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A Dimensão Estética

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1-38 2007.04.

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5 A DIMENSÃO ESTÉTICA
Análise e compreensão da experiência estética
Capítulo 12. A experiência e o juízo estéticos, 9
Capítulo 13. A criação artística e a obra de arte, 39
Capítulo 14. A arte: produção e consumo, comunicação
e conhecimento, 67

Carpe Diem (1992), de Baltazar Torres (n.1961). Será que ao olharmos para este
quadro temos uma experiência estética? E o que distingue essa experiência de outro
tipo de experiências? Será que a minha avaliação desta pintura é subjectiva? E como se
avalia uma obra de arte? E o que justifica o valor da arte? O que faz deste quadro uma
obra de arte? Estes são alguns dos enigmas da estética e da filosofia da arte.
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Capítulo 12
A experiência e o juízo
estéticos
Secções
1. Estética e filosofia da arte 1. Estética e filosofia da arte, 9
2. A experiência estética, 11
Num certo sentido, todos sabemos o que á a arte, pois 3. A justificação do juízo estético, 23
conhecemos várias formas de arte, como a música ou a
pintura. Se bem que algumas obras de arte não sejam be- Textos
las, a beleza é um aspecto importante da arte. Por sua vez, 26. O Desinteresse, 19
Immanuel Kant
a beleza está relacionada com a estética.
27. A Atitude Estética, 20
É muito comum ver o termo «estética» em expressões
Jerome Stolnitz
e frases como as seguintes: 28. O Mito da Atitude Estética, 22
George Dickie
• Instituto de estética. 29. O Padrão do Gosto, 33
David Hume
• Cirurgia estética.
30. Razões Objectivas, 34
• Escolhi este telemóvel em vez do outro por razões Monroe Beardsley
estéticas.
Objectivos
Compreender o significado filosófico do
Em qualquer destes casos estamos a pensar simples-
termo «estética».
mente na beleza física – a aparência das pessoas e os Caracterizar e discutir a noção de
cuidados a ter com isso, bem como o aspecto visual das experiência estética.
coisas. Trata-se de algo estritamente relacionado com o Compreender o problema da justificação
que é agradável à vista. do juízo estético.
Em filosofia, o termo tem um significado diferente, Tomar posição sobre as respostas
subjectivista e objectivista ao problema da
tratando-se da disciplina que estuda os problemas relati- justificação do juízo estético.
vos à própria natureza da beleza – seja qual for o tipo de
beleza – e das artes. Trata-se de tentar responder a per- Conceitos
guntas como «o que é a beleza?» e «como sabemos que Estética, experiência estética, atitude
algo é belo?», ou como «o que é arte?» e «o que faz a arte estética, juízo estético, desinteresse.
ter valor?». Contemplação, juízo de gosto, juízo
Em sentido filosófico, o adjectivo «estético» é também cognitivo, subjectivismo estético.
usado para qualificar certo tipo de experiências, de objec- Padrão de gosto, objectivismo estético,
propriedade estética.
tos, de propriedades, de juízos, de prazeres, de valores e
de atitudes.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Eis alguns exemplos:

Estéticos Não estéticos

Objectos A escultura O Beijo, de Rodin. Os meus chinelos de quarto.


Propriedades A elegância. A brancura.
Experiências Ouvir música. Estudar.
Juízos «O Porto é bonito.» «O Porto é húmido.»
A sensação agradável de contemplar o A sensação agradável de cumprir uma
Prazeres
mar durante a tempestade. promessa.
O valor do quadro Natureza Morta com As maçãs que serviram de modelo a
Valores Maçãs, de Cézanne. Cézanne no quadro Natureza Morta
com Maçãs.
Olhar para um retrato do séc. XVIII para Olhar para um retrato do séc. XVIII para
Atitudes apreciar a sua beleza. ver como as pessoas se vestiam nessa
época.

O termo «estética» foi pela primeira vez usado em sentido filosófico pelo alemão Ale-
xander Baumgarten (1714-1762) para designar a disciplina que estuda o conhecimento
sensorial (conhecimento obtido pelos sentidos). Baumgarten considerava que o conheci-
mento sensorial era autónomo e diferente do conhecimento racional. Segundo Baumgar-
ten, os mais perfeitos exemplos de conhecimento facultado pelos sentidos são as belezas
que podemos observar directamente na natureza, na arte e em outros artefactos (objectos
concebidos ou criados por seres humanos).
Esta ideia acabou por ser adoptada e desenvolvida pela generalidade dos filósofos do
séc. XVIII. Estes filósofos falavam mesmo de uma faculdade sensível especial, responsá-
vel pela apreensão da beleza e do sublime, a que chamavam «faculdade do gosto».
A estética tornou-se, assim, a disciplina filosófica que estuda a beleza e o sublime, onde
quer que se encontrem, sendo a beleza artística e a natural as mais importantes. As ques-
tões relativas à arte eram encaradas, por alguns destes
filósofos, como questões especializadas da estética,
pois considerava-se então que todos os objectos de arte
eram belos.
Todavia, o desenvolvimento artístico posterior acabou
por tornar inadequada, aos olhos de muitos filósofos, a
Filosofia
Estética ideia de que toda a arte é bela, levando muitos a conce-
da Arte
ber a estética e a filosofia da arte como disciplinas dis-
tintas, embora com alguns aspectos em comum. A maior
parte dos filósofos contemporâneos reconhece que ape-
sar de algumas obras de arte serem belas, uma boa par-
te delas não o são, seja qual for o sentido de beleza que
Alguns filósofos defendem que a estética e
a filosofia da arte são disciplinas diferentes, se tenha em mente. Dado que a estética se ocupa da be-
embora com aspectos em comum. leza, isto quer dizer que a filosofia da arte ultrapassa o
domínio da estética.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Alguns filósofos continuam, contudo, a ver a filosofia da arte como


um domínio especializado da estética. Esses filósofos reconhecem que
nem toda a arte é bela, mas defendem que as coisas belas e as obras de
arte continuam a ter em comum um aspecto essencial: proporcionam Estética
um tipo especial de experiência, a experiência estética. Assim, os
quadros de Picasso, a música dos U2, o pôr-do-sol no Alentejo, os
cavalos selvagens a correr no Gerês e a Soraia Chaves ou o Brad Pitt a Filosofia
passarem à nossa frente têm em comum o facto de geralmente da Arte
provocarem em nós experiências estéticas. Neste sentido, a estética e a
filosofia da arte não são disciplinas substancialmente diferentes, pois em
ambos os casos se trata agora do estudo da noção fundamental de
experiência estética.
Outros filósofos encaram a filo-
Mas o que é uma experiência estética e o que a distingue de uma sofia da arte como uma sub-dis-
experiência não estética? Haverá realmente experiências estéticas ou ciplina da estética.
isso é apenas um modo de falar? As respostas a estas perguntas serão
discutidas já a seguir.

2. A experiência estética
O que queremos dizer quando qualificamos uma experiência como estética? Como se
distingue algo que é estético, seja uma experiência ou outra coisa qualquer, de algo que
não é estético?

Kant e o desinteresse
Uma das primeiras e mais importantes tentativas para distinguir o que é do que não é
estético foi levada a cabo pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) Este filósofo começa
por referir a experiência estética para caracterizar o juízo estético, sendo impossível desligar
uma noção da outra. Kant defende que um juízo só é estético se for determinado por um
prazer desinteressado. Quando fala de prazer, Kant está a referir um determinado sen-
timento de que temos experiência. E quando caracteriza essa experiência como desin-
teressada, está a diferenciá-la de outros tipos de experiência. O facto de o juízo estético se
referir a um sentimento e não a um objecto indica-nos que se trata de um juízo subjectivo.
Assim, Kant pensa que o juízo estético assenta num determinado tipo de experiência, que
ele identifica como um sentimento de prazer desinteressado. Mas o que é exactamente
um prazer desinteressado? Será um prazer a que não damos importância ou a que não
prestamos muita atenção?
Para esclarecer melhor a noção de desinteresse, Kant confronta os juízos estéticos
com os juízos cognitivos (ou juízos de conhecimento).
Kant defende que os juízos cognitivos, como os expressos pelas frases «A relva é ver-
de» ou «Os metais dilatam quando são aquecidos», resultam da colaboração entre a sensi-

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

bilidade e o entendimento com vista ao conhecimento objectivo. A sensibilidade e o en-


tendimento são as nossas duas principais faculdades cognitivas. Kant defende que, isolada-
mente, nenhuma dessas faculdades permite chegar ao conhecimento dos objectos.
A sensibilidade é a faculdade que os nossos sentidos têm de receber impressões dos
objectos que nos rodeiam; as impressões recolhidas são as sensações de cor, brilho, tex-
tura, etc. Por outras palavras, a faculdade da sensibilidade é aquilo a que hoje chamamos
de percepção. O entendimento é a faculdade racional que organiza essas impressões, dan-
do-lhes forma através da aplicação de conceitos. Kant defende que os dados dos sentidos
fornecidos pela sensibilidade são a matéria-prima do conhecimento; os conceitos que o en-
tendimento aplica a essa matéria são a forma do conhecimento.
Assim, o conteúdo da nossa experiência
só pode referir-se aos objectos por meio de
conceitos. Só há conhecimento quando a
sensibilidade fornece os seus dados com o
propósito de lhes ser aplicado um conceito,
e quando um conceito lhes é efectivamente
aplicado.
Por exemplo, o juízo expresso pela frase
«Os metais dilatam ao ser aquecidos» de-
pende dos dados que os nossos sentidos
obtêm do exterior quando tocamos o metal
e o sentimos quente, e quando olhamos
para ele e vemos que dilatou. Mas depende
também de algo que está fora do alcance
dos nossos sentidos: a aplicação do con-
ceito de causalidade para relacionar as sen-
sações de calor com a de dilatação dos me-
tais.
Kant defende que os juízos de gosto,
Natureza Morta com Maçãs, (1890), de Paul Cézanne como o expresso pela frase «O pôr-do-sol é
(1839-1906). Alguns filósofos defendem que, ao contemplar esta belo», que são um dos tipos de juízos esté-
pintura, temos experiências estéticas, o que talvez não acontecesse ticos, não se referem à existência dos objec-
se observássemos directamente as maçãs de que o pintor se ser-
viu como modelo.
tos. Referem-se sim ao nosso próprio esta-
do subjectivo de prazer ou desprazer acerca
do conteúdo da experiência.

Kant pensa que o belo não é um objecto, pelo que não pode ser referido através de con-
ceitos. Porém, pensa que as nossas faculdades cognitivas intervêm na mesma nos juízos
estéticos. A diferença é que essas faculdades estão agora livres de qualquer finalidade
cognitiva, dado que não é o conhecimento de objectos que está em causa. Referindo-se
apenas ao nosso sentimento de prazer, as faculdades entram numa espécie de jogo com-
pletamente livre, sem qualquer propósito ulterior. Por isso, o entendimento nunca chega a
aplicar qualquer conceito, devolvendo a matéria recebida à imaginação – uma faculdade
intermédia entre a sensibilidade e o entendimento – num processo que se repete
continuamente. Kant pensa que é este livre jogo das faculdades, decorrente da ausência
de qualquer finalidade cognitiva ou outra, que nos coloca perante a simples representação

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

dos objectos, provocando em nós um sentimento de prazer contemplativo. Este prazer é


desinteressado precisamente porque é meramente contemplativo. Isto significa que:

• Não visa satisfazer qualquer interesse prático ou propósito ulterior.

• Não se funda em conceitos.

• Não depende sequer da existência real do objecto representado.

Tudo o que conta é a simples contemplação da representação em si e o livre sentimen-


to de prazer que a acompanha. Assim, dizer que algo é belo é dar voz a um determinado
tipo de experiência ou sentimento de prazer. Ou seja, dizer que algo é belo é só dar voz a
uma certa experiência e nada mais. Essa experiência não se pode descrever, ao contrário
da experiência de ver um copo, que podemos descrever através do juízo expresso pela
frase «Está um copo à minha frente». Não podemos descrever a experiência estética
dizendo «Está uma beleza à minha frente» porque o que está à minha frente é o objecto
que provoca em mim a experiência estética, e não a experiência estética.
Ao contrário do prazer do belo, Kant defende que os outros dois tipos de prazeres que
refere – o prazer do bom e o prazer do agradável – não são independentes de qualquer
interesse.

• O prazer do bom é o prazer que se obtém da satisfação de uma necessidade práti-


ca, como o prazer que se tem ao resolver um problema doméstico.

• O prazer do agradável é o que se obtém da satisfação de algum desejo pessoal ou


inclinação natural dos nosos sentidos, como o prazer que temos ao comer doces.

Portanto, ambos são determinados por algum tipo de interesse – Kant pensa que a stis-
fação de desejos é a satisfação de um interesse pessoal.
Em suma, Kant pensa que a experiência estética é desinteressada, mas não por não
ser importante ou valiosa; é desinteressada porque é completamente livre e independente
dos nossos desejos, necessidades ou conhecimentos. Tudo o que conta para a experiên-
cia estética é a própria experiência.

Revisão
1. Como distingue Kant um juízo estético de um juízo cognitivo?
2. Qual é, segundo Kant, o papel do entendimento no juízo cognitivo?
3. Por que razão pensa Kant que o juízo estético é subjectivo?
4. Kant defende que no juízo estético há um livre jogo das faculdades cognitivas.
O que significa isso?
5. Como caracteriza Kant um prazer desinteressado?
6. Que outros tipos de prazer estético há, segundo Kant, além do prazer do belo?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Discussão
7. Kant defende que quando temos uma experiência estética nem sequer pro-
curamos satisfazer qualquer desejo pessoal. O que nos leva, então, a percorrer
centenas de quilómetros para assitir a um concerto do nosso músico prefe-
rido? Justifique.

Atitude estética e desinteresse


A noção kantiana de desinteresse serve para caracterizar a
experiência e o juízo estéticos, mas nada diz sobre a origem ou
causa dessas experiências. Por exemplo, perante David, a fa-
mosa escultura de Miguel Ângelo, tanto podemos dizer que é
bonita como dizer que é de mármore – o nosso juízo tanto pode
ser estético como cognitivo. O que nos leva a produzir, acerca
desse objecto, um juízo estético em vez de um juízo cognitivo?
O filósofo contemporâneo, Jerome Stolnitz (n. 1925), procura
esclarecer esse aspecto defendendo que ter uma experiência
estética e proferir juízos estéticos é uma questão de adoptar
uma determinada atitude em relação a algo. Só quando se tem
uma atitude estética é que se pode apreciar esteticamente
algo e ter uma experiência estética. Neste caso, o desinteresse
é a característica definidora da atitude estética.
Mas o que é ter uma atitude, simplesmente? Eis o que res-
ponde Stolnitz:

Uma atitude é uma maneira de dirigir e controlar a nossa


percepção. Nunca vemos nem ouvimos, indiscriminadamente,
tudo aquilo que constitui o nosso ambiente. Pelo contrário,
«prestamos atenção» a algumas coisas, ao passo que apreende-
mos outras apenas de maneira vaga ou quase nula. Portanto, a
atenção é selectiva – concentra-se em alguns aspectos do que nos
rodeia e ignora outros. [...] Além disso, aquilo a que prestamos
atenção é ditado pelas finalidades que temos em cada momento.
[...] Obviamente, quando os indivíduos têm fins diferentes,
percepcionam o mundo de maneira diferente: uma pessoa dará
ênfase a determinadas coisas que outra ignorará. O batedor ín-
dio presta uma atenção cuidadosa a marcas e pistas que a pessoa
David, de Miguel Ângelo (1475-1564). que está simplesmente a passear pelo bosque negligencia.
Esta estátua é bela e é de mármore. O que
nos leva a dar atenção à beleza, mas não Jerome Stolnitz, Estética e Filosofia da Crítica de Arte, 1960,
ao mármore? trad. de Vítor Silva, p. 45

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Assim, se as pessoas adoptarem a mesma atitude, encarando as coisas da mesma


maneira, certamente terão o mesmo tipo de experiência. Dado que a atitude que adopta-
mos determina a forma como percepcionamos o mundo, ter uma atitude estética perante
algo é uma condição necessária para ter experiências estéticas. Se diferentes pessoas
tiverem a mesma atitude – nomeadamente, uma atitude estética – em relação a um dado
objecto, terão também o mesmo tipo de sentimento. Stolnitz defende, por isso, que a
noção fundamental é a de atitude estética, mais do que a de experiência estética.
Porém, Stolnitz defende que a atitude que tomamos habitualmente não é a estética
mas a atitude de percepção «prática», que ele caracteriza do seguinte modo:

Habitualmente, vemos as coisas do nosso mundo em termos da sua utilidade para a


promoção ou prejuízo dos nossos fins. Se alguma vez damos expressão verbal à nossa
atitude vulgar para com um objecto, ela toma a forma da questão «O que posso fazer com
ele e o que pode ele fazer-me?». Vejo uma caneta como algo com que posso escrever, vejo
um automóvel que se aproxima como algo a evitar. Não concentro a minha atenção no
objecto propriamente dito. Pelo contrário, o objecto só me interessa na medida em que
pode ajudar-me a atingir um objectivo futuro. [...] Assim, quando a nossa atitude é «prá-
tica», percepcionamos as coisas apenas como meios para um fim que está para lá da expe-
riência de as percepcionarmos.
Jerome Stolnitz, Estética e Filosofia da Crítica de Arte, 1960,
trad. de Vítor Silva, p. 46

Assim, Stolnitz pensa que a atitude prática é uma forma de dirigir a nossa atenção
para os objectos em função de certos fins, pensando sempre na sua utilidade, ou seja,
encarando os objectos como meios.
Stolnitz pensa que a atitude estética, por sua vez, exclui qualquer tipo de interesse,
levando-nos a concentrar a atenção exclusivamente no objecto: nas formas, linhas e
cores de um quadro, na forma como os sons estão organizados numa peça musical, na
estrutura de um romance, etc. Stolnitz pensa que são estes aspectos do próprio objecto
que, quando temos uma atitude estética, nos absorvem completamente, originando em
nós um estado de pura contemplação activa. A contemplação é activa (e não passiva)
porque exige uma atenção perspicaz, capaz de dar conta dos mais pequenos pormenores
no objecto. Este é o significado do desinteresse que Stolnitz pensa que caracteriza a
atitude estética.

A noção de atitude estética permite explicar de um modo mais simples do que Kant
por que razão algumas pessoas têm experiências estéticas acerca de certos objectos e
outras não. Nos exemplos seguintes torna-se claro por que razão nenhuma das pessoas
em causa tem experiências estéticas e por que razão os seus juízos não são estéticos:

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

• O João ficou entusiasmado com o quadro Carpe


Diem, de Baltazar Torres, pois pareceu-lhe um exce-
lente investimento.

• A Rita gosta muito da música da Enya porque tem


um efeito relaxante.

• A Ana acha mau o romance Lolita, de Vladimir Na-


bokov, porque desafia a moral e os bons costumes.

O Tigre e o Dragão (2000), • O Luís diz que o filme O Tigre e o Dragão, de Ang
de Ang Lee. Apesar de ter sido
um sucesso, há quem considere
Lee, não é bom porque nada se aprende com ele.
que não passa de um exercício
de estilo sem grande conteúdo.
Será que esta opinião poderia Em todos estes casos, a atitude adoptada é prática e
ser partilhada pelo defensor da interessada: interesses económicos, psicológicos, morais
teoria da atitude estética?
e cognitivos, respectivamente. E nunca os objectos são
encarados esteticamente, isto é, em função de si próprios.
Outra das vantagens da noção de atitude estética, relativamente à teoria de Kant, é
explicar por que razão podemos ter experiências estéticas acerca de praticamente qual-
quer objecto, independentemente de ser arte ou não e até de ser belo ou não. A expe-
riência estética deixa de estar associada à beleza, tornando possível descrever como
estéticas certas experiências acerca de coisas que, em condições normais, não são dignas
de atenção e que até consideramos feias. Neste sentido, qualquer coisa pode ser um
objecto estético e proporcionar experiências estéticas, desde que tenhamos uma atitude
estética em relação a ela.

Revisão
1. Como caracteriza Stolnitz a noção de atitude?
2. Como caracteriza Stolnitz a atitude prática?
3. Como caracteriza Stolnitz a atitude estética?
4. Dê um exemplo do que Stolnitz considera uma atitude prática relativamente a
objectos de arte.
5. Stolnitz pensa que podemos ter experiências estéticas acerca de qualquer
objecto. Porquê?

Discussão
6. Será que tudo pode ser encarado esteticamente? Justifique e dê exemplos.
7. Quando encaramos algo esteticamente não podemos encarar a mesma coisa
sem ser esteticamente? Porquê? Dê exemplos.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Crítica da noção de experiência estética


Será que existe realmente uma forma de atenção desinteressada? Se não for possível
distinguir a atenção desinteressada da interessada, então também não faz sentido falar de
experiências estéticas.
Alguns filósofos contemporâneos, entre os quais se des-
taca George Dickie (n. 1926), defendem que não faz qualquer
sentido falar de experiências estéticas, pelo que a chamada
«atitude estética» não passa de um mito. Para defender esta
ideia, Dickie apresenta exemplos de apreciação de obras de
arte em que o interesse ou desinteresse em nada alteram o
tipo de atenção que lhes dispensamos. Vejamos dois desses
exemplos, ligeiramente adaptados.
Suponha-se que a Joana é estudante de música no conser-
vatório e que está a ouvir um trecho musical com o propósito
de o analisar e descrever correctamente no exame que vai ter George Dickie (n. 1926) é
no dia seguinte. O seu amigo Luís ouve o mesmo trecho, mas um influente filósofo da arte
sem qualquer propósito ulterior. Dir-se-ia que a atitude da americano.

Joana é interessada e a do Luís desinteressada. Mas Dickie


argumenta que, apesar de os motivos, intenções ou razões para ouvir esse trecho musical
poderem ser diferentes, isso em nada altera o tipo de atenção quando o ouvem: ambos
podem perfeitamente gostar do que ouvem e ambos podem aborrecer-se. Claro que um
deles pode estar mais atento ou distraído. Uma coisa são os motivos para ouvir música e
as maneiras como o ouvinte pode ser distraído e outra coisa diferente é o tipo de atenção.
Estar mais ou menos atento não é o mesmo que ter um tipo diferente de atenção, do mes-
mo modo que ter mais ou menos febre não é o mesmo que ter um tipo diferente de febre.
Há apenas uma maneira de ouvir música. Sendo assim, é impossível distinguir uma audição
desinteressada de outra interessada, pelo que a distinção é artificial.
O segundo exemplo de Dickie refere-se à pintura, procurando confrontar o que seria
olhar para uma pintura interessada e desinteressadamente. Imagine-se que a Carla olha
para uma pintura porque lhe faz lembrar o seu avô e lhe recorda os momentos agradáveis
que passou com ele. Esta é, supostamente, uma observação interessada, pois a Carla está
a usar a pintura para relembrar momentos da sua vida. Mas, nesse preciso momento, e
apesar de estar à frente da pintura e de olhos abertos, a Carla já nem sequer está a olhar
para a pintura, argumenta Dickie; está antes concentrada na recordação que a pintura
começou por despertar. Assim, a Carla não está a observar a pintura interessadamente,
pois nem sequer está a observá-la. Os pensamentos e imagens que passam pela mente
da Carla não fazem parte da pintura e é nesses pensamentos e imagens que ela está con-
centrada. Portanto, não podemos dizer que esses pensamentos e imagens constituem
uma observação interessada da pintura. É certo que a Carla faz associações irrelevantes,
que a distraem da pintura. Mas «a distração não é uma forma especial de atenção; é uma
forma de desatenção», conclui Dickie.
Estes casos parecem mostrar que a noção de atenção desinteressada é, na prática, inin-
teligível. Nesse caso, é também ininteligível a ideia de que há experiências estéticas. E esta
é precisamente a conclusão de Dickie.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

O que é a experiência estética?

É um sentimento É o resultado da A pergunta não é


de prazer adopção da atitude correcta porque não
desinteressado. estética. (Stolnitz) há experiências
(Kant) estéticas. (Dickie)

Um prazer é Uma atitude é estética A noção de


desinteressado se quando observamos os desinteresse não
não é fundado em objectos com uma funciona na prática;
conceitos e se é atenção desinteressada não permite fazer
independente da (sem um propósito qualquer distinção
existência real dos ulterior e em função entre o que é estético
objectos. de si mesmos) e o que não é.

Revisão
1. De que maneira procura Dickie mostrar que não há atitude nem experiência
estéticas?
2. Por que razão pensa Dickie que é um erro afirmar que a Joana tem uma atitude
diferente do Luís quando estão a ouvir música?
3. Por que razão pensa Dickie que a Carla não observa de modo interessado a
pintura do seu avô?

Discussão
4. Será que não há realmente experiências estéticas? Justifique e dê exemplos.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Texto 26

O Desinteresse
Immanuel Kant
Chama-se «interesse» ao prazer que ligamos à representação da existência de um objec-
to. Por isso, um tal interesse envolve sempre ao mesmo tempo referência à faculdade de
desejar, quer como seu fundamento, quer como necessariamente vinculado ao seu funda-
mento de determinação. Ora, se a questão é saber se algo é belo, então não se quer saber se
a nós ou a qualquer outra pessoa importa, ou possa importar, algo da existência da coisa,
mas antes como ajuizamos essa coisa na mera contemplação (intuição ou reflexão). [...]
O que se quer saber é somente se a mera representação do objecto em mim é acompanhada
de prazer, por indiferente que eu possa ser em relação à existência do objecto desta repre-
sentação. É claro que se trata do que faço dessa representação em mim mesmo, e não daqui-
lo em que dependo da existência do objecto, para dizer que ele é belo e para provar que
tenho gosto. Todos temos de reconhecer que o juízo sobre a beleza ao qual se mistura o
mínimo interesse é muito faccioso e não é um juízo de gosto puro. Não se tem de sim-
patizar minimamente com a existência da coisa, mas, pelo contrário, tem de se ser comple-
tamente indiferente a esse respeito para, em matéria de gosto, desempenhar o papel de juiz.
Esta proposição, que é de importância primordial, não pode ser cabalmente explicada a
não ser contrapondo ao puro prazer desinteressado do juízo de gosto aquele juízo que está
aliado a algum interesse.
Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, 1790, trad. adaptada de António Marques et al., § 2

Interpretação
1. O que é o interesse e o que ele envolve, segundo Kant?
2. O que é preciso, segundo Kant, para dizer que algo é belo e provar que se tem
gosto?
3. Por que razão pensa Kant que «o juízo sobre a beleza ao qual se mistura o míni-
mo interesse é muito faccioso e não é um juízo de gosto puro»?

Discussão
4. Será que há juízos de gosto puros? Justifique e dê exemplos.
5. Kant defende que tudo o que interessa para julgar algo belo é a mera represen-
tação e não a existência real dos objectos. Concorda? Porquê?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Texto 27

A Atitude Estética
Jerome Stolnitz
[…] Em parte alguma a percepção é exclusivamente «prática». Por vezes, prestamos
atenção a uma coisa simplesmente para desfrutar do seu aspecto visual, ou da forma como
nos soa, ou como se sente ao tacto. Esta é a atitude «estética» da percepção. Encontra-se
onde quer que as pessoas se interessem por uma peça de teatro, por um romance, ou ouçam
atentamente uma obra musical. [...]
Definirei «a atitude estética» como «a atenção e contemplação desinteressadas e com-
placentes de qualquer objecto da consciência apenas em função de si mesmo». [...]
São muitos os tipos de «interesse» que são excluídos do estético. Um deles é o interesse
em possuir uma obra de arte por orgulho ou prestígio. É frequente um coleccionador de
livros interessar-se exclusivamente pela raridade e valor comercial de um manuscrito
antigo, ignorando o seu valor como obra literária. (Há coleccionadores de livros que nunca
leram os livros que têm!) Outro interesse não estético é o interesse «cognitivo», isto é, o
interesse em obter conhecimento acerca de um objecto. A um meteorologista não interessa
a aparência visual de uma impressionante formação nebulosa, mas as causas que a geraram.
Analogamente, o interesse que o sociólogo ou o historiador têm por uma obra de arte [...]
é cognitivo.
[...] A atitude estética «isola» o objecto e concentra-se nele: a «aparência» das rochas, o
som do mar, as cores da pintura. Por isso, o objecto não é visto de maneira fragmentária,
ou de passagem, como acontece na percepção «prática», ao usarmos uma caneta para
escrever, por exemplo. Toda a sua natureza e carácter são considerados demoradamente.
Quem compra um quadro apenas para cobrir uma mancha no papel de parede não vê a
pintura como um padrão aprazível de cores e formas. [...]
A palavra «complacentes», que ocorre na definição de «atitude estética», refere-se ao
modo como nos preparamos para reagir ao objecto. [...] Qualquer um pode rejeitar um
romance, por lhe parecer que entra em conflito com as suas crenças morais ou a sua
«maneira de pensar». [...] Não lemos o livro esteticamente, porque interpusemos entre ele
e nós reacções morais, ou outras, que nos são próprias e lhe são estranhas. Isto perturba a
atitude estética. Nesse caso, não podemos dizer que o romance é esteticamente mau, porque
não nos permitimos considerá-lo esteticamente.
[...] A «atenção» estética não significa apenas concentrar-se no objecto e «agir» em
relação a ele. Para apreciarmos completamente o valor específico do objecto, temos de pres-
tar atenção aos seus pormenores, frequentemente complexos e subtis. A atenção perspicaz
a estes pormenores é a discriminação. [...]
Assim, e depois de termos compreendido que a atenção estética é vigilante e vigorosa,
poderemos usar com confiança uma palavra que tem sido aplicada com frequência à expe-
riência estética: «contemplação». De outro modo, haveria o perigo de esta palavra sugerir

20
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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

um olhar impávido e distante que, como vimos, não é consentâneo com os factos da expe-
riência estética. Na realidade, a «contemplação» nada acrescenta de novo à nossa definição,
limitando-se a resumir ideias que já discutimos. Significa que a percepção é dirigida ao
objecto em função de si mesmo, e que o espectador não está preocupado em analisá-lo ou
em fazer perguntas acerca dele. Além disso, a palavra conota uma absorção e interesse
totais, como quando falamos de uma pessoa «perdida em contemplação». [...]
A atitude estética pode ser adoptada relativamente a «qualquer objecto da consciência».
[...]
[A] coisa mais feia da natureza em que consigo pensar neste momento é uma certa rua
de casas miseráveis, onde se realiza um mercado ao ar livre. Se a percorrermos ao princípio
de uma manhã de Domingo, como faço às vezes, encontramo-la conspurcada de palha,
papéis sujos e outros detritos típicos de um mercado. A minha atitude normal é de aversão.
Quero afastar-me dali [...]. Mas, por vezes, verifico que [...] o cenário se distancia abrupta-
mente de mim e se eleva ao plano estético, pelo que posso examiná-lo de maneira muito
impessoal. Quando isso acontece, parece-me que aquilo que estou a apreender tem uma
aparência diferente: tem uma forma e uma coerência que anteriormente lhe faltavam e os
pormenores tornam-se mais claros. Mas [...] não me parece que tenha deixado de ser feio
e se tenha tornado belo. Posso ver o feio esteticamente, mas não posso vê-lo como belo.
Jerome Stolnitz, Estética e Filosofia da Crítica de Arte, 1960, trad. Vítor Silva, pp. 46-59

Interpretação
1. Que exemplos dá o autor para mostrar que a percepção não é exclusivamente
prática?
2. Por que razão pensa Stolnitz que os interesses cognitivos estão excluídos do
estético?
3. Stolnitz pensa que não temos uma atitude estética quando rejeitamos um
romance por entrar em conflito com a nossa maneira de pensar. Porquê?
4. Como caracteriza Stolnitz a atenção desinteressada?
5. Como caracteriza Stolnitz a contemplação estética?
6. Stolnitz defende que podemos ter experiências estéticas acerca de qualquer
objecto. Como é isso possível?

Discussão
7. «Posso ver o feio esteticamente, mas não posso vê-lo como belo.» Concorda?
Porquê?
8. Será que quando apreciamos um objecto de arte nada mais conta a não ser o
que está diante de nós para ser contemplado? Justifique.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Texto 28

O Mito da Atitude Estética


George Dickie
Um dramaturgo a assistir a um ensaio ou a uma actuação fora da cidade com o intuito
de reescrever o guião tem-me sido sugerido como um exemplo em que o espectador está a
assistir à peça [...], mas a assistir de uma maneira interessada. [...] O nosso dramaturgo [...]
tem motivos ulteriores. Além disso, o dramaturgo, diferentemente de um espectador vul-
gar, pode alterar o guião depois da actuação ou durante o ensaio. Mas de que maneira di-
fere a atenção (enquanto algo distinto dos seus motivos e intenções) do nosso dramaturgo
da atenção de um vulgar espectador? O dramaturgo pode gostar ou aborrecer-se com a
actuação, como qualquer espectador. A atenção do dramaturgo pode até variar. Em re-
sumo, os tipos de coisas que podem acontecer com a atenção do dramaturgo não são di-
ferentes das que podem acontecer com a do espectador vulgar, embora as duas tenham
motivos e intenções bem diferentes.
[...]
Sem dúvida que Stolnitz tem historicamente razão quando diz que a noção de atitude
estética desempenhou um papel importante na libertação da teoria estética de uma exces-
siva preocupação com o belo. É fácil ver como a palavra de ordem «Tudo pode tornar-se
num objecto da atitude estética», viria a contribuir para levar a cabo esta libertação. Vale a
pena notar, contudo, que o mesmo objectivo poderia ter sido levado a cabo (e até certo
ponto talvez tenha sido) sublinhando simplesmente que as obras de arte são frequente-
mente feias ou contêm fealdade, ou têm características que dificilmente se incluem na
beleza. É certo que em tempos mais recentes as pessoas têm sido encorajadas a assumir uma
atitude estética em relação à pintura como forma de atenuar os seus preconceitos, por assim
dizer, contra a arte abstracta e a arte não realista. Assim, ainda que a noção de atitude
estética tenha acabado por não ter qualquer valor teórico para a estética, teve valor prático
para a apreciação da arte [...].
George Dickie, «O Mito da Atitude Estética», 1964, trad. Aires Almeida, pp. 31-44

Interpretação
1. Por que razão pensa Dickie que a atenção do dramaturgo não é diferente da
atenção de outro espectador qualquer?
2. Dickie pensa que a noção de atitude estética desempenhou um papel impor-
tante. Qual?
3. Por que razão pensa Dickie que a atitude estética não tem qualquer valor teórico?

Discussão
4. Será que a atitude do dramaturgo é mesmo igual à de qualquer espectador?
Porquê?
5. «Se não há atitude estética, não há experiência estética. E se não há experiên-
cia estética, também não há juízo estético. Logo, não faz sentido distinguir en-
tre juízos estéticos e juízos não estéticos.» Concorda? Porquê?

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

3. A justificação do juízo estético


Eis alguns exemplos de frases que aparentemente exprimem juízos estéticos:

• O quadro P97, de Rui Algarvio, é belo.

• O vale do Douro é monumental.

• Titanic, de James Cameron, é um filme


emocionante.

• O romance Os Maias, de Eça de Queirós,


é uma obra-prima.

• Liverpool é uma cidade feia.

O principal problema que os filósofos cos-


tumam discutir acerca deste tipo de juízos é a
sua justificação. Quando uma pessoa afirma que
algo é belo, que tipo de razões apresenta para
justificar o que afirma? O que nos faz dizer que
algo é belo? Na verdade, este não é um pro-
P97 (2006), de Rui Algarvio (n.1973). Que tipo de justificação
blema que ocupe apenas os filósofos. Ouvimos damos para juízos como «Este quadro é belo»?
muitas vezes uma pessoa dizer que algo é belo
(ou feio) e, surpreendidos, queremos saber por-
quê. Por que razão algumas pessoas acham bonitas as canções do Tony Carreira e outras
não? Será que as pessoas estão todas a falar da mesma coisa quando usam a palavra
«belo»? Será que todas as opiniões acerca do que é ou não é belo são correctas? Será que
quando afirmamos que uma pintura é bela estamos a referir algo que está realmente na
pintura, ou é apenas uma maneira de manifestar os nossos sentimentos ao ver a pintura?
Entre os filósofos, este é conhecido como o problema da justificação do juízo estético.
Em termos mais populares costuma-se formular através da seguinte pergunta:

A beleza está nas coisas ou nos olhos de quem a vê?

Há duas teorias rivais que procuram responder a esse problema: o subjectivismo esté-
tico e o objectivismo estético.

Subjectivismo estético
Para simplificar, pensemos apenas no caso particular do chamado «juízo do belo» – um
dos vários juízos estéticos. O subjectivismo estético é a perspectiva acerca da justificação
do juízo estético que defende basicamente que a beleza resulta do que sentimos quando
observamos as coisas; ou seja, a beleza está nos olhos de quem a vê.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

O subjectivismo estético defende que os objectos são belos em virtude do que


sentimos quando os percepcionamos.

Percepcionar um objecto é obter informação dele através dos sentidos.

Achar algo bonito ou feio é, segundo esta teoria, uma questão de gostos ou preferên-
cias pessoais. Um dos heterónimos de Fernando Pessoa resume bem esta perspectiva
nos seguintes versos:

A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe,


Que eu dou às coisas em troca do agrado que elas me dão.
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, XXVI, 1912

Assim, os objectos são belos ou feios de acordo com os sentimentos de prazer ou des-
prazer que fazem surgir em nós. Os juízos estéticos não são, neste caso, objectivos. Ou
seja, o que está em causa não são as propriedades dos objectos, mas antes os senti-
mentos que tais objectos despertam em nós. Por isso se diz que são juízos de gosto.
Dizer «O Guardador de Rebanhos é belo» é, para o subjectivista, o mesmo que dizer
«Gosto d’O Guardador de Rebanhos». De maneira que se alguém perguntar a um subjec-
tivista que razões tem para dizer que O Guardador de Rebanhos é belo, ele dirá que sente
prazer ao lê-lo. Ou, mais simplesmente, que gosta desse poema.

Subjectivismo radical
Uma forma extrema de subjectivismo defende que, na medida em que traduzem aquilo
que cada um sente, os gostos não se discutem. Mas esta forma de subjectivismo levanta
quatro problemas óbvios. Vejamos quais.

1. Contraria o modo como falamos. De acordo com o subjectivismo radical, as frases


«X é belo» e «X não é belo» só seriam a negação uma da outra se fossem proferidas pela
mesma pessoa. Proferidas por pessoas diferentes – digamos, pela Rita e pelo Carlos,
respectivamente – apenas querem dizer «A Rita gosta de X» e «O Carlos não gosta de X»;
assim, ambas podem ser verdadeiras, não havendo qualquer contradição. Ora, isto não
está de acordo com o modo como falamos.

2. Torna impossível a comunicação. Se belo for simplesmente aquilo que cada um


acha, então quando utilizamos a palavra «belo» numa conversa não chegamos verdadeira-
mente a comunicar: a palavra tem um significado diferente para cada pessoa, o que torna
impossível a comunicação.

3.Torna os juízos estéticos autobiográficos. No seguimento da objecção anterior, se


o subjectivista radical tiver razão, os juízos estéticos são autobiográficos: quando uma
pessoa diz «X é belo» não está, em rigor, a falar de X, mas de si própria e das suas prefe-
rências. Porém, não é assim que as coisas são geralmente entendidas.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

4. Torna irracional a discussão estética. Esta forma de subjectivismo parece esvaziar


grande parte das discussões estéticas, admitindo implicitamente que qualquer debate
sobre o valor estético das obras de arte é irracional. Mas tanto as conversas mais banais
como a autoridade que reconhecemos aos críticos de arte e especialistas parecem con-
tradizer tal coisa.

Contudo, há filósofos subjectivistas que não defendem esta forma radical de subjecti-
vismo. É o caso de Hume e Kant. Estes filósofos procuram evitar as objecções anteriores
e resolver o chamado «problema do gosto».

O problema do gosto é a questão de saber como conciliar o subjectivismo com a


existência de critérios comuns de avaliação.

A resposta de Kant é que os juízos de gosto, apesar de subjectivos, são universais – algo
que não é fácil de compreender. Vejamos antes a resposta de outro dos grandes defen-
sores do subjectivismo: David Hume (1711-1776).

Hume e o padrão do gosto


Como empirista adepto do senso comum, Hume limitou-se a
observar o que se passava realmente com as pessoas em matéria
de gostos. Ora, aquilo que podemos observar é, alega Hume, a
enorme diversidade e desacordo entre pessoas e culturas. Mes-
mo quando parecem concordar em aspectos gerais, acabam por
discordar nos casos particulares, contrariamente ao que se passa
nas questões da ciência. Este facto só pode ser adequadamente
explicado se reconhecermos que o sentimento é a base do juízo
estético. E é isso mesmo que as pessoas invocam ao apreciar uma
paisagem, um livro ou uma pintura.
Todavia, isso é compatível com a existência de princípios gerais do
gosto, pois Hume pensa que há um padrão do gosto, ao qual as pes-
soas aderem. Ao defender a existência do padrão do gosto, Hume
oferece um critério geral de justificação dos juízos estéticos, impe-
dindo assim o subjectivismo radical. Mas o que é o padrão do gosto?

O padrão do gosto é conjunto de princípios e «observa-


ções gerais acerca do que tem sido universalmente aceite
como agradável em todos os países e épocas».
O Beijo, (2000), de Auguste Rodin
Os princípios a que Hume se refere não são uma espécie de re- (1840-1917). Esta escultura é conside-
gras a priori do pensamento. Hume defende que os princípios que rada uma grande obra de arte pelas
se descobrem ao observar os gostos das pessoas ao longo dos pessoas de bom gosto. Mas será que
podemos discordar, argumentando que
tempos e em diferentes lugares é que determinam o que é ou não os gostos valem todos o mesmo?
agradável. São tais princípios que nos permitem considerar dis-

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

paratada a opinião das pessoas que acham os romances de Rita Ferro melhores que os
de Eça de Queirós, as canções do Tony Carreira mais belas que as dos Beatles ou as escul-
turas de João Cutileiro mais interessantes que as de Auguste Rodin. É também por isso
que Hume pensa que há acordo generalizado entre as pessoas de bom gosto: nenhuma
pessoa de bom gosto tem dúvidas que Camões é melhor poeta que António Aleixo, Ridley
Scott melhor realizador que Joaquim Leitão e Veneza mais bonita que Aveiro. Isto mostra
que, ao contrário do que defende o subjectivismo radical, nem todos os gostos se equi-
valem e que os gostos não são indiscutíveis. Hume pensa que uma frase como «Gosto
de X» deverá ser correctamente entendida não simplesmente como «X é belo» mas como
«X é belo, de acordo com o padrão do gosto».
Hume defende que o padrão de gosto tem dois aspectos fundamentais:

1. Desenvolve-se de forma semelhante ao longo do tempo. Hume defende que o


padrão de gosto se vai formando ao longo dos tempos, acabando os sentidos e a mente
das diferentes pessoas por revelar um funcionamento semelhante no modo como reagem
a certas propriedades dos objectos. Por exemplo, se produzirmos um som muito agudo
com uma dada frequência e um dado comprimento de onda (a fricção do giz no quadro),
é natural que provoque na mente da maior parte das pessoas uma sensação desagradável.
Hume argumenta que as nossas mentes e os nossos sentidos funcionam de maneira
idêntica – tal como o nosso sistema circulatório ou o nosso aparelho respiratório.

2. A nossa constituição psicológica favorece certos objectos e não outros. Hume


pensa que há uma relação entre certas características da natureza e a nossa constituição
psicológica: certos objectos estão concebidos para agradar e outros para desagradar,
mesmo quando se trata de objectos naturais. O que é fácil de verificar, por exemplo, em
relação aos odores provocados por certos objectos. Assim, Hume defende que as nossas
características psicológicas se harmonizam naturalmente com uns objectos, provocando
em nós prazer, e não se harmonizam com outros, gerando desprazer. Os artistas tentam
criar expressamente objectos que gerem prazer em nós quando os observamos; uns são
mais bem-sucedidos do que outros.

Contudo, isto não explica tudo, pois Hume não pretende afirmar que toda a gente gosta
das mesmas coisas. O facto de haver um padrão de gosto não significa que todas as
pessoas gostem das mesmas coisas. Como explica Hume a divergência de gostos, apesar
da existência do padrão do gosto?
Hume pensa que há duas razões principais:

1. Refinamentos do gosto diferentes. Hume pensa que a sensibilidade dos indiví-


duos, embora funcionando de modo idêntico, varia em qualidade ou refinamento. O refina-
mento do gosto predispõe as pessoas para encarar de forma mais cuidada certos objec-
tos. Por isso se diz, com razão, que há pessoas mais sensíveis e com o gosto mais
cultivado do que outras. Por exemplo, os críticos de arte têm, em princípio, o gosto mais
exercitado, pois tiveram oportunidade de conhecer e comparar muitas obras de arte, o que
lhes permitiu desenvolver a sensibilidade e atingir um grau de refinamento do gosto su-
perior ao de muitas outras pessoas.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

2. Hábitos diferentes. Hume pensa que há opiniões e hábitos característicos de certas


idades e de certos países que geram também alguma diversidade no gosto, o que nos
impede de julgar os objectos em condições ideais. Ou seja, os preconceitos e modas de
determinadas idades e de certos países influenciam o gosto. Isso explica o sucesso rela-
tivo de algumas obras. Sucesso que é frequentemente passageiro ou demasiado locali-
zado. Daí que o padrão de gosto nunca deva ser identificado com o gosto da maioria das
pessoas num determinado momento. Não é com sondagens de opinião que se determina
o padrão do gosto. O que conta é o que as pessoas costumam gostar em diferentes épo-
cas e lugares, permanecendo como fonte de prazer.

Revisão
1. Em que consiste o problema da justificação do juízo estético?
2. Qual é a tese central do subjectivismo estético?
3. Por que razão se diz que os juízos estéticos são, para os subjectivistas, juízos
de gosto?
4. Qual é a tese que define a posição dos subjectivistas radicais?
5. Explique a objecção ao subjectivismo radical segundo a qual este não tem
em conta a forma como realmente falamos quando usamos a expressão «X
é belo».
6. Explique a objecção ao subjectivismo radical segundo a qual esta teoria
implica que os juízos estéticos são autobiográficos.
7. Explique a objecção ao subjectivismo radical segundo a qual esta teoria torna
impossível a comunicação.
8. Explique a objecção ao subjectivismo radical segundo a qual esta teoria torna
qualquer discussão estética racionalmente vazia.
9. Em que consiste o chamado «problema do gosto»?
10. Em que se baseia Hume para defender o subjectivismo estético?
11. Em que consiste o padrão de gosto?
12. Como usa Hume a noção de padrão do gosto para responder ao problema do
gosto?
13. Como justifica Hume a existência do padrão do gosto?
14. Nem todas as pessoas gostam das mesmas coisas, apesar do padrão do
gosto. Como explica Hume este facto?
15. O que é o refinamento do gosto?
16. Por que razão pensa Hume que nem todos os gostos valem o mesmo?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Discussão
17. Será que a beleza é apenas uma questão de gosto? Justifique.
16. Discuta a seguinte afirmação: «Gostos não se discutem.»
19. Será que a existência do padrão do gosto nos obriga a ser conservadores e
conformistas? Justifique.
20. O seguinte caso real começou a ser noticiado no Verão de 2001:
Na cidade de Viana do Castelo há um edifício de habitação junto ao rio Lima
que se destaca do resto do casario pela sua altura. O edifício, conhecido como
Edifício Coutinho, é relativamente novo e é habitado por cerca de trezentas
pessoas. Trata-se de um edifício referido por muitas pessoas como uma
«aberração estética». Elas consideram que o edifício não se harmoniza com o
resto do casario. Mas há quem pense que não; que o edifício, embora seja
mais alto do que os outros, até nem é feio e fica ali muito bem. Acrescentam
que casos assim há-os em muitas cidades sem que alguém se incomode. En-
tre os que assim pensam estão, naturalmente, os próprios moradores.
Entretanto, a polémica agudizou-se quando o Presidente da Câmara decla-
rou que o edifício iria ser demolido, estando previstos cerca de vinte e cinco
milhões de euros para compensar adequadamente os actuais moradores.
Os moradores não aceitam e têm-se manifestado firmemente contra aquilo
que consideram um atentado ao direito de propriedade. Um dos moradores
argumentou perante as câmaras de televisão: «O que aqui está em causa é
um conflito entre duas coisas: os direitos dos proprietários e o valor estético
do edifício. Ora, os direitos de propriedade são algo de objectivo e que até
é protegido por lei, ao passo que o valor estético do edifício é algo de sub-
jectivo. Afinal o que é subjectivo, nas decisões de quem manda nesta cida-
de, prevalece sobre o que é objectivo?»
1) Concorda com o argumento deste morador? Porquê?
2) Entretanto, o Presidente da Câmara propôs a realização de um referendo
à população, coisa que os moradores rejeitam. Caso o referendo fosse
realizado (o que não irá acontecer, pois o tribunal deu razão aos moradores)
e a maioria das pessoas achassem o edifício digno de ser demolido, consi-
dera que os moradores ficariam sem argumentos? Porquê?

Objectivismo estético
A teoria oposta ao subjectivismo estético é o objectivismo. Chama-se por vezes «rea-
lismo estético» a esta teoria, mas esta designação é enganadora.
O objectivismo estético defende que os objectos são belos em virtude das suas
propriedades intrínsecas e independentemente do que sentimos quando os obser-
vamos.
As propriedades intrínsecas dos objectos são independentes dos sentimentos ou
das reacções de quem os observa.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Por exemplo, o tamanho é uma propriedade intrínseca de um morango: o tamanho do


morango é independente do modo como o vemos ou saboreamos. Mas o sabor dos mo-
rangos não depende apenas dos morangos: depende também de quem os come. Pessoas
com palatos diferentes podem ter diferentes reacções aos morangos, e há até pessoas
que são alérgicas aos morangos.
Os objectivistas não negam que temos certos sentimentos estéticos perante a arte;
nem afirmam que tais sentimentos estão nas próprias obras de arte, o que seria absurdo.
Mas defendem que os nossos sentimentos estéticos são causados por certas caracterís-
ticas intrínsecas dos objectos.
Assim, o objectivista defende que quando dizemos que um objecto é belo, o que sen-
timos não é determinante. Quer o objecto nos agrade quer não, as propriedades que estão
na base da beleza existem mesmo nele; nós é que podemos ou não ser sensíveis a tais
propriedades. A beleza não depende, portanto, dos gostos pessoais: um objecto não é bo-
nito ou feio consoante nos agrada ou não. Ainda que as coisas belas nos agradem, não é
por isso que são belas. Acontece apenas que há certas características intrínsecas a esses
objectos que provocam em nós uma sensação agradável. Em termos populares, isto equi-
vale a dizer que a beleza está nas coisas e não nos olhos de quem as vê.
O objectivista argumenta que se a beleza (e a fealdade) dependesse apenas dos nos-
sos gostos pessoais e não das características dos objectos, seria muito estranho e inexpli-
cável haver objectos que quase todas as pessoas acham bonitos (ou feios). Haverá alguém
que ponha em causa a beleza do Ave Maria, de Schubert?
O objectivista admite que ajuizar um objecto como belo não implica que o objecto seja
considerado belo por todas as pessoas que o avaliem esteticamente; pode haver quem
não o considere belo. Mas isso, pensa o objectivista, apenas significa que essas pessoas
fazem juízos errados porque partem de uma deficiente percepção do objecto. Também um
daltónico faz juízos errados se disser que é azul aquilo que as outras pessoas dizem ser
verde; o problema está apenas nele e não nos outros, pois algo se passa que o impede
de percepcionar correctamente as cores.
Além disso, o objectivista argumenta que é falacioso concluir que as coisas não são
em si belas só porque não há acordo entre as pessoas que as
observam. É como dizer que no tempo de Galileu o movimento da
Terra era subjectivo só porque as pessoas discordavam acerca
disso. Tem, pois, de haver critérios objectivos que permitam justi-
ficar a verdade dos juízos estéticos. Afinal de contas, até mesmo
entre os cientistas há desacordo. E não é por isso que deixa de
haver critérios objectivos na ciência.

A influência do objectivismo estético


O facto de o objectivismo defender a existência de critérios
objectivos acerca dos juízos estéticos torna-o atraente, pois per-
São Jerónimo de Caravaggio (1571-
mite resolver muitas das discussões aparentemente insolúveis -1610). Esta pintura segue os cânones
sobre a arte e a beleza. Pelo menos, permite colocar em termos artísticos em vigor na época em que foi
mais racionais algumas dessas discussões. Sem critérios objecti- criada: tanto na distribuição das formas,
como no contraste entre claro e escuro,
vos tudo poderia ser afirmado e, nesse caso, não valeria a pena
nas cores usadas e no tema tratado.
perder tempo com discussões.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Até ao séc. XVIII a maior parte dos filósofos identificavam-se naturalmente com o objec-
tivismo estético. Acreditavam que havia critérios ou regras gerais acerca das caracterís-
ticas que os objectos tinham de possuir para terem valor estético. E até os artistas tinham
em consideração essas regras – a que se dava o nome de «cânones» – quando criavam
as suas obras. Assim, era a própria arte a conformar-se aos princípios do objectivismo es-
tético. Não admira, pois, que o desacordo entre os críticos de arte da altura fosse bastante
reduzido. O objectivismo parecia ser um ponto de vista perfeitamente natural e bastante
razoável para a época.
Contudo, a arte contemporânea é muito diferente da arte dos séculos anteriores. Mesmo
assim, o objectivismo estético não é uma doutrina historicamente ultrapassada. Continua ainda
a ser defendido por filósofos contemporâneos, como Monroe Beardsley (1915-1985).

Beardsley e as propriedades estéticas


Beardsley diz-nos exactamente quais são os critérios objectivos para ajuizar a beleza
– ou seja, quais são as características dos objectos, em virtude das quais dizemos que são
belos. Essas características são as chamadas propriedades estéticas dos objectos, as
quais existem em maior ou menor grau nas coisas. Assim, as coisas podem ter diferentes
graus de beleza e, portanto, diferente valor estético. Até ao séc. XVIII, as principais proprie-
dades estéticas estavam devidamente identificadas:

• Unidade • Equilíbrio • Perfeição


• Harmonia • Diversidade
Segundo Beardsley, há um conjunto de características capazes «de nos proporcionar
experiências estéticas» que costumam funcionar em conjunto e em diferentes combina-
ções. Combinações que resultam bem em certos casos e mal noutros.
As características estéticas podem ser de dois tipos: específicas e gerais, sendo que
há três características gerais. As específicas diferem de arte para arte: na pintura, por
exemplo, há um certo tipo de características específicas, na música há outras e, na litera-
tura, outras.

Características estéticas

Específicas
Gerais
Relativas às diferentes
Encontram-se em qualquer
formas de arte ou a certo
tipo de objectos.
tipo de objectos.

1. Unidade
Variam consoante
2. Complexidade
os casos.
3. Intensidade

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Elogiar um filme porque não tem momentos mortos ou cenas despropositadas, é elo-
giá-lo pela sua unidade. Elogiar uma peça musical porque utiliza vários ritmos, instrumen-
tos e tonalidades é elogiar a sua complexidade. Censurar uma pintura pela falta de con-
traste, é censurá-la por falta de intensidade.
Uma obra de arte pode exibir um conjunto de características específicas e gerais que
mais nenhuma exibe. As combinações de características específicas e gerais são tantas e
em graus tão diferentes que a diversidade é grande e quase inevitável. É por isso que os
juízos dos críticos de arte não se limitam a declarar simplesmente que um objecto é belo
(ou não é belo), mas a explicar por que razão esses objectos são belos (ou não).
A teoria objectivista de Beardsley tem o mérito de procurar uma justificação racional
para os juízos estéticos. Mas não elimina desacordos: continua a haver pessoas a ver uni-
dade onde outros notam a sua falta ou que vêem intensidade onde outros vêem apenas
um enorme vazio. A resposta de Beardsley para isso é que não basta apreciar as coisas
de qualquer maneira. Nem todos os pontos de vista são iguais. Uma obra de arte, por
exemplo, pode ter muitas outras propriedades além das estéticas. Mas para formarmos
um juízo estético sobre a obra há que olhar para ela sob certas condições; as obras de arte
devem ser observadas em condições ideais. O que quer isso dizer?
Quer dizer que Beardsley defende que a obra de arte deve ser avaliada do ponto de
vista correcto: o ponto de vista estético – uma noção semelhante à de atitude estética.
Uma mesma obra pode ser apreciada do ponto de vista político, histórico, moral, etc. As
opiniões divergem porque as obras nem sempre são avaliadas do mesmo ponto de vista.
Há quem as avalie do ponto de vista moral, por exemplo. Mas as propriedades morais que
eventualmente uma obra tenha são irrelevantes para avaliar esteticamente essa obra.
É, pois, possível avaliar esteticamente uma obra em termos objectivos, mas é preciso
contar com as dificuldades decorrentes do facto de muitas pessoas assumirem pontos de
vista errados ou de serem insensíveis à beleza.

Que tipo de justificação têm os juízos estéticos?

SUBJECTIVISMO OBJECTIVISMO
A beleza depende do que A beleza resulta de certas
sentimos quando observamos propriedades dos objectos: há
os objectos: a beleza é uma critérios de beleza objectivos.
questão de gosto. (BEARDSLEY)

SUBJECTIVISMO MODERADO
SUBJECTIVISMO RADICAL
A beleza é uma questão de gosto, mas
Os gostos valem todos
nem todos os gostos valem o mesmo,
o mesmo: gostos não
pois existe o padrão do gosto, que inclui
se discutem.
princípois gerais de justificação. (HUME)

31
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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Revisão
1. Qual é a tese central do objectivismo estético?
2. Que papel pensam os objectivistas que os gostos pessoais desempenham
na formação dos juízos estéticos?
3. Exponha o argumento central dos objectivistas a favor da sua posição.
4. Que vantagens se podem encontrar na existência de critérios objectivos de
beleza?
5. Como explicam os objectivistas a existência de desacordos entre as pessoas
acerca da beleza ou fealdade?
6. Por que razão o objectivismo parecia um ponto de vista natural para os filóso-
fos até ao séc. XVIII?
7. Quais são, segundo Beardsley, as propriedades estéticas gerais?
8. Beardsley pensa que, para formar um juízo estético de uma determinada
obra, é preciso observá-la do ponto de vista correcto. O que significa isso?
9. Como explica Beardsley o facto de os juízos sobre a mesma obra serem fre-
quentemente divergentes?
10. Beardsley conta o seguinte caso: quando o presidente de uma conhecida edi-
tora israelita recusou publicar em Israel o romance Exodus, do escritor Leon
Uris, disse: «Se é para ser lido como história, é grosseiro. Se é para ser lido
como romance, é banal». O que se pode concluir daqui, na perspectiva de
Beardsley?

Discussão
11. Será que a beleza está mesmo nos objectos? Justifique.
12. Um objecto pode ser bom do ponto de vista estético e mau do ponto de vista
moral, sugere Beardsley. Concorda? Porquê?
13. Um objecto pode ser bom do ponto de vista estético e mau do ponto de vista
cognitivo, sugere Beardsley. Concorda? Porquê?
14. Concorda que há pessoas que são sensíveis à beleza e outras não, como os
objectivistas defendem? Porquê?

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Texto 29

O Padrão do Gosto
David Hume
[...] Mas na verdade a dificuldade de encontrar o padrão do gosto mesmo em casos par-
ticulares não é tão grande como se pensa. Embora especulativamente possamos admitir um
certo critério na ciência e negá-lo no sentimento, na prática é muito mais difícil avaliar a
questão no primeiro caso do que no segundo. As teorias da abstracta filosofia e os sistemas
da profunda teologia dominam uma época, mas no período seguinte são totalmente desa-
creditados – o seu absurdo foi detectado. Outras teorias e sistemas ocupam o seu lugar, que
uma vez mais dão lugar aos seus sucessores. E nada se conhece que esteja mais sujeito às
revoluções do acaso e da moda do que essas pretensas decisões da ciência. Não se passa o
mesmo com as belezas da eloquência e da poesia. Há a certeza de que, após algum tempo,
as justas expressões da paixão e da natureza conquistam o aplauso público, mantendo-o
para sempre. […]
Embora as pessoas com gosto refinado sejam raras, facil-
mente as distinguimos em sociedade pela solidez do seu enten-
dimento e pela superioridade das suas faculdades relativamente
ao resto da humanidade. O ascendente que adquirem faz preva-
lecer a viva aprovação com que acolhem quaisquer obras de
génio e torna-a geralmente predominante. Entregues a si pró-
prios, muitos homens têm apenas uma vaga e duvidosa
percepção da beleza, mas ainda assim são capazes de se deleitar
com qualquer obra de qualidade que se lhes aponte. Todo
aquele que se converte à admiração do verdadeiro poeta ou ora-
dor é a causa de uma nova conversão. E embora os preconceitos
possam prevalecer durante algum tempo, nunca se unem para
rivalizar com o verdadeiro génio – acabam por ceder perante a
força da natureza e o justo sentimento. Assim, embora uma
nação civilizada possa enganar-se facilmente ao escolher o seu
filósofo de eleição, nunca erra prolongadamente na sua afeição
por um autor épico ou trágico favorito.
Mas apesar dos nossos esforços em fixar um padrão do
gosto e em reconciliar as discordantes impressões das pessoas,
restam ainda duas fontes de diversidade, as quais não são sufi- David Hume Tower, em Salisbury
Crags (Escócia). Alguns críticos deste con-
cientes para eliminar todas as fronteiras entre beleza e deformi- testado edifício disseram que o filósofo esco-
dade, embora sirvam frequentemente para produzir diferenças cês se revirou na sepultura ao saber que de-
ram o seu nome a uma torre que ofende o
no grau de aprovação ou censura. Uma reside nas diferenças de bom gosto. Como sabemos se têm razão?
humor de cada pessoa; a outra nos costumes e opiniões pró-
prios da nossa época e do nosso país. Os princípios gerais do gosto são uniformes na na-

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

tureza humana: sempre que as pessoas divergem nos seus gostos, pode-se geralmente
apontar algum defeito ou perversão nas suas faculdades, que tem origem ou no pre-
conceito, ou na falta de prática, ou na falta de sensibilidade. E há assim boas razões para
aprovar uns gostos e condenar outros. Mas onde quer que haja tal diversidade, a qual se
mostre completamente irrepreensível, tanto na estrutura interna como na situação externa,
deixa também de haver lugar para dar preferência a um gosto em detrimento do outro;
nesse caso, uma certa diversidade no juízo é inevitável, e é em vão que procuramos um
padrão que permita reconciliar os sentimentos contrários.
David Hume, «Do Padrão do Gosto», 1757, trad. adaptada de João Paulo Monteiro et al. §§ 26-28

Interpretação
1. «A dificuldade de encontrar o padrão do gosto mesmo em casos particulares
não é tão grande como se pensa», afirma Hume. Porquê?
2. Quais são, segundo Hume, as duas fontes de diversidade de opiniões?
3. Em que casos a diversidade no juízo é, segundo Hume, inevitável?

Discussão
4. «Embora as pessoas com gosto delicado sejam raras, facilmente as distin-
guimos em sociedade pela solidez do seu entendimento e pela superioridade
das suas faculdades sobre o resto da humanidade.» Concorda? Porquê?
5. «Há pessoas que têm bom gosto e outras que têm mau gosto.» Concorda?
Porquê?

Texto 30

Razões Objectivas
Monroe Beardsley
O método afectivo de avaliação crítica consiste em ajuizar a obra pelos seus efeitos psico-
lógicos, ou pelos efeitos psicológicos prováveis, sobre o próprio crítico ou outros. Como
mais adiante se tornará patente, não considero irrelevantes as razões afectivas para a avalia-
ção dos objectos estéticos [...] Neste momento, apenas defenderei que as razões afectivas, só
por si, são inadequadas, porque não são informativas em dois aspectos importantes.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

Primeiro, se alguém afirma que ouviu o andamento lento do Quarteto de Cordas em Mi


Bemol Maior (Op. 127), de Beethoven, e que lhe deu «prazer», ou nos adverte que nos daria
prazer, penso que deveríamos considerar esta advertência uma resposta fraca a esta grande
música. E, contudo, num sentido muito amplo e vago é verdade que nos dá prazer, tal como
os amendoins salgados ou um mergulho em água fresca dão prazer. Somos, assim, levados
a perguntar que tipo de prazer nos dá e como difere esse prazer de outros, se é que assim
pode ser chamado, e como obtém a sua qualidade única precisamente a partir dessas dife-
renças. E esta linha de investigação levar-nos-ia ao segundo aspecto. Pois uma afirmação
afectiva informa-nos do efeito da obra, mas não identifica as características da obra que
causam esse efeito. Poderíamos ainda perguntar, por outras palavras, o que há de prazen-
teiro nesta música que está ausente noutra música. Esta linha de investigação seria paralela
à primeira, uma vez que nos conduziria a discriminar este tipo de prazer de outros que têm
diferentes causas e objectos.
As mesmas duas questões poderiam ser levan-
tadas acerca da noção geral que parece estar im-
plícita nas outras razões afectivas: a obra é boa se
conduz a uma forte reacção emocional de um
certo tipo. Mas de que modo difere a reacção
emocional das fortes reacções emocionais gera-
das por telegramas anunciando mortes, por sus-
tos de morte em carros descontrolados, pela
doença grave de um filho, ou por um pedido de
casamento? Há certamente uma diferença im-
portante que a explicação da reacção emocional
tem de ter em conta para ser completa. O que há
no objecto estético que causa a reacção emocio-
nal? Talvez seja alguma qualidade específica
intensa, na qual a nossa atenção está centrada
quando estamos perante a obra. De facto, alguns
dos termos afectivos são [...] muitas vezes enga-
Sem título (2006), de Carlos Pinheiro (n. 1981). Esta pintu-
nadores, pois são realmente sinónimos de termos ra está bem organizada e tem um estilo internamente coe-
descritivos: querem dizer que o objecto tem cer- rente, pelo que tem unidade; é subtil e imaginativa, pelo que
tem complexidade; é irónica e misteriosa, pelo que tem inten-
tas qualidades específicas num grau de intensi- sidade. Logo, de acordo com Berdsley, tem objectivamente
dade apreciável. E nesse caso, é claro que a razão valor estético.
já não é afectiva, mas objectiva.
[...]
Chamo «objectiva» a uma razão se refere alguma característica – isto é, alguma quali-
dade ou relação interna, ou conjunto de qualidades e relações – que faz parte da própria
obra, ou a alguma relação de significado entre a obra e o mundo. Em síntese, sempre que
os juízos críticos apresentam como razões afirmações descritivas ou interpretativas, essas
razões devem ser consideradas objectivas. [...]

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Mesmo que agora nos confinemos às razões objectivas, continuamos a dispor de uma
ampla diversidade, pelo que é natural perguntar se poderão fazer-se mais subdivisões.
Penso que se inspeccionarmos bem as razões presentes nos juízos críticos, podemos inseri-
-las, sem grande dificuldade, em três grupos principais. Em primeiro lugar, há razões que
parecem ser suportadas pelo grau de unidade ou falta de unidade da obra:

... é bem organizada (ou desorganizada).


... é formalmente perfeita (ou imperfeita).
... tem uma estrutura e um estilo internamente coerentes (ou incoerentes).

Em segundo lugar, há as razões que parecem apoiar-se no grau de complexidade ou sim-


plicidade da obra:

... é desenvolvida em larga escala.


... é rica em contrastes (ou falta-lhe diversidade e é repetitiva).
... é subtil e imaginativa (ou grosseira).

Em terceiro lugar, há razões que parecem apoiar-se na intensidade ou falta de intensi-


dade das qualidades humanas específicas presentes na obra:

... é cheia de vitalidade (ou apagada).


... é poderosa e vívida (ou fraca e deslavada).
... é bela (ou feia).
... é terna, irónica, trágica, graciosa, delicada, profundamente cómica.

Monroe Beardsley, Estética, 1958, trad. de Aires Almeida, pp. 457-466

Interpretação
1. Em que consiste, segundo Beardsley, o chamado método afectivo de avaliação
crítica?
2. Beardsley pensa que as razões afectivas são, só por si, inadequadas. Porquê?
3. Por que razão pensa Beardsley que não adianta muito dizer que o referido
Quarteto de Cordas, de Beethoven, nos dá prazer?
4. Por que razão pensa Beardsley que dizer que uma obra é boa porque conduz a
uma forte reacção emocional é, só por si, pouco importante?
5. Como caracteriza Beardsley uma razão objectiva?
6. Dê um exemplo de um juízo crítico que, segundo Beardsley, refira a unidade de
uma obra.

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A experiência e o juízo estéticos Capítulo 12

7. Dê um exemplo de um juízo crítico que, segundo Beardsley, refira a complexi-


dade de uma obra.
8. Dê um exemplo de um juízo crítico que, segundo Beardsley, refira a intensida-
de de uma obra.

Discussão
9. Será realmente possível saber se uma obra tem unidade ou complexidade ou
intensidade? Porquê?

Estudo complementar
Almeida, Aires e Murcho, Desidério (2006) «Estética» in Textos e Problemas de Filo-
sofia. Lisboa: Plátano, Cap. 5.

D’Orey, Carmo (1999) «A Lógica da Avaliação Crítica» in A Exemplificação na Arte.


Lisboa: Gulbenkian, Cap. XI.

Goodman, Nelson (1968) «A Arte e a Compreensão» in Linguagens da Arte. Trad. de


Desidério Murcho e Vítor Moura. Lisboa: Gradiva, 2006, Cap. VI.

Graham, Gordon (1997), «Hume e o Padrão do Gosto» e «Kant e o Belo» in Filosofia


das Artes: Introdução à Estética. Trad. de Carlos Leone. Lisboa: Edições 70, 2001,
Cap. I.

@ Almeida, Aires (2005) «Estética» in Crítica, http://www.criticanarede.com/html/ est_


estetica.html.

@ Goodman, Nelson (1968) «A Função do Sentimento», trad. de Desidério Murcho in


A Arte de Pensar, http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_funcsenti.html.

@ Hospers, John (s.d.) «A Atitude Estética», trad. de Pedro Galvão in A Arte de Pensar,
http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_expestetica.html.

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39-66 2007.04.01 17:29 Página 39

Capítulo 13
A criação artística
e a obra de arte
1. O problema Secções
1. O problema, 39
Neste capítulo vamos estudar a filosofia da
2. Arte e imitação, 40
arte. Um dos problemas mais discutidos nesta
3. Arte e expressão, 46
disciplina é o de saber o que é arte. Este é um
4. Arte e forma, 53
problema que naturalmente nos colocamos
5. A arte pode ser definida? 60
quando nos deparamos com certas pinturas,
esculturas, poemas ou peças musicais. Ao lon-
Textos
go dos tempos, vários filósofos têm procurado 31. A Arte é Imitação, 45
responder a esse problema, propondo diferen- Platão
tes definições de arte. 32. A Arte é Comunicação de Sentimentos, 51
Definir explicitamente a arte implica identifi- Leão Tolstoi
car as características comuns a todos os objec- 33. A Arte é Forma Significante, 58
Clive Bell
tos de arte: as condições necessárias para algo
34. A Arte Não Pode Ser Definida, 63
ser arte; e as características que só esses objec- Morris Weitz
tos têm: as condições suficientes para algo ser
arte. Objectivos
Ao propor uma definição explícita de arte, Compreender o problema da definição de arte.
muitos filósofos procuram saber qual é a sua Compreender e avaliar a teoria da arte como
essência; procuram as características intrínse- imitação.
cas que determinados objectos possuem e os Compreender e avaliar a teoria da arte como
fazem ser arte, permitindo-nos distinguir o que é expressão.
Compreender e avaliar a teoria formalista da arte.
arte do que não é.
Compreender e discutir a teoria de que a arte não
Neste capítulo vamos discutir as seguintes
pode ser definida
respostas à questão de saber o que é a arte:

• A arte é imitação. Conceitos


Imitação, representação, expressão, forma
• A arte é expressão. significante, característica individuadora.
• A arte é forma. Essência, conceito aberto / conceito fechado,
parecença familiar.
Terminaremos com a questão de saber se a
arte pode ser definida.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

2. Arte e imitação
Uma das mais antigas teorias da arte foi defendida pelos filósofos gregos Platão
(c. 427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.). Ambos defendiam que a arte é imitação.
Chama-se teoria da arte como imitação ou mimese a esta teoria. A palavra portuguesa
«mimese» tem origem na palavra grega mimesis, que significa imitação.
Porque pensava que a arte era imitação, Platão encarava a arte de forma negativa, ao
contrário de Aristóteles. Platão achava que qualquer imitação era digna de censura, porque
não nos mostrava a verdade: substituir o modelo original pela sua cópia é o mesmo que
fechar os olhos à verdade. Ainda por cima, pensava que a realidade que os artistas imita-
vam era por sua vez uma pálida imitação da realidade suprema, que só existia para lá do
mundo dos sentidos.
Aristóteles, contudo, pensava que as pessoas podiam aprender com as imitações. Este
filósofo classificou e caracterizou os diferentes tipos de imitação, consoante os meios
utilizados para imitar, as coisas imitadas e os modos de imitação:

• Meios de imitação: linguagem, gesto ou som.

• Coisas imitadas: objectos, pessoas ou acontecimentos.

• Modos de imitação: directa ou descrição narrativa.

Os artistas aceitaram durante séculos a ideia de que toda a arte é imitação. Por isso,
procuravam sempre imitar algo quando criavam as suas obras. A arte era encarada como
um espelho que os artistas colocavam diante das coisas e no qual a natureza se reflectia.
Quanto mais perfeita fosse a imitação, mais valor artístico teria. Zeuxis (464-398 a. C.), um
pintor grego antigo, tornou-se famoso pela perfeição das suas imitações, nomeadamente
ao pintar uvas com um tal realismo que até os pássaros tentavam comê-las.
Esta teoria, apesar de muito antiga, continua a ser muito popular. Ouvimos frequente-
mente opiniões como as seguintes:

• Mas isto é arte? Não vejo nada neste quadro a não ser riscos e manchas de tinta.

• O livro que acabei de ler não é um romance nem é nada, não tem a ver com coisa
alguma.

• Se isto é uma escultura, é uma escultura do quê?

• O filme que acabei de ver é uma grande obra, pois mostra bem a futilidade da so-
ciedade dos anos 80.

A qualquer destas opiniões está subjacente a ideia de que a arte é imitação. As três
primeiras sugerem, directa ou indirectamente, que o quadro, o romance e a escultura não
merecem ser chamados «arte» por não se perceber o que imitam. A última opinião atribui
valor artístico ao filme por apresentar uma imitação fiel de algo, mais precisamente da
sociedade dos anos 80.

40
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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

A tese central dos defensores da teoria da arte como imitação é a seguinte:

• Se X é arte, então imita algo.

Em bom rigor, esta não é uma verdadeira definição, pois apenas se apresenta a con-
dição necessária para X ser arte. Uma definição explícita tem também de apresentar a
condição suficiente (ou condições suficientes). A expressão «se…, então…» indica que o
que vem depois do «então» é uma condição necessária. Se fosse condição necessária e
suficiente, tería de se utilizar a expressão «se, e só se» ou uma expressão análoga. Assim,
a definição afirma que toda a arte imita (que a imitação é condição necessária para que
algo seja arte), mas não afirma que toda a imitação é arte (que a imitação é condição
suficiente para que algo seja arte).
Aristóteles sabia que nem toda a imitação é arte. Por exemplo, não estamos perante
uma obra de arte quando vemos os jovens a imitar os mais velhos. Isto significa que a
imitação não é uma condição suficiente da arte.
Apesar de reconhecerem que há imitações que não são arte, os defensores da teoria
da imitação pensavam que todas as obras de arte tinham de imitar algo. Ou seja, defen-
diam que a imitação era uma condição necessária para que algo fosse arte.

Esta teoria parece ter a seu favor dois aspectos:

1. Adequa-se ao facto incon-


testável de muitas pintu-
ras, esculturas e outras
obras de arte, como pe-
ças de teatro e filmes imi-
tarem algo: paisagens,
pessoas, objectos ou acon-
tecimentos.

2. Oferece um critério rigo-


roso de avaliação, permi-
tindo-nos distinguir facil-
mente as boas das más
obras de arte. Neste sen-
tido, uma obra de arte se-
ria tão boa quanto mais
fiel fosse a imitação.

Mas será que a imitação é Sem Título (2006), óleo sobre tela de António Castelló (n. 1972). De acordo
mesmo uma condição necessá- com a teoria da imitação, a arte é como um espelho que se coloca diante das
ria da arte? coisas.

41
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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Objecções à teoria da imitação


Não é preciso grande reflexão para perceber que, além de não ser suficiente, a imi-
tação também não é condição necessária para algo ser arte. Basta ir a um museu de arte
moderna para encontrar muitos contra-exemplos à teoria de que a arte é imitação. A não
ser que recusemos o estatuto de arte a muitos quadros e esculturas que são geralmente
classificadas como tal, dificilmente poderemos concordar que a imitação é necessária à
arte. Milhares de obras de arte abstracta e de peças de música instrumental, as quais não
imitam seja o que for, refutam a tese de que toda a arte imita algo. Por isso, a imitação não
é uma condição necessária para algo ser arte.
Além disso, as duas vantagens indicadas a favor da teoria da imitação só aparente-
mente o são. Em primeiro lugar, porque do facto de muitas obras de arte imitarem, não
se segue que toda a arte imite. Em segundo lugar, porque se o critério para avaliar as obras
de arte fosse a fidelidade da imitação, então teríamos de concluir que as obras de arte
mais valiosas seriam as fotografias e que qualquer desenho tecnicamente apurado teria
mais valor do que a maior parte das toscas pinturas de Van Gogh. Mas isso é algo que nin-
guém está disposto a aceitar. Logo, a arte não é imitação.

Imitação e representação
Podemos ficar surpreendidos ao descobrir que inteligências tão
penetrantes como as de Platão e Aristóteles se tenham enganado
desta maneira e seja, afinal, tão fácil refutá-los. Mas a verdade é que
a arte do seu tempo não era como a arte dos nossos dias. A teoria
da imitação era plausível naquela época e aplicava-se a praticamente
tudo o que os artistas criavam. Por isso, o que durante muito tempo
as pessoas procuravam na arte era sobretudo a verosimilhança (a
semelhança com o que se passa na realidade). E era isso que acaba-
vam por encontrar, uma vez que os contra-exemplos óbvios só mais
tarde surgiram.
Ainda assim, houve quem não abandonasse completamente a
teoria, procurando melhorá-la, de modo a resistir a contra-exemplos
como os anteriores. Nesse sentido, alguns filósofos argumentaram
que o conceito de imitação tinha de ser substituído pelo conceito
mais abrangente de representação. A imitação é apenas um caso
entre outros de representação: toda a imitação é representação, mas
há representações que não são imitações. Exemplos de representa-
ções que não são imitações são as cinco quinas e o emblema do
YKB 2 (1961), de Yves Klein (1928-
-62). O título deste quadro monocro- Benfica. O primeiro representa Portugal e o segundo o Benfica. Mas
mático (de uma só cor) é a referência nenhum deles imita seja o que for. Dizer que uma coisa A representa
da cor do catálogo do próprio artista. uma coisa B significa simplesmente que A está em vez de B.
Significa Yves Klein Blue n.º 2. Este
quadro representa algo? Assim já se torna possível classificar como arte coisas que a
teoria da imitação excluía. O conceito de representação é mais abran-

42
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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

gente do que o de imitação. Pode até incluir obras de arte abstracta, que reconhecida-
mente não imitam seja o que for. Mesmo que as cores, linhas e manchas das pinturas
abstractas de Kandinsky (ver p. 54) não possam imitar a morte, a vida, a dor ou a alegria,
podem contudo representá-las. Foi isso que o próprio artista afirmou. A tese passa, então,
a ser:

• Se X é arte, então representa algo.

Ainda assim, esta nova versão da teoria não parece imune a contra-exemplos, pois con-
tinua a haver pinturas abstractas que dificilmente se consegue mostrar que representam
algo. O que representam, por exemplo, as pinturas monocromáticas de Yves Klein? E obras
de arquitectura, como a casa da cascata de Frank Lloyd Wright? O mesmo se pode dizer
da música, pelo menos da maior parte da música instrumental. Parece, pois, que a teoria
da representação também acaba por não incluir tudo o que desejaríamos que incluísse
para se tornar aceitável.
Mas o defensor da arte como representação pode ainda melhorar a sua teoria. Pode
alargar o alcance do conceito de representação e dizer que entende por representação
algo ainda menos preciso. Pode dizer que uma obra representa desde que tenha um
assunto qualquer: se uma obra tem um assunto, então representa algo. O facto de qual-
quer obra de arte poder ser interpretada mostra precisamente que todas as obras de arte
têm um assunto e que, portanto, referem algo. Mesmo que o assunto seja a própria obra
ou a arte em geral. Teríamos então a seguinte versão:

• Se X é arte, então pode ser interpretada.

A expressão «pode ser interpretada» tem


aqui o mesmo significado que «é acerca de
algo». À primeira vista, todas as obras de arte
se destinam a ser interpretadas. As pinturas
monocromáticas de Yves Klein podem ser in-
terpretadas como uma crítica à própria arte. Po-
demos dizer que se trata de uma crítica à com-
plexidade da arte e uma defesa da simplicidade
criativa. A teoria da representação parece, pois,
suficientemente abrangente para incluir as
obras de arte moderna. Até objectos como os
ready-made do artista francês Marcel Duchamp
podem ser classificados como arte. Uma obra
como Fonte, de Duchamp, que é afinal um sim-
ples urinol, tem um assunto. O assunto é a pró- Fonte (1917), de Marcel Duchamp (1887-1968). Este ready-
pria noção de arte, que o autor pretende pôr em -made é uma das mais famosas e provocatórias obras de arte
do séc. XX. Ready-made foi o nome dado a objectos vulgares
causa. Já os outros urinóis exactamente iguais de produção industrial que o artista utilizava, limitando-se a
ao de Duchamp não são arte porque não são pegar neles e a exibi-los em galerias e museus.
acerca de algo, nada havendo para interpretar.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Objecções à teoria da representação


Tomemos de novo o exemplo da música. Peças musicais puramente instrumentais
como as Suites Para Violoncelo Solo, de J. S. Bach, não têm aparentemente qualquer
assunto. Também nada parece haver para interpretar em alguma da chamada música repe-
titiva, assumidamente destinada a testar e alargar a capacidade de discriminação auditiva
do ouvinte. O mesmo se passa com algumas pinturas abstractas, concebidas apenas para
provocar em nós um certo tipo de experiências visuais. Os jogos de cores e formas da op
art (arte óptica) procuram simplesmente estimular a nossa percepção visual. Não reque-
rem qualquer interpretação. O mesmo se pode dizer dos arabescos que encontramos em
certas obras de arte decorativa.
Assim, a teoria da representação também não é suficientemente abrangente, pois há
contra-exemplos importantes que não podem deixar de ser levados em conta. Porém, con-
tinua a ser verdade que muita arte imita ou representa algo.

Revisão

1. O que defendem os partidários da teoria da imitação?

2. Por que razão a teoria da imitação não apresenta uma verdadeira definição ex-
plícita de arte?

3. Dê um exemplo de uma imitação que não seja arte.

4. Apresente um contra-exemplo à ideia de que a imitação é uma condição ne-


cessária para que algo seja arte.

5. Por que razão a teoria da arte como imitação foi aceite como verdadeira sem
discussão durante muito tempo?

6. Qual é a diferença entre imitação e representação?

7. Dê um exemplo de uma coisa que represente mas não imite algo.

8. O que ganha o defensor desta teoria ao substituir o conceito de imitação pelo


de representação?

9. Apresente um contra-exemplo à teoria da arte como representação.

10. O partidário da teoria da arte como representação reconhece que o urinol de


Duchamp é arte, mas os urinóis das casas de banho públicas não. Porquê?

11. O que pode constituir um contra-exemplo à teoria segundo a qual todas as


obras de arte são passíveis de interpretação?

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Discussão
12. «Que vaidade a da pintura, que atrai a admiração pela semelhança com coisas
que não despertam por si admiração!», exclama o filósofo francês Blaise Pas-
cal. Concorda? Porquê?
13. Será que a obra O Nascimento de Vénus, de Botticelli (ver p. 77), imita ou re-
presenta mesmo o nascimento de Vénus? Justifique.
14. Há quem defenda que se a arte tivesse de imitar ou representar sempre algo,
o artista teria já deixado de ser criativo. Concorda? Porquê?

Texto 31

A Arte é Imitação
Platão
– Mas vê lá agora que nome vais dar ao seguinte artífice.
– A qual?
– Ao que executa tudo o que cada um dos artífices sabe por si executar.
– É habilidoso e espantoso o homem a que te referes!
– Ainda é cedo para o afirmares [...]. Efectivamente, esse artífice não só é capaz de
executar todos os objectos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres
animados, incluindo a si mesmo, e ainda faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe
no céu e [...] debaixo da terra.
– É um sábio de espantar, esse a que te referes.
– Duvidas? Ora diz-me lá: parece-te que não pode existir, de modo algum, um artífice
desses, ou que, de certo modo, pode existir o autor disso tudo, mas de outro modo não
pode? Ou não te apercebes de que, de certa maneira, tu serias capaz de executar tudo isso?
– E que maneira é essa?
– Não é difícil [...] e é rápida de executar, muito rápida mesmo, se quiseres pegar num
espelho e andar com ele por todo o lado. Rapidamente criarás o Sol e os astros no céu, em
breve criarás a terra, a ti mesmo e os demais seres animados, os utensílios, as plantas e tudo
quanto há pouco foi referido.
– Sim, mas são objectos aparentes, sem existência real.
– Atingiste precisamente o ponto que eu precisava para o meu argumento. Com efeito,
entre esses artífices também conta, julgo eu, o pintor. Não é assim?
– Pois.
– Mas certamente vais dizer-me que o que ele faz não é verdadeiro. Contudo, de certo
modo, o pintor também faz uma cama. Ou não?
– Faz, mas que também é aparente.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

[...]
– [...] Portanto, a arte de pintar está bem longe da verdade. E se, ao que parece, executa
tudo, é pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de
uma aparência. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um car-
pinteiro e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas nem por isso
deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um
carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança que lhe imprimiu de um autêntico
carpinteiro.
– Sem dúvida.
Platão, República, trad. adaptada de Maria Helena da Rocha Pereira, Livro X, 596c-598c

Interpretação
1. Explique como é possível a qualquer pessoa executar todos os objectos que
existem no céu e na terra, de acordo com Platão.
2. Por que razão pensa Platão que «a arte de pintar está bem longe da verdade»?

Discussão
4. «Se for bom, o pintor conseguirá ludibriar as crianças e os homens ignoran-
tes.» Isto mostra, segundo Platão, que a arte não tem valor. Concorda com
Platão? Porquê?

3. Arte e expressão
Vimos que a teoria da arte como imitação encarava a arte como um espelho que se
coloca diante da natureza. A arte estava centrada nos objectos e devia captar correcta-
mente as suas características.
Esta forma de ver as coisas começou a ser posta em causa no final do séc. XVIII e tor-
nou-se mesmo inaceitável para uma grande parte dos artistas do séc. XIX. Uma autêntica
revolução estava em curso. Era a revolução romântica.
Poetas, pintores, romancistas e músicos começaram a utilizar a arte como forma de
expressão das suas experiências individuais. Em vez de mostrarem a natureza, procura-
vam através das suas obras exprimir os seus sentimentos e o seu universo interior. A arte
tornou-se um veículo para exprimir emoções. Deixou de ser um espelho da natureza para
se tornar um espelho das experiências interiores do artista. Os românticos defendiam que
a tentativa de descrever objectivamente a natureza é tarefa da ciência. O interesse da arte

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

reside no interior e não no exterior do sujeito. Segundo os românticos, esta característica


confere mais valor à arte porque consegue mostrar uma realidade que escapa à ciência: a
emoção.
Assim, a ideia de que a arte era imitação deixou de se ajustar ao que muitos artistas
faziam. Em contrapartida, a noção romântica de arte como expressão de sentimentos tor-
nou-se amplamente aceite, sendo partilhada por muitas pessoas. Comentários como os
seguintes pressupõem uma concepção expressivista da natureza da arte:

• Esta canção mexe muito comigo; isto sim, é música.

• Esta peça não é arte porque não consegue emocionar ninguém.

• Essa pintura não tem qualquer valor artístico, pois não transmite nada.

• Este é um poema sem chama, sem qualquer interesse artístico.

Há diferentes versões da teoria da arte como expressão. Uma das mais discutidas é a
do romancista russo Leão Tolstoi (1828-1910). É também essa que iremos discutir aqui.
Num famoso ensaio intitulado O Que é a Arte? Tolstoi escreve que «a arte começa
quando alguém, com o intuito de se unir a outro ou a outros num mesmo sentimento, ex-
pressa esse sentimento através de certas indicações externas». Tolstoi defende que não
há arte se não houver expressão de sentimentos ou se esse sentimento não contagiar
pessoa alguma. Assim, Tolstoi defende que a arte é uma forma de comunicação. Claro que
há formas de comunicação que não são arte como, por exemplo, uma notícia de jornal.
A diferença é que na arte se expressam sentimentos e não outra coisa qualquer. A arte é
um meio de unir as pessoas através desses sentimentos. Eis, pois, a definição de arte
proposta por Tolstoi:

X é arte se, e só se, é expressão de


sentimentos.

Esta é a tese central da teoria expressi-


vista da arte, a que também se chama teoria
da arte como expressão.
O que se entende exactamente por «ex-
pressão»? Tolstoi defende que a expressão en-
volve sete aspectos:

1. O artista tem de sentir emoção. Não pode


haver expressão de sentimentos se o artista não
sentir qualquer emoção.

2. O público tem de sentir emoção. A emo- Cemitério do Mosteiro na Neve (1817–1819), de


ção sentida pelo artista não chega efectivamen- Caspar David Friedrich (1774–1840). Mesmo quando pinta pai-
sagens, o artista romântico serve-se delas para exprimir senti-
te a ser expressa se o público não sentir qual- mentos e revelar o seu mundo interior.
quer emoção.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

3. As emoções do público e do artista têm de ser as mesmas. Dado que a expres-


são é transmissão de sentimentos, as emoções sentidas pelo artista e pelo público têm
de ser as mesmas.

4. Tem de haver autenticidade da parte do artista. Não há verdadeira expressão se


os sentimentos (ou emoções) do artista não forem verdadeiros (ou autênticos). Se o artis-
ta procurar transmitir emoções que não teve, então o público e o artista não partilham
efectivamente as mesmas emoções. Não existe, nesse caso, qualquer união entre o artis-
ta e o público, pelo que também não há arte.

5. O artista tem de ter a intenção de provocar emoções. Imagine-se que, por uma
razão qualquer, a Sandra está triste. Chega a casa e a mãe, vendo que está triste e a
chorar, pergunta-lhe o que se passa. A Sandra conta-lhe o que se passa e a mãe fica tam-
bém triste. Neste caso, a Sandra sentiu uma emoção, expressou-a através do choro, levan-
do a sua mãe a sentir o mesmo. Ninguém diria que isto é arte. Para ser arte, pensa Tolstoi,
o artista tem de provocar nos outros os mesmos sentimentos que teve, mas de forma
intencional. É a intenção expressiva que distingue a arte do que se passou com a Sandra.
A Sandra não contou o que se tinha passado à mãe para que esta ficasse triste, apesar de
ela ter ficado triste.

6. Os sentimentos expressos têm de ser individualizados. Se, por exemplo, o Tiago


escrever um artigo para um jornal a exprimir a sua revolta em relação ao tratamento dado
a muitos imigrantes em Portugal, pode estar a fazê-lo com a intenção de provocar nos
leitores o mesmo sentimento de revolta. Também não diríamos que isso é arte. Tolstoi diria
que não é arte porque o Tiago não está a exprimir sentimentos individuais: limitou-se a
fazer eco do sentimento geral de revolta que muitas pessoas tinham relativamente ao tra-
tamento dado aos imigrantes. Mas o artista não exprime sentimentos gerais – exprime os
seus próprios sentimentos, resultantes das suas experiências individuais.

7. A expressão consiste em clarificar sentimentos. Não basta transmitir intencional-


mente sentimentos individualizados. Afinal, a Sandra podia ter contado o que se passou à
mãe prevendo que ela ia sentir o mesmo. E podia perfeitamente tê-lo feito de forma inten-
cional. Mesmo assim não seria arte. O artista, defende Tolstoi, trabalha os sentimentos,
examina-os e explora-os de maneira a encontrar a forma adequada de os transmitir. Não
se trata de os apresentar tal qual surgem. O que o artista faz é clarificar sentimentos; a
criação artística é um processo de clarificação de sentimentos.

A teoria da arte como expressão tem três vantagens:

1. Explica o conteúdo cognitivo da arte. A noção de clarificação permite explicar por


que razão se diz que a arte nos ensina algo, ou seja, por que razão tem conteúdo cognitivo.
A teoria expressivista permite compreender por que razão a arte é importante para as
pessoas: enquanto a ciência explora o mundo físico e objectivo, o papel da arte é explorar
o mundo subjectivo da emoção. Alegadamente, ambos fazem novas descobertas: o cien-
tista descobre e explica factos acerca do mundo exterior, ao passo que a arte descobre
novas variações emocionais e os seus efeitos.

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

2. Explica a ligação emocional que temos com a arte. Dado que a arte exprime
emoções e sentimentos que são para nós importantes, isso explica a nossa profunda
ligação emocional à arte. A teoria expressivista está também em harmonia com a ideia ge-
neralizada de que para compreender a arte tem de se ser uma pessoa sensível.

3. É muito abrangente. A quantidade de coisas que podem ser abrangidas pela defini-
ção proposta pelos expressivistas é enorme. Qualquer obra, represente ou não algo, pode
sempre exprimir emoções.

Objecções à teoria da expressão


Como vimos, Tolstoi defende que a expressão implica a autenticidade dos sentimentos
do artista. Mas como podemos saber o que o artista realmente sentiu? É possível dizer se
uma dada pintura ou uma dada peça musical são arte ou não independentemente de
sabermos o que os seus autores sentiram. Há obras de arte importantes cujos autores se
desconhecem. Além disso, é simplesmente falso que os actores sintam necessariamente
as emoções que procuram transmitir ao público que os vê representar: um actor de uma
boa peça de teatro ou filme pode perfeitamente exprimir angústia e medo sem se sentir
angustiado nem com medo. Shakespeare, por exemplo, escreveu peças povoadas de per-
sonagens que exprimem sentimentos opostos. Será que Shakespeare teve todos esses
sentimentos ao escrever as suas peças? É pouco provável.
Na primeira quadra do seu poema Autopsicografia (1930), Fernando Pessoa responde
de modo eloquente a estas perguntas, defendendo que o artista não sente realmente o
que quer transmitir aos outros:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Na segunda quadra do mesmo poema, Fernando Pessoa põe também em causa a ideia
de que o artista e o público partilham os mesmos sentimentos:

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que ele não tem.

Ana Karenina é um dos mais importantes romances do próprio Tolstoi, considerado por
muitos uma obra-prima da literatura. Aí somos confrontados com a angústia e o desespero
de Ana que, depois de abandonar o seu dedicado marido para fugir com Vronski, o amante,
deixando para trás os seus filhos, acaba por se atirar para a linha de comboio, morrendo
corroída pelo sentimento de culpa. Ainda que o próprio Tolstoi tenha tido os mesmos sen-

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

timentos, o que é bastante improvável, é falso que os leitores se sintam também culpados
e deseperados como Ana. A sentir alguma coisa, é mais provável que os leitores sintam
pena ou compaixão.
De acordo com a teoria expressivista, a expressão também envolve necessariamente
a intencionalidade: o artista transmite intencionalmente sentimentos. Mas há obras de arte
que não se destinavam sequer a ser publicadas, quanto mais a transmitir intencional-
mente sentimentos. As célebres Cartas Portuguesas que a freira Mariana Alcoforado
escreveu para o seu amante francês não se destinavam a ser publicadas; mas são larga-
mente apreciadas pelo seu valor literário. É certo que foram intencionalmente escritas
para serem lidas pelo seu amante. Pretendiam transmitir sentimentos a pelo menos uma
pessoa. Mas podemos perfeitamente imaginar que a freira só pretendia dar asas à sua
imaginação e que esse amante nem sequer existia, guardando para si, no maior dos se-
gredos, o resultado dos seus devaneios amorosos. Se isso tivesse acontecido e o acaso
nos fizesse descobrir as cartas, elas deixariam de ter interesse literário? Não se vê razão
para lhes recusar o estatuto de obra literária. A intencionalidade na transmissão de senti-
mentos não é, pois, uma condição necessária da arte. É perfeitamente possível haver ar-
tistas cujas obras são criadas sem ter em mente qualquer público.
Vimos também que Tolstoi pensa que o artista clarifica emoções, sendo essa outra das
condições necessárias da arte. Mas basta pensar em muita da música actual para vermos
que isso não é verdade. Não acontece com a música punk, que consiste numa libertação
de energia em estado bruto. E o mesmo se pode dizer de muita arte do séc. XX, que tenta
provocar de forma crua e brutal alguns dos sentimentos mais básicos, como a repulsa, a
fúria ou a cólera, chocando propositadamente as pessoas. Portanto, também não é ver-
dade que a clarificação de emoções é uma condição ne-
cessária da arte.
Será que, ao menos, toda a arte exprime sentimen-
tos? Mas nem isso podemos afirmar. Dificilmente pode-
remos dizer que sentimentos exprime a chamada mú-
sica aleatória do compositor americano John Cage. Na
música aleatória, nem o compositor nem os executan-
tes têm qualquer domínio sobre os sons produzidos,
sendo estes fruto do acaso. E também não se pode
dizer que sentimentos exprime muita da arte abstracta
como, por exemplo, a arte minimalista. Além disso, a
maior parte das obras de arte conceptual procura assu-
midamente transmitir ideias, e não sentimentos.
A teoria da arte como expressão, apesar de mais
abrangente do que a teoria da imitação, não é suficien-
John Cage (1912-1992) foi temente abrangente para incluir muitas das obras que
um dos compositores mais
desconcertantes do séc. XX.
são consideradas arte. Porém, muitas obras de arte são
expressivas.

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Revisão
1. O que defendem os partidários da teoria da arte como expressão?
2. Para Tolstoi a arte é uma forma de comunicação. Porquê?
3. O que distingue a comunicação artística de outras formas de comunicação?
4. Uma obra pode, de acordo com Tolstoi, ser arte se o seu autor não for sincero
nos sentimentos que exprime? Porquê?
5. Os artistas provocam de forma intencional nos outros sentimentos que têm,
pensa Tolstoi. Porquê?
6. Os sentimentos do artista têm de ser individualizados. O que significa isto?
7. O artista clarifica as suas próprias emoções. O que significa isto?
8. Apresente um aspecto a favor da teoria da arte como expressão.
9. Apresente um contra-exemplo à teoria da arte como expressão.

Discussão
10. Há obras de arte colectivas (no cinema são quase todas colectivas) e há artis-
tas que produziram as suas obras sob o efeito de drogas e substâncias aluci-
nogéneas. Para os defensores da arte como expressão, os sentimentos que
os artistas transmitem têm de ser individualizados e intencionalmente trans-
mitidos. Poderá isso acontecer nestes casos? Porquê?

11. Há quem defenda que se a arte fosse apenas transmissão de emoções, a


criatividade do artista ficaria seriamente diminuída. Concorda?

12. Será a arte uma forma de comunicação de sentimentos? Porquê?

Texto 32

A Arte é Comunicação de Sentimentos


Leão Tolstoi
A actividade artística é baseada no facto de uma pessoa, ao receber através da sua
audição ou visão a expressão do sentimento de outra pessoa, ser capaz de ter a experiência
emocional que motivou aquele que a exprime. [...]
É nesta capacidade de as pessoas receberem a expressão do sentimento de outras pes-
soas, e de terem elas próprias esses sentimentos, que a actividade artística se baseia.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

[...]
A arte começa quando alguém com o intuito de unir a si outro ou outros num mesmo
sentimento exprime tal sentimento através de certas indicações externas. [...]
Desde que os espectadores ou ouvintes sejam contagiados pelos mesmos sentimentos
que o autor sentiu, há arte.
[...]
O grau de contágio da arte depende de três condições:

1. Da maior ou menor individualidade do sentimento transmitido;

2. Da maior ou menor clareza com que o sentimento é transmitido;

3. Da sinceridade do artista, isto é, da maior ou menor força com que o próprio artista
sente o que é transmitido.

Quanto mais individualizado é o sentimento transmitido, tanto mais fortemente actua


sobre o receptor; quanto mais individualizado o estado de alma para o qual ele é
transferido, maior prazer obtém o receptor e, consequentemente, com mais prontidão e
força adere a ele.
A clareza da expressão ajuda o contágio porque o receptor, que se mistura na sua
consciência com o autor, ficará tanto mais satisfeito quanto maior for a clareza com que o
sentimento é transmitido, o qual ele julga há muito conhecer e sentir, mas para o qual só
agora encontra expressão.
Mas o grau de contágio aumenta, acima de tudo, com o grau de sinceridade do artista.
Logo que o espectador, ouvinte ou o leitor sente que o artista está contagiado pela sua
própria produção e escreve, canta ou representa para ele próprio, e não apenas para
impressionar os outros, o receptor é também contagiado por esse estado mental; e
inversamente, assim que o espectador, leitor ou ouvinte sente que o autor não está a
escrever, cantar ou representar para sua própria satisfação – não sente ele próprio o que
deseja exprimir – mas está a fazer isso para o receptor, a resistência surge imediatamente, e
nem os mais individuais e presentes sentimentos, assim como as técnicas mais ousadas,
conseguem produzir qualquer contágio, provocando realmente rejeição.
[...]
A ausência de qualquer uma destas condições exclui uma obra da categoria de arte,
relegando-a para a categoria da falsa arte. Se a obra não transmite a singularidade do
sentimento do artista e não é, portanto, individual; se não é expressa de maneira inteligível,
ou se não teve origem na necessidade interior de expressão do autor, não é obra de arte. Se
todas estas condições estiverem presentes, mesmo num pequeno grau, então a obra, mesmo
sendo fraca, será ainda uma obra de arte.

Leão Tolstoi, O Que é a Arte? 1898,


trad. de Aires Almeida, Caps. 5 e 15

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Interpretação
1. Em que se baseia, segundo Tolstoi, a actividade artística?
2. Por que razão o grau de contágio da arte depende da maior ou menor individua-
lidade do sentimento transmitido?
3. Por que razão o grau de contágio da arte depende da maior ou menor sinceri-
dade do sentimento transmitido?
4. Por que razão o grau de contágio da arte depende da clareza do sentimento
transmitido?
5. Como distingue Tolstoi a verdadeira da falsa arte?

Discussão
6. Acha que existe verdadeira arte e falsa arte? Justifique e dê exemplos.
7. Será que podemos sentir o que os artistas sentem quando criam as suas obras?
Justifique.
8. Haverá alguma razão para nos interessarmos pelos sentimentos individuais
dos artistas? Justifique.

4. Arte e forma
No princípio do séc. XX assistiu-se a uma grande revolução na arte, principalmente na
pintura. Foi a altura em que surgiu a chamada arte moderna. A pintura moderna chega a
opor-se radicalmente à ideia de representação. Representar o mundo exterior era uma
coisa que a fotografia fazia perfeitamente, pelo que alguns pintores acharam que deviam
procurar novos caminhos, que não o da representação. Um dos caminhos foi explorar as
possibilidades de composição, através da organização puramente visual de cores, linhas e
formas. A pintura abstracta começou a impor-se e com ela também a ideia da «pintura pela
pintura», daí resultando um conjunto de obras completamente diferentes do que era ha-
bitual.
A explosão da arte moderna veio, assim, mostrar que a diversidade de obras de arte é
bem maior do que as teorias da imitação e da expressão supunham. Foi neste contexto
que um conhecido crítico e filósofo da arte inglês, Clive Bell (1881-1964), apresentou um
livro intitulado simplesmente Arte, publicado em 1914. Neste livro, Bell defende a chama-
da teoria formalista da arte, a que por vezes também se chama «teoria de Bell-Fry», uma
vez que, além de Bell, o seu amigo, pintor e crítico de arte Roger Fry (1866-1934), foi outro
dos seus principais defensores. A teoria formalista da arte alcançou grande sucesso e veio

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

a ser defendida por outros filósofos, assim como


por imensos críticos de arte. Exemplos de comen-
tários que manifestam preocupações de caráter
formalista em relação à arte são os seguintes:

• Este quadro revela uma grande unidade e


sentido de equilíbrio.

• É um romance bem estruturado, com um fio


condutor onde se encaixam perfeitamente as
personagens.

• É uma dança com grande dinamismo e com-


plexidade.

• Esta é uma canção com uma melodia sim-


ples, sóbria e elegante.

Mas o que defende Bell com a sua teoria da


arte? Bell escreve que «o ponto de partida de
qualquer sistema estético tem de ser a experiência
pessoal de uma emoção peculiar». Para que esta
Quadro com Arco Preto (1912), de Vassily Kan-
dinsky (1866-1944). Esta é uma das primeiras pinturas afirmação não seja mal interpretada, há que
abstractas. sublinhar três aspectos:

1. Aos objectos que provocam tal emoção chamamos «obras de arte».


2. Diferentes obras de arte podem produzir diferentes emoções, mas tais emoções
têm de ser do mesmo tipo.
3. Essa emoção é apenas o ponto de partida para compreender a arte.

À primeira vista parece que Bell está próximo da ideia de arte como expressão, pois
diz que tudo começa com uma experiência pessoal, a que chama emoção estética. Só
que não haveria qualquer emoção estética se não houvesse na própria obra de arte alguma
característica responsável por tal emoção. Trata-se de uma emoção que não temos a não
ser quando estamos perante obras de arte. Sempre que temos uma emoção estética es-
tamos perante uma obra de arte. As obras de arte provocam em nós emoções estéticas
porque têm uma característica capaz de provocar tais emoções. A questão está, pois, em
saber que característica é essa.
Para o saber temos de ir além da emoção. É preciso, diz Bell, inteligência. Não há com-
preensão estética se não houver sensibilidade, mas também não há compreensão esté-
tica se só houver sensibilidade. Infelizmente, considera Bell, nem sempre a sensibilidade
e a inteligência andam juntas.
E o que deve a inteligência, despertada pela emoção estética, procurar nas obras de
arte? Deve procurar aquela característica comum a todas as obras de arte e que só nelas
existe. Ou seja, trata-se de uma característica individuadora, pois permite distinguir as

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

obras de arte das que o não são. Bell diz que identificar essa característica é o mesmo que
identificar a essência das obras de arte; é uma característica que todas têm e que não po-
deriam deixar de ter sem deixarem de ser arte. Essa característica terá de ser simultanea-
mente condição necessária e suficiente da arte. Como vimos, essa característica não pode
ser a representação nem a expressão, pois nenhuma delas é comum a todas as obras de
arte. Que característica é essa, então?
Numa palavra, é a forma. Quando fala da forma, Bell inclui não apenas linhas, mas tam-
bém cores. Não há cores sem forma nem linhas sem cor (o preto e o branco também são
cores). Se pensarmos na pintura – os exemplos de Bell são quase sempre da pintura – a
forma é entendida como «combinação de linhas e cores». Mas também se pode dizer que
a música, por exemplo, tem forma, na medida em que os sons estão temporalmente orga-
nizados de uma determinada maneira.
Só que, poder-se-ia objectar, muitíssimas coisas que não são arte têm forma também.
Contudo, Bell não se refere a uma forma qualquer. Bell pensa que um objecto só é arte se
tiver forma significante. A arte, de acordo com a teoria formalista de Bell, pode definir-se
assim:

• X é arte se, e só se, tem forma significante.

Bell fala de forma significante e não simplesmente de forma. Isto porque praticamente
todas as coisas que vemos, como as pedras, as núvens, as cadeiras ou os livros têm for-
ma. No caso da pintura, por exemplo, a forma não é uma qualquer combinação de linhas
e cores, mas uma certa combinação de linhas e cores. Assim, se um objecto tem ou não
forma significante, é uma questão de ver se o objecto se destaca pela sua forma e se é
precisamente a forma que nos chama a atenção para o objecto. A forma significante é,
pois, aquilo que, num objecto, não pode ser alterado, simplificado ou adaptado sem perder
o seu interesse e o seu significado.
Mesmo assim, podemos pensar em coisas que têm forma significante mas que não
são arte. Há placas de sinalização de trânsito cuja forma é significante, pois o seu signi-
ficado depende exclusivamente da sua forma: o seu significado depende de serem trian-
gulares, redondas ou quadradas; se são azuis, vermelhos, etc. Todavia, não são arte. Mas
o formalista alega que há uma diferença importante entre os objectos de arte e as placas
de trânsito: estas têm como principal objectivo informar-nos de algo e não exibir a sua
forma, ao passo que exibir a sua forma é o objectivo primordial dos objectos de arte.
É principalmente com essa finalidade que as obras de arte são concebidas: para exibir a
sua forma.
O formalista pensa que a pintura pode até representar as coisas exteriores, mas
defende que não é por isso que é arte. Analisar esteticamente um quadro é, pensam os
formalistas, realçar a disposição das formas na tela, bem como a relação entre as linhas e
a utilização das cores, de modo a verificar se tudo isso se combina de forma significante.
Mesmo que o quadro represente algo, o que representa é esteticamente irrelevante.
Quaisquer outras finalidades, além da simples exibição da sua forma são, aliás, irrele-
vantes. É por isso que mesmo aqueles que não são religiosos estão em condições de
apreciar esteticamente a música religiosa de Bach. Que uma obra tenha fins religiosos,
morais, políticos ou outros é irrelevante, pensa o formalista.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Esta teoria parece ter uma enorme vantagem em relação às anteriores: pode incluir
todo o tipo de obras de arte, inclusivamente obras que exemplifiquem formas de arte ainda
por inventar. Desde que provoque emoções estéticas, qualquer objecto é arte, ficando
assim ultrapassado o carácter restritivo das teorias anteriores.

Objecções à teoria formalista


A teoria formalista enfrenta, todavia, sérios
problemas. O primeiro é que há objectos de arte
que não se distinguem visualmente de outros
que não são arte. Por exemplo, não vemos qual-
quer diferença entre a forma da célebre Caixa de
Brillo, de Andy Warhol, e as outras caixas utili-
zadas pelo fabricante de detergentes Brillo. Se o
que faz um objecto ser arte é a sua forma, então
todas estas caixas deveriam ser também objec-
tos de arte. Mas não são.
Outra dificuldade consiste em explicar exac-
tamente em que consiste a forma significante.
Como sabemos que um objecto tem forma signi-
ficante ou não? O formalista diz que sabemos
isso porque temos emoções quando o observa-
mos. Mas se lhe perguntarmos o que é uma
emoção estética, ele responde que é o tipo de
emoção provocado pela forma significante. As-
sim, o que se está a dizer é que tem forma signi-
ficante porque temos emoções estéticas e
temos emoções estéticas porque tem forma
Caixa de Brillo (1964), de Andy Warhol (1928- significante. Ora, esta resposta é circular, pelo
-1987). Esta célebre obra de arte é uma réplica em
contraplacado das caixas em papelão de detergen- que nada adianta.
te Brillo para a loiça. Tentando evitar a circularidade anterior, Bell
diz que identificar a forma significante é uma
questão de sensibilidade. Qualquer pessoa sensível percebe quando um objecto tem
forma significante. Uma pessoa sensível sabe-o porque sente emoção estética perante
tais objectos e as pessoas que não reconhecem a forma significante são insensíveis, su-
gere Bell. Mas esta resposta também não é esclarecedora, pois é mais uma fuga às
dificuldades do que um argumento. Esta resposta encara a forma significante (e a emoção
estética a que dá origem) como algo misterioso a que poucos têm acesso. Assim, a no-
ção de forma significante parece tão imprecisa que não se imagina o que poderia servir
de contra-exemplo. Mas não admitir a possibilidade de contra-exemplos é característico das
más teorias.
Porém, é inegável que a forma é um aspecto importante de muitas obras de arte, prin-
cipalmente de arte moderna.

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Revisão

1. O que leva Bell a atribuir grande importância à emoção estética?

2. Bell pensa que não basta haver emoção estética para se compreender esteti-
camente uma obra de arte. Porquê?

3. O que é, segundo Bell, a forma significante?

4. Por que razão a representação é, segundo Bell, esteticamente irrelevante?

5. Apresente uma vantagem da teoria formalista de Bell.

6. Apresente um contra-exemplo à teoria da arte como forma.

7. Explique a acusação de circularidade feita a Bell a propósito da análise da no-


ção de forma significante.

8. Explique a crítica de que a noção de forma significante é demasiado impre-


cisa.

Discussão

9. Será que o conteúdo de um romance é irrelevante para o seu valor estético?


Porquê?

10. As caixas de detergentes Brillo não são contra-exemplos à teoria de Bell. Afi-
nal, quando a caixa de Brillo é exposta numa galeria de arte tem a função de
exibir a sua forma, tornando-se deste modo uma obra de arte. Ao passo que
quando é exposta nas prateleiras de um supermercado tem a função de exibir
o detergente, não se tratando assim de uma obra de arte.» Concorda? Por-
quê?

11. Concorda com a teoria de Bell? Porquê?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Texto 33

A Arte é Forma Significante


Clive Bell
O ponto de partida para todos os sistemas da estética tem de ser a experiência pessoal
de uma emoção peculiar. Aos objectos que provocam tal emoção chamamos obras de arte.
Qualquer pessoa sensível concorda que há uma emoção peculiar provocada pelas obras de
arte. Naturalmente, não quero com isto dizer que todas as obras de arte provocam a mesma
emoção. Pelo contrário, cada obra de arte produz uma emoção diferente. Mas todas essas
emoções podem ser identificadas como emoções do mesmo tipo. Seja como for, esta é, até
agora, a melhor opinião. Que existe um tipo particular de emoção provocado por obras de
arte visual e que essa emoção é provocada por todos os tipos de arte visual, por pinturas,
esculturas, edifícios, peças de cerâmica, gravuras, têxteis, etc., etc., não é disputado, penso
eu, por ninguém capaz de a sentir. Esta emoção é chamada emoção estética, e se pudermos
descobrir alguma qualidade comum e peculiar a todos os objectos que a provocam, teremos
resolvido o que considero ser o problema central da estética. Teremos descoberto a quali-
dade essencial da obra de arte, a qualidade que distingue as obras de arte de outras classes
de objectos.
Com efeito, ou todas as obras de arte visual têm alguma qualidade co-
mum, ou quando falamos de «obras de arte» estamos a desconversar. Cada
pessoa fala de «arte», fazendo uma classificação mental pela qual distingue a
classe das «obras de arte» de todas as outras classes. Qual é a justificação para
essa classificação? Qual é a qualidade comum e peculiar a todos os membros
dessa classe? Seja ela qual for, não há dúvida que se encontra muitas vezes
acompanhada por outras qualidades; mas estas são fortuitas – aquela é
essencial. Tem de haver uma qualquer qualidade sem a qual uma obra de arte
não existe; na posse da qual nenhuma obra é, no mínimo, destituída de valor.
Que qualidade é essa? Que qualidade é partilhada por todos os objectos que
provocam as nossas emoções estéticas? Que qualidade é comum à [igreja de]
Santa Sofia e aos vitrais [da catedral] de Chartres, à escultura mexicana, a
Clive Bell, de Roger uma taça persa, aos tapetes chineses, aos frescos de Giotto, em Pádua, e às
Fry (1866-1934). Bell foi
um influente ensaísta obras-primas de Poussin, Piero della Francesca e Cézanne? Só uma resposta
e crítico de arte inglês. parece possível – a forma significante. Em cada uma destas coisas, linhas e
cores combinadas de uma maneira particular, certas formas e relações de
formas, estimulam as nossas emoções estéticas. A estas relações e combinações de linhas e
cores, a estas formas esteticamente tocantes, chamo «Forma Significante»; e a «Forma
Significante» é a tal qualidade comum a todas as obras de arte visual.
A hipótese de que a forma significante é a qualidade essencial de uma obra de arte tem
ao menos o mérito negado a muitas outras mais famosas e impressionantes – ajuda a
explicar as coisas. Todos conhecemos quadros que nos interessam e despertam a nossa

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

admiração, mas não nos emocionam como obras de arte. A esta classe pertence aquilo a que
chamo «Pintura Descritiva» – isto é, pintura em que as formas não são usadas como
objectos de emoção, mas como meios de sugerir emoção ou veicular informação. Retratos
de valor psicológico ou histórico, obras topográficas, quadros que contam histórias e
sugerem situações, ilustrações de todos os tipos, pertencem a esta classe. Que todos
reconhecemos a distinção é evidente, pois quem não disse já que tal e tal desenho era
excelente como ilustração, mas sem valor como obra de arte? Claro que muitos quadros
descritivos têm, entre outras qualidades, significado formal, sendo, por isso, obras de arte;
mas muitos outros não. Eles interessam-nos; podem emocionar-nos também de uma
centena de maneiras diferentes, mas não nos emocionam esteticamente. De acordo com a
minha hipótese, não são obras de arte. Não afectam as nossas emoções estéticas porque não
são as suas formas, mas as ideias ou informação sugeridas ou veiculadas pelas suas formas,
que nos afectam. [...]
Que ninguém pense que a representação é má em si; uma forma realista pode ser tão
significante, enquanto parte do desenho, como uma forma abstracta. Mas se uma forma
figurativa tem valor, é como forma, e não como representação. O elemento figurativo numa
obra de arte pode ou não ser prejudicial; é sempre irrelevante. Pois para apreciar uma obra
de arte não precisamos de nos fazer acompanhar de nada da nossa vida, nem de nenhum
conhecimento das suas ideias e ocupações, nem de qualquer familiaridade com as suas
emoções. A arte transporta-nos do mundo da actividade humana para o mundo da exal-
tação estética. Por um momento, somos afastados dos interesses humanos; as nossas previ-
sões e recordações são aprisionadas; somos elevados acima do fluxo da vida.

Clive Bell, «A Hipótese Estética», 1914, trad. adaptada de Vítor Silva, pp. 28-41

Interpretação
1. Que importância tem, segundo Bell, a descoberta da qualidade comum e pe-
culiar a todos os objectos que provocam emoções estéticas?

2. Como descreve Bell a forma significante na pintura?

3. Por que razão pensa Bell que a chamada «pintura descritiva» não é necessaria-
mente arte?

4. Bell afirma que «para apreciar uma obra de arte não precisamos de nos fazer
acompanhar de nada da nossa vida». Porquê?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Discussão
5. «Para apreciar uma obra de arte não precisamos de nos fazer acompanhar de
nada da nossa vida». Concorda? Porquê?
6. «O elemento figurativo numa obra de arte é sempre irrelevante». Concorda.
Porquê?
7. Como sabemos se um objecto tem forma significante? Justifique.
8. «Qualquer pessoa concorda que há uma emoção peculiar provocada pelas
obras de arte», diz Bell. Concorda? Porquê?

5. A arte pode ser definida?


Na secção anterior utilizámos o exemplo da Caixa de Brillo, de Andy Warhol, para levan-
tar dificuldades à teoria formalista de Bell. Mas Bell dificilmente estaria à espera de uma
dificuldade dessas, posto que Caixa de Brillo era uma obra impensável quando Bell publi-
cou o seu livro Arte, em 1914. Caixa de Brillo é uma obra de 1964.
Os artistas têm concebido obras cada vez mais afastadas de tudo o que até então se
tem feito. Muita gente associa a criatividade da arte a um processo de constante inovação
e, por vezes, de corte com o passado. Os objectos que podem ser classificados como arte
são de tal maneira diferentes entre si que parece impossível apresentar características
comuns a todas as obras de arte.
Tendo isso em conta, alguns filósofos da arte, como o americano Morris Weitz (1916-
-81), concluíram que a arte é indefinível. Na opinião de Weitz as teorias anteriores falharam
ao tentar definir a arte precisamente porque a arte não pode ser definida. Qualquer ten-
tativa de definir arte está, portanto, condenada ao fracasso.
As tentativas de definição de arte procuraram estabelecer as condições necessárias e
suficientes da arte. Fazer isso é o mesmo que determinar a característica ou conjunto de
características comuns a todas as obras de arte, assim como a característica ou conjunto
de características que só as obras de arte partilham. A tese de Weitz é que não há uma
característica ou conjunto de características que todas as obras de arte tenham em
comum. Isto é, não há características necessárias e suficientes da arte.
Em vez de tentarmos definir arte, o melhor é tentar perceber em que circunstâncias
classificamos algo como arte. Que uso fazemos do conceito de arte?
Aplicamos o conceito de arte de maneira a incluir coisas completamente novas e ines-
peradas, as quais se propõem, inclusivamente, romper com o que parecia estar estabe-
lecido. Em síntese, o conceito de arte é, defende Weitz, um conceito aberto.

Um conceito é aberto se as suas condições de aplicação são reajustáveis e corri-


gíveis.

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Isto significa que pode surgir um novo caso, ainda que apenas imaginado, que exija da
nossa parte uma decisão de alargar o uso do conceito. Por exemplo, antes do artista fran-
cês Marcel Duchamp, o conceito de arte não se aplicava a objectos que não fossem produ-
zidos pelo próprio artista. Os célebres ready-made de Duchamp obrigaram a alargar o con-
ceito de arte, cuja extensão passou a incluir objectos que antes não incluía.
Claro que nem todos os conceitos são abertos; há conceitos fechados. Uma vez que a
arte é inovadora e criativa, tem de admitir novos casos; por isso, o conceito de arte não
pode ser fechado.
Apesar de não haver características comuns a todos os objectos de arte e de este ser
um conceito aberto, não deixamos de saber aplicar o conceito de arte. Weitz defende que
acontece com os objectos de arte o mesmo que entre pessoas da mesma família. Numa
família, o filho pode ter os olhos parecidos com os do pai, o pai ter o nariz parecido com
o da irmã e a irmã ter a boca parecida com a do avô sem, no entanto, haver qualquer pare-
cença entre o filho e a avô. Mesmo não havendo qualquer característica comum a todos
os membros da família, somos capazes de ver que pertencem à mesma família. A esta
rede de parecenças chamava o filósofo austríaco Wittgenstein (1889-1951) parecenças
familiares, noção que Weitz também adoptou.
Com a arte passa-se exactamente a mesma coisa, defende Weitz. Começa-se com
uma obra que todos aceitam como arte, depois surge uma nova candidata a obra de arte
que tem algumas parecenças com a anterior e, por isso, é também classificada como arte.
Seguidamente aparece mais outra candidata que tem certas parecenças com a última;
também ela passa a ser arte. No final temos uma teia de parecenças familiares, mas ne-
nhum conjunto fixo de características comuns a todas. Eis a razão por que sabemos iden-
tificar obras de arte, mesmo sem haver condições necessárias para algo ser arte e, por-
tanto, sem dispormos de qualquer definição de arte.

Objecções à teoria da indefinibilidade da arte


Há três objecções centrais aos argumentos de Weitz.
1. O facto de não ser possível observar uma propriedade ou conjunto fixo de proprieda-
des partilhadas por todas as obras de arte não mostra que não há condições neces-
sárias para uma coisa ser arte. Em vez de um conjunto fixo de condições necessá-
rias, pode haver mais do que uma maneira de um objecto se tornar arte. Assim,
mesmo que não seja possível encontrar uma condição necessária ou um conjunto
– formado por X, Y e Z – de condições necessárias, estas podem ainda ser expressas
através da disjunção X ou Y ou Z. Por exemplo não é necessário ser pai e tio e irmão
e filho e primo, etc. de alguém para ser seu parente. Mas é necessário ser pai ou tio
ou irmão ou filho ou primo ou etc.
2. Ao dizer que a arte não pode ser definida por ser um conceito aberto, Weitz baseia-
-se na constatação de que a arte é criativa, inovadora e subversiva. Mas isso é o
mesmo que descrever a natureza da arte e, portanto, admitir que afinal há certas
condições necessárias. Nesse caso, ser o resultado da criatividade humana em fun-
ção de um propósito estético constituiria uma condição necessária da arte.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

3. O filósofo George Dickie defende que a noção de parecença familiar só por si não
permite usar competentemente o conceito de arte. Por um lado, argumenta Dickie,
as simples parecenças não chegam para incluir objectos diferentes na mesma famí-
lia, pois tudo acaba por se parecer com tudo em algum aspecto. Por exemplo, algu-
mas pessoas, apesar de serem muito parecidas, não pertencem à mesma família,
como sucede entre as vulgares caixas de Brillo e a obra de Warhol atrás referida.
Portanto, é preciso algo mais do que simples parecenças. Assim, a noção de pare-
cença familiar parece não ter grande utilidade quando se trata de classificar (ou não
calssificar) algo como arte.

Afinal, em que nos baseamos para dizer que algo é arte?

Revisão
1. Por que razão pensa Weitz que as teorias anteriores falharam em definir arte?
2. O que pensa Weitz que devemos fazer em vez de tentar definir a arte?
3. O que é um conceito aberto?
4. Por que razão o conceito de arte é aberto?
5. Segundo Weitz, ainda que não se possa definir o conceito de arte, é possível
aplicá-lo correctamente. Como?
6. Alguns críticos de Weitz alegam que o facto de não encontrarmos proprieda-
des comuns a todos os objectos de arte não mostra que não haja condições
necessárias para um objecto ser arte. Porquê?
7. Exponha a crítica de Dickie à ideia de que aplicamos correctamente o conceito
de arte detectando parecenças familiares.

Discussão
8. Será que, de acordo com a teoria da parecença familiar, uma reprodução
fotográfica em tamanho real de uma pintura famosa é uma obra de arte? Por-
quê?
9. Betsy, uma chimpanzé do Jardim Zoológico de Baltimore, nos Estados Uni-
dos, conseguiu, com algumas tintas e papel que colocaram à sua disposição,
fazer vários produtos a que poderíamos chamar pinturas. Algumas das suas
pinturas foram expostas no Field Museum of Natural History, um museu de
história natural de Chicago. Será que as pinturas de Betsy são arte? Porquê?
10. A arte pode ser definida? Porquê?

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

Texto 34

A Arte não Pode ser Definida


Morris Weitz
Os jogos de cartas são como os jogos de tabuleiro em alguns aspectos mas não noutros.
Nem todos os jogos são divertidos, e nem sempre há ganhar e perder, ou competição entre
os jogadores. Alguns jogos assemelham-se a outros em alguns aspectos – isto é tudo. O que
encontramos não são propriedades necessárias e suficientes, mas apenas «uma rede com-
plicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem entre si», de tal modo que podemos dizer
que os jogos formam uma família com parecenças de família e sem qualquer traço comum.
Se perguntarmos o que é um jogo, para responder vamos buscar exemplos de jogos, descre-
vemo-los, e acrescentamos o seguinte: «a isto e a coisas parecidas chama-se um jogo». Isto
é tudo o que precisamos de dizer e de facto tudo o que sabemos acerca de jogos. Saber o
que é um jogo não é saber uma definição real ou uma teoria, mas ser capaz de reconhecer
e explicar os jogos e ser capaz de decidir de entre exemplos novos e imaginários a quais
chamaríamos «jogos».
O problema da natureza da arte é como o da natureza dos jogos, pelo menos neste as-
pecto: se olharmos realmente para aquilo a que chamamos «arte», também não iremos
encontrar qualquer propriedade comum – apenas cadeias de similaridades. Saber o que é a
arte não é apreender uma essência manifesta ou latente mas ser capaz de reconhecer, des-
crever e explicar aquelas coisas a que chamamos «arte» em virtude de certas similaridades.
A semelhança básica entre estes conceitos é a sua estrutura aberta. Ao elucidá-los, pode-
-se apresentar alguns casos (paradigmáticos), acerca dos quais não pode existir a mínima
dúvida ao serem descritos como «arte» ou «jogo», mas não é possível fornecer um conjunto
exaustivo de exemplos. Posso fazer uma lista de alguns casos e algumas condições sob as
quais aplico correctamente o conceito de arte, mas não posso fazer uma lista de todos esses
casos e condições pela simples razão que estão sempre a surgir ou a antever-se condições
novas ou imprevisíveis.
Um conceito é aberto se as suas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis; isto
é, se se pode imaginar ou acontecer uma situação ou um caso que requeresse algum tipo de
decisão da nossa parte de modo ou a alargar o uso do conceito para abranger o novo caso
ou a fechar o conceito inventando um novo para abranger o novo caso e a sua nova
propriedade. Se podemos estabelecer condições necessárias e suficientes para a aplicação de
um conceito, o conceito é fechado. Mas isto é algo que apenas pode acontecer na lógica e
na matemática onde os conceitos são construídos e completamente definidos. Isto não
pode acontecer com conceitos empiricamente descritivos e normativos, a não ser que os
fechemos arbitrariamente estipulando o alcance dos seus usos.

[...]

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

O próprio conceito de arte é um conceito aberto. Novas condições (novos casos) surgi-
ram e continuarão certamente a surgir; aparecerão novas formas de arte, novos movimen-
tos, que irão exigir uma decisão por parte dos interessados, normalmente críticos de arte
profissionais, sobre se o conceito deve ou não ser alargado. Os estetas podem estabelecer
condições de similaridade, mas nunca condições necessárias e suficientes para a correcta
aplicação do conceito. Com o conceito arte, as suas condições de aplicação nunca podem
ser exaustivamente enumeradas, uma vez que novos casos podem sempre ser considerados
ou criados pelos artistas, ou mesmo pela natureza, o que exigirá uma decisão por parte de
alguém em alargar ou fechar o velho conceito ou em inventar um novo (por exemplo, «Isto
não é uma escultura, é um mobile.»)
Assim, aquilo que estou a defender é que o próprio carácter expansivo e empreendedor
da arte, as suas sempre presentes mudanças e novas criações, torna logicamente impossível
garantir um qualquer conjunto de propriedades definidoras. É claro que podemos escolher
fechar o conceito. Mas fazer isso com arte ou tragédia ou retrato, etc., é ridículo, uma vez
que exclui as próprias condições de criatividade na arte.

Morris Weitz, «O Papel da Teoria na Estética», 1956, trad. de Célia Teixeira, pp. 3-5

Interpretação
1. Explique em que sentido o conceito de jogo é comparável ao conceito de arte,
segundo Weitz.

2. Como sabemos, segundo Weitz, que um dado objecto faz parte da extensão
do conceito de arte?

3. O que é um conceito fechado?

4. Por que razão pensa Weitz que não faz sentido fechar o conceito de arte?

Discussão
5. Será que, de acordo com Weitz, tudo pode ser arte? Porquê?

6. Será que pelo facto de um conceito ser aberto, não pode ser definido? Justi-
fique.

7. Será que não precisamos mesmo de definir arte? Justifique.

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A criação artística e a obra de arte Capítulo 13

A arte pode ser definida?

Sim Não
É possível dizer quais as Não há condições necessárias
condições necessárias nem suficientes da arte. Arte é um
e suficientes da arte. conceito aberto. (Morris Weitz)

Teoria da imitação Teoria da expressão Teoria formalista


A imitação é apenas A arte é transmissão A arte é forma
condição necessária de sentimentos. significante.
da arte. (Tolstoi) (Clive Bell)
(Platão e Aristóteles)

Estudo complementar
Almeida, Aires e Murcho, Desidério (2006) «Estética» in Textos e Problemas de Filo-
sofia. Lisboa: Plátano, Cap. 5.
D’Orey, Carmo (1999) «Teorias Essencialistas» in A Exemplificação na Arte. Lisboa:
Gulbenkian, Cap. III.
Graham, Gordon (1997), «Definir a Arte», in Filosofia das Artes: Introdução à Esté-
tica. Trad. de Carlos Leone. Lisboa: Edições 70, 2001, Cap. 8.
Hanslick, Eduard (1854) Do Belo Musical. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
1994.
Warburton, Nigel (1995) «Pode a Arte ser Definida?», in Elementos Básicos de Filo-
sofia. Trad. de Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1998, Cap. 7.

@ Almeida, Aires (2000) «O Que é Arte?» in Crítica, http://www.criticanarede.com/fil_


tresteoriasdaarte.html.
@ Battin, Margaret (1989) «O Que é a Arte?», in Crítica, http://www.criticanarede.com/
html/fil_oqueeaarte.html.
@ Costa, Cláudio (2005) «Teorias da Arte», in Crítica, http://www.criticanarede.com/
html/est_tarte.html.

65
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Capítulo 14
A arte: produção e consumo,
comunicação e conhecimento

1. O problema
Secções
A arte ocupa um lugar importante em quase todos os 1. O problema, 67
povos e épocas. Mas o que leva as pessoas de diferentes 2. O valor intrínseco da arte, 68
povos e épocas a produzir e a consumir arte? Como se 3. O valor instrumental da arte, 71
explica que tantos artistas dediquem vidas inteiras a pro-
duzir objectos de arte e que um número ainda maior de
Textos
pessoas estejam dispostas a pagar bem para poder usu-
35. Forma e Beleza, 70
fruir deles? Por que razão a arte é assim tão importante? Oscar Wilde
Da resposta a estas perguntas depende em parte a solu- 36. Arte e Prazer, 78
ção para um dos principais problemas de filosofia da arte: Jeremy Bentham
o problema do valor da arte. Trata-se de saber o que tor- 37. Arte e Progresso Moral, 80
na a arte tão valiosa, a ponto de lhe dedicarmos uma parte Leão Tolstoi
substancial dos nossos recursos e energias. 38. O Valor Cognitivo da Arte, 81
Os filósofos divergem acerca do tipo de valor que os Nelson Goodman
objectos de arte têm. Alguns defendem que o valor da
arte é intrínseco, ao passo que outros defendem, pelo Objectivos
contrário, que é instrumental.
Compreender o problema do valor da arte.

Uma coisa tem valor intrínseco se é valiosa por si. Compreender e avaliar as teorias do valor
instrínseco da arte.

Uma coisa tem valor instrumental se é um meio Compreender e avaliar as teorias


para um fim independente, o qual se considera instrumentalistas da arte.
valioso.
Conceitos
No primeiro caso, defende-se que o valor de um ob- Valor intrínseco / valor instrumental,
jecto de arte reside exclusivamente em si, independente- autonomismo, instrumentalismo,
mente de quaisquer aspectos externos ou efeitos que esteticismo.
possa produzir. Por isso, às teorias do valor intrínseco da Hedonismo, moralismo, cognitivismo.
arte chama-se teorias autonomistas: o valor da arte é au-
tónomo. Ao dizer que os objectos de arte têm valor em si,

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

o autonomista só pode estar a referir-se às propriedades formais e estruturais desses ob-


jectos, às quais se dá o nome de propriedades estéticas. Trata-se de propriedades como
a beleza, a harmonia das formas e a unidade estrutural, entre outras. Aspectos como o
conteúdo ou a mensagem que o artista eventualmente procure transmitir não fazem parte
das propriedades estéticas. Assim, em princípio, estas também não fazem parte do seu
valor intrínseco.
No segundo caso, defende-se que a arte tem valor porque através dela se podem
alcançar certos fins considerados importantes: comunicar ideias, adquirir conhecimento,
obter prazer, educar a sensibilidade, etc. Se assim for, a arte tem valor porque cumpre uma
função e é um instrumento ao serviço de algo valioso. O seu conteúdo ou a mensagem
que as pessoas possam encontrar nos objectos de arte é que os torna artisticamente
valiosos. Por retirarmos algum benefício ao apreciar objectos de arte é que eles se tornam
importantes para nós. O valor da arte depende, por assim dizer, daquilo que ela faz por
nós. Estas são as chamadas teorias instrumentalistas da arte.

2. O valor intrínseco da arte


A ideia de que o valor da arte é intrínseco é relativamente recente. Inspirada no
romantismo, começou por ser defendida na primeira metade do séc. XIX, em França, por
figuras como o poeta Charles Baudelaire (1821-1867). Era então conhecida como a teoria
da arte pela arte. Os defensores da arte pela arte consideravam que o valor de uma obra
de arte não precisava de justificação: a sua beleza falava por si e nada mais contava.

Esteticismo
Na segunda metade do séc. XIX a ideia da arte
pela arte acabou por ganhar adeptos também nas
Ilhas Britânicas, o mais destacado dos quais foi o
escritor Oscar Wilde (1854-1900). Esta posição pas-
sou então a ser conhecida como esteticismo, pois
os seus partidários enfatizavam a ideia de que o va-
lor das obras de arte dependia exclusivamente das
suas características estéticas internas: a beleza das
suas formas.
Os esteticistas, em geral, argumentam da se-
guinte maneira a favor do valor intrínseco da arte.
Por um lado, se o valor de uma obra de arte depen-
Nabuco (1842), cena da ópera de Giuseppe Verdi
(1813-1901), através da qual o compositor mani-
desse do seu conteúdo ou da mensagem a trans-
festou as suas fortes aspirações políticas naciona- mitir, estaríamos a valorizar não a própria obra mas
listas. Para o esteticista, a mensagem política que a mensagem. Mas, nesse caso, deixaríamos de ter
uma obra de arte eventualmente possa conter é
razões para nos interessarmos pela obra, uma vez
irrelevante para o seu valor artístico.
compreendida a mensagem transmitida. Não é, to-

68
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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

davia, isso que acontece, até porque o nosso apego às obras de arte leva-nos a encará-las
como únicas e indispensáveis.
Por outro lado, se a finalidade de uma dada obra de arte puder ser alcançada por outros
meios, então a obra deixa de ser insubstituível. Mas as pessoas em geral consideram
insubstituíveis as obras de arte. Nada pode substituir a leitura de Os Maias, mesmo que
nos expliquem o que Eça de Queirós quis mostrar ao escrever esse romance. Portanto,
Os Maias tem valor intrínseco e só isso permite explicar o seu valor artístico.
Do mesmo modo, alega o esteticista, o facto de diferentes obras de arte terem um
conteúdo idêntico ou de transmitirem a mesma mensagem, não implica que tenham o
mesmo valor artístico. Logo, o seu valor artístico depende das suas características inter-
nas e não de qualquer propósito exterior que possam servir. Além disso, ter valor histórico,
moral, político ou comercial é muito diferente de ter valor artístico, que é o que importa
explicar.

Objecções ao esteticismo
Uma das críticas frequentes ao esteticismo é que se tudo o que conta para o valor
artístico de uma obra são as suas propriedades formais ou a sua estrutura interna, como
alega o esteticista, então uma obra pode ser profundamente imoral
sem perder, por isso, qualquer valor. Oscar Wilde chegou mesmo a
afirmar que toda a arte é imoral – tese conhecida como «decaden-
tismo». Mas isso parece inaceitável, pois as pessoas em geral não
atribuem o mesmo valor a obras dessas, que são frequentemente
repudiadas.
Outra crítica é suscitada pelos termos que muitos críticos de
arte utilizam para avaliar obras de arte. Algumas obras são especial-
mente valorizadas pela sua profundidade ou por serem iluminantes.
Outras são desvalorizadas por serem superficiais, ingénuas ou sen-
timentais. Ora, estes termos referem-se ao conteúdo veiculado por
essas obras e não às suas características formais ou estruturais. Oscar Wilde
Mas se excluirmos estes termos da crítica de arte, ficamos sem sa- (1854-1900).
Esteta, ensaísta
ber como explicar de forma convincente por que razão certas obras e romancista
têm mais valor do que outras. irlandês.
A chamada arte conceptual também levanta problemas ao esteti-
cismo, pois muitas vezes nestas obras os aspectos formais são manifesta e assumida-
mente secundários. Fonte, de Duchamp, é uma das mais célebres obras de arte do séc.
XX (ver imagem, pág. 43). Contudo, as suas características formais são exactamente iguais
às de muitos outros objectos que não têm qualquer valor artístico. Se o esteticista tivesse
razão, todos os urinóis com as mesmas propriedades intrínsecas da Fonte deviam ter valor
artístico. Mas ninguém acha que têm. Logo, o esteticista não tem razão.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Revisão
1. Formule o problema do valor da arte.
2. Distinga valor intrínseco de valor instrumental e dê um exemplo de cada.
3. Qual é a tese central das teorias autonomistas da arte?
4. Qual é a tese central das teorias instrumentalistas da arte?
5. O que é o esteticismo?
6. Reconstitua o argumento esteticista da indispensabilidade da arte.
7. Reconstitua o argumento esteticista da insubstituibilidade da arte.
8. Reconstitua o argumento esteticista sobre a diferença de valor artístico de
obras com conteúdo idêntico.
9. Explique a crítica ao esteticismo baseada nos termos que os críticos de arte
usam para avaliar obras de arte.
10. Apresente um contra-exemplo ao esteticismo.

Discussão
11. Acha que se o conteúdo de uma obra de arte for imoral, isso lhe retira valor
artístico? Porquê?
12. Concorda com o esteticista? Porquê?

Texto 35

Forma e Beleza
Oscar Wilde
[...] O verdadeiro artista é aquele que passa não do sentimento à forma, mas da forma
ao pensamento e à paixão. Não concebe primeiro uma ideia, dizendo depois para si mesmo
«Vou pôr esta ideia num complexo esquema métrico de catorze versos», mas, conhecendo
a beleza formal do soneto, concebe certos modos musicais e esquemas rimáticos, e é a
forma em si que sugere o que deverá preenchê-la e tornar intelectual e emocionalmente

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

completa. De vez em quando o mundo clama contra algum maravilhoso artista poético
porque, para usar uma frase tola e batida, ele «não tem nada a dizer». Mas se tivesse alguma
coisa a dizer provavelmente a diria, e o resultado seria aborrecido. É apenas porque não tem
qualquer mensagem nova que ele é capaz de produzir uma obra bela. Como qualquer outro
artista, adquire inspiração da forma, e unicamente da forma. Uma paixão verdadeira levá-
-lo-ia à ruína. O que acontece na realidade estraga-se para a arte. Toda a má poesia deriva
de um sentimento genuíno.

Oscar Wilde, Intenções, 1891, trad. de António Feijó, p. 169

Interpretação
1. Explique o significado da seguinte afirmação: «O verdadeiro artista é aquele
que passa não do sentimento à forma, mas da forma ao pensamento e à pai-
xão.»
2. Por que pensa Oscar Wilde que é incorrecto acusar um artista por não ter nada
a dizer?

Discussão
3. Concorda que a frase «não tem nada a dizer» acerca do artista é tola? Porquê?
4. «Toda a má poesia deriva de um sentimento genuíno.» Concorda? Porquê?

3. O valor instrumental da arte


Há filósofos que pensam que a arte é um meio para obter prazer, outros pensam que
é uma forma de comunicação, outros dizem ser um meio de unir as pessoas em torno de
certos valores, outros consideram a arte uma forma de alargar o nosso conhecimento do
mundo. O que têm estes filósofos em comum? A resposta é que todos defendem o
carácter instrumental da arte: que o valor da arte reside nos efeitos que produz.
Vamos estudar três das mais importantes teorias instrumentalistas:

1. Hedonismo
2. Moralismo
3. Cognitivismo

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Arte e prazer: hedonismo


Pensar que o valor da arte reside no prazer que nos proporciona é, talvez, uma das
ideias mais comuns. O raciocínio subjacente é o seguinte:

Se uma coisa proporciona prazer, tem valor.


A arte proporciona prazer.
Logo, a arte tem valor.

Assim, a justificação para o valor da arte encontra-se no prazer que dá. Esta teoria é
chamada hedonismo, pois os hedonistas defendem que a felicidade consiste apenas na
obtenção de prazer.
O raciocínio anterior é válido, mas serão as suas premissas ver-
dadeiras? Comecemos pela segunda premissa: «A arte proporciona
prazer». Para sabermos se é verdadeira precisamos de esclarecer
antes o que se entende exactamente por «prazer». Podemos dizer
que o prazer é aqui tomado no sentido de divertimento. Nesse caso,
a premissa é simplesmente falsa, pois há muita arte que não diverte,
exigindo até esforço e persistência da nossa parte. Por exemplo,
ninguém diria que Empire, um filme de oito horas sem som, de Andy
Warhol, diverte. Nem diríamos que o Requiem, de Mozart, é divertido.
E o mesmo se passa com muitas pinturas, romances, peças de teatro
e filmes que provocam em nós emoções negativas, como a tristeza,
a angústia e o medo.
Fotograma do filme Empire (1964), A primeira premissa também levanta problemas, pois há muitas
de Andy Warhol (1928-87). O filme coisas que divertem, como jogar às cartas ou pregar partidas aos
não tem som, dura oito horas e a amigos, mas que não têm um valor equiparável ao da arte. Há até for-
câmara está sempre parada a fil-
mar o edifício Empire State Build- mas de divertimento às quais em geral nem sequer se reconhece va-
ing de Nova Iorque. Será que este lor. Não deve, pois, ser esse o significado de «prazer».
filme é importante porque propor- Como vimos no Capítulo 9, um hedonista como John Stuart Mill
ciona prazer a quem o vê?
oferece uma perspectiva mais plausível e sofisticada do prazer. Se-
gundo ele, há dois tipos de prazeres: inferiores e superiores. Assim, o
prazer proporcionado pela arte seria um prazer superior. Neste caso, é razoável dizer que
temos prazer ao ouvir o Requiem, ainda que isso não nos divirta. Do mesmo modo, o
prazer de ler um romance triste e pessimista é um prazer intelectual e não sensorial.
Uma vantagem óbvia da teoria hedonista é explicar por que razão as pessoas associam
arte a prazer, procurando mostrar que essa associação é algo mais do que acidental.

Objecções ao hedonismo
O hedonista alega que as pessoas procuram muitas vezes a arte para obter prazer e
que a arte que proporciona mais prazer é geralmente mais valorizada. Mas, mesmo que
seja verdade, isso não mostra que o valor da arte dependa do prazer que dá. Tirar boas
notas nos testes também é algo que geralmente dá prazer, mas não é por dar prazer que

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

isso é importante. O prazer pode contribuir


para a importância de tirar boas notas, mas se-
ria na mesma importante tirar boas notas,
mesmo que não desse prazer. O prazer não é,
pois, suficiente, para o valor de tirar boas no-
tas. Analogamente, o prazer também não é
uma condição suficiente para o valor da arte.
Outra dificuldade do hedonismo é o facto
de haver prazeres superiores, como o prazer
de jogar xadrez ou o prazer de descobrir a so-
lução de um quebra-cabeças, sem que atri-
buamos a essas actividades um valor compa-
rável ao da arte. Por isso, o prazer não é uma
condição suficiente do valor da arte, mesmo
quando falamos de prazeres superiores.
O prazer também não é uma condição ne-
cessária da arte. Há obras de arte que dificil-
mente proporcionam qualquer tipo de prazer,
sendo expressamente concebidas com o
intuito de apenas despertar em nós certo tipo Vega-Gyongiy 2 (1971) de Victor Vasarely
(1906-1997). Um exemplo da chamada Op Art
de reacções emocionais. É o caso de alguma (Arte Óptica), na qual os efeitos ópticos gerados
arte de denúncia social ou com preocupações pelas formas e cores se limitam a estimular a
ecológicas. Tudo o que se pretende é fazer as nossa capacidade de percepção visual.
pessoas pensar em algo que consideramos
importante.
Finalmente, há obras de arte que apelam apenas às nossas faculdades sensíveis, como
é o caso das pinturas da Op Art e de quase todas as artes decorativas. Não seria justificado
afirmar que o prazer proporcionado por estas obras é de tipo superior. Assim, o hedonista
falha na justificação do valor da arte.

Revisão
1. Apresente a tese central do hedonismo.

2. Apresente um contra-exemplo à tese de que o valor da arte depende do diver-


timento proporcionado.

3. Apresente uma vantagem da teoria hedonista.

4. Reconstitua o argumento segundo o qual o prazer não é uma condição sufi-


ciente do valor da arte.

5. Reconstitua o argumento segundo o qual o prazer não é uma condição neces-


sária do valor da arte.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Discussão
6. «Uma obra de arte dá-me prazer, logo é boa». Concorda? Justifique e dê exem-
plos.
7. Será que podemos ter prazer com obras de arte que nos provocam tristeza ou
medo? Justifique e dê exemplos.

Arte e comunicação
A ideia de que a arte é uma forma de comunicação é muito comum. Muitas pessoas
referem-se à música, por exemplo, como uma espécie de linguagem universal que todos
podem compreender. Contudo, ser uma forma de comunicação não é, por si, uma boa
justificação do valor da arte. Há formas de comunicação às quais não se atribui um valor
tão elevado como o que geralmente se atribui à arte. As
cartas e as mensagens de correio electrónico são formas de
comunicação, mas não é por isso que merecem ser preser-
vadas e expostas em galerias e museus. O que importa é
aquilo que é comunicado. Assim, também não conseguimos
justificar o valor da arte dizendo apenas que é uma forma de
comunicação. Precisamos de mostrar que aquilo que a arte
comunica é algo realmente importante e valioso, merece-
dor de ser apreciado e preservado.
Nesse sentido, alguns filósofos alegam que a arte é uma
maneira de comunicar emoções. Mas, mesmo neste caso,
é ainda preciso mostrar por que razão comunicar emoções
é assim tão valioso. Afinal, também podemos comunicar
emoções através de mensagens de correio electrónico. Por-
tanto, dizer que através da arte se comunicam emoções é
ainda insuficiente para justificar o seu valor.

Arte e moral: moralismo


Uma maneira de justificar o valor da arte, mantendo a
ideia de que a arte é uma forma de comunicação de emo-
ções, consiste em mostrar que a comunicação de emoções
desempenha uma importante função moral. É isso que
Tolstoi tenta fazer, defendendo uma posição acerca do valor
da arte que costuma ser designada por moralismo.
Enterro Pobre (1929), de Dominguez Alva-
rez (1906–1942). Para o moralista, a arte tem
Tolstoi começa por rejeitar a ideia de que o valor da arte
valor porque une as pessoas através dos mes- consiste no prazer que proporciona. E rejeita também a
mos sentimentos. ideia de que a arte tem valor em si. O artista, pensa Tolstoi,
exprime determinado tipo de sentimentos que contagiam

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

as pessoas e as impele a agir de acordo com eles. O que confere valor à arte é o tipo de
sentimentos que o artista exprime, os quais devem contribuir para o progresso e bem-
estar da humanidade. A arte serve, portanto, como elo de ligação e de união entre as
pessoas. Sem arte, o mundo seria moralmente mais pobre, pois as pessoas estariam mais
entregues a si mesmas, sem o sentimento de comunidade necessário ao progresso moral
da sociedade. Assim, a arte cumpre uma das funções mais nobres e elevadas que pode
haver. Daí o seu enorme valor.
É claro que Tolstoi sabia que havia romances e quadros onde não havia qualquer
intenção de transmitir emoções positivas e que não contribuíam para o progresso moral
da humanidade. Mas achava que essas obras não eram arte. Defendia, portanto, que não
havia boa e má arte: toda a arte é boa. Os maus romances e os maus quadros nem sequer
são arte.

Objecções ao moralismo
O moralismo conduz em geral ao seguinte dilema: ou a maior parte das obras de arte
é má, ou a maior parte das obras geralmente classificadas como arte nem sequer é real-
mente arte. Platão defendia a primeira alternativa do dilema: defendia que a maior parte
das obras de arte é má porque, ao imitar as coisas e apelar às emoções, nos afasta da ver-
dade e da razão, podendo mesmo ser perigosa. Tolstoi defendia a segunda alternativa do
dilema.
Mas se, por um lado, a maior parte das obras de
arte é má, não se percebe por que razão a arte em
geral tem valor. E se, por outro lado, a maior parte
das obras nem sequer é arte, então deixamos de
explicar o que queríamos explicar – o valor daquilo
que é geralmente classificado como arte. Em qual-
quer dos casos as consequências são inaceitáveis.
Confrontado com o facto de haver romances,
pinturas e peças musicais sem qualquer conteúdo
moral ou emocional, Tolstoi declara que se trata de
falsas obras de arte, ou de obras de arte falhadas.
Mas isso leva-o a incluir entre elas muitas obras con-
sideradas obras-primas, nomeadamente algumas pe-
ças de Shakespeare, pinturas de Miguel Ângelo,
óperas de Wagner e até os seus próprios romances O Nascimento de Vénus (1843), de Sandro Bot-
Guerra e Paz e Ana Karenina. Ora parece inaceitável ticelli (1445-1510). Será que esta obra-prima da pintura
não reconhecer qualquer valor a obras de arte que ocidental é valiosa porque tem uma função moral?

são geralmente consideradas obras-primas.


Se nos recusarmos a excluir da arte todas aquelas obras que são geralmente reconhe-
cidas como tal, então facilmente verificamos que há obras de arte cujo conteúdo é,
inclusivamente, imoral, mas às quais reconhecemos um grande valor artístico. Um bom
exemplo disso é o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, o qual descreve o universo de
uma personagem moralmente pouco recomendável que os leitores são magistralmente
levados a tolerar.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Revisão
1. Por que razão dizer que a arte é uma forma de comunicação não é suficiente
para justificar o seu valor?
2. O que é o moralismo?
3. Por que razão os romances imorais, de acordo com Tolstoi, não são arte?
4. Explique a crítica ao moralismo segundo a qual este nos coloca perante um
dilema.
5. Explique a crítica segundo a qual o moralismo de Tolstoi tem consequências
inaceitáveis.
6. Apresente um contra-exemplo ao moralismo.

Discussão
7. «Se um romance contiver ideias imorais, não tem qualquer valor artístico.» Con-
corda? Porquê?

Arte e conhecimento: cognitivismo


Apesar de ser verdade que há obras de arte que proporcionam prazer e que servem
para unir as pessoas num mesmo sentimento, isso não explica totalmente por que razão
a arte em geral é valiosa.
Será que a arte é uma coisa valiosa porque alarga o conhecimento? Há quem defenda
que é precisamente o facto de alargar o conhecimento que torna a arte valiosa. Chama-se
cognitivismo à teoria que defende esta posição. «Cognitivismo» deriva da palavra latina
cognitione, que significa conhecimento.
O cognitivismo apresenta uma grande vantagem em relação às teorias anteriores. Essa
vantagem consiste no facto de o conhecimento ser muitíssimo valorizado em geral. O ele-
vado estatuto de que goza a ciência decorre exactamente disso, segundo esta teoria. A ciên-
cia produz conhecimento, por isso tem um grande valor, justificando os esforços e inves-
timentos que se fazem para o seu desenvolvimento. O prazer nem sempre é assim
valorizado, havendo mesmo certos prazeres cujo valor é posto em causa por muitas
pessoas. E os eventuais valores morais que uma obra possa transmitir nem sempre são
partilhados por todos. Por isso, o cognitivismo estético pode ser uma boa teoria se con-
seguir explicar de que maneira a arte aumenta o conhecimento.
Um dos mais destacados defensores do cognitivismo, o filósofo americano Nelson
Goodman (1906-1998), escreve no livro Modos de Fazer Mundos que «as artes não de-
vem ser levadas menos a sério do que as ciências como modos de descoberta, criação e
alargamento do conhecimento no sentido amplo do avanço da compreensão». Se assim
for, o valor da arte nunca é menor do que o das próprias ciências.

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

Mas como conseguem um quadro, uma música ou


um poema alargar o conhecimento? Mesmo que seja
verdade que algumas obras de arte, como pinturas e
romances, contenham informação importante, daí não
se segue que as pessoas consigam aprender algo com
todas as obras de arte. É simplesmente errado afirmar
que o conteúdo de muitos poemas e peças musicais
pode ser verdadeiro ou falso, como sucede com o con-
teúdo das teorias científicas. Contudo, como Good-
man sublinha, isso só é assim se encararmos o con-
teúdo das obras de arte em sentido literal. Só que a arte
não funciona desse modo. A arte funciona de modo
simbólico, metafórico e não literal.
Além disso, o conhecimento nem sempre é uma
questão de ter crenças verdadeiras. A detecção, reco-
Gala 1 (2005), acrílico sobre tela de Sofia Leitão (n.
nhecimento e classificação de padrões também são 1977). Para o cognitivista, a arte influencia o modo
actividades cognitivas e afectam, inclusivamente, as como percepcionamos o mundo, levando-nos a des-
nossas crenças. Muitas das sensações visuais, auditi- cobrir novas maneiras de classificar, imaginar e pen-
sar as coisas.
vas, tácteis, que a arte provoca e que fazem parte da
nossa actividade mental, acabam por reorientar o olhar,
a audição, o tacto, levando-nos a novas maneiras de ver, ouvir, sentir, imaginar e pensar.
Assim, a arte influencia a forma como vemos, sentimos e pensamos as coisas. Peças mu-
sicais aparentemente destituídas de significado, como as repetições quase hipnóticas da
música minimalista, podem ter valor cognitivo, na medida em que são um estímulo à
nossa percepção, fazendo-nos perceber aquilo que de outra maneira passaria desper-
cebido. A arte pode assim contribuir para alargar o nosso entendimento, pois explora e en-
riquece muitos aspectos da experiência humana.

Objecções ao cognitivismo
A mais importante objecção ao cognitivismo baseia-se no que já foi referido a favor do
esteticismo: se os cognitivistas tivessem razão, as obras de arte não seriam indispensáveis
e insubstituíveis. Por um lado, uma vez visto e aprendido o que têm para nos mostrar e
ensinar, as obras de arte tornar-se-iam dispensáveis. Por outro lado, há com certeza muitas
outras coisas com as quais podemos treinar e desenvolver as nossas capacidades de
percepção, levando-nos a novas formas de ver, ouvir e pensar. É o que acontece quando, por
exemplo, observamos com todo o interesse certos aspectos da natureza, como as subtis
cambiantes de cores das flores na primavera, os tons outonais das folhas e o contraste de
luz e sombra de um bosque, ou a gama de sons produzidos pelos pássaros numa floresta.
Estas experiências seriam, assim, substitutos adequados de muitas obras de arte.
Outra objecção é que muitas obras de arte são concebidas sem ter em vista qualquer
efeito cognitivo e sem pretender desenvolver as nossas capacidades de percepção. Por
exemplo, uma simples e delicada peça de cerâmica pode ser um belo objecto de arte, sem
ter nada realmente importante para nos ensinar.

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Revisão
1. O que é o cognitivismo?
2. Indique uma das principais vantagens do cognitivismo.
3. De acordo com Goodman, em que sentido a arte pode fazer alargar o conheci-
mento?
4. Apresente a crítica da dispensabilidade e substituibilidade das obras de arte
apontada ao cognitivismo.
5. Apresente um possível contra-exemplo ao cognitivismo.

Discussão
6. «Podemos aprender com a arte mesmo sem saber o que aprendemos.» Con-
corda? Justifique.
7. «Dado que há arte, como a música instrumental, que não representa algo, nada
podemos aprender com ela.» Concorda? Justifique.

Texto 36

Arte e Prazer
Jeremy Bentham
Tomadas em conjunto, e consideradas na sua conexão com a felicidade da sociedade, as
artes e ciências podem ser arrumadas em duas divisões: 1) As do divertimento e curio-
sidade; 2) As da utilidade, imediata ou remota. [...]
Por artes e ciências do divertimento entendo as que são vulgarmente chamadas belas
artes, como a música, poesia, pintura, escultura, arquitectura, jardinagem ornamental, etc.
[...]
O hábito força-nos, de certa maneira, a fazer a distinção entre as artes e ciências do
divertimento e as da curiosidade. Não é, contudo, adequado olhar para as primeiras como
destituídas de utilidade; pelo contrário, nada há cuja utilidade seja mais incontestada. Ao
que há-de atribuir-se o carácter de utilidade, senão ao que é fonte de prazer? Tudo o que se
pode alegar para diminuir a sua utilidade é que se limitam à excitação do prazer: não
dispersam as núvens da tristeza e do infortúnio. São inúteis para aqueles que não estão
satisfeitos com elas; são úteis apenas para aqueles que retiram prazer delas, e só na medida
da satisfação que retiram.

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

Por artes e ciências da curiosidade entendo as que na verdade são aprazíveis, mas não
no mesmo grau que as belas artes, e às quais poderíamos à primeira vista ser tentados a
negar essa qualidade. Não é que estas artes e ciências da curiosidade não proporcionem
tanto prazer aos que as cultivam como as belas artes; mas o número daqueles que as estu-
dam é mais limitado. Desta natureza são as ciências da heráldica, das
medalhas, da pura cronologia, o conhecimento das línguas antigas e bár-
baras, as quais apenas apresentam colecções de palavras estranhas, e o estu-
do de antiguidades, já que não fornecem qualquer ensinamento aplicável à
moralidade. [...]
A utilidade de todas estas artes e ciências – falo tanto das do divertimento
como das da curiosidade –, o valor que têm, é exactamente proporcional ao
prazer que oferecem. Qualquer outra espécie de superioridade que se possa
tentar estabelecer entre elas é completamente fantasiosa. Preconceitos à
parte, o jogo das paciências tem igual valor ao das artes e ciências da música
e poesia. Se o jogo das paciências proporciona mais prazer, é mais valioso do
Jeremy Bentham
que qualquer das duas. [...] Se a poesia e a música merecem ser preferidas ao (1748-1832). Filósofo e
jogo das paciências, tem de ser porque estão concebidas de modo a agradar jurista inglês, fundador
do utilitarismo.
aos indivíduos a quem é mais difícil agradar. [...]
Assim é a espécie de utilidade que se encontra indiscriminadamente em todas as artes e
ciências. Fosse esta a única razão, seria razão suficiente para desejar vê-las florescer e rece-
ber a mais ampla difusão.

Jeremy Bentham, «A Recompensa Aplicada à Arte e à Ciência», 1825, trad. de Aires Almeida, pp. 149-151

Interpretação
1. Em que consiste, segundo Bentham, a utilidade das artes e ciências do diverti-
mento?
2. Por que diz Bentham que as artes e ciências da curiosidade não são aprazíveis
no mesmo grau que as belas artes?
3. Que justificação pode haver, segundo Bentham, para preferir a música e a poe-
sia ao jogo das paciências?

Discussão
4. «O jogo das paciências tem igual valor ao das artes e ciências da música e poe-
sia.» Concorda? Justifique.
5. «Se a arte dá prazer, então é útil. Se é útil, então tem valor. A arte dá prazer.
Logo, a arte tem valor.» Acha este argumento bom? Porquê?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Texto 37

Arte e Progresso Moral


Leão Tolstoi
[...] É, antes de mais, necessário deixar de considerar [a arte] um meio para o prazer e
considerá-la uma das condições da vida humana. Vista deste modo, é impossível deixar de
reparar que a arte é um dos meios de as pessoas se relacionarem.
Toda a arte faz aquele que a aprecia entrar num certo tipo de relação, quer com aquele
que a produziu ou está produzindo, quer com todos aqueles que simultânea, prévia ou pos-
teriormente recebem a mesma impressão artística.
Tal como as palavras, que ao transmitir pensamentos e experiências das pessoas, servem
como um meio de união entre elas, também a arte actua de forma semelhante. A parti-
cularidade desta última forma de relacionamento, e que a distingue do tipo de relaciona-
mento por meio de palavras, consiste nisto: enquanto por meio de palavras uma pessoa
transmite a outra os seus pensamentos, pela arte transmite as suas emoções.
[...]
A arte é uma actividade humana que consiste nisto: em uma pessoa conscientemente,
por intermédio de certos sinais externos, levar a outras pessoas sentimentos de que teve
experiência e que estas sejam contagiadas por tais sentimentos e deles tenham também
experiência.
A arte não é, como os metafísicos dizem, a manifestação de alguma misteriosa ideia de
belo ou de Deus; não é, como os psicólogos estéticos dizem, um jogo que serve para se des-
carregar o excesso de energia acumulada; não é apenas a expressão das emoções de uma
pessoa através de sinais externos; não é a produção de objectos que agradem; e, acima de
tudo, não é prazer; mas é um meio de união entre pessoas, unindo-as nos mesmos senti-
mentos, e indispensável à vida e ao progresso em direcção ao bem-estar dos indivíduos e
da humanidade.

Leão Tolstoi, O Que é a Arte?, 1898, trad. de Aires Almeida, Cap. 5

Interpretação
1. Tolstoi diz que «a arte é um dos meios de as pessoas se relacionarem». Que
tipo de relação é essa e qual a sua função?

2. Por que pensa Tolstoi que a arte é indispensável à vida e ao progresso em


direcção ao bem-estar dos indivíduos e da humanidade?

3. No último parágrafo Tolstoi indica várias coisas que a arte não é. Quais são as
teorias do valor da arte estudadas a que Tolstoi se refere?

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

Discussão
4. «A arte é um meio de união entre as pessoas.» Concorda? Porquê?

Texto 38

O Valor Cognitivo da Arte


Nelson Goodman
O uso de símbolos para além da necessidade imediata faz-se em nome da compreensão
e não da prática; o que compele é a ânsia de conhecer, o que delicia é a descoberta e a comu-
nicação é secundária relativamente à apreensão e formulação do que se comunica. O objec-
tivo principal é a cognição em si e para si; o carácter prático, o prazer, a compulsão e a utili-
dade comunicativa dependem todas deste objectivo.
A simbolização é, pois, avaliada fundamentalmente em função de como serve o pro-
pósito cognitivo: pela subtileza das suas distinções e pela justeza das suas alusões; pelo
modo como apreende, explora e dá forma ao mundo; pelo modo como analisa, categoriza,
ordena e organiza; pelo modo como participa na produção, manipulação, retenção e trans-
formação do conhecimento. Considerações de simplicidade e subtileza, poder e precisão,
âmbito e selectividade, familiaridade e inovação são igualmente relevantes, rivalizando fre-
quentemente entre si; o seu peso é relativo aos nossos interesses, informação e investigação.
Isto é tudo o que há a dizer sobre a eficácia cognitiva da simbolização em geral, mas que
dizer da excelência estética em particular? [...] A subsunção do estético sob a excelência
cognitiva exige que mais uma vez se recorde que o cognitivo, apesar de contrastar tanto
com o prático como o passivo, não exclui o sensorial ou o emotivo, que o que conhecemos
através da arte tanto se sente nos ossos, nervos e músculos como é apreendido pela mente,
que toda a sensibilidade e resposta do organismo participa na invenção e interpretação de
símbolos.
Nelson Goodman, Linguagens da Arte, 1968, trad. de Vítor Moura et al., pp. 271-272

Contextualização
• Goodman defende que a arte é uma das formas de simbolização, pelo que toda
a arte é simbolização.

Interpretação
1. Qual é, segundo Goodman, o objectivo principal da simbolização?
2. Em que consiste na prática a função cognitiva da simbolização?

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PARTE 5 A DIMENSÃO ESTÉTICA

Discussão
3. O que conhecemos através da arte sente-se «nos ossos, nervos e músculos»,
diz Goodman. Acha que podemos chamar conhecimento a isso? Porquê?
4. A comunicação é secundária na simbolização da arte. Concorda? Porquê?

Estudo complementar
Goodman, Nelson (1968) «A Arte e a Compreensão» in Linguagens da Arte: Uma
Abordagem a Uma Teoria dos Símbolos. Trad. de Vitor Moura et al. Lisboa: Gradiva,
2006, Cap. III.

Graham, Gordon (1997) Filosofia das Artes: Introdução à Estética. Trad. de Carlos
Leone. Lisboa: Edições 70, 2001, Caps. 1-3.

Wilde, Oscar (1891) Intenções: Quatro Ensaios Sobre Estética. Trad. de António
Feijó. Lisboa: Cotovia, 1992.

@ Taylor, Paul (1998) «Arte e Verdade». Trad. de Paulo Sousa. Crítica, 2004,
http://www.criticanarede.com/html/arteeverdade.html.

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A arte: produção, consumo, comunicação e conhecimento Capítulo 14

Em que consiste o valor da arte?

A arte tem valor


A arte tem valor em virtude
intrínseco.
dos efeitos valiosos que produz.
TEORIAS
TEORIAS INSTRUMENTALISTAS
AUTONOMISTAS

ESTETICISMO HEDONISMO MORALISMO COGNITIVISMO


O valor da arte reside A arte tem valor A arte tem valor A arte tem valor
nas suas propriedades porque porque tem uma porque alarga o
formais (beleza). proporciona função moral. conhecimento.
prazer.

83

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