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Texto - O Canto de Caetano Da Costa Alegre No Contexto Do Final Do Século XIX em Portugal - PALMEIRA Naduska Mário

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O Canto de Caetano da Costa Alegre no contexto do final do séc.

XIX em
Portugal.

Resumo

O objetivo deste trabalho é o de situar a poesia de Caetano da Costa Alegre, poeta são-
tomense, no contexto das literaturas produzidas em Portugal e na Europa no final do século
XIX, além de analisar as condições socioculturais e afetivas no espaço de enunciação do
autor.
A poesia de Costa Alegre é marcada por forte influência das escolas europeias
finisseculares, por sua experiência na metrópole colonial e por sua terra natal: homem negro,
estudante de medicina em Lisboa, que tenta se apropriar de uma condição humana e de
direitos, dos quais é interditado devido a seu status de “homem colonizado” e negro.
Como base teórica, as reflexões de Eça de Queiroz acerca da Europa e da imagem que
se fazia do homem africano à época são uma chave para a análise da obra do poeta das ilhas,
muitas vezes caracterizado pelo poeta da “cor dolorosa”.

Palavras-chave: Caetano da Costa Alegre, Eça de Queiroz, literatura portuguesa do final do


séc. XIX, interdição afetiva e social, poesia são-tomense.

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1. Introdução
“Este fim de século é um fim de mundo” (Eça de
Queiroz)

Em sua História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva afirma ser a época
romântica um todo que engloba diversas manifestações a que outros autores conferem estatuto
diferenciado. Saraiva percebe no Romantismo, por certo, a grande ruptura com a época
clássica, pela ascensão da individualidade, como consequência, da expressão das emoções, e
daquilo que a marcaria, a originalidade, fosse ela autoral ou marca de um povo.
Dessa forma, as manifestações parnasianas, simbolistas e do que a maioria dos
estudiosos cunha como “Escola Realista” estariam ao abrigo do grande conceito romântico,
que só merecerá diferenciação com o advento dos movimento modernistas, que
reinterpretariam, enfim, os princípios da grande escola de ruptura com o Clássico.
Eça de Queiroz afirma em seu ensaio “Positivismo e Idealismo” acerca do final do
século XIX que

Em literatura, estamos assistindo ao descrédito do naturalismo. O romance


experimental, de observação positiva, todo estabelecido em documentos, findou (se é que
jamais existiu, a não ser em teoria) e o próprio mestre do naturalismo, Zola, é cada dia mais
épico, à velha maneira de Homero. A simpatia, o favor, vão todos para o romance de
imaginação, de psicologia sentimental ou humorista, de ressurreição arqueológica (e pré-
histórica!) e até de capa e espada, como maravilhosos embróglios, como nos robustos
tempos de D’Artagnan. (s/d: 1496)

Tal contextualização histórico-literária vem ao encontro de uma proposta à apreciação


da obra de Caetano da Costa Alegre (1860-1894), o primeiro escritor nascido em São Tomé e
Príncipe com presença efetiva nas letras europeias. Designado “romântico tardio” ou
ultrarromântico por críticos das literaturas africanas de expressão portuguesa, Costa Alegre
define-se, mais provavelmente, pelo anseio de integração social e cultural, por meio da arte,
advindo da consciência da segregação racial que um emigrado sentiria no final do século
XIX.
Para fins de contextualização e caracterização da obra de Costa Alegre, pode-se
observar que nele convergem traços do romantismo byroniano – tanto pela referência ao
fúnebre como pelos cantares de um spleen reduzido à não-realização amorosa –, do
materialismo presente na obra de Antero de Quental, do apelo baudelairiano ao mórbido
mesclado a um certo viés naturalista – talvez pela sua relação com a medicina. Convergem,

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ademais, em suas letras, um diálogo com o cânone literário romântico da época, sua posição
de homem negro, de margem, numa sociedade colonial, imperialista, e a tentativa de, por
meio da linguagem poética, elaborar seus afetos tanto no que concerne ao plano pessoal,
quanto no que diz respeito à relação com a própria cor. Há, pois, uma tentativa de
reinterpretação da felicidade, tendo a linguagem como “chão”.
No que diz respeito ao traço byroniano, pode-se mencionar de Costa Alegre o soneto
“Quando eu morrer”,

Não quero, tenho horror que a sepultura


Mude em vermes meu corpo enregelado;
Se no fogo viveu minha alma pura;
Quero o meu corpo morto calcinado.

Depois de ser em cinzas transformado,


Lancem-me ao vento, ao seio da natura,
Quero viver no espaço ilimitado,
No mar, na terra, na celeste altura.

E talvez no teu seio, ó virgem linda!


Tão branco como o seio da virtude,
Eu, feito cinzas, me introduza ainda.

E no teu coração pequeno e forte


(Ó gozo triste!) viva eu na morte
Já que na vida lá viver não pude.
(COSTA ALEGRE, 2012: 25)

Quanto à morbidez baudelairiana, cite-se “Morta!”, cujo subtítulo é “Na sala de


dissecações”,

Não a levem daqui!... Deixem-me, eu quero


Nos meus braços cingida, emurchecida,
Pálida rosa, que perdeu a vida,
Inda a falar-me em seu amor sincero.

Para sempre, meu Deus! que desespero!


Dessa boca vermelha a voz sumida!...
Desses olhos extinta a luz querida!...
Não a levem daqui! Não sei que espero!?

Tudo me deste... os prantos da saudade,


Os risos da alegria, a castidade,
Tudo me deste, estrela do meu norte!...

Se no calor vivi da tua vida,


Quero banhar esta alma compungida
Nos gelos sepulcrais da tua morte.
(Idem, 2012: 79)
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Falta nele, contudo, de todas as tendências finisseculares, o culto à forma, cara ao
Parnasianismo – estilo, ademais, de tímida expressão nas literaturas de língua portuguesa,
pois mesmo naqueles que se dizem parnasianos assoma um lastro romântico singular.
Afinal, é o Romantismo, mesmo após o seu suposto final, que perpassa as grandes
obras brasileiras e portuguesas à época de Costa Alegre, que, assim como os grandes autores
ditos realistas e simbolistas, segue o caminho aberto por aquela escola.
Tal influxo romântico em Costa Alegre, aliás, pode ser notado inclusive por fontes
brasileiras, como Castro Alves (1847-1871), o “Poeta dos escravos”, que logrou
reconhecimento e êxito – até hoje – nas culturas de língua portuguesa. Tome-se como
exemplo “O sonho dantesco”, poema dedicado “À Ex.ma Sra. D. Cacilda Eirado Martins”,
uma brasileira, em que cita um verso do “Navio negreiro”, construindo cenário de alta
sensibilidade, ao por em contraponto o distanciamento social da dama burguesa, portuguesa,
que lê um texto de crítica e denúncia social, sem, no entanto, compreendê-lo:

(...) Que estranha criancice! que loucura!


Como podia aquela mente pura
Compreender o sonho gigantesco?!

Contudo pensativa ela cismava,


Imaginar o sonho procurava,
Dizendo sempre: “Era um sonho dantesco”!...
(idem, 2012: 9)

Ainda acerca dos influxos das escolas literárias de referência no séc. XIX em Costa
Alegre, pode-se observar um sutil diálogo com a escola árcade, notadamente em certas
idealizações platônicas do amor, como no soneto “Aurora”, por exemplo,

Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,


Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que teu ser começa.
Não amas!... flor que esta minha alma adora.

És a luz, eu a sombra pavorosa,


Eu sou a tua antítese frisante,
Mais não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.

Olha que esta paixão cruel, ardente,


Na resistência cresce, qual torrente;
É a paixão fatal que vem da sorte,

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É a paixão selvática da fera,
É a paixão do peito de pantera,
Que me obriga a dizer-te “amor ou morte”!
(idem, 2012: 10)

Nele, o tópico do interdito amoroso, ou sua irrealização, é construído por meio da


utilização de recursos antitéticos ou paradoxais, caros à escola árcade limítrofe às tardias
manifestações barrocas. Tal característica em muito se assemelha às do árcade brasileiro
Cláudio Manuel da Costa, uma provável leitura de Costa Alegre.
Em diálogo com o poeta brasileiro, emerge naquele poema a famosa referência do
amor “fera”, herdado pelo Arcadismo do Renascentismo de Camões. Enquanto no espaço de
enunciação do poeta brasileiro o sentimento amoroso inelutável se apura e cresce na dureza
dos penhascos das Minas Gerais, Costa Alegre o burila em “antíteses frisantes” - o dia versus
a noite, a luz versus a sombra -, direcionadas sempre ao amor irrealizado pela originalidade
social e cultural que lhe confere o poeta de São Tomé.
Para efeitos de comparação, observe-se a matriz ou influência temática de Claudio
Manuel da Costa,

(...)
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,


Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.
(MOISÉS, 2012: 93)

Conhecidas as características literárias e sociais da época, pode-se empreender um


estudo da obra de Caetano da Costa Alegre pelo viés da tentativa do poeta em ser um homem
de direitos plenos na metrópole colonial, assombrado e assaltado, sempre, pela dificuldade de,
como homem negro, ser poeta em Portugal, em cuja “rota e rasa caravela targarela-se”, o
Portugal “da verbosidade descambada na verborreia”. (QUEIROZ, s/d: 1467).
Pela linguagem e pelo seu status – Costa Alegre era estudante de medicina, filho de
uma elite forra de São Tomé e Príncipe – o poeta traça possibilidades de vida e de “riso”, no
país que o vê como colonizado e como mais um dos “negros de São Tomé (que) se supõem
cavaleiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão.”
(idem, 2015: 63).

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2. A (im)possibilidade do riso
“Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade
entristeceu. E entristeceu – por causa da sua imensa
civilização. O único homem sobre a Terra que ainda solta
a feliz risada é o negro, na África. Quanto mais uma
sociedade é culta, mais sua face é triste. (...)” (Eça de
Queiroz, grifo meu)

A temática do amor platônico parece em Costa Alegre uma base ou estratégia literária
para explicar ou explorar um determinado estado de espírito: a tentativa de elaborar sua
emoções num espaço de interdição “racial”, logo, social. Nele incide o interdito ao pleno gozo
das aspirações amorosas, talvez mais pela falta de correspondência do que pela “amputação”
decorrente da cor da pele, como sugeriram os autores dos textos da época, que anunciaram a
morte do escritor em 1890, e por críticos que, até os dias de hoje, o consagraram como o
poeta da “cor dolorosa”. Na introdução à Breve história da felicidade na expressão
contemporânea, Ronaldo Lima Lins questiona-se,

Mas como recuperar no cotidiano, no miserável espaço em que nossas esperanças se


banalizam, em que nos contemos para não avançar, o conteúdo de nossa interioridade muitas
vezes dilacerada? Como recuperar nesse território por definição escorregadio e mistificador,
no qual as lágrimas sugerem fraqueza ou perturbação emocional, as pistas que os indícios
oferecem? O burburinho efervescente que nos cerca, indiscernível em seu gigantismo, retirado
de seu timbre anônimo, sussurra nas frases ou palavras como um monólogo interior que, na
esfera literária, os escritores decifram (...) (LINS, 1994: 14)

Posso afirmar que Costa Alegre decifra este monólogo interior em vários momentos
de sua poética, de que destaco um poema, dedicado a Antero de Quental, em que o eu lírico é
chamado a abrir os olhos da Razão para ver “o Deus por ele imaginado”, Deus este que pode
ser a representação de uma esperança, de um olhar constante para seu interior, ou,
simplesmente, o desejo da imanência,

Ergui meu olhar cansado e pesaroso


Para a amplidão do espaço imenso e luminoso,
A procurar Deus.
Interroguei o sol, a estrela vespertina
A lua cintilante, alvíssima, argentina,
E a imensidão dos céus.

E o sol, a estrela, a lua, os céus, o espaço...tudo


Num coro misterioso, indefinível, mudo,
Me respondeu então:
-Se queres ver o Deus, para ti imaginário,

8
Abre, ó louco poeta, ó doido visionário,
Os olhos da Razão.
(COSTA ALEGRE, 2012: 13)

No prefácio à edição dos Versos de 1994, da Imprensa Nacional/Casa da Moeda,


Lisboa, Francisco Soares empreende exaustivo estudo da obra de Costa Alegre. O estudioso
procura, entre outras análises de cunho formal, desestigmatizar a imagem que Cruz
Magalhães, autor de “Saudade”, texto datado de 1890, constrói, em elogio póstumo, ao amigo
e poeta. O mérito de Cruz Magalhães, sem dúvida, foi ter reunido, em 1916, toda a obra do
escritor. Ele deixa marcada, todavia, a ideia de que Costa Alegre era um jovem infeliz e
retraído, por conta da “suprema injustiça de ser negro”1.
Embora Cruz Magalhães sugerisse que “ser negro” era incompatível com o “Bem e a
Justiça” – por que Costa Alegre ansiaria de forma “irresistível” –, o trabalho linguístico do
poeta não confirma tal antítese. Ainda assim, os temas de sua poesia podem acender uma
discussão acerca da dicotomia negro versus branco, perpassada por um sentimento resultante
das discriminações sofridas pelo poeta, que não redunda, contudo, num calar-se ou
inferiorizar-se pelo fato de o poeta ser um homem negro. Observe-se fragmentos das quadras
“Eu”,

Eu, quando em mim reparo, pasmo e admiro


O homem bem feito que sou, nesta aparência,
Com que eu até, às vezes, medo inspiro.
É uma maravilha a minha essência!...

Os meus olhos! Que máquina mais bela!...


Tristes, negros, sem lentes e sem nada,
Dão-me a imagem fiel de cada estrela
Nos olhos cor do céu da minha amada.

O meu tosco nariz aspira o aroma


Tão esquisito, terno e delicado,
Que ela desprende da anelada coma
Onde leva meu coração atado.

Da minha roxa boca desconforme


Saiu aquela voz débil, sincera,
Com que eu lhe fiz desta paixão enorme
A confissão que repeliu austera. (...)

1
Ver anexo: MAGALHÃES, Cruz. “Saudade”, 1890.
9
Ah! pálida mulher, se tu és bela,
Eu não sou menos belo em minha essência,
E se amas entre as nuvens uma estrela,
Ama o belo também nesta aparência.
(idem, 2012: 41-2)

Aludindo à epígrafe de Eça de Queiroz neste capítulo, é importante ressaltar a visão


que o escritor português parecia ter da África: não menos exótica que sorridente, tão
elementar quanto ligada aos valores de sua época, marcada pelo imperialismo. Só em se
estando em África é possível sorrir primitivamente. Ao contrastar a sociedade culta – triste, e
a África – alegre, feliz, Eça traça o perfil ideológico que se fazia do continente à sua época.
“Os homens de ação e pensamento, hoje, estão implacavelmente, voltados à melancolia.”
(QUEIROZ, s/d: 1479).
Assim, pode-se ler, cuidadosamente, o ensaio de Eça de Queiroz, “A decadência do
riso” (1891), e concluir que, porque está na Europa e deseja ser parte de uma pequena
burguesia intelectual e financeira, Costa Alegre passa a pensar acerca das “tantas
complicações da existência social que a ação, por meio do esforço que reclama, se tornou uma
dor grande.” (idem, ibidem).
É, pois, tênue o fio que separa as afirmações de Eça, provavelmente frutos de uma
visão de época embaçada pelo colonialismo, da “verdade” histórica e social que elas guardam
acerca daquilo que o Ocidente pensava sobre o africano em geral, vivendo na África: a
criação mental de um continente marcado pelo exotismo, onde os homens, se soltam “a feliz
risada primitiva”, estão em contraposição ao homem que vive em uma sociedade culta que,
logo, pensa. Eis que Costa Alegre desloca-se do lugar paradisíaco e feliz para a metrópole
colonial: o riso teria dado lugar à melancolia devido ao desenraizamento de sua terra?; ou as
opressões sociais, econômicas e raciais fizeram do poeta um homem “de pensamento”, triste?;
como se colocar a delicada questão diante da obra – curta e, aparentemente, inacabada – do
poeta são-tomense?
Definitivamente não é apenas o fato de ser negro ou de, no Ocidente, se poder pensar,
que se tece a melancólica e irônica obra de Costa Alegre, mas, muito mais evidente, o fato de
locomover-se num ambiente que desprezava o lastro social e afetivo em que se constroem os
Versos. A falta do devido reconhecimento pleno ao cidadão e ao poeta – ainda que iniciante
nas artes das letras – o marca com a infeliz designação do “homem negro de alma branca”.
Sabe-se que a flexibilidade não é característica de uma metrópole colonial, o que me faz
aludir ao que afirma Lins: não é possível, em uma sociedade em que prevalece a rigidez em

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contraposição à flexibilidade, que o “outro” seja plenamente (re)conhecido, mas sim, o que se
tem é a negação da alteridade.
É de se ressaltar que a mesma sensação de deslocamento e desilusão social – muito
embora tendo passado por experiências diversas das de Costa Alegre –, surge no são-tomense
Francisco José Tenreiro – mulato e criado em Portugal, de ínfima vivência na sua terra de
nascimento. Ele a expõe, por exemplo, no poema “Amor de África”, lançando mão das
mesmas expressões já usadas por Cruz Magalhães para designar os negros, que são ou “de
alma branca” ou “danados”, sem um meio termo para tais designações,

(...)
Aqui estou agora de coração em África
nesta noite fria e nu do capote das ilusões
ouvindo este sábio que tudo sabe tudo sabe de África.

De África e dos pretos, claro está!...

Dos pretos que para arrelia das gentes à Terra vieram


pobrezinhas crianças crescidas em pretidão
mas que têm alma branca dizem uns
ou segundo outros alma danada.
Aqui estou eu agora vestido de África por dentro
por fora cheviote sorridente o sábio ouvindo
que das pirâmides diz e esquece os negros faraós
da poligamia reverbera olhos fechados à pederastia
fosforescente ao escuro das ruas velhas do mundo cansado
braço dado com damas de camélias emurchecidas
como as palavras que solta da sua caveira sem dentes.
Aqui estou eu agora coração oprimido e sorriso longe
ouvidos atentos ao linfatismo de repetidas ideias
sei lá quantas vezes e tantas como pingos sujando meu coração. (...)
(TENREIRO, 1994: 61, grifos meus)

Entretanto, os Versos não corroboram a imagem do negro injustiçado, que tanto


marcam – exageradamente – Costa Alegre como “o poeta da cor dolorosa”. Trata-se aqui,
muito mais, de algo que se liga ao sentimento de um homem “exilado”, que viveu, ao
contrário de Tenreiro, a maior parte de seus anos (de 1864 a 1883) em São Tomé – o que o
fez sentir ainda mais estrangeiro ou estranho na metrópole colonial que não o acolhe, decerto,
como um cidadão comum.
A vivência em São Tomé e a referência afetiva que Costa Alegre guardava das
relações sociais são, em Lisboa, em conjugação ao preconceito racial, motivos óbvios e fortes
para sua desilusão. Não se pode, todavia, interpretar superficialmente sua poesia reduzindo-a
a sua dor pessoal, pois em sua arte de poeta iniciante se plasma algo maior: o sentimento de
11
não-pertencimento e de interdição aos prazeres de um jovem de sua época. Isso o marca como
um poeta ainda próximo aos valores que herdou de sua terra e os transplantou consigo para a
Lisboa do final do século XIX. A poesia deste exilado é, portanto, essencial para a
compreensão histórica da arte e da cultura de São Tomé e Príncipe. Segundo Lins, o que se
pode aplicar à leitura da poesia de Costa Alegre,

(...) A valorização do subjetivismo, uma das marcas da modernidade, ocorreu em


consequência de uma angústia proveniente de fora, isto é, de nossa incapacidade em nos
realizar dentro das condições objetivas... (LINS, 1993: 35)

Jovem em ambiente de cultura artística pulsante, é provável que Costa Alegre tenha
embasado tal sentimento de exílio sobre as manifestações poéticas movediças e convergentes
no Portugal dos fins do século XIX, em que vicejava ainda o que muitos críticos chamam de
romantismo egótico, em que antíteses como amor versus morte, dúvida versus ironia,
entusiasmo versus tédio são bastante cultivadas, muitas vezes no que Alfredo Bosi bem
sintetizou como “auto-ironia masoquista” – nítida, por exemplo, na ousadia de versos como
os de “Eu e os passeantes”,

Passa uma inglesa,


E logo acode,
Toda surpresa:
What a black, my God!

Se é espanhola,
A que me viu,
Diz como rola:
Que alto, Dios mio!

E, se é francesa:
Ó quel beau nègre!
Rindo pra mim.

Se é portuguesa,
Ó Costa Alegre!
Tens um atchim!.
(COSTA ALEGRE, 2012: 20)

Em tal poema, o sujeito poético, ciente de sua condição de negro e colonizado, coloca
em contraste a reação de mulheres inglesas, francesas ou espanholas diante do homem
africano – que o saúdam de maneira galanteadora (“What black my God!//(...) Que alto, Dios
mio!//(...) Ó quel beau nègre!”) - e a da portuguesa - que é a expressão de um mundo que o
rejeita (“Ó Costa Alegre/Tens um atchim!”).
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A repulsa – vazada em autoironia ousada para os moldes românticos –, representada
pelo “atchim”, sintetiza a situação sociocultural adversa vivida pelo poeta, ao mesmo tempo
que critica a mentalidade vigente à época, colonial e racista.
Em contraste à tão sublinhada “cor dolorosa”, a consciência do próprio valor, beleza
física e humanidade – marcada pelas falas das mulheres francesa, inglesa e espanhola – não
expõe uma dor, como por muito tempo sugerida e endossada pelos primeiros estudos sobre
sua obra, que ainda fazem eco. Ao contrário, o sujeito poético, ressaltando a beleza do negro e
a admiração das damas desprovidas do preconceito personificado na mulher portuguesa,
expõe e critica – com o pretexto e artifício artístico do microcosmo feminino – o desprezo, da
maior parte da sociedade portuguesa da época, aos negros.
Há outros momentos em que o argumento aqui proposto se evidencia, como em “A
negra”,

Negra gentil, carvão mimoso e lindo


Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do pai.

Encosta o rosto, cândido e formoso,


Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto


Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os teus dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta


Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele
Que tanto me seduz (...)
(idem, 2012: 7)

Neste poema, o sujeito poético exalta uma mulher negra que o seduz, revelando
fascínio – e não a dor lancinante a que se refere Cruz Magalhães – pela cor negra da pele,
também se desviando do tema da interdição amorosa, tão presente em sua obra. A alma
branca de que todo Poeta é composto, para novamente citar Cruz Magalhães, dilui-se na
beleza do “Carvão mimoso e lindo/Donde o diamante sai”, na pele “negra e meiga/e acetinada
cor /(...) queimada/pelas chamas do amor”.

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Para sedimentar o argumento, os poemas em que Costa Alegre trabalha com a
dicotomia das cores negra e branca, num tom angustiado, exprime, no mais das vezes, a dor
de não ser amado, o que faz nascer a antítese “cor negra – luto e pena/raça branca – cheia de
graça”, como se pode observar no poema “?”, cujo título, de per si, coloca-nos em dúvida ou
em confronto com as agruras sociais por que passava o poeta,

A minha cor é negra


Indica luto e pena;
É luz, que nos alegra,
A tua cor morena.
É negra a minha raça,
A tua raça é branca,
Tu és cheia de graça,
Tens a alegria franca,
Que brota a flux do peito
Das cândidas crianças.
Todo eu sou um defeito,
Sucumbo sem esperanças,
E o meu olhar atesta
Que é triste o meu sonhar,
Que a minha vida é mesta
E assim há de findar!
Tu és a luz divina,
Em mil canções divagas,
Eu sou a horrenda furna
Em que se quebram vagas!...
Porém, brilhante e pura,
Talvez sejas a manhã
Irmã da noite escura!
Serás tu minha irmã?!...
(idem, 2012: 31)

Trata-se de um poema de amor, um amor não correspondido, e, por isso, o sujeito


poético, usando o artifício ou a estratégia da cor/raça, diz-se sucumbido, sem esperança. Seu
“olhar atesta/que é triste o (seu) sonhar”; a luz divina que o ilumina pode ser a manhã, a que o
sujeito poético irmana à noite, fazendo a síntese entre as cores negra e branca, do que se pode
deduzir que se desfaz, também, o paradoxo de que se constituem tais cores. “Serás tu minha
irmã?!...”
Finalmente, interessante e inquietante é a leitura d’Os Maias. Faz-se necessário
observar a representação peculiar e particular que se faz do homem são-tomense na fala de
uma das personagens melhores construídas por Eça de Queiroz, João da Ega,

Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo
o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio
14
antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à
moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem caráter para criar um feitio seu, um feitio
próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de
leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo
tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado – exagera o
modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era
levemente estreito na ponta – imediatamente o janota estica-o, aguça-o, até ao bico de alfinete.
Por seu lado, o escritor lê uma página de Goncourt ou de Verlaine, em estilo preciso e
cinzelado – imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase, até descambar no
delirante e burlesco. (...) E por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o
orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportsman... É o que sucede com os
pretos já corrompidos de São Tomé, que veem os europeus de lunetas – e imaginam que
nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de
progresso e de brancura, acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de
cor. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e
angustioso esforço de se equilibrarem todos estes vidros – para serem imensamente
civilizados e imensamente brancos... (QUEIROZ, 2015, p. 398)

O poeta, que sai de sua terra natal, tenta se inserir nessa sociedade, caracterizada, na
fala de Ega, como um Portugal sem originalidade, sem força e sem caráter para criar um feitio
próprio. A crítica – no subtexto – de Eça à visão do homem de São Tomé é uma das chaves
para a compreensão do ânimo de Costa Alegre vivendo em tal Portugal, corrompido, como os
pretos de seu país. E consciente desse modo de pensar da metrópole.

15
3. Em modo de conclusão

Só o exilado, ao ler os trenos da saudade,


Clama: já te senti a estranha suavidade,
Deliciosa fusão da lembrança e da dor!...
Só quem sofreu entende os prantos, os pesares…
Só vibra o marinheiro, ouvindo ao longe os mares...
Só é doce a quem ama ouvir falar de amor!...
(Costa Alegre, “Saudade”)

Entendidas as circunstâncias biográficas, sociais e artísticas de Costa Alegre, pode-se


considerá-lo o primeiro poeta são-tomense que, tendo vivenciado sua terra natal, concebeu
sua arte em valores cultivados em seu local de origem, em forte contraste, ou mesmo
oposição, aos vivenciados em desterritorialização. Não se quer lançar aqui, em absoluto, uma
proposta fundacional ou de literatura marcada por uma essência nacional, mas assinalar a
importância de Costa Alegre na literatura dos nascidos em São Tomé e Príncipe, como o será
igualmente Marcelo da Veiga, que sentiram o choque de culturas por vivência direta dos
ambientes são-tomense e português. Também não se pretende aqui entender que o autor, pela
simples razão de nascer em São Tomé e Príncipe, seria o precursor, em um protossistema
literário nacional – que ainda hoje espera por se delinear com traços mais nítidos.
Claude Lévi-Strauss, em seu clássico Raça e história, afirma que,

(...) Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afetivamente e de
negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se
a toda espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos
entre pólos contraditórios, e para perceber a diversidade das culturas, procurando suprimir
nesta o que ela contém para ele de escandaloso e de chocante. (2012: 20)

Com base em tal afirmação, entende-se a limitação de Cruz Magalhães ao se


chocar/encontrar com Costa Alegre num país “branco” e de mentalidade colonial: é, para o
prefaciador, incompreensível um jovem com alto pendor artístico em se tratando de um
homem de “raça” que difere dos padrões que ele conhece e aceita.
É também preciso reconhecer, sem correr o risco de “injustiçar” o amigo de Costa
Alegre que, não fosse a sua sincera dedicação, não se poderia, hoje, no segundo decênio do
século XXI, apontar o poeta dos Versos como o primeiro escritor de São Tomé e Príncipe,
que verdadeiramente vivenciou, sentiu e experienciou a sua terra natal.
E não se pode olvidar o óbvio: a importância de desvincular da imagem do poeta, que
era uma “fina flor do Bem”, da dor amarga da “brutalidade descaroável de sorte para ele”,

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fazendo-o nascer negro com alma tão branca – que deveria ser a alma de Poeta, como afirma
Cruz Magalhães. O que é necessário observar, efetivamente, é um autor, mais uma vez, de
forte pendor poético – interrompido pela morte precoce –, que explorou o preconceito
europeu da sua época e o transformou em versos, usando as suas emoções, seus afetos e suas
sensações como matéria poética – diversas vezes impregnados de fina ironia – a sua
indignação, inaugurando uma poética do homem negro, ficando, dessa forma, conhecido, em
Lisboa, como o poeta de São Tomé.
Caetano da Costa Alegre, tantas vezes obliterado no seu solo pátrio por Francisco José
Tenreiro (que seja a ele dado o lugar devido, claro), viveu em São Tomé e Príncipe, mais
precisamente na ilha de São Tomé. Viveu lá até seus 19 anos e foi estudar na metrópole, nos
finais do século retrasado. Defrontou-se e confrontou-se com uma sociedade branca, racista,
de mentalidade opressora. Sentiu, no entanto, a poesia correr em suas veias e encontrou nela
uma via de liberdade de expressão. Foi um homem negro, que trabalhou com as palavras a
antítese frisante de que nós todos, seres humanos, ora somos compostos. Não rejeitou a sua
cor ou a sua nacionalidade; exaltou a beleza da mulher negra, sentiu as tristezas próprias de
um jovem rejeitado pelas mulheres da metrópole, versou as suas sensações e emoções em
terra estrangeira, enveredou-se pelo naturalismo – influenciado, talvez, pela sua relação com a
medicina – desvelou o homem, idealizou o amor romântico, tratou das questões da cores
negra e branca como material artístico.

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4. Referências bibliográficas

COSTA ALEGRE, Caetano da. (1994) Versos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
_______. (2012) Versos. São Tomé, Embaixada do Brasil em São e Príncipe e Ministério das
Relações exteriores.
LEVY-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa, Editorial Presença.
LINS, Ronaldo Lima. (1993). Nossa amiga feroz. Breve história da felicidade na expressão
contemporânea. Rio de Janeiro, Rocco.
MOISÉS, Massaud. (2012) A literatura brasileira através dos textos. 29 ed. São Paulo,
Cultrix.
QUEIROZ, Eça de. (2015) Os Maias. Éditions e-Books France. www.dominiopubico.org
_______. (s/d) “Positivismo e Idealismo”. Obras completas. Porto, Lello e Irmão. Vol. II.
_______. (s/d) “A decadência do riso”. Obras completas. Porto, Lello e Irmão. Vol. II.
TENREIRO, Francisco José. (1994) Obra poética. Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da
Moeda.

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Anexos

Saudade

Alegre! Era uma alegria convencional a dele! Como poderia ser realmente alegre
tendo a intuição nítida das desventuras humanas e vibrando-lhe a alma dolorosamente
uníssona com as mágoas alheias? E não as teria próprias? Não sentiria, insistente, uma revolta
a protestar contra essa suprema injustiça de ser negro, quem tão branca alma possuía? Sorria
constantemente, sim! Mas não seria esse sorriso a agradável máscara que lhe encobria as
lágrimas?
Todo aquele que for superiormente bem formado, cuja candidez de sentimentos ansiar,
numa irresistível aspiração, o Bem e a Justiça – e o Poeta, pelo menos no verdor dos anos
assim é – como poderá ser feliz ou sequer subjugar momentaneamente o desgostoso asco pela
vida, inversão daqueles ideais?!
Se a felicidade é tangível para alguns, é que esses, dotados dum egoísmo cômodo,
limitam a sua esfera de ação a eles próprios – que para mais é a sua vaidade – não tentando
nunca , pela mesquinhez do caráter ou pela curteza da inteligência, alongar os olhos para o
sofrimento alheio. A! Mas esses – únicos que podem ser felizes – nunca vingam, por isso
mesmo, ser Poetas. E Costa Alegre era um Poeta em todo o âmbito alto, nobre, sublime da
palavra. Sentia escoarem-lhe no peito os gritos da miséria, as revoltas dos injustamente
opressos, os rumores abafados do infortúnio Humano.
E, se juntarmos a isso a brutalidade descaroável da sorte para com ele, cobrindo-lhe a
alma de Poeta, branca como as estrelas, com a negridão requeimada da pele!... Se lembrarmos
a torturante preocupação de saber que sempre haveria de amar sem ser amado, ter-se-á um
bosquejo leve da amaríssima dor que o lancinava.
E, todavia, era dum tão puro quilate a sua alma que nunca o contaminou a perversão
vulgar, para a qual o desgosto da vida deve encurtar assustadoramente a distância: não, Costa
Alegre sempre foi um bom.
Máximo elogio é poder dizer-se de um homem, com firme certeza, que ele através
todas as provocações venais da vida, todas as tentações cotidianas para o mal, todas as
contrariedades, que obcecam, todas as pequenas e grandes tentações, mais ou menos infames,
que deslumbram, na convicção de que uma simples transigência, calcando preconceitos,
renegados pela maioria, basta para atingir a culminância da consideração, do prestígio e do

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fausto... é máximo elogio dizer-se dum homem que ele desprezou sempre tudo que não fosse
duma alvinitente e provada lisura e inalteravelmente pisou o caminho, muita vez escabroso,
do dever e da honra!
Costa Alegre seguiu sempre, sem uma hesitação, a via-láctea da virtude, e essa trilha
luminosa seguiria, sem desvios, se a prematura morte não cortasse essa fina flor do Bem,
propensa a rescender indefinidamente o calmo e acalentador perfume da Bondade.

Abril de 1890.

Cruz Magalhães.

II. Poemas de Caetano da Costa Alegre citados no corpo do texto transcritos na íntegra

A Negra

Negra gentil, carvão mimoso e lindo


Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,


Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto


Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta


Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga


E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,


Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.

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Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.

Tu tens o meu amor ardente, e basta


Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor de lis.

O sonho dantesco

À Ex.ma Sr.a D. Cacilda Eirado Martins

Era um sonho dantesco... o tombadilho 


Castro Alves

“Era um sonho dantesco...” repetia,


Aquela pálida e gentil morena,
Na fresca e doce entoação amena
Do canto de ave ao despontar do dia.

“Era um sonho dantesco...” ela dizia,


Poisando a fronte cândida e serena
Na branca mão artística e pequena,
Imaginando o sonho que seria.

Que estranha criancice! que loucura!


Como podia aquela mente pura
Compreender o sonho gigantesco?!

Contudo pensativa ela cismava,


Imaginar o sonho procurava,
Dizendo sempre: “Era um sonho dantesco”!...

Eu

Eu, quando em mim reparo, pasmo e admiro


O bem feito que sou, nesta aparência,
Com que eu até, às vezes, medo inspiro.
É uma maravilha a minha essência!...

Os meus olhos! Que máquina mais bela!...


Tristes, negros, sem lentes e sem nada,
Dão-me a imagem fiel de cada estrela


A citação refere-se a versos do poema “O navio negreiro”, de Castro Alves: “Era um sonho dantesco… o
tombadilho / Que das luzerna avermelha o brilho. / Em sangue a se banhar.”
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Nos olhos cor do céu da minha amada.

O meu tosco nariz aspira o aroma


Tão esquisito, terno e delicado,
Que ela desprende da anelada coma
Onde me leva o coração atado.

Da minha roxa boca desconforme


Saiu aquela voz débil, sincera,
Com que eu lhe fiz desta paixão enorme
A confissão que repeliu austera.

O fósforo, que tenho no meu crânio,


Alumia o seu rosto a todo o instante,
Como uma frouxa luz num subterrâneo,
Batendo nas arestas dum brilhante.

A minha alma!... Há melhor telegrafia?


Tudo que lhe transmitam meus sentidos,
E tudo que os encanta, ela aprecia,
Como um vate saudoso os tempos idos.

Não será dumas mãos onipotentes?


A denegar as coisas evidentes,
Pois esta obra sublime e grande – o Homem –
Não será dumas mãos onipotentes?

Ah! pálida mulher, se tu és bela,


Eu não sou menos belo em minha essência,
E, se amas entre as nuvens uma estrela,
Ama o belo também nesta aparência!

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