O Autismo - Letra Freudiana 14 (Lacanempdf)
O Autismo - Letra Freudiana 14 (Lacanempdf)
O Autismo - Letra Freudiana 14 (Lacanempdf)
O Autismo
Copyright© 1995 by Livraria e Editora RevinteR Ltda.
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por escrito da Editora.
ISBN 85-7309-051-0
Comissão Responsável:
Pelo Colegiado
Rossely Stramandinoli Matheus Peres
Pelo Grupo de Trabalho Han$
Coordenação:
Maria Cristina Vecino Vidal
Colaboradores:
Joseléa Galvão Omellas
LeilaNeme
Lícia Magno Lopes Pereira
Vera Vinheiro
Zulmira B. de Moraes
Ilustração da Capa: Infiltration Homogen Fiur Cello (1966-85) -Joseph Beuys
(1921-1986)
Capa: Eduardo Chór
R.S.MP.
SUMÁRIO
PARTE 1
AS DIVERSAS ABORDAGENS 1
O Autismo segundo Leo Kanner .... 3
Arlete Garcia Lopes
O Mundo do Encontro: Bruno Bettelheim. Considerações
acercado Autismo Infantil . . ...... . . .... . . . . 9
José Carlos de Souza Lima
Autismo: Uma Fase Inevitável em Margaret Mahler . . . . . 27
Ana Lúcia Z. de Paiva
Autismo, uma Síndrome Patológica Particular - Donald
Meltzer . . . .. . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . ... . 41
Cora R S. Vieira
O Autismo segundo Serge Lebovici 45
Beatriz Siqueira
O Buraco Negro - Frances Tustin ... 53
Myriam R Fernandez
PARTE li
FRANCES TUSTIN: ESCRITO, CARTA, ENTREVISTA 61
A Perpetuação de um Erro 63
Frances Tustin
Tradução: Paloma Vidal
Carta a Oaude Allione . . 81
Tradução: Paloma Vidal
Entrevista .. . .... . . . . . . .. . .... 85
Frances Tustin / Eduardo Vuial
Transcrição e Tradução: Paloma Vidal
PARTE 111
PARTE IV
PARTE V
- As Diversas
Abordagens
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER
Arlete Garcia Lopes
APRESENTAÇÃO
Leo Kanner nasceu na Áustria em 1894 e fez seus estudos de medicina na
Universidade de Berlim, na Alemanha. Iniciou sua carreira em Dakota do Sul,
nos Estados Unidos, por volta dos anos 1924/28.
Teve uma carreira recheada de títulos e funções universitárias, particularmen
te ligadas à psiquiatria infantil. Publicou mais de 200 artigos em revistas e jornais
tanto americanos quanto europeus, dos quais 14 se referem ao autismo, sendo o
primeiro publicado em 1943 e o último em 1972, cobrindo portanto 29 anos de
estudos sobre o tema.
"Distúrbios autísticos do contato afetivo" é o nome do artigo datado de 1943,
onde Leo Kanner nos apresenta uma síndrome que nomeia deAutismo Precoce
Infantil. Neste texto apresenta 11 casos que possuem características que formam
uma síndrome única, não relacionadas até esta data. Diz: "O excepcional, o
patognômico, a desordem fundamental é a inaptidão das crianças para estabelecer
relações normais com as pessoas e a reagir normalmente a situações desde o início
da vida."1
O termo autismo foi introduzido por Bleuler em 1911 para designar a perda
de contato com a realidade, acarretando como conseqüência uma impossibilidade
ou uma grande dificuldade para se comunicar. O próprio 1.eo Kanner discute neste
texto que a síndrome que nomeia se distingue da esquizofrenia adulta ou infantil,
na medida que estas últimas têm como característica um retraimento da partici
pação no mundo a partir de uma relaçãoinicial presente, enquanto que no autismo
precoce infantil "há desde o início uma extrema solidão autística que desdenha,
ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança".2
Cita como significativo o fato de que quase todas as mães de seus pacientes
tenham falado da ausência da antecipação postural da criança ao ser tomada no
colo, em oposição ao que descreve Gesell como experiência universal - o fato
do bebê por volta dos q�atro meses efetuar um ajustamento motor antecipatório,
elevando os ombros quando é erguido ou colocado na mesa.
Temos, então, que a nomeação de Kanner se assenta sobre a palavra precoce,
tratando-se de uma síndrome que descreve os distúrbios decorrentes da entrada
do bebê no mundo.
Oito dos 11 casos descritos por Kanner adquiriram capacidade de falar,
entretanto a linguagem não é utilizada para conversar com outras pessoas, con
sistindo principalmente na nomeação e adjetivação de objetos identificáveis. A
linguagem dessas crianças se caracteriza por uma repetição semelhante à dos
papagaios e as frases são combinações de palavras ouvidas. Donald, um dos casos
descritos, utiliza a palavra yes com a significação do desejo de ser colocado nos
3
4 OAUTISMO
ombros do pai, já que a pronunciou pela primeira vez quando seu pai lhe disse
que se dissesseyes o colocaria sobre seus ombros. Durante muitos meses, Donald
não pôde desatar a palavrayes dessa situação específica e durante muito mais
tempo não foi capaz de utilizá-la como forma geral de assentimento.
Conclui Kanner: "Aparentemente, o sentido de uma palavra toma-se inflexí
vel e só pode ser utilizada, não importa por quem, com a conotação originalmente
adquirida."3
A linguagem destas crianças apresenta fenômenos gramaticais particulares
ocasionados, segundo Kanner, pela ausência da formação espontânea da frase e
pela ecolalia tipo reprodução.Uma dessas particularidades se refere ao uso dos
pronomes. Eles são repetidos como são entendidos sem se adaptarem à modifica
ção da situação. Resulta daí que fala dele mesmo como tu e a pessoa a quem dirige
a frase como eu. Complementa a observação dizendo que inclusive a entonação
da fala original da mãe é repetida - se essa fala foi feita sob a forma de
interrogação,a criança reproduz a frase sob a forma de interrogação.
A alimentação, barulhos fortes e objetos em movimento são descritos como
intrusão do mundo externo. "Todas as atividades e as expressões verbais das
crianças são governadas de maneira rígida e em conformidade ao desejo onipo
tente de solidão e imutabilidade."4
Nos comentários realizados após a descrição daquilo que caracteriza o autis
mo precoce infantil, Kanner aponta para as características dos pais destas crianças,
tais c• ,mo: pais altamente inteligentes, valorização de aspectos obsessionais no
plano familiar, pais e mães pouco carinhosos. Entretanto, conclui o texto dizendo
que o fato da solidão das crianças ocorrer desde o início da vida, toma difícil
atribuir a totalidade do quadro clínico aos tipos de relação precoce das crianças
com os pais. Supõe então que "essas crianças vêm ao mundo com uma inca�aci
dade inata de constituir biologicamente o contato habitual com as pessoas."
Em 1971, 28 anos após a nomeação, Kanner publica um·estudo do destino
destes 11 primeiros casos diagnosticados por ele. Neste texto enfatiza a evolução
dos casos no que se refere à capacidade de adaptação social Três casos adquiriram
uma vida pessoal e social autônoma, tendo dois destes três adquirido a linguagem.
Os outros oito casos erraram por várias instituições psiquiátricas.
Para um melhor esclarecimento de como Kanner descreve e acompanha estes
casos, a apresentação do caso Donald é enriquecedora. Donald é visto pela pri
meira vez em 1938 com cinco anos e um mês. O quadro observado por um período
de duas semanas é assim descrito:
- se limitava a atividades espontâneas;
- se ocupava dessas atividades fazendo movimentos estereotipados com seus
dedos cruzando-os no ar. Balançava a cabeça de um lado ao outro balbuciando
ou zumbindo três notas de uma mesma música. Todos os objetos que podiam ser
rodados prendiam a sua atenção.
A maioria de suas ações eram reproduções da ação original. Tinha inumerá
veis rituais verbais voltando a eles sem parar. Um dos exemplos desses rituais era
o seguinte: quando desejava descer depois do sono da tarde, dizia para a sua mãe:
"Boa (o nome para a mãe) diga: Don, não quer descer?" A mãe obedecia e ele
dizia "Agora diga: de acordo." A mãe o fazia e ele descia. São descritas outras
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER 5
falas com a mesma estrutura verbal, onde ele pede à mãe que lhe demande as
ações que quer realizar tais como: se alimentar, tomar banho etc.6
As palavras de Donald, para Kanner, têm um sentido literalmente específico
e inflexível, sem possibilidade de generalizar ou de transferir uma expressão a um
outro objeto ou a outra situação similar. Não dava atenção às pessoas ao seu redor.
Não demonstrava cólera contra a pessoa que interferia em suas ações, mas contra
a mão ou o pé que estava no seu caminho ou que derrubava seus cubos. Sua mãe
era a única com quem tinha algum contato. Ela passava todo o seu tempo procu
rando meios de mantê-lo brincando com ela.
No plano familiar observava-se que o pai de Donald tinha trinta e três páginas
escritas com muitos detalhes sobre o histórico do seu filho. A mãe é descrita como
calma e capaz, cuja superioridade sobre o marido é reconhecida por este.
Em 1970, Donald, então com 36 anos, trabalhava como caixa de um banco e
morava com seus pais onde tinha uma vida social aceitável. Dos quatro aos oito
anos esteve com um casal de fazendeiros que utilizavam seus comportamentos
estereotipados dando-lhe um objetivo, assim como também na escola estes com
portamentos foram aceitos e ele teve algum progresso escolar. Uma das situações
estereotipadas citadas é a seguinte: ele colecionava pássaros e besouros mortos e
começou a enterrá-los em um cemitério onde sobre uma placa escrevia o nome e
o sobrenome do fazendeiro e entre os dois nomes o tipo de animal que foi
enterrado.
O primeiro texto onde Kanner fez menção ao tratamento do autismo precoce
infantil foi em 1955, portanto só após decorridos 12 anos da nomeação. Mesmo
assim, sua posição é pessimista dizendo encontrar uma melhora aparente e que,
freqüentemente, há um limite no progresso que frustra as esperanças dos pais.
Tem uma posição favorável à psicoterapia como método terapêutico, tanto para
as crianças como para os pais, rejeitando os métodos psiquiátricos.
DISCUSSÃO
mente ler o visível, deve descobrir os segredos. A verdade é muito mais do que
uma leitura, pois do que se trata aí é da estrutura implícita. É no campo da
nominação e da leitura que Kanner parece ficar, ao longo dos seus 29 anos de
estudo do autismo. Seus textos posteriores têm a preocupação de demarcar o
terreno daquilo que nomeia, tentando evitar que se perca numa visão mais geral
de psicose infantil. Sobre a nominação diz Kanner: "A escolha da denominação
Autismo Precoce Infantil foi sugerida pela evidência manifesta dos sintomas
típicos nos dois primeiros anos e o autocentramento solitário, impenetrável ao
menos no início." Isto aponta para o fato de que o autismo se assenta sob a forma
da entrada do bebê no mundo da linguagem, ou seja, a particularidade da sua
posição em relação ao campo do Outro. E de chamar a atenção a grande ênfase
que Kanner dispensa à linguagem, tanto na descrição incial dos casos relatados
quanto no estudo publicado desses mesmos casos, 28 anos depois. A possibilidade
de usar a linguagem para se comunicar foi utilizada como um fator de adaptação
social. Kanner ao descrever o distúrbio da linguagem, observa que as palavras
adquirem um sentido inflexível, fixo, sendo impossível o seu deslizamento na
cadeia discursiva. Sem possibilidade de explicar essa observação, já que os as
pectos apontados nos pais são insuficientes para dar conta da totalidade dos
distúrbios que estão presentes desde o início da vida, cai numa explicação de
incapacidade biológica inata.
Lacan no Seminário As psicoses vai nos apontar o melhor caminho a seguir
dizendo: "A transferência do significado, de tal forma essencial à vida humana,
só é possível em virtude da estrutura do significante. "8 Continua em outro mo
mento. "O que é a comunicação? Quando há resposta! Numa máquina termoelé
trica que emite mensagem e resposta por umfeedback, há comunicação por que
constitui resposta? Há significante?"9 Responde que o essencial da comunicação
enquanto tal é o registro da mensagem, é o certificado da recepção enquanto
significante e não significativo. "Há o uso próprio do significante a partir do
momento que ao nível do receptor, o que importa não é o efeito do conteúdo da
mensagem, ... , mas isto - que no ponto de chegada da mensagem, esta é regis
trada para posterior utilização."10 Portanto, a possibilidade de utilizar a linguagem
como comunicação está articulada à possibilidade de manejar o significante com
fins puramente significantes, ou seja, como um sinal de ausência que remete a
outro sinal.
Donald, ao utilizar as palavras talvez o fizesse mais ao modo de funciona
mento de feedback, onde o essencial da comunicação, que seria a possibilidade
de registro da mensagem como sinal de ausência, não estava à sua disposição. A
palavrayes estava solidamente ligada ao significadose colocar no ombro do pai.
A não instauração da estrutura do significante o impedia de transferir o significacb
da palavrayes para o de assentimento geral.
Neste texto Lacan é bastante radical ao ligar a definição de subjetividade à
estrutura do significante. "O subjetivo aparece no real na medida que supõe que
temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo do
significante. E capaz de servir-se dele, não para significar algo, mas precisamente
para enganar sobre o que se tem de significar".11 Entretanto, esta radicalidade nos
leva ao mesmo ponto de Kanner quando escreveprecoce, nos leva à particulari-
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER 7
dade da posição precoce infantil em relação ao campo do Outro. Dizer que está
fora do campo do Outro é abusivo na medida que esta criança recebe um nome
que atesta a sua existência, e sua existência só pode ser atestada no campo do
Outro. Dizer que está no campo do Outro implica em localizá-la em relação à
estrutura do significante. Quando Donald, no período em que passa com os
fazendeiros, enterra o animal morto, deixando numa placa uma inscrição, nos
aponta a necessidade de que o objeto não esteja, para que o significante possa se
inscrever. Na placa estão escritos o nom� e o sobrenome do fazendeiro e no meio
o que já não está. Neste comportamento repetitivo, descrito como estereotipado,
Donald deixa entrever a tentativa de fazer surgir um sujeito no próprio ato de se
fazer desaparecer. E nesse ato, ato de nomeação, possa se fazer (-1) no campo do
Outro.
NOTAS
1. KAN NER, L. "Autistic Disturbances of Affective Contact" in: Nervous Chi/d, 1 943.
2. Ibidem.
3. Ibidem.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 3. ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense U niver
sitária, 1 987, p. 1 8.
8. LACAN, J. O Seminário, Livro 3, As Psicoses. 2. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1 988, p. 258.
9. Ibidem.
1 O. Ibidem, p. 2 1 4.
1 1. Ibidem, p. 2 1 3.
O M U N DO DO ENCONTRO: BRUNO
BETTELHEIM. CONSI DERAÇÕES ACE RCA DO
AUTISMO INFANTI L
José Carlos de Souza Lima
Esse trabalho tem como objetivo apresentar uma análise das concepções de
Bruno Bettelheim acerca do Autismo Infantil, entidade clínica cuja primeira
descrição se deve a Leo Kanner em 1943. 1 A análise se centra, principalmente,
no livro em que Bettelheim melhor sistematiza suas concepções sobre o tema,
chamadoA fortaleza vazia - o autismo infantil e o nascimento do eu. 2 O instru
mento para essa análise é buscado na teoria de Freud e 1.acan, autores que, apesar
de não terem dedicado nenhum estudo específico ao tema, fornecem elementos
valiosos para repensá-lo criticamente.
(Es) S
� '- - ➔ - - - 0
'.
(o eu) a @ Outro
Esquema L de Lacan. •
9
10 OAUTISMO
mesmo dentro de sua dependência ele seria ativo: ativo na sucção, ativo na atenção
com que observa ao redor etc. Socorre-se da analogia feita por Kohut, para quem
o bebê está tão absorvido em suas atividades quanto "o amante no clímax das
relações sexuais." 12
Para o desenvolvimento do eu essa atividade seria fundamental. Encontrar-se
num estado de vigília calma e ter oportunidade de estar ativo seriam essenciais
para o desenvolvimento normal. O que importa não é a satisfação propriamente
dita, mas sim a possibilidade dela participar ativamente. Conclui então que o bebê,
quando está ativo na mamada ou na observação do mundo, "encontra-se no auge
do contato com a vida."1 3
Mas isso não é tudo, pois se é justamente de uma relação a dois no eixo
imaginário a-a ' que se trata, então tudo o que daí decorre dependerá da resposta
do parceiro imaginário e da maneira como recebe as iniciativas do bebê. Se essa
atividade entãp discreta não recebe resposta ou não é satisfeita, a criança pode se
tomar apática ou rechaçar a mãe.
Como toda relação mãe-bebê se desenvolve em tomo da alimentação, esta
seria a experiência nuclear a partir da qual se desenvolveriam todos os sentimentos
acerca de nós próprios e dos outros, Bettelheim assinala que a experiência inicial
positiva é aquela que se desenvolve num contexto de mutualidade, "de termos
percebido a experiência a despeito do estado de dependência em que nos encon
tramos."14 Deve, pois, haver mutualidade, reciprocidade, relação. Para Bettelheim
- e as analogias não são aleatórias - há correspondência sexual.
Desse modo, trata-se na visão do autor de uma relação imediata e, como já
assinalamos, pré-verbal. Em decorrência, torna-se compreensível que recorra à
Etologia, na sua busca de exemplos no campo do comportamento, que lhe permi
tam compreender o que se passa com o homem. Fora da linguagem, observa-se
o comportamento. Fora da Psicanálise, socorre-se da Etologia. Os etólogos ou os
antropólogos em seus estudos sobre os povos primitivos lhe dão a referência
acadêmica necessária para, com base num raciocínio analógico, compreender o
que ele pensa como pré-verbal ou como uma relação primitiva.
Assim, o surgimento do sujeito, confundido com o eu, está articulado com o
desenvolvimento da capacidade de comunicação. De início, o bebê se mostra
ativo, mas não se comunica. Não existe ainda comunicação bilateral. Logo, o
início do sentimento do eu ou o ego corporal se estabelece com base na discri
minação das sensações, fora da linguagem, no terreno das relações imediatas. O
mundo é pura positividade, pura presença. Nesse terreno, o reconhecimento e a
aceitação da expressão dos sentimentos do bebê pela mãe permite a comunicação.
Do solipsismo inicial se chegaria à experiência dos outros.
A contradição em que cai Bettelheim se mostra por inteiro. Se a criança
inicialmente em tudo depende da mãe, como falar aí de solipsismo primordial?
Se, de início, a criança está na experiência dos outros, em estado de absoluta
dependência, como pensar que ela chega aí depois? Mais ainda: se o mundo é
pura positividade, se o objeto está, então, o que faria a criança abandonar esse
lugar, lançar-se em direção ao Outro?
Se está claro que o campo do Outro preexiste ao sujeito, e que o "sujeito, in
initio, começa no lugar do Outro"15, trata-se de pensar justamente na dialética
12 O AUTISMO
Mais adiante:
"Creio que a causa inicial da alienação é muito mais a correta interpretação
que a criança faz das emoções negativas com as �uais as figuras mais significa
tivas de seu meio ambiente se aproximam dela."3
E ainda:
"A tragédia da criança fadada a tornar-se autista é que tal visão do mundo
está correta para o seu mundo; e isso numa idade mais benigna para contrabalan
çar. Esse fato é a causa de optarem pela posição autista e não pela projeção do
seu eu agressivo, embora isso também faça parte. "35
Para usar uma fórmula conhecida,36 aqui é a vida que vem dar razão aos
fantasmas do sujeito. Não é o imaginário que constitui a realidade do sujeito, e
sim, é a realidade que invadiu o imaginário. No entanto, se o imaginário só pode
ser pensado desde a constituição do campo significante, a realidade terrível e
ameaçadora, imprevisível e inevitável se apresenta aqui com a certeza e a positi
vidade do real. Nesse sentido, a criança pareceria experimentar algo além - ou
aquém -da-própria dialética significante. Nas palavras de Bettelheim, não há uma
realidade boa para contrabalançar essa realidade ameaçadora. O que a ameaça é
a invasão de um absoluto. Não há o jogo significante que, apesar da caracterização
imaginária que lhe dá o autor, possa ser pensado como simples alternância de
presença e ausênciã. No Outro, pensado como tesouro dos significantes, lugar da
linguagem, o sujeito não encontra a estrutura significante mínima que lhe permite
realizar o fort-da. Em conseqüência, parece ficar imersa no puro real, possuída
por um gozo absoluto, excluída da relação ao Outro.
O estádio auto-erótico, cuja formalização se pode acompanhar nos "Três
ensaios sobre a sexualidade",37 e na "Introdução ao narcisismo",38 é marcado pelo
domínio da pulsão de morte. Isso aparece nas formulações de Bettelheim, onde o
Outro é reduzido ao outro, da seguinte maneira: "Ao longo desse livro mantenho
minha convicção de que, em autismo infantil, o agente precipitador é o desejo de
um dos pais de que o filho não existisse. "39
Talvez seja mais apropriado falar aqui de uma ausência de demanda dos pais.
O que Bettelheim refere como sendo "o desejo de que a criança não exista" talvez
deva ser entendido, mais precisamente, como um nada a demandar dela. Se é a
mãe quem vem introduzir a criança na dialética ao Outro, no autista o Outro não
se apresenta. Ou, na linguagem do esquema ótico de Lacan, a criança autista não
teria acesso ao cone de emissão e por isso mesmo não se articularia à estrutura
de ficção significante na medida em que o espelho é conotado ao Outro. Daí o
isolamento e o olhar perdido do autista indicando que o Outro, a quem poderia
formular seu apelo, não está.
Apesar da aproximação que freqüentemente se faz entre auto-erotismo e
autismo, acreditamos que se impõe manter as diferenças entre ambos. O autismo
não é o auto-erotismo. O autismo implica na exclusão do auto-erotismo, no não
atravessamento do estádio do espelho, não se constituindo o corpo enquanto corpo
erógeno, isto é, não inscrição da sexualidade no registro fálico. O autismo seria
então outra estrutura ou, em todo caso, haveria um desarranjo da estrutura. Se o
autista está perdido num gozo não interditado é porque a operação de inscrição
no campo do desejo fracassa. Essa operação supõe a afirmação do significante do
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 17
"Para colocar nossa teoria em prática, temos com efeito, desejado criar um
ambiente muito particular de substituição, no interior do qual as crianças
possam começar a desenvolver uma vida nova."
Bettelheim afirma que esse mundo artificial de substituição só pode ser criado
se for reduzida a distância entre o terapeuta e a criança, entre o mundo de um e
de outro, se o terapeuta vai se juntar a ela aí, numa confrontação direta.
Parece que mais uma vez o equívoco de Bettelheim é reduzir a experiência
a uma dimensão especular a-a ', em que o terapeuta busca a empatia com o autista,
busca colocar-se em seu lugar, identificar-se com ele, descer ao seu inferno, para
juntos empreenderem a viagem da redenção.
Para seu trabalho na escola, Bettelheim busca fundamentação teóric:1nas
observações de Ar...na Freud sobre o tratamento de crianças esquizofrênicas.,., De
acordo com essas observações, o terapeuta deve se oferecer em pessoa para que
a personalidade do paciente se unifique em torno de sua imagem. Deve, pois, se
oferecer como objeto estável e onipresente de forma que a personalidade do
paciente se reintegre.
Colocado o tratamento nesse plano, podemos ver bem os impasse� a que
chega. Comentando as dificuldades de sua equipe, Bettelheim afirma que, se por
um lado a frustração acarreta o retraimento da criança, por outro lado, a falta de
resposta positiva ou o retraimento da criança provocam frustração e sentimentos
de hostilidade por parte de quem convive com ela. Há um aprisionamento imagi
nário, especular, de um ao outro, do qual não se pode escapar dentro de sua�
formulações. O que provoca o quê, nesse espelhismo em que cai o terapeuta? E
a hostilidade do terapeuta, subseqüente a frustração, provocada pela falta de
resposta da criança? Ou é o isolamento da criança que é provocado pela contra
transferência do terapeuta ?
Bem se vê o beco sem saída teórico em que se mete, quando a questão é
colocada nesse registro. No âmbito da relação dual, trabalhando a partir da con
tratransferência, não se tem saída. Jogo de espelhos, campo da identificação
imaginária, a relação aí é uma reação. Estamos num círculo fechado, vicioso, onde
a questão - no tratamento, mas também na etiologia do autismo - é saber o quê
é causa de que ou, na perplexidade de Bettelheim, "o que surgirá primeiro, o ovo
ou a galinha?"50
E interessante observar que a despeito da insistência de Bettelheim sobre a
plenitude primária, sobre o encontro inaugural com uma realidade essencialmente
boa, o real se intromete sub-repticiamente como um verdadeiro umbigo de sua
teoria. Pode-se apreender esse ponto cego de suas formulações justamente quando
se refere à sua clínica. Ei-lo:
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 19
"Até o mutismo das crianças autistas que não falam parecem ser em grande
parte uma defesa contra a dor emocional ou qualquer posterior depleção do eu.
Como várias crianças inicialmente mudas mais tarde disseram, não falavam
porque isso lhes deixaria o cérebro totalmente vazio."51
Que outro recorte tão vivo a experiência clínica poderia lhe dar do que se
trata na linguagem? Sua posição teórica lhe impede de aprender com essas crian
ças que o símbolo é a morte da coisa e que se trata exatamente da não extração
do objeto o que a clínica do autismo revela. O significante é a coisa mesmo
enquanto ausente e é essa ausência que funda a linguagem. A depleção, o esva
ziamento de que se trata na emergência da palavra deve ser entendido como
esvaziamento de gozo.
Pode-se ver até que ponto a teoria em Bettelheim está contra a clínica e as
indicações que esta lhe dá. Para ele, o autismo é resultado de uma realidade
terrível, imprevisível e inevitável, que se impõe repetitivamente, a ponto do sujeito
pensar que esse mundo deftustração é governado por uma lei insensível. Diante
dessa realidade terrível, o sujeito não pode fazer mais do que se perder em gestos
repetidos, meneios, rituais etc. Todavia, quando Bettelheim fala em lei insensível,
repetitiva, mais do que da realidade, parece tratar-se da incidência do real. Por
que não pensar num espaço fora da diaiética da simbolização, opaco, ponto de
puro real ?
Nesse pont9 opaco não há trama significante; não há o deslizamento próprio
da linguagem. E um ponto de real, sempre o mesmo, sem nenhuma marca de
equivocidade. Na ausência do Outro, o sujeito está aí inteiramente no domínio da
pulsão de morte. Não há constituição do corpo simbólico; não há perda do corpo
real, não há alienação. Preso no campo do sentido, prisioneiro de sua própria
teoria, Bettelheim fala de uma sensibilidade ferida de morte.
A posição de Bettelheim é a do pedagogo. Tem uma teoria e com ela se
defronta com a clínica. A teoria lhe fornece um anteparo (significante) contra o
horror provocado pelo real.
Munido de um saber previamente constituído, Bettelheim não tem como dar
conta das indicações sutis que a clínica lhe fornece. Para usar as fórmulas de
Lacan,52 trata-se do saber universitário já constituído e que Bettelheim procura
aplicar a um objeto, o autista, também previamente constituído, ficando encoberta
a posição de mestria, S 1, que ele ocupa.
S2 -+ a
sT ,S'
Talvez, em nenhum outro lugar se possa apreender com maior clareza que se
trata do discurso universitário, do que na entrevista final com Joey, o menino
mecânico, realizada durante uma visita, tempos depois de sua alta.53 E ali onde o
ex-interno da Orthogenic School parece demonstrar uma teoria aprendida longa
e exaustivamente. Ele é capturado nesse discurso e dá perfeita conta dis�o. Dá
respostas que encantam o mestre pois confirmam suas formulações. Vejamos, por
exemplo, como se coloca o ideal de autonomia nesse trecho do diálogo:
20 O AUTISMO
8.8.: - E como foi sua vida desde que vare nos deixou?
Joey: - Oh, foi muito diferente e, em certos momentos, começar vida nova e ter
que fazer coisas por mim mesmo me deixava muito ansioso. Por exemplo,
lembro que eu sentia que precisava de alguém que me ajudasse a arranjar
amigos e agora arranjo sozinho.
No centro mesmo da teoria de Freud está Das Ding, a coisa. A coisa é uma
alteridade radical que não é capturada na �lteridade do pequeno outro, a '. Aí se
articula o gozo como barrado, impossível. E q vazio em tomo do qual se articulam
os significantes. Lacan, no Seminário da Etica, 54 coloca esse vazio no cerne
mesmo do ser. Assinala que o desejo é o ser do sujeito, pois o sujeito não tem
outro ser que afalta a ser, não tem outro ser que o desejo, metonímia de seu ser.
Lacan situa o gozo em oposição ao desejo, mostrando que o que sustenta o
último são as barreiras que se interpõem entre o sujeito e o que poderia ser seu
gozo.
Desde Freud, a ética do desejo está vinculada com a figura do pai. No mito
freudiano do Édipo, o pai é quem presentifica a proibição do incesto e, portanto,
do gozo do que Lacan chama a coisa. Lacan acompanha Freud na tese de que o
vínculo social civilizado está ligado à questão do pai, isto é, da Lei, sem a qual
não existe desejo. A lei, ao regular a distância do sujeito à coisa, proíbe o gozo,
sendo essa proibição a condição da fala.
Assim, o objeto absoluto falta. E é na medida em que o objeto está perdido
que o desejo do sujeito é sempre metonímico, desejo de outra coisa, fugidio, que
não se apreende nas malhas do simbólico. Daí que a ética, tal como Lacan a situa
em Freud, está articulada ao registro do real, do não simbolizável, na categoria
do impossível. Para Lacan, a questão não é de integração ou de adaptação mas,
ao contrário, de fazer valer a divisão do sujeito e o impossível do objeto. Isso
significa que na psicanálise não se trata de adaptação ao todo, mas sim do
sacrifício do nada. Lacan constrói uma clínica do sacrifício do ser falante ao gozo.
As teses fundamentais sobre a ética em Freud, que Lacan destaca, podem ser
assim resumidas:
NOTAS
1 . KANNER, L. "Autistic Disturbances of Affective Contact." in: Nervous Chi/d, 1 943, 2:
2 1 7-250 .
2. BETTELH EIM, B. A fortaleza vazia. São Paulo, Livraria Martins Fontes Ed., 1 987. Não
aparece na tradução o subtítulo da edição original americana.
3. LACAN, J. O Seminário, Livro 2 O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 985. Para u m maior aprofundamento dessa
questão, remetemos aos capítulos reunidos sob o título, "Para além do imagi
nário, o simbólico ou do pequeno ao grande Outro."
4. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 3.
5. LACAN, J. O seminário, Livro 2 O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.
op. cit.
6. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 4.
7. Ibidem, p. 5.
8. Ibidem, p. 1 5.
9. É interessante observar que, numa abordagem que se pretende psicanalítica ou de
"orientação psicanalítica," Freud não esteja presente na bibliografia do autor.
1 0. BETTELH EIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 6.
1 1 . FREUD, S. Obras Completas, Volume I, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1 967, p.
1 03 5- 1 045. Freud assinala que "cada instinto é uma magnitude de atividade",
não podendo ser a passividade senão u ma finalidade da pulsão.
24 O AUTISMO
H ISTÓRIA B IOGRÁFICA
Margaret Schõnberger Mahler (1897 - 1985) nasceu em Sopron, na Hungria.
Filha de Gusztav Schõnberger, médico-pediatra de formação vienense, e matemá
tico. Cria com o pai uma cumplicidade intelectual que a coloca no caminho da
ciência desde Õ início de sua formação. O interesse pela psicanálise emerge com
sua chegada a Budapeste (1913), quando toma conhecimento do pensamento e
movimento psicanalíticos. Sandor Ferenczi terá posiçãoprínceps no aconselha
mento de toda a sua formação, embora jamais concordasse em ser seu analista.
A Sociedade de Budapeste fundada por Ferenczi em 1913 era bastante ativa,
e Margaret S. Mahler muito jovem para poder participar de suas reuniões. Ávida
de saber que era, lia com Alice Kovacs, às escondidas, as traduções feitas por
Ferenczi das lições de Freud na Clark University e dos "Três Ensaios para uma
Teoria da Sexualidade". Quanto aos jornais, revistas e artigos de outros teóricos
do movimento, esta leitura era reservada apenas aos membros da Sociedade.
Influenciada pelos difíceis tempos de guerra, Mahler decide cursar medicina
na Universidade de Budapeste (1917), e abandona outras inclinações como a
matemática, a escultura e a antropologia. Ainda não havia iniciado sua formação
em psicanálise, mas não ignorava os três grandes nomes que dominavam a psi
quiatria de língua alemã: Wagner-Jaureg em Viena, Emil Kraepelin em München,
e Paul Eugen Bleuler em Zürich. Os analistas de então circulavam nestes serviços
especializados a fim de aprimorarem sua formação clínica. Destacava-se o serviço
de Julius Wagner von Jaureg (1857-1940), professor de psiquiatria clínica desde
1903, dedicado ao tratamento de doentes com problemas mentais crônicos e &-li
Freud, que fora seu discípulo, proferia suas Conferências. Dentre seus assistentes
estavam futuros analistas como: H. Numberg, V. Tausk, H. Hartman e H. Deutsch,
esta última, uma das raras mulheres a cursar medicina na universidade de Viena.
O período do pós-guerra na Hungria fez com que Mahler decidisse mudar-se
para Munique, e ali terminar seus estudos médicos (1919). Escolhe como espe
cialidade a pediatria, campo bastante avançado no plano da prevenção, das pes
quisas e das terapêuticas. Apesar do seu bom desempenho, Mahler é levada a sair
de Munique, tanto pelo alto custo de vida como, e principalmente, pela crescente
corrente anti-semita. Na primavera de 1920, encontra-se na Universidade de Iéna.
Ali, é aceita como assistente do chefe do serviço de pediatria, o Dr. Jussuf Ibrahim,
ocupa-se de crianças que sofrem de meritismo e de espasmo do piloro, e percebe
a importância dos fatores emocionais na causa destas afecções. Porém, novamente
perseguida por pressões anti-semitas, vai para a Universidade de Heidelberg a fim
27
28 OAUTISMO
de terminar seu último semestre do curso de medicina. Fica fascinada pelo ensino
do psiquiatra e filósofo Karl Jaspers, do sociólogo Karl Manheim, e de Max
Weber, a quem assistira no ano anterior em Munique. Não apenas Margaret
Mahler se deixou influenciar pelo ensino de Jaspers, mas muitos outros analistas
da época, como Ernst Kriss, que o cita inúmeras vezes na sua obra, e Lagache,
na França, que insiste sobre a importância do texto básico de Jaspers para a
compreensão da psicopatologia.
Mahler retorna a lena para os exames finais; termina o curso em 1922, com
excelência, o que lhe dá o direito do exercício na Alemanha. Porém, na impossi
bilidade de obter a nacionalidade alemã, retorna a Viena. Ali, Mahler se vê
obrigada a requerer o direito de exercício da profissão e, conseqüentemente, a
nacionalização austríaca. Retorna à Universidade para cumprir os exames com
plementares em pediatria, e ao mesmo tempo busca aproximação com os psica
nalistas vienenses, na esperança de avizinhar-se de Freud; trabalha na clínica de
Von Pirquet, e no Instituto de Leopold Moll, onde começa a difundir-se a impor
tância da presença materna para o tratamento de bebês e crianças doentes. A
relação mãe-filho alcança status para ser pesquisada, as mães passam a ser admi
tidas com seus filhos nos hospitais infantis, e vários trabalhos são desenvolvidos
sobre este tema. :Mahler não só trntava como fazia viagens de acompanhamento
para o tratamento de crianças tuberculosas dos centros de pediatria. Foi acompa
nhando Auguste Aichorn (pedagogo) e assistindo às terapias empregadas por este,
com as crianças e adolescentes, que Mahler se definiu pelo desejo de uma forma
ção psicanalítica. Aichorn a apresenta a Abraham, e a aproxima dos analistas
vienenses.
Em 22-23, Helen Deutsch, então responsável pela seleção de candidatos para
formação analítica, inclui Mahler na lista de espera, a pedido de Ferenczi. Em 26,
Mahler pede análise a Fedem, que lhe responde negativamente. Crescem as
divergências entre Freud e Ferenczi, e Mahler, ao tomar partido deste último,
acentua as reticências que já marcavam seu pedido de entrada para a Sociedade.
Ser partidária do grupo de Budapeste era ser contrária ao grupo de Viena.
Neste mesmo ano inicia clínica privada em pediatria e psiquiatria social. Ao
contrário do efeito causado pelo "O Eu e o Isso" (1923) nos analistas, sobre
Mahler este texto parece não ter exercido maiores influências. Neste período
seguia os ensinamentos de Ferenczi e de Aichorn, mais preocupados pelas técni
cas, relações e resultados terapêuticos, do que pela lógica do inconsciente.
Ainda assim consegue inscrever-se como candidata à formação no Instituto
de Psicanálise, e começa análise com Helen Deutsch. Na biografia feita por
Stepanski, Mahler afirma ter sofrido muito, desde as primeiras sessões; logo
Deutsch lhe revela sua "libido viscosa"; reduz o número de suas sessões, e diminui
o tempo de atendimento. Sente-se profundamente maltratada. Ano e meio de
análise, e Deutsch a declara "inanalisável". Anna Freud lhe escreve para informar
que não mais se beneficia do stat us de candidata do Instituto, e lhe sugere uma
terapia, embora a própria Deutsch lhe tivesse dito frente a frente, que não espe
rasse grande coisa. Mahler conta ainda que mesmo tentando exaustivamente, não
mais conseguiu falar com sua analista, e interpreta suas atitudes como reações
contratransferenciais, não analisadas, instigadas pela dimensão homossexual da
AUTISMO: U MA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 29
DESENVOLVIMENTO DA TEORIA
Mahler trabalhou fundamentalmente com a hipótese de que as psicoses in
fantis podem ser compreendidas como distorções psicopatológicas de fases nor
mais do desenvolvimento do ego e de suas funções no seio da primeira relação
mãe-filho. Com essa hipótese satisfaz tanto a teoria da psicanálise à época, que
postulava continuidade entre os desenvolvimentos normal e patológico, como
introduz os avanços das teorias que continuavam a proliferar, com a noção de
distorção, aludindo à deformação incidente no desenvolvimento normal. Sua
originalidade reside no fato de ter executado uma primeira tentativa de teorização
psicanalítica da psicose infantil precoce e suas diversas manifestações clínicas, e
ainda de ter proposto nova posição teórica, na interseção da Psicologia do Ego
com os conceitos de introjeção e projeção da teoria kleiniana.
Atendo-se à interação mãe-filho, enfatiza as possibilidades intrapsíquicas do
bebê sujeitas a patologias precoces que impediriam o desenvolvimento normal.
AUTISMO: U MA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 31
b) Fase Simbiótica Normal - estende-se dos três meses até um ano de vida.
Caracteriza-se pelo estado de indiferenciação e fusão com a mãe, onde eu e não-eu
se misturam, e o interior apenas se diferencia do exterior gradualmente. A barreira
de proteção se transforma numa fronteira comum do meio simbiótico interior que
faz rejeitar tudo o que é desagradável. Embora do ponto de vista corporal a boca
desempenhe um papel predominante, são os traços de percepção e memória que
permitem sintetizar e integrar os estímulos externos.
O termo simbiose vem designar uma situação intrapsíquica e não um com
portamento, logo "marca a capacidade filogenética fundamental do ser humano
em investir a mãe numa vaga unidade dual que constitui a bas,e primeira sobre a
1
qual se edificarão todas as relações humanas subseqüentes." E durante esta fase
que o ego ultrapassa seu estado rudimentar e adquire o estatuto de corporal.
Mahler se manteve numa posição de prudência em relação à descrição do
estado psíquico do neonatal uma vez que o período pré-verbal apenas permitia
inferências, e aceitou a teoria segundo a qual inicialmente o bebê aprende por
condicionamento, para a partir dos três meses proceder à aprendizagem por
experiência, quando então os traços mnêmicos estão presentes no aparelho psí
quico. Apenas aos poucos os traços mnêmicos se diferenciam do mundo objetal.
E uma fase marcada por "vaga consciência do objeto de satisfação", sendo forte
ainda a indistinção dos limites de si e de outrem. São fundamentais as experiências
de percepção através do contato corporal, on9e o rosto humano e o contato "olhos
nos olhos" são os principais organizadores. E então, por volta dos três meses que
o objeto começa a ser percebido como parcial e saciador de necessidades. A
simbiose é "a fusão psicossomática onipotente, alucinatória ou delirante da repre
sentação da mãe, e a ilusão delirante de uma fronteira comum a dois indivíduos
real e psíquicamente distintos."2 A mãe ainda faz parte do self da criança. "A
simbiose reenvia a um estado de interdependência sociobiológica entre o bebê de
um a cinco meses e sua mãe, um estado de ralação pré-objetal e de satisfação das
necessidades na qual as representações intrapsíquicas do self e da mãe não estão
ainda diferenciadas."3 Os cuidados maternos são interpretados como simbiose
social, a partir da qual se inicia o processo de diferenciação estrutural que desem
boca na conduta adaptativa do indivíduo. É o início da estruturação do eu e ao
mesmo tempo do objeto simbiótico. O "estado simbiótico ótimo é atingido pela
estimulação do investimento dirigido para o exterior."4
PATOLOGIAS CLÍNICAS
TRATAMENTO
Para Mahler não há suposição de estrutura, uma vez que a idéia de desenvol
vimento rege a cura. O analista deve entregar-se e oferecer-se como objeto de
amor real para que a criança possa se desenvolver de períodos mais arcaicos até
períodos mais avançados. O tratamento pode ser comparado com o galgar um
edifício partindo do primeiro até chegar ao último andar, lugar onde a criança
estaria curada. O que determinaria a passagem de um andar ao outro seria a
cautela, a compreensão, a fé do analista. Este deve compensar o que foi chamado
pela autora de "relações de objeto psicóticas" caracterizadas pela privação de
desenvolvimento do ego que interferem no sistema perceptivo impedindo a dis
criminação eu, não-eu, processo que detém a imagem do self e o reconhecimento
do objeto como externo. A fé de que Mahier dá testemunho recobre o ideal de
amor humano. O analista deve oferecer um objeto de amor para proporcionar a
identificação parcial com o mesmo. O objeto deve possuir uma energia libidinal
neutralizada que possibilite sua utilização pelo ego.
No caso Stanley, Mahler expõe com detalhes a implicação clínica de sua tese:
uma conceitualização que se nutre da Psicologia do Ego só pode dirigir a cura a
partir do aparelho de percepção e do déficit de adaptação à realidade. A introjeção
e a projeção são os mecanismos postulados para as relações do ego com o mundo
externo. O recurso desesperado a qualquer objeto que se apresente no campo da
percepção visual vem substituir o desconhecimento sistemático de um discurso
inconsciente. Não há noção da estrutura do desejo do Outro e, paradoxalmente, o
analista reproduz a posição autista: só resta introduzir estímulos para despertar
uma percepção rniticamente baseada nos aparelhos fisiológicos. Sua cautela, fruto
da experiência clínica, responde à insuportável presença que o desejo do Outro
provoca na criança, o que pode conduzir a uma psicose franca. A responsabilidade
na cura de uma criança psicótica não autoriza, porém, a abolir a dimensão sim
bólica da palavra, colocando em seu lugar, o ruído de um ritmo ou de uma música.
Há um efeito permanente de obturação que se patentiza na cura de Stanley.
36 O AUTISMO
CONCLUSÃO
Mahler trabalha em torno do conceito de identificação como fundamental,
posição com a qual devemos concordar. Porém, a identificação de que se trata
sendo com o "objeto de amor humano", como ela o descreve na suposição de uma
relação adaptada e bem encaixada entre mãe-filho, desconhece a noção dos 3
registros = Imaginário -Simbólico - Real, fixando-se apenas no primeiro deles.
Com seu registro do Real, Lacan nos indica o campo do inadaptável, do insondá
•.
vel, do impossível, apontando a ,um lugar no qual nenhum saber, objeto ou
significante poderá adequar-se. E do buraco Real no campo do Outro que a
primeira identificação vem dar resposta, no sentido de um enlaçamento.
Também para a questão do autismo é da privação primordial que se trata.
Uma pergunta ainda não formulada da existência no campo do Outro a partir do
trauma, entendida como algo que entra na estrutura subjetiva como furo, buraco
radical, em torno do qual a estrutura deverá edificar-se. Aí tem lugar a angústia,
que se apresenta como uma resposta possível ao real impossível, uma angústia
sinal, como diria Freud, que anuncia um movimento de retorno do trauma inicial
diante do qual o sujeito desaparece, sucumbe, na ausência de significante que
possa escrever o trauma: real que ex-siste a toda relação do sujeito ao significante.
A angústia vem assinalar que no interior do corpo ex-siste algo que atormenta o
sujeito, e que é anterior à questão de saber o que é a relação do sujeito com o
desejo do Outro. Intervém a metáfora paterna, cuja função é primordialmente de
simbolização, e portanto, de barra ao gozo. O sujeito vem ao mundo num estado
de pré-maturidade, é um corpo biológico despedaçado a serviço da mãe. No Outro,
sede dos significantes, é representado, e neste lugar deve construir sua identidade.
O simbólico toma corpo, habita o corpo, como corpo significante, nomeado.
Este ponto originário que desde o início a primeira identificação vem respon
der, fazer borda afetada pela angústia, falta à teorização de Mahler, e para tam
ponar esta falta ela supõe o autismo como fase inicial do desenvolvimento,
imaginarizando a primeira relação mãe-filho. A consistência imaginária tem valor
fundamental, mas como borda para a identificação e não como formadora: da
ex-sistência à consistência. A autora mergulha no imaginário por um déficit
simbólico, acompanha sua idealizada analista, Helen Deutsch, na concepção da
AUTISMO: UMA FASE I NEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 39
NOTAS
1 . MAHLER, M. S. As psicoses infantis e outros estudos. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas
Sul Ltda., 1 983.
2. Ibidem.
3. Ibidem.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Ibidem.
9. Ibidem.
1 0. Ibidem.
1 1 . Ibidem.
40 OAUTISMO
BIBLIOGRAFIA
1. LACAN, J. Angústia, Seminário Inédito.
2. -. "Conferência de Genebra." in: lntervenciones y Textos. Buenos Aires, n. 2, 1 957.
3. -. Le Seminaire, Livre Ili, Les Psychoses. Paris, Ed. Du Seuil, 1 98 1 .
4. MAHLER, M. S. Simbioses Humanas. Las Vicissitudes de la lndividuación. México,
Editorial Joaquim Mortiz, 1 972.
5. PUIG-VERGÉS, N., MAHLER, M. S. Une vie, une oeuvre. Paris, Ed. Epi, 1 993.
6. STEPANSKI. The Memoirs of Margaret Mahler. New York, The Press, P. E. Ed., 1 988.
7. VIDAL, E. Seminário sobre a identificação, anotação de aulas na Escola Letra Freudia
na, 1 994.
AUTISMO, U MA SÍNDROME PATOLÓGICA
PARTICU LAR: DONALD MELTZER
Cora R. S. Vieira
não se possam dizer lógicas, não cabem num puro e simples desenvolvimentismo.
Para Meltzer o tratamento leva a uma "melhoria de estrutura mental", sendo o
caminho- o que permite uma "melhor organização narcisista." É portanto na
"direção da cura", algo na linha de uma construção, no campo da transferência,
que uma "melhora" se dará.
A proposta de Meltzer seria a existência de um self centrado, ao qual vão
sendo acrescidas as dimensões em termos de desenvolvimento. Sua concepção da
constituição do tempo e do espaço é ligada à percepção. Ele se defronta com esta
questão, mas propõe uma solução com o modelo clássico da esfera, cujo diâmetro
varia em sentido crescente, ficando aprisionado na dimensão imaginária do den
tro/fora.
Outra é a solução introduzida por Lacan. Topologia de corte e borda que
subordina o imaginário à conjunção de simbólico e real.
Que direção da cura o próprio Meltzer extrai deste pressuposto? Se trataria
de promover uma extensão do selfe para isto o terapeuta se oferece como função
egóica: emprestar a atenção, função suposta faltante na criança autista, tendo como
consequência o impasse de constituir alternadamente, ora o lugar de escravo na
relação (funcionando "como servente ou subordinado"), ora o lugar de senhor da
ação (" ... decidir que ação deve efetuar-se e tomar desta maneira a responsabili
dade.")8
Apresenta sua clínica visando "demonstrar como o espírito e o corpo do
terapeuta chegaram progressivamente a possuir um conjunto de qualidades e de
funções que poderiam reconstituir as capacidades mentais dispersas da criança."9
Esse impasse se sustenta no preconceito de uma correlação entre o autista, e
o recém-nascido em seu primeiro mês de vida. Disto deduz-se que o autista
AUTISMO, UMA SÍNDROME PATOLÓGICA PARTICULAR: DONALD MELTZER 43
NOTAS
1 . MELTZER, D., BREMNER, )., HOXTER, S., WEDDEL, D., WITTENBERG, 1. Explorations dans
/e monde de /e autisme. Editora Payot, p. 22.
44
O AUTISMO
2. Ibidem, p. 23.
3. Ibid em, p. 23.
4. Ibide m, p. 22.
5. Ibid em, p. 28.
6. Ibidem, p. 3 7.
7. Ibidem, p. 236.
8. Ibidem, p. 29.
9. Ibidem, p. 49.
1 0. Ibidem, p. 30.
1 1 . Ibidem, p. 48.
1 2. Ibidem, p. 55.
1 3. Ibidem, p. 59.
1 4. Ibid em, p. 53.
1 5. Ibid em, p. 53.
1 6. Ibid em, p. 54.
1 7. Ibid em, p. 5 1 .
1 8. Ibid em, p. 47.
1 9. Ibid em, p. 55.
O AUTISMO SEC UNDO SERCE LEBOVICI
Beatriz Siqueira
trabalho sobre os fantasmas da infância, insistem num processo evolutivo qu� eles
denominaram "edipificação", isto é, o estádio que precede o Complexo de Edipo
genital e onde a criança imagina que os desejos de seus pais são os mesmos que
os seus próprios: desejo de incorporação oral e anal. A relação ambivalente com
a mãe leva a criança a considerar o pai somente como uma proteção contra a
perigosa imagem materna. Esta "edipificação" está bem longe de ser uma orga
nização verdadeiramente edípica, porém, na criança psicótica, a estrutura edípica
encontra-se bloqueada nos primeiros estádios da "edipificação." A elaboração do
eu psicótico é marcada pela utilização excessiva da identificação projetiva e de
mecanismos de defesa. O sistema defensivo da criança psicótica interfere em suas
funções autônomas. A linguagem perde sua função semântica e simbólica, uma
vez que o desenvolvimento da linguagem está ligado à evolução da relação com
o outro. A linguagem, portanto, é um aspecto fundamental a ser estudado mais
detalhadamente em relação às crianças psicóticas, pois pode haver um contraste
entre a precocidade do vocabulário e a sua utilização numa construção sintática.
A confusão entre süjeito e objeto se revela, muitas vezes, através da má utilização
dos pronomes pessoais. A impossibilidade da criança psicótica de se comunicar
fora de seu mundo fantasmático é um elemento de diagnóstico importante. O
psicanalista, através de sua capacidade de identificação, de empatia e de insight ,
deve tentar restabelecer o diálogo. As distorções apresentadas pela criança quanto
à apreensão do real e da percepção revelam sua significação no contexto da relação
analítica. A transferência irá fornecer o enquadre ideal para o estudo detalhado
das relações objetais da criança psicótica. Lebovici afirma que a personalidade do
analista tem um papel relevante no processo de análise e confessa ter sido influen
ciado, nesse particular, pelos trabalhos de Maurice Bouvet, mais especificamente
seu conceito da variação constante da "distância psicológica ótima" que deve
existir entre psicanalista e paciente.
Lebovici acredita que a análise de crianças psicóticas é não somente possível
como também preciosa, uma vez que fornece um campo considerável de pesquisa
sobre a gênese das psicoses em geral. Ele conclui que a criança autista apresenta
uma relação psicótica decorrente da não-organização de uma neurose infantil;
articula o autismo a um deficit mental e a outras estruturas psicopatológicas.
Lebovici coloca em evidência os aspectos precoces desta doença, e manifesta
interesse pelas teorias do sistema familiar que dão importância ao não-dito, aos
"segredos de fanu1ia" que são transmitidos entre gerações e que podem originar
uma psicose.
Lebovici afirma que a aplicação de uma psicoterapia psicanalítica nos casos
de autismo e psicose pode conduzir a uma transformação do funcionamento
mental e a uma neurotização, e propõe essa passagem a um funcionamento
neurótico como sendo uma tentativa de cura da psicose. A neurotização, portanto,
pode ser considerada como "um dos elementos do processo de movimentação dos
conflitos e de uma melhor organização destes sob o ângulo da eficiência do
funcionamento mental..."
As crianças que foram diagnosticadas como autistas, no entanto, apresentaram
uma evolução menos favorável do que as demais psicóticas, embora tenham se
beneficiado sempre de uma "desmutização relativamente precoce." A evolução
48 OAUTISMO
Uma de suas histórias foi repetida por ele ao longo de quase toda a sua análise.
A história era intitulada "A face mágica" (Le visage magique): "Esta é a face
mágica. Esta face não tem corpo, somente longas antenas... ela é metade homem
e metade mulher ... esta face pode fazer tudo o que quiser, ela pode ferir quem
quiser; ela pode ressucitar os mortos... esta face é a metade de tudo ... ela mora
num sítio com as pessoas que você pode ver nos seus sonhos... ela quer se tomar
uma pessoa normal..."
McDougall considera que "A face mágica" expressa o caráter bissexual de
Sammy, sua angústia de castração e seu medo de desintegração. Enquanto cresce
a angústia de Sammy, os detalhes que ele vai acrescentando em suas histórias vão
se relacionando aos objetos parciais aterradores, aparentando uma fusão entre o
objeto destruído e o objeto destruidor.
As histórias de Sammy ocasionalmente apresentavam rimas e evidenciavam
um mundo fantasmático �ico e complexo, constituindo uma escrita ao mesmo
tempo patética e poética. E interessante notar as recorrências dos personagens e
das situações, como se as histórias constituíssem episódios de um único folhetim.
Durante as sessões, alguns comportamentos se repetiam, como o de pedir um
copo de leite no início de todas as sessões, o que era interpretado por McDougall
como uma evidência de seus fantasmas orais. A analista, durante as sessões,
percebeu que a imagem que Sammy tinha dele mesmo estava profundamente
misturada aos fantasmas orais da mãe; ele tinha impulsos descontrolados e deses
perados de realizar todos os desejos inconscientes dela.
Sammy recebe de Lebovici o diagnóstico de "criança psicótica pós-autista."
Lebovici vê a análise de Sammy como sendo particularmente rica de produções
fantasmáticas que revelam alguns aspectos fundamentais da gênese do pensamen
to psicótico, e afirma que os fantasmas e a angústia de Sammy são típicos da
posição esquizo-paranóide teorizada por Melanie Klein. A parte do eu carregada
de libido é mantida no fantasma ligada ao bom objeto materno, e a parte do eu
carregada de agressividade é projetada em direção ao objeto mau. Sammy ilus
traria bem o mecanismo de identificação projetiva.
Lebovici afirma que Sammy conseguiu chegar a uma cura apesar de ter
interrompido o processo de análise, após 8 meses de trabalho, devido a seu retomo
para os Estados Unidos. Lebovici considera que, em casos como o de Sammy, a
criação de uma estrutura psicótica na personalidade é o único meio de haver uma
relação da criança com seu mundo, e de evitar os perigos para a psiquê de uma
explosão catastrófica, que acarretaria um processo de desintegração e de aniqui
lação.
O caso Sammy foi publicado em 1960, em Paris, sob o título Un cas de
psychose infantile , e contou com a presença do próprio Sammy na data da publi
cação. Este caso foi utilizado por Lebovici num seminário por ele ministrado no
Instituto Psicanalítico de Paris.
tico, está marcado pela linguagem, mas não está no discurso. Ele não faz um
endereçamento ao Outro, há um distúrbio na esfera da demanda, e ele fica petri
ficado no nível de um real dificilmente simbolizável. Sem a constituição do par
St - S2 só há gozo autístico, com a forclusão do Outro, uma vez que o Outro, para
a criança autista, se reduz a uma ausência.
A criança autista, não marcada no corpo pelo desejo do Outro, fica excluída
da estrutura da demanda. A forclusão do Nome-do-Pai determina uma abolição
do simbólico e, portanto, um corpo excluído de significantes. No autismo está
anulada toda a dimensão de endereço e mesmo de presença. A abolição da
demanda e do desejo faz do Outro da linguagem um outro morto.
Hector Yankelevich diz que o que a mãe pode renegar é o laço que já tem
com seu filho, e a substância desse laço é paterna. O pod�r de toda a mãe seria o
de dar sentido ao traço paterno. E Yankelevich continua: "E por uma onomatopéia
insensata que se entra na estrutura, e onomatopéia, em grego, significa criação de
nomes. E no movimento dessas criações, é do Nome-do-Pai que se trata." As
intervenções do analista, portanto, têm que ter uma eficácia simbólica que opere
no real do autismo.
Rosine Lefort afirma que a cura do autismo só pode ter um efeito fundamen
tal: é a irrupção da palavra. Sammy pede para sua analista escrever suas paiavras,
numa tentativa febril de aprisioná-las num papel. Sarnrny elabora um texto em
suas histórias, um texto onomatopaico, um texto com urna materialidade de letra,
e é como letra, nos diz Lacan, que o texto participa do laço social.
Rosine Lefort propõe, corno tratamento possível para a criança autista, a
construção de urna metáfora delirante, como uma tentativa de amarração na
psicose. Talvez pudéssemos pensar que Sarnmy elabora essa metáfora delirante
através de suas histórias. Lebovici, neste ponto, parece concordar com isso,
quando afirma que a inserção numa estrutura psicótica seria uma maneira de se
evitar urna desintegração psíquica nas crianças autistas. Lebovici vai mais além
disso, porém, e, num otimismo exagerado, aponta a saída pela neurotização e,
portanto, por urna mudança de estrutura, como uma possibilidade de cura para o
autismo.
É somente a partir do registro do real, instaurado na operação de expulsão
que ocorre no cerne do aparelho psíquico, que se pode pensar toda a clínica
psicanalítica. A partir da exclusão do registro do real de suas teorias, urna série
de enganos vem marcar as concepções teóricas de Lebovici. Ele direciona a sua
clínica para uma construção fantasrnática em torno dos objetos, mas com uma
ilusão de completude como pano de fundo. Ele pressupõe que o sentido de
realidade é o resultado de um diálogo entre mãe e filho. A partir de Freud e de
Lacan, porém, sabemos que a condição da prova de realidade é que o objeto esteja,
desde sempre, perdido. A prova de realidade, portanto, irá somente veicular uma
falta, contornando o buraco constituído pelo objeto sempre faltante.
Com }:reud, sabemos que a realidade abordada na psicanálise é a realidade
psíquica. E no interior do aparelho psíquico que o sujeito irá construir o seu
fantasma como uma tentativa de resgatar o objeto perdido. No lugar do objeto
perdido surge o objeto "a" como resto da operação de separação do sujeito do
campo do Outro.
O AUTISMO SEGUNDO SERGE LEBOVICI 51
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "A negação." in: Die Verneinung, Publicação da Letra Freudiana, n. 5, Rio
de Janeiro, 1 988.
-. "A negação." in: Obras Completas, Tomo Ili, Madrid, Editorial Biblioteca N ueva,
1 96 7, p. 2884.
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YANKELEVICH, H. Fabian, a criança ao computador, transcrição de palestra proferida
na Letra Freudiana, Rio de Janeiro, agosto de 1 992.
O BURACO NEGRO - FRANCES TUSTIN
Myriam R Fernandez
"botão" nunca pode existir na realidade é reconhecer que o objeto está desde
sempre perdido, ficando o traço ("construto psíquico na mente") como marca da
perda, início da organização simbólica fundante do sujeito.
Vimos até aqui, de forma resumida, as formulações teóricas que a autora
apresentou em 1972, em seu primeiro livro,Autismo e psicose infantil. Em 1986,
em seu terceiro livro, Barreiras autísticas em pacientes neuróticos, apresenta
correções feitas a partir de outros autores, confirmando-as posteriormente em seu
quarto livro,A concha protetora em crianças e adultos. Finalmente, em seu último
trabalho,A perpetuação de um erro, apresentado em 1993, Tustin parece chegar
ao limite de sua possibilidade de teorização, sempre marcada por imprecisões no
que se refere aos conceitos freudianos. Por outro lado, percebemos neste escrito
que a autora desbasta sua teoria o quanto pode do excesso de imaginário que a
permeava, chegando ao ponto fundamental de fazer valer o que a criança autista
lhe impunha na transferência- a presença do buraco que é constitutivo do campo
do Outro e do inconsciente.
A primeira correção teórica importante que vemos Tustin fazer diz respeito
a sua formulação inicial de um autismo primário normal que, a partir de então,
abando?�· Diz que vai �sa.r .º termo "auto�sensitiv? (qu� podem?s pensar como
auto-erotico) para os pr1nut1vos desenvolvnnentos infantis normais, reserva..TJ.do o
termo autístico para desenvolvimentos patológicos." 12 Apoia-se, para isto, na
teorização de outros autores.
Outra correção importante que Tustin faz em sua teoria nesta mesma época
refere-se à relação entre autismo e psicose. Se anteriormente considerava o autis
mo como um estado que se dá no interior da própria psicose, agora vai conside
rá-lo como uma defesa contra a psicose e, portanto, diferente desta. Diz textual
mente: "... compreendi que o autismo psicogênico é uma defesa contra a confusão
e o aprisionamento da psicose, e não psicose ele mesmo. Quando o autismo é
levantado, é-nos revelada uma criança vulnerável, presa, confusa e desamparada
que pode tomar-se psicótica a menos que nós percebamos sua necessidade de
segurança e proteção e possamos provê-la disto em nossa compreensão." 1 3 É da
maior importância o que Tustin nos diz aqui, pois além de colocar o autismo como
anterior à estruturação da psicose (pensemos em termos de temporalidade lógica),
aponta para outra saída para a criança autista, que não seja a psicose, marcando
que o desenlace, seja qual for, põe em jogo a responsabilidade do analista na
direção da cura - de sua compreensão, quer dizer, de sua escuta dependerá a
possibilidade de constituição ou não de um sujeito dividido. Que o analista está
comprometido, não há dúvida, mas talvez seja forte demais esta afirmação de
Tustin, principalmente se se tratar do autismo infantil precoce de Kanner. A autora
também não esclarece teoricamente, porque considera que haverá possibilidade
de saída do autismo somente se o tratamento for iniciado antes dos sete anos de
idade, como afirma ainda em 1986. 14
Fica-nos claro, por estas correções efetuadas, que Tustin já não está mais tão
enganada pela questão do desenvolvimento evolutivo, podendo talvez perceber,
sempre a partir da clínica, que a constituição do sujeito é lógica e não cronológica.
Seu último trabalho -A perpetuação de um erro - é escrito para corrigir de
forma definitiva o engano de pensar no autismo como uma regressão a um estágio
O BURACO NEGRO- FRANCES TUSTIN 57
NOTAS
1. TUSTIN, F. Autismo e psicose infantil. Rio de Janeiro, Imago, 1 976, p. 1 1 8.
2. Ibidem.
3. Ibidem, p. 6 7.
4. Ibidem p. 68.
5. Ibidem, p. 1 3.
6. I bidem, p. 84.
7. I bidem, p. 8 1 .
8. Ibidem, p. 40.
9. I bidem, p. 78.
1 O. -. Autistic barriers in neurotic patients. London, Karnac Books, 1 986, p. 90.
11. Ibidem, p. 9 1 .
1 2. Ibidem, p. 42.
1 3. Ibidem, p. 45-6.
O BURACO NEGRO- FRANCES TUSTIN 59
1 4. Ibidem, p. 65.
1 5. Ibidem, p. 1 1 5.
1 6. -. The perpetuation of an errar, inédito, 1 993.
1 7. Ibidem, p. 1 2.
1 8. -. The protective shell in children and adults. London, Karnac Books, 1 990, p. 28.
1 9. -. The perpetua tion of an errar, op. cit., p. 1 8.
20. Ibidem, p. 25.
PARTE II
- Frances Tustin:
Escrito, Carta,
Entrevista
A PERPETUAÇÃO DE U M E RRO
FRANCES TUSTIN
Tradução: Paloma Vidal
H ISTÓRIA DO ERRO
Na carta citada anteriormente Dr. Gillette sugeriu que a hipótese de que o
autismo infantil seria uma regressão a um estágio de autismo primitivo normal
foi tão aceitável para muitos psicanalistas, porque ela parecia ser consoante com
algumas afirmações feitas por Freud. Uma dessas afirmações seria que o narci
sismo primitivo é um estágio que segue o auto-erotismo, anterior à escolha do
objeto anaclítico (Freud, 1914). Assim sendo, o autismo era visto como um estágio
que precedia o narcisismo primitivo, que também era visto como um estágio de
não relação objetal. Outra afirmação de Freud que era freqüentemente citada nessa
conexão dizia assim:
"Um exemplo nítido de um sistema psíquico, isolado do estímulo do mundo
externo e capaz de satisfazer até mesmo seus requerimentos nutricionais
autisticamente... é dado por um ovo de pássaro cujo suprimento de comida está
guardado na suã casca."
(Sigmund Freud - 1 91 1 ).
Gillette diz que Milton Klein via a teoria de Mahler como sendo "represen
tativa e congruente co.m a teoria freudiana." (p. 93). Ele nos diz que Milton Klein
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 65
pensava que isso explicava "porque tornara-se a ortodoxia reinante por tanto
tempo." Dr. Gillette duvida dessa "ortodoxia reinante" e aponta para o que ele
chama "uma negligência nos principais jornais do trabalho de Daniel Stern
(1985)" e outros, impugnando a hipótese da "unidade dual" de Mahler (1968).
Gillette ilustra a longa história do preconceito nos &tados Unidos em relação
a essa questão e cita como exemplo que "o desafio de Peterfreund (1978) ao
dogma tradicional (essa é a hipótese da "unidade dual" de Mahler) em um escrito
importante não foi seguido de nenhum debate publicado." Ele prossegue exem
plificando que "a sustentação empírica brilhante e poderosa de Silverman (1981)
para a crítica de Peterfreund... foi rejeitada por muitos jornais tradicionais freu
dianos antes de que finalmente visse a luz do dia num volume editado." Ficou
surpreso com isso, porque, na sua visão, o desafio de Stern (1983/1985) ao
conceito de unidade dual de Mahler foi "muito persuasivo." (p. 160).
(Eventualmente, Margaret Mahler também achou o desafio de Stern "muito
persuasivo", tarito que aos 80 anos, com integridade científica, na conferência
dada em Paris, justo antes de morrer, ela renunciou ao conceito de autismo
primitivo normal como uma fase na primeira infância).
Dr. Gillette (1992) concluiu a sua carta dizendo que "a resistência para
discutir novas idéias que entram em conflito com o que se acredita que são os
pontos de vista de Freud é um obstáculo significtivo para o progresso científico
na psicanálise." Apesar da nossa gratidão a Freud, sem cujo trabalho não existi
ríamos, uma lealdade cega e inquestionável a ele pode ser um obstáculo. Em
relação a etiologia do autismo infantil não-orgânico, essa aderência perpetuou um
erro. Uma das lições que podemos aprender desse erro é que a nossa lealdade
deve ser ao entendimento e não a personalidades. O culto da personalidade é
exuberante na psicanálise. Uma das razões que levam a isso é o fato de que o
nosso trabalho provoca tanta ansiedade que sentimos a necessidade de aderir-nos
tenazmente a essas pessoas que levaram a luz à cena escura. Naturaln ente,
estamos gratas a elas, mas isso pode levar ao preconceito e à controvérsia estéril.
Nosso pensamento ficará "preso."
No entanto, há outra razão que fez com que alguns de nós aceitassem a visão
errônea de que a patologia das crianças autistas retrocede de uma regressão para
uma fase normal de ligação autista perpetuada com a mãe que era absoluta e
constante. Esse é o tipo de material clínico que encontramos na psicoterapia
profunda com tais crianças.
Deixem-me apresentar agora o tipo de material clínico que me levou à con
clusão errônea de que havia um estágio de autismo normal na primeira infância.
Em particular, esse material demonstra também claramente uma situação traumá
tica que é crucial na precipitação do autismo infantil não-orgânico. É o ponto
crucial dessa precipitação.
CLÍNICA MATERIAL
&se material foi apresentado emAutismo e Psicose Infantil (1972), EUA
(1973) e num livro posterior chamado Barreiras Autistas em Pacientes Neuróticos
66 OAUTISMO
(1986). Devo pedir que me desculpem por chamar-lhes a atenção para este livro
novamente. Faço isso, porque ele teve um importante papel na minha reflexão
sobre o Autismo. Gostaria de chamar-lhes a atenção para as sessões com um
menino autista que chamei John. John tinha três anos e sete meses, quando veio
pela primeira vez ao tratamento. Ele não falava, mas a sua mãe me disse nove
palavras que ele entendia: "John, mamãe, papai, Nina (sua irmã), pipi, bebê, lelé
patty rodar, rodando." Porém, logo percebi que havia outras palavras que ele
entendia. A psicoterapia com essas crianças tem nos mostrado que tendemos a
subestimar o quanto eles podem entender. Isso foi confirmado por uma técnica
recente de investigação, que vem sendo usada com crianças autistas, chamada
"comunicação facilitada."
Retomemos à psicoterapia de John. Ele tinha todas as características do tipo
de autismo de Kanner. No início, vinha uma vez por semana, depois passou a vir
três e finalmente yinha cinco vezes por semana. Nas sessões apresentadas a seguir,
ele vinha cinco vezes por semana e tinha cinco anos. Tinha começado a dizer
algumas palavras, das quais "foi embora" e "quebrado" eram palavras novas que
pareciam muito significativas para ele. [Janet Anderson (1992) , que na Confe
rência de Tavistock na Bretanha apresentou um artigo chamado "Missi.r1g", tam
bém percebeu isso com uma criança autista que ela atendia]. Eu também me
deparei com o mesmo ao tratar outras crianças autistas depois de John.
O material que gostaria de apresentar começa com a sessão 130. John, então,
já falava A sessão aconteceu em dezembro antes das férias de Natal. Haviam
acontecido algumas mudanças na rotina de trazer John, pois o seu pai havia estado
fora de casa. No dia da sessão em questão, já tendo voltado, seu pai o trouxe.
Quando eles chegaram até a porta da frente, o pai quase tropeçou nos degraus.
Durante a sessão, John parecia estar tentando manter o seu pai vivo pulando para
cima e para baixo no sofá e gritando, "Papai foi embora! Papai remendado!"
(Daddy gane! Daddy mended !). No final da sessão quando a sua mãe, e não o seu
pai, estava esperando por ele, gritou: "Papai foi embora! Papai quebrado!" (Daddy
gane! Daddy braken!) Depois desse incidente foi me reportado que ele teve um
acesso de gritos noturno no qual dizia coisas como: "Eu não o quero! Caiu! Botão
quebrado! Não o deixe morder! Não deixe bater!" (I dan 't want it!Fell dawn!
Buttan braken! Dan 't let it bite! Dan 't let it bump !).
À continuação disso, justo antes das férias de Natal, ocorreram algumas
sessões que foram muito importantes para a compreensão de John. A primeira foi
a sessão 140, na qual ele entrou no consultório e disse com tom de grande
assombro: "O botão vermelho cresce no seio" (The red buttan graws an the
breast). Eu nunca havia usa:do a expressão botão vermelho e nem seio. (Por eu
ser uma Kleniana, vocês acharão isso muito surpreendente, mas eu havia decidido
não impor-lhe um esquema teórico e ver as palavras que ele mesmo usava). Depois
dessa sessão falei com a sua mãe e ela me contou que John havia visto uma amiga
dela dando de mamar ao seu bebê e parecia ter ficado muito fascinado por isso.
Me parece que esse incidente desencadeou uma série de comunicações que me
informaram sobre as experiências traumáticas que John sentia ter sofrido como
bebê;
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 67
"Botão vermelho foi embora! Caiu com uma batida! (Red button gane! Jt fell with
a bump!) ." E então indicou os seus dois ombros com um movimento semi-circular
e disse: "Tenho uma boa cabeça nos meus ombros! Não pode cair! Cresce nos
meus ombros!" (I've got a good head on my shoulders! Can 't fali off! Grows on
my shoulders!). Depois disse: "Foi o pavimento levado, bateu em mim!" (It was
the naughty pavement, it hit me!). (Eu disse que pensava que ele estava me
contando sobre seus medos, quando havia caído naquela hora). Tocando a sua
boca disse: "Nina (sua irmã) tem um buraco negro. Ela tinha uma furo na sua
boca. Botão quebrado! Buraco negro mau!" (Nina has got a black hole. She had
a prick in her mouth. Button broken! Nasty black hole!). Nas minhas anotações
eu disse: "Aqui, eu deveria ter interpretado que ele estava se livrando das expe
riências desagradáveis que havia acabado de me contar, atribuindo-as a Nina, mas
eu não o fiz, ou seja, fracassei ao assumir o começo da identificação projetiva."
E então pegou o trator de plástico vermelho que havia atacado implacavel
mente. Tocou o eixo de plástico que não era realmente muito pontudo. No entanto,
ao tocá-lo, estremeceu e disse: "Trator duro mau ele fura" (Nasty hard tractor it
pricks). Cuspiu, como se cuspisse algo que era repugnante, ou seja, a projeção
havia começado de uma forma bastante concreta. Ele então se retorceu e gritou
alto. (Aqui, eu me reprochei por não ter tentado colocar antes em palavras sua
identificação projetiva e, assim, possivelmente tê-lo poupado de ter que se expres
sar com uma ação violenta). Nos seus gritos, ele disse que estava se afastando
dos bicos voadores. Eu tinha medo que ele caísse de sua cadeira, então o coloquei
no meu colo e falei com ele apesar dos seus gritos. (Falei com ele sobre seu
sentimento de que o "botão vermelho" fazia parte de sua boca e o quanto ficou
zangado quando percebeu que não era assim. Sentiu que tinha um "furo mau" e
um "buraco negro" em vez de um "botão vermelho." Sentia que cuspia coisas
ruins na Nina, pois achava que ela lhe havia tirado o "botão vermelho:'' Mas depois
sentia que ela tentava cuspi-las de volta nele e sua boca má parecia pássaros
voando). Nós havíamos tido material mostrando que, sob a base de similaridade
de contorno, ele havia igualizado pássaros voando com bocas. Prossegui dizendo
que sem o botão ele não se sentia seguro e sentia que as bocas voadoras podiam
machucá-lo. Como ele havia perdido o botão, tinha medo que pudesse perder sua
cabeça ou seu pênis.
Minhas anotações me dizem que, depois disso, John tinha medo de certos
objetos no consultório: um era a cavidade da luva que mencionei anteriormente,
outro era o tubo em forma de pênis perto do teto e o outro era o "balde de água
suja" (A sala não tinha ralo e o "balde de água suja" era onde esvaziávamos a
água depois dele tê-la usado). Devo dizer que, após essas sessões, os gritos
noturnos pararam. Estes retornaram depois de umas férias particularmente pertur
badoras e quando a questão do final do tratamento estava sendo discutida.
O tratamento acabou, quando John tinha 6 anos e 5 meses. Fiquei sabendo
de maneira indireta que ele foi como semi-interno a uma escola privada conhecida
e se desempenhou bem na Universidade.
70 OAUTISMO
"O que raras vezes vemos, e o que é raramente desclito na literatura, é o período
de aflição e dor que, na minha opinião, precede e anuncia inevitavelmente a
ruptura psicótica completa com a realidade".
(Mahler 1 961)
Senti que tanto Mahler como Winnicott estavam na crista da onda do tipo de
material que estava me confundindo. Também senti que Isca Wittenberg estava
na crista da onda quando adotou a frase "depressão primitiva", (apesar de que não
fazia parte da terminologia kleniana). No seu artigo Prima/ Depression inAutism:
John (1975), ela desenvolveu um trabalho muito útil ao relacioná-la à "contenção"
(containment) de Bion e a sua teoria da catástrofe, descrevendo-a como "colapso
numa forma particular de depressão catastrófica" (p. 56). Ela diz também: "Não
sentia que estava lidando com uma criança de três anos, mas sim com um bebê,
aterrorizado de cair num abismo" (p. 59). Winnicott (1958) também fala do terror
de "cair infinitamente" e escreve sobre uma depressão profunda (flop-type). John
fala do terror do "buraco negro". Sheila Spensley (1985) relacionou utilmente a
"depressão psicótica" ao "defeito cognitivo" e à ausência mental (mindlessness).
Essas crianças experimentaram um trauma desagrega-mente (mind-blowing) que
as deixaram com o sentimento de que têm um "buraco negro" de alguma coisa
que está faltando. Elas experimentaram uma das "armadilhas" do desenvolvimen
to e da existência humana Foi catastroficamente traumático.
De modo interessante, uma criança autista muda, que estava sendo ajudada a
se comunicar através da "Comunicação Facilitada", apontou para algumas letras
que formaram o seguinte poema:
Buraco negro
Sozinho em mim
Amedrontando rasgando esticando
Por favor me deixe ficar livre do seu apertão
Morrer
(Evan, 30 de outubro de 1 990) (Biklen 1 99 1 )
O Material Clínico das Crianças Autistas. Comecei a ver que, quando bebê,
a criança havia se sentido tão unificada com a mãe que a ruptura abrupta e dolorosa
desse sentido dt? unidade dupla - quando ela inevitavelmente ficava sabendo da
sua separação corporal da mãe - parecia como a perda de parte do seu corpo, o
qual, até esse momento, parecia ser parte do corpo da mãe. Essa ruptura, durante
a fase de amamentação, parecera catastrófica tanto para a mãe como para o filho.
Os dois sentiram aue foram deixados com um buraco no coroo. O trauma dessa
ruptura violenta precipitou reações autistas na criança. Comêcei a perceber que,
ao considerar esse estado perpetuado de unicidade com a mãe como uma situação
normal na primeira infância, havíamos estado estrapolando a situação patológica
e vendo-a erradamente como normal. Esse é um erro e devemos ser cuidadosos
para não repeti-lo. Percebo agora que o estado infantil que estava sendo reevocado
na situação clínica era anormal. Finalmente percebi que o autismo é uma reação
protetora que se desenvolve para lidar com o stress associado à ruptura traumática
de um estado anormal perpetuado de unidade '3-desiva com a mãe - o autismo
sendo uma reação que é específica do trauma. E uma doença de dois estágios.
Primeiro, há uma perpetuação da unidade dual e depois a ruptura traumática disso
e o stress que ela desperta.
Meu trabalho me fez perceber que as sensações são a base da vida tanto
cognitiva como emocional. O bebê normal desenvolve uma "pele sensitiva" que
o ajuda a sentir-se seguro e que é permeável para a entrada e saída de experiências.
Como uma proteção contra o trauma, a criança autista desenvolveu um isolamento
auto-sensitivo que bloqueia a saída e a entrada de experiências. No entanto, eles
têm um consciência marginal, d� margem, periférica, pela qual as inteJVenções
terapêuticas podem infiltrar-se. E muito importante que percebamos isso.
matizada e congelada num estado de pânico e aflição ao estar aderiçla à mãe que
é tão experiente como um objeto inanimado que pode ser agarrado. E uma reação
demedo. Essas crianças estão "em choque." Elas estão "rígidas de medo."
Como tentei mostrar nos meus livros e nos meus artigos (Tustin 1966, 1972,
1981, 1987, 1992), essa reação de medo parece ser causada pelo fato de que um
bebê vulnerável (possivelmente com uma predisposição para a depressão) tomou
se consciente da separação da mãe em um �conteúdo" mental inseguro, ou seja,
a qualidade de atenção cuidadosa não foi adequada para esse bebê em particular.
Isso pode ocorrer, por exemplo, com uma mãe depressiva que, por várias razões,
não se sentiu apoiada pelo pai e por suas próprias experiências infantis. Em sua
forma inimitável, Winnicott descreve a situação persuasivamente, quando ele
escreve:
"Se você se sente pesado, com sono e especialmente se você está deprimido,
você coloca o bebê no berço porque você sabe que o seu estado não está
suficientemente vivo para continuar a idéia que o bebê tem do espaço ao seu
redor." (1 988, p. 20)
Cheguei a ver o autismo como um.a reação à versão infantil de uma "desordem
de stress pós-traumática"; tal trauma infantil decorrente de ter-se tornado cons
ciente do que chamamos espaço, devido à conscientização da separação de seu
corpo, do corpo da mãe, com quem ele previamente se sentiu anormalmente
fundido, não-diferenciado, um (at-one) ou seja, num estado de "unidade dual"
adesiva.
Patologia Adesiva. Fui alertada para esses artigos por Bick (1986) e por
Meltzer (1975). Meltzer descreveu a "identificação adesiva" para a qual Bick
preferiu o termo "identidade adesiva." Expandi um pouco o seu ponto de referên
cia, pois a adesividade que encontrei nas crianças autistas não tem a conscienti
zação do espaço associado com identificação ou com sentimentos de identidade.
Conceptualizei o sentido de adesividade adjacente ( O termo é de Ogden [1989],
pele na pele como "equação adesiva" ou unicidade adesiva). Eles só se tornam
conscientes da sua aproximação adesiva retrospectivamente, quando é perturbada
e está sendo experimentada a separação violenta Nesse momento, eles experi
mentam um sentimento de perda de algo que eles não sabem o que é. Algo está
faltando. John se perguntava se não era sua cabeça? Seu pênis? Ou esse "botão
vermelho"? Alguns pacientes, que tiveram uma proximidade excessiva com a
mãe, podiam sentir a perda do cordão umbilical. Um paciente me contou que ele
havia imaginado essa proximidade como sendo estrangulado pelo cordão umbili
cal. Quando isso parecia estar quebrado, provocava um pânico e uma raiva
ingovernável, como também alívio. Era uma mistura confusa de sentimentos.
Processos de identificação, ou seja, sentir-se parecido com alguém, requerem
um sentido de espaço entre a criança e outras pessoas. Isso ajuda a sentir que
possui uma identidade. A identificaçãq .é baseada em empatia. Empatia é impor
tante para "conhecer outros",.na assim chamada "Teoria da Mente", que foi
discutida no artigo do Dr. Urwin apresentado na Semana de estudo no ACP de
74 OAUTISMO
1993. (Dr. Peter Hobson - [1986] escreveu sobre empatia em crianças autistas e
a Dr. Uta Frith 1985)] escreveu sobre a "teoria da mente" em relação a elas).
Na unicidade adesiva, a criança senteo mesmo que alguém e prende-se a essa
pessoa como um objeto inanimado. Isso a ajuda a sentir que ela existe. É a ·
preocup?ção com a sobrevivência, com "continuando sendo" como Winnicott o
chama. E mais perseverante que a "identificação adesiva." Aliás, isto impede o
desenvolvimento de identificação. O que é normalmente uma oscilação fluída de
estados normais de unicidade, que nutrem a empatia alternando com consciência
e separação, tomou-se congelada em um estado anormalperpetuamente rígido de
"unicidade adesiva" (adhesive-at-oneness), que previu a empatia. Oscilações sau
dáveis, alternantes, entre unicidade e estado de separação não são possíveis. A
criança está congelada com terror. Empatia, identificação e, aliás, todos os desen
volvimentos psicológicos, como o que é popularmente chamado de "ligação" e
também o "nascimento psíquico" e "individualização" que estão associados com
processos de "introjeção" e "projeção", são todos evitados. A criança não sente,
não fala, não responde a outras pessoas. Ela parece umautomaton congelado. Isso
nunca é um estado infantil normal e causa confusão rotulá-lo dessa forma. Uma
lição que aprendi é que o termo "autismo" deveria estar restrito a estados patoló
gicos e nunca deve ser aplicado a normais. Esse é o erro que as hipóteses do
"autismo normal primário (primitivo) e da "regressão" perpetuaram.
Até agora estabelecemos que não há um estágio autista primitivo para o qual
as crianças autistas podem regredir. Pensemos agora sobre o conceito de regres
são.
Regressão significa voltar e comportar-se em termos de um estágio anterior
de desenvolvimento. Em algumas das formulações etiológicas, que viemos discu
tindo, crianças autistas têm sido concebidas como vivendo em termos de um
estágio anterior de infância inalterado. Isso levou à noção de que seria útil deixá
las comportar-se como bebês para que elas pudessem continuar crescendo a partir
da assim chamada "terapia da regressão." Na minha experiência, isso causa muito
dano. Lembro-me como o sensato George Stroh ficou quando tomou a direção do
Hospital HighWick para crianças psicóticas e encontrou as crianças puxando-se
entre elas ao redor dos carinhos de bebês e usando mamadeiras. Era claro que
aquilo não havia sido terapêutico, mas sim nocivo para o desenvolvimento.
Na situação clínica, John mostrou claramente que momentos de sua infância
haviam sido evocados ao ver a amiga da sua mãe dando de mamar ao bebê. No
entanto, ele não estava se comportando como um bebê ou regredindo para a
primeira infância. Ele era um menino de cinco anos, representando o trauma que
havia experimentado quando bebê. Ele agora tinha mais recurso do que quando
experimentou, pela primeira vez, a crise traumática de conscientização da sepa
ração corporal, que lhe deixou a ilusão do "buraco negro" de seu ser de que algo
estava sendo perdido. Ele estava a mercê do desespero negro.
O psicanalista argentino, Dr. David Rosenfeld (1992), descreveu como o seu
trabalho com vítimas do Holocausto mostrou que suas experiências traumáticas
haviam sido "preservadas" e "fechadas" pelo autismo, prontas para reaparecerem
mais tarde, intactas e vívidas, com todos os detalhes claros e afiados das expe
riências originais. Era uma reevocação e uma representação ativa. Elas agora .
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 75
tinham mais capacidade para suportar e lidar com essas terríveis experiências do
que quando passaram por elas pela primeira vez. Com crianças autistas, as expe
riências traumáticas de separação corporal são desatadas por acontecimentos do
dia-a�dia, muitas vezes, na situação de transferência da análise, como rupturas na
continuidade da expectativa da presença do analista. Isso faz uma diferença em
como devemos tratar tal material; se o vemos como algo dinâmico, acontecendo
"aqui e agora", vivo e com novas possibilidades de um desenvolvimento progres
sivo, ou meramente como uma repetição de acontecimentos anteriores. Na terapia
é normalmente a transferência infantil que traz esses acontecimentos passados ao
presente. Isso os faz entrar nessa nova experiência. Não é somente a recapitulação
de uma experiência velha, mas sim uma representação da situação antiga com
algo novo injetado nela. Isso pode trazer esperança. Uma catástrofe psíquica pode
tomar-se uma oportunidade psíquica.
A Sra. Sheila Cassidy, que foi aprisionada e torturada no Chile, descreveu
recentemente, num programa de rádio, sua tentativa de voltar ao Chile para aliviar
as experiências traumáticas de uma nova forma. Contou que pensava que seria
como abrir uma caixa de Pandora com demônios no fundo. Sabia que as memórias
evocadas seriam extremamente vívidas, mas ela sabia que seria seguro estar com
111c;du. E.,tava tu11.,c;11du pm a yuc; i.,.,u c:;11.pul:sa.,.,c; al�u111a:; d,ª" \,;Vi:;<1:; Y. uc; h<1vi<1111
ficado confinadas, como ela expressou significativamente. E óbvio que ela pensa
que será uma nova experiência de desprendimento e não somente a recapitulação
da antiga. Ela está lidando com essa experiência, pensando no futuro e não no
passado. Isso vai contrarrestar "a puxada para atrás e para o inanimado" (Freud,
1920).
Foi assim com John. Seu comportamento nas sessões clínicas demonstrou
claramente que, como Valerie Sinason (1992) assinalou, "oflashback do trauma"
se repetindo deve ser visto como uma comunicação e não como uma obstrução .
Podia começar a se comunicar sobre seu sofrimento e então a camisa de força do
autismo, que havia colocado os seus "fogos de artifício" explosivos em cheque,
podia ser dispensada. Em vez disso, esses sentimentos podiam ser vistos agora
como contidos numa relação interativa, tolerante, dissiplinada e disciplinante. Isso
o ajudou a usar capacidades simbólicas emergentes. E uma representação simbó
lica. Foi o começo da habilidade de atuar.
mais rigorosa de que a ânsia por uma mãe sobre-humana nunca poderá ser
realizada e de que uma parte importante da primeira aprendizagem é chegar
gradualmente a um acordo com essa frustração e tudo o que essa desilusão
implica. Teremos uma atitude mais misericordiosa em relação às mães, dessas
crianças. Saberemos também, que não podemos atingir o perfeccionismo que
essas crianças parecem nos exigir.
CONCLUSÃO
Como alguns entre vocês devem saber, meu marido adquiriu fama como
escritor de limericks psicológicos. Quando lhe falei sobre o tema deste artigo, ele
me deu o seguinte limerick para que lesse a vocês. Aqui está:
- Quando crenças precisam de alguma modificação
O fazemos com muita trepidação,
Pois o nosso mundo torna-se novo
E as coisas parecem tortas,
Até que nos habituamos à nova formulação!
Isso se aplica tanto aos terapeutas como às crianças das quais tratamos. Como
o psicanalista francês, Professor Didier Houzel, expressou muito bem, o nosso
trabalho deve ser informado por "um movimento de liberação no qual o espírito
aceita perder a supremacia do seu objeto de conhecimento para se permitir ser
surpreendido pelo não esperado e ser questionado pela mudança." (Do artigo de
Didier Houzel em Psychic Envelope ed. Didier Anzieu - 1990 - p. 56). Como
disse anteriormente as concepções erradas de que venho falando são mais preva
lentes e têm mais influência no continente europeu e nos EUA do que na Ingla
terra. Espera-se que as modificações sugeridas facilitarem a comunicação entre
· os que trabalham com crianças autistas tanto aqui como fora. Corregir esses
conceitós nos ajudará a evitar o isolamento, a insularidade. Quando houver con
sistência nas visões sobre a etiologia do autismo infantil, será possível que falemos
melhor uns com os outros.
Cheguei a pensar que um dos fatores que causou a persistência do erro sob
discussão é a qualigade atmosférica adesiva do material clínico que estamos
tentando entender. E difícil ser racional, quando estamos lidando com um material
tão elemental e persistentemente "pegajoso." Esse artigo foi um marco nas tenta
tivas de abrir um caminho entre uma massa de material primitivo para que
pudessemas deixar de estar "presos na lama" (esta é a melhor descrição que sei
do estado de uma criança autista).
Nessa tentativa, tem sido óbvio que o trabalho de meus colegas psicoterapeu
tas foi indispensável. Como demonstração da minha gratidão, tenho o prazer de
poder apresentar este último artigo para a Associação de Psicoterapeutas Infantis
da qual estou orgulhosa por ter sido nombrada membro Honorária. Para escrevê
lo, fui ajudada por colegas que leram os vários rascunhos que produzi. Eles
ajudaram-no a crescer.
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 77
ADENDO
RESUMO
BIBLIOGRAFIA
P.S. 1: "Atípico" é uma palavra que o Centro James Jackson Putnam criou
para as crianças autistas, porque o desenvolvimento psicológico era "atípico".
Vejo agora que os anna freudianos estão diferenciando entre o que eles chamam
"atípico" e "psicótico". Você parece estar diferenciando "autista" e "psicótico."
Eu uso "autista" e "esquizofrênico". Me parece mais específico.
Tom Ogden em The Primitive Edge of Experience acentua a necessidade que
os pacientes "psicóticos" (esquizofrênicos) tem de "contenção" - eles têm medo
de revelar-se. Ele escreve:
"Embrulhar um paciente hospitalizado apertadamente em lençóis (enquanto
está continuamente acompanhado e relacionado com um membro empático da
equipe) é uma maneira efetiva e humana de tratar alguém que está
experimentando o terror da aniquilação na forma da dispersão de si mesmo no
espaço ilimitado."
Nosso entendimento dos terrores que esses pacientes têm nos ajuda a com
portarmo-nos de maneiras úteis. Mas eu não subestimaria o uso cauteloso de
medicação para pacientes idosos previamente autistas.
P.S. 2: Talvez o que essas pessoas queiram significar quando dizem que o
"autismo" é genético é que, como alguns Cientistas Americanos dizem que acha
ram o gene que causa a homossexualidade, elas estão esperançosas que acharão
o gene que causa o "autismo".
Eu uso o autismo para significar um conjunto de processos isolantes que
surgem para proteger o organismo (é mais primitivo que uma "defesa"). Processos
autistas podem proteger contra muitas coisas - todas elas prejudiciais para o
organismo. Uma delas, em alguns casos, pode ser um gene defeituoso que está
CARTA A CLAUDE ALLIONE 83
Eu digo que, quando algo começa errado muito precocemente na vida, as pessoas
tendem a pensar que é genético. Da mesma forma, alguns afirmam agora que
encontraram, na genética, a causa do homossexualismo.
F. Tustin: Não, porque a avó, que era muito aristocrática, ouviu a opinião
dos behavioristas depois de que John havia acabado o tratamento e tomou-se hostil
em relação aos pais de John dizendo que ele deveria ter sido tratado por eles, etc.
ENTREVISTA 87
Ela desmerecia a psicanálise. O que importa é que ele estava indo bem no colégio,
muito bem aliás.
Como já disse, a mãe suicidou-se e isso foi uma falha neste caso. Na época
em que o menino começou a tratar-se comigo, tinha o meu consultório em
Londres. Tinhamas uma casa com um sotão e eu trabalhava com as minhas
crianças ali. Quando ele começou, a Dra. Creak via a mãe quase todas as semanas.
O que acontece é que Mildrid Creak entendia o autismo a sua maneira, não
psicanaliticamente, mas ela era uma das boas psiquiatras à moda antiga. Não há
muitas agora. Ela podia sentir as crianças. Ela se aposentou do hospital e enca
minhou a mãe para outro psiquiatra que ficou no lugar dela. Esse psiquiatra era
psicanalista, mas... não sei como colocar isso.. ele tinha muitos títulos, mas tudo
era superficial. Não era bom, ele realmente não era bom. E eu não via a mãe
regularmente. Ele dizia que ia até a casa da mãe para vê-la. Finalmente, os
diretores do hospital expulsaram-no. Esse homem voltou todo o mundo contra os
psicanalistas; foi muito ruim. Ele foi mal com esta mãe e ela foi deixada de lado.
Eu deveria ter dito que acharia uma assistente social para ela, mas não o fiz. Talvez
porque estava preocupada demais com a criança.
E. Vidal: Você estava trabalhando só com a criança?
A mãe me contou que a avó tinha a mania de olhar o bebê com uma cara horrível.
De alguma maneira, a mãe disse que ela parecia uma bruxa e ela sentia que a avó
tinha colocado um feitiço ruim na criança. A mãe era muito autista, além de boa
e sensível e não conseguia encontrar um lugar nessa família.
E. Vidal: A criança pode ser uma conseqüência dessa desadaptação da mãe?
F. Tustin: Certamente. Ela era um peixe fora d'água, como dizemos. E o pai
era um homem muito obsessivo. Ee frequentou uma escola pública e era muito
educado. Uma espécie de homem muito formal. Ele não entendia muito bem de
sentimentos, pois estava mais preocupado com os deveres e era um homem muito
ocupado. Apesar disso, estava muito com o menino. Era um bom homem, mas
não conseguia entender essa menina ultra-sensível com quem se casou e que não
encontrava um lugar nessa faIIll1ia. Ela era muito infeliz. Sinto-me muito mal
sobre essa pobre mãe, porque ela era uma boa menina. De qualquer maneira esta
é a história d� John. John foi quem me falou sobre o buraco negro.
E. Vidal: Quero lhe fazer uma pergunta. John é o paciente que falou para
você do buraco. Como você considerou de maneira teórica o buraco na estrutura
do sujeito autista? Nós temos algumas coisas para perguntar sobre essa questão.
A primeira coisa é com respeito ao sistema kleniano: não há lugar nele para esse
buraco.
Para responder a esta pergunta Mrs. Tustin procura a foto de uma estátua
de Henry Moore.
F. Tustin: Essa foto mostra uma mãe com um buraco na altura do seio
segurando uma criança no colo. George Me. Douglas referiu-se a algo semelhante
no seu caso da criança-rolha (cork chi/d). Ela está aí para preencher o buraco da
solidão da mãe. A mãe de John usava a criança para preencher o buraco de sua
solidão e depressão. Essa foto tem muito a dizer. A mãe de Henry Moore era
muito depressiva e o artista está elaborando isso na escultura. É uma magnífica
reprodução dessa situação.
E. Vidal: Há algo de vazio ...
F. Tustin: Sim, e ele o preenche. Ele sente que deve fazer isso. Então essa
separação entre a mãe e o filho, que estão firmemente ligad9s entre si, é extrema
mente dolorosa, quando percebem que são seres separados. E muito doloroso para
a mãe e para a criança.
E.Vidai: Não há representação verbal da separação.
F.Tustin: Não, eles não tem. Ele� sentem que é doloroso dem�. E o autismo
é um amortecimento da experiência. E um blackout da experiência. E evitar a dor.
O autismo serve para evitar a dor. Eles usam objetos autistas para evitar a dor e
usam sensações autistas para amortecer a dor. O importante sobre todas as nossas
idéias é que a sensação é o começo, as sensações são o começo. Você sabe que
ENTREVISTA 89
Freud chamou isso de ego corporal. Eu alteraria um pçmco e chamaria de ego das
sensações. Eles são a forma primitiva do eu mental. E importante perceber isso
para entender o autismo, porque aí dominam as sensações de separação. Quando
eles têm a sensação de que estão separados da mãe é extremamente doloroso. E
é tão doloroso que eles podem não ter representação, como você diz, no eu mental.
Penso que é uma compreensão muito importante.
Fiquei sabendo que Winnicott já sabia disso. Fui educada muito estritamente
na maneira kleiniana. Esther Bick foi nossa professora e ela fez essa coisa mara
vilhosa que é observação de bebês, que cresceu por todo o mundo e muitas pessoas
estão fazendo ainda hoje. Ela era uma kleiniana muito estrita. Ela dizia que nós
não devíamos ler Winnicott, então eu nunca lí Winnicott (risos). Na nossa asso
ciação, temos freudianos clássicos e também pequenos grupGs de kleinianos e
winnicottianos. Depois que eu apresentei este trabalho freudiano, vieram até mim
e me perguntaram se eu conhecia o artigo de Winnicott no qual ele havia escrito
sobre o que eu falara. Então, procurei este artigo e descobri que ele havia descrito
exatamente a mesma coisa que eu vinha dizendo. Winnicott fala sobre a depressão
psicótica e reativa e diz que a depressão psicótica acontece quando a criança
experimenta a separação num estágio no qual ela ainda não estava preparada para
isso. A depressão reativa é diferente, acontece quando a criança perde a mãe, mas
a mãe já era um objeto em sua mente, enquanto que a depressão psicótica acontece
quando a criança simplesmente não pode entender isso. Ele o descrevia exatamen
te igual, então lí Margaret Mahler.
que era algo extraordinário, então o mandou para mim. Ao ver que de fato era
extraordinário mandei-o para o editor que publicou meu livro e não ouvi nada
mais sobre ela. Depois de aproximadamente dois meses, um agente literário me
procurou, perguntando se eu sabia alguma coisa sobre esse livro. Ele disse que
achava que tinha um best-seller em suas mãos. Logo depois, uma editora me
telefonou dizendo que tinha esse livro, que havia quatro outras editoras que o
disputavam. Eles tratavam o livro muito cuidadosa e apropriadamente e me
mostraram que ia ser bom. A moça voltou para a Austrália agora.
F. Tustin: Não, ela nunca foi tratada. Bom, na verdade foi um pouco. Você
o lerá no livro. Ela me disse que, se eles pagassem a sua passagem, ela voltaria
da Austrália. Esses editores pegaram realmente o livro e a trouxeram de volta. O
livro tomou-se um best-seller! Ela ganhou montes de dinheiro, seu livro viajou
por todo o mundo e foi comentado em todos os programas conhecidos. Ela agora
está morando na Inglaterra e comprou um sítio.
F. Tustin: Não. De certa forma, ela saiu do autismo. Nesse livro, ela descreve
tudo o que lhe aconteceu. Ela esteve com um terapeuta. Antes de escrever, ela
veio para a Inglaterra, conseguiu um trabalho e foi à universidade. Ela foi um
pouco tratada por alguém no hospital - um freudiano clássico, certamente, pois
Donna, como eia se chama, fala no seu livro, ou falou para mim, não lembro muito
bem, que ele perguntava muito sobre sua família. Donna também deve ter encon
trado alguma vez um kleniano, pois me contou que ele falava sobre o seio bom
e o seio mau e que ela não entendia nada ! ! ! (risos) Ela me disse: "o seu livro foi
o único que fez algum sentido para mim." Donna escreveu o livro em poucos
meses. Ela era secretária e quando chegava em casa não tinha muito o que fazer,
pois não conhecia ninguém. Então, ela escreveu esse livro! Não é engraçado! ! !
(risos). Nunca me encontrei com ela, mas, quando tinha algum problema, ela me
telefonava. Certa vez, ela me telefonou e disse que os editores a haviam colocado
num hotel muito bonito, mas haviam pessoas pedindo esmola do lado de fora. Ela
me contou que havia uma mãe com um bebê que pareciam muito famintos e
perguntou se deveria trazê-los para o hotel e dar-lhes uma refeição. Foi para isso
que me telefonou. Respondi que achava que não, que ela não deveria fazer isso,
porque todos os mendigos de Londres bateriam na sua porta pedindo comida !
Esse foi o meu conselho, apenas um conselho prático. Depois ela me ligou e disse
que um editor francês estava sempre tentando tocá-la, que ele queria tocá-la: o
que ela deveria fazer? Você sabe, os franceses são muito difrentes de nós e mais
ainda dos australianos. Ele tinha 70 anos. (risos) Ela me disse que mulher dele
havia acabado de morrer e imaginou que poderia mandar-lhe um cartão. Eu disse
que não havia necessidade de mandar-lhe um cartão. Bom, esses são os problemas
com os quais ela se depara e que me conta pelo telefone com a sua voz fininha
(imita a voz de Donna).
ENTREVISTA 93
E. Vida): Desejaria retomar a sua revisão do caso Dick. Você considera que
ele é uma criança autista? O caso prova que a criança autista tem uma relação
muito precoce com o objeto? Você acha que isso poderia ser válido?
F. Tustin: Está no limite do autismo, certo? Não consigo entendê-lo. Acho
que Melanie Klein se baseia na sua própria teoria. Quando ela estava apresentan�
do-a, inconscientemente tinha o seu esquema de entendimento que projetava sobre
esse menino. Mas ela estava certa quando sentiu que Dick não era como qualquer
outra criança. Mrs. Klein era uma analista muito honesta.
F. Tustin: Sim, concordo com essa idéia. É que Melanie Klein não reconsi
derou esse caso mais tarde, quando ela sabia mais sobre autismo, pois estava muito
ocupada e já estava se tomando uma senhora idosa. Sabe, é muito difícil trabalhar
quando se está ficando velha. Esses artigos que estou te dando são meus últimos
trabalhos. Já não se está fisicamente forte e se começa a ficar cansada. Ao menos
achei que era importante acabar o que havia feito. Dizer: olhe, cometi um erro
sobre isso. Dá-se uma luz inteiramente nova ao assunto quando vemos o autismo
não como uma regressão e sim como uma aberração. Isso lhe dá uma orientação
diferente. Acho que isso estragou o trabalho de Margaret Mahler. Ficou no
caminho do que ela estava tentando entender.
observações com bebês que ele supervisava. Mais tarde elas iam para a casa das
crianças autistas que estavam tratando. Iam não como intrusas, mas ajudavam a
lavar, passar e levavam as crianças para passear para que a mãe pudesse descansar.
Elas tomavam as coisas mais fáceis e faziam sugestões que às vezes eram aceitas.
Eram muito hábeis e o que faziam era muito útil. Penso, inclusive, que é muito
bom fazer isso - pegar alguém para ir até a casa da famflia e ajudar -pois é muito
difícil para as mães cuidarem dessas crianças. Elas precisam de ajuda.
E. Vidal: Especialmente no primeiro estágio do autismo, você diz no seu
livro que, quando a criança vem ao analista e ainda tem menos de sete anos, as
portas fechadas do autismo podem ser abertas. Por que sete anos?
F. Tustin: Não sei, mas sete parece ser uma idade crítica e limite.
E. Vidal: Sim, nós também pensamos, mas queria perguntar-lhe se a razão
seria, por exemplo, que a constituição da criança se conclui ao redor dos sete anos.
Haveria um tempo para o encerramento da estrutura da criança? Há uma diferença
entre a criança tratada antes dos sete anos e outra tratada depois?
F. Tustiõ: Encontrn-se uma diferença. Elas são mais receptivas e mais mo
tivavéis. Estou supervisando agora uma criança que tem treze anos: a terapeuta
que está trabalhando çom ele é excelente, mas realmente quando a criança é mais
velha é muito difícil. E praticamente impossível. Parece uma coisa terrível de se
dizer e, apesar disso, ela está tentando. E muito difícil. Justamente nessa carta de
Oaude Allione, à qual repondi, ele conta que está trabalhando num hospital para
autistas mais velhos que nunca foram tratados e conta o quanto é difícil. Veja,
penso que é muito difícil, quando são mais velhos, porque tomou-se um modo de
vida e, de certa forma, funciona Funciona, é limitado, mas os mantém seguros.
O autismo torna possível que eles se sintam seguros. Acho muito triste.
E. Vidal: Na sua experiência clínica, as crianças autistas podem tomar-se
sujeitos neuróticos?
F. Tustin: Sim, entendo o que você quer dizer. Bom, quando atendia o Peter
(eu o revi faz pouco tempo atrás), ele morava em Manchester e vinha duas vezes
por semana, sábado e domingo. Os pais o traziam aos sábados e iam encontrar-se
com a família em Londres. Eram comerciantes bastante ricos. Quase no final, eles
compraram um trailer e o colocavam num campo perto da minha casa. Eles eram
realmente uma família bastante inventiva que se adaptou a essa coisa estranha do
tratamento da criança. Ele tinha uma irmã mais nova e todos eles vinham com a
famflia. Tudo era muito inconvencional, inclusive a forma que eu o tratava. Eu o
recebia numaponey shed que nós transformamos em sala de terapia.
E. Vidal: Que idade tinha Peter quando iniciou o tratamento?
F. Tustin: Ele tinha seis anos quando chegou.
E. Vidal: E agora?
ENTREVISTA 97
F. Tustin: Agora ele deve ter uns 25 ou 26 anos. Bom, de qualquer maneira,
quando acabou, tinha 11 anos. Ele teve duas provas muito difíceis: uma delas era
a bolsa de estudos de uma escola estadual e a outra para (inaudível na fita). Então
eles decidiram mudar-se de Manchester, pois, na cidade, todos já-sabiam que ele
havia sido autista. Então, eles decidiram ir para a América onde ninguém saberia
que ele havia sido autista. Ele foi à Universidade na América e conseguiu um
título em bioquímica. Bom, depois de mais ou menos nove anos, ele escreveu
para mim. Coloquei um pedaço dessa carta no livro. Ele escreveu: "obrigado por
ter me livrado do autismo Mrs. Tustin." Também me perguntou se quando publi
casse um livro, mandaria para ele na América. Mandei, é claro. De qualquer
maneira, ele já estava na Universidade. Estava aprendendo japonês também.
Depois de cinco ou seis anos, um dia o telefone tocou e alguém disse: "este é seu
antigo paciente autista." Era ele. Os pais tinham se separado. A mãe ficara na
América com .? filha e Peter, como o chamei no livro, voltara para a Inglaterra
com o pai. Ele estava morando em Hampstead e queria ver-me. Logicamente, eu
disse que viesse. Estava procurando o que fazer como trabalho e pensava em ser
osteopata. Estes professores manipulam os ossos do corpo e são muito bons no
tratamento da coluna. Temos uma clínica aqui perto que faz tratamentos naturais
e há um osteopata que conheço bastante bem. Uma pessoa legal! Quando Peter
me comentou que ele queria ser osteopata, eu lhe disse que lhe apresentaria Mr.
Stangle. Ele aceitou e fomos conhecê-lo. Fomos até o seu consultório e ele nos
falou sobre como é ser um osteopata. Durante a entrevista, Peter comportou-se
normalmente, exceto que, como todos os americanos, falou rápido demais. Ele
me contou que havia feito antes uma entrevista para ser treinado como osteopata,
mas ao contar que havia sido autista, não foi aceito. Aqui, na Inglaterra, dizer que
se é autista é como dizer que se tem uma doença venérea. Depois ele decidiu ser
fisioterapeuta e foi estudar na Escócia. Quando veio até mim, queria ser budista,
estava muito interessado na religião budista, mas era judeu. Ele nunca tinha tido
uma namorada e estava chateado com isso.
que ele estava fazendo, mas achavam que ele não estava ajudando o menino com
os seus sentimentos. Foi por isso que vieram a mim, depois de terem consultado
outras pessoas, apesar de que morava longe. Eles estavam certos quanto à decisão
de mudar de terapeuta. Foi assim que tive "tio Jeff' como antecessor no tratamen
to. Ele não interferiu no tratamento e estabelecemos uma boa relação; ele vinha
me visitar e conversávamos. Realmente tinhamas uma relação amigável. Fiquei
um pouco preocupada, porque ele era muito estrutural. De qualquermaneira, ele
continuou em Manchester e Peter o via uma vez por semana. Mas, tristemente,
há alguns anos atrás, "tio Jeff' se suicidou. Era um homem muito infeliz e com
muitos problemas. Ele quase não mantinha relações com as pessoas, apesar de
que Peter se apegou muito a ele. O Peter vinha me ver apenas, vezes por semana.
Achei que tinha que ajudar es�a pobre criança apegada às suas chaves. Ele estava
melhor do que poderia estar. E interessante segui-lo.
E. Vidal: Você tem experiência de acompanhar alguns casos depois de
concluído o tratamento?
F. Tustin: Não se vê a maioria das crianças depois de acabado o tratamento.
Sabe, não voltei a ver nenhum dos outros, pois, quando o tratamento chegâ ao
fim os pais querem esquecê-lo. Com os esquizofrênicos não é assim: eles me
trazem flores, me mandam cartões de Natal, são muito diferentes.
E. Vidal: E os autistas?
F. Tustin: Eles cor!am o relacionamento. De certo modo, os próprios pais
são um pouco autistas. E uma memória dolorosa que eles querem esquecer. Mas
o caso do Peter é diferente. Ele e seus pais continuam mantendo contato comigo
e ele já veio me ver. Inclusive sua mãe, que é agente de viagens, quando veio à
Inglaterra me ligou perguntando se poderia me ver. Infelizmente ela ligou em
cima da hora e não pude vê-la, pois já tinha um compromisso. Ela prometeu ligar
de novo. Teria sido bom saber se a questão da sexualidade de Peter progrediu,
mas acho que não.
E. Vidal: Como o autista poderá abordar a experiência da sexualidade? É
uma que_stão crucial, pois a experiência traumática emerge no encontro com a
sexualidade.
F. Tustin: Sem dúvida, sem dúvida. Acho que você concordará que há sempre
algo em todos os casos de que nos arrependemos, que lamentamos. Sempre
pensamos que poderíamos ter feito melhor. Por exemplo, no caso de John, se eu
tivesse visto a mãe e a acompanhado mais de perto. Ou no caso de Peter, se tivesse
sugerido a continuação do tratamento, se tivesse mantido mais contato, se tivesse
telefonado mais vezes ... Eu o pus em contato com uma psicoterapeuta em Londres
que tinha se supervisado comigo. Ela se encontrou com ele várias vezes, mas isso
acabou logo. Eu fiz alguma coisa, mas acho que poderia ter feito mais. Achei que
ele não suportaria uma terapia com alguém que não fosse eu. Tratamento, para
ele, era com Tustin.
PARTE III
Com Freud
e Lacan:
A Estrutura
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN
Benita Losada A Lopes
UMA INTRODUÇÃO
Grafo
ISSO
A S Gozo
a � Angústia
-$-
Desejo
-- -- - - - -- ......
''
Espelho Plano
\
\
Espelho
Côncavo I
I
I
.,,
..... .... - -- -- - - - -
'
> ,,
Y'
,,
Esquema dos dois espelhos
Este segundo esquema é uma outra forma de dar conta da metáfora paterna:
NP . DM -+ NP (A) FALO
DM X FALO
teste de Binet, o sujeito não sabe subtrair-se da cadeia e responde: "Eu tenho três
irmãos, Paulo, Ernesto e Eu", e Lacan então dirá: " ... alguma coisa não está
terminada, preciptada pela estrutura, ainda não se distingue, na estrutura, o que é
reflexo (eu ideal) e o que é traço (ideal do eu)" 15 , não se trata ainda do sujeito
cujo significante o representa para outro significante.
Os grafos e os esquemas do modelo são articulações que não se superpõem,
mas, com o Fort-Da, cada um em seus termos, remetem às mesmas articulações
sobre o percurso lógico, sobre a marcha para o acesso ao significante, à estrutura
do desejo, que exige a imagem unificada e comporta a distinção entre gênese do
eu e constituição do sujeito e evidencia momentos lógicos da construção, de uma
escritura possível numa análise.
O esquema III do modelo demonstra que, uma vez que o sujeito alcançou a
posição S2 em I (S 1 - S21), percebe diretamente a ilusão do vaso de flores invertido
e verá refazer-se no espelho plano na horizontal, numa rotação de 90°, quarto de
volta que faz pensar na passagem do materna do discurso histérico ao discurso do
analista (uma imagem virtual i'(a) + a do mesmo vaso de flores que inverte de
novo a imagem real, cujo reflexo é agora no lago, na água, sem cristalização.
1 80°
Espelho
A
Grafo Completo
Gozo
(S ◊ a)
Significante
Voz
1 (A) 3
Com Dick, Melanie Klein achou necessário modificar sua técnica habitual,
já que somente interpretava quando o material se expressava em várias represen
tações. Melanie Klein usou como base para suas intervenções seu conhecimento
teórico, interpretou do lugar do saber. Na primeira sessão Melanie Klein comenta
que Dick "não manifestou qualquer espécie de afeto quando a babá o deixou e
retirou-se da sala, e, quando lhe mostrou os brinquedos, olhou-os sem o menor
interesse."23 E então Melanie Klein descreve que pegou um "trem grande", colo
cou junto a um "trem menor" e os denominou: "papai e Dick." O menino pegou
o trenzinho Dick, rodou até a janela e disse: "estação." Melanie Klein explica-lhe
que "estação é mamãe e Dick está entrando na mamãe." Dick larga o trem e corre
até o espaço entre as portas interna e externa da sala e ali fechou-se dizendo:
"escuro." Em seguida sai correndo e repete várias vezes "escuro''.23 Melanie Klein
novamente explicou-lhe "está escuro dentro da mamãe, Dick está dentro da
mamãe", quando então Dick verbaliza duas vezes, em tom de interrogação: A
babá? A babá?
Na terceira sessão, Melanie Klein narra que "comportou-se da mesma manei
ra, correndo para o esconderijo entre as portas, mas também escondendo-se atrás
da cômoda, sendo então tomado de anfil1stia e a chamou pela primeira vez, mas
perguntando constantemente pela babá." 4
Lacan abre seu comentário sobre o caso Dick dizendo que Melanie Klein
"enfia simbolismo no pequeno Dick"25 , que Melanie Klein "joga Dick brutalmen
te no mito edípico."26 E Lacan conclui, "mas é certo que depois dessa intervenção
alguma coisa se produz."27
Para Lacan, como já dissemos, Dick era um "jovem sujeito inteirinho na
realidade, em estado puro, inconstituído (inconstituée) ... no indiferenciado"28 e
a intervenção de Melanie Klein opera como uma verdadeira injeção de simbólico.
O Édipo, enquanto lei fundamental, é a lei da simbolização. Quer dizer, Dick, que
vagava na linguagem, após a interpretação de Melanie Klein, verbaliza seu pri
meiro apelo, apelo falado. E Lacan dirá que, até então, Dick apresentava negati
vismo, quer dizer, desmescla pulsional, ausência de componentes libidinais, como
Freud define em "A negação" (1925). Em Dick, real e imaginário eram equiva
lentes, havia desarticulação entre os registros, em Dick, essas categorias estavam
soltas. A intervenção de Melanie Klein permite alguma organização com Lacan
dizendo que todo um processo parte desse primeiro afresco que constitui uma
palavra significativa.,
Segundo Lacan, quando Dick pronuncia a palavra "estação" ocorre a primeira
articulação entre simbólico e imaginário, momento crucial, "momento em que se
esboça a junção da linguagem (simbólico) e o imaginário" 29 e a intervenção de
Melanie Klein vai constituir-se como "uma primeira marca significante que ...
produz reação de apelo, que não é simplesmente um "apelo afetivo", mimetizado
º,
por todo seu ser, mas apelo verbalizado que comporta resposta"3 portanto ocor
reu um certo endereçamento ao campo do Outro. "Apelo" supõe um Outro, onde
a palavra possa enlaçar-se, articular-se e retornar uma significação. Em Dick, a
partir "dessa primeira célula, desse núcleo palpitante de simbolismo, Melanie
Klein diz ter-lhe aberto as portas do inconsciente."3 1 Quer dizer, dirá Lacan, "é
1 14 O AUTISMO
NOTAS
1 . LACAN, J. Livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 954-1 955.
2. -. Livro 1, Os escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, 3. ed., Jorge Zahar Ed.,
1 953-1 954.
3. -. Seminário VI, Les desir et ses interpretation, inédito, 1 958-1 959.
4. -. Livro 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 964-1 965.
5. -. Seminaire VI, Les desir et ses interpretation, inédito, lição 5, p. 4, op. cit.
6. -. Livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, op. cit.
7. -. Livro 1 , Os escritos técnicos de Freud, p. 1 86, op. cit.
8. -. Observación sobre el informe de Daniel Lagache: "Psicoanálisis y estructura de la
personalidad." México, in: Escritos 2, Siglo veintiuno ed., 1 960.
9. -. Ibidem, p. 303/306, 606.
1 0. -. Ibidem, p. 602.
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 1 15
117
1 18 OAUTISMO
A ALIENAÇÃO
O Projeto Freudiano, entre o Grito e a Coisa
Uma sistematização da operação de alienação do vivente no campo do Outro
é essencial para pensar a cura da criança autista pela psicanálise.
Em 1895, Freud introduz a "experiência de satisfação" que determinará a
primeira inscrição fundante de um aparelho psíquico. No "Projeto", como estamos
acostumados a chamá-lo, Freud dá a formulação mais pormenorizada da entrada
do "organismo humano" na linguagem. Que os termos sejam tomados da neuro
logia, não implica que o aparelho deva ser identificado a um órgão biológico. O
aparelho do "Projeto" é constituído por conexões entre neurônios e barreiras de
contato que possibilitam a circulação e regulam as passagens de Q (quantidades).
A circulação de Q não é inteiramente livre nos neurônios, pois uma certa
resistência , equivalente em todas as barreiras de contato, opera como uma cons
tante a ser vencida em cada passagem. A quantidade Q provém do exterior do
aparelho, seja do mundo externo ou do corpo próprio existente como radicalmente
alheio ao sujeito. O aparelho deve lidar com as Q e seu primeiro trabalho é
livrar-se delas pelas vias de descarga. Porém ::is passagens constantes de Q deixam
trás de si rastros duradouros que denominamos memória e que constituem o
sistema 'I', uma escritura dos trilhamentos (Bahnungen) preferenciais na consti
tuição de um sujeito. Um aparelho assim constituído não se descarrega comple
tamente e deve aprender a suportar uma certa acumulação da Q. Como conse
qüência da impossibilidade do escoamento total da Q, o aparelho deve aprender
a suportar esse aumento do nível da tensão, trabalho que promove novas diferen
ciações, novas ramificações simbólicas que produzem atos transformadores no
mundo exterior. Consideramos importante salientar que o aparelho se encontra
especialmente despreparado para a Q do corpo, antecedente teórico do conceito
de pulsão. Ela é recebida pelo sistema 'I' como algo heterogêneo, isto é, como um
real traumático, excessivo e "antes"do tempo. O sistema 'I' chega sempre "só
depois" (nachtrãglich). Dessa discordância, surge uma urgência no aparelho que
se realiza como descarga pela via do ato. De acordo com a experiência, a primeira
via percorrida é a da alteração interna, caracterizada pelo grito. Freud se refere
aos signos de descarga de linguagem (Sprachabfuhrzeichen) essenciais para a
inscrição da criança na dimensão do símbolo. Devemos destacar que o aparelho
é constituído de uma falta (Mangel) que é suprida pelos signos de linguagem .
Como se chega à associação com esses signos? A linguagem é correlativa da
função do juízo (Urteilsleistung) e funciona como válvula de segurança na regu
lação da Q no aparelho através do trilhamento (Bahnung) que conduz à alteração
interna antes da descoberta da ação específica. O grito é, em princípio, um meio
de descarga da tensão de Q acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado
de desamparo e urgência em que se encontra a criança . A função secundária desse
trilhamento é servir ao entendimento (Verstãndigung), quando incluída a ajuda
alheia na ação específica. Para o ser falante os aparelhos de adaptação à vida são
precários e isso é decorrente do fato de estar submetido à linguagem. É imperativo
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 19
que ele faça saber sua carência e estabeleça um acordo com o Outro. Estes sentidos
se encontram no termo Verstiindigung e caracterizam com precisão a função
simbólica que se inaugura com o grito. O Outro é chamado a socorrer essa carência
inicial que Freud denominara Hilflosigkeit, desamparo. A intervenção do mundo
exterior constitui a ação específica. Citamos Freud:
"Como demostramos inicialmente nenhuma descarga desta espécie pode
esgotar a tensão, pois apesar dela persiste a recepção de novos estímulos
endógenos, que restabelece a tensão psi. Neste caso, a estimulação só pode
ser abolida por meio de uma intervenção que suspenda transitoriamente o
desprendimento de Q no interior do aparelho e uma intervenção desta espécie
requer uma alteração no mundo exterior(aporte de alimento, aproximação do
objeto sexual),que sendo uma ação específica só pode ser alcançada por
determinadas vias ... Esta via de descarga adquire assim a importantíssima
função secundaria do entendimento e o desamparo original do ser humano se
converte assim em fonte primordial de todas as motivações morais". 1
é da relação do Outro com a sua falta que dependerá a estrutura psíquica do sujeito.
Assim não há como surpreendermo-nos com o fato de que a renovada tentativa
de satisfação da necessidade veiculada pela demanda possa ocasionar como re
sultado uma devastação psíquica. A demanda é sempre de outra coisa diferente
do que ela evoca, pois ela se endereça à falta do Outro. Ela é demanda de amor;
o que o Outro oferece é sua falta sob a forma de seu dom. O discurso analítico,
ao restituir a função de falta da demanda, faz surgir a pura perda como condição
absoluta do desejo.
No campo do Outro, onde a demanda é articulada, produz-se a dimensão do
sentido. O Outro primordial é interpretante e imprime seu capricho àquilo que
ouve. A onipotência não é do bebê, como a psicanálise tende a afirmar, mas do
Outro que decide pelo significado da mensagem e age concomitantemente. O
sujeito, desde seu nascimento, e ainda desde antes, está submetido ao mal-enten
dido de habitar a linguagem. Esse é o verdadeiro trauma de nascimento. O Outro
é primordialmente o lugar de um saber, da suposição de um saber poder responder
às demandas do sujeito. A entrada do vivente no simbólico faz-se ao preço dessa
alienação em que o Outro representará o todo poder da palavra sobre o sujeito.
Interroguemos ainda a função do grito. Lacan no seu seminário "Problemas
cruciais para a psicanálise" (1964-65) nos indica que o grito se diferencia de
qualquer outrn forma de linguagem por fazer ressoar esse oco do Outro que
encontramos em nós mesmos, esse oco infranqueável ao qual nos aproximamos
com precaução. O grito constitui o vazio por onde o silêncio se precipita. Se 1.acan
na sua primeira pontuação sobre o grito o situa na sua dimensão pré-significante,
na retomada da questão, em 1965, enfocará o grito na sua relação com o vazio do
Outro que ele próprio cava. No grito há um aparelho que emite o som, mas falta
o corte próprio da cadeia significante, quando ela se vocaliza no discurso. Trata-se
da voz , esse objeto que faz do grito algo diferente a qualquer demanda exprimida
na sua forma modulante. 1.acan cita o quadro de Munch, onde o sujeito, ao gritar,
tampa os ouvidos. Quem escuta esse grito? Pergunta-se. O contorno de duas
figuras sobre a ponte presentificam o Outro. Há uma borda feita de três barras
que divide o quadro no sentido da diagonal e separa a ponte de um turbilhão de
linhas curvas que apresentam o vazio aspirante, esse abismo que é a face real do
Outro, onde o grito se repercute sobre uma baía azul num céu cor de sangue. Nós
estamos frente ao quadro que nos requer como olhar. Munch dá o suporte para o
insuportável e produz algo da ordem do que Paul Claudel denominava - "o olho
que escuta;' Quem escuta esse grito? Pois nós temos o silêncio. O grito produz
o silêncio. E a hiância aberta na qual se desenha a borda do vazio do ser falante.
Freud reconhece no complexo do semelhante a parte muda, inassimilável que
permanece imutável: a Coisa (das Ding). Excluíd,a no interior do campo do Outro,
a Coisa não recebe atributos, não é predicável. E o fora-significante na estrutura
da linguagem que inaugura uma nova topologia do sujeito. No cerne do incons
ciente está a Coisa, esse vazio intransponível do qual o sujeito se mantém a
distância. O primeiro Outro, que encontra no semelhante um suporte, é partido;
a Coisa é a parte não reconhecida, não identificável que permanece imutável igual
a si mesma. Das Ding é o Outro absoluto,, esse real que confere um lastro ao
sujeito evanescente entre os significantes. E em relação a das Ding que se deter-
1 22 OAUTISMO
A Identificação
qual se aplica o objeto real no anel orificial, numa forma de costura que denuncia
o caráter precário da acomodação e indica o pouco acesso que o sujeito tem à
realidade de seu corpo, sua "obscura intimidade." As duas imagens i'( a) e i(a) se
alternam numa tensão constante própria do transitivismo imaginário. Uma regu
lação das imagens narcísicas se faz necessária. O Ideal do Eu, I(A), instância
articulada ao campo do desejo, é a formação simbólica que realiza essa regulação.
É o ideal do Outro que, enquanto lugar do discurso, atravessa a relação especular.
O processo iipaginário, como Lacan o indica em "Subversão do sujeito e dialética
do desejo" (Ecrits, pág. 809), vai da imagem especular à constituição de eu (moi.),
implicando a ação do significante que instaura o sujeito do inconsciente. A
instância do ideal é o conjunto de marcas do Outro que são as insignias a serem
situadas na sua dimensão emblemática. O modelo do esquema ótico oculta a
função essencial do olho que vê, pois não se trata apenas da formação de uma
imagem, mas do investimento libidinal que sustenta essa imagem e lhe confere
seu poder. O olhar não é representável e o sujeito não pode se ver do lugar a partir
do qual o Outro o olha. O olhar é objeto que carece de imagem no espelho, sendo
a montagem do esquema ótico insuficiente para designar seu lugar.
O AUTISMO
A criança autista está imersa na linguagem e, no entanto, é impossibilitada
de aceder à alienação. A alienação não consiste apenas em que o sujeito se
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALI ENAÇÃO... 1 27
constitua no campo do Outro, mas que resulte dividido na linguagem. Sua divisão,
entre dois significantes, confronta-o com que se produz, ao falar, um gozo que
cai no intervalo. A manifestação precoce do autismo não se re(luz a transtornos
da afetividade e sim a forma na qual o par significante se articula no campo do
Outro. Lacan, no seminário 11, apresenta-nos o momento inaugural em que o
sujeito como X é antecipado no campo do Outro. Há a necessidade lógica de
conceber um S1 só, antes de representar o sujeito para outro significante. S1 é,
por excelência, o traumático da incidência como um raio do desejo do Outro. O
sujeito é esse significante sujeitado na série das identificações constitutivas de seu
ideal do eu: "eu sou" no significante do desejo do Outro, o que se demonstra
francamentenão-sensical. Em torno dele se organiza o cerne do recalque origi
nário. Entretanto, é essencial o lugar do Outro para que, a partir do segundo
significante, haja retorno e se conte o sujeito. Determina-se, então, a série das
significações do sujeito em relação ao desejo do Outro. O S1 seria, nesse tempo,
articulado ao �2, produzindo a cadeia significante.
No seminário 20, Lacan interrogou ainda a função de S1 para concluir que
ele é enxame (S1, essaim ), enquanto é o significante-mestre quem assegura a
unidade de copulação do sujeito ao saber.
S1(S1(S1(S1 - - - - -+S2)))
mesmo modo, a criança autista aprende textos que são repetidos sem nenhuma
variação, fato que é interpretado como prova de concentração e memória. Presen
tifica-se no automatismo uma ausência de abertura ao saber como questão que
implica a verdade. O S1 é o não todo na linguagem, porque ele só subsiste na
cadeia que instaura. Quando for desprovido de sua função, fala sozinho, sem parar.
Fala em-si e para-si. Não fala para o Outro. São sujeitos de um único significante
- at oneness - segundo Tustin. Os autistas são personagens verbais, diz Lacan.
Eles escutam a si-mesmos, pois estão num gozo fechado que dispensa a existência
do Outro. Não escutam o que lhes dizemos, enquanto nos ocupamos deles, pontua
Lacan. Rejeitam deparar-se com o que lhes dizemos e não nos escutam. Isso faz
que não os escutemos e cheguemos a pensar que eles não falam.
No campo do Outro, há impossibilidade de que a relação sexual seja dita; isso
nos conduz ao real. Que algo possa ser dito ou não é questão de forclusão na
linguagem. Lacan formula no seminário "...ou pire" que "não há forclusão senão
do dizer". A relação sexual não existe na medida que não pode ser dita nem escrita
Dela depende o que se elabora num discurso sempre roto. O nó borromeano,
apresentado nesse seminário, é a escritura como resposta do real da inexistência
da relação sexual.
A ex-sistência do Um está no fundamento da cadeia. Só há cadeia do que
ex-siste. O enxame significante implica na escritura nodal que dá acesso ao real.
A cadeia borromeana tem a propriedade de que, ao retirar dela um elemento
qualquer, todos os outros se liberam. Só em três começa uma cadeia deste tipo.
Por esta propriedade, só em três podemos falar de buraco verdadeiro e de supo
sição de sujeito. São os três registros que assim enodados produzem o sujeito. A
cadeia borromeana supre, de algum modo, o déficit do Outro, sua falha. O Outro
é barrado e a emergência do sujeito implica na repetição inaugural da não relação
entre Um e Outro. Dois não fazem relação, o que se enuncia como a impossibi
lidade de se inscrever o que é do sexo no inconsciente. O três ata o que o dois
não une. A propriedade borromeana de enodar três supõe a função do quarto termo
suplementar. A ausência de enodamento designa a forclusão, e a suplência, a
reparação. A ex-sistência do nó, que é real, confronta-nos com a ação de uma
forclusão mais radical que a do Nome do Pai. No contragolpe do verbo emerge
o imundo, o dejeto, o objeto no buraco bordeado pelo ponto triplo do nó. Uma
orientação do real forclui o sentido que resulta da dimensão simbólica do incons
ciente enraizada na imagem do corpo próprio. No Seminário "R.S.I." Lacan
enuncia "o real é o que ex-siste ao sentido." Ex-siste à consistência própria à idéia
de corpo e ao simbólico que se constitui em torno da função do buraco. O três da
ex-sistência do real faz copular o dois. O ponto triplo é a escritura do nó borro
meano e a cunhagem (coinçage) que localiza, cinge, aperta esse resto de gozo e
letra que é o objeto a. O nó borromeano não é um modelo. No dizer de Lacan é
a estrutura enquanto aí se figura a consistência do imaginário, a insistência do
simbólico e a ex-sistência do real. A escritura do nó realiza o esvaziamento de
gozo, apertando esse nada que é o objeto a, porém não redutível a dimensão zero
de um ponto geométrico, porque aí estão amarradas as três dimensões: R, S, I.
A criança nasce como dejeto da repetição inaugural da copulação do Um e
do Outro, o que implica na produção de uma falta. Um sujeito emerge ali onde o
O QUE OAUTISTA NOS ENSI NA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 29
Outro se barra. A criança, como objeto a, patentiza a perda de gozo do ato que a
engendra A constituição do sujeito comporta a sentença da ética freudiana: "onde
isso era, devo eu vir a ser." Onde era isso, objeto a, devo tornar-me sujeito. A
premissa ética é imperativa: o ser falante deve realizar seu destino que é de se
inscrever no significante. Porque é ético, não é ideal. Nada dá garantia de que a
separação terá lugar; dependerá do modo com que o Outro inscreva sua falta.
A forclusão, produzida pela orientação do real, instaura a condição lógica
para a queda do objeto a como a-versão e impossibilidade do sentido. Sujeita ao
regime de contingência, a forclusão pode não operar. O Outro primordial não
apresentaria buraco e a separação do objeto a não se realizaria. Hipoteticamente
trata-se-ia de um Outro não furado precisamente no tempo lógico do advento do
novo sujeito. Essa forclusão original não opera no autismo. O Outro do autista
não apresenta Q buraco que permita figurar a ex-sistência.
Os psicanalistas, que se dedicaram ao tratamento de crianças autistas, se
referem à depressão materna que precede o nascimento. A mãe estaria absorvida
por uma perda irreparável que não permitiria constituir o lugar de uma falta em
que o filho venha a alojar-se. Sem a marca da libido objetal, não há lugar para o
corte que instaura um valor de gozo. Com isto a criança não acede a dimensão de
valor que é relativa a perda. Resine e Robert Lefort assinalam que a criança autista
encarna o objeto auto-erótico da mãe; excluído da causa de desejo, o autista é
confrontado ao objeto da necessidade.
O Outro para o autista é completo e não escreve,a falta simbolizável pelo -1.
Um significante a menos indica no Outro sua falta. E em relação a uma falta no
simbólico que uma perda se opera no real. O pai originário representa, no discurso
freudiano, ao menos-um da exceção. O pai primevo constitui uma necessidade
lógica do discurso, pois lhe é reservada a função de garantir a ex-sistência. O pai
ex-siste como pai morto. Dessa região em que não há significante, emerge o traço
unário que funda a primeira identificação ao ideal do eu. O Um do traço unário,
ao rebater-se sobre o Outro, o descompleta. O autista não acede à função do traço
unário formador do ideal. O S1, que o petrifica, não tem função de traço. É o puro
significante sem significância: é o significante sem a diferença, pois ela supõe
alteridade no Um. O Um do autista é sem Outro.
É da marca de um desejo que o sujeito depende para constituir-se. O autista
P,atentiza o deserto do desejo e encarna a mai� radical rejeição à falta no Outro.
E requerido que o desejo não seja anônimo. A familia é reservada a função de
veicular um resto numa transmissão. Os cuidados maternos, à diferença do que
propõem as teorias psicológicas, não são a resposta a um estado natural da
necessidade, mas ao modo em que a mãe articulou sua falta. Eles são portadores
de uma marca altamente particularizada e particularizante, dado que é na lingua
gem que a função da mãe se exerce, isto é, no domínio da pura diferença. A função
do pai não é um acréscimo que se adicionaria à díade mãe-filho. O pai funda essa
relação enquanto nome que vetorializa a lei no desejo. Precisamente porque
falamos em função paterna, referimo-nos tanto ao nome do pai quanto a função
do nome. A nomeação é um ?to que instaura o furo no lugar do Outro. Faz também
liame, laço, enodamento. E do necessário que um nome vem ao lugar onde o
1 30 OAUTISMO
nada; é apenas mais uma coisa entre os objetos que a circundam. A posição de
Dick, na transferência, assemelha-se àquela das crianças autistas na cura. No
entanto, a rápida resposta da criança às interpretações de Klein não caracteriza
plenamente o quadro de autismo. A posição subjetiva do paciente determina uma
intervenção até então nunca explorada por Melanie Klein. A analista recorre ao
saber obtido com outras crianças em análise e, apoiada na técnica do jogo, toma
dois objetos da caixa de brinquedo, um trem maior e outro menor e diz: "Trem
pai" e "Trem Dick". A criança, até então sem vínculo com a analista, pega o trem
nomeado "Dick" e o faz rodar até a janela e diz: "Estação".
Qual é a operação realizada por Melanie Klein? A analista fornece o par "Pai
-Dick". A introdução do significante do Norne-do-Pai situa Dick numa concate
nação significante, levando-o a produzir um terceiro: "Estação". A intervenção de
Klein instaura a célula elementar, o nó de linguagem em que um sujeito pode
emergir como significado do Outro na retroação da cadeia significante.
�
s (A) A
Estação / \ Pai-Dick
edipiana de modo a determinar uma posição inicial para a análise. Pensamos que
Klein opera a partir do lugar do Outro, fornecendo a rede para a constituição de
um saber inconsciente. A eficácia de sua análise com Dick radica, a nosso parecer,
no fato de suprir com pedaços de saber, algo que nunca tinha enunciado. Do lugar
do S2 como saber, Klein "chama" o primeiro significante instaurando o par e
antecipando a abertura do inconsciente. A nomeação, pai-Dick-mãe, inaugura a
seriação: babá -+ Klein... Seria incorreto reduzir a análise de Dick à primazia do
simbólico. A verdadeira mola da análise kleiniana é a angústia. E se Klein não se
extravia na série das equivalências simbólicas que a técnica do jogo promove, é
porque faz da angústia o termo essencial na direção da cura. Dela extrai a certeza
de seu ato e a orientação para o tratamento.
É função do analista não retroceder frente a angústia, sabendo fazer operar
um limite que a circunscreva. Que Dick aceda à dimensão da palavra, não depende
unicamente da introdução do mito edipiano. Foi necessário criar, na transferência,
o lugar de um vazio seP,arador. A angústia faz furo e produz o enodamento entre
linguagem e palavra. E um dos Nomes-do-Pai enquanto nominação do real. O
mundo exterior passa a ser relevante para Dick que se separa do real indiferen
ciado do qual era parte. A nominação da angústia provoca o buraco e a borda
nesse real, lugar lógico do objeto a na estrutura. A relação demasiado real com a
realidade segue um início de estruturação de real e imaginário.
A terceira sessão do tratamento de Dick é exemplar. O menino aponta para
um carrinho e diz: "Corta". Klein lhe dá uma tesoura que ele não consegue utilizar.
Ante o olhar demandante da criança, Klein toma a tesoura, e corta os pedaços que
Dick joga na caixa de brinquedos dizendo: "foi embora." O significante "corta"
pontua a operação efetuada na transferência; um corte de separação para que algo
venha cair. A impossibilidade de Dick estabelecer uma transferência era, segundo
Klein, decorrente de uma inibição precoce do símbolo, cuja causa era uma angús
tia insuportável provocada pelo corpo da mãe e seus conteúdos perversos e
sádicos. O corpo do Outro é lugar de um saber. O recurso ao mito edipiano opera
como um enxerto simbólico que supre a ausência de relação com o saber, o S2,
inaugurando um esboço de recalque. A interpretação força um movimento de
introjeção equivalente à incorporação totêmica do pai na tentativa de promover a
identificação fundamental da criança no campo do Outro. Dick diz: "Tea Dadd";
Klein: "Eat Daddy." O progresso da cura realiza-se a partir da instauração do par
significante S1 - S2 num sujeito que precariamente se sustentava num significante
só e retrocedia com horror toda vez que o saber do Outro era invocado.
Dick encontrou, na sua análise, a oferta de um recurso para produzir um lugar
fora de si-mesmo, um segundo lugar em relação à unicidade do primeiro signifi
cante. O enxerto simbólico oficial de ponte que conduz Dick até o lugar do S2,
onde se produz sua resposta de apelo.
assegura que o gozo exista no circuito da máquina num modo precário de ex-sis
tência.
Essa máquina difere do aparelho de influência descoberto por Tausk na
psicose. O "aparelho" de Tausk é uma máquina que presentifica o comando do
gozo do Outro sobre o sujeito. O aparelho do autista, ao contrário, busca fazer
ex-sistir esse gozo ali, onde não houve corpo nem hiância do Outro. A máquina
é um resto da análise de Joey que sela um término, algo equivalente à função do
sinthoma. Lembramos que, com esta grafia, Lacan escreve a função de um quarto
termo que realiza um enodamento em suplência da cadeia borromeana de três.
Considerava que a produção do sinthoma em análise poderia ser indicativo, para
certos sujeitos, de um ponto final do tratamento. A análise do autista não desem
boca necessariamente na psicose. A produção da suplência permite vislumbrar
um outro término. Lacan assinalava que nem todos os autistas se encaminhavam
para alucinação das vozes, mas todos eles articulavam muitas coisas. A suplência
tende a compensar um déficit da estrutura e, em grande parte, o consegue. No
entanto há um resto do autismo que parece intransponível. O sujeito resta fora do
inconsciente sem participar do equívoco e do mal entendido da linguagem, sem
poder aceder a função de semblante com que a verdade se elabora no discurso.
NOTAS
1 . FREUD, S. "Proyecto de uma psicologia para neurólogos." Tradução: Ludovico
Rosenthal, Buenos Aires, Santiago Rueda Ed.
2. Ibidem.
3. FREUD, S. "A negação - Die Verneinung." Tradução: Eduardo Vidal, in: Publicação
Letra Freudiana nº 5.
4. LACAN, J. Ecrits. Paris, Editions du Seuil. 1 966, p.388.
5. FREUD, S. "A negação", op.cit.
6. -. I bidem.
7. -. Ibidem.
8. LACAN, J. Le Séminaire XX - Encore. Paris, Editions du Seuil. 1 975, p. 1 3 1 .
BIBLIOGRAFIA
BITTELHEIM, B., La fortaleza vacía. Barcelona, Editorial Laia, 1 972.
FREUD, S. "Psicologia das massas e análise do eu." Cap.VII: A Identificação - Tradu
ção a ser publicada..
KLEIN, M. "La importancia de la formacion de simbolos en el desarrollo dei yo." 1 930,
in: Contribuciones ai Psicanalisis. Buenos Aires, Ediciones Hormé. Paidos, 1 964.
LACAN, J. "Conférence à Genve sur le symptôme." Le 8/oc Notes de la Psychanalyse
nº 5, Geneve.
-. Le Séminaire 1 - Les écrits techniques de Freud. Paris, Editions du Seuil, 1 975.
-. Le Séminaire IV - La Relation d'ojet Paris, Editions du Seuil, 1 994.
-. Séminaire IX - L'ldentification (inédito).
-. Le Séminaire XI - Le Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris, Seuil,
1 9 73.
-. Séminaire XIV - La logique du fantasme (inédito).
1 38 O AUTISMO
QUANTO À ESTRUTURA
QUANTO AO O BJ ETO
Se o Outro não é furado, o sujeito nada pode tomar dele. Falha a dimensão
da demanda ao Outro que depende da destituíção do objeto real, com sua passa
gem ao registro significante, operando aí uma perda. M.F. se dirige ao vazio da
janela, apelo à ausência real que não pode alimentá-la Ou ainda fica parada diante
do prato de arroz, sem poder tocá-lo, porque no nível oral a atividade do comer
cavaria o furo ao nível de sua boca. O objeto só toma lugar na montagem pulsional
se o Outro é aí implicado. Mas para M.F. a relação do significante ao real do
corpo do Outrõ falha, deixando-os separados, cada um por sua conta, sem enla
çamento. Assim, ela não pode constituir-se como sujeito nesse ponto de vazio que
o objeto deixa no corpo do Outro.
A pulsão oral em M.F. é quase substituída pela pulsão escópica pois, nesta,
a dimensão de perda do objeto é diminuída ao máximo. Ela faz tentativa de
preencher a perda que a atividade oral de comer lhe anuncia, tapando não sua
boca, mas deslizando para o escópico, sobre o seu olho. O alimento assume então,
a dimensão de objeto real escópico.
A alimentação forçada à qual M.F. foi submetida resultou em bulimia com o
desinvestimento libidinal do alimento, passando o objeto oral a perder seu sentido
de objeto do corpo do Outro. Assim, oscila entre o vazio e a plenitude, toda-au
sência ou toda-presença
A analista R., em um primeiro tempo, é mais um entre os objetos reais para
M.F.. Em um segundo momento vem a esboçar um choro quando termina a sessão,
mas não chega a se transformar em apelo. R.L. aponta aí o fracasso de M.F. em
se fazer ouvir. Permanece na impossibilidade de inscrever o objeto separável que
ela poderia encontrar ao nível do corpo do Outro. Ao conduzir a mão de R.L. por
seu corpo mostra algo específico da relação do autista com o corpo do Outro:
manipula-o como um objeto que resta no real enquanto duplo real.
A QUESTÃO PULSIONAL
Somente quando se dá a passagem do real ao significante, através da inclusão
do Outro, é que o circuito pulsional se estabelece, possibilitanto ao objeto tomar-se
um objeto de demanda ao invés de permanecer no real do gozo. No caso de M.F.
há três vias pulsionais implicadas: a muscular, a escópica e a oral. Seus movi
mentos quase convulsivos, outras vezes marcados por uma violência, são inter
pretados por Rosine como pulsão sádica. A questão é como se organiza isso na
direção da cura enquanto primeira articulação do campo pulsional. Pois é neces
sário a participação do Outro para que esse circuito retome ao sujeito como um
vetor que articulou a demanda a partir do campo do Outro. Mas para M.F. é pelo
muscular que ela mais se aproxima de um contato com o Outro em uma deses
perada tentativa de feri-lo, atingi-lo, quem sabe, aí na fronteira de um corte
separador.
M.F. foi deixada por sua mãe aos dois meses de idade. Essa perda que ela
experimentou tão precocemente teve como conseqüência graves pertubações em
sua relação ao Outro. No nível oral ela oscila entre a incorporação do alimento
que não ganhou sentido como um objeto do corpo do Outro investido libidinal
mente, causa do desejo a ser tomado pela criança, e a recusa do alimento devido
à ausência do Outro, o que provoca uma inibição absoluta.Alterna a incorporação
compulsiva com a recusa radical. Ela o toma, então, em um deslizamento, como
objeto escópico real, ao colocar o bombom sobre o olho, quando não consegue
preencher com ele o furo da boca.
Entre ela e o Outro há um obstáculo: a pele sem furo que o significante não
pôde recortar. Suas tentativas de avançar na incorporação de R.L. como um objeto
se caracteriza por procurar absorver os objetos como duplos por toqa a superfície
do corpo. Quando tenta colar o marinheiro sobre o olho ao se presentificar uma
perda possível de R.L. no nível do escópico, ela termina por apagar o olhar
preenchendo sua iminente perda em benefício da manutenção da superfície do
olho. Ela recusa a demanda, um sentido. O objeto resta dolorosamente inacessível
para ela.
A indicação que R.L. faz de um auto-erotismo no uso de objetos duplos
servindo de tampas para os orifícios do corpo, indicaria já uma operação de perda
sobre o próprio corpo, promovida pela implicação de um Outro no circuito
pulsional.
Será que se poderia introduzir, nesse momento da direção da cura, essa
mudança na estrutura de M.F., já que o auto-erotismo supõe uma operação de
perda prévia ao retorno da pulsão sobre o próprio corpo?
R.L. afirma que há uma falta da metáfora paterna nessa forma de funciona
mento do circuito autista. No caso de M.F. ou faltava originalmente ou foi
dissolvida. A dimensão da substituição metafórica fica reduzida ao par de oposi
ção tudo ou nada, de toda-presença ou toda-ausência.
1 42 O AUTISMO
Para Rosine e Robert Lefort o autismo não tem ainda uma estrutura fixada e
sua saída aponta para a entrada na estrutura da psicose paranóica. Indicam uma
passagem possível do autismo à psicose. Na psicose o Outro estaria presente para
o sujeito enquanto o significante "quebrado" concerne ao objeto. O sujeito pas
saria à tentativa de restaurar o Outro para que seja absoluto, não lhe falte nada,
nem esteja em perigo de morte.
No autismo o sujeito é o objeto enquanto tal, que pode desaparecer sem o
Outro - o significante "partido" refere-se ao Outro -, marcando sua inacessibili
dade. Sem alguém que o sustente ele corre o risco de vir a desaparecer.
Pensamos, a partir da experiêcia de analistas que tomam em tratamento
autistas precoces, existir outra saída que não a psicose. Isso se dá quando substi
tuem o laço social do qual são incapazes, por algo, uma "máquina" como nos
casos "Joey'' de Bettelheim, "Dick" de Melanie Klein e "John" de Frances Tustin;
o resultado é uma estabilização. Isso aponta para a importância da intervenção
precoce nesses casos, com a conseqüênte mudança no destino da criança.
QUANTO À MÃE
Não há estrutura específica da mãe do autista. Rosine e Robert L. falam da
criança autista como um objeto en souffrance , não podendo existir, pois é uma
criança "não-endereçada". Ela não tem sua própria história porque sua história é
a da mãe. Isso já está presente mesmo antes de seu nascimento. Está em posição
de objeto do auto-erotismo infantil da mãe, objeto de uma fixação inconsciente
desse gozo revelado em análise da mãe. Esta, só constata a ausência de relação
da criança com ela sem nada compreender. O efeito da regressão ao gozo auto
erótico é a anulação do genitor da criança autista, devido à recusa da mãe ao
incesto com o seu próprio pai: retorno do recalcado. Essa mãe precisa saber, no
sentido S2 do Outro, que é a mãe dessa criança, encontrar um buraco no signifi
cant<:;, esse do Nome do Pai no lugar de seu Outro.
E pela irrupção da palavra que a criança pode sair desse lugar mudo de objeto
auto-erótico do Outro, no sentido de indiferenciada desse Outro, não separável do
corpo do Outro. Rosine e Robert são os únicos autores que abordam o autismo a
partir da noção de estrutura e que a colocam na causa da posição do autista e
orienta sua direção da cura.
É afirmando seu desejo de analista em ato fundado em sua posição ética que
o analista oferece a chance ao autista de encontrar um Outro não-toda-presença
ou não-toda-ausência. Seu "ser" de gozo poderá então, se inscrever como ser
falante no campo do Outro.
BIB LIOGRAFIA
LEFORT, R., R. O nascimento do Outro. Salvador, Ed. Fator, 1 984.
-. "Apports theoriques de la cure analytique du tout petit-enfant." Ornicar?, Paris, n.
26, 1 983.
1 44 O AUTISMO
1 45
1 46 OAUTISMO
ÇA) Outro absoluto, sem objeto separável. Ele é Um e como tal, não tem
necessidade de nada.
Como Um, ele é algo anterior ao significante, fora significante, antes de todo
recalque. Ele está no lugar do "mesmo" e não num lugar em espelho, idêntico,
que implicaria o significante.
Se nenhum objeto faz (-1) no Outro, o,autista não pode se separar dele e
confunde-se com ele no horror [S (a) = O]. E Marie-Françoise na beira da crise
convulsiva diante de prato de arroz que não pode tocar, pois se comeria a si
mesma.
Mas o autista não escapa a "alíngua" ("lalangue"), a ser apenas uma insígnia,
o Sl, que faz dele um puro significante, levando em conta, no entanto, que esse
significante é real e funciona como objeto.
Esse objeto do Outro - especialmente o olhar e a voz -toma-se uma presença
intrusiva da qual o sujeito se defende nesse mesmo nível orgânico: o olho dos
autistas é como um muro e, se eles não são cegos, é totalmente evidente que não
estão dotados do_olhar. Quanto à voz, o mutismo chamado psicogênico é um signo
importante do autismo. Inversamente o autista parece surdo à palavra do Outro.
Mas mesmo na ausência de toda relação com Outro, "como o nome o indica
(J. Lacan: Discurso sobre o Sintoma em Genebra) os autistas se ouvem eles
mesmos, eles ouvem muitas coisas. Isso desemboca normalmente na alucina
ção ...eles articulam até mesmo muitas coisas." Ele acrescenta que "são sujeitos
sobretudo verbais" colocando a questão de saber "de onde vem o que eles ouvi
ram."
Pode-se também colocar,ª questão do estatuto dessa palavra fechada sobre
ela mesma, que não circula. E provável que ela esteja no lugar do objeto que o
sujeito guarda para si, não se trata ao contrário do psicótico, de dirigir ao seu
Outro,já completo e absoluto, o mínino Gozo suplementário na medida em que
seja ainda possível para um Outro todo Um no Gozo.
I (Sl(a)): o ideal do eu vai aqui com o Sl, I(Sl) levando em consideração
que a prevalência do real substitui o simbólico que não há e que o Outro real "se
interpõe para o sujeito entre o gozo narcisista de sua imagem e a alienação da
palavra onde o ideal do eu toma o lugar desse Outro" (Escritos p. 572). Aqui pode
se indicar uma saída pela psicose.
4) O lugar do analista na cura da criança autista não pode em caso algum ser
o da estimulação que não visaria senão impor-lhe um Outro descompletado onde
uma báscula brutal em uma estrutura psicótica o forçaria a salvaguardar esse
Outro,,a automutilar-se para salvá-lo, no lugar de agredi-lo para fazer aí o seu
lugar. E este último ponto que deve ser respeitado e que torna a prática com os
autistas tão exaustiva.
Recebam, junto com estas notas, nossas melhores lembranças.
Até breve,
Vinhetas Clínicas
QUESTÕES ACERCA DO AUTISMO
Elisa Oliveira
F. contando 8 anos não falava. Nas primeiras sessões, circulava pela sala
subindo pelos móveis, espalhando pelo chão os objetos que encontrava e só parava
ao achar algo que se parecesse com um fio. Segurava este "fio", balançando-o à
sua frente. Era algo que o fazia parar mas, também aí, se perdia na repetição de
um movimento que insistia de uma forma estereotipada sem qualquer desdobra
mento. À analista fazia um certo endereçamento, sem emitir qualquer som, mas
cujo significado foi possível apreender ao longo das sessões. Ao me entregar um
fio e um objeto qualquer, insistia em gestos para que fosse feito alguma coisa, se
afligindo muitas vezes, sem conseguir o que queria. Após determinado tempo, em
função de algumas tentativas, foi possível descobrir, a partir de sua resposta, que
era para amarrá-los. Ao ver o fio ligado ao objeto, corria para pegá-ios, mas para
voltar ainda a um movimento estereotipado. Determinados momentos em que
parava estes movimentos eram, contudo, para imergir em grande aflição. Os sons
que emitia se transformam em gritos, passando a se balançar violentamente, sem
que fosse possível detectar o motivo e sem que nenhuma intervenção o fizesse
acalmar. Era um tempo de desespero ao qual estava só, sem que o Outro tivesse
condições de intervir, o que colocava este sujeito em um imenso isolamento. A
que responde isso? O que faz com que no lugar de um sujeito desejante, advenha
este ser muitas vezes tomado como coisa?
Seguindo a via marcada pelo ensino de Lacan, retornamos ao Seminário I,
onde é dada a indicação de que: se no autismo há um sujeito, é preciso determinar
o seu estatuto. Esta marcação, sem dúvida, tem conseqüências na direção de um
tratamento possível para estes pacientes.
O trabalho, ao longo das sessões com o paciente citado, me fez questionar o
que poderíamos designar como autismo.
No Seminário sobre angústia, marcamos o que diz Lacan a propósito da mãe
de uma criança esquizofrênica, pois quando a criança permanece para a mãe, ainda
após o nascimento, um pedaço de seu próprio corpo separado dela somente no
real, pedaço vivente que é necessário antes de tudo satisfazer às necessidades
fisiológicas para assegurar um bom funcionamento do organismo, quando o ima
ginário da mãe em relação a este filho é estéril, e se atesta a ausência de desejo,
de representação em torno da gravidez e do nascimento, já não se aperceberia aí
qualquer coisa da ordem da forclusão?
No autismo nos perguntamos a que nível chegaria uma ausência de signifi
cação do Outro. Ou mesmo, se é que uma criança autista representou algo no
desejo do Outro.
Retornando ao caso do paciente citado, é ao longo de entrevistas com os pais
que surge o mal-entendido existente entre o casal em relação à gravidez deste
filho. Em determinada sessão que o pai compareceu sozinho, menciona que sua
1 51
1 52 OAUTISMO
mulher durante certo tempo não sabia que estava grávida, só tomando conheci
mento do fato aos 4 meses de gestação. Em outra entrevista, estando o casal
presente, é retomada a questão da gestação. A mãe de F. diz para surpresa do
marido, que sabia desde logo da gravidez, mas só decidiu encarar o ocorrido aos
4 meses, indo ao médico. Esta situação, em função do estado em que se encontra
a criança atualmente, nos remete à questão do que se trataria para a mãe nesta
gravidez. Ao marido, parece não ter sido feito qualquer endereçamento, ele só
passa a saber, ou mesmo só decide saber o que andava ocorrendo, no momento
em que o médico entra neste circuito. Após estes primeiros 4 meses nenhuma
questão sobre o fato de querer ou não este filho. Ele simplesmente vem. Sobre o
nascimento, nenhuma palavra
Na trama fantasmática de cada um dos pais, esse não querer saber sobre algo
que cresce no útero,já não apontaria a dimensão que alcança este mal-entendido?
A quase total_ausência de relação ao Outro que atesta este paciente, nos leva a
con�iderar que desde antes de seu nascimento resta para este, que é o segundo
filho, ficar em um nível radical, fora do circuito do desejo do Outro.
Segundo Lacan, para a possibilidade da constituição de um sujeito desejante,
é preciso que o infariS ocupe o lugar do objeto a no fântâSma do Outro. Partin.do
deste lugar, a criança deve constituir-se ser do objeto.
Contudo, em relação à mãe, este primeiro Outro "é para além ou para aquém
do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é enquanto
que seu desejo é desconhecido, é neste ponto de falta que se constitui o desejo do
sujeito." 1
A partir destas colocações, nos perguntamos que partida se joga entre o sujeito
na posição de a e o Outro?
O infans vai permanecer durante muito tempo tributário do Outro para a
satisfação de suas necessidades vitais. A continuidade dos cuidados, o retorno
quase que idêntico, a repetição dos mesmos índices, são indispensáveis para que
as primeiras associações significantes e as construções dos objetos se façam em
torno da presença do Outro.
Na psicose, em função mesmo do lugar que este sujeito vem ocupar para o
Outro, não o de objeto a, mas o de objeto do gozo do Outro, se trata do impossível
da queda do objeto a, imRossível de uma primeira inserção simbólica e de uma
articulação do RSI, em termos do nó borromeano. Se uma primeira rede de
associações significantes não é.possível de ser feita em torno da presença do A
(não há possibilidade de uma "coesão" deste primeiro sujeito), o corpo permanece
despedaçado no real. Em relação a estes fragmentos, vem se estabelecer uma
linguagem à medida desta dispersão o que, na criança psicótica, muitas vezes vai
da ecolalia a uma incoerência verbal total.
No caso citado anteriormente, podemos supor um radical desajuste nas pri
meiras vias de relação ao Outro. Segundo os pais, é uma criança que não come à
mesa com os outros da farm1ia, porque não para se�tado. Em contrapartida, come
a todo momento. Raramente vai ao banheiro. "E de uma recusa! " - fala o pai.
Não dorme em sua cama. A mãe diz ser deprimente vê-lo dormindo sentado mas,
se o colocam na cama, ele não dorme. De F., nenhuma palavra.
QUESTÕES ACERCA DO AUTISMO 1 53
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
LACAN, J. O Seminário 1 , Os escritos técnicos de Freud . Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Ed., 1 983.
-. L'angoisse, 1 962, Seminário inédito.
-. Les formations de l'inconscient, 1 957-58, Seminário inédito.
AUTI SMO E PSICOSE
Vera Vinheiro
O traço unário teria a ver com a necessidade de se ter três tempos para ser
significante. Três tempos ou três escansões.
- No primeiro tempo há a primeira marca.
- No segundo tempo há o apagamento dessa marca.
- E no terceiro tempo há o apagamento do ato de apagamento.
Só, então, se dá a constituição do significante, pois o que confere à marca,
seu caráter de traço unário, é o efeito retroativo do terceiro tempo sobre o primeiro.
Na psicose existiria tembém uma marca significante, mas que não seria
equivalente ao traço unário. Que marca seria essa? O que é da marca deixada pelo
significante na psicose?
A criança psicótica receberia a marca significante, mas não entraria no jogo
significante. O neurótico entra nesse jogo, que é o jogo da ficção e é ao mesmo
tempo tomado pelo jogo. O psicótico não entraria realmente no jogo, sua reação
ao significante seria a da descrença.
Ele recebe a marca, mas o que vai caracterizar essa marca significante na
psicose, é que ela não vai ter as propriedades do significante vinculadas ao nome
do Pai. Ela não vai dar ao sujeito o sentimento de ser um e quando o faz não vai
ser o um que se conta, mas o um sem a propriedade da diferença. Há a marca e
todo problema é que o sujeito não consegue apagá-la, não consegue apagar essa
primeira marca que o situa como objeto no campo do Outro.
Na psicose não podemos afirmar a existência de uma marca que acede à
condição de traço. Podemos falar em significante que vem do real, como faz Lacan
no seminário sobre a psicose, ou seja, pelo menos há uma incidência da estrutura
da linguagem.
Uma análise da estrutura, quer dizer ainda, estudar a relação do sujeito com
o Outro e com o objeto. A criança autista não teria acesso ao Outro (enquanto
tesouro significante) e em conseqüência não haveria lugar do objeto a, pois este
se desprende do campo do Outro. Como poderemos pensar em estrutura consti
tuída, excluída do Outro e do objeto? Algumas crianças nos mostram, antes do
tratamento, que excluída do Outro, ela fica em espera. Portanto, não podemos
pensar o autismo como sendo psicose, pois a psicose é uma estrutura, onde há um
Outro não barrado e um objeto que não cai. No autismo haveria um ser com uma
estrutura não constituída, uma não amarração nos três registros - real, simbólico
e imaginário, com uma primazia do real, um real indiferenciado.
Com Lacan, podemos dizer - o ser antes do sujeito é como o autista está, que
aponta para situá-lo num momento hipotético de anterioridade ao espelho, onde
o sujeito deve vir a ser. Na psicose, o Eu, o corpo unificado, o sujeito dividido
do inconsciente, não estaria. Mas Lacan dirá que há um sujeito, sem divisão,
porém sujeito, ou seja, não é mais do ser que se trata.
Uma questão se coloca - se autismo e psicose não são da mesma ordem,
porque a tendência geral em situar o autismo como psicose? Talvez, porque a
psicose seja a saída que ocorra com maior freqüência.
Lacan nos dirá... "que se trate de fenômeno de ordem psicótica mais exata
mente de fenômenos que podem terminar em psicose, isso não me parece duvi
doso 1 . Essa pontuação determinante de Lacan - mais exatamente "que podem
terminar em psicose" -nos leva a considerar a criança autista, como inconstituída,
AUTISMO E PSICOSE 1 59
Será que o vidro pode funcionar como os dois espelhos em dois momentos
diferentes? Suas garatujas, desenhos de riscos de esconder e até letras o que
seriam? Seriam uma ponta de simbolização? F., sem dúvida faz uma saída, mas
uma �aída pela psicose.
E justamente na psicose infantil que podemos detectar aquilo que lacan fala,
de forma geral, para o psicótico: que ele é mais habitado pela linguagem, do que
habita a linguagem. No psicótico o Outro está de fora com o seu vozeirão (ele até
muda de entonação) invadindo-o sob a forma de alucinação. O Outro fala, o Outro
aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação, terror, pânico.
AUTISMO E PSICOSE 1 61
O que as vozes testemunham, senão isso? Que o Outro fala. Esse Outro que
fala e que está do lado de fora, da janela, justamente por não estar ancorado num
significante fálico que poderia fazê-lo calar, como na neurose.
NOTAS
1 . LACAN, J. O Seminário Livro I - Os escritos técnicos de Freud . Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 986, p. 1 2 7.
BIBLIOGRAFIA
ERICSON, N., VIDAL, M.C. "O autismo" in: Relatos dei Quinto Encuentro Internacio
nal de _ las psicoses, Buenos Aires, M.T. de Alvear, 1 988.
FREUD, S. "Psicologia das massas e análise do eu", in: Obras Completas, v. XVIII, Rio
de Janeiro, I mago Ed., 1 976.
LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. in:
Escritos. Buenos Aires; S.iglo XAi Ed., 1 987.
-. "Estádio do espelho". op. cit
-. "Informe à Daniel Lagache". op. cit.
-. O Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud - Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1 983.
-. O Seminário Ili - As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 983.
-. O Seminário V - As formações do Inconsciente, {1 958-59) inétido.
-. O Seminário IX - A identificação, ( 1 961-1 962) inédito
-. O Seminário X - A angústia. ( 1 963-64) inédito
-. "Duas notas sobre a criança". in: Omicar?, n. 3 7, Paris, 1 969.
LEFORT, R. e R. Nascimento do Outro: duas psicanálises, 2. ed., Salvador, Ed. Fator,
1 990. 1 1 98 7.
-. "O espelho paranóico". in: Falo 1 , Salvador, Ed. Fator,
DO ESCAPE ... AO MONSTRO
Tânia Dias Mendes
"É a imagem do corpo que dá ao sajeito a primeira forma que lhe permite situar
o que é e o que não é, do eu... ", "E pela possibilidade do jogo da transposição
imaginária que se pode fazer a valorização progressiva dos objetos"5 • Para que o
sujeito se constitua, é preciso que o primeiro olhar suposto da imagem seja do
Outro, que este marque pela palavra o seu desejo. Então o que resta ao autista,já
que não há esta marca, é ocupar o lugar de ser de gozo, condensação de gozo para
o Outro. L, em frente ao espelho dá um beijo na imagem refletida, indicando que
não há reconhecimento de sua imagem, e evidenciando a anterioridade lógica
necessária ao estádio do espelho. Em outro momento, começa a pegar determinado
objeto da sessão, no caso um caminhão, entrando numa brincadeira com a analista
e o caminhão, onde nomeia a passagem deste objeto, por baixo de um obstáculo,
dizendo "passar túnel." O passar em túnel, que segundo sua mãe ele adora. L.
neste momento nos diz algo de sua história. Lacan nos fala, que o sentimento de
realidade se organiza na continuidade histórica, e, ainda, o significante está dado
primitivamente, porém não é nada enquanto o sujeito não o introduz na sua
história. Pode-se pensar, aqui, como sendo um momento onde algo de sua história
é articulada. Porém para L., a continuidade histórica parece quebrada, como se
tivesse sido produzida uma detenção na continuidade da cadeia significante, nas
primeiras estruturações da imagem do corpo, e o mundo estará feito à imagem
deste corpo desmembrado, isto é, nos moides da psicose.
Os pais se separam e a partir deste momento, começa uma briga pela posse
do filho, que continua não marcado pelo desejo e sim disputado como coisa. O
desejo, porém, aparecerá em outro lugar, virá da babá. A presença da justiça
(separação litigiosa dos pais) cria a possibilidade de entrada da lei, que vai fazer
diferença na sua atuação frente ao Outro. Passa a apontar os seus machucados nas
sessões, começa a adoecer, aparecendo com sintomas no corpo; já não fica indi
ferente diante da agressão do outro, e teve uma manifestação agressiva dirigida à
babá, que causou enorme espanto a todos da fanu1ia.
E na direção da cura que se dá a saída do autismo. Neste caso, numa deter
minada sessão L. chega gritando, "monstro ...monstro", a analista lhe pede que
desenhe e assim acontece; faz o contorno de um corpo bem definido, com todos
os detalhes. Quando termina, nomeia claramente "monstro."
NOTAS
1 . LACAN, J. "Duas notas sobre a criança", in: Ornicar, n. 3 7, Paris, 1 969, p. 1 3.
2. -. Ibidem, p. 1 4.
3. LACAN, J. O Seminário 1 1, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 964, p. 226.
4. -. Psicanálisis, Radiofonia & Televísion. Barcelona, Ed. Anagrama, 1 977, p. 1 9.
5. -. O Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeito, Jorge Zahar Ed., 1 983,
p. 91, 96 e 1 00.
O AUTI SMO E SUA SAÍDA: O "PAI
DEMORADO"
Maria Lucia Castro Alves
Trago esse caso para ilustrar uma questão: uma criança autista em análise
demarca a sua estrutura psíquica.
C. iniciou atendimento com cinco anos e a queixa dos pais foi: "ele não fala...
joga os objetos e agride as pessoas". Aos dois anos foi feito exame de audiometria
que não revelou anormalidades. Os pais apenas informaram sobre um período em
que C. teve um isolamento, aproximadamente entre um e dois anos de vida, porém,
não trouxeram maiores detalhes. C. teve dificuldades para se alimentar, só aceitava
determinados alimentos. Com o crescimento, somente notaram o problema quan
do a fala não se apresentou na época esperada. Era uma criança agitada, com choro
sem fim.
O caso será dividido em três momentos:
Na primeira sessão ele pega os objetos, porém, sem estruturar jogos, não
brinca, não fala. Ao ser solicitado para jogar a bola, ele a deixa cair, sem intenção
de entregá-la. C. demora algum tempo para ficar sozinho na sessão.
No decorrer dos atendimentos C. tenta construir blocos empilhados, porém,
começa a montar e os desfaz. A analista pergunta o que ele está fazendo e C. não
responde, fica todo o tempo em silêncio, não diz nada, não pode falar.
A criança no primeiro momento apresentava uma descrição fenomenológica
de uma criança autista: mutismo, não estruturava jogos, produzia sons isolados e
gritos, não dirigia o olhar, não atendia o chamado, era indiferente à presença do
analista e também apresentava episódios de agredir as pessoas. Sem dúvida, foi
uma criança que recebeu cuidados de sua mãe, mas que lugar essa criança ocu
pava? Havia uma exclusão do Outro? Os gritos, os choros incansáveis puderam
ser escutados? Puderam retomar enquanto apelo?
Quando C. iniciou o tratamento, na primeira entrevista, na qual a mãe estava
presente, e� lhe diz: "fala", mas isso não tem efeito, porque não há possibilidade
de se fazer alguma ausência para que se construa um apelo ou demanda.
Lacan no Seminário XI coloca que o sujeito neurótico padece de duas faltas:
a real e a do significante. A criança autista estaria marcada por essa primeira falta,
pelo fato de estar submetido ao ciclo de reprodução pela via sexuada. A falta real,
é logicamente anterior e vem situar o advento do sujeito vivo e recobrir o fato do
sujeito depender do significante que está no campo do Outro. Dessa segunda falta
ele carece pois há uma exclusão do significante que vem do campo do Outro.
No primeiro momento C. estaria no indiferenciado, anterior aos esquemas
óticos, não se tem a montagem dos registros: RS.I. Há o imaginário confundido
com o real. O campo é pois, uniforme, indiferenciado. É do real que se trata. A
criança autista estaria situada então, num momento hipotético de anterioridade
1 67
1 68 OAUTISMO
aos espelhos, estando vetado a ela o acesso às imagens real i(a) e virtual i'(a'). A
imagem não se processa ou está fora do cone de emissão. Falta a articulação dos
três registros, o nó e a �strutura de ficção significante do segundo esquema.
Nesse primeiro rromento C. não fala e acredito que a presença da analista
fazendo-se testemunha do vazio, do silêncio, que trazido às sessões, pôde, en
quanto presença real, fazer suporte da oposição presença - ausência. Um jogo de
báscula. E com isso esvazia a demanda dos outros para que ele fale. A presença
da analista, mesmo enquanto presença real "é testemunha da perda irredutível". 1
O encontro é sempre faltoso.
A direção da cura nesse caso seria conduzir para que haja uma certa estabi
lização da imagem, uma certa acomodação.
Em uma sessão ele dá à analista várias peças de encaixe com as quais ele
constrói algo. Ele tenta recuperar os blocos, mas a analista diz que ele lhe havia
dado. Se instaura aí, uma perda.
Inicia-se o segundo momento do tratamento, marcado pelo surgimento da
fala. Quando é perguntado sobre o que está fazendo, ele responde "limpando" e
retorna ao silêncio. Nesse momento ele não responde a tudo o que lhe é pergun
tado, ora responde, ora silencia
Passa a dirigir-se a analista e a solicita. Sua linguagem é telegráfica e repe
titiva, fala com muitas pausas. Diz "o seu;\ mas não é do outro que ele fala, ele
fala dele, da casa dele: - "sua casa aqui é segura", (ao invés de minha casa).
C. inicia uma produção de desenhos e em seguida os cobre com tinta. Não
podendo falar sobre isso, gritava. Passa a fazer os prédios,
Ele cria neologismos que apontam a uma construção, mesmo que sem sentidd
nâ linguagem corrente, são falados e referidos à sua própria estória. Por exemplo:·
o notgilas, norvilas e ,wivos. Quando se pergunta o que é o noivo ele responde:
1 70 OAUTISMO
NOTAS
1 . LACAN, J. O Seminário 1 1, Os quatro conceitos fundamentais da psiéanálise, 2. ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 98 1 , p. 225.
2. -. O Seminário, Saber do analista, Inédito, 1 97 1 , p. 1 3 1 .
3 . -. O Seminário 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 982, p. 1 03.
4. -. "Conferência em Genebra sobre EI sintoma", lntervencions y Textos 2. 2. ed.,
Buenos Aires, Argentina, Ed. Manantial, Riviera, 1 988, p. 1 34.
BIBLIOGRAFIA
GRASSER, Y. La puerta dei autismo - "Clinquieme Rencontre lnternationale". 1 988.
LACAN, J. O seminário I, Os escritos técnicos de Freud, 3. ed., Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 986.
-. Escritos 1 e 2. México, Ed. Siglo Veitiuno, 1 966.
-. O Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 98 1 .
-. O Seminário Ili, As psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 98 1 .
-. "O estágio do espelho", Comunicações feitas ao XV Congresso Internacional de
Psicanálise. Zurich, 1 949, Trad. M. D. Magno.
-. O Seminário li, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 987.
-. Saber do analista. 1 97 1 . Inédito.
-. O Seminário XX, Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed. 1 982.
-. O Seminário IV, As relações do objeto. 1 956-1 957. Inédito.
-. "Conferência en Genebra sobre EI sintoma", lntervencions y Textos. Argentina, Ed.
Manantial, 1 980.
PARTE V
Um Caso Clínico
FABIAN, A CRIANÇA DO
COM PUTADOR
(Fragmentos da Cura Analítica de uma
1
Criança Autista de Quatro Anos)
HECTOR YANKELEVIGI
Tradução: Paloma Vidal
DA RENEGAÇÃO
1 A Maud Mannoni
1 75
1 76 OAUTISMO
AS SESSÕES
Vejo pela primeira vez Fabian em janeiro de 1990. Ele acaba de fazer quatro
anos.
1 78 OAUTISMO
Loiro, de olhos cinzas, ele sorri sem que nada explique por que. Durante a
entrevista ele passa várias vezes do meu lado sem me olhar, sem que nada em sua
pele, seus músculos, sua forma de andar mostre o acomodamento perceptivo
involuntário sofrido quando há risco de que encostemos num desconhecido.
Sua beleza é chocante, ainda mais realçada por estar ausente para ele mesmo
e para o outro. O pai, mais do que a mãe, conta brevemente sua história, a presença
de um filho mais velho que se comporta bem, o fato que a cada x anos eles têm
que se mudar, pois a sociedade na qual está empregado o muda de posto e de
região.
Durante os dois anos e meio que veria regularmente Fabian, os pais estarão
ali. Progressivamente, conseguirei que a mãe possa entrar no meu consultório,
para escutá-lo; mais tarde, que Fabian entre sozinho e somente depois os pais.
Segunda entrevista (16/1/90). Os pais me contam que pela primeira vez ele
pronunciou duas frases incompletas:
"... não boneca."
"... fez a boneca."
Isto depois de ter visto uma boneca na televisão. Também, comenta o pai,
pela primeira vez, ele colocou a mesa.
Comentário. Podemos supor que essas primeiras frases pronunciadas por
Fabian falam dele. Que ele as pronuncie corretamente mostra que sua capacidade
fonástica já recebeu os engramas das oposições fonemáticas que permitem a
emissão articulada, mas que ele não tinha o que permite que a fonação se realize
efetivamente. Aliás, que ele pronuncie não quer dizer de forma alguma que ele
signifique.
"Colocar a mesa" também nos mostra Fabian entrando, pela primeira vez, na
circulação entre pai e mãe.
Quarta entrevista (2 semanas depois). Fabian faz o seu primeiro desenho:
sobre uma folha de papel branco ele desenha duas formas alongadas, deitadas,
com um ar fálico, das quais uma poderia ser um cocô. Elas têm marcas no interior,
todas orientadas da esquerda para direita. Essas marcas lembram incisões ou
caracteres cuneiformes.
Embaixo, uma multidão de círculos diferentes que lembram irresistivelmente
lóbulos de orelha, pois no interior de cada círculo, mais bem alongado no sentido
vertical, há um círculo menor em colimação.
Primeira sessão (6 de fevereiro). Tomo a decisão, fazendo minhas anotações,
de não chamar mais de "entrevista" o que acontece este dia, mas sim "sessão".
No entanto, não se trata de que Fabian tenha podido formular um passo em seu
nome, longe disso, mas sim do fato que a mãe me diz que ela tem medo de que
ele se jogue pela janela. Em casa, ele subiu na borda de uma janela e agitou o
braço.
Coloca-se a questão do sentido possível do movimento dos braços. Mas ela
é secundária em comparação com isto: ele descobriu o vazio e o vazio é atraente,
o que quer dizer libidinalmente cercado, investido.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. . . 1 79
13 de fevereiro. O pai me diz que ele pronunciou a última sílaba de seu nome:
"ian" (é também a primeira do meu). "Está bem, entendi, é complicado."
Quando ele pronuncia essas frases, essas palavras, esses nomes, não se dirige
a ninguém. O som de sua voz não se parece à de uma criança. Muito articulada
e metálica.
Faz alguns dias, continua o pai, ele colocava creme de barbear no rosto, ou
mesmo batom nos lábios e beijava o espelho. Eu destaco e repito o que o pai
disse, dirigindo-me a Fabian. Pela primeira vez ele se dá volta, me olha, escuta e
diz: "Minha mamamãe mamamamamãe."
É indiscutível que, um mês e meio depois do começo da cura, identificações
imaginárias surgiram. Nada, no entanto, nos mostra se elas se sustentam sobre
outra coisa além da descoberta do espelho. Elas não são suficientes para nos
garantir que existe uma identificação primária.
Por outro lado, é mais fácil pensar que as marcas dos três primeiros desenhos
representam traços, ou bem, que elas mesmas são os traços que permitirão, ao
mesmo tempo, não somentepost hoc mas também propter hoc , o espelho, e sua
fonetização.
O batom quer dizer: "Sou mamãe", o creme de barbear quer dizer: "Sou
papai." Mas essas marcas podem fazer com que o traço sozinho subsista ao ser
1 80 OAUTISMO
marcado sobre a superfície do corpo e não a criar ele mesmo sua própria
superfície?
Sobre o plano da cura, minha intervenção foi escutada, o que mostraria que
a transferência dos pais opera.
5 de março de 90. Fabian chega à sessão com os pais e, pela primeira vez,
trazendo seu urso consigo.
O pai me diz que, até agora, quando o telefone tocava era ele quem se
precipitava, tirava o telefone do gancho e esperava, ansioso, a voz do outro lado.
Ele não respondia nada, não emitia nem mesmo um som.
Agora, se ele tira o telefone do gancho é para desligar no mesmo instante, ou
bem, se é sua mãe que atende, ele bate nela.
A única pessoa que telefona para casa é o pai.
Enquanto o pai fala e a mãe consente, ele faz, com peças de Lego, torres que
sobem o mais_alto possível.
20 de março de 90. Quando o pai está na sessão, Fabian se dirige a ele com
gestos e às vezes com uma palavra. Se a mãe chega inopinadamente, ele se cala,
vira e vai embora.
Ele começa a subir sobre todos os móveis e durante a noite acende todas as
luzes da casa para brincar sozinho com seus brinquedos.
27 de março de 90. Fabian diz à sua mãe, sem que ela tenha se dirigido a ele
antes: "Você não entende!." Ee começa a escutar concertos de música clássica:
passa todo o dia deitado no chão, a rádio na estação France Musique.
Comentário. Fabian vai até sua mãe e emite essa frase sem que possamos
saber se ela vem de uma concatenação prévia. Pensamos, de preferência, que o
"Tu" seja um conectivo entre o enunciado e a enunciação, ou que ele represente
o que resta do Outro no desaparecimento, que a frase é pronunciada como uma
rejeição.
Abril de 90. Quando a mãe tira o telefone do gancho, Fabian fica furioso e
bate nela, joga objetos, ou bem corre para se trancar no quarto dos pais e só sai
quando a conversa terminou.
Esse ciúme, que ele não sente pelo seu irmão mais velho, indica que ele busca
o pai e também que, se a mãe é de tal modo um obstáculo, ele se identificou com
ela
Mas esse ciúme, que se dá no registro da frustração ou ela ou eu, mas não os
dois, não prova que o tempo fundador da privação tenha se verificado. Fabian
busca localizar-se entre papai e mamãe, certamente. Mas ele não é localizável
entre Um e Outro.
Na sessão ele desenha, sentado à mesa, em frente à janela, de costas para os
pais, por vezes vira-se para buscar o que há nas gavetas, a caixa de massa para
modelar, as pastas.
Em casa, no seu quadro negro, ele desenha com giz uma cabeça e diz: "muito
pequeno" e faz o gesto, diz o seu pai.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA... 1 81
26 de junho. Ele faz durante a sessão um homem com massa para modelar,
grudando uma perna a uma outra maior. Coloca um ponto vermelho num carro,
fazendo como os efeitos sonoros de uma sirene. Levanta-se, anda até o espelho e
desenha com marcador três círculos. Em seguida, ele desenha outro em volta que
os fecha completamente.
1 O de julho. Desenha na sessão uma cabeça humana e uma criança cujo corpo
é uma linha.
18 de julho. Desenha, com três cores, grandes corpos fálicos, eretos, com
inscrições no interior.
2 de outubro. Começa um período de grandes desenhos, sobre quatro, seis ou
oito folhas de papel, colocadas juntas; a mesa não sendo suficiente, ele os faz no
chão.
Isso durará vários meses. Uma vez que Fabian terá incluído essa experiência,
ele voltará à mesa para trabalhar sobre uma folha de cada vez.
Durante essa sessão, ele faz vários Z que ocupam toda a página e, logo depois,
devolve a folha e faz o mesmo Z pequeno. Só me darei conta do alcance dessa
escritura mais tarde, quando, ao ler as anotações das sessões, serei levado a refletir
sobre a passagem do signo à letra.
9 de outubro. Os pais contam, preocupados, ou mesmo francamente alarma
dos, o aspecto que tomaram as relações entre Fabian e a tela de televisão. Há
vários meses, desde antes férias, ele maltrata a T.V.: liga-a com um soco, desliga
logo depois, desloca pela sala correndo, ameaçando fazê-la cair.
Durante a narração dos pais, Fabian pega várias folhas de papel, instala-se no
chão e desenha um grande retângulo, usando quatro folhas ao mesmo tempo, sobre
as quais desenha dois traços, um vertical, sobre o lado superior do papel, e o outro
perpendicular ao primeiro.
Penso primeiro que ao enquadrar um espaço ele fez sua casa, a casa do pai
com um complemento fálico sobre ela.
Como se tivesse percebido minha inabilidade, o escutei dizer, muito baixo,
mas claramente: "Seis". Não posso acreditar no que escuto. Efetivamente, é
possível deformar a barriga do "6" e fazer dela um retângulo e transformar o arco
do círculo em dois segmentos de reta perpendiculares um ao outro. Essa transfor
mação é geometricamente possível, o que mostra que Fabian faz o seu espaço
experimentar uma deformação regulada e que ele nos faz sabê-lo. Para que não
haja dúvidas sobre o que acaba de dizer ele acrescenta: "Cinco, quatro, três, dois,
um." E no espaço interior do retângulo, o marco que jamais deixará seus desenhos,
ele escreve: T.F.l, A.2, F.R.3, 5 (redes de T.V. na França). Algum tempo depois,
ele nomearia claramente o signo de cada cadeia designada em letras resplande
centes sobre a tela da televisão.
16 de outubro. Desenha, pela primeira vez, durante a sessão, uma figura
humana inteira. Nas semanas seguintes, fará a cabeça com os olhos, a boca, o
nariz.
Fabian deixou ao longe o "seis" da semana passada e conta "quatorze",
enquanto que alguns dias antes dessa cifra ele só dizia: "Um" e "Quatro."
Além disso, ele surpreende todo o mundo em casa quando o pai pergunta
desde o quarto à sua mulher na cozinha: "O que comemos?", Fabian responde
desde seu quarto: "Ela faz massas."
Sem data. Provavelmente começo de 91. O pai me conta que ele se torna
muito difícil à noite, na hora de dormir, o que ele recusa obstinadamente. Nada
consegue fazê-lo obedecer e é a primeira vez que isso acontece. A palavra do pai,
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 83
que foi sempre convincente sem que nunca fosse necessário chegar aos gritos ou
às ameaças, não é mais suficiente. Durante horas ele se recusa a ir dormir, faz
chilique, acende as luzes e vai brincar na sala no meio da noite, como se fosse
dia. O pai se sente impotente frente ao que ele vê como um desafio.
Bastante surpreso, conseguirei, no entanto, dizer-lhe que Fabian não faz isso
para importuná-lo, mas, simplesmente, ele tem uma real dificuldade para dormir.
A decisão de abandonar-se ao sono é tão angustiante que ele requer sua presença
para não saber que adormece. Saliento uma vez mais que certamente não é para
incomodar. O pai me escuta, pensativo.
Enquanto isso Fabian, que brincava ao lado, no chão, aparentemente distraído
e sem fazer sinal algum de estar escutando o que acontecia, levanta-se, aproxi
ma-se do pai e sem avisar dá-lhe um tapa violento na bochecha, a mão bem aberta.
A bochecha que recebeu o golpe ficará avermelhada por alguns minutos, mas a
outra também...
Intercedo o mais rápido possível para dizer a Fabian que seu pai não sabia o
que acabo de explicar-lhe. Que é precisamente por isso que seus pais vêm me ver,
para poder saber. E que se posso explicar, ao pai, o que acontece com ele, é
simplesmente porque ele, Fabian, tanto quanto o pai, ao me contar através de
palavras e desenhos o que acontece em casa, me permitem dizê-lo.
A partir desse momento, Fabian escreverá não somente sobre papel, mas
também pouco a pouco na tela do minitel (catálogo eletrônico) e, depois, no
computador do pai. No começo, letras, depois palavras e finalmente jogos cada
vez mais difíceis que dominará em pouco tempo.
Fabian passará horas sem se importar com o mundo à sua volta.
Março de 92. Há longos meses que ele faz ritualmente marcos que rodeiam
cada folha branca e inscreve ora os signos das redes de T.V., ora uma série de
desenhos que fazem pensar nas carteiras de uma sala de aula e, em frente a elas,
a mesa do professor.
Dessa vez tratava-se de nomes de redes de T.V..
De repente, o escuto murmurar VitteL
Não costumo fazer-me de engraçado com adultos, e muito menos com crian
ças. Em resumo, quando se trata de ressaltar um significante, é necessário de saída
ter muito cuidado com todo gozo, do lado do analista.
Sendo surpreendente, no entanto, a ocasião, dou à palavra uma ligeira into-
nação interrogativa:
"Vive ela?" (Vit-elle)
Ele se cala. Alguns minutos depois, sem me olhar, lança:
"Rap1
' ºdo, ela......
" ' " (Viite, elle)
Uma semana depois o pai me dirá que Fabian deu um passo à frente na
utilização das palavras. Além disso, se dirigiu muito a eles, sem palavras.
1 84 O AUTISMO
A mãe de Fabian não fala durante a sessão. Ela deixa para seu marido a
preocupação de lembrar-se dos pequenos acontecimentos cotidianos, as alegrias
ou os desgostos. Ambos do Norte, eles são levados pela França a mercê das
designações de trabalho do pai de Fabian.
Ela não tomou a ver seu pai desde que este se divorciou de sua mãe, exceto
uma vez, quando se cruzaram numa grande cerimônia familiar e ele não a reco
nheceu. Seu pensamento, naquele momento, foi de que não tinha mais pai. Que
ela jamais tivera.
E, no entanto, pouco antes do divórcio dos pais, durante uma dessas violentas
brigas que os opunha um ao outro, um dos filhos mais velhos, não suportando
mais os insultos, os golpes, o alcoolismo do pai, crava-lhe, antes que ele bata na
mãe, uma facanas costas.
Quando a mãe de Fabian se aproxima, ele cai no chão e de um só movimento
ela tira a faca da ferida. O pai tem a vida salva, o ferro havia somente deslizado
pela omoplata
Mas quando ela escuta, no hospital, os médicos dizerem que, com seu gesto,
ela poderia tê-lo matado, julga no seu interior que sua culpabilidade não tem
remissão - que nada, nem ninguém poderá salvá-la.
O irmão, que queria defender a mãe, morrerá, anos mais tarde, em conse
qüência de sucessivas crises de epilepsia.
Com o nascimento do filho mais velho a mãe precipita-se todas as tardes,
todas as noites, até a cama da criança para estar certa de que ela respira.
Fabian não era esperado na noite em que nasceu, mas sim alguns dias mais
tarde, ou até mesmo duas semanas. Nesse mesmo fim-de-semana seu cunhado se
casava e seu marido era esperado no cartório como testemunha. Como não havia
perigo de um nascimento iminente, o pai pegou o carro para ir e voltar em menos
de quarenta e oito horas.
Na noite do casamento do seu cunhado, enquanto ela mofava esperando em
casa, lembrava ser essa a data do aniversário da morte do irmão.
Naquela noite em que Fabian nasceu, ela olhou-o e disse para si mesma: "Ele
sabe tudo sobre mim. Quanto mais cedo ele morrer, melhor será para ele."
Nesse exato momento, o peso de sua nulidade inata radical, de toda a sua
indignidade, tomou-se evidente para ela, como uma certeza quejamais a abando
naria
Mais tarde, quando, ao crescer, Fabian não emite som algum, nenhum choro,
quando toma-se sensível que ele não fala, ela dirá para si mesma: "Não quero que
ninguém saiba como sou feita. Ele também não quer que ninguém saiba como ele
é por dentro."
"Ele sabe tudo." Por maior que fosse a violência da renegação pronunciada
quando jovem, a mãe de Fabian não pode se subtrair, já que ela fala, de pensar
pelo menos uma vez: "Ele sabe tudo" do seu pai. Mas é precisamente por causa
dessa renega ção , acompanhada de uma rejeição forclusiva, que na noite do nas-
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 85
cimento do seu filho essa frase volta à sua mente, encarnada num delírio - que
não precisa ser de estrutura -para proteger-se de um retomo devastador.
Ninguém em volta percebe seu estado, como acontece no caso da maioria das
mães de crianças autistas que recebemos durante anos. Delírios puerperais sub
clínicos para as famílias e os médicos, que fracassam, depois de alguns meses,
quando os efeitos na criança os acordam bruscamente, dando-lhes como tarefa, a
partir desse momento, dedicar-se a essa criança que os leva, através do seu
mutismo, a um destino que faltava nas mães.
O pai, que a criança autista encarna, é um pai primordial, não desejoso, que
goza sozinho.
A criança satura a falta de ser da mãe não como objeto, causa do desejo, mas
como significante, causa de gozo. O delírio é a única resposta que a mãe é capaz
de apresentar diante de um retomo do real, que afunda isso com o que ela pode
contar como estrutura subjetiva.
Não é necessário que a mãe seja psicótica. No entanto, mesmo se ela fosse,
isso J!ãO explicaria em nada o autismo da crianç;:t, cuja causa é contingente.
E porque ele representa o puro real que a mãe não pode inventá-lo. O gozo
que ele encarna destrói toda vida pulsional, toda possibilidade de inscrição.
Qmu1do a mãe pode dar seu delírio ao psicanalista, a criança, se ela ainda é
pequena, pode começar a articular, a fonetizar seus traços.
Em geral, é um dos dois pais que formula a demanda, o outro se limitando a
assistir sem acreditar. Se é a mãe que, apesar de tudo, pode fazê-lo, então não é
raro que o pai experimente um período delirante. Mas se de repente o delírio pode
acontecer ao menos por um certo tempo, a criança não devora toda a crença, sendo
a missão do significante paterno ancorá-lo no nada.
Há nele uma brecha atual e infinita , a qual ele se atém, entre o gesto que
assinala "isto" no mundo dos objetos e a fala. O simples fato de nomeá-los tiraria
essa parte deles mesmos que podemos nomear, sem temer o paradoxo de imaterial
e substancial, que faz com que eles participem enquanto inominados, não do
espaço do mundo mas do lugar e da ordem da Coisa.
Pois para que o único assassinato que vale se realize não é suficiente articular
palavras (mots et paroles), é necessário primeiro demandar a um Outro que pelo
simples fato de responder, se vê, sem sabê-lo, sem uma parte de si mesmo.
Essa brecha infinita, à qual Fabian se atém, permite-lhe segurar, uma crença
inabalável, pois é silenciosa, não no Outro, mas no Outro do Outro gozo, fora da
linguagem. Ao mesmo tempo, os sons da linguagem, sua armadura fônica, servem
somente para a função de gozo-sentido (joui-sens ). Eles são decapitados antes de
toda função nominativa.
Em conseqüência, ele pode viver sem o objeto, quanto tempo ele quiser ou
puder. E quando ele chega a sentir falta, isso é o fruto envenenado do querer do
Outro que lhe recusa, antes de mais nada, a demanda Ele está frustrado sem jamais
ter sidoprivado.
Quando, brincando sozinho, Fabian diz: " 'cê é difícii" (T'es difficile) ou
"Você não entende" (Tu ne corizprends pas) ou "Ela faz massas" (Elle fait des
pâtes ), podemos dizer que essas frases são sensatas, mas que elas não significam.
Elas são pronunciadas corretamente, e a sintaxe é adequada, mas a referência é
inexistente. O fato que o analista ou os pais possam supor que ele repete afirma
ções da professora que lhe concernem, não muda nada. Essas frases têm a forma
da frase "o atual rei da França não existe" que preocupou tanto Bertrand Russel.
Falta nisto o único ponto de apoio que um analista tem na cura dos neuróticos:
a referência vazia. Pois, se os neuróticos a enchem o tempo inteiro de sentido ,
seu caráter real permite esperar uma eventual limpeza.
Falta também o engate (embrayeur) de contexto, os significantes anafóricos
que empalmam os atos de palavra (parole) às palavras que precedem ou que
permitem começar ex nihilo uma proposição, introduzindo-a no vazio.
Quando no Gênese está escrito: "Deus disse: Haja luz e houve luz", o caráter
criador do dizer é salientado de uma força inegável. Seria errado, no entanto,
pensar que isso era verdade para os homens dessa época, da escritura do Torah
ou ainda doMahabharata e seria inacessível para a humanidade de nossa civili
zação técnica. O homem está separado do caráter eficaz do dizer pelo seu próprio
inconsciente. A humanidade acantonou desde muito cedo essa função nas práticas
mágicas e mágico-religiosas.
Além disso, a crença na eficácia da palavra sobre a natureza, ou sobre o outro,
ou sobre o destino de gente desconhecida, não foi mais do que um desvio, para
subtrair dessa eficácia o único objeto susceptível a receber os efeitos: o próprio
sujeito. Sem essa crença, a operação separadora, constitutiva do inconsciente, não
tem onde se enganchar. Já que é graças ao inconsciente que podemos crer numa
relação imediata, sem mediação com o Outro. Dito de outra forma, podemos
pensar que o Outro é e que o inconsciente não é.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 87
dos traços do objeto, na realidade traços que podem ser reinvestidos, que lhe
permitem envolver o vazio fundador.
Fabian, ao traçar um marco e ao escrever letras T.F.1., A2., F.R.3., nos faz
assistir ao nascimento do inconsciente.
Que ensinamento podemos tirar disso?
totêmico-é propriamente aniquilante por ter sido encarnado por um genitor que
não o assumiu como sua dívida.
A criança, futura psicótica ou futura perversa, é tanto apresentada ao templo
para receber o nome, como exposta fora, inominável. O autista encarna com tal
força radiante o poder fálico em ato, que o delírio é o único recurso para interpor
o semblante entre essa presença -verdadeira parúsia - e a mãe.
O delírio faz uma tela à criança, absorvendo na sua matéria todo o desejo do
Outro, que poderia fazer nascer nele uma demanda.
O MARCO E A SÉRIE
A transformação regulada do seis em marco com cauda e a repetição regular,
a partir dessa sessão do mês de outubro, me intrigara suficientemente para querer
continuar sob�e a via traçada por Lacan em torno da consistência do marco. 2
AI;uns meses depois, as recordações da leitura da "viagem a Veneza" de
Proust cruzaram na minha cabeça com um comentário de Malraux em O i"eat
e decidi ir a Pádua para contemplar os afrescos de Giotto, na capela de Scrovegni,
primeira obra da pintura ocidental que foi emoldurada na própria realização do
espaço pictural.
O que nos ensina Panofsky, que guiou nossa viagem?
O fato de desenhar um marco, de utilizá-lo no cálculo da perspectiva, supõe
um ponto de fuga. Esse ponto de fuga supõe, por sua vez, a descoberta da imagem
de pontos infinitamente distanciados de todas as linhas de fuga. Isso é o símbolo
concreto da descoberta do infinito.
Nessa época, o Renascimento produz uma revolução: a substituição do topos
aristotélico, no qual cada coisa tem o seu lugar, pelo infinito em ato que não tem
seu modelo somente em Deus, mas que se realiza na realidade empírica.5
Se voltamos a Fabian, o fato de traçar um marco é o desdobramento espacial
desse ponto de fuga. A maioria das crianças começa a desenhar vetores orientados
horizontal, vertical- e formas arredondadas que progressivamente se fecham. A
reunião das duas coisas, guiada pelo interesse levado à imagem especular, permi
tirá a representação dos corpos humanos, ou seja, os pais e o sujeito numa situação
governada pelo jogo fantasmático.
Sobre o plano destacado pelo traçado do marco, Fabian, em vez de representar
o mundo, com um gesto seguro e pegando o pilot como um pincel, desenha letras
e cifras.
Falar supõe fonetisar traços que já estão. Escrever supõe ser capaz previa
mente de ler signos que interrogam, que serão levados depois sobre um suporte
qualquer. Sobre seu próprio suporte.
O fato que os lingüistas se ocupem da língua e dos discursos não pode ser
para o analista um motivo suficiente para não se ocupar da palavra, e de suas
condições de emergência, o que não é o objeto da lingüística, mas sim, da instância
(ressort ) da psicanálise, a linguagem não possuindo nela mesma as operações e
os operadores que lhe permitem se reproduzir na palavra de cada um dos seres a
priori, capazes de falar.
E desse hiancia entre linguagem e palavra, que a lingüística não pode tomar
seu objeto, que se ocupa a psicanálise.
No coração desse abismo, o corpo.
Para o lingüista, a glossolalia é, uma emissão de sons que não reproduz os
sons de nenhuma língua conhecida. E um fenômeno margina� que visa as crianças
(infans ), certas afeições psíquicas, ou ainda certas práticas religiosas que come
moram o milagre da Pentecostes, quando, visitados pelo Espírito Santo, os após
tolos começaram a "falar em línguas" - glossolalia -a todos os que estavam em
Jerusalém nesse dia.
No entanto, nós pensamos que sem essa emissão de sons que não são ainda
fonemas de uma língua, sem o investimento das cordas vocais, da laringe, da glote,
de todo o aparelho fonatório e, principalmente, da emissão do ar, um recém-nas
cido não poderia jamais "adquirir" a palavra.
Assim, há uma condição a essa aquisição: uma atividade vinda de lá onde
haverá, sob essa condição, sujeito , que seja originalmente produtora, a partir de
nada, de um gozo sonoro antes de que o sentido tenha um papel discriminatório.
Bem mais, os sons só terão um sentido (de linguagem codificada) se a criança
encontra nele um "sentido" antes de sua descriminação sensorial.
Assim, o milagre da Pentecostes se produz todos os dias para os seres falantes!
Exceto que nós "esquecemos" o momento no qual isso se produz, já que pertence
ao real. Em vez de que isso se produza por uma efusão do Espírito Santo é possível
pensar que o corpo deve perder um gozo para saber que ele é mortal.
A criança autista nunca foi glossolálica. Seus gritos roucos, seus sons, ela os
produz depois comosinal de espanto, de furor, ou de alegria, mas nunca como a
produção gozosa de um objeto.
Essa atividade, comparável estruturalmente ao chupar, que faz que para o ser
falante os sons da língua não sejam mais só uma materialidade simplesmente física
ou físico-psicológica, mas um objeto de pulsão.
Se nos viramos agora do lado da palavra, somos levados a adiantar um
postulado e a const:rajr uma questão.
O primeiro diz: "E porque há endereçamento ao Outro antes de toda palavra,
que no lugar cavado por essa demanda haverá um sujeito da enunciação."
A segunda: "O que está escrito na palavra antes de qualquer "escritura" ?"
Poderíamos dizê-lo assim, como se se tratasse de uma prova pelo absurdo.
Se não houvesse escritura na emissão sonora articulada, ela seria irrealizável.
Essa escritura, que é a armadura de toda linguagem, tem por característica o
fato de ser a semântica
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 91
A condição para que uma criança invista o conjunto dos traços distintivos,
· prosódicos, de entonação, de contorno, que fazem a singularidade da língua, é que
ela se interesse pelos conjuntos de oposições binárias que estruturam a palavra e
a fazem possível. Esse interesse só pode vir do fato que ela tira prazer do vazio
e não somente do cheio, o que lhe permite muito cedo gravar que o vazio não é
uma carência que deve ser enchida, mas jogo de oposições, de diferenças e de
repetições. Esse investimento pode vir só, não da alegria da presença oposta à
ausência pois a presença sozinha é aniquilante , mas da presença sempre enqua
drada dentro e pela ausência.
A oposição estrutural primeira tem, então, quatro termos: ausência de uma
presença, presença na ausência. Só essa estrutura permite que as oposições da
língua sejam gozosas (jouissives).
Se temos apenas uma oposição de dois termos: presença/ausência, um des
truiria o outro, e é o que a criança "psicótica" nos mostra. Ele segmenta as
oposições, não as tolera. entre estridente/surdo, grave/agudo, vozeado/não vozea
do, nasalado/não nasalado, ele não pode passar do um ao Outro e ancorar-se num
só elemento e para sempre.
As crianças reconhecem os traços distintivos e todas as oposições binárias da
língua antes de poder respeitá-los e mesmo se decidiram não respeitá-ias. Se um
adulto pronuncia igual à criança um fonema que foi deformado por ela, ele será
corrigido no ato por um gesto ou uma palavra que lhe dirá secamente que não é
assim.
Quando uma criança substitui, de maneira permanente, um fonema da língua
por um som de sua colheita, a razão não é nunca uma dificuldade qualquer a nível
fonatório. Exceção feita, naturalmente, das dificuldade próprias de cada língua e
que se explicam, para todos os futuros-falantes pela tensão que existe sempre entre
leis fonéticas diferentes. A razão dessa substituição é uma rejeição seletiva na
língua tomada como um objeto que lhe vem do Outro. As letras não asseguram
plenamente sua função de gozo e uma criação glossolálica lhes é imposta, a
mínima, que como realização alucinatória assegura o lugar do sujeito.
Quando dizemos que a armadura da língua é sua estrutura a-semântica, isso
quer dizer que ela não é da ordem da significação, mas do sentido.
Esse sentido está presente em toda emissão sonora compassada de um ritmo
reconhecível, em toda frase que respeita a sintaxe da língua, mesmo se as palavras
utilizadas não querem dizer nada uma em relação à outra O non-sensical é, de
acordo com isto, o cúmulo do sentido, fazendo barreira (garde-fou) no seu extre
mo limite.
As vozes das crianças autistas, ou que tornaram-se psicóticas, ou falsamente
débeis, se arrastam, pastosas, ou se levantam, estridentes, batendo-se de forma
desastrada nas bordas de uma língua que não articula, que não consente ser
utilizada na sua prodigiosa capacidade instrumental. Eles falharam em superar a
voz de sua substância, como massa inerte, sem poder reproduzi-la como o reflexo
de uma oposição no outro.
Elas não puderam sentir prazer até morrerem de rir, como as crianças normais,
da criação insensata dos nomes que preside a passagem do infans à criança: a
onomatopéia.
1 92 O AUTISMO
Pensamos que não há nos autistas processos primários governados pelo prin
cír,io do prazer. Eles só começarão a existir se as condições de mise en place de
uma cura-demanda dos pais, criança pequena demais, disponibilidade do analista
- aparecem. Podemos afirmar também que a cura começa quando esse par,
processos primários/ princípio do prazer, vem a existir efetivamente.
Mas pensamos também que os analistas estão longe de ter uma definição
comum desses princípios.
Como Freud os havia definido?
Que a satisfação atendida faça falta não quer dizer que não haja satisfação,
mas que a satisfação esperada não é a que foi obtida.
E a própria satisfação, do fato da realização, que produz um menos, um limite
inatingível, do fato de ser atingida.
Traduzir aasbleiben fazer falta, por "faltar" e também por "ficar fora" não é,
de maneira alguma, forçar o alemão. Coloquemos lado a lado:
A satisfação esperada fica fora.
A satisfação resultante é um fragmento da realidade.
Esse "fora", que é sinônimo de falta, não é preexistente, mas fundado pela
presença de uma espera que faz limite, horizonte, situando-se ela mesma como o
além invisível desse horizonte como o avesso do aquém, como seu suporte.
Sem essa espera, sem essa Erwartung, não somente não haverá uma reserva
de satisfação para explorar, mas, ainda'mais grave, a aparição do "fora" como um
sucedâneo do "dentro" estaria comprometida.
Essa falha constitutiva da satisfação pode não se realizar. Então o real da vida
seria profundamente perturbado. Pois a falta na própria satisfação é o que Freud
chama "Not des Leb�ns", a urgência da vida, que impede que o sujeito morra na
satisfação do gozo. E porque a alucinação mesma é insatisfatória que a criança
pode, dormindo, chorar e acordar.
Sem esse buraco fundador, que 1.acan chama o "verdadeiro" buraco, não há
urgência da vida, a vida se opondo ao gozo. E a criança estará permanentemente
tanto adormecida como acordada, não podendo ser estabelecida nenhuma fronteira
temporal entre os dois estados.
Essa insatisfação no coração mesmo do gozo, que é o fato da vida, cria a
anatomia real que permitirá o enfoque de um espaço apto à inscrição das diferen
ças.
A insatisfação está do lado do objeto; a angústia real do lado do Outro.
Dessa distância se origina a demanda.
Sem uma satisfação atendida que falta, não está o espaço para que o objeto
suposto que pode fazê-la atingir seja pedido a um Outro, fora, que, disso, torna-se
simbolizável.
Lacan, em 1976, emitiu a hipótese de uma forclusão originária, mais funda
mental que a do Nome-do-Pai, que ele chamaforclusão do sentido pelo real.
Freud, em 1925, em "A Denegação" postula uma rejeição (Werfung) do mau,
utilizando a mesma raiz verbal que a do "mecanismo" das psicoses para dar conta
da função do real.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 95
Pensamos que o autista tem falta da forclusão original, falta de uma perda
fundamental que coloca em movimento a auto-reprodução da estrutura, cujas
modalidades são contingentes.
Essa operação, Melanie Klein tentou dar conta, chamando-a "deflection of
death instinct ".
Quando essa forclusão do sentido não se efetuou, impedindo assim a identi
ficação primária ao pai primordial, a segunda forclusão que atinge o pai da
metáfora tenta ser o seu substituto desajeitado.
Não podemos avançar, para compreendê-lo, sem essa explicação:
NOTAS
1 . Ver infra, "O marco e a série." p. 274-275.
2. Ver LACAN J. A Lógica do Fantasma. Seminário inédito.
3. Para a "Viagem à Veneza", ver PROUST M. , "La fugitive" ( 1 925), in: A la recherche
du temps perdu, Paris, Gallimard, Bibliothéque de la Pléiade, tomo Ili, 1 954, p.
623-655.
4. Ver MALRAUX A. La Métamorphose des dieux. 2: Lirréel. Paris, Gallimard, 1 9 74.
5. Ver PANOFSKY E. La perspective comme forme symbolique et autres essais. trad. sob
a direção de G. Ballangé, Paris, Éditions de Minuit, col. Le sens comun, 1 976,
p. 1 25-1 59.
6. LACAN J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano"
( 1 960), in: Écrits, op. cit., p. 805.
7. FREUD S., "Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen ", in: Jarhrbuch
für Psychoanalyytische und Psychopathologische Forschungen, Studienausgabe
Band Ili, Frankfurt am Main, Fischer Verlag Gmbh, p. 1 8 : "Die oberste Tendenz,
welcher diese primãren Vogãnge gehorchen [ ... ] sie wird ais das Lust-Unlust-Prin
zip bezeichnet. Diese Vorgãnge streben danach, Lust zugewinnen; von solchen
Akten welche Unlust erregen kõnnen, zieht sich die psychische Tãtigkeit zurück
(Verdrãngung)". ( Trad. francesa modificada por nós). Cf. trad. de Laplanche J.,
"Formulações sobre os dois princípios do curso dos acontecimentos psíquicos",
in: Resultados, Idéias, Probiemas, /, 1 890-1 920, op. cit., p. 1 36.
8. Ibidem. (em alemão), p. 1 8: "Erst das Ausbleiben der erwarteten Befriedigung, die
Enttãuschung, hatte zur Folge, dass dieser Versuch der Befriedigung auf halluzi
natorischem Wege aufgeggeben wurde" (tradução modificada por nós). Cf.
ibid., trad. de Laplanche J., p. 1 36.
9. Ibidem. (em alemão), p. 23: "[ ... ] resultierende U nzufriedenheit selbst ein Stück der
Realitt ist" (tradução francesa modificada por nós). Cf. ibid., trad. de Laplanche
J., p. 1 4 1 .
1 O. Ver FREUD S. "Die Vemeinung' ( 1 925), in: /mago, li (3), p . 2 1 7-2 2 1 , G.W. XIV, trad.
Laplanche J., "A negação", in: Resultados, Idéias, Problemas, li, 1 92 1 -1 938, op.
cit., p. 1 35-1 3 9.
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R e s p o s t a s d e J a c q u e s L a c a n e m s u a C o n fe r ê n c i a
d e G e n e b ra s o b re O S i n t o m a (04/ 1 0/ 1 9 7 5 )