Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

O Autismo - Letra Freudiana 14 (Lacanempdf)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 188

Letra Freudiana.

O Autismo
Copyright© 1995 by Livraria e Editora RevinteR Ltda.
Todos os direitos reservados.
É expressamente proibida a reprodução
deste livro, no seu todo ou em parte,
por quaisquer meios, sem o consentimento
por escrito da Editora.
ISBN 85-7309-051-0

Comissão Responsável:
Pelo Colegiado
Rossely Stramandinoli Matheus Peres
Pelo Grupo de Trabalho Han$
Coordenação:
Maria Cristina Vecino Vidal
Colaboradores:
Joseléa Galvão Omellas
LeilaNeme
Lícia Magno Lopes Pereira
Vera Vinheiro
Zulmira B. de Moraes
Ilustração da Capa: Infiltration Homogen Fiur Cello (1966-85) -Joseph Beuys
(1921-1986)
Capa: Eduardo Chór

Publicação da Escola Letra Freudiana


Rua João Lira, 64
CEP: 22430-210 - Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (021) 259-1234

Livraria e Editora REvlNTER Ilda


Rua do Matoso, 170-Tijuca
20270-130- Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (021) 273-5448
Fax: (021) 273-2730
APRESENTAÇÃO

No curso de nosso trabalho sobre o autismo, a imagem de um objeto de Joseph


Beuys é recorrente. Trata-se de um "contra-objeto", como ele o denomina, um
violoncelo recoberto de feltro, que metaforiza, a nosso entender, o que a criança
autista apresenta ao analista.
O instrumento petrificado, imobilizado, até congelado sob a cobertura de
feltro é habitado pelo som sem que, aqueles que o rodeiam e o olham, possam
ouvir e escutar a música que produz. Esse objeto pré-fabricado petrifica o horror
daquilo que não faz semblante de comunicação ou compreensão, daquilo que se
aproxima a esse-ponto limite da animalidade que o ser falante recusa para advir
na condição de sujeito.
Essa "infiltração homogênea", segundo Beuys, nos revela o modo indiferen­
ciado do autista constituir-se no campo do Outro - imerso numa realidade
demasiadamente real, o autista preso na garra da linguagem mal consegue articu­
lar-se na palavra.
O próprio da transmissão da psican�füse é que ela se faz a partir do dizer
extraído dos ditos particulares do sujeito. E da falha que o analista extrai seu saber
quando se situa no lugar de semblante da causa. A criança autista, fora do discurso,
encarna a ausência de laço social. Os esforços terapêuticos se desenvolveram na
linha de ligá-la ao outro do qual ela se encontra excluída. A pergunta que -nos
fazemos, a partir de Freud e Lacan, é relativa à estrutura do Outro para a criança
autista.
O campo do Outro é marcado pela binaridade da cadeia significante. O que
· o autismo infantil prova é que a articulação entre os dois significantes (S1 e S2)
não é automática; ela se dá quando o Outro primordial a possibilita. Essa primeira
operação de alienação supõe o Outro da linguagem em antecedência lógica ao
sujeito articulado por um desejo que não seja anônimo. Quando não se quer relegar
o autismo ao campo da genética ou do distúrbio neurológico, a questão retoma à
psicanálise. O discurso psicanalítico é o único que tomou o autista como sujeito
exatamente no lugar em que ele se oferece como enigma para o Outro. Há
esperança que o encontro com o discurso do analista faça surgir um sujeito do ser
opacificado em função de um gozo não comunicável e de difícil localização. A
pergunta seria quem goza aí, quando isso quase não fala?
Esta publicação retrata um percurso que, hoje constatamos, obedeceu à tem­
poralidade de uma produção. Em 1988 a :Escola Letra Freudiana apresentou seu
informe sobre o Autismo no Encontro do Campo Freudiano sobre Psicose, reali­
zado em Buenos Aires.
Durante um ano o grupo de Psicanálise com Crianças fez a revisão e o
comentário crítico dos diversos analistas que se ocuparam do autismo, interrogan­
do o desejo que os animou para se sustentarem neste lugar ainda inconstituído da
transferência. A Parte I - As diversas abordagens - reúne os trabalhos apresen­
tados.
Em uma seqüência que não é linear houve dois encontros destacados em nosso
trabalho: a entrevista que Frances Tustin nos concedeu em sua casa em Amershan
em dezembro de 1993. Nessa ocasião, não só constatamos a paixão que sustenta
a causa de uma analista nesse trabalho árduo e paciente com os autistas, como
também recebemos o escrito inédito "Perpetuação de um erro", que é aqui publi­
cado.
Agradecemos a Rosine e Robert Lefort a gentileza de responderem, numa
carta, nossas perguntas explicitando, então, a escritura do materna sobre o autismo.
Foram questões suscitadas por um trabalho de longa data que culminou com a
conferência sobre o autismo por eles realizada na Letra Freudiana em 15 de agosto
de 1986.
Incluímos também nesta publicação o trabalho que Hector Yankelevich apre­
sentou na secção clínica de nossa Escola - o caso de Fabian, a criança do
computador -, onde destacamos a função da forclusão inicial do campo do Outro.
O momento de concluir é este, em que a publicação se lança à circulação e
se oferece à leitura que desejamos não deixe indiferentes àqueles que dela se
aproximem.
Março de 1995 E.V.
- .J.Y.I.•'--
li.A' ru \' •

R.S.MP.
SUMÁRIO

PARTE 1
AS DIVERSAS ABORDAGENS 1
O Autismo segundo Leo Kanner .... 3
Arlete Garcia Lopes
O Mundo do Encontro: Bruno Bettelheim. Considerações
acercado Autismo Infantil . . ...... . . .... . . . . 9
José Carlos de Souza Lima
Autismo: Uma Fase Inevitável em Margaret Mahler . . . . . 27
Ana Lúcia Z. de Paiva
Autismo, uma Síndrome Patológica Particular - Donald
Meltzer . . . .. . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . ... . 41
Cora R S. Vieira
O Autismo segundo Serge Lebovici 45
Beatriz Siqueira
O Buraco Negro - Frances Tustin ... 53
Myriam R Fernandez

PARTE li
FRANCES TUSTIN: ESCRITO, CARTA, ENTREVISTA 61
A Perpetuação de um Erro 63
Frances Tustin
Tradução: Paloma Vidal
Carta a Oaude Allione . . 81
Tradução: Paloma Vidal
Entrevista .. . .... . . . . . . .. . .... 85
Frances Tustin / Eduardo Vuial
Transcrição e Tradução: Paloma Vidal
PARTE 111

COM FREUD E LACAN: A ESTRUTURA . 101


O Sujeito "lnconstituído" em Lacan . . . . . . . 103
Benita Losada A. Lopes
O que o Autista nos Ensina: Considerações sobre a Alienação
e o Autismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Eduardo Alfonso Vida[ e Maria Cristina Vecino Vida!
O Autismo na Estrutura: Rosine e Robert Lefort . 139
Nilza Ericson
Carta à Rosine e Robert Lefort 145
Resposta de Rosine e Robert Lefort . . 146
Traduçao: Paloma Vidal

PARTE IV

VINHETAS CLÍNICAS 149


Questões acerca do Autismo 151
Elisa Oliveira
Autismo e Psicose 157
Vera Vinheiro
Do Escape... ao Monstro . . 163
Tânia Dias Mendes
O Autismo e sua Saída: "O Pai Demorado" 167
Maria Lúcia Castro Alves

PARTE V

UM CASO CLÍNICO 173


Fabian, a Criança do Computador . 175
Hector Yankelevich
Tradução: Paloma Vidal
PARTE I

- As Diversas
Abordagens
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER
Arlete Garcia Lopes

APRESENTAÇÃO
Leo Kanner nasceu na Áustria em 1894 e fez seus estudos de medicina na
Universidade de Berlim, na Alemanha. Iniciou sua carreira em Dakota do Sul,
nos Estados Unidos, por volta dos anos 1924/28.
Teve uma carreira recheada de títulos e funções universitárias, particularmen­
te ligadas à psiquiatria infantil. Publicou mais de 200 artigos em revistas e jornais
tanto americanos quanto europeus, dos quais 14 se referem ao autismo, sendo o
primeiro publicado em 1943 e o último em 1972, cobrindo portanto 29 anos de
estudos sobre o tema.
"Distúrbios autísticos do contato afetivo" é o nome do artigo datado de 1943,
onde Leo Kanner nos apresenta uma síndrome que nomeia deAutismo Precoce
Infantil. Neste texto apresenta 11 casos que possuem características que formam
uma síndrome única, não relacionadas até esta data. Diz: "O excepcional, o
patognômico, a desordem fundamental é a inaptidão das crianças para estabelecer
relações normais com as pessoas e a reagir normalmente a situações desde o início
da vida."1
O termo autismo foi introduzido por Bleuler em 1911 para designar a perda
de contato com a realidade, acarretando como conseqüência uma impossibilidade
ou uma grande dificuldade para se comunicar. O próprio 1.eo Kanner discute neste
texto que a síndrome que nomeia se distingue da esquizofrenia adulta ou infantil,
na medida que estas últimas têm como característica um retraimento da partici­
pação no mundo a partir de uma relaçãoinicial presente, enquanto que no autismo
precoce infantil "há desde o início uma extrema solidão autística que desdenha,
ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança".2
Cita como significativo o fato de que quase todas as mães de seus pacientes
tenham falado da ausência da antecipação postural da criança ao ser tomada no
colo, em oposição ao que descreve Gesell como experiência universal - o fato
do bebê por volta dos q�atro meses efetuar um ajustamento motor antecipatório,
elevando os ombros quando é erguido ou colocado na mesa.
Temos, então, que a nomeação de Kanner se assenta sobre a palavra precoce,
tratando-se de uma síndrome que descreve os distúrbios decorrentes da entrada
do bebê no mundo.
Oito dos 11 casos descritos por Kanner adquiriram capacidade de falar,
entretanto a linguagem não é utilizada para conversar com outras pessoas, con­
sistindo principalmente na nomeação e adjetivação de objetos identificáveis. A
linguagem dessas crianças se caracteriza por uma repetição semelhante à dos
papagaios e as frases são combinações de palavras ouvidas. Donald, um dos casos
descritos, utiliza a palavra yes com a significação do desejo de ser colocado nos
3
4 OAUTISMO

ombros do pai, já que a pronunciou pela primeira vez quando seu pai lhe disse
que se dissesseyes o colocaria sobre seus ombros. Durante muitos meses, Donald
não pôde desatar a palavrayes dessa situação específica e durante muito mais
tempo não foi capaz de utilizá-la como forma geral de assentimento.
Conclui Kanner: "Aparentemente, o sentido de uma palavra toma-se inflexí­
vel e só pode ser utilizada, não importa por quem, com a conotação originalmente
adquirida."3
A linguagem destas crianças apresenta fenômenos gramaticais particulares
ocasionados, segundo Kanner, pela ausência da formação espontânea da frase e
pela ecolalia tipo reprodução.Uma dessas particularidades se refere ao uso dos
pronomes. Eles são repetidos como são entendidos sem se adaptarem à modifica­
ção da situação. Resulta daí que fala dele mesmo como tu e a pessoa a quem dirige
a frase como eu. Complementa a observação dizendo que inclusive a entonação
da fala original da mãe é repetida - se essa fala foi feita sob a forma de
interrogação,a criança reproduz a frase sob a forma de interrogação.
A alimentação, barulhos fortes e objetos em movimento são descritos como
intrusão do mundo externo. "Todas as atividades e as expressões verbais das
crianças são governadas de maneira rígida e em conformidade ao desejo onipo­
tente de solidão e imutabilidade."4
Nos comentários realizados após a descrição daquilo que caracteriza o autis­
mo precoce infantil, Kanner aponta para as características dos pais destas crianças,
tais c• ,mo: pais altamente inteligentes, valorização de aspectos obsessionais no
plano familiar, pais e mães pouco carinhosos. Entretanto, conclui o texto dizendo
que o fato da solidão das crianças ocorrer desde o início da vida, toma difícil
atribuir a totalidade do quadro clínico aos tipos de relação precoce das crianças
com os pais. Supõe então que "essas crianças vêm ao mundo com uma inca�aci­
dade inata de constituir biologicamente o contato habitual com as pessoas."
Em 1971, 28 anos após a nomeação, Kanner publica um·estudo do destino
destes 11 primeiros casos diagnosticados por ele. Neste texto enfatiza a evolução
dos casos no que se refere à capacidade de adaptação social Três casos adquiriram
uma vida pessoal e social autônoma, tendo dois destes três adquirido a linguagem.
Os outros oito casos erraram por várias instituições psiquiátricas.
Para um melhor esclarecimento de como Kanner descreve e acompanha estes
casos, a apresentação do caso Donald é enriquecedora. Donald é visto pela pri­
meira vez em 1938 com cinco anos e um mês. O quadro observado por um período
de duas semanas é assim descrito:
- se limitava a atividades espontâneas;
- se ocupava dessas atividades fazendo movimentos estereotipados com seus
dedos cruzando-os no ar. Balançava a cabeça de um lado ao outro balbuciando
ou zumbindo três notas de uma mesma música. Todos os objetos que podiam ser
rodados prendiam a sua atenção.
A maioria de suas ações eram reproduções da ação original. Tinha inumerá­
veis rituais verbais voltando a eles sem parar. Um dos exemplos desses rituais era
o seguinte: quando desejava descer depois do sono da tarde, dizia para a sua mãe:
"Boa (o nome para a mãe) diga: Don, não quer descer?" A mãe obedecia e ele
dizia "Agora diga: de acordo." A mãe o fazia e ele descia. São descritas outras
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER 5

falas com a mesma estrutura verbal, onde ele pede à mãe que lhe demande as
ações que quer realizar tais como: se alimentar, tomar banho etc.6
As palavras de Donald, para Kanner, têm um sentido literalmente específico
e inflexível, sem possibilidade de generalizar ou de transferir uma expressão a um
outro objeto ou a outra situação similar. Não dava atenção às pessoas ao seu redor.
Não demonstrava cólera contra a pessoa que interferia em suas ações, mas contra
a mão ou o pé que estava no seu caminho ou que derrubava seus cubos. Sua mãe
era a única com quem tinha algum contato. Ela passava todo o seu tempo procu­
rando meios de mantê-lo brincando com ela.
No plano familiar observava-se que o pai de Donald tinha trinta e três páginas
escritas com muitos detalhes sobre o histórico do seu filho. A mãe é descrita como
calma e capaz, cuja superioridade sobre o marido é reconhecida por este.
Em 1970, Donald, então com 36 anos, trabalhava como caixa de um banco e
morava com seus pais onde tinha uma vida social aceitável. Dos quatro aos oito
anos esteve com um casal de fazendeiros que utilizavam seus comportamentos
estereotipados dando-lhe um objetivo, assim como também na escola estes com­
portamentos foram aceitos e ele teve algum progresso escolar. Uma das situações
estereotipadas citadas é a seguinte: ele colecionava pássaros e besouros mortos e
começou a enterrá-los em um cemitério onde sobre uma placa escrevia o nome e
o sobrenome do fazendeiro e entre os dois nomes o tipo de animal que foi
enterrado.
O primeiro texto onde Kanner fez menção ao tratamento do autismo precoce
infantil foi em 1955, portanto só após decorridos 12 anos da nomeação. Mesmo
assim, sua posição é pessimista dizendo encontrar uma melhora aparente e que,
freqüentemente, há um limite no progresso que frustra as esperanças dos pais.
Tem uma posição favorável à psicoterapia como método terapêutico, tanto para
as crianças como para os pais, rejeitando os métodos psiquiátricos.

DISCUSSÃO

Foucault, no livro Nascimento da Clínica, expressa de uma forma marcante


o que este texto, de um médico do início do século XX, nos apresenta. "A clínica,
incessantemente invocada por seu empirismo, a modéstia de sua atenção e o
cuidado com que permite que as coisas silenciosamente se apresentem ao olhar
sem perturbá-las com algum discurso, deve sua real importância ao fato de ser
uma reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da
própria possibilidade de um discurso sobre a doença. A descrição do discurso
clínico remete às condições não verbais, a partir d� que ele pode falar: a estrutura
comum que recorta o que se vê e o que se diz".7 E desta forma que este primeiro
artigo de Kanner se apresenta, um recorte do que vê, em uma descrição rica que
faz surgir silenciosamente aos olhos do leitor um discurso que dá nome. E é o
próprio Foucault que diz que o olhar médico sobre o ser da doença opera uma
redução nominalista. Sob o olhar médico a doença não é mais do que um nome
e como nome é privada do ser, mas como palavra possui uma configuração. Es:;a
redução nominalista vai liberar uma verdade, a clínica não deve mais simples-
6 OAUTISMO

mente ler o visível, deve descobrir os segredos. A verdade é muito mais do que
uma leitura, pois do que se trata aí é da estrutura implícita. É no campo da
nominação e da leitura que Kanner parece ficar, ao longo dos seus 29 anos de
estudo do autismo. Seus textos posteriores têm a preocupação de demarcar o
terreno daquilo que nomeia, tentando evitar que se perca numa visão mais geral
de psicose infantil. Sobre a nominação diz Kanner: "A escolha da denominação
Autismo Precoce Infantil foi sugerida pela evidência manifesta dos sintomas
típicos nos dois primeiros anos e o autocentramento solitário, impenetrável ao
menos no início." Isto aponta para o fato de que o autismo se assenta sob a forma
da entrada do bebê no mundo da linguagem, ou seja, a particularidade da sua
posição em relação ao campo do Outro. E de chamar a atenção a grande ênfase
que Kanner dispensa à linguagem, tanto na descrição incial dos casos relatados
quanto no estudo publicado desses mesmos casos, 28 anos depois. A possibilidade
de usar a linguagem para se comunicar foi utilizada como um fator de adaptação
social. Kanner ao descrever o distúrbio da linguagem, observa que as palavras
adquirem um sentido inflexível, fixo, sendo impossível o seu deslizamento na
cadeia discursiva. Sem possibilidade de explicar essa observação, já que os as­
pectos apontados nos pais são insuficientes para dar conta da totalidade dos
distúrbios que estão presentes desde o início da vida, cai numa explicação de
incapacidade biológica inata.
Lacan no Seminário As psicoses vai nos apontar o melhor caminho a seguir
dizendo: "A transferência do significado, de tal forma essencial à vida humana,
só é possível em virtude da estrutura do significante. "8 Continua em outro mo­
mento. "O que é a comunicação? Quando há resposta! Numa máquina termoelé­
trica que emite mensagem e resposta por umfeedback, há comunicação por que
constitui resposta? Há significante?"9 Responde que o essencial da comunicação
enquanto tal é o registro da mensagem, é o certificado da recepção enquanto
significante e não significativo. "Há o uso próprio do significante a partir do
momento que ao nível do receptor, o que importa não é o efeito do conteúdo da
mensagem, ... , mas isto - que no ponto de chegada da mensagem, esta é regis­
trada para posterior utilização."10 Portanto, a possibilidade de utilizar a linguagem
como comunicação está articulada à possibilidade de manejar o significante com
fins puramente significantes, ou seja, como um sinal de ausência que remete a
outro sinal.
Donald, ao utilizar as palavras talvez o fizesse mais ao modo de funciona­
mento de feedback, onde o essencial da comunicação, que seria a possibilidade
de registro da mensagem como sinal de ausência, não estava à sua disposição. A
palavrayes estava solidamente ligada ao significadose colocar no ombro do pai.
A não instauração da estrutura do significante o impedia de transferir o significacb
da palavrayes para o de assentimento geral.
Neste texto Lacan é bastante radical ao ligar a definição de subjetividade à
estrutura do significante. "O subjetivo aparece no real na medida que supõe que
temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo do
significante. E capaz de servir-se dele, não para significar algo, mas precisamente
para enganar sobre o que se tem de significar".11 Entretanto, esta radicalidade nos
leva ao mesmo ponto de Kanner quando escreveprecoce, nos leva à particulari-
O AUTISMO SEGUNDO LEO KANNER 7

dade da posição precoce infantil em relação ao campo do Outro. Dizer que está
fora do campo do Outro é abusivo na medida que esta criança recebe um nome
que atesta a sua existência, e sua existência só pode ser atestada no campo do
Outro. Dizer que está no campo do Outro implica em localizá-la em relação à
estrutura do significante. Quando Donald, no período em que passa com os
fazendeiros, enterra o animal morto, deixando numa placa uma inscrição, nos
aponta a necessidade de que o objeto não esteja, para que o significante possa se
inscrever. Na placa estão escritos o nom� e o sobrenome do fazendeiro e no meio
o que já não está. Neste comportamento repetitivo, descrito como estereotipado,
Donald deixa entrever a tentativa de fazer surgir um sujeito no próprio ato de se
fazer desaparecer. E nesse ato, ato de nomeação, possa se fazer (-1) no campo do
Outro.

NOTAS
1. KAN NER, L. "Autistic Disturbances of Affective Contact" in: Nervous Chi/d, 1 943.
2. Ibidem.
3. Ibidem.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 3. ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense U niver­
sitária, 1 987, p. 1 8.
8. LACAN, J. O Seminário, Livro 3, As Psicoses. 2. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1 988, p. 258.
9. Ibidem.
1 O. Ibidem, p. 2 1 4.
1 1. Ibidem, p. 2 1 3.
O M U N DO DO ENCONTRO: BRUNO
BETTELHEIM. CONSI DERAÇÕES ACE RCA DO
AUTISMO INFANTI L
José Carlos de Souza Lima

Esse trabalho tem como objetivo apresentar uma análise das concepções de
Bruno Bettelheim acerca do Autismo Infantil, entidade clínica cuja primeira
descrição se deve a Leo Kanner em 1943. 1 A análise se centra, principalmente,
no livro em que Bettelheim melhor sistematiza suas concepções sobre o tema,
chamadoA fortaleza vazia - o autismo infantil e o nascimento do eu. 2 O instru­
mento para essa análise é buscado na teoria de Freud e 1.acan, autores que, apesar
de não terem dedicado nenhum estudo específico ao tema, fornecem elementos
valiosos para repensá-lo criticamente.

UMA PERSPECTIVA EVO LUCIONISTA


O título da primeira parte do livro de Bettelheim, "O mundo do encontro",
dá a chave para a compreensão da perspectiva teórica do autor. Ele acredita na
possibilidade de um encontro primário e que o autismo seria uma retirada, uma
ausência de encontro com o outro.
O outro3 de que se trata em Bettelheim é o semelhante, o pequeno outro, outro
especular, objeto de conhecimento do sujeito desde que o sujeito parta da intros­
pecção: "Conhecer a si mesmo para poder conhecer o outro.',4 Trata-se, portanto,
no esquema L de Jacques 1.acan, de uma relação estabelecida no eixo imaginário
a-a ', dimensão onde o simbólico é ignorado e o Outro reduzido ao duplo especu­
lar.

(Es) S
� '- - ➔ - - - 0
'.

(o eu) a @ Outro
Esquema L de Lacan. •

9
10 OAUTISMO

Reduzido o Outro ao duplo especular, o auto-conhecimento implica no co­


nhecimento do outro e vice-versa. Em realidade, Bettelheim vai muito longe nesse
caminho, a ponto de pensar o próprio nascimento da psicanálise como uma
projeção sobre o outro da introspecção original de Freud.
A linguagem para Bettelheim possui um valor meramente instrumental, con­
soante as teorias da comunicação. A criança, nos primórdios de seu desenvolvi­
mento, ainda não apta a se servir desse instrumento, estaria numa fase pré-verbal
e pré-lógica, dominada pelas relações do tato e do olfato, numa relação imediata
com o mundo.6 Fora da linguagem, anterior a ela, essa fase não se prestaria senão
à especulação teórica. Esse mundo primitivo seria o mundo das sensações, da
percepção, da experimentação e não da linguagem. Desse estágio primitivo pré­
verbal, o sujeito s� desenvolveria segundo uma seqüência lógica de fases, em
direção a um estágio de maior complexidade, realizando sua capacidade potencial.
Na criança autista, ocorreria um bloqueio nesse desenvolvimento, tornando-se ela
própria "um potencial não realizado."7
Situado o autismo infantil na perspectiva de um bloqueio do desenvolvimento,
faz-se necessário, para melhor compreensão das concepções do autor, acompanhar
suas formulações sobre o desenvolvimento da criança. Em particular, impõe-se
pensar a questão do objeto e o próprio surgimento _do sujeito.
Parece signif!cativo que, de início, Bettelheim recorra à citação das Metamor-
foses, de Ovídio: 8
"Primeiro foi a idade dourada ...
Quando todos eram felizes.
Quando o alimento crescia por si ...
E a primavera era perpétua
Nesse tempo, o leite e o dooe néctar
Brotavam em toda parte."

Julgando encontrar elementos em Freud que suportem essa perspectiva,9


Bettelheim supõe uma fase de plenitude primordial, pré-verbal e anterior a qual­
quer frustração, em que criança e mãe manteriam por certo tempo a díade perfeita
do período intra-uterino. As�im, não há falta e o objeto, confundido com o objeto
da necessidade, está à mão. E o paraíso perdido, "em que nos é dado tudo o que
queremos". 1 º
Essa fase seria anterior à própria diferenciação eu/não-eu, o eu experimentado
como sendo tudo. Bettelheim parece pensar como se a criança fosse uma ilha
primordial e o campo do Outro não estivesse ainda fundado. Não começou ainda
o eu; não existe ainda o Outro. O autismo é o estágio inicial do desenvolvimento
da criança.
Sobre esse período caracterizado como pré-verbal numa evidente confusão
entre fala e linguagem, a analogia proposta pelo autor é reveladora. Anota ele que,
assim como o homem se esforçou por milênios para dominar a linguagem, o bebê
nela será introduzido aos poucos. Passa do pré-verbal ao verbal.
Ao desprezar o que nos ensinou Freud sobre as pulsões, 1 1 Bettelheim atribui
à psicanálise a criação do mito da passividade do bebê, num período em que
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 11

mesmo dentro de sua dependência ele seria ativo: ativo na sucção, ativo na atenção
com que observa ao redor etc. Socorre-se da analogia feita por Kohut, para quem
o bebê está tão absorvido em suas atividades quanto "o amante no clímax das
relações sexuais." 12
Para o desenvolvimento do eu essa atividade seria fundamental. Encontrar-se
num estado de vigília calma e ter oportunidade de estar ativo seriam essenciais
para o desenvolvimento normal. O que importa não é a satisfação propriamente
dita, mas sim a possibilidade dela participar ativamente. Conclui então que o bebê,
quando está ativo na mamada ou na observação do mundo, "encontra-se no auge
do contato com a vida."1 3
Mas isso não é tudo, pois se é justamente de uma relação a dois no eixo
imaginário a-a ' que se trata, então tudo o que daí decorre dependerá da resposta
do parceiro imaginário e da maneira como recebe as iniciativas do bebê. Se essa
atividade entãp discreta não recebe resposta ou não é satisfeita, a criança pode se
tomar apática ou rechaçar a mãe.
Como toda relação mãe-bebê se desenvolve em tomo da alimentação, esta
seria a experiência nuclear a partir da qual se desenvolveriam todos os sentimentos
acerca de nós próprios e dos outros, Bettelheim assinala que a experiência inicial
positiva é aquela que se desenvolve num contexto de mutualidade, "de termos
percebido a experiência a despeito do estado de dependência em que nos encon­
tramos."14 Deve, pois, haver mutualidade, reciprocidade, relação. Para Bettelheim
- e as analogias não são aleatórias - há correspondência sexual.
Desse modo, trata-se na visão do autor de uma relação imediata e, como já
assinalamos, pré-verbal. Em decorrência, torna-se compreensível que recorra à
Etologia, na sua busca de exemplos no campo do comportamento, que lhe permi­
tam compreender o que se passa com o homem. Fora da linguagem, observa-se
o comportamento. Fora da Psicanálise, socorre-se da Etologia. Os etólogos ou os
antropólogos em seus estudos sobre os povos primitivos lhe dão a referência
acadêmica necessária para, com base num raciocínio analógico, compreender o
que ele pensa como pré-verbal ou como uma relação primitiva.
Assim, o surgimento do sujeito, confundido com o eu, está articulado com o
desenvolvimento da capacidade de comunicação. De início, o bebê se mostra
ativo, mas não se comunica. Não existe ainda comunicação bilateral. Logo, o
início do sentimento do eu ou o ego corporal se estabelece com base na discri­
minação das sensações, fora da linguagem, no terreno das relações imediatas. O
mundo é pura positividade, pura presença. Nesse terreno, o reconhecimento e a
aceitação da expressão dos sentimentos do bebê pela mãe permite a comunicação.
Do solipsismo inicial se chegaria à experiência dos outros.
A contradição em que cai Bettelheim se mostra por inteiro. Se a criança
inicialmente em tudo depende da mãe, como falar aí de solipsismo primordial?
Se, de início, a criança está na experiência dos outros, em estado de absoluta
dependência, como pensar que ela chega aí depois? Mais ainda: se o mundo é
pura positividade, se o objeto está, então, o que faria a criança abandonar esse
lugar, lançar-se em direção ao Outro?
Se está claro que o campo do Outro preexiste ao sujeito, e que o "sujeito, in
initio, começa no lugar do Outro"15, trata-se de pensar justamente na dialética
12 O AUTISMO

alienação/separação. Ou seja, a vertente em que nos colocamos é a de pensar sobre


a experiência dos outros na direção de algo que faça barreira, que crie o espaço
próprio da subjetividade, o lugar de sujeito. Se o campo do Outro já está, e as
operações alienação/separação são dialéticas e constituem um mesmo movimento,
estruturado retroativamente, então não há como pensar numa sucessão de fases,
na perspectiva evolucionista, como faz Bettelheim.
Para Freud, o que está em jogo na constituição do sujeito é a Urverdrãngung;
para Bettelheim é um processo de conscientização, de aquisição de uma auto­
consciência.
A criança de Bettelheim toma consciência de si e dos outros, do eu e do
não-eu, a partir das experiências de frustração que a vida lhe reserva. Que nem
tudo é plenitude, a criança vai se conscientizando progressivamente. Há um
espaço não-eu.
Se estamos no campo imaginário, a categoria de impossível, pertinente ao
registro do real, fica substituída pela de frustração. A aquisição da autoconsciência
assinala o surgimento do eu.
Após a aquisição da consciência do eu/não-eu, o primeiro impulso da criança
seria o de controlar unilateralmente o mundo. A frustração convenceria a criança
a aiuar com, a desenvolver um senso da vantagem da mutualidade. 1 6
Atuar, agir, estar ativo, são significantes que se repetem em todo o livro de
Bettelheim. Para ele, o que humaniza o bebê não é tão -somente o cuidado ou a
satisfação de necessidades, mas sim � experiência de que é sua ação que provoca
sua satisfação por parte dos outros. E essa consciência que socializa e humaniza.
Se há correspondência, reciprocidade, em uma palavra, encontro, há humanização.
Se, ao contrário, há indifcrença ou inibição, o autismo pode ser o resultado. A
criança atua e recebe resposta a criança comunica emoções e experimenta "uma
réplica emocional adequada." 1 7 Confundindo a estruturação do eu com o advento
do sujeito e abolindo a dimensão simbólica, a teoria de Bettelheim não tem como
dar conta de que é a demanda do Outro o que abre o campo do desejo e inscreve
a criança na alienação primordial.
Bettelheim considera que a experiência de humanização é bem sucedida se a
mãe deseja relacionar-se com o filho em mutualidade, embora advirta que, ini­
cialmente, não deva esperar que o filho contribua.
Percebe-se que dentro dessa concepção existem previamente dois eus, cada
qual com suas necessidades a serem satisfeitas, num encontro a dois. Para isso,
mãe e filho devem se adaptar, se ajustar um ao outro, embora inicialmente a
criança não perceba senão suas próprias necessidades. A humanização implica em
que a criança supere essa fase de solipsismo e se adapte à mãe e, reciprocamente,
a mãe a ela.
O conceito-chave para o desenvolvimento normal é, pois, o de mutualidade.
A mãe não deve esperar demasiado nem muito pouco de seu bebê. Num caso
ou noutro os reflexos sobre o seu desenvolvimento poderiam ser negativos. Assim,
para um desenvolvimento normal, a expectativa da mãe deverá ser justa, de boa
medida, a fim de estimular o desenvolvimento da criança, mas sem a ansiedade
que poderia inibi-la. A idéia implícita aqui é a de um tempo correto, em que a
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 13

criança já tendo passado por experiências de satisfação de necessidade, possa


reconhecer que "uma parte da realidade (a mãe) tem valor positivo." 1 8 A mãe
entra como a parte boa da realidade e garantia do interesse renovado da criança
pelo mundo que a cerca. A "mãe suficientemente boa" de Winnicott é aqui
evocada. 19
Dentro das concepções de Bettelheim, ao lado do conceito de mutualidade,
adquire dimensão essencial o conceito de fase crítica. O autor recorre expressa­
mente aos etólogos para fazer uma analogia entre o que seria a fase crítica da
criança e o imprinting dos animais. Assim, como para cada espécie animal exis­
te um período em que o filhote adquire a identidade de sua espécie, fixa seus ca­
racteres, o chamado imprinting, para a criança existiria também um tempo preci­
so para constituir o seu eu. Pensado, por analogia, o desenvolvimento da criança
como o dos animais, sob o primado do imprinting, da captação imaginária ao
outro da mesma espécie, não resta a Bettelheim senão lamentar que "a mutuali­
dade da preensão tem sido pouco estudada nos bebês humanos."2º Ao mesmo
tempo se obriga a constatar que nesse campo "o bebê humano, desde o início,
parece em desvantagem". 21
É certo que também Lacan travou um diálogo com a; etólogos. "O est.ádio do
espelho"22 assinala o poder de captura e de produção de efeitos pela imagem do
semelhante. No entanto, o estádio do espelho não pode ser pensado simplesmente
no registro do imaginário, já que é uma construção que deriva do discurso. Daí
que a estrutura do espelho está baseada na identificação primária a um traço
unário. Isto significa que não há imaginário prévio à introdução do sujeito no
campo da linguagem. Se Bettelheim fica preso no jogo de espelho, capturado ele
próprio à imagem do semelhante, no eixo a-a' do encontro com o outro, Lacan
rompe com qualquer analogia possível ao assinalar que "a natureza é alterada no
homem por uma ... discórdia primordial".23 No mesmo sentido, no s�minário 1,24
Lacan ensina que o espelho deve ser pensado como o Outro - e não o outro
especular - e é nessa dimensão que ele aparece nos mitos e na cultura.
Voltemos a Bettelheim. Apoiando-se em Bowlby, ele pensa que o víriculo
entre criança e mãe, a mutualidade, atinge seu cume entre 18 e 30 meses de vida.
Esta seria afase crítica em que a criança teria adquirido rudimentos da linguagem
e a capacidade de influenciar o meio. Assim, se os esforços da criança para
satisfazer suas necessidades não têm resposta, isso afeta negativamente seu de­
senvolvimento; se, mais grave, a tomam menos apta para modificar o meio, isso
pode levá-la a regredir e a se isolar autisticamente. Para Bettelheim seria no
segundo ano de vida, quando a atividade espontânea para um objetivo faz parte
do desenvolvimento normal, que a indiferença ou uma resposta destrutiva do meio
poderia levar a criança a renunciar a toda iniciativa.
Revelando a influência do meio social em que tais concepções foram elabo­
radas, aos conceitos defase crítica e de mutualidade vem se juntar um terceiro
nome: autonomia. Bettelheim atribui à psicanálise o equívoco de exagerar uma
dependência e submissão orais. Acha que essas características são próprias da
patologia e não de um desenvolvimento normal. Escreve ele: "Normalmente,
contudo, a oralidade e a dependência são apenasprimi inter pares das experiências
14 O AUTISMO

de vida do bebê."25 Desse modo, Bettelheim afasta-se ainda mais de Freud, ao


propor um modelo de desenvolvimento normal, sem as vicissitudes estruturais
destacadas pelo pai da psicanálise como inerentes a cada forma de organização
da libido. Além de aderir inteiramente à perspectiva evolucionista, a ênfase dada
por Bettelheim se centra toda em torno da idéia/ideal de autonomia. Esta é a
palavra-chave, em realidade em inteira sintonia com os ideais da sociedade ame­
ricana, vertente de uma certa psicanálise analisada por l.acan em 1953.26 O ideal
de autonomia, vale dizer do indivíduo enquanto ser autônomo e consciente de si,
nada tem a ver com o sujeito do inconsciente freudiano, sujeitado ao significante,
sujeito marcado pela divisão e alienação fundamental.
Na aquisição da autonomia, Bettelheim reconhece o grande valor da expe­
riência de eliminação e de controle dos esfíncteres. Nessa experiência apareceria,
pela primeira vez, a distinção entre o eu e o não-eu. Além disso, essa delimitação
se apresentaria à criança através de um esforço consciente e premeditado, aumen,­
tando o senso de autonomia e a área do eu , baseado numa decisão da criança . E
o rudimento do eu, segundo Bettelheim, que vai ganhando consistência e autono­
mia no contexto da mutualidade. Aqui se pode argüir, uma vez mais, a fragilidade
das formulações de Bettelheim. Pois, o aprendizado de hábitos higiênicos e de
controle esfincteriano não resulta exatamente da incidência da demanda do Outro
Da alienação a um significante da demanda? Não põe abaixo a idéia de autonomia.
Não há, pois, como deixar de reconhecer a articulação do sujeito ao Outro.
A alienação ao Outro se mostra aqui com toda evidência. No entanto, o ideal de
autonomia de Bettelheim se impõe a despeito dessa evidência e busca resposta no
amor ao outro: quem ama não se submete mas, ao contrário, dedica-se autonoma­
mente ao serviço da pessoa amada. Da autonomia em relação ao corpo, a criança
progrediria a um estágio de autonomia mutual, ou seja, autonomia compartilhada
com os outros, nas relações sociais. O amor, compartilhado entre a criança e o
outro, levaria ao estabelecimento das relações sociais. "A autonomia solipsista é
então elevada a uma posição superior para incluir também a autonomia nas
relações sociais."27 O que essas formulações escamoteiam é que a criança não
tem como não se alienar na demanda no campo do Outro, aos significantes do
Outro. Na construção de um ideal de autonomia, o autor busca resposta no amor.
Como assinala l.acan, o amor é o campo da ilusão, do engano. Freud não se
enganou ao situá-lo na dimensão do narcisismo.28 Das próprias formulações de
Bettelheim, pode-se ver que é aí que ele chega, quando envereda pelo caminho
do ideal. Nesse caminho ele se move em seu desconhecimento da falta do Outro
que, por ser barrado, demand,a ao sujeito. Demanda justamente a partir de sua
impossibilidade, de sua falta. E a partir da falta de um significante no Outro que
se abre o campo do desejo. Ao contrário, o recuo de Bettelheim diante dessa falta
estrutural, o leva a formular a idéia de uma simultaneidade de desejos: ao mesmo
tempo em que a mãe deseja que a criança adquira o controle dos esfíncteres, por
exemplo, a criança identificada com ela lhe oferece suas fezes. Passando ao largo
da demanda do Outro, sentencia: "os desejos parentais e os da criança estão, assim,
de acordo."29 Trata-se, para Bettelheim, de um feliz encontro entre duas pessoas
autônomas.
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 15

SITUAÇÃO EXTREMA: O SUJEITO SUBMERG IDO NO REAL

O conceito de situação extrema é aquele em que, declaradamente, a biografia


do autor influenciou de maneira decisiva. Bettelheim nos informa, na apresentação
de seu livro, que os problemas humanos e teóricos se converteram numa questão
exclusivamente pessoal, quando recebeu e passou a conviver em sua casa em
Viena, antes da II Guerra Mundial, com duas crianças autistas.
Se o interesse pelo autismo infantil se materializou nos cuidados a essas duas
crianças em Viena, o conceito central de suas formulações teóricas, a situação
extrema, surgiu a partir de sua experiência de prisioneiro nos campos de concen­
tração nazistas. O que observou como prisioneiro lhe possibilitou, com base num
raciocínio analógico, comparar o isolamento das crianças autistas com o isola­
mento de alguns prisioneiros nos campos de concentração. Eis como se lhe
apresenta a questão: "Poderia existir alguma conexão, perguntei a mim mesmo,
entre o impacfo dos dois tipos de desumanidade que eu conhecia - um deles
imposto por razões políticas às vítimas de um sistema social, e o outro, talvez um
estado de desumanização auto-escolhido (se é que podemos falar de escolha nas
respostas de um lactente) ?"3º
Bettelheim pensa então que se as crianças autistas alheiam-se do mundo tal
qual alguns prisioneiros nos campos de concentração, os chamados muçu/ma,ws,
que se isolavam e renunciavam a qualquer tentativa de influenciar o meio hostil
em que viviam, é porque deveria haver alguma conexão, algum fator comum que
as faziam ensimesmar-se da mesma forma. Esse fator comum, Bettelheim resume
nas seguintes palavras: "um contínuo receio por. suas vidas."3 1
Num artigo de 1956, "Childhood schizophrenia as a reaction to extreme
situation", Bettelheim situa a reação a situações extremas na causa tanto da
esquizofrenia quanto do autismo infantil. Assim, assinala, "todas as crianças
psicóticas sofrem da experiência de terem sido vítimas de condições de vida
extremas, e de a gravidade de seus distúrbios estar diretamente relacionada com
o grau de prematuridade da ocorrência dessas condições, seu grau de duração e a
gravidade de seu impacto sobre a criança."3 2 A situação extrema seria caracteri­
zada pelo risco permanente a que expõe a vida, pela inevitabilidade da experiência,
por sua duração incerta e pelo fato de que nada nela é previsível.
Logo são as condições reais de existência nos campos de concentração que
levariam alguns indivíduos a renunciar a toda esperança e ao desejo de modificar
a realidade. Esses, segundo Bettelheim, se tomam psicóticos.
Da mesma forma, no autismo infantil, não seriam as fantasias do sujeito que
o aterrorizariam. Não se trataria de uma conseqüência da fase esquizoparanóide
de Klein, em que a criança teme os objetos tomados persecutórios pela projeção
de seus impulsos hostis e destruidores. Apesar de concordar com as descrições
de Klein sobre a fase esquizoparanóide, Bettelheim sustenta a particularidade de
sua tese:
"Não creio que a causa primária do autismo infantil seja o receio de um
mundo tomado odioso pela projeção que a criança efetua nele de seu próprio eu
agressivo ."33
16 OAUTISMO

Mais adiante:
"Creio que a causa inicial da alienação é muito mais a correta interpretação
que a criança faz das emoções negativas com as �uais as figuras mais significa­
tivas de seu meio ambiente se aproximam dela."3
E ainda:
"A tragédia da criança fadada a tornar-se autista é que tal visão do mundo
está correta para o seu mundo; e isso numa idade mais benigna para contrabalan­
çar. Esse fato é a causa de optarem pela posição autista e não pela projeção do
seu eu agressivo, embora isso também faça parte. "35
Para usar uma fórmula conhecida,36 aqui é a vida que vem dar razão aos
fantasmas do sujeito. Não é o imaginário que constitui a realidade do sujeito, e
sim, é a realidade que invadiu o imaginário. No entanto, se o imaginário só pode
ser pensado desde a constituição do campo significante, a realidade terrível e
ameaçadora, imprevisível e inevitável se apresenta aqui com a certeza e a positi­
vidade do real. Nesse sentido, a criança pareceria experimentar algo além - ou
aquém -da-própria dialética significante. Nas palavras de Bettelheim, não há uma
realidade boa para contrabalançar essa realidade ameaçadora. O que a ameaça é
a invasão de um absoluto. Não há o jogo significante que, apesar da caracterização
imaginária que lhe dá o autor, possa ser pensado como simples alternância de
presença e ausênciã. No Outro, pensado como tesouro dos significantes, lugar da
linguagem, o sujeito não encontra a estrutura significante mínima que lhe permite
realizar o fort-da. Em conseqüência, parece ficar imersa no puro real, possuída
por um gozo absoluto, excluída da relação ao Outro.
O estádio auto-erótico, cuja formalização se pode acompanhar nos "Três
ensaios sobre a sexualidade",37 e na "Introdução ao narcisismo",38 é marcado pelo
domínio da pulsão de morte. Isso aparece nas formulações de Bettelheim, onde o
Outro é reduzido ao outro, da seguinte maneira: "Ao longo desse livro mantenho
minha convicção de que, em autismo infantil, o agente precipitador é o desejo de
um dos pais de que o filho não existisse. "39
Talvez seja mais apropriado falar aqui de uma ausência de demanda dos pais.
O que Bettelheim refere como sendo "o desejo de que a criança não exista" talvez
deva ser entendido, mais precisamente, como um nada a demandar dela. Se é a
mãe quem vem introduzir a criança na dialética ao Outro, no autista o Outro não
se apresenta. Ou, na linguagem do esquema ótico de Lacan, a criança autista não
teria acesso ao cone de emissão e por isso mesmo não se articularia à estrutura
de ficção significante na medida em que o espelho é conotado ao Outro. Daí o
isolamento e o olhar perdido do autista indicando que o Outro, a quem poderia
formular seu apelo, não está.
Apesar da aproximação que freqüentemente se faz entre auto-erotismo e
autismo, acreditamos que se impõe manter as diferenças entre ambos. O autismo
não é o auto-erotismo. O autismo implica na exclusão do auto-erotismo, no não
atravessamento do estádio do espelho, não se constituindo o corpo enquanto corpo
erógeno, isto é, não inscrição da sexualidade no registro fálico. O autismo seria
então outra estrutura ou, em todo caso, haveria um desarranjo da estrutura. Se o
autista está perdido num gozo não interditado é porque a operação de inscrição
no campo do desejo fracassa. Essa operação supõe a afirmação do significante do
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 17

Nome do Pai (NP) constituindo a ordem simbólica. Aí tem lugar a Verdrãngung,


morte segunda e nascimento do sujeito inscrito no campo do desejo, coordenado
à significação do falo no inconsciente. Sob a ordem do <j>, enquanto viabilizado
pelo Nome do Pai (NP), instala-se no sujeito uma identificação à uma imagem
fálica (-cp ), isto é, imagem marcada pela falta constitutiva que a sustenta.
P9der-se-ia supor que a não constituição de um corpo erógeno no autista
decorreria da elisão do falo, efeito da forclusão do N orne do Pai (NP). A própria
impossibilidade de se nomear, de dizer eu do autista, indicaria o fracasso do ato
de nomeação, a forclusãc do Nome do Pai (NP).

ORTOGÊNESE: UMA RETIFICAÇÃO PEDAGÓGICA

Coerente com a perspectiva evolucionista, Bettelheim pensa o autismo como


um bloqueio d9 desenvolvimento, tornando-se a criança um potencial não reali­
zado. Esse bloqueio do desenvolvimento derivaria diretamente da relação da
criança com os pais: é o desejo de um dos pais de que o filho não exista. Propomos
interpretar esse desejo de que o filho não exista exatamente como um desejo de
nada em relação ao filho, um nada a dema11.dar. Talvez, por isso, Bettelheim afirme
que é a conduta dos pais que "não permite ou não induz a criança a sair da
casca."40 Essa afirmação o leva a aceitar a tese de Kanner de que "o lar agrava o
distúrbio" mantendo-se a criança no seu estado autístico original.4 1 Essa concep­
ção do autismo informa todo o tratamento proposto por Bettelheim e está na base
da fundação da Orthogenic School da Universidade de Chicago.
Como aos pais é atribuída a responsabilidade pelaprivação emocional extre­
ma vivida pela criança, Bettelheim propõe a separação radical entre a criança e
os pais, com a internação da criança na escola. Dessa concepção de Bettelheim,
resulta sua crítica a Mahler, para quem a relação simbiótica entre mãe e filho é
de grande importância e o tratamento deveria "reconstituir a simbiose mãe-filho
da unidade original."42 Mas, se o problema está justamente na indiferença ou até
mesmo hostilidade dos pais, não seria um contra-senso mantê-la aí ? É Bettelheim
quem pergunta: "mas por que a criança psicótica haveria , de ser tratada em
condições que a exporiam a pressões impacientes dos pais ?' 43 E acrescenta: "Por
que haveria ela de ser impelida cedo demais para o contato , social e por que haveria
o relacionamento recém-formado de causar frustração?' 44
Essas questões levam Bettelheim a fundar sua escola para autista como um
"meio terapêutico total",45 meio artificial, estimµlante, encorajador e "do qual
possa fazer parte de imediato, tal como ela é."46 E na criação desse meio especial
que Bettelheim diz ter consagrado , sua vida: "um ambiente que favorecesse a
reconstrução da personalidade.' 47
Bettelheim crê que de uma nova interação, harmoniosa, estimulante, resulta
um desenvolvimento normal. Se esse desenvolvimento se dá dentro de uma
seqüência determinada de fases, em que uma fase se segue a outra numa ordem
necessária e complementar, o tratamento eficaz deverá, a despeito da idade cro­
nológica, recriar artificialmente essa seqüência de modo a proporcionar a essas
18 O AUTISMO

crianças uma segunda oportunidade de adquirir os traços de personalidade de que


careceriam. Tem, pois, o tratamento, segundo essa concepção, um caráter de
ortogênese, de retificação de uma experiência mal-sucedida de encontro com o
mundo. Daí a tentativa de criar um mundo artificial que favoreça essa retificação.
Em "Love is not enough."48 o objetivo da escola é assim definido:

"Para colocar nossa teoria em prática, temos com efeito, desejado criar um
ambiente muito particular de substituição, no interior do qual as crianças
possam começar a desenvolver uma vida nova."

Bettelheim afirma que esse mundo artificial de substituição só pode ser criado
se for reduzida a distância entre o terapeuta e a criança, entre o mundo de um e
de outro, se o terapeuta vai se juntar a ela aí, numa confrontação direta.
Parece que mais uma vez o equívoco de Bettelheim é reduzir a experiência
a uma dimensão especular a-a ', em que o terapeuta busca a empatia com o autista,
busca colocar-se em seu lugar, identificar-se com ele, descer ao seu inferno, para
juntos empreenderem a viagem da redenção.
Para seu trabalho na escola, Bettelheim busca fundamentação teóric:1nas
observações de Ar...na Freud sobre o tratamento de crianças esquizofrênicas.,., De
acordo com essas observações, o terapeuta deve se oferecer em pessoa para que
a personalidade do paciente se unifique em torno de sua imagem. Deve, pois, se
oferecer como objeto estável e onipresente de forma que a personalidade do
paciente se reintegre.
Colocado o tratamento nesse plano, podemos ver bem os impasse� a que
chega. Comentando as dificuldades de sua equipe, Bettelheim afirma que, se por
um lado a frustração acarreta o retraimento da criança, por outro lado, a falta de
resposta positiva ou o retraimento da criança provocam frustração e sentimentos
de hostilidade por parte de quem convive com ela. Há um aprisionamento imagi­
nário, especular, de um ao outro, do qual não se pode escapar dentro de sua�
formulações. O que provoca o quê, nesse espelhismo em que cai o terapeuta? E
a hostilidade do terapeuta, subseqüente a frustração, provocada pela falta de
resposta da criança? Ou é o isolamento da criança que é provocado pela contra­
transferência do terapeuta ?
Bem se vê o beco sem saída teórico em que se mete, quando a questão é
colocada nesse registro. No âmbito da relação dual, trabalhando a partir da con­
tratransferência, não se tem saída. Jogo de espelhos, campo da identificação
imaginária, a relação aí é uma reação. Estamos num círculo fechado, vicioso, onde
a questão - no tratamento, mas também na etiologia do autismo - é saber o quê
é causa de que ou, na perplexidade de Bettelheim, "o que surgirá primeiro, o ovo
ou a galinha?"50
E interessante observar que a despeito da insistência de Bettelheim sobre a
plenitude primária, sobre o encontro inaugural com uma realidade essencialmente
boa, o real se intromete sub-repticiamente como um verdadeiro umbigo de sua
teoria. Pode-se apreender esse ponto cego de suas formulações justamente quando
se refere à sua clínica. Ei-lo:
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 19

"Até o mutismo das crianças autistas que não falam parecem ser em grande
parte uma defesa contra a dor emocional ou qualquer posterior depleção do eu.
Como várias crianças inicialmente mudas mais tarde disseram, não falavam
porque isso lhes deixaria o cérebro totalmente vazio."51

Que outro recorte tão vivo a experiência clínica poderia lhe dar do que se
trata na linguagem? Sua posição teórica lhe impede de aprender com essas crian­
ças que o símbolo é a morte da coisa e que se trata exatamente da não extração
do objeto o que a clínica do autismo revela. O significante é a coisa mesmo
enquanto ausente e é essa ausência que funda a linguagem. A depleção, o esva­
ziamento de que se trata na emergência da palavra deve ser entendido como
esvaziamento de gozo.
Pode-se ver até que ponto a teoria em Bettelheim está contra a clínica e as
indicações que esta lhe dá. Para ele, o autismo é resultado de uma realidade
terrível, imprevisível e inevitável, que se impõe repetitivamente, a ponto do sujeito
pensar que esse mundo deftustração é governado por uma lei insensível. Diante
dessa realidade terrível, o sujeito não pode fazer mais do que se perder em gestos
repetidos, meneios, rituais etc. Todavia, quando Bettelheim fala em lei insensível,
repetitiva, mais do que da realidade, parece tratar-se da incidência do real. Por
que não pensar num espaço fora da diaiética da simbolização, opaco, ponto de
puro real ?
Nesse pont9 opaco não há trama significante; não há o deslizamento próprio
da linguagem. E um ponto de real, sempre o mesmo, sem nenhuma marca de
equivocidade. Na ausência do Outro, o sujeito está aí inteiramente no domínio da
pulsão de morte. Não há constituição do corpo simbólico; não há perda do corpo
real, não há alienação. Preso no campo do sentido, prisioneiro de sua própria
teoria, Bettelheim fala de uma sensibilidade ferida de morte.
A posição de Bettelheim é a do pedagogo. Tem uma teoria e com ela se
defronta com a clínica. A teoria lhe fornece um anteparo (significante) contra o
horror provocado pelo real.
Munido de um saber previamente constituído, Bettelheim não tem como dar
conta das indicações sutis que a clínica lhe fornece. Para usar as fórmulas de
Lacan,52 trata-se do saber universitário já constituído e que Bettelheim procura
aplicar a um objeto, o autista, também previamente constituído, ficando encoberta
a posição de mestria, S 1, que ele ocupa.

S2 -+ a
sT ,S'
Talvez, em nenhum outro lugar se possa apreender com maior clareza que se
trata do discurso universitário, do que na entrevista final com Joey, o menino
mecânico, realizada durante uma visita, tempos depois de sua alta.53 E ali onde o
ex-interno da Orthogenic School parece demonstrar uma teoria aprendida longa
e exaustivamente. Ele é capturado nesse discurso e dá perfeita conta dis�o. Dá
respostas que encantam o mestre pois confirmam suas formulações. Vejamos, por
exemplo, como se coloca o ideal de autonomia nesse trecho do diálogo:
20 O AUTISMO

8.8.: - E como foi sua vida desde que vare nos deixou?
Joey: - Oh, foi muito diferente e, em certos momentos, começar vida nova e ter
que fazer coisas por mim mesmo me deixava muito ansioso. Por exemplo,
lembro que eu sentia que precisava de alguém que me ajudasse a arranjar
amigos e agora arranjo sozinho.

O objetivo do tratamento e, de certa maneira, a moral que preside a interven-


ção pode ser apreendida no trecho abaixo:
B.8.: - Diga, o que vare está sentindo ao voltar depois de três anos ?
Joey: - Oh, em certos aspectos é a mesma coisa, e em outros é muito diferente,
principalmente porque sei que já não sou um menino de ginásio. Estou
preparado para continuar os estudos, arranjar sozinho um emprego e ganhar
meu próprio dinheiro. E eu mesmo compro minhas roupas e outras coisas de
que preciso. Outro fator muito importante - e isso aconteceu antes de eu sair
daqui... eu estava realmente começando a ser capaz de falar mais livremente às
pessoas o que eu sentia... como quando comecei primeiro a sentir, em vez de
esperar - muito tempo. Porque nessa época eu podia dar comigo me
expressando através de uma explosão terrível, ou tentando fazer qualquer
coisa para me machucar, ou ficando muito deprimido quando alguma coisa não
dava certo.

Mais adiante, outro trecho:


B. B.: -Você têm alguma idéia de por que começou a esconder os sentimentos
dessa forma ? O que te levou a isso ?
Joey: - Na minha opinião, devo ter tido algumas experiências muito infelizes que
não recordo.

Não é a escuta da criança que permite a Bettelheim formular suas concepções


sobre essa cura; ao contráyio, a entrevista final com Joey apenas vem confirmar
um saber já estabelecido. E ele mesmo quem reconhece: "Na época dessa entre­
vista, pouco do que Joey nos disse constituía novidade para nós." E o próprio
Bettelheim expõe suas dúvidas sobre o significado da entrevista: "conhecendo
Joey, seu desejo era causar boa impressão na visita para nos mostrar como se
tornara sensato."
Causar boa impressão e tornar-se sensato! Joey mostra corresponder plena­
mente aos intentos ortogênicos de Bettelheim. Afinal, o nível da contratransferên­
cia não é o nível da correspondência, dos sentimentos compartilhados?
Joey, de menino-mecânico se transforma em um menino normalizado, não
sendo essa normalização senão uma forma pela qual a criança se embala no ritmo
de nossas demandas.
O IDEAL É SERVO DA SOCIEDADE
Há uma ética na psicanálise: é a ética do desejo freudiano.
O desejo está sustentado pela falta, pela extração do objeto. Na dialética de
constituição do sujeito, o objeto se constitui como desde sempre perdido. A
pulsão, ao rodear seus objetos, não faz senão restaurar neles sua perda original.
O MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 21

No centro mesmo da teoria de Freud está Das Ding, a coisa. A coisa é uma
alteridade radical que não é capturada na �lteridade do pequeno outro, a '. Aí se
articula o gozo como barrado, impossível. E q vazio em tomo do qual se articulam
os significantes. Lacan, no Seminário da Etica, 54 coloca esse vazio no cerne
mesmo do ser. Assinala que o desejo é o ser do sujeito, pois o sujeito não tem
outro ser que afalta a ser, não tem outro ser que o desejo, metonímia de seu ser.
Lacan situa o gozo em oposição ao desejo, mostrando que o que sustenta o
último são as barreiras que se interpõem entre o sujeito e o que poderia ser seu
gozo.
Desde Freud, a ética do desejo está vinculada com a figura do pai. No mito
freudiano do Édipo, o pai é quem presentifica a proibição do incesto e, portanto,
do gozo do que Lacan chama a coisa. Lacan acompanha Freud na tese de que o
vínculo social civilizado está ligado à questão do pai, isto é, da Lei, sem a qual
não existe desejo. A lei, ao regular a distância do sujeito à coisa, proíbe o gozo,
sendo essa proibição a condição da fala.
Assim, o objeto absoluto falta. E é na medida em que o objeto está perdido
que o desejo do sujeito é sempre metonímico, desejo de outra coisa, fugidio, que
não se apreende nas malhas do simbólico. Daí que a ética, tal como Lacan a situa
em Freud, está articulada ao registro do real, do não simbolizável, na categoria
do impossível. Para Lacan, a questão não é de integração ou de adaptação mas,
ao contrário, de fazer valer a divisão do sujeito e o impossível do objeto. Isso
significa que na psicanálise não se trata de adaptação ao todo, mas sim do
sacrifício do nada. Lacan constrói uma clínica do sacrifício do ser falante ao gozo.
As teses fundamentais sobre a ética em Freud, que Lacan destaca, podem ser
assim resumidas:

1. não há bem soberano: a psicanálise não é regida por ideais;


2. o caráter indestrutível do desejo; e
3. o objeto está originária e irremediavelmente perdido.

Essa preliminar com relação à ética é fundamental para situar a clínica de


Bettelheim.
Como se pode depreender dos próprios significantes que se repetem ao longo
de toda a sua obra - adaptação, integração, desenvolvimento - a posição de
Bettelheim nada tem a ver com a de Freud. Na direção oposta, ele propõe uma
adaptação social, para o que a identificação com o terapeuta parece ser o caminho.
O outro, para ele, parece ser a medida da realidade: "A comunicação com adultos
que conhecem o mundo muito melhor, reduz a margem de erro e incrementa a
capacidade do latente para prever o resultado de suas ações."55
Para Bettelheim, a realidade é essencialmente boa. E o outro é a medida dessa
realidade harmoniosa. O encontro é possível: o mundo de Bettelheim é o mundo
do encontro. Para ele, "a criança autista carece justamente dessa confiança nas
intenções benignas da realidade."56
Tem-se a impressão de que se tenta eliminar o real e escamotear a agressivi­
dade fundamental do sujeito, através de um colírio idealizante. Idéias de integra­
ção, de adaptação, já denunciados por Lacan em 1953, no discurso de Roma:
22 OAUTISMO

"a concepção da psicanálise aí se curvou em direção a adaptação do indivíduo


ao meio social, a procura de patterns de conduta e toda a objetivação implicada
57
na noção de human relatíons ..."

Eliminado o real, afastamo-nos da ética freudiana e caímos no domínio da


normalização social. Nesse domínio, Bettelheim erige uma moral relativa a busca
do prazer e um ideal de autonomia; autonomia, bem entendido, que se harmoniza
com a norma social: "o prazer de duas pessoas é melhor do que o prazer solitá­
rio."58
Podemos afirmar então qu� em Bettelheim há uma moral do prazer e uma
teleologia das relações sociais. A ética do desejo freudiano, opõe uma moral do
prazer; à anarquia das pulsões, opõe um eu forte e consciente; à falta de um
significante no Outro, S (A), opõe o encontro amoroso de duas pessoas que se
completam.
Há uma tentativa de domesticação da pulsão. Há um ideal de conciliação entre
o pulsional e as regras sociais. Bettelheim leva longe esse intento, a ponto de erigir
uma verdadeira síntese moral: cada um dá o que tem e recebe o que merece. Essa
síntese moral, aplicada à relação mãe e filho, pode ser apreendida na sua sentença:
59
"àqueles que têm ser-lhes-á dado e daqueles que não têm ser-lhes-á tirado."

Mas, a despeito de toda tentativa de apaziguamento, o real insiste, não cessa


· de se interpor nesse universo imaginário e Bettelheim, mesmo sem sabê-lo, o
registra assim:
"Aqui, como na vida, o destino registra um papel importante e por vezes decisivo.
Os bebês nascem com diferentes disposições hereditárias, inteligência e
temperamento (...) A esse respeito a hereditariedade é o destino:•00

Logo, o destino dá nome ao imponderável, ao imprevisível. O destino é a


marca mesma do real. E esse real não cessa de não se inscrever, para usar a
fórmula de Lacan, a�esar dos esforços de Bettelheim para que a criança se tome
dona de seu destino. 1
Destarte, a falta de um significante no Outro e a desarmonia do mundo são
colocados na conta das injustiças da vida , contradizendo a síntese moral que o
próprio Bettelheim antes enunciara. Impõe-se, a despeito dos ideais apaz�ado­
res, o imprevisível do real, a função da tiquê enquanto encontro faltoso.6
Bettelheim supõe que aconfiança nas intenções benignas da realidade de­
corra de um encontro com o objeto da satisfação. Para ele, o objeto está à mão
do sujeito. O princípio do prazer precede o princípio da realidade. Socorre-se do
conceito de pennanência do objeto de Piaget, para afirmar que "só quando a
criança consegue acreditar na permanência do objeto é que é bem sucedida na
organização do espaço, tempo e causalidade." 63
Para Bettelheim deve haver, no início, uma unificação com o objeto satisfa­
tório, pois, caso contrário, a criança sucumbe numa raiva impotente em que a
"antecipação e, com ela, o futuro é obliterado."64
Essa perspectiva teórica leva a pensar que o acesso do sujeito à realidade tem
como condição esse bom encontro com uma realidade satisfatória e que o autismo
� ,füNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES... 23

-esulta da frustração precoce de um ego ainda não suficientemente forte. Mas,


:orno assinala Lacan, "esse ego cuja força nossos teóricos definem,agora pela
::apacidade de suportar uma frustração, é frustração em sua essência. E frustração
.::láo de um desejo do sujeito, mas de objeto onde seu desejo está alienado e que,
� uanto mais ele se elabora, mais se aprofunda para o sujeito a alienação de seu
:ozo."65
� Está claro a diferença de plano em que Lacan coloca a questão. Não se trata
�e uma frustração do ego, privação imaginária por um outro semelhante e sim de
:nna falta radical, falta-a-ser, própria da estrutura. E essa falta é condição mesma
da apreensão da realidade para todo sujeito falante. No Seminário 3, Lacan
escreve:
"Toda apreensão humana da realidade está submetida a essa condição
primordial -o sujeito está na busca do objeto de seu desejo, mas nada o conduz a
ele. A realidade, na medida em que está subentendida pelo desejo, é no início
alucinada. A teoria freudiana do mundo objetal, da realidade tal qual ela é
expressa ao fim da Traumdeutung por exemplo, implica que o sujeito fique em
suspensão com respeito ao que constitui seu objeto fundamental, o objeto de
sua satisfação essencial.'.66

O retomo a Freud, na Traumdeutung, vem assinalar que a posição ética na


psicanálise é tributária da extração do objeto, articulada ao Das Ding.
Bettelheim tem como princípio a unidade do sujeito e a permanência do
objeto, erigindo como ideal a Selbstbewusstsein, o ser de si consciente, todo
consciente.

NOTAS
1 . KANNER, L. "Autistic Disturbances of Affective Contact." in: Nervous Chi/d, 1 943, 2:
2 1 7-250 .
2. BETTELH EIM, B. A fortaleza vazia. São Paulo, Livraria Martins Fontes Ed., 1 987. Não
aparece na tradução o subtítulo da edição original americana.
3. LACAN, J. O Seminário, Livro 2 O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 985. Para u m maior aprofundamento dessa
questão, remetemos aos capítulos reunidos sob o título, "Para além do imagi­
nário, o simbólico ou do pequeno ao grande Outro."
4. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 3.
5. LACAN, J. O seminário, Livro 2 O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.
op. cit.
6. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 4.
7. Ibidem, p. 5.
8. Ibidem, p. 1 5.
9. É interessante observar que, numa abordagem que se pretende psicanalítica ou de
"orientação psicanalítica," Freud não esteja presente na bibliografia do autor.
1 0. BETTELH EIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 6.
1 1 . FREUD, S. Obras Completas, Volume I, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1 967, p.
1 03 5- 1 045. Freud assinala que "cada instinto é uma magnitude de atividade",
não podendo ser a passividade senão u ma finalidade da pulsão.
24 O AUTISMO

1 2. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 8.


1 3. Ibidem, p. 20.
1 4. Ibidem, p. 2 1 .
1 5. LACAN, J . "A posição do inconsciente." in: Escritos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1 978,
p. 3 1 3 e O seminário, Livro 1 1 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 979, cap. XV.
1 6. BETTELH EIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 2 7.
1 7. Ibidem, p. 3 1 .
1 8. Ibidem, p. 3 1 .
1 9. WINNICOTT, D . W. "Transitional objects and transitional phenomena." in: lnternatio­
nal Journal of Psychoanalysis, 34: 89-97, 1 953. No momento em que concluímos
este trabalho, está sendo lançado no Brasil o novo livro de Bettelheim com o
título deveras sugestivo: Bettelheim, B. Uma vida para seu filho - pais bons o
bastante. Rio de Janeiro, Ed. Campos, 1 988.
20. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 3 4.
21. Ibidem, p. 34.
22. LACAN, J. "0 estadio do espelho como formador da função do eu tal como nos é
revelada na experiência psicanalítica." in: O Sujeito, o Corpo e a Letra - Ensaios
de Escrita Psicanalítica. Lisboa, Ed. Arcádia, 1 977, p. 1 9-28.
23. Ibidem, p. 23.
24. LACAN, J. O seminário, Livro 1 Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 979.
25. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 38.
26. LACAN, J. "Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise", in: Escritos,
op. cit., p. 1 0 1 .
27. BETTELHEIM, B . A fortaleza vazia. op. cit., p . 40.
28. FREUD, S. "Introdução ao narcisismo." in: Obras Completas, v. 1, op. cit., p. 1 083-1 096.
29. BETTELHEfM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 40.
30. Ibidem, p. 7.
31. Ibidem, p. 69.
32. Ibidem, p. 69.
33. Ibidem, p. 72.
34. Ibidem, p. 72.
35. Ibidem, p. 72.
36. KLEIN, M. et all. Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 982.
Neste ponto, Bettelheim parece inverter completamente o sentido dos meca­
nismos descritos por M. Klein e seguidores.
3 7. FREUD, S., "Uma teoria sexual." in: Obras Completas, v. 1, op. cit., p. 7 7 1 -823.
38. FREUD, S., '1ntrodução ao Narcisismo." in: Obras Completas, v. 1, op. cit., p. 1 083-
1 096.
39. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 3 7.
40. Ibidem, p. 4 1 9.
41 . Ibidem, p. 420.
42. Ibidem, p. 439.
43. Ibidem, p. 439.
44. Ibidem, p. 439.
45. Ver a respeito a apresentação que o autor faz da Orthogenic School na primeira parte
"Presentation de L'lnstitut'' de seu livro Évadés de la vie - Le traitment des
troubles affectifs chez l'enfant. Paris: Ed. Fleurus, 1 986.
46. BETTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 1 .
47. Ibidem, p. 9.
MUNDO DO ENCONTRO: BRUNO BETTELHEIM. CONSIDERAÇÕES ... 25

BITTELHEIM, B. Évadés de la vie. op. cit., p. 1 6.


-9. FREUD, A. "lhe wideni ng scope of indications for psychoanalysis." in: Journal of The
American Psychoanalytic Association, 1 954, 2: 607-620.
:iO. BITTELH EIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 1 4 1 .
- 1 . Ibidem, p. 65.
LACAN, J. Seminário, L'envers de la psychanalyse, inédito, versão não corrigida 1 969-
70.
53. BITTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 357 e seguintes.
54. LACAN, J. O seminário, Livro 7 A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1 988.
55. BITTELH EIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 6 1 .
56. Ibidem, p. 484.
57. LACAN, J. "Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise." in: Escritos,
op. cit., p. 1 1 O.
58. BITTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 40.
59. Ibidem, p. 32. -
60. Ibidem, p. 32.
6 1 . Ibidem, p. 29.
62. LACAN, J. O seminário, Livro 1 1 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 988, p.55-65.
63. BITTELHEIM, B. A fortaleza vazia. op. cit., p. 478.
64. Ibidem, p. 9 1 .
65. LACAN, J . "Função e campo d a palavra e d a linguagem e m psicanálise." in: Escritos,
op. cit., p. 1 1 4.
66. LACAN, J. O seminário, Livro 3 As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 985, p.
101.
AUTISMO: UMA FASE I NEVITÁVEL EM
MARGARET MAHLER
Ana Lúcia Z. de Paiva

H ISTÓRIA B IOGRÁFICA
Margaret Schõnberger Mahler (1897 - 1985) nasceu em Sopron, na Hungria.
Filha de Gusztav Schõnberger, médico-pediatra de formação vienense, e matemá­
tico. Cria com o pai uma cumplicidade intelectual que a coloca no caminho da
ciência desde Õ início de sua formação. O interesse pela psicanálise emerge com
sua chegada a Budapeste (1913), quando toma conhecimento do pensamento e
movimento psicanalíticos. Sandor Ferenczi terá posiçãoprínceps no aconselha­
mento de toda a sua formação, embora jamais concordasse em ser seu analista.
A Sociedade de Budapeste fundada por Ferenczi em 1913 era bastante ativa,
e Margaret S. Mahler muito jovem para poder participar de suas reuniões. Ávida
de saber que era, lia com Alice Kovacs, às escondidas, as traduções feitas por
Ferenczi das lições de Freud na Clark University e dos "Três Ensaios para uma
Teoria da Sexualidade". Quanto aos jornais, revistas e artigos de outros teóricos
do movimento, esta leitura era reservada apenas aos membros da Sociedade.
Influenciada pelos difíceis tempos de guerra, Mahler decide cursar medicina
na Universidade de Budapeste (1917), e abandona outras inclinações como a
matemática, a escultura e a antropologia. Ainda não havia iniciado sua formação
em psicanálise, mas não ignorava os três grandes nomes que dominavam a psi­
quiatria de língua alemã: Wagner-Jaureg em Viena, Emil Kraepelin em München,
e Paul Eugen Bleuler em Zürich. Os analistas de então circulavam nestes serviços
especializados a fim de aprimorarem sua formação clínica. Destacava-se o serviço
de Julius Wagner von Jaureg (1857-1940), professor de psiquiatria clínica desde
1903, dedicado ao tratamento de doentes com problemas mentais crônicos e &-li
Freud, que fora seu discípulo, proferia suas Conferências. Dentre seus assistentes
estavam futuros analistas como: H. Numberg, V. Tausk, H. Hartman e H. Deutsch,
esta última, uma das raras mulheres a cursar medicina na universidade de Viena.
O período do pós-guerra na Hungria fez com que Mahler decidisse mudar-se
para Munique, e ali terminar seus estudos médicos (1919). Escolhe como espe­
cialidade a pediatria, campo bastante avançado no plano da prevenção, das pes­
quisas e das terapêuticas. Apesar do seu bom desempenho, Mahler é levada a sair
de Munique, tanto pelo alto custo de vida como, e principalmente, pela crescente
corrente anti-semita. Na primavera de 1920, encontra-se na Universidade de Iéna.
Ali, é aceita como assistente do chefe do serviço de pediatria, o Dr. Jussuf Ibrahim,
ocupa-se de crianças que sofrem de meritismo e de espasmo do piloro, e percebe
a importância dos fatores emocionais na causa destas afecções. Porém, novamente
perseguida por pressões anti-semitas, vai para a Universidade de Heidelberg a fim
27
28 OAUTISMO

de terminar seu último semestre do curso de medicina. Fica fascinada pelo ensino
do psiquiatra e filósofo Karl Jaspers, do sociólogo Karl Manheim, e de Max
Weber, a quem assistira no ano anterior em Munique. Não apenas Margaret
Mahler se deixou influenciar pelo ensino de Jaspers, mas muitos outros analistas
da época, como Ernst Kriss, que o cita inúmeras vezes na sua obra, e Lagache,
na França, que insiste sobre a importância do texto básico de Jaspers para a
compreensão da psicopatologia.
Mahler retorna a lena para os exames finais; termina o curso em 1922, com
excelência, o que lhe dá o direito do exercício na Alemanha. Porém, na impossi­
bilidade de obter a nacionalidade alemã, retorna a Viena. Ali, Mahler se vê
obrigada a requerer o direito de exercício da profissão e, conseqüentemente, a
nacionalização austríaca. Retorna à Universidade para cumprir os exames com­
plementares em pediatria, e ao mesmo tempo busca aproximação com os psica­
nalistas vienenses, na esperança de avizinhar-se de Freud; trabalha na clínica de
Von Pirquet, e no Instituto de Leopold Moll, onde começa a difundir-se a impor­
tância da presença materna para o tratamento de bebês e crianças doentes. A
relação mãe-filho alcança status para ser pesquisada, as mães passam a ser admi­
tidas com seus filhos nos hospitais infantis, e vários trabalhos são desenvolvidos
sobre este tema. :Mahler não só trntava como fazia viagens de acompanhamento
para o tratamento de crianças tuberculosas dos centros de pediatria. Foi acompa­
nhando Auguste Aichorn (pedagogo) e assistindo às terapias empregadas por este,
com as crianças e adolescentes, que Mahler se definiu pelo desejo de uma forma­
ção psicanalítica. Aichorn a apresenta a Abraham, e a aproxima dos analistas
vienenses.
Em 22-23, Helen Deutsch, então responsável pela seleção de candidatos para
formação analítica, inclui Mahler na lista de espera, a pedido de Ferenczi. Em 26,
Mahler pede análise a Fedem, que lhe responde negativamente. Crescem as
divergências entre Freud e Ferenczi, e Mahler, ao tomar partido deste último,
acentua as reticências que já marcavam seu pedido de entrada para a Sociedade.
Ser partidária do grupo de Budapeste era ser contrária ao grupo de Viena.
Neste mesmo ano inicia clínica privada em pediatria e psiquiatria social. Ao
contrário do efeito causado pelo "O Eu e o Isso" (1923) nos analistas, sobre
Mahler este texto parece não ter exercido maiores influências. Neste período
seguia os ensinamentos de Ferenczi e de Aichorn, mais preocupados pelas técni­
cas, relações e resultados terapêuticos, do que pela lógica do inconsciente.
Ainda assim consegue inscrever-se como candidata à formação no Instituto
de Psicanálise, e começa análise com Helen Deutsch. Na biografia feita por
Stepanski, Mahler afirma ter sofrido muito, desde as primeiras sessões; logo
Deutsch lhe revela sua "libido viscosa"; reduz o número de suas sessões, e diminui
o tempo de atendimento. Sente-se profundamente maltratada. Ano e meio de
análise, e Deutsch a declara "inanalisável". Anna Freud lhe escreve para informar
que não mais se beneficia do stat us de candidata do Instituto, e lhe sugere uma
terapia, embora a própria Deutsch lhe tivesse dito frente a frente, que não espe­
rasse grande coisa. Mahler conta ainda que mesmo tentando exaustivamente, não
mais conseguiu falar com sua analista, e interpreta suas atitudes como reações
contratransferenciais, não analisadas, instigadas pela dimensão homossexual da
AUTISMO: U MA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 29

relação transferencial. Esses avatares com Helen Deutsch interferiram profunda­


mente na vida de Mahler, uma vez que a apreciação dos analistas era o que contava
para a formação do candidato. O parecer de Deutsch funcionou como um julga-
. menta culposo. Mahler estava a ponto de ser banida do movimento psicanalítico.
Entra em profunda depressão, e diz sentir-se desmoronando. Volta a Budapeste,
procura Ferenczi, que sempre estivera a seu lado, e, após algumas tentativas, é
recebída em análise por Aichom que, para surpresa geral, reapresenta a candida­
tura de Mahler no Instituto, declarando-a curada após seis meses de análise, à qual
mantêm em segredo. Graças à influência junto a Anna Freud, obtém sua readmis­
são no Instituto como analista em formação, e encarrega-se de sua análise didática.
Aichorn a aconselha a trabalhar com o teste de Rorschach, tarefa à qual se
dedica com afinco, culminando com uma especialização tal, que passa a ensinar
a técnica durante anos, efetuando pesquisas sobre modalidades de interpretação.
A análise com Aichorn resulta em laços afetivos tão estreitos que impedem o
avanço do tratamento. Busca W. Hoffer, com quem se analisa de 1930 a 1935.
Casa-se aos 39 anos com Paul Mahler (químico com doutorado em filosofia).
Os avatares da guerra os obriga a sair de Viena. Sempre alijada pelo grupo de
analistas da Sociedade, é auxiliada pela tia de uma paciente sua a mudar-se para
Londres, a fim de prepararem a imigração para Nova York. Fica em Londres de
maio a outubro de 1938, onde assiste a seminários de Susan Isaacs e de Anna
Freud.
Para clinicar na América, Mahler deve novamente revalidar seu diploma
médico. Em janeiro de 1940, apresenta n;i Sociedade Psicanalítica de Nova York
um trabalho intitulado: "Pseudo-imbecilidade: uma capa mágica de imbecilidade",
que contribui para sua aceitação como membro. Passa a ser consultante chefe do
serviço de crianças do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York; inicia
uma pesquisa sobre tiques e compulsões nas crianças, da qual resulta um trabalho
associado à questões de psicossomática, em relação com a psicologia do eu e com
psicoses de crianças, tema que surgia com força principalmente nas teses de Leo
Kanner, que acabava de individualizar o autismo infantil.
Distante da Europa, e de seus parentes, é notificada que seu pai morrera um
mês antes da invasão da Hungria pelos alemães, e sua mãe pouco tempo depois
em Auschwitz, notícias que lhe deflagram um novo período de depressão. Retoma
seu processo analítico com Edith Jacobson, analista alemã e membro da Sociedade
Psicanalítica de Berlim, que imigrou para os Estados Unidos em 1938. Mahler
adquire novo impulso, e, seguindo seu interesse anterior investiga a individuali­
zação das psicoses infantis, e o estudo do desenvolvimento psicológico normal
no curso da primeira infância. Sua orientação teórico-clínica corresponde aos
interesses tradicionais de pediatras e psicólogos de crianças, onde a ênfase é
colocada no desenvolvimento.
Apresenta um trabalho elaborado em colaboração com Ross e Zira de Fries,
seus colegas no Instituto de Psiquiatria, sobre "Estudos Clínicos em casos de
psicose infantil benigna e maligna." Leo Kanner é o debatedor que, além de
incitá-la a continuar suas pesquisas, a aconselha a prestar maior atenção aos pais
das crianças em tratamento. Na verdade, o problema das doenças mentais precoces
estava ainda mal identificado, e a maioria era incluída no quadro da "demência
30 OAUTISMO

precossíssima", o que não satisfazia as situações encontradas. Havia um enigma


neste campo, cuja solução Kanner se dedicava a decifrar. As experiências de
Mahler na pediatria e psiquiatria social indicavam ser desapropriado o diagnóstico
disponível, uma vez que a incapacidade daquelas crianças em estabelecer relação
com o "objeto humano" se configurava como o dano principal. Prossegue na
tentativa de conceitualizar as psicoses infantis no quadro de referência da teoria
psicanalítica, e _com o apoio de Kanner vence, segundo ela mesma, a resistência
de toda uma geração: a recusa em crer que uma afecção tão grave pudesse dominar
a vida de crianças em idade tão precoce.
Mahler ret�--na à Europa para o Congresso Internacional de Psicanálise, em
1951, onde apresenta suas primeiras deduções sobre "A psicose e a esquizofrenia
da criança", enfatizando o contato físico entre a mãe e a criança como demarcação
entre eu e não-eu. No seu retomo à América é convidada a fazer parte do Colégio
de Medicina Albert Einstein, e de seu hospital. Em 1955, formula com Gosliner,
a hipótese da "universalidade da origem simbiótica da condição humana e da
necessidade de um processo de separação-individuação no desenvolvimento nor­
mal", e com isso abre um novo campo de investigações sobre a psicologia do
desenvolvimento. Assume o posto de diretora de pesquisas no Masters Children
Center de Nova York, e passa a liderar investigações que visavam decifrar o
desenvolvimento normal do ser humano, e os desvios patológicos. Em 1968
publica o primeiro volume de Sobre a Simbiose Humana e as Vicissitudes da
Individuação, dedicado inteiramente à psicose. Em 75, então aos 78 anos, publica
o segundo volume, agora em colaboração com Fred Pine e Anni Bergman, O
Nascimento Psicológico do Infante Humano, desta vez centrado sobre a fase de
separação-individuação, que determinou a formação da geração seguinte dos
analistas infantis em Nova York.
Margaret Schõnberger-Mahler morreu em 1985, aos 88 anos, poucas semanas
antes da realização do Simpósio Internacional sobre Separação-Individuação, que
se realizou em novembro do mesmo ano, em Paris.

DESENVOLVIMENTO DA TEORIA
Mahler trabalhou fundamentalmente com a hipótese de que as psicoses in­
fantis podem ser compreendidas como distorções psicopatológicas de fases nor­
mais do desenvolvimento do ego e de suas funções no seio da primeira relação
mãe-filho. Com essa hipótese satisfaz tanto a teoria da psicanálise à época, que
postulava continuidade entre os desenvolvimentos normal e patológico, como
introduz os avanços das teorias que continuavam a proliferar, com a noção de
distorção, aludindo à deformação incidente no desenvolvimento normal. Sua
originalidade reside no fato de ter executado uma primeira tentativa de teorização
psicanalítica da psicose infantil precoce e suas diversas manifestações clínicas, e
ainda de ter proposto nova posição teórica, na interseção da Psicologia do Ego
com os conceitos de introjeção e projeção da teoria kleiniana.
Atendo-se à interação mãe-filho, enfatiza as possibilidades intrapsíquicas do
bebê sujeitas a patologias precoces que impediriam o desenvolvimento normal.
AUTISMO: U MA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 31

Quanto à questão do objeto, em toda a psicose infantil a relação simbiótica estaria


gravemente perturbada ou ausente, o que traduziria uma deficiência intrapsíquica
do bebê em utilizar a mãe na função de maternagem, e a subseqüente incapacidade
a internalizar a representação deste objeto. Logo, torna-se-á impossível a diferen­
ciação necessária para o desenvolvimento normal. A consequência é o fracasso
do processo de identidade, que clinicamente se manifesta ao nível do esquema
corporal e da percepção. Cada tipo de psicose será decorrente da fase do desen­
volvimento em que se deu o déficit.
Quanto às causas, Mahler as situa em fatores constitucionais, isto é, orgânicos
ou experimentais, e, educacionais; a incapacidade de que se trata é inata, consti­
tucional e provavelmente hereditária, ou é adquirida nos primeiros dias ou sema­
nas de vida extra-uterina. A proposição é de uma predisposição.
Mahler observa que uma série de perturbações deve afetar tanto a criança
quanto a mãe, não devendo tratar-se de perda real de objeto, como por exemplo
uma perda real cla mãe, senão de perda no sentido da incapacidade de utilizar a
mãe como objeto. Essa incompatibilidade precoce permite a Mahler afirmar não
tratar-se de regressão nos casos de psicose infantil, pois não haveria diferenciação
das pulsões objetais e do sujeito, sendo a psicose uma fixação à uma das fases do
desenvolvimento normai, patoiogizado.

Fases do Desenvolvimento Normal


O desenvolvimento infantil normal, do nascimento até os 3 anos de idade,
está determinado por três fases distintas e simultâneas: fase autística, fase simbió­
tica, e processo de separação individuação, que devem corresponder-se tanto no
plano psíquico, quanto no plano físico.
a) Fase Autística Normal-vai do nascimento aos três meses de vida. Implica
numa barreira de proteção contra os estímulos, aliada a tendência inata a não
responder aos estímulos externos excessivos, sem com isso determinar recusa
radical a todo estímulo vindo do exterior.
Inspirando-se em Freud ( 1911 ), no exemplo do ovo do pássaro como modelo
de um sistema fisiológico e psíquico fechado aos estímulos do mundo exterior e
capaz de satisfazer até mesmo necessidades de nutrição, Mahler deduz a noção
de "autismo normal": um período no qual o bebê parece estar num estado de
desorientação alucinatória primária na qual a satisfação de suas necessidades
depende de sua própria esfera autística onipotente, esfera da qual a mãe é parte
integrante (ambos os termos, "esfera autística" e "desorientação alucinatória pri­
mária" são retirados de Ferenczi). Embora a mãe se constitua como agente exter­
no, o bebê não diferencia os cuidados maternos de seus próprios esforços para
aliviar a tensão de desprazer: seus esforços sendo da ordem de respostas instintivas
a nível reflexo. Acoplado ao fator biológico, Mahler propõe um ego rudimentar,
baseando-se nas hir9teses de Hartmann da faculdade perceptiva inata e autônoma
do ego primitivo. E através do ego rudimentar que o bebê guarda os traços
qualitativos do que é bom ou mau dentro de uma estrutura indiferenciada do ego
- isso, na qual a libido é voltada para dentro do corpo. A fase autística é
caracterizada por indiferenciação total do ego e do id, do selfe do mundo objetal.
32 OAUTISMO

b) Fase Simbiótica Normal - estende-se dos três meses até um ano de vida.
Caracteriza-se pelo estado de indiferenciação e fusão com a mãe, onde eu e não-eu
se misturam, e o interior apenas se diferencia do exterior gradualmente. A barreira
de proteção se transforma numa fronteira comum do meio simbiótico interior que
faz rejeitar tudo o que é desagradável. Embora do ponto de vista corporal a boca
desempenhe um papel predominante, são os traços de percepção e memória que
permitem sintetizar e integrar os estímulos externos.
O termo simbiose vem designar uma situação intrapsíquica e não um com­
portamento, logo "marca a capacidade filogenética fundamental do ser humano
em investir a mãe numa vaga unidade dual que constitui a bas,e primeira sobre a
1
qual se edificarão todas as relações humanas subseqüentes." E durante esta fase
que o ego ultrapassa seu estado rudimentar e adquire o estatuto de corporal.
Mahler se manteve numa posição de prudência em relação à descrição do
estado psíquico do neonatal uma vez que o período pré-verbal apenas permitia
inferências, e aceitou a teoria segundo a qual inicialmente o bebê aprende por
condicionamento, para a partir dos três meses proceder à aprendizagem por
experiência, quando então os traços mnêmicos estão presentes no aparelho psí­
quico. Apenas aos poucos os traços mnêmicos se diferenciam do mundo objetal.
E uma fase marcada por "vaga consciência do objeto de satisfação", sendo forte
ainda a indistinção dos limites de si e de outrem. São fundamentais as experiências
de percepção através do contato corporal, on9e o rosto humano e o contato "olhos
nos olhos" são os principais organizadores. E então, por volta dos três meses que
o objeto começa a ser percebido como parcial e saciador de necessidades. A
simbiose é "a fusão psicossomática onipotente, alucinatória ou delirante da repre­
sentação da mãe, e a ilusão delirante de uma fronteira comum a dois indivíduos
real e psíquicamente distintos."2 A mãe ainda faz parte do self da criança. "A
simbiose reenvia a um estado de interdependência sociobiológica entre o bebê de
um a cinco meses e sua mãe, um estado de ralação pré-objetal e de satisfação das
necessidades na qual as representações intrapsíquicas do self e da mãe não estão
ainda diferenciadas."3 Os cuidados maternos são interpretados como simbiose
social, a partir da qual se inicia o processo de diferenciação estrutural que desem­
boca na conduta adaptativa do indivíduo. É o início da estruturação do eu e ao
mesmo tempo do objeto simbiótico. O "estado simbiótico ótimo é atingido pela
estimulação do investimento dirigido para o exterior."4

c) Processo de separação-individuação - Nesta fase há transformação da


necessidade em desejo. Desencadeia-se quando a criança está pronta para o
funcionamento autônomo e dele obtém um certo prazer. A individuação se liga à
evolução da autonomia, da percepção, da memória, da cognição e da prova de
realidade; a separação supõe a diferenciação, a distanciação, a formação de limites
e o afastamento da mãe. A separação leva à evolução da relação de objeto, e a
individuação ao investimento progressivo das funções do ego e da representação
do self.
Em tomo dos quatro ou cinco meses, época da segunda experiência de
nascimento para Mahler, dá-se o "verdadeiro nascimento psicológico": há um
aumento do investimento no mundo exterior para além da mãe, e o olhar adquire
AUTISMO: UMA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 33

papel fundamental no mecanismo de verificação do exterior. Entre oito e quinze


meses a criança passa por um período de tentativas: afastamento progressivo da
mãe, interesse por objetos inanimados que poderão vir a ser objetos transicionais,
e incrementação das funções autônomas, com ênfase na locomoção. Entre quinze
e vinte meses, a criança te1!1 consciência de estar separada e se preocupa com as
idas e vindas de sua mãe. E uma fase marcada pela ambivalência de querer, ao
mesmo tempo, separar-se e unir-se à mãe. O jogo e a linguagem são aquisições
fundametais, marcando pela capacidade de dizer não, a agressividade e o negati­
vismo da fase anal. A presença paterna começa a fazer-se notar. Em torno dos
vinte e um meses, e em conseqüência do desenvolvimento da linguagem, a criança
alcança a distância ótima da mãe, incrementa o processo de interiorização dos
bons objetos, de regras e de demandas e aprimora a expressão dos desejos e
fantasias pelo jogo simbólico.
A partir dos três anos, a criança deve atingir um sentimento estável de
identidade, que lhe forneça individualidade bem definida. Isso implica por um
lado a manutenção da representação do objeto de amor ausente, e por outro lado,
a unificação do bom e mau objeto em uma única representação. A partir de então
instaura-se um processo sem fim, onde a comunicação verbal substitui toda outra
forma de comunicação.

PATOLOGIAS CLÍNICAS

Relações de Objeto Psicóticas

Segundo Mahler o desenvolvimento emocional e a estruturação psíquica são


decorrentes da neutralização da libido, quando então ela se toma desinstitualizada
o suficiente para ser utilizada pelo ego. Neste caso a relação de objeto se faz com
um objeto de amor humano, o que implica identificação parcial com o mesmo, e
a catexia do objeto passa a ser uma energia libidinal neutralizada.
No caso das relações de objeto em psicóticos falha a capacidade perceptual
integradora, e o ego em desintegração regride a mecanismos de desumanização e
reanimação, na busca de adaptação: o ego se torna vítima de impulsos difusos
não-mentalizados, especialmente de impulsos destrutivos não suavizados. São
mecanismos psicóticos considerados precursores infantis do mecanismo influen­
ciador descrito por Tausk em 1919. O caso Stanley ilustra uma "desdiferenciação"
similar à quase igualação do animado versus o inanimado. A "desdiferenciação"
em Stanley é a negação massiva das percepções dos estímulos vinculados ao
mundo externo. Quando advém essa espécie de negação psicótica alucinatória, os
objetos de percepção internos, saturados de agressão, ganham ascendência. As
excitações internas não podendo ser negadas, passam a impor-se ao sensório. Para
enfrentar essas sensações ( = estímulos próprio - enteroceptivos = orgânicos) o
ego psicótico tenta "desdiferenciá-los" e desvitalizá-los. As emoções são equiva­
lentes de movimentos - mecânicos. Por isso, essas sensações internas do próprio
corpo e de outros fenômenos vitais são projetadas e confundidas com fenômenos
34 OAUTISMO

de máquinas. Os objetos adquirem a qualidade de autômatos com o próprio corpo.


Mahler reafirma o rompimento do psicótico com a realidade, como a fuga do
mundo objetal libidinal humano. Freqüentemente pode-se reconstruir a luta pré­
psicótica, os esforços desesperados para firmar-se e apegar-se ao mundo objetal
humano.
Organismo algum pode viver num vácuo e ser humano algum pode viver num
estado sem objeto. Os relacionamentos objetais psicóticos, com seres humanos
ou não, representam tentativas de restituição de um ego rudimentar ou fragmen­
tado, que procura sobreviver.

Psicose Infantil Autística

No autismo o ego permanece indiferenciado, deficiente e rudimentar, a crian­


ça nunca chega a perceber a mãe como figura pertencente ao mundo externo. Ela
permanece objeto parcial aparentemente destituído de catexias libidinais e não é
diferenciada dos objetos inanimados. Incapaz de enfrentar os estímulos externos
e as excitações internas que ameaçam sua existência, seu ego se mantém indife­
renciado. Exclui as "fontes potenciais de percepção sensorial em especial as que
exigem respostas afetivas."J São crianças impenetráveis; com o crescimento ma­
turacional, as seqüelas de isolamento tornam-se mais visíveis. Não há contato
entre o eu e o id na medida que não há diferenciação entre os dois.

Psicose Infantil Simbiótica

Trata-se da perda do objeto simbiótico, o que equivale à perda de uma parte


integrante do eu, e constitui ameaça de auto-aniquilamento. Há formação de um
mínimo de entidade individual uma vez que a criança chegou à relação simbiótica
com a mãe. Como não se desenvolveu até o estágio da catexia do objeto, não há
verdadeira relação de objeto; a criança oscila entre o desejo de fusão ao objeto
bom e o medo de ser devorado com o objeto parcial mau.
A representação mental da mãe se funde com o self impedindo alcançar o
processo de individuação-separação. Na cura, essas crianças recorrem ao autismo
como mecanismo de defesa frente ao temor de perder a entidade.

TRATAMENTO

Direção da Cura - Posição do Analista

Para Mahler é indispensável o diagnóstico diferencial das duas psicoses a fim


de determinar diferentes técnicas e direções do tratamento, sempre baseado nas
questões de relações de objeto e identificação.
AUTISMO: UMA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 35

Nos dois casos porém, o analista deve conhecer a extrema instabilidade do


ego. A possibilidade de controle do processo como também de consolidação do
ego viabiliza o bem-suceder da terapia: esta deve ser de natureza cautelosa,
prolongada e consistente: "uma espécie de terapia de infusão ou de substituição."6.
A perspectiva de cura real é, no entanto, desoladora, urna vez que o ego pe1manece
irreparavelmente deformado, desestruturado e vulnerável. No caso da psicose
autista a situação é grave porque a criança não alcançou ainda a matriz específica
que lhe permita o desenvolvimento.

Para Mahler não há suposição de estrutura, uma vez que a idéia de desenvol­
vimento rege a cura. O analista deve entregar-se e oferecer-se como objeto de
amor real para que a criança possa se desenvolver de períodos mais arcaicos até
períodos mais avançados. O tratamento pode ser comparado com o galgar um
edifício partindo do primeiro até chegar ao último andar, lugar onde a criança
estaria curada. O que determinaria a passagem de um andar ao outro seria a
cautela, a compreensão, a fé do analista. Este deve compensar o que foi chamado
pela autora de "relações de objeto psicóticas" caracterizadas pela privação de
desenvolvimento do ego que interferem no sistema perceptivo impedindo a dis­
criminação eu, não-eu, processo que detém a imagem do self e o reconhecimento
do objeto como externo. A fé de que Mahier dá testemunho recobre o ideal de
amor humano. O analista deve oferecer um objeto de amor para proporcionar a
identificação parcial com o mesmo. O objeto deve possuir uma energia libidinal
neutralizada que possibilite sua utilização pelo ego.

O pré-requisito para o tratamento é atrair a criança para o objeto de amor que


faz parte da realidade, mas pela maior intolerância da criança autista ao contacto
humano, a atração deve ser feita através de música, ritmo e "estimulações prazei­
rosas dos órgãos dos sentidos". O contacto corporal deve ser evitado, devendo ser
utilizados objetos inanimados. Se os contactos sociais são introduzidos prematu­
ramente, a eclosão fulminante do processo psicótico é inevitável.

No caso Stanley, Mahler expõe com detalhes a implicação clínica de sua tese:
uma conceitualização que se nutre da Psicologia do Ego só pode dirigir a cura a
partir do aparelho de percepção e do déficit de adaptação à realidade. A introjeção
e a projeção são os mecanismos postulados para as relações do ego com o mundo
externo. O recurso desesperado a qualquer objeto que se apresente no campo da
percepção visual vem substituir o desconhecimento sistemático de um discurso
inconsciente. Não há noção da estrutura do desejo do Outro e, paradoxalmente, o
analista reproduz a posição autista: só resta introduzir estímulos para despertar
uma percepção rniticamente baseada nos aparelhos fisiológicos. Sua cautela, fruto
da experiência clínica, responde à insuportável presença que o desejo do Outro
provoca na criança, o que pode conduzir a uma psicose franca. A responsabilidade
na cura de uma criança psicótica não autoriza, porém, a abolir a dimensão sim­
bólica da palavra, colocando em seu lugar, o ruído de um ritmo ou de uma música.
Há um efeito permanente de obturação que se patentiza na cura de Stanley.
36 O AUTISMO

O Caso Stanley: U ma Psicose I nfantil com Mecanismos


Autísticos e Simbióticos
. Trata-se de uma criança que apresenta grave patologia do ego no mecanismo
de defesaprínceps que é a repressão, cujo efeito se traduz na incapacidade egóica
de relembrarseletivamente e reagir de modo específico a determinados estímulos
perceptivos afetivos.
Desde que Stanley começou a interessar-se por histórias, sua mãe costumava
ler para ele um livro que o fazia chorar copiosamente, chamado Quando eras um
bebê. Aos 6 anos, ainda insistia que lessem a história para ele, e chorava incon­
trolavelmente. Segundo Mahler, o menino lembrava-se do passado e ficava com­
pletamente esmagado pelo afeto que a experiência passada uma vez lhe provocara.
Passou a agir do mesmo modo ao ouvir qualquer história sobre bebês, ampliando
sua reação. Não se mencionava a palavra bebê sem que se provocasse em Stanley
esta reação de pânico.
Podemos dizer que o significante em questão ocupa lugar de signo que
representa algo para alguém: quando se desencadeava esta reação, apenas na
presença da mãe, Stanley conseguia acalmar-se. O significante bebê é a represen­
tação da coisa, que carece de representante simbólico, e aprisiona o sujeito no
lugar de objeto.
No livro havia analogia entre um bebê e um urso panda que apareciam, ambos,
atrás de grades: um de seu cercado e o outro de sua jaula. Mahler interpreta pela
via da identificação, ou uma falha dela, a relação que Stanley estabelece com
Panda. O menino chamava a todos os bebês, bonecos e desenhos utilizados em
seu tratamento pelo nome de Panda: ele igualou bebê e Panda. "O bebê e Panda
estavam juntos naquele livro, portanto permaneceriam sempre juntos"7, diz a
autora, por "terem-se tornado engramas para sempre ligados na memória vincu­
lando irreversivelmente a percepção e o afeto."
Pensamos aí tratar-se da escritura no real de sua cena insuportável. Era ele
Stanley que estava no livro, o que lhe provocava pânico, e seu apelo para que lhe
repetissem a história poderia significar uma tentativa de produzir, através do
objeto voz, a alienação que o localizaria no campo do Outro.
Em outro livro, Stanley procurava insistentemente alimentar um bebê que
chorava, onde reiterava a tentativa desesperada de diferenciar-se da coisa em que
se via representado. Porém a analista interpreta seu ato como o "acting-out de
urna necessidade de finalização ou restituição de uma memória afetiva traumática,
sincreticamente formada"8
Numa outra situação clínica foi oferecido a Stanley um livro no qual havia
um bebê cujo rosto alternava expressões de choro e de alegria, ao puxar-se um
cordão. A autora insiste no fato de Stanley poder ligar e/ou desligar a expressão
de choro pelo ato de puxar o cordão, dizendo ao mesmo tempo, "agora ele está
feliz�'. Sua reação tanto poderia ser de extrema excitação, com movimentos qua­
lificados corno "o desempenho de um brinquedo mecânico ao qual se deu cordas
e não o de um ser humano"9, ou caía ele, continua a autora, num estado de
completa indiferença. Neste estado de estupor, subitamente tocava o braço da
terapeuta, e a partir de então voltava ao estado de agitação. "Parecia que o paciente
AUTISMO: UMA FASE INEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 37

procurava muito deliberadamente uma excitação violenta por meio de um estímu­


lo acionador, como para fugir da fusão simbiótica pela qual sua entidade e
identidade dissolver-se-iam na matriz do ambiente."1 º No decorrer do tratamento
Stanley passou a fazer chorar o bebê do livro, ao invés de chorar ele mesmo.
Foi-lhe possibilitado transferir sua necessidade de chorar para outro sujeito com
o qual se identificasse, fato confirmado por sua atitude de acompanhar na ento­
nação e na fisionomia, a expressão de choro do bebê. Mahler se pergunta se isto
"não constituiria uma tentativa de restituição, e bem sucedida, com a qual Stanley
manifestava satisfação com seus pulos estáticos e paroxismicos, com sua excita­
ção, enfim?"11
Lacan, na conferência de Genebra, adverte que os autistas não nos escutam
enquanto nos ocupamos deles. Aponta à importância da função de semblante,
função que nitidamente está ausente na posição deste analista que, ao contrário,
busca na realidade externa desfazer-se dessa função oferecendo garantias e segu­
rança.
O Outro para o autista parece constituir-se como intrusivo, embora seja deste
mesmo lugar que lhe retoma um apaziguamento. Há um Outro que ajuda e um
Outro que ele não pode suportar. Quando o Outro toma a iniciativa, isto recai
sobre o autista como demanda, o que lhe é insuportável. Ele parece querer guardar
para si a ação de iniciar, mas se coloca de modo tal que apenas ao Outro cabe
organizar seu próprio mundo.
Em Stanley a intenção de significação do analista, é recebida como material,
realização de gozo, não apenas intensão. O autista não comporta o enigma do
campo do Outro, não tem com o que se confrontar. De fato, Stanley nunca parou
de chorar ao ser ele mesmo alimentado. Mahler percebe então que lida com
estruturas mais complexas do que os defeitos do ego e suas tentativas de restitui­
ção e relata a história dos primeiros meses de vida do menino. Stanley, sofria de
hérnia inguinal. Brincava tranqüilo quando de súbito era acometido por intensa
dor, que o fazia chorar violentamente. Aconselhados pelo médico, os pais de
Stanley o alimentavam sempre que chorava a fim de conter-lhe o choro. Sua
alimentação passou a constituir um problema: ou vomitava ou recusava-se a
comer. Se Stanley insistia em alimentar bebês chorando, prossegue a autora, já
não era por questões de causa e efeito, senão por uma perturbação que resultava
do fracasso da função seletiva repressora do ego.
Em um certo momento, ele fica "obcecado" por um interfone, cujo zumbido
penetra na sessão de análise. Passa, a partir daí, a tapar os ouvidos nas sessões
numa expectativa carregada de perplexidade e fascínio.
A primeira intervenção da analista é tentar dissuadí-lo de uma certeza angus­
tiante; que outro recurso senão, o puro e simples confronto com a realidade ? Sai
da análise e leva a criança até o interfone para mostrar-lhe seu mecanismo. Sobe
novamente com Stanley e espera, que o interfone toque para que a criança
estabeleça relações de causa e efeito entre o botão e o som emitido pelo interfone.
Como a angústia e a perplexidade não cedem, a analista manda construir um
aparelho semelhante na esperança de que talvez agora, tendo a criança diante de
seus olhos o mecanismo completo, possa estabelecer a necessária relação causal.
38 O AUTISMO

Para surpresa da analista, a criança não se interessa pelo aparelho de influência


elétrico. A máquina introduzida pelo analista opera como intrusão do Outro
insuportável e desencadeia angústia.
A psicose, Mahler parece não sabê-lo, não consiste numa falha da percepção
nem do ego. Stanley continuará apavorado e ligado ao som do interfone. Os
aparelhos de influência, cuja função Tausk havia introduzido na psicose, são as
formas concretas de irrupção de um gozo desconhecido que provoca no sujeito o
pânico e o fascínio. Certamente não é o recurso à realidade, nem a tentativa da
aprendizagem da relação causa - efeito, que poderão barrar o gozo insuportável.
Quando a analista fornece mais um dispositivo, lhe retorna a importância de
sua ação. O gozo é um enigma para o qual a realidade não dá respostas. Certa­
mente ele deve ser escutado de um outro lugar.

CONCLUSÃO
Mahler trabalha em torno do conceito de identificação como fundamental,
posição com a qual devemos concordar. Porém, a identificação de que se trata
sendo com o "objeto de amor humano", como ela o descreve na suposição de uma
relação adaptada e bem encaixada entre mãe-filho, desconhece a noção dos 3
registros = Imaginário -Simbólico - Real, fixando-se apenas no primeiro deles.
Com seu registro do Real, Lacan nos indica o campo do inadaptável, do insondá­
•.
vel, do impossível, apontando a ,um lugar no qual nenhum saber, objeto ou
significante poderá adequar-se. E do buraco Real no campo do Outro que a
primeira identificação vem dar resposta, no sentido de um enlaçamento.
Também para a questão do autismo é da privação primordial que se trata.
Uma pergunta ainda não formulada da existência no campo do Outro a partir do
trauma, entendida como algo que entra na estrutura subjetiva como furo, buraco
radical, em torno do qual a estrutura deverá edificar-se. Aí tem lugar a angústia,
que se apresenta como uma resposta possível ao real impossível, uma angústia
sinal, como diria Freud, que anuncia um movimento de retorno do trauma inicial
diante do qual o sujeito desaparece, sucumbe, na ausência de significante que
possa escrever o trauma: real que ex-siste a toda relação do sujeito ao significante.
A angústia vem assinalar que no interior do corpo ex-siste algo que atormenta o
sujeito, e que é anterior à questão de saber o que é a relação do sujeito com o
desejo do Outro. Intervém a metáfora paterna, cuja função é primordialmente de
simbolização, e portanto, de barra ao gozo. O sujeito vem ao mundo num estado
de pré-maturidade, é um corpo biológico despedaçado a serviço da mãe. No Outro,
sede dos significantes, é representado, e neste lugar deve construir sua identidade.
O simbólico toma corpo, habita o corpo, como corpo significante, nomeado.
Este ponto originário que desde o início a primeira identificação vem respon­
der, fazer borda afetada pela angústia, falta à teorização de Mahler, e para tam­
ponar esta falta ela supõe o autismo como fase inicial do desenvolvimento,
imaginarizando a primeira relação mãe-filho. A consistência imaginária tem valor
fundamental, mas como borda para a identificação e não como formadora: da
ex-sistência à consistência. A autora mergulha no imaginário por um déficit
simbólico, acompanha sua idealizada analista, Helen Deutsch, na concepção da
AUTISMO: UMA FASE I NEVITÁVEL EM MARGARET MAHLER 39

sexualidade feminina reduzida ao órgão. Deficiência simbólica da teoria, que


lança o paciente no imaginário. Influenciada pela Psicologia do Ego, que pretendia
solucionar questões sobre a inadaptabilidade do homem à realidade, e pela ver­
tente organicista, desenvolve sua teoria da psicose infantil na suposição de uma
formação defeituosa no self, cujas causas ela entrega ao domínio das trevas:
constitucionais ou hereditárias, tudo é possível.
Mahler inicia sua carreira na experiência pediátrica, atendendo ao desejo na
linhagem paterna. Do contato com a doença orgânica vai à psiquiatria infantil
onde persevera na orientação organicista Constrói sua teoria psicanalítica enfati­
zando o contato físico e supõe um organismo não subjetivado, que funciona como
o aparelho rudimentar de Freud, em termos de estímulo- resposta com reações
mecânicas. A ênfase colocada no contato físico atesta do desconhecimento da
teoria dos significantes: o contato entre significante, onde um significante repre­
senta um sujeito para Outro significante. Atém-se às questões do ego como alvo
do desenvolvimento normal, e com isso desvia-se das questões do inconsciente.
Mas este afastamento é talvez responsável pelo que Tustin chamou de "erro na
teoria": justamente no autismo não se pode supor representação pois que há uma
falha radical que mantém separados, que não faz intercessão, os campos do Outro
e do sujeito. Autismo não pode ser considerado uma fase de desenvolvimento,
passagem necessária de progresso ou via de regressão ao estado de isolamento.
Não havendo manifestação quer de demanda, quer de necessidade, não se estabe­
lecem relações nem subjetivas nem objetais. E na ausência da dialética demanda­
desejo, falta a torsão que possa apontar o lugar do desejo. Dito de outro modo,
falta o corte que inscreve o campo de falta de objeto. O olhar é vazio, não tenta
alcançar qualquer objeto, e podemos supor ausência da cunha do campo do Outro,
necessária para instituir o registro simbólico. Dizemos que é como se o autista
não nascesse para o mundo do simbólico. O Outro se reduz à ausência real, não
faz presença, não há dom de significantes, o real não pode ser simbolizável.
Supor autismo como primário é desconhecer a dialética fundamental do
nascimento do sujeito: emergência subjetiva a partir de um estado real de privação.
Mahler confunde o desamparo primordial em que vem ao mundo o sujeito humano
com autismo primário.

NOTAS
1 . MAHLER, M. S. As psicoses infantis e outros estudos. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas
Sul Ltda., 1 983.
2. Ibidem.
3. Ibidem.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Ibidem.
9. Ibidem.
1 0. Ibidem.
1 1 . Ibidem.
40 OAUTISMO

BIBLIOGRAFIA
1. LACAN, J. Angústia, Seminário Inédito.
2. -. "Conferência de Genebra." in: lntervenciones y Textos. Buenos Aires, n. 2, 1 957.
3. -. Le Seminaire, Livre Ili, Les Psychoses. Paris, Ed. Du Seuil, 1 98 1 .
4. MAHLER, M. S. Simbioses Humanas. Las Vicissitudes de la lndividuación. México,
Editorial Joaquim Mortiz, 1 972.
5. PUIG-VERGÉS, N., MAHLER, M. S. Une vie, une oeuvre. Paris, Ed. Epi, 1 993.
6. STEPANSKI. The Memoirs of Margaret Mahler. New York, The Press, P. E. Ed., 1 988.
7. VIDAL, E. Seminário sobre a identificação, anotação de aulas na Escola Letra Freudia­
na, 1 994.
AUTISMO, U MA SÍNDROME PATOLÓGICA
PARTICU LAR: DONALD MELTZER
Cora R. S. Vieira

Meltzer descreve o autismo tendo como parâmetro mecanismos ligados ao


ego, inscrevendo sua experiência nas diretrizes indicadas por Melanie Klein,
incluindo as contribuições de Winnicott, Bick, Bion e recorrendo também a teoria
do selfelaborada por J akobson. Divide o autismo em autismo propriamente dito,
como sendo um momento em que há a suspensão da vida mental, e pós-autismo,
significando tanto o que fica fora do autismo propriamente dito como a "seqüela"
do autismo.
A estrutura â.o autismo propriamente dito é uma estrutura mental que se
caracteriza por ser um estado "desmentalizado" (mindlessness), que é um tipo
especial de mecanismo de dissociação, onde, mediante a suspensão da função
egóica da atenção, o self se desmantela (dismantling) em ,suas distintas capacida­
des sensoriais de ver, ouvir, etc. "Cada fragmento se reduz a seu estado primitivo
dominado pelo ide por sua economia e dinâmica" 1 que é a compulsão à repetição.
Este momento autista é "reversível" e um "objeto de qualidade especial e atraen­
te''2 levaria à reunião do ego e à reintegração dos objetos. Diz Meltzer: " ...era
necessário que o terapeuta fosse capaz de mobilizar a atenção suspensa da criança
em seu estado autista para trazê-la novamente ao contato transferencial."3
Donald Meltzer percebe o gozo repetitivo de um real que não cessa de não
se inscrever em que a criança autista mergulha e que é preciso barrá-lo, mas a
direção da cura em sua clínica e a teoria da qual lança mão tem o ego e as fantasias
do terapeuta como primordiais, havendo inclusive dificuldades para aceder a
leitura da teoria freudiana, quando afirma que: ''A investigação que Freud fez da
compulsão à repetição em "Mais além do princípio do prazer" é talvez demasiado
especulativa e cosmológica para ser de uso imediato na investigação clínica"4 não
se dando conta, em Freud, portanto, na teoria, do que percebera na clínica.
Encara a "estrutura da personalidade" com a divisão entre oself e os objetos,
com quatro regiões: interna e externa aoself e dentro e fora dos objetos. O autista
"sofreria um impedimento para progredir em seu desenvolvimento" devido a
dificuldade em diferenciar estas quatro áreas da fantasia. Este fracasso levaria à
uma "insistente intrusão, uma promíscua sensualidade e uma fusão com o obje­
to"5 , onde não haveria diferença entre estar dentro ou fora, seria um objeto sem
interior, aberto. Portanto, sem a continência do self e do objeto, há uma falta do
espaço interno que marca para sempre a personalidade pós-autista
O grau de atraso mental apresentado pela criança dependeria do tempo em
que esta teria passado no estado autista e isto por sua vez se articularia com a
disponibilidade da figura materna Sendo assim, a atuação dos fatores que propi­
ciam o estado autista propriamente dito é mais intrínseca à criança, enquanto que
no desenvolvimento pós-autista depende "da interação das tendências (particula-
41
42 OAUTISMO

res da criança especialmente sua obsessividade e dimensionalidade das relações


objetivas e as tendências) das pessoas mais importantes do ambiente em que esta
se desenvolve."6
Define a dimensionalidade como a concepção da mente em função do espaço.
Meltzer considera que o mundo unidimensional tem seu centro no self, saindo
deste impulsos em direção ao objeto, mas não é possível diferenciar o tempo e a
distância.
O mundo bidimensional admitiria um objeto com superfície sensível perce­
bida pelo ego, mas sem orifícios, um objeto aberto. O tempo é circular, move-se
de um ponto a outro na superfície e ocorre o mecanismo de identificação adesiva
descrito por Bick.
O mundo tridimensional já comportaria objetos com espacialidade, com es­
fíncteres, marcando um interior/exterior que possibilitaria o mecanismo de iden­
tificação projetiva. O tempo é reversível e oscilatório.
E por fim, no mundo tetradimensional, surge a identificação introjetiva,
operação que difere das identificações narcisistas. Meltzer a define da seguinte
forma: "A renúncia é sua condição necessária, o tempo é seu amigo e a esperança
sua marca de lei."7
O mundo do autismo propriamente dito se caracteriza como unidimensional
P. o rio e:c;:t;:irlo pnc;: -::iuti c;:t;:i é hirlime:nc;:ion::i l . Sn põe et::i p ;:ic;: ec;:trntnrnnte:c;: ::iincfa qne:

não se possam dizer lógicas, não cabem num puro e simples desenvolvimentismo.
Para Meltzer o tratamento leva a uma "melhoria de estrutura mental", sendo o
caminho- o que permite uma "melhor organização narcisista." É portanto na
"direção da cura", algo na linha de uma construção, no campo da transferência,
que uma "melhora" se dará.
A proposta de Meltzer seria a existência de um self centrado, ao qual vão
sendo acrescidas as dimensões em termos de desenvolvimento. Sua concepção da
constituição do tempo e do espaço é ligada à percepção. Ele se defronta com esta
questão, mas propõe uma solução com o modelo clássico da esfera, cujo diâmetro
varia em sentido crescente, ficando aprisionado na dimensão imaginária do den­
tro/fora.
Outra é a solução introduzida por Lacan. Topologia de corte e borda que
subordina o imaginário à conjunção de simbólico e real.
Que direção da cura o próprio Meltzer extrai deste pressuposto? Se trataria
de promover uma extensão do selfe para isto o terapeuta se oferece como função
egóica: emprestar a atenção, função suposta faltante na criança autista, tendo como
consequência o impasse de constituir alternadamente, ora o lugar de escravo na
relação (funcionando "como servente ou subordinado"), ora o lugar de senhor da
ação (" ... decidir que ação deve efetuar-se e tomar desta maneira a responsabili­
dade.")8
Apresenta sua clínica visando "demonstrar como o espírito e o corpo do
terapeuta chegaram progressivamente a possuir um conjunto de qualidades e de
funções que poderiam reconstituir as capacidades mentais dispersas da criança."9
Esse impasse se sustenta no preconceito de uma correlação entre o autista, e
o recém-nascido em seu primeiro mês de vida. Disto deduz-se que o autista
AUTISMO, UMA SÍNDROME PATOLÓGICA PARTICULAR: DONALD MELTZER 43

necessita do objeto para que o atenda na realização de suas funções egóicas,


constituindo uma relação narcísica "que não só prolonga o corpo da criança na
maior capacidade do objeto, mas também a mente mesma." 1º
Seguem no manejo da transferência as indicações de Melanie Klein, no que
concerne à investigação e à interpretação. O que se especifica na transferência
com a criança autista é um operar no sentido de "reunir os fragmentos de uma
experiência desmantelada", aludindo à construção de uma imagem, quando diz:
" ... a atividade interpretativa do terapeuta estava dirigida a identificar a imagem
fragmentada de maneira muito semelhante a como um arqueólogo reconstrói um
vaso à partir de seus cacos num monte de lixo." 1 1
Um caso descrito por D. Meltzer e J. Brenner exemplifica o estudo da teoria
e clínica sobre o autismo: "O caso de Timmy tornou-se progressivamente a pedra
angular em torno da qual a concepção do autismo e do pós-autismo foi construída
durante os anos de revisão sistemática do material em seminário." 12
Ele supõe que, após interpretação em análise, há uma passagem, "um proces­
so" e que embora a referência seja desenvolvimentista, infere-se a partir da direção
da cura, que se trata de momentos lógicos na constituição do sujeito.
Diz à prooósito do caso Timmy: "qual foi, pensamos, o trabalho concluído
pela análise?"13
"Chegamos, num certo sentido, ao ponto onde Timmy foi acometido pelo
autismo e onde parou seu desenvolvimento." 14
"O restabelecimento do P.rocesso de desenvolvimento está substituindo a
ausência de atividade mental."15
"Assim a base estrutural do desenvolvimento da personalidade parece ter sido
colocada. Mas é terrivelmente tarde e o hábito de empregar a manobra autista é
muito forte."16
"A partir de um processo no qual podíamos de tempos em tempos identificar
os elementos de transferência na desordem dos fenômenos autistas, alguma coisa
de mais coerente emergia. Podíamos ver um processo de transferência encrustado
numa matriz de comportamento autista" 1 7
"Havia um quadro teórico particular, no interior do qual se fazia o trabalho
de interpretação." 18
E sobre o final do tratamento de Timmi " ... chegamos ao ponto ao qual
Timmy acedeu ao final de 4 anos de análise." 9
Em Meltzer, é pela via da análise, na transferência, com as intervenções do
analista, que surge a possibilidade de aceder à estrutura, que já estava lá desde
sempre, possibilidades de amarração de alguma "reparação" no cruzamento do
nó.
Porém, Meltzer corre o risco de se extraviar em uma imagem oferecida,
desconhecendo que a imagem também é efeito da linguagem e apresentando seu
ego e sua atividade para suprir a palavra ausente do autista.

NOTAS
1 . MELTZER, D., BREMNER, )., HOXTER, S., WEDDEL, D., WITTENBERG, 1. Explorations dans
/e monde de /e autisme. Editora Payot, p. 22.
44
O AUTISMO
2. Ibidem, p. 23.
3. Ibid em, p. 23.
4. Ibide m, p. 22.
5. Ibid em, p. 28.
6. Ibidem, p. 3 7.
7. Ibidem, p. 236.
8. Ibidem, p. 29.
9. Ibidem, p. 49.
1 0. Ibidem, p. 30.
1 1 . Ibidem, p. 48.
1 2. Ibidem, p. 55.
1 3. Ibidem, p. 59.
1 4. Ibid em, p. 53.
1 5. Ibid em, p. 53.
1 6. Ibid em, p. 54.
1 7. Ibid em, p. 5 1 .
1 8. Ibid em, p. 47.
1 9. Ibid em, p. 55.
O AUTISMO SEC UNDO SERCE LEBOVICI
Beatriz Siqueira

LEBOVICI : SUA VIDA


Serge Lebovici nasceu em Paris, no dia 10 de junho de 1915. Psiquiatra e
psicanalista, é filho de Solo Lebovici e de Carolina Rosenfeld. Solo Lebovici, seu
pai, foi médico, emigrado da Romênia, tendo vivido em terras francesas até a
primavera de 1942, quando então a Gestapo chega à sua casa. Nesse dia, com
admirável sangue frio, fez com que sua mulher passasse por uma amante ocasio­
nal. Esta estratégia salvou a vida de Caroline, mas Solo foi deportado para
Auschwitz, onde veio a falecer.
Serge Lebovici, sem ser mands.a, sente-se em dívida frente aos militantes
comunistas que o haviam escondido após a prisão de seu pai. Morando sob nome
falso, em locâis ao acaso, Serge vai aos poucos retomando a dientela de seu pai
e, em 1945, ingressa no partido comunista.
Por ocasião da cruzada anti-freudiana, o partido comunista impõe a seus
psicanalistas a assinatura de um texto autocrítico, elaborado pelo filósofo Victcr
Leduc. Este texto intitulava-se "Autocrítica, A Psicanálise, Ideologia Reacionária"
e foi publicado em 1949 na La Nouvelle Critique. Tratava-se de um texto que
condenava o freudismo, veiculava a habitual hostilidade à noção de pulsão de
morte, atendo-se à prática "burguesa" dos terapeutas da higiene mental, e comen­
tando a "superficialidade" da crítica feita por Lacan aos ideais da farru1ia.
Violentos conflitos marcaram a assinatura deste texto, principalmente por
parte de alguns de seus signatários. Serge Lebovici mostrou-se o mais rebelde e
recebeu este acontecimento como sendo uma humilhação. Apesar disso e apesar
de ser contrário à condenação do freudismo, não se recusou a assiná-lo. Nesta
mesma época é aconselhado por Henri Wallon a denunciar o caráter reacionário
da psicanálise. Lebovici concorda e faz uma conferência na sede do partido
afirmando que a doutrina psicanalítica está impregnada de idéias burguesas, mas
que a prática da psicanálise pode escapar a isso. Julgado excessivamente compla­
cente, Lebovici é duramente criticado por Sacha Nacht, seu ex-analista. Lebovici
defende-se dizendo ter cedido à pressão ambiente e é expulso do partido comu­
nista.
Em 1954, Philippe Paumelle cria, numa ótica mais norte-americana, um
dispensário de saúde mental em Paris, com vários setores, sendo o da psiquiatria
infantil confiado a Serge Lebovici que, junto à René Diatkine, toma-se o repre­
sentante da psicanálise infantil vinculada aos ideais da psiquiatria.
Por volta da década de 60, Serge Lebovici é o homem da situação. Político
habilidoso, consegue assumir a direção do Instituto de Psicanálise de Paris, que
havia se convertido no órgão dirigente da Sociedade Psicanalítica de Paris, dan­
do-lhe então uma feição ipeísta.
45
46 OAUTISMO

Lebovici foi diretor do Centro Alfred Binet e membro da terceira geração de


psicanalistas da Sociedade Psicanalítica de Paris, tendo sido o único francês a
ascender à presidência da I.P.A na década de 70.
Por ocasião da grande cisão da Sociedade Psicanalítica de Paris, os adversá­
rios são extremamente hostis uns para com os outros. Enquanto Lacan era consi­
derado "paranóico" e "verborrágico", este chamava Lebovici de "espertalhão
maldoso." Lebovici dedica alguns anos de sua vida a uma política anti-lacaniana,
propõe a suspensão do mandato presidencial de Lacan, ficando com Sacha Nacht
na cisão. Lebovici é favorável ao curso clássico de psicanálise, defençe uma
versão adaptativa da psicanálise, sendo avesso a qualquer transgressão. E consi­
derado o representante dos conservadores na Sociedade Psicanalítica de Paris.

LEBOVICI : SUA CONSTRUÇÃO TEÓRICA


No Centro Alfred Binet, Serge Lebovici acompanhou o tratamento de algu­
mas crianças desde a infância até a idade adulta, durante cerca de 20 a 30 anos e,
a partir desses casos, estabeleceu sua posição teórica. Lebovici aceita as contri­
buições de Melanie Klein e de Winnjcott na elaboração de suas teorias e afirma
que os conflitos nas relações objetais primitivas constituem os fundamentos psi­
copatológicos do autismo e da psicose infantil. As dificuldades nas relações
objetais, em particular entre mãe e filhos, podem ser acentuadas por defeitos
orgânicos da criança e podem vir a originar uma estrutura psicótica. Esses con­
flitos são vividos pela criança como sendo uma frustração traumática e precoce
no seu ambiente. Eles podem ser decorrentes de uma incapacidade da mãe de
assegurar relações objetais precoces satisfatórias, ou podem ser devidos a retardas
no desenvolvimento que originariam frustrações na experiência da criança.
O desenvolvimento normal do senso de realidade na criança acontece a partir
da tomada de consciência simultânea de seu próprio corpo e do mundo exterior.
Esse desenvolvimento do sentido de realidade é o resultado de um diálogo verbal
ou pré-verbal, consciente ou inconsciente, entre a mãe e a criança. A criança
psicótica, no entanto, se perde dentro do mundo fantasmático em que vive; ela
"fantasmatiza" a realidade externa e não consegue diferenciar a realidade interna
da realidade externa As relações objetais da criança psicótica estão permanente­
mente coloridas pelos fantasmas associados aos objetos parciais mais arcaicos.
Os fantasmas de incorporação e de expulsão a partir do corpo da mãe e os ataques
sádicos de desintegração servem, por sua vez, de defesa contra as angústias
aterradoras associadas aos objetos (em particular à mãe enquanto objeto parcial
vingador).
O retraimento autístico parte freqüentemente do espectro dos mecanismos de
defesa, que pretendem encontrar uma proteção mágica contra a destruição pelos
objetos persecutórios. Essas defesas características do psicótico conduzem a novas
angústias, tais como a de uma fusão com a mãe associada a uma perda total da
identidade. A relação objetal psicótica irá se desenvolver a partir de uma ruptura
nas comunicações precoces �ntre mãe e filho, o que irá acarretar uma estrutura
específica no Complexo de Edipo dessas crianças. Lebovici e Diatkine, no seu
OAUTISMO SEGU N DO SERGE LEBOVICI 47

trabalho sobre os fantasmas da infância, insistem num processo evolutivo qu� eles
denominaram "edipificação", isto é, o estádio que precede o Complexo de Edipo
genital e onde a criança imagina que os desejos de seus pais são os mesmos que
os seus próprios: desejo de incorporação oral e anal. A relação ambivalente com
a mãe leva a criança a considerar o pai somente como uma proteção contra a
perigosa imagem materna. Esta "edipificação" está bem longe de ser uma orga­
nização verdadeiramente edípica, porém, na criança psicótica, a estrutura edípica
encontra-se bloqueada nos primeiros estádios da "edipificação." A elaboração do
eu psicótico é marcada pela utilização excessiva da identificação projetiva e de
mecanismos de defesa. O sistema defensivo da criança psicótica interfere em suas
funções autônomas. A linguagem perde sua função semântica e simbólica, uma
vez que o desenvolvimento da linguagem está ligado à evolução da relação com
o outro. A linguagem, portanto, é um aspecto fundamental a ser estudado mais
detalhadamente em relação às crianças psicóticas, pois pode haver um contraste
entre a precocidade do vocabulário e a sua utilização numa construção sintática.
A confusão entre süjeito e objeto se revela, muitas vezes, através da má utilização
dos pronomes pessoais. A impossibilidade da criança psicótica de se comunicar
fora de seu mundo fantasmático é um elemento de diagnóstico importante. O
psicanalista, através de sua capacidade de identificação, de empatia e de insight ,
deve tentar restabelecer o diálogo. As distorções apresentadas pela criança quanto
à apreensão do real e da percepção revelam sua significação no contexto da relação
analítica. A transferência irá fornecer o enquadre ideal para o estudo detalhado
das relações objetais da criança psicótica. Lebovici afirma que a personalidade do
analista tem um papel relevante no processo de análise e confessa ter sido influen­
ciado, nesse particular, pelos trabalhos de Maurice Bouvet, mais especificamente
seu conceito da variação constante da "distância psicológica ótima" que deve
existir entre psicanalista e paciente.
Lebovici acredita que a análise de crianças psicóticas é não somente possível
como também preciosa, uma vez que fornece um campo considerável de pesquisa
sobre a gênese das psicoses em geral. Ele conclui que a criança autista apresenta
uma relação psicótica decorrente da não-organização de uma neurose infantil;
articula o autismo a um deficit mental e a outras estruturas psicopatológicas.
Lebovici coloca em evidência os aspectos precoces desta doença, e manifesta
interesse pelas teorias do sistema familiar que dão importância ao não-dito, aos
"segredos de fanu1ia" que são transmitidos entre gerações e que podem originar
uma psicose.
Lebovici afirma que a aplicação de uma psicoterapia psicanalítica nos casos
de autismo e psicose pode conduzir a uma transformação do funcionamento
mental e a uma neurotização, e propõe essa passagem a um funcionamento
neurótico como sendo uma tentativa de cura da psicose. A neurotização, portanto,
pode ser considerada como "um dos elementos do processo de movimentação dos
conflitos e de uma melhor organização destes sob o ângulo da eficiência do
funcionamento mental..."
As crianças que foram diagnosticadas como autistas, no entanto, apresentaram
uma evolução menos favorável do que as demais psicóticas, embora tenham se
beneficiado sempre de uma "desmutização relativamente precoce." A evolução
48 OAUTISMO

das crianças psicóticas pode levá-las a inscreverem-se em registros bastante di­


versos de patologias ou, em casos mais felizes, a viverem uma vida completa­
mente autônoma.

LEBOVICI: UM CASO CLÍNICO


Sammy é um menino americano de 9 anos, enviado a Lebovici por Margaret
Mahler. Lebovici, por não dominar a língua inglesa, encaminha-o a Joyce McDou­
gall, sua supervisanda, que passa a atendê-lo durante 8 meses, com a freqüência
de 5 vezes por semana. Lebovici e McDougall se reuniam semanalmente para
discutir o caso.
A mãe de Sammy, após o término da análise do filho, também é atendida por
McDougall durante cerca de um ano. Ela tem problemas de alcoolismo, conflitos
sexuais, sonhos de conteúdo homossexual e de voyerismo. Ela dizia que Sammy
a excitava sexüalmente. Ele era seu objeto de gozo, seu objeto fálico. Seu rela­
cionamento com Sammy era descrito por ela da seguinte maneira: "Quando me
sinto agressiva e colérica com ele é quando me sinto mais próxima a ele. É como
quando minha mãe brigava comigo. Eu penso que ela me batia mais por paixão
do que por cólera. Eu me sentia desarmada depois. A mesma coisa acontece
quando eu bato em Sammy. Depois, nós começamos a chorar juntos e a nos
cortejar."
A mãe de Sammy não o viu nos três primeiros dias após seu nascimento. No
42 dia, quando ele foi levado para mamar, ele recusa o seio e a mãe tem a intensa
sensação de ter sido rejeitada por ele. O aleitamento ao seio é abandonado. Sammy
é entregue aos cuidados das enfermeiras e depois de uma babá. Nesta época, o
pai de Sammy fazia o serviço militar, e só entrou em contato com o filho quando
este tinha 3 meses de idade. O pai foi o primeiro a notar que Sammy não respondia
normalmente aos estímulos do meio ambiente, parecendo não perceber a presença
das pessoas à sua volta. Ele apresentava balanceios com o corpo para a frente e
para trás, e movimentos estereotipados com as mãos. A única demanda afetiva
que ele aparentava fazer era quando aproximava sua cabeça da mão de um adulto,
como se pedisse um carinho. Com cerca de 5 anos, gostava de exibir seu pênis
para as pessoas, e de se admirar nu diante do espelho. Conversava com seus tigres
de pelúcia durante muitas horas, e colocava-os em volta de sua cama quando ia
dormir. O nascimento da irmã tomou-o agressivo, mas Sammy não demonstrava
nenhuma alteração em seu comportamento quando era punido por causa disso, ao
contrário, parecia que fazia tudo para que o punissem por mais tempo.
Durante suas sessões de análise, Sammy desenhava e contava muitas histó­
rias. Algumas histórias eram contadas parte em francês, parte em inglês. Costu­
mava exigir que sua analista anotasse todas as suas palavras. Dizia para ela: "Eu
sou seu ditador!" Sammy relatava suas histórias de forma ditatorial, recusando-se,
inicialmente, a qualquer conversa mais direta com sua analista. Diante da insis­
tência dela, ocasionalmente irritava-se, dizendo: "Se nós vamos só falar, então eu
vou embora. Chega! Tome logo nota de minha nova história!"
O AUTISMO SEGUNDO SERGE LEBOVICI 49

Uma de suas histórias foi repetida por ele ao longo de quase toda a sua análise.
A história era intitulada "A face mágica" (Le visage magique): "Esta é a face
mágica. Esta face não tem corpo, somente longas antenas... ela é metade homem
e metade mulher ... esta face pode fazer tudo o que quiser, ela pode ferir quem
quiser; ela pode ressucitar os mortos... esta face é a metade de tudo ... ela mora
num sítio com as pessoas que você pode ver nos seus sonhos... ela quer se tomar
uma pessoa normal..."
McDougall considera que "A face mágica" expressa o caráter bissexual de
Sammy, sua angústia de castração e seu medo de desintegração. Enquanto cresce
a angústia de Sammy, os detalhes que ele vai acrescentando em suas histórias vão
se relacionando aos objetos parciais aterradores, aparentando uma fusão entre o
objeto destruído e o objeto destruidor.
As histórias de Sammy ocasionalmente apresentavam rimas e evidenciavam
um mundo fantasmático �ico e complexo, constituindo uma escrita ao mesmo
tempo patética e poética. E interessante notar as recorrências dos personagens e
das situações, como se as histórias constituíssem episódios de um único folhetim.
Durante as sessões, alguns comportamentos se repetiam, como o de pedir um
copo de leite no início de todas as sessões, o que era interpretado por McDougall
como uma evidência de seus fantasmas orais. A analista, durante as sessões,
percebeu que a imagem que Sammy tinha dele mesmo estava profundamente
misturada aos fantasmas orais da mãe; ele tinha impulsos descontrolados e deses­
perados de realizar todos os desejos inconscientes dela.
Sammy recebe de Lebovici o diagnóstico de "criança psicótica pós-autista."
Lebovici vê a análise de Sammy como sendo particularmente rica de produções
fantasmáticas que revelam alguns aspectos fundamentais da gênese do pensamen­
to psicótico, e afirma que os fantasmas e a angústia de Sammy são típicos da
posição esquizo-paranóide teorizada por Melanie Klein. A parte do eu carregada
de libido é mantida no fantasma ligada ao bom objeto materno, e a parte do eu
carregada de agressividade é projetada em direção ao objeto mau. Sammy ilus­
traria bem o mecanismo de identificação projetiva.
Lebovici afirma que Sammy conseguiu chegar a uma cura apesar de ter
interrompido o processo de análise, após 8 meses de trabalho, devido a seu retomo
para os Estados Unidos. Lebovici considera que, em casos como o de Sammy, a
criação de uma estrutura psicótica na personalidade é o único meio de haver uma
relação da criança com seu mundo, e de evitar os perigos para a psiquê de uma
explosão catastrófica, que acarretaria um processo de desintegração e de aniqui­
lação.
O caso Sammy foi publicado em 1960, em Paris, sob o título Un cas de
psychose infantile , e contou com a presença do próprio Sammy na data da publi­
cação. Este caso foi utilizado por Lebovici num seminário por ele ministrado no
Instituto Psicanalítico de Paris.

LEBOVICI: UM COMENTÁRIO A PARTIR DE LACAN


A psicanálise, para Freud e Lacan, está interessada no sujeito que fala. É ao
nível da linguagem que tudo começa. O autista, no entanto, assim como o psicó-
50 OAUTISMO

tico, está marcado pela linguagem, mas não está no discurso. Ele não faz um
endereçamento ao Outro, há um distúrbio na esfera da demanda, e ele fica petri­
ficado no nível de um real dificilmente simbolizável. Sem a constituição do par
St - S2 só há gozo autístico, com a forclusão do Outro, uma vez que o Outro, para
a criança autista, se reduz a uma ausência.
A criança autista, não marcada no corpo pelo desejo do Outro, fica excluída
da estrutura da demanda. A forclusão do Nome-do-Pai determina uma abolição
do simbólico e, portanto, um corpo excluído de significantes. No autismo está
anulada toda a dimensão de endereço e mesmo de presença. A abolição da
demanda e do desejo faz do Outro da linguagem um outro morto.
Hector Yankelevich diz que o que a mãe pode renegar é o laço que já tem
com seu filho, e a substância desse laço é paterna. O pod�r de toda a mãe seria o
de dar sentido ao traço paterno. E Yankelevich continua: "E por uma onomatopéia
insensata que se entra na estrutura, e onomatopéia, em grego, significa criação de
nomes. E no movimento dessas criações, é do Nome-do-Pai que se trata." As
intervenções do analista, portanto, têm que ter uma eficácia simbólica que opere
no real do autismo.
Rosine Lefort afirma que a cura do autismo só pode ter um efeito fundamen­
tal: é a irrupção da palavra. Sammy pede para sua analista escrever suas paiavras,
numa tentativa febril de aprisioná-las num papel. Sarnrny elabora um texto em
suas histórias, um texto onomatopaico, um texto com urna materialidade de letra,
e é como letra, nos diz Lacan, que o texto participa do laço social.
Rosine Lefort propõe, corno tratamento possível para a criança autista, a
construção de urna metáfora delirante, como uma tentativa de amarração na
psicose. Talvez pudéssemos pensar que Sarnmy elabora essa metáfora delirante
através de suas histórias. Lebovici, neste ponto, parece concordar com isso,
quando afirma que a inserção numa estrutura psicótica seria uma maneira de se
evitar urna desintegração psíquica nas crianças autistas. Lebovici vai mais além
disso, porém, e, num otimismo exagerado, aponta a saída pela neurotização e,
portanto, por urna mudança de estrutura, como uma possibilidade de cura para o
autismo.
É somente a partir do registro do real, instaurado na operação de expulsão
que ocorre no cerne do aparelho psíquico, que se pode pensar toda a clínica
psicanalítica. A partir da exclusão do registro do real de suas teorias, urna série
de enganos vem marcar as concepções teóricas de Lebovici. Ele direciona a sua
clínica para uma construção fantasrnática em torno dos objetos, mas com uma
ilusão de completude como pano de fundo. Ele pressupõe que o sentido de
realidade é o resultado de um diálogo entre mãe e filho. A partir de Freud e de
Lacan, porém, sabemos que a condição da prova de realidade é que o objeto esteja,
desde sempre, perdido. A prova de realidade, portanto, irá somente veicular uma
falta, contornando o buraco constituído pelo objeto sempre faltante.
Com }:reud, sabemos que a realidade abordada na psicanálise é a realidade
psíquica. E no interior do aparelho psíquico que o sujeito irá construir o seu
fantasma como uma tentativa de resgatar o objeto perdido. No lugar do objeto
perdido surge o objeto "a" como resto da operação de separação do sujeito do
campo do Outro.
O AUTISMO SEGUNDO SERGE LEBOVICI 51

, O processo de "edipificação" teorizado por Lebovici enfoca o Complexo de


Edipo como um estádio do desenvolvimento evolutivo da criança, dentro de um
tempo cronológico. Com Freud e Lacan, sabemos, no entanto, que o Complexo
de Edipo é da ordem da estrutura, articulador de uma lei que irá inaugurar o sujeito
desejante.
Lebovici, em sua clínica, demonstra estar atento às marcas do desejo do Outro
quando direciona a sua escuta no sentido dos não-ditos e dos "segredos de
família." A transferência é enfocada por ele como uma estratégia na direção da
cura, mas numa vertente imaginária de uma relação egóica dual, numa esfera de
identificações e de empatias.
A posição do analista, na clínica de Lebovici, é a de um sujeito portador de
um saber sabido; ele está ali para dizer. as verdades do paciente. Na clínica
lacaniana, ao contrário, o analista está no lugar de um puro corte, ordenador do
discurso.
Poderíamos-dizer, então, que a "verborragia" que de fato está em jogo numa
clínica psicanalítica é a do analista que joga sobre o paciente uma proliferação de
dizeres muitas vezes desarticulados de qualquer enunciação, e fora de uma arti­
culação significante. Nesse sentido, Lacan faz uma clínica econômica e enxuta no
que diz respeito às pontuações, interpretações e atos do analista. Ele sabe que é
a política articulada no desejo do analista a que verdadeiramente opera na direção
de uma cura.

BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "A negação." in: Die Verneinung, Publicação da Letra Freudiana, n. 5, Rio
de Janeiro, 1 988.
-. "A negação." in: Obras Completas, Tomo Ili, Madrid, Editorial Biblioteca N ueva,
1 96 7, p. 2884.
LACAN, J. Seminário 5, As formações do inconsciente, 1 958-1 959 - Inédito.
-. Seminário 3, As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 955.
-. Seminário 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 973.
LEBOVICI, S. Sentimentos de culpa na criança e no adulto. Ed. Eldorado, 1 973.
LEBOVICI, S., SOULE, M. O conhecimento da criança pela psicanálise, Jorge Zahar
Ed., 1 980.
LEBOVICI, S., KESTEMBERG, E. A evolução da psicose infantil. Porto Alegre, Ed. Artes
Médicas.
MAZER, P., LEBOVICI, S. Autismo e psicoses da criança. Porto Alegre, Ed. Artes
Médicas, 1 99 1 .
McDOUGALL, J . LEBOVICI, S. Dialogue avec Sammy. Paris, Payot, 1 984.
ROUDIN ESCO, E. História da psicanálise da França. Volume li. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 986.
YANKELEVICH, H. Fabian, a criança ao computador, transcrição de palestra proferida
na Letra Freudiana, Rio de Janeiro, agosto de 1 992.
O BURACO NEGRO - FRANCES TUSTIN

Myriam R Fernandez

Frances Tustin, embora pertencendo à escola inglesa, e, como tal, formada


na orientação kleiniana, é autora que não pode ser desconhecida por nenhum
analista que se proponha a trabalhar com crianças autistas. Se percebemos em sua
obra a fragilidade da teoria, patenteada em imprecisões teóricas decorrentes de
uma leitura incipiente e distorcida de Freud, por outro lado é impossível negar
que há em Tustin uma firme direção da cura, construída ao longo de mais de trinta
anos de trabalho clínico com crianças autistas. Direção da qual se pode discordar
em alguns aspectos justamente porque, na falta de uma conceituação teórica mais
precisa, enveredou freqüentemente por um imaginário excessivo que, mesmo
assim, não chegou a impedir a preciosidade de sua escuta do drama silencioso e
enigmático que é o autismo infantil. Há que se reconhecer que, à diferença de
outros autores da escola inglesa e da psicologia do ego americana, Tustin não se
perde neste emaranhado pelo qual adentra, lançando alguma luz no "buraco negro"
da depressão psicótica. Ao fazer operar a demanda do Outro e conduzir, assim, o
tratamento ao ponto de queda do objeto, a analista promove a possibilidade de
fundação de um sujeito onde, até então, estava uma criança emudecida no autismo.
Ao longo de sua obra, iniciada em 1972, já depois de vinte anos de trabalho com
crianças autistas, a autora, sempre a partir da clínica, não hesitou em rever e
corrigir sua incipiente teoria que, mesmo assim, conservou uma série de impre­
cisões resultantes do desconhecimento de conceitos freudianos fundamentais.
Nosso objetivo é apresentar as formulações teóricas básicas que Tustin expõe
em seu primeiro livro Autismo e psicose infantil para, depois, acentuar correções
importantes a que as submete, marcando também o conceito fundamental que
perpassa toda a sua obra - o de buraco - o "buraco negro" da depressão
psicótica. Talvez o que mais nos chame a atenção seja perceber que, apesar dos
equívocos que mantém em relação à teoria freudiana e sem qualquer conhecimen­
to das formulações lacanianas, isto não a impediu de trazer uma contribuição das
mais importantes ao trabalho clínico com crianças autistas. Se não pôde dar uma
conceituação teórica mais precisa a seu próprio trabalho e, por isso mesmo, teve
que fazer uso de uma profusão imaginária de significantes, alguns dos quais
cunhados por ela mesma, ainda assim sua fina escuta e uma firme direção da cura,
em que opera na dimensão transferencial da palavra, fizeram-na avançar até um
ponto que talvez poucos daqueles que, na psicanálise, trabalham com crianças
autistas tenham chegado a ultrapassar. Podemos dizer de Tustin talvez que, pre­
ferindo sempre dizer-se terapeuta, ocupou o lugar de analista sem ter podido
nomeá-lo como tal.
Em 1972, a autora situa o autismo como um estado existente na psicose
infantil. A esse respeito, diz então que "o autismo patológico se esconde por detrás
53
54 OAUTISMO

da psicose infantil"1 e que aquilo que chama de "barreira autística"2 é a caracte­


rística fundamental da psicose infantil.
Ao falar, nesta época, em autismo patológico, Tustin estabelece a existência
do autismo não patológico e denomina-o então de autismo primário normal.
Conceitua o autismo no mesmo vetor estabelecido por M. Mahler: resultado de
uma parada do desenvolvimento psicológico numa fase muito primitiva, acres­
centando a possibilidade de constituir-se por uma regressão a tal fase. O curso
habitual do desenvolvimento psicológico será a saída do autismo primário normal,
estágio em que a criança não tem percepção da existência do mundo externo, que
passa a ser vivido em termos de órgãos e zonas de seu corpo. Tustin encontra esta
saída recorrendo a uma noção obscura e mítica: a disposição inata para reconhecer
padrões, semelhanças, repetições que são próprios dos processos cognitivos. Neste
ponto, busca apoio na teoria da aprendizagem e, para isso, se serve do sujeito da
sonsciência, estruturado segundo o modelo da psicologia da inteligência de Piaget
E o sujeito social e psicologicamente integrado, no qual se deu "a combinação
das várias partes da personalidade num todo, e a do eu emergente com os vários
elementos de uma situação em que outros" 'quereres' (wills), além do seu, exis­
tem."3 Trata:se, pois, de um sujeito total que nada tem a ver com o sujeito da
psicanálise. E nesse contexto de um sujeito integrado, norma!, que, no início de
sua obra, Tustin situa o autismo. A fundação do sujeito, com a passagem, por um
autismo normal, se apóia em três equívocos:
- O mito do pré-verbal, patenteado no preconceito dos cuidados da mãe com
o corpo da criança.
- Em segundo lugar, a falta da noção de estrutura a leva a estabelecer
distinções quantitativas entre neurose e psicose, permitindo-lhe concluir também,
neste momento inicial de sua teorização, que os chamados autismo normal e
patológico são graus diferentes de uma mesma e única entidade.
- Como terceiro equívoco, assinalamos o desconhecimento da teoria freu­
diana das pulsões e do narcisismo. É o que lhe permite considerar, nesta altura, a
denominação de autismo primário mais adequada que o conceito de narcisismo
primário, para referir-se aos processos cognitivos que levam à constituição do
sujeito que nos propõe.
Na falta do conceito freudiano de identificação, possibilitador da unificação
corporal das pulsões parciais, Tustin recorre então a sensações obscuramente
internas que não chegaram a um ponto da apreensão. Mas quem é o mestre desta
apreensão? Para a autora, são os aparelhos inatos do desenvolvimento. Mesmo
assim, estes não respondem pelo "sentimento interno de que as diversas partes do
corpo estão coesas e contidas." 4 A pele é o recurso que lhe resta para imaginarizar
o sujeito como um saco contendo órgãos.
Nesses primeiros momentos de sua teorização, tendo conceituado o autismo
primário normal, Tustin vai afirmar que o autismo patológico é o resultado da não
resolução desse estágio primário, caracterizando-se por uma permanência no
estado autístico inicial ou por regressão ao mesmo.
Se afirmamos anteriormente que o conceito fundametal que perpassa toda a
obra de Tustin é o de "buraco negro" da depressão psicótica, há um segundo - o
de objeto autístico- que não pode ser deixado de lado.
O BU RACO NEGRO- FRANCES TUSTIN 55

Quanto ao conceito de depressão psicótica, Tustin o foi buscar em Winnicott


para referir-se ao estado de "profundo desgosto e luto interno"5 de que fala
Mahler. Para a autora, a depressão psicótica consiste em um tipo muito particular
e primitivo de depressão que se caracteriza por vivências bucais de "buraco",
geralmente associadas a sentimentos de terror e de incapacidade de bastar-se a si
mesmo. Esta depressão é experimentada como buraco corporal, derivada das
projeções que não foram modificadas pelas respostas de uma figura nutridora.
Citando Winnicott, diz Tustin: "essas crianças vivenciam o 'cair sem fim' que
acontece quando a ' situação contensora' não se materializa, levando-as a um
estado de deterioração irreversível que precede a morte."6
Nessa época, considerando a existência de um autismo normal, a autora
afirma que o autismo patológico se desenvolve como resposta à depressão psicó­
tica. Em 1972, Tustin ainda não pensa o autismo como algo anterior à constituição
de qualquer estrutura clínica e, portanto, de uma ordem diferente da psicose, mas
como um estado que se dá no interior da própria psicose.
Quanto ao conceito de objeto autístico, sua importância reside na função que
desempenha: neutralizar qualquer percepção da existência de um não-eu. Visa,
pois, fazer desaparecer a quebra de continuidade, o espaço vazio que a criança
experimenta em si.
Assim como a princípio a autora considerava a existência de um autismo
primário normal, também pensava que a este estágio correspondia o uso normal
de objetos autísticos que teriam um papel muito importante ao auxiliar a criança
a enfrentar o sentimento de perda da mãe. Tais objetos só se tornariam anormais
e patológicos, se ela os utilizasse em demasia ou não conseguisse tolerar a
frustração da esr era, continuando "a manter à distância o reconhecimento do
terrível não-eu." Em 1986 ao não reconhecer mais a existência de um autismo
primário normal, Tustin irá dizer que o objeto autístico é sempre patológico.
No sentido lato, o objeto autístico é aquele completamente experimentado
como eu, consistindo em partes do corpo e do mundo externo sentidas pela criança
como partes de si mesma. Este objeto tem a função radical de suprimir o "buraco
negro" da depressão psicótica. Se a criança, porém, conseguir "guardá-lo em si
como produto mental indispensável, após ter perdido a esperança de encontrá-lo
no mundo externo"8, anuncia-se o início de uma organização simbólica. Para que
essa organização se produza, a criança "terá que abandonar o objeto autístico -
mamilo- e reconhecer-lhe atributos próprios que o tomarão separado da boca"9,
além de ser capaz de suportar um tempo de espera por ele, ou seja, um intervalo,
um espaço vazio.
Ainda a respeito do objeto autístico, ao voltar a falar, em 1986, sobre o caso
de John, ao qual se refere algumas vezes ao longo de sua obra, e que podemos
considerar como paradigmático, a autora dirá: " ... tive que ajudar John a encarar
o fato de que ele estava lamentando a perda do ultra-especial" 'botão' que nunca
pode existir na realidade." 1 0 Repete então o que já dissera anteriormente:
"Quando ele abandonou suas irreais esperanças de encontrar o superlativa­
mente perfeito 'botão' no mundo externo, este tornou-se estabelecido como um
construto psíquico em sua mente." 11 Percebemos então que, apesar de sua incon­
sistência teórica, Tustin não se engana quanto à natureza do objeto. Dizer que o
56 O AUTISMO

"botão" nunca pode existir na realidade é reconhecer que o objeto está desde
sempre perdido, ficando o traço ("construto psíquico na mente") como marca da
perda, início da organização simbólica fundante do sujeito.
Vimos até aqui, de forma resumida, as formulações teóricas que a autora
apresentou em 1972, em seu primeiro livro,Autismo e psicose infantil. Em 1986,
em seu terceiro livro, Barreiras autísticas em pacientes neuróticos, apresenta
correções feitas a partir de outros autores, confirmando-as posteriormente em seu
quarto livro,A concha protetora em crianças e adultos. Finalmente, em seu último
trabalho,A perpetuação de um erro, apresentado em 1993, Tustin parece chegar
ao limite de sua possibilidade de teorização, sempre marcada por imprecisões no
que se refere aos conceitos freudianos. Por outro lado, percebemos neste escrito
que a autora desbasta sua teoria o quanto pode do excesso de imaginário que a
permeava, chegando ao ponto fundamental de fazer valer o que a criança autista
lhe impunha na transferência- a presença do buraco que é constitutivo do campo
do Outro e do inconsciente.
A primeira correção teórica importante que vemos Tustin fazer diz respeito
a sua formulação inicial de um autismo primário normal que, a partir de então,
abando?�· Diz que vai �sa.r .º termo "auto�sensitiv? (qu� podem?s pensar como
auto-erotico) para os pr1nut1vos desenvolvnnentos infantis normais, reserva..TJ.do o
termo autístico para desenvolvimentos patológicos." 12 Apoia-se, para isto, na
teorização de outros autores.
Outra correção importante que Tustin faz em sua teoria nesta mesma época
refere-se à relação entre autismo e psicose. Se anteriormente considerava o autis­
mo como um estado que se dá no interior da própria psicose, agora vai conside­
rá-lo como uma defesa contra a psicose e, portanto, diferente desta. Diz textual­
mente: "... compreendi que o autismo psicogênico é uma defesa contra a confusão
e o aprisionamento da psicose, e não psicose ele mesmo. Quando o autismo é
levantado, é-nos revelada uma criança vulnerável, presa, confusa e desamparada
que pode tomar-se psicótica a menos que nós percebamos sua necessidade de
segurança e proteção e possamos provê-la disto em nossa compreensão." 1 3 É da
maior importância o que Tustin nos diz aqui, pois além de colocar o autismo como
anterior à estruturação da psicose (pensemos em termos de temporalidade lógica),
aponta para outra saída para a criança autista, que não seja a psicose, marcando
que o desenlace, seja qual for, põe em jogo a responsabilidade do analista na
direção da cura - de sua compreensão, quer dizer, de sua escuta dependerá a
possibilidade de constituição ou não de um sujeito dividido. Que o analista está
comprometido, não há dúvida, mas talvez seja forte demais esta afirmação de
Tustin, principalmente se se tratar do autismo infantil precoce de Kanner. A autora
também não esclarece teoricamente, porque considera que haverá possibilidade
de saída do autismo somente se o tratamento for iniciado antes dos sete anos de
idade, como afirma ainda em 1986. 14
Fica-nos claro, por estas correções efetuadas, que Tustin já não está mais tão
enganada pela questão do desenvolvimento evolutivo, podendo talvez perceber,
sempre a partir da clínica, que a constituição do sujeito é lógica e não cronológica.
Seu último trabalho -A perpetuação de um erro - é escrito para corrigir de
forma definitiva o engano de pensar no autismo como uma regressão a um estágio
O BURACO NEGRO- FRANCES TUSTIN 57

de autismo primário normal, que a autora afirma então categoricamente não


existir. É nesse escrito, em que volta a apresentar pela terceira vez o, caso John
que a autora afirma ter todas as características do tipo de autismo de Kanner, que
podemos perceber o quanto Tustin se dçsvencilhou do imaginário que antes
permeava sua análise deste mesmo caso. E para uma direção da cura que opera
na dimensão do significante que agora aponta. P,ercebe-se que este desbastamento
do imaginário foi-se efetuando na medida em que a autora, na sua posição de
analista, está continuamente repensando a clínica. Em 1986, a respeito do trata­
mento de crianças autistas, já dizia: " ... por trás da aparente ausência de medo
nestas crianças, há um terror muito grande que não pode ser expresso. Isto
necessita ser Bosto em palavras pelo terapeuta que dá suporte à criança que o
experiencia." Percebemos que Tustin não está se referindo a interpretações
imaginárias, mas a construções significantes que o analista deve fazer, na tentativa
de que, pela delimitação de uma borda, possa se construir o buraco, o furo no
campo do Outro, onde, no real, o Outro só existia como "buraco negro", abismo
para uma queda sem fim. Talvez fosse para a necessidade desesperada de delimi­
tação dessa borda que John, já na primeira sessão, apontava, ao fazer com seu
dedo movimentos circulares ao redor da boca, como Tustin relatava em 1972. No
seu mutismo de autista, porém, eram justamente os significantes que faltavam a
John e, como nos diz a autora, se o analista deve fazer construções, estas só podem
ser feitas a partir dos significantes da própria criança autista, por poucos que
��
Ao relatar novamente este caso em 1993, Tustin faz-nos ver que foi somente
a partir da introdução, pela própria criança, do significante seio que ela pode fazer
construções que levaram John ao momento inicial de delimitação de uma borda
significante pela qual, no "buraco negro" de uma queda sem fim, pode começar
a se constituir o buraco no campo do Outro. John diz: "Eu o conserto! Eu o
conserto! Buraco embora! Botão nele! Buraco embora! Botão nele !." 16
Trata-se de um jogo significante que evoca ofort-da, no qual opera um par
opositivo de significantes que delimita a brecha entre um significante e outro,
lugar da queda do objeto possibilitadora da fundação do sujeito. De fato, na última
sessão relatada por Tustin e já próxima à interrupção do tratamento, é o próprio
John que parece apontar à queda do objeto ao dizer: "Botão vermelho embora!
Ele caiu com força!" 17
Já não se trata mais do autista que pode desaparecer no abismo real do "buraco
negro." Talvez não se possa falar ainda na fundação de um sujeito, mas sim na
presença da estrutura da linguagem onde o sujeito poderá vir a se constituir ou
não.,Trata-se, nos parece, de um momento inaugural em que a queda do objeto
promove um furo no campo do Outro - "Botão vermelho embora" não seria o
seio que se destaca do campo do Outro promovendo este furo? Talvez um tempo
primeiro da identifição necessário à possibilidade da constituição do sujeito ?
Tustin nos afirma que John foi um dos quatro casos de autismo infantil
precoce que ela tratou com sucesso 18, dando-nos a entender que a saída do
autismo, nesses casos, não foi a psicose e que, portanto, houve de fato a consti­
tuição do sujeito dividido do inconsciente, o sujeito da psicanálise. Fica a inter­
rogação.
58 OAUTISMO

Podemos afirmar, a partir da leitura do último escrito da autora, que, quanto


à direção da cura no autismo, o trabalho analítico de Tustin não acontecia apenas
na dimensão do imaginário -operava na dimensão transferencial da palavra. Não
seguindo Lacan e apesar dos equívocos em relação à teoria freudiana, Tustin não
se enganou a respeito do inconsciente estruturado como uma linguagem. Sabia
que a estrutura é a da linguagem e que só o corte promovido pela linguagem pode
levar à queda do objeto.
Neste trabalho a autora já não fala mais no autismo como uma defesa contra
a psicose. Diz agora que "o autismo é uma reação protetora que se desenvolve
para fazer frente à tensão associada com a ruptura de um prolongado estado
anormal de unidade adesiva com a mãe. O autismo é então a reação específica ao
trauma, sendo este último a própria ruptura de tal estado e a tensão que isto
prov9ca." 19
E evidente que este conceito de trauma que Tustin apresenta relacionado ao
autismo, nada tem a ver com o coneito freudiano de trauma, mas o que se percebe
é a tentativa da autora de desimaginarizar o mais possível a questão do autismo.
O que não deixamos de perceber é a relação entre os conceitos de "buraco negro"
e de 'trauma' que utiliza.
Talvez o que de fundamental possamos apontar em Tustin seja o fato de que,
se lhe faltava uma diferenciação teórica quanto às estruturas clínicas, ela chegou,
no entanto, ao essencial da estrutura - à dimensão de buraco, furo no campo do
Outro, ponto de partida necessário à constituição de uma estrutura clínica, seja
ela qual for. Se a autora pôde chegar até este ponto, apesar da precariedade de
sua teoria, foi sobretudo porque, na clínica, buscou sempre o estabelecimento da
transferência, operando a partir do significante, na medida em que, de alguma
forma, partiu do pressuposto fundamental de que a estrutura é a da linguagem.
Por isto, talvez, tenha podido expressar tão bem sua posição de analista quando,
ao referir-se aos pacientes autistas, escreve: "Nós lhes falaremos como se pensás­
semos �e eles podem entender o que estamos dizendo. Nós não os menospreza­
remos." 0

NOTAS
1. TUSTIN, F. Autismo e psicose infantil. Rio de Janeiro, Imago, 1 976, p. 1 1 8.
2. Ibidem.
3. Ibidem, p. 6 7.
4. Ibidem p. 68.
5. Ibidem, p. 1 3.
6. I bidem, p. 84.
7. I bidem, p. 8 1 .
8. Ibidem, p. 40.
9. I bidem, p. 78.
1 O. -. Autistic barriers in neurotic patients. London, Karnac Books, 1 986, p. 90.
11. Ibidem, p. 9 1 .
1 2. Ibidem, p. 42.
1 3. Ibidem, p. 45-6.
O BURACO NEGRO- FRANCES TUSTIN 59

1 4. Ibidem, p. 65.
1 5. Ibidem, p. 1 1 5.
1 6. -. The perpetuation of an errar, inédito, 1 993.
1 7. Ibidem, p. 1 2.
1 8. -. The protective shell in children and adults. London, Karnac Books, 1 990, p. 28.
1 9. -. The perpetua tion of an errar, op. cit., p. 1 8.
20. Ibidem, p. 25.
PARTE II

- Frances Tustin:
Escrito, Carta,
Entrevista
A PERPETUAÇÃO DE U M E RRO

FRANCES TUSTIN
Tradução: Paloma Vidal

Esse artigo é uma tentativa de organizar,minhas idéias sobre autismo antes


que minha vida profissional chegue ao fim. E apropriado que eu faça isso com
a Associação de Psicoterapeutas Infantis, pois, como vocês verão, fui muito
auxiliada na minha reflexão por colegas psicoterapeutas infantis de diversas po­
sições teóricas.
Hoje quero que pensemos sobre um erro cometido por muitos terapeutas
psicanaiíticos (induíndo eu mesma), para o qual eu chamei a atenção no artigo
publicado em 1991 no Intemational Joumal of Psycho-Analysis. Nesse artigo
assinalei que os estudos feitos com bebês por pesquisadores de muitos países,
como por exemplo Colwyn Trevarthen (1979) na Escócia; Daniel Stern (1983/
1985) nos Estados Unidos; Miller, Rustin e Shuttleworth (1989) na Inglaterra;
Piontelli (1992) na Itália; Perez-Sanchez (1990) na Espanha, mostraram, final­
mente, que não há um estágio infantil normal de autismo primitivo para o qual o
autismo infantil poderia ser uma regressão. Essa tem sido a hipótese da tendência
principal, no que concerne a etiologia do autismo infantil, à qual muitos terapeutas
psicanalíticos se subscreveram, especialmente nos Estados Unidos e na Europa.
Essa hipótese defeituosa, baseada em premissas incompletas e inacabadas, tem
sido como um vírus que penetrou e distorcionou formulações clínicas e teóricas.
Ela perpetuou essas distorções e obstruiu comunicações entre pesquisadores psi­
codinâmicos com crianças autistas. Obstruiu também a comunicação com os
nossos colegas junguianos, por exemplo com o Dr. Michael Fordham, cujo mo­
delo é de um "eu primário" que naturalmente se desenvolve (ou não, como no
autismo) para alcançar e tomar o seu entorno. Neste artigo quero refletir sobre a
razão que levou muitos de nós a cometer esse erro e também discutir os ajustes
teóricos e técnicos necessários depois de sua modificação.
Poderá ser colocada a pergunta de por que tal questão é importante. Sugeriria
que é importante pois a(eta nossas assunções básicas sobre desordens sérias. Além
disso, como sempre acontece quando um erro é detectado, lições muito úteis
podem ser tiradas de sua revisão. Neste artigo, quero refletir sobre esse erro que
foi perpetuado e sobre que lição pode ser aprendida ao revisá-lo. Suas origens
estão longe na história e carregadas de preconceito. Traçarei a sua história. Ao
fazer isso, endividarei-me com a informação de uma carta do psicanalista ameri­
cano, Dr. Gillette, que foi publicada noloumal of the American Psychoanalytic
Association no dia 8 de janeiro de 1992.
63
64 O AUTISMO

H ISTÓRIA DO ERRO
Na carta citada anteriormente Dr. Gillette sugeriu que a hipótese de que o
autismo infantil seria uma regressão a um estágio de autismo primitivo normal
foi tão aceitável para muitos psicanalistas, porque ela parecia ser consoante com
algumas afirmações feitas por Freud. Uma dessas afirmações seria que o narci­
sismo primitivo é um estágio que segue o auto-erotismo, anterior à escolha do
objeto anaclítico (Freud, 1914). Assim sendo, o autismo era visto como um estágio
que precedia o narcisismo primitivo, que também era visto como um estágio de
não relação objetal. Outra afirmação de Freud que era freqüentemente citada nessa
conexão dizia assim:
"Um exemplo nítido de um sistema psíquico, isolado do estímulo do mundo
externo e capaz de satisfazer até mesmo seus requerimentos nutricionais
autisticamente... é dado por um ovo de pássaro cujo suprimento de comida está
guardado na suã casca."
(Sigmund Freud - 1 91 1 ).

[Esta citação estava na contra-capa do meu primeiro pequeno livro sobre


Autismo Infantil - Autismo e Psicose lnfantii (Hogarth - 1972 ) - que está
esgotado na Inglaterra].
Victoria Hamilton relacionou isso às formulações de Margaret Mahler. Ela
escreve:
"A ênfase (o que ela assim chamou] dada por Mahler a 'indiferença inata' da
criança leva-a a expandir a ficção de Freud do ovo do pássaro impregnando toda
a sua concepção de desenvolvimento. Seu esquema está cheio de metáforas
ligadas à do ovo como a expressão 'quebrar a casca do ovo', 'cascas autistas' ou
a palavra 'rachar'."
(1 982. p.37.)

Hamilton vê claramente que Mahler foi influenciada pela afirmação de Freud.


Metáforas que são apropriadas para a descrição da patologia do autismo foram
mal empregadas para o desenvolvimento infantil normal. Isso afetou as idéias
sobre o desenvolvimento infantil precoce e tomou difícil a comunicação dos
Mahlerianos com esses terapeutas psicanalíticos, que não se subscreviam à hipó­
tese freudiana clássica de Mahler. Em conexão com isso, Dr. Gillette cita o artigo
de Milton Klein de 1981, cujo título é "Sobre as Fases Autistas e Simbióticas de
Mahler'', no qual Milton Klein relaciona o trabalho de Mahler a Freud. Dr. Gillette
retira a seguinte citação do artigo de Mahler:
•As fases autistas e sim bióticas apoiam-se na pedra principal (peça chave) da
economia de Freud, ou seja, esses estímulos são inerentemente irritantes...
O retrato metafórico de Mahler da criança normal existindo numa 'casca' autista
ou numa 'órbita' autista que se adapta bem aos princípios freudianos". (p. 85)

Gillette diz que Milton Klein via a teoria de Mahler como sendo "represen­
tativa e congruente co.m a teoria freudiana." (p. 93). Ele nos diz que Milton Klein
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 65

pensava que isso explicava "porque tornara-se a ortodoxia reinante por tanto
tempo." Dr. Gillette duvida dessa "ortodoxia reinante" e aponta para o que ele
chama "uma negligência nos principais jornais do trabalho de Daniel Stern
(1985)" e outros, impugnando a hipótese da "unidade dual" de Mahler (1968).
Gillette ilustra a longa história do preconceito nos &tados Unidos em relação
a essa questão e cita como exemplo que "o desafio de Peterfreund (1978) ao
dogma tradicional (essa é a hipótese da "unidade dual" de Mahler) em um escrito
importante não foi seguido de nenhum debate publicado." Ele prossegue exem­
plificando que "a sustentação empírica brilhante e poderosa de Silverman (1981)
para a crítica de Peterfreund... foi rejeitada por muitos jornais tradicionais freu­
dianos antes de que finalmente visse a luz do dia num volume editado." Ficou
surpreso com isso, porque, na sua visão, o desafio de Stern (1983/1985) ao
conceito de unidade dual de Mahler foi "muito persuasivo." (p. 160).
(Eventualmente, Margaret Mahler também achou o desafio de Stern "muito
persuasivo", tarito que aos 80 anos, com integridade científica, na conferência
dada em Paris, justo antes de morrer, ela renunciou ao conceito de autismo
primitivo normal como uma fase na primeira infância).
Dr. Gillette (1992) concluiu a sua carta dizendo que "a resistência para
discutir novas idéias que entram em conflito com o que se acredita que são os
pontos de vista de Freud é um obstáculo significtivo para o progresso científico
na psicanálise." Apesar da nossa gratidão a Freud, sem cujo trabalho não existi­
ríamos, uma lealdade cega e inquestionável a ele pode ser um obstáculo. Em
relação a etiologia do autismo infantil não-orgânico, essa aderência perpetuou um
erro. Uma das lições que podemos aprender desse erro é que a nossa lealdade
deve ser ao entendimento e não a personalidades. O culto da personalidade é
exuberante na psicanálise. Uma das razões que levam a isso é o fato de que o
nosso trabalho provoca tanta ansiedade que sentimos a necessidade de aderir-nos
tenazmente a essas pessoas que levaram a luz à cena escura. Naturaln ente,
estamos gratas a elas, mas isso pode levar ao preconceito e à controvérsia estéril.
Nosso pensamento ficará "preso."
No entanto, há outra razão que fez com que alguns de nós aceitassem a visão
errônea de que a patologia das crianças autistas retrocede de uma regressão para
uma fase normal de ligação autista perpetuada com a mãe que era absoluta e
constante. Esse é o tipo de material clínico que encontramos na psicoterapia
profunda com tais crianças.
Deixem-me apresentar agora o tipo de material clínico que me levou à con­
clusão errônea de que havia um estágio de autismo normal na primeira infância.
Em particular, esse material demonstra também claramente uma situação traumá­
tica que é crucial na precipitação do autismo infantil não-orgânico. É o ponto
crucial dessa precipitação.

CLÍNICA MATERIAL
&se material foi apresentado emAutismo e Psicose Infantil (1972), EUA
(1973) e num livro posterior chamado Barreiras Autistas em Pacientes Neuróticos
66 OAUTISMO

(1986). Devo pedir que me desculpem por chamar-lhes a atenção para este livro
novamente. Faço isso, porque ele teve um importante papel na minha reflexão
sobre o Autismo. Gostaria de chamar-lhes a atenção para as sessões com um
menino autista que chamei John. John tinha três anos e sete meses, quando veio
pela primeira vez ao tratamento. Ele não falava, mas a sua mãe me disse nove
palavras que ele entendia: "John, mamãe, papai, Nina (sua irmã), pipi, bebê, lelé
patty rodar, rodando." Porém, logo percebi que havia outras palavras que ele
entendia. A psicoterapia com essas crianças tem nos mostrado que tendemos a
subestimar o quanto eles podem entender. Isso foi confirmado por uma técnica
recente de investigação, que vem sendo usada com crianças autistas, chamada
"comunicação facilitada."
Retomemos à psicoterapia de John. Ele tinha todas as características do tipo
de autismo de Kanner. No início, vinha uma vez por semana, depois passou a vir
três e finalmente yinha cinco vezes por semana. Nas sessões apresentadas a seguir,
ele vinha cinco vezes por semana e tinha cinco anos. Tinha começado a dizer
algumas palavras, das quais "foi embora" e "quebrado" eram palavras novas que
pareciam muito significativas para ele. [Janet Anderson (1992) , que na Confe­
rência de Tavistock na Bretanha apresentou um artigo chamado "Missi.r1g", tam­
bém percebeu isso com uma criança autista que ela atendia]. Eu também me
deparei com o mesmo ao tratar outras crianças autistas depois de John.
O material que gostaria de apresentar começa com a sessão 130. John, então,
já falava A sessão aconteceu em dezembro antes das férias de Natal. Haviam
acontecido algumas mudanças na rotina de trazer John, pois o seu pai havia estado
fora de casa. No dia da sessão em questão, já tendo voltado, seu pai o trouxe.
Quando eles chegaram até a porta da frente, o pai quase tropeçou nos degraus.
Durante a sessão, John parecia estar tentando manter o seu pai vivo pulando para
cima e para baixo no sofá e gritando, "Papai foi embora! Papai remendado!"
(Daddy gane! Daddy mended !). No final da sessão quando a sua mãe, e não o seu
pai, estava esperando por ele, gritou: "Papai foi embora! Papai quebrado!" (Daddy
gane! Daddy braken!) Depois desse incidente foi me reportado que ele teve um
acesso de gritos noturno no qual dizia coisas como: "Eu não o quero! Caiu! Botão
quebrado! Não o deixe morder! Não deixe bater!" (I dan 't want it!Fell dawn!
Buttan braken! Dan 't let it bite! Dan 't let it bump !).
À continuação disso, justo antes das férias de Natal, ocorreram algumas
sessões que foram muito importantes para a compreensão de John. A primeira foi
a sessão 140, na qual ele entrou no consultório e disse com tom de grande
assombro: "O botão vermelho cresce no seio" (The red buttan graws an the
breast). Eu nunca havia usa:do a expressão botão vermelho e nem seio. (Por eu
ser uma Kleniana, vocês acharão isso muito surpreendente, mas eu havia decidido
não impor-lhe um esquema teórico e ver as palavras que ele mesmo usava). Depois
dessa sessão falei com a sua mãe e ela me contou que John havia visto uma amiga
dela dando de mamar ao seu bebê e parecia ter ficado muito fascinado por isso.
Me parece que esse incidente desencadeou uma série de comunicações que me
informaram sobre as experiências traumáticas que John sentia ter sofrido como
bebê;
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 67

Depois do seu assombroso comentário, perguntei-lhe de maneira indiferente


o que ele havia pensado sobre o botão vermelho. Ele apontou para a sua boca,
dizendo: "botão vermelho aqui!" (red button here). Fiquei intrigada e surpresa,
mas iria saber mais sobre isso à medida que John retratava as situações infantis
traumáticas através de uma espécie de representação dramática Havia um senti­
mento forte do qual ele queria que eu entendesse algo, que era muito importante
para ele.
Na sessão 153, depois das férias de Natal, John arrumou cuidadosamente
quatro lápis de cera em forma de cruz e disse: "Seio!." Tocando a sua boca ele
disse: "Botão no meio!" (Button in the middle!). (Comentei que o bebê John
parecia querer fazer um seio para ele de seu próprio corpo). Então, colocou mais
lápis de uma maneira apressada e descuidada e acrescentou uma extensão desa­
jeitada à cruz, dizendo: "Fazer um seio maior! Fazer um seio maior!" (Make a
bigger breast! Make a bigger breast!). (Eu disse que o bebê John parecia querer
ter um seio maior do que o que existia efetivamente). Logo depois, bateu em todos
os lápis espalhando-os confusamente e disse: "Seio quebrado!" (Broken breast).
(Interpretei que John estava muito zangado, porque não podia ter o seio tão grande
como ele queria). Ele disse: "Consertei! Consertei! Buraco foi embora! Botão em
cima! Buraco foi embora! Botão em ci..rna!" (I fix it! I fix it! Hole gane! Button
on! Hole gane! Button on!). (Afirmei que ele parecia querer um seio para fazer e
quebrar quando quisesse). Uma vez mais, espalhou todos os lápis sobre a mesa e
disse "Quebrado!." Então, abriu e fechou uma caixa de madeira com impactos
estridentes. (Interpretei o quanto zangado ficou ao não poder ter o seio que seria
tão grande quanto ele queria).
Disse "quebrado" novamente. Depois disso, foi até o porta guarda-chuva e
colocou sua mão na cavidade da luva que está no escuro. Estremeceu e disse:
"Não seio bom. Botão foi embora!" (No good breast. Button gone!). (Interpretei
que sentia que os seus ataques de raiva por um seio que não seria tão grande
quanto desejava que fosse o faziam pensar que tinha um seio "não bom" com um
buraco em vez de um botão).
Foi até a sua caixa e buscou um pedaço de cartolina cinza suja e o crocodilo.
Depois, os colocou em cima da caixa, cuja tampa havia fechado ruidosamente e,
apontando para o fita adesiva ao redor da cartolina, disse: "Gelado. Gelado (lcy.
Jcy)." Disse então, "Não bom seio! Botão quebrado!" (No good breast! Button
broken!) e deslizou o crocodilo sobre a cartolina como se estivesse patinando
sobre gelo. Seu rosto tornou-se frio e angustiou-se. (Entendi a sua sensação de
que quebrar o seio fazia um "seio não bom gelado" e que não havia consolo para
ele, quando estava sozinho).
Em outros informes sobre John, coloquei o seguinte resumo sobre as ocor-
rências do período seguinte:
"Agora que a transferência infantil estava bem estabelecida e que as
ansiedades sobre seio quebrado haviam sido contidas na análise, o seu
comportamento fora mostrou um grande avanço. Ele estava ansioso por vir à
análise e fez um bom progresso apesar de doenças e desgraças familiares,
mudanças na rotina de trazê-lo. Ele começou a admitir sua dependência e sua
debilidade e a dizer as coisas que estavam além do seu poder: "Não posso
68 OAUTISMO

fazê-lo! Porfavormeajude". Esseprogressofoimantido quandosuamãeesua


irmã menor viajaram e ele ficou com seu pai".

No entanto, devo adicionar: "Uma ruptura desafortunada ocorreu na situação


de sustentação (holding)."
Isso nos traz até a sessão 194. Havia mostrado a John, por meio de um
diagrama, o dia que ele voltaria a ver-me depois das duas semanas das férias de
Páscoa. Circunstâncias familiares tornaram impossível que o pai o trouxesse até
uma semana depois do combinado. Além disso, havia sido deixado com os avós
por uma semana. Quando voltou, fiquei pasma Parecia traumatizado e petrificado
e tinha um modo de andar rígido. O progresso que ele havia feito na fala, regredira.
Estava realmente agarrado ao "seio não bom gelado." Isso não havia dado conforto
algum ao "pobre pequeno bebê Johnny abandonado numa ilha", como ele colo­
caria mais tarde.
À medida que as tensões corporais relaxaram, os acessos de gritos pela noite
tornaram-se umã ocorrência tão regular que o mencionado psiquiatra receitou um
calmante. Durante os acessos de gritos, alucinava pássaros em vários cantos do
quarto e dizia algumas expressões que havia usado no seu primeiro acesso de
gritos (o que aconteceu depois da preocupação sobre a segurança do seu pai:
"Não quero! Caiu! Botão quebrado! Não deixe morder! Não deixe bater!"). Os
pássaros alucinados eram uma grande fonte de terror, porque eles ameaçavam
bicá-lo. No entanto, gradualmente ele começou a trazer as ansiedades infantis de
volta à análise.
Agora quero apresentar a sessão 360, na qual todos os terrores vieram à tona.
Nessa sessão novamente usou lápis coloridos arrumados para formar um "seio".
(Foi a primeira vez que fez isso desde a sessão 153, que havia acontecido há oito
meses atrás, isto é, antes da experiência desafortunada da separação). Ele apontou
para os lápis cuidadosamente arrumados e disse "seio." Então, tocando sua boca,
disse "botão no meio." Depois colocou um lápis em pé no meio e disse "foguete."
Ele chamou todo o conjunto de "seio fogos de artifício." Associei isso com um
desenho que ele havia feito numa sessão anterior de um objeto em forma de cúpula
com "fedorentos (stinkers) - sua palavra para fezes - marrons e vermelhos",
surgindo, mais tarde, o que ele chamou de "fogos de artifício." Isso aconteceu
depois de um chilique que fez, porque eu não o deixava usar a minha mão como
se fosse a sua Na sessão em discussão, preocupado com o "seio fogos de
artifício" feito de lápis, segurou a sua boca como se doesse e disse: "Furo na
minha boca! Cai! Botão quebrado! Buraco preto mau na minha boca!" (Prick in
my mouth! falis down! Button broken! Nasty black hole in my mouth!). Depois,
de uma forma alarmada, segurou seu pênis e disse "pipi ainda lá?" (Pee-pee still
there?), como se ele pensasse que pudesse não estar.
Chegamos agora à sessão 367, que leva o nosso entendimento ainda mais
adiante.
Quando abri a porta da frente, John estava tendo um chilique, porque havia
caído e batido com a cabeça. Não havia sinal de machucado, mas ele parecia morto
de medo e com raiva Quando parou de gritar, levei-o para o consultório. Sem
tirar nada das caixas de brinquedos, ele foi até a mesa para falar comigo. Ele disse:
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 69

"Botão vermelho foi embora! Caiu com uma batida! (Red button gane! Jt fell with
a bump!) ." E então indicou os seus dois ombros com um movimento semi-circular
e disse: "Tenho uma boa cabeça nos meus ombros! Não pode cair! Cresce nos
meus ombros!" (I've got a good head on my shoulders! Can 't fali off! Grows on
my shoulders!). Depois disse: "Foi o pavimento levado, bateu em mim!" (It was
the naughty pavement, it hit me!). (Eu disse que pensava que ele estava me
contando sobre seus medos, quando havia caído naquela hora). Tocando a sua
boca disse: "Nina (sua irmã) tem um buraco negro. Ela tinha uma furo na sua
boca. Botão quebrado! Buraco negro mau!" (Nina has got a black hole. She had
a prick in her mouth. Button broken! Nasty black hole!). Nas minhas anotações
eu disse: "Aqui, eu deveria ter interpretado que ele estava se livrando das expe­
riências desagradáveis que havia acabado de me contar, atribuindo-as a Nina, mas
eu não o fiz, ou seja, fracassei ao assumir o começo da identificação projetiva."
E então pegou o trator de plástico vermelho que havia atacado implacavel­
mente. Tocou o eixo de plástico que não era realmente muito pontudo. No entanto,
ao tocá-lo, estremeceu e disse: "Trator duro mau ele fura" (Nasty hard tractor it
pricks). Cuspiu, como se cuspisse algo que era repugnante, ou seja, a projeção
havia começado de uma forma bastante concreta. Ele então se retorceu e gritou
alto. (Aqui, eu me reprochei por não ter tentado colocar antes em palavras sua
identificação projetiva e, assim, possivelmente tê-lo poupado de ter que se expres­
sar com uma ação violenta). Nos seus gritos, ele disse que estava se afastando
dos bicos voadores. Eu tinha medo que ele caísse de sua cadeira, então o coloquei
no meu colo e falei com ele apesar dos seus gritos. (Falei com ele sobre seu
sentimento de que o "botão vermelho" fazia parte de sua boca e o quanto ficou
zangado quando percebeu que não era assim. Sentiu que tinha um "furo mau" e
um "buraco negro" em vez de um "botão vermelho." Sentia que cuspia coisas
ruins na Nina, pois achava que ela lhe havia tirado o "botão vermelho:'' Mas depois
sentia que ela tentava cuspi-las de volta nele e sua boca má parecia pássaros
voando). Nós havíamos tido material mostrando que, sob a base de similaridade
de contorno, ele havia igualizado pássaros voando com bocas. Prossegui dizendo
que sem o botão ele não se sentia seguro e sentia que as bocas voadoras podiam
machucá-lo. Como ele havia perdido o botão, tinha medo que pudesse perder sua
cabeça ou seu pênis.
Minhas anotações me dizem que, depois disso, John tinha medo de certos
objetos no consultório: um era a cavidade da luva que mencionei anteriormente,
outro era o tubo em forma de pênis perto do teto e o outro era o "balde de água
suja" (A sala não tinha ralo e o "balde de água suja" era onde esvaziávamos a
água depois dele tê-la usado). Devo dizer que, após essas sessões, os gritos
noturnos pararam. Estes retornaram depois de umas férias particularmente pertur­
badoras e quando a questão do final do tratamento estava sendo discutida.
O tratamento acabou, quando John tinha 6 anos e 5 meses. Fiquei sabendo
de maneira indireta que ele foi como semi-interno a uma escola privada conhecida
e se desempenhou bem na Universidade.
70 OAUTISMO

DISCUSSÃO CLÍN ICA


Fui muito apoiada no tratamento de John pela supervisão do Dr. Donald
Meltzer. Mais tarde, voltei-me para os escritos de Margaret Mahler e para os de
Winnicott para que me ajudassem a encontrar um sentido às revelações de John.
Isso aconteceu da seguinte forma.
Durante todas as sessões que descrevi e depois que o tratamento de John
estava acabado, fiquei preocupada, porque as formulações klenianas, nas quais
havia sido treinada, não pareciam cobrir o que havia experimentado com John.
Em meio a algum desespero, escrevi um artigo sobre o tratamento de John,
chamado "Um Elemento Significativo no Desenvolvimento do Autismo". Olhan­
do um relatório de pesquisa do Putnam Centre (1953) em Boston, EUA, - um
centro de pesquisa e tratamento para crianças autistas, onde trabalhei por um ano
depois de acabar o treinamento de Psicoterapia Infantil em Tavistock - descobri
que o que el_es chamavam de "Depressão Primitiva" era o que encontrei no
trabalho com John. Esse tipo de depressão foi descrito pela primeira vez por
Edward Bibring (1953), que reconstruiu a "experiência chocante do sentimento
de desamparo". (p. 14).
Num artigo que apresentei numa reunião da ,A.ssociação dos Psicoterapeutas
Infantis, usei o termo "depressão primitiva". Depois da reunião, perguntaram-me
se eu sabia que Winnicott havia escrito sobre um tipo primitivo de depressão que
eu descrevera em John e me disseram que foi no seu artigo "Os Doente Mentais
na sua Prática Clínica em O Ambiente e os Processos de Maturação." Digo com
certo embaraço que não havia lido Winnicott. Na verdade, eu não era experiente
o suficiente para apreciar o seu trabalho. Tive que ir à biblioteca para ler os seus
livros, pois não possuía nenhum deles. (A percepção tardia é sempre dolorosa!
Todo este artigo é sobre percepções tardias dolorosas... Mas chega de choradeira!)
No capítulo que me recomendaram, deparei me com o seguinte parágrafo que
parecia ser uma descrição apropriada das experiências que havia tido com John.
Foi confortante saber que Winnicott parecia estar sabendo dos níveis elementais
de funcionamento com os quais eu estava me deparando. Ele escreveu o seguinte:
"Por exemplo, a perda pode ser de alguns aspectos da boca que desaparecem
do ponto de vista da criança junto com a mãe e o seio quando há uma separação
precoce e a criança ainda não alcançou um estágio de desenvolvimento
emocional que lhe forneceria o eq uipamento para lidar com a perda. A mesma
perda da mãe alguns meses depois seria uma perda de objeto sem esse
elemento adicionado da perda de parte do sujeito ." (1 958, p. 222).

Winnicott chamou este tipo de depressão precoce de "depressão psicótica" e


a diferenciou da "depressão reativa" que era a perda de um objeto reconhecido
como separado e não parte do corpo do sujeito. Isso fazia tal sentido para mim
no material de John, que comecei a usar o termo "depressão psicótica" para o tipo
de depressão "buraco negro".
Ao escrever sobre "a perda e a recuperação" do que ela chamou de "objeto
simbiótico de amor", Margaret Mahler ( 1961) também parecia estar sabendo do
tipo de experiências que tive com John. Ela escreveu:
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 71

"O que raras vezes vemos, e o que é raramente desclito na literatura, é o período
de aflição e dor que, na minha opinião, precede e anuncia inevitavelmente a
ruptura psicótica completa com a realidade".
(Mahler 1 961)

Senti que tanto Mahler como Winnicott estavam na crista da onda do tipo de
material que estava me confundindo. Também senti que Isca Wittenberg estava
na crista da onda quando adotou a frase "depressão primitiva", (apesar de que não
fazia parte da terminologia kleniana). No seu artigo Prima/ Depression inAutism:
John (1975), ela desenvolveu um trabalho muito útil ao relacioná-la à "contenção"
(containment) de Bion e a sua teoria da catástrofe, descrevendo-a como "colapso
numa forma particular de depressão catastrófica" (p. 56). Ela diz também: "Não
sentia que estava lidando com uma criança de três anos, mas sim com um bebê,
aterrorizado de cair num abismo" (p. 59). Winnicott (1958) também fala do terror
de "cair infinitamente" e escreve sobre uma depressão profunda (flop-type). John
fala do terror do "buraco negro". Sheila Spensley (1985) relacionou utilmente a
"depressão psicótica" ao "defeito cognitivo" e à ausência mental (mindlessness).
Essas crianças experimentaram um trauma desagrega-mente (mind-blowing) que
as deixaram com o sentimento de que têm um "buraco negro" de alguma coisa
que está faltando. Elas experimentaram uma das "armadilhas" do desenvolvimen­
to e da existência humana Foi catastroficamente traumático.
De modo interessante, uma criança autista muda, que estava sendo ajudada a
se comunicar através da "Comunicação Facilitada", apontou para algumas letras
que formaram o seguinte poema:
Buraco negro
Sozinho em mim
Amedrontando rasgando esticando
Por favor me deixe ficar livre do seu apertão
Morrer
(Evan, 30 de outubro de 1 990) (Biklen 1 99 1 )

Na minha ansiedade de ter formulações que parecessem dar um sentido às


experiências de John, adotei a visão psicanalítica ortodoxa, exemplificada por
Mahler e Bibring, de que o autismo patológico é uma regressão a uma fase normal
de autismo primário. Era uma hipótese clara. Agarrei-me a ela como a uma
jangada, porque me sentia confundida, desamparada, à deriva "em alto mar." O
desamparo cria o desejo de certeza. Então fechei os olhos para o fato que essa
hipótese entrava em conflito com as descobertas a partir das observações do bebê
que haviam sido parte do meu treinamento no Tavistock. Devo aqui expressar
meus agradecimentos a Anne Alvarez (1992), cujo recente livro Companhia Viva
(Live Company) é um marco na integração das descobertas a partir da observação
de crianças às da psicanálise. Anne lutou comigo na questão "autismo primitivo
normal." Ela não disse que era insustentável, pois a Sra. Klein e o Sr. Bick assim
diziam, mas mandou artigos para Colwyn Trevarthen (1979) e Daniel Stern
(1983). Como estes observadores não tinham uma obsessão teórica setorial, eu a
escutei e finalmente abandonei a noção de autismo patológico. Mas fiquei com o
72 O AUTISMO

problema de entender materiais como o de John, que haviam se repetido com


outras crianças autistas que eu havia tratado ou supervisado. Senti que era uma
questão importante demais para ser arquivada e nesse trabalho clínico, que não
leva essa questão em conta, está faltando um pedaço crucial de entendimento
mutativo que é importante para compreender as reações das crianças autistas.
Ao olhar minhas anotações das crianças que tratei e os relatórios de tratamen­
to de outras pessoas, percebi que um fator ubíquo na primeira infância havia sido
a perpetuação de uma situação de fusão, de não diferenciação com a mãe e que,
depois de que o bebê nascera, havia se sentido uma "não-pessoa", como disse
uma mãe. Apliquei isso no material clínico surgido na terapia com crianças
autistas.

O Material Clínico das Crianças Autistas. Comecei a ver que, quando bebê,
a criança havia se sentido tão unificada com a mãe que a ruptura abrupta e dolorosa
desse sentido dt? unidade dupla - quando ela inevitavelmente ficava sabendo da
sua separação corporal da mãe - parecia como a perda de parte do seu corpo, o
qual, até esse momento, parecia ser parte do corpo da mãe. Essa ruptura, durante
a fase de amamentação, parecera catastrófica tanto para a mãe como para o filho.
Os dois sentiram aue foram deixados com um buraco no coroo. O trauma dessa
ruptura violenta precipitou reações autistas na criança. Comêcei a perceber que,
ao considerar esse estado perpetuado de unicidade com a mãe como uma situação
normal na primeira infância, havíamos estado estrapolando a situação patológica
e vendo-a erradamente como normal. Esse é um erro e devemos ser cuidadosos
para não repeti-lo. Percebo agora que o estado infantil que estava sendo reevocado
na situação clínica era anormal. Finalmente percebi que o autismo é uma reação
protetora que se desenvolve para lidar com o stress associado à ruptura traumática
de um estado anormal perpetuado de unidade '3-desiva com a mãe - o autismo
sendo uma reação que é específica do trauma. E uma doença de dois estágios.
Primeiro, há uma perpetuação da unidade dual e depois a ruptura traumática disso
e o stress que ela desperta.
Meu trabalho me fez perceber que as sensações são a base da vida tanto
cognitiva como emocional. O bebê normal desenvolve uma "pele sensitiva" que
o ajuda a sentir-se seguro e que é permeável para a entrada e saída de experiências.
Como uma proteção contra o trauma, a criança autista desenvolveu um isolamento
auto-sensitivo que bloqueia a saída e a entrada de experiências. No entanto, eles
têm um consciência marginal, d� margem, periférica, pela qual as inteJVenções
terapêuticas podem infiltrar-se. E muito importante que percebamos isso.

Situações Infantis Normais e Desenvolvimentos Patológicos. Como em


todas as condições psicóticas, uma reação normal toma-se exagerada No autismo
também toma-se congelada. Na infância normal há oscilações de um fluir à
unicidade (jlowing-over-at-oneness) a um tornar-se consciente da separação da
mãe e do mundo exterior. Nessa "trilha dual", como Grotstein (1980) a denomina,
há oscilações alternadas de consciência de espaço e "não-espaço" entre o bebê e
a mãe. Na infância da criança autista, essas oscilações normais não aconteceram.
Algo que normalmente é fluído, toma-se congelado. Tal criança tornou-se trau-
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 73

matizada e congelada num estado de pânico e aflição ao estar aderiçla à mãe que
é tão experiente como um objeto inanimado que pode ser agarrado. E uma reação
demedo. Essas crianças estão "em choque." Elas estão "rígidas de medo."
Como tentei mostrar nos meus livros e nos meus artigos (Tustin 1966, 1972,
1981, 1987, 1992), essa reação de medo parece ser causada pelo fato de que um
bebê vulnerável (possivelmente com uma predisposição para a depressão) tomou­
se consciente da separação da mãe em um �conteúdo" mental inseguro, ou seja,
a qualidade de atenção cuidadosa não foi adequada para esse bebê em particular.
Isso pode ocorrer, por exemplo, com uma mãe depressiva que, por várias razões,
não se sentiu apoiada pelo pai e por suas próprias experiências infantis. Em sua
forma inimitável, Winnicott descreve a situação persuasivamente, quando ele
escreve:
"Se você se sente pesado, com sono e especialmente se você está deprimido,
você coloca o bebê no berço porque você sabe que o seu estado não está
suficientemente vivo para continuar a idéia que o bebê tem do espaço ao seu
redor." (1 988, p. 20)

Cheguei a ver o autismo como um.a reação à versão infantil de uma "desordem
de stress pós-traumática"; tal trauma infantil decorrente de ter-se tornado cons­
ciente do que chamamos espaço, devido à conscientização da separação de seu
corpo, do corpo da mãe, com quem ele previamente se sentiu anormalmente
fundido, não-diferenciado, um (at-one) ou seja, num estado de "unidade dual"
adesiva.

Patologia Adesiva. Fui alertada para esses artigos por Bick (1986) e por
Meltzer (1975). Meltzer descreveu a "identificação adesiva" para a qual Bick
preferiu o termo "identidade adesiva." Expandi um pouco o seu ponto de referên­
cia, pois a adesividade que encontrei nas crianças autistas não tem a conscienti­
zação do espaço associado com identificação ou com sentimentos de identidade.
Conceptualizei o sentido de adesividade adjacente ( O termo é de Ogden [1989],
pele na pele como "equação adesiva" ou unicidade adesiva). Eles só se tornam
conscientes da sua aproximação adesiva retrospectivamente, quando é perturbada
e está sendo experimentada a separação violenta Nesse momento, eles experi­
mentam um sentimento de perda de algo que eles não sabem o que é. Algo está
faltando. John se perguntava se não era sua cabeça? Seu pênis? Ou esse "botão
vermelho"? Alguns pacientes, que tiveram uma proximidade excessiva com a
mãe, podiam sentir a perda do cordão umbilical. Um paciente me contou que ele
havia imaginado essa proximidade como sendo estrangulado pelo cordão umbili­
cal. Quando isso parecia estar quebrado, provocava um pânico e uma raiva
ingovernável, como também alívio. Era uma mistura confusa de sentimentos.
Processos de identificação, ou seja, sentir-se parecido com alguém, requerem
um sentido de espaço entre a criança e outras pessoas. Isso ajuda a sentir que
possui uma identidade. A identificaçãq .é baseada em empatia. Empatia é impor­
tante para "conhecer outros",.na assim chamada "Teoria da Mente", que foi
discutida no artigo do Dr. Urwin apresentado na Semana de estudo no ACP de
74 OAUTISMO

1993. (Dr. Peter Hobson - [1986] escreveu sobre empatia em crianças autistas e
a Dr. Uta Frith 1985)] escreveu sobre a "teoria da mente" em relação a elas).
Na unicidade adesiva, a criança senteo mesmo que alguém e prende-se a essa
pessoa como um objeto inanimado. Isso a ajuda a sentir que ela existe. É a ·
preocup?ção com a sobrevivência, com "continuando sendo" como Winnicott o
chama. E mais perseverante que a "identificação adesiva." Aliás, isto impede o
desenvolvimento de identificação. O que é normalmente uma oscilação fluída de
estados normais de unicidade, que nutrem a empatia alternando com consciência
e separação, tomou-se congelada em um estado anormalperpetuamente rígido de
"unicidade adesiva" (adhesive-at-oneness), que previu a empatia. Oscilações sau­
dáveis, alternantes, entre unicidade e estado de separação não são possíveis. A
criança está congelada com terror. Empatia, identificação e, aliás, todos os desen­
volvimentos psicológicos, como o que é popularmente chamado de "ligação" e
também o "nascimento psíquico" e "individualização" que estão associados com
processos de "introjeção" e "projeção", são todos evitados. A criança não sente,
não fala, não responde a outras pessoas. Ela parece umautomaton congelado. Isso
nunca é um estado infantil normal e causa confusão rotulá-lo dessa forma. Uma
lição que aprendi é que o termo "autismo" deveria estar restrito a estados patoló­
gicos e nunca deve ser aplicado a normais. Esse é o erro que as hipóteses do
"autismo normal primário (primitivo) e da "regressão" perpetuaram.
Até agora estabelecemos que não há um estágio autista primitivo para o qual
as crianças autistas podem regredir. Pensemos agora sobre o conceito de regres­
são.
Regressão significa voltar e comportar-se em termos de um estágio anterior
de desenvolvimento. Em algumas das formulações etiológicas, que viemos discu­
tindo, crianças autistas têm sido concebidas como vivendo em termos de um
estágio anterior de infância inalterado. Isso levou à noção de que seria útil deixá­
las comportar-se como bebês para que elas pudessem continuar crescendo a partir
da assim chamada "terapia da regressão." Na minha experiência, isso causa muito
dano. Lembro-me como o sensato George Stroh ficou quando tomou a direção do
Hospital HighWick para crianças psicóticas e encontrou as crianças puxando-se
entre elas ao redor dos carinhos de bebês e usando mamadeiras. Era claro que
aquilo não havia sido terapêutico, mas sim nocivo para o desenvolvimento.
Na situação clínica, John mostrou claramente que momentos de sua infância
haviam sido evocados ao ver a amiga da sua mãe dando de mamar ao bebê. No
entanto, ele não estava se comportando como um bebê ou regredindo para a
primeira infância. Ele era um menino de cinco anos, representando o trauma que
havia experimentado quando bebê. Ele agora tinha mais recurso do que quando
experimentou, pela primeira vez, a crise traumática de conscientização da sepa­
ração corporal, que lhe deixou a ilusão do "buraco negro" de seu ser de que algo
estava sendo perdido. Ele estava a mercê do desespero negro.
O psicanalista argentino, Dr. David Rosenfeld (1992), descreveu como o seu
trabalho com vítimas do Holocausto mostrou que suas experiências traumáticas
haviam sido "preservadas" e "fechadas" pelo autismo, prontas para reaparecerem
mais tarde, intactas e vívidas, com todos os detalhes claros e afiados das expe­
riências originais. Era uma reevocação e uma representação ativa. Elas agora .
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 75

tinham mais capacidade para suportar e lidar com essas terríveis experiências do
que quando passaram por elas pela primeira vez. Com crianças autistas, as expe­
riências traumáticas de separação corporal são desatadas por acontecimentos do
dia-a�dia, muitas vezes, na situação de transferência da análise, como rupturas na
continuidade da expectativa da presença do analista. Isso faz uma diferença em
como devemos tratar tal material; se o vemos como algo dinâmico, acontecendo
"aqui e agora", vivo e com novas possibilidades de um desenvolvimento progres­
sivo, ou meramente como uma repetição de acontecimentos anteriores. Na terapia
é normalmente a transferência infantil que traz esses acontecimentos passados ao
presente. Isso os faz entrar nessa nova experiência. Não é somente a recapitulação
de uma experiência velha, mas sim uma representação da situação antiga com
algo novo injetado nela. Isso pode trazer esperança. Uma catástrofe psíquica pode
tomar-se uma oportunidade psíquica.
A Sra. Sheila Cassidy, que foi aprisionada e torturada no Chile, descreveu
recentemente, num programa de rádio, sua tentativa de voltar ao Chile para aliviar
as experiências traumáticas de uma nova forma. Contou que pensava que seria
como abrir uma caixa de Pandora com demônios no fundo. Sabia que as memórias
evocadas seriam extremamente vívidas, mas ela sabia que seria seguro estar com
111c;du. E.,tava tu11.,c;11du pm a yuc; i.,.,u c:;11.pul:sa.,.,c; al�u111a:; d,ª" \,;Vi:;<1:; Y. uc; h<1vi<1111
ficado confinadas, como ela expressou significativamente. E óbvio que ela pensa
que será uma nova experiência de desprendimento e não somente a recapitulação
da antiga. Ela está lidando com essa experiência, pensando no futuro e não no
passado. Isso vai contrarrestar "a puxada para atrás e para o inanimado" (Freud,
1920).
Foi assim com John. Seu comportamento nas sessões clínicas demonstrou
claramente que, como Valerie Sinason (1992) assinalou, "oflashback do trauma"
se repetindo deve ser visto como uma comunicação e não como uma obstrução .
Podia começar a se comunicar sobre seu sofrimento e então a camisa de força do
autismo, que havia colocado os seus "fogos de artifício" explosivos em cheque,
podia ser dispensada. Em vez disso, esses sentimentos podiam ser vistos agora
como contidos numa relação interativa, tolerante, dissiplinada e disciplinante. Isso
o ajudou a usar capacidades simbólicas emergentes. E uma representação simbó­
lica. Foi o começo da habilidade de atuar.

O efeito dessa visão modificada. Essas modificações não são meramente um


exercício acadêmico. Essa visão revisada da etiologia do autismo trará uma
reorientação significante na nossa aproximação ao tratamento das crianças autis­
tas. Isso afetará a maneira que respondemos e falamos com tais pacientes. Signi­
fica que falaremos com eles como se pensássemos que eles podem entender o que
estamos dizendo. Já não lhes falaremos com arrogância.
Além disso, ao ver o autismo como uma séria aberração do desenvolvimento
seremos mais frrmes e menos indulgentes na nossa aproximação do que se o
víssemos meramente como uma regressão a um estágio normal de desenvolvi­
mento infantil. Seremos mais ativos para corrigir tendências desviantes.
Isso significa também que a visão indevidamente romântica e sentimental da
situação anterior da mãe e da criança será modificada. Ficaremos com uma visão-
76 OAUTISMO

mais rigorosa de que a ânsia por uma mãe sobre-humana nunca poderá ser
realizada e de que uma parte importante da primeira aprendizagem é chegar
gradualmente a um acordo com essa frustração e tudo o que essa desilusão
implica. Teremos uma atitude mais misericordiosa em relação às mães, dessas
crianças. Saberemos também, que não podemos atingir o perfeccionismo que
essas crianças parecem nos exigir.

CONCLUSÃO

Como alguns entre vocês devem saber, meu marido adquiriu fama como
escritor de limericks psicológicos. Quando lhe falei sobre o tema deste artigo, ele
me deu o seguinte limerick para que lesse a vocês. Aqui está:
- Quando crenças precisam de alguma modificação
O fazemos com muita trepidação,
Pois o nosso mundo torna-se novo
E as coisas parecem tortas,
Até que nos habituamos à nova formulação!

Isso se aplica tanto aos terapeutas como às crianças das quais tratamos. Como
o psicanalista francês, Professor Didier Houzel, expressou muito bem, o nosso
trabalho deve ser informado por "um movimento de liberação no qual o espírito
aceita perder a supremacia do seu objeto de conhecimento para se permitir ser
surpreendido pelo não esperado e ser questionado pela mudança." (Do artigo de
Didier Houzel em Psychic Envelope ed. Didier Anzieu - 1990 - p. 56). Como
disse anteriormente as concepções erradas de que venho falando são mais preva­
lentes e têm mais influência no continente europeu e nos EUA do que na Ingla­
terra. Espera-se que as modificações sugeridas facilitarem a comunicação entre
· os que trabalham com crianças autistas tanto aqui como fora. Corregir esses
conceitós nos ajudará a evitar o isolamento, a insularidade. Quando houver con­
sistência nas visões sobre a etiologia do autismo infantil, será possível que falemos
melhor uns com os outros.
Cheguei a pensar que um dos fatores que causou a persistência do erro sob
discussão é a qualigade atmosférica adesiva do material clínico que estamos
tentando entender. E difícil ser racional, quando estamos lidando com um material
tão elemental e persistentemente "pegajoso." Esse artigo foi um marco nas tenta­
tivas de abrir um caminho entre uma massa de material primitivo para que
pudessemas deixar de estar "presos na lama" (esta é a melhor descrição que sei
do estado de uma criança autista).
Nessa tentativa, tem sido óbvio que o trabalho de meus colegas psicoterapeu­
tas foi indispensável. Como demonstração da minha gratidão, tenho o prazer de
poder apresentar este último artigo para a Associação de Psicoterapeutas Infantis
da qual estou orgulhosa por ter sido nombrada membro Honorária. Para escrevê­
lo, fui ajudada por colegas que leram os vários rascunhos que produzi. Eles
ajudaram-no a crescer.
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 77

ADENDO

1. Alguns pensamentos de outros artigos meus são relevantes para o tema


deste artigo. Eles pertencem aoPsychoanalytic Inquiry 13/1 1993. (Ed. Grotstein),
dizem o seguinte:

"Como Bion ( 1 977) mostrou em Seven Servants (p. 1 9) , o paciente


traumatizado experimenta "dor, mas não sofrimento". Eles sentem dor. A dor
está neles. Eles são envolvidos pela dor. As crianças autistas foram insuladas
da dor através de procedimentos autistas que descrevi em outros trabalhos. Na
terapia com essas crianças, quando a dor é experimentada e reduzida, a
insulação autista começa a ser i:nodificada. Isso significa que o sofrimento
começa a ser sentido. A criança ferida torna-se mais aberta à cura pelo
terapeuta a medida que ela toma-se capaz de sustentaro sofrimentodolutopela
perda. ( É significativo que a palavra "sofrimento" deriva do verbo em latim ferre
que significa "sustentar" ou "levar")."

"A dor dotrauma fezcom queascriançasautistas se afastassemdas pessoas,


mas o sofrimento, que segue a medida que o trauma é representado e a dor é
mitigada, estimula a necessidade de voltar-se para as pessoas em busca de
ajuda Quando elas se libertam da "compulsão de repetição" da experiência
traumática, elas desenvolvem uma relação cooperativa com o terapeuta e com
outras pessoas. Quando isso ocorre, o autismo começa a se deteriorar. Elas
tornam-se capazes de olhar o trauma [e de representá-lo] em vez de estarem
escravizadas por ele. Uma catástrofe psíquica tornou-se uma oportunidade
psíquica."
(Tustin, 1 993, pp. 38-40)

Essas transformações ocorrem, porque elas começam a voltar-se para o doa­


dor de vida (o lifegiver) como Symington expressa tão bem. (Symington 1993).
2. Aproximadamente uma semana depois da reunião na qual este artigo foi
apresentado, Juliet Hopkins me mandou uma fotocópia da escultura "Madonna e
Criança" da Henry Moore (1983). Ela retrata uma mãe com um buraco negro
abdominal no qual uma criança em forma de pênis está inserida ( Isto evoca de
forma surpreendente a "Mãe Abismal" e a "Criança Rolha" que é usada para
preencher o buraco, o vazio e a solidão da mãe deprimida - McDougall, 1989,
p. 78). Isso me fez imaginar se a Madona e Criança, que tem uma tal significação
psíquica, havia influenciado a tenacidade com a qual a noção de um pré-relacio­
namento de autismo primário normal havia sido sustentado.
3. Jeanne Magnana também chamou minha atenção para o fato que, ao
sentir-se parte do corpo da mãe, John poderia estar experimentando novamente
as sensações que ele havia tido antes de nascer e que continuaram depois do
nascimento. A situação mãe-filho depois do nascimento havia fortalecido a ilusão
de que o seu corpo e o corpo da mãe eram uma "unidade dual." Isso perseverou
e tomou-se um estado permanente invariável.
78 OAUTISMO

RESUMO

Neste artigo, indiquei que observadores infantis em muitos países mostraram,


conclusivamente, que não há um estágio infantil anterior de autismo primário
normal para o qual o autismo patológico poderia ser uma regressão. Mostro como
esse erro foi perpetrado e perpetuado e sugiro uma hipótese alternativa para o
desenvolvimento de desordens autistas de crianças.

BIBLIOGRAFIA

ALVAREZ, A. Live company. London and New York, Tavistock/Routledge, 1 992.


ANDERSON, J. Missing. Artigo apresentado na Conferência de Tavistok na Bretanha,
1 992.
BIBRING, E. "The Mechanism of Depression." -in: Affective Disorders. Greenacre Ed.,
New York, l nt. U niv. Press, 1 953, p. 1 2-23.
BICK, E. "Further Considerations of the Function of the Skin." in: Early Object Re/ations.
Brit. J. Psychotherapy. v. 24, 1 986.
BIKLEN, D. et ali. "I am not a utistive on the typ." Disability, Handicap and Society.
V. 6, n. 3, 1 99 1 .
BION, W. R. Learning from Experience. London, Heinemann, 1 962.
BION, W. R. Seven Servants. New Jersey, Aronson, 1 977.
FREUD, S. Formulations on the Two Principies of Mental Functioning. S.E. 12: 1 9 1 1 ,
p. 2 1 3-26,
FREUD, S. On Narcissism. An lntroduction. S.E. 1 4, 1 91 4, p. 67-104.
FREUD, S. Beyond the Pleasure Principie. S.E. 1 8, 1 920.
FRITH, U., et all. "Does the autistic child have a Theory of the Mind?" in: Cognition.
2 1 : 37-46. 1 985
GROTSTEIN, J. "Primitive mental States." Contemporary Psycho-Analysis. 16: 479-546,
1 980.
GROTSTEIN, J. Psychoanalytic lnquiry 1 3/1 . New Jersey, Analytic Press. Ed., 1 993.
GILLETTE, E. "Psychoanalysis Resistance to New ldeas." Journal of the American
Psychoanalytic Association. v. 40, n. 4: 1 234-1 235, 1 992.
HAMI LTON, V. Narcissus and Oedipus. London, Routledge/Tavistock, 1 982.
HOBSON, P. "The Autistic Child Appraisal of expressions of Emotions." Journal of
Chi/d Psychology Psychiatry, 2 7: 3 2 1 -342, 1 986.
HOUZEL, D. "The Concept of Psychic Envelope." in: Psychic Envelopes. Ed. Didier
Anzieu. London, Karnac Books. (Traduzido por Daphne Briggs), 1 990.
KLEIN, M. "On Mahler's Autistic and Symbiotic Phases." Psychoanal. Contemp.
Thought. 4: 69-1 05. 1 98 1 .
MAHLER, M . S. O n Sadness and Grief in l nfancy and Childhood: Loss and Restoration
of the Symbiotic Love Object. Psychoanalytic Stud of the Chi/d. 1 7: 332-35 1 ,
1 96 1 .
MAH LER, M. S . On Human Symbiosis and the Vicissitudes of lndividuation. New York,
lnt. Univ. Press., 1 968
McDOUGLASS, J. Theatres of the Body. London, Fress Association Books, 1 989.
MELTZER, D. "Adhesive ldentification." Transcrição de uma Conversa Informal com
a Sociedade Psicanalítica Willliam Allanson White. Contemporary Psychoanaly­
sis. v. 2, n. 3, out. 1 975.
A PERPETUAÇÃO DE UM ERRO 79

MILLER, L. RUSTIN, M. & M. C/ose/y Observed lnfants. London, Duckworth, Shuttle­


worth, J., 1 989.
OGD EN, T. The Primitive Edge of Experience. New Jersey, Aronson, 1 989.
PEREZ-SANCHEZ. Baby Obsevations. (Traduzido do espanhol), Scotland, Cluny Press,
1 990.
PETERFREUND, E. "Some Criticai Comments on Psychoanalytic Conceptualisations."
in: Jnfancy. Jnt }. Psychoanal. 59: 427-441 , 1 978.
PUTNAM CENTER. Relatório de Pesquisa. não publicado. 1 953.
PIONTELLI, A From Fetus to Chi/d. An Observational Psychoanal. Study. London,
Tavistock/Routledge, 1 992.
ROSENFELD, D. The Psychotic Aspects of the Personality. London, Karnac, 1 992.
SILVERMAN, D. K. "Some Proposed Modifications of Psychoanalytic Theories of Early
childhood Development." Empirical Studies of Psychoana/ytic Theories. v. 2, Ed.
J. Masling, Hillsdale, N.J. Analytic Press, 49-71 , 1 98 1 .
SINASON, V. Mental Handicap and the Human Condition. London, Free Association
Books, 1 992.
SPENSLEY, S. -"Cognitive Defect, Mindlessness and Psychotic Depression." ].Chi/d
Psychotherapy. 1 1 : 33-50, 1 985.
STERN, D. "lmplications of lnfant research for Psychoanalytic Theory and Practice."
Psychia t Update, 2: 8-2 1 , 1 983
STERN, D. The lnterpersonal World of the lnfant. New York, Basic Books, 1 985.
SYMINGTON, N. Narcissism: A new Theory. London, Karnac Books, 1 993.
TREVERTHEN, C. "lnstincts for H uman Understanding and for Cultural Co-operation:
Their Development in lnfancy." in: Human Ethology: Claims and Limits of the
New Discipline. London, Cambridge University Press, 1 979.
CARTA A CLAUDE ALLIONE
Tradução: Paloma Vidal

Querido Oaude Allione:


Muito obrigada pela carta tão interessante. Trabalhei na entrevista que estou
lhe mandando. Espero que seja compreensível.
Sobre as pessoas mais velhas que um dia foram autistas, concordo que,
quando o controle estreito exercido pelo autismo vai se quebrando, o distúrbio
esquizofrênico se manifesta (falarei sobre a palavra "psicose" mais adiante).
Descobri que a natureza estreita e restrita do autismo surgiu para lidar com o
sentido desintegrador de perda corporal (expressa em termos de "buraco negro").
Essas crianças não têm o sentido de um núcleo integrador que vem das boas
experiências da amamentação no peito (ou mamadeira) - a boca suave rodeando
o mamilo duro, os aspectos machos e fêmeos reunindo-se de forma funcional, de
forma operante (o "seio bom" da teoria kleniana). Em vez de um "seio bom", eies
têm um "buraco negro."
Tudo isso é pré-verbal e num nível de sensação sensual. Surge de "pré-con­
c�pções." As "pré-concepções" estão baseadas no conhecimento a priori e não
provêm de experiências com o mundo exterior, apesar de que são estimuladas
pelos acontecimentos do entorno como, por exemplo, o ambiente no qual a
experiência da amamentação acontece. Fantasmas inconscientes então se desen­
volvem.
O autismo é uma síndrome rara. Ele resulta de uma combinação rara de
fatores, sendo a probabilidade de que eles se juntem muito inusual. Nisso os
fatores genéticos têm um papel importante. Essas crianças parecem geneticamente
predispostas para lidar com dificuldades de uma forma autista. Parecem ter sido
crianças particularmente sensíveis que recuam diante da dor e das dificuldades
extremamente agudas. Elas precisam de uma criação compreensiva especial Uma
mãe que está deprimida, que se sente pouco sustentada pelo pai, não pode dar a
essas crianças o grau de compreensão que elas precisam. A experiência da ama­
mentação no peito não é adequada. Nos termos de Mrs. Klein, eles não têm um
"seio bom" dentro deles. Eles não interiorizaram um "seio bom" adequado. Esse
"seio bom" é o centro que faz as integrações funcionarem. Isso significa que as
experiências da boca suave estão integradas com as experiências do mamilo duro
- as primeiras experiências sensoriais são do duro e do suave juntando-se. (Esse
é o precursor infantil da experiência sexual posterior).
Sobre o uso do termo "psicose": designei o "autismo" como uma "psicose",
usando "psicose" para designar "sem contato com a realidade". A "psicose" que
se desenvolve quando o controle do autismo se quebra é a esquizofrênia. Isso
significa a separação, a desintegração, a confusão. (Chamei-a "psicose confusa").
Pacientes idosos nos quais essa desintegração está acontecendo são muito
difíceis de tratar. Na minha experiência, autistas adultos são difíceis - até im-
81
82 OAUTISMO

possíveis - de tratar. Crianças autistas pequenas são relativamente não-integradas


(unintegrated), mas, quando começam a se desintegrar, a terapia toma-se difícil,
se nã9 impossível. Talvez as drogas possam ajudar, mas esse não é o meu campo.
E uma pena que na França a versão revisada deAutistic States in Children
não esteja disponível. Edições Du Seuil deveria publicá-la logo.
Na Inglaterra, a dificuldade está no fato de que todas as crianças autistas são
supostas "danificadas mentais." Todas as crianças autistas que eu tratei haviam
sido investigadas por danificação mental no Hospital de Crianças Great Ormond
Street e havia sido comprovado pelos métodos de investigação então disponíveis
que elas não tinham danos mentais. Assim sendo, o autismo parece ter sido
psicológico - fatores emocionais haviam causado sua falta de emoção! Sua
primeira compreensão parecia não ter sido atingida. Elas estavam muito perto de
suas mães. Como Joyce Me Dougall diz, elas são crianças "rolhas." Foram usadas
para preencher o buraco da depressão e da solidão materna - seu "buraco negro."
Estou mandando a fotocópia da escultura de Henry Moore que exemplifica isso.
Espero que a entrevista lhe dê novas idéias. Por favor escreva se houver outro
assunto no qual eu possa ajudá-lo .
Beijos para Marie. (Gostei do seu "Une petite filie modele").
Minhas saudações e meus agradecimentos,
Francas

P.S. 1: "Atípico" é uma palavra que o Centro James Jackson Putnam criou
para as crianças autistas, porque o desenvolvimento psicológico era "atípico".
Vejo agora que os anna freudianos estão diferenciando entre o que eles chamam
"atípico" e "psicótico". Você parece estar diferenciando "autista" e "psicótico."
Eu uso "autista" e "esquizofrênico". Me parece mais específico.
Tom Ogden em The Primitive Edge of Experience acentua a necessidade que
os pacientes "psicóticos" (esquizofrênicos) tem de "contenção" - eles têm medo
de revelar-se. Ele escreve:
"Embrulhar um paciente hospitalizado apertadamente em lençóis (enquanto
está continuamente acompanhado e relacionado com um membro empático da
equipe) é uma maneira efetiva e humana de tratar alguém que está
experimentando o terror da aniquilação na forma da dispersão de si mesmo no
espaço ilimitado."

Nosso entendimento dos terrores que esses pacientes têm nos ajuda a com­
portarmo-nos de maneiras úteis. Mas eu não subestimaria o uso cauteloso de
medicação para pacientes idosos previamente autistas.
P.S. 2: Talvez o que essas pessoas queiram significar quando dizem que o
"autismo" é genético é que, como alguns Cientistas Americanos dizem que acha­
ram o gene que causa a homossexualidade, elas estão esperançosas que acharão
o gene que causa o "autismo".
Eu uso o autismo para significar um conjunto de processos isolantes que
surgem para proteger o organismo (é mais primitivo que uma "defesa"). Processos
autistas podem proteger contra muitas coisas - todas elas prejudiciais para o
organismo. Uma delas, em alguns casos, pode ser um gene defeituoso que está
CARTA A CLAUDE ALLIONE 83

danificando o desenvolvimento psicológico. Nos casos que estudei, o autismo


protege contra os danos causados numa criança vulnerável por uma conscientiza­
ção precoce do estado de separação que resulta numa perda ilusória da mãe que
foi experimentada como parte de seu corpo. Podem ser também outros traumas.
P.S. 3: Quando o distúrbio aconteceu na primeira infância, há uma grande
tentação de atribuí-lo à herança genética.
P.S. 4: O fato que a esquizofrenia surge quando os controles autistas se
quebram parece indicar que o autismo é um contínuo psicótico.
ENTREVISTA
FRANCES TUSTIN/EDUARDO VIDAL
Transcrição e tradução: Paloma Vidal

E. Vidal: Mrs. Tustin, na instituição em que trabalho, Letra Freudiana, no


Rio de Janeiro, estamos preparando uma publicação dedicada à questão do autis­
mo. Nosso ponto de partida foi revisar criticamente diversas teorias formuladas
em psicanálise sobre essa questão. Estamos também constituíndo, a partir dos
textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, nossa própria teorização, levando em
conta a nossa experiência clínica com essas crianças. Na revisão de sua teoria
sobre o autismo, tornou-se importante para nós contar com o seu testemunho,
especialmente por tratar-se de uma analista que dedicou sua produção à questão
do autismo, sem hesitar toda vez que foi necessário modificar sua concepção.
Agradeço-lhe ter-me concedido seu interesse e seu tempo para esta entrevista.
Gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Como a senhora elaborou o seu referen­
cial teórico?
F. Tustin: No meu artigo "A perpetuação de um erro" me refiro à teoria de
Margaret Mahler, que segui de perto. Para ela, a desordem e a doença do autismo
infantil eram uma regressão para um estágio anterior de autismo normal e primá­
rio. Isto é o que Margaret Mahler disse e o segui por um longo tempo. Logica­
mente está também o trabalho de Daniel Stern e de várias pessoas na Escócia e
na Inglaterra. Mas há um interessante trabalho da clínica Tavistok sobre a obser­
vação de bebês, onde eles mostraram que não havia um estágio de autismo
primário normal na infância e que o pequeno bebê era ativo em respostas (res­
ponses) à palavra vá (go) desde o começo, de tal modo que é insustentável pensar
em um autismo normal primitivo ou considerar o autismo como sendo uma
regressão a um estágio infantil anterior. Então, escrevi um artigo para olournal
of Psychoanalysis do qual não tenho nenhuma cópia neste momento. Esgotaram­
se, pois houve uma grande demanda Dei este artigo e "A perpetuação de um erro"
para a Associção de Psicoterapia da Criança que os publicará. Este último retifica
a idéia de que o autismo é uma regressão para um estágio infantil anterior.
Margaret Mahler, quando tinha 80 anos, deu uma palestra na Espanha, para
dizer que já não tinha essa visão devido ao que Daniel Stern havia escrito. Ela
não teve tempo de escrever sobre isso, porque morreu logo após ter dado esta
palestra. Sugiro, neste artigo, outra hipótese. Acredito, então, que é realmente um
artigo importante. Penso que é uma espécie de escrito-baliza (landmarkpaper) .
Você pode ver que o fato de não considerar o autismo como uma regressão altera
efetivamente o modo de vê-lo. Vejo o autismo agora como uma aberração, onde
o desenvolvimento se iniciou e cresceu errado, tomou o caminho errado desde
muito cedo, como você pode cc;mstatar na minha carta de resposta ao Dr. Alione.
85
86 O AUTISMO

Eu digo que, quando algo começa errado muito precocemente na vida, as pessoas
tendem a pensar que é genético. Da mesma forma, alguns afirmam agora que
encontraram, na genética, a causa do homossexualismo.

E. Vidal: Acho que os pais preferem essa solução.

F. Tustin: Sem dúvida. O behaviorismo, que tem muita voz na Inglaterra,


também pensa assim. Eu era uma voz gritando no deserto e não era escutada
realmente. Os behavioristas são tão poderosos que estão sempre na televisão e na
rádio. Eles dão seu ponto de vista e riem da idéia de que a causa do autismo - de
algumas formas de autismo - poderia ser, como eu algumas vezes chamei, psico­
gênica, ou seja, emocional, psicológica. Eles dizem que crianças autistas não
podem ser tratadas. Então, eu digo que já tratei algumas e que elas melhoraram
e eles replicam que não podem ser crianças autistas. Somente agora eles estão
começando a m_e escutar um pouquinho e a considerar minha posição, porque
todas as crianças que tratei, todas menos uma, foram vistas pela Ora. Mildrid
Creak e ela era uma autoridade internacional no diagnóstico do autismo. Sendo
assim, eles não podiam argumentar que elas não eram autistas, pois haviam sido
diagnosticadas por alguém que não era psicanalista e sim psiquiatra. Eu a men­
cionei no artigo. Ela morreu a um mês atrás aproximadamente. Ela tinha 96 anos
e era uma quaker. Trabalhei com ela e nos dávamos muito bem, pois ela percebia
que as crianças que me mandava para tratamento estavam melhorando. Chamou­
me, então, para trabalhar com ela. No entanto, antes disso, ela me encaminhou
muitas crianças para tratamento privado. John, de quem já falei, foi-me encami­
nhado pela Ora. Creak.
Ouço falar de John hoje em dia, mas nunca voltei a vê-lo formalmente. Havia
um doutor na clínica Tavistok que acompanhava as crianças autistas que estavam
sendo tratadas em L:mdres e ele foi tentar saber algo sobre John. Ele ficou sabendo
que John tinha se saído bastante bem na escola onde estudou- Escola Westmister
- uma escola pública muito famosa em Londres. Ao contrário do que na América,
aqui uma escola pública é uma escola cara e prestigiada onde os ricos mandam
suas crianças. Não é uma escola estadual. John veio de uma família conhecida.
Westmister foi uma boa escolha para John por não ser tão rígida nem tão formal.
Ele foi como semi-interno e se saiu muito bem, depois foi à universidade. Ele era
muito musical. A coisa mais triste foi que a sua mãe se suicidou, o que eu não
sabia.

E. Vidal: E que idade tinha ele quando isso aconteceu ?

F. Tustin: Era um adolescente.

E. Vi dai: E não foi tratado de novo ?

F. Tustin: Não, porque a avó, que era muito aristocrática, ouviu a opinião
dos behavioristas depois de que John havia acabado o tratamento e tomou-se hostil
em relação aos pais de John dizendo que ele deveria ter sido tratado por eles, etc.
ENTREVISTA 87

Ela desmerecia a psicanálise. O que importa é que ele estava indo bem no colégio,
muito bem aliás.
Como já disse, a mãe suicidou-se e isso foi uma falha neste caso. Na época
em que o menino começou a tratar-se comigo, tinha o meu consultório em
Londres. Tinhamas uma casa com um sotão e eu trabalhava com as minhas
crianças ali. Quando ele começou, a Dra. Creak via a mãe quase todas as semanas.
O que acontece é que Mildrid Creak entendia o autismo a sua maneira, não
psicanaliticamente, mas ela era uma das boas psiquiatras à moda antiga. Não há
muitas agora. Ela podia sentir as crianças. Ela se aposentou do hospital e enca­
minhou a mãe para outro psiquiatra que ficou no lugar dela. Esse psiquiatra era
psicanalista, mas... não sei como colocar isso.. ele tinha muitos títulos, mas tudo
era superficial. Não era bom, ele realmente não era bom. E eu não via a mãe
regularmente. Ele dizia que ia até a casa da mãe para vê-la. Finalmente, os
diretores do hospital expulsaram-no. Esse homem voltou todo o mundo contra os
psicanalistas; foi muito ruim. Ele foi mal com esta mãe e ela foi deixada de lado.
Eu deveria ter dito que acharia uma assistente social para ela, mas não o fiz. Talvez
porque estava preocupada demais com a criança.
E. Vidal: Você estava trabalhando só com a criança?

F. Tustin: Eu estava trabalhando com a criança quatro vezes por semana. E


ele estava indo muito bem, entende? Quando ele acabou tinha seis anos e eu
procurei que ele fosse a uma escola, onde ele não estudasse em um regime de
internato.
E. Vidal: Nessas épocas já sabia ler e escrever?
F. Tustin: Sim, é claro. Com o tempo, ele graduou-se e foi à universidade.

E. Vidal: Sim, mas no começo como foi?


F. Tustin: Ele tinha três anos quando começou e quando acabou o tratamento
já sabia ler e escrever. Ele era sensível e muito musical.
E. Vidal: Ele se comportava como autista com os outros e com o seu entorno?
F. Tustin: Não, John era sociável, bastante sociável... Não lembro o que
queria dizer, mas deixe para lá... Ele foi a uma escola normal. Oh! Sim, lembrei.
Foi no final, quando eu vi seus pais para despedir-me, que a mãe me disse:
"Estamos muito satisfeitos com o que você fez com John. É notável, mas eu
deveria ter tido mais ajuda." E isso de alguma forma ainda soa nos meus ouvidos,
dá voltas na minha cabeça quando penso em John, pois realmente a mãe deveria
ter tido mais ajuda. Ela era uma garota muito sensível. Era estrangeira, do conti­
nente. Entrou nesta família que é uma de nossas famílias aristocráticas mais
antigas. Ela veio de uma boa família. Seu pai era arquiteto; uma família de
profissionais liberais. Casou-se com este homem e era muito infeliz. Além disso,
sentia-se inconfortável, pois esta avó era uma senhora muito arrogante e hostil.
88 O AUTISMO

A mãe me contou que a avó tinha a mania de olhar o bebê com uma cara horrível.
De alguma maneira, a mãe disse que ela parecia uma bruxa e ela sentia que a avó
tinha colocado um feitiço ruim na criança. A mãe era muito autista, além de boa
e sensível e não conseguia encontrar um lugar nessa família.
E. Vidal: A criança pode ser uma conseqüência dessa desadaptação da mãe?
F. Tustin: Certamente. Ela era um peixe fora d'água, como dizemos. E o pai
era um homem muito obsessivo. Ee frequentou uma escola pública e era muito
educado. Uma espécie de homem muito formal. Ele não entendia muito bem de
sentimentos, pois estava mais preocupado com os deveres e era um homem muito
ocupado. Apesar disso, estava muito com o menino. Era um bom homem, mas
não conseguia entender essa menina ultra-sensível com quem se casou e que não
encontrava um lugar nessa faIIll1ia. Ela era muito infeliz. Sinto-me muito mal
sobre essa pobre mãe, porque ela era uma boa menina. De qualquer maneira esta
é a história d� John. John foi quem me falou sobre o buraco negro.
E. Vidal: Quero lhe fazer uma pergunta. John é o paciente que falou para
você do buraco. Como você considerou de maneira teórica o buraco na estrutura
do sujeito autista? Nós temos algumas coisas para perguntar sobre essa questão.
A primeira coisa é com respeito ao sistema kleniano: não há lugar nele para esse
buraco.
Para responder a esta pergunta Mrs. Tustin procura a foto de uma estátua
de Henry Moore.
F. Tustin: Essa foto mostra uma mãe com um buraco na altura do seio
segurando uma criança no colo. George Me. Douglas referiu-se a algo semelhante
no seu caso da criança-rolha (cork chi/d). Ela está aí para preencher o buraco da
solidão da mãe. A mãe de John usava a criança para preencher o buraco de sua
solidão e depressão. Essa foto tem muito a dizer. A mãe de Henry Moore era
muito depressiva e o artista está elaborando isso na escultura. É uma magnífica
reprodução dessa situação.
E. Vidal: Há algo de vazio ...
F. Tustin: Sim, e ele o preenche. Ele sente que deve fazer isso. Então essa
separação entre a mãe e o filho, que estão firmemente ligad9s entre si, é extrema­
mente dolorosa, quando percebem que são seres separados. E muito doloroso para
a mãe e para a criança.
E.Vidai: Não há representação verbal da separação.
F.Tustin: Não, eles não tem. Ele� sentem que é doloroso dem�. E o autismo
é um amortecimento da experiência. E um blackout da experiência. E evitar a dor.
O autismo serve para evitar a dor. Eles usam objetos autistas para evitar a dor e
usam sensações autistas para amortecer a dor. O importante sobre todas as nossas
idéias é que a sensação é o começo, as sensações são o começo. Você sabe que
ENTREVISTA 89

Freud chamou isso de ego corporal. Eu alteraria um pçmco e chamaria de ego das
sensações. Eles são a forma primitiva do eu mental. E importante perceber isso
para entender o autismo, porque aí dominam as sensações de separação. Quando
eles têm a sensação de que estão separados da mãe é extremamente doloroso. E
é tão doloroso que eles podem não ter representação, como você diz, no eu mental.
Penso que é uma compreensão muito importante.
Fiquei sabendo que Winnicott já sabia disso. Fui educada muito estritamente
na maneira kleiniana. Esther Bick foi nossa professora e ela fez essa coisa mara­
vilhosa que é observação de bebês, que cresceu por todo o mundo e muitas pessoas
estão fazendo ainda hoje. Ela era uma kleiniana muito estrita. Ela dizia que nós
não devíamos ler Winnicott, então eu nunca lí Winnicott (risos). Na nossa asso­
ciação, temos freudianos clássicos e também pequenos grupGs de kleinianos e
winnicottianos. Depois que eu apresentei este trabalho freudiano, vieram até mim
e me perguntaram se eu conhecia o artigo de Winnicott no qual ele havia escrito
sobre o que eu falara. Então, procurei este artigo e descobri que ele havia descrito
exatamente a mesma coisa que eu vinha dizendo. Winnicott fala sobre a depressão
psicótica e reativa e diz que a depressão psicótica acontece quando a criança
experimenta a separação num estágio no qual ela ainda não estava preparada para
isso. A depressão reativa é diferente, acontece quando a criança perde a mãe, mas
a mãe já era um objeto em sua mente, enquanto que a depressão psicótica acontece
quando a criança simplesmente não pode entender isso. Ele o descrevia exatamen­
te igual, então lí Margaret Mahler.

E. Vidal: Haveria, então, um laço entre o autismo e a depressão psicótica?

F. Tustin: Exatamente. Margaret Mahler em "Perda e restauração de objeto


de amor simbiótico" havia escrito sobre isto. A partir daí me desviei do meu
esquema de entendimento kleiniano, porque este esquema não levava em conta
esse fenômeno do buraco negro com o qual havia me deparado. Mas Winnicott
o levava e Margaret Mahler também. Tendi, então, a segui-los, pois os dois viam
o autismo como uma regressão. Mas era um erro! E isso aconteceu porque eu
percebi que o esquema ao qual havia aderido não cobria uma coisa que estava
enfrentando. Confesso-lhe que fiquei muito contente em encontrar alguém, que
considerava mais importante do que eu, que tivesse dito a mesma coisa. Certa­
mente era uma falta de confiança minha.

E. Vidal: Talvez a idéia de objeto de Melanie Klein preencha demais o


buraco. O autismo é uma objeção ao objeto kleniano.

F. Tustin: Sim, porque o objeto é para perder. Disse isso em "Perpetuação


de um erro" e o grupo foi muito indulgente comigo. Na apresentação do meu
trabalho, houve até uma ovação de pé, o que foi muito gentil de sua parte. Eles
eram muito indulgentes! De toda forma eu estava muito sozinha na Inglaterra
porque ninguém pensava que eu estivesse falando alguma coisa que valesse a
pena! Bom, na verdade isso não é bem assim, mas, de maneira geral, eu era
90 OAUTISMO

recebida friamente, enquanto que na França na trabalhavam e liam meus livros,


assim como na Itália, na Argentina e no Brasil.
E. Vidal: É verdade. A propósito de Winnicott, a idéia dele de depressão é
um pouco diferente da sua?
F. Tustin: Sim, é diferente.
E. Vidal: Ele fala, a meu ver, da relação ao entorno, enquanto que você está
falando da outra falta.
F. Tustin: Exatamente, você está certo. Falo muito mais sobre a situação de
desmantelamento e menos sobre o entorno. Coloco menos ênfase no entorno e
isso é por causa da depressão da mãe. Sinto-me muito perto dessas mães e eu as
entendo. Lembro que nós tivemos, quando era estudante na Clínica Tavistok,
alguém da Argt:ntina, cujo nome não consigo me lembrar agora, que escreveu um
artigo sobre uma criança autista. Foi em 1952. Ele enfatizava que a mãe da criança
havia sido muito má, muito fria, muito afastada e tudo mais, o que normalmente
acontecia com essas mães. Sabe, eu era uma estudante e achava muito estranho
o que ouvia de algumas dessas mães. Lembro que pensei: "mas elas são muito
pa�ecidas com algumas das minhas melhores amigas"! Eu ainda rio cada vez que
lembro disso. Não concordo com o assessoramento que esse analista dava a essas
mães - provavelmente ele já mudou o seu ponto de vista agora. De qualquer
maneira, ele escreveu um artigo muito bom.
E. Vidal: Sim, muitas coisas mudaram.
F. Tustin: Lógico, da mesma forma que eu mudei.
E. Vidal: Gostaria de retomar a diferença existente entre a concepção de
Winnicott e a sua. Você fala sobre a proteção, sobre a barreira que a criança vai
construir contra o outro. Não é exatamente a idéia de Winnicott.
F. Tustin: Não, não é. Eu não sou realmente uma winnicottiana, mas ele
entende os níveis com os quais eu tive que lidar. Eu concordo com Winnicott,
porque ele é sensível à questão e com Margaret Mahler porque sabia muito sobre
crianças autistas e era honesta o suficiente para dizer que ela havia cometido um
erro. Aliás, Daniel Stern era um de seus seguidores na nossa clínica e discutia
freqüentemente com ela até que a convenceu de que ela estava errada. É muito
interessante um pouco de "fofoca", tão interessante quanto o trabalho desses
analistas. Em alguns casos, é a partir da vida deles que podemos entender o
trabalho. O caso é que Melanie Klein nunca escreveu sobre autismo.
E. Vidal: Para Melanie Klein, a posição do autismo não existiria, porque há
uma relação de objeto desde o começo.
F. Tustin: Exatamente, mas, nesse caso, acho que você está falando da idéia
do americano Thomas Ausden. Ele é um homem muito gentil e solitário, que veio
ENTREVISTA 91

para a Inglaterra e encontrou-se com o esquema de entendimento de Melanie


Klein. Acho que ficou tão chocado com ele que o levou consigo e tentou colocar
uma posição autista adjacente. Um terrível equívoco. No entanto, acho que o
autismo não faz parte do desenvolvimento normal e concordo com Winnicott
quando ele diz que é um desvio da vida normal, uma espécie de aberração. E de
preferência concordo com ele e penso que a posição autista adjacente é também
uma aberração. Não é um desenvolvimento normal, é anormal. Agora que entendi
isso, que vejo o autismo como anormal, como um desenvolvimento anormal, que
entendi que se trata d� lidar com esse buraco negro, sinto que tudo entra no seu
lugar muito melhor. E a separação da mãe que faz esse buraco negro e uma
depressão muito profunda. E é uma forma de lidar com essa depressão. Se eu não
penso que é uma regressão, qual é a minha hipótese? A minha hipótese é que o
autismo é uma proteção específica para o tral!ma, pois a separação da mãe é uma
experiência muita traumática, é um trauma. E sobre isso que Rank estava escre­
vendo, quando falou sobre o trauma do nascimento. Ele encontrou nos seus
pacientes uma separação anormal e traumática da mãe. Para lidar com isso, os
pacientes desenvolveram essa concha protetora que amortiza a dor.
E. Vidal: É uma forma de rejeição.
F. Tustin: Sim.
E. Vi dai: Quando você fala sobre o caso Dick de Melanie Klein, penso que
você sugere que poderia ser uma criança autista.
F. Tustin: Sim e ela se preocupava com isso.
E. Vidal: Você poderia falar algo sobre essa posição, pois seria muito inte­
ressante poder pensar em Dick como uma criança autista.
F. Tustin: Melanie Klein trabalhou com crianças esquizofrênicas e acho que
devemos fazer uma distinção que eu não fiz no meu primeiro livro, mas fiz no
segundo. Neste novo livro fiz uma distinção entre autismo e esquizofrenia. A
criança autista tem uma idéia obscura da separação entre ela e a mãe. Há um hiato
entre ela e o analista e isso se percebe na transferência, esse espaço entre a criança
e você. A criança não está tão engajada com você. Há uma relação bem pequena,
uma relação mínima. As crianças autistas afastam-se de qualquer tipo de relação,
elas viram as costas para você, elas não percebem quando a mãe sai do consultório.
Elas são bem diferentes das crianças esquizofrênicas. E acho que realmente
devemos perceber isso, porque assim a maneira de trabalhar com elas será dife­
rente. O que Melanie Klein descreve é muito relevante para o tipo de criança
esquizofrênica, mas não é relevante para as crianças autistas.
Oh! Há um outro caso que quero comentar. Havia uma garota que veio para
a Inglaterra da Austrália. Ela era autista e tomou-se uma secretária temporária no
hospital, onde há um psiquiatra muito gentil chamado Sebastian Cranach. Uma
vez no corredor do hospital, ela encontrou um psiquiatra na porta, afortunadamen­
te era Sebastian. Ela deixou cair um manuscrito e quando ele o viu e percebeu
92 OAUTISMO

que era algo extraordinário, então o mandou para mim. Ao ver que de fato era
extraordinário mandei-o para o editor que publicou meu livro e não ouvi nada
mais sobre ela. Depois de aproximadamente dois meses, um agente literário me
procurou, perguntando se eu sabia alguma coisa sobre esse livro. Ele disse que
achava que tinha um best-seller em suas mãos. Logo depois, uma editora me
telefonou dizendo que tinha esse livro, que havia quatro outras editoras que o
disputavam. Eles tratavam o livro muito cuidadosa e apropriadamente e me
mostraram que ia ser bom. A moça voltou para a Austrália agora.

E. Vidal: E ela foi tratada?

F. Tustin: Não, ela nunca foi tratada. Bom, na verdade foi um pouco. Você
o lerá no livro. Ela me disse que, se eles pagassem a sua passagem, ela voltaria
da Austrália. Esses editores pegaram realmente o livro e a trouxeram de volta. O
livro tomou-se um best-seller! Ela ganhou montes de dinheiro, seu livro viajou
por todo o mundo e foi comentado em todos os programas conhecidos. Ela agora
está morando na Inglaterra e comprou um sítio.

E. Vidal: Ela continua sendo autista?

F. Tustin: Não. De certa forma, ela saiu do autismo. Nesse livro, ela descreve
tudo o que lhe aconteceu. Ela esteve com um terapeuta. Antes de escrever, ela
veio para a Inglaterra, conseguiu um trabalho e foi à universidade. Ela foi um
pouco tratada por alguém no hospital - um freudiano clássico, certamente, pois
Donna, como eia se chama, fala no seu livro, ou falou para mim, não lembro muito
bem, que ele perguntava muito sobre sua família. Donna também deve ter encon­
trado alguma vez um kleniano, pois me contou que ele falava sobre o seio bom
e o seio mau e que ela não entendia nada ! ! ! (risos) Ela me disse: "o seu livro foi
o único que fez algum sentido para mim." Donna escreveu o livro em poucos
meses. Ela era secretária e quando chegava em casa não tinha muito o que fazer,
pois não conhecia ninguém. Então, ela escreveu esse livro! Não é engraçado! ! !
(risos). Nunca me encontrei com ela, mas, quando tinha algum problema, ela me
telefonava. Certa vez, ela me telefonou e disse que os editores a haviam colocado
num hotel muito bonito, mas haviam pessoas pedindo esmola do lado de fora. Ela
me contou que havia uma mãe com um bebê que pareciam muito famintos e
perguntou se deveria trazê-los para o hotel e dar-lhes uma refeição. Foi para isso
que me telefonou. Respondi que achava que não, que ela não deveria fazer isso,
porque todos os mendigos de Londres bateriam na sua porta pedindo comida !
Esse foi o meu conselho, apenas um conselho prático. Depois ela me ligou e disse
que um editor francês estava sempre tentando tocá-la, que ele queria tocá-la: o
que ela deveria fazer? Você sabe, os franceses são muito difrentes de nós e mais
ainda dos australianos. Ele tinha 70 anos. (risos) Ela me disse que mulher dele
havia acabado de morrer e imaginou que poderia mandar-lhe um cartão. Eu disse
que não havia necessidade de mandar-lhe um cartão. Bom, esses são os problemas
com os quais ela se depara e que me conta pelo telefone com a sua voz fininha
(imita a voz de Donna).
ENTREVISTA 93

E. Vidal: É uma voz autista.

F. Tustin: Sim, realmente. É muito interessante.

E. Vidal: Isso não muda?

F. Tustin: Não. Aliás, Sebastian Cranach foi entrevistado num programa


chamado "A hora da mulher" e ele disse que a voz parecia ainda muito autista.
Logicamente ela estava nervosa. Ela não está realmente curada, mas ela está muito
melhor. O encontro com um freudiano clássico foi útil para ela. Ela não teve
nenhum tratamento real que poderíamos chamar de tratamento, mas lutou e
conseguiu um diploma de língua inglesa. Ela foi à universidade e escreveu este
livro e está escrevendo outro agora. O seu primeiro livro se chama Ninguém em
nenhum lugar. Donna é muito musical. Ela escreve poemas líricos. Ela escreveu
um poema adqrável, colocou-lhe música - música pop - e o chamou Mnguém
em nenhum lugar. Agora ela escreveu um livro chamadoAlguém em algum lugar.

E. Vida): Desejaria retomar a sua revisão do caso Dick. Você considera que
ele é uma criança autista? O caso prova que a criança autista tem uma relação
muito precoce com o objeto? Você acha que isso poderia ser válido?
F. Tustin: Está no limite do autismo, certo? Não consigo entendê-lo. Acho
que Melanie Klein se baseia na sua própria teoria. Quando ela estava apresentan�
do-a, inconscientemente tinha o seu esquema de entendimento que projetava sobre
esse menino. Mas ela estava certa quando sentiu que Dick não era como qualquer
outra criança. Mrs. Klein era uma analista muito honesta.

E. Vida): Estamos trabalhando nesse caso novamente e o consideramos


autista. Então, quando no seu livro achei também essa idéia sobre o diagnóstico
foi importante para a direção do nosso trabalho. Se consideramos o caso à luz das
novas concepções, penso que podemos entendê-lo melhor.

F. Tustin: Sim, concordo com essa idéia. É que Melanie Klein não reconsi­
derou esse caso mais tarde, quando ela sabia mais sobre autismo, pois estava muito
ocupada e já estava se tomando uma senhora idosa. Sabe, é muito difícil trabalhar
quando se está ficando velha. Esses artigos que estou te dando são meus últimos
trabalhos. Já não se está fisicamente forte e se começa a ficar cansada. Ao menos
achei que era importante acabar o que havia feito. Dizer: olhe, cometi um erro
sobre isso. Dá-se uma luz inteiramente nova ao assunto quando vemos o autismo
não como uma regressão e sim como uma aberração. Isso lhe dá uma orientação
diferente. Acho que isso estragou o trabalho de Margaret Mahler. Ficou no
caminho do que ela estava tentando entender.

E. Vidal: Quero perguntar-lhe algo sobre a transferência com crianças autis­


tas. Tenho pensado sobre o que você diz a respeito de existirem mais possibili­
dades e facilidades no trabalho com o autismo do que com a psicose infantil. Qual
94 O AUTISMO

é a sua experiência como analista, levando em conta o progresso do autismo na


análise? A sua experiência a fez chegar a essa conclusão?
F. Tustin: Sei que muitas pessoas não colocam o autismo como uma con­
venção psicótica, mas eu sim, porque, com base no nível de contato que o autista
mantém com a realidade e se dissermos que a psicose é não estar em contato com
a realidade, então, o autismo se inclui ali. Mas é também uma desordem de
desenvolvimento, aberrações de um desenvolvimento normal, assim como a es­
quizofrenia ou qualquer das psicoses, certo? Então, chamo o autismo uma con­
venção psicótica, apesar de algumas pessoas não concordarem, mas eu sim pela
ausência de contato com a realidade. A diferença é que o autismo é mais claro do
que outras psicoses. O autista se separa definitivamente de outras pessoas e o
analista sabe onde está com ele. Ele não tem uma relação confusa com as pessoas,
não tem relação com as pessoas nem com o analista e isso faz uma diferença.
E. Vidal: Não sei se foi assim com os outros analistas, mas para você foi
mais fácil trabalhar com crianças autistas?
F. Tustin: Sim, porque eu sabia onde estava com elas. Não havia uma relação
coníusa. Simpiesmente não havia nenhuma reiação e é àaí que você começa. Sabe
esse livro que estão escrevendo sobre mim na França? Bom, eles queriam, no
começo, ter algumas das primeiras sessões com Peter para que pudessem ver como
se estabelece contato com essas crianças, pois, logicamente, o que todas as pessoas
dizem é que elas são inacessíveis. Então, lhes contei que Peter levava um monte
de chaves, uma argola com muitas chaves. Trabalhei sobre isso, mas foi uma
sensação penosa (hard sensation), foi um objeto de sensação penosa (hard sen­
sation object), como o chamei teoricamente. Portanto, para as crianças, eu falava
sobre uma sensação que as faziam se sentirem grandes e fortes e supor que
ninguém podia machucá-las. Enfim, sentirem-se seguras. E, justamente, o que
essas crianças querem sentir, e não digo isso para as crianças e sim para nós
mesmos, é segurança El� se sentem tão... ameaça�. Então, eu dizia a Peter:
"ao pegar essas chaves, você se sente seguro, você se sente bem e ninguém vai
machucá-lo". Quando chegava a hora de ir embora, eu lhe dizia: "isso talvez te
faça lembrar de quando você era bebê; a mamãe estava te dando de mamar, mas
chegava a hora de terminar, ela ia embora e o mamilo saia de sua boca." Usei o
que havia aprendido com John para compreender Peter. Eu falava com ele sobre
seu sentimento como bebê, sobre a separação que ele estava sentindo, aqui e agora,
comigo, e tentava reviver essa experiência traumática. Sempre que havia um
feriado, férias ou algo do gênero, eu lhe falava sobre o seu sentimento como bebê,
eu tentava trazer a transferência infantil, tentava ajudá-lo a ter a transferência
infantil.
E. Vidal: Criá-la...
F. Tustin: Sim, quase criá-la. Tomei realmente o que havia aprendido com
outro paciente. Estava tão convencida de que era uma situação traumática e que,
como com qualquer situação traumática, ele tinha que passar por cima dela,
ENTREVISTA 95

representá-la, trabalhá-la e experimentá-la. Ele se afastou dos outros com o seu


autismo. Você deve dar-lhes vida novamente e ajudar as crianças a reexperimentar
isso. Foi isso que fiz com Peter nas primeiras sessões quando ele não falava nada,
só ficava parado e segurava essas chaves.
E. Vidal: Você está convencida de que o trauma é o ponto inicial?
F. Tustin: Estou convencida que é o ponto crucial. É onde elas foram
crucificadas. Elas estão tentando evitar a situação dolorosa E foi um buraco negro.
Acho que Peter parecia entender quando eu falava sobre isto. Outra coisa que fiz
foi, como ele tinha mania de sair correndo ao chegar a hora de ir embora, pará-lo
e dizer: "Não, temos que esperar. Você tem que se despedir, pois isso ajuda a que
você se lembre de mim e que eu me lembre de você." Era como uma professora
de colégio, de certa forma , mas achei que foi importante para fazer a distinção
entre "você es_tá na sala agora" e "você está fora da sala agora."
E. Vidal: Sim, lugar, tempo...
F. Tustin: Certo, para criar limites, fronteiras. Essas crianças não têm fron­
teiras. Outra coisa que descobri foi que várias crianças progrediram, quando a
mãe ou a babá ficava em casa com elas. A família de John contratou de novo a
babá enquanto ele ainda estava se tratando comigo. Ela acostumava trazê-lo para
a sessão. Era tão boa! Ele começou a progredir imediatamente. De certa forma,
ela quebrou a relação entre mãe e filho, ajudou a que eles se separassem.
E. Vidal: Alguém em posição de terceiro.
F. Tustin: Sim, exatamente.
E. Vidal: Antes eram só dois e tornaram-se três.
F. Tustin: O pai normalmente não tem uma posição muito forte.
E. Vidal: A respeito disso, qual é a posição do pai no autismo?
F. Tustin: Freqüentemente, eles não são o suficientemente presentes. Muitas
vezes, não se colocam dentro da situação o suficiente. Dificilmente trazem as
crianças à sessão. Eles são absorvidos pelo seu trabalho e não se posicionam o
suficiente. Falei sobre isso com o Dr. Alione. Você o conhece? Ele estava encar­
regado do maior hospital para crianças em Montpellier.
E. Vidal: O nome dele está escrito no seu trabalho?
F. Tustin: Sim, acho que sim. Ele tratou muitas crianças autistas. Alione veio
da França para supervisar-se comigo sobre uma criança que ele estava tratando.
Ele me explicou qual era o seu trabalho e me pareceu uma idéia muito boa. Ele
estava encarregado do hospital de crianças e treinava algumas enfermeiras que
pensava que seriam boas. Então lhes dava aulas sobre autismo e elas faziam ,
96 O AUTISMO

observações com bebês que ele supervisava. Mais tarde elas iam para a casa das
crianças autistas que estavam tratando. Iam não como intrusas, mas ajudavam a
lavar, passar e levavam as crianças para passear para que a mãe pudesse descansar.
Elas tomavam as coisas mais fáceis e faziam sugestões que às vezes eram aceitas.
Eram muito hábeis e o que faziam era muito útil. Penso, inclusive, que é muito
bom fazer isso - pegar alguém para ir até a casa da famflia e ajudar -pois é muito
difícil para as mães cuidarem dessas crianças. Elas precisam de ajuda.
E. Vidal: Especialmente no primeiro estágio do autismo, você diz no seu
livro que, quando a criança vem ao analista e ainda tem menos de sete anos, as
portas fechadas do autismo podem ser abertas. Por que sete anos?
F. Tustin: Não sei, mas sete parece ser uma idade crítica e limite.
E. Vidal: Sim, nós também pensamos, mas queria perguntar-lhe se a razão
seria, por exemplo, que a constituição da criança se conclui ao redor dos sete anos.
Haveria um tempo para o encerramento da estrutura da criança? Há uma diferença
entre a criança tratada antes dos sete anos e outra tratada depois?
F. Tustiõ: Encontrn-se uma diferença. Elas são mais receptivas e mais mo­
tivavéis. Estou supervisando agora uma criança que tem treze anos: a terapeuta
que está trabalhando çom ele é excelente, mas realmente quando a criança é mais
velha é muito difícil. E praticamente impossível. Parece uma coisa terrível de se
dizer e, apesar disso, ela está tentando. E muito difícil. Justamente nessa carta de
Oaude Allione, à qual repondi, ele conta que está trabalhando num hospital para
autistas mais velhos que nunca foram tratados e conta o quanto é difícil. Veja,
penso que é muito difícil, quando são mais velhos, porque tomou-se um modo de
vida e, de certa forma, funciona Funciona, é limitado, mas os mantém seguros.
O autismo torna possível que eles se sintam seguros. Acho muito triste.
E. Vidal: Na sua experiência clínica, as crianças autistas podem tomar-se
sujeitos neuróticos?
F. Tustin: Sim, entendo o que você quer dizer. Bom, quando atendia o Peter
(eu o revi faz pouco tempo atrás), ele morava em Manchester e vinha duas vezes
por semana, sábado e domingo. Os pais o traziam aos sábados e iam encontrar-se
com a família em Londres. Eram comerciantes bastante ricos. Quase no final, eles
compraram um trailer e o colocavam num campo perto da minha casa. Eles eram
realmente uma família bastante inventiva que se adaptou a essa coisa estranha do
tratamento da criança. Ele tinha uma irmã mais nova e todos eles vinham com a
famflia. Tudo era muito inconvencional, inclusive a forma que eu o tratava. Eu o
recebia numaponey shed que nós transformamos em sala de terapia.
E. Vidal: Que idade tinha Peter quando iniciou o tratamento?
F. Tustin: Ele tinha seis anos quando chegou.
E. Vidal: E agora?
ENTREVISTA 97

F. Tustin: Agora ele deve ter uns 25 ou 26 anos. Bom, de qualquer maneira,
quando acabou, tinha 11 anos. Ele teve duas provas muito difíceis: uma delas era
a bolsa de estudos de uma escola estadual e a outra para (inaudível na fita). Então
eles decidiram mudar-se de Manchester, pois, na cidade, todos já-sabiam que ele
havia sido autista. Então, eles decidiram ir para a América onde ninguém saberia
que ele havia sido autista. Ele foi à Universidade na América e conseguiu um
título em bioquímica. Bom, depois de mais ou menos nove anos, ele escreveu
para mim. Coloquei um pedaço dessa carta no livro. Ele escreveu: "obrigado por
ter me livrado do autismo Mrs. Tustin." Também me perguntou se quando publi­
casse um livro, mandaria para ele na América. Mandei, é claro. De qualquer
maneira, ele já estava na Universidade. Estava aprendendo japonês também.
Depois de cinco ou seis anos, um dia o telefone tocou e alguém disse: "este é seu
antigo paciente autista." Era ele. Os pais tinham se separado. A mãe ficara na
América com .? filha e Peter, como o chamei no livro, voltara para a Inglaterra
com o pai. Ele estava morando em Hampstead e queria ver-me. Logicamente, eu
disse que viesse. Estava procurando o que fazer como trabalho e pensava em ser
osteopata. Estes professores manipulam os ossos do corpo e são muito bons no
tratamento da coluna. Temos uma clínica aqui perto que faz tratamentos naturais
e há um osteopata que conheço bastante bem. Uma pessoa legal! Quando Peter
me comentou que ele queria ser osteopata, eu lhe disse que lhe apresentaria Mr.
Stangle. Ele aceitou e fomos conhecê-lo. Fomos até o seu consultório e ele nos
falou sobre como é ser um osteopata. Durante a entrevista, Peter comportou-se
normalmente, exceto que, como todos os americanos, falou rápido demais. Ele
me contou que havia feito antes uma entrevista para ser treinado como osteopata,
mas ao contar que havia sido autista, não foi aceito. Aqui, na Inglaterra, dizer que
se é autista é como dizer que se tem uma doença venérea. Depois ele decidiu ser
fisioterapeuta e foi estudar na Escócia. Quando veio até mim, queria ser budista,
estava muito interessado na religião budista, mas era judeu. Ele nunca tinha tido
uma namorada e estava chateado com isso.

E. Vidal: Seria talvez a falta de estrutura que perdura?

F. Tustin: Está claro. A sexualidade deles é meio inibida. De qualquer


maneira, ele estava muito triste, pois era virgem. Eu me sinto muito mal! A mãe
dele me ligou há alguns meses atrás. Eu deveria ter me oferecido para continuar
a terapia ou dar-lhe apoio. Deveria ter mantido contato com ele, mas estou
cansada, velha, fazendo o máximo que posso e já me aposentei. Não falei com
ele como deveria. Ele disse que queria continuar na Inglaterra, pois se pode
amadurecer mais aqui, se cresce mais aqui do que nos Estados Unidos. Ele estava
obviamente pensando sobre crescer, amadurecer sua filosofia de vida e trabalho.
Sua mãe me ligou e perguntei o que estava havendo com Peter. Ele não se deu
bem com a fisioterapia, não conseguia falar com os pacientes bem o bastante. A
conversa descontraída com os pacientes faz parte do tratamento. Ele falava, mas
não tinha condições de dar respostas adequadas. Fazia os clientes sentirem-se
desconfortáveis.
98 OAUTISMO

E. Vidal: Uma dificuldade em estabelecer e suportar transferência.


F. Tustin: Eu desejaria ter sugerido a continuação do tratamento, mas não
sei se ele teria aceitado. Finalmente, o que aconteceu foi que largou a fisioterapia
e foi para a computação.
E. Vidal: Essa é a solução para alguns desses casos.
F. Tustin: Pelo menos é um trabalho que tem uma boa posição, um padrão
bom. Ele desistiu de ser budista. Acho que era muito solto e flexível para ele,
então entrou para uma facção judaica muito estrita. Sua mãe que é de uma facção
mais progressista achou horrível, mas faz parte de um grupo com as mesmas
crenças que o sustentam. Sua mãe acha que é o melhor que ele pode fazer no
momento. Concordo. Segundo ela, o grupo lhe achará uma esposa. Não sei que
crença é esta, mas creio,que não permite o corte de cabelo e os homens devem
deixar a barba crescer. E uma religião muito fechada e fanática. Não é o melhor
que poderia ter acontecido, mas pelo menos se você pensa que, se não houvese
tido tratamento, ele estaria numa dessas instituições horríveis que temos na Ingla­
terra...
E. Vidal: É provável.
F. Tustin: É o máximo que se pode esperar. Não é tão bom quanto o que se
conseguiu com John, mas o John veio a mim mais cedo, com três anos. Eu só via
Peter duas vezes por semana Em Manchester, ele era tratado pelo Dr. Holden que
estava muito interessado em crianças com desenvolvimento inferior. Ele trabalha­
va com crianças que não cresciam ou não tinham tônus nos músculos, tipos
diferentes de crianças com problemas. Ele criou seu próprio método para tratar
estas crianças e Peter foi tratado por ele. O método consistia em auxiliar o paciente
em tudo. Ele fazia tudo para as crianças sem elas saberem que era ele que estava
fazendo. Não havia nenhuma relação com a pessoa. Realizava também operações
que variavam de acordo com cada criança. Era um homem muito dedicado. Ele
veio me ver e estava muito interessado em conhecer meu marido que é um
engenheiro, pois considerava que seu método tem a ver com a engenharia Pensava
que estas crianças tinham se deparado com mais coisas do que poderiam agüentar.
Concordo com ele. Então dava as crianças tarefas que não lhes era impossível de
completar e com um nível de dificuldade não muito avançado, mas somente um
pouco acima do nível aceitável, desejando assim que elas cumprissem. Este era
um dos meios que ele usava no trabalho com elas.
E. Vidal: Essas crianças estariam tentando construir contato com os outros,
o corpo e os sentimentos?
F. Tustin: Exatamente. Ele fez seu próprio método e trabalhava sete vezes
por semana. Tinha se divorciado e estava absolutamente sozinho. Inclusive seu
método saiu na televisão. Era um homem muito estranho e triste. Os pais de Peter
o chamavam de "tio Jeff'', gostavam muito dele e estavam muito agradecidos pelo
ENTREVISTA 99

que ele estava fazendo, mas achavam que ele não estava ajudando o menino com
os seus sentimentos. Foi por isso que vieram a mim, depois de terem consultado
outras pessoas, apesar de que morava longe. Eles estavam certos quanto à decisão
de mudar de terapeuta. Foi assim que tive "tio Jeff' como antecessor no tratamen­
to. Ele não interferiu no tratamento e estabelecemos uma boa relação; ele vinha
me visitar e conversávamos. Realmente tinhamas uma relação amigável. Fiquei
um pouco preocupada, porque ele era muito estrutural. De qualquermaneira, ele
continuou em Manchester e Peter o via uma vez por semana. Mas, tristemente,
há alguns anos atrás, "tio Jeff' se suicidou. Era um homem muito infeliz e com
muitos problemas. Ele quase não mantinha relações com as pessoas, apesar de
que Peter se apegou muito a ele. O Peter vinha me ver apenas, vezes por semana.
Achei que tinha que ajudar es�a pobre criança apegada às suas chaves. Ele estava
melhor do que poderia estar. E interessante segui-lo.
E. Vidal: Você tem experiência de acompanhar alguns casos depois de
concluído o tratamento?
F. Tustin: Não se vê a maioria das crianças depois de acabado o tratamento.
Sabe, não voltei a ver nenhum dos outros, pois, quando o tratamento chegâ ao
fim os pais querem esquecê-lo. Com os esquizofrênicos não é assim: eles me
trazem flores, me mandam cartões de Natal, são muito diferentes.
E. Vidal: E os autistas?
F. Tustin: Eles cor!am o relacionamento. De certo modo, os próprios pais
são um pouco autistas. E uma memória dolorosa que eles querem esquecer. Mas
o caso do Peter é diferente. Ele e seus pais continuam mantendo contato comigo
e ele já veio me ver. Inclusive sua mãe, que é agente de viagens, quando veio à
Inglaterra me ligou perguntando se poderia me ver. Infelizmente ela ligou em
cima da hora e não pude vê-la, pois já tinha um compromisso. Ela prometeu ligar
de novo. Teria sido bom saber se a questão da sexualidade de Peter progrediu,
mas acho que não.
E. Vidal: Como o autista poderá abordar a experiência da sexualidade? É
uma que_stão crucial, pois a experiência traumática emerge no encontro com a
sexualidade.
F. Tustin: Sem dúvida, sem dúvida. Acho que você concordará que há sempre
algo em todos os casos de que nos arrependemos, que lamentamos. Sempre
pensamos que poderíamos ter feito melhor. Por exemplo, no caso de John, se eu
tivesse visto a mãe e a acompanhado mais de perto. Ou no caso de Peter, se tivesse
sugerido a continuação do tratamento, se tivesse mantido mais contato, se tivesse
telefonado mais vezes ... Eu o pus em contato com uma psicoterapeuta em Londres
que tinha se supervisado comigo. Ela se encontrou com ele várias vezes, mas isso
acabou logo. Eu fiz alguma coisa, mas acho que poderia ter feito mais. Achei que
ele não suportaria uma terapia com alguém que não fosse eu. Tratamento, para
ele, era com Tustin.
PARTE III

Com Freud
e Lacan:
A Estrutura
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN
Benita Losada A Lopes

UMA INTRODUÇÃO

A marcha do sujeito para o acesso ao significante, operação lógica de inserção


no Simbólico, no campo do Outro, passa pela constituição da imagem unificada,
com Lacan afirmando em seu seminário de 1954: "para que ocorra relação ao
objeto é preciso-que haja relação narcísica do eu ao outro" 1 , quer dizer, exige o
imaginário como anteparo, como proteção, consistência ao real sem forma, que o
simbólico virá sustentar.
Seja então pela via dos modelos, dos esquemas, dos grafos, das superfícies
topológicas, dos nós ou por meio de articulações c9mo as do Estádio do Espelho,
ou em tomo dos três tempos do complexo de Edipo, ou pelas operações de
alienação e separação, Lacan fala-nos de momentos, de etapas lógicas na consti­
tuição do sujeito, onde pretende fazer mostração das relações do sujeito ao campo
do significante e suas implicações com o imaginário e o real.
Lacan continuamente recorre aos outros campos do saber, mantém relações
auxiliares com as ciências e faz subversões no sentido essencial de depurar
conceitos psicanalíticos contaminados, viciados e dar conta da transmissão de suas
construções. Pensamos em recorrer a um modelo que Lacan utilizou por mais de
vinte anos, modelo teórico que considerou o "sucedâneo do Estádio do Espelho"2,
sua metáfora princeps. Um modelo que vai tratar da importância constitutiva da
forma, da unidade, da identificação especular, encruzilhada estrutural, encontro
no qual o infans se fixa a uma imagem que o aliena a si mesmo e instaura a
competição agressiva, num primeiro momento, no curso da identificação primeira.
Num segundo momento lógico, o Outro deverá ratificar, sustentar essa imagem
produzida no desejo do Outro, momento hipotético de inscrição ao simbólico,
traço unário, que aliena o sujeito ao Outro.
Em "O desejo e sua interpretação", Lacan, ao reapresentar a célula elementar
de seu grafo, retoma essas articulações dizendo-nos q�e: "na origem está o isso
e no fim da cadeia intencional produz-se o que se chama identificação primária
(I), primeira realização de um ideal, que não se pode dizer que se trata do ideal
do eu, mas sim de aí o sujeito receber uma primeira marca, signo de sua relação
ao Outro, antecedente lógico da identificação ao ideal do eu"3 , que se sustenta no
traço unário, traço que não está no campo primeiro da identificação, traço no que
o "sujeito a ele se agarra, inscreve-se no campo do desejo, que só poderá consti­
tuir-se no reino do significante... É o campo do Outro que determina a função do
traço unário, no que com ele se inaugura o ideal do eu."4
1 03
1 04 O AUTISMO

Grafo

ISSO

É portanto no campo da identificação narcísica que está a mola essencial, a


consistência do ideal do eu. Quer dizer, a identificação imaginária prepara e
possibilita, mas só se ressignifica com a identificação sin1bólica que se faz sobre
aquele traço. Assim é que o Esquema I, das Psicoses, aponta a esse ideal (I)
enquanto suporte, e não ao ideal do eu que implicaria uma herança edípica.
Em Lacan, as leis da intersubjetividade são matemáticas, são lógicas, e neste
sentido, em 1958, a propósito do grafo do desejo dirá: " ... os três esquemas que
acabamos de escrever no quadro para mostrar suas etapas, que não se tratam de
etapas típicas, etapas de desenvolvimento, mas no sentido de uma geração, de
uma anterioridade lógica de cada um dos esquemas em relação ao que se segue"5,
articulação que passa pela lógica do paradoxo de Zenon tão citado por Lacan, pelo
argumento da dicotomia em que, para chegar-se a qualquer ponto, tem-se que
atingir antes um ponto anterior, tem-se que atingir a metade desse ponto buscado.
E pode-se ainda inferir que Lacan, tanto no modelo ótico, como no grafo do desejo
ou com os maternas dos quatro discursos, ou na pergunta de como passar de Toro
à banda de Moebius, supõe momentos resolutivos do sujeito no percurso de uma
análise.
O Modelo Ótico Lacan diz ser "uma maneira de fixar as idéias que as
imperfeições de nosso espírito discursivo reclama, um recurso didático que não
tem pretensão de ser um sistema, mas somente tratar-se de uma imagem de
referência, uma representação gráfica para visualizar o pouco acesso que temos
de nosso corpo."6 Nele inscrevem-se diversas metáforas: da biologia, da lingua­
gem nas formas de narrativa, seja como parábola, seja como apólogo, e principal­
mente da física, especialmente ótica e fotometria, para o que Lacan diz ter-se
baseado em Bouasse, numa experiência da física divertida, a do ramo de flores
ou do vaso invertido.
Na biologia a metáfora sustenta-se no desenvolvimento neurológico e visual
em discordância temporal, na antecipação de um aparelho sobre o outro. E daí o
sujeito ser olho e a apreensão do corpo como unidade, a antecipação de um
domínio ainda não atingido: é o tempo do Estádio do Espelho, que marca uma
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 1 05

operação lógica e não um percurso cronológico ou evolutivo. Nas formas de


narrativa o modelo apresenta-se como apólogo, quer dizer, uma fábula onde os
personagens não são animais, mas objetos: flores, vaso, espelhos. E como parábola
significa uma narrativa alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por
comparação, outras realidades de ordem superior. Tratam-se, portanto, de termos
usados com extrema precisão por Lacan, metáforas superpostas para exprimir sua
teoria, analogias que Lacan adverte não serem rigorosas, mas utilizadas como
aproximações de suas construções.
No desenvolvimento teórico de seu modelo, Lacan, além de demarcar o Outro
da linguagem como antecedendo à emergência do sujeito, enquanto determinação
além e aquém de qualquer drama, assinala a relação, a tensão entre outro imagi­
nário e Outro da combinatória significante e Outro da lei. As estruturas definem-se
das relações do sujeito frente ao campo do Outro Real e Simbólico, é desde o
lugar do Outro que se pode colocar a questão da existência, a enunciação da
estrutura do desejo, do desejo como desejo do Outro. E nesse sentido o modelo
viabiliza a distinção entre neurose e psicose.
No modelo, os espelhos organizam-se numa topologia, onde operam um
sistema de transposições, de escanções do tempo, no percurso lógico do sujeito
na busca da palavra que vem do campo do Outro, de uma inscrição, da marca do
simbólico. O modelo, em que a cada seminário Lacan faz acréscimos, constrói,
faz mostração, sem constituir-se em orientação ou técnica para o manejo de uma
ánálise, demarca um percurso na "direção da cura." E nesse sentido, destaca-se,
no seminário de 53, o seguinte trecho: ''No dia em que tiverem compreendido
porque o analista ocupa o lugar de imagem virtual, terão compreendido quase
tudo do que se passa na análise."7 Neste momento, em 1953, não se trata formal­
mente do analista como semblant de a, mas certamente de uma articulação topo­
logicamente equivalente, que remete ao analista que sustenta o desejo. Depois dos
seminários dos anos 53/54, Lacan retoma o modelo ótico em 58 nas "Observações
sobre o Informe de Lagache...," quando inclui o terceiro esquema e adverte que
não se tome as relações das imagens real i(a) e virtual i'(a) à letra de uma
subordinação ótica, mas como sustentando uma relação imaginária semelhante a
que ocorre na ótica. Os nexos entre princípios da física, presentes no modelo, e a
concepção teórica, que se quer assinalar da psicanálise, fundamentam-se numa
analogia. Quer dizer, "a função do Modelo seria dar uma imagem de como a
relação com o espelho e a captura do eu ideal servem para arrastar o sujeito ao
campo onde se forma, numa só pessoa, numa unidade, o ideal do eu."8 E nesse
sentido esclarece, mais uma vez, que as relações do sujeito com o outro e com o
Outro estão articuladas no Estádio do Espelho, que as relações entre eu ideal e
ideal do eu encontram-se nele inseridas. Ainda nas "Observações ao Informe de
Lagache..." vai colocar que o Modelo Ótico corresponde a um tempo preliminar,
dizendo: " ... o nosso modelo ( ... ) supondo um jogo de imagens não poderia
descrever a função que esse objeto (a) recebe do símbolo. Mas não quer dizer que
o objeto não esteja", com Lacan acrescentando: a, o objeto do desejo, está no
ponto de partida, onde o situa nosso modelo, é, desde o momento em que funciona
ali ( ...), "o objeto do desejo."9 " .•• pode dizer-se que está desde o distribuir as
cartas da partida que se joga. Por isto precisamente que refletido no espelho, não
1 06 OAUTISMO

dá somente o "a" padrão de intercâmbio, a moeda por meio da qual o desejo do


outro entra no circuito dos transitivismos do eu ideal." 10 E nessa vertente dirá em
58 que com o "eu o sujeito constrói alguma coisa que constitui-se diferente da
experiência especular flexível com o outro, porque isso que o sujeito reflete, não
são simplesmente os jogos de prestância, mas ele próprio como sujeito falante"1 1 ,
como sujeito do inconsciente. E ainda no "Informe..." afirmará: "para chegar ao
ponto além da redução dos ideais, é como objeto a no desejo, como o que foi para
o desejo do Outro em sua constituição de vivo... que o sujeito é chamado a
renascer para saber se quer o que deseja." 12
No "Informe", como nos seminários de 53/54, Lacan focaliza, acentua a
relação do real ao imaginário a partir da inscrição simbólica. Enquanto nos
seminários de 60 e 63, "Transferência" e "Angústia", destaca as relações real e
simbólico e assinala a função de dependência e o desamparo (hiljlosighkeit), onde
o sujeito se vê pura e simplesmente soçobrar, transbordado por uma irrupção a
qual não pode fazer frente. E Lacan afirma que entre desamparo e empreender
uma fuga, só há uma solução para o sujeito: esperar. Mas esperar o quê? Pelo
advento da imagem virtual ratificada pelo Outro? Que na marcha em direção ao
significante o eu ideal seja recoberto pela marca do ideal do eu e o sujeito se
constitua como sujeito da enunciação? Tai1.to no seminário sobre a Transferência
como no de Angústia, o esquema privilegiado é o segundo. E nestes seminários
enfatiza o campo do Outro que ratifica a imagem do sujeito, o reconhecimento
que o sujeito recebe como revelação, que é justamente o momento pelo qual o
sujeito espera, espera sua inscrição no campo do desejo, espera fundamental da
constituição do sujeito.
UM COMENTÁRIO AINDA SOBRE O MODELO ÓTICO
O Modelo Ótico, que se apresenta em três tempos, que marcam claramente
uma diferenciação na constituição do sujeito, vamos polarizar com articulações
dos grafos de Lacan e o Fort-Dq freudiano.
No esquema I, do Modelo Otico, a ilusão do jarro de flores invertido ilustra
o caráter de antecipação enganosa da primeira consistência.

O experimento do buquê invertido


O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 1 07

O ramo de flores reflete sobre a superfície côncava do espelho esférico e


vem formar no ponto luminoso simétrico a imagem real: i(a). Imagem que se
produz no ponto de convergência por onde passam os raios refletidos, e não em
seus prolongamentos, e constitui o vínculo inaugural da relação do sujeito com o
Outro. Mas para que a ilusão ocorra é necessário que o observador (olho) esteja
suficientemente afastado do eixo do espelho esférico e côncavo, que esteja dentro
do "cone de emissão", quer dizer, a possibilidade de acomodação do objeto existe
em dependência direta com a posição do sujeito em relação ao campo do Outro,
que só então poderá constituir-se como um pequeno apêndice que titila o córtex.
Assim sendo, a presença dessa dialética entre olho como lente (sujeito), que
capta a imagem, e o córtex (Outro Real) que produz a possibilidade de se dar a
imagem real, implica uma passagem. O sujeito (olho) ir ao "cone de emissão"
significa que passa a ter condições de reação de apelo, possibilidade de recusa
(refus), significa que a imagem possa vestir o real, cuja desordem é solidária da
prematuração doinfans. Fora do "cone de emissão", é o sujeito à deriva, sem
capacidade de domínio, atravessado pelo real. E tanto no Grafo do Desejo (57/(IJ),
como no Grafo do Sujeito (62/63), Lacan refere-se a um tempo primeiro, a um

A S Gozo

a � Angústia
-$-
Desejo

momento hipotético, que assinala como um tempo mítico de inscrição necessária


para o sujeito articular-se ao Outro da Lei, a um tempo de constituição da imagem
real i(a) que indicaria, que faria mostração do acesso a uma primeira bejahung.
O esquema II do modelo, com a inserção do espelho plano que produz
imagem virtual i'(a), remete ao nó que enlaça real, simbólico e imaginário. O
espelho plano introduz uma partição no espaço, que corresponde à alienação ao
significante do Outro, uma partição correlativa à extração do objeto. Deste modo,
o sujeito barrado é o sujeito que acedeu à imagem virtual viabilizada pelo espelho
côncavo e constituída pelo espelho plano, ação específica de entrada em vigor da
estrutura do desejo marcado pela castração. O espelho plano, campo do simbólico,
campo do Outro da Lei, não é só reflexo -córtex que recebe e reflete - mas um
lugar que indica que o sujeito do inconsciente constitui-se como barrado, onde
desejo e lei estão articulados.
1 08 O AUTISMO

-- -- - - - -- ......

''
Espelho Plano

\
\
Espelho
Côncavo I
I
I
.,,
..... .... - -- -- - - - -
'
> ,,
Y'
,,
Esquema dos dois espelhos

Este segundo esquema é uma outra forma de dar conta da metáfora paterna:

NP . DM -+ NP (A) FALO
DM X FALO

que na primeira equação o Nome do Pai (NP), enquanto marca indispensável à


emergência do sujeito do inconsciente, barra o desejo da mãe (DM) e lança o
sujeito numa pergunta enigmática, no famoso Che Vuoi? E na segunda equação
articula o campo do Outro ao significante falo, significante do desejo. Trata-se de
um momento estrutural que em Freud é um drama, a descrição de um mito, em
Lacan é um significante em funcionamento, uma produção, uma equação algébri­
ca. E a foraclusão deste significante ímpar vem dar conta de transtornos da cadeia
significante, manifestos nos fenômenos clínicos da psicose. É pela incidência do
significante do Nome do Pai, pela marca da castração, que o sujeito deseja.
Portanto o segundo esquema do modelo remete ao sujeito além da captura pela
imagem.
Entre esses dois esquemas, inscreve-se o Fort-Da, ilustrado por Freud no
movimento do carretel, sobre o qual Lacan dirá: "não é a mãe reduzida a uma
bobina, é alguma coisa do sujeito que se desloca, embora sendo bem dele, que
ele ainda segura" 13, quer dizer, no Fort-Da, o objeto literalmente não se extraiu,
mas sua queda é eminente, anterioridade lógica ao sujeito do desejo propriamente
considerado. Dito de outra forma, "o par opositivo presença/ausência, a conotação
( +) (-) nos dá o primeiro elemento, não o suficiente para constituir uma ordem
simbólica, que exige uma seqüência agrupada como tal, ainda que, na oposição
( +) (-), haja virtualmente a possibilidade, a condição fundamental de uma ordem
simbólica." 14 Neste sentido, um testemunho de quando o sujeito se inclui na
cadeia como o Outro o nomeia é o sonho de Anna Freud aos 19 meses, como no
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 1 09

teste de Binet, o sujeito não sabe subtrair-se da cadeia e responde: "Eu tenho três
irmãos, Paulo, Ernesto e Eu", e Lacan então dirá: " ... alguma coisa não está
terminada, preciptada pela estrutura, ainda não se distingue, na estrutura, o que é
reflexo (eu ideal) e o que é traço (ideal do eu)" 15 , não se trata ainda do sujeito
cujo significante o representa para outro significante.
Os grafos e os esquemas do modelo são articulações que não se superpõem,
mas, com o Fort-Da, cada um em seus termos, remetem às mesmas articulações
sobre o percurso lógico, sobre a marcha para o acesso ao significante, à estrutura
do desejo, que exige a imagem unificada e comporta a distinção entre gênese do
eu e constituição do sujeito e evidencia momentos lógicos da construção, de uma
escritura possível numa análise.
O esquema III do modelo demonstra que, uma vez que o sujeito alcançou a
posição S2 em I (S 1 - S21), percebe diretamente a ilusão do vaso de flores invertido
e verá refazer-se no espelho plano na horizontal, numa rotação de 90°, quarto de
volta que faz pensar na passagem do materna do discurso histérico ao discurso do
analista (uma imagem virtual i'(a) + a do mesmo vaso de flores que inverte de
novo a imagem real, cujo reflexo é agora no lago, na água, sem cristalização.

1 80°

Espelho
A

O sujeito vem barrado e enfrentará a imagem real em seu caráter de ilusão.


Nesse percurso em que a "ilusão se desfalece, ocorrem os efeitos de despersona­
lização" 16, signos de travessia de uma análise e não limites da estrutura. E, nesse
sentido, Lacan dirá em 58: "... ao nível dessa terceira etapa intervém a experiência
especular... o que articulamos em nosso primeiro seminário referente às relações
do eu ideal e ideal do eu, que constitui a ação simbólica essencial."17 Quer dizer,
será com o recobrimento, com o seu eu, que o sujeito se defenderá da irrupção
do real, mesmo no final de uma análise, quando a imagem virtual se faz no lago,
na água enquanto espelho, testemunha da báscula entre o que é da ilusão, do
recobrimento e o vazio.
1 10 OAUTISMO

Na quarta etapa do Grafo do Desejo, no grafo completo, na parte superior,


haveria uma equivalência topológica com o esquema III do modelo ótico, no
sentido de que ambos remetem ao sujeito do desejo do final de uma análise.

Grafo Completo

Gozo
(S ◊ a)

Significante
Voz

1 (A) 3

No materna da pulsão (S◊ D), o sujeito está alienado ao significante do Outro,


quando não há distinção entre demanda e desejo e a mostração topológica se faria
com uma superfície, o toro neurótico. No grafo, a seta se volta para o desejo (d),
onde há possibilidade de desmontagem da pulsão, que vai permitir a travessia do
fantasma (S◊a) de onde partem setas em duas direções diferentes, que, como
sabemos, estão superpostas: S (A), significante da falta do Outro, e s(A), signifi­
cado do Outro, lugar do resto do corte de dupla volta, lugar do sintoma enquanto
ponto irredutível, singular, lugar do corte de um oito interior.

Sobre o Autismo e o Sujeito lnconstituído


No curso de seu primeiro seminário em Sainte Anne (53/54), quando Lacan
introduziu seu Modelo Ótico, fez referência a um caso clínico de Melanie Klein,
o caso Dick, que supomos ser um quadro de autismo, tendo como referência a
descrição fenomenológica da síndrome nomeada por Leo Kanner em 1943. Dick
é um caso que aparece em Contribuições à Psicanálise, no artigo "A Importância
da Formação de Símbolos no Desenvolvimento do Ego", um relato que pretende
comprovar que o recalque -mecanismo que em Melanie Klein não está particu­
larmente vinculado à neurose-opera a passagem da identificação à simbolização,
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 111

mas, se o recalque for muito intenso, ocorrerá inibição no desenvolvimento do


ego. E, segundo Melanie Klein, a psicanálise com crianças permitiria superar a
intensidade do recalque, liberar o processo de identificação, instalando-se o de
simbolização e daí surgirem as sublimações, com o desenvolvimento das habili­
dades e da capacidade mental. Para Melanie Klein, enquanto a criança opera
apenas por identificações, os objetos são sempre iguais entre si: peito é igual a
dedo, que é igual a pênis, em operações que servem para satisfações imediatas,
não havendo crescimento. As identificações não implicariam recobrimentos, mas
justamente um tempo de não diferenciação radical. Mas, quando há passagem da
identificação à simbolização, surgem as noções de diferença e de semelhança
parciais e a atribuição de significados. Isto é, objetos e ações diferentes passam a
ter alguns significados semelhantes, o que vai dar margem ao processo de deslo­
camento em que fezes podem ser simbolizadas por massinha. Este processo de
simbolização permite o deslocamento da libido para outros objetos. E, deste modo,
tarefas e atividades que em si mesmas não tinham tonalidade prazerosa passam a
ter, permitindo, de modo socialmente aceito, fazer novas equações que formam a
base do interesse em novos objetos e do simbolismo, que vai tornar-se o funda­
mento de toda fantasia e da sublimação. Melanie Klein vai dizer que, segundo
Ferenczi (1912), a identificação é precursora da simboli zação e que Erne-st Jones
(1919) estuda o simbolismo baseado no princípio do prazer, em que dois objetos
são igualados pela similaridade proporcionada pelo prazer ou interesse. Melanie
Klein autoriza-se nesses dois psicanalistas, m�s acrescenta que, ao lado do inves­
timento libidinal, é a angústia, despertada no Edipo precoce, que põe em marcha
o mecanismo da identificação, período em que o sadismo oral e anal estão em seu
clímax, levando a criança a querer destruir os órgãos (seio, pênis) que são seus
objetos e daí advir o temor à retalhação por estes objetos. A falta de satisfações
libidinais aumenta as tendências sádicas da criança e contribui para reforçar a
angústia. E é esta angústia que leva a criança a igualar os órgãos atacados com
outros objetos. E, devido a �ssa equação, esses outros objetos passam a ser
também objetos de angústia. E a angústia que cria o elo entre objetos diferentes
na realidade, mas equivalentes na fantasia, já que, tal como os conteúdos do corpo
materno, esses objetos são vistos no contexto do sadismo infantil, em que repre­
sentam o papel de agressores, como provocadores de forte angústia (persecutória).
Portanto, em Melanie Klein, não é apenas por prazer, como em Jones, mas para
aliviar-se da angústia que a criança passa a novos objetos, igualando-os por
equivalência simbólica. E, devido a esta equivalência, esses objetos se converterão
em objetos da angústia (retalhadora) e, deste modo, a criança será impelida a fazer
novas equações de equivalência. Assim constitui-se o que Melanie Klein chama
círculo vicioso dominado pela pulsão de morte que faz com que o sadismo gere
angústia e angústia reforce o sadismo. Melanie Klein então supõe que para dar
conta do circuito: sadismo --+ angústia --+ sadismo, impõem-se mecanismos de
defesa específicos. Em relação ao sadismo, usa a projeção (expulsão) e quanto ao
objeto recorre, a destruição. O objeto atacado converte-se em forte perigo, porque
o sujeito teme a retalhação, daí que o excesso de sadismo provoca angústia que
põe em funcionamento os mecanismos de formação de símbolos. E, neste sentido,
com o caso Dick, Melanie Klein pretende comprovar que, ocorrendo inibição no
112 OAUTISMO

desenvolvimento do ego, não surge a angústia indispensável ao processo de


formação de símbolos que levaria o sujeito ao processo de sublimação. A trilogia
kleiniana na direção da cura seria: identificação -+ simbolização -+ sublimação.
O caso Dick foi apresentado em 1930, com a definição diagnóstica fazendo-se
com restrições. O caso havia sido considerado como demência precoce pelo Dr.
Forsyth por apresentar "ausência total de afetividade, falta de acessibilidade, bem
como falta de rapport emocional, conduta negativista, alteman do com indícios
de obediência automática, indiferença à dor, perseveração." Diagnóstico questio­
nado por Melanie Klein já que não ocorrera regressão no desenvolvimento e os
casos de demência precoce serem raros na primeira infância. Melanie Klein
também elimina a hipótese de neurose pela ausência de angústia, ainda que
considerasse a expressão dos olhos e do rosto comparável a dos portadores de se­
veras neuroses. E tendo por base que a esquizofrenia infantil era muito mais
freqüênte do que supunha-se, Melanie Klein a propõe para Dick, já que em seu
caso o transtorno era "inibição no desenvolvimento" e não regressão após haver
superado com êxito etapas de seu desenvolvimento.
Melanie Klein relata que Dick, ao falar, utilizava incorretamente seu escasso
vocabulário. Era incapaz de fazer-se entender, como também não se importava
em ser compreendido. Na oposição ou na obediência não se percebia qualquer
afeto. Demonstrava grande insensibilidade à dor, revelando desinteresse em ser
consolado. Melanie Klein confirma, em seus termos, a descrição fenomenológica
do Dr. Forsyth.
Lacan destaca, em 53, que Melanie Klein desde o primeiro contato com Dick
caracterizou-o por apático, indiferente, mas não dava impressão de idiota, longe
disso. Não se tratava portanto de debilidade mental. E Lacan acrescenta: "Olhava
Melanie Klein como se olhasse um móvel" 18, em Dick a realidade era uniforme,
"tudo lhe era igualmente indiferente." E Lacan assinala que Dick dispunha de
certos elementos do aparelho simbólico, mas sem bejahung: "certo já tem alguma
apreensão dos vocábulos, mas deles não faz a bejahung, não os assume" 19 e sem
a bejahung, sem a inscrição primordial, fala-se como papagaio. Mas Dick estava
na linguagem - o que elimina a possibilidade de incluí-lo em uma determinação
pré-verbal, já que o Outro do significante pré-existe a todo sujeito, não há como
escapar a esta determinação maior.
E Lacan acrescenta "no consultório de Melanie Klein não há, para ele, nem
outro, nem eu, há uma realidade pura e simples"2º e dirá que seu modelo demons­
tra as intrincações entre imaginário e real, que é justamente o que Dick vem
ilustrar. Em Dick "a realidade é uniforme, tudo lhe é igualmente real, igualmente
indiferente- portanto deduz-se sem ter constituído imagem real enquanto primei­
ro traço do campo do Outro. E a intervenção de Melanie Klein introduz a primeira
dissimetria entre imaginário e real, antes indiscriminados"21 e testemunha a pos­
sibilidade de uma construção em análise, de que no campo do real alguma borda
se pode fazer, alguma "reparação"se anuncia.
Mas Melanie Klein, após seis meses de atendimento, faz um prognóstico
favorável no sentido de que com poucas palavras foi possível estabelecer contato
com ele, foi possível ativar a angústia e depois regular gradualmente a angústia
liberada
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 113

Com Dick, Melanie Klein achou necessário modificar sua técnica habitual,
já que somente interpretava quando o material se expressava em várias represen­
tações. Melanie Klein usou como base para suas intervenções seu conhecimento
teórico, interpretou do lugar do saber. Na primeira sessão Melanie Klein comenta
que Dick "não manifestou qualquer espécie de afeto quando a babá o deixou e
retirou-se da sala, e, quando lhe mostrou os brinquedos, olhou-os sem o menor
interesse."23 E então Melanie Klein descreve que pegou um "trem grande", colo­
cou junto a um "trem menor" e os denominou: "papai e Dick." O menino pegou
o trenzinho Dick, rodou até a janela e disse: "estação." Melanie Klein explica-lhe
que "estação é mamãe e Dick está entrando na mamãe." Dick larga o trem e corre
até o espaço entre as portas interna e externa da sala e ali fechou-se dizendo:
"escuro." Em seguida sai correndo e repete várias vezes "escuro''.23 Melanie Klein
novamente explicou-lhe "está escuro dentro da mamãe, Dick está dentro da
mamãe", quando então Dick verbaliza duas vezes, em tom de interrogação: A
babá? A babá?
Na terceira sessão, Melanie Klein narra que "comportou-se da mesma manei­
ra, correndo para o esconderijo entre as portas, mas também escondendo-se atrás
da cômoda, sendo então tomado de anfil1stia e a chamou pela primeira vez, mas
perguntando constantemente pela babá." 4
Lacan abre seu comentário sobre o caso Dick dizendo que Melanie Klein
"enfia simbolismo no pequeno Dick"25 , que Melanie Klein "joga Dick brutalmen­
te no mito edípico."26 E Lacan conclui, "mas é certo que depois dessa intervenção
alguma coisa se produz."27
Para Lacan, como já dissemos, Dick era um "jovem sujeito inteirinho na
realidade, em estado puro, inconstituído (inconstituée) ... no indiferenciado"28 e
a intervenção de Melanie Klein opera como uma verdadeira injeção de simbólico.
O Édipo, enquanto lei fundamental, é a lei da simbolização. Quer dizer, Dick, que
vagava na linguagem, após a interpretação de Melanie Klein, verbaliza seu pri­
meiro apelo, apelo falado. E Lacan dirá que, até então, Dick apresentava negati­
vismo, quer dizer, desmescla pulsional, ausência de componentes libidinais, como
Freud define em "A negação" (1925). Em Dick, real e imaginário eram equiva­
lentes, havia desarticulação entre os registros, em Dick, essas categorias estavam
soltas. A intervenção de Melanie Klein permite alguma organização com Lacan
dizendo que todo um processo parte desse primeiro afresco que constitui uma
palavra significativa.,
Segundo Lacan, quando Dick pronuncia a palavra "estação" ocorre a primeira
articulação entre simbólico e imaginário, momento crucial, "momento em que se
esboça a junção da linguagem (simbólico) e o imaginário" 29 e a intervenção de
Melanie Klein vai constituir-se como "uma primeira marca significante que ...
produz reação de apelo, que não é simplesmente um "apelo afetivo", mimetizado
º,
por todo seu ser, mas apelo verbalizado que comporta resposta"3 portanto ocor­
reu um certo endereçamento ao campo do Outro. "Apelo" supõe um Outro, onde
a palavra possa enlaçar-se, articular-se e retornar uma significação. Em Dick, a
partir "dessa primeira célula, desse núcleo palpitante de simbolismo, Melanie
Klein diz ter-lhe aberto as portas do inconsciente."3 1 Quer dizer, dirá Lacan, "é
1 14 O AUTISMO

o discurso de Melanie Klein que enxerta, brutalmente, sobre a inércia egóica


inicial da criança, as primeiras simbolizações da situação edípica."32 A reação de
apelo no campo da palavra é a possibilidade de recusa (refus). E Lacan enfatiza
que diz possibilidade, que o apelo em Dick não implica recusa, não implica
nenhuma dicotomia, nenhuma bipartição. Lacan destaca que, no momento em que
se produziu o apelo, estabeleceu-se no sujeito as "relações de dependência", mas
não se trata ainda da alienação ao desejo do Outro, do sujeito da enunciação, mas
de um momento lógico anterior, de uma passagem lógica na direção da cura.
Dentro da topologia dos espelhos, de acordo com a metáfora do Modelo
Ótico, que articula, como dissemos, um percurso lógico da gênese do eu e da
constituição do sujeito, o acesso à imagem real estava vedado a Dick, havia para
ele a impossibilidade da ótica dos espelhos, não havia ainda conjunção entre a
forma imaginária e real dos objetos, tratava-se de um sujeito inconstituído, mas
a intervenção de Melanie Klein possibilitou-lhe acomodação essencial, ainda que
houvesse um percurso lógico a ser atravessado, fez-se a estrutura funcionar.
Em Dic�, a "reação de apelo" indicaria que saiu do banho da linguagem, onde
estava imerso e movimenta-se de outra forma no campo do real, no espelho
côncavo formava-se a imagem real i(a ), fazia-se o recobrimento do objeto.
Assim sendo supomos que o autismo documenta, dá conta de uma falha
primordial, precoce qa constituição do sujeito, do sujeito enquanío sujeito do
desejo. Pelo Modelo Otico, o autismo coloca o sujeito fora do "cone de emissão",
sem conseguir formar a imagem real i(a), que funcionará como objeto e permitirá
a formação da imagem virtual. No autismo, trata-se de um sujeito no puro real,
cujo estatuto é o do sujeito inconstituído na estrutura, excluído do campo do
desejo.
Essas articulações espaciais e temporais, dentro de uma seqüência topológica
e lógica da estrutura, são a mostração, na transmissão lacaniana, de um percurso
na "direção da cura", vêm dar conta da constituição do sujeito do desejo em suas
torções em uma análise.

NOTAS
1 . LACAN, J. Livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 954-1 955.
2. -. Livro 1, Os escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, 3. ed., Jorge Zahar Ed.,
1 953-1 954.
3. -. Seminário VI, Les desir et ses interpretation, inédito, 1 958-1 959.
4. -. Livro 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 964-1 965.
5. -. Seminaire VI, Les desir et ses interpretation, inédito, lição 5, p. 4, op. cit.
6. -. Livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, op. cit.
7. -. Livro 1 , Os escritos técnicos de Freud, p. 1 86, op. cit.
8. -. Observación sobre el informe de Daniel Lagache: "Psicoanálisis y estructura de la
personalidad." México, in: Escritos 2, Siglo veintiuno ed., 1 960.
9. -. Ibidem, p. 303/306, 606.
1 0. -. Ibidem, p. 602.
O SUJEITO "INCONSTITUÍDO" EM LACAN 1 15

1 1 . -. Seminaire VI, Les desir et ses interpretation, op. cit.


1 2. -. "Observación sobre el informe de Daniel Lagache: Psicoanálisis y estructura de la
personalidad", op. cit.
1 3. -. Livro 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit.
1 4. -. Seminário IV, A relação de Objeto, inédito, 1 956-1 957.
1 5. -. Ibidem.
1 6. -. "Observación sobre el informe de Daniel Lagache: Psicoanálisis y estructura de la
personalidad", op. cit.
1 7. -. Seminaire VI, Les desir et ses interpretation, op. cit.
1 8. -. Livro 1 , Os escritos técnicos de Freud, op. cit.
1 9. -. Ibidem.
20. -. Ibidem.
2 1 . -. Ibidem.
,
22. -. Klein, M . . ,A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego."
in: Contribuições à Psicanálise. S. Paulo, Ed. Mestre Jou, 1 93 0, p. 3 1 5.
23. -. Ibidem.
24. -. Ibidem.
25. -. Livro 1 , Os escritos técnicos de Freud, op. cit.
26. -. Ibidem, p. 93.
2 7. -. Ibidem, p. 84.
28. -. Ibidem, p. 84.
29. -. Ibidem, p. 1 02.
30. -. Ibidem.
3 1 . -. I bidem.
32. -. I bidem.
O QUE O AUTISTA NOS ENSI NA.
Considerações Sobre a Alienação e o Autismo*

Eduardo Alfonso Vidal


Maria Cristina Vecino Vidal

A psicanálise não recua ante o autismo. O quadro clínico de autismo infantil


introduzido por Kanner foi reduzido pelo olhar psiquiátrico a uma minuciosa
descrição fenomenológica. Nos últimos vinte anos, a moderna neuropsiquiatria,
imbuída do novo espírito científico, condena o autismo a uma causa genético-he­
reditária. A gravidade desta posição consiste em desculpabilizar os pais de sua
responsabilidade na causação do autismo para relegá-la à natureza atávica; com
isto é forcluído o lugar possível de uma interrogação do campo do Outro que
permita a essa criança, confinada numa realidade fechada, advir como sujeito. O
que foi forcluído retorna no real e esse resto silencioso da ciência encontra, no
discurso analítico, as condições para aceder à palavra. Esse é o único discurso que
pode escutar o que o autista tem a dizer. E questionar seu consentimento à
estrutura que o aprisiona. Pois, a suposta passividade do autista mascara a rejeição
ativa do Outro que está no cerne de sua posição. A criança autista, excluída do
Outro da palavra, goza e ainda sustenta, sem sabê-lo, o sofrimento e a angústia
de seu entorno.
Nosso trabalho interroga o modo de entrada do sujeito na linguagem. Com
Freud, traça-se um vetor que, desde o "Projeto" até a "Denegação", estabelece a
função do grito no acesso à palavra e a identificação do sujeito ao Outro. O texto
freudiano demarca o lugar necessário para esse resto expulso da linguagem, o real
inassimilável. No seio da operação de alienação, Lacan introduz a função de uma
forclusão mais radical que a do Nome-do-Pai; dela; essa é nossa proposta de
trabalho, depende a constituição do sujeito autista. De uma leitura crítica dos casos
clínicos da psicanálise extraimos três momentos exemplares para o tratamento
possível do autismo.
O autista, na sua posição de profunda rejeição do Outro, não só informa à
psicanálise sobre pontos opacos da constituição do sujeito no limite da linguagem
como também força o psicanalista a reinventar a psicanálise.
*A Lydia Coriat.

117
1 18 OAUTISMO

A ALIENAÇÃO
O Projeto Freudiano, entre o Grito e a Coisa
Uma sistematização da operação de alienação do vivente no campo do Outro
é essencial para pensar a cura da criança autista pela psicanálise.
Em 1895, Freud introduz a "experiência de satisfação" que determinará a
primeira inscrição fundante de um aparelho psíquico. No "Projeto", como estamos
acostumados a chamá-lo, Freud dá a formulação mais pormenorizada da entrada
do "organismo humano" na linguagem. Que os termos sejam tomados da neuro­
logia, não implica que o aparelho deva ser identificado a um órgão biológico. O
aparelho do "Projeto" é constituído por conexões entre neurônios e barreiras de
contato que possibilitam a circulação e regulam as passagens de Q (quantidades).
A circulação de Q não é inteiramente livre nos neurônios, pois uma certa
resistência , equivalente em todas as barreiras de contato, opera como uma cons­
tante a ser vencida em cada passagem. A quantidade Q provém do exterior do
aparelho, seja do mundo externo ou do corpo próprio existente como radicalmente
alheio ao sujeito. O aparelho deve lidar com as Q e seu primeiro trabalho é
livrar-se delas pelas vias de descarga. Porém ::is passagens constantes de Q deixam
trás de si rastros duradouros que denominamos memória e que constituem o
sistema 'I', uma escritura dos trilhamentos (Bahnungen) preferenciais na consti­
tuição de um sujeito. Um aparelho assim constituído não se descarrega comple­
tamente e deve aprender a suportar uma certa acumulação da Q. Como conse­
qüência da impossibilidade do escoamento total da Q, o aparelho deve aprender
a suportar esse aumento do nível da tensão, trabalho que promove novas diferen­
ciações, novas ramificações simbólicas que produzem atos transformadores no
mundo exterior. Consideramos importante salientar que o aparelho se encontra
especialmente despreparado para a Q do corpo, antecedente teórico do conceito
de pulsão. Ela é recebida pelo sistema 'I' como algo heterogêneo, isto é, como um
real traumático, excessivo e "antes"do tempo. O sistema 'I' chega sempre "só
depois" (nachtrãglich). Dessa discordância, surge uma urgência no aparelho que
se realiza como descarga pela via do ato. De acordo com a experiência, a primeira
via percorrida é a da alteração interna, caracterizada pelo grito. Freud se refere
aos signos de descarga de linguagem (Sprachabfuhrzeichen) essenciais para a
inscrição da criança na dimensão do símbolo. Devemos destacar que o aparelho
é constituído de uma falta (Mangel) que é suprida pelos signos de linguagem .
Como se chega à associação com esses signos? A linguagem é correlativa da
função do juízo (Urteilsleistung) e funciona como válvula de segurança na regu­
lação da Q no aparelho através do trilhamento (Bahnung) que conduz à alteração
interna antes da descoberta da ação específica. O grito é, em princípio, um meio
de descarga da tensão de Q acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado
de desamparo e urgência em que se encontra a criança . A função secundária desse
trilhamento é servir ao entendimento (Verstãndigung), quando incluída a ajuda
alheia na ação específica. Para o ser falante os aparelhos de adaptação à vida são
precários e isso é decorrente do fato de estar submetido à linguagem. É imperativo
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 19

que ele faça saber sua carência e estabeleça um acordo com o Outro. Estes sentidos
se encontram no termo Verstiindigung e caracterizam com precisão a função
simbólica que se inaugura com o grito. O Outro é chamado a socorrer essa carência
inicial que Freud denominara Hilflosigkeit, desamparo. A intervenção do mundo
exterior constitui a ação específica. Citamos Freud:
"Como demostramos inicialmente nenhuma descarga desta espécie pode
esgotar a tensão, pois apesar dela persiste a recepção de novos estímulos
endógenos, que restabelece a tensão psi. Neste caso, a estimulação só pode
ser abolida por meio de uma intervenção que suspenda transitoriamente o
desprendimento de Q no interior do aparelho e uma intervenção desta espécie
requer uma alteração no mundo exterior(aporte de alimento, aproximação do
objeto sexual),que sendo uma ação específica só pode ser alcançada por
determinadas vias ... Esta via de descarga adquire assim a importantíssima
função secundaria do entendimento e o desamparo original do ser humano se
converte assim em fonte primordial de todas as motivações morais". 1

A tensão do "organismo"só é mitigada com a intervenção de uma ajuda alheia.


Incapaz de realizar a ação especifica sem ajuda exterior, o "organismo"é compe­
lido a i11screver-se na linguagem e, com isso, trocar suas necessidades em deman­
das. Ele não só recebe o alimento; recebe também a palavra. O grito tem uma
função primordial nessa inscrição, por estar enlaçado, desde o início, com a
linguagem. A descrição freudiana da emergência do objeto esclarece a intrincada
relação do sujeito com a linguagem. Há objetos, diz Freud, que nos fazem gritar,
porque nos causam dor, estabelecendo-se, a partir de então, a associação entre o
som (Klang) do grito e o objeto. Porém não se trata de uma simples associação
por simultaneidade, pois é a notícia do próprio grito que serve para caraterizar o
objeto como hostil . Portanto o grito só marca o objeto quando for escutado pelo
próprio sujeito. Nesse instante, o sujeito se divide em aquele que emite o som e
aquele que recebe a notícia. A partir daí, "só falta um curto passo para chegar à
invenção da linguagem."2 (S.Freud). Nesse intervalo se constitui o semelhante, o
próximo (Nebenmensch ). O que denominamos o "eu" é a parte conhecida do
complexo do semelhante, originada a partir da imagem de seus movimentos, que
se precipita como imagem do próprio movimento (eigene Bewegungbild). Retor­
naremos a esta questão mais adiante, quando nos referirmos à Coisa, mas, no
momento, queremos destacar que o sujeito surge como divisão a partir da notícia
que recebe de seu próprio grito, isto é, quando, no retomo, se escuta no grito que
proferiu.
A totalidade do processo - a ação específica no mundo exterior que suprime
momentaneamente no interior do corpo a inadiável tensão - é uma experiência
de satisfação. Suas conseqüências são decisivas para o sistema 'I'. O desamparo
foi suprimido momentaneamente com a descarga, estabelecendo-se um trilhamen­
to (Bahnung) entre os investimentos dos neurônios que correspondem à percepção
do objeto que realiza a ação e aqueles que registram a descarga dos movimentos
reflexos após a ação específica. O trilhamento assim estabelecido precede na teoria
a noção de um aparelho como superfície de inscrição de rastros mnémicos. O
sistema 'I' constitui o sistema de memória. Assim a experiência de satisfação
1 20 OAUTISMO

produz um trilhamento duradouro entre duas imagens mnêmicas a. e 13, a do objeto


desejado e a do movimento reflexo, investidas durante o estado de desamparo.
Ante uma nova urgência e estando o objeto ausente, o investimento passa às duas
lembranças, reativando-as. Essa reativação desiderativa provoca algo similar a
uma percepção, porém, radicalmente diferente, pois o objeto ausente é alucinado.
Na "Interpretação dos sonhos" (1900), Freud prescindirá da linguagem neuronal
e formulará o desejo em termos estritamente psicanalíticos. O desejo emerge,
quando, ante a falta do objeto, são investidos simultaneamente os traços da
experiência de satisfação. Portanto é condição do desejo a primeira inscrição que
se substitui no lugar do objeto faltante à satisfação.
Lacan faz seu retomo à letra de Freud, privilegiando a estrutura da linguagem
em que o sujeito do inconsciente se constitui. A partir do texto freudiano, estabe­
lece a tríade de necessidade-demanda-desejo. Precisamente, nesse texto, o termo
demanda aparece velado pela palavra exigência, proposta para traduzir os termos
freudianosFordenmg e Anspmch. A demanda é exigência ao Outro e do Outro.
Áo propor o termo demanda, Lacan destaca a estrutura significante que determina
o sujeito em relação ao Outro. Entre necessidade e desejo, se interpõe o registro
da demanda Para o ser falante, a necessidade é sujeitada às exigências da deman­
da, isto é, deve submeter-se à forma significante para retornar alienada, como
mensagem, do lugar do Outro. Porém não toda a necessidade é articulável na
estrutura significante da demanda; uma parte dela é definitivamente perdida como
Urverdriingung, recalque originário.
O grito, como um furacão, atravessa o Outro, constituindo a porta de entrada
do infans na linguagem. Ele faz apelo ao Outro. A mãe está em posição de
interpretar esse apelo com o significante. Ela representa o Outro que fala ao bebê,
apresenta-lhe insistentemente os primeiros pares de significantes, faz-lhe ouvir as
diferenças de sons, demanda-lhe a repetição desses sons, indica-lhe o que ele
experimenta. A psicanálise reduz freqüentemente essa função aos cuidados ma­
ternos, esquecendo que o Outro é interessado aí na sua dimensão simbólica. No
entanto o que está em jogo nesse primeiro encontro do bebê com a mãe é a
apresentação de um lugar primordial para o enodamento e a produção da cadeia
significante. A mãe, no lugar do Outro, constitui das demandas um saber. Esse
saber, S2, é necessário para fechar o par significante que, ao fazer retomo, produz
o significado do sujeito, s(A). Pode estabelecer-se a -suposição de um tempo
primeiro que corresponde ao St só, ao significante original , irredutível e traumá­
tico, cerne do recalque originário. O sujeito ainda não subsiste como tal por falta
do segundo significante. Antes de poder articular a cadeia, o sujeito é um X no
campo do Outro. Só num segundo tempo, ele se inscreve a título de demanda.
Nesse tempo constitui-se o dito que porta a marca do capricho do Outro, de seu
caráter insensato.O sujeito encontrará, na cadeia significante, a dimensão que
espera seu complemento do Outro. Porém, nesse lugar, o significante também
falta como o demonstra a parte da necessidade que, por não poder-se articular à
cadeia significante (Urverdriingung), reaparece no além da demanda como desejo.
A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, apresenta a falta que o infans é chamado a
suturar segundo modalidades que analisaremos depois. Por enquanto dizemos que
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 21

é da relação do Outro com a sua falta que dependerá a estrutura psíquica do sujeito.
Assim não há como surpreendermo-nos com o fato de que a renovada tentativa
de satisfação da necessidade veiculada pela demanda possa ocasionar como re­
sultado uma devastação psíquica. A demanda é sempre de outra coisa diferente
do que ela evoca, pois ela se endereça à falta do Outro. Ela é demanda de amor;
o que o Outro oferece é sua falta sob a forma de seu dom. O discurso analítico,
ao restituir a função de falta da demanda, faz surgir a pura perda como condição
absoluta do desejo.
No campo do Outro, onde a demanda é articulada, produz-se a dimensão do
sentido. O Outro primordial é interpretante e imprime seu capricho àquilo que
ouve. A onipotência não é do bebê, como a psicanálise tende a afirmar, mas do
Outro que decide pelo significado da mensagem e age concomitantemente. O
sujeito, desde seu nascimento, e ainda desde antes, está submetido ao mal-enten­
dido de habitar a linguagem. Esse é o verdadeiro trauma de nascimento. O Outro
é primordialmente o lugar de um saber, da suposição de um saber poder responder
às demandas do sujeito. A entrada do vivente no simbólico faz-se ao preço dessa
alienação em que o Outro representará o todo poder da palavra sobre o sujeito.
Interroguemos ainda a função do grito. Lacan no seu seminário "Problemas
cruciais para a psicanálise" (1964-65) nos indica que o grito se diferencia de
qualquer outrn forma de linguagem por fazer ressoar esse oco do Outro que
encontramos em nós mesmos, esse oco infranqueável ao qual nos aproximamos
com precaução. O grito constitui o vazio por onde o silêncio se precipita. Se 1.acan
na sua primeira pontuação sobre o grito o situa na sua dimensão pré-significante,
na retomada da questão, em 1965, enfocará o grito na sua relação com o vazio do
Outro que ele próprio cava. No grito há um aparelho que emite o som, mas falta
o corte próprio da cadeia significante, quando ela se vocaliza no discurso. Trata-se
da voz , esse objeto que faz do grito algo diferente a qualquer demanda exprimida
na sua forma modulante. 1.acan cita o quadro de Munch, onde o sujeito, ao gritar,
tampa os ouvidos. Quem escuta esse grito? Pergunta-se. O contorno de duas
figuras sobre a ponte presentificam o Outro. Há uma borda feita de três barras
que divide o quadro no sentido da diagonal e separa a ponte de um turbilhão de
linhas curvas que apresentam o vazio aspirante, esse abismo que é a face real do
Outro, onde o grito se repercute sobre uma baía azul num céu cor de sangue. Nós
estamos frente ao quadro que nos requer como olhar. Munch dá o suporte para o
insuportável e produz algo da ordem do que Paul Claudel denominava - "o olho
que escuta;' Quem escuta esse grito? Pois nós temos o silêncio. O grito produz
o silêncio. E a hiância aberta na qual se desenha a borda do vazio do ser falante.
Freud reconhece no complexo do semelhante a parte muda, inassimilável que
permanece imutável: a Coisa (das Ding). Excluíd,a no interior do campo do Outro,
a Coisa não recebe atributos, não é predicável. E o fora-significante na estrutura
da linguagem que inaugura uma nova topologia do sujeito. No cerne do incons­
ciente está a Coisa, esse vazio intransponível do qual o sujeito se mantém a
distância. O primeiro Outro, que encontra no semelhante um suporte, é partido;
a Coisa é a parte não reconhecida, não identificável que permanece imutável igual
a si mesma. Das Ding é o Outro absoluto,, esse real que confere um lastro ao
sujeito evanescente entre os significantes. E em relação a das Ding que se deter-
1 22 OAUTISMO

mina a posição subjetiva. No advento do sujeito opera uma decisão em relação a


das Ding. Em 1925, no seu escrito "A negação" (Die Vemeinung ), Freud produz
a lógica da escolha forçada no juízo de atribuição. Duas decisões deve tomar o
juízo. A primeira atribuir uma qualidade à coisa. Assinalemos que não há supo­
sição de sujeito na primeira decisão e que o juízo se desencadeia no campo do
Outro, possibilitando a distinção pré-subjetiva de dentro e fora. Estão em ação os
significantes do Outro, o tesouro do significante como pulsão oral. "Na língua das
mais antigas II},oções pulsionais orais - escreve Freud - eu quero comer isto ou
quero cuspí-lo 3 . A pulsão introduz-se na necessidade, determinando o lugar do
sujeito e do objeto na frase. Resulta a primeira partição: "em mim" e "fora de
mim", como condição de uma topologia subjetiva. Ao nível do eu-prazer depara­
mo-nos com um funcionamento automático. A introjeção é o mecanismo próprio
do simbólico que realiza a inscrição da primeira marca, a do ser vivente afetado
pelo significante. A operação de inscrição não é sem umJ¼ exclusão de algo que
resta opaco ao significante numa região "fora de mim." E necessário fazer aqui
uma distinção. Freud indica que o processo de constituição do sujeito consiste em
introduzir algo no eu (einführen )correlacionado com um excluir radical (aus­
schliessen ). Portanto, nesse tempo originário, nem tudo é incluído e o que é
excluído reaparece desde o exterior como real. ParaBejahung, a afirmação cor­
relacionada a uma inclusão significante - Einbeziehung ins !eh - não é "outra
coisa senão a condi9ão primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à
revelação do ser" (Ecrits, p. 388)4.
Com a topologia do sujeito produzida por Lacan, interpretamos que a estru­
tura do Outro não é equivalente à esfera em que o sujeito seria chamado a
incluir-se. Trata-se de uma superfície de tipo plano projetivo que não divide o
espaço em interior e exterior, mas determina um corte em que se inscreve o efeito
de sujeito. Portanto a idéia de um dentro e de um fora corresponde à crença do
sujeito da consciência que desconhece a enunciação inconsciente que o divide. O
que é estranho ao eu, o que está fora- real primeiro - é mau. O "dentro", inscrito
no simbólico, é bom. Parece-nos pertinente retomar aqui a formulação de Lacan:
o que foi excluído do simbólico reaparece no real, aforismo que retifica a noção
de que algo de dentro foi expulso no exterior. Podemos então considerar a
expulsão do eu -Ausstossung aus dem Ich -como a operação que reitera o ato
de exclusão fundante, sendo a Vemeinung, a negação, uma sucessão -Nachfolge
- dessa operação. A Vemeinung afirma o lugar do sujeito, onde a Coisa deixa de
existir. O sujeito, inconsistente na cadeia significante, é introduzido na dimensão
da falta-a ser. A função do juízo deve agora decidir sobre a "existência real de
uma coisa representada." No cerne da função está das Ding que determina a
orientação da posição subjetiva em relação ao gozo. A operação recai sobre a
Coisa e a Vemeinung consiste em fundar o inconsciente, barrando a Coisa. A
decisão sobre a existência implica na perda de ser pela sujeição à representação,
a Vorstellung. Não se trata mais aqui da aceitação ou exclusão pelo eu de algo
percebido, mas da decisão de "se algo existente no eu como representação possa
ser reencontrado também na percepção."5 Das Ding rege a tendência ao reencon­
tro e o estatuto do objeto é indissociável da perda de ser na linguagem. O objetivo
da prova de realidade "não é encontrar um objeto correspondente ao representado,
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 23

mas reencontrá-lo, certificar-se de que ainda existe"6. Reencontrar o objeto é uma


busca orientada através de desvios e rodeios entre representações. Recircare, diz
Lacan, fazer o contorno do objeto desde sempre perdido. A prova de realidade
não só constata a perda de objeto; ela trabalha para perdê-lo de novo. A condição
do estabelecimento dessa prova é que "tinham sido perdidos os objetos que
haviam trazido antigamente satisfação real."7 A prova coloca o sujeito na trilha
daquilo que o causa como desejante. O desejo é o resultado da decisão de perder
o objeto da satisfação, ou seja, de um gozo que foi barrado e que escrevemos na
álgebra lacaniana. O objeto a nessa algebra é o resto caído do gozo que patentiza
a hiância do ser, o desser próprio de habitarmos a linguagem. O inconsciente
freudiano não constitui uma nova forma de interrogação sobre o ser. O ato de
instauração do eu no discurso se faz ao preço da rejeição do ser, sua Verwerfung
. O ser do sujeito, rejeitado - geworfen - do simbólico, reaparece no real: é o
detrito que a psicanálise nomeia objeto a . Por esta operação de rejeição, da ordem
de uma forclusão fundante, o surgimento do sujeito tem lugar no vazio de gozo
que a linguagem marca no núcleo de nosso ser (Kern unseres Wesen ). A verdade
da alienação ao significante não significa que o sujeito se constitua a p�rtir do
Outro, mas que se realize nesse ato uma evacuação do ser e do Outro. E o que
Freud teoriza como identificação em "Psicologia das massas e análise do eu".

A Identificação

A identificação é a primerissíma forma de laço sentimental ao Outro e tem


lugar antes da escolha de objeto. A identificação recai sobre o pai: ele é o que se
quer ser. Os analistas que estabeleceram a teoria das relações de objeto tiveram
dificulades em situar uma identificação que não decorra da relação do bebê com
a mãe. Freud não a estabeleceu a partir da observação; sua introdução responde
ao modo do que é necessário para a constituição do sujeito. O pai é uma necesi­
dade lógica do discurso em que o sujeito há de se inscrever a título de identifica­
ção. O pai é a referência do ser falante e inaugura um campo de significação
(Bedeutung). Subjacente à primeira identificação, encontra-se o pai primevo, o
pai da horda primitiva, o pai gozador de todas as mulheres. E o pai da exceção:
que diz não à castração. Freud reserva a denominação de incorporação (Einver­
leibung) para o tempo originário da identificação. O pai é devorado ao estilo do
canibal que só come aquele que de algum modo ama. A identificação ao pai
originário designa o corpo, o gozo do corpo, algo de opaco e insondável no Outro.
A referência é algo que se designa sem poder ser nomeado: o ser do Outro que
ao ser consumido se apresenta na forma mais inapreensível e reenvia ao corpo
ausente como ponto de emergência do inconsciente. O ponto mais radical da
referência é o númer,o que, na estrutura de linguagem que precede o sujeito, indica
o vazio do Outro. E o zero definido por Frege como o número cardinal que
pertence ao conceito não "idêntico a si-mesmo"; objeto nenhum cai nesse concei­
to. Ele designa o assassinato do pai e localiza o sujeito antes da palavra. As
conseqüências do ato do parricídio são decisivas. O Outro é barrado, resultando
no ato uma inexistência de gozo nesse campo. A identificação correlaciona-se
1 24 OAUTISMO

com o buraco real na estrutura, modo da falta próprio da privação. Bordear o


buraco de um modo que ultrapasse nossa apreensão imaginária, requer a topologia
A superfície do toro, à diferença da esfera, não pode ser topologicamente reduzida
a um ponto, porque há o buraco "central" que impede essa transformação. O toro
dá o suporte ao buraco da privação. A partir daí a questão da identificação recai
sobre o um. Da identificação formadora do sintoma Freud extrai a noção de traço
único (ein einziger Zug). A menina contrai a tosse da mãe, significando o desejo
de substituí-la junto ao pai de acordo com a identificação do complexo de Édipo.
Pode também acontecer, como no caso Dora, que imite a tosse do pai, isto é, o
sintoma da pessoa amada. Pela incidência da castração, a escolha de objeto teve
que ser abandonada e no seu lugar há uma identificação. Esta se limita a um traço
único tomado emprestado do Outro. Lacan transcreve o traço único em traço
unário. Seu passo não se reduz a uma tradução, pois visa produzir, a partir do
número, a formalização da identificação. Onde começa o Um? No fundamento
do Um está o zero, o lugar do buraco que é transportado em cada número da série.
O zero como verdade da falta indica o lugar do sujeito a vir que só pode consti­
tuir-se como marca no Um. A identificação ao traço unário articula-se a partir do
grau zero da identificação ao pai primevo, que introduz ao vazio da inexistência
de gozo para o ser falante. No entanto a eficácia do vazio na estrutura começa no
Um do traço que, ao marcar a falta primeira, produz o lugar do sujeito. Um traço
unário designa uma escritura elementar com,o as encontradas nas cavernas para
indicar o objeto ausente, o animal caçado. E traço contável; conta-se um a um
como pura diferença. Diferente de outro traço e de si-mesmo é a diferênça que
constitui a série da repetição. O traço unário é um significante tomado do Outro
que preenche a marca invisível recebida da linguagem e constitui o Ideal do Eu.
O traço opera nos primórdios da formação do eu como uma matriz simbólica
essencial na estruturação da identificação especular. Na experiência do espelho,
em que o infans se reconhece na imagem dele próprio sustentado pelos braços do
Outro, já supõe a ação da marca simbólica. Concomitantemente ao encontro com
o espelho, demarca-se o buraco na imagem especular que recobre o Outro. A
criança contorna, na imagem do semelhante, o buraco de seu olho e de sua boca
com o júbilo de quem experimenta que aí nada há. Na imagem do corpo do Outro,
verifica-se uma perda no traçado do buraco que a criança lhe faz. O poder da
imagem radica no preenchimento do buraco, na unificação que se antecipa no
corpo desmembrado da prematuração do ser falante. O espelho plano introduz a
dimensão do virtual, produzindo a imagem que captura o sujeito, "atrás do espe­
lho", e cuja função de desconhecimento está no fundamento do eu (moi). A
instauração do espelho plano determina i'(a), imagem virtual do outro que se
apresenta como suporte dos jogos de prestância e de mestria e se fixa no eu-ideal.
Esta imagem está condicionada, em uma "anterioridade de principio", à ilusão da
imagem i(a), ponto de partida do esquema ótico essencial para nossa discussão
sobre o autismo. A imagem i(a) é resultado da ilusão do espelho esférico em que
a imagem real de um vaso invertido escondido detrás de uma caixa, portanto não
visível diretamente pelo olho do observador, encontra no seu gargalo as flores,
isto é, os objetos onde se apoia a acomodação do olhar. A imagem originária do
corpo próprio, a Urbild da imagem especular, é a composição da imagem real à
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 25

qual se aplica o objeto real no anel orificial, numa forma de costura que denuncia
o caráter precário da acomodação e indica o pouco acesso que o sujeito tem à
realidade de seu corpo, sua "obscura intimidade." As duas imagens i'( a) e i(a) se
alternam numa tensão constante própria do transitivismo imaginário. Uma regu­
lação das imagens narcísicas se faz necessária. O Ideal do Eu, I(A), instância
articulada ao campo do desejo, é a formação simbólica que realiza essa regulação.
É o ideal do Outro que, enquanto lugar do discurso, atravessa a relação especular.
O processo iipaginário, como Lacan o indica em "Subversão do sujeito e dialética
do desejo" (Ecrits, pág. 809), vai da imagem especular à constituição de eu (moi.),
implicando a ação do significante que instaura o sujeito do inconsciente. A
instância do ideal é o conjunto de marcas do Outro que são as insignias a serem
situadas na sua dimensão emblemática. O modelo do esquema ótico oculta a
função essencial do olho que vê, pois não se trata apenas da formação de uma
imagem, mas do investimento libidinal que sustenta essa imagem e lhe confere
seu poder. O olhar não é representável e o sujeito não pode se ver do lugar a partir
do qual o Outro o olha. O olhar é objeto que carece de imagem no espelho, sendo
a montagem do esquema ótico insuficiente para designar seu lugar.

O Objeto a e a Consistência Imaginária

Uma localização do olhar na estrutura implica numa topologia do espelho que


Lacan apresenta no seminário "A angústia" (1962-63). Nesse seminário, Lacan
escreve com a letra ...;. o efeito de falta na imagem; é a escritura do que Freud
denominou castração. A distribução dos investimentos libidinais do eu ao objeto
e seu retorno sobre o eu se realizam a partir da função da falta ao nível do
especular. O que decide o curso do investimento é a falta, falta não especularizável
do Outro. O Outro é barrado e deseja com sua falta: é o que ele tem para oferecer
ao recém-nascido. A incidência do desejo do Outro sinaliza-se com a angústia.
Este afeto, o único que não engana, se produz no tempo em que o objeto separado
do Outro, causa de seu desejo, vem a obturar a hiância de-. A angústia revela a
função da falta -a angústia é de castração, susteve Freud-mas, ao mesmo tempo,
a oculta pelo efeito de tamponamento que a presença do objeto ocasiona, essa
presença inquietante, unheimlich, essa peculiar estranheza que mora em casa, esse
íntimo familiar, porém, não reconhecido. Tem lugar nesse tempo uma transfor­
mação topológica que Lacan exemplifica, aplicando uma fita de Moebius sobre a
borda do gargalo do vaso. Esse p;:isso provoca uma mocE:ficação de toda a super­
fície: resulta desse modo uma superfície de tipo plano projetivo imersa no espaço
tridimensional. O objeto a, por seu estatuto topológico, n:ão é especularizável e
sua presença pode ocasionar do lado do sujeito sinais de despersonalização ao
fazer sua irrupção no campo da imagem ideal em que ele precariamente se
sustentava. A emergência do objeto no espelho provoca uma reformulação do
imaginário: a imagem especular passa a ter função de revestimento do objeto. A
imagem i'( a) vem vestir a causa do desejo. A vestimenta do real pela consistência
do imaginário supõe o desejo do Outro, cuja função na estrutura é de enodamento.
O olhar do desejo ao Outro enoda-se numa mesma borda com a voz do desejo do
1 26 OAUTISMO

Outro respondendo ao tempo real de um corte separador. A despeito de uma


cronologia devemos abordar o seio e a merda na sua relação à demandaao Outro
e do Outro. Indicamos que a borda topológica da demanda à demanda é de uma
volta enquanto que o corte do desejo ao desejo é uma torção de uma borda de
oito voltas interiores.
A psicanálise com crianças deu notável importância ao seio e à merda na
constituição do sujeito, embora, nem sempre, tenha podido elucidar a função
desses objetos no campo do Outro por recobri-los excessivamente com significa­
ções imaginárias. Assim a demanda oral não obedece a um tempo de maturação
iludinal, mas à lógica do primeiro corte entre sujeito e Outro que é estabelecido
libidinal na retroação ao objeto perdido. Que modo adota a demanda do Outro
nesse tempo de inscricão da necessidade? A demanda oral se institui na estrutura
do significante como o provam os fantasmas de devoração teorizados por Melanie
Klein. Ela é de:rnanda do ser alimentado e nutrido pelo Outro. Há uma demanda
endereçada ao Outro que se constitui nesse campo como resposta: o Outro é ímpar
e sua voz imperativa profere um "Deixa-te alimentar." O ocultamento do poder
significante da demanda leva a psicánalise a um impasse de formalização. Nesse
lugar, transmite-se uma série de preconceitos tais como o caráter pré-verbal e
in.efável da suposta fusão originária entre a mãe e seu bebê. Uma aparência de
acordo com demandas faz acreditar na existência de uma unidade mítica, fechan­
do-se numa complementaridade. Porém o analista, ao escutar a palavra da mãe,
depara-se com pontos de angústia que sinalizam a falta e a incompletude que
permeiam o encontro com o bebê. Há llil} desencontro radical entre as demandas,
o que determina uma interseção vazia. E, precisamente, da possibilidade de não
satisfação da demanda que um resto se elabora. O risco para o sujeito é que a
demanda possa ser extinguida na satisfação, com a desaparição do desejo. A
anorexia emerge para manter uma margem não saturada, onde o sujeito, recusan­
do-se à satisfação, não deixa produzir a abolição do desejo. A experiência de
satisfação mostra que a demanda oral é outra coisa que a satisfação da necessidade.
No desamparo originário do ser falante o Outro aporta alimento e palavra. O que
o sujeito procura é o a-mais da satisfação. Esse a-mais, ao tomar vã toda satisfação
da necessidade, dá origem a repetição do desejo aí onde o objeto falta. Freud situa,
no seio da satisfação, a ação de uma Versagung que consiste numa recusa da
satisfação ao estar submetida ao regime do dizer (ver-sagen). Um sujeito pode
adoecer quando é privado (entzogen wird) de um objeto real do mundo exterior
sem poder encontrar um substituto para ele. Mas, na Versagung, há uma falta ao
nível do cumprimento da promessa e a intervenção analítica não deve resultar em
compensação da frustação.
Há uma afinidade entre imagem e objeto, como o diz a expressão "o hábito
faz o monge". A imagem sustenta-se no objeto; por sua vez esse nada obtém
consistência da imagem que lhe confere sua roupagem, sua vestimenta.

O AUTISMO
A criança autista está imersa na linguagem e, no entanto, é impossibilitada
de aceder à alienação. A alienação não consiste apenas em que o sujeito se
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALI ENAÇÃO... 1 27

constitua no campo do Outro, mas que resulte dividido na linguagem. Sua divisão,
entre dois significantes, confronta-o com que se produz, ao falar, um gozo que
cai no intervalo. A manifestação precoce do autismo não se re(luz a transtornos
da afetividade e sim a forma na qual o par significante se articula no campo do
Outro. Lacan, no seminário 11, apresenta-nos o momento inaugural em que o
sujeito como X é antecipado no campo do Outro. Há a necessidade lógica de
conceber um S1 só, antes de representar o sujeito para outro significante. S1 é,
por excelência, o traumático da incidência como um raio do desejo do Outro. O
sujeito é esse significante sujeitado na série das identificações constitutivas de seu
ideal do eu: "eu sou" no significante do desejo do Outro, o que se demonstra
francamentenão-sensical. Em torno dele se organiza o cerne do recalque origi­
nário. Entretanto, é essencial o lugar do Outro para que, a partir do segundo
significante, haja retorno e se conte o sujeito. Determina-se, então, a série das
significações do sujeito em relação ao desejo do Outro. O S1 seria, nesse tempo,
articulado ao �2, produzindo a cadeia significante.
No seminário 20, Lacan interrogou ainda a função de S1 para concluir que
ele é enxame (S1, essaim ), enquanto é o significante-mestre quem assegura a
unidade de copulação do sujeito ao saber.

S1(S1(S1(S1 - - - - -+S2)))

O enxame S1 encarna-se n'alingua (la langue) cujo efeito é o inconsciente


como saber. O Um está no fonema, na palavra, na frase e em todo o pensamento.
O significante Um "é a ordem significante, enquanto ele se instaura a partir da
envoltura por onde toda a cadeia significante subsiste"8. A noção de enxame
interroga o alcance do elemento que não se reduz a unidade, mas comporta os
parênteses que produzem o envelope formal da série de significantes Uns, de
modo que o sujeito possa vir aí falar. Esse enxame zumbidor é gozo d'alingua.
Há Um indica a dimensão de gozo introduzido pelo significante. O significante é
causa material de gozo, mas também causa final ao introduzir o corte. O incons­
ciente estruturado como uma linguagem, isto é, alingua que ele babita, está
submetido ao equívoco. A estrutura como efeito de linguagem é feita pela impos­
sibilidade de estabelecer, no que é enunciável, o Um do real, o Um da relação
sexual. Há Um é um dizer do impossível de fazer Um com o ser, de pensar o Um
como único, de restituir ao Um sua esfera totalizante. Trata-se de saber o que é
do fundamento do Um, quando ele não se limita ao unário do traço que reveste a
marca recebida da linguagem. O saber inconsciente ex-siste ao real do Um-todo-só
que não faz laço, restando o fora-sentido. O Um não faz nó com o Outro sexual
e não é outra coisa que solidão.
O autista constitui-se num império do S1 que não faz cadeia, um S1 congelado
que não o representa ante um outro significante, o S2, e retorna no real dos
automatismos da linguagem. Fracassa a função de S1 de fazer enxame. O S1 está
no real sem produzir o envelope formal dos significantes uns. Para o autista não
há articulação do fonema à frase. Para ele, o Um é todo. Kanner já tinha assinalado
que, quando a criança autista utiliza o pronome pessoal, tende a reproduzi-lo como
foi pronunciado pelo Outro, sem poder indicar o lugar do sujeito na frase. Do
1 28 O AUTISMO

mesmo modo, a criança autista aprende textos que são repetidos sem nenhuma
variação, fato que é interpretado como prova de concentração e memória. Presen­
tifica-se no automatismo uma ausência de abertura ao saber como questão que
implica a verdade. O S1 é o não todo na linguagem, porque ele só subsiste na
cadeia que instaura. Quando for desprovido de sua função, fala sozinho, sem parar.
Fala em-si e para-si. Não fala para o Outro. São sujeitos de um único significante
- at oneness - segundo Tustin. Os autistas são personagens verbais, diz Lacan.
Eles escutam a si-mesmos, pois estão num gozo fechado que dispensa a existência
do Outro. Não escutam o que lhes dizemos, enquanto nos ocupamos deles, pontua
Lacan. Rejeitam deparar-se com o que lhes dizemos e não nos escutam. Isso faz
que não os escutemos e cheguemos a pensar que eles não falam.
No campo do Outro, há impossibilidade de que a relação sexual seja dita; isso
nos conduz ao real. Que algo possa ser dito ou não é questão de forclusão na
linguagem. Lacan formula no seminário "...ou pire" que "não há forclusão senão
do dizer". A relação sexual não existe na medida que não pode ser dita nem escrita
Dela depende o que se elabora num discurso sempre roto. O nó borromeano,
apresentado nesse seminário, é a escritura como resposta do real da inexistência
da relação sexual.
A ex-sistência do Um está no fundamento da cadeia. Só há cadeia do que
ex-siste. O enxame significante implica na escritura nodal que dá acesso ao real.
A cadeia borromeana tem a propriedade de que, ao retirar dela um elemento
qualquer, todos os outros se liberam. Só em três começa uma cadeia deste tipo.
Por esta propriedade, só em três podemos falar de buraco verdadeiro e de supo­
sição de sujeito. São os três registros que assim enodados produzem o sujeito. A
cadeia borromeana supre, de algum modo, o déficit do Outro, sua falha. O Outro
é barrado e a emergência do sujeito implica na repetição inaugural da não relação
entre Um e Outro. Dois não fazem relação, o que se enuncia como a impossibi­
lidade de se inscrever o que é do sexo no inconsciente. O três ata o que o dois
não une. A propriedade borromeana de enodar três supõe a função do quarto termo
suplementar. A ausência de enodamento designa a forclusão, e a suplência, a
reparação. A ex-sistência do nó, que é real, confronta-nos com a ação de uma
forclusão mais radical que a do Nome do Pai. No contragolpe do verbo emerge
o imundo, o dejeto, o objeto no buraco bordeado pelo ponto triplo do nó. Uma
orientação do real forclui o sentido que resulta da dimensão simbólica do incons­
ciente enraizada na imagem do corpo próprio. No Seminário "R.S.I." Lacan
enuncia "o real é o que ex-siste ao sentido." Ex-siste à consistência própria à idéia
de corpo e ao simbólico que se constitui em torno da função do buraco. O três da
ex-sistência do real faz copular o dois. O ponto triplo é a escritura do nó borro­
meano e a cunhagem (coinçage) que localiza, cinge, aperta esse resto de gozo e
letra que é o objeto a. O nó borromeano não é um modelo. No dizer de Lacan é
a estrutura enquanto aí se figura a consistência do imaginário, a insistência do
simbólico e a ex-sistência do real. A escritura do nó realiza o esvaziamento de
gozo, apertando esse nada que é o objeto a, porém não redutível a dimensão zero
de um ponto geométrico, porque aí estão amarradas as três dimensões: R, S, I.
A criança nasce como dejeto da repetição inaugural da copulação do Um e
do Outro, o que implica na produção de uma falta. Um sujeito emerge ali onde o
O QUE OAUTISTA NOS ENSI NA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 29

Outro se barra. A criança, como objeto a, patentiza a perda de gozo do ato que a
engendra A constituição do sujeito comporta a sentença da ética freudiana: "onde
isso era, devo eu vir a ser." Onde era isso, objeto a, devo tornar-me sujeito. A
premissa ética é imperativa: o ser falante deve realizar seu destino que é de se
inscrever no significante. Porque é ético, não é ideal. Nada dá garantia de que a
separação terá lugar; dependerá do modo com que o Outro inscreva sua falta.
A forclusão, produzida pela orientação do real, instaura a condição lógica
para a queda do objeto a como a-versão e impossibilidade do sentido. Sujeita ao
regime de contingência, a forclusão pode não operar. O Outro primordial não
apresentaria buraco e a separação do objeto a não se realizaria. Hipoteticamente
trata-se-ia de um Outro não furado precisamente no tempo lógico do advento do
novo sujeito. Essa forclusão original não opera no autismo. O Outro do autista
não apresenta Q buraco que permita figurar a ex-sistência.
Os psicanalistas, que se dedicaram ao tratamento de crianças autistas, se
referem à depressão materna que precede o nascimento. A mãe estaria absorvida
por uma perda irreparável que não permitiria constituir o lugar de uma falta em
que o filho venha a alojar-se. Sem a marca da libido objetal, não há lugar para o
corte que instaura um valor de gozo. Com isto a criança não acede a dimensão de
valor que é relativa a perda. Resine e Robert Lefort assinalam que a criança autista
encarna o objeto auto-erótico da mãe; excluído da causa de desejo, o autista é
confrontado ao objeto da necessidade.
O Outro para o autista é completo e não escreve,a falta simbolizável pelo -1.
Um significante a menos indica no Outro sua falta. E em relação a uma falta no
simbólico que uma perda se opera no real. O pai originário representa, no discurso
freudiano, ao menos-um da exceção. O pai primevo constitui uma necessidade
lógica do discurso, pois lhe é reservada a função de garantir a ex-sistência. O pai
ex-siste como pai morto. Dessa região em que não há significante, emerge o traço
unário que funda a primeira identificação ao ideal do eu. O Um do traço unário,
ao rebater-se sobre o Outro, o descompleta. O autista não acede à função do traço
unário formador do ideal. O S1, que o petrifica, não tem função de traço. É o puro
significante sem significância: é o significante sem a diferença, pois ela supõe
alteridade no Um. O Um do autista é sem Outro.
É da marca de um desejo que o sujeito depende para constituir-se. O autista
P,atentiza o deserto do desejo e encarna a mai� radical rejeição à falta no Outro.
E requerido que o desejo não seja anônimo. A familia é reservada a função de
veicular um resto numa transmissão. Os cuidados maternos, à diferença do que
propõem as teorias psicológicas, não são a resposta a um estado natural da
necessidade, mas ao modo em que a mãe articulou sua falta. Eles são portadores
de uma marca altamente particularizada e particularizante, dado que é na lingua­
gem que a função da mãe se exerce, isto é, no domínio da pura diferença. A função
do pai não é um acréscimo que se adicionaria à díade mãe-filho. O pai funda essa
relação enquanto nome que vetorializa a lei no desejo. Precisamente porque
falamos em função paterna, referimo-nos tanto ao nome do pai quanto a função
do nome. A nomeação é um ?to que instaura o furo no lugar do Outro. Faz também
liame, laço, enodamento. E do necessário que um nome vem ao lugar onde o
1 30 OAUTISMO

sujeito é abandonado à sombra da coisa. Quando o desejo falta é um estrago, uma


devastação, um desmantelamento.
O autista não se constitui na demanda que faz de seu grito, um apelo. A
demanda enlaça o sujeito e sela sua alienação ao Outro. Ela reitera, repete o furo
do Outro que percorre. O Outro é tórico, pois comporta o buraco da privação.
Fora dele, o autista repete o significante sem par que não pode significar a questão
do sujeito ante o Outro. Ele não se faz representar nesse lugar. Nada o representa;
não representa nada. Causa surpresa, desconserto, horror. Também indiferença,
apatia, desconsolo. Como o Outro reconheceria algo que é tão diferente dele? Ele
é levado, mostrado, observado como uma coisa esquisita e imutável. "Desde
pequeno era bom, não ria, não chorava, não pedia nada:" é a frase de uma precoce
impossibilidade de aceder à demanda. O Outro do autista não se constitui como
lugar de S2, de um saber poder responder à demanda. Ele está atônito, sempre
ultrapassado pelos sinais que v�m da criança e não sabe interpretar. Sem o saber
do Outro, o Sl não faz cadeia. E função do Outro possibilitar o estabelecimento
da demanda sem responder estritamente ao que ela pede. Esse desencontro de
demandas possibilita a função do desejo: "eu te peço para recusar-me aquilo que
te ofereço, pois não é isso." O mal-entendido próprio da demanda preserva o lugar
da causa: ela está em outro lugar além daquilo que te demando. Sem a cadeia
significante, não há intervalo nem lugar de causa do desejo. Nada no autista
permite supor a ex-sistência do inconsciente como trabalho de um saber destinado
à perda. Sem o desejo do Outro, o autista não tem acesso à dimensão da verdade,
como ficção própria da palavra, nem ao equívoco do inconsciente.
O autista não está representado no corpo do Outro. O corte significante, que
faz borda no corpo, não operou. Ele "é" corpo não marcado que não foi articulado
à demanda. O corpo do Outro tórico dá lugar à demanda que produz um percurso
do qual resulta o sujeito. Determina-se a volta do "buraco" do Outro que está em
correspondência com os buracos do sujeito numa sorte de unidade topológica.
Quando a demanda não se estabelece, fracassa a instauração de uma falta no
Outro. O autista é confrontado a um Outro "completo" para o qual ele não constitui
sua falta. Os orifícios do corpo são tamponados: é o dedo na boca até a deforma­
ção; é a ausência de olhar que o faz um boneco com olhos de vidro; são os ouvidos
tampados que não escutam o que temos a lhes dizer. O autista não possui um
corpo de pulsão nem acede ao falo que constitui o gozo fora do corpo. Ele é
resposta no real ao deserto do desejo do Outro. Quando a hiância do desejo não
se instaura, não há registro de separação e perda. Não se produz a extração do
objeto no campo de Outro que se apresenta na sua face de gozo devastador e
ilimitado. O seio é o paradigma do objeto a ser perdido que instaura uma borda
no Outro e no sujeito. O olhar deve ser situado precisamente na sua função de
causa que suscita o desejo do Outro. Com ele, um ponto fora de si mesmo é
introduzido e uma torção é produzida. Para o autista a função da causa faltou. Ele
encarna a rejeição ao desejo: o olho do autista carece de olhar, do mesmo modo
que faltou o olhar para ele. Ele está suspenso a uma imagem precária homóloga
àquela formada pelo espelho côncavo do modelo ótico: é um olho que vê uma
imagem feita da acomodação da imagem real ao objeto real. Só com a introdução
do espelho plano, o sujeito acederia a uma imagem especular virtual. A imagem
OQUEOAUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBREAALIENAÇÃO... 1 31

do corpo próprio procede da marca do significante e do resto que deixa na sua


passagem. O espelho plano representa o campo do Outro no tempo da identifica­
ção primeira. A imagem virtual, na qual o sujeito se reflete, é efeito de significante
e não uma questão de reflexão ótica. O ideal do eu está enraizado na imagem do
corpo, enquanto ele constitui a constelação das insígnias do Outro, as marcas da
sua resposta que possibilitaram o grito tomar-se apelo. O Outro do autista não
operou essa passagem, faltando o enlace à demanda significante. Não houve a
estruturação da imagem em tomo da função do traço unário como marca da
linguagem. O corpo do autista, ancorado na imagem real, é feito de pedaços sem
unidade nem integração. Os psicanalistas, que se ocupam de autistas, encontram
um ponto intransponível no tratamento e que, a nosso parecer, é efeito desta
ausência de marca. O autista não acede ao semblante, precisamente onde o corpo
não é marcado e o objeto não se separa. Ele não faz semblante de comunicação
e não participa do equívoco d'alingua. Não há inconsciente que possa "morder"
a imagem do êorpo, pois nem um nem outro foram articulados. Na cura, o autista
procede a furar o corpo do Outro com o significante, como o faz John, o paciente
de Tustin que logo comentaremos. Nessa travessia, o autista entrará inexoravel­
mente na psicose? Certamente que alguns sujeitos repondem à invasão de gozo
do Outro com a alucinação psicótica. Outros, porém, articulam muitas coisas e
conseguem se fazer um corpo em que opere algo equivalente a uma borda, sem
com isso aceder ao inconsciente. A concha protetora, descrita por Tustin, teria a
função de produzir um envelope precário, um invólucro rígido que supra o corpo
imaginário inconstituído e proteja o sujeito de tudo o que vem da percepção e
ameaça destruí-lo.
Realizaremos, a seguir, uma pontuação da direção da cura de três análises em
que a incidência do desejo do analista opera como aposta. Sem essa aposta o
tratamento do autista é impossível. O primeiro comentário centra-se na análise de
Dick, realizada por Melanie Klein como um momento crucial de passagem do
não-costituído à uma articulação significante elementar que possibilita o acesso
da criança à dimensão da palavra. O segundo refere-se a função do buraco no caso
John de Frances Tustin em tomo do qual se figura um princípio de escritura. Por
último, referimo-nos ao final da análise de Joey, relatada por Bettelheim, em que
o sujeito autista constitui a máquina como suplemento ao enodamento impossível.

Melanie Klein e o Caso Dick

Melanie Klein apresenta o caso Dick no seu escrito "A importância da


formação de símbolos no desenvolvimento do eu" (1930). A analista destaca que
o comportamento dessa criança de 4 anos diferia do encontrado em crianças
neuróticas. Não se tratava, porém, de uma regressão própria da psicose, mas de
uma total inibição do símbolo e do eu. Dick surpreende a analista pela falta de
sinal de angústia ante a presença ou ausência da mãe e pela incapacidade de
fazer-se compreender decorrente de uma atitude de não querer comunicar-se com
os outros, apesar de já possuir um vocabulário. Melanie Klein depara-se com uma
criança que não estabelece transferência. A presença do analista não lhe significa
1 32 OAUTISMO

nada; é apenas mais uma coisa entre os objetos que a circundam. A posição de
Dick, na transferência, assemelha-se àquela das crianças autistas na cura. No
entanto, a rápida resposta da criança às interpretações de Klein não caracteriza
plenamente o quadro de autismo. A posição subjetiva do paciente determina uma
intervenção até então nunca explorada por Melanie Klein. A analista recorre ao
saber obtido com outras crianças em análise e, apoiada na técnica do jogo, toma
dois objetos da caixa de brinquedo, um trem maior e outro menor e diz: "Trem
pai" e "Trem Dick". A criança, até então sem vínculo com a analista, pega o trem
nomeado "Dick" e o faz rodar até a janela e diz: "Estação".
Qual é a operação realizada por Melanie Klein? A analista fornece o par "Pai
-Dick". A introdução do significante do Norne-do-Pai situa Dick numa concate­
nação significante, levando-o a produzir um terceiro: "Estação". A intervenção de
Klein instaura a célula elementar, o nó de linguagem em que um sujeito pode
emergir como significado do Outro na retroação da cadeia significante.


s (A) A
Estação / \ Pai-Dick

Melanie Klein estabelece, num segundo tempo, a equação "Estação = mãe",


localizando a criança em relação ao mito edipiano e a significação fálica. Sobre
uma ausência radical de discurso, a analista impõe a estrutura do mito fundamental
que opera uma abertura ao inconsciente, ato que testemunha que este é o discurso
do Outro e o analista é implicado na sua produção. A célula elementar, resultante
do enodamento da linguagem e da palavra, funciona como uma escritura que
localiza o sujeito numa topologia. Dick dirige-se ao espaço entre duas portas do
consultório e diz: "Escuro". A sua palavra faz surgir o entre-duas, um intervalo
que designa o lugar do sujeito. Lacan retifica a leitura de Klein. Não se deve
confundir esse tempo com o desenvolvimento do ego; é o momento inaugural em
que o sujeito se identifica à ordem simbólica, afirmando-se a partir de uma palavra
verdadeira. Pela ação do significante tem lugar um esboço de superação de um
gozo aterrorizador. Melanie Klein nomeia o continente negro: "dentro da mãe está
escuro." O significante priva a criança do corpo do Outro, dando lugar a uma
primeira orientação subjetiva em tomo da Coisa. A nominação operada faz surgir
um furo no real, até então homogêneo. Dick destaca-se do real e endereça-se ao
Outro. Nesse tempo em que se constitui o intervalo - "entre dois" - um apelo é
possível. Dick pergunta - Babá? Klein responde: "A babá volta logo." A criança
apresenta sinais de angústia e, pela primeira vez, chama a analista. No final da
sessão recebe a babá com prazer. Dick possuía a linguagem, o que tomava possível
a intervenção da analista, mas se recusava à palavra. Melanie Klein, ao nomear
as relações de parentesco, introduz a dimensão simbólica uma dit-merzsion.
A intervenção de Melanie Klein testemunha a função do desejo do analista,
essencial na direção de uma cura e decisiva, portanto, no tratamento do autista.
Seu discurso introduz implàcavelmente as primeiras simbolizações da situação
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 33

edipiana de modo a determinar uma posição inicial para a análise. Pensamos que
Klein opera a partir do lugar do Outro, fornecendo a rede para a constituição de
um saber inconsciente. A eficácia de sua análise com Dick radica, a nosso parecer,
no fato de suprir com pedaços de saber, algo que nunca tinha enunciado. Do lugar
do S2 como saber, Klein "chama" o primeiro significante instaurando o par e
antecipando a abertura do inconsciente. A nomeação, pai-Dick-mãe, inaugura a
seriação: babá -+ Klein... Seria incorreto reduzir a análise de Dick à primazia do
simbólico. A verdadeira mola da análise kleiniana é a angústia. E se Klein não se
extravia na série das equivalências simbólicas que a técnica do jogo promove, é
porque faz da angústia o termo essencial na direção da cura. Dela extrai a certeza
de seu ato e a orientação para o tratamento.
É função do analista não retroceder frente a angústia, sabendo fazer operar
um limite que a circunscreva. Que Dick aceda à dimensão da palavra, não depende
unicamente da introdução do mito edipiano. Foi necessário criar, na transferência,
o lugar de um vazio seP,arador. A angústia faz furo e produz o enodamento entre
linguagem e palavra. E um dos Nomes-do-Pai enquanto nominação do real. O
mundo exterior passa a ser relevante para Dick que se separa do real indiferen­
ciado do qual era parte. A nominação da angústia provoca o buraco e a borda
nesse real, lugar lógico do objeto a na estrutura. A relação demasiado real com a
realidade segue um início de estruturação de real e imaginário.
A terceira sessão do tratamento de Dick é exemplar. O menino aponta para
um carrinho e diz: "Corta". Klein lhe dá uma tesoura que ele não consegue utilizar.
Ante o olhar demandante da criança, Klein toma a tesoura, e corta os pedaços que
Dick joga na caixa de brinquedos dizendo: "foi embora." O significante "corta"
pontua a operação efetuada na transferência; um corte de separação para que algo
venha cair. A impossibilidade de Dick estabelecer uma transferência era, segundo
Klein, decorrente de uma inibição precoce do símbolo, cuja causa era uma angús­
tia insuportável provocada pelo corpo da mãe e seus conteúdos perversos e
sádicos. O corpo do Outro é lugar de um saber. O recurso ao mito edipiano opera
como um enxerto simbólico que supre a ausência de relação com o saber, o S2,
inaugurando um esboço de recalque. A interpretação força um movimento de
introjeção equivalente à incorporação totêmica do pai na tentativa de promover a
identificação fundamental da criança no campo do Outro. Dick diz: "Tea Dadd";
Klein: "Eat Daddy." O progresso da cura realiza-se a partir da instauração do par
significante S1 - S2 num sujeito que precariamente se sustentava num significante
só e retrocedia com horror toda vez que o saber do Outro era invocado.
Dick encontrou, na sua análise, a oferta de um recurso para produzir um lugar
fora de si-mesmo, um segundo lugar em relação à unicidade do primeiro signifi­
cante. O enxerto simbólico oficial de ponte que conduz Dick até o lugar do S2,
onde se produz sua resposta de apelo.

Frances Tustin e o Caso John


Frances Tustin dedicou seu trabalho analítico à cura do autista. O que sur­
preende em Tustin é o despojamento do seu referencial teórico para entregar-se
à escuta dos significantes de seus pacientes. Isto a coloca numa posição ímpar
1 34 O AUTISMO

entre os analistas anglo-saxões: a de não repetir um saber pre-estabelecido e


aventurar-se na contingência do inconsciente. O caso John foi decisivo na sua
formação. Tendo trabalhado na orientação kleiniana, Tustin depara-se com um
significante, "buraco negro", que sacode a segurança que ela obtinha na teoria em
que se apoiava. Precisamente Tustin dirá que, no referencial kleiniano, não há
lugar para o buraco. A analista encontrava-se ante uma encruzilhada e devia
decidir: ou bem escutava seu paciente ou se servia das interpretações sobre o
objeto que ela já possuía. Tustin faz a escolha da primeira opção e isso não ocorre
sem comoção: como trabalhar, apenas com a escuta, prescindindo da garantia da
concepção e dos conceitos do Outro? Tustin realiza sua aposta: é no significante
buraco negro que ela confia. E avança no atendimento de seu paciente, que tinha
quatro anos, quando chegou à consulta. Posteriormente encontrará, num escrito
de Winnicott sobre a depressão na psicose, uma noção equivalente àquela que seu
paciente lhe apresentava. O que particulariza a posição de Tustin é o fato de não
proporcionar uma teoria já pronta a seu paciente. Nesse ponto, sua intervenção
difere da posição de Melanie Klein. Tustin espera, não faz apelo imediato ao
Nome do Pai. Emerge no tratamento o buraco negro que não precisa ser preen­
chido com significantes do objeto bom ou mal. Nas primeiras entrevistas com a
mãe, Tustin quer saber se a criança possui um vocabulário e quais são as palavras
que eia faia. Nosso comentário centra-se na aparição do significante buraco negro
no curso da cura. Ela assinala que o emprego da expressão não era metafórico.
John caía num medo terrorífico e avassalador, quando se aproximava dessa pala­
vra. Porém, Tustin percebe que, a partir do momento em que esse significante
emerge, os atos automutilantes e negativistas da criança diminuem até desapare­
cer. "Buraco negro" refere-se a situações traumáticas e sem representação, que a
criança experimentara na sua mais precoce infância.
A analista acompanha a seqüência significante que se articula em torno de
"buraco negro." John, tocando sua boca, diz "botão vermelho." Tustin informa
que a criança tinha assistido ao espetác_ulo de um bebê mamando no seio. Ela foi
confrontada com uma cena que poderia evocar uma frustação. Um bebê, em
posição de rival imaginário, desaloja o sujeito de ser o complemento do Outro. O
trauma do desmame resignifica-se na frustação. No caso de John, a cena dispara
a ação de um significante indicador de uma operação que faltou no campo do
Outro: não houve privação como efeito de linguagem. Para esse sujeito, o Outro
não constitui um buraco no real. O encontro com um outro imaginário força-o a
inscrever um furo no Outro e a iniciar um trabalho equivalente à privação. Esse
momento é decisivo na análise de John, pois dá início ao trabalho de uma escritura.
John faz uma cruz com quatro lápis e diz: "seio..." "consertei ..." "buraco embora",
"botão em cima."
No trabalho de análise, John oscila entre duas posições: consertar, reparar
com o objeto seio a hiância encontrada no Outro; e rejeitar, expulsar o saber do
buraco, preenchendo-o com o botão. Introduzido o buraco da privação, John não
quer saber nada de sua existência. No entanto, o buraco não se apaga e demanda
uma reparação: o seio emerge como objeto, não da necessidade, pois não se trata
da fome, mas da concupiscência ao ser cedido pelo Outro. Consertar o buraco
com o objeto sinaliza a perda que ali opera e a construção de uma borda sob
O QUE OAUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 35

transferência� Posteriormente, o objeto passa a não estar, enquanto se articula no


significante o lugar de uma falta: "botão quebrado, não seio bom" (no good
breast ). O furo é produzido pela negação: não existe seio que tampe a hiância do
Outro. John atravessa o luto da falta que o objeto faz no Outro.
O trabalho de Tustin é paciente. A regressão de John, depois de um período
de interrupção de análise, não a desanima, pois sabe que o processo se reinicia
sempre em outro lugar. Tustin não cede à angustia. O silêncio do analista, sus­
tentado num não-saber orientado, possibilita que John se aventure a percorrer a
borda do buraco que o significante instaura. No entanto, é com a letra que se
delimita a borda. A clínica com o autista exige que não se faça apelo ao Nome­
do-Pai, mas que se aborde o real na dimensão da escritura. Há um vetor na direção
da cura de John que comporta três tempos: a introdução do furo no seu universo
compacto e homogêneo, a aparição do buraco terrorífico que ameaça devorar o
sujeito é produção da borda de uma escritura que o proteja cair no real.
O analista constitui uma presença que, articulada de modo borromeano, é a
única que possibilita manter a hiância separadora entre gozo e desejo. No caso de
Tustin, não há um saber da topologia, o que não impede que ela opere na estrutura.
O não-sabido de Tustin se elabora como saber. Ela destaca a perpetuação de um
erro muito difundido na teorização sobre autismo. A partir de Margaret Mahler,
o autismo foi considerado uma fãse normal do desenvÔlvimento da criança, prévia
ao estabelecimento de um vínculo simbiótico com a mãe. Tustin rejeita a concep­
ção evolutiva e situa o autismo na estrutura: é um caminho diferente do da neurose
desde o início da vida do sujeito. A originalidade da transmissão de Tustin radica
tanto na sua leitura crítica das teorias que precedem os achados de sua experiência,
como a possibilidade de acolher no seu escrito o testemunho do paciente. Assim
somos surpreendidos ao encontrar no seu livro The p rotective shell in chiláren
and adults (Kamac Books,1990) a carta de seu colega Hilary Jones transcrevendo
o relato de sua paciente Hilda que dizia sentir-se como uma garrafa de Klein, a
superficie topológica que não tem dentro nem fora e não possui dimensão nem
borda. Hilda ensina as características desse objeto ao seu analista que, por sua
vez, escreve uma carta a Tustin que finalmente a publica.Esse saber que não se
sabe, mas se transmite, testemunha precisamente que a topologia não é uma
metáfora mas a própria estrutura. Nela, o analista tem chance de conduzir a cura
do autista até o momento que possa operar um corte separador do sujeito no campo
do Outro.

Bruno Bettelheim e o Caso Joey

O caso Joey, relato de Bettelheim no seu livroA fortaleza vazia , é ilustrativo


de um possível término de cura do autista. No percurso do tratamento, o menino
identifica-se a umpapoose (nome do bebê entre os índios da América do Norte)
incluído num sistema elétrico, fechado, suspenso no vazio e movido por uma
energia que provinha de fonte desconhecida, situada no exterior. Esse mesmo
significantepapoose seria depois ligado a uma máquina que "fazia viver". Poste­
riormente, o papoose de Connecticut era uma pessoa fechada dentro de um cristal
1 36 OAUTISMO

como se estivesse dentro de uma lâmpada. O significante Connecticut determina


a posição do sujeito numa cadeia: Connect-1-cut , ligo-eu-corto.
Nessa cura, o significante papoose representa o sujeito no sistema elétrico
equivalente à função do campo do Outro ao qual se mantém ligado. A máquina,
cujo modelo é o par significante S1 - S2, supre uma dimensão simbólica ausente.
"Eu" pode então articular-se entre dois significantes: ligo-corto. Joey, no dia em
que ele explica a significação do papoose , inicia a masturbação. Seu pênis é
tratado como a alavanca de uma máquina. Ele se refere à masturbação como um
"pôr em funcionamento o pênis." Na criança autista, o significante do falo não
significa o pênis como lugar de gozo. A máquina tenta remediar a carência
significante em seu defeito no gozo.
Numa entrevista, três anos após o final de seu tratamento, Joey informa ao
analista o modo de sua articulação ao Outro significante. A intervenção de Bet­
telheim supõe uma teoria da cura, que restitui ao autista os vínculos de amor que
faltaram no começo de sua vida. Assim, o terapeuta indaga como foi a saída do
autismo, a partir do momento em que o paciente começou o toque de seus colegas.
Joey diz que tocou primeiro a Michael para corrigir-se e dizer que foi com Ken
que ele se ligou. O nome Ken faz parte de uma conhecida marca lâmpadas que
cha.'11.ava sua atenção: Kenrad. A rnlação ao outro imaginário foi possibilitada por
uma ponte significante, que tira o sujeito do único significante e o liga ao Outro,
constituindo o circuito de seupapoose . Nessa entrevista Joey compareceu com
um diploma que o habilitava para trabalhar e uma pesada máquina.
Em que consistia a máquina de Joey? Era um circuito elétrico que transfor­
mava a corrente alternada em contínua. Com esse aparelho, podia "enfrentar a
vida." Joey explicava com orgulho o funcionamento do artefato para quem se
mostrasse interessado. Essa pesada máquina, que atrapalhava seus movimentos,
era um resto do tra�amento, talvez ela acompanhe o sujeito durante uma longa
parte de sua vida. E a "solução" da cura para esse sujeito autista, um término
possível. A máquina "faz" um corpo para um sujeito que não o tem. Supre
materialmente uma "corrente" que não se estabeleceu. Na ausência do par signi­
ficante, a linguagem não afeta o corpo do autista, nem o brilho do olhar, nem o
sorriso, nem doenças físicas. Parecem invulneráveis e imortais. O significante
vivifica o corpo, mas introduz a falta da castração e da morte.
No autista, não há articulação possível entre alíngua do inconsciente e a
imagem do corpo. Não existe a conjunção entre gozo e corpo que denominamos,
com Freud, o masoquismo primário-erógeno. Não há sede da pulsão. Para que o
circuito pulsional se instaure, é necessário uma floculação de linguagem, um par
diferencial de fonemas que se exprime nos primeiríssimos jogos que o bebê
endereça à mãe em resposta as palavras e à modulação da voz. A pulsão e o
conceito que responde no corte do significante sobre a superfície do corpo. A
borda pulsional "origina-se" na volta da demanda, o que supõe uma unidade
topológica entre os orifícios do corpo e o buraco do Outro. O aparelho de Joey
serve de remendo entre simbólico e imaginário: é uma peça de prótese que se
extende sobre a hiância, um elo entre os dois registros disjuntos. Com isso se
O QUE O AUTISTA NOS ENSINA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALIENAÇÃO... 1 37

assegura que o gozo exista no circuito da máquina num modo precário de ex-sis­
tência.
Essa máquina difere do aparelho de influência descoberto por Tausk na
psicose. O "aparelho" de Tausk é uma máquina que presentifica o comando do
gozo do Outro sobre o sujeito. O aparelho do autista, ao contrário, busca fazer
ex-sistir esse gozo ali, onde não houve corpo nem hiância do Outro. A máquina
é um resto da análise de Joey que sela um término, algo equivalente à função do
sinthoma. Lembramos que, com esta grafia, Lacan escreve a função de um quarto
termo que realiza um enodamento em suplência da cadeia borromeana de três.
Considerava que a produção do sinthoma em análise poderia ser indicativo, para
certos sujeitos, de um ponto final do tratamento. A análise do autista não desem­
boca necessariamente na psicose. A produção da suplência permite vislumbrar
um outro término. Lacan assinalava que nem todos os autistas se encaminhavam
para alucinação das vozes, mas todos eles articulavam muitas coisas. A suplência
tende a compensar um déficit da estrutura e, em grande parte, o consegue. No
entanto há um resto do autismo que parece intransponível. O sujeito resta fora do
inconsciente sem participar do equívoco e do mal entendido da linguagem, sem
poder aceder a função de semblante com que a verdade se elabora no discurso.

NOTAS
1 . FREUD, S. "Proyecto de uma psicologia para neurólogos." Tradução: Ludovico
Rosenthal, Buenos Aires, Santiago Rueda Ed.
2. Ibidem.
3. FREUD, S. "A negação - Die Verneinung." Tradução: Eduardo Vidal, in: Publicação
Letra Freudiana nº 5.
4. LACAN, J. Ecrits. Paris, Editions du Seuil. 1 966, p.388.
5. FREUD, S. "A negação", op.cit.
6. -. I bidem.
7. -. Ibidem.
8. LACAN, J. Le Séminaire XX - Encore. Paris, Editions du Seuil. 1 975, p. 1 3 1 .

BIBLIOGRAFIA
BITTELHEIM, B., La fortaleza vacía. Barcelona, Editorial Laia, 1 972.
FREUD, S. "Psicologia das massas e análise do eu." Cap.VII: A Identificação - Tradu­
ção a ser publicada..
KLEIN, M. "La importancia de la formacion de simbolos en el desarrollo dei yo." 1 930,
in: Contribuciones ai Psicanalisis. Buenos Aires, Ediciones Hormé. Paidos, 1 964.
LACAN, J. "Conférence à Genve sur le symptôme." Le 8/oc Notes de la Psychanalyse
nº 5, Geneve.
-. Le Séminaire 1 - Les écrits techniques de Freud. Paris, Editions du Seuil, 1 975.
-. Le Séminaire IV - La Relation d'ojet Paris, Editions du Seuil, 1 994.
-. Séminaire IX - L'ldentification (inédito).
-. Le Séminaire XI - Le Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris, Seuil,
1 9 73.
-. Séminaire XIV - La logique du fantasme (inédito).
1 38 O AUTISMO

-. Séminaire XXI - Les non-dupes-errent (inédito).


-. Le Séminaire: "R.S.I." in: Ornicar (2-5).
-. Le Seminaire: "Le Si nthome." in: Ornicar (6-9).
LEFORT, R., R. Naissance de l'autre. Paris, Editions du Seuil, 1 980.
-. "Resposta de Rosine e Robert Lefort" (nesta publicação).
MAH LER, M. As psicoses infantis e outros estudos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1 983.
SKRIABINE, P. "La clinique du noeud borroméen." in: Lénigme et la Psychose. Paris,
La Cause Freudien ne.
TUSTIN, F. The protective shell in children and adults. Londres, Karnnac Books, 1 990.
-. Autismo e psicose infan til. Rio de Janeiro, Imago, 1 975.
-. "A perpetuação de um erro." ( nesta publicação).
O AUTISMO NA ESTRUTURA: ROSIN E E
RO BERT LEFORT
Nilza Ericson

É a partir do encontro com um escrito sobre a clínica e o real aí presente que


me foi possível abordar o tema do autismo. São as sessões escritas por Rosine
Lefort sobre o caso Marie-Françoise nos anos de 1950 a 1952 e publicadas em
colaboração com Robert Lefort em 1980 no livro Nascimento do Outro. Neste,
há um trabalho ae articulação teórica dentro do referencial freudiano-lacaniano
fundado em dois pontos fundamentais: a estrutura da linguagem e a topologia. A
proposta é tomar os principais pontos desenvolvidos nesse texto e seu desenrolar
nas conferências e escritos subseqüentes finalizando com as perguntas enviadas
em 1994 aos Lefort e cujas respostas estão publicadas a seguir.
Este tratamento ocorreu durante o tempo de internação de Marie-Françoise
no Serviço de Jenny Aubry quando Rosine Lefort atendia simultâneamente outra
criança, Nadia. Apesar de muitas semelhanças no comportamento inicial de am­
bas, no decorrer dos tratamentos foram surgindo diferenças marcadas por Rosine
que serviram de contraponto nessas duas análises.

QUANTO À ESTRUTURA

É necessário que o Outro enquanto campo significante esteja presente para a


criança "nascer" como sujeito. Para Marie-Françoise, o Outro está ausente. Ela
não faz apelo algum porque, para ela, o Outro não é furado, ela nada pode tomar
dele, deixando-o no real. A mutação dos objetos reais em significantes se impõe
como condição de estrutura. Nesse caso, há falência de estrutura, o que nessa
época Rosine chama de a- estrutura.
Topologicamente, o corpo do bebê é definido por um furo que vai da boca
ao ânus enquanto as outras cavidades são deformações da superfície da pele. A
criança precisa de um objeto tomado do Outro como significante e não como
alimento real para poder inicialmente tapar o furo de seu próprio corpo e fazer da
superfície corporal uma estrutura significante, único modo de existir como ser
falante. M.F. permaneceu com seu corpo furado no real enquanto o Outro, fora
da dialética significante, resta para ela sem furo, situação de impasse quanto à
constituíção de uma estrutura. O significante quando surge, é o da ausência real
do Outro, assim, falar, é a confirmação de seu desaparecimento ou sua morte e o
mutismo, uma tentativa de escapar disso.
R.L. destaca no texto "Autismo e psicose", dois significantes: "partir e que­
brar," e que "partir", no caso do autismo, é o significante privilegiado da ausência
1 -,0
1 40 O AUTISMO

do Outro. É também condicionante de uma violência no limite de seu encontro


com o Outro, para cavar aí um lugar para si próprio.

QUANTO AO O BJ ETO

Se o Outro não é furado, o sujeito nada pode tomar dele. Falha a dimensão
da demanda ao Outro que depende da destituíção do objeto real, com sua passa­
gem ao registro significante, operando aí uma perda. M.F. se dirige ao vazio da
janela, apelo à ausência real que não pode alimentá-la Ou ainda fica parada diante
do prato de arroz, sem poder tocá-lo, porque no nível oral a atividade do comer
cavaria o furo ao nível de sua boca. O objeto só toma lugar na montagem pulsional
se o Outro é aí implicado. Mas para M.F. a relação do significante ao real do
corpo do Outrõ falha, deixando-os separados, cada um por sua conta, sem enla­
çamento. Assim, ela não pode constituir-se como sujeito nesse ponto de vazio que
o objeto deixa no corpo do Outro.
A pulsão oral em M.F. é quase substituída pela pulsão escópica pois, nesta,
a dimensão de perda do objeto é diminuída ao máximo. Ela faz tentativa de
preencher a perda que a atividade oral de comer lhe anuncia, tapando não sua
boca, mas deslizando para o escópico, sobre o seu olho. O alimento assume então,
a dimensão de objeto real escópico.
A alimentação forçada à qual M.F. foi submetida resultou em bulimia com o
desinvestimento libidinal do alimento, passando o objeto oral a perder seu sentido
de objeto do corpo do Outro. Assim, oscila entre o vazio e a plenitude, toda-au­
sência ou toda-presença
A analista R., em um primeiro tempo, é mais um entre os objetos reais para
M.F.. Em um segundo momento vem a esboçar um choro quando termina a sessão,
mas não chega a se transformar em apelo. R.L. aponta aí o fracasso de M.F. em
se fazer ouvir. Permanece na impossibilidade de inscrever o objeto separável que
ela poderia encontrar ao nível do corpo do Outro. Ao conduzir a mão de R.L. por
seu corpo mostra algo específico da relação do autista com o corpo do Outro:
manipula-o como um objeto que resta no real enquanto duplo real.

QUANTO AO ESPECU LAR

Há um fracasso de toda dimensão imaginária em M.F.. O corpo do Outro não


possui imagem especular porque no lugar da superfície do espelho, ela encontra
continentes-volumes. Ela evita o espelho que revela sua própria perda e o substitui
pela janela, espelho no real, sem passar pela perda inerente ao encontro com a
imagem. Ela é aí elidida e, ao dirigir-se à R.L, o que encontra são os olhos-órgãos
que não lhe remetem à uma imagem mas ao duplo real de R.L. O mundo é furado
para ela, realmente, e o espelho é somente um vidro onde ela resta só e separada,
não se constituindo do mesmo lado do espelho que R.L.. Ela perde o Outro desse
modo e só o encontra fazendo dele um duplo real.
O AUTISMO NA ESTRUTURA: ROSINE E ROBERT LEFORT 1 41

A QUESTÃO PULSIONAL
Somente quando se dá a passagem do real ao significante, através da inclusão
do Outro, é que o circuito pulsional se estabelece, possibilitanto ao objeto tomar-se
um objeto de demanda ao invés de permanecer no real do gozo. No caso de M.F.
há três vias pulsionais implicadas: a muscular, a escópica e a oral. Seus movi­
mentos quase convulsivos, outras vezes marcados por uma violência, são inter­
pretados por Rosine como pulsão sádica. A questão é como se organiza isso na
direção da cura enquanto primeira articulação do campo pulsional. Pois é neces­
sário a participação do Outro para que esse circuito retome ao sujeito como um
vetor que articulou a demanda a partir do campo do Outro. Mas para M.F. é pelo
muscular que ela mais se aproxima de um contato com o Outro em uma deses­
perada tentativa de feri-lo, atingi-lo, quem sabe, aí na fronteira de um corte
separador.
M.F. foi deixada por sua mãe aos dois meses de idade. Essa perda que ela
experimentou tão precocemente teve como conseqüência graves pertubações em
sua relação ao Outro. No nível oral ela oscila entre a incorporação do alimento
que não ganhou sentido como um objeto do corpo do Outro investido libidinal­
mente, causa do desejo a ser tomado pela criança, e a recusa do alimento devido
à ausência do Outro, o que provoca uma inibição absoluta.Alterna a incorporação
compulsiva com a recusa radical. Ela o toma, então, em um deslizamento, como
objeto escópico real, ao colocar o bombom sobre o olho, quando não consegue
preencher com ele o furo da boca.
Entre ela e o Outro há um obstáculo: a pele sem furo que o significante não
pôde recortar. Suas tentativas de avançar na incorporação de R.L. como um objeto
se caracteriza por procurar absorver os objetos como duplos por toqa a superfície
do corpo. Quando tenta colar o marinheiro sobre o olho ao se presentificar uma
perda possível de R.L. no nível do escópico, ela termina por apagar o olhar
preenchendo sua iminente perda em benefício da manutenção da superfície do
olho. Ela recusa a demanda, um sentido. O objeto resta dolorosamente inacessível
para ela.
A indicação que R.L. faz de um auto-erotismo no uso de objetos duplos
servindo de tampas para os orifícios do corpo, indicaria já uma operação de perda
sobre o próprio corpo, promovida pela implicação de um Outro no circuito
pulsional.
Será que se poderia introduzir, nesse momento da direção da cura, essa
mudança na estrutura de M.F., já que o auto-erotismo supõe uma operação de
perda prévia ao retorno da pulsão sobre o próprio corpo?

QUANTO A METÁFORA E A M ETONÍMIA

R.L. afirma que há uma falta da metáfora paterna nessa forma de funciona­
mento do circuito autista. No caso de M.F. ou faltava originalmente ou foi
dissolvida. A dimensão da substituição metafórica fica reduzida ao par de oposi­
ção tudo ou nada, de toda-presença ou toda-ausência.
1 42 O AUTISMO

M.F. permanece no real da linguagem, em um isolamento entre o significante


de sua nomeação e a ex-sistência de seu real. Não é um sujeito, mas um "ser"
anterior ao sujeito que representa a alternativa da exclusão "ser ou não ser",
espelho mortal de toda-presença ou toda-ausência. Falta o significante para no­
mear os objetos dos quais o Outro é o portador porque o significante do Nome
do Pai, que pré-existe aos outros como base da identificação primária, está for­
cluído. Sem o Outro, não há outro, nem a objeto da falta do Outro.
Não há substituição metafórica - mutação do real em significante - nem
deslizamento metonímico já que o deslocamento se faz no nível do real do corpo
e não no nível significante. Fica inviabilizada toda a dimensão da significação
fálica. As palavras não fazem sentido para M.F. o que a deixa diante do vazio do
significante: um "vazio bem real" diz R.L.
QUANTO À DIREÇÃO DA CURA
Rosine Lefort privilegia a escritura das sessões como um encargo do analista,
respeitando a condição de estrutura: mutação de um real do corpo do analista em
significante.
Diante desses casos, o an'.:1-lista enquanto "desejo do analista" é o único
portador da metáfora paterna. E preciso articular a estrutura em causa pelo signi­
ficante. A posição do analista, que para M.F. está lá como testemunha de uma
ausência real, é a de estar lá mas não intervir com gestos do corpo no real, não
tomar o lugar do outro que alimenta, sustentar o silêncio para criar o vazio
indispensável para M.F. sair de sua passividade, para que possa dizer "não" ao
real dos outros e do alimento, passar a outro lugar que o do gozo dos objetos reais.
A intervenção deve obedecer ao nível simbólico da falta no Outro e não ao
nível da imposição do objeto real para satisfação das necessidades ou como
"maternagem" compensatória da falt!1 da mãe. Importa estar presente e não fazer
nada, estar lá à espera de um apelo. E preciso que o objeto seja introduzido pela
palavra do analista, é ela que faz barreira ao gozo.
A transferência depende de como o analista coloca o Outro em função. Mais
radicalmente com o autista do que com qualquer outro pois, nesse caso, ela oscila
entre a voracidade e a morte. Nas sessões, freqüentemente, ele se precipita na
direção do analista para logo lhe dar as costas. A transferência do autista mostra
que, no real, o Outro deve estar aí e não existir, posição em espelho com a sua
própria, que é de estar aí e não existir.
Só uma posição de analista com um desejo decidido pode suportar essa
transferência, caso contrário, a ausência de uma referência ao Outro, como causa
de desejo, pode levá-lo inconscientemente à dependência de seu analisando, que
toma o lugar de seu Outro, inconsistente, fora-significante, "partido", deprimin­
do-o ou ainda levando-o a refugiar-se em uma abordagem descritiva, psicologi­
zante, ortopédica.
Após alguns meses de tratamento de M.F., R.L pôde pressentir a emergência
de um apelo quando ela chama "mamãe, mamãe". No entanto, o tratamento foi
interrompido e permaneceu uma interrogação sobre suas possibilidades futuras.
O AUTISMO NA ESTRUTURA: ROSINE E ROBERT LEFORT 1 43

Para Rosine e Robert Lefort o autismo não tem ainda uma estrutura fixada e
sua saída aponta para a entrada na estrutura da psicose paranóica. Indicam uma
passagem possível do autismo à psicose. Na psicose o Outro estaria presente para
o sujeito enquanto o significante "quebrado" concerne ao objeto. O sujeito pas­
saria à tentativa de restaurar o Outro para que seja absoluto, não lhe falte nada,
nem esteja em perigo de morte.
No autismo o sujeito é o objeto enquanto tal, que pode desaparecer sem o
Outro - o significante "partido" refere-se ao Outro -, marcando sua inacessibili­
dade. Sem alguém que o sustente ele corre o risco de vir a desaparecer.
Pensamos, a partir da experiêcia de analistas que tomam em tratamento
autistas precoces, existir outra saída que não a psicose. Isso se dá quando substi­
tuem o laço social do qual são incapazes, por algo, uma "máquina" como nos
casos "Joey'' de Bettelheim, "Dick" de Melanie Klein e "John" de Frances Tustin;
o resultado é uma estabilização. Isso aponta para a importância da intervenção
precoce nesses casos, com a conseqüênte mudança no destino da criança.

QUANTO À MÃE
Não há estrutura específica da mãe do autista. Rosine e Robert L. falam da
criança autista como um objeto en souffrance , não podendo existir, pois é uma
criança "não-endereçada". Ela não tem sua própria história porque sua história é
a da mãe. Isso já está presente mesmo antes de seu nascimento. Está em posição
de objeto do auto-erotismo infantil da mãe, objeto de uma fixação inconsciente
desse gozo revelado em análise da mãe. Esta, só constata a ausência de relação
da criança com ela sem nada compreender. O efeito da regressão ao gozo auto­
erótico é a anulação do genitor da criança autista, devido à recusa da mãe ao
incesto com o seu próprio pai: retorno do recalcado. Essa mãe precisa saber, no
sentido S2 do Outro, que é a mãe dessa criança, encontrar um buraco no signifi­
cant<:;, esse do Nome do Pai no lugar de seu Outro.
E pela irrupção da palavra que a criança pode sair desse lugar mudo de objeto
auto-erótico do Outro, no sentido de indiferenciada desse Outro, não separável do
corpo do Outro. Rosine e Robert são os únicos autores que abordam o autismo a
partir da noção de estrutura e que a colocam na causa da posição do autista e
orienta sua direção da cura.
É afirmando seu desejo de analista em ato fundado em sua posição ética que
o analista oferece a chance ao autista de encontrar um Outro não-toda-presença
ou não-toda-ausência. Seu "ser" de gozo poderá então, se inscrever como ser
falante no campo do Outro.

BIB LIOGRAFIA
LEFORT, R., R. O nascimento do Outro. Salvador, Ed. Fator, 1 984.
-. "Apports theoriques de la cure analytique du tout petit-enfant." Ornicar?, Paris, n.
26, 1 983.
1 44 O AUTISMO

-. "Autisme et Psychose - Deux signifiants: 'parti' et 'cassé'." Conferência. Toulouse,


1 987.
-. "Resposta de Rosine e Robert Lefort." 1 994, nesta publicação.
CARTA À ROSINE E ROBERT LEFORT
Tradução: Paloma Vidal

Prezados Rosine e Robert Lefort:


Estamos enviando-lhes as perguntas sobre o autismo surgidas a partir do
trabalho sobre o caso clínico de Marie-Françoise e a conferência que fizeram no
Rio. Agradecemos a gentileza de se disporem a nos responder. Passamos agora
às questões.
1) Ao dar a conferência sobre autismo na Letra Freudiana, vocês propuseram
teorizá-lo como a-estrutura. O que pensam sobre isso agora ? Considerando que
o autista está na estrutura de linguagem, a convocação à palavra prcxluziria sempre
uma saída do autismo pela via da psicose?
2) Na sua opinião o tratamento muito precoce do autismo (de Kanner) - ou
seja, no tempo lógico do espelho - poderia abrir a outras perspectivas além da
psicose paranóica?
3) Na déciina-quinta jomada de estudo do CEREDA vocês propuseram uma
seqüência dos maternas do autismo. Nós a transcrevemos aqui:
S l (A) -+ [S(a) = O] -+ I (Sl (a)) [S2 = O <I> = O]
J

Encontramos algumas dificuldades em compreendê-la plenamente. Esta série


demonstra a palavra fechada no gozo sem Outro. Queremos propôr-lhes, se
possível, desenvolver um pouco mais sua leitura do materna.
4) A partir do materna precedente, o analista encontraria uma posição mais
adequada para a transferência da criança autista. O que vocês poderiam dizer sobre
isso?
5) Muitas práticas terapêuticas preconizam o estímulo do autista como ma­
neira de vencer a barreira da criança frente ao Outro. Consideramos que essas
técnicas desconhecem a verdadeira estrutura da transferência no autismo. Embora
elas tentem "tocar" a criança fechada na sua carapuça, elas podem também causar
o pior. Na sua experiência, qual seria a via ética para trazer a criança a uma palavra
dirigida ao Outro?
Ficaremos muito contentes de poder incluir suas respostas e putros comentá­
rios no capítulo consagrado à sua teorização sobre o autismo. A espera de uma
resposta.
Atenciosamente,

Eduardo Vidal e Nilza Ericson

1 45
1 46 OAUTISMO

Resposta de Rosine e Robert Lefort


Tradução: Paloma Vidal

Paris, 23 de fevereiro de 1994.


Prezados amigos:
Respondemos bem tarde aos seus votos - recebam os nossos para 1994 - e as
suas perguntas sobre o autismo. A razão do nosso atraso encontra-se na urgência
da preparação do Encontro Internacional, onde vocês sabem que haverá, no dia
15 de julho, uma jornada inteira consagrada à psicanálise com crianças.
Passemos agora as suas perguntas.
1) A a-estrutura: deixamos de empregar mais tarde esse termo por ser
absoluto demais. No entanto ele assinalava a ausência de divisão do sujeito entre
o Um e o Outro, sem queda de um (a). O Outro do autismo "existe" enquanto
absoluto e sem corte (inentamé); daí essa violência física do autista, violência que
aproximamos do fantasma sadiano , para tentar fazer uma incisão nesse Outro,
fazer nele o buraco onde procura localizar-se enquanto objeto (a).
A saída do autismo pela via da psicose - que também concerne sua questão
n2 2 - não pode se conceber senão pelo sucesso da tentativa de fazer uma incisão
no Outro, mas o autista se encontra então na posição, não de alcançar um lugar
para esse Outro (que seria barrado), mas diante do maior perigo de perdê-lo
realmente, o que o leva a precaver-se disso fazendo-se objeto da completude e do
gozo desse Outro, para salvá-lo ao modo paranóico, fora simbólico, no real: em
suma, ferir o Outro mas para repará-lo.
3) A seqüência de maternas do autista que propomos só pode ser lida em
contraste com a seqüência normal (Nadia):

__fil_(A) -+ a (A + a) -+ J<. (A-a) �(S l) -+ ,8 (S2) ,S◊ a e S(A)


J J
O S 1 do gozo prévio - gozo prévio que Lacan colocou no lugar de um
narcisismo primário incompatível com o seu ensinamento - caiu ao mesmo tempo
que o objeto e a(A + a) torna-se ){ (A-a). O gozo barrado de Sl faz dele, por
simbolização, o grande I do ideal do eu. O S2 do Outro (seu saber) impõe ao Sl
representar o sujeito para esse segundo significante colocando ali também uma
barra, mas dessa vez sobre o sujeito: .S: um$que se lembrará do objeto perdido
no fantasma :,8' ◊ a.
A seqüência de maternas do autismo pode ler-se assim:
Sl (A) - [S (a) = O] - I (Sl (a) [S2= O <f> =O]
T
CARTA À ROSINE E ROBERT LEFORT 1 47

ÇA) Outro absoluto, sem objeto separável. Ele é Um e como tal, não tem
necessidade de nada.
Como Um, ele é algo anterior ao significante, fora significante, antes de todo
recalque. Ele está no lugar do "mesmo" e não num lugar em espelho, idêntico,
que implicaria o significante.
Se nenhum objeto faz (-1) no Outro, o,autista não pode se separar dele e
confunde-se com ele no horror [S (a) = O]. E Marie-Françoise na beira da crise
convulsiva diante de prato de arroz que não pode tocar, pois se comeria a si
mesma.
Mas o autista não escapa a "alíngua" ("lalangue"), a ser apenas uma insígnia,
o Sl, que faz dele um puro significante, levando em conta, no entanto, que esse
significante é real e funciona como objeto.
Esse objeto do Outro - especialmente o olhar e a voz -toma-se uma presença
intrusiva da qual o sujeito se defende nesse mesmo nível orgânico: o olho dos
autistas é como um muro e, se eles não são cegos, é totalmente evidente que não
estão dotados do_olhar. Quanto à voz, o mutismo chamado psicogênico é um signo
importante do autismo. Inversamente o autista parece surdo à palavra do Outro.
Mas mesmo na ausência de toda relação com Outro, "como o nome o indica
(J. Lacan: Discurso sobre o Sintoma em Genebra) os autistas se ouvem eles
mesmos, eles ouvem muitas coisas. Isso desemboca normalmente na alucina­
ção ...eles articulam até mesmo muitas coisas." Ele acrescenta que "são sujeitos
sobretudo verbais" colocando a questão de saber "de onde vem o que eles ouvi­
ram."
Pode-se também colocar,ª questão do estatuto dessa palavra fechada sobre
ela mesma, que não circula. E provável que ela esteja no lugar do objeto que o
sujeito guarda para si, não se trata ao contrário do psicótico, de dirigir ao seu
Outro,já completo e absoluto, o mínino Gozo suplementário na medida em que
seja ainda possível para um Outro todo Um no Gozo.
I (Sl(a)): o ideal do eu vai aqui com o Sl, I(Sl) levando em consideração
que a prevalência do real substitui o simbólico que não há e que o Outro real "se
interpõe para o sujeito entre o gozo narcisista de sua imagem e a alienação da
palavra onde o ideal do eu toma o lugar desse Outro" (Escritos p. 572). Aqui pode
se indicar uma saída pela psicose.
4) O lugar do analista na cura da criança autista não pode em caso algum ser
o da estimulação que não visaria senão impor-lhe um Outro descompletado onde
uma báscula brutal em uma estrutura psicótica o forçaria a salvaguardar esse
Outro,,a automutilar-se para salvá-lo, no lugar de agredi-lo para fazer aí o seu
lugar. E este último ponto que deve ser respeitado e que torna a prática com os
autistas tão exaustiva.
Recebam, junto com estas notas, nossas melhores lembranças.
Até breve,

Rosine et Robert Lefort


PARTE IV

Vinhetas Clínicas
QUESTÕES ACERCA DO AUTISMO
Elisa Oliveira

F. contando 8 anos não falava. Nas primeiras sessões, circulava pela sala
subindo pelos móveis, espalhando pelo chão os objetos que encontrava e só parava
ao achar algo que se parecesse com um fio. Segurava este "fio", balançando-o à
sua frente. Era algo que o fazia parar mas, também aí, se perdia na repetição de
um movimento que insistia de uma forma estereotipada sem qualquer desdobra­
mento. À analista fazia um certo endereçamento, sem emitir qualquer som, mas
cujo significado foi possível apreender ao longo das sessões. Ao me entregar um
fio e um objeto qualquer, insistia em gestos para que fosse feito alguma coisa, se
afligindo muitas vezes, sem conseguir o que queria. Após determinado tempo, em
função de algumas tentativas, foi possível descobrir, a partir de sua resposta, que
era para amarrá-los. Ao ver o fio ligado ao objeto, corria para pegá-ios, mas para
voltar ainda a um movimento estereotipado. Determinados momentos em que
parava estes movimentos eram, contudo, para imergir em grande aflição. Os sons
que emitia se transformam em gritos, passando a se balançar violentamente, sem
que fosse possível detectar o motivo e sem que nenhuma intervenção o fizesse
acalmar. Era um tempo de desespero ao qual estava só, sem que o Outro tivesse
condições de intervir, o que colocava este sujeito em um imenso isolamento. A
que responde isso? O que faz com que no lugar de um sujeito desejante, advenha
este ser muitas vezes tomado como coisa?
Seguindo a via marcada pelo ensino de Lacan, retornamos ao Seminário I,
onde é dada a indicação de que: se no autismo há um sujeito, é preciso determinar
o seu estatuto. Esta marcação, sem dúvida, tem conseqüências na direção de um
tratamento possível para estes pacientes.
O trabalho, ao longo das sessões com o paciente citado, me fez questionar o
que poderíamos designar como autismo.
No Seminário sobre angústia, marcamos o que diz Lacan a propósito da mãe
de uma criança esquizofrênica, pois quando a criança permanece para a mãe, ainda
após o nascimento, um pedaço de seu próprio corpo separado dela somente no
real, pedaço vivente que é necessário antes de tudo satisfazer às necessidades
fisiológicas para assegurar um bom funcionamento do organismo, quando o ima­
ginário da mãe em relação a este filho é estéril, e se atesta a ausência de desejo,
de representação em torno da gravidez e do nascimento, já não se aperceberia aí
qualquer coisa da ordem da forclusão?
No autismo nos perguntamos a que nível chegaria uma ausência de signifi­
cação do Outro. Ou mesmo, se é que uma criança autista representou algo no
desejo do Outro.
Retornando ao caso do paciente citado, é ao longo de entrevistas com os pais
que surge o mal-entendido existente entre o casal em relação à gravidez deste
filho. Em determinada sessão que o pai compareceu sozinho, menciona que sua
1 51
1 52 OAUTISMO

mulher durante certo tempo não sabia que estava grávida, só tomando conheci­
mento do fato aos 4 meses de gestação. Em outra entrevista, estando o casal
presente, é retomada a questão da gestação. A mãe de F. diz para surpresa do
marido, que sabia desde logo da gravidez, mas só decidiu encarar o ocorrido aos
4 meses, indo ao médico. Esta situação, em função do estado em que se encontra
a criança atualmente, nos remete à questão do que se trataria para a mãe nesta
gravidez. Ao marido, parece não ter sido feito qualquer endereçamento, ele só
passa a saber, ou mesmo só decide saber o que andava ocorrendo, no momento
em que o médico entra neste circuito. Após estes primeiros 4 meses nenhuma
questão sobre o fato de querer ou não este filho. Ele simplesmente vem. Sobre o
nascimento, nenhuma palavra
Na trama fantasmática de cada um dos pais, esse não querer saber sobre algo
que cresce no útero,já não apontaria a dimensão que alcança este mal-entendido?
A quase total_ausência de relação ao Outro que atesta este paciente, nos leva a
con�iderar que desde antes de seu nascimento resta para este, que é o segundo
filho, ficar em um nível radical, fora do circuito do desejo do Outro.
Segundo Lacan, para a possibilidade da constituição de um sujeito desejante,
é preciso que o infariS ocupe o lugar do objeto a no fântâSma do Outro. Partin.do
deste lugar, a criança deve constituir-se ser do objeto.
Contudo, em relação à mãe, este primeiro Outro "é para além ou para aquém
do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é enquanto
que seu desejo é desconhecido, é neste ponto de falta que se constitui o desejo do
sujeito." 1
A partir destas colocações, nos perguntamos que partida se joga entre o sujeito
na posição de a e o Outro?
O infans vai permanecer durante muito tempo tributário do Outro para a
satisfação de suas necessidades vitais. A continuidade dos cuidados, o retorno
quase que idêntico, a repetição dos mesmos índices, são indispensáveis para que
as primeiras associações significantes e as construções dos objetos se façam em
torno da presença do Outro.
Na psicose, em função mesmo do lugar que este sujeito vem ocupar para o
Outro, não o de objeto a, mas o de objeto do gozo do Outro, se trata do impossível
da queda do objeto a, imRossível de uma primeira inserção simbólica e de uma
articulação do RSI, em termos do nó borromeano. Se uma primeira rede de
associações significantes não é.possível de ser feita em torno da presença do A
(não há possibilidade de uma "coesão" deste primeiro sujeito), o corpo permanece
despedaçado no real. Em relação a estes fragmentos, vem se estabelecer uma
linguagem à medida desta dispersão o que, na criança psicótica, muitas vezes vai
da ecolalia a uma incoerência verbal total.
No caso citado anteriormente, podemos supor um radical desajuste nas pri­
meiras vias de relação ao Outro. Segundo os pais, é uma criança que não come à
mesa com os outros da farm1ia, porque não para se�tado. Em contrapartida, come
a todo momento. Raramente vai ao banheiro. "E de uma recusa! " - fala o pai.
Não dorme em sua cama. A mãe diz ser deprimente vê-lo dormindo sentado mas,
se o colocam na cama, ele não dorme. De F., nenhuma palavra.
QUESTÕES ACERCA DO AUTISMO 1 53

O que demonstraria o estado atual deste sujeito, senão o seu desacerto no


tempo e no espaço, sua total desarticulação como resposta à não incidência da
demanda do Outro, que viria inserí-lo no mundo do simbólico? Ao questionarmos
do que se trata neste caso, voltamos a um momento marcado pelos pais. Segundo
eles, até a idade de 2 anos, F. falava algumas palavras: "Mamá", "papá". Possuía
um cachorrinho de plástico do qual não se separava. O acontecimento marcado
pelos pais é o nascimento da irmã. A mãe diz que, após este parto, teve algo
diagnosticado pelos médicos como psicose pós-parto. Em relação a F., diz que,
ao voltar do hospital, o filho não era mais o mesmo. Este filho é colocado no
quarto ao lado para dar lugar ao bebê, e lá trancado, pois incomodava não
querendo aceitar essa mudança. Segundo o pai, de manhã estava dormindo exausto
no pé da porta. A partir deste tempo, F. foi parando de falar, perdeu seu brinquedo
e seu único interesse consistia em um fio que balançava estereotipadamente à sua
frente. É este momento em que mergulha no autismo.
Retornando às sessões com este paciente, me pergunto se atualmente resta
para este sujeito algum traço de relação ao Outro. As vezes, quando o chamo, me
olha. Mas qual o estatuto, se poderíamos dizer assim, deste olhar?
Segundo 1..acan, o olhar, enquanto objeto retomado no circuito pulsional, tem
a particuiaridade, como a voz, de ser diretamente ligado ao dt:sejo do Outro, não
se estabelecendo propriamente sobre nenhuma necessidade. E, talvez, esta incon­
sistência, esta evanescência que asseguram, de modo privilegiado, sua inserção
no fantasma e sua aproximação ao gozo. Na psicose, o olhar não vem fazer buraco
na sustentação do desejo. Algo da ordem da perda não pôde advir, o que teria
permitido a constituição do objeto causa de desejo. Na psicose, é como se a
percepção permanecesse visão sem olhar.
Em relação ao paciente citado, se alguma mudança em seu estado se faz, é a
partir de um encontro de olhares, não sem conseqüências. Desde um primeiro
momento, procuro me fazer presente pela voz e pelo olhar, chamando-o na
tentativa de estabelecer alguma via de relação possível - tarefa meio impossível,
até então. Contudo, em determinada sessão quando o chamo, responde olhando e
fixando pela primeira vez o olhar, sorrindo como um sinal de reconhecimento. E
provavelmente, como conseqüência disto se desequilibra do alto da cadeira onde
estava agachado e cai - como desfalecido no chão. Após esta sessão, quando vou
chamá-lo, sorri e vem em minha direção. O que não tinha ocorrido até então.
1..acan, no Seminário "As Formações do Inconsciente", fala do sorriso - este
que sobrevém antes de qualquer palavra como uma primeira comunicação ao
Outro. Neste paciente nenhum processo de simbolização foi instaurado, mas o
advento deste sorriso possivelmente estaria na via de algum reconhecimento do
Outro. E algo ocorre em relação ao Outro pois, em momentos aflitivos que inicia
seus movimentos estereotipados, torna-se possível que uma intervenção seja feita
e que o acalme, dirigindo-o a outra coisa - situação antes impossível.
Após este tempo, inicia um certo jogo, fazendo um pedido para a participação
da analista. Dá o sinal de que sente cócegas e pelo olhar e gestos pede ao outro
que realize sua parte neste jogo. F. por sua vez chega a antecipar com uma
gargalhada o final do jogo, partindo daí para a repetição do mesmo. Este é o
1 54 O AUTISMO

momento do início de algum balbucio. Algo do reconhecimento da presença do


Outro, antes praticamente inexistente se faz e como efeito ocorre alguma articu­
lação no comer, no controle dos esfíncteres, no andar, no dormir e um certo
aplacamento dattlperatividade e da aflição que demonstrava anteriormente.
O trabalho que vem sendo realizado com este paciente nos move na produção
deste escrito, e a partir de fragmentos que se colocaram como questões funda­
mentais para precisarmos do que se trata no autismo-posição ética para o analista
que se ocupe destes pacientes ao tomá-los por um sujeito, seguindo na tentativa
de marcação de uma direção para um tratamento possível. Assim é que formula­
mos algumas qvestões que se colocam sobre o autismo a partir do trabalho com
este paciente. E um sujeito que, embora seja preciso determinar o seu estatuto,
estabeleceu alguma relação ao Outro até os 2 anos de idade, que lhe possibilitou
falar determinadas palavras com certo endereçamento. Contudo, frente a violência
de uma situação traumática que provavelmente provocou a ruptura de uma ligação
já frágil ao Outro, o sujeito imerge no autismo. Em relação a este paciente, é
importante marcar a diferença do autista precoce, que atesta desde sempre, de
maneira radical, a impossibilidade de uma verdadeira relação ao Outro.
A nos depa:armos com um� c�iança que aos 8 anos �testa u1!1a quase total
A �
ausencia de íelaÇâo âO Outío -se e disto que se tíata no autismo-, ligado somente
a um fio, no simbólico, sem olhar e nem dar provas que escuta o Outro, pensamos
a via de um tratamento, levando em consideração a gravidade de iniciar um
atendimento a um paciente neste estado com uma idade já avançada, na possibi­
lidade de que algum sinal se faça de que este sujeito seja afetado pela presença
do Outro.
Em um momento preliminar do tratamento do paciente, no estado em que se
encontrava, já citado anteriormente, o analista é tomado somente como aquele (ou
aquilo) que p:xle amarrar o fio à coisa, sem que qualquer endereçamento de outra
ordem se faça. Não seria este o testemunho de uma quase total exclusão do Outro,
ou ainda, prova da situação deste sujeito-excluído do campo do Outro? Frente a
isto, é necessário que com seu ato, o analista impulsione a configuração de um
lugar ao Outro, na medida em que o sujeito responda, com condições de formar
representações em torno deste Outro.
Se em um tempo inicial do tratamento deste paciente, o olhar -via tão radical
de relação ao Outro - era praticamente inexistente, se havia quase nenhuma prova
da escuta da demanda do Outro, supomos que somente a partir do momento em
que o paciente marca algo da presença do Outro com certo endereçamento, se
marque o primeiro tempo de um tratamento possível.
A partir do momento em que o olhar é traçado com endereçamento, advindo
o sorriso como reconhecimento do Outro, o sujeito na linguagem se situa de _
alguma forma inicial, passando a dar provas da escuta da fala do Outro e inicia
um balbucio.
É ao longo da cura principalmente pela repetição do jogo já citado, que os
balbucias se tornam fonemas direcionados a um pedido do Outro. A situação se
articula a partir do momento em que olhando para o analista, chega a falar
MAMA!, pedindo a realização do jogo que envolve uma "satisfação" ao final. A
partir daí, associa este e outros fonemas a gestos para pedir qualquer coisa que
QUESTÕES ACERCA DO AUTISMO 1 55

queira, sorrindo muito quando é entendido e atendido. É na tentativa de que no


autismo este sujeito, muitas vezes tomado como coisa, formul� um apelo - este
que supõe a presença do Outro - que marcamos uma direção. E o apelo ao Outro,
condição sine-qua -non para que o sujeito aceda à realidade humana.
Retomando a situação familiar, é necessário marcar os efeitos desta primeira
articulação do paciente em relação aos membros da família. Trataria-se mais
propriamente de uma rearticulação, pois estes fonemas já tinham sido articulados
por ele anteriormente, mas diante do fato marcado pelos pais como o nascimento
da irmã quando F. contava 2 anos, ele não só pára de falar mas chega a entrar no
autismo.
É neste momento atual em que inclusive os pais supõem que F. fala MAMA
e PAPA endereçado a cada um deles, que ocorre o fato da irmã, que até então
vinha seguindo seu curso sem maiores problemas, passar a se isolar quando F.
está presente. Se_gundo o pai, é inclusive avisado pela escola que a filha está
apática e alheia. E então que surge para os pais a questão do que teria ocorrido
entre os dois filhos. Um primeiro questionamento, fundamental, que toca algo da
ordem da exclusão nesta situação familiar.
"Desde que o sujeito fala, há o Outro", diz Lacan no Seminário III2. Contudo,
ao se~r�feri: à psic�se, f� U?1ª ma�_caçã� - "se � �º�':te fal�.'.é,�omo_ uma bo':t:ca
aperte1çoacta que abre e techa os olhos, absorve 1iqU1cto, etc."~ · natana-se tambem
de determinar o estatuto do Outro, ao qual o sujeito se dirige na neurose e na
psicose. Perguntamos-nos se no caso citado, pelo fato do paciente ter falado até
os dois anos, algo de uma articulação no simbólico já estaria marcada para este
sujeito. Nada de conclusivo por enquanto a este respeito. Não supomos o autismo
a priori, como uma estrutura específica, seria mais o resultado de uma exclusão
do sujeito do campo do Outro, cujos determinantes é preciso atestar, marcada pela
impossibilidade de formulação de qualquer apelo ou qualquer demanda, o que
causaria uma total desarticulação deste sujeito em sua forma de existir no mundo.
Se no autismo é uma questão falarmos de transferência, é somente ao longo de
um tratamento, na via de uma construção do campo do Outro, que se faria possível
alguma interseção com a escuta do analista em relação aos momentos lógicos da
constituição do sujeito, o que marcaria uma possibilidade de saída deste estado e
nos daria condições de, em cada caso, constatarmos em que via seguir uma
possível estruturação psíquica do sujeito.
Este trabalho levanta algumas questões, sem contudo abarcar a diversidade
de dificuldades e impasses que se colocam no atendimento dos pacientes autistas.
Este escrito se reduz à tentativa de a�ticular algumas das questões suscitadas por
esta prática com a teoria lacaniana. E um trabalho preliminar que, ao ser escrito,
já coloca novas questões frente às quais é preciso avançar.

NOTAS

1 . LACAN, J. O Seminário 1 1 . Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de


J aneiro, Jorge Zahar Ed., 1 981 , p. 207.
2. LACAN, J. O Seminário 3. As psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 988, p. 52.
3. -. Ibidem, p.45
1 56 OAUTISMO

BIBLIOGRAFIA
LACAN, J. O Seminário 1 , Os escritos técnicos de Freud . Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Ed., 1 983.
-. L'angoisse, 1 962, Seminário inédito.
-. Les formations de l'inconscient, 1 957-58, Seminário inédito.
AUTI SMO E PSICOSE
Vera Vinheiro

Abordarei a questão do autismo, não em termos de manifestações sintomáti­


cas, mas em termos de estrutura. Uma análise da estrutura comporta determinar
a operação que a fundamenta e que Lacan denominará de identificação. Nos dirá
que a operação é de alienaçã9 e que a identificação é a forma privilegiada para
que essa operação se efetue. E preciso que o infans se aliene no campo do Outro
e para que isso ocorra é necessário que o bebê ocupe um lugar no desejo da mãe.
Lacan nó seu Seminário " A Identificação", tenta dar conta da pergunta - o
que é que nos constitui humanos?
No texto freudiano "Psicologia das massas e análise do Eu", no capítulo VII,
vemos que a identificação é uma primeiríssima manifestação do laço afetivo, que
esta identificação é tão precoce, que o sujeito ainda não está ali, quer dizer, está
como ser no campo do Outro.
Trabalhando o autismo, não se encontra como se fundamenta a primeiríssima
identificação, ou como nos diz Hector Yankelevich não há instauração do primeiro
pai. Esta primeiríssima identificação é o primeiro distanciamento do Outro. Ape­
sar do que se poderia sl!por de colagem, Freud traz um laço no qual já está incluído
algum valor de barra. E necessário um distanciamento para que se tenha acesso
a privação primeira.
No autismo não encontramos a 11! identificação, ao pai, e nem a 21! identifi­
cação, ao traço. Mas o que de fato nos chama atenção é o fracasso na primeira,
ou seja, nessa identificação primária. O autismo, certamente, negou o campo do
Outro de tal maneira que expulsou esse campo. A privação primeira, o furo, o
buraco, em princípio, está forcluído.
Eduardo Vidal, refere em seu seminário, que é surpreendente encontrar no
relato sobre diversos pacientes descritos, até pelas clínicas não lacanianas, o
retorno desse significante buraco, que nada tem a ver com a linguagem do
neurótico. Estritamente há um buraco que se presentifica real. Coloca-se, ainda,
a questão se o autismo chega a constituir-se como estrutura em si. O que temos
prova é que não há laço algum ao Outro.
Na psicose já haveria essa primeiríssima identificação. Aliás, a psicose tra­
balha sobre esta problemática O psicótico está, o tempo tcxlo, referindo-se a esta
dimensão - a do pai. Mas a questão do traço unário, que leva à identificação
secundária e abre à questão do desejo, na psicose, é complexa.
Lacan define a função do traço unário como entrada do significante no real
sob a forma de diferença. Isso se dá via repetição significante. Repetição de um
objeto que falta nesse lugar do traço. A falta de objeto é condição do traço.
Já, aí, nos perguntamos se podemos falar de traço unário na psicose, visto
que na psicose o objeto não falta.
1 57
1 58 O AUTISMO

O traço unário teria a ver com a necessidade de se ter três tempos para ser
significante. Três tempos ou três escansões.
- No primeiro tempo há a primeira marca.
- No segundo tempo há o apagamento dessa marca.
- E no terceiro tempo há o apagamento do ato de apagamento.
Só, então, se dá a constituição do significante, pois o que confere à marca,
seu caráter de traço unário, é o efeito retroativo do terceiro tempo sobre o primeiro.
Na psicose existiria tembém uma marca significante, mas que não seria
equivalente ao traço unário. Que marca seria essa? O que é da marca deixada pelo
significante na psicose?
A criança psicótica receberia a marca significante, mas não entraria no jogo
significante. O neurótico entra nesse jogo, que é o jogo da ficção e é ao mesmo
tempo tomado pelo jogo. O psicótico não entraria realmente no jogo, sua reação
ao significante seria a da descrença.
Ele recebe a marca, mas o que vai caracterizar essa marca significante na
psicose, é que ela não vai ter as propriedades do significante vinculadas ao nome
do Pai. Ela não vai dar ao sujeito o sentimento de ser um e quando o faz não vai
ser o um que se conta, mas o um sem a propriedade da diferença. Há a marca e
todo problema é que o sujeito não consegue apagá-la, não consegue apagar essa
primeira marca que o situa como objeto no campo do Outro.
Na psicose não podemos afirmar a existência de uma marca que acede à
condição de traço. Podemos falar em significante que vem do real, como faz Lacan
no seminário sobre a psicose, ou seja, pelo menos há uma incidência da estrutura
da linguagem.
Uma análise da estrutura, quer dizer ainda, estudar a relação do sujeito com
o Outro e com o objeto. A criança autista não teria acesso ao Outro (enquanto
tesouro significante) e em conseqüência não haveria lugar do objeto a, pois este
se desprende do campo do Outro. Como poderemos pensar em estrutura consti­
tuída, excluída do Outro e do objeto? Algumas crianças nos mostram, antes do
tratamento, que excluída do Outro, ela fica em espera. Portanto, não podemos
pensar o autismo como sendo psicose, pois a psicose é uma estrutura, onde há um
Outro não barrado e um objeto que não cai. No autismo haveria um ser com uma
estrutura não constituída, uma não amarração nos três registros - real, simbólico
e imaginário, com uma primazia do real, um real indiferenciado.
Com Lacan, podemos dizer - o ser antes do sujeito é como o autista está, que
aponta para situá-lo num momento hipotético de anterioridade ao espelho, onde
o sujeito deve vir a ser. Na psicose, o Eu, o corpo unificado, o sujeito dividido
do inconsciente, não estaria. Mas Lacan dirá que há um sujeito, sem divisão,
porém sujeito, ou seja, não é mais do ser que se trata.
Uma questão se coloca - se autismo e psicose não são da mesma ordem,
porque a tendência geral em situar o autismo como psicose? Talvez, porque a
psicose seja a saída que ocorra com maior freqüência.
Lacan nos dirá... "que se trate de fenômeno de ordem psicótica mais exata­
mente de fenômenos que podem terminar em psicose, isso não me parece duvi­
doso 1 . Essa pontuação determinante de Lacan - mais exatamente "que podem
terminar em psicose" -nos leva a considerar a criança autista, como inconstituída,
AUTISMO E PSICOSE 1 59

onde a estrutura não amarrada aponta a um sujeito ainda não constituído. No


entanto a inteivenção cedo, possibilita que a estrutura se organize, sob transferên­
cia, na direção da cura, marcando outra saída possível para a criança autista, que
não seja só pela psicose.
Há um tempo de se intervir. De que tempo se trata? Porque o tempo é lógico,
estamos nos referindo a um tempo específico. Tempo, este, da estruturação e
constituíção do sujeito. Daí a importância de um diagnóstico precoce, para que o
analista possa intervir o mais cedo possível.
Como pensar o lugar do analista? Pensamos que o analista se coloca como
superfície. Superfície na qual a criança vai descobrindo os buracos do corpo,
tocando-os, contornando-os. O analista deve se afirmar no seu desejo e na sua
ética, senão a situação se toma rapidamente insuportável. O desejo e a ética do
analista são nesses casos a essência mesma de sua posição, fundante em seu ato,
que dão a chance ao autista de encontrar um Outro, ainda que este lhe seja imposto.
Trarei agora fragmentos de um caso, marcando alguns momentos na direção
da cura e possibilidade de uma saída.

F. - Uma Saída Pela Psicose


F. teve muita dificuldade para se alimentar. Foi uma criança muito doente.
Falou com 10 meses (mam-mam, pa-pa e aua), chegou a brincar de esconder
coisas, mas logo os pais começaram a notar que ele se mostrava diferente. Muito
inteligente reconhecia todos os discos dos Beatles, cantados em inglês, localiz.ando
as canções em seu lugar no disco. Aos dois anos nasce uma irmã e F. não reagiu,
se ligava muito em disco e numa vitrolinha. Seus pais, no entanto, assinalam que
ele já tinha uma relação ansiosa com a vitrola. Se balançava muito e quando falava
era na terceira pessoa.
Na época em que sai uma babá, sua irmã que começava a engatinhar, que­
brou-lhe a vitrola. Seus pais contam que F. fez, então, seu primeiro ato bizarro:
ele se dirigia ao quarto da babá quebrava os discos e lançava-os pela janela. F.
foi se retirando da relação a ponto de !].ãO reagir a nada "já estava alienado,já não
ouvia, não participava e não falava". E importante marcarmos, aqui, que F. nesse
momento se apresentava totalmente autista.
Aos três anos teve seu primeiro diagnóstico de autismo, dado pelo pediatra e
confirmado por um psicanalista. Não se tratava de um autismo precoce ou primá­
rio, mas talvez um autismo que veio responder a uma situação traumática.
F. já havia passado por uma outra análise, na qual penso que a estrutura
psicótica vinha se colocando, pois quando iniciou comigo aos quatorze anos, já
não estava autista, e sua psicose dá provas da estrutura com os fenômenos ele­
mentares pinçados aqui. Dois momentos decisivos na direção da cura nos ilustra­
rão sua saída pela psica';e. Após passar um grande perí odo fazendo caretas e
rangendo os dentes, numa sessão, em pé diante do vidro da janela, diz à analista
que ali aparecia um cachorro. Começa a contar, mudando de entonação o que o
cachorro fala, isto é, da voz que lhe fala A voz lhe fala de uni terror sem fim: o
cachorro vai pular no pescoço, furar a veia e encher de sangue; vai cair lá em
baixo, se quebrar todo. Sua entonação já nos advertia para a alucinação verbal.
1 60 OAUTISMO

Num primeiro momento, podemos dizer que a disjunção do Imaginário e do


Simbólico aparece na formação especular do Eu e se opõe a uma estruturação
propriamente simbólica do sujeito. Em tomo de disco, cachorro e janela F. veio
organizando sua psicose. Ver na janela um cachorro que lhe fala, remete ao
fenômeno elementar fundamental para o diagnóstico da psicose - questão das
vozes e da alucinação verbal.
A janela é um vidro. Uma superfície especular entre imagem real e virtual.
Talvez a janela tenha sido o lugar onde encontrou sua imagem pela primeira vez,
em seu reflexo no vidro, passando primeiro pela do cachorro, pois o que estava
perdido era sua própria imagem.
Num segundo momento, onde também tem uma porta de vidro (sala de
espera), a analista o chama, isto é, o nomeia "F., venha rapaz." Essa nomeação
surtiu algum ef�ito, não só diante de sua imagem refletida no vidro, mas o situou
mais: "Eu sou um rapaz". "Você me chamou de rapaz?" "Você disse, aquele dia
rapaz... " E as vozes abrandaram-se.
A janela é um vidro que espelha, mas que também é buraco, o buraco do
espelho. E também, quem sabe, o buraco do disco que eie tenta tampar com
desenho de risco de esconder (desenha um quadrado com um círculo e um furo
no centro e depois cobre com riscos, que chama riscos de esconder. Riscos de
esconder discos). Ou sej�, F. com seus desenhos de riscos de esconder, tenta
tampar o furo do Outro. E importante, aqui ressaltar, que seu pai quando jovem
chegou a gravar um disco, que segundo este, "não vingou e por isso ele não deu
emnada"

Será que o vidro pode funcionar como os dois espelhos em dois momentos
diferentes? Suas garatujas, desenhos de riscos de esconder e até letras o que
seriam? Seriam uma ponta de simbolização? F., sem dúvida faz uma saída, mas
uma �aída pela psicose.
E justamente na psicose infantil que podemos detectar aquilo que lacan fala,
de forma geral, para o psicótico: que ele é mais habitado pela linguagem, do que
habita a linguagem. No psicótico o Outro está de fora com o seu vozeirão (ele até
muda de entonação) invadindo-o sob a forma de alucinação. O Outro fala, o Outro
aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação, terror, pânico.
AUTISMO E PSICOSE 1 61

O que as vozes testemunham, senão isso? Que o Outro fala. Esse Outro que
fala e que está do lado de fora, da janela, justamente por não estar ancorado num
significante fálico que poderia fazê-lo calar, como na neurose.

NOTAS
1 . LACAN, J. O Seminário Livro I - Os escritos técnicos de Freud . Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 986, p. 1 2 7.

BIBLIOGRAFIA
ERICSON, N., VIDAL, M.C. "O autismo" in: Relatos dei Quinto Encuentro Internacio­
nal de _ las psicoses, Buenos Aires, M.T. de Alvear, 1 988.
FREUD, S. "Psicologia das massas e análise do eu", in: Obras Completas, v. XVIII, Rio
de Janeiro, I mago Ed., 1 976.
LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. in:
Escritos. Buenos Aires; S.iglo XAi Ed., 1 987.
-. "Estádio do espelho". op. cit
-. "Informe à Daniel Lagache". op. cit.
-. O Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud - Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1 983.
-. O Seminário Ili - As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 983.
-. O Seminário V - As formações do Inconsciente, {1 958-59) inétido.
-. O Seminário IX - A identificação, ( 1 961-1 962) inédito
-. O Seminário X - A angústia. ( 1 963-64) inédito
-. "Duas notas sobre a criança". in: Omicar?, n. 3 7, Paris, 1 969.
LEFORT, R. e R. Nascimento do Outro: duas psicanálises, 2. ed., Salvador, Ed. Fator,
1 990. 1 1 98 7.
-. "O espelho paranóico". in: Falo 1 , Salvador, Ed. Fator,
DO ESCAPE ... AO MONSTRO
Tânia Dias Mendes

O sujeito surge no intervalo de um significante a outro significante. Será que


podemos pensar este caso pelos significantes que ele apresenta? Escape no Au­
rélio, quer dizer: o ato ou efeito de escapar, uma saída ou salvação, e monstro
quer dizer: corpo organizado que apresenta, conformação anômala ou aberra­
ção.
L. é aquilo que escapou do aborto, e como veremos este 12 significante,
escape, veio do Outro. Mas somente na direção da cura é que surgirá o 22
significante, já marcando um outro lugar, vindo do sujeito em análise, o monstro,
este corpo que se faz organizar, com aberrações, isto é, mesmo que despedaçado.
Estes dois significantes, nos apontam uma passagem de lugar nenhum, para algum
lugar. Daquilo que escapa da morte para surgir como sujeito.
L. chega à análise com 8 anos de idade. Já havia percorrido vários atendi­
mentos clínicos e freqüentado uma escolaregular por algum tempo. A pr9cura da
análise se deu por indicação da instituição a qual acabava de chegar. E o filho
único do casal que relata 4 abortos provocados em gestações anteriores. Logo na
1 ª entrevista o pai diz, "o filho que escapou do aborto". Este escape irá colocar
o filho no lugar do nada. A gestação ocorreu sem problemas, assim como o parto.
Foi amamentado no seio até os 2 meses. Andou com 11 meses e ao completar 1
ano, começaram a observar movimentos estereotipados, como o balanceio do
corpo, o bater da cabeça no berço e o olhar fixo na luz. Somente aos 3 anos quando
ainda não falava e nem reagia a estímulos, os pais procuraram atendimento
especializado. O diagnóstico de autismo foi aceito naturalmente segundo a mãe,
procurando informar-se e "ler tudo sobre o assunto". Neste período foi submetido
a psicoterapia, fonoaudiologia e acompanhamento medicamentoso.
Nas primeiras sessões, quando L. era solicitado pelo analista, não atendia ao
chamado; sua reação era de negação, afastando-se e dizendo "não." Algo do
simbólico estava marcado, porém, suas palavras eram soltas, não havia articula­
ção. O que ficava evidente no seu ato, era o pavor com a possibilidade da
aproximação.
As entrevistas com os pais tomaram-se constantes a pedido da analista. A
mãe mostrava-se bastante onipotente e detentora do saber, inclusive do filho.
Tentava imprimir sua forma na condução da cura O pai, no entanto, negava o
autismo e justificava a reação do filho por ter sofrido muito com uma pneumonia
que "quase o matou"; em função disso foi submetido a vários atendimentos
médicos e a internação hospitalar.
A mãe é solicitada a entrar nas sessões com o filho. Esta chamada da mãe
cria condições para que se estabeleça a transferência e o lugar ocupado por esta
criança apareça em seu discurso. No seu relato diz, "penso muito se eu morrer,
com quem ele ficaria"; "talvez com a babá"; "não tenho ninguém neste lugar". A
1 63
1 64 O AUTISMO

referência à babá tem muita relevância. As duas se tornaram amigas, confidentes


e cúmplices, muitas vezes contra o próprio marido. Ambas vieram de uma mesma
localidade, fora do Rio de Janeiro. Esta mãe, ao colocar "não tenho ninguém neste
lugar", aponta o "lugar nenhum", onde estaria seu filho.
Em "Duas notas sobre a criança" de Lacan à Jenny Aubry, este nos diz, "a
criança é tomada como objeto da mãe e sua única função passa a ser revelar a
verdade deste objeto, que tampona a falta materna, em qualquer que seja sua
estrutura: neurótica, perversa ou psicótica." Na concepção de 1.acan, "o sintoma
da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar." 1
De que lugar se trata em L? A posição, ocupada no fantasma matemo, aponta
um paradoxo do tudo e nada, colocando L. no lugar do "nada."
No autismo, o Outro não se constitui como faltante, e a criança não está
marcada pelo desejo. Há uma exclusão na estrutura da demanda, pois a falta aí
não está. Como nos diz 1.acan, "os cuidados da mãe devem ter a marca de um
interesse particylarizado por via de suas próprias faltas. O nome do pai é o vetor
de uma encarnação da lei no desejo"2. No caso de L. a função do Outro, no dese­
jo matemo, aponta o não desejo. Não cabia à ele lugar algum, o que há é a falta
de lugar e não o lugar da falta.
Um tipo de brincadeira se repetia durante algum tempo nas sessões, L pegava
um objeto indiferenciadamente, deitava de barriga para baixo, tampava e destam­
pava a cara olhando na direção do analista; parecia um esconde-esconde, que não
seria da ordem do Fort-Da, como Lacan descreve, "o pequeno sujeito se exercita
com a ajuda de um carretelzinho, quer dizer, com o objeto a. A função do exercício
com esse objeto se refere a uma alienação e não a qualquer suposto domínio, do
qual mal se vê, o que aumentaria numa repetição indefinida, ao passo que a
repetição indefinida de que se trata, manifesta às claras a vacilação radical do
sujeito"3 • O autista está situado numa suposta anterioridade de alienação; portan­
to, a repetição de L. não seria a do esconde-esconde, do menino e seu carretelzi­
nho, de que nos fala Lacan. O analista acolhe esta brincadeira como algo a ser
escutado e em outro momento, coloca-se como superfície a ser tocada e explorada,
algo do contorno, se dá. Quando o rosto do analista é tocado, L. contorna os
buracos do corpo do Outro, se afastando rapidamente, em estado de horror. E ao
tocar a superfície da parede da sala, a sua reação também é de espanto. Podemos
pensar este movimento de horror, como horror frente ao real; primeiro ao se
deparar com os buracos do corpo, depois com a superfície compacta e sem buraco.
Como situar o real do corpo no autismo? Este corpo que não foi marcado pelo
desejo, onde não houve a inscrição do significante. Lacan nos diz: "o corpo
constitui aquilo que pode trazer a marca própria para colocá-lo numa cadeia
significante"4. Frente ao real do corpo o autista recua, o que resta é o horror; j á
que não há mediação do simbólico, não h á palavra.
Percorrendo o capítulo "Tópica do imaginário" no Seminário I, onde Lacan
trabalha o estádio do espelho e a constituição do sujeito, encontramos: "o estádio
do espelho não é simplesmente um momento do desenvolvimento. Tem também
uma função, porque revela certas relações do sujeito à sua imagem, enquanto
urbild do eu ... ", " ... só a vista da forma total do corpo humano dá aO' sujeito um
domínio imaginário do seu corpo, prematuro em relação ao domínio da real�• .'\
DO ESCAPE ... AO MONSTRO 1 65

"É a imagem do corpo que dá ao sajeito a primeira forma que lhe permite situar
o que é e o que não é, do eu... ", "E pela possibilidade do jogo da transposição
imaginária que se pode fazer a valorização progressiva dos objetos"5 • Para que o
sujeito se constitua, é preciso que o primeiro olhar suposto da imagem seja do
Outro, que este marque pela palavra o seu desejo. Então o que resta ao autista,já
que não há esta marca, é ocupar o lugar de ser de gozo, condensação de gozo para
o Outro. L, em frente ao espelho dá um beijo na imagem refletida, indicando que
não há reconhecimento de sua imagem, e evidenciando a anterioridade lógica
necessária ao estádio do espelho. Em outro momento, começa a pegar determinado
objeto da sessão, no caso um caminhão, entrando numa brincadeira com a analista
e o caminhão, onde nomeia a passagem deste objeto, por baixo de um obstáculo,
dizendo "passar túnel." O passar em túnel, que segundo sua mãe ele adora. L.
neste momento nos diz algo de sua história. Lacan nos fala, que o sentimento de
realidade se organiza na continuidade histórica, e, ainda, o significante está dado
primitivamente, porém não é nada enquanto o sujeito não o introduz na sua
história. Pode-se pensar, aqui, como sendo um momento onde algo de sua história
é articulada. Porém para L., a continuidade histórica parece quebrada, como se
tivesse sido produzida uma detenção na continuidade da cadeia significante, nas
primeiras estruturações da imagem do corpo, e o mundo estará feito à imagem
deste corpo desmembrado, isto é, nos moides da psicose.
Os pais se separam e a partir deste momento, começa uma briga pela posse
do filho, que continua não marcado pelo desejo e sim disputado como coisa. O
desejo, porém, aparecerá em outro lugar, virá da babá. A presença da justiça
(separação litigiosa dos pais) cria a possibilidade de entrada da lei, que vai fazer
diferença na sua atuação frente ao Outro. Passa a apontar os seus machucados nas
sessões, começa a adoecer, aparecendo com sintomas no corpo; já não fica indi­
ferente diante da agressão do outro, e teve uma manifestação agressiva dirigida à
babá, que causou enorme espanto a todos da fanu1ia.
E na direção da cura que se dá a saída do autismo. Neste caso, numa deter­
minada sessão L. chega gritando, "monstro ...monstro", a analista lhe pede que
desenhe e assim acontece; faz o contorno de um corpo bem definido, com todos
os detalhes. Quando termina, nomeia claramente "monstro."

Algo da passagem pelo espelho se deu em L. , algum contorno se fêz - um


corpo delineado- mesmo que como um monstro. Uma estrutura se inscreve, há
1 66 OAUTISMO

um sujeito em constituição. De que estrutura se trata? Seria necessário avançar


mais nesta cura, para que a estrutura desse provas do fantasma ou da forclusão,
para que pudéssemos então afirmar, se é um sujeito da neurose ou da psicose. O
que não podemos negar é que já há um sujeito, que surge do "nada", lugar ocupado
no fantasma da mãe, e surge no intervalo do escape ao monstro.

NOTAS
1 . LACAN, J. "Duas notas sobre a criança", in: Ornicar, n. 3 7, Paris, 1 969, p. 1 3.
2. -. Ibidem, p. 1 4.
3. LACAN, J. O Seminário 1 1, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 964, p. 226.
4. -. Psicanálisis, Radiofonia & Televísion. Barcelona, Ed. Anagrama, 1 977, p. 1 9.
5. -. O Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeito, Jorge Zahar Ed., 1 983,
p. 91, 96 e 1 00.
O AUTI SMO E SUA SAÍDA: O "PAI
DEMORADO"
Maria Lucia Castro Alves

Trago esse caso para ilustrar uma questão: uma criança autista em análise
demarca a sua estrutura psíquica.
C. iniciou atendimento com cinco anos e a queixa dos pais foi: "ele não fala...
joga os objetos e agride as pessoas". Aos dois anos foi feito exame de audiometria
que não revelou anormalidades. Os pais apenas informaram sobre um período em
que C. teve um isolamento, aproximadamente entre um e dois anos de vida, porém,
não trouxeram maiores detalhes. C. teve dificuldades para se alimentar, só aceitava
determinados alimentos. Com o crescimento, somente notaram o problema quan­
do a fala não se apresentou na época esperada. Era uma criança agitada, com choro
sem fim.
O caso será dividido em três momentos:
Na primeira sessão ele pega os objetos, porém, sem estruturar jogos, não
brinca, não fala. Ao ser solicitado para jogar a bola, ele a deixa cair, sem intenção
de entregá-la. C. demora algum tempo para ficar sozinho na sessão.
No decorrer dos atendimentos C. tenta construir blocos empilhados, porém,
começa a montar e os desfaz. A analista pergunta o que ele está fazendo e C. não
responde, fica todo o tempo em silêncio, não diz nada, não pode falar.
A criança no primeiro momento apresentava uma descrição fenomenológica
de uma criança autista: mutismo, não estruturava jogos, produzia sons isolados e
gritos, não dirigia o olhar, não atendia o chamado, era indiferente à presença do
analista e também apresentava episódios de agredir as pessoas. Sem dúvida, foi
uma criança que recebeu cuidados de sua mãe, mas que lugar essa criança ocu­
pava? Havia uma exclusão do Outro? Os gritos, os choros incansáveis puderam
ser escutados? Puderam retomar enquanto apelo?
Quando C. iniciou o tratamento, na primeira entrevista, na qual a mãe estava
presente, e� lhe diz: "fala", mas isso não tem efeito, porque não há possibilidade
de se fazer alguma ausência para que se construa um apelo ou demanda.
Lacan no Seminário XI coloca que o sujeito neurótico padece de duas faltas:
a real e a do significante. A criança autista estaria marcada por essa primeira falta,
pelo fato de estar submetido ao ciclo de reprodução pela via sexuada. A falta real,
é logicamente anterior e vem situar o advento do sujeito vivo e recobrir o fato do
sujeito depender do significante que está no campo do Outro. Dessa segunda falta
ele carece pois há uma exclusão do significante que vem do campo do Outro.
No primeiro momento C. estaria no indiferenciado, anterior aos esquemas
óticos, não se tem a montagem dos registros: RS.I. Há o imaginário confundido
com o real. O campo é pois, uniforme, indiferenciado. É do real que se trata. A
criança autista estaria situada então, num momento hipotético de anterioridade
1 67
1 68 OAUTISMO

aos espelhos, estando vetado a ela o acesso às imagens real i(a) e virtual i'(a'). A
imagem não se processa ou está fora do cone de emissão. Falta a articulação dos
três registros, o nó e a �strutura de ficção significante do segundo esquema.
Nesse primeiro rromento C. não fala e acredito que a presença da analista
fazendo-se testemunha do vazio, do silêncio, que trazido às sessões, pôde, en­
quanto presença real, fazer suporte da oposição presença - ausência. Um jogo de
báscula. E com isso esvazia a demanda dos outros para que ele fale. A presença
da analista, mesmo enquanto presença real "é testemunha da perda irredutível". 1
O encontro é sempre faltoso.
A direção da cura nesse caso seria conduzir para que haja uma certa estabi­
lização da imagem, uma certa acomodação.
Em uma sessão ele dá à analista várias peças de encaixe com as quais ele
constrói algo. Ele tenta recuperar os blocos, mas a analista diz que ele lhe havia
dado. Se instaura aí, uma perda.
Inicia-se o segundo momento do tratamento, marcado pelo surgimento da
fala. Quando é perguntado sobre o que está fazendo, ele responde "limpando" e
retorna ao silêncio. Nesse momento ele não responde a tudo o que lhe é pergun­
tado, ora responde, ora silencia
Passa a dirigir-se a analista e a solicita. Sua linguagem é telegráfica e repe­
titiva, fala com muitas pausas. Diz "o seu;\ mas não é do outro que ele fala, ele
fala dele, da casa dele: - "sua casa aqui é segura", (ao invés de minha casa).
C. inicia uma produção de desenhos e em seguida os cobre com tinta. Não
podendo falar sobre isso, gritava. Passa a fazer os prédios,

depois ônibus, carros e táxis,

é uma série que está marcada principalmente por números.


O AUTISMO E SUA SAÍDA: O "PAI DEMORADO" 1 69

Ele produz, mantendo-se a maior parte do tempo em silêncio. Marca os


edifícios com números no prédio, números de andares e janelas. Algumas letras
também aparecem, por exemplo: C.F, B.F e também algumas palavras tais como:
zum e banco. Esses números, as letras e algumas palavras enquanto cifra, estão
fazendo um anteparo ao real.
Nas sessões que se seguem, ao subir para o atendimento, C. entra em pânico,
não suportava ver sua imagem, sua sombra projetada na parede. Esse desespero
perante a imagem nos mostra que já há duplos.
Mas a seguir, ao ser solicitado a escolher o material, C. diz: "eu qué você
aqui." A partir de então fica demonstrado que nesse segundo momento a presença
da analista não lhe é mais indiferente, há uma forma particular de endereçamento,
ele sobe correndo e diz "ela."
Com o surgimento da palavra, dos números, há uma certa acomodação da
imagem. Porém, em que lugar o sujeito está no simbólico?
Estar no cq_ne de emissão, segundo Lacan, significa ter condições de articular
uma estrutura de apelo, uma demanda inicial, uma possibilidade de recusa.
Nesse momento, C. fala quando demandado, porém, ele não inverte a men­
sagem. Ele a recebe de forma real. As palavras, que vem do Outro (analista) não
se inscrevem numa subjetividade.
C. não reconhece sua imagem no espelho, ele se olha mas não se vê. A
primeira experiência especular é um momento inaugural. O sujeito se projeta em
uma marca e se constitui como objeto olhado. Porém, nesse caso, a imagem
segrega o "minha e sua." São palavras cruciais no tratamento e estão coladas numa
equivalência. Essa imagem construída pelo anteparo do Outro se faz apenas como
recobrimento do real, do buraco. Não há operação de reconhecimento e afânise
do sujeito. No caso de C. há uma tentativa de se fazer uma demarcação, uma
marca.
No segundo momento do tratamento há um endereçamento ao Outro, sem
que se possa afirmar que se constitui na transferência o S.s.S. (sujeito suposto
saber), mas existe algo dirigido a este Outro sob forma de apelo: "eu qué você
aqui."
No terceiro momento, C. continua a produzir os desenhos que ainda apresen­
tam os números. Porém, ele constrói e nomeia os desenhos, dá significado às
imagens. Havia algo encoberto nos desenhos que estão sendo significados; o que
antes não tinha nome e era encoberto de tinta é agora nomeado: o "monstro preto"

Ele cria neologismos que apontam a uma construção, mesmo que sem sentidd
nâ linguagem corrente, são falados e referidos à sua própria estória. Por exemplo:·
o notgilas, norvilas e ,wivos. Quando se pergunta o que é o noivo ele responde:
1 70 OAUTISMO

"noiva é a mulher, noivo é o homem". Mas quando a analista insiste sobre o


casamento dos pais, ele não pode mais falar. Ele não pode falar do contato com
o outro sexo. Edifica significantes referentes ao pai "demorado", "atrasado" e
sobre ele mesmo enuncia: "morrei no banco." O pai trabalha em um banco onde
se deixa absorver, chegando sempre muito tarde em casa.
No terceiro momento há uma proliferação do imaginário numa especulariza­
ção de imagens. Lacan diz que o sujeito humano não é inteiramente capturado
pela prisão imaginária (como é o caso do animal), "ele se demarca nela."3
Pela via do que foi apresentado temos nesse caso uma criança com um quadro
inicial de autismo, onde a estrutura psíquica foi se inscrevendo no decorrer do
tratamento. No primeiro momento, não havia a fala, não havia o brincar, havia
indiferença à presença da analista O sujeito estava como ser no indiferenciado.
Sob transferência as produções e construções edificadas no processo de tratamento
cumprem a tentativade suporte de um primeiro plano de significação. No segundo
momento quando a analista se recusa a devolver o brinquedo, um furo se faz. A
partir daí C. começa a falar, momento crucial dessa cura, pois fica aí demarcada
uma virada ou uma torsão - de um sujeito que chega com o A excluído à uma
intrusão do A, via analista, ou seja, sob transferência.
T !'lí'!'ln mi rnnfP.rênci!'l de GenP.hr::i 1 97S; fal::i �nbre o sintom::i P. fa7 rP.fP.rP.nri as
ao autismo. "os autistas se escutam a eles mesmos. Escutam muitas coisas. Isto
desemboca inclusive normalmente na alucinação, e alucinação sempre tem um
caráter mais ou menos vocal. Todos os autistas não escutam vozes, mas articulam
muitas coisas e se trata de ver precisamente de onde escutaram o que eles articu­
lam".4
Ressaltarei alguns pontos da questão que Lacan nos fala. Ao dizer que escu­
tam a si mesmos, marca que há um circuito-pulsional. Mas qual seria o estatuto
desse circuito pulsional? Segue na sua colocação que os autistas não escutam
vozes, isso aponta alguma diferença do autismo e da psicose, pois ouvir vozes é
um fenômeno elementar, fundamental do diagnóstico da psicose. E quando pros­
segue dizendo que isso pode desembocar na alucinação, ele não estaria apontando
que na maioria das vezes a saída do autismo é pela psicose? Aliás, é o que esse
caso vem testemunhar.
A criança autista com seu mutismo caracteriza uma determinada relação com
o Outro de maneira radical onde nada pode ser pedido a este Outro.
Talvez pudéssemos pensar, nesses casos, que na relação primitiva com o
Outro que satisfaz as necessidades, num primeiro momento mítico do sujeito, faz
sua aparição com uma carência de significantes. Pois, temos na clínica alguns
relatos em que esse outro dos primeiros cuidados não responde aos,apelos (gritos,
choros) com significantes. Assim a demanda é impedida de nascer. E um momento
de espera de um Outro (significante) que possa mediatizar esse vazio.
Podemos concluir que o caso apresentado ilustra que uma criança autista, em
análise pôde inscrever sua estrutura psíquica. Desde a descrição relatada pelos
pais e quando chega à analista encontra-se enclausurado, indiferente à presença
do outro e não fala. Ouve a si mesmo. Na análise pôde fazer uma passagem ao
momento lógico, onde temos um imaginário primitivo que traz a dialética espe­
cular com o Outro. Nessa dialética tem-se a rivalidade fundante que pôde ser
O AUTISMO E SUA SAÍDA: O "PAI DEMORADO" 1 71

sinalizada pelas construções em análise do duplo (ameaçador), o que lhe causa


pânico. As palavras e os significantes criados (neologismos) reconstroem o seu
mundo, que vem colocar esse ser, precocemente num estado de espera de um
significante que venha em efeito nomear o sujeito. Coloca-o assim como objeto
de gozo do Outro.
A reconstrução de sua estória faz suplência da metáfora paterna o "pai de­
morado?" Esse sujeito sob transferência na direção da cura se constituiria como
sujeito da psicose? A reedificação de seu mundo pelas palavras o engaja no
simbólico. O que seria um simbólico marcado de irreal.

NOTAS
1 . LACAN, J. O Seminário 1 1, Os quatro conceitos fundamentais da psiéanálise, 2. ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 98 1 , p. 225.
2. -. O Seminário, Saber do analista, Inédito, 1 97 1 , p. 1 3 1 .
3 . -. O Seminário 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 982, p. 1 03.
4. -. "Conferência em Genebra sobre EI sintoma", lntervencions y Textos 2. 2. ed.,
Buenos Aires, Argentina, Ed. Manantial, Riviera, 1 988, p. 1 34.

BIBLIOGRAFIA
GRASSER, Y. La puerta dei autismo - "Clinquieme Rencontre lnternationale". 1 988.
LACAN, J. O seminário I, Os escritos técnicos de Freud, 3. ed., Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1 986.
-. Escritos 1 e 2. México, Ed. Siglo Veitiuno, 1 966.
-. O Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 98 1 .
-. O Seminário Ili, As psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1 98 1 .
-. "O estágio do espelho", Comunicações feitas ao XV Congresso Internacional de
Psicanálise. Zurich, 1 949, Trad. M. D. Magno.
-. O Seminário li, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., 1 987.
-. Saber do analista. 1 97 1 . Inédito.
-. O Seminário XX, Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed. 1 982.
-. O Seminário IV, As relações do objeto. 1 956-1 957. Inédito.
-. "Conferência en Genebra sobre EI sintoma", lntervencions y Textos. Argentina, Ed.
Manantial, 1 980.
PARTE V

Um Caso Clínico
FABIAN, A CRIANÇA DO
COM PUTADOR
(Fragmentos da Cura Analítica de uma
1
Criança Autista de Quatro Anos)
HECTOR YANKELEVIGI
Tradução: Paloma Vidal

DA RENEGAÇÃO

Há, ou houve, em Buenos Aires, uma expressão bastante curiosa na língua


castelhana para significar: "levar uma bronca de sua mãe." Exatamente isso. Não
é "levar uma bronca" simplesmente, ou de qualquer outra pessoa, o pai, por
exemplo. A expressão, vertida ao português, diz: "fazer-se renegar por sua mãe."
Ela não é utilizada no interior e pertence à forma de falar própria da grande
cidade, um castelhano muito modificado pelos dialetos genovês e napolitano que
mudaram as desinências dos paradigmas verbais, os acentos de frase, a pronúncia
de certos fonemas.
Ora, como poderia ser que uma mãe renegue seu filho? Ela pode, certamente,
abandoná-lo; isso acontece todos os dias, mas o abandono não é uma renegação.
Uma mãe diz a seu filho, do seu filho: "Você não é meu filho", "Ele não é meu
filho." Ela pode pari-lo, ou dá-lo, ou deixá-lo. Mas isso é uma recusa (refus),
radical, certo, de assumir a realidade da maternidade, recusa que pode, na ocasião
mas não sempre, ser o dublê de uma rejeição da criança, de um cerceamento
(retranchement) dela mesma com relação ao outro.
Uma renegação é sempre de uma palavra dita, de um sermão dado, de uma
confissão proclamada. O laço da mãe com a criança sendo real, como desemba­
raçar-se de um julgamento que não tem necessidade de ser pronunciado para
articular-se realmente, como desembaraçar-se sem fazer existir - mas sobre qual·
forma - o que está afetado pelo sinal da negação?
Tendo chegado a esse estágio da reflexão, uma questão nos atormenta: uma
língua pode mentir? A língua pode se enganar?
A renegação é mais habitual no laço entre um pai e seu filho e vice versa,
que não existe sem o reconhecimento explícito, em ato, da paternidade pela

1 A Maud Mannoni

1 75
1 76 OAUTISMO

progenitora. Mesmo se as impressões genéticas permitem hoje estabelecer a


realidade do laço, jamais a verificação científica desse laço fará um pai, que é
engendrado sozinho por sua própria palavra, diante do Outro.
Então, essa expressão "fazer-se renegar por sua mãe" é mentirosa? É enga­
nosa?
Se pensarmos que existe antes de mais nada uma díade mãe-filho e que é
somente depois que o pai intervém, poderíamos dizer que sim, que essa expressão
se perde num sentido inadequado, que a língua pode mentir.
Por outro lado, se sustentamos que o próprio laço entre a mãe e a criança é,
ao mesmo tempo que real, sempre metafórico, que o pai entra na realidade própria
do que aí se tece, não só biologicamente, mas também simbolicamente, então sim,
a natureza é de antemão a terceira desse laço que é colocado em questão ou que
poderia ser.
A língua nã_o mente, mas pelo contrário ela nos faz saber - sem que haja,
necessariamente, um sujeito que a leia - que uma mãe pode sempre suspender,
não o reconhecimento de seu filho como sendo seu, mas a afirmação - o dizer
sim - desse laço que, sendo metafórico, pode ser sempre abolido.
Uma mãe pode ser temida ao ponto que se identificar a ela seja o único meio
e o único recurso para não perdê-la. Ela tem um verdadeiro poder, que não tem
nada do todo-poder da vida e do amor, mas o poder de significar o que é o pai,
em vez de ficar sendo a guardiã de uma cifra que não deve ser desvendada, já que
nenhuma chave lhe convém. Quando uma mãe diz: "Teu pai é isto, ou aquilo ... "
há risco de que a metáfora se desfaça, e a criança leve para sempre uma bronca.. .
Mas essa renegação, que concerne a função paterna não somente enquanto
separadora, mas principalmente enquantoponto de origem do Outro como tal, não
se dirige, nem necessariamente, nem sempre ao pai da criança. Mais fundamen­
talmente, pode dirigir-se ao pai da mãe do qual, na cura que nos ocupa, é sempre
dito que o seu amor foi exíguo, até mesmo inexistente.
Isso nos permite uma possibilidade certa de clínica diferencial, pois esse
mesmo avô matemo pode, em outros tipos de estruturas, ser o parceiro eletivo no
fantasma da mãe.

Nós pensamos que os operadores lacanianos de estrutura não são simples,


mas podem funcionar perfeitamente em dupla, já que um deles se adiciona ao
recalque (refoulement) original provocando uma modificação essencial no seu
funcionamento.
Além disso, é preciso diferenciar o repúdio (désaveu) como determinante de
estrutura, do seu uso fantasmático que não exclui em nada efeitos reais que
chamamos aqui de renegação.
A forclusão, que opera sobre o Nome-do-Pai, é utilizável como mecanismo
de defesa fora da psicose e adotamos para esse fazer o nome freudiano: rejeição.
Os operadores são as modalidades da passagem do Outro real ao Outro
simbólico.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 77

Se isso é admitido, nos é possível afirmar que o sujeito do inconsciente não


é somente o produto das operações no Outro, mas que, na passagem de um outro
ao Outro, o sujeito tem algo a dizer, escolhe, responde, intervém ativamente, se
Lhe damos a possibilidade , na especificação do tipo de Outro do qual ele será o
efeito.
Assim, como resposta à rejeição de amor, arenegação do pai se vê transfor­
mada, como retomo, em exclusão da função paterna para uma criança da terceira
geração.
É necessário que pensemos a estrutura no tempo, sobre três gerações.
Essa hipótese permitiria dar conta do fato que, ao lado do determinante da
estrutura, há sempre um "mecanismo" que tem desempenho menor. Assim, em
certas psicoses há uma organização pseudo-fantasmática produzida por um repú­
dio (desaveu) perverso, enquanto que em certos casos de perversão existem
organizações de�rantes que não são, de forma alguma, justificáveis de uma psi­
cose.
No entanto, essa exploração introdutória deve nos permitir liberar um espaço
conceituai para colocar que, para uma mulher, a resposta reprovante - e quanto
evidente! -à falta de amor paterno pode conhecer um retomo forclusivo entre ela
e um de seus filhos. O que, justamente, não permite nem mesmo a psicose na
criança que precisa da instauração do ''primeiro pai" que dá acesso à perversão
inconsciente e à palavra.
Além disso, de acordo com a nossa experiência, eminentemente discutível, o
pai é, enquanto tal, impotente para ser o agente da inscrição de sua função, se ela
não é introduzida pela mãe. Isto é a chave de um gozo que só acede a ser dito sob
certas condições.
Para algumas das crianças autistas que seguimos, nos parece fortemente
provável que a origem do distúrbio tenha sua explicação clínica não-estrutural na
descompensação puerperal da mãe no seu nascimento. Esses episódios, contados
alguns anos depois pelas mães, apresentam uma organização delirante, que dura
alguns meses ou mais, subclínica para os médicos e os que os rodeiam e que,
enquanto tal, não pode ser catalogada como uma psicose.
A palavra renegação que utilizamos aqui é uma tradução possível da Ver­
leugnung freudiana, traduzida ao francês com o sentido de rechaço, repúdio e
desmentido. O fato de propor uma outra tradução está apoiado sobre uma dife­
rença que se apega ao conceito. Essa renegação não é organizadora de perversão,
mas ao contrário coloca fora de jogo, para uma criança, a determinação simbólica
que assegura afunção incriada do Pai do nome, o da perversão inconsciente.

AS SESSÕES

Vejo pela primeira vez Fabian em janeiro de 1990. Ele acaba de fazer quatro
anos.
1 78 OAUTISMO

Loiro, de olhos cinzas, ele sorri sem que nada explique por que. Durante a
entrevista ele passa várias vezes do meu lado sem me olhar, sem que nada em sua
pele, seus músculos, sua forma de andar mostre o acomodamento perceptivo
involuntário sofrido quando há risco de que encostemos num desconhecido.
Sua beleza é chocante, ainda mais realçada por estar ausente para ele mesmo
e para o outro. O pai, mais do que a mãe, conta brevemente sua história, a presença
de um filho mais velho que se comporta bem, o fato que a cada x anos eles têm
que se mudar, pois a sociedade na qual está empregado o muda de posto e de
região.
Durante os dois anos e meio que veria regularmente Fabian, os pais estarão
ali. Progressivamente, conseguirei que a mãe possa entrar no meu consultório,
para escutá-lo; mais tarde, que Fabian entre sozinho e somente depois os pais.
Segunda entrevista (16/1/90). Os pais me contam que pela primeira vez ele
pronunciou duas frases incompletas:
"... não boneca."
"... fez a boneca."
Isto depois de ter visto uma boneca na televisão. Também, comenta o pai,
pela primeira vez, ele colocou a mesa.
Comentário. Podemos supor que essas primeiras frases pronunciadas por
Fabian falam dele. Que ele as pronuncie corretamente mostra que sua capacidade
fonástica já recebeu os engramas das oposições fonemáticas que permitem a
emissão articulada, mas que ele não tinha o que permite que a fonação se realize
efetivamente. Aliás, que ele pronuncie não quer dizer de forma alguma que ele
signifique.
"Colocar a mesa" também nos mostra Fabian entrando, pela primeira vez, na
circulação entre pai e mãe.
Quarta entrevista (2 semanas depois). Fabian faz o seu primeiro desenho:
sobre uma folha de papel branco ele desenha duas formas alongadas, deitadas,
com um ar fálico, das quais uma poderia ser um cocô. Elas têm marcas no interior,
todas orientadas da esquerda para direita. Essas marcas lembram incisões ou
caracteres cuneiformes.
Embaixo, uma multidão de círculos diferentes que lembram irresistivelmente
lóbulos de orelha, pois no interior de cada círculo, mais bem alongado no sentido
vertical, há um círculo menor em colimação.
Primeira sessão (6 de fevereiro). Tomo a decisão, fazendo minhas anotações,
de não chamar mais de "entrevista" o que acontece este dia, mas sim "sessão".
No entanto, não se trata de que Fabian tenha podido formular um passo em seu
nome, longe disso, mas sim do fato que a mãe me diz que ela tem medo de que
ele se jogue pela janela. Em casa, ele subiu na borda de uma janela e agitou o
braço.
Coloca-se a questão do sentido possível do movimento dos braços. Mas ela
é secundária em comparação com isto: ele descobriu o vazio e o vazio é atraente,
o que quer dizer libidinalmente cercado, investido.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. . . 1 79

Fabian faz dois desenhos. O primeiro, embaixo da página, parece-se a uma


ameba verde e gorda, com marcas verdes e marrons dentro. Faz também uma
espécie de canhão com círculos, dextrogiros no seu interior.
O segundo desenho é uma forma "fálica" ornada de bolhas mais ou menos
paralelas. Por uma coincidência totalmente inesperada, já que não faço automati­
camente esse gesto, dou um quarto de volta a folha de papel e vê-se uma cabeça
de totem com olhos, nariz e algo pendurado dos lados que podem ser as orelhas
e que servem também para lhe dar volume.
Pela primeira vez a mãe pode falar dela mesma e de sua relação com a criança.
Ela nasceu numa família de sete filhos. Deixada num colégio interno durante
a primeira infância, só volta à sua casa, adolescente, para cuidar de seus irmãos
pequenos. Os pais se divorciaram. Histórias de alcoolismo paterno, de espanca­
mento e de brigas com a mãe. Ela nunca se sentiu amada pela mãe, que a utilizava
como empregada para fazer tudo. Menos ainda pelo pai.
Seu primeiro filho, me diz ela, era um bebê que comia, cuspia, defecava e
chorava o tempo todo até a idade de oito meses. Ela tinha muito medo que o
segundo - Fabian - fosse igual ao primeiro, que lhe tomava todo o seu tempo.
Efetivamente, Fabian não se mexeria, nunca pediria nada. Mal come, nunca
ninguém o ouviu chorar.
Verei regularmente a mãe somente no segundo ano de tratamento. Antes de
conseguir que ela aceite entrar sozinha no meu consultório, ela contará apenas
alguns fragmentos esparsos de história, de tempos em tempos, que eu reconstitui­
ria depois.
Depois desse relato, ela acrescenta que Fabian se desvestiu e mostrou seu
passarinho.

13 de fevereiro. O pai me diz que ele pronunciou a última sílaba de seu nome:
"ian" (é também a primeira do meu). "Está bem, entendi, é complicado."
Quando ele pronuncia essas frases, essas palavras, esses nomes, não se dirige
a ninguém. O som de sua voz não se parece à de uma criança. Muito articulada
e metálica.
Faz alguns dias, continua o pai, ele colocava creme de barbear no rosto, ou
mesmo batom nos lábios e beijava o espelho. Eu destaco e repito o que o pai
disse, dirigindo-me a Fabian. Pela primeira vez ele se dá volta, me olha, escuta e
diz: "Minha mamamãe mamamamamãe."
É indiscutível que, um mês e meio depois do começo da cura, identificações
imaginárias surgiram. Nada, no entanto, nos mostra se elas se sustentam sobre
outra coisa além da descoberta do espelho. Elas não são suficientes para nos
garantir que existe uma identificação primária.
Por outro lado, é mais fácil pensar que as marcas dos três primeiros desenhos
representam traços, ou bem, que elas mesmas são os traços que permitirão, ao
mesmo tempo, não somentepost hoc mas também propter hoc , o espelho, e sua
fonetização.
O batom quer dizer: "Sou mamãe", o creme de barbear quer dizer: "Sou
papai." Mas essas marcas podem fazer com que o traço sozinho subsista ao ser
1 80 OAUTISMO

marcado sobre a superfície do corpo e não a criar ele mesmo sua própria
superfície?
Sobre o plano da cura, minha intervenção foi escutada, o que mostraria que
a transferência dos pais opera.
5 de março de 90. Fabian chega à sessão com os pais e, pela primeira vez,
trazendo seu urso consigo.
O pai me diz que, até agora, quando o telefone tocava era ele quem se
precipitava, tirava o telefone do gancho e esperava, ansioso, a voz do outro lado.
Ele não respondia nada, não emitia nem mesmo um som.
Agora, se ele tira o telefone do gancho é para desligar no mesmo instante, ou
bem, se é sua mãe que atende, ele bate nela.
A única pessoa que telefona para casa é o pai.
Enquanto o pai fala e a mãe consente, ele faz, com peças de Lego, torres que
sobem o mais_alto possível.
20 de março de 90. Quando o pai está na sessão, Fabian se dirige a ele com
gestos e às vezes com uma palavra. Se a mãe chega inopinadamente, ele se cala,
vira e vai embora.
Ele começa a subir sobre todos os móveis e durante a noite acende todas as
luzes da casa para brincar sozinho com seus brinquedos.
27 de março de 90. Fabian diz à sua mãe, sem que ela tenha se dirigido a ele
antes: "Você não entende!." Ee começa a escutar concertos de música clássica:
passa todo o dia deitado no chão, a rádio na estação France Musique.
Comentário. Fabian vai até sua mãe e emite essa frase sem que possamos
saber se ela vem de uma concatenação prévia. Pensamos, de preferência, que o
"Tu" seja um conectivo entre o enunciado e a enunciação, ou que ele represente
o que resta do Outro no desaparecimento, que a frase é pronunciada como uma
rejeição.
Abril de 90. Quando a mãe tira o telefone do gancho, Fabian fica furioso e
bate nela, joga objetos, ou bem corre para se trancar no quarto dos pais e só sai
quando a conversa terminou.
Esse ciúme, que ele não sente pelo seu irmão mais velho, indica que ele busca
o pai e também que, se a mãe é de tal modo um obstáculo, ele se identificou com
ela
Mas esse ciúme, que se dá no registro da frustração ou ela ou eu, mas não os
dois, não prova que o tempo fundador da privação tenha se verificado. Fabian
busca localizar-se entre papai e mamãe, certamente. Mas ele não é localizável
entre Um e Outro.
Na sessão ele desenha, sentado à mesa, em frente à janela, de costas para os
pais, por vezes vira-se para buscar o que há nas gavetas, a caixa de massa para
modelar, as pastas.
Em casa, no seu quadro negro, ele desenha com giz uma cabeça e diz: "muito
pequeno" e faz o gesto, diz o seu pai.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA... 1 81

"Não quer(quero) isso" (Veux (t) pas ça)


"E não sabe (sei) contar." (Ch (sais) (t) pas compter)
No fim do mês, ele está mais freqüentemente triste, chorão, incomodado, sem
que os pais saibam por que. Durante um de seus acessos, ele diz ao pai: "Você
quer ir embora". Pela primeira vez na sua vida ele adormece no colo da mãe.
Comentário: Esses estados de tristeza sem razão, que inquietam os pais, com
justa causa, esses prantos e essa dor que, para eles, não têm explicação mostram
mais bem que uma passagem se faz da Coisa à causa. O que é singular, em Fabian,
é que o Soberano Bem está localizado do lado do pai.
22 de maio de 90. Desde o mês de fevereiro, Fabian fazia grandes cenas de
raiva nas lojas quando os pais não compravam o que ele mostrava que queria.
Neste mês, essas reações param. Da mesma forma, até este momento, ele supor­
tava bastante bem que o deixassem sozinho em casa. Agora, pela primeira vez,
ele mostra sinais de medo e de dor.
No jardim-de infância em que foi admitido, concorda em entrar e sair com
os outros.
Andando pela casa, ele encontra seu pai inesperadamente e diz: "Você estava
aqui?"
5 de junho. Enquanto o pai me conta os acontecimentos da semana, ele sobe
na sua mãe e, pela primeira vez, escorrega até o chão, com a cabeça para baixo
e pedindo que ela o levante. Todo o seu rosto deixa transparecer uma alegria
intensa.
Nessa semana um incidente aconteceu, aparentemente de menor importância,
que se revelará axial para o desenvolvimento da cura.
Passando em frente à T. V., ao qual até agora ele jamais dera importância, ele
vê um urso ameaçando um bebê.
Ele solta um grito desgarrador. O que acontece na tela o toca.
No que diz respeito à estrutura do espaço, de agora em diante, ele é capaz de
se vestir sozinho e de tomar remédios se está febril ou doente.

26 de junho. Ele faz durante a sessão um homem com massa para modelar,
grudando uma perna a uma outra maior. Coloca um ponto vermelho num carro,
fazendo como os efeitos sonoros de uma sirene. Levanta-se, anda até o espelho e
desenha com marcador três círculos. Em seguida, ele desenha outro em volta que
os fecha completamente.

Comentário: Ele construiu os quatro ao fazer 3 + 1. Cada um dos quatro


estando separado um do outro. O que faz com que eles estejam juntos é o quarto
que os contorna. Fabian tem quatro anos e seis meses. Nós também somos na
sessão 3 e 1. No entanto, esses círculos estão desenhados no espelho, indicando
que o que eles barram não está, entretanto, barrado.

1 O de julho. Desenha na sessão uma cabeça humana e uma criança cujo corpo
é uma linha.

22 de julho. Acorda durante a noite e vai ver se os pais estão.


1 82 O AUTISMO

18 de julho. Desenha, com três cores, grandes corpos fálicos, eretos, com
inscrições no interior.
2 de outubro. Começa um período de grandes desenhos, sobre quatro, seis ou
oito folhas de papel, colocadas juntas; a mesa não sendo suficiente, ele os faz no
chão.
Isso durará vários meses. Uma vez que Fabian terá incluído essa experiência,
ele voltará à mesa para trabalhar sobre uma folha de cada vez.
Durante essa sessão, ele faz vários Z que ocupam toda a página e, logo depois,
devolve a folha e faz o mesmo Z pequeno. Só me darei conta do alcance dessa
escritura mais tarde, quando, ao ler as anotações das sessões, serei levado a refletir
sobre a passagem do signo à letra.
9 de outubro. Os pais contam, preocupados, ou mesmo francamente alarma­
dos, o aspecto que tomaram as relações entre Fabian e a tela de televisão. Há
vários meses, desde antes férias, ele maltrata a T.V.: liga-a com um soco, desliga
logo depois, desloca pela sala correndo, ameaçando fazê-la cair.
Durante a narração dos pais, Fabian pega várias folhas de papel, instala-se no
chão e desenha um grande retângulo, usando quatro folhas ao mesmo tempo, sobre
as quais desenha dois traços, um vertical, sobre o lado superior do papel, e o outro
perpendicular ao primeiro.
Penso primeiro que ao enquadrar um espaço ele fez sua casa, a casa do pai
com um complemento fálico sobre ela.
Como se tivesse percebido minha inabilidade, o escutei dizer, muito baixo,
mas claramente: "Seis". Não posso acreditar no que escuto. Efetivamente, é
possível deformar a barriga do "6" e fazer dela um retângulo e transformar o arco
do círculo em dois segmentos de reta perpendiculares um ao outro. Essa transfor­
mação é geometricamente possível, o que mostra que Fabian faz o seu espaço
experimentar uma deformação regulada e que ele nos faz sabê-lo. Para que não
haja dúvidas sobre o que acaba de dizer ele acrescenta: "Cinco, quatro, três, dois,
um." E no espaço interior do retângulo, o marco que jamais deixará seus desenhos,
ele escreve: T.F.l, A.2, F.R.3, 5 (redes de T.V. na França). Algum tempo depois,
ele nomearia claramente o signo de cada cadeia designada em letras resplande­
centes sobre a tela da televisão.
16 de outubro. Desenha, pela primeira vez, durante a sessão, uma figura
humana inteira. Nas semanas seguintes, fará a cabeça com os olhos, a boca, o
nariz.
Fabian deixou ao longe o "seis" da semana passada e conta "quatorze",
enquanto que alguns dias antes dessa cifra ele só dizia: "Um" e "Quatro."
Além disso, ele surpreende todo o mundo em casa quando o pai pergunta
desde o quarto à sua mulher na cozinha: "O que comemos?", Fabian responde
desde seu quarto: "Ela faz massas."
Sem data. Provavelmente começo de 91. O pai me conta que ele se torna
muito difícil à noite, na hora de dormir, o que ele recusa obstinadamente. Nada
consegue fazê-lo obedecer e é a primeira vez que isso acontece. A palavra do pai,
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 83

que foi sempre convincente sem que nunca fosse necessário chegar aos gritos ou
às ameaças, não é mais suficiente. Durante horas ele se recusa a ir dormir, faz
chilique, acende as luzes e vai brincar na sala no meio da noite, como se fosse
dia. O pai se sente impotente frente ao que ele vê como um desafio.
Bastante surpreso, conseguirei, no entanto, dizer-lhe que Fabian não faz isso
para importuná-lo, mas, simplesmente, ele tem uma real dificuldade para dormir.
A decisão de abandonar-se ao sono é tão angustiante que ele requer sua presença
para não saber que adormece. Saliento uma vez mais que certamente não é para
incomodar. O pai me escuta, pensativo.
Enquanto isso Fabian, que brincava ao lado, no chão, aparentemente distraído
e sem fazer sinal algum de estar escutando o que acontecia, levanta-se, aproxi­
ma-se do pai e sem avisar dá-lhe um tapa violento na bochecha, a mão bem aberta.
A bochecha que recebeu o golpe ficará avermelhada por alguns minutos, mas a
outra também...
Intercedo o mais rápido possível para dizer a Fabian que seu pai não sabia o
que acabo de explicar-lhe. Que é precisamente por isso que seus pais vêm me ver,
para poder saber. E que se posso explicar, ao pai, o que acontece com ele, é
simplesmente porque ele, Fabian, tanto quanto o pai, ao me contar através de
palavras e desenhos o que acontece em casa, me permitem dizê-lo.
A partir desse momento, Fabian escreverá não somente sobre papel, mas
também pouco a pouco na tela do minitel (catálogo eletrônico) e, depois, no
computador do pai. No começo, letras, depois palavras e finalmente jogos cada
vez mais difíceis que dominará em pouco tempo.
Fabian passará horas sem se importar com o mundo à sua volta.

Março de 92. Há longos meses que ele faz ritualmente marcos que rodeiam
cada folha branca e inscreve ora os signos das redes de T.V., ora uma série de
desenhos que fazem pensar nas carteiras de uma sala de aula e, em frente a elas,
a mesa do professor.
Dessa vez tratava-se de nomes de redes de T.V..
De repente, o escuto murmurar VitteL
Não costumo fazer-me de engraçado com adultos, e muito menos com crian­
ças. Em resumo, quando se trata de ressaltar um significante, é necessário de saída
ter muito cuidado com todo gozo, do lado do analista.
Sendo surpreendente, no entanto, a ocasião, dou à palavra uma ligeira into-
nação interrogativa:
"Vive ela?" (Vit-elle)
Ele se cala. Alguns minutos depois, sem me olhar, lança:
"Rap1
' ºdo, ela......
" ' " (Viite, elle)
Uma semana depois o pai me dirá que Fabian deu um passo à frente na
utilização das palavras. Além disso, se dirigiu muito a eles, sem palavras.
1 84 O AUTISMO

A MÃE E O DELÍRIO PUERPERAL

A mãe de Fabian não fala durante a sessão. Ela deixa para seu marido a
preocupação de lembrar-se dos pequenos acontecimentos cotidianos, as alegrias
ou os desgostos. Ambos do Norte, eles são levados pela França a mercê das
designações de trabalho do pai de Fabian.
Ela não tomou a ver seu pai desde que este se divorciou de sua mãe, exceto
uma vez, quando se cruzaram numa grande cerimônia familiar e ele não a reco­
nheceu. Seu pensamento, naquele momento, foi de que não tinha mais pai. Que
ela jamais tivera.
E, no entanto, pouco antes do divórcio dos pais, durante uma dessas violentas
brigas que os opunha um ao outro, um dos filhos mais velhos, não suportando
mais os insultos, os golpes, o alcoolismo do pai, crava-lhe, antes que ele bata na
mãe, uma facanas costas.
Quando a mãe de Fabian se aproxima, ele cai no chão e de um só movimento
ela tira a faca da ferida. O pai tem a vida salva, o ferro havia somente deslizado
pela omoplata
Mas quando ela escuta, no hospital, os médicos dizerem que, com seu gesto,
ela poderia tê-lo matado, julga no seu interior que sua culpabilidade não tem
remissão - que nada, nem ninguém poderá salvá-la.
O irmão, que queria defender a mãe, morrerá, anos mais tarde, em conse­
qüência de sucessivas crises de epilepsia.
Com o nascimento do filho mais velho a mãe precipita-se todas as tardes,
todas as noites, até a cama da criança para estar certa de que ela respira.
Fabian não era esperado na noite em que nasceu, mas sim alguns dias mais
tarde, ou até mesmo duas semanas. Nesse mesmo fim-de-semana seu cunhado se
casava e seu marido era esperado no cartório como testemunha. Como não havia
perigo de um nascimento iminente, o pai pegou o carro para ir e voltar em menos
de quarenta e oito horas.
Na noite do casamento do seu cunhado, enquanto ela mofava esperando em
casa, lembrava ser essa a data do aniversário da morte do irmão.
Naquela noite em que Fabian nasceu, ela olhou-o e disse para si mesma: "Ele
sabe tudo sobre mim. Quanto mais cedo ele morrer, melhor será para ele."
Nesse exato momento, o peso de sua nulidade inata radical, de toda a sua
indignidade, tomou-se evidente para ela, como uma certeza quejamais a abando­
naria
Mais tarde, quando, ao crescer, Fabian não emite som algum, nenhum choro,
quando toma-se sensível que ele não fala, ela dirá para si mesma: "Não quero que
ninguém saiba como sou feita. Ele também não quer que ninguém saiba como ele
é por dentro."
"Ele sabe tudo." Por maior que fosse a violência da renegação pronunciada
quando jovem, a mãe de Fabian não pode se subtrair, já que ela fala, de pensar
pelo menos uma vez: "Ele sabe tudo" do seu pai. Mas é precisamente por causa
dessa renega ção , acompanhada de uma rejeição forclusiva, que na noite do nas-
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 85

cimento do seu filho essa frase volta à sua mente, encarnada num delírio - que
não precisa ser de estrutura -para proteger-se de um retomo devastador.
Ninguém em volta percebe seu estado, como acontece no caso da maioria das
mães de crianças autistas que recebemos durante anos. Delírios puerperais sub­
clínicos para as famílias e os médicos, que fracassam, depois de alguns meses,
quando os efeitos na criança os acordam bruscamente, dando-lhes como tarefa, a
partir desse momento, dedicar-se a essa criança que os leva, através do seu
mutismo, a um destino que faltava nas mães.
O pai, que a criança autista encarna, é um pai primordial, não desejoso, que
goza sozinho.
A criança satura a falta de ser da mãe não como objeto, causa do desejo, mas
como significante, causa de gozo. O delírio é a única resposta que a mãe é capaz
de apresentar diante de um retomo do real, que afunda isso com o que ela pode
contar como estrutura subjetiva.
Não é necessário que a mãe seja psicótica. No entanto, mesmo se ela fosse,
isso J!ãO explicaria em nada o autismo da crianç;:t, cuja causa é contingente.
E porque ele representa o puro real que a mãe não pode inventá-lo. O gozo
que ele encarna destrói toda vida pulsional, toda possibilidade de inscrição.
Qmu1do a mãe pode dar seu delírio ao psicanalista, a criança, se ela ainda é
pequena, pode começar a articular, a fonetizar seus traços.
Em geral, é um dos dois pais que formula a demanda, o outro se limitando a
assistir sem acreditar. Se é a mãe que, apesar de tudo, pode fazê-lo, então não é
raro que o pai experimente um período delirante. Mas se de repente o delírio pode
acontecer ao menos por um certo tempo, a criança não devora toda a crença, sendo
a missão do significante paterno ancorá-lo no nada.

O DÊITICO E A REJEIÇÃO DA DEMANDA


Estamos em sessão, Fabian, sua mãe e eu. Ela me conta alguns acontecimen­
tos da semana e Fabian nos dá as costas, passeando pelo consultório, inspecio­
nando os cantos que ele conhece, tocando os objetos considerados como meus.
Mas, num certo momento, eu o surpreendo imóvel, fixado na sua mãe com
um olhar emocionado -contemplando-a com a deleitação de um crente ao ver a
Virgem, depositando sobre ela um olhar, como faz quem gosta de pintura diante
de um quadro - não durante um tempo mensurável onde a visão do mundo
finalmente recuperará suas prerrogativas, mas sim pela eternidade.
Ao mesmo tempo, seu dedo aponta um objeto qualquer, que ele mesmo não
pode ou não quer atingir. E a mãe me conta que todos os dias, em casa, a mesma
cena se repete, sem que nenhuma das demandas para a qual ele aponta, esse objeto,
seja atendida.
Não é possível, aliás, pensar que ele desconhece os nomes dos objetos que
assinala com seu gesto mudo, pois essas palavras afloram na sua boca quando não
há ninguém por perto e pronuncia palavras e frases ao brincar, sozinho, com suas
coisas preferidas.
Quando articula proposições, totalmente sensatas, ele não se dirige a ninguém.
Mas quando ele tem diante dele um dos outros da demanda, ele nunca se exprime.
1 86 O AUTISMO

Há nele uma brecha atual e infinita , a qual ele se atém, entre o gesto que
assinala "isto" no mundo dos objetos e a fala. O simples fato de nomeá-los tiraria
essa parte deles mesmos que podemos nomear, sem temer o paradoxo de imaterial
e substancial, que faz com que eles participem enquanto inominados, não do
espaço do mundo mas do lugar e da ordem da Coisa.
Pois para que o único assassinato que vale se realize não é suficiente articular
palavras (mots et paroles), é necessário primeiro demandar a um Outro que pelo
simples fato de responder, se vê, sem sabê-lo, sem uma parte de si mesmo.
Essa brecha infinita, à qual Fabian se atém, permite-lhe segurar, uma crença
inabalável, pois é silenciosa, não no Outro, mas no Outro do Outro gozo, fora da
linguagem. Ao mesmo tempo, os sons da linguagem, sua armadura fônica, servem
somente para a função de gozo-sentido (joui-sens ). Eles são decapitados antes de
toda função nominativa.
Em conseqüência, ele pode viver sem o objeto, quanto tempo ele quiser ou
puder. E quando ele chega a sentir falta, isso é o fruto envenenado do querer do
Outro que lhe recusa, antes de mais nada, a demanda Ele está frustrado sem jamais
ter sidoprivado.
Quando, brincando sozinho, Fabian diz: " 'cê é difícii" (T'es difficile) ou
"Você não entende" (Tu ne corizprends pas) ou "Ela faz massas" (Elle fait des
pâtes ), podemos dizer que essas frases são sensatas, mas que elas não significam.
Elas são pronunciadas corretamente, e a sintaxe é adequada, mas a referência é
inexistente. O fato que o analista ou os pais possam supor que ele repete afirma­
ções da professora que lhe concernem, não muda nada. Essas frases têm a forma
da frase "o atual rei da França não existe" que preocupou tanto Bertrand Russel.
Falta nisto o único ponto de apoio que um analista tem na cura dos neuróticos:
a referência vazia. Pois, se os neuróticos a enchem o tempo inteiro de sentido ,
seu caráter real permite esperar uma eventual limpeza.
Falta também o engate (embrayeur) de contexto, os significantes anafóricos
que empalmam os atos de palavra (parole) às palavras que precedem ou que
permitem começar ex nihilo uma proposição, introduzindo-a no vazio.
Quando no Gênese está escrito: "Deus disse: Haja luz e houve luz", o caráter
criador do dizer é salientado de uma força inegável. Seria errado, no entanto,
pensar que isso era verdade para os homens dessa época, da escritura do Torah
ou ainda doMahabharata e seria inacessível para a humanidade de nossa civili­
zação técnica. O homem está separado do caráter eficaz do dizer pelo seu próprio
inconsciente. A humanidade acantonou desde muito cedo essa função nas práticas
mágicas e mágico-religiosas.
Além disso, a crença na eficácia da palavra sobre a natureza, ou sobre o outro,
ou sobre o destino de gente desconhecida, não foi mais do que um desvio, para
subtrair dessa eficácia o único objeto susceptível a receber os efeitos: o próprio
sujeito. Sem essa crença, a operação separadora, constitutiva do inconsciente, não
tem onde se enganchar. Já que é graças ao inconsciente que podemos crer numa
relação imediata, sem mediação com o Outro. Dito de outra forma, podemos
pensar que o Outro é e que o inconsciente não é.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 87

Essa ausência de crença na palavra não concerne, na mãe, uma dúvida ou


uma desconfiança sobre sua verdade, que comporta naturalmente seu avesso de
engano. A mãe de Fabian, pouco a pouco, ao dirigir-se a nós, procura o instante
preciso no qual a descoberta do engano do Outro se congelou (figée ) nele, não
como descrença, mas como evidência para sempre do tecido próprio da palavra.
A resposta da criança será a rejeição da demanda. E não uma simples rejeição,
cujas consequências, certamente menos graves, não se inscrevem fora do discurso.
No autismo, a crença é subtraída da palavra, da mesma forma que a demanda
do Outro é rejeitada fora do campo da linguagem.

A TELA, O MARCO, A ESCRITURA


Fabian jamais tinha prestado atenção no que acontecia na televisão. Ele
passava ao lado sem parar um só instante na frente do aparelho ligado, quando
os pais ou seu irmão estavam assistindo. Até que uma tarde de outubro ele vê, na
tela, um urso que ameaça um bebê. Um grito estridente acentua que, pela primeira
vez, as imagens tornam-se sensatas. Tão sensatas que são reais.
Na semana que segue ele faz durante a sessão um grande marco, que ocupa
quatro folhas de papel, acrescentando-lhe uma calda no alto à esquerda, feita de
dois segmentos de reta quebrados em ângulo reto.
Fabian me fez saber que, por uma razão que desconheço, decidiu submeter
as formas arredondadas do "6" a uma deformação regulada, transformando-o cm
formas retas e cortadas. Percebendo certamente a surpresa que se apoderou de
mim, escutei murmurar na ponta de seus lábios, sem voz: "Seis, cinco, quatro,
três, dois, um."
Ele começa daí em diante a enumerar as cifras ao inverso e a escrever as
letras que ele conhece da direita à esquerda, ora respeitando a dissimetria esquer­
da/direita, ora invertendo-a.
Ainda melhor, à medida que as sessões transcorrem, ele escreve para ele da
direita para a esquerda ou da esquerda para direita, mas se ele quer escrever para
mim ao mesmo tempo, ele escreve indo e voltando de cima para baixo as letras
e COIIJeçando pela direita.
E somente um mês ou dois depois que os pais vão se lembrar da cena do urso
e do bebê, pois, durante esse tempo, eles se queixavam do fato que seu filho
"maltratava" o aparelho, ligando-o e desligando-o a soco e fazendo rolar a mesa
de rodinhas a toda velocidade pela sala, arriscando fazê-lo cair.
Ali, somente ali, posso perceber que o marco que ele traça antes de qualquer
inscrição sobre o papel branco é o marco da tela da televisão. Ou de preferência,
o insuportável das imagens que aparecem nela, já que são reais, o levam a fazer
som que a tela experimente um tratamento de redução, ao desenhá-la ele mesmo.
E nesse momento que ele também começa a traçar barras sobre o espelho.
Esse encontro, de uma violência inusitada, nos leva a formular a seguinte
hipótese: não tinha havido até esse momento, em Fabian, o que chamamos uma
atividade alucinatória primária , tornada possível pela perda, não do objeto da
pulsão, pois ele não existe ainda, mas do objeto por excelência . Isso abre, por sua
- yez, a uma criação alucinatória, med iante a qual a criança investe e se apodera
1 88 O AUTISMO

dos traços do objeto, na realidade traços que podem ser reinvestidos, que lhe
permitem envolver o vazio fundador.
Fabian, ao traçar um marco e ao escrever letras T.F.1., A2., F.R.3., nos faz
assistir ao nascimento do inconsciente.
Que ensinamento podemos tirar disso?

1) Que a alucinação não é a simples reprodução substitutiva da experiência de


satisfação mas uma produção que, mesmo que deslocada no tempo em relação à
primeira, é o indício que permite afinnar que tomar o seio é verdadeiramente uma
experiência de satisfação- já que poderia não sê-lo.
2) Assim, não deveria se pensar que a alucinação - que é um verdadeiro empuxo
psíquico, fundamental e permanente-faz obstáculo à apreensão da "realidade",
enquanto atividade chamada substitutiva, mas ao contrário é necessário pensar
que ela serve na construção desta última. A questão de sua delimitação respectiva
pediria, de preferência, um estudo sobre a diferença, na repetição, dos mesmos
rastros.
3) O fato que Fabian escreve letras no marco, que simboliza e inscreve a tela
como vazio, nos leva a afirmar:
a) que inscrição e escritura são conceitos idênticos e atividades idênticas. Sua
diferença se situa não no nível do ato de traçar, mas no nível de um segundo ato
que consiste em atribuir, às letras inscritas, um valor fonemático qualquer;
b) que se isso é aceito, todos os rastros são nomes, nomes de objetos, mas
não por isso nomes próprios;
c) que enfim se o marco é o desdobramento espacial do primeiro traço que
faz realmente buraco, vazio fundador, a atividade alucinatória fornece a película
sensível sobre a qual os traços do objeto vão deixar suas impressões.
4) A alucinação é o terreno sobre o qual haverá tanto registro como leitura,
levantamento topográfico da erosão causada.
Até o dia do episódio do grito em frente à tela da T. V., Fabian tinha aprendido a
reconhecer as palavras e as frases vindas do outro, andava, manejava mais ou
menos os objetos. Mas ele não tinha nenhuma atividade vinda dele. Poderíamos
até dizer que ele tinha uma memória , no sentido psicológico ou biológico do
termo, mas não uma atividade de rememoração .
Não é possível pensar que a realização da imagem como portadora de perigos
seja a conseqüência das sessões que sua mãe teve comigo, durante as quais ela
pôde falar de sua compensação puerperal enomear, pela primeira vez, tanto os
signos-de-percepção que ela tinha do seu recém-nascido, como a identificação na
qual seu filho estava fechado, desde antes do seu nascimento.
Para que uma criança autista comece sua introdução no mundo humano, o
dos seres falantes, para que a primeira incisão da linguagem se faça, graças à
palavra, é necessário que haja uma separação no lugar do Outro, que a mãe possa
abandonar o delírio que presidiu ao nascimento. Nós pensamos que em certos
casos, esse delírio não é um sintoma devido a esse nascimento, mas de preferência
a causa disso.
A criança é engendrada, no corpo defensivo de sua mãe, para levar-lhe
novamente e restituir-lhe o significante primeiro cujo gow -que Freud chamava
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 89

totêmico-é propriamente aniquilante por ter sido encarnado por um genitor que
não o assumiu como sua dívida.
A criança, futura psicótica ou futura perversa, é tanto apresentada ao templo
para receber o nome, como exposta fora, inominável. O autista encarna com tal
força radiante o poder fálico em ato, que o delírio é o único recurso para interpor
o semblante entre essa presença -verdadeira parúsia - e a mãe.
O delírio faz uma tela à criança, absorvendo na sua matéria todo o desejo do
Outro, que poderia fazer nascer nele uma demanda.

O MARCO E A SÉRIE
A transformação regulada do seis em marco com cauda e a repetição regular,
a partir dessa sessão do mês de outubro, me intrigara suficientemente para querer
continuar sob�e a via traçada por Lacan em torno da consistência do marco. 2
AI;uns meses depois, as recordações da leitura da "viagem a Veneza" de
Proust cruzaram na minha cabeça com um comentário de Malraux em O i"eat
e decidi ir a Pádua para contemplar os afrescos de Giotto, na capela de Scrovegni,
primeira obra da pintura ocidental que foi emoldurada na própria realização do
espaço pictural.
O que nos ensina Panofsky, que guiou nossa viagem?
O fato de desenhar um marco, de utilizá-lo no cálculo da perspectiva, supõe
um ponto de fuga. Esse ponto de fuga supõe, por sua vez, a descoberta da imagem
de pontos infinitamente distanciados de todas as linhas de fuga. Isso é o símbolo
concreto da descoberta do infinito.
Nessa época, o Renascimento produz uma revolução: a substituição do topos
aristotélico, no qual cada coisa tem o seu lugar, pelo infinito em ato que não tem
seu modelo somente em Deus, mas que se realiza na realidade empírica.5
Se voltamos a Fabian, o fato de traçar um marco é o desdobramento espacial
desse ponto de fuga. A maioria das crianças começa a desenhar vetores orientados
horizontal, vertical- e formas arredondadas que progressivamente se fecham. A
reunião das duas coisas, guiada pelo interesse levado à imagem especular, permi­
tirá a representação dos corpos humanos, ou seja, os pais e o sujeito numa situação
governada pelo jogo fantasmático.
Sobre o plano destacado pelo traçado do marco, Fabian, em vez de representar
o mundo, com um gesto seguro e pegando o pilot como um pincel, desenha letras
e cifras.

A ESCRITURA NA PALAVRA, A CRIAÇÃO DOS NOMES E O


TRAÇADO DO SIGNO
Pensar que a escritura é uma atividade secundária, que viria depois da palavra,
na qual a letra seria o simples suporte do som, não está de acordo com as hipóteses
e princípios do discurso freudiano.
Nenhuma língua escrita conhecida seria a mesma se ela não fosse escrita, e
a existência das línguas não sustentadas por um alfabeto escrito não prova que
não haja um sistema de inscrição que a sustenta, sem que os locutores o saibam.
1 90 O AUTISMO

Falar supõe fonetisar traços que já estão. Escrever supõe ser capaz previa­
mente de ler signos que interrogam, que serão levados depois sobre um suporte
qualquer. Sobre seu próprio suporte.
O fato que os lingüistas se ocupem da língua e dos discursos não pode ser
para o analista um motivo suficiente para não se ocupar da palavra, e de suas
condições de emergência, o que não é o objeto da lingüística, mas sim, da instância
(ressort ) da psicanálise, a linguagem não possuindo nela mesma as operações e
os operadores que lhe permitem se reproduzir na palavra de cada um dos seres a
priori, capazes de falar.
E desse hiancia entre linguagem e palavra, que a lingüística não pode tomar
seu objeto, que se ocupa a psicanálise.
No coração desse abismo, o corpo.
Para o lingüista, a glossolalia é, uma emissão de sons que não reproduz os
sons de nenhuma língua conhecida. E um fenômeno margina� que visa as crianças
(infans ), certas afeições psíquicas, ou ainda certas práticas religiosas que come­
moram o milagre da Pentecostes, quando, visitados pelo Espírito Santo, os após­
tolos começaram a "falar em línguas" - glossolalia -a todos os que estavam em
Jerusalém nesse dia.
No entanto, nós pensamos que sem essa emissão de sons que não são ainda
fonemas de uma língua, sem o investimento das cordas vocais, da laringe, da glote,
de todo o aparelho fonatório e, principalmente, da emissão do ar, um recém-nas­
cido não poderia jamais "adquirir" a palavra.
Assim, há uma condição a essa aquisição: uma atividade vinda de lá onde
haverá, sob essa condição, sujeito , que seja originalmente produtora, a partir de
nada, de um gozo sonoro antes de que o sentido tenha um papel discriminatório.
Bem mais, os sons só terão um sentido (de linguagem codificada) se a criança
encontra nele um "sentido" antes de sua descriminação sensorial.
Assim, o milagre da Pentecostes se produz todos os dias para os seres falantes!
Exceto que nós "esquecemos" o momento no qual isso se produz, já que pertence
ao real. Em vez de que isso se produza por uma efusão do Espírito Santo é possível
pensar que o corpo deve perder um gozo para saber que ele é mortal.
A criança autista nunca foi glossolálica. Seus gritos roucos, seus sons, ela os
produz depois comosinal de espanto, de furor, ou de alegria, mas nunca como a
produção gozosa de um objeto.
Essa atividade, comparável estruturalmente ao chupar, que faz que para o ser
falante os sons da língua não sejam mais só uma materialidade simplesmente física
ou físico-psicológica, mas um objeto de pulsão.
Se nos viramos agora do lado da palavra, somos levados a adiantar um
postulado e a const:rajr uma questão.
O primeiro diz: "E porque há endereçamento ao Outro antes de toda palavra,
que no lugar cavado por essa demanda haverá um sujeito da enunciação."
A segunda: "O que está escrito na palavra antes de qualquer "escritura" ?"
Poderíamos dizê-lo assim, como se se tratasse de uma prova pelo absurdo.
Se não houvesse escritura na emissão sonora articulada, ela seria irrealizável.
Essa escritura, que é a armadura de toda linguagem, tem por característica o
fato de ser a semântica
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGM ENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 91

A condição para que uma criança invista o conjunto dos traços distintivos,
· prosódicos, de entonação, de contorno, que fazem a singularidade da língua, é que
ela se interesse pelos conjuntos de oposições binárias que estruturam a palavra e
a fazem possível. Esse interesse só pode vir do fato que ela tira prazer do vazio
e não somente do cheio, o que lhe permite muito cedo gravar que o vazio não é
uma carência que deve ser enchida, mas jogo de oposições, de diferenças e de
repetições. Esse investimento pode vir só, não da alegria da presença oposta à
ausência pois a presença sozinha é aniquilante , mas da presença sempre enqua­
drada dentro e pela ausência.
A oposição estrutural primeira tem, então, quatro termos: ausência de uma
presença, presença na ausência. Só essa estrutura permite que as oposições da
língua sejam gozosas (jouissives).
Se temos apenas uma oposição de dois termos: presença/ausência, um des­
truiria o outro, e é o que a criança "psicótica" nos mostra. Ele segmenta as
oposições, não as tolera. entre estridente/surdo, grave/agudo, vozeado/não vozea­
do, nasalado/não nasalado, ele não pode passar do um ao Outro e ancorar-se num
só elemento e para sempre.
As crianças reconhecem os traços distintivos e todas as oposições binárias da
língua antes de poder respeitá-los e mesmo se decidiram não respeitá-ias. Se um
adulto pronuncia igual à criança um fonema que foi deformado por ela, ele será
corrigido no ato por um gesto ou uma palavra que lhe dirá secamente que não é
assim.
Quando uma criança substitui, de maneira permanente, um fonema da língua
por um som de sua colheita, a razão não é nunca uma dificuldade qualquer a nível
fonatório. Exceção feita, naturalmente, das dificuldade próprias de cada língua e
que se explicam, para todos os futuros-falantes pela tensão que existe sempre entre
leis fonéticas diferentes. A razão dessa substituição é uma rejeição seletiva na
língua tomada como um objeto que lhe vem do Outro. As letras não asseguram
plenamente sua função de gozo e uma criação glossolálica lhes é imposta, a
mínima, que como realização alucinatória assegura o lugar do sujeito.
Quando dizemos que a armadura da língua é sua estrutura a-semântica, isso
quer dizer que ela não é da ordem da significação, mas do sentido.
Esse sentido está presente em toda emissão sonora compassada de um ritmo
reconhecível, em toda frase que respeita a sintaxe da língua, mesmo se as palavras
utilizadas não querem dizer nada uma em relação à outra O non-sensical é, de
acordo com isto, o cúmulo do sentido, fazendo barreira (garde-fou) no seu extre­
mo limite.
As vozes das crianças autistas, ou que tornaram-se psicóticas, ou falsamente
débeis, se arrastam, pastosas, ou se levantam, estridentes, batendo-se de forma
desastrada nas bordas de uma língua que não articula, que não consente ser
utilizada na sua prodigiosa capacidade instrumental. Eles falharam em superar a
voz de sua substância, como massa inerte, sem poder reproduzi-la como o reflexo
de uma oposição no outro.
Elas não puderam sentir prazer até morrerem de rir, como as crianças normais,
da criação insensata dos nomes que preside a passagem do infans à criança: a
onomatopéia.
1 92 O AUTISMO

Esta está ligada ao efeito da operação da metáfora originária:


1
-$-
significação ao sujeito. Como ela se diz? Lacan responde de uma maneira
sucinta e magnífica:
"[ ... ] o cachorro fazer miau, o gato fazer au au"6
É o jogo com o insensato que permite à criança que tenha sofrido o efeito da
metáfora de incorporar a estrutura do sentido, pois ele pode jogar com isso e, na
ocasião, ser também "jogado."
A criança autista se proibirá toda fenação, já que o excesso de sentido é para
ela anonadante.

A LETRA COMO TRAÇADO DO SIGNO QUE FAZ TRAÇO


Quando uma criança normal, ou mesmo psicótica, quer fazer saber que ela
gostou da série da T.V. "Zorro", ela representa o personagem, veste sua máscara
e sua capa e também desenha a marca que seu personagem deixa como lembrança
de sua passagem ou assina avant-courrier do seu retomo justiceiro.
Fabian, quatro meses depois que as imagens cessam sua permanência no
não-ser para se tomarem reais, desenhará dois z, de grandeza diferente e em
endereços diferentes. Numa folha um Z que a enche e barra ao mesmo tempo. No
verso, um pequeno z de um lado, quase perdido e invisível.
Um grande Z e um pequeno z são o mesmo z. A grandeza relativa não altera
em nada sua identidade de letra.
Mas "um grande Z", por exemplo o de Zorro, não é igual a um "pequeno z",
por exemplo o de Fabian. Existe realmente uma diferença. E ela existe, essa
diferença, mesmo que os dois z tivessem sido idênticos, já que há um z e outro
z.
Voltemos um instante ao Zorro e ao seu signo. Não o signo lingüístico, é
lógico, mas o signo de "ele faz signo", que ainda está presente, também, numa
fórmula como "está assinado".
O signo, seu signo, Zorro o traça com a ponta de sua espada, sobre um tecido,
sobre a areia, sobre a pele de um inimigo, sobre um rochedo.
Para uma criança hispano-falante (Zorro é mexicano) seu nome significa
raposa e em todos os países desse área lingüística esse nome é um adjetivo muito
usado e valorizado, sinônimo de astúcia. Para uma criança grega o z que anuncia
sempre seu retomo pode significar ''viver", já que o z é a primeira letra do Zethein.
Para um francês, o z não pode deixar de ser associado, grande ou pequeno... ao
pinto (zizi).
Mas enquanto tal, esse signo traçado por um movimento preciso da mão,
como uma caligrafia, é um traço que o representa diante de todos os outros e que
o faz diferente de todos os outros: não importa se são os personagens da série, ou
todas as crianças que olham, ou todos os adultos para cada criança que olha.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAG MENTOS DA CURA ANALÍTICA... 1 93

Ao desenhar um grande Z de um lado da folha e um pequeno z do outro,


Fabian nos mostra que ele chega ao c9nceito que assegura a identidade entre rastro
e traço, a identidade na diferença. E porque há um grande Z, que barra toda a
página, ou toda a tela-página, que pequenos z podem se escrever no seu verso.
Fabian, rápido como um relâmpago, faz signo traçando duas vezes o z, ele
conseguiu produzir a distinção entre o Um e o Outro. Um "Um" que não é o
Outro, e um Um que é o Outro.
Além disso, traçando-o mais fino e mais grosso, mais inclinado, ao avesso,
direito, com volutas e arabescos, ele descobre que, na repetição do que é comum
para todos, há a bordadura para marcar que é singular.
Mas não sabemos se ele produziu isso para ele e também para nós, ou somente
para nós. Qual fórmula de escolha ele utilizará para dar ao Um e ao Outro uma
sintaxe. Ele não irá da mesma forma se escolheu "o Um não o Outro" ou "não o
Um sem o Outro." Mas isso, nós não sabemos.

A INSATISFAÇÃO FUNDADORA, A INTRICAÇÃO PULSIONAL


E A FORCLUSÃO ORIGINÁRIA

Pensamos que não há nos autistas processos primários governados pelo prin­
cír,io do prazer. Eles só começarão a existir se as condições de mise en place de
uma cura-demanda dos pais, criança pequena demais, disponibilidade do analista
- aparecem. Podemos afirmar também que a cura começa quando esse par,
processos primários/ princípio do prazer, vem a existir efetivamente.
Mas pensamos também que os analistas estão longe de ter uma definição
comum desses princípios.
Como Freud os havia definido?

" A tendência dominante à qual esses princípios primários obedecem [ ... ] é


designada como princípio do prazer-desprazer [... ) Esses processos tendem a
obter um ganho de gozo; é de tais atos, �ue podem despertar do desprazer, que a
atividade psíquica se retira (recalque)"

A versão francesa traduz inexplicavelmente "Lust zugewinnen" por "obter


prazer." O que levaria a dizer que, o princípio do prazer e os processos primários
coincidiriam no mesmo objetivo. E por isso que o texto francês censura o começo
da proposição seguinte: "é de tais atos [... ] que a atividade psíquica se retira", pois
se ela se retira dos processos que tendem ao prazer, prova é dada do erro funda­
mental dessa tradução, que, para garantir seu sentido, deve censurar Freud.
Se os processos primários e o princípio do prazer andassem no mesmo
sentido, a angústia e o recalque deveriam ser explicados pela introdução dq
. princípio da realidade. O que levaria a destruir o edifício inteiro da psicanálise. E
sem dúvida por isso que o texto francês sendo, no entanto, uma autoridade para
todos os analistas e nas universidades censura também a palavra entre parêntese
no fim: recalque (refoulement).
1 94 OAUTISMO

Não há psicanálise possível sem essa noção fundamental: os processos pri­


mários buscam um ganho de gozq. O princípio do prazer é uma inibição ativa, e
uma das vertentes é psicológica. E aí que se arraiga a linguagem.
Freud continua assim:

"Primeiramente, a falta da satisfação esperada, a decepção, teve como conti­


nuação que essa tentativa de satisfação por vias alucinatórias fosse abandonada."8
"A própria insatisfação resultante é um fragmento de realidade."9

Que a satisfação atendida faça falta não quer dizer que não haja satisfação,
mas que a satisfação esperada não é a que foi obtida.
E a própria satisfação, do fato da realização, que produz um menos, um limite
inatingível, do fato de ser atingida.
Traduzir aasbleiben fazer falta, por "faltar" e também por "ficar fora" não é,
de maneira alguma, forçar o alemão. Coloquemos lado a lado:
A satisfação esperada fica fora.
A satisfação resultante é um fragmento da realidade.
Esse "fora", que é sinônimo de falta, não é preexistente, mas fundado pela
presença de uma espera que faz limite, horizonte, situando-se ela mesma como o
além invisível desse horizonte como o avesso do aquém, como seu suporte.
Sem essa espera, sem essa Erwartung, não somente não haverá uma reserva
de satisfação para explorar, mas, ainda'mais grave, a aparição do "fora" como um
sucedâneo do "dentro" estaria comprometida.
Essa falha constitutiva da satisfação pode não se realizar. Então o real da vida
seria profundamente perturbado. Pois a falta na própria satisfação é o que Freud
chama "Not des Leb�ns", a urgência da vida, que impede que o sujeito morra na
satisfação do gozo. E porque a alucinação mesma é insatisfatória que a criança
pode, dormindo, chorar e acordar.
Sem esse buraco fundador, que 1.acan chama o "verdadeiro" buraco, não há
urgência da vida, a vida se opondo ao gozo. E a criança estará permanentemente
tanto adormecida como acordada, não podendo ser estabelecida nenhuma fronteira
temporal entre os dois estados.
Essa insatisfação no coração mesmo do gozo, que é o fato da vida, cria a
anatomia real que permitirá o enfoque de um espaço apto à inscrição das diferen­
ças.
A insatisfação está do lado do objeto; a angústia real do lado do Outro.
Dessa distância se origina a demanda.
Sem uma satisfação atendida que falta, não está o espaço para que o objeto
suposto que pode fazê-la atingir seja pedido a um Outro, fora, que, disso, torna-se
simbolizável.
Lacan, em 1976, emitiu a hipótese de uma forclusão originária, mais funda­
mental que a do Nome-do-Pai, que ele chamaforclusão do sentido pelo real.
Freud, em 1925, em "A Denegação" postula uma rejeição (Werfung) do mau,
utilizando a mesma raiz verbal que a do "mecanismo" das psicoses para dar conta
da função do real.
FABIAN, A CRIANÇA DO COMPUTADOR: (FRAGMENTOS DA CURA ANALÍTICA. .. 1 95

Pensamos que o autista tem falta da forclusão original, falta de uma perda
fundamental que coloca em movimento a auto-reprodução da estrutura, cujas
modalidades são contingentes.
Essa operação, Melanie Klein tentou dar conta, chamando-a "deflection of
death instinct ".
Quando essa forclusão do sentido não se efetuou, impedindo assim a identi­
ficação primária ao pai primordial, a segunda forclusão que atinge o pai da
metáfora tenta ser o seu substituto desajeitado.
Não podemos avançar, para compreendê-lo, sem essa explicação:

- a primeira forclusão traz um gozo não-sexual, que só uma vez colocada


fora pode deixar o lugar à constituição da sexualidade pulsional;

- a seguqda forclusão impede o funcionamento da metáfora, do fato de se


opor ao gozo fálico do pai. Como resposta, ela opera sobre uma confusão de
registros entre gozo e função .

Quando o vazio constituinte se efetuou, a alucinação que a envolve não tem


um recurso pulsional, mas ela toma sua fonte num corpo que está ao mesmo tempo
superfície visual, tátil, olfativa, auditiva, cinestésica.
O corte pulsional dará à tela alucinatória um marco e é esse marco que permite
pensar o que é a intricação pulsional.
Efetivamente, que queria dizer Freud quando falava dessa misteriosa Trieb­
mischung? Sem uma justificação simbólica da intricação, é em vão falar da
desintricação como efeito como mostração da essência mesma da pulsão: pulsão
de morte.
Intricação iria querer dizer, para nós, que uma pulsão se sustenta da outra, e
que graças a essa sustentação sua demanda é articulável.
Para a voz, nós diríamos que ela pode fazer buraco, apoiada sobre um signo
do olhar do Outro, que a faz legível.
�ara o olhar, que ele é enquadrado pela voz que lhe diz "veja"! *
E somente porque se pode buscar com os olhos uma voz, que se pode chamar
com o olhar.
As pulsões, as isolamos como demandas, quando a cura impõe, uma vez que
são a base do fantasma. Mas o que é próprio de seu funcionamento é que elas
significam uma à outra.
Assim como os pacientes psicóticos, seres fora do discurso, nos questionam
sobre o nosso arraigamento na estrutura e que, se nós lhes permitimos, fazem a
teoria nos colocando sempre em causa, as crianças autistas nos dão um esclare­
cimento rasante e um engrandecimento deformante, mais verdadeiro ponto por
ponto do que foi para nós um apego ao real, do qual não temos a nostalgia já que
ainda podemos senti-lo atraente.

*Em francês háa jogo de palavras entre voix e vais.


1 96 OAUTISMO

NOTAS
1 . Ver infra, "O marco e a série." p. 274-275.
2. Ver LACAN J. A Lógica do Fantasma. Seminário inédito.
3. Para a "Viagem à Veneza", ver PROUST M. , "La fugitive" ( 1 925), in: A la recherche
du temps perdu, Paris, Gallimard, Bibliothéque de la Pléiade, tomo Ili, 1 954, p.
623-655.
4. Ver MALRAUX A. La Métamorphose des dieux. 2: Lirréel. Paris, Gallimard, 1 9 74.
5. Ver PANOFSKY E. La perspective comme forme symbolique et autres essais. trad. sob
a direção de G. Ballangé, Paris, Éditions de Minuit, col. Le sens comun, 1 976,
p. 1 25-1 59.
6. LACAN J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano"
( 1 960), in: Écrits, op. cit., p. 805.
7. FREUD S., "Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen ", in: Jarhrbuch
für Psychoanalyytische und Psychopathologische Forschungen, Studienausgabe
Band Ili, Frankfurt am Main, Fischer Verlag Gmbh, p. 1 8 : "Die oberste Tendenz,
welcher diese primãren Vogãnge gehorchen [ ... ] sie wird ais das Lust-Unlust-Prin­
zip bezeichnet. Diese Vorgãnge streben danach, Lust zugewinnen; von solchen
Akten welche Unlust erregen kõnnen, zieht sich die psychische Tãtigkeit zurück
(Verdrãngung)". ( Trad. francesa modificada por nós). Cf. trad. de Laplanche J.,
"Formulações sobre os dois princípios do curso dos acontecimentos psíquicos",
in: Resultados, Idéias, Probiemas, /, 1 890-1 920, op. cit., p. 1 36.
8. Ibidem. (em alemão), p. 1 8: "Erst das Ausbleiben der erwarteten Befriedigung, die
Enttãuschung, hatte zur Folge, dass dieser Versuch der Befriedigung auf halluzi­
natorischem Wege aufgeggeben wurde" (tradução modificada por nós). Cf.
ibid., trad. de Laplanche J., p. 1 36.
9. Ibidem. (em alemão), p. 23: "[ ... ] resultierende U nzufriedenheit selbst ein Stück der
Realitt ist" (tradução francesa modificada por nós). Cf. ibid., trad. de Laplanche
J., p. 1 4 1 .
1 O. Ver FREUD S. "Die Vemeinung' ( 1 925), in: /mago, li (3), p . 2 1 7-2 2 1 , G.W. XIV, trad.
Laplanche J., "A negação", in: Resultados, Idéias, Problemas, li, 1 92 1 -1 938, op.
cit., p. 1 35-1 3 9.
..

( . . . ) 11 Como o nome i ndica, os a utistas ouvem


a si mesmos. E les o uvem m u itas coisas. Isso
norm a l mente va i leva r até mesmo à a l uci nação, e
a a i uci nação te m sempre u m caráter mais ou
menos voca l . Nem todos os a utistas ouvem vozes,
mas e l es a rticu l a m m u itas coisas, e o q u e
a rticul a m trata -se justa m ente d e v e r de o n d e o
ouvira • m . li ( . . . )
( . . . ) 11 E les não chegam a ouvi r o q u e você tem a
dizer- l hes, n a medida e m q u e você se ocu pa
deles. 11 ( . . . )
( . . . ) 11 É j ustq mente o q u e faz com que nós não os
ouça mos. E que eles não nos ouve m . Mas enfi m ,
há certa me nte a l go a dize r- l hes. 11 ( . . . )
( . . . ) 11 Trata -se de saber porque h á a l go no a utista,
ou naquele q u e chama mos de esquizofrên i co,
q u e se gela, se é possível dizer assi m . Mas você
não pode d izer que ele não fa l a . Que você te n h a
dificu ldade de ouvir, de d o r ao que eles dizem
todo o seu a lcance, isso não i m pede que sejam,
afi n a l , perso nagens mais verbais do q u e o utra
coisa . 11 ( . . . )

R e s p o s t a s d e J a c q u e s L a c a n e m s u a C o n fe r ê n c i a
d e G e n e b ra s o b re O S i n t o m a (04/ 1 0/ 1 9 7 5 )

Você também pode gostar