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Lacan e o Autismo em Nossa Epoca

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Opção Lacaniana online nova série

Ano 8 • Número 23 • julho 2017 • ISSN 2177-2673

Lacan e o autismo em nossa época


Silvia Elena Tendlarz

Lacan falou sobre o autismo em poucas oportunidades. O


diagnóstico como tal não havia chegado ainda ao auge
classificatório e midiático do século XXI. Não havia então
se convertido em uma epidemia diagnóstica. Entretanto, seu
ensino nos oferece os contornos necessários para entender o
autismo e propor uma direção do tratamento.
Nos últimos anos a comunidade analítica de orientação
lacaniana trabalhou intensamente sobre o autismo,
legitimando a psicanálise como um tratamento possível. Mas
o estudo do autismo não se detém no diagnóstico e permite
examinar mais de perto as particularidades da constituição
subjetiva, como o vivente recebe o impacto de lalíngua e se
inclui no Outro.

Uma história do autismo


O autismo tem sua história dentro do movimento
psicanalítico. Despojado da conotação dada inicialmente por
Freud com o autoerotismo, Bleuler situa no começo do século
passado a introversão autista como uma modalidade da
esquizofrenia, para descrever a retração do sujeito em
relação ao seu entorno. Leo Kanner, em 1943, o descreve
pela primeira vez em crianças na síndrome que se tornou
célebre intitulada “Autismo infantil precoce”, e do outro
lado do Atlântico, poucos anos depois, Asperger cria a
“Síndrome de Asperger” para nomear crianças também
subtraídas do laço social, mas com maior uso da linguagem.
Os Manuais diagnósticos estendem seu uso com os nomes de
“Transtorno generalizado do Desenvolvimento” ou “Transtorno

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do espectro autista”, contribuindo assim para a grande
epidemia diagnóstica.
Cada vez mais se fala de autismo sem saber muito bem o
que é. O gosto pela solidão, sua fixidez e condutas
estereotipadas aparecem em primeiro plano caracterizando um
funcionamento subjetivo singular, núcleo real que explica o
crescimento de casos de crianças autistas além da ampliação
do espectro autista.
Os pós-freudianos e os kleinianos se interessaram por
esse quadro. Melanie Klein localiza Dick dentro de uma
esquizofrenia atípica. Nos anos 50-60, Margaret Mahler, em
Nova York, coloca a necessidade de atravessar a carapaça
autista. Durante a mesma época, Bruno Bettelheim, em
Chicago, introduz a “fortaleza vazia”. Nos anos 70, Meltzer
examina a topologia e o uso do espaço próprio,
bidimensional, resultado da identificação adesiva. Francis
Tustin postula a “carapaça autista” como uma barreira
protetora frente ao mundo exterior, gerada pela auto
sensualidade corporal que inclui o uso de objetos autistas
e formas autistas de sensações. Do lado da orientação
lacaniana, Rosine e Robert Lefort o pensam como uma quarta
estrutura.
Para todos eles o autismo corresponde a uma patologia
arcaica que leva a se defender de angústias e terrores
catastróficos.
Lacan retoma o autismo entendido no sentido amplo em
diversas oportunidades1:
1) Em Os escritos técnicos de Freud (1954)2, o caso Dick de
Melanie Klein e o caso Robert, de Rosine Lefort.
2) Em 1967, uns dez anos depois, comenta o caso de Martín der
Sami Ali em sua “Alocução sobre as psicoses da criança”3.
3) E finalmente volta a falar sobre o autismo em sua
“Conferência em Genebra”4, de 1975. Em cada oportunidade,
de um problema clínico extrai um ensinamento.

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Tanto no caso Dick como em Robert, aponta como as
crianças estão imersas no real. Em relação a Dick, diz:
“tudo lhe é igualmente real, indiferente”5, e “este menino
só vive no real”6, afirma a propósito de Robert. A partir
de suas elaborações sobre a palavra e o simbólico, Lacan
acrescenta que Dick “não emite nenhum apelo”7, e que o
Lobo! repetido por Robert constitui o “estado nodal”8 da
palavra, já que ela está bloqueada.
Quanto ao caso Martín, Lacan indica que se o menino
tampa seus ouvidos é porque se protege do verbo e já está
no pós-verbal.
O último comentário afirma que os autistas escutam
coisas e que isso desemboca na alucinação, que tem um
caráter mais ou menos vocal. Além disso, contra qualquer
prejuízo, acrescenta: “Não se pode dizer que não fala. Que
você tenha dificuldade para escutá-lo, para dar seu alcance
ao que dizem, isso não impede que se trate, finalmente, de
personagens mais verbosos”9.
Essas breves indicações constituem o ponto de partida
dos comentários de Jacques-Alain Miller, de Eric Laurent e
de Jean-Claude Maleval. Da mesma forma que o binômio
alienação-separação permite examinar o autismo, seja pela
“escolha do vazio” (Miller), ou pela “alienação parcial”10
(Maleval), os desenvolvimentos do último ensino de Lacan
permitem estudar como o traumatismo da linguagem afeta a
criança autista de modo a deixá-la em uma interação sem
corpo, sem imagem, e com um funcionamento de lalíngua que
lhe é próprio.

Foraclusão do furo e interação sem corpo


Em seu comentário do caso Robert, Jacques-Alain Miller
indica que falta a falta. Por estarem submergidos no real,
falta o furo, por isso tratam de criá-lo através de uma
automutilação para dar saída ao excesso de gozo que invade
seu corpo. Em um mundo pleno o sujeito não pode dar um

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lugar simbólico à falta, sendo, portanto, necessário
produzi-lo.
Eric Laurent propõe então o termo “foraclusão do furo”
para indicar que falta a delimitação de uma borda simbólica
de tal furo. Isso produz tanto a criação de um
“encapsulamento” autista como neo-borda, pelo retorno de
gozo sobre a borda, como fenômenos que expressam a
intolerância ao furo.
Diferentemente das proposições da tradição
psicanalítica, o encapsulamento para Laurent não constitui
uma carapaça fechada, mas sim permeável à inclusão de
pessoas e objetos.
A inexistência da borda do furo reduplica a
inexistência do corpo no autismo, posto que um corpo só
existe se um objeto pode se separar dele. O objeto a se
situa entre o sujeito e o Outro, mas no autista não se
constitui como tal, pois falta o circuito pulsional.
O Uno de gozo não se apaga para o sujeito autista, e
isso produz a repetição; a impossibilidade de apagá-lo
marca o corpo como um corpo que goza de si mesmo. Esse
ruído de lalíngua, no qual Lacan situa a experiência
alucinatória, se torna o sintoma fundamental do autismo no
dizer de Fabián Schejtman11.
Durante a experiência do laleio, do balbucio, se
produz uma proliferação dos equívocos da língua, que se
tornam no autismo uma experiência alucinatória. O sujeito
autista tenta então reduzi-los através do Uno da letra que
se repete, incluído ou não na linguagem, no vocalizado ou
no silêncio.
Eric Laurent analisa as características do pensamento
autista. As crianças autistas não passam só pela língua
para se dirigir ao Outro, alguns têm “pensamentos em
imagens”, como o denomina Temple Grandin, pensamentos em
patterns e pensamentos em palavras. Opõe assim a
instantaneidade do Blink, segundo o termo popularizado por

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Malcolm Gradwell, aos processos que supõem um trabalho de
deciframento.
Por outro lado, existe também a vertente da relação do
autista com o cálculo, com a repetição da cifra ou do
número. Isso tem a ver com o real particular do número. Os
objetos da realidade podem remeter a algo que ocupa
imaginariamente um lugar no espaço; em troca, a cifra, os
números, como, por exemplo, a raiz quadrada do número 1,
não remetem a nada na realidade. A relação com o número
alivia o sujeito autista da realidade e da imaginarização
dessa realidade.
À hipótese da não cessão do objeto que afeta a
enunciação no autismo, Maleval acrescenta que toda cessão
de um objeto pulsional é experimentada como uma castração
real, já que não está simbolizada, dando origem à retenção
dos objetos pulsionais pelo autista, seu rechaço à cessão e
à obturação dos orifícios.
Recentemente propôs transformações da borda que vão
desde a sustentação na superfície corporal através da auto
sensualidade introduzida por Tustin12; passam logo pela
construção de um objeto concreto pacificador que aloja e
captura o gozo pulsional; se torna logo dinâmico como nas
construções do caso Joey de Bettelheim13; até o apagamento
da borda nos autistas de alto nível. Esta tipologia, que
não é linear e admite recobrimentos, indica o exame das
distintas formas de apresentação do espectro autista.
Por intolerância do buraco, que não está inscrito como
tal, se produzem episódios de horror e o esforço para
obturá-los. Porém o gozo em excesso retorna e isso leva a
episódios de automutilação e de violência. A automutilação
indica a produção de um lugar de perda onde depositar o
gozo excessivo; a violência não se dirige ao outro, mas
busca se desembaraçar do gozo com a lógica da passagem ao
ato.

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Para o autista toda língua é uma língua de cálculo.
Há uma busca nesses gênios calculadores, assim chamados
pela aptidão que alguns deles possuem para o cálculo, de
reduzir a língua a uma cifra, ao que há de matemático no
significante.
O duplo real, experiência abordada em seus livros por
Donna Williams14, autista de alto nível, funciona como uma
suplência à ausência de borda que localiza o gozo que se
repete sem fim no Uno de gozo.

Um tratamento possível a partir da psicanálise


Eric Laurent se pergunta como fazer para que aqueles
sujeitos que carecem de bordas consigam construir um
limite, não a partir da aprendizagem, mas a partir de
objetos, ações e formas de fazer com que armem um circuito
com função de borda e de circuito pulsional. Questão
clínica fundamental que incide na direção do tratamento.
Trata-se então de obter deslocamentos em contiguidade
que admitam novos objetos, já que, como se sabe, a inclusão
do novo é acompanhada de uma extração, de uma cessão de
gozo que afeta o corpo.
O objeto autista, o duplo real que funciona como
suplência, os interesses específicos ou ilhas de
competências são invenções com as quais o autista consegue
construir uma borda e se aliviar do excesso de gozo. Tentar
fazer com que desapareçam através de um forçamento ou um
trabalho puramente educativo é se esquecer que essas
invenções permitem à criança interatuar de tal modo que o
Outro se torne menos intrusivo e experimente menos
angústia.
A sustentação no outro à maneira de um duplo real
permite situar outros entre os lugares possíveis que o
analista ou o operador que trabalhe com a criança autista
pode ocupar, à medida que diminui a inquietude que pode
experimentar diante de toda demanda que venha do outro.

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Durante uma conversação clínica em São Salvador, na
Bahia, no Brasil, ao comentar o caso de um menino autista
de três anos, Eric Laurent examina a continuidade de
consistência entre o imaginário, o simbólico e o real. O
menino apresenta uma sequência em que primeiro caminha
sobre os ombros do analista para alcançar um objeto,
demonstrando um uso do seu corpo como uma extensão do seu
próprio. No segundo tempo a interpretação do analista
permite uma cessão e o deslocamento de objetos que leva do
consultório para logo voltar a trazê-los. Esse movimento o
leva a perder algo do corpo: no final de cada sessão as
lágrimas caíam abundantemente pela bochechas, produzindo
assim uma extração corporal.
A partir dessa perda o menino, que havia deixado de
falar, emite as primeiras palavras colapsadas que são pai-
mãe, que não têm um estatuto de significantes com uma
consistência simbólica, mas que as põem em equivalência com
os objetos. Entrecruzam-se assim perdas ao modo imaginário,
colapsos ou cristalizações simbólicas e um campo real que
devem ser diferenciados.
A partir do apoio sobre a borda é possível
internalizar um novo tipo de perda e aceder assim à
possibilidade de falar.
As crianças autistas apresentam distintas montagens do
real, do simbólico e do imaginário ligadas à invenção e à
contingência. Essas montagens nos permitem buscar a maneira
de intervir com a criança de modo que se construam séries,
sequências de uma topologia que se desenvolve entre o
sujeito e o outro para obter algum tipo de amarração.
Temple Grandin, por exemplo, diferencia o pensamento em
imagem como uma imagem isolada, o pensamento em patterns,
em séries, e por último o pensamento em palavras, que
demonstra como ela mesma pode analisar seus processos de
pensamento. Essa colocação original de Laurent sobre como

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se relacionam os três registros é sem dúvida um ponto de
investigação sobre o autismo na atualidade.
Trata-se de trabalhar a partir de suas invenções, a
partir de um laço sutil, sem intrusão, incluindo-se em seu
encapsulamento como um “autismo a dois”, de acordo com a
expressão de Lacan. Para isso é fundamental o respeito
pelas diferentes soluções de cada sujeito, sabendo-se que a
cessão de gozo que inclui novos objetos se produz por
iniciativa do sujeito na medida em que se consegue produzir
um deslocamento. A intervenção do analista aponta para esse
movimento que leva a novos circuitos, de acordo com a
lógica do funcionamento singular que perdura ao longo do
tempo, mas que nem por isso os deixa por fora dos outros.
O autismo em nossa época não concerne só a uma
epidemia diagnóstica que constrói universais e arma
classes, mas que involucra a exploração e a proposta de
tratamentos singulares, a partir daquilo que pode surgir
como único em cada um.

Tradução: Inês Autran Dourado

1
Cf.: TENDLARZ, S.; AlVAREZ, P. (2013) ¿Qué es el autismo?
Infancia y psicoanálisis. Buenos Aires: Colección Diva.
2
LACAN, J. (1986[1953-1954]) O seminário, livro 1: os escritos
técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
3
IDEM. (2003[1968]) “Alocução sobre as psicoses da criança”.
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp.361-368.
4
IDEM. (1998[1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”.
In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eólia, n.23, pp.6-16.
5
IDEM. (1986[1953-1954]) O seminário, livro 1: os escritos
técnicos de Freud. Op. cit., p.98.
6
IDEM. Ibid., p.124.
7
IDEM. Ibid., p.102.
8
IDEM. Ibid., p.125.
9
IDEM. (1998[1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”.
In: Opção Lacaniana. Op. cit., p.12-13.
10
MALEVAL, J-C. (2012) “Língua verbosa, língua factual e frases
espontâneas nos autistas”. In: CALMON, A.; MURTA, A.; ROSA, M.
(Org.). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo
Horizonte: Scriptum.
11
SCHEJTMAN, F. (2013) Sinthome: ensayos de clínica
psicoanalítica nodal. Buenos Aires: Grama.

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8
12
TUSTIN, F. (1984[1981]) Estados autísticos em crianças. Rio de
Janeiro: Imago.
13
BETTELHEIM, B. (1987[1967]) A fortaleza vazia. São Paulo:
Martins Fontes.
14
Cf.: WILLIAMS, D. (1994) Somebody Somewhere: breaking free
from the world of autism. Nova York: Three Rivers Press. &
WILLIAMS, D. (2012) Meu mundo misterioso: testemunho excepcional
de uma jovem autista. Brasília: Thesaurus.

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