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REBELDES DA FRONTEIRA

VALMIR BATISTA CORRÊA

R E S U M O Este artigo é parte de uma pesquisa sobre dois fenômenos que marcaram
a área rural e a fronteira sul de Mato Grosso. Coronéis, detentores de latifúndios
e criadores de gado bovino ou exploradores dos recursos da região, representavam
a força do poder local e rural. Do outro lado da mesma moeda estava o banditismo
que, desde o fim da guerra paraguaia e durante muito tempo, infestou o cerrado
e o pantanal do sul mato-grossense. Bandidos e impunidade foram os traços
marcantes desse território, registrados pelos contistas regionais e pela tradição oral
que forjaram mitos e heróis populares.
P A L A V R A S - C H A V E Bandidos, coronéis, violência, fronteira sul de Mato
Grosso.

ABSTRACT This article is part of a research about two phenomena


that have marked the rural world and the southern border of Mato Grosso.
Colonels, latifundia owners and cattle farmers or managers of resources in the
region, representing the strength of the local and rural power. The other side
of the same coin was banditry that, since the end of the Paraguayan War and
for a long time, infested savannah and wetland Mato Grosso do Sul. Bandits
and impunity were the outstanding features of this territory, recorded by
regional storytellers and the oral tradition that forged myths and folk heroes.

K E Y W O R D S Bandits, colonels, violence, southern border of Mato Grosso.


r ur i s | v olume 9,núme r o 2 | S e t e mbr o 2 015

O sul de Mato Grosso, caracterizado como uma fronteira


flutuante, com raízes que remontam às disputas entre portugueses
e espanhóis, no período colonial, foi uma área de difícil controle
do Estado pelas dificuldades de delimitação precisa e pela
facilidade de mobilização populacional, permitindo a livre
circulação de bandidos e bandos armados na região. Por essas
características, a fronteira assumiu função estratégica nas ações
legais, nas contravenções e também nas possibilidades de fuga,
dificultando a repressão e possibilitando a impunidade. Desse
modo, após a Guerra do Paraguai, essa fronteira foi marcada pelo
aparecimento de focos de banditismo concentrados em áreas de
antigas fazendas ou promovendo ataques aos que participavam
da reconstrução da região. Um exemplo disso foi a ação de
um bando de desertores, chefiado por um indivíduo de nome
Estraquilino, no Pantanal, em 1872.
Essa situação não se modificou com o período republicano,
o que reforçou na região a disseminação de um banditismo
generalizado com características rurais e raras incursões no meio
urbano. De fato, desde a fase inicial de instalação de fazendas,
tanto a pecuária como a atividade extrativa ervateira apresentaram
tendência à concentração de terras. Excluído do trabalho e
da posse da terra, o sertanejo teve suas opções estreitadas, ora
ficando à disposição dos grandes senhores de terras (tornando-se
parte do batalhão de reserva dos coronéis), ora caindo no mundo
do crime e da marginalidade por sua própria conta e risco.
Além disso, os poucos e pequenos núcleos urbanos estavam
quase sempre ilhados em vastas áreas desabitadas, e os precários
meios de comunicação entre as diversas regiões do estado
impediam maior mobilização e rapidez de tropas e forças policiais
no combate ao banditismo. No entanto, esse banditismo, apesar
da expressiva presença na fronteira, vinculando a imagem de
Mato Grosso a um lugar sem lei e sem ordem, onde imperava
a lei de 44 (jargão pelo qual ficou conhecida a impunidade na
região mato-grossense, referindo-se às armas de calibre 44), nem
sempre superou os limites do anonimato.

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O banditismo circunscreveu seu território e seu universo na


extensa área de domínio dos coronéis que, em função de suas
lutas pela posse da terra e por questões político-partidárias,
transformaram o sul de Mato Grosso em uma região de conflito
generalizado e permanente. Essa relação coronéis-bandidos
apareceu

quase que exclusivamente no sul do Estado, identificada


com as disputas pelo poder local e pela posse de terras. E,
apesar deste ter sido um momento de constantes ondas de
banditismo, violência e quase completa impunidade, poucos
foram os bandidos/bandos que se sobressaíram ou escaparam
da tutela dos coroneis guerreiros (CORRÊA, 2006, p. 194).

Mais tarde, a região sul “foi marcada pela ação de grandes


bandos e de figuras que se tornaram legenda no Estado, agindo de
modo independente do controle dos velhos coronéis” (CORRÊA,
2006, p. 194).
Tal situação foi também favorecida pela fronteira fictícia e
móvel com o Paraguai, tornando frequentes as investidas e as
depredações de fazendas no lado mato-grossense, pelo resguardo
que a “outra banda” oferecia. Por sua vez, os movimentos
revolucionários e perseguições políticas que convulsionaram
por muito tempo a república paraguaia provocaram em vários
momentos fluxos migratórios intensos, transformando o lado
brasileiro em refúgio tanto para bandos armados e malfeitores,
como para trabalhadores fugidos da fome e da falta de oportunidade
na terra natal. Essa foi a razão que levou a Câmara Municipal de
Nioaque, assolada por ataques de bandidos armados, sobretudo
paraguaios, a reivindicar junto ao governo do estado “obstar e
punir os crimes exercidos, mais pelos adventícios refugiados dos
Estados visinhos e da Republica do Paraguay para este Destrito 1
Relatório da Câmara
Municipal de Nioaque,
do que pelos moradores d’este municipio”1. No período do 1894. (Manuscrito).
pós-guerra com os paraguaios, Nioaque sofreu ataques de um

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grupo de treze homens chefiados por José Rodrigues Oriental


e a região de Porto Murtinho foi atacada por outro de mais de
sessenta homens chefiados por Augusto Ferraz. A incapacidade
governamental de exercer o controle sobre a extensa região sul do
estado sempre foi minimizada pelas autoridades que justificavam
a fragilidade dos meios de repressão reclamando de falta de
verbas e de armamentos, falta de efetivo policial, dificuldades de
locomoção, e omissão do Paraguai na repressão ao banditismo.
Ao mesmo tempo, o fluxo populacional procedente do
Rio Grande do Sul para a fronteira sul de Mato Grosso (muitos
ex-soldados, revolucionários fugitivos das lutas políticas regionais
e do revanchismo dos vencedores, ou mesmo criminosos comuns),
engrossou as fileiras do banditismo fronteiriço e difundiu certos
hábitos de vida e de lutas como, por exemplo, a prática da degola,
muito comum nas revoluções gaúchas e amplamente utilizada na
região mato-grossense por bandidos, nas lutas coronelistas e nos
ataques às fazendas. Segundo Sodré,

Era endêmico o banditismo, em Mato Grosso, pelo menos


no sul, na área pastoril - constituía verdadeira praga.
Região de pastoreio extensivo, de latifúndios, regiam ali
relações feudais. Os estancieiros, em boa parte gaúchos, de
familias que se haviam transferido para ali com a derrota
do federalismo, eram senhores de baraço e cutelo (SODRÉ,
1967, p. 148).

Na revolução iniciada em Corumbá, em 1892,


envolvendo todo o estado, bandidos foram arregimentados
para a formação de batalhões patrióticos tanto do lado
dos coronéis situacionistas como do lado dos coronéis
revolucionários. Mesmo após o término dessa refrega,
o gosto pelos saques e pelas requisições compulsórias
(expedientes utilizados para saques legalizados, pois os
prejuízos eram sempre ressarcidos pelo governo estadual),

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além da impunidade que grassava na fronteira, motivara os


remanescentes desses batalhões patrióticos a continuar suas
guerras particulares. Essa situação de insegurança ocorrida
tanto do lado brasileiro como do lado paraguaio, marcou de
maneira peculiar a fronteira móvel do sul do estado. Assim,
o governo paraguaio solicitou, ainda em 1892, o

desarmamento de um grupo de 60 paraguayos commandados


pelos irmãos Lopes, os quaes, havendo servido a favor do
Governo Federal no movimento revolucionário que houve
nesse Estado, se acham presentemente em Nioac e nas serras
do Rio Apa ameaçando invadir o território paraguayo, com
2
Ofício da Legação dos
Estados Unidos do Brasil
sentimentos hostis ao actual governo2 [mais tarde, em 1901, em Assumpção ao Exmo.
Snr. General de Brigada
voltaram a participar das lutas coronelistas]. Luiz H. de Oliveira
Ewbank, 22 de julho de
1892 (Manuscrito).

Assim, as lutas políticas, os desmandos dos coronéis,


a violência endêmica e o banditismo fronteiriço forjaram uma
situação de grande insegurança que passou a caracterizar toda a
região e da qual o município de Porto Murtinho foi um exemplo
típico:

É preciso dizer-vos, senhor presidente, que este lugar é


fronteira, e que todos os desordeiros e bandidos da visinha
Republica aqui se refugiam a pretesto de trabalharem na
empresas Matte, Ferro-carril e serraria a vapor, as quaes
occupam centenas de braços: e elles, ajustando-se por
insignificante salario, têm em vista a execução de malevolos
intentos, desde que lhes permitta a occasião – O roubo,
o assassinato, a violação ao lar doméstico – Em dias de
domingo é este povoado alarmado com mil e mil tiros de 3
Ofício Cópia n. 200.
Subdelegacia de Policia
armas de fogo.3 da Parocchia de Porto
Murtinho ao Cidadão
coronel Pedro Leite
Osorio, vice-presidente
A relação coronéis-bandidos apresentava uma ambiguidade em exercício no estado,
16 de outubro de 1906.
à medida que, dependendo dos interesses envolvidos, o bandido (Manuscrito).

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podia contar com a benevolência e a proteção do latifundiário


coiteiro, ou ser eventualmente perseguido e reprimido por
capturas organizadas pelos próprios fazendeiros. Em Maracaju,
por exemplo,

para compensar essa falta de policiamento, os fazendeiros


fizeram acordo, que vigorou por mais de 40 anos e consistia
no seguinte: sempre que havia um crime que atingisse
qualquer fazendeiro, ter-se-ia de organizar uma escolta, para
a qual cada fazendeiro contribuiria com os homens de que
pudesse dispor – familiares e peões./ Organizada, a escolta
passava a perseguir o criminoso e, localizado, ela mesmo o
punia (FERREIRA; ROSA, 1988, p. 47).

Na realidade, e em geral sob motivações políticas, a ação dos


batalhões coronelistas pouco se diferenciava dos bandos armados
que atacavam e saqueavam na fronteira. Nessas condições,
raramente um bandido atuava de maneira isolada, preferindo
a proteção do bando. No entanto, um bandido da fronteira,
Franck Six Moritz, notabilizou-se por um comportamento sui
generis e solitário. Sismório, como ficou conhecido na fronteira,
era natural de Corrientes, na Argentina, filho de pai inglês e mãe
paraguaia, chegou a ocupar um posto na polícia de Concepción e
emigrou para o lado brasileiro no início do século XX. Segundo
uma curiosa e detalhada descrição feita por Puiggari, Sismório

impunha-se pela sua bella apparencia de gaúcho de fino


trato e maneiras gentis. Estatura elevada, corpulento sem ser
obéso, pelle muito clara e rosada, cabellos louros, olhos azues,
sombrancelhas arqueadas e ligeiramente crespas, bigodes
atrevidos e bem cuidados, nariz regular e um tanto grosso,
labios finos, desenhando uma bocca pequena, com dentes
iguaes e alvissimos, tendo os caninos ligeiramente salientes.
Impressionava as mulheres com o seu pittoresco trajar de uma
elegancia gauchesca, pouco commum; riquissimo pala de

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vicuña, bem dobrado e negligentemente atirado ao hombro


esquerdo, deixando ver acima do franjado um S entrelaçado
num M, em relevo, bordado á seda escarlate. Chapéo de
feltro, com abas muito largas, botas altas e rebrilhantes,
chilenas de prata lavrada, tilintantes, completavam o todo
de Franck Six Moritz que nunca se mostrava, sem o grande
lenço colorado, preso ao pescoço por um argolão de ouro em
complicados arabescos (PUIGGARI, 1933, p. 9-10).

Iniciou sua trajetória no banditismo por volta de 1906 e,


somente no ano de 1911, o governo estadual tomou providências
para persegui-lo e puni-lo em vista de sua participação na
“revolução” do coronel Bento Xavier, “em cuja força ficou com
a graduação de tenente” (LIMA, s/d, p. 52). Alertado por amigos
da própria polícia, Sismório fugiu para o Paraguai e, depois, para
a Argentina. Mais tarde, ao retornar ao Brasil, pela fronteira do
Rio Grande do Sul, foi preso e fuzilado.
No universo do banditismo, praticamente reservado a
homens, apareceu nessa fronteira um bando sob o comando de
uma mulher, a gaúcha Maria Aparecida Belmonte. Conhecida
como Capitoa, lutou em 1893, na revolução gaúcha de
Gumercindo Saraiva junto ao batalhão chefiado pelo próprio
marido. Depois de comandar a tropa, com a morte do líder,
Capitoa rumou com seus companheiros revolucionários a Mato 4
Em depoimento datado
de 19 de junho de 1977,
Grosso, onde liderou um grupo de bandoleiros na vasta região sul em Presidente Wenceslau,
SP, Serejo afirmou que
fronteiriça (SEREJO, s/d (1), p. 3-28).4 Serejo descreveu Capitoa seu trabalho foi escrito
como de “estatura baixa, morena-clara, cabelos compridos, olhos a partir da coleta de
informações orais de
levemente esverdeados, voz grossa, autoritária e rompante, andar antigos moradores da
fronteira.
nervoso demonstrando constante insofreguidão. Mantinha,
invariavelmente, o rosto pintado com carmin vermelho-violeta”
(SEREJO, s/d (1), p. 4). Armada de espada e de um 44, Capitoa
também “usava uma faca e um belo rebenque, ambos com
cabo chapeado de prata; lenço colorado no pescoço; bombacha
enfeitada com botões de varias côres; bota; esporas tinideiras; fita

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de côr no cabelo, e um chapelão de vistosa barbela” (SEREJO, s/d


(1), p. 4).
As atividades de Capitoa e seu bando foram reprimidas com
a ação do Major Antônio Gomes Ferreira da Silva (ex-sargento do
exército que participou da campanha de Canudos), homem de
grande prestígio militar e político na fronteira. Então, a pretexto
de seu envolvimento nas lutas partidárias de 19l6, Antônio
Gomes intimou-a, como forma de desmoralizar sua autoridade
e seu prestígio perante seus homens, a não usar roupas masculinas.
Presa por não acatar essa ordem, Capitoa foi obrigada a deixar
5
Conta-se ainda que suas roupas masculinizadas, teve seus cabelos raspados e foi
Capitoa, por volta de
1924, cuidava de uma expulsa com seu bando da região.5
venda em Campo
Grande, MS e depois
A partir da década de 1930, até os anos 1940, surgiram no
disso não se teve mais
notícias sobre a sua vida.
sul de Mato Grosso diversos bandos, cujas atividades ganharam
Cf. SEREJO, 1984. fama além dos limites do estado. O aparecimento de bandos
pequenos ou numerosos, mais ou menos organizados, assumiu
novos contornos em relação ao banditismo da fase anterior a
1930 e se limitou à região sul do estado e à sua área de fronteira.
Foi uma época em que reinaram, quase sempre impunes, bandos
como os bochincheros e os quatreros, ou bandos chefiados por
Sylvino Jacques, o mais célebre de todos, pelos Quirinos, Flores,
Pacas, Baianinhos, Galbas e Netos.
Na região ervateira, por exemplo, atuaram pequenos
6
Segundo Serejo,
“como não conseguiam bandos chamados bochincheros6, constituídos por fronteiriços
trabalho, passavam a se
divertir com musiqueada e paraguaios:
(baile improvisado)
que recebia o nome de
Bochincho”. Depoimento
de Helio Serejo ao autor. adulando os poderosos, offerecendo em almoeda sua
valentia á coronelada fronteiriça, explorando os pobres
e infelizes trabalhadores, churrasqueando pelos ranchos,
trapaceando nas carreiradas e contando proezas á porta
dos bolichos; sempre mettidos em perneiras bem lustradas,
roupa domingueira e chapelão de abas largas, grande
lenço de seda ao pescoço, azul ou vermelho, conforme a
occasião; pacholas e atrevidos com os fracos; sem profissão
conhecida, a não ser a de agenciadores da venda de herva-

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matte, obtida clandestinamente e a de introductores de


bebidas alcoolicas nos ranchos hervateiros; bem armados
e melhor municiados, anda uma caterva de individuos
de vida parasitaria na campanha fronteiriça, verdadeiros
empreitadores de desordens, sem fé nem lei, provocadores e
bandidos (PUIGGARI, 1933, p. 91-92).

Os bochincheros apresentaram uma peculiaridade:


quando explodia um movimento armado em Mato Grosso,
esses bandos permaneciam em território paraguaio até que a
situação da política mato-grossense se normalizasse. A seguir,
ultrapassavam a fronteira e se fazendo passar pelos vitoriosos da
revolução saqueavam toda a região fronteiriça (PUIGGARI, 1933,
p. 89-99). Dessa forma, pouca diferença houve entre a ação dos
bochincheros e a antiga prática das requisições coronelistas. Como
os bochincheros, apareceram, igualmente na zona ervateira, os
quatreros. Segundo Serejo, “Quatrero veio de longe, dos confins
do território paraguaio./ Surgiu por força de uma sangrenta
revolução guarani” (SEREJO, s/d (2), p. 35).
O mais célebre de todos os bandidos da região sul mato-
grossense (segundo o poder situacionista) foi Sylvino Jacques,
conhecido pela população sulina e fronteiriça como o Lampião de
Mato Grosso. Sua fama, mistura de herói sertanejo e bandoleiro
muito temido, transformou-o num mito em Mato Grosso, cujas
proezas foram cantadas em verso e prosa pela literatura regional.
Assim, a maior parte de sua vida e de sua atuação é preservada
até os dias de hoje em toda a fronteira sul-mato-grossense e no
pantanal, através da tradição oral e do mito: “Vi muitas vezes
em comercios de carreira, ele improvisando, cantando com uma
sanfona e bebendo vinho. Muito bom atirador. Abria garrafa
de bebidas, seus companheiros segurando a garrafa na cabeça e
ele atirando com o Revolve (sic) e tirava tampa sem quebrar a
garrafa”.7 7
Depoimento de
Homero Antunes da
Vindo do Rio Grande do Sul, onde cometeu seu primeiro Silva, em Bonito, MS, 21
jun. 1977.
crime, Sylvino Jacques lutou em 1932 ao lado das forças governistas

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na região de Porto Murtinho, como capitão da Brigada Militar,


dedicando-se mais tarde às atividades comerciais. No entanto,
no ano seguinte, foram solicitadas “providencias necessarias
no sentido de serem presos e extraditados os individuos Silvino
8
Of. Reservado do
Ministério da Justiça Jacques e Argemiro Leão, pronunciados pelas justiças da comarca
e Negócios Internos ao
Interventor Federal de
de Ponta Porã, por terem assassinado Candido Barbosa Pratt,
Mato Grosso. Rio de e refugiados no Paraguai”.8
Janeiro, 02 ago. 1933.
A atuação de Sylvino Jacques só adquiriu repercussão
9
O episódio teve origem por volta dos anos 1935/1936. Por essa época, matou um
numa desavença entre
Sylvino e um genro membro da família de Alípio dos Santos9, seus antigos amigos e
de Alípio dos Santos,
durante uma carreira companheiros, iniciando uma rivalidade que só teve fim com a
(corrida rústica de
cavalos), sendo mortos
morte de Sylvino. Conforme alguns depoimentos, Sylvino Jacques
também um primo teve o apoio de alguns membros da família Santos para participar
de Sylvino e um seu
camarada. de um movimento armado, em 1935, com o objetivo de lutar
pela divisão do estado mato-grossense, além de vinculações com
a intentona comunista:

Silvino Jacques e Argemiro Leão receberam um contato


do Rio, um alemão de nome Agrícola. Era um elemento
de ligação dos comunistas. Silvino começou arrebanhar
homens armados, entre eles eu e Alcides, para atacar Porto
Murtinho. Segundo Silvino Jacques a missão era dividir o
10
Depoimento de Orsirio
estado. Chegaram a fazer prisioneiros num lugar chamado
dos Santos, em Bela Recreio. Nesse momento chegou no acampamento esse
Vista, 10 nov. 1979.
Esse mesmo relato Agrícola. Depois ficamos sabendo que veio avisar do fracasso
foi confirmado no da intentona. Silvino matou esse Agrícola.10
depoimento de Alcides
Fernandes da Silva,
Bela Vista, na mesma
data. Segundo Bezerra,
“em Mato Grosso, Apesar da versão de Orsírio Santos e Alcides Fernandes da
desenvolveu-se uma luta
guerrilheira, comandada Silva, Agrícola foi preso e remetido para o Rio de Janeiro, onde
por Silvino Jaques,
que conseguiu resistir
permaneceu em liberdade. Agrícola tinha ligações com Luís Carlos
durante vários meses, Prestes e com o PCB, recebendo de seu líder a incumbência de ir
graças à sua mobilidade”
(BEZERRA, 1980, a Mato Grosso para atender à determinação de “juntar algumas
p. 226).
armas e amigos ou companheiros, que comece imediatamente

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a luta contra os fazendeiros reacionários, contra os impostos,


contra o imperialismo, contra a Mate Laranjeira, satisfazendo 11
Carta de Prestes a
Agrícola (6 de agosto
os interesses imediatos do povo”.11 De acordo com Agrícola, o de l935. Tribunal de
Segurança Nacional.
emissário do PCB, a data do levante em Mato Grosso chegou a Processo n. 1) (VIANNA,
ser marcada para o dia 24 de setembro de 1935 e, por sugestão 1995, p. 340). Muito
provavelmente, refere-
de Sylvino Jacques, foi transferida para o dia 30 do mesmo mês. se ao Tenente Agrícola
Baptista, que foi ajudante
Nessa data, Sylvino Jacques conseguiu com Argemiro Leão (que de ordens de Prestes na
época da Coluna.
havia participado da Revolução de 1924) reunir vários grupos
armados. “Convém salientar”, informou o emissário, “que
Silvino teve grande prejuízo, dando quase toda a sua mercadoria
para as famílias dos camponeses que iriam nos acompanhar, 12
Informe Mato Grosso
além disso, vendeu uma boiada com prejuízo de sua parte, para o (Informe de início de no-
vembro de l935. Tribunal
dia 30 estar completamente livre para o movimento”.12 de Segurança Nacional.
Processo n. 1) (VIANNA,
O adiamento definitivo do movimento, por orientação do 1995, p. 115-116).
Comitê Central do PCB, resultou na prisão de Agrícola com a
sua entrega às forças do Exército por Sylvino Jacques e Argemiro
Leão. Segundo o Informe Mato Grosso, essa prisão foi um artifício
para minimizar o efeito da reunião de muitas pessoas armadas
para um movimento revolucionário e evitar uma repressão
das forças governistas. Provavelmente, as repercussões de um
movimento separatista, ou mesmo do seu envolvimento com o
movimento comunista, extrapolaram os limites desejados por
Sylvino Jacques, tornando-o um elemento indesejável para as
autoridades mato-grossenses.
O combate sistemático ao bando de Sylvino Jacques
correspondeu ao período de desarmamento no sul de Mato
Grosso, já em pleno Estado Novo, e comandado pelos militares
do Exército. Assim, a repressão ao bando foi conduzida, de início,
pelas forças militares. Segundo a imprensa local,

o Sr. General Commandante da Região tem tido varios


offerecimentos de fazendeiros, de homens armados por elles
próprios e custeados para combate aos bandoleiros, porem
sua Excia. tem recusado sistematicamente, não desejando

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13
Jornal do Commercio. que população faça quaesquer gastos ou sacrifique uma só
Campo Grande, 25 dez.
1938. vida nessa campanha.13

Não houve, porém, nenhum combate direto entre o bando e


as forças do Exército, o que, até certo ponto, confirmou a falta de
interesse dos militares num confronto direto com os bandidos.
De fato, a maior preocupação do Exército no estado mato-
grossense foi a questão do desarmamento em toda zona rural
e urbana.
Mais tarde foi designado como delegado especial para a
repressão ao bando de Sylvino Jacques, Manoel Bonifácio Nunes
da Cunha.

Decidido o Estado a pôr termo aquela situação anormal,


organizou a Delegacia Especial do Sul, com séde em
14
Relatório apresentado Aquidauana. Auxiliada por dois grupos de civis contratados
ao Exmo. Sr. Dr. Getulio
Vargas, Presidente da
e pelo pelotão de Cavalaria da Força Policial, a Delegacia
República pelo Bel. iniciou forte ação contra Silvino Jacques e seu bando, em
Julio Strübling Müller,
Interventor Federal de abril de 1939.14
Mato Grosso, 1939-1940.

Duas capturas foram organizadas para a perseguição ao


bando de Sylvino, uma sob o comando do tenente Rodrigo
Peixoto, e outra de Orsírio Santos.

De acôrdo com o plano de operações contra os bandoleiros,


a Captura comandada por Orsirio Santos marchou, no
dia 18 do corrente, á noite, de Margarida para a Fazenda
Triunfo, propriedade de Severino de Toledo. No dia 19 do
corrente, á tarde, a Captura de Orsirio Santos encontrou
o bando de Silvino Jacques na envernadinha do Triunfo,
perto do ribeirão Prata, abrindo fôgo contra o bando,
o qual fugiu para o lado da fazenda Aurora, sendo perseguido
pela Captura, de baixo de intensa fusilaria da mesma, num
percurso de 9 quilometros. Ao chegar ao corrego Aurora, o

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bando se entrincheirou na barranca do mesmo. A captura


tentou desaloja-lo, sendo nesse momento (atingido) o
destemido metralhador Horacio Santos e machucado, em
virtude de quéda do seu cavalo, o sargento Héron Alves,
subcomandante da Captura./ Como a Captura de compunha
apenas de 11 homens, foi éla obrigada a retroceder, afim
de sepultar o metralhador e prestar os socôrros de que
necessitava o Sargento Héron, que se portou no combate
com inexcedivel bravura, segundo informa o comandante da
Captura./ Depois de remuniciada e de conduzir a Béla Vista o
Sargento Héron, a captura voltou a operar e fazendo, a 24 do
corrente, o reconhecimento do local do combate, encontrou
o cadaver de Silvino Jacques, chefe dos bandoleiros./
O cadaver foi encontrado numa rêde armada na costa do
corrego Aurora, coberto por um Puitan. O cadaver de Silvino
Jacques apresentava tres ferimentos produzidos por bala de 15
Foi identificado o
fuzil: um no braço direito (da direita para a esquerda), outro cadaver do famoso
bandoleiro Sylvino
na região illiaca (da direita para a esquerda, atravessando Jacques! A efficiente
a bacia), e outro na perna direita (direita para esquerda, campanha de repressão
aos cangaceiros. Jornal
atravessando a perna).15 do Commercio, Campo
Grande, 30 maio 1939.

Contemporâneos ao bando de Sylvino Jacques apareceram


também alguns grupos menores que geralmente se dedicaram
ao roubo de gado. “Um grupo de ladrões, entre os quaes figura
como cabeças: Vitor, João Paca e uns taes Querinos, todos
sobejamente conhecidos, do povo e autoridades de aqui, estão
em plena atividade, roubando-nos a luz do dia, em lotes de 10 e 16
Ofício do Sindicato
dos Criadores do Sul de
100 cabeças de gado e cavalos estes sempre escolhidos”.16 Esses Mato Grosso ao
Presidente do Estado,
pequenos bandos foram igualmente reprimidos e, em pouco Julio Strubling Muller,
tempo, desapareceram do sul do estado. em Campo Grande,
dezembro de 1940.
Outro grande bando que adquiriu notoriedade em Mato
Grosso foi conhecido por Baianinhos, denominação originada 17
Em 1916, Octacílio
Baptista foi um dos
do apelido de seu chefe, o tenente comissionado do Exército, oficiais das forças
Octacílio Baptista17, e do qual faziam parte seus cinco irmãos. governistas capitaneadas
pelo Cel. Zelito (Cel. José
Segundo Machado, Baianinho era Alves Ribeiro Filho).

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de boa aparência física, grande delicadeza e simpatia pessoal.


Sua coragem demonstrada por ocasião da Revolução de 32,
quando o Sul de Mato Grosso acompanhou o movimento
constitucionalista de São Paulo e atitudes desassombradas,
mesmo alguns crimes a êle atribuídos na juventude, inclusive
o rapto de uma noiva durante a cerimônia do casamento,
deram-lhe prestígio pela fama de valentia, que o predispôs
à liderança dos bandos criminosos (MACHADO, 1957,
p. 25-260).

Para combater os Baianinhos, o governo estadual organizou


18
Falando a A NOITE uma captura em 1941, comandada por Rodrigo Peixoto,
faz novas revelações
sobre os famosos que “eliminou Felipe nas proximidades de Campo Grande, e
irmãos Batista o ex-
senador matogrossense
Baianinho em Camapuan”.18 Tempos depois, os remanescentes
Vespasiano Barbosa dos irmãos Baptista fugiram para a região de Bela Vista, onde
Martins. A Noite de São
Paulo, 17 dez. 1943 apud Rodrigo Peixoto foi fuzilado pelos próprios Baianinhos. Em
MARTINS, 1944, p. 148-
149. 1942, retornaram a Camapuã e em outro confronto com forças
policiais morreu outro irmão, Vítor Batista. Caçados em toda a
região, fugiram para Curitiba, de onde retornaram pela fronteira,
acrescidos de um grupo de paraguaios e atacaram fazendas no
pantanal, armados de metralhadoras de mão. Essas

metralhadoras de mão Thompson, conhecidas na região pela


pitoresca onomatopéia piripipi, constituem um residuo do
material bélico boliviano apreendido pelos paraguaios na
guerra do Chaco e conservado subreticamente (sic) por
particulares, que as vendem aos interessados. Os Baianinhos
teriam comprado esse armamento e com ele aumentaram
19
“Os bandoleiros
Baianinhos estão agindo a eficiencia de seus ataques ás fazendas. O problema do
em Mato Grosso armados
de metralhadoras de
transporte é resolvido por esses bandoleiros progressistas
mão”. Diário de S. Paulo, por meio de uma caminhonete abundantemente provida
16 dez. 1943, apud
MARTINS, 1944, p. 152- de gasolina, abandonando assim o classico cavalo dos
153. bandoleiros de outróra.19

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Nessa época, ao contrário do que ocorreu nas primeiras


décadas da República quando o coronelismo guerreiro envolveu o
banditismo nas lutas político-partidárias, a situação de violência
e do banditismo em toda a região de fronteira foi uma arma dos
divisionistas de Campo Grande, utilizada como argumento para
denunciar o descaso das autoridades estaduais, evidentemente
nortistas, com relação ao sul do estado. Já no período pós-1937,
com o Estado Novo, o banditismo em Mato Grosso não só foi
com mais eficiência reprimido com recursos federais e estaduais
(e com o auxílio do Exército), como também sofreu uma repressão
burocrática através da censura e de decretos do governo. O Jornal
do Commercio, de Campo Grande, denunciava

o silêncio da imprensa da cidade em relação ao surto


de banditismo que vem alarmando os fazendeiros,
especialmente, porque os componentes dos bandos atacam
as fazendas, praticando extorsões, fazendo o saque e
infligindo mesmo castigos corporais./ Desejamos tomar
a parte que nos cabe na censura e que, seja dito de passagem,
só atinge o nosso jornal, porque os outros orgãos locais –
O Progressista e O Campograndense – publicaram pelo menos
os comunicados da policia, o que não fizemos (...) Quanto
ao nosso jornal, é facil explicar porque sistematicamente se
recusou a veicular noticias sobre atividades dos bandoleiros,
até mesmo as comunicações oficiais. Está no nosso programa 20
Jornal do Commercio,
realizar uma intensa e eficiente propaganda do Estado (...).20 13 nov. 1943 apud
MARTINS, 1944, p. 149.

Essa polêmica refletiu em sua essência a luta dos divisionistas


do sul ao denunciar a grande insegurança que entendiam ser
provocada pelo banditismo, em consequência do descaso das
autoridades governistas. Em dezembro de 1943, o Departamento
Estadual de Imprensa e Propaganda-DEIP informava que

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não há qualquer atividade do grupo conhecido pela


denominação de Baianinhos no Estado. Apenas dois
remanescentes desse grupo, tentaram reorganizar novamente
o referido bando, tendo, porém, o governo adotado prontas
e enérgicas providencias que resultaram no completo
extermínio do grupo. Algumas agencias telegráficas tiveram
sua curiosidade provocada pelas acertadas e oportunas
providencias governamentais de repressão áquela tentativa
malograda de reimplantação do cangaço no Estado, e a falta
de episódios sanguinarios para noticiar, tão do agrado das
referidas agencias, têm tecido mentiras e inventado lendas
em torno das supostas atividades dos bandoleiros, cujo
grupo, composto, aliás, de reduzido numero foi inteiramente
aniquilado pela escolta de captura do Estado. Dois ou três
elementos conseguiram escapar da energica ação policial e
21
O Campograndense,
19 dez. 1943. emigraram para o Paraguai.21

O DEIP em Mato Grosso atuou no sentido de encobrir ao


máximo a situação de insegurança e a ocorrência de banditismo na
região sul como demonstração de força da ditadura estadonovista
e no intuito de impor a manutenção da ordem e da segurança
a qualquer custo. Assim, a despeito de toda a repressão do Estado
Novo, quer pela censura, pela força dos decretos ou pela opção
do próprio Exército no combate ao banditismo endêmico no
estado, permaneceram ainda as mesmas circunstâncias favoráveis
e o mesmo contexto sócio-econômico que fomentou a violência
e caracterizou por muito tempo a região de Mato Grosso e, em
especial, o sul do estado como terra de bandidos, de violência e de
povo armado.

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BIBLIOGRaFIA

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1889 – 1943. 2ª. Ed. Campo Grande: EdUFMS, 2006.
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São Carlos, 1995.

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VALMIR BATISTA CORRÊA – Doutor em História Econômica pela USP. Professor Titular
aposentado pela UFMS. <valmir.correa@uol.com.br>

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