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Almerindo Afonso

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Almerindo Janela Afonso

PROTAGONISMOS INSTÁVEIS DOS PRINCÍPIOS DE


REGULAÇÃO E INTERFACES PÚBLICO/PRIVADO EM
EDUCAÇÃO *

ALMERINDO JANELA AFONSO**

RESUMO: Ao longo da modernidade capitalista, no espaço de cres-


cente afirmação de fronteiras nacionais, construindo e afirmando po-
sições e relações desiguais, o Estado, o mercado e a comunidade fo-
ram os principais actores da regulação social. O protagonismo de um
deles, geralmente o Estado, tendia a ser acompanhado pela retracção,
cerceamento ou subordinação de cada um dos outros, ou dos dois
em simultâneo, em graus muito distintos consoante as conjunturas
históricas, as mudanças sociais, culturais, económicas e político-ideo-
lógicas. Esses protagonismos instáveis dos (velhos) princípios de
regulação social têm sido confrontados com as profundas mudanças
e transições das últimas décadas, sucedendo-se as interpenetrações, os
hibridismos e ambivalências, em contextos agora marcados (também)
por protagonismos emergentes de outros modos de regulação social, a
nível nacional, internacional e transnacional. As interfaces público/pri-
vado, e a pluralidade de expressões de mercado e quase-mercado em
educação, podem ser lidas tendo em mente esse pano de fundo.
Palavras-chave: Princípios de regulação social. Interfaces público/pri-
vado em educação. Mercado e quase-mercado.

* Este texto surgiu na sequência do convite que me foi dirigido para participar, em dezem-
bro de 2009, em Campinas, no II Seminário Brasileiro de Educação – “Os desafios con-
temporâneos para a educação brasileira e os processos de regulação”. Nesta ocasião, em que
foram comemorados os 30 anos de existência do Centro de Estudos Educação e Sociedade
(CEDES ), pude aproveitar de momentos muito ricos de aprendizagem e de convívio pessoal
e intelectual com renomados colegas brasileiros e estrangeiros. Por estas e outras razões, sou
grato ao CEDES e seu colegiado, não podendo deixar de referir, de modo particular, o traba-
lho decisivo, expressivo e militante da profª Ivany Pino, tanto na coordenação deste im-
portante projecto institucional, como da prestigiada revista Educação & Sociedade.
** Doutor em Sociologia da Educação e membro do Centro de Investigação em Educação
(CIEd) da Universidade do Minho (Portugal). E-mail: ajafonso@ie.uminho.pt

Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 113, p. 1137-1156, out.-dez. 2010 1137


Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
Protagonismos instáveis dos princípios de regulação e interfaces público/privado...

UNSTABLE PROTAGONISMS OF THE PRINCIPLES OF REGULATION AND


PUBLIC/PRIVATE INTERFACES IN EDUCATION

ABSTRACT: Throughout the course of capitalist modernity, in a


space of growing defence of national borders, building and en-
trenching unequal positions and relations, the State, the market and
the community have been the leading actors of social regulation.
The protagonism of one (usually the State) tended to be accompa-
nied by the retraction, curtailment or subordination of the others,
simultaneously or not, to very different degrees according to the his-
torical context and social, cultural, economic and political/ideologi-
cal changes. These unstable protagonisms of the (old) principles of
social regulation have been confronted with the profound changes
and transitions of the last few decades, making way for the inter-pen-
etrations, hybridisms and ambivalences, in contexts now (also) marked
by protagonisms that have emerged from other forms of social regula-
tion, at a national, international and transnational level. The public/
private interfaces, and the plurality of market and quasi-market ex-
pressions in education, can be read with this vaster backdrop.
Key words: Principles of social regulation. Public/private interfaces in
education. Market and quasi-market.

bordar as interfaces entre o público e o privado remete para im-


portantes questões prévias, algumas das quais podem ser relacio-
nadas com os princípios estruturantes de regulação social e res-
pectivas interacções. A estas questões podem ainda somar-se as que dizem
respeito às mudanças trazidas pelas agendas da globalização hegemónica,
com destaque para algumas repercussões no campo educacional vindas
da transnacionalização neoliberal do capitalismo e da crescente mercanti-
lização (ou mercadorização) da vida social, não sendo, em qualquer dos
casos, elas próprias indiferentes ou estranhas à acção de algumas organi-
zações internacionais e supranacionais. Fica assim esboçado um roteiro
possível para reflectir, ainda que sucintamente, sobre as interfaces públi-
co/privado no campo da educação e das políticas públicas.

Estado, mercado e comunidade: protagonismos instáveis


Quando tomamos em consideração a modernidade capitalista,1
podemos dizer que o exercício da regulação social assentou essencialmente

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em três princípios fundamentais: o Estado, o mercado e a comunida-


de.2 Historicamente, portanto, estes princípios emergem e afirmam-se,
de forma bastante desigual e não raras vezes contraditória, através de
processos de longa duração, que vão reconstruindo a sua própria iden-
tidade, reafirmando as suas especificidades e delimitando as suas fun-
ções e fronteiras (sociais, políticas, culturais e simbólicas), em inte-
racções protagonizadas alternadamente, sobretudo entre o Estado e o
mercado, com predomínio frequente do primeiro, e a subsequente
subalternização e duradoura colonização da comunidade. Apenas com
o objectivo de melhor compreensão de algumas afirmações neste texto,
considere-se que o mercado e a comunidade, sendo conceitos distin-
tos, estão muitas vezes implícitos na designação mais genérica de soci-
edade civil, marcando, com isso, uma oposição (discutível) a tudo o
que não é Estado.3 Há, no entanto, perspectivas teórico-conceptuais
que assentam no contrário, isto é, que pressupõem uma concepção de
Estado e sociedade civil que não traduzem necessariamente esta oposi-
ção, ou, então, noções outras que colocam em evidência as mediações e
interpenetrações das várias combinações possíveis entre a comunidade,
o mercado e o Estado (ver, por exemplo, Estêvão, 1998).
Numa breve análise retrospectiva, Boaventura de Sousa Santos
refere que, ao longo de todo o século XIX, “o princípio do Estado e o
princípio do mercado colidiram frequentemente na demarcação de áre-
as de cumplicidade/complementaridade e de domínio exclusivo”. Mais
precisamente, como acentua ainda este mesmo autor,

No período do capitalismo liberal (...) a unidade do Estado assentava na


distinção entre Estado e sociedade civil e na especificidade funcional do
Estado. A sociedade civil e, acima de tudo, as relações de mercado eram
concebidas como auto-reguladas, e era ao Estado que cabia garantir essa
autonomia. O instrumento mais crucial da autonomização da sociedade
de mercado foi o direito privado, complementado por medidas fiscais,
monetárias e financeiras, destinadas quase sempre a corrigir os desequi-
líbrios resultantes de deficiências e ou imperfeições do mercado. (Santos,
2000, p. 135)

Posteriormente, já nos finais do século XIX, a crescente densifica-


ção da sociedade capitalista manifestou-se na “expansão extraordinária
do princípio do mercado”, o que criou problemas e disfuncionamentos
vários, nomeadamente aqueles que derivaram da concentração de capital

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e da proliferação de monopólios, que acabaram por exigir uma maior


intervenção do Estado. Continuando a seguir Santos (2000), esta in-
tervenção teve como consequência mais imediata a transformação da
distinção entre Estado e sociedade civil e o esbatimento das fronteiras
entre ambos, não sem que o Estado acabasse, por razões várias, por for-
talecer a sua capacidade de regulação. A expressão disto mesmo culmi-
nou, durante o século XX, com o desenvolvimento do fordismo e com
novas formas de viabilizar a gestão económica e política: respectivamen-
te, o keinesianismo e o Estado-providência, cujo relativo sucesso, nos
países centrais, se estendeu até aos anos de 1970 (cf. Santos, 2000, p.
136-137). Segue-se um outro período de transformações do capitalis-
mo e da democracia, que se iniciou, justamente, com a crise desse mes-
mo fordismo e do Estado-providência, abrindo caminho para o que veio
a ser um novo e acentuado protagonismo do mercado – “um excesso
de sentido que invade o princípio do Estado e o princípio da comuni-
dade” (idem, ibid., p. 143). Chegámos assim aos tempos mais recen-
tes em que os novos ícones (enquanto representações mais comuns des-
tas mudanças) remetem para a emergência do neoliberalismo e para a
expansão de uma economia global, com o consequente esbatimento do
papel anterior do Estado, agora cada vez mais incapaz de regular com
sucesso a própria economia nacional. Neste contexto, por razões que
têm também a ver com a suposta e crescente dificuldade do Estado
para gerir e dar conta das demandas sociais, o princípio da comunida-
de acabou por ganhar uma presença e uma dinâmica mais fortes, e com
maior autonomia, ao ponto de voltarmos a reconhecer a necessidade
de uma sociedade civil mais activa (ou, até mesmo, de uma sociedade-
providência), que possa, pelo menos em parte, contrabalançar conjun-
turalmente os défices de investimento público do Estado e os proble-
mas criados pelos excessos do mercado.
Mas os protagonismos e interacções entre o Estado e a sociedade
civil (nas várias acepções, ou de mercado ou de comunidade ou de am-
bos) também foram diferenciados em função dos regimes políticos. As-
sim, por exemplo, se considerarmos apenas o contexto europeu e o
período posterior à Segunda Guerra Mundial, verifica-se que o Estado
teve um forte protagonismo, quer em sociedades com regime capita-
lista democrático, quer em sociedades com regime capitalista ditatorial,
quer em sociedades com regime socialista (não democrático). Nos casos
em que esse protagonismo assumiu a forma de Estado-providência, o

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aparelho político-administrativo procurou manter o controlo político


da economia e a regulamentação da acção do mercado no interior das
fronteiras nacionais. Noutros contextos, nos casos em que ocorreu um
protagonismo estatal exacerbado, como o das ditaduras militares lati-
no-americanas ou outras ditaduras em regimes capitalistas europeus,
ou naquelas situações em que houve um forte controlo sobre a socieda-
de em termos culturais e político-ideológicos, acompanhado do desen-
volvimento de uma economia socialista centralmente planificada, ou a
sociedade civil foi fortemente constrangida em termos de iniciativa po-
lítica (Nogueira, 1998), ou, para além disso, a existência e promoção
do mercado foram impedidas ou fortemente cerceadas por serem in-
compatíveis com o sistema. No primeiro caso, a sociedade civil, como
esfera autónoma dos cidadãos, tendeu a ser pouco activa, dado o
intervencionismo e capacidade do Estado no atendimento das deman-
das sociais; no segundo caso, a sociedade civil não se constituiu sequer
como esfera autónoma dos cidadãos, tendo sido, não raras vezes, pro-
fundamente desvitalizada sob o peso do totalitarismo estatal e dos apa-
relhos de coerção.4 Seja como for, nestes como noutros casos, nomea-
damente quando a própria sociedade civil se confunde ou interpenetra
com o Estado, fica sublinhado que as experiências concretas, as pers-
pectivas político-ideológicas e as teorizações relativas à sociedade civil
são muitas e antagónicas. Vejamos, sucintamente, até que ponto algu-
mas destas questões estão ou não presentes em décadas mais recentes.
Num contexto político e económico predominantemente neoli-
beral, emergiu uma nova centralidade da sociedade civil e, ao mesmo
tempo, passaram a coexistir concepções, representações e novas expec-
tativas em torno do seu papel, muitas vezes em profunda divergência
com essa ideologia. Não se pode, por isso, afirmar que tenha vindo a
prevalecer uma concepção neoliberal de sociedade civil, ainda que esta
concepção esteja também muito presente. Com efeito, a crise dos Es-
tados-providência, a redefinição do papel do Estado e a reconfiguração
dos espaços público e privado, num contexto de crescente exacerbação
da ideia e importância do mercado e de mudanças profundas em ter-
mos de valores e visões do mundo, ressignificaram a importância cul-
tural e social das iniciativas não estatais e induziram uma espécie de
representação light de sociedade civil que, numa perspectiva mais
radicalizada e conotada com uma certa hipermodernidade, se confun-
de muitas vezes com o lugar de afirmação de estratégias individualistas

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e de pulverização de identidades. Ao mesmo tempo, tem vindo a for-


talecer-se uma outra representação de sociedade civil, politicamente
mais densa e impactante, como lugar de explicitação de movimentos
sociais contra-hegemónicos e de construção de articulações colectivas e
organizativas de interesses transversais. Neste novo contexto, a socieda-
de civil pode ser também (e é muitas vezes) um lugar de resistência ao
discurso e orientações dominantes, mas, mesmo assim, só raramente
continua a ser entendida como arena privilegiada de luta de classes pela
hegemonia (na acepção gramsciana).
No discurso neoliberal (ou mesmo no discurso da chamada ter-
ceira via), trata-se, antes, de uma acepção de sociedade civil que, con-
soante as nuances político-ideológicas ou as delimitações mais pragmá-
ticas, ora significa mercado, ora significa comunidade, ora significa a
mobilização simultânea e a interacção dos dois – agora chamados a ser
parceiros, mediadores ou mesmo protagonistas em processos (suposta-
mente não conflituais) de articulação com o Estado (cf., por exemplo,
Lima & Afonso, 2006). Uma destas possibilidades é precisamente
aquela em que a sociedade civil, como comunidade que actua através
de uma pluralidade de organizações e associações não lucrativas, se cons-
titui como um espaço ou uma rede de interacções com relativa autono-
mia face ao Estado e ao mercado, não deixando, todavia, de os intersectar
e de com eles conviver (e por eles ser, em parte, condicionada). São vis-
tas hoje como iniciativas muito emblemáticas desta nova e supostamen-
te mais activa e criativa sociedade civil as que, por exemplo, se inscrevem
na economia social, na economia solidária, no empreendedorismo so-
cial ou, mais genericamente, no chamado terceiro sector. 5 A análise
mais profunda destas iniciativas, ainda que partindo de perspectivas
muito divergentes, não deixa de mostrar a crescente instabilidade e
porosidade do Estado, do mercado e da comunidade como princípios
de regulação social.
Além disso, os acontecimentos mais recentes que desencadearam
a actual crise económica e financeira do capitalismo também revelam que
os consensos e os protagonismos em torno dos princípios de regulação
(sobretudo o do Estado e o do mercado) são provisórios e instáveis. Se,
nos últimos trinta anos, o pensamento único insistiu nos benefícios do
mercado e nas consequências malévolas do crescente peso e intervenção
do Estado, no presente momento parece que o Estado volta a ser a solu-
ção para todas as crises.

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Há aqui, todavia, algo que continua impreciso e que os discur-


sos e análises parecem desconhecer ou fazer esquecer. Se recuarmos um
pouco no tempo, veremos que, quando ocorreu a viragem neoliberal,
em finais dos anos de 1970 e inícios dos de 1980, sobretudo em al-
guns países centrais como os EUA e a Inglaterra, não foram poucas as
vozes, vindas sobretudo de sectores mais ortodoxos, a reclamar e anun-
ciar as vantagens do Estado-mínimo. Mas a retracção profunda do pa-
pel do Estado, que esta designação sugeria (cf. Nozick, 1988), nunca
se concretizou, como o demonstram os próprios governos da nova di-
reita, cuja fórmula política foi, antes, a de um Estado forte e uma eco-
nomia livre (cf. Gamble, 1994; Afonso, 1999). Em convergência com
essa fórmula, o chamado Consenso de Washington reforçou a tónica
numa articulação mais híbrida e acabou por marcar a agenda. A este
propósito, a forma como Santos (2006, p. 321) descreve esta mudan-
ça é elucidativa:

O Estado fraco, que emerge do Consenso de Washington, só é fraco ao


nível das estratégias de hegemonia e de confiança. Ao nível da estratégia
de acumulação é mais forte do que nunca, na medida em que passa a
competir ao Estado gerir e legitimar no espaço nacional as exigências do
capitalismo mundial. Não se trata, pois, da crise do Estado em geral, mas
de um certo tipo de Estado. Não se trata do regresso puro e simples do
princípio do mercado, mas de uma nova articulação, mais directa e mais
íntima, entre o princípio do Estado e o princípio do mercado.

Directa ou indirectamente relacionada com esta constatação, e


ao contrário do que vem sendo afirmado em alguns sectores, não terá
sido a falta de regulação do Estado que causou a recente crise financei-
ra que se espalhou a nível mundial. Tal como alguns autores mais crí-
ticos referem, só uma leitura “simplificada e superficial poderia consi-
derar que o Estado se tinha retirado”. Com efeito, sustentam ainda
estes mesmos autores, “mais do que considerar a relação entre Estado e
mercado na era neoliberal em termos de desregulação, pode ser mais
útil examinar os modos pelos quais a financeirização se desenvolveu
através dos órgãos reguladores velhos e novos” (Panitch & Konings,
2009, p. 64-65). 6
Aliás, no campo da educação aconteceu precisamente isto: o Es-
tado nunca se retirou totalmente, apesar de, em determinados momen-
tos, os discursos da redução do papel do Estado e do incremento da

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privatização serem ideologicamente ardilosos e, também por isso, for-


temente persuasivos. Como procurarei sinalizar na secção seguinte des-
te texto, no que diz respeito a algumas orientações e políticas para a
educação, o que parece ser mais expressivo, no contexto nacional, não
é o esbatimento ou subalternização de um ou outro princípio de regu-
lação, mas, antes, as porosidades e interacções entre os diferentes prin-
cípios de regulação.

Quase-mercado e mercado em educação: interfaces público/privado


Podendo ter alguma expressão no campo educacional, sobretudo
ao nível da participação nos órgãos de direcção e gestão de escolas pú-
blicas e na concretização de parcerias várias entre estas e o terceiro
sector, o apelo à sociedade civil (quer enquanto mercado, quer enquan-
to comunidade), tem vindo também a fazer-se em relativa sincronia
com a introdução de mecanismos de privatização (sem mercado) e de
lógicas de quase-mercado no campo (público) do Estado.
Uso aqui a expressão quase-mercado como referência genérica que
inclui todas as formas possíveis em que esteja em desenvolvimento uma
qualquer alteração, mais ou menos radical, nas lógicas públicas e esta-
tais de provisão, financiamento e organização da educação escolar, sen-
do de admitir graus e procedimentos muito diferenciados que apenas
excluem a privatização total dos serviços educativos. Neste sentido, a
expressão quase-mercado (ou semi-mercado) referir-se-á à introdução de
lógicas e valores de mercado no interior do sistema público estatal, dan-
do conta inclusivamente de formas diversas de comparação, concorrên-
cia e concretização da liberdade de escolha entre o público e o priva-
do, quando estas não levarem à privatização ou não forem induzidas
por razões de lucro, ainda que possam ser estimuladas por apoios fi-
nanceiros ou subsídios específicos (como acontece com os vouchers ou
cheques-ensino). Constituem ainda mecanismos de quase-mercado (por-
que induzidos ou propiciados pelo próprio Estado) os que se tradu-
zem na concorrência entre organizações privadas, quando estas têm
como objectivo ser escolhidas para funções de natureza lucrativa, atra-
vés da realização de actividades específicas em estabelecimentos escola-
res públicos (por exemplo, a gestão privada de uma cantina ou a aqui-
sição de um serviço privado para a segurança de uma escola pública).7
Assim, para os objectivos deste texto, utilizo a expressão quase-mercado

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para dar conta de uma série de mecanismos e dispositivos que favore-


cem o desenvolvimento de lógicas e valores de mercado, mas que não
são rigorosamente mercado. Como referem alguns autores, “cada vez se
utiliza mais a expressão quase-mercado para caracterizar a intenção de
introduzir forças de mercado e formas de decisão próprias do sector pri-
vado na provisão da educação e dos serviços de bem-estar social”
(Whitty, Power & Halpin, 1999, p. 15). Ao contrário, a expressão mer-
cado educacional parece-me mais adequada, se for utilizada para sinali-
zar a efectivação ou a indução da liberdade de escolha e da concorrên-
cia apenas entre escolas privadas, ou quando se tratar da oferta (no
espaço do mercado) de outras iniciativas educativas privadas que visem
o lucro. Neste sentido, a expressão quase-mercado é conotativa porque
sugere a existência de valores, lógicas ou ideologias de mercado, mas
não o mercado em sentido restrito.8
Tendo isso em consideração, podem ser equacionadas consequên-
cias (sociais e educacionais) diferentes, quando, por um lado, se trata
de instituições educativas públicas (criadas, financiadas, reguladas e
geridas exclusivamente pelo Estado) e que oferecem serviços gratuitos,
tendencialmente gratuitos ou que não visam o lucro e se destinam a
alunos de todas as classe sociais, ou quando, por outro lado, estão em
causa instituições privadas em que os serviços educacionais são pagos
com intuito de lucro, que podem seleccionar o público e que têm,
muitas vezes, uma orientação mais classista e elitista e dependem, ex-
clusiva ou predominantemente, da oferta e da procura no mercado.
Do meu ponto de vista, o facto de haver diferenças entre os dois
modelos não significa que as consequências do mercado educacional se-
jam, a priori, piores ou mais benévolas do que as consequências do qua-
se-mercado (ou vice-versa). Tudo depende dos valores e objectivos (po-
líticos, sociais e educacionais) em causa num determinado modelo de
organização escolar ou num determinado sistema educativo.
Considerando, por exemplo, a questão da democratização na es-
cola pública, possivelmente as lógicas de quase-mercado poderão ter
efeitos eventualmente mais nefastos do que as lógicas de mercado, dado
que as primeiras se desenvolvem muitas vezes de forma oculta, poden-
do, sob o véu do discurso da igualdade de oportunidades, ser profun-
damente reprodutoras das desigualdades sociais e educacionais que
atingem, sobretudo, os grupos sociais com menos capital social e cul-
tural e com menos capacidade de descodificar criticamente (e fazer

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valer em seu proveito) as oportunidades e estratégias de sucesso e de


mobilidade no interior do sistema. Em alguns países, como Portu-
gal, a novidade relativamente recente dos dispositivos de quase-mer-
cado (e a sua frequente fluidez e heterogeneidade) torna igualmente
mais difícil perceber o seu funcionamento e adivinhar as suas con-
sequências, sobretudo por parte de famílias em desestruturação e/ou
envolvidas em processos mais ou menos irreversíveis de exclusão soci-
al, ou famílias já profundamente marcadas por (ou, numa determi-
nada situação, mais conformadas com) processos de discriminação
social e cultural. Isto não significa, todavia, que os grupos sociais
desfavorecidos, ou com menos recursos para pagar escolas privadas,
não procurem igualmente utilizar estratégias diferenciadas de esco-
lha (neste caso, sobretudo, de escolha da escola pública), as quais vi-
sam, de modo idêntico, aumentar as oportunidades disponíveis para
a escolarização e sucesso dos seus filhos.9
A indução de quase-mercados e/ou de mercados no campo edu-
cacional tem sido analisada partindo de múltiplos factores (cf., por
exemplo, Zákia & Oliveira, 2003; Barroso, 2003; Adrião & Peroni,
2005; van Zanten, 2005),10 entre os quais está a crítica ao monopólio
da escola pública estatal, sobretudo quando este monopólio é conside-
rado um obstáculo importante à liberdade constitucional de ensinar e
de aprender, e um impedimento ao direito das famílias escolherem as
escolas e os projectos educativos que julgarem mais convenientes para
os seus filhos. Talvez por isso a valorização da liberdade de escolha edu-
cacional seja um dos aspectos mais consensuais no desenvolvimento dos
fenómenos de mercado e de quase-mercado em educação.11 Aliás, a li-
berdade de escolha é um articulador muito consistente e útil ao com-
patibilizar (e dar sentido a) reivindicações de sectores ideológicos que
defendem, em muitos casos, valores muito distintos, como é o caso dos
neoconservadores e dos neoliberais: por um lado, da parte dos neocon-
servadores, a liberdade de escolha converge com o valor e centralidade
da família na educação dos filhos e, portanto, com o direito de realizar
escolhas que sejam compatíveis com os seus interesses; por outro lado,
da parte dos neoliberais, a escolha é estruturante porque sem ela não é
possível haver mercado competitivo, nem quase-mercado em educação.
Neste mesmo sentido, quando aumenta a pressão social para a
escolha educacional, também são privilegiadas certas formas de avaliação
(como os testes estandardizados e os exames nacionais) e a divulgação

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pública dos resultados escolares (como os rankings). Os próprios resul-


tados da avaliação institucional, sobretudo quando decorrem de pro-
cessos de avaliação externa, também podem ser publicamente divulga-
dos e ter consequências semelhantes aos rankings. Porém, se é verdade
que os resultados destas avaliações continuam a estar na base de pro-
cessos indutores de concorrência, comparação e emulação, nisso parti-
cipando não apenas os alunos, mas, igualmente, e cada vez mais, os
próprios professores e as organizações educativas, também é verdade
que os efeitos de quase-mercado em educação podem ser (e têm sido)
conseguidos de formas muito mais diversificadas e subtis e, por vezes
mesmo, mais eficazes do que através de rankings.12
Por outro lado, também o próprio mercado tem facetas e dimen-
sões muito diversificadas. Como a este propósito chama a atenção
Stephen Ball, “o mercado da educação já não é apenas uma questão de
escolha e de concorrência entre instituições de ensino”. Trata-se tam-
bém de “um sistema de bens, serviços, experiências e percursos difuso,
em expansão e sofisticado – alimentado pelo sector público e pelo
sector privado” (2005, p. 11).13
No que diz respeito a Portugal, por exemplo, um dos fenómenos
que tem vindo a ganhar crescente impacto educacional e económico, e
que se alimenta precisamente dos défices do ensino público, é o das
chamadas explicações. As explicações constituem um verdadeiro merca-
do, na medida em que são aulas particulares pagas, dependem da ini-
ciativa privada, visam fins lucrativos como consequência da prestação
de um serviço, estão sujeitas à lei da oferta e da procura e são livre-
mente escolhidas por alunos que necessitam de reforço ou complemen-
to escolar, quer porque não conseguem atingir certos patamares em ter-
mos de desempenho académico, quer porque, sendo bons alunos, têm
objectivos e expectativas de excelência que só podem (ou podem mais
facilmente) ser realizados mediante este tipo oferta educativa. As expli-
cações, enquanto tutoria suplementar privada (private supplementary
tutoring), ocorrem quer em empresas ou centros privados (até sob a for-
ma de franchising), quer em espaços domésticos, mas sempre fora dos
tempos normais de frequência da escola.14 Relativamente a Portugal, e
não só, verificamos que as explicações são um fenómeno que não é pro-
priamente novo, estando o mesmo relacionado, entre outros factores,
quer com a já longa crise da escola pública e suas consequências sociais
e académicas, quer com o reforço das estratégias de preservação de

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(velhos) estatutos e privilégios de classe, quer, ainda, com estratégias


para aumentar as probabilidades de concretizar expectativas de mobi-
lidade social ascendente. Não sendo estes factores desconhecidos, eles
ganham actualmente um novo sentido, quando a sua análise nos re-
mete, directa ou indirectamente, para a configuração de um novo con-
texto nacional e global, cujos contornos mais expressivos (do ponto de
vista cultural, económico e político-ideológico) se tornaram mais níti-
dos nas últimas décadas. É também neste novo contexto, que podere-
mos designar genericamente de neoliberal,15 que se geram e ampliam
(não apenas a nível nacional, mas também a nível internacional) pro-
cessos organizacionais, altamente lucrativos e tendencialmente de ini-
ciativa privada, direccionados para o enquadramento de práticas de
educação (e sobretudo de instrução), pretensamente mais eficazes em
termos de impacto nos resultados académicos.
Inscrevendo-se igualmente numa agenda mais global – que é
claramente direccionada para o objectivo da liberalização, da priva-
tização e do desenvolvimento do mercado em educação –, não po-
dem deixar de ser referidos os acordos feitos no âmbito da Organiza-
ção Mundial do Comércio ( OMC ). Esta actua de forma diferente de
outras organizações internacionais, na medida em que “funciona atra-
vés da adopção de normas vinculatórias, em vez de recorrer a práticas
persecutórias ou compensatórias”, tendo igualmente a capacidade de
“afectar os sistemas educativos e as práticas educativas num conjunto
muito maior de actividades do que outras organizações” (Robertson,
Bonal & Dale, 2007, p. 206). No que diz respeito à problemática
que tenho vindo a discutir, um dos principais compromissos inter-
nacionais que poderá afectar de forma crescente a educação consta do
Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS). Neste âmbito, en-
tre muitos outros aspectos importantes, é previsível a alteração do pa-
pel do Estado nacional e dos padrões de funcionamento subordi-
nados à concepção de bem comum, não apenas porque poderão
diluir-se, de forma significativa, as funções tradicionais relativas ao
financiamento, propriedade, provisão e regulação dos sistemas educativos
públicos, mas também porque o derrube das barreiras tradicionais
à importação e exportação de serviços educativos privados terá conse-
quências na reconfiguração dos processos de acumulação e de legiti-
mação. Se isto ganhar maior amplitude, como é previsível, “um hipo-
tético sistema educativo mundial” não apenas levará a uma maior

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internacionalização das credenciais e diplomas, como impulsionará


decisivamente a “globalização da produção e do consumo do conhe-
cimento”. Entre as diferentes razões que podem levar a um aumento
da oferta e da procura, num mercado educativo global altamente
competitivo, está certamente o facto de este mercado poder “atrair
capital educativo estrangeiro” capaz de contribuir para resolver pro-
blemas relativos à balança de pagamentos de alguns países, e ser tam-
bém “uma estratégia para lutar contra o défice fiscal do Estado”. 16
Por sua vez, “a língua e a identidade nacional são funções vulneráveis
num mercado global dominado pelas empresas educativas multina-
cionais”, sendo que as bases da política nacional para a produção do
conhecimento, bem como a sua apropriação e distribuição, serão
também fortemente limitadas face à existência de um mercado livre,
dentro de uma economia baseada no conhecimento (idem, ibid., p.
222-229). Nesse sentido, o sector mais permeável a este mercado
global voltado para a comercialização dos serviços educativos é o en-
sino superior. Como refere a este propósito Santos (2005, p. 32), há
já uma década que “a transnacionalização neoliberal da universidade
ocorre sob a égide da Organização Mundial do Comércio”. Isto reve-
la, aliás, que “a transformação da educação superior numa mercado-
ria educacional é um objectivo de longo prazo”, o qual exige “a eli-
minação, progressiva e sistemática, das barreiras comerciais”.
Sabendo dos modos específicos e vinculatórios de funciona-
mento da OMC e da vulnerabilidade de muitos países, no que diz res-
peito à construção e consolidação dos respectivos sistemas educativos
nacionais – o que passa, frequentemente, pela própria incapacidade
financeira para satisfazer uma demanda interna, nomeadamente no
nível de ensino superior –, poderão perceber-se melhor as múltiplas
consequências (sociais, económicas, culturais, identitárias...) e as no-
vas e profundas assimetrias e desigualdades que estão sendo geradas
pela ampliação da mercadorização da educação no espaço global. Nes-
ta perspectiva, ainda que denunciando apenas uma das dimensões
mais visíveis deste processo, ganha particular acuidade a afirmação de
Jameson (2001) quando refere que o “imperialismo pós-moderno” no
campo cultural está presente de forma evidente em organizações
como a OMC. Certamente, isso é verdade, mas não é apenas no campo
cultural que esta afirmação faz sentido, como demonstram muitas
outras análises.

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Para concluir, provisoriamente


Procurei lembrar que os princípios de regulação (Estado, merca-
do e comunidade), que se desenvolveram no espaço do Estado-nação
ao longo modernidade capitalista, têm vindo a confrontar-se com mu-
danças profundas nas últimas décadas. Estas mudanças, decorrentes
nomeadamente da transnacionalização da economia e da emergência de
novos actores e protagonistas subnacionais, nacionais e internacionais,
têm questionado não apenas as funções e expectativas referenciadas a
esses princípios de regulação, mas também a forma como esses mes-
mos princípios se actualizam face ao mundo contemporâneo, onde ga-
nham importância e coexistem outras formas e instâncias de regulação.
A este propósito, referi-me a protagonismos instáveis, permeáveis e
abertos a interfaces, reconfigurando-se de forma mais líquida (na
acepção de Bauman), sem os contornos rígidos ou duradouros dos pe-
ríodos em que as relações entre os princípios de regulação eram
construídas (ou, apenas, socialmente representadas) como sendo mais
estanques ou coexistindo por justaposição. Voltando-me mais para o
campo educacional, escolhi as interfaces entre o público e o privado,
através dos mecanismos de mercado e quase-mercado, para ilustrar as
porosidades que estão presentes nas relações entre os próprios princí-
pios de regulação, mostrando-me particularmente sensível ao facto de
a privatização e mercantilização do sector público serem “cada vez mais
complexas e totalizadoras”.17 Aliás, esta tendência totalizadora tem uma
evidente expressão no facto de a educação pública, como projecto es-
sencial do Estado-nação, imbricada na afirmação e consolidação da cul-
tura e identidade nacionais, estar hoje em dia ameaçada pela criação e
realização de um mercado em educação e/ou pela existência de eficazes
e variados dispositivos e mecanismos de quase-mercado, mas, sobretu-
do, pela emergência de um mercado mais agressivo e competitivo a ní-
vel global, como mostram bem os acordos da OMC relativos ao comér-
cio de serviços educativos.
Perante este novo contexto, e face à pluralidade das novas formas
e instâncias de regulação (de que não tratei nesta oportunidade), os ve-
lhos princípios de regulação da modernidade capitalista não desapare-
ceram, mas são mobilizados e intersectados numa teia mais ampla e
heterogénea de causalidades e de condicionantes nacionais e suprana-
cionais. Por estas e outras razões, repolitizar as agendas educacionais é

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cada vez mais urgente e indispensável para o fortalecimento de todas


as capacidades de resistir e de pensar alternativas a esta mercadorização
global da educação, que é, em algumas das suas dimensões, um novo e
importante instrumento de acumulação capitalista com consequências
perversas previsíveis.

Recebido em fevereiro de 2010 e aprovado em março de 2010.

Notas
1. É no século XIX “que o capitalismo se torna no modo de produção dominante nos países
centrais e que a burguesia emerge como classe hegemónica. Daí para a frente, o paradigma
da modernidade fica associado ao desenvolvimento do capitalismo” (Santos, 2000, p.
129).
2. Sigo aqui de perto a concepção de Boaventura de Sousa Santos que, em diferentes traba-
lhos, tem relacionado os princípios do Estado, do mercado e da comunidade com o pilar
da regulação.
3. Como escreve Norberto Bobbio (1990, p. 33), “Na linguagem política de hoje, a expres-
são ‘sociedade civil’ é geralmente empregada como um dos termos da grande dicotomia so-
ciedade civil/Estado (...). Negativamente, por ‘sociedade civil’ entende-se a esfera das re-
lações sociais não reguladas pelo Estado”.
4. Evidentemente, estas afirmações são genéricas porque há especificidades que só podem ser
atendidas e consideradas numa análise mais aprofundada e num período histórico mais
longo.
5. Mas, se há uma concepção neoliberal de sociedade civil que se confunde com o terceiro sec-
tor e que pode, também por isso, ser posta em questão (cf. Montaño, 2002), há também
outras concepções que sugerem alternativas de revalorização desse mesmo terceiro sector, no
sentido de ser possível, em determinadas condições, a “reinvenção solidária e participativa
do Estado” (Santos, 2006, p. 317-349).
6. E concluem: “En vez de defender la clase de iniciativas de vuela a la regulación de arriba
abajo que simplesmente reinstalan la hegemonía financiera, lo que se necesita es sondear –
intelectual, cultural, así como políticamente – si esta crisis podría proporcionar una
oportunidad de renovación del tipo de perspectiva radical que anticipa una alternativa
sistémica al capitalismo global” (Panitch & Konings, 2009, p. 78).
7. De acordo com Clive Belfield e Henry Levin, a “privatização educativa” (em sentido am-
plo) pode ser feita utilizando uma ou mais das seguintes estratégias: aumento da partici-
pação de operadores privados, aumento do financiamento directo por parte dos usuários,
e aumento do controlo e da escolha das escolas pelos pais. Através destas medidas, em vez
da privatização total, ocorre antes a criação de um “semimercado”, em que a competição en-
tre o público e o privado não é motivada pelo lucro, sendo instrumentos deste
semimercado os cheques-ensino (vouchers) ou outras formas de financiamento, a
desregulamentação da escola pública, a contratação de serviços específicos, não directamente
educativos, de organizações privadas (serviço de cantinas, limpeza, segurança, transportes
ou mesmo a gestão), bem como os benefícios fiscais e subsídios às famílias e a atribuição

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de bolsas para a frequência de escolas privadas, entre muitas outras estratégias possíveis (cf.
Belfield & Levin, 2004).
8. A afirmação é inspirada em Dale (1995, p. 140-141), quando refere que “o termo mer-
cado é muito mais conotativo do que denotativo”, uma vez que, no contexto político anali-
sado por este autor, ele “opera como uma metáfora ou slogan mais do que um guia explí-
cito e detalhado de ação”. Por analogia, parece-me que a observação é também válida, em
determinadas situações, no que diz respeito ao quase-mercado.
9. Tendo como referência um trabalho de pesquisa, desenvolvido no Rio de Janeiro, cujo ob-
jecto é a “disputa por escolas públicas que não poderiam ser caracterizadas como ‘de elite’
ou ‘de excelência’”, Marco Costa e Mariane Koslinski escrevem: “Entre os amplos segmen-
tos da população desprovida de meios de acesso a essas escolas de elites, podemos encon-
trar renhidas lutas pela oportunidade de aceder a uma oferta escolar considerada de quali-
dade superior às demais dentre o espectro das que é plausível aspirar”. E continuam:
“Nossa pesquisa se dedica a investigar os processos de escolha e de acesso escolar em um
contexto que denominamos ‘quase-mercado oculto’. Isto é, pretende observar o caso brasi-
leiro – em contraste com locais onde há políticas deliberadas de escolha escolar – e, frente
à ausência de regulação, os mecanismos de segmentação que se manifestem em meio à
complexa hierarquia escolar existente nas redes ‘comuns’. Suspeitamos que, em nosso
caso, o silêncio e a quase ausência de regras para a disputa por vagas nas escolas que aten-
dem à imensa maioria da população promovem a desigualdade de oportunidades escola-
res de forma mais severa que a criticada pelos opositores de políticas de school choice. En-
fim, o processo parece acentuar características promotoras de desigualdade social, ampli-
ando as chances de quem já desfruta de algum benefício, frequentemente associado ao
patrimônio de relações sociais” (Costa & Koslinski, 2009, p. 2).
10. Uma das primeiras propostas de análise das mudanças nas políticas públicas, a partir do
conceito de quase-mercado, encontra-se no muito referenciado trabalho de Julian Le Grand
(1991).
11. Parecendo justamente incluir tanto a possibilidade do mercado, como a possibilidade do
quase-mercado, Barroso e Viseu (2003, p. 899) advertem: “(...) as forças e os interesses
em presença no processo de definição, coordenação e execução das políticas e acção
educativas são muito mais amplos e diversificados do que a dicotomia Estado-mercado
abrange (...). Na verdade, se a ‘livre-escolha’ da escola é um dos instrumentos mais po-
derosos para a criação de um mercado educativo (...) o certo é que há lógicas de interacção
e escolha que não se inserem, necessariamente, num modelo concorrencial de mercado”.
12. Como escreve Martins (2009), a gestão e promoção da imagem da escola pode ser uma
forma de substituir (ou de neutralizar) a consequência dos rankings, mantendo igualmen-
te, por este processo, a indução de efeitos de quase-mercado nas escolas públicas, mesmo
naquelas onde os próprios resultados dos alunos não são tão favoráveis como seria desejá-
vel. Por outro lado, no estudo de Antunes e Sá (2010, p. 141), “A publicitação de diver-
sas ‘ligas’ nacionais de escolas [rankings] constitui uma pressão adicional, face à qual as es-
colas, segundo os seus responsáveis, mobilizam parte dos seus recursos materiais e sim-
bólicos para alimentar uma imagem favorável e o marketing capaz de a potenciar”.
13. Este autor refere ainda a utilização crescente de uma “combinação de instituições estatais e/
ou privadas” através das quais os pais – “ser pai ou mãe é uma tarefa cada vez mais difícil,
exigente e profissionalizada” – viabilizam o acesso dos filhos a complementos educativos
pagos, serviços de consulta e acompanhamento psicológico, actividades de desenvolvimen-
to físico, frequência e acompanhamento de diferentes actividades de lazer e tempos livres,
entre muitas outras. O aumento da procura destas actividades não-formais, para além dos

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tempos normais de escolarização, dentro ou fora da escola, tem vindo a acontecer também
em Portugal, de forma mais notória nos últimos anos. A este propósito, ver, por exemplo,
Palhares (2009).
14. Para um excelente trabalho sociológico sobre este tema – que reúne, em capítulos de auto-
ria diversa, algumas das dimensões mais expressivas sobre o fenómeno das explicações em
Portugal e noutros países –, ver Costa, Neto-Mendes e Ventura (2008).
15. Para uma abordagem de alguns dos traços mais marcantes do neoliberalismo na educação,
ver, por exemplo, Silva (2007).
16. Como refere Siqueira (2004, p. 145-146), “Os países mais ricos, com a maioria da po-
pulação escolarizada, uma taxa de natalidade decrescente e amplos sistemas educacionais
em funcionamento, estão se apresentando como um mercado restrito para a atuação de em-
presas no setor educacional. Por outro lado, os países em desenvolvimento – onde hoje se
encontra a maior parte da população em idade escolar e, portanto, onde há uma grande de-
manda potencial para a oferta de ensino nos vários níveis – são os alvos privilegiados des-
sa busca dos grupos empresariais por novos mercados”.
17. Como diz Ball (2004, p. 1121), “a privatização e mercantilização do setor público são
cada vez mais complexas e totalizadoras e ambas fazem parte de um acordo de política glo-
bal”. Para um leitura mais densa sobre estas questões, ver ainda Ball (2007).

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