O ANÃO. Pär Lagerkvist ANTÍGONA
O ANÃO. Pär Lagerkvist ANTÍGONA
O ANÃO. Pär Lagerkvist ANTÍGONA
Pär Lagerkvist
ANTÍGONA
Tenho vinte e seis polegadas de altura, mas sou perfei‑
tamente constituído e proporcionado, salvo no que res‑
peita à cabeça, que é um pouco grande. Os meus cabelos
são ruivos, em vez de negros como os da maior parte das
pessoas, e além disso muito espessos e crespos; uso‑os
repuxados para trás nas fontes e ao alto da testa, que se
evidencia mais pela largura do que pela altura. O meu
rosto é imberbe; afora isso, parece‑se com o de todos
os homens. As minhas sobrancelhas unem ‑se. Tenho
uma força física considerável, sobretudo se me enco‑
lerizo. Quando me obrigaram a lutar com Josaphat,
alcei‑o sobre as minhas costas, ao fim de vinte minutos,
e estrangulei‑o. Desde então, sou o único anão da corte.
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nal número de rugas. Não considero isso um defeito. Se os
outros são diferentes de mim nesse ponto de vista, nada
posso fazer. Mostro‑me tal corno sou, sem me embelezar
nem me desfear. Talvez o meu aspecto não seja natural.
Em todo o caso, felicito‑me por ele.
As rugas fazem‑me muito velho. Não o sou. Mas ouvi
dizer que os anões descendem duma raça mais antiga do
que a que hoje povoa o mundo, sendo, por consequência,
já velhos quando nascemos. Não sei se isto é bem assim.
No caso afirmativo, seríamos uns seres originais. De modo
algum me desagrada pertencer a uma raça diferente da
raça actual e que isso seja visível na minha pessoa.
Com efeito, acho a cara dos outros duma perfeita
insignificância.
Os meus amos são muito bons para mim, principal‑
mente o príncipe, que é um grande e poderoso senhor.
Um homem que tem vastos projectos e sabe levá‑los até
ao fim. Um homem de acção, embora seja ao mesmo
tempo muito culto. Encontra tempo para tudo e gosta de
conversar acerca dos mais diversos assuntos. Esconde as
suas verdadeiras intenções, falando de outra coisa.
Poderá parecer inútil isto de alguém se interessar por
tudo – mas, por outro lado, lá no fundo, interessar‑se‑á
ele verdadeiramente pelo que aparenta? Em todo o caso,
a sua qualidade de príncipe obriga‑o a proceder assim.
Dá a impressão de compreender e de dominar não
importa que assunto, ou pelo menos de se esforçar por
isso. Não se pode negar a imponência da sua personali‑
dade. De todos os seres que tenho encontrado, é o único
que não desprezo.
É um grande hipócrita.
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esconde enigmas dentro de si; tal não acontece, mas
de certa maneira é inacessível. Eu próprio não chego
a compreendê
‑lo completamente, e pergunto a mim
mesmo por que razão o sirvo com a fidelidade dum cão.
De resto, ele não me compreende melhor.
Apesar de não se me impor tanto como aos outros,
sinto‑me satisfeito por ter um amo tão imponente. De
boa vontade diria que é um grande homem, se alguém
pudesse ser grande para o seu anão.
Sigo‑o constantemente como uma sombra.
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que tomo na sua existência secreta não conta. Mas tem
confiança em mim.
Odeio todos os seus amantes. Tive sempre desejo de
me lançar sobre eles, com o punhal na mão, e de ver o seu
sangue correr. Odeio em particular Dom Ricardo, que é o
seu amante desde há alguns anos e do qual não consegue
desligar‑se. Sinto por ele uma autêntica aversão.
Ela, por vezes, manda‑me ir ao seu quarto, antes de se
levantar, e mostra‑se‑me sem vergonha. Já não é jovem,
os seios pendem‑lhe, enquanto, ainda estendida no leito,
brinca com as jóias, tirando‑as do cofre que uma aia
lhe apresenta. Não consigo compreender como alguém
possa amá‑la. Já não tem nada capaz de atrair. Mas ainda
se vê que foi bela.
Pergunta‑me que jóias deve pôr naquele dia. Gosta de
me fazer esta pergunta. Fá‑las rolar entre os dedos del‑
gados e estira‑se voluptuosamente sob a pesada coberta
de seda. É uma verdadeira cortesã. Uma cortesã no leito
dum grande e magnífico príncipe. O amor enche a sua
vida. Tem um sorriso sonhador quando faz rolar as jóias
entre os dedos.
Em momentos daqueles, torna‑se um pouco triste ou
finge sê‑lo. Com um movimento cansado da mão, passa
um colar em volta do pescoço e, vendo brilhar os grossos
rubis entre os seios, que ainda são belos, pergunta‑me se
deve pôr aquele colar. Em volta do leito paira um per‑
fume que me faz mal ao coração. Detesto‑a, quisera vê‑la
a arder no fogo do Inferno. Mas respondo que não podia
escolher nada de melhor, e ela dirige‑me um olhar reco‑
nhecido, como se, tomando parte na sua tristeza, eu lhe
tivesse ofertado uma melancólica consolação.
Algumas vezes chama‑me o seu único amigo. Um dia
perguntou‑me se eu estava apaixonado por ela.