A Radical Imaginação Política Das Mulheres Negras Brasileiras
A Radical Imaginação Política Das Mulheres Negras Brasileiras
A Radical Imaginação Política Das Mulheres Negras Brasileiras
imaginação
política das
mulheres
negras
brasileiras
Ana Carolina Lourenço e Anielle Franco (org.)
A RADICAL IMAGINAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES
NEGRAS BRASILEIRAS
Esta publicação foi realizada com o apoio da
Fundação Rosa Luxemburgo e fundos do Ministério
Federal para a Cooperação Econômica e de
Desenvolvimento da Alemanha (BMZ). O conteúdo
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Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
R129
A radical imaginação política das mulheres negras
brasileiras / Ana Carolina Lourenço (Organizadora),
Anielle Franco (Organizadora) – São Paulo: Oralituras,
2021, São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo.
Livro em PDF
176 p.
ISBN: 978-65-990318-9-2
1. Feminismo negro. 2. Mulheres negras. 3. Sociedade.
4. Política. I. Franco, Anielle (Organizadora). II.
Lourenço, Ana Carolina (Organizadora). III. Título.
CDD 305.42
São Paulo
1ª ed.
FICHA TÉCNICA
Organização Geral
Ana Carolina Lourenço
Anielle Franco
Preparação de Texto
Dayse Sacramento
ORALITURAS
oralituras.com.br
Produção Editorial
Maitê Freitas
Revisão
Janaina Ramos
Larissa Moreira
Projeto Gráfico
Carol Zeferino
Diretor
Torge Loeding
Coordenação de Projetos
Christiane Gomes
“Viva nós e viva as águas!”
Vilma Reis
Gerações
em diálogos,
mulheres
negras em
resistência
Andréa Lopes
da Costa
Sobre ancestralidade, memórias e
resistência: Antonieta de Barros, a
primeira mulher negra eleita no Brasil
11
brancos e 54% negros e se apresentando
como signatário dos princípios de ampla
democracia e irrevogável equidade.
Contudo, a singularidade da experiência
de Antonieta é atual: se repete a cada
novo processo eleitoral, se atualiza a
cada nova foto de posse, se replica em
cada discurso solitário no púlpito e se
perpetua por quase cem anos.
Em 2020, são 27% as mulheres
autodeclaradas negras no Brasil, mas
apenas 3% das que ocupam as prefeituras,
5% dentre as escolhidas para assembleias
municipais legislativas na última eleição,
2% do Congresso Nacional e 1% na Câmara
dos Deputados Federais.
Mas há algo de novo. Se, por um lado, a
representação na política institucional
ainda é limitada, por outro, a presença e
o protagonismo de mulheres negras têm sido
progressivamente ampliados, pois não se
trata mais de figuras solitárias em suas
candidaturas e propostas. São pessoas
que conscientemente levam consigo, as
pautas políticas de uma coletividade, as
narrativas de várias gerações e o legado
de toda a ancestralidade. São potências
que se sabem únicas, mas que representam
muitas.
Por essa razão, este livro também é
singular. Oferece-nos, ao mesmo tempo:
o registro do que deve ser lembrado, a
confirmação do que deve ser reivindicado,
a celebração do que foi conquistado e o
prenúncio do que está por vir.
Se a memória social resulta de um complexo
jogo de lembranças e esquecimentos
no qual são decididos quais serão os
fatos históricos e personalidades
12
representados nas narrativas oficiais, é
correto entender que as escolhas alçadas
à dimensão do memorável foram, antes,
filtradas e selecionadas para que se
tornassem dignas de lembrança. Nesse
sentido, foram despidas de seus conflitos
inerentes, das representações indesejáveis
e apresentadas como hegemônicas e
consensuais. A partir daí, normalizadas,
naturalizadas e inquestionadas. Por essa
razão, o campo político institucional,
sendo um espaço de poder, de exercício
das relações hegemônicas e normativas;
e, por excelência, o lócus da reprodução
das assimetrias de classe, gênero e raça,
apresenta-se no imaginário social como
o ambiente de exclusividade para homens
brancos.
Às mulheres negras e sua história foi
designado o lugar do silenciamento e
apagamento. Por essa razão, recuperar
as narrativas das presenças de mulheres
como Almerinda Farias Gama, Antonieta de
Barros, Maria Brandão dos Reis, Maria José
Camargo, Sofia de Campos Teixeira, Maria
Nascimento, é fazer emergir as evidências
de que a atuação de mulheres negras se deu
inclusive no campo político, e que a luta
é histórica, assim como a capacidade de
resistência e de reivindicação.
É evidente que, ainda hoje, um dos
maiores problemas a serem superados diz
respeito à baixa representatividade
nesses espaços institucionais de poder.
Quando conseguem romper as barreiras que
as afastam do exercício político, são
aquelas cujas campanhas recebem menor
volume de investimentos por parte dos
partidos. E, ao participar do mercado de
13
disputas eleitorais, são as que apresentam
maiores dificuldades para converterem
suas campanhas em votos efetivos, sendo
eleitas. Do mesmo modo, a lei que define
um mínimo de 30% de candidaturas por
gênero, em cada partido, não considera
um corte racial, desfavorecendo-as,
evidentemente.
Contudo, ainda antes das disputas travadas
na arena política, paradoxalmente, a
baixa representatividade é a expressão
de suas próprias agendas de lutas,
todas derivadas dos desdobramentos das
experiências coloniais e da persistência
de desigualdades sociais, do racismo e do
patriarcado estruturais.
Assim, enquanto o movimento feminista
hegemônico, a partir do século XX,
organizava-se para a reivindicação do
direito à ocupação do mercado de trabalho,
as mulheres negras sempre estiveram
presentes como força laboral ativa. Na
realidade, a condição principal delegada
à mulher negra, escravizada ou livre, foi
a de trabalhadora. Contudo, como alvos de
preconceito e discriminação raciais, são
frequentemente rejeitadas pelo mercado
formal, sendo historicamente inseridas,
na estrutura das ocupações, naquele nicho
do mercado que mais reproduz as condições
de sujeição e opressão coloniais.
Encontram-se como maioria das empregadas
domésticas, as quais contam com condições
de trabalho adversas e precárias, expostas
a humilhações que, em muito, reproduzem
as práticas de senhores e sinhás
escravocratas.
Do mesmo modo, são as que encontram
maiores obstáculos para a produção de
14
capitais fundamentais para a atuação
empoderada, tanto no campo das relações
sociais, como no das relações políticas:
chefiam sozinhas 41,1% das famílias
brasileiras e, da totalidade das casas por
elas chefiadas, 63% se encontram abaixo da
linha de pobreza. Também compõem a maioria
entre as mulheres assassinadas, exercem
dupla jornada de trabalho, têm a menor
escolarização, as piores condições de
moradia, o maior acúmulo de desvantagens
sociais e se encontram na base do sistema
de distribuição de bens material e
simbolicamente valorizados na sociedade
como, por exemplo, o rendimento, dado que
recebem menos da metade do salário dos
homens.
Ou seja, o acúmulo de desvantagens
estruturais faz com que a prioridade para
a maioria das mulheres negras brasileiras
seja garantir a sobrevivência imediata
de si e dos seus, em uma sociedade que
persiste no classismo, no racismo e no
patriarcado.
Mas, sobretudo, uma sociedade que impede
a emancipação do trabalho feminino negro,
mantendo-o vinculado às sólidas relações
hierárquicas; desautoriza a sabedoria
ancestral acumulada, desqualificando formas
de conhecimento que não reproduzam a
hegemonia do norte global; se apropria de
corpos negros, objetificando-os, subjulgando-
os, mutilando-os e exterminando-os,
perpetuando a experiência colonial.
Por essa razão e pelas condições das
posições subalternizadas nas quais
foram historicamente colocadas na
pirâmide social, a especificidade de ser
mulher negra permite um olhar para as
15
desigualdades estruturais subsidiado
pela perspectiva das que mais sofrem os
efeitos das assimetrias. Assim, a agenda
política dessas mulheres converge para
a própria agenda de construção de uma
sociedade igualitária de fato. Educação,
Saúde, Segurança, Justiça, Trabalho,
Habitação são os principais pontos
apresentados nos programas da maior parte
das lideranças de políticas negras e, do
mesmo modo, não é coincidência que sejam
os alicerces para a existência de um
modelo social justo.
Aqui reside a revolução. Uma vez
preocupadas em garantir a sobrevivência
de si e dos seus, conseguiram traduzir
as condições de sua existência em luta
política. E, por sua vez, suas políticas
traduziram-se em determinantes para a
construção de uma sociedade efetivamente
democrática.
O novo protagonismo que as mulheres
negras expressam na política é
revolucionário. Subverte os modelos
tradicionais ao exceder os interesses
de classe ou desejos particulares
apresentando, em substituição, um projeto
de sociedade, de país e de futuro. Não se
restringe à defesa da representatividade,
defendendo o princípio da qualidade da
representatividade através de uma agenda
fortemente comprometida com qualidade de
vida e justiça social. E supera rótulos
de um possível particularismo identitário,
ao defender a indissociabilidade das
lutas antirracistas, anticapitalistas e
antissexistas.
O novo protagonismo que as mulheres
negras expressam na política entende
16
que não haverá justiça social enquanto
a elaboração de leis e de políticas
públicas for um monopólio de homens
brancos (que compõem a minoria da
sociedade brasileira), direcionadas para
uma população majoritariamente negra e
feminina. Famílias negras e pobres são
as que mais usufruem de sistemas de
educação, saúde, justiça e segurança
públicas, contudo, não conseguem tomar
parte, de forma efetiva, de seu processo
de constituição. São objetificadas e
rotuladas como “público-alvo” no campo
de embates discursivos que levam às
decisões institucionais, sem a chance
de apresentarem-se como sujeitas desse
processo.
O novo protagonismo que as mulheres
negras expressam na política compreende
que não haverá um país igualitário e
democrático enquanto parcela dos jovens
forem mortos pela violência do Estado em
um projeto de necropolítica, enquanto a
população negra for alvo preferencial das
políticas de encarceramento em massa e dos
debates sobre o acirramento da capacidade
punitiva do Estado, enquanto o grupo que
mais cresce no sistema carcerário é o de
mulheres, negras e pobres, e enquanto as
mulheres negras forem as que mais morrem
em clínicas de aborto clandestinas ou por
feminicídio.
O novo protagonismo que as mulheres negras
expressam na política entende que não há
democracia efetiva, tampouco equidade
social, sem acesso à educação pública de
qualidade, aos serviços que assegurem o
bem estar, a proteção social e o acesso à
justiça.
17
E, este livro, é o registro de que o
protagonismo de mulheres negras não é
um vento novo no horizonte, mas uma
tempestade que vem se formando nas
narrativas da ancestralidade, no trabalho
do dia a dia, nas celebrações e nas
festas, na dor de cada perda, nas lutas
do cotidiano e na memória das que nos
antecederam.
E, por essa razão, falar em radical
imaginação política das mulheres negras é,
sobretudo, falar em uma possibilidade de
fazer política revolucionária e subversiva
aos princípios tradicionais e hegemônicos,
através de um modelo político que instaure
um novo pacto de reconstrução social e
que funde bases para a democracia e a
igualdade social.
18
Sumário
As vozes
das políticas
negras
Ana Carolina
Lourenço e
Anielle Franco
A ideia de organizar este
livro surgiu no primeiro semestre de
2020, em um momento em que o Brasil
vivia o aprofundamento da sua crise
social e política agravada pelos efeitos
da pandemia da COVID-19, em meio a
organização das eleições municipais do
mesmo ano. Realizada em novembro com
a participação de quase meio milhão
de candidaturas disputando postos no
legislativo e executivo local em 5.570
municípios brasileiros, essas eleições
consolidaram a onda de mobilizações
lideradas, sobretudo, por mulheres
negras, em torno do tema da representação
política. Esta publicação é uma coletânea
de textos inéditos e não inéditos sobre a
imaginação política das mulheres negras
brasileiras nas últimas décadas.
Acompanhamos escritos, entrevistas,
projetos de leis e discursos de mulheres
negras que dão as pistas do porquê de sua
presença, na política, poder significar
mudanças na qualidade da nossa democracia
e sociedade. Mais do que uma sofisticada
qualidade crítica, essas mulheres apontam
caminhos, denunciam, propõem e efetivam.
Este livro se subdivide em duas
partes: a primeira, Ecos do agora, abre
com um texto da historiadora Gabrielle
Abreu acerca da longeva e, ao mesmo tempo,
breve história das mulheres negras na
política institucional. Longeva porque
sua participação no debate político
coincide com a própria luta pelo direito
do voto nas primeiras décadas do Brasil
republicano. No entanto, de Almerinda
Gama (1989 - 1999) à Áurea Carolina, a
25
autora aponta a pouca tradição de estudos
sobre as mulheres negras na política
institucional. Se faltam estudos, o
motivo não é a baixa amplitude da atuação
política dessas mulheres. Para isso, Diana
Mendes apresenta contribuições importantes
no campo da consolidação das políticas
públicas, desde sua elaboração até
processos de consolidação e monitoramento.
Se os dois primeiros textos são
capazes de demonstrar que a disputa
das mulheres negras pela política
institucional é uma realidade complexa,
radical e técnica de quase 100 anos,
os dois artigos seguintes nos mostram
a importância de agendas públicas
estratégicas: cultura e saúde. Renata
Dias, a partir de sua experiência prática
na secretaria de cultura da Bahia descreve
um caso exemplar no qual a política
cultural se converte em política afirmativa
de combate ao racismo. Já Fabiana Pinto,
da Saúde Coletiva, demonstra como a
atuação das mulheres negras na política
institucional foram fundamentais para o
aprofundamento de temas importantes da
saúde pública, como direitos reprodutivos
e sexuais, e para a própria efetivação e
defesa do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Os resultados concretos das
eleições de 2020 sobre o tema da
representação política de mulheres
negras são apresentados por Juliana
Marques no texto que encerra essa
parte. Recentes conquistas no campo
instucional e dos movimentos sociais dão
o tom de um crescimento, ainda tímido,
na representação de mulheres negras na
26
política municipal.
A segunda parte do livro, Itinerário
do fazer, é composta pela variedade
de temas, formatos e proposições que
marcaram a atuação das mulheres negras
na política institucional desde a
redemocratização. Quem a inicia é ninguém
menos que Lélia Gonzalez (1935-1994) em
Racismo por Omissão, texto publicado na
Folha de São Paulo, em 1983, em meio a
controvérsia que a fez se desfiliar do
Partido dos Trabalhadores, o PT; Lélia
aponta a não discussão racial do partido
na sua agenda programática, apesar de
contar com pessoas negras e lideranças
da luta antirracista no interior dos
seus quadros. Ainda nos primeiros anos
da redemocratização, naquela época recém
eleita deputada federal, Benedita da
Silva apresentou um requerimento criando
a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
- composta por deputados e senadores
- para investigar a esterilização em
massa de mulheres no Brasil. A CPI da
Esterilização, como ficou conhecida, foi
uma bem sucedida atuação parlamentar que
visibilizou a prática de esterilização, em
especial de mulheres pobres e negras, por
décadas no Brasil.
Já nos anos 2000 a entrevista
concedida por Luiza Bairros (1953-2016)
como Ministra da Secretaria de Políticas
para a Promoção da Igualdade Racial ao
IPEA e a Declaração da Marcha Nacional de
Mulheres Negras de 2015, são provas do
projeto político que está sendo construído
no interior dos movimentos de mulheres
negras e sua repercussão na agenda pública
27
liderada por elas. Explicitam políticas
de Estado, recentes vitórias e os imensos
desafios que marcam o combate ao racismo
e as desigualdades raciais. Ao ler estes
textos, a leitora pode contextualizar as
contribuições que encerram este livro.
Marielle Franco, Leci Brandão, Erica
Malunguinho, Regina Sousa, Áurea Carolina,
Vilma Reis e Talíria Petrone dão o tom
das batalhas políticas que estão sendo
travadas hoje. Direitos reprodutivos,
violência do Estado, direito à informação,
justiça socioambiental e violência
política são alguns dos temas que fazem
parte da agenda liderada pelas mulheres
negras nos últimos cinco anos.
Em um momento de agitação e
angústias sem precedentes, estes textos
são a chave para recuperar a ética na
política. As mulheres negras podem ser
as agentes de um verdadeiro processo de
transformação e reconstrução da sociedade
brasileira. As vozes aqui apresentadas
rejeitam um modelo de Estado que se ocupe
em apenas remediar problemas, ou um modelo
de sociedade que abra mão de valorizar
aquilo que é essencial para vida.
A Radical Imaginação Política
das Mulheres Negras Brasileiras é uma
contribuição no processo de visibilização
das respostas e soluções empreendidas
pelas mulheres negras brasileiras frente
ao atual contexto de crise social,
política e econômica. Ao acessar esta
radical imaginação política, a crise em
vez de nos forçar a pisar no freio, pode,
deve nos inspirar à mudança.
28
Parte I:
Ecos do
agora
Uma (breve)
história da
participação
política de
mulheres
negras no Brasil
republicano
1930 - 2020
Gabrielle
Oliveira de
Abreu
“Acontece que eu sempre fui uma
amiga da literatura. Sempre li muito
e tomava conhecimento das grandes
mulheres do passado (...). Sempre tive
consciência de que a mulher deveria
equiparar-se ao homem, que nesse ponto
não deveria haver discriminação. A
inteligência não tem sexo1.”
32
queixavam da falta de direitos políticos
para as mulheres. Ao contrário dessas
personalidades, Almerinda não se encontra
no panteão da luta feminista do Brasil,
mesmo tendo sido uma das militantes mais
aguerridas na conquista do voto feminino
e se auto intitular “a primeira eleitora
do Brasil”, o que de fato ocorreu em 1933
quando votou, na condição de delegada, na
eleição dos representantes classistas para
a Constituinte de 1934. Almerinda morreu
em 1992 praticamente no ostracismo, sem
colher os louros de tantos anos dedicados
à emancipação feminina. O que é quase uma
praxe no que tange às contribuições negras
nos avanços político-sociais no Brasil.
A escolha por iniciar este texto com
um breve resumo da brilhante trajetória
de Almerinda vai além de uma estratégia
cronológica. Percebo que sua história
se confunde com muitas das que compõem
este livro. É latente a dificuldade que
encontramos ao buscar pelas biografias
de mulheres negras que se envolveram
na política institucional. É certo
que mulheres negras como Almerinda
existiram ao longo de toda a história
do Brasil republicano alicerçadas nas
mais diferentes plataformas políticas. O
ativismo de mulheres negras se confunde
com os episódios mais marcantes dos
últimos 100 anos de história política
brasileira.
Tomando o percurso de vida de
Almerinda Farias Gama como referência,
(até onde temos conhecimento, já que
informações sobre ela depois dos anos
1950 são quase inexistentes), adquirimos
33
insumos suficientes para analisar o
surgimento do feminismo no Brasil, as
relações entre feministas brancas e negras
nesse contexto, as primeiras fases de
gestão Vargas (1930-1939), a Assembleia
Constituinte de 1934, o sufrágio feminino
no Brasil, e por aí vai...
O intuito deste texto é passear
brevemente por quase cem anos de história
recuperando o protagonismo feminino negro
que há em cada etapa desse longo período.
Pretendo evidenciar o quanto as mulheres
negras estiveram presentes em momentos
decisivos da política institucional
brasileira, mesmo que muitas dessas figuras
não estejam nos livros didáticos e nas
pesquisas historiográficas.
Dada a sub-representação de
mulheres negras na política (uma constante
há quase cem anos), praticamente todas
as personalidades retratadas neste livro
foram as primeiras mulheres negras a
atingirem seus postos. Seja na condição
de eleitora, como Almerinda Farias Gama,
ou na condição de governadora negra do
estado do Rio de Janeiro ou vereadora
negra da cidade de São Paulo, como
Benedita da Silva e Theodosina Ribeiro,
respectivamente.
Encabeçar um mandato político é
sinônimo de poder, ao passo que é no
campo da política institucional que são
formuladas leis, regras e fiscalizações de
suma importância para vivermos num efetivo
Estado democrático de direito. Entretanto,
as mulheres negras foram historicamente
alijadas dos espaços fundamentais de
decisão política, de maneira que podemos
34
parafrasear Sueli Carneiro e atestar que
“a relação entre mulher negra e poder
é um tema praticamente inexistente”
(Carneiro, 2009, p.50). Este texto está
repleto de casos em que mulheres negras,
à revelia da misoginia, do racismo e da
ausência crônica, estilhaçaram a máscara
do silêncio2 e impuseram suas vozes e
demandas.
A luta de Almerinda pelo voto
feminino possibilitou que, além de votar,
as mulheres pudessem também ser votadas.
É nesse contexto em que a catarinense
Antonieta de Barros (1901-1952) candidatou-
se e se elegeu suplente nas eleições de
seu estado, em 1934. O titular não toma
posse e Antonieta assume, se tornando a
primeira mulher negra deputada estadual
do Brasil. Tendo a educação, a cultura
e a liberdade feminina como programa
político, Antonieta, que descendia de
uma mulher negra escravizada, persiste
no mandato até 1937, quando Getúlio
Vargas decreta a ditadura do Estado Novo
e dissolve as assembleias legislativas
de todos os estados brasileiros. Com a
redemocratização, em 1945, Antonieta
novamente é eleita como suplente e assume,
em 1948, carregando consigo sua pauta mais
cara: a defesa de uma educação igualitária
e emancipatória. Em 1951, Antonieta de
Barros morre devido a complicações severas
de sua diabetes.
Na linha de Almerinda, sua
2. Aqui, me inspiro na fala de Conceição Evaristo: “Nos-
sa fala estilhaça a máscara do silêncio”. Disponível em
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/conceicao-eva-
risto-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascara-do-silencio201d/
Acesso em 12 de outubro de 2020.
35
trajetória é apagada dos anais da história
política de Santa Catarina e do Brasil
como um todo. Ao longo dos últimos vinte
anos, houve importantes esforços para
reconstruir a vida e o legado de Antonieta.
Não à toa, uma dessas iniciativas foi
encabeçada por Ideli Salvatti (1952),
a primeira mulher a ser eleita senadora
em Santa Catarina, em 2002 - e negra. Ao
longo de seu mandato como deputada na
Assembleia Legislativa de Santa Catarina,
entre 1995 e 2003, Ideli percebeu que
os corredores da Alesc não contavam a
singular história de Antonieta e tratou,
dela mesma, fazer isso preparando uma
série de comemorações no ano do centenário
do nascimento de Antonieta (Nunes, 2001,
p. 19). O empenho de Salvatti demonstra
o quanto nós, mulheres negras, somos as
principais responsáveis por manter vivas
as nossas próprias memórias.
A década de 1950 é tida pela
literatura especializada como um período
de grande efervescência no engajamento de
mulheres no Brasil (Silva; Ferreira, 2017,
p. 1007). As mulheres negras, ao contrário
do que as narrativas clássicas do
movimento feminista induziram, estiveram
à frente de muitas e diversas organizações
femininas que nasceram a partir de 1950,
como a Associação Feminina do Distrito
Federal e a Federação de Mulheres do
Brasil. Cabe ressaltar a atividade
política de duas ativistas negras, em
especial: Maria Brandão dos Reis (1900-
1974) e Maria José Camargo de Aragão
(1910-1991). Reis e Aragão atuaram na
Bahia e no Maranhão, respectivamente. Suas
trajetórias são como um convite a olhar o
36
feminismo e suas mobilizações sob a lente
do ativismo de mulheres negras.
Também militantes do Partido
Comunista Brasileiro, o PCB, elas e
muitas outras inauguraram a relação entre
mulheres negras e partidos políticos
de esquerda, bastante comum na política
brasileira hoje (Silva; Ferreira, 2017,
p. 1024). Essa filiação partilhada decorre
da identificação das mulheres negras com
pautas próprias dos direitos humanos e da
justiça social, que historicamente compõem
a agenda dos partidos de esquerda3. Não
quero aqui deslocar anacronicamente os
conceitos de suas origens. Entendo que
o léxico em torno dos direitos humanos
começa a ser concebido num momento a
posteriori das experiências vivenciadas
por Maria Reis e Maria Aragão na década
de 1950. Entretanto, quero chamar atenção
para o quanto essa relação entre os
partidos de esquerda e as mulheres negras
é estreita e antiga. O que não significa,
é claro, que esses espaços se constituam
como um oásis para a manifestação política
de mulheres negras, estes também são
marcados pelo machismo e pelo racismo
estrutural.
Mais uma vez a mobilização de
mulheres negras se confunde com o panorama
político-social do país quando ocorre o
golpe de 1964 e a ditadura subsequente.
Apesar do nosso imaginário político
acerca da ditadura circunscrever ao jovem
37
branco universitário de classe média o
entendimento do que era o militante anti
ditadura à época, muitos e muitas foram
os homens e mulheres negras perseguidos,
presos e torturados durante o regime
militar. Nossas personagens, Maria Reis e
Maria Aragão, mulheres negras comunistas
quando da deflagração do golpe civil-
militar que destituiu o presidente
democraticamente eleito e deu lugar à
uma ditadura de 21 anos, foram duramente
reprimidas. Reis precisou fugir para
Brasília a fim de evitar sua prisão no pós
golpe imediato. Quando retornou à Bahia,
foi inquirida de seu envolvimento com as
filosofias comunistas, mas felizmente o
processo não seguiu adiante. Já Aragão
foi presa e torturada em três momentos ao
longo da ditadura (Silva; Ferreira, 2017,
p. 1028 a 1030).
No período de distensão política,
a partir do final da década de 1970, as
mulheres negras estiveram no front das
reivindicações do movimento negro no seio
da política institucional4 . A mobilização
negra, vanguardista, antecedeu o fim
do bipartidarismo instituído pelo Ato
Institucional nº 02 de 1965 (Santos, 2015,
p. 50). Atuantes nesse grupo político
preto de oposição à ditadura estavam
Benedita da Silva (1942), Jurema Batista
38
(1957), Lélia Gonzalez (1935-1994), dentre
outras.
Benedita, Jurema e Lélia
desenvolveram papéis fundamentais na
retomada democrática do país. Nos anos
seguintes, duas delas viriam a ocupar
cargos políticos. Benedita da Silva foi
eleita vereadora no Rio de Janeiro em
1982 pelo PT numa campanha histórica
idealizada sob o slogan “Mulher, preta,
favelada” (Rios, 2014, p. 105). Em 1986,
elegeu-se deputada federal e compôs a
Assembleia Nacional Constituinte de 1987.
Jurema Batista, cuja militância advém das
associações de bairro, elegeu-se vereadora
em 1992 e ocupou demais cargos públicos
eletivos até 2005. Lélia Gonzalez se
candidatou à deputada federal pelo PT em
1982 e à deputada estadual em 1986 pelo
Partido Democrático Trabalhista (PDT),
tendo sido, neste último pleito, eleita
primeira suplente.
Para além dos cargos eletivos, as
mulheres negras possuem um histórico de
atuação em cargos de confiança, no bojo da
gestão pública. No que concerne a essa
modalidade de atuação política, destaco
as atuações de Luiza Bairros (1953-2016) e
Nilma Lino Gomes (1961).
A primeira delas, Luiza Helena de
Bairros, ocupou o cargo de secretária na
Secretaria de Promoção de Políticas da
Igualdade Racial (SEPROMI) do Estado da
Bahia entre 2008 e 2011 e foi ministra
da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) do Governo Dilma
Rousseff entre 2011 e 2014. Apesar de ser
nacionalmente reconhecida por ter sido
39
dirigente de importantes pastas a nível
estadual e nacional, a gaúcha abraçada
pela Bahia possui uma trajetória que não
se esgota aí. Formada em Administração
Pública e de Empresas, sua militância
começou no movimento estudantil em plena
ditadura. Após formada, se aproximou do
movimento negro e do movimento de mulheres
negras. Escolheu ter Salvador como casa
e, ao longo dos anos, se dedicou a estudos
sobre as experiências negras no interior
do mercado de trabalho, verificando as
condições de renda e empregabilidade
dessa grande parcela da população, dentre
muitas outras pesquisas. No doutorado nos
Estados Unidos, em 1993, promoveu uma
série de intercâmbios entre militantes e
pesquisadores brasileiros, estadunidenses
e europeus. Faleceu em 2016, precocemente,
deixando conosco o legado de ter
capitaneado uma das gestões mais bem
sucedidas das pastas que atuou e todo
seu histórico intelectual e de ativismo
(Pinto; Freitas, 2017, p. 219).
A pedagoga Nilma Lino Gomes
ganhou projeção nacional quando ocupou
o posto de reitora da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira, a Unilab, entre 2013 e 2014.
Na ocasião, Nilma havia sido a primeira
mulher negra a gerir uma universidade
pública e federal no Brasil. Após esse
feito, em 2015, foi convidada pela
presidenta Dilma Rousseff a encabeçar a já
mencionada Seppir na condição de ministra.
Meses depois, a Seppir passou a integrar
o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos e Nilma continuou ministra
mesmo após a reformulação até o golpe de
40
2016 e, consequentemente, o impeachment de
Dilma. Com o fim da gestão, também bastante
satisfatória e exemplar, Nilma voltou
a lecionar na Universidade Federal de
Minas Gerais e deu prosseguimento em suas
pesquisas acadêmicas.
“Diversas, mas não dispersas”.
Há uma famosa foto de Marielle Franco
(1979-2018) vestindo uma blusa com esses
dizeres. Na foto, Marielle está diante
da tribuna da Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, discursando. Marielle foi eleita
vereadora da cidade do Rio de Janeiro com
46.502 votos em 2016. Defendia a agenda
política das mulheres negras, dos moradores
das favelas e da população LGBTQIA+.
Denunciava a brutalidade das polícias
militares cariocas, as arbitrariedades
das milícias, os esculachos sofridos pelos
civis pretos e pobres. No dia 14 de março
de 2018, Marielle foi assassinada num
crime até hoje sem resolução.
Junto de Marielle, em 2016, foram
eleitas ainda Talíria Petrone em Niterói
e Áurea Carolina (1983) em Belo Horizonte,
numa esperança ainda acesa de renovação
política, empretecimento e feminização dos
espaços de poder institucional. Talíria
e Áurea se candidataram como deputadas
federais no pleito de 2018 e foram
eleitas, confirmando um anseio coletivo por
mudanças.
Cabe aqui mencionar Erica
Malunguinho, eleita em 2018, a primeira
mulher trans a ocupar um cargo de deputada
estadual na Assembleia Legislativa de São
Paulo que, com sua Mandata Quilombo, tem
ressignificado a luta histórica de mulheres
negras no Brasil adicionando o fator das
discussões de gênero na casa legislativa .
41
Constituintes, ditaduras, golpes políticos,
impeachments, redemocratizações. Mulheres
negras testemunharam todos os capítulos
mais marcantes da história política
brasileira. Aliás, mais do que meras
telespectadoras, fomos constantemente as
impulsionadoras de um novo projeto de
democracia e sociedade. Nos momentos de
crise (não raros no Brasil), acessamos
nosso repertório de luta que parece não se
esgotar.
Mesmo à frente dos índices mais
drásticos do país, formulamos nossa
sobrevivência e a sobrevivência dos
nossos. A partir das nossas experiências,
tornamos impossível falar de luta por
direitos e elaboração de políticas
públicas sem se aproximar das proposições
das mulheres negras nos últimos cem anos.
De Almerinda à Áurea Carolina,
localizamos as mesmas barreiras que
dificultam o alçar políticos de mulheres
negras e caímos no mesmo lugar da sub-
representação, tão maléfica para uma
sociedade que se pretende verdadeiramente
democrática. Ao longo deste texto,
conhecemos nomes e histórias de vida
de mulheres negras que acreditaram no
campo político-institucional como espaço
fundamental de disputa de narrativas. Se
estamos em menor número nos parlamentos,
à revelia da nossa presença massiva
na sociedade, não é porque encaramos
a política como um lugar que não é
nosso. Fomos e continuamos a ser atrizes
indispensáveis no fazer político.
Espero que este curto ensaio
comprove a validade do pensamento
político-social de mulheres negras e suas
substanciais contribuições no país.
42
Referências bibliográficas
43
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado Acadêmico da Escola de Direito de
São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV
- Direito SP), 2015.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Erico.
Dicionário mulheres do Brasil : De 1500
até a atualidade. Biográfico e ilustrado.
2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
SILVA, Tauana Olívia Gomes; FERREIRA,
Gleidiane de Sousa. E as mulheres negras?
Narrativas históricas de um feminismo à
margem das ondas. Estudos Feministas,
Florianópolis, 25(3): 530, setembro-
dezembro/2017.
44
Políticas
raciais: da
identidade à
estrutura
Diana Mendes
1.“O vento não quebra uma árvore que se
dobra.” (provérbio africano)
46
dos negros na construção histórica do
país não podem ser desconsideradas.
O Brasil foi o país que mais recebeu
pessoas escravizadas nas Américas entre os
séculos XVI e XVIII. Foram 4,86 milhões
de escravizados que desembarcaram em
território brasileiro nesse período – mais
do que em qualquer outro destino, segundo
Banco de Dados do Comércio Transatlântico
de Escravos1.
Esse dado nos coloca diante de
diversas estratégias que surgiram ao
longo da trajetória e projeto de Brasil
como o mito da democracia racial2, que
dissemina a ideia de que os brasileiros
não se enxergam por meio da lente
racial e a miscigenação entre as raças
teria contribuído para que não tenhamos
categorias raciais definidas e rígidas.
Por esse motivo, nos tornamos uma nação
“agraciada” pela diversidade vinda de
brancos, negros, indígenas e ameríndios.
A miscigenação foi também uma
tática de embranquecimento da população
brasileira, visto que muitos negros
no país representavam um potencial de
adversidade aos brancos. O cenário
internacional era marcado pela vitoriosa
Revolução Haitiana, rebelião dos negros
escravizados, e que possibilitou a
47
independência do país dos franceses (1791
até 1804). A possibilidade de inspiração
no Haiti para uma revolta dos escravizados
no Brasil trazia à tona um contexto
iminente de temor aos colonizadores
brancos, por isso foram implementadas
todas ações possíveis para apagamento da
religião, cultura, costumes e memória da
África. Registros escritos e documentados
foram queimados e apagados, famílias foram
separadas, mulheres negras violentadas e
nossa história enquanto população preta
infelizmente foi se perdendo.
A oralidade foi fundamental para
manter vivas as memórias ancestrais que
trouxeram tantos negros de diversos países
do continente africano. Além disso, é
importante reforçar que as estratégias
brasileiras como a miscigenação não
foram acontecendo sem nenhum tipo de
resistência. A cordialidade, que é mais
um conceito que figura na construção do
Brasil, não cabe nas páginas de luta
pela sobrevivência da população negra
e indígena. Foi derramado muito sangue
desses povos para que não houvesse um
extermínio generalizado e permanente.
Toda bagagem de luta foi
necessária para construção e valorização
da nossa identidade enquanto negros. Foram
necessários 115 anos depois da abolição
para que pudéssemos estudar de onde
viemos, a partir da implementação das leis
nº 10.6393, de 2003, e nº 11.6454, de 2008,
48
que permitiram e tornaram obrigatório o
ensino da história e da cultura africana e
afro-brasileira e indígena nos currículos
das escolas de ensino fundamental e médio
da educação básica.
A identidade negra está muito além
de uma única variável ou somente do
ensino. Estamos falando de descendência;
ter o direito de saber de onde vieram
seus ancestrais e familiares. De saber
de onde vem seu sobrenome - coisa muito
comum entre pessoas brancas descendentes
de europeus. De estética, de admiração
dos traços negroides, de aceitação sem
auto ódio, da não necessidade de estar
dentro de um padrão para ser aceita. Da
perpetuação da cultura, costumes, saberes
e religiões de matrizes africanas e da
diversidade que existe dentro do que é ser
negra e afro americana.
Posto tudo isso, ser negra e negro
no Brasil não é apenas uma auto declaração
e uma questão identitária. As pessoas
em si podem não saber declarar se são
negras ou não diante da miscigenação que é
muitas vezes imposta por meio de conceitos
obsoletos e errôneos, mas a estrutura sabe
dizer quem é negro e atua sobre isso. Por
exemplo, a polícia militar sabe a cor de
quem é cotidianamente autuado, violentado
e deve ser suspeito em 99,9% das vezes.
Os dados são claros, a cor da maior
taxa de homicídios é negra. Do total das
vítimas de homicídio em 2018, 75,7% eram
negros. Entre eles, a taxa foi de 37,8
por 100 mil habitantes, enquanto entre os
não-negros a taxa foi de 13,9. A chance de
uma pessoa negra morrer de forma violenta
49
no Brasil é 2,7 maior que uma pessoa não-
negra, segundo o Atlas da Violência 20205
realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa
de Economia Aplicada).
As nossas prisões também têm
cor, segundo o relatório do Infopen -
Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias de 2016, o perfil da
população prisional brasileira é de
jovens, negros e de baixa escolaridade. O
público do nosso sistema penal é formado
por 55% de jovens de 15 até 29 anos;
64% de negros e baixa escolaridade,
pois 80% não concluiu o ensino médio. A
população negra representa quase dois
terços de toda a população carcerária. O
antropólogo Darcy Ribeiro dizia que “a
crise penitenciária não é uma crise, mas
sim um projeto”, que se sustenta sobre a
criminalização da pobreza e do racismo
(CORDEIRO, 2018).
Esse breve diagnóstico
nos permite partir para os aspectos
estruturais e institucionais do racismo
na sociedade brasileira e como está sendo
a trajetória para enfrentá-lo, sem nos
deixar levar pela tempestade.
50
questões políticas e governamentais que
mediam a relação entre Estado e sociedade.
Elas acontecem por meio de um ciclo
de políticas públicas.
Esse ciclo possui algumas etapas
cruciais quando tratamos de políticas
raciais e elas são: agenda, tomada de
decisão e implementação. Ressaltando que
não é uma questão de qual etapa é mais
importante do que a outra, nesse caso, é
importante lançar luz sobre algumas delas
que por vezes geram gargalos no avanço de
questões raciais no Brasil.
A etapa inicial do ciclo trata da
identificação do problema. Neste texto,
parte-se da premissa de que o racismo
já está posto na sociedade e afeta a
população de múltiplas formas como já
exposto no diagnóstico anterior. A
importância de colocar o tema racial na
agenda pública sempre foi urgente para o
acesso e garantia de direitos da população
negra. Um dos marcos dessa inclusão
e institucionalização na agenda das
políticas públicas do governo federal foi
a criação da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Nilma Lino Gomes, que foi ministra
do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial e dos Direitos Humanos, que uniu as
secretarias de Políticas para Mulheres,
Igualdade Racial, Direitos Humanos e parte
das atribuições da Secretaria-Geral de
2015 até o afastamento da ex-presidente
Dilma Rousseff, relata no belíssimo artigo
“Igualdade racial: da política que temos
à política que queremos” que, para falar
da política de igualdade racial que temos
51
e daquela que queremos é necessário,
antes, falar da história da Seppir
criada em 2003, pela Medida Provisória
nº 111, posteriormente convertida na
Lei nº 10.678. A Secretaria nasceu do
reconhecimento das lutas históricas do
movimento negro. Um dos resultados dessa
luta foi o artigo 5º, inciso XLII, da
CF, que declara o racismo como crime
inafiançável e imprescritível
(GOMES, 2016, p. 229).
Outro marco, dessa vez
internacional, foi a III Conferência de
Durban realizada em 2001 na África do Sul.
O Brasil foi um dos países signatários,
colocando-se à disposição para o
compromisso com o Plano de Ação de Durban
e, dentre as ações, estava a construção de
políticas de igualdade racial. Todas essas
ações institucionais levam ao próximo
passo de tomada de decisão e possibilidade
dos marcos legais que podiam transformar a
política de promoção da igualdade racial
em uma política de Estado.
Os marcos com esse propósito
foram propostas como ensino das
histórias e das culturas africanas e
afro-brasileiras e indígenas nas escolas
(já citadas anteriormente), a Política
Nacional de Saúde Integral da População
Negra, aprovada em 2006; a Lei nº
12.288, de 2010, que criou o Estatuto da
Igualdade Racial; a Lei nº 12.711, que
estabeleceu as cotas nas universidades
públicas e institutos federais, e a
Lei nº 12.990, que reserva aos negros
20% das vagas oferecidas nos concursos
públicos (GOMES, 2016, p. 230).
52
Chegamos então ao desafio da
implementação dessas políticas. Foram
criados caminhos pensando soluções para
diminuição da desigualdade e pobreza,
ampliação do acesso à universidade e ao
mercado de trabalho, políticas específicas
para as comunidades tradicionais de
matriz africana, quilombolas e ciganas,
e reforço de mecanismos de denúncia ao
racismo. É necessário dizer que não foi
por boa vontade do Estado, mas graças à
participação social do movimento negro,
especialmente de mulheres negras que
lideraram diversos processos de incidência
como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento,
Laudelina de Campos Melo, Sueli Carneiro,
Benedita da Silva, Luiza Bairros, Nilma
Gomes, entre outras. Foram mulheres
negras imbatíveis que, literalmente,
fizeram chover dentro do rio de esperança,
igualdade e democracia que desejamos
enquanto sociedade.
Cada vitória e política conquistada
é uma gota dentro desse rio que irá
transbordar. Até lá, muito ainda precisará
ser feito e aprimorado. Nilma Lino já
nos dá o recado de que a estrada tem
que ser construída: fazendo valer o
nosso estatuto da igualdade racial.
Com monitoramento das cotas sociais e
raciais e ações afirmativas, olhando para
as políticas de permanência para além
do acesso. Garantindo a aplicação das
leis. Reservando recursos financeiros
no orçamento dos Planos Plurianuais
(PPAs) para tais políticas. Enfrentando
a violência contra as mulheres negras,
considerando os recortes de raça e gênero
nas ações; combatendo o genocídio da
53
juventude negra; superando a intolerância
religiosa; assegurando direitos aos povos
e comunidades tradicionais e fortalecendo
a participação social e o papel do
movimento negro nas políticas públicas.
54
nas políticas e na compreensão de
gestoras e gestores das políticas
para as mulheres.” (GOMES, 2016, p.
235)
55
Referências bibliográficas
56
57
Porque
cultura é lugar
de política
afirmativa
Renata Dias
Apesar do cenário de
retrocesso, pela primeira vez na Bahia
um edital dedicado às artes estimulará
a classificação de projetos idealizados
por negros e mulheres. Politicamente,
a iniciativa problematiza narrativas a
respeito da importância das estruturas
político-governamentais na dinamização
da cultura na Bahia. Cotas nas artes é
coisa nova aqui, mas, há alguns anos,
esses dispositivos já foram implementados
em editais em outros estados, como São
Paulo e Pernambuco. O Brasil tem mais
de 500 anos de história para justificar
esse alinhamento entre os fenômenos
sociais e a razão da política pública.
Em 2018, a Agência Nacional do Cinema,
vinculada à época ao hoje extinto
Ministério da Cultura, publicou um
estudo da Superintendência de Análise de
Mercado dedicado a analisar aspectos de
gênero e raça em todos os filmes lançados
comercialmente em salas de exibição no
Brasil em 2016.
A publicação traz dados sobre
a disparidade na cadeia produtiva do
audiovisual brasileiro, quando o que está
em xeque é como ser mulher e ser negro.
Apesar dos dados alarmantes, o assunto
pouco foi reverberado pela mídia ou entre
os próprios agentes culturais. Mais do que
um informe de mercado, a publicação é um
retrato do caráter estrutural do racismo
brasileiro quando aplicado às engrenagens
que servem à cultura nacional. Elenco
alguns motivos para o alarde: dos 142
longas metragens lançados em 2016, nenhum
tem Direção, Roteiro ou Produção Executiva
assinados por uma mulher negra. Por homens
59
negros, apenas três. Em posições como
Direção de Fotografia e Direção de Arte, os
dados são igualmente desoladores. Quanto
ao elenco principal, apenas 8% dos atores
são negros nos filmes de longa metragem
produzidos com incentivo federal.
Sabemos que a cadeia produtiva do
audiovisual não é a única a apresentar
dados para uma leitura mais honesta sobre
as demandas silenciadas na Cultura. Outro
exemplo: na última edição da FLIPELÔ, a
Fundação Cultural do Estado, vinculada
à Secretaria de Cultura, apresentou
resultados do primeiro mapeamento dos
artistas da palavra baianos. A iniciativa
alcançou 275 artistas, sendo 147 de
Salvador e 128 de outros 58 municípios,
contemplando 25 territórios de identidade.
O diagnóstico demonstra que os
artistas negros distribuem suas produções
mais de forma ambulante, ao tempo em que
os não-negros se apoiam em bibliotecas
e livrarias. Nesta pesquisa, o recorte
racial foi imprescindível para compreender
o alcance da desigualdade racial na
cadeia produtiva da cultura, reforçando
a necessidade de efetiva participação
do governo para promover políticas de
igualdade. E, então, avaliar se o esforço
da gestão é um fiasco ou um farol será,
sobretudo, uma questão de perspectiva.
60
Saúde pública
e as mulheres
negras na
política: uma
convergência
de lutas
Fabiana Pinto
Em um contexto de pandemia,
lembrar a importância do movimento de
mulheres negras brasileiro e, em especial,
de parlamentares negras na efetivação do
nosso direito à saúde, conforme garantido
hoje na Constituição brasileira, se faz
mais que oportuno, necessário. Foram
muitas as assistentes sociais, enfermeiras
e médicas negras que se lançaram na
política institucional desde a década de
1930, pois sabiam que, para conseguir
garantias de direitos para sua população,
construir e consolidar esses direitos,
e um maior sistema de saúde público,
gratuito e universal do mundo, precisavam
ir além.
Hoje, esse grupo que há 30 anos
lutou pela Reforma Sanitária Brasileira
e pela criação do que é considerado o
maior e mais completo sistema de saúde
do mundo, luta novamente pela manutenção
do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo
direito à saúde de milhares de brasileiras
e brasileiros que dependem dele. Mulheres
negras atuam na garantia da vida de todos
os usuários do SUS, cerca de 80% da
população brasileira e, em especial, da
própria população negra brasileira que
representa a maioria (65%) daqueles que
dependem exclusivamente do nosso sistema.
A energia de parlamentares negras
na defesa de temas que são a base de
funcionamento de áreas estratégicas e
estruturantes do Estado brasileiro, e
a base de diversos movimentos de luta
63
feminista e antirracista, chama atenção.
Ao revelarem e denunciarem as condições
desiguais em que viviam milhares de
brasileiros, ajudavam a desvelar uma
realidade que há poucas décadas grande
parte dos políticos ignoravam. Feitos
como o de Laélia de Alcântara, médica,
ex-secretária estadual de saúde do Acre
e primeira senadora negra do Brasil que,
em 1981, realizou um trabalho importante
no congresso nacional ao tratar das
deficiências da política sanitária vigente
na época e ao reivindicar melhores
condições sanitárias nas regiões Norte e
Nordeste do país (BRASIL, 2004).
Parlamentares negras apontaram os
privilégios daqueles que podiam destinar
uma parcela robusta de sua renda para
arcar com seguros de saúde e denunciaram
a situação dos trabalhadores informais,
desempregados, e da população mais pobre,
majoritariamente formada por negros que
não tinham possibilidade de pagar pela
saúde. Em um período em que o SUS ainda
não existia e a saúde, dita pública,
era inteiramente vinculada ao sistema
previdenciário e ao mercado formal de
trabalho, milhares de brasileiros ficavam
desassistidos.
Jurema Batista, ex-deputada
estadual e vereadora do Rio de Janeiro,
durante seu percurso como política,
denunciou as condições que viviam a
maior parte da população fluminense e,
em especial, as mulheres negras. Jurema,
64
em suas justificativas de projetos de
lei e atuação, sempre fazia questão de
evidenciar o tratamento desigual oferecido
a mulheres negras em serviços públicos,
como recordou em entrevista a FGV/CPDOC
(2004):
65
Sua energia em defesa da população
negra, como militante do Movimento Negro
Unificado (MNU) e como parlamentar, fez
com que ela criasse importantes leis no
Estado do Rio de Janeiro, como a lei
que deu origem ao Programa de Reposição
Hormonal desenvolvido na rede pública
estadual de saúde. Foram também conquistas
da parlamentar a instauração da Semana
Estadual de Combate à Mortalidade Materna
do Estado do Rio de Janeiro, que tinha
como intuito visibilizar o grave problema
de saúde pública que são as mortes
maternas, em especial, as mortes de
mulheres negras. Até hoje o grupo mais
atingido pelas violências obstétricas e
outras manifestações de racismo na saúde.
Jurema Batista também foi responsável pela
criação da Semana de Prevenção à Anemia
Falciforme no Estado do Rio de Janeiro,
outro marco importante na luta em defesa
da saúde da população negra.
A trajetória de vida das mulheres
negras e o compromisso com um novo modo
de viver produziu efeitos em seu ativismo
político e no papel que desempenharam em
casas legislativas com ações voltadas
para o combate ao racismo e sexismo
contra mulheres negras e a construção de
políticas públicas capazes de garantir a
viabilização de direitos, em especial,
relativos à saúde reprodutiva. Esse foi
o caso da atual deputada federal e ex-
senadora Benedita da Silva na década de
1990 e durante toda sua carreira política,
ao lutar pelos direitos sexuais e os
direitos reprodutivos de mulheres negras
no Brasil.
66
Com uma trajetória reprodutiva
marcada por perdas1 e uma vida política
marcada pela resiliência e grandes
conquistas, Benedita representou, e ainda
hoje representa, a luta pela sobrevivência
de seu próprio grupo e a coragem e
capacidade das mulheres negras em disputar
e construir políticas públicas que as
afetam diariamente.
Em 1991, o Congresso Nacional acatou
o requerimento da então senadora Benedita
da Silva, criando a Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) para investigar
a esterilização em massa de mulheres
negras e mulheres nordestinas no Brasil,
cujo relatório foi aprovado em fevereiro
de 1993. Até aquele momento, o Brasil não
adotava nenhuma política pública nacional
voltada para o controle de fecundidade.
Além disso, naquela época, o Código
Penal brasileiro proibia a esterilização
cirúrgica, um método irreversível
considerado crime de mutilação, mas que
mesmo assim era praticado em larga escala
entre mulheres negras e nordestinas,
chegando a ser utilizada, inclusive,
1. Na biografia Benedita (1997), a ex-senadora e atual
deputada federal Benedita da Silva, relata um histórico
de perdas de filhos, bem como complicações comuns em todas
suas gestações. Segundo ela, tais problemas deveriam estar
relacionados ao histórico de “fome e miséria”. Uma dessas
gestações, a quinta, terminou em um aborto, que ela conta
ter realizado pela pressão de já ter filhos e ser pobre.
Além disso, Benedita relata episódios de violência obs-
tétrica que quase custaram a vida de mais um filho. Tais
violências, infelizmente, mais prevalentes em mulheres
negras, representam os riscos e violências sistêmicas as
quais nós, estamos constantemente expostas em nossa vida
reprodutiva. Esses episódios de dor, anunciavam algumas
das causas pelas quais Benedita da Silva, mais tarde, vi-
ria a lutar enquanto parlamentar.
67
como moeda de troca política em diversos
municípios do país.
As discussões acerca da
esterilização em massa promovida por
instituições norte-americanas no Brasil
e os direitos reprodutivos das mulheres
brasileiras, agitou não só o Congresso,
mas os movimentos organizados de mulheres
negras. O melhor caminho a seguir não
era algo tão óbvio. Nesses embates,
havia discordância dentro do próprio
movimento negro, uma vez que alguns
grupos condenavam totalmente a prática
de esterilização cirúrgica em mulheres
negras, enquanto outros eram a favor de
uma regulação dessa prática (DAMASCO,
2009). Isso demonstra, não necessariamente
uma discordância interna entre visões
do que seria mais adequado em termos de
políticas públicas de saúde sexual e
reprodutiva, mas sim a complexidade do
movimento de mulheres negras e o poder
de autodeterminação que elas sempre
defenderam para si mesmas.
A CPMI da esterilização em massa foi
um marco na luta pelos direitos sexuais
e direitos reprodutivos de mulheres
negras no Brasil. Já que Benedita, como
presidente da comissão, ao rechaçar
ações do Estado baseadas em premissas
eugênicas e racistas e apostar em uma
política capaz de alçar mulheres negras
a uma vida mais plena e com garantia de
direitos, a parlamentar e o movimento de
mulheres negras marcavam o que poderia ser
68
considerada a primeira grande ação no país
por uma construção de política pública
baseada no que viriam ser os ideais da
justiça reprodutiva2.
Benedita reafirmou seu compromisso
com a saúde e direitos para todos ao
encabeçar a chapa para a disputa da
prefeitura do Rio de Janeiro em 1992,
com o também deputado federal e médico
sanitarista, Sérgio Arouca, que hoje dá
nome a Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz. Tratava-se de
uma chapa que representava dois aspectos
fundamentais da luta por uma sociedade
brasileira mais justa, o fortalecimento
de mulheres negras e do SUS. No primeiro
turno daquele pleito, Benedita recebeu a
maioria dos votos válidos e, apesar de não
ter vencido as eleições municipais naquele
ano, levou o compromisso de mulheres
negras com uma pauta estruturante da
sociedade brasileira, a saúde pública.
Hoje, com a pandemia de COVID-19,
vemos mais uma vez parlamentares negras
liderando propostas radicais para
solucionar problemas históricos do
Sistema Único de Saúde e tentar reduzir
2. Segundo Emanuelle Goes (2017) a justiça reprodutiva é
um conceito que se apresenta com a finalidade de ampliar o
olhar sobre os direitos reprodutivos porque traz conjunta-
mente os direitos humanos e a justiça social para o exer-
cício pleno da saúde reprodutiva. É vista como uma teoria
interseccional que emerge das experiências de mulheres
negras que vivenciam um conjunto complexo de opressões e
hierarquias reprodutivas. Baseia-se no entendimento de
que os impactos das opressões de raça, classe, gênero e
de orientação sexual não são aditivos, mas integrativos,
produzindo esse paradigma de interseccionalidade
69
ou desacelerar a enorme tragédia que
acontece em nosso país. Diante de um
governo fascista, com um Ministério da
Saúde sem comando, vemos parlamentares
propondo projetos de lei com foco na
proteção de profissionais da saúde, na
ampliação dos leitos de UTI para o
tratamento da COVID-19 e no direcionamento
da produção industrial para a garantia de
abastecimento de itens essenciais por meio
da reconversão industrial.
Grande parte das propostas de
enfrentamento à COVID-19, tanto em âmbito
federal quanto estadual e municipal, foram
pensadas ou apoiadas por parlamentares
negras que, como grande parte da
população negra, por já terem dependido
de nosso sistema, conhecem bem os
limites e deficiências do SUS, mas também
a potencialidade e capacidade do nosso
sistema para lidar com essa grave crise
sanitária que assola o Brasil e o mundo.
Um exemplo são as deputadas federais
Talíria Petrone e Áurea Carolina e as
deputadas estaduais Andreia de Jesus em
Minas Gerais e Rejane de Almeida no Rio de
Janeiro, que vêm desafiando o mercado de
planos de saúde e hospitais privados com o
objetivo único de garantir assistência à
saúde para todos os brasileiros.
Elas radicalizam o fazer político
no Brasil e, ao propor soluções para o
SUS, fazem valer o direito à saúde de
toda a população brasileira. Os ganhos de
suas ações são universais, pois quando
70
uma mulher negra age no sentido de
solucionar os problemas enfrentados pelo
seu grupo, ela atenderá os problemas mais
estruturantes da sociedade brasileira.
Elas seguem com fôlego e energia,
atualizando as pautas mais importantes
dentro da saúde pública e reconstruindo
e consolidando o nosso Sistema Único de
Saúde para que seja cada dia mais sólido,
universal e com nossa cara.
71
Referências bibliográficas
72
Feministas, 2017. Disponível em:
<https://cientistasfeministas.wordpress.
com/2017/01/25/justica-reprodutiva-ou-
direitos-reprodutivos-o-que-as-mulheres-
negras-querem/ >. Acesso em: 12 ago. 2020
73
Candidaturas
negras e
eleições
de 2020
Juliana
Marques
No ano de 2020 tivemos um avanço
da disputa por mais mulheres negras na
política institucional. O TSE aprovou
uma consulta da deputada federal
Benedita da Silva (PT) que reivindicava
a distribuição proporcional de recursos
de financiamento públicos de campanha
eleitoral para candidaturas negras, Fundo
Especial de Financiamento de Campanha
(FEFC) e do Fundo Partidário (FP). Além
da distribuição proporcional de tempo de
rádio e TV nas propagandas.
Essa conquista foi garantida com o
apoio de outras organizações e grupos que
se aliaram no processo de incidência junto
ao tribunal superior eleitoral, são elas,
Coalizão Negra por Direitos, Educafro,
Instituto Marielle Franco e o Movimento
Mulheres Negras Decidem. A vitória só foi
possível pelo acúmulo que vem sendo feito
em torno do debate de subrepresentação,
nos movimentos negros, na academia, nas
organizações do terceiro setor.
De fato ainda não temos
um caminho definitivo para superarmos
o problema, mas algumas certezas nos
mobilizam: (1) não existe desinteresse de
pessoas negras em atuação na política, em
2020 pela primeira vez o percentual de
candidaturas negras (61%) ultrapassou o de
candidaturas brancas; (2) candidaturas de
pessoas negras recebem menos financiamento
que candidaturas de pessoas brancas.
Essa segunda certeza, foi um dos
fatores que corroborou com o entendimento
do TSE de que a representação política
no Brasil não está ligada somente à
preferência do eleitorado, conta também
75
com barreiras na competição eleitoral que
alguns grupos experienciam mais, como é o
caso do acesso a recursos financeiros.
Mesmo com essa mudança, o perfil
médio do vereador eleito no Brasil pode
ser definido, em 2020, como homem, branco,
casado, com ensino médio completo e 45
anos.
Mas, não podemos deixar de celebrar
pequenas vitórias. As quase 700 cadeiras
a mais que mulheres negras estão ocupando
nas câmaras municipais foi possível
devido ao aumento de + 2 milhões de votos
de brasileiros e brasileiras. Mulheres
negras receberam 32% a mais de de votos em
comparação com as eleições de 2016.
O número de candidaturas de mulheres
negras, na disputa pelo legislativo
municipal, teve um crescimento de 28%
quando comparado a 2016. O crescimento
de eleitas foi de 23,5% sendo assim
nas legislaturas de 2021-2024 teremos
aproximadamente 3.500 mulheres negras
atuando no legislativo de mais de 2.300
cidades. No entanto, em 41% dessas
cidades serão as únicas representantes
em suas câmaras municipais. Entre as
mulheres trans, que tiveram o número de
eleitas para as câmaras municipais quase
quadruplicado em 2020 as mulheres negras
são 13 das 30 mulheres trans que tomaram
posse em 2021. Em SP, tivemos a primeira
vereadora trans e negra eleita. E foi a
mulher mais votada da cidade e de todo o
Brasil.
Ao analisarmos o perfil de
candidaturas de mulheres negras, a
76
idade média é próxima do maior grupo
representado, 44 anos. Ainda assim, tem
um movimento que queremos destacar. A
elegibilidade entre mulheres das faixas
até 34 anos aumentou quando comparamos
2016 com 2020. O mesmo não aconteceu
entre homens. Poderíamos apostar em
uma tendência dos partidos em arriscar
nas candidaturas mais jovens, porém ao
analisarmos a distribuição de recursos
financeiros, para a campanha, por
faixa etária a proporção não difere
significativamente de outros grupos.
A elegibilidade de mulheres
negras é maior nas cidades com até 50 mil
habitantes, esses municípios correspondem
a 88% do total que compõem o Brasil. Nas
câmaras municipais em 2020 a elegibilidade
foi 5,8 frente a 4,2 do total, nas
prefeituras a elegibilidade foi 32,6
frente a 23,7 do total. É também nessas
cidades onde está concentrado o maior
percentual de mulheres negras candidatas
em 2020, 62%, essa concentração não difere
significativamente dos outros grupos,
assim como a lógica de distribuição de
financiamento.
Essa tendência não é novidade, mas
deve ganhar destaque para nos lembrar do
necessário esforço de visibilizar mulheres
negras fora das grandes capitais ainda têm
sido insuficientes.
77
Parte II:
Itinerários
do fazer
Racismo por
omissão
Lélia
Gonzalez
(1935-1994)
Artigo publicado na Folha de S.
Paulo 51, em 13 de agosto de 1983. No texto,
Lélia Gonzalez critica o programa de TV veiculado
pelo PT, que foi apresentado em rede nacional e
que não mencionava a questão racial. Entre os
dez temas abordados pelo PT, não houve menção à
situação da população negra e ao racismo. Lélia
considerou a atitude como “racismo por omissão”,
um dos aspectos da ideologia do branqueamento.
80
uma pena. Duas alas ficaram excluídas,
embora pudessem ter sido enxertadas nas
outras. A dos favelados (32 milhões, mais
ou menos) poderia ter sido enxertada
na da habitação, por exemplo. A dos
Crioulos, em várias outras: Desemprego,
Saúde e Educação, Mulher, Habitação (de
novo), Reforma Agrária, Democracia,
etc. Embora as alas excluídas só saibam
cantar coisas do tipo “belezas mil do
meu Brasil”, continuo achando que podiam
ter participado do desfile sem prejudicar
a escola. Pelo contrário. Teriam dado
o molho, o sal, o tempero ao desfile,
demonstrado a força, o pique, a ginga e
o caráter inovador da nossa escola. Sem
elas, apesar da beleza do abre-alas, nossa
escola não ficou melhor, nem pior, nem
diferente das velhas escolas de sempre...
Crioulices à parte, considero
importante reproduzir aqui uma afirmação
de Carlos Hasenbaíg, num pequeno livro
que escrevemos em coautoria: “No registo
do brasil tem de si mesmo negro o negro
tende à condição de invisibilidade.”
Para não fugir à regra, o PT na TV
não deixou por menos: tratou dos mais
graves problemas do País, exceto um,
que foi “esquecido”, “tirado de cena”,
“invisibilizado”, recalcado. É a isto,
justamente, que se chama de racismo por
omissão. E este nada mais é do que uns dos
aspectos da ideologia do branqueamento
que, colonizadamente, nos quer fazer crer
que somos um país racialmente branco e
culturalmente ocidental, europocêntrico.
Ao lado da noção de “democracia racial”,
ela ai está, não só definindo a identidade
do negro, como determinando seu lugar
81
na hierarquia social; não só “fazendo a
cabeça” das elites ditas pensantes, quanto
das lideranças políticas que se querem
populares, revolucionárias.
Isso não quer dizer que dentro do
Partido dos Trabalhadores não existam
companheiros empenhados na luta contra
o racismo e suas práticas, entendendo
o quanto ele implica em desigualdade,
em inferiorização de amplos setores das
classes trabalhadoras. As denúncias de
um Eduardo Suplicy, as eleições de uma
Benedita da Silva, de uma Lúcia Arruda,
de um Lizt Vieira não se fizeram a partir
do nada. “É muito comum reproduzir-se
o racismo a uma questão meramente de
classe, o que não é verdadeiramente,
embora haja pontos de contato” dizia um
companheiro africano, por ocasião do 3º
Congresso Internacional da Associação
Latino-Americana de estudos Afro-Asiáticos
(Rio De Janeiro, 1 a 5/8 de 1983), do
qual participávamos. E acrescentava:
“Se o racismo decorre de uma situação
de exploração econômica, ele acaba por
assumir uma autonomia própria” (Manoel
Faustino). E, nesse sentido, passo adiante
uma sugestão de literatura que nos foi
dito no decorrer do congresso. Trata-se
de uma dissertação de mestrado, de Suely
Alves de Souza (Unicamp), cujo título é
bastante sugestivo: “Entre nós os pobres,
eles os pretos”.
Para concluir, direi que o ato
falho com relação ao negro e que marcou
a apresentação do PT, pareceu-me de
extrema gravidade, não só porque alguns
dos oradores que ali estiveram possuem
82
nítida ascendência negra, mas porque
se falou de um sonho; um sonho que se
pretende igualitário, democrático etc.,
mas exclusivo e excludente. Um sonho
europeizantemente europeu. E isso é muito
grave, companheiros. Afinal, a questão do
racismo está intimamente ligada à suposta
superioridade cultural. De quem? Ora...
Crioléu, mulherio e indiada deste País: se
cuida, moçada!
83
Requerimento
para a criação
de Comissão
Parlamentar
Mista de Inquérito
para investigar
a incidência de
esterilização em
massa de mulheres
no Brasil
Benedita da Silva
Requerimento enviado pela deputada
Benedita da Silva (PT) em novembro de 1991
requerendo a criação da Comissão Parlamentar
Mista para investigar a esterilização em massa
de mulheres brasileiras. A CPI da Esterilização,
como mais tarde ficou conhecida, significou
um capítulo inédito de articulação entre os
movimentos de mulheres e o Congresso. O
relatório final da CPI apontou a ação não
oficial de controle da natalidade através da
esterilização cirúrgica instalada no Brasil desde
a década de 1960. Confirmou que esse cenário era
mais característico das regiões pobres. Confirmou
que era maior a proporção de mulheres negras
esterilizadas.
Senhor Presidente.
Requeiro, nos termos do art. 21 do Regimento
Comum, a criação de Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito para investigar a
incidência de esterilização em massa de
mulheres no Brasil.
Esta comissão será composta de 15 membros
escolhidos entre Deputados e Senadores e
igual número de suplentes.
A solicitação da criação desta Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito deve-se ao
fato de que a esterilização de mulheres é,
86
atualmente, o método anticoncepcional mais
usado no Brasil. Estatísticas divulgadas
pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, a respeito da esterilização
apontam para os seguintes dados: 71% das
mulheres casadas ou unidas entre 15 e 54
anos usam algum anticoncepcional, sendo
que 33% utilizam a esterilização e 38% os
outros métodos. Se considerarmos os métodos
utilizados pelas mulheres no Brasil em
idade fértil, veremos que a esterilização
representa 44%, sendo o método mais
utilizado, seguido da pílula com 41%.
Para efeito de comparação, nos países
desenvolvidos, onde 70% das mulheres usavam
algum anticoncepcional, a esterilização
corresponde a 7%. E nos países menos
desenvolvidos o percentual sobe para 15%.
Na Itália é de 1%, no Reino Unido 8% e na
Bélgica 5%.
Com esses números podemos concluir que
a quantidade de mulheres esterilizadas
no Brasil é alarmante, principalmente se
considerarmos que esse número foi atingido
dentro de uma situação de uma suposta
ilegalidade da esterilização, na medida em
que o Código de Ética Médica proíbe esta
prática e que não existe, entre nós, nenhuma
lei específica que regulamente esta questão.
O que existe é o Código Penal Brasileiro que,
no capítulo das Lesões Corporais, artigo
129, penaliza a esterilização quando diz
“ofender a integridade corporal ou a saúde
de outrem”, ou se resulta em “debilidade
permanente de membro, sentido ou função”,
neste caso a função reprodutora.
Recentemente o IBGE divulgou estatística
afirmando que sete milhões e quinhentas mil
87
mulheres brasileiras em idade reprodutiva,
entre 15 e 54 anos, estão incapacitadas
para ter filhos.
Considerando essa dramática realidade,
solicitamos, nos termos regimentais, a
constituição de uma Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito para apurar a incidência
de esterilização massiva de mulheres no
Brasil, apontando responsabilidades, com
base na seguintes estatísticas e avaliações:
1º) A evidência de que 45% das mulheres
brasileiras em idade reprodutiva estão
esterilizadas. Os mais altos índices,
conforme dados do IBGE/PNAD (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios),
segundo as Unidades da Federação, estão
assim definidos:
- Maranhão .....................79,8%
- Goiás ........................74,7%
- Alagoas.......................64,3%
- Pernambuco....................64,1%
- Piauí.........................62,7%
- Mato Grosso do Sul............61,3%
- Mato Grosso ..................55,5%
- Amazonas......................55,4%
- Distrito Federal..............55,5%
- Rio Grande do Norte...........51,3%
- Paraíba.........................47%
- Paraná e Bahia..................47%
- Rio de Janeiro................46,3%
88
- São Paulo.....................44,9%
- Minas Gerais..................42,3%
- Santa Catarina................30,9%
- Rio Grande do Sul.............22,6%
89
7º) A sociedade civil organizada (movimentos
populares, sindicatos, partidos políticos)
vem denunciando a exigência de atestado de
esterilização para admissão de mulheres
no mercado de trabalho, desrespeitando
a Constituição Federal que proíbe a
discriminação em razão do sexo. Fere também
a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra
as Mulheres, ratificada pelo Brasil.
Diante do exposto, propomos a criação desta CPI
mista que, esperamos, obtenha mais uma vez o
apoio dos companheiros Deputados e Senadores.
Sala das Sessões, 20 de novembro de 1991.
– Deputada Benedita da Silva (PT-RJ) –
Senador Eduardo Suplicy (PT – SP).
90
“Não podemos
ficar indiferentes
ao fato de que os
negros morrem
mais cedo quando
comparados a
qualquer outro
grupo social” 1
Luiza
Bairros
(1953-2016)
1. Entrevista concedida por Luiza Bairros à revista Desafios do
Desenvolvimento (IPEA).
2011 . Ano 8 . Edição 70 - 29/12/2011 -
Jonas Valente – de Brasília
93
de organização dela dentro do Estado
brasileiro, de maneira que as competências
dos governos federal, estaduais e
municipais estejam bem definidas para
trazer benefícios concretos para a vida
das pessoas.
O exemplo maior hoje é o das ações
afirmativas no ensino superior. Elas
propiciaram uma entrada em maior número
de pessoas negras nas universidades. Mas
nós partimos de um patamar com diferenças
tão agudas, que ainda se fazem necessárias
medidas mais profundas para desfazer
determinados gargalos na trajetória de
formação das pessoas negras, especialmente
hoje em relação ao Ensino Médio.
Desenvolvimento - Uma pesquisa da Fundação
Perseu Abramo mostrou que 87% das pessoas
acreditam existir discriminação racial no
País, mas apenas 4% admitem a prática.
Em sua avaliação, Ministra, a sociedade
brasileira avançou nos últimos dez anos em
relação ao racismo?
Luiza Bairros - O racismo brasileiro
sempre se caracterizou por esse tipo
de contradição: as pessoas admitem a
existência do racismo, mas não se colocam
entre as que discriminam nem entre as que
são discriminadas. Ao longo dos últimos
anos a tendência é que a opinião pública
também vá se modificando. Isso se dá pela
atuação das organizações do movimento
negro na sociedade e, mais recentemente,
pelo fato de a agenda racial ter sido
institucionalizada pelos governos. Outras
pesquisas realizadas mais recentemente
apontam em uma direção diferenciada – como
a do IBGE, em cinco regiões brasileiras,
94
sobre as características sociorraciais
da população. As pessoas opinam se o
pertencimento racial exerce impacto sobre
as oportunidades que elas têm na vida.
Mais de 60% das respostas apontaram
que sim, mostrando que isso pode tanto
implicar privilégios para as pessoas
brancas quanto desvantagens para as
pessoas negras.
Desenvolvimento - E no caso de outras
etnias, como indígenas, ciganos ou pessoas
vindas de outros países da América do Sul?
Ainda há menos consciência do que no caso
dos negros?
Luiza Bairros - Os quilombolas vêm se
colocando como atores muito importantes
no debate sobre a inserção social e
política da população negra. Nos outros
grupos, não se percebe ainda uma presença
maior do debate na esfera pública, mas
existe uma tendência que isso também se
modifique, na medida em que os negros
conseguem avançar nas suas reivindicações
e constroem uma nova maneira de entender
as relações raciais no País. Com isso, vai
se tornando também mais evidente para os
demais grupos o tipo de discriminação que
sofrem. É o caso de uma construção das
chamadas comunidades tradicionais, que
envolvem ciganos, indígenas, ribeirinhos,
comunidades de terreiro e vários outros
grupos. Eles se percebem cada vez mais
como segmentos da população com direitos
que não têm sido respeitados ao longo do
tempo. Agora se veem como sujeitos com
direito a políticas públicas específicas.
Exemplo disso é a formação, dentro do
governo federal, de comitês voltados
95
a elas. Há um decreto [6.040, de 7 de
fevereiro de 2007] que disciplina a ação
governamental no que se refere a esses
grupos.
Desenvolvimento - Que outras ações existem
para essas etnias?
Luiza Bairros - A população indígena
continua sendo responsabilidade primária
da Funai [Fundação Nacional do Índio].
É o órgão que constituiu ao longo dos
anos expertise para tratar com essas
populações. No que se refere aos ciganos,
é uma agenda recente dentro do governo
brasileiro. E nós estamos trabalhando com
essas populações a partir das demandas
apresentadas por elas. É um segmento
diverso, há diferentes grupos com demandas
diferenciadas do ponto de vista cultural.
É preciso que seja feito dessa forma, sob
pena de o Estado, ao tentar trabalhar com
populações diferenciadas, corra o risco de
agredir culturalmente essas comunidades.
Nós temos tido muitas demandas por meio da
ouvidoria da Seppir, problemas do ponto
de vista da localização em determinadas
áreas. Temos tentado fazer mediação e
temos sido bem sucedidos com isso. Foi
construído um Centro de Referência Cigana,
na cidade de Souza, na Paraíba. Ele está
agora em processo de negociação com o
governo estadual para que se definam os
usos daquele equipamento, de modo que
vários grupos ciganos possam se beneficiar
da existência desse centro. As comunidades
de terreiro têm sido parte importante da
preocupação da Seppir. As medidas iniciais
foram de apoio no debate e na definição
das políticas de segurança alimentar
96
no governo federal, e com rebatimento
nos Estados. Essas comunidades muitas
vezes atuam como referência de apoio
espiritual e social dentro de comunidades
empobrecidas.
Desenvolvimento - 2011 foi declarado o Ano
Internacional dos Afrodescendentes. De que
maneira isso impacta na luta pela promoção
da igualdade racial e quais iniciativas
estão sendo promovidas em razão dessa
questão?
Luiza Bairros - O Ano Internacional dos
Afrodescendentes marca os dez anos da
declaração do Programa de Ação da III
Conferência Mundial Contra o Racismo,
que aconteceu em 2001, na África do Sul.
É uma forma de se criar uma motivação
simbólica para uma tarefa prática muito
importante: analisar o que tem sido
feito nos últimos anos para promover a
inclusão dos afrodescendentes em vários
lugares do mundo. No caso brasileiro,
isso ganhou uma centralidade muito
grande. Vimos a oportunidade de também
fazer uma proposta a partir da Seppir que
mobilizasse a sociedade no sentido de
mais e melhores esforços na direção da
promoção da igualdade racial. Isso foi
organizado em torno de uma campanha que
se chama “Igualdade racial é pra valer”.
Nela, a Seppir convoca vários setores da
sociedade, agentes econômicos e sociais,
privados especialmente. Estes têm tido
uma participação menos proeminente nessa
agenda e queremos que venham agora se
abrir para essa possibilidade de ações
concretas que promovam a inserção de
negros naqueles espaços onde a nossa
97
presença ainda é muito aquém daquilo que
nós representamos na população total.
Desenvolvimento - Uma das principais
ações é o Programa Brasil Quilombola. Que
balanço a senhora faz dele?
Luiza Bairros - O Programa Brasil
Quilombola tem sete anos. Ao longo desse
tempo, ele conseguiu fazer chegar a
essas comunidades programas e serviços
públicos inimagináveis há até pouco
tempo, como o programa Luz para Todos.
Algumas iniciativas de saneamento
básico, mesmo naquelas intervenções mais
simples, como instalação de cisternas,
provocaram nesses espaços uma mudança
muito grande dos estilos de vida. Também
se fez um investimento significativo na
área de inclusão produtiva com projetos
que buscaram potencializar o tipo de
atividade agrícola desenvolvida por essas
comunidades. Apesar de podermos contar
com números positivos para o programa,
ele carece de uma revisão das suas formas
de execução. Nós temos desenvolvido um
esforço especial no sentido de envolver
os governos estaduais na execução, para
fazer com que esses serviços cheguem mais
rapidamente nas comunidades, especialmente
as obras de infraestrutura. Nós já temos
um bom caminho percorrido na questão da
construção de habitações, mas existe ainda
uma carência evidente em relação a isso
Desenvolvimento - Mas a iniciativa depende
agora do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade que o DEM apresentou
no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o
Decreto 4887/2003. Ele regula a titulação
e registro de terras quilombolas no País.
98
Como o governo tem atuado para assegurar a
validade dessa norma?
Luiza Bairros - O governo federal tem
defendido, desde a gestão anterior,
através da Advocacia-Geral da União
(AGU), a constitucionalidade do Decreto
4887. Ele é importante do ponto de
vista político e também antropológico,
pois é uma legislação que incorpora as
diretrizes internacionais relativas às
comunidades tradicionais e como ela
se aplica às comunidades quilombolas.
Desde que o artigo 68 das disposições
transitórias da Constituição Federal
inseriu essa questão dos direitos das
comunidades quilombolas à terra, nós
temos no Brasil uma manifestação bastante
veemente desses setores que não admitem
esse tipo de direito. Ainda que nem
todas as comunidades quilombolas tenham
uma ligação direta com o período da
escravidão, elas são representativas do
grau de abandono a que as populações
negras foram relegadas ao longo de séculos
no Brasil. São inúmeros os casos de
comunidades quilombolas que nunca tinham
sido beneficiadas com água e luz.
Desenvolvimento - O STF também deve
julgar ação contra as cotas raciais da
Universidade de Brasília. Há diálogo com
os ministros também para esta matéria?
Luiza Bairros - Qualquer decisão que
vise diretamente à inserção de pessoas
negras em vários campos da vida social
será sempre uma medida política. O que
se coloca são projetos distintos sobre
a seguinte questão: o que queremos para
este país? Que tipo de democracia vamos
99
construir? Uma nos moldes dos anos 1930,
uma democracia racial sem os negros? Eu
acho que o STF entendeu bem a dimensão
mais profunda que as ações afirmativas
têm. Tanto é que a corte convocou
audiências públicas para debater o tema.
Nelas foram incluídos vários setores
da sociedade além das universidades. O
governo se manifestou, por meio da AGU,
favoravelmente a esse tipo de conquista.
Desenvolvimento - Como o argumento sobre
as cotas sociais influencia a discussão?
Luiza Bairros - O argumento das cotas
sociais decorre de uma visão existente
sobre a desigualdade no Brasil. Há amplos
setores que ainda defendem que o fator
determinante das desigualdades no país é
de caráter social. Que você poderia por
meio da distribuição de renda e de outros
mecanismos desta natureza provocar uma
mudança sensível dessas desigualdades.
Há mecanismos que acabam deixando a
população negra de fora dos benefícios de
determinadas medidas. A nossa expectativa
é que as pessoas reconheçam que ser negro
na presença do racismo é uma desvantagem.
Por isso, é preciso criar medidas que
não apenas combatam o racismo, como
principalmente sejam capazes de alterar os
efeitos negativos que ele gera nas nossas
vidas.
Desenvolvimento - Quanto à política
de saúde da população negra, ainda há
críticas das entidades que acompanham o
assunto de que é preciso tirar o programa
do papel, estabelecer metas, como a
redução da mortalidade materna de mulheres
negras. Como a Seppir vem atuando junto ao
100
Ministério da Saúde e a esses outros entes
da Federação para efetivar esta política?
Luiza Bairros - A saúde é uma área central
nas políticas públicas para a comunidade
negra. Nós não podemos ficar indiferentes
ao fato de que os negros morrem mais cedo
quando comparados a qualquer outro grupo
social. E nem sempre essa condição está
relacionada à uma situação socioeconômica
desvantajosa. Você encontra esse padrão
em brancos e negros de faixas de renda
mais altas. Isso significa que existem
determinadas condições que fazem com
que doenças tenham entre nós um curso
diferenciado, agravado por determinadas
condições que, no limite, podem ser
atribuídas ao racismo. Ainda não temos no
Brasil uma formação de profissionais de
saúde que priorize esse debate. Existem
pesquisas que falam quais seriam os
medicamentos mais apropriados para tratar
da hipertensão, por exemplo, entre negros.
Outra doença com prevalência entre a
população negra é o diabetes, que leva
com muito mais frequência à amputação de
membros inferiores. Há ainda a incidência
de miomas em mulheres negras. Isso sem
falar na anemia falciforme, que é uma
doença de base genética, predominante
entre nós. Esses exemplos são fortes o
suficiente para fazer com que o Sistema
Único de Saúde (SUS) encare como
fundamental a melhoria do atendimento
da população brasileira como um todo,
especialmente considerando que entre nós,
negros, está a maior proporção de usuários
do próprio Sistema. A Seppir vem mantendo
diálogo com o Ministério da Saúde (MS),
que já instituiu uma Política de Atenção à
101
Saúde da População Negra.
Desenvolvimento - Uma pesquisa da Fundação
Ethos e da Fundação Getúlio Vargas mostrou
que dentro das quinhentas maiores empresas
do País apenas 23,4% dos funcionários
são negros, enquanto eles já passaram a
ser a maioria da população. Nos cargos
de chefia o índice baixa para 13,5%. O
Plano Nacional de Promoção da Igualdade
Racial estabelece como objetivos combater
a discriminação e assegurar a equidade
no ambiente de trabalho. Que ações o
governo federal tem feito nesse sentido?
Luiza Bairros - A Secretaria de Políticas
para as Mulheres já está na quarta
edição do programa Selo Pró-Equidade de
Gênero. Ele passou a incluir o recorte
de raça. Essa ação é muito importante
para mobilizar empresas para a criação de
mecanismos internos nos seus processos
de recrutamento e seleção de pessoal, e
principalmente os mecanismos de promoção
interna que levem em conta as mulheres,
as mulheres negras e os homens negros.
Esse é um exemplo de medidas concretas.
Já há 90 empresas que aderiram ao selo.
Boa parte é estatal, mas é possível
perceber uma presença cada vez maior de
organizações privadas que buscam inserir
uma maior diversidade racial e de gênero
nos seus quadros. Além disso, eu acho que
conseguimos algo bastante importante no
Plano Plurianual 2012-2015, ao inserir
o objetivo de enfrentamento do racismo
institucional.
Desenvolvimento - O Mapa da Violência
2011, do pesquisador Júlio Jacobo
Weiselfiz, do Instituto Sangari, revelou
102
que a diferença entre negros e brancos,
quando se fala em homicídios, vem
aumentando. Em 2002, ela era de 45,8%. Em
2008 ela chega a 103,4%, ou seja, o dobro.
Como a senhora explica esse fenômeno? E
que iniciativas vêm sendo tomadas para
reverter esse quadro?
Luiza Bairros - Esse fenômeno já atingiu
taxas tão elevadas ao ponto de gerar uma
mudança do perfil demográfico da sociedade
brasileira. Uma das evidências que o Censo
de 2010 trouxe é a diminuição da população
masculina suplantada pelas mulheres. Na
população negra essa diferença é maior
ainda do que na população branca. A morte
precoce entre jovens homens negros tem
um papel fundamental nisso. É mais uma
mostra de como a cor da sua pele determina
as suas oportunidades de vida. Os dados
dos homicídios evidenciam isso. O que nós
temos feito em relação a esse tema é a
atuação no Fórum de Direitos e Cidadania
– que reúne órgãos como a Secretaria-
Geral da Presidência da República, a
Secretaria Especial de Direitos Humanos,
o Ministério da Cultura etc. Quando a
Seppir trata da mortalidade da juventude
negra, estamos falando na verdade do
acirramento de um processo mais amplo de
criminalização da população negra que não
arrefeceu mesmo diante deste período de
avanços dos últimos anos. Isso revela para
nós a profundidade que o racismo tem,
de se tornar mais complexo e de aparecer
com novas faces e disfarces mesmo quando
você consegue promover a inclusão de uma
parcela significativa da população.
103
Invisibilidade e
reconhecimento:
disputa pelos
espaços de
poder
Marcha Nacional
de Mulheres
Negras - 2015
Trecho retirado da declaração
entregue pelos movimentos de mulheres negras à
Presidência da República e a sociedade brasileira
no dia 18 de novembro de 2015. Neste dia, mais
de 50 mil mulheres negras das cinco regiões do
Brasil marcharam contra o racismo, a violência e
pelo bem viver, em Brasília (DF).
106
gramática política brasileira. E quando o
foram, ou foram adotados de forma parcial
e fragmentária, ou o nosso protagonismo
erodiu.
A reivindicação de novos/outros regimes
de visibilidade destinados aos
grupos historicamente discriminados
é fenômeno cuja fisionomia deita raízes
pelo menos desde o início do século XX.
O expediente do reconhecimento alcança
urgência política pelo vínculo que possui
com identidade, onde identidade refere-
se a uma compreensão de quem somos,
de nossas características definitórias
fundamentais como seres humanos.
Sabemos que o não-reconhecimento ou o
reconhecimento errôneo podem causar danos
irreparáveis, causar imagens distorcidas
e redutoras de toda uma população.
A ausência das mulheres negras nas raias
do poder deriva diretamente da falta
de reconhecimento de sua capacidade
de partilhar o comum, de sua plena
humanidade, que a faz partícipe da coisa
pública. Maior participação nos partidos
políticos, a nossa presença em cargos
executivos (para além daqueles que
destinados às nossas demandas, strito
sensu), a nossa admissão em cargos
públicos e privados de prestígio, devem
questionar as normas do reconhecimento.
Nós, mulheres negras, denunciamos
sistematicamente o nosso aprisionamento de
imagens, reforçado, numa sociedade hiper
midiatizada, pelos sistemas de comunicação
e informação. Esse aprisionamento colabora
para perpetuar os lugares subalternizados
107
nos quais estamos majoritariamente.
Em “Racismo e sexismo na sociedade
brasileira”, a feminista e pensadora
Lélia Gonzalez apresenta um conjunto
de reflexões que nos leva a pensar na
importância da fala no espaço público,
pois, considerando que as mulheres negras
estão, no dizer dela, “na lata de lixo
da sociedade”, é necessário falar, é
necessária a construção de um sistema de
representação que realoque o lugar desse
sujeito subalternizado, aprisionado pelo
imaginário social.
A busca por Soluções: organismos
internacionais, órgãos multilaterais,
organizações não-governamentais,
operadoras(es) de políticas públicas,
movimentos sociais e ativistas, vêm
chamando sistematicamente a atenção para a
dimensão abrangente dos quadros crônicos
de injustiça em escala planetária. Como
vimos demonstrado, o papel do Estado
brasileiro para equacionar esta questão
é central. No entanto, temos visto como
a presença do Estado acirra, ao invés
de eliminar, os padrões de desigualdade
e discriminação. Antes de ser um agente
ausente, como se costuma acreditar e
dizer, o Estado opera com uma presença
assombrosa em práticas que criam e
reforçam discriminações e desigualdades.
De acordo com afirmação de especialistas, o
maior problema não é falta do Estado mas,
a constituição de uma dada conformação
esta que se coaduna com um espectro
social onde grassa a desigualdade em
sua reprodução.” É preciso, portanto,
108
interpelar o Estado para que reverta esse
quadro do qual também é protagonista. Em
face desse painel brevemente esboçado,
onde a presença do Estado reafirma o
racismo e o sexismo. Onde várias(os)
analistas diagnosticam as sociedades
globais como sociedades de risco. Onde
a falta de reconhecimento é reforçado
pelo imaginário dos órgãos oficiais do
Estado e dos sistemas midiáticos. Onde
o totalitarismo da falta de utopias
grassa nos diagnósticos correntes, nós,
mulheres negras, vimos, ao longo de
nossa trajetória, consolidando propostas
que apontam para a falência dos padrões
civilizatórios em voga e propugnamos outro
marco para a realização do político em sua
total abrangência.
É preciso romper com esse padrão de
desenvolvimento que nega, inclusive,
a existência de significativa parcela
da população mundial, composta
majoritariamente por nós, mulheres negras,
singulares em nossa constituição e
trajetória. Somos meninas, adolescentes,
jovens, adultas, idosas, heterossexuais,
lésbicas, bissexuais, transexuais,
transgêneros, travestis, quilombolas,
rurais, mulheres negras das florestas e das
águas, moradoras das favelas, dos bairros
periféricos, das palafitas, sem teto, em
situação de rua.
Somos trabalhadoras domésticas,
prostitutas/profissionais do sexo,
artistas, profissionais liberais,
trabalhadoras rurais, extrativistas
do campo e da floresta, marisqueiras,
109
pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras,
culinaristas, intelectuais, artesãs,
catadoras de materiais recicláveis,
yalorixás, pastoras, agentes de pastorais,
estudantes, comunicadoras, ativistas,
parlamentares, professoras, gestoras e
muitas mais.
Ao criticar o racismo institucional
do Estado e as desigualdades que ele
produz, demandamos políticas, serviços
e equipamentos públicos que acabam
beneficiando a população como um todo. Não
nos faltam ocorrências que demonstram como
estamos ampliando a garantia de direitos
para o conjunto da população: o Prouni e
as taxas de isenção em concursos públicos
e privados, responsáveis por ampliar o
acesso ao ensino superior e o ingresso em
postos de trabalho não apenas da população
negra, mas também de outros grupos raciais
integrantes das camadas populares, são
exemplos lapidares.
110
Projeto de
Programa
Centro de Parto
Normal e Casa
de Parto
Marielle Franco
(1979-2018)
Em aproximadamente um ano de atuação
legislativa, Marielle Franco redigiu e
assinou 16 projetos de lei. O projeto
que estabeleceu as diretrizes para a
criação das Casas de Parto, espaços cujo o
objetivo é a realização de partos normais,
foi aprovado em 2017 como uma estratégia
para diminuir os altos números de cesáreas
realizadas na cidade do Rio de Janeiro.
Ementa:
ESTABELECE DIRETRIZES PARA A CRIAÇÃO DO
PROGRAMA CENTRO DE PARTO NORMAL E CASA
DE PARTO, PARA O ATENDIMENTO À MULHER NO
PERÍODO GRAVÍDICO-PUERPERAL, E DÁ OUTRAS
PROVIDÊNCIAS.
113
Lei, define-se como Centro de Parto Normal
e Casa de Parto a unidade de saúde que
presta atendimento humanizado e de
qualidade exclusivamente ao parto normal
sem distócias.
§ 1º O Centro de Parto Normal e Casa
de Parto poderá atuar integrado a um
estabelecimento assistencial de saúde
de unidade intra-hospitalar ou como
estabelecimento autônomo conforme portaria
do Ministério da Saúde.
§ 2º Este programa será inserido no
atendimento do Sistema da Rede Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro, o qual promoverá
recursos materiais e humanos compatíveis
para prestar assistência, conforme disposto
na normatização federal sobre o tema.
Artigo 3º O Programa Casa de Parto consiste
na observância das seguintes diretrizes:
I- desenvolver atividades educativas e
de humanização, visando à preparação das
gestantes para o plano de parto no Centro
de Parto Normal e Casa de Parto e da
amamentação do recém-nascido;
II- acolher as gestantes e avaliar as
condições de saúde materna;
III- permitir a presença de acompanhante;
IV- assegurar, caso solicitada pela mulher,
a presença da doula;
V- avaliar a vitalidade fetal pela
realização de partograma e de exames
complementares;
114
VI- garantir a assistência ao parto normal
sem distócias, respeitando a individualidade
da parturiente;
VII- garantir a assistência ao recém-
nascido;
VIII- garantir a assistência imediata
ao recém-nascido em situações de risco
inesperado, devendo para tal, dispor de
profissionais capacitados para prestar
manobras básicas de ressuscitação, segundo
protocolos clínicos estabelecidos pela
Associação Brasileira de Pediatria;
IX- garantir a remoção da gestante, nos
casos eventuais de risco ou intercorrências
do parto, em unidades de transporte adequadas
no prazo adequado, conforme portarias do
Ministério da Saúde;
X- garantir a remoção dos recém-nascidos
de eventual risco para serviços de referência,
em unidades de transporte adequadas, no prazo
adequado, conforme portarias do Ministério
da Saúde.
XI- acompanhar e monitorar o puerpério
por um período mínimo de dez dias, entendido
aqui como puerpério imediato;
XII- desenvolver ações conjuntas com as
unidades de Saúde de referência e com o
Programa de Saúde da Família.
Artigo 4º A Secretaria Municipal de
Saúde – SMS estabelecerá diretrizes para
a implantação dos Centro de Parto Normal
e Casa de Parto, inseridos nos sistemas
municipais de saúde e de acordo com as
115
prioridades de organização da assistência
à gestação e ao parto, no âmbito do Sistema
Único de Saúde – SUS.
§1º A Secretaria Municipal de Saúde
estabelecerá rotinas de acompanhamento,
supervisão e controle que garantam o
cumprimento dos objetivos deste programa
em promover a humanização e a qualidade
do atendimento à mulher na assistência ao
parto.
§ 2° O Poder Executivo poderá criar um Grupo
de Trabalho, assegurando representações da
Secretaria Municipal de Saúde, Entidades
representativas dos profissionais de saúde,
como Conselho de Enfermagem e Medicina e
Associação Brasileira de Obstetrizes e de
Enfermeiros Obstetras (ABENFO), Conselhos
de Enfermagem e Entidades da Sociedade
Civil organizadas que atuem na defesa
dos direitos da mulher, com o objetivo
de supervisionar, controlar e garantir os
objetivos deste programa.
§3° O Poder Executivo poderá capacitar
os profissionais inseridos no Programa de
Centro de Parto Normal e Casa de Parto,
priorizando os profissionais da Casa de Parto
David Capistrano Filho como responsáveis
por essa capacitação.
Artigo 5° Poderá o Poder Executivo instalar
novos Centros de Parto Normal e Casas de
Parto em cada uma das áreas programáticas
da cidade no prazo de cinco anos da
aprovação desta Lei, com prioridade de
instalação nas áreas de menor Índice de
116
Desenvolvimento Humano – IDH.
Artigo 6º As características físicas,
equipamentos e recursos humanos dos Centros
de Parto Normal e Casas de Parto deverão
obedecer à legislação federal sobre o tema
e serão regulamentadas pela municipalidade.
Artigo 7º Esta Lei entra em vigor na data
da sua publicação.
117
JUSTIFICATIVA
119
das gestantes via Centros de Parto Normal e
Casas de Parto tem potencial de oferecer o
acesso à saúde de qualidade de forma ampla.
Essa melhoria do serviço público se viabiliza
tanto para as gestantes de risco habitual,
com acesso ao parto humanizado em Centros
de Parto Normal, quanto às gestantes que não
compõem esse grupo, tendo em vista a redução
da demanda das estruturas hospitalares das
maternidades. Nesse sentido, ressalta-
se que a garantia dessas unidades não
tem como objetivo substituir o trabalho
das Maternidades, cujo acompanhamento e
intervenção médica são necessários para
gestações que apresentem níveis elevados
de complexidade ou intercorrências. Trata-
se, portanto, do acesso de quem precisa à
assistência que precisa.
120
Pronunciamento
no Senado
Federal acerca do
trabalho análogo
à escravidão e do
racismo existentes
no país
Regina Sousa
Sr. Presidente, Srªs Senadoras,
Srs. Senadores, ouvintes da Rádio Senado,
telespectadores da TV Senado, quero, antes
de tudo, fazer o registro do seminário
que está acontecendo da Unicopas (União
Nacional das Organizações Cooperativistas
Solidárias). Estão discutindo o
cooperativismo dos pequenos, as pequenas
cooperativas, junto com a Unisol, que tem
um trabalho muito bonito no fomento das
atividades dos pequenos agricultores,
principalmente, e dos catadores de
materiais recicláveis e outros.
Queria hoje falar do trabalho escravo.
Fizemos uma audiência, ontem, na CDH,
uma magistral audiência, sob comando do
Senador Paim, com vários especialistas,
estudiosos, Ministério Público e outros,
para marcar os 130 anos da Lei Áurea.
Porém, antes, há que se registrar 388 anos
de escravidão. O tema é "130 anos da Lei
Áurea. Trabalho Livre?" É livre mesmo,
fecharam-se as senzalas? Vale lembrar como
se deu a libertação.
Os senhores e as senhoras, os donos
de escravos, abriram as senzalas para os
negros saírem. Ir para onde? Sobreviver
como? E aí os senhores e as senhoras,
donos de escravos, deixaram as portas
abertas e "bondosamente" – entre aspas
– disseram aos negros que poderiam ficar.
Em troca, ajudariam nos afazeres e ainda
teriam um prato de comida. Quanta bondade!
Assim perpetuou-se a memória escravocrata,
neste País, nos filhos, nos netos, nos
bisnetos, nos tataranetos, dos senhores
de escravos. Eles foram se acostumando
a ter quem lhes ajudasse a se vestirem,
123
a se calçarem, a andarem a cavalo. E
continuaram a ser chamados de sinhozinho,
de sinhazinha.
A verdade é que o Brasil continua uma
grande senzala, só que agora os escravos
são de todas as cores. Como se dá essa
escravidão hoje? Primeiro, na área rural,
com o aliciamento das pessoas chamadas
de "gatos", lá no Nordeste, que agora
são legalizados pela reforma trabalhista
aprovada nesta Casa. Eles podem virar
CNPJ. Eles aliciam os trabalhadores lá em
seus Municípios. Já começam endividando o
trabalhador no começo, no recrutamento.
Eles dão um pouquinho de dinheiro para
deixarem com a família, dão alimento na
viagem e pagam o transporte. Geralmente, o
mesmo transporte que leva o gado leva os
trabalhadores - e já é uma dívida.
No destino, vendem a mão de obra para
o fazendeiro, ou ao seu representante, o
capataz. Aí, o trabalhador continua se
endividando, fazendo dívidas. Ele chega
lá e já recebe instrumentos de trabalho,
mas é anotado na caderneta; equipamentos
de proteção, também anotados na caderneta;
comida, também anotada na caderneta;
e hospedagem – hospedagem nos galpões
cobertos de lona e onde se armazena o
agrotóxico.
Quando ele vai acertar as contas, está
devendo, e, se quiser sair, tem que pagar
a liberdade. E, senhores, eu não sei se dá
para pegar, mas aqui o fiscal apreendeu a
caderneta de uma fazenda. Eles têm tanta
certeza da impunidade, que eles anotam
aqui: "compra da liberdade". Está aqui,
124
na caderneta de anotação das fazendas.
Quando eles vão fazer as contas, acertar
as contas com o trabalhador, eles botam
aqui o valor da compra da liberdade. Isso
é terrível! Isso em pleno século XXI.
E aqui há coisas incríveis: "cinco
quilos de colorau". Ora, cinco pacotes de
colorau?! Colorau é um corante que a gente
usa para botar na comida, geralmente nas
carnes. Uma pessoa, só, dever cinco quilos
de colorau, deve estar comendo muita carne
nessa fazenda. Mas, se ele não puder
pagar, ele tem que ficar trabalhando, cada
vez mais se endividando.
Os auditores fiscais resgatam
trabalhadores há muito tempo: 50 mil
resgates de 2003 até 2017. Mas eles não
têm condições, não são dadas condições
de trabalho. São poucos os fiscais, os
auditores fiscais, e são recebidos com
hostilidade. Aqui eu lembro Unaí, onde
mataram quatro pessoas – três fiscais e um
motorista. Até hoje ninguém preso; até
que fizeram a condenação, mas ninguém está
preso. Quatro mortes. Os fiscais chegaram e
foram recebidos a bala.
E agora temos uma outra escravidão:
a escravidão urbana, que está crescendo
muito. Usam os migrantes, aproveitam-se
da miséria das pessoas que chegam aqui
em busca de refúgio e as exploram como
escravos na confecção, na construção
civil, na indústria têxtil e em outros
serviços. Na área doméstica também: levam
as pessoas para trabalhar pelo prato de
comida.
125
Então, a escravidão é mãe do
preconceito racial que a gente tem. A
gente diz que este País é uma democracia
racial. Mentira! Os negros ainda são
considerados objetos. A gente ouve frases
célebres: "Negro não é gente"; ou então:
"É um negro de alma branca"; ou então:
"Negro, quando não suja na entrada, suja
na saída"; ou então a expressão: "Fulano
só é preto, mas...", quer dizer, o defeito
dele é ser negro – só é negro, mas é uma
pessoa boa –, e aquelas histórias de negro
de alma branca.
E eu quero aqui concluir, dizendo que
eu mesma sou vítima de preconceito. Já fui
muitas vezes, e agora, depois de Senadora,
muito mais: "Não tem cara de Senadora";
"Não dá um jeito no cabelo" – para essas
pessoas eu respondo que o meu cabelo
já está no jeito –; "Não se veste como
Senadora". Todas essas coisas eu já ouvi.
Eu quero dizer para essas pessoas
que nutrem preconceito contra mim – eu
quero assumir-me aqui como negra –, e vou
pedir emprestados os versos de um de meus
queridos professores Cinéas Santos e Fifi
Bezerra, lá do meu Piauí, para responder a
essas pessoas com esses versos, que dizem
assim:
Negra de alma preta, sim
Negra de alma preta sou
Negra assumida
Negra atrevida
Sem patrão e sem senhor.
Muito obrigada, Presidente.
126
Projeto de
Lei sobre
obrigatoriedade
de informação
de cor e raça nos
cadastros públicos
Leci Brandão
Projeto apresentado pela Deputada Estadual
Leci Brandão (PCdoB) em 2012 visou qualificar
o processo de registro, diagnósticos e
monitoramento de políticas públicas com recorte
racial no Estado de São Paulo.
129
2. declaração dos pais ou responsáveis
legais, quando o interessado for menor de
16 anos.
§3º Os cadastros, bancos de dados e
registros de informações assemelhados a que
se refere esta lei deverão adotar o mesmo
critério e a mesma metodologia utilizados
pelo Censo Populacional do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
no que concerne a cor ou identificação
racial.
Artigo 2º – O conjunto dos dados pertinentes
ao objeto desta lei deverá ser encaminhado,
semestralmente, por meio eletrônico, à
Coordenação de Políticas para População
Negra e Indígena, da Secretaria da Justiça
e da Defesa da Cidadania, para efeito de
atualização.
Artigo 3º – O descumprimento desta lei
acarretará ao proprietário ou detentor do
cadastro, banco de dados ou registro de
informações assemelhado, bem como a seus
demais responsáveis, multa de 50 (cinquenta)
Unidades Fiscais do Estado de São Paulo
(UFESPs).
Artigo 4º – O Poder Executivo regulamentará
a presente lei, no que couber, no prazo
máximo de 30 (trinta) dias, contados da
data de sua publicação.
Artigo 5º – As despesas decorrentes da
execução desta lei correrão à conta de
dotações orçamentárias próprias.
Artigo 6º – Esta lei entra em vigor na data
de sua publicação.
130
JUSTIFICATIVA
131
de serviços públicos, por exemplo, dificulta
a coleta de subsídios que ajudem a formular
e operacionalizar políticas públicas
voltadas para a superação da discriminação
racial e a promoção da igualdade.
A utilização de dados estatísticos não
deixará margem a argumentos tendenciosos que
sustentam uma suposta “igualdade social”,
da qual a população negra, por exemplo, não
usufruiria em decorrência de uma alegada
“inferioridade natural”. Portanto, trata-
se de um modo ímpar de combater os estigmas,
pois permitirá evidenciar que o problema
não advém dos grupos excluídos, mas de uma
sociedade não inclusiva.
Em face de sua relevância, apresento
este projeto de lei, ao tempo que espero e
conto com o apoio de meus pares.
Sala das Sessões, em 07/05/2012
Leci Brandão - PC do B
132
Discurso
cerimônia de
posse na Alesp
(2019)
Erica
Malunguinho
Laroiê Exú! Boa tarde a todes.
Agradeço aos 55 mil votos que me colocaram
aqui neste espaço, um espaço que já me
era direito, um espaço importante que se
diz democrático e que pela primeira vez na
sua história está dando respiros efetivos
de democracia, uma vez que eu sou um ser
existente e sou a primeira a estar nesse
lugar, então esse é um espaço democrático,
mas não tanto.
Sou das poucas negras além de trans,
é democrático, mas não tanto. Nós sabemos
muito bem como se compõe a sociedade
brasileira, todo mundo aqui tem absoluta
consciência do que se vê na rua, do que
se vê ao transitar de um bairro a outro,
todo mundo tem consciência da existência
humana e da diversidade que é a sociedade.
Todo mundo tem consciência quando vê, mas
para fora não consegue se ver participante
dentro dessa diversidade. Eu quero dizer
uma coisa pra vocês, em todos os jornais,
revistas nacionais e internacionais
a manchete é a seguinte: “A primeira
mulher negra e trans de uma Assembleia
Legislativa Brasileira, a primeira mulher
negra trans nordestina.”
Vejam bem uma história muito rápida
que eu sempre conto, sempre conto... Me
disseram negra, imaginem vocês quando a
gente estuda história, espero que seja
uma matéria de afeto e de afinco de todes,
porque, afinal de contas, estamos aqui
nós precisamos ter passado pela cadeira
de história, seja na educação básica,
seja na universidade. Nós sabemos muito
bem que muito antes deste território ser
chamado de Brasil e dessa construção de
135
Américas, existia Áfricas. Imaginem vocês
que em Áfricas ninguém ficava apontando
quem era negro não. Etiópia não falava
para Nigéria: Você é negro. Nigéria não
falava pra Senegal: Você é negro. Senegal
não falava para Ghana: Você é negro! Por
motivos óbvios, porque não precisava.
Me tornei negra uma vez que me
disseram negra a partir de um processo
histórico de uma invasão e de um projeto
colonialista, mas, como diria Victoria
Santa Cruz: "Gritaram-me negra, pois negra
sois mulher Trans”.
Vejam bem novamente, Áfricas e
povos não-ocidentais, assim como Américas
indígenas em Áfricas, as sociedades se
movem e se moviam com sua múltipla e
heterogênea cultura de formas diversas
em termo de construção de gênero. Existe
a sociedade Geledés do culto ao sagrado
feminino, os povos de Bambara do Mali que
ensinam os homens a não serem tão homens,
para não preconizarem as relações com as
mulheres.
O próprio panteão africano dos
orixás, que se atravessam em afetividades
diversas, Oxumaré num tempo do ano é um
homem e em outro tempo mulher. Os povos
ancestrais da América do Norte catalogaram
recentemente oito gêneros, ou seja, quem
me disse mulher e trans também não fui
eu, nordestina eu também descobri quando
cheguei a São Paulo.
O fato é que me disseram muitas
coisas, mas quem me disse essas coisas
todas é quem me colocou no lugar de
negociação constante do pertencimento,
136
a partir disso que me disseram: Não fui
eu! E quem foi? Vamos falar novamente
de democracia? Quem foi que está
democraticamente entre muitas aspas
ocupando esse espaço aqui, e que fala
que está aqui para melhorar a vida das
pessoas? Mas a gente tem um Estado
violento, empobrecido, apático, com
índices alarmantes de precarização das
vidas das pessoas, e essas pessoas não
sabemos muito bem quem são. Não é falar
com as pessoas, a periferia ela tem
identidade étnica, porque da mesma forma
que me disseram negra, a gente sabe muito
bem que quem não é está ocupando os
espaços, os espaços de poder.
Então eu quero neste primeiro
momento convidar-lhes a construir uma
noção real, efetiva, coerente e verdadeira
de democracia, de diversidade, de
pluralidade e de humanidade. E quero sim
também corresponsabilizar, todo mundo é
corresponsável por toda tragédia anunciada
na sociedade brasileira. É sobre isso que
estamos falando, Axé.
137
Proposições
apresentadas
pelos membros
da Comissão
Externa em
decorrência
do Desastre de
Brumadinho
(MG)
Áurea
Carolina
A deputada federal Áurea Carolina (PSOL)
participou ativamente da Comissão Externa do
Desastre de Brumadinho da Câmara Federal. Com
duração de abril a maio de 2019, a Comissão
produziu um relatório final com propostas para
evitar outros crimes socioambientais como o
ocorrido no município mineiro. O relatório traz
nove anteprojetos (seis projetos de lei, dois
projetos de lei complementar e uma proposta
de emenda à Constituição) para aperfeiçoar a
política nacional de segurança de barragens,
o licenciamento ambiental, os tributos e a
reparação de danos do setor de mineração.
PL 2785/2019
Define normas gerais para o licenciamento
ambiental de empreendimentos minerários.
PL 2787/2019
Altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de
1998 (Lei de Crimes Ambientais), para tipificar
o crime de ecocídio e a conduta delitiva do
responsável por desastre relativo a rompimento
de barragem, e dá outras providências.
139
PL 2788/2019
Institui a Política Nacional de Direitos
das Populações Atingidas por Barragens, e
dá outras providências.
PL 2789/2019
Modifica a Lei nº 8.001, de 13 de março de
1990, para ajustar alíquotas da compensação
Financeira pela Exploração de Recursos
Minerais (CFEM) e instituir fundo para
ações emergenciais decorrentes de desastres
causados por empreendimento minerário, e dá
outras providências.
PL 2790/2019
Altera a Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
(Estatuto de Proteção e Defesa Civil), para
incluir a prevenção a desastres induzidos
por ação humana.
PL 2791/2019
Altera a Lei nº 12.334, de 2010, que dispõe
sobre a Política Nacional de Segurança de
Barragens (PNSB), e o Decreto-Lei nº 227,
de 28 de fevereiro de 1967, que dispõe
sobre o Código de Minas.
PLP 126/2019
Dispõe sobre exclusão da isenção tributária
de produtos primários da atividade mineral.
140
PLP 127/2019
Altera a Lei Complementar nº 140, de 8 de
dezembro de 2011, para aperfeiçoar as regras
sobre as atribuições para o licenciamento
ambiental.
PEC 90/2019
Altera o Sistema Tributário Nacional para
excluir isenção à atividade mineral.
141
Importância
da ocupação
política liderada
pelas mulheres
negras
Vilma Reis
Trecho retirado de entrevista
concedida a Dayse Sacramento para o podcast do
Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras em
8 de junho de 2020.
144
deles nas costas.
Nós decidimos interromper,
interromper a hegemonia colonial na
nossa cidade, nós somos 85% da cidade
de Salvador, nós população negra.
Nós somos a cidade que tem a maior
quantidade de mulheres negras chefes
de família e cuidando de suas famílias
sozinhas, naquilo que Flávia Oliveira
chama de “precarização secular imposta
a nosso povo''. Esse pacto narcísico da
branquitude, como nos diz Sueli Carneiro,
está aqui e por isso é tão importante as
vozes insurgentes de mulheres negras que
se levantam. E nós decidimos interromper
esta hegemonia colonial na nossa cidade.
Salvador tem 471 anos de ocupação
colonial do poder, teve uma breve
interferência com Lídice da Mata, que
tentou e sofreu todo nível de violência
política na época, quando nós feminista
negras tomarmos alguns espaços na Ciência
Política, nós vamos contar essa história,
a história de Benedita da Silva e eu vou
direto à Benedita porque como Salvador
o Rio de Janeiro são dois casos para a
gente entender.
E a própria história do PT que
tem 40 anos, que é o meu partido. Veja
bem, há 471 anos, Salvador nunca teve
um mandatário ou uma mandatária negra,
é um escândalo internacional, todos os
pesquisadores e pesquisadoras do mundo
que se dá conta disso fica perplexo,
mas ciência política brasileira, ainda
tão Europeia, tão se achando norte-
americana, porque se ela se achasse
145
realmente norte-americana, ou se ela
dialogasse com a realidade atual francesa
do pensamento, ela iria incorporar as
experiências negras, mas nós temos uma
ciência política ainda bastante míope
nesta situação.
O que é que nós fizemos? Aquilo que
chamamos de Maré Negra feminista quando
a gente disse: a nova estética política
é com as mulheres negra! A gente está
dizendo: depois da marcha de mulheres
negras de 2015, que é um fato fantástico,
a carta está aí à disposição, a carta da
marcha, entregue no dia 18 de novembro
de 2015 à Dilma Rousseff, está aí para
todo mundo que está pesquisando, para
todo mundo que está escrevendo e é um
documento monumental, todos aqueles
pontos da carta.
Além disso, depois do brutal e
covarde assasinato da nossa irmã Marielle
Franco que está aqui guardando a gente,
a maior resposta que nós podemos dar
para esse país é eleger mulheres negras!
Tomar, tomar das mãos dos “playboys”
brancos, e a gente percebeu que todos
os partidos políticos, inclusive os
nossos partidos de esquerda são todos
controlados na linha de poder por homens
brancos, mais velhos, de classe média
ou classe média alta, e que um branco
promove o outro, um branco faz a carreira
do outro e nós carregamos as carreiras
deles nas costas.
146
Estado
participativo.
Só que não
Lúcia Xavier
Apesar do assunto política se manter em
evidência durante o período eleitoral,
a ciência política é vivenciada a todo
momento. É notório que determinados
territórios, considerados negros,
empobrecidos, periféricos e quilombolas,
carecem de atenção e atuação do poder
público. Para discutir sobre participação
política, resiliência comunitária e
recuperação econômica, conversamos
com Lúcia Xavier, assistente social e
coordenadora da ONG Criola, organização
com mais de 25 anos de trajetória na
defesa da sociedade civil e parceira
do Fundo Baobá para Equidade Racial no
Programa de Aceleração e Desenvolvimento
de Lideranças Femininas Negras: Marielle
Franco.
Fundo Baobá - Quando falamos em
territórios, principalmente territórios
negros, empobrecidos, periféricos,
quilombolas, como fazer que as suas
demandas e necessidades sejam ouvidas e
atendidas pelo poder público?
Lúcia Xavier - Há uma ideia de
incapacidade da população de arregimentar
e correr atrás dos seus direitos parece
que elas não fizeram as perguntas certas
na hora certa para a população garantir
os seus direitos. Na verdade, faz parte
da dinâmica do racismo institucional
garantir que o que você faz e o que
pensa não faça sentido. Então, por mais
que as pessoas tenham uma experiência na
solução dos problemas, elas vão enfrentar
149
um racismo institucionalizado que vai
fazer com que essa entrega seja entendida
como ainda não acabada, ainda impossível
de ser executada. Daí uma necessidade
de uma mobilização da sociedade, de que
você consiga trazer para um contexto
social essa demanda e fazer com que ela
seja compreendida, quer seja no ponto de
vista da solidariedade ou do compromisso
político, como uma demanda legítima. Você
pode não conseguir o efeito 100%, mas você
pode ter uma resposta à altura desses
acontecimentos. Um exemplo: morte materna
– a sociedade se corrói com essa questão
da morte materna, mas ela não é capaz de
se movimentar a ponto de pedir o fim da
morte materna. Então fica-se sempre achando
que você ainda não alcançou essa fala
porque você ainda não soube traduzir esse
conhecimento, essa necessidade, mas na
verdade nos falta ainda uma possibilidade
de sensibilizar, tanto o próprio setor
da população negra quanto fora dele,
sensibilizar a sociedade de modo geral,
para que sejam dadas respostas à altura do
que a gente necessita.
Fundo Baobá - No que se diz respeito à
Resiliência Comunitária: o quanto as
comunidades, os territórios negros, para
sobreviver, precisam se organizar para
ocupar o espaço que o Estado não ocupa?
Lúcia Xavier - É importante frisar que
o Estado não deixa nada vago. Não tem
espaço vago na política. Ele que faz
você acreditar que falta algo em você
150
para alcançar aquilo, para dar o retorno
necessário para o desenvolvimento da sua
atuação, porque, afinal de contas o Estado
é um espaço da disputa entre grupos. Fica
parecendo falta de competência dos grupos
no acesso à representação política, que
os grupos não foram capazes de construir
representação suficiente. E você acredita
nisso, você acredita que não tinha
candidatos preparados, que não tinha
candidatos adaptados para este processo.
Então você fica imaginando que tem uma
vaga que nunca vai ser preenchida, e aí
você olha e acha que isso tem a ver com o
racismo, mas na verdade tem a ver também
com modo que se estruturam essas relações
para fazer você imaginar que falta ainda
capacidade para essa população acessar
esse mecanismo. Então a ideia é que parece
que tem uma vaga, mas na verdade há uma
estrutura para você não participar. É como
se eu te oferecesse um emprego para você
varrer a minha rua, mas em seguida, quando
você se coloca à disposição, eu digo que a
qualificação para essa vaga é saber pular
amarelinha; aí você se prepara para pular
amarelinha, mas no mesmo momento eu falo
que é uma amarelinha que não usa somente
os pés, mas as mãos também. Ou seja, eu
vou dando dificuldades que parecem parte do
jogo, mas que no fundo têm a ver com as
estratégias do racismo institucional.
Fundo Baobá - Como podemos classificar a
participação dos habitantes de territórios
negros, territórios empobrecidos,
periféricos, quilombolas no espaço
151
político? E se são candidatos, conseguem
se eleger?
Lúcia Xavier - Eu imagino que a população
tem um modo de operar os processos
políticos, analisando os seus problemas
e a capacidade de diferentes sujeitos a
dar conta desses problemas. Por exemplo,
se eu tenho problemas de transporte na
região onde eu vivo, no meu território,
essa questão se apresenta pra mim como
uma questão importante, que precisa ser
tratada. Então eu vou olhar na constelação
de candidatos aqueles que também olham
para os mesmos problemas que eu. Se
você é igual a mim, esteve nas mesmas
condições, qual é a sua chance de alcançar
essa disputa e trabalhar esse direito?
Então o que eu acho que tem acontecido é
que a população faz uma boa análise e,
inclusive, até vota nos candidatos do
seu próprio território. Mas ela também
aspira outras questões relacionadas
ao seu direito, à força política para
fazer mudanças naquele território e
que se relacionam com o conjunto da
cidade, com estado e com o país. É claro
que tem fisiologismo, tem a compra dos
votos que, nesse sentido, ultrapassa as
dinâmicas da política. Muitos acham que
a população vende o seu voto: claro que
não! Às vezes ela está presa a armadilhas
que estão nas mãos de políticos, como
vaga em escola ou o acesso a serviços
de saúde. Então, de certa maneira, fica
parecendo que ela vendeu o voto, mas não:
é o sistema que opera de maneira que ela
152
não tenha oportunidade de apresentar
novas candidaturas, novos representantes
e novas possibilidades de mudanças. Eu
acho que a população arrisca sempre nessa
análise, escolhe candidaturas que vão
dar conta dos problemas que ela está
elegendo nesse processo: saúde, trabalho,
educação, segurança… e a partir daí
planeja essa candidatura, mesmo que às
vezes pareça conservadora e violenta. Por
que nos parlamentos tem tantos policiais
e pessoas do mundo militar? Porque a
sociedade está achando que esse grupo
pode vir a enfrentar um problema que ela
não consegue, que é a violência armada, o
crime organizado, a violência policial.
A população quer alguém que venha dar
conta de dinâmicas que ela mesma não dá
conta. A Marielle Franco foi uma liderança
política que quando foi eleita, os dois
grupos a estavam analisando corretamente,
o grupo interno e o grupo externo. O grupo
interno, no caso a Favela da Maré, que ela
teve votos lá também, analisava que ela
seria uma boa representante para remover
essas barreiras e garantir direitos. E,
o grupo externo a enxergava com mais
força ainda, porque vinha daquele lugar
e, para além do seu próprio discurso, ela
seria capaz de projetar a sua voz para a
sociedade, à favor daquele grupo. Por isso
eu entendo que quem votou na Marielle não
foi a elite, eu entendo que quem votou
na Marielle tinha o mesmo projeto, tanto
os que moravam na favela,quanto aqueles
que moravam fora. Votaram pensando nas
153
mudanças e nas melhorias para aquele
local, para aquela cidade, para aquele
grupo. Votaram por estas razões, e você
vê que até hoje que ela segue sendo
referência. A partir dela se ampliaram
mais representações políticas que vinham
desse mesmo campo.
Fundo Baobá - O Programa de Aceleração e
Desenvolvimento de Lideranças Femininas
Negras: Marielle Franco, do Fundo Baobá,
surgiu para fomentar lideranças femininas
em espaços de poder. Para você, o que
falta para que as mulheres, principalmente
mulheres negras, vindas de territórios
negros, ocupem esses espaços políticos?
Lúcia Xavier - Eu vou olhar isso de dois
modos: ser uma liderança na sociedade,
promovendo processos de fortalecimento
das mulheres e da população negra,
ampliando os horizontes da democracia
brasileira, melhorando a qualidade de
vida dessa população. Acho que já é uma
possibilidade das mais importantes você
ter gente em vários setores debatendo e
discutindo a questão racial e, ao mesmo
tempo, pontuando a partir daí direitos,
liberdade, democracia. E o outro ponto
tem a ver com as dinâmicas institucionais,
aquelas que também vão estabelecer
direitos que podem melhorar a democracia e
ampliar liberdades. Quando eu vejo alguém
se candidatando a algum cargo público
em um parlamento, eu também penso que
essa pessoa possa dirigir uma unidade
de saúde e uma unidade escolar, pode
154
gerenciar programaticamente secretarias,
ministérios, direção de instituições, o
que é claro, uma disputa complexa, mas
necessária. Mas não é possível olhar só
um lado, é preciso ter vozes fortes na
sociedade. Porque parte das mudanças
produzidas na sociedade têm a ver com a
capacidade dos setores envolvidos nessa
discussão de sensibilizar e convencer
outros setores. Pegando como exemplo a
eleição da Marielle e o lugar de onde
ela veio: ela convenceu outros setores a
apoiar as suas causas, e essa experiência
política de participação da sociedade é
de muita importância. A Marielle, que
estava se candidatando a um cargo público
no parlamento, foi capaz de expressar na
sociedade a necessidade de fazer valer
essa ideia, esse propósito. Ela também
moveu a estrutura da sociedade a pensar
na população negra, para enfrentar a
violência contra essa população, para
pensar nos territórios que essa população
vive. Então um projeto como o Programa de
Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças
Femininas Negras: Marielle Franco deve ter
a capacidade de construir lideranças na
sociedade que estejam em outros setores
além do público, para fazer valer o
direito da população.
Fundo Baobá - Hoje, como tem sido a
atuação da ONG Criola dentro desse
contexto de resiliência comunitária,
recuperação econômica e participação
política?
155
Lúcia Xavier - Nós temos uma experiência
muito importante. Agora, durante a
pandemia da covid-19, nós consultamos
algumas lideranças sobre o que elas
estavam fazendo diante desse processo. Era
importante compreender como elas estavam
enfrentando as violações de direitos,
se elas estavam se solidarizando com o
seu território e com a população deste
território. E a gente descobriu que elas
estavam buscando soluções de todos os
níveis: soluções em torno da prevenção,
dos impactos econômicos, da fome, da
falta de renda. E nós perguntamos se
elas queriam atuar nessa mesma direção,
promovendo direitos humanos, e elas
aceitaram, até porque elas já estavam
atuando nesse campo. Nós queríamos remover
barreiras contra esses direitos, para
que, só alguém vivendo nessa realidade
poderia nos ajudar. Perguntamos se essa
ação de ajuda humanitária não poderia ser
conjugada também com uma ação de direitos,
e elas toparam. Então, as lideranças
que fecharam esta parceria com Criola
promoveram distribuição de alimentos e
também ajudaram no cadastramento para
o auxílio emergencial, identificaram e
foram ajudando as mulheres a removerem
algumas das barreiras que as impediam
de terem acesso ao auxílio. O auxílio
era essencial pois se tratava de algo de
mais longo prazo, em comparação à ajuda
solidária, que teria um fim em algum
momento, tendo em vista que a pandemia
atingiu todo mundo. Acabou ocorrendo que
156
essas mulheres, com apoio das lideranças,
resolveram problemas da documentação,
acionaram serviços públicos que estavam
paralisados, reivindicaram direito à
saúde, à assistência, trabalharam junto
com órgãos de Justiça, como a Defensoria
Pública, para poder alcançar esses
direitos, promoveram a prevenção – não
só a distribuição do material, mas
também garantiram o acesso à informação
correta. Também puderam reunir outras
forças comunitárias para enfrentar o
problema, atuaram junto com jovens,
igrejas, terreiros, coletivos e grupos
comunitários, todos trabalhando nas lógica
e na dinâmica de direitos.
Para quem quiser mais informações
sobre essa iniciativa, é só acessar o
agoraehora.org
157
Projeto de Lei
de criação de
mecanismos de
enfrentamento
ao assédio e
a violência
política
Talíria Petrone e
Áurea Carolina
PROJETO DE LEI N°5295/2020 - Talíria
Petrone e Áurea Carolina
(Sra. Deputada Talíria Petrone)
160
perseguição que, direta ou indiretamente,
afetam as mulheres no exercício da atividade
parlamentar e de funções públicas.
§1º O descumprimento das previsões
contidas no caput deste artigo ensejará
responsabilização nos âmbitos cível e
administrativo, sempre que cabível.
§2º O servidor público que vier a ter ciência
de qualquer ato de assédio ou violência
política contra mulheres, deverá acionar
os mecanismos de fiscalização e controle
interno e externos à instituição, sob pena
de, não o fazendo, ser responsabilizado
por improbidade administrativa. Parágrafo
Terceiro – Será preservada, a pedido, a
identidade do denunciante.
Artigo 3° Deverão ser asseguradas
integralmente às mulheres as devidas
condições para o exercício efetivo dos
seus direitos políticos, cabendo ao poder
público seguir as seguintes diretrizes e
metas:
XIV. Garantir o exercício dos direitos
políticos das mulheres filiadas a partido
político, candidatas, eleitas ou nomeadas;
independente de sua raça, sexualidade e
religiosidade;
II. Desenvolver e implementar políticas
e estratégias públicas para a erradicação
de todas as formas de assédio e violência
política contra as mulheres;
III. Garantir às mulheres o pleno
exercício dos seus direitos políticos de
participar como eleitoras e parlamentares,
161
gerando condições e oportunidades, bem
como destinando recursos que contribuam
para igualdade entre homens e mulheres,
considerando o pertencimento racial,
sexualidade e religiosidade, aplicando-se
a paridade e alternância na representação
política em todos os órgãos e instituições;
IV. Prevenir e punir qualquer forma de
violência política contra as mulheres em
todas as suas expressões interseccionadas com
raça, classe, sexualidade e religiosidade;
V. Proibir e punir qualquer forma de
discriminação de gênero, idade, origem,
raça, sexualidade e religiosidade,
entendida como distinção, exclusão,
desvalorização, recusa ou restrição,
inclusive as realizadas por meio das
redes sociais, que tenha por finalidade
ou como resultado anular ou prejudicar
o reconhecimento, gozo e exercício dos
direitos políticos das mulheres na vida
pública;
VI. Fortalecer os instrumentos
democráticos participativos,
representativos e comunitários, através
dos próprios mecanismos da sociedade civil
organizada para alcançar os objetivos desta
lei
Artigo 4º Para efeitos de aplicação e
interpretação desta Lei, serão adotadas as
seguintes definições:
XIV. Assédio político: entende-se por
assédio político o ato ou o conjunto de
atos de pressão, perseguição ou ameaças,
162
cometidos por uma pessoa ou grupo de pessoas,
diretamente ou através de terceiros, contra
a mulher ou seus familiares, com o propósito
de reduzir, suspender, impedir ou restringir
as funções inerentes ao seu cargo, para
induzi-la ou forçá-la a realizar, contra a
sua vontade, determinada ação ou incorrer em
omissão, no desempenho de suas funções ou no
exercício dos seus direitos;
II. Violência política: entende-se por
violência política as ações, condutas ou
agressões físicas, verbais, psicológicas e
sexuais cometidas por uma pessoa ou grupo de
pessoas, diretamente ou através de terceiros,
contra a mulher ou seus familiares, com o
propósito de reduzir, suspender, impedir
ou restringir as funções inerentes ao seu
cargo, para induzi-la ou forçá-la a realizar,
contra a sua vontade, determinada ação ou
incorrer em omissão, no desempenho de suas
funções ou no exercício dos seus direitos.
Artigo 5° São exemplos de condutas ou
omissões considerados assédio ou violência
política contra as mulheres candidatas,
eleitas, ou nomeadas para o exercício de
função pública, aqueles que:
XIV. Imponham, por estereótipos de
gênero, origem, idade, raça, sexualidade e
religiosidade, a realização de atividades e
tarefas não relacionadas com as funções e
competências do seu cargo;
II. Atribuam responsabilidades que tenham
como resultado a limitação do exercício da
função parlamentar;
163
III. Proporcionem informações falsas,
incorretas ou imprecisas, que conduzam
ao exercício inadequado de suas funções
políticas;
IV. Impeçam, por qualquer meio, que as
mulheres eleitas, titulares ou suplentes,
durante sessões ordinárias ou extraordinárias,
ou qualquer outra atividade que envolva a
tomada de decisões, exerçam o direito de
falar e votar em igualdade de condições com
os homens;
V. Forneçam, ao Tribunal Regional
Eleitoral, informações falsas ou incompletas
acerca da identidade de gênero ou raça da
candidata;
VI. Impeçam ou restrinjam a reintegração
de mulheres ao seu cargo, após o gozo de
licença justificada;
VII. Restrinjam o uso da palavra em sessões
ou reuniões de comissões, solenidades e
outras instâncias inerentes ao exercício
político/públicos previstos nos regulamentos
estabelecidos;
VIII. Imponham sanções injustificadas,
impedindo ou restringindo o exercício dos
direitos políticos;
IX. Apliquem sanções pecuniárias,
descontos arbitrários e ilegais ou retenção
de salários;
X. Discriminem, por razões que se
relacionem a cor/raça, idade, sexualidade,
nível de escolaridade, deficiência, origem,
idioma, religião, ideologia, filiação política
164
ou filosófica, identidade de gênero, estado
civil, cultura, condição econômica, social
ou de saúde, profissão ou ocupação, aparência
física, vestimenta, apelido, ou qualquer
outra, que tenha como objetivo ou resultado
anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo
ou exercício em condições de igualdade de
direitos humanos e liberdades fundamentais
legalmente reconhecidas;
XI. Discriminem a mulher por estar em
estado de gravidez ou de adoção, parto ou,
puerpério, ou período de adaptação do filho
adotado, impedindo ou negando o exercício
do seu mandato e o gozo dos seus direitos
sociais reconhecidos por lei;
XII. Divulguem ou revelem informações
pessoais e privadas de mulheres, com o
objetivo de ofender a sua dignidade e/ou,
contra a sua vontade, obter a renúncia ou
licença do cargo exercido ou postulado;
XIII. Pressionem ou induzam as mulheres
eleitas ou nomeadas a renunciarem ao cargo
exercido;
XIV. Obriguem as mulheres eleitas ou
nomeadas, mediante o uso de força ou
intimidação, a assinar documentos ou
endossar decisões contrárias à sua vontade
e ao interesse público.
Artigo 6º Deverá ser anulado, a requerimento
da vítima, o ato praticado por mulheres em
decorrência de situação de violência.
Artigo 7º Autoriza-se o Poder Executivo
a instituir mecanismos de concepção,
165
implementação, monitoramento e avaliação das
políticas, estratégias e meios de prevenção,
cuidados contra o assédio e a violência
política contra as mulheres, através de
parcerias com órgãos estatais, órgãos de
classe e outras instituições privadas.
Artigo 8º Autoriza-se o Poder Executivo
a instituir ações internas de informação
e conscientização sobre os princípios e
conteúdo da presente lei.
Parágrafo único. Para os fins do disposto no
caput, poderão ser firmados convênios com os
demais entes da federação, órgãos de classe
e outras instituições privadas.
Artigo 9° Denúncias de assédio ou violência
política contra as mulheres poderão ser
apresentadas pela vítima, pelos seus
familiares, ou por qualquer pessoa física
ou jurídica, verbalmente ou por escrito,
perante as autoridades competentes, devendo
ser observado, em todo momento, o desejo e
anuência da vítima em todo processo.
Artigo 10º Em caso de ocorrência de ato
de assédio ou violência política, a vítima
poderá optar por denunciar o agressor pela
via administrativa, perante a instituição a
que pertencer o agressor ou agressora, a fim
de que seja instaurado processo disciplinar
e aplicadas sanções disciplinares, de acordo
com o procedimento estabelecido por lei.
Artigo 11º Esta lei entra em vigor na data
de sua publicação.
166
JUSTIFICATIVA
167
Na esfera pública não é diferente, são
inúmeros os relatos de violência política
sofridos pelas parlamentares negras. As
mulheres negras têm menor acesso a recursos
partidários e enfrentam maiores dificuldades
do que as brancas para se elegerem. Soma-
se a isto os efeitos da divisão sexual
do trabalho, o que muito explica a baixa
participação política das mulheres. O
acúmulo das tarefas domésticas, somadas ao
trabalho remunerado, ao investimento nos
estudos e às tarefas da militância, torna
praticamente impossível para as mulheres se
dedicarem à política partidária, que é hoje
o único canal para se chegar ao legislativo.
Não se garante o direito de votar e
ser votado apenas permitindo que o voto
seja aberto a todos. Nos EUA, os homens
negros adquiriram o direito ao voto em
1870 com a 15ª Emenda Constitucional e
as mulheres, brancas e negras, em 1919 a
partir da 19ª Emenda Constitucional. No
entanto, a população negra dos EUA persistiu
encontrando inúmeros óbices na realidade
para se registrar e votar, especialmente
nos estados do Sul. Apenas 1965, após ampla
campanha liderada por Martin Luther King
Jr., o líder mais proeminente do movimento
pelos direitos civis nos Estados Unidos foi
aprovada a Lei dos Direitos do Voto (Right
to Vote Act, 1965)
Queremos com esta lei seguir no mesmo
caminho, garantindo que as candidaturas de
mulheres, especialmente mulheres negras,
não sejam impedidas por práticas misóginas
e racistas.
168
Os resultados dos últimos pleitos
eleitorais revelaram a enorme força
política das mulheres negras pelo Brasil
afora, com o crescimento de 30% da bancada
de mulheres negras nas últimas eleições.
E, na continuidade dessa movimentação
política de tão grande potência, saudamos
neste 2020 as inúmeras candidaturas de
mulheres negras, indígenas, representantes
dos povos tradicionais quilombolas e de
matriz africana.
O PL proposto é fundamental para
assegurar o exercício dos direitos
políticos das mulheres filiadas a partidos
políticos, candidatas, eleitas ou nomeadas,
independentemente de sua raça, sexualidade
e religiosidade.
169
ORGANIZADORAS
171
AUTORAS
172
Diana Mendes é bacharel em relações
internacionais e em políticas públicas
pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Cofundadora do Movimento Mulheres
Negras Decidem. Atualmente, dedica-
se a aprofundar estudos e leituras em
indicadores sociais e avaliação sistêmica
de projetos.
173
das co-fundadoras do Movimento Mulheres
Negras Decidem.
174
Correlatas, promovida pela Organização
das Nações Unidas em Durban, em 2001,
foi revisora da Declaração de Durban
e do seu Plano de Ação.
175
da Igualdade Racial do Governo do Estado
da Bahia. Em 2017, a direção geral da
Fundação Cultural do Estado da Bahia
(Funceb), entidade vinculada à Secretaria
de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA),
na gestão do governo de Rui Costa do PT.
176
Impresso pela Rettec Artes Gráficas
e Editora, durante uma pandemia e um
governo genocida. Até o momento da
impressão, a sociedade brasileira se
pergunta e quer saber: quem mandou
matar Marielle Franco?