Tese - 10115 - TESE - Aline Prúcoli de Souza
Tese - 10115 - TESE - Aline Prúcoli de Souza
Tese - 10115 - TESE - Aline Prúcoli de Souza
A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
VITÓRIA – ES
2016
2
A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
VITÓRIA – ES
2016
3
A PINTURA NA LITERATURA:
LINGUAGEM PLÁSTICA EM
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA,
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Aprovada em ________________________
BANCA EXAMINADORA
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Agradeço
um cisco;
instigante acolhida.
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
RESUMO
Com base no livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura, do escritor
português António Lobo Antunes, analisamos a correlação existente entre a literatura e a
pintura, procurando entender de que forma se manifesta a plasticidade de sua linguagem ao
compararmos o livro a uma tela. A partir de quatro elementos básicos de uma composição
pictórica – moldura, linhas, cor e superfície –, realizamos uma análise homológica e
analógica do tecido textual antuniano. Interessou-nos compreender as novas possibilidades
de sentido que a fusão entre as duas artes pode oferecer e contribuir com as discussões
críticas sobre o tema, tendo em vista a narrativa de Lobo Antunes. Para isso, fez-se
necessário revisitar as primeiras linhas de pensamento sobre a relação interartes, bem como
compreender as suas atuais configurações. Nossa análise fundamenta-se nos escritos
teóricos dos pensadores que trabalham a/na fronteira entre as duas linguagens, tais como
Anne-Marie Christin, Julio Plaza, Márcia Arbex e George Didi-Huberman. Objetivamos
esclarecer que mais do que ler um texto ou ver uma imagem, é possível ver um texto e ler a
sua estrutura, assim como somos capazes de ler uma imagem ao ver sua arquitetura. O
exercício homológico e analógico proposto com base na aproximação estrutural e
funcional de dois universos artísticos chamou nossa atenção para a existência de aspectos
importantes que estão para além daquilo que uma narrativa pode apresentar em sua
temática e, dessa forma, ofereceu-nos uma nova chave de leitura não apenas para o texto
antuniano, mas para a literatura de maneira geral. A pesquisa mostrou, por fim, que a
(re)integração de duas áreas artísticas possibilita não apenas o enriquecimento semântico
dos objetos artísticos, mas também e sobretudo a intensificação da capacidade
interpretativa daquele que esteticamente os recepciona.
ABSTRACT
Based on the book-poem Não entres tão depressa nessa noite escura (Don’t enter that
dark night so fast), by the Portuguese write António Lobo Antunes, the correlation
between literature and painting is analyzed, aiming at understanding how the plasticity of
his language manifests itself when comparing the book to a painting. Departing from four
basic elements in a pictorial composition – frame, lines, colour and surface –, we have
performed a homological and analogical analysis of António’s textual weaving. It was of
great interest to us to understand the new meaning possibilities which the fusion between
both arts may offer and add some contribute to the critical discussions around the topic,
bearing in mind Lobo Antunes’ narrative. Therefore, it was necessary to revisit the first
lines of thought about interart relationship, as well as understanding its current
configurations. Our analysis is based on the theoretical writings of thinkers who work (on)
the frontier between both languages, such as Anne-Marie Christin, Julio Plaza, Márcia
Arbex and George Didi-Huberman. We aim at clarifying the fact that more than reading a
text or looking at an image, we can look at a text to learn how to read its structure, as we
can read an image when we look at its architecture. The homological and analogical
exercise proposed based on a structural and functional approximation of two artistic
universes called our attention to the existence of important aspects, which are beyond what
a narrative may present in its theme. This way, it was offered to us a new key to read not
only António’s text, but literature in general. The research has shown, at last, that
(re)integration of two artistic areas makes it possible not only to semantically enrich
artistic objects, but also and foremost to intensify the interpretive capacity of those who
receive them aesthetically.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 14
E A PINTURA ........................................................................................................................................ 31
Wassily Kandinsky
14
INTRODUÇÃO
A tarefa de escrever uma introdução ou uma conclusão para um trabalho cujo objeto
de pesquisa não se deixa manipular facilmente é bastante árdua e perigosa. A partir do
momento em que escolhemos analisar algo que não suporta limitações e que não se curva a
rotulações simplistas ou a óbvias generalizações, escolhemos, sem que o saibamos, viver
literalmente a experiência do processo criativo, da (e)laboração incessante e do
transbordamento semântico.
São várias e muito diferentes as portas pelas quais podemos adentrar a obra desse
escritor. Grande parte dos estudos elegem os aspectos históricos, políticos ou sociais. Para
listarmos apenas alguns exemplos, podemos mencionar os trabalhos de Haidê Silva – A
metaficção historiográfica do romance Os cus de Judas, de António Lobo Antunes (2007);
Flávia Cristina Biazetto – Histórias de guerra: uma leitura das crônicas de António Lobo
Antunes e Mia Couto (2009); Jorge Manuel de Almeida G. Costa – Para um estudo da
memória e identidade portuguesas com António Lobo Antunes (2013); Norberto do Vale
Cardoso – Autognose e (des)memória: Guerra Colonial e Identidade Nacional em Lobo
Antunes, Assis Pacheco e Manuel Alegre (2004), etc. Outras pesquisas optam por analisar
os elementos narrativos e semânticos do texto, fundamentando-se especificamente no
processo narrativo ou na construção temática das obras do autor português. É o caso dos
estudos realizados por Elizabeth Maria Azevedo Bilange – O áspero humor em Lobo
Antunes (2007); Diana Navas – Figurações da escrita: a metaficção nos romances de
António Lobo Antunes (2007); Verônica Rodrigues F. Gomes – A Arquitetura nas crônicas
de António Lobo Antunes: modos de viver no espaço contemporâneo (2006); Denis
Leandro Francisco – Textualidades em Negativo: a ficção de António Lobo Antunes
15
(2011); Tércia Costa Valverde – O dilaceramento do Ser em Que farei quando tudo arde?,
de António Lobo Antunes (2012), entre outros.
Nossa pesquisa, por sua vez, dedicou-se a explorar um aspecto muito pouco estudado
na escrita de António Lobo Antunes. Uma zona fronteiriça praticamente inexplorada em
que a linguagem literária dialoga com outro sistema de significação: a pintura.
1
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 7.
16
texto (1989); Laokoon Revisitado: relações homológicas entre texto e imagem (1994); e
Museu Movente: o signo da arte em Marcel Proust (2004); A dissertação de mestrado de
Raimundo Carvalho – Murilo Mendes: o olhar vertical (1993); e as teses de doutorado de
Ricardo Ramos Costa – Poéticas da visualidade em João Cabral de melo Neto e Joan
Miró (2014); a de Lino Machado, As palavras e as cores: Guernica (e mais) na Caligrafia
de Carlos de Oliveira (1999); e a de Josina Nunes Drumond – As dobras do sertão: palavra
e imagem (2008), entre tantos outros.
2
Os conceitos “intermedialidade” e “intersemioticidade” serão apresentados no primeiro subcapítulo desta
pesquisa.
3
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor é sempre a voz do que está latente nas pessoas”. Depoimento. [27
de julho, 1980, pp. 21]. Lisboa: O Diário. Entrevista concedida a José Jorge Letria. In: ARNAUT, Ana Paula
(Ed.). Entrevistas com António Lobo Antunes - 1979-2007: confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008.
p. 35.
17
[...] foi feita disso. Quando eu estava doente, meu pai sentava-se à beira da cama e lia-
nos, para aí com 10 anos, o Antero, o Gomes Leal, o Sá Carneiro. A minha primeira
paixão foi pelo Sá Carneiro, com 12, 13 anos e não só isso, mas toda uma carga de
pintores e de músicos. Os pintores que ele amava, os músicos que ele amava e que nós
éramos obrigados a ouvir, éramos obrigados a debitar, éramos obrigados a conhecer.
Isto, ao princípio, era extremamente chato para mim, uma chumbada ter que ler
durante as férias o Kipling, ou o Oscar Wilde para aí com 13 anos. Era uma chatice
bestial, mas penso que, em grande parte, devo a esta persistência, a essa obstinada
paciência muito daquilo que sou. 4
Foi pela insistência paterna que Lobo Antunes adentrou o mundo artístico, porém
tomou tamanho gosto pelo universo das letras que começou a manifestar uma incontida
vontade de ser escritor. Já a partir dos “13, 14 anos, vivia para escrever e, portanto, passava
todo o tempo fechado no quarto a escrever e praticamente não fazia mais nada”,5 pois
“acreditava que estava desde a mais tenra infância predestinado a ser escritor e nada
mais”!6 Assim que terminava de esboçar algumas poesias, o aprendiz de escritor deitava
fora todas as páginas que conseguia produzir, por vergonha de apresentar aquilo que
considerava ser de péssima qualidade. Não há, portanto, nenhum registro da fase juvenil de
sua escrita.
4
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes (Memória de Elefante) citando Blaise Cendrars:
‘Todos os livros do mundo não valem uma noite de amor’”. Depoimento. [25 de outubro, 1979, pp. V-VI,
IX]. Lisboa: Diário Popular/ Suplemento Letras-Artes. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In:
ARNAUT, op. cit., p. 22.
5
Ibid., p. 19.
6
SILVA, João Céu. Uma longa viagem com António Lobo Antunes. Lisboa: Porto Editora, 2009. p. 13.
7
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes (Memória de Elefante) citando Blaise Cendrars:
‘Todos os livros do mundo não valem uma noite de amor’”. Depoimento. [25 de outubro, 1979, pp. V-VI,
18
Durante todos esses anos, desde que fora apresentado ao universo das letras pelo pai
e posteriormente pelo amigo tenente-coronel, Lobo Antunes conheceu uma enorme
quantidade de escritores clássicos, os quais se transformaram em modelo de boa escrita. O
autor português afirma que foi “formado, sobretudo, pela leitura dos estrangeiros norte-
americanos, em particular: Faulkner, Scott Fitzgerald, Thomas Wolfe”,8 mas também e
especialmente pelos autores que escreveram “o Cavaleiro Andante, a revista Mundo de
Aventuras, o Emílio e os Detectives, o Sandokan, as páginas necrológicas e as coisas que
lia em miúdo quando o jornal chegava a Nelas, lá na Beira Alta”.9 Sobre essas primeiras
influências literárias e as primeiras lições sobre o exercício da escrita, Lobo Antunes ainda
diz:
A leitura desde sempre muito atenta à técnica narrativa e em grande parte feita a
partir dos originais de língua inglesa e francesa também foi responsável por transformá-lo
em um crítico bastante seletivo que, segundo Céu e Silva,
IX]. Lisboa: Diário Popular/ Suplemento Letras-Artes. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In:
ARNAUT, op. cit., p. 20-21.
8
ANTUNES, António Lobo. “Lobo Antunes a Baptista-Bastos: ‘Escrever não me dá prazer’”. Depoimento.
[19 de novembro, 1985, pp. 3-5]. Lisboa: Jornal das Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a A.
Baptista-Bastos. In: ARNAUT, op. cit., p. 67.
9
SILVA, op. cit., p. 31.
10
Ibid., p. 31-32.
11
Ibid., p. 13.
19
A partir de então, Lobo Antunes não mais deixou de frequentar o universo das artes
e para além do solitário exercício de escrita, continuou a realizar outros tipos de trabalhos
artísticos em parceria com amigos ou a convite daqueles que confiam em sua visão crítica
e admiram sua escrita cuidadosa e original. São de sua autoria, por exemplo, as treze letras
das canções que compõem o álbum musical Eu que me comovo por tudo e por nada
(1992), gravado pelo amigo e cantor português Vitorino Salomé. Também são suas as
letras de seis canções criadas para o álbum Margens (1996), gravado pelo também amigo e
cantor de fados, Carlos do Carmo. Além do trabalho musical, a composição de versos
também figura ao lado da pintura, no livro Diálogos (1990-1992), trabalho realizado em
parceria com o arquiteto e artista plástico português José Luís Tinoco, em que 54 técnicas
mistas sobre papel são comentadas por poemas de autoria antuniana. Não podemos deixar
de mencionar ainda o trabalho de ilustração realizado por Vitorino para o livro A história
do hidroavião (1994); bem como as ilustrações feitas por Nicoleta Sandulesco para o conto
Uma via láctea de galos (2005). Além disso, Lobo Antunes produziu o texto que abre o
12
Ibid., p. 135.
13
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor é sempre a voz do que está latente nas pessoas”. Depoimento. [27
de julho, 1980, p. 21]. Lisboa: O Diário. Entrevista concedida a José Jorge Letria. In: ARNAUT, op. cit., p.
35.
14
SILVA, op. cit., p. 41.
20
livro Olhares (1951-1998) do fotógrafo Eduardo Gageiro, bem como a crítica elogiosa que
apresenta o catálogo da exposição One after another, a few silente steps (2003 - Kunsthalle
Hamburg), do artista plástico português Pedro Cabrita Reis.
Podemos afirmar, pois, que a obra de António Lobo Antunes nasce em um espaço de
interação artística. Conforme mostraremos no segundo capítulo desta pesquisa, desde seus
primeiros escritos, o autor arriscou estabelecer um proveitoso diálogo com outros sistemas
de significação,18 ainda que inicialmente tenha explorado mais especificamente o
mecanismo tradicional de relação intertextual e descritivo, conhecido como “ecfrase”, isto
é, o processo de evocação de um elemento exterior à obra, com o objetivo de intensificar,
tornar mais vívida, uma declaração ou, no caso da literatura, uma descrição.
15
ANTUNES, António Lobo. Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
16
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
17
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
18
Em seu livro Tradução intersemiótica, Júlio Plaza afirma que “cada sistema de sinais se constitui segundo
a especialidade que lhe é característica e que pode ser articulada com os órgãos emissores-receptores, isto é,
com os sentidos humanos. Estes produzem as mensagens que reproduzem os sentidos”. Com base nessa
afirmativa, entendemos que António Lobo Antunes, a partir do sistema de sinais verbais, realiza um diálogo
com os sistemas de sinais visuais e sonoros, produzindo um objeto artístico híbrido. PLAZA, Julio. Tradução
intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 45.
21
Assim que começamos a exercitar uma leitura mais minuciosa dos livros, notamos
que uma analogia21 foi sendo naturalmente construída com base em um exercício de
homologia estrutural,22 já que automaticamente começamos a perceber algumas
semelhanças entre o texto antuniana e a pintura. Verificamos que alguns dos elementos que
compõem uma tela – moldura, superfície, linhas e cor –, também poderiam ser
“visualizados” no livro escolhido como objeto de análise. Com base nessa premissa,
realizamos, no último capítulo de nosso estudo, uma aproximação de dois universos
artísticos a partir de suas respectivas estruturas e da funcionalidade de alguns de seus
19
ANTUNES, António Lobo. A ordem natural das coisas. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
20
Segundo Julio Plaza, “a lógica ocidental permite organizar os meios em sistemas ou redes universais que
são utilizados como suportes de re-produção de linguagens, ou seja, como veículos de comunicação,
intelegibilidade, representação simbólica e memória”. (PLAZA, op. cit., p. 66.) Lucia Santaella, por sua vez,
afirma que os “meios, como o próprio nome diz, são meios, isto é, suportes materiais, canais físicos nos quais
as linguagens se corporificam e através dos quais transitam”. (SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem
e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 2013. p. 379.) Nesse
sentido, empregamos o termo “meio” em nossa pesquisa para designarmos o suporte que re-produz uma dada
linguagem ou um sistema de significação específico, que tanto pode ser sonoro, visual ou verbal.
21
O conceito de “analogia” – semelhança funcional entre estruturas distintas – será apresentado e
desenvolvido no terceiro capítulo desta tese.
22
O conceito de “homologia estrutural” – semelhança estrutural entre dois elementos distintos – será
apresentado e desenvolvido no terceiro capítulo desta tese.
22
elementos, para entendermos até que ponto ambas as artes podem dialogar e, assim,
potencializar a si mesmas.
Desde então, diversas perguntas foram feitas e nem todas foram suficientemente
respondidas. A Modernidade, de forma geral, representada na escrita de Stéphane
Mallarmé (1942-1898), na pintura de Paul Cezánne (1839-1906) e na música de Arnold
Schöenberg (1874-1951), radicaliza e torna mais complexa, não apenas a já hostil relação
entre as artes ditas “irmãs”, mas reascende todo o repertório de problematizações que por
muito tempo interferiu nas arriscadas tentativas de se estabelecer os limites, a essência e os
meios de cada uma das artes. Um ideal de pureza, enquanto mecanismo de avaliação e
ajuste é pensado, ao mesmo tempo em que é rebatido pelas próprias práticas artísticas, cada
vez mais inovadoras.
23
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: com
esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Tradução de Márcio Seligmann-
Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.
23
A obra de António Lobo Antunes apresentou-se como objeto de estudo assim que o
livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura (2000)25 foi lido. O caráter
autorreferencial da obra, que chama atenção para a sua própria estrutura e para os
processos de sua própria composição, nos levou a perceber o singular trabalho visual
realizado em toda a sua arquitetura textual. As fricções léxico-semânticas encontradas a
24
Referimo-nos especialmente aos textos reunidos no livro “Greenberg e o debate crítico” (FERREIRA,
Glória; MELLO, Cecília Cotrim (Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Tradução de Maria Luiza X.
de A. Borges. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997); e ao livro “A Pintura moderna”, do mesmo autor.
(GREEMBERG, Clement. “A Pintura Moderna”. In. A Nova Arte. Tradução de Cecília Prada e Vera de
Campos Toledo. São Paulo: Perspectiva, 2013.)
25
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. ne varietur. Lisboa: Dom
Quixote, 2008.
24
cada página lida, bem como a audaciosa construção espaço-temporal também nos
incentivou a tentar novas saídas interpretativas e nos encorajou a buscar na pintura um
instrumento de ampliação dos limites verbais.
A leitura homológica e analógica nos fez caminhar mais lentamente pelo texto, mas
também nos levou a percorrer caminhos pouco conhecidos e mais arriscados. A escrita, já
considerada escorregadia e complexa, tornou-se ainda mais desafiadora quando decidimos
analisar as relações de sentido amalgamadas em sua estrutura.
Sabemos que Lobo Antunes jamais se deixou levar pela retórica fácil e cristalizada.
Sua letra é um espelho que reflete o exercício daquele que trabalha justamente na zona de
risco literária. Também é aquela que se manifesta enquanto espaço dinâmico e aberto, em
que não é possível pensar a linguagem desligada de seu caráter imagético ou isolar a
imagem que a linguagem desenha.
Percebemos, ao final da pesquisa, que ler a literatura do ponto de vista das imagens e
compreendê-la enquanto criadora de novas possibilidades de pensamento torna-se um
25
arriscado, porém, importante exercício para rebater as tentativas de limitação propostas por
linhas de pensamento mais restritivas. Dessa maneira, adentramos novas espacialidades e
temporalidades narrativas, sem que nos limitássemos a realizar analogias simplistas e
confrontos hierarquizantes de qualidade. Tentamos ressaltar, pelo contrário, aquilo que de
mais criativo pode ser produzido nos inusitados intervalos que o encontro entre a literatura
e a pintura cria incessantemente.
26
Há muito se diz que poesia não é apenas texto e que pintura não se reduz à
representação de imagens. Mas o trajeto que nos fez chegar a essa afirmativa é bastante
longo, complexo e polêmico.
Também foi a partir desse período histórico que grande parte dos estudiosos que
escreviam sobre pintura iniciou um exercício crítico diferente, o qual, ultrapassando o
estatuto tradicional do discurso retórico elogioso e descritivo, transformou-se nas primeiras
26
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979/2004). Tradução de
Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: UFSC, 2012. p. 65.
27
MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. In: ______. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 691.
28
Loc. cit.
29
WIMSATT JR., William K.; BROOKS, Cleanth. Crítica Literária: breve história. Tradução de Ivette
Centeno e Armando de Morais. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1971. p. 318.
27
A prática da comparação tinha como objetivo tanto a aproximação mais geral entre
as várias artes, quanto a separação restritiva intrínseca a apenas um tipo de arte. No
primeiro caso, a tentativa de aproximação era feita levando-se em conta dois sentidos
básicos: o da visão e o da audição. A divisão se inseria numa longa tradição possivelmente
iniciada por Simônides de Ceos, que nos foi transmitida por Horário, no século I, através
de sua famosa Arte poética, também conhecida como Epístola aos Pisões, que diz: “O
espírito é menos vivamente impressionado por aquilo que o autor confia aos ouvidos que
por aquilo que este põe diante dos olhos, essas testemunhas irrecusáveis”.30 A afirmação
horaciana aos poucos se transformou no ponto de partida para a primeira tentativa de
comparação entre duas artes: a pintura e a poesia. Retomada pelos teóricos do
Renascimento, o excerto passou a figurar como origem da chamada doutrina do Ut pictura
poesis.31
O segundo caso de comparação, mais restritivo, limitava-se às artes que tinham como
princípio receptivo o sentido da visão, por se referir apenas às relações entre a pintura e a
escultura. Tal prática ganhou, no Renascimento, o nome Paragone, recuperado do Tratado
da Pintura, escrito por Leonardo da Vinci, entre os anos de 1490-1571.
30
LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura: O paralelo das Artes. Tradução de Magnólia Costa. São
Paulo: Ed. 34, 2005. v. 7. p. 9.
31
Em sua Arte poética, Horácio diz: “Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto;
outra, se te pões mais longe [...]”. HORÁCIO. Arte poética: Tradução de Jaime Bruna. In: SPINA,
Segismundo. A poética clássica, São Paulo, Cultrix, 2014. p. 65.
28
32
LICHENSTEIN, op. cit., p. 10.
33
Ibid., p. 11.
34
Ibid., p. 11-12.
29
A arte visual passou a manter uma ligação ainda mais estreita com a linguagem
verbal, já que a linguagem é o nascedouro da Retórica, do discurso, da Filosofia e da razão.
Ao estabelecer relação com a arte da linguagem, a pintura vinculou-se automaticamente a
outro espaço. O pintor assumiu a posição de poeta e de homem das letras, pois também
passou a fazer parte do universo do Logos.
Os primeiros temas que vieram a compor as telas desse período histórico foram
retirados da literatura e, por isso, passaram a figurar dentro de uma nova categoria,
denominada Pintura de História que seria “a partir de então, e durante séculos, considerada
como a mais alta expressão da arte de pintar”.37
35
WIMSATT JR., BROOKS, op. cit., p. 318.
36
LICHENSTEIN, op. cit., p. 13.
37
Loc. cit.
30
38
Ibid., p. 13.
39
Ao longo de nossa pesquisa encontramos pelo menos quarto variações do nome Laocoonte: Laoconte,
Laokoon, Laocoon e Laocoön. Para efeito de padronização, optamos por manter, em nosso texto, o vocábulo
em sua tradução para o Português: Laocoonte. Mas, respeitaremos as variações que por ventura possam
aparecer em títulos ou citações.
31
Por esse motivo, a obra de Lessing, assim como a epístola horaciana, ainda hoje é
considerada como central dentro do panorama intelectual dos séculos XVIII e XIX. Ela
oferece à Modernidade, através do minucioso tratado, um conjunto teórico bastante
elaborado e amplo sobre o paralelo das artes e uma nova questão: a problemática surgida
da tentativa de legitimação das fronteiras entre as artes. O tratado tornou-se responsável
por recuperar as discussões da era clássica, atualizando-as e traduzindo-as para um novo
contexto.
Em 1766, Gotthold Efraim Lessing lançou seu tratado – Laokoon: ou sobre os limites
da Pintura e da Poesia – que ganhou enorme repercussão por compilar e dar continuidade à
discussão iniciada há alguns séculos. Sua contundência crítica influenciou outros
estudiosos e, consequentemente, o exercício analógico entre as duas artes cresceu, tomando
uma proporção significativa que fez com que as primeiras fronteiras fossem timidamente
demarcadas.
Com base nas pesquisas desses três estudiosos, Lessing construiu suas
argumentações e publicou seu próprio tratado, fundamentado em um método indutivo de
análise. Sua tentativa inicial foi o desenvolvimento de uma primeira proposta estética.
40
GONÇALVES, Aguinaldo José. Laokoon revisistado: relações homológicas entre texto e imagem. São
Paulo: EDUSP, 1994. p. 29.
41
Ibid., p. 30-31.
42
Loc. cit.
33
Reuniu, então, as várias tendências artísticas de sua época e agrupou-as de acordo com as
características que lhe pareciam convergir para um mesmo funcionamento. Por isso, além
de se preocupar em criticar outros importantes comentadores, o crítico ainda retomou os
mais importantes escritos clássicos, aos quais ainda era dada enorme importância. Seu
tratado, nesse sentido, é também uma espécie de compêndio crítico das ideias lançadas
pelos primeiros pensadores e artistas, tais como Homero, Aristóteles, Horácio, Virgílio e
Sófocles.
A potencial irmandade que até então havia sido percebida entre a poesia e a pintura
começou a se relativizar no momento em que Lessing abandonou a reflexão sobre as
possíveis relações entre as duas artes e propôs uma divisão que estabelecia dois
referenciais: o tempo e o espaço. A ideia era pensar a arte a partir do uso diferenciado de
seus meios de expressão.
43
LESSING, op. cit., p. 78.
44
Loc. cit.
45
Segundo Márcio Seligmann-Silva, “O grupo de mármore que representa Laocoonte com seus filhos, uma
das esculturas mais famosas da Antiguidade, data de cerca de 140 a. C. – i.e., da época de inflexão entre o
declínio do mundo grego e o nascimento de Roma como potência europeia. Em 1506 foi encontrada em
Roma um cópia romana de mármore dele (a partir do original de bronze) de autoria de três escultores de
Rodes, da era do Reinado de Tibério (4-37 a. C.) que pode ser vista até hoje no Vaticano, onde ela foi
abrigada. Um ideia do original grego de bronze, embora sem o braço direito de laocoonte, encontrado apenas
em 1904, pode ser obtida a partir da observação do bronze do grupo Laocoonte de autoria de Primaticcio, de
1540 realizada em Fontainebleau.” (SELIGMANN-SILVA, Márcio. Prefácio. In: LESSING, G. E. op. cit., p.
82.)
34
Vale salientar que, não por acaso, o objeto artístico escolhido foi o mesmo que, anos
antes – 1755 –, Johan Joachim Winckelmann (1717-1768), o crítico de arte mais rebatido
por Lessing, usou para fundamentar sua análise. Segundo o filósofo Gerd Bornheim (1929-
2002),
A análise empreendida por Winckelmann está em seu livro, Reflexões sobre a Arte
antiga (1755), e foi com base nesse estudo que Lessing desenvolveu grande parte de sua
argumentação, condenando como incertas e superficiais muitas passagens do pensamento
de Winckelmann e colocando-se não contra as suas afirmações mais gerais, mas sim contra
as comparações estabelecidas entre o Laocoonte, as peças de Sófocles e a Eneida, de
Virgílio. Para Lessing, as comparações eram indevidas justamente porque tentavam reunir
espécies muito distintas de arte. Grande parte de sua argumentação pois, foi feita com base
na seguinte passagem do livro de Winckelmann:
Enfim, o caráter geral que, antes de tudo, distingue as obras gregas, é uma
nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na
expressão. [...] a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas
maiores paixões, uma alma magnânima e ponderada.
Essa alma se revela na fisionomia de Laocoonte e não somente na face,
em meio ao mais intenso sofrimento. A dor que se revela em todos os
músculos e tendões do corpo e que, se não examinarmos a face e outras
partes, cremos quase sentir em nós mesmos, à vista apenas do baixo
ventre dolorosamente contraído, esta dor, digo, não se manifesta por
nenhuma violência, seja na face ou no conjunto da atitude. Laocoonte não
profere gritos horríveis como aqueles que Virgílio canta. A abertura da
boca não o permite: é antes um gemido angustiado e oprimido, como
Sadolet o descreve. A dor do corpo e a grandeza da alma estão repartidas
com igual vigor em toda a escultura da estátua e por assim dizer se
equilibram. Laocoonte sofre como o Filoctetes de Sófocles. Seu
sofrimento nos penetra até o fundo do coração, mas desejaríamos poder
suportar o sofrimento com essa grande alma. 47
A escultura foi escolhida como objeto de análise por representar a dor de maneira
explícita e contundente. Essa sensação, segundo ambos os críticos, também poderia,
obviamente, ser representada com a mesma veemência em outros tipos de artes, como a
tragédia. A dor física se expressa naturalmente em toda a literatura antiga, porém, Lessing
discordou dos motivos que levaram Winckelmann a afirmar que, apesar da dor manifestada
por Laocoonte, existia “uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude
46
BORNHEIM, Gerd. “Introdução à leitura de Winckelmann”. In: WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a
Arte antiga. Tradução de Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento, 1975. p. 8.
47
WINCKELMANN, J. J., op. cit., p. 53.
36
A escultura, segundo Winckelmann, representa a dor, mas não o grito. Contra tal
afirmativa, Lessing afirmou:
48
Loc. cit.
49
LESSING, op. cit., p. 88.
37
Ao definir que a Imitação e o Belo eram os elementos através dos quais um objeto
artístico deveria ser julgado, Lessing indiretamente sugeriu que fosse mantido o mesmo
processo de produção artístico antigo. O artista não estaria autorizado, por exemplo, em
nome do julgamento de validação artístico de sua obra, a representar mais de um instante
da natureza. Ele deveria, ao contrário, apresentar uma cena instantânea, um único ponto de
vista. O observador por sua vez, deveria, após longas e repetidas observações,
50
Ibid., p. 91.
51
Ibid., p. 101.
38
complementar pela fantasia o instante visto e manifestado pela obra. Nesse sentido, em
contraposição às afirmações de Winckelmann, Lessing explicou:
Partindo dessa constatação e com base na passagem poética escrita por Virgílio,
Lessing afirmou: “Quando o Laocoonte de Virgílio grita, quem pensa então que é
necessária uma grande boca para gritar e que essa grande boca o torna feio”?53 Em outras
palavras, para Lessing, a poesia, enquanto arte temporal, imitava as ações pela construção
de um esquema sucessivo de imagens. O poeta, ao contrário do escultor ou do pintor, não
construía sua obra a partir da escolha de um instante. Ele obedecia a uma regra inerente ao
caráter de seu objeto artístico, que respeitava um princípio de continuidade e organizava
52
Ibid., p. 101-102.
53
Ibid., p. 107.
39
um apanhado de fatos, orientando seu leitor a identificar o início, o meio e o fim de sua
narrativa. Através da palavra, portanto, a dor de Laocoonte poderia ser inteiramente
representada e a habilidade do poeta era a única forma de tornar sensível ao intenso
sentimento de dor o leitor que recepcionava o texto.
Para Lessing, acima da poesia lírica e mais próxima da arte espacial, porém,
colocava-se a poesia dramática. Distintas e ainda mais minuciosas são as suas
considerações a respeito dessa arte, das quais resultaram argumentos ainda mais
importantes sobre o exercício crítico.
Como sofre este? É muito estranho como o seu sofrimento deixou em nós
impressões tão diferentes. As lamentações, o grito, as maldições
selvagens com as quais a sua dor preenche o campo e atrapalha todo o
sacrifício [...] quais sons de pesar, de lamento, de desespero, que também
o poeta na sua imitação deixa ressoar o teatro em seu drama [...] As
exclamações de lamento, o gemer [...] que constituem esse ato e que
deviam ser declamados com alongamentos e interrupções muito
diferentes daqueles necessários num discurso ordenado fizeram com que
a representação desse ato sem dúvida durasse praticamente tanto quanto
os outros. Ao leitor ele parece ser muito mais curto no papel do que terá
parecido aos ouvintes. 54
encenação ele poderia ver e ouvir tais gritos. E já que para Lessing o ideal da arte era
justamente a obediência máxima à verossimilhança, ele sistematizou todas as artes através
da hierarquização, pautando-se sempre nessa regra primordial. Por isso, quando
perguntado sobre o problema da recepção, Lessing respondeu que:
55
Apud WIMSATT Jr., William K. & BROOKS, Cleanth. op. cit., 1971, p. 328. 9 (Trecho retirado de uma
carta escrita por Lessing a Nicolai, de 26 de maio de 1769.)
41
Para Lessing, partir da ideia de que Virgílio teria imitado os escultores, não seria
igualmente fácil, pois a inversão resultaria em uma série de obstáculos. Caso a imitação
tivesse partido de Virgílio, este se veria forçado a reduzir seu processo inventivo.
Ao prosseguir com sua tese, Lessing iniciou um diálogo com outro renomado
estudioso de arte, o professor de poesia da universidade de Oxford, Joseph Spence (1699-
1768). De acordo com Spence, ao descreverem as musas e os deuses, os poetas clássicos
latinos não conseguiam deixar de ser superficiais. Eles não mencionavam, por exemplo, os
símbolos que caracterizavam cada uma destas personagens. Tal economia discursiva, aos
olhos de Spence, rebaixava o potencial da arte poética e elevava o da arte plástica, já que
os pintores e escultores faziam questão de representar tais símbolos em suas produções,
ampliando o grau de verossimilhança e erudição das mesmas. Lessing rebateu a crítica,
alegando mais uma vez a superioridade da poesia em relação às artes plásticas. Para ele, o
nome de uma musa ou de um deus já era suficiente para introduzir a imagem completa
daquela entidade no imaginário do leitor, uma vez que os símbolos dos deuses ou musas
lhes são próprios por convenção. Em outras palavras, o nome, segundo Lessing, já revela a
coisa, sendo desnecessário o uso redundante de tais elementos. Portanto, a economia, que
para Spence era negativa, foi ressaltada por Lessing como mérito, afinal, o pintor precisava
reproduzir os símbolos alegóricos para tornar reconhecível a figura imitada, mas os poetas
não. Ele afirmou que cada arte tem uma necessidade específica: “a pintura utiliza nas suas
imitações um meio ou signos totalmente diferentes dos da poesia; aquela, a saber, figuras e
cores no espaço, já esta, sons articulados no tempo”.57
56
LESSING, op. cit., p. 141.
57
Ibid., p. 195.
42
Apesar de ter evidenciado uma linha divisória aparentemente bem clara entre as duas
artes, Lessing não conseguiu desfazer completamente o problema da representação do
tempo e do espaço. Ele diz, por exemplo, que:
Para tentar eliminar uma possível contradição, ele seguiu com seu raciocínio,
afirmando, contudo, que “todos os corpos não existem apenas no espaço, mas também no
tempo. Eles perduram e podem parecer diferentes e se encontrar numa outra relação em
cada momento da sua duração”,59 assim como também “as ações não podem apenas existir
por si mesmas, mas dependem de certos seres”.60 Ao admitir tais possibilidades, Lessing
acabou aceitando que “a pintura também pode imitar ações, mas apenas alusivamente
através dos corpos”,61 e que a pintura pode representar ações, apesar de ter que escolher
“apenas um único momento da ação nas suas composições coexistentes”.62 Disso “decorre
a regra da unidade dos adjetivos pictóricos e da economia nas exposições de objetos
corpóreos”.63
58
Loc. cit.
59
Loc. cit.
60
Loc. cit.
61
Loc. cit.
62
Loc. cit.
63
Ibid., p. 196.
43
Quando Lessing define o que pode ou não ser realizado pela pintura ou pela poesia,
ele dá a entender que as artes devem respeitar a natureza de seus materiais e que não
devem transpor os limites impostos pelos mesmos. Porém, se observarmos as conquistas da
pintura e da poesia, anteriores até mesmo ao Romantismo, notamos que mesmo naquela
época suas ideias não eram perfeitamente aplicadas ou seguidas.
Uma pintura pode ser lida a partir de seu aspecto temporal, assim como uma obra
literária pode se desdobrar em imagens espaciais, pois o sentido preserva a simultaneidade
ou o movimento percebido pela vista. Segundo Northrop Frye (1912-1991), “ouvimos o
poema quando ele se move do princípio ao fim, mas tão logo o seu conjunto esteja em
nossa mente, de pronto vemos o que significa”.64
Em seu The New Laokoon: An Essay On The Confusion Of The Arts (1910), Irving
Babbitt (1865-1933) afirmou que as especificações apresentadas por Lessing não se
tornaram uma doutrina universalmente bem aceitas nem mesmo na época de seu
lançamento. Para Babbit:
64
FREY, Northrop. “Crítica Ética: Teoria dos Símbolos”. In:______. Anatomia da Crítica. Tradução de
Péricles Eugêncio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 195.
44
arte. Para dar alguns exemplos ao acaso, nós temos a transposição da arte
de Gautier, a tentativa de Rossetti de pintar seus sonetos e escrever suas
pinturas, a ambição de Mallarmé em compor sinfonias com as palavras.
Confusões desse tipo já eram um rompante poucos anos após a morte de
Lessing, na escrita de Novalis, Tieck e Friedrich Schegel. 65
65
If the Laokoon really covers the ground as completely as Blummer would have us suppose, we can only
say that no teaching has ever been witnessed the gratest debauch of descriptive writing the world has ever
known. It witnessed moreover a general confusion of the arts, as well as of the diferents genres within the
confines of each art. To take examples almost at random, we have Gautier´s transpositions d’art, Rossetti’s
attempts to paint his sonnets in write his pictures, Mallarmé’s ambition to compose symphonies with words.
Confusions of this kind were already rampant within a few years of Lessing’s death, in the writings of
Novalis, Tieck, and Friedrich Schlegel. BABBITT, Irving. The New Laokoon: an essay on the confusion of
Arts. Boston: Houghton Mifflin, 1910. p. 8-9.
66
GONÇALVES, op. cit., p. 60-61.
45
É importante reiterar que Lessing desenvolve sua tese no momento em que a Mimese
é, junto do conceito de Belo, o mais importante princípio artístico, aquele que dá
67
Ibid., p. 62.
47
autenticidade e valor a qualquer tipo de arte. Ele, assim como outros teóricos e críticos,
fala a partir de uma época racionalista, que buscava compreender os problemas da arte pelo
viés da normatização e da estruturação. Desviar-se de tais normas e princípios significava
ir ao encontro da imperfeição.
Parece-nos que Lessing não vislumbrou o futuro da arte, que dava sinais de mudança
muito fortes já em sua época. Ele buscou no passado os ideais clássicos e desconsiderou o
milenar diálogo entre as artes, assim como também não levou em conta que, desde os
tempos mais remotos, os artistas valem-se mutuamente de obras alheias como inspiração
para suas próprias criações e estão, desde então, (re)produzindo um enorme acervo
universal, caracteristicamente híbrido, fato que desestabiliza a obviedade figurativa de um
signo, seja ele verbal ou pictórico. Acreditamos que a obediência às suas colocações
normativas teria levado os artistas a produzir uma arte estática e fadada à reprodução
imitativa.
É bastante compreensível o motivo pelo qual grande parte dos críticos, em especial
os mais atuais, respeitosamente desconsideram a discussão empreendida pelo crítico
alemão. Dar continuidade à tentativa de estabelecer limites às artes, de forma geral,
significa estacionar numa espécie de entrave ao pensamento. Muito mais interessante do
que estabelecer o grau de capacidade de reprodução da temporalidade e da espacialidade
das variadas artes, seria tentar detectar o processo pelo qual tomamos consciência da
“presença” dos dois elementos. Afinal, conforme explica Maurice Merleau-Ponty,
“supomos, de um só golpe, em nossa consciência das coisas o que sabemos estar nas
coisas. Fazemos percepção com o percebido [...] estamos presos ao mundo e não
conseguimos nos destacar dele para passar à consciência do mundo”.68
68
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Reginaldo di Piero: Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1971. p. 23.
48
Em suma, apesar da corajosa tentativa, entendemos que sua tese não comporta a
realidade artística de nossa contemporaneidade. Afinal, a combinação de diferentes
linguagens cada vez mais vem se tornando uma tendência muito forte e explícita. As
fronteiras entre as diversas manifestações artísticas mais tradicionais – a pintura, a
escultura, a literatura, a dança, a música – mostram-se cada vez mais tênues, fato que nos
faz discordar da afirmação que Wolfgang von Goethe elogiosamente faz ao trabalho de
Lessing:
Lessing deixa claro que existem fronteiras entre as artes poéticas e visuais. Contudo,
o próprio fato de ele construir uma tese tão minuciosa a respeito de tais limites,
comparando a escultura a uma passagem literária a partir de um denominador comum – a
tentativa de representação do episódio em que Laocoonte e seus filhos se contorcem de dor
–, sugere que, mesmo negando a possibilidade da intermedialidade,72 ele não poderia negar
a possibilidade da intersemioticidade.
69
GOETHE, Wolfgang von. [Texto da quarta capa]. In: LESSING, G. E. Laocoonte: ou sobre as fronteiras
da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011.
70
Loc. cit.
71
Loc. cit.
72
Segundo Peter Wagner, a intermedialidade se refere ao processo de conjunção e interação das diversas
mídias. Diferente da intersemioticidade – em que se estabelece uma tentativa de articulação/tradução de uma
determinada linguagem para outra linguagem, como acontece, por exemplo, na tradução da linguagem verbal
para a visual –, a intermedialidade diz respeito à tentativa de comunicação e expressão através da aglutinação
de mídias diferentes. Sintetizando, poderíamos dizer que o foco da intermedialidade é o meio, enquanto o
foco da intersemioticidade é a linguagem. Nesse sentido é que entendemos que Lessing mostra-se contrário à
intermedialidade, mas não à intersemioticidade. WAGNER, Peter. Icons, Texts, iconotexts: essays on
ekphrasis and intermediality. New York: Walter de Gruyter, 1996. v. 6. p. 17.
50
algumas questões abertas pela nova realidade que se nos apresenta desde o final do século
XIX, com o advento da Modernidade.
Passados mais de dois séculos após o lançamento desse primeiro grande tratado
sobre os limites entre as artes – o Laokoon: ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, o
crítico nova-iorquino Clement Greenberg, ao lançar o seu também polêmico ensaio Rumo
a um mais novo Laocoonte –, realiza exatamente aquilo que André Gide havia proposto em
1901: atualiza, em 1939, o pensamento de Lessing, levantando questões muito importantes
para o atual cenário artístico.
73
“Le Laocoon de Lessing est oeuvre qu’il est bon tous les trente ans de redire ou de contredire”.
GREENBERG, Clement. “Rumo a um mais novo Laocoonte”. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília
(Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Funarte/Jorge Zahar, 1997. p. 45
51
74
Loc. cit.
75
Loc. cit.
76
Ibid., p. 46.
77
Ibid., p. 47.
78
Ibid., p. 48.
79
Ibid., p. 50.
80
Loc. cit.
52
81
Loc. cit.
82
Loc. cit.
83
Loc. cit.
84
Ibid., p. 51.
85
Ibid., p. 52.
86
Loc. cit.
87
Loc. cit.
53
uma posição privilegiada em relação às demais artes e a substituir a poesia enquanto arte-
modelo. Era ela o mais novo agente da nova confusão entre as artes. A novidade permitiu
que a Vanguarda descobrisse então que “a vantagem da música residia no fato de ela ser
uma arte ‘abstrata’, uma arte de ‘pura forma’”,88 porque ela era incapaz de comunicar outra
coisa que não fosse uma sensação. Enquanto uma pintura imitativa, por exemplo, poderia
ser descrita a contento, a música não permitia que o mesmo procedimento fosse realizado,
justamente porque seus efeitos “são os efeitos da pura forma”,89 Para alcançar a pureza, a
arte, fosse ela visual ou verbal, precisava enfatizar o físico, o sensorial. É com base nesse
cenário que Greenberg introduz o conceito de pureza que “consiste na aceitação voluntária
das limitações do meio de cada arte específica”.90 Ele ainda afirma que:
88
Ibid., p. 53.
89
Loc. cit.
90
Loc. cit.
91
Loc. cit.
92
GOETHE, op. cit., quarta capa.
93
GREENBERG, op. cit., p. 54.
94
GOETHE, op. cit., quarta capa.
54
elos tão radicalmente indissociáveis. Sobre isso, Greenberg faz ainda outra afirmação, com
a qual também não concordamos:
Greenberg diz que “No caso das artes visuais, o meio se revela físico; por isso a
pintura pura e a escultura pura buscam, acima de tudo mais, afetar o espectador
fisicamente”, mas, como podemos definir, a partir desse argumento, o meio específico do
Teatro, da Ópera, dos musicais filmados? Acreditamos que todos apresentem meios
essencialmente híbridos.96 Seria possível retirar da Ópera o meio visual, ou o sonoro, ou o
verbal, sem interferir diretamente em sua composição e em seu potencial artístico? Quando
Greenberg afirma, na última parte da passagem citada, que “no caso da poesia, que, como
disse, também precisou escapar da literatura ou dos temas para se salvaguardar da
sociedade, conclui-se que o meio é essencialmente psicológico e sub ou supralógico”,
95
GREENBERG, op. cit., p. 54.
96
Segundo Julio Plaza a “hibridização ou o encontro de dois ou mais meios constitui um momento de
revelação do qual nasce a forma nova. Assim, o processo de hibridização nos permite fazer os meios
dialogarem. A combinação de dois ou mais canais a partir de uma matriz de invenção ou a montagem de
vários meios pode fazer surgir um outro, que é a soma qualitativa daqueles que os constituem”. (PLAZA, op.
cit., p. 65.)
55
como acreditar que o meio da poesia concreta, por exemplo, seja exclusivamente verbal?
Com o intuito de ser mais preciso, ele diz, em outro momento de seu ensaio que:
Caso consideremos que o som seja apenas um auxiliar e não um meio, alegando que
hoje a poesia é “apenas lida e não recitada”,98 criaremos um grave problema, afinal, a letra
foi criada justamente para representar os sons, mesmo que não queiramos dar a eles o
aspecto musical propriamente dito de um recital. Quando Mallarmé trabalha a forma
espacial do poema e, de acordo com Greenberg, o destitui da maior carga semântica
possível, coloca-nos, sim, diante de um “objeto único”, mas não no sentido de um objeto
puro, destituído de visualidade, sonoridade e sentido. Mallarmé produz uma poesia única
justamente porque extrapola o meio verbal e passa a explorar também o meio visual e o
meio sonoro. De acordo com Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos,
três de seus maiores tradutores para a língua portuguesa, a poesia de Mallarmé assume o
risco da tentativa de uma “não-linearidade som-escrita”99 ao produzir um texto altamente
97
Ibid., p. 55.
98
Loc. cit.
99
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,
2010. p. 85.
56
transgressor que exige que tenhamos “olho, ouvido e braile”.100 Também Márcia Arbex,
professora que há muito se dedica exclusivamente às questões ligadas à poética do visível
diz, contrariando a tese de Greenberg, que:
100
Loc. cit.
101
ARBEX, Márcia. “Poéticas do visível: uma breve introdução”. In: ______ (Org.). Poéticas do visível:
ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 19.
102
GREENBERG, op. cit., p. 54.
103
Loc. cit.
104
Ibid., p. 55.
105
Loc. cit.
57
cada imagem poética: “o papel intervém a cada vez que uma imagem, por
ela mesma, cessa ou surge, aceitando a sucessão de outras. [...]” Outra
inovação é a visão simultânea sobre duas páginas, resultado da distância
que “separa os grupos de palavras ou as palavras entre elas”, sugerindo a
aceleração ou a redução do movimento, ritmando a leitura. A respeito do
manuscrito definitivo do poema, Paul Valéry, a quem Mallarmé submeteu
a leitura, afirma: “Pareceu-me ver a figura de um pensamento, pela
primeira vez colocada em nosso espaço”.106
106
ARBEX, op. cit., p. 27.
107
Loc. cit.
58
Sabemos que as imagens gravadas nas paredes de cavernas ou pedras nada mais são
do que a primeira tentativa de comunicação humana. Porém, conforme explica Ernst
Gombrich: “ignoramos como a arte começou tanto quanto desconhecemos como se iniciou
a linguagem”.108 A imagem era, por si só, uma forma de escrita, assim como hoje, a escrita
é um transmissor que comunica através de sua forma gráfica.
108
GOMBRICH, Ernst. A História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 19.
109
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem enformada pela escrita”. In: ARBEX, op. cit., p. 65.
110
Ibid., p. 64.
111
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem e a letra”. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: CHRISTIN,
Anne-Marie. Poétique du blanc: vide et intervale dans la civilisation de l’alphabet. Leuven: Peeters-Vrin,
2000. p. 340. Disponível em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero02/FCRB_Escritos_2_15_Anne-Marie_Christin.pdf>.
Acesso em: 14 abr. 2015.
59
grupo e rege suas trocas internas; e a visão, que permite ao grupo ter
acesso ao mundo invisível por intermédio do simbólico.112
A passagem nos remete ao texto, A pintura moderna, também escrito por Clement
Greenberg. Nesse texto, o crítico mais uma vez argumenta a favor da pureza do meio,
declarando que:
112
ARBEX, op. cit., p. 18.
113
Loc. cit.
114
ARBEX, apud CHRISTIN, Anne-Marie. L’image écrite ou la déraison graphique (1995). In: ARBEX,
Márcia. op. cit., p. 20.
115
GREENBERG, Clement. “A Pintura Moderna”. In. A Nova Arte. Tradução de Cecília Prada e Vera de
Campos Toledo. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 97.
60
Entendemos que o fato de se definir o plano enquanto meio exclusivo da Pintura não
é suficiente para resolver o problema da intermedialidade, entendida enquanto fusão ou
síntese de qualidades de pelo menos dois meios considerados distintos. Afinal, a escrita, há
séculos, é registrada com tinta em uma base plana e bidimensional. E conforme explica
Anne-Marie Christin: “se a escrita nasceu da imagem, isso se deve ao fato de que ‘a
própria imagem se originou, antes, da descoberta – isto é, da invenção – da superfície: ela é
o produto direto do pensamento da tela’”.116
O vínculo entre literatura e pintura, desde os tempos mais remotos, era, como
podemos perceber, indiscernível. Nesse sentido, podemos compreender a querela do Ut
pictura poesis não como rompimento entre as duas artes, mas enquanto mais uma
constatação da estreiteza do vínculo existente entre ambas.
Apesar das transformações impostas pelo tempo, tal vínculo nunca deixou de existir.
Basta considerarmos não apenas as primeiras pinturas rupestres, mas também as mais
variadas formas de escrita que apresentam um aspecto mais figurativo, como é o caso dos
hieróglifos, da escrita cuneiforme e dos ideogramas chineses, e que vão desaguar nas
variadas tentativas de produção de uma narrativa visual, como é o caso dos papier-collés
de Picasso e Braque, do método ideogrâmico de Ezra Pound e, por fim, do cinema.
Reafirmamos ainda a contribuição irrecusável de Mallarmé e seu Un coup de dés. Segundo
Anne-Marie Christin:
A autora também salienta a influência que a obra do pintor Édouard Manet produziu
na escrita de Mallarmé. Segundo a estudiosa, apesar de nada conhecer sobre pintura, antes
de conhecer a obra de Manet, Mallarmé torna-se um dos seus teóricos mais importantes.
116
CHRISTIN, op. cit., 2000, p. 18.
117
Ibid., p. 7.
61
Ele então corrobora a ideia de que a arte poética “poderia tornar-se poesia dela mesma, por
sua matéria”.118 Desta forma, ainda segundo Christin:
118
Ibid., p. 112.
119
Loc. cit.
120
ARBEX, op. cit., p. 26.
62
tudo já nos chega áspero, descontínuo, desigual, marcado por algum acidente: o grão do
papel, as manchas, a trama, o entrelaçado de traços, os diagramas, as palavras”.121
Anne-Marie Christin, por sua vez, diz que “do ideograma ao alfabeto, de fato o
visível perdeu sua função semântica e, sobretudo, social. A imagem polivalente da palavra
foi substituída pela imagem fixa e abstrata da letra”.122 É possível dizer que “Mallarmé
recuperou a escrita que por tanto tempo nos fora dissimulada pelo alfabeto no espaço mudo
da página branca”.123
121
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
p. 147.
122
CHRISTIN, op. cit., 2000, p. 340.
123
Ibid., p. 348.
124
ARBEX, op. cit., p. 28.
63
A nova sensibilidade a que Veneroso se refere também pode ser pensada a partir das
atuais configurações artísticas. Todos os artistas mencionados são os precursores de uma
realidade cujas inovações já passaram pelo período mais crítico de aceitação e começaram
a se consolidar enquanto característica de um novo século. Conforme explica-nos Karl Erik
Schollhammer, o estudo da relação entre texto e imagem destaca-se na reformulação
disciplinar da Literatura Comparada, ou seja, entre “a representação visual e a
representação literária, que abre um campo fértil para a compreensão da literatura numa
sociedade cada vez mais absorvida pelas dinâmicas da cultura de imagem”.126
Para Julio Plaza, “o século XX é rico em manifestações que procuram uma maior
interação entre as linguagens: desde os poemas em forma de leque (já existentes na
tradição oriental) e os poemas-síntese dos efeitos visual e verbal (‘um coup de dés...’)”,127
incluindo casos como os de “Lewis Carrol (Alice – 1895 e sua tail) e as experiências
caligrâmicas de Apollinaire (‘Il pleut’), assim como a simultaneidade dadaísta (“The
125
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. “A visualidade da escrita: a aproximação entre imagem e texto
nas artes do século XX”. In: ARBEX, op. cit., p. 51.
126
SCHOLLHAMMER, op. cit., p. 11.
127
PLAZA, op. cit., p. 11.
64
128
Loc. cit.
129
Loc. cit.
65
O título criado para designar a obra supramencionada, uma das mais famosas peças
artísticas de Duchamp – Le grand verre: la mariée mise à nu par ses célibataires, même,
que significa “O grande vidro: a noiva despida por seus celibatários, mesmo” –, é um
exemplo da dissociação a que se refere Márcia Arbex, haja vista a desorientação que causa
naquele que tenta interpretá-lo e associá-lo à obra que designa:
133
ARBEX, op. cit., p. 58.
134
Loc. Cit.
135
ARBEX, op. cit., p. 59.
69
Figura 8: Le Grand Verre: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Marcel Duchamp, 1915-1923.
70
Foi o próprio Duchamp quem afirmou seu interesse pela matéria poética enquanto
elemento transgressor da linguagem:
Para além da experimentação poética que o artista francês realizou em suas obras,
chama-nos atenção o projeto literário que nunca chegou a concretizar. Sua ideia, como ele
mesmo esclarece na passagem abaixo, era criar um livro que pudesse acompanhar o Grand
verre:
136
DUCHAMP, apud ARBEX, op. cit., p. 60.
137
Ibid., p. 63.
71
Os trabalhos nos mostram que palavra e imagem, quando associadas, fazem vibrar o
campo semântico e, consequentemente, abrem um caminho para uma possível
desfuncionalização das linguagens de maneira geral. Todas as vias comunicativas –
independentemente de serem imagem, palavra ou som – são automaticamente repensadas e
igualmente re-significadas tanto em sua individualidade quanto em seu potencial fusional.
138
SANTAELLA, Lucia. Aquém e além da arte: lugares do não lugar. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 15.
74
bastante consistente a atual condição do universo artístico. Arlindo Machado, que nomeia a
produção da artista como “cine-videográfica”, chama atenção para o caráter precursor da
mesma,
[...] nesta época em que tanto se fala sobre a convergência dos meios e
das artes. As fotografias, os filmes e os videofilmes da artista se situam
nesta franja de fronteiras onde é difícil traçar as diferenças entre os
expressivos meios vizinhos por ela utilizados.139
Por dialogarem diretamente com a poesia, os filmes de Leiner também podem ser
chamados de filmepoemas ou poemasfilme. É o caso, por exemplo de O reino menos o rei
(1980), considerado uma das primeiras transcrições da obra do poeta Augusto de Campos
para o cinema. Segundo Arlindo Machado, a produção fílmico-poética de Leiner é:
[...] é um livro e uma caixa. Na tampa da caixa tem dois buracos com um
círculo giratório dentro; quando você gira esse círculo, os alfabetos mais
distantes vão passando pelos buracos: cine-letra. Dentro da caixa tem 29
poemas soltos: são charadas, coincidências visualizadas, releitura de
outros textos (Hoelderlin, Haroldo de Campos, Flaubert, Mick Jagger,
139
Ibid., p. 195.
140
Ibid., p. 197.
75
[...] a única arte que podia juntar todas as outras: música, poesia, teatro,
pintura, dança e escultura. Mas, para que essa junção fosse realizada era
necessário que cada parte perdesse algo da identidade própria e se
colocasse a serviço de uma ideia integradora e acima de qualquer
individualidade. Portanto, não adiantava simplesmente juntar esses
elementos numa espécie de balaio comum.142
A fusão entre as artes plásticas, a expressão corporal e até mesmo a produção sonora
estão presentes no que hoje chamamos de performance artística. Podemos mencionar, por
exemplo, o trabalho de Tony Orrico, modelo bastante atual dessa complexa interação
141
RAMOS, Nuno. Disponível em: < http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_livros_list.php?view=1>
Acesso em 24 de junho de 2016.
142
PEREIRA, Miguel Serpa. Cinema e Ópera: um encontro estético em Wagner. Dissertação de Mestrado.
Escola de Comunicação e Artes – USP, 1995. p. 51.
76
artística. Ainda que não tenha o objetivo de unir a dança e a música às artes visuais, Orrico
produz uma obra bastante inusitado, haja vista o seu modo de produção, que consiste
basicamente na execução de movimentos corporais repetitivos, simétricos e cíclicos, os
quais vão sendo registrados em uma superfície plana com um pedaço de carvão ou grafite
que o próprio artista segura em cada uma de suas mãos. Todo o corpo é utilizado ou, pelo
menos, ativado, durante as performances, que geralmente são gravadas em vídeo, para que
a coreografia corporal e o som produzido graças ao embate entre corpo, carvão e superfície
sejam registrados. Ao ser finalizada, a performance resulta em um desenho geométrico de
grandes proporções, como podemos observar nas seguintes imagens que compõem o
acervo dos chamados Penwald Drawings:
Figura 14: Penwald 4 - unison symmetry standing. (3 dias – 4 horas – 80 x 216 cm cada) Tony Orrico, 2010.
77
Figura 15: Penwald 6 – project, recoil. (90 min. – 60 x 180 cm) Tony Orrico, 2011.
A relação interartes, nesse sentido, faz parte do pilar de sustentação das mais atuais
manifestações artísticas de nossa contemporaneidade, as quais, especialmente desde o
advento da Modernidade, são responsáveis pela produção de um volume bastante
significativo de obras híbridas. De acordo com Nella Arambasin, citada por Márcia Arbex,
na apresentação do livro Poéticas do visível, a Modernidade apresentou-nos pelo menos
três categorias desse tipo de obra:
143
SOURIAU, Étienne, apud MORAN, Patrícia. “Poéticas das correspondências”. In: ARBEX, op. cit., p.
249.
144
ARBEX, op. cit., p. 42.
79
Em meio a tantos autores e textos, a escrita de Lobo Antunes se destaca por mostrar-
se desafiadora ao extrapolar sutilmente o meio verbal e ao explorar a espacialidade da
página em branco sem, no entanto, afirmar explicitamente tal intenção.
145
Loc. cit.
80
Memória de elefante. Eis o romance que lança António Lobo Antunes. Sim, o
romance também lança seu autor ao mesmo tempo em que é lançado. Início, meio e fim?
Não, simultaneidade, circularidade e fluidez. Essas, sim, são palavras capazes de adjetivar
a escrita antuniana que, como bem representa o título do livro que abre sua carreira,
(des)constrói-se de forma escorregadia, inconclusiva e plástica.
Não à toa, sua obra tem se firmado como uma das mais desafiadoras dentro do
contexto literário português contemporâneo. Forma e conteúdo são igualmente e
exaustivamente trabalhados, e a linguagem, consequentemente, é o resultado da
complexidade e da originalidade com que os elementos ficcionais são manipulados à
revelia da representação mimética tradicional, corajosamente (des)considerada.
146
SILVA, João Céu e. Uma longa viagem com António Lobo Antunes. Porto: Porto Ed., 2009. p. 22.
147
Segundo Leyla Perrone-Moisés, “invenção é também criação de uma coisa nova, mas não de modo divino
e absoluto. Inventar é usar o engenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos artefatos de que o
homem dispõe para tornar sua vida mais rica e mais interessante”. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da
escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 101.
81
Ao todo são trinta e cinco os livros publicados até a presente data. E de Memória de
elefante (1979), que já nos dá uma importante mostra da incrível capacidade fabulativa e
do singular trabalho de desenho sintático, até o mais recente Da natureza dos deuses
(2015), produto de uma notória maturidade estilística, a leitura segue as linhas de uma
escrita sempre e cada vez mais notadamente visual.
148
ANTUNES, António Lobo. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
149
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio
Guerra Neto e Celina Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. v. 1. p. 12.
82
A leitura de seu texto nos coloca diante de uma teia sintática e de uma armação
semântica muito engenhosas. Porém, se tematicamente sua narrativa não diverge tanto da
de outros literatos, contemporâneos seus ou não, no que diz respeito ao domínio
fraseológico e, portanto, ao aspecto do detalhamento gráfico e estilístico, sua escrita é
realmente singular.
Podemos afirmar que, desde seu primeiro livro, Lobo Antunes propõe uma espécie
de jogo intersemiótico, pois é claramente perceptível o acentuado grau de sistematização
que o autor consegue alcançar ao reunir, em um plano verbal, referências sobre as mais
diferentes áreas artísticas, produzindo uma enorme rede intertextual e um amplo mosaico
de montagens híbridas e bastante complexas. Segundo Lucia Santaella, um processo
intersemiótico acontece quando a linguagem de uma matriz semiótica penetra outra
linguagem de outra matriz semiótica. Isso acontece constantemente, uma vez que as três
grandes matrizes da linguagem – verbal, sonora e visual –, segundo Santaella:
150
HOEK, Leo. H. “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática”. In: ARBEX, op. cit.,
p. 172.
151
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na
hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 2013. p. 371.
83
152
SEIXO, Maria Alzira. “Danças com letras – Intersemioticidade em António Lobo Antunes”. In: ______.
As Flores do Inferno e Jardins Suspensos. Lisboa: Dom Quixote, 2010. p. 281-282.
153
Ibid., p. 282.
154
Loc. cit.
84
Todos esses sistemas fazem com que o espaço do texto se movimente ora como
corpo linguístico dançante, ora como conjunto de planos fotográficos sobrepostos em uma
velocidade cinematográfica, e ora como uma tela onde o pincel esboça seu passeio
livremente. Cada um deles diz respeito, ainda que de forma bastante variada, à plasticidade
naturalmente dinâmica de sua linguagem.
Por isso, optamos por analisar especialmente os aspectos pictóricos que o texto de
Lobo Antunes nos deixa ver. Muito mais do que ler, pretendemos ver sua escrita. Ver
como ela se manifesta. Ver também para mostrar que ela não é estritamente verbal, mas
sim um objeto artístico plástico e, portanto, também visual.
Para que a análise seja feita de forma mais detalhada e organizada, faz-se necessária
a construção de um panorama de leitura imagética de sua obra. Afinal, conforme
mencionado anteriormente, o trabalho intersemiótico acontece desde o primeiro livro do
autor português e continua crescendo e se modificando à medida que ele desenvolve sua
estilística e ganha, graças à intensa e ininterrupta atividade de (e)laboração, um alto grau
de refinamento.
Paul Delvaux (1897-1994), Jan Van Eyck (1390-1441), Johannes Vermeer (1632-
1675), Cimabue (1240-1302), Edgar Degas (1834-1917), Alberto Giacometti (1901-1966),
Diego Velázquez (1559-1660), Rembrandt (1606-1669), Henri Matisse (1869-1954),
Chaïm Soutine (1893-1943), Vincent Van Gogh (1853-1890). Esses são alguns dos
pintores que António Lobo Antunes menciona ao longo da primeira fase de sua escrita e
especialmente em seu primeiro romance: Memória de elefante. Por dar início à carreira
literária do autor português, esse é, sem dúvidas, o livro mais fundamental dessa primeira
fase, em que se agrupam os que denominamos Textos de 1ª Versão.
Os escritos foram assim nomeados porque nessa fase, que segue aproximadamente
até Auto dos danados (1989),155 o autor está literalmente iniciando a prática de escrita e,
metaforicamente falando, rascunhando uma primeira versão de textos para encontrar seu
próprio estilo. No livro de entrevistas, Uma longa viagem com António Lobo Antunes
(2009), organizado por João Céu e Silva, Lobo Antunes afirma: “Tudo o que tenho é meu e
deu-me muito trabalho a encontrar a minha voz. Foram anos, anos e anos e os primeiros
livros ainda têm vozes alheias, que é uma coisa que me desagrada”.156 Logo em seguida,
Céu e Silva faz outra pergunta: “Não conseguir encontrar a sua voz assustava-o?”,157 para a
qual o escritor dá a seguinte resposta: “Claro que assustava! Mais do que isso, era uma luta
constante e estava sempre a sentir outras vozes em cima e a meterem-se na minha”.158
Em Memória de elefante, como o próprio autor afirma, sua escrita está repleta de
referências e vozes e ainda se manifesta em um formato aparentemente mais tradicional,
estruturalmente mais linear e gramaticalmente mais próximo da norma culta. Porém,
Segundo Maria Alziro Seixo, esse livro, bem como os demais romances da primeira fase,
na verdade, já
155
ANTUNES, António Lobo. Auto dos danados. São Paulo: Best Seller, 1985.
156
SILVA, op. cit., p. 31.
157
Loc. cit.
158
Loc. cit.
86
Apenas alguns desvios formais, realizados com intuito estilístico, acontecem ainda
em pequena escala, causando uma espécie de pequeno ruído visual no texto, como
podemos notar no seguinte excerto:
159
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de
leitura. Lisboa: Dom Quixote, 2002. p. 15.
160
ANTUNES, António Lobo. Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 184-185.
87
A passagem ajuda-nos a perceber que, desde o início, Lobo Antunes já ensaiava uma
narrativa visual, que nesse primeiro momento, porém, é estruturalmente diferente do que
virá a produzir no que chamamos aqui de segunda fase de sua carreira. Note-se que as
imagens produzidas são, no geral, de caráter semântico e metafórico. O narrador descreve
os sentimentos do protagonista, realizando um processo de tradução sui generis, pois capta
elementos bastante subjetivos. As imagens simples são transformadas pelo olhar criativo e
detalhista do narrador. Um homem comum transforma-se em um corcunda; o Casino, no
quarto de Marcel Proust; a mulher idosa, numa jiboia; e o cigarro produz não uma simples
fumaça, mas “espirais de desistência”. O mecanismo de produção imagética, como
podemos observar, já se constrói de maneira inusitada, pois o narrador capta aquilo que
não pode ser representado objetivamente. Ele nos induz a tentar visualizar uma espécie de
invisível que, ao mesmo tempo, modifica e potencializa semanticamente os elementos
indicados.
O trecho também foi escolhido por nos oferecer um indício muito importante. É
sabido que Lobo Antunes é um escritor bastante culto, no sentido de amalgamar um
conhecimento muito amplo e igualmente variado sobre os mais diversos assuntos. Já foi
dito, no início deste capítulo, que sua escrita manifesta um intenso diálogo com outros
sistemas de signos, tais como o cinema, a arquitetura, a fotografia, a dança, enfim, as artes
de maneira geral. Em sua primeira fase de escrita, o autor produz uma textualidade visual a
partir, basicamente, do procedimento narrativo e descritivo. Descreve objetos, pessoas e
mesmo os sentimentos num fluxo intensamente metafórico. Além disso, fato que mais nos
interessa, ele, mais do que apenas descrever, menciona objetivamente variados nomes
artísticos, dando ao exercício descritivo um resultado semântico-visual singular. Um único
parágrafo ou uma única palavra são capazes de dar ao texto uma enorme carga de
visualidade. É o que acontece por exemplo na seguinte passagem:
161
Ibid., p. 157.
88
Para descrever a noite de Lisboa, Lobo Antunes recorre a pelo menos três processos:
o metafórico, o intertextual e o intersemiótico. Graças a isso, um simples parágrafo produz
uma abertura mental-ótica vertiginosa naquele que o lê. Para alcançar o que o olho do
narrador é capaz de ver na noite de Lisboa e o que ele consegue sentir e captar dessa noite,
precisamos realizar uma espécie de tradução verbo-imagética. Somos levados a acionar
uma memória visual para construir, colorir, completar ou, pelo menos, esboçar o quadro
textual que se nos apresenta.
Ainda assim, estranhamos a imagem que se forma em nossa visão mental, pois os
elementos que nos são dados pelo narrador: um substantivo incomum – a noite de Lisboa;
e seus inusitados adjetivos – morar num romance de Eugene Süe com página para o Tejo;
telhados onde florescem plantações de antenas idênticas a arbustos de Miró –, não são
suficientes para construir com clareza um quadro mental. Como imaginar tal noite?
Acessar a atmosfera do romance de Eugene Süe é tarefa difícil, afinal, trata-se da tentativa
de compilação de um efeito geral de leitura que nunca será o mesmo para todos.
A pintura de Joan Miró (1893-1983), por outro lado, um pouco mais acessível, ajuda-
nos a compor o quadro criado na passagem acima. A dificuldade, nesse caso, está no fato
de que Lobo Antunes geralmente cita o nome do artista e não o nome dos quadros. Dessa
maneira, o leitor é levado a atravessar, a cada nova referência, um novo universo de signos
sempre muito amplo. No caso de Miró, poderíamos imaginar qualquer pintura que
tematicamente nos lembrasse uma “plantação de antenas” ou que fizesse alguma referência
à noite. Escolhemos, com base nesses pequenos detalhes, a seguinte tela:
89
Figura 16: The nightingale’s song at midnight and the morning rain. Joan Miró, 1940.
162
Segundo Julio Plaza, “cada sistema de sinais constitui-se segundo a especialidade que lhe é característica e
que pode ser articulada com os órgãos emissores-receptores, isto é, com os sentidos humanos. Estes
produzem as mensagens que reproduzem os sentidos”. (PLAZA, op. cit. p. 45.)
90
A ecfrase é o encontro mais estreito entre o texto e a imagem, porém, ela pode
também não ser real, isto é, pode fazer alusão a elementos inexistentes ou fictícios,
deixando a obra que a evoca ainda mais labiríntica, pois o espectador é levado a criar por
sua conta o elemento evocado. Peter Wagner diz, concordando com W. J. T. Mitchell, que,
apesar de nem sempre evocar elementos verdadeiros, toda ecfrase é nocional, pois procura
criar uma imagem específica, a qual pode ser encontrada apenas no espaço que dela faz uso
e que passa a funcionar como uma espécie de residência estrangeira.165
163
WAGNER, Peter. “Introduction: Ekphrasis, Iconotexts, and Intermediality – the state(s) of the Art(s)”. In:
Icons – Texts – Iconotexts: Essays on Ekphrasis and Intermediality.Berlim/New York: Walter de Gruyter,
1996, p. 10.
164
“Consisting of the prefix ‘ek’ (or ‘ec’ and even ‘ex’) meaning ‘from’ or ‘out of’, and the root term
‘phrasis,’ a synonym for the Greek, lexis or hermeneia, as well as for Latin diction and elocution (the verb
phrazein denotes ‘to tell, declare, pronounce’), ekphrasis originally meant ‘a full or vivid description’”.
(WAGNER, Peter, op. cit., p. 12.)
165
Loc. cit.
166
“florid effeminacies of style”. (WAGNER, Loc. cit.)
91
precisa ser literária. O teórico afirma ainda que é cada vez mais difícil distinguir um texto
literário de um texto crítico, pois se a ecfrase é “a representação verbal de uma
representação visual”, isso quer dizer que todo comentário verbal sobre imagens é uma
ecfrase.
Para Gisbert Kranz, estudioso alemão retomado por Claus Clüver no livro Poéticas
do visível, os poemas ecfrásticos podem sem classificados segundo seu objetivo – que pode
ser descritivo, panegírico, pejorativo, didático-moralista, político, etc. –; e podem ser
classificados segundo sua realização – quando produzem um efeito de transposição, de
suplementação, de associação, de interpretação, de provocação, de jogo ou de
concretização.167 Com base na colocação de Krans, Claus Clüver faz referência à afirmação
de Roman Jakobson sobre a possibilidade de tradução de imagens. Para Jakobson existem
três maneiras diferentes de interpretar um signo verbal:
Considerando a divisão feita por Jakobson, podemos dizer que, em sua fase inicial de
escrita, Lobo Antunes utiliza as três formas de interpretação dos signos verbais, mas inova
ao produzir transposições intersemióticas que extrapolam a tentativa de dar voz a uma
imagem supostamente silenciosa. Claus Clüver argumenta que
[...] decidir que um poema ekprástico pode ser lido como uma
transposição não significa aumentar ou diminuir a sua importância.
Simplesmente significa que os leitores realizarão operações que não
realizariam caso decidissem que tal leitura não fosse possível.169
167
CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, op. cit., p. 111.
168
Ibid., p. 112.
169
Ibid., p. 119.
92
Se levarmos em conta que Lobo Antunes convida para o seu texto não apenas
imagens ou pinturas propriamente ditas, mas filmes, marcas comerciais, localidades,
nomes de artistas de toda espécie e muitas referências literárias – as quais podem figurar
numa mesma página – uma impressão ainda mais aguda de distorção, dinamismo,
ambiguidade e desdobramento pode ser sentida pelo leitor. Para visualizarmos um pouco
mais do espaço narrativo construído pelo escritor português, precisamos acessar todos
esses outros universos artísticos, os quais nem sempre são de antemão conhecidos por nós
leitores.
170
Ibid., p. 130.
171
Ibid., p. 10.
93
em “ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica”,172 em
que figuram personagens dotados de “halo de anjo medieval”.173 Vejamos:
172
Loc. cit.
173
Loc. cit.
94
Figura 18: La Vierge et l’Enfant em majesté entrouré de six anges. Cimabue, 1270.
Eis a virgem pintada em cores ocres e os halos dos anjos medievais que juntos dão à
cena um aspecto ainda mais envelhecido, o que ajuda a compor a atmosfera memorialística
que inclusive dá nome ao primeiro romance de Lobo Antunes.
Um segundo elemento da descrição feita no texto facilitou a escolha por uma tela de
Paul Delvaux: os “manequins de espanto nu em gares que ninguém habita”.175 Duas telas
foram selecionadas:
174
Loc. cit.
175
Loc. cit.
96
A nova percepção, possibilitada pelo exercício visual de leitura das telas, traz para o
interior do texto de Memória de elefante uma significativa ampliação descritiva e,
consequentemente, interpretativa. Percebemos que pelo menos dois tipos de leitura são
possíveis: o primeiro, mais superficial e mais vago, já que não extrapola o texto do
romance em si; e o segundo, muito mais detalhista porque se realiza em conjunto com uma
leitura paralela intersemiótica, que por sua vez funciona como uma lente de aumento
semântico-visual.
Apesar de mencionar o nome do pintor, o narrador evoca um aspecto que não diz
respeito diretamente à temática geral de uma obra específica, mas ao elemento surgido do
processo de envelhecimento dos quadros. O narrador menciona as fissuras e os vincos
surgidos sob a tinta seca, os quais podem ser vistos, por exemplo, nesta famosa tela:
Figura 21: The Girl With a Pearl Earring. Johannes Vermeer, 1665. (detalhe)
176
Ibid., p. 15.
98
responsável por causar “as redes de fendas”177 na tela, ganha um novo sentido, pois no
rosto da personagem do romance, passam a significar o envelhecimento do próprio sujeito.
Faz-se necessário, pois, deslocar aquilo que o quadro não tematiza, traduzindo o efeito
temporal técnico para um efeito temporal metafórico e semântico no romance.
Famoso pelas inúmeras esculturas que reproduzem a figura humana sempre muito
verticalizada e delgada, Giacometti realizou um trabalho único em que a linha assume
enorme expressividade e simplicidade na caracterização das formas e dos volumes,
conforme podemos notar na seguinte escultura:
177
Loc. cit.
178
Ibid., p. 23.
99
Note-se que um simples elemento – o perfil esguio da personagem – ganha uma nova
dimensão assim que observamos a obra do referido artista. O formato da estátua encaixa-se
tão perfeitamente bem à descrição que faz com que a escultura também seja afetada pela
passagem do livro. Em outras palavras, não apenas o elemento descrito na narrativa ganha
maior relevância semântica assim que observamos a escultura, como também o aspecto
esguio da própria estátua é intensificado. Ao olharmos para a obra plástica, já munidos das
lentes do adjetivo fornecido pela narrativa – perfil esguio – procuramos por esse adjetivo e
o encontramos absolutamente explícito. É como se a estátua, agora, não fosse nada além do
adjetivo. Ela é puramente e surpreendentemente esguia.
De longe em longe cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa assim, que
gosta de nós não apesar dos nossos defeitos, mas com eles, num amor
simultaneamente desapiedado e fraternal, pureza de cristal de rocha,
aurora de maio, vermelho de Velázquez. 179
Figura 23: The Infanta Maria Marguerita in pink. Diego Velázquez, 1659.
179
Ibid., p. 30.
180
Loc. cit.
101
181
Loc. cit.
182
Ibid., p. 45.
102
Figura 24: Self-Portrait in a plumed hat. Rembrandt, 1629. Figura 25: Selfie-Portrait. Rembrandt, 1669.
Eu sou um homem de uma certa idade, citou ele em voz alta como
sempre lhe acontecia quando Lisboa, num gesto meditativo de lagosta de
viveiro, lhe apertava as pinças em torno dos tendões do pescoço, e casas,
árvores, praças e ruas penetravam tumultuosamente na sua cabeça à moda
103
Após olharmos alguns quadros de Chaïm Soutine, temos a impressão de que esses
foram especialmente pintados para ilustrar a cena descrita pelo narrador do romance,
tamanha a coerência existente entre ambas as produções artísticas:
De fato, toda a cena pintada na tela expressionista parece movimentar-se num gesto
tumultuoso e movediço. E é exatamente este – a sensação de movimento – o elemento
transposto para o romance. A partir de técnicas completamente diferentes, ambos os
artistas – Lobo Antunes e Soutine – conseguem evidenciar algo invisível aos olhos físicos
que leem o texto ou observam a tela: o movimento. Podemos dizer que ambos tornam
183
Ibid., p. 84.
104
presente aquilo que objetivamente está ausente e que só pode ser sugerido. Apesar disso,
ao olharmos o quadro ou lermos o excerto, aquilo que não está diretamente explicitado é
aquilo que mais se faz notar.
184
Ibid., p. 93.
105
quadro de Matisse [...]”.185 Com base nas palavras “tardes”, “cor” e “luz”, escolhemos o
seguinte quadro:
Figura 29: Glimpse of Notre-Dame in the late afternoon. Henri Matisse, 1902.
técnica e o seu estilo, isto é, o modo singular com que o artista lança as cores na tela, para
produzir “tardes assim, perfeitas de cor e luz”.186
O jogo de cores é bastante evidente. Mas, a iluminação, tão explícita, só pode ser
alcançada através de um exemplar trabalho com a técnica. Matisse faz com que vejamos
luz, sombra e contorno onde na verdade só existe tinta. A conjugação da técnica e do estilo
é o fator que faz com que, aos olhos do narrador, as telas sejam “perfeitas”. A perfeição
técnica ou estilística, dessa vez, é o aspecto transposto para a espaço textual, enquanto
auxiliar descritivo ecfrástico.
Mais uma vez, Lobo Antunes coloca-nos diante de manifestações verbais e visuais
difíceis de serem completamente assimiladas. Por não indicar um quadro ou objeto
específicos, dificulta a nossa busca pela imagem adequada ao mesmo tempo em que nos dá
maior liberdade. Percebemos que ele opta pela menção generalizada de uma obra artística
escolhendo determinados conectores intersemióticos, elementos que, embora estejam em
espaços diferentes, apresentam similaridades que os fazem dialogar. Seu texto deixa de ser,
dessa forma, uma simples tradução. Conforme explica Julio Plaza:
A tradução intersemiótica, ainda segundo Plaza, está pautada no uso material dos
suportes, “cujas qualidades e estruturas são interpretantes dos signos que absorvem,
servindo como interfaces”.188 Nesse sentido, entendemos que mais do que interpretar
signos linguísticos por outros não-linguísticos, Lobo Antunes consegue recriar e
movimentar as superfícies semânticas dos objetos que ele faz dialogar, realizando uma
verdadeira transposição intersemiótica. Leo Hoek afirma sobre isso que: “quanto mais o
discurso secundário se aproxima do discurso primário, mais ele corre o risco de ser
186
Loc. cit.
187
PLAZA, op. cit., p. 39.
188
Ibid., p. 65.
108
Nessa passagem não apenas o pintor é mencionado, como também a sua fala: “tentei
exprimir com o vermelho e o verde as terríveis paixões humanas”.191 Temos uma ecfrase
duplamente intertextual. Com base nas cores citadas pelo próprio Vincent Van Gogh,
encontramos as seguintes telas:
189
HOEK, op. cit., p. 178.
190
ANTUNES, op. cit., 2006, p. 132.
191
VAN GOGH, apud CHIP, Herschel B. Teorias da Arte moderna. Tradução de Waltensir Dutra. São
Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 32.
109
Figura 30: The Old Tower in the Fields. Vincent Van Gogh, 1884.
Figura 31: Peasant Woman by the Heart. Vincent Van Gogh, 1885.
110
Dentre tantas telas, escolhemos justamente as que foram pintadas, em sua quase
totalidade, apenas com as variações de cada uma das duas cores citadas. Nosso objetivo é
perceber, em ambos os trabalhos, a maneira como, através da cor, Van Gogh consegue
expressar as “terríveis paixões humanas”.192 Em ambos os quadros, parece-nos que a
solidão e a melancolia são os sentimentos mais presentes, mas, obviamente, antes de
procurarmos pelas telas e cores, já nos deixamos influenciar pela cor semântica do texto,
agudamente triste, resignada e literalmente feita em pedaços. É o que nos confirma mais
este seguinte trecho:
A Guernica, um dos trabalhos mais famosos das Artes Plásticas, é realçada, aqui, a
partir de uma visão também duplamente significativa. Além de reproduzir um cenário
desorganizado como o da narrativa, não podemos deixar de considerar que, ao pintar
Guernica, Pablo Picasso tenha realizado um trabalho esteticamente cubista. Nesse sentido,
a referência textual torna-se duplamente significativa porque evoca tanto a “devastação”
temática quanto a característica essencial da estética cubista: a tentativa de decomposição
dos objetos.
192
Loc. cit.
193
ANTUNES, op. cit., 2006, p. 162.
111
194
Ibid., p. 176.
112
195
Ibid., p. 195.
114
Mais uma vez, a narrativa nos apresenta uma referência pictórica incomum. Afinal, a
tela tenta representar, através do grupo de homens, dois elementos invisíveis: a cegueira e
o movimento da caminhada tateante e lenta, que é bruscamente interrompida pela queda
daquele que guia o grupo. Apesar de reproduzir um instante imagético, a tela nos mostra o
caminhar errante e trôpego dos cegos, consequência de suas cegueiras. Um novo
desdobramento semântico e pictórico se constrói, desta vez com um aspecto paradoxal.
Afinal, é graças à visão que podemos enxergar o invisível presente na tela e a cegueira das
personagens representadas. Podemos entender, então, que Lobo Antunes traz para o texto o
invisível da imagem, sugerindo-nos, talvez, que também devamos levar em conta aquilo
que o texto não nos deixa ver, mas que insiste em se fazer presente.
A ecfrase produzida nos ajuda a compreender que “há um visível que não produz
imagem e que há imagens que estão todas em palavras”.196 De acordo com Jacques
Rancière:
[...] o regime mais comum da imagem é aquele que põe em cena uma
relação do dizível com o visível, uma relação que joga ao mesmo tempo
com a sua analogia e sua dessemelhança. Essa relação não exige de forma
alguma que os dois termos estejam materialmente presentes. O visível se
deixa dispor em tropos significativos, a palavra exibe uma visibilidade
que pode cegar. 197
Fizemos uma análise um pouco mais detida de seu primeiro romance para
percebermos de que maneira se estabelece a relação tão conflituosa, mas tão instigante
entre o visível e o dizível. E também para percebermos como o autor adentra o universo
pictórico das artes plásticas mesmo sem manifestar esse objetivo explicitamente. Essa
primeira análise funciona como parâmetro, a partir da qual poderemos acompanhar de
196
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012. p. 16.
197
Loc. cit.
115
E você como faz? Imagino-a, sabe como é, num cenário a meio caminho
entre a filosofia oriental e a esquerda ponderada e lúcida, para quem Maio
de 68 representou uma aborrecida doença da infância, que reduziu o
sonho ao marxismo desencantado, utilitário e cínico de certas burocracias
do leste: muitas almofadas pelo chão, um odor de incenso e de patchouli
a flutuar sobre os bibelots indianos, um gato siamês desdenhoso como
uma prima-dona, livro de Reich e Garaudy a prosseguirem nas prateleiras
os seus monólogos veementes de profetas, a voz de Leo Ferré que emerge
em espirais de paixão febril do gira-discos. Arquitectos de bigode,
cuidadosamente malvestidos, ocupam de tempos a tempos, a sua cama de
ferro de antiquário de Sintra. Enchendo de pontas de cigarro sem filtro os
cinzeiros design, ou afagando os cabelos hirsutos do peito em
elucubrações onde se adivinham perfis de supermercados por projetar. De
manhã, a porteira intratável e gorda, recolhe os caixotes do lixo
vociferando insultos silenciosos pelas sobrancelhas pesadas de buldogue.
Do andar de baixo chegam as guinadas furibundas de uma discussão
conjugal, acompanhada do som de loiça que se quebra. Um sol alegre
como o riso de um polícia toca xilofone nas persianas. De chinelos na
cozinha, você prepara um café forte como um electrochoque que a
projecte para fora do seu invólucro de sono na direção do emprego, ao
volante de um R4 creme, de traseira amachucada por um táxi colérico. 199
Podemos perceber, pela estrutura do texto, que o autor começa a construir períodos
verbais bastante longos, em que se arranjam, num coletivo ecfrástico, as mais variadas
referências, fazendo com que a página transborde visualidade.
198
SEIXO, Maria Alzira, op. cit., 2002, p. 15.
199
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 91.
116
A impressão que temos é a de que somos colocados, a cada página, diante de uma
máquina projetora de imagens, de uma “imageria”.200 Daquilo que, segundo Rancière, em
sentido amplo, diz respeito a todas as formas de produção e reprodução de imagens, não
apenas àquelas produzidas por um equipamento imageador. Somos lançados em um
turbilhão imagético, que faz agir no texto uma natureza instável e metamórfica. Cada
referência apresenta um ponto de indecidibilidade e toma alguma coisa emprestada de
outra. Mesmo a imagem que parece ser mais nua e semanticamente mais bem definida, não
escapa ao processo e é marcada pela metamorfose inerente ao caráter fundamental de
indiscernibilidade da escrita.
O texto de Lobo Antunes, mesmo em sua primeira fase apresenta uma abundante
presença do que Rancière chamou de “frase-imagem”. Sua poética reúne, entre os
fragmentos do próprio texto, dentre outras coisas, recortes históricos, reproduções e
combinações fictícias ou não de fotos, quadros, músicas, filmes e todos os afastamentos e
aproximações que suscitam novas formas e significações, fato que
200
RANCIÈRE, op. cit., p. 24.
201
Ibid., p. 40-41.
202
ARBEX, op. cit., p. 37.
203
Loc. cit.
204
Ibid., p. 45.
117
Através dos indícios que se dispersam pelo texto, o leitor consegue reconstruir ou
reconhecer alguns quadros e naturalmente é levado a superpor pelo menos dois estratos
diferentes de sentido.
205
Loc. cit.
206
LOUVEL, Liliane, apud ARBEX, op. cit., p. 49.
207
Ibid., p. 46.
208
Loc. cit.
209
“They integrate the semantic (denotative and connotative) meaning of the written texts that are iconically
depicted, urgind the ‘reader’ to make sense with both verbal and iconic signs in one artifact”. (WAGNER,
op. cit., p. 16.)
118
referências. Assim, o conceito de iconotexto pode ser aplicado tanto às imagens que
mostram palavras ou escritos, como também aos textos que trabalham com imagens.210
Poderíamos dar como exemplo de imagens que mostram palavras ou escritos a obra do
classicista Léonard Defrance (1735-1805):
E para darmos um exemplo de texto que trabalha com imagens, podemos citar a obra
do italiano Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana:
210
Ibid., p. 16-17.
119
Figura 37: A Misteriosa chama da rainha Loana (página), Umberto Eco, 1932.
211
LOUVEL, Liliane. “A descrição ‘pictural’: por uma poética do iconotexto”. In: ARBEX, op. cit., p. 111.
120
Portanto, é possível dizer que estaremos diante de uma “diferença” sempre que
estivermos diante de uma translação poética, já que tal mecanismo evoca uma espécie de
outro do texto, funcionando como uma língua dentro da língua ou como um re-corte de
elementos já pré-recortados.
Diante dos dois exemplos apresentados acima, fica evidente que a narrativa de Lobo
Antunes parece não se adequar perfeitamente ao conceito de iconotexto, por apresentar,
como já mencionado, um aspecto incomum. É necessário lembrar que o caráter
iconotextual de uma narrativa justifica-se pelo fato de ela evocar a “presença de uma
imagem visual”.213 Porém, é possível perceber, especialmente à medida que o autor
português inaugura uma segunda fase de escrita, que o trabalho realizado com a estrutura –
no que se refere ao arranjo gráfico e à espacialização – faz com que seu texto se diferencie
das narrativas iconotextuais produzidas por outros escritores. A iconotextualidade presente
na obra de Lobo Antunes foge, desde o primeiro romance, ao tradicional recurso de
apresentação de imagens concretas por colagem. Aos poucos, a forma (des)arranjada com
que a linha começa a se dispor na superfície da página passa a produzir um delicado e
inusitado desenho verbal, conforme nos mostra a seguinte página do romance A morte de
Carlos Gardel:
212
Ibid., p. 196.
213
Loc. cit.
121
Figura 38: A morte de Carlos Gardel (página), António Lobo Antunes, 1994.
intensidade na segunda fase de sua produção. Dessa forma, o que poderia ser entendido
como resquício de um procedimento ilustrativo torna-se cada vez mais um processo
instaurador de um laço mais legitimamente intrínseco entre pintura e poesia, já que o texto
se transforma cada vez mais estruturalmente ao ganhar importância visual, exibindo-se
mais e mais enquanto desenho que, dotado de linhas, se esboça em uma superfície.
Naquela que consideramos, para efeito de pesquisa, ser a segunda fase de sua escrita,
António Lobo Antunes corajosa e sutilmente começa a explorar com maior intensidade o
potencial plástico de sua letra. Percebemos que o fascínio pelo visual se desdobra na
tentativa de adentrar literalmente o espaço visual propriamente dito. As operações de
oscilação, que acontecem a partir do diálogo entre dois sistemas de significação – verbal e
visual – produzem um efeito de leitura muito diferente daquele experimentado na primeira
fase de sua carreira.
É possível notar um movimento, ainda não totalmente estabilizado, que nos leva do
ler ao ver através de pequenos efeitos visuais, que não param de perturbar a superfície do
legível. As interferências provocadas por esse novo dinamismo produzem, conforme
explica Liliane Louvel, “um vai-e-vem entre os dois media que se faz ler na temática
estrutural do ver de perto/ver de longe, quando o desejo da imagem de entrar no texto se
desdobra em desejo do sujeito de entrar na pintura”.214
214
LOUVEL, apud ARBEX, op. cit., p. 49.
123
espaçamento da página. A relação passa a ser mais homoplásmica, pois as imagens, agora,
prendem-se, de certa forma, à letra do texto “captadas na dimensão do legível.”215
215
Ibid., p. 53.
216
O Paulismo é, de acordo com Paula Cristina Costa, a primeira corrente literária do modernismo português
que, nascido em 1913, data em que Fernando Pessoa escreve o poema Pauis, defendia a ideia de que o poeta
moderno deveria tentar conciliar a “materialização do espírito” com a “espiritualização da natureza”. “Numa
harmonia de contrários, procurada entre uma poesia simultaneamente objectiva e subjectiva, uma poesia da
alma e da natureza”. Segundo Paula Cristina Costa, “o Paulismo utilizava diversos recursos formais e
estilísticos, tais como a utilização da forma verbal reflexa (‘oco de ter-se’; ‘mar sobre o não conter-se’), a
sucessão de imagens/ metáforas que desenvolvem estados de alma crepusculares e estagnados de modo vago
e complexo, como aliás, os simbolistas já o faziam (‘o Azul esquecido em estagnado’, ‘Fluido de auréola,
transparente de Foi, oco de ter-se...’), para além de outros recursos paralelos, tais como as primeiras
exercitações de estilo heteronímico que Pessoa já então ensaiava, quanto a um interseccionismo pessoal,
entre um eu e um outro, bem visíveis em versos como ‘o Mistério sabe-me a eu ser outro’. Nessa sucessão,
por vezes caótica ou quase aleatória de imagens [...] nota-se já, se bem que de modo talvez ainda
inconsciente, os princípios do Cubismo, que desde pelo menos 1909, já tinha em Paris as suas primeiras
manifestações”. (COSTA, Paula Cristina. “Paulismo”. In: MARTINS, Fernando Cabral (Coord.). Dicionário
de Fernando Pessoa e do Modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. p. 610.)
217
COSTA, Paula Cristina. “Interseccionismo”. In: MARTINS, Fernando Cabral (Coord.). Dicionário de
Fernando Pessoa e do Modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. p. 364.
218
Loc. cit.
219
Ibid., p. 363.
124
220
Ibid., p. 365.
221
COSTA, Paula Cristina. “Paulismo”. In: MARTINS, op. cit., p. 610.
222
Ibid., p. 608.
223
Ibid., p. 611.
125
As artes consideradas plásticas são, pois, todas as artes cujas ações sejam capazes de
modelar, modificar ou mesmo criar uma forma, já que criar diz respeito à capacidade de
dar forma ou transformar algo. E nesse sentido é que entendemos que outras artes, apesar
de não serem rotuladas como tal, também apresentam uma linguagem plástica.
Portanto, o fato de a Literatura – a arte das palavras – não ocupar a categoria de Arte
Plástica, não anula a plasticidade de seu objeto: a linguagem verbal. Sempre que nos
ocuparmos em entender a forma de uma linguagem verbal, estaremos analisando a sua
plasticidade. E, dessa maneira, quanto mais inusitado for o trabalho com a forma de um
escrito, maior será o grau de plasticidade do mesmo.
224
HOUAISS, António; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss de
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 2235.
225
Loc. cit.
226
Loc. cit.
227
Loc. cit.
228
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedethti.
São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 765.
229
Loc. cit.
127
suporte ao registro, afinal, ela também pode ser entendida como o resultado de um trabalho
que, embora realizado a partir de precisas marcações e recortes, consegue dar a algo uma
forma diferente daquela que apresentava originalmente.
[...] dizer que [a cera] é material plástico é desde logo dizer que toda ela
dá de si, quase sem resistir, em cada gesto técnico, em cada forma que lhe
queremos impor. Vai exatamente onde se lhe ordena: deixa-se cortar
como manteiga pelo cinzel do escultor, deixa-se aquecer e modelar
facilmente pelos dedos, deixa-se fundir nos moldes onde ganha volume e
textura com surpreendente precisão. 230
A partir das características dadas por Didi-Hubermam é possível pensar nos mais
variados materiais de composição. O conjunto escultórico Laocoonte, por exemplo, apesar
de seu suporte marmóreo, consegue expressar um alto nível de plasticidade, graças a uma
elevada precisão técnica. O corpo das personagens esculpidas sugere o movimento e a
consequente instabilidade semântico-expressiva daqueles que manifestam dor.
Fica claro que quanto maior a resistência de um material, aparentemente menor é seu
grau de plasticidade. Porém, a plasticidade também pode ser alcançada, enquanto
resultado, pela capacidade técnica de dar forma a uma matéria dura. Quando o trabalho de
elaboração de formas consegue dar a uma matéria pouco maleável, um formato capaz de
sugerir movimento, transitoriedade, instabilidade, indefinição e elasticidade, produz um
efeito plástico capaz de disfarçar a natureza rígida de um material.
Quando comparamos o grupo escultórico com outra obra, feita com o mesmo
material e com a mesma técnica, a percepção sobre o aspecto plástico dos objetos fica mais
evidente:
230
DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas: Ensaios sobre a aparição, 2. Tradução de António Preto (et al.).
Lisboa: KKYM, 2015. p. 187.
128
O mesmo exercício analógico pode ser feito com textos literários. Porém, já que
pretendemos analisar a homologia estrutural da obra literária de Lobo Antunes com relação
à pintura, faremos um recorte que centralize o aspecto formal em detrimento do semântico,
realizando, obviamente, algumas incursões ao campo temático de seus textos literários
sempre que necessário. Afinal, compreendemos que a plasticidade pode estar presente
tanto na estrutura de um objeto – seja ele de que espécie for – quanto em sua semântica, já
que o trabalho com a forma está presente em ambos os níveis. Podemos perceber isso em
muitos escritos, pois variados são os textos que apresentam uma arquitetura linear mais
130
“dura”. Entendemos que escritos que apresentam um encadeamento narrativo linear – com
início, meio e fim bem demarcados – e que não arriscam tantas fragmentações ou
desmontagens verbais, sejam estruturalmente menos plásticos que os que desenvolvem
sobreposições, desmontagens, recuos, avanços, repetições e suspenções frasais pelo
simples fato de produzirem uma atmosfera irregular e instável para a leitura.
Poderíamos pensar, para darmos apenas alguns exemplos, em escritos tais como O
cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913); Ulisses (1922), de James Joyce (1882-
1941); Ficções (1944), de Jorge Luís Borges (1899-1986); Em busca do tempo perdido
(1913), de Marcel Proust (1871-1922); e Os Cantos (1948), de Ezra Pound (1885-1972).
Não objetivamos, obviamente, definir um juízo de valor para tais obras, haja vista o
caráter naturalmente plástico que todos apresentam pelo simples fato de serem obras
primas literárias. Porém, podemos, ainda que superficialmente, salientar a intensidade
plástica de cada obra, a qual pode variar de acordo com as comparações que um leitor
quiser realizar. O escrito do naturalista brasileiro Aluísio Azevedo, apesar de apresentar
uma linguagem mais objetiva e uma regularidade na escrita e de não desenvolver
experimentações formais muito inusitadas, mantém o seu caráter plástico – mais
intensamente em nível semântico – graças ao efeito de esgarçamento temporal que as
minuciosas e, consequentemente, lentas descrições produzem. Tal efeito leva-nos a pensar
no Em busca do tempo perdido, de Proust ou mesmo no Ficções, de Borges, cujas
estruturas lineares e desprovidas de construções formais muito irregulares e inovadoras,
também são semanticamente bastante plásticos, já que são capazes de causar um intenso
efeito de elasticidade temporal e de vertigem espacial. As escritas de Joyce e de Pound, por
sua vez, são visivelmente mais plásticas em suas estruturas, uma vez que assumem uma
significativa inovação formal, a qual reverbera diretamente ao mesmo tempo em que é
reflexo do aspecto semântico do texto. O alto grau de plasticidade estrutural dos escritos
desses dois autores deve-se justamente ao fato de que elas conseguem sugerir em sua
arquitetura verbal a ideia de movimento, de transitoriedade, de instabilidade, de indefinição
e de elasticidade, aspectos que contradizem e desobedecem a natureza estática e rígida do
suporte em que se manifestam.
À medida que avançamos na leitura das obras de Lobo Antunes, por sua vez,
percebemos claramente que sua escrita se modifica consideravelmente a cada livro e ganha
131
novos efeitos plásticos. Aos poucos, ela adquire mais e mais plasticidade estrutural e, por
isso, podemos dividi-la, ainda que de maneira aparentemente arbitrária, em duas fases
distintas: a primeira, cuja forma dos textos é mais linear e, portanto, aparentemente mais
rígida; e a segunda, em que o autor “despenteia a prosa”,231 destituindo o texto de seu
formato tradicionalmente linear.
Nessa segunda fase, seu texto, como o próprio autor diz, está “muito mais expurgado
de imagens”.232 Lobo Antunes abandona o trabalho de escrita ecfrástico e passa a trabalhar
mais diretamente a forma de sua escrita, modelando-a de maneira “artesanal como um
bordado”.233 O que mais o interessa “não é tentar explicar porque é que fulano fez isto ou
aquilo, mas antes criar atmosferas”.234
231
ANTUNES, António Lobo. “Lobo Antunes: ‘Fui bem comportado durante tempo de mais!’”.
Depoimento. [22 de novembro, 1983, pp. 3-4]. Lisboa: Jornal de Letras. Entrevista concedida a Clara
Ferreira Alves. In: ARNAUT, op. cit., p. 61.
232
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Tornei-me mais humilde...’”. Depoimento. [14 de
abril, 1986, pp. 2-3]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Inês Pedrosa. In:
ARNAUT, op. cit., p. 96.
233
ANTUNES, António Lobo. “A vingança de Lobo Antunes”. Depoimento. [12 de abril, 1986, pp. 31-33].
Lisboa: Expresso/Revista. Entrevista concedida a Clara Ferreira Alves. In: ARNAUT, op. cit., p. 91.
234
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Tornei-me mais humilde...’”. Depoimento. [14 de
abril, 1986, pp. 2-3]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Inês Pedrosa. In:
ARNAUT, op. cit., p. 123.
235
ANTUNES, António Lobo. “Um escritor reconciliado com a vida”. Depoimento. [18 de outubro, 1992,
pp. 24-32]. Lisboa: Público/ Magazine. Entrevista concedida a Ana Sousa Dias. In: ARNAUT, op. cit., p.
147.
236
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Quis escrever um romance policial’”. Depoimento.
[27 de outubro, 1992, pp.8-11]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Luís
Almeida Martins. In: ARNAUT, op. cit., p. 158.
237
Ibid., p. 159.
132
escrita, no sentido em que Roland Barthes entende o conceito de “forma”. Para que uma
obra seja uma forma é preciso que “ela designe verdadeiramente um sentido trêmulo, e não
um sentido fechado”.238 Arriscamos dizer, portanto, que apesar de nunca ter sido fechada,
mesmo em sua primeira fase, a escrita de lobo Antunes ganha “forma” progressivamente e
torna-se cada vez mais “trêmula” tanto semântico quanto estruturalmente.
Se até 1990 Lobo Antunes escrevia “em cadernos timbrados do hospital, cheio de
letrinhas irrepreensivelmente ajustadas, quase sem brancos, nem rasuras, como desenhos
orientais”,239 e produzia esboços que lembram “as folhas manuscritas de Augustina Bessa-
Luís – a mesma precisão, a mesma economia nos espaços, a mesma segurança nas
linhas”,240 a partir de A ordem Natural das Coisas e do Tratado das paixões da Alma, a
narrativa começa a ganhar um significativo grau de plasticidade em sua estrutura. Vejamos
as páginas das duas fases de escrita:
238
BARTHES, Roland. “Nota prévia”. In: Sobre Racine. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. X.
239
ANTUNES, António Lobo. “António Lobo Antunes: ‘Muito escritores têm-me um pó desgraçado...’”.
Depoimento. [5 de janeiro, 1982, pp. 4-5]. Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a
Fernando Dacosta In: ARNAUT, op. cit., p. 50.
240
Loc. cit.
133
Figura 43: Página inicial do romance O meu nome é legião (2007), no original datilografado.
135
Assim que se acostuma com a nova configuração textual, o leitor consegue caminhar
pelo texto com um pouco mais de tranquilidade interpretativa. Porém, sente claramente que
a caminhada se torna gradativamente mais lenta devido ao considerável aumento do áspero
aspecto que as inúmeras e variadas marcações visuais dão ao texto.
241
SEIXO, Maria Alzira. Memória Descritiva: da fixação do texto para a edição ne varietur da obra de
António Lobo Antunes. Alfragide: Dom Quixote, 2010. p. 42.
242
SILVA, op. cit., p. 20.
136
reconhecer o aspecto visual das narrativas, já que boa parte das falhas eram “gralhas
tipográficas”.243
Após passar pelo minucioso trabalho de correção, a obra recebeu então a designação
ne varietur, expressão latina que “significa exatamente: ‘para que não varie’, ou ‘para que
não sofra alterações futuras’”.244 Interessa-nos saber que o ideal das edições ne varietur é
manter a originalidade dos manuscritos, afinal a escrita à mão é um elemento que reflete o
cuidadoso processo de produção antuniano. Sobre isso, Seixo nos revela ainda que:
243
SEIXO, op. cit., 2010, p. 19.
244
Ibid., p. 27.
245
Ibid., p. 31-32.
246
Ibid., p. 32.
137
[...] o texto passa a ser mais nitidamente “pontuado”, não pelos sinais
clássicos, mas por uma hábil montagem de efeitos constituídos por
insistências de expressão, frases curtas, palavras em suspenso, espaços
em branco, como ilhas de sentido à deriva, gestos soltos de uma escrita
desprendida da representação do real, a pretender dar-nos uma outra
espécie de real, com a palavra à solta [...] muitos travessões abrindo falas
que permaneciam solitárias sem diálogo, troços de itálico a
interromperem de vez em quando, esquinadamente, a normalidade
corrente da escrita em tipo redondo, parêntesis que encasulavam outras
frases (ou as mesmas), numa duplicação de espelhos, ou recolha de
segredos, ou timidez de hipóteses, ou insidiosas sugestões, como já
acontecera em Não entres tão depressa nessa noite escura e (mas só
agora eu o via!) em alguns passos de O esplendor de Portugal e
Exortação aos crocodilos. A essas evidencias se juntavam a constatação
de haver páginas e páginas sem pontuação, ou melhor, com uma vírgula
aqui e outra ali, pontos de interrogação (bastantes), muitas repetições e
recorrências de frases (de algum modo provocando efeitos de intensidade
exclamativa, ou dubitação das reticências), até se chegar ao ponto final de
fim de capítulo.249
247
Ibid., p. 95.
248
Loc. cit.
249
Loc. cit.
138
Figura 44: Não entres tão depressa nessa noite escura (página 469).
139
Compreendemos que mais do que linhas e espaços em branco, que juntos desenham
uma abstração estrutural, um movimento das letras, os livros podem ser vistos e
interpretados a partir daquilo que dão a ver, assim como acontece no momento em que
observamos uma tela de pintura e naturalmente tentamos entender sua possível
narratividade.
Notamos, ainda mais fortemente após a leitura do livro-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, que mais do que ver o texto registrado em cada página, era
250
Ibid., p. 103.
251
Loc. cit.
252
Ibid., p. 107.
140
possível apontar para a existência de elementos que também fazem parte da composição
arquitetônica de uma tela, tais como a moldura, a superfície, as linhas e até mesmo a cor.
A rica arquitetura textual de seus livros nos fizeram perceber que seria possível
realizar uma analogia que pudesse homenagear os aspectos mais estruturais de sua
composição. Em nosso terceiro capítulo, iniciamos, então, um exercício de homologia
estrutural que, para além de considerar os aspectos semânticos de seu livro-poema Não
entres tão depressa nessa noite escura, tentou enxergar e identificar os pontos de
confluência estruturais existentes entre a literatura e a pintura.
141
Roman Jakobson
Entendemos que insistir nos diferentes processos de tradução seja muito importante,
haja vista a possibilidade ilimitada de ampliação dos sentidos que a arte é capaz de realizar.
Mas, ao verificamos que nos trabalhos mencionados, as aproximações e as tentativas de
tradução das semioses254 foram feitas naquilo que se refere mais especificamente às
similaridades semânticas presentes em ambas as artes relacionadas, sentimo-nos instigados
a homenagear o processo de diálogo estrutural.
253
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 14.
254
De acordo com Julio Plaza, o signo não é uma entidade monolítica, mas um complexo de relações […]
que caracterizam o processo sígnico como continuidade e devir”. E a “semiose” é justamente “a ação do
signo”, é uma relação de momentos num processo sequencial-sucessivo ininterrupto. (Ibid., p. 17.)
143
Em seu Dicionário de Filosofia, Nicola Abbagnano diz que a palavra “analogia” tem
dois significados fundamentais:
Ainda segundo Abbagnano, Aristóteles fez uso frequente do conceito de analogia nos
seus livros de história natural, dizendo que “são análogos os órgãos ‘que têm a mesma
função’”.257 Por isso, esse conceito revelou-se fundamental para a biologia do século XIX,
“quando, com Georges Cuvier (1769-1832), serviu de fundamento e de ponto de partida
para a anatomia comparada”.258 Foi Richard Owen (1804-1892) – biólogo e anatomista
comparativo britânico – quem primeiro ampliou e estabeleceu as mais importantes
diferenças entre analogia e homologia no ano de 1843. Segundo Owen, análoga é “a parte
de/ou um órgão de um animal que tem a mesma função que uma outra parte ou órgão de
255
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, “estrutura” é, em termos gerais, “o
equivalente a plano, construção, constituição etc.” Abbagnano afirma ainda que a palavra “estrutura”
também “é, por um lado, sinônimo de forma […] e, por outro lado, é sinônimo de sistema, como conjunto ou
totalidade de relações. Foi neste último sentido que essa palavra passou para a linguística, para a estética e
para outros campos em que é hoje costumeiramente usada. [...] Em sentido restrito e específico, a ‘estrutura’
não é um plano qualquer ou qualquer sistema de relações, mas um plano hierarquicamente ordenado, ou seja,
uma ordem finalista intrínseca destinada a conservar o máximo possível seu plano”. Nesse sentido,
empregamos o termo “estrutura” para nos referirmos ao conjunto de elementos – moldura, linhas, cor e
superfície – que estão presentes em um livro (especialmente o poema-livro de Lobo Antunes, escolhido como
objeto de pesquisa), bem como uma tela de pintura. (ABBAGNANO, op. cit., p. 439.)
256
Ibid., p. 58.
257
Loc. cit.
258
Loc. cit.
144
259
HALL, Brian K. (Ed.) Homology: the hierarchical basis of Comparative Biology. Canada: Academic
Press, 2005. p. 40. Segundo Hall, a mais famosa definição dos termos aparece unicamente no glossário de
um estudo publicado em 1843 no Royal College of Surgeons. Owen conceitua os termos da seguinte
maneira: ANALOGUE: a part or organ in one animal which has the same function as another part or organ in
a different animal. See HOMOLOGUE. (p. 374). HOMOLOGUE (Gr. Homos: logos, speech.) The same
organ in different animals under every variety of form and function. (p. 379).
260
ABBAGNANO, op. cit., p. 517.
145
Figura 45: Esqueletos de um humano e de um pássaro para mostrar a homologia óssea (Sociedade de História Natural de
Northumbria).
A leitura do livro-poema Não entres tão depressa nessa noite escura, fez-nos atentar
para aquilo que se expõe aos olhos do observador indiretamente por estar camuflado na
forma de meros arranjos verbais. Interessados em compreender os movimentos de
fabricação do tecido textual antuniano, empreendemos uma primeira leitura para
averiguarmos se realmente existem elementos análogos – e, por extensão, homólogos –
entre o texto do escritor português e a pintura, já que pretendemos confirmar a homologia
estrutural presente entre livro e pintura, bem como a analogia inerente a cada um dos
elementos que compõem tal estrutura.
Ao empreendermos a leitura do livro Não entres tão depressa nessa noite escura
conseguimos construir uma espécie de diagrama – a partir de quatro elementos básicos de
composição: moldura, linhas, cor e superfície – e notamos que os procedimentos de
construção textual sugeriam, para usarmos uma metáfora, a presença de uma “tela verbal”.
Buscamos diversas pinturas que pudessem nos auxiliar a esboçar o gráfico verbal
percebido.
Hoje não podemos ler um poema sem considerar seu aspecto estrutural, sua
dimensão gráfica, sua materialidade. Conforme explica Gonçalves, atualmente “o espaço
entre os signos ou a distribuição do signo no espaço do poema é responsável por efeitos de
sentido que jamais seriam conseguidos se nos mantivéssemos apenas na esfera da
temporalidade”. 263 De acordo com Roland Barthes,
263
GONÇALVES, op. cit., p. 31.
148
Acreditamos que António Lobo Antunes tenha consciência de sua arte e domínio de
seu meio expressivo e, por isso, consiga romper com a “fria” divisão estabelecida entre a
escrita e imagem. Ele é capaz de construir um objeto artístico completo no que se refere à
capacidade de envolver esteticamente aquele que recebe sua obra. Afinal, sua escrita não se
detém a um significado superficial e único. Pelo contrário, ela é uma obra, no sentido em
que Umberto Eco conceitua o termo: “um objeto dotado de propriedades estruturais
definidas, que permitam, mas também coordenem, o revezamento das interpretações, o
264
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1982. p. 27-28.
265
GONÇALVES, op. cit., p. 30.
149
deslocar-se das perspectivas”.266 Mais do que isso, entendemos que seus livros sejam
verdadeiras obras abertas, uma vez que:
Ser leitor de Lobo Antunes significa ser leitor de uma obra aberta e, antes de mais
nada, ser participante e coautor. Significa também transitar entre as estruturas que se
movem e aquelas em que nós nos movemos, já que as linhas de sua escrita parecem se
movimentar ao mesmo tempo em que nossos olhos se movem.
3.1. MOLDURA
Paul Klee
266
ECO, op. cit., p. 25.
267
Ibid., p. 94.
268
KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. p. 45.
150
Pensar em moldura para o livro Não entres tão depressa nessa noite escura de Lobo
Antunes é tarefa desafiadora. Pois, ao mesmo tempo em que ela, a moldura, parece
apresentar-se nitidamente, através de alguns elementos visuais do próprio texto, também
parece se dissolver assim que esses mesmos elementos visuais deixam transparecer
semanticamente a insustentabilidade emolduradora que os constitui.
Uma moldura pode ser criada de modo a evitar que interior e exterior se misturem,
guardando, assim, o máximo do significado autônomo do objeto que delimita. A
ornamentação, ao flutuar e se fechar ao redor da obra, exerce uma espécie de poder
regulador que acentua a distância entre o objeto artístico e seu arredor, de maneira que
cada linha separadora se justifica tanto mais quanto mais ajuda a intensificar ao máximo
uma determinada impressão.
151
269
DERRIDA, op. cit., p. 285.
154
diante de um jogo que Kahlo faz a partir da obra com a própria obra. Jogo que talvez
queira nos dizer algo sobre o excesso de sentido.
[...] aquilo por meio de que um texto se torna um livro e se propõe como
tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público. Mais do que um
limite ou uma fronteira estanque, trata-se aqui de um limiar [...] Zona
indecisa entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior
(o texto) nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla,
ou como dizia Philippe Lejeune, “franja do texto impresso que, na
realidade, comanda toda a leitura”.271
A definição apresentada por Genette nos serve de estímulo a examinar com mais
cuidado aquilo que, às escondidas e com tanta frequência, pode nos auxiliar a ler uma
determinada obra. Ao observarmos a moldura, colocamo-nos, segundo Jacques Derrida,
270
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê, 2009. p. 10.
271
LEJEUNE, Philippe. Le Pacte Autobriographique, Seuil, 1975. p. 45. In: GENETTE, Loc. cit.
155
diante do Parergon, daquilo que “encontra-se mais em torno do que debaixo”272 e que não
deixa, contudo, de “tender também a ser esquecida, lateralizada, deixada em segundo
plano, denegada”.273 Para o filósofo, enquanto receptores pouco atentos, facilmente nos
distraímos e nos esquecemos de tais detalhes, os quais são “ignorados, desconhecidos,
recalcados, denegados, ao passo que a obra não seria nada sem eles”.274
[...] os títulos dos últimos romances do autor, desde Não entres tão
depressa nessa noite escura até O Meu nome é Legião, são constituídos
de conjuntos lexicais de mais de cinco palavras que incluem não apenas
nomes e qualificativos, mas também verbos, como se fizessem parte já
da narrativa, ou formassem, eles próprios, uma pequena narrativa, ou
argumento dela.275
Temos uma impressão semelhante a essa quando procuramos, num sumário, por
um poema sem título. Poesias sem nome, geralmente, são sumarizados pelos versos que
as inicia: o incipt. Para os livros do autor português, tal método de busca funciona da
mesma maneira. No caso específico do livro Não entres tão depressa nessa noite escura,
272
DERRIDA, op. cit., p. 286.
273
Loc. cit.
274
Loc. cit.
275
SEIXO, Maria Alzira. Dicionário da obra de António Lobo Antunes. v. 2. 2008. In: NAVAS, Diana.
Figurações da escrita: a metaficção nos romances de António Lobo Antunes. São Paulo: Scortecci, 2013. p.
42.
156
que recebe em sua folha de rosto a especificação de gênero “poema”, tal constatação se
torna ainda mais evidente.
Não podemos deixar de mencionar ainda, já que nos referimos à poesia, que o
“título-moldura” do livro antuniano é, na verdade, uma paráfrase do verso Do not go
gentle into that good night, que inicia um dos poemas de Dylan Thomas. Vejamos o
poema original e a tradução feita por Augusto de Campos:
Do not go gentle into that good night, Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Old age should burn and rave at close of day; Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
Thought wise men at their know dark right, Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Because their words had forked no lightning they Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Do not go gentle into that good night. Não vai tão docilmente nessa noite linda.
Good men, the last wave by, crying how bright O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Their frail deeds might have danced in a green bay, Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
Wild men who caught and sang the sun in flight, O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
And learn, too late, they grieved, it on its way, Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Do not go gentle into that good night. Não vai tão docilmente nessa noite linda.
Grave men, near death, who see with blinding sight O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Blind eyes could blaze like meteors and be gay, Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
And you, my father, there on the sad height, Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray. Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Do not go gentle into that good night. Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Rage, rage against the dying of light. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
desacostumada cada instante de sua vida – “Rage, rage against the dying of the light”. O
poema nos fala sobre a morte, mas também sobre a vida.
Os paralelos que podemos traçar entre o verso “original” e sua paráfrase são
inúmeros. Ainda que de maneira contorcida, Lobo Antunes mantém, no título de seu
poema, algo da poesia de Dylan Thomas. Contudo, o aspecto que mais nos interessa
destacar é o significado que o autor português introduz no título, ao parafraseá-lo: o
pedido de que não adentremos seu poema com os olhos do costume. Talvez, ele queira
pedir que tentemos conhecer sua escrita com a mesma intensidade com que ela se
constrói.
O jogo se prolonga no título e pelo título. O agrupamento das sete palavras – que
nos remetem ao número que divide o enredo em grandes blocos, os sete dias da criação276
– é iniciado justamente com o advérbio de negação: não. Isso nos ajuda a perceber a ideia
da escrita negativa que permeia o enredo. Negatividade que surge como obstáculo ao ato
de adentrar o poema. O verbo “entres”, usado no modo imperativo, não à toa, é
empregado na segunda pessoa do singular, indicando que o leitor é a pessoa com a qual o
enredo dialoga em forma de alerta. Se parássemos nessa segunda palavra, teríamos a
ideia negativa em sua plenitude, como imperativo: não entres. Porém, a terceira palavra –
tão – abre o caminho ao mesmo tempo em que indica o caráter intensivo do texto.
276
Empregamos o vocábulo “criação” no sentido em que Leyla Perrone-Moisés conceitua: “A palavra
criação supõe o tirar do nada, o tornar existente aquilo que não existia antes. É uma palavra teológica”.
(PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 100.)
158
Ao nos apontar uma possível relação com o momento mais inicial de criação do
mundo, em que “as trevas cobriam o abismo” e em que Deus decide chamar “à luz ‘dia’ e
às trevas ‘noite’”, a palavra “noite”, penúltima do título do livro, além de realizar uma
espécie de colagem do próprio título ao trecho intertextual bíblico, formando uma única
moldura ampliada, indica novamente a conotação “negativa” da narrativa, afinal, o
substantivo nos fala sobre algo obscuro que se opõe à luz e também sobre o momento mais
inicial do ato criativo, o avesso da criação.
Com base nessa construção estrutural, é possível perceber que além da função
composicional da obra literária, a “moldura textual literária” também funciona como
159
A moldura, que até este ponto da análise parece estar completamente formada,
continua se (des)fazendo. Aos elementos paratextuais – título, especificação do gênero e
epígrafes capitulares – Lobo Antunes acrescenta ainda a epígrafe da obra:
277
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. edição. Ne varietur. Lisboa:
Dom Quixote, 2008, p. 8. (Los locos van libres por las salas y pasillos o por las habitaciones de los hombres,
sin que ello inspire el menor recelo de evasión o desorden. Incluso algunos de ellos, pertenecientes a famílias
distinguidas, acompañan a las visitas, hacenlos honores de la casa. Guardanlas más suaves formas de cortesá
y buenaeducacíon.)
160
278
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Semiótica russa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 174.
162
O que podemos considerar como sendo exterior? A paisagem que foi pintada nas
janelas das telas? Ou o espaço onde está aquele que olha os quadros? Como entender a
primeira imagem, por exemplo, cujos cacos de vidro refletem as árvores que estão na
paisagem que podemos ver pela janela da mesma? O reflexo das árvores nos cacos sugere
que as árvores também estejam do lado de dentro da janela, refletindo-se nos estilhaços. A
segunda imagem, por sua vez, cuja moldura está amparada em um cavalete de pintura,
seria, apesar de seu natural caráter exterior e aberto, o ponto mais interno da obra. O que
pensar diante dessa construção ilusória?
163
As perguntas feitas acima estão longe de serem respondidas, porque são avessas a
qualquer tentativa de limitação. Talvez não se trate de reconhecer o mundo e a linguagem
que o traduziria, estabelecendo uma “moldura-ponte” entre a interioridade do sujeito e a
exterioridade do mundo, ou ainda, sobre a exterioridade daquele que olha com relação ao
interior daquilo que está sendo visto, mas de afirmar que o mundo é linguagem e, portanto,
pura possibilidade.
Não há outra maneira de iniciarmos a leitura a não ser aceitando o fato de que essa,
sem que nos déssemos conta, já foi iniciada. Não há ponto de entrada, apenas o meio da
linha infinita, os meios da linha quebradiça e irregular que tentam a todo tempo (de)formar
a imagem que surge da enorme e fluída tela, toda feita de linguagem.
164
3.2. LINHAS
A linha, movimento nascido do ponto, por sua vez “é um ser invisível. É o rastro do
ponto em movimento, logo, seu produto”.282 Pela aniquilação da imobilidade suprema do
ponto, ela é capaz de nos fazer saltar do estático para o dinâmico. “A linha é, pois, o maior
contraste do elemento originário da pintura, que é o ponto”.283
279
KLEE, op. cit. p. 67.
280
KANDINSKY, Wassily. Ponto e Linha sobre Plano. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012. p. 105.
281
Loc. cit.
282
Ibid., p. 49.
283
Loc. cit.
165
Talvez não importe tanto se nos colocamos diante de uma obra de arte visual ou
literária. Plano, pontos e linhas são elementos que se fazem presentes enquanto
construtores primários e fundamentais das duas artes. O desafio, para nós, leitores-
espectadores, está na tentativa de entender como tais elementos funcionam em cada uma
delas e, principalmente, na tentativa de realizar uma aproximação estrutural que nos
ofereça um modo de ver pela leitura ou um modo de ler a imagem.
O texto de António Lobo Antunes, em especial o seu livro-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, mostra-se bastante singular enquanto obra lírico-visual. E
para investigarmos como essa narrativa verbo-visual se desenvolve, daremos continuidade
ao percurso iniciado no subcapítulo anterior, seguindo a linha de sua moldura-título, já que
é ela, a linha aparentemente exterior, que, ao se prolongar no texto propriamente dito,
conduz nosso olhar para o interior do plano textual, em busca de uma primeira
compreensão da composição imagética da obra.
Epígrafe capitular:
284
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 15.
166
(tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi
papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar as
chaves no meio das outras chaves)
e ficava horas seguidas na cadeira de baloiço
(entendo neste momento que era a cadeira de baloiço pelo ruído das
molas)
a olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu pequena a
brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago285
Essa hipótese só pôde ser pensada porque o trabalho com a linha no texto de Lobo
Antunes é radicalmente singular. Ao contrário da composição tradicional, em que a linha,
por apresentar uma natureza secundária em relação ao tema, foi propositalmente
empobrecida e quase que visualmente anulada, para a obra de Lobo Antunes as linhas são
fundamentais, já que o modo como se (des)estruturam na superfície textual interfere
diretamente no processo de interpretação dos possíveis conteúdos temáticos.
285
Ibid., p. 17.
286
MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. In: ______. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 719.
167
A linha, enquanto elemento fundador de uma imagem, talvez tenha sido o aspecto
mais pensado, trabalhado e modificado desde que a pintura foi criada e compreendida
como arte. É possível dizer que o Renascimento criou a pintura, à medida que, até então, o
que era pintado mantinha uma relação muito específica com os limites da superfície que o
continha. Conforme veremos no subcapítulo “Superfície”, tanto nos desenhos feitos em
retábulos quanto nos afrescos murais, as primeiras imagens eram pensadas em conjunto
com a superfície, a serviço de uma função simbólica ou utilitária, enquanto a superfície – o
plano – realizava a importante função de suporte da imagem.
Na tela, A leiteira, mulher que dá nome ao quadro, derrama o leite da jarra de barro
em outro utensílio doméstico. Ao olharmos o fio de leite que escorre da jarra, talvez o
ponto mais central da imagem, para onde também apontam as diagonais de luz saídas de
cada um dos cantos superiores da moldura, bem como o olhar da mulher, a impressão de
profundidade é criada. Poderíamos, obviamente, desviar nosso olhar e fixá-lo em qualquer
outro ponto da tela, já que, conforme explica Umberto Eco sobre a pintura barroca, “as
partes aparecem todas dotadas de igual valor e autoridade, e o todo aspira a dilatar-se até o
infinito”.287 Porém, mesmo ao deslocar seu olhar pela tela, a sensação de profundidade
permanece. Isso acontece porque as linhas presentes funcionam como elemento
287
ECO, op. cit., p. 84.
169
288
MELO NETO, op. cit., p. 704.
289
Loc. cit.
290
Ibid., p. 709.
291
Ibid., p. 692.
170
Podemos fazer a mesma crítica ao campo da literatura, que em seu período clássico –
especialmente no que se refere à produção poética grega, desenvolvida a partir do século
IV a.C. – produziu uma escrita organizada e harmônica, tanto no aspecto estrutural, quanto
semântico. Uma escrita que enaltecia aspectos tais como a verossimilhança, a linearidade e
a formalidade discursiva. Devemos pensar ainda na literatura portuguesa clássica iniciada
292
GONÇALVES, Aguinaldo José. Laokoon revisitado. São Paulo: Edusp, 1994. p. 115.
293
Ibid., p. 169.
171
Parece-nos que o final do século XIX, uma espécie de momento extremo que
corresponde à produção transgressora, responde afirmativamente a essa pergunta, pois é
nessa época que surgem duas importantes obras:
Esses artistas têm sua importância atrelada ao “processo denominado ‘ampliação dos
limites’, bem como à conquista do estabelecimento de um sistema próprio de cada uma,
que justificaria a sua verdadeira fruição”.296 Nessa circunstância, a pintura é liberada de sua
função de “representar o real” e passa a apresentar-se apenas enquanto experiência da
prática de pintura, obtendo, através de procedimentos novos e exclusivos, resultados
impossíveis de serem produzidos de outra maneira. Vejamos, como exemplo, um dos
quadros Monte Santa Vitória, de Paul Cézanne:
294
MELO NETO, op. cit., p. 692.
295
Ibid., p. 167.
296
Ibid., p. 169.
172
Ao ler Não entres tão depressa nessa noite escura, o leitor contribui para com a
construção do mesmo por perceber também visualmente que os fatos são construídos pela
linguagem e não apenas refletidos por ela. Ou seja, é pelo olhar-espectador que o leitor
ajuda a dar concretude visual à arquitetura linguística do poema.
Percebemos que, em primeiro lugar, ele não atribui às formas manifestadas o sentido
e o significado coercitivo que até então lhes eram impostos. Em segundo lugar, ele não
297
“The novel no longer seeks just to provide an order and meaning to be recognized by the reader. It now
demands that he be conscious of the work, the actual construction, that he too is undertaking, for it is the
reader, who in Ingardens’s terms, “concretizes” the work of art and gives it life”. (HUCTHEON, Linda.
Narcissistic narrative: the metafictional paradox. New York: Methuen, 1984. p. 39.)
298
MELO NETO, op. cit., p. 702-703.
299
Ibid., p. 703.
174
estabelece um vínculo tão forte com uma possível realidade, porque, ao que nos parece,
não vê nas formas finais a essência do processo da invenção. Acreditamos que para Lobo
Antunes importam mais as forças formadoras de realização artística do que as formas
finais propriamente ditas e sua aparente organicidade. Retomemos o poema para
entendermos melhor esses dois aspectos.
A voz-linha que o inicia é produzida pela personagem Maria Clara, cujo aspecto
memorialístico nos leva a percorrer pelo menos dois tempos: o passado, de sua infância; e
o presente, de desarranjo familiar. Logo nas primeiras páginas do poema, a voz-linha dessa
personagem começa a ser bruscamente entrecortada por uma polifonia de diferentes vozes-
linhas, as quais serão representadas por parênteses, itálicos, travessões dialógicos ou por
hiatos espaciais que aos poucos carregam o texto com um excesso de lacunas estruturais e
aparentes vazios semânticos. É o que nos mostra o seguinte excerto do texto:
— Não se canse
até que um sulco de rega me cobriu por inteiro e não senti o peso da cal
no caixão nem os passos que se iam embora a caminho da vila
se ficares comigo no Estoril Leopoldina até minha mãe e a minha irmã
chegarem da clínica, o perfume da Ana a dissolver os goivos e o sorriso
dela, não o meu, nunca o meu
(a beleza da sua filha Ana Maia dona Amélia, a simpatia, a figura, a
Maria Clara contrapartida é o homem da casa, sinceramente não entendo
o motivo por que o seu marido a prefere, não penses que digo isso para te
diminuir Clarinha, nem és feia se arranjares de vez em quando o cabelo,
te vestires melhor, te preocupares um bocadinho contigo)
os saltos dela no primeiro andar, fazendo-me ter vergonha dos meus
sapatos rasos
(se te preocupasses um bocadinho contigo, saias em lugar de calças, um
lenço de pescoço
compram-se nos aviões
uma pintura discreta)300
300
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 153.
175
vez, sofre a intervenção de uma outra, apresentada pelos parênteses. A voz que fora
cortada pelos parênteses volta a se fazer presente por um curto momento para novamente
ser atravessada pela linha anterior, trazida pelos parênteses que, assim como as demais,
também sofrerá um corte em seu interior: “compram-se nos aviões”. Percebemos que a
tentativa de organização do poema o deixa ainda mais desorganizado, afinal, parece-nos
que foi feito não apenas para ser lido, mas também para ser visto. Ao olharmos para as
linhas e letras, colocamo-nos diante de uma espécie de “miragem alfabética”, pois,
conforme explica Roland Barthes, enganamo-nos constantemente quanto à
indiscernibilidade da fala e da escrita, já que a escrita é a transcrição de uma pronúncia e
não diz respeito ao dizer, mas ao fazer da mão.301 Para darmos um exemplo concreto e mais
esclarecedor, podemos visitar a tela A Traição das imagens: Isto não é um cachimbo, de
René Magritte, em que a escrita é literalmente pintada com letra cursiva, sugerindo-nos
não apenas o dito, mas o “fazer da mão”. Vejamos:
Figura 53: The treachery of images – This is not a pipe. René Magritte, 1948.
301
BARTHES, Roland. O prazer do texto precedido de Variações sobre a escrita. Tradução de Luís Filipe
Sarmento. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 92.
176
Voltando ao texto de António Lobo Antunes, é possível dizer que ele também nos
chama à atenção para o caráter manuscrito de sua composição. É pela visão que sabemos
da existência do itálico e dos sinais gráficos que se espalham pelo texto. Quando lemos,
não modificamos a voz ao passar pelo campo de letras em itálico ou pelas marcas gráficas.
A visão atua oferecendo elementos imprescindíveis à leitura e o grafismo textual, que
simboliza os mais variados tipos de cortes, faz mais sentido porque é visto e reconhecido
como marca ou como desenho.
A aparente falta de organização das linhas, que num primeiro momento parecem
tentar reproduzir a sobreposição de planos, torna-se um elemento vital para o texto por dar
a esse um caráter fluxional e rizomático. Conforme explicam Deleuze e Guattari, “umas
das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas
entradas”.303 Ou seja:
Tal ideia converge para a escrita plástica antuniana, por descrever teoricamente a
estrutura desconexa de um corpo textual feito de ramificações, platôs, “linhas de
302
Loc. cit.
303
DELEUZE; GUATARRI, op. cit., p. 22.
304
Ibid., p. 37.
177
Ao criar uma nova dinâmica para as linhas, com as quais (de)compõe sua escrita,
Lobo Antunes permite que não apenas a ação, mas o tempo seja visualizado. Em outros
termos, podemos dizer que o poder das linhas e de suas inusitadas versões rítmicas e
305
Ibid., p. 32.
306
SILVA, op. cit., p. 29.
307
Ibid., p. 37.
308
Loc. cit.
309
MELO NETO, op. cit., p. 697.
178
melódicas faz com que o espectador-leitor realize, no movimento de sua visão, um gesto
temporal.
É possível afirmar que na composição de Não entres tão depressa nessa noite escura
a linha seja uma espécie de mola propulsora que nos leva pela obra, transformando em
fluxo circular o que antes parecia estático, e em tempo contínuo o que antes parecia
instantâneo. Com as suas linhas, Lobo Antunes cria uma escrita-imagética viva. Ao
contrário do fio de Ariadne, que leva à saída, as linhas de seu livro conduzem nossa visão
por labirintos que se dobram e se multiplicam, fazendo-nos abandonar um modo de ver
estático. Sempre recomeçando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem
nosso modo de ver habitual, e impõem, com o inusitado da surpresa, um modo de olhar
inocente, original. Elas nos fazem desobedecer às regras do “já sabido” e nos restituem o
espírito contemplador da criança que tudo vê como se fosse a primeira vez, assim como
fizeram os pintores e escritores do final do século XIX, ao romperem com os ideais do
naturalismo.
Poderíamos dar como exemplo concreto dessa nova arte, a pintura de três grandes
artistas: Joan Miró (1893-1983), Paul Klee (1879-1940) e Wassily Kandisnky (1866-1944).
Buscando caminhos que rompessem com a estabilidade dos planos de perspectiva e de
iluminação fixa, os três pintores conseguiram anular ou potencializar os deslimites entre
tempo e espaço, através de técnicas que, pela justaposição no espaço, sugerem a sensação
visual de simultaneidade. Ao comparamos uma tela de cada um desses pintores com um
trecho do poema de Lobo Antunes, talvez seja possível perceber que os trabalhos
realizados com as linhas sejam bastante semelhantes no que diz respeito à produção de
efeitos e à profusão semântica. Escolhemos os seguintes quadros:
179
Comparando os quatro trabalhos, pelo viés das linhas, entendemos que nenhum dos
quatro artistas esboça temas, todos eles parecem manifestar o próprio ato de invenção.
Conforme explica Jacques Derrida: “A invenção supõe uma indecidibilidade; ela supõe
que em um dado momento não haja nada”.311 Apesar de elementos tais como o tema, a
verossimilhança, o equilíbrio cartesiano das formas e as regras tradicionais da “boa
pintura” serem abandonados, as telas não deixam de nos surpreender pela originalidade da
tentativa de nos fazer ver algo nos espaços de invisibilidade.
Quando tentamos entender o que as imagens querem (nos) dizer, apegando-nos aos
títulos, por exemplo, ficamos confusos porque eles não são suficientes para nos fazer
alcançar um sentido completo. Talvez nem mesmo a análise mais exaustivamente
minuciosa possa nos assegurar a conquista de um sentido, já que estas, assim como todas
as demais pinturas dos artistas mencionados, são semanticamente escorregadias e
altamente plurissignificativas.
310
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 480-481.
311
DERRIDA, op. cit., p. 51.
182
As linhas criadas por Lobo Antunes exigem que também desacostumemos nosso
olhar organizador e decifrador de sentidos. Pois a leitura se reproduz enquanto labirinto
que lança linhas imprevisíveis, repete algumas e esconde outras, deixando transparecer um
caráter verbivocovisual que exibe não uma narrativa, mas a narratividade. Conforme
afirma Diana Navas, em seu estudo sobre Lobo Antunes:
Talvez, com a criação de Não entres tão depressa nessa noite escura,
Lobo Antunes, assim como intencionava Mallarmé, busque criar um livro
que seja a metáfora do Cosmos, universo dinâmico que se assenta numa
tensão, ou melhor, num equilíbrio instável. Uma obra que materialize a
instabilidade e que, de forma bastante complexa, tente evidenciar a
ineficácia ou mesmo a falácia das polaridades e das classificações
rígidas.312
Novamente optamos por fazer um recorte aleatório do poema de Lobo Antunes, para
mostrar que, independentemente do fato de estarmos estruturalmente no início, no meio ou
no fim do livro, estamos sempre numa espécie de “entre” que, por sua vez, não cessa de se
movimentar.
O excerto recortado, apesar dos vários indícios, não consegue nos oferecer um
caminho linear e um sentido fixo e minimamente confortável. A leitura nos dá pistas sobre
elementos concretos tais como: um contrabandista de negros e árabes, um jardim, um
homem cego, palavrões, crianças a brincar, uma família que está se mudando, uma mesa de
312
NAVAS, Diana. Figurações da escrita: a metaficção nos romances de António Lobo Antunes. São Paulo:
Scortecci, 2013. p. 136.
183
pingue-pongue quebrada, uma garagem; e também nos dá pistas sobre elementos abstratos
tais como a irritabilidade, a feiura, o preconceito, a solidão, a infância, entre outros menos
explícitos. Além disso, é possível enxergar algumas falas interrompidas ou entrecortadas,
os parênteses, as letras em itálico e uma lacuna em próclise, da qual um verbo foi retirado.
Os tempos verbais que se substituem a todo o momento, levando-nos do presente para o
passado e vice-versa, dão-nos uma sensação vertiginosa e bastante ritmada do tempo e do
espaço. Somos conduzidos por uma espécie de força “destinerrante”.313
Talvez Lobo Antunes queira mostrar que a literatura não deve ser entendida
enquanto perfeita imagem dos objetos no mundo, mas como sua própria imagem, imagem
da linguagem, da arte em si. E, nesse sentido, concordamos com Bylaardt que, em seu
estudo sobre A ordem natural das coisas, romance de Lobo Antunes, diz: “Na linguagem
cotidiana, a imagem aparece sob a ausência da coisa. Na linguagem literária, a imagem
aparece sob a sua própria ausência, já que a imagem é a própria linguagem”.314
Para cada frase ou palavra lida e vista, criamos uma imagem diferente. Saltamos,
assim, de ponto-imagético em ponto-imagético, formando um caleidoscópio de sentidos,
sem que consigamos formar uma imagem maior, central. Por mais que saibamos que o
autor, como ele mesmo afirma, insista em fazer “mais correções, mais correções e mais
313
Palavra valise cunhada por Derrida, formada pela junção dos vocábulos “destino” e “errância”, utilizada
pela primeira vez no livro Cartão postal. (DERRIDA, Jacques. Cartão portal: de Sócrates a Platão e além.
Tradução de Simone Perelson e Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.)
314
BYLAARDT, C. “A recusa da Morte em ‘A ordem natural das coisas’, de António Lobo Antunes”. In:
NAVAS, op. cit., p. 73.
184
Com base nessas colocações, compreendemos que Lobo Antunes, assim como os
demais artistas aos quais nos referimos acima, é aparentemente despretensioso, no sentido
de não se comprometer com um resultado final que faça sentido para o espectador-leitor.
Isso acontece porque a atividade que realiza propõe a desintegração da unidade do texto,
assim como rejeita o acabamento estético tradicional. Parece-nos que tais artistas estão
(des)aprendendo a pintar e (des)aprendendo a escrever, pois agem como se estivessem
ensaiando, esboçando e rascunhando suas obras.
Uma última colocação talvez possa ratificar essa ideia, bem como enfatizar a
importância que as linhas exercem em seu texto. Faremos um exercício de leitura e visão,
relacionando a epígrafe que escolhemos para iniciar este subcapítulo, com um excerto do
poema Não entres tão depressa nessa noite escura, e com uma última pintura. A ideia é
315
SILVA, op. cit., p. 21.
316
Utilizamos o termo virulência com o sentido que Jacques Derrida deu à palavra “vírus”, por ocasião de
uma entrevista, a qual está registrada no livro Pensar em Não Ver. O filósofo nos dá a seguinte definição para
o termo: “o vírus é em parte um parasita que destrói, que introduz a desordem na comunicação. Até mesmo
do ponto de vista biológico, isto é o que acontece com o vírus; ele descarrila um mecanismo do tipo
comunicacional, a sua codificação e decodificação”. (DERRIDA, op. cit., p. 24.)
317
SILVA, op. cit., p. 21.
318
Loc. cit.
185
Agora que estou no fim do meu relato tenho pena que acabe sempre tive
pena que seja o que for acabe [...] escrevo uma linha ou duas, apago,
torno a escrever a não foi assim, não foi assim, um traço mais carregado
por cima das palavras, como as palavras continuam legíveis um segundo
traço demorado, muitos traços rápidos em xis e agora que a frase se não
entende tentar decifrá-la porque afinal era assim, refazê-la na cabeça e
perdi-a, procurar a ideia que deu origem à ideia e não consigo, apenas
vagos rostos informes.320
319
KLEE, op. cit., p. 67.
320
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 476.
186
321
KLEE, op. cit., p. 67.
322
Loc. cit.
323
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 476.
187
“mulher que chora”, pintada por Picasso. Ao tentar construir o perfil da mulher que chora,
Picasso dá a ela uma fisionomia torta, torturada. A mulher que chora ganha a imagem do
choro, daquilo que deforma o rosto.
3.3. COR
aparentemente, podemos perceber apenas as cores preto e branco. Aliás, desde a moldura, a
obra deixa transparecer um intenso jogo entre o claro e o escuro, bem como uma aura
nebulosa de sombra que, aliadas, dão, em nosso entendimento, um tom semanticamente
acinzentado ou grisalho à narrativa. Assim como as linhas, as quais além de lidas podem
ser vistas, as cores também se fazem reconhecer quando lemos a sintaxe pictórica e
entregamo-nos à imaginação. Veremos que, apesar de parecerem invisíveis, as cores nos
surpreendem desde a moldura do livro.
Afirmamos isso com base nos primeiros indícios pictóricos que conseguimos reunir:
1) as palavras que figuram no título do poema – noite escura; 2) alguns dos vocábulos da
primeira epígrafe capitular – trevas, luz, dia, noite e tarde; 3) o nome da protagonista –
Maria Clara; e ainda 4) a atmosfera nebulosa dos espaços habitados pela personagem – sua
casa, o sótão e o hospital em que seu pai está internado.
Tais elementos, direta ou indiretamente, nos ajudam a constituir a possível paleta de
cores com que o poema foi criado. Paleta metaforicamente composta por tons variados que
se apresentam desde o mais escuro pigmento até as cores mais claras.
Nossa intenção inicial é, mais do que ver no texto um conjunto de cores específicas,
ter uma experiência da cor e também da ausência de cor. Por se tratar de um poema que
constantemente evoca o passado, começaremos por considerar aquilo que Didi-Huberman
diz sobre a grisalha. Para ele, a grisalha
Essa definição, mais ampla do que a que inicia este capítulo, será tomada como
nosso ponto de partida visual, pois parece convergir para a sensação que nos toma assim
que passamos os olhos pelas linhas do texto e percebemos semanticamente a ação
envelhecedora do tempo rememorado, o desgaste ao qual a família e a vida da protagonista
estão submetidos, bem como ao aspecto sempre nebuloso e escuro em que a personagem se
encerra espacial e psicologicamente para produzir seu relato. Tomemos o seguinte excerto
325
Loc. cit.
189
como primeiro exemplo da presença da grisalha no poema Não entres tão depressa nessa
noite escura:
326
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 19.
190
327
Ibid., p. 20.
328
KLEE, apud DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 7.
329
No texto de apresentação para o catálogo One after another, a few silente steps, do artista plástico
português Pedro Cabrita Reis, António Lobo Antunes faz uma afirmação que muito nos ajuda a pensar a
relação entre literatura e imagem: “Eu vejo seu trabalho e me vem a ideia de alguém que está tentando se
lembrar de um número de telefone: 3514, não; 3614, não; ainda não é isso! 3314, é isso! Finalmente
consegui! E é essa busca incessante pelo número certo, o único número, que pertence somente ao Pedro, que
o ultrapassa e que alcança a todos nós. Isso me fascina em sua escrita, porque toda criação é uma forma de
escrita.” (I see his work and I get the idea of someone trying to remember a telephone number: 3514, no,
3614, no, not that either, 3314, that’s it, I’ve got it at last. And it is this incessant search for the right number,
the only number, which belongs to Pedro alone, and, through Pedro, to all of us, that fascinates me in his
writing, because all creation is a form of writing”.) (2010, p. 8.)
191
movimento ao texto. Pois nos fazem acreditar numa mancha imprecisa que ainda está se
constituindo, através de um intermitente e lento processo, como algo da ordem do diáfano.
Segundo Didi-Huberman:
Corpos:
Matéria e corpo:
330
DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada, seguindo de “A obra-prima desconhecida”, de
Honoré de Balzac. Tradução de Osvaldo Fontes Filho e Leila de Aguiar Costa. São Paulo: Escuta, 2012. p.
39.
331
ANTUNES, op. cit., p. 26.
332
Ibid., p. 22.
192
Matéria:
[...] a torre que faltava substituída por um botão de pijama com um resto
de fios nos buracos [...]335
[...] uma atmosfera de fundo de despensa feita dos cheiros ácidos e doces
das coisas remotas [...]341
333
Ibid., p. 23.
334
Ibid., p. 19.
335
Ibid., p. 22.
336
Loc. cit.
337
Ibid., p. 23.
338
Ibid., p. 26.
339
Loc. cit.
340
Ibid., p. 27.
341
Loc. cit.
193
[...] a cor não é lugar da superfície dos corpos (uma pura circunscrição
tópica), mas que ela tem lugar num limite do diáfano que neles está, que
os atravessa. Não é nem uma justaposição nem uma superposição, mas
uma interpenetração corporal efetiva, conquanto sutil.342
342
DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 40.
343
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 27.
194
Deito-me neste divã e o que vejo são nuvens, nem sempre brancas
aliás, amarelas, castanhas, rosadas, por sorte, como agora em setembro,
duas ou três escarlates, principio a contar as nuvens amarelas e as nuvens
castanhas
se as amarelas forem em maior número que as castanhas não
reprovo este ano
e a conversar consigo isto é a conversar sozinha porque não me
responde
duas amarelas e uma castanha, se os quarenta e cinco minutos
acabassem não reprovava o ano
e creio que o que lhe digo se relaciona com as nuvens, assim
lentas, sem contornos, mudando de forma e doendo-me por dentro tal
como a minha mãe e o meu pai me doem por dentro, a minha irmã me dói
por dentro, eu me doo por dentro e por me doer por dentro invento sem
parar esperando que imagine que invento e desde que imagine que
invento e não acredite em mim torno-me capaz de ser sincera consigo, é
certo que de tempos a tempos, para o caso de me supor honesta, lhe
ofereço uma nuvem amarela ou uma nuvem castanha e uma mão cheia de
pardais em lugar da verdade 344
Podemos pensar que, por se tratar de um texto legível, seria possível perceber a cor
apenas em nível semântico, pensada enquanto algo que se deixa entrever como uma
experiência, uma sensação construída à medida em que lemos os nomes das cores: branco,
amarelo, castanho, rosa. Porém, entendemos que a estrutura textual e seu aspecto
fragmentado também simulam uma tonalidade. O próprio esgarçamento verbal pode ser
entendido enquanto uma grisalha que se manifesta no corpo textual e enquanto corpo
textual. Essa hipótese nos remete à fala do pintor Cézanne, que ao descrever sua técnica de
composição diz: “o desenho e a cor não são mais distintos: à medida que pintamos,
desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o desenho”.345 Para fazermos
um paralelo com a técnica de composição literária antuniana, poderíamos dizer que o
desenho verbal e a cor em Não entres tão depressa nessa noite escura também não são
distintos. À medida que Lobo Antunes escreve, ele colore. E a imprecisão da cor, o
desbotamento característico da grisalha, é o reflexo da imprecisão linear de seu desenho. A
344
Ibid., p. 357.
345
CÉZANNE, Paul, apud MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In:______. O olho e o
espírito. Tradução de Paulo Neves e Mariz Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
p. 134.
195
346
FERNANDES, Evelyn Blaut. A ficção de António Lobo Antunes: da coreografia dos espectros à caligrafia
dos afectos. Lisboa: Universidade de Coimbra, 2015, p. 12.
196
A escolha das obras foi feita com base na ideia de que em ambas existe um universo
fragmentado e cinzento, que nos faz pensar na arquitetura também fragmentada do poema
Não entres tão depressa nessa noite escura, mas, especialmente, na atmosfera esfumada,
sombreada e castanha do mesmo. A cor diáfana, grisalha, toma o ambiente, confundindo-se
com ele.
A existência precária da cor, que não se deixa distinguir, é fascinante, pois nos
coloca diante de uma vertigem visual. Antes que possamos identificar uma cor,
constatamos a cegueira de um olhar que se deixou fascinar por uma neblina pictórica e pelo
fulgor de um jogo de luz na superfície da página. Luz que, apesar de parecer imóvel, haja
vista a precisa inscrição das letras, movimenta-se incessantemente, dizendo-nos o tempo
todo: Não, ainda não é isto!
Em suma, quando olhamos as imagens, dirigimos nosso olhar para um espaço onde
as cores flutuam sobre aquilo que estão (des)pigmentando. E o efeito desse lento processo
é de (des)arranjo na ordem do visível.
198
3.4. SUPERFÍCIE
“Um objeto só se torna visível na medida em que torna cego o que o cerca”.347 O
traço que violenta a superfície, tornando-a invisível para se manifestar, nasce, segundo
Anne-Marie Christin, do desejo de “imitar a ruptura do mundo”.348 Sobre isso a estudiosa
questiona:
347
CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem e a letra”. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: CHRISTIN,
op. cit., p. 337
348
Loc. cit.
349
Loc. cit.
199
350
Ibid., p. 18.
351
Ibid., p. 338.
200
Nesse período, superfície e imagem eram igualmente importantes. Uma fazia parte
da outra, funcionando como elementos constituidores reflexivos. É o que podemos ver na
seguinte imagem:
A fotografia nos mostra que muito provavelmente o artista tenha pensado a imagem a
partir da estrutura natural da pedra, cuja ponta lembra exatamente o contorno da cabeça de
um cavalo. O pintor poderia ter feito qualquer outro desenho e poderia ter preenchido
apenas o espaço mais central, limpo e liso da pedra. O fato de ele aproveitar justamente o
contorno da mesma, por enxergar nesse espaço o formato de uma cabeça de cavalo, prova
352
Loc. cit.
201
que a superfície e sua forma primária eram relevantes a ponto de interferir na escolha do
desenho que seria registrado. Quando observamos a imagem, temos a impressão de que a
superfície já continha, de alguma forma, o desenho que mais tarde seria registrado em seu
corpo e o artista foi aquele que conseguiu captar e tornar ainda mais visível aquilo que
ainda não estava completamente dito pela/na superfície.
Imagem e plano, portanto, nascem ao mesmo tempo e são igualmente
imprescindíveis para o ato de produção artístico no período pré-histórico. Todavia, ao
longo dos anos, especialmente após o nascimento do alfabeto, a superfície começa a perder
visibilidade e a imagem passa a figurar com maior destaque. Texto e imagem ainda
ocupam o mesmo espaço, mas em uma nova configuração e com um propósito bastante
diferente, como podemos ver nas seguintes fotografias:
Figura 63: Livro dos mortos da rainha Mout-nedjemet - Paris - Museu do Louvre.
202
Figura 64: Detalhe da estela do rei babilônico Nabou-aplaiddina - apro. 870 anos - Londres - British Museum.
Ambas as imagens mostram que as figuras ganham total destaque, enquanto seu
suporte sofre um significativo recuo no sentido de não mais se mostrar como elemento
visível dotado de significado. Christin argumenta que a imagem se posiciona de uma nova
maneira e agora tudo se passa “como se devêssemos compreender que apenas ela, entre
todos os objetos figuráveis ou simbólicos do mundo, se beneficiasse do privilégio de entrar
em contato com a pedra”.353
353
Loc. cit.
203
354
Ibid., p. 339.
204
355
ARBEX, op. cit, p. 25.
356
Loc. cit.
205
longo período de tempo. Tanto em sua utilização para registro verbal gráfico, quanto em
seu uso artístico, a superfície ainda não era notada. No primeiro caso, por mais que ela
aparecesse, não manifestava nenhum valor semântico. E, no segundo caso, a superfície
propriamente dita foi quase que totalmente coberta pelo pigmento, ainda que para registrar
uma outra superfície: a do espaço tematizado. É isso o que nos mostram as seguintes
imagens:
O quadro mostra claramente que toda a superfície da tela foi pintada para representar
uma outra superfície, a da parede que está atrás da personagem protagonizada. Na próxima
pintura, produzida pelo mesmo artista, é possível perceber a interferência negativa que a
falha na superfície do suporte pode ocasionar, já que não faz propriamente parte da
representação:
Figura 68: Venus and the Graces offering gifts to a young girl. Sandro Botticelli, 1486.
Ainda que a pele da personagem – que também é uma superfície – não tenha sido
coberta pela tinta, confundindo-se, por isso, completamente com a superfície real do papel,
a intenção do artista não é protagonizar o suporte. A única coisa que se destaca são os
traços que dão forma ao desenho e, logo, o desenho em si.
208
Podemos afirmar que o mesmo processo acontece com a literatura e seu suporte até
bem pouco antes dos primeiros experimentos visuais com a poesia. Por muito séculos, o
branco da folha de papel não era compreendido ou trabalhado como elemento de
significação que pudesse fazer parte ou mesmo complementar semanticamente o texto que
trazia em si registrado.
As primeiras experiências com a superfície começam a aparecer, ainda timidamente,
na pintura. Por volta do século XVII surgem as primeiras obras híbridas, em cujas
temáticas a letra e a superfície em que está registrada ganham visibilidade com o intuito de
criar uma ilusão de ótica. Vejamos como exemplo o seguinte quadro do pintor Cornelis
Norbertus Gysbrechts (1630-3683):
Figura 70: Trompe l'oeil with Studio Wall and Vanitas Still Life. Cornelis Norbertus Gysbrechts, 1668.
209
As pinturas mencionadas são importantes para nos fazerem entender que aos poucos
a superfície começa efetivamente a ser pensada como componente fundamental no trabalho
de composição, ainda que o resultado final desse trabalho continue sendo a fidelidade da
representação e ainda que a superfície permaneça completamente encoberta em sua
funcionalidade de suporte.
Ambas as telas do pintor Norbertus foram escolhidas porque, além do trabalho com a
superfície, lembram os experimentos que, algumas décadas mais tarde – séculos XIX e XX
–, alguns pintores começaram a apresentar em seus trabalhos. É o caso, por exemplo, da
seguinte tela de Pablo Picasso (1881-1973):
Figura 72: Bottle of Vieux Marc, Glass and Newspaper. Pablo Picasso, 1913.
212
O quadro é fruto de experiências mais avançadas da estética cubista, que rompe com
a proposta de representação ao pensar as formas da natureza a partir de sua geometria. As
partes de um objeto são agora simultaneamente apresentadas na tela em sua
tridimensionalidade, mas dentro do real espaçamento bidimensional da mesma. Dessa
maneira, a representação ainda pode ser visualizada nos temas escolhidos, mas passa a não
ter mais compromisso com a aparência real das coisas.
357
MERLEAU-PONTY, op. cit., 2013, p. 133.
213
Sabemos que ao pintar Cézanne não estava sendo mimeticamente fiel àquilo que
escolhia como objeto. Conforme explica Merleau-Ponty, seu esforço estava direcionado
para um paradoxo: “buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia
senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor
pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro”.358
Apesar dos diversos espaços não preenchidos pela tinta, a figura do jardineiro,
tematizado na tela acima, pode ser visualizada sem prejuízo de sentido. Afinal, Cézanne
“não negligenciou a fisionomia dos objetos e dos rostos, ele apenas tentou captá-la no
358
Ibid., p. 130.
214
momento em que ela emerge da cor”.359 Para ele, “pintar um rosto ‘como um objeto’ não é
despojá-lo de seu ‘pensamento’”.360
Entendemos que o exercício de preenchimento pictórico que o espectador
naturalmente realiza ao observar uma tela como essa, também acontece no texto literário
quando o leitor participa do texto ao tentar interpretá-lo. Afinal, não deixamos de ler uma
tela de pintura apenas porque ela não apresenta uma sintaxe verbal, assim como não
deixamos de visualizar o texto verbal no momento em que o lemos.
É interessante destacar que no mesmo período histórico em que Cézanne expõe suas
experimentações pictóricas surgem as primeiras manifestações do Concretismo. Em 1897,
como já mencionado, Sthéphane Mallarmé lança seu Un coup de dés jamais n'abolira le
hasard e polemiza ainda mais as questões sobre a relação interartes. Isso porque, como já
mencionado, em seu Un coup de dés o poeta francês propõe a desconstrução das
tradicionais formas de escrita poética e o faz ao espacializar sua escrita, explorando o meio
visual da página em branco, como nos mostra a seguinte imagem:
Figura 74: Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Sthéphane Mallarmé, 1987. (página)
359
Ibid., p. 134.
360
Loc. cit.
215
361
DAHLET, Véronique. “Prefácio”. In: APPOLINAIRE, Guillaume. Caligramas. Tradução de Álvaro
Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
362
Loc. cit.
216
Apesar de o autor não afirmar tal hipótese, os espaços em branco que preenchem o
contorno do chapéu, do rosto e do corpo da personagem não significam um vazio
absolutamente desprovido de sentido, pelo contrário. O branco funciona como superfície
material, tecido e pele. E, portanto, já começa a se fazer notar, ainda que secundariamente
com relação às linhas de letra cursiva que desenham o contorno de toda a figura.
O Caligrama é, pois, conforme indica seu próprio texto, uma “imperfeita imagem [...]
visto como se através de uma nuvem”.363 Nuvem branca que preenche e dá volume à
imagem criada.
363
Ibid., p. 144.
217
Vale ressaltar mais uma vez que, assim como na pintura, ao encontramos os espaços
em branco do texto literário, também tentamos preenchê-los com algum sentido. O próprio
texto e sua estruturação espacial conduzem o leitor a encontrar os possíveis significados de
tais aberturas e, dessa maneira, reeducam o olhar passivo do observador para que ele possa
participar do processo de produção.
É exatamente isso o que acontece ao lermos o poema-livro Não entres tão depressa
nessa noite escura, de Lobo Antunes. A estrutura textual parece se movimentar graças ao
trabalho com a espacialização. A superfície branca do suporte é intensamente utilizada para
que possa sugerir um movimento antilinear e caótico, característico do pensamento e da
memória das personagens. Vejamos o seguinte excerto, em que a protagonista Maria Clara
rememora um episódio de sua infância, ocorrido durante uma aula de geografia:
364
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 297.
218
Os espaços não preenchidos pelo autor, assim como acontece na tela de Cézanne e no
Caligrama de Apollinaire, instigam o leitor a participar do texto, completando-o. Contudo,
nem todos os espaços podem ser perfeitamente preenchidos. É o caso, por exemplo da
primeira lacuna grifada. O pronome relativo que a introduz em nada nos auxilia a
completá-la, pois indica justamente a ausência ou a pausa brusca da fala psíquica que
talvez não possa ser determinada nem mesmo pela própria pessoa que a produziu. A
segunda lacuna, por sua vez, por ser a repetição de uma outra, que sugere parte da palavra
“alegria”, automaticamente nos faz completar os dois espaços. A quarta lacuna talvez seja
a mais interessante porque abre um espaço de possibilidade. O leitor deve apenas respeitar
a presença do artigo masculino que demarca o gênero dos substantivos. A frase “o ponto de
365
Loc. cit.
366
Loc. cit.
367
Ibid., p. 231.
219
vista dos ”368 pode ser completada com as palavras “médicos”, “especialistas”,
“homens”, “cientistas”, “estudiosos”, “psicólogos”, etc. Enquanto a primeira lacuna não
pode de modo algum ser preenchida com alguma precisão, a última pode ser completada
com diversas possibilidades.
Dessa maneira, entendemos que o branco da página ganha diversos significados e
participa ativamente da narrativa. Embora nem sempre nos deixe traduzi-la em palavras,
em momento algum ela está desprovida de significado, pelo contrário, os espaços brancos
são ilhas de grande potencial semântico e, por isso, muitas vezes produzem mais sentido do
que todo um parágrafo repleto de palavras, afinal, como uma espécie de transparência
apresentam “um valor ambíguo” por serem ao mesmo tempo, conforme explica Roland
Barthes, “aquilo sobre o que nada há para dizer e aquilo sobre o que mais há para dizer”.369
Olhar para o texto de Não entres tão depressa nessa noite escura deixa-nos
incomodados inicialmente, porém, igualmente instigados, pois ele não recebe
confortavelmente o tradicional olhar passivo. Desde A ordem natural das coisas, o próprio
texto, aos mesmo tempo em que ganha um novo formato, também nos ensina a ler sua
nova configuração. Conforme explica Lobo Antunes, um “bom escritor tem que ensinar
um público a ler”.370 Quando iniciamos a leitura de sua escrita nosso olhar vai sendo
(re)formado e ativado para que possa compreender e acompanhar a nova arquitetura que se
constrói a cada livro, até chegar ao ponto em que naturalmente começa a participar do
processo de elaboração, na tentativa de juntar peças, organizar ideias e completar os
espaços em branco que se abrem entre as frases e palavras. Ao alcançarmos, após seguir a
sequência cronológica de produção, a leitura do Não entres tão depressa nessa noite
escura já somos capazes de perceber que as obras antunianas de forma geral, mas
especialmente em sua segunda fase, não trazem uma “mensagem acabada e bem definida,
numa forma univocamente organizada”.371 Assim como “as novas obras musicais”,
consistem
368
Loc. cit.
369
BARTHES, Roland. “Nota Prévia”. In: Sobre Racine. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. IX.
370
ANTUNES, António Lobo. “A salvação pela escrita”. Depoimento. [25 de setembro, 1996, p. 16-17].
Lisboa: Jornal de Letras, Artes & Ideias. Entrevista concedida a Rodrigues da Silva. In: ARNAUT, op. cit., p.
245.
371
ECO, Umberto. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo [et al.]. São Paulo: Perspectiva, 2015.p. 67.
220
372
Loc. Cit.
373
Ibid., p. 70.
374
Loc. cit.
375
Ibid., p. 73.
221
um pouco mais confuso, pois, embora consiga notar resquícios miméticos, já não consegue
identificar elementos, como estava acostumado a fazer ao observar uma tela barroca, assim
como não consegue entender perfeitamente a nova estrutura. De acordo com Jonh Goldin,
376
GOLDING, John. “Cubismo”. In: STANGOS, Nikos. Conceitos de arte moderna: com 123 ilustrações.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 48-49.
224
Figura 78: Abstraktes Stillleben mit Figur und Früchteschale. Leo Leuppi, 1931.
A tela cubista nos remete ao texto de Lobo Antunes pela similaridade semântica e
estrutural. Há inúmeras passagens que nos fazem construir mentalmente uma imagem
completamente fragmentada das personagens e especialmente da protagonista Maria Clara.
Vejamos alguns excertos:
225
1) [...] a cozinheira aumentada pela máquina a levantar o outro braço que um erro de
perspectiva tornava grosso e enorme [...]377
2) [...] oferecer-lhes uma bochecha que não é bochecha dado que a minha cara se
encontra noutro lado [...]378
3) [...] regressar ao meu ovo de penumbra onde deixara imagens esfiadas que talvez
pudesse articular compondo o meu casamento com o ruivo da turma e todavia em
lugar do ruivo um buraco desagradável e morno [...]379
4) [...] a Maria Clara a tossir na almofada dando-me ideia que as feições se
espalhavam no quarto, a juntar-se de novo, nariz, queixo, testa [...]380
[...]
mas tenho outros completamente parada, sem saber o que fazer, nem
dizer, nem sequer onde estou, as pessoas falam para mim e eu fico
calada, sem dar qualquer selu
— Ia jurar que o teu pai
ção. Também tenho mementos de me fexar só e não falar a ninguém
[...]381
O excerto nos incomoda bastante não apenas por estar escrito em itálico, mas por nos
mostrar – pelos erros de escrita ("selução”, “fexar”, “mementos”) que se tornam ainda mais
aparentes visualmente – que estamos lendo uma carta e que, portanto, estamos diante de
um desdobramento da superfície. Entendemos que parte do papel da carta foi sobreposta à
página do diário de Maria Clara, a qual, por sua vez, confunde-se completamente com a
377
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 275.
378
Ibid., p. 279.
379
Ibid., p. 319.
380
Ibid., p. 350.
381
Ibid., p. 122.
226
página do livro Não entres tão depressa nessa noite escura. Ao nos darmos conta dessa
experiência, percebemos que uma simples passagem é capaz de causar uma complexa
ilusão de ótica. Além disso, a palavra “selução” é bruscamente atravessada por uma fala
que não parece fazer parte da carta, já que não está grafada em itálico. Ao ser atravessada,
a palavra se parte ao meio, indicando-nos novamente que estamos diante de uma imagem,
ainda que tal imagem seja uma representação da memória e de seu caráter fragmentário.
Trata-se de uma colagem que se desvela em sua falha, promovendo uma espécie de rasgo
que dá a ver outra superfície. Como acontece, por exemplo, na obra do artista plástico
italiano Lucio Fontana (1899-1968):
Figura 80: Superficie bianca con ovale in positivo. Turi Simeti, 1967.
A obra nos mostra que a superfície não é apenas superficial, no sentido pejorativo
da palavra. Toda e qualquer superfície também é dotada de um fundo que com ela se
confunde. O trabalho de construção a partir do fundo da superfície plástica da obra de
Simeti, ajuda-nos a entender a relação de superficialidade e profundidade do texto
antuniano. Selecionamos a seguinte passagem do livro-poema para fazermos uma análise
final: “a Clara é o da casa”.383
O excerto torna ainda mais evidente a nossa hipótese de construção visual, pois
novamente aponta para a intromissão da superfície no texto verbal, ou, como sugere a tela,
382
PLAZA, op. cit., p. 66-67.
383
Ibid., p. 200.
228
384
Ibid., p. 64.
229
385
ECO, op. Cit., p. 75.
386
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 73.
230
(IN) CONCLUSÃO
Percebemos ao longo de nosso trajeto de pesquisa que concluir e definir, aliás, são
ações difíceis de serem realizadas em todo o universo artístico. Acreditamos que explorar a
abertura significa respeitar e considerar a experiência singular da Arte. E é exatamente isto,
explorar a abertura, que Lobo Antunes realiza em seu trabalho, apesar de manifestar-se
mais intensamente através da literatura. A escolha por esse campo artístico não significa
redução em nenhum aspecto, pelo contrário. A literatura, nas mãos desse escritor
português, torna-se apenas a porta de entrada para outros espaços artísticos, os quais
dialogam das mais diferentes formas nas páginas de seus livros.
387
ANTUNES, António Lobo. “Um quarto de século depois de Os cus de Judas. ‘Acho que já podia
morrer’”. Depoimento. [9 de novembro, 2004, pp. 2-6]. Lisboa: Público/ Destaque. Entrevista concedida a
Adelino Gomes. In: ARNAUT, op. cit., p. 437 (nota de rodapé 11).
388
ECO, op. cit., p. 94.
231
A escrita de Lobo Antunes – que nos incitou a realizar esta pesquisa – mostrou-se
como singular objeto de estudo por apresentar uma linguagem plástica bastante singular.
As várias e inusitadas referências evocadas a cada página de seus primeiros livros levou-
nos a reconhecer que, apesar da óbvia escolha pelo campo literário, o escritor não optou
por isolar esse campo para evitar possíveis contatos com outras artes, pelo contrário.
Enquanto assíduo frequentador de arte, o autor português consegue, em sua incessante
produção, reunir e relacionar as mais diversas referências artísticas. Desde as primeiras
linhas, evoca a presença de outras artes e outros artistas, por meio do processo ecfrástico, e
os faz dialogar em um espaço que passa a se configurar como imageticamente verbal ou
verbalmente imagético.
Percebemos também que, a cada obra publicada, o estilo de escrita antuniano sofreu
significativas transformações, as quais se deram tanto pelo uso cada vez mais intenso de
marcações gráficas no texto, quanto pelo lento abandono do procedimento ecfrástico. O
trabalho com a espacialização textual, ainda que nunca tenha sido apontado pelo autor
como um objetivo, foi o elemento que direcionou nossa pesquisa por ter-nos feito
compreender que, para além da elaboração narrativa, suas obras apresentam
estruturalmente elementos que também estão presentes em uma composição pictórica.
interação, mas não foi suficiente para realizar o projeto que objetivava definir as
especificidades de cada uma das artes. Percebemos, inclusive, que, ao contrário do que
propunham, as tentativas, indiretamente, ajudaram-nos a constatar o caráter híbrido do
fazer artístico. Verificamos ainda que os processos de desenvolvimento da relação
interartes – iniciados mais fortemente com Mallarmé e seu “Un coup de dés”; e com
Apollinaire e seus Caligrames – tornaram-se a cada dia mais fortalecidos e, por
consequência, nos levaram a pensar em um futuro ainda mais colaborativo para as artes.
O fato de o autor não homenagear um pintor, uma obra pictórica ou mesmo uma
escola estética em seus livros, por um lado, significou uma dificuldade, já que tivemos que
nos habituar com a ausência de referenciais que pudessem nos dar maior segurança quanto
ao caminho a ser seguido. Mas, por outro lado, essa mesma ausência nos deu maior
liberdade para trabalharmos com todas as possibilidades pictóricas e, dessa forma, ampliar
o campo de pesquisa para realizarmos de maneira mais confortável o procedimento
analógico e homológico a que nos propomos.
A escrita de Lobo Antunes nos auxiliou a olhar para o universo artístico de uma
forma diferente, ensinou-nos a ler de outra maneira, e a enxergar, naquilo que nosso olhar
antes simplesmente não via, outros significados e outras chaves de leitura, as quais, por
fim, levaram-nos a abrir outras portas e a expandir nossa capacidade interpretativa. Ao
final de nossa análise analógica e homológica, pudemos entender que um livro também
pode ser visto como uma tela por guardar para com esta semelhanças inquestionáveis. O
próprio autor ajudou-nos a entender essa condição em uma entrevista dada à revista
Público, em que fala sobre o desenho que faz das letras na folha de papel:
389
Loc. cit.
234
Pensamos que a escrita antuniana nos levou a tocar, ainda que momentaneamente, o
“fora da linguagem” a que se refere Deleuze e a reconhecer que “escrever não é certamente
impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”, porque a literatura “está antes do
lado do informe, ou do inacabamento”,393 enquanto um devir, “sempre em via de fazer-se, e
que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida”.394
390
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.
101.
391
Loc. cit.
392
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 9.
393
Ibid., p. 11.
394
Loc. cit.
235
Finalmente, gostaria de fazer minhas as palavras de Maria Clara, que num gesto de
intensa inventividade e disfórica despedida, diz: “Agora que estou no fim do meu relato
tenho pena que acabe sempre tive pena que seja o que for acabe”.395
395
ANTUNES, op. cit., 2008, p. 357.
236
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