Texto - O Canto de Caetano Da Costa Alegre No Contexto Do Final Do Século XIX em Portugal - PALMEIRA Naduska Mário
Texto - O Canto de Caetano Da Costa Alegre No Contexto Do Final Do Século XIX em Portugal - PALMEIRA Naduska Mário
Texto - O Canto de Caetano Da Costa Alegre No Contexto Do Final Do Século XIX em Portugal - PALMEIRA Naduska Mário
XIX em
Portugal.
Resumo
O objetivo deste trabalho é o de situar a poesia de Caetano da Costa Alegre, poeta são-
tomense, no contexto das literaturas produzidas em Portugal e na Europa no final do século
XIX, além de analisar as condições socioculturais e afetivas no espaço de enunciação do
autor.
A poesia de Costa Alegre é marcada por forte influência das escolas europeias
finisseculares, por sua experiência na metrópole colonial e por sua terra natal: homem negro,
estudante de medicina em Lisboa, que tenta se apropriar de uma condição humana e de
direitos, dos quais é interditado devido a seu status de “homem colonizado” e negro.
Como base teórica, as reflexões de Eça de Queiroz acerca da Europa e da imagem que
se fazia do homem africano à época são uma chave para a análise da obra do poeta das ilhas,
muitas vezes caracterizado pelo poeta da “cor dolorosa”.
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1. Introdução
“Este fim de século é um fim de mundo” (Eça de
Queiroz)
Em sua História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva afirma ser a época
romântica um todo que engloba diversas manifestações a que outros autores conferem estatuto
diferenciado. Saraiva percebe no Romantismo, por certo, a grande ruptura com a época
clássica, pela ascensão da individualidade, como consequência, da expressão das emoções, e
daquilo que a marcaria, a originalidade, fosse ela autoral ou marca de um povo.
Dessa forma, as manifestações parnasianas, simbolistas e do que a maioria dos
estudiosos cunha como “Escola Realista” estariam ao abrigo do grande conceito romântico,
que só merecerá diferenciação com o advento dos movimento modernistas, que
reinterpretariam, enfim, os princípios da grande escola de ruptura com o Clássico.
Eça de Queiroz afirma em seu ensaio “Positivismo e Idealismo” acerca do final do
século XIX que
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ademais, em suas letras, um diálogo com o cânone literário romântico da época, sua posição
de homem negro, de margem, numa sociedade colonial, imperialista, e a tentativa de, por
meio da linguagem poética, elaborar seus afetos tanto no que concerne ao plano pessoal,
quanto no que diz respeito à relação com a própria cor. Há, pois, uma tentativa de
reinterpretação da felicidade, tendo a linguagem como “chão”.
No que diz respeito ao traço byroniano, pode-se mencionar de Costa Alegre o soneto
“Quando eu morrer”,
Ainda acerca dos influxos das escolas literárias de referência no séc. XIX em Costa
Alegre, pode-se observar um sutil diálogo com a escola árcade, notadamente em certas
idealizações platônicas do amor, como no soneto “Aurora”, por exemplo,
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É a paixão selvática da fera,
É a paixão do peito de pantera,
Que me obriga a dizer-te “amor ou morte”!
(idem, 2012: 10)
(...)
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,,
Nunca pude fugir ao cego engano:
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2. A (im)possibilidade do riso
“Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade
entristeceu. E entristeceu – por causa da sua imensa
civilização. O único homem sobre a Terra que ainda solta
a feliz risada é o negro, na África. Quanto mais uma
sociedade é culta, mais sua face é triste. (...)” (Eça de
Queiroz, grifo meu)
A temática do amor platônico parece em Costa Alegre uma base ou estratégia literária
para explicar ou explorar um determinado estado de espírito: a tentativa de elaborar sua
emoções num espaço de interdição “racial”, logo, social. Nele incide o interdito ao pleno gozo
das aspirações amorosas, talvez mais pela falta de correspondência do que pela “amputação”
decorrente da cor da pele, como sugeriram os autores dos textos da época, que anunciaram a
morte do escritor em 1890, e por críticos que, até os dias de hoje, o consagraram como o
poeta da “cor dolorosa”. Na introdução à Breve história da felicidade na expressão
contemporânea, Ronaldo Lima Lins questiona-se,
Posso afirmar que Costa Alegre decifra este monólogo interior em vários momentos
de sua poética, de que destaco um poema, dedicado a Antero de Quental, em que o eu lírico é
chamado a abrir os olhos da Razão para ver “o Deus por ele imaginado”, Deus este que pode
ser a representação de uma esperança, de um olhar constante para seu interior, ou,
simplesmente, o desejo da imanência,
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Abre, ó louco poeta, ó doido visionário,
Os olhos da Razão.
(COSTA ALEGRE, 2012: 13)
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Ver anexo: MAGALHÃES, Cruz. “Saudade”, 1890.
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Ah! pálida mulher, se tu és bela,
Eu não sou menos belo em minha essência,
E se amas entre as nuvens uma estrela,
Ama o belo também nesta aparência.
(idem, 2012: 41-2)
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contraposição à flexibilidade, que o “outro” seja plenamente (re)conhecido, mas sim, o que se
tem é a negação da alteridade.
É de se ressaltar que a mesma sensação de deslocamento e desilusão social – muito
embora tendo passado por experiências diversas das de Costa Alegre –, surge no são-tomense
Francisco José Tenreiro – mulato e criado em Portugal, de ínfima vivência na sua terra de
nascimento. Ele a expõe, por exemplo, no poema “Amor de África”, lançando mão das
mesmas expressões já usadas por Cruz Magalhães para designar os negros, que são ou “de
alma branca” ou “danados”, sem um meio termo para tais designações,
(...)
Aqui estou agora de coração em África
nesta noite fria e nu do capote das ilusões
ouvindo este sábio que tudo sabe tudo sabe de África.
Jovem em ambiente de cultura artística pulsante, é provável que Costa Alegre tenha
embasado tal sentimento de exílio sobre as manifestações poéticas movediças e convergentes
no Portugal dos fins do século XIX, em que vicejava ainda o que muitos críticos chamam de
romantismo egótico, em que antíteses como amor versus morte, dúvida versus ironia,
entusiasmo versus tédio são bastante cultivadas, muitas vezes no que Alfredo Bosi bem
sintetizou como “auto-ironia masoquista” – nítida, por exemplo, na ousadia de versos como
os de “Eu e os passeantes”,
Se é espanhola,
A que me viu,
Diz como rola:
Que alto, Dios mio!
E, se é francesa:
Ó quel beau nègre!
Rindo pra mim.
Se é portuguesa,
Ó Costa Alegre!
Tens um atchim!.
(COSTA ALEGRE, 2012: 20)
Em tal poema, o sujeito poético, ciente de sua condição de negro e colonizado, coloca
em contraste a reação de mulheres inglesas, francesas ou espanholas diante do homem
africano – que o saúdam de maneira galanteadora (“What black my God!//(...) Que alto, Dios
mio!//(...) Ó quel beau nègre!”) - e a da portuguesa - que é a expressão de um mundo que o
rejeita (“Ó Costa Alegre/Tens um atchim!”).
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A repulsa – vazada em autoironia ousada para os moldes românticos –, representada
pelo “atchim”, sintetiza a situação sociocultural adversa vivida pelo poeta, ao mesmo tempo
que critica a mentalidade vigente à época, colonial e racista.
Em contraste à tão sublinhada “cor dolorosa”, a consciência do próprio valor, beleza
física e humanidade – marcada pelas falas das mulheres francesa, inglesa e espanhola – não
expõe uma dor, como por muito tempo sugerida e endossada pelos primeiros estudos sobre
sua obra, que ainda fazem eco. Ao contrário, o sujeito poético, ressaltando a beleza do negro e
a admiração das damas desprovidas do preconceito personificado na mulher portuguesa,
expõe e critica – com o pretexto e artifício artístico do microcosmo feminino – o desprezo, da
maior parte da sociedade portuguesa da época, aos negros.
Há outros momentos em que o argumento aqui proposto se evidencia, como em “A
negra”,
Neste poema, o sujeito poético exalta uma mulher negra que o seduz, revelando
fascínio – e não a dor lancinante a que se refere Cruz Magalhães – pela cor negra da pele,
também se desviando do tema da interdição amorosa, tão presente em sua obra. A alma
branca de que todo Poeta é composto, para novamente citar Cruz Magalhães, dilui-se na
beleza do “Carvão mimoso e lindo/Donde o diamante sai”, na pele “negra e meiga/e acetinada
cor /(...) queimada/pelas chamas do amor”.
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Para sedimentar o argumento, os poemas em que Costa Alegre trabalha com a
dicotomia das cores negra e branca, num tom angustiado, exprime, no mais das vezes, a dor
de não ser amado, o que faz nascer a antítese “cor negra – luto e pena/raça branca – cheia de
graça”, como se pode observar no poema “?”, cujo título, de per si, coloca-nos em dúvida ou
em confronto com as agruras sociais por que passava o poeta,
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo
o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio
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antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à
moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem caráter para criar um feitio seu, um feitio
próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de
leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo
tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado – exagera o
modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era
levemente estreito na ponta – imediatamente o janota estica-o, aguça-o, até ao bico de alfinete.
Por seu lado, o escritor lê uma página de Goncourt ou de Verlaine, em estilo preciso e
cinzelado – imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase, até descambar no
delirante e burlesco. (...) E por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o
orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportsman... É o que sucede com os
pretos já corrompidos de São Tomé, que veem os europeus de lunetas – e imaginam que
nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de
progresso e de brancura, acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de
cor. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e
angustioso esforço de se equilibrarem todos estes vidros – para serem imensamente
civilizados e imensamente brancos... (QUEIROZ, 2015, p. 398)
O poeta, que sai de sua terra natal, tenta se inserir nessa sociedade, caracterizada, na
fala de Ega, como um Portugal sem originalidade, sem força e sem caráter para criar um feitio
próprio. A crítica – no subtexto – de Eça à visão do homem de São Tomé é uma das chaves
para a compreensão do ânimo de Costa Alegre vivendo em tal Portugal, corrompido, como os
pretos de seu país. E consciente desse modo de pensar da metrópole.
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3. Em modo de conclusão
(...) Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afetivamente e de
negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se
a toda espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos
entre pólos contraditórios, e para perceber a diversidade das culturas, procurando suprimir
nesta o que ela contém para ele de escandaloso e de chocante. (2012: 20)
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fazendo-o nascer negro com alma tão branca – que deveria ser a alma de Poeta, como afirma
Cruz Magalhães. O que é necessário observar, efetivamente, é um autor, mais uma vez, de
forte pendor poético – interrompido pela morte precoce –, que explorou o preconceito
europeu da sua época e o transformou em versos, usando as suas emoções, seus afetos e suas
sensações como matéria poética – diversas vezes impregnados de fina ironia – a sua
indignação, inaugurando uma poética do homem negro, ficando, dessa forma, conhecido, em
Lisboa, como o poeta de São Tomé.
Caetano da Costa Alegre, tantas vezes obliterado no seu solo pátrio por Francisco José
Tenreiro (que seja a ele dado o lugar devido, claro), viveu em São Tomé e Príncipe, mais
precisamente na ilha de São Tomé. Viveu lá até seus 19 anos e foi estudar na metrópole, nos
finais do século retrasado. Defrontou-se e confrontou-se com uma sociedade branca, racista,
de mentalidade opressora. Sentiu, no entanto, a poesia correr em suas veias e encontrou nela
uma via de liberdade de expressão. Foi um homem negro, que trabalhou com as palavras a
antítese frisante de que nós todos, seres humanos, ora somos compostos. Não rejeitou a sua
cor ou a sua nacionalidade; exaltou a beleza da mulher negra, sentiu as tristezas próprias de
um jovem rejeitado pelas mulheres da metrópole, versou as suas sensações e emoções em
terra estrangeira, enveredou-se pelo naturalismo – influenciado, talvez, pela sua relação com a
medicina – desvelou o homem, idealizou o amor romântico, tratou das questões da cores
negra e branca como material artístico.
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4. Referências bibliográficas
COSTA ALEGRE, Caetano da. (1994) Versos. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
_______. (2012) Versos. São Tomé, Embaixada do Brasil em São e Príncipe e Ministério das
Relações exteriores.
LEVY-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa, Editorial Presença.
LINS, Ronaldo Lima. (1993). Nossa amiga feroz. Breve história da felicidade na expressão
contemporânea. Rio de Janeiro, Rocco.
MOISÉS, Massaud. (2012) A literatura brasileira através dos textos. 29 ed. São Paulo,
Cultrix.
QUEIROZ, Eça de. (2015) Os Maias. Éditions e-Books France. www.dominiopubico.org
_______. (s/d) “Positivismo e Idealismo”. Obras completas. Porto, Lello e Irmão. Vol. II.
_______. (s/d) “A decadência do riso”. Obras completas. Porto, Lello e Irmão. Vol. II.
TENREIRO, Francisco José. (1994) Obra poética. Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da
Moeda.
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Anexos
Saudade
Alegre! Era uma alegria convencional a dele! Como poderia ser realmente alegre
tendo a intuição nítida das desventuras humanas e vibrando-lhe a alma dolorosamente
uníssona com as mágoas alheias? E não as teria próprias? Não sentiria, insistente, uma revolta
a protestar contra essa suprema injustiça de ser negro, quem tão branca alma possuía? Sorria
constantemente, sim! Mas não seria esse sorriso a agradável máscara que lhe encobria as
lágrimas?
Todo aquele que for superiormente bem formado, cuja candidez de sentimentos ansiar,
numa irresistível aspiração, o Bem e a Justiça – e o Poeta, pelo menos no verdor dos anos
assim é – como poderá ser feliz ou sequer subjugar momentaneamente o desgostoso asco pela
vida, inversão daqueles ideais?!
Se a felicidade é tangível para alguns, é que esses, dotados dum egoísmo cômodo,
limitam a sua esfera de ação a eles próprios – que para mais é a sua vaidade – não tentando
nunca , pela mesquinhez do caráter ou pela curteza da inteligência, alongar os olhos para o
sofrimento alheio. A! Mas esses – únicos que podem ser felizes – nunca vingam, por isso
mesmo, ser Poetas. E Costa Alegre era um Poeta em todo o âmbito alto, nobre, sublime da
palavra. Sentia escoarem-lhe no peito os gritos da miséria, as revoltas dos injustamente
opressos, os rumores abafados do infortúnio Humano.
E, se juntarmos a isso a brutalidade descaroável da sorte para com ele, cobrindo-lhe a
alma de Poeta, branca como as estrelas, com a negridão requeimada da pele!... Se lembrarmos
a torturante preocupação de saber que sempre haveria de amar sem ser amado, ter-se-á um
bosquejo leve da amaríssima dor que o lancinava.
E, todavia, era dum tão puro quilate a sua alma que nunca o contaminou a perversão
vulgar, para a qual o desgosto da vida deve encurtar assustadoramente a distância: não, Costa
Alegre sempre foi um bom.
Máximo elogio é poder dizer-se de um homem, com firme certeza, que ele através
todas as provocações venais da vida, todas as tentações cotidianas para o mal, todas as
contrariedades, que obcecam, todas as pequenas e grandes tentações, mais ou menos infames,
que deslumbram, na convicção de que uma simples transigência, calcando preconceitos,
renegados pela maioria, basta para atingir a culminância da consideração, do prestígio e do
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fausto... é máximo elogio dizer-se dum homem que ele desprezou sempre tudo que não fosse
duma alvinitente e provada lisura e inalteravelmente pisou o caminho, muita vez escabroso,
do dever e da honra!
Costa Alegre seguiu sempre, sem uma hesitação, a via-láctea da virtude, e essa trilha
luminosa seguiria, sem desvios, se a prematura morte não cortasse essa fina flor do Bem,
propensa a rescender indefinidamente o calmo e acalentador perfume da Bondade.
Abril de 1890.
Cruz Magalhães.
II. Poemas de Caetano da Costa Alegre citados no corpo do texto transcritos na íntegra
A Negra
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Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.
O sonho dantesco
Eu
A citação refere-se a versos do poema “O navio negreiro”, de Castro Alves: “Era um sonho dantesco… o
tombadilho / Que das luzerna avermelha o brilho. / Em sangue a se banhar.”
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Nos olhos cor do céu da minha amada.
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