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Texto - O Cheiro Do Lugar

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ENCONTRO 2

Texto - O Cheiro do Lugar


Nos últimos anos cada vez mais empresas no Brasil e no resto do mundo têm adotado pro-
gramas de mudança cultural caros e ambiciosos, com o objetivo de modificar a mentalidade
e a atitude de seus empregados. A ideia básica é que você não pode renovar um negócio
sem mudar o comportamento das pessoas, que não se pode alcançar uma melhoria radical
no desempenho de uma empresa sem revitalizar seus funcionários. Aí, entretanto, surge a
pergunta: quais as chances de isso dar certo? Você pode realmente mudar a marcha de um
cavalo velho? A resposta é conhecida: é muito pouco provável.

É sabido que os adultos dificilmente mudam suas atitudes fundamentais. Ocasionalmente


eles o fazem, mas somente em resposta a uma profunda tragédia pessoal, tal como a
morte do cônjuge ou de um filho. Fora disso, os acontecimentos de sua vida profissional
não são suficientes para mudar suas atitudes.

Então, estamos diante de um problema. Renovar negócios implica revitalizar pessoas,


ou seja, mudar sua mentalidade. Mas se você não pode ensinar nova marcha a cavalos
velhos, o que fazer, então?

Revitalizar pessoas não passa por mudar suas atitudes fundamentais. Consiste muito mais em
mudar o contexto que os executivos criam em torno de seu pessoal.

Em outras palavras, para revitalizar pessoas, é preciso que os gestores mudem sua visão
sobre a gestão e suas ações no local de trabalho, influindo no comportamento de seus
subordinados. A responsabilidade de criar o contexto comportamental é, assim, da alta
direção da empresa.

Que estou querendo dizer com o termo “contexto comportamental”? Vou tentar explicar
estabelecendo uma relação com minha experiência pessoal.

A cidade de Calcutá no verão


Moro em Londres há alguns anos. Antes disso, lecionei no Insead, uma universidade mun-
dial de negócios, e morei em uma de suas unidades em Fontainebleau, na França. Mas
minha cidade natal é Calcutá, Índia, que visito todo ano em julho, durante quase um mês.
Por que em julho? Porque é o único período em que meus filhos têm férias suficientemente
longas, já que o sentido da visita é manter seu contato com meus pais.

Pense no centro de Calcutá em julho! A temperatura fica acima de 38 graus centígrados, com

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uma umidade relativa de 96%. Sinto-me muito cansado durante quase todo o período de férias
e passo a maior parte do tempo dentro de casa, na cama.

Eu morava em Fontainebleau. É  uma pequena cidade, a 65 quilômetros ao sul de Paris.


O que faz com que a cidade se destaque como um bom lugar para viver e trabalhar é  a
floresta que a circunda, uma das mais bonitas de toda a Europa. Você entra na floresta de
Fontainebleau na primavera com o firme propósito de fazer uma caminhada apenas para
relaxar. Mas há algo no refrescante aroma das árvores, no frescor do ar à sua volta que faz
você ter vontade de correr, de saltar para pegar um galho, de arremessar uma pedra, fazer
alguma coisa! Você se sente energizado demais para contentar-se em apenas fazer uma
caminhada de relaxamento.

Acredito que nisso está a essência da questão de revitalizar pessoas. A maioria das gran-
des empresas, na Índia, no Brasil e no resto do mundo, acaba criando dentro delas um
centro da cidade de Calcutá no verão. É esse contexto enervante que acaba com a ener-
gia e a criatividade de seus profissionais. O desafio para os executivos dessas empresas
é transformar esse contexto comportamental em outro que seja tão revitalizante quanto a
floresta de Fontainebleau na primavera.

Pense no contexto comportamental como “o cheiro do lugar”. Teorizamos muito em gestão.


A realidade é que você entra num escritório de vendas, numa loja, numa pequena ou gran-
de indústria, num escritório ou em um banco e nos primeiros 15 ou 20 minutos vai perceber
o cheiro a que me refiro. Você vai perceber o cheiro da qualidade do ruído interior. Vai per-
ceber o “cheiro do lugar” nos olhos das pessoas; pelo modo como caminham.

Qual é o cheiro do lugar nas unidades de linha de frente da maioria das empresas? Minha
opinião é que, geralmente, seus contextos internos são afetados por “quatro característi-
cas enfraquecedoras”.

A primeira característica é a restrição. Empresários criam estratégias. Eles são sábios, têm
muitas informações, têm bons funcionários. Assim, criam excelentes estratégias em fun-
ção dos produtos, dos clientes, dos mercados. Eles também trabalham muito - de 16 a 18
horas por dia - e tomam todas as decisões para determinar exatamente o que precisa ser
feito. Mas o que tudo isso significa para as pessoas que trabalham no escritório de vendas,
ou na loja, ou na produção, em níveis abaixo deles? O que todo aquele trabalho duro - todas
aquelas decisões, todas aquelas estratégias - interessa às pessoas do chão da fábrica ou à
equipe operacional? Restrições. É assim que eles se sentem em relação a tudo o que vem
das “pessoas de cima” - restrições sobre como podem usar sua própria iniciativa, criati-
vidade e pensamento. Restrições nas escolhas que podem fazer. Restrições na alegria e
entusiasmo por agir com suas próprias forças.

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A segunda característica é a submissão. Empresários criam todos os tipos de sistemas -


de recursos humanos, financeiro, contábil. Cada sistema se justifica por si mesmo e é, por
si só, absolutamente inquestionável em seus critérios. Entretanto, que sentimentos eles
despertam nos empregados? Submissão. Todos aqueles sistemas são como uma nuvem
negra sobre eles.

Outro aspecto difuso do contexto da maioria das empresas é o controle. Por que existe o
chefe? Não apenas o chefe direto, mas em algumas empresas há o gerente, supervisor e
uma infraestrutura hierárquica extensa? O máximo que os humildes funcionários que es-
tão no operacional podem entender é que ela existe por uma e somente uma razão - para
controlá-los. Para garantir que eles não façam as coisas erradamente.

Finalmente, o contrato. Nós estamos utilizando cada vez mais essa palavra em qualquer
aspecto do negócio. No ocidente, com certeza, mas ele está sendo introduzido cada vez
mais em países como a Índia. O emprego é um contrato. O orçamento é um contrato pes-
soal. Relacionamentos entre colegas e setores são todos contratos.

Esse é o ambiente interno, definido por restrição, submissão, controle e contrato. Esse
é o cheiro do lugar na maioria das empresas da Índia, do Brasil ou de muitos outros países.
E, afinal, que comportamentos as organizações querem das pessoas? Elas querem que
os empregados tomem iniciativas e alcancem resultados em tempo recorde. Querem que
aprendam constantemente e tragam os benefícios do aprendizado para a empresa, para
ajudar em seu sucesso. Mas como os gestores poderão obter esses comportamentos se
criaram em volta de seu pessoal o odor do centro de Calcutá no verão?

A floresta de Fontainebleau na primavera


Quais são os atributos das organizações que criaram a floresta de Fontainebleau na prima-
vera em seu interior? São atributos bem diferentes. Elas constroem seu contexto interno
com base na força de quatro características.

Primeiro, em oposição à restrição, há o esticamento. O que significa esticamento? Par-


ticularmente nas empresas de forma geral, há uma doença penetrante chamada “subde-
sempenho satisfatório”. Quando a empresa entra em crise, a mudança se torna fácil. O
problema maior não é quando a empresa entra em crise. Ele se manifesta bem antes da
crise bater, quando a empresa está flutuando, navegando por esse modelo de subdesem-
penho satisfatório. Todo mundo na empresa sabe que, dados os seus recursos – qualidade
dos produtos / serviços, tecnologia, pessoal e aí por diante - ela não está se saindo tão bem

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quanto poderia. Mas, em contraste com essa realidade, as pessoas racionalizam, baixam o
nível de aspirações para se satisfazer com aquele subdesempenho.

Esticamento é  a antítese de subdesempenho satisfatório. Significa que todo indivíduo,


não importa o que esteja fazendo, está tentando fazer mais em vez de menos. Nesse
processo, cada pessoa está constantemente se pressionando e, com isso, todos estão
também pressionando todo mundo à sua volta, pressionando a gerência para fazer mais,
para fazer melhor.

Como uma empresa cria tal contexto, no qual as pessoas são “esticadas”? Isso requer uma
grande mudança nas ações do(s) proprietário(s). Em lugar de criar estratégias e tomar todas
as decisões “lá em cima”, o desafio da alta administração passa a ser criar um estimulante
sentido de propósito - uma ambição empresarial geral que esteja claramente articulada e
que seja estimulante para todas as pessoas, capaz de ser entendida e que possa servir de
referência a elas, com satisfação e aprendizado gerado a partir do esticamento.

Então, a primeira mudança no contexto é passar de restrição para esticamento. A segunda


mudança é  ir de submissão para disciplina. A ausência da pesada carga de submissão
não implica liberdade para o caos. Nem significa que uma empresa não possa ter sistemas.
A 3M, uma das empresas que considero fascinantes, tem sistemas rigorosos, assim como
a Intel. A questão não é  se uma empresa tem sistemas ou não, mas o que os gestores
fazem com eles. Eles utilizam os sistemas para impor às pessoas um sentimento externo
de submissão - algo com que se deve concordar - ou os utilizam para instituir autodisciplina
no comportamento diário das pessoas?

Autodisciplina é o gerenciamento por comprometimento. Quer dizer que todos fazem aqui-
lo com que se comprometeram. Se alguém promete uma redução de 14% no estoque,
dará a vida para cumprir a meta. Mas é mais do que apenas números. Autodisciplina signifi-
ca que, se houver uma reunião às 9 horas, todos estarão na sala às 9 horas. Autodisciplina
quer dizer que, mesmo que a direção tome uma decisão da qual você discordou, você se
compromete com ela, uma vez tomada a decisão.

A Intel tem uma norma chamada confrontação construtiva. As regras são claras: todo em-
pregado, independentemente do cargo que ocupa, não só tem o direito de falar sobre qual-
quer tópico que o afeta, como também é obrigado a expressar suas opiniões e lutar por
elas tanto quanto puder. Essa é a regra ampla da empresa, que leva a um debate vigoroso,
de dar murros na mesa. Ao final da discussão, quando a decisão for tomada, as pessoas
podem concordar ou discordar, mas todos devem se comprometer com ela. Esse é o con-
ceito de disciplina.

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Em terceiro lugar, o contexto comportamental das empresas de alto desempenho subs-


titui controle pela norma de apoio. Você atinge a mudança genuína quando as pessoas
realmente acreditam que seus chefes existem não para controlar e garantir que elas não
façam as coisas erradamente, mas sim por uma única razão: ajudá-las a vencer e aprender.
Ajudá-las a vencer e aprender com orientação pessoal, liderança, direção ou facilitando-lhes
acesso aos recursos do restante da organização. Isso cria o contexto de apoio.

Finalmente, há a mudança de contrato para confiança. Não apenas como a versão instru-
mental, contratual, de confiança, que diz: “Se chegamos a um acordo, eu confio que você
cumprirá sua parte”. É muito mais do que isso. Confiança que diz: “Sabe, somos parte de
uma mesma organização e eu confio em você. Eu confio em você incondicionalmente, ab-
solutamente”. Confiança é isso.

De contexto a comportamentos
A verdadeira fonte de vantagem competitiva para as empresas hoje não se encontra na
escala ou na tecnologia. Essas se tornaram pré-requisitos - e sem elas você não tem um
lugar à mesa. A fonte real de vantagem competitiva está no comportamento das pessoas,
na construção de uma organização na qual cada indivíduo toma a iniciativa, colabora, tem
autoconfiança. Vantagem competitiva vem de pessoas que se comprometem consigo mes-
mas e com suas equipes.

Considere o caso da 3M, uma empresa construída por acidentes. O acidente mais conhe-
cido é o bloco de notas Post-it. A 3M é uma empresa que fabrica lixas e queria uma cola
bem forte para sua lixa d’água. Infelizmente, a pesquisa não deu certo e foi assim que eles
conseguiram uma cola bem fraca. Durante oito anos ela ficou na prateleira, até que Art Fry
encontrou uma maneira de aplicá-la em papel para criar o bloco de notas Post-it - uma das
inovações de maior sucesso da 3M. Essa história é amplamente conhecida, mas o mais in-
teressante é que toda a história da 3M é cheia de acidentes desse tipo, e a maioria de suas
inovações surge dessa maneira. Gestores da 3M admitem prontamente: “Sim, nós sempre
tropeçamos nessas coisas”. No entanto, eles ressalvam: “Para tropeçar você precisa estar
em movimento”.

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Sem disciplina, o esticamento cria sonhadores. Pessoas pairam nas alturas, sem qualquer
âncora. Sem esticamento, a disciplina torna-se corrosiva ao longo do tempo. Mas combinar
os dois com as tensões entre eles levará à magia da iniciativa individual e do espírito em-
preendedor por toda a organização.

É  disso que uma organização precisa. Quando um setor ou um indivíduo enfrenta uma
oportunidade ou um problema, qualquer pessoa na empresa que possa ajudar deve fazê-lo,
sem que ninguém peça. Como você consegue esse tipo de colaboração numa organização
grande e complexa? Acredito que seja a combinação de apoio, de um lado, e confiança, do
outro. Se você deseja comportamentos individuais como iniciativa, colaboração, aprendizado
e assim por diante, o desafio é criar um «aroma corporativo» baseado nas normas de es-
ticamento, disciplina, confiança e apoio.

Acredito que é possível, com certeza em pequenas e médias e empresas, mas também em
grandes organizações, criar o cheiro da floresta de Fontainebleau na primavera e protegê-
-lo durante um bom tempo. Também acredito que, mesmo para um empresário que tenha
herdado o ambiente do “centro de Calcutá no verão”, é possível criar essa “floresta de Fon-
tainebleau na primavera”. E que é possível fazê-lo num tempo relativamente curto, como
mostra o exemplo da divisão de semicondutores da Philips.

A Philips tem uma presença significativa em muitos países, inclusive no Brasil. Como é am-
plamente conhecido, a empresa caiu em um precipício, no final dos anos 80, e esteve muito
próxima da bancarrota. O negócio que tinha mais responsabilidade pela situação da Philips
naquele momento era o de semicondutores. A área de semicondutores é  uma atividade
intensiva em capital e exige investimentos em pesquisa e desenvolvimento equivalentes
a no mínimo 15% das vendas. Ela se torna inviável se a empresa não possuir de 6% a 7%
do mercado global na categoria. A Philips tinha 1%. E o que é pior: com produtos errados.
O alto crescimento, os produtos de grande margem estavam nos segmentos de uso final,
como computadores, telecomunicações e automotivo. Os produtos da Philips estavam to-
dos na área madura de eletrônicos de baixa margem e baixo crescimento. Considere então
o “cheiro do lugar”. Havia dois grupos de produtos dentro da divisão de semicondutores
e um não falava com o outro. A área de semicondutores da Philips em 1989 era como o
“centro de Calcutá no verão”!

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Agora o resultado vermelho da Philips parou. E o que mantém a empresa é o negócio de
semicondutores. Embora certos fatores estratégicos, ambientais e organizacionais tenham
contribuído para essa dramática mudança, ela foi determinada por um conjunto de ações por
parte dos novos gestores, que alteraram o contexto comportamental dentro da organização.

De fato, foi na Philips que eu ouvi pela primeira vez a expressão “o cheiro do lugar”, da
boca de um engenheiro de sua fábrica de semicondutores de energia na Escócia. “Todos
sabíamos que aqui era um bom lugar para qualificação, mas ninguém achava que fosse um
lugar para fazer carreira”, disse ele. “Agora, as coisas estão diferentes e já penso em ficar.
O cheiro do lugar mudou.”

Adaptado de GHOSHAL, Sumantra. Revista EXAME. Edição 709, 08 mar. 2000, para fins exclusivamente
didáticos.
Sumantra Ghoshal foi professor da cadeira de Liderança Estratégica na London Business School

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