Temas e Problemas de Direitos Humanos PR
Temas e Problemas de Direitos Humanos PR
Temas e Problemas de Direitos Humanos PR
PRIMEIRA EDIÇÃO
MARINGÁ – PR
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
CONSELHO EDITORIAL:
Segundo o autor:
1
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito
internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/esp/407-
490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf. Acesso em: 7 jul.
2018, p. 412.
identificadas) de violações dos direitos
humanos - outro grande desafio
contemporâneo, - o raio de ação do Direito
Internacional dos Direitos Humanos se
estende também à proteção contra terceiros
(grupos clandestinos, paramilitares, grupos
detentores do poder econômico, dentre
outros) - configurando-se o Drittwirkung;
nesta hipótese, pode-se comprometer a
responsabilidade do Estado por omissão (a
responsabilidade internacional objetiva) 2.
2
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito
internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/esp/407-
490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf. Acesso em: 7 jul.
2018, p. 412.
Segundo Figueiredo Dias,
3
DIAS, Jorge de Figueiredo. O papel do direito penal na protecção das
gerações futuras. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.defenseso
ciale.org/02/9.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2018, p. 45-46.
melhores frutos de diminuição de desigualdades e fraternidade de
propósitos entre pujança econômica e consolidação dos direitos
fundamentais. Afinal, como salientam Bacha, Santos e Shaun, com
lastro em Al Gore, sobre a preocupação do capital com o meio
ambiente e a justiça social,
4
BACHA, Maria de Lourdes; SANTOS, Jorgina; SHAUN, Ângela.
Considerações teóricas sobre o conceito de sustentabilidade. Disponível em:
<https://www.aedb.br/seget/arquivos/artigos10/31_cons%20teor%20bacha.pdf>
Acesso em: 10 ago. 2018.
conscientes e engajados no propósito atual e futurista de aliar
dignidade, preservação planetária e justiça social.
Brindados serão, dessarte, todos os leitores, a quem desejo
uma frutífera e crítica leitura.
1
Pós-Doutor pela Università Degli Studi di Messina, Itália. Doutor e Mestre pela
UFMG. Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado em Direito Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável da ESDHC. Promotor de Justiça em Belo
Horizonte-MG.
2
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Pós-Graduado em Direito Processual pelo IEC – Instituto de Educação
Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrando em
Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior Dom
Helder Câmara – ESDHC. Pesquisador. Advogado sócio da CDG Consultoria
Especializada Ltda.
22
ativismo judicial. Diante da colisão entre os direitos fundamentais
apontados, uma incursão pela teoria de princípios e regras
desenvolvida por Robert Alexy se fará necessária. Para tanto, foram
utilizados, na realização desta pesquisa, o método vertente jurídico-
teórico e raciocínio dedutivo com técnica de pesquisa bibliográfica.
Ao final da pesquisa, pode-se evidenciar que o direito fundamental
ao meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida se
apresenta como princípio de maior peso frente ao princípio da
separação de poderes no que tange a aplicação da teoria de
princípios e regras elaborada por Robert Alexy, pois a proteção
ambiental deve ser devidamente desenvolvida e efetivada no Estado
Democrático de Direito, de modo a objetivar e consubstanciar a
efetivação dos direitos fundamentais.
23
separation of powers in what concerns the application of the theory
of principles and rules elaborated by Robert Alexy, because
environmental protection must be properly developed and
enforced in the Democratic State of Law, in order to objectify and
substantiate the realization of fundamental rights.
KEYWORDS: Judicial Activism; Fundamental rights;
Environment; Separation of powers; Principles and rules.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. O ativismo judicial e o princípio da separação de poderes.
3. O meio ambiente como direito fundamental (direito à vida).
4. A teoria de regras e princípios de Robert Alexy.
5. O ativismo judicial para a proteção do meio ambiente e a teoria
de regras e princípios de Robert Alexy.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
24
nuances e seus desenvolvimentos no Estado Democrático de
Direito.
Após, desenvolver-se-á o que se tem entendido por direito
fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado no Estado
Democrático de Direito. Será realizada uma incursão histórica do
conceito de formação do direito fundamental ao meio equilibrado
à sadia qualidade de vida na esfera internacional e nacional, até
desaguar no conceito de meio ambiente como direito fundamental
à vida.
No quarto tópico será apresentada a teoria dos princípios
e regras desenvolvida por Robert Alexy. Serão abordados o
conceito de normas, de princípios, e de regras segundo essa teoria
e explicado o fenômeno da colisão entre princípios através da
dimensão de peso e o conflito entre regras pela validade da norma.
No quinto item serão condensados todos os temas
expressos nos capítulos anteriores de modo a tentar encontrar uma
possível solução para a seguinte indagação: por meio da teoria de
regras e princípios de Robert Alexy, é possível autorizar um maior
ativismo judicial, mediante o afastamento do princípio da
separação de poderes, para promover a proteção e a concretude do
direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à sadia
qualidade de vida?
Para tanto, foram utilizados na realização deste artigo o
método vertente jurídico-teórico e raciocínio dedutivo com a
técnica de pesquisa bibliográfica teórica documental. A pesquisa se
justifica na medida em que o fenômeno do ativismo judicial vem
permeando debates na esfera acadêmica, doutrinária e
25
jurisprudencial. A discussão vai além, pois o enfrentamento da
questão se faz necessário na medida em que a sociedade anseia por
uma adequada promoção da proteção do direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida, mediante a
implementação de políticas públicas adequadas à concretização
dessa proteção.
Ao final, será reconhecido que, pelo fato de o meio
ambiente equilibrado, o direito à vida e a dignidade da pessoa
humana serem direitos fundamentais conexos e indissociáveis, em
determinados casos concretos, mediante a aplicação da teoria de
princípios e regras de Robert Alexy, mais precisamente no que
tange à colisão entre os princípios, será permitida uma maior
atividade judicial com o objetivo de promover a efetiva e concreta
execução do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à
sadia qualidade de vida, mediante o afastamento ponderado do
princípio da tripartição de poderes.
26
tornar o ator principal na resolução de temas complexos, árduos e
legitimados pelo ordenamento constitucional vigente.
Quando se fala em Poder Judiciário como protagonista, o
princípio que deve ser analisado é aquele da tripartição de poderes,
que está insculpido na Constituição Federal de 1988 (CRFB de
1988) em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
(BRASIL, 1988).
O princípio da separação dos poderes é princípio de
direito constitucional que fundamenta o Estado Democrático de
Direito, responsável por determinar a tripartição de poderes, que
se desdobra em executivo, legislativo e judiciário, cada qual com
suas atribuições constitucionais. Conforme doutrina abalizada
sobre o tema, é possível apontar as funções de cada poder da
seguinte forma:
27
imparcial (CAMARGO; MEYER-PFLUG,
2016, p. 155-156).
28
Nesse mesmo sentido, importante os ensinamentos
delineados por Isabella Saldanha de Sousa e Magno Federici Gomes
(2015):
30
-Conforme leciona a doutrina:
32
Poder Público, notadamente em matéria de
políticas públicas (BARROSO, 2009, p. 22).
33
Na verdade, a crise que assola a democracia
representativa – tanto pela retração do espaço
de tomada de decisões políticas, em razão da
dificuldade de obtenção de consenso para a
formação de uma maioria parlamentar em
temas complexos quanto pela falta de interesse
da maioria dos parlamentares em deliberar
sobre eles – representou um incentivo para o
protagonismo assumido pela jurisdição
constitucional brasileira (SOUSA; GOMES,
2015, p. 52).
34
3. DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE
EQUILIBRADO À SADIA QUALIDADE DE VIDA (MEIO
AMBIENTE COMO DIREITO À VIDA)
35
Com a modificação do cenário e o advento do sistema
capitalista que se alastrou pelo globo, o meio ambiente começa a ser
depredado ao máximo, diante da necessidade da produção em
massa para satisfazer os anseios do sistema que trabalha apenas em
função do lucro incondicional.
Desastres ambientais que se sucederam foram cruciais
para o despertar de uma consciência de proteção e preservação
ambiental. Os relatos de Rachel Carson, em seu livro Silent Spring
(Primavera silenciosa) de 1962, foram uma demonstração clara de
que alguma coisa deveria ser feita para modificar o cenário da
degradação ambiental que trazia sérias consequências para a vida
na terra (COSTA, 2013).
Outro evento danoso no curso da história que deu ensejo
à preocupação ambiental foi a tragédia ocorrida em Minamata no
Japão, onde centenas de pessoas foram envenenadas em
decorrência do consumo de peixes da baía de Minamata que
estavam contaminados por metais como o mercúrio, que eram
despejados no mar pela Chisso Minamata, uma indústria fabricante
de plástico (COSTA, 2013).
Esses desastres deram ensejo à primeira Conferência
Internacional das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, que
ocorreu no ano de 1972, em Estocolmo, na Suécia. Sem dúvida, essa
conferência representa um marco da tônica da proteção ambiental
no mundo. Beatriz Souza Costa destaca, sobre o tema, que “[...] a
Conferência de Estocolmo não aconteceu por acaso. Foi
consequência de debates sobre os riscos de degradação do meio
ambiente, que, de forma esparsa, iniciou na década de 1960 e que
ganhou na década de 1970 certa densidade (COSTA, 2013, p. 33).
36
Vinte anos após a Conferência de Estocolmo, e dada a
necessidade de continuar permeando o avanço das discussões
ambientais, foi realizada, no ano de 1992, na cidade do Rio de
Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento:
37
Sustentável” era discutir novos acordos sobre vários artigos da
“Agenda 21”, objetivando sua implementação” (COSTA, 2009, p.
36).
Em 2009, ocorreu nova conferência mundial organizada
pela ONU, Organização das Nações Unidas, desta vez para tratar
de assuntos sobre as Mudanças Climáticas. “Em dezembro de 2009,
em Copenhague, Dinamarca, houve mais uma reunião organizada
pela ONU, Organização das Nações Unidas, para discutir sobre as
emissões de gases estufa” (COSTA, 2013, p. 40).
No último capítulo sobre as grandes Conferências
Mundiais sobre o meio ambiente, traz-se à baila a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio + 20
ocorrida em 2012. Essa Conferência teve como objetivo central a
implementação do desenvolvimento sustentável, tornar a
economia mais verde, trabalhar mundialmente a sustentabilidade e
fortalecer o Programa das Nações Unidas para o maio Ambiente,
principalmente para a promoção dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS). “A Rio + 20 foi outra grande
Conferência onde vários países foram representados por 53 Chefes
de Estado, 8 Vice-Presidentes, 31 Chefes de Governo e 9 Primeiros-
Ministros, além de 30 mil participantes de 13 a 22 de junho”
(COSTA, 2013, p. 42).
Ante a toda essa preocupação ambiental internacional o
Brasil não permaneceu inerte, e já em 1981 foi editada, no âmbito
infraconstitucional, a Lei nº 6.938/81, que implementou a Política
Nacional do Meio Ambiente no cenário nacional. No entanto, o
grande avanço epistemológico brasileiro no que tange à
preocupação ambiental veio com a promulgação da Constituição
38
Federal de 1988, vista por alguns como a Constituição
ambientalista: “Esse pioneirismo fez dela um documento
essencialmente ambientalista” (BULOS, 2017, p. 1639).
A preocupação ambiental expressada na Constituição
Federal representa grande avanço no que tange a proteção
ambiental, haja vista que o bem ambiental é elevado ao status de
norma constitucional de direito fundamental. O fato de o tema
sobre meio ambiente não encontrar-se expressamente elencado no
Título II, “Dos direitos e garantias fundamentais”, do texto
constitucional, não retira seu caráter de direito fundamental,
conforme ensina Beatriz Souza Costa: “O fato de o tema meio
ambiente, no corpo da Constituição, encontrar-se no Título VIII,
“Da ordem social”, e não no Título II, “Dos direitos e garantias
fundamentais”, não retira deste o status de um direito
fundamental...” (COSTA, 2013, p. 60).
A temática da proteção ambiental encontra-se
expressamente delineado no artigo 225 da Constituição Federal da
seguinte forma: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações” (BRASIL, 1988).
Extrai-se da norma constitucional que o direito ao meio
ambiente equilibrado é responsável por gerir a vida em todas as
suas formas, e que tal equilíbrio deve ser consubstanciado no
Estado Democrático de Direito com fito de abarcar e agasalhar a
vida. Portanto, pode-se afirmar que o direito ao meio ambiente
39
equilibrado e o direito à vida são princípios constitucionais
indissociáveis, pois não existe vida sem que antes possa existir um
meio ambiente adequado para que ela se desenvolva.
Nesse sentido, observa-se que o direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado é condição basilar para a confirmação e
a efetivação do direito à vida, que é princípio base estruturante da
Constituição Federal.
Não há vida sem respeito à dignidade da pessoa humana,
sem meio ambiente equilibrado à sadia qualidade de vida não há
dignidade da pessoa humana. Portanto, “[...] do ponto de vista
material cabe ressaltar, inicialmente, que o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é, sem sombra de dúvida, um
direito fundamental” (MIRRA, 2011, p.103).
O meio ambiente equilibrado é direito fundamental
porque rege e abriga a vida. Direito ao meio ambiente e direito a
vida são temas conexos, pois o segundo não existe sem o primeiro.
A pessoa humana precisa de um ambiente adequado para viver e
para se desenvolver, precisa de água, precisa de ar, precisa de terra.
Não de qualquer água, ou de qualquer ar, ou de qualquer terra.
Precisa de água limpa adequada ao consumo humano, precisa de ar
limpo sem poeira mineral e sem gases tóxicos, e precisa da terra
com os minerais adequados para plantio de alimentos. Ou seja, é
fundamental a existência de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado capaz de abrigar a vida com dignidade.
Certa de que o meio ambiente equilibrado, o direito à vida
e a dignidade da pessoa humana são direitos fundamentais conexos
e indissociáveis em todas as suas formas, a doutrina assim discorre:
40
De fato, o Direito ao Ambiente sadio e
ecologicamente equilibrado é há muito
considerado pela doutrina e pela
jurisprudência como uma extensão do direito
à vida. Assim, quando se fala em tutela do
meio ambiente, têm-se em jogo formas de
garantir a qualidade de vida humana, pois lhe
é essencial. O equilíbrio ecológico nessa
relação tão direta com o ser humano faz do
direito ao ambiente um direito fundamental
da pessoa humana, em função dos elementos
e valores que congrega, como saúde,
segurança, cultura, identidade. Preservar o
patrimônio ambiental é garantir vida sadia e
com qualidade. Garantir vida com qualidade é
promover a dignidade da pessoa humana
(REIS, 2013, p. 304).
43
importantes, não atingem o núcleo da
diferenciação entre regras e princípios. Com
efeito, Dworkin não explica porque os
princípios entram em colisão da maneira por
ele descrita, isto é, numa dimensão de peso. O
ponto decisivo para a distinção entre regras e
princípios, olvidado pela teoria de Dworkin,
está em esclarecer as razões que justificam o
fato de os princípios e as regras entrarem em
colisão de forma diferenciada. Para tanto,
Alexy elabora uma teoria dos princípios
composta por três teses fundamentais: a) a tese
da otimização; b) a lei da colisão e c) a lei da
ponderação. (VALE, 2006, p. 81-82).
45
precedência em face de outro princípio sob determinadas
condições. Portanto, a resolução se dá na dimensão do peso entre
os princípios, sendo que aquele de maior peso terá precedência
sobre aquele de menor peso, mediante determinadas condições
concretas. Gonçalves (2015), nesse sentido, confirma que “nunca é
demais lembrar que, na teoria neoconstitucionalista, o choque
entre regras se resolve com base na validade e a colisão de
princípios na base da ponderação do peso do princípio para o caso
concreto” (GONÇALVES, 2015, p. 679).
Não haverá a declaração de validade ou de invalidade de
determinado princípio, nem ao menos a introdução de uma
cláusula de exceção, pois isso só ocorre na dimensão da validade
das regras. Portanto, é possível emitir a seguinte afirmação: o
conflito entre regras resolve-se no plano da validade e a colisão
entre princípios resolve-se pela dimensão do peso mediante a
técnica da ponderação e sopesamento. Em rasa explanação está
devidamente apresentada lei da colisão em Alexy.
Observa-se que a tória dos princípios está estritamente
ligada ao exame da proporcionalidade, desaguando na formulação
da lei da ponderação, conforme sustenta Alexy (2015):
46
cumprimento de outro princípio (ALEXY,
2015, p. 154).
47
que os princípios são mandatos de otimização
com relação às possibilidades jurídicas, é
dizer, a medida de seu cumprimento depende
dos princípios que jogam em sentido
contrário. Trata-se, neste caso, de ponderação
de princípios em conflito. A ponderação será
indispensável quando o cumprimento de um
princípio significar o descumprimento do
outro, ou seja, quando um princípio somente
puder ser realizado à custa de outro princípio
(VALE, 2006, p. 86).
48
ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve.
(ALEXY, 2008).
Portanto, os princípios são sempre razões prima facie e
regras são, não havendo o estabelecimento de alguma exceção,
razões definitivas. Assim, regras e princípios continuam a ter um
caráter prima facie distinto. (ALEXY, 2015).
Nesse sentido, alguns destaques podem ser apontados: I -
A divisão estabelecida por Alexy entre mandamentos definitivos e
mandamentos de otimização revela uma distinção qualitativa entre
regras e princípios; II - Os princípios podem ser satisfeitos em graus
variados; III - A medida de sua satisfação depende de possibilidades
fáticas e jurídicas; IV - O grau de satisfação não é determinado pelo
próprio princípio; V - Só o caso concreto, mediante análise das
razões e contrarrazões, poderá determinar o grau de satisfação do
princípio.
Destaca-se do debate proposto até o momento que Alexy
propõem que no caso de colisão entre princípios fundamentais a
solução estaria na aplicação do critério de ponderação, a qual
deveria ser aplicada a partir do princípio da proporcionalidade
mediante a realização do sopesamento entre os princípios
colidentes.
Na apresentação dessas premissas, o próximo tópico irá
permear e condensar os efeitos desta teoria para analisar a colisão
existente entre o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado
à sadia qualidade de vida, patrocinado por uma maior atividade
judicial, e o princípio fundamental da separação de poderes.
49
5. O ATIVISMO JUDICIAL PARA A PROTEÇÃO DO MEIO
AMBIENTE E A APLICAÇÃO DA TEORIA DOS
PRINCÍPIOS DE ROBERT ALEXY
52
se o Judiciário deixar de agir ele mesmo estará incorrendo na
proibição de proteção insuficiente, vez que deve assegurar a
efetivação dos direitos fundamentais” (ZANETI JÚNIOR, 2013, p.
66).
Essa é uma das premissas inarredáveis que devem ser
consagradas no presente estudo, pois o Poder Judiciário não
exercita a jurisdição sozinho, ao contrário, ele deve ser acionado e
provocado a ingressar na matéria de fato e de direito para
posteriormente prolatar a decisão. Se o Poder Judiciário está
interferindo e está praticando atividade judicial é porque ele está
sendo provocado a fazê-la.
Naquilo que merece destaque, o direito fundamental ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de
vida, previsto no artigo 225 da CF/88, deve ser concretizado pela
via de políticas públicas adequadas capazes de promover a sua
inteira proteção em favor das presentes e das futuras gerações.
Quando isso não ocorrer, aqueles legitimados podem
provocar a jurisdição para resguardar e promover a proteção deste
direito fundamental que é inerente à dignidade da pessoa humana,
pois se consubstancia como o próprio direito à vida.
O Poder Judiciário também é um Poder do Estado, e
como tal tem o dever de promover a proteção ambiental. E aqui não
há que se alegar a falta de legitimidade do judiciário para atuar em
temas de políticas públicas ambientais sob o argumento de que seus
representantes não são democraticamente eleitos; afinal, o Poder
Judiciário também se mostra como um espaço de participação
popular, “[...] do mais inovador espaço institucional de
53
participação popular na proteção do meio ambiente, cuja
importância não pode deixar de ser salientada no modelo do Estado
Democrático-Participativo adotado pela Constituição de 1988”
(MIRRA, 2011, p. 167).
O que se evidencia é que o Poder Judiciário também se
apresenta como um ator democrático responsável pela promoção
da proteção ambiental, portanto, sua atividade em políticas
públicas na esfera do Poder Executivo e do Legislativo é legítima,
conforme preceitua de forma singular Mirra (2011):
54
Importante contribuição é apresentada por Ada Pellegrini
Grinover (2013), a qual autoriza a intervenção do Poder Judiciário
em políticas públicas desde que respeitados alguns limites de
atuação, sendo eles: “a razoabilidade da pretensão individual/social
deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha
da lei ou do agente público; a reserva do possível, entendida tanto
em sentido orçamentário-financeiro como em tempo necessário
para o planejamento da nova política pública” (GRINOVER, 2013,
p. 149).
No entanto, Grinover (2013) defende que a garantia do
mínimo existencial autoriza a intervenção do Poder Judiciário nas
políticas públicas para corrigi-las e implementá-las. Por mínimo
existencial a jurista aponta: “Costuma-se incluir no mínimo
existencial, entre outros, o direito à educação fundamental, o
direito à saúde básica, o saneamento básico, a concessão de
assistência social, a tutela do ambiente, o acesso à justiça”
(GRINOVER, 2013, p. 132).
Veja-se que a tutela ao meio ambiente equilibrado é vista
pela autora como condição de mínimo existencial, o que não
poderia ser diferente, haja vista tratar-se de direito fundamental
que se confunde com o próprio direito à vida, pois o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é condição essencial para o abrigo e
desenvolvimento da vida. Trata-se, como dito anteriormente, de
considerar o abrigo e o desenvolvimento da vida com dignidade. O
princípio da dignidade humana permeia o direito à vida e ao meio
ambiente equilibrado. Hermes Zaneti Jr (2015) discorre que:
55
Nesse sentido, em síntese, podemos resumir o
direito fundamental ao meio ambiente como
um direito de múltiplas funções, justamente
caracterizado por uma multifuncionalidade
pervasiva na sua interpretação e aplicação, que
autoriza deduzir sua natureza jurídica e
possibilidade de ampla judicialização como
forma de garantia dos patamares
constitucionalmente e legalmente assegurados
de tutela (ZANETI JÚNIOR, 2015, p. 1376).
56
JURIDICAMENTE POSSÍVEL. RECURSO
ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PROVIDO.
1. A promoção da ação civil pública, com o
objetivo de conformar a implantação de
políticas públicas com a proteção do meio
ambiente, encontra previsão no próprio texto
constitucional (artigo 129, II e III, da CF), por
isso se revelando, na espécie, inadequada a
aplicação do artigo 267, VI, do CPC, sob o
argumento da ausência de possibilidade
jurídica do pedido.
2. Como explica HUGO NIGRO MAZZILLI,
"A ação civil pública ainda se presta para que
o Ministério Público possa questionar
políticas públicas, quando do exercício de suas
funções no zelo para que os Poderes Públicos
e os serviços de relevância pública observem
os direitos assegurados na Constituição" (A
defesa dos interesses difusos em juízo. 27. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014, p. 141).
3. Em caso assemelhado ao presente, a
Primeira Turma do STJ decidiu que "O
Ministério Público detém legitimidade ativa
para o ajuizamento de ação civil pública que
objetiva a implementação de políticas públicas
ou de repercussão social, como o saneamento
básico ou a prestação de serviços públicos"
(AgRg no AREsp 50.151/RJ, Rel. Ministro
BENEDITO GONÇALVES, DJe 16/10/2013),
ao passo que sua Segunda Turma, também em
tema análogo, assentou que "A omissão
injustificada da administração em efetivar as
políticas públicas constitucionalmente
57
definidas e essenciais para a promoção da
dignidade humana não deve ser assistida
passivamente pelo Poder Judiciário" (REsp
1.041.197/MS, Rel. Ministro HUMBERTO
MARTINS, DJe 16/09/2009). Nesse mesmo
rumo, a Excelsa Corte assentou que "Mostra-
se consentâneo com a ordem jurídica vir o
Ministério Público a ajuizar ação civil pública
visando ao tratamento de esgoto a ser jogado
em rio. Nesse caso, não cabe cogitar da
impossibilidade jurídica do pedido e da
extinção do processo sem julgamento do
mérito."(RE 254.764/SP, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de
18/2/2011).
4. Da mesma sorte, em se cuidando de ação
civil pública direcionada contra a
Administração Pública, objetivando a
implementação de políticas públicas, o STF
tem entendimento consolidado no sentido de
ser lícito ao Poder Judiciário "determinar que
a Administração Pública adote medidas
assecuratórias de direitos constitucionalmente
reconhecidos como essenciais, sem que isso
configure violação do princípio da separação
dos Poderes" (AI 739.151 AgR, Rel.ª Ministra
ROSA WEBER, DJe 11/06/2014 e AI
708.667 AgR, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI,
DJe 10/04/2012), cuja compreensão, não há
negar, afasta, no presente caso, o argumento
relativo à impossibilidade jurídica dos pedidos
formulados pelo Parquet autor.
5. Recurso especial do Ministério Público
catarinense provido. (BRASIL, 2016).
58
Verifica-se que uma parcela significativa da doutrina e da
jurisprudência avançou no sentido de permitir e validar uma maior
atividade judicial com fito de promover e implantar concretamente
os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de
1988.
Contudo, as discussões sobre os limites dessa intervenção
judicial ainda são notórios no cenário nacional. Como dito, a
doutrina contrária a essa intervenção judicial evoca na maioria das
vezes o princípio da separação dos poderes que se encontra
delineado no artigo 2º da CF/88. Tratando-se de um direito
fundamental consagrado constitucionalmente, o princípio da
separação de poderes requer sua aplicação imediata assim como os
demais contidos no texto constitucional.
Evidencia-se, por isso, no caso da matéria ambiental aqui
tratada, uma colisão de princípios, especialmente entre o princípio
do meio ambiente ecologicamente equilibrado á sadia qualidade de
vida, e sua concretização pela via do ativismo judicial, e o princípio
da separação de poderes.
Com o objetivo de solucionar a colisão o julgador poderá
se valer da teoria dos princípios de Robert Alexy para aplicar o
critério da ponderação pela via do princípio da proporcionalidade
e realizar o devido sopesamento entre os princípios colidentes, o
que conduz à própria ponderação (BARROSO, 2015).
Destaca-se, pois no conjunto de ideias realizado nessa
pesquisa, que, em determinado caso concreto, diante de
circunstâncias concretas, o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida deverá ter
59
precedência frente ao princípio da separação de poderes, ainda que
o primeiro esteja sob o manto do ativismo judicial.
Afinal, como explicitado algures, o direito ao meio
ambiente equilibrado imbrica-se com o próprio direito à vida e a
dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o meio ambiente
equilibrado e o direito à vida se enquadram e se fundam no eixo da
dignidade da pessoa. Essa assertiva poderá possibilitar ao intérprete
que, por meio do critério da ponderação e do sopesamento,
estabeleça uma relação de precedência do direito fundamental ao
meio ambiente equilibrado em detrimento do princípio da
separação de poderes. Afinal:
60
ambiente ecologicamente equilibrado e sadio está fixado no
próprio direito à vida e na dignidade da pessoa humana.
Não se fala em invalidar o princípio da separação de
poderes para que o ativismo judicial possa se tornar uma regra
irrefutável, pois, afinal, como destacado por Zufelato (2013), “a
intervenção do Judiciário nessa seara, assim sendo, embora
indispensável em casos de omissão ou de desvirtuamento dos
poderes políticos, deve ser sempre a ultima ratio” (ZUFELATO,
2013, p. 314).
O que se considera é que, em determinado caso concreto,
mediante análise das razões e contrarrazões, com a aplicação da
regra de colisão entre princípios pela via ponderação e do
sopesamento, o princípio da separação de poderes poderá ser
ponderadamente afastado para possibilitar uma maior atividade
judicial na concreta e efetiva implementação do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida.
Não será promovida a invalidação do princípio da
tripartição de poderes. Será promovido apenas o seu afastamento
moderado segundo análise das razões e contrarrazões do caso
concreto. A relação de precedência que se admite é apenas aquela
tendente a realizar a completa e concreta proteção do meio
ambiente equilibrado, por meio do ativismo judicial, quando o
executivo e o legislativo não o fizerem conforme os preceitos
constitucionais.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
63
Certo de que essa premissa e o seu resultado não são
vinculantes, haja vista que a relação de precedência entre os
princípios fundamentais podem variar mediante as circunstâncias
fáticas e jurídicas do caso concreto, o ativismo judicial deve ser
visto e tratado com responsabilidade jurídica concreta.
O ativismo judicial não deve ser utilizado a todo o tempo
para a aplicação ou correção de políticas públicas ambientais, pois
isso cabe diretamente aos Poderes democráticos, Executivo e
Legislativo, em que a atuação do Poder Judiciário deve ser vista
como a última alternativa, ou seja, a última ratio.
No entanto, em momentos tais em que o Poder Executivo
e o Poder Legislativo não estejam cumprindo seus respectivos
papéis, o Poder Judiciário estará legitimado a atuar para promover
a aplicação dos direitos fundamentais consubstanciados no texto
constitucional e em seus princípios, pois o princípio da
inafastabilidade da jurisdição é princípio basilar do Estado
Democrático de Direito.
O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado à
sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações é um
bem único e singular que precisa ser protegido pelo Estado e por
toda a sociedade, porque empresta subsídios ao princípio da
dignidade da pessoa humana e se confunde como o próprio direito
à vida. Portanto, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder
Judiciário e toda a sociedade estão autorizados, sujeitos e obrigados
a promover sua completa proteção e preservação, mediante
atitudes positivas e concretas.
64
REFERÊNCIAS
65
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso
em: 30 jun. 2018.
66
(Coord.). Direito processual e a era digital. Belo Horizonte:
PUC Minas, 2015. p. 282-291.
67
SADEK, Maria Tereza. Judiciário e arena pública: um olhar a
partir da ciência política. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
WATANABE, Kazuo (Coord.). O controle jurisdicional de
políticas públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 1-32.
69
DIREITOS HUMANOS, DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL, EXECUÇÕES PENAIS E INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL *
*
Trabalho financiado pelo Projeto FAPEMIG nº 5236-15, resultante dos Grupos
de Pesquisas (CNPQ): Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável
(REGA), NEGESP, Metamorfose Jurídica e CEDIS (FCT-PT).
1
Estágio de Pós-doutorado em Direito Público e Educação pela Universidade
Nova de Lisboa-Portugal (Bolsa CAPES/BEX 3642/07-0). Pós-doutor em Direito
Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pela
Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas.
Professor do Mestrado Acadêmico em Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável na Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor Adjunto da PUC
Minas e Professor Titular licenciado da Faculdade de Direito Arnaldo Janssen.
Advogado Sócio do Escritório Moraes & Federici Advocacia Associada. Líder do
Grupo de Pesquisa: Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável
(REGA)/CNPQ-BRA e integrante dos grupos: Centro de Investigação &
Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS)/FCT-PT, Núcleo de
Estudos sobre Gestão de Políticas Públicas (NEGESP)/CNPQ-BRA e
Metamorfose Jurídica/CNPQ-BRA. ORCID: <http://orcid.org/0000-0002-4711-
5310>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1638327245727283>. Endereço
eletrônico: federici@pucminas.br
2
Graduanda em Direito pela PUC Minas. Currículo Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/1970992584585714>. Endereço eletrônico:
iza_oliveira123@hotmail.com
70
não conseguindo extirpar as pendentes. Diante desse problema,
objetivou-se analisar se a Inteligência Artificial (IA) é capaz de ser
usada na redução do volume de demandas, especialmente nos feitos
de execução penal, bem como evitar a perpetuação de injustiças aos
direitos dos cidadãos presos. Utilizou-se o método teórico
documental, com técnica dedutiva. Concluiu-se que a IA pode
promover uma celeridade e efetividade procedimentais sustentável,
se adotada correta e coordenadamente nas execuções penais.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Desenvolvimento sustentável.
71
3. Dignidade da pessoa humana: uma análise dos direitos humanos
do preso.
4. Contornos acerca das execuções penais.
5. Efetividade processual e celeridade procedimental.
6. O uso de algoritmos para viabilização da celeridade
procedimental nas execuções penais: um caminho para a
efetividade sustentável.
Considerações Finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
73
de fontes bibliográficas, cujo marco teórico empregado foi a obra
de Gomes e Pinto (2017, p. 77-109).
No primeiro tópico, será feito um breve delineamento
acerca do desenvolvimento sustentável. Em seguida, serão
estabelecidos os contornos no que tange à dignidade da pessoa
humana, com especial atenção aos direitos humanos do preso. Na
terceira parte será abordado o procedimento das execuções penais
seguido da análise da efetividade processual e da celeridade
sustentável. Por fim, verificar-se-á a influência que os algoritmos,
decorrentes das novas tecnologias, podem gerar nas execuções de
pena para uma possível efetividade sustentável do processo.
2. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
77
3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA ANÁLISE
DOS DIREITOS HUMANOS DO PRESO
3
Em razão de recorte metodológico serão abordadas apenas as três primeiras
dimensões.
79
surgimento a partir de conquistas liberais do século XVIII,
organização política que previa a supremacia das liberdades
individuais com a interferência mínima do Estado na vida do
cidadão.
Nesse cenário, destaca-se a Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, que surgiu a partir da Revolução
Francesa e teve um papel importantíssimo no que concerne à
universalização de direitos fundamentais, ainda que com cunho
extremamente individualista. Neste sentido aponta Lucia:
80
Os direitos de terceira dimensão estão em consonância
com os princípios da solidariedade e da fraternidade, são
caracterizados pela transindividualidade destacando-se na defesa
de direitos coletivos e difusos. Tais direitos surgiram “no período
do pós-guerra do século XX e [são exemplificados] pelos direitos
ao meio ambiente sadio, à paz, à independência, ao patrimônio
genético intocável, ao desenvolvimento, autonomia e cultura dos
povos” (LUCIA, 2002, p. 08).
Nesse contexto, destacam-se alguns documentos que
trazem em sua redação a consagração do direito à dignidade da
pessoa humana e suas consequentes garantias decorrentes da sua
condição de pessoa.
O primeiro documento a ser observado é a Carta das
Nações Unidas, estabelecida em 1945, e que prevê a preservação das
gerações presentes e futuras, bem como a dignidade da pessoa
humana de forma universal. Outro documento que desponta-se
como de extrema relevância é a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), considerado o marco da implementação dos
direitos e garantias fundamentais do homem e que em seu artigo 1º
disciplina que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, artigo 1º). Por
fim, ressalta-se a Convenção contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, a qual estabelece a
81
preservação da dignidade da pessoa humana, ainda que na
condição de preso 4.
Todos esses documentos destacam-se pela ênfase dada
aos direitos humanos, em especial à preservação da dignidade da
pessoa humana. Um ponto digno de nota e que se constitui como
um dos principais objetos do presente estudo, consubstancia-se nos
vastos erros formais que ocorrem nas execuções penais e que geram
prejuízos substanciais para o preso. A título de exemplo, tem-se o
erro na contagem de prazos, acarretando excessos no cumprimento
da pena e configurando-se como flagrante violação aos direitos
humanos e fundamentais do cidadão preso. Neste sentido, tem-se:
4
Nesse sentido, o inteiro teor da: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1984.
82
surtindo um efeito devastador na vida do detento. Elaboradas tais
considerações, necessário se faz traçar o procedimento das
execuções penais.
84
Além disso, a própria LEP estabelece uma série de trâmites que
podem ocorrer durante a execução da pena, alterando a situação
fática do réu e necessitando de trabalho a mais pelo juiz e pelos
servidores. A título de exemplo, tem-se a progressão ou regressão
de regimes de cumprimento penal.
Insta observar que tal fenômeno ocorre por diversos
motivos, com especial atenção, no presente trabalho, para a
ausência de tecnologias que facilitem o procedimento das
execuções penais em face do acúmulo de processos no PJ, fato que
será melhor trabalhado no tópico que se segue.
85
constitucionalizada” (LEAL, 2012, p. 181), na medida em que se
sustenta pelo devido processo legal garantido na CF/88 e “deve ser
entendido como alavanca propulsora ou chave que aciona a
inteligência coletiva para atuar cooperativamente na definição dos
destinos da humanidade” (BODNAR, 2009, p. 104).
Ainda no que tange ao direito instrumental, foi
introduzido na CF/88, pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o
inciso LXXVIII, do artigo 5º, que diz respeito à razoável duração do
procedimento. Percebe-se que tal princípio é um conceito muito
caro no que tange à discussão aqui pretendida, em razão do
acúmulo quase asfixiante de processos judiciais, que decorrem de
“n” motivos, impossibilitando, em regra, a aplicação plena desse
direito fundamental/princípio/garantia processual5. Com isso:
5
Não se pretende estudar a natureza jurídica da razoável duração do
procedimento neste estudo, motivo pelo qual se considerou o instituto ora como
princípio, ora como garantia processual, ora como direito fundamental.
86
que tange à sua efetividade e à qualidade. A título de exemplo, cita-
se a pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
em 2015, acerca da alta quantidade de processos em trâmite nas
comarcas brasileiras. Depreendeu-se que o maior número de
demandas está presente no primeiro grau de jurisdição e, em razão
disso, sua efetividade é afetada (BRASIL, Conselho Nacional de
Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias, 2015).
Um dos motivos da lentidão da justiça e,
consequentemente, da ausência de efetividade da tutela
jurisdicional, é a existência de trabalhos repetitivos e exaustivos que
sobrecarregam o servidor e a ausência de infraestrutura dispendida
para melhorar o PJ. Tem-se que “o fato das condições de trabalho
no sistema judiciário estarem muito aquém do que se espera, [se
dá] principalmente em virtude da falta de tecnologia e da carência
de mão de obra” (GOMES; PINTO, 2017, p. 102). Posto isto, tendo
em vista que todas essas alterações são feitas pelos servidores
manualmente, ainda que em processo virtual eletrônico, o uso de
tecnologias sofisticadas para atender às demandas da execução de
pena mostram-se necessárias.
Nesta senda, novas tecnologias surgem como uma
promessa de facilitar a vida dos servidores públicos, sendo capazes
de executar ações repetitivas para que os funcionários possam se
dedicar a tarefas mais sofisticadas. Tais tecnologias serão tratadas
no tópico que se segue, ora relacionadas ao processo de execução
penal.
87
6. O USO DE ALGORITMOS PARA VIABILIZAÇÃO DA
CELERIDADE PROCEDIMENTAL NAS EXECUÇÕES
PENAIS: UM CAMINHO PARA A EFETIVIDADE
SUSTENTÁVEL
6
Para aprofundamentos, ver: ZILIO, 2009, p. 208-218.
88
(MONACO, 2017, internet). O recurso é extremamente
interessante e trabalha com a lógica das “árvores de decisão”. Dessa
forma, o controlador alimenta a máquina com informações
relevantes, ela processa os dados obtidos e é capaz de se realimentar
a partir de novos elementos inseridos, como aponta Valentini:
7
É importante destacar que os dados e informações inseridos no algoritmo não
podem possuir ideias pré-concebidas ou prejulgamentos que possam influenciar
de maneira negativa o resultado da análise, tais como cor de pele, opção religiosa
e classe social, por exemplo.
89
No entanto, despontam-se diversos pesquisadores
contrários à ideia de que de fato exista IA e que o computador seja
capaz de realizar certas ações como humanos, ou melhor que eles.
Tais pesquisadores acreditam que a máquina não tem capacidade
de pensar e inventar algo, apenas reproduzem os dados que lhe são
injetados. Neste sentido, Cossa dispõe que “sem o operador
humano que elabora o programa e coloca em código, a máquina
não pode fazer nada. Sem que o operador humano leia e interprete
o resultado, a máquina é inútil” (COSSA, 1957, p. 90) 8.
Alguns autores alertam, ainda, para o perigo da utilização
das máquinas, tendo em vista que ela pode levar o cidadão a erros
cabais. Nesse sentido se destaca O’Neil, a qual apresenta alguns
modelos de ML como sendo armas de destruição matemática, a
partir do momento em que possuem três elementos: obscuridade,
escala e dano. Ela acredita que as informações reservadas em
bancos de dados obscuros e misteriosos, combinado a uma atuação
do algoritmo em escala, pode causar danos gigantescos para a
humanidade, especialmente para os mais pobres. Dessa forma,
argumenta a autora utilizando como exemplo a crise financeira de
2008 ocorrida nos Estados Unidos da América (EUA), em
decorrência de facilitações de créditos imobiliários que contou com
a forte presença de algoritmos para as especulações nas bolsas de
valores. Assim:
8
Tradução livre de: “Sans l’opérateur humain qui elabore le programme et le met
em code, la machine ne peut rien. Sans l’opérateur humain qui lit et interprète le
résultat, la machine ne sert à rien”.
90
Paradoxalmente, os algoritmos supostamente
poderosos que criaram o mercado, os que
analisaram o risco em parcelas de dívida e
classificou-os em títulos, acabou por ser inútil
quando chegou a hora de limpar a bagunça e
calcular o que todo o papel valia de fato. A
matemática poderia multiplicar os problemas,
mas não poderia decifrá-la. Este foi um
trabalho para os seres humanos (O’NEIL,
2016, p. 43) 9.
9
Tradução livre de: “Paradoxically, the supposedly powerful algorithms that
created the market, the ones that analyzed the risk in tranches of debt and sorted
them into securities, turned out to be useless when it came time to clean up the
mess and calculate what all the paper was actually worth. The math could multiply
the horseshit, but it could not decipher it. This was a job for human beings”.
91
jurisdicional e a razoável duração do processo, hoje erigidos a
direito fundamental do cidadão [...], têm íntima relação com o
princípio, atualmente simbólico, do desenvolvimento sustentável,
não aplicável apenas ao direito ambiental” (GOMES; PINTO, 2017,
p. 84). Depreende-se de tal afirmação que um processo
efetivamente sustentável deve se pautar pela qualidade da tutela
fornecida, atributo que é concebido a partir do condão estabelecido
entre os princípios constitucionais e a celeridade procedimental
(GOMES; PINTO, 2017, p. 100).
Pensa-se que o plexo de sustentabilidade nos processos de
execução de pena será alcançado graças a implementação de
algoritmos, que farão, a partir de chaves previamente programadas,
as tarefas menos sofisticadas na execução penal, para que as mais
complexas sejam realizadas por humanos de forma mais atenta,
sustentada, aprimorada e com a tão almejada qualidade na tutela
jurisdicional. Essa medida também impedirá que injustiças sejam
perpetradas nas Varas de Execução Penal, evitando, de modo
eficaz, que pessoas permaneçam presas por mais tempo do que o
determinado, o que acaba por efetivar também as dimensões social,
econômica, ética e jurídico-política da sustentabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
93
tecnologias que auxiliem o servidor no comando de tarefas
repetitivas e menos complexas, para que ele possa se dedicar a
atividades que exijam um nível de sofisticação mais aprimorado.
Ato contínuo constatou-se a aplicação de novas
tecnologias no direito, especialmente no campo da execução da
pena. Conceituou-se IA e algoritmos, bem como foi dada uma
singela explicação a respeito da técnica mais propícia a ser adotada
nesse ramo, em razão da excelência do seu processo inteligente que
consegue, a partir de uma amostragem, criar modelos mais
consistentes de aplicação, com base em um processo de
realimentação de dados.
Por fim, diante de todo o exposto, a solução para o dilema
apontado no início da pesquisa logrou êxito, na medida em que é
possível, ao menos em nível teórico, estipular os parâmetros de
abrangência da IA, com a criação do algoritmo baseado no processo
de ML, bem como de padrões específicos para serem aplicados ao
processo de execução da pena. O objetivo será torná-lo mais
efetivo, em consonância com os ditames constitucionais e,
consequentemente, atento ao desenvolvimento sustentável,
obstando, ainda, que apenados fiquem presos imotivadamente por
mais tempo do que o imputado.
94
REFERÊNCIAS
95
em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L7210.htm>.
Acesso em: 24 abr. 2018.
97
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração
Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em:
<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em:
06 abr. 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais.
10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Marcelo Kokke 1
1
Pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de
Compostela – ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em
processo constitucional. Pós-graduando em Ecologia e Monitoramento
Ambiental. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Professor de
Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor de Pós-graduação da
PUC-MG. Professor da Escola da Advocacia-Geral da União. Professor do IDDE
– MG. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.
Membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental.
99
PALAVRAS-CHAVE: Autointerpretação; Bens culturais; Charles
Taylor; Direitos culturais; Epistemologia.
SUMÁRIO:
Introdução.
1. Crítica epistemológica em Charles Taylor.
2. O expressivismo e o ser humano como ser autointerpretativo.
3. Os direitos culturais como direitos à autointerpretação.
Considerações finais.
Referências bibliográficas
100
INTRODUÇÃO
101
no que tange à perspectiva monológica e envolta em solipsismo que
por vezes a encobre.
Busca-se compreender o ser humano a partir da
perspectiva de ser no mundo, ser em expressividade, e aqui situar
os direitos culturais não como um apanágio de simples tolerância
da diversidade de manifestações, mas sim em base sustentadora da
manifestação humana em articulação interpretativa. Almeja-se
desta forma viabilizar a manifestação da liberdade individual em
suas dimensões mais complexas, mas fora de marcos mecanicistas
ou atomistas. Situar os direitos culturais em uma busca de novos
padrões de compreensão e identidade é situar os direitos culturais
como permeados de sentido pela virada expressivista.
Não aspira ao presente trabalho a discorrer sobre a teoria
tayloriana em sua ampla extensão, proposta que embora instigante
revela-se como árdua e para além das proposições a que este se
volta. A linha metodológica que se utiliza é a crítico-propositiva,
sempre articulada com um viés expositivo para a caracterização da
abordagem de Taylor. Perceber a manifestação humana em um
contexto compreensivo que envolve o padrão epistemológico
acolhido no tempo e no espaço e as repercussões que isso acarreta
à autovisão do ser humano em coletividade, exaltando-se a figura
dos direitos culturais, leva-nos a interrogações diretas: 1) como se
orienta a epistemologia dominante segundo a crítica de Taylor? 2)
qual a posição de Taylor e como ela se sustenta? 3) em que consiste
a compreensão do ser humano como ser autointerpretativo? 4) em
que consiste a virada expressivista e como ela orienta a perspectiva
de visualização dos direitos culturais?
102
2. CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA EM CHARLES TAYLOR
103
XVII, e desenvolvido nos séculos que se seguiram, caracterizado
essencialmente pelos ditames metodológicos das ciências naturais.
As bases epistemológicas até então prevalentes centravam-se no
modelo aristotélico, no qual a apreensão se efetiva pelo
conhecimento de causas, dos fatores que ocasionam determinado
fato ou constatável propriedade, permissivos assim da captação da
essência necessariamente existente. Para Taylor, o modelo
aristotélico pode ser caracterizado como participacional, ao que a
mente participa do objeto conhecido, não se restringindo a
descrevê-lo:
104
e completa a ciência é repelida pela perspectiva de ciência
tradicional, como destaca Leff (2009).
As ciências naturais são assumidas como um padrão para
a cientificidade, as leis naturais revelam-se como a construção
calcada em base empírica, positiva do saber ordenado
cientificamente. O conhecimento científico somente é possível por
meio do positivismo de que são dotadas as ciências naturais,
solidificando-se em bases excludentes, em um repúdio mesclado
com desprezo por aquelas composições que não perfilhassem o
modelo de recepção e assimilação representativo desenhado em um
quadro-filtro da teoria do conhecimento. É neste sentido que José
Ricardo Cunha (2002) refere-se a uma acomodação do
pensamento, a uma padronização do mesmo em estandartes de
manifestação e aceitação. O padrão epistemológico assume-se em
mecanicismo de premissas construídas e endereçamentos
exaustivos que permitiriam um fundacionismo das explicações. A
epistemologia aprisiona o próprio conhecimento, e assim tem-se o
próprio ser humano aprisionado em um padrão teleguiado de
reconhecimento que se afasta da humana para fins de legitimar-se.
A imagem de uma necessária ligação entre ciência e valorização dos
bens culturais é praticamente inviabilizada nesse roteiro. José
Ricardo Cunha destaca:
105
contemplação de uma condição que não é
construída, mas necessariamente dada pelas
circunstâncias; da mesma maneira que ocorre
na lógica analítica em que o pensamento não
é livre para escolher ou deliberar, mas apenas
conclui um resultado necessário da
articulação de premissas. (2002, p. 301)
107
e compreensivo do ser humano afeta as próprias matrizes
científicas de uma sociedade. Os bens culturais não são assim
objetos de ação, são agentes de influência, influência por vezes
ignorada por não ser articulada. O racionalismo, particularmente o
intelectualismo, a que dirige Taylor seu ataque, caracteriza-se por
pilares centrais, funcionais na sustentação da visão epistemológica
dominante. Constituem referidos pilares o fundacionismo, a
concepção representacional (repercutindo no mecanicismo), o
atomismo e o desprendimento (repercutindo este na neutralidade
e objetivação).
A epistemologia dominante ascende em uma crença que
Taylor (2000) denomina por "empreendimento fundacional". As
reivindicações de verdade estariam sujeitas a uma disciplina
estabelecida em filtro de aprovação, cujo resultado depende da
sustentação diante do padrão de conhecimento. O estabelecimento
de uma fonte de reconhecimento do conhecimento, fonte última e
inconsútil em caráter apriorístico, erige-se como o próprio núcleo
temático da epistemologia. A perspectiva intelectualista procura
um conhecimento seguramente fundado: a explicação seria uma
auto-homologação da conclusão, tal qual um selo de aptidão,
derivado do procedimento de avaliação epistemológica. Em
correlação com o fundamento de emanação do conhecimento,
apresenta-se a concepção representacional, caracterizada com a
fixação de um quadro do mundo, dotando a ciência de um
arquétipo mecanicista de apreciação da realidade.
As expressões do mundo externo são captadas em uma
postura passiva, em observação, sujeitas a uma triagem intelectiva
que executa rotulações de sentido segundo a própria representação
108
previamente ornamentada. Neste sentido, afirma Taylor que o
conhecimento se posta mecanicamente, aliando-se à representação,
lançando a compreensão em uma seqüencial "recepção passiva de
impressões do mundo externo" (TAYLOR, 2000, p. 16). Desta
forma, o mecanismo que permite o conhecimento imprime-se pela
existência externa ao ser humano em uma sequencial captação
desta exterioridade, por meio de estruturas representacionais. Esse
marco epistemológico mitiga e circunscreve os bens culturais, tal
como renega a valia dos saberes tradicionais.
Ainda sob influência de Descartes, o conhecimento atrela-
se a determinado método confiável e proporcionador de certeza e
evidência. A certeza é encontrada em um trabalho mental de
verificação, na própria mente humana, o qual perquire o
fundamento do conhecimento. A mente deve ser destacada do
corpo, é preciso evitar erros e purificar o conhecimento, decantar o
conhecimento em relação ao próprio ser humano. Aduz Taylor: "o
próprio fato da clareza reflexiva tende a aprimorar nossa posição
epistêmica, desde que se entenda o conhecimento em termos
representacionais" (2000, p. 17).
Para o mecanicismo o "pensar é um evento realizado num
corpo entendido mecanisticamente" (2000, p. 79). A concepção
representacional, o fundacionismo e o mecanicismo coligam-se em
um arquétipo de purificação do conhecimento face o risco das
impressões humanas, deturpadoras e fonte de insegurança
inaceitável frente à perquirição da verdade. Enfeixando-se em um
padrão autocomplementado, a epistemologia dominante atrela-se
a noções vinculadas, proporcionando a concepção representacional
109
e o fundacionismo a imagem do sujeito como idealmente
desprendido, livre e racional, separado e imunizado dos mundos
natural e social, não dependendo sua identidade ou seu
pensamento do que está fora dele. A identidade proporcionada pela
vinculação do ser à cultura é fenômeno arredio ao padrão evolutivo
científico, sob essa linha de pensamento.
110
invisível a configuração moral que o constituiu" (MATTOS, 2006,
p. 35).
Desenvolve-se aqui uma visão pontual do self, idealmente
configurado como livre e racional diante dos mundos natural e
social em que está envolvido. O conhecimento tomado pelo
desprendimento deságua na trilha atomista de apreciações da
sociedade como que construída com propósitos individuais, ou
explicável em função da própria individualidade não encadeada em
intersubjetividade. O entrecruzamento dos pilares do modelo
epistemológico dominante proporciona uma teia aparentemente
fechada e coesa, estabelecendo um padrão de compreensão que se
infiltra mesmo no senso comum. É neste sentido que Taylor afirma
que o modelo racionalista em questão possui o ônus da prova a seu
favor:
Quando digo que esse modelo racionalista
penetrou no senso comum, digo em parte que
a primeira reação da maioria das pessoas
quando lhes é pedido que teorizem sobre o
pensamento toma a forma desse modelo,
porém afirmo ainda que ele se beneficia de ter
o ônus da prova a seu favor. Isto é, sua posição
é a padrão. Faz-se necessário elaborar fortes
argumentos filosóficos para convencer as
pessoas a pensar sobre isso de outro modo,
para fazê-las recusar algo que parece óbvio.
Mas na ausência de uma refutação com esse
feitio, o modelo não precisa de defesa.
(TAYLOR, 2000, p. 81)
111
A elaboração dos argumentos de Taylor para confrontar a
epistemologia dominante parte de expoentes filosóficos na cultura
ocidental, trilhando um caminho de síntese construtiva
direcionada a lançar seus pilares par terre. Segundo Taylor, os
quatro pensadores mais importantes na crítica à epistemologia são
Hegel, Merleau-Ponty, Wittgenstein e Heidegger. Consideram-se
aqui dois pontos argumentativos substanciais. O primeiro se refere
ao pressuposto do reconhecimento como experiência a respeito de
algo, algo este que demandaria sua prévia compreensão. O segundo
argumento, referente às representações, afirma que sendo as
representações afetas a um objeto, vinculadas estão em um
relacionamento entre si.
112
o impulso racionalista de verificação reflexiva
das bases do conhecimento); e (b) eles assim
apontam para as coisas desse mundo exterior
e as representam. (TAYLOR, 2000, p. 20-21)
113
Lançando-se através da teoria da linguagem enquanto
núcleo da compreensão, Taylor renega o atomismo de sentido, que
consistia na visão de que as palavras recebem sentido por estarem
vinculadas com um objeto numa relação de nomeação ou
significação. Os significados não são oriundos de uma
representação imputada e pré-definida, mas sim estão imersos no
contexto da própria vida, no contexto do próprio mundo, lançando
a representação para uma imersão de sentido vivenciado. Os
significados são afetados pela projeção e composição de sentido que
os bens culturais projetam em sociedade.
115
constitui aquilo que sou capaz de articular, ou
seja, aquilo de que posso tirar a condição de
facilitador contextual implícito e não-dito –
em outras palavras, aquilo que posso tornar
articulado. Nessa atividade de articulação,
aproveito minha familiaridade com o pano de
fundo. (2000, p. 81)
116
humana, sobre o enquadramento do ser humano como animal
racional, baluarte do racionalismo e afeiçoada pelo intelectualismo.
A crítica à pretensa pureza racional do ser humano é algo
consequencial da teoria tayloriana. Na obra "As Fontes do Self",
Taylor refere-se à virada expressivista. O desprendimento, a
neutralidade, objetividade e a concepção representacional afastam
o conhecimento do próprio ser humano, produzem um quadro
frágil e insuficiente que somente é compreensível e sustentável a
partir de um pano de fundo com substância inarticulada e
excludente.
O sentimento humano e as manifestações do agente
engajado como ser que se expressa não podem ser renegadas ou
destituídas de valor por parte da epistemologia. A contextualização
significativa toca ao ser humano para além da razão. O pano de
fundo que envolve o agente engajado não se limita a compreender
e sustentar manifestações da "razão", a expressão humana é
articulada e fonte de compreensão contextualizada, o todo cultural
implica a forma da própria ciência. Uma mesma informação pode
ser transmitida com cargas de expressão diversas, derivando
igualmente compreensões diversas e perspectivas de sentido
divergentes.
Taylor (1997) inicia a abordagem do ser humano como
ser que se expressa em coletividade, remetendo à filosofia da
natureza e do período romântico. A fim de evitar-se ambiguidades
quanto à expressão utilizada, tem-se por romantismo o
pensamento de combate ao racionalismo em prol da exaltação dos
direitos de afirmação do indivíduo, da imaginação e do sentimento,
117
em uma relação com a natureza estabelecida na vivência e não na
observação. A filosofia da natureza, focando o contato do ser
humano como integrante da natureza que o envolve, confere
relevância ao sentimento em viés de primazia. Está ela direcionada
à "determinada forma de experimentar nossa vida, nossos desejos e
realizações comuns e a ordem natural maior em que estamos
inseridos" (TAYLOR, 1997, p. 477).
Desta forma, destaca Taylor que o modo de vida ou a ação
não são determinados por uma previsão racional calculista, mas
por sentimentos. A intersubjetividade que desenvolve o pano de
fundo é assim inerentemente impregnada de sentimentos humanos
em sua configuração e contextualização. Reconhecer o pano de
fundo e o engajamento do ser humano é tê-lo para além de uma
racionalidade neutra e objetiva em mecanicismo. A expressão
humana em sua interpretação para com o mundo vivenciado e sua
própria conformação para com o modo de vida deslocam o
conhecimento e a própria ciência para infiltrações de
expressividade, tal como todas as construções elaboradas sob o
envolvimento do pano de fundo. Aqui figura o denominado
expressivismo, ao que Taylor esclarece:
118
outra parte de 'expressivismo'. Estou
focalizando características particulares de
expressão ao usar este termo. Expressar algo é
torná-lo manifesto em determinado meio.
Expresso meus sentimentos no rosto; expresso
meus pensamentos nas palavras que falo ou
escrevo. Expresso minha visão das coisas em
uma obra de arte, talvez num romance ou
numa peça de teatro. Em todos esses casos,
tenho a noção de estar tornando algo
manifesto e, em cada um deles, em um meio
que tem certas propriedades específicas.
(TAYLOR, 1997, p. 480)
119
campo dos herdeiros dos românticos e os
segundos no campo dos herdeiros dos
iluministas. Com essa separação, Taylor
pretende tornar claras as raízes que fundam a
cultura tecnocrata e a cultura sensível, ou
ainda a diferença entre a razão instrumental e
o valor intrínseco humano de certas formas de
vida que precisam necessariamente ser
reconhecidas. A batalha entre esses dois
campos acaba criando uma cisão na cultura
ocidental moderna. (ARAÚJO, 2004, p. 31)
120
última divisão parece se seguir tanto por causa
das afinidades atomistas do naturalismo como
pelo fato de que a postura puramente
instrumental em relação às coisas não permite
na sociedade uma unidade mais profunda do
que o compartilhamento de certos
instrumentos. (TAYLOR, 1997, p. 492)
123
e concomitantemente são gerados por elas. O intelectualismo
sufoca a dinâmica da compreensão do ser engajado, o empirismo
proporciona um reducionismo e perde-se de sentido sem um piso
pré-estabelecido, que é mantido em inarticulação. A partir do
expressivismo, em uma nova sustentação epistemológica, razão e
sentimentos agregam-se na compreensão do ser engajado no
mundo, do ser humano atuante no espaço público em
autointerpretação.
125
resultado da articulação de sentido significativo de determinados
bens chancelados por uma sociedade, ou mesmo pela própria
humanidade, como merecedores de proteção pelas normas
jurídicas. Os bens culturais possibilitam o exercício e a formação de
liames de interrelação humana, de alteridade e da compreensão dos
panos de fundo vivenciados. Os bens culturais são o alicerce para o
curso reflexivo e para a radicação do ser humano em sua condição
de animal que se autointerpreta.
Se por vezes são os direitos culturais, e consequentemente
os bens culturais escanteados ou postos em segundo plano de
relevo, isso se deve às inflexões ainda existentes do modelo
hegemônico de percepção epistemológica. A pretensão de tutela
liga-se ao fato de que não basta ser racional, a pureza racional não
existe, e inclusive para a compreensão da racionalidade é necessário
contextualizar o ser humano em face do cenário sociocultural que
lhe envolve ou envolveu. Não podem, portanto, os direitos culturais
serem confinados a apêndice jurídico. Sua relevância está afeta à
própria formação da identidade e interação comunicativa em
constante reformulação. A configuração de identidade, por sua vez,
está afeta às manifestações expressivistas, à própria explicitação de
sentimentos de engajamento, estabelecendo parâmetros de sentido
e intelegibilidade. Gisele Cittadino destaca:
2
Para os efeitos do presente trabalho, consideram-se os direitos fundamentais sob
a perspectiva delineada por Gilmar Ferreira Mendes: "Os direitos fundamentais
são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem
127
intersubjetivas. Em mesma gravitação, Pierré-Caps situa os direitos
culturais tendo em conta a projeção no indivíduo e seu caráter
dialógico, firmando-o como direito à identificação cultural e direito
à autodeterminação cultural coletiva. Explicita-se:
3
Artigo 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
129
comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais remete a uma consideração expressivista: não se
pode atribuir sentido ou intelegibilidade a "alta significação" sem
perquirir junto aos agentes engajados, restando-se insuficiente e
débil qualquer pretensão interpretativa fundada na epistemologia
dominante.
Somente através da manifestação humana de
sentimentos, ancorada aqui na dimensão expressivista, somente
tomando o ser humano como ser que se autointerpreta em um
espaço público dotado de dialogicidade, pode-se estabelecer quais
são as datas comemorativas de alta significação para cada segmento
étnico. Irresolúvel seria a questão pelo fundacionismo, pelo
primado do atomismo e do desprendimento.
Igualmente, a caracterização do que sejam manifestações
culturais, arte, manifestações artísticas, dentre outras, depende
fundamentalmente de uma abordagem expressivista, em uma
exaltação da compreensão de uma linguagem sentimental e
articulada pela razão que proporcione intelegibilidade. O próprio
artigo 216 da Constituição 4, ao mencionar bens portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, está a demandar a
compreensão do ser humano, em sua interação dialógica e
CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
processamento comportamental. O fundacionismo e a concepção
representacional não viabilizam uma apreciação engajada do ser
humano, impedindo sua compreensão como ser que vive em uma
comunidade na qual está engajado.
A crítica epistemológica de Charles Taylor é a crítica da
superação do padrão dominante em prol de uma nova
compreensão da articulação do conhecimento em relação à razão e
sua interlocução com o sentimento e expressividade. Ela se funda
em bases histórico-culturais, em um pano de fundo que permite
intelegibilidade e sentido ao mundo vivido assim como com ele
interage e se projeta. A construção desenvolvida viabiliza a
expressão da alteridade e da referenciabilidade do ser humano,
alicerçada nos bens culturais que assim se afigurem ao longo do
processo dialógico de interação intergeracional.
O engajamento humano está anteparado para além de
bases puramente racionais, revelando e reconhecendo o ser
humano como um ser que se expressa, um ser que se manifesta em
um conjunto inarticulado, mas passível de articulação, de relações
pressupostas. Nesse prisma, os bens culturais, e, portanto, a
proteção jurídica neles irradiada, não possui vertente passiva, mas
sim ativa em sua produção de efeitos e significados. O ser humano,
tanto individual quanto coletivamente, não é objeto, é criador e
receptor no mundo em que vive. O ser humano é ser
autointerpretativo, construindo e reconstruindo a si e a
coletividade em que vive. Nega-se o atomismo, o ser é visto como
ser engajado, ser em intersubjetividade comunicativa. A
epistemologia reformulada situa-se no próprio contexto histórico
132
cultural, liberta-se do mecanicismo, e reconstrói-se em
interatividade.
A virada expressivista, a compreensão do ser humano na
condição de ser autointerpretativo, reorienta a percepção dos
direitos culturais. Erigidos a direitos fundamentais, os direitos
culturais se despertam de bases racionais desprendidas para sua
compreensão, exigindo o teor expressivista em seu sentido e
intelegibilidade. Arquiteta-se a necessária compreensão das
interações humanas como implicadas em instituições, normas e
processos comunicativos voltados para uma constante reflexão e
autointerpretação de fins, objetivos e autorrealização, individual e
coletiva. O deslocamento do intérprete para o próprio agente
engajado é o que permite o sentido, a apreensão da dinâmica
contextual, o padrão histórico-cultural que confere a condição de
possibilidade na compreensão.
133
REFERÊNCIAS
135
__________. As fontes do self: a construção da identidade
moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu
Azevedo. Rev. Renato da Rocha Carlos. São Paulo: Edições Loyola,
1997.
136
A JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO
SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO FACE AO PRINCÍPIO
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA ANÁLISE DO
RECURSO ESPECIAL 580.282/MS
1
Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
2
Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
3
Pós-Doutor em Direito pela UNISINOS. Pós-Doutorando em Direito pela
Universidade de Coimbra. Doutor, Mestre e Especialista em Direito pela PUC
MINAS. Professor do PPGD – Mestrado em Instituições Sociais, Direito e
Democracia da Universidade FUMEC. E-mail: sergiohzf@fumec.br Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2720114652322968. Pesquisa desenvolvida como
resultado do ProPic 2016-2017 na Universidade FUMEC, com apoio da
FAPEMIG, tendo como coordenador o co-autor
137
de liberdade. Partindo do pressuposto de que vivemos sob a égide
do Estado Democrático de Direito, onde os direitos humanos
devem ser plenamente assegurados, passou-se a discutir a
responsabilização civil do Estado em virtude de sua ineficiência
como único detentor do direito de punir e das degradações aos
direitos fundamentais dos aprisionados. Diante de tal fato, houve a
judicialização da situação prisional brasileira, onde o Poder
Judiciário foi invocado a dirimir o litígio, por intermédio do RE
580.282/MS. Dessa forma, busca-se analisar a atuação do Poder
Judiciário frente ao princípio da separação de poderes e quais são
os limites para a sua atuação. Utiliza-se para o desenvolvimento do
estudo o método descritivo e analítico, a partir do qual foi possível
fazer a conceituação do princípio da separação de poderes, ativismo
judicial e judicialização, em consonância com o ordenamento
jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; separação de poderes;
Supremo Tribunal Federal; políticas públicas; sistema prisional
brasileiro.
ABSTRACT: Faced with the deficiencies and dysfunctions faced
by the Brazilian prison system, especially the violence in the prison
and violations of the fundamental rights of prisoners, the legal
community started to investigate the public policies focused on the
prison sector and the effectiveness of the custodial sentence. Based
on the assumption that we live under the aegis of the Democratic
State of Right, where human rights must be fully ensured, the civil
responsibility of the State has been discussed because of its
inefficiency as the sole holder of the right to punish and of the rights
of the prisoners. Faced with this fact, there was the judicialization
of the Brazilian prison situation, where the Judiciary was invoked
to settle the litigation, through RE 580.282 / MS. In this way, it is
sought to analyze the Judiciary Power's action against the principle
of separation of powers and what are the limits to its performance.
138
The descriptive and analytical method is used for the development
of the study, from which it was possible to conceptualize the
principle of separation of powers, judicial activism and
judicialization, in accordance with the Brazilian legal system.
KEYWORDS: Human rights; Separation of powers; Federal Court
of Justice; public policy; Brazilian prison system.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Análise do mérito do reconhecimento da responsabilidade do
Estado pelas violações no cárcere no Supremo Tribunal Federal.
3. O princípio da separação dos poderes face aos aspectos inerentes
à judicialização de políticas públicas.
4. A judicialização no Brasil aplicada nos Tribunais brasileiros.
5. Os limites constitucionais para a intervenção do judiciário nas
políticas públicas.
6. A judicialização no sistema penitenciário brasileiro.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
4
Constituição Federal Brasileira de 1988 – Artigo 2º São Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
140
legislativo se mostravam ineficientes em suas funções precípuas, o
Poder Judiciário foi sendo invocado a dirimir questões envolvendo
repercussões políticas e sociais, sobretudo a efetivação e resguardo
dos direitos fundamentais, acarretando o que se denominou
judicialização.
Nesse espeque, questiona-se se a atuação do Poder
Judiciário em matérias precípuas atinentes aos Poderes Legislativo
e Executivo, viola ou não o princípio da separação dos poderes
insculpido na Constituição Federal.
Como plano de fundo do debate, utilizaremos o
julgamento do Recurso Extraordinário 580.232/MS, onde o
Supremo Tribunal Federal reconheceu que o Estado é civilmente
responsável pelos danos morais comprovadamente causados aos
presos em decorrência da violação de sua dignidade provocados
pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições
desumanas ou degradantes, sendo esta uma deficiência crônica de
políticas públicas prisionais adequadas (STF, 2017).
O problema que permeia a pesquisa é justamente a
possibilidade do Supremo Tribunal Federal, como órgão do Poder
Judiciário, decidir demandas que atinjam diretamente a autonomia
dos Poderes Legislativo e Executivo, como no caso acima suscitado,
e, havendo tal possibilidade, quais seriam os limites frente ao
resguardo dos direitos fundamentais do indivíduo dentro do
Estado Democrático de Direito.
O objetivo do presente trabalho é analisar a atuação do
Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso
Extraordinário 580.282/MS, considerando a proteção e resguardo
141
dos direitos fundamentais, separação de poderes, Estado
Democrático de Direito, judicialização e ativismo judicial.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do
estudo baseou-se no método descritivo e analítico, a partir do qual
foi possível fazer a conceituação do princípio da separação de
poderes, ativismo judicial e judicialização, em consonância com o
ordenamento jurídico brasileiro e a prevalência dos direitos
fundamentais.
Utilizou-se pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, onde
se busca elementos de convicção suficientes para perquirir e
analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal no julgamento de
mérito em demandas atinentes à esfera de atuação dos Poderes
Legislativo e Executivo.
143
intermédio da judicialização visando a prevalência e resguardo dos
direitos fundamentais, veio agora à apreciação do Poder Judiciário.
Assim, como plano de fundo o julgamento do Recurso
Especial 580.282/MS (STF, 2017), analisaremos os preceitos
fundamentais constitucionais inerentes à separação dos poderes
frente ao avanço da judicialização das políticas públicas.
145
Para esta teoria, os órgãos estatais devem desempenhar as
funções para as quais foram desempenhadas. Assim sendo, o
legislativo não poderia intervir no judiciário uma vez que não
possui atribuição jurídica; o judiciário por sua vez, não poderia
intervir no legislativo ou no executivo, uma vez que não são
dotados de discricionariedade.
Sob este aspecto, discute-se a judicialização, em especial
no ordenamento jurídico brasileiro, que se mostra quando o Poder
Judiciário é chamado a dizer o direito e solucionar conflitos
atinentes a determinada matéria, cujo qual, o âmbito de atuação é
pertencente ao Poder Legislativo e/ou Executivo.
A finalidade precípua da judicialização é a de assegurar e
garantir a prevalência de um determinado direito fundamental,
quando os poderes legitimados para assegurá-lo se mostram
omissos, insuficientes ou ineficazes.
149
5. OS LIMITES CONSTITUCIONAIS PARA A
INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS
151
democrático, insculpido pelo artigo 1º da Constituição da
República de 1988, onde estabelece que a soberania popular é
exercida pelo povo por meio de seus representantes eleitos.
Lado outro, é reconhecido também como uma dificuldade
enfrentada pelo Poder Judiciário suas deficiências funcionais, no
que tange a determinação judicial para a aplicação de determinada
política no caso concreto, uma vez que não é dotado de
discricionariedade e não conta a supremacia do voto popular.
153
sua liberdade.
Fatalmente, essa situação não é de forma isolada e
pontual. Ela afeta todo o Sistema Prisional Brasileiro, denotando
grandes problemas estruturais e sistêmicos, que resultam nas
graves deficiências e disfunções vividas.
Diante de tamanhas deficiências e ineficiências
enfrentadas pelo sistema prisional, passou a ser discutida no Poder
Judiciário, as políticas públicas voltadas ao setor, caracterizando
assim, a judicialização da matéria.
No caso em comento – Recurso Especial 580.282/MS, o
Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever do Estado em
indenizar o indivíduo aprisionado pelas violações oriundas das
degradações de seus direitos humanos e fundamentais em virtude
das condições desumanas do cárcere e da superlotação. Fixou-se
como parâmetro indenizatório o valor pecuniário de 2 mil reais.
Na oportunidade, concluiu-se também pela aplicação da
cláusula da reserva do possível, reconhecendo a necessidade de
implementação de políticas públicas voltadas ao setor, o que,
exigiria disponibilização de verba orçamentária.
É inegável a responsabilidade civil do Estado pelas
violações aos direitos fundamentais sofridas no cárcere, uma vez
que, cabe ao Estado o dever de punir, restringindo a liberdade do
indivíduo, mas, por outro lado, como contrapartida, deve assegurar
a prevalência de sua dignidade e direitos fundamentais.
O Estado no papel de detentor do direito de punir tem
origem remota, e teve grande influência da Revolução Francesa e as
influências do iluminismo, como bem destacado na obra de Michel
Foucault, Vigiar e Punir (2000).
154
Ao não se admitir mais as penas aflitivas e corporais, o
Estado trouxe para si a responsabilidade da punição. Ao restringir
a liberdade do indivíduo, o Estado deve dar a ele a garantia e
resguardar seus outros direitos fundamentais, como o direito à vida
digna, educação, saúde e educação.
Ressalte-se que o Estado pode restringir apenas a
liberdade como forma de repreensão, reeducação e punição crime
praticado, e não a dignidade, como se tem vivenciado nos presídios
brasileiros.
O escopo maior da restrição da liberdade é retirar o
indivíduo da sociedade, para poder reeducá-lo e, após cumprida
sua pena, voltar para o convívio em sociedade de forma sadia.
Tal objetivo soa como uma utopia, uma vez que os
indivíduos são devolvidos à sociedade com comportamento
totalmente diverso do esperado, sabededir de todas as práticas
criminais e suas formas de execução, uma vez que são misturados
nas celas com criminosos de todas as categorias – homicidas,
estupradores, latrocínio, furto, roubo, estelionato - voltando em
grande maioria a delinquir novamente, e, de forma ainda mais
grave, gerando o grande percentual de reincidência que temos hoje.
Se houvessem realmente políticas públicas capazes de
sanar esse grave problema penitenciário, não teríamos altos índices
de reincidência, rebeliões, violência, moléstias, e absurdamente, os
massacres, que vitimaram milhares de presos ao longo da história
do sistema prisional brasileiro.
Sob tal espeque, vem à tona, a cláusula da reserva do
possível e a possibilidade de afastamento da responsabilidade civil
155
do Estado.
A cláusula da reserva do possível significa aquilo que o
indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Ricardo Lobo
Torres, citado por Maurício Júnior (2009), considera que os
direitos sociais existem sob a reserva do possível, equiparando-a a
“reversa da lei orçamentária”, “arrecadação dos ingressos previstos
nos planos anuais ou plurianuais”, ou ainda, da “soberania
orçamentária do legislador”.
A grande questão atinente à reserva do possível consiste
no fato de se arguir se o destinatário da imposição de cumprir o
direito prestacional possui condições reais de disponibilidade
financeira e orçamentária, sendo portanto, uma condicionante à
efetivação dos direitos sociais pleiteados.
157
Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 45 proferida pelo Ministro Celso de Mello, ele entendeu que a
cláusula da reserva do possível não poderia ser invocada pelo
Estado com a finalidade de se exonerar de suas obrigações
constitucionais, principalmente quando essa conduta resultar em
nulificação ou aniquilação de direitos constitucionais (STF, 2017).
Admitir a cláusula da reserva do possível nas demandas
que versam sobre direitos fundamentais, seria o mesmo que anular
a existência desses direitos e atribuir ao Estado o poder de infringi-
los.
O fato de não se conceder a indenização ao preso com
fundamento na aplicação da cláusula da reserva do possível não
confere a garantia de implementação de políticas públicas
direcionadas ao setor, tampouco, que o valor que lhe seria atribuído
a título indenizatório seja destinado a melhorias do sistema, sendo,
portanto, indevida sua aplicação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
159
massacres, que vitimaram milhares de presos ao longo da história
do sistema prisional brasileiro.
Apesar de muito se discutir acerca da possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas e
orçamentárias, em especial no sistema penitenciário brasileiro, em
uma análise um pouco mais aprofundada sobre o tema, conclui-se
que a realidade prisional brasileira é um problema generalizado,
oriundo de omissões dos três Poderes, que resultam hoje, em uma
urgente e necessária implementação de medidas para ao menos,
atenuar as consequências das violações dos direitos.
160
REFERÊNCIAS
161
de constitucionalidade: análise de sua legitimidade. Pará de
Minas: Virtualbooks, 2016.
163
O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL NA
CONSTRUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO URBANO
SUSTENTÁVEL
Carla Thomas1
Valmir César Pozzetti 2
1
Mestranda em Direito Ambiental, Universidade do Estado do Amazonas -
UEA.
2
Doutor em Direito Ambiental pela Université de Limoges/França; Mestre em
Direito Urbanístico e Ambiental pela Université de Limoges/França; Bacharel em
Direito e em Ciências Contábeis; Professor do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da UEA e Professor do Programa de Doutorado em Ciências
Ambientais da UFAM. Professor Adjunto da UEA – Universidade do Estado do
Amazonas e da UFAM – Universidade Federal do Amazonas.
164
econômico com o ambientalmente sustentável tem sido uma tarefa
difícil e não conquistada pelo Poder Público, sendo necessário mais
esforços nesse sentido.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. O direito à informação no âmbito internacional.
3. O direito à informação ambiental no âmbito do direito brasileiro.
4. O desenvolvimento urbano sustentável.
165
5. O direito à informação ambiental para um desenvolvimento
urbano sustentável.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
166
Dessa forma, problemática que envolve essa pesquisa é: de
que forma o acesso à informação ambiental pode auxiliar na
sustentabilidade ambiental urbana?
A pesquisa se justifica em virtude de que a ausência de
planejamento urbano ou omissão do Poder Público em fornecer
informações ambientais à população acaba por permitir ou
incentivar condutas errôneas da população que constrói de forma
irregular, ou ocupa espaços protegidos e frágeis, que deviam ser
conservados ao invés de ocupados irregularmente. Essa
permissibilidade do Poder Público acaba gerando diversos
prejuízos materiais, de salubridade e ambientais à população
economicamente desfavorecida.
Nesse contexto, exsurge, no âmbito interno do direito
pátrio, o direito de acesso à informação ambiental e, revisitar os
precedentes jurídicos na esfera nacional e internacional, bem como
perceber a relação da informação ambiental com o
desenvolvimento urbano sustentável, revela-se como forma de
instar o debate do tema, de molde a que se discutam formas e
medidas para que se concretize o acesso à informação ambiental e
para que este possa contribuir na construção do desenvolvimento
urbano sustentável.
Assim, o objetivo dessa pesquisa é o de investigar sobre o
avanço desenfreado da urbanização, analisando a legislação
protetiva e o direito de informação da população sobre o direito de
construir e de saber onde constrói e se esse local é seguro e
ambientalmente correto e identificar a relação do direito de acesso
à informação na construção do urbano sustentável.
167
Quanto à metodologia que se utilizará nessa pesquisa, será
o método dedutivo: quanto aos meios a pesquisa será a
bibliográfica, com consulta àdoutrina, legislação e jurisprudência;
quanto aos fins a pesquisa será qualitativa.
168
saber pressupõe “informação”. Pode-se extrair que a informação é
pressuposto para que o indivíduo possa firmar um entendimento,
compreensão e, consequentemente, expressar suas opiniões e
ideias. Desta forma, percebe-se que a informação é um elemento
essencial para que o ser humano obtenha conhecimento e possa
contribuir, a partir dela, mediante o exercício de sua cidadania,
para a transformação social.
A concepção da informação como instrumento de poder
é inerente à cultura popular, ou seja, quem possui informação anda
à frente daquele que não a possui.
Infere-se, que a informação é elemento constitutivo do
conhecimento e este promove, consequentemente, ao seu detentor,
maior poder de decisão, sendo esta mais coerente e consciente, de
forma a concretizar a melhor escolha possível.
Assim, sem informação o indivíduo pode ser posto como
que numa brincadeira de jogo às cegas em que o jogador é
provocado a trocar um objeto por outro, sem, contudo, enxergar o
que está sendo proposto e induzido a trocar algo de grande valor
por algo de reduzido valor. Ou seja, o cidadão desinformado passa
a ser manipulado negativamente; pois a falta de conhecimento
informado lhe tira o poder de decisão consciente.
Dessa forma, no meio ambiente urbano vamos verificar
cidadãos sem teto, ocupando áreas verdes, de preservação e
proteção que não poderiam ser ocupadas porque geram riscos aos
próprios ocupantes; entretanto, como são manipulados por forças
políticas eleitoreiras, acabam sendo vítimas e algozes ao mesmo
tempo. Esse é o grande perigo da desinformação ambiental.
169
Com o uso desenfreado dos bens ambientais, para atender
ao lucro desmedido e às necessidades inexistentes, o planeta
começa a aquecer e inicia-se um processo global de desastres
ecológicos, com grandes inundações, maremotos, furacões, etc.
Nesse sentido a comunidade científica se manifesta suscitando a
todos, sem distinção, que realizem esforços para cessar a destruição
do planeta e iniciar-se um plano de educação ambiental com base
em informações sólidas à população, para que ela contribua nesse
aspecto; além dos Programas de governo que deveriam iniciar
imediatamente.
Dessa forma, a ONU – organização das Nações Unidas –
promoveu no ano de 1.972 uma conferência Internacional sobre
meio ambiente, na cidade de Estocolmo, na Suécia, onde se tratou
dessas necessidades de se mudar comportamentos ambientais.
Dessa conferência, resultou-se uma carta de princípios que iriam
nortear a ação dos Estados soberanos, para diminuir a poluição e
reduzir o crescimento econômico. Há um destaque importante
nessa Carta, no tocante à informação:
172
3. O DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL NO ÂMBITO
DO DIREITO BRASILEIRO
(...) omissis
174
Direito e caracteriza-o como aquele em que o
poder deva ser adquirido e exercido de forma
legítima, e, além disso, como um Estado
intimamente relacionado com a dignidade da
pessoa humana e os direitos fundamentais em
geral, mormente políticos e de liberdade, tais
como liberdade de expressão, reunião,
manifestação e, ainda, a nacionalidade.
175
garantia de uma divisão (separação) de
poderes, a legalidade da administração
pública, a garantia de acesso à justiça e a
independência judicial no plano do controle
dos atos administrativos, bem como a
pretensão por parte do particular de ser
indenizado quando de uma intervenção
estatal indevida no âmbito de sua esfera
patrimonial.
[...] a noção de Estado material de Direito (ou
em sentido material) exige que a legalidade
esteja orientada (e vinculada) por parâmetros
materiais superiores e que informam a ordem
jurídica e a ação estatal, papel que é exercido
por princípios jurídicos gerais e estruturantes
e pela vinculação do poder público (dos
agentes e dos seus atos) a um conjunto de
direitos e garantias fundamentais [...]
177
4. O DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL
178
assim como deve estar inserido em todas as
políticas públicas, para garantir o direito à
vida com qualidade. (Grifo nosso)
181
a utopia ou projeto do “desenvolvimento
sustentável” coloca em questão não só o
crescimento econômico ilimitado e predador
da natureza, mas o modo de produção
capitalista. Ele só tem sentido numa economia
solidária, numa economia regida pela
compaixão e não pelo lucro. A compaixão
deve ser entendida aqui na sua concepção
etimológica original de “compartilhar o
sofrimento”. [...] O sofrimento precisa ser
distribuído mais democraticamente. E isso só
se fará pela justiça social. (Grifo nosso)
182
Pois bem, em que pesem as críticas dirigidas ao
Desenvolvimento Sustentável, o comando constitucional importa à
população, mormente a urbana, atualmente a maioria no Brasil, já
que, frente ao direito de Desenvolvimento Econômico está o direito
à vida digna, o qual, por sua vez, pressupõe um meio ambiente
urbano saudável, de forma que se busque um equilíbrio que
permita a coexistência de ambos.
Nesse sentido, Fiorillo (2017, p. 68) esclarece que:
184
provocam secas, temporais e alagamentos, são corriqueiros nos
grandes centros urbanos.
Tais condições de vida muitas vezes trazem por
consequências a destruição de vias de acesso, inviabilizando a
locomoção, a destruição de moradias, causando o desabrigo, o
acometimento de doenças que retira a saúde etc., ou seja, afeta o
direito de ir e vir, o direito a moradia e a uma vida saudável num
ambiente hígido.
Além disso, o próprio ambiente do trabalho, por vezes
inadequado e sem a mínima higidez, revela ao trabalhador a
importância de se viver num meio saudável que seja respeitado
frente à busca incessante do Desenvolvimento Econômico a
qualquer custo.
Dessa forma, as Políticas Públicas urbanas devem se
pautar nas informações adequadas para garantir ao cidadão um
ambiente urbano de qualidade, livre de inundações, de terremotos,
desabamentos, falta de água etc.
Outro exemplo está na exploração da propriedade urbana
com inobservância – quer pelo particular, quer pela administração
pública – das áreas sensíveis, tais como a mata ciliar, ao se permitir
a construção urbana em tais áreas. Por vezes, tal acarreta em
destruição da vegetação ao longo de rios e igarapés, com a
consequência de provocar futuro assoreamento e alagamentos.
Ainda, a inexistência de um planejamento no zoneamento
urbano ou mesmo, quando há, a falta de observância, com
consequente falta de saneamento básico, ausência de tratamento
adequado ao lixo produzido. Tais exemplos denotam fatores de
185
desenvolvimento urbano não sustentável e afetam elementos que
compõem o ambiente natural, de forma a causar poluição da água
e do solo.
Tem-se, assim, que o indivíduo urbano, ao viver
coletivamente em centros urbanos, acaba construindo um novo
ambiente, em que conjuga os aspectos natural e artificial – neste
incluído o cultural e o do trabalho. Neste sentido, Silva (2013, p. 22)
explica que “o meio não permanece estanque, seus aspectos se
integram “numa visão unitária a serviço da qualidade de vida
humana, convergindo para a formação do meio ambiente urbano”.
Dessa forma, a construção do meio ambiente urbano, sem
planejamento oriundo das informações ambientais adequadas,
revelam algumas das mazelas urbanas que escancaram a
problemática promovida pela exploração econômica de recursos
ambientais para o desenvolvimento econômico desenfreado sem a
devida preocupação com a sustentabilidade. Por outro lado,
reverberam a necessidade de uma tomada de consciência para que
se promova uma mudança comportamental e, neste ponto, é que se
faz primordial a informação ambiental à população urbana para
que, possa, assim, num primeiro momento tomar conhecimento
sobre a situação para se informar através da Educação e, num
segundo momento, participar da gestão pública para a construção
de um Desenvolvimento Urbano Sustentável.
Assim, verifica-se a importância de uma reflexão quanto
aos problemas ligados ao Desenvolvimento das Cidades, pois
afetam diversos direitos do indivíduo que vive em centros urbanos
– moradia, saúde e transporte – os quais podem ser tidos como
consequências de uma nítida inobservância da ideia do
186
desenvolvimento urbano sustentável e que merecem que sejam
olhados com maior preocupação e cuidado.
187
preservação da qualidade ambiental e do
equilíbrio ecológico;
188
Veja-se, por exemplo, que o artigo 5º, XIV e XXXIII, da
CRFB/88, dispõe sobre o direito à informação:
189
publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
(...)omissis
§ 3º A lei disciplinará as formas de
participação do usuário na administração
pública direta e indireta, regulando
especialmente:
(...) omissis
II - o acesso dos usuários a registros
administrativos e a informações sobre atos
de governo, observado o disposto no artigo
5º, X e XXXIII; (grifo nosso)
190
Também podemos encontrar o acesso à Informação na
Lei nº 12.527, que disciplinou o direito ao acesso à informação, e,
de forma inédita, trouxe expressamente a obrigatoriedade da
atuação ativa estatal no dever de informação, a denominada
transparência ativa:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
192
infraconstitucional, o que denota a preocupação, ao menos no
âmbito legislativo, com tal direito à população.
Também se observou que foi acolhido pelo texto
constitucional brasileiro o desenvolvimento sustentável, quando a
Constituição Federal previu expressamente esse princípio no artigo
170, VI, bem como disciplinou o direito ao desenvolvimento
econômico e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, no artigo 225.
Dessa forma, compatibilizar o Desenvolvimento
Econômico com a sustentabilidade Ambiental é tarefa para o Poder
Executivo através de Políticas Públicas.
Neste sentido, o que se pôde concluir foi que, embora haja
previsão no ordenamento jurídico brasileiro do direito ao acesso à
informação ambiental, a práxis ainda distancia-se da norma.
193
REFERÊNCIAS
195
SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São
Paulo: Malheiros, 2013.
196
TEMPORAL DE AÇO
STEEL STORM
Paulo Velten 5
SUMÁRIO:
Introdução.
2. O quadro benjaminiano descrito na tese IX.
3. O mito de Er e a ideia de justiça ligada ao que é natural.
4. O risco da naturalização do “acidente” de Mariana.
5. A relação entre o anjo da história benjaminiana e o progresso. 6.
O salto para fora do trem do progresso.
5
Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá-UNESA. Professor da
Universidade Federal do Espírito Santo-UFES.
197
7. A continuidade histórica como método de dominação da política
“progressista”.
8. Outras possibilidades.
9. Remissão mitológica.
Referências.
INTRODUÇÃO
6
“As teses ‘sobre o conceito de história’ de 1940, são os últimos escritos de Walter
Benjamin, redigidos um pouco antes de seu suicídio – logo após o fracasso de sua
tentativa de escapar da Gestapo na França vichysta. Em sua carta a Adorno dizia
que as teses – que foram escritas sob o impacto da ocupação da Europa pelos
nazistas e tiveram uma intrincada história entre seu ‘salvamento’ (uma cópia dada
para Hannah Arendt), a primeira publicação e o reconhecimento – não seriam
destinadas a publicação pois temia que isso ‘abriria as portas a incompreensão
entusiasta’”. (orelhado livro Aviso de incêndio)
7
Michael Löwy é diretor do centro de pesquisas do CNRS (Centre National de la
recherche scientifique e leciona na École dês Hautes Études Sciences Sociales),
Paris. Autor de inúmeras obras traduzidas para 29 línguas.
198
pelo homem no Brasil, a comumente chamada “tragédia de
Mariana”. Faz-se necessário salientar, a partir dessa perspectiva,
que este trabalho abordará as possibilidades advindas da vida e
morte do rio doce, local da tragédia. Para isso, contextualizaremos
nosso estudo a partir do berço pré-socrático, na Grécia antiga, visto
que, o contexto vida e morte já era presente desde lá, seja na
discussão e criação de mitos “naturais” relativos ao teatro grego,
seja na relação da mitologia com a humanidade.
Desta forma, relacionam-se o rio Lettes (rio do
esquecimento) com o rio doce, 8 uma vez que, esse, tanto como
aquele, poderá vir a se tornar um lugar mítico, de esquecimento.
Esse esforço imaginativo demonstra o objetivo de advertir
contra o processo de naturalização de uma catástrofe ambiental,
fenômeno que se dá pela entrega da solução do problema ambiental
produzido no mundo das compensações financeiras e
responsabilizações pessoais. Essa prática é comum na civilização
moderna que se materializa com a confecção de um documento
jurídico que cristaliza o esquecimento do bem ambiental
propriamente dito.
Nesta perspectiva, a primeira alegoria:
8
Lugar que emprestava o nome originário para a Cia Vale do Rio Doce, acionista
majoritária e controladora da mineradora Samarco (empresa de mineração
responsável pelo desastre). Por ironia, a Cia do Rio Doce abdicou do seu nome a
referência ao rio cerca de três anos antes da tragédia ambiental, optando por
retirar de sua razão social a alusão ao rio doce, passando a denominar-se apenas
como VALE, como uma premonição de que sepultaria o rio que lhe dera origem.
Vale ressaltar, ainda, que a expressão “vale” é utilizada amplamente como
empréstimo, de onde a Cia deveria retirar seus insumos.
199
2. O QUADRO BENJAMINIANO DESCRITO NA TESE IX
9
Livro X, de 614b a 621b. Trata-se de um relato, transmitido oralmente, de
alguém que retornou do Hades.
10
No conto, o soldado Er foi encontrado depois de uma batalha que durou doze
dias, ainda vivo sob uma montanha de cadáveres. Contou ele a viagem que os
deuses haviam lhe permitido testemunhar, foi o único que se atreveu a descrever
o lugar do julgamento das almas dos mortos.O lugar de julgamento, narra o
personagem, seria uma pradaria denominada Hades, entre as aberturas do céu e
da terra. Nela, haveriam duas crateras vizinhas e acima dessas duas aberturas
apresentavam-se buracos simétricos na abóboda do céu.As almas saiam da terra
pela segunda abertura, as almas dos eleitos subiam para o céu e a dos condenados
desciam para o fundo da terra pela segunda abertura.Voltando após mil anos do
céu ou dos infernos, as almas recebiam das mãos da deusa Moirat (necessidade)
a sorte que elas mesmas escolhessem e dali partiam para se reencarnar, a fim de
recomeçarem a nova vida. No Hades, todos aqueles que fossem reencarnar
200
3. O MITO DE ER E A IDEIA DE JUSTIÇA LIGADA AO QUE
É NATURAL
203
relativo aos tempos homéricos15, surgindo, assim, a possibilidade
de se vislumbrar o rio doce como um afluente do mitológico rio
Lettes, e, como sugere o nome, relegado ao esquecimento.
18
Embora tenha sido criada a Fundação Renova com o objetivo de produzir
projetos de recuperação do rio, as ações nesse sentido podem ser acessadas no
seguinte site:
http://www.fundacaorenova.org/Acesso em 21 fev. 2017
19
Conforme notícia vinculada pelo Correio do Brasil o inquérito que apura as
responsabilidades foi suspenso pelo Superior Tribunal de Justiça até que se
decidam as discussões sobre competência.
Por Redação, com ABr – de Brasília.
Disponível em:http://www.correiodobrasil.com.br/justica-suspende-
temporariamente-inquerito-sobre-tragedia-em-mariana/Acesso em: 23 mar.
2016
20
Referência ao título do livro de Walter Benjamin que já na década de 30 previa
o período obscuro que o nacional socialismo representava para o mundo e para
Alemanha.
21
Reportagem publicada em 15.03.2016, Por Redação, com Reuters – de Mariana
Disponível em:
http://www.correiodobrasil.com.br/mariana-ve-retorno-da-samarco-como-
alternativa/Acesso em:20 mar. 2017
207
inferno é a eterna repetição do mesmo e a sociedade moderna
dominada pela mercadoria, disfarçada de novidade e moda, que
condena as pessoas ao inferno da repetição do passado”. 22
Diante da gravidade das admoestações, é de se indagar
qual seria o antídoto, a antítese, a possibilidade de remissão desta
perspectiva infernal. O próprio Benjamin responde: (LÖWY, 2005,
p.39) “[...] o fim da opressão se dá por um salto para fora do trem
do progresso. O anjo não suporta o progresso”.
22
Michel Löwy em outra obra: O que é o ecossocialismo? (2014, p.40), lembra que
mesmo antes, em 1928, no seu livro “sentido único” Benjamin já denunciava a
dominação da natureza por meio da tecnologia com um “ensino imperialista”.
23
Chega a ser irônico o fato de a forma usada pela empresa de transportar o
minério retirado das profundezas das minas gerais ser o transporte férreo.
208
de Engels 24 e Marx25 alerta para a advertência de que o progresso
pode ser destrutivo 26 e que é necessária a “[...] ruptura com a
24
Löwy (2014, p. 23,24) traz um texto célebre de Engels de 1876 “o papel do
trabalho na transformação do macaco em homem” em que ele aborda a relação
homem/natureza de modo que não seja unilateral: “Nós não devemos nos
vangloriar das nossas vitórias sobre a natureza. Para cada uma dessas vitórias, a
natureza se vinga de nós. É verdade que cada vitória nos dá em primeira instância,
os resultados esperados, mas em segunda e terceira instâncias ela tem efeitos
diferentes, inesperados, que muito frequentemente anulam o primeiro. As
pessoas na Mesopotâmia, Grécia e Ásia Menor destruíram florestas para obter
terra cultivável, nunca imaginaram que eliminando junto com as florestas os
centros de coleta e reservas de umidade lançaram as bases para o atual estado
desolador destes países. Quanto aos italianos dos alpes cortaram as florestas de
pinheiros da encosta sul, tão amadas na encosta norte, eles não tinham a menor
ideia de que agindo assim cortavam as raízes da indústria láctea da sua região,
previam menos ainda que pela sua prática eles privaram de água suas fontes
montanhesas durante a maior parte do ano[...]. Os fatos nos lembram a todo
instante que nós não reinamos sobre a natureza como um colonizador reina sobre
o povo estrangeiro, como alguém que está fora da natureza, mas que nós lhe
pertencemos com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que nós estamos em
seu seio e que toda nossa dominação sobre ela reside na vantagem que levamos
sobre o conjunto das outras criaturas por conhecer suas leis e por podermos nos
servir dela judiciosamente. (Engels, 1968, p. 180-181).”
25
Löwy (2014, p.29) também lembra um trecho de Marx no qual menciona em
livro I d’O capital as devastações feitas pelo capitalismo sobre o ambiente natural:
“[...] E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso da arte de
saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período
é simultaneamente um progresso na ruína nas fontes permanentes dessa
fertilidade. Quanto mais um país como, por exemplo, os Estados Unidos da
América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento de seu
desenvolvimento, tanto mais rápido esse processo de destruição. Por isso, a
produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de
produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e
o trabalhador. ” Segundo o próprio autor assegura em nota de rodapé, a tradução
deste trecho a partir da edição em português: Marx, Karl. O capital. São Paulo.
Abril Cultural, 1984. V.I. t.2 (Col. Os Economistas).
209
ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e
industrial da civilização moderna”.
O exemplo para fora do trem, a irrupção dos oprimidos, a
revolução, o caminho de volta (a contrapelo da história), dos
processos históricos continuados que induz a tese IX é
demonstrada por Benjamin quando cita a revolução francesa como
exemplo, uma vez que interrompeu mil anos de continuidade real
na Europa, ainda que por um breve período.
Em uma época em que a vida é relacionada a aplicativos e
celulares, é quase impensável, quase uma ingenuidade que, em
pleno século dominado pela tecnologia, se advogue a ideia de um
rompimento com ela. Entretanto, é relevante ressaltar que não se
trata de um rompimento puro e simples, mas de uma
desmistificação da ideia de produção voltada unicamente para
atender a um padrão consumerista como baliza do sistema
econômico. Trata-se ainda de afastar-se de teses que dão validade
aos jargões que reconhecem o desenvolvimento como algo
sustentável, cujas externalidades negativas possam ser controladas
por eco taxas ou impostos sem alterar em nada a estrutura
exploratória/consumidora de bens ambientais.
26
Löwy (2014, p.39). “O crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes
cidades, da água potável e do meio ambiente em geral; aquecimento do planeta,
começo da fusão das geleiras polares, multiplicação das catástrofes naturais, início
da destruição da camada de ozônio; destruição, numa velocidade cada vez maior
das florestas tropicais e rápida redução da biodiversidade pela extinção de
milhares de espécies; esgotamento dos solos, desertificação; acumulação de
resíduos, notadamente nucleares, impossíveis de controlar; multiplicação dos
acidentes nucleares e ameaça de um novo Chernobyl; poluição alimentar,
manipulações genéticas, vaca louca, gado com hormônios. Todos os faróis estão
no vermelho”
210
Obviamente que não se deve desprezar inúmeros esforços
no sentido de uma economia mais harmoniosa com o meio
ambiente, ao contrário, tudo que se possa fazer para melhorar o
ambiente natural deve ser posto em prática, entretanto, sem que se
altere as bases de produção e consumo, o efeito é apenas paliativo.
Neste sentido, Löwy (2014, p.46):
211
contemporaneidade dos exemplos a advertência é antiga,
novamente Löwy (2005, p.101) demonstra Benjamin:
212
progresso” da bandeira brasileira, que (re)significada no mantra
“desenvolvimento sustentável” parece dar continuidade àquele
ideal positivista hegemônico que aprisiona o Estado brasileiro, com
raros momentos de emancipação e, deste então, sempre através de
uma ciência, de uma tecnologia a serviço do progresso predador
dos bens ambientais.
8. OUTRAS POSSIBILIDADES
215
de janeiro de 1933 (DEUTSCHER, 2006,p.184) “[...] oacesso de
Hitler ao poder é um golpe terrível para a classe operária, mas ainda
não é a derrota final 27, irresistível” ele já alertava para a fato de que
(2006, p.231):
27
A esse respeito ressalte-se o comentário de Deutscher (2006, p.231) “Sabemos
agora, pelos numerosos arquivos e diários alemães, como era realmente grande a
vulnerabilidade do primeiro governo de Hitler ao ser constituído. Ainda meses
depois, em 5 de março depois do ataque nazista a Casa Karl Liebknecht em Berlim
e depois do incêndio do Reichstag, em eleições realizadas sob o terror nazista sem
limites, os socialistas e comunistas ainda tiveram 12 milhões de votos, para não
falarmos dos 6 milhões de votos dados à oposição católica”.
216
mente de bilhões de pessoas para sentir e transmitir o impulso
vigoroso que derruba a ordem estabelecida 28.
Mais do que uma visão pessimista, o artigo aponta para
uma possibilidade de, no presente momento, a ação política dos
atingidos inconformados com o progresso linear transformarem o
fato histórico representado na tragédia de Mariana, a morte do Rio
Doce. É importante sublinhar que este fato era evitável, mas que
essa possibilidade não está relegada ao passado, inexoravelmente,
pois a abertura histórica pode não coincidir com a história continua
como se viu acima, ela pode ser transformada, mesmo após o fato
histórico.
Nesta perspectiva Michael Löwy indica ainda
possibilidades que poderiam ser úteis para a referida ação política,
em sua perspectiva, a exigência popular por adoção de medidas eco
socialistas 29poderiam dar um novo sentido ao Estado democrático,
28
Ainda segundo Deutscher comentando Trotski (2006, p.269) “A história é,
portanto, em grande parte um estudo da psicologia das massas revolucionárias.
Detendo-se na ligação entre os fatores ‘constante’ e ‘variável’ demonstra que a
revolução não se aplica simplesmente pelo fato de estarem as instituições sociais
e políticas, há longo tempo, em decadência e prontas a serem derrubadas, mas
pelas circunstâncias de que muitos milhões de pessoas percebem tal coisa pela
primeira vez. Os homens só se levantam em massa, quando percebe, de subido
que estão mentalmente atrasados em relação aos tempos e desejam reparar o
atraso de imediato. As grandes convulsões da sociedade seguem-se
automaticamente da decadência de uma velha ordem; gerações podem viver
numa ordem decadente, sem terem consciência disso. Mas quando, sob o impacto
de alguma catástrofe ou guerra ou colapso econômico, adquirem consciência, há
uma explosão gigantesca de desespero, esperança e atividades”.
29
“Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as
aquisições fundamentais do marxismo ao mesmo tempo em que o livra de suas
escórias produtivistas. Para o eco socialistas a lógica do mercado e do lucro assim
217
uma vez que possibilitariam novas experiências sociais que
levassem a uma efetiva gestão coletivizada de bens ambientais,
orientadas primordialmente a partir do interesse ambiental, da
coletividade emdetrimento do mercado privado ou do lucro, em
suas palavras (2014, p.41), diz respeito,
9. A REMISSÃO MITOLÓGICA
30
Alusão ao anjo da história descrito na tese IX de Walter Benjamin e narrado no
prólogo deste trabalho.
219
como visto alhures, o rio do Letes levava pelo vento do progresso,
pela naturalização dos atos injustos para serem devorados por
Cérbero, cão que guardava as portas do inferno, assim também o
esquecimentos(lettes)desta tragédia pode trazer consigo esta
ameaça.
Por outro lado, o curso da história não para, e em A divina
comédia, Virgílio diz que o (DANTE, 2002, p.63) o rio Lettes“[...]
há de ser visto fora do inferno pois é onde as almas, já redimidas
hão de purificar-se”, além disso foi (p.265) “[...] caminhando pelas
margens do Lettes” que Matelda (p.283) “[...] conduziu Dante ao
Rio Eunoé, o rio da Boa Memória, onde mergulha, para assim
purificado, poder subir ao paraíso”.
Como se viu na introdução desde trabalho, desde os
primórdios são os rios, como o RioDoce a fonte da vida, e agora,
após a “tragédia de Mariana”, está prestes a tornar-se fonte de
morte, mas assim como o rio Lettesque representa o esquecimento
que pode conduzir ao inferno de Dante e a Cérberonas profundezas
da terra, pode conduzir igualmente ao paraíso pela remissão.
Oxalá consigamos, navegando, por suas águas saltar para
fora do trem do progresso a tempo.
220
REFERÊNCIAS
221
SOUZA, José Cavalcante de; KUHNEN, Remberto Francisco
(Orgs.). Os pré-socráticos: fragmentos, doxográfias e
comentários. Tradução de José Cavalcante de Souza et al. São
Paulo: Nova Cultural, 2005.
222
VIDA NUA, REFUGIADOS AMBIENTAIS E A
DESMISTIFICAÇÃO DO CIDADÃO UNIVERSAL
1
Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário do Pará- CESUPA.
Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPQ): Democracia, Poder Judiciário e
Direitos Humanos. E-mail: abssa08@gmail.com.
2
Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de Salamanca, Mestra em
Direitos Fundamentais e Relações Sociais pela Universidade Federal do Pará, com
período sanduíche na Universidade de São Paulo, Mestra em Ciência Política pela
Universidade Federal do Pará, Graduada em Direito pela Universidade Federal
do Pará - suma cum laude, Coordenadora do Curso de Graduação em Direito.
Professora da Graduação e do PPGD do Centro Universitário do Pará.
Atualmente cursa Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Pará. Líder
do grupo de pesquisa (CNPQ): Democracia, Poder Judiciário e Direitos
Humanos.
223
Refugiados. Além disso, abordou o estado de exceção personificado
na crise humanitária dos refugiados, notadamente os ambientais.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Homo sacer e vida nua.
3. O mito do cidadão universal.
3.1 Refugiados ambientais.
4. O Estado de exceção.
4.1 O testemunho.
Considerações finais.
Referências.
224
INTRODUÇÃO
225
por intermédio de pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa,
propõe-se a analisar o conceito de vida nua, o seu desenrolar
histórico e a relação com o soberano e a figura do refugiado.
3
“O rei não morre jamais”.
226
figura de um homem sacro, o qual vive a dupla exceção de seu
antecessor, como podemos observar:
227
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), acabaram por atrelá-
los à ideia de cidadão universal, protegido e respeitado por todos.
Todavia, esse conceito é falho, uma vez que o cidadão é limitado
por seu vínculo com o seu Estado-Nação, deixando-se de proteger,
assim, aqueles que não se encontram vinculados e revelando o que
Agamben chamará de “resíduo entre nascimento e nação”, os
refugiados (AGAMBEN, 2010, p. 128).
229
cenário atual, tendo-se, ainda, o crescimento do contingente de
refugiados ambientais, uma vez que os impactos do
desenvolvimento industrial e econômico, durante décadas, passou
a ter efeitos mais visíveis no meio ambiente, como a crescente
escassez de recursos, o que, consequentemente, origina novos
conflitos e novos ciclos migratórios.
230
indivíduos vivendo com fome crônica. Quem
está em meio à guerra tem mais do que o
dobro de chances de ser subnutrido, na
comparação com quem mora em países em
paz. Das 13 maiores crises alimentares no
mundo hoje, dez — Afeganistão, Burundi,
República Centro-Africana, República
Democrática do Congo, Iraque, Nigéria,
Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen — são
relacionadas a conflitos.
231
sexual, abdução e recrutamento de crianças
(BENTES; NEVES; LOBATO (Orgs.), 2018, p. 62).
4
Traduz-se para “não devolução”.
232
que venha a contrariá-las, salvaguardando-se os casos em que haja
ampliação de direitos, uma vez que são normas inderrogáveis.
Todavia, apesar da existência de tais políticas
internacionais, ainda é possível vislumbrar situações em que os
refugiados não conseguem ter acesso a um país que o acolha ou
mesmo sair da situação de conflito de seu país de origem, como é
possível perceber através de tais relatos:
233
o entendimento territorial dos Estados, pois trazem sua própria
carga cultural, o que gera um maior protecionismo por parte destes,
como podemos observar:
235
dos pescadores locais. Logo, tal caso causou enorme dano sócio-
ambiental. Contudo, trata-se um raro episódio em que houve
reparação ao dano causado, uma vez que, através de um acordo
judicial, as empresas responsáveis ficaram incumbidas de pagar 13
milhões de reais para a comunidade, a título de indenização
(MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ, 2015).
Acidentes como este, em geral, acabam por criar um fluxo
de saída do local afetado, uma vez que a população alvo busca
melhoras condições de vida ou mesmo pela completa inutilização
da área anteriormente habitada, forçando-lhes a saída.
As duas formas de desastres acarretam a saída de
indivíduos de seus locais de origem.Todavia, nem todos podem ser
considerados refugiados, uma vez que para isso é necessária a saída
de seu país de origem. Sendo assim, aqueles que permanecem no
país, mantendo seu vínculo com o Estado, são classificados como
deslocados internos, os quais são abarcados pelo direito
humanitário.
A ACNUR traz o segundo conceito acerca dos deslocados
internos:
237
muitos destes refugiados pedem refúgio sob motivações diversas,
como política. Sendo assim, os estudos quantitativos não são muito
coesos, contudo, estima-se que o número de refugiados ambientais
até 2050 irá variar entre 250 milhões e 1 bilhão de pessoas.
Tais refugiados podem facilmente ser vistos como vida
nua no momento em que, ao sair de seu país de origem, perdem o
vínculo com o seu Estado-Nação e consequentemente perdem a
proteção garantida pela ideia de cidadão universal. Contudo, além
de já se encontrarem em uma situação de fragilidade, os Estados
aos quais se dirigem não possuem obrigações legais de recebê-los,
uma vez que não se enquadram no artigo 33 da Convenção Relativa
ao Estatuto dos Refugiados de 1951, ficando, assim, a vida de
milhões de pessoas dependente da decisão arbitrária dos Estados.
Atualmente, apenas a Convenção de Kampala (Uganda,
2009) traz, indiretamente, proteção aos refugiados ambientais,
pois, apesar de não citá-los diretamente, apresenta a ideia de
situações de calamidade natural, nas quais estão incluídos. Sua
finalidade é estabelecer uma perspectiva de cooperação entre os
países, representando a responsabilidade de proteger (R2P –
Responsability to protect), por conseguinte, compatibilizando a
soberania nacional com o dever de proteção ao inferir que, na falta
de cuidado estatal, deve-se recorrer à proteção coletiva,
aproximando-se do ideal de cidadão universal.
O sistema de cooperação, então, deveria contar com a
prevenção de danos, analisando-se as sociedades de riscos, para
possibilitar, através de early warnings, 5 conceito trazido do direito
5
Traduz-se para alertas imediatos
238
ambiental, a previsão do fluxo de migrações ou a melhora da
situação (em casos em que a migração já se iniciou), tal conceito
busca:
6
Centro de Monitoramento de Deslocados Internos
239
Cabe ainda ressaltar que o número de refugiados
ambientais, atualmente, se equipara ao de outras formas de refúgio,
pois decorrem das constantes mudanças climáticas e conflitos em
busca de recursos, principalmente no continente Africano.
4. O ESTADO DE EXCEÇÃO
240
do espaço político em que ainda vivemos”
(AGAMBEN, 2004, p.173).
241
4.1 O testemunho
243
sorprende encontrar una referencia a
Nietzsche en el capítulo titulado “Por una
ontología del estilo”. Agamben reflexiona
sobre un modo de vida en el que zoè y bios
coincidan en todo punto: “Qué cosa puede ser
un modo de vida que tenga por objeto
únicamente la vida, esa que nuestra tradición
política ha separado desde siempre como vida
desnuda?” (LEMM, 2017, p. 07). 7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
7
Traduz-se para “Em ‘O uso dos corpos’, Agamben avança em direção a uma
ontologia de estilo que ‘nomeia a maneira pela qual uma singularidade dá
testemunho de si mesmo ao ser, e na qual o ser se expressa no corpo singular’ (...)
Neste contexto, não é surpreendente encontrar uma referência a Nietzsche no
capítulo intitulado "Por uma ontologia de estilo". Agamben reflete sobre um
modo de vida em que zoé e bios coincidem em todos os pontos: "O que pode ser
um modo de vida que tenha como objeto apenas a vida, aquilo que nossa tradição
política sempre separou como vida nua?".
244
crise de refugiados, agravada, ainda, pela necessidade de outros
tipos de refúgio, como o ambiental.
Para isso, torna-se essencial que se respeite alguns
princípios, como o da proteção internacional da pessoa humana, da
cooperação e da solidariedade internacional e da não
discriminação, bem como certos preceitos do Direito
Internacional, tais como os trazidos pelo CRER, em seu preâmbulo:
245
O refugiado, por sua vez, rompe com a continuidade entre
homem e cidadão, entre a ordem nascimento-nacionalidade, como
preleciona Agamben: “O humanitário separado do político não
pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra sobre o qual se
baseia a soberania” (AGAMBEN, 2010, p.130), dessa forma, o já
então excluído refugiado distancia-se ainda mais do político,
criando um fenômeno de massa: “crise dos refugiados”.
A figura do refugiado, portanto, seria uma matéria
constante na política, que teve reconhecimento gradual, a partir da
concretização dos Direitos Humanos, sem, contudo, ser
plenamente amparada, uma vez que é pautada em um mito, ou seja,
o cidadão universal, uma vez que após saírem da égide do Estado-
Nação, deixam de ser amparados, restando apenas organizações
internacionais para amenizar a crescente onda de vida nua.
Cabe ressaltar, novamente, que os refugiados possuem
diversos “núcleos”, tais como aqueles que advêm de guerras,
perseguições políticas ou mesmo por consequências ambientais, os
quais, por sua vez, ainda não são ponto pacífico, inclusive quanto à
sua nomenclatura, podendo ser chamados, também, de
“ecomigrantes” ou refugiados climáticos.
Tais refugiados tornam-se de grande relevância nos dias
atuais, uma vez que vivemos as consequências de décadas de
desenvolvimento industrial e econômico advindos da exploração
desenfreada e desregulada do meio ambiente, como o derretimento
das calotas polares, que ocasionou o aumento dos níveis do mar e,
por consequência, fez com que alguns países, como Tuvalu,
submergissem de forma mais rápida. Sendo assim, os refugiados
246
ambientais seriam os principais afetados pelo uso desregrado do
meio ambiente.
Dessa forma, observa-se que a figura do refugiado vive
constantes mudanças e ressignificações, adaptando-se à nova
realidade local e mundial.
Logo, os refugiados seriam “um conceito-limite que põe
em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação”
(AGAMBEN, 2010, p.130), os quais deixam a vida nua evidente,
rompendo, inclusive, com o conceito basilar dos Direitos
Humanos, o cidadão universal.
Sendo assim, é necessária a criação de um ponto em
comum, de estabilidade, entre vida nua e Direitos Humanos para
que estes possam ser, de fato, concretizados, sem que o vínculo a
um Estado, por meio da cidadania, seja requisito para a proteção de
direitos básicos.
247
REFERÊNCIAS
248
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
BENTES, Natália Mascarenhas Simões; NEVES, Rafaela Teixeira
Sena; LOBATO, Luísa Cruz (Orgs.). Síria: da história à crise
humanitária. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.
249
NAÇÕES UNIDAS. Ritmo das mudanças climáticas é ‘ameaça
existencial para o planeta’, diz ONU. 2018. Disponível em:
https://nacoesunidas.org/ritmo-das-mudancas-climaticas-e-
ameaca-existencial-para-o-planeta-alerta-onu/. Acesso em: 17
mar. 2018.
251
LA DINÁMICA INCLUSIVA DEL DESARROLLO
TECNOLÓGICO EN LAS PATENTES FARMACÉUTICAS.
LA ACTUALIDAD MEXICANA Y ARGENTINA
1
Doctora en Derecho, Instituto de Investigaciones Jurídicas, UNAM, México.
Pos-Doctora en Derecho, PNPD CAPES PPGDireito IMED, Brasil. Profesora
Investigadora Visitante en Universidad Federal da Bahía (UFBA), Brasil. Email:
magipe@hotmail.com. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/6905306640861147>.
252
PALABRAS-CLAVE: Producción pública de medicamentos;
Innovación tecnológica; Propiedad intelectual; Patentes
farmacéuticas; Licencias obligatorias o compulsivas.
SUMARIO:
Introducción.
2. Licencias obligatorias.
3. El caso de las licencias obligatorias en el campo de la salud. La
experiencia internacional y el caso Mexicano.
4. Relevancia de la noción de salud dentro de las políticas públicas:
la producción pública de medicamente (PPM) y redefinición del
concepto de burocracia en el sistema de salud.
253
5. La innovación terapéutica, la investigación médica con la
contribución del paciente y las unidades productoras de
medicamentos (UPM) en Argentina.
Conclusiones.
Bibliografía.
INTRODUCCIÓN
254
Para poder entender mejor lo que significa “suavizar” los
derechos de propiedad industrial con miras a la satisfacción de
políticas públicas, comenzaremos por abarcar el concepto de
licencias obligatorias, también llamadas compulsivas, figura ya más
conocida dentro de la citada rama del derecho, que ha cobrado
relevancia en importantes acontecimientos del derecho comparado
(Brasil, entre los países a citarse).
2. LICENCIAS OBLIGATORIAS
255
contraprestación, a explotar una invención protegida, mediante el
otorgamiento de un derecho de naturaleza personal (JOLIET, 1982,
p. 294). Normalmente vendrá a ser la autoridad gubernamental
quien concederá la licencia a empresas o personas distintas del
titular de la patente a fin de que éstas hagan uso de los derechos de
la patente para fabricar, usar, vender o importar el producto o
procedimiento protegido sin hacerse necesaria la autorización del
titular.
A pesar de hallarse contemplada esta figura en la
normativa internacional y haber sido consecuentemente adoptada
por la mayoría de los países adherentes a la OMC en su legislación
interna, su puesta en marcha ha generado controversias sobre todo
en el ámbito de la salud ante el caso de emergencias de salud
pública.
A priori, la misma doctrina no se muestra unánime en
cuanto a su naturaleza jurídica de si se trata de una mera tolerancia
o de una contraprestación que asegure un goce económico para el
licenciante. A posteriori, se suscitan numerosas dudas a la hora de
intentar hacerla efectiva, generándose incertidumbres tanto para el
licenciante como para el licenciatario, temores que incluyen hasta
problemas de terminología. Por otra parte, una vez celebrado el
contrato,los casos de éxito resultan escasos, por lo que la
jurisprudencia aún es insuficiente para brindar soluciones sólidas y
a largo plazo y, en consecuencia, se regresa errónea e
irremediablemente a los principios generales del derecho
contractual, en la intención de llegar a solucionar en forma íntegra
el problema concreto que se plantea.
256
De hecho, la doctrina especializada indica el caso de los
contratos de licencia y de transferencia de tecnología como un caso
típico de incertidumbre en el derecho privado ante la falta de
normativa directamente aplicable al tema (DE LAS CUEVAS, 1994,
p. 12) que además resulte adecuada y correcta en el sentido de
ajustarse a la realidad del país de que se trata, más allá de a los
requerimientos del marco legal internacional, que se limita a
estipular conceptos básicos de manera similares y homogénea para
todos los países miembros de la OMC. Es que el derecho
comparado ofrece soluciones limitadas en la materia pues habrá de
tenerse en cuenta la específica y particular estructura económica del
país en que se celebre el contrato.
257
enfermedades graves que sean causa de emergencia o atenten
contra la seguridad nacional, el Consejo de Salubridad General hará
la declaratoria de atención prioritaria, por iniciativa propia o a
solicitud por escrito de instituciones nacionales especializadas en la
enfermedad, que sean acreditadas por el Consejo, en la que se
justifique la necesidad de atención prioritaria, en esta se ordenará
el otorgamiento de licencias de utilidad pública. Publicada la
declaratoria del Consejo en el Diario Oficial de la Federación, las
empresas farmacéuticas podrán solicitar la concesión de una
licencia de utilidad pública al Instituto y éste la otorgará, en un
plazo no mayor a tres días, a partir de la fecha de presentación de la
solicitud ante el Instituto 2.
La intención de la propuesta era darle mayor aplicabilidad
a la figura de la licencia obligatoria por causa de emergencia
nacional y específicamente de enfermedades graves, reduciendo el
plazo previsto por el actual segundo párrafo del aludido artículo.
La propuesta establecía un plazo máximo de 3 días para
que la autoridad se pronuncie, dejando sin efecto la disposición
vigente, que es su parte pertinente reza: ...a la brevedad que el caso
lo amerite de acuerdo con la opinión del Consejo de Salubridad
General en un plazo no mayor a 90 días... y que además exige que
sea audita parte. Cabe destacar que el texto vigente extrañamente
tampoco incluye la frase expresamente propuesta en la iniciativa de
reforma de que en los casos aludidos el objetivo de la orden será el
“otorgamiento de licencias de utilidad pública” 3.
2
Cfr. segundo párrafo del artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial vigente.
3
Cfr. artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial vigente.
258
La exposición de motivos daba especial relieve a la
emergencia sanitaria con motivo del brote del virus de la influenza,
advirtiendo además la presencia de otras enfermedades como el
dengue, que ameritan la posibilidad de importar medicamentos
patentados bajo el régimen de licencias obligatorias, al no contar
con capacidad de fabricación suficiente a nivel local, una
problemática repetida en países en vías de desarrollo.
Cabe acotar que la esencia de la licencia obligatoria
supone hacer siempre subsistir el requisito que establece el primer
párrafo del referido artículo 77 de la Ley de Propiedad Industrial
mexicana4 de que las licencias se otorgarán mientras dure la causa
de emergencia o de seguridad nacional que haya motivado su
celebración pero olvida el caso de los medicamentos huérfanos, que
trataremos más adelante en el capítulo de Unidades Productoras de
Medicamentos (UPM) en la Producción Pública de Medicamentos
(PPM).
4
Por su importancia transcribimos: “Por causas de emergencia o seguridad
nacional y mientras duren éstas, incluyendo enfermedades graves declaradas de
atención prioritaria por el Consejo de Salubridad General, el Instituto, por
declaración que se publicará en el Diario Oficial de la Federación, determinará
que la explotación de ciertas patentes se haga mediante la concesión de licencias
de utilidad pública, en los casos en que, de no hacerlo así, se impida, entorpezca
o encarezca la producción, prestación o distribución de satisfactores básicos o
medicamentos para la población”.
259
de la experiencia brasileña con el retroviral
denominado Efavirenz, producido por la
farmacéutica Merck Sharp &Dohme,
considerado en la actualidad como el más
eficaz para combatir la infección del SIDA o
VIH. A pesar de las fuertes críticas
provenientes de la Federación Internacional
de la Industria del Medicamento, el gobierno
de Brasil, a través de su Presidente en ejercicio
LuizInácio Lula da Silva, en base a lo que
dispone su Ley de Propiedad Industrial
9279/96 en su controvertido artículo 68 que
regula las “licencias compulsivas”, determinó
imponer tal flexibilidad sobre la patente del
citado fármaco por considerarla “legítima y
necesaria, de interés nacional y demasiado
caro”, permitiendo con un amplio respaldo
del Congreso la importación del genérico
producido en laboratorios de la India que se
hallan certificados por la Organización
Mundial de la Salud (entre esos laboratorios
genéricos están Ranbaxy, Cipla y Aurobindo)
quienes ya cuentan con producción del
genérico del Efavirenz y lo comercializan a un
costo inferior que oscila en la tercera parte del
producido por el laboratorio titular de la
patente.
Mientras Merck cotizaba en 1.65 USD cada
unidad del fármaco en territorio brasileño el
costo por unidad del genérico fabricado en la
India es de 0.44 USD. El tratamiento por
paciente tiene un costo por año de 580 USD
utilizando el medicamento de patente
mientras que el tratamiento utilizando el
genérico alcanza la suma de 165 USD anuales,
260
es decir, menos de un tercio, lo cual implica un
ahorro de 240 millones USD hasta el año 2012,
fecha en que expira la patente. Antes de la
imposición de la licencia obligatoria sobre el
fármaco, Lula había mantenido dos
negociaciones con el laboratorio titular, en las
que participó además el gobierno
norteamericano. Brasil rechazó en la segunda
de ellas la oferta de comercializar el producto
con un 30% menos del precio fijado
originalmente por parecerle insuficiente y
considerar que al menos debía reducirse en un
60%. En las negociaciones, Lula propuso el
mismo precio pagado por Tailandia, que es de
0.65 USD por cada comprimido del fármaco
en dosis de 600 miligramos, lo cual no fue
aceptado por Merck.
261
este país uno de los mayores compradores
mundiales del medicamento, con más de 500
mil infectados de SIDA o VIH. A juicio del
gobierno, más allá de demostrar el fracaso en
la negociación del precio del fármaco de
patente, la medida se convirtió más bien en
una prueba de la firmeza gubernamental de
apostar por el mercado de los genéricos ante
una situación de emergencia nacional.
Cabe destacar que el argumento también se ha
apoyado en el tratamiento que actualmente
reciben unas 200 mil personas que reciben del
Estado un conjunto de 17 medicamentos, de
los cuales 8 son fabricados en Brasil dentro del
marco de un programa gubernamental de
lucha contra la enfermedad que ha recibido un
sinnúmero de elogios a nivel internacional.
Como precedente, ya en la Asamblea Mundial
de 1999, Brasil había ejercido fuerte presión a
fin de que la Organización Mundial de la
Salud (OMS) llevara mejor a cabo su labor de
control de precios de los medicamentos en
todo el mundo y de evaluación en el impacto
de las normas sobre patentes de la OMC. En
abril de 2001, en la reunión anual de la
Comisión de Derechos Humanos de las
Naciones Unidas fue aprobada por 52 votos a
favor, 0 en contra y 1 en abstención (Estados
Unidos) la propuesta brasileña que vincula el
adecuado acceso a los medicamentos con los
derechos humanos fundamentales. Estados
Unidos consideró al respecto que tal
propuesta era violatoria de las normas
internacionales de protección de los derechos
de propiedad intelectual. Brasil ya había
262
anunciado en el año 2005 la quiebra de la
patente del principio activo “kaletra”,
propiedad del laboratorio Abbot, pero ambas
partes pudieron llegar a un acuerdo para la
reducción del precio del medicamento.
En el caso del Efavirenz, el contrato de licencia
se ha llevado a cabo cumpliendo cabalmente el
procedimiento previsto a tal efecto en la
Declaración de Doha, el cual consta de tres
etapas, a saber, la negociación, la declaración
de la situación que justifica su utilización y el
pago de royalties al titular afectado, que en
este caso específico se pactó en la entrega del
1.5% sobre el valor de importación de los
medicamentos similares al Efavirenz 5.
5
INSTITUTO ESPAÑOL DE COMERCIO EXTERIOR (ICEX), Oficina
Económica y Comercial de la Embajada de España en Brasilia, Patentes y acceso
a los medicamentos, año 2009, edición en
internet,<http://www.fedeto.es/area_internacional/marco_politico_datos_brasil.
pdf>, consultada en octubre de 2009.
263
La postura tailandesa se mantuvo a pesar de fuertes
presiones provenientes la industria farmacéutica, sentando
precedentes en la materia para el caso de emergencias sanitarias.
Posteriormente, este país rompió además la patente de otros dos
fármacos útiles también en el tratamiento de SIDA o VIH. Otros
países como Canadá e Italia cuentan con experiencia en licencias
obligatorias sobre productos farmacéuticos y en la década anterior
llamó la atención general la decisión del Presidente de Ecuador,
Rafael Correa, de emitir en estos días un decreto que derogue por
completo las patentes farmacéuticas y agroquímicas de las
trasnacionales que tengan efecto en este país, con excepción de las
patentes cosméticas, a fin de que todas las medicinas sean
producidas en el país y así se logre su abaratamiento, al considerar
que la salud es un tema prioritario y primero está el derecho
humano antes que “el bolsillo de las trasnacionales”, enfatizando el
caso de los fármacos que combaten el SIDA o VIH y el cáncer.
265
investigación y desarrollo, únicas herramientas capaces de
propiciar avances tecnológicos y mejores medicinas.
267
administrativas capaz de alcanzar niveles de eficiencia compatibles
con la modernidad (CAMPOS & PRESOTO, 2002, p. 5).
Ejemplificando dentro del contexto de salud la función de
la comentada palabra burocracia, tenemos que la política de salud
como directriz que emana del poder público debe abarcar, entre
otras funciones principales, la esencial de promover la estructura y
el funcionamiento del sistema de los servicios de salud, según lo
establece el propio Centro Panamericano de Planificación de la
Salud, perteneciente a la Organización Panamericana de la Salud
(OPS), siendo sus miembros fundadores Argentina, Brasil,
Colombia, Costa Rica, Chile, Ecuador, El Salvador, Honduras,
Nicaragua, Panamá, Paraguay, Perú, Uruguay y Venezuela 6. Ya en
1972 el documento denominado Tema 27, que abarca el proyecto
del Programa del mismo Centro, establecía como
objetivo: “Fortalecer la asesoría de la OPS a los gobiernos para
perfeccionar sus procesos de planificación de la salud”. Luego
nombra entre sus actividades: “Programa de investigaciones con los
países:…análisis de las relaciones entre salud y el resto del sistema
socioeconómico” 7 como una suerte de domesticación del
programa, con adecuación a la realidad de cada país miembro y a
su normativa propia.
6
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 8,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.
7
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 9,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.
268
Más adelante, ya en referencia al propio Centro, se
establece entre sus responsabilidades una propia de
“Investigación”, normando sobre la necesidad de apoyar en los
países el desarrollo de la misma con miras a elaborar o perfeccionar
técnicas de planificación para completar y mejorar la metodología
de planificación de la salud, a través del estudio de áreas o variables
que deban considerarse y de los países que pudieran elaborarlas,
dando además asesoría periódica hasta la fase final de dicha
investigación.
Seguidamente, aparece el apartado de “Información”
donde se dispone que toda información que se refiera a la
planificación de la salud y a la evolución de los procesos respectivos
en los países americanos como de otras regiones debe ser recabada,
promovida en su recolección y analizada. Destaco además que la
misma debe ser difundida y divulgada a modo de promover,
orientar y motivar procesos de planificación y niveles de decisión
políticos y administrativos, informando y estimulando a aquellos
que realizan la labor directa de planificación en salud, enfatizando
las experiencias de terreno conocidas 8.
Dentro del Programa del Centro puede vislumbrarse la
posibilidad de contemplar como política pública de salud nacional
la Dinámica Inclusiva de Desarrollo Tecnológico, que se verá
explicado más adelante en detalle y sobre lo cual anticipo en este
8
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPS), Tema 27 del
proyecto del programa, año 1972, edición en internet, p. 13,
<http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/5924/49176.pdf?seque
nce=1&isAllowed=y>, consultada el 7 de septiembre de 2016.
269
apartado que se describe como una real necesidad de política
pública de salud íntegra y que merece ser adecuadamente
formulada y plasmada en su planeación, su proyecto y sus
resultantes programas que deberán ser coordinados con miras a su
ejecución. Esta Dinámica se plasma en esta propuesta a través de
Unidades Productoras de Medicamentos (UPM) a nivel público, es
decir, la Producción Pública de Medicamentos (PPM).
Volviendo al término burocracia, utilizado en sentido
amplio, vendrá entonces en consecuencia a utilizarse para englobar
y describir todo aquello que implica el trazado integral del sistema
de salud de un país, con sus normativas y organigramas, su
contexto social y hasta político, en sentido amplio. En sentido
estricto, estamos frente a una burocracia de un sistema de salud
circunscripto a una implementación efectiva de las mencionadas
UPM.
8
FOX, Renée, Experiment perilous, physicians and patients facing the
unknown, The free Press, 1959, ediciónen internet,
<https://books.google.com.br/books?id=VjN_al6lZoC&pg=PA2&lpg=PA2&dq
=ren%C3%A9e+fox,+experiment+perilous,+physicians+and+patients+facing+t
he+unknown,+The+free+Press,+1959&source=bl&ots=_N7CmOh0DB&sig=g
mBhAbW1NDpDnjuHxHoyB10akbI&hl=es&sa=X&ved=0ahUKEwj0uvnDof7
OAhUBDZAKHaCWAN8Q6AEIJjAB#v=onepage&q=ren%C3%A9e%20fox%2
C%20experiment%20perilous%2C%20physicians%20and%20patients%20facing
%20the%20unknown%2C%20The%20free%20Press%2C%201959&f=false>,
consultada el 7 de septiembre de 2016.
271
de recursos y garantizando una infraestructura necesaria, parece
ser el camino para que pensar que la propiedad intelectual pueda
contribuir al desarrollo económico y social (BOFF, 2009, p. 57).
La propiedad intelectual, importante mecanismo para la
protección de invenciones derivadas del intelecto humano es un
área diferenciada de la propiedad material y hoy en día cuenta con
un importante estímulo cuando se relaciona con la utilidad
colectiva, aquí incluidas las invenciones (BOFF & LIPPSTEIN,
2015, p. 30).
Como factor de puesta en marcha del punto anterior en
específico así como en general de lo hasta aquí expuesto, es preciso
poner en conocimiento una teoría desarrollada en Argentina, país
que más se ha preocupado en el tema de la PPM. Esta teoría ha sido
recientemente en ese país por especialistas en estudios sociales de
tecnología e innovación que propone abordar la PPM con un
enfoque de tecnología organizacional y política pública y como un
instrumento que busca como fin dinamizar procesos de desarrollo
inclusivo. Santos, Guillermo y Becerra, Lucas, Investigadores del
Área de Estudios Sociales de la Tecnología y la Innovación del
Instituto de Estudios sobre la Ciencia y la Tecnología (Universidad
Nacional de Quilmes) sobre cuyo trabajo se basa el presente
artículo.
Hablar de desarrollo inclusivo significa despuntar la
ciencia y la tecnología propia de una región y subsecuentemente de
un país pero en esferas que van más allá de la privada o la mixta.
Nos referimos a la PPM a través del trabajo articulado de
laboratorios públicos y de farmacias hospitalarias y es que, ya en los
albores del año 2000, el hospital público ha pasado de ser durante
272
siglos el asilo de los pobres a convertirse en una institución
prototipo de las sociedades modernas, lugar de referencia
privilegiada en la investigación médica y en el desarrollo de técnicas
de punta (ADAM & HERLIZCH, 1994, p. 37).
En Argentina, la cuestión va más allá de la ya compleja
provisión de medicamentos, enfocándose a puntos estratégicos que
plantea actualmente el sector salud y que incluyen: la política
pública integrada, como factor en sí mismo y como factor capaz de
desarrollar políticas públicas transformadoras dentro de la
‘dinámica inclusiva del desarrollo tecnológico’; la eficiencia del
gasto público y privado que se genera en la producción de
medicamentos, lo cual implica un conjunto amplísimo de
estrategias a desarrollar; una garantía de acceso a la salud en
igualdad de condiciones para todos; el factor de la innovación con
su desafío de generar dinámicas con miras al desarrollo inclusivo.
A partir de esos cuatro puntos estratégicos mencionados que
plantea el sector salud citan los especialistas tres preguntas-
problema:¿qué capacidad tiene el actual sector público productor
de medicamentos y cuál es la relación entre política de salud y
mercado de medicamentos?; como factor de implementación y de
transformación, ¿es posible configurar una política integral de
producción pública de medicamentos que conviva con la compra
privada?; ¿bajo qué condiciones una política pública de PPM puede
desplegar dinámicas concretas de desarrollo inclusivo? (SANTOS
& BECERRA, 2016, p. 251)
El panorama debe ser visto el sector general tanto con sus
complejidades como con sus oportunidades.
273
Existe una fuerte crítica al sistema privado y a la industria
farmacéutica que éste desarrolla por adueñarse del presupuesto
general destinado al sector salud y de la cadena de provisión de
medicamentos, pero esto no es visto desde la raíz del problema: si
se tuviera un mayor escenario presupuestario destinado a la
eficiencia innovadora por las UPM y una participación concreta y
eficiente de éstas dentro del aparato legal y regulatorio, podría verse
más abierta gran parte de tal hegemonía privada.
La pregunta resaltante que hemos de hacernos es ¿cuál es
la importancia que adquiere el mercado de los medicamentos y su
dinámica dentro del concepto de gasto en salud? Existen muchas y
conocidas inconsistencias como por ejemplo la baja en la capacidad
de compra frente a la permanencia alcista de la capacidad de venta
lo cual es producto de la propia estructura y diseño del sistema de
salud y su consecuente dinámica.
El secreto para el desarrollo inclusivo las UPM pareciera
radicar en los conceptos de Presupuesto + Participación Eficiente
de la UPM, no respecto la eterna discusión entre el sector genérico
y el innovador sino frente a la apropiación y hegemonía de todo el
sector farmacéutico privado en el presupuesto público, dándose en
consecuencia una altísima concentración en laboratorios privados
nacionales y trasnacionales con el consecuente control de precios
determinado por el sector dominante resultando la fórmula: a
mayor concentración, mayor control de precios.
Las UPM conforman el sector de la PPM y se subdividen
en laboratorios públicos y en farmacias hospitalarias. Ambos tipos
producen medicamentos pero dirigidos a un público distinto ya
que las segundas destinan sus productos generalmente a los
274
pacientes a cuyo hospital pertenecen, mientras que los laboratorios
públicos surten medicamentos a una extensa red de sistemas de
salud a lo largo del territorio del país, abarcando hospitales públicos
o privados, planes y programas de provisión pública de
medicamentos o inclusive venta minorista en farmacias.
Es de tener en cuenta además que entre esos laboratorios
podemos encontrar lo que dependen del gobierno nacional, de
universidades nacionales, de gobiernos provinciales e incluso de
municipios (SANTOS & BECERRA, 2016, p. 255-259).
Analizando lo que contempla el estudio de las farmacias
hospitalarias, en la PPM, basándose en la Resolución Ministerial
argentina 286/08, la salud es un derecho y el medicamento un bien
social siendo una función del Estado garantizar la accesibilidad y
ordenar la distribución de recursos y el aprovechamiento de
capacidades instaladas y de recursos humanos9.
Frente al problema del acceso a los medicamentos como
producto por ejemplo de una crisis, siempre es el esfuerzo público,
a través del Estado, el que acaba respondiendo con medidas
alternativas, por ejemplo, la provisión gratuita de medicamentos en
determinado tiempo y lugar a través de planes concretos. Una vez
recuperada la actividad económica, la producción privada vuelve a
estar en alza, incrementando su facturación (control de precios en
consecuencia) y trayendo como consecuencia que la crisis haya sido
9
HOYA, Arturo, en informe del XIV Congreso Argentino y II Congreso
Sudamericano de Farmacia Hospitalaria, Producción Pública de Medicamentos:
una respuesta a los medicamentos huérfanos pediátricos, disponible en internet
en <http://www.aafhospitalaria.org.ar/imagenes/descargas/2014-6-b.pdf>,
consultado el 7 de septiembre de 2016.
275
finalmente absorbida en forma total por el sector público (SANTOS
& BECERRA, 2016, p. 257-258). Como ejemplo se cita el Plan
Remediar del año 2002 a través de la provisión de medicamentos
en forma gratuita para 15 millones de personas.
Las propuestas son varias y pertenecerían a otro capítulo
pero entre las posibles soluciones cobra especial relevancia UPM.
Garantizar el abastecimiento oportuno de medicamentos, si bien
forma parte de la agenda pública y es una obligación del Estado,
esto no implica forzosamente que estos bienes deban ser
comprados al sector privado. En consecuencia, debería vincularse
la política pública a una estrategia de producción y no de compra
directa, conforme explican los estudiosos argentinos.
La elaboración de especialidades medicinales por
laboratorios públicos acabaría con el pensamiento radical de la
naturaleza del medicamento como un bien de mercado,
transformándolo en un bien social (SANTOS & BECERRA, 2016,
p. 281) pero existen realidades de las UPM en cuanto a: la
producción y el abastecimiento, las patentes como traba al
desarrollo de las UPM 10; un adecuado mecanismo de distribución
de medicamentos elaborados por esas UPM; número UPM
10
Las UPM fabrican medicamentos con principios activos cuyas patentes se
encuentran vencidas y cuentan con restricción para elaborar medicamentos con
patente vigente.El argumento de la protección de la patente se encuentra
desarrollado ampliamente en la doctrina actual pero encuentra un gran vacío en
el caso de la PPM, caso en que la producción –y distribución aludida- del
medicamento por las UPM debiera considerar políticas de excepción, máxime si
se trata de medicamentos huérfanos, a través de oportunas previsiones legales
como las licencias obligatorias, sobre lo cual las legislaciones aún encuentran
importantes vacíos a la hora de ponerlas en marcha.
276
existentes11; tecnología e infraestructura local. Sobre este último
punto, sigue siendo un obstáculo importante el hecho de que los
principios activos o farmoquímicos sean adquiridos en el exterior
por falta de producción local suficiente que se traduce en una
capacidad inventiva limitada por parte de la industria nacional
importadora de aquellas fórmulas, dicho de otra manera, se refleja
en las cifras una reducida dinámica de innovación local.
Al respecto esgrimen los autores como causa del
problema las racionalidades que imperan en las políticas y
programas de ciencia y tecnología en el sentido de que éstas
responden al modelo lineal de innovación. Así, si bien existe un
número importante de institutos y centros de investigación médica,
todavía cuentan con bajos niveles de interacción con las unidades
de producción. Aquí cobra una excepción importante los
laboratorios que pertenecen a las universidades nacionales sin que
por ello el producido global de la dinámica innovativa del país
11
Parte de esta política lineal debe también culpa a la concentración excesiva en
manos de algunas UPM estatales. En Argentina, se citan veinte UPM como parte
integrante de la Red Nacional de Productores Públicos de Medicamentos, siendo
su objetivo la producción conjunta de medicamentos de manera coordinada pero
cuyos bajos resultados saltan a la vista por falta de acciones concretas en materia
de producción y también de posicionamiento de la producción pública entre los
temas principales de la agenda política del sector salud pública. No se puede dejar
de mencionar sin embargo que en el año 2011, en un esfuerzo más defensivo que
proactivo de las UPM y del Grupo de Gestión de Políticas de Estado en Ciencia y
Tecnología, se obtuvo la Ley 26.688 que declaró de interés nacional la
investigación y producción pública de medicamentos, sus materias primas, las
vacunas y los productos médicos. Esta ley argentina aún carece de reglamento
pero puede resultar un sugerente a la normativa de otros países en la materia por
sus líneas estratégicas de acción.
277
resulte más feliz por tal excepción (SANTOS & BECERRA, 2016, p.
261, 262).
Resaltemos ahora que entre los principales principios
activos elaborados por laboratorios públicos argentinos se
encuentran analgésicos y antibióticos de uso habitual y también
drogas utilizadas para tratar enfermedades crónicas. La provincia
con mayor abastecimiento de medicamentos de producción
pública es la de Santa Fe y le siguen San Luis y Río Negro 12. En el
año 2014 se planificó un financiamiento por la Agencia Nacional
de Promoción Científica y Tecnológica del Fondo Argentino
Sectorial (FONARSEC) para la producción pública de
medicamentos tuberculostáticos integrando el trabajo conjunto de
la Universidad del Litorial y el Laboratorio Industrial Farmacéutico
S.E. (LIF) cubriendo áreas estratégicas y de vacancia en la provisión
de especialidades medicinales prioritarias12.
12
MINISTERIO DE ECONOMÍA Y FINANZAS PÚBLICAS DE LA
SECRETARÍA DE POLÍTICA ECONÓMICA Y PLANIFICACIÓN DEL
DESARROLLO, SUBSECRETARÍA DE PLANIFICACIÓN ECONÓMICA,
DIRECCIÓN NACIONAL DE PLANIFICACIÓN REGIONAL – DIRECCIÓN
NACIONAL DE PLANIFICACIÓN SECTORIAL, Complejo Farmacéutico. Serie
Complejos Productivos, junio 2015, disponible en internet en
<http://www.economia.gob.ar/peconomica/docs/Complejo_Farmaceutico.pdf>,
consultado el 7 de septiembre de 2016.
12
MINISTERIO DE CIENCIA, TECNOLOGÍA E INNOVACIÓN
PRODUCTIVA, Nuevo financiamiento para producción pública de
medicamentos tuberculostáticos, Presidencia de la Nación, año 2014, disponible
en internet en <http://www.mincyt.gob.ar/noticias/nuevo-financiamiento-para-
produccion-publica-de-medicamentos-tuberculostaticos-10181>, consultado el
7 de septiembre de 2016..
278
CONCLUSIONES
279
los distintos ciclos de la innovación farmacéutica vista, en sus
distintas fases y hasta llegar a manos del consumidor final.
Finalmente, en cuanto al primer tema que hemos
abordado, dejamos por sentada la tarea positiva que conllevaría una
licencia obligatoria bien estructurada, celebrada y
fundamentalmente concedida respetando cualesquiera de sus dos
principales finalidades, a saber, la de salvar una situación de
emergencia nacional o la de garantizar su efectiva explotación si
ésta no se ha producido en el territorio. Sin embargo, no se debe
olvidar que muchas veces la promoción de esta figura encubre una
finalidad encubierta, en el sentido de que más allá de garantizar la
salud pública lo que realmente busca es facilitar y patrocinar la
copia ilegal de medicamentos, lo cual constituye un flagrante
ataque a la propiedad intelectual que se traduce en falta de
seguridad jurídica para el inversor, provocando este hecho un gran
desaliento a la inversión extranjera en cualquier país del mundo.
280
BIBLIOGRAFÍA
281
DE LAS CUEVAS, Guillermo Cabanellas, Contratos de licencia
y de transferencia de tecnología en el derecho privado, Buenos
Aires: Editorial Heliasta, 1994.
282
JOLIET, René, Der Patentlizenzvertragimbelgischen und
französischenZivilrecht, Munich: GRUR Int., 1982.
283
desarrollo inclusivo en salud, en Thomas, Hernán y Santos,
Guillermo (coordinadores), Tecnologías para incluir. Ocho
análisis socio-técnicos orientados al diseño estratégico de
artefactos y normativas, Agenda CTD, Buenos Aires: IESCT y
Universidad Nacional de Quilmes, Editora Lenguaje Claro, 2016.
284
A CRISE MUNDIAL DA ÁGUA: UMA ANÁLISE SOBRE O
CENÁRIO ATUAL E OS EFEITOS DE SUA GESTÃO
GLOBAL
1
Professor Doutor do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas - UEA, líder de pesquisa do Grupo de
Estudos em Direito de Águas - GEDA. E-mail: erivaldofilho@hotmail.com
2
Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas –
UEA.
285
implicações negativas da ausência de uma legislação internacional
forte e abrangente sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Água; Direito
Internacional.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Aspectos gerais da crise da água.
3. Água: vida e lucro.
4. A água e o direito internacional.
5. Soberania estatal em tempos de crise.
Considerações finais.
Referências.
286
INTRODUÇÃO
287
A crise acaba colocando estudiosos e pesquisadores para
trabalhar no sentido de procurar soluções para previsões
pessimistas e tristes realidades, é daí que surgem conflitos de ideias
como o embate entre as formas de encarar a água e definir quais
suas propriedades e usos mais relevantes, o que, mesmo que
indiretamente, pode acabar tornando a crise ainda mais grave
quando novas discussões ideológicas são introduzidas. O embate
entre água como bem público e água como bem privado com seu
suposto valor econômico priorizado é um dos mais latentes da
crise, trazendo à tona as consequências de entregar a água nas mãos
do mercado e o que isso pode significar para as classes de baixa
renda.
A crise da água é algo que afeta todo o mundo, não sendo
algo restrito a certos pontos geográficos, o que evidencia o papel
que o Direito internacional e seus instrumentos deverão
desempenhar mais incisivamente em um futuro não muito
distante, o que revela a necessidade de avaliar o quão bem servido
está o planeta hoje no que diz respeito às normas internacionais
sobre água, restando a questão: existe na atualidade uma legislação
internacional capaz de evitar e solucionar conflitos originados a
partir da disputa pelo acesso e pela distribuição de água?
Para responder tal questão, foi realizada uma pesquisa de
caráter qualitativo em conjunto com o método de pesquisa
bibliográfico, ou seja, uma pesquisa com ênfase em material
literário já produzido acerca do tema e seus principais subtemas.
A fim de avaliar as principais facetas desta crise, a
primeira seção deste artigo apresentará os seus aspectos gerais,
indicando as oposições centrais de ideias que permeiam toda a
288
problemática. A seguir, a segunda seção terá como foco reunir as
principais formas de se enxergar a água e como o conflito dessas
formas contribui para o agravamento da crise. A terceira seção
tratará sobre a forma como a água se relaciona com o direito
internacional, com ênfase nas tentativas de criação de uma política
global de água e nas motivações para o fracasso destas. Por fim, a
quarta seção abordará a principal razão para o já citado fracasso e
como esta funciona como entrave para a formulação de normas
internacionais tão almejadas.
289
No que diz respeito aos recursos naturais e a sua
disponibilidade para atender às necessidades e aos desejos dos seres
humanos, Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 69) alertam que a soma
dos problemas que alteram a qualidade e o equilíbrio do meio
ambiente tem como primeira vítima a água, uma vez que as reservas
de água doce de todo o planeta encontram-se em constante estado
de ameaça por fatores como a mudança do clima, o aumento da
demanda acompanhado do crescimento econômico, o processo de
degradação e poluição do meio ambiente, como a contaminação de
lençóis freáticos pelo esgoto doméstico ou pela utilização de
pesticidas, e a falta de eficiência dos sistemas atuais de
abastecimento de água doméstico e de irrigação para a agricultura.
Os autores ainda destacam que, com a água ameaçada, resta sob
alerta a saúde dos humanos que a consomem, abrindo caminho
para as mais diversas doenças transmitidas a partir de água
contaminada.
Mas a crise da água não tem na qualidade o seu único
problema, sobrando também para a quantidade de água disponível
e própria para consumo. Ribeiro (2008, p. 32) explica:
290
Ou seja, é fácil verificar que, com o passar dos anos, a crise
da água terá como principal problemática a questão da distribuição,
colocando a qualidade para segundo plano, uma vez que a água é
um recurso tão abundante em certas partes do planeta e tão escasso
em outras.
Com o problema da distribuição em mente, outra questão
que também preocupa é o papel que a água cumpre nas economias
local e global. Shiva (2006, p. 32) afirma que “a crise da água é uma
crise ecológica com causas comerciais, mas sem soluções de
mercado. As soluções de mercado destroem a terra e agravam a
desigualdade. A solução para uma crise ecológica é ecológica, e a
solução para a injustiça é democracia”. Nota-se, a partir desta forte
crítica, que a visão da água como uma peça de mercado também faz
parte do quadro da crise, fator que será abordado mais à frente.
Observa-se que a água pode ser enxergada a partir de
vários prismas. Soma-se a isto, o fato de água possuir inúmeras
propriedades que tornam possíveis os seus variados usos pelo ser
humano, este conhecido pela avidez e pela pressa que tem para
realizar suas vontades. Com isto em mente, Ribeiro (2008, p. 24)
define uma das principais tensões da crise atual: “a diferença entre
o ritmo natural de reposição da água e o de desenvolvimento da
sociedade consumista de bens materiais”.
Analisando os aspectos principais da crise da água,
Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 68) destacam que o problema vai
além de pontos comuns como sustentabilidade, governança ou
necessidade de investimentos. Para os autores, a crise da água é
uma crise epistêmica, pois escancara a necessidade de superação da
291
percepção do meio ambiente por meio do dualismo entre homem
e natureza, isto é, de que a última existe apenas para servir o
primeiro. Neste sentido, Ribeiro (2008, p. 54) assevera que a
escassez de água doce no planeta tem no uso do recurso pela esfera
privada o seu principal impulsionador, sobretudo no uso com fins
de acumulação de capital, ou seja, a camada dominante da
sociedade atual deixou de considerar o caráter público da água.
Existem hoje muitos organismos multilaterais destinados a estudar
a situação atual de acesso à agua, mas tais organismos não parecem
agir de forma a mudar a situação atual, como se existissem apenas
para observá-la.
Ainda neste lado epistêmico da crise, Petrella (2002, p. 34)
salienta que é preciso trabalhar para evitar que a água siga o mesmo
caminho do petróleo, ou seja, evitar que a água se torne prisioneira
de conceitos tecnoeconomistas, passando a ser considerada como
coisa de ninguém e não mais como um bem público, ou melhor,
um bem público global. Sobre a relação entre água e petróleo,
Viegas (2005, p. 36) afirma que assim como ocorre com o petróleo,
aqueles que detiverem controle sobre a água se tornarão poderosos
e será inevitável o surgimento de conflitos, armados ou não. No
entanto, o autor destaca que a forma de solução destes citados
conflitos não poderá ser a mesma utilizada para dar fim aos
conflitos originados pelo petróleo, uma vez que a água não pode ser
substituída por outro bem, natural ou artificial. Verifica-se,
portanto, que a sociedade de consumo, que enxerga a água como
uma peça no tabuleiro do mercado e que não vê problema na
apropriação privada de um recurso necessário para a manutenção
da vida, constitui grande parte do problema aqui tratado. Ribeiro
292
(2008, p. 71) resume a questão: “A crise da água deve ser associada
às demandas cada vez maiores por recursos naturais para o
desenvolvimento do modo capitalista de produção”.
Wolkmer e Wolkmer (2012, p. 68), em uma conclusão
não menos importante, também encaram a crise da água como uma
crise política, isto é, um problema que para ser solucionado requer
o desenvolvimento de uma cooperação internacional com
fundamento em um caráter de solidariedade, destacando a água
como um direito humano fundamental. Sobre este aspecto, a
questão da distribuição natural da água também encontra peso,
Ribeiro (2008, p. 133) aponta que em um suposto sistema
internacional de gestão de recursos hídricos, o controle do
fornecimento de água poderá ser facilmente manobrado como
instrumento de pressão política. Como consequência disto, Ribeiro
(2008, p. 151) prevê que muitos conflitos ainda surgirão, até mesmo
entre países que não são vizinhos, conflitos que serão iniciados por
potências militares em graves situações de escassez contra os países
que possuírem um considerável acervo de água em contrapartida.
É neste momento que o lado epistêmico se funde com o
lado político. A fim de evitar que a água possa ser utilizada como
vantagem política, alterações na visão atual sobre água e seu uso
precisam ser realizadas. Petrella (2002, p. 129) defende a água como
um bem social e, portanto, planetário, não sendo possível
considerar tal recurso sem destacar a sua sustentabilidade e
solidariedade, sendo a comunidade humana mundial o verdadeiro
sujeito primário do patrimônio comum da água. Nesta esteira,
Ribeiro (2008, p. 145) insiste na estratégia de mudança de
293
pensamento quanto à água: “em vez de torná-la uma mercadoria,
com preços definidos a partir de uma ética para acumulação de
capital, é necessário reafirmar sua importância à sobrevivência
humana e garantir seu acesso a todos”.
Viegas (2005, p. 44) afirma que o processo de minoração
da crise da água terá início com o estabelecimento de uma política
global eficiente de gerenciamento de recursos hídricos. De fato,
uma política global que leve em consideração a proposta de
alteração de pensamento apresentada anteriormente seria um
grande passo. Antes de tratar sobre a ausência de tal política global,
faz-se necessário abordar de forma mais aprofundada as formas
como a água tem sido considerada na atualidade, para, assim,
tornar mais claro o nível de gravidade da crise.
297
Outra forma de encarar a questão da valoração econômica
da água é apresentada por Granziera (2006, p. 26) ao defender que
a cobrança pelo uso da água também precisa ser enxergada como
uma evolução do direito no sentido de evitar e facilitar a solução de
conflitos por água que nascem a partir da simultaneidade de usos
diferenciados e por pessoas diferentes, uma vez que nem todos os
usos da água são compatíveis e podem ser concretizados ao mesmo
tempo. Para Petrella (2002, p. 29) já é possível observar os frutos de
um processo marcado por fortes pressões exercidas sobre líderes
políticos e sobre a opinião pública, frutos que indicam a aceitação
da água como um ativo econômico com valor, propriedade e uso
ditados pelo mercado, não existindo mais uma oposição a este
quadro tão forte quanto antes. Shiva (2006, p. 119) complementa:
“a privatização dos serviços da água é o primeiro passo em direção
à privatização de todos os aspectos relacionados à água”. A
privatização dos serviços de água tem sido concretizada com cada
vez mais facilidade e, apesar das supostas melhorias no serviço de
distribuição de água, os efeitos negativos não deixam de ser
alarmantes.
Sobre a privatização dos serviços de água e seus efeitos,
Petrella (2002, p. 150) defende que as tendências de
comercialização de todas as atividades e necessidades humanas
sejam freadas: “O controle da água não pode ser entregue à lógica
das finanças e do mercado, pois esses garantem o direito à vida
somente a consumidores solventes e poupadores/proprietários de
imóveis/acionistas”. Shiva (2006, p. 117) também destaca pontos
que contribuem para a desigualdade no acesso à água: “A água
tornou-se um grande negócio para as corporações globais, pois
298
estas enxergam no aumento da escassez de água e da sua demanda
mercados sem limites”.
Também tratando sobre efeitos perigosos, Ribeiro (2008,
p. 36) dispõem:
299
“gigantes da água” têm tomado as rédeas do controle da água, o que
possibilita a criação e repetição de cenários conflituosos como o
ocorrido na cidade de Cochabamba na Bolívia, quando a
privatização dos serviços de água tornou a água-produto muito
cara, principalmente para a população de baixa renda.
São muitos os argumentos contrários a água como
mercadoria, mas também existem pontos positivos, mesmo que
não completamente. Fonseca (2011, p. 157) apresenta o lado bom:
“Apesar das divergências em torno do tema, pode-se admitir que o
modelo de cobrança pelo uso da água é um importante instrumento
de valor incitativo que facilita o gerenciamento e manejo desse
recurso escasso, direcionando o controle para a via econômica”. O
autor expõe um aspecto positivo que acaba se fragilizando quando
colocado diante dos males da prática analisada. Ribeiro (2008, p.
154) apresenta um ultimato: “Esse cenário também impede a
sonhada sociedade sustentável. Não dá para ser sustentável
começando pela cobrança de uma substância vital aos seres
humanos”.
Por fim, acerca do controle da água, Petrella (2002, p. 124)
discorre que tarefas como distribuição, saneamento e conservação
estão sendo transferidas para o setor privado, o que expõe a
transformação da água de bem público para bem econômico
guiado pelas diretrizes do mercado capitalista, este quadro, como
dito anteriormente, é o resultado das pressões exercidas sobre as
comunidades locais e sobre os Estados somadas aos gastos públicos
que seriam necessários para gerir apropriadamente a água sem a
ajuda das “gigantes da água”.
300
O cenário para os conflitos resta formado, o embate da
água enquanto bem público e enquanto bem econômico agrava a
realidade das diferenças entre a distribuição natural da água pelo
planeta e a distribuição política, o que aponta para o conflito entre
países que nem mesmo são vizinhos. Ribeiro (2008, p. 151)
acrescenta: “Pode-se imaginar uma guerra de conquista por água,
em especial pelas potências militares que devem apresentar
escassez nas próximas décadas. Seus alvos serão países que possuem
estoque hídrico considerável”. O Direito Internacional dispõe dos
mecanismos e instrumentos para trabalhar e criar formas de evitar
a concretização e os efeitos destes conflitos, as chamadas “guerras
por água”. No entanto, a formação de uma política global de gestão
da água requer a cooperação dos Estados espalhados pelo globo, é
justamente este o cerne das duas próximas seções, avaliar as
tentativas e o estado atual deste suposto sistema de regulamentação
da gestão da água em nível global, assim como os principais
entraves para a sua concretização e eficácia.
301
catástrofes de natureza ambiental, afirma que chama atenção a falta
de gerenciamento da “gota d’água disponível” no planeta e a falta
de compromisso na busca por uma forma de garantir mais
produtividade com cada vez menos quantidade de água. Granziera
(2006, p. 44) também salienta a necessidade da existência de
normas de direito internacional que tenham como preocupação e
finalidade a garantia da manutenção de um equilíbrio no que diz
respeito ao acesso à água e sua conservação, principalmente em
quadros de bacias hidrográficas compartilhadas.
Contudo, apesar de a necessidade do estabelecimento de
normas globais mais abrangentes, Ribeiro (2008, p. 75) explana
sobre como a questão da água, diferentemente de outras questões
ambientais, aparentemente não foi capaz de mobilizar as camadas
dirigentes dos países o suficiente para levar ao estabelecimento de
uma convenção internacional específica sobre gestão de águas. O
autor ainda sublinha que, no decorrer da história, houveram
tentativas de acordos, mas que poucos foram ratificados em
número suficiente para entrar em vigência, uma situação que
facilita o surgimento de conflitos e fortalece o comércio
internacional indiscriminado de água. Shiva (2006, p. 94) apresenta
uma crítica muito forte ao apontar que as leis internacionais atuais
e a maioria das leis nacionais não atendem adequadamente aos
desafios, sejam eles políticos ou ecológicos, suscitados pelos
conflitos por água, ou seja, não existe um arcabouço legal capaz de
solucionar tais conflitos. E, como já delineado anteriormente,
Ribeiro (2008, p. 75) conclui: “No caso da água, a ausência de
regulamentação deve despertar a atenção para países que detêm
grande estoque hídrico. Eles podem vir a ser alvo de cobiça
302
internacional e precisam preparar-se para enfrentar novos
desafios”.
O histórico de tentativas de discussão do problema da
água em nível internacional está repleto de falhas, mas que também
podem ser encaradas como valiosos pontos de partida que não
renderam frutos. Reconhece-se que criar uma política global é uma
tarefa complicada, visto que a água é um tema multidisciplinar e
exige esforços acadêmicos e políticos. Redigir um documento que
consiga conciliar a importância da água para a manutenção da vida
e a sua visão enquanto bem econômico e que encontre soluções
amistosas para os conflitos óbvios de distribuição não é algo que
pode ser feito da noite para o dia. No entanto, a imagem passada
pelos “esforços” apresenta uma falta de comprometimento que
revela motivações egoístas, ou seja, totalmente desalinhadas do
ideal de solidariedade ambiental.
Acerca deste histórico, é possível destacar algumas
passagens, documentos e reuniões. A primeira passagem, apesar de
não tratar de um documento proveniente de uma reunião, é o
conflito entre França e Espanha no que diz respeito às águas do
Lago Lanoux. De forma simplificada, o conflito tem como cerne o
desejo da França de utilizar as águas do lago como fonte de energia,
enquanto a Espanha se preocupa com a qualidade e com a
quantidade de água que irá receber após a implementação deste
novo uso das águas do lago pela França. A sentença arbitral de 1957
decidiu a questão em favor da França, apontando que esta não
estaria violando as regras internacionais em vigor ao realizar o
desvio das águas do lago para a geração de energia. Entre os
303
fundamentos da decisão, é possível citar a ausência clara de
prejuízos previsíveis para a Espanha, assim como a impossibilidade
de golpear tão fortemente a soberania territorial da França ao negar
o desvio que seria realizado totalmente em território francês.
O segundo ponto a ser citado é o Regulamento de Uso da
Água de Rios Internacionais, resultado de uma reunião realizada na
cidade de Helsinque em 1966. Destaca-se deste documento a
definição das chamadas “bacias de drenagem internacionais”,
basicamente áreas geográficas que abrangem dois ou mais estados,
o que já apontava para a necessidade de umagestão cooperativa. A
seguir, como terceiro ponto destaca-se a Conferência das Nações
Unidas sobre Água de Mar Del Plata, realizada na Argentina em
1977. Em sua análise desta reunião, Ribeiro (2008, p. 78) a
considera como ponto de inauguração de um subsistema da ordem
ambiental internacional voltado especificamente para os recursos
hídricos. Como decorrências da reunião, o autor destaca a difusão
da gravidade da crise da água e a consequente criação de diversos
ministérios de recursos hídricos em todo o mundo, assim como o
estabelecimento de novos programas de pesquisa e de cooperação
internacional voltados para o problema da água.
Em seguida a Declaração de Dublin, já citada
anteriormente, resultado da Conferência Internacional sobre Água
e Meio Ambiente realizada em 1992. Desta declaração, cabe
salientar um princípio do seu conteúdo que causou muita
polêmica, o princípio de reconhecimento do valor econômico da
água. Ribeiro (2008, p. 81), em sua análise do documento, explana
os efeitos negativos de dotar a água de uma característica
excludente, delimitando o acesso à água somente para aqueles que
304
possam pagar por ela, com a justificativa de que o uso da coerção
pela economia é mais eficaz que tentar educar a população a usar a
água de forma responsável. Também de 1992, destaca-se a
Convenção Internacional de Cursos D’Água Transfronteiriços e
Lagos Internacionais, também conhecida como Convenção de
Helsinque (assim como a de 1966), na qual são enfatizados
princípios como o da precaução e do poluidor-pagador.
Como sexto ponto é possível citar a Convenção de
Regulamentação dos Usos Não-Navegáveis de Cursos D’Água
Internacionais de 1997, documento considerado idealista demais
por tratar abertamente sobre teorias de soberania, abrindo espaço
para um processo evidente de flexibilização, o que,
consequentemente, acabou diminuindo consideravelmente o
interesse de muitos países em ratificá-lo. Ribeiro (2008, p. 99)
protesta que “uma convenção idealista que encontre dificuldades
em ser ratificada mantém o problema sem solução”. E, por fim,
quase como curiosidade, importa citar que a Convenção
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
teve incorporado ao seu texto, em 2002, o direito à água, o que para
alguns pode ter significado que novos avanços no âmbito do direito
internacional estavam por vir, mas o “vazio” persiste, uma situação
que atende aos interesses das “gigantes” que encaram a água
somente como uma fonte de riquezas e ajudam a perpetuar e
agravar situações de desigualdade.
A solução para evitar o surgimento de conflitos por água
e facilitar a solução destes continua sendo a mesma, a criação de
uma política global de gestão, mas o histórico de tentativas não é
305
muito esperançoso. De qualquer forma, os trabalhos neste sentido
não podem ser esquecidos ou zerados. Viegas (2005, p. 43) afirma
que o panorama de conflitos iminentes “pode muito bem ser
revertido se os países firmarem compromissos de redução dos
níveis de poluição e de adoção de medidas de recomposição das
áreas degradadas, estabelecendo protocolos que constituam
verdadeira política mundial de gerenciamento de recursos
hídricos”.
Uma observação interessante feita por Petrella (2002, p.
131) é a de que:
307
que envolve todas as pessoas do mundo e que ninguém pode
afirmar que não é afetado pelo problema da água da mesma forma
que ninguém pode afirmar que está livre da ameaça nuclear.
Bosselmann (2015, p. 21) assevera que “o meio ambiente é o maior
unificador da humanidade, ao menos no senso de uma
preocupação compartilhada. A proteção ambiental e, por sinal, o
princípio da sustentabilidade, são definitivamente desafios
globais”. Entra em cena o debate sobre como a ideia de soberania
estatal pode atrasar tanto a busca por soluções preventivas e
repressivas para conflitos que nascem a partir da crise da água, uma
crise global.
Maluf (1995, p. 29) conceitua soberania como “uma
autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro
poder”. Nos termos de Teixeira (2011, p. 69): “O conceito político-
jurídico de soberania encontra-se intimamente vinculado à noção
de poder político estatal, ou seja, o poder de comando máximo em
uma sociedade política”. Para Acquaviva (2010, p. 51), “soberania
é o atributo do poder do Estado que o torna independente no plano
interno e interdependente no plano externo”. Por último, Miranda
(2011, p. 131) destaca “a cumulação da soberania territorial com a
supremacia territorial (posse do território): o Estado, senhor do
território, exerce, de harmonia com o Direito internacional, um
poder geral e efetivo sobre esse território”.
Os conceitos apresentados no parágrafo anterior são
considerados clássicos de soberania e evidenciam um elemento
fechado e fossilizado. Não é difícil verificar que qualquer conceito
clássico do tema não deveria mais encontrar espaço na atualidade,
sobretudo quando se discute como amenizar a crise da água.
308
Bosselmann (2015, p. 192) explica que “a ‘exportação’ de
interferências ambientais para o território ‘soberano’ de outros
estados é compensada pela ‘importação’ de interferências de outros
estados do ambiente em seu próprio território ‘soberano’”, ou seja,
tudo aquilo que um estado faz em seu território com consequências
ambientais também afeta o território de outros estados e, de forma
mais ampla, afeta todo o território planetário, trata-se de uma
questão inevitável. Bosselmann (2015, p. 189) conclui: “se é verdade
que a territorialidade nacional está em desacordo com a
indivisibilidade do meio ambiente global, a única opção que resta é
reajustar a ficção legal à realidade ecológica”.
O supracitado necessário ajuste é algo de muito interesse
para o Direito Internacional, âmbito que mais tem a ganhar com
uma necessária relativização do conceito de soberania, o suficiente
para a criação de novas medidas ambientais. Kelsen (1998, p. 545)
explica:
311
187) afirma que compromissos ambientais não podem ser
negociados, mas esta não é a realidade, uma vez que existem muitos
acordos que tratam sobre o clima global e outros temas ambientais.
No entanto, o autor destaca que tais acordos falham ao validar a
soberania dos Estados, uma vez que estes utilizam de uma liberdade
sem limites para não se comprometer e não restringir, por exemplo,
suas ambições econômicas.
A partir dos argumentos já explorados, é impossível
encontrar uma solução para a crise da água sem a criação de uma
política global de gestão combinada e formada por instrumentos de
cooperação entre Estados, sem que estes se recusem a relativizar a
sua soberania estatal em prol do bem ambiental e da manutenção
do bem-estar humano. Maliska (2013, p. 117) afirma que a
soberania estatal deve ser compreendida a partir de ideais de
abertura, cooperação e integração, não sendo mais possível ser
entendida como o isolamento dos Estados que apenas se
autorreconhecem como sujeitos internacionais, isto é, os Estados
fechados devem dar lugar aos Estados constitucionais cooperativos,
sujeitos que estão em constante e permanente diálogo no âmbito da
comunidade internacional. Figueiredo (2011, p. 506) apresenta as
características do Estado constitucional cooperativo: a) abertura
para relações internacionais, possibilitando a adoção de medidas
no âmbito interno, sobretudo medidas voltadas para os direitos
humanos; b) finalidade de realização internacional cooperativa de
atividades incluída no texto constitucional; e, c) cooperação
internacional com fundamento no ideal de solidariedade estatal.
Sobre a solidariedade estatal, Silva (2008, p. 971) exemplifica a sua
concretização, ilustrando que uma bacia hidrográfica
312
compartilhada por vários países, como a Bacia Amazônica, deve ter
as águas gerenciadas considerando todas os tipos de usos
envolvidos, uma gestão onde todos os atores envolvidos tenham
voz e onde a união dessas vozes representem um avanço para a
conservação da água.
Por fim, cabe destacar as seguintes palavras de
Bosselmann (2015, p. 211), ao tratar sobre a sustentabilidade do uso
dos recursos naturais disponibilizados pelo meio ambiente e ao
criticar a atitude de alguns Estados que ignoram as leis da física e
colocam a soberania como principal razão pela qual uma
determinada porção de meio ambiente compõe o seu território: “o
ambiente não pertence nem aos Estados, nem à humanidade, mas
apenas a si mesmo devido ao seu valor intrínseco. Estados,
portanto, não podem reivindicar a soberania ou propriedade sobre
o meio ambiente. O ambiente é um privilégio, não um direito”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
313
Direito internacional a tarefa de encontrar soluções. Mas o
problema se torna mais complexo quando os atores dos conflitos
são os mesmos que deveriam e devem trabalhar para criar e
implementar normas para a solução destes conflitos, tal como um
ciclo formado por concessões e decisões que anulam umas às
outras.
A necessidade de se criar uma política global de gestão de
águas é latente, mas como alcançar este objetivo? Os passos para
tanto são evidentes, mas difíceis de serem concretizados. O
primeiro deles está no âmbito da disputa entre água como
patrimônio da humanidade e a água como bem econômico, como
bem que só está disponível para aqueles que podem arcar com os
custos colocadospelas diretrizes de mercado. Os benefícios da
privatização da água, ou melhor, dos serviços de água, são muitos,
mas repassar o controle da água para as mãos das grandes empresas
sem critérios é sedimentar situações de desigualdade que não são
compatíveis com a relevância do acesso à água como pressuposto
vital. A água enquanto bem humano precisa ser vangloriada e
defendida, este é o raciocínio mais próximo de uma perspectiva
ecológica e de direitos humanos.
O segundo passo está na mudança de pensamento dos
dirigentes dos países que estão sempre com um pé atrás quando das
tentativas de se estabelecer normas internacionais sobre água. O
que existe hoje é o raciocínio enraizado de que as guerras por água
são completamente inevitáveis, logo, as atitudes da atualidade
devem ser vistas como uma preparação para conflitos futuros. A
possibilidade de evitar que tais guerras sequer venham a existir nem
mesmo é considerada, por este motivo muitos países preferem não
314
se comprometer com normas internacionais que podem
representar fragilidades em conflitos armados no futuro. É aqui que
se faz presente o problema da soberania. Uma soberania estatal
absoluta representa força em um conflito com outros países,
enquanto abraçar ideais de solidariedade ambiental e de
sustentabilidade seria um ato de fraqueza.
A relativização ou flexibilização da soberania estatal em
prol da prevenção e resolução de conflitos por água é a melhor
forma de se amenizar a crise e evitar a proliferação de conflitos
locais e internacionais. O Direito internacional já conta com
instrumentos de solução de conflitos de muito sucesso em outros
âmbitos, o caminho para o estabelecimento de novos instrumentos
na seara ambiental deve ser facilitado. A cooperação, ou o
fortalecimento de índoles cooperativas para os Estados, é o melhor
atalho para a criação de uma política global de gestão de água que
ajude o planeta a garantir o acesso à água a todos os seres humanos,
evitando conflitos por água que podem acabar delapidando o
estoque de água doce restante ou destruindo a qualidade deste.
315
REFERÊNCIAS
317
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional
público e privado. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
319
RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS COMPANHIAS
TRANSNACIONAIS ENQUANTO PARADIGMA DE
PROTEÇAO DA CONDIÇÃO HUMANA
Marcelo Benacchio 1
Jeferson Sousa Oliveira2
1
Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Professor permanente do Mestrado em Direito e da Graduação da
Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Professor Titular de Direito Civil da
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Juiz de Direito em São Paulo.
2
Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
Especialista em Direito Tributário pelo Complexo Educacional das Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU). Pesquisador bolsista do Programa de Suporte à
Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP).
320
imediata, cujo intuito é garantir o bem-estare a dignidade daqueles
que habitam os Estados não desenvolvidos.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Globalização e o transnacionalismo das companhias modernas.
3. A atuação das transnacionais na defesa de seus interesses.
4. Responsabilidade social das transnacionais e a proteção da
dignidade humana.
Considerações finais.
Referências.
321
INTRODUÇÃO
323
2. GLOBALIZAÇÃO E O TRANSNACIONALISMO DAS
COMPANHIAS MODERNAS
324
internet entre a sociedade civil, inaugurando uma nova fase nas
relações políticas, econômicas e sociais.
A esse crescente estado de integração entre povos,
convencionou-se chamar de globalização. Desde então,
gradativamente as relações comerciais tem se intensificado,
pautando-seprimordialmente na transferência de bens, capital e
mão-de-obra (WEINSTEIN, 2005).
Atentas as novas tendências negociais diversas
companhias investiram na transnacionalização de sua atividade
visando explorar mercados emergentes na nova conjuntura
mundial, a qual passaram a estar mais conectadas, garantindo
assim, melhor gestão de suas filiais e assimetria em suas políticas.
“Como prueba de ello, valgan estos dados del World
Investiment Roport de la ONU del año 2000: en el mundo operan
un total de 63.000 empresas multinacionales que tienen 800.000
filiales y puponen conjuntamente el 35 por 100 del PIB munidal.”
(SANTONJA, 2009, p. 39)
Diversas empresas, por vezes dotadas de apoio financeiro
do seu Estado de origem, cresceram rapidamente, ganhando força
política suficiente para negociar com diferentes Estados os termos
de sua alocação, quase sempre em condições de igualdade ou até
mesmo de superioridade na prevalência de interesses.
Como assinala Antoni Verger (2003), as corporações
transnacionais são uma das formas mais desenvolvidas de
organização capitalista, concentrando grande poder. Essas
empresas não são novos empreendimentos, mas empresas que se
consolidaram ao longo de muitos anos, acumulando conhecimento
325
e tecnologia. Além disso, ao agir contrariamente à ideia de livre
comércio, as grandes transnacionais conseguiram concentrar
poder e dinheiro graças ao protecionismo estatal.
O referido autor expõe ainda que dentre os diversos
motivos que levam uma companhia a se tornar uma transnacional,
estão a possibilidade de conquistar novos mercados; dispor de
matérias-primas locais, bem como do baixo custo da mão-de-obra;
o investimento financeiro dado pelo Estado anfitrião e a
especialização de cada unidade da companhia, seguindo um
modelo de gestão comumente adotado na atualidade.
A força política das companhias transnacionais, advinda
do seu poderio econômico, despertou o interesse de muitos países,
principalmente daqueles menos abastados, envoltos na esperança
de que tais empresas os auxiliassem no desenvolvimento de seu
povo, mesmo que indiretamente.
“Desta forma, as companhias passam a ditar as regras da
atividade econômica em países não desenvolvidos e, que por vezes,
dependem da presença daquelas para gerar um mínimo de renda e
empregos.” (OLIVEIRA e BENACCHIO, 2017, p. 81)
Ocorre que tais instituições, por adotarem um
posicionamento alheio aos interesses estatais, optaram por
negligenciar na execução de um modelo de gestão voltado aos fins
sociais e ao bem-estar coletivo, haja vista sua essência estar baseada
no mero acumulo de capital e na divisão deste com seus
investidores.
Como é de se esperar, isso gerou certo descontentamento
por parte dos governos anfitriões ao notarem a ausência de
326
desenvolvimento, e em certos casos, um agravamento das
condições a que seu povo estava submetido.
“Em anos recentes, a América Latina e a Rússia também
ficaram desapontadas com a globalização. Elas abriram seus
mercados, mas a globalização não cumpriu suas promessas,
especialmente para os pobres.” (STIGLITZ, 2007, p. 71-72)
Vislumbrando tal situação, ao longo dos anos, diversos
grupos ao redor do mundo, conectados através de mídias sociais,
passaram a divulgar notícias e discutir sobre a atuação das
transnacionais, em especial nas violações a direitos ocorridas em
países mais pobres, o que refletiu diretamente na imagem de muitas
empresas, causando-lhes abalos econômicos de milhões de dólares,
tanto em receita quanto no valor de seus ativos financeiros
negociados no mercado de capitais.
Tal situação é capaz de demonstrar que os agentes
exploradores da atividade econômica ao redor do mundo passaram
a estar sendo vigiados por aqueles que consomem seus produtos e
utilizam seus serviços, inaugurando uma nova tendência de
controle sobre as atividades das companhias, principalmente
porque “[...] a pobreza no mundo em desenvolvimento aumentou
nas duas últimas décadas.” (STIGLITZ, 2017, p.71).
Assim, tem-se que houve a consolidação de uma
sociedade civil global, mais preocupada com os fins da atividade
econômica no mundo, a partir de um posicionamento mais crítico,
sem que isso desvirtue outras formas de atuação na busca pela
proteção social.
327
Com isso, mesmo que as companhias transnacionais
sejam autênticos frutos da globalização econômica, a sociedade,
pautada no maior acesso à informação, surge como agente
fiscalizador das condutas empresariais, assim como exige cada vez
mais que o Estado atenda a seus anseios, o que tem ganhado
destaque desde o advento da segunda dimensão de Direitos
Humanos.
Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que o Estado
possui um papel de destaque no cenário comercial moderno, pois
além de atuar diretamente como agente econômico, muitos países
dependem diretamente da atividade exercida pelas empresas
privadas, o que os condicionam, em certos casos, aos caprichos
dessas.
Destarte, diversos governos se veem em meio ao impasse
gerado entre os interesses das companhias – requerendo maiores
benesses de diferentes naturezas – e as exigências coletivas na busca
por justiça social e uma melhor qualidade de vida.
329
Entretanto, cada vez mais a atuação das companhias tem se
distanciado do modelo esperado pelo Estado anfitrião, pois com a
célere mobilidade comercial, múltiplas empresas menores acabam
sendo afetadas negativamente pela presença daquelas de maior
porte, desestabilizando a concorrência na região e submetendo
centenas de pessoas a novas condições de labor por medo de serem
atingidas pelo desemprego.
No mais, com o aumento das relações comerciais via
internet e a terceirização da mão de obra, milhares de trabalhadores
ao redor do mundo se viram prejudicados pelas demissões em
massa, afastando assim uma das funções esperadas pelo Estado
quanto ao ingresso das companhias em seu território.
Esse modelo de gestão ascende consideravelmente o
número de famílias afetadas pela pobreza decorrente da falta de
oportunidades laborais, implicando em certos casos, na migração
destas para outras regiões.
Esse problema torna-se ainda maior quando se tem que“[...]
más de dos terceras partes de los habitantes del planeta han de
subsistir con menos de dos dólares al día (la mitad de ellos con
menos de un dólar diario).” (SANTONJA, 2009, p. 34)
Como se isso não bastasse, os Estados têm deixado de
arrecadar milhões de dólares anualmente devido ao planejamento
tributário das transnacionais, considerado em muitos casos uma
medida agressiva, ultrapassando os limites legais e morais.
Internacionalmente, esse fator ganhou destaque nos
últimos anos por conta dos estudos e mobilização da comunidade
internacional encabeçada pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE (Organisation for
330
EconomicCo-operationandDevelopment– OECD),almejando
combater a erosão da base tributável e transferência de lucros (Base
ErosionandProfit Shifting– BEPS)3.
3
Versando sobre os problemas com a tributação, o Information Brief publicado
pela OCDE dispõe que “research undertaken since 2013 confirms the potential
magnitude of the BEPS problem, with estimates indicating annual losses of
anywhere from 4-10% of global corporate income tax (CIT) revenues, i.e. USD
100 to 240 billion annually. In developing countries, where reliance on corporate
tax as a source of revenue is generally higher than in developed countries, the
potential impacts are particularly stark.” (OECD, 2015, p. 3)
331
redirecionar os escassos recursos a programas de saúde, educação e
assistência social, tidos como prioridades em muitos países.
Esses não são os únicos efeitos aos quais a sociedade e o
Estado estão submetidos em decorrência da atuação das
companhias transnacionais, havendo ainda violações de natureza
consumerista e ambiental.
As primeiras ocorrem quando as companhias, visando
incentivar o consumo a qualquer custo, exploram as fragilidades de
determinados grupos sociais, principalmente daqueles mais
vulneráveis, como idosos e crianças.
Não apenas os atos negociais, mas também a publicidade
emanada das companhias merece destaque,vez quesão
consideravelmente capazes de induzir nas ações de seu público
alvo, criando em muitos casos, a ideologização do consumo, ou
seja, o surgimento de supostas essencialidades verdadeiramente
desnecessárias. (STEFANIAK, 2016)
Assim, o impacto causado por alguns meios de
publicidade requer, em certos casos, a adoção de um
posicionamento estatal ativo, visando regular o alcance de
determinadas informações na tentativa de proteger grupos sociais
sujeitos a sofrerem maior influência publicitária, de modo que tais
pessoas não acabem tendo seu sustento comprometidoousejam
lançadas ao rol de inadimplentes.
Contudo, a elevação do consumo está diretamente
relacionada a questões ambientais, haja vista a produção de bens e
prestação de serviços demandar a extração e utilização de recursos
naturais advindos de diferentes regiões do planeta.
332
Assim, um dos motivos que levam as empresas
transnacionais a migrarem rumo a Estados não desenvolvidos é a
fragilidade do seu sistema legal, o quepossibilita maior degradação
do meio ambiente e menor responsabilização do agente
degradador. 4
Visando se contrapor a todos esses pontos negativos, que
somados a muitos outros não citados, são capazes de exercer forte
influência negativa sobre a maneira com a qual as companhiassão
vistas por seus stakeholders,muitas empresas têmadotem um
modelo de gestão mais preocupado com o bem-estar coletivo.
Esse modelo de gestão empresarial mais preocupado com
o bem-estar social é, em muitos casos, utilizado como instrumento
de promoção da companhia visando destaca-la perante os seus
concorrentes, sem que tal preocupação componha os reais valores
das transnacionais.
Essa gestão que dissimula seus reais interesses é tida como
uma estratégia de marketing social (CUNHA e DOMINGOS, 2011,
p. 152-153), ou seja, consiste em atos que visam ser apresentados à
coletividade com intuito de demonstrar valores que beneficiam o
meio no qual as companhias estão insertas, mas que realmente não
compõem sua cultura empresarial.
4
Um grande problema com relação à responsabilização por danos ambientais
recai sobre a recuperação da área degrada, pois embora essa seja preferível, em
considerável parcela dos casos isso demonstra ser algo impossível de se realizar,
restando ao Poder Público apenas imputar ao agente degradador uma prestação
pecuniária cujovalor se aproxime daquele necessário a uma suposta reparação às
vítimas do incidente. (ATALLA e RIBEIRO, 2017)
333
Atualmente o marketing social tem seu destaque em ações
que visam preservar o meio ambiente, notadamente através do uso
de certificações verdes, além de outras como as promovidas pela
Organização Internacional de Normalização (International
Organization for Standardization–ISO).
Cumpre esclarecer que esse modelo de gestão não é regra,
mas sim uma exceção, pois diversas companhias ainda detêm o
lucro como um fim em si, um objetivo a ser conquistado mesmo
com o sacrifício de direitos e garantias sociais nacional ou
internacionalmente reconhecidos.
A partir desses tipos de condutas, conforme preconiza
Max Weber (2004), entende-se que cada vez mais auferir lucro tem
sido encarado como o objetivo final do exercício da atividade
econômica pelo mundo, distanciando-se da promoção do bem-
estar coletivo e do desenvolvimento social.
Sob essa óptica, atualmente as pessoas costumam
relacionar o ganho de capital com a posterior capacidade de
consumo, ou seja, conseguir mais para gastar mais. No entanto,
essa filosofia apenas mantém ou agrava a já fragilizada situação
daqueles que vivem em países pautados meramente pelo
desenvolvimento econômico sem considerar a preservação do
ecossistema.
Ante toda a influência do capital na sociedade moderna,
preconiza Jose Renato Nalini,que isso ocorre porque “o dinheiro
anestesia a consciência. Em nome dele, tudo se legitima.” (2015, p.
11).
Destarte, indaga-se se de fato as companhias
transnacionais têm agido de forma a contribuir com o meio no qual
334
se fazem presentes, principalmente considerando todo o dano
causado em virtude da atividade por elas desempenhada.
A resposta é negativa, sobretudo ao se considerar que
grande parte da riqueza produzida no mundo a elas pertence.
Assim, além de não contribuírem com o desenvolvimento dos
Estados, acabam por violarem direta e indiretamente diversos
aspectos da dignidade humana, seguindo um modelo de gestão
economicamente desumanizado.
Por isso, um número crescente de pessoas tem
questionado os limites da atuação das companhias transnacionais,
assim como a amplitude de sua responsabilidadepara com o meio
no qual se fazem presentes, em especial, devidoàlarga exploração
de recursos naturais e da mão de obra local,sem qualquer
comprometimento em sanar os danos causados no exercício da
atividade econômica.
335
la Empresa (RSE), también llamada Responsabilidad Corporativa
(RC), está en el centro del debate económico, social y político en
todo el mundo desarrollado.”
Ao decorrer dos últimos anos, os debates relacionados à
responsabilidade das companhias tem tomado por base os aspectos
que cercam o ambiente de atuação das transnacionais,
principalmente porque estas conduzem sua atividade com o
consumo de recursos regionais, sem que com isso, adotem medidas
de contrapartida que beneficiem à coletividade, criando uma
disparidade na justiça social, o que pode gerar questionamentos e
manifestações contrárias àsua presença no território de um Estado.
Tais questionamentos emergem ante a contraposição
entre os ideais liberalistas e os anseios sociais por proteção frente
ao abuso do poder econômico das empresas transnacionais, em
especial, nos países não desenvolvidos.
336
existindo apenas uma opção, aceitar as condições e os interesses
daqueles que são os donos do capital.
Sobre essa condição, Joseph E. Stigltiz (2007, p. 72-73)
aponta que “os pobres têm poucas oportunidades para se
manifestar. Quando falam, ninguém escuta; quando alguém escuta,
a resposta é que nada pode ser feito; quando lhes dizem que algo
pode ser feito, isso nunca acontece.”
Inegavelmente, muitas transnacionais ainda se pautam
em uma filosofia empresarial antiga, construída com base no
capitalismo liberal idealizado por Adam Smith em A Riqueza das
Nações, publicado em 1776 e republicado até os dias atuais, na qual
se acredita que o desenvolvimento da região advém naturalmente
com o exercício de sua atividade típica.
No entanto,essa nova tendência, filiada à adoção de
medidas ativas por parte das companhias na promoção do bem-
estar social, emergiu juntamente com a globalização, pois com o
maior acesso às informações, logo tornou-se perceptível sua
capacidade financeira e a dimensão dos danos por elas causados na
constante tentativa de acumular capital.
Como referido, a função social está fundada basicamente
no respeito à dignidade humana, uma condição inata a todas as
pessoas no planeta, reconhecida a partir da evolução histórica dos
Direitos Humanos.Isso torna a função social algo bastante amplo,
possuindo segmentos de diversas naturezas.
Assim, ante o modelo de atuação empresarial
descompromissado com o bem-estar social, inúmeros países
passaram a prever princípios e normas constitucionais
337
einfraconstitucionais visando ampliar o dirigismo estatal frente à
atuação das empresas no cenário econômico interno, sem que isso
inviabilize as relações comerciais ou ceda espaço para a
sobreposição de interesses das companhias em detrimento dos
interesses coletivos.
No entanto, os Estados não desenvolvidos têm
encontrado dificuldades em conciliar ambos os interesses, ainda
mais quando se veem sem os recursos financeiros necessários, não
restando outra opção senão contar com a voluntariedade das
empresas no auxílio à promoção de suas políticas públicas de cunho
social.
Grande parte das transnacionais, por possuírem uma
economia consolidada, com receita anual maior do que a de muitos
países (SANTONJA, 2009), detêm sob a perspectiva moderna da
função social, uma significativa responsabilidade na promoção do
bem-estar coletivo, vez que são capazes de contribuir com a
evolução tecnológica de um país, além deviabilizar a cessão de parte
desua experiência adquirida ao redor do mundo, as tornando
excelentes instrumentos de desenvolvimentonacional.
Buscar o desenvolvimento tecnológico e educacional é
algo de significativa importância para os Estados não
desenvolvidos, pois tornar seu povo autossuficiente tecnológica e
educacionalmente representa romper com a relação de
dependência estes e os países já desenvolvidos (GRAU, 2015).
Isso auxilia também na consolidação de empresas
nacionais no cenário econômico internacional, permitindo que as
mesmas atuem em condições de igualdade com as já consolidadas
transnacionais.
338
Outro ponto importante é a defesa do meio ambiente, vez
que constantemente há notícias a respeito da deterioração da
qualidade ambiental no planeta em decorrência do aquecimento
global, dos buracos na camada de ozônio,do efeito estufa, entre
outros problemas naturais causados pelo homem.
A degradação ambiental não é um problema exclusivo dos
países não desenvolvidos, mas seus efeitos são sentidos
principalmente por estes, pois como referido, a legislação lacunosa
e a fiscalização deficitária possibilitam maiores danos ao
ecossistema.
Permitir que o meio ambiente seja sacrificado em prol do
mero acumulo de capital nada mais é do que negar os ideais de
desenvolvimento econômico sustentável, violando seu aspecto
social e ambiental, retornando o mercado aos seus primórdios
liberais.
É importante destacar ainda que a proteção à dignidade
humana deve ser observada também nas relações civis e
consumeristas, impedindo assim que milhares de pessoas se
submetam aos caprichos das companhias ante as suas práticas
comerciais abusivas.
A proteção civil e consumerista não deve se ater apenas à
iniciativa do Estado, a partir da atividade de regulação do mercado,
mas também das próprias companhias, ensejando o que a doutrina
costuma chamar de eficácia horizontal dos Direitos Humanos
(SARMENTO, 2008).Ou seja, os Direitos Humanos devem ser
dotados de uma base protetiva tanto nas relaçõesentreEstado e
339
cidadão (eficácia vertical), quanto nas relações entre entes da
iniciativa privada (eficácia horizontal).
As relações laborais não são exceção à regra, pois a
disparidade negocial entre empregadores e empregados também
deve ser levada em consideração. Não é incomum encontrar
notícias de companhias que exploram a mão de obra de centenas
de pessoas, em sua grande maioria, em países não desenvolvidos,
submetendo diversos trabalhadores acondições de escravidão ou
análogas a esta.
Mesmo em países onde existem normas protetivas
positivadas é possível encontrar polos regionais onde a fiscalização
estatal se mostra ineficiente, ensejando uma gama de violações a
direitos internacionalmente reconhecidos.
Esse tipo de conduta empresarial consiste claramente em
violações aos Direitos Humanos, promovida exclusivamente na
defesa de interesses econômicos, subjugando o ser humano a mera
condição de insumo, facilmente substituível em outras partes do
globo.
Segundo Joseph E. Stiglitz (2007) a globalização não
cumpriu o que prometeu, vez que trouxe injustiças à sociedade e
colocou valores materiais acima de valores humanos, como a
proteção ao meio ambiente e a vida. Com isso, a ascensão da
pobreza nas últimas décadas pôde ser sentida principalmente nos
países menos desenvolvidos da América Latina.
Considerando a América do Sul, o Brasil enquanto
potência regional, buscou combater os abusos ao poder econômico
praticados pelas companhias atuantes em seu território a partir da
340
positivação de princípios regentes da ordem econômica em sua
Constituição Federal, datada de 1988.
O artigo 170 do referido diploma elencou dentre seus
princípios a observância à função social da propriedade, a defesa do
consumidor e do meio ambiente a fim assegurar a todos uma
existência digna.
Isso demonstrou certo dirigismo político sobre as
atividades econômicas desenvolvidas no país, notadamente na
tentativa de alcançar seus objetivos (artigo 3º), dentre eles, a
erradicação da pobreza e a busca pelo desenvolvimento nacional.
Cumpre esclarecer ainda, que a Constituição Federal
brasileira adotou a dignidade humana como um dos fundamentos
da República (artigo 1º, III), visando ratificar seu posicionamento
humanista quanto ao planejamento e execução das políticas
gerenciais no país.
Não se distanciando da preocupação em manter a
dignidade humana frenteà exploração da atividade econômica, a
Constituição Mexicana de 1917, também demonstrou interesse em
buscar o desenvolvimento nacional a partir de um viés sustentável,
de modo que seja possível o pleno exercício da liberdade e da
dignidade das pessoas a partir da justa distribuição de renda,
manutenção do emprego e da competitividade de mercado (artigo
25).
Assim como o Brasil, o México demonstra certo dirigismo
político da ordem econômica, vez que imputa ao Estado o dever de
planejar, conduzir e orientar a atividade econômica nacional,
regulando aquelas de interesse coletivo.
341
A Constituição Mexicana é expressa em reconhecer –
ainda no artigo supra citado – que o desenvolvimento nacional está
condicionado à responsabilidade social do setor público, do setor
social e do setor privado, sem desconsiderar outras atividades
econômicas que contribuam para o desenvolvimento da nação.
Já no plano do direito internacional, outro motivo de
grande discussão é a ausência de normatização que regule o
exercício da atividade das transnacionais de maneira comum nos
diferentes países, havendo apenas códigos de ética facultativamente
seguidos pelas companhias, sem a tipificação de qualquer sanção
pelas práticas violadoras a direitos sociais.
Por outro lado, a União Europeia, na década de 1990,
publicou uma Resolução que dispõe sobre normas de conduta para
as empresas europeias que operam nos países em desenvolvimento,
visando instituir um Código de Conduta Europeu (UNIÃO
EUROPEIA, 1999). Ocorre que instituir um código internacional
para esse fim é algo bastante complexo, o que resultou em meras
recomendações às transnacionais.
É almejando acabar com esse tipo de situação, que cada
vez mais se tem buscado meios de conscientizar a sociedade, os
governantes e aqueles que detêm o poder de influir na tomada de
decisões das grandes companhias, buscando com isso, construir
um modelo econômico mais humanizado, sem que a dignidade
humana seja sacrificada em prol do acumulo de capital.
A já fragilizada proteção aos Direitos Humanos nos países
não desenvolvidos deve ser complementada pela adoção de boas
condutas por parte das empresas transnacionais, de modo a não
342
violarem a dignidade da pessoa humana, repercutindo na proteção
de seus próprios funcionários.
Assim, defende-se que a atuação das companhias
transnacionais em países não desenvolvidos, propriamente no
exercício de sua atividade econômica ou não, necessita
imediatamente de mudanças, moldando-se em um paradigma
humanista, pautado no respeito à dignidade de cada indivíduo, não
apenas por meio da melhor distribuição de renda, mas também pela
preservação dos recursos naturais, sem deixar de lado os ideais de
desenvolvimento sustentável ou outros elementos capazes de
propiciar melhorias na qualidade de vida das pessoas.
Contudo, caso inexistam mudanças, tem-se que a
humanidade caminhará rumo à total destruição do meio ambiente,
deixando às gerações seguintes apenas resquícios de uma sociedade
pautada em um progresso econômico irresponsável, cujo sacrifício
do planeta e a degradação da qualidade de vida foram o preço pago
na busca desenfreada pelo acumulo de capital.
Por fim, cabe esclarecer que não se busca converter as
companhias transnacionais em entidades beneficentes, mas apenas
incentivar a adoção de um modelo de gestão empresarial mais
preocupado com o bem-estar coletivo, sem que o acumulo de
riqueza seja entendido como um fim em si, mas apenas um
instrumento para a promoção do desenvolvimento social nos
países menos abastados.
Desta maneira, entende-se que tais companhias, mesmo
agindo em benefício da coletividade em algumas situações, podem
atuar com maior amplitude e efetividade, de modo a melhor
343
conduzir o desenvolvimento social no meio que as cercam,
impedindo a ocorrência de violaçõesa direitos fundamentais, bem
como auxiliandoo Estado na implementação de suas políticas
econômicas voltadas à promoção do bem-estare da manutenção da
dignidade daqueles que habitam seu território.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
345
Destarte, cada vez mais se tem buscado conscientizar os
dirigentes estatais e os gestores das companhias transnacionais
sobre a responsabilidade que essas possuem perante as pessoas que
dependem direta e indiretamente das respectivas empresas, pois o
acumulo de capital não deve ser buscado como um fim em si, mas
de modo que sirva à promoção do desenvolvimentonacional,
conforme os ditames da justiça social e do respeito aos valores
humanos.
A inclusão de valores humanos no exercício da atividade
econômica das transnacionais redundará no desenvolvimento dos
seres humanos em todas as partes do planeta permitindo um
paradigma sustentável de proteção ao meio ambiente, de proteção
social e melhor distribuição da riqueza.
Não há dúvidas do exercício da atividade econômica
permitir o atendimento das necessidades humanas em todas as suas
dimensões, assim, a atuação das empresas transnacionais tem de
ser pautada pelos direitos humanos, enquanto normas jurídicas,
voltadas à ordenação de sua atuação para concretização da
realização dos valores humanistas, pois, o capital e meio e não fim
da atividade empresarial.
346
REFERÊNCIAS
347
OECD. InformationBrief. OECD Publishing. 2015. Disponível
em <http://www.oecd.org/ctp/beps-reports-2015-information-
brief.pdf.>. Acesso em: 21 abr. 2018.
OLIVEIRA, J. S.; BENACHCIO, M.. Globalização e Estado:
considerações sobre a humanização do direito econômico.
Revista de Direito, Economia e Desenvolvimento Sustentável.
v. 3, n. 1. Brasilia. jan/jun. 2017.
349
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: CRÍTICAS
FEMINISTAS À NEUTRALIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
1
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-
PUCRio.
350
KEYWORDS: Gender; Human rights; Neutrality; Freedom;
Equality.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. O gênero como construção social.
3. Teorias feministas do direito: uma crítica à neutralidade do
sistema jurídico.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
351
Tal inequívoco avanço normativo coexiste, porém, ainda
no século XXI, com uma sociedade profundamente marcada pela
opressão, pela desigualdade e pela discriminação de gênero.
Segundo o Global Gender Gap Report de 2014 (HAUSMANN et
al., 2014), ranking que mede a magnitude da disparidade de gênero
em todo o mundo, atribuindo a primeira posição ao país que
apresenta o maior padrão de igualdade e a última ao maior quadro
social de desigualdade, o Brasil ocupa o longínquo 71º lugar, em
um ranking de 142 países. A título comparativo, outros latino-
americanos, como Nicarágua, Equador, Cuba e Argentina,
ocuparam, no mesmo ano, respectivamente, o 6º, 21º, 30º e o 31º
lugar. O índice avalia a participação e as oportunidades econômicas
entre homens e mulheres, o nível comparativo de instrução, de
saúde e o empoderamento político em cada sociedade.
No Brasil, apesar de terem, em média, mais tempo de
estudo superior do que os homens (7,9 anos entre as mulheres e 7,4
anos entre os homens), as mulheres seguem percebendo, em média,
73,7% do rendimento por eles recebido (IBGE, 2011, p. 37). As
mulheres continuam, também, de forma majoritária,
desigualmente presentes nos espaços públicos e privados. Em 2009,
49,1% dos homens declararam cuidar dos afazeres domésticos
contra 88,2% das mulheres (IPEA, 2011, p. 37). A taxa de
participação no mercado de trabalho é praticamente invertida,
58,9% das mulheres possuem ocupações profissionais fora do seu
próprio ambiente doméstico contra 81,6% dos homens (IPEA,
2011, p. 27). De se ressaltar também que, no mesmo período,
apenas 26,1% das mulheres chefes de família participavam de
entidades familiares formadas por casais, enquanto a maioria,
352
49,4% das mulheres nessa posição, encontravam-se em famílias
monoparentais. Em 2013, reforçando esse cenário de desigualdade,
quase 64% dos brasileiros e brasileiras entrevistados pelo Ipea
afirmaram concordar total ou parcialmente com a ideia de que “os
homens devem ser a cabeça do lar” (IPEA, 2014, p. 4).
O tipo de violência a que estão predominantemente
submetidas as mulheres também é um sinal de sua condição ainda
profundamente assimétrica na sociedade. A taxa de estupros
cometidos no Brasil, em 2012, ultrapassou a quantidade de
homicídios no país (FBSP, 2013, p. 8) e em 2013, mais de 58%, entre
3.810 brasileiros entrevistados, concordaram, total ou
parcialmente, com a afirmativa de que “se as mulheres soubessem
como se comportar, haveria menos estupros” (IPEA, 2014, p. 23).
Em pesquisa realizada com aproximadamente 8.000 mulheres
brasileiras em 2013, 99,6% das participantes afirmaram que já
sofreram assédio e 81% informaram que já tiveram cerceada sua
liberdade de ir e vir por medo de sofrê-lo (THINK OLGA, 2013).
No período de 2009 a 2011, estima-se que ocorreram no Brasil, em
média, 5.664 feminicídios (mortes de mulheres decorrentes de
conflitos de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres) a cada
ano. Esse número representa uma taxa de 472 a cada mês, 15,52 a
cada dia ou 1 mulher morta, pelo fato de ser mulher, a cada hora e
meia (GARCIA et al., s.d., p.1 e 3).
Esses dados extremamente recentes compilados de
pesquisas e de instituições variadas revelam de forma eloquente a
persistência, no Brasil, de um notório abismo entre direito e eficácia
social no que tange à posição da mulher na sociedade. Mais do que
353
isso, eles revelam aquilo que de agora em diante denominaremos
sistema sexo/gênero, assim nomeado originalmente por Gayle
Rubin (1975) e aqui adotado no sentido exposto por Joan Scott,
como sistema de significados que articulam normas de relações
sociais e “processos de diferenciação e de distinção” entre sujeitos
em razão do seu gênero (SCOTT, 1995, p. 82). Em outras palavras,
a existência do sistema sexo/gênero se observa quando se faz
reiterados determinada construção sociocultural e aparato
semiótico que atuam como um sistema de atribuição de
“significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco,
status dentro da hierarquia social, etc.) a indivíduos dentro da
sociedade” (LAURETIS, 1994, p. 212) pelo só fato de serem homens
ou mulheres. Esse sistema social, claramente demonstrado na
realidade brasileira pelos dados acima, possui inegável impacto na
conformação e na vivência desigual dos direitos pelos seres
humanos.
355
personalidade, enquanto que os “direitos das mulheres” são
restritos àqueles que exclusivamente dizem respeito às questões de
gênero.
Os estudos feministas foram/são responsáveis,
justamente, por lançar uma luz sobre essas representações
femininas e masculinas, tal como elas apareciam – aparecem –
naturalizadas nas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive
no discurso jurídico. Da observação de que as noções de masculino
e de feminino são reiteradamente pautadas pela abstração, pelo
essencialismo e pelo binarismo surge, então, o questionamento do
papel da cultura e da natureza na formação do que se entende por
mulher(es). Passa-se a evidenciar, desse modo, o caráter
socialmente construído da identidade de gênero e a sua
irredutibilidade a uma essência naturalista ou biologizada. Eis o
fundamento do seu célebre enunciado: “ninguém nasce mulher:
torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p. 361).
A noção de gênero, proposição elaborada por volta dos
anos 1950 pelos estudos feministas, e constantemente discutida e
repensada desde então, surge exatamente como um contraponto à
explicação pretensamente natural dada às identidades subjetivas a
partir do sexo. A ideia de que os seres humanos detêm sexo e gênero
veio, assim, de encontro ao determinismo biológico considerado
implícito na sexualidade (SCOTT, 1995, p. 72) de que mulheres são
mulheres porque assim são biologicamente constituídas e, desse
modo, distinguem-se naturalmente dos homens, que também o são
porque nasceram como tais.
Com o desenvolvimento dos estudos feministas, o gênero
passa a ser vislumbrado não como uma qualidade ou como um
356
predicado de corpos, ou mesmo como condições dadas
aprioristicamente aos seres humanos (LAURETIS, 1994, p. 208),
mas como resultado de uma sutil tecnologia, que conduz à
percepção do caráter social e culturalmente construído dos papéis
e representações do masculino e do feminino (SCOTT, 1995, p. 75).
Nesses termos, até mesmo condições historicamente tidas como
inequivocamente dadas a priori e essenciais a uma definida
condição feminina, como, por exemplo, a gravidez, não podem
mais ser tidas como decorrências exclusivas das condições
biológicas que as permitem. Revelam-se, todas elas, de alguma
maneira, como construtos moldados socialmente, frutos “do lugar
social que ocupa[m] - como as estruturas do mercado de trabalho,
os arranjos domésticos, os sistemas de responsabilidade civil, as
escolas, as prisões” (BARTLETT, 2012, p.104, tradução nossa).
A vida social passa a ser percebida e passível de ser
qualificada como generizada (HARDING, 1996, p. 17), pois
produzida por meio destes três processos, dinâmicos e
interdependentes entre si, sintetizados por Harding (1996, p.17 e
47-51): o simbolismo de gênero, ou totemismo de gênero, a
estrutura de gênero, ou divisão do trabalho em consonância com o
sexo, e o gênero individual. O simbolismo de gênero é a
consequência da assignação de metáforas dualistas de gênero a
dicotomias que frequentemente não têm qualquer relação com
diferenças de sexo, na associação da racionalidade, da objetividade,
da abstração e da universalidade ao masculino e da irracionalidade,
da subjetividade, da contextualização e da singularidade à condição
feminina. A estrutura de gênero, por sua vez, é o resultado do
357
recurso a esses dualismos para a justificação de uma divisão do
trabalho, das atividades e dos próprios lugares sociais de acordo
com o gênero, como ocorre na associação da jurisdição e da ciência
ao universo masculino e das atividades que exigem o cuidado e o
afeto ao feminino. Por fim, o gênero individual é a construção
social da subjetividade, dos traços da personalidade, das crenças,
dos valores e das condutas correspondentes a homens e a mulheres,
forjando “as identidades e desejos generizados em uma cultura
particular” (HARDING, 1996, p. 50, tradução nossa).
O estudo do gênero como nova categoria analítica foi
capaz, desse modo, de desconstruir a ideia de pessoa como algo
dado e estável e de revelá-la como produto constante, contingente
e múltiplo, sujeito às inflexões dos símbolos e representações
culturais, das instituições e organizações sociais e políticas e das
subjetividades identitárias (SCOTT, 1995, p. 86). A construção ou
a materialização do gênero feminino é, como elucidou Donna
Haraway, distinção que tem um lugar social, histórico e semiótico
(HARAWAY, 1995, p. 35) e que é constantemente marcada por
referências de toda a ordem, não excluindo, entre vários, fatores
religiosos, científicos, jurídicos, familiares, educacionais,
econômicos e políticos. Nesses termos, necessariamente instável e
histórico, a noção de gênero passa a não identificar, ou pelo menos
a questionar, a ideia de um ser a priori, unívoco e substantivo,
considerando como pessoa, ao contrário, um fenômeno dotado de
inconstância e de contextualidade (BUTLER, 2013, p. 29).
Em suma, ao insistir sobre a condição substancialmente
social das diferenças fundadas no sexo, o gênero se torna uma
categoria central para a compreensão da própria sociedade
358
(SCOTT, 1995). Observa-se, assim, uma virada epistemológica
(LOURO, 2002, p. 15), em que se passa de um cenário de produções
de conhecimento que têm por objeto seres definíveis
atemporalmente, para outro que não poderia mais deixar de levar
em conta as construções contextualizadas e os poderes incidentes
sobre as identidades de gênero. Permitem-se, por conseguinte,
novas investigações acerca dos processos de construção e de
conformação sociais e culturais dos homens e das mulheres, com
foco para as maneiras pelas quais os sujeitos se constituem em meio
às relações de poder (LOURO, 2002, p.15).
359
As teorias feministas do direito identificam-se em um
propósito compartilhado de estudar, de modo crítico, a relação
entre o direito e a posição social subordinada ocupada pelos
sujeitos de direito em razão do sexo/gênero. Lacey (2004)
organizou as diferentes premissas e propostas do pensamento
crítico-filosófico do direito em cinco grupos: o feminismo liberal, o
feminismo marxista ou socialista, o feminismo radical, o
feminismo da diferença ou cultural e o feminismo pós-moderno ou
pós-estruturalista, a partir de cuja divisão se procederá à análise
proposta.
O primeiro grupo de teorias, o das feministas liberais,
insere-se no âmbito do movimento feminista liberal igualitário.
Tem como objetivo o combate da desigualdade entre homens e
mulheres e a busca pela igualdade formal, política e civil. Defende,
para tanto, a expansão às mulheres dos direitos conferidos
historicamente somente aos homens, especialmente os relativos à
liberdade e à igualdade, como o acesso à educação e ao mercado de
trabalho, a igualdade de salários e de direitos no casamento, a plena
capacidade jurídica, o direito ao sufrágio, etc. (TOUPIN, 1998, p.
11). As feministas liberais foram responsáveis por explicitar e
desconstruir o argumento, subjacente à não equiparação às
mulheres dos direitos titularizados pelos homens, de que as
mulheres seriam distintas – leia-se: inferiores – quanto à sua
capacidade racional e que, portanto, o direito deveria cuidar,
paternalmente, de sua proteção, ao invés de igualar direitos.
De fundamental e basilar importância é, portanto, o foco
da crítica ao direito por parte das feministas liberais, que centram a
sua construção teórica e luta política na igualdade de homens e
360
mulheres em suas capacidades e direitos (JARAMILLO, 2000, p.
41). As teorias inseridas nesse grupo variam entre aquelas mais
voltadas ao alcance da igualdade formal, como igualdade perante o
direito, e as que denunciam casos de denegação da igualdade
material, sublinhando a permanência de desigualdade a despeito de
sua afirmação legal (OLSEN, 1990, p.10-11). Todas, porém, unem-
se no propósito de identificação das condições sexistas do direito
manifestadas pela exclusão das mulheres e pela sua manutenção em
uma posição desfavorecida, propondo, como estratégia, a reforma
da ordem jurídica para reversão dessa condição injusta.
As reflexões desenvolvidas pela corrente liberal apontam
também para a crítica aos processos de socialização e de educação,
que, ao rotular as mulheres como seres inferiores, determinam a
desigualdade de gênero. A crítica à ordem jurídica reside, pois, no
indevido acolhimento, pelo direito, dessa diferenciação social
opressiva, demonstrada pela não atribuição às mulheres dos
mesmos direitos facultados aos homens. A diferenciação, ao ser
endossada e produzida pelo direito, garante aos homens a plenitude
de participação na vida pública da sociedade, enquanto mantém as
mulheres cingidas ao papel de mãe e de esposa na esfera doméstica
familiar e subordinadas aos homens na prática dos atos da vida
civil. A norma jurídica, desse modo, torna-se fator da desigualdade
de gênero na medida em que é forjada sob os influxos da opressão
social e, por consequência, não prevê direitos iguais a homens e
mulheres. O direito é reconhecido, pelas feministas liberais, como
um instrumento passível de empoderar todos os sujeitos, homens e
mulheres, estando a sua falha, acidental, não essencial e corrigível,
361
no plano dos destinatários das normas, na medida em que ainda
deixa de acolher as mulheres como sujeitos de todos os direitos e
de inseri-las, equivalentemente aos homens, no exercício pleno da
cidadania.
O pensamento acima explicitado conduz ao
questionamento do senso comum de que o direito é racional,
abstrato e objetivo, identificando a sua irracionalidade,
subjetividade e não universalidade no fato de ele próprio lesionar,
excluir e negar direitos às mulheres (OLSEN, 1990, p.10). Em
outras palavras, ressalta-se no direito o problema da colocação do
sexo como critério legal, em desfavor das mulheres, por meio de leis
discriminatórias que estabelecem diferenças de gênero inexistentes
(WOLLSTONECRAFT, 1972), ao invés de reconhecer a
desigualdade das mulheres na sociedade e de atuar no sentido de
combatê-la. A colocação das mulheres em situação de desvantagem
pelo próprio direito é percebida, por exemplo, ao serem a elas
atribuídas, como no casamento e no divórcio, menores porções de
recursos materiais, ou ao serem julgadas por meio de parâmetros
diferentes e prejudiciais em comparação com os homens, como na
aferição da promiscuidade sexual, e ao não serem reconhecidos, em
relação a elas, determinados danos sofridos (justamente aqueles
que outorgam “vantagens” aos homens), como na não
regulamentação da prostituição ou na impunibilidade do assédio,
ou, ainda, na dupla vitimização da mulher no estupro. Reclama-se
do direito, a partir dessa reflexão, que abandone a dualização
sexuada que associa às mulheres valores inferiorizados
socialmente, e que passe a reconhecê-las como iguais aos homens e
portadoras das capacidades de racionalidade, de objetividade, de
362
abstração e de universalidade, atribuídos injustificadamente
somente a eles.
Contribui, portanto, o pensamento liberal feminista, com
a exigência de que se cumpram, efetivamente, as promessas do
liberalismo, com extensão dos ideais liberais também às mulheres.
Figura o modelo, desse modo, como um apontamento do não
acolhimento por parte do direito das premissas universais do
liberalismo, a pressupor o tratamento igual a todos os seres
humanos em condições de igualdade (LACEY, 2004, p. 7). Destaca-
se, assim, a incongruência do pensamento liberal, que em sua forma
excludente de vários grupos, apresenta-se incompatível com suas
premissas supostamente inclusivas: “a promessa liberal foi
cumprida mais tardiamente para alguns grupos do que para outros,
e para alguns está ainda longe de se tornar uma realidade” (LACEY,
2004, p. 6, tradução nossa). Questiona-se, em suma, a ausência de
abertura efetiva do direito às mulheres, defendendo-se que
usufruam da mesma condição normativa injustificadamente
atribuída apenas aos homens e asseverando-se que sexo/gênero não
devem ser tomados como características suficientemente relevantes
para a diferenciação da proteção jurídica.
Já o marxismo e a contestação à opressão socioeconômica
inspiraram por sua vez a corrente feminista marxista, ou feminismo
igualitário, que discute a relação entre a exploração sexual, a
desigualdade de gênero e a estrutura econômica capitalista fundada
na divisão de classes e na propriedade privada. Analogamente ao
que ocorre com o feminismo liberal, o feminismo marxista
constitui-se na crítica à própria teoria marxista e na sua
363
reformulação a partir da observação do esquecimento da
especificidade da condição das mulheres na sociedade capitalista.
Nota esse conjunto de teorias que a compreensão marxista de que
as divisões sociais são um reflexo condicionado da base econômica
material da sociedade, consistente essa nas formas pelas quais se
produzem os bens necessários à vida humana, é insuficiente para
explicar a circunstância de que todos os homens, ricos ou pobres,
obtêm vantagem da exploração das mulheres (LACEY, 2004, p.11).
Propondo uma mudança na construção elaborada por
Marx, a teoria feminista marxista identifica no direito a reprodução
do patriarcado, concebido esse como “um sistema de pensamento
e uma prática social de afirmação do poder dos homens contra as
mulheres, que se expressa principalmente sobre o corpo delas”
(RABENHORST, 2009, p. 26). O patriarcado, subproduto do
capitalismo, impõe a divisão sexual do trabalho, atribuindo ao
homem a produção social por meio do trabalho assalariado e à
mulher o cuidado doméstico e a garantia do desenvolvimento da
prole. Apresenta-se, assim, como a razão da subordinação das
mulheres aos seus maridos na esfera privada familiar (inserindo-se
a instituição monogâmica do casamento e a família como o local
dessa subordinação) e, conseguintemente, como produtor do
desvalor social feminino (TOUPIN, 1998, p.14).
Inauguram esses estudos uma perspectiva teórica que
aproxima a exploração no processo de produção econômica ao que
ocorre no processo de reprodução sexual. Observa-se que, na
estrutura social baseada na divisão sexual do trabalho, o processo
de reprodução é explorado pelos homens da mesma maneira que o
trabalho produtivo da classe trabalhadora é explorado pelos
364
capitalistas (LACEY, 2004, p.11), apontando-se, assim, que a
subordinação de classe não pode ser analisada com a
desconsideração de outra forma de opressão social que é a
subordinação de caráter sexual. Contribuem as teorias feministas
marxistas, desse modo, para o aprofundamento das reflexões
jurídicas a partir da crítica do poder masculino e da produção da
alienação em relação às mulheres, na medida em que identificam o
papel do direito, produto dessa infraestrutura, como reprodutor da
dominação e da exploração capitalistas.
O foco na igualdade é transferido a um estudo da
diferença com o denominado feminismo radical, que surge do
reconhecimento de que a igualdade jurídica entre homens e
mulheres não alterou substancialmente a realidade da submissão
feminina na sociedade. Buscando retornar à raiz do sistema social
para a compreensão da persistência da subordinação das mulheres
aos homens (TOUPIN, 1998, p. 22), a corrente radical inicia se
contrapondo ao individualismo do feminismo liberal, que
ignoraria, ao focar exclusivamente nos indivíduos, a condição das
mulheres enquanto classe. O feminismo radical identifica
profundas diferenças na vivência dos sujeitos socialmente
construídas de modo a permitir a dominação a partir do sexo [o
feminismo radical frequentemente se concentra na diferença sexual
e não na dimensão de gênero (LACEY, 2004, p. 9). Essas diferenças,
que passariam pela gravidez e pela maternidade, e que chegam à
baixa proporção de mulheres nos espaços de poder e nas profissões
de prestígio social, à remuneração inferior para o exercício das
mesmas funções, à jornada de trabalho mais longa em razão da
365
vinculação aos afazeres domésticos e à feminização da pobreza,
devem ser levadas em conta sob pena de se obter uma igualdade
esvaziada de sentido prático.
À análise crítica do direito, o feminismo radical
acrescenta o aprofundamento da discussão sobre o patriarcado,
deslocando o foco do debate para uma discussão sobre o papel das
normas jurídicas e da ordem estatal como essencial e
deliberadamente opressor e responsável pela perpetuação da
dominação de mulheres. Enquanto para as marxistas, o capitalismo
ocupa um espaço central na explicação da dominação masculina e
o patriarcado um espaço secundário, para as radicais, o que
acontece é exatamente o oposto: o patriarcado passa à posição
central das reflexões (TOUPIN, 1998, p. 23) ou, nos termos
colocados por Catherine MacKinnon: "a sexualidade é para o
feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que é mais
próprio do indivíduo e ao mesmo tempo mais dele retirado”
(MACKINNON, 1989, p. 4, tradução nossa).
As reflexões empreendidas por esses estudos destacam
como as instituições no patriarcado - e junto delas as normas
jurídicas – são moldadas a partir da linguagem, das perspectivas e
dos interesses masculinos (sendo esses centrados na apropriação da
sexualidade e na modelação do desejo femininos). Reforça-se, por
conseguinte, a crítica da insuficiência da afirmação dos direitos das
mulheres para que um ordenamento jurídico seja efetivamente
pautado pela igualdade e chama-se atenção para a atuação do
próprio direito na produção da dominação das mulheres
(MACKINNON, 1989, p. 161-162). Indagam as feministas radicais,
assim, quanto à possibilidade de a igualdade e a liberdade
366
efetivamente empoderadoras das mulheres serem alcançadas com
a assimilação e a homologação (LORETONI, 2006, p. 493) de um
direito feito pelos e para os homens.
O feminismo radical contribui, portanto, para a reflexão
filosófica-jurídica ao assinalar uma faceta intrinsecamente
masculina do direito (SMART, 2000, p. 36-37), investigando seu
comprometimento com a dominação heterossexual das mulheres
(RABENHORST, 2009, p. 30) e com uma necessária distinção, seja
política, seja biológica, de gênero. Questiona essa corrente o
verdadeiro benefício da expansão dos direitos das mulheres
(RABENHORST, 2011, p. 20) - não sem reconhecer conquistas
como o direito à penalização do estupro entre cônjuges e a
regulamentação do assédio sexual - e propõe estratégias diversas,
desde o desenvolvimento de uma cultura feminina alternativa, até
a ruptura direta com o patriarcado (TOUPIN, 1998, p. 23-24).
A perspectiva da diferença levou, ainda, a outra vertente
de pensamento, mais conhecida como feminismo cultural,
marcada pelos estudos, conduzidos entre outras por Carol Gilligan
(1982), das distinções na socialização feminina e masculina, da sua
diversa formação moral e, por consequência, das formas como
homens e mulheres passam a realizar específicos e distintos
julgamentos morais. As autoras sustentam a existência de dois
padrões de raciocínio distintos e reiterados, respectivamente, entre
homens e mulheres. Aquele considerado tipicamente masculino
consistiria na solução de dilemas por meio da verificação abstrata
da relativa posição de um princípio universal em relação a outro e
pela premissa de que todos devem ser tratados como iguais. O
367
padrão feminino se voltaria para a verificação concreta da melhor
forma de se manter a pacificidade das relações sociais, com base na
premissa de que não se deve ferir ninguém (GILLIGAN, 1982,
p.100-105).
Discordando da ideia de que a reforma jurídica é
suficiente ao fim da opressão feminina, essa corrente também
enxerga no direito, ao contrário, uma condição intrinsecamente
masculina. Em primeiro lugar, pela manifesta preponderância de
homens no universo jurídico, o que inclui desde legisladores,
advogados, juízes e promotores, até doutrinadores e professores.
Em segundo lugar, pela adoção, pelo direito, de uma linguagem
exclusivamente masculina, tanto em sua elaboração, quanto em sua
hermenêutica e aplicação, alijando-se a voz das mulheres e, por
conseguinte, ocultando-se valores tidos como socialmente
desejáveis, como a interdependência, a confiança, a ausência de
hierarquia e a colaboração (TONG, 1998, p. 49).
Identifica o feminismo da diferença, desse modo, a
reprodução, pelo direito, dos valores da racionalidade, da
objetividade, da abstração e da universalidade, que seriam
características tidas como propriamente masculinas (SMART,
2000, p.36-37) e elevadas à condição de superioridade em relação
aos valores contrapostos como típicos do feminino (GILLIGAN,
1982). Essa reprodução é observada, por exemplo, nas estruturas
hierarquizadas do direito, centradas no litígio e dependentes de
categorias abstratas, racionais e objetivas, em detrimento de
estruturas horizontalizadas ou em rede, centradas na conciliação e
na mediação e voltadas para soluções que incorporam o valor da
emoção, das particularidades e da contextualidade do caso.
368
Argumenta-se, nesses termos, que o papel de gerar, de amamentar
e de criar filhos é responsável por conferir às mulheres uma
capacidade distintiva de empatia com o outro e com o mundo
natural (GILLIGAN, 1982, p.10), capacidade essa que é, no entanto,
subaproveitada ou injustificadamente desprezada pelas instituições
jurídicas vigentes.
Sustenta essa teoria, por conseguinte, que o direito, ao se
basear em critérios e categorias amoldados à realidade dos homens,
atua não apenas refletindo a dominação existente na sociedade,
mas, também, como parte de um sistema de dominação masculina.
Portanto, muito mais do que as leis, é o poder masculino no direito
que deve ser desafiado e transformado (OLSEN, 1990, p.9 e 14). O
problema identificado pelo feminismo cultural, como se vê, não
está na diferença entre homens e mulheres, mas na construção do
pensamento jurídico sobre as bases do ponto de vista e dos
interesses masculinos (supostamente centrados na compreensão do
sujeito como ser isolado, que teme a intimidade e valora a
violência), deixando-se de usufruir plenamente das contribuições
provenientes das experiências e perspectivas das mulheres
(MORRISON, 2012, p. 594). Em resumo, ao contrário do
prevalecente, defende-se que o modo de raciocínio e de atuação no
mundo masculino não constitui nem a única nem a melhor forma
de se pensar ou de se resolver problemas, mas, simplesmente, a
maneira pela qual os homens, preferencialmente, fazem-no. A
contribuição crítica ao direito pelo feminismo cultural está,
portanto, no questionamento tanto da exclusão explícita das
mulheres pela lei, quanto das presunções implícitas e das exclusões
369
também dessas decorrentes (LACEY, 2004, p. 13), centrando-se o
foco de análise na busca pelo desenvolvimento de direitos especiais
reconhecedores dos pontos de vista e de práticas particulares das
mulheres.
Finalmente, as correntes pós-estruturalistas feministas,
inscritas no contexto de reflexões contestadoras das metateorias e
das grandes narrativas (LACEY, 2004, p. 12), vêm interpelar a
própria questão identitária e as categorias centrais do direito e do
feminismo. Suas reflexões partem de uma compreensão do gênero
como o produto do discurso de poder que, ao invés de empoderar
os sujeitos, oprime-os por meio das próprias noções de masculino
e de feminino. As correntes pós-feministas chamam atenção para a
consciência do pluralismo, da instabilidade e da heterogeneidade
das categorias normativas, criticando, igualmente, a persistência da
opressão no próprio discurso e sujeito feministas ao esconder, por
traz de uma ideia unívoca de mulher, um padrão ocidental, branco,
cisgênero e heterossexual. Judith Butler, por exemplo, adverte que
o gênero não pode ser considerado a despeito de sua intrínseca
inconstância e contextualidade, não indicando jamais um ser
definido, definitivo, substantivo, mas “um ponto relativo de
convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes” (BUTLER, 2013, p. 29). Preocupam-
se essas correntes, desse modo, com a multiplicidade de identidades
e de subjetividades (LACEY, 2004, p.12), que não são nada mais do
que “o resultado de interações sociais que se refletem e se criam na
linguagem” (JARAMILLO, 2000, p. 50, tradução nossa). O sexo,
como propõe Butler, não pode ser tido como algo estático, nem
dado, mas sim como um processo de materialização sempre
370
incompleto e produzido pela reiteração temporal de normas
regulatórias (BUTLER, 2000, p. 111).
Os estudos pós-estruturalistas vêm, assim, confrontar o
essencialismo da categorização de homens e mulheres feita por
meio de valores distintos e duais, sustentando que tal normatização
é a própria origem das formas de opressão. Repudia-se tanto a
vinculação do direito à racionalidade, à objetividade, à abstração e
à universalidade, quanto a prevalência desses valores em face da
irracionalidade, da subjetividade, da concretude e da
particularidade, por se rejeitar, antes de tudo, todas as formas de
dualismo - como coloca Olsen: “o direito é tão irracional, subjetivo,
concreto e particular como racional, objetivo, abstrato e universal”
(OLSEN, 1990, p.14, tradução nossa). O direito seria, portanto,
opressivo para os sujeitos, e especialmente para as mulheres, não
por ser essencialmente masculino ou sexista, mas por funcionar
como um processo produtor de identidades fixas (SMART, 2000,
p. 40) ou, nos termos postos por Butler, como um processo
normativo e reiterado de materialização de subjetividades
(BUTLER, 2000, p.111). O direito tem gênero, nas palavras de
Smart, porque “insiste sobre uma versão específica da diferenciação
de gênero” (SMART, 2000, p. 39, tradução nossa), que o fixa em
padrões rígidos de significados (SMART, 2000, p. 39),
determinando subjetividades e identidades que não são pensadas
senão como atreladas necessariamente a um gênero (SMART, 2000,
p. 40-41). Instiga-se, assim, a investigação da maneira como o
gênero opera dentro do direito e como ele próprio opera para
produzir o gênero (SMART, 2000, p. 40), propondo que, em última
371
análise, a concretização da liberdade depende do desfazimento do
binarismo gerador de gêneros polarizados e redutor das
possibilidades de existência.
O feminismo pós-estruturalista atribui ao sistema
jurídico, em síntese, mais do que uma condição masculina, o papel
de ser um dos principais instrumentos dessa constituição do
sexo/gênero (RABENHORST, 2011, p .20), funcionando como
uma tecnologia a conformar e produzir subjetividades
(LAURETIS, 1994). A heteronormatividade e o binarismo homem
e mulher são críticas especialmente direcionadas ao direito por essa
corrente que, ao desconstruir a neutralidade e a naturalidade das
noções de sexo, de gênero e de sexualidade, passa a questionar o
tratamento jurídico rígido e limitante dado às mulheres, aos
homossexuais, aos transexuais e a todas as várias possibilidades de
existência identitária, de expressão corporal e de vivência do desejo.
Em suma, o feminismo pós-estruturalista, ao desafiar os conceitos
de emancipação, de autonomia, de sujeito e também de mulher,
tenciona o próprio feminismo a subverter as identidades de gênero
tradicionais para que se possa, efetivamente, pensar em um projeto
filosófico-jurídico que garanta a todos seres humanos livres
possibilidades de existência (EICHNER, 2001, p. 4 e 30).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
373
uma ideologia patriarcal conformadora de instituições e de
indivíduos (JARAMILLO, 2000, p. 52).
Preocupa-se com a afirmação, expressa ou implícita, de
uma neutralidade da natureza humana que encobre, como
asseverado por Lacey (2004), as diferenças socialmente construídas
entre sexos e gêneros. A percepção desse silenciamento em relação
à diversidade e à desigualdade faz surgir, por consequência, em
relação ao direito, “questionamentos quanto à pertinência dos
direitos universais e quanto à aptidão do sistema jurídico de fazer
justiça para sujeitos posicionados de formas distintas na sociedade”
(LACEY, 2004, p. 8). Por outro lado, chama-se a atenção, também,
para um disseminado sistema de dualismos atrelado ao sistema
sexo/gênero que opõe e contrasta elementos como a razão à
emoção, o ativo ao passivo, o pensamento ao sentimento, a cultura
à natureza, o objetivo ao subjetivo, o abstrato ao concreto e o
universal ao particular (OLSEN, 1990, p.3). Essas divisões
valorativas binárias guardam uma importante diferenciação de
poder entre homens e mulheres, apresentando-se o sistema social
de modo fortemente hierarquizado e sexualizado: “o homem sendo
lembrado e representado pelos primeiros elementos de cada par e a
mulher pelos segundos, estes rigidamente menos valorizados que
aqueles” (LACEY, 2004, p.10).
É, de fato, corrente a atribuição e a vinculação de uma
suposta natureza feminina, de forma tanto descritiva quanto
normativa, a uma série de elementos tidos como inferiores – a
emoção, a passividade, o sentimento, a natureza, o subjetivo, o
concreto, o particular. Em contraste, associam-se à natureza
masculina os elementos contrapostos, que além de considerados
374
hierarquicamente superiores, são tidos como mais adequados à
vida pública (e, consequentemente, à política e ao direito).
No âmbito do direito, é importante considerar como,
historicamente, a imagem das mulheres é representada em
associação a um parco senso de justiça ou, simplesmente, vinculada
à inaptidão para o exercício da prudência. Em contraponto, vale
observar como a construção simbólica da identidade do juiz e do
profissionalismo na magistratura, supostamente calcados em uma
ideia de neutralidade, está consistentemente atrelada à ideia de
homem ou a caracteres tidos como masculinos.
Os questionamentos aqui suscitados, ao servirem à crítica
quanto ao caráter neutro do sistema jurídico, suscitam
investigações quanto à forma como esse sistema, mesmo quando
fundado em ideais de igualdade e de liberdade de todos os sujeitos,
deixa de responder à realidade e às demandas das mulheres
(DAHL, 1993, p. 5). Identifica-se no direito o caráter ilusório de sua
aparência de universalidade e de imparcialidade, a revestir, como
apontado por Anna Loretoni, “categorias teóricas que, na realidade,
implicam a adesão a um modelo político-ideológico” (LORETONI,
2006, p. 492).
Inaugura-se, assim, a necessidade de construção de novas
concepções, relações e aproximações entre as ideias de igualdade e
de diferença, problematizando-se o distanciamento do direito da
esfera privada e das implicações existentes entre essa e a esfera
pública e censurando-se a forma discriminatória de atuação do
direito em face dos corpos, das identidades e dos modos de
existência. Os estudos feministas aprofundam o reconhecimento de
375
que os discursos jurídicos de igualdade e de liberdade carecem de
eficácia social, na medida em que as atuações e os silêncios
produtores e reprodutores da opressão feminina podem ser
encontrados em todos os âmbitos da atividade jurídica (legislação,
hermenêutica e aplicação). Desconstrói-se, desse modo, o discurso
de neutralidade quanto às questões de gênero, hábil a ocultar uma
atuação voltada à conservação da hegemonia tradicional da
sociedade (DAHL, 1993, p.18).
A reflexão promovida pela teoria feminista do direito
parte, então, dessas premissas acima alinhavadas, que podem ser
reunidas, como dispôs Claudia de Lima Costa, na assunção da
“necessidade de construção de articulações entre as diversificadas
posições de sujeito” (COSTA, 2002, p. 61). Conduz, assim, ao
desvelamento da falsa univocidade e abstração das noções de
pessoa e de sujeito de direito e ao destaque da impossibilidade de o
direito se ver distanciado da política, da moral e do resto das
atividades humanas, abrindo espaço para se pensar sobre as
questões de forma mais propositiva e criativa (OLSEN, 1990, p.19).
Mais além, permite sublinhar a existência de um confronto, ainda
em disputa no Estado Democrático de Direito brasileiro, entre o
ideário individualista da modernidade e os processos identitários
de grupo, reafirmando a necessidade de se pensar diferenças no
espaço público, especialmente no espaço jurídico, para sujeitos que
apresentam uma específica identidade coletiva (LORETONI, 2006,
p. 489-490).
A investigação crítica feminista do direito ora proposta,
ao duvidar da “estabilidade abstrata das categorias jurídicas”
(RABENHORST, 2009, p.23), permite apontar que a ideia de
376
neutralidade, assumida como fator de isonomia e de objetividade
pelo Estado de Direito, possui também outra face, a do reforço às
desigualdades sociais estruturais antecedentes ao direito e inerentes
à sua própria jurisprudência (MORRISON, 2012, p. 585). O direito
não pode ser avesso às questões de sexo/gênero (RABENHORST,
2011, p. 19), sob pena de se opor à própria sociedade, já que ao se
fazer passar por neutro nesse campo, funciona, ao contrário, como
fator de aniquilamento, de silenciamento ou de invisibilização de
diferenças concretamente vividas na realidade. Todas essas
constatações encontram-se fartamente demonstradas em diversos
momentos da vivência jurídica brasileira, seja em leis
discriminatórias, seja em interpretações e construções doutrinárias
fundadas em estereótipos (RABENHORST, 2009, p. 31), seja,
finalmente, em decisões judiciais que silenciam ou mitigam as
perspectivas e experiências das mulheres 2.
Conclui-se, desse modo, que após a luta e a afirmação
jurídicas dos direitos de liberdade e de igualdade entre homens e
mulheres (conquista não exaurida, porém, nem no plano das
normas, nem no da efetividade do direito brasileiro), a crítica ao
direito deve ser aprofundada com a investigação da própria
concepção e formação dos sujeitos de direito a partir do gênero.
Necessário reconhecer que, ainda que homens e mulheres possam,
universalmente, reclamar o amparo da lei diante de uma violação,
2
Vide nesse sentido pesquisa em que analisei decisões recentes dos tribunais
brasileiros envolvendo direitos das mulheres, que mostrou como elas ainda são
reconhecidas e construídas como sujeitos de direito subvalorizados (SANTOS,
2014).
377
essa reivindicação se faz diante de algo já construído e estabelecido
segundo uma perspectiva prevalecente – e sutilmente apagada pelo
esforço de neutralização – que é androcêntrica.
Impõe-se, por conseguinte, a partir do reconhecimento
do sistema sexo/gênero e do seu impacto na subjetividade e na
vivência social, a reflexão sobre o concreto significado, para as
mulheres protegidas por esse direito, da igualdade, da diferença e
da liberdade.
Em síntese, para o debate de uma construção mais
efetivamente emancipatória e libertária do direito brasileiro, a
partir das contribuições trazidas pelas teorias críticas feministas, é
ponto de partida reconhecer que, historicamente, a elaboração, a
hermenêutica e a aplicação jurídicas apoiam-se em um falso
discurso de neutralidade de gênero (LORETONI, 2006, p. 492).
Esse discurso é sustentado por uma aparente igualdade legal,
fundada, no Brasil, na premissa de que a Constituição da República
de 1988 apenas admite distinções normativas entre homens e
mulheres que visem a atenuar as desigualdades sociais –
especialmente as relativas às discriminações no mercado de
trabalho e no âmbito familiar –, sabidamente constituídas
historicamente em desfavor da mulher. O aprofundamento da
análise das desigualdades de gênero, porém, permite chamar a
atenção justamente para a permanência de discriminações
ostensivas e indiretas no direito, incitando à investigação
minuciosa da “existência de arranjos que, embora aparentemente
neutros, servem, na verdade, para excluir ou colocar em
desvantagem um desproporcional número de mulheres” (LACEY,
2004, p.15).
378
REFERÊNCIAS
379
em http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-
content/uploads/2013/11/anuarioviolencia.pdf. Acesso em 5 jul.
2018.
380
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA et al.
Sistema de Indicadores de Percepção Social: tolerância social à
violência contra as mulheres. Brasília: Ipea, 2014.
382
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
Porto Alegre: Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
383
DIREITOS HUMANOS, DIREITO AMBIENTAL E
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
1
Professor Titular de Direito Civil da UERJ, Professor Permanente do PPGD da
UNESA/RJ e Professor Titular de Direito Civil do IBMEC/RJ. Mestre e Doutor
em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Desembargador
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF 2). Ex Conselheiro do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ).
384
and then the verification of some Brazilian legal decisions about the
subject.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Tribunais Regionais Federais.
3. Justiça Federal de Primeira Entrância.
4. Direito concreto.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
385
A história da Justiça Federal no Brasil se divide em duas
fases na República. A primeira se iniciou com o Decreto 848/1890,
mantendo-se com a Constituição de 1891, até ser concluída com a
promulgação da Constituição de 1937. A segunda fase se iniciou
com o advento da Constituição de 1946 (artigo 103), com a previsão
do Tribunal Federal de Recursos (TFR) como órgão recursal para
as causas em que houvesse interesse da União, além de ter
competência originária para as ações rescisórias de seus acórdãos e
os mandados de segurança quando a autoridade coatora fosse
Ministro de Estado, o próprio Tribunal ou o seu Presidente (artigo
104).
Na primeira fase a estrutura da Justiça Federal era bem
simples: o Supremo Tribunal Federal e Juízes inferiores
denominados Juízes de Secção, inspirada na experiência
estadunidense (MENDES, 2009, p. 25). A despeito da previsão na
Constituição de 1891 (artigo 55) quanto à possibilidade de o
legislador criar tribunais e juízes federais, não houve concretização
de tal regra. Em 1937 houve a extinção da Justiça Federal no Brasil.
O Tribunal Federal de Recursos foi criado pela Constituição de
1946 para o fim de reduzir a competência do Supremo Tribunal
Federal, sendo que o texto constitucional da época ainda previu a
criação de outros tribunais federais de recursos, o que não veio a
ocorrer. A Constituição de 1967 também previu a criação de outros
tribunais federais de recursos (artigo 116, § 1°), inclusive
estabelecendo suas futuras sedes em São Paulo e Recife.
Devido ao Ato Institucional 02/1965 e ao advento da Lei
n. 5.010/1966, a Justiça Federal de primeira instância ressurgiu e,
assim, recebeu os acervos dos feitos que até então vinham
386
tramitando nas Justiças Estaduais, em especial os das “Varas
Privativas da Fazenda Nacional”.
A organização da Justiça Federal na década de 80 foi
originada do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos (BULOS,
2015, p. 1367). A Constituição Federal de 1988 inovou ao criar
cinco Tribunais Regionais Federais (artigo 27, § 6°, ADCT), com
jurisdição e sede estabelecidas na Lei n. 7.727/1989, e manteve a
previsão quanto aos Juízes Federais de primeiro grau. O artigo 106,
CF, não contempla, contudo, os Juizados Especiais Federais quanto
à sua estrutura da Turma Nacional de Uniformização de
Jurisprudência, das Turmas Regionais de Uniformização de
Jurisprudência e das Turmas Recursais, devido à alteração referente
ao artigo 98, I, CF, com a posterior edição da Lei n. 10.259/2001.
Em 2013 houve a edição da EC 73 que previu a criação dos
Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões. Contudo,
em razão de liminar concedida na Medida Cautelar na Ação Direta
de Inconstitucionalidade 5.017/DF, houve a suspensão dos efeitos
da EC 73/2013.
A Justiça Federal brasileira, relativamente à estrutura dos
seus órgãos, é dividida em 5 (cinco) regiões no território nacional
de acordo com a previsão contida na Resolução 1/1988, do extinto
Tribunal Federal de Recursos. Assim, o TRF da 1ª Região, com sede
em Brasília, tem jurisdição sobre o Distrito Federal e os Estados do
Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso,
Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins. Por sua
vez, o TRF da 2ª Região, sediado no Rio de Janeiro, exerce
jurisdição sobre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo,
387
enquanto o TRF da 3ª Região, localizado em São Paulo, tem
jurisdição sobre os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Ainda, o TRF da 4ª Região, cuja sede é em Porto Alegre, exerce
jurisdição sobre os Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa
Catarina. Finalmente, o TRF da 5ª Região, sediado em Recife, tem
jurisdição sobre os Estados de Pernambuco, Alagoas, Ceará,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe. A Lei n. 7.727/1989 dispôs
sobre a composição inicial dos Tribunais Regionais Federais,
criando os cargos de “juízes” dos TRF’s e os respectivos quadros de
pessoal.
No ano de 2013 houve a aprovação da EC 73 que criou
mais quatro TRF’s com sedes em Curitiba, Belo Horizonte,
Salvador e Manaus, sendo que à época houve a previsão na referida
Emenda Constitucional do prazo de seis meses para a instalação
dos novos Tribunais Regionais Federais. Contudo, devido à liminar
concedida pelo Presidente do STF, houve suspensão dos efeitos da
referida EC 73, tendo sido invocados os argumentos do vício de
iniciativa da EC e do enfraquecimento da independência do Poder
Judiciário como relevantes e plausíveis para o reconhecimento do
fumus boni iuris. Considerou-se, em análise provisória, que toda
alteração que possa criar encargos para o Poder Judiciário ou que
afete sua estrutura deve ter por iniciativa o órgão jurisdicional
competente, segundo a própria Constituição.
Quanto à Justiça Federal de primeira instância, a Justiça
Federal foi dividida em seções judiciárias correspondentes às
unidades da Federação - Distrito Federal e Estados membros. Há
quem critique tal divisão eis que pode gerar prejuízos ao
jurisdicionado, pois há casos nos quais, apesar de existir vara
388
federal mais próxima ao domicílio do autor situado em Estado
vizinho ao seu, o autor precisa se dirigir à vara federal de seu
próprio Estado, apesar de a Justiça Federal ser uma Justiça da União
(CAVALCANTI, 2009, p. 1458).
A Justiça Federal, nos últimos trinta anos, se consolidou
no cenário do sistema de justiça do país, não apenas em razão da
abrangência de sua competência, mas principalmente devido às
várias decisões que vêm repercutindo em termos de políticas
públicas em determinadas ações coletivas, além dos julgamentos
realizados na jurisdição penal envolvendo crimes contra a
Administração Pública federal, contra o sistema financeiro
nacional, contra a ordem tributária, de lavagem de ativos. Assim,
por exemplo, tornou-se emblemática a decisão da Justiça Federal
no Rio Grande do Sul a respeito da ordem dirigida ao INSS de, na
concessão de benefícios previdenciários, não distinguir as famílias
homoafetivas das heteroafetivas, bem antes do julgamento do STF
ocorrido em 2011. Também são paradigmáticas várias sentenças e
alguns acórdãos da Justiça Federal brasileira em casos conhecidos
como Operações desenvolvidas pela Polícia Federal, como no
exemplo mais recente da Operação “Lava Jato”.
389
competência recursal da Justiça Federal, além de se tratar das ações
impugnativas contra atos praticados pelos próprios tribunais ou
pelos juízes a eles vinculados funcionalmente – sejam os juízes
federais, sejam os juízes estaduais no exercício da competência
federal delegada. O termo “desembargadores federais” decorre de
processo de mutação constitucional ocorrida em razão do passar
dos anos desde o advento da CF/88.
A composição dos Tribunais Regionais Federais foi o
objeto de atenção do artigo 107, da Constituição Federal, com o
mínimo de sete desembargadores federais, escolhidos
preferencialmente entre os profissionais da respectiva região, com
mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos de idade, observado
a reserva do quinto constitucional destinado aos membros da
advocacia e do Ministério Público Federal (artigo 108, II). Quanto
à promoção aos juízes federais ao TRF, manteve-se os critérios da
alternância dos critérios de antiguidade e de merecimento, desde
que tenha mais de cinco anos de exercício.
A Lei n. 7.727/1989 estabeleceu que os TRFs das 1ª e 3ª
Regiões teriam 18 desembargadores, ao passo que os TRFs das 2ª e
4ª Regiões, 14 desembargadores, e o da 5ª Região, 10
desembargadores. Posteriormente houve aumento da composição
dos TRFs que, assim, atualmente observa o seguinte quantitativo:
a) TRFs das 1ª, 2ª e 4ª Regiões – 27 desembargadores; b) TRF da 3ª
Região – 43 desembargadores; c) TRF da 5ª Região – 15
desembargadores. O TRF da 1ª Região é, sem sombra de dúvida,
atualmente o mais congestionado, inclusive em razão da
abrangência de sua jurisdição, o que motivou a aprovação da EC
73/2013 com a criação de mais quatro Tribunais Regionais. Há
390
quem defenda a criação de um Tribunal Superior Federal para se
proceder à uniformização da interpretação da lei federal no que se
refere às questões da competência da Justiça Federal, em especial
no âmbito do Direito Tributário e do Direito Administrativo
(CAVALCANTI, 2009, p. 1443).
A previsão quanto à eventual recrutamento de juízes fora
da região do respectivo TRF, atualmente, é de difícil aplicação
prática, mas se justificou quando da elaboração da Constituição
Federal de 1988, pois naquela época era bastante limitado o quadro
de juízes federais. Na composição original dos Tribunais Regionais
Federais houve investidura de juízes federais de seções judiciárias
pertencentes a outro Tribunal Regional, como nos exemplos dos
TRFs das 2ª e 5ª Regiões exatamente em razão da previsão contida
no artigo 107, CF.
A questão da faixa etária – entre 30 e 65 anos de idade –
para provimento dos cargos de desembargador federal foi objeto de
controvérsia no que tange à hipótese de promoção de juiz federal.
O STF acabou se orientando no sentido da desnecessidade de se
observar o limite máximo quando se tratava de hipótese de
promoção de juiz federal, diversamente do que se verifica em
relação às vagas do quinto constitucional. A esse respeito, também
houve questionamento sobre, se no caso de promoção por
merecimento ao cargo de desembargador, o juiz federal deveria
integrar a primeira quinta parte da lista de antiguidade de juízes
federais. Também sobre este tema o STF se orientou quanto à
inaplicabilidade da regra do artigo 93, II, b, CF/88. O STF também
concluiu ser legítima a prática de se formar listas quádruplas, nos
391
casos da existência simultânea de duas vagas para serem providas
pelo critério de merecimento.
A respeito do quinto constitucional dos TRFs, devem ser
formadas listas sêxtuplas nos órgãos de classe (OAB e MPF), nos
termos do artigo 94, CF, de modo a que o respectivo Tribunal
Regional Federal consiga constituir a lista tríplice para fins de
encaminhamento ao Presidente da República. No caso da vaga do
quinto constitucional não se aplica a regra da investidura
obrigatória em havendo repetição em três listas consecutivas ou
cinco alternadas, pois tal regra constitucional somente é dirigida
para os casos de promoção na carreira da magistratura. A forma do
cálculo do quinto constitucional, quando não houver número
divisível por cinco, deve considerar o arredondamento para cima
em favor do preenchimento da vaga pelo quinto constitucional.
A regra do artigo 107, § 1°, CF, ao tratar das remoções e
permutas dos juízes e desembargadores, remete à disciplina legal
que, no entanto, ainda não ocorreu. O Conselho da Justiça Federal
editou regulamentação a respeito, prevendo que ambos os
Tribunais Regionais devem autorizar a remoção ou a permuta,
sendo que o magistrado transferido de região passará para o final
da lista de antiguidade da sua classe – desembargador, juiz federal
titular ou juiz federal substituto.
A possibilidade de descentralização das turmas do
Tribunal Regional Federal (artigo 107, § 3°, CF) foi introduzida pela
EC 45/2004, e veio no movimento de acesso à justiça também no
âmbito da justiça federal de 2ª instância. Levando-se em conta que
a Justiça Federal tem apenas cinco tribunais regionais federais
localizados em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e
392
Recife, a previsão quanto à implantação de turmas (ou câmaras)
regionais permite que haja maior proximidade dos advogados e, em
especial do próprio jurisdicionado, no julgamento de suas
demandas também pelos órgãos de segundo grau da Justiça
Federal. Daí a experiência realizada no Município de Florianópolis
por iniciativa do TRF da 4ª Região ser emblemática quanto à
efetividade da norma constitucional (CONSULTOR JURÍDICO,
“Justiça Federal em SC inaugura sua primeira turma
descentralizada”, 4-8-2017).
393
juízos federais, com a criação e o desenvolvimento dos juizados
especiais federais, com a instauração e desfecho de demandas
relacionadas aos direitos humanos, com a informatização dos
autos, além da maior visibilidade para a sociedade e para a mídia
quanto aos casos iniciados e julgados na competência criminal,
sendo possível citar as ações penais relacionadas à denominada
“Operação Lava Jato”, que já conduziu vários políticos e
empresários à prisão – provisória e, em alguns casos, definitiva -,
com o emprego de certos instrumentos como a colaboração
premiada, redução de penas.
Relativamente à competência em matéria cível dos juízes
federais, há as hipóteses de sua determinação em razão da pessoa
(artigo 109, I, II e VIII) e em razão da matéria (artigo 109, III e XI),
tendo inovado na competência para a disputa sobre direitos
indígenas. Com o advento da EC 45/2004, foi acrescentada nova
hipótese de competência dos juízes federais de primeira instância
nos casos de grave violação de direitos humanos (artigo 109, V-A),
introduzindo o incidente de deslocamento de competência para a
Justiça Federal (artigo 109, § 5°). Apesar de a novidade, em termos
práticos, envolver provavelmente casos relacionados à competência
criminal, a regra constitucional, em tese, também abrange as causas
cíveis relativas a direitos humanos nos casos de deslocamento da
competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal. A regra é a
competência da Justiça Estadual para as causas relativas a direitos
humanos, mas em caso de grave violação de direitos humanos e
para o fim de assegurar o cumprimento das obrigações assumidas
pela República brasileira no cenário internacional, o Procurador
Geral da República pode requerer, junto ao STJ, o deslocamento da
394
causa para a Justiça Federal em qualquer fase do caso (inquérito,
procedimento preparatório, ação já proposta).
O rol dos casos de competência dos Juízes Federais é
taxativo – elenco numerus clausus -, não sendo possível que norma
infraconstitucional amplie as hipóteses, sem prejuízo, obviamente
da legislação infraconstitucional passar a ampliar, por exemplo, os
tipos considerados crimes contra o sistema financeiro ou contra a
ordem econômico-financeira. A competência em razão da matéria,
da pessoa ou da função, como se sabe, é inderrogável – já que
absoluta – e, por isso, não se mostra possível a atração de causa da
competência da Justiça Federal para outro ramo do Poder
Judiciário brasileiro, ainda que sob o fundamento da continência
ou conexão.
Relativamente à competência cível em razão da pessoa –
critério ratione personae -, cabe à Justiça Federal aferir a existência
de interesse e de legitimidade da pessoa jurídica (União, suas
autarquias, fundações ou empresas públicas), conforme orientação
consolidada na Súmula 150, do STJ. Somente estão excepcionadas
da competência cível federal em razão da pessoa as causas de
falência (Lei n. 11.101/2005, acidentes de trabalho (Lei n.
8.213/1991, artigos 19 a 21) e aquelas sujeitas à Justiça Eleitoral e à
Justiça do Trabalho. A competência referente à Justiça do Trabalho
nas causas envolvendo uma pessoa jurídica do artigo 109, I, CF, não
era prevista na Constituição revogada, tanto assim o é que havia
empregados públicos da União, suas autarquias e fundações
(ADCT, artigo 17, § 10). A EC 45/2004 transferiu para a Justiça do
Trabalho a competência para os mandados de segurança, habeas
395
corpus e habeas data quando o ato impugnado se relacionar à
matéria de sua jurisdição, para as ações de reparação de dano moral
e/ou patrimonial decorrente das relações de trabalho, e para as
ações referentes à aplicação de penalidades administrativas
impostas aos empregadores pela fiscalização das relações de
trabalho.
As ações referentes aos conselhos de fiscalização
profissional se inserem na competência dos juízes federais em razão
da sua condição de autarquias sui generis federais, daí haver sido
editada a Súmula 66, do STJ. A Caixa de Assistência dos
Advogados, por integrar a estrutura da OAB, também atrai a
competência dos juízes federais. As Agências Reguladoras – ANP,
ANS, ANEEL, ANATEL, entre outras -, por serem classificadas
como autarquias federais, também atraem a competência dos juízes
federais. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI),
por força da Lei n. 5.648/1970, tem a atribuição de promover a
execução das normas de propriedade industrial, em especial o
registro de marcas, a concessão de patentes, a averbação de
contratos de transferência de tecnologia (know how), entre outras
medidas e, por isso deve integrar os feitos referentes às ações de
nulidade de patente e registro de marcas, razão pela qual atrai a
competência dos juízes federais.
Há fundado questionamento sobre a competência para as
causas nas quais há a presença do Ministério Público Federal,
devendo prevalecer a orientação segundo a qual o MPF integra a
União Federal e, por isso, será de competência dos juízes federais
as causas ajuizadas pelo Procurador da República desde que,
obviamente, se identifique interesse federal na questão litigiosa a
396
ser resolvida. Os juízes federais não são competentes para as ações
nas quais sociedades de economia mista federais sejam partes ou
mesmo terceiras interessadas. A condição de sujeito processual –
autor, réu, assistente ou opoente – das pessoas jurídicas elencadas
no artigo 109, I, CF, abrange qualquer caso de intervenção de
terceiro, a despeito da literalidade da regra constitucional
(MENDES, 2009, p. 103).
As causas entre Estado estrangeiro (ou organismo
internaciona) e Município ou pessoa domiciliada ou residente no
País (artigo 109, II, CF) encerra peculiaridade quanto à
competência recursal, pois neste caso será o STJ o competente para
julgar recurso ordinário contra sentença do juiz federal (artigo 105,
II, c, CF).
A competência dos juízes federais para conhecer e julgar
mandado de segurança e habeas data é determinada em razão da
pessoa, levando em conta ficar configurado que o ato foi de
autoridade federal e que a causa não é de competência de algum
tribunal (TRF, STJ ou STF). Os atos praticados por gestores das
pessoas da Administração Pública indireta federal – como
sociedades de economia mista e empresas públicas – só são
considerados atos de autoridade quando houver delegação de
função, como também ocorre nos casos de delegação para pessoa
jurídica estadual, municipal, privada ou, mesmo de pessoa física,
como nos exemplos dos diretores de escolas particulares ou mesmo
reitores de universidades privadas.
As causas de competência cível dos juízes federais em
razão da matéria são em número bem mais reduzido, sendo que
397
algumas hipóteses se relacionam ao Direito Internacional devido à
República Federativa do Brasil ter assumido o compromisso
internacional de fazer cumprir as normas dos tratados e
convenções internacionais, e outras hipóteses se vinculam às
pressões de organismos de direitos humanos, como é o exemplo das
causas que envolvam disputas sobre direitos indígenas, além das
causas referentes à nacionalidade e à naturalização. Quanto ao
inciso III, do artigo 109, CF, tem-se considerado ser competente o
juiz federal para as causas decorrentes dos denominados “tratados-
contratos” nos quais o Brasil se compromete a cooperar no plano
internacional através de alguns mecanismos, com por exemplo a
cooperação desenvolvida entre as autoridades centrais e os juízes
de ligação, como ocorre na Convenção da Haia sobre aspectos civis
do Sequestro Internacional de Crianças ou na Convenção da ONU
sobre prestação de Alimentos no estrangeiro (e mais recentemente
sobre a Convenção sobre a Cobrança Internacional de Alimentos
para Crianças e outros membros da Família e o Protocolo sobre a
lei aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos).
A competência dos juízes federais para as causas que
envolvam disputas sobre direitos indígenas (artigo 109, XI, CF) não
se restringe à esfera coletiva e ao âmbito cível, abrangendo também
a matéria de competência criminal quando o índio for vítima em
razão da sua condição indígena. As causas referentes à
nacionalidade e à naturalização também são de competência dos
juízes federais em razão da matéria, sendo que a Lei n. 818/1949
regulou a aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade.
O cumprimento de carta rogatória, após a concessão do
exequatur pelo STJ, e a execução de sentença estrangeira, após sua
398
homologação pelo STJ, também são de competência dos juízes
federais (artigo 109, X, CF) em razão da função – competência
funcional no sentido vertical. É apenas relevante a ressalva de que
as cartas rogatórias não são hábeis para realização de atos de
constrição de bens ou de prisão de pessoas, devido à soberania dos
Países e, por isso, para tais atos deverá haver a homologação de
sentença estrangeira que, por sua vez, não pode ser ofensiva à
soberania nacional e à ordem pública.
Relativamente à competência referente à jurisdição penal,
os juízes federais são competentes para conhecer e julgar as ações
relativas aos crimes previstos em tratados ou convenções
internacionais cuja execução tenha ocorrido no território
brasileiro, sendo que uma das fases se relaciona a outro território,
tais como ocorre no tráfico internacional de entorpecentes e no
tráfico internacional de pessoas (especialmente mulheres e
crianças), além dos casos de divulgação de imagens pornográficas
na rede mundial de computadores, hipóteses nas quais o agente
hospeda sítio eletrônico em outro País, veiculando fotos ou cenas
de sexo explícito envolvendo criança e adolescente (OLIVEIRA,
2002, p. 87-88). Também são competentes os juízes federais para os
crimes relacionados aos bens e interesses da União, suas autarquias,
fundações e empresas públicas (artigo 109, IV, CF) e a
determinados bens jurídicos fundamentais para a higidez da
economia e da proteção a determinados direitos humanos, tais
como ocorre nos crimes contra o sistema financeiro, a ordem
econômica e a organização do trabalho.
399
Além dessas, também há competência dos juízes federais
para o julgamento dos crimes políticos – contra a segurança
nacional (fruto de tradição no Direito brasileiro) –, dos crimes
perpetrados a bordo de navios ou aeronaves (nacionais ou
estrangeiras), com exceção das infrações de competência da Justiça
Militar, e dos crimes de ingresso ou permanência irregular de
estrangeiro em território nacional (devido à política de imigração,
ou seja atingem interesses e serviços tutelados pela União). Os
crimes políticos são os que lesam ou expõem a perigo de lesão a
integridade territorial do País e a soberania nacional, o regime
representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, a
pessoa dos Chefes dos Poderes da União (PERRINI, 2011, p. 176).
Os §§ 1° e 2°, do artigo 109, CF, cuidam da competência
territorial dos juízes federais nas ações nas quais a União for autora
ou ré, considerando a atuação da Advocacia Geral da União – órgão
de representação processual – em todo o território nacional. Desse
modo, se a União for autora da ação, a demanda deverá ser ajuizada
no foro de domicílio da parte ré, ao passo que se a União for ré o
autor poderá optar em ajuizar a demanda no foro do seu domicílio,
no foro do ato ou do fato litigioso, no foro da localização do bem
ou no Distrito Federal. Tais regras objetivam dar efetividade ao
princípio da igualdade material no processo em que a União for
parte, pois se sabe que a parte contrária não tem as mesmas
condições da União no que se refere à sua representação processual
em todo o território nacional. Nas ações que objetivem a obtenção
de benefício previdenciário (Regime Geral da Previdência Social),
e o local seja sede comarca na qual não haja vara da Justiça Federal,
é prevista a competência delegada dos juízes estaduais do foro do
400
domicílio do autor da demanda, sendo que eventual recurso contra
decisões e sentenças será de competência do Tribunal Regional
Federal da respectiva área (artigo 109, §§ 3° e 4°, CF). Neste caso
considera-se que, mesmo que a localidade tenha sido abrangida
pela jurisdição de uma vara federal localizada em comarca
contígua, a competência delegada existirá em favor do juiz estadual,
pois apenas se exclui a competência delegada se a comarca for sede
de vara da Justiça Federal. Ademais, trata-se de uma faculdade da
parte autora, pois é possível a opção pelo ajuizamento da ação
perante o foro da vara federal cuja sede não seja na comarca, não
sendo o caso de o juiz federal declinar de sua competência em favor
do juiz estadual que exerça jurisdição na comarca onde for
domiciliada a parte autora.
4. DIREITO CONCRETO
401
INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE
COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO INSERIDO
EM CONTEXTO DE GRUPOS DE
EXTERMÍNIO. GRAVE VIOLAÇÃO DE
DIREITOS HUMANOS. CONFIGURAÇÃO.
DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES
DECORRENTES DE TRATADO
INTERNACIONAL. ESTADO-MEMBRO.
AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES DE APURAR
VIOLAÇÕES E RESPONSABILIZAR O(S)
CULPADO(S). EXCEPCIONALIDADE
DEMONSTRADA. DESLOCAMENTO DE
COMPETÊNCIA QUE SE MOSTRA
DEVIDO. 1. A Emenda Constitucional n. 45,
de 31.12.2004, relativa à reforma do Poder
Judiciário, inseriu no ordenamento jurídico
brasileiro a possibilidade de deslocamento da
competência originária para a investigação, o
processamento e o julgamento dos crimes
praticados com grave violação de direitos
humanos, com a finalidade de assegurar o
cumprimento de obrigações decorrentes de
tratados internacionais de direitos humanos
dos quais o Brasil seja parte. 2. A Terceira
Seção deste Superior Tribunal explicitou que
os requisitos do incidente de deslocamento de
competência são três: a) grave violação de
direitos humanos; b) necessidade de assegurar
o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações
decorrentes de tratados internacionais; c)
incapacidade – oriunda de inércia, omissão,
ineficácia, negligência, falta de vontade
política, de condições pessoais e/ou materiais
etc. – de o Estado-membro, por suas
instituições e autoridades, levar a cabo, em
402
toda a sua extensão, a persecução penal (IDC
n. 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves
Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005). 3.
A violação de direitos humanos que enseja o
deslocamento de competência, além de grave,
deve ser relacionada a obrigações decorrentes
de tratados internacionais dos quais o Brasil
seja parte. 4. Para o deslocamento da
competência, deve haver demonstração
inequívoca de que, no caso concreto, existe
ameaça efetiva e real ao cumprimento de
obrigações assumidas por meio de tratados
internacionais de direitos humanos firmados
pelo Brasil, resultante de inércia, negligência,
falta de vontade política ou de condições reais
de o Estado-membro, por suas instituições e
autoridades, proceder à devida persecução
penal. 5. A confiabilidade das instituições
públicas envolvidas na persecução penal –
Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário –
, constitucional e legalmente investidas de
competência originária para atuar em casos
como o presente, deve, como regra,
prevalecer, ser apoiada e prestigiada. 6. O
incidente de deslocamento de competência
não pode ter o caráter de prima ratio, de
primeira providência a ser tomada em relação
a um fato (por mais grave que seja). Deve ser
utilizado em situações excepcionalíssimas, em
que efetivamente demonstrada a sua
necessidade e a sua imprescindibilidade, ante
provas que revelem descaso, desinteresse,
ausência de vontade política, falta de
condições pessoais e/ou materiais das
403
instituições – ou de uma ou outra delas –
responsáveis por investigar, processar e punir
os responsáveis pela grave violação a direito
humano, em levar a cabo a responsabilização
dos envolvidos na conduta criminosa, até para
não se esvaziar a competência da Justiça
Estadual e inviabilizar o funcionamento da
Justiça Federal. 7. A ideia de excepcionalidade
do incidente não pode, contudo, ser de
grandeza tal a ponto de criar requisitos por
demais estritos que acabem por inviabilizar a
própria utilização do instituto de
deslocamento. 8. O caso dos autos aponta
fatores relacionados à região onde ocorreu a
morte do Promotor de Justiça estadual Thiago
Faria Soares, com indicativos de que o
assassinato provavelmente resultou da ação de
grupos de extermínio que atuam no interior
do Estado de Pernambuco (como tantos
outros que ocorreram na região conhecida
como "Triângulo da Pistolagem", situada no
agreste pernambucano), bem como ao certo e
notório conflito institucional que se instalou,
inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos
com a investigação e a persecução penal dos
ainda não identificados autores do crime
noticiado. (...) 10. O pedido de deslocamento
de competência encontra-se fundamentado
em afronta a tratado internacional de proteção
a direitos humanos. O direito à vida, previsto
na Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), é
a pedra basilar para o exercício dos demais
direitos humanos. O julgamento justo,
imparcial e em prazo razoável é, por seu turno,
404
garantia fundamental do ser humano,
previsto, entre outros, na referida Convenção,
e dele é titular não somente o acusado em
processo penal, mas também as vítimas do
crime (e a sociedade em geral) objeto da
persecução penal, dada a redação ampliativa
dada ao inciso LXXVIII do artigo 5º da CF: "a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e
os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação". Ademais, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos tem, reiteradamente,
asseverado que a obrigação estatal de
investigar e punir as violações de direitos
humanos deve ser empreendida pelos Estados
de maneira séria e efetiva, dentro de um prazo
razoável. 11. No caso vertente, encontram-se
devidamente preenchidos todos os requisitos
constitucionais que autorizam e justificam o
pretendido deslocamento de competência,
porquanto evidenciada a incontornável
dificuldade do Estado de Pernambuco de
reprimir e apurar crime praticado com grave
violação de direitos humanos, em
descumprimento a obrigações decorrentes de
tratados internacionais de direitos humanos
dos quais o Brasil é parte. 12. Incidente de
deslocamento de competência julgado
procedente, para que seja determinada a
imediata transferência do Inquérito Policial n.
07.019.0160.00158/2013-1.1 para a Polícia
Federal, sob o acompanhamento e controle do
Ministério Público Federal, e sob a jurisdição,
no que depender de sua intervenção, da Justiça
405
Federal, Seção Judiciária de Pernambuco.
(STJ, IDC 5/PE, rel. min. Rogério Schietti
Cruz, j. 13-8-2014, DJe 1-9-2014).
406
Recurso extraordinário. Constitucional.
Penal. Processual Penal. Competência.
Redução a condição análoga à de escravo.
Conduta tipificada no artigo 149 do Código
Penal. Crime contra a organização do
trabalho. Competência da Justiça Federal.
Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal.
Conhecimento e provimento do recurso. 1. O
bem jurídico objeto de tutela pelo artigo 149
do Código Penal vai além da liberdade
individual, já que a prática da conduta em
questão acaba por vilipendiar outros bens
jurídicos protegidos constitucionalmente
como a dignidade da pessoa humana, os
direitos trabalhistas e previdenciários,
indistintamente considerados. 2. A referida
conduta acaba por frustrar os direitos
assegurados pela lei trabalhista, atingindo,
sobremodo, a organização do trabalho, que
visa exatamente a consubstanciar o sistema
social trazido pela Constituição Federal em
seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os
postulados do artigo 5º, cujo escopo,
evidentemente, é proteger o trabalhador em
todos os sentidos, evitando a usurpação de sua
força de trabalho de forma vil. 3. É dever do
Estado (lato sensu) proteger a atividade
laboral do trabalhador por meio de sua
organização social e trabalhista, bem como
zelar pelo respeito à dignidade da pessoa
humana (CF, artigo 1º, inciso III). 4. A
conjugação harmoniosa dessas circunstâncias
se mostra hábil para atrair para a competência
407
da Justiça Federal (CF, artigo 109, inciso VI) o
processamento e o julgamento do feito. 5.
Recurso extraordinário do qual se conhece e
ao qual se dá provimento. (STF, RE
459510/MT, rel. Min. Dias Toffoli, j. 26-11-
2015, DJe de 11-4-2016).
RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL
PENAL. CRIME AMBIENTAL
TRANSNACIONAL. COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA FEDERAL. INTERESSE DA
UNIÃO RECONHECIDO. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO A QUE SE DÁ
PROVIMENTO. 1. As florestas, a fauna e a
408
flora restam protegidas, no ordenamento
jurídico inaugurado pela Constituição de
1988, como poder-dever comum da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios (artigo 23, VII, da Constituição da
República). (...) 3. A competência de Justiça
Estadual é residual, em confronto com a
Justiça Federal, à luz da Constituição Federal e
da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. 4. A competência da Justiça Federal
aplica-se aos crimes ambientais que também
se enquadrem nas hipóteses previstas na
Constituição, a saber: (a) a conduta atentar
contra bens, serviços ou interesses diretos e
específicos da União ou de suas entidades
autárquicas; (b) os delitos, previstos tanto no
direito interno quanto em tratado ou
convenção internacional, tiverem iniciada a
execução no país, mas o resultado tenha ou
devesse ter ocorrido no estrangeiro - ou na
hipótese inversa; (c) tiverem sido cometidos a
bordo de navios ou aeronaves; (d) houver
grave violação de direitos humanos; ou ainda
(e) guardarem conexão ou continência com
outro crime de competência federal;
ressalvada a competência da Justiça Militar e
da Justiça Eleitoral, conforme previsão
expressa da Constituição. 5. As violações
ambientais mais graves recentemente
testemunhadas no plano internacional e no
Brasil, repercutem de modo devastador na
esfera dos direitos humanos e fundamentais
de comunidades inteiras. E as graves infrações
ambientais podem constituir, a um só tempo,
409
graves violações de direitos humanos, máxime
se considerarmos que o núcleo material
elementar da dignidade humana “é composto
do mínimo existencial, locução que identifica
o conjunto de bens e utilidades básicas para a
subsistência física e indispensável ao desfrute
da própria liberdade. Aquém daquele
patamar, ainda quando haja sobrevivência,
não há dignidade”. (...) 7. (a) Os
compromissos assumidos pelo Estado
Brasileiro, perante a comunidade
internacional, de proteção da fauna silvestre,
de animais em extinção, de espécimes raras e
da biodiversidade, revelaram a existência de
interesse direto da União no caso de condutas
que, a par de produzirem violação a estes bens
jurídicos, ostentam a característica da
transnacionalidade. (b) Deveras, o Estado
Brasileiro é signatário de Convenções e
acordos internacionais como a Convenção
para a Proteção da Flora, da Fauna e das
Belezas Cênicas Naturais dos Países da
América (ratificada pelo Decreto Legislativo
nº 3, de 1948, em vigor no Brasil desde 26 de
novembro de 1965, promulgado pelo Decreto
nº 58.054, de 23 de março de 1966); a
Convenção de Washington sobre o Comércio
Internacional das Espécies da Flora e da Fauna
Selvagens em Perigo de Extinção (CITES
ratificada pelo Decreto-Lei nº 54/75 e
promulgado pelo Decreto nº 76.623, de
novembro de 1975) e a Convenção sobre
Diversidade Biológica CDB (ratificada pelo
Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 2, de
8 de fevereiro de 1994), o que destaca o seu
410
inequívoco interesse na proteção e
conservação da biodiversidade e recursos
biológicos nacionais. (c) A República
Federativa do Brasil, ao firmar a Convenção
para a Proteção da Flora, da Fauna e das
Belezas Cênicas Naturais dos Países da
América, em vigor no Brasil desde 1965,
assumiu, dentre outros compromissos, o de
“tomar as medidas necessárias para a
superintendência e regulamentação das
importações, exportações e trânsito de
espécies protegidas de flora e fauna, e de seus
produtos, pelos seguintes meios: a) concessão
de certificados que autorizem a exportação ou
trânsito de espécies protegidas de flora e fauna
ou de seus produtos”. (d) Outrossim, o Estado
Brasileiro ratificou sua adesão ao Princípio da
Precaução, ao assinar a Declaração do Rio,
durante a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(RIO 92) e a Carta da Terra, no “Fórum
Rio+5”; com fulcro neste princípio
fundamental de direito internacional
ambiental, os povos devem estabelecer
mecanismos de combate preventivos às ações
que ameaçam a utilização sustentável dos
ecossistemas, biodiversidade e florestas,
fenômeno jurídico que, a toda evidência,
implica interesse direto da União quando a
conduta revele repercussão no plano
internacional. 8. A ratio essendi das normas
consagradas no direito interno e no direito
convencional conduz à conclusão de que a
transnacionalidade do crime ambiental,
411
voltado à exportação de animais silvestres,
atinge interesse direto, específico e imediato
da União, voltado à garantia da segurança
ambiental no plano internacional, em atuação
conjunta com a Comunidade das Nações. 9.
(a) Atrai a competência da Justiça Federal a
natureza transnacional do delito ambiental de
exportação de animais silvestres, nos termos
do artigo 109, IV, da CF/88; (b) In casu, cuida-
se de envio clandestino de animais silvestres
ao exterior, a implicar interesse direto da
União no controle de entrada e saída de
animais do território nacional, bem como na
observância dos compromissos do Estado
brasileiro perante a Comunidade
Internacional, para a garantia conjunta de
concretização do que estabelecido nos acordos
internacionais de proteção do direito
fundamental à segurança ambiental. 10.
Recurso extraordinário a que se dá
provimento, com a fixação da seguinte tese:
“Compete à Justiça Federal processar e julgar
o crime ambiental de caráter transnacional
que envolva animais silvestres, ameaçados de
extinção e espécimes exóticas ou protegidas
por Tratados e Convenções internacionais”.
(STF, RE 835558/SP, rel. min. Luiz Fux, j. 9-
2-2017, DJe de 7-8-2017).
412
União”) devido aos compromissos internacionais assumidos pela
República brasileira e em razão da prática de crimes ambientais
transnacionais representarem violações na esfera dos direitos
humanos, levando em conta especialmente o núcleo material
elementar da dignidade da pessoa humana composto do mínimo
existencial – composto pelos bens e utilidades para a subsistência
física e fundamental para o exercício da liberdade.
Os três casos acima analisados retratam a importância da
atuação da Justiça Federal no segmento relativo à proteção e
promoção dos direitos humanos sob o viés da efetividade.
Relativamente às garantias constitucionais referentes ao processo,
o momento atual desvela a necessidade de o sistema de justiça atuar
eficaz e prontamente para a solução das questões que cheguem ao
seu conhecimento para julgamento. Daí a necessidade do
aperfeiçoamento do sistema de justiça como um todo com o
emprego de instrumentos, procedimentos, mecanismos de
produção de prova cada vez mais desenvolvidos, inclusive no
campo da cooperação jurídica internacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
413
ambientais: a) a consolidação do modelo democrático de Estado e,
consequentemente, da sociedade civil; b) a repartição das
competências jurisdicionais, notadamente com a previsão dos
casos de competência da Justiça Federal em matéria de direitos
humanos, inclusive por meio do incidente de deslocamento de
competência nos casos de grave violação a direitos humanos; c) o
aperfeiçoamento do sistema de justiça com a clareza das regras de
competência, a especialização dos órgãos jurisdicionais de primeira
e segunda instâncias, além da busca de concretizar a razoável
duração do processo.
O trajeto para a obtenção do modelo ideal de
funcionamento do sistema de proteção dos direitos humanos via
atuação dos órgãos do Poder Judiciário brasileiro está em curso,
talvez ainda em patamar inicial, mas sem dúvida apresenta
características que revelam a correção de rumos anteriormente
seguidos. Oxalá que as próximas gerações brasileiras e mundiais
possam vivenciar um modelo de proteção e promoção efetivas dos
direitos humanos e ambientais no planeta Terra, pois somente
assim a civilização humana terá motivos para se orgulhar no que
tange aos mecanismos de funcionamento do sistema jurídico que
envolve a tutela dos direitos humanos.
414
REFERÊNCIAS
BRASIL, STJ, IDC 5/PE, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13-8-
2014, DJe 1-9-2014.
415
OLIVEIRA, Roberto da Silva. Competência criminal da Justiça
Federal. São Paulo: RT, 2002.
416
REFLEXÕES SOBRE A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS
INDÍGENAS 30 ANOS APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-
Doutor em Direito Ambiental pela Universidade Paris I Pantheón Sorbonne, com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES/BRASIL). E-mail: pedroavzaradel@id.uff.br
417
ABSTRACT: The purpose of this article is to provide an overview
of the constitutional protection of native people, also known as
indigenous people, especially the demarcation of the lands they
traditionally occupy, 30 years after the 1988 Federal Constitution.
To carry such analysis will be considered the main legal
frameworks, and constitutional issues on the subject as well as the
legal decisions of the Supreme Court in this area. As we will see in
spite of the advances with the Citizen Constitution, in practice the
guarantee of the constitutional rights of these people remains too
slow and filled of obstacles.
KEYWORDS: Original people; Federal Constitution; Demarcatory
procedure.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. O instituto do indigenato no direito brasileiro e a importância
para a demarcação das terras indígenas.
3. Procedimento para a demarcação das terras indígenas previsto
no Decreto 1.775/96.
4. Natureza jurídica do decreto que reconhece a demarcação das
terras indígenas. 5. As salvaguardas constitucionais previstas pelo
Supremo Tribunal Federal e a tese do marco temporal.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
419
quanto intra-étnica. Índios em processo de
aculturação permanecem índios para o fim de
proteção constitucional. Proteção
constitucional que não se limita aos silvícolas,
estes, sim, índios ainda em primitivo estádio
de habitantes da selva (BRASIL, 2009a).
§ 2º As terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.
421
§ 4º As terras de que trata este
artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis.
422
José Afonso da Silva (2010, p. 858) em análise sobre a
temática de proteção das terras indígenas afirma,
[...]
A Carta Política, com a outorga dominial
atribuída à União, criou, para esta, uma
propriedade vinculada ou reservada, que se
destina a garantir aos índios o exercício dos
direitos que lhes foram reconhecidos
constitucionalmente (CF, artigo 231, §§ 2º, 3º
e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às
comunidades indígenas bem-estar e
condições necessárias à sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições (BRASIL, 2009b).
425
sendo-lhes "assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei" (§ 3º).
426
2. O INSTITUTO DO INDIGENATO NO DIREITO
BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA PARA A DEMARCAÇÃO
DAS TERRAS INDÍGENAS
427
requisitos que a legitimem [...]ora, a
occupação, como titulo de acquisição, só póde
ter por objecto as cousas que nunca tiveram
dono, ou que foram abandonadas por seu
antigo dono. A occupação é uma
apprehensiorei nullisou rei derelictce
(confiram-se os civilistas com referencia ao
Dig., til. De acq. rerum domin., L. 3, e tit.
deacq. vel. amitt. poss., L. 1); ora, as terras de
indios, congenitamente apropriadas, não
podem ser consideradas nem como res
nullius, nem como res derelictce; por outra,
não se concebe que os indios tivessem
adquirido, por simples ocupação, aquilo que
lhes é congênito e primario, de sorte que,
relativamente aos indios estabelecidos, não ha
uma simples posse, ha um tituloimmediato de
domínio; não ha, portanto, posse a legitimar,
ha dominio a reconhecer e direito originario e
preliminarmente reservado.
429
permanecerem nas terras que tradicionalmente ocuparam
(FREITAS, p. 58).
Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, este direito
recai sobre quatro esferas: as terras habitadas em caráter
permanente; as terras utilizadas para atividades produtivas; as
terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao bem-estar dos índios; as terras necessárias à
reprodução física e cultural dos índios.
Desta forma, o indigenato não garante apenas o acesso à
terra, mas concebe esta como um elemento necessário para a
manutenção do modo de vida próprio, de características culturais
e produtivas destas comunidades, o que faz com que o
reconhecimento deste direito seja, sobretudo, necessário para a
persecução de um direito fundamental destes povos.
A relação dos povos indígenas com a terra em que estão
inseridos ultrapassa a simples ideia de habitação e moradia, pois é
na relação com a terra e com natureza - que é um fator gerador de
suas manifestações culturais - que os índios são capazes de manter
seu modo de vida, seus usos, costumes, rituais e aspectos ligados à
ancestralidade que são particularidades destes povos.
O reconhecimento do instituto do indigenato é um
importante mecanismo para garantir que os povos indígenas
tenham acesso as suas terras, sobretudo dentro do cenário
brasileiro que historicamente tolera esbulhos e violações de direitos
humanos contra os povos originários.
430
3. PROCEDIMENTO PARA A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS
INDÍGENAS PREVISTO NO DECRETO 1.775/96
431
meio de um grupo técnico especializado, que trabalha analisando a
natureza sociológica, jurídica, etno histórica, cartográfica e
ambiental e um levantamento fundiário do local para traçar os
limites que compreende aterra indígena (artigo 2º, §1). O grupo de
trabalho será composto preferencialmente com técnicos servidores
do próprio órgão federal.
Artigo2 (...)
§ 8° Desde o início do procedimento
demarcatório até noventa dias após a
publicação de que trata o parágrafo anterior,
poderão os Estados e municípios em que se
localize a área sob demarcação e demais
interessados manifestar-se, apresentando ao
órgão federal de assistência ao índio razões
instruídas com todas as provas pertinentes,
tais como títulos dominiais, laudos periciais,
pareceres, declarações de testemunhas,
fotografias e mapas, para o fim de pleitear
indenização ou para demonstrar vícios, totais
ou parciais, do relatório de que trata o
parágrafo anterior.
433
demarcação, já ingressando dentro do sistema judiciário, a
demanda atenderá aos seus ritos e procedimentos próprios .
Após as manifestações de todos os interessados, a FUNAI
deverá, dentro de 60 dias, elaborar pareceres sobre as razões dos
interessados, analisando as provas e demais questões suscitadas e
encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça, que deverá
§ 10. Em até trinta dias após o
recebimento do procedimento, o Ministro de
Estado da Justiça decidirá:
I - declarando, mediante portaria, os limites da
terra indígena e determinando a sua
demarcação;
II - prescrevendo todas as diligências que
julgue necessárias, as quais deverão ser
cumpridas no prazo de noventa dias;
III - desaprovando a identificação e
retornando os autos ao órgão federal de
assistência ao índio, mediante decisão
fundamentada, circunscrita ao não
atendimento do disposto no § 1º do artigo 231
da Constituição e demais disposições
pertinentes.
434
Após a declaração, o procedimento deverá ser
encaminhado ao Presidente da República para homologar a
demarcação por meio de Decreto (artigo5º), posteriormente a terra
demarcada deverá ser registrada em até 30 dias, no cartório de
imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio
da União.
É de competência da FUNAI, no exercício do poder de
polícia, disciplinar o ingresso e o trânsito de terceiros em áreas em
que se constate a presença de índios isolados assim como tomar as
providências necessárias à proteção aos índios (artigo 7).
Embora o Decreto defina os prazos a serem seguidos pelos
órgãos envolvidos, o procedimento para demarcação acontece de
forma lenta e burocráticadevido a diversos fatores, como falta de
estrutura e funcionários do órgão indigenista, os conflitos
existentes em algumas terras e, não por vezes, pela falta de vontade
política em realizar a demarcação por parte do poder executivo
federal.
435
Estas prerrogativas distinguem os atos administrativos
dos atos de direito privado, a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di
Pietro (2015), no estudo do tema, conceitua tais atributos da
seguinte forma: a presunção de legitimidade é a conformidade do
ato com a lei, desta forma, presume-se até prova em contrário, que
os atos administrativos foram emitidos em conformidade com a lei.
A imperatividade é o atributo pelo qual os atos
administrativos se impõem a terceiros, independentemente de sua
concordância e decorre da prerrogativa que o poder público tem de
impor obrigações a terceiros. A autoexecutoriedade é o atributo
pelo qual a Administração pode pôr em prática seus atos sem que
seja necessária a intervenção do judiciário. A executoriedade são os
meios que a Administração pública pode autoexecutar suas
decisões com os meios coercitivos que lhe são próprios (PIETRO,
2015, p. 240-243).
Tal Decreto encerra o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas e tem natureza jurídica de ato
declaratório (CAVALCANTE, 2016, p. 6), ou seja, reconhece e
atesta uma situação jurídica preexistente. Desta forma, afasta-se a
natureza jurídica de ato constitutivo, já que a mesma não tem o
condão de criar, extinguir ou modificar uma relação jurídica
preexistente.
O raciocínio lógico de compreender as terras indígenas
dentro do seu aspecto de direito originário e a caracterização do ato
administrativo de natureza declaratória, faz com que a técnica
empregada para a garantia de acesso às terras pelos povos
indígenas, seja realizada de forma a dar maior eficácia a este direito.
436
Embora na prática, tais aspectos não sejam suficientes para garantir
sua concretização.
O Estatuto do Índio, em seu artigo 26, afirma que o
reconhecimento do direito dos povos indígenas da posse
permanente das terras que tradicionalmente ocupam se dará
independentemente de sua demarcação, visando atender ao
consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação.
Paulo Bessa Antunes (1994, p. 20), em análise a este
instituto afirma,
437
sendo que o procedimento tem função especial de apenas delimitar
espacialmente os limites da titularidade indígena.
Embora o ordenamento jurídico realize um esforço para
assegurar a efetividade deste direito, sabe se que na prática, a
efetivação da demarcação das terras indígenas vem acontecendo
muito aquém do necessário para dar segurança aos povos
originários. Enquanto tal medida não se concretiza, estes povos
ficam expostos a situações de vulnerabilidade e violência.
Tão cediço (e tolerado) é o quadro que o ordenamento
jurídico traz regras e é interpretado no sentido de “emendar”, sem
resolver, o problema. A título de exemplo, ao julgar a
constitucionalidade da lei 12.651/2012 (atual Código Florestal),
especificamente ao analisar ao parágrafo único do artigo 3º, o
Supremo Tribunal Federal entendeu que não se poderia sujeitar o
regime de equiparação das terras indígenas às pequenas
propriedades ou posses rurais familiares (tratamento jurídico mais
flexível no que tange às obrigações ambientais) à demarcação
dessas terras (BRASIL, 2018).
441
transmissão de energia ou de quaisquer outros
equipamentos e instalações colocadas a
serviço do público, tenham sido excluídos
expressamente da homologação, ou não; pelo
código 00012017072000011
XIV) as terras indígenas não poderão ser
objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou
negócio jurídico que restrinja o pleno
exercício do usufruto e da posse direta pela
comunidade indígena ou pelos índios (artigo
231, § 2º, Constituição Federal, c/c artigo 18,
caput, Lei nº 6.001/1973);
XV) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer
pessoa estranha aos grupos tribais ou
comunidades indígenas, a prática de caça,
pesca ou coleta de frutos, assim como de
atividade agropecuária ou extrativa (artigo
231, § 2º, Constituição Federal, c/c artigo 18, §
1º, Lei nº 6.001/1973);
XVI) as terras sob ocupação e posse dos
grupos e das comunidades indígenas, o
usufruto exclusivo das riquezas naturais e das
utilidades existentes nas terras ocupadas,
observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231,
§ 3º, da CR/88, bem como a renda indígena
(artigo 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de
plena imunidade tributária, não cabendo a
cobrança de quaisquer impostos, taxas ou
contribuições sobre uns ou outros;
XVII) é vedada a ampliação da terra indígena
já demarcada;
XVIII) os direitos dos índios relacionados às
suas terras são imprescritíveis e estas são
inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, § 4º,
CR/88); e
442
XIX) é assegurada a participação dos entes
federados no procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas, encravadas
em seus territórios, observada a fase em que se
encontrar o procedimento.
443
fato em si da ocupação fundiária é o dia 5
de outubro de 1988, e nenhum outro. (...)
Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei
Fundamental Brasileira é a chapa
radiográfica da questão indígena nesse
delicado tema da ocupação das terras a
demarcar pela União para a posse permanente
e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia
aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é
isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às
“riquezas do solo, dos rios e dos lagos”
existentes na área objeto de precisa
demarcação (§ 2º do artigo 231), devido a que
“os recursos minerais, inclusive os do
subsolo”, já fazem parte de uma outra
categoria de “bens da União” (inciso IX do
artigo 20 da CF) (grifo nosso);
444
Em momento posterior em 2014, no julgamento do
Agravo no Recurso Extraordinário 803.462/MS que analisava o
conflito na terra indígena “Limão Verde”, sob relatoria do Ministro
Teori Zavascki foi conceituada a terminologia usada no “renitente
esbulho” como,
445
em determinadas terras é tanto pertencer a
elas quanto elas pertencerem a eles, os índios
(“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa
Mãe”). (...) Um bem sentidamente congênito,
porque expressivo da mais natural e sagrada
continuidade etnográfica, marcada pelo fato
de cada geração aborígine transmitir a outra,
informalmente ou sem a menor precisão de
registro oficial, todo o espaço físico de que se
valeu para produzir economicamente,
procriar e construir as bases da sua
comunicação lingüística e social genérica.
446
3.388, foi novamente afirmado que as condicionantes não
possuíam efeitos vinculantes
448
salvaguardas produzidas no julgamento da Petição 3.388 para este
caso em concreto afirmou,
449
A Constituição de 1988 é o último elo do
reconhecimento jurídico constitucional dessa
continuidade histórica dos direitos dos índios
sobre suas terras e, assim, não é o marco
temporal desses direitos, como estabeleceu o
acórdão da Pet. 3.388. O termo “marco” tem
sentido preciso. Em sentido espacial, marca
limites territoriais. Em sentido temporal,
marca limites históricos, ou seja, marca
quando se inicia situação nova na evolução de
algo. Pois bem, o documento que deu início e
marcou o tratamento jurídico dos direitos dos
índios sobre suas terras foi a Cata Régia de
1611 (...) aqui temos inequivocamente um
marco temporal – o reconhecimento jurídico-
formal dos direitos originários dos índios
sobre as terras que ocupam. Outro marco
nessa continuidade histórica está no
reconhecimento constitucional daqueles
direitos. Por que, neste caso, temos um marco
temporal? Porque se dá àqueles direito uma
nova configuração jurídico-formal, retirando-
os das vias puramente ordinárias para
consagrá-las como direito fundamentais
dotados de supremacia constitucional. Isso,
como visto, se deu com a Constituição de 1934
(...) As demais constituições deram
continuidade a essa consagração formal até a
Constituição de 1988 que acrescentou o
reconhecimento de outros direitos (...)
(SILVA, 2015, p. 9)
450
estas salvaguardas ao procedimento de demarcação, o que colocaria
um fim em todas as divergências que as mesmas suscitam.
Nesta tentativa, já foram editadas diversas portarias pela
AGU, com diferentes entendimentos quanto a aplicação ou não
destas salvaguardas. Em 2012 foi editada a portaria nº 303 que
determinou que todas as dezenove salvaguardas definidas no
julgamento da PET. 3.388 integrassem o procedimento para a
demarcação das terras indígenas, inclusive para as terras que já
haviam sido demarcadas3- entretanto este instrumento normativo
foi alvo de diversas críticas consoante a sua validade, ao seu
conteúdo e eficácia, sendo posteriormente suspensa pela Portaria
da AGU n. 308 de 2012.
Quando foram opostos embargos de declaração da
decisão proferida na PET. 3.388, a portaria da AGU ainda estava
suspensa, sendo que em 2014 foi editada a Portaria 27 que
determinou à Consultoria-Geral da União e à Secretaria-geral de
Contencioso a análise da validade da Portaria 303 de 2012 com a
decisão proferida nos embargos. Sendo que em 2016 o Advogado-
Geral da União por meio do Despacho n.
358/2016/GABAGU/AGU determinou que enquanto os estudos
solicitados na Portaria 27 não fossem concluídos a portaria 303
teria sua eficácia suspensa.
3
Artigo1 (...). Artigo 2º. Os procedimentos em curso que estejam em desacordo
com as condicionantes indicadas no artigo 1º serão revistos no prazo de cento e
vinte dias, contado da data da publicação desta Portaria. Artigo 3º. Os
procedimentos finalizados serão revisados e adequados a presente Portaria.
451
E assim esta portaria teve sua eficácia suspensa até Julho
de 2017, quando foi editado o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU
que determinou que “nos processos de demarcação de terras
indígenas, os órgãos da Administração Pública Federal, direita e
indireta, deverão observar” as salvaguardas elaboradas pelo STF no
julgamento da Petição 3.388.
Este parecer foi aprovado pelo Presidente da República
em Julho de 2017, com isto, após a publicação do despacho
presidencial, o respectivo parecer assume caráter normativo e passa
a vincular todos os órgãos e entidades da Administração Federal,
que ficam obrigados a cumprir suas determinações.
Com isto todas as salvaguardas definidas pelo STF agora
compõem o procedimento de demarcações de terras indígenas.
Importante ressaltar que esta portaria foi objeto de uma
Representação interposta perante a Procuradoria Geral da
República pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil – APIB
questionando a legalidade de tal parecer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
453
REFERÊNCIAS
454
________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.
183.188. Relatado pelo Min. Celso de Mello e julgada pelo
Tribunal Pleno em 19 mar. 2009b.
455
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28 ed.
São Paulo; Atlas, 2015.
457
CIDADES ACESSÍVEIS COMO INSTRUMENTO DA
SUSTENTABILIDADE
1
Doutora em Direito pela PUC-SP. Professora da Faculdade de Arquitetura, Artes
e Comunicação - no Departamento de Ciências Humanas da
FAAC/UNESP/Bauru. Professora do Programa de Mestrado em Direito da
UNESP/Franca.
458
que traz em seu artigo 2º o direito a cidades sustentáveis, como
sendo aquelas em que o desenvolvimento urbano deve possibilitar
a seus habitantes uma vida digna, mediante o direito à terra urbana,
ao transporte, aos serviços, em nosso trabalho, o direito à
acessibilidade, para as presentes e futuras gerações. A metodologia
utilizada na elaboração da pesquisa constitui-se em estudo
descritivo-analítico, desenvolvido por meio de pesquisa do tipo
bibliográfica, pura quanto à utilização dos resultados, e de natureza
qualitativa. A partir de pesquisas doutrinárias e bibliográficas,
conclui-se que a acessibilidade funciona como um instrumento
para que se alcance a sustentabilidade nas cidades. E uma cidade
acessível é uma cidade de e para todos, uma cidade que contempla
a diversidade. Todavia, o que se constata ainda é que a maioria das
cidades ainda continua sendo projetada e adaptada sem considerar
a diversidade.
PALAVRAS-CHAVE: Pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida; Direito à acessibilidade; Cidades; Cidades sustentáveis,
Lei Brasileira de Inclusão.
459
right to all those who live in it, housing, urban services and
facilities, public transport, basic sanitation, health, education,
culture and leisure, and especially access to the physical
environment for those who live in the city (article 30, VIII and 182
of the Federal Constitution). In order to regulate article 182 of the
Federal Constitution, Law 10.257 of 2001, called the Statute of the
City, which includes in its article 2 the right to sustainable cities,
such as those in which urban development must enable its
inhabitants to live a dignified life, through the right to urban land,
transportation, services , in our work, the right to accessibility, for
present and future generations. The methodology used in the
elaboration of the research is a descriptive-analytical study,
developed through research of the bibliographic type, pure as to the
use of the results, and of a qualitative nature. Based on doctrinal
and bibliographical research, it is concluded that accessibility
works as a tool to achieve sustainability in cities. And an accessible
city is a city of and for all, a city that contemplates diversity.
However, it remains to be seen that most cities are still being
designed and adapted without regard to diversity.
KEYWORDS: People with disabilities or reduced mobility; Right
to accessibility; Cities; Sustainable Cities, Brazilian Inclusion Law.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Conceito de pessoa com deficiência e pessoa com Mobilidade
Reduzida.
3. Direito à acessibilidade: breves considerações sobre sua
normatização no Brasil.
3.1 Acessibilidade como instrumento da sustentabilidade.
Considerações Finais.
Referências.
460
INTRODUÇÃO
2
De acordo com estimativas da Organização das Nações Unidas - ONU, entre
1990 e 2025, haverá nas cidades cinco bilhões de pessoas, sendo que 80% vão estar
nesta parte do planeta.
3
Nesse sentido o Ministério das Cidades em seu Caderno de Referencia para
Elaboração de Plano de Mobilidade Urbana – PlanMob, assevera em sua pagina
18 que:“segundo o censo do IBGE de 2010, mais de 80% da população brasileira
vive em cidades. A Organização das Nações Unidas – ONU prevê ainda que em
2030 a população urbana brasileira passará para 91%. A taxa de urbanização
brasileira é superior à de países mais desenvolvidos. No mundo, este valor
recentemente ultrapassou os 50%, segundo o World Factbook 2010 (CIA, 2010)...
461
forem as cidades, mais ou seus habitantes dependerão de
infraestrutura para terem pleno acesso às oportunidades de
trabalho e de consumo nelas concentradas. Todavia, o padrão de
urbanização tem ocasionado a perda, por parte dessa população, da
qualidade de vida nas cidades.
Dentro desse contexto, a cidade e seus espaços, quando
não são acessíveis para as pessoas com deficiência, deixam de ser
um local de convívio, de encontro, de troca, do compartilhamento
(espaços de inclusão social), sustentáveis para tornarem-se locais
de exclusão social.
Esta exclusão, segundo esclarece Regina Cohen e Cristina
Duarte (2010, p. 85), produzida pelo meio, acontece "quando os
espaços se transformam na materialização de práticas sociais
segregatórias e de uma visão de mundo que dá menor valor às
diferenças sociais, físicas, sensoriais e intelectuais."
Assevera José Afonso da Silva (2006, p. 26), que "cidade
no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de
sistemas político-administrativo, econômico não agrícola, familiar,
simbólico como sede do governo municipal, qualquer que seja a sua
população. A característica marcante na cidade no Brasil consiste
no fator de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal.
Cabe ao Município a promoção do adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo, sendo, portanto, o
4
Muitos estudiosos trataram da questão terminológica, todavia, o uso da
expressão não é unívoco entre os mesmos do tema apontado: Guilherme Jose
463
expressões foram utilizados para designá-las, marcado muitas vezes
pela impropriedade e, outras tantas dando uma conotação
negativa. 5 Atualmente, corroborando a terminologia adotada na
467
deficiência.
Para melhor compreensão da afirmação contida no
preâmbulo da Convenção utilizaremos a explanação trazida por
Laís de Figueirêdo Lopes, a partir de uma equação matemática
elabora por Marcelo Medeiros, apresentada em seu paper na
Oficina de Alianças para o Desenvolvimento Inclusivo na
Nicarágua em 2005, os componentes desta fórmula são(troque ‘os
componentes desta fórmula são’ por ‘cujos componentes são’):
deficiência é igual limitação funcional multiplicada pelo ambiente
(deficiência = limitação funcional X ambiente). Assim, se
atribuirmos o valor zero 6 ao ambiente por ser um local que não
oferece obstáculo ou barreira, e multiplicarmos por qualquer que
seja o valor atribuído à limitação funcional do indivíduo, a
deficiência terá como resultado zero. Esclarece ainda que, por esta
teoria não estaríamos dizendo que a deficiência desapareceria, mas
tão somente que ela deixaria de ser uma questão problema, e a
recolocaria como uma questão resultante da diversidade. Todavia,
6
Segundo explicações fornecidas pela autora Laís de Figueirêdo Lopes em nota
de rodapé: "parte das incongruências matemáticas desta fórmula seria reduzida
caso se convencionasse atribuir valores a cada fator variáveis de um mínimo de 1
a um máximo de 5, o que colocaria o valor final da deficiência sempre no intervalo
de 1 a 25. Um seria o valor mínimo e 25 o valor máximo, eliminando o desvio
introduzido pela multiplicação por zero, que iguala os resultados que deveriam
ser diferentes. De qualquer forma, essa é uma digressão de menor importância,
dadas as dificuldades óbvias de mensuração e quantificação das variáveis
consideradas. Ressalte-se o valor didático e político da equação contido na
explicação da importância da interação das pessoas com deficiência com seu
entorno". In: LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA
FILHO, Waldir Macieira (coord.). Comentário ao Estatuto da Pessoa com
Deficiência, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 21.
468
ao invés de zero o ambiente apresentasse obstáculos e tivesse um
valor maior o aumento desse impacto seria progressivo em relação
à funcionalidade do indivíduo, sendo mais potencializada quanto
mais severa for a limitação funcional da pessoa com deficiência e
quanto mais barreiras apresentar o ambiente onde ela estiver
inserida.
Essa visão foi incorporada pela Convenção, alterando o
paradigma do modelo médico, aquele que via a deficiência como
uma doença que deveria ser tratada, para o modelo social, no qual
a deficiência não é um atributo da pessoa, mas uma condição que
se expressa a partir de dificuldades, de barreiras sociais, e
especificamente em nosso texto, das barreiras físicas, em que terá o
indivíduo que transpô-las para poder usufruir plenamente dos
espaços em que vive. Isto não significa que desprezemos as
alterações na estrutura funcional ou corporal trazidas pela
deficiência mas apenas que devemos ter em mente que essas
alterações isoladas, não são o que determinam as possíveis
dificuldades ou obstáculos que terão que ser enfrentados pelas
pessoas com deficiência, principalmente em seu ambiente físico;
em suas cidades.
O artigo 2º da Lei nº 13.146/2015 - Lei Brasileira de
Inclusão trouxe um conceito muito semelhante ao positivado na
Convenção:
Artigo 2º Considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras, pode obstruir
469
sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais
pessoas.
7
Decreto n. 5.296, de 2004, em seu artigo "5º (...),§ 1º. Considera-se, para os efeitos
deste Decreto:
I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de
16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho
de atividade e se enquadra nas seguintes categorias:
a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do
corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-
se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia,
tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação
ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade
congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam
dificuldades para o desempenho de funções;
470
deverá ser revisto com base na mudança do modelo médico par ao
modelo social de direitos humanos.
O Brasil há algum tempo vem estudando a migração dessa
classificação mais típica do modelo médico, que é eminentemente
baseada em perícia médica, para incluir os componentes do modelo
social, que considera também o serviço social na avaliação.
Avançando no processo de construção de uma sociedade
que respeite a diversidade, aquele que adota práticas inclusivas;
defendemos o conceito de pessoas com deficiência trazida pela
Convenção, ou seja, o conceito amplo trazido pelo modelo social.
471
Deixamos essa concepção que vê a deficiência com um enfoque
negativo, ligada apenas ao corpo do sujeito; aquele que se baseia na
incapacidade, para substituí-lo, por um enfoque positivo, que a
considera como uma condição que se expressa nos obstáculos
enfrentados por essas pessoas. A possível incapacidade não está na
deficiência em si, mas nas inúmeras barreiras instransponíveis que
podem impedi-las de usufruir de forma plena e efetiva da
sociedade. No caso do nosso trabalho, da falta de acessibilidade nos
espaços da cidade.
8
Marcus Vitruvius Pollio, ou Vitruvio, segundo anota Silvana Serafino
Cambiaghi, em sua obra Desenho Universal: métodos e técnicas para arquitetos
e engenheiro, p. 39, viveu no século I a C. O engenheiro romano apresenta em
sua obra De Architectura, um modelo ideal para o ser humano, segundo
determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na divina
proporção. Na descrição feita pelo arquiteto, as diferentes partes do corpo
formam um conjunto harmonioso de proporções. A arquitetura deveria seguir a
mesma concepção, isto e, considerar a proporcionalidade entre as partes para
completar o todo harmoniosamente. Os seus padrões serviram de fonte
inspiradora a diversos textos sobre construção e arquitetura.
473
Portadores de Deficiência pelas Nações Unidas. No ano de 1982, a
mesma Organização aprovou o Programa de Ação Mundial para
Pessoas com Deficiência, ressaltando o direito dessas pessoas com
deficiência de terem à(a)s mesmas oportunidades que os demais
cidadãos e desfrutarem, em condições de igualdade, de melhorias
nas condições de vida resultantes do desenvolvimento econômico
e social.
Dentro desse contexto, o Brasil publicou a primeira
norma técnica sobre o tema – a NBR 9050⁄1985 – Adequação das
Edificações e do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente, elaborada
pela comissão de estudos do Comitê Brasileiro da Construção Civil,
da Associação Brasileira de Normas Técnicas.
Após três anos, foi promulgada a Constituição Federal de
1988, que disciplina a acessibilidade, quando assegura, no artigo
227, § 2°, que a Lei disporá sobre normas de construção dos
logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de
veículos de transporte coletivo, a fim de garantir o acesso adequado
às pessoas com deficiência, e, no artigo 244 complementa a citada
norma, acrescentando que a lei disporá sobre a adaptação dos
logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de
transporte coletivo atualmente existentes, a fim de garantir acesso
adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o
disposto no artigo 227, § 2°.”
Atendendo a tal comando, foi publicada a Lei n° 7.853⁄89,
que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua
integração social, sobre a CORDE (Coordenadoria Nacional para
Integração da Pessoa com Deficiência), institui a tutela
jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas,
474
disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá
outras providências. Em seu artigo 2° já assegurava que os órgãos e
entidades da Administração direta e indireta devem dispensar
tratamento prioritário e adequado às pessoas com deficiência,
determinando, na área das edificações, a adoção e a efetiva
execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações
e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas com
deficiência, permitindo o acesso destas a edifícios, a logradouros e
a meios de transportes.
O Decreto n° 3.298⁄99 que regulamentou a Lei n° 7.853⁄89
trouxe como um dos objetivos da Política Nacional para Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência o acesso, o ingresso e a
permanência delas em todos os serviços oferecidos à comunidade,
estabelecendo em seu artigo 2°, parágrafo único, que os órgãos e
entidades da administração direta e indireta devem dispensar
tratamento prioritário e adequado para viabilizar medidas em
diversas áreas, dentre as quais, a adoção e execução de normas que
garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que
evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência
e que permitam o acesso destas aos edifícios, logradouros e meios
de transporte.
A acessibilidade foi novamente tratada pela lei n°
10.048/00 que assegura tratamento prioritário às pessoas com
deficiência, idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas
acompanhadas por crianças de colo. Essa Lei obriga as repartições
públicas, empresas concessionárias de serviço público e instituições
financeiras a dispensar tratamento prioritário, por meio de serviços
475
individualizados á essas pessoas, bem como sejam reservados
assentos nos transportes coletivos; orienta ainda que compete às
autoridades adotarem normas de construção e licenciamento para
garantir acessibilidade em logradouros e sanitários públicos, bem
como em edifícios de uso público e também, a acessibilidade nos
meios de transportes.
A lei n° 10.098/00 estabelece normas gerais e critérios
básicos para promoção da acessibilidade das pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida, nas edificações públicas
ou privadas, no espaço público, logradouros e seu mobiliário, nas
comunicações e sinalização entre outros. O objetivo desta lei será
alcançado quando forem suprimidas as barreiras e obstáculos nas
vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e
reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação.
Para os fins da lei são estabelecidas várias definições em seu
capítulo primeiro, dentre as quais, o que é acessibilidade, barreiras,
elementos de urbanização, mobiliário urbano, ajuda técnica e, de
forma simplificada, a definição de pessoa portadora de deficiência.
Após quatro anos foi publicado o Decreto n° 5.296, de 02
de dezembro de 2004 que regulamentou as Leis n° 10.048⁄00, que
dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica e, a de n°
10.098⁄00, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a
promoção de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade reduzida. Ficam sujeitos ao cumprimento deste
Decreto, a aprovação de projeto de natureza arquitetônica e
urbanística, de comunicação e informação, de transporte coletivo e
a execução de qualquer tipo de obra, de destinação pública ou
coletiva; a outorga de permissão, autorização ou habilitação de
476
qualquer natureza; a aprovação de financiamento de projetos com
a utilização de recursos públicos, por meio de convênio, acordo,
ajuste, contrato ou similar; e a concessão de aval da União na
obtenção de empréstimos e financiamentos internacionais por
entes públicos ou privados.
A luta pela inclusão dessas pessoas em todos os segmentos
da sociedade não parou. A ONU, preocupada com as sucessivas
violações dos direitos humanos das pessoas com deficiência no
mundo inteiro, conclui que esse grupo demandava uma atitude
institucional da comunidade internacional, e, em 30 de março de
2007, em sua sede em Nova Iorque, assinou a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo.
Como mencionamos anteriormente, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo
passou a ser o primeiro Tratado Internacional a ingressar na nossa
ordem jurídica interna com status de equivalência constitucional,
por ter sido aprovado nos exatos termos da regra imposta pelo § 3º
do artigo 5º da Constituição Federal. A principal contribuição desta
Convenção é a positivação da mudança de paradigma da visão da
deficiência no mundo, que passa do modelo médico, no qual a
deficiência é tratada como um problema de saúde, para o modelo
social dos direitos humanos, no qual a deficiência é resultante de
uma equação que tem duas variáveis, quais sejam as limitações
funcionais do corpo humano e as barreiras impostas pelo ambiente
exclusivo ao indivíduo.
A Convenção, ao ter reconhecido o modelo social como o
mais novo paradigma para conceituar as pessoas com deficiência,
477
embasou também a consolidação da acessibilidade positivada como
princípio fundamental para que esse segmento concretize seus
direitos fundamentais em todos os aspectos de suas vidas. Assim, a
Convenção reconheceu expressamente à importância da
acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à
saúde, à educação, e à informação e comunicação, para possibilitar
às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais. E seu artigo 3°, juntamente
com o respeito à dignidade, a autonomia individual, aliada a
liberdade de fazer suas próprias escolhas, a independência, a não-
discriminação, a plena e efetiva participação e inclusão, o respeito
à diferença, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade foi
elencada como um dos princípios gerais que deverão nortear a vida
das pessoas com deficiências. 9
Assim, para que a pessoa com deficiência exerça de forma
efetiva o direito à acessibilidade, a Convenção determinou também
em seu artigo 9°, que os Estados estarão obrigados a tomar medidas
apropriadas para assegurar a sua efetivação, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao
transporte, à informação e comunicação, bem como a outros
9
Artigo 3° - Princípios gerais
Os princípios da presente Convenção são: a) O respeito pela dignidade inerente,
a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a
independência das pessoas;
b) A não-discriminação; c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como
parte da diversidade humana e da humanidade; e) A igualdade de oportunidades;
f) A acessibilidade; g) A igualdade entre o homem e a mulher; h) O respeito pelo
desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das
crianças com deficiência de preservar sua identidade.
478
serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto
na zona urbana como na rural. Mais adiante, aponta que as medidas
destinadas à implementação da acessibilidade deverão incluir a
identificação e eliminação de obstáculos e barreiras, expressamente
determinando o dever de observância de normas de acessibilidade
em edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações
internas e externas, inclusive escolas, residências, instalações
médicas e local de trabalho. Também se exige a acessibilidade no
que diz respeito a informações, comunicações e outros serviços,
inclusive serviços eletrônicos e serviços de emergência.
Com a entrada em vigor da Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) – Lei
nº 13.146, de 07 de julho de 2015, como é de conhecimento, referida
Lei densificou no plano infraconstitucional, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, e, no que tange ao tema
acessibilidade, ratifica e especifica direitos antes já presentes no
ordenamento pátrio.
Na tentativa de cumprir o objetivo da acessibilidade acima
mencionado, trouxe a Lei nº 13.146/2015, em seu artigo 3º, I, o que
considera acessibilidade: Possibilidade e condição de alcance para
utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários,
equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e
comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de
outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou
privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por
pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.
479
E, abrindo o Capítulo referente à acessibilidade, o artigo
53 da Lei nº 13.146/2015 asseverou que a acessibilidade é o direito
que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida
viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e
de participação social.Em seu artigo 55, determinou que a
concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico,
de transporte, de informação e comunicação, inclusive de sistemas
e tecnologias da informação e comunicação, bem como de outros
serviços, equipamentos e instalações abertos ao público, de uso
público ou privado de uso coletivo, seja na zona urbana ou na zona
rural, deverão atender aos princípios do desenho universal.
A expressão desenho universal ou universal designerfoi
cunhada pelo arquiteto Ron Mace, que articulou e influenciou uma
mudança nos paradigmas dos projetos de arquitetura e design
(CAMBIAGHI, 2007, p. 71). Segundo ele, o desenho universal é
utilizado para descrever o conceito de projetar e construir produtos
ou ambientes para ser utilizável, na maior medida possível, por
todos (MACE, 2017). O objetivo principal dessa nova concepção,
segundo assevera José Antonio Lanchotti, é o de “simplificar as
ações do dia a dia de todas as pessoas, produzindo ambientes,
objetos e comunicações que possam ser utilizados por todas as
pessoas sem precisar de custos extras com adaptações ou
adequações, beneficiando usuários de várias idades e habilidades”
(LANCHOTTI, 2005, p. 105).
A definição de desenho universal veio expressa na NBR
9050/2004 da ABNT e no artigo 8º, IX, do Decreto nº 5.296/2004.
Encontramos atualmente a definição de desenho universal na Lei
nº 13.146/2015, em seu artigo 3º, II, como sendo a concepção de
480
produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por
todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto
específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva.
Por sua vez, o artigo 54 da LBI define a abrangência de
aplicabilidade da acessibilidade ao estabelecer que todos os projetos
e as obras com destinação pública ou coletiva, que sejam de
natureza arquitetônica, urbanística, de comunicação e informação
ou a fabricação de veículos de transporte e a prestação do respectivo
serviço, assim como autorizações, outorgas, concessões,
financiamentos, convênios, bem com obtenção de empréstimo e de
financiamentos internacionais por entes públicos ou privados com
aval da União, que tenham interação com a matéria regulamentada,
devem atender ao disposto nesta Lei.
O artigo 55 da Lei nº 13.146/2015 determina que toda a
concepção e a implantação de projetos que tratem do meio físico,
de transporte, de informação e comunicação, inclusive de sistemas
e tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços,
equipamentos e instalações abertos ao público, de uso público ou
privado de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural,
devem atender aos princípios do desenho universal, tendo como
referência as normas de acessibilidade.
No artigo 56, o Estatuto determina que a construção,
reforma, ampliação ou mudança de uso de edificações abertas ao
público, de uso público ou privadas de uso coletivo, deverão ser
executadas de modo a serem acessíveis, sendo que, nos termos do
artigo 57, as edificações públicas e privadas de uso coletivo já
existentes deverão garantir acessibilidade à pessoa com deficiência
481
em todas as suas dependências e serviços, nos termos das normas
de acessibilidade vigentes. O mesmo vale para os edifícios de uso
privado multifamiliar, conforme o artigo 58 do Estatuto.
Cabe registrar que, recentemente, o Presidente Michel
Temer publicou o Decreto de nº 9.296, de 01 de março de 2018 que
regulamentou o artigo 45 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência - Estatuto da Pessoa com Deficiência. Referido
Decreto veio para regulamentar a acessibilidade nos hotéis,
pousadas e estruturas similares e, para tanto, assegura que a
"concepção e a implementação dos projetos arquitetônicos de
hotéis, pousadas e estruturas similares deverão atender aos
princípios do desenho universal e ter como referências básicas as
normas técnicas de acessibilidade da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT),...". (artigo 1º). E no mesmo ano, foi
publicado no dia 26 de julho, o Decreto nº 9.451que determina que
novos empreendimentos habitacionais incorporem recursos de
acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida de acordo com as previsões estabelecidas pela norma NBR
9050 da ABNT. O texto ainda obriga condomínios residenciais a se
adaptarem às regras de acessibilidade em até 18 meses.
Em síntese, determina o Estatuto, à luz do que vem
disposto na Constituição, especialmente com a alteração
promovida pela Convenção da ONU, que um espaço será acessível
(ambiente urbano/rural ou edificação) quando todos puderem
ingressar, circular e utilizar todos os ambientes e não apenas parte
deles. Pois, a essência do desenho universal está no propósito de
estabelecer acessibilidade integrada a todos, sejam ou não pessoas
482
com deficiência. "O termo acessibilidade representa uma meta de
ampla inclusão, não um eufemismo". (CAMBIAGHI, 2007, p. 73)
Sendo assim, é inconcebível, nos dias atuais, que obras
continuem sendo construídas ou reformadas ou projetos
elaborados sem contemplar os princípios do desenho universal e,
consequentemente, sem assegurar a acessibilidade. Portanto, toda
e qualquer construção, reforma ou ampliação tanto públicas e
quanto privadas de uso coletivo, como vias e espaços públicos,
deverão estar acessíveis.
483
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (...)
(DI PIETRO, 2010, p. 3)
10
O relatório Brundtland consistiu num estado de alternativas para o
desenvolvimento e meio ambiente elabora por um comissão presidida pela
norueguesa GroHarlemBrundtland (única estadista do mundo designada para o
cargo de Primeiro Ministro, depois de ter ocupado pasta do Meio Ambiente),
encomendado pela Assembleia Geral da ONU em 1983 e finalizado em 31 de
dezembro de 1987. Dentre os três grandes grupos de problemas ambientais
classificados, destacam-se as questões sociais ligadas á pessoa humana,
485
processo preparatório à Conferência das Nações Unidas - Rio 92 e
começou a ser divulgado pelo relatório conhecido como "Nosso
Futuro Comum" a partir de 1987. O termo encerra a tese-chave do
que é possível desenvolver sem destruir o meio ambiente. A
formulação do desenvolvimento sustentável consagrado nesse
relatório é "aquele que satisfaz as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras em satisfazer suas
próprias necessidades". (CANEPA, 2005, p. 133)
A década de 2005 a 2014 foi estabelecida pelas Nações
Unidas como a década do "Desenvolvimento Sustentável". No
Documento Final do Plano Internacional de Implementação de
2005 sobre a "Educação para o Desenvolvimento Sustentável" é
afirmado que o conceito de
"desenvolvimento sustentável" continua a evoluir, mas que
compreende três áreas chave - sociedade, ambiente e economia,
sendo a cultura uma dimensão subjacente. Maria Manuela
Malheiro Ferreira Dias esclarece que:
488
públicas com a participação popular, voltadas para a proteção do
meio ambiente sadio, da eliminação da pobreza, da redução das
desigualdades sociais, da adoção de novos padrões de produção e
consumo sustentáveis, de modo a garantir à todas as pessoas da
cidade uma qualidade de vida digna.
Portanto, de acordo com o princípio do desenvolvimento
urbano sustentável, para se ter uma cidade sustentável é
imprescindível que políticas públicas sejam adotadas para
priorizar também as necessidades das pessoas com deficiência,
principalmente voltadas a assegurarem os seus deslocamentos de
forma livre e autônoma pelos espaços da cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
489
direitos em igualdade de condições com as demais pessoas, em
função do mau uso e ocupação do solo urbano, traduzidos em crise
habitacional e segregação espacial, ocasionando perda, por parte
dessa população, da qualidade de vida nas cidades. Dentro desse
contexto, a cidade e seus espaços, quando não são acessíveis para as
pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, deixam de ser o
local de convívio, de encontro, de troca, para tornarem-se locais de
exclusão espacial.
A necessidade de circular está ligada ao desejo de
realização das atividades sociais, culturais, políticas econômicas
necessárias na sociedade. As pessoas com deficiência ou
mobilidade reduzida deveriam conseguir se movimentar pelos seus
espaços com autonomia, segurança e conforto. Sair de sua
residência, conseguir chegar até o seu local de trabalho, buscar
algum lazer ou ir a seu trabalho; todas essas possibilidades de
deslocamento das pessoas pelos espaços da cidade compõem o
direito fundamental de ir, vir, ficar e permanecer. Essa necessidade
de deslocar, de circular, dependerá de como a cidade está
organizada territorialmente e vinculada funcionalmente às
atividades que se desenvolvem em seu espaço.
A acessibilidade aos edifícios, e logradouros públicos, nos
transporte coletivo e suas mútuas interações é regra mínima e
básica de cidadania, tanto que, o constituinte materializou-a no
artigo 227, § 2° e no artigo 244. Para dar eficácia a esses dispositivos
constitucionais, foram editadas, dentre outras, a Lei n° 7.853⁄89, o
Decreto n° 3.298⁄ 99, as Leis n° 10.048⁄00 en° 10.098⁄00 e o Decreto
n° 5.296⁄ 04, e a Lei nº 13.146/2015 - LBI. De uma maneira geral,
490
toda essa legislação visa garantir à pessoa com deficiência e
mobilidade reduzida a plena integração social, com a garantia da
acessibilidade aos espaços públicos da cidade.
O direito à acessibilidade é, portanto, uma exigência
constitucional que surge, atualmente, como um direito
fundamental, sobretudo, para a pessoa com deficiência ou
mobilidade reduzida.
Para que essas pessoas possam realizar de modo pleno e
irrestrito esse direito fundamental e compartilhar os aspectos
positivos da urbanização, é essencial que lhes assegure a capacidade
de circular pela cidade, onde se desenvolve parcela significativa de
suas vidas.
È fato que o Município é o principal responsável pela
tomada de decisões e ações executivas das políticas de
acessibilidade. Esse dever advém, dentre outras fontes, das
competências estabelecidas nos artigos 30 I, VIII e 182 da
Constituição Federal.
O Estatuto da Cidade ( Lei nº 10.2578⁄2001) reconheceu o
papel dos Municípios na formulação e condução do processo de
gestão das cidades, garantindo em seu artigo 2º o direito à cidades
sustentáveis, que significa aquela onde o desenvolvimento urbano
ocorre com ordenação, possibilitando uma vida digna para todos,
mediante o direito à terra urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, e no nosso estudo, à acessibilidade, para as presentes e
futuras gerações. Portanto, o desenvolvimento urbano tem que
estar associado ao desenvolvimento sustentável das cidades. Se a
construção de cidades acessíveis está no centro do planejamento
491
urbano, é indiscutível a nova concepção de desenvolvimento, qual
seja o desenvolvimento sustentável.
Como mencionamos, dentre as deficiências
experimentadas pelas pessoas a de locomoção é marcante na
medida em que a pessoa tem a liberdade de ir e vir tolhida. Assim,
tão importante quanto adequar os espaços públicos da cidade para
garantir a circulação das pessoas, notadamente àscom deficiência,
eliminando-se as barreiras existentes, é necessário que o Poder
Público municipal não crie diariamente novas barreiras ao projetar
ou executar uma nova obra pública, ou adaptar uma obra já
existente, ou ainda, ao publicar um edital de licitação para
prestação dos serviços de transporte público que não contemple a
questão da acessibilidade, ou ainda não propiciar o acesso aos
meios de informação e comunicação.
Não temos dúvida que uma cidade sustentável, aquela que
irá concretizar as normas da acessibilidade será uma cidade em que
todos os seus habitantes poderão fruir só dos espaços públicos das
cidades, mas do acesso a esse direito de forma ampla e irrestrita
como veio determinada na referida Lei. Uma cidade acessível é uma
cidade de e para todos!
492
REFERÊNCIAS
493
universal: caminhos da acessibilidade no Brasil. São Paulo:
Annablume, 2010.
494
MACE, Ron. The Center Universal desing. About Ron Mace.
Disponível em: <http:⁄⁄www.ncsu.edu⁄cud⁄about-
_us⁄usronmace.htm> . Acesso em: 2 jul. 2018.
495
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: A EFETIVIDADE DAS
GERAÇÕES ATUAIS E FUTURAS NA BUSCA PELA
RECIPROCIDADE E SOLIDARIEDADE NA
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de
Itaúna-MG. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas.
Advogada.
2
Pós-doutor em Educação pela UFMG. Doutor em Direito pela PUCMINAS.
Professor do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG.
496
busca pela preservação do meio ambiente e manutenção da
dignidade da pessoa humana. Se, tal justiça é eficaz no
ordenamento pátrio ou trata-se apenas de demagogia.
Posteriormente, serão analisadas as teorias de acerca da
solidariedade e reciprocidade entre as gerações atuais e futuras
acerca do que deverá ser feito para garantir o direito a uma
ambiente sadio e saudável às gerações atuais e futuras sem prejuízos
para o crescimento econômico e financeiro dos pais, tudo no
intuito de comprovar a efetividade ou a derrocada da justiça
intergeracional.
497
KEYWORDS: Intergenerational Justice; Environmental Law;
Reciprocity; Solidarity; Current Generations; Future generations.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Um breve escorço histórico do direito ambiental no Brasil.
2.1 O direito ambiental no Brasil colônia.
2.2 Brasil Império.
2.3 Brasil República.
2.4 Evolução do direito ambiental nas Constituições brasileiras.
3. Princípios basilares do direito ambiental.
4. Aspectos da justiça intergeracional.
4.1 A Origem da solidariedade intergeracional (entre gerações).
4.2 A teoria da equidade intergeracional no pensamento de Edith
Brown Weiss.
5. Os direitos para as futuras gerações.
Considerações Finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
498
meio ambiente sadio e ao mesmo tempo corresponde um dever de
preservação para o bem estar das gerações atuais e futuras.
Assim, a justiça entre gerações relaciona-se ao presente e
futuro próximo e principalmente remoto, quando se trata de uma
justiça ambiental, cujo objeto é o bem ambiental que se degrada
progressivamente dia após dia, geração após geração.
Desse modo, a contribuição para degradação do meio
ambiente, como os avanços tecnológicos é cada vez maior. Os
avanços industriais e o crescimento econômico estão intimamente
relacionados com a degradação ambiental, o que coloca em risco as
gerações futuras sob a perspectiva de médio e longo prazo.
Infelizmente, ainda hoje, o ser humano não consegue
atrelar o crescimento industrial, econômico e financeiro sem
degradar o ambiente e colocar em risco as gerações atuais e futuras.
E, esta talvez seja a questão mais relevante e difícil de ser resolvida,
na atualidade. E, nesse viés, o presente estudo tem por fim a analise
do que poderá ser feito pelas gerações atuais para preserva o meio
ambiente para as gerações futuras, isto é, a justiça intergeracional e
efetiva no ordenamento pátrio, as gerações atuais se preocupam
com as gerações futuras, há um sistema recíproco e solidário entre
gerações, trata-se de uma veracidade ou apenas demagogia.
No que tange ao procedimento metodológico, optou-se
pelo método dedutivo, partindo de uma concepção macro analítica
para uma concepção micro analítica, permitindo-se, portanto, a
delimitação do problema teórico. Por fim, no procedimento
técnico, foram adotadas as análises interpretativas, comparativas,
499
históricas e temáticas, possibilitando uma discussão pautada sob o
ponto de vista da crítica científica.
Para melhor análise do tema proposto, dividiu-se o artigo
em cinco itens, incluído esta introdução. No item seguinte,
apresenta-se um breve relato histórico e conceituação do direito
ambiental no Brasil, passando-se desde o império até a
Constituição Federal de 1988. No terceiro item serão analisados os
princípios basilares do direito ambiental e sua aplicação no
ordenamento pátrio. No item quatro serão analisados os aspectos
da justiça intergeracional, conceito origem histórico bem como
analise do principio da solidariedade intergeracional e a teoria da
equidade intergeracional de Edith Brown Weiss. No item cinco será
discutido o direito das gerações futuras e a analise das teorias de
Axel Gosseries. Por fim, serão tecidas as considerações finais,
seguidas das referências.
500
de 9 de novembro de 1326, protegia as aves e equiparava seu furto,
para efeitos criminais, a qualquer outra espécie de crime, fazendo
assim a primeira alusão a crime ambiental.
501
tempo de ano (...) trovisco, barbasco, coca, cal nem outro algum
material com que se o peixe mate”, vedando as pessoas de poluir as
águas dos rios e lagoas.
As Ordenações Filipinas também proibiam a pesca com
determinados instrumentos e em certos locais e épocas estipuladas,
a exemplo do que determinava a Lei 7.679/88, hoje substituída pela
Lei 9.605/98, como também afirma Ann Helen Wainer (1999).
502
principio da responsabilidade ambiental, fora do âmbito da
legislação civil. Porem, mesmo com a promulgação da lei nº 601, as
devastações nas florestas causadas pela extração de madeira
continuaram e preocupavam as autoridades da época.
503
mundo do Direito o conceito de meio ambiente como objeto
específico de proteção em seus múltiplos aspectos; o de instituir um
Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), apto a
proporcionar o planejamento de uma ação integrada de diversos
órgãos governamentais através de uma política nacional para o
setor; e o de estabelecer, no artigo 14, § 1°, a obrigação do poluidor
de reparar os danos causados, de acordo com o principio da
responsabilidade objetiva (ou sem culpa) em ação movida pelo
Ministério Público.
O segundo marco coincide com a edição da Lei nº 7.347,
de 24.07.1985, que disciplinou a ação civil pública como
instrumento processual específico para a defesa do ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos e possibilitou que a agressão
ambiental finalmente viesse a tornar-se um caso de justiça.
O terceiro marco pontifica em 1988, com a promulgação
da atual Constituição Federal, onde o progresso se fez notável na
medida em que a Carta Magna deu ao meio ambiente uma
disciplina rica, dedicando à matéria um capítulo próprio em um
dos textos mais avançados em todo mundo.
O quarto marco é representado pela edição de Lei nº
9.605, de 12.02.1998, que dispõe sobre as sanções penais e
administrativas aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente. Dita a lei, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”,
representa significativo avanço na tutela do ambiente, por
inaugurar uma sistematização das sanções administrativas e por
tipificar organicamente os crimes ecológicos. O diploma também
inova ao tornar realidade a promessa constitucional de se incluir a
pessoa jurídica como sujeito ativo do crime ambiental.
504
2.4 Evolução do direito ambiental nas Constituições
Brasileiras.
505
mineração, metalurgia, água, energia hidrelétrica, florestas, caça e
pesca e sua exploração".
A Constituição Federal de 1937 determinava em seu
artigo 16, inc. XIV, que competia privativamente à União legislar
sobre: "os bens de domínio federal, minas, metalurgia, energia
hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua exploração".
A Constituição de 1946 (artigo 5°, inc. XV, alínea l)
dispunha que à União competia legislar sobre: "riquezas do subsolo,
mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, florestas, caça e
pesca".
A Constituição Federal de 1967, por seu turno,
determinava, em seu artigo 8°, inciso XII, a competência da União
para: "organizar a defesa permanente contra as calamidades
públicas, especialmente a seca e as inundações". Esta Carta
estabelecia ainda, nos termos do seu artigo 8°, XV, b, que à União
competia explorar, diretamente ou mediante concessão, os serviços
e instalações de energia elétrica de qualquer origem ou natureza.
No que diz respeito à competência para legislar, rezava
aquela Carta que cabia à União tratar de questões pertinentes ao
direito agrário; normas gerais de segurança e proteção da saúde;
águas e energia elétrica.
A Emenda Constitucional n° l, de 17 de outubro de 1969,
manteve os termos daquilo que foi acima apontado. Houve,
entretanto, uma pequena mudança naquilo que diz respeito às
competências legislativas em relação à energia que foi subdividida
em elétrica, térmica, nuclear ou de qualquer natureza".
A Constituição de 1988 tratou da questão ambiental, de
maneira específica, em seu Capítulo VI, que se insere no Título VIII
506
(Da Ordem Social). Neste contexto, reza o artigo 225, caput, in
verbis:
508
povo incumbindo ao Poder Público e à sociedade sua preservação
e sua proteção.
O princípio do desenvolvimento sustentável tem como
corolário que os recursos ambientais são finitos, tornando-se
inadmissível que as atividades econômicas se desenvolvam alheias
a essa realidade. O se busca é a harmonização entre o postulado do
desenvolvimento econômico, algo pretendido por todos nós, e a
preservação do meio ambiente.
A própria CF/88 em seu artigo 170, VI, estabelece que a
ordem econômica também tem como fundamento a defesa e
preservação do meio ambiente.
Por seu turno, o princípio do poluidor pagar reflete um
dos fundamentos da responsabilidade civil em matéria ambiental.
Muitas vezes incompreendido, ele não demarca a de poluir
mediante o pagamento de posterior indenização (como se fosse
uma contraprestação). Ao contrário: reforça o comando normativo
no sentido de que aquele que polui deve ser responsabilizado pelo
seu ato.
Assim sendo, esse princípio deve ser compreendido como
um mandamento para que o potencial causador de danos
ambientais preventivamente arque com os custos relativos à
compra de equipamentos de alta tecnologia para prevenir a
ocorrência de danos. Trata-se da internalização de custos.
O princípio do usuário pagador é complementar ao
princípio anterior. Busca-se evitar que o “custo zero” dos serviços
e recursos naturais acabe por conduzir o sistema de marcado a uma
exploração desenfreada do meio ambiente.
509
Também o princípio da prevenção é um dos princípios
mais importantes do Direito Ambiental, sendo seu objetivo
fundamental. Foi lançado à categoria de mega princípio do direito
ambiental, constando como princípio nº 15 da ECO-92. O
princípio da prevenção relaciona-se com o perigo concreto de um
dano, ou seja, sabe-se que não se deve esperar que ele aconteça,
fazendo-se necessário, portanto, a adoção de medidas capazes de
evitá-lo.
O princípio da precaução correlaciona-se com o perigo
abstrato, ou seja, há mero risco, não se sabendo exatamente se o
dano ocorrerá ou não. É a incerteza científica, a dúvida, se vai
acontecer ou não. Foi proposto na conferência Rio 92 com a
seguinte definição:“O Princípio da precaução é a garantia contra os
riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do
conhecimento, não podem ser ainda identificados”.
A referência ao Princípio da Precaução ocorre pela
primeira vez na Declaração Ministerial da Segunda Conferência
Internacional sobre a Proteção do Mar Norte em 1984, conforme
Wolfrum (2004) afirma:
510
O Princípio da Precaução é reflexo do in dubio pro futuro,
em que pese a dúvida fundada em incertezas científicas, deve-se
priorizar a defesa das gerações futuras em detrimento da atividade
potencializadora do risco. Esse princípio representa a tutela de
antecipação às ameaças de danos ambientais irreversíveis.
Por sua vez, o princípio da participação (informação,
educação ambientais e audiências públicas) tem previsão no artigo
225, § 1º, VI, da CF/88. O cidadão não depende apenas de seus
representantes políticos para participar da gestão do meio
ambiente. O cidadão tem atuação ativa no que toca a preservação
do meio ambiente. Tem ele o direito de ser informado e educado (o
que é dever do Poder Público) para que, assim, possa interferir
ativamente na gestão ambiental, sendo que isso se concretiza por
intermédio, por exemplo, nas audiências públicas. (ação popular
ambiental).
O princípio ubiquidade ou transversalidade tem por
objetivo demonstrar qual é o objeto de proteção do meio ambiente
quando tratamos dos direitos humanos, pois toda atividade,
legiferante ou política, sobre qualquer tema ou obra, deve levar em
conta a preservação da vida e principalmente, a sua qualidade. Esse
princípio dispõe que o objeto de proteção do meio ambiente,
localizado no epicentro dos direito humanos, deve ser levado em
consideração toda vez que uma política, atuação, legislação sobre
qualquer tema, atividade, obra, etc., tiver que ser criada.
Também o princípio da cooperação internacional se
traduz em um esforço conjunto empreendido pela “aldeia global”
na busca pela preservação do meio ambiente numa escala mundial.
511
O inciso IV, do artigo 1º-A, do Código Florestal, em
atenção a este princípio, consagra o compromisso do Brasil com o
modelo de desenvolvimento ecologicamente sustentável, com
vistas a conciliar o uso produtivo da terra e a contribuição de
serviços coletivos das flores e demais formas de vegetação nativa
provadas.
O princípio da função socioambiental da propriedade tem
fundamento no artigo 186, II, da CF/88. O uso da propriedade será
condicionado ao bem estar social. Ainda o legislador previu, como
condição para o cumprimento da função social da propriedade
rural, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente.
513
desenvolvimento, realizada no ano de 1992, na cidade do Rio de
Janeiro. ECO-92.
514
necessidade de se modificar ou eliminar hábitos em nome de
interesses hipotéticos das gerações vindouras.
4.2 A teoria da equidade intergeracional no pensamento de
Edith Brown Weiss
515
vivas, temos a responsabilidade especial de proteger
sua resiliência e integridade.
516
Em terceiro lugar, cada geração deve fornecer aos seus
membros com direito igual ao acesso ao legado das gerações
passadas, e deve conservar este acesso para as gerações futuras.
Estes princípios, opções (diversidade), qualidade, e
acesso, permitem às gerações futuras a flexibilidade de operar-se
dentro de seu próprio sistema de valor e não requerem que uma
geração prediga os valores para a outra. Promovem a equidade
entre gerações respeitando ambos direitos, das gerações futuras de
não ser privada pelas preferências da geração atual para seu próprio
bem estar, e os direitos da geração atual de usar o ambiente livre
dos constrangimentos sem razões, para proteger as necessidades
futuras indeterminadas.
Estes princípios da equidade intergeracionais dão forma à
base das obrigações e dos direitos entre as gerações, que são
mantidos por cada uma delas. São complementados por direitos
intergeracionais e por obrigações dos membros da geração atual,
que derivam também dos direitos e das obrigações entre gerações.
A declaração 1997 da UNESCO nas responsabilidades da geração
atual para as gerações futuras determinou tais obrigações.
517
Representamos gerações passadas, mesmo ao tentar
cancelar o passado, nós incorporamos o que nos foi passado.
Representamos as gerações futuras porque as decisões que nós
fazemos hoje afetam o bem estar de todas as pessoas que virão após
nós e da integridade e potência do planeta que herdarão.
Acerca dessa reciprocidade entre gerações, com intuito de
preservação do meio ambiente e consequentemente com a
preservação e manutenção da existência humana faz-se necessário
trazer ao estudo os dizeres de Juarez Freitas ensina que:
a sustentabilidade, princípio
multidimensional, deve ser compreendida
como um valor constitucional supremo na
medida em que garante a expansão sistemática
das dignidades e a prevalência da
responsabilidade antecipatória; consistindo
em um dever improtelável a adoção da diretriz
vinculante da sustentabilidade (FREITAS,
2011, p. 122-123).
518
Entretanto o futuro pode ter uma dimensão de
médio ou longo prazo, enquanto a
preocupação relacionada ao interesse das
gerações futuras é, necessariamente, de longo
prazo e, sem duvida, um compromisso vago.
(...) A mudança global que está ocorrendo no
momento afeta não só os recursos naturais,
mas também os recursos culturais humanos
que foram acumulados durante milhares de
anos. Esses recursos consistem, por exemplo,
de conhecimentos de povos indígenas, de
registros científicos ou até mesmo de películas
que se deterioraram com o passar do tempo.
Fatores psicológicos e éticos explicam nossas
reações a tais questões. Nossa primeira reação
pode ser genética, instintiva. Todas as espécies
vivas procuram instintivamente assegurar sua
reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas
também fazem a provisão para o futuro bem-
estar de seus descendentes. A história humana
é testemunha dos constantes esforços dos
seres humanos para proteger não somente
suas próprias vidas, mas também para garantir
o bem-estar e melhorar as oportunidades para
sua prole. Os cuidados instintivos com as
crianças e netos fazem parte da natureza
humana (KISS, 2004, p. 9)
520
justificativa oferece uma justificativa da
existência de obrigações, a máxima
substancial fornece uma definição do
conteúdo dessas obrigações. Nos dois casos, a
identidade do beneficiário final (a geração que
se segue à nossa). Daí surge a noção de
reciprocidade indireta. O que é recebido de
uma geração é restituído a outra geração.
(GOSSERIES, 2015, p. 112).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
521
Difícil seria se um candidato, que propusesse políticas direcionadas
às gerações futuras, tivesse o apoio da sociedade, pois significaria, a
princípio, algum tipo de sacrifício para os governados, por meio de
uma participação compartilhada.
É muito difícil, infelizmente, essa busca pessoal por uma
participação intergeracional compartilhada, que na maioria das
vezes não é eficiente ou se quer relevante. O ser humano está cada
vez mais preocupado com o crescimento econômico, que se dá por
meio da exploração de recursos naturais inadequados, causando
danos geralmente irreversíveis, para as gerações atuais e futuras.
E, para que a sociedade de modo geral, se conscientize da
necessidade de obediência de tal principio e de fundamental
importância a preocupação e com isso maior poder de fiscalização
dos órgão públicos competentes, criação de políticas publicas
acerca do tema e principalmente investimento da educação e
conscientização da população acerca da importância do meio
ambiente e principalmente de que são recurso findáveis.
Assim, é de vital importância um comprometimento ou,
na melhor hipótese, um pacto de solidariedade e boa fé entre as
gerações atuais e futuras. Não se pode esquivar as gerações atuais
de deixar o meio ambiente em igual condições encontradas para as
gerações futuras e assim subsequentemente, como meio de
preservação dos direitos fundamentais de cada ser humano em ter
uma ambiente adequado e digno paraa garantia da existência
humana.
522
REFERÊNCIAS
523
BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a
educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação
Ambiental Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso
em: 27 abr. 2018.
525
WAINER, Ann Helen. Legislação ambiental brasileira:
subsídios para história do direito ambiental. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1999. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&ar
tigo_id=4128>. Acesso em: 27 fev. 2018
WEISS, Edith Brown. Intergenerational fairness and rights of
future generations. Disponível em:
<http://www.srzg.de/ndeutsch/5publik/1gg/7jg2h3/weiss.html>.
Acesso em: 25 abr. 2018.
526
CONSUMO HUMANITÁRIO E SUSTENTABILIDADE
AMBIENTAL
Dennis Verbicaro 1
Carolina Thury2
1
Doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha).
Mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará. Professor
da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade
Federal do Pará-UFPA e do Centro Universitário do Pará-CESUPA. Procurador
do Estado do Pará e Advogado. E-mail: dennis@gavl.com.br
2
Advogada. E-mail: carolina.thury@hotmail.com
527
PALAVRAS-CHAVE: Consumo Humanitário; Meio Ambiente;
Sustentabilidade; Educação.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Consumismo: análise das relações de consumo sob o aspecto
ambiental, consumerista e constitucional.
3. Consumo humanitário: proteção dos direitos e garantias
fundamentais do indivíduo.
4. Educação e informação do consumidor.
5. Coexistência harmônica entre o capitalismo e consumo
humanitário.
Considerações finais.
Referências.
528
INTRODUÇÃO
529
todos os seus esforços em tornar sua vida economicamente
produtiva, seja no trabalho, seja no âmbito das relações familiares,
ou mesmo na artificialidade de sua vida social, de modo a melhor
otimizar seu já escasso tempo para ser bem-sucedido na satisfação
das inúmeras necessidades de consumo, forjadas pela indústria
cultural, que, agora, serve maciçamente ao consumo.
Nesse sentido, a sociedade estimulada pelo desejo, pela
vaidade e pelo egoísmo, assumiu os riscos que poderiam advir do
consumo desenfreado, e hoje padece em um ambiente
ecologicamente desgastado e socialmente desequilibrado.
Desse modo, não é rara a associação entre o consumismo
e a degradação ambiental e social, sobretudo, quando relacionada
ao sistema econômico capitalista, que busca incansavelmente e de
forma negligente suprir a demanda voraz da população,
produzindo impactos provenientes da exploração irracional e
predatória do meio ambiente e do homem.
Nesse contexto, o estudo do consumo humanitário e sua
intricada relação com a ideia de sustentabilidade ambiental mostra-
se necessária no atual contexto da sociedade contemporânea,
marcada pela obsolescência programada de bens de consumo, pela
compulsão de consumo e pelo agravamento dos danos ao meio
ambiente.
Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, através de
pesquisa exploratória bibliográfica e documental, entre livros,
artigos e legislações acerca do tema, buscando subsídios que
contribuíssem para a argumentação lógica das ideias propostas no
artigo.
530
2. CONSUMISMO: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE
CONSUMO SOB O ASPECTO AMBIENTAL,
CONSUMERISTA E CONSTITUCIONAL
533
era reprovável moral e socialmente. A igualdade e a discrição
simbolizavam o modelo ideal de convivência.
Ao passar da posição de produtor para a de consumidor,
muitas coisas foram radicalmente alteradas. Hoje, as regras e
modelos comportamentais do antigo sistema tornaram-se
anacrônicas, para não dizer que foram proscritas pelos conselheiros
da Indústria Cultural. Destacar-se no grupo é a regra, assim como
viver uma vida de consumo sem limites. Atualmente, a tendência é
sempre mais, não há um máximo a ser alcançado. Não há mais o
luxo, pois a meta atual é tornar “luxo de hoje as necessidades de
amanhã, e, ao mesmo tempo, reduzir a distância entre o ‘hoje’ e o
‘amanhã’ ao mínimo” (BAUMAN, 2001, p. 90).
No passado, se um celular com câmera fotográfica
simbolizava o luxo, hoje, até o mais simples dos celulares possui
uma câmera, e, na maioria esmagadora dos celulares, há duas
câmeras. O mesmo vale para a instalação de airbags nos carros,
antes considerado um caro item opcional, mas a partir da resolução
311 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), alterada pela
resolução 597 do mesmo Conselho, tornou-se uma exigência
obrigatória no mercado. Observa-se, portanto, que seja por
demanda da sociedade, ou por força de lei, os padrões estão sempre
se atualizando, e se o consumidor não estiver preparado, será,
inevitavelmente, deixado para trás.
Bauman (2001, p. 90-91) utiliza a palavra “adequação” ao
falar sobre o consumidor estar sempre preparado, estar sempre
“apto a”. Os desafios do mundo em seu estado “líquido” são
imprevisíveis e constantes, daí a necessidade de preparação.
534
Essa fluidez de desejos e ambições favorece o
desenvolvimento da malsinada prática da obsolescência
programada, em que bens de consumo são concebidos com uma
projeção de durabilidade limitada no tempo, pretendendo-se
favorecer a ideia de descartabilidade, gerando profundas
consequências ambientais.
Já se abandonou o pensamento fordista de se preparar
apenas para uma função. O consumidor deve ter sua mente e corpo
não apenas limitados a uma função como era o produtor. Nos dias
atuais, com o assédio de consumo, oferta irresponsável do crédito,
o consumismo e a consequente massificação dos conflitos, a ideia
de vulnerabilidade foi elevada a outro nível, agora evidenciando
uma fragilidade ainda maior do consumidor, reconhecido como
hipervulnerável diante desses novos fenômenos.
Em que pese o consumismo advir da relação de consumo,
tal fenômeno expande suas consequências a outros setores, sejam
eles de caráter ambiental ou social. Visando estudar, conter e tratar
os desequilíbrios suportados pelo consumo desenfreado, levantam-
se diversos ramos do Direito, demonstrando a necessidade da
análise conjunta em busca da melhor solução.
Nessa seara, verifica-se que o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) – Lei 8.078/90 – (BRASIL, 1990) é conceituado
por Leonardo de Medeiros Garcia (2016, p. 234) como:
536
recuperação energética, se mostram como medidas indispensáveis
à proteção ambiental.
No entanto, tem-se que o ponto primordial deve se
concentrar nos esforços das ações que busquem a não produção dos
resíduos, mediante a prática do consumo consciente, ou seja,
aquele está pautado na aquisição de bens necessários à vida
humana, obtidos através das informações indispensáveis ao
conhecimento do consumidor que detenha plena capacidade de
entender todos os aspectos ali descritos.
Diante das proporções alcançadas pelo consumo
exagerado, o Direito Ambiental, responsável pela proteção jurídica
do meio ambiente, passa a estabelecer relação direta entre o meio
ambiente e o consumismo, estudando os impactos produzidos por
este fenômeno e suas formas de reparação ou amenização.
A Lei 6938/199 estabeleceu a Política Nacional do Meio
Ambiente no Brasil, que objetiva: compatibilizar o
desenvolvimento econômico-social com a preservação da
qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; desenvolver
pesquisas e tecnologias nacionais orientadas para o uso racional de
recursos ambientais; difundir as tecnologias de manejo do meio
ambiente, a divulgação de dados e informações ambientais e a
formação de uma consciência pública sobre a necessidade de
preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico;
preservar e restaurar os recursos ambientais com vistas à sua
utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo
para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida; impor
ao poluidor e ao predador, a obrigação de recuperar e/ou indenizar
537
os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de
recursos ambientais com fins econômicos, entre outros.
Na mesma linha, destacam-se as Leis nº 9.605/1998 e
9.975/99, dispondo sobre sanções penais e administrativas
aplicadas às condutas lesivas ao meio ambiente e instituindo a
Política Nacional de Educação Ambiental, respectivamente.
Ainda, programas e ações são propostos através de
políticas governamentais, ONG’s ou iniciativa privada, buscando a
educação e modificação do comportamento predatório do
consumidor para racionalização nas relações de consumo, em total
respeito e proteção ao meio ambiente e à sociedade.
Cumpre destacar a gama de princípios norteadores do
Direito Ambiental, os quais se concretizam sob a perspectiva da
garantia de um ambiente saudável a toda a população, através do
uso racional dos recursos naturais, os quais poderão ser igualmente
usufruídos pelas gerações futuras.
Seguindo a mesma linha, traz a Constituição Federal de
1988 (CF/88), a proteção do consumidor como direito fundamental
e princípio da ordem econômica (artigos 5º, XXXII, e 170, V),
cabendo ao Estado a promoção da defesa do consumidor,
garantindo como lei suprema, a prevalência da dignidade da pessoa
humana, o meio ambiente ecologicamente saudável e protegido, o
cumprimento das normas referentes à guarda das relações
trabalhistas, e o desenvolvimento sustentável atrelado a uma
perspectiva liberal.
Em outras palavras, as mazelas do capitalismo moderno
no Estado Democrático de Direito defendem o ideal alicerçado na
ordem econômica, primando pela livre iniciativa, prevista no artigo
538
170 da CF/88. Porém, tal princípio não pode colidir e acobertar os
empresários para tratar de qualquer modo os consumidores,
causando problemas sociais. Desta feita, há a necessidade de
compatibilidade e igualdade de princípios na relação de consumo.
Com a implementação de microssistemas, houve a promoção e
preservação de valores, bem como a repressão eficiente de abusos e
a ampla e efetiva reparação aos danos.
Tomando por base a nova vertente sedimentada pelo
Estado, a sociedade, cumprindo de certo modo a intenção do
legislador, tornou-se mais participativa à medida que o próprio
CDC (BRASIL, 1990) estabelece condições em que Estado, agentes
econômicos e sociedade são a tríplice harmônica para zelar pela
preservação dos bens jurídicos mais importantes do cidadão,
dentre os quais não se pode olvidar do meio ambiente.
539
Corroborando este entendimento, Tavares (2010, p. 56)
cita:
540
O artigo 225 da CF/88 contempla a proteção e o uso a
todos os indivíduos do meio ambiente equilibrado e saudável,
pautando-se na perspectiva sustentável e consciente da utilização
racional dos recursos naturais.
Corroborando os direitos acima elencados, bem como
outros a serem protegidos, consolida-se a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), como norma responsável por delinear
os direitos humanos básicos, sendo o Brasil signatário desta.
Ainda, sob o mesmo enfoque, o CDC estabelece normas
de proteção às relações consumeristas, as quais possuem atribuição
de caráter de ordem pública e interesse social.
Ainda em defesa aos interesses do consumidor, foram
criadas entidades que corroboram e promovem a execução destes.
Nesse caso, citamos o Programa de Orientação e Proteção ao
Consumidor (PROCON), Departamento de Proteção e Defesa do
Consumidor (DPDC), Delegacia do Consumidor (DECON), entre
outros.
Os princípios e institutos do Direito do Consumidor
norteiam e embasam a aplicação da norma, resguardando sempre
o interesse do sujeito que se encontra vulnerável dentro da relação
de consumo, neste caso, o consumidor.
Ainda sob a mesma perspectiva, considera-se também a
proteção do meio ambiente, através do arcabouço de leis que visam
a proteção do meio ambiente, a criação de uma política nacional
ambiental, a criação de uma política nacional de educação
ambiental, a valorização e aplicação dos princípios norteadores do
Direito Ambiental, bem como a execução de políticas promovidas
541
por órgãos e entidades criadas para melhor aplicação da norma,
visando a conscientização e racionalidade no uso dos recursos
naturais, em face da preservação para as gerações presente e
futuras.
Todas as garantias aqui elencadas demonstram a proteção
do indivíduo, quando analisadas sob a ótica das relações
consumeristas. Não basta apenas se ater às normas diretamente
incidentes (CDC), é necessário ir além, e interrelacionar as
consequências do consumismo nas suas áreas de incidência,
iniciando o processo de uso racional dos recursos naturais, formas
de produção, proteção do labor e do próprio indivíduo, destinação
final do produto e, ainda, conscientização do consumidor.
Diante da análise das normas jurídicas descritas acima,
surge então o conceito de Consumo Humanitário, entendido além
da ideia de consumo sustentável, englobando e aprimorando suas
diretrizes. A sustentabilidade do meio ambiente e o equilíbrio social
alcançaram parâmetros transcendentes para garantir a proteção
dos direitos humanos, destinados a todos os indivíduos, pela
simples condição de ser humano.
O meio ambiente equilibrado e a dignidade da pessoa
humana deverão ser igualmente protegidos, a partir da
disseminação do conhecimento necessário de preservação do meio
ambiente e da garantia dos direitos individuais e sociais
estabelecidos na CF/88, para o relacionamento saudável e
equilibrado do homem com o homem e do homem com o meio,
podendo assim, alcançar o almejado bem comum.
542
4. EDUCAÇÃO E INFORMAÇÃO DO CONSUMIDOR
543
o consumidor? Não há limites ao consumismo? A publicidade, a
oferta, o assédio de consumo, a degradação ambiental, tudo
repercute na vida do consumidor, que, na maioria das vezes, não
tem o conhecimento necessário sobre a ilicitude de muitas
condutas no mercado, nem tampouco acerca do alcance da
proteção que lhe é conferida.
Contudo, há outra educação que é informal, decorrente
do grau de comprometimento ético do fornecedor e do próprio
consumidor. Nessa linha de raciocínio, a educação informal é
aquela que deve partir do próprio empresário, com o escopo de ter
uma postura ética na relação de consumo, buscando cumprir
espontaneamente seus deveres, independentemente da sanção, ou
seja, livremente da aplicação da norma sancionadora, mas por
respeito ao seu conteúdo. 3
O consumismo, imposto pela economia capitalista e
estimulado pela propaganda e pelo incentivo sentimental da
sociedade, levou a humanidade ao caos sócio-cultural-ambiental,
com impactos devastadores à sociedade e ao meio ambiente.
Para reverter o quadro de total desequilíbrio social e
ambiental, verifica-se a necessidade imperiosa de implantar uma
nova ética, pautada pela responsabilidade e solidariedade das
gerações presentes e futuras, visando à preservação do planeta e da
3
Pretende-se através dessa educação informal implementar um ideal dentro do
Direito, tornando o sistema normativo estático, ou seja, cumprir-se-ia a norma,
não pelo respeito à autoridade da qual emanou e que está autorizada a exigir sua
aplicação irrestrita, mas pelo reconhecimento do conteúdo ético da prestação, ao
contrário do que ocorre com a maioria das normas jurídicas, em que a autoridade
que a exige funciona como o principal inibidor de condutas ilícitas e garantidor
da paz social, revelando um sistema normativo dinâmico.
544
própria raça humana. Dessa forma, busca-se garantir o direito
fundamental a um ambiente equilibrado socialmente,
culturalmente e ecologicamente para todas as gerações.
Nesse sentido, verifica-se que é impossível desatrelar a
nova perspectiva acerca da consolidação do consumo humanitário
em um ambiente genuinamente capitalista, sem que se modifique a
demanda do consumidor para uma exigência de adaptação da
oferta disponibilizada no mercado.
Ora, o consumidor informado e educado, torna-se
consciente, portanto, adepto às diretrizes da sustentabilidade,
impondo ao fabricante ou prestador de serviço, uma produção
ecologicamente e socialmente equilibrada, em total consonância
aos direitos e garantias do homem.
O direito à informação e à educação já são garantidos pelo
próprio Código de Defesa do Consumidor e leis esparsas, como
exemplo, Lei 13.186/2015 (Política de Educação para o consumo
sustentável).
Leonardo de Medeiro Garcia (2016) apud Paulo Antonio
Locatelli (2000) afirma que os produtos podem ser danosos ao meio
ambiente desde a extração da matéria-prima, ou seja, antes mesmo
da confecção do produto e, portanto, da sua existência, passando
pelo seu uso irregular e indiscriminado, até a destinação após a sua
inutilização. Portanto, as referidas considerações quando
disponibilizadas ao alcance do consumidor, que seja capaz de
entendê-las, promoverá a escolha consciente deste, que poderá
substituir produtos danosos ao meio ambiente e/ou à sociedade,
por aqueles menos ou não agressores destes fatores.
545
Portanto, o poder de escolha consciente e o exercício deste
somente são possíveis quando ao consumidor são dadas todas as
informações adequadas e precisas sobre os impactos que o
consumo causa ao meio ambiente.
Ademais, o consumidor deve ser capaz de entender as
informações disponibilizadas, deverá se tornar consciente e
responsável. E, para tanto, é necessário educá-lo. Ora, a gama de
informações prestadas não alcança sua finalidade quando
repassada a alguém que desconhece os conceitos, termos e
definições.
Dessa forma, verifica-se que é necessário fornecer ao
consumidor os meios necessários para que este faça escolhas
conscientes e imbuídas de responsabilidade social, política e moral,
as quais superam os meros anseios e interesses individuais.
Nesse aspecto, é possível relacionar o fornecimento de
educação ao indivíduo com o próprio exercício da cidadania, eis
que surge neste momento o pensamento coletivo e solidário,
mediante o conhecimento dos direitos e deveres atribuídos a todos.
O fornecimento de educação e informação ao consumidor
e também ao fornecedor garante o pleno exercício da liberdade de
escolha. Portanto, apenas o indivíduo consciente e com
informações precisas exercerá de forma livre a escolha pelas opções
dos produtos e serviços disponibilizados. Assim, inegável a
conclusão de que a ausência da prestação educacional associada à
ineficiência na prestação das informações violam o direito à
liberdade do homem.
Assim, é possível concluir que não basta isolar a culpa
para grandes empresas e corporações que provocam os danos
546
ambientais e sociais. Para uma real mudança no topo da pirâmide,
vê-se imprescindível e urgente uma modificação de
comportamento e exigência na base responsável pelo consumo, ou
seja, de todos os consumidores. Se a desaprovação não atinge o
consumismo, a conscientização não é completa.
Logo, entender, mediante um processo de
conscientização e informação, que as atitudes humanas
desencadeiam diversos efeitos colaterais para a natureza é
imprescindível para desenvolver um consumo consciente. E mais,
entender que essa prática do consumo predatório, que hoje
aparenta ser tão natural, tem origem e conceito bem definidos,
pode ser ainda mais efetivo para elucidar a diferença entre a
necessidade real e a necessidade construída.
Portanto, busca-se construir novos significados na
construção de uma sociedade humanitária, a fim de que a mesma
se transforme num coletivo democrático, participativo e
socialmente justo, capaz de exercer efetivamente a solidariedade
com as gerações presentes e futuras.
Nesse sentido, faz-se obrigatório adotar diversas medidas
que garantam e promovam a exata e real divulgação de todas as
informações concernentes ao ciclo de vida do bem, envolvendo
todos os impactos de caráter ambiental ou social que foram
produzidos por este até a produção da versão final.
A conscientização pautada sob a educação é, sem dúvida,
um dos caminhos para melhorar os desgastes e desequilíbrios
sociais e ambientais, pois promove, a partir do conhecimento, a
mudança de comportamento do indivíduo diante das necessidades
547
que a vida impõe a todos, relacionadas, harmonicamente, às
limitadas disponibilidades de recursos naturais e às garantias dos
direitos precípuos do homem, os Direitos Humanos.
Em outras palavras, a participação maior do consumidor
no debate político, reafirmando o ideal de cidadania, seria fruto de
seu maior nível de educação para um consumo consciente,
responsável e, principalmente, sustentável, aperfeiçoando os
elementos de conexão entre o Direito do Consumidor e o Direito
Ambiental.
549
consumidor, pois pelo exercício consciente de sua liberdade de
escolha, poderá diminuir a relevância, ou mesmo excluir o
capitalista predatório do mercado.
O cenário atual, relacionado à cultura do consumo em
excesso, continuamente incentivado pelo mercado, tem sido
considerado, frequentemente, um símbolo do sucesso das
economias capitalistas modernas. Entretanto, o referido consumo
predatório e desenfreado tem recebido duras e constantes críticas,
seja por ONG, Governos, Organizações Mundiais, Instituições
Públicas e Privadas, passando a ostentar uma conotação negativa e
prejudicial ao equilíbrio do ambiente ecológico e social.
Diante desse contexto, surgem propostas de política
ambiental, através de um comportamento ético, solidário e
sustentável, bem como a implementação de programas de
conscientização social, desenvolvidos por ONG, Instituições
Privadas e Públicas e pelo próprio Estado, buscando a
compatibilização dos direitos alcançados pelo consumo
humanitário com o sistema capitalista.
Assim, de um lado, se levanta o combate à degradação aos
recursos naturais finitos do planeta, a frustração do desejo de
consumir o desnecessário, a imposição de padrões sociais ditados
pelo mercado e a exploração do trabalho escravo. Em
contrapartida, o capitalismo com sua inerente liberdade de
produção e concorrência precisa se adaptar ao novo contexto
social, a partir da conexão dos princípios éticos e solidários às
escolhas políticas e preservação do meio ambiente, mediante uma
mudança de comportamento relacionada às atividades de
consumo.
550
Dessa maneira, o consumismo perdulário e ostensivo
estimulado e vivenciado há décadas, hoje se demonstra social e
ambientalmente injusto, moralmente indefensável e genuinamente
ilegal.
Ora, se forem considerados os princípios garantidos
constitucionalmente (igualdade, defesa do meio ambiente,
proteção do trabalho, dignidade da pessoa humana e cidadania),
claramente se verifica a violação direta à Carta Magna de 1988 e ao
Estado democrático de Direito.
Assim, para a coexistência harmônica da garantia dos
direitos individuais e do sistema capitalista é imprescindível
fortalecer estratégias que promovam a educação e a informação do
consumo sustentável, pautado sob uma perspectiva humanitária.
Portanto, é necessário desenvolver um conjunto de ações
que, na sua especificidade e interdependência, avancem em direção
à estruturação de um repertório de políticas integradas, mediante a
adoção de tecnologias limpas, que promovam campanhas de
conscientização sobre os fatores que provocam a insustentabilidade
ambiental e estimulem atividades não poluidoras com a efetiva
execução de políticas socioambientais.
Por conseguinte, insta salientar que o objetivo da
conscientização social aliado à modificação do comportamento não
busca extinguir o sistema econômico neocapitalista, mas sim
harmonizá-lo à necessidade imperiosa da sociedade e do meio
ambiente, garantindo-lhe efetiva representação social.
551
CONSIDERAÇÕES FINAIS
553
Admite-se que não se pode estudar o fenômeno do
consumismo sem avaliar então os aspectos envoltos pelo Direito
Ambiental e pelo Direito Constitucional, haja vista que o consumo
demasiado extrapola os limites da relação consumerista,
impactando diversos aspectos sociais.
Ser um consumidor consciente é preocupar-se em ser um
cidadão mais ativo em prol do exercício democrático de suas
escolhas. Nesse sentido, a informação, direito fundamental da
Pessoa Humana, interfere diretamente sobre o livre arbítrio das
decisões do consumidor. E em se tratando de poder seletivo em
relação ao mercado, pode e deve a parte mais vulnerável da relação
jurídica ser uma das engrenagens que impulsiona o fornecedor a
mudar suas atitudes quanto à concorrência desleal social, que usa
da dignidade do trabalhador para obter lucros.
Dessa forma, busca-se compatibilizar e possibilitar a
conscientização social acerca da convivência harmônica entre o
neocapitalismo e o consumo humanitário e/ou sustentável, a partir
de um programa de implementação da educação e da obtenção da
informação do consumidor como meio de combate ao
consumismo destrutivo e desenfreado, na busca de promover e
garantir um ambiente equilibrado ecológica e socialmente, nos
moldes da lei universal de direitos humanos.
554
REFERÊNCIAS
555
MALTES, Rafael Tocantis; FERIAN, Monique Rodriguz.
Consumismo e Meio Ambiente. Disponível em
<https://rafaelmaltez.jusbrasil.com.br/artigos/121944044/consumi
smo-e-meio-ambiente>. Acesso em: 05 jun. 2018.
556
REFORMA TRABALHISTA NA PERSPECTIVA DO
DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA E DO
DIREITO A TER DIREITOS
1
Pós-doutor em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba, ARG. Doutor
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor dos cursos de graduação
e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Juiz do Trabalho junto ao TRT da 3ª Região.
2
Pós-doutora em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba, ARG. Doutora
e mestra em Direito Privado pela PUC-Minas. Professora de Direitos Humanos e
Processo Coletivo do Trabalho das Faculdades Milton Campos. Advogada.
557
harmonia com tratados sobre direitos humanos dos quais o Brasil
é signatário, ou seja, a sua submissão a rígido controle de
convencionalidade. O presente ensaio não pretende confrontar
cada uma das normas que compõem a reforma trabalhista com
tratados sobre direitos humanos, mas, sim, verificar se acesso à
justiça é um direito humano e, em caso positivo, qual é o seu
alcance, visando estabelecer parâmetros para a submissão da
reforma trabalhista a controle de convencionalidade, na
perspectiva de que, definidos estes parâmetros, as partes estarão em
melhores condições de exercer o seu direito ao acesso à justiça e
exigir o seu respeito, proteção e realização concreta, assim como os
julgadores estarão em melhores condições para aferir se os seus atos
estão em harmonia com este direito.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Direitos humanos. Direitos humanos processuais. O acesso à
justiça como direito humano processual.
3. Direitos humanos processuais em espécie. O acesso à justiça
como direito humano.
4. Alcance do direito de acesso à justiça como direito humano.
Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
559
Deste modo, qualquer norma interna está sujeita a
controle de convencionalidade, ou seja, de compatibilidade com os
tratados sobre direitos humanos aos quais o Brasil está submetido.
A realização deste controle é imposta, ainda:
1) pelos artigos 5º, § 1º, e 7º, caput, da Constituição da
República, que determinam a compatibilização das fontes internas
e externas do Direito do Trabalho, tendo em vista, especialmente,
os princípios da prevalência da norma mais favorável e pro homine,
e pelo artigo 4º, IV, da também da Constituição da República, que
adota como princípio a prevalência dos direitos humanos;
2) pela supralegalidade dos tratados sobre direitos
humanos, que é reconhecida, por exemplo, pelo artigo 27 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, segundo o qual
o Estado não pode invocar as disposições do seu direito interno
para justificar o inadimplemento de um tratado;
3) pelo artigo 13 do Código de Processo Civil de 2015, que,
na condição de fonte subsidiária e supletiva do Direito Processual
do Trabalho, impõe que, na solução judicial dos conflitos de
interesses, sejam consideradas as disposições previstas em tratados,
convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.
A respeito das obrigações assumidas pelo Brasil perante a
comunidade internacional vale lembrar, por exemplo, que: a
Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a obrigação
de não exercer atividade ou praticar qualquer ato destinado à
destruição dos direitos e liberdades nela estabelecidos (artigo
XXX); a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados dispõe
que estes obrigam as partes e devem ser cumpridos de boa-fé
(artigo 2º) e que o Estado é obrigado a abster-se da prática de atos
560
que frustrariam o objeto e a finalidade de um tratado (artigo 18); o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
impõe aos Estados a obrigação de adotar medidas que visem
assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o
pleno exercício dos direitos nele reconhecidos.
Cumpre mencionar, também, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, segundo a qual os Estados devem:
respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e garantir o seu
livre e pleno exercício (artigo 1º, 1); b) adotar as medidas
legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar
efetivos os direitos e garantias nela previstos (artigo 2º, n. 1).
Lembre-se, por fim, da Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento, proclamada pela Organização das Nações
Unidas em 1986, que reconhece o direito ao desenvolvimento
econômico, social, cultural e político (artigo 1º) e estabelece que os
Estados têm: a) “o direito e o dever de formular políticas nacionais
adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante
aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os
indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa
no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí
resultantes” (artigo 2º, n. 3); b) a responsabilidade primária pela
criação das condições favoráveis à realização do direito ao
desenvolvimento (artigo 3º); c) a obrigação de adotar medidas para
eliminar as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos
(artigo 5º), tomar todas as medidas necessárias à realização do
direito ao desenvolvimento, inclusive no que ser refere ao acesso ao
emprego, distribuição equitativa de rendas e erradicação das
561
injustiças sociais (artigo 8, 1), e formular, adotar e implementar
políticas voltadas ao pleno exercício e fortalecimento progressivo
do direito ao desenvolvimento (artigo 10).
Em suma, o Brasil tem a obrigação de respeitar, proteger
e realizar os direitos humanos.
Anote-se que, como esclarece Rolando E. Gialdino:
a) a obrigação de respeitar significa que o Estado “deve
abster-se de adotar medidas que possam dificultar ou impedir” o
gozo dos direitos humanos, caracterizando o descumprimento
desta obrigação a “derrogação de normas de proteção dos
trabalhadores”, “limitação ou denegação do acesso aos direitos a
‘todas’ as pessoas” e criação de dificuldades para o acesso à justiça”;
b) a obrigação de proteger significa que o Estado deve
proteger a pessoa humana “das outras pessoas (físicas ou
jurídicas)”, em especial quando elas se encontrem frente a
elementos agressivos, dentre os quais “interesses econômicos
poderosos”, o que requer, por exemplo, a adoção de medidas
legislativas para “amparar os trabalhadores” contra “práticas
trabalhistas danosas”, caracterizando descumprimento desta
obrigação o “abandono da população às ‘leis do mercado’, em
matéria de salários, por exemplo;
c) a obrigação de realizar constitui gênero, que tem com
espécies as obrigações de facilitar (o Estado deve “procurar iniciar
atividades com o fim de fortalecer o gozo” dos direitos humanos ou
dos “direitos que compõem o direito a um nível de vida
adequado”), fazer efetivo (os Estados devem tornar efetivos os
direitos quando um indivíduo ou grupo for incapaz, por razões que
escapam ao seu controle, de gozá-los, utilizando, para cumprir esta
562
sua obrigação, inclusive “os instrumentos tendentes a realizar uma
verdadeira e justa distribuição da riqueza nacional”), e proteger (o
que significa que o Estado deve “promover, manter e restabelecer a
saúde da população”) (GIALDINO, 2003, p. 95-105).
Estas obrigações devem ser cumpridas pelo Estado no
exercício de todas as suas funções, ou seja, executiva, legislativa e
jurisdicional, valendo registrar, quanto a este último aspecto, que
os juízes não podem “ignorar que todas as normas relativas a
direitos humanos, inclusive as normas de princípios, são de
aplicação direta e imediata, nos precisos termos do disposto no
artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal” (COMPARATO, 2001, p.
29), o que significa que os juízes têm o dever de respeitar, proteger
e realizar os direitos humanos.
Realizados estes esclarecimentos, cumpre mencionar que
a denominada reforma trabalhista, que foi realizada,
principalmente, por meio da Lei n. 13. 467/2017 adotou soluções
que traduzem sérias restrições ao acesso dos trabalhadores à justiça.
Neste sentido, vale mencionar a inclusão na CLT da
possibilidade de punição da litigância de má-fé e de condenação
dos trabalhadores no pagamento de honorários advocatícios
sucumbenciais. Toda litigância de má-fé deve ser punida e não há
como negar que é razoável impor ao vencido a obrigação de pagar
honorários advocatícios aos patronos da parte vencedora.
No entanto, a inclusão destas possibilidades na CLT deve
ser examinada em conjunto com outras medidas adotadas pela
reforma trabalhista.
563
A reforma trabalhista estabelece que a
responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da
parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que
beneficiária da justiça gratuita, ou seja, a simples improcedência do
pedido foi considerada fato suficiente para que o trabalhador seja
condenado a pagar honorários periciais, mesmo que beneficiário
da justiça gratuita e que não tenha litigado de má-fé.
De outro lado, por força da reforma trabalhista, os
trabalhadores também passaram a se sujeitar ao pagamento de
honorários advocatícios, no caso de sucumbência, o que,
considerado individualmente, e bem razoável. No entanto, a
reforma trabalhista, adotando solução consagrada pelo Código de
Processo Civil (CPC), estabeleceu que os honorários são devidos na
reconvenção, mas, sem uma explicação plausível, não acompanhou
o CPC quando ele estabelece que tal verba também é também
devida na execução, o que deixa claro que a adoção do princípio da
sucumbência teve em vista tornar o processo custoso para os
trabalhadores.
Estes exemplos são suficientes para se chegar à conclusão
de que a reforma trabalhista cria sérios entraves para o acesso dos
trabalhadores à justiça.
Note-se que, a par de criar entraves para o acesso dos
trabalhadores à justiça, a reforma trabalhista adotou soluções que
dificultam a satisfação dos direitos reconhecidos em juízo,
restringindo, por exemplo, a possibilidade de reconhecimento de
grupo econômico, ou seja, a atribuição de responsabilidade pelos
créditos dos trabalhadores a todos aqueles que se beneficiam dos
seus serviços.
564
As normas que compõem a reforma trabalhista estão
sujeitas, pelos motivos já exposto, a controle de convencionalidade.
O objetivo do presente ensaio não é examinar cada uma
das normas que compõem a reforma trabalhista no seu confronto
com tratados sobre direitos humanos, mas, sim, verificar se o acesso
à justiça é um direito humano e, em caso positivo, qual é o seu
alcance.
O que se pretende, em suma, é, utilizando-se de estudo
bibliográfico, estabelecer parâmetros para a submissão da reforma
trabalhista a controle de convencionalidade, na perspectiva de que,
definidos estes parâmetros, as partes estarão em melhores
condições de exercer o seu direito à efetividade da jurisdição e do
processo e exigir o seu respeito, proteção e realização concreta,
assim como os julgadores estarão em melhores condições para
aferir se os seus atos estão em harmonia com este direito, valendo
lembrar que o acesso à justiça não constitui um fim em si mesmo,
mas, sim, importante via de acesso aos direitos assegurados pela
ordem jurídica, o que o torna imprescindível em um Estado
Democrático de Direito.
Anote-se que, a relevância do acesso à justiça é tamanha,
que os chefes de Estado presentes na assembleia da Organização das
Nações Unidas, realizada em 25 de setembro de 2015, na qual foi
aprovada a Agenda 2030, entre eles o do Brasil, reconheceram a
necessidade de construir uma sociedade justa e inclusiva e respeitar
o direito de todos à proteção social e bem-estar físico, mental e
social e a obrigação de os Estados respeitarem, protegerem e
promoverem os direitos humanos (números 7, 11 e 19), adotaram
565
como uma das metas a serem atingidas até 2030, “proporcionar
acesso à justiça para todos” (Objetivo 16), tendo sido registrado,
neste sentido, que “a nova Agenda reconhece a necessidade de
construir sociedades pacíficas, justas e inclusivas, que ofereçam
igualdade de acesso à justiça e que são baseadas no respeito aos
direitos humanos (incluído o direito ao desenvolvimento), em um
efetivo Estado de Direito” (“Nova Agenda”, n. 35).
A facilitação do acesso à justiça, portanto, está
diretamente relacionada com a criação de uma sociedade justa,
livre, solidária, desenvolvida e inclusiva, sendo este, não custa
recordar, o objetivo fundamental da República (artigo 3º da
Constituição de 1988).
O ensaio é dividido em três partes: na primeira, será
demonstrada a existência de direitos humanos processuais;
contendo a sua segunda parte, a definição de quais são estes
direitos, visando verificar se dentre eles está o acesso à justiça. Ao
final, será definido o alcance do direito de acesso à justiça.
567
correspondem em razão de sua própria
natureza (de essência ao mesmo tempo
corpórea, espiritual e social) e que devem ser
reconhecidos e respeitados por todo Poder ou
autoridade e toda norma jurídica positiva,
cedendo, não obstante, em seu exercício, ante
as exigências do bem comum. (TOBEÑAS,
1962, p. 15).
568
Ação de Viena, de 1993, que “têm origem na dignidade e valor
inerente à pessoa humana”.
Anote-se que, quando se fala em direitos humanos como
direitos inerentes à dignidade humana, o que se tem em vista é que
os direitos humanos constituem uma condição para a vida
conforme a dignidade humana.
Com efeito, como adverte Joaquim Herrera Flores
569
igual trabalho, a uma remuneração justa e satisfatória e de
organizar sindicatos (artigo XXIII).
No mesmo compasso, o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais assegura, nos artigos 6º e
7º, por exemplo, o direito de ganhar a vida mediante um trabalho
livremente escolhido ou aceito, de formação e orientação técnica e
profissional e ao emprego produtivo, que permita salvaguardar o
gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais, assim
como o direito de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, que assegurem, especialmente: a) uma remuneração que
proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores, um salário
equitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor,
sem qualquer distinção, em particular, as mulheres deverão ter a
garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e
perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual e uma
existência decente para eles e suas famílias; b) condições de
trabalho seguras e higiênicas; c) igual oportunidade para todos de
serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes
corresponda, sem outras considerações que as de tempo, de
trabalho e de capacidade; d) o descanso, o lazer, a limitação razoável
das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como
a remuneração dos feriados. No artigo 8º, este Pacto assegura o
direito de: fundar sindicato, de se filiar a sindicato, de os sindicatos
de formarem federações ou confederações nacionais e o direito
destas de formar organizações sindicais internacionais ou de a elas
filiar-se, autonomia sindical, e direito de greve.
Já a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem dispõe que toda pessoa tem direito: à educação, no sentido
570
de “preparo para subsistir de uma maneira digna, para melhorar o
seu nível de vida” (artigo XII); ao trabalho em condições dignas e o
de seguir livremente sua vocação, na medida em que for permitido
pelas oportunidades de emprego existente (direito ao trabalho -
artigo XIV); quando trabalhar, de receber uma remuneração que,
em relação à sua capacidade de trabalho e habilidade, lhe garanta
um nível de vida conveniente para si e para sua família (direito a
uma justa retribuição - artigo XIV); ao descanso, ao recreio honesto
e à oportunidade de aproveitar utilmente o seu tempo livre em
benefício do seu melhoramento espiritual, cultural e físico (direito
ao descanso e ao aproveitamento do tempo livre - artigo XV); à
previdência social de modo a ficar protegido contra as
consequências do desemprego, da velhice e da incapacidade, que,
provenientes de qualquer causa alheia à sua vontade, a
impossibilitem física ou mentalmente de obter meios de
subsistência (direito à previdência social - artigo XVI); de se
associar com outras a fim de promover, exercer e proteger os seus
interesses legítimos, de ordem política, econômica, religiosa, social,
cultural, profissional, sindical ou de qualquer outra natureza
(direito de associação - artigo XXII).
Por fim, o Protocolo Adicional à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Protocolo de San Salvador), no artigo 6º,
a todos reconhece o direito ao trabalho, “o que inclui a
oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e
decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita,
livremente escolhida ou aceita”, e estabelece, no artigo 7º, que o
direito ao trabalho “supõe que toda pessoa goze do mesmo em
571
condições justas, equitativas e satisfatórias”, cumprindo aos
Estados garantir: remuneração que assegure, no mínimo a todos os
trabalhadores condições de subsistência digna e decorosa para eles
e suas famílias e um salário equitativo e igual por trabalho igual,
sem nenhuma distinção; o direito de todo trabalhador de seguir sua
vocação e de dedicar-se à atividade que melhor atenda às suas
expectativas e a trocar de emprego de acordo com a respectiva
regulamentação nacional; o direito do trabalhador à promoção ou
avanço no trabalho, para o qual serão levadas em conta suas
qualificações, competência, probidade e tempo de serviço;
estabilidade dos trabalhadores em seus empregos, de acordo com
as características das indústrias e profissões e com as causas de justa
separação. No caso de dispensa injustificada, o trabalhador terá
direito a uma indenização ou à readmissão no emprego ou a
quaisquer outras prestações previstas pela legislação nacional;
segurança e higiene no trabalho; proibição de trabalho noturno ou
em atividades insalubres e perigosas para os menores de 18 anos e,
em geral, de todo trabalho que possa pôr em risco sua saúde,
segurança ou moral; limitação razoável das horas de trabalho, tanto
diárias como semanais, devendo a jornada ser de menor duração
quando se tratar de trabalho perigoso, insalubre ou noturno;
repouso; gozo do tempo livre; férias remuneradas; remuneração
dos feriados nacionais.
Note-se que todos estes direitos são assegurados na
perspectiva da melhoria da condição social, econômica e política
do trabalhador e da sua família e à realização das condições
necessárias para uma vida em sintonia com a dignidade humana,
sendo relevante anotar que é estreita a relação entre direitos
572
humanos e desenvolvimento social, político e econômico, como é
expressamente reconhecido pela Carta Democrática
Interamericana, aprovada na Sessão Plenária da Organização dos
Estados Americanos (OEA), realizada em 11.09.2001, segundo a
qual:
1) “A democracia é essencial para o desenvolvimento
social, político e econômico” (artigo 1º);
2) “São elementos essenciais da democracia
representativa, entre outros, o respeito aos direitos humanos”
(artigo 3º);
3) “São componentes fundamentais do exercício da
democracia [...] o respeito aos direitos sociais” (artigo 4º);
4) “A democracia e o desenvolvimento econômico e social
são interdependentes e reforçam-se mutuamente” (artigo 11).
Além dos direitos humanos materiais, existem as
garantias processuais voltadas a assegurar a plena fruição destes
direitos, isto é, direitos humanos processuais, inclusive trabalhistas.
Direitos humanos processuais são os direitos que cabem a
todas as pessoas no contexto do processual judicial, como tais
reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Direitos humanos, materiais ou processuais, são direitos
inerentes à dignidade humana, no sentido de que, como já foi
salientado, o seu gozo efetivo é uma exigência da dignidade
humana.
O reconhecimento da existência de direitos processuais
inerentes à condição humana decorre do fato, realçado por J. J
Gomes Canotilho, de que “qualquer direito material postula uma
573
dimensão procedimental/processual, e, por isso, reconhecer um
direito material constitucional implica necessariamente reconhecer
um direito subjetivo do procedimento/processo indispensável para
garantir a eficácia do direito material”. (CANOTILHO, 2004, p.
78).
Com efeito, para a proteção integral do ser humano “não
basta o reconhecimento da titularidade de direitos materiais (tutela
jurídica). A proteção do ser humano, para ser integral, exige a
criação de instrumentos adequados à realização prática dos direitos
humanos materiais (tutela jurisdicional dos direitos). A
essencialidade dos direitos materiais torna essencial a sua tutela
jurisdicional e os instrumentos adequados à sua realização quando
não respeitados espontaneamente” (ALMEIDA, 2013, p. 156).
Ireneu Cabral Barreto adverte, com razão, que, para uma
efetiva proteção dos direitos do homem, não basta a sua
consagração substantiva, sendo “necessário estabelecer garantias
fundamentais de processo, de modo a reforçar os mecanismos de
salvaguarda daqueles direitos”. (BARRETO, 2005, p. 113).
Os direitos humanos processuais compõem, ao lado dos
direitos fundamentais processuais, o denominado mínimo
existencial processual (ALMEIDA, 2013, p. 156) e o conjunto
destes direitos forma o que Vittorio Denti denomina “núcleo
irrenunciável” do justo processo. (DENTI, 1989, p. 82).
574
3. DIREITOS HUMANOS PROCESSUAIS EM ESPÉCIE. O
ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO
575
Tribunais e as Cortes de Justiça e que toda pessoa terá direito de ser
ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na
apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra
ela ou na determinação de seus direitos e de suas obrigações de
caráter civil. De acordo com o artigo 14,3, do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, toda pessoa tem direito às seguintes
garantias processuais mínimas: a) de ser informada, sem demora,
em língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e
dos motivos da demanda contra ela formulada; b) a tempo e meios
necessários à preparação da defesa e a comunicar-se com defensor
de sua escolha; c) de ser julgada sem dilações indevidas; d) de estar
presente no julgamento e defender-se pessoalmente ou por
intermédio de defensor de sua escolha; ser informada, caso não
tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo, e sempre que o
interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex
officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo; e) de
interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter
o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa
nas mesmas condições de que disponham as de acusação; f) de ser
assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou
não fale a língua empregada durante o julgamento; e, g) de não ser
obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem prevê que toda pessoa “deve poder contar, outrossim, com
processo simples e breve” (artigo XVII).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê,
no artigo 8º, sob o título “garantias processuais”, que toda pessoa
576
tem direito de ser ouvida dentro de prazo razoável por um juiz ou
tribunal estabelecido anteriormente por lei, na apuração de
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação
de seus direitos e de suas obrigações de caráter civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza, e que, durante o processo,
toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias
mínimas: a) de ser assistida gratuitamente por um tradutor ou
intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou
tribunal; b) de comunicação prévia e pormenorizada da acusação
formulada; c) de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e
obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras
pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; e, d) à impugnação
das decisões judiciais mediante recurso.
O artigo 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos também estabelece que “toda pessoa tem direito a um
recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo,
perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra
atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela
constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando
tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no
exercício de suas funções oficiais.”
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem
reconhece, no artigo 6º, o direito a um processo equitativo,
estabelecendo que: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa
seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por
um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei, o que
decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações
577
de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em
matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público,
mas o acesso à sala de audiência pode ser proibido à imprensa e ao
público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem
da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa
sociedade democrática, quando os interesses de menores e a
proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na
medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em
circunstâncias especiais, a publicidade pudesse prejudicar os
interesses da justiça.”
Dispõe a Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
no artigo 6º, que o acusado tem, como mínimo, os seguintes
direitos: ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda
e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra
ele formulada; dispor de tempo e dos meios necessários para a
preparação da sua defesa; defender-se a si próprio ou ter assistência
de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar
um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor
oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; interrogar ou
fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e
o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições
que as testemunhas de acusação; fazer-se assistir por intérprete, se
não compreender ou falar a língua usada no processo.
Ainda de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem (artigo 13), “qualquer pessoa cujos direitos e liberdades
reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem
direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a
578
violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das
suas funções oficiais”.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
assegura a toda a pessoa o direito de recorrer aos tribunais
competentes contra qualquer ato que viole os direitos
fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas
convenções, pelas leis, pelos regulamentos e pelos costumes em
vigor, o direito de defesa e o direito de ser julgado em prazo
razoável por um tribunal competente (artigo 7º).
Do exame das citadas normas de Direito Internacional
dos Direitos Humanos resulta que constituem direitos humanos
processuais: jurisdição; acesso à justiça; efetividade da jurisdição e
do processo; igualdade concreta de armas; decisão justa do conflito
de interesses; publicidade do processo; juiz natural, independente e
imparcial; oportuna citação para a demanda; defesa útil, com
tempo razoável para a sua preparação; duração razoável do
processo; participação útil no processo e com real possibilidade de
influência na formação do provimento jurisdicional; assistência
judiciária gratuita; inquirir testemunhas indicadas à oitiva pela
parte contrária ou ouvidas por determinação judicial e obter o
comparecimento de testemunhas, peritos e outras pessoas que
possam lançar luz sobre os fatos (direito à prova); assistência por
intérprete e/ou tradutor, quando necessário; n) não ser obrigado a
depor contra si ou confessar; motivação das decisões judiciais;
impugnação das decisões judiciais mediante recurso; eficácia das
decisões judiciais.
579
Portanto, o Direito Internacional dos Direitos Humanos
a todos reconhece direitos processuais e dentre estes direitos está o
acesso à justiça.
Já foi afirmado, inclusive, que o acesso à justiça constitui
“requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de
um sistema jurídico moderno e igualitário, que pretenda garantir,
e não apenas proclamar, os direitos de todos” (CAPPELLETTI;
GART, 1998, p. 11-12).
Em voto fundamentado na decisão proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso López Álvares vs.
Honduras (sentença de 1º de fevereiro de 2006), Antônio Augusto
Cançado Trindade assinalou que:
580
e, desta última, para as Convenções Europeia e
Americana sobre Direitos Humanos (artigos 13 e 25,
respectivamente), bem como para o Pacto sobre
Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigo
2(3)). O artigo 8 da Declaração Universal, e as
disposições correspondentes nos tratados de direitos
humanos vigentes, como o artigo 25 da Convenção
Americana, estabelecem o dever do Estado de prover
recursos internos adequados e eficazes; sempre
argumentei que este dever constitui efetivamente um
pilar básico não apenas de tais tratados como do
próprio Estado de Direito em uma sociedade
democrática, e sua aplicação correta tem o sentido de
aperfeiçoar a administração da justiça (material e não
somente formal) no âmbito nacional (...) Esta
disposição-chave se encontra intimamente vinculada
à obrigação geral dos Estados, consagrada também
nos tratados de direitos humanos, de respeitar os
direitos nestes consagrados, e assegurar o livre e
pleno exercício dos mesmos a todas as pessoas sob
suas respectivas jurisdições. Encontra-se também
vinculada às garantias do devido processo legal
(artigo 8 da Convenção Americana), na medida em
que assegura o acesso à justiça. Desse modo, através
da consagração do direito a um recurso efetivo
perante os juízes ou tribunais nacionais competentes,
das garantias do devido processo, e da obrigação
geral de garantia dos direitos protegidos, a
Convenção Americana (artigos 25, 8 e 1(1)), e outros
tratados de direitos humanos, atribuem funções de
proteção ao direito interno dos Estados Partes.
(Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Direito à Liberdade Pessoal. Brasília:
Ministério da Justiça, 2014, p. 39).
581
4. ALCANCE DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA COMO
DIREITO HUMANO
584
influência na formação da decisão sobre os seus direitos e
obrigações.
Neste sentido, inclusive, o artigo 9º do CPC de 2015
estabelece que não se proferirá decisão contra uma das partes sem
que ela seja previamente ouvida, o que não se aplica, no entanto, à
tutela provisória de urgência, à hipótese de tutela de evidência
prevista no artigo 311, incisos I e II, à sentença prevista no artigo
701 (decisão sobre a expedição de mandado de pagamento, de
entrega de coisa ou para execução de obrigação de fazer ou de não
fazer, na ação monitória) e às decisões por meio das quais são
aplicadas às partes penalidades de natureza processual (o CPC não
exige a prévia oitiva da parte como condição para a aplicação da
penalidades decorrentes da litigância por má-fé, por exemplo). De
outro lado, consoante o artigo 10 do CPC de 2015, “o juiz não
poderá decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamentos a respeito dos quais não tenha dado às partes
oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre
a qual deva decidir de ofício”;
d) ampla defesa, no sentido de que às partes deve ser
assegurado o acesso a todos os meios de defesa que a ordem jurídica
coloca à sua disposição;
e) igualdade, no sentido de que, na disciplina legal do
processo deve ser evitado tratamento diferenciado sem justificativa
objetiva, razoável e suficiente, assim como devem ser adotadas
técnicas que corrijam desigualdades entre os litigantes, ao passo
que no curso do processo concreto as partes têm direito de
participar, em simétrica paridade, da construção da decisão judicial
585
a respeito dos seus direitos e deveres (paridade de armas) e de
receber do juiz igual tratamento (paridade de tratamento: aos iguais
deve ser dispensado tratamento igual e, aos desiguais, tratamento
desigual, na medida da sua desigualdade;
f) fundamentação das decisões na medida em que ao juiz
cumpre especificar os motivos ou razões da decisão que proferir,
justificando as suas conclusões sobre os fatos narrados pelas partes
e as suas consequências à luz do ordenamento jurídico, assim como
a possibilidade de sendo atendidos os pressupostos e limites
estabelecidos pelo ordenamento jurídico, requerer o exame da
causa por órgão do Poder Judiciário distinto daquele que proferiu
a decisão. g) a duração razoável do processo: as partes têm direito à
tempestiva resposta ao pedido de tutela jurisdicional.
Conforme decidiu a Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso López Álvares vs. Honduras (sentença de 1º de
fevereiro de 2006, item X, n. 131), “O direito de acesso à justiça
implica que a solução da controvérsia se produza em tempo
razoável; uma demora prolongada pode chegar a constituir, por si
mesma, uma violação das garantias judiciais” (Jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à Liberdade
Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 39);
h) eficácia das decisões judiciais, na medida em que o
acesso útil ou substancial à justiça somente se verificará quando a
decisão judicial for plenamente eficaz, ou seja, tornar concreto o
direito nela eventualmente reconhecido;
i) o respeito às condições econômicas das partes, posto
que o processo não pode ser dispendioso a ponto de impedir a
defesa em juízo dos direitos assegurados pela ordem jurídica.
586
Não se pode olvidar, ainda, que os direitos humanos
visam construir “condições reais e concretas que permitam aos
seres humanos poder levar adiante suas vidas acedendo
igualitariamente aos bens necessários para viver uma vida digna de
ser vivida”, como preconizado por Joaquín Herrera Flores.
(FLORES, 2009, p. 55), e que “os direitos trabalhistas e os direitos
humanos “têm a dignidade como ponto de partida (o
reconhecimento do valor inerente a toda pessoa humana) e de
chegada (a realização de condições materiais e processuais sem as
quais este valor não se apresentará na realidade concreta).
(ALMEIDA, 2017, p. 252).
Cumpre reiterar que o acesso à justiça não constitui um
fim em si mesmo, posto que serve e instrumento de acesso aos
direitos assegurados pela ordem jurídica.
No que concerne aos direitos humanos trabalhistas, não
se pode olvidar que o seu gozo efetivo é condição de possibilidade
do desenvolvimento, sendo este, inclusive, também um direito,
como é reconhecido na Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento, adotada pela ONU em 1986, segundo a qual, o
direito ao desenvolvimento é um direito humano e ele pressupõe
que todos possam desfrutar dos direitos humanos e liberdades
fundamentais (artigo 1, item 1), ou seja:
a) o gozo dos direitos humanos constitui condição de
possibilidade do gozo do direito ao desenvolvimento sustentável;
b) o acesso à justiça, quando substancial, permite o gozo
dos direitos humanos de natureza material.
587
Não há desenvolvimento sustentável efetivo quando é
negado o direito de acesso à justiça e, por meio deste, aos direitos
humanos dos trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
589
REFERÊNCIAS
591
A APLICABILIDADE DA MEDIAÇÃO EM CONFLITOS
AMBIENTAIS COMO GARANTIA DE ACESSO À JUSTIÇA
1
Mestranda do PPGD – Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de
Itaúna-MG. Graduada em Direito pela Universidade de Itaúna. Orientadora do
Núcleo de Prática Jurídica da Universidade de Itaúna. Advogada.
2
Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor
em Direito pela UGF-RJ. Professor da Graduação e do PPGD da Universidade de
Itaúna-MG e das Faculdades Santo Agostinho (FASA)
592
ABSTRACT: The slow down of the judiciary is definitely one of
the biggest obstacles the Brazilian court faces, which has hindered
even more a true and efficient access to the justice. And while
searching for solutions some institutes were created, among then
the Mediation Institute, wich is this paper’s aim, along with the
application of this technique in environmental conflicts and its
efficiency. In order to do that an approach about the troublesome
access to justice, the mediation as a solution and the techniques
applied in environmental conflicts were created. It’s used the
descriptive and analytical method for the development of the study
in a systematic analysis of the Brazilian legal order through the
methodological procedure of the bibliographic research and studies
of real cases.
KEYWORDS: Access to justice; Mediation, Environmental
Conflicts.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. Do acesso à justiça e a crise do Judiciário.
3. Da mediação.
4. Dos conflitos ambientais e a sociedade de risco.
INTRODUÇÃO
593
uma morosidade cada vez maior. A efetividade é algo muito
distante da realidade dos Fóruns de todo país.
Ainda hoje o meio mais tradicional na resolução de
conflito é o judicial, onde a figura do Juiz, como uma pessoa neutra
dará uma solução ao litigio. Ocorre, no entanto, que com o passar
dos anos o que se vê não é necessariamente esta situação. Seja pela
morosidade, pelo custo, pela falta de pessoal e outras situações,
buscar soluções alternativas para resolução de conflitos passou a ser
essencial.
E foi dentro deste contexto que surgiu algumas
alternativas: a arbitragem, a conciliação e a mediação. Os dois
primeiros itens serão analisados de forma bem sucinta, uma vez que
o objetivo do presente artigo tratará mais à fundo da Mediação, em
especial em sua aplicação em questões ambientais.
A mediação, como um dos meios alternativos de
resolução de conflitos, busca resolver inúmeros conflitos com base
em técnicas de negociação, levando as partes e buscarem uma
solução por elas mesmas, na construção de acordos. E, portanto,
uma negociação onde todos os envolvidos constroem uma solução,
através do diálogo e técnicas de negociação.
A morosidade judicial em se tratando de conflitos
ambientais, não desmerecendo outras questões por que passa
grande parte da população, é no mínimo preocupante, pois a
questão ambiental é um direito difuso e atinge não somente a
coletividade, mas futuras gerações. O problema que se apresenta
consiste na aplicação da mediação para resolução destes conflitos e
uma análise sobre sua efetividade.
594
O objetivo deste estudo é analisar conceitualmente o
instituto da Mediação, aplicabilidade nas questões ambientais e sua
efetividade, buscando uma solução pacífica e menos maléfica ao
meio ambiente e as pessoas envolvidas nestes conflitos.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do
estudo baseou-se no método descritivo e analítico.
Utilizou-se pesquisa bibliográfica, em consultas a material
teórico-bibliográfico e documental, como a utilização de livros,
textos e artigos acadêmicos, bem como leis pertinentes ao assunto.
Além da análise de casos concretos como o acidente em Mariana e
a construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte.
595
comuns, significando dizer uma proteção a uma população que
vive abaixo da linha da pobreza, índios, quilombolas, ribeirinhos,
analfabetos, o acesso à justiça precisa englobar todas as formas de
processo e ainda atingir a todas as camadas.
Sem dúvida alguma o Judiciário passa por uma crise de
credibilidade, e tal descrédito se dá em grande parte pela
morosidade das decisões. Seja em qual Tribunal for, o que se vê são
ações que ficam anos a espera de um provimento jurisdicional, altos
custos das demandas e entre outros fatores contribuem para este
quadro.
Quando Cappelletti (1988, p.71) fala sobre a 3ª onda para
a evolução da efetividade do acesso justiça, como sendo um novo
enfoque do acesso à justiça, dando ênfase a novas técnicas
processuais, tornando a justiça mais acessível, e um dos aspectos
apontados é a criação de vias alternativas.
Há quem diga que depois deste período, citado acima,
onde a figura preponderante do Estado imperava na solução, seja
para reivindicar direitos ou resolver litígios, houve um novo
período. Tais movimentos provocaram mudanças significativas no
judiciário, tanto estrutural como processual.
Uma característica marcante do terceiro período do
movimento de acesso à justiça “ consiste precisamente em
administrar-se o sistema público de resolução de conflitos como se
este fosse legitimado principalmente pela satisfação do
jurisdicionado com a condução e com o resultado final de seu
processo. PELUSO, Antonio Cesar ;RICHA, Morgana de Almeida
(2011, p. 15)
596
Vivemos num país onde ainda se busca no judiciário o
deslinde para qualquer situação, por meio de um juiz. Segundo
Kasuo Watanabe
597
No Brasil foi adotada desde 2006 pelo Conselho Nacional
de Justiça, a Conciliação, cuja visão é juntar as partes e promover
acordos, com objetivo de celeridade processual e ainda, talvez o
mais importante, de que as próprias partes resolvam entre si o
litigio e a satisfação com a justiça e que a solução apresentada seja
mais eficiente.
Diante da patente necessidade de se estabelecer uma
política pública nacional na resolução adequada de conflitos, o
Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 29 de novembro de
2010, a Resolução 125. “A criação da Resolução 125 do CNJ foi
decorrente da necessidade de se estimular, apoiar e difundir a
sistematização e o aprimoramento de práticas já adotadas pelos
tribunais. ”
Segundo o Guia de Conciliação e Mediação Judicial do
Conselho Nacional de Justiça, os objetivos dessa Resolução estão
indicados de forma bastante taxativa:
598
vencedores nem perdedores, são as partes que constroem a solução
para os próprios problemas, tornando-se responsáveis pelos
compromissos que assumem, resgatando, tanto quanto possível, a
capacidade de relacionamento. Nesse mecanismo, o papel do juiz
não é menos importante, pois é aqui que ele cumpre sua missão de
pacificar verdadeiramente o conflito.
A mediação e a conciliação, têm ambas por objetivo
auxiliar pessoas a construírem consenso sobre uma determinada
desavença. A conciliação tem nos acordos o seu objetivo maior. A
mediação não tem na construção de acordos a sua vocação maior,
ela privilegia a desconstrução do conflito e a consequente
restauração da convivência pacífica entre pessoas.
3. DA MEDIAÇÃO
3
BRASIL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Artigo 165. Os tribunais criarão
centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela
realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo
desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição.
599
podemos chamar atualmente de mediador 4. Está ligado ao
movimento de acesso à justiça da década de 70, na busca para a
efetivação da justiça e melhoria das relações sociais. Vale frisar que
a mediação, como elemento característico dos juizados de
pequenas causas nos Estados Unidos, fortemente influenciou o
legislador brasileiro.
Morais (1999, p. 145), afirma que como espécie do gênero
justiça consensual, e como uma forma alternativa de resolução de
conflitos, cujo objetivo primordial é a pacificação de conflitos,
conceitua o instituto da mediação da seguinte forma:
4
BRASIL. CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. CARTA
DE LEI DE 25 DE MARÇO DE 1824. Artigo 161. Sem se fazer constar que se tem
intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum. Artigo 162.
Para este fim haverá juízes de paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo, e
maneira, por que se elegem os vereadores das câmaras. Suas atribuições e distrito
serão regulados por lei.
600
desenvolver acordos mutuamente aceitáveis.
A premissa em que se baseia a mediação é de
que, no ambiente correto, as partes do conflito
podem melhorar suas relações e caminhar em
direção à cooperação. Os resultados
alcançados, por sua vez, podem ser limitados
em escopo – por exemplo, lidar com uma
questão específica a fim de conter ou gerir um
conflito – ou podem abordar um amplo leque
temático, em um acordo de paz abrangente.
601
Educação e que tenha obtido capacitação em
escola ou instituição de formação de
mediadores, reconhecida pela Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais,
observados os requisitos mínimos
estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça em conjunto com o Ministério da
Justiça.
5
Artigo 9º Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz
que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação,
independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou
associação, ou nele inscrever-se.
6
Artigo 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios: I -
imparcialidade do mediador; II - isonomia entre as partes; III - oralidade; IV -
informalidade; V - autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII
– confidencialidade; VIII - boa-fé.
602
aparece em primeiro plano, não significando que seja o principal,
mas com certeza uma peça fundamental para o bom andamento da
construção do processo da mediação. Um mediador deve ser capaz
de conduzir um processo equilibrado, ser imparcial, que trate todos
os atores de forma justa, e não pode possuir qualquer interesse
material no resultado. Isso também exige que ele seja capaz de
dialogar com todos os atores relevantes para resolver o conflito. O
papel de mediador exige todo um preparo, conhecedor das técnicas
de negociação.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça para atuar como
mediador judicial, é preciso que o interessado faça um curso de
formação de mediadores que seja reconhecido pelos tribunais. Os
cursos são oferecidos pelos próprios tribunais ou por instituições
credenciadas pelos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais
de Soluções de Conflitos (Nupemec) e devem observar os
parâmetros curriculares estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça.
A autonomia da vontade das partes, sem dúvida outro
importante princípio, uma vez que o instituto da mediação é um
processo voluntário, que exige o consentimento das partes do
conflito para ser eficaz. E ainda mostra que os interessados
renunciaram parte do controle sobre a condução da resolução do
litigio. A própria lei resguarda as partes ao dizer no § 2º do art 1º
da Lei 13.1140/2015 que: ninguém será obrigado a permanecer em
procedimento de mediação. É necessário que as partes se
comprometam com o processo de mediação. E este sem dúvida é
um dos princípios norteadores da mediação, uma vez que se as
603
partes realmente não se dedicarem a resolução do conflito, nada
poderá ser feito.
A observância dos princípios elencados na lei constrói
uma atmosfera de confiança entre as partes, e com isto a busca pelo
consenso onde as partes envolvidas vão procurar resolver juntas
questões que fazem parte da realidade que elas estão vivendo. O
litigio, resolvido por um Juiz através de uma sentença, em sua
grande maioria não satisfará as partes e ainda se corre o risco de
que tal situação se perpetue.
605
do meio ambiente, seja diretamente, através
de empresas estatais, seja indiretamente,
através da tolerância com a degradação
provocada por empresas privadas.
608
explodiu, e decorridos mais de 30 anos ainda se pode perceber o
cenário apocalíptico do desastre. 7
O acidente ambiental de Mariana é também outro
exemplo, mais recente, onde os riscos e a amplitude do ocorrido
ainda não se pode mensurar, quantas pessoas foram atingidas, qual
a extensão do dano e outras sequelas causadas pelo desastre. Mas
este será um assunto a ser discutido mais adiante.
7
As cicatrizes nucleares 30 anos após o inferno de Chernobyl. Trinta anos após o
pior desastre nuclear da história, na antiga União Soviética, o cenário permanece
pós-apocalíptico e os custos humanos impagáveis. Estimativas apontam que cerca
de 200.000 km² de terra foram contaminados e, ainda hoje, o número de vítimas
permanece conflitante, já que é difícil calcular exatamente quantos foram os
afetados em longo prazo pela radiação.
609
conscientização e a participação popular,
colocando as informações à disposição de
todos. Será proporcionado o acesso efetivo a
mecanismos judiciais e administrativos,
inclusive no que se refere à compensação e
reparação de danos.
8
De acordo com o dossiê Belo Monte – Não há condições para a Licença de
Operação é um alerta da sociedade civil: afirmando que não há neste momento,
condições suficientes para que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorize, de maneira
socioambientalmente responsável, o início do enchimento dos reservatórios da
usina hidrelétrica de Belo Monte (situada na região de Altamira, no Pará) e o
desvio definitivo do rio Xingu para que parte da usina comece a operar (IBAMA,
2010).
611
2007 - Rompimento de barragem em Miraí, também em Minas
Gerais. Em 2011, outro Vazamento de óleo no Rio de Janeiro na
Bacia de Campos e ainda um Incêndio na Ultracargo em 2015 , no
terminal portuário Alemoa, em Santos, litoral Sul de São Paulo.
Há de se mencionar ainda o que hoje é considerado o
maior desastre ambiental da história do País, que foi o rompimento
da Barragem com resíduos na cidade de Mariana-MG. Em 5 de
novembro de 2015, 34 milhões de metros cúbicos de rejeito de
minério de ferro jorraram do complexo de mineração operado pela
Samarco e percorreram 55 km do rio Gualaxo do Norte e outros 22
km do rio do Carmo até desaguarem no rio Doce. No total, a lama
percorreu 663 km até encontrar o mar, no município de Regência
(ES), a morte de 19 pessoas, além da destruição de comunidades
inteiras.
Dentre estes exemplos citados, a pergunta é: poderia haver
a aplicação das técnicas de mediação para a resolução pacifica
destes conflitos? Segundo Salles, Viegas (2016, p. 6), “o método da
mediação busca integrar valores como a inclusão social, diálogo,
democracia, responsabilidade e cidadania aos conflitos existentes.
Tratando, assim, do problema ambiental sem judicialização e
sobreposição de interesses.”. Apontam ainda que a medição é um
caminho mais rápido e eficaz.
Outra questão que se levanta quanto a aplicação das
técnicas de mediação é se o Ministério Público poderia ser o
mediador nestas ações. Segundo a Resolução nº 118, de 1º de
612
dezembro de 2014 , em seu artigo 1º 9, sim. Já no parágrafo único do
artigo 1º tem-se que “Ao Ministério Público brasileiro incumbe
implementar e adotar mecanismos de autocomposição, como a
negociação, a mediação, a conciliação, o processo restaurativo e as
convenções processuais, bem assim prestar atendimento e
orientação ao cidadão sobre tais mecanismos”.
No preâmbulo da Resolução já prevê:
9
Artigo 1º da Resolução 118, de 1º de dezembro de 2014.Fica instituída a
POLÍTICA NACIONAL DE INCENTIVO À AUTOCOMPOSIÇÃO NO
ÂMBITO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, com o objetivo de assegurar a promoção
da justiça e a máxima efetividade dos direitos e interesses que envolvem a atuação
da Instituição. Parágrafo único. Ao Ministério Público brasileiro incumbe
implementar e adotar mecanismos de autocomposição, como a negociação, a
mediação, a conciliação, o processo restaurativo e as convenções processuais, bem
assim prestar atendimento e orientação ao cidadão sobre tais mecanismos.
613
E sob esta ótica o Ministério Público do Estado de Minas
Gerais inaugurou em 2013 o Núcleo de Resolução de Conflitos
Ambientais (Nucam), com o objetivo de facilitar a busca pelo
consenso e compatibilidade da proteção dos recursos naturais e o
desenvolvimento econômico do estado. Segundo informações do
próprio órgão, cerca de 90% dos casos de dano ambiental são
resolvidos de forma conciliatória, sem o ingresso de qualquer tipo
de ação no Judiciário.
Um exemplo que tem colhido resultados positivos é a
experiência em Nova Lima- Minas Gerais em que a 1ª Promotoria
de Justiça, junto com a Faculdade Milton Campos iniciaram o
funcionamento da Câmara de Mediação em 2012. Este método se
verifica da seguinte forma: o caso é selecionado e levado até a sessão
de mediação, as partes interessadas (Sociedade civil, ONG’s e o
Ministério Público) são convidados a participar, estabelecem o
procedimento e após a realização da mediação é redigido um
Termo de Mediação que pode ser positivo ou negativo.
Outro exemplo é o acordo celebrado entre o Ministério
Público de Minas Gerais com a empresa Gerdau Açominas S.A,
empresa mineradora que explorava a região e que através de um
TAC criou do Monumento Natural da Serra da Moeda uma
unidade de conservação de proteção integral com grandes
resultados para o meio ambiente e as comunidades afetadas.
Segundo o Manual de Negociação e Mediação para
Membros do Ministério Público:
614
cidadão, independente de seu grau de
instrução. O papel primordial do mediador é,
além de conduzir e facilitar o diálogo,
empoderar as partes com informações
científicas de cunho ambiental, econômico e
social. Assim, o trabalho realizado visa a,
primordialmente, que haja um diálogo entre
iguais (em termos de informação técnica). E,
se caso uma das partes for considerada
hipossuficiente, não bastando explicação de
ordem acadêmica, imparcial e técnica,
instituições de ensino ou Organizações Não
Governamentais serão convidadas (se ainda
não tiverem se pronunciado sobre a questão)
a participar das reuniões, como parte
interessada, possibilitando um fortalecimento
daquele diretamente afetado pela conduta,
mas sem condições de manter um diálogo
com os demais. Além das ONGs, o Ministério
Público estará sempre garantindo um diálogo
aberto, defendendo a constitucionalidade, a
legalidade e a legitimação do Termo de
Mediação.
616
CONSIDERAÇÕES FINAIS
617
ainda, deve-se dar a eles reais condições de igualdade nas
discussões, através da escolha de lideranças comunitárias, ONG’s,
e ainda o Ministério Público. Afinal foram aqueles, os mais
atingidos pelas tragédias, que por uma busca sem limites do
crescimento industrial, grandes empresas não tomaram as devidas
precauções, não respeitaram o próximo, não respeitaram o meio
ambiente, não respeitaram leis, não se atentaram para os riscos, ou
ainda pior, os negligenciaram.
Falar-se em mediação nestes conflitos, grandes ou
pequenos, é sem dúvida um passo, um grande passo na busca por
participação efetiva do cidadão na busca por uma solução
equilibrada, num direito atendido, onde a probabilidade de se ter
uma justiça efetiva e justa caminha, ainda que vagarosamente, mas
caminha.
618
REFERÊNCIAS
619
BRASIL. Justiça em Números 2017: ano-base 2016/Conselho
Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2017. Disponível
em:<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a6
59e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf> Acesso em: 13 abr. 2018.
621
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso a Justiça. Porto
Alegre: Ed. Sergio Antônio Fabris, 1988.
622
inaugura-nucleo-de-resolucao-de-conflitos-ambientais.htm>
Acesso: 26 abr. 2018.
623
RELATÓRIO BRUNDTLAND. Nosso futuro comum. Disponível
em: <https://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-
Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues> . Acesso: 20 mar. 2018.
625
TUTELA DA PAISAGEM: PERSPECTIVAS DE PROTEÇÃO
À LUZ DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO E
ESPANHOL
1
Pós-doutor do Programa de Direito Ambiental e Sustentabilidade da
Universidade de Alicante, Espanha. Professor efetivo da Universidade Estadual
de Campinas-UNICAMP na área ambiental; E-mail: rafaelfreiria@ft.unicamp.br
626
ABSTRACT: The protection of the landscape as an environmental
legal good remains a largely incipient theme in Brazilian reality.
However, the landscape dimension of the environment plays a very
important role in advancing the sustainability paradigm, since the
qualified landscape has the potential to bring protection not only
to landscape but also to natural, cultural, historical, and as well as
greater well-being for the population that enjoys it. In this sense,
the main objective of this chapter is to present the panorama of the
Brazilian environmental law of landscape protection, as well as to
bring doctrinal and legislative perspectives considered as
referential of the Spanish legal system of landscape protection, in
order to contribute to greater effectiveness called jus landscaping.
SUMÁRIO:
Introdução.
2. A Paisagem enquanto dimensão ambiental.
3. A paisagem no ordenamento jurídico brasileiro.
3.1 Vias de tutela da paisagem.
4. A paisagem segundo pontos referenciais do sistema jurídico
espanhol: análise doutrinária e aspectos da Ley 4/2004 da
Comunidade Valenciana.
Considerações finais.
Referências.
627
INTRODUÇÃO
629
relação da biota com o seu ambiente, ou como
cenário/palco de diferentes eventos históricos.
A paisagem como noção de “espaço”,
ganhando sentido ou utilidade através do
“olho” ou percepção do observador, pode ser
o conceito principal de confluência dessas
diferentes visões.
630
mecanismos que trazem potencial de oferecer maior proteção,
conservação e possibilidades de usos aos recursos naturais,
artificiais e culturais que fazem parte do meio, bem como as
paisagens qualificadas relacionadas com essas dimensões.
Da mesma forma, ao se debruçar sobre as dimensões de
meio ambiente e possibilidades de uso e proteção, também suscita
os papéis atuais a serem exercidos pelo Direito, Gestão e pelas
Políticas Públicas, nesse processo.
A Lei Federal brasileira número 6.938, de 31 de agosto de
1981, ao dispor sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em
seu art. 3°, inciso I, define o meio ambiente como “o conjunto de
condições, leis influências e integrações de ordem física, química, e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas.” Tal conceito legal, sofreu aprimoramentos por parte da
ciência jurídica ambiental, por ser indeterminado e com
preponderância da identificação de meio ambiente com recursos
naturais.
Atualmente está, em grande medida, estabelecido na
doutrina ambiental brasileira (FREITAS, 2001; SILVA, 2005;
AMADO, 2018) que o meio ambiente possui quatro dimensões que
suscitam a atenção do sistema jurídico ambiental: 1) meio ambiente
natural: constituído por elementos como solo, água, ar atmosférico,
flora e fauna; 2) meio ambiente cultural: constituído por elementos
como patrimônios históricos, artísticos, arqueológico, paisagístico,
turístico, de uma sociedade; 3) meio ambiente artificial: constituído
por elementos integrantes do espaço urbano desenvolvido pelo
homem, englobando todo conjunto de edificações, praças e todos
631
os elementos que compõem a infraestrutura urbana; 4) meio
ambiente de trabalho: constituído pelos elementos que integram o
local da realização da atividade laboral, das relações de trabalho.
Portanto, meio ambiente tem uma abrangência muito
grande de elementos e espaços que abrigam e regem a vida em todas
as suas formas. Falar em meio ambiente, dentre outros aspectos,
implica em falar em condições para existência digna, com saúde,
qualidade de vida, preservação das condições naturais, artificiais e
culturais, numa perspectiva local e global.
Esta concepção traz novos desafios para os papéis atuais
do direito e das políticas públicas. Esses novos desafios estão
relacionados com a interdependência de todas essas questões. Por
outro lado, a paisagem vai surgir como espaços qualificados dessas
dimensões ambientais. Neste sentido, existem paisagens naturais,
artificiais e culturais que, por seus elementos peculiares e
nitidamente caracterizadores de interesses difusos, vão exigir um
regime de proteção e de gestão diferenciados.
É, portanto, papel atual da governança ambiental buscar a
melhor eficácia possível na gestão das paisagens, que integram uma
concepção mais qualificada de bem estar, qualidade de vida e
sustentabilidade nos espaços urbanos e rurais. Uma cidade, um país
que se preocupam com suas paisagens, com o estabelecimento de
um sistema de normas que possibilita o planejamento, gestão e
controle desses espaços qualificados, aprimora suas políticas
ambientais e melhora a relação do cidadão com o espaço por ele
vivido.
Com base neste entendimento da paisagem como espaços
qualificados das dimensões ambientais, o desafio atual seria
632
estabelecer o “planejamento da ocupação territorial através dos
limites e das potencialidades de cada “unidade de paisagem”
(definida como espaço do terreno com características comuns)”
(METZER, 2001, p.3). E seria papel do direito, neste contexto,
incorporar esta lógica de planejamento e gestão da paisagem como
forma de estabelecer os limites e possibilidades de seu uso dentro
de uma concepção cada vez mais sustentável.
Entende-se que a realidade brasileira, tanto em termos de
ordenamento jurídico, como nos efeitos práticos, não traz uma
efetiva política pública voltada para a proteção e controle das
paisagens qualificadas. Apesar de ser um bem tutelado pelo sistema
normativo, inclusive constitucional, não há um direito ambiental
voltado para a gestão efetiva e sistêmica da paisagem, mas sim para
tratamentos pontuais, isolados, muitas vezes distantes de uma
realidade de planejamento e visão de futuro na proteção e uso dos
espaços originais e diferenciadores das cidades.
De outra parte, comparativamente, encontra-se no direito
ambiental espanhol, em termos doutrinários e especialmente na
legislação criada pela Comunidade Valenciana, instrumentos
conceituais e normativos direcionados para a proteção,
planejamento, gestão das paisagens qualificadas existentes em seus
territórios.
Por consequência, atualmente várias cidades integrantes
dessa Comunidade, desse recorte territorial espanhol com regime
diferenciado de proteção das paisagens, apresentam bons
resultados desse regime jurídico.
Municipalidades espanholas da Comunidade Valenciana
633
como, por exemplo, Altea, Torrevieja, Aspe, apresentam suas
paisagens naturais, urbanas e culturais qualificadas, de forma geral,
protegidas e dentro de um sistema de planejamento e gestão que
traz frutos diretos aos seus habitantes em termos de bem estar,
qualidade de vida e vivência sustentável; bem como incrementam
o turismo, valorizado pelo prazer do visitante de conhecer, estar e
vivenciar tais paisagens.
São cidades que não possuem grandes monumentos
histórico-culturais ou mesmo um ambiente natural notável, mas
tem suas originalidades destacadas, protegias e/ou requalificadas.
São frutos de um sistema normativo que, atrelado a um nível
elevado de conscientização e participação de seus habitantes, gera a
gestão de suas paisagens, resultando em uma efetiva política
pública a respeito, com benefícios difusos, de todos os moradores e
visitantes, presentes e futuros, que vivem ou passam por elas.
Na sequência, a proposta é realizar um estudo comparado
entre os principais aspectos do estágio atual do ordenamento
jurídico brasileiro, no que se refere ao regime de proteção da
paisagem, e o espanhol (especialmente com análise doutrinária e da
experiência da Comunidade Valenciana), procurando enfatizar
critérios que possuem a potencialidade de aprimorar a gestão
desses espaços qualificados no sentido de construção de uma
efetiva política pública a respeito.
634
3. A PAISAGEM NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
(...)
635
diferentes grupos formadores da nacionalidade ou sociedade
brasileira” (AMADO, 2018, p.267).
Por este entendimento, se a paisagem for caracterizada
como patrimônio cultural irá receber proteção constitucional. Estes
chamados direitos culturais, por exemplo, à proteção da paisagem
culturalmente relevante, vão designar os direitos que tem uma
pessoa, individualmente ou em termos da coletividade que integra,
de expressar-se e ter acesso aos recursos para proteger e usufruir
aquilo que traz referência a sua identidade (MEYER-BISCH e
BIDAULT, 2014).
Por outro lado, a mesma Constituição Federal de 1988, no
seu art. 23, inciso III, estabelece a competência administrativa
comum dos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, para proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens
naturais notáveis e os sítios arqueológicos. Verifica-se que, além do
patrimônio cultural, houve atribuição de competência executiva
para proteger paisagens naturais qualificadas como notáveis.
Vale ressaltar que a competência legislativa, para criar leis
de proteção e controle da paisagem, é definida como concorrente
entre os entes federados, conforme preceitua a interpretação
conjunta dos artigos 24, inciso VII, com o artigo 30, da
Constituição Federal.
Nessas duas abordagens do regime jurídico
constitucional, percebe-se a característica do ordenamento
brasileiro de tratamento tipificado ou fragmentado da paisagem: ou
se tem a garantia da proteção constitucional da proteção da
paisagem cultural ou atribui-se ao Poder Público o papel de
636
proteger a paisagem que for naturalmente notável, desprestigiando
a perspectiva de proteção da paisagem como um todo, seja cultural,
natural ou urbana.
Este cenário normativo reflete nas situações aplicadas de
controle e proteção das paisagens, que, quando isto ocorre, se
concentram em bens paisagísticos culturais de forma pontual ou
mesmo fragmentos naturais de maior relevância, de forma
preponderantemente isolada da paisagem como um todo.
Entende-se que a garantia do art. 225 da Constituição
Federal, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como um
direito de todos, essencial à sadia qualidade de vida, a ser protegido
(pelo Poder Público e coletividade) para às presentes e futuras
gerações, tem também na gestão da paisagem, como um todo, mais
um de seus condicionantes de efetividade.
Além da paisagem cultural e notável, toda paisagem
relevante para o equilíbrio do meio e qualidade de vida de seus
habitantes e visitantes deve ser qualificada, de modo a integrar os
objetivos de proteção do direito ambiental, bem como compor o
escopo das decisões relativas às políticas públicas.
Este entendimento está associado também à perspectiva e
busca de uma sustentabilidade real, que terá sua efetividade
refletida ou não na relação que determinada sociedade tem com
suas paisagens. Como enfatiza Jean Paul Metzer (2001, p.7): “Para
compatibilizar uso das terras e sustentabilidade ambiental, social e
econômica, é necessário planejar a ocupação e a conservação da
paisagem como um todo”.
637
Além dessas previsões constitucionais de proteção da
paisagem, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta vias
processuais administrativas e judiciais voltadas para a garantia
desse direito material.
(...)
638
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o
presente artigo e são também sujeitos a
tombamento os monumentos naturais, bem
como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com
que tenham sido dotados pela natureza ou
agenciados pela indústria humana.
639
específicos, restando muitas vezes fora do foco a discussão da
paisagem como um todo.
Neste contexto, normalmente nas cidades brasileiras
existem alguns patrimônios culturais tombados,
preponderantemente pelos Estados ou União, mas a maior parte
das paisagens urbanas e rurais qualificadas segue ameaçada nas
suas visões de conjunto, de totalidade, de dimensões ambientais
que integram a concepção de qualidade de vida de seus moradores
e visitantes.
Via de regra, a discussão do patrimônio passível de
proteção, de eventual tombamento, além das situações de notável
valor histórico-cultural, surge em situações práticas concretas,
onde há uma ameaça de impacto ou mesmo quando ocorrem danos
irreparáveis, quando, por exemplo, prédios históricos são
demolidos na calada da noite. Além do impacto em si, com
consequente perda de parcela da paisagem, tais casos refletem a
necessidade de aprimoramentos nas políticas públicas existentes,
para que possam ser mais geradoras de um planejamento prévio às
tomadas de decisões e/ou conflitos pontuais, bem como para que
influenciem no nível de conscientização a respeito da própria
população relacionada.
Outro problema do modelo de proteção atual da paisagem
é que ele fica à mercê de atuações pró-ativas dos órgãos públicos.
Ou seja, após normalmente longo processo administrativo,
determinados bens, por serem dotados de notável relevância
histórica e/ou artística, são tombados. O restante da paisagem das
cidades fica sob a gestão discricionária das municipalidades que, na
maior parte dos casos, não possuem parâmetros legais urbanístico-
640
ambientais para nortear as decisões sobre obras, empreendimentos,
reformas e todo tipo de intervenção que vão impactar no seu
conjunto paisagístico. Isto reforça a tese da necessidade de novas
perspectivas voltadas para uma política pública de efetiva proteção
das paisagens qualificadas.
A par dos casos de tombamento, a forma de gestão do
restante da paisagem fica a critério das decisões políticas e eventuais
legislações de cada cidade. Algumas incluem esta discussão de
controle e proteção das paisagens em seus Planos Diretores, suas
revisões e legislações municipais relacionadas, trazendo a previsão
de limitações administrativas diferenciadas, critérios e gabaritos
voltados para a defesa e qualificação da paisagem enquanto
patrimônio ambiental. Mas muitas outras, não apresentam
nenhum tipo de preocupação, seja política, seja jurídica, com a
gestão das paisagens, com prejuízos para todos que vivem e
circulam por estes espaços.
Cabe dizer que o Estatuto da Cidade, disciplinado pela Lei
Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as
diretrizes das políticas urbanas brasileiras, traz como uma delas, no
seu artigo segundo, parágrafo XII: a proteção, preservação e
recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio
cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.
E dentro do conteúdo mínimo que deve ser previsto pelo
Plano Diretor, está, conforme artigo 42-B, inciso VI, a definição de
diretrizes e instrumentos específicos para proteção ambiental e do
patrimônio histórico e cultural. O que, segundo o entendimento da
paisagem como mais um aspecto qualificado das dimensões
641
ambientais, traria a necessidade de cada cidade estabelecer
instrumentos normativos de proteção e controle de seu patrimônio
paisagístico como um todo.
No entanto, na realidade das políticas municipais,
normalmente isto acaba não ocorrendo, o que faz com que a
população assista gradualmente à perda de parcela de sua qualidade
de vida, que muitas vezes está atrelada a cada paisagem que
desaparece ou é transformada sem controle e/ou critérios.
Finalmente, quando estas vias descritas não geram
efetividade na proteção das paisagens, o ordenamento jurídico
brasileiro apresenta a possibilidade de se buscar conter ameaças ou
reparar perdas, por meio das chamadas ações coletivas, que tutelam
interesses difusos, da coletividade, dentre elas 2, a ação civil pública.
A ação civil pública é disciplinada pela Lei Federal n.
7.347/85 e no seu artigo 1º, inciso III, estabelece a possibilidade de
seu exercício para responsabilização de danos morais e
patrimoniais causados a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
Fato é que este importante instrumento de tutela jurídico-
processual na maioria das vezes é utilizado quando, em se tratando
de proteção das paisagens, o dano já ocorreu de forma irreparável
ou com características de difícil reparação. Normalmente a
responsabilização, uma vez condenado o causador, se dá por meio
de medidas compensatórias, onde a paisagem lesada ou perdida,
2
Há também a possibilidade de se buscar guarita por meio da Ação Popular,
disciplinada pela Lei Federal n. 4.717/65.
642
enquanto interesse difuso, na maior parte dos casos não volta ao
estágio anterior ao dano.
Assim, ou o sistema jurídico brasileiro, que possui relação
com a proteção da paisagem, funciona de forma pontual, onde
alguns bens são escolhidos para o regime especial do tombamento,
ou algumas cidades, de acordo com seus interesses, elegem
instrumentos de proteção da paisagem em seus planos diretores e
legislações relacionadas; ou ele tem potencial de ação para casos de
ameaça de danos ou sua ocorrência, onde as ações coletivas, em
especial a ação civil pública, podem ser acionadas pelos atores
legitimados, para se tentar proteger paisagens enquanto interesses
difusos.
O planejamento e a gestão da paisagem passam a ser
exceção e não a regra no contexto desse arranjo jurídico difuso
existente no Brasil, onde cada cidade possui ou não as suas
políticas, carecendo de um direito definidor de critérios gerais
obrigatórios, com potencial de fortalecer todo o sistema e
influenciar nas decisões e no nível de pertencimento de cada
cidadão e organizações em suas paisagens.
643
institucional em que há um nível de identificação, consciência e
valorização dos patrimônios paisagísticos importantes e
referenciais com potencial para influenciar o aprimoramento de
outros sistemas políticos-jurídicos, como o brasileiro.
No plano doutrinário é de grande relevância a obra do
Professor Ramón Martín Mateo, especialmente em seu Tratado de
Derecho Ambiental, em que aborda com grande profundidade e
vanguardismo os mais diversos temas ambientais, dentre eles a
tutela da paisagem.
Fazendo aqui uma síntese dos principais aspectos desta
referência doutrinária, tem-se que um primeiro importante passo
para compreender o seu regime jurídico de proteção é o
entendimento da paisagem objeto do direito ambiental, como
aquela qualificada pelas suas características diferenciadoras em
termos estético-culturais. Nas suas lições:
645
a aplicação das leis e ações de gestão sejam realizadas da forma mais
eficaz possível.
Neste contexto, a Constituição Espanhola em vigor, de 27
de dezembro de 1978, estabelece, no seu artigo 148 1.3,
competências para as Comunidades Autônomas 3 legislarem e
atuarem em defesa das paisagens qualificadas no contexto da
ordenação do território.
A partir disso, a política pública paisagística é construída
e aplicada de forma regionalizada, onde as Comunidades definem
as normas e critérios gerais a serem respeitados e seguidos pelas
cidades integrantes, e estas últimas devem efetivar esses comandos
normativos por meio da implementação das ferramentas de gestão
previstas, como estudos, catálogos, planos e instrumentos de
controle das paisagens.
Há, portanto, uma padronização e normatização do
controle paisagístico de forma regionalizada, segundo os valores,
identificações e culturas das populações integrantes de cada uma
dessas escalas territoriais, mas onde cada cidade deverá qualificar e
proteger suas paisagens de acordo com suas especificidades,
potencialidades e fragilidades.
Na sua obra Ramón Martín Mateo faz análise dos
principais aspectos das legislações das Comunidades espanholas
voltadas para a proteção da paisagem, mas destaca que “la
normativa valenciana (da Comunidade Valenciana) del paisaje es
sin duda, como adelantábamos, la mas desarrollada quizás por la
3
As Comunidades Autônomas são espaços institucionais semelhantes aos
Estados brasileiros, enquanto entes federativos.
646
vocación turística de su economia, ló que no empecé a que el litoral
de esta Comunidad haya sido probablemente el más castigado del
país”.
Neste sentido, serão analisados alguns comandos
normativos da Ley 4/2004, de 30 de junio, de Ordenación del
Territorio y Protección del Paisaje de la Comunidad Valenciana,
presente na coletânea de legislação sistematizada por Estefania
Martinez (2007), considerados com potencial de influenciar no
aprimoramento de outros sistemas normativos.
A proteção e ordenação da paisagem estão previstas no
Título II, Capítulo I de referida lei, sendo que o artigo 25 define
como seu objetivo promover a proteção, gestão e ordenação da
paisagem, assim como organizar a cooperação entre os órgãos da
administração neste campo 4.
O âmbito de aplicação da lei inclui, dentro da totalidade
do território da Comunidade Valenciana, todos os espaços
naturais, as áreas urbanas e rurais, alcançando tanto os espaços
terrestres como as águas interiores e marítimas, no que diz respeito
às paisagens consideradas notáveis, as cotidianas e também as
degradadas (artigo 26, 1 e 2). Ou seja, para se estabelecer um regime
4
Sendo que este objetivo tem como marco e diretrizes as normativas estabelecidas
no Convênio Europeu da Paisagem, formulado em Florença em 20 de outubro de
2000, ratificado pela Espanha em 6 de novembro de 2007 e em vigor desde
primeiro de março de 2008. Portanto, além das legislações nacionais, a Espanha,
assim como todos os demais países signatários, tem um compromisso
supranacional de governança da paisagem. E um dos objetivos comuns é, segundo
artigo 5 ͦ, alínea a), de reconhecer juridicamente a paisagem como uma
componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade do
seu património comum cultural e natural e base da sua identidade.
647
diferenciado de proteção, coloca-se como objeto a paisagem como
um todo, para posterior tratamento diferenciado conforme as
especificidades e qualificações.
Por outro lado, este comando normativo determina a
obrigatoriedade dos poderes públicos relacionados, fixarem nos
seus âmbitos de competência, as políticas públicas em matéria de
paisagem, por meio da formulação de princípios gerais, estratégias
e diretrizes, adotando em função do meio ambiente de cada espaço,
as medidas específicas para a proteção, gestão e ordenação da
paisagem (artigo 27, 1).
Estas políticas públicas têm finalidades claramente
definidas pela legislação, visando em todas as situações de
aproveitamento e uso do solo, conservação e preservação recursos
e elementos naturais e culturais, impedir qualquer alteração
prejudicial ou degradação de seus valores paisagísticos. Também
são finalidades das políticas manter e melhorar a qualidade
paisagística e cultural do entorno urbano, regulamentando os usos
do solo, as densidades, alturas e volumes, o uso de tipologias e
morfologias edificatórias, assim como o emprego de materiais,
texturas e cores adequadas para a formação do entorno visual
(artigo 28, a) e b)).
Portanto, como diretriz normativa o sistema estabelece
que a ordenação da paisagem seja constituída por ações que
objetivem melhorar, restaurar ou criar paisagens. Sempre, este
processo, tendo como fim guiar e harmonizar as transformações
induzidas por processos sociais, econômicos e ambientais, na
perspectiva do desenvolvimento sustentável (artigo 29, 3 e 4).
648
Verifica-se que a legislação em análise apresenta de forma
geral e direcionadora a todas as cidades da Comunidade Valenciana
os objetivos, diretrizes e finalidades a serem cumpridos na gestão
de suas respectivas paisagens. Isto é obrigatório e deve influenciar
a elaboração e o desenvolvimento dos instrumentos de gestão
também previstos na referida lei, que cada município deve cumprir
e implementar segundo as características e valoração de seus
patrimônios paisagísticos.
Por sua vez, o sistema de gestão estabelecido legalmente,
tem como instrumentos (artigo 30) os estudos da paisagem, que
podem ser locais ou regionais, a catalogação desses estudos e os
planos de ação territorial, integrados ou setoriais, que darão os
nortes para as tomadas de decisões diárias que envolvam o
patrimônio paisagístico e o seu controle e proteção.
Em linhas gerais, os estudos da paisagem cumprem a
finalidade (artigo 30) de estabelecer os objetivos de proteção da
qualidade paisagística no âmbito do estudo; analisar as atividades e
processos que incidem sobre a paisagem; e indicar as medidas e
ações necessárias para cumprir os objetivos de qualidade que
devem refletir os anseios dos atores sociais e políticos interessados
e usufrutuários da paisagem.
Como resultados práticos, tais estudos devem apresentar
(artigo 32): 1) as unidades paisagísticas do seu âmbito de análise
(regionais ou locais); 2) delimitar as áreas que devem ser objeto de
atenção prioritária por sua qualidade, fragilidade ou aptidão e
propor ações ordenadoras e gestoras que direcionarão os
conteúdos dos respectivos planos; 3) estabelecer um regime
649
jurídico de proteção para as unidades de paisagem de alto valor e
de seus elementos singulares, com a finalidade de evitar sua possível
ocultação pela interposição por barreiras visuais; 4) delimitar zonas
para proteção da visão de fachadas urbanas dos núcleos
considerados de elevado valor paisagístico; 5) propor medidas para
a melhora paisagística nos âmbitos degradados, especialmente os
existentes nas periferiais e nas conurbações próprias das grandes
aglomerações urbanas; 6) propor medidas de restauração ou
reabilitação paisagística nos âmbitos com elevado grau de
deterioração ou com significativa importância para a percepção do
território.
Como se vê, os estudos sobre a paisagem formam o núcleo
essencial dos instrumentos voltados para a proteção e gestão das
mesmas. Referidos trabalhos técnicos resultarão em catálogos
paisagísticos regionais ou locais, dependendo das áreas de
influência que foram objeto dos dados levantados. Tais catálogos já
representam o inventário local ou regional das unidades
paisagística a serem protegidas segundo os resultados dos
diagnósticos dos estudos.
Segundo Mateo (2003, p. 324) esta catalogação das
unidades de paisagens influencia também outros instrumentos de
gestão previstos pela legislação espanhola, como os planos
hidrográficos, avaliação de impactos ambientais, bem como nas
tomadas de decisões envolvendo as localizações de estações de
tratamento de esgoto e locais para destinação adequada de
resíduos, bem como a proibição ou não de instrumentos de
publicidades em ruas e rodovias. Ou seja, a existência prévia de
estudos sobre a paisagem propicia as melhores tomadas de decisões
650
relacionadas à aplicação de outros instrumentos jurídico-
institucionais em situações que também propiciam a proteção e
conservação da paisagem.
Esses catálogos, portanto, resultam em planos de ação
territorial, que são os instrumentos de ordenação que desenvolvem,
em âmbitos territoriais concretos, os objetivos e critérios previstos
na legislação integrados com os estudos específicos da paisagem
realizados (artigo 43). Os planos devem refletir os princípios
definidos pelo sistema normativo, associados aos valores
paisagísticos e a relação com o território de determinada
comunidade.
Os planos de ação territorial que podem ser integrados
(artigo 48), quando envolvem ao mesmo tempo o planejamento de
todas as temáticas relacionadas à ordenação territorial, sendo que
nesses casos a paisagem é mais uma variável do processo de gestão;
ou setoriais (artigo 56), quando o planejamento pode ser
direcionado para objetivos específicos da ação publica, sendo que
nesses casos pode haver o desenvolvimento de planos específicos
para a gestão da paisagem.
Fato é que de forma integrada ou setorial, tais planos serão
os documentos técnicos referenciais de cada região ou cidade para
toda e qualquer tomada de decisão que envolva paisagem
qualificada levantada nos estudos, catalogadas e objeto de gestão
diferenciada pelo plano.
Em termos estruturais, tais planos devem ter seu
conteúdo elaborado e disponível de forma clara, a fim de que
qualquer cidadão ou organização interessada possa compreender
651
seus termos. Nesta perspectiva, o artigo 55, item 2, alínea a), da
mesma lei, estabelece que todo plano de ação territorial deve ficar
disponível para consulta pública por no mínimo 2 (dois) meses. E
antes da sua aprovação pelos órgãos competentes, deve haver
audiências públicas para discussão dos seus termos com a
população interessada (MARTINEZ, 2013).
Aprovado o plano, este deve constar (artigos 48 a 52) seus
objetivos, o diagnóstico do território (no caso dos planos
integrados o resultado dos estudos da paisagem) e as estratégias
para aplicação do plano. Por sua vez, tais estratégias devem resultar
em projetos e/ou ações dinamizadoras dos objetivos do plano e
normativas de ordenação, que estabelecerão o regime de vinculação
do mesmo às situações aplicadas e perspectivas de fiscalização.
Portanto, tem-se um panorama da estrutura de
funcionamento da política pública de controle e proteção das
paisagens da Comunidade Valenciana, que recepciona o Convênio
Europeu da Paisagem, está juridicamente prevista na Ley 4/2004 da
própria Comunidade e tem como instrumentos de gestão a
interação de estudos, catalogação e planos de conteúdos
paisagísticos obrigatórios e vinculantes a todas as ações e decisões
que possuem significância para as unidades paisagísticas inseridas
como objeto de proteção e gestão.
652
Abaixo um quadro (1) sintetizando os aspectos e
decorrências do sistema político-jurídico analisado:
654
e) Acessibilidade da informação
territorial a todos os cidadãos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
657
REFERÊNCIAS
658
MARTÍN, G. V. Contenido y Alcance de la Autorización
Ambiental Integrada. In: Revista Aranzadi de Derecho
Ambiental, n. 3. Navarra: Editorial Aranzadi, 2003.
659