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Tese - 10115 - TESE - Aline Prúcoli de Souza

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ALINE PRÚCOLI DE SOUZA

A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

VITÓRIA – ES
2016
2

ALINE PRÚCOLI DE SOUZA

A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras, do Centro de Ciências Humanas e
Naturais, da Universidade Federal do Espírito
Santo, como requisito para a obtenção do título de
Doutor em Letras.

Orientador(a): Profª Drª Júlia Maria Costa de


Almeida

VITÓRIA – ES
2016
3

ALINE PRÚCOLI DE SOUZA

A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Ciências


Humanas e Naturais, da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para a
obtenção do título de Doutor em Letras.

Aprovada em ________________________

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________

Profª Drª Júlia Maria Costa de Almeida

Orientador(a) Membro Presidente

________________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré

Membro Interno Titular

________________________________________________________________

Prof. Dr. Gaspar Leal Paz

Membro Interno Titular

_________________________________________________________________

Profª Drª Evelyn Blaut Fernandes

Membro Externo Titular

_________________________________________________________________

Profª Drª Diana Navas


4

Membro Externo Titular

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Lino Machado

Membro Interno Suplente

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Ramos Costa

Membro Externo Suplente


5

Agradeço

À minha orientadora, Júlia Almeida, pelo acolhimento, por

todo o comprometimento e carinho e, acima de tudo, por ser

uma verdadeira fonte de inspiração;

À Marília Rodrigues Andreata, minha irmã de coração,

minha “versão atualizada”, que tanto me ensina a superar;

A Fernando Langkammer dos Santos, por todas as generosas

palavras e pelo afeto que extrapola os limites acadêmicos;

À Maria de Lourdes, por me ajudar a enxergar o tamanho de

um cisco;

Aos meus irmãos, Marcelo e Leonardo, fiéis protetores.

A Diego Rodrigues Flores, pela precisa e preciosa tradução.


6

À FAPES, pelo imprescindível apoio financeiro;

Ao Departamento de Pós-Graduação em Letras – UFES, pela

instigante acolhida.
7

Dedico este trabalho

À minha mãe, Jamile Prúcoli, minha luz, meu espelho, minha

melhor amiga, minha professora. A você, mãe, que tanto batalhou

por mim, dedico este trabalho, fruto da nossa luta.


8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Laocoonte. Atenodoro, Polidoro e Agesandro, 50 a.C. .................................................... 34


Figura 2: Laocoonte. Atenodoro, Polidoro e Agesandro, 50 a.C. (detalhe) ..................................... 36
Figura 3: Laocoonte. El Greco, 1610-1614. ..................................................................................... 45
Figura 4: The Concert in the Egg, Hieronymus Bosch, 1480. ......................................................... 46
Figura 5:ZANG TUMB TUMB. F. T. Marinetti, 1912. (página) .................................................... 64
Figura 6: Alice no país das Maravilhas. Lewis Carrol, 1865. (página) ........................................... 65
Figura 7: The Cacodylatic eye. Francis Picabia, 1921. .................................................................... 66
Figura 8: Le Grand Verre: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Marcel Duchamp,
1915-1923. ....................................................................................................................................... 69
Figura 9: Record. El Lissitsky, 1926. ............................................................................................... 71
Figura 10: Cyclist. Natalia Goncharova, 1913. ................................................................................ 71
Figura 11: Frammento. Joseph Kosuth, 1999. ................................................................................. 72
Figura 12: A d´ales/ A de alas. Joan Brossa, 1997. .......................................................................... 73
Figura 13: Museu. Joan Brossa, 1996. ............................................................................................. 73
Figura 14: Penwald 4 - unison symmetry standing. (3 dias – 4 horas – 80 x 216 cm cada) Tony
Orrico, 2010. .................................................................................................................................... 76
Figura 15: Penwald 6 – project, recoil. (90 min. – 60 x 180 cm) Tony Orrico, 2011. .................... 77
Figura 16: The nightingale’s song at midnight and the morning rain. Joan Miró, 1940. ................ 89
Figura 17: The madonna in majesty. Cimabue, 1285. (detalhe) ....................................................... 93
Figura 18: La Vierge et l’Enfant em majesté entrouré de six anges. Cimabue, 1270. ..................... 94
Figura 19: The village of Mermaids. Paul Delvaux, 1942................................................................ 95
Figura 20: The Great Sirens. Paul Delvaux, 1979. .......................................................................... 96
Figura 21: The Girl With a Pearl Earring. Johannes Vermeer, 1665. (detalhe) .............................. 97
Figura 22: Grande femme, III. Alberto Giacometti, 1960. ............................................................... 99
Figura 23: The Infanta Maria Marguerita in pink. Diego Velázquez, 1659. ................................. 100
Figura 24: Self-Portrait in a plumed hat. Rembrandt, 1629. ......................................................... 102
Figura 25: Selfie-Portrait. Rembrandt, 1669.................................................................................. 102
Figura 26: Houses of Cagnes. Chaim Soutine, 1924...................................................................... 103
Figura 27: Pomba da Paz. Pablo Picasso, 1961. ............................................................................ 104
Figura 28: Two dancers on stage. Edgar Degas, 1877. .................................................................. 105
Figura 29: Glimpse of Notre-Dame in the late afternoon. Henri Matisse, 1902. ........................... 106
Figura 30: The Old Tower in the Fields. Vincent Van Gogh, 1884. .............................................. 109
Figura 31: Peasant Woman by the Heart. Vincent Van Gogh, 1885. ............................................ 109
Figura 32: Guernica. Pablo Picasso, 1937. .................................................................................... 111
Figura 33: Adoration of the Lamb. Jan Van Eyck, 1425. .............................................................. 112
Figura 34: The Arnolfini Wedding. Jan Van Eyck, 1434................................................................ 112
Figura 35: Parable of the Blind. Pieter Brueghel, 1568. ................................................................ 113
Figura 36: A l'egide de Minerve, Léonard Defrance, 1780. ........................................................... 118
Figura 37: A Misteriosa chama da rainha Loana (página), Umberto Eco, 1932. .......................... 119
Figura 38: A morte de Carlos Gardel (página), António Lobo Antunes, 1994.............................. 121
Figura 39: Cabeça, Guilherme de Santa-Rita, 1910. ..................................................................... 125
Figura 40: Laocoonte. 50 a.C. (detalhe) ......................................................................................... 128
9

Figura 41: Busto de Platão, IV a. C................................................................................................ 128


Figura 42: Página do manuscrito do romance Conhecimento do Inferno (1980)........................... 133
Figura 43: Página inicial do romance O meu nome é legião (2007), no original datilografado..... 134
Figura 44: Não entres tão depressa nessa noite escura (página 469). ........................................... 138
Figura 45: Esqueletos de um humano e de um pássaro para mostrar a homologia óssea (Sociedade
de História Natural de Northumbria). ............................................................................................ 145
Figura 46: O suicídio de Dorothy Hale. Frida Khalo, 1938-1939.................................................. 152
Figura 47: O suicídio de Dorothy Hale. Frida Khalo, 1938-1939. (detalhe) ................................. 153
Figura48: The key to the fields. René Magritte, 1936. ................................................................... 161
Figura 49: A Condição Humana. René Magritte, 1943. ................................................................. 162
Figura 50: Fita de Moebius. ........................................................................................................... 163
Figura 51: A Leiteira. Johannes Vermeer, 1657-1658. .................................................................. 168
Figura 52: Monte Santa Vitória. Paul Cézanne, 1904/1906. .......................................................... 172
Figura 53: The treachery of images – This is not a pipe. René Magritte, 1948. ............................ 175
Figura 54: Carnaval de Arlequim. Joan Miró, 1924-1925. ............................................................ 179
Figura 55: O lambedor. Paul Klee, 1920........................................................................................ 179
Figura 56: Linhas Pretas. Wassily Kandinsky, 1913. .................................................................... 180
Figura 57: Mulher que chora. Pablo Picasso, 1937. ...................................................................... 186
Figura 58: Drawing. Pedro Cabrita Reis, 1999. ............................................................................. 187
Figura 59: L'accordéoniste. Pablo Picasso, 1910. .......................................................................... 196
Figura 60: Atelier de la modiste. Pablo Picasso, 1926. .................................................................. 197
Figura 61: White on White. Kazimir Malevich, 1917..................................................................... 198
Figura 62: Grota de Pech-Merle - Departamento de Lot - França - 3,5 m. ................................... 200
Figura 63: Livro dos mortos da rainha Mout-nedjemet - Paris - Museu do Louvre. ..................... 201
Figura 64: Detalhe da estela do rei babilônico Nabou-aplaiddina - apro. 870 anos - Londres -
British Museum. ............................................................................................................................. 202
Figura 65: Autumns Colours. Li Ruiqing, 1867-1920. .................................................................. 203
Figura 66: Manuscrito em Sânscrito. ............................................................................................. 204
Figura 68: Portrait of a young woman. Sandro Botticelli, 1475. ................................................... 205
Figura 69: Venus and the Graces offering gifts to a young girl. Sandro Botticelli, 1486. ............. 206
Figura 70: Woman's Head. Leonardo Da Vinci, 1473. .................................................................. 207
Figura 71: Trompe l'oeil with Studio Wall and Vanitas Still Life. Cornelis Norbertus Gysbrechts,
1668. ............................................................................................................................................... 208
Figura 72: Quodlibet. Cornelis Norbertus Gysbrechts, 1675. ........................................................ 210
Figura 73: Bottle of Vieux Marc, Glass and Newspaper. Pablo Picasso, 1913. ............................. 211
Figura 74: The Old Gardener. Paul Cézanne, 1906. ...................................................................... 213
Figura 75: Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Sthéphane Mallarmé, 1987. (página) ...... 214
Figura 76: Caligrama. Gillaume Apollinaire, 1915. ....................................................................... 216
Figura 77: The Art of Painting. Johanner Vermeer, 1666-1668. .................................................... 221
Figura 78: Aria de Bach. Georges Braque, 1913. .......................................................................... 222
Figura 79: Abstraktes Stillleben mit Figur und Früchteschale. Leo Leuppi, 1931. ....................... 224
Figura 80: Spatial Concept: Expectations. Lucio Fontana, 1967................................................... 226
Figura 81: Superficie bianca con ovale in positivo. Turi Simeti, 1967. ......................................... 227
Figura 82: Two Figures. Kazimir Malevich, 1932. ........................................................................ 228
10

RESUMO

Com base no livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura, do escritor
português António Lobo Antunes, analisamos a correlação existente entre a literatura e a
pintura, procurando entender de que forma se manifesta a plasticidade de sua linguagem ao
compararmos o livro a uma tela. A partir de quatro elementos básicos de uma composição
pictórica – moldura, linhas, cor e superfície –, realizamos uma análise homológica e
analógica do tecido textual antuniano. Interessou-nos compreender as novas possibilidades
de sentido que a fusão entre as duas artes pode oferecer e contribuir com as discussões
críticas sobre o tema, tendo em vista a narrativa de Lobo Antunes. Para isso, fez-se
necessário revisitar as primeiras linhas de pensamento sobre a relação interartes, bem como
compreender as suas atuais configurações. Nossa análise fundamenta-se nos escritos
teóricos dos pensadores que trabalham a/na fronteira entre as duas linguagens, tais como
Anne-Marie Christin, Julio Plaza, Márcia Arbex e George Didi-Huberman. Objetivamos
esclarecer que mais do que ler um texto ou ver uma imagem, é possível ver um texto e ler a
sua estrutura, assim como somos capazes de ler uma imagem ao ver sua arquitetura. O
exercício homológico e analógico proposto com base na aproximação estrutural e
funcional de dois universos artísticos chamou nossa atenção para a existência de aspectos
importantes que estão para além daquilo que uma narrativa pode apresentar em sua
temática e, dessa forma, ofereceu-nos uma nova chave de leitura não apenas para o texto
antuniano, mas para a literatura de maneira geral. A pesquisa mostrou, por fim, que a
(re)integração de duas áreas artísticas possibilita não apenas o enriquecimento semântico
dos objetos artísticos, mas também e sobretudo a intensificação da capacidade
interpretativa daquele que esteticamente os recepciona.

Palavras-chave: Literatura; Pintura; Relação Interartes; Linguagem Plástica;


António Lobo Antunes.
11

ABSTRACT

Based on the book-poem Não entres tão depressa nessa noite escura (Don’t enter that
dark night so fast), by the Portuguese write António Lobo Antunes, the correlation
between literature and painting is analyzed, aiming at understanding how the plasticity of
his language manifests itself when comparing the book to a painting. Departing from four
basic elements in a pictorial composition – frame, lines, colour and surface –, we have
performed a homological and analogical analysis of António’s textual weaving. It was of
great interest to us to understand the new meaning possibilities which the fusion between
both arts may offer and add some contribute to the critical discussions around the topic,
bearing in mind Lobo Antunes’ narrative. Therefore, it was necessary to revisit the first
lines of thought about interart relationship, as well as understanding its current
configurations. Our analysis is based on the theoretical writings of thinkers who work (on)
the frontier between both languages, such as Anne-Marie Christin, Julio Plaza, Márcia
Arbex and George Didi-Huberman. We aim at clarifying the fact that more than reading a
text or looking at an image, we can look at a text to learn how to read its structure, as we
can read an image when we look at its architecture. The homological and analogical
exercise proposed based on a structural and functional approximation of two artistic
universes called our attention to the existence of important aspects, which are beyond what
a narrative may present in its theme. This way, it was offered to us a new key to read not
only António’s text, but literature in general. The research has shown, at last, that
(re)integration of two artistic areas makes it possible not only to semantically enrich
artistic objects, but also and foremost to intensify the interpretive capacity of those who
receive them aesthetically.

Key-words: Literature; Painting; Interart Relationship; Plastic Language, António


Lobo Antunes.
12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 14

1. O PARALELO ENTRE AS ARTES ............................................................................................... 26

1.1. TRAÇANDO LIMITES: O LAOCOONTE E AS FRONTEIRAS ENTRE A LITERATURA

E A PINTURA ........................................................................................................................................ 31

1.2. TRAÇOS DIÁFANOS: PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO INTERARTES................................. 50

1.3. DESLIMITES: A RELAÇÃO INTERARTES NA CONTEMPORANEIDADE ........................... 63

2. LINGUAGEM PLÁSTICA NA OBRA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES ................................ 80

2.1. TEXTOS DE 1ª VERSÃO: EKPHRÁSIS POÉTICA....................................................................... 85

2.2. TEXTOS DE 2ª VERSÃO: PLASTICIDADE POÉTICA ............................................................... 122

3. HOMOLOGIA ESTRUTURAL E ANALOGIA EM NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA

NESSA NOITE ESCURA ...................................................................................................................... 141

3.1. MOLDURA...................................................................................................................................... 149

3.2. LINHAS ........................................................................................................................................... 164

3.3. COR.................................................................................................................................................. 187

3.4. SUPERFÍCIE ................................................................................................................................... 198

(IN)CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 230

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 236


13

Tudo começa num ponto.

Wassily Kandinsky
14

INTRODUÇÃO

A tarefa de escrever uma introdução ou uma conclusão para um trabalho cujo objeto
de pesquisa não se deixa manipular facilmente é bastante árdua e perigosa. A partir do
momento em que escolhemos analisar algo que não suporta limitações e que não se curva a
rotulações simplistas ou a óbvias generalizações, escolhemos, sem que o saibamos, viver
literalmente a experiência do processo criativo, da (e)laboração incessante e do
transbordamento semântico.

Essencialmente fragmentada e intencionalmente escorregadia, a escrita plástica – e a


plasticidade da escrita – do escritor português António Lobo Antunes apresenta-se sempre
enquanto “entre” e nunca como “início” ou “fim”. Longe de ser um traço definidor e
normativo, sua escrita é um risco, uma linha inquieta e dinâmica que rompe com o hábito
linear e estático para apresentar-nos um universo mosaico de multiplicidades em constante
transformação.

São várias e muito diferentes as portas pelas quais podemos adentrar a obra desse
escritor. Grande parte dos estudos elegem os aspectos históricos, políticos ou sociais. Para
listarmos apenas alguns exemplos, podemos mencionar os trabalhos de Haidê Silva – A
metaficção historiográfica do romance Os cus de Judas, de António Lobo Antunes (2007);
Flávia Cristina Biazetto – Histórias de guerra: uma leitura das crônicas de António Lobo
Antunes e Mia Couto (2009); Jorge Manuel de Almeida G. Costa – Para um estudo da
memória e identidade portuguesas com António Lobo Antunes (2013); Norberto do Vale
Cardoso – Autognose e (des)memória: Guerra Colonial e Identidade Nacional em Lobo
Antunes, Assis Pacheco e Manuel Alegre (2004), etc. Outras pesquisas optam por analisar
os elementos narrativos e semânticos do texto, fundamentando-se especificamente no
processo narrativo ou na construção temática das obras do autor português. É o caso dos
estudos realizados por Elizabeth Maria Azevedo Bilange – O áspero humor em Lobo
Antunes (2007); Diana Navas – Figurações da escrita: a metaficção nos romances de
António Lobo Antunes (2007); Verônica Rodrigues F. Gomes – A Arquitetura nas crônicas
de António Lobo Antunes: modos de viver no espaço contemporâneo (2006); Denis
Leandro Francisco – Textualidades em Negativo: a ficção de António Lobo Antunes
15

(2011); Tércia Costa Valverde – O dilaceramento do Ser em Que farei quando tudo arde?,
de António Lobo Antunes (2012), entre outros.

Nossa pesquisa, por sua vez, dedicou-se a explorar um aspecto muito pouco estudado
na escrita de António Lobo Antunes. Uma zona fronteiriça praticamente inexplorada em
que a linguagem literária dialoga com outro sistema de significação: a pintura.

Diante de um vasto horizonte de pesquisas, encontramos apenas alguns estudos que


também se dedicaram a analisar a relação interartes na obra antuniana. Referimo-nos às
pesquisas realizadas por Catarina Vaz Warrot, que em 2013 lançou seu Chaves de escrita e
chaves de leitura nos romances de António Lobo Antunes. Existem ainda dois artigos que
tematizaram o diálogo interartes na obra do referido autor: Diálogos Interartes em António
Lobo Antunes: Sôbolos rios que vão, publicado em 2014 pela doutora Mariana Andrade da
Cruz e A picturalidade do livro Conhecimento do inferno, de António Lobo Antunes,
publicado em 2012 pela doutora Yara Augusto. Embora o primeiro trabalho seja um guia
de leitura da obra antuniana e faça algumas observações sobre a musicalidade de sua
escrita; e o segundo estudo considere especialmente a relação da escrita de Lobo Antunes
com a música, todos os três trabalhos nos ajudaram a reconhecer a explícita e, no entanto,
pouco explorada plasticidade da linguagem do autor português, aspecto que nos
impulsionou a caminhar pelo denso tecido textual de sua obra.

A experiência advinda da tentativa de se analisar a plasticidade de sua escrita


colocou-nos diante de uma pergunta muito importante e atual: “como ler literatura hoje
sem levar em conta o predomínio da cultura da imagem”?1 Desconsiderar a força dessa
“cultura da imagem” e supor que uma arte pode interagir apenas ocasionalmente com outra
de maneira secundária e marginal significa alienar-se do atual cenário artístico e colocar-se
fora de uma realidade universalizada, atuante e metamórfica e significa desconsiderar os
esforços feitos a favor do diálogo entre as diversas artes. Muitos são os estudos que se
propõem a entender de que forma se estabelece essa relação e de que maneira tal interação
contribui para ampliar e enriquecer a prática artística de maneira geral. Podemos
mencionar os estudos empreendidos pela holandesa Mieke Bal – Reading Rembrandt
(1991) e The Mottled Screen: Reading Proust Visually (1997); As pesquisas realizadas por
José Aguinaldo Gonçalves – Transição & Permanência - Miró e João Cabral: da tela ao

1
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 7.
16

texto (1989); Laokoon Revisitado: relações homológicas entre texto e imagem (1994); e
Museu Movente: o signo da arte em Marcel Proust (2004); A dissertação de mestrado de
Raimundo Carvalho – Murilo Mendes: o olhar vertical (1993); e as teses de doutorado de
Ricardo Ramos Costa – Poéticas da visualidade em João Cabral de melo Neto e Joan
Miró (2014); a de Lino Machado, As palavras e as cores: Guernica (e mais) na Caligrafia
de Carlos de Oliveira (1999); e a de Josina Nunes Drumond – As dobras do sertão: palavra
e imagem (2008), entre tantos outros.

Acreditamos que, assim como os pesquisadores supracitados, desde muito antes do


advento da Modernidade, refletir sobre as transformações trazidas pela relação cada vez
mais complexa entre as diferentes artes não é mais uma questão de escolha. E decidimos
empreender uma jornada de pesquisa que tivesse o texto literário de Lobo Antunes como
objeto de estudo, haja vista a hibridez de sua tessitura textual.

Apesar de ter sido pouco explorada em sua potência intermedial ou intersemiótica,2 é


possível afirmar que a obra de Lobo Antunes é um modelo de obra híbrida, ainda que não
se afirme como tal, pois é um espaço aberto ao diálogo interartístico que consegue
conjugar de forma inusitada uma estilística bastante própria e diversos elementos
intertextuais, construindo uma espécie de cartografia plástico-textual.

Sua linguagem, repleta das mais variadas referências culturais, é o reflexo da


formação erudita e diversificada que recebeu de seu pai, na companhia de seus irmãos.
Nascido em uma família de médicos, Lobo Antunes foi influenciado a também seguir a
carreira da medicina, apesar do sonho, desde muito cedo atuante, de ser escritor. Seus
livros, especialmente os três primeiros, são uma espécie de autobiografia que nos dão
inúmeros indícios de uma infância ao mesmo tempo recatada e expansiva. Dotado de uma
rara capacidade fabulativa e de uma singular imaginação verbal, o escritor consegue nos
levar a conhecer o resultado da intensa confluência de experiências artísticas e de uma
forte “formação lógico-discursiva”.3 Segundo considerações do próprio autor, sua infância

2
Os conceitos “intermedialidade” e “intersemioticidade” serão apresentados no primeiro subcapítulo desta
pesquisa.
3
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor é sempre a voz do que está latente nas pessoas”. Depoimento. [27
de julho, 1980, pp. 21]. Lisboa: O Diário. Entrevista concedida a José Jorge Letria. In: ARNAUT, Ana Paula
(Ed.). Entrevistas com António Lobo Antunes - 1979-2007: confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008.
p. 35.
17

[...] foi feita disso. Quando eu estava doente, meu pai sentava-se à beira da cama e lia-
nos, para aí com 10 anos, o Antero, o Gomes Leal, o Sá Carneiro. A minha primeira
paixão foi pelo Sá Carneiro, com 12, 13 anos e não só isso, mas toda uma carga de
pintores e de músicos. Os pintores que ele amava, os músicos que ele amava e que nós
éramos obrigados a ouvir, éramos obrigados a debitar, éramos obrigados a conhecer.
Isto, ao princípio, era extremamente chato para mim, uma chumbada ter que ler
durante as férias o Kipling, ou o Oscar Wilde para aí com 13 anos. Era uma chatice
bestial, mas penso que, em grande parte, devo a esta persistência, a essa obstinada
paciência muito daquilo que sou. 4

Foi pela insistência paterna que Lobo Antunes adentrou o mundo artístico, porém
tomou tamanho gosto pelo universo das letras que começou a manifestar uma incontida
vontade de ser escritor. Já a partir dos “13, 14 anos, vivia para escrever e, portanto, passava
todo o tempo fechado no quarto a escrever e praticamente não fazia mais nada”,5 pois
“acreditava que estava desde a mais tenra infância predestinado a ser escritor e nada
mais”!6 Assim que terminava de esboçar algumas poesias, o aprendiz de escritor deitava
fora todas as páginas que conseguia produzir, por vergonha de apresentar aquilo que
considerava ser de péssima qualidade. Não há, portanto, nenhum registro da fase juvenil de
sua escrita.

A desejada carreira literária, ensaiada na adolescência, sofreu um brusco


rompimento, quando Lobo Antunes foi levado, também por influência familiar, a estudar
medicina. Especializou-se, então, em psiquiatria por entender que estaria mais próximo de
uma linguagem menos rígida e mais criativa. Em 1972, aos 28 anos de idade, foi recrutado
pelo exército para cumprir o serviço militar e, em 1971, embarcou para Angola. Embora
estivesse longe de casa, da esposa e da filha recém-nascida, a literatura continuava a salvá-
lo das más horas de silêncio e de dor geradas pelas mortes de amigos e outras aterradoras
experiências de guerra. Foi pelas mãos do tenente-coronel Ernesto Melo Antunes que ele
conheceu “livros que não conhecia, escritores que não conhecia, enfim, uma série de coisas
de que tinha passado a lado”.7

4
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes (Memória de Elefante) citando Blaise Cendrars:
‘Todos os livros do mundo não valem uma noite de amor’”. Depoimento. [25 de outubro, 1979, pp. V-VI,
IX]. Lisboa: Diário Popular/ Suplemento Letras-Artes. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In:
ARNAUT, op. cit., p. 22.
5
Ibid., p. 19.
6
SILVA, João Céu. Uma longa viagem com António Lobo Antunes. Lisboa: Porto Editora, 2009. p. 13.
7
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes (Memória de Elefante) citando Blaise Cendrars:
‘Todos os livros do mundo não valem uma noite de amor’”. Depoimento. [25 de outubro, 1979, pp. V-VI,
18

Durante todos esses anos, desde que fora apresentado ao universo das letras pelo pai
e posteriormente pelo amigo tenente-coronel, Lobo Antunes conheceu uma enorme
quantidade de escritores clássicos, os quais se transformaram em modelo de boa escrita. O
autor português afirma que foi “formado, sobretudo, pela leitura dos estrangeiros norte-
americanos, em particular: Faulkner, Scott Fitzgerald, Thomas Wolfe”,8 mas também e
especialmente pelos autores que escreveram “o Cavaleiro Andante, a revista Mundo de
Aventuras, o Emílio e os Detectives, o Sandokan, as páginas necrológicas e as coisas que
lia em miúdo quando o jornal chegava a Nelas, lá na Beira Alta”.9 Sobre essas primeiras
influências literárias e as primeiras lições sobre o exercício da escrita, Lobo Antunes ainda
diz:

Esses é que foram importantes, esses autores como o Salgari [do


Sandokan] é que me deram vontade de começar a escrever. Quero lá
saber do Joyce para alguma coisa! Tudo isso aparece muito mais tarde
quando a vocação já está definida. Os escritores importantes para nós não
foram o James Joyce ou o Joseph Conrad, foram os que líamos em
miúdos e a que normalmente não fazemos referência. [...] a pouco e
pouco, aí pelos quinze anos, descobre-se que há uma diferença entre
escrever bem e mal e aquilo que até então era um prazer transforma-se
em dúvida e é um grande problema. Aí pelos vinte e tal, repara-se que há
uma diferença entre escrever bem e a obra-prima e então a angústia torna-
se muito maior. Porque escrever para não ser o melhor não vale a pena!10

A leitura desde sempre muito atenta à técnica narrativa e em grande parte feita a
partir dos originais de língua inglesa e francesa também foi responsável por transformá-lo
em um crítico bastante seletivo que, segundo Céu e Silva,

[...] diminui o valor dos contemporâneos; destrói o que fizeram tantos


nomes que antes de si publicaram livros; dizima a prateleira de autores
nacionais, deixando apenas um cantinho da estante que se justifica manter
para o futuro e resguarda-se nos poucos clássicos que elege como
verdadeiros escritores: Camões, Tolstói, Horácio, Ovídio e poucos mais.11

IX]. Lisboa: Diário Popular/ Suplemento Letras-Artes. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In:
ARNAUT, op. cit., p. 20-21.
8
ANTUNES, António Lobo. “Lobo Antunes a Baptista-Bastos: ‘Escrever não me dá prazer’”. Depoimento.
[19 de novembro, 1985, pp. 3-5]. Lisboa: Jornal das Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a A.
Baptista-Bastos. In: ARNAUT, op. cit., p. 67.
9
SILVA, op. cit., p. 31.
10
Ibid., p. 31-32.
11
Ibid., p. 13.
19

Lobo Antunes é o tipo de leitor voraz que, apesar de se dedicar exaustivamente à


escrita, consegue acompnahar de perto as novas produções literárias. Acostumado a refletir
e criticar a produção alheia é, contundo, ainda mais crítico com seu próprio trabalho, o qual
apresentava apenas para alguns amigos mais próximos e quase nunca para a própria
família.

Habituado a manter-se emocionalmente em silêncio diante dos familiares, Lobo


Antunes, como ele mesmo afirma, nunca iniciava uma conversa íntima com o pai ou com
os irmãos. Nos encontros falava-se sempre de “literatura, medicina, escultura e pintura”.12
E, para além da formação literária, o autor faz questão de mencionar que teve uma
formação visual bastante significativa, “que deu origem a um pensamento muito mais
sincrético. Daí que Fellini e o seu cinema me tenham influenciado muito”;13 e uma
formação musical dada especialmente pelo Jazz. Conforme explica:“[o Jazz] tem muita
importância para mim enquanto escritor, porque aprendi a escrever com os músicos de
jazz. Pensamos que são os escritores que nos ensinam a escrever, mas é mentira, até pode
ser um fotógrafo ou um músico”.14

A partir de então, Lobo Antunes não mais deixou de frequentar o universo das artes
e para além do solitário exercício de escrita, continuou a realizar outros tipos de trabalhos
artísticos em parceria com amigos ou a convite daqueles que confiam em sua visão crítica
e admiram sua escrita cuidadosa e original. São de sua autoria, por exemplo, as treze letras
das canções que compõem o álbum musical Eu que me comovo por tudo e por nada
(1992), gravado pelo amigo e cantor português Vitorino Salomé. Também são suas as
letras de seis canções criadas para o álbum Margens (1996), gravado pelo também amigo e
cantor de fados, Carlos do Carmo. Além do trabalho musical, a composição de versos
também figura ao lado da pintura, no livro Diálogos (1990-1992), trabalho realizado em
parceria com o arquiteto e artista plástico português José Luís Tinoco, em que 54 técnicas
mistas sobre papel são comentadas por poemas de autoria antuniana. Não podemos deixar
de mencionar ainda o trabalho de ilustração realizado por Vitorino para o livro A história
do hidroavião (1994); bem como as ilustrações feitas por Nicoleta Sandulesco para o conto
Uma via láctea de galos (2005). Além disso, Lobo Antunes produziu o texto que abre o
12
Ibid., p. 135.
13
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor é sempre a voz do que está latente nas pessoas”. Depoimento. [27
de julho, 1980, p. 21]. Lisboa: O Diário. Entrevista concedida a José Jorge Letria. In: ARNAUT, op. cit., p.
35.
14
SILVA, op. cit., p. 41.
20

livro Olhares (1951-1998) do fotógrafo Eduardo Gageiro, bem como a crítica elogiosa que
apresenta o catálogo da exposição One after another, a few silente steps (2003 - Kunsthalle
Hamburg), do artista plástico português Pedro Cabrita Reis.

Somadas as experiências vividas até a altura em que realmente começou a escrever


seu primeiro livro e o vasto conhecimento acumulado sobre literatura e outras artes, Lobo
Antunes conseguiu reunir um importante material, com o qual produziu seus três primeiros
livros, os quais foram lançados quase que em concomitância. Memória de elefante
(1979),15 Os cus de Judas (1979)16 e Conhecimento do inferno (1980),17 além das memórias
de vida e de guerra, apresentam o vasto e heterogêneo arcabouço artístico de que o autor é
dotado, bem como uma mostra já bastante expressiva de uma escrita hoje conhecida como
umas das mais prodigiosas e complexas do cenário português contemporâneo.

Podemos afirmar, pois, que a obra de António Lobo Antunes nasce em um espaço de
interação artística. Conforme mostraremos no segundo capítulo desta pesquisa, desde seus
primeiros escritos, o autor arriscou estabelecer um proveitoso diálogo com outros sistemas
de significação,18 ainda que inicialmente tenha explorado mais especificamente o
mecanismo tradicional de relação intertextual e descritivo, conhecido como “ecfrase”, isto
é, o processo de evocação de um elemento exterior à obra, com o objetivo de intensificar,
tornar mais vívida, uma declaração ou, no caso da literatura, uma descrição.

Valendo-se de uma construção discursiva que menciona as mais variadas vertentes


artísticas – pintura, música, fotografia e cinema – seus primeiros textos ficcionais já
conseguem exibir um modo particular de escrita que deseja se afastar da clássica
representação mimética e meramente descritiva. As histórias e as vozes confundem-se e
relacionam-se de forma pouco convencional e aparentemente desorganizada, articulando
recuos e desvios temporais, numa torrente verbal que aos poucos desiste de se submeter às
regras mais convencionais de escrita para se aproximar de uma espécie de oralidade
subjetiva especialmente imagética. Percebemos que um lento processo de desobediência

15
ANTUNES, António Lobo. Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
16
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
17
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
18
Em seu livro Tradução intersemiótica, Júlio Plaza afirma que “cada sistema de sinais se constitui segundo
a especialidade que lhe é característica e que pode ser articulada com os órgãos emissores-receptores, isto é,
com os sentidos humanos. Estes produzem as mensagens que reproduzem os sentidos”. Com base nessa
afirmativa, entendemos que António Lobo Antunes, a partir do sistema de sinais verbais, realiza um diálogo
com os sistemas de sinais visuais e sonoros, produzindo um objeto artístico híbrido. PLAZA, Julio. Tradução
intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 45.
21

sintática e linear foi se estabelecendo à medida que avançamos em direção às narrativas


publicadas após o romance A ordem natural das coisas (1992),19 fase em que começa a
apresentar uma escrita mais madura e mais complexa em termos de ganho estilístico.

Nesse período, Lobo Antunes começou a se afastar, por assim dizer, do


procedimento ecfrástico, para trabalhar ainda mais a estrutura textual propriamente dita. E
é a partir desse momento que podemos perceber uma considerável evolução da relação
dialógica com o sistema de significação visual. Extrapolado o meio20 verbal, o texto
ganhou movimento e força plástica e passou a ser (e)laborado também numa perspectiva
graficamente imagética. A página branca reassumiu e potencializou sua natureza plana
bidimensional ao mesmo tempo em que o texto se desdobrou visualmente. A partir desse
momento, para que fosse compreendido em sua (des)estrutura, a escrita passou a demandar
não mais apenas o “olhar-leitor” mais tradicional – aquele que lê por meio da estrutura –,
mas um “olhar-espectador” – aquele que também vê a estrutura enquanto a lê. A
linguagem antuniana foi se tornando estruturalmente cada vez mais plástica, haja vista o
crescente desenvolvimento visual do texto que começou a apresentar, para além de uma
página coberta por marcações gráficas, um movimento das letras.

Assim que começamos a exercitar uma leitura mais minuciosa dos livros, notamos
que uma analogia21 foi sendo naturalmente construída com base em um exercício de
homologia estrutural,22 já que automaticamente começamos a perceber algumas
semelhanças entre o texto antuniana e a pintura. Verificamos que alguns dos elementos que
compõem uma tela – moldura, superfície, linhas e cor –, também poderiam ser
“visualizados” no livro escolhido como objeto de análise. Com base nessa premissa,
realizamos, no último capítulo de nosso estudo, uma aproximação de dois universos
artísticos a partir de suas respectivas estruturas e da funcionalidade de alguns de seus

19
ANTUNES, António Lobo. A ordem natural das coisas. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
20
Segundo Julio Plaza, “a lógica ocidental permite organizar os meios em sistemas ou redes universais que
são utilizados como suportes de re-produção de linguagens, ou seja, como veículos de comunicação,
intelegibilidade, representação simbólica e memória”. (PLAZA, op. cit., p. 66.) Lucia Santaella, por sua vez,
afirma que os “meios, como o próprio nome diz, são meios, isto é, suportes materiais, canais físicos nos quais
as linguagens se corporificam e através dos quais transitam”. (SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem
e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 2013. p. 379.) Nesse
sentido, empregamos o termo “meio” em nossa pesquisa para designarmos o suporte que re-produz uma dada
linguagem ou um sistema de significação específico, que tanto pode ser sonoro, visual ou verbal.
21
O conceito de “analogia” – semelhança funcional entre estruturas distintas – será apresentado e
desenvolvido no terceiro capítulo desta tese.
22
O conceito de “homologia estrutural” – semelhança estrutural entre dois elementos distintos – será
apresentado e desenvolvido no terceiro capítulo desta tese.
22

elementos, para entendermos até que ponto ambas as artes podem dialogar e, assim,
potencializar a si mesmas.

A necessidade de se conhecer o universo das artes ditas plásticas tornou-se


fundamental e absolutamente urgente. Logo que arriscamos uma primeira incursão aos
estudos teóricos – apresentada em nosso primeiro capítulo –, adentramos um espaço em
que as discussões a respeito das diferenças e semelhanças entre as duas artes mostravam-
se, e ainda se mostram, bastante conflitantes. Porém, ao aprofundarmos nossa busca, foi
possível perceber que a constante tensão entre os problemas surgidos de tais conflitos,
resultou – e felizmente ainda resulta – em discussões absolutamente significativas e muito
profícuas, que só fizeram ampliar e transformar a prática artística de forma geral.

Nossa pesquisa procurou entender a relação interartes a partir da mais antiga


proposição estabelecida a esse respeito, o Ut Pictura Poesis, máxima cunhada no século I
por Horácio em sua Epístola aos Pisões, a qual foi retomada e discutida por um dos
primeiros críticos de artes da História ocidental, Gothold Ephraing Lessing, em seu
Tratado, Laocconte: ou sobre as fronteiras entre a Pintura e a Poesia (1776).23 Lessing
lançou as bases da Literatura Comparada e abriu caminho para o pensamento acadêmico e
formal sobre as artes. Com base nos conceitos de Mimese e de Belo e mostrando-se a favor
de algumas delimitações normativas, construiu um caminho sem volta, pelo qual todos
aqueles que pretendem conhecer a origem da relação interartes precisam passar.

Desde então, diversas perguntas foram feitas e nem todas foram suficientemente
respondidas. A Modernidade, de forma geral, representada na escrita de Stéphane
Mallarmé (1942-1898), na pintura de Paul Cezánne (1839-1906) e na música de Arnold
Schöenberg (1874-1951), radicaliza e torna mais complexa, não apenas a já hostil relação
entre as artes ditas “irmãs”, mas reascende todo o repertório de problematizações que por
muito tempo interferiu nas arriscadas tentativas de se estabelecer os limites, a essência e os
meios de cada uma das artes. Um ideal de pureza, enquanto mecanismo de avaliação e
ajuste é pensado, ao mesmo tempo em que é rebatido pelas próprias práticas artísticas, cada
vez mais inovadoras.

23
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: com
esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Tradução de Márcio Seligmann-
Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.
23

Em nosso primeiro capítulo, realizamos um diálogo com ambas as vertentes para


entendermos de que maneira e em que contexto a obra de Lobo Antunes se desenvolve.
Partimos, então, dos estudos mais iniciais, desenvolvidos por G. E. Lessing, bem como dos
ensaios produzidos por Clement Greenberg,24 renomado crítico norte-americano, que se
mostra favorável à tentativa de delimitação de fronteiras e meios, como forma de garantir a
sobrevivência da própria arte e em especial a da pintura. Para que pudéssemos realizar um
contraponto, buscamos as teorias de Anne-Marie Christin, Márcia Arbex, Julio Plaza e
Liliane Louvel, que discutem a problemática da relação interartes numa perspectiva oposta,
de afirmar o hibridismo presente nos meios e na própria origem da prática artística
humana.

Realizamos esse trajeto crítico-teórico na tentativa de compreendermos as


convergências e divergências que por tanto tempo, e hoje mais do que nunca, atuaram
enquanto obstáculo ou incentivo à construção do atual cenário artístico e para
demonstrarmos, mais especificamente, que a integração entre as artes tem acontecido à
revelia de algumas tentativas de limitação. Não pretendemos, portanto, separar ou definir
meios e limites. Pelo contrário. Objetivamos mostrar que as inovações artísticas são
justamente fruto da transgressão dos limites, das regras e das fronteiras que há muito se
tenta estabelecer.

Escolhemos adentrar o universo da relação interartes pelo viés literário. E por


considerarmos que a literatura contemporânea demonstra verdadeiro fascínio pela imagem
– pois relaciona-se cada vez mais com a fotografia, o cinema, o desenho e a pintura –
decidimos direcionar nosso olhar exatamente para essa intersecção.

A obra de António Lobo Antunes apresentou-se como objeto de estudo assim que o
livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura (2000)25 foi lido. O caráter
autorreferencial da obra, que chama atenção para a sua própria estrutura e para os
processos de sua própria composição, nos levou a perceber o singular trabalho visual
realizado em toda a sua arquitetura textual. As fricções léxico-semânticas encontradas a

24
Referimo-nos especialmente aos textos reunidos no livro “Greenberg e o debate crítico” (FERREIRA,
Glória; MELLO, Cecília Cotrim (Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Tradução de Maria Luiza X.
de A. Borges. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997); e ao livro “A Pintura moderna”, do mesmo autor.
(GREEMBERG, Clement. “A Pintura Moderna”. In. A Nova Arte. Tradução de Cecília Prada e Vera de
Campos Toledo. São Paulo: Perspectiva, 2013.)
25
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. ne varietur. Lisboa: Dom
Quixote, 2008.
24

cada página lida, bem como a audaciosa construção espaço-temporal também nos
incentivou a tentar novas saídas interpretativas e nos encorajou a buscar na pintura um
instrumento de ampliação dos limites verbais.

A leitura homológica e analógica nos fez caminhar mais lentamente pelo texto, mas
também nos levou a percorrer caminhos pouco conhecidos e mais arriscados. A escrita, já
considerada escorregadia e complexa, tornou-se ainda mais desafiadora quando decidimos
analisar as relações de sentido amalgamadas em sua estrutura.

Sabemos que Lobo Antunes jamais se deixou levar pela retórica fácil e cristalizada.
Sua letra é um espelho que reflete o exercício daquele que trabalha justamente na zona de
risco literária. Também é aquela que se manifesta enquanto espaço dinâmico e aberto, em
que não é possível pensar a linguagem desligada de seu caráter imagético ou isolar a
imagem que a linguagem desenha.

Os dois primeiros capítulos da pesquisa são a porta de entrada para a construção


analógica propriamente dita. E é no terceiro e último capítulo de nossa tese que realizamos
uma análise mais consistente do diálogo entre a literatura e pintura ao correlacionarmos
homologicamente a estrutura do livro Não entres tão depressa nessa noite escura e ao
percebermos as possíveis analogias existentes entre o texto e algumas telas de variados
artistas e movimentos.

Não buscamos comparar a poética antuniana a algum movimento ou alguma obra


pictórica específica, assim como não desejamos identificar os elementos narrativo-poéticos
que possam estar presentes nas pinturas de determinados artistas plásticos. Afinal, Lobo
Antunes não elege um estilo, uma escola, um pintor ou um quadro específico para criar seu
texto. Apesar de desenvolver uma escrita verdadeiramente plástica – haja vista a inusitada
(e)laboração formal de seus livros –, mantem-se desvinculado de qualquer referência
específica e, por isso, não oferece a possibilidade de uma leitura comparativa, estritamente
mimética ou descritiva. Sua escrita não resulta de uma tentativa de tradução pictórica
propriamente dita. Objetivamos, pois, entender que aspectos estruturais de sua obra – e
mais especificamente do livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura –
guardam relação funcional com a pintura.

Percebemos, ao final da pesquisa, que ler a literatura do ponto de vista das imagens e
compreendê-la enquanto criadora de novas possibilidades de pensamento torna-se um
25

arriscado, porém, importante exercício para rebater as tentativas de limitação propostas por
linhas de pensamento mais restritivas. Dessa maneira, adentramos novas espacialidades e
temporalidades narrativas, sem que nos limitássemos a realizar analogias simplistas e
confrontos hierarquizantes de qualidade. Tentamos ressaltar, pelo contrário, aquilo que de
mais criativo pode ser produzido nos inusitados intervalos que o encontro entre a literatura
e a pintura cria incessantemente.
26

1. O PARALELO ENTRE AS ARTES

Eu me perguntava esta manhã em que língua se desenha. 26


Jacques Derrida

Há muito se diz que poesia não é apenas texto e que pintura não se reduz à
representação de imagens. Mas o trajeto que nos fez chegar a essa afirmativa é bastante
longo, complexo e polêmico.

É possível indicar o Renascimento como ponto originário dos primeiros grandes


estudos sobre as relações analógicas entre pintura e poesia. Segundo João Cabral de Melo
Neto, “mais do que uma época fecunda em pinturas, o Renascimento criou a pintura. Fixou
a arte que chamamos hoje pintura”,27 pois “associou o objeto, isto é, a representação
utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorada, isto é, à utilidade da
contemplação. Dessa associação nasceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o
quadro”.28 Além disso, o Renascimento também alavancou a discussão sobre conceitos
como Mimeses e Belo, fazendo com que os estudiosos reconhecessem que várias das artes
ditas imitativas poderiam fazer parte de uma categoria mais geral e mais unificada. De
acordo com William K. Wimsatt e Cleanth Brooks,

Coube à Renascença [...] deslocar o ponto principal do debate sobre as


artes, nitidamente no sentido do conceito do agradável, do ideal, do belo
e, ao mesmo tempo, começar a encarar várias das artes imitativas como
membros de uma categoria geral literalmente unificada. 29

Também foi a partir desse período histórico que grande parte dos estudiosos que
escreviam sobre pintura iniciou um exercício crítico diferente, o qual, ultrapassando o
estatuto tradicional do discurso retórico elogioso e descritivo, transformou-se nas primeiras

26
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979/2004). Tradução de
Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: UFSC, 2012. p. 65.
27
MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. In: ______. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 691.
28
Loc. cit.
29
WIMSATT JR., William K.; BROOKS, Cleanth. Crítica Literária: breve história. Tradução de Ivette
Centeno e Armando de Morais. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1971. p. 318.
27

práticas de comparação interartes. Nesse momento, a prática de comparação, ainda que


realizada com intuito hierarquizante, adentrou as academias e tornou-se matéria de sérias
discussões propostas pelos estudiosos mais especializados. O conteúdo filosófico das artes
ditas visuais, bem como o da natureza intelectual do ato de apreciação ganharam
considerável proeminência, deixando vislumbrar a tendência racionalista e intelectual que
uma possível teoria da arte passou a assumir.

A prática da comparação tinha como objetivo tanto a aproximação mais geral entre
as várias artes, quanto a separação restritiva intrínseca a apenas um tipo de arte. No
primeiro caso, a tentativa de aproximação era feita levando-se em conta dois sentidos
básicos: o da visão e o da audição. A divisão se inseria numa longa tradição possivelmente
iniciada por Simônides de Ceos, que nos foi transmitida por Horário, no século I, através
de sua famosa Arte poética, também conhecida como Epístola aos Pisões, que diz: “O
espírito é menos vivamente impressionado por aquilo que o autor confia aos ouvidos que
por aquilo que este põe diante dos olhos, essas testemunhas irrecusáveis”.30 A afirmação
horaciana aos poucos se transformou no ponto de partida para a primeira tentativa de
comparação entre duas artes: a pintura e a poesia. Retomada pelos teóricos do
Renascimento, o excerto passou a figurar como origem da chamada doutrina do Ut pictura
poesis.31

O segundo caso de comparação, mais restritivo, limitava-se às artes que tinham como
princípio receptivo o sentido da visão, por se referir apenas às relações entre a pintura e a
escultura. Tal prática ganhou, no Renascimento, o nome Paragone, recuperado do Tratado
da Pintura, escrito por Leonardo da Vinci, entre os anos de 1490-1571.

Embora diferentes em muitos aspectos, as duas comparações estão


fundamentalmente ligadas, afinal, somente a partir da problemática geral do Ut pictura
poesis, o Paragone ganhou maior sentido, já que as características relacionadas à pintura
em contraposição à poesia serviram de base para a relação que se estabeleceu entre a
escultura e a pintura.

30
LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura: O paralelo das Artes. Tradução de Magnólia Costa. São
Paulo: Ed. 34, 2005. v. 7. p. 9.
31
Em sua Arte poética, Horácio diz: “Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto;
outra, se te pões mais longe [...]”. HORÁCIO. Arte poética: Tradução de Jaime Bruna. In: SPINA,
Segismundo. A poética clássica, São Paulo, Cultrix, 2014. p. 65.
28

É interessante notar que a pequena, porém, polêmica expressão clássica – Ut pictura


poesis –, que ao pé da letra significa “poesia é como pintura”, segundo Jacqueline
Lichenstei, compara a poesia à pintura, que é o elemento central. Ou seja, a pintura é o
termo referencial da comparação, fato que favorece a arte das imagens em detrimento da
arte da linguagem. Lichenstein ainda afirma que

A doutrina do Ut pictura poesis, tal como se constituiu no


Renascimento e se desenvolveu ao longo da época clássica, baseia-se
num contrassenso, num erro de interpretação da frase da Epístola aos
Pisãos: “Ut Pictura poesis erit”. Em Horácio, essa frase compara a poesia
à pintura, fazendo desta última o termo referencial da comparação: um
poema existe tal como um quadro. Dessa forma, a frase cria um privilégio
em favor das artes da imagem, com as quais são relacionadas as artes da
linguagem.32

Ao retomarem a frase, os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da


comparação. A poesia passou a ser o termo comparativo e a pintura ganhou o estatuto de
termo comparado. Um novo sentido foi estabelecido: Ut poesis pictura – pintura é como
poesia. 33 Segundo a estudiosa, o sentido da expressão foi modificado para responder

[...] às novas exigências que então surgiam no campo da arte. Ele se


insere, na realidade, na lógica de uma transformação da situação dos
pintores e da pintura que implica questões fundamentais. A doutrina do
Ut pictura poesis, tal como a compreendiam os teóricos do
Renascimento, foi um dos meios – e certamente um dos mais importantes
– que iriam permitir à pintura gozar de um reconhecimento até então
reservado às artes da linguagem, isto é, ter acesso à dignidade de uma
atividade liberal. [...] Era preciso desfazer o vínculo social que, desde a
Idade Média, a prendia às chamadas artes “mecânicas”, provar que ela
não era um ofício, uma ocupação servil, mas uma arte “liberal”, isto é,
uma atividade digna de um homem livre; mostrar que um pintor não é um
operário, um simples artesão, mas um artista culto e letrado.34

O Ut pictura poesis, portanto, tornou-se um elemento bastante importante para o


processo de legitimação da arte dita visual, que passou a figurar não mais ou não apenas
como arte material, no sentido mais pragmático e técnico do termo, mas como uma arte
originariamente e fundamentalmente teórica e intelectual. Wimsatt e Brooks esclarecem
que:

32
LICHENSTEIN, op. cit., p. 10.
33
Ibid., p. 11.
34
Ibid., p. 11-12.
29

A importância dada na Idade média, à intelectualidade de certas artes


verbais como a poesia e a retórica (e com elas a música, devido ao
elemento matemático nela existente) modificou-se gradualmente na
Renascença, de modo a admitir, no mesmo pé de igualdade, as artes
visuais como a pintura e a escultura. 35

A arte visual passou a manter uma ligação ainda mais estreita com a linguagem
verbal, já que a linguagem é o nascedouro da Retórica, do discurso, da Filosofia e da razão.
Ao estabelecer relação com a arte da linguagem, a pintura vinculou-se automaticamente a
outro espaço. O pintor assumiu a posição de poeta e de homem das letras, pois também
passou a fazer parte do universo do Logos.

A teoria contida na frase horaciana foi inicialmente compreendida em seu sentido de


complementariedade e interação pacífica entre as duas artes. E, desse modo, a literatura
começou a receber um olhar mais cuidadoso no que se refere ao aspecto espacial da
narrativa, assim como a pintura começou a ser apreciada também em termos narrativos.

Ao ser revisitado, no Renascimento, o Ut pictura poesis interferiu nas condições de


realização e de recepção da literatura e transformou significativamente o estatuto da
pintura, somando-lhe características que até então limitavam-se ao universo poético, tais
como a invenção, a disposição, a temporalidade, enfim, a narratividade. “Como no século
XVII seria infatigavelmente repetido, o pintor devia saber ‘narrar com o pincel’”.36

A partir do Renascimento, pintar passou a significar também a arte de representar


uma sequência narrativa, consequentemente temporal, para o espaço bidimensional de uma
tela. O pintor precisava aprender as técnicas que o ajudariam a transpor para o espaço do
quadro uma determinada história, considerando o caráter mimético e respeitando as
exigências específicas do processo de composição pictórico.

Os primeiros temas que vieram a compor as telas desse período histórico foram
retirados da literatura e, por isso, passaram a figurar dentro de uma nova categoria,
denominada Pintura de História que seria “a partir de então, e durante séculos, considerada
como a mais alta expressão da arte de pintar”.37

35
WIMSATT JR., BROOKS, op. cit., p. 318.
36
LICHENSTEIN, op. cit., p. 13.
37
Loc. cit.
30

Porém, apesar de parecerem efetivamente unidas em todos os aspectos, as duas artes


não deixaram de ser confrontadas, pois, conforme explica Lichenstein:

Ao designarem a pintura como “poesia muda” e a poesia como “pintura


falante”, os defensores do Ut pictura poesis introduziram, na realidade,
uma hierarquia: enquanto a poesia é apresentada com uma dupla
determinação positiva – ela é uma pintura que fala –, a pintura é definida
negativamente, como uma poesia à qual falta a palavra. Ao mesmo tempo
em que lhe assegura uma dignidade, a comparação com a poesia impõe à
pintura uma definição que oculta sua especificidade, já que a submete às
artes da linguagem. Como diria Leonardo da Vinci, se a pintura é
chamada uma poesia muda, então é preciso, para ser justo, chamar a
poesia uma pintura cega.38

Apesar das mudanças causadas pela inversão da expressão horaciana, a controvérsia


continuou a apresentar a hierarquia entre as artes como a questão mais pungente daquele
momento histórico. Interessava aos pensadores do Renascimento determinar a
superioridade de uma em relação à outra. E a pintura foi eleita como modelo de arte
exemplar. Em outras palavras, elegeu-se o visível, dentre todas as outras formas de
representação, como superior.

Do final do século XVII até a publicação da Crítica do juízo (1790), de Immanuel


Kant (1724-1804), um enorme e importante movimento de teorização sobre a natureza da
obra de arte desencadeou-se, denunciando a necessidade de sistematização racional e
lógica não apenas da pintura, mas de todos os gêneros artísticos.

O forte processo de discussão teórica, dentro do contexto do paralelo entre as artes,


adentrou o século XVIII, e atingiu um alto nível de sistematização. Nesse momento,
Gotthold Efraim Lessing (1729-1781) publicou seu tratado – Laokoon:39 ou os limites da
Pintura e da Poesia – e desviou significativamente o foco da antiga discussão. Importava-
lhe não apenas comparar as diversas artes, mas principalmente definir os limites práticos e
teóricos de cada uma delas, estabelecendo, assim, uma espécie de primeiro alicerce
estético. Dessa maneira, o Ut pictura poesis desdobrou-se em um novo projeto que tinha
como objetivo registrar a especificidade das artes.

38
Ibid., p. 13.
39
Ao longo de nossa pesquisa encontramos pelo menos quarto variações do nome Laocoonte: Laoconte,
Laokoon, Laocoon e Laocoön. Para efeito de padronização, optamos por manter, em nosso texto, o vocábulo
em sua tradução para o Português: Laocoonte. Mas, respeitaremos as variações que por ventura possam
aparecer em títulos ou citações.
31

Por esse motivo, a obra de Lessing, assim como a epístola horaciana, ainda hoje é
considerada como central dentro do panorama intelectual dos séculos XVIII e XIX. Ela
oferece à Modernidade, através do minucioso tratado, um conjunto teórico bastante
elaborado e amplo sobre o paralelo das artes e uma nova questão: a problemática surgida
da tentativa de legitimação das fronteiras entre as artes. O tratado tornou-se responsável
por recuperar as discussões da era clássica, atualizando-as e traduzindo-as para um novo
contexto.

Através do pequeno panorama que acabamos de esboçar, é possível compreender


que, pelo menos inicialmente, o caminho para o diálogo entre as artes visuais e literárias
foi criado no sentido de compreendê-las como linguagens que funcionam de forma
semelhante enquanto tradutoras do caráter semântico, sensitivo e concreto e,
consequentemente, do aspecto representativo da imagem. Porém, tal semelhança revela-se
problemática e constantemente volta à pauta de discussões mais fundamentais a cada vez
que uma novidade artística surge.

Com o intuito de compreender até que ponto é possível ou enriquecedor identificar


limites e atravessamentos, faremos uma leitura panorâmica das primeiras tentativas de
sistematização das esferas artísticas e seus desdobramentos.

1.1. TRAÇANDO LIMITES: O LAOCOONTE E AS FRONTEIRAS ENTRE A


LITERATURA E A PINTURA

Do século XVI ao XVIII, em que se desenvolveram o Classicismo, o Barroco e o


Neoclassicismo, as discussões filosóficas, amparadas no ideal grego antigo,
potencializaram a tendência racionalista e a presença das artes comparadas. Era bastante
evidente a busca por uma sistematização das várias artes e de suas características mais
específicas e essenciais, assim como a tentativa de sua valorização frente às ciências
humanas, que a cada dia estavam mais fortalecidas.

A obra que inicialmente fundamentou os debates e conflitos desse período foi a


Poética de Aristóteles e o conceito norteador do pensamento, o de Mimeses. Porém, é
possível perceber um importante movimento de transição. Ao lado da concepção de arte
32

imitativa, surgiram, em meados do século XVIII categorias como “estética” e “belas-


artes”, conceitos que promoveram uma enorme e significativa transformação nesse campo,
tornando ainda mais urgente e necessária a teorização sobre as várias artes, bem como suas
possíveis correlações.

Em 1766, Gotthold Efraim Lessing lançou seu tratado – Laokoon: ou sobre os limites
da Pintura e da Poesia – que ganhou enorme repercussão por compilar e dar continuidade à
discussão iniciada há alguns séculos. Sua contundência crítica influenciou outros
estudiosos e, consequentemente, o exercício analógico entre as duas artes cresceu, tomando
uma proporção significativa que fez com que as primeiras fronteiras fossem timidamente
demarcadas.

Em seu importante estudo Laokoon Revisistado: relações homológicas entre texto e


imagem (1994), Aguinaldo José Gonçalves afirma que as pesquisas realizadas por
pensadores de arte tais como Jean-Baptiste Du Bos, Charles Batteux e Denis Diderot
influenciaram diretamente a formulação do pensamento artístico de G. E. Lessing. 40

Du Bos (1670-1742) apresentou as diferenças entre “signos naturais” – próprios da


imitação do “real”: escultura e pintura – e os “signos artificiais” – próprios da imitação
poética. Para esse estudioso, dentre as artes que tinham como estrutura os signos artificiais,
a arte dramática era superior, porque se aproximava mais das artes que estavam ligadas aos
signos naturais.41 Charles Batteux (1713-1780) também influenciou Lessing com as ideias
inovadoras que estão reunidas em As Belas Artes reduzidas a um mesmo Princípio (1746) e
que são reconhecidas pelo mérito de terem, pela primeira vez, sistematizado as artes de
uma maneira já bastante similar ao que temos hoje. E Denis Diderot (1713-1784), por sua
vez, no seu Carta aos surdos e mudos (1751), fez as primeiras e importantes considerações
sobre o texto de Batteux, apontando algumas falhas e superficialidades em seu método
comparativo. 42

Com base nas pesquisas desses três estudiosos, Lessing construiu suas
argumentações e publicou seu próprio tratado, fundamentado em um método indutivo de
análise. Sua tentativa inicial foi o desenvolvimento de uma primeira proposta estética.

40
GONÇALVES, Aguinaldo José. Laokoon revisistado: relações homológicas entre texto e imagem. São
Paulo: EDUSP, 1994. p. 29.
41
Ibid., p. 30-31.
42
Loc. cit.
33

Reuniu, então, as várias tendências artísticas de sua época e agrupou-as de acordo com as
características que lhe pareciam convergir para um mesmo funcionamento. Por isso, além
de se preocupar em criticar outros importantes comentadores, o crítico ainda retomou os
mais importantes escritos clássicos, aos quais ainda era dada enorme importância. Seu
tratado, nesse sentido, é também uma espécie de compêndio crítico das ideias lançadas
pelos primeiros pensadores e artistas, tais como Homero, Aristóteles, Horácio, Virgílio e
Sófocles.

A potencial irmandade que até então havia sido percebida entre a poesia e a pintura
começou a se relativizar no momento em que Lessing abandonou a reflexão sobre as
possíveis relações entre as duas artes e propôs uma divisão que estabelecia dois
referenciais: o tempo e o espaço. A ideia era pensar a arte a partir do uso diferenciado de
seus meios de expressão.

Logo no início de seu livro, Lessing apresenta os seus objetivos fundamentais: 1)


combater os críticos modernos, os quais, segundo ele, “forçam a poesia a entrar nos
estreitos limites da pintura, assim como deixam a pintura ocupar a vasta esfera da
poesia”;43 e 2) corrigir as “sentenças injustas”, tal como aquela exposta por Simônides: “a
pintura é uma poesia muda e a poesia uma pintura que fala”.44 Tal afirmativa, segundo
Lessing, não é completamente verdadeira, pois não é possível aproximar as artes temporais
das espaciais além do limite estabelecido pela própria natureza de cada uma delas.

Com o intuito de estabelecer as devidas distinções e esclarecer possíveis


controvérsias, Lessing elegeu como objeto de análise uma peça escultórica, atribuída a três
escultores de Rodes, Atenodoro, Polidoro e Agessandro.45 A peça foi encontrada em Roma
no ano de 1506 e representa o momento em que o sacerdote troiano Laocoonte e seus dois
filhos estão morrendo, vítimas do envenenamento causado pelas mordidas de duas
serpentes.

43
LESSING, op. cit., p. 78.
44
Loc. cit.
45
Segundo Márcio Seligmann-Silva, “O grupo de mármore que representa Laocoonte com seus filhos, uma
das esculturas mais famosas da Antiguidade, data de cerca de 140 a. C. – i.e., da época de inflexão entre o
declínio do mundo grego e o nascimento de Roma como potência europeia. Em 1506 foi encontrada em
Roma um cópia romana de mármore dele (a partir do original de bronze) de autoria de três escultores de
Rodes, da era do Reinado de Tibério (4-37 a. C.) que pode ser vista até hoje no Vaticano, onde ela foi
abrigada. Um ideia do original grego de bronze, embora sem o braço direito de laocoonte, encontrado apenas
em 1904, pode ser obtida a partir da observação do bronze do grupo Laocoonte de autoria de Primaticcio, de
1540 realizada em Fontainebleau.” (SELIGMANN-SILVA, Márcio. Prefácio. In: LESSING, G. E. op. cit., p.
82.)
34

Figura 1: Laocoonte. Atenodoro, Polidoro e Agesandro, 50 a.C.

Vale salientar que, não por acaso, o objeto artístico escolhido foi o mesmo que, anos
antes – 1755 –, Johan Joachim Winckelmann (1717-1768), o crítico de arte mais rebatido
por Lessing, usou para fundamentar sua análise. Segundo o filósofo Gerd Bornheim (1929-
2002),

A obra de Johan Joachim Winckelmann pode ser compreendida como um


singular capítulo da famosa querele des anciens et des modernes, e o seu
mérito fundamental consiste em haver possibilitado a visão de mundo
antigo sob uma nova luz, dentro de uma nova perspectiva. Sua
35

importância histórica não repousa apenas no fato de defender


entusiasticamente os antigos, mas sobretudo em saber problematizá-los. 46

A análise empreendida por Winckelmann está em seu livro, Reflexões sobre a Arte
antiga (1755), e foi com base nesse estudo que Lessing desenvolveu grande parte de sua
argumentação, condenando como incertas e superficiais muitas passagens do pensamento
de Winckelmann e colocando-se não contra as suas afirmações mais gerais, mas sim contra
as comparações estabelecidas entre o Laocoonte, as peças de Sófocles e a Eneida, de
Virgílio. Para Lessing, as comparações eram indevidas justamente porque tentavam reunir
espécies muito distintas de arte. Grande parte de sua argumentação pois, foi feita com base
na seguinte passagem do livro de Winckelmann:

Enfim, o caráter geral que, antes de tudo, distingue as obras gregas, é uma
nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na
expressão. [...] a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas
maiores paixões, uma alma magnânima e ponderada.
Essa alma se revela na fisionomia de Laocoonte e não somente na face,
em meio ao mais intenso sofrimento. A dor que se revela em todos os
músculos e tendões do corpo e que, se não examinarmos a face e outras
partes, cremos quase sentir em nós mesmos, à vista apenas do baixo
ventre dolorosamente contraído, esta dor, digo, não se manifesta por
nenhuma violência, seja na face ou no conjunto da atitude. Laocoonte não
profere gritos horríveis como aqueles que Virgílio canta. A abertura da
boca não o permite: é antes um gemido angustiado e oprimido, como
Sadolet o descreve. A dor do corpo e a grandeza da alma estão repartidas
com igual vigor em toda a escultura da estátua e por assim dizer se
equilibram. Laocoonte sofre como o Filoctetes de Sófocles. Seu
sofrimento nos penetra até o fundo do coração, mas desejaríamos poder
suportar o sofrimento com essa grande alma. 47

A escultura foi escolhida como objeto de análise por representar a dor de maneira
explícita e contundente. Essa sensação, segundo ambos os críticos, também poderia,
obviamente, ser representada com a mesma veemência em outros tipos de artes, como a
tragédia. A dor física se expressa naturalmente em toda a literatura antiga, porém, Lessing
discordou dos motivos que levaram Winckelmann a afirmar que, apesar da dor manifestada
por Laocoonte, existia “uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude

46
BORNHEIM, Gerd. “Introdução à leitura de Winckelmann”. In: WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a
Arte antiga. Tradução de Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento, 1975. p. 8.
47
WINCKELMANN, J. J., op. cit., p. 53.
36

quanto na expressão”,48 que o impediram de gritar. Vejamos a imagem ampliada da face


esculpida de Laocoonte:

Figura 2: Laocoonte. Atenodoro, Polidoro e Agesandro, 50 a.C. (detalhe)

A escultura, segundo Winckelmann, representa a dor, mas não o grito. Contra tal
afirmativa, Lessing afirmou:

E agora eu chego no meu corolário. Se é verdade que, sobretudo segundo


o modo de pensar dos gregos antigos, o gritar na sensação de dor corporal
pode coexistir muito bem com uma grande alma: portanto, a expressão de
uma tal alma não pode ser a causa pela qual, apesar disso, o artista não
queira imitar esse grito no seu mármore; antes deve haver um outro
motivo por que aqui ele separa-se do seu rival, o poeta, que expressa esse
grito com o melhor propósito.49

48
Loc. cit.
49
LESSING, op. cit., p. 88.
37

Para Lessing, os comentários de Winckelmann não são válidos por serem


fundamentalmente subjetivistas, isto é, por carecerem de objetividade e por deixarem
transparecer apenas uma impressão sensitiva. A partir dessa consideração, Lessing deu
início ao processo de sistematização de três gêneros artísticos: 1) a Escultura, enquanto
prática artística completa e especificamente imitativa; 2) a Poesia Épica que, enquanto arte
temporal imita as ações, porém, de forma mais ampla, pode também expressar a ideia de
espaço; e 3) a Poesia Dramática, arte ao mesmo tempo espacial e temporal, que melhor
representa o ideal mimético quando encenada.

É explícita a predominância do conceito de imitação no exercício de comparação e


divisão das três categorias. Ao conceito de Mimese une-se o de Belo, pois ainda que o
sentimento ou ação representada seja de dor e sofrimento, o objeto artístico ideal deve
sempre manifestar tais sentimentos com beleza. Segundo Lessing, o “artista [grego]
pintava apenas o belo; mesmo o belo ordinário, o belo de gêneros mais baixos, constituía
apenas o seu objeto casual, seu exercício, sua distração”.50 Para ele, a atitude de amenizar a
dor ao esculpir a imagem de Laocoonte de maneira alguma revelava impotência por parte
do artista. Demonstrava, ao contrário, a mais clara consciência dos limites que a própria
arte impunha. Com base nessa prerrogativa, Lessing estabeleceu uma primeira tentativa de
normatização para a prática artística de seu tempo:

Verdade e expressão seriam a sua primeira lei; e assim como a natureza


mesma sacrificaria a toda hora a beleza a intenções superiores, do mesmo
modo também o artista deveria subordiná-la ao seu desígnio universal e
não se entregar a ela mais do que verdade e expressão o permitem. Em
suma, graças à verdade e à expressão o mais feio da natureza é
transformado num belo da arte. 51

Ao definir que a Imitação e o Belo eram os elementos através dos quais um objeto
artístico deveria ser julgado, Lessing indiretamente sugeriu que fosse mantido o mesmo
processo de produção artístico antigo. O artista não estaria autorizado, por exemplo, em
nome do julgamento de validação artístico de sua obra, a representar mais de um instante
da natureza. Ele deveria, ao contrário, apresentar uma cena instantânea, um único ponto de
vista. O observador por sua vez, deveria, após longas e repetidas observações,

50
Ibid., p. 91.
51
Ibid., p. 101.
38

complementar pela fantasia o instante visto e manifestado pela obra. Nesse sentido, em
contraposição às afirmações de Winckelmann, Lessing explicou:

Quando, portanto, Laocoonte suspira, a imaginação pode escutá-lo gritar;


se, no entanto, ele gritasse, ela não poderia nem subir um degrau acima
na sua representação, nem descer um degrau abaixo, sem olhá-lo num
estado mais tolerável e, portanto, mais desinteressante.52

Note-se que algumas prerrogativas também foram estabelecidas para a recepção. O


ato de leitura da obra seria um momento de preenchimento de uma lacuna apresentada
propositalmente pela mesma. A imaginação fantasiosa já fazia parte do ato de
decodificação e deveria se manifestar, mas apenas na medida em que não violasse o
significado do objeto artístico. Segundo Lessing, o artista deveria construir sua obra,
indicando o limite que seu observador precisaria respeitar ao interpretá-la, na tentativa de
não abrir a possibilidade de se fazer imaginar algo que por ventura pudesse ser inferior ou
superior à própria representação manifestada no objeto. Para Lessing, o autor do grupo
escultórico conseguiu estabelecer precisamente tais limites ao moderar a expressão de dor
representada especialmente pelo rosto pesaroso, mas não completamente contorcido da
figura central.

Nesse ponto, Lessing começou a tecer as primeiras comparações e argumentações


sobre os limites da arte poética. Para ele, o campo da poesia é muito maior que o das artes
plásticas, fato que favorece seu potencial imitativo. No universo da poesia, as ações são
mais relevantes que a aparência física das personagens, bem como a disposição destes
corpos no espaço, afinal, a visualização, para o receptor da arte poética, é inteiramente e
unicamente imaginativa.

Partindo dessa constatação e com base na passagem poética escrita por Virgílio,
Lessing afirmou: “Quando o Laocoonte de Virgílio grita, quem pensa então que é
necessária uma grande boca para gritar e que essa grande boca o torna feio”?53 Em outras
palavras, para Lessing, a poesia, enquanto arte temporal, imitava as ações pela construção
de um esquema sucessivo de imagens. O poeta, ao contrário do escultor ou do pintor, não
construía sua obra a partir da escolha de um instante. Ele obedecia a uma regra inerente ao
caráter de seu objeto artístico, que respeitava um princípio de continuidade e organizava

52
Ibid., p. 101-102.
53
Ibid., p. 107.
39

um apanhado de fatos, orientando seu leitor a identificar o início, o meio e o fim de sua
narrativa. Através da palavra, portanto, a dor de Laocoonte poderia ser inteiramente
representada e a habilidade do poeta era a única forma de tornar sensível ao intenso
sentimento de dor o leitor que recepcionava o texto.

Para Lessing, acima da poesia lírica e mais próxima da arte espacial, porém,
colocava-se a poesia dramática. Distintas e ainda mais minuciosas são as suas
considerações a respeito dessa arte, das quais resultaram argumentos ainda mais
importantes sobre o exercício crítico.

Inicialmente, Lessing apresentou algumas diferenças significativas entre a narração


lírica, em que os gritos aparecem descritos no texto, tomando a forma de signos artificiais;
e os gritos em si que, quando encenados, ganham o status de signos naturais. Ao comparar
a dor sentida pelo Laocoonte esculpido em mármore à dor sentida pelo Filoctetes de
Sófocles, Lessing problematiza a questão da representação do sofrimento da seguinte
forma:

Como sofre este? É muito estranho como o seu sofrimento deixou em nós
impressões tão diferentes. As lamentações, o grito, as maldições
selvagens com as quais a sua dor preenche o campo e atrapalha todo o
sacrifício [...] quais sons de pesar, de lamento, de desespero, que também
o poeta na sua imitação deixa ressoar o teatro em seu drama [...] As
exclamações de lamento, o gemer [...] que constituem esse ato e que
deviam ser declamados com alongamentos e interrupções muito
diferentes daqueles necessários num discurso ordenado fizeram com que
a representação desse ato sem dúvida durasse praticamente tanto quanto
os outros. Ao leitor ele parece ser muito mais curto no papel do que terá
parecido aos ouvintes. 54

Podemos perceber que Lessing sutilmente aproximou a arte dramática da arte


pictórica. Para ele, o drama, ao contrário da poesia lírica, adaptava-se mais intensamente
ao contexto espacial, típico das artes plásticas. Ao estabelecer essa pequena comparação, a
poesia dramática foi apresentada enquanto supostamente superior aos demais gêneros
literários. Aquilo que parecia curto ou insignificante no papel ganhava outra dimensão,
muito maior e, consequentemente, mais efetiva e aparentemente mais natural no palco.
Enquanto na poesia lírica o leitor precisava acreditar nos gritos que se expressavam em
forma de linguagem e imaginar para eles uma feição e uma intensidade física, na
54
Ibid., p. 86.
40

encenação ele poderia ver e ouvir tais gritos. E já que para Lessing o ideal da arte era
justamente a obediência máxima à verossimilhança, ele sistematizou todas as artes através
da hierarquização, pautando-se sempre nessa regra primordial. Por isso, quando
perguntado sobre o problema da recepção, Lessing respondeu que:

A poesia deve tentar elevar os seus sinais arbitrários à categoria de sinais


naturais: é assim que ela difere da prosa e se torna poesia. Os meios pelos
quais isto se consegue são o tom das palavras, a posição dos termos,
métrica, figuras e tropos, símiles etc. tudo isto faz os sinais arbitrários
assemelharem-se mais a sinais naturais, mas não os transforma de fato em
sinas naturais. Consequentemente, todos os gêneros que usam apenas
estes meios devem ser considerados como variedades inferiores de
poesia; e a poesia mais alta será aquela que transforma completamente os
sinais arbitrários em sinais naturais. É a poesia dramática.55

Ao expor seu parecer sobre os signos naturais e artificiais e, dessa forma,


hierarquizar as artes a partir desse princípio, parece-nos que Lessing deixou em aberto um
ponto problemático. Afinal, primeiro estabeleceu limites para cada arte e as reuniu em dois
grupos de acordo com sua natureza espacial ou temporal, mas posteriormente mostrou-se
confuso quanto ao lugar da arte dramática, assim como também relativizou o das demais.

Sem esclarecer completamente a questão, Lessing prosseguiu com suas


argumentações, questionando a origem do conjunto escultórico Laocoonte, para tentar
entender o processo de criação e cópia. Sempre com base no princípio de imitação, o
crítico partiu da premissa que considerava ser mais pertinente: a de que o escultor teria
copiado o poeta Virgílio. Devido à longa descrição do conjunto de fatos que resultaram no
acontecimento em que pai e filhos foram enredados e envenenados pelas serpentes, e pela
originalidade da ideia, Virgílio muito provavelmente teria criado a singular imagem e não
sofrido a influência e o desejo de imitar. Para Lessing, seria mais coerente aceitar que o
escultor, com base na poesia de Virgílio, tenha escolhido uma cena para representá-la em
forma de escultura. Os artistas plásticos, ao imitarem o poeta, teriam sido fiéis à ideia
original, mantendo, dentro dos limites que sua arte autoriza, a liberdade de movimentação
do corpo, resultante da sensação dolorosa, focando no conjunto expressivo e não
propriamente no fato acontecido.

55
Apud WIMSATT Jr., William K. & BROOKS, Cleanth. op. cit., 1971, p. 328. 9 (Trecho retirado de uma
carta escrita por Lessing a Nicolai, de 26 de maio de 1769.)
41

Para Lessing, partir da ideia de que Virgílio teria imitado os escultores, não seria
igualmente fácil, pois a inversão resultaria em uma série de obstáculos. Caso a imitação
tivesse partido de Virgílio, este se veria forçado a reduzir seu processo inventivo.

Dessa forma, Lessing acabou ressaltando a potência criativa e mimética da poesia,


sobretudo da poesia dramática, argumentando que no espaço poético, cujo campo
imagético é imaterial e caracteristicamente infinito, uma infinidade de imagens pode
permanecer ao lado de outras, sem que “uma oculte a outra ou a desfigure, como sucede às
próprias coisas ou aos seus signos naturais, no estreito limite do tempo e do espaço”.56 A
afirmativa, no entanto, parece-nos problemática porque a ideia da possibilidade de
justaposição das imagens contrapõe-se à tese principal de seu tratado, que se refere à
poesia enquanto arte caracteristicamente temporal e não espacial.

Ao prosseguir com sua tese, Lessing iniciou um diálogo com outro renomado
estudioso de arte, o professor de poesia da universidade de Oxford, Joseph Spence (1699-
1768). De acordo com Spence, ao descreverem as musas e os deuses, os poetas clássicos
latinos não conseguiam deixar de ser superficiais. Eles não mencionavam, por exemplo, os
símbolos que caracterizavam cada uma destas personagens. Tal economia discursiva, aos
olhos de Spence, rebaixava o potencial da arte poética e elevava o da arte plástica, já que
os pintores e escultores faziam questão de representar tais símbolos em suas produções,
ampliando o grau de verossimilhança e erudição das mesmas. Lessing rebateu a crítica,
alegando mais uma vez a superioridade da poesia em relação às artes plásticas. Para ele, o
nome de uma musa ou de um deus já era suficiente para introduzir a imagem completa
daquela entidade no imaginário do leitor, uma vez que os símbolos dos deuses ou musas
lhes são próprios por convenção. Em outras palavras, o nome, segundo Lessing, já revela a
coisa, sendo desnecessário o uso redundante de tais elementos. Portanto, a economia, que
para Spence era negativa, foi ressaltada por Lessing como mérito, afinal, o pintor precisava
reproduzir os símbolos alegóricos para tornar reconhecível a figura imitada, mas os poetas
não. Ele afirmou que cada arte tem uma necessidade específica: “a pintura utiliza nas suas
imitações um meio ou signos totalmente diferentes dos da poesia; aquela, a saber, figuras e
cores no espaço, já esta, sons articulados no tempo”.57

56
LESSING, op. cit., p. 141.
57
Ibid., p. 195.
42

Apesar de ter evidenciado uma linha divisória aparentemente bem clara entre as duas
artes, Lessing não conseguiu desfazer completamente o problema da representação do
tempo e do espaço. Ele diz, por exemplo, que:

Se indubitavelmente os signos devem ter uma relação conveniente com o


significado: então signos ordenados um ao lado do outro também só
podem expressar objetos que existam um ao lado do outro, ou cujas
partes existem uma ao lado da outra, mas signos que se seguem um ao
outro só podem expressar objetos que se seguem um ao outro ou cujas
partes se seguem uma à outra. 58

A partir dessa determinação arbitrária – haja vista a possibilidade de descrever


objetos que existam ou não um ao lado do outro, mesmo que seus respectivos signos não
estejam ordenados exatamente da mesma forma – Lessing tornou um pouco complicada a
tentativa de fixação de limites entre as duas artes. Com o intuito de se contrapor ao
argumento de Spence, ele mesmo afirmou que o nome de um deus era suficiente para fazer
o leitor imaginar tal figura e os detalhes de que era feita, os quais não estavam
necessariamente organizados um ao lado do outro. Além disso, ele ainda afirmou que os
corpos, com suas qualidades visíveis, eram o objeto próprio da pintura, enquanto as ações
constituíam o objeto da poesia.

Para tentar eliminar uma possível contradição, ele seguiu com seu raciocínio,
afirmando, contudo, que “todos os corpos não existem apenas no espaço, mas também no
tempo. Eles perduram e podem parecer diferentes e se encontrar numa outra relação em
cada momento da sua duração”,59 assim como também “as ações não podem apenas existir
por si mesmas, mas dependem de certos seres”.60 Ao admitir tais possibilidades, Lessing
acabou aceitando que “a pintura também pode imitar ações, mas apenas alusivamente
através dos corpos”,61 e que a pintura pode representar ações, apesar de ter que escolher
“apenas um único momento da ação nas suas composições coexistentes”.62 Disso “decorre
a regra da unidade dos adjetivos pictóricos e da economia nas exposições de objetos
corpóreos”.63

58
Loc. cit.
59
Loc. cit.
60
Loc. cit.
61
Loc. cit.
62
Loc. cit.
63
Ibid., p. 196.
43

A partir de uma análise do contexto histórico em que Lessing estava mergulhado e da


constatação da improrrogável atualização dos meios e do irrefreável desenvolvimento do
universo artístico, é possível compreender a audácia de sua tentativa. O crítico se dispôs a
organizar aquilo que naturalmente dificulta uma tentativa de categorização. A palavra e a
imagem, ordenados intencionalmente ou não, atingem o espectador num movimento de
indistinguível apreensão, a qual abre espaços para muitas possibilidades de interpretação. E
ainda que o artista saiba e queira utilizá-los, os processos de recepção driblam tais
mecanismos. Os planos metafóricos alteram as expectativas, irrompem desvios e atingem a
linha fronteiriça indiscernível entre o igual e o diferente. É nesse sentido que se torna
inviável uma completa normatização das artes.

Quando Lessing define o que pode ou não ser realizado pela pintura ou pela poesia,
ele dá a entender que as artes devem respeitar a natureza de seus materiais e que não
devem transpor os limites impostos pelos mesmos. Porém, se observarmos as conquistas da
pintura e da poesia, anteriores até mesmo ao Romantismo, notamos que mesmo naquela
época suas ideias não eram perfeitamente aplicadas ou seguidas.

Uma pintura pode ser lida a partir de seu aspecto temporal, assim como uma obra
literária pode se desdobrar em imagens espaciais, pois o sentido preserva a simultaneidade
ou o movimento percebido pela vista. Segundo Northrop Frye (1912-1991), “ouvimos o
poema quando ele se move do princípio ao fim, mas tão logo o seu conjunto esteja em
nossa mente, de pronto vemos o que significa”.64

Em seu The New Laokoon: An Essay On The Confusion Of The Arts (1910), Irving
Babbitt (1865-1933) afirmou que as especificações apresentadas por Lessing não se
tornaram uma doutrina universalmente bem aceitas nem mesmo na época de seu
lançamento. Para Babbit:

Se o “Laocoonte” realmente tivesse dominado completamente como


Blummer nos supôs, nós poderíamos dizer apenas que nenhum
ensinamento alguma vez foi tão intencionalmente desrespeitado. O século
19 testemunhou o maior deboche sobre a escrita descritiva que o mundo
alguma vez conheceu. Ele testemunhou além disso uma confusão geral
das artes, bem como dos diferentes gêneros dentro dos limites de cada

64
FREY, Northrop. “Crítica Ética: Teoria dos Símbolos”. In:______. Anatomia da Crítica. Tradução de
Péricles Eugêncio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 195.
44

arte. Para dar alguns exemplos ao acaso, nós temos a transposição da arte
de Gautier, a tentativa de Rossetti de pintar seus sonetos e escrever suas
pinturas, a ambição de Mallarmé em compor sinfonias com as palavras.
Confusões desse tipo já eram um rompante poucos anos após a morte de
Lessing, na escrita de Novalis, Tieck e Friedrich Schegel. 65

Aguinaldo José Gonçalves lembra-nos muito apropriadamente que podemos destacar


como exemplo dessa mescla de elementos o quadro Laocoonte, pintado por El Greco
(1541-1614) durante os anos de 1610 e 1614, um século antes da publicação do tratado de
Lessing:66

65
If the Laokoon really covers the ground as completely as Blummer would have us suppose, we can only
say that no teaching has ever been witnessed the gratest debauch of descriptive writing the world has ever
known. It witnessed moreover a general confusion of the arts, as well as of the diferents genres within the
confines of each art. To take examples almost at random, we have Gautier´s transpositions d’art, Rossetti’s
attempts to paint his sonnets in write his pictures, Mallarmé’s ambition to compose symphonies with words.
Confusions of this kind were already rampant within a few years of Lessing’s death, in the writings of
Novalis, Tieck, and Friedrich Schlegel. BABBITT, Irving. The New Laokoon: an essay on the confusion of
Arts. Boston: Houghton Mifflin, 1910. p. 8-9.
66
GONÇALVES, op. cit., p. 60-61.
45

Figura 3: Laocoonte. El Greco, 1610-1614.

El Greco produz uma interessante intepretação plástico-pictórica do tema Laocoonte.


O trabalho faz parte de sua fase fantástica e subverte alguns aspectos tradicionais da
pintura e, portanto, algumas das mais importantes delimitações destacadas por Lessing. A
composição expressa justamente o dinamismo da cena. Laooconte não parece manifestar a
mesma insuportável dor que o faz gritar na poesia de Virgílio – ele sequer está gritando – e
também não parece se contorcer como bem demonstrado no grupo escultórico Laocoonte.
Dois elementos invisíveis são representados no canto direito da tela, correspondendo,
segundo Leo Bromstein – estudioso de El Greco –, aos deuses Apolo e Ártemis. É possível
perceber o movimento da cena através do jogo de composição: o cavalo que corre para a
cidade; o aspecto das nuvens que sugere a formação de uma tempestade; e o traçado que dá
movimento aos corpos de todos os personagens.
46

Segundo Gonçalves, apesar de representar a lenda de Laocoonte, El Greco


desobedece às normas estabelecidas por Lessing, já que se distancia da mimese ao compor
sua pintura, a qual, apesar disso, não deixa de ser igualmente significativa.67

O mesmo acontece com a seguinte pintura de Hieronymus Bosch (1450-1516),


criada em 1480, quase dois séculos antes do surgimento do tratado lessingniano:

Figura 4: The Concert in the Egg, Hieronymus Bosch, 1480.

Note-se que em muitos aspectos a pintura desobedece, por assim dizer, às


especificações apresentadas por Lessing, por também apresentar uma atmosfera fantástica
que, apesar do trabalho de representação e de composição regular das formas, destitui o
quadro de sua carga mimética distanciando-o do ideal de beleza.

É importante reiterar que Lessing desenvolve sua tese no momento em que a Mimese
é, junto do conceito de Belo, o mais importante princípio artístico, aquele que dá

67
Ibid., p. 62.
47

autenticidade e valor a qualquer tipo de arte. Ele, assim como outros teóricos e críticos,
fala a partir de uma época racionalista, que buscava compreender os problemas da arte pelo
viés da normatização e da estruturação. Desviar-se de tais normas e princípios significava
ir ao encontro da imperfeição.

Parece-nos que Lessing não vislumbrou o futuro da arte, que dava sinais de mudança
muito fortes já em sua época. Ele buscou no passado os ideais clássicos e desconsiderou o
milenar diálogo entre as artes, assim como também não levou em conta que, desde os
tempos mais remotos, os artistas valem-se mutuamente de obras alheias como inspiração
para suas próprias criações e estão, desde então, (re)produzindo um enorme acervo
universal, caracteristicamente híbrido, fato que desestabiliza a obviedade figurativa de um
signo, seja ele verbal ou pictórico. Acreditamos que a obediência às suas colocações
normativas teria levado os artistas a produzir uma arte estática e fadada à reprodução
imitativa.

A arte, em seu processo evolutivo natural, continuou a se desenvolver livremente à


revelia das tentativas de padronização e abriu caminhos impensáveis para a época. Fato
que se deu graças também à mudança de atitude dos artistas, os quais começaram a olhar o
objeto artístico de outra forma. Em vez de “possuir” o objeto, representando-o o mais
fielmente possível, passaram a se relacionar com sua “natureza expressiva”, categoria que
Lessing não chegou a considerar em sua tese.

É bastante compreensível o motivo pelo qual grande parte dos críticos, em especial
os mais atuais, respeitosamente desconsideram a discussão empreendida pelo crítico
alemão. Dar continuidade à tentativa de estabelecer limites às artes, de forma geral,
significa estacionar numa espécie de entrave ao pensamento. Muito mais interessante do
que estabelecer o grau de capacidade de reprodução da temporalidade e da espacialidade
das variadas artes, seria tentar detectar o processo pelo qual tomamos consciência da
“presença” dos dois elementos. Afinal, conforme explica Maurice Merleau-Ponty,
“supomos, de um só golpe, em nossa consciência das coisas o que sabemos estar nas
coisas. Fazemos percepção com o percebido [...] estamos presos ao mundo e não
conseguimos nos destacar dele para passar à consciência do mundo”.68

68
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Reginaldo di Piero: Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1971. p. 23.
48

Daí parecer-nos problemática a tentativa lessingniana de sugerir que o efeito estático


seja convencionalizado e aceito como verdadeiro, em detrimento do caráter móvel e
dinâmico da consciência humana.

É notória, obviamente, a importância dos estudos lançados por Lessing em seu


Laocoonte, haja vista a retomada do Ut pictura poesis, sobre a qual ainda hoje não há
consenso. Mas entendemos que sua tese se torna mais rica e ainda mais importante quando
tentamos compreender os motivos que o levaram a se posicionar a favor de uma
organização do campo artístico.

Talvez o problema das colocações lessinguianas tenha surgido da escolha de seu


objeto de análise. Afinal, Lessing parte da escultura – tridimensional – para estabelecer um
paradigma de comparação com todos os outros tipos de arte visuais bidimensionais, tais
como o desenho, a gravura e, claro, a pintura. Ou talvez o problema esteja no fato de
Lessing ter tentado agrupar todas as artes em dois conjuntos: o da “temporalidade” e o da
“espacialidade”. Ao propor que a separação fosse feita com base nessa divisão, ele tornou
problemática a identificação das possíveis fronteiras, já que arbitrariamente impossibilitou
que muitas obras pudessem ser classificadas como temporais ou espaciais. Afinal, seria
possível retirar do próprio conjunto escultórico Laocoonte a sua carga de temporalidade?
Apesar de se mostrar como uma arte espacial, as personagens talhadas no mármore foram
representadas em sua experiência de transição da vida para a morte e, por isso, também
expressam o elemento tempo.

Em suma, apesar da corajosa tentativa, entendemos que sua tese não comporta a
realidade artística de nossa contemporaneidade. Afinal, a combinação de diferentes
linguagens cada vez mais vem se tornando uma tendência muito forte e explícita. As
fronteiras entre as diversas manifestações artísticas mais tradicionais – a pintura, a
escultura, a literatura, a dança, a música – mostram-se cada vez mais tênues, fato que nos
faz discordar da afirmação que Wolfgang von Goethe elogiosamente faz ao trabalho de
Lessing:

Só sendo jovem para poder imaginar qual o efeito que o Laocoonte de


Lessing exerceu sobre nós, na medida em que essa obra nos arremessou
de um horizonte miserável para os cumes livres do pensamento. O Ut
pictura poesis, por tanto tempo mal interpretado, foi de repente superado;
a diferença entre as artes plásticas e a poesia ficou clara, os cumes de
ambas apareceram então separados, por mais que as bases se
49

encontrassem. O artista plástico deveria manter-se dentro das fronteiras


do belo, por mais que ao poeta – que não pode passar sem um significado
de qualquer espécie – fosse permitido errar para além delas. Aquele
trabalha para os sentidos externos e só se satisfaz com o belo, esse para a
imaginação e pode se entender com o “feio”. 69

Entendemos que o Laocoonte lessigniano seja realmente um trabalho importante e


muito desafiador, que não pode simplesmente deixar de ser considerado, mas não podemos
concordar com a ideia de que, graças a ele, o Ut pictura poesis “de repetente foi
superado”70 e menos ainda com a afirmação de que “a diferença entre as artes plásticas e a
poesia ficou clara”,71 pois as manifestações da própria época e, em especial, as dos anos e
séculos posteriores reforçam exatamente o oposto de tais declarações.

Lessing deixa claro que existem fronteiras entre as artes poéticas e visuais. Contudo,
o próprio fato de ele construir uma tese tão minuciosa a respeito de tais limites,
comparando a escultura a uma passagem literária a partir de um denominador comum – a
tentativa de representação do episódio em que Laocoonte e seus filhos se contorcem de dor
–, sugere que, mesmo negando a possibilidade da intermedialidade,72 ele não poderia negar
a possibilidade da intersemioticidade.

Em se tratando de nosso século, com o surgimento de novas mídias, a análise do


cenário artístico torna-se ainda mais complexa. Uma reflexão crítica atualizada da arte
precisa levar em conta a influência desses novos meios e suas mais improváveis
consequências. Não apenas a arte continua a ser problematizada, mas também aquilo que a
cerca, a produz, a modifica e a lê. O que é o artista hoje? Como interpretar uma obra de
arte hoje? Ainda somos meros espectadores ou participamos mais ativamente da arte que
recepcionamos? A comunicação se dá plenamente ou está em crise? Essas são apenas

69
GOETHE, Wolfgang von. [Texto da quarta capa]. In: LESSING, G. E. Laocoonte: ou sobre as fronteiras
da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011.
70
Loc. cit.
71
Loc. cit.
72
Segundo Peter Wagner, a intermedialidade se refere ao processo de conjunção e interação das diversas
mídias. Diferente da intersemioticidade – em que se estabelece uma tentativa de articulação/tradução de uma
determinada linguagem para outra linguagem, como acontece, por exemplo, na tradução da linguagem verbal
para a visual –, a intermedialidade diz respeito à tentativa de comunicação e expressão através da aglutinação
de mídias diferentes. Sintetizando, poderíamos dizer que o foco da intermedialidade é o meio, enquanto o
foco da intersemioticidade é a linguagem. Nesse sentido é que entendemos que Lessing mostra-se contrário à
intermedialidade, mas não à intersemioticidade. WAGNER, Peter. Icons, Texts, iconotexts: essays on
ekphrasis and intermediality. New York: Walter de Gruyter, 1996. v. 6. p. 17.
50

algumas questões abertas pela nova realidade que se nos apresenta desde o final do século
XIX, com o advento da Modernidade.

Diante desse cenário, faz-se necessário considerar as tentativas de construção e


imposição de fronteiras para as artes, e torna-se especialmente imprescindível compreender
que existe um enorme universo artístico, que há muito tempo e constantemente se
(des)constrói exatamente a partir da realidade de interação, integração, aglutinação e
heterogeneidade artística.

1.2. TRAÇOS DIÁFANOS: PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO INTERARTES

Convidado a falar sobre os limites da arte na exposição Artistes Indépendants, em


1901, André Gide declarou que “o Laocoonte de Lessing é um bom trabalho para, a cada
trinta anos, repetir ou contradizer”.73

Passados mais de dois séculos após o lançamento desse primeiro grande tratado
sobre os limites entre as artes – o Laokoon: ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, o
crítico nova-iorquino Clement Greenberg, ao lançar o seu também polêmico ensaio Rumo
a um mais novo Laocoonte –, realiza exatamente aquilo que André Gide havia proposto em
1901: atualiza, em 1939, o pensamento de Lessing, levantando questões muito importantes
para o atual cenário artístico.

Apesar de o título sugerir uma proposta inovadora de leitura, Greenberg nos


surpreende ao posicionar-se a favor do estabelecimento de alguns limites para a Pintura.
Logo no primeiro parágrafo de seu texto, declara:

Atualmente, o dogmatismo e a intransigência dos puristas da pintura “não


objetiva” ou “abstrata” não podem ser descartados como meros sintomas
de uma atitude de culto em relação à arte. Os puristas fazem exigências
extravagantes à arte porque, em geral, a valorizam mais do que ninguém.
Pela mesma razão são muito mais atenciosos com ela. Uma boa parte do
purismo é a tradução de uma extrema solicitude, de uma ansiedade

73
“Le Laocoon de Lessing est oeuvre qu’il est bon tous les trente ans de redire ou de contredire”.
GREENBERG, Clement. “Rumo a um mais novo Laocoonte”. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília
(Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Funarte/Jorge Zahar, 1997. p. 45
51

quanto ao destino da arte, de uma preocupação com sua identidade.


Devemos respeitar isso. 74

Em meio a tantas opiniões contrárias e mesmo diante de uma realidade artística


altamente híbrida, o discurso de Greenberg chama-nos à atenção por veicular um ideal de
“purismo”, entendido por ele como uma forma de reação contra uma possível
“promiscuidade”75 entre as artes, advinda de uma histórica relação de competição entre as
mesmas.

Segundo o crítico, a confusão entre as artes é um fenômeno antigo que está


diretamente ligado ao fato de que, em determinados períodos históricos e por diversos
motivos, uma arte sempre é dominante. No século XVII, por exemplo, a música
desenvolve-se bastante em termos formais, mas é a literatura que assume um lugar de
predomínio, o qual, até o século XVI, havia sido ocupado pela pintura. O problema surge
“quando porventura se confere a uma arte o papel dominante, esta se torna protótipo de
toda arte: as outras tentam se despojar de suas próprias características e imitar os seus
efeitos. A arte dominante, por sua vez, tenta absorver as funções das demais”.76

Greenberg também explica os efeitos dessa relação conflituosa utilizando como


fundamento a relação da literatura com as artes visuais. Para ele, ao retirarem a ênfase do
meio para focarem no tema, a pintura e a escultura se subvertem e se degeneram porque se
convertem em “meros espectros e ‘títeres’ da literatura”.77 Essa teria sido a grande falha da
estética romântica, pois, “na prática, incentivou aquela forma específica e difundida de
desonestidade artística, que consiste em tentar escapar dos problemas do meio de uma arte
buscando refúgio nos efeitos de outra”.78 Dessa forma, em nome da imitação, que se
colocava a serviço da alusão literária e que se interessava mais pelos significados práticos
dos objetos do que em apreciar sua aparência, o meio foi desconsiderado.

Por volta de 1848, “o romantismo já se esgotara”.79 Caberia à Vanguarda – “a um só


tempo filha e negação do romantismo”80 – a tarefa de encontrar novas formas culturais

74
Loc. cit.
75
Loc. cit.
76
Ibid., p. 46.
77
Ibid., p. 47.
78
Ibid., p. 48.
79
Ibid., p. 50.
80
Loc. cit.
52

capazes de expressar a mesma sociedade. O primeiro grande objetivo do programa da


Vanguarda seria livrar as artes das ideias ideológico-sociais que as contaminava.
Greenberg explica que:

Por ideia passou-se a entender tema em geral. (Tema como distinto de


conteúdo, no seguinte sentido: toda obra de arte tem que ter conteúdo,
mas o tema é algo que o artista pode ou não ter em mente quando está
realmente trabalhando). Isso significou uma nova e maior ênfase na
forma e envolveu a afirmação das artes como vocações, disciplinas e
ofícios independentes, absolutamente autônomos e respeitáveis por si
mesmos, e não como meros canais de comunicação. Este foi o sinal para
uma revolta contra o predomínio da literatura, que era o tema na sua
forma mais opressiva. 81

Segundo o crítico nova-iorquino, Gustave Courbet (1819-1877) foi o primeiro a


voltar-se contra o “predomínio da literatura”,82 foi o “primeiro verdadeiro pintor de
vanguarda”,83 pois tentou reduzir a arte pictórica a dados sensoriais imediatos. Porém, não
conseguiu alcançar a objetividade que tanto professava. Apesar do desvio cometido,
Courbet legou ao Impressionismo a busca da objetividade materialista que desaguaria mais
tarde na busca pela essência não só da pintura, mas da experiência visual como um todo.
Foi Édouard Manet (1832-1883) quem de fato começou a atacar o tema e a compreender
“o problema da pintura como problema antes de mais nada do meio, e chamou a atenção
dos espectadores para isso”.84 Porém, apesar de todos os esforços, na tentativa de escapar
da “literatura”, a Vanguarda, como aponta Greenberg, ampliou a confusão, ao decidir
simplesmente produzir os efeitos de outra arte. Dessa forma, “a pintura impressionista,
com suas progressões e difusões de cor, com seus humores e atmosferas, estava alcançando
os efeitos [...] da música romântica”,85 enquanto a poesia passava a “imitar os efeitos da
pintura, da escultura [...] e da música”.86 Esta, por sua vez, representada na época pela
figura de Claude Debussy (1862-1918), tornou-se programática. Ou seja, passou a ser
figurativa. Para Greenberg, “assim como os pintores impressionistas tentavam chegar à
estrutura subjacente à cor, Debussy tentava chegar ao ‘som subjacente à nota’”,87
potencializando a qualidade física de seu próprio meio. Assim, a música passou a ocupar

81
Loc. cit.
82
Loc. cit.
83
Loc. cit.
84
Ibid., p. 51.
85
Ibid., p. 52.
86
Loc. cit.
87
Loc. cit.
53

uma posição privilegiada em relação às demais artes e a substituir a poesia enquanto arte-
modelo. Era ela o mais novo agente da nova confusão entre as artes. A novidade permitiu
que a Vanguarda descobrisse então que “a vantagem da música residia no fato de ela ser
uma arte ‘abstrata’, uma arte de ‘pura forma’”,88 porque ela era incapaz de comunicar outra
coisa que não fosse uma sensação. Enquanto uma pintura imitativa, por exemplo, poderia
ser descrita a contento, a música não permitia que o mesmo procedimento fosse realizado,
justamente porque seus efeitos “são os efeitos da pura forma”,89 Para alcançar a pureza, a
arte, fosse ela visual ou verbal, precisava enfatizar o físico, o sensorial. É com base nesse
cenário que Greenberg introduz o conceito de pureza que “consiste na aceitação voluntária
das limitações do meio de cada arte específica”.90 Ele ainda afirma que:

Norteando-se, quer consciente quer inconscientemente, por uma noção de


pureza derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda nos últimos
cinquenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitação radical de seus
campos de atividade sem exemplo anterior na história da cultura. As artes
encontram-se agora em segurança, cada uma dentro de suas “legítimas”
fronteiras, e o livre comércio foi substituído pela autarquia.91

Note-se que, apesar do distanciamento temporal e da diferença do contexto histórico,


Greenberg parece retomar a declaração feita por Goethe a respeito do Laocoonte de
Lessing. Segundo Goethe, “o Ut pictura poesis, por tanto tempo mal interpretado, foi
[graças ao tratado lessinguiano] de repente superado; a diferença entre as artes plásticas e a
poesia ficou clara”.92

Ainda que compreendamos ambas as colocações, não podemos compartilhar da ideia


de que as artes em algum momento tenham estado “em segurança, cada uma dentro de suas
legítimas fronteiras”93 ou que “a diferença entre as artes plásticas e a poesia ficou clara”.94
Não obstante todos os esforços empregados na tentativa de ampliar o grau de pureza de sua
arte e da ênfase dada ao meio, como forma de se estabelecer mais precisamente um limite,
acreditamos que os artistas, de forma geral, ainda não tenham conseguido de fato romper

88
Ibid., p. 53.
89
Loc. cit.
90
Loc. cit.
91
Loc. cit.
92
GOETHE, op. cit., quarta capa.
93
GREENBERG, op. cit., p. 54.
94
GOETHE, op. cit., quarta capa.
54

elos tão radicalmente indissociáveis. Sobre isso, Greenberg faz ainda outra afirmação, com
a qual também não concordamos:

As artes foram tangidas de volta a seus meios, e neles foram isoladas,


concentradas e definidas. É em virtude de seu meio que cada arte é única
e estritamente ela mesma. Para restaurar a identidade de uma arte, a
opacidade de seu meio deve ser enfatizada. No caso das artes visuais, o
meio se revela físico; por isso a pintura pura e a escultura pura buscam,
acima de tudo mais, afetar o espectador fisicamente. No caso da poesia,
que, como disse, também precisou escapar da “literatura” ou dos temas
para se salvaguardar da sociedade, conclui-se que o meio é
essencialmente psicológico e sub ou supralógico. 95

A passagem nos parece bastante provocativa, mas um pouco problemática. E para


esclarecer alguns pontos, tentaremos analisar cada uma de suas partes. Sobre a primeira –
“As artes foram tangidas de volta a seus meios, e neles foram isoladas, concentradas e
definidas. É em virtude de seu meio que cada arte é única e estritamente ela mesma” –,
acreditamos que o problema esteja na ideia de que o meio seja o elemento especificador de
cada arte. Talvez essa aposta seja arriscada demais, pois em muitos casos torna-se
extremamente difícil identificá-lo com precisão. Vejamos o caso do cinema, por exemplo,
que se realiza a partir da junção de meios diversos. Concordamos com a ideia de que o
cinema seja uma arte muito mais visual – haja vista a possibilidade do cinema mudo – mas
ele não é apenas ou estritamente visual.

Greenberg diz que “No caso das artes visuais, o meio se revela físico; por isso a
pintura pura e a escultura pura buscam, acima de tudo mais, afetar o espectador
fisicamente”, mas, como podemos definir, a partir desse argumento, o meio específico do
Teatro, da Ópera, dos musicais filmados? Acreditamos que todos apresentem meios
essencialmente híbridos.96 Seria possível retirar da Ópera o meio visual, ou o sonoro, ou o
verbal, sem interferir diretamente em sua composição e em seu potencial artístico? Quando
Greenberg afirma, na última parte da passagem citada, que “no caso da poesia, que, como
disse, também precisou escapar da literatura ou dos temas para se salvaguardar da
sociedade, conclui-se que o meio é essencialmente psicológico e sub ou supralógico”,

95
GREENBERG, op. cit., p. 54.
96
Segundo Julio Plaza a “hibridização ou o encontro de dois ou mais meios constitui um momento de
revelação do qual nasce a forma nova. Assim, o processo de hibridização nos permite fazer os meios
dialogarem. A combinação de dois ou mais canais a partir de uma matriz de invenção ou a montagem de
vários meios pode fazer surgir um outro, que é a soma qualitativa daqueles que os constituem”. (PLAZA, op.
cit., p. 65.)
55

como acreditar que o meio da poesia concreta, por exemplo, seja exclusivamente verbal?
Com o intuito de ser mais preciso, ele diz, em outro momento de seu ensaio que:

Mallarmé foi, contudo, o primeiro a basear nessa teoria uma prática


consistente de poesia. O som, ele conclui é apenas um auxiliar da poesia,
não o próprio meio; além disso, a poesia hoje é sobretudo lida, não
recitada: o som das palavras é parte de seu significado, não aquilo que o
contém. Para livrar a poesia do tema e dar plenos poderes à sua
verdadeira força efetiva é necessário libertar as palavras da lógica. A
singularidade do meio da poesia está no poder que tem a palavra de
evocar associações e conotar. A poesia já não reside nas relações das
palavras entre elas enquanto significados, mas nas relações das palavras
entre elas enquanto personalidades compostas de som, histórias e
possibilidade de significado [...] o conteúdo do poema é o que ele faz
para o leitor, não o que comunica. E a emoção do leitor deriva do poema
como um objeto único e não dos referentes externos ao poema. 97

Mallarmé, sem dúvidas, é um divisor de águas no espaço artístico e literário. Mas,


não concordamos com a ideia de que ele tenha se destacado pelo fato de ter conseguido
isolar e definir absolutamente o meio de sua arte. Pelo contrário. Entendemos que sua obra
é a prova da capacidade ilimitada que a arte apresenta de possibilitar o diálogo entre meios
diversos, concatenando-os e amplificando irrestritamente sua própria natureza,
essencialmente plural e multifacetada.

Caso consideremos que o som seja apenas um auxiliar e não um meio, alegando que
hoje a poesia é “apenas lida e não recitada”,98 criaremos um grave problema, afinal, a letra
foi criada justamente para representar os sons, mesmo que não queiramos dar a eles o
aspecto musical propriamente dito de um recital. Quando Mallarmé trabalha a forma
espacial do poema e, de acordo com Greenberg, o destitui da maior carga semântica
possível, coloca-nos, sim, diante de um “objeto único”, mas não no sentido de um objeto
puro, destituído de visualidade, sonoridade e sentido. Mallarmé produz uma poesia única
justamente porque extrapola o meio verbal e passa a explorar também o meio visual e o
meio sonoro. De acordo com Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos,
três de seus maiores tradutores para a língua portuguesa, a poesia de Mallarmé assume o
risco da tentativa de uma “não-linearidade som-escrita”99 ao produzir um texto altamente

97
Ibid., p. 55.
98
Loc. cit.
99
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,
2010. p. 85.
56

transgressor que exige que tenhamos “olho, ouvido e braile”.100 Também Márcia Arbex,
professora que há muito se dedica exclusivamente às questões ligadas à poética do visível
diz, contrariando a tese de Greenberg, que:

Mallarmé reintegrou ao alfabeto seu elemento visual e espacial. A partir


de Un coup de dés n’abolira jamais le hasard [um lance de dados jamais
abolirá o acaso, 1897], a cultura alfabética foi tomada pela imagem, e
tanto a literatura quanto as artes viram surgir inúmeros exemplos de
reintegração da parte visual e espacial da escrita, na ilustração, nos
cartazes, nos jogos literários com a imagem.101

Nesse sentido, mais um obstáculo se apresenta. Se partíssemos da hipótese de que


Mallarmé tenha desejado atingir realmente um ideal de pureza – para fazer com que a
poesia fosse “tangida de volta”102 ao seu meio, e nela fosse “isolada, concentrada e
definida”103 – por que teria ele que explorar intensamente o meio visual? Como poderia
uma arte alegar a pureza de seu meio, se, para defini-lo, explorou um meio diferente?

Dando sequência ao ensaio escrito por Greenberg, deparamo-nos com outro


problema. Ele diz: “se o poema, como afirma Valéry, é uma máquina para produzir a
emoção da poesia, a pintura e a estátua são máquinas para produzir a emoção da ‘visão
plástica’”.104 Note-se que o problema se torna cada vez mais complexo, pois a produção de
“emoção plástica”,105 a que Greenberg se refere como sendo exclusiva das artes visuais,
também é produzida pela poesia concreta, haja vista sua intenção verbi-voco-visual. Não
podemos deixar de evocar ainda a afirmação feita por Márcia Arbex, que analisa a
inovação de Mallarmé e as considerações feitas por Paul Valéry (1871-1945) exatamente
sobre Un coup de dés:

Restituir a plenitude ativa da escrita, reintegrando sua parte visual e


espacial é, de fato, o projeto de Mallarmé em Un coup de dés jamais
n’abolira le hasard, poema que irrompe em inúmeros pontos com a
tradição poética. Em seu prefácio, o poeta adverte o “leitor ingênuo” da
novidade introduzida no poema: “um espaçamento da leitura”. Os
espaços em branco assumem, com efeito, grande importância, como um
“significante silencioso” envolvendo o texto, e têm por função destacar

100
Loc. cit.
101
ARBEX, Márcia. “Poéticas do visível: uma breve introdução”. In: ______ (Org.). Poéticas do visível:
ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 19.
102
GREENBERG, op. cit., p. 54.
103
Loc. cit.
104
Ibid., p. 55.
105
Loc. cit.
57

cada imagem poética: “o papel intervém a cada vez que uma imagem, por
ela mesma, cessa ou surge, aceitando a sucessão de outras. [...]” Outra
inovação é a visão simultânea sobre duas páginas, resultado da distância
que “separa os grupos de palavras ou as palavras entre elas”, sugerindo a
aceleração ou a redução do movimento, ritmando a leitura. A respeito do
manuscrito definitivo do poema, Paul Valéry, a quem Mallarmé submeteu
a leitura, afirma: “Pareceu-me ver a figura de um pensamento, pela
primeira vez colocada em nosso espaço”.106

Podemos afirmar, portanto, que a compreensão e o uso do meio visual é o que


verdadeiramente possibilita a transgressão alcançada pela poesia de Mallarmé. A inovação
foi possível graças à tentativa de transposição dos limites apresentados pela tradição
Clássica e reafirmada por Lessing. E, nesse sentido, podemos entender que, se o seu maior
objetivo era a purificação do meio verbal, Mallarmé deveria ter continuado a criar cada vez
mais de acordo com o modelo clássico linear de escrita e não o ultrapassar, explorando
exaustivamente, como o fez, o meio visual e sua potência espacial, traduzido, nesse caso,
enquanto uso consciente do “caráter plástico das letras, bem como suas possibilidades mise
en page, ou seja, como figuras desenhadas no espaço da página”.107

Diante de toda a argumentação apresentada pelo crítico e abrindo um pouco mais o


foco de observação, como poderíamos entender a proposta dos papier-collés produzidos
pelos cubistas Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963), em que trechos
de jornais, letras e outros elementos verbais figuram na tela, acionando tanto o aspecto
físico quanto o aspecto psicológico do espectador? O que fazer dos Parangolés do
brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980), os quais, ainda que de forma indireta, representam
um deslocamento, uma tentativa de retirada do quadro da parede das galerias, bem como a
sua figuração enquanto objeto autônomo e móvel? Como entender os Ready Made de
Marcel Duchamp (1887-1968), desconsiderando as inovações trazidas justamente pela
confusão dos media? Não acreditamos que seja possível simplesmente desconsiderar essas
e outras centenas de produções artísticas, que claramente usam e estão fundamentadas em
meios híbridos, todos igualmente importantes para a produção do efeito esperado ou
pretendido, mesmo quando a pretensão seja a de não causar efeito algum, ou a de
simplesmente “nada” provocar.

106
ARBEX, op. cit., p. 27.
107
Loc. cit.
58

Assim que tentamos recuperar registros que testemunhem as primeiras relações


interartes, deparamo-nos imediatamente com o problema da relação imagem-texto-som.
Mas, a história da escrita ajuda-nos a compreender que, desde a mais remota época, tal
interação já era demasiadamente estreita. Quando recuperamos os primeiros registros de
tentativa de expressão artística, percebemos que essa relação não é apenas direta, mas
praticamente indissociável.

Sabemos que as imagens gravadas nas paredes de cavernas ou pedras nada mais são
do que a primeira tentativa de comunicação humana. Porém, conforme explica Ernst
Gombrich: “ignoramos como a arte começou tanto quanto desconhecemos como se iniciou
a linguagem”.108 A imagem era, por si só, uma forma de escrita, assim como hoje, a escrita
é um transmissor que comunica através de sua forma gráfica.

De acordo com Anne-Marie Christin, longe de serem imagens de coisas, “as


primeiras figuras pintadas pelo homem sobre as paredes das cavernas pré-históricas
traduziam um pensamento simbolizador do qual não havia esboço”.109 Por outro lado, a
escrita também não se constituía como “mera representação da fala; ela nasceu de uma
estrutura elaborada a partir da imagem, na qual a fala integrou os elementos de seu sistema,
os quais eram compatíveis com ela”.110

Se considerarmos o sentido do termo “escrita” como veículo gráfico de uma palavra,


podemos dizer que a escrita nasceu da imagem,111 ou, ainda, que a escrita tem, por
natureza, um caráter icônico, haja vista o fato de ela não ter sido criada apenas para
reproduzir a palavra, mas, antes de mais nada, para torná-la visível. De acordo com Márcia
Arbex:

O estudo das diferentes teorias sobre a origem da escrita e seus diversos


sistemas permitem constatar que em todas as sociedades ditas orais
coexistem dois modos de comunicação: a linguagem oral, que estrutura o

108
GOMBRICH, Ernst. A História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 19.
109
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem enformada pela escrita”. In: ARBEX, op. cit., p. 65.
110
Ibid., p. 64.
111
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem e a letra”. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: CHRISTIN,
Anne-Marie. Poétique du blanc: vide et intervale dans la civilisation de l’alphabet. Leuven: Peeters-Vrin,
2000. p. 340. Disponível em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero02/FCRB_Escritos_2_15_Anne-Marie_Christin.pdf>.
Acesso em: 14 abr. 2015.
59

grupo e rege suas trocas internas; e a visão, que permite ao grupo ter
acesso ao mundo invisível por intermédio do simbólico.112

Obviamente, defender a origem icônica da escrita não significa desconsiderar a


oralidade, mas afirmar o caráter essencialmente duplo de sua fonte. Arbex afirma que uma
das principais questões relativas à natureza e à gênese da escrita gira justamente em torno
do “mito da origem verbal da escrita”.113 De acordo com Anne-Marie Christin:

É seu caráter essencialmente misto que marca a estrutura da escrita:


porque seu sistema apoia-se sobre dois registros ao mesmo tempo, o
verbal e o gráfico, mas também porque esses registros são eles próprios
profundamente heterogêneos um ao outro. Suas modalidades de
expressão não se situam nem no mesmo campo físico – um é oral, o outro
visual – nem no mesmo contexto de relações intersubjetivas – no
primeiro caso, ambos os parceiros devem estar presentes, no segundo,
apenas a presença de um espectador é necessária. [...]. Não seria mais
lógico supor que é o grafismo e não a língua que forneceu os recursos e
as motivações necessárias para o surgimento da escrita? O próprio
grafismo constituindo, com efeito, um médium de tipo compósito,
associando a um suporte espacial de determinada forma e matéria, figuras
que ali se inscrevem e que permaneciam estranhas a ele enquanto tais.114

A passagem nos remete ao texto, A pintura moderna, também escrito por Clement
Greenberg. Nesse texto, o crítico mais uma vez argumenta a favor da pureza do meio,
declarando que:

Foi, contudo, a enfatização de que a base da Pintura era ineludivelmente


plana que permaneceu como fato fundamental dos processos pelos quais
a arte pictórica criticou-se e definiu-se no Modernismo. Somente a
superfície plana era exclusiva daquela arte. A forma definida do suporte
era uma condição limitativa, ou norma, compartilhada com a arte teatral;
a cor era uma norma, ou meio partilhado com a escultura, bem como com
o teatro. A superfície plana, a sua bidimensionalidade, era a única
condição da Pintura não compartilhada com arte alguma, e, portanto, a
pintura moderna orientou-se para essa bidimensionalidade de maneira
inequívoca.115

112
ARBEX, op. cit., p. 18.
113
Loc. cit.
114
ARBEX, apud CHRISTIN, Anne-Marie. L’image écrite ou la déraison graphique (1995). In: ARBEX,
Márcia. op. cit., p. 20.
115
GREENBERG, Clement. “A Pintura Moderna”. In. A Nova Arte. Tradução de Cecília Prada e Vera de
Campos Toledo. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 97.
60

Entendemos que o fato de se definir o plano enquanto meio exclusivo da Pintura não
é suficiente para resolver o problema da intermedialidade, entendida enquanto fusão ou
síntese de qualidades de pelo menos dois meios considerados distintos. Afinal, a escrita, há
séculos, é registrada com tinta em uma base plana e bidimensional. E conforme explica
Anne-Marie Christin: “se a escrita nasceu da imagem, isso se deve ao fato de que ‘a
própria imagem se originou, antes, da descoberta – isto é, da invenção – da superfície: ela é
o produto direto do pensamento da tela’”.116

O vínculo entre literatura e pintura, desde os tempos mais remotos, era, como
podemos perceber, indiscernível. Nesse sentido, podemos compreender a querela do Ut
pictura poesis não como rompimento entre as duas artes, mas enquanto mais uma
constatação da estreiteza do vínculo existente entre ambas.

Apesar das transformações impostas pelo tempo, tal vínculo nunca deixou de existir.
Basta considerarmos não apenas as primeiras pinturas rupestres, mas também as mais
variadas formas de escrita que apresentam um aspecto mais figurativo, como é o caso dos
hieróglifos, da escrita cuneiforme e dos ideogramas chineses, e que vão desaguar nas
variadas tentativas de produção de uma narrativa visual, como é o caso dos papier-collés
de Picasso e Braque, do método ideogrâmico de Ezra Pound e, por fim, do cinema.
Reafirmamos ainda a contribuição irrecusável de Mallarmé e seu Un coup de dés. Segundo
Anne-Marie Christin:

Tudo mudou no pensamento ocidental da escrita com o coup de dés de


Mallarmé. Pela primeira vez na nossa história, nós como herdeiros do
alfabeto, tomamos consciência do fato de que não dispúnhamos
simplesmente, com esses signos, de um meio relativamente cômodo de
transcrever graficamente nossa fala, mas de um instrumento complexo,
duplo, ao qual era necessário reintegrar a parte visual – espacial – da qual
ele havia sido privado, para restituir-lhe sua plenitude ativa de
escritura.117

A autora também salienta a influência que a obra do pintor Édouard Manet produziu
na escrita de Mallarmé. Segundo a estudiosa, apesar de nada conhecer sobre pintura, antes
de conhecer a obra de Manet, Mallarmé torna-se um dos seus teóricos mais importantes.

116
CHRISTIN, op. cit., 2000, p. 18.
117
Ibid., p. 7.
61

Ele então corrobora a ideia de que a arte poética “poderia tornar-se poesia dela mesma, por
sua matéria”.118 Desta forma, ainda segundo Christin:

[...] transposto para a literatura, o exemplo dessa poesia material deveria


libertar, por sua vez, a arte da escrita de outros constrangimentos: aquele
do peso de um sentido previsível ligando as palavras a seu passado
trivial; aquele da própria enunciação. 119

Com esse poema, além de ultrapassar o convencionalismo de sua época, Mallarmé


causa um grave ruído no processo de comunicação. Ele abre novos caminhos para a poesia
e para as artes de um modo geral, assim como apresenta novos questionamentos e cria
novos obstáculos, principalmente no que diz respeito aos limites de composição, do sentido
e da recepção. Afinal, conforme afirma Márcia Arbex, Mallarmé restitui a plenitude ativa
da escrita, reintegrando sua parte visual e espacial, rompendo, dessa forma, com a tradição
poética. Un coup de dés foi pensado também enquanto conjunto musical que, portanto, traz
em seu corpo o aspecto polifônico do simultaneísmo das vozes. Em sua aparente
(des)estrutura, ele também viola a lei da linearidade, ao apresentar um “sistema” em que
cada elemento mantém sua autonomia sem, no entanto, perder sua ligação com o todo.
“Outra inovação é a visão simultânea sobre duas páginas, resultado da distância que separa
os grupos de palavras entre elas, sugerindo a aceleração ou a redução do movimento,
ritmando a leitura”.120 A poesia ganha movimento no espaço da folha de papel e leva o
leitor a conhecer um novo modo de leitura. Em suma, Mallarmé consegue aglutinar dois
aspectos até então vistos como elementos inconciliáveis tanto na literatura, quanto na
pintura – o espaço e o tempo –, e o faz justamente quando passa a (re)considerar o valor
altamente significativo do suporte – o vazio da página.

O suporte (a tela, o papel em branco, o écran) transforma-se no denominador


comum, através do qual será restabelecida a relação entre letra e imagem. A descoberta de
uma nova sensibilidade, na verdade, apesar de apresentar um aparente aspecto de absoluta
novidade, apenas explicita aquilo que já fundamentava palimpsesticamente o mundo das
artes e que por muito tempo permaneceu figurando literalmente como plano de fundo. Por
isso, devemos concordar com Roland Barthes que afirma: “Nenhuma superfície é virgem:

118
Ibid., p. 112.
119
Loc. cit.
120
ARBEX, op. cit., p. 26.
62

tudo já nos chega áspero, descontínuo, desigual, marcado por algum acidente: o grão do
papel, as manchas, a trama, o entrelaçado de traços, os diagramas, as palavras”.121

Anne-Marie Christin, por sua vez, diz que “do ideograma ao alfabeto, de fato o
visível perdeu sua função semântica e, sobretudo, social. A imagem polivalente da palavra
foi substituída pela imagem fixa e abstrata da letra”.122 É possível dizer que “Mallarmé
recuperou a escrita que por tanto tempo nos fora dissimulada pelo alfabeto no espaço mudo
da página branca”.123

Podemos afirmar que os poetas concretos restabeleceram, com absoluta genialidade,


a originalidade da relação entre imagem e letra. Mostraram-nos, ao explorar novos recursos
de composição, que sempre existiu um lugar fronteiriço, onde imagem e texto se
confundem, onde a escrita explora sua visualidade e restitui à escrita sua materialidade e
sua qualidade de objeto desenhado. É nesse sentido que Márcia Arbex afirma que:

Pintar remete a escrever pelo gesto da scription (in-scription, no sentido


etimológico de traçar no interior da matéria mineral ou vegetal) e do
instrumento que o requer. Escrever através de punção (com lâmina,
caniço ou pluma) significa forçar, entalhar, marcar: é a escrita do contrato
e da memória, cujo modelo original seria o cuneiforme e o hieróglifo.
Escrever com pincel (caneta esferográfica ou hidrográfica) significa, em
oposição, acariciar como a escrita ideográfica, uma escrita da de-
scription.124

Falar sobre a relação entre a escrita e a imagem significa falar sobre a


permeabilidade das fronteiras e da relação dinâmica entre os mundos do dizível e do
visível. Por isso, ainda que entendamos, não podemos concordar com a ideia de que seja
necessário, para a sobrevivência de uma arte, estabelecer limites, padronizar regras e
defender um ideal de essencialidade ou pureza dos meios. Acreditamos que o próprio fazer
artístico não apresente tal objetivo. As obras mais inovadoras criaram-se a si mesmas
justamente no espaço mais intersticial possível, dialogando e experimentando diferentes
mecanismos, materiais e técnicas com o objetivo de expressar sua singularidade.

121
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
p. 147.
122
CHRISTIN, op. cit., 2000, p. 340.
123
Ibid., p. 348.
124
ARBEX, op. cit., p. 28.
63

Segundo Maria do Carmo de Freitas Veneroso, os concretistas influenciados por


Mallarmé, criaram seu próprio paideuma,

[...] conceito tomado de Ezra Pound, que consta de uma seleção de


autores obrigatórios que contribuíram para a formação de uma nova
sensibilidade: Mallarmé, com seu poema-constelação; Ezra Pound, com
sua série de Cantos, composta à maneira de ideogramas; Joyce, com suas
palavras-montagens; Maiakóvski (“não há arte revolucionária, sem forma
revolucionária”); Joao Cabral de Melo Neto, com sua linguagem
rigorosa; e. e. cummings, “com seus gestos tipográficos isomórficos,
fazendo até os sinais de pontuação protagonizarem lances fundamentais
do poema”; e ainda Oswald de Andrade, a poesia barroca, os metafísicos
ingleses e a poesia provençal. Os concretistas vão, portanto, aprofundar
ainda mais a relação entre poesia e artes plásticas.125

A nova sensibilidade a que Veneroso se refere também pode ser pensada a partir das
atuais configurações artísticas. Todos os artistas mencionados são os precursores de uma
realidade cujas inovações já passaram pelo período mais crítico de aceitação e começaram
a se consolidar enquanto característica de um novo século. Conforme explica-nos Karl Erik
Schollhammer, o estudo da relação entre texto e imagem destaca-se na reformulação
disciplinar da Literatura Comparada, ou seja, entre “a representação visual e a
representação literária, que abre um campo fértil para a compreensão da literatura numa
sociedade cada vez mais absorvida pelas dinâmicas da cultura de imagem”.126

1.3. DESLIMITES: A RELAÇÃO INTERARTES NA CONTEMPORANEIDADE

Para Julio Plaza, “o século XX é rico em manifestações que procuram uma maior
interação entre as linguagens: desde os poemas em forma de leque (já existentes na
tradição oriental) e os poemas-síntese dos efeitos visual e verbal (‘um coup de dés...’)”,127
incluindo casos como os de “Lewis Carrol (Alice – 1895 e sua tail) e as experiências
caligrâmicas de Apollinaire (‘Il pleut’), assim como a simultaneidade dadaísta (“The

125
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. “A visualidade da escrita: a aproximação entre imagem e texto
nas artes do século XX”. In: ARBEX, op. cit., p. 51.
126
SCHOLLHAMMER, op. cit., p. 11.
127
PLAZA, op. cit., p. 11.
64

Cacodylatic Eye”) de Picabia”,128 e a futurista (ZANG TUMB TUMB), de Marinetti;


alcançando até mesmo a relação “caligrafia-informalismo expressionista como metáfora
das ‘Três Perfeições’ orientais: pintura, poesia e caligrafia”.129 Vejamos algumas dessas
manifestações:

Figura 5:ZANG TUMB TUMB. F. T. Marinetti, 1912. (página)

128
Loc. cit.
129
Loc. cit.
65

Figura 6: Alice no país das Maravilhas. Lewis Carrol, 1865. (página)


66

Figura 7: The Cacodylatic eye. Francis Picabia, 1921.


67

A arte contemporânea, como mostram as obras apresentadas, tornou-se uma imensa


bricolagem da história “em interação sincrônica, em que o novo aparece raramente, mas
tem a possibilidade de se presentificar justo a partir dessa interação”.130 A época em que
vivemos caracteriza-se pela coexistência de características artísticas anteriores que, agora
combinadas, fornecem novas condições estruturais e semânticas para o desenvolvimento
da arte de forma geral. O diálogo de diferentes linguagens transformou-se, gradativamente,
em uma tendência nas artes plásticas atuais, em que as tradicionais fronteiras – indicadas
por G. E. Lessing – entre as mais variadas formas artísticas – a pintura, o desenho, a
gravura, a escultura, a dança, a literatura – mostram-se cada vez mais tênues, fato que,
segundo Veneroso, “torna a determinação de limites entres essas linguagens uma
necessidade quase que exclusivamente didática”.131

Muitas e variadas são as experiências artísticas que confirmam a atual configuração


híbrida do universo artístico. Não podemos deixar de mencionar as influências
absolutamente significativas trazidas pelas Vanguardas Europeias que, nas duas primeiras
décadas do Século XX, representaram uma importante ruptura para com a tradição cultural
e artística do século anterior. Os novos movimentos – Cubismo, Dadaísmo,
Expressionismo, Surrealismo e Futurismo – significaram verdadeiros divisores de águas,
os quais passaram a condicionar e a regular tanto o olhar que se voltava para o passado,
quanto o olhar preocupado em pensar o futuro artístico universal.

O expressionismo abstrato, como pontua Haroldo de Campos no prefácio para a 3ª


edição do livro Ideogramas (2000), ao se aproximar do antigo método de caligrafia
oriental, tomou para si algumas características da escrita ideogramática, presente no
“método ideogrâmico” de Ezra Pound e na chamada “tradição ideogrâmica” americana de
poetas como Charles Olson – e a teoria do “verso projetivo”; Robert Ducan – e o método
de “colagem”; Allen Ginsberg – e o modo de composição por elipse; Louis Zukofsky – e a
técnica de “fuga”; e Gary Snyder – com o ripraping, técnica de empilhamento de
cascalhos.132

Também precisamos evocar as experimentações inovadoras realizadas por Marcel


Duchamp (19887-1968). Com seu Le grand verre (1915-1923), o artista reafirmou a ideia
130
Ibid., p. 12.
131
VENEROSO, op. cit., p. 35.
132
CAMPOS, Haroldo de. (Org.) “Fenollosa revisitado”. In: Ideogramas: Lógica, Poesia, Linguagem.
Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: EDUSP, 2000. p. 16.
68

mallarmeana da obra que se constrói de maneira não completamente planejada. O acidente


ocorrido durante o transporte da peça, mesmo tendo danificado a obra, foi ressignificado
por Duchamp que o compreendeu como uma inusitada interferência do acaso. Sua arte é
um forte exemplo da relação interartes também por, entre outros fatores, apresentar um
trabalho de composição poética que intensifica o diálogo entre texto e imagem. Segundo
Márcia Arbex, desde 1911, houve um deslocamento dos títulos dos quadros de pintura para
o interior da moldura”.133 Nesse período a prática escritural de Duchamp “evoluiu
paralelamente à atividade plástica”,134 já que ele também passou a elaborar uma nova
proposta de titulação, menos designativa, criando uma incômoda dissociação entre imagem
e texto. Duchamp afirmou a necessidade do título e ao mesmo tempo negou a
conceituação. Sobre isso, Márcia Arbex afirma que:

De fato, o que se manifesta nas associações texto-imagem ou texto-objeto


é, por um lado, a tentativa de abolir o título descritivo para atingir a total
dissociação, e, por outro lado, uma tendência à substituição do “título
descritivo” pelo “título poético”, ou melhor, “antipoético”. 135

O título criado para designar a obra supramencionada, uma das mais famosas peças
artísticas de Duchamp – Le grand verre: la mariée mise à nu par ses célibataires, même,
que significa “O grande vidro: a noiva despida por seus celibatários, mesmo” –, é um
exemplo da dissociação a que se refere Márcia Arbex, haja vista a desorientação que causa
naquele que tenta interpretá-lo e associá-lo à obra que designa:

133
ARBEX, op. cit., p. 58.
134
Loc. Cit.
135
ARBEX, op. cit., p. 59.
69

Figura 8: Le Grand Verre: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Marcel Duchamp, 1915-1923.
70

Foi o próprio Duchamp quem afirmou seu interesse pela matéria poética enquanto
elemento transgressor da linguagem:

A aproximação das palavras às quais eu acrescentava a vírgula e mesmo,


um advérbio que não tinha nenhum sentido, uma vez que não significa
eles mesmos e tampouco se relaciona com os celibatários ou com a noiva.
É, portanto, um advérbio em sua mais bela demonstração de advérbio.136

Para além da experimentação poética que o artista francês realizou em suas obras,
chama-nos atenção o projeto literário que nunca chegou a concretizar. Sua ideia, como ele
mesmo esclarece na passagem abaixo, era criar um livro que pudesse acompanhar o Grand
verre:

Pensei poder reunir num álbum, como o catálogo de Saint-Etienne,


cálculos, reflexões sem relação entre si. São às vezes pedaços de papel
rasgado.... Eu queria que esse álbum acompanhasse o meu Verre e que
pudéssemos consulta-lo para ver o Verre porque, no meu entender, ele
não deveria ser visto no sentido estético da palavra. Seria preciso
consultar o livro e vê-los ao mesmo tempo. A conjunção das duas coisas
retiraria todo o aspecto retiniano que me desagrada. 137

A tentativa de associação, ou conjunção, entre a imagem e a palavra, de acordo com


Duchamp, atua na ampliação do canal sensitivo receptor e, consequentemente, na produção
de sentido que a obra em si é capaz de gerar.

É importante mencionar também os trabalhos de tipografia do suprematista El


Lissitzky (1890-1941), a obra cubista-futurista de Natalia Goncharova (1881-1962) e
também a arte conceitual de Joseph Kosuth (1945) como exemplos da relação interartes, já
que todos eles trabalham justamente o/no espaço em que se encontram e se confundem os
meios e materiais artísticos, como podemos ver nas seguintes composições:

136
DUCHAMP, apud ARBEX, op. cit., p. 60.
137
Ibid., p. 63.
71

Figura 9: Record. El Lissitsky, 1926.

Figura 10: Cyclist. Natalia Goncharova, 1913.


72

Figura 11: Frammento. Joseph Kosuth, 1999.

Os trabalhos nos mostram que palavra e imagem, quando associadas, fazem vibrar o
campo semântico e, consequentemente, abrem um caminho para uma possível
desfuncionalização das linguagens de maneira geral. Todas as vias comunicativas –
independentemente de serem imagem, palavra ou som – são automaticamente repensadas e
igualmente re-significadas tanto em sua individualidade quanto em seu potencial fusional.

Outra grande característica da atualidade artística é a relação cada vez mais


fortemente estabelecida entre os objetos artísticos em si e os espaços físicos que os
recepcionam, os quais, por vezes, são construídos para serem entendidos como uma
extensão da própria obra. A instalação Alfabeto hierárquico (1994), por exemplo, pensada
pelo artista plástico espanhol Joan Brossa (1919-1998), pode ser compreendida como uma
espécie de espaço que nos convida a revisitar o projeto “verbivocovisual” de Augusto e
Haroldo de Campos e Décio Pignatari. A instalação manifestou as ideias em torno da
materialidade do alfabeto, bem como a ideia de transitoriedade poética. Isto é, além dos
poemas-objeto, que “se manifestam” no espaço da instalação, Brossa cria uma obra que se
movimenta espacialmente – os chamados “poemas transitáveis”. Vejamos um exemplo de
cada uma dessas construções:
73

Figura 12: A d´ales/ A de alas. Joan Brossa, 1997.

Figura 13: Museu. Joan Brossa, 1996.

Extrapolando o espaço de confluência entre verbo e imagem, podemos pensar ainda


na proposta da brasileira Betty Leirner que, de acordo com Lucia Santaella, produz uma
“arte irrotulável e de difícil definição”,138 por se manifestar enquanto obra de apagamento
de fronteiras entre os meios artísticos. Leiner é conhecida como artista-poeta-fotógrafa-
cineasta por produzir um material artístico altamente híbrido, que reflete de maneira

138
SANTAELLA, Lucia. Aquém e além da arte: lugares do não lugar. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 15.
74

bastante consistente a atual condição do universo artístico. Arlindo Machado, que nomeia a
produção da artista como “cine-videográfica”, chama atenção para o caráter precursor da
mesma,

[...] nesta época em que tanto se fala sobre a convergência dos meios e
das artes. As fotografias, os filmes e os videofilmes da artista se situam
nesta franja de fronteiras onde é difícil traçar as diferenças entre os
expressivos meios vizinhos por ela utilizados.139

Por dialogarem diretamente com a poesia, os filmes de Leiner também podem ser
chamados de filmepoemas ou poemasfilme. É o caso, por exemplo de O reino menos o rei
(1980), considerado uma das primeiras transcrições da obra do poeta Augusto de Campos
para o cinema. Segundo Arlindo Machado, a produção fílmico-poética de Leiner é:

[...] um fenômeno verdadeiramente instável e turbulento, sob a ação


permanente de forças ao mesmo tempo organizativas e desagregadoras. O
cinetismo das palavras, resultante do fato de se estar escrevendo com
imagens em movimento, com seus modelos combinatórios instáveis,
constantemente abalados pelas intervenções do acaso, pressupõem uma
sintaxe de deslocamentos, uma relação dinâmica de coerência, onde o
sentido aparece como uma entidade em permanente devir, passível de
modificações constantes. Se a organização parece precária é porque a
artista opera no coração dos próprios processos formadores do sentido,
para além das funções meramente pragmáticas a comunicativas da
linguagem. Trafegando nas fronteiras mais indefinidas entre palavra e
não palavra, o sentido e o não sentido, invocando uma linguagem tão
instável, mutante e provisória quanto o próprio ser humano. 140

As características indicadas por Machado para a obra de Leiner levam-nos a pensar


na produção do também brasileiro Arnaldo Antunes, que, assim como Leirner, desenvolve
uma obra ao mesmo tempo complexa e instigante pela variedade de sentidos que produz.
Por realizar experimentações de caráter variado e transgressor, Arnaldo Antunes, consegue
estreitar ainda mais a consonância das mais variadas linguagens. Poderíamos citar a obra
OU/E, construída em 1983, que, conforme afirma Nuno Ramos:

[...] é um livro e uma caixa. Na tampa da caixa tem dois buracos com um
círculo giratório dentro; quando você gira esse círculo, os alfabetos mais
distantes vão passando pelos buracos: cine-letra. Dentro da caixa tem 29
poemas soltos: são charadas, coincidências visualizadas, releitura de
outros textos (Hoelderlin, Haroldo de Campos, Flaubert, Mick Jagger,

139
Ibid., p. 195.
140
Ibid., p. 197.
75

Blake, Pagu), perguntas longas com respostas curtas e, em quase todos,


caligrafias entoando a leitura. Em tudo você tem de pegar, virar, abrir,
cheirar, morder, descobrir, enfim, onde está o poema. 141

OU/E é exatamente um híbrido artístico que, ao relacionar diferentes linguagens,


afeta também de maneira variada e individualmente singular o receptor que o conhece.
Além disso, o trabalho que Arnaldo Antunes ainda realiza como cantor e produtor musical
ajuda-nos a pensar nas performances artísticas, que para além das câmeras de vídeo e de
fotografia, acontecem especialmente sob os olhos do espectador antes de se transformarem
em um objeto artístico propriamente dito. Tais manifestações remetem-nos ao já conhecido
conceito de “Obra de Arte Total” – Gesamtkunstwerk – cunhado pelo compositor alemão
Richard Wagner, no século XIX, para se referir à Ópera. No pequeno artigo-manifesto
escrito em 1849, The Art-work of the Future, Wagner defendeu a Ópera como forma de
arte completa, pois, segundo Miguel Serpa Pereira, ela era, para o compositor:

[...] a única arte que podia juntar todas as outras: música, poesia, teatro,
pintura, dança e escultura. Mas, para que essa junção fosse realizada era
necessário que cada parte perdesse algo da identidade própria e se
colocasse a serviço de uma ideia integradora e acima de qualquer
individualidade. Portanto, não adiantava simplesmente juntar esses
elementos numa espécie de balaio comum.142

A ideia Wagneriana converge diretamente para a atualidade da relação interartes e


que também se manifesta muito fortemente no cinema. É o caso, para darmos apenas
alguns exemplos, de filmes díspares como O encouraçado Potemkin (1925), do cineasta
soviético Eisenstein; A cor da romã (1968), do armênio Sergei Parajanov; Ladrões de
Bicicleta (1948), do italiano Vittorio de Sica; A imagem que falta (2013), do cambojano
Rithy Pan; e o Educação Sentimental (2013), do brasileiro Júlio Bressani, os quais são o
resultado singular de experimentações com a poesia, a música e a fotografia.

A fusão entre as artes plásticas, a expressão corporal e até mesmo a produção sonora
estão presentes no que hoje chamamos de performance artística. Podemos mencionar, por
exemplo, o trabalho de Tony Orrico, modelo bastante atual dessa complexa interação

141
RAMOS, Nuno. Disponível em: < http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_livros_list.php?view=1>
Acesso em 24 de junho de 2016.
142
PEREIRA, Miguel Serpa. Cinema e Ópera: um encontro estético em Wagner. Dissertação de Mestrado.
Escola de Comunicação e Artes – USP, 1995. p. 51.
76

artística. Ainda que não tenha o objetivo de unir a dança e a música às artes visuais, Orrico
produz uma obra bastante inusitado, haja vista o seu modo de produção, que consiste
basicamente na execução de movimentos corporais repetitivos, simétricos e cíclicos, os
quais vão sendo registrados em uma superfície plana com um pedaço de carvão ou grafite
que o próprio artista segura em cada uma de suas mãos. Todo o corpo é utilizado ou, pelo
menos, ativado, durante as performances, que geralmente são gravadas em vídeo, para que
a coreografia corporal e o som produzido graças ao embate entre corpo, carvão e superfície
sejam registrados. Ao ser finalizada, a performance resulta em um desenho geométrico de
grandes proporções, como podemos observar nas seguintes imagens que compõem o
acervo dos chamados Penwald Drawings:

Figura 14: Penwald 4 - unison symmetry standing. (3 dias – 4 horas – 80 x 216 cm cada) Tony Orrico, 2010.
77

Figura 15: Penwald 6 – project, recoil. (90 min. – 60 x 180 cm) Tony Orrico, 2011.

O gesto artístico de Tonny Orrico é o resultado de uma intensa experiência sensorial.


Étienne Souriau afirma sobre isso que:
78

Os dados sensoriais de que se servem as artes, nunca chegam a uma


purificação de fato, a um isolamento prático daquele jogo de qualia. As
cores do quadro têm formas, diferenças de luminosidade e mesmo
relações com os valores táteis evocados pela manipulação do pigmento
colorido. O corpo do dançarino em movimento não é puro caleidoscópio
de atitudes, deslocamentos suaves, transferências no espaço.143

A relação interartes, nesse sentido, faz parte do pilar de sustentação das mais atuais
manifestações artísticas de nossa contemporaneidade, as quais, especialmente desde o
advento da Modernidade, são responsáveis pela produção de um volume bastante
significativo de obras híbridas. De acordo com Nella Arambasin, citada por Márcia Arbex,
na apresentação do livro Poéticas do visível, a Modernidade apresentou-nos pelo menos
três categorias desse tipo de obra:

[...] as obras “criadas em fusão artística”: composições que integram em


seu próprio processo de criação uma mistura de vários códigos artísticos:
a ópera, o melodrama, os romances que reúnem textos e desenhos do
autor, por exemplo. Segundo, as obras que “criam uma fusão”, e as
“adaptações”: a partir de elementos pré-existentes, um artista cria uma
obra nova, que realiza ou não a fusão das artes. Supõe-se a anterioridade
de um dos códigos. E, finalmente, as obras que incluem citações. 144

Pensar a respeito e a partir de uma perspectiva de fusão e da transposição de


fronteiras entre a literatura e a pintura tornou-se nosso objetivo assim que nos deparamos
com a escrita de António Lobo Antunes, o qual poderia integrar a lista apresentada por
Nella Arambasin. Apesar de não ser um poeta concreto e de não objetivar alcançar tal
formatação, sua obra dialoga, surpreendentemente, de forma bastante peculiar com a
pintura, com o cinema, com a música e até mesmo com a fotografia e, exatamente por isso,
chamou-nos à atenção. Ao passarmos os olhos pelas linhas de seus livros, imediatamente
percebemos que o autor aproxima-se de um movimento artístico que se desenvolve na
travessia entre os domínios literário e plástico, porque introduz e retoma a visualidade –
também enquanto marca estilística – em seu campo de (e)laboração.

143
SOURIAU, Étienne, apud MORAN, Patrícia. “Poéticas das correspondências”. In: ARBEX, op. cit., p.
249.
144
ARBEX, op. cit., p. 42.
79

Em meio a tantos autores e textos, a escrita de Lobo Antunes se destaca por mostrar-
se desafiadora ao extrapolar sutilmente o meio verbal e ao explorar a espacialidade da
página em branco sem, no entanto, afirmar explicitamente tal intenção.

Entendemos que a escrita antuniana aproxime-se tanto da segunda quanto da terceira


categoria apontadas por Arambasin, pois a partir de elementos pré-existentes – referências
aos mais variados tipos de arte e as diversas citações diretas ou indiretas – cria um novo
universo literário, ao mesmo tempo que o particulariza em sua singularidade.

Diante do cenário crítico – sintetizado ao longo do primeiro subcapítulo desta tese –


que ainda insiste em entender a relação entre as artes como uma questão de “dilema, de
alienação, de fratura, de heterogeneidade, de contato impossível”,145 a escrita de Lobo
Antunes, assim como as obras mencionadas, apresenta-se enquanto exemplo antitético, por
desenvolver-se justamente a partir da integração dinâmica e transformadora que a relação
entre as artes possibilita. Para além da literatura, seu texto nos propõe uma maneira de
pensar a complexidade dos signos da plasticidade.

Diferente de todos os outros artistas mencionados, Lobo Antunes nunca manifestou


claramente a vontade de realizar um projeto interartístico ou intersemiótico. Porém, ao
desenvolver sua estilística, seu texto foi naturalmente se transformando e ganhando, como
veremos, um aspecto estrutural singular dotado de uma plasticidade sutil e, no entanto,
densa e vertiginosa. As descobertas a respeito dessa linguagem tão ímpar foi o que nos
impulsionou a realizar o longo percurso de leitura de sua obra e a construir toda a análise
que será apresentada nos próximos capítulos desta pesquisa.

145
Loc. cit.
80

2. LINGUAGEM PLÁSTICA NA OBRA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Eu gosto de desenhar as palavras.146


António Lobo Antunes

Memória de elefante. Eis o romance que lança António Lobo Antunes. Sim, o
romance também lança seu autor ao mesmo tempo em que é lançado. Início, meio e fim?
Não, simultaneidade, circularidade e fluidez. Essas, sim, são palavras capazes de adjetivar
a escrita antuniana que, como bem representa o título do livro que abre sua carreira,
(des)constrói-se de forma escorregadia, inconclusiva e plástica.

Analisar a escrita inventiva147 de António Lobo Antunes, para usarmos uma


expressão imagética, é o mesmo que observar um poliedro disforme. A leitura se constitui
de retalhos que formam uma tapeçaria aparentemente esfarrapada, uma tela estranha, de
um realismo manchado e desbotado, porém vivo e bastante fluídico. Emaranhado de
fragmentos que, a partir de poeira e lacuna, (de)forma o avesso de uma ruína e deixa
entrever uma espécie de esboço inacabado e palimpsêstico.

Não à toa, sua obra tem se firmado como uma das mais desafiadoras dentro do
contexto literário português contemporâneo. Forma e conteúdo são igualmente e
exaustivamente trabalhados, e a linguagem, consequentemente, é o resultado da
complexidade e da originalidade com que os elementos ficcionais são manipulados à
revelia da representação mimética tradicional, corajosamente (des)considerada.

A narração apresenta-se a partir de lances retrospectivos e introspectivos, de


reminiscências (in)conciliáveis, de uma completa desordem cronológica e de avanços e
recuos inusitados. Uma torrente vertiginosa que assume uma singular forma de dispersão.
Nada é claramente determinado: espaços, vozes, tempo, memórias e destinos.

146
SILVA, João Céu e. Uma longa viagem com António Lobo Antunes. Porto: Porto Ed., 2009. p. 22.
147
Segundo Leyla Perrone-Moisés, “invenção é também criação de uma coisa nova, mas não de modo divino
e absoluto. Inventar é usar o engenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos artefatos de que o
homem dispõe para tornar sua vida mais rica e mais interessante”. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da
escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 101.
81

Seus textos são composições intensamente (e)laboradas, que se utilizam, de maneira


transgressora, de um vasto conjunto de componentes literárias. O resultado: uma
(des)estrutura imagética e especular, que torna no mínimo árdua a leitura discriminada de
cada um dos seus livros.

Visualidade e plasticidade. Palavras-chave que abriram as primeiras portas para o


texto labiríntico e singular da escrita que elegemos como objeto de estudo de nossa
pesquisa.

Ao todo são trinta e cinco os livros publicados até a presente data. E de Memória de
elefante (1979), que já nos dá uma importante mostra da incrível capacidade fabulativa e
do singular trabalho de desenho sintático, até o mais recente Da natureza dos deuses
(2015), produto de uma notória maturidade estilística, a leitura segue as linhas de uma
escrita sempre e cada vez mais notadamente visual.

Em termos de arquitetura narrativa, seus primeiros três escritos – Memória de


elefante; Os cus de Judas; e Conhecimento do inferno – sutilmente apresentam uma
estrutura narrativa de justaposição de planos. A interseção entre os diversos níveis de
reminiscências e de vozes não se faz às custas de cortes sintáticos muito bruscos e da
construção frasal fragmentada, mas, mesmo dentro de um espaço tecnicamente tradicional,
já causa um certo incômodo visual.

O mesmo continua a acontecer com os romances posteriores, porém, a partir de


Exortação aos crocodilos (1983),148 as montagens feitas com marcações gráficas muito
nítidas começam a se fazer mais presentes. Os esquemas narrativos começam a abandonar
o eixo linear tradicional e assumem uma estrutura mais rizomática, com múltiplos fios
narrativos. Isto é, a escrita (de)forma-se – para considerarmos o termo deleuzeano
empregado – enquanto multiplicidade, “viscosidade e precipitação e ruptura”,149
constituindo-se como pura intensidade. É possível sentir que, aos poucos, Lobo Antunes
começa a atribuir ao discurso uma propriedade de delineamento do objeto verbal, pois
passa sutilmente a trabalhar a palavra como coisa concreta, enquanto estrutura que se
movimenta no texto numa espécie de grafia estética.

148
ANTUNES, António Lobo. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
149
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio
Guerra Neto e Celina Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. v. 1. p. 12.
82

É explícita a maneira como a narrativa antuniana gradualmente ganha maior


complexidade visual, tornando-se não raro labiríntica e deixando-nos, por vezes, perdidos
num espaço que alterna zonas textuais fragmentadas e muros de períodos exaustivamente
longos, de uma sintaxe que exige fôlego e muita atenção.

A leitura de seu texto nos coloca diante de uma teia sintática e de uma armação
semântica muito engenhosas. Porém, se tematicamente sua narrativa não diverge tanto da
de outros literatos, contemporâneos seus ou não, no que diz respeito ao domínio
fraseológico e, portanto, ao aspecto do detalhamento gráfico e estilístico, sua escrita é
realmente singular.

A sofisticação da forma torna-se bastante evidente e, para nós, particularmente


importante, já que optamos por observar o (in)visível de seu texto, ou seja, aquilo que
graficamente se prolifera e extrapola os limites da gramática linguística tradicional e que
nos ensina a ler de outra forma, a partir de uma espécie de transposição pictórica estrutural
da linguagem empregada. Leo H. Hoek argumenta que a arte “transposicional” buscaria
transferir a imagem para a escrita”,150 não apenas com o intuito meramente imitativo, mas,
com o intuito de iluminar ou abalar as imagens.

Podemos afirmar que, desde seu primeiro livro, Lobo Antunes propõe uma espécie
de jogo intersemiótico, pois é claramente perceptível o acentuado grau de sistematização
que o autor consegue alcançar ao reunir, em um plano verbal, referências sobre as mais
diferentes áreas artísticas, produzindo uma enorme rede intertextual e um amplo mosaico
de montagens híbridas e bastante complexas. Segundo Lucia Santaella, um processo
intersemiótico acontece quando a linguagem de uma matriz semiótica penetra outra
linguagem de outra matriz semiótica. Isso acontece constantemente, uma vez que as três
grandes matrizes da linguagem – verbal, sonora e visual –, segundo Santaella:

[...] não são puras. Não há linguagens puras. Apenas a sonoridade


alcançaria um certo grau de pureza se o ouvido não fosse tátil e se não
ouvisse com o corpo todo. A visualidade, mesmo nas imagens fixas,
também é tátil, além de que absorve a lógica da sintaxe, que vem do
domínio do sonoro. A verbal é a mais misturada de todas as linguagens,
pois absorve a sintaxe do domínio sonoro e a forma do domínio visual. 151

150
HOEK, Leo. H. “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática”. In: ARBEX, op. cit.,
p. 172.
151
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na
hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 2013. p. 371.
83

Diante de um texto antuniano, em que o processo de interação semiótica é construído


intencionalmente através de evocações extra-textuais das mais variadas espécies, o leitor é
constantemente desafiado. A cada página descobre que a leitura também precisa se adaptar
à nova paisagem verbal, pois, lentamente se transforma em um processo (des)contínuo e
fluídico que precisa ser inteiramente (des)construído e (re)interpretado. De acordo com
Maria Alzira Seixo:

O estudo da Intertextualidade (que pode ser considerada como uma


espécie de intra-semioticidade peculiar, e como tal integrável na
diversidade de campos de sentido que um texto literário evoca)
proporcionará, nos seus romances, um trabalho de consideração frutuosa
e reveladora, susceptível de ultrapassar em muito o terreno revelado à
partida por títulos e epígrafes (já de si abrindo um campo sugestivo),
tanto como pelas abundantes citações de obras imediatamente
identificáveis e por várias outras relativamente encobertas no discurso do
texto, e ainda pela reelaboração de tópicos e de enunciados que possuem
atrás de si uma longa e densa história literária, como é o caso (para
mencionar um exemplo óbvio) da escrita da noite na generalidade dos
seus textos. 152

A intertextualidade, contudo, é apenas um elemento que poderíamos destacar dentro


do apanhado intersemiótico da escrita antuniana. Chama-nos especialmente à atenção o
aspecto plástico que seu texto apresenta e que nos fez analisar outros sistemas de
significação, os quais, apesar de parecerem menos importantes (devido à forma por vezes
sutil com que se apresentam ou devido à possível incapacidade de total percepção por parte
do leitor) dão enorme originalidade estilística à obra. Segundo Maria Alzira Seixo, a
interseção artística torna-se decisivamente presente na “orgânica narrativa e na dinâmica
composicional”153 e orienta sua escrita por contribuir com

[...] aspectos específicos das outras artes e diversas perspectivações


estéticas, assim como interferências de textos de outros domínios da
criação, dos quais poderemos salientar, como mais significativos, os da
música, da pintura, do cinema, da dança, da fotografia e da arquitetura.154

152
SEIXO, Maria Alzira. “Danças com letras – Intersemioticidade em António Lobo Antunes”. In: ______.
As Flores do Inferno e Jardins Suspensos. Lisboa: Dom Quixote, 2010. p. 281-282.
153
Ibid., p. 282.
154
Loc. cit.
84

Todos esses sistemas fazem com que o espaço do texto se movimente ora como
corpo linguístico dançante, ora como conjunto de planos fotográficos sobrepostos em uma
velocidade cinematográfica, e ora como uma tela onde o pincel esboça seu passeio
livremente. Cada um deles diz respeito, ainda que de forma bastante variada, à plasticidade
naturalmente dinâmica de sua linguagem.

A intersemioticidade enquanto mecanismo que relaciona, em um mesmo texto


verbal, diferentes campos de significação é um dos processos mais característicos da
cultura contemporânea, haja vista o hibridismo de linguagens que a constitui
fundamentalmente. Podemos afirmar que esse mecanismo é um dos vetores de composição
mais correntes na obra literária de António Lobo Antunes. Temos a impressão de que para
o autor, toda a literatura é um grande arcabouço, um enorme arquivo público, com o qual
pode dialogar abertamente. Todo esse arquivo literário parece se prolongar em seu texto,
formando um inextricável mosaico de visualidades.

Por isso, optamos por analisar especialmente os aspectos pictóricos que o texto de
Lobo Antunes nos deixa ver. Muito mais do que ler, pretendemos ver sua escrita. Ver
como ela se manifesta. Ver também para mostrar que ela não é estritamente verbal, mas
sim um objeto artístico plástico e, portanto, também visual.

Para que a análise seja feita de forma mais detalhada e organizada, faz-se necessária
a construção de um panorama de leitura imagética de sua obra. Afinal, conforme
mencionado anteriormente, o trabalho intersemiótico acontece desde o primeiro livro do
autor português e continua crescendo e se modificando à medida que ele desenvolve sua
estilística e ganha, graças à intensa e ininterrupta atividade de (e)laboração, um alto grau
de refinamento.

Com o intuito de facilitar a exposição dos resultados de nossa pesquisa, dividimos a


obra antuniana em dois momentos. A divisão obviamente não pretende ser taxativa, haja
vista o caráter metamórfico de sua escrita. Porém, achamos por bem fincar alguns marcos
orientadores para efeito de organização. Objetivando reconhecer e evidenciar o aspecto
imagético do seu discurso, apresentaremos como Textos de 1ª Versão as narrativas que
ainda obedecem a uma certa linearidade; e como Textos de 2ª Versão os escritos cuja
linguagem já se desenvolvem com maior plasticidade estrutural.
85

2.1. TEXTOS DE 1ª VERSÃO: EKPHRÁSIS POÉTICA

Paul Delvaux (1897-1994), Jan Van Eyck (1390-1441), Johannes Vermeer (1632-
1675), Cimabue (1240-1302), Edgar Degas (1834-1917), Alberto Giacometti (1901-1966),
Diego Velázquez (1559-1660), Rembrandt (1606-1669), Henri Matisse (1869-1954),
Chaïm Soutine (1893-1943), Vincent Van Gogh (1853-1890). Esses são alguns dos
pintores que António Lobo Antunes menciona ao longo da primeira fase de sua escrita e
especialmente em seu primeiro romance: Memória de elefante. Por dar início à carreira
literária do autor português, esse é, sem dúvidas, o livro mais fundamental dessa primeira
fase, em que se agrupam os que denominamos Textos de 1ª Versão.

Os escritos foram assim nomeados porque nessa fase, que segue aproximadamente
até Auto dos danados (1989),155 o autor está literalmente iniciando a prática de escrita e,
metaforicamente falando, rascunhando uma primeira versão de textos para encontrar seu
próprio estilo. No livro de entrevistas, Uma longa viagem com António Lobo Antunes
(2009), organizado por João Céu e Silva, Lobo Antunes afirma: “Tudo o que tenho é meu e
deu-me muito trabalho a encontrar a minha voz. Foram anos, anos e anos e os primeiros
livros ainda têm vozes alheias, que é uma coisa que me desagrada”.156 Logo em seguida,
Céu e Silva faz outra pergunta: “Não conseguir encontrar a sua voz assustava-o?”,157 para a
qual o escritor dá a seguinte resposta: “Claro que assustava! Mais do que isso, era uma luta
constante e estava sempre a sentir outras vozes em cima e a meterem-se na minha”.158

Em Memória de elefante, como o próprio autor afirma, sua escrita está repleta de
referências e vozes e ainda se manifesta em um formato aparentemente mais tradicional,
estruturalmente mais linear e gramaticalmente mais próximo da norma culta. Porém,
Segundo Maria Alziro Seixo, esse livro, bem como os demais romances da primeira fase,
na verdade, já

[...] integram uma proposta expressiva de um novo modo de entender e


praticar a escrita de ficção, que mobilizou o leitor comum e alertou as
reações críticas nos periódicos e nas instituições: numa escrita sacudida,
onde a frase longa faz repercutir os ecos de um conhecimento amplo e

155
ANTUNES, António Lobo. Auto dos danados. São Paulo: Best Seller, 1985.
156
SILVA, op. cit., p. 31.
157
Loc. cit.
158
Loc. cit.
86

intenso de literatura e da arte (constantemente convocadas e integradas na


experiência manifestada pelo narrador), ao mesmo tempo que anexa
impressivamente pormenores avulsos do quotidiano de diferenciados
níveis culturais, com recurso constante à metáfora insólita e disfemística
e a várias outras formas retóricas de analogia. 159

Apenas alguns desvios formais, realizados com intuito estilístico, acontecem ainda
em pequena escala, causando uma espécie de pequeno ruído visual no texto, como
podemos notar no seguinte excerto:

O corcunda, instalado à esquerda, chupava ruidosamente pastilhas para a


garganta disseminando no ar um aroma de inalações de asmáticos: se eu
fechasse com força as pálpebras por um segundo poderia supor-me sem
esforço no quarto de Marcel Proust, escondido atrás da pilha de cadernos
manuscritos da Recherche du Temps Perdu: c’est trop bete, assim
costumava ele definir o que escrevia, je peuux pas continuer, c’est trop
bete. Querido tio Proust: o papel de parede, a lareira, a cama de ferro, a
tua difícil e corajosa morte: mas achava-me na realidade instalado a uma
mesa de jogo do Casino, e a solidão roía-me por dentro como um ácido
doloroso: a ideia da casa vazia apavorava-me, a solução de tornar a
dormir na varanda fazia-me gemer de antecipados lumbagos. De alma
em pânico enxotei a derradeira ficha para o Grande: se ganhar vou direito
ao Monte, enfio-me nos lençóis e masturbo-me a pensar em ti até o sono
vir (receita de sucesso relativo); se perder convido esta jiboia idosa para
uma orgia modesta de acordo com o casaco de plásticos dela e os meus
jeans no fio, e à medida de um fim de mês penoso: ignorava qual destas
duas catástrofes escolher, dividido com horror idêntico entre o isolamento
e o ofídio [...]
— A mãe sempre disse que nunca teria juízo.
E provavelmente não só não teria juízo como (mais grave ainda) não
alcançaria a espécie de felicidade que a ausência desse esquisito atributo
traz consigo [...]
— A mãe sempre disse.
A mãe sempre disse tudo. E parecia-me que o fiscal adquiria pouco a
pouco o jeito profético dela, as pálpebras magoadas, a testa enrugada, o
cigarro aceso espiralando na ponta do braço elipses de desistência:
— O que é que se pode esperar deste rapaz?160

O texto mostra-se impregnado de algumas marcações: os dois pontos, os parênteses,


os travessões, as repetições e alguns cortes produzidos pela intervenção intertextual, a qual
nos leva a adentrar um outro universo literário e até um outro idioma.

159
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de
leitura. Lisboa: Dom Quixote, 2002. p. 15.
160
ANTUNES, António Lobo. Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 184-185.
87

A passagem ajuda-nos a perceber que, desde o início, Lobo Antunes já ensaiava uma
narrativa visual, que nesse primeiro momento, porém, é estruturalmente diferente do que
virá a produzir no que chamamos aqui de segunda fase de sua carreira. Note-se que as
imagens produzidas são, no geral, de caráter semântico e metafórico. O narrador descreve
os sentimentos do protagonista, realizando um processo de tradução sui generis, pois capta
elementos bastante subjetivos. As imagens simples são transformadas pelo olhar criativo e
detalhista do narrador. Um homem comum transforma-se em um corcunda; o Casino, no
quarto de Marcel Proust; a mulher idosa, numa jiboia; e o cigarro produz não uma simples
fumaça, mas “espirais de desistência”. O mecanismo de produção imagética, como
podemos observar, já se constrói de maneira inusitada, pois o narrador capta aquilo que
não pode ser representado objetivamente. Ele nos induz a tentar visualizar uma espécie de
invisível que, ao mesmo tempo, modifica e potencializa semanticamente os elementos
indicados.

O trecho também foi escolhido por nos oferecer um indício muito importante. É
sabido que Lobo Antunes é um escritor bastante culto, no sentido de amalgamar um
conhecimento muito amplo e igualmente variado sobre os mais diversos assuntos. Já foi
dito, no início deste capítulo, que sua escrita manifesta um intenso diálogo com outros
sistemas de signos, tais como o cinema, a arquitetura, a fotografia, a dança, enfim, as artes
de maneira geral. Em sua primeira fase de escrita, o autor produz uma textualidade visual a
partir, basicamente, do procedimento narrativo e descritivo. Descreve objetos, pessoas e
mesmo os sentimentos num fluxo intensamente metafórico. Além disso, fato que mais nos
interessa, ele, mais do que apenas descrever, menciona objetivamente variados nomes
artísticos, dando ao exercício descritivo um resultado semântico-visual singular. Um único
parágrafo ou uma única palavra são capazes de dar ao texto uma enorme carga de
visualidade. É o que acontece por exemplo na seguinte passagem:

Na noite de Lisboa tem-se a impressão de se morar num romance de


Eugene Süe com página para o Tejo, em que a rua Barão de Sabrosa é a
fitinha desbotada de marcar o lugar de leitura, apesar dos telhados onde
florescem plantações de antenas de televisão idênticas a arbustos de
Miró.161

161
Ibid., p. 157.
88

Para descrever a noite de Lisboa, Lobo Antunes recorre a pelo menos três processos:
o metafórico, o intertextual e o intersemiótico. Graças a isso, um simples parágrafo produz
uma abertura mental-ótica vertiginosa naquele que o lê. Para alcançar o que o olho do
narrador é capaz de ver na noite de Lisboa e o que ele consegue sentir e captar dessa noite,
precisamos realizar uma espécie de tradução verbo-imagética. Somos levados a acionar
uma memória visual para construir, colorir, completar ou, pelo menos, esboçar o quadro
textual que se nos apresenta.

Ainda assim, estranhamos a imagem que se forma em nossa visão mental, pois os
elementos que nos são dados pelo narrador: um substantivo incomum – a noite de Lisboa;
e seus inusitados adjetivos – morar num romance de Eugene Süe com página para o Tejo;
telhados onde florescem plantações de antenas idênticas a arbustos de Miró –, não são
suficientes para construir com clareza um quadro mental. Como imaginar tal noite?
Acessar a atmosfera do romance de Eugene Süe é tarefa difícil, afinal, trata-se da tentativa
de compilação de um efeito geral de leitura que nunca será o mesmo para todos.

A pintura de Joan Miró (1893-1983), por outro lado, um pouco mais acessível, ajuda-
nos a compor o quadro criado na passagem acima. A dificuldade, nesse caso, está no fato
de que Lobo Antunes geralmente cita o nome do artista e não o nome dos quadros. Dessa
maneira, o leitor é levado a atravessar, a cada nova referência, um novo universo de signos
sempre muito amplo. No caso de Miró, poderíamos imaginar qualquer pintura que
tematicamente nos lembrasse uma “plantação de antenas” ou que fizesse alguma referência
à noite. Escolhemos, com base nesses pequenos detalhes, a seguinte tela:
89

Figura 16: The nightingale’s song at midnight and the morning rain. Joan Miró, 1940.

O quadro selecionado pode servir como reflexo da passagem retirada de Memória de


elefante, pois nele podemos visualizar elementos que guardam um formato muito próximo
ao de um conjunto de antenas. Note-se, porém, que, mais uma vez, mesmo ao fazermos
essa aproximação formal entre o elemento citado no texto – plantação de antenas – e a
referência intertextual-semiótica – quadros de Miró – a cena não pode ser completamente
preenchida. A paisagem mental continua a existir como uma mancha de impressão.

Quando Lobo Antunes convoca um elemento pertencente a outro sistema de


significação162 para potencializar o caráter descritivo de sua escrita, mesclando texto e
imagem, produz uma espécie de ecfrase. Segundo Peter Wagner, a ecfrase consiste na

162
Segundo Julio Plaza, “cada sistema de sinais constitui-se segundo a especialidade que lhe é característica e
que pode ser articulada com os órgãos emissores-receptores, isto é, com os sentidos humanos. Estes
produzem as mensagens que reproduzem os sentidos”. (PLAZA, op. cit. p. 45.)
90

“representação verbal de uma representação visual”.163 A palavra ainda hoje é conhecida


tanto como dispositivo retórico, quanto como gênero literário. Peter Wagner afirma que,
etimologicamente, a ecfrase,

Consistindo o prefixo “ek” (ou “ec” e mesmo “ex”) em “de” (de um


lugar) ou “fora” (para/por/de fora), e o termo raiz “phrasis”, em um
sinônimo, no Grego, de lexis ou hermeneia, assim como no Latim, dictio
e elocutio (o verbo phrazein denota “dizer, declarar, pronunciar),
ekphrasis originalmente significava “repleta ou vívida descrição”.164

Enquanto dispositivo retórico, a ecfrase pode ser entendida como evocação de um


elemento, com o objetivo de intensificar, tornar mais vívida, uma declaração ou, no caso da
literatura, uma descrição. Esse dispositivo ilumina, ilustra o espaço original ao introduzir
em seu meio um elemento de outro universo artístico. Temos então uma intensa
manifestação sinestésica sempre que a ecfrase acontece.

A ecfrase é o encontro mais estreito entre o texto e a imagem, porém, ela pode
também não ser real, isto é, pode fazer alusão a elementos inexistentes ou fictícios,
deixando a obra que a evoca ainda mais labiríntica, pois o espectador é levado a criar por
sua conta o elemento evocado. Peter Wagner diz, concordando com W. J. T. Mitchell, que,
apesar de nem sempre evocar elementos verdadeiros, toda ecfrase é nocional, pois procura
criar uma imagem específica, a qual pode ser encontrada apenas no espaço que dela faz uso
e que passa a funcionar como uma espécie de residência estrangeira.165

Ainda de acordo com Wagner, a primeira entrada da palavra no Dicionário Oxford


da língua Inglesa se deu em 1715, quando esta foi definida como uma declaração plana ou
uma interpretação sobre algo. Uma segunda entrada ocorreu em 1814 e trouxe uma nova
definição: “Feminilização florida do estilo”.166 Não obstante tais tentativas de formulação,
Wagner afirma que a palavra ainda não foi bem definida e sugere que ampliemos seu uso,
já que para ser caracterizada como ecfrase, a representação verbal de uma imagem não

163
WAGNER, Peter. “Introduction: Ekphrasis, Iconotexts, and Intermediality – the state(s) of the Art(s)”. In:
Icons – Texts – Iconotexts: Essays on Ekphrasis and Intermediality.Berlim/New York: Walter de Gruyter,
1996, p. 10.
164
“Consisting of the prefix ‘ek’ (or ‘ec’ and even ‘ex’) meaning ‘from’ or ‘out of’, and the root term
‘phrasis,’ a synonym for the Greek, lexis or hermeneia, as well as for Latin diction and elocution (the verb
phrazein denotes ‘to tell, declare, pronounce’), ekphrasis originally meant ‘a full or vivid description’”.
(WAGNER, Peter, op. cit., p. 12.)
165
Loc. cit.
166
“florid effeminacies of style”. (WAGNER, Loc. cit.)
91

precisa ser literária. O teórico afirma ainda que é cada vez mais difícil distinguir um texto
literário de um texto crítico, pois se a ecfrase é “a representação verbal de uma
representação visual”, isso quer dizer que todo comentário verbal sobre imagens é uma
ecfrase.

Para Gisbert Kranz, estudioso alemão retomado por Claus Clüver no livro Poéticas
do visível, os poemas ecfrásticos podem sem classificados segundo seu objetivo – que pode
ser descritivo, panegírico, pejorativo, didático-moralista, político, etc. –; e podem ser
classificados segundo sua realização – quando produzem um efeito de transposição, de
suplementação, de associação, de interpretação, de provocação, de jogo ou de
concretização.167 Com base na colocação de Krans, Claus Clüver faz referência à afirmação
de Roman Jakobson sobre a possibilidade de tradução de imagens. Para Jakobson existem
três maneiras diferentes de interpretar um signo verbal:

[...] “Tradução intralingual”, ou “paráfrase” de um texto dentro da mesma


língua; “tradução interlingual”, ou a recriação de um texto verbal em uma
língua diferente; e “tradução intersemiótica ou transmutação”, que é a
“interpretação de signos verbais por meio de signos de sistemas de signos
não-verbais”.168

Considerando a divisão feita por Jakobson, podemos dizer que, em sua fase inicial de
escrita, Lobo Antunes utiliza as três formas de interpretação dos signos verbais, mas inova
ao produzir transposições intersemióticas que extrapolam a tentativa de dar voz a uma
imagem supostamente silenciosa. Claus Clüver argumenta que

[...] decidir que um poema ekprástico pode ser lido como uma
transposição não significa aumentar ou diminuir a sua importância.
Simplesmente significa que os leitores realizarão operações que não
realizariam caso decidissem que tal leitura não fosse possível.169

Lobo Antunes mostra-nos que é completamente possível realizar novas modalidades


de leitura. Mostra-nos que sua arte é uma ferramenta que auxilia no processo interpretativo
de outras obras, como um modo especial de (des)familiarização.

167
CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, op. cit., p. 111.
168
Ibid., p. 112.
169
Ibid., p. 119.
92

Ao perceber tais distorções, o leitor pode questionar de que forma se dá a construção


ecfrástica, afinal, “transposições intersemióticas lidas como tal são sempre lidas também
como textos sobre o fazer textual que nos mostram as possibilidades e limitações inerentes
aos dois sistemas de signos”.170

Se levarmos em conta que Lobo Antunes convida para o seu texto não apenas
imagens ou pinturas propriamente ditas, mas filmes, marcas comerciais, localidades,
nomes de artistas de toda espécie e muitas referências literárias – as quais podem figurar
numa mesma página – uma impressão ainda mais aguda de distorção, dinamismo,
ambiguidade e desdobramento pode ser sentida pelo leitor. Para visualizarmos um pouco
mais do espaço narrativo construído pelo escritor português, precisamos acessar todos
esses outros universos artísticos, os quais nem sempre são de antemão conhecidos por nós
leitores.

Ao vagarmos pelas páginas de seu livro, deparamo-nos com passagens muito


curiosas, que fogem do procedimento meramente descritivo. E para nos atermos apenas ao
aspecto mais propriamente plástico do sistema de significação pictórico, faremos um
pequeno passeio pelos momentos em que o autor cita pintores ou obras.

Logo na segunda página de Memória de elefante, encontramos duas referências


artísticas completamente diferentes dividindo o mesmo parágrafo:

O olhar intensamente azul do porteiro-cobrador, que assistia sem


entender a uma maré-baixa de revolta que o transcendia, embrulhava-o
num halo de anjo medieval apaziguante: um dos projectos secretos do
médico consistia em saltar a pés juntos para dentro dos quadros de
Cimabue e dissolver-se nos ocres desbotados de uma época ainda não
inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas de Sãozinha: lançar
mergulhos rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio, pelos joelhos
de virgens estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux, manequins
de espanto nu em gares que ninguém habita.171

Ao fazermos uma rápida busca por pinturas de Cimabue e de Paul Delvaux


novamente deparamo-nos com um enorme conjunto de obras, que em muitos aspectos nos
lembram a passagem do texto português. As gravuras de Cimabue são, todas elas, pintadas

170
Ibid., p. 130.
171
Ibid., p. 10.
93

em “ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica”,172 em
que figuram personagens dotados de “halo de anjo medieval”.173 Vejamos:

Figura 17: The madonna in majesty. Cimabue, 1285. (detalhe)

172
Loc. cit.
173
Loc. cit.
94

Figura 18: La Vierge et l’Enfant em majesté entrouré de six anges. Cimabue, 1270.

Eis a virgem pintada em cores ocres e os halos dos anjos medievais que juntos dão à
cena um aspecto ainda mais envelhecido, o que ajuda a compor a atmosfera memorialística
que inclusive dá nome ao primeiro romance de Lobo Antunes.

É interessante notar que o narrador realiza um desdobramento intersemiótico


intrasígnico ao comparar a posição física da virgem do quadro de Cimabue com as
95

personagens do quadro de Delvaux. Saltamos de uma tela para outra e de um espaço


temporal para outro, conectando pelo menos três contextos históricos distintos: a
contemporaneidade portuguesa, o medieval e o surrealista. O olhar do narrador conecta
duas atmosferas artísticas a partir de um elemento bastante incomum: “joelhos de
virgens”.174

Um segundo elemento da descrição feita no texto facilitou a escolha por uma tela de
Paul Delvaux: os “manequins de espanto nu em gares que ninguém habita”.175 Duas telas
foram selecionadas:

Figura 19: The village of Mermaids. Paul Delvaux, 1942.

174
Loc. cit.
175
Loc. cit.
96

Figura 20: The Great Sirens. Paul Delvaux, 1979.

Ao aproximarmos as telas medievais das surrealistas conseguimos compreender um


pouco mais do estranhamento captado pelo olhar do narrador. Os joelhos, que apontam
para uma postura estática pouco natural, estão presentes tanto no quadro de Cimabue,
quanto nos de Delvaux, apesar do longo período de tempo que os mantém afastados.

A nova percepção, possibilitada pelo exercício visual de leitura das telas, traz para o
interior do texto de Memória de elefante uma significativa ampliação descritiva e,
consequentemente, interpretativa. Percebemos que pelo menos dois tipos de leitura são
possíveis: o primeiro, mais superficial e mais vago, já que não extrapola o texto do
romance em si; e o segundo, muito mais detalhista porque se realiza em conjunto com uma
leitura paralela intersemiótica, que por sua vez funciona como uma lente de aumento
semântico-visual.

Dando sequência ao texto, encontramos uma referência um pouco mais inusitada: “O


médico tentava em vão decifrar nas espirais das suas rugas, que lhe lembravam as
97

misteriosas redes de fendas dos quadros de Johannes Vermeer, juventudes de bigodes


encerados, coretos e procissões”.176

Apesar de mencionar o nome do pintor, o narrador evoca um aspecto que não diz
respeito diretamente à temática geral de uma obra específica, mas ao elemento surgido do
processo de envelhecimento dos quadros. O narrador menciona as fissuras e os vincos
surgidos sob a tinta seca, os quais podem ser vistos, por exemplo, nesta famosa tela:

Figura 21: The Girl With a Pearl Earring. Johannes Vermeer, 1665. (detalhe)

É curioso observar que ao mencionar as rachaduras da tela de Johannes Vermeer, o


narrador desloca o próprio elemento “envelhecimento”. Isto é, o envelhecimento da tinta,

176
Ibid., p. 15.
98

responsável por causar “as redes de fendas”177 na tela, ganha um novo sentido, pois no
rosto da personagem do romance, passam a significar o envelhecimento do próprio sujeito.
Faz-se necessário, pois, deslocar aquilo que o quadro não tematiza, traduzindo o efeito
temporal técnico para um efeito temporal metafórico e semântico no romance.

Outra belíssima descrição, bem diferente da anterior, evoca um aspecto também


bastante específico de outro artista plástico, Alberto Giacometti. O elemento mencionado
passa a funcionar no texto do romance como um adjetivo. Eis o trecho:

O corpo dela permanecia jovem e leve apesar dos partos, e o rosto


mantinha intactos a pureza dos malares e o nariz perfeito de uma
adolescência triunfal: junto dessa beleza esguia de Giacometti
maquilhado achava-se sempre desajeitado e tosco no seu invólucro que
começava a amarelecer de um outono sem graça. 178

Famoso pelas inúmeras esculturas que reproduzem a figura humana sempre muito
verticalizada e delgada, Giacometti realizou um trabalho único em que a linha assume
enorme expressividade e simplicidade na caracterização das formas e dos volumes,
conforme podemos notar na seguinte escultura:

177
Loc. cit.
178
Ibid., p. 23.
99

Figura 22: Grande femme, III. Alberto Giacometti, 1960.

Note-se que um simples elemento – o perfil esguio da personagem – ganha uma nova
dimensão assim que observamos a obra do referido artista. O formato da estátua encaixa-se
tão perfeitamente bem à descrição que faz com que a escultura também seja afetada pela
passagem do livro. Em outras palavras, não apenas o elemento descrito na narrativa ganha
maior relevância semântica assim que observamos a escultura, como também o aspecto
esguio da própria estátua é intensificado. Ao olharmos para a obra plástica, já munidos das
lentes do adjetivo fornecido pela narrativa – perfil esguio – procuramos por esse adjetivo e
o encontramos absolutamente explícito. É como se a estátua, agora, não fosse nada além do
adjetivo. Ela é puramente e surpreendentemente esguia.

O mesmo ocorre no seguinte excerto:


100

De longe em longe cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa assim, que
gosta de nós não apesar dos nossos defeitos, mas com eles, num amor
simultaneamente desapiedado e fraternal, pureza de cristal de rocha,
aurora de maio, vermelho de Velázquez. 179

Que cor seria esta: “vermelho de Velázquez”?180 Um tom muito específico é


necessário para compor o quadro apresentado pela voz do narrador. Para imaginarmos a
cena não podemos utilizar qualquer tom avermelhado. Vejamos então uma tela de Diego
Velázquez em que o vermelho é a cor predominante:

Figura 23: The Infanta Maria Marguerita in pink. Diego Velázquez, 1659.

179
Ibid., p. 30.
180
Loc. cit.
101

O quadro, obviamente, não representa uma paisagem – a “aurora de maio”181 – como


nos sugere a passagem de Memória de elefante. Mas justamente por isso é muito
interessante ressaltar que, independente do quadro e do tema nele retratado, apenas uma
cor foi mencionada. Assim como na passagem anterior, em que um único adjetivo é
indicado, aqui também, apenas um elemento nos é dado como indício daquilo que, para
colorir a cena retratada do texto, devemos buscar em nosso acervo imagético mental.

Se continuarmos a considerar apenas as referências pictóricas, ainda encontraremos


pelo menos mais nove processos de ecfrase importantes ao longo do romance, as quais
serão apresentadas na ordem em que aparecem no texto. Nosso objetivo é imaginar como
seriam as páginas do romance antuniano, caso pudéssemos ver, na mesma sequência em
que as referências se manifestam, as respectivas ilustrações reais extra-textuais.

A próxima ecfrase, que evoca os autorretratos do pintor Rembrandt, levou-nos a


escolher não apenas uma, mas duas de suas telas. Isso porque o autor do romance
português refere-se apenas aos autorretratos finais do pintor e não aos iniciais. Vejamos a
passagem e, logo em seguida, as imagens por nós selecionadas: “Uma velha em camisa
parecida com os autorretratos finais de Rembrandt, vogava dez centímetros acima do seu
banco idêntica a um pássaro trôpego que fosse perdendo a espuma de vento dos ossos”.182

181
Loc. cit.
182
Ibid., p. 45.
102

Figura 24: Self-Portrait in a plumed hat. Rembrandt, 1629. Figura 25: Selfie-Portrait. Rembrandt, 1669.

O processo de envelhecimento que a série de autorretratos registra fez com que


ficássemos curiosos. A descrição da personagem – uma velha – dá-nos um indicativo de
como ela era no instante em que foi observada. Mas, assim que descobrimos que também
existem vários autorretratos iniciais do mesmo pintor, passamos automaticamente a
imaginar como a personagem do romance poderia ter sido em sua juventude.

É necessário salientar que no texto de Lobo Antunes tudo é passível de descrição


ecfrástica: pessoas, objetos, sentimentos e lugares. Não há regras que especifiquem um
modo de se descrever ou que organizem hierarquicamente por grau de importância as
memórias do narrador. A leitura nos coloca literalmente diante de um narrador dotado de
uma Memória de elefante, para quem o menor detalhe pode, a qualquer momento, ser
lançado para fora, através de uma enxurrada de períodos descritivos. É o que acontece na
seguinte passagem, em que a personagem tenta falar sobre sua idade:

Eu sou um homem de uma certa idade, citou ele em voz alta como
sempre lhe acontecia quando Lisboa, num gesto meditativo de lagosta de
viveiro, lhe apertava as pinças em torno dos tendões do pescoço, e casas,
árvores, praças e ruas penetravam tumultuosamente na sua cabeça à moda
103

de um quadro de Soutine dançando um Charleston carnívoro e


frenético.183

Após olharmos alguns quadros de Chaïm Soutine, temos a impressão de que esses
foram especialmente pintados para ilustrar a cena descrita pelo narrador do romance,
tamanha a coerência existente entre ambas as produções artísticas:

Figura 26: Houses of Cagnes. Chaim Soutine, 1924.

De fato, toda a cena pintada na tela expressionista parece movimentar-se num gesto
tumultuoso e movediço. E é exatamente este – a sensação de movimento – o elemento
transposto para o romance. A partir de técnicas completamente diferentes, ambos os
artistas – Lobo Antunes e Soutine – conseguem evidenciar algo invisível aos olhos físicos
que leem o texto ou observam a tela: o movimento. Podemos dizer que ambos tornam

183
Ibid., p. 84.
104

presente aquilo que objetivamente está ausente e que só pode ser sugerido. Apesar disso,
ao olharmos o quadro ou lermos o excerto, aquilo que não está diretamente explicitado é
aquilo que mais se faz notar.

No próximo exemplo ocorre exatamente o contrário. O narrador faz referência a dois


trabalhos artísticos completamente diferentes, mas evoca algo visível, que está
objetivamente presente na cena pintada – uma pomba – ou, como acontece com a segunda
referência, algo que é exatamente o tema principal – a curva do peito do pé das bailarinas
de Edgar Degas. Vejamos as referências:

A rapariga ruiva tirou da carteira um livro da coleção Vampiro marcado


com um bilhete de metropolitano, cruzou as pernas como as lâminas de
uma tesoura sobrepondo-se, e a curva do peito do pé dela assemelhava-se
ao das bailarinas de Degas suspensas em gestos a um tempo instantâneos
e eternos, envoltos no vapor de algodão da ternura do pintor: há sempre
quem se extasie quando as pessoas voam.
— Olá, disse o médico no tom em que Picasso se deve ter dirigido à sua
pomba.184

Figura 27: Pomba da Paz. Pablo Picasso, 1961.

184
Ibid., p. 93.
105

Figura 28: Two dancers on stage. Edgar Degas, 1877.

Saltando algumas páginas, encontramos mais uma referência, aparentemente simples,


mas muito curiosa. Diferentemente do aspecto objetivo, considerado na evocação das obras
de Degas e de Pablo Picasso, ou do caráter mais sugestivo da tela de Soutine, na próxima
passagem, o narrador convoca à cena as características que marcam o estilo de um artista.
Leiamos o trecho: “E isto num país onde há tardes assim, perfeitas de cor e luz como um
106

quadro de Matisse [...]”.185 Com base nas palavras “tardes”, “cor” e “luz”, escolhemos o
seguinte quadro:

Figura 29: Glimpse of Notre-Dame in the late afternoon. Henri Matisse, 1902.

O trabalho mencionado no texto é o do impressionista Henri Matisse, famoso


justamente por realizar um trabalho inigualável com as cores. Escolhemos uma tela que
assim como na narrativa, retrata uma paisagem vista num final de tarde. Poderíamos
escolher outras telas, em que o efeito produzido pelo trabalho com as cores está presente,
afinal, para além do tema ou da paleta de cor utilizada pelo artista, importa-nos perceber a
185
Ibid., p. 128.
107

técnica e o seu estilo, isto é, o modo singular com que o artista lança as cores na tela, para
produzir “tardes assim, perfeitas de cor e luz”.186

O jogo de cores é bastante evidente. Mas, a iluminação, tão explícita, só pode ser
alcançada através de um exemplar trabalho com a técnica. Matisse faz com que vejamos
luz, sombra e contorno onde na verdade só existe tinta. A conjugação da técnica e do estilo
é o fator que faz com que, aos olhos do narrador, as telas sejam “perfeitas”. A perfeição
técnica ou estilística, dessa vez, é o aspecto transposto para a espaço textual, enquanto
auxiliar descritivo ecfrástico.

Mais uma vez, Lobo Antunes coloca-nos diante de manifestações verbais e visuais
difíceis de serem completamente assimiladas. Por não indicar um quadro ou objeto
específicos, dificulta a nossa busca pela imagem adequada ao mesmo tempo em que nos dá
maior liberdade. Percebemos que ele opta pela menção generalizada de uma obra artística
escolhendo determinados conectores intersemióticos, elementos que, embora estejam em
espaços diferentes, apresentam similaridades que os fazem dialogar. Seu texto deixa de ser,
dessa forma, uma simples tradução. Conforme explica Julio Plaza:

Fazer tradução toca no que há de mais profundo na criação. Traduzir é


pôr a nu o traduzido, tornar visível o concreto do original, virá-lo pelo
avesso. A partir disso, pode-se afirmar que, à maneira de vasos
comunicantes, tradução e invenção se retroalimentam. Para O. Paz a
tradução é uma operação análoga à criação, mas se desenvolve em
sentido inverso. Na linguagem da poesia, à mobilidade dos sentidos e
significados corresponde a imobilidade dos signos.187

A tradução intersemiótica, ainda segundo Plaza, está pautada no uso material dos
suportes, “cujas qualidades e estruturas são interpretantes dos signos que absorvem,
servindo como interfaces”.188 Nesse sentido, entendemos que mais do que interpretar
signos linguísticos por outros não-linguísticos, Lobo Antunes consegue recriar e
movimentar as superfícies semânticas dos objetos que ele faz dialogar, realizando uma
verdadeira transposição intersemiótica. Leo Hoek afirma sobre isso que: “quanto mais o
discurso secundário se aproxima do discurso primário, mais ele corre o risco de ser

186
Loc. cit.
187
PLAZA, op. cit., p. 39.
188
Ibid., p. 65.
108

considerado uma simples tradução intersemiótica, e não uma transposição intersemiótica


autônoma”.189

Assim como a memória, essencialmente falha e escorregadia, também a escrita e a


técnica descritiva ecfrástica antuniana o são. O autor opta por carregar sua narrativa com as
características mais fundamentais da memória: a fluidez, a fragmentação, as contradições,
as repetições, as sensações indefinidas, as incertezas, as minúcias, a desorganização, o
esgarçamento temporal e espacial, enfim, o caos. E é graças a inusitada utilização de tais
elementos que o movimento semântico acontece. Imutabilidade e certeza são
características que destoariam completamente da escrita memorialística e já bastante
plástica que se manifesta no romance. Ao sugerir e não especificar, o autor faz com que
todo o trabalho narrativo extrapole as páginas do romance e continue a acontecer aos olhos
do leitor, assim como acontece na seguinte passagem:

Ergueu o queixo, bebeu um gole e deixou o líquido escorrer num vagar


de estearina sulfúrica a sacudir-lhe a lassidão dos nervos, zangado
consigo mesmo e com os torcidos de Crónica Feminina que se
autogravara nos miolos, arquitecto da própria piroseira mau grado o aviso
piloto de Van Gogh: tentei exprimir com o vermelho e o verde as terríveis
paixões humanas.190

Nessa passagem não apenas o pintor é mencionado, como também a sua fala: “tentei
exprimir com o vermelho e o verde as terríveis paixões humanas”.191 Temos uma ecfrase
duplamente intertextual. Com base nas cores citadas pelo próprio Vincent Van Gogh,
encontramos as seguintes telas:

189
HOEK, op. cit., p. 178.
190
ANTUNES, op. cit., 2006, p. 132.
191
VAN GOGH, apud CHIP, Herschel B. Teorias da Arte moderna. Tradução de Waltensir Dutra. São
Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 32.
109

Figura 30: The Old Tower in the Fields. Vincent Van Gogh, 1884.

Figura 31: Peasant Woman by the Heart. Vincent Van Gogh, 1885.
110

Dentre tantas telas, escolhemos justamente as que foram pintadas, em sua quase
totalidade, apenas com as variações de cada uma das duas cores citadas. Nosso objetivo é
perceber, em ambos os trabalhos, a maneira como, através da cor, Van Gogh consegue
expressar as “terríveis paixões humanas”.192 Em ambos os quadros, parece-nos que a
solidão e a melancolia são os sentimentos mais presentes, mas, obviamente, antes de
procurarmos pelas telas e cores, já nos deixamos influenciar pela cor semântica do texto,
agudamente triste, resignada e literalmente feita em pedaços. É o que nos confirma mais
este seguinte trecho:

[...] e quando limpam a fronha no lavatório de esmalte e se deitam na


cama para dormir, a lâmpada do tecto, pendurada do fio, sem abajur, à
maneira de um globo ocular desorbitado, assemelha-se ao candeeiro da
Guernica aclarando uma paisagem devastada. 193

A Guernica, um dos trabalhos mais famosos das Artes Plásticas, é realçada, aqui, a
partir de uma visão também duplamente significativa. Além de reproduzir um cenário
desorganizado como o da narrativa, não podemos deixar de considerar que, ao pintar
Guernica, Pablo Picasso tenha realizado um trabalho esteticamente cubista. Nesse sentido,
a referência textual torna-se duplamente significativa porque evoca tanto a “devastação”
temática quanto a característica essencial da estética cubista: a tentativa de decomposição
dos objetos.

192
Loc. cit.
193
ANTUNES, op. cit., 2006, p. 162.
111

Figura 32: Guernica. Pablo Picasso, 1937.

No próximo exemplo, o autor relaciona dois universos de significação: a pintura e o


cinema. O narrador convoca à cena do espaço discursivo tanto o famoso ator Clark Gable
(1901-1960), quanto o pintor renascentista Jan Van Eyck. A descrição comporta o
resultado da soma de espaços distintos e, no entanto, essencialmente visuais. Um quadro
dentro de outro quadro dentro de outro quadro: dobra labiríntica. Vejamos:

No átrio do Casino uma excursão de inglesas desembarcadas de um


autocarro tão sumptuoso como a sala de estar de Clark Gable, de vidros
substituídos por quadros de Van Eyck, borbulhava pelas bocas pálidas
exclamações de entusiasmo comedido. 194

Se considerarmos que Van Eyck era especialista em reproduzir a ilusão de


tridimensionalidade, como bem nos mostram as pinturas que serão apresentadas a seguir, e
que seus quadros são mencionados para compor memorialísticamente um cenário espacial
cinematográfico – essencialmente tridimensional – podemos compreender melhor a
tentativa de duplicação ou desdobramento espacial da cena descrita em Memória de
Elefante.

194
Ibid., p. 176.
112

Figura 33: Adoration of the Lamb. Jan Van Eyck, 1425.

Figura 34: The Arnolfini Wedding. Jan Van Eyck, 1434.


113

Percebemos que ambos os quadros selecionados registram o resultado de uma técnica


de perspectiva muito apurada. O espaço é cuidadosamente calculado para que tenhamos a
nítida sensação de tridimensionalidade e da divisão explícita da tela em primeiro, segundo
e terceiro planos. O trabalho especular também deve ser ressaltado, enquanto potencial
elemento duplicador da cena registrada. O espelho, pendurado na parede de fundo do
segundo quadro, reflete parte do espaço e as costas das personagens tematizadas, sem que
dê a ver o pintor. Ilusão de ótica. Como estruturar mentalmente uma referência ecfrástica
desse porte? A narrativa nos leva como cegos a tatear paradoxalmente um mundo
abarrotado de imagens que se multiplicam desorganizadamente.

O último excerto do romance ajuda-nos a compreender, no entanto, que não apenas


nós, leitores, seguimos perdidos pela caótica narrativa, mas também as personagens
seguem com a incerteza de que: “[...] só há saída pelo fundo e talvez que nos amparando
mutuamente lá cheguemos, cegos de Brueghel a tactear, tu e eu, por esse corredor cheios
de medo de infância e dos lobos que povoam a insónia de ameaças”. 195

Figura 35: Parable of the Blind. Pieter Brueghel, 1568.

195
Ibid., p. 195.
114

Mais uma vez, a narrativa nos apresenta uma referência pictórica incomum. Afinal, a
tela tenta representar, através do grupo de homens, dois elementos invisíveis: a cegueira e
o movimento da caminhada tateante e lenta, que é bruscamente interrompida pela queda
daquele que guia o grupo. Apesar de reproduzir um instante imagético, a tela nos mostra o
caminhar errante e trôpego dos cegos, consequência de suas cegueiras. Um novo
desdobramento semântico e pictórico se constrói, desta vez com um aspecto paradoxal.
Afinal, é graças à visão que podemos enxergar o invisível presente na tela e a cegueira das
personagens representadas. Podemos entender, então, que Lobo Antunes traz para o texto o
invisível da imagem, sugerindo-nos, talvez, que também devamos levar em conta aquilo
que o texto não nos deixa ver, mas que insiste em se fazer presente.

A ecfrase produzida nos ajuda a compreender que “há um visível que não produz
imagem e que há imagens que estão todas em palavras”.196 De acordo com Jacques
Rancière:

[...] o regime mais comum da imagem é aquele que põe em cena uma
relação do dizível com o visível, uma relação que joga ao mesmo tempo
com a sua analogia e sua dessemelhança. Essa relação não exige de forma
alguma que os dois termos estejam materialmente presentes. O visível se
deixa dispor em tropos significativos, a palavra exibe uma visibilidade
que pode cegar. 197

As palavras de Rancière descrevem teoricamente o que acontece formal e


discursivamente na produção literária de Lobo Antunes. Desde seu primeiro escrito (e
veremos que também em toda a sua obra), a relação entre o visível e o dizível se faz
presente de forma bastante notória. O trabalho com o tropos manifesta-se exaustivamente
desde as primeiras linhas e segue, oscilando em graus de maior e menor intensidade, mas
sempre enquanto elemento constitutivo de sua estilística.

Fizemos uma análise um pouco mais detida de seu primeiro romance para
percebermos de que maneira se estabelece a relação tão conflituosa, mas tão instigante
entre o visível e o dizível. E também para percebermos como o autor adentra o universo
pictórico das artes plásticas mesmo sem manifestar esse objetivo explicitamente. Essa
primeira análise funciona como parâmetro, a partir da qual poderemos acompanhar de
196
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012. p. 16.
197
Loc. cit.
115

maneira mais organizada e objetiva as transformações discursivas e formais por que


passará a sua escrita.

Em seus próximos dois romances – Os cus de Judas e Conhecimento do inferno – a


estrutura formal do texto e as referências ao sistema das artes plásticas seguem, com
pouquíssimas diferenças, o traçado de base de Memória de elefante. Ou seja, o texto ainda
não se modifica em sua estrutura gráfica, e continua, em menor grau, a fazer referências
extra-textuais através do procedimento ecfrástico.

Em um mesmo plano é possível perceber o intenso e minucioso exercício de junção


do heterogêneo, em que se relacionam os mais variados “pormenores avulsos do cotidiano
de diferenciados níveis culturais”,198 como na seguinte passagem do romance Os cus de
Judas:

E você como faz? Imagino-a, sabe como é, num cenário a meio caminho
entre a filosofia oriental e a esquerda ponderada e lúcida, para quem Maio
de 68 representou uma aborrecida doença da infância, que reduziu o
sonho ao marxismo desencantado, utilitário e cínico de certas burocracias
do leste: muitas almofadas pelo chão, um odor de incenso e de patchouli
a flutuar sobre os bibelots indianos, um gato siamês desdenhoso como
uma prima-dona, livro de Reich e Garaudy a prosseguirem nas prateleiras
os seus monólogos veementes de profetas, a voz de Leo Ferré que emerge
em espirais de paixão febril do gira-discos. Arquitectos de bigode,
cuidadosamente malvestidos, ocupam de tempos a tempos, a sua cama de
ferro de antiquário de Sintra. Enchendo de pontas de cigarro sem filtro os
cinzeiros design, ou afagando os cabelos hirsutos do peito em
elucubrações onde se adivinham perfis de supermercados por projetar. De
manhã, a porteira intratável e gorda, recolhe os caixotes do lixo
vociferando insultos silenciosos pelas sobrancelhas pesadas de buldogue.
Do andar de baixo chegam as guinadas furibundas de uma discussão
conjugal, acompanhada do som de loiça que se quebra. Um sol alegre
como o riso de um polícia toca xilofone nas persianas. De chinelos na
cozinha, você prepara um café forte como um electrochoque que a
projecte para fora do seu invólucro de sono na direção do emprego, ao
volante de um R4 creme, de traseira amachucada por um táxi colérico. 199

Podemos perceber, pela estrutura do texto, que o autor começa a construir períodos
verbais bastante longos, em que se arranjam, num coletivo ecfrástico, as mais variadas
referências, fazendo com que a página transborde visualidade.

198
SEIXO, Maria Alzira, op. cit., 2002, p. 15.
199
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 91.
116

A impressão que temos é a de que somos colocados, a cada página, diante de uma
máquina projetora de imagens, de uma “imageria”.200 Daquilo que, segundo Rancière, em
sentido amplo, diz respeito a todas as formas de produção e reprodução de imagens, não
apenas àquelas produzidas por um equipamento imageador. Somos lançados em um
turbilhão imagético, que faz agir no texto uma natureza instável e metamórfica. Cada
referência apresenta um ponto de indecidibilidade e toma alguma coisa emprestada de
outra. Mesmo a imagem que parece ser mais nua e semanticamente mais bem definida, não
escapa ao processo e é marcada pela metamorfose inerente ao caráter fundamental de
indiscernibilidade da escrita.

O texto de Lobo Antunes, mesmo em sua primeira fase apresenta uma abundante
presença do que Rancière chamou de “frase-imagem”. Sua poética reúne, entre os
fragmentos do próprio texto, dentre outras coisas, recortes históricos, reproduções e
combinações fictícias ou não de fotos, quadros, músicas, filmes e todos os afastamentos e
aproximações que suscitam novas formas e significações, fato que

[...] supõe a existência de uma Loja/Biblioteca/Museu infinito em que


todos os filmes, todos os textos, as fotografias e os quadros coexistam, e
onde todos sejam decomponíveis em elementos dotados, cada um, de
uma tríplice potência: a potência da singularidade (o punctum), da
imagem obtusa; o valor de ensinamento (o studium) do documento que
traz a marca e uma história; e a capacidade combinatória do signo, capaz
de se associar a qualquer elemento de outra série para compor ao infinito
novas frases-imagens. 201

Compreendemos, portanto, que os Textos de 1ª Versão, escritos por Lobo Antunes,


guardadas todas as diferenças trazidas pelo contexto histórico, pelo estilo e pela proposta
semântica, deixam algum vestígio do “procedimento de geração de texto pela imagem”,202
já que “não fala sobre/a propósito da imagem. Ele fala a partir, logo, à distância, da
imagem”.203 O texto parte de uma matéria que lhe é anterior e que funciona como uma
espécie de base. A leitura se faz, dessa forma, no interior de uma relação de co-referência,
que “consiste na aproximação de um texto e de uma imagem autônomos em virtude de
correspondências históricas, individuais ou coletivas”.204 É algo que não se realiza

200
RANCIÈRE, op. cit., p. 24.
201
Ibid., p. 40-41.
202
ARBEX, op. cit., p. 37.
203
Loc. cit.
204
Ibid., p. 45.
117

imediatamente ou objetivamente e que “pode ser analisado através de outros pontos de


referência que não pressupõem o ‘imediatismo’ nem a ‘subjetividade’ da análise”.205 A
imagem é emprestada de um lugar exterior ao texto, fato que, segundo Liliane Louvel,
causa no leitor:

[...] um sentimento do déjà vu ao ler uma descrição que parece fielmente


um quadro célebre do pintor [...] ao ponto de ir verificar aquilo que
pensou ter conhecido em uma obra distinta daquela que está lendo. O
leitor procede então a uma dupla leitura, tendo a segunda a função de
verificação, nesse caso fora do texto, superpondo-se à primeira.206

Através dos indícios que se dispersam pelo texto, o leitor consegue reconstruir ou
reconhecer alguns quadros e naturalmente é levado a superpor pelo menos dois estratos
diferentes de sentido.

Podemos entender que a primeira fase da obra de Lobo Antunes é mais


“metapictural”, já que faz inúmeras referências às artes visuais de forma explícita,
produzindo um efeito de “metapicturialidade textual”,207 ainda que esta seja uma relação in
absentia, isto é, ainda que tais referências não apareçam materialmente no corpo da página.
À medida que a leitura da obra avança, o grau de saturação pictural produzido pelo
procedimento ecfrástico diminui e a escrita, então, ganha um incomum aspecto
iconotextual – entendido aqui enquanto “presença de uma imagem visual convocada pelo
texto e não somente enquanto a utilização de uma imagem visível para ilustração ou como
ponto de partida criativo”.208

Segundo Peter Wagner, as narrativas são iconotextuais precisamente quando “elas


integram o sentido semântico (denotativo e conotativo) dos textos que são iconicamente
retratados, incitando o leitor a formar um sentido a partir dos signos verbais e icônicos em
um artefato”.209 Nesse sentido, o iconotexto pode ser entendido como sendo aquele em que
há uma interpenetração explícita entre palavras e imagens, em que elementos verbais e
visuais se misturam para produzir uma narrativa que dependa da co-presença de ambas as

205
Loc. cit.
206
LOUVEL, Liliane, apud ARBEX, op. cit., p. 49.
207
Ibid., p. 46.
208
Loc. cit.
209
“They integrate the semantic (denotative and connotative) meaning of the written texts that are iconically
depicted, urgind the ‘reader’ to make sense with both verbal and iconic signs in one artifact”. (WAGNER,
op. cit., p. 16.)
118

referências. Assim, o conceito de iconotexto pode ser aplicado tanto às imagens que
mostram palavras ou escritos, como também aos textos que trabalham com imagens.210
Poderíamos dar como exemplo de imagens que mostram palavras ou escritos a obra do
classicista Léonard Defrance (1735-1805):

Figura 36: A l'egide de Minerve, Léonard Defrance, 1780.

E para darmos um exemplo de texto que trabalha com imagens, podemos citar a obra
do italiano Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana:

210
Ibid., p. 16-17.
119

Figura 37: A Misteriosa chama da rainha Loana (página), Umberto Eco, 1932.

Liliane Louvel argumenta que o iconotexto não está necessariamente ancorado no


real, mas está “duplamente desligado, passando a evoluir no centro da representação e não
mais num sistema normativo, em que o plano da representação entra ainda em interseção
com o plano da realidade”.211 O leitor, então, deve se esforçar para entender o tipo de
representação da imagem evocada, já que não está mais diante de um processo de relação
significante/significado, mas de uma relação em que a estrutura se constrói no

211
LOUVEL, Liliane. “A descrição ‘pictural’: por uma poética do iconotexto”. In: ARBEX, op. cit., p. 111.
120

desdobramento significante/significante/significado. Ao analisar o processo de descrição


pictural, Louvel opta por utilizar o termo “translação”, afinal:

Na “translação pictural”, diferentemente da tradução linguística


(passagem de um significante a outro, de mesma natureza, linguístico),
efetua-se a passagem de um significante (pictural) a um outro significante
(linguístico) de natureza diferente. Nesta translação transmidiática, todas
as metamorfoses, todas as manipulações que o escritor quiser impor à
obra artística serão permitidas. No caso de um quadro pertencente ao
“mundo real”, o leitor poderá observar os fenômenos de alteração, de
corrupção, de distorção, toda mudança que provoque uma distância entre
a obra e sua representação iconotextual. Neste caso, falar-se-á de
“translação”, e mesmo de “traição”.212

Portanto, é possível dizer que estaremos diante de uma “diferença” sempre que
estivermos diante de uma translação poética, já que tal mecanismo evoca uma espécie de
outro do texto, funcionando como uma língua dentro da língua ou como um re-corte de
elementos já pré-recortados.

Diante dos dois exemplos apresentados acima, fica evidente que a narrativa de Lobo
Antunes parece não se adequar perfeitamente ao conceito de iconotexto, por apresentar,
como já mencionado, um aspecto incomum. É necessário lembrar que o caráter
iconotextual de uma narrativa justifica-se pelo fato de ela evocar a “presença de uma
imagem visual”.213 Porém, é possível perceber, especialmente à medida que o autor
português inaugura uma segunda fase de escrita, que o trabalho realizado com a estrutura –
no que se refere ao arranjo gráfico e à espacialização – faz com que seu texto se diferencie
das narrativas iconotextuais produzidas por outros escritores. A iconotextualidade presente
na obra de Lobo Antunes foge, desde o primeiro romance, ao tradicional recurso de
apresentação de imagens concretas por colagem. Aos poucos, a forma (des)arranjada com
que a linha começa a se dispor na superfície da página passa a produzir um delicado e
inusitado desenho verbal, conforme nos mostra a seguinte página do romance A morte de
Carlos Gardel:

212
Ibid., p. 196.
213
Loc. cit.
121

Figura 38: A morte de Carlos Gardel (página), António Lobo Antunes, 1994.

Compreendemos que a transformação gráfica do texto naturalmente nos convida a ler


de outra maneira, pois nos convida a ver e a interpretar o desenho que se forma na
superfície da página.

Não obstante o lento distanciamento do processo de escrita ecfrástico, o uso


constante da linguagem figurada resiste e segue desenvolvendo-se com a mesma
122

intensidade na segunda fase de sua produção. Dessa forma, o que poderia ser entendido
como resquício de um procedimento ilustrativo torna-se cada vez mais um processo
instaurador de um laço mais legitimamente intrínseco entre pintura e poesia, já que o texto
se transforma cada vez mais estruturalmente ao ganhar importância visual, exibindo-se
mais e mais enquanto desenho que, dotado de linhas, se esboça em uma superfície.

A transformação, contudo, não se dá de forma simples e imperceptível. Adentramos


um outro momento de sua poética com a impressão de que a ausência de citações
imagéticas causa uma importante mudança em nossa capacidade perceptiva. Habituados ao
procedimento ecfrástico, sentimos uma significativa diferença diante da falta de
referenciais visuais que apontam para imagens extratextuais. A leitura torna-se mais densa
e complexa e somos levados a encontrar novas maneiras de caminhar pelo texto.

2.2. TEXTOS DE 2ª VERSÃO: PLASTICIDADE POÉTICA

Naquela que consideramos, para efeito de pesquisa, ser a segunda fase de sua escrita,
António Lobo Antunes corajosa e sutilmente começa a explorar com maior intensidade o
potencial plástico de sua letra. Percebemos que o fascínio pelo visual se desdobra na
tentativa de adentrar literalmente o espaço visual propriamente dito. As operações de
oscilação, que acontecem a partir do diálogo entre dois sistemas de significação – verbal e
visual – produzem um efeito de leitura muito diferente daquele experimentado na primeira
fase de sua carreira.

É possível notar um movimento, ainda não totalmente estabilizado, que nos leva do
ler ao ver através de pequenos efeitos visuais, que não param de perturbar a superfície do
legível. As interferências provocadas por esse novo dinamismo produzem, conforme
explica Liliane Louvel, “um vai-e-vem entre os dois media que se faz ler na temática
estrutural do ver de perto/ver de longe, quando o desejo da imagem de entrar no texto se
desdobra em desejo do sujeito de entrar na pintura”.214

O aspecto imagético passa a ser evocado – especialmente a partir do romance A


ordem natural das coisas (1992) – mais diretamente pela letra, pela tipografia e pelo

214
LOUVEL, apud ARBEX, op. cit., p. 49.
123

espaçamento da página. A relação passa a ser mais homoplásmica, pois as imagens, agora,
prendem-se, de certa forma, à letra do texto “captadas na dimensão do legível.”215

Lobo Antunes sutilmente inicia uma tentativa de espacialização do texto e a busca


por uma estilização estrutural que começa a transformar o livro em algo que precisa ser
visto. Poderíamos arriscar dizer que, aos poucos, as páginas ganham um aspecto quase
“cubista”, que lembra ainda o projeto interseccionista criado por Fernando Pessoa e Mário
de Sá-Carneiro, em 1913. Enquanto novo gênero do Paulismo,216 o Interseccionismo
utilizava a “sucessiva e vertiginosa interpenetração de planos”,217 fundindo-os, “por vezes,
de um modo aparentemente não-lógico, motivando e provocando quem as lê a encontrar
lugares de sentido diversificados”.218 Conforme explica Paula Cristina Costa, o
Interseccionismo:

[...] assemelha-se, em 1914, em muitos dos seus aspectos à pintura


futurista italiana, nomeadamente, de Severini, Boccioni, Carrà e Russolo
que, por sua vez, teve imediata, como é sabido, ressonância literária, na
aplicação que Marinetti irá fazer destes princípios plásticos à literatura,
logo no primeiro manifesto de 1909. Muito em particular o conceito de
analogia, desenvolvido no âmbito da pintura e da literatura futurista, irá
ter um eco feliz na plena realização teórica e poética do interseccionismo
pessoano. 219

É importante frisar que a proposta interseccinista aproxima-se do projeto estilístico


antuniano especialmente no que diz respeito à tentativa de dar plasticidade ao texto,

215
Ibid., p. 53.
216
O Paulismo é, de acordo com Paula Cristina Costa, a primeira corrente literária do modernismo português
que, nascido em 1913, data em que Fernando Pessoa escreve o poema Pauis, defendia a ideia de que o poeta
moderno deveria tentar conciliar a “materialização do espírito” com a “espiritualização da natureza”. “Numa
harmonia de contrários, procurada entre uma poesia simultaneamente objectiva e subjectiva, uma poesia da
alma e da natureza”. Segundo Paula Cristina Costa, “o Paulismo utilizava diversos recursos formais e
estilísticos, tais como a utilização da forma verbal reflexa (‘oco de ter-se’; ‘mar sobre o não conter-se’), a
sucessão de imagens/ metáforas que desenvolvem estados de alma crepusculares e estagnados de modo vago
e complexo, como aliás, os simbolistas já o faziam (‘o Azul esquecido em estagnado’, ‘Fluido de auréola,
transparente de Foi, oco de ter-se...’), para além de outros recursos paralelos, tais como as primeiras
exercitações de estilo heteronímico que Pessoa já então ensaiava, quanto a um interseccionismo pessoal,
entre um eu e um outro, bem visíveis em versos como ‘o Mistério sabe-me a eu ser outro’. Nessa sucessão,
por vezes caótica ou quase aleatória de imagens [...] nota-se já, se bem que de modo talvez ainda
inconsciente, os princípios do Cubismo, que desde pelo menos 1909, já tinha em Paris as suas primeiras
manifestações”. (COSTA, Paula Cristina. “Paulismo”. In: MARTINS, Fernando Cabral (Coord.). Dicionário
de Fernando Pessoa e do Modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. p. 610.)
217
COSTA, Paula Cristina. “Interseccionismo”. In: MARTINS, Fernando Cabral (Coord.). Dicionário de
Fernando Pessoa e do Modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. p. 364.
218
Loc. cit.
219
Ibid., p. 363.
124

distanciando-o da tradicional condição de visualidade estática e transformando-o em uma


poética do movimento.

Interessa-nos ainda o fato de que o Interseccinismo esboçava uma grande inovação


por apresentar um primeiro esquema de um “projecto interartes, dando continuidade
teórica a alguns projetos de outros modernistas, do diálogo entre literatura e pintura,
nomeadamente as exposições Mouvantes, imaginadas em 1917 [...]”.220 Enquanto extensão
do Paulismo, o programa interseccionista conseguiu realizar as primeiras tentativas de
conciliação entre o objetivo e o subjetivo, bem como a sucessão “por vezes caótica ou
quase aleatória de imagens”.221

Considerado como o “ensaio inaugural do Modernismo português”,222 origem do


Paulismo e, consequentemente, do Interseccionismo, o Poema Pauis, segundo Paula
Cristina Costa, “obedece já a um processo analógico equivalente às colagens utilizadas
pelos cubistas”,223 já que nele o poeta abandona a forma fixa e, através de construções
muito sofisticadas, tenta expressar a fragmentação de seu universo interior. O resultado são
versos que apontam para uma profusão de alteridades, os quais já são um ensaio para o
estilo heteronímico de Pessoa.

Apesar da distância cronológica que separa o programa Interseccionista da estilística


antuniana, acreditamos que as relações podem ser feitas especialmente no que diz respeito
à plasticidade da linguagem empregada. Afinal, o texto de Lobo Antunes também se
arrisca, tal como o fazem os pintores cubistas e futuristas, a decompor os objetos e a ousar
procedimentos de simultaneidade, deslocamento e distorção de planos, rompendo com a
ideia de continuidade espacial e temporal e aproximando-se dos princípios de montagem e
colagem, conforme nos mostra a seguinte tela do português Guilherme de Santa-Rita
(1889-1918):

220
Ibid., p. 365.
221
COSTA, Paula Cristina. “Paulismo”. In: MARTINS, op. cit., p. 610.
222
Ibid., p. 608.
223
Ibid., p. 611.
125

Figura 39: Cabeça, Guilherme de Santa-Rita, 1910.

Em contraposição a uma pintura romântica ou realista, podemos afirmar que a obra


de Guilherme Santa-Rita, assim como a de outros futuristas, pareça mais plástica, já que,
apesar do sugestivo título, distancia-se das regras miméticas de representação e, portanto,
do registro de uma cena ou objeto tal como ele se apresenta. Ao justapor as partes de um
possível elemento, cria um efeito de simultaneidade e movimentação. Fato que nos leva a
enxergar com mais clareza o potencial plástico da pintura.
126

Derivada do grego Plastikós, a palavra “plástico”, de acordo com o Dicionário


Houaiss de língua portuguesa, é empregada pela primeira vez no ano de 1836 para
conceituar o ato que “dá forma ou é capaz de dar forma ou de alterar uma forma”.224 Em
sentido artístico, o vocábulo indica que é plástico aquilo cujo objeto é a elaboração de
formas, ou a ação capaz de dar “soluções estéticas a algo”. 225 Plástico também é aquilo que
“é belo quanto à forma, ao aspecto”;226 e aquilo que “é pictórico”.227

A palavra “plástica” também é utilizada em Filosofia para designar um princípio de


formação, a “força formadora, dirigida por Deus e dele dimanada, à qual está confiada a
tarefa de organizar a matéria”.228 Trata-se do conceito de natureza ectipa que, segundo
Immanuel Kant, difere da natureza arquetípica, que é divina por ser capaz de criar os
objetos pensando-os. “O intelecto Éctipo, que é o humano ou finito, não [é ]criativo, mas
discursivo [...]”.229

As artes consideradas plásticas são, pois, todas as artes cujas ações sejam capazes de
modelar, modificar ou mesmo criar uma forma, já que criar diz respeito à capacidade de
dar forma ou transformar algo. E nesse sentido é que entendemos que outras artes, apesar
de não serem rotuladas como tal, também apresentam uma linguagem plástica.

Portanto, o fato de a Literatura – a arte das palavras – não ocupar a categoria de Arte
Plástica, não anula a plasticidade de seu objeto: a linguagem verbal. Sempre que nos
ocuparmos em entender a forma de uma linguagem verbal, estaremos analisando a sua
plasticidade. E, dessa maneira, quanto mais inusitado for o trabalho com a forma de um
escrito, maior será o grau de plasticidade do mesmo.

Se a literatura é essencialmente o uso estético da linguagem escrita, isto é, a arte de


realizar marcações verbais gráficas em uma superfície plana com o intuito de produzir um
efeito artístico, desenvolvendo, pois, uma marcação estrutural rígida de escrita, sempre que
tais marcações forem feitas de maneira a sugerir movimento ou fluidez, expressarão um
aspecto plástico. A plasticidade não está ligada apenas ao tipo de material que serve de

224
HOUAISS, António; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss de
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 2235.
225
Loc. cit.
226
Loc. cit.
227
Loc. cit.
228
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedethti.
São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 765.
229
Loc. cit.
127

suporte ao registro, afinal, ela também pode ser entendida como o resultado de um trabalho
que, embora realizado a partir de precisas marcações e recortes, consegue dar a algo uma
forma diferente daquela que apresentava originalmente.

Georges Didi-Huberman ajuda-nos a conceituar a palavra “plástico” ao descrever a


natureza da cera. Para ele:

[...] dizer que [a cera] é material plástico é desde logo dizer que toda ela
dá de si, quase sem resistir, em cada gesto técnico, em cada forma que lhe
queremos impor. Vai exatamente onde se lhe ordena: deixa-se cortar
como manteiga pelo cinzel do escultor, deixa-se aquecer e modelar
facilmente pelos dedos, deixa-se fundir nos moldes onde ganha volume e
textura com surpreendente precisão. 230

A partir das características dadas por Didi-Hubermam é possível pensar nos mais
variados materiais de composição. O conjunto escultórico Laocoonte, por exemplo, apesar
de seu suporte marmóreo, consegue expressar um alto nível de plasticidade, graças a uma
elevada precisão técnica. O corpo das personagens esculpidas sugere o movimento e a
consequente instabilidade semântico-expressiva daqueles que manifestam dor.

Fica claro que quanto maior a resistência de um material, aparentemente menor é seu
grau de plasticidade. Porém, a plasticidade também pode ser alcançada, enquanto
resultado, pela capacidade técnica de dar forma a uma matéria dura. Quando o trabalho de
elaboração de formas consegue dar a uma matéria pouco maleável, um formato capaz de
sugerir movimento, transitoriedade, instabilidade, indefinição e elasticidade, produz um
efeito plástico capaz de disfarçar a natureza rígida de um material.

Quando comparamos o grupo escultórico com outra obra, feita com o mesmo
material e com a mesma técnica, a percepção sobre o aspecto plástico dos objetos fica mais
evidente:

230
DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas: Ensaios sobre a aparição, 2. Tradução de António Preto (et al.).
Lisboa: KKYM, 2015. p. 187.
128

Figura 40: Laocoonte. 50 a.C. (detalhe)

Figura 41: Busto de Platão, IV a. C.


129

Compreendemos que o trabalho de composição, altamente cuidadoso e preciso em


ambas as obras, também colabora com a produção do efeito plástico por imprimir o
aspecto “epidérmico”, por assim dizer, na superfície do mármore. Embora o segundo
trabalho seja um busto – que objetiva justamente estabelecer um desenho preciso e estável
daquilo que está sendo retratado –, as duas esculturas são representações humanas. Porém,
graças à forma entalhada na superfície das peças, conseguimos enxergar mais movimento
na primeira e maior estabilidade na segunda. O entalhe que faz ver o rosto de Laocoonte
sugere o movimento elástico dos músculos contorcidos. Dessa maneira, embora a escultura
seja mimética e realista no que diz respeito às formas humanas e à temática representada, o
conjunto é o resultado de um trabalho de espacialização bastante sofisticado.

Ao compararmos as duas cabeças talhadas em mármore com a “cabeça” pintada na


tela de Santa-Rita, a evidencia do aspecto plástico se acentua ainda mais. Já não estamos
diante de um trabalho retratista e realista e já não se trata também de uma composição feita
através da técnica de entalhe capaz de explorar a tridimensionalidade espacial. Mesmo
estando restrito a um espaço bidimensional, a pintura portuguesa talvez seja a mais plástica
de todos os três trabalhos, por concentrar em suas formas um elevado grau de fluidez. Ao
desmontar e sobrepor partes já “deformadas” da “cabeça” de um anônimo, por marcar a
tela com pinceladas curvilíneas e pictoricamente incompletas e, finalmente, por utilizar
uma paleta de cores mais neutra, o desenho ganha um aspecto de algo que se movimenta
rapidamente e que, por isso, não se deixa captar com maior definição formal. Ao olharmos
a tela temos a impressão de que o artista tentou registrar o movimento brusco de um objeto
e, consequentemente, a sua forma desfigurada, tal como acontece quando tentamos
fotografar o voo ou a queda de um objeto. O resultado é o registro do aspecto transitório e
fluxional da imagem, isto é, da transição e da mutação de sua forma.

O mesmo exercício analógico pode ser feito com textos literários. Porém, já que
pretendemos analisar a homologia estrutural da obra literária de Lobo Antunes com relação
à pintura, faremos um recorte que centralize o aspecto formal em detrimento do semântico,
realizando, obviamente, algumas incursões ao campo temático de seus textos literários
sempre que necessário. Afinal, compreendemos que a plasticidade pode estar presente
tanto na estrutura de um objeto – seja ele de que espécie for – quanto em sua semântica, já
que o trabalho com a forma está presente em ambos os níveis. Podemos perceber isso em
muitos escritos, pois variados são os textos que apresentam uma arquitetura linear mais
130

“dura”. Entendemos que escritos que apresentam um encadeamento narrativo linear – com
início, meio e fim bem demarcados – e que não arriscam tantas fragmentações ou
desmontagens verbais, sejam estruturalmente menos plásticos que os que desenvolvem
sobreposições, desmontagens, recuos, avanços, repetições e suspenções frasais pelo
simples fato de produzirem uma atmosfera irregular e instável para a leitura.

Poderíamos pensar, para darmos apenas alguns exemplos, em escritos tais como O
cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913); Ulisses (1922), de James Joyce (1882-
1941); Ficções (1944), de Jorge Luís Borges (1899-1986); Em busca do tempo perdido
(1913), de Marcel Proust (1871-1922); e Os Cantos (1948), de Ezra Pound (1885-1972).

Não objetivamos, obviamente, definir um juízo de valor para tais obras, haja vista o
caráter naturalmente plástico que todos apresentam pelo simples fato de serem obras
primas literárias. Porém, podemos, ainda que superficialmente, salientar a intensidade
plástica de cada obra, a qual pode variar de acordo com as comparações que um leitor
quiser realizar. O escrito do naturalista brasileiro Aluísio Azevedo, apesar de apresentar
uma linguagem mais objetiva e uma regularidade na escrita e de não desenvolver
experimentações formais muito inusitadas, mantém o seu caráter plástico – mais
intensamente em nível semântico – graças ao efeito de esgarçamento temporal que as
minuciosas e, consequentemente, lentas descrições produzem. Tal efeito leva-nos a pensar
no Em busca do tempo perdido, de Proust ou mesmo no Ficções, de Borges, cujas
estruturas lineares e desprovidas de construções formais muito irregulares e inovadoras,
também são semanticamente bastante plásticos, já que são capazes de causar um intenso
efeito de elasticidade temporal e de vertigem espacial. As escritas de Joyce e de Pound, por
sua vez, são visivelmente mais plásticas em suas estruturas, uma vez que assumem uma
significativa inovação formal, a qual reverbera diretamente ao mesmo tempo em que é
reflexo do aspecto semântico do texto. O alto grau de plasticidade estrutural dos escritos
desses dois autores deve-se justamente ao fato de que elas conseguem sugerir em sua
arquitetura verbal a ideia de movimento, de transitoriedade, de instabilidade, de indefinição
e de elasticidade, aspectos que contradizem e desobedecem a natureza estática e rígida do
suporte em que se manifestam.

À medida que avançamos na leitura das obras de Lobo Antunes, por sua vez,
percebemos claramente que sua escrita se modifica consideravelmente a cada livro e ganha
131

novos efeitos plásticos. Aos poucos, ela adquire mais e mais plasticidade estrutural e, por
isso, podemos dividi-la, ainda que de maneira aparentemente arbitrária, em duas fases
distintas: a primeira, cuja forma dos textos é mais linear e, portanto, aparentemente mais
rígida; e a segunda, em que o autor “despenteia a prosa”,231 destituindo o texto de seu
formato tradicionalmente linear.

Nessa segunda fase, seu texto, como o próprio autor diz, está “muito mais expurgado
de imagens”.232 Lobo Antunes abandona o trabalho de escrita ecfrástico e passa a trabalhar
mais diretamente a forma de sua escrita, modelando-a de maneira “artesanal como um
bordado”.233 O que mais o interessa “não é tentar explicar porque é que fulano fez isto ou
aquilo, mas antes criar atmosferas”.234

O próprio escritor afirma a existência de duas fases de escrita e cita exatamente o


romance A ordem natural das coisas como uma espécie de marco divisor, uma vez que
esse “do ponto de vista formal, da linguagem, da escrita, da técnica literária, da maneira de
fazer avançar a história, é melhor”235 que os anteriores. Para o autor, “os primeiros são
muito lineares” e esse “é muito mais polifônico, com muitas vozes; portanto, tecnicamente
estará longe dos outros”.236 Até o ano de 1992, o autor português “nunca tinha
experimentado fazer um livro dessa forma”.237

De fato, o que muda radicalmente é a estrutura, a forma do texto, alcançada graças a


um trabalho com a espacialização, técnica capaz de dar mais fluidez ao escrito e,
especialmente, o aspecto aparentemente desorganizado que a narrativa propõe também
semanticamente. Em sua segunda fase, Lobo Antunes literalmente dá “forma” à sua

231
ANTUNES, António Lobo. “Lobo Antunes: ‘Fui bem comportado durante tempo de mais!’”.
Depoimento. [22 de novembro, 1983, pp. 3-4]. Lisboa: Jornal de Letras. Entrevista concedida a Clara
Ferreira Alves. In: ARNAUT, op. cit., p. 61.
232
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Tornei-me mais humilde...’”. Depoimento. [14 de
abril, 1986, pp. 2-3]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Inês Pedrosa. In:
ARNAUT, op. cit., p. 96.
233
ANTUNES, António Lobo. “A vingança de Lobo Antunes”. Depoimento. [12 de abril, 1986, pp. 31-33].
Lisboa: Expresso/Revista. Entrevista concedida a Clara Ferreira Alves. In: ARNAUT, op. cit., p. 91.
234
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Tornei-me mais humilde...’”. Depoimento. [14 de
abril, 1986, pp. 2-3]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Inês Pedrosa. In:
ARNAUT, op. cit., p. 123.
235
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor reconciliado com a vida”. Depoimento. [18 de outubro, 1992,
pp. 24-32]. Lisboa: Público/ Magazine. Entrevista concedida a Ana Sousa Dias. In: ARNAUT, op. cit., p.
147.
236
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Quis escrever um romance policial’”. Depoimento.
[27 de outubro, 1992, pp.8-11]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Luís
Almeida Martins. In: ARNAUT, op. cit., p. 158.
237
Ibid., p. 159.
132

escrita, no sentido em que Roland Barthes entende o conceito de “forma”. Para que uma
obra seja uma forma é preciso que “ela designe verdadeiramente um sentido trêmulo, e não
um sentido fechado”.238 Arriscamos dizer, portanto, que apesar de nunca ter sido fechada,
mesmo em sua primeira fase, a escrita de lobo Antunes ganha “forma” progressivamente e
torna-se cada vez mais “trêmula” tanto semântico quanto estruturalmente.

Se até 1990 Lobo Antunes escrevia “em cadernos timbrados do hospital, cheio de
letrinhas irrepreensivelmente ajustadas, quase sem brancos, nem rasuras, como desenhos
orientais”,239 e produzia esboços que lembram “as folhas manuscritas de Augustina Bessa-
Luís – a mesma precisão, a mesma economia nos espaços, a mesma segurança nas
linhas”,240 a partir de A ordem Natural das Coisas e do Tratado das paixões da Alma, a
narrativa começa a ganhar um significativo grau de plasticidade em sua estrutura. Vejamos
as páginas das duas fases de escrita:

238
BARTHES, Roland. “Nota prévia”. In: Sobre Racine. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. X.
239
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Muito escritores têm-me um pó desgraçado...’”.
Depoimento. [5 de janeiro, 1982, pp. 4-5]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a
Fernando Dacosta In: ARNAUT, op. cit., p. 50.
240
Loc. cit.
133

Figura 42: Página do manuscrito do romance Conhecimento do Inferno (1980).


134

Figura 43: Página inicial do romance O meu nome é legião (2007), no original datilografado.
135

Como podemos visualizar, a estrutura textual se modifica consideravelmente de uma


página para a outra. A segunda página, para usarmos uma expressão imagética, mostra-se
mais “rugosa” do que a primeira. Ela expõe marcações gráficas que, se estivessem em alto-
relevo, deixariam a superfície da folha de papel mais estriada do que a primeira.

O leitor começa a passar por um processo de (des)aprendizagem, pois precisa


(des)costumar seu olhar já viciado pela estrutura dos livros anteriores. Se antes já sentia
alguma dificuldade para compreender os escritos, dado o seu caráter “impressionista”, “em
que tudo se apresenta esbatido, mas ao mesmo tempo preciso e pormenorizado, com
imagens inusitadas, personificações e fortes contrastes [...] fugindo do realismo da
representação directa e à banalidade de registo”,241 passará a enfrentar também os
obstáculos trazidos pela nova configuração gráfica. Consciente de tais dificuldades, Lobo
Antunes faz a seguinte colocação:

Insisto sempre neste ponto, porque me parece importante: nós tendemos a


abrir o livro com a nossa chave de leitor, a nossa experiência de vida, as
nossas leituras e referências e aquilo que vivemos, mas devíamos abrir o
livro com a chave do livro. 242

Assim que se acostuma com a nova configuração textual, o leitor consegue caminhar
pelo texto com um pouco mais de tranquilidade interpretativa. Porém, sente claramente que
a caminhada se torna gradativamente mais lenta devido ao considerável aumento do áspero
aspecto que as inúmeras e variadas marcações visuais dão ao texto.

O inusitado trabalho gráfico-visual, atrelado à complexidade semântico da narrativa,


antuniana não são obstáculos apenas para seus leitores. Devido ao hábito de escrita
manual, os revisores de suas obras também realizam um penoso processo de editoração.
Segundo Maria Alzira Seixo, a cada nova edição de um exemplar, os mais variados erros
de escrita eram cometidos, comprometendo a originalidade de cada livro. Com o intuito de
evitar mais problemas e corrigir os já existentes, a pedido do próprio autor, a estudiosa
realizou o trabalho de fixação do texto. E ao escrever a Memória Descritiva do processo de
fixação da obra, Seixo acaba por nos mostrar com maior clareza a importância de se

241
SEIXO, Maria Alzira. Memória Descritiva: da fixação do texto para a edição ne varietur da obra de
António Lobo Antunes. Alfragide: Dom Quixote, 2010. p. 42.
242
SILVA, op. cit., p. 20.
136

reconhecer o aspecto visual das narrativas, já que boa parte das falhas eram “gralhas
tipográficas”.243

Após passar pelo minucioso trabalho de correção, a obra recebeu então a designação
ne varietur, expressão latina que “significa exatamente: ‘para que não varie’, ou ‘para que
não sofra alterações futuras’”.244 Interessa-nos saber que o ideal das edições ne varietur é
manter a originalidade dos manuscritos, afinal a escrita à mão é um elemento que reflete o
cuidadoso processo de produção antuniano. Sobre isso, Seixo nos revela ainda que:

Há normalmente, na sua produção de texto, três fases documentais com


interesse científico: a 1ª versão manuscrita (em geral escrita com a mão
esquerda, pois o escritor é canhoto e tornou-se ambidestro), que em certos
casos apresenta troços de discursos, nomes de personagens, motivos
desgarrados, cenas em esboço e outros elementos de planificação, por
vezes anotados em escritas de cores diferentes. Nem sempre é assim, mas
é-o em muitos casos. Vem a seguir a 2ª versão, escrita com a mão direita,
que é a discursificação da versão anterior, com acréscimos e alterações,
constituindo o manuscrito mais importante. Esta 2ª versão é relida pelo
escritor, que a emenda, muitas vezes riscando longas partes do texto, que
fica sempre mais curto, ou substituindo passos e expressões, e
rarissimamente aumentando. Este 2º documento é então dado ao
dactilógrafo, que devolve ao escritor o original dactilografado, e surge
então um 3º documento, também muito importante, que é o original
dactilografado com novas emendas do escritor, que são emendas de
lapsos da dactilografia – nos casos em que o escritor se apercebe deles –
e, sobretudo, alterações que imprimem ao seu próprio texto com mais
supressões. A partir daí o texto entra na editora, a quem o escritor confia
a revisão de provas, sem reler mais o que escreveu.245

É importante salientar a intensidade de trabalho com a escrita manual realizada nas


duas primeiras etapas de escrita do autor. O paciente trabalho de desenho das letras aponta
para o singular processo de composição gráfico, expresso através da disposição das frases
“no espaço da página”,246 ou seja, do trabalho com a espacialização e com a visualidade do
texto.

De acordo com as observações reunidas na Memória Descritiva do processo de


fixação do texto, notamos que grande parte das correções foi dedicada – especialmente no
que diz respeito aos livros que fazem parte da segunda fase de escrita do autor – às

243
SEIXO, op. cit., 2010, p. 19.
244
Ibid., p. 27.
245
Ibid., p. 31-32.
246
Ibid., p. 32.
137

marcações gráficas, tais como os itálicos e redondos, os parênteses, os travessões e demais


sinais de pontuação: todas elas marcas estritamente visuais que não são verbalizadas
durante o processo de leitura. Maria Alzira Seixo explica ainda que o “nascimento do
projeto da edição ‘ne varietur’ situou-se entre a publicação de dois romances de António
Lobo Antunes, Não entres tão depressa nessa noite escura e Que farei quando tudo
arde?”.247 A primeira edição de ambos os livros já apresentava uma considerável
quantidade de erros, os quais deformavam o estilo do autor, já que estavam diretamente
relacionados com a utilização de “travessões, translineações, repetições vocabulares,
pedaços de frases, isto é, com uma disposição gráfica peculiar”.248 A partir dessas obras,

[...] o texto passa a ser mais nitidamente “pontuado”, não pelos sinais
clássicos, mas por uma hábil montagem de efeitos constituídos por
insistências de expressão, frases curtas, palavras em suspenso, espaços
em branco, como ilhas de sentido à deriva, gestos soltos de uma escrita
desprendida da representação do real, a pretender dar-nos uma outra
espécie de real, com a palavra à solta [...] muitos travessões abrindo falas
que permaneciam solitárias sem diálogo, troços de itálico a
interromperem de vez em quando, esquinadamente, a normalidade
corrente da escrita em tipo redondo, parêntesis que encasulavam outras
frases (ou as mesmas), numa duplicação de espelhos, ou recolha de
segredos, ou timidez de hipóteses, ou insidiosas sugestões, como já
acontecera em Não entres tão depressa nessa noite escura e (mas só
agora eu o via!) em alguns passos de O esplendor de Portugal e
Exortação aos crocodilos. A essas evidencias se juntavam a constatação
de haver páginas e páginas sem pontuação, ou melhor, com uma vírgula
aqui e outra ali, pontos de interrogação (bastantes), muitas repetições e
recorrências de frases (de algum modo provocando efeitos de intensidade
exclamativa, ou dubitação das reticências), até se chegar ao ponto final de
fim de capítulo.249

O grafismo e a pontuação se constituem, pois, como umas das formas literariamente


mais sensíveis no evoluir da escrita de Lobo Antunes, conforme nos mostra a página do
livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura, objeto de nosso estudo:

247
Ibid., p. 95.
248
Loc. cit.
249
Loc. cit.
138

Figura 44: Não entres tão depressa nessa noite escura (página 469).
139

É importante destacar que a página foi retirada de um livro, cuja especificação de


folha de rosto diz ser um Poema. Não entres tão depressa nessa noite escura não é um
romance, como os demais livros o são. Ele é um Poema e, como tal, deve ser lido de um
modo diferente por apresentar o que Maria Alzira Seixo chama “escrita versicular”.250 Na
segunda fase de escrita e especialmente nesse livro,

[...] os pontos finais vão diminuindo progressivamente no final dos


períodos, que por sua vez têm tendência a tornar-se parágrafo (na
mutação da frase longa para um conjunto de frases breves, que ficam
constituindo um discurso entrecortado).251

Percebe-se que a relação entre a cadeia verbal e o espaço em branco

[...] engrandece-se na mancha gráfica da página, e ganha sentido na


expressão entrecortada de frases breves (fragmentos) interrompidas em
parágrafos sem ponto final, numa continuidade da linha que conhece
preferencialmente a sua interrupção nesse vazio criado pelo esburacado,
ou escadeado, do discurso incompleto ou interrompido, reduzido a
notações mínimas. 252

O tratamento dado à “epiderme da linguagem” e a visibilidade textual dela resultante


nos fazem perceber que o texto de Lobo Antunes, e mais especificamente os livros da
segunda fase, apresenta estruturalmente um forte caráter plástico. Fato que nos levou a
articular as primeiras tentativas de aproximação de sua obra com as artes especificadas
como plásticas, e especialmente com a pintura.

Compreendemos que mais do que linhas e espaços em branco, que juntos desenham
uma abstração estrutural, um movimento das letras, os livros podem ser vistos e
interpretados a partir daquilo que dão a ver, assim como acontece no momento em que
observamos uma tela de pintura e naturalmente tentamos entender sua possível
narratividade.

Notamos, ainda mais fortemente após a leitura do livro-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, que mais do que ver o texto registrado em cada página, era

250
Ibid., p. 103.
251
Loc. cit.
252
Ibid., p. 107.
140

possível apontar para a existência de elementos que também fazem parte da composição
arquitetônica de uma tela, tais como a moldura, a superfície, as linhas e até mesmo a cor.

A rica arquitetura textual de seus livros nos fizeram perceber que seria possível
realizar uma analogia que pudesse homenagear os aspectos mais estruturais de sua
composição. Em nosso terceiro capítulo, iniciamos, então, um exercício de homologia
estrutural que, para além de considerar os aspectos semânticos de seu livro-poema Não
entres tão depressa nessa noite escura, tentou enxergar e identificar os pontos de
confluência estruturais existentes entre a literatura e a pintura.
141

3. HOMOLOGIA ESTRUTURAL E ANALOGIA EM NÃO ENTRES TÃO


DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA

Àqueles que se amedrontam facilmente com as analogias arriscadas,


responderei que também detesto fazer analogias perigosas: mas adoro as
analogias fecundas.

Roman Jakobson

A tentativa de definir o grau da relação de parentesco existente entre a poesia e a


pintura é um problema que ainda está longe de ser inteiramente resolvido. Conforme
mostramos no primeiro capítulo de nosso estudo, as tentativas de aproximação, assim
como as divergências quanto a essa possibilidade, existem em grande número e são
bastante fecundas.

A dicotomia associada ao signo, seja ele linguístico ou pictórico, possibilita que um


modo de contato entre as duas artes aconteça. Afinal, as representações pictóricas são
capazes de expressar sugestões rítmicas e sonoras, assim como as representações verbais
conseguem expressar sugestões imagéticas.

Muitos pesquisadores realizaram a mesma tentativa de aproximação entre duas artes


a partir de diferentes fontes. É o caso, por exemplo, dos estudos empreendidos pela
holandesa Mieke Bal, que em seus livros Reading Rembrandt (1991) e The Mottled
Screen: Reading Proust Visually (1997) realiza uma minuciosa tradução semiótica entre a
linguagem pictórica e a linguagem verbal. Na mesma linha de estudo encontram-se as
pesquisas realizadas por José Aguinaldo Gonçalves, que em sua obra Laokoon Revisitado:
relações homológicas entre texto e imagem (1994), relaciona três pares de obras poéticas e
pictóricas modernas: Oswald de Andrade e Mondrian; Manuel Bandeira e Magritte; e João
Cabral de Melo Neto e Joan Miró, dupla a quem Gonçalves dedica uma pesquisa mais
apurada no livro Transição & Permanência - Miró e João Cabral: da tela ao texto.
Gonçalves ainda publica em 2004 os resultados de mais uma pesquisa interartes, Museu
Movente: o signo da arte em Marcel Proust, direcionada, desta vez, para a relação
homológica existente entre a obra de Marcel Proust e a pintura de Veermer. Podemos
142

mencionar ainda a dissertação de mestrado de Raimundo Carvalho – Murilo Mendes: o


olhar vertical (1993), e as teses de doutorado de Ricardo Ramos Costa – Poéticas da
visualidade em João Cabral de melo Neto e Joan Miró (2014); de Lino Machado – As
palavras e as cores: Guernica (e mais) na Caligrafia de Carlos de Oliveira (1999); e de
Josina Nunes Drumond, que em As dobras do sertão: palavra e imagem (2008) analisa, a
partir dos trabalhos do artista plástico Arlindo Daibert, a escrita neobarroca presente em
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Poderíamos citar ainda outros estudos
feitos com o mesmo propósito, mas para a nossa pesquisa interessa-nos especialmente
mencionar o único estudo existente sobre a relação interartes na obra de António Lobo
Antunes. Referimo-nos ao livro Chaves de escrita e chaves de leitura nos romances de
António Lobo Antunes (2013), escrito por Catarina Vaz Warrot. O trabalho é bastante
recente e menciona, de maneira muito resumida, dentre outros aspectos, o elemento
musical presente na escrita antuniana, considerando desde a caracterização das
personagens, bem como os diferentes sons que povoam o universo textual dos livros. Não
há, até a presente dada, pesquisas que analisem a escrita antuniana à luz das artes plásticas.

Devido à escassez de estudos nesse sentido, através da leitura dos trabalhos


supramencionados, buscamos nos familiarizar com a prática da relação interartes e de
tradução intersemiótica, entendida, conforme explica Júlio Plaza, enquanto:

[...] prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e re-


produção, como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas-
eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história.
Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito dos sentidos,
como transcrição de formas na historicidade.253

Entendemos que insistir nos diferentes processos de tradução seja muito importante,
haja vista a possibilidade ilimitada de ampliação dos sentidos que a arte é capaz de realizar.
Mas, ao verificamos que nos trabalhos mencionados, as aproximações e as tentativas de
tradução das semioses254 foram feitas naquilo que se refere mais especificamente às
similaridades semânticas presentes em ambas as artes relacionadas, sentimo-nos instigados
a homenagear o processo de diálogo estrutural.

253
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 14.
254
De acordo com Julio Plaza, o signo não é uma entidade monolítica, mas um complexo de relações […]
que caracterizam o processo sígnico como continuidade e devir”. E a “semiose” é justamente “a ação do
signo”, é uma relação de momentos num processo sequencial-sucessivo ininterrupto. (Ibid., p. 17.)
143

Poderíamos comparar a obra de Lobo Antunes a pinturas de diferentes pintores e


movimentos. Contudo, mais do que apontar uma possível semelhança temática,
entendemos que seria mais interessante aproximar as duas artes a partir de suas
estruturas255 e respectivas funções, realizando assim um exercício de analogia e de
homologia estrutural.

Em seu Dicionário de Filosofia, Nicola Abbagnano diz que a palavra “analogia” tem
dois significados fundamentais:

[...] o sentido próprio e restrito, extraído do uso matemático (equivalente


a proporção) de igualdade de relações; o sentido de extensão provável do
conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem
aduzir entre situações diversas. [...] Platão usou esse termo para indicar a
igualdade das relações entre as quatro formas — duas a duas — de
conhecimento, que distinguiu na República (VII, 14, 534 a 6), ou seja,
entre a ciência e a dianóia, que pertencem à esfera da inteligência (que
tem por objeto o ser), e entre a crença e a conjectura, que pertencem à
esfera da opinião (que tem por objeto o vir-a-ser). [...] Aristóteles afirma
que os elementos e os princípios das coisas não são os mesmos, mas só
análogos, no sentido de que são as mesmas as relações que têm entre si.256

Ainda segundo Abbagnano, Aristóteles fez uso frequente do conceito de analogia nos
seus livros de história natural, dizendo que “são análogos os órgãos ‘que têm a mesma
função’”.257 Por isso, esse conceito revelou-se fundamental para a biologia do século XIX,
“quando, com Georges Cuvier (1769-1832), serviu de fundamento e de ponto de partida
para a anatomia comparada”.258 Foi Richard Owen (1804-1892) – biólogo e anatomista
comparativo britânico – quem primeiro ampliou e estabeleceu as mais importantes
diferenças entre analogia e homologia no ano de 1843. Segundo Owen, análoga é “a parte
de/ou um órgão de um animal que tem a mesma função que uma outra parte ou órgão de

255
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, “estrutura” é, em termos gerais, “o
equivalente a plano, construção, constituição etc.” Abbagnano afirma ainda que a palavra “estrutura”
também “é, por um lado, sinônimo de forma […] e, por outro lado, é sinônimo de sistema, como conjunto ou
totalidade de relações. Foi neste último sentido que essa palavra passou para a linguística, para a estética e
para outros campos em que é hoje costumeiramente usada. [...] Em sentido restrito e específico, a ‘estrutura’
não é um plano qualquer ou qualquer sistema de relações, mas um plano hierarquicamente ordenado, ou seja,
uma ordem finalista intrínseca destinada a conservar o máximo possível seu plano”. Nesse sentido,
empregamos o termo “estrutura” para nos referirmos ao conjunto de elementos – moldura, linhas, cor e
superfície – que estão presentes em um livro (especialmente o poema-livro de Lobo Antunes, escolhido como
objeto de pesquisa), bem como uma tela de pintura. (ABBAGNANO, op. cit., p. 439.)
256
Ibid., p. 58.
257
Loc. cit.
258
Loc. cit.
144

um animal diferente”.259 Quando o mesmo órgão, em animais distintos, apresenta


diferentes formas e funções, falamos em homologia.

A analogia se refere, pois, à semelhança funcional de estruturas diferentes. Quando


aproximamos dois seres ou dois órgãos semelhantes não podemos dizer que são unívocos
ou idênticos, nem equívocos ou diferentes; afirmamos então que são análogos, ou seja,
semelhantes funcionalmente, mas de proporções diversas.

O exemplo clássico de analogia na biologia compara, por exemplo, as asas dos


insetos e das aves que, apesar da diferença quanto à origem embriológica, realizam a
mesma função: o voo. É nesse sentido que tais órgãos podem ser considerados análogos.
Tal semelhança funcional não necessariamente indica algum grau de parentesco. Elas
apenas sugerem que organismos distintos conseguiram funcionalmente se adaptar a uma
mesma realidade.

É muito comum confundir os significados das palavras “analogia” e “homologia”,


tendo em vista que o par de vocábulos geralmente aparece associado. Diferente da
analogia, a homologia diz respeito à semelhança de origem embriológica de dois
organismos divergentes. Conforme explica Abbagnano, a homologia

[...] é um conceito científico que tem várias definições nas diferentes


disciplinas. Em geometria denominam-se homólogos os elementos de
duas figuras semelhantes que se correspondem. Em biologia são
chamados homólogos os órgãos que se correspondem pela sua situação
em relação ao organismo todo, mesmo não exercendo a mesma função,
como se verifica com os órgãos análogos.260

As estruturas homológicas podem ou não exercer a mesma função e, dessa maneira,


acumularem o aspecto analógico. Para exemplificar a diferença entre homologia e
analogia, os livros apresentam a tradicional comparação entre o braço do homem e a asa de
um pássaro.

259
HALL, Brian K. (Ed.) Homology: the hierarchical basis of Comparative Biology. Canada: Academic
Press, 2005. p. 40. Segundo Hall, a mais famosa definição dos termos aparece unicamente no glossário de
um estudo publicado em 1843 no Royal College of Surgeons. Owen conceitua os termos da seguinte
maneira: ANALOGUE: a part or organ in one animal which has the same function as another part or organ in
a different animal. See HOMOLOGUE. (p. 374). HOMOLOGUE (Gr. Homos: logos, speech.) The same
organ in different animals under every variety of form and function. (p. 379).
260
ABBAGNANO, op. cit., p. 517.
145

Figura 45: Esqueletos de um humano e de um pássaro para mostrar a homologia óssea (Sociedade de História Natural de
Northumbria).

Ambas são estruturas homológicas porque apresentam a mesma origem


embriológica. Note-se que, nesse caso, não há similaridade funcional, isto é, um pássaro
não utiliza suas asas da mesma maneira que o homem utiliza seus braços. Portanto,
podemos afirmar que o braço do homem é homólogo, mas não análogo à asa de um
pássaro. Todavia, poderíamos dizer que as asas de um morcego são homólogas e análogas
às asas de um pássaro.

Realizando uma transposição para a relação interartes, arriscaríamos dizer que na


perspectiva homológica os pontos de contato são pensados a partir dos elementos estéticos
perceptíveis na organização estrutural e semântica tanto da escrita quanto da pintura,
enquanto na perspectiva analógica os pontos de contato são pensados a partir dos
elementos que funcionem estruturalmente de maneira semelhante, como é o caso, por
exemplo, da superfície de uma tela e da superfície de papel de um livro.
146

Conforme explica Aguinaldo José Gonçalves, as similaridades estruturais


consistiriam, no âmbito artístico, em:

[...] fundamentos internos e abstratos aos sistemas comparados que


podem ser compreendidos pelo arcabouço arquitetônico que os constitui.
Uso aqui o signo arquitetônico no sentido metafórico, para falar do teor
construtivo do trabalho de arte que implica procedimentos
imprescindíveis para sua realização.261

Trata-se, pois, de questionar a validade funcional de elementos que estão presentes


em sistemas artísticos distintos, os quais, no entanto, aproximam tais artes, estreitando os
limites que, por vezes de forma arbitrária, as mantém afastadas justamente pelo viés da
diferença.

A leitura do livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura, fez-nos atentar
para aquilo que se expõe aos olhos do observador indiretamente por estar camuflado na
forma de meros arranjos verbais. Interessados em compreender os movimentos de
fabricação do tecido textual antuniano, empreendemos uma primeira leitura para
averiguarmos se realmente existem elementos análogos – e, por extensão, homólogos –
entre o texto do escritor português e a pintura, já que pretendemos confirmar a homologia
estrutural presente entre livro e pintura, bem como a analogia inerente a cada um dos
elementos que compõem tal estrutura.

Segundo Umberto Eco:

Está fora de dúvida que é perigoso estabelecer simples analogias; mas é


igualmente perigoso recusar a individualizar certas relações por uma
injustificada fobia às analogias, própria dos espíritos simples ou das
inteligências conservadoras. [...] Uma analogia deixa de ser indevida
quando é colocada como ponto de partida para uma verificação ulterior:
o problema agora consiste em reduzir os diversos fenômenos (estéticos
ou não) a modelos estruturais mais rigorosos para neles individuar não
mais analogias, mas homologias de estrutura, similaridades estruturais. 262

Acreditamos que os traços analógicos existentes entre objetos de dois universos


distintos são as portas de entrada para as camadas de análise mais sutis e complexas. E
261
GONÇALVES, Aguinaldo José. Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust. São Paulo: UNESP,
2004. p. 24.
262
ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva, 1969. p. 60.
147

detectar as equivalências homológicas entre tais sistemas significa verificar


correspondências mais inusitadas, bem como as possíveis diferenças de funcionalidade dos
elementos presentes em cada um dos meios considerados.

Ao empreendermos a leitura do livro Não entres tão depressa nessa noite escura
conseguimos construir uma espécie de diagrama – a partir de quatro elementos básicos de
composição: moldura, linhas, cor e superfície – e notamos que os procedimentos de
construção textual sugeriam, para usarmos uma metáfora, a presença de uma “tela verbal”.
Buscamos diversas pinturas que pudessem nos auxiliar a esboçar o gráfico verbal
percebido.

Ao relacionarmos o texto às pinturas começamos a entender que existia uma


similaridade funcional em alguns elementos de ambas as arquiteturas. O trabalho com a
espacialização do texto e com sua plasticidade, levou-nos a encontrar pinturas que
pudessem sugerir o mesmo através de formas transfiguradas no espaço e recompostas na
simultaneidade do tempo.

Já ressaltamos que após o advento do verso livre – mais um avanço alcançado na


modernidade –, a poesia passou a apresentar uma composição estrutural bastante diferente,
a qual, sem eliminar sua natureza temporal, abriu-se espacialmente, mostrando sua
visibilidade. Mesmo a folha em branco deixou de ser um repositório de versos para atribuir
novos sentidos ao texto – conforme mostraremos no subcapítulo “superfície” desta
pesquisa.

Hoje não podemos ler um poema sem considerar seu aspecto estrutural, sua
dimensão gráfica, sua materialidade. Conforme explica Gonçalves, atualmente “o espaço
entre os signos ou a distribuição do signo no espaço do poema é responsável por efeitos de
sentido que jamais seriam conseguidos se nos mantivéssemos apenas na esfera da
temporalidade”. 263 De acordo com Roland Barthes,

Durante séculos nossos escritores não imaginavam que fosse possível


considerar a literatura (a própria palavra é recente) como uma linguagem,
submetida, como qualquer outra linguagem, à distinção lógica: a
literatura nunca refletia sobre si mesma (às vezes sobre suas figuras, mas
nunca sobre seu ser), nunca se submetia em objeto ao mesmo tempo
olhante e olhado; em suma, ela falava, mas não se falava. Mais tarde,
provavelmente com os primeiros abalos da consciência burguesa, a

263
GONÇALVES, op. cit., p. 31.
148

literatura começou a sentir-se dupla: ao mesmo objeto e olhar sobre esse


objeto, fala e fala dessa fala, literatura objeto e metaliteratura. Eis quais
foram, grosso modo, as fases desse desenvolvimento: primeiramente uma
consciência artesanal da fabricação literária, levada até o escrúpulo
doloroso, ao tormento do impossível (Flaubert); depois, a vontade heroica
de confundir numa mesma substância escrita a literatura e o pensamento
da literatura (Mallarmé); depois a esperança de chegar a escapar da
tautologia literária, deixando sempre, por assim dizer, a literatura para o
dia seguinte, declarando longamente que se vai escrever, e fazendo dessa
declaração a própria leitura (Proust); em seguida, o processo da boa-fé
literária multiplicando voluntariamente, sistematicamente, até o infinito,
os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num significado
unívoco (surrealismo); inversamente, afinal, rarefazendo esses sentidos a
ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem literária, uma espécie de
brancura da escrita (mas não uma inocência): penso aqui na obra de
Robbe-Grillet.264

As novidades trazidas pelas inovações composicionais instantaneamente passaram a


funcionar como manifestações (des)construtoras capazes de (re)educar ou, pelo menos,
incomodar o olhar do leitor, antes habituado a considerar apenas a temática apresentada
pela narrativa. Hoje, um leitor precisa ser mais intensamente observador, pois precisa
enxergar e ler também a organização gráfica daquilo que está diante de seus olhos. Isso
porque a continuidade temporal e a simultaneidade espacial

[...] conjugam-se, por procedimentos estéticos, no que se poderia chamar


imagem, rompendo com a fria divisão entre as duas categorias. Isso não é
primazia de um tipo de obra de arte. O verdadeiro artista, que tenha
consciência da sua arte e domínio de seu meio expressivo, conseguirá
esse resultado.265

Acreditamos que António Lobo Antunes tenha consciência de sua arte e domínio de
seu meio expressivo e, por isso, consiga romper com a “fria” divisão estabelecida entre a
escrita e imagem. Ele é capaz de construir um objeto artístico completo no que se refere à
capacidade de envolver esteticamente aquele que recebe sua obra. Afinal, sua escrita não se
detém a um significado superficial e único. Pelo contrário, ela é uma obra, no sentido em
que Umberto Eco conceitua o termo: “um objeto dotado de propriedades estruturais
definidas, que permitam, mas também coordenem, o revezamento das interpretações, o

264
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1982. p. 27-28.
265
GONÇALVES, op. cit., p. 30.
149

deslocar-se das perspectivas”.266 Mais do que isso, entendemos que seus livros sejam
verdadeiras obras abertas, uma vez que:

1. as obras “abertas” enquanto em movimento se caracterizam pelo


convite a fazer a obra com o autor; 2. Num nível mais amplo (como
gênero da espécie “obra em movimento”) existem aquelas obras que, já
completadas fisicamente, permanecem, contudo, “abertas” a uma
germinação contínua de relações internas que o fruidor deve descobrir e
escolher no ato de percepção da totalidade dos estímulos; 3. Cada obra de
arte, ainda que produzida em conformidade com uma explícita ou
implícita poética da necessidade, é substancialmente aberta a uma série
virtualmente infinita de leituras possíveis, cada uma das quais leva a obra
a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma execução pessoal. 267

Ser leitor de Lobo Antunes significa ser leitor de uma obra aberta e, antes de mais
nada, ser participante e coautor. Significa também transitar entre as estruturas que se
movem e aquelas em que nós nos movemos, já que as linhas de sua escrita parecem se
movimentar ao mesmo tempo em que nossos olhos se movem.

É com base nessa perspectiva que iniciamos a análise analógica e homológica


propriamente dita entre o poema Não entre tão depressa nessa noite escura e a pintura.
Buscaremos entender de que forma a aproximação contribui enquanto potência de
ampliação das práticas artísticas e do estreitamente dos vínculos já existentes.

3.1. MOLDURA

No começo está o ato. Entretanto, mais além se encontra a ideia. E como


o infinito não possui nenhum começo determinado, como um círculo, a
ideia pode ser o que vem primeiro.268

Paul Klee

266
ECO, op. cit., p. 25.
267
Ibid., p. 94.
268
KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. p. 45.
150

Pensar em moldura para o livro Não entres tão depressa nessa noite escura de Lobo
Antunes é tarefa desafiadora. Pois, ao mesmo tempo em que ela, a moldura, parece
apresentar-se nitidamente, através de alguns elementos visuais do próprio texto, também
parece se dissolver assim que esses mesmos elementos visuais deixam transparecer
semanticamente a insustentabilidade emolduradora que os constitui.

Uma obra, se pensada enquanto objeto, não depende obrigatoriamente de uma


relação com o exterior para existir. O olhar, que primeiro a reconhece como obra, parte de
uma visualidade que a isola automaticamente num centro delimitado pelas molduras ou
limites de sustentação e daí parte para realizar um possível diálogo com a espacialidade em
que o objeto-obra está colocado. Mas, como identificar um “limite”?

O que chamamos aqui “limite” expressa um significado diferente daquilo que


designamos como sendo o limite arbitrário das coisas naturais. O limite natural de qualquer
elemento é um lugar de intercâmbio circular incessante com todo o exterior. É a linha, por
vezes, invisível que coaduna e relaciona todos os elementos de uma dada espacialidade,
que permite que seja feita a devida distinção dos elementos que fazem parte de um mesmo
horizonte. O limite emoldurador de uma obra de arte, porém, expressa um corte necessário
e brusco, que, ao descolar a obra do horizonte que a envolve, unifica-a em seu interior. Tal
recorte faz com que dois horizontes diferentes, o da obra e o do exterior que a rodeia,
possam existir em concomitância.

A moldura realiza, portanto, a função de reforçar os limites da obra de arte, porque a


descola do meio que a cerca, ao mesmo tempo em que a mantém distante de seu
espectador, quando este realiza o consumo estético. Enquanto limite, a moldura revela-se
como meio auxiliar e simbólico da unidade interna da obra. As margens que as constituem
ajudam a conduzir o olhar tanto em direção ao ponto central ideal, quanto para fora da
própria obra.

Uma moldura pode ser criada de modo a evitar que interior e exterior se misturem,
guardando, assim, o máximo do significado autônomo do objeto que delimita. A
ornamentação, ao flutuar e se fechar ao redor da obra, exerce uma espécie de poder
regulador que acentua a distância entre o objeto artístico e seu arredor, de maneira que
cada linha separadora se justifica tanto mais quanto mais ajuda a intensificar ao máximo
uma determinada impressão.
151

Mas é importante reconhecer que uma moldura, apesar de indicar explicitamente


um limite, não deve ser pensada apenas enquanto elemento fixador, imobilizador ou
mesmo redutor de um objeto artístico. Acreditamos que a moldura também possa servir
de ímã aglutinador, ao prolongar o conteúdo de seu objeto, sobrepondo-o ao exterior.
Sobreposição que consegue, ao mesmo tempo, contribuir, modificar, ampliar ou até
mesmo transformar o sentido da obra. Um exemplo clássico desse tipo de moldura, que
podemos denominar “expansiva” é a que envolve a tela O suicídio de Dorothy Hale,
pintada, em 1938/39, por Frida Khalo (1907-1954). Nessa obra, a moldura contorna ao
mesmo tempo em que faz parte da tela. Ela tenta comportar a pintura para traduzir a
sensação do ponto exato em que a obra começa e termina e, no entanto, mostra-se
intencionalmente falha, ao deixar que seu conteúdo transborde e toque semanticamente
seu exterior e, consequentemente, seu espectador. Vejamos:
152

Figura 46: O suicídio de Dorothy Hale. Frida Khalo, 1938-1939.

Especialmente nesse trabalho de Frida Khalo, a moldura é apresentada como


extensão da tela. Podemos observar que as nuvens que fazem parte do chão onde a
mulher, Dorothy, está deitada, são deslocadas para o alto, quando o quadro é pendurado.
A moldura, quando suspensa, eleva toda a imagem, fazendo com que o que antes era
imóvel, ganhe movimento. A mulher, que no interior da tela estava deitada, representando
o fim da queda que realiza para se suicidar, ganha, ao mesmo tempo, o movimento de
uma queda interminável. O sangue que, paradoxalmente, repousa enquanto pigmento,
passa a escorrer da tela, suja a moldura e sugere que irá contaminar a parede que sustenta
o quadro.
153

A sombra do pé de Dorothy é projetada na faixa branca que, no quadro, já não é


mais o chão onde ela está deitada. As inscrições sugerem, pela cor e textura, que foram
escritas com o sangue que, derramado do corpo, ainda escorre por sobre a moldura-
travessia, que nos faz ver o “através”, vendo o que ela “atravessa, através dela, através da
travessia, a nado, o através que é seu próprio ductus”.269 Isso é o que nos indica o ponto
direito e inferior do quadro, em que um borrão de tinta vermelho mais evidentemente se
faz, conforme podemos ver no corte aproximado deste ponto da tela:

Figura 47: O suicídio de Dorothy Hale. Frida Khalo, 1938-1939. (detalhe)

Quando Kahlo brinca com a moldura, ela sublinha o (des)limite característico de


sua pintura. Podemos observar um movimento duplo e pendular, pois temos a
escorregadia impressão de que a moldura, enquanto (des)limite impuro e vazado,
movimenta-se em direção ao interior da tela, ao mesmo tempo em que a tela se
movimenta em direção à moldura, confundindo-se com ela e ultrapassando-a. Estamos

269
DERRIDA, op. cit., p. 285.
154

diante de um jogo que Kahlo faz a partir da obra com a própria obra. Jogo que talvez
queira nos dizer algo sobre o excesso de sentido.

Utilizamo-nos da pintura da pintora mexicana para darmos um exemplo mais


concreto da participação interventiva que o elemento “moldura” pode realizar numa obra
de arte. Entendemos que algo muito semelhante acontece em uma obra de arte de caráter
literário, mesmo que um elemento emoldurador não tenha sido intencionalmente criado
para realizar tal função.

Quando pensamos em moldura, imaginamos, naturalmente, aquilo que cerca um


objeto e que, portanto, lhe é mais exterior. Imaginar uma moldura para um texto literário
significaria pensar em seu título ou em sua capa. Porém, uma moldura dita literária pode
facilmente extrapolar os limites explicitamente visuais de uma obra, intervindo direta ou
indiretamente em sua significação.

Chamaremos “moldura literária” àquilo que Gérard Genette designa como


“paratexto editorial”, ou seja, todos os elementos que, sendo exteriores à obra,
acompanham a mesma para efeito de editoração e publicação: “apresentação editorial,
nome do autor, títulos, dedicatórias, epígrafes, prefácios, notas, entrevistas e debates
sobre o livro, confidências mais ou menos calculadas e outros avisos de quarta capa”.270
Conforme explica Genette, desde a invenção do livro moderno, as obras literárias nunca
se apresentam como um texto nu. Estão sempre acompanhados dos chamados paratextos
editoriais:

[...] aquilo por meio de que um texto se torna um livro e se propõe como
tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público. Mais do que um
limite ou uma fronteira estanque, trata-se aqui de um limiar [...] Zona
indecisa entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior
(o texto) nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla,
ou como dizia Philippe Lejeune, “franja do texto impresso que, na
realidade, comanda toda a leitura”.271

A definição apresentada por Genette nos serve de estímulo a examinar com mais
cuidado aquilo que, às escondidas e com tanta frequência, pode nos auxiliar a ler uma
determinada obra. Ao observarmos a moldura, colocamo-nos, segundo Jacques Derrida,

270
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê, 2009. p. 10.
271
LEJEUNE, Philippe. Le Pacte Autobriographique, Seuil, 1975. p. 45. In: GENETTE, Loc. cit.
155

diante do Parergon, daquilo que “encontra-se mais em torno do que debaixo”272 e que não
deixa, contudo, de “tender também a ser esquecida, lateralizada, deixada em segundo
plano, denegada”.273 Para o filósofo, enquanto receptores pouco atentos, facilmente nos
distraímos e nos esquecemos de tais detalhes, os quais são “ignorados, desconhecidos,
recalcados, denegados, ao passo que a obra não seria nada sem eles”.274

Isso é o que geralmente acontece quando observamos um quadro. Mas quando se


trata de um livro, seja ele qual for, nosso olhar não costuma captar com tanta atenção os
aparatos que compõem a moldura literária e que podem ajudar a (des)regular nosso olhar
e nossa leitura. É exatamente isto – a (des)regularização do olhar e da leitura – que
acontece quando visualizamos a “moldura” do livro-poema Não entres tão depressa
nessa noite escura, de António Lobo Antunes. A começar pelo título, colocamo-nos
diante de uma enorme imprecisão. Conforme afirma Maria Alzira Seixo:

[...] os títulos dos últimos romances do autor, desde Não entres tão
depressa nessa noite escura até O Meu nome é Legião, são constituídos
de conjuntos lexicais de mais de cinco palavras que incluem não apenas
nomes e qualificativos, mas também verbos, como se fizessem parte já
da narrativa, ou formassem, eles próprios, uma pequena narrativa, ou
argumento dela.275

Ao lermos os títulos, que geralmente formam grandes períodos gramaticais,


iniciamos imediatamente e sem qualquer preliminar, a leitura do texto. Fato que sugere o
caráter brusco, descontínuo e escorregadio da obra. Assim como a “moldura-travessia”
que ornamenta a tela de Frida Khalo, os títulos dos livros de Lobo Antunes, ao mesmo
tempo em que abrem a obra, sugerem uma espécie de limite ilusório para aquele que
inicia a leitura.

Temos uma impressão semelhante a essa quando procuramos, num sumário, por
um poema sem título. Poesias sem nome, geralmente, são sumarizados pelos versos que
as inicia: o incipt. Para os livros do autor português, tal método de busca funciona da
mesma maneira. No caso específico do livro Não entres tão depressa nessa noite escura,

272
DERRIDA, op. cit., p. 286.
273
Loc. cit.
274
Loc. cit.
275
SEIXO, Maria Alzira. Dicionário da obra de António Lobo Antunes. v. 2. 2008. In: NAVAS, Diana.
Figurações da escrita: a metaficção nos romances de António Lobo Antunes. São Paulo: Scortecci, 2013. p.
42.
156

que recebe em sua folha de rosto a especificação de gênero “poema”, tal constatação se
torna ainda mais evidente.

Não podemos deixar de mencionar ainda, já que nos referimos à poesia, que o
“título-moldura” do livro antuniano é, na verdade, uma paráfrase do verso Do not go
gentle into that good night, que inicia um dos poemas de Dylan Thomas. Vejamos o
poema original e a tradução feita por Augusto de Campos:

Do not go gentle into that good night, Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Old age should burn and rave at close of day; Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Thought wise men at their know dark right, Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Because their words had forked no lightning they Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Do not go gentle into that good night. Não vai tão docilmente nessa noite linda.

Good men, the last wave by, crying how bright O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Their frail deeds might have danced in a green bay, Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Wild men who caught and sang the sun in flight, O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
And learn, too late, they grieved, it on its way, Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Do not go gentle into that good night. Não vai tão docilmente nessa noite linda.

Grave men, near death, who see with blinding sight O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Blind eyes could blaze like meteors and be gay, Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

And you, my father, there on the sad height, Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray. Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Do not go gentle into that good night. Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Ao fazermos uma leitura superficial do poema, percebemos que o eu-lírico fala a


respeito do aterrador sentimento de constatação da morte. Ao metaforizar a aproximação
dessa com o verso parafraseado por Lobo Antunes – “Do not go gentle into thet good
night” – deixa transparecer um sentimento de recusa diferente, pois, em vez de
simplesmente pedir ao seu interlocutor que recuse a morte, pede apenas para que não se
entregue facilmente a ela. Poderíamos entender que, nesse pedido metaforizado, existe
uma tentativa de aconselhamento para que o leitor reaja e viva de forma intensa e
157

desacostumada cada instante de sua vida – “Rage, rage against the dying of the light”. O
poema nos fala sobre a morte, mas também sobre a vida.

Os paralelos que podemos traçar entre o verso “original” e sua paráfrase são
inúmeros. Ainda que de maneira contorcida, Lobo Antunes mantém, no título de seu
poema, algo da poesia de Dylan Thomas. Contudo, o aspecto que mais nos interessa
destacar é o significado que o autor português introduz no título, ao parafraseá-lo: o
pedido de que não adentremos seu poema com os olhos do costume. Talvez, ele queira
pedir que tentemos conhecer sua escrita com a mesma intensidade com que ela se
constrói.

Colocamo-nos, desta forma, diante de uma moldura incomum que se disfarça de


convencional para criar um efeito de ilusão de óptica e de interpretação, pois a estrutura
formal de editoração é mantida, mas as especificações inerentes à identificação da obra
são sutilmente modificadas. Entendemos que o autor joga, ao brincar com os aspectos
visualmente mais banais do livro, com aquilo que é visível demais para ser percebido.
Sentimos que ele não deseja simplesmente exemplificar a existência de limites estéticos,
mas se utiliza artisticamente desses mesmos limites.

O jogo se prolonga no título e pelo título. O agrupamento das sete palavras – que
nos remetem ao número que divide o enredo em grandes blocos, os sete dias da criação276
– é iniciado justamente com o advérbio de negação: não. Isso nos ajuda a perceber a ideia
da escrita negativa que permeia o enredo. Negatividade que surge como obstáculo ao ato
de adentrar o poema. O verbo “entres”, usado no modo imperativo, não à toa, é
empregado na segunda pessoa do singular, indicando que o leitor é a pessoa com a qual o
enredo dialoga em forma de alerta. Se parássemos nessa segunda palavra, teríamos a
ideia negativa em sua plenitude, como imperativo: não entres. Porém, a terceira palavra –
tão – abre o caminho ao mesmo tempo em que indica o caráter intensivo do texto.

A quarta palavra do título – depressa – sugere o modo como habitualmente


iniciamos a leitura de um livro, com pressa e descuido, saltando e desconsiderando as
informações presentes em sua moldura. Uma “moldura-texto” que apresenta o formato
discursivo “não entres tão depressa” torna-se bastante suspeita, pois sugere uma

276
Empregamos o vocábulo “criação” no sentido em que Leyla Perrone-Moisés conceitua: “A palavra
criação supõe o tirar do nada, o tornar existente aquilo que não existia antes. É uma palavra teológica”.
(PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 100.)
158

necessária lentidão que, unida ao aspecto intensivo do vocábulo anterior, sobrecarrega


apreensivamente o espectador-leitor.

O advérbio de lugar – nessa –, quinta palavra a compor o título, indica-nos algo


muito singular e igualmente impreciso sobre o tempo. Se a forma escolhida pelo autor
tivesse sido “nesta”, ele estaria se referindo a uma noite atual para o leitor ou para as
personagens. Mas ao escolher “nessa”, buscou referir-se, a partir de um momento presente,
a uma noite anterior, à noite que já passou, mas que será sempre noite na lembrança
daquele que a vivenciou. Como adentrar algo, ou melhor, um momento que já aconteceu?
Apenas pela memória. O tempo presente se mistura ao tempo do passado memorialístico,
subvertendo a ideia padrão de tempo.

A palavra “noite”, penúltima do título, também possui um sentido ambíguo. Na


tentativa de compreensão dos possíveis significados que o substantivo comporta, somos
levados a encontrar um novo elemento discursivo que, neste estudo, chamaremos de
“segundo nível da moldura da obra”, e a qual denominaremos “moldura textual literária”,
já que guarda uma diferença semântica e formal com relação ao título e a outros aspectos
técnicos paratextuais.

A “moldura titular”, de primeiro nível, prolonga-se em um intertexto que funciona


como introdução ou mote para a narrativa do livro. A moldura de segundo nível, por sua
vez – “moldura textual literária” –, que engendra o texto antuniano, é formada pelos
versículos iniciais do Gênesis, primeiro livro bíblico. Os trechos que narram os sete dias de
criação, e que descrevem os elementos criados em cada um desses dias, figuram como
epígrafes dos sete grandes capítulos em que se divide o livro-poema.

Ao nos apontar uma possível relação com o momento mais inicial de criação do
mundo, em que “as trevas cobriam o abismo” e em que Deus decide chamar “à luz ‘dia’ e
às trevas ‘noite’”, a palavra “noite”, penúltima do título do livro, além de realizar uma
espécie de colagem do próprio título ao trecho intertextual bíblico, formando uma única
moldura ampliada, indica novamente a conotação “negativa” da narrativa, afinal, o
substantivo nos fala sobre algo obscuro que se opõe à luz e também sobre o momento mais
inicial do ato criativo, o avesso da criação.

Com base nessa construção estrutural, é possível perceber que além da função
composicional da obra literária, a “moldura textual literária” também funciona como
159

procedimento retórico, que empresta um caráter mais intenso, uma atmosfera de


verossimilhança ao narrado, ao mesmo tempo em que provoca a curiosidade do leitor. Em
outras palavras, podemos entender que talvez o autor queira nos dizer que é apenas
ilusória a ideia de que o título é o ponto inicial do texto, quando se trata na verdade de um
“entre”. Estamos imprecisamente no meio, atravessando um labirinto, cuja entrada se
confunde com sua própria saída e que, apesar de parecer absolutamente aberta, não nos
permite ver com clareza o seu interior.

Toda a narrativa se desenvolve num jogo intermitente e interminável de luz e


sombra. É no sótão escuro, por exemplo, que a protagonista começa a recompor seu
passado; é de um baú escuro que retira as fotografias envelhecidas de um tempo-espaço
desconhecido, bastante anterior ao tempo presente em que narra; e é sob a luz da claraboia
desse sótão que ela consegue enxergar um nebuloso panorama, de forma bastante
vertiginosa e redundantemente “escura”, como indica a última palavra do título do livro.
Não basta à noite ser noite, ela é, no enredo, escura.

A moldura, que até este ponto da análise parece estar completamente formada,
continua se (des)fazendo. Aos elementos paratextuais – título, especificação do gênero e
epígrafes capitulares – Lobo Antunes acrescenta ainda a epígrafe da obra:

Os loucos seguem livres pelas salas e corredores ou pelos quartos de


homens, sem que inspirem o menor receio de evasão ou desordem.
Inclusive alguns deles pertencem a famílias distintas, acompanham as
visitas e fazem as honras da casa. Guardam as mais suaves formas de
cortesia e boa educação. 277

A passagem, retirada do livro Historia de la Psicologia y de la Psiquiatría em


España, indica-nos novas e importantes referências para a leitura do texto, mas, assim
como os demais níveis de moldura apresentadas, também não oferece nenhuma linha
semântica fixa, estabelecendo ainda mais complexas ambiguidades.

277
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. edição. Ne varietur. Lisboa:
Dom Quixote, 2008, p. 8. (Los locos van libres por las salas y pasillos o por las habitaciones de los hombres,
sin que ello inspire el menor recelo de evasión o desorden. Incluso algunos de ellos, pertenecientes a famílias
distinguidas, acompañan a las visitas, hacenlos honores de la casa. Guardanlas más suaves formas de cortesá
y buenaeducacíon.)
160

Estimulada pela introdução de uma moldura aparentemente verossímil, a narrativa


começa a se formar e o leitor é levado a acreditar que já reúne elementos suficientemente
sólidos para adentrá-la. Entretanto, uma pergunta se coloca: com que chave de leitura
devemos interpretar um texto que, apesar de estruturalmente parecer um romance, assume-
se como poema? Como ler uma narrativa que tem por epígrafe uma passagem retirada de
um livro de história de psicologia e psiquiatria? E como estabelecer uma ligação coerente
com as epígrafes capitulares, que nos remetem ao absurdo da ordenação e da divisão do
tempo infinito da eternidade?

Apesar da função reguladora que lhe é característica, a moldura-texto construída pelo


autor acaba por dificultar o processo de preparação e escolha da chave de leitura do texto,
porque nos inunda com um excesso de sentido que, paradoxalmente, descamba em um
sem-sentido originário. Não há um início como tal constituído. A aparente linha divisória
que deve separar o objeto artístico de seu exterior não consegue se estabelecer, devido ao
conteúdo semanticamente escorregadio e ambíguo de cada um dos elementos que, na
narrativa, figuram como moldura: a imprecisão do gênero; a sugestão da existência de uma
alucinação verbal; e o processo interminável e infinito de invenção pela linguagem.

A paradoxal relação que se estabelece entre a falta de abertura e a abertura total da


obra nos angustia porque nos dá a ilusória sensação de que olhamos por uma janela sem,
no entanto, conseguirmos determinar a posição espacial que ocupamos. Afinal, estamos
mesmo direcionando nosso olhar de um espaço externo para outro, interno? Opacidade e
transparência alternam-se para ora velar, ora revelar um suposto mundo interior/exterior,
seja ele passado ou presente. Onde estaria o “lado de dentro”, esboçado pela tela, e o “lado
de fora” que a janela representa? De acordo com Uspênski:

[...] de modo geral, as molduras do quadro (e antes de mais nada sua


moldura propriamente dita) pertencem, por obrigação, justamente ao
espaço do observador externo (ou seja, o espectador que olha o quadro e
que ocupa, naturalmente, uma posição externa em relação à pintura), e
não ao espaço tridimensional imaginado, representado no quadro.
Quando nós entramos, mentalmente, nesse espaço imaginado,
esquecemos as molduras, assim como nos esquecemos da parede sobre a
qual está fixado o quadro [justamente por isso, aliás, a moldura do quadro
pode ser decorativa e ter sua própria apresentação]. As molduras marcam
161

uma fronteira entre o mundo exterior [em relação ao quadro] e o mundo


interior do quadro.278

A afirmação do pensador russo soa-nos bastante esclarecedora e até reconfortante,


porque consegue estabelecer com precisão o lugar que o espectador ocupa com relação à
obra. Todavia, o que pensar quando nos colocamos diante das telas e janelas pintadas por
René Magritte (1898-1967), cujos temas apontam para a fragilidade dos limites, já que se
convertem, elas mesmas, nos quadros que estão sendo pintados? Vejamos os seguintes
trabalhos do referido pintor:

Figura48: The key to the fields. René Magritte, 1936.

278
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Semiótica russa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 174.
162

Figura 49: A Condição Humana. René Magritte, 1943.

O que podemos considerar como sendo exterior? A paisagem que foi pintada nas
janelas das telas? Ou o espaço onde está aquele que olha os quadros? Como entender a
primeira imagem, por exemplo, cujos cacos de vidro refletem as árvores que estão na
paisagem que podemos ver pela janela da mesma? O reflexo das árvores nos cacos sugere
que as árvores também estejam do lado de dentro da janela, refletindo-se nos estilhaços. A
segunda imagem, por sua vez, cuja moldura está amparada em um cavalete de pintura,
seria, apesar de seu natural caráter exterior e aberto, o ponto mais interno da obra. O que
pensar diante dessa construção ilusória?
163

Ambas as telas reproduzem tanto a janela barroca, que se desdobra ao infinito,


quanto a fita de Moebius: o círculo retorcido que, sendo puramente uma borda ou moldura,
ao ser percorrido, lança-nos de um suposto “dentro” para um suposto “fora”
alternadamente:

Figura 50: Fita de Moebius.

Realidade e representação se misturam e se confundem, dificultando a demarcação


dos limites entre o espaço ocupado por aquele que vê e por aquilo que é visto.

As perguntas feitas acima estão longe de serem respondidas, porque são avessas a
qualquer tentativa de limitação. Talvez não se trate de reconhecer o mundo e a linguagem
que o traduziria, estabelecendo uma “moldura-ponte” entre a interioridade do sujeito e a
exterioridade do mundo, ou ainda, sobre a exterioridade daquele que olha com relação ao
interior daquilo que está sendo visto, mas de afirmar que o mundo é linguagem e, portanto,
pura possibilidade.

Não há outra maneira de iniciarmos a leitura a não ser aceitando o fato de que essa,
sem que nos déssemos conta, já foi iniciada. Não há ponto de entrada, apenas o meio da
linha infinita, os meios da linha quebradiça e irregular que tentam a todo tempo (de)formar
a imagem que surge da enorme e fluída tela, toda feita de linguagem.
164

3.2. LINHAS

Se eu quisesse mostrar o homem ‘como ele é’,


precisaria de uma tal complexidade de linhas
enredadas que qualquer apresentação elementar pura
estaria fora de questão, e o resultado seria algo vago
e confuso a ponto de se tornar incompreensível. Além
disso, não quero mostrar o homem como ele é, mas
apenas como ele poderia ter sido.279
Paul Klee

Diante da folha ou da tela inicial – do plano em todo caso –, sempre prontas a


receber o primeiro ponto ou a primeira linha, coloca-se o artista. Plano, ponto, linha: o
conjunto de elementos necessários para que uma imagem aconteça.

O plano, “superfície material destinada a suportar o conteúdo da obra”, 280 limita-se


por suas linhas horizontais e verticais – a moldura em estado arbitrário – “sendo assim
definido como um ser autônomo no domínio do seu entorno”.281

O ponto, elemento inicial de qualquer aventura pictórica humana, é o marco “zero”


invisível de toda e qualquer obra de arte, bem como símbolo de concisão absoluta ou de
silêncio. Está em todo lugar e, ao mesmo tempo, em lugar algum, já que desaparece no
exato instante em que surge, transfigurando-se no movimento da tela ou na imagem verbal
que a dimensão material do texto faz surgir.

A linha, movimento nascido do ponto, por sua vez “é um ser invisível. É o rastro do
ponto em movimento, logo, seu produto”.282 Pela aniquilação da imobilidade suprema do
ponto, ela é capaz de nos fazer saltar do estático para o dinâmico. “A linha é, pois, o maior
contraste do elemento originário da pintura, que é o ponto”.283

279
KLEE, op. cit. p. 67.
280
KANDINSKY, Wassily. Ponto e Linha sobre Plano. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012. p. 105.
281
Loc. cit.
282
Ibid., p. 49.
283
Loc. cit.
165

Talvez não importe tanto se nos colocamos diante de uma obra de arte visual ou
literária. Plano, pontos e linhas são elementos que se fazem presentes enquanto
construtores primários e fundamentais das duas artes. O desafio, para nós, leitores-
espectadores, está na tentativa de entender como tais elementos funcionam em cada uma
delas e, principalmente, na tentativa de realizar uma aproximação estrutural que nos
ofereça um modo de ver pela leitura ou um modo de ler a imagem.

O texto de António Lobo Antunes, em especial o seu livro-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, mostra-se bastante singular enquanto obra lírico-visual. E
para investigarmos como essa narrativa verbo-visual se desenvolve, daremos continuidade
ao percurso iniciado no subcapítulo anterior, seguindo a linha de sua moldura-título, já que
é ela, a linha aparentemente exterior, que, ao se prolongar no texto propriamente dito,
conduz nosso olhar para o interior do plano textual, em busca de uma primeira
compreensão da composição imagética da obra.

Para abandonarmos a moldura e adentrarmos o plano da tela em si, precisamos


realizar um salto. Isso porque, à primeira vista, a epígrafe do primeiro capítulo parece
destoar tanto estruturalmente quanto tematicamente das primeiras linhas do texto
propriamente dito. Abandonamos o fio do trecho que supostamente inicia o texto bíblico,
para pegarmos outro fio, porém um fio à meada, que já se nos apresenta pelo meio.
Vejamos as diferenças.

Epígrafe capitular:

No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra achava-se vazia, as trevas


cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Então Deus
disse “Exista luz” e assim se cumpriu. Deus viu que a luz era boa,
apartou-a das trevas, chamou à luz “dia” e às trevas “noite”. Houve uma
tarde e uma manhã: primeiro dia.284

Primeiras linhas do texto-poema:

O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de


baloiço e olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu
pequena a brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago. Aos
domingos abria a gaveta da cómoda, remexia papéis até escutarmos o
tilintar da argola, subia as escadas do sótão a procurar as chaves no meio
das outras chaves

284
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 15.
166

(tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi
papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar as
chaves no meio das outras chaves)
e ficava horas seguidas na cadeira de baloiço
(entendo neste momento que era a cadeira de baloiço pelo ruído das
molas)
a olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu pequena a
brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago285

Nota-se que, apesar de dividir a passagem bíblica do Livro de Gênesis,


fragmentando-as em epígrafes para os sete grandes capítulos de seu livro, o autor opta por
manter a unidade temática e estrutural da mesma. Em seu texto-poema, no entanto, além de
desconstruir a ideia de unidade temática tradicional, Lobo Antunes desenvolve uma escrita
não-linear, produzindo um texto aparentemente fragmentado.

Devido à justaposição das partes, da propositalmente confusa sobreposição de linhas


e do teor altamente psicológico e inventivo do escrito, em termos plástico-visuais,
poderíamos entender o livro enquanto “literatura abstrata”. Afinal, “é abstrato o que apenas
se balbucia, aquilo a que não se chega a dar forma, e é abstrato o que se elabora ao infinito,
aquilo a que se chega a elaborar tão absolutamente que a realidade que podia conter se faz
transparente e desaparece”.286

Essa hipótese só pôde ser pensada porque o trabalho com a linha no texto de Lobo
Antunes é radicalmente singular. Ao contrário da composição tradicional, em que a linha,
por apresentar uma natureza secundária em relação ao tema, foi propositalmente
empobrecida e quase que visualmente anulada, para a obra de Lobo Antunes as linhas são
fundamentais, já que o modo como se (des)estruturam na superfície textual interfere
diretamente no processo de interpretação dos possíveis conteúdos temáticos.

Nesse sentido, poderíamos apresentar dois aspectos complementares e igualmente


importantes da escrita plástica de Lobo Antunes:1) o rompimento com o paradigma
tradicional e linear de composição; e 2) o constante trabalho de (re)invenção que,
resguardando a “inocência” de sua narrativa poética, mantém o vigor do ineditismo em sua
escrita. A partir desses dois pontos, tentaremos demonstrar que o caráter do poema Não
entres tão depressa nessa noite escura é o de uma pintura viva.

285
Ibid., p. 17.
286
MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. In: ______. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 719.
167

A linha, enquanto elemento fundador de uma imagem, talvez tenha sido o aspecto
mais pensado, trabalhado e modificado desde que a pintura foi criada e compreendida
como arte. É possível dizer que o Renascimento criou a pintura, à medida que, até então, o
que era pintado mantinha uma relação muito específica com os limites da superfície que o
continha. Conforme veremos no subcapítulo “Superfície”, tanto nos desenhos feitos em
retábulos quanto nos afrescos murais, as primeiras imagens eram pensadas em conjunto
com a superfície, a serviço de uma função simbólica ou utilitária, enquanto a superfície – o
plano – realizava a importante função de suporte da imagem.

Com o desenvolvimento do período do Renascimento, a representação da figura aos


poucos passa a ser estruturada em relação com a paisagem que a cerca e com a moldura,
enquanto a superfície ganha total neutralidade. Ao pintar em uma superfície plana e
bidimensional, o artista tentava, através de um minucioso trabalho com as linhas, produzir
a ilusão de tridimensionalidade, a sensação de profundidade naquilo que estava sendo
representado. Desde seu nascimento, portanto, a pintura buscou, como vimos no primeiro
capítulo desta pesquisa, alcançar uma dimensão que, segundo Gotthold Ephrain Lessing,
não lhe era própria, mas inerente à arte produzida em relevo: a escultura.

A sensação de profundidade começa a se constituir assim que se desenvolve o


trabalho com a perspectiva. O artista percebe que a terceira dimensão pode ser
representada se uma visão de conjunto for estruturada a partir de um trabalho geométrico,
em que as três dimensões são apreendidas simultânea e articuladamente por seu
espectador. Além do desejo de obter a ilusão de relevo do objeto, o artista buscava obter a
ilusão do ambiente em que tal objeto se situava. E, a partir de então, a pintura desenvolveu-
se também em profundidade. Vejamos um exemplo:
168

Figura 51: A Leiteira. Johannes Vermeer, 1657-1658.

Na tela, A leiteira, mulher que dá nome ao quadro, derrama o leite da jarra de barro
em outro utensílio doméstico. Ao olharmos o fio de leite que escorre da jarra, talvez o
ponto mais central da imagem, para onde também apontam as diagonais de luz saídas de
cada um dos cantos superiores da moldura, bem como o olhar da mulher, a impressão de
profundidade é criada. Poderíamos, obviamente, desviar nosso olhar e fixá-lo em qualquer
outro ponto da tela, já que, conforme explica Umberto Eco sobre a pintura barroca, “as
partes aparecem todas dotadas de igual valor e autoridade, e o todo aspira a dilatar-se até o
infinito”.287 Porém, mesmo ao deslocar seu olhar pela tela, a sensação de profundidade
permanece. Isso acontece porque as linhas presentes funcionam como elemento

287
ECO, op. cit., p. 84.
169

estabilizador. Ou seja, “havendo criado seu próprio equilíbrio, revelam-se ao espectador


mais como massa ou superfície do que como linhas”,288 além disso, “o olho, que as
adivinha desde o primeiro momento, nada encontra que o obrigue a percorrê-las
completamente”.289 As linhas são naturalmente subjugadas ao tema e ao efeito geral da
composição.

A composição de um quadro na tradição clássica é aquilo que primeiro se realiza na


obra. Mas, embora seja o que estrutura e mostra o que é visível em uma pintura, ela
permanece sempre oculta, minimamente visível na imagem do quadro. As linhas que
haviam sido minuciosamente trabalhadas no esboço geométrico, disfarçam-se nas dobras
que compõem e separam cada um dos objetos presentes na cena. Segundo João Cabral de
Melo Neto:

A composição é um elemento oculto no quadro; sustenta a aparência, mas


se apaga nela. Serve à aparência. A composição não existe para ser
analisada. [...] ela é recebida sem que a tenção se dê conta. É nesse ponto
em que a inteligência não se dá conta, que ela se cristaliza em hábito.290

As linhas, obviamente, continuam presentes, mas apenas enquanto suporte


palimpsêstico da tela, evidenciando o contorno dos elementos da cena, ao mesmo tempo
em que se anulam enquanto elemento vivo. Como o espectador tende a ver apenas aquilo
que é mais explicitamente visível, aquilo que literalmente está na superfície mais aparente
da tela, ele não se dá conta da composição, a não ser quando, imperfeitamente concebida,
ela se evidencia em seus defeitos, deixando à mostra os espaços não preenchidos da tela.
Para João Cabral de Melo Neto:

Esse aparente enriquecimento da superfície vinha, na realidade, limitá-la.


Por exigências da terceira dimensão se anulava na superfície a
possibilidade de se receber o tempo ou uma grafia qualquer que exigisse
para sua contemplação, um ato não estático do espectador. A terceira
dimensão em pintura anula a existência do dinâmico (essa riqueza da
antiga pintura decorativa) porque para ser percebida, em sua ilusão, exige
a fixação do espectador num ponto ideal a partir do qual, e somente a
partir do qual, essa ilusão é fornecida.291

288
MELO NETO, op. cit., p. 704.
289
Loc. cit.
290
Ibid., p. 709.
291
Ibid., p. 692.
170

Em outras palavras, a técnica de profundidade torna possível a perfeita representação


da imagem, mas negligencia a dinâmica do tempo a fim de conquistar o equilíbrio do
espaço, levando o espectador a exercer apenas uma única modalidade de sua visão: a
estática.

Harmonia, equilíbrio e proporção entre figura e fundo passam a vigorar como


aspectos constitutivos de toda e qualquer pintura, os seus pressupostos fundamentais.
Conforme afirma Charles Baudelaire, em sua crítica aos Salons parisienses, o público desta
época “olhava para as obras com os olhos da limitação, querendo encontrar nelas o modelo
estereotipado da pintura clássica em que ‘o perfeitamente bem-desenhado’ e ‘o
perfeitamente bem-modelado’ atuam como padrões de ‘avaliação’”.292

O Renascimento estabelece os princípios de toda pintura, instaurando o estatismo


imagético como condição fundamental, ao mesmo tempo em que estabelece um modo de
ver também estático. Aguinaldo José Gonçalves, em seu estudo sobre as relações entre
pintura e poesia, ajuda-nos a entender tal processo com a seguinte afirmação:

Como se sabe, o nascimento da pintura, como hoje a reconhecemos,


deve-se ao Renascimento, à descoberta da perspectiva e ao seu
aprimoramento, graças aos inúmeros tratados sobre tal conquista técnica.
Esse fato, de importância determinante para a história da pintura, tornou-
se uma das barreiras mais sólidas para a evolução da própria pintura.
Uma vez entendida e dominada pelas formas de representação
naturalistas da arte clássica, passou a ser dominadora e doutrinária,
dificultando sobremaneira a conquista do outro espaço, aquele das
relações internas do sistema pictórico, que promove o dinâmico.293

Ao assumir o estatismo como princípio basilar do efeito artístico, o Renascimento


instantaneamente submete o contemplador dessa arte à convenção do olhar estático e
organizador.

Podemos fazer a mesma crítica ao campo da literatura, que em seu período clássico –
especialmente no que se refere à produção poética grega, desenvolvida a partir do século
IV a.C. – produziu uma escrita organizada e harmônica, tanto no aspecto estrutural, quanto
semântico. Uma escrita que enaltecia aspectos tais como a verossimilhança, a linearidade e
a formalidade discursiva. Devemos pensar ainda na literatura portuguesa clássica iniciada

292
GONÇALVES, Aguinaldo José. Laokoon revisitado. São Paulo: Edusp, 1994. p. 115.
293
Ibid., p. 169.
171

com Francisco Sá de Miranda e outros quinhentistas, cujo caráter estrutural de organização


linear também estará presente tanto na poética quanto na prosa romântica e realista.

Imaginamos que, diante dessa tradicional padronização, os artistas, bem como os


espectadores, críticos e teóricos modernos de forma geral tenham se perguntado: seria
possível outra forma de composição?294

Parece-nos que o final do século XIX, uma espécie de momento extremo que
corresponde à produção transgressora, responde afirmativamente a essa pergunta, pois é
nessa época que surgem duas importantes obras:

[...] a obra poética de Stéphane Mallarmé e a obra pictórica de Paul


Cézzane. O primeiro é considerado mestre da escola pictórica simbolista
francesa, e o segundo, dissidente impressionista, é considerado o
propulsor da arte moderna, tendo o cubismo como seu maior seguidor,
através de Picasso, Braque e Léger.295

Esses artistas têm sua importância atrelada ao “processo denominado ‘ampliação dos
limites’, bem como à conquista do estabelecimento de um sistema próprio de cada uma,
que justificaria a sua verdadeira fruição”.296 Nessa circunstância, a pintura é liberada de sua
função de “representar o real” e passa a apresentar-se apenas enquanto experiência da
prática de pintura, obtendo, através de procedimentos novos e exclusivos, resultados
impossíveis de serem produzidos de outra maneira. Vejamos, como exemplo, um dos
quadros Monte Santa Vitória, de Paul Cézanne:

294
MELO NETO, op. cit., p. 692.
295
Ibid., p. 167.
296
Ibid., p. 169.
172

Figura 52: Monte Santa Vitória. Paul Cézanne, 1904/1906.

Na concepção de Jean-François Lyotard, a conquista de Cézanne se dá no momento


em que ele abandona a organização perfeitamente mimética, pensável conceitualmente,
para se apoderar da circunstancialidade geométrica da imagem dada. Ao olharmos sua
pintura, enxergamos uma imagem desobediente no que se refere à mimese da natureza e,
no entanto, bastante comprometida com aquilo que essa mesma natureza tem de essencial
em termos de fluidez. Num sentido plástico-pictórico, o tema ou referência externa tornam-
se ausentes ou secundários enquanto pontos de partida. Em um novo espaço, as
possibilidades são ampliadas.

Relacionando o gesto inovador de Paul Cézanne com a retórica plástica de Lobo


Antunes, entendemos que a escrita do autor português também responde afirmativamente à
hipótese de construção de um novo tipo de composição. Poderíamos compreender a escrita
de Lobo Antunes no sentido em que Linda Hutcheon pensa a literatura dos séculos XIX e
XX. Para ela:
173

O romance não se restringe mais em buscar apenas fornecer uma ordem e


significado a serem reconhecidas pelo leitor. É agora exigido que ele
esteja consciente da obra, de sua real construção, da qual ele também
toma parte, já que, nos termos de Ingarden, é o leitor quem “concretiza” a
obra de arte e lhe dá vida.297

Ao ler Não entres tão depressa nessa noite escura, o leitor contribui para com a
construção do mesmo por perceber também visualmente que os fatos são construídos pela
linguagem e não apenas refletidos por ela. Ou seja, é pelo olhar-espectador que o leitor
ajuda a dar concretude visual à arquitetura linguística do poema.

Quando analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, a


escrita antuniana insinua um desejo de devolver ao plano sua antiga função: o de ser o
receptáculo do dinâmico; e às linhas seu aspecto mais fundamental, libertar o ritmo da
imagem, dando-lhe vida própria. De acordo com João Cabral de Melo Neto:

Uma mancha de cor, uma superfície dentro de outra superfície, pertencem


à categoria do estático. A atenção, para apreendê-las, não é obrigada a
realizar um ato temporal. Uma linha, pelo contrário, pertence à categoria
do dinâmico e exige, para ser percorrida, um movimento do espectador, o
corpo de uma linha pode ser mesmo, a expressão de um movimento.298

A linha, no sentido em que Cabral a considera, torna-se uma espécie de elemento


dissociador e ao mesmo tempo o indicador para o caminho da contemplação. Ela
“transforma em circulação o que era fixação; em tempo o que era instantâneo”.299

Ao considerarmos a nova dimensão com que Lobo Antunes trabalha o objeto


artístico, compreendemos que ele alcança uma espécie de deformação da estrutura
tradicional de escrita, desconstruindo e desorganizando o sentido linear e semântico da
escrita. Mas, perguntamo-nos, como isso se realiza em termos práticos?

Percebemos que, em primeiro lugar, ele não atribui às formas manifestadas o sentido
e o significado coercitivo que até então lhes eram impostos. Em segundo lugar, ele não

297
“The novel no longer seeks just to provide an order and meaning to be recognized by the reader. It now
demands that he be conscious of the work, the actual construction, that he too is undertaking, for it is the
reader, who in Ingardens’s terms, “concretizes” the work of art and gives it life”. (HUCTHEON, Linda.
Narcissistic narrative: the metafictional paradox. New York: Methuen, 1984. p. 39.)
298
MELO NETO, op. cit., p. 702-703.
299
Ibid., p. 703.
174

estabelece um vínculo tão forte com uma possível realidade, porque, ao que nos parece,
não vê nas formas finais a essência do processo da invenção. Acreditamos que para Lobo
Antunes importam mais as forças formadoras de realização artística do que as formas
finais propriamente ditas e sua aparente organicidade. Retomemos o poema para
entendermos melhor esses dois aspectos.

A voz-linha que o inicia é produzida pela personagem Maria Clara, cujo aspecto
memorialístico nos leva a percorrer pelo menos dois tempos: o passado, de sua infância; e
o presente, de desarranjo familiar. Logo nas primeiras páginas do poema, a voz-linha dessa
personagem começa a ser bruscamente entrecortada por uma polifonia de diferentes vozes-
linhas, as quais serão representadas por parênteses, itálicos, travessões dialógicos ou por
hiatos espaciais que aos poucos carregam o texto com um excesso de lacunas estruturais e
aparentes vazios semânticos. É o que nos mostra o seguinte excerto do texto:

— Não se canse
até que um sulco de rega me cobriu por inteiro e não senti o peso da cal
no caixão nem os passos que se iam embora a caminho da vila
se ficares comigo no Estoril Leopoldina até minha mãe e a minha irmã
chegarem da clínica, o perfume da Ana a dissolver os goivos e o sorriso
dela, não o meu, nunca o meu
(a beleza da sua filha Ana Maia dona Amélia, a simpatia, a figura, a
Maria Clara contrapartida é o homem da casa, sinceramente não entendo
o motivo por que o seu marido a prefere, não penses que digo isso para te
diminuir Clarinha, nem és feia se arranjares de vez em quando o cabelo,
te vestires melhor, te preocupares um bocadinho contigo)
os saltos dela no primeiro andar, fazendo-me ter vergonha dos meus
sapatos rasos
(se te preocupasses um bocadinho contigo, saias em lugar de calças, um
lenço de pescoço
compram-se nos aviões
uma pintura discreta)300

A passagem, escolhida aleatoriamente, poderia ser substituída por qualquer outra do


mesmo livro-poema. Isso porque todo ele se (des)constrói a partir da mesma aparente
desorganização e dinâmica não-linear. A voz-linha em itálico é atravessada por outra que,
em sua metade, sofre uma pequena mudança assim que se transforma em um pensamento
sensorial em vez de prosseguir com sua estrutura inicial de período condicional: “...se
ficares comigo [...] o perfume de Ana a dissolver os goivos...”. Essa segunda linha, por sua

300
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 153.
175

vez, sofre a intervenção de uma outra, apresentada pelos parênteses. A voz que fora
cortada pelos parênteses volta a se fazer presente por um curto momento para novamente
ser atravessada pela linha anterior, trazida pelos parênteses que, assim como as demais,
também sofrerá um corte em seu interior: “compram-se nos aviões”. Percebemos que a
tentativa de organização do poema o deixa ainda mais desorganizado, afinal, parece-nos
que foi feito não apenas para ser lido, mas também para ser visto. Ao olharmos para as
linhas e letras, colocamo-nos diante de uma espécie de “miragem alfabética”, pois,
conforme explica Roland Barthes, enganamo-nos constantemente quanto à
indiscernibilidade da fala e da escrita, já que a escrita é a transcrição de uma pronúncia e
não diz respeito ao dizer, mas ao fazer da mão.301 Para darmos um exemplo concreto e mais
esclarecedor, podemos visitar a tela A Traição das imagens: Isto não é um cachimbo, de
René Magritte, em que a escrita é literalmente pintada com letra cursiva, sugerindo-nos
não apenas o dito, mas o “fazer da mão”. Vejamos:

Figura 53: The treachery of images – This is not a pipe. René Magritte, 1948.

301
BARTHES, Roland. O prazer do texto precedido de Variações sobre a escrita. Tradução de Luís Filipe
Sarmento. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 92.
176

O título do quadro indica justamente a “miragem” a que nos leva a contemplação da


imagem. A tela, de forma sutil, indica o duplo caráter da “traição” não apenas por
explicitar a ilusão que se manifesta entre a imagem e a coisa por ela representada, mas
especialmente por mostrar, através da pintura da escrita cursiva que, ao figurar na tela
enquanto imagem, a escrita deixa de funcionar apenas como código verbal, para manifestar
seu aspecto essencialmente imagético. Magritte nos sugere, através de sua pintura, aquilo
que Barthes afirmou a respeito da materialidade da escrita: “a escrita está sempre do lado
do gesto, nunca do lado da face: ela é tátil, não oral”.302

Voltando ao texto de António Lobo Antunes, é possível dizer que ele também nos
chama à atenção para o caráter manuscrito de sua composição. É pela visão que sabemos
da existência do itálico e dos sinais gráficos que se espalham pelo texto. Quando lemos,
não modificamos a voz ao passar pelo campo de letras em itálico ou pelas marcas gráficas.
A visão atua oferecendo elementos imprescindíveis à leitura e o grafismo textual, que
simboliza os mais variados tipos de cortes, faz mais sentido porque é visto e reconhecido
como marca ou como desenho.

A aparente falta de organização das linhas, que num primeiro momento parecem
tentar reproduzir a sobreposição de planos, torna-se um elemento vital para o texto por dar
a esse um caráter fluxional e rizomático. Conforme explicam Deleuze e Guattari, “umas
das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas
entradas”.303 Ou seja:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,


entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser” mas o rizoma
tem como tecido a conjunção “e... e... e..”. Há nesta conjunção força
suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser [...] Entre as coisas não
designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói
suas duas margens e adquire velocidade no meio.304

Tal ideia converge para a escrita plástica antuniana, por descrever teoricamente a
estrutura desconexa de um corpo textual feito de ramificações, platôs, “linhas de

302
Loc. cit.
303
DELEUZE; GUATARRI, op. cit., p. 22.
304
Ibid., p. 37.
177

segmentariedade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de


desterritorialização”.305 Conforme esclarece o próprio autor português: “uma história com
princípio, meio e fim é uma coisa que não me passa pela cabeça fazer”. 306 Afinal, para ele,
“um livro não tem fim”307 e, por isso, sua ideia era que o livro “fosse como aqueles ecos
que se prolongaaaaaaaaaam indefinidamente”.308 A multiplicidade linear se metamorfoseia,
mudando constantemente de natureza. Estamos diante de uma escrita que não permite
rígidas definições e que se constitui de pura inventividade.

A linha-voz de Maria Clara, ironicamente, não pretende guiar ou esclarecer. É uma


linha que se atravessa a si mesma em forma de monólogo e de lembrança, como sugere a
insistência do pretérito verbal, ao mesmo tempo em que atravessa outras vozes-linhas e é
por elas atravessada. As frases e períodos, que se mostram de maneira fragmentada,
misturam-se, combinam-se e se embaralham para formar uma ruína, uma trama-textual
que, por fim, ao invés de nos dar um foco central de significação, leva-nos a experimentar
uma vertigem de sentidos.

Ao tentar libertar a composição de um centro dominante, a plasticidade da letra


antuniana rompe com os padrões tradicionais de escrita e com os paradigmas clássicos de
pintura. Ele se distancia da ideia de equilíbrio e organização, para resgatar o dinamismo do
ritmo e a fluência não-linear do tempo. Contrário a qualquer hierarquização entre os
elementos de seu texto ou de um centro de interesse a partir do qual a composição se
estrutura, o autor trai a ideia de ordem ou organização. Não há mais uma subordinação de
elementos a um ponto central, organizador e dominante. Tudo se propõe simultâneo e
igualmente importante, exigindo que o leitor-espectador aprenda um novo modo de ler e
olhar. Aquele que lê deve estar atento a cada ponto do poema, já que cada um desses
pontos vertiginosamente inscreve linhas sobre linhas, e “quadros dentro de um quadro”,309
levando-nos a realizar uma contemplação descontínua.

Ao criar uma nova dinâmica para as linhas, com as quais (de)compõe sua escrita,
Lobo Antunes permite que não apenas a ação, mas o tempo seja visualizado. Em outros
termos, podemos dizer que o poder das linhas e de suas inusitadas versões rítmicas e

305
Ibid., p. 32.
306
SILVA, op. cit., p. 29.
307
Ibid., p. 37.
308
Loc. cit.
309
MELO NETO, op. cit., p. 697.
178

melódicas faz com que o espectador-leitor realize, no movimento de sua visão, um gesto
temporal.

É possível afirmar que na composição de Não entres tão depressa nessa noite escura
a linha seja uma espécie de mola propulsora que nos leva pela obra, transformando em
fluxo circular o que antes parecia estático, e em tempo contínuo o que antes parecia
instantâneo. Com as suas linhas, Lobo Antunes cria uma escrita-imagética viva. Ao
contrário do fio de Ariadne, que leva à saída, as linhas de seu livro conduzem nossa visão
por labirintos que se dobram e se multiplicam, fazendo-nos abandonar um modo de ver
estático. Sempre recomeçando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem
nosso modo de ver habitual, e impõem, com o inusitado da surpresa, um modo de olhar
inocente, original. Elas nos fazem desobedecer às regras do “já sabido” e nos restituem o
espírito contemplador da criança que tudo vê como se fosse a primeira vez, assim como
fizeram os pintores e escritores do final do século XIX, ao romperem com os ideais do
naturalismo.

Poderíamos dar como exemplo concreto dessa nova arte, a pintura de três grandes
artistas: Joan Miró (1893-1983), Paul Klee (1879-1940) e Wassily Kandisnky (1866-1944).
Buscando caminhos que rompessem com a estabilidade dos planos de perspectiva e de
iluminação fixa, os três pintores conseguiram anular ou potencializar os deslimites entre
tempo e espaço, através de técnicas que, pela justaposição no espaço, sugerem a sensação
visual de simultaneidade. Ao comparamos uma tela de cada um desses pintores com um
trecho do poema de Lobo Antunes, talvez seja possível perceber que os trabalhos
realizados com as linhas sejam bastante semelhantes no que diz respeito à produção de
efeitos e à profusão semântica. Escolhemos os seguintes quadros:
179

Figura 54: Carnaval de Arlequim. Joan Miró, 1924-1925.

Figura 55: O lambedor. Paul Klee, 1920.


180

Figura 56: Linhas Pretas. Wassily Kandinsky, 1913.

Trecho do livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura:

(as filhas do contrabandista, do que recebe pretos e árabes e estrangeiros


esquisitos, a mulher dele horrível, a sogra um palhaço moribundo)
à medida que o sioux esperneava invisível, a rã de um palavrão saltou à
superfície do choro, flores pisadas, gardénias, não hei-de esquecer a
camisola verde, uma das penas de galinha esvoaçou a implorar auxílio
numa dança que a Ana não viu e perdeu-se na tremura dos olmos
— Apetece-te uma palmada não apetece Miguel?
o coração coitado uma folhinha velha a soltar-se
— Anda cá anda cá
e apanhá-lo do chão
a mulher do contrabandista horrível, a sogra um palhaço moribundo
sufocado em anéis, quando é que a polícia o prende, quando os expulsam
daqui, a lata de nos cumprimentarem
— Bom dia
181

como se fossem iguais, moraram durante anos com um cego a palpar


franjas de sol com a bengala e a embrulhar-se nelas, sempre que uma
nuvem ensombrava o graveto os óculos escuros alarmavam-se
— Amélia
móveis atrás de móveis que saíam o portão e a mulher horrível
despedindo-se dos pinhos a assoar-se ao dinheiro que o ferro-velho
pagava
— Adeus
uma das filhas vestida como uma boneca sevilhana, a outra um homem
pontapeando as pedras a odiar toda a gente, atormentava os sapos com
ganchos, oferecia pedaços de jornal aos coelhos, cortava uma asa às
borboletas e lançava-as no lago onde os peixes abriam e fechavam a
boca a discursar borbulhas, não bem um lago, uma pasta de lodo com
um garoto de barro, sem dedos na mão esquerda, a -lhes em
cima, quando acendiam a luz a dama de companhia o palhaço à procura
da patroa com um resto de xaile
— Está friozinho menina
às vezes a meio da noite um sioux
— Ana
ainda hoje às vezes a meio da noite um sioux
— Ana
e o coração, sem peso, lá em baixo na rua, a mesa de pingue-pongue
quebrada, se jogássemos esta tarde todas as bolas se perdiam, a lâmpada
do tecto da garagem tornava os nossos vultos maiores que as pessoas
crescidas, debaixo do automóvel um cheiro de fuligem em uma vozita de
fósforo a extinguir-se 310

Comparando os quatro trabalhos, pelo viés das linhas, entendemos que nenhum dos
quatro artistas esboça temas, todos eles parecem manifestar o próprio ato de invenção.
Conforme explica Jacques Derrida: “A invenção supõe uma indecidibilidade; ela supõe
que em um dado momento não haja nada”.311 Apesar de elementos tais como o tema, a
verossimilhança, o equilíbrio cartesiano das formas e as regras tradicionais da “boa
pintura” serem abandonados, as telas não deixam de nos surpreender pela originalidade da
tentativa de nos fazer ver algo nos espaços de invisibilidade.

Quando tentamos entender o que as imagens querem (nos) dizer, apegando-nos aos
títulos, por exemplo, ficamos confusos porque eles não são suficientes para nos fazer
alcançar um sentido completo. Talvez nem mesmo a análise mais exaustivamente
minuciosa possa nos assegurar a conquista de um sentido, já que estas, assim como todas
as demais pinturas dos artistas mencionados, são semanticamente escorregadias e
altamente plurissignificativas.

310
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 480-481.
311
DERRIDA, op. cit., p. 51.
182

O título do quadro de Miró, por exemplo, permite que vejamos na tela um


movimento carnavalesco bastante alegre e mais rápido e ritmado do que o movimento
presente na tela pintada por Paul Klee, em que o cordeiro, graças às linhas curvilíneas,
ganha volume. O título da tela de Kandinsky, Linhas Pretas, por si só ressalta a
importância que estas recebem. Elas são responsáveis por parte do movimento da obra
porque, em meio à profusão de cores, as quais deixam transparecer manchas imprecisas,
dão a estas uma espécie de contorno às avessas. Temos a impressão de que as linhas pretas
tenham abandonado a função delimitadora das manchas coloridas para deslizarem
livremente pela tela. Mas, obviamente, essas são apenas possíveis interpretações projetadas
por um olhar que ainda precisa descostumar-se, abandonar a ideia de organização e de
representação fidedigna ao real que o cerca.

As linhas criadas por Lobo Antunes exigem que também desacostumemos nosso
olhar organizador e decifrador de sentidos. Pois a leitura se reproduz enquanto labirinto
que lança linhas imprevisíveis, repete algumas e esconde outras, deixando transparecer um
caráter verbivocovisual que exibe não uma narrativa, mas a narratividade. Conforme
afirma Diana Navas, em seu estudo sobre Lobo Antunes:

Talvez, com a criação de Não entres tão depressa nessa noite escura,
Lobo Antunes, assim como intencionava Mallarmé, busque criar um livro
que seja a metáfora do Cosmos, universo dinâmico que se assenta numa
tensão, ou melhor, num equilíbrio instável. Uma obra que materialize a
instabilidade e que, de forma bastante complexa, tente evidenciar a
ineficácia ou mesmo a falácia das polaridades e das classificações
rígidas.312

Novamente optamos por fazer um recorte aleatório do poema de Lobo Antunes, para
mostrar que, independentemente do fato de estarmos estruturalmente no início, no meio ou
no fim do livro, estamos sempre numa espécie de “entre” que, por sua vez, não cessa de se
movimentar.

O excerto recortado, apesar dos vários indícios, não consegue nos oferecer um
caminho linear e um sentido fixo e minimamente confortável. A leitura nos dá pistas sobre
elementos concretos tais como: um contrabandista de negros e árabes, um jardim, um
homem cego, palavrões, crianças a brincar, uma família que está se mudando, uma mesa de

312
NAVAS, Diana. Figurações da escrita: a metaficção nos romances de António Lobo Antunes. São Paulo:
Scortecci, 2013. p. 136.
183

pingue-pongue quebrada, uma garagem; e também nos dá pistas sobre elementos abstratos
tais como a irritabilidade, a feiura, o preconceito, a solidão, a infância, entre outros menos
explícitos. Além disso, é possível enxergar algumas falas interrompidas ou entrecortadas,
os parênteses, as letras em itálico e uma lacuna em próclise, da qual um verbo foi retirado.
Os tempos verbais que se substituem a todo o momento, levando-nos do presente para o
passado e vice-versa, dão-nos uma sensação vertiginosa e bastante ritmada do tempo e do
espaço. Somos conduzidos por uma espécie de força “destinerrante”.313

Ainda que organizemos em blocos de semelhança cada um dos elementos, parece-


nos que o quebra-cabeça não consegue ser completado, pelo contrário. Temos a impressão
de que faltam ou sobram peças e de que todo o livro se constitui da presença paradoxal de
faltas. E não nos referimos apenas à falta em si. A linguagem explicita a presença dessa
falta ao desenhar-se num movimento falho e ao esboçar a falha das personagens, dizendo-
nos o absurdo: existe uma falta, um vazio aqui, veja o invisível!

Diante de uma arquitetura aparentemente labiríntica, o leitor começa a perceber que


está participando de um jogo, em que tudo é minuciosamente planejado para dar a entender
uma confusão. Mas, ao final da leitura, também percebe que nada falta ou sobra e que tudo
é pensado para fazê-lo encontrar a chave de leitura do texto.

Talvez Lobo Antunes queira mostrar que a literatura não deve ser entendida
enquanto perfeita imagem dos objetos no mundo, mas como sua própria imagem, imagem
da linguagem, da arte em si. E, nesse sentido, concordamos com Bylaardt que, em seu
estudo sobre A ordem natural das coisas, romance de Lobo Antunes, diz: “Na linguagem
cotidiana, a imagem aparece sob a ausência da coisa. Na linguagem literária, a imagem
aparece sob a sua própria ausência, já que a imagem é a própria linguagem”.314

Para cada frase ou palavra lida e vista, criamos uma imagem diferente. Saltamos,
assim, de ponto-imagético em ponto-imagético, formando um caleidoscópio de sentidos,
sem que consigamos formar uma imagem maior, central. Por mais que saibamos que o
autor, como ele mesmo afirma, insista em fazer “mais correções, mais correções e mais

313
Palavra valise cunhada por Derrida, formada pela junção dos vocábulos “destino” e “errância”, utilizada
pela primeira vez no livro Cartão postal. (DERRIDA, Jacques. Cartão portal: de Sócrates a Platão e além.
Tradução de Simone Perelson e Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.)
314
BYLAARDT, C. “A recusa da Morte em ‘A ordem natural das coisas’, de António Lobo Antunes”. In:
NAVAS, op. cit., p. 73.
184

correções”, 315 a sensação é a de que visualizamos um grande rascunho. Temos a impressão


de que ele realiza o avesso de um movimento de composição, pois não parte do esboço
para chegar à obra final, perfeitamente acabada e plena de sentidos, mas insiste no
rascunho, potencializando-o enquanto obra de “incompetência” que se (des)constitui como
um virulento316 processo inventivo.

Com base nessas colocações, compreendemos que Lobo Antunes, assim como os
demais artistas aos quais nos referimos acima, é aparentemente despretensioso, no sentido
de não se comprometer com um resultado final que faça sentido para o espectador-leitor.
Isso acontece porque a atividade que realiza propõe a desintegração da unidade do texto,
assim como rejeita o acabamento estético tradicional. Parece-nos que tais artistas estão
(des)aprendendo a pintar e (des)aprendendo a escrever, pois agem como se estivessem
ensaiando, esboçando e rascunhando suas obras.

Trata-se, em sentido metafórico, da tentativa de “treinar a mão esquerda” para que a


habilidade da mão direita não retire o frescor das pinceladas. O artista descobre o que
fazer exatamente no momento em que o faz. Não há preparo, assim como não há o desejo
de lançar o “já-sabido” na superfície em branco. O artista surpreende-se ao ver nascer
aquilo que faz no embate entre a mão e a matéria, no exato instante em que seu trabalho
acontece enquanto fenômeno. Lobo Antunes diz sobre isso que: “eu não escrevo o que
quero, é o que a mão quer”.317 O livro “é um organismo vivo – quando um livro é bom,
começa a viver por si só –, com as suas leis e regras e maneira de ser, até um
temperamento e um gosto que é diferente do meu”.318

Uma última colocação talvez possa ratificar essa ideia, bem como enfatizar a
importância que as linhas exercem em seu texto. Faremos um exercício de leitura e visão,
relacionando a epígrafe que escolhemos para iniciar este subcapítulo, com um excerto do
poema Não entres tão depressa nessa noite escura, e com uma última pintura. A ideia é

315
SILVA, op. cit., p. 21.
316
Utilizamos o termo virulência com o sentido que Jacques Derrida deu à palavra “vírus”, por ocasião de
uma entrevista, a qual está registrada no livro Pensar em Não Ver. O filósofo nos dá a seguinte definição para
o termo: “o vírus é em parte um parasita que destrói, que introduz a desordem na comunicação. Até mesmo
do ponto de vista biológico, isto é o que acontece com o vírus; ele descarrila um mecanismo do tipo
comunicacional, a sua codificação e decodificação”. (DERRIDA, op. cit., p. 24.)
317
SILVA, op. cit., p. 21.
318
Loc. cit.
185

fazer com que os trechos e a pintura conversem e se traduzam a si mesmas enquanto


composições imagético-verbais.

Se eu quisesse mostrar o homem ‘como ele é’, precisaria de uma tal


complexidade de linhas enredadas que qualquer apresentação elementar
pura estaria fora de questão, e o resultado seria algo vago e confuso a
ponto de se tornar incompreensível. Além disso, não quero mostrar o
homem como ele é, mas apenas como ele poderia ter sido.319

Agora que estou no fim do meu relato tenho pena que acabe sempre tive
pena que seja o que for acabe [...] escrevo uma linha ou duas, apago,
torno a escrever a não foi assim, não foi assim, um traço mais carregado
por cima das palavras, como as palavras continuam legíveis um segundo
traço demorado, muitos traços rápidos em xis e agora que a frase se não
entende tentar decifrá-la porque afinal era assim, refazê-la na cabeça e
perdi-a, procurar a ideia que deu origem à ideia e não consigo, apenas
vagos rostos informes.320

319
KLEE, op. cit., p. 67.
320
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 476.
186

Figura 57: Mulher que chora. Pablo Picasso, 1937.

Compreendemos que a fala de Paul Klee converge diretamente para a pintura de


Pablo Picasso, bem como para a passagem retirada do texto antuniano. Todas as duas artes
– o texto de Lobo Antunes e a tela de Picasso – são o resultado da tentativa de “mostrar o
homem como ele é”321 ou, mais precisamente, “mostrar o homem como ele poderia ter
sido”.322 O produto final, em ambos os casos, mostra-se similar no que diz respeito ao
aspecto vago, confuso e quase incompreensível. No excerto do poema-livro Não entres tão
depressa nessa noite escura, Maria Clara posiciona-se enquanto criadora, aquela que tenta
escrever, registrar a fisionomia ou a personalidade de si mesma e dos que estão ao seu
redor e, no entanto, consegue “apenas rostos vagos e informes”.323 Tão informe quanto a

321
KLEE, op. cit., p. 67.
322
Loc. cit.
323
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 476.
187

“mulher que chora”, pintada por Picasso. Ao tentar construir o perfil da mulher que chora,
Picasso dá a ela uma fisionomia torta, torturada. A mulher que chora ganha a imagem do
choro, daquilo que deforma o rosto.

As linhas, como pudemos perceber, sejam elas verbais ou pictóricas, são um


poderoso instrumento de construção artístico. E especialmente no que se refere à escrita
antuniana, elas nos ensinam a percorrer novos caminhos interpretativos e nos convidam a
perceber, em sua visualidade gráfica, a fluidez e a dinâmica da própria narrativa.

3.3. COR

Figura 58: Drawing. Pedro Cabrita Reis, 1999.

“Pintura monocromática em camafeu cinzento dando a ilusão do relevo esculpido”.324


Eis a definição de “grisalha” com que Georges Didi-Huberman inicia seu livro Grisalha:
poeira e poder do tempo. A definição, apesar de parecer bastante abreviada, ajuda-nos a
começar a pensar sobre a cor ou, pelo menos, seus efeitos, no poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes.
Ainda que tenhamos mostrado, até aqui, que o poema é uma obra híbrida lírico-
pictórica, por se tratar de um desenho verbal feito em uma superfície branca de papel,
324
DIDI-HUBERMAN, Georges. Grisalha: poeira e poder do tempo. Tradução de Rui Pires Cabral. Lisboa:
Ymago, 2014. E-book. p. 3.
188

aparentemente, podemos perceber apenas as cores preto e branco. Aliás, desde a moldura, a
obra deixa transparecer um intenso jogo entre o claro e o escuro, bem como uma aura
nebulosa de sombra que, aliadas, dão, em nosso entendimento, um tom semanticamente
acinzentado ou grisalho à narrativa. Assim como as linhas, as quais além de lidas podem
ser vistas, as cores também se fazem reconhecer quando lemos a sintaxe pictórica e
entregamo-nos à imaginação. Veremos que, apesar de parecerem invisíveis, as cores nos
surpreendem desde a moldura do livro.
Afirmamos isso com base nos primeiros indícios pictóricos que conseguimos reunir:
1) as palavras que figuram no título do poema – noite escura; 2) alguns dos vocábulos da
primeira epígrafe capitular – trevas, luz, dia, noite e tarde; 3) o nome da protagonista –
Maria Clara; e ainda 4) a atmosfera nebulosa dos espaços habitados pela personagem – sua
casa, o sótão e o hospital em que seu pai está internado.
Tais elementos, direta ou indiretamente, nos ajudam a constituir a possível paleta de
cores com que o poema foi criado. Paleta metaforicamente composta por tons variados que
se apresentam desde o mais escuro pigmento até as cores mais claras.
Nossa intenção inicial é, mais do que ver no texto um conjunto de cores específicas,
ter uma experiência da cor e também da ausência de cor. Por se tratar de um poema que
constantemente evoca o passado, começaremos por considerar aquilo que Didi-Huberman
diz sobre a grisalha. Para ele, a grisalha

[...] seria para as cores do mundo o mesmo que a poeira para a


consistência dos objetos [...] uma coisa pintada em grisalha está pintada
de acordo com a ficção de uma cor passada, um modo de referir a
descoloração, mas também de dizer que o tempo passou por essa coisa
como um sopro, como um vento que a esmaeceu.325

Essa definição, mais ampla do que a que inicia este capítulo, será tomada como
nosso ponto de partida visual, pois parece convergir para a sensação que nos toma assim
que passamos os olhos pelas linhas do texto e percebemos semanticamente a ação
envelhecedora do tempo rememorado, o desgaste ao qual a família e a vida da protagonista
estão submetidos, bem como ao aspecto sempre nebuloso e escuro em que a personagem se
encerra espacial e psicologicamente para produzir seu relato. Tomemos o seguinte excerto

325
Loc. cit.
189

como primeiro exemplo da presença da grisalha no poema Não entres tão depressa nessa
noite escura:

[...] o doente de roupão e canadianas que fumava às escondidas na copa e


saía a tossir, sufocado, escarlate, a guardar o cachimbo num nevoeiro
azul, suspendia-se a observar-nos, se eu fosse fada dava um toque de
varinha e pronto o meu pai não ocupava aquele quarto, arredava a cortina
que tapava as escadas do sótão e instalava-se na cadeira de baloiço no
meio do pó, dos armários e das arcas, às vezes uma hora, às vezes duas,
às vezes a tarde inteira, uniformes, retratos de militares a cavalo, chapéus
da minha avó em cilindros com rótulos franceses
senhoras elegantes de perfil em fundo malva
[...]326

Os trechos sublinhados, ainda que de modo impreciso, indicam-nos importantes


aspectos pictóricos. Através deles, conseguimos experimentar e formar um panorama de
cores. Isso acontece, por exemplo, quando imaginamos o espaço tomado pela fumaça do
cigarro ou pela poeira, a escuridão de um ambiente que se esconde atrás de cortinas ou o
aspecto envelhecido das fotografias antigas.
Conseguimos entender o efeito causado pela grisalha a que se refere Didi-Huberman,
mesmo tendo detectado apenas três cores: o escarlate, o azul e o malva. O malva, tom
conhecido como “pastel”, funciona como indicador da passagem do tempo na fotografia. O
escarlate, vermelho forte, destaca-se na pele do doente que fuma as escondidas e que
ironicamente, colore, ao se engasgar, o ambiente encoberto pelo nevoeiro azul. O azul, por
fim, enquanto adjetivador do “nevoeiro”, não funciona como cor iluminadora, pelo
contrário, ajuda a sombrear ainda mais o ambiente.
A grisalha se faz presente porque assinala que em um determinado ambiente, como é
o caso do espaço que acabamos de descrever, a poeira se movimenta microscopicamente e
se acumula sobre as coisas. O colorido da cena, no instante em que a imaginamos, parece
já ter se modificado e se acinzentado devido à ação corruptora do tempo.
Ao longo da leitura, é possível perceber que as coisas, bem como a atmosfera, fazem
parte de um mesmo “reino cinzento”, colocando-se a meio caminho entre a visibilidade e a
invisibilidade a que são submetidas as pessoas e os objetos decompostos pelo tempo. É o
que a seguinte passagem do livro nos mostra:

326
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 19.
190

Porquê um vestido gasto se não éramos pobres, porquê o broche na gola


de raposa já sem raposa alguma, depenado de brilhantes, ao receberem
visitas, mandavam-na jantar na cozinha da casa que herdara do pai dela e
onde dormia agora no quarto da costura, a seguir à despensa, com uma
máquina avariada e cestos rotos que cheiravam a lixívia, um sábado, no
mês em que lhe deu a embolia, ganhou no Cassino, substituiu a boininha
por uma capeline escarlate desmaiada pelos anos que devia conservar sob
a cama na esperança de um triunfo assim
[...]327

Os sublinhados ajudam-nos a perceber que, apesar da ausência de palavras que


indiquem cores propriamente ditas, podemos sentir o ambiente envelhecido, conseguimos
visualizar um espaço tomado pela grisalha, uma cena transformada pela passagem do
tempo, que aos poucos se desbotou. Cada um destes indícios funciona como uma espécie
de ponto cinzento, “um ponto fatídico entre o que muda e o que morre”.328
Diante da impossibilidade concreta de colorir propriamente a superfície de seu texto,
Lobo Antunes escreve linhas, em cujo corpo, a cor tenta se constituir como pigmento que
dá profundidade semântica à obra. Colocamo-nos, dessa forma, diante de uma espécie de
pintura encarnada em letra que, ao nos fazer perceber escopicamente o texto, desestabiliza
os lugares de depósito de pigmento, bem como sua significação.
Ao prosseguirmos com a leitura, conseguimos captar, pela eficácia do visível
imaginado, o “pesar”, por assim dizer, da grisalha sobre os olhos, a qual se torna mais
evidente à medida que se espalha quase que imperceptivelmente, tomando o espaço
semântico, descolorindo e (des)figurando perfis.
As linhas contorcidas aliadas à pigmentação imprecisa e literalmente grisalha agem,
enviesando as figuras e transformando-as em borrões de tinta, exatamente como acontece
na imagem que ilustra nossa epígrafe, ou melhor, conforme afirma o próprio Lobo
Antunes, exatamente como acontece na “escrita” do artista plástico Pedro Cabrita Reis.329
Podemos pensar que o aspecto de borrão com que os perfis se nos apresentam dão maior

327
Ibid., p. 20.
328
KLEE, apud DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 7.
329
No texto de apresentação para o catálogo One after another, a few silente steps, do artista plástico
português Pedro Cabrita Reis, António Lobo Antunes faz uma afirmação que muito nos ajuda a pensar a
relação entre literatura e imagem: “Eu vejo seu trabalho e me vem a ideia de alguém que está tentando se
lembrar de um número de telefone: 3514, não; 3614, não; ainda não é isso! 3314, é isso! Finalmente
consegui! E é essa busca incessante pelo número certo, o único número, que pertence somente ao Pedro, que
o ultrapassa e que alcança a todos nós. Isso me fascina em sua escrita, porque toda criação é uma forma de
escrita.” (I see his work and I get the idea of someone trying to remember a telephone number: 3514, no,
3614, no, not that either, 3314, that’s it, I’ve got it at last. And it is this incessant search for the right number,
the only number, which belongs to Pedro alone, and, through Pedro, to all of us, that fascinates me in his
writing, because all creation is a form of writing”.) (2010, p. 8.)
191

movimento ao texto. Pois nos fazem acreditar numa mancha imprecisa que ainda está se
constituindo, através de um intermitente e lento processo, como algo da ordem do diáfano.
Segundo Didi-Huberman:

Diáfano será o nome da cor em potência. É uma pura dynamis, portanto


incolor como tal, invisível, mas incorporada, lábil, no sentido de que ela
se expande por todo o espaço, atravessa todos os corpos. Ela é, contudo, o
princípio e a condição do devir-visível de toda cor.330

Reunindo as características que Didi-Huberman dá ao diáfano da cor – dinâmico,


incolor, invisível, incorporado, expansivo, etc., poderíamos afirmar que essa é a cor, ou,
pelo menos, o aspecto pictórico predominante no livro de Lobo Antunes. As seguintes
passagens nos ajudam a perceber como o diáfano se estabelece enquanto processo de
deterioração do corpo das personagens, bem como da matéria espacial.

Corpos:

[...] demorando-se a farejar, especado, inútil, amparado ao umbral, a boca


trêmula de palavras mudas, as pálpebras defuntas a piscarem angústias,
não existia um retrato dele fardado, uma medalha na vitrine, comia depois
de nós, sozinho na sala de jantar, de guardanapo ao pescoço para que não
o víssemos sujar-se, entornar arroz e pedaços de carne, no caso de
pressentir que o espiávamos esquecia a colher, girava a cabeça no sentido
errado
[...]331

[...] sentir-me-ei repugnante também, diminuída, horrível?


com nojo de mim e no entanto insistindo em disfarçar inchaços, defeitos,
gorduras, pintar-me mais, tornar-me ruiva, usar laca e soutien de arame,
tentar decifrar o preço das coisas, sem óculos, mantendo as etiquetas à
distância do braço
[...]332

Matéria e corpo:

330
DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada, seguindo de “A obra-prima desconhecida”, de
Honoré de Balzac. Tradução de Osvaldo Fontes Filho e Leila de Aguiar Costa. São Paulo: Escuta, 2012. p.
39.
331
ANTUNES, op. cit., p. 26.
332
Ibid., p. 22.
192

[...] e mostrou o tesoiro de uma moldura quebrada com elas duas


novíssimas, ou o que a empregada jurava serem as duas, dissolvidas
numa mancha castanha
Olhe eu aqui a segurar o guarda-chuva da menina
Vultos na mancha castanha, algo como uma blusa ou um carrapito ou
uma nuvem
[...]333

Matéria:

[...] objetos a que faltavam tinta [...]334

[...] a torre que faltava substituída por um botão de pijama com um resto
de fios nos buracos [...]335

[...] um dedal no lugar do rei branco[...]336

[...] relógios parados [...]337

[...] revólver pesado de ferrugem [...]338

[...] no meio do pó [...]339

[...] frascos de perfumes vazios, embalagens de rouge vazias, batons


vazios [...]340

[...] uma atmosfera de fundo de despensa feita dos cheiros ácidos e doces
das coisas remotas [...]341

Nota-se que o aspecto diáfano da cor, nos termos em que Didi-Huberman o


apresenta, está inscrito em cada canto do texto e na carne textual das personagens,
permitindo que a imaginemos ou que visualizemos a cor nascida do invisível diáfano. Em
outras palavras, é possível perceber que a cor existe também enquanto ilusão de óptica
textual, já que, apesar de aparentemente não se fazer presente concretamente no tecido
estrutural do texto, pode ser reconhecida semanticamente. Parece-nos que a cor fala na pele

333
Ibid., p. 23.
334
Ibid., p. 19.
335
Ibid., p. 22.
336
Loc. cit.
337
Ibid., p. 23.
338
Ibid., p. 26.
339
Loc. cit.
340
Ibid., p. 27.
341
Loc. cit.
193

da imagem da palavra, deixando que a experimentemos através de um delírio do tato, de


um delírio óptico-textual.
À medida que percorremos as linhas do poema, percebemos a dimensão adesiva da
grisalha, a qual se fixa em nosso olhar imperceptivelmente e, como uma lente, nos permite
ver a forma com que atravessa e altera os corpos. Essa transformação, ao que tudo indica, é
o próprio acontecimento pictórico.

Isto quer dizer, segundo Didi-Huberman, que:

[...] a cor não é lugar da superfície dos corpos (uma pura circunscrição
tópica), mas que ela tem lugar num limite do diáfano que neles está, que
os atravessa. Não é nem uma justaposição nem uma superposição, mas
uma interpenetração corporal efetiva, conquanto sutil.342

A afirmativa ajuda-nos a interpretar pictoricamente as passagens retiradas do poema


antuniano, à medida que nos faz perceber que, em cada pormenor textual, foi realizado um
minucioso trabalho de pigmentação discursiva, um procedimento de escrita que sugere
uma tonalidade a partir de sua estrutura formal e semântica. Trabalho complexo e bastante
sutil, que exige, para que seja percebido e entendido, um olhar verdadeiramente atencioso e
desacostumado. Afinal, é possível, e mesmo fácil, imaginar a cor quando essa se inscreve
em um enunciado do tipo: “embalagens de rouge vazias, batons vazios”,343 cuja carga
semântica aponta para algo substancial, um objeto feito para colorir. Contudo, o exercício
não consegue ser realizado com a mesma facilidade quando lemos um período como este:
“uma atmosfera de fundo de despensa feita dos cheiros ácidos e doces das coisas remotas”,
em que outros sentidos são provocados e convocados a comparecer enquanto tradutores
semântico-sensoriais. Em períodos como esse, em que as palavras “cheiro”, “ácidos” e
“doces” são mencionadas, somos levados a recorrer à memória olfativa e gustativa para
potencializarmos uma memória visual, a qual, por sua vez, nos levará a colorir
imageticamente a cena, com o tom que lhe pareça ser o mais apropriado.
Tais considerações fazem-nos pensar em uma espécie de cor-travessia, que produz
naturalmente e propositalmente uma confusão sensorial e uma indiscernibilidade óptica,
uma dinâmica vaporosa, uma plasticidade potencial do encarnado textual. Numa palavra:
uma dialética da dissimulação. Afinal, mostra-se no instante em que é projetada pelos

342
DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 40.
343
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 27.
194

sentidos e pelo olhar tátil-imagético do espectador-leitor. A seguinte passagem ajuda-nos a


confirmar tal hipótese:

Deito-me neste divã e o que vejo são nuvens, nem sempre brancas
aliás, amarelas, castanhas, rosadas, por sorte, como agora em setembro,
duas ou três escarlates, principio a contar as nuvens amarelas e as nuvens
castanhas
se as amarelas forem em maior número que as castanhas não
reprovo este ano
e a conversar consigo isto é a conversar sozinha porque não me
responde
duas amarelas e uma castanha, se os quarenta e cinco minutos
acabassem não reprovava o ano
e creio que o que lhe digo se relaciona com as nuvens, assim
lentas, sem contornos, mudando de forma e doendo-me por dentro tal
como a minha mãe e o meu pai me doem por dentro, a minha irmã me dói
por dentro, eu me doo por dentro e por me doer por dentro invento sem
parar esperando que imagine que invento e desde que imagine que
invento e não acredite em mim torno-me capaz de ser sincera consigo, é
certo que de tempos a tempos, para o caso de me supor honesta, lhe
ofereço uma nuvem amarela ou uma nuvem castanha e uma mão cheia de
pardais em lugar da verdade 344

Podemos pensar que, por se tratar de um texto legível, seria possível perceber a cor
apenas em nível semântico, pensada enquanto algo que se deixa entrever como uma
experiência, uma sensação construída à medida em que lemos os nomes das cores: branco,
amarelo, castanho, rosa. Porém, entendemos que a estrutura textual e seu aspecto
fragmentado também simulam uma tonalidade. O próprio esgarçamento verbal pode ser
entendido enquanto uma grisalha que se manifesta no corpo textual e enquanto corpo
textual. Essa hipótese nos remete à fala do pintor Cézanne, que ao descrever sua técnica de
composição diz: “o desenho e a cor não são mais distintos: à medida que pintamos,
desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho”.345 Para fazermos
um paralelo com a técnica de composição literária antuniana, poderíamos dizer que o
desenho verbal e a cor em Não entres tão depressa nessa noite escura também não são
distintos. À medida que Lobo Antunes escreve, ele colore. E a imprecisão da cor, o
desbotamento característico da grisalha, é o reflexo da imprecisão linear de seu desenho. A

344
Ibid., p. 357.
345
CÉZANNE, Paul, apud MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In:______. O olho e o
espírito. Tradução de Paulo Neves e Mariz Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
p. 134.
195

antilinearidade que estruturalmente aponta para o intenso esgarçamento temporal nomeiam


indiretamente essa cor, produto da mesma ação temporal.
Em Não entres tão depressa nessa noite escura, estabelece-se, desde a moldura, uma
intensa relação entre o claro e o escuro. E perceber as nuances luminosas e sombrias que
perpassam e se inscrevem no escrito é tarefa desafiadora. Precisamos fazer da
sensorialidade um instrumento de leitura cromática.
O tipo de leitura sugerida pela própria arquitetura textual, ao que nos parece, inspira-
se no famoso trompe l’oeil, técnica artística que, através de sofisticado trabalho de
perspectiva, consegue criar uma ilusão óptica. Todavia, mais do que uma ilusão óptica, o
trabalho lírico-visual desenvolvido por Lobo Antunes consegue criar uma ilusão que se
desdobra e respinga em todos os aspectos sensoriais, justamente porque potencializa a
fragmentação do texto, produzindo cortes bruscos, sobreposições desarranjadas e
esgarçamentos semânticos de toda ordem.
Ao insistirmos na interpretação semântica da escrita, adentramos uma zona cinzenta,
que cria, por maior que seja a sensação de aproximação visual, um distanciamento vago e,
a nosso ver, instransponível. A atmosfera diáfana, própria das coisas que desvanecem, não
nos deixa ver mais do que manchas, silhuetas e desbotamentos. De acordo com Evelyn
Blaut:

Justamente por constituir esta diferença de tons, a sombra se desdobra em


sentidos vários na obra de António Lobo Antunes, como a ausência total
de luminosidade ou uma claridade atenuada; a mácula; a própria ideia da
penumbra, das coisas eclipsadas, mantidas em segredo e/ou em
anonimato; a praça de touros, como La Maestranza (em Sevilha),
conhecida como Sombra Alta; a silhueta (pouco definida) de um corpo
que só sensorialidades físicas subtis são capazes de despertar (rumores,
murmúrios, vultos, arrepios); o vislumbre de um passado que já perdeu o
brilho mas que não deixa, contudo, de fazer sentido. A partir de todas
essas possibilidades evocadas pela sombra, que pode também simbolizar
o recolhimento, creio que poderia já dizer que todos os romances
antunianos são, no fundo, de sombras e de sobras, daquilo que
desvanece.346

Se pudéssemos relacionar o acontecimento viscoso da tinta-discursiva sob a


superfície do texto de Lobo Antunes com uma pintura propriamente dita, escolheríamos as
seguintes:

346
FERNANDES, Evelyn Blaut. A ficção de António Lobo Antunes: da coreografia dos espectros à caligrafia
dos afectos. Lisboa: Universidade de Coimbra, 2015, p. 12.
196

Figura 59: L'accordéoniste. Pablo Picasso, 1910.


197

Figura 60: Atelier de la modiste. Pablo Picasso, 1926.

A escolha das obras foi feita com base na ideia de que em ambas existe um universo
fragmentado e cinzento, que nos faz pensar na arquitetura também fragmentada do poema
Não entres tão depressa nessa noite escura, mas, especialmente, na atmosfera esfumada,
sombreada e castanha do mesmo. A cor diáfana, grisalha, toma o ambiente, confundindo-se
com ele.
A existência precária da cor, que não se deixa distinguir, é fascinante, pois nos
coloca diante de uma vertigem visual. Antes que possamos identificar uma cor,
constatamos a cegueira de um olhar que se deixou fascinar por uma neblina pictórica e pelo
fulgor de um jogo de luz na superfície da página. Luz que, apesar de parecer imóvel, haja
vista a precisa inscrição das letras, movimenta-se incessantemente, dizendo-nos o tempo
todo: Não, ainda não é isto!
Em suma, quando olhamos as imagens, dirigimos nosso olhar para um espaço onde
as cores flutuam sobre aquilo que estão (des)pigmentando. E o efeito desse lento processo
é de (des)arranjo na ordem do visível.
198

3.4. SUPERFÍCIE

Figura 61: White on White. Kazimir Malevich, 1917.

“Um objeto só se torna visível na medida em que torna cego o que o cerca”.347 O
traço que violenta a superfície, tornando-a invisível para se manifestar, nasce, segundo
Anne-Marie Christin, do desejo de “imitar a ruptura do mundo”.348 Sobre isso a estudiosa
questiona:

De onde, porém, os homens tiraram a ideia de testemunhar essa ruptura


sobre uma superfície, ou seja, em um espaço que estampa uma coerência
espantosamente presente e homogênea, ao contrário daquele de onde a
figura extrai sua existência, consagrado por ela à ausência e à desordem?
Da preocupação em celebrar essa figura, isolando-a sobre um “fundo”?
Ou não se trataria antes, ao restituir ao visível a dualidade que o cria, de
inscrever as figuras que ele suscita – com outras, imaginárias, mas que
seriam dotadas para o olhar pela mesma evidência mágica – em um
espaço redefinido pelo homem, onde essas figuras estariam unidas não
mais sendo as leis indecisas do caos que se abre para o dia, mas por um
projeto inédito e deliberado do espírito? 349

As perguntas feitas por Anne-Marie Christin são bastante complexas e difíceis de


serem respondidas com precisão e, por isso, levam-nos a pensar sobre um elemento

347
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem e a letra”. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: CHRISTIN,
op. cit., p. 337
348
Loc. cit.
349
Loc. cit.
199

absolutamente fundamental e, ainda hoje, pouco considerado no momento em que o


consumo estético se dá: a superfície.
Quando observamos uma imagem – enquanto espectadores não especializados –, seja
ela uma pintura, uma fotografia, um desenho ou até mesmo um bordado, pouca ou
nenhuma atenção costumamos dar ao plano que sustenta tais criações. Nosso olhar capta
aquilo que se manifesta como representação e, se chega a notar a presença da superfície,
considera apenas as superfícies inerentes ao plano propriamente figurativo: às paisagens,
cortinas, tecidos, estampas, quadros e espelhos. Enfim, identificamos apenas os elementos
que fazem parte da representação.
Esquecemo-nos de que a imagem só é possível graças à superfície que a sustenta e de
que “se a escrita nasceu da imagem, isso se deve ao fato de que ‘a própria imagem se
originou, antes, da descoberta – isto é, da invenção – da superfície: ela é o produto direto
do pensamento da tela’”.350
Para Christin o pensamento da tela é uma prova da primeira homenagem prestada ao
poder de invenção humano. É uma homenagem à parede sobre a qual – e pela qual – o
homem acabava de inventar a imagem.
Parede, página em branco, placa, superfície, écran ou tela. O nome usado para
identificar o plano não importa tanto, pois:

Esse suporte, ao mesmo tempo explorado e exaltado pelos pintores da


pré-história, é o de todas as imagens. As modificações diversas que
sofrerá no correr dos tempos e de seus deslocamentos de uma civilização
para outra, se acarretarão variações significativas na maneira de o
interpretar, não mudarão em nada sua definição, que permanecerá a de
uma superfície que permite reunir figuras em um conjunto visualmente
significante e que desempenha a função de tela (écran) entre o visível e o
invisível, no duplo sentido de ela constituir ao mesmo tempo a fronteira e
a placa sensível.351

De fato, a superfície passou e ainda passa por muitas e importantes alterações. No


período Pré-Histórico, o artista demonstrava por ela uma enorme consideração. Ele
realizava o registro, respeitando o percurso essencialmente acidental e repleto de naturais
protuberâncias. Em outras palavras, segundo Christin, o pintor pré-histórico preocupava-se
em:

350
Ibid., p. 18.
351
Ibid., p. 338.
200

[...] adaptar seus motivos figurativos àqueles que lhe sugerem


antecipadamente os acidentes do suporte que eles têm à sua disposição,
mostrando-se cada um deles obstinadamente preocupado em integrar à
sua composição qualquer índice de representação que se verificasse
imanente, de um modo ou de outro, à própria pedra. 352

Nesse período, superfície e imagem eram igualmente importantes. Uma fazia parte
da outra, funcionando como elementos constituidores reflexivos. É o que podemos ver na
seguinte imagem:

Figura 62: Grota de Pech-Merle - Departamento de Lot - França - 3,5 m.

A fotografia nos mostra que muito provavelmente o artista tenha pensado a imagem a
partir da estrutura natural da pedra, cuja ponta lembra exatamente o contorno da cabeça de
um cavalo. O pintor poderia ter feito qualquer outro desenho e poderia ter preenchido
apenas o espaço mais central, limpo e liso da pedra. O fato de ele aproveitar justamente o
contorno da mesma, por enxergar nesse espaço o formato de uma cabeça de cavalo, prova

352
Loc. cit.
201

que a superfície e sua forma primária eram relevantes a ponto de interferir na escolha do
desenho que seria registrado. Quando observamos a imagem, temos a impressão de que a
superfície já continha, de alguma forma, o desenho que mais tarde seria registrado em seu
corpo e o artista foi aquele que conseguiu captar e tornar ainda mais visível aquilo que
ainda não estava completamente dito pela/na superfície.
Imagem e plano, portanto, nascem ao mesmo tempo e são igualmente
imprescindíveis para o ato de produção artístico no período pré-histórico. Todavia, ao
longo dos anos, especialmente após o nascimento do alfabeto, a superfície começa a perder
visibilidade e a imagem passa a figurar com maior destaque. Texto e imagem ainda
ocupam o mesmo espaço, mas em uma nova configuração e com um propósito bastante
diferente, como podemos ver nas seguintes fotografias:

Figura 63: Livro dos mortos da rainha Mout-nedjemet - Paris - Museu do Louvre.
202

Figura 64: Detalhe da estela do rei babilônico Nabou-aplaiddina - apro. 870 anos - Londres - British Museum.

Ambas as imagens mostram que as figuras ganham total destaque, enquanto seu
suporte sofre um significativo recuo no sentido de não mais se mostrar como elemento
visível dotado de significado. Christin argumenta que a imagem se posiciona de uma nova
maneira e agora tudo se passa “como se devêssemos compreender que apenas ela, entre
todos os objetos figuráveis ou simbólicos do mundo, se beneficiasse do privilégio de entrar
em contato com a pedra”.353

353
Loc. cit.
203

Mesmo cientes de que “o pensamento da tela (pensée de l’écran) precedeu a


invenção do simbolismo gráfico, pois esse pensamento foi o que o tornou possível”,354 o
artista passou a não mais compreender o plano como parte figurativa de sua obra. A
superfície deixou de participar mais ativamente da imagem que apresentava e passou a
funcionar como receptor espacial, seja para receber uma pintura, seja para receber uma
escritura. Vejamos os exemplos:

Figura 65: Autumns Colours. Li Ruiqing, 1867-1920.

354
Ibid., p. 339.
204

Figura 66: Manuscrito em Sânscrito.

A transformação da imagem em escrita indica, ainda que de maneira enigmática, que


“o espaço é o único dado formal que permanece idêntico em cada uma delas, como se fosse
ele que constituísse o princípio comum a ambas, e que até mesmo a redução da figura em
signo se devesse a ele”.355 A produção das imagens, nesse sentido, seria uma espécie de

Consequência do reconhecimento do espaço-suporte, “da prodigiosa


invenção da tela – definida como um ‘espaço abstrato, extraído
arbitrariamente da aparência do real, que determina a dupla convenção de
uma extensão contínua e de observadores situados a uma mesma
distância de sua superfície’ –, invenção tão prodigiosa quanto a do
instrumento ou da linguagem.356

À medida que a imagem e o desenho da letra ganharam maior definição e


importância expressiva, a superfície tornou-se cada vez mais lisa e clara para que toda
atenção fosse dada ao que nela seria registrado. As técnicas de produção inovaram-se cada
vez mais rapidamente, assim como outros materiais foram descobertos e utilizados para
produzir suportes mais resistentes, capazes de atender a uma demanda de registro
crescente. As paredes, pedras e espaços naturais mais duros e de pouca ou nenhuma
mobilidade, foram rapidamente substituídos por peças mais maleáveis e leves, em sua
grande maioria, produzidas artesanalmente, tais como o papiro e, mais tarde, o
pergaminho.
Apesar de toda a evolução técnica e material dos mais variados tipos de suporte, a
superfície continuou a funcionar apenas como receptora invisível de imagens durante um

355
ARBEX, op. cit, p. 25.
356
Loc. cit.
205

longo período de tempo. Tanto em sua utilização para registro verbal gráfico, quanto em
seu uso artístico, a superfície ainda não era notada. No primeiro caso, por mais que ela
aparecesse, não manifestava nenhum valor semântico. E, no segundo caso, a superfície
propriamente dita foi quase que totalmente coberta pelo pigmento, ainda que para registrar
uma outra superfície: a do espaço tematizado. É isso o que nos mostram as seguintes
imagens:

Figura 67: Portrait of a young woman. Sandro Botticelli, 1475.


206

O quadro mostra claramente que toda a superfície da tela foi pintada para representar
uma outra superfície, a da parede que está atrás da personagem protagonizada. Na próxima
pintura, produzida pelo mesmo artista, é possível perceber a interferência negativa que a
falha na superfície do suporte pode ocasionar, já que não faz propriamente parte da
representação:

Figura 68: Venus and the Graces offering gifts to a young girl. Sandro Botticelli, 1486.

A imagem como um todo, com a diferença de tonalidades existente entre a


superfície naturalmente pastel do suporte e da pigmentação utilizada para representar a
parede do fundo do espaço tematizado, mostra-nos a preocupação do artista em cobrir
possíveis frestas que pudessem dar a ver o suporte real.
207

Por um longo período de tempo, um século ou mais, a superfície propriamente dita


ainda permaneceu coberta ou funcionou enquanto fundo desprovido de sentido, como
acontecia em desenhos e rascunhos como este:

Figura 69: Woman's Head. Leonardo Da Vinci, 1473.

Ainda que a pele da personagem – que também é uma superfície – não tenha sido
coberta pela tinta, confundindo-se, por isso, completamente com a superfície real do papel,
a intenção do artista não é protagonizar o suporte. A única coisa que se destaca são os
traços que dão forma ao desenho e, logo, o desenho em si.
208

Podemos afirmar que o mesmo processo acontece com a literatura e seu suporte até
bem pouco antes dos primeiros experimentos visuais com a poesia. Por muito séculos, o
branco da folha de papel não era compreendido ou trabalhado como elemento de
significação que pudesse fazer parte ou mesmo complementar semanticamente o texto que
trazia em si registrado.
As primeiras experiências com a superfície começam a aparecer, ainda timidamente,
na pintura. Por volta do século XVII surgem as primeiras obras híbridas, em cujas
temáticas a letra e a superfície em que está registrada ganham visibilidade com o intuito de
criar uma ilusão de ótica. Vejamos como exemplo o seguinte quadro do pintor Cornelis
Norbertus Gysbrechts (1630-3683):

Figura 70: Trompe l'oeil with Studio Wall and Vanitas Still Life. Cornelis Norbertus Gysbrechts, 1668.
209

Em sua obra, Norbertus produz um Trompe l’oeil, efeito alcançado através de um


minucioso trabalho com a perspectiva, capaz de criar a sensação visual de
tridimensionalidade naquele que observa um espaço bidimensional. Percebemos que a
ilusão de ótica se dá porque o artista propõe um jogo com pelo menos sete tipos de
superfícies diferentes: a superfície de madeira que se apresenta como fundo do espaço
tematizado na tela; a superfície que se enrola ao desprender-se do chassi; a das folhas de
papel; as dos pequenos retratos ovais; a superfície vermelha que serve de fundo nesses
retratos; a da paleta de pintura, que produz sombra na parede de madeira; e a superfície dos
objetos em si. A disposição de tais objetos e a relação entre as sombras por eles produzidas
faz com que nos esqueçamos de que tudo não passa de uma representação realizada
justamente em uma outra superfície. Essa oitava superfície, a real, apesar de não aparecer
enquanto tal, talvez seja a mais importante, justamente por ser o suporte, o espaço que faz
com que a representação aconteça. É para a superfície que o jogo ilusionista se volta e é ele
que, no entanto, o mesmo jogo recobre em um processo sutil de (des)velamento.
Em outra tela, Norbertus realiza algo também muito interessante ao protagonizar
apenas dois tipos mais específicos de superfície:
210

Figura 71: Quodlibet. Cornelis Norbertus Gysbrechts, 1675.

Ao olharmos a imagem, entendemos prontamente que as cartas abertas e levemente


amassadas estão penduradas por um fio pregado à parede de madeira. A ilusão de ótica se
realiza mais uma vez justamente porque nos faz perceber o volume que as dobras de papel
produzem. A espacialização ludibria nosso olhar novamente, afinal, não nos sentimos
incomodados com o fato de as cartas não se movimentarem, pelo contrário, nosso olhar
consegue aceitar e participar passivamente da cena. Paradoxalmente, a ilusão de ótica
criada por Norbertus em Quodlibet é fantasiosa justamente por nos proporcionar um
encontro visual com algo bastante familiar: papéis dobrados e pendurados por um fio preso
à uma superfície vertical e plana.
211

As pinturas mencionadas são importantes para nos fazerem entender que aos poucos
a superfície começa efetivamente a ser pensada como componente fundamental no trabalho
de composição, ainda que o resultado final desse trabalho continue sendo a fidelidade da
representação e ainda que a superfície permaneça completamente encoberta em sua
funcionalidade de suporte.
Ambas as telas do pintor Norbertus foram escolhidas porque, além do trabalho com a
superfície, lembram os experimentos que, algumas décadas mais tarde – séculos XIX e XX
–, alguns pintores começaram a apresentar em seus trabalhos. É o caso, por exemplo, da
seguinte tela de Pablo Picasso (1881-1973):

Figura 72: Bottle of Vieux Marc, Glass and Newspaper. Pablo Picasso, 1913.
212

O quadro é fruto de experiências mais avançadas da estética cubista, que rompe com
a proposta de representação ao pensar as formas da natureza a partir de sua geometria. As
partes de um objeto são agora simultaneamente apresentadas na tela em sua
tridimensionalidade, mas dentro do real espaçamento bidimensional da mesma. Dessa
maneira, a representação ainda pode ser visualizada nos temas escolhidos, mas passa a não
ter mais compromisso com a aparência real das coisas.

Historicamente, é Paul Cézanne quem inaugura essa nova maneira de enxergar os


objetos e a natureza em si. Segundo Maurice Merleau-Ponty,

[...] o génio de Cézanne é fazer com que as deformações perspectivas,


pelo arranjo de conjunto do quadro, deixem de ser visíveis por elas
mesmas quando ele é olhado globalmente, e contribuam apenas, como o
fazem na visão natural, para dar a impressão de uma ordem nascente, de
um objeto em via de aparecer, em via de aglomerar-se sobre os nossos
olhos. 357

O pintor já não precisa preencher completamente a superfície de seu suporte com


tinta, pois a aparente imprecisão sugere exatamente o caráter transitório e passageiro da
imagem, o instante em que o objeto se revela aos olhos. E o observador, mesmo que não
tenha consciência disso, naturalmente consegue preencher os espaços em branco, que dão a
ver a superfície. É o que acontece, por exemplo na seguinte tela:

357
MERLEAU-PONTY, op. cit., 2013, p. 133.
213

Figura 73: The Old Gardener. Paul Cézanne, 1906.

Sabemos que ao pintar Cézanne não estava sendo mimeticamente fiel àquilo que
escolhia como objeto. Conforme explica Merleau-Ponty, seu esforço estava direcionado
para um paradoxo: “buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia
senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor
pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro”.358
Apesar dos diversos espaços não preenchidos pela tinta, a figura do jardineiro,
tematizado na tela acima, pode ser visualizada sem prejuízo de sentido. Afinal, Cézanne
“não negligenciou a fisionomia dos objetos e dos rostos, ele apenas tentou captá-la no

358
Ibid., p. 130.
214

momento em que ela emerge da cor”.359 Para ele, “pintar um rosto ‘como um objeto’ não é
despojá-lo de seu ‘pensamento’”.360
Entendemos que o exercício de preenchimento pictórico que o espectador
naturalmente realiza ao observar uma tela como essa, também acontece no texto literário
quando o leitor participa do texto ao tentar interpretá-lo. Afinal, não deixamos de ler uma
tela de pintura apenas porque ela não apresenta uma sintaxe verbal, assim como não
deixamos de visualizar o texto verbal no momento em que o lemos.
É interessante destacar que no mesmo período histórico em que Cézanne expõe suas
experimentações pictóricas surgem as primeiras manifestações do Concretismo. Em 1897,
como já mencionado, Sthéphane Mallarmé lança seu Un coup de dés jamais n'abolira le
hasard e polemiza ainda mais as questões sobre a relação interartes. Isso porque, como já
mencionado, em seu Un coup de dés o poeta francês propõe a desconstrução das
tradicionais formas de escrita poética e o faz ao espacializar sua escrita, explorando o meio
visual da página em branco, como nos mostra a seguinte imagem:

Figura 74: Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Sthéphane Mallarmé, 1987. (página)

359
Ibid., p. 134.
360
Loc. cit.
215

Mallarmé distribui (des)organizadamente os diferentes tamanhos de letras na


superfície branca da página de papel e, com isso, confere maior visibilidade ao texto. O
trabalho com a superfície, com o espaço, dá movimento ao texto, que até então era visto e
pensado a partir de uma certa rigidez estrutural. O diálogo entre diferentes sistemas de
sinais – verbal, visual, sonoro – transforma completamente o fazer poético e, por
consequência, o fazer artístico de maneira geral. E é nesse momento que o branco da
superfície de fato passa a fazer parte da dinâmica de construção artística, bem como de seu
resultado semântico.

Devemos mencionar ainda a proposta do poeta francês Guillaume Apollinaire (1880-


1918) com seus Caligramas. “Escritos durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e
publicados em 1918”, 361 o Caligrama é uma

[...] escrita-imagem (uma mistura de caligrafia e ideograma), [que]


lembra os primeiros passos voltados para a alfabetização, quando a
criança desenha e, gradativamente, introduz nos seus desenhos letras, e
depois palavras. Entretanto, longe de voltar para uma certa ingenuidade
que remeteria ao desejo de uma inocência perdida, o caligrama possui o
inigualável poder de erupção.
Erupção dentro da unidade da palavra, cujo desmantelamento ocorre em
prol da materialidade tipográfica; erupção na linearidade narrativa do
discurso, criando ilhas textuais circundadas pelos brancos que preenchem
o papel de sintaxe; erupção, enfim, da visibilidade na legibilidade e do
figurativo na ordem do signo linguístico. 362

A materialidade tipográfica das letras transforma-se na massa de modelagem, dando


forma ao tema que está sendo apresentado na superfície bidimensional. O suporte
manifesta-se com total visibilidade, como podemos observar no seguinte caligrama:

361
DAHLET, Véronique. “Prefácio”. In: APPOLINAIRE, Guillaume. Caligramas. Tradução de Álvaro
Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
362
Loc. cit.
216

Figura 75: Caligrama. Gillaume Apollinaire, 1915.

Apesar de o autor não afirmar tal hipótese, os espaços em branco que preenchem o
contorno do chapéu, do rosto e do corpo da personagem não significam um vazio
absolutamente desprovido de sentido, pelo contrário. O branco funciona como superfície
material, tecido e pele. E, portanto, já começa a se fazer notar, ainda que secundariamente
com relação às linhas de letra cursiva que desenham o contorno de toda a figura.
O Caligrama é, pois, conforme indica seu próprio texto, uma “imperfeita imagem [...]
visto como se através de uma nuvem”.363 Nuvem branca que preenche e dá volume à
imagem criada.

363
Ibid., p. 144.
217

Vale ressaltar mais uma vez que, assim como na pintura, ao encontramos os espaços
em branco do texto literário, também tentamos preenchê-los com algum sentido. O próprio
texto e sua estruturação espacial conduzem o leitor a encontrar os possíveis significados de
tais aberturas e, dessa maneira, reeducam o olhar passivo do observador para que ele possa
participar do processo de produção.
É exatamente isso o que acontece ao lermos o poema-livro Não entres tão depressa
nessa noite escura, de Lobo Antunes. A estrutura textual parece se movimentar graças ao
trabalho com a espacialização. A superfície branca do suporte é intensamente utilizada para
que possa sugerir um movimento antilinear e caótico, característico do pensamento e da
memória das personagens. Vejamos o seguinte excerto, em que a protagonista Maria Clara
rememora um episódio de sua infância, ocorrido durante uma aula de geografia:

[...] sem coragem de um suspiro sequer escutando com a vida entre


parêntesis o acidente do explicador de geografia, os braços pesados de
afluentes e caminhos-de-ferro, o calcanhar perdido nos degraus de rochas
ígneas, sedimentares e metamórficas da Europa Central, a sola a escapar-
se numa cambulhada trágica de basalto
(ígnea)
xisto argiloso
(sedimentar)
e ardósia
(metamórfica)
[...]364

Quando analisamos apenas a estrutura textual, percebemos que o trabalho realizado


com a superfície espacial é bastante evidente. No trecho mencionado, Lobo Antunes faz
questão de alterar a posição das palavras “ígnea”, “sedimentar” e “metamórfica”
escrevendo-as primeiramente em uma sequência horizontal para em seguida repeti-las
verticalmente. Além disso, coloca as mesmas palavras entre parênteses, um sinal gráfico
que reconhecemos apenas visualmente e que não produz sonoridade ao ser lido. Podemos
entender que a mudança estrutural talvez queira justamente sugerir a “metamorfose”, a
transformação formal das palavras, que ao serem colocadas em uma posição vertical e
serem compactadas entre os parênteses, passam a representar visualmente a matéria que
significam conceitualmente: as pedras.

364
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 297.
218

Caso analisássemos o texto apenas semanticamente, sem considerarmos a estrutura


gráfica do mesmo, perderíamos muito de seu sentido, já que os dois níveis estão
completamente ligados, como bem nos mostra a primeira parte da mesma passagem. As
imagens descritas em uma sequência textual linear, sugerem por si mesmas, em sua forma
real, tal linearidade: “[...] os braços pesados de afluentes e caminhos de ferro”.365 Também
a descrição “degraus de rochas”,366 apesar de ter sido apresentada de forma linear, logo
ganha verticalidade e se transforma nos degraus propriamente ditos no corpo do texto.
O trabalho com a espacialização é ainda mais inusitado em algumas outras
passagens. Há momentos em que o escritor produz verdadeiros rasgos no tecido verbal e
literalmente deixa que o suporte de papel seja visto. Observemos os trechos grifados na
seguinte passagem:

[...] me ajudasse a desamarrotar os olhos que ignorava que tinha, vinte


anos se durmo e no espelho quarenta e nove ou cinquenta
quarenta e um em março, não, quarenta, não, quarenta e dois a dezasseis
de março, palavra de honra que tenho meses em que__________
o candeeiro à minha esquerda, uma quase paz, uma quase
ale___________
exatamente, uma quase____________
ou pelo menos o isqueiro que tornei a colocar ao lado das revistas
(amor entre as mulheres normalidade ou doença: o ponto de vista
dos_____________)
[...]367

Os espaços não preenchidos pelo autor, assim como acontece na tela de Cézanne e no
Caligrama de Apollinaire, instigam o leitor a participar do texto, completando-o. Contudo,
nem todos os espaços podem ser perfeitamente preenchidos. É o caso, por exemplo da
primeira lacuna grifada. O pronome relativo que a introduz em nada nos auxilia a
completá-la, pois indica justamente a ausência ou a pausa brusca da fala psíquica que
talvez não possa ser determinada nem mesmo pela própria pessoa que a produziu. A
segunda lacuna, por sua vez, por ser a repetição de uma outra, que sugere parte da palavra
“alegria”, automaticamente nos faz completar os dois espaços. A quarta lacuna talvez seja
a mais interessante porque abre um espaço de possibilidade. O leitor deve apenas respeitar
a presença do artigo masculino que demarca o gênero dos substantivos. A frase “o ponto de

365
Loc. cit.
366
Loc. cit.
367
Ibid., p. 231.
219

vista dos ”368 pode ser completada com as palavras “médicos”, “especialistas”,
“homens”, “cientistas”, “estudiosos”, “psicólogos”, etc. Enquanto a primeira lacuna não
pode de modo algum ser preenchida com alguma precisão, a última pode ser completada
com diversas possibilidades.
Dessa maneira, entendemos que o branco da página ganha diversos significados e
participa ativamente da narrativa. Embora nem sempre nos deixe traduzi-la em palavras,
em momento algum ela está desprovida de significado, pelo contrário, os espaços brancos
são ilhas de grande potencial semântico e, por isso, muitas vezes produzem mais sentido do
que todo um parágrafo repleto de palavras, afinal, como uma espécie de transparência
apresentam “um valor ambíguo” por serem ao mesmo tempo, conforme explica Roland
Barthes, “aquilo sobre o que nada há para dizer e aquilo sobre o que mais há para dizer”.369
Olhar para o texto de Não entres tão depressa nessa noite escura deixa-nos
incomodados inicialmente, porém, igualmente instigados, pois ele não recebe
confortavelmente o tradicional olhar passivo. Desde A ordem natural das coisas, o próprio
texto, aos mesmo tempo em que ganha um novo formato, também nos ensina a ler sua
nova configuração. Conforme explica Lobo Antunes, um “bom escritor tem que ensinar
um público a ler”.370 Quando iniciamos a leitura de sua escrita nosso olhar vai sendo
(re)formado e ativado para que possa compreender e acompanhar a nova arquitetura que se
constrói a cada livro, até chegar ao ponto em que naturalmente começa a participar do
processo de elaboração, na tentativa de juntar peças, organizar ideias e completar os
espaços em branco que se abrem entre as frases e palavras. Ao alcançarmos, após seguir a
sequência cronológica de produção, a leitura do Não entres tão depressa nessa noite
escura já somos capazes de perceber que as obras antunianas de forma geral, mas
especialmente em sua segunda fase, não trazem uma “mensagem acabada e bem definida,
numa forma univocamente organizada”.371 Assim como “as novas obras musicais”,
consistem

[...] numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do


intérprete, apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que

368
Loc. cit.
369
BARTHES, Roland. “Nota Prévia”. In: Sobre Racine. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. IX.
370
ANTUNES, António Lobo. “A salvação pela escrita”. Depoimento. [25 de setembro, 1996, p. 16-17].
Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In: ARNAUT, op. cit., p.
245.
371
ECO, Umberto. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo [et al.]. São Paulo: Perspectiva, 2015.p. 67.
220

pedem para ser revividas e compreendidas numa direção estrutural dada,


mas como obras “abertas”, que serão finalizadas pelo intérprete no
momento em que as fruir esteticamente. 372

Ao interpretarmos a escrita antuniana e em especial o poema Não entres tão depressa


nessa noite escura, percebemos que, para além da simetria existente entre capítulos e até
subcapítulos, há uma eurritmia da escrita, “entendida como adequação das proporções
objetivas às exigências subjetivas da visão”.373 Ela nos dá a oportunidade de praticarmos o
olhar perspectivo que testemunha “o amadurecimento de uma consciência da função
interpretante em face da obra”.374
Ao tentarmos relacionar a estrutura do livro e, em especial, a sua configuração
espacial, com o universo pictórico, pensamos inicialmente em pelo menos dois
movimentos: o Barroco e o Cubismo. Acreditamos que sua escrita guarde semelhanças
com a estética barroca, por exemplo, porque essa, conforme explica Umberto Eco, é:

[...] dinâmica, tende a uma indeterminação de efeito (em seu jogo de


cheios e vazios, de luz e sombra, com suas curvas, suas quebras, os
ângulos nas inclinações mais diversas) e sugere uma progressiva
dilatação do espaço; a procura do movimento e da ilusão faz com que as
massas plásticas barrocas nunca permitam uma visão privilegiada,
frontal, definida, mas induzam o observador a deslocar-se continuamente
para ver a obra sob aspectos sempre novos, como se ela estivesse em
contínua mutação. 375

A seguinte tela do artista barroco Johannes Vermeer ajuda-nos a ilustrar a afirmação


de Umberto Eco:

372
Loc. Cit.
373
Ibid., p. 70.
374
Loc. cit.
375
Ibid., p. 73.
221

Figura 76: The Art of Painting. Johanner Vermeer, 1666-1668.

É bastante nítido o trabalho de perspectiva que ilusoriamente dilata o espaço. A


cortina dobrada aponta para um primeiro plano, mais próximo do observador; o pintor, que
está de costas, posiciona-se em um plano intermediário, entre a cortina e o fundo do
quarto; e a posição da mulher, por sua vez, mostra um plano mais distante, próximo da
parede que limita ambiguamente tanto a sala representada na pintura, quanto a tela
propriamente dita. Diferente de outras pinturas barrocas, The art of paiting não apresenta
nitidamente um centro, para o qual o olhar naturalmente convergiria. Apesar de reconhecer
os elementos dispostos na tela, o observador consegue passear aleatoriamente pelos quatro
cantos do quadro.
Todas as características apontadas acima podem ser encontradas no texto de Lobo
Antunes. Todavia, outros aspectos também devem ser destacados, os quais nos fazem
222

pensar em um segundo movimento artístico: o Cubismo. Como já dissemos no início deste


subcapítulo, ao olharmos uma tela cubista, compreendemos que os objetos estão
desconstruídos, decompostos em partes, para que todas elas possam figurar em um mesmo
plano frontal com relação ao espectador. Vejamos a seguinte tela do cubista Georges
Braque:

Figura 77: Aria de Bach. Georges Braque, 1913.

O pintor dispõe os objetos em suas três dimensões, considerando, porém, a


bidimensionalidade do suporte. O trabalho de composição agora incomoda pela aparente
falta de sentido. O olhar, até então, bastante acostumando com a representação, sente-se
223

um pouco mais confuso, pois, embora consiga notar resquícios miméticos, já não consegue
identificar elementos, como estava acostumado a fazer ao observar uma tela barroca, assim
como não consegue entender perfeitamente a nova estrutura. De acordo com Jonh Goldin,

[...] de um modo mais imediato, Braque criou um novo conceito de


espaço que iria complementar o novo tratamento da forma de Picasso. E
as sensações espaciais que tentou evocar já estavam latentes percebeu ele,
nas últimas telas de Cézanne, tal como Picasso tinha pressentido que as
misteriosas distorções de forma em Cézanne sugeriam uma nova
linguagem de volumes.
A primeira coisa que fascinou os cubistas a respeito de Cézanne foi o fato
de que os objetos em seus quadros transmitiam uma surpreendente
sensação de solidez, embora violassem os sistemas tradicionais de
recursos ilusionistas. 376

A superfície de tais elementos – tanto a dos quadros de Cézanne quanto a dos


trabalhos cubistas criados posteriormente – trazia em sua massa pictórica a falha proposital
capaz de anular o efeito de ilusão. E, desta forma, a superfície, também enquanto suporte, é
novamente utilizada e problematizada nesse novo contexto artístico. O suporte em si
aparece com maior clareza, mesmo que sua dimensão espacial ainda não tenha diretamente
a mesma responsabilidade semântica que mais tarde outros movimentos artísticos, tais
como o Suprematismo e o Espacialismo apresentarão. Mas o branco aparente, bem como a
escrita nela registrada, já começam a desenhar uma nova e importante configuração
existencial para o écran.
Algumas décadas mais tarde, com a chegada do Concretismo, as técnicas e objetivos
artísticos são completamente revistos e dão vazão a uma crescente e incontornável quebra
de barreiras, no que diz respeito a qualquer tipo de normatização. É nesse momento
também que a superfície ganha completa visibilidade. O suporte é finalmente descoberto e
passa a figurar como elemento fundamental no trabalho de composição, conforme nos
mostra a seguinte tela, em que o tema (um homem) é estruturado espacialmente e
composto por pedaços de superfícies planas:

376
GOLDING, John. “Cubismo”. In: STANGOS, Nikos. Conceitos de arte moderna: com 123 ilustrações.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 48-49.
224

Figura 78: Abstraktes Stillleben mit Figur und Früchteschale. Leo Leuppi, 1931.

A tela cubista nos remete ao texto de Lobo Antunes pela similaridade semântica e
estrutural. Há inúmeras passagens que nos fazem construir mentalmente uma imagem
completamente fragmentada das personagens e especialmente da protagonista Maria Clara.
Vejamos alguns excertos:
225

1) [...] a cozinheira aumentada pela máquina a levantar o outro braço que um erro de
perspectiva tornava grosso e enorme [...]377
2) [...] oferecer-lhes uma bochecha que não é bochecha dado que a minha cara se
encontra noutro lado [...]378
3) [...] regressar ao meu ovo de penumbra onde deixara imagens esfiadas que talvez
pudesse articular compondo o meu casamento com o ruivo da turma e todavia em
lugar do ruivo um buraco desagradável e morno [...]379
4) [...] a Maria Clara a tossir na almofada dando-me ideia que as feições se
espalhavam no quarto, a juntar-se de novo, nariz, queixo, testa [...]380

Podemos dizer que tanto estruturalmente, quanto semanticamente, a narrativa do


poema apresenta personagens, espaços, tempos e uma linguagem disforme. Tudo se
movimenta no espaço das páginas, produzindo imprecisões, esgarçamentos e aparentes
incoerências, fato que nos faz enxergar alguns aspectos cubistas da composição.
Outras passagens, no entanto, já nos remetem a diferentes movimentos artísticos, em
que o trabalho com a superfície é bastante evidente. Antes de visualizarmos alguns
trabalhos desses movimentos, observemos a seguinte passagem:

[...]
mas tenho outros completamente parada, sem saber o que fazer, nem
dizer, nem sequer onde estou, as pessoas falam para mim e eu fico
calada, sem dar qualquer selu
— Ia jurar que o teu pai
ção. Também tenho mementos de me fexar só e não falar a ninguém
[...]381

O excerto nos incomoda bastante não apenas por estar escrito em itálico, mas por nos
mostrar – pelos erros de escrita ("selução”, “fexar”, “mementos”) que se tornam ainda mais
aparentes visualmente – que estamos lendo uma carta e que, portanto, estamos diante de
um desdobramento da superfície. Entendemos que parte do papel da carta foi sobreposta à
página do diário de Maria Clara, a qual, por sua vez, confunde-se completamente com a

377
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 275.
378
Ibid., p. 279.
379
Ibid., p. 319.
380
Ibid., p. 350.
381
Ibid., p. 122.
226

página do livro Não entres tão depressa nessa noite escura. Ao nos darmos conta dessa
experiência, percebemos que uma simples passagem é capaz de causar uma complexa
ilusão de ótica. Além disso, a palavra “selução” é bruscamente atravessada por uma fala
que não parece fazer parte da carta, já que não está grafada em itálico. Ao ser atravessada,
a palavra se parte ao meio, indicando-nos novamente que estamos diante de uma imagem,
ainda que tal imagem seja uma representação da memória e de seu caráter fragmentário.
Trata-se de uma colagem que se desvela em sua falha, promovendo uma espécie de rasgo
que dá a ver outra superfície. Como acontece, por exemplo, na obra do artista plástico
italiano Lucio Fontana (1899-1968):

Figura 79: Spatial Concept: Expectations. Lucio Fontana, 1967.

Apenas alguns rasgos na superfície da tela e uma enorme complexidade de sentido é


produzida, graças à força do processo de espacialização. A passagem formada pelos vincos
produz uma espécie de tensão no suporte que, enquanto meio, conforme explica Julio
Plaza, quer se comunicar mas acaba “se auto-referenciando” e toca no que “há de mais
227

transgressor e mais sensível na linguagem dos suportes, ou seja, na sua própria


materialidade como elemento detonador de seu sentido, como pura semelhança”.382 Os
vincos ajudam-nos a perceber, pois, que há profundidade mesmo na mais fina superfície.
Vejamos este outro trabalho do espacialista Turi Simeti:

Figura 80: Superficie bianca con ovale in positivo. Turi Simeti, 1967.

A obra nos mostra que a superfície não é apenas superficial, no sentido pejorativo
da palavra. Toda e qualquer superfície também é dotada de um fundo que com ela se
confunde. O trabalho de construção a partir do fundo da superfície plástica da obra de
Simeti, ajuda-nos a entender a relação de superficialidade e profundidade do texto
antuniano. Selecionamos a seguinte passagem do livro-poema para fazermos uma análise
final: “a Clara é o da casa”.383
O excerto torna ainda mais evidente a nossa hipótese de construção visual, pois
novamente aponta para a intromissão da superfície no texto verbal, ou, como sugere a tela,

382
PLAZA, op. cit., p. 66-67.
383
Ibid., p. 200.
228

da suspensão do fundo da superfície. Por se repetir inúmeras vezes ao longo do livro, a


frase, apesar de reaparecer incompleta, poderia ser facilmente completada pelo leitor: “a
Maria Clara é o homem da casa”.384 Acreditamos, entretanto, que a retirada da palavra
“homem” produz uma abertura, uma diferença importante na repetição. Diante do aspecto
disforme com que a personagem é constantemente descrita, a abertura do espaço em
branco, ou a colocação em alto relevo do mesmo, talvez queira dizer que a personagem é a
pura possibilidade, que ela não é e não pode ser definida e, nesse sentido, o branco da
superfície contribui com sua enorme e ilimitada potência criativa, oferecendo um fundo
semântico altamente significativo. Podemos dizer que Maria Clara também é feita desse
espaço em branco que agora aparece incompleto e que a potência de criatividade ilimitada
do suporte faz parte de sua natureza metamórfica. A mesma passagem nos remete a um
trabalho de um outro movimento artístico, o Suprematismo:

Figura 81: Two Figures. Kazimir Malevich, 1932.

384
Ibid., p. 64.
229

Vejamos que a pintura do suprematista Kazimir Malevich (1879-1935) parece


desenhar aquilo que a passagem “a Maria Clara é o da casa”385 sugere: uma
personagem parcialmente feita de superfície e que, portanto, é feita de pura possibilidade.

Entendemos que as lacunas introduzidas propositalmente na estrutura do texto não


apontam simplesmente para um vazio. Conforme explica Umberto Eco, o “espaço em
branco em torno da palavra, o jogo tipográfico, a composição espacial do texto poético,
contribuem para envolver o termo num halo de indefinição, para impregná-lo de mil
sugestões diversas”.386 A falta de uma palavra não significa falta de sentido, pelo contrário.
No texto de Lobo Antunes o silêncio dá a ver o invisível e aponta para a impossibilidade
de fechamento e definição. Concluímos que, assim como no trabalho de composição
pictórico, a superfície da página de papel interfere e atua como parte integrante e
fundamental das imagens criadas pela e na escrita de Lobo Antunes.

385
ECO, op. Cit., p. 75.
386
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 73.
230

(IN) CONCLUSÃO

E nós a chamarmos romances a estes quadros. 387

António Lobo Antunes

“Existem aquelas obras que, já completadas fisicamente, permanecem, contudo,


‘abertas’ a uma germinação contínua de relações internas”.388 Percorrer a obra de António
Lobo Antunes significa percorrer uma obra aberta. Significa passar por inúmeras páginas
finais sem, contudo, encontrar o fim. A abertura e a continuidade, tão presentes na
estrutura semântica de suas narrativas, dizem muito também a respeito de seu projeto
literário, que se expande há pelo menos trinte e sete anos.

Percebemos ao longo de nosso trajeto de pesquisa que concluir e definir, aliás, são
ações difíceis de serem realizadas em todo o universo artístico. Acreditamos que explorar a
abertura significa respeitar e considerar a experiência singular da Arte. E é exatamente isto,
explorar a abertura, que Lobo Antunes realiza em seu trabalho, apesar de manifestar-se
mais intensamente através da literatura. A escolha por esse campo artístico não significa
redução em nenhum aspecto, pelo contrário. A literatura, nas mãos desse escritor
português, torna-se apenas a porta de entrada para outros espaços artísticos, os quais
dialogam das mais diferentes formas nas páginas de seus livros.

Através da análise realizada nesta pesquisa, pudemos perceber que, apesar da


existência de uma perspectiva purista com relação às artes, o diálogo sempre se fez
presente e sempre se mostrou profícuo. Não obstante as tentativas de separar, limitar e
padronizar os diferentes tipos de arte, o caráter híbrido e múltiplo sempre se mostrou forte
e atuante em todos os sentidos e em todos as possibilidades de produção artística.

Ao iniciarmos as primeiras leituras sobre essa problemática relação, com o propósito


de contextualizar e analisar a obra de Lobo Antunes, sentimos uma espécie de frustração
por percebermos que seria arriscado e difícil realizar um contraponto que afirmasse a força
e a importância do diálogo entre a literatura e a pintura. Nosso primeiro capítulo é o

387
ANTUNES, António Lobo. “Um quarto de século depois de Os cus de Judas. ‘Acho que já podia
morrer’”. Depoimento. [9 de novembro, 2004, pp. 2-6]. Lisboa: Público/ Destaque. Entrevista concedida a
Adelino Gomes. In: ARNAUT, op. cit., p. 437 (nota de rodapé 11).
388
ECO, op. cit., p. 94.
231

resultado de uma leitura desconfiada e incomodada com as primeiras tentativas de


delimitação e normatização das artes. Porém, conseguimos, ao longo de nossa primeira
fase de pesquisa, encontrar algumas importantes aberturas, por meio das quais realizamos a
necessária contraposição, assim que percebemos que as tentativas de delimitação de
fronteiras não conseguiram reunir forças suficientes para validar limites diante da realidade
interativa que continua se manifestando, em maior ou menor grau, nas artes de maneira
geral.

A escrita de Lobo Antunes – que nos incitou a realizar esta pesquisa – mostrou-se
como singular objeto de estudo por apresentar uma linguagem plástica bastante singular.
As várias e inusitadas referências evocadas a cada página de seus primeiros livros levou-
nos a reconhecer que, apesar da óbvia escolha pelo campo literário, o escritor não optou
por isolar esse campo para evitar possíveis contatos com outras artes, pelo contrário.
Enquanto assíduo frequentador de arte, o autor português consegue, em sua incessante
produção, reunir e relacionar as mais diversas referências artísticas. Desde as primeiras
linhas, evoca a presença de outras artes e outros artistas, por meio do processo ecfrástico, e
os faz dialogar em um espaço que passa a se configurar como imageticamente verbal ou
verbalmente imagético.

Percebemos também que, a cada obra publicada, o estilo de escrita antuniano sofreu
significativas transformações, as quais se deram tanto pelo uso cada vez mais intenso de
marcações gráficas no texto, quanto pelo lento abandono do procedimento ecfrástico. O
trabalho com a espacialização textual, ainda que nunca tenha sido apontado pelo autor
como um objetivo, foi o elemento que direcionou nossa pesquisa por ter-nos feito
compreender que, para além da elaboração narrativa, suas obras apresentam
estruturalmente elementos que também estão presentes em uma composição pictórica.

Com base nessas hipóteses, propomo-nos a investigar de que forma a literatura e a


pintura interagiam no passado mais remoto e, para isso, empreendemos uma busca pelos
primeiros estudos realizados a respeito da relação interartes. Após entrarmos em contato
mais especificamente com as observações apresentadas por G. E. Lessing a respeito do
conjunto escultórico Laocoonte – já que esse é um dos primeiros e mais renomados estudos
empreendidos a respeito dessa temática –, constatamos que as primeiras tentativas de traçar
algumas linhas divisórias entre as artes foi importante para abrir a discussão a respeito da
232

interação, mas não foi suficiente para realizar o projeto que objetivava definir as
especificidades de cada uma das artes. Percebemos, inclusive, que, ao contrário do que
propunham, as tentativas, indiretamente, ajudaram-nos a constatar o caráter híbrido do
fazer artístico. Verificamos ainda que os processos de desenvolvimento da relação
interartes – iniciados mais fortemente com Mallarmé e seu “Un coup de dés”; e com
Apollinaire e seus Caligrames – tornaram-se a cada dia mais fortalecidos e, por
consequência, nos levaram a pensar em um futuro ainda mais colaborativo para as artes.

Apresentamos exemplos bastante atuais de produções artísticas que comprovam essa


perspectiva por se mostrarem capazes de reunir variados meios de expressão e diferentes
linguagens. Dentre tantos exemplos, a obra de Lobo Antunes, e em especial o poema-livro
Não entres tão depressa nessa noite escura, foi escolhida como a porta de entrada para o
universo artístico contemporâneo e nos encorajou a realizar, num ato de instigante
experimentação e (e)laboração, uma arriscada analogia entre a literatura e a pintura. O
próprio texto, que toma uma configuração altamente plástica nesse livro-poema e,
sobretudo o corpus que nomeamos em nossa pesquisa como Textos de 2ª Versão ou de
segunda fase de escrita do autor, ajudou-nos a perceber que, para além da possibilidade de
realizar uma aproximação temática entre a narrativa literária e uma determinada narrativa
pictórica, seria possível estabelecer um paralelo estrutural entre literatura e pintura, a partir
do reconhecimento de elementos que, ao longo de nossa pesquisa, pudemos identificar em
ambas as artes.

O fato de o autor não homenagear um pintor, uma obra pictórica ou mesmo uma
escola estética em seus livros, por um lado, significou uma dificuldade, já que tivemos que
nos habituar com a ausência de referenciais que pudessem nos dar maior segurança quanto
ao caminho a ser seguido. Mas, por outro lado, essa mesma ausência nos deu maior
liberdade para trabalharmos com todas as possibilidades pictóricas e, dessa forma, ampliar
o campo de pesquisa para realizarmos de maneira mais confortável o procedimento
analógico e homológico a que nos propomos.

Constatamos que quatro elementos – moldura, linhas, cor e superfície –, os quais


podem ser encontrados de forma explícita em uma tela de pintura, também podem ser
identificados em um livro. Constatamos ainda que tais elementos guardam não apenas uma
semelhança estrutural, mas também uma semelhança funcional, fato que nos ajudou a
233

reconhecer ainda mais fortemente a proximidade entre as duas artes, as quais, em um


passado distante, já foram consideradas irmãs.

O procedimento analógico e homológico ampliou a perspectiva com a qual havíamos


iniciado nossa pesquisa. Ao final do empreendimento a que nos dedicamos, pudemos
entender que, não apenas a obra antuniana, e não apenas a literatura de modo geral, mas
também a artes ditas plásticas ganharam amplitude de significação. As tentativas de
hierarquização, que primeiro moveram as questões sobre a relação interartes e que
tentavam qualificar uma arte, desqualificando outra, perderam a razão de ser. Afinal, as
atuais configurações artísticas mostram, assim como a obra de Lobo Antunes, que dialogar
com outros meios e linguagens significa agregar e não apagar os valores inerentes a
qualquer produção artística.

A escrita de Lobo Antunes nos auxiliou a olhar para o universo artístico de uma
forma diferente, ensinou-nos a ler de outra maneira, e a enxergar, naquilo que nosso olhar
antes simplesmente não via, outros significados e outras chaves de leitura, as quais, por
fim, levaram-nos a abrir outras portas e a expandir nossa capacidade interpretativa. Ao
final de nossa análise analógica e homológica, pudemos entender que um livro também
pode ser visto como uma tela por guardar para com esta semelhanças inquestionáveis. O
próprio autor ajudou-nos a entender essa condição em uma entrevista dada à revista
Público, em que fala sobre o desenho que faz das letras na folha de papel:

[P] Desenhar? Quase não se veem. São microscópicas.


[ALA] Então não se veem? Às vezes ofereço uns capítulos aos amigos.
Olhe, ao Júlio Pomar, fui lá à casa e ele tinha aquilo encaixilhado, outros
põem nas paredes. E realmente assim até é bonito.
[P] Pois, mais como um quadro.
[ALA] E nós a chamarmos romances a estes quadros.389

A afirmação do autor nos fez perceber que a dimensão da relação interartes


extrapola nossa capacidade de compreensão ao mesmo tempo em que nos auxilia a
conhecer e a praticar novas modalidade do olhar.

389
Loc. cit.
234

Entendemos, em suma, que nossa pesquisa contribui com a atualidade da leitura


intersemiótica não apenas da obra do autor estudado, mas para as artes de forma geral. A
pesquisa também nos levou a vislumbrar a dimensão do gesto escritural de Lobo Antunes,
que assume um caráter altamente inventivo. Conforme explica Leyla Perrone-Moisés, “a
invenção é também a criação de uma coisa nova, mas não de modo divino e absoluto.
Inventar é usar o engenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos artefatos
de que o homem dispõe para tornar sua vida mais rica e mais interessante”.390 Assim como
outros grandes escritores e outros grandes artistas, Lobo Antunes, enquanto inventor,
“recusa as verdades absolutas e os valores estáveis e ressalta a sua habilidade mais do que
sua inspiração.”391 Dessa maneira, apresenta uma obra capaz de nos mostrar o que, segundo
Gilles Deleuze, seria o limite ou o fora da linguagem, isto é, aquilo que:

[...] é feito de visões e audições não-linguageiras, mas que a linguagem


torna possíveis. Por isso há uma pintura e uma música próprias da escrita,
como efeito de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras.
É através das palavras, entre as palavras, que se vê e que se ouve. [...]
Essas visões, essas audições não são um assunto privado, mas formam as
figuras de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas.
É o delírio que as reinventa, como processo que arrasta as palavras de um
extremo a outro do universo. São acontecimentos na fronteira da
linguagem. 392

Pensamos que a escrita antuniana nos levou a tocar, ainda que momentaneamente, o
“fora da linguagem” a que se refere Deleuze e a reconhecer que “escrever não é certamente
impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”, porque a literatura “está antes do
lado do informe, ou do inacabamento”,393 enquanto um devir, “sempre em via de fazer-se, e
que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida”.394

Acreditamos, em suma, que através de um trabalho ímpar de (e)laboração, Lobo


Antunes nos deu a oportunidade de experimentar a pintura na linguagem ao ampliar o
horizonte de elaboração artístico e ao nos oferecer a chance de participar do processo de
produção.

390
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.
101.
391
Loc. cit.
392
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 9.
393
Ibid., p. 11.
394
Loc. cit.
235

Finalmente, gostaria de fazer minhas as palavras de Maria Clara, que num gesto de
intensa inventividade e disfórica despedida, diz: “Agora que estou no fim do meu relato
tenho pena que acabe sempre tive pena que seja o que for acabe”.395

395
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 357.
236

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