Trabalho, Cultura e Competências Na Contemporaneidade - Do Conhecer Ao Saber-Ser
Trabalho, Cultura e Competências Na Contemporaneidade - Do Conhecer Ao Saber-Ser
Trabalho, Cultura e Competências Na Contemporaneidade - Do Conhecer Ao Saber-Ser
NA CONTEMPORANEIDADE: DO CONHECER
AO SABER-SER
Marise Nogueira Ramos*
RESUMO
O artigo aborda a relação entre trabalho e cultura na contemporaneidade, concluindo que as transformações,
ocorridas ao final do século XX na esfera da produção, afetam os padrões de sociabilidade capitalista, confor-
mando uma cultura designada como pós-moderna. Discute as implicações na política educacional, identifican-
do a noção de competência como constituinte de um conjunto de novos signos e significados que passam a
ordenar as relações de trabalho e educativas no âmbito dessa nova cultura. Especialmente em relação aos
projetos escolares baseados na noção de competência, demonstra que a conformação de personalidades, fle-
xíveis e adaptáveis à realidade contemporânea, passa a predominar, em detrimento da transmissão de conhe-
cimentos sistematizados.
Palavras-chave: trabalho, cultura, competências.
*Professora Adjunta Faculdade de Educação Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pela
Universidade Federal Fluminense. Diretora de Ensino Médio da Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Mi-
nistério da Educação.
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Além de Harvey (1973), Jameson (1994, 1996) também reconhece que há mudanças significativas no modo de organi-
zação do capitalismo e no conseqüente estilo de vida das sociedades. Eles, porém, não se rendem a visões apologéticas
que marcam autores como Bell. Enquanto Harvey tem a preocupação de analisar a pós-modernidade valendo-se pri-
mordialmente (mas não exclusivamente) da dimensão econômica do capitalismo deste fim de século, Jameson traz a
questão cultural de tal modo que considera o pós-modernismo como a lógica cultural do capitalismo tardio.
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O autor se baseia, aqui, na chamada Escola de Regulamentação de teóricos franceses, destacando-se, dentre eles,
Michel Aglietta, Robert Boyer e Alain Lipietz. Os regulamentadores interpretam a história do capitalismo como mar-
cada por sucessivos modos de desenvolvimento, nos quais um regime específico de acumulação é orientado por um
modo específico de regulamentação
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Antunes (1995) discorre a respeito das diversas considerações críticas relativas a tese da especialização flexível.
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As razões utilizadas para legitimar formas de desenvolvimento curricular globalizadas, integradas ou interdisciplina-
res foram construídas mediante argumentos às vezes exclusivamente psicológicos, às vezes epistemológicos, tendo
predominado as teorias psicológicas da aprendizagem, principalmente aquelas baseadas no pensamento de Jean Pia-
get. Atualmente, ressurge também o pragmatismo como eixo de argumentação prioritária a justificar a conveniência de
currículos definidos com base na noção de competência. Uma análise sobre a relação entre o construtivismo radical
(GLASERFELD, 1996, 1998) e o neopragmatismo pode ser encontrada em Ramos (2003).
Marx (1988) considera o trabalho tanto na sua forma positiva geral – como atividade pro-
dutiva ontológica da humanidade e mediação entre o homem e a natureza; como na sua forma nega-
tiva – na divisão do trabalho capitalista, abordada como trabalho alienado. Sob as relações capita-
listas, a dimensão ontológica do trabalho é subsumida à dimensão produtiva. Ao discutir o trabalho
como princípio educativo, porém, Gramsci (1991b) assim o considera não porque sob o modo de
produção capitalista ele se transforma em mercadoria e aliena o homem de sua própria produção.
Mas porque, sob a dimensão civilizatória do próprio capitalismo, este tende a revolucionar perma-
nente os meios de produção, a ponto de as forças produtivas entrarem em contradição com o próprio
modo de produção.
Sob capitalismo, o homem se aliena pelo trabalho, mas também por meio dele pode tomar
consciência de si mesmo e de sua função social. Para Gramsci, portanto, não é o trabalho concreto
nem o trabalho alienado o princípio educativo, mas o trabalho como elemento da atividade geral e
universal que, no seu estado mais avançado, guarda o momento histórico objetivo da própria liber-
dade concreta. Portanto, para Gramsci, é a liberdade dos trabalhadores o sentido do trabalho como
princípio pedagógico. Liberdade e necessidade são pressupostos e resultados da produção da exis-
tência humana, da construção de um novo modo de produção e de uma nova cultura.
Numa leitura específica para a política educacional, Saviani (1989) afirma que o trabalho
pode ser considerado como princípio educativo em três sentidos diversos mas articulados entre si:
Num primeiro sentido, o trabalho é princípio educativo na medida em que determina, pelo grau
de desenvolvimento social atingido historicamente, o modo se ser da educação em seu conjunto.
Nesse sentido, aos modos de produção [...] correspondem modos distintos de educar com uma
cor-respondente forma dominante de educação. [...]. Num segundo sentido, o trabalho é princípio
educativo na medida em que coloca exigências específicas que o processo educativo deve pre-
encher em vista da participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produ-
tivo. [...]. Finalmente o trabalho é princípio educativo num terceiro sentido, à medida em que de-
termina a educação como uma modalidade específica e diferenciada de trabalho: o trabalho pe-
dagógico (op. cit., p. 1-2).
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Sobre uma análise mais detalhada sobre o conceito de qualificação e seu deslocamento pelo de competência, ver Ra-
mos (2002).
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O homem assim concebido é produto do sistema capitalista que agiria de acordo com suas determinações "natural-
mente dadas". Esse homem é individualista, maximizador da produção e do lucro, racional e livre nas suas escolhas e
no seu consumo. Sua racionalidade e seu potencial maximizador contribuiriam, naturalmente, para a situação ótima
das relações sociais. Sobre este conceito ver Hunt (1989).
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Detalhamento sobre a perspectiva funcionalista das metodologias de análise do trabalho ver Ramos (2002).
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A idéia de integração curricular é tributária da análise que faz Bernstein (1996) dos processos de compartimentação
dos saberes. A integração, segundo o autor, coloca as disciplinas e cursos isolados numa perspectiva relacional, de tal
modo que o abrandamento dos enquadramentos e das classificações do conhecimento escolar promove maior iniciativa
de professores e alunos, maior integração dos saberes escolares com os saberes cotidianos dos alunos, combatendo,
assim, a visão hierárquica e dogmática do conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Serón (1998) escreve um artigo em que demonstra como a pedagogia invisível de Bernstein aplica-se ao modelo das
competências profissionais dos novos módulos de formação profissional desenhada na LOGSE (Lei Orgânica de Orde-
nação Geral do Sistema Educacional), representativa da reforma educacional na Espanha.
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Análise mais aprofundada dessa compreensão pode ser encontrada em Ramos (2002, 2003).
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Santos (1999) denomina as transformações contemporâneas como a crise do contrato social, substituído por acordos
que não se reconhecem o conflito e a luta como elementos estruturais do combate. Ao contrário, os substitui pelo as-
sentimento passivo a condições supostamente universais, consideradas incontornáveis. No caso da gestão do trabalho
por competência, essa contratualização é do tipo liberal individualista, modelada na idéia do contrato civil entre indi-
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ABSTRACT
The article discusses about the relationship between work and culture at this time, concluding that changes
occurred at the end of XXth century in the production circle causes consequences to way of life, so that it con-
forms the culture post-modern. It also discusses the consequences to the educational policies, identifying the
competence as one of many concepts that organize the work and educational relationship nowadays. Espe-
cially concerning to the schools projects based on competence, the article shows that the purpose of pro-
ducing flexible personalities adaptable to the new reality replaces the purpose of transmitting knowledge.
Keywords: work, culture, competence.