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Trabalho, Cultura e Competências Na Contemporaneidade - Do Conhecer Ao Saber-Ser

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TRABALHO, CULTURA E COMPETÊNCIAS

NA CONTEMPORANEIDADE: DO CONHECER
AO SABER-SER
Marise Nogueira Ramos*

RESUMO
O artigo aborda a relação entre trabalho e cultura na contemporaneidade, concluindo que as transformações,
ocorridas ao final do século XX na esfera da produção, afetam os padrões de sociabilidade capitalista, confor-
mando uma cultura designada como pós-moderna. Discute as implicações na política educacional, identifican-
do a noção de competência como constituinte de um conjunto de novos signos e significados que passam a
ordenar as relações de trabalho e educativas no âmbito dessa nova cultura. Especialmente em relação aos
projetos escolares baseados na noção de competência, demonstra que a conformação de personalidades, fle-
xíveis e adaptáveis à realidade contemporânea, passa a predominar, em detrimento da transmissão de conhe-
cimentos sistematizados.
Palavras-chave: trabalho, cultura, competências.

O final da década de 60 já anunciava mudanças tanto na base material de produção quanto


no campo das idéias. Harvey (1996) demarca o período que vai de 1914 – surgimento dos métodos
de racionalização do trabalho (FORD, EUA, 1914) com base nos princípios da Administração Cien-
tífica (TAYLOR, EUA, 1911 e FAYOL, França, 1916) – a 1973, como aquele que se caracterizou
pelo paradigma taylorista/fordista de organização do trabalho, tendo como base técnica da produ-
ção os processos mecanizados. A partir de então, assiste-se nos países de capitalismo central, o es-
gotamento desses paradigmas, sendo esses substituídos por outros princípios da organização da
produção a partir do desenvolvimento da microeletrônica.
Bell (1973) desenvolve um esquema conceitual de sociedade formada por três esferas dis-
tintas – social, política e cultural – cada uma delas regida por um princípio axial diferente. Segundo
este esquema, a sociedade pós-industrial, cujo princípio axial é a tecnologia, refere-se à estrutura
social e se contrapõe aos conceitos de pré-industrial e industrial. Nesse esquema está pressuposto
que é possível que num dado período histórico um princípio axial específico adquira tamanha im-
portância que se torne determinante das outras relações sociais. Reconhecendo que no século XIX o
modo capitalista de produção se tornou o éthos predominante, determinando assim o caráter e a
cultura de então, ele nega que se derive daí que o modo de produção possa unificar a sociedade em
seu conjunto. Este teria sido o erro cometido por Marx, ao colocar que o modo de produção deter-
mina as outras dimensões da sociedade.
A tese da sociedade de informação é uma espécie de aprofundamento da primeira, desen-
volvido pelo próprio Bell, seguido por outros como Toffler (1973). Na sociedade pós-industrial a
produção seria voltada principalmente para atividades de processamento com base em telecomuni-
cações e computadores. O conhecimento, portanto, é um produto social e seu valor em muito se
difere dos produtos industriais posto que, diferentemente das mercadorias industriais, os conheci-

*Professora Adjunta Faculdade de Educação Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pela
Universidade Federal Fluminense. Diretora de Ensino Médio da Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Mi-
nistério da Educação.

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mentos, quando vendidos, continuam com o produtor, não se esvaindo quando consumidos ou usa-
dos. O modelo explicativo da sociedade pós-industrial e de informação, então, não seria mais o do
valor-trabalho, mas do valor-conhecimento. As dimensões que caracterizam esse tipo de sociedade
seria a centralidade do conhecimento teórico, como base das inovações tecnológicas, a expansão do
setor de serviços e a mudança da natureza do trabalho.
A idéia da sociedade pós-industrial baseia-se na sociedade de serviços e na retração da
produção industrial. O advento das tecnologias de informação fez a análise se estender para aspec-
tos mais específicos da produção capitalista como, por exemplo, sua determinação no jogo do espa-
ço/tempo. O industrialismo teria legitimado o espaço Estado-Nação e equiparado o tempo da natu-
reza ao tempo das máquinas. A tecnologia de informação comprimiu tanto o tempo quanto o espa-
ço, estabelecendo novos mecanismos de produção e circulação de mercadorias e, portanto, de acu-
mulação do capital. A necessidade da constante inovação técnica teria colocado o conhecimento
como principal valor produtivo, muito além do trabalho.
O modelo de Bell (1973), no entanto, é predominantemente econômico e não deduz dele as
demais características da vida cultural e política. Outros autores de mesma linha, porém, como Tof-
fler (1973), anunciam a ocorrência de mudanças profundas em toda a sociedade. Este último, por
exemplo, associa as mudanças na esfera da informação com mudanças nas esferas técnica, social,
de poder, biológica e psicológica. Para se ter idéia de como consideram essas mudanças uma revo-
lução radical, a sociedade de informação é tida como um novo modo de produção que implica num
novo estilo de vida completo.
A extensão dessas análises levou ainda à elaboração de duas outras correntes: as classifica-
das como pós-fordista e como pós-moderna. A primeira ainda se apega ao desenvolvimento capita-
lista como motor da mudança, mas identifica nossa época como “novos tempos”, face às diferenças
entre as velhas e novas formas do capitalismo. As mudanças na sociedade, na última parte do século
XX, seriam tão significativas que constituiriam um rompimento radical com os padrões e práticas
capitalistas anteriores. A teoria pós-moderna, por outro lado, seria a terceira e mais radical variante
da tese da sociedade pós-industrial. Sendo muito mais abrangente do que as teorias anteriores, aco-
lhe em sua estrutura todas as formas de mudanças – cultural, política e econômica1.
Em que nível então, ou de que forma, as mudanças no processo de produção efetuam mu-
danças no estilo de vida de uma sociedade, no seu éthos cultural? Porque a cultura pós-moderna é
adequada à forma que adquire o modo de produção capitalista na contemporaneidade?
Marx (1988), em O Manifesto Comunista, demonstra que a tendência expansionista do ca-
pital e a busca permanente de novos mercados não é um fenômeno a-histórico. O que assistimos
hoje é um incrível desenvolvimento do mercado mundial, o avanço da tecnologia e dos meios de
comunicação rápidos, precisos e eficientes, rompendo barreiras nacionais e tornando o capital mais
universal. Essas características do desenvolvimento capitalista se relacionam com as condições que
as classes sociais assumem nesse momento. A globalização se realiza como necessidade do capital

1
Além de Harvey (1973), Jameson (1994, 1996) também reconhece que há mudanças significativas no modo de organi-
zação do capitalismo e no conseqüente estilo de vida das sociedades. Eles, porém, não se rendem a visões apologéticas
que marcam autores como Bell. Enquanto Harvey tem a preocupação de analisar a pós-modernidade valendo-se pri-
mordialmente (mas não exclusivamente) da dimensão econômica do capitalismo deste fim de século, Jameson traz a
questão cultural de tal modo que considera o pós-modernismo como a lógica cultural do capitalismo tardio.

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de se expandir, satisfazendo novas necessidades criadas por esse mesmo desenvolvimento, processo
que envolve também a cultura e a produção intelectual.
O impressionante avanço das forças produtivas verificado a partir do século XX, princi-
palmente no período pós-guerra, é o retrato mais fiel do que previu Marx. As características funda-
mentais do capitalismo foram se comprovando: orientação para o crescimento; exploração e contro-
le do trabalho na produção e circulação de mercadorias; dinamismo organizacional que provoca
avanço das forças produtivas e modificam relações de produção. Também se confirmou a tendência
a crises, dentre as quais a de acumulação à qual, de certa forma, o fordismo e as políticas keynesia-
nas deram resposta. Harvey (1973) conclui que a crise do fordismo pode ser interpretada até certo
ponto como esgotamento das opções para lidar com o problema da superacumulação, de caráter
geográfico e geopolítico, que incluiu endividamento, luta de classes e estagnação corporativa nas
nações-Estado. Em síntese, a seguinte afirmação demonstra a face vida do capital: “O capital é um
processo, e não uma coisa. (...). O processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a
destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo
humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida. Ele gera problemas de superacumulação
para os quais há um número limitado de soluções possíveis” (op. cit., p. 307).
O esgotamento do fordismo, portanto, foi acompanhado de uma crise do mercado e do
consumo. Se o fordismo não teve paralelo em sua capacidade de produzir bens padronizados e em
grande escala, ele teve que enfrentar a retração dos grupos consumidores de massa. A diversifica-
ção de mercados e de produtos tornou-se uma questão essencial para o movimento do capital. A
inovação tecnológica constou desse programa e alterações significativas na forma de produzir tor-
navam-se inevitáveis. O mercado de massa, característico da produção fordista, se fragmentou em
uma grande diversidade de grupos de consumidores, de tal forma que a busca de mercadorias di-
ferentes e o descarte de padrões correntes de consumo pouco a pouco passam a ser a norma do mer-
cado e da vida burguesa.
Esse movimento de rápida mudança, de fluidez e de incerteza Harvey (id.) caracteriza co-
mo a passagem do fordismo para o regime de “acumulação flexível”. Ele se apressa em alertar que
não está claro se os novos sistemas de produção garantem ou não o título de um novo regime de
acumulação. Também na esfera das relações sociais, cuida para se perguntar se o renascimento do
empreendimento e do neoconservadorismo, associado com a virada cultural para o pós-modernismo,
garante ou não o título de um novo modo de regulamentação2.
O modo de regulamentação consiste em adequar o comportamento dos indivíduos a uma
configuração que mantenha o regime de acumulação funcionando. Tem de haver, portanto, uma
materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regu-
lamentação, etc. que garantam a unidade do processo; isto é, a consistência apropriada entre com-
portamentos individuais e o esquema de reprodução.
Esse é o eixo de análise de Gramsci (1991a, b). O conceito que ele utiliza de “Estado edu-
cador” nada mais é do que o exercício da hegemonia através do consentimento ativo dos governa-
dos e do uso dos meios de coerção tanto na sociedade civil, quanto na sociedade política.

2
O autor se baseia, aqui, na chamada Escola de Regulamentação de teóricos franceses, destacando-se, dentre eles,
Michel Aglietta, Robert Boyer e Alain Lipietz. Os regulamentadores interpretam a história do capitalismo como mar-
cada por sucessivos modos de desenvolvimento, nos quais um regime específico de acumulação é orientado por um
modo específico de regulamentação

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A racionalização do modo de produção implica a racionalização do uso da força de tra-
balho e, para isso, disciplinamento e convencimento dos trabalhadores e da sociedade em geral. O
Fordismo foi expressão viva desse processo, expressando a organização do modo de produção so-
bre uma base técnica racionalizada e de relações de trabalho mais sofisticadas.
A questão que se colocou no período posterior é a organização da cultura pós-moderna,
como um modo de regulamentação correspondente à “acumulação flexível”, baseada numa mudan-
ça geral de normas e valores coletivos hegemônicos no período precedente.
A “especialização flexível”3, como condição de trabalho diante da tecnologia, possibilitou
a geração constante de novos produtos, adaptada a desejos e necessidades muito específicos. Como
conseqüência para as relações de classe, verificou-se um enfraquecimento da luta coletiva, bem
como a dissolução gradativa da política corporativa de relações industriais.
Todos esses elementos de mudança reafirmam o movimento de superação dialética de crise
do capital, ao mesmo tempo que confirmam a ótica gramsciana de construção de hegemonia da
classe capitalista pela organização da cultura segundo a sua lógica. Emergem novos elementos de
política e cultura, junto com a organização do trabalho e relações sociais de produção. Mudanças na
educação e na socialização, no papel do Estado, na função e reestruturação dos meios de comunica-
ção de massa, no uso das tecnologias de informação, e nas formas e padrões de consumo e compor-
tamento do consumidor desafiam a modernidade não na sua estrutura essencial, mas na representa-
ção social que se constrói a partir de seu questionamento.

A POLÍTICA EDUCACIONAL FRENTE À CULTURA CONTEMPORÂNEA

As mudanças nos padrões de produção, de consumo e de sociabilidade processadas ao final


do século XX trouxeram implicações também para o pensamento educacional, de tal forma que
diversos países empreenderam reformas, principalmente na educação básica e profissional.
Um conjunto de novos signos e significados foram talhados pela “nova” cultura, desempe-
nhando um papel específico na representação da sociedade, quanto aos processos de formação de
comportamento do trabalhador. Dentre esses, a noção de competência é exemplar, conformando
uma pedagogia que, baseada em teorias psicológicas da aprendizagem4, promove uma supervalori-
zação do processo educacional como conformador de personalidades flexíveis. No âmbito da gestão
do trabalho, essa noção orienta o envolvimento do trabalhador com a cultura da empresa, ou explica
os insucessos das pessoas frente à luta desumana por um emprego.
No caso do Brasil, a pedagogia das competências tendeu a uma hegemonia, tendo respaldo
em importantes documentos emanados do Conselho Nacional de Educação. Dentre esses, destaca-se
o Parecer 15/98 da Câmara de Educação Básica, que dispôs sobre as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para o Ensino Médio, por este tratar de uma etapa escolar definitiva para a formação de jovens,
sujeitos coletivos que tendem a vivenciar plenamente essa nova cultura.

3
Antunes (1995) discorre a respeito das diversas considerações críticas relativas a tese da especialização flexível.
4
As razões utilizadas para legitimar formas de desenvolvimento curricular globalizadas, integradas ou interdisciplina-
res foram construídas mediante argumentos às vezes exclusivamente psicológicos, às vezes epistemológicos, tendo
predominado as teorias psicológicas da aprendizagem, principalmente aquelas baseadas no pensamento de Jean Pia-
get. Atualmente, ressurge também o pragmatismo como eixo de argumentação prioritária a justificar a conveniência de
currículos definidos com base na noção de competência. Uma análise sobre a relação entre o construtivismo radical
(GLASERFELD, 1996, 1998) e o neopragmatismo pode ser encontrada em Ramos (2003).

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Com tal sentido, o referido documento apresenta princípios axiológicos que são orientado-
res de condutas, bem como princípios pedagógicos, com vistas à construção dos projetos escolares
pelos sistemas e instituições de ensino. Esses princípios não são neutros. Ao contrário, baseiam-se
numa certa forma de compreender a sociedade e suas relações no momento contemporâneo, de-
monstrando uma confiança quase apologética no atual estágio de avanço da tecnologia e na capa-
cidade da escola de preparar cidadãos e trabalhadores intelectual e psicologicamente adequados à
sociedade pós-moderna e pós-industrial. Do processo educacional, então, solicita-se o desenvol-
vimento de sensibilidades que orientem os jovens em suas condutas de acordo com valores do no-
vo tempo, visando à realização de seu projeto de vida com base nas capacidades próprias e nos re-
cursos que o meio oferece.
Em face disto, Kuenzer (2000) explica que as afirmações “educação agora é para a vida” e
“educação profissional é complemento à educação básica” são feitas com base na constatação da
identidade entre as capacidades demandadas pelo exercício da cidadania e pela atividade produtiva,
o que permitiria superar a dicotomia entre a racionalidade técnica e o caráter abstrato dos ideais da
formação humana.
Esta seria uma das principais características da sociedade contemporânea: uma nova rela-
ção das pessoas com a ciência. Os “conhecimentos científicos, tecnológicos e sócio-históricos, com
particular destaque para as formas de comunicação e de gestão dos processos sociais e produtivos”
(op. cit., p. 33) deixariam de ser demandas unicamente da acumulação capitalista, para serem pres-
supostos da própria vida em sociedade, em que as relações sociais são cada vez mais mediadas pela
tecnologia e pela informação. Ao mesmo tempo, o trabalho passa a exigir do sujeito mais do que
conhecimentos, mobilizando também aspectos da sua própria subjetividade.
Sob a lógica capitalista, porém, essa convergência é desafiada pela retração massiva dos
empregos e pela configuração do mercado de trabalho nas sociedades atuais, que levam à degrada-
ção das relações de trabalho, pelo menos para uma grande massa das populações mundiais. Anali-
sado sob o ângulo da educação, o paradoxo é bem expressado pela conclusão a que Chega Kuenzer
(op. cit., p. 37): “quando finalmente as exigências de competitividade econômica reclamam o uso
intensivo do conhecimento e da educação, estreitando as relações entre educação e trabalho, desa-
parece a especificidade do vínculo formal com o emprego, transferindo-se a tensão para outro pon-
to: embora educação para a cidadania e para o trabalho se confundam, ela é para poucos; cada vez
para menos.”
Como meio de contornar ideologicamente esse paradoxo a doutrina que disciplina o ensino
médio recorre à diversidade como reconhecimento das diferenças que conformam horizontes de-
terminados pela imprevisibilidade. Nesse cenário, a escola é convocada a contribuir para o desen-
volvimento de competências gerais, visando à constituição de pessoas mais aptas a assimilar mu-
danças, pessoas mais autônomas em suas escolhas, pessoas que respeitem as diferenças e, ainda,
que constituam identidades “capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevi-
sível e o diferente” (BRASIL.MEC.CNE.CEB, 1998, p. 22).
Sabemos, entretanto, que as trajetóricas educacionais e profissionais das pessoas são, no
plano concreto, socialmente determinadas pela origem de classe e não exclusivamente resultados de
escolhas subjetivamente realizadas de acordo com os projetos próprios de vida. A abertura dos pro-
jetos, as incertezas das trajetórias de vida, a instabilidade da vida, o desemprego, a possível desfilia-
ção social (CASTEL, 1998), não podem ser assimiladas como inexoráveis e como a única realidade
que a humanidade poderá enfrentar daqui para frente, posto que isto diluiria todas as expectativas de

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se olhar o mundo por outro viés, de se contestar o que parece instituído e único; de se efetivar a
organização coletiva que transcenda aos ideais personalistas, subjetivistas e/ou produtivistas, mas
que apontem no sentido da construção de projetos sócio-coletivos emancipadores.
É por isso que se deve problematizar o conceito de trabalho que tem orientado a pedagogia
das competências, assim como a própria noção de competência.

O TRABALHO NA EDUCAÇÃO PÓS-MODERNA:


DE PRINCÍPIO A CONTEXTO

Marx (1988) considera o trabalho tanto na sua forma positiva geral – como atividade pro-
dutiva ontológica da humanidade e mediação entre o homem e a natureza; como na sua forma nega-
tiva – na divisão do trabalho capitalista, abordada como trabalho alienado. Sob as relações capita-
listas, a dimensão ontológica do trabalho é subsumida à dimensão produtiva. Ao discutir o trabalho
como princípio educativo, porém, Gramsci (1991b) assim o considera não porque sob o modo de
produção capitalista ele se transforma em mercadoria e aliena o homem de sua própria produção.
Mas porque, sob a dimensão civilizatória do próprio capitalismo, este tende a revolucionar perma-
nente os meios de produção, a ponto de as forças produtivas entrarem em contradição com o próprio
modo de produção.
Sob capitalismo, o homem se aliena pelo trabalho, mas também por meio dele pode tomar
consciência de si mesmo e de sua função social. Para Gramsci, portanto, não é o trabalho concreto
nem o trabalho alienado o princípio educativo, mas o trabalho como elemento da atividade geral e
universal que, no seu estado mais avançado, guarda o momento histórico objetivo da própria liber-
dade concreta. Portanto, para Gramsci, é a liberdade dos trabalhadores o sentido do trabalho como
princípio pedagógico. Liberdade e necessidade são pressupostos e resultados da produção da exis-
tência humana, da construção de um novo modo de produção e de uma nova cultura.
Numa leitura específica para a política educacional, Saviani (1989) afirma que o trabalho
pode ser considerado como princípio educativo em três sentidos diversos mas articulados entre si:

Num primeiro sentido, o trabalho é princípio educativo na medida em que determina, pelo grau
de desenvolvimento social atingido historicamente, o modo se ser da educação em seu conjunto.
Nesse sentido, aos modos de produção [...] correspondem modos distintos de educar com uma
cor-respondente forma dominante de educação. [...]. Num segundo sentido, o trabalho é princípio
educativo na medida em que coloca exigências específicas que o processo educativo deve pre-
encher em vista da participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produ-
tivo. [...]. Finalmente o trabalho é princípio educativo num terceiro sentido, à medida em que de-
termina a educação como uma modalidade específica e diferenciada de trabalho: o trabalho pe-
dagógico (op. cit., p. 1-2).

Sob esta referência, os conceitos de politecnia ou de educação tecnológica organizaram as


propostas de educação básica tendo-se o trabalho como princípio educativo. A categoria educação
tecnológica, na perspectiva do pensador italiano, é própria da educação que toma a tecnologia como
produto do trabalho humano que transforma a natureza com vistas a objetivos coletivos. A educação
tecnológica refere-se à conexão entre ensino e trabalho como base para o trabalho produtivo que
exclui toda oposição entre cultura e profissão. Isto, como nos ensina Manacorda (1990), não tanto
na medida em que pode propiciar uma multiplicidade de escolhas profissionais, mas na medida em

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que é atividade operativa social, que se fundamenta nos aspectos mais modernos, revolucionários,
integrais do saber. Esse processo educativo se orienta no sentido de formar homens omnilaterais
que sejam inseridos na atividade social após terem sido "levado[s] a um certo grau de maturidade e
capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa"
(Gramsci, 1991b, p. 121).
A lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (Brasil, 1996) preservou
formalmente o conceito de trabalho como princípio educativo na educação básica. Entretanto, a
ressignificação deste conceito sob a ótica pós-moderna é expressa mais claramente no Parecer
15/98, quando a função da preparação básica para o trabalho é também justificada pelo fato de “nas
condições contemporâneas de produção de bens, serviços e conhecimentos, a preparação de recur-
sos humanos para um desenvolvimento sustentável [supor] desenvolver capacidade de assimilar
mudanças tecnológicas e adaptar-se a novas formas de organização do trabalho” (op. cit., p. 19).
A partir disso, o sentido do trabalho como contexto passa a predominar em detrimento da
idéia de princípio: “o trabalho e a cidadania são previstos como os principais contextos nos quais a
capacidade de continuar aprendendo deve se aplicar, a fim de que o educando possa adaptar-se às
condições em mudança na sociedade, especificamente no mundo das ocupações” (ibid., p. 36).
Essa abordagem compreende a realidade material e social de vida das pessoas como contexto
ao qual elas se adaptam. Diante da instabilidade social contemporânea, a cidadania possível é con-
quistada de acordo com o alcance dos próprios projetos individuais e segundo os valores que permi-
tam uma sociabilidade pacífica e adequada aos padrões produtivos e culturais contemporâneos.

A PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS E O SENTIDO


DOS SABERES ESCOLARES NA CULTURA PÓS-MODERNA

Do que apresentamos até o momento, percebemos que a incorporação da cultura pós-


moderna na educação básica coloca para a escola a função de auxiliar no desenvolvimento das
competências das pessoas, que possibilitem sua adaptação às instabilidades da vida, particularmente
ao contexto de trabalho, de forma autônoma e flexível.
De fato, tais mudanças culturais trazem implicações para a formação do trabalhador. Se em
relação ao trabalho pouco qualificado verifica-se a saída maciça de trabalhadores do mercado for-
mal de trabalho, do ponto de vista do trabalho qualificado, o que se testemunha é um processo de
profundo reordenamento social das profissões5. Crescentes dúvidas vêm-se levantando a respeito da
capacidade de sobrevivência de profissões bem delimitadas, ao mesmo tempo em que diminui a
expectativa da construção de uma biografia profissional, linear do ponto de vista do conteúdo e as-
cendente do ponto de vista da renda e da mobilidade social. Alguns autores chegam a apontar para a
crise do valor dos diplomas, o qual perde importância para a qualificação real do trabalhador capaz
de ser demonstrada na prática (PAIVA, 1997). Paradoxalmente, enquanto se defende uma formação
centrada no desenvolvimento de competências genéricas, em contraposição àquela centrada na
transmissão de conteúdos, permanece forte a demanda para que os processos educativos esco-
larizados se aproximem mais do contexto do trabalho. Que mediações conformam essa realidade

5
Sobre uma análise mais detalhada sobre o conceito de qualificação e seu deslocamento pelo de competência, ver Ra-
mos (2002).

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ou, em outras palavras, que sentido tem a apropriação da noção de competências nos mundos do
trabalho e da educação?
Tomada como referência nos contextos de trabalho, a competência está sempre associada à
capacidade de o sujeito desempenhar-se satisfatoriamente em situações reais, mobilizando os recur-
sos cognitivos e sócio-afetivos. Nesse sentido, em qualquer abordagem o corolário é: a competência
é indissociável da ação.
As metodologias de investigação dos processos de trabalho, a partir das quais se deduzem
as competências que os trabalhadores devem ter desenvolvido para serem considerados eficientes,
objetivam evidenciar conhecimentos, habilidades e atitudes postas em jogo na realização do traba-
lho. Esses resultados são utilizados como referências tanto de classificação dos postos de trabalho e
dos trabalhadores (neste caso envolvendo admissão e permanência no emprego, carreira e remune-
ração), quanto de melhorias organizacionais. Em todos os casos a competência humana é tomada
como fator de produção, acrescentando-se ao conceito de homo oeconomicus6, maximizador de lu-
cro e riqueza, o conceito de homem administrativo, que responde aos desafios do meio e adapta-se
às situações de acordo com seus interesses e objetivos. Esse enfoque, entretanto, centra-se pontual-
mente nos indivíduos, dificultando a apreensão mais sistêmica das organizações por meio da qual se
percebem outras variáveis que atuam no seu funcionamento. A busca dessa visão sistêmica resultará
na apropriação do funcionalismo pela teoria das organizações7.
Como sabemos, o funcionalismo não nasce nas Ciências Sociais, embora tenha sido mui-
to divulgado nessa área, mas é importado das Ciências Biológicas. Essa teoria não considera as
determinações históricas e contraditórias do objeto de conhecimento que se propõe a explicar.
Assim como na Biologia o objeto de conhecimento é o organismo ou um subsistema de um orga-
nismo, no caso da Sociologia é um sistema de ação. Em outras palavras, o sistema e seus pressu-
postos não são questionados, mas somente o seu funcionamento. Não há lugar para as contradi-
ções, mas sim para a integração.
Pela teoria dos sistemas, variante mais elaborada do funcionalismo, os elementos sociais
exercem funções específicas necessárias ao seu propósito, num contexto de constante equilíbrio. O
rompimento desse equilíbrio seria provocado por situações disfuncionais, e as ações que se seguem
objetivam recompor o equilíbrio do sistema. A organização produtiva, portanto, é vista em termos
de comportamentos interrelacionados.
Uma das tendências do funcionalismo é enfatizar, sobremaneira, os papéis que as pessoas
desempenham no sistema mais do que as próprias pessoas. Os papéis seriam as atividades de traba-
lho associadas ao cargo ou ao posto de trabalho. No sistema organizacional de base taylorista-
fordista, a unidade mínima de análise é o posto de trabalho, aos quais as pessoas se associavam por
suas funções, descritas principalmente em termos de procedimentos.
No sistema integrado e flexível, a relação se inverte; isto é, a importância é conferida mais
às pessoas do que aos papéis que elas exercem. As funções são descritas em termos de resultados,
que podem ser atingidos por procedimentos diversos, desde que o equilíbrio organizacional seja

6
O homem assim concebido é produto do sistema capitalista que agiria de acordo com suas determinações "natural-
mente dadas". Esse homem é individualista, maximizador da produção e do lucro, racional e livre nas suas escolhas e
no seu consumo. Sua racionalidade e seu potencial maximizador contribuiriam, naturalmente, para a situação ótima
das relações sociais. Sobre este conceito ver Hunt (1989).
7
Detalhamento sobre a perspectiva funcionalista das metodologias de análise do trabalho ver Ramos (2002).

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permanentemente mantido ou recomposto. Mas a pessoa que interessa é a pessoa funcional, ou seja,
aquela que mobiliza seus atributos cognitivos e sócio-afetivos para obter os resultados esperados.
Então, na verdade, a unidade mínima da análise funcional desloca-se do posto de trabalho para a
competência dos trabalhadores.
Essa mudança de enfoque exige tomar a organização como um sistema aberto, no qual in-
tervêm variáveis tanto organizacionais, quanto de personalidade e interpessoais. Assim, a posição
que as pessoas ocupam na hierarquia, a maior ou menor flexibilidade de sua personalidade e as re-
lações interpessoais que mantêm, são de enorme importância para o processo. Por isto, os atributos
psicológicos dos indivíduos tomam importância para o funcionamento integrado e flexível das or-
ganizações. Ao mesmo tempo, o que se considerava como disfunções no funcionalismo clássico,
será chamado agora de eventos e, ao invés de serem considerados indesejáveis ou anormais, passa-
rão a compor o funcionamento dos sistemas. A recomposição do equilíbrio como necessidade pro-
vocada pelos eventos assume a forma de melhoria permanente dos processos produtivos, bem como
de oportunidade ao desenvolvimento de novas competências para trabalhadores. A Teoria Geral dos
Sistemas incorpora essas variáveis na análise da eficiência das organizações, como meio de adequar
o funcionalismo ao contexto econômico-produtivo atual. É este o contexto do trabalho que passa a
orientar as finalidades educacionais.
Do ponto de vista da educação, recorrer à sociologia do currículo nos ajuda a compreender
a razão de se utilizar a noção de competência como referência. No nível macro, está a relação entre
a seleção e a organização dos conhecimentos, e a maneira como o poder é distribuído na sociedade.
No plano micro está a construção dos programas de estudo, bem como as interações entre os agen-
tes do sistema educativo (professores, alunos, administradores), e entre esses agentes e os grupos de
interesses econômico, políticos, culturais.
Conforme analisa Dubar (1998), sob a égide do taylorismo-fordismo, os conhecimentos
transmitidos e adquiridos no sistema educativo representaram um dos recursos dos egressos na sua
negociação para a entrada no mercado de trabalho. A articulação entre sistema educativo e sistema
produtivo dependiam, em parte, da gestão desses conhecimentos. Se a relação escolaridade-
formação-emprego depende do modo como o trabalho é organizado nas empresas, também ela é
tributária de decisões referentes à organização de currículos e dos comportamentos dos profissio-
nais do sistema educativo. Essa relação era construída principalmente em função dos conheci-
mentos transmitidos e adquiridos pelos participantes sociais em interação (docentes, alunos, funcio-
nários, empregadores).
Se, num passado muito recente, dir-se-ia da inserção profissional ser este o “momento em
que o indivíduo vai procurar negociar os conhecimentos adquiridos para conseguir um emprego”
(DUBAR, 1998, p. 167), atualmente, pelo que observamos, negociam-se competências, como a
síntese de saberes, saber-fazer e saber-ser. É de se estranhar, entretanto, que se requeira tanto o vín-
culo entre escola e mundo do trabalho, justamente num momento em que o aumento do nível de
abstração das forças leva a uma simplificação na execução do trabalho, de um lado, e a dispensa de
trabalhadores qualificados, de outro. Porém, esse vínculo não se refere tanto aos saberes específicos
de trabalho, mas às respectivas dimensões comportamentais. Como caracterizar, então, o currículo e
a pedagogia que tem por base as competências:
Bernstein (1996) analisa as relações presentes entre o campo da produção, o campo do
controle simbólico e a educação, focando seu interesse na compreensão da educação no contexto
das práticas sociais. Considera ele que no campo do controle simbólico atualmente estão “as novas

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profissões que regulam a mente, o corpo, as relações sociais, seus contextos especiais e suas proje-
ções temporais”, enquanto os agentes do campo da produção regulam os recursos físicos. Ambos os
campos controlam os meios, os contextos e as possibilidades de realização nesses dois campos. En-
quanto o campo da produção estaria se simplificando, o campo do controle simbólico estaria ampli-
ando suas funções normalizadoras em decorrência do enfraquecimento da disciplina do trabalho.
Por isso, o vínculo entre educação e produção permaneceria forte somente nos níveis superiores de
educação. Mas o vínculo entre educação e controle simbólico estaria se fortalecendo e se generali-
zando em todos os níveis. Essa visão ratifica o papel da educação muito mais na conformação da
personalidade e da consciência do que dos conhecimentos técnicos e científicos.
Tomando a dimensão propriamente pedagógica dessa questão, Bernstein vai definir, por
um lado o que ele denomina de pedagogias visíveis e, por outro, as pedagogias invisíveis. As pri-
meiras enfatizam a transmissão de conteúdos, o desempenho explicitado pelo aluno, orientam-se
para o mercado de trabalho, preocupam-se com a eficiência do sistema de ensino e com as com-
petências específicas supostamente exigidas pelo mundo do trabalho. As segundas, caracterizam-
se pelo controle implícito do professor, pelo fato de os alunos serem os principais responsáveis
por seus atos e movimentos, enquanto o professor prepara o contexto a ser explorado pelos alu-
nos, e por enfatizarem as aquisições e as competência genéricas. Dentre essas são identificadas os
pedagogias renovadoras, críticas ou progressistas, incluindo “desde as abordagens piagetianas até
propostas mais radicais, como as fundamentadas em idéias de educadores como Paulo Freire”
(Santos, 1999, p. 72).
Outro aspecto importante para o nosso quadro de análise, é o fato de os saberes científicos
serem reconstruídos como saberes escolares a partir de mediações contraditórias e configurações
cognitivas próprias, compondo uma cultura escolar. Os processos educativos sistematizados, por-
tanto, não reproduzem o saber científico tal como ele foi construído e tal como se apresenta para as
comunidades científicas, isto é, como objeto a ensinar, mas o transformam em objeto de ensino
construído na e pela cultura escolar.
Se percebemos a existência de transformações nessa cultura, depreende-se que mudanças
tendem a se processar nos modos de mediação didática. Para Bernstein, essa reconfiguração dos
saberes científicos em saberes escolares que se processa pela mediação didática, dá vida a um
discurso pedagógico, constituído por dois outros discursos: o discurso instrucional e o discurso
regulativo. Enquanto o primeiro estabelece o que deve ser transmitido, o segundo define a forma
como as relações sociais de transmissão e aquisição são constituídas e mantidas. Parece-nos que,
sob a égide do currículo científico e das pedagogias visíveis, o discurso instrucional é o que pre-
domina. Já na perspectiva do currículo integrado8 e das pedagogias invisíveis, é o discurso regu-
lativo que mais importa.
Isso possibilita-nos compreender a natureza atual dos saberes escolares ou dos conheci-
mentos específicos no âmbito da pedagogia da competência, em face dos processos de trabalho cu-

8
A idéia de integração curricular é tributária da análise que faz Bernstein (1996) dos processos de compartimentação
dos saberes. A integração, segundo o autor, coloca as disciplinas e cursos isolados numa perspectiva relacional, de tal
modo que o abrandamento dos enquadramentos e das classificações do conhecimento escolar promove maior iniciativa
de professores e alunos, maior integração dos saberes escolares com os saberes cotidianos dos alunos, combatendo,
assim, a visão hierárquica e dogmática do conhecimento.

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jos fundamentos são complexos mas os procedimento simples9. O construtivismo piagetiano10, com
suas diversas nuanças, constitui-se no aporte psicológico da pedagogia da competência. Vale regis-
trar, então, com Miranda (2000), que as pedagogias psicológicas, das quais o construtivismo é a
expressão contemporânea, aplica-se tanto aos processos intra-escolares de ensino e aprendizagem,
quanto aos processos mais globais de justificação e organização da ação educativa, nas mais diver-
sas expressões, compondo fortemente o discurso educacional contemporâneo. Ele adequa-se, por-
tanto, ao que Bernstein chama de discurso regulativo.
A pedagogia das competências confere ênfase aos aspectos subjetivos dos alunos, em es-
pecial àqueles relacionados à aprendizagem, sem considerar o conjunto das determinações históri-
cas e sociais que incidem sobre a educação, promovendo uma certa despolitização de todo o proces-
so educacional. À medida que o foco do processo educativo é a adaptação do sujeito, de seu projeto
e de sua personalidade ao contexto do trabalho flexível, que inclui o desemprego, evidencia-se um
conceito de homem, como ser natural e biológico, voltado para si e para sua sobrevivência indepen-
dente dos outros. A esta concepção de homem se coaduna uma concepção de conhecimento, defini-
do como a representação subjetiva que temos da realidade. Na vida individual, seria possível elabo-
rar um projeto flexível o suficiente para reverter-se no projeto possível.
Por princípio, então, a educação deveria abandonar a suposição da existência de saberes
socialmente construídos e universalmente aceitos, a serem transmitidos. Nesse contexto, a função
do professor seria criar as condições para que os alunos construam suas próprias representações
sobre algo. A educação não teria mais o compromisso com a transmissão de conhecimentos cientí-
ficos, socialmente construídos e universalmente aceitos, mas com a geração de oportunidade para
que os alunos possam se defrontar com eles e, a partir deles, localizar-se diante de uma realidade
objetiva, reconstruindo-os subjetivamente em benefício de seu projeto e com o traço de sua perso-
nalidade, a serviço de suas competências. Na cultura escolar, nos termos de Bernstein, a pedagogia
das competências é a forma como se efetiva o discurso regulativo. Em síntese, a conformação de
personalidades adquire ênfase em detrimento da construção do conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao confirmar a interdeterminação do econômico e do cultural, e perceber que, efeti-


vamente, os novos padrões de produção afetam todo o conjunto da vida social, concluímos que a
noção de competência, da forma como passou a ordenar as relações de trabalho e educação, é parte
de um conjunto de novos signos e significados talhados pela cultura pós-moderna, desempenhando
um papel na representação da sociedade, quanto à forma de localizar-se e mover-se, diante da nova
lógica do capital.
Este movimento, como processo de construção de hegemonia e obtenção de consenso ativo
da classe trabalhadora, foi produzido tanto no interior do Estado, quanto nos embates travados na
sociedade civil. A organização da nova cultura abrangeu os aparelhos econômicos e ideológicos do
Estado. E é nesse sentido, que todas as esferas sociais, desde as empresas, passando pela mídia e

9
Serón (1998) escreve um artigo em que demonstra como a pedagogia invisível de Bernstein aplica-se ao modelo das
competências profissionais dos novos módulos de formação profissional desenhada na LOGSE (Lei Orgânica de Orde-
nação Geral do Sistema Educacional), representativa da reforma educacional na Espanha.
10
Análise mais aprofundada dessa compreensão pode ser encontrada em Ramos (2002, 2003).

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pela escola, até o corpo técnico do Estado, ocuparam-se da disseminação das novas idéias. A for-
mação do trabalhador – enquanto processo de adequação psicofísica aos novos padrões sociais –
transcendeu às práticas educativas formais que se dão na escola e nas instituições de formação, para
envolver toda a sociedade na construção de um novo senso comum convencido de que as relações
de trabalho atuais se pautam pela autonomia, pelo empreendimento e pela competência individual.
No campo da organização escolar, concretizaram-se políticas que fazem o mesmo, direcio-
nando a formação para o contexto do trabalho flexível interna e externamente à produção. Em ou-
tras palavras, a função predominante da escola passou a ser menos a transmissão de conhecimentos,
e mais o desenvolvimento de personalidades adaptáveis aos novos padrões de produção e ao de-
semprego. Nas relações de trabalho, flexibilizaram-se as regras contratuais e aboliram-se direitos
trabalhistas, sob a égide da autonomia, flexibilidade e empregabilidade.
Atualmente, no Brasil, quando um novo projeto de sociedade pode começar a ser cons-
truído, enfrentada todas as contradições, há que se realizar um movimento de contra-hegemonia nas
esferas econômica, política e cultural. A educação, como prática social, é tanto o espaço desse movi-
mento, quanto constitui-se em objeto de disputa em forma e conteúdo. Igualmente, deve-se retomar o
sentido do trabalho como realização humana, e colocar as relações de trabalho no plano das tensões
entre trabalho e capital, mediante a reorganização coletiva e a refundação do contrato social11.
Em relação à educação, o movimento contra-hegemônico exige que se supere o modelo de
competências como norma para os projetos pedagógicos, abandonando-se essa noção como referên-
cia, ou que se reconstrua seu conteúdo coerentemente com as necessidades educativas reais da clas-
se trabalhadora, compreendendo-as não como mecanismos de adaptação à realidade dada, mas co-
mo construções intelectuais elevadas que possibilitem à classe trabalhadora ser classe dirigente.
Para isto, o acesso ao conhecimento construído socialmente não pode ser privilégio de grupos so-
ciais, mas sim um direito universal.

11
Santos (1999) denomina as transformações contemporâneas como a crise do contrato social, substituído por acordos
que não se reconhecem o conflito e a luta como elementos estruturais do combate. Ao contrário, os substitui pelo as-
sentimento passivo a condições supostamente universais, consideradas incontornáveis. No caso da gestão do trabalho
por competência, essa contratualização é do tipo liberal individualista, modelada na idéia do contrato civil entre indi-
víduos e não na idéia do contrato social.

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ABSTRACT
The article discusses about the relationship between work and culture at this time, concluding that changes
occurred at the end of XXth century in the production circle causes consequences to way of life, so that it con-
forms the culture post-modern. It also discusses the consequences to the educational policies, identifying the
competence as one of many concepts that organize the work and educational relationship nowadays. Espe-
cially concerning to the schools projects based on competence, the article shows that the purpose of pro-
ducing flexible personalities adaptable to the new reality replaces the purpose of transmitting knowledge.
Keywords: work, culture, competence.

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