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RIO DE LAMA - Luiz Philipe Fassarella Pereira - EICA2017

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3º Encontro Interdisciplinar de Comunicação Ambiental (EICA)

Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

(Web) Documentário, Interação e Espaço: a imersão no habitat do OUTRO em


Rio de Lama (2016)

Luiz Philipe Fassarella Pereira1

Resumo:
A aurora do século XXI revigorou a atenção e consciência da sociedade sobre a
preservação ambiental, reforçada consecutivamente pelos produtos
comunicacionais, dentre eles o cinema não ficcional, que utiliza seu compromisso
social, seus distintos meios, formatos e plataformas para pautar e propor reflexões
sobre o tema. A partir dessa ponderação, nos propomos a analisar o documentário
(webdocumentário) Rio de Lama (2016), que retrata os trágicos resultados do
rompimento da barragem de rejeito da mineradora Samarco, em 2015, uma das
maiores, se não a maior, tragédia ambiental do Brasil, trazendo à cerne do
discurso documental questões relativas à noção de lugar e não-lugar, tão
importantes à trama para estimular a devida imersão do espectador em um local
de destruição, irresponsabilidade com o meio ambiente, memórias e
(des)esperança.

Palavra-chave: Rio de lama; Meio Ambiente; webdocumentário; documentário; ator


social.

1
Formado em Comunicação Social pelo Centro Universitário São Camilo - ES; Especialista em Televisão, Cinema e
Mídias Digitais, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Doutorando em Comunicação Social, pelo PPGCOM, da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade Pitágoras-ES. E-mail:
philipefassarella@gmail.com

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3º Encontro Interdisciplinar de Comunicação Ambiental (EICA)
Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

Uma introdução aos webdocumentários (documentários interativos)

Inseridos num contexto de convergência midiática que está revolucionando as maneiras de


produção, transmissão e recepção de audiovisual, os webdocumentários, também chamados de
documentários interativos, demonstram especificidades que os identificam e os distinguem, por
exemplo, das webreportagens, ou dos portais multimídias. Contudo, por serem recentes ainda
carecem de definições técnicas e teóricas mais consistentes, já que são escassas as bibliografias que
possam orientar profundas pesquisas a respeito. Mas, em meio a profusão de obras que se
enquadram nesta categoria, é possível observar algumas recorrências no “formato”, sobretudo se
observadas as características apontadas abaixo:

O webdocumentário se aproveita da linguagem documental criada para o cinema e para a


televisão e a adapta para a web. Acrescenta a capacidade de interação e participação típicas
da web e rompe com a linearidade da narrativa, já que o internauta pode escolher o que ver
e em que ordem ver2.

Os webdocs são uma nova forma de se desenvolver narrativas no ciberespaço, que mistura
diferentes formatos, mídias e se inserem, de maneira consistente em um universo de comunicação
contemporâneo característico por se consolidar como hipertextual, hipermidiático e, por tanto, não
linear – tais como textos, vídeos, áudios, fotos, animações e ilustrações - permitindo ao espectador o
controle da navegação e uma profunda interação com a obra; são produtos específicos da
contemporaneidade, multimidiáticos por excelência, oriundos da tradição cinematográfica do
gênero documentário cuja premissa fundamental, que orienta os campos técnicos e teóricos, é o
compromisso da obra com a veracidade, com o tratamento, ainda que criativo, da realidade. E esse
tratamento criativo ganha nuances de coautoria e participação ativa por partes de seus receptores
que, diante das novas tecnologias de interação, participam ativamente do processo de construção da
narrativa que se torna, então, particular.
Os documentários, que ao longo de mais de um século de tradição ainda são atravessados
por importantes transformações estilísticas, conceituais e teóricas, são destinados não apenas ao
entretenimento, mas principalmente à propagação do conhecimento e ao registro audiovisual de
fatos, personagens, memórias e histórias do mundo real. Os documentários, segundo Fernão Pessoa
Ramos (2008, p. 10), “não são feitos para entreter como um filme ficcional, mas para estabelecer
asserções sobre o mundo que é mostrado na tela”. São essas convenções que orientam também os

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De acordo com o site <webdocumentário.com.br>, disponível em:
<http://www.webdocumentario.com.br/webdocumentario/index.php/sobre-este-site>.

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3º Encontro Interdisciplinar de Comunicação Ambiental (EICA)
Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

webdocumentários, que atualmente são frequentemente dispostos na internet, tornando-se cada vez
mais familiares aos usuários da rede, principalmente aos jovens habituados a navegação e aos jogos
virtuais. Um exemplo desse movimento é evidenciado pelo filme que será analisado a seguir. Rio de
Lama, é um documentário definido pelo próprio diretor como um documentário interativo: o curta-
metragem, com pouco mais de 9 minutos de duração, é realizado de maneira que possa ser
apreciado através de óculos de realidade virtual, 3D, muito utilizado por jogos que simulam
também este mesmo recurso.
Os webdocs são hoje o resultado do desenvolvimento do gênero cinematográfico não
ficcional, e se instauram como um produto cultural que permite ao consumidor mais do que a
passível condição de espectador, estimulando o receptor a explorar de uma experiência de fruição
multissensorial e participativa, visto que o indivíduo é constantemente convocado a interagir com a
obra, traçando os caminhos a serem percorridos, na ordem e com a demanda de tempo que desejar
(em alguns casos, não há mais uma linearidade absoluta e imprescindível, a forma e tempo de
apreciação da obra é o usuário quem determina). Desta feita, se instauram não apenas como uma
evolução ou adaptação de um gênero audiovisual tipicamente transmitido no cinema ou na tv, mas
como uma nova linguagem, nova maneira de se transmitir uma informação e entreter. Rio de
Lama articula algumas dessas estratégias de interação, que somadas em uma narrativa audiovisual
de cunho documental tornam-se características intrínsecas dos webdocumentários.
Vale ressaltar que embora o webdocumentário se proponha à interação entre produtor e
receptor, ele nem sempre é precisamente “aberto”. Ainda que proporcione interatividade e a
participação democrática, o material é pré-selecionado, e as escolhas são feitas dentro de um
ambiente relativamente fechado. O espectador, em muitos casos, conduz a navegação pela história à
sua escolha, sem nada acrescentar à mesma.
Em contrapartida, há webdocumentários que não só permitem a livre fruição da obra como
convidam o espectador a fazer parte dela, de maneira “direta”, ou seja, a interatividade proposta
permite que o receptor construa uma narrativa própria a partir das possibilidades de trânsito, não
linear, ofertada pelo formato. Esse é o caso do projeto Life in a Day. Realizado em parceria com o
site de vídeos youtube, o projeto propunha aos usuários da página que registrassem em vídeo
atividades ou depoimentos em um dia específico – 24 de julho de 2010 – para compor um longa-
metragem.
Como visto, o webdocumentário não é um documentário feito a partir de suas características
tradicionais, como a linearidade, para a divulgação na internet. Ele é uma produção documental
cujo formato é intencionalmente voltado para a reprodução na web, ou em outros suportes

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Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

semelhantes, abusando de seus recursos, como o hiperlink, por exemplo. Dada a essas
especificidades é que refletimos sobre o fato de que, embora oriundo de um gênero cinematográfico
centenário, os webdocs são uma nova forma de desenvolver narrativas no ciberespaço. Uma
inventividade contemporânea que emerge no momento em que a tecnologia da comunicação e
transmissão de conteúdo permite esse tipo de realização e distribuição. Mas além dos aspectos
tecnológicos vale também ressaltar o momento histórico e cultural no qual essas narrativas estão
inseridas; um momento em que os indivíduos estão cada vez mais familiarizados e entusiasmados
com as possibilidades de interação/ interatividade e controle sobre as diversas formas e meios de
entretenimento. Por isso, a fórmula adotada em Rio de Lama aparenta considerável eficiência, no
que tange a imersão dos espectadores à recepção da obra enquanto um produto audiovisual
relativamente familiar, pois, de pronto, percebe se tratar de um formato que delega ao espectador a
possibilidade de “controle” sobre a narrativa.
A “nova” plataforma de transmissão, – internet – através de avançados softwares, permite
que o realizador utilize uma série de recursos que possibilitam o estabelecimento de uma relação
interativa, de coautoria entre cineasta e público. Um dos recursos técnicos que comporta esses
novos fazeres é a chamada web 2.03. Para Cannito (2010), o surgimento da web 2.0 efetivou alguns
dos princípios da cultura digital. Segundo o autor, “[...] entende-se que ao falar da Web 2.0 não
tratamos de uma versão de web, e sim de uma nova forma de relação da web com seus usuários e
desenvolvedores” [...] (CANNITO, 2010, p. 157). Então, compreendemos que o termo web 2.0
designa não só uma modificação tecnológica, como também uma transformação na maneira de se
produzir, transmitir e receber conteúdos midiáticos. Assim, o espectador/autor/ fruidor também tem
nos webdocumentários a oportunidade de interagir com outros usuários. Debater e trocar ideias
sobre a experiência vivenciada dentro da obra, o que pode ser feito, por exemplo, no próprio canal
no youtube criado para comportar e proporcionar o acesso gratuito ao filme em questão.
As pesquisadoras Consuelo Lins e Cláudia Mesquita observam que no Brasil, a prática
documental ganha mais força a partir dos anos 1990 “[...] com o barateamento e disseminação do
processo de feitura de filmes em função das câmeras digitais e da montagem em equipamento não-
linear” (2008, p. 11). O excesso de produções documentais, que vêm lotando a internet nos últimos
anos, tornou o gênero ainda mais popular entre os usuários da rede.

3
Web 2.0 é um termo criado em 2004 pela empresa americana O'Reilly Media para designar uma segunda geração de
comunidades e serviços, tendo como conceito a "Web como plataforma", envolvendo wikis, aplicativos baseados em
folksonomia, redes sociais e Tecnologia da Informação.

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3º Encontro Interdisciplinar de Comunicação Ambiental (EICA)
Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

Rio de Lama: espaço, interatividade e conscientização

“Eu não tinha preocupação nenhuma de deixar os meninos brincando na rua não. (...) Era o
melhor lugar do mundo. Pra mim era. Mas... eu vou chorar”4.

Uma introdução, fundamental para contextualização da obra Rio de Lama, é posta logo que
tem início o filme. Em um modelo expositivo da informação, a voz over5 - fora de campo - anuncia
o tema do documentário: “O Brasil tem centenas de pequenas cidades com uma praça, algumas
ruas, e uma população onde todos se conhecem e vivem em comunidade. Na cidade de Mariana,
uma barragem de rejeitos de minério de ferro da empresa Samarco se rompeu em 05 de novembro
de 2015”.

A apresentação do fato histórico - o rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro


- e a localização espacial e temporal do acontecimento, onde também transcorrerá a história -
Mariana/Brasil - servem para situar e contextualizar o espectador naquilo que, aparentemente,
configuraria a trama central. Por se tratar de um documentário, é natural que esperemos uma
reflexão sobre as responsabilidades da empresa Samarco sobre o impacto ambiental causado pelo
desastre ocorrido em 05 de novembro de 2015, e a situação da população atingida pelo ocorrido,
porém, com a primeira alocução citada acima, o diretor Tadeu Jungle, detentor da voz over, insere
informações fundamentais para a fruição da sua obra, dando o tom e os indícios daquilo que será a
discussão central do seu filme.
Se o desastre ambiental é incomensurável e indiscutível, e que os responsáveis devem ser de
fato penalizados e culpabilizados, há ali, naquele acontecimento, males irrecuperáveis. Ficam as
memórias dos (ex)moradores apresentadas de maneira nostálgica ao longo do curta, lado a lado de
paisagens devastadas e exploradas pela minerado, entretanto, perde-se a história, a rotina, a vida e
expectativas de centenas de moradores que viram sua comunidade e todos os laços estabelecidos ali
ao longo de anos, serem soterrados por um rio de lama. Assim, através de depoimentos que
denunciam a tristeza e frustração, mas também rememoram os bons momentos vividos em Bento
Rodrigues, o diretor Tadeu Jungle, e sua equipe, guiam o espectador, dando a esse coautor a
possibilidade de adentrar de maneira intensa nas memórias, e também no cenário desolador de
escombros, lama e perdas, que agora se apropriam daquele local.
4
Depoimento de Neneca, ex-moradora, e uma das atrizes sociais do filme (TC: 2’24”).
5
Locução Over: voz fora de campo, cuja identidade é indeterminada. Também conhecida como Voz de Deus, muito
presente no documentário clássico, ela anuncia como a voz soberana, condutora e detentora da razão.

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3º Encontro Interdisciplinar de Comunicação Ambiental (EICA)
Universidade Federal de Sergipe (UFS) – junho de 2017

Essas sensações são enfatizadas pelo filme, através da inserção de sons não diegéticos6 que
remetem aos acontecimentos descritos nos depoimentos, ou aos locais que podem ainda ser
identificados pelos escombros. O diretor incorpora som não diegéticos, inserindo barulho de
crianças em sala de aula, grunhidos de cachorros, água, dentre outros, para enfatizar as informações
áudio e visuais apresentadas. Esse recurso é implementado em vários trechos ao longo do curta-
metragem, criando uma espécie de paisagem sonora que está fora da diégese e relaciona-se
diretamente com ela, concomitantemente. Não apela para uma subjetividade que reforça os aspectos
emocionais do espectador, mas lida objetivamente com o assunto abordado em cada depoimento,
estabelecendo assim uma leitura mais consistente daquela paisagem.
Os caminhos traçados para apreciação do webdoc convidam o espectador a navegar pela
vila. A exploração do espaço fica a critério daquele que assiste à obra, mas é endossado pelo diretor
através da seleção de personagens, atores sociais que vão desenvolver a trama central e os discursos
que permeiam o documentário através de depoimentos, ou a simples presença em cena. Após o
prólogo, uma sequência de cenas apresenta os personagens que irão compor o curta-metragem,
ilustrando com caracteres seus respectivos nomes e idades. Com isso o diretor consegue dar “cara”
aos números, mostrando que por trás da cifra de 600 pessoas, há Barbosas, Laines, Joses, Clarices,
Luizas, Gleisons, dentre tantos outros, cuja vida foi alterada radicalmente pelo ocorrido.
Ao se “apropriar” dos atores sociais, o filme ilustra as vidas das pessoas e endossa o
discurso de cunho emotivo cuja atmosfera domina a trama. A calamidade e o desastre ambiental
irreparável são corporificados em estado micro, representada pela pequena vila de Bento Rodrigues,
e seus 600 moradores, mas que na verdade reflete um caráter macro, que se configura pelos mais de
600 quilômetros de devastação provocados pela lama em seu trajeto para o mar.
Dessa forma, a presença dos atores sociais, atrelados ao discurso documental e às
tecnologias que permitem a interação do espectador com o espaço fílmico, endossam o valor de Rio
de Lama, como um registro de um fato histórico capaz de emocionar, cativar e aproximar aqueles
que assistem as histórias contadas pelos personagens que a viveram. Para o teórico Fernão Pessoa
Ramos (2008) os personagens no documentário são fundamentais para que sejam estabelecidos os
parâmetros de imersão do espectador na obra, na medida que o personagem detém a capacidade de
materializar/exemplificar/corporificar, como indivíduo já experimentado no determinado assunto,

6
Sons não diegéticos são aqueles não “percebidos” pelos personagens inseridos na diégese, mas tem um papel
importante na percepção, interpretação, das cenas. Efeitos especiais de som, narração, ou trilhas são considerados, por
exemplo, sons não diegéticos.

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as questões abordadas pelo filme. Sobre a importância dos personagens na narrativa documental,
Ramos (2008, p. 26), afirma:

(...) documentários os utilizam, de modo intenso, para encarnar as asserções sobre o mundo.
(...) Podemos mesmo dizer que o documentário aparece quando descobre a potencialidade
de singularizar personagens que corporificam as asserções sobre o mundo. (...) a narrativa
documentária prefere trabalhar os próprios corpos que encarnam as personalidades no
mundo, ou utiliza-se de pessoas que experimentaram de modo próximo o universo
mostrado.

Segundo o diretor, o uso dos personagens em seu filme, associado à interatividade


proporcionada estabelece um “contra ponto entre histórias doces e a terra arrasada”7. De acordo
com Jungle, o interesse pelas tecnologias que permitem a incorporação da realidade virtual em
obras audiovisuais chamava sua atenção. E em meio a suas pesquisas, ocorreu a tragédia em
Mariana: “Imediatamente a gente pensou: esse é um caso que gostaria de levar as pessoas pra lá, de
ir pra lá e mostrar o que aconteceu, com essa nova tecnologia que é a realidade virtual”.
Sobre o processo de pré-produção para elaboração do documentário, Jungle enfatiza que não
tinha um roteiro prévio, apenas a vontade de registrar aquele acontecimento e que ao chegar na
comunidade ficou chocado com a devastação do ambiente e com a falta de um plano de contenção
da empresa Samarco para tragédias como aquela, já que logo abaixo da barragem, na linha de
rompimento, mais de 600 pessoas residiam. Ao longo das entrevistas preliminares, o diretor logo
percebeu que os residentes da comunidade mantinham uma estreita relação entre si e com a própria
vila. “Todos os moradores, sem exceção, eram apaixonados pela cidade, eram apaixonados pela
comunidade de Bento Rodrigues. Todos” (...), por isso coube ao diretor encontrar uma forma de
fundir as premissas do documentário, ao amor que os habitantes tinham por sua vila, tendo como
pano de fundo as discussões sobre o meio ambiente e a tragédia ocorrida, cuja paisagem servira
como ponto fundamental para imersão do espectador.
Conglomerando informação, esclarecimento e nostalgia, estabelece-se uma contraposição
não só entre a paisagem arrasada e a coberta de lama do local, como também as alegres memórias
de seus moradores. Assim, o espectador é imerso no lamaçal que devastou a comunidade do mapa
brasileiro, deixando apenas uma mancha marrom que cobre totalmente a vila, mas que não apaga as
memórias daqueles que viveram com a devida intensidade a rotina daquele interior. É latente o
entrecruzamento das memórias recentes dos depoentes aos cenários devastados e o “espaço fílmico”

7
Todos trechos, entre aspas, que são identificados como falas de Tadeu Jungle, diretor de Rio de Lama, e que estão
“fora do filme”, foram transcritos da mesma entrevista, cedida pelo diretor do documentário, disponível em seu canal no
youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZxKHk56aLZw>.

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criado na ação de retornar à vila para gravação do documentário, organizando os acontecimentos de


maneira legível do ponto de vista narrativo. Na diégese operam, hierarquicamente, a paisagem
devastada, que remonta o passado e ativa as memórias dos atores sociais, que externam sua tristeza
e lembranças nostálgicas através do espaço para câmera operada pelo/para o diretor construindo
condições propícias para ativação tanto da memória quanto da “encenação” daqueles que viveram
ali. É possível estabelecer o seguinte fluxo, organização ou cruzamento: sem a
intenção/direção/câmera, os atores sociais não estariam ali, não ao menos da mesma maneira, com
as mesmas intenções ou, ao menos, pré-disposições: recontar suas histórias, evocar a emoção e
serem solapados pela possibilidade de nunca mais retornarem. A paisagem devastada, revisitada, e a
consciência de posterior exposição de conteúdo fílmico são condições propícias à evocação de
sensações/emoções potencializadas pelas circunstâncias fílmicas.
O curta-metragem provoca reflexões e envolvimento, estimulando o engajamento do
espectador e a coautoria durante o processo de apreciação da obra. Para tanto, o diretor apropria-se
da linguagem do cinema documentário, agregando ao gênero os fundamentos de um produto
audiovisual híbrido, identificado como webdocumentário, apegando-se às tecnologias e
interatividade proporcionada pela internet para fomentar no espectador o desejo de participar de
maneira mais ativa da obra. Um processo de imersão provocado pela interatividade, expressa pela
possibilidade de apreciação do filme em 360 graus. Esse “passeio” pela paisagem é possível a partir
de qualquer ângulo, em qualquer perspectiva, vertical ou horizontal.

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As sequências acima traduzem a interação proposta pelo documentário Rio de Lama, e que pode ser explorada pelo
espectador, característica perene do webdocumentário. Durante a fala da personagem identificada apenas como Neneca, 36
anos, presente no vídeo, com depoimento off, fora de campo, ilustrado pelas imagens da personagem que caminha por ruas
tomadas pela lama, rodeadas por escombros de casas, o espectador, ao usar o navegador para vislumbrar todo espaço ao
redor da narrativa “central”, se deparará com as imagens ilustradas acima. Na sequência posta, da esquerda para direita, de
cima para baixo, temos: Neneca em plano neutro, frontal. As imagens seguintes mostram aquilo que está acima e, em
seguida, abaixo da personagem (segunda e terceira imagem, de acordo com a ordem de apresentação descrita). Em seguida,
as imagens ilustram o movimento da esquerda de Neneca para direita, em de 180 graus, mostrando o que está à esquerda da
personagem, depois, à frente, e, por fim, à direita dela (TC: 2’11”).

Segundo o próprio diretor, em entrevista disposta em seu canal do youtube, “[...] faz muito
sentido em fazer esse filme em realidade virtual. Porque dizem que a realidade virtual, os filmes de
realidade virtual são a maior máquina de empatia jamais criada. Ou seja, a empatia é estar no lugar
do outro. A ideia de levar você, espectador, até Bento Rodrigues, como se estivesse lá, pisando na
lama, e olhando para os ex-moradores contarem suas histórias, cantarem músicas, (...) enquanto
você tem condições de olhar toda terra arrasada, que está ali, que o sol bate naquela vida toda que
tinha ali e que não tem mais, isso me parece uma utilização bem feita da realidade virtual”.
A plataforma de exibição - youtube8 - e as novas dimensões ofertadas pelo que se configura
como um webdocumentário são amplamente exploradas pelo diretor da obra.

8
O filme foi criado, a princípio, com o intuito de que o receptor assista-o com a utilização de plataformas especiais,
como os óculos de realidade virtual, 3D, para que o indivíduo senta-se de fato inserido no local. Adaptador para o
youtube, e a ferramenta 360 graus ofertada pela plataforma, o documentário cumpre com eficiência essa premissa, pois
provoca a participação do espectador e, consequentemente, o engajamento e envolvimento com a trama.

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As figuras acima apresentam o mecanismo que permite a interação “direta” do espectador com o filme. A imagem à
esquerda (TC: 50”) apresenta um plano geral, enquadramento soberano no curta-metragem, com a presença do
“cursor” no canto esquerdo, da parte de cima da imagem, que permite que o receptor explore todo espaço
contemplado pela visão 360º. A imagem à direita detalha o cursor, que através das quatro setas, permite que o
espectador determine aquilo que quer ver durante o transcorrer da ação. Através desse recurso o espectador, coautor,
pode explorar todo ambiente, de acordo com sua curiosidade. A narrativa, que transcorre de maneira linear, carrega
como marca fundamental a interatividade proporcionada pelos recursos apresentados acima. Nesse sentido o filme
caracteriza-se como pertencente ao formato híbrido que se consolida e torna-se cada vez mais frequente, que é o
webdocumentário. Sua disposição em uma plataforma que é por excelência interativa, o youtube - internet - reforça
a premissa de que o espectador tem um papel de participante ativo enquanto percorre o caminho sugerido pelo
diretor do filme.

Se os depoimentos e a própria narração pretendem conduzir o espectador à certa nostalgia e


solidariedade para com aqueles que foram atingidos diretamente com os desastres - que perderam
suas casas, amigos, parentes, animais domésticos, rotina, “vida” - o espaço, potencializado pela
possibilidade de contemplação em 360º visa instigar o receptor a assumir uma postura mais ativa no
processo de construção fílmica e na reconstrução das experiências vividas ali antes e durante a
tragédia, com o intento de motivá-lo a explorar todos os ângulos daquele deplorável cenário de
devastação. Essa postura mais ativa, em que o receptor deixa de lado a passividade e torna-se
também autor da obra, estimula que esse “coautor” entre em um estado de alerta, buscando
frequentemente por diversos detalhes no espaço. Embora as imagens sejam compostas, no geral, por
lama, entra em voga a capacidade imaginativa do espectador/participante, que através de traços da
estrutura, ou de pedaços lamacentos de construções, poderá vislumbrar como era/seria a cidade se o
acidente - fruto de negligência das empresas envolvidas - não tivesse ocorrido. Essa sensação é
potencializada pelos depoimentos de quem fazia parte daquela comunidade e que, mesmo tendo
escapado com vida, perdeu parte fundamental de sua essência.
A simplicidade exposta nos depoimentos dos atores sociais retratados carrega marcas de
uma vida interiorana, caracteristicamente brasileira. A descrição das rotinas e da simplicidade do
local e das pequenas satisfações encontradas em antes da tragédia, em Bento Rodrigues, endossam

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o caráter emotivo/afetivo do filme. Essa atmosfera é potencializada por depoimentos como o de


Weberson, 35 anos, que assinala que uma das maiores perdas foi a de seus animais de estimação,
três cadelas, duas identificadas como Nina e Belinha. Tendo passado 20 dias desde a tragédia, o
morador e seu filho decidem voltar ao local para procurar, em meio a lama e sem permissão dos
bombeiros, alguns pertences. Diante da casa destruída, pai e filho se emocionam, mas ao
perceberem que algo se mexe sob os escombros do telhado, constatam que uma das cadelas, Nina,
ainda está viva. A tristeza imediatamente é substituída pela felicidade e essa emoção fica clara não
apenas pelas informações apresentadas na fala, mas pela entonação assumida pelo ator social9. É
interessante observar que em grande parte desse depoimento, o ator social está ausente, ou ocupa
uma pequena porção do vídeo. Assim, percebe-se que o processo de construção das afetividades e
da camada dramática da obra é alcançada pelas palavras daquele que as profere, pelo espaço
explorado pelo diretor com o recurso de visualização em 360 graus, pela trilha sonora, que enfatiza
os aspectos emocionais do momento, e também pelo uso de um som não diegético que reproduz os
grunhidos de um cão no momento em que o personagem descreve a perda e o reencontro com Nina.
Em seguida, o personagem ressalta que seu sonho, embora simples, era continuar vivendo na
comunidade: “Era o meu sonho. De ficar lá o resto de minha vida. Ver meus filhos crescendo lá.
Não tenho nem palavras, parece que é um sonho. Parece que não é realidade isso. E até hoje quando
eu vou dormir eu pergunto a Deus: por que aconteceu isso? Isso é uma pergunta sem reposta”10.

Outra personagem, identificada como Neneca, sentada em meio aos escombros, e que
também teve que se mudar do local, chora copiosamente. Sem conseguir verbalizar os sentimentos,
o choro, a cabeça baixa e as mãos que correm por seu rosto para limpar as lágrimas têm mais valor
do que qualquer depoimento, pois mostram a desolação, tristeza e a sensação de abandono vivida
por aqueles que perderam tudo que tinham de mais importante. Não apenas casas foram perdidas,
mas a história, as rotinas, as esperanças e expectativas de continuar vivendo na comunidade que
amavam. O choro transmite também a certeza de que aquela é uma tragédia irremediável, que todas

9
Segundo as formulações de Bill Nichols (1997, p. 76), ator social pode ser considerado todo aquele personagem que,
dentro de um filme documentário, “atua”, interpretando a si mesmo, contando ou reencenando uma história que viveu
(vive) ou conhece proximamente, por fazer parte de sua realidade ou mundo histórico. “Eu utilizo o termo “ator social”
para enfatizar o grau em que os indivíduos representam a si mesmos diante dos outros, o que pode ser entendido como
interpretação. Este termo também deve nos recordar que os atores sociais, as pessoas, conservam uma capacidade de
atuar dentro de um contexto histórico que vivem. Não prevalece mais a sensação de distanciamento estético entre um
mundo imaginário em que os atores realização sua interpretação e o mundo histórico no qual vivemos. A interpretação
de atores sociais, no entanto, é similar a dos personagens de ficção em muitos aspectos. Os indivíduos apresentam uma
psicologia mais ou menos complexa e dirigimos nossa atenção para seu desenvolvimento e destino”.
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Depoimentos de um dos atores sociais afetados diretamente pelo desastre ambiental, que destruí, primeiro, a vila de
Bento Ribeiro: (TC: 7”34”).

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as medidas de reparação jamais serão suficientes para trazer Bento Rodrigues de volta. Em meio ao
choro da personagem, retorna a voz over, como absoluta: “Em respeito à vida que aqui existiu. Em
respeito àqueles que aqui morreram. Em respeito ao Brasil, é imperativo que se faça um memorial
de Mariana. Para que essa tragédia não seja esquecida e nem repetida”11.
Com missão semelhante, o documentário Rio de Lama, que embora faça uso de recursos
dramáticos, enfatize sensações e explore o estado emocional dos antigos moradores de Bento
Rodrigues, cumpre também a função de tornar-se um documento histórico da tragédia ambiental
que deixará marcas quase insuperáveis na fauna e na flora nacional. Esse documento audiovisual
manifesta a missão perene do filme documentário, que registra, documenta e reapresenta
determinado fato histórico para outrem, procurando despertar no espectador uma reflexão e
envolvimento com aquilo que é apresentado, estimulando uma postura menos passiva,
contemplativa, provocando através do envolvimento afetivo e manuseio dos mecanismos de
“navegação” ofertados pelo filme, uma aproximação “real” com a obra e, consequentemente, com
aqueles que estiveram nelas representados.

Os filmes de ficção geralmente dão a impressão de que olhamos para dentro de um mundo
privado e incomum, de um ponto de vista externo de nossa posição vantajosa no mundo
histórico, ao passo que os documentários geralmente dão a impressão de que, de nosso
cantinho do mundo, olhamos para fora, para alguma parte do mesmo mundo (NICHOLS,
2005, p. 116).

Ainda que apresente inovações importantes, Rio de Lama legitima-se como documentário
não apenas por lidar com fatos históricos, mas por carregar marcas estilísticas fundamentais do
gênero não ficcional, aproximando-se de um formato que ganha espaço nos últimos anos e
configura-se como uma proposta documental ligada diretamente à internet e às novas tecnologias de
realidade virtual, que são os webdocumentários. Por apresentar essas importantes transformações
Rio de Lama evidencia também seu caráter híbrido, com uma estrutura de interação que remete aos
jogos virtuais, características que potencializam a imersão do espectador. O documentário de Tadeu
Jungle, então, carrega todas as motivações e contratos sociais estabelecidos ao longo da história do
cinema documentário, adaptando-se às características de uma comunicação audiovisual que dialoga
com um espectador “mais ativo”, “acostumado” com a interação requisitada pela internet, pois na
medida que a tecnologia se aprimora mais competitivo fica o mercado. Na medida que novos
produtos são oferecidos mais exigentes ficam os consumidores e é para eles que novos produtos
midiáticos surgem e antigos se renovam. Como Rick Altman (2004, p. 195), argumenta, “a mistura

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(TC: 8’20”).

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de gêneros é o processo central pelo qual novos gêneros emergem, velhos gêneros se transformam,
e novas categorias de gêneros são apresentados à prática cultural”.
Os produtos midiáticos são desenvolvidos com refinamento tecnológico, com inovação e de
acordo com as lógicas sociais que se relacionam com o entretenimento e a informação, tendo
sempre em vista o consumidor/ público. Assim, as inovações tanto conceituais quanto técnicas
presentes no webdocumentário Rio de Lama, estão de acordo com a busca para ganhar um novo
consumidor e renovar o mercado, sem distanciar-se do compromisso social do cinema
documentário que, no caso analisado, está engajado em provocar uma reflexão sobre os desastres
ambientais, e a responsabilidade de manter latentes as memórias, para que novas tragédias sejam
evitadas, representação feita através da amarração dos depoimentos dos atores sociais que foram
diretamente impactados pelo referido desastre ambiental.

Considerações finais
Desde o documentário clássico, até os chamados webdocumentários, os filmes de caráter
não ficcional são absorvidos pelo espectador de forma distinta das narrativas ficcionais. Se, a priori,
ao gênero ficcional cabe o entretenimento, ao documentário cabe a reflexão, embora muitas vezes
haja uma hibridização entre os gêneros e os preceitos que os orientam. Como enfatiza Ramos
(2008), a relação estabelecida com o cinema documentário é completamente diferente daquela que
se estabelece quando se assiste um filme que, sabe-se de ante mão, é ficcional. Por isso, em sua
relação estreita com a realidade sociocultural, nos últimos anos pode-se observar uma profusão de
documentários que tratam dessa temática tão presente e importante, que é o meio ambiente. Assim,
o filme que ilustrou o esforço de análise apresentado neste artigo, Rio de Lama, é apenas uma
mostra de como o referido gênero tem a capacidade de potencializar questões fundamentais para
sociedade, como a preservação ambiental, mesmo que articulada através de micro universos. No
caso em questão, a vila de Bento Rodrigues, e seus 600 habitantes, servem de base fundamental
para que o diretor provoque no público uma reflexão perene sobre a preservação do meio ambiente,
enfatizando a reponsabilidade das grandes empresas que exploram a natureza sem se preocupar de
fato com as consequências.
Se os atores sociais envolvidos na trama figuram como uma parcela, micro, da população,
eles servem, sobretudo, para despertar empatias e enfatizar o fato de que a responsabilidade com o
meio ambiente e com a vida alheia são fundamentais para preservação das vilas, cidades, estados,
países em que vivemos.

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Vale ressaltar também que questões relativas à exploração do espaço, paisagens e lugares, e
do próprio espaço fílmico, ou espaço diegético, confirmaram-se como pontos pertinentes para
observação do documentário analisado. Sobre essa afirmação cabem duas alegações: primeiro, o
uso dos óculos 360 graus, ou da interação como recurso imersivo, já enfatizam a importância que as
paisagens ocupam na obra em questão, uma vez que a contemplação daquelas paisagens é parte
fundamental do processo de absorção e empatia com a temática. Segundo, é possível que esses
mesmos pontos indicados acima, destaquem-se como importantes chaves para análise de uma
parcela dos documentários com tema ambiental, uma vez que o meio ambiente, como retratado nas
obras, torna-se parte fundamental do discurso fílmico, e provocar empatias, através de cenas
contemplativas, ou reflexões, através de paisagens devastadas - como em Rio de Lama - deve operar
como alternativa para provocar a imersão do público.

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Filmografia

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