Nações Unidas – ONU prevê ainda que em
2030 a população urbana brasileira passará para 91%. A taxa de urbanização
brasileira é superior à de países mais desenvolvidos. No mundo, este valor
recentemente ultrapassou os 50%, segundo o World Factbook 2010 (CIA, 2010)...
461
forem as cidades, mais ou seus habitantes dependerão de
infraestrutura para terem pleno acesso às oportunidades de
trabalho e de consumo nelas concentradas. Todavia, o padrão de
urbanização tem ocasionado a perda, por parte dessa população, da
qualidade de vida nas cidades.
Dentro desse contexto, a cidade e seus espaços, quando
não são acessíveis para as pessoas com deficiência, deixam de ser
um local de convívio, de encontro, de troca, do compartilhamento
(espaços de inclusão social), sustentáveis para tornarem-se locais
de exclusão social.
Esta exclusão, segundo esclarece Regina Cohen e Cristina
Duarte (2010, p. 85), produzida pelo meio, acontece "quando os
espaços se transformam na materialização de práticas sociais
segregatórias e de uma visão de mundo que dá menor valor às
diferenças sociais, físicas, sensoriais e intelectuais."
Assevera José Afonso da Silva (2006, p. 26), que "cidade
no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de
sistemas político-administrativo, econômico não agrícola, familiar,
simbólico como sede do governo municipal, qualquer que seja a sua
população. A característica marcante na cidade no Brasil consiste
no fator de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal.
Cabe ao Município a promoção do adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo, sendo, portanto, o

“.Cf. Brasil. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Transporte e da


Mobilidade. Brasília, 2015. Disponível em:
<http://planodiretor.mprs.mp.br/arquivos/planmob.pdf>. Acesso em: 21 jul.
2018.
462
responsável por formular a política urbana e fazer cumprir, as
funções sociais e ambientais da cidade, possibilitando acesso e
garantindo o direito a todos os que nela vivem à moradia, aos
serviços e equipamentos urbanos, ao transporte público, ao
saneamento básico, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer e,
notadamente, o acesso ao meio físico aos que vivem na cidade
(artigo 30, VIII e 182 da CF). Para regulamentar o artigo 182 da CF,
é aprovada Lei nº 10.257, de 2001 denominada Estatuto da Cidade,
que traz em seu artigo 2º o direito a cidades sustentáveis, como
sendo aquelas em que o desenvolvimento urbano deve possibilitar
a seus habitantes uma vida digna, mediante o direito à terra urbana,
ao transporte, aos serviços, em nosso trabalho, o direito à
acessibilidade, para as presentes e futuras gerações.
Afinal, mais de 80% da população brasileira vive em
cidades, é o Município que terá melhor possibilidade para constatar
e solucionar os problemas diários de seus habitantes, dentre eles as
dificuldades que ainda enfrentam as pessoas com deficiência ao
tentarem usufruir dos espaços públicos.

2. CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA E PESSOA


COM MOBILIDADE

A questão da escolha da expressão e da definição mais


adequada do que venha a ser uma pessoa com deficiência é uma
constante nas obras que tratam desse tema. 4 Inúmeros termos e

4
Muitos estudiosos trataram da questão terminológica, todavia, o uso da
expressão não é unívoco entre os mesmos do tema apontado: Guilherme Jose
463
expressões foram utilizados para designá-las, marcado muitas vezes
pela impropriedade e, outras tantas dando uma conotação
negativa. 5 Atualmente, corroborando a terminologia adotada na

Purvin de Figueiredo, “A pessoa portadora de deficiência e o principio da


igualdade de oportunidades no direito do trabalho”, In: Direitos das pessoas
portadoras de deficiência, Luiz Alberto David Araujo, A proteção
constitucional da pessoa portadora de deficiência , Otto Marques da Silva,
Epopeia Ignorada, Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin, A tutela das
pessoas portadoras de deficiência pelo ministério publico, In Direitos das
pessoas portadoras de deficiência, Moacyr de Oliveira, Deficientes e sua tutela
jurídica.
5
A variação dos termos utilizados ao longo da historia no Brasil e muito ampla.
Desde o começo da historia e durante séculos romances, leis, nomes de
instituições e outros meios, utilizavam a expressão inválidos. O termo significava
individuo sem valor, portanto, quem tinha alguma deficiência era considerado
socialmente inútil, um fardo para a família e um peso morto para a
sociedade.Após as duas grandes Guerras Mundiais, o termo utilizado era
incapacitado –aquele individuo sem capacidade, e, posteriormente, o termo
evoluiu e passou a significar individuo com capacidade residual. De 1960 ate mais
ou menos 1980,os indivíduos com deformidade, principalmente física, eram
denominados como defeituosos, deficientes (para o individuo com deficiência
física, mental, auditiva,visual ou múltipla) e excepcionais (para indivíduos com
deficiência mental). No ano de 1981, a ONU instituiu o Ano Internacional das
Pessoas com Deficientes. A sociedade de um modo geral achou difícil começar a
dizer ou a escrever pessoas deficientes, melhorando a imagem dessas pessoas,
levando a associar o termo deficiente ao substantivo pessoa. Passou-se então, a se
atribuir o valor pessoa aquele que tinha deficiência, equiparando-o seus direitos
e dignidade a todos os membros da sociedade. De 1988 a 1993, muitas
organizações contestaram a expressão pessoa deficiente, alegando que ela
considerava o individuo deficiente na totalidade. Nos países de língua portuguesa,
tal expressão foi substituída por pessoa portadora de deficiência (portar uma
deficiência passa a ser vista como um valor agregado a pessoa), expressão utilizada
por nossa Constituição Federal de 1988. Com a Resolução n° 2 do Conselho
Nacional de Educação e da Câmara de Educação Básica, em 2001, em seu artigo
5°, utilizam a expressão pessoas
464
Convenção da ONU sobre Direitos da Pessoa com Deficiência,
primeira Convenção de Direitos Humanos votada e aprovada
como determina o artigo 5, § 3º do Constituição Federal e,
regulamentando a mesma, com a edição, em âmbito nacional, da
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da
Pessoa com Deficiência), Lei nº 13.146/2015, a expressão pessoa
com deficiência é a terminologia mais viável e adequada dentro do
contexto atual do movimento de inclusão.
O conceito de pessoa com deficiência é extremamente
complexo, em razão dos inúmeros fatores e elementos que podem
gerar uma condição de deficiência.
Importante lembrarmos que, estimativas mais recentes do
Censo do IBGE-2010 apontam que 45.606.048 de brasileiros, 23,9%
da população total, têm algum tipo de deficiência – visual, auditiva,
motora e mental ou intelectual.(CARTILHA, 2010, p.6)
É importante salientar que esses números refere-se ao
total das deficiências, não considerando as pessoas com restrição de
mobilidade que segundo, dispõe o artigo 3., inciso IX da Lei
Brasileira de Inclusão é considerada aquela que tenha, por qualquer
motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária,
gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da

com necessidades especiais. Apos a Conferencia Mundial sobre Educação de


necessidades Especiais: Acesso e qualidade, em Salamanca, na Espanha,
utilizaram a expressão necessidades educacionais especiais, tendo em vista que a
inclusão na educação não se dirige as pessoas com deficiência, mas a todas as
pessoas que tenham necessidades educacionais especiais. Conforme Romeu
Kazumi Sassaki. Como chamar as pessoas com deficiência? Disponível em:
<http://www.cvi.org.br/como-chamar.asp> Acesso em: 10 maio 2018.
465
coordenação motora ou da percepção, incluindo idoso, gestante,
lactante, pessoa com criança de colo e obeso.
Com relação ao conceito de pessoa com deficiência,
segundo dispõe Luiz Alberto David Araujo, "quando se fala em
deficiência, pensa-se, de imediato, naquela surdez ou a cegueira. No
campo da deficiência mental, os motivos são inúmeros". (ARAUJO,
2003, pp. 23, 24)
A caracterização de uma pessoa com deficiência possui
uma forte carga social, ou melhor, de falta de sua integração social.
Neste sentido preleciona David Araujo:

O que define a pessoa portadora de deficiência


não é a falta de um membro nem a visão ou
audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa
portadora de deficiência é a dificuldade de se
relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de
dificuldade de se relacionar, de se integrar na
sociedade. O grau de dificuldade para integração
social é que definirá quem é ou não portador de
deficiência. Importante frisar que a falha, ou falta,
não se situa no indivíduo, mas em seu
relacionamento com a sociedade.

Assim, a possível incapacidade não está na deficiência em


si, mas nas dificuldades que estas pessoas encontram na sociedade,
quando não têm acesso de locomoção ao meio físico, não
conseguem ter acesso aos serviços públicos, ao emprego, dentre
outras; tais dificuldades enfrentadas por essas pessoas fazem com
que sejam excluídas, desprezadas, abandonadas do convívio social.
Daí é necessário uma definição que leve em consideração a
466
pluralidade de interesses da sociedade contemporânea, a partir de
uma superação de concepção sobre a deficiência que as ligam a um
modelo que vê a deficiência como uma doença, como um problema
tão somente do indivíduo.
Tanto que o preâmbulo da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, encontramos afirmado que a
deficiência é um conceito em evolução e resultante da interação
com as barreiras existentes, conforme dispõe texto legal:

Reconhecendo que a deficiência é um conceito


em evolução e que a deficiência resulta da
interação entre pessoas com deficiência e as
barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que
impedem a plena e efetiva participação dessas
pessoas na sociedade em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas.

Falar que a deficiência é um conceito em evolução é


reconhecer que estamos descobrindo, ainda que de forma paulatina
e contínua, que as pessoas com deficiência têm capacidades e, que
se elas continuarem tendo oportunidades (oportunidades que
nunca antes puderam vivenciar), poderão, cada vez mais,
demonstrá-las e desenvolvê-las. (FÁVERO, 2007, p. 91)
Quando às barreiras externas mencionadas no
preâmbulo, significa que, se o ambiente não oferecer nenhum
obstáculo ou barreira, a limitação funcional em si, do indivíduo,
não irá descapacitá-lo. Quanto mais adaptado for o ambiente e as
pessoas que o integram, menor a limitação decorrente da

467
deficiência.
Para melhor compreensão da afirmação contida no
preâmbulo da Convenção utilizaremos a explanação trazida por
Laís de Figueirêdo Lopes, a partir de uma equação matemática
elabora por Marcelo Medeiros, apresentada em seu paper na
Oficina de Alianças para o Desenvolvimento Inclusivo na
Nicarágua em 2005, os componentes desta fórmula são(troque ‘os
componentes desta fórmula são’ por ‘cujos componentes são’):
deficiência é igual limitação funcional multiplicada pelo ambiente
(deficiência = limitação funcional X ambiente). Assim, se
atribuirmos o valor zero 6 ao ambiente por ser um local que não
oferece obstáculo ou barreira, e multiplicarmos por qualquer que
seja o valor atribuído à limitação funcional do indivíduo, a
deficiência terá como resultado zero. Esclarece ainda que, por esta
teoria não estaríamos dizendo que a deficiência desapareceria, mas
tão somente que ela deixaria de ser uma questão problema, e a
recolocaria como uma questão resultante da diversidade. Todavia,

6
Segundo explicações fornecidas pela autora Laís de Figueirêdo Lopes em nota
de rodapé: "parte das incongruências matemáticas desta fórmula seria reduzida
caso se convencionasse atribuir valores a cada fator variáveis de um mínimo de 1
a um máximo de 5, o que colocaria o valor final da deficiência sempre no intervalo
de 1 a 25. Um seria o valor mínimo e 25 o valor máximo, eliminando o desvio
introduzido pela multiplicação por zero, que iguala os resultados que deveriam
ser diferentes. De qualquer forma, essa é uma digressão de menor importância,
dadas as dificuldades óbvias de mensuração e quantificação das variáveis
consideradas. Ressalte-se o valor didático e político da equação contido na
explicação da importância da interação das pessoas com deficiência com seu
entorno". In: LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA
FILHO, Waldir Macieira (coord.). Comentário ao Estatuto da Pessoa com
Deficiência, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 21.
468
ao invés de zero o ambiente apresentasse obstáculos e tivesse um
valor maior o aumento desse impacto seria progressivo em relação
à funcionalidade do indivíduo, sendo mais potencializada quanto
mais severa for a limitação funcional da pessoa com deficiência e
quanto mais barreiras apresentar o ambiente onde ela estiver
inserida.
Essa visão foi incorporada pela Convenção, alterando o
paradigma do modelo médico, aquele que via a deficiência como
uma doença que deveria ser tratada, para o modelo social, no qual
a deficiência não é um atributo da pessoa, mas uma condição que
se expressa a partir de dificuldades, de barreiras sociais, e
especificamente em nosso texto, das barreiras físicas, em que terá o
indivíduo que transpô-las para poder usufruir plenamente dos
espaços em que vive. Isto não significa que desprezemos as
alterações na estrutura funcional ou corporal trazidas pela
deficiência mas apenas que devemos ter em mente que essas
alterações isoladas, não são o que determinam as possíveis
dificuldades ou obstáculos que terão que ser enfrentados pelas
pessoas com deficiência, principalmente em seu ambiente físico;
em suas cidades.
O artigo 2º da Lei nº 13.146/2015 - Lei Brasileira de
Inclusão trouxe um conceito muito semelhante ao positivado na
Convenção:
Artigo 2º Considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras, pode obstruir

469
sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais
pessoas.

Manteve a necessidade que o impedimento seja de longo


prazo. Acrescentou a ideia que a avaliação da deficiência pode ser
desnecessária. Servirá sempre que for relevante para definir o
universo de beneficiários dos direitos garantidos. E, quando a
avaliação for necessária, deverá ser feita de forma biopsicossocial,
ou seja, deverá realizar uma análise contextual, que envolva a
história clínica e a história social do indivíduo, agregando à análise
das condições de saúde o olhar social, do entorno, para fins de
avaliação de deficiência, a partir de equipe multidisciplinar.
Historicamente, a lei brasileira categorizou a deficiência segundo
critérios médicos, sendo a clássica divisão feita em “tipos de
deficiência”, quais sejam, deficiência física, visual, auditiva, mental
e múltipla. (LOPES, 2016, p. 49)
Para organizar o processo e harmonizar a legislação, o
Decreto n. 5.296, de 2004 7, ainda vigente e não revogado pela LBI,

7
Decreto n. 5.296, de 2004, em seu artigo "5º (...),§ 1º. Considera-se, para os efeitos
deste Decreto:
I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de
16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho
de atividade e se enquadra nas seguintes categorias:
a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do
corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-
se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia,
tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação
ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade
congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam
dificuldades para o desempenho de funções;
470
deverá ser revisto com base na mudança do modelo médico par ao
modelo social de direitos humanos.
O Brasil há algum tempo vem estudando a migração dessa
classificação mais típica do modelo médico, que é eminentemente
baseada em perícia médica, para incluir os componentes do modelo
social, que considera também o serviço social na avaliação.
Avançando no processo de construção de uma sociedade
que respeite a diversidade, aquele que adota práticas inclusivas;
defendemos o conceito de pessoas com deficiência trazida pela
Convenção, ou seja, o conceito amplo trazido pelo modelo social.

b) auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou


mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e
3.000Hz;
c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05
no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa
acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os
casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for
igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições
anteriores;
d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à
média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas
ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
1. comunicação;
2. cuidado pessoal;
3. habilidades sociais;
4. utilização dos recursos da comunidade;
5. saúde e segurança;
6. habilidades acadêmicas;
7. lazer; e
8. trabalho;
e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências.

471
Deixamos essa concepção que vê a deficiência com um enfoque
negativo, ligada apenas ao corpo do sujeito; aquele que se baseia na
incapacidade, para substituí-lo, por um enfoque positivo, que a
considera como uma condição que se expressa nos obstáculos
enfrentados por essas pessoas. A possível incapacidade não está na
deficiência em si, mas nas inúmeras barreiras instransponíveis que
podem impedi-las de usufruir de forma plena e efetiva da
sociedade. No caso do nosso trabalho, da falta de acessibilidade nos
espaços da cidade.

3. DIREITO À ACESSIBILIDADE: BREVES


CONSIDERAÇÕES SOBRE SUA NORMATIZAÇÃO NO
BRASIL

A toda pessoa é garantido o direito de ir e vir, esse direito


vem assegurado como um dos direitos fundamentais previsto no
artigo 5, inciso XV, da nossa Constituição Federal de 1988. O
direito de locomoção é a possibilidade ampla que tem o indivíduo
de circular livremente, conforme seu desejo. Nesse sentido, é o
magistério de José Afonso da Silva que afirma que o direito de
locomoção implica o de circulação. E conceitua o direito de
circulação como a "faculdade de deslocar de um ponto a outro
através de uma via pública ou afetada ao uso público." (SILVA,
2009, p. 111)
Todavia, esse deslocamento de forma autônoma e sem
barreiras pelos espaços da cidade não tem sido uma realidade.
Afinal, ao longo dos anos, as cidades foram construídas e projetadas
sem considerar a diversidade humana e continuam fisicamente
472
inacessíveis. Arquitetos e engenheiros utilizam em seus projetos a
escala humana ideal como medida de referência (método
Vitruviano)8. As cidades contemplaram e continuam a contemplar
em seus projetos o indivíduo perfeito, de preferência jovem, forte e
no ápice de seu vigor físico - capacidades físicas e sensoriais.
Esquecem que qualquer indivíduo, a qualquer momento de sua
vida, poderá ter sua mobilidade reduzida, até mesmo em
consequência do envelhecimento. Ou esquecem que em suas
cidades há inúmeras pessoas com algum tipo de deficiência. Essas
pessoas não são vistas em nossas cidades porque postos de saúde
são construídos, ainda sem rampas, calçadas sem rebaixamento na
maior parte das vias de circulação, praças totalmente inacessíveis,
transportes públicos sem adaptação adequada dentre tantas outras
dificuldades, sendo projetados e construídos em total desacordo
com as normas que dispõem sobre a acessibilidade e, por
conseguinte, sem a prática do desenho universal.
A questão da acessibilidade não é um tema tão recente. No
Brasil, tal como acontece em muitos países, começou a ser
abordado em 1981, quando foi declarado o Ano Internacional dos

8
Marcus Vitruvius Pollio, ou Vitruvio, segundo anota Silvana Serafino
Cambiaghi, em sua obra Desenho Universal: métodos e técnicas para arquitetos
e engenheiro, p. 39, viveu no século I a C. O engenheiro romano apresenta em
sua obra De Architectura, um modelo ideal para o ser humano, segundo
determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na divina
proporção. Na descrição feita pelo arquiteto, as diferentes partes do corpo
formam um conjunto harmonioso de proporções. A arquitetura deveria seguir a
mesma concepção, isto e, considerar a proporcionalidade entre as partes para
completar o todo harmoniosamente. Os seus padrões serviram de fonte
inspiradora a diversos textos sobre construção e arquitetura.
473
Portadores de Deficiência pelas Nações Unidas. No ano de 1982, a
mesma Organização aprovou o Programa de Ação Mundial para
Pessoas com Deficiência, ressaltando o direito dessas pessoas com
deficiência de terem à(a)s mesmas oportunidades que os demais
cidadãos e desfrutarem, em condições de igualdade, de melhorias
nas condições de vida resultantes do desenvolvimento econômico
e social.
Dentro desse contexto, o Brasil publicou a primeira
norma técnica sobre o tema – a NBR 9050⁄1985 – Adequação das
Edificações e do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente, elaborada
pela comissão de estudos do Comitê Brasileiro da Construção Civil,
da Associação Brasileira de Normas Técnicas.
Após três anos, foi promulgada a Constituição Federal de
1988, que disciplina a acessibilidade, quando assegura, no artigo
227, § 2°, que a Lei disporá sobre normas de construção dos
logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de
veículos de transporte coletivo, a fim de garantir o acesso adequado
às pessoas com deficiência, e, no artigo 244 complementa a citada
norma, acrescentando que a lei disporá sobre a adaptação dos
logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de
transporte coletivo atualmente existentes, a fim de garantir acesso
adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o
disposto no artigo 227, § 2°.”
Atendendo a tal comando, foi publicada a Lei n° 7.853⁄89,
que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua
integração social, sobre a CORDE (Coordenadoria Nacional para
Integração da Pessoa com Deficiência), institui a tutela
jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas,
474
disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá
outras providências. Em seu artigo 2° já assegurava que os órgãos e
entidades da Administração direta e indireta devem dispensar
tratamento prioritário e adequado às pessoas com deficiência,
determinando, na área das edificações, a adoção e a efetiva
execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações
e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas com
deficiência, permitindo o acesso destas a edifícios, a logradouros e
a meios de transportes.
O Decreto n° 3.298⁄99 que regulamentou a Lei n° 7.853⁄89
trouxe como um dos objetivos da Política Nacional para Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência o acesso, o ingresso e a
permanência delas em todos os serviços oferecidos à comunidade,
estabelecendo em seu artigo 2°, parágrafo único, que os órgãos e
entidades da administração direta e indireta devem dispensar
tratamento prioritário e adequado para viabilizar medidas em
diversas áreas, dentre as quais, a adoção e execução de normas que
garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que
evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência
e que permitam o acesso destas aos edifícios, logradouros e meios
de transporte.
A acessibilidade foi novamente tratada pela lei n°
10.048/00 que assegura tratamento prioritário às pessoas com
deficiência, idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas
acompanhadas por crianças de colo. Essa Lei obriga as repartições
públicas, empresas concessionárias de serviço público e instituições
financeiras a dispensar tratamento prioritário, por meio de serviços

475
individualizados á essas pessoas, bem como sejam reservados
assentos nos transportes coletivos; orienta ainda que compete às
autoridades adotarem normas de construção e licenciamento para
garantir acessibilidade em logradouros e sanitários públicos, bem
como em edifícios de uso público e também, a acessibilidade nos
meios de transportes.
A lei n° 10.098/00 estabelece normas gerais e critérios
básicos para promoção da acessibilidade das pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida, nas edificações públicas
ou privadas, no espaço público, logradouros e seu mobiliário, nas
comunicações e sinalização entre outros. O objetivo desta lei será
alcançado quando forem suprimidas as barreiras e obstáculos nas
vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e
reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação.
Para os fins da lei são estabelecidas várias definições em seu
capítulo primeiro, dentre as quais, o que é acessibilidade, barreiras,
elementos de urbanização, mobiliário urbano, ajuda técnica e, de
forma simplificada, a definição de pessoa portadora de deficiência.
Após quatro anos foi publicado o Decreto n° 5.296, de 02
de dezembro de 2004 que regulamentou as Leis n° 10.048⁄00, que
dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica e, a de n°
10.098⁄00, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a
promoção de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade reduzida. Ficam sujeitos ao cumprimento deste
Decreto, a aprovação de projeto de natureza arquitetônica e
urbanística, de comunicação e informação, de transporte coletivo e
a execução de qualquer tipo de obra, de destinação pública ou
coletiva; a outorga de permissão, autorização ou habilitação de
476
qualquer natureza; a aprovação de financiamento de projetos com
a utilização de recursos públicos, por meio de convênio, acordo,
ajuste, contrato ou similar; e a concessão de aval da União na
obtenção de empréstimos e financiamentos internacionais por
entes públicos ou privados.
A luta pela inclusão dessas pessoas em todos os segmentos
da sociedade não parou. A ONU, preocupada com as sucessivas
violações dos direitos humanos das pessoas com deficiência no
mundo inteiro, conclui que esse grupo demandava uma atitude
institucional da comunidade internacional, e, em 30 de março de
2007, em sua sede em Nova Iorque, assinou a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo.
Como mencionamos anteriormente, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo
passou a ser o primeiro Tratado Internacional a ingressar na nossa
ordem jurídica interna com status de equivalência constitucional,
por ter sido aprovado nos exatos termos da regra imposta pelo § 3º
do artigo 5º da Constituição Federal. A principal contribuição desta
Convenção é a positivação da mudança de paradigma da visão da
deficiência no mundo, que passa do modelo médico, no qual a
deficiência é tratada como um problema de saúde, para o modelo
social dos direitos humanos, no qual a deficiência é resultante de
uma equação que tem duas variáveis, quais sejam as limitações
funcionais do corpo humano e as barreiras impostas pelo ambiente
exclusivo ao indivíduo.
A Convenção, ao ter reconhecido o modelo social como o
mais novo paradigma para conceituar as pessoas com deficiência,

477
embasou também a consolidação da acessibilidade positivada como
princípio fundamental para que esse segmento concretize seus
direitos fundamentais em todos os aspectos de suas vidas. Assim, a
Convenção reconheceu expressamente à importância da
acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à
saúde, à educação, e à informação e comunicação, para possibilitar
às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais. E seu artigo 3°, juntamente
com o respeito à dignidade, a autonomia individual, aliada a
liberdade de fazer suas próprias escolhas, a independência, a não-
discriminação, a plena e efetiva participação e inclusão, o respeito
à diferença, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade foi
elencada como um dos princípios gerais que deverão nortear a vida
das pessoas com deficiências. 9
Assim, para que a pessoa com deficiência exerça de forma
efetiva o direito à acessibilidade, a Convenção determinou também
em seu artigo 9°, que os Estados estarão obrigados a tomar medidas
apropriadas para assegurar a sua efetivação, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao
transporte, à informação e comunicação, bem como a outros

9
Artigo 3° - Princípios gerais
Os princípios da presente Convenção são: a) O respeito pela dignidade inerente,
a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a
independência das pessoas;
b) A não-discriminação; c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como
parte da diversidade humana e da humanidade; e) A igualdade de oportunidades;
f) A acessibilidade; g) A igualdade entre o homem e a mulher; h) O respeito pelo
desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das
crianças com deficiência de preservar sua identidade.
478
serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto
na zona urbana como na rural. Mais adiante, aponta que as medidas
destinadas à implementação da acessibilidade deverão incluir a
identificação e eliminação de obstáculos e barreiras, expressamente
determinando o dever de observância de normas de acessibilidade
em edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações
internas e externas, inclusive escolas, residências, instalações
médicas e local de trabalho. Também se exige a acessibilidade no
que diz respeito a informações, comunicações e outros serviços,
inclusive serviços eletrônicos e serviços de emergência.
Com a entrada em vigor da Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) – Lei
nº 13.146, de 07 de julho de 2015, como é de conhecimento, referida
Lei densificou no plano infraconstitucional, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, e, no que tange ao tema
acessibilidade, ratifica e especifica direitos antes já presentes no
ordenamento pátrio.
Na tentativa de cumprir o objetivo da acessibilidade acima
mencionado, trouxe a Lei nº 13.146/2015, em seu artigo 3º, I, o que
considera acessibilidade: Possibilidade e condição de alcance para
utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários,
equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e
comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de
outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou
privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por
pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.

479
E, abrindo o Capítulo referente à acessibilidade, o artigo
53 da Lei nº 13.146/2015 asseverou que a acessibilidade é o direito
que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida
viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e
de participação social.Em seu artigo 55, determinou que a
concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico,
de transporte, de informação e comunicação, inclusive de sistemas
e tecnologias da informação e comunicação, bem como de outros
serviços, equipamentos e instalações abertos ao público, de uso
público ou privado de uso coletivo, seja na zona urbana ou na zona
rural, deverão atender aos princípios do desenho universal.
A expressão desenho universal ou universal designerfoi
cunhada pelo arquiteto Ron Mace, que articulou e influenciou uma
mudança nos paradigmas dos projetos de arquitetura e design
(CAMBIAGHI, 2007, p. 71). Segundo ele, o desenho universal é
utilizado para descrever o conceito de projetar e construir produtos
ou ambientes para ser utilizável, na maior medida possível, por
todos (MACE, 2017). O objetivo principal dessa nova concepção,
segundo assevera José Antonio Lanchotti, é o de “simplificar as
ações do dia a dia de todas as pessoas, produzindo ambientes,
objetos e comunicações que possam ser utilizados por todas as
pessoas sem precisar de custos extras com adaptações ou
adequações, beneficiando usuários de várias idades e habilidades”
(LANCHOTTI, 2005, p. 105).
A definição de desenho universal veio expressa na NBR
9050/2004 da ABNT e no artigo 8º, IX, do Decreto nº 5.296/2004.
Encontramos atualmente a definição de desenho universal na Lei
nº 13.146/2015, em seu artigo 3º, II, como sendo a concepção de
480
produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por
todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto
específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva.
Por sua vez, o artigo 54 da LBI define a abrangência de
aplicabilidade da acessibilidade ao estabelecer que todos os projetos
e as obras com destinação pública ou coletiva, que sejam de
natureza arquitetônica, urbanística, de comunicação e informação
ou a fabricação de veículos de transporte e a prestação do respectivo
serviço, assim como autorizações, outorgas, concessões,
financiamentos, convênios, bem com obtenção de empréstimo e de
financiamentos internacionais por entes públicos ou privados com
aval da União, que tenham interação com a matéria regulamentada,
devem atender ao disposto nesta Lei.
O artigo 55 da Lei nº 13.146/2015 determina que toda a
concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico,
de transporte, de informação e comunicação, inclusive de sistemas
e tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços,
equipamentos e instalações abertos ao público, de uso público ou
privado de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural,
devem atender aos princípios do desenho universal, tendo como
referência as normas de acessibilidade.
No artigo 56, o Estatuto determina que a construção,
reforma, ampliação ou mudança de uso de edificações abertas ao
público, de uso público ou privadas de uso coletivo, deverão ser
executadas de modo a serem acessíveis, sendo que, nos termos do
artigo 57, as edificações públicas e privadas de uso coletivo já
existentes deverão garantir acessibilidade à pessoa com deficiência

481
em todas as suas dependências e serviços, nos termos das normas
de acessibilidade vigentes. O mesmo vale para os edifícios de uso
privado multifamiliar, conforme o artigo 58 do Estatuto.
Cabe registrar que, recentemente, o Presidente Michel
Temer publicou o Decreto de nº 9.296, de 01 de março de 2018 que
regulamentou o artigo 45 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência - Estatuto da Pessoa com Deficiência. Referido
Decreto veio para regulamentar a acessibilidade nos hotéis,
pousadas e estruturas similares e, para tanto, assegura que a
"concepção e a implementação dos projetos arquitetônicos de
hotéis, pousadas e estruturas similares deverão atender aos
princípios do desenho universal e ter como referências básicas as
normas técnicas de acessibilidade da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT),...". (artigo 1º). E no mesmo ano, foi
publicado no dia 26 de julho, o Decreto nº 9.451que determina que
novos empreendimentos habitacionais incorporem recursos de
acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida de acordo com as previsões estabelecidas pela norma NBR
9050 da ABNT. O texto ainda obriga condomínios residenciais a se
adaptarem às regras de acessibilidade em até 18 meses.
Em síntese, determina o Estatuto, à luz do que vem
disposto na Constituição, especialmente com a alteração
promovida pela Convenção da ONU, que um espaço será acessível
(ambiente urbano/rural ou edificação) quando todos puderem
ingressar, circular e utilizar todos os ambientes e não apenas parte
deles. Pois, a essência do desenho universal está no propósito de
estabelecer acessibilidade integrada a todos, sejam ou não pessoas

482
com deficiência. "O termo acessibilidade representa uma meta de
ampla inclusão, não um eufemismo". (CAMBIAGHI, 2007, p. 73)
Sendo assim, é inconcebível, nos dias atuais, que obras
continuem sendo construídas ou reformadas ou projetos
elaborados sem contemplar os princípios do desenho universal e,
consequentemente, sem assegurar a acessibilidade. Portanto, toda
e qualquer construção, reforma ou ampliação tanto públicas e
quanto privadas de uso coletivo, como vias e espaços públicos,
deverão estar acessíveis.

3.1 Acessibilidade como Instrumento da Sustentabilidade

A compreensão do desenvolvimento urbano deve ser


extraída do artigo 182 da Constituição Federal de 1988, que dispõe
que "a política de desenvolvimento urbano, executado pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei têm
como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes." Para
dar eficácia a esse dispositivo, o legislador elaborou vigoroso e
inovador instrumento legislativo, o denominado Estatuto da
Cidade (Lei n. 10.257, de 2001), que em seu artigo 2, inciso I,
repetindo o disposto no caput do artigo 182, determina que:

(...) política urbana tem por objetivo ordenar o


pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade urbana, mediante a
garantia das cidades sustentáveis ,entendido
como o direito à terra urbana, à moradia, ao

483
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (...)
(DI PIETRO, 2010, p. 3)

Na lição de Odete Medauar, o inciso I do artigo 2 do


Estatuto garante o direito a cidades sustentáveis, que significa
"aquela em que o desenvolvimento urbano ocorre com ordenação
sem caos e destruição, sem degradação, possibilitando uma vida
digna para todos", mediante o direito à terra urbana, ao transporte
e aos serviços públicos (...), para as presentes e futuras gerações.
(MEDAUAR, 2004, p. 27)
Assim, a compreensão do desenvolvimento urbano deve
ser extraída do princípio do desenvolvimento sustentável e do
direito ao desenvolvimento previsto no sistema de proteção
internacional dos direitos humanos e do meio ambiente. "Está mais
do que firmado o entendimento de que o meio ambiente e o
desenvolvimento não podem ser considerados isolados um do
outro, já que não há como se relacionar o conceito de interesse
comum da humanidade sem mencionar o meio ambiente e o
desenvolvimento". (CANEPA, 2005, p. 141)
A "Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento",
adotada pela resolução n. 41-128 da Assembleia das Nações Unidas
em 1986, que em seu artigo 1 reconhece esse direito como um
direito humano inalienável e, no seu artigo 2, estabelece que a
pessoa humana é considerada como o sujeito central do
desenvolvimento e deverá ter uma participação ativa e se beneficiar
desse direito. E ainda, que os Estados, a nível, nacional, têm o dever
de tomar as medidas necessárias para realização do direito ao
484
desenvolvimento, de assegurar igualdade de oportunidade para
todos em acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde,
alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa de renda
(artigo 8). Essa Declaração vai ao encontro do princípio do
desenvolvimento sustentável que foi previsto na Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada
no Rio de Janeiro em 1992, pela qual o direito ao desenvolvimento
deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas
equitativamente as necessidades das presentes e futuras gerações.
Dentro desse contexto, nos deparamos com a
necessidade, principalmente de os Municípios adotarem medidas
positivas para incluir as pessoas com deficiência em suas cidades.
O termo desenvolvimento sustentável foi usado pela
primeira vez em 1972, segundo esclarece Maria Manuela Malheiro
Dias Ferreira (2010), no livro The Limits to Growth, escrito por um
grupo de cientistas americanos. Segundo essa mesma autora, o
referido grupo analisou os fatores básicos que poderiam limitar o
crescimento no planeta, tais como a população, a produção
agrícola, os recursos naturais, a produção industrial e a poluição.
O conceito de desenvolvimento sustentável foi cunhado,
segundo esclarece Carla Canepa, pela Comissão Brundtland 10, no

10
O relatório Brundtland consistiu num estado de alternativas para o
desenvolvimento e meio ambiente elabora por um comissão presidida pela
norueguesa GroHarlemBrundtland (única estadista do mundo designada para o
cargo de Primeiro Ministro, depois de ter ocupado pasta do Meio Ambiente),
encomendado pela Assembleia Geral da ONU em 1983 e finalizado em 31 de
dezembro de 1987. Dentre os três grandes grupos de problemas ambientais
classificados, destacam-se as questões sociais ligadas á pessoa humana,
485
processo preparatório à Conferência das Nações Unidas - Rio 92 e
começou a ser divulgado pelo relatório conhecido como "Nosso
Futuro Comum" a partir de 1987. O termo encerra a tese-chave do
que é possível desenvolver sem destruir o meio ambiente. A
formulação do desenvolvimento sustentável consagrado nesse
relatório é "aquele que satisfaz as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras em satisfazer suas
próprias necessidades". (CANEPA, 2005, p. 133)
A década de 2005 a 2014 foi estabelecida pelas Nações
Unidas como a década do "Desenvolvimento Sustentável". No
Documento Final do Plano Internacional de Implementação de
2005 sobre a "Educação para o Desenvolvimento Sustentável" é
afirmado que o conceito de
"desenvolvimento sustentável" continua a evoluir, mas que
compreende três áreas chave - sociedade, ambiente e economia,
sendo a cultura uma dimensão subjacente. Maria Manuela
Malheiro Ferreira Dias esclarece que:

A Sociedade: inclui a compreensão das


instituições sociais e o seu papel na mudança e no
desenvolvimento, assim como os sistemas
democráticas e de participação que permitem a
expressão de opinião, a escolha dos governantes,

principalmente no que se refere ao uso da terra, sua ocupação, abrigo,


suprimentos e água e serviços sanitários, sociais e educativos e a administração
do crescimento urbano. Cf. Direito ambiental internacional: meio ambiente
desenvolvimento sustentável e os desafios da nova ordem mundial: uma
reconstituição da Conferência do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Thex Editora, 1995, p. 32.
486
a formação de consensos e a resolução das
diferenças.
Ambiente: inclui a compreensão da fragilidade
do ambiente físico e dos recursos e os efeitos no
ambiente da atividade humana e das decisões
tomadas, e pressupõe um empenhamento em
considerar os efeitos das políticas de
desenvolvimento social e econômico no
ambiente.
Economia: pressupõe uma sensibilidade na
relação aos limites e potencialidades do
crescimento econômico, e um empenhamento
em avaliar os efeitos dos níveis de consumo
pessoais e sociais no ambiente e na justiça.
A cultura é considerada como uma forma de
estar, de relacionamento, de comportamento, de
acreditar e de atuar das populações, que tem que
ser tida sempre em conta, mas que está em
constante processo de mudança. (FERREIRA,
2018, p. 3)

Na ocasião da Rio 92 aprovou-se um documento


denominado Agenda 21, que estabelece um pacto de mudança do
padrão desenvolvimento global para o século XXI. Nesse sentido
esclarece Carla Canepa:

Sem dúvida, a associação da noção de


sustentabilidade com o desenvolvimento das
cidades passa, obrigatoriamente pelas
rearticulações políticas através das quais os atores
envolvidos na organização e na produção do
espaço urbano procurarão legitimar suas
estratégias de acordo com os princípios
487
estabelecidos principalmente na Agenda 21.
(CANEPA, 2005, p. 142)

Assim, através do princípio 1 dessa Agenda, declara que


todos têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia
com a natureza. De acordo com o princípio 4, para alcançar o
desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deverá
constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não
poderá ser considerada de forma isolada. Através do princípio 8,
para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma melhora
qualidade de vida para todas as pessoas, os Estados deveriam
reduzir e eliminar os sistemas de produção e consumo sustentados
e fomentar políticas demográficas apropriadas.
Portanto, um dos componentes do desenvolvimento
urbano é o princípio do desenvolvimento sustentável, pelo qual
todas as pessoas estão no centro das preocupações e têm o direito a
uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. Esse
componente, como requisito obrigatório, segundo Nelson Saule
Junior, significa a vinculação do desenvolvimento urbano, referido
no caput do artigo 182, com o direito ao meio ambiente,
estabelecido no artigo 225 da Constituição Federal. "O
desenvolvimento urbano, como política pública, deve ter como
condicionamento o direito ao meio ambiente sadio,
ecologicamente equilibrado, como garantia das presentes e futuras
gerações". (SAULE JUNIOR, 1997, p. 67)
A política de desenvolvimento urbano deve ser destinada
à atender as necessidades essenciais da população mais carente das
cidades. Para tanto, deverá formular e implementar políticas

488
públicas com a participação popular, voltadas para a proteção do
meio ambiente sadio, da eliminação da pobreza, da redução das
desigualdades sociais, da adoção de novos padrões de produção e
consumo sustentáveis, de modo a garantir à todas as pessoas da
cidade uma qualidade de vida digna.
Portanto, de acordo com o princípio do desenvolvimento
urbano sustentável, para se ter uma cidade sustentável é
imprescindível que políticas públicas sejam adotadas para
priorizar também as necessidades das pessoas com deficiência,
principalmente voltadas a assegurarem os seus deslocamentos de
forma livre e autônoma pelos espaços da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que, segundo dados estatísticos do Censo


de 2010, cerca de mais de 80% da população brasileira vivem em
cidades, consequentemente, não há menor dúvida que o Brasil é um
País urbano. Considerando também que estimativas do mesmo
órgão apontam que mais de 23, 9 %da população brasileira
possuem algum tipo de deficiência, totalizando aproximadamente
45.606.048 milhões.
Todavia, viver nas cidades continua sendo um grande
transtorno e também um grande desafio para a pessoa com
deficiência ou com mobilidade reduzida que, ao se locomoverem e
se movimentarem pelos seus espaços, deparam-se com incontáveis
obstáculos econômicos, sociais, e especificamente, em nosso
estudo, com os obstáculos físicos, que as impede de exercerem seus

489
direitos em igualdade de condições com as demais pessoas, em
função do mau uso e ocupação do solo urbano, traduzidos em crise
habitacional e segregação espacial, ocasionando perda, por parte
dessa população, da qualidade de vida nas cidades. Dentro desse
contexto, a cidade e seus espaços, quando não são acessíveis para as
pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, deixam de ser o
local de convívio, de encontro, de troca, para tornarem-se locais de
exclusão espacial.
A necessidade de circular está ligada ao desejo de
realização das atividades sociais, culturais, políticas econômicas
necessárias na sociedade. As pessoas com deficiência ou
mobilidade reduzida deveriam conseguir se movimentar pelos seus
espaços com autonomia, segurança e conforto. Sair de sua
residência, conseguir chegar até o seu local de trabalho, buscar
algum lazer ou ir a seu trabalho; todas essas possibilidades de
deslocamento das pessoas pelos espaços da cidade compõem o
direito fundamental de ir, vir, ficar e permanecer. Essa necessidade
de deslocar, de circular, dependerá de como a cidade está
organizada territorialmente e vinculada funcionalmente às
atividades que se desenvolvem em seu espaço.
A acessibilidade aos edifícios, e logradouros públicos, nos
transporte coletivo e suas mútuas interações é regra mínima e
básica de cidadania, tanto que, o constituinte materializou-a no
artigo 227, § 2° e no artigo 244. Para dar eficácia a esses dispositivos
constitucionais, foram editadas, dentre outras, a Lei n° 7.853⁄89, o
Decreto n° 3.298⁄ 99, as Leis n° 10.048⁄00 en° 10.098⁄00 e o Decreto
n° 5.296⁄ 04, e a Lei nº 13.146/2015 - LBI. De uma maneira geral,

490
toda essa legislação visa garantir à pessoa com deficiência e
mobilidade reduzida a plena integração social, com a garantia da
acessibilidade aos espaços públicos da cidade.
O direito à acessibilidade é, portanto, uma exigência
constitucional que surge, atualmente, como um direito
fundamental, sobretudo, para a pessoa com deficiência ou
mobilidade reduzida.
Para que essas pessoas possam realizar de modo pleno e
irrestrito esse direito fundamental e compartilhar os aspectos
positivos da urbanização, é essencial que lhes assegure a capacidade
de circular pela cidade, onde se desenvolve parcela significativa de
suas vidas.
È fato que o Município é o principal responsável pela
tomada de decisões e ações executivas das políticas de
acessibilidade. Esse dever advém, dentre outras fontes, das
competências estabelecidas nos artigos 30 I, VIII e 182 da
Constituição Federal.
O Estatuto da Cidade ( Lei nº 10.2578⁄2001) reconheceu o
papel dos Municípios na formulação e condução do processo de
gestão das cidades, garantindo em seu artigo 2º o direito à cidades
sustentáveis, que significa aquela onde o desenvolvimento urbano
ocorre com ordenação, possibilitando uma vida digna para todos,
mediante o direito à terra urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, e no nosso estudo, à acessibilidade, para as presentes e
futuras gerações. Portanto, o desenvolvimento urbano tem que
estar associado ao desenvolvimento sustentável das cidades. Se a
construção de cidades acessíveis está no centro do planejamento

491
urbano, é indiscutível a nova concepção de desenvolvimento, qual
seja o desenvolvimento sustentável.
Como mencionamos, dentre as deficiências
experimentadas pelas pessoas a de locomoção é marcante na
medida em que a pessoa tem a liberdade de ir e vir tolhida. Assim,
tão importante quanto adequar os espaços públicos da cidade para
garantir a circulação das pessoas, notadamente àscom deficiência,
eliminando-se as barreiras existentes, é necessário que o Poder
Público municipal não crie diariamente novas barreiras ao projetar
ou executar uma nova obra pública, ou adaptar uma obra já
existente, ou ainda, ao publicar um edital de licitação para
prestação dos serviços de transporte público que não contemple a
questão da acessibilidade, ou ainda não propiciar o acesso aos
meios de informação e comunicação.
Não temos dúvida que uma cidade sustentável, aquela que
irá concretizar as normas da acessibilidade será uma cidade em que
todos os seus habitantes poderão fruir só dos espaços públicos das
cidades, mas do acesso a esse direito de forma ampla e irrestrita
como veio determinada na referida Lei. Uma cidade acessível é uma
cidade de e para todos!

492
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495
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: A EFETIVIDADE DAS
GERAÇÕES ATUAIS E FUTURAS NA BUSCA PELA
RECIPROCIDADE E SOLIDARIEDADE NA
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE

INTERGERATIONAL JUSTICE: THE EFFECTIVENESS OF


CURRENT AND FUTURE GENERATIONS IN THE
SEARCH OF RECIPROCITY AND SOLIDARITY IN THE
PRESERVATION OF THE ENVIRONMENT

Carla Aliny Peres Dias1


Fabrício Veiga Costa2

RESUMO: O presente estudo tem por objetivo, inicialmente,


analisar a evolução do direito ambiental desde o período imperial
até a constituição Federal de 1988, com enfoque para a evolução do
direito ambiental nos ordenamentos vigentes á época.
Posteriormente, serão analisados os princípios basilares do direito
ambiental que funcionará como gancho para a introdução da
justiça intergeracional que será o ponto alvo do presente artigo.
Analisar-se-á o conceito e origem da justiça intergeracional seus
fundamentos e aplicabilidade junto ao ordenamento jurídico
brasileiro, e como efetivamente implantar o instituto da
solidariedade e reciprocidade entre gerações atuais e futuras na

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de
Itaúna-MG. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas.
Advogada.
2
Pós-doutor em Educação pela UFMG. Doutor em Direito pela PUCMINAS.
Professor do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
496
busca pela preservação do meio ambiente e manutenção da
dignidade da pessoa humana. Se, tal justiça é eficaz no
ordenamento pátrio ou trata-se apenas de demagogia.
Posteriormente, serão analisadas as teorias de acerca da
solidariedade e reciprocidade entre as gerações atuais e futuras
acerca do que deverá ser feito para garantir o direito a uma
ambiente sadio e saudável às gerações atuais e futuras sem prejuízos
para o crescimento econômico e financeiro dos pais, tudo no
intuito de comprovar a efetividade ou a derrocada da justiça
intergeracional.

PALAVRAS-CHAVE: Justiça Intergeracional; Direito Ambiental;


Reciprocidade; Solidariedade; Gerações Atuais; Gerações Futuras.

ABSTRACT: The objective of this study is to analyze the evolution


of environmental law from the imperial period up to the Federal
Constitution of 1988, focusing on the evolution of environmental
law in the current legislation. Subsequently, we will analyze the
basic principles of environmental law that will act as a hook for the
introduction of intergenerational justice that will be the target
point of this article. It will analyze the concept and origin of
intergenerational justice, its foundations and applicability with the
Brazilian legal system, and how to effectively implement the
institute of solidarity and reciprocity between current and future
generations in the search for preservation of the environment.
Subsequently, the theories of solidarity and reciprocity between
current and future generations will be analyzed about what should
be done to guarantee the right to a healthy and healthy
environment for the present and future generations without
prejudice to the economic and financial growth of the country.

497
KEYWORDS: Intergenerational Justice; Environmental Law;
Reciprocity; Solidarity; Current Generations; Future generations.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Um breve escorço histórico do direito ambiental no Brasil.
2.1 O direito ambiental no Brasil colônia.
2.2 Brasil Império.
2.3 Brasil República.
2.4 Evolução do direito ambiental nas Constituições brasileiras.
3. Princípios basilares do direito ambiental.
4. Aspectos da justiça intergeracional.
4.1 A Origem da solidariedade intergeracional (entre gerações).
4.2 A teoria da equidade intergeracional no pensamento de Edith
Brown Weiss.
5. Os direitos para as futuras gerações.
Considerações Finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

São grandes os problemas ambientais em nível


internacional que a atualidade enfrenta dentre eles: as mudanças
climáticas, chuvas ácidas, destruição das florestas, diminuição da
camada de ozônio, extinção de animais e da fauna e da flora. E,
devido a estes grandes problemas ambientais, existem muitas
preocupações para o futuro das gerações atuais e vindouras.
Os direitos e deveres chocam-se, a partir das ações dos
indivíduos. O direito ao meio ambiente constitui um direito ao

498
meio ambiente sadio e ao mesmo tempo corresponde um dever de
preservação para o bem estar das gerações atuais e futuras.
Assim, a justiça entre gerações relaciona-se ao presente e
futuro próximo e principalmente remoto, quando se trata de uma
justiça ambiental, cujo objeto é o bem ambiental que se degrada
progressivamente dia após dia, geração após geração.
Desse modo, a contribuição para degradação do meio
ambiente, como os avanços tecnológicos é cada vez maior. Os
avanços industriais e o crescimento econômico estão intimamente
relacionados com a degradação ambiental, o que coloca em risco as
gerações futuras sob a perspectiva de médio e longo prazo.
Infelizmente, ainda hoje, o ser humano não consegue
atrelar o crescimento industrial, econômico e financeiro sem
degradar o ambiente e colocar em risco as gerações atuais e futuras.
E, esta talvez seja a questão mais relevante e difícil de ser resolvida,
na atualidade. E, nesse viés, o presente estudo tem por fim a analise
do que poderá ser feito pelas gerações atuais para preserva o meio
ambiente para as gerações futuras, isto é, a justiça intergeracional e
efetiva no ordenamento pátrio, as gerações atuais se preocupam
com as gerações futuras, há um sistema recíproco e solidário entre
gerações, trata-se de uma veracidade ou apenas demagogia.
No que tange ao procedimento metodológico, optou-se
pelo método dedutivo, partindo de uma concepção macro analítica
para uma concepção micro analítica, permitindo-se, portanto, a
delimitação do problema teórico. Por fim, no procedimento
técnico, foram adotadas as análises interpretativas, comparativas,

499
históricas e temáticas, possibilitando uma discussão pautada sob o
ponto de vista da crítica científica.
Para melhor análise do tema proposto, dividiu-se o artigo
em cinco itens, incluído esta introdução. No item seguinte,
apresenta-se um breve relato histórico e conceituação do direito
ambiental no Brasil, passando-se desde o império até a
Constituição Federal de 1988. No terceiro item serão analisados os
princípios basilares do direito ambiental e sua aplicação no
ordenamento pátrio. No item quatro serão analisados os aspectos
da justiça intergeracional, conceito origem histórico bem como
analise do principio da solidariedade intergeracional e a teoria da
equidade intergeracional de Edith Brown Weiss. No item cinco será
discutido o direito das gerações futuras e a analise das teorias de
Axel Gosseries. Por fim, serão tecidas as considerações finais,
seguidas das referências.

2. UM BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DO DIREITO


AMBIENTAL NO BRASIL

Antes de adentrar totalmente no ponto de maior


relevância do estudo, isto é a analise da justiça intergeracional, faz-
se necessária um breve relato do surgimento e evolução do direito
ambiental, desde o brasil colônia até a Constituição Federal de
1988.
Assim, as primeiras leis de proteção ambiental, no Brasil,
foram importadas de Portugal, com o inicio da colonização
portuguesa no Brasil. Segundo Ann Helen Wainser, a Ordenação

500
de 9 de novembro de 1326, protegia as aves e equiparava seu furto,
para efeitos criminais, a qualquer outra espécie de crime, fazendo
assim a primeira alusão a crime ambiental.

2.1 O direito ambiental no Brasil Colônia

A fase colonial brasileira, que teve inicio em 1500 com o


seu descobrimento, e que perdurou até 1808 com a instalação da
família real portuguesa no Brasil, foi marcada por grandes
conflitos, entre os povos indígenas e portugueses, para a conquista
e exploração dos recursos naturais, como por exemplo, do pau-
brasil.
Segundo o estudo de Ann Helen Wainer, no Brasil, em
1521 as Ordenações Manuelinas foram as primeiras a dar avanço à
matéria de proteção ambiental. Um exemplo disso está no livro V,
que no Título LXXXIII proibia a caça de animais, como por
exemplo, lebres, coelhos e perdizes, com instrumentos capazes de
causar-lhes a morte com dor e sofrimento, punindo severamente o
infrator. Coibia ainda o corte de árvores frutíferas, equiparando,
nesse caso, como crime, proclamando assim a primeira modalidade
de crime ambiental.
A partir 1580, o Brasil segue as Ordenações Filipinas que
foram textos avançados de direito ambiental, no que pese a
evolução desse direito para a época, trazendo principalmente um
conceito de poluição, no Livro V, Título VIII, §7°, com a seguinte
redação: “E pessoa alguma não lance nos rios e lagoas em qualquer

501
tempo de ano (...) trovisco, barbasco, coca, cal nem outro algum
material com que se o peixe mate”, vedando as pessoas de poluir as
águas dos rios e lagoas.
As Ordenações Filipinas também proibiam a pesca com
determinados instrumentos e em certos locais e épocas estipuladas,
a exemplo do que determinava a Lei 7.679/88, hoje substituída pela
Lei 9.605/98, como também afirma Ann Helen Wainer (1999).

2.2 Brasil Império

A devastação do período colonial continuava durante o


período de independência do Brasil. O combate ao problema
ambiental de devastação excessiva das terras, para a exploração de
cana-de-açúcar, não foi amortecido com a primeira Constituição,
em 1824, onde os constituintes nada dispuseram sobre proteção
ambiental.
Somente com o legislador ordinário, em 11 de junho de
1829, foram reafirmadas as proibições de roçar e derrubar matas
em terras devolutas. Com o surgimento do Código Criminal em
1830, crimes como o corte ilegal de madeira, apresentaram penas
criminais para os infratores, em dois artigos (178 e 257),
acarretando assim, uma maior seriedade ao assunto.
Com a promulgação da Lei nº 601, de 18 de setembro de
1850, a lei de “terras”, que foi fruto de um patriarca da
Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, trouxe
importantes avanços em matéria ambiental. Essa legislação trouxe
inovações de grande importância ecológica, pois instituiu o

502
principio da responsabilidade ambiental, fora do âmbito da
legislação civil. Porem, mesmo com a promulgação da lei nº 601, as
devastações nas florestas causadas pela extração de madeira
continuaram e preocupavam as autoridades da época.

2.3 Brasil República

Em 1889 com a proclamação de República, o direito


ambiental sofreu alguns avanços, poucos significativos com
certeza, porém com o descaso feito pelos Governos Brasileiros, a
legislação para a proteção ambiental pouco se desenvolveu. Fato
esse que, durante a fase Republicana do Brasil (que perdura até os
dias atuais) foi modificado, construindo e fortalecendo um direito
ambiental complexo e funcional. Sem dúvida a República,
principalmente o século XX, foi o período mais evolutivo do
Direito Ambiental.
Após a promulgação do Código Civil de 1916, o direito
ambiental brasileiro foi impulsionado à criação de novos diplomas
legais que regulassem, de maneira mais específica, o problema
ambiental. Assim, nos últimos 20 anos do século XX, a fase
republicana do Direito Ambiental teve, conforme explica Édis
Milaré (2005, p140) quatro grandes marcos da postura recente do
ordenamento jurídico na busca de respostas ao clamor social pela
imperiosa tutela do ambiente, que foram:
O primeiro marco é a edição da Lei nº 6.938, de
31.08.1981, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, que, entre outros tantos méritos, teve o de trazer para o

503
mundo do Direito o conceito de meio ambiente como objeto
específico de proteção em seus múltiplos aspectos; o de instituir um
Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), apto a
proporcionar o planejamento de uma ação integrada de diversos
órgãos governamentais através de uma política nacional para o
setor; e o de estabelecer, no artigo 14, § 1°, a obrigação do poluidor
de reparar os danos causados, de acordo com o principio da
responsabilidade objetiva (ou sem culpa) em ação movida pelo
Ministério Público.
O segundo marco coincide com a edição da Lei nº 7.347,
de 24.07.1985, que disciplinou a ação civil pública como
instrumento processual específico para a defesa do ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos e possibilitou que a agressão
ambiental finalmente viesse a tornar-se um caso de justiça.
O terceiro marco pontifica em 1988, com a promulgação
da atual Constituição Federal, onde o progresso se fez notável na
medida em que a Carta Magna deu ao meio ambiente uma
disciplina rica, dedicando à matéria um capítulo próprio em um
dos textos mais avançados em todo mundo.
O quarto marco é representado pela edição de Lei nº
9.605, de 12.02.1998, que dispõe sobre as sanções penais e
administrativas aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente. Dita a lei, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”,
representa significativo avanço na tutela do ambiente, por
inaugurar uma sistematização das sanções administrativas e por
tipificar organicamente os crimes ecológicos. O diploma também
inova ao tornar realidade a promessa constitucional de se incluir a
pessoa jurídica como sujeito ativo do crime ambiental.
504
2.4 Evolução do direito ambiental nas Constituições
Brasileiras.

A Constituição Imperial de 1824 não tratou de matéria


ambiental, nem mesmo ocupou-se em traçar diretrizes
relacionadas a uma ordem econômica constitucional, posto que, à
época da promulgação da Carta de 1824, o País adotava a linha
liberal, predominante naquele momento, pela qual o Estado não
deveria interferir em questões econômicas.
É de se observar, entretanto, que a Carta de 1824 deixou
para as Câmaras Municipais certas atribuições que esbarravam
também em questões relacionadas com o meio ambiente, ao
determinar, em seu artigo 169, que: "O exercício das suas funções
municipais, formação das Posturas policiais, aplicação de suas
rendas, e todos os seus particulares, e úteis atribuições, serão
decretadas por Lei regulamentar" (a ortografia fora modernizada).
A referida lei data de 1° de outubro de 1828, e "Dá nova
forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, e o processo
para sua eleição, e dos Juizes de Paz". No que se refere à
competência das Câmaras Municipais em matéria ambiental,
estabelece a dita lei.
A Constituição de 1891, em seu artigo 34, n° 29, atribuía
à União competência para legislar sobre as minas e terras.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1934 (artigo 5°,
inciso XIX, letra j) estabelecia que a União era competente para
legislar sobre "bens de domínio federal, riquezas do subsolo,

505
mineração, metalurgia, água, energia hidrelétrica, florestas, caça e
pesca e sua exploração".
A Constituição Federal de 1937 determinava em seu
artigo 16, inc. XIV, que competia privativamente à União legislar
sobre: "os bens de domínio federal, minas, metalurgia, energia
hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua exploração".
A Constituição de 1946 (artigo 5°, inc. XV, alínea l)
dispunha que à União competia legislar sobre: "riquezas do subsolo,
mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, florestas, caça e
pesca".
A Constituição Federal de 1967, por seu turno,
determinava, em seu artigo 8°, inciso XII, a competência da União
para: "organizar a defesa permanente contra as calamidades
públicas, especialmente a seca e as inundações". Esta Carta
estabelecia ainda, nos termos do seu artigo 8°, XV, b, que à União
competia explorar, diretamente ou mediante concessão, os serviços
e instalações de energia elétrica de qualquer origem ou natureza.
No que diz respeito à competência para legislar, rezava
aquela Carta que cabia à União tratar de questões pertinentes ao
direito agrário; normas gerais de segurança e proteção da saúde;
águas e energia elétrica.
A Emenda Constitucional n° l, de 17 de outubro de 1969,
manteve os termos daquilo que foi acima apontado. Houve,
entretanto, uma pequena mudança naquilo que diz respeito às
competências legislativas em relação à energia que foi subdividida
em elétrica, térmica, nuclear ou de qualquer natureza".
A Constituição de 1988 tratou da questão ambiental, de
maneira específica, em seu Capítulo VI, que se insere no Título VIII
506
(Da Ordem Social). Neste contexto, reza o artigo 225, caput, in
verbis:

Todos têm direito ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-
lo para as presentes e futuras gerações.

Os parágrafos do artigo 225 ainda trazem outras


providências. O § 1° incumbe ao Poder Público certas medidas
voltadas a assegurar o direito ambiental. O § 2° versa sobre a
exploração de recursos minerais. O § 3°, por sua vez, trata da
sujeição dos que praticarem atos lesivos ao meio ambiente a
sanções penais e administrativas, além da reparação civil cabível.
Reza o § 4° sobre a proteção ambiental de algumas áreas especiais
do território nacional. O § 5° trata da indisponibilidade de certas
terras, levando em conta a proteção dos ecossistemas naturais. O §
6°, por seu turno, versa sobre as usinas nucleares.
A Constituição de 1988 demonstra ainda a importância
que conferiu às questões ambientais ao tratar, de alguma forma, do
tema em outros artigos que se espalham por seu texto, tais como:
artigo 5°, LXXIII, que trata da ação popular, visando a anular ato
lesivo ao meio ambiente; artigo 21, XXIII, "c", que trata da
responsabilidade civil objetiva por danos nucleares, no contexto da
competência da União referente à questões nucleares; artigo 22,
XII, que reza sobre a competência privativa da União para legislar
507
sobre "jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia"; artigo
23, III, pelo qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios têm competência comum para "proteger os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos", e VI, segundo o qual os entes federativos devem
"proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de
sua formas", dentre outros.
Desse modo a Constituição Federal de 1988 é considerado
sob o âmbito ambiental uma das mais avançadas do mundo.

3. PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO AMBIENTAL

Para a compreensão do estudo em questão e de suma


importância a análise dos princípios basilares do direito ambiental,
para posteriormente adentra no conceito de justiça intergeracional.
O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio é
decorrência do direito à vida, quer sob o enfoque da própria
existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto
da dignidade dessa existência humana.
O princípio da natureza pública da proteção ambiental
(artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988 mantém estreita
correlação com o princípio geral, de direito público, da primazia do
interesse público sobre o particular, e também, com o princípio do
direito administrativo da indisponibilidade do interesse público.
Decorre da previsão constitucional que consagra o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do

508
povo incumbindo ao Poder Público e à sociedade sua preservação
e sua proteção.
O princípio do desenvolvimento sustentável tem como
corolário que os recursos ambientais são finitos, tornando-se
inadmissível que as atividades econômicas se desenvolvam alheias
a essa realidade. O se busca é a harmonização entre o postulado do
desenvolvimento econômico, algo pretendido por todos nós, e a
preservação do meio ambiente.
A própria CF/88 em seu artigo 170, VI, estabelece que a
ordem econômica também tem como fundamento a defesa e
preservação do meio ambiente.
Por seu turno, o princípio do poluidor pagar reflete um
dos fundamentos da responsabilidade civil em matéria ambiental.
Muitas vezes incompreendido, ele não demarca a de poluir
mediante o pagamento de posterior indenização (como se fosse
uma contraprestação). Ao contrário: reforça o comando normativo
no sentido de que aquele que polui deve ser responsabilizado pelo
seu ato.
Assim sendo, esse princípio deve ser compreendido como
um mandamento para que o potencial causador de danos
ambientais preventivamente arque com os custos relativos à
compra de equipamentos de alta tecnologia para prevenir a
ocorrência de danos. Trata-se da internalização de custos.
O princípio do usuário pagador é complementar ao
princípio anterior. Busca-se evitar que o “custo zero” dos serviços
e recursos naturais acabe por conduzir o sistema de marcado a uma
exploração desenfreada do meio ambiente.

509
Também o princípio da prevenção é um dos princípios
mais importantes do Direito Ambiental, sendo seu objetivo
fundamental. Foi lançado à categoria de mega princípio do direito
ambiental, constando como princípio nº 15 da ECO-92. O
princípio da prevenção relaciona-se com o perigo concreto de um
dano, ou seja, sabe-se que não se deve esperar que ele aconteça,
fazendo-se necessário, portanto, a adoção de medidas capazes de
evitá-lo.
O princípio da precaução correlaciona-se com o perigo
abstrato, ou seja, há mero risco, não se sabendo exatamente se o
dano ocorrerá ou não. É a incerteza científica, a dúvida, se vai
acontecer ou não. Foi proposto na conferência Rio 92 com a
seguinte definição:“O Princípio da precaução é a garantia contra os
riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do
conhecimento, não podem ser ainda identificados”.
A referência ao Princípio da Precaução ocorre pela
primeira vez na Declaração Ministerial da Segunda Conferência
Internacional sobre a Proteção do Mar Norte em 1984, conforme
Wolfrum (2004) afirma:

A fim de proteger o Mar do Norte de possíveis


efeitos danosos da maioria das substâncias
perigosas, uma abordagem de precaução é
necessária, a qual pode exigir ação para
controlar os insumos de tais substâncias
mesmo antes que um nexo causal tenha sido
estabelecido por evidência científica clara e
absoluta. (WOLFRUM, 2004).

510
O Princípio da Precaução é reflexo do in dubio pro futuro,
em que pese a dúvida fundada em incertezas científicas, deve-se
priorizar a defesa das gerações futuras em detrimento da atividade
potencializadora do risco. Esse princípio representa a tutela de
antecipação às ameaças de danos ambientais irreversíveis.
Por sua vez, o princípio da participação (informação,
educação ambientais e audiências públicas) tem previsão no artigo
225, § 1º, VI, da CF/88. O cidadão não depende apenas de seus
representantes políticos para participar da gestão do meio
ambiente. O cidadão tem atuação ativa no que toca a preservação
do meio ambiente. Tem ele o direito de ser informado e educado (o
que é dever do Poder Público) para que, assim, possa interferir
ativamente na gestão ambiental, sendo que isso se concretiza por
intermédio, por exemplo, nas audiências públicas. (ação popular
ambiental).
O princípio ubiquidade ou transversalidade tem por
objetivo demonstrar qual é o objeto de proteção do meio ambiente
quando tratamos dos direitos humanos, pois toda atividade,
legiferante ou política, sobre qualquer tema ou obra, deve levar em
conta a preservação da vida e principalmente, a sua qualidade. Esse
princípio dispõe que o objeto de proteção do meio ambiente,
localizado no epicentro dos direito humanos, deve ser levado em
consideração toda vez que uma política, atuação, legislação sobre
qualquer tema, atividade, obra, etc., tiver que ser criada.
Também o princípio da cooperação internacional se
traduz em um esforço conjunto empreendido pela “aldeia global”
na busca pela preservação do meio ambiente numa escala mundial.

511
O inciso IV, do artigo 1º-A, do Código Florestal, em
atenção a este princípio, consagra o compromisso do Brasil com o
modelo de desenvolvimento ecologicamente sustentável, com
vistas a conciliar o uso produtivo da terra e a contribuição de
serviços coletivos das flores e demais formas de vegetação nativa
provadas.
O princípio da função socioambiental da propriedade tem
fundamento no artigo 186, II, da CF/88. O uso da propriedade será
condicionado ao bem estar social. Ainda o legislador previu, como
condição para o cumprimento da função social da propriedade
rural, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente.

4. ASPECTOS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL

O conceito de justiça intergeracional foi introduzido em


1974 pelo economista James Tobin, que escreveu: “Os
administradores de instituições detentoras de patrimônio são os
guardiões do futuro contra as reivindicações do presente. Sua
tarefa, ao administrar esse patrimônio, é preservá-lo entre
gerações.”
Para Amaral Júnior (2011, p.116), justiça intergeracional
“funda-se na concepção de que a Terra é um bem que os nossos
ancestrais nos legaram para ser usado e transmitido aos que viverão
no futuro”. Ou seja, conforme o autor, a geração presente mantém
relações jurídicas que criam direitos e obrigações para com as
gerações anteriores e posteriores. Nesse diapasão, os direitos
intergeracionais são direitos de titularidade coletiva, e que
512
pertencem, consequentemente, às gerações no curso do processo
histórico.
Assim, este direito que transcende ao individuo,
transcende ao território e ao mesmo tempo representa a
quarta/terceira geração de direito, e tem como interesse o meio
ambiente, o direito do consumidor, direito à paz, ao
desenvolvimento e relacionam-se com o trinômio diversidade,
segurança, e solidariedade.

4.1 A Origem da solidariedade intergeracional (entre


gerações)

Busca assegurar a solidariedade da presente geração em


relação às futuras, para que também estas possam usufruir, de
forma saudável, dos recursos naturais.
Este princípio está previsto no Princípio 2 da Declaração
de Estocolmo de 1972:

2. A proteção e o melhoramento do meio


ambiente humano é uma questão
fundamental que afeta o bem-estar dos povos
e o desenvolvimento econômico do mundo
inteiro, um desejo urgente dos povos de todo
o mundo e um dever de todos os governos.

Também, foi mencionado no Princípio 3 da A Eco-92,


Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e

513
desenvolvimento, realizada no ano de 1992, na cidade do Rio de
Janeiro. ECO-92.

O direito ao desenvolvimento deve ser


exercido de modo a permitir que sejam
atendidas equitativamente as necessidades de
desenvolvimento e de meio ambiente das
gerações presentes e futuras.

O Código Florestal expressou este princípio no inciso II,


do artigo 1º-A.

II - reafirmação da importância da função


estratégica da atividade agropecuária e do
papel das florestas e demais formas de
vegetação nativa na sustentabilidade, no
crescimento econômico, na melhoria da
qualidade de vida da população brasileira e na
presença do País nos mercados nacional e
internacional de alimentos e
bioenergia; (Incluído pela Lei nº 12.727, de
2012).

A teoria da solidariedade intergeracional encontra limites


como a ausência de representatividade política dos interesses das
gerações futuras, a inexistência de imputação de responsabilidade
das gerações futuras relativamente às precedentes; a
impossibilidade de atestar com certeza a inocuidade e
irreversibilidade de certas condutas; a dificuldade de explicar a

514
necessidade de se modificar ou eliminar hábitos em nome de
interesses hipotéticos das gerações vindouras.
4.2 A teoria da equidade intergeracional no pensamento de
Edith Brown Weiss

Edith Brown Weiss, professora de Direito Internacional


do Georgetown University Law Center, desenvolveu a teoria da
equidade intergeracional, a qual, em síntese, preconiza que as
gerações humanas, não importa em que época vivam, têm iguais
direitos ao meio ambiente, razão pela qual as presentes devem
conservá-lo e repassá-lo às seguintes nas mesmas condições em que
o receberam.
Como se já se mencionou, esse princípio está no cerne da
noção de desenvolvimento sustentável. Consoante afirma Weiss, o
desenvolvimento sustentável é essencialmente intergeracional
porque implica em usarmos o meio ambiente de uma maneira
compatível com sua manutenção para as futuras gerações. Explica
Weiss (2007a):

Nós detemos o ambiente natural e cultural do planeta


em condomínio com todos os membros da espécie
humana: gerações passadas, presentes e futuras.
Como membros da presente geração, nós
conservamos a Terra como depositários para as
gerações futuras. Ao mesmo tempo, nós somos
beneficiários autorizados a usá-la e colher os
benefícios desse uso. Nós também somos parte do
sistema natural, e como as mais sencientes criaturas

515
vivas, temos a responsabilidade especial de proteger
sua resiliência e integridade.

Assim, Weiss, por meio da teoria da equidade


intergeracional, contribui para o presente estudo que tem por fim
a analise da responsabilidade das gerações atuais contribuírem para
a preservação do meio ambiente para garantia do bem estar das
gerações futuras.
A doutrina de Brown Weiss e Wolff (s.d.) ao versar sobre
a solidariedade intergeracional sob três enfoques, quais sejam, a
conservação das opções das gerações vindouras, conservação da
qualidade dos recursos naturais e conservação do acesso a estes;
deve ser aplicada também no âmbito previdenciário. Isso porque
também nesse ramo do direito é primordial que se conserve as
opções das futuras gerações, bem como a qualidade dos benefícios
e serviços da seguridade e o acesso a estes.
Primeiramente, cada geração deve conservar a
diversidade da base natural e cultural do recurso, de modo que não
restrinja impropriamente as opções disponíveis às gerações futuras
em resolver seus problemas e em satisfazer a seus próprios valores,
e deve também ser intitulada à diversidade comparável àquela
apreciada por gerações precedentes.
Segundo, cada geração deve ser requerida a manter a
qualidade da terra de modo que seja passada sobre, em nenhuma
hipótese, em piores condições do que aquela em que foram
recebidas, e deve também ser intitulada à qualidade ambiental total
comparável àquela apreciada por gerações precedentes.

516
Em terceiro lugar, cada geração deve fornecer aos seus
membros com direito igual ao acesso ao legado das gerações
passadas, e deve conservar este acesso para as gerações futuras.
Estes princípios, opções (diversidade), qualidade, e
acesso, permitem às gerações futuras a flexibilidade de operar-se
dentro de seu próprio sistema de valor e não requerem que uma
geração prediga os valores para a outra. Promovem a equidade
entre gerações respeitando ambos direitos, das gerações futuras de
não ser privada pelas preferências da geração atual para seu próprio
bem estar, e os direitos da geração atual de usar o ambiente livre
dos constrangimentos sem razões, para proteger as necessidades
futuras indeterminadas.
Estes princípios da equidade intergeracionais dão forma à
base das obrigações e dos direitos entre as gerações, que são
mantidos por cada uma delas. São complementados por direitos
intergeracionais e por obrigações dos membros da geração atual,
que derivam também dos direitos e das obrigações entre gerações.
A declaração 1997 da UNESCO nas responsabilidades da geração
atual para as gerações futuras determinou tais obrigações.

5. OS DIREITOS PARA AS FUTURAS GERAÇÕES

O desenvolvimento sustentável levanta introduções da


justiça intergeracional, além de ser uma das justiças entre os povos
de gerações atuais e as gerações futuras. Em tudo que nós fazemos,
inerentemente representamos não só a nós mesmos, mas as
gerações passadas e futuras.

517
Representamos gerações passadas, mesmo ao tentar
cancelar o passado, nós incorporamos o que nos foi passado.
Representamos as gerações futuras porque as decisões que nós
fazemos hoje afetam o bem estar de todas as pessoas que virão após
nós e da integridade e potência do planeta que herdarão.
Acerca dessa reciprocidade entre gerações, com intuito de
preservação do meio ambiente e consequentemente com a
preservação e manutenção da existência humana faz-se necessário
trazer ao estudo os dizeres de Juarez Freitas ensina que:

a sustentabilidade, princípio
multidimensional, deve ser compreendida
como um valor constitucional supremo na
medida em que garante a expansão sistemática
das dignidades e a prevalência da
responsabilidade antecipatória; consistindo
em um dever improtelável a adoção da diretriz
vinculante da sustentabilidade (FREITAS,
2011, p. 122-123).

Nesse sentido, segundo o ensinamento de Alexandre


KISS:

A preservação do meio ambiente está


obrigatoriamente focalizada no futuro. Uma
decisão consciente para evitar o esgotamento
dos recursos naturais globais, em vez de nos
beneficiarmos ao máximo das possibilidades
que nos são dadas hoje, envolve
necessariamente pensar sobre o futuro.

518
Entretanto o futuro pode ter uma dimensão de
médio ou longo prazo, enquanto a
preocupação relacionada ao interesse das
gerações futuras é, necessariamente, de longo
prazo e, sem duvida, um compromisso vago.
(...) A mudança global que está ocorrendo no
momento afeta não só os recursos naturais,
mas também os recursos culturais humanos
que foram acumulados durante milhares de
anos. Esses recursos consistem, por exemplo,
de conhecimentos de povos indígenas, de
registros científicos ou até mesmo de películas
que se deterioraram com o passar do tempo.
Fatores psicológicos e éticos explicam nossas
reações a tais questões. Nossa primeira reação
pode ser genética, instintiva. Todas as espécies
vivas procuram instintivamente assegurar sua
reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas
também fazem a provisão para o futuro bem-
estar de seus descendentes. A história humana
é testemunha dos constantes esforços dos
seres humanos para proteger não somente
suas próprias vidas, mas também para garantir
o bem-estar e melhorar as oportunidades para
sua prole. Os cuidados instintivos com as
crianças e netos fazem parte da natureza
humana (KISS, 2004, p. 9)

Ainda contribuindo para o tema afirma Axel Gosseries


em sua obra a Teoria da reciprocidade indireta que consiste,
segundo ele: “Há (...) para cada homem vivo, uma divida para com
as gerações seguintes, proporcional aos serviços prestados pelas
gerações passadas” (GOSSERIES, 2015, p. 111).
519
O mesmo autor afirma que pode-se dar conta da ideia de
reciprocidade indireta a partir de dois princípios. O primeiro
incube a resposta do porquê das nossas obrigações intergeracionais
e a segundo principio que consiste em transferir as gerações futuras
pelo menos o tanto quanto recebemos das gerações passadas.
Segundo o Gosseries o primeiro princípio consiste em:

Máxima justificativa: devemos algo as


gerações futuras porque recebemos algo da
geração precedente. É elaque constitui o
núcleo da abordagem em termos de
reciprocidade indirecta. Ilustra um modo
passível de justificação das nossas obrigações
intergeracionais, uma “razão para dar”. (...)
Para além disso, se a máxima justificativa
enuncia uma razão para dar, fá-lo sem
contudo especificar a dimensão ou a natureza
daquilo que devemos. Surge então a segunda
máxima , a que chamamos “substancial”, que
pretende dar conta do que a logica da
reciprocidade indirecta implicaria em termos
de definição do conteúdo das nossas
obrigações. (GOSSERIES, 2015, P112).

Para ele o segundo principio que ele denomina de máxima


substancial consiste em:

Máxima Substancial: Temos de transferir á


geração seguinte pelo mesmo tanto quanto
recebemos da geração precedente (proibição
da despoupança). Enquanto a máxima

520
justificativa oferece uma justificativa da
existência de obrigações, a máxima
substancial fornece uma definição do
conteúdo dessas obrigações. Nos dois casos, a
identidade do beneficiário final (a geração que
se segue à nossa). Daí surge a noção de
reciprocidade indireta. O que é recebido de
uma geração é restituído a outra geração.
(GOSSERIES, 2015, p. 112).

Desse modo, em que pese seja necessário o crescimento


econômico, industrial e financeiro de cada pais, ainda sim os
avanços tecnológicos devem caminhar de mãos dadas com a
preservação e manutenção ambiental das atuais e futuras gerações,
como meio de garantia da continuidade da existência humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do progresso científico e dos avanços na


sociedade, as gerações atuais podem trazer malefícios para suas
sucessivas gerações, em vários aspetos, sejam políticos, financeiros,
sociais e ambientais. As ações atuais interferem no futuro próximo
e remoto. Não somente questões de engenharia genética, mas,
também, a política está direcionada para o futuro, embora as
preocupações que permeiam os políticos sejam problemas
imediatos, em benefício da sociedade atual.
A resposta de garantir um meio ambiente adequado e
equilibrado para as gerações atuais e futuras está em propostas de
políticas publicas que visem à preservação do meio ambiente.

521
Difícil seria se um candidato, que propusesse políticas direcionadas
às gerações futuras, tivesse o apoio da sociedade, pois significaria, a
princípio, algum tipo de sacrifício para os governados, por meio de
uma participação compartilhada.
É muito difícil, infelizmente, essa busca pessoal por uma
participação intergeracional compartilhada, que na maioria das
vezes não é eficiente ou se quer relevante. O ser humano está cada
vez mais preocupado com o crescimento econômico, que se dá por
meio da exploração de recursos naturais inadequados, causando
danos geralmente irreversíveis, para as gerações atuais e futuras.
E, para que a sociedade de modo geral, se conscientize da
necessidade de obediência de tal principio e de fundamental
importância a preocupação e com isso maior poder de fiscalização
dos órgão públicos competentes, criação de políticas publicas
acerca do tema e principalmente investimento da educação e
conscientização da população acerca da importância do meio
ambiente e principalmente de que são recurso findáveis.
Assim, é de vital importância um comprometimento ou,
na melhor hipótese, um pacto de solidariedade e boa fé entre as
gerações atuais e futuras. Não se pode esquivar as gerações atuais
de deixar o meio ambiente em igual condições encontradas para as
gerações futuras e assim subsequentemente, como meio de
preservação dos direitos fundamentais de cada ser humano em ter
uma ambiente adequado e digno paraa garantia da existência
humana.

522
REFERÊNCIAS

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<https://www.webartigos.com/artigos/a-justica-
intergeracional/96444>. Acesso em: 28 fev. 2018

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cidade. Disponível
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Gerenciamento de Recursos Hídricos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm>. Acesso
em: 27 fev. 2018.

523
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educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso
em: 27 abr. 2018.

BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Lei da Política


Nacional de Educação Ambiental. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/leis/l9795.htm>. Acesso em:
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BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema


Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Disponível
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BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Disponível
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Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de
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BROWN WEISS, Edith; WOLFF, Simone. Meio Ambiente x


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do Ministério Público da União, 2004

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525
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WEISS, Edith Brown. Intergenerational fairness and rights of
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Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Org.). Princípio da
precaução. Belo Horizonte: Del Rey; Brasília: Escola Superior do
Ministério Público da União (ESMPU), 2004.

526
CONSUMO HUMANITÁRIO E SUSTENTABILIDADE
AMBIENTAL

HUMANITARIAN CONSUMPTION AND


ENVIRONMENTAL SUSTAINABILITY

Dennis Verbicaro 1
Carolina Thury2

RESUMO: O estudo do consumismo relacionado aos aspectos


ambientais e constitucionais demonstra a necessidade de uma
maior compatibilização entre exercício da livre iniciativa com a
proteção do consumidor e do meio ambiente, através da ideia do
consumo humanitário. Para tanto, é necessário definir conceitos
relacionados a esses institutos, bem como as consequências
provenientes de um comportamento consumista e predatório da
sociedade contemporânea, o que acaba por culminar com o
desequilíbrio ambiental e social. Através do método dedutivo e de
pesquisa teórico-bibliográfica, conclui-se que o caminho para se
reposicionar a liberdade decisória do consumidor é a educação e o
acesso à informação qualificada para um consumo consciente e
responsável.

1
Doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha).
Mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará. Professor
da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade
Federal do Pará-UFPA e do Centro Universitário do Pará-CESUPA. Procurador
do Estado do Pará e Advogado. E-mail: dennis@gavl.com.br
2
Advogada. E-mail: carolina.thury@hotmail.com
527
PALAVRAS-CHAVE: Consumo Humanitário; Meio Ambiente;
Sustentabilidade; Educação.

ABSTRACT: The study of consumerism related to environmental


and constitutional aspects demonstrates the need for greater
compatibility between the exercise of free initiative and the
protection of consumers and the environment through the idea of
humanitarian consumption. In order to do so, it is necessary to
define concepts related to these institutes, as well as the
consequences arising from predatory and consumer behavior of
contemporary society, which ends up culminating with the
environmental and social imbalance. Through the deductive
method and theoretical-bibliographic research, it is concluded that
the way to reposition the consumer's decision-making freedom is
education and access to qualified information for conscious and
responsible consumption.

KEYWORDS: Humanitarian Consumption; Environment;


Sustainability; Education.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Consumismo: análise das relações de consumo sob o aspecto
ambiental, consumerista e constitucional.
3. Consumo humanitário: proteção dos direitos e garantias
fundamentais do indivíduo.
4. Educação e informação do consumidor.
5. Coexistência harmônica entre o capitalismo e consumo
humanitário.
Considerações finais.
Referências.

528
INTRODUÇÃO

O sistema capitalista, caracterizado por seu ideal de


liberdade de mercado, livre concorrência e o insaciável desejo de
obtenção e acumulação de riqueza e lucro, extirpou o critério
moral, ético e solidário do indivíduo quando observado sob a
prática do consumo.
A sociedade contemporânea tem vivenciado crescentes e
intensas transformações, nos mais variados aspectos, que
impactam diretamente na forma como se desenvolvem as
condições de vida das pessoas, bem como suas relações, interesses
e valores.
O intenso fluxo informacional, o ritmo frenético do
cotidiano, a ampliação do alcance da influência midiática, e,
principalmente, a valorização do consumo: todos esses foram
fatores cruciais na estruturação de um novo cenário, em que o
consumo se elevou como a maior força propulsora dessa nova era,
a qual podemos chamar de hipermodernidade.
O próprio capitalismo se sofisticou, assumindo uma
função moduladora da estética, o que levou à produção industrial
de símbolos de consumo supostamente garantidores de um novo e
idealizado modelo de qualidade de vida, que proporcionaria ao
sujeito novas emoções, experiências e, também, lhe proporcionava
um sentimento de pertencimento social, incapaz de ser alcançado
através das relações interpessoais autênticas.
E foi justamente para atender à sedução de uma falseada
felicidade artificial, que o consumidor se vê obrigado a concentrar

529
todos os seus esforços em tornar sua vida economicamente
produtiva, seja no trabalho, seja no âmbito das relações familiares,
ou mesmo na artificialidade de sua vida social, de modo a melhor
otimizar seu já escasso tempo para ser bem-sucedido na satisfação
das inúmeras necessidades de consumo, forjadas pela indústria
cultural, que, agora, serve maciçamente ao consumo.
Nesse sentido, a sociedade estimulada pelo desejo, pela
vaidade e pelo egoísmo, assumiu os riscos que poderiam advir do
consumo desenfreado, e hoje padece em um ambiente
ecologicamente desgastado e socialmente desequilibrado.
Desse modo, não é rara a associação entre o consumismo
e a degradação ambiental e social, sobretudo, quando relacionada
ao sistema econômico capitalista, que busca incansavelmente e de
forma negligente suprir a demanda voraz da população,
produzindo impactos provenientes da exploração irracional e
predatória do meio ambiente e do homem.
Nesse contexto, o estudo do consumo humanitário e sua
intricada relação com a ideia de sustentabilidade ambiental mostra-
se necessária no atual contexto da sociedade contemporânea,
marcada pela obsolescência programada de bens de consumo, pela
compulsão de consumo e pelo agravamento dos danos ao meio
ambiente.
Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, através de
pesquisa exploratória bibliográfica e documental, entre livros,
artigos e legislações acerca do tema, buscando subsídios que
contribuíssem para a argumentação lógica das ideias propostas no
artigo.

530
2. CONSUMISMO: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE
CONSUMO SOB O ASPECTO AMBIENTAL,
CONSUMERISTA E CONSTITUCIONAL

O consumismo, entendido como um comportamento


proveniente da prática exercida dentro do sistema de consumo,
através da aquisição exacerbada dos bens e serviços dispensáveis à
vida do cidadão (não existenciais), provoca consequências que
ultrapassam as relações consumeristas, produzindo impactos
psicológicos, ambientais e sociais.
De certo modo, ocorre um afastamento entre o exercício
do consumo e a prática do consumismo. Naquele aspecto, se
estabelece uma relação econômica para adquirir bens ou serviços,
mediante as necessidades naturais da sociedade. Em contrapartida,
a estimulação dos desejos, excessos, vontades caprichosas e
desmedidas pela indústria cultural, através do assédio de consumo,
propiciam o desperdício e o consumismo, incutindo e promovendo
um comportamento social predatório e nocivo ao meio ambiente.
A sociedade baseada no consumo adquire esta
característica como um atributo intrínseco. Valoriza a relação de
consumo como a principal fonte motora dos seus sistemas, seja no
aspecto econômico, político ou social.
Segundo descreve Bauman (2008, p.12),

A sociedade de consumo tem como base de


suas alegações a promessa de satisfazer os
desejos humanos em um grau que nenhuma
sociedade do passado pôde alcançar, ou
531
mesmo sonhar, mas a promessa de satisfação
só permanece sedutora quando o desejo
continua insatisfeito; mais importante ainda
quando o cliente não está “plenamente
satisfeito” – ou seja, enquanto não se acredita
que os desejos que motivaram e colocaram em
movimento a busca da satisfação e
estimularam experimentos consumistas
tenham verdadeira e totalmente realizados.

A voracidade do mercado capitalista e a necessidade de se


antecipar às predileções do consumidor geram uma concorrência
acirrada entre os fornecedores, fazendo com que a inovação seja
uma obsessão e, para muitas empresas, condição de permanência
no mercado. Em meio a uma grande similitude entre produtos de
diferentes marcas, as empresas investem, cada vez mais, em algo
que as destaque, seja pela via dos impactos emocionais e do
sensacionalismo, criando grandes espetáculos para a promoção dos
seus produtos, como é o caso de grandes eventos para o lançamento
de novos modelos de celular, seja por sugerir uma identidade do
consumidor com a marca, através de patrocínios de grandes
eventos esportivos para uma associação subliminar com a emoção
desejada na prática esportiva, fazendo com que, ao comprar o
produto, o consumidor esteja também desejando comprar a
emoção.
O ritmo atual do mercado brasileiro, de uma constante e
programada renovação, faz com que produtos saiam da moda em
uma velocidade que o consumidor não consegue acompanhar. Seja
por falta de uma educação financeira, seja pela situação político-
econômica, o consumidor sacrifica sua saúde, segurança e o tempo
532
com a família para se submeter a longas e extraordinárias jornadas
de trabalho, acreditando que conseguirá uma renda adicional para
aplacar tantos desejos de consumo. Trabalhadores dessa
hipermodernidade esquecem as relações afetivas autênticas e seu
verdadeiro papel na família pela exclusiva função de provedores de
bens de consumo, ou seja, a ideia de garantir “qualidade de vida”
aos seus dependentes limita-se ao aspecto financeiro. Essa é uma
dura, mas imediata consequência da compulsão consumista.
Bauman (2008, p. 13) alerta sobre a situação atual:
lançamos a nós mesmos em um mercado. Somos ao mesmo tempo
produto, vendedor e responsáveis pelo marketing. Na busca de uma
maior aceitação social, as pessoas se submetem a diversas coisas, e,
para serem o “produto da vez”, necessitam dos itens que agreguem
ainda mais valor à imagem, ou mesmo pelo próprio desejo em si,
tendo em consideração que a vida e o modo de vivê-la vem da
“pragmática de comprar”.
Na época em que o homem consumia movido pela
necessidade, ele também possuía um status diferente, pois ele era o
produtor. O indivíduo tinha sua produção, e o que dela não pudesse
obter, obtinha de um outro produtor. A principal característica da
condição de produtor é que sua vida era cheia de regras, gerando
uma certa “solidez” na sociedade de produtores.
Para um produtor, era necessário possuir não apenas mais
que o mínimo, mas também havia um máximo a se dar atenção,
levar em consideração a que ponto algo deixaria de ser benéfico e
se tornaria supérfluo, ou um luxo desnecessário. Ostentar esse luxo

533
era reprovável moral e socialmente. A igualdade e a discrição
simbolizavam o modelo ideal de convivência.
Ao passar da posição de produtor para a de consumidor,
muitas coisas foram radicalmente alteradas. Hoje, as regras e
modelos comportamentais do antigo sistema tornaram-se
anacrônicas, para não dizer que foram proscritas pelos conselheiros
da Indústria Cultural. Destacar-se no grupo é a regra, assim como
viver uma vida de consumo sem limites. Atualmente, a tendência é
sempre mais, não há um máximo a ser alcançado. Não há mais o
luxo, pois a meta atual é tornar “luxo de hoje as necessidades de
amanhã, e, ao mesmo tempo, reduzir a distância entre o ‘hoje’ e o
‘amanhã’ ao mínimo” (BAUMAN, 2001, p. 90).
No passado, se um celular com câmera fotográfica
simbolizava o luxo, hoje, até o mais simples dos celulares possui
uma câmera, e, na maioria esmagadora dos celulares, há duas
câmeras. O mesmo vale para a instalação de airbags nos carros,
antes considerado um caro item opcional, mas a partir da resolução
311 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), alterada pela
resolução 597 do mesmo Conselho, tornou-se uma exigência
obrigatória no mercado. Observa-se, portanto, que seja por
demanda da sociedade, ou por força de lei, os padrões estão sempre
se atualizando, e se o consumidor não estiver preparado, será,
inevitavelmente, deixado para trás.
Bauman (2001, p. 90-91) utiliza a palavra “adequação” ao
falar sobre o consumidor estar sempre preparado, estar sempre
“apto a”. Os desafios do mundo em seu estado “líquido” são
imprevisíveis e constantes, daí a necessidade de preparação.

534
Essa fluidez de desejos e ambições favorece o
desenvolvimento da malsinada prática da obsolescência
programada, em que bens de consumo são concebidos com uma
projeção de durabilidade limitada no tempo, pretendendo-se
favorecer a ideia de descartabilidade, gerando profundas
consequências ambientais.
Já se abandonou o pensamento fordista de se preparar
apenas para uma função. O consumidor deve ter sua mente e corpo
não apenas limitados a uma função como era o produtor. Nos dias
atuais, com o assédio de consumo, oferta irresponsável do crédito,
o consumismo e a consequente massificação dos conflitos, a ideia
de vulnerabilidade foi elevada a outro nível, agora evidenciando
uma fragilidade ainda maior do consumidor, reconhecido como
hipervulnerável diante desses novos fenômenos.
Em que pese o consumismo advir da relação de consumo,
tal fenômeno expande suas consequências a outros setores, sejam
eles de caráter ambiental ou social. Visando estudar, conter e tratar
os desequilíbrios suportados pelo consumo desenfreado, levantam-
se diversos ramos do Direito, demonstrando a necessidade da
análise conjunta em busca da melhor solução.
Nessa seara, verifica-se que o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) – Lei 8.078/90 – (BRASIL, 1990) é conceituado
por Leonardo de Medeiros Garcia (2016, p. 234) como:

Lei principiológica e de função social, é um


instrumento capaz de propor e promover
alternativas sustentáveis de consumo,
atendendo aos ditames constitucionais de
535
garantir um meio ambiente ecologicamente
equilibrado e essencial a sadia qualidade de
vida da população.

Assim, o CDC estabelece meios capazes de promover


relações de consumo conscientes e sustentáveis, mediante escolhas
e diretrizes de mercado que defendam as garantias constitucionais
e a proteção do meio ambiente equilibrado.
Ainda, sob o mesmo enfoque, a Lei 13.186/2015 institui a
Política de Educação para o Consumo Sustentável, a partir da
promoção de técnicas garantidoras do bem-estar ecológico,
permitindo à sociedade e às gerações futuras o uso adequado dos
recursos.
Nesse contexto, surgem as Entidades e Organizações não
Governamentais empenhadas no desenvolvimento de técnicas e
estudos que promovam a conscientização e modificação do
comportamento do consumidor, visando a preservação social e
ambiental.
Em que pese o aparato jurídico oferecido pelas normas
que regulam as relações de consumo, é inegável que o consumismo
estimula e promove a degradação ambiental, seja pelo aumento
desnecessário da extração de insumos utilizados nos processos de
produção, ou pela devolução elevada e inconsciente dos resíduos ao
meio ambiente, os quais ocorrem em quantidades superiores e
irresponsáveis quando comparadas ao resíduo produzido pela
prática do consumo consciente.
Assim, a preocupação com a destinação correta dos
resíduos, o reaproveitamento, a reciclagem, compostagem e

536
recuperação energética, se mostram como medidas indispensáveis
à proteção ambiental.
No entanto, tem-se que o ponto primordial deve se
concentrar nos esforços das ações que busquem a não produção dos
resíduos, mediante a prática do consumo consciente, ou seja,
aquele está pautado na aquisição de bens necessários à vida
humana, obtidos através das informações indispensáveis ao
conhecimento do consumidor que detenha plena capacidade de
entender todos os aspectos ali descritos.
Diante das proporções alcançadas pelo consumo
exagerado, o Direito Ambiental, responsável pela proteção jurídica
do meio ambiente, passa a estabelecer relação direta entre o meio
ambiente e o consumismo, estudando os impactos produzidos por
este fenômeno e suas formas de reparação ou amenização.
A Lei 6938/199 estabeleceu a Política Nacional do Meio
Ambiente no Brasil, que objetiva: compatibilizar o
desenvolvimento econômico-social com a preservação da
qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; desenvolver
pesquisas e tecnologias nacionais orientadas para o uso racional de
recursos ambientais; difundir as tecnologias de manejo do meio
ambiente, a divulgação de dados e informações ambientais e a
formação de uma consciência pública sobre a necessidade de
preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico;
preservar e restaurar os recursos ambientais com vistas à sua
utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo
para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida; impor
ao poluidor e ao predador, a obrigação de recuperar e/ou indenizar

537
os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de
recursos ambientais com fins econômicos, entre outros.
Na mesma linha, destacam-se as Leis nº 9.605/1998 e
9.975/99, dispondo sobre sanções penais e administrativas
aplicadas às condutas lesivas ao meio ambiente e instituindo a
Política Nacional de Educação Ambiental, respectivamente.
Ainda, programas e ações são propostos através de
políticas governamentais, ONG’s ou iniciativa privada, buscando a
educação e modificação do comportamento predatório do
consumidor para racionalização nas relações de consumo, em total
respeito e proteção ao meio ambiente e à sociedade.
Cumpre destacar a gama de princípios norteadores do
Direito Ambiental, os quais se concretizam sob a perspectiva da
garantia de um ambiente saudável a toda a população, através do
uso racional dos recursos naturais, os quais poderão ser igualmente
usufruídos pelas gerações futuras.
Seguindo a mesma linha, traz a Constituição Federal de
1988 (CF/88), a proteção do consumidor como direito fundamental
e princípio da ordem econômica (artigos 5º, XXXII, e 170, V),
cabendo ao Estado a promoção da defesa do consumidor,
garantindo como lei suprema, a prevalência da dignidade da pessoa
humana, o meio ambiente ecologicamente saudável e protegido, o
cumprimento das normas referentes à guarda das relações
trabalhistas, e o desenvolvimento sustentável atrelado a uma
perspectiva liberal.
Em outras palavras, as mazelas do capitalismo moderno
no Estado Democrático de Direito defendem o ideal alicerçado na
ordem econômica, primando pela livre iniciativa, prevista no artigo
538
170 da CF/88. Porém, tal princípio não pode colidir e acobertar os
empresários para tratar de qualquer modo os consumidores,
causando problemas sociais. Desta feita, há a necessidade de
compatibilidade e igualdade de princípios na relação de consumo.
Com a implementação de microssistemas, houve a promoção e
preservação de valores, bem como a repressão eficiente de abusos e
a ampla e efetiva reparação aos danos.
Tomando por base a nova vertente sedimentada pelo
Estado, a sociedade, cumprindo de certo modo a intenção do
legislador, tornou-se mais participativa à medida que o próprio
CDC (BRASIL, 1990) estabelece condições em que Estado, agentes
econômicos e sociedade são a tríplice harmônica para zelar pela
preservação dos bens jurídicos mais importantes do cidadão,
dentre os quais não se pode olvidar do meio ambiente.

3. CONSUMO HUMANITÁRIO: PROTEÇÃO DOS


DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO
INDIVÍDUO

O estudo do termo consumo humanitário passa pela


análise jurídica e interdisciplinar das consequências advindas da
prática do consumismo.
Primeiramente, verifica-se que a Constituição Federal de
1988 estabeleceu no artigo 1º os fundamentos do Estado
democrático de Direito e, dentre eles, elencou a dignidade da
pessoa humana, como garantia inerente à condição do ser humano.

539
Corroborando este entendimento, Tavares (2010, p. 56)
cita:

A dignidade da pessoa humana,


diferentemente de outros direitos, não é fruto
de um mero aspecto referente às relações de
existência ou não do ser humano, e sim, é uma
característica inerente do ser humano que o
difere dos demais seres.

A previsão constitucional da dignidade da pessoa humana


como fundamento da República se torna ainda mais consagrada no
sentido de garantir a busca do Estado em proporcionar ao
indivíduo condições para que se possa ter uma vida digna, sendo,
portanto, um fim e não um meio pelo qual o Estado atinge suas
finalidades (TAVARES, 2010).
Na mesma linha de garantias ao indivíduo, o artigo 7º do
mesmo diploma legal estabelece direitos de proteção ao
trabalhador, para garantir um ambiente seguro e saudável no
desenvolvimento de suas atividades laborativas.
O artigo 170 da CF/88 compatibiliza os princípios da livre
concorrência, da defesa do meio ambiente e da defesa do
consumidor, como garantia da ordem econômica brasileira. Neste
aspecto, é possível observar o tratamento e proteção atribuídos pela
Carta Magna à pacífica convivência entre o sistema capitalista,
representado pela “livre iniciativa” e “livre concorrência”, e os
direitos de ordem fundamental do indivíduo, que se apresentam
como proteção do consumidor e do meio ambiente.

540
O artigo 225 da CF/88 contempla a proteção e o uso a
todos os indivíduos do meio ambiente equilibrado e saudável,
pautando-se na perspectiva sustentável e consciente da utilização
racional dos recursos naturais.
Corroborando os direitos acima elencados, bem como
outros a serem protegidos, consolida-se a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), como norma responsável por delinear
os direitos humanos básicos, sendo o Brasil signatário desta.
Ainda, sob o mesmo enfoque, o CDC estabelece normas
de proteção às relações consumeristas, as quais possuem atribuição
de caráter de ordem pública e interesse social.
Ainda em defesa aos interesses do consumidor, foram
criadas entidades que corroboram e promovem a execução destes.
Nesse caso, citamos o Programa de Orientação e Proteção ao
Consumidor (PROCON), Departamento de Proteção e Defesa do
Consumidor (DPDC), Delegacia do Consumidor (DECON), entre
outros.
Os princípios e institutos do Direito do Consumidor
norteiam e embasam a aplicação da norma, resguardando sempre
o interesse do sujeito que se encontra vulnerável dentro da relação
de consumo, neste caso, o consumidor.
Ainda sob a mesma perspectiva, considera-se também a
proteção do meio ambiente, através do arcabouço de leis que visam
a proteção do meio ambiente, a criação de uma política nacional
ambiental, a criação de uma política nacional de educação
ambiental, a valorização e aplicação dos princípios norteadores do
Direito Ambiental, bem como a execução de políticas promovidas

541
por órgãos e entidades criadas para melhor aplicação da norma,
visando a conscientização e racionalidade no uso dos recursos
naturais, em face da preservação para as gerações presente e
futuras.
Todas as garantias aqui elencadas demonstram a proteção
do indivíduo, quando analisadas sob a ótica das relações
consumeristas. Não basta apenas se ater às normas diretamente
incidentes (CDC), é necessário ir além, e interrelacionar as
consequências do consumismo nas suas áreas de incidência,
iniciando o processo de uso racional dos recursos naturais, formas
de produção, proteção do labor e do próprio indivíduo, destinação
final do produto e, ainda, conscientização do consumidor.
Diante da análise das normas jurídicas descritas acima,
surge então o conceito de Consumo Humanitário, entendido além
da ideia de consumo sustentável, englobando e aprimorando suas
diretrizes. A sustentabilidade do meio ambiente e o equilíbrio social
alcançaram parâmetros transcendentes para garantir a proteção
dos direitos humanos, destinados a todos os indivíduos, pela
simples condição de ser humano.
O meio ambiente equilibrado e a dignidade da pessoa
humana deverão ser igualmente protegidos, a partir da
disseminação do conhecimento necessário de preservação do meio
ambiente e da garantia dos direitos individuais e sociais
estabelecidos na CF/88, para o relacionamento saudável e
equilibrado do homem com o homem e do homem com o meio,
podendo assim, alcançar o almejado bem comum.

542
4. EDUCAÇÃO E INFORMAÇÃO DO CONSUMIDOR

A Política Nacional das Relações de Consumo, prevista no


artigo 4º do CDC, surge a partir de um compromisso trilateral,
envolvendo o consumidor, a iniciativa privada com a mediação
responsável do Estado, objetivando-se compatibilizar a proteção do
consumidor com o desenvolvimento econômico e tecnológico que,
em última análise, limitará a livre exploração da atividade
econômica a partir de novos padrões éticos.
Ademais, nesse contexto, a educação surge como
princípio-diretriz, analisada aqui sob duas acepções: formal e
informal.
A educação formal visa garantir ao consumidor o
conhecimento de seus direitos e deveres na ordem jurídica de
consumo, através de uma melhor difusão da sua tutela material e
processual. Ora, a título de ilustração, é possível estimular a
inserção do Direito do Consumidor nas escolas de ensino médio,
não como uma disciplina autônoma, mas através de lições básicas
sobre consumo consciente e responsável, além de noções
preliminares sobre os principais institutos da disciplina.
A necessidade de tal meio pedagógico formal se justifica
exatamente porque os problemas da relação de consumo são
problemas que atingem a toda a coletividade cotidianamente.
Quantos contratos são celebrados com cláusulas abusivas? Quantas
condutas sociais típicas são apresentadas de maneira irregular para

543
o consumidor? Não há limites ao consumismo? A publicidade, a
oferta, o assédio de consumo, a degradação ambiental, tudo
repercute na vida do consumidor, que, na maioria das vezes, não
tem o conhecimento necessário sobre a ilicitude de muitas
condutas no mercado, nem tampouco acerca do alcance da
proteção que lhe é conferida.
Contudo, há outra educação que é informal, decorrente
do grau de comprometimento ético do fornecedor e do próprio
consumidor. Nessa linha de raciocínio, a educação informal é
aquela que deve partir do próprio empresário, com o escopo de ter
uma postura ética na relação de consumo, buscando cumprir
espontaneamente seus deveres, independentemente da sanção, ou
seja, livremente da aplicação da norma sancionadora, mas por
respeito ao seu conteúdo. 3
O consumismo, imposto pela economia capitalista e
estimulado pela propaganda e pelo incentivo sentimental da
sociedade, levou a humanidade ao caos sócio-cultural-ambiental,
com impactos devastadores à sociedade e ao meio ambiente.
Para reverter o quadro de total desequilíbrio social e
ambiental, verifica-se a necessidade imperiosa de implantar uma
nova ética, pautada pela responsabilidade e solidariedade das
gerações presentes e futuras, visando à preservação do planeta e da

3
Pretende-se através dessa educação informal implementar um ideal dentro do
Direito, tornando o sistema normativo estático, ou seja, cumprir-se-ia a norma,
não pelo respeito à autoridade da qual emanou e que está autorizada a exigir sua
aplicação irrestrita, mas pelo reconhecimento do conteúdo ético da prestação, ao
contrário do que ocorre com a maioria das normas jurídicas, em que a autoridade
que a exige funciona como o principal inibidor de condutas ilícitas e garantidor
da paz social, revelando um sistema normativo dinâmico.
544
própria raça humana. Dessa forma, busca-se garantir o direito
fundamental a um ambiente equilibrado socialmente,
culturalmente e ecologicamente para todas as gerações.
Nesse sentido, verifica-se que é impossível desatrelar a
nova perspectiva acerca da consolidação do consumo humanitário
em um ambiente genuinamente capitalista, sem que se modifique a
demanda do consumidor para uma exigência de adaptação da
oferta disponibilizada no mercado.
Ora, o consumidor informado e educado, torna-se
consciente, portanto, adepto às diretrizes da sustentabilidade,
impondo ao fabricante ou prestador de serviço, uma produção
ecologicamente e socialmente equilibrada, em total consonância
aos direitos e garantias do homem.
O direito à informação e à educação já são garantidos pelo
próprio Código de Defesa do Consumidor e leis esparsas, como
exemplo, Lei 13.186/2015 (Política de Educação para o consumo
sustentável).
Leonardo de Medeiro Garcia (2016) apud Paulo Antonio
Locatelli (2000) afirma que os produtos podem ser danosos ao meio
ambiente desde a extração da matéria-prima, ou seja, antes mesmo
da confecção do produto e, portanto, da sua existência, passando
pelo seu uso irregular e indiscriminado, até a destinação após a sua
inutilização. Portanto, as referidas considerações quando
disponibilizadas ao alcance do consumidor, que seja capaz de
entendê-las, promoverá a escolha consciente deste, que poderá
substituir produtos danosos ao meio ambiente e/ou à sociedade,
por aqueles menos ou não agressores destes fatores.

545
Portanto, o poder de escolha consciente e o exercício deste
somente são possíveis quando ao consumidor são dadas todas as
informações adequadas e precisas sobre os impactos que o
consumo causa ao meio ambiente.
Ademais, o consumidor deve ser capaz de entender as
informações disponibilizadas, deverá se tornar consciente e
responsável. E, para tanto, é necessário educá-lo. Ora, a gama de
informações prestadas não alcança sua finalidade quando
repassada a alguém que desconhece os conceitos, termos e
definições.
Dessa forma, verifica-se que é necessário fornecer ao
consumidor os meios necessários para que este faça escolhas
conscientes e imbuídas de responsabilidade social, política e moral,
as quais superam os meros anseios e interesses individuais.
Nesse aspecto, é possível relacionar o fornecimento de
educação ao indivíduo com o próprio exercício da cidadania, eis
que surge neste momento o pensamento coletivo e solidário,
mediante o conhecimento dos direitos e deveres atribuídos a todos.
O fornecimento de educação e informação ao consumidor
e também ao fornecedor garante o pleno exercício da liberdade de
escolha. Portanto, apenas o indivíduo consciente e com
informações precisas exercerá de forma livre a escolha pelas opções
dos produtos e serviços disponibilizados. Assim, inegável a
conclusão de que a ausência da prestação educacional associada à
ineficiência na prestação das informações violam o direito à
liberdade do homem.
Assim, é possível concluir que não basta isolar a culpa
para grandes empresas e corporações que provocam os danos
546
ambientais e sociais. Para uma real mudança no topo da pirâmide,
vê-se imprescindível e urgente uma modificação de
comportamento e exigência na base responsável pelo consumo, ou
seja, de todos os consumidores. Se a desaprovação não atinge o
consumismo, a conscientização não é completa.
Logo, entender, mediante um processo de
conscientização e informação, que as atitudes humanas
desencadeiam diversos efeitos colaterais para a natureza é
imprescindível para desenvolver um consumo consciente. E mais,
entender que essa prática do consumo predatório, que hoje
aparenta ser tão natural, tem origem e conceito bem definidos,
pode ser ainda mais efetivo para elucidar a diferença entre a
necessidade real e a necessidade construída.
Portanto, busca-se construir novos significados na
construção de uma sociedade humanitária, a fim de que a mesma
se transforme num coletivo democrático, participativo e
socialmente justo, capaz de exercer efetivamente a solidariedade
com as gerações presentes e futuras.
Nesse sentido, faz-se obrigatório adotar diversas medidas
que garantam e promovam a exata e real divulgação de todas as
informações concernentes ao ciclo de vida do bem, envolvendo
todos os impactos de caráter ambiental ou social que foram
produzidos por este até a produção da versão final.
A conscientização pautada sob a educação é, sem dúvida,
um dos caminhos para melhorar os desgastes e desequilíbrios
sociais e ambientais, pois promove, a partir do conhecimento, a
mudança de comportamento do indivíduo diante das necessidades

547
que a vida impõe a todos, relacionadas, harmonicamente, às
limitadas disponibilidades de recursos naturais e às garantias dos
direitos precípuos do homem, os Direitos Humanos.
Em outras palavras, a participação maior do consumidor
no debate político, reafirmando o ideal de cidadania, seria fruto de
seu maior nível de educação para um consumo consciente,
responsável e, principalmente, sustentável, aperfeiçoando os
elementos de conexão entre o Direito do Consumidor e o Direito
Ambiental.

5. COEXISTÊNCIA HARMÔNICA ENTRE O CAPITALISMO


E CONSUMO HUMANITÁRIO

O sistema capitalista caracterizado pela liberdade de


mercado, livre concorrência e obtenção de lucro e riqueza
prejudicou a análise da sociedade quando avaliado sob as
perspectivas das relações de consumo.
O avanço tecnológico e a globalização fortaleceram o
modo de produção capitalista e o consequente consumo
exacerbado praticado vorazmente e de forma irresponsável pela
sociedade.
Esse processo é sempre favorecido pela indústria da
comunicação por meio da publicidade, que constantemente cria
uma demanda não necessária na sociedade. O nível e o estilo de
vida baseados no consumo assumem caráter de identidade cultural
de um povo, e o consumismo passa a ditar mais intensamente as
relações do homem com o meio ambiente e do homem com o
próprio homem.
548
Aliado a essa problemática, necessário se manifestar sobre
o impacto social proveniente do consumismo.
É inconcebível e ultrajante para a sociedade admitir a
existência e continuidade do trabalho escravo nos dias atuais, como
meio de aumentar a produção e o lucro mediante baixo custo.
As necessidades criadas pelo mercado satisfazem, ainda
que nunca de forma suficiente, o sentimento do homem em lidar
com a “falta”, a qual se vê como genuína da espécie humana. Esta
realidade projetada leva o indivíduo a patamares de consumo e
desejo que nunca poderão ser saciados.
Outrossim, os padrões de vida e beleza impostos pela
sociedade são identificados como atributos individuais que
“agregam” aos indivíduos, sempre atrelados ao consumo de
produtos capazes de lhes oferecer tais qualidades. Essa busca
reforça a fome insaciável do homem em se adequar a este modelo
socialmente instituído.
No entanto, conforme já explicitado, o direito do
indivíduo a um ambiente ecologicamente e socialmente
equilibrado deverá ser garantido a todos e por todos, posto que
protegidos em esfera constitucional. Portanto, violá-los significa
negar a própria Constituição e todos os princípios norteadores do
ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, as profundas inovações vivenciadas pelo
mundo, as quais afetaram significativamente as experiências de
consumo, quais sejam, a globalização, o desenvolvimento de novas
tecnologias de comunicação, o comércio através da internet, entre
outras exigem o aprimoramento da capacidade decisória do

549
consumidor, pois pelo exercício consciente de sua liberdade de
escolha, poderá diminuir a relevância, ou mesmo excluir o
capitalista predatório do mercado.
O cenário atual, relacionado à cultura do consumo em
excesso, continuamente incentivado pelo mercado, tem sido
considerado, frequentemente, um símbolo do sucesso das
economias capitalistas modernas. Entretanto, o referido consumo
predatório e desenfreado tem recebido duras e constantes críticas,
seja por ONG, Governos, Organizações Mundiais, Instituições
Públicas e Privadas, passando a ostentar uma conotação negativa e
prejudicial ao equilíbrio do ambiente ecológico e social.
Diante desse contexto, surgem propostas de política
ambiental, através de um comportamento ético, solidário e
sustentável, bem como a implementação de programas de
conscientização social, desenvolvidos por ONG, Instituições
Privadas e Públicas e pelo próprio Estado, buscando a
compatibilização dos direitos alcançados pelo consumo
humanitário com o sistema capitalista.
Assim, de um lado, se levanta o combate à degradação aos
recursos naturais finitos do planeta, a frustração do desejo de
consumir o desnecessário, a imposição de padrões sociais ditados
pelo mercado e a exploração do trabalho escravo. Em
contrapartida, o capitalismo com sua inerente liberdade de
produção e concorrência precisa se adaptar ao novo contexto
social, a partir da conexão dos princípios éticos e solidários às
escolhas políticas e preservação do meio ambiente, mediante uma
mudança de comportamento relacionada às atividades de
consumo.
550
Dessa maneira, o consumismo perdulário e ostensivo
estimulado e vivenciado há décadas, hoje se demonstra social e
ambientalmente injusto, moralmente indefensável e genuinamente
ilegal.
Ora, se forem considerados os princípios garantidos
constitucionalmente (igualdade, defesa do meio ambiente,
proteção do trabalho, dignidade da pessoa humana e cidadania),
claramente se verifica a violação direta à Carta Magna de 1988 e ao
Estado democrático de Direito.
Assim, para a coexistência harmônica da garantia dos
direitos individuais e do sistema capitalista é imprescindível
fortalecer estratégias que promovam a educação e a informação do
consumo sustentável, pautado sob uma perspectiva humanitária.
Portanto, é necessário desenvolver um conjunto de ações
que, na sua especificidade e interdependência, avancem em direção
à estruturação de um repertório de políticas integradas, mediante a
adoção de tecnologias limpas, que promovam campanhas de
conscientização sobre os fatores que provocam a insustentabilidade
ambiental e estimulem atividades não poluidoras com a efetiva
execução de políticas socioambientais.
Por conseguinte, insta salientar que o objetivo da
conscientização social aliado à modificação do comportamento não
busca extinguir o sistema econômico neocapitalista, mas sim
harmonizá-lo à necessidade imperiosa da sociedade e do meio
ambiente, garantindo-lhe efetiva representação social.

551
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, fica claro o papel que deverá ser


desempenhado por cada um dos partícipes da relação de consumo
(consumidores, fornecedores e Estado), quanto às consequências
advindas do consumismo e sua repercussão negativa para o meio
ambiente.
O consumismo favorece o surgimento de necessidades
artificiais de consumo, fomenta a obsolescência programada de
bens de consumo e sua consequente descartabilidade, tudo isso
com graves repercussões para o meio ambiente, tornando-o
desequilibrado e nocivo à própria sobrevivência humana.
Aliado ao desgaste ambiental, a sociedade pacificamente
aceita as violações de direito perpetradas pela prática do consumo
exacerbado, seja no desrespeito às normas trabalhistas, seja pela
submissão voluntária aos assédio de consumo, ou quando cria
arquétipos para um modelo artificial de felicidade, justamente para
manter a engrenagem do consumo irrefletido em funcionamento.
Essa modernidade líquida e paradoxal tem um ritmo
próprio e intenso, e, ao mesmo tempo, impossível de ser
acompanhado. Esse descompasso instaurou um verdadeiro vazio
no homem e um mal-estar difuso em toda a sociedade, criando um
ambiente propício para que o consumo se estabelecesse como uma
forma supostamente eficaz de suprir as frustrações e angústias.
Nesse ambiente contraditório, exsurgem os desafios
contemporâneos à tutela consumerista, a qual precisa, mais do que
nunca, se adaptar a essa nova realidade, conscientizando o
consumidor acerca do seu papel e possibilitando a recuperação da
552
sua autoestima cívica, a fim de promover a ocupação dos espaços
políticos de deliberação criados pela Lei 8.078/90 (Código de
Defesa do Consumidor) e, sobretudo, o desenvolvimento gregário
de pertencimento à categoria de consumidores.
O ordenamento jurídico possui uma gama de recursos
que permite a sociedade, sob um enfoque geral, romper com essa
cultura alienante e irreal, e trazer consciência ao cidadão para que
tome consciência do exato poder que este possui, qual seja, o de
ditar as regras do mercado, escolhendo quais produtos ou serviços
deverão ou não compor a sua vida.
Conclui-se, portanto, que o caminho para modificar a
cultura do consumo e a inércia social revela-se dentro das bases
educacionais que promovam o conhecimento ao indivíduo,
permitindo-lhe capacidade de realizar escolhas racionais. A partir
da obtenção do conhecimento, o indivíduo se encontra apto a
receber informações e então exercer livremente o seu poder de
escolha.
Nessa linha de pensamento, a informação, direito
fundamental do cidadão-consumidor, transforma-se então na peça
fundamental para o empoderamento consumerista, ganhando
proporções amplas quando veiculadas por plataformas virtuais de
reclamação, espaços de compartilhamentos de experiências já
presentes na grande maioria dos sites de comércio eletrônico, como
também pelas novas redes de interações, quer sejam websites, blogs,
imprensa digital, Facebook, Whatsapp, Twiter, Instagram, dentre
outros.

553
Admite-se que não se pode estudar o fenômeno do
consumismo sem avaliar então os aspectos envoltos pelo Direito
Ambiental e pelo Direito Constitucional, haja vista que o consumo
demasiado extrapola os limites da relação consumerista,
impactando diversos aspectos sociais.
Ser um consumidor consciente é preocupar-se em ser um
cidadão mais ativo em prol do exercício democrático de suas
escolhas. Nesse sentido, a informação, direito fundamental da
Pessoa Humana, interfere diretamente sobre o livre arbítrio das
decisões do consumidor. E em se tratando de poder seletivo em
relação ao mercado, pode e deve a parte mais vulnerável da relação
jurídica ser uma das engrenagens que impulsiona o fornecedor a
mudar suas atitudes quanto à concorrência desleal social, que usa
da dignidade do trabalhador para obter lucros.
Dessa forma, busca-se compatibilizar e possibilitar a
conscientização social acerca da convivência harmônica entre o
neocapitalismo e o consumo humanitário e/ou sustentável, a partir
de um programa de implementação da educação e da obtenção da
informação do consumidor como meio de combate ao
consumismo destrutivo e desenfreado, na busca de promover e
garantir um ambiente equilibrado ecológica e socialmente, nos
moldes da lei universal de direitos humanos.

554
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set.-out.2015.

555
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<https://rafaelmaltez.jusbrasil.com.br/artigos/121944044/consumi
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<https://jus.com.br/artigos/36653/consumo-e-meio-ambiente-
principais-efeitos-do-consumismo-no-meio-ambiente-natural-
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VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identificando os


espaços políticos de atuação qualificada do consumidor. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2017.

556
REFORMA TRABALHISTA NA PERSPECTIVA DO
DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA E DO
DIREITO A TER DIREITOS

THE LABOR REFORM IN THE PERSPECTIVE OF THE


HUMAN RIGHTS OF ACCESS TO JUSTICE AND THE
RIGHT TO HAVE RIGHTS

Cleber Lúcio de Almeida1


Wânia Guimarães Rabêllo de Almeida2

RESUMO: A preocupação com o acesso à justiça está presente em


vários tratados sobre direitos humanos e foi reiterada na assembleia
da Organização das Nações Unidas, do dia 25 de setembro de 2015
e na qual foi adotada a “Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável”, tendo sido, inclusive, incluídas entre as metas
estabelecidas “proporcionar acesso à justiça para todos”. Esta
preocupação se justifica plenamente, na medida em que o acesso à
justiça não constitui um fim em si mesmo, mas atua como via de
acesso aos direitos assegurados pela ordem jurídica. A reforma
trabalhista recentemente realizada no Brasil criou sérios entraves
para o acesso dos trabalhadores à justiça, o que exige verificar a sua

1
Pós-doutor em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba, ARG. Doutor
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor dos cursos de graduação
e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Juiz do Trabalho junto ao TRT da 3ª Região.
2
Pós-doutora em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba, ARG. Doutora
e mestra em Direito Privado pela PUC-Minas. Professora de Direitos Humanos e
Processo Coletivo do Trabalho das Faculdades Milton Campos. Advogada.
557
harmonia com tratados sobre direitos humanos dos quais o Brasil
é signatário, ou seja, a sua submissão a rígido controle de
convencionalidade. O presente ensaio não pretende confrontar
cada uma das normas que compõem a reforma trabalhista com
tratados sobre direitos humanos, mas, sim, verificar se acesso à
justiça é um direito humano e, em caso positivo, qual é o seu
alcance, visando estabelecer parâmetros para a submissão da
reforma trabalhista a controle de convencionalidade, na
perspectiva de que, definidos estes parâmetros, as partes estarão em
melhores condições de exercer o seu direito ao acesso à justiça e
exigir o seu respeito, proteção e realização concreta, assim como os
julgadores estarão em melhores condições para aferir se os seus atos
estão em harmonia com este direito.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma trabalhista; Acesso à justiça;


Controle de convencionalidade.

ABSTRACT: The concerns with access to justice is present in


several human rights treaties and was reiterated at the United
Nations Assembly on September 25, 2015, in which the "2030
Agenda for Sustainable Development" was adopted have been
included among the established targets like "to provide access to
justice for all". This concern is fully justified in that access to justice
is not an end in itself, but acts as a means of access to the rights
guaranteed by the legal system. The recent labor reform in Brazil
has created serious obstacles to workers' access to justice, which
requires verification of their harmony with human rights treaties to
which Brazil is a signatory, that is, their submission to rigid control
of convention. This essay is not intended to confront each of the
norms that make up the labor reform with human rights treaties,
but rather to verify that access to justice is a human right and, if so,
what is its scope, in order to establish parameters for the
558
submission of the labor reform to the control of convention, in the
perspective that, given these parameters, the parties will be better
able to exercise their right to access to justice and demand their
respect, protection and concrete realization, just as the judges will
be in a better position to gauge whether their acts are in harmony
with this right.

KEYWORDS: Labor reform; Access to justice; Conventionality


control.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Direitos humanos. Direitos humanos processuais. O acesso à
justiça como direito humano processual.
3. Direitos humanos processuais em espécie. O acesso à justiça
como direito humano.
4. Alcance do direito de acesso à justiça como direito humano.
Considerações finais.
Referências.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro é composto por fontes


internas e externas, estando entre estas várias normas de Direito
Internacional dos Direitos Humanos.
O Brasil assumiu, perante a comunidade internacional, a
obrigação de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos,
como decorre, por exemplo, do artigo 4º, II, da Constituição da
República de 1988.

559
Deste modo, qualquer norma interna está sujeita a
controle de convencionalidade, ou seja, de compatibilidade com os
tratados sobre direitos humanos aos quais o Brasil está submetido.
A realização deste controle é imposta, ainda:
1) pelos artigos 5º, § 1º, e 7º, caput, da Constituição da
República, que determinam a compatibilização das fontes internas
e externas do Direito do Trabalho, tendo em vista, especialmente,
os princípios da prevalência da norma mais favorável e pro homine,
e pelo artigo 4º, IV, da também da Constituição da República, que
adota como princípio a prevalência dos direitos humanos;
2) pela supralegalidade dos tratados sobre direitos
humanos, que é reconhecida, por exemplo, pelo artigo 27 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, segundo o qual
o Estado não pode invocar as disposições do seu direito interno
para justificar o inadimplemento de um tratado;
3) pelo artigo 13 do Código de Processo Civil de 2015, que,
na condição de fonte subsidiária e supletiva do Direito Processual
do Trabalho, impõe que, na solução judicial dos conflitos de
interesses, sejam consideradas as disposições previstas em tratados,
convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.
A respeito das obrigações assumidas pelo Brasil perante a
comunidade internacional vale lembrar, por exemplo, que: a
Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a obrigação
de não exercer atividade ou praticar qualquer ato destinado à
destruição dos direitos e liberdades nela estabelecidos (artigo
XXX); a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados dispõe
que estes obrigam as partes e devem ser cumpridos de boa-fé
(artigo 2º) e que o Estado é obrigado a abster-se da prática de atos
560
que frustrariam o objeto e a finalidade de um tratado (artigo 18); o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
impõe aos Estados a obrigação de adotar medidas que visem
assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o
pleno exercício dos direitos nele reconhecidos.
Cumpre mencionar, também, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, segundo a qual os Estados devem:
respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e garantir o seu
livre e pleno exercício (artigo 1º, 1); b) adotar as medidas
legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar
efetivos os direitos e garantias nela previstos (artigo 2º, n. 1).
Lembre-se, por fim, da Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento, proclamada pela Organização das Nações
Unidas em 1986, que reconhece o direito ao desenvolvimento
econômico, social, cultural e político (artigo 1º) e estabelece que os
Estados têm: a) “o direito e o dever de formular políticas nacionais
adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante
aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os
indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa
no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí
resultantes” (artigo 2º, n. 3); b) a responsabilidade primária pela
criação das condições favoráveis à realização do direito ao
desenvolvimento (artigo 3º); c) a obrigação de adotar medidas para
eliminar as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos
(artigo 5º), tomar todas as medidas necessárias à realização do
direito ao desenvolvimento, inclusive no que ser refere ao acesso ao
emprego, distribuição equitativa de rendas e erradicação das

561
injustiças sociais (artigo 8, 1), e formular, adotar e implementar
políticas voltadas ao pleno exercício e fortalecimento progressivo
do direito ao desenvolvimento (artigo 10).
Em suma, o Brasil tem a obrigação de respeitar, proteger
e realizar os direitos humanos.
Anote-se que, como esclarece Rolando E. Gialdino:
a) a obrigação de respeitar significa que o Estado “deve
abster-se de adotar medidas que possam dificultar ou impedir” o
gozo dos direitos humanos, caracterizando o descumprimento
desta obrigação a “derrogação de normas de proteção dos
trabalhadores”, “limitação ou denegação do acesso aos direitos a
‘todas’ as pessoas” e criação de dificuldades para o acesso à justiça”;
b) a obrigação de proteger significa que o Estado deve
proteger a pessoa humana “das outras pessoas (físicas ou
jurídicas)”, em especial quando elas se encontrem frente a
elementos agressivos, dentre os quais “interesses econômicos
poderosos”, o que requer, por exemplo, a adoção de medidas
legislativas para “amparar os trabalhadores” contra “práticas
trabalhistas danosas”, caracterizando descumprimento desta
obrigação o “abandono da população às ‘leis do mercado’, em
matéria de salários, por exemplo;
c) a obrigação de realizar constitui gênero, que tem com
espécies as obrigações de facilitar (o Estado deve “procurar iniciar
atividades com o fim de fortalecer o gozo” dos direitos humanos ou
dos “direitos que compõem o direito a um nível de vida
adequado”), fazer efetivo (os Estados devem tornar efetivos os
direitos quando um indivíduo ou grupo for incapaz, por razões que
escapam ao seu controle, de gozá-los, utilizando, para cumprir esta
562
sua obrigação, inclusive “os instrumentos tendentes a realizar uma
verdadeira e justa distribuição da riqueza nacional”), e proteger (o
que significa que o Estado deve “promover, manter e restabelecer a
saúde da população”) (GIALDINO, 2003, p. 95-105).
Estas obrigações devem ser cumpridas pelo Estado no
exercício de todas as suas funções, ou seja, executiva, legislativa e
jurisdicional, valendo registrar, quanto a este último aspecto, que
os juízes não podem “ignorar que todas as normas relativas a
direitos humanos, inclusive as normas de princípios, são de
aplicação direta e imediata, nos precisos termos do disposto no
artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal” (COMPARATO, 2001, p.
29), o que significa que os juízes têm o dever de respeitar, proteger
e realizar os direitos humanos.
Realizados estes esclarecimentos, cumpre mencionar que
a denominada reforma trabalhista, que foi realizada,
principalmente, por meio da Lei n. 13. 467/2017 adotou soluções
que traduzem sérias restrições ao acesso dos trabalhadores à justiça.
Neste sentido, vale mencionar a inclusão na CLT da
possibilidade de punição da litigância de má-fé e de condenação
dos trabalhadores no pagamento de honorários advocatícios
sucumbenciais. Toda litigância de má-fé deve ser punida e não há
como negar que é razoável impor ao vencido a obrigação de pagar
honorários advocatícios aos patronos da parte vencedora.
No entanto, a inclusão destas possibilidades na CLT deve
ser examinada em conjunto com outras medidas adotadas pela
reforma trabalhista.

563
A reforma trabalhista estabelece que a
responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da
parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que
beneficiária da justiça gratuita, ou seja, a simples improcedência do
pedido foi considerada fato suficiente para que o trabalhador seja
condenado a pagar honorários periciais, mesmo que beneficiário
da justiça gratuita e que não tenha litigado de má-fé.
De outro lado, por força da reforma trabalhista, os
trabalhadores também passaram a se sujeitar ao pagamento de
honorários advocatícios, no caso de sucumbência, o que,
considerado individualmente, e bem razoável. No entanto, a
reforma trabalhista, adotando solução consagrada pelo Código de
Processo Civil (CPC), estabeleceu que os honorários são devidos na
reconvenção, mas, sem uma explicação plausível, não acompanhou
o CPC quando ele estabelece que tal verba também é também
devida na execução, o que deixa claro que a adoção do princípio da
sucumbência teve em vista tornar o processo custoso para os
trabalhadores.
Estes exemplos são suficientes para se chegar à conclusão
de que a reforma trabalhista cria sérios entraves para o acesso dos
trabalhadores à justiça.
Note-se que, a par de criar entraves para o acesso dos
trabalhadores à justiça, a reforma trabalhista adotou soluções que
dificultam a satisfação dos direitos reconhecidos em juízo,
restringindo, por exemplo, a possibilidade de reconhecimento de
grupo econômico, ou seja, a atribuição de responsabilidade pelos
créditos dos trabalhadores a todos aqueles que se beneficiam dos
seus serviços.
564
As normas que compõem a reforma trabalhista estão
sujeitas, pelos motivos já exposto, a controle de convencionalidade.
O objetivo do presente ensaio não é examinar cada uma
das normas que compõem a reforma trabalhista no seu confronto
com tratados sobre direitos humanos, mas, sim, verificar se o acesso
à justiça é um direito humano e, em caso positivo, qual é o seu
alcance.
O que se pretende, em suma, é, utilizando-se de estudo
bibliográfico, estabelecer parâmetros para a submissão da reforma
trabalhista a controle de convencionalidade, na perspectiva de que,
definidos estes parâmetros, as partes estarão em melhores
condições de exercer o seu direito à efetividade da jurisdição e do
processo e exigir o seu respeito, proteção e realização concreta,
assim como os julgadores estarão em melhores condições para
aferir se os seus atos estão em harmonia com este direito, valendo
lembrar que o acesso à justiça não constitui um fim em si mesmo,
mas, sim, importante via de acesso aos direitos assegurados pela
ordem jurídica, o que o torna imprescindível em um Estado
Democrático de Direito.
Anote-se que, a relevância do acesso à justiça é tamanha,
que os chefes de Estado presentes na assembleia da Organização das
Nações Unidas, realizada em 25 de setembro de 2015, na qual foi
aprovada a Agenda 2030, entre eles o do Brasil, reconheceram a
necessidade de construir uma sociedade justa e inclusiva e respeitar
o direito de todos à proteção social e bem-estar físico, mental e
social e a obrigação de os Estados respeitarem, protegerem e
promoverem os direitos humanos (números 7, 11 e 19), adotaram

565
como uma das metas a serem atingidas até 2030, “proporcionar
acesso à justiça para todos” (Objetivo 16), tendo sido registrado,
neste sentido, que “a nova Agenda reconhece a necessidade de
construir sociedades pacíficas, justas e inclusivas, que ofereçam
igualdade de acesso à justiça e que são baseadas no respeito aos
direitos humanos (incluído o direito ao desenvolvimento), em um
efetivo Estado de Direito” (“Nova Agenda”, n. 35).
A facilitação do acesso à justiça, portanto, está
diretamente relacionada com a criação de uma sociedade justa,
livre, solidária, desenvolvida e inclusiva, sendo este, não custa
recordar, o objetivo fundamental da República (artigo 3º da
Constituição de 1988).
O ensaio é dividido em três partes: na primeira, será
demonstrada a existência de direitos humanos processuais;
contendo a sua segunda parte, a definição de quais são estes
direitos, visando verificar se dentre eles está o acesso à justiça. Ao
final, será definido o alcance do direito de acesso à justiça.

2. DIREITOS HUMANOS. DIREITOS HUMANOS


PROCESSUAIS. O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO
HUMANO PROCESSUAL

Os direitos humanos constituem o resultado de lutas pelo


reconhecimento, proteção e promoção da dignidade humana.
Neste sentido, anota Joaquín Herrera Flores, os direitos
humanos são “processos – normativos, sociais, políticos,
econômicos – que abrem ou consolidem espaços de lutas pela
dignidade humana”, ou, em outros termos, “conjuntos de práticas
566
que potenciem a criação de dispositivos e de mecanismos que
permitam a todas e a todos poder fazer suas próprias histórias”.
(FLORES, 2009, p. 11).
No mesmo compasso, já foi aduzido que

O âmbito que dá origem e mantém vivos os


direitos humanos são: a) a luta e a ação social;
b) a luta individual e cotidiana, na medida em
que direitos humanos tem mais a ver com
processos de luta pela abertura e consolidação
de espaços de liberdade e dignidade humana.
Em concreto podem ser concebidos como o
conjunto de práticas, ações e atuações
sociopolíticas, simbólicas, culturais e
institucionais tanto jurídicas como não
jurídicas, realizadas por seres humanos
quando reagem contra excessos de qualquer
tipo de poder que os impede de se auto-
constituir como sujeitos plurais e
diferenciados [...]. As lutas podem se
manifestar por meio de demandas e
reivindicações populares na forma de
movimentos sociais ou individualmente, na
vida diária e entornos cotidianos nos quais a
gente convive e reage (RUBIO, 2015, p. 114-
115).

Para J. Castán Tobeñas, direitos humanos

São aqueles direitos fundamentais da pessoa


humana – considerada tanto no seu aspecto
individual como comunitário – que lhe

567
correspondem em razão de sua própria
natureza (de essência ao mesmo tempo
corpórea, espiritual e social) e que devem ser
reconhecidos e respeitados por todo Poder ou
autoridade e toda norma jurídica positiva,
cedendo, não obstante, em seu exercício, ante
as exigências do bem comum. (TOBEÑAS,
1962, p. 15).

Consoante Fernando Jayme,

Os direitos humanos são concebidos na


dimensão mais abrangente possível do seu
significado: o caminho a seguir na busca da
felicidade, direito de todos os seres humanos,
reconhecido pioneiramente na Constituição
dos Estados Unidos [...]. Assegurado o
respeito à pessoa humana, assegura-se, por
conseguinte, sua existência digna, capaz de
propiciar-lhe o desenvolvimento de sua
personalidade e de seus potenciais, para que
possa alcançar o sentido da sua própria
existência. Isso significa conferir liberdade no
desenvolvimento da própria personalidade”,
concluindo que “respeitar os direitos
humanos significa conferir condições
mínimas, necessárias para o indivíduo
desenvolver seus potenciais com o máximo de
liberdade possível. (JAYME, 2005, p. 1 e 2).

Direitos humanos são, portanto, direitos inerentes à


dignidade humana, ou, na dicção da Declaração e Programa de

568
Ação de Viena, de 1993, que “têm origem na dignidade e valor
inerente à pessoa humana”.
Anote-se que, quando se fala em direitos humanos como
direitos inerentes à dignidade humana, o que se tem em vista é que
os direitos humanos constituem uma condição para a vida
conforme a dignidade humana.
Com efeito, como adverte Joaquim Herrera Flores

Falar de dignidade humana não implica falar de um


conceito ideal ou abstrato. A dignidade humana é um
fim material. Um objetivo que se concretiza no
acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem
com que a vida seja ‘digna’ de ser vivida [...]. A
dignidade consiste na obtenção de acesso igualitário
aos bens tanto materiais como imateriais que se
foram conseguindo no constante processo de
humanização do ser humano [...]. Viver com
dignidade [...] em termos materiais significa gerar
processos igualitários de acesso aos bens materiais e
imateriais que conformam o valor da ‘dignidade
humana’. (FLORES, Disponível em
<http:www.juragentium.unifi.it/es/surveys/rights/he
rrera/indez.htm>. Acesso em: 29 abr. 2016).

Ao trabalho humano também correspondem direitos


humanos, ou seja, direitos humanos trabalhistas.
É o que o vê da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que reconhece, por exemplo, o direito ao trabalho, a
condições justas e favoráveis de trabalho, a igual remuneração por

569
igual trabalho, a uma remuneração justa e satisfatória e de
organizar sindicatos (artigo XXIII).
No mesmo compasso, o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais assegura, nos artigos 6º e
7º, por exemplo, o direito de ganhar a vida mediante um trabalho
livremente escolhido ou aceito, de formação e orientação técnica e
profissional e ao emprego produtivo, que permita salvaguardar o
gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais, assim
como o direito de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, que assegurem, especialmente: a) uma remuneração que
proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores, um salário
equitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor,
sem qualquer distinção, em particular, as mulheres deverão ter a
garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e
perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual e uma
existência decente para eles e suas famílias; b) condições de
trabalho seguras e higiênicas; c) igual oportunidade para todos de
serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes
corresponda, sem outras considerações que as de tempo, de
trabalho e de capacidade; d) o descanso, o lazer, a limitação razoável
das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como
a remuneração dos feriados. No artigo 8º, este Pacto assegura o
direito de: fundar sindicato, de se filiar a sindicato, de os sindicatos
de formarem federações ou confederações nacionais e o direito
destas de formar organizações sindicais internacionais ou de a elas
filiar-se, autonomia sindical, e direito de greve.
Já a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem dispõe que toda pessoa tem direito: à educação, no sentido
570
de “preparo para subsistir de uma maneira digna, para melhorar o
seu nível de vida” (artigo XII); ao trabalho em condições dignas e o
de seguir livremente sua vocação, na medida em que for permitido
pelas oportunidades de emprego existente (direito ao trabalho -
artigo XIV); quando trabalhar, de receber uma remuneração que,
em relação à sua capacidade de trabalho e habilidade, lhe garanta
um nível de vida conveniente para si e para sua família (direito a
uma justa retribuição - artigo XIV); ao descanso, ao recreio honesto
e à oportunidade de aproveitar utilmente o seu tempo livre em
benefício do seu melhoramento espiritual, cultural e físico (direito
ao descanso e ao aproveitamento do tempo livre - artigo XV); à
previdência social de modo a ficar protegido contra as
consequências do desemprego, da velhice e da incapacidade, que,
provenientes de qualquer causa alheia à sua vontade, a
impossibilitem física ou mentalmente de obter meios de
subsistência (direito à previdência social - artigo XVI); de se
associar com outras a fim de promover, exercer e proteger os seus
interesses legítimos, de ordem política, econômica, religiosa, social,
cultural, profissional, sindical ou de qualquer outra natureza
(direito de associação - artigo XXII).
Por fim, o Protocolo Adicional à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Protocolo de San Salvador), no artigo 6º,
a todos reconhece o direito ao trabalho, “o que inclui a
oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e
decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita,
livremente escolhida ou aceita”, e estabelece, no artigo 7º, que o
direito ao trabalho “supõe que toda pessoa goze do mesmo em

571
condições justas, equitativas e satisfatórias”, cumprindo aos
Estados garantir: remuneração que assegure, no mínimo a todos os
trabalhadores condições de subsistência digna e decorosa para eles
e suas famílias e um salário equitativo e igual por trabalho igual,
sem nenhuma distinção; o direito de todo trabalhador de seguir sua
vocação e de dedicar-se à atividade que melhor atenda às suas
expectativas e a trocar de emprego de acordo com a respectiva
regulamentação nacional; o direito do trabalhador à promoção ou
avanço no trabalho, para o qual serão levadas em conta suas
qualificações, competência, probidade e tempo de serviço;
estabilidade dos trabalhadores em seus empregos, de acordo com
as características das indústrias e profissões e com as causas de justa
separação. No caso de dispensa injustificada, o trabalhador terá
direito a uma indenização ou à readmissão no emprego ou a
quaisquer outras prestações previstas pela legislação nacional;
segurança e higiene no trabalho; proibição de trabalho noturno ou
em atividades insalubres e perigosas para os menores de 18 anos e,
em geral, de todo trabalho que possa pôr em risco sua saúde,
segurança ou moral; limitação razoável das horas de trabalho, tanto
diárias como semanais, devendo a jornada ser de menor duração
quando se tratar de trabalho perigoso, insalubre ou noturno;
repouso; gozo do tempo livre; férias remuneradas; remuneração
dos feriados nacionais.
Note-se que todos estes direitos são assegurados na
perspectiva da melhoria da condição social, econômica e política
do trabalhador e da sua família e à realização das condições
necessárias para uma vida em sintonia com a dignidade humana,
sendo relevante anotar que é estreita a relação entre direitos
572
humanos e desenvolvimento social, político e econômico, como é
expressamente reconhecido pela Carta Democrática
Interamericana, aprovada na Sessão Plenária da Organização dos
Estados Americanos (OEA), realizada em 11.09.2001, segundo a
qual:
1) “A democracia é essencial para o desenvolvimento
social, político e econômico” (artigo 1º);
2) “São elementos essenciais da democracia
representativa, entre outros, o respeito aos direitos humanos”
(artigo 3º);
3) “São componentes fundamentais do exercício da
democracia [...] o respeito aos direitos sociais” (artigo 4º);
4) “A democracia e o desenvolvimento econômico e social
são interdependentes e reforçam-se mutuamente” (artigo 11).
Além dos direitos humanos materiais, existem as
garantias processuais voltadas a assegurar a plena fruição destes
direitos, isto é, direitos humanos processuais, inclusive trabalhistas.
Direitos humanos processuais são os direitos que cabem a
todas as pessoas no contexto do processual judicial, como tais
reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Direitos humanos, materiais ou processuais, são direitos
inerentes à dignidade humana, no sentido de que, como já foi
salientado, o seu gozo efetivo é uma exigência da dignidade
humana.
O reconhecimento da existência de direitos processuais
inerentes à condição humana decorre do fato, realçado por J. J
Gomes Canotilho, de que “qualquer direito material postula uma

573
dimensão procedimental/processual, e, por isso, reconhecer um
direito material constitucional implica necessariamente reconhecer
um direito subjetivo do procedimento/processo indispensável para
garantir a eficácia do direito material”. (CANOTILHO, 2004, p.
78).
Com efeito, para a proteção integral do ser humano “não
basta o reconhecimento da titularidade de direitos materiais (tutela
jurídica). A proteção do ser humano, para ser integral, exige a
criação de instrumentos adequados à realização prática dos direitos
humanos materiais (tutela jurisdicional dos direitos). A
essencialidade dos direitos materiais torna essencial a sua tutela
jurisdicional e os instrumentos adequados à sua realização quando
não respeitados espontaneamente” (ALMEIDA, 2013, p. 156).
Ireneu Cabral Barreto adverte, com razão, que, para uma
efetiva proteção dos direitos do homem, não basta a sua
consagração substantiva, sendo “necessário estabelecer garantias
fundamentais de processo, de modo a reforçar os mecanismos de
salvaguarda daqueles direitos”. (BARRETO, 2005, p. 113).
Os direitos humanos processuais compõem, ao lado dos
direitos fundamentais processuais, o denominado mínimo
existencial processual (ALMEIDA, 2013, p. 156) e o conjunto
destes direitos forma o que Vittorio Denti denomina “núcleo
irrenunciável” do justo processo. (DENTI, 1989, p. 82).

574
3. DIREITOS HUMANOS PROCESSUAIS EM ESPÉCIE. O
ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO

Afirmada a existência de direitos humanos processuais,


cumpre definir quais são estes direitos.
Neste sentido, vale anotar que: a Declaração Universal dos
Direitos Humanos a todos reconhece o direito de receber dos
tribunais competentes recurso efetivo para os atos que violem os
direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei
(artigo 8º); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
consigna o compromisso dos Estados dele signatários de garantir
que toda pessoa cujos direitos e liberdades nele reconhecidos
tenham sido violados possa dispor de um recurso efetivo, mesmo
que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no
exercício de funções oficiais (artigo 2º, n. 3, a); a Declaração e
Programa de Ação de Viena dispõe, na Parte I, n. 27, que “cada
Estado deve ter uma estrutura eficaz de recursos jurídicos para
reparar infrações ou violações de direitos humanos”; a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem prevê que “toda
pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus
direitos” (artigo XVII).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece
que toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência
justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial
(artigo 10).
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
prevê, no artigo 14, 1, que todas as pessoas são iguais perante os

575
Tribunais e as Cortes de Justiça e que toda pessoa terá direito de ser
ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na
apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra
ela ou na determinação de seus direitos e de suas obrigações de
caráter civil. De acordo com o artigo 14,3, do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, toda pessoa tem direito às seguintes
garantias processuais mínimas: a) de ser informada, sem demora,
em língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e
dos motivos da demanda contra ela formulada; b) a tempo e meios
necessários à preparação da defesa e a comunicar-se com defensor
de sua escolha; c) de ser julgada sem dilações indevidas; d) de estar
presente no julgamento e defender-se pessoalmente ou por
intermédio de defensor de sua escolha; ser informada, caso não
tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo, e sempre que o
interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex
officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo; e) de
interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter
o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa
nas mesmas condições de que disponham as de acusação; f) de ser
assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou
não fale a língua empregada durante o julgamento; e, g) de não ser
obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem prevê que toda pessoa “deve poder contar, outrossim, com
processo simples e breve” (artigo XVII).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê,
no artigo 8º, sob o título “garantias processuais”, que toda pessoa
576
tem direito de ser ouvida dentro de prazo razoável por um juiz ou
tribunal estabelecido anteriormente por lei, na apuração de
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação
de seus direitos e de suas obrigações de caráter civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza, e que, durante o processo,
toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias
mínimas: a) de ser assistida gratuitamente por um tradutor ou
intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou
tribunal; b) de comunicação prévia e pormenorizada da acusação
formulada; c) de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e
obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras
pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; e, d) à impugnação
das decisões judiciais mediante recurso.
O artigo 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos também estabelece que “toda pessoa tem direito a um
recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo,
perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra
atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela
constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando
tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no
exercício de suas funções oficiais.”
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem
reconhece, no artigo 6º, o direito a um processo equitativo,
estabelecendo que: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa
seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por
um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei, o que
decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações

577
de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em
matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público,
mas o acesso à sala de audiência pode ser proibido à imprensa e ao
público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem
da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa
sociedade democrática, quando os interesses de menores e a
proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na
medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em
circunstâncias especiais, a publicidade pudesse prejudicar os
interesses da justiça.”
Dispõe a Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
no artigo 6º, que o acusado tem, como mínimo, os seguintes
direitos: ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda
e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra
ele formulada; dispor de tempo e dos meios necessários para a
preparação da sua defesa; defender-se a si próprio ou ter assistência
de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar
um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor
oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; interrogar ou
fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e
o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições
que as testemunhas de acusação; fazer-se assistir por intérprete, se
não compreender ou falar a língua usada no processo.
Ainda de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem (artigo 13), “qualquer pessoa cujos direitos e liberdades
reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem
direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a

578
violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das
suas funções oficiais”.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
assegura a toda a pessoa o direito de recorrer aos tribunais
competentes contra qualquer ato que viole os direitos
fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas
convenções, pelas leis, pelos regulamentos e pelos costumes em
vigor, o direito de defesa e o direito de ser julgado em prazo
razoável por um tribunal competente (artigo 7º).
Do exame das citadas normas de Direito Internacional
dos Direitos Humanos resulta que constituem direitos humanos
processuais: jurisdição; acesso à justiça; efetividade da jurisdição e
do processo; igualdade concreta de armas; decisão justa do conflito
de interesses; publicidade do processo; juiz natural, independente e
imparcial; oportuna citação para a demanda; defesa útil, com
tempo razoável para a sua preparação; duração razoável do
processo; participação útil no processo e com real possibilidade de
influência na formação do provimento jurisdicional; assistência
judiciária gratuita; inquirir testemunhas indicadas à oitiva pela
parte contrária ou ouvidas por determinação judicial e obter o
comparecimento de testemunhas, peritos e outras pessoas que
possam lançar luz sobre os fatos (direito à prova); assistência por
intérprete e/ou tradutor, quando necessário; n) não ser obrigado a
depor contra si ou confessar; motivação das decisões judiciais;
impugnação das decisões judiciais mediante recurso; eficácia das
decisões judiciais.

579
Portanto, o Direito Internacional dos Direitos Humanos
a todos reconhece direitos processuais e dentre estes direitos está o
acesso à justiça.
Já foi afirmado, inclusive, que o acesso à justiça constitui
“requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de
um sistema jurídico moderno e igualitário, que pretenda garantir,
e não apenas proclamar, os direitos de todos” (CAPPELLETTI;
GART, 1998, p. 11-12).
Em voto fundamentado na decisão proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso López Álvares vs.
Honduras (sentença de 1º de fevereiro de 2006), Antônio Augusto
Cançado Trindade assinalou que:

[...] Uma das disposições mais relevantes da


Declaração Universal de 1948 se encontra em seu
artigo 8, de acordo com o qual toda pessoa tem
direito a um recurso efetivo perante os tribunais
nacionais competentes contra os atos violatórios dos
direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição ou pela lei. O referido artigo 8 consagra,
em última análise, o direito de acesso à justiça (no
plano do direito interno), elemento essencial em toda
sociedade democrática (...). A disposição do artigo 8
da Declaração Universal de 1948 se inspirou, com
efeito, na disposição equivalente do artigo XVIII da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem de oito meses antes (abril de 1948) (...). A
consagração original do direito a um recurso efetivo
perante os juízes ou tribunais nacionais competentes
na Declaração Americana (artigo XVIII) foi
transplantada para a Declaração Universal (artigo 8),

580
e, desta última, para as Convenções Europeia e
Americana sobre Direitos Humanos (artigos 13 e 25,
respectivamente), bem como para o Pacto sobre
Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigo
2(3)). O artigo 8 da Declaração Universal, e as
disposições correspondentes nos tratados de direitos
humanos vigentes, como o artigo 25 da Convenção
Americana, estabelecem o dever do Estado de prover
recursos internos adequados e eficazes; sempre
argumentei que este dever constitui efetivamente um
pilar básico não apenas de tais tratados como do
próprio Estado de Direito em uma sociedade
democrática, e sua aplicação correta tem o sentido de
aperfeiçoar a administração da justiça (material e não
somente formal) no âmbito nacional (...) Esta
disposição-chave se encontra intimamente vinculada
à obrigação geral dos Estados, consagrada também
nos tratados de direitos humanos, de respeitar os
direitos nestes consagrados, e assegurar o livre e
pleno exercício dos mesmos a todas as pessoas sob
suas respectivas jurisdições. Encontra-se também
vinculada às garantias do devido processo legal
(artigo 8 da Convenção Americana), na medida em
que assegura o acesso à justiça. Desse modo, através
da consagração do direito a um recurso efetivo
perante os juízes ou tribunais nacionais competentes,
das garantias do devido processo, e da obrigação
geral de garantia dos direitos protegidos, a
Convenção Americana (artigos 25, 8 e 1(1)), e outros
tratados de direitos humanos, atribuem funções de
proteção ao direito interno dos Estados Partes.
(Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Direito à Liberdade Pessoal. Brasília:
Ministério da Justiça, 2014, p. 39).

581
4. ALCANCE DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA COMO
DIREITO HUMANO

A todos é reconhecido, como direito humano, o acesso à


justiça. Qual é o alcance deste direito?
Para responder a esta indagação, cumpre salientar,
primeiro, que se trata de um direito voltado à realização concreta
dos direitos materiais assegurados pela ordem jurídica. Assim, o
acesso à justiça não tem um fim em si mesmo: ele é assegurado
como garantia de efetividade dos direitos materiais assegurados
pela ordem jurídica.
Tanto isto é verdade, que as normas de Direito
Internacional dos Direitos Humanos realçam, em mais de uma
oportunidade, a necessidade de que a jurisdição seja efetiva. Isto
significa que o acesso à justiça não é apenas a mera possibilidade de
apresentar uma demanda perante os órgãos do Poder Judiciário, ou
seja, não se resume ao acesso formal à justiça.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth assinalam, inclusive,
que, nos estados liberais burgueses,

[...] direito de acesso à proteção judicial significava


essencialmente o direito formal do indivíduo
agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria
era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser
um ‘direito natural’, os direitos naturais não
necessitavam de uma ação do Estado para sua
proteção. Esses direitos eram considerados
anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas
que o Estado não permitisse que eles fossem
infringidos por outros. O Estado, portanto,
582
permanecia passivo, com relação a problemas tais
como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus
direitos e defendê-los adequadamente na prática.
Afastar a ‘pobreza no sentido legal’ - a incapacidade
que muitas pessoas têm de utilizar plenamente a
justiça e suas instituições - não era preocupação do
Estado. A justiça, como outros bens, no sistema
laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que
pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não
pudessem fazê-lo eram considerados os únicos
responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não
efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas
formal, mas não efetiva (CAPPELLETTI; GARTH;
1998, p. 9).

Ainda consoante Mauro Cappelletti e Bryant Garth, “a


titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de
mecanismos para sua efetiva reivindicação” (CAPPELLETTI;
GARTH; 1998, p. 11).
Tal fato ganha especial relevo quando se trata de direitos
inerentes ao trabalho humano.
É que os direitos inerentes ao trabalho são dotados de
essencialidade, na medida em que

[...] é essencial todo direito voltado à garantia do


atendimento das necessidades básicas do trabalhador
e sua família (caráter existencial dos direitos
inerentes ao trabalho) e de condições dignas de
trabalho (essencialidade qualificada dos direitos
inerentes ao trabalho, na medida em que, muito mais
do que garantir o atendimento de necessidades
básicas, o que se pretende é garantir uma vida em
583
sintonia com a dignidade humana). Ademais, a
essencialidade dos direitos trabalhistas também
decorre do seu estreito vínculo com a justiça social,
cidadania e democracia (essencialidade social e
política dos direitos inerentes ao trabalho).”
(ALMEIDA & ALMEIDA, 2017, p. 141).

Cumpre acrescentar que: “a) os direitos humanos são


assegurados a todos os seres humanos, inclusive os trabalhadores,
como forma de enfrentar a globalização desenfreada e
inescrupulosa; b) os direitos humanos são direitos que atuam como
resistência a toda forma de arbitrariedade no exercício de poder e
as relações entre capital e trabalho e entre empregado e empregador
são relações de poder.” (ALMEIDA, 2017, p. 252).
O que a todos é assegurado é o acesso efetivo ou
substancial à justiça.
O acesso efetivo ou substancial à justiça pressupõe:
a) competência previamente estabelecida, independência,
imparcialidade do julgador: é vedada a instituição de tribunal de
exceção, ao passo que o julgador deve ser independente e imparcial;
b) a simplificação das formas e procedimentos: somente é
efetivo o instrumento ao qual se tem fácil acesso e que cujo
manuseio seja o mais simples possível;
c) a utilidade da participação das partes no processo:
quando se fala em acesso à justiça, cumpre ter em mente que se trata
de acesso útil à justiça.
A participação das partes no processo tem que ser útil, no
sentido de que a parte deve ter real possibilidade de exercer

584
influência na formação da decisão sobre os seus direitos e
obrigações.
Neste sentido, inclusive, o artigo 9º do CPC de 2015
estabelece que não se proferirá decisão contra uma das partes sem
que ela seja previamente ouvida, o que não se aplica, no entanto, à
tutela provisória de urgência, à hipótese de tutela de evidência
prevista no artigo 311, incisos I e II, à sentença prevista no artigo
701 (decisão sobre a expedição de mandado de pagamento, de
entrega de coisa ou para execução de obrigação de fazer ou de não
fazer, na ação monitória) e às decisões por meio das quais são
aplicadas às partes penalidades de natureza processual (o CPC não
exige a prévia oitiva da parte como condição para a aplicação da
penalidades decorrentes da litigância por má-fé, por exemplo). De
outro lado, consoante o artigo 10 do CPC de 2015, “o juiz não
poderá decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamentos a respeito dos quais não tenha dado às partes
oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre
a qual deva decidir de ofício”;
d) ampla defesa, no sentido de que às partes deve ser
assegurado o acesso a todos os meios de defesa que a ordem jurídica
coloca à sua disposição;
e) igualdade, no sentido de que, na disciplina legal do
processo deve ser evitado tratamento diferenciado sem justificativa
objetiva, razoável e suficiente, assim como devem ser adotadas
técnicas que corrijam desigualdades entre os litigantes, ao passo
que no curso do processo concreto as partes têm direito de
participar, em simétrica paridade, da construção da decisão judicial

585
a respeito dos seus direitos e deveres (paridade de armas) e de
receber do juiz igual tratamento (paridade de tratamento: aos iguais
deve ser dispensado tratamento igual e, aos desiguais, tratamento
desigual, na medida da sua desigualdade;
f) fundamentação das decisões na medida em que ao juiz
cumpre especificar os motivos ou razões da decisão que proferir,
justificando as suas conclusões sobre os fatos narrados pelas partes
e as suas consequências à luz do ordenamento jurídico, assim como
a possibilidade de sendo atendidos os pressupostos e limites
estabelecidos pelo ordenamento jurídico, requerer o exame da
causa por órgão do Poder Judiciário distinto daquele que proferiu
a decisão. g) a duração razoável do processo: as partes têm direito à
tempestiva resposta ao pedido de tutela jurisdicional.
Conforme decidiu a Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso López Álvares vs. Honduras (sentença de 1º de
fevereiro de 2006, item X, n. 131), “O direito de acesso à justiça
implica que a solução da controvérsia se produza em tempo
razoável; uma demora prolongada pode chegar a constituir, por si
mesma, uma violação das garantias judiciais” (Jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à Liberdade
Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 39);
h) eficácia das decisões judiciais, na medida em que o
acesso útil ou substancial à justiça somente se verificará quando a
decisão judicial for plenamente eficaz, ou seja, tornar concreto o
direito nela eventualmente reconhecido;
i) o respeito às condições econômicas das partes, posto
que o processo não pode ser dispendioso a ponto de impedir a
defesa em juízo dos direitos assegurados pela ordem jurídica.
586
Não se pode olvidar, ainda, que os direitos humanos
visam construir “condições reais e concretas que permitam aos
seres humanos poder levar adiante suas vidas acedendo
igualitariamente aos bens necessários para viver uma vida digna de
ser vivida”, como preconizado por Joaquín Herrera Flores.
(FLORES, 2009, p. 55), e que “os direitos trabalhistas e os direitos
humanos “têm a dignidade como ponto de partida (o
reconhecimento do valor inerente a toda pessoa humana) e de
chegada (a realização de condições materiais e processuais sem as
quais este valor não se apresentará na realidade concreta).
(ALMEIDA, 2017, p. 252).
Cumpre reiterar que o acesso à justiça não constitui um
fim em si mesmo, posto que serve e instrumento de acesso aos
direitos assegurados pela ordem jurídica.
No que concerne aos direitos humanos trabalhistas, não
se pode olvidar que o seu gozo efetivo é condição de possibilidade
do desenvolvimento, sendo este, inclusive, também um direito,
como é reconhecido na Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento, adotada pela ONU em 1986, segundo a qual, o
direito ao desenvolvimento é um direito humano e ele pressupõe
que todos possam desfrutar dos direitos humanos e liberdades
fundamentais (artigo 1, item 1), ou seja:
a) o gozo dos direitos humanos constitui condição de
possibilidade do gozo do direito ao desenvolvimento sustentável;
b) o acesso à justiça, quando substancial, permite o gozo
dos direitos humanos de natureza material.

587
Não há desenvolvimento sustentável efetivo quando é
negado o direito de acesso à justiça e, por meio deste, aos direitos
humanos dos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As alterações legislativas levadas a efeito pelo Brasil,


dentre elas a reforma trabalhista, estão sujeitas a controle de
convencionaldade, ou seja, de compatibilidade com tratados sobre
direitos humanos aos quais o Brasil está submetido, em especial,
porque o Brasil assumiu, perante a comunidade internacional, a
obrigação de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos,
observando-se que ao juiz também cumpre respeitar, proteger e
realizar os direitos humanos.
Entre os direitos humanos está o direito de acesso à
justiça, que constitui um corolário lógico do direito a ter direitos.
Com efeito, o Direito Internacional dos Direitos
Humanos a todos reconhece, ao lado de direitos materiais, direitos
processuais, ou seja, direitos humanos processuais, dentre os quais
está o direito de acesso à justiça, no sentido de direito ao acesso
efetivo ou substancial à justiça.
O acesso efetivo ou substancial à justiça pressupõe:
facilitação do acesso à justiça; competência, independência e
imparcialidade do julgador, simplificação das formas e
procedimentos; utilidade da participação das partes no processo,
ampla defesa, paridade de armas e de tratamento, fundamentação
das decisões judiciais e possibilidade de, sendo atendidos os
pressupostos e limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico,
588
requerer o exame da causa por órgão do Poder Judiciário distinto
daquele que proferiu a decisão, duração razoável do processo,
eficácia das decisões judiciais e respeito às condições econômicas
das partes.
Isto significa que o acesso à justiça constitui um direito
humano multidimensional e nenhuma delas pode ser
desconsiderada na submissão da reforma trabalhista ao controle de
convencionalidade.
O mais relevante a ser considerado é que o acesso à justiça
não é um fim em si mesmo, mas constitui um valioso instrumento
de acesso aos direitos assegurados pela ordem jurídica, dentre os
quais aqueles inerentes ao trabalho, cuja relevância é inegável, por
serem direitos de dignidade humana, justiça social, cidadania e
democracia, sendo, vários deles, direitos também reconhecidos em
normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos, como
direitos humanos, o que ganha especial relevo pelo fato de o gozo
concreto dos direitos humanos ser uma condição de possibilidade
para o desenvolvimento sustentável.
Não há desenvolvimento efetivo quando é negado o
direito de acesso à justiça e, por meio deste, aos direitos humanos
dos trabalhadores.
Deste modo, a criação de entraves ao gozo do direito
humano de acesso dos trabalhadores à justiça é, na essência, a
criação de entraves ao seu acesso a direitos de dignidade humana,
justiça social, cidadania e democracia.

589
REFERÊNCIAS

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Direito do Trabalho e Constituição: a constitucionalização do
Direito do Trabalho no Brasil. LTr: São Paulo, 2017.

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prova como direito humano e fundamental das partes do processo
judicial. São Paulo: LTr, 2013.

ALMEIDA, Wânia Guimarães Rabêllo de. A tutela jurisdicional


dos direitos humanos trabalhistas por meio das ações coletivas. In
Direito material e processual do trabalho. V Congresso Latino-
Americano de Direito Material e Processual do Trabalho.
TEODORO, Maria Cecília Máximo et al (Coords.). São Paulo:
LTr, 2017, p. 251-256.

BARRETO, Ireneu Cabral. A convenção europeia dos direitos


do homem anotada. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

CANOTILHO, J.J. Gomes. O ónus da prova na jurisdição das


liberdades: para uma teoria do direito constitucional à prova. In:
Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra
Editora, 2004.

CAPPELLETTI, Mauro; GART, Bryant. Acesso à justiça. Porto


Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos


direitos humanos. In Direitos Humanos: visões contemporâneas.
São Paulo: Associação dos Juízes para a Democracia, 2001.
DENTI, Vittorio. La giustizia civile. Bolonha: Il Mulino, 1989.
590
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Disponível em: <http://www.juragentium.org/topics/rights/es/
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FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos.


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GIALDINO, Rolando E. Obligaciones del Estado ante el Pacto


Internacional de Derechos Económicos, sociales y culturales.
Revista do Instituto Interamericano de Derechos Humanos. n.
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INTERNACIONAL. Jurisprudência da Corte Interamericana


de Direitos Humanos. Direito à Liberdade Pessoal. Brasília:
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JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela


Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005.

TOBEÑAS, J. Castán. Humanismo y derecho. Madrid: Editorial


Reus, 1962.

591
A APLICABILIDADE DA MEDIAÇÃO EM CONFLITOS
AMBIENTAIS COMO GARANTIA DE ACESSO À JUSTIÇA

THE APPLICABILITY OF THE MEDIATION IN


ENVIRONMENTAL CONFLICTS AS AN ASSURANCE OF
THE ACCESS TO JUSTICE

Daniela Martins da Cruz 1


Deilton Ribeiro Brasil 2

RESUMO: A morosidade do Judiciário sem dúvida é um dos


maiores entraves que a Justiça brasileira atravessa, o que tem
dificultado ainda mais um verdadeiro e eficaz acesso à Justiça. E na
busca por soluções foram criados alguns institutos, dentre eles a
Mediação, que é o objeto de nosso presente trabalho e a aplicação
desta técnica em conflitos ambientais e sua eficácia. Para isto foi
realizada uma abordagem sobre a problemática do acesso à justiça,
a mediação como uma solução e suas técnicas aplicadas em
conflitos ambientais. Utiliza-se para o desenvolvimento do estudo
o método descritivo e analítico, em uma análise sistemática do
ordenamento jurídico brasileiro, através do procedimento
metodológico da pesquisa bibliográfica e estudo de casos concretos.
PALAVRAS-CHAVE: Acesso à justiça; Mediação; Conflitos
ambientais;

1
Mestranda do PPGD – Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de
Itaúna-MG. Graduada em Direito pela Universidade de Itaúna. Orientadora do
Núcleo de Prática Jurídica da Universidade de Itaúna. Advogada.
2
Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor
em Direito pela UGF-RJ. Professor da Graduação e do PPGD da Universidade de
Itaúna-MG e das Faculdades Santo Agostinho (FASA)
592
ABSTRACT: The slow down of the judiciary is definitely one of
the biggest obstacles the Brazilian court faces, which has hindered
even more a true and efficient access to the justice. And while
searching for solutions some institutes were created, among then
the Mediation Institute, wich is this paper’s aim, along with the
application of this technique in environmental conflicts and its
efficiency. In order to do that an approach about the troublesome
access to justice, the mediation as a solution and the techniques
applied in environmental conflicts were created. It’s used the
descriptive and analytical method for the development of the study
in a systematic analysis of the Brazilian legal order through the
methodological procedure of the bibliographic research and studies
of real cases.
KEYWORDS: Access to justice; Mediation, Environmental
Conflicts.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. Do acesso à justiça e a crise do Judiciário.
3. Da mediação.
4. Dos conflitos ambientais e a sociedade de risco.

INTRODUÇÃO

Se falar em Acesso à Justiça, e não atentar para a


efetividade do Direito é o mesmo que para alguns não ver ser
cumprida a lei, ou ainda não ver a justiça sendo aplicada. Com o
Judiciário atolado de tantos e tantos processos, o que se presencia é

593
uma morosidade cada vez maior. A efetividade é algo muito
distante da realidade dos Fóruns de todo país.
Ainda hoje o meio mais tradicional na resolução de
conflito é o judicial, onde a figura do Juiz, como uma pessoa neutra
dará uma solução ao litigio. Ocorre, no entanto, que com o passar
dos anos o que se vê não é necessariamente esta situação. Seja pela
morosidade, pelo custo, pela falta de pessoal e outras situações,
buscar soluções alternativas para resolução de conflitos passou a ser
essencial.
E foi dentro deste contexto que surgiu algumas
alternativas: a arbitragem, a conciliação e a mediação. Os dois
primeiros itens serão analisados de forma bem sucinta, uma vez que
o objetivo do presente artigo tratará mais à fundo da Mediação, em
especial em sua aplicação em questões ambientais.
A mediação, como um dos meios alternativos de
resolução de conflitos, busca resolver inúmeros conflitos com base
em técnicas de negociação, levando as partes e buscarem uma
solução por elas mesmas, na construção de acordos. E, portanto,
uma negociação onde todos os envolvidos constroem uma solução,
através do diálogo e técnicas de negociação.
A morosidade judicial em se tratando de conflitos
ambientais, não desmerecendo outras questões por que passa
grande parte da população, é no mínimo preocupante, pois a
questão ambiental é um direito difuso e atinge não somente a
coletividade, mas futuras gerações. O problema que se apresenta
consiste na aplicação da mediação para resolução destes conflitos e
uma análise sobre sua efetividade.

594
O objetivo deste estudo é analisar conceitualmente o
instituto da Mediação, aplicabilidade nas questões ambientais e sua
efetividade, buscando uma solução pacífica e menos maléfica ao
meio ambiente e as pessoas envolvidas nestes conflitos.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do
estudo baseou-se no método descritivo e analítico.
Utilizou-se pesquisa bibliográfica, em consultas a material
teórico-bibliográfico e documental, como a utilização de livros,
textos e artigos acadêmicos, bem como leis pertinentes ao assunto.
Além da análise de casos concretos como o acidente em Mariana e
a construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte.

2. DO ACESSO À JUSTIÇA E A CRISE NO JUDICIÁRIO

Em meados dos anos 70, precisamente em 1975,


Cappelletti e outros professores preocupados com o acesso à justiça
e a efetividade jurisdicional, publicam uma série de trabalhos de
direito comparados, denominados Projeto de Florença. Neste
estudo foram apontados diversos obstáculos e um velho jargão de
processualistas italianos fora lembrado e diga-se de passagem, bem
atual: “A justiça que não cumpre suas funções dentro de um prazo
razoável é uma justiça inacessível para muitos.”(FERNANDES.
2008. p. 99).
Cappelletti (1988, p. 92-93), aduz que na busca por
soluções na efetivação da justiça é necessário observar o homem
comum, uma preocupação com justiça social, com a busca por uma
justiça com procedimentos que visam a proteção de pessoas

595
comuns, significando dizer uma proteção a uma população que
vive abaixo da linha da pobreza, índios, quilombolas, ribeirinhos,
analfabetos, o acesso à justiça precisa englobar todas as formas de
processo e ainda atingir a todas as camadas.
Sem dúvida alguma o Judiciário passa por uma crise de
credibilidade, e tal descrédito se dá em grande parte pela
morosidade das decisões. Seja em qual Tribunal for, o que se vê são
ações que ficam anos a espera de um provimento jurisdicional, altos
custos das demandas e entre outros fatores contribuem para este
quadro.
Quando Cappelletti (1988, p.71) fala sobre a 3ª onda para
a evolução da efetividade do acesso justiça, como sendo um novo
enfoque do acesso à justiça, dando ênfase a novas técnicas
processuais, tornando a justiça mais acessível, e um dos aspectos
apontados é a criação de vias alternativas.
Há quem diga que depois deste período, citado acima,
onde a figura preponderante do Estado imperava na solução, seja
para reivindicar direitos ou resolver litígios, houve um novo
período. Tais movimentos provocaram mudanças significativas no
judiciário, tanto estrutural como processual.
Uma característica marcante do terceiro período do
movimento de acesso à justiça “ consiste precisamente em
administrar-se o sistema público de resolução de conflitos como se
este fosse legitimado principalmente pela satisfação do
jurisdicionado com a condução e com o resultado final de seu
processo. PELUSO, Antonio Cesar ;RICHA, Morgana de Almeida
(2011, p. 15)

596
Vivemos num país onde ainda se busca no judiciário o
deslinde para qualquer situação, por meio de um juiz. Segundo
Kasuo Watanabe

é a predominância desse critério vem gerando


a chamada “cultura da sentença”, que traz
como consequência o aumento cada vez maior
da quantidade de recursos, o que explica o
congestionamento não somente das instâncias
ordinárias, como também dos Tribunais
Superiores e até mesmo da Suprema Corte.
Mais do que isso, vem aumentando também a
quantidade de execuções judiciais, que
sabidamente é morosa e ineficaz, e constitui o
calcanhar de Aquiles da Justiça.

Na edição de 2017 do Relatório Justiça em Números,


estudo feito pelo Conselho Nacional de Justiça, mostra a realidade
da justiça brasileira em pesquisas feitas por todo país, para
identificar os avanços e quais são os entraves que a Justiça no Brasil
ainda precisa vencer e avançar. Sem dúvida um dos avanços foi o
incremento da informatização, e um dos gargalos ainda existentes
na busca por maior eficiência e qualidade na prestação
jurisdicional, como a demora na fase de execução, os baixos índices
de conciliação e o constante congestionamento processual.
Segundo este mesmo relatório a cada ano, para cada dez
novas demandas propostas no Poder Judiciário brasileiro, apenas
três demandas antigas são resolvidas. Some-se a este preocupante
dado que se encontram pendentes cerca de 93 milhões de feitos.

597
No Brasil foi adotada desde 2006 pelo Conselho Nacional
de Justiça, a Conciliação, cuja visão é juntar as partes e promover
acordos, com objetivo de celeridade processual e ainda, talvez o
mais importante, de que as próprias partes resolvam entre si o
litigio e a satisfação com a justiça e que a solução apresentada seja
mais eficiente.
Diante da patente necessidade de se estabelecer uma
política pública nacional na resolução adequada de conflitos, o
Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 29 de novembro de
2010, a Resolução 125. “A criação da Resolução 125 do CNJ foi
decorrente da necessidade de se estimular, apoiar e difundir a
sistematização e o aprimoramento de práticas já adotadas pelos
tribunais. ”
Segundo o Guia de Conciliação e Mediação Judicial do
Conselho Nacional de Justiça, os objetivos dessa Resolução estão
indicados de forma bastante taxativa:

i) disseminar a cultura da pacificação social e


estimular a prestação de serviços
autocompositivos de qualidade (artigo 2º); ii)
incentivar os tribunais a se organizarem e
planejarem programas amplos de
autocomposição (artigo 4º); iii) reafirmar a
função de agente apoiador da implantação de
políticas públicas do CNJ (artigo 3º).

Segundo Taís Ferraz Schilling, o que se busca é criar uma


cultura de resolução de conflitos que diminua principalmente a
sobrecarga de processos judiciais. Na conciliação, não existem

598
vencedores nem perdedores, são as partes que constroem a solução
para os próprios problemas, tornando-se responsáveis pelos
compromissos que assumem, resgatando, tanto quanto possível, a
capacidade de relacionamento. Nesse mecanismo, o papel do juiz
não é menos importante, pois é aqui que ele cumpre sua missão de
pacificar verdadeiramente o conflito.
A mediação e a conciliação, têm ambas por objetivo
auxiliar pessoas a construírem consenso sobre uma determinada
desavença. A conciliação tem nos acordos o seu objetivo maior. A
mediação não tem na construção de acordos a sua vocação maior,
ela privilegia a desconstrução do conflito e a consequente
restauração da convivência pacífica entre pessoas.

3. DA MEDIAÇÃO

Tanto na Lei 13.140/2015 como no Novo Código de


Processo Civil em seu artigo 165 3, o legislador prestigiou a proposta
de consensualização do Poder Judiciário. Apontada como uma das
possíveis soluções, ou um caminho para a solução da crise do
judiciário, o instituto da mediação já há muito tempo existe em
nosso ordenamento. Desde a Constituição do Império em 1824,
onde existia a figura do juiz de paz, que representava o que

3
BRASIL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Artigo 165. Os tribunais criarão
centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela
realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo
desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição.
599
podemos chamar atualmente de mediador 4. Está ligado ao
movimento de acesso à justiça da década de 70, na busca para a
efetivação da justiça e melhoria das relações sociais. Vale frisar que
a mediação, como elemento característico dos juizados de
pequenas causas nos Estados Unidos, fortemente influenciou o
legislador brasileiro.
Morais (1999, p. 145), afirma que como espécie do gênero
justiça consensual, e como uma forma alternativa de resolução de
conflitos, cujo objetivo primordial é a pacificação de conflitos,
conceitua o instituto da mediação da seguinte forma:

Através deste instituto busca-se solucionar


conflitos mediante a atuação de um terceiro
desinteressado e neutro. Este terceiro
denomina-se mediador e exerce uma função
como que de conselheiro, pois pode
aconselhar e sugerir, porém, cabe às partes
constituir suas respostas.
Segundo As Diretrizes das Nações Unidas para Uma
Mediação Eficaz:

A mediação é um processo por meio do qual


uma terceira parte auxilia duas ou mais partes,
com seu consentimento, a prevenir, gerir e
resolver um conflito, ajudando-as a

4
BRASIL. CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. CARTA
DE LEI DE 25 DE MARÇO DE 1824. Artigo 161. Sem se fazer constar que se tem
intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum. Artigo 162.
Para este fim haverá juízes de paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo, e
maneira, por que se elegem os vereadores das câmaras. Suas atribuições e distrito
serão regulados por lei.
600
desenvolver acordos mutuamente aceitáveis.
A premissa em que se baseia a mediação é de
que, no ambiente correto, as partes do conflito
podem melhorar suas relações e caminhar em
direção à cooperação. Os resultados
alcançados, por sua vez, podem ser limitados
em escopo – por exemplo, lidar com uma
questão específica a fim de conter ou gerir um
conflito – ou podem abordar um amplo leque
temático, em um acordo de paz abrangente.

A lei 13.140/2015 veio para disciplinar a questão, e o


instituto da mediação como meio de solução de controvérsias entre
particulares, uma vez que já existia a Lei de Arbitragem – Lei
9.307/96, que também já previa técnicas de resolução de conflitos,
assim como a conciliação.
No parágrafo único do artigo 1º da Lei 13140/2015 já
mostra um dos pilares do instituto: considera-se mediação a
atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder
decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula
a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a
controvérsia.
Na mediação judicial, prevista na lei, o medidor é
indicado pelo Tribunal, não estando vinculado a aceitação das
partes

Artigo 11. Poderá atuar como mediador


judicial a pessoa capaz, graduada há pelo
menos dois anos em curso de ensino superior
de instituição reconhecida pelo Ministério da

601
Educação e que tenha obtido capacitação em
escola ou instituição de formação de
mediadores, reconhecida pela Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais,
observados os requisitos mínimos
estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça em conjunto com o Ministério da
Justiça.

Da mediação extrajudicial, esta deve partir das partes de


forma espontânea, e o mediador, através de técnicas de pacificação,
facilitará o diálogo para que as partes encontrem uma solução para
o conflito. O próprio artigo 9º da Lei da Mediação5 dispõe sobre o
tema quando aduz que é necessário que o mediador seja de
confiança das partes e capacitado para fazer mediação, ele não é
indicado por nenhum Tribunal ou Juiz.
Morais (1999. p.147-151), pontua algumas características
deste instituto, quais sejam, a privacidade, economia financeira e
de tempo, oralidade, reaproximação das partes, autonomia das
decisões e equilíbrio das relações entre as partes.
Segundo o artigo 2º da Lei 13.140/2015, 6 um dos
princípios que norteiam a mediação é a figura do mediador que

5
Artigo 9º Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz
que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação,
independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou
associação, ou nele inscrever-se.
6
Artigo 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios: I -
imparcialidade do mediador; II - isonomia entre as partes; III - oralidade; IV -
informalidade; V - autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII
– confidencialidade; VIII - boa-fé.
602
aparece em primeiro plano, não significando que seja o principal,
mas com certeza uma peça fundamental para o bom andamento da
construção do processo da mediação. Um mediador deve ser capaz
de conduzir um processo equilibrado, ser imparcial, que trate todos
os atores de forma justa, e não pode possuir qualquer interesse
material no resultado. Isso também exige que ele seja capaz de
dialogar com todos os atores relevantes para resolver o conflito. O
papel de mediador exige todo um preparo, conhecedor das técnicas
de negociação.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça para atuar como
mediador judicial, é preciso que o interessado faça um curso de
formação de mediadores que seja reconhecido pelos tribunais. Os
cursos são oferecidos pelos próprios tribunais ou por instituições
credenciadas pelos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais
de Soluções de Conflitos (Nupemec) e devem observar os
parâmetros curriculares estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça.
A autonomia da vontade das partes, sem dúvida outro
importante princípio, uma vez que o instituto da mediação é um
processo voluntário, que exige o consentimento das partes do
conflito para ser eficaz. E ainda mostra que os interessados
renunciaram parte do controle sobre a condução da resolução do
litigio. A própria lei resguarda as partes ao dizer no § 2º do art 1º
da Lei 13.1140/2015 que: ninguém será obrigado a permanecer em
procedimento de mediação. É necessário que as partes se
comprometam com o processo de mediação. E este sem dúvida é
um dos princípios norteadores da mediação, uma vez que se as

603
partes realmente não se dedicarem a resolução do conflito, nada
poderá ser feito.
A observância dos princípios elencados na lei constrói
uma atmosfera de confiança entre as partes, e com isto a busca pelo
consenso onde as partes envolvidas vão procurar resolver juntas
questões que fazem parte da realidade que elas estão vivendo. O
litigio, resolvido por um Juiz através de uma sentença, em sua
grande maioria não satisfará as partes e ainda se corre o risco de
que tal situação se perpetue.

4. DOS CONFLITOS AMBIENTAIS E A SOCIEDADE DE


RISCO

A preocupação com questões ambientais faz parte do


cotidiano de todos. E a cada dia grande parte da população no
mundo tem se preocupado com a questão do ser humano e o meio
ambiente. Em 1987, a ONU apresentou ao mundo, após longos
debates o Relatório Brundtland ou Nosso Futuro Comum, e
propunha o desenvolvimento sustentável, como sendo aquele que
atende as necessidades do presente sem comprometer as gerações
futuras. O relatório fala sobre a pobreza no mundo, dentre outras,
como uma das causas de grandes catástrofes ambientais, mas é
também a camada mais pobre quem sofre os efeitos das catástrofes
ambientais.
O livro “Sociedade de Risco: rumo a uma outra
modernidade”, faz uma análise sobre as questões atuais, da
modernização, os riscos causados e seus efeitos colaterais: “Na
modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada
604
sistematicamente pela produção social de riscos. ” Beck (2011, p.
23). Segundo o autor as regras da vida cotidiana são viradas de
cabeça para baixo e vemo-nos praticamente indefesos diante das
ameaças ocorridas principalmente pela absorção da natureza pelo
crescimento industrial.
Vivemos um conflito há muito ignorado, talvez pelo
desconhecimento ou mesmo pela conveniência, pois grande parte
da população mundial se vê às voltas com notícias manipuladas
pela mídia ou quiçá tendenciosas. Ou até mesmo convenientes para
aqueles que em sua minoria detêm o poder e o capital. Seriam os
riscos da modernização? Seriam estes riscos necessários e
aceitáveis?
Meio ambiente segundo a Lei 6938/1981, diz respeito a
um “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em
todas as suas formas;”.
O caput do artigo 225 da Constituição Federal estabelece
como atribuição do Poder Público e da coletividade o dever de
defender e preservar, não só no presente, mas também no futuro. E
com essa responsabilidade compartilhada há uma inovação
associada ao princípio Democrático de Direito, segundo Baracho
Junior (2008. P. 94-95):

O enfrentamento dos problemas ambientais é


precisamente um dos melhores exemplos
desta nova percepção da esfera pública, visto
que o Estado intervencionista do final de
século XX foi um dos principais degradadores

605
do meio ambiente, seja diretamente, através
de empresas estatais, seja indiretamente,
através da tolerância com a degradação
provocada por empresas privadas.

Segundo Morais (1999, p. 37-38), quando se fala em


direitos humanos de terceira geração, “estes se apresentam como
uma nova realidade de direitos fundamentais e se apresentam como
detentores de uma “universalidade comunitária“, uma vez que
atingem a comunidade como um todo. Pois falar de meio ambiente
não pode se falar em direitos individuais, mas a uma coletividade.
Ainda o autor:

A violação não se estabelece, mas na relação


do indivíduo com o Estado, sequer a pretensão
se dirige a um Estado. Ambas refletem como
que uma corresponsabilidade pela qualidade e
continuidade da vida humana. A garantia ou a
violação afetam a todos inexoravelmente.

Neste sentido Floriano (2007, p. 9-10) esclarece que os


problemas ambientais ocorrem quando se interfere no ecossistema,
alterando-o. Isso desequilibra o que a natureza desde o início dos
tempos desenvolveu. E isto pode provocar consequências
individuais ou coletivas, temporárias ou permanentes, em vários
graus de amplitude e intensidade.
Para Morais (1999. p.55-57) os interesses difusos
significam uma indeterminação subjetiva de sua titularidade. Ou
seja, não há como individualizar este direito a uma pessoa isolada,
ou a um grupo delimitável de pessoas. “A titularidade é de todos e
606
de ninguém – é de qualquer um, a qualquer momento. ” Ao se falar
em natureza indivisível, o que se observa é uma ampliação deste
direito no sentido de amplitude de seu alcance. Segundo o artigo
81, I, do Código de Defesa do Consumidor, os titulares dos direitos
difusos são pessoas indeterminadas, se trata de bens indivisíveis.

interesses ou direitos difusos, assim


entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível, de
que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato.

Segundo Beck (2010. p. 27), os riscos que tais danos


causam não estão vinculados somente ao lugar onde foram gerados,
mas a toda uma coletividade, a abrangência é mais extensa do que
se pode imaginar. Contudo, existe o que o autor chama de efeito
bumerangue, onde os riscos da modernização alcançam aqueles
que os produziram e lucraram.

O efeito bumerangue não precisa se refletir,


portanto, unicamente em ameaça direta à
vida, podendo ocorrer através de mediações:
dinheiro, propriedade, legitimação. Ele não
apenas atinge em repercussão direta o
causador isolado. Ele também faz com que
todos, globalmente e por igual, arquem com o
ônus: o desmatamento causa não apenas o
desaparecimento de espécies inteiras de
pássaros, mas também reduz o valor
econômico da propriedade da floresta e da
terra (BECK. 2010, p. 45)
607
O autor ainda traz outro ponto evidenciado nos conflitos
ambientais que é o potencial político das catástrofes, ”pois sua
prevenção e manejo podem acabar envolvendo uma reorganização
do poder e da responsabilidade. ” (Beck. 2011. P. 28). E com isto o
Estado consegue converter uma situação de catástrofe em uma
aparência normalidade.
Os princípios que norteiam as questões ambientais, tal
como o princípio da responsabilidade ambiental, atestam que
aquele que causar dano de caráter ambiental, não será punido
somente no âmbito administrativo e/ou criminal, mas também na
obrigação de recuperação do ambiente degradado. Tais medidas
são uma tentativa de se minorar os efeitos causados, pois nos
conflitos ambientais a consciência do risco não deve se fixar
somente no presente, mas no futuro.
Os danos ambientais causados por inúmeros conflitos
ambientais em todo planeta torna cada dia mais difícil a dissociação
do progresso econômico e da proteção ao meio ambiente.
Populações inteiras prejudicadas ou até mesmo dizimadas, como o
que aconteceu em Chernobyl e em outras catástrofes ambientais,
cidades destruídas e ainda com efeitos a longo, longíssimos prazos.
Os efeitos em cadeia originados da degradação ambiental atingem
há um número muitas vezes indefinido, não só aqueles atingidos
diretamente, mas inúmeros que são atingidos indiretamente. Em
26 de abril de 1986, um dos reatores da Usina nuclear de Chernobyl

608
explodiu, e decorridos mais de 30 anos ainda se pode perceber o
cenário apocalíptico do desastre. 7
O acidente ambiental de Mariana é também outro
exemplo, mais recente, onde os riscos e a amplitude do ocorrido
ainda não se pode mensurar, quantas pessoas foram atingidas, qual
a extensão do dano e outras sequelas causadas pelo desastre. Mas
este será um assunto a ser discutido mais adiante.

5. DA MEDIAÇÃO EM CONFLITOS AMBIENTAIS

A adoção da mediação para solução de conflitos já


encontrou respaldo na Declaração do Rio de 1992, no Princípio 10:

A melhor maneira de tratar as questões


ambientais é assegurar a participação, no nível
apropriado, de todos os cidadãos interessados.
No nível nacional, cada indivíduo terá acesso
adequado às informações relativas ao meio
ambiente de que disponham as autoridades
públicas, inclusive informações acerca de
materiais e atividades perigosas em suas
comunidades, bem como a oportunidade de
participar dos processos decisórios. Os
Estados irão facilitar e estimular a

7
As cicatrizes nucleares 30 anos após o inferno de Chernobyl. Trinta anos após o
pior desastre nuclear da história, na antiga União Soviética, o cenário permanece
pós-apocalíptico e os custos humanos impagáveis. Estimativas apontam que cerca
de 200.000 km² de terra foram contaminados e, ainda hoje, o número de vítimas
permanece conflitante, já que é difícil calcular exatamente quantos foram os
afetados em longo prazo pela radiação.
609
conscientização e a participação popular,
colocando as informações à disposição de
todos. Será proporcionado o acesso efetivo a
mecanismos judiciais e administrativos,
inclusive no que se refere à compensação e
reparação de danos.

A agenda 2030 em seu plano de ação global prevê em seu


objetivo 16 a necessidade de “promover sociedades pacíficas e
inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o
acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes,
responsáveis e inclusivas em todos os níveis”, abrindo
possibilidades da aplicação do instituto da mediação para resolução
de conflitos ambientais.
Quando se deseja aplicar a mediação em conflitos, e
principalmente naqueles que envolvem uma coletividade, é preciso
considerar que as partes em conflito nem sempre tem a mesma voz,
podendo haver uma desigualdade de poder que pode influenciar e
até gerar uma situação de conflito dentro do processo de mediação.
Tais cuidados precisam existir, por exemplo, quando de um lado
grandes empresas e de outro, no caso de conflitos ambientais, de
pessoas simples como ribeirinhos, quilombolas, índios e
pescadores.
Como é o exemplo do que ocorreu com a questão
polêmica que envolveu a construção da Usina Hidrelétrica de Belo
Monte no Pará, apresentada como a principal obra do Plano de
Aceleração do Crescimento. Em 2010 quando o IBAMA concedeu
a licença previa já havia indícios fortes que algo muito sério poderia
ocorrer. Em documento intitulado “O Dossiê Belo Monte – Não
610
há condições para a Licença de Operação”, realizado pelo Programa
Xingu- Instituto Socioambiental 8 foi relatado uma série de
irregularidades, dentre as quais a falta de participação da população
que seria atingida, e ainda o atraso no cumprimento das ações
antecipatórias definidas no Projeto Básico Ambiental, previstas nos
Estudos de Impacto Ambiental, destinados a prevenir, mitigar e
compensar os impactos da obra. Tais descumprimentos
provocaram inúmeros problemas nas cidades impactadas pela
construção da Hidroelétrica como, por exemplo, na cidade de
Altamira que hoje é considerada uma das cidades mais violentas do
Brasil, e problemas como a criminalidade, falta de estrutura nos
hospitais, falta de saneamento, moradia, foram causados pelo
aumento da população e o deslocamento de tantas famílias à época
da construção da obra.
Há ainda muitos outros desastres ambientais ocorridos no
Brasil, onde podemos citar alguns para efeito de ilustração: como o
ocorrido na cidade Paulista de Cubatão, em 1980; o acidente com
material radioativo em 1987 na cidade de Goiânia; o vazamento de
óleo na Baia de Guanabara, no Rio de Janeiro em 2000; o
vazamento de barragem em Cataguases, Minas Gerais em 2003; em

8
De acordo com o dossiê Belo Monte – Não há condições para a Licença de
Operação é um alerta da sociedade civil: afirmando que não há neste momento,
condições suficientes para que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorize, de maneira
socioambientalmente responsável, o início do enchimento dos reservatórios da
usina hidrelétrica de Belo Monte (situada na região de Altamira, no Pará) e o
desvio definitivo do rio Xingu para que parte da usina comece a operar (IBAMA,
2010).
611
2007 - Rompimento de barragem em Miraí, também em Minas
Gerais. Em 2011, outro Vazamento de óleo no Rio de Janeiro na
Bacia de Campos e ainda um Incêndio na Ultracargo em 2015 , no
terminal portuário Alemoa, em Santos, litoral Sul de São Paulo.
Há de se mencionar ainda o que hoje é considerado o
maior desastre ambiental da história do País, que foi o rompimento
da Barragem com resíduos na cidade de Mariana-MG. Em 5 de
novembro de 2015, 34 milhões de metros cúbicos de rejeito de
minério de ferro jorraram do complexo de mineração operado pela
Samarco e percorreram 55 km do rio Gualaxo do Norte e outros 22
km do rio do Carmo até desaguarem no rio Doce. No total, a lama
percorreu 663 km até encontrar o mar, no município de Regência
(ES), a morte de 19 pessoas, além da destruição de comunidades
inteiras.
Dentre estes exemplos citados, a pergunta é: poderia haver
a aplicação das técnicas de mediação para a resolução pacifica
destes conflitos? Segundo Salles, Viegas (2016, p. 6), “o método da
mediação busca integrar valores como a inclusão social, diálogo,
democracia, responsabilidade e cidadania aos conflitos existentes.
Tratando, assim, do problema ambiental sem judicialização e
sobreposição de interesses.”. Apontam ainda que a medição é um
caminho mais rápido e eficaz.
Outra questão que se levanta quanto a aplicação das
técnicas de mediação é se o Ministério Público poderia ser o
mediador nestas ações. Segundo a Resolução nº 118, de 1º de

612
dezembro de 2014 , em seu artigo 1º 9, sim. Já no parágrafo único do
artigo 1º tem-se que “Ao Ministério Público brasileiro incumbe
implementar e adotar mecanismos de autocomposição, como a
negociação, a mediação, a conciliação, o processo restaurativo e as
convenções processuais, bem assim prestar atendimento e
orientação ao cidadão sobre tais mecanismos”.
No preâmbulo da Resolução já prevê:

CONSIDERANDO que a negociação, a


mediação, a conciliação, as convenções
processuais e as práticas restaurativas são
instrumentos efetivos de pacificação social,
resolução e prevenção de litígios,
controvérsias e problemas e que a sua
apropriada utilização em programas já
implementados no Ministério Público têm
reduzido a excessiva judicialização e têm
levado os envolvidos à satisfação, à
pacificação, a não reincidência e ao
empoderamento;

9
Artigo 1º da Resolução 118, de 1º de dezembro de 2014.Fica instituída a
POLÍTICA NACIONAL DE INCENTIVO À AUTOCOMPOSIÇÃO NO
ÂMBITO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, com o objetivo de assegurar a promoção
da justiça e a máxima efetividade dos direitos e interesses que envolvem a atuação
da Instituição. Parágrafo único. Ao Ministério Público brasileiro incumbe
implementar e adotar mecanismos de autocomposição, como a negociação, a
mediação, a conciliação, o processo restaurativo e as convenções processuais, bem
assim prestar atendimento e orientação ao cidadão sobre tais mecanismos.

613
E sob esta ótica o Ministério Público do Estado de Minas
Gerais inaugurou em 2013 o Núcleo de Resolução de Conflitos
Ambientais (Nucam), com o objetivo de facilitar a busca pelo
consenso e compatibilidade da proteção dos recursos naturais e o
desenvolvimento econômico do estado. Segundo informações do
próprio órgão, cerca de 90% dos casos de dano ambiental são
resolvidos de forma conciliatória, sem o ingresso de qualquer tipo
de ação no Judiciário.
Um exemplo que tem colhido resultados positivos é a
experiência em Nova Lima- Minas Gerais em que a 1ª Promotoria
de Justiça, junto com a Faculdade Milton Campos iniciaram o
funcionamento da Câmara de Mediação em 2012. Este método se
verifica da seguinte forma: o caso é selecionado e levado até a sessão
de mediação, as partes interessadas (Sociedade civil, ONG’s e o
Ministério Público) são convidados a participar, estabelecem o
procedimento e após a realização da mediação é redigido um
Termo de Mediação que pode ser positivo ou negativo.
Outro exemplo é o acordo celebrado entre o Ministério
Público de Minas Gerais com a empresa Gerdau Açominas S.A,
empresa mineradora que explorava a região e que através de um
TAC criou do Monumento Natural da Serra da Moeda uma
unidade de conservação de proteção integral com grandes
resultados para o meio ambiente e as comunidades afetadas.
Segundo o Manual de Negociação e Mediação para
Membros do Ministério Público:

Todo o método criado tem como base a


informação clara e acessível a qualquer

614
cidadão, independente de seu grau de
instrução. O papel primordial do mediador é,
além de conduzir e facilitar o diálogo,
empoderar as partes com informações
científicas de cunho ambiental, econômico e
social. Assim, o trabalho realizado visa a,
primordialmente, que haja um diálogo entre
iguais (em termos de informação técnica). E,
se caso uma das partes for considerada
hipossuficiente, não bastando explicação de
ordem acadêmica, imparcial e técnica,
instituições de ensino ou Organizações Não
Governamentais serão convidadas (se ainda
não tiverem se pronunciado sobre a questão)
a participar das reuniões, como parte
interessada, possibilitando um fortalecimento
daquele diretamente afetado pela conduta,
mas sem condições de manter um diálogo
com os demais. Além das ONGs, o Ministério
Público estará sempre garantindo um diálogo
aberto, defendendo a constitucionalidade, a
legalidade e a legitimação do Termo de
Mediação.

Um dos caminhos que o Ministério Público de Minas


Gerais adotou no caso do rompimento da barragem de Fundão, em
Mariana é a campanha “Mar de Lama Nunca Mais”, uma parceria
do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de
Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Urbanismo e
Habitação (Caoma) do Ministério Público de Minas Gerais com a
Associação Mineira do Ministério Público e que busca o apoio da
sociedade civil para a coleta de assinaturas favoráveis ao projeto
615
para uma efetiva segurança das barragens destinadas aos rejeitos. A
participação de toda a população em meio a um problema crítico,
e fazer com que esta participação venha ser de forma efetiva, pois
aqueles que perderam tudo são os maiores interessados na
resolução rápido deste conflito.
A população de Bento Gonçalves, e outras regiões
afetadas, cerca de 40 cidades, a ainda cerca de três mil pessoas
afetadas segundo contabiliza o Ministério Público de Minas Gerais,
incluindo as que tiveram perdas materiais, de moradia e de renda
até hoje, decorridos dois anos e meio o sentimento de perda ainda
se faz presente. Segundo moradores da região o que se perdeu o
dinheiro não vai conseguir reconquistar: lembranças, histórias,
fotos, trabalho, esperança, amizades e dignidade.
O Projeto de Lei (PL) 3.676/16, do “Projeto Mar de Mala
nunca Mais” dispõe sobre o licenciamento ambiental e a
fiscalização de barragens no Estado de Minas Gerais. Se trata, no
entanto, de uma árdua tarefa, em recente reunião ocorrida na
Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), precisamente em
09 de julho de 2018, o parecer de autoria do deputado João Vitor
Xavier (PSDB) ao Projeto de Lei (PL) 3.676/16 que contava com a
assinatura 56.318 mineiros foi rejeitado pela Comissão de Minas e
Energia, em 2º turno. Mas a luta continua.
Em sua Carta Encíclica, o Padre Francisco fala sobre o
cuidado da casa comum, ou seja, temos a mesma casa, todos os
seres humanos e que devemos cuidar dela, através do diálogo, da
cooperação que se transforma numa solidariedade universal, para
resolver e reparar o dano causado pelos seres humanos.

616
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivemos num Estado Democrático de Direito onde a peça


principal é o cidadão. O direito a um acesso à justiça como um
direito a todo cidadão resguardado pela Constituição não equivale
dizer que a efetividade ocorrerá. O que vemos nos dias atuais são
amontoados de processos que aguardam uma sentença, um ponto
final e talvez um novo começo para o cidadão. E na busca por
acelerar este processo novas ideias surgem, como soluções que
levem o cidadão a vivenciar um verdadeiro sentimento de Justiça.
E nesta busca o que deve ser deixado para traz é a cultura do litigio,
onde o Estado assume um status de centralizador. É necessário a
construção de uma nova cultura.
No estudo de novas soluções, surge a mediação, que
adotando técnicas de negociação estudadas e meticulosamente
aplicadas, dá-se a oportunidade ao cidadão de participar
ativamente de decisões que vão influenciar e mudar sua vida, além
de outras .E a aplicação destas técnicas em conflitos ambientais tem
gerado boas soluções, mas ainda muito tímidas, quer seja pelo
desconhecimento, negação, ou resignação acomodada ou quer seja
pelo comodismo em se agarrar a velhas culturas, ainda que
ineficientes. A participação ativa do Ministério Público nestas
composições tem dado bons frutos.
A questão principal, no entanto, é a participação da
população. Onde cidadãos comuns, ribeirinhos, quilombolas,
vítimas diretas e indiretas dos conflitos devem participar
efetivamente dos debates que poderão levar a uma solução. E

617
ainda, deve-se dar a eles reais condições de igualdade nas
discussões, através da escolha de lideranças comunitárias, ONG’s,
e ainda o Ministério Público. Afinal foram aqueles, os mais
atingidos pelas tragédias, que por uma busca sem limites do
crescimento industrial, grandes empresas não tomaram as devidas
precauções, não respeitaram o próximo, não respeitaram o meio
ambiente, não respeitaram leis, não se atentaram para os riscos, ou
ainda pior, os negligenciaram.
Falar-se em mediação nestes conflitos, grandes ou
pequenos, é sem dúvida um passo, um grande passo na busca por
participação efetiva do cidadão na busca por uma solução
equilibrada, num direito atendido, onde a probabilidade de se ter
uma justiça efetiva e justa caminha, ainda que vagarosamente, mas
caminha.

618
REFERÊNCIAS

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<https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/rbb_artigo%20tania.
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BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra


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Conciliação. Disponível
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BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Azevedo, André Gomma


de (Org.). Manual de Mediação Judicial, 6ª Edição
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Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em:
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625
TUTELA DA PAISAGEM: PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO
À LUZ DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO E
ESPANHOL

THE ENHANCEMENT OF THE LANDSCAPE: PROSPECTS


OF PROTECTION OF BRAZILIAN AND SPANISH
ENVIRONMENTAL LAW ISSUES

Rafael Costa Freiria1

RESUMO: A proteção da paisagem enquanto bem jurídico


ambiental ainda é um tema, em grande medida, incipiente na
realidade brasileira. No entanto, a dimensão paisagística do meio
ambiente possui um papel de grande importância para o avanço do
paradigma da sustentabilidade, uma vez que a paisagem qualificada
traz o potencial de trazer proteção para valores não só paisagísticos,
mas também naturais, culturais, históricos, bem como maior bem-
estar para a população que a usufrui. Neste sentido, o objetivo
principal do presente capítulo consiste em apresentar o panorama
do direito ambiental brasileiro de proteção da paisagem, bem como
trazer perspectivas doutrinárias e legislativas tidas como
referenciais do sistema jurídico espanhol de tutela da paisagem, no
sentido de contribuir para a maior efetividade ao chamado jus
paisagismo.
PALAVRAS-CHAVE: Proteção da Paisagem; Patrimônio
Cultural; Tombamento; Direito Ambiental Espanhol;
Sustentabilidade.

1
Pós-doutor do Programa de Direito Ambiental e Sustentabilidade da
Universidade de Alicante, Espanha. Professor efetivo da Universidade Estadual
de Campinas-UNICAMP na área ambiental; E-mail: rafaelfreiria@ft.unicamp.br
626
ABSTRACT: The protection of the landscape as an environmental
legal good remains a largely incipient theme in Brazilian reality.
However, the landscape dimension of the environment plays a very
important role in advancing the sustainability paradigm, since the
qualified landscape has the potential to bring protection not only
to landscape but also to natural, cultural, historical, and as well as
greater well-being for the population that enjoys it. In this sense,
the main objective of this chapter is to present the panorama of the
Brazilian environmental law of landscape protection, as well as to
bring doctrinal and legislative perspectives considered as
referential of the Spanish legal system of landscape protection, in
order to contribute to greater effectiveness called jus landscaping.

KEYWORDS: Landscape Protection; Cultural heritage;


Tumbamento; Spanish Environmental Law; Sustainability.

SUMÁRIO:
Introdução.
2. A Paisagem enquanto dimensão ambiental.
3. A paisagem no ordenamento jurídico brasileiro.
3.1 Vias de tutela da paisagem.
4. A paisagem segundo pontos referenciais do sistema jurídico
espanhol: análise doutrinária e aspectos da Ley 4/2004 da
Comunidade Valenciana.
Considerações finais.
Referências.

627
INTRODUÇÃO

No contexto atual de busca por novas perspectivas de


respostas frente aos problemas ambientais, as políticas públicas têm
papel estratégico devido às possibilidades decorrentes da sua
função de definir os rumos e aprimorar as tomadas de decisões e
critérios relacionados com as ações humanas que possuem
interface com o meio ambiente.
De outra parte, considera-se que a efetividade desta
função depende tanto dos papéis desempenhados pelo direito
quanto pela gestão ambientais. No referencial presente em Freiria
(2011) está desenvolvida proposta teórica de análise integrada entre
os temas direito, gestão e políticas públicas ambientais.
Parte-se, portanto, da premissa da interdependência
teórica e prática dessas três áreas do conhecimento, com especial
ênfase ao papel do direito ambiental, para a efetivação das questões
ambientais e, por consequência, para trazer novas perspectivas de
soluções para o contexto de crise ambiental.
A partir dessa constatação teórica, o passo dado foi no
sentido de pesquisar novas vias capazes de darem vazão prática a
esta necessidade de integrações entre variáveis políticas, jurídicas e
técnicas, com propósito de apresentar alternativas inovadoras de
soluções aos problemas ambientais contemporâneos.
Para contribuição com a presente obra coletiva, foi
escolhido o tema da “paisagem”, que ainda necessita de
significativos avanços técnicos e jurídicos para aprimorar seu
regime de proteção e a eficácia da sua gestão.
Neste sentido, o capítulo, dentro de uma perspectiva de
628
abordagem panorâmica e visando contribuir para o
aprimoramento na governança ligada às políticas públicas de
proteção e controle da paisagem, abordará o tema enquanto
importante dimensão ambiental e realizará análise dos principais
aspectos do ordenamento brasileiro, bem como de legislação
referência do sistema jurídico espanhol.

2. A PAISAGEM ENQUANTO DIMENSÃO AMBIENTAL

No senso e na linguagem comuns, a paisagem é


compreendida como uma parcela ou extensão do território que se
abrange num lance da vista. Um panorama que compreende
determinado espaço geográfico. Algo subjetivo cuja conotação vai
depender muito do observador e das características do meio em que
se insere.
Buscando contornos técnicos para a concepção de
paisagem, Jean Paul Metzer (2001, p.2) explica que:

Apesar da diversidade de conceitos, a noção


de espaço aberto, de espaço “vivenciado” ou
de espaço de inter-relação do homem com seu
ambiente está imbuída na maior parte dessas
definições. Este cenário é vivenciado de
diferentes formas, através de uma projeção de
sentimentos ou emoções pessoais, da
contemplação de uma beleza cênica, da
organização ou planejamento territorial, da
domesticação ou modificação da natureza
segundo padrões sociais, do entendimento da

629
relação da biota com o seu ambiente, ou como
cenário/palco de diferentes eventos históricos.
A paisagem como noção de “espaço”,
ganhando sentido ou utilidade através do
“olho” ou percepção do observador, pode ser
o conceito principal de confluência dessas
diferentes visões.

Pode-se dizer que o ambiente, que integra determinado


território, é composto por diversas paisagens. O desafio consiste em
compreender e valorar estes recortes territoriais, segundo suas
relevâncias naturais, culturais, para propiciar um sistema de
proteção segundo as especificidades desse patrimônio, ao mesmo
tempo, visual e espacial, refletido nas normas jurídicas e nas
práticas de gestão.
Em termos jurídico-doutrinários, Ramon Martín Mateo
(2003, p.328) considera que a paisagem “no es toda la natureza, sino
los espacios singulares calificados como tales por los distintos
instrumentos de planificación, encabezados por los de ordenación
del território”.
Já o artigo primeiro do Convênio Europeu da Paisagem,
celebrado em Florença no ano de 2000, entende por paisagem
“cualquier parte del territorio tal como la percibe la población, cuyo
carácter sea el resultado de la acción y la interacción de factores
naturales y/o humanos”.
Fato é que as paisagens, enquanto espaços singulares e
qualificados integram o meio ambiente. Cabe indagar que
ambiente é esse que está em discussão. Compreender a dimensão
de meio ambiente significa refletir a respeito das formas e

630
mecanismos que trazem potencial de oferecer maior proteção,
conservação e possibilidades de usos aos recursos naturais,
artificiais e culturais que fazem parte do meio, bem como as
paisagens qualificadas relacionadas com essas dimensões.
Da mesma forma, ao se debruçar sobre as dimensões de
meio ambiente e possibilidades de uso e proteção, também suscita
os papéis atuais a serem exercidos pelo Direito, Gestão e pelas
Políticas Públicas, nesse processo.
A Lei Federal brasileira número 6.938, de 31 de agosto de
1981, ao dispor sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em
seu art. 3°, inciso I, define o meio ambiente como “o conjunto de
condições, leis influências e integrações de ordem física, química, e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas.” Tal conceito legal, sofreu aprimoramentos por parte da
ciência jurídica ambiental, por ser indeterminado e com
preponderância da identificação de meio ambiente com recursos
naturais.
Atualmente está, em grande medida, estabelecido na
doutrina ambiental brasileira (FREITAS, 2001; SILVA, 2005;
AMADO, 2018) que o meio ambiente possui quatro dimensões que
suscitam a atenção do sistema jurídico ambiental: 1) meio ambiente
natural: constituído por elementos como solo, água, ar atmosférico,
flora e fauna; 2) meio ambiente cultural: constituído por elementos
como patrimônios históricos, artísticos, arqueológico, paisagístico,
turístico, de uma sociedade; 3) meio ambiente artificial: constituído
por elementos integrantes do espaço urbano desenvolvido pelo
homem, englobando todo conjunto de edificações, praças e todos

631
os elementos que compõem a infraestrutura urbana; 4) meio
ambiente de trabalho: constituído pelos elementos que integram o
local da realização da atividade laboral, das relações de trabalho.
Portanto, meio ambiente tem uma abrangência muito
grande de elementos e espaços que abrigam e regem a vida em todas
as suas formas. Falar em meio ambiente, dentre outros aspectos,
implica em falar em condições para existência digna, com saúde,
qualidade de vida, preservação das condições naturais, artificiais e
culturais, numa perspectiva local e global.
Esta concepção traz novos desafios para os papéis atuais
do direito e das políticas públicas. Esses novos desafios estão
relacionados com a interdependência de todas essas questões. Por
outro lado, a paisagem vai surgir como espaços qualificados dessas
dimensões ambientais. Neste sentido, existem paisagens naturais,
artificiais e culturais que, por seus elementos peculiares e
nitidamente caracterizadores de interesses difusos, vão exigir um
regime de proteção e de gestão diferenciados.
É, portanto, papel atual da governança ambiental buscar a
melhor eficácia possível na gestão das paisagens, que integram uma
concepção mais qualificada de bem estar, qualidade de vida e
sustentabilidade nos espaços urbanos e rurais. Uma cidade, um país
que se preocupam com suas paisagens, com o estabelecimento de
um sistema de normas que possibilita o planejamento, gestão e
controle desses espaços qualificados, aprimora suas políticas
ambientais e melhora a relação do cidadão com o espaço por ele
vivido.
Com base neste entendimento da paisagem como espaços
qualificados das dimensões ambientais, o desafio atual seria
632
estabelecer o “planejamento da ocupação territorial através dos
limites e das potencialidades de cada “unidade de paisagem”
(definida como espaço do terreno com características comuns)”
(METZER, 2001, p.3). E seria papel do direito, neste contexto,
incorporar esta lógica de planejamento e gestão da paisagem como
forma de estabelecer os limites e possibilidades de seu uso dentro
de uma concepção cada vez mais sustentável.
Entende-se que a realidade brasileira, tanto em termos de
ordenamento jurídico, como nos efeitos práticos, não traz uma
efetiva política pública voltada para a proteção e controle das
paisagens qualificadas. Apesar de ser um bem tutelado pelo sistema
normativo, inclusive constitucional, não há um direito ambiental
voltado para a gestão efetiva e sistêmica da paisagem, mas sim para
tratamentos pontuais, isolados, muitas vezes distantes de uma
realidade de planejamento e visão de futuro na proteção e uso dos
espaços originais e diferenciadores das cidades.
De outra parte, comparativamente, encontra-se no direito
ambiental espanhol, em termos doutrinários e especialmente na
legislação criada pela Comunidade Valenciana, instrumentos
conceituais e normativos direcionados para a proteção,
planejamento, gestão das paisagens qualificadas existentes em seus
territórios.
Por consequência, atualmente várias cidades integrantes
dessa Comunidade, desse recorte territorial espanhol com regime
diferenciado de proteção das paisagens, apresentam bons
resultados desse regime jurídico.
Municipalidades espanholas da Comunidade Valenciana

633
como, por exemplo, Altea, Torrevieja, Aspe, apresentam suas
paisagens naturais, urbanas e culturais qualificadas, de forma geral,
protegidas e dentro de um sistema de planejamento e gestão que
traz frutos diretos aos seus habitantes em termos de bem estar,
qualidade de vida e vivência sustentável; bem como incrementam
o turismo, valorizado pelo prazer do visitante de conhecer, estar e
vivenciar tais paisagens.
São cidades que não possuem grandes monumentos
histórico-culturais ou mesmo um ambiente natural notável, mas
tem suas originalidades destacadas, protegias e/ou requalificadas.
São frutos de um sistema normativo que, atrelado a um nível
elevado de conscientização e participação de seus habitantes, gera a
gestão de suas paisagens, resultando em uma efetiva política
pública a respeito, com benefícios difusos, de todos os moradores e
visitantes, presentes e futuros, que vivem ou passam por elas.
Na sequência, a proposta é realizar um estudo comparado
entre os principais aspectos do estágio atual do ordenamento
jurídico brasileiro, no que se refere ao regime de proteção da
paisagem, e o espanhol (especialmente com análise doutrinária e da
experiência da Comunidade Valenciana), procurando enfatizar
critérios que possuem a potencialidade de aprimorar a gestão
desses espaços qualificados no sentido de construção de uma
efetiva política pública a respeito.

634
3. A PAISAGEM NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO

No direito brasileiro está estabelecida e garantida a


proteção da paisagem representativa do patrimônio cultural. É o
que está previsto no artigo 216, V, da Constituição Federal de 1988:

Artigo 216 - Constituem patrimônio cultural


brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem:

(...)

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor


histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da
comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.

Neste sentido, encontra-se estabelecido em termos legais


e doutrinários no sistema jurídico brasileiro que os “bens estão
incluídos no patrimônio cultural brasileiro, desde que sejam
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos

635
diferentes grupos formadores da nacionalidade ou sociedade
brasileira” (AMADO, 2018, p.267).
Por este entendimento, se a paisagem for caracterizada
como patrimônio cultural irá receber proteção constitucional. Estes
chamados direitos culturais, por exemplo, à proteção da paisagem
culturalmente relevante, vão designar os direitos que tem uma
pessoa, individualmente ou em termos da coletividade que integra,
de expressar-se e ter acesso aos recursos para proteger e usufruir
aquilo que traz referência a sua identidade (MEYER-BISCH e
BIDAULT, 2014).
Por outro lado, a mesma Constituição Federal de 1988, no
seu art. 23, inciso III, estabelece a competência administrativa
comum dos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, para proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens
naturais notáveis e os sítios arqueológicos. Verifica-se que, além do
patrimônio cultural, houve atribuição de competência executiva
para proteger paisagens naturais qualificadas como notáveis.
Vale ressaltar que a competência legislativa, para criar leis
de proteção e controle da paisagem, é definida como concorrente
entre os entes federados, conforme preceitua a interpretação
conjunta dos artigos 24, inciso VII, com o artigo 30, da
Constituição Federal.
Nessas duas abordagens do regime jurídico
constitucional, percebe-se a característica do ordenamento
brasileiro de tratamento tipificado ou fragmentado da paisagem: ou
se tem a garantia da proteção constitucional da proteção da
paisagem cultural ou atribui-se ao Poder Público o papel de
636
proteger a paisagem que for naturalmente notável, desprestigiando
a perspectiva de proteção da paisagem como um todo, seja cultural,
natural ou urbana.
Este cenário normativo reflete nas situações aplicadas de
controle e proteção das paisagens, que, quando isto ocorre, se
concentram em bens paisagísticos culturais de forma pontual ou
mesmo fragmentos naturais de maior relevância, de forma
preponderantemente isolada da paisagem como um todo.
Entende-se que a garantia do art. 225 da Constituição
Federal, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como um
direito de todos, essencial à sadia qualidade de vida, a ser protegido
(pelo Poder Público e coletividade) para às presentes e futuras
gerações, tem também na gestão da paisagem, como um todo, mais
um de seus condicionantes de efetividade.
Além da paisagem cultural e notável, toda paisagem
relevante para o equilíbrio do meio e qualidade de vida de seus
habitantes e visitantes deve ser qualificada, de modo a integrar os
objetivos de proteção do direito ambiental, bem como compor o
escopo das decisões relativas às políticas públicas.
Este entendimento está associado também à perspectiva e
busca de uma sustentabilidade real, que terá sua efetividade
refletida ou não na relação que determinada sociedade tem com
suas paisagens. Como enfatiza Jean Paul Metzer (2001, p.7): “Para
compatibilizar uso das terras e sustentabilidade ambiental, social e
econômica, é necessário planejar a ocupação e a conservação da
paisagem como um todo”.

637
Além dessas previsões constitucionais de proteção da
paisagem, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta vias
processuais administrativas e judiciais voltadas para a garantia
desse direito material.

3.1 Vias de tutela da paisagem

Dentre as principais vias de proteção, em linhas gerais,


tem-se o tradicional processo administrativo voltado para o
tombamento, que resulta na possibilidade de se declarar ou não
uma paisagem como notável e, portanto, passível de um regime de
proteção especial.
Em termos de previsões de direito que respaldam esse
instrumento com potencialidade de proteção das paisagens, tem-se
o instituto administrativo do Tombamento, que está disciplinado
pelo Decreto-lei número 25, de 30 de novembro de 1937, conforme
se verifica pelas redações de seu artigo primeiro e parágrafo
segundo:

Artigo 1º Constitue o patrimônio histórico e


artístico nacional o conjunto dos bens móveis
e imóveis existentes no país e cuja conservação
seja de interêsse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do
Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico.

(...)

638
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o
presente artigo e são também sujeitos a
tombamento os monumentos naturais, bem
como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com
que tenham sido dotados pela natureza ou
agenciados pela indústria humana.

Na perspectiva doutrinária administrativista, Maria Sylvia


Zanella Di Pietro (2011, p. 141) define o tombamento como
procedimento administrativo pelo qual o Poder Público “sujeita a
restrições parciais os bens de qualquer natureza cuja conservação
seja de interesse público, por sua vinculação a fatos memoráveis da
história ou por seu excepcional valor arqueológico ou etnológico,
bibliográfico ou artístico.” Enquanto José dos Santos Carvalho
(2011, p. 734) trata o tombamento como “forma de intervenção na
propriedade pela qual o Poder Público procura proteger o
patrimônio cultural brasileiro”.
Sem avançar aqui nos passos procedimentais para se
chegar à declaração de um bem como tombado, tem-se como
resultado prático final deste procedimento a impossibilidade do
bem protegido ser destruído, demolido, mutilado, ou mesmo
reparado, pintado e restaurado, salvo havendo, para estas três
últimas situações, autorização do órgão competente. (Art. 17, do
Decreto-Lei n. 25/37).
Ocorre que quando se direciona este instrumento
administrativo para o contexto das cidades, tem-se a
predominância de sua aplicação a patrimônios histórico-culturais

639
específicos, restando muitas vezes fora do foco a discussão da
paisagem como um todo.
Neste contexto, normalmente nas cidades brasileiras
existem alguns patrimônios culturais tombados,
preponderantemente pelos Estados ou União, mas a maior parte
das paisagens urbanas e rurais qualificadas segue ameaçada nas
suas visões de conjunto, de totalidade, de dimensões ambientais
que integram a concepção de qualidade de vida de seus moradores
e visitantes.
Via de regra, a discussão do patrimônio passível de
proteção, de eventual tombamento, além das situações de notável
valor histórico-cultural, surge em situações práticas concretas,
onde há uma ameaça de impacto ou mesmo quando ocorrem danos
irreparáveis, quando, por exemplo, prédios históricos são
demolidos na calada da noite. Além do impacto em si, com
consequente perda de parcela da paisagem, tais casos refletem a
necessidade de aprimoramentos nas políticas públicas existentes,
para que possam ser mais geradoras de um planejamento prévio às
tomadas de decisões e/ou conflitos pontuais, bem como para que
influenciem no nível de conscientização a respeito da própria
população relacionada.
Outro problema do modelo de proteção atual da paisagem
é que ele fica à mercê de atuações pró-ativas dos órgãos públicos.
Ou seja, após normalmente longo processo administrativo,
determinados bens, por serem dotados de notável relevância
histórica e/ou artística, são tombados. O restante da paisagem das
cidades fica sob a gestão discricionária das municipalidades que, na
maior parte dos casos, não possuem parâmetros legais urbanístico-
640
ambientais para nortear as decisões sobre obras, empreendimentos,
reformas e todo tipo de intervenção que vão impactar no seu
conjunto paisagístico. Isto reforça a tese da necessidade de novas
perspectivas voltadas para uma política pública de efetiva proteção
das paisagens qualificadas.
A par dos casos de tombamento, a forma de gestão do
restante da paisagem fica a critério das decisões políticas e eventuais
legislações de cada cidade. Algumas incluem esta discussão de
controle e proteção das paisagens em seus Planos Diretores, suas
revisões e legislações municipais relacionadas, trazendo a previsão
de limitações administrativas diferenciadas, critérios e gabaritos
voltados para a defesa e qualificação da paisagem enquanto
patrimônio ambiental. Mas muitas outras, não apresentam
nenhum tipo de preocupação, seja política, seja jurídica, com a
gestão das paisagens, com prejuízos para todos que vivem e
circulam por estes espaços.
Cabe dizer que o Estatuto da Cidade, disciplinado pela Lei
Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as
diretrizes das políticas urbanas brasileiras, traz como uma delas, no
seu artigo segundo, parágrafo XII: a proteção, preservação e
recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio
cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.
E dentro do conteúdo mínimo que deve ser previsto pelo
Plano Diretor, está, conforme artigo 42-B, inciso VI, a definição de
diretrizes e instrumentos específicos para proteção ambiental e do
patrimônio histórico e cultural. O que, segundo o entendimento da
paisagem como mais um aspecto qualificado das dimensões

641
ambientais, traria a necessidade de cada cidade estabelecer
instrumentos normativos de proteção e controle de seu patrimônio
paisagístico como um todo.
No entanto, na realidade das políticas municipais,
normalmente isto acaba não ocorrendo, o que faz com que a
população assista gradualmente à perda de parcela de sua qualidade
de vida, que muitas vezes está atrelada a cada paisagem que
desaparece ou é transformada sem controle e/ou critérios.
Finalmente, quando estas vias descritas não geram
efetividade na proteção das paisagens, o ordenamento jurídico
brasileiro apresenta a possibilidade de se buscar conter ameaças ou
reparar perdas, por meio das chamadas ações coletivas, que tutelam
interesses difusos, da coletividade, dentre elas 2, a ação civil pública.
A ação civil pública é disciplinada pela Lei Federal n.
7.347/85 e no seu artigo 1º, inciso III, estabelece a possibilidade de
seu exercício para responsabilização de danos morais e
patrimoniais causados a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
Fato é que este importante instrumento de tutela jurídico-
processual na maioria das vezes é utilizado quando, em se tratando
de proteção das paisagens, o dano já ocorreu de forma irreparável
ou com características de difícil reparação. Normalmente a
responsabilização, uma vez condenado o causador, se dá por meio
de medidas compensatórias, onde a paisagem lesada ou perdida,

2
Há também a possibilidade de se buscar guarita por meio da Ação Popular,
disciplinada pela Lei Federal n. 4.717/65.
642
enquanto interesse difuso, na maior parte dos casos não volta ao
estágio anterior ao dano.
Assim, ou o sistema jurídico brasileiro, que possui relação
com a proteção da paisagem, funciona de forma pontual, onde
alguns bens são escolhidos para o regime especial do tombamento,
ou algumas cidades, de acordo com seus interesses, elegem
instrumentos de proteção da paisagem em seus planos diretores e
legislações relacionadas; ou ele tem potencial de ação para casos de
ameaça de danos ou sua ocorrência, onde as ações coletivas, em
especial a ação civil pública, podem ser acionadas pelos atores
legitimados, para se tentar proteger paisagens enquanto interesses
difusos.
O planejamento e a gestão da paisagem passam a ser
exceção e não a regra no contexto desse arranjo jurídico difuso
existente no Brasil, onde cada cidade possui ou não as suas
políticas, carecendo de um direito definidor de critérios gerais
obrigatórios, com potencial de fortalecer todo o sistema e
influenciar nas decisões e no nível de pertencimento de cada
cidadão e organizações em suas paisagens.

4. A PAISAGEM SEGUNDO PONTOS REFERENCIAIS DO


SISTEMA JURÍDICO ESPANHOL: ANÁLISE
DOUTRINÁRIA E ASPECTOS DA LEY 4/2004 DA
COMUNIDADE VALENCIANA

Pesquisar, estudar, habitar e circular pelas paisagens


espanholas possibilita verificar um estágio civilizatório-

643
institucional em que há um nível de identificação, consciência e
valorização dos patrimônios paisagísticos importantes e
referenciais com potencial para influenciar o aprimoramento de
outros sistemas políticos-jurídicos, como o brasileiro.
No plano doutrinário é de grande relevância a obra do
Professor Ramón Martín Mateo, especialmente em seu Tratado de
Derecho Ambiental, em que aborda com grande profundidade e
vanguardismo os mais diversos temas ambientais, dentre eles a
tutela da paisagem.
Fazendo aqui uma síntese dos principais aspectos desta
referência doutrinária, tem-se que um primeiro importante passo
para compreender o seu regime jurídico de proteção é o
entendimento da paisagem objeto do direito ambiental, como
aquela qualificada pelas suas características diferenciadoras em
termos estético-culturais. Nas suas lições:

El concepto de paisaje, pese a sus intrínsecas


conexiones de ruralidad o naturalidad, es
neutral a efectos de su posible protección, no
todos los paisajes lo merecen, una planicie
erosionada será defendible para evitar la
contaminación de los acuíferos o por su juego
de vaso de expansión frente a inundaciones,
etc., pero no por su belleza intrínseca. (…) “no
podemos proteger una plantación de girasoles
no obstante su notable, pero efímera, belleza”.
(MATEO, 2003, p.321).

E complementa Mateo (2003, p.322) que esta qualidade


estética ambiental diferenciadora da paisagem deve ser considerada
644
relevante pela comunidade que nela vive e dela usufrui. Assim, a
qualificação da paisagem a ser valorada e protegida pelas normas
de direito vai depender dos valores daquela sociedade que ela está
ligada.
As paisagens, neste sentido, devem ser tuteladas segundo
as escalas culturais e territoriais em que estão inseridas. “Poco tiene
en común por ejemplo el paisaje ideal para un tuareg, un esquimal,
un aleutiano o un ciudadano de Nueva York (…)” (MATEO, 2003,
p.322). Cada sociedade reflete e tem interesse em valorar e usufruir
determinado tipo de patrimônio paisagístico.
Isto significa que apesar de a paisagem poder ser
considerada dimensão ambiental a ser tratada pelos ordenamentos
jurídicos ambientais com traços gerais comuns, a sua tutela e gestão
variará de acordo com as escalas territoriais e culturais
relacionadas. Trata-se de um bem jurídico ambiental que varia de
acordo com a identificação das pessoas envolvidas e dos espaços
relacionados.
Portanto, a premissa de todo sistema normativo de
proteção da paisagem é que o mesmo reflita os valores de
determinada coletividade relacionados com seu conjunto
paisagístico. Da mesma forma, esta premissa irá influenciar e ser
influenciada pela política pública da paisagem que deverá sempre
procurar direcionar a utilização do solo “de acuerdo con el
bienestar común” (MATEO, p. 330, 2003). E, como reflexo disso, a
paisagem dependerá da governança, decorrente da articulação e
cooperação entre os atores políticos e sociais envolvidos, para que

645
a aplicação das leis e ações de gestão sejam realizadas da forma mais
eficaz possível.
Neste contexto, a Constituição Espanhola em vigor, de 27
de dezembro de 1978, estabelece, no seu artigo 148 1.3,
competências para as Comunidades Autônomas 3 legislarem e
atuarem em defesa das paisagens qualificadas no contexto da
ordenação do território.
A partir disso, a política pública paisagística é construída
e aplicada de forma regionalizada, onde as Comunidades definem
as normas e critérios gerais a serem respeitados e seguidos pelas
cidades integrantes, e estas últimas devem efetivar esses comandos
normativos por meio da implementação das ferramentas de gestão
previstas, como estudos, catálogos, planos e instrumentos de
controle das paisagens.
Há, portanto, uma padronização e normatização do
controle paisagístico de forma regionalizada, segundo os valores,
identificações e culturas das populações integrantes de cada uma
dessas escalas territoriais, mas onde cada cidade deverá qualificar e
proteger suas paisagens de acordo com suas especificidades,
potencialidades e fragilidades.
Na sua obra Ramón Martín Mateo faz análise dos
principais aspectos das legislações das Comunidades espanholas
voltadas para a proteção da paisagem, mas destaca que “la
normativa valenciana (da Comunidade Valenciana) del paisaje es
sin duda, como adelantábamos, la mas desarrollada quizás por la

3
As Comunidades Autônomas são espaços institucionais semelhantes aos
Estados brasileiros, enquanto entes federativos.
646
vocación turística de su economia, ló que no empecé a que el litoral
de esta Comunidad haya sido probablemente el más castigado del
país”.
Neste sentido, serão analisados alguns comandos
normativos da Ley 4/2004, de 30 de junio, de Ordenación del
Territorio y Protección del Paisaje de la Comunidad Valenciana,
presente na coletânea de legislação sistematizada por Estefania
Martinez (2007), considerados com potencial de influenciar no
aprimoramento de outros sistemas normativos.
A proteção e ordenação da paisagem estão previstas no
Título II, Capítulo I de referida lei, sendo que o artigo 25 define
como seu objetivo promover a proteção, gestão e ordenação da
paisagem, assim como organizar a cooperação entre os órgãos da
administração neste campo 4.
O âmbito de aplicação da lei inclui, dentro da totalidade
do território da Comunidade Valenciana, todos os espaços
naturais, as áreas urbanas e rurais, alcançando tanto os espaços
terrestres como as águas interiores e marítimas, no que diz respeito
às paisagens consideradas notáveis, as cotidianas e também as
degradadas (artigo 26, 1 e 2). Ou seja, para se estabelecer um regime

4
Sendo que este objetivo tem como marco e diretrizes as normativas estabelecidas
no Convênio Europeu da Paisagem, formulado em Florença em 20 de outubro de
2000, ratificado pela Espanha em 6 de novembro de 2007 e em vigor desde
primeiro de março de 2008. Portanto, além das legislações nacionais, a Espanha,
assim como todos os demais países signatários, tem um compromisso
supranacional de governança da paisagem. E um dos objetivos comuns é, segundo
artigo 5 ͦ, alínea a), de reconhecer juridicamente a paisagem como uma
componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade do
seu património comum cultural e natural e base da sua identidade.
647
diferenciado de proteção, coloca-se como objeto a paisagem como
um todo, para posterior tratamento diferenciado conforme as
especificidades e qualificações.
Por outro lado, este comando normativo determina a
obrigatoriedade dos poderes públicos relacionados, fixarem nos
seus âmbitos de competência, as políticas públicas em matéria de
paisagem, por meio da formulação de princípios gerais, estratégias
e diretrizes, adotando em função do meio ambiente de cada espaço,
as medidas específicas para a proteção, gestão e ordenação da
paisagem (artigo 27, 1).
Estas políticas públicas têm finalidades claramente
definidas pela legislação, visando em todas as situações de
aproveitamento e uso do solo, conservação e preservação recursos
e elementos naturais e culturais, impedir qualquer alteração
prejudicial ou degradação de seus valores paisagísticos. Também
são finalidades das políticas manter e melhorar a qualidade
paisagística e cultural do entorno urbano, regulamentando os usos
do solo, as densidades, alturas e volumes, o uso de tipologias e
morfologias edificatórias, assim como o emprego de materiais,
texturas e cores adequadas para a formação do entorno visual
(artigo 28, a) e b)).
Portanto, como diretriz normativa o sistema estabelece
que a ordenação da paisagem seja constituída por ações que
objetivem melhorar, restaurar ou criar paisagens. Sempre, este
processo, tendo como fim guiar e harmonizar as transformações
induzidas por processos sociais, econômicos e ambientais, na
perspectiva do desenvolvimento sustentável (artigo 29, 3 e 4).

648
Verifica-se que a legislação em análise apresenta de forma
geral e direcionadora a todas as cidades da Comunidade Valenciana
os objetivos, diretrizes e finalidades a serem cumpridos na gestão
de suas respectivas paisagens. Isto é obrigatório e deve influenciar
a elaboração e o desenvolvimento dos instrumentos de gestão
também previstos na referida lei, que cada município deve cumprir
e implementar segundo as características e valoração de seus
patrimônios paisagísticos.
Por sua vez, o sistema de gestão estabelecido legalmente,
tem como instrumentos (artigo 30) os estudos da paisagem, que
podem ser locais ou regionais, a catalogação desses estudos e os
planos de ação territorial, integrados ou setoriais, que darão os
nortes para as tomadas de decisões diárias que envolvam o
patrimônio paisagístico e o seu controle e proteção.
Em linhas gerais, os estudos da paisagem cumprem a
finalidade (artigo 30) de estabelecer os objetivos de proteção da
qualidade paisagística no âmbito do estudo; analisar as atividades e
processos que incidem sobre a paisagem; e indicar as medidas e
ações necessárias para cumprir os objetivos de qualidade que
devem refletir os anseios dos atores sociais e políticos interessados
e usufrutuários da paisagem.
Como resultados práticos, tais estudos devem apresentar
(artigo 32): 1) as unidades paisagísticas do seu âmbito de análise
(regionais ou locais); 2) delimitar as áreas que devem ser objeto de
atenção prioritária por sua qualidade, fragilidade ou aptidão e
propor ações ordenadoras e gestoras que direcionarão os
conteúdos dos respectivos planos; 3) estabelecer um regime

649
jurídico de proteção para as unidades de paisagem de alto valor e
de seus elementos singulares, com a finalidade de evitar sua possível
ocultação pela interposição por barreiras visuais; 4) delimitar zonas
para proteção da visão de fachadas urbanas dos núcleos
considerados de elevado valor paisagístico; 5) propor medidas para
a melhora paisagística nos âmbitos degradados, especialmente os
existentes nas periferiais e nas conurbações próprias das grandes
aglomerações urbanas; 6) propor medidas de restauração ou
reabilitação paisagística nos âmbitos com elevado grau de
deterioração ou com significativa importância para a percepção do
território.
Como se vê, os estudos sobre a paisagem formam o núcleo
essencial dos instrumentos voltados para a proteção e gestão das
mesmas. Referidos trabalhos técnicos resultarão em catálogos
paisagísticos regionais ou locais, dependendo das áreas de
influência que foram objeto dos dados levantados. Tais catálogos já
representam o inventário local ou regional das unidades
paisagística a serem protegidas segundo os resultados dos
diagnósticos dos estudos.
Segundo Mateo (2003, p. 324) esta catalogação das
unidades de paisagens influencia também outros instrumentos de
gestão previstos pela legislação espanhola, como os planos
hidrográficos, avaliação de impactos ambientais, bem como nas
tomadas de decisões envolvendo as localizações de estações de
tratamento de esgoto e locais para destinação adequada de
resíduos, bem como a proibição ou não de instrumentos de
publicidades em ruas e rodovias. Ou seja, a existência prévia de
estudos sobre a paisagem propicia as melhores tomadas de decisões
650
relacionadas à aplicação de outros instrumentos jurídico-
institucionais em situações que também propiciam a proteção e
conservação da paisagem.
Esses catálogos, portanto, resultam em planos de ação
territorial, que são os instrumentos de ordenação que desenvolvem,
em âmbitos territoriais concretos, os objetivos e critérios previstos
na legislação integrados com os estudos específicos da paisagem
realizados (artigo 43). Os planos devem refletir os princípios
definidos pelo sistema normativo, associados aos valores
paisagísticos e a relação com o território de determinada
comunidade.
Os planos de ação territorial que podem ser integrados
(artigo 48), quando envolvem ao mesmo tempo o planejamento de
todas as temáticas relacionadas à ordenação territorial, sendo que
nesses casos a paisagem é mais uma variável do processo de gestão;
ou setoriais (artigo 56), quando o planejamento pode ser
direcionado para objetivos específicos da ação publica, sendo que
nesses casos pode haver o desenvolvimento de planos específicos
para a gestão da paisagem.
Fato é que de forma integrada ou setorial, tais planos serão
os documentos técnicos referenciais de cada região ou cidade para
toda e qualquer tomada de decisão que envolva paisagem
qualificada levantada nos estudos, catalogadas e objeto de gestão
diferenciada pelo plano.
Em termos estruturais, tais planos devem ter seu
conteúdo elaborado e disponível de forma clara, a fim de que
qualquer cidadão ou organização interessada possa compreender

651
seus termos. Nesta perspectiva, o artigo 55, item 2, alínea a), da
mesma lei, estabelece que todo plano de ação territorial deve ficar
disponível para consulta pública por no mínimo 2 (dois) meses. E
antes da sua aprovação pelos órgãos competentes, deve haver
audiências públicas para discussão dos seus termos com a
população interessada (MARTINEZ, 2013).
Aprovado o plano, este deve constar (artigos 48 a 52) seus
objetivos, o diagnóstico do território (no caso dos planos
integrados o resultado dos estudos da paisagem) e as estratégias
para aplicação do plano. Por sua vez, tais estratégias devem resultar
em projetos e/ou ações dinamizadoras dos objetivos do plano e
normativas de ordenação, que estabelecerão o regime de vinculação
do mesmo às situações aplicadas e perspectivas de fiscalização.
Portanto, tem-se um panorama da estrutura de
funcionamento da política pública de controle e proteção das
paisagens da Comunidade Valenciana, que recepciona o Convênio
Europeu da Paisagem, está juridicamente prevista na Ley 4/2004 da
própria Comunidade e tem como instrumentos de gestão a
interação de estudos, catalogação e planos de conteúdos
paisagísticos obrigatórios e vinculantes a todas as ações e decisões
que possuem significância para as unidades paisagísticas inseridas
como objeto de proteção e gestão.

652
Abaixo um quadro (1) sintetizando os aspectos e
decorrências do sistema político-jurídico analisado:

Política: Política de Ordenação do Território e Proteção


da Paisagem
Ley 4/2004, de 30 de junho, de Comunidade
Direito: Valenciana, de Ordenación del Territorio y
Protección del Paisaje.
Estudos da Paisagem: Diagnóstico e delimitação
das unidades paisagísticas que devem ser objeto de
atenção prioritária por sua qualidade, fragilidade
ou aptidão.
Catálogos de Paisagem e de Imagem Urbana:
Resultado dos Estudos da Paisagem que vão
Gestão: nortear a elaboração dos Planos e nortear tomadas
de decisões.
Planos de Ação Territorial: Definição dos
critérios e estratégias para gestão e recuperação de
paisagens qualificadas segundo as normas
existentes e os estudos realizados para cada
territorialidade, em escala regional ou local.
Fonte: Adaptado da Ley 4/2004, de 30 de junio, de Ordenación del Territorio y
Protección del Paisaje

E finalmente, o mesmo sistema jurídico institucional,


ressalta a importância da governança para que a política de
653
ordenação do território com a preocupação de proteção da
paisagem atinja seus objetivos de forma eficaz e sustentável, por
meio da garantia de atuação eficiente e responsável dos órgãos
públicos competentes e da participação dos cidadãos em todas as
fases do processo decisão que envolva a formação e aplicação das
políticas, planos e programas territoriais e de proteção da paisagem.
É o que está estabelecido pelo Título V (Governança do
Território e Paisagem), artigo 89 (princípios da governança), que
são sintetizados no quadro (2) abaixo, que devem direcionar as
tomadas de decisões para uma ordenação equilibrada e sustentável
do território e da paisagem:

a) Exercício responsável das


competências aos diferentes órgãos da
Administração Pública, com garantia
do princípio da informação recíproca;
b) Coerência nas ações da
Administração Pública que tenham
Princípios de
incidência sobre a ordenação do
Governança do
território dentro de um sistema
Território e
complexo;
Paisagem:
c) Eficácia nas tomadas de decisões de
ordenação territorial;
d) Participação dos cidadãos nas fases
dos processos de decisão sobre
políticas, planos e programas
territoriais;

654
e) Acessibilidade da informação
territorial a todos os cidadãos.

Fonte: Adaptado da Ley 4/2004, de 30 de junio, de Ordenación del Territorio y


Protección del Paisaje

Com isso, apresenta-se um panorama de alguns aspectos


doutrinários e legislativos considerados diferenciados do sistema
espanhol, que tem como qualidades ressaltar e proteger a paisagem
enquanto bem jurídico ambiental, dentro de uma lógica de
governança voltada para o aprimoramento contínuo das tomadas
de decisões técnicas e políticas relacionadas.
Entende-se que estas características além de trazerem
resultados práticos eficazes para as paisagens que fazem parte deste
contexto, com ganhos para os cidadãos e visitantes dessa parcela do
território espanhol, podem ser aproveitadas para o aprimoramento
de outras políticas públicas, como a brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito principal da abordagem foi trazer para o foco


das discussões envolvendo novas tendência da proteção ambiental
o tema da paisagem. Assim, num primeiro momento foi
apresentada a paisagem enquanto importante dimensão ambiental,
merecedora de um sistema normativo gerador de instrumentos de
proteção e gestão condizentes com a sua complexidade.
Num segundo momento foi feita a análise de aspectos do
ordenamento jurídico brasileiro relacionados com a paisagem. E
655
num terceiro momento foram apresentadas perspectivas
doutrinárias e legislativas tidas como referenciais do sistema
jurídico espanhol.
Entende-se que esta situação de estudos comparados, traz
como potencialidade tirar alguns aprendizados do sistema jurídico
espanhol, no sentido da criação de mecanismos normativos
geradores de instrumentos políticos e de gestão que possam tratar
a paisagem como um todo, nas suas fragilidades, potencialidades e
valorizações estético-culturais.
A lógica seria aproveitar o exemplo da criação de padrões
normativos mais gerais, que na Espanha são gerados pelas
Comunidades Autônomas, mas que no Brasil poderiam ser
estabelecidos por políticas federais ou estaduais da paisagem, que
gerariam, por leis específicas, a obrigatoriedade de realizar estudos
regionais ou locais voltados, não só para a notoriedade paisagística
natural e/ou cultural, mas para a toda paisagem. Tais estudos, por
sua vez, resultariam em catálogos, norteadores dos planos
direcionadores e vinculantes para todas as tomadas de decisões
relacionadas com as paisagens que foram apontadas como
qualificadas e merecedoras de um tratamento diferenciado.
Este passo representaria a possibilidade de
aprimoramento do sistema político-institucional existente no
Brasil na atualidade e, consequentemente, da governança da
paisagem. Avançar de um sistema mais reativo e fragmentado de
proteção e gestão da paisagem, para um sistema mais pró-ativo e
sistêmico.
Isto sem nunca perder de vista que proteger e gerir
paisagens sempre irá depender do nível de consciência,
656
identificação e noção de pertencimento dos agentes públicos e da
população envolvida. O arcabouço político-institucional será
sempre ponto de partida necessário que para se efetivar dependerá,
não só dos instrumentos de proteção frente às ameaças de
mudanças e perdas de paisagens, mas fundamentalmente da
mudança na percepção e valoração das pessoas por seu território.
Como concluí o mestre Ramón Martin Mateo (2003, p.
340), a conservação da paisagem “no es posible si las Comunidades
respectivas y com ello sus respresentantes democráticos, no están
identificados con su entorno y carecen al respecto de suficiente
sensibilidad estética y emocional”.
Cada país, cada comunidade, com seus respectivos
representantes, estabelecem suas relações com a paisagem de
acordo com seus valores e interesses. É papel do direito ambiental
influenciar nesta relação para que ela tenha a melhor gestão
possível, para que as paisagens possam ser protegidas, conservadas
e, quando necessário, recuperadas e melhoradas para usufruto das
gerações presentes e também futuras, como condição de qualidade
de vida; mesmo que parcela da população ainda demore em dar
conta disto.

657
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