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Pena Relativamente Indeterminada

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Direito

PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA: CONCESSÃO OU


NEGAÇÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL OU LIBERDADE
PARA PROVA, CONSIDERANDO OS PLANOS INDIVIDUAIS DE
READAPTAÇÃO

Margarida Gil Silva

Dissertação de Mestrado em Direito e Prática Jurídica na Especialidade de


Direito Penal Orientada pela Prof.ª Doutora Teresa Maria Quintela de Brito

2019
2
“É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los. O meio mais seguro, mas ao
mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é
aperfeiçoar a educação”

Cesare Beccaria

3
AGRADECIMENTOS

Ao meu pai Raúl e a minha mãe Margarida Isabel


por serem o meu suporte de todas as horas, por acreditarem
sempre nas minhas capacidades e permitirem a minha
formação.

A toda a minha família e grandes amigos pelo


carinho, força e presença.

À Exma. Sra. Professora Doutora Teresa Maria


Quintela de Brito, orientadora da presente dissertação,
pela disponibilidade prestada e pelos preciosos
ensinamentos e conselhos.

À Exma. Doutora Maria Leonor Barroso, juíza


coordenadora do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa,
pelo auxílio prestado na consulta dos processos e por me ter
concedido a oportunidade de contactar com o sistema
judicial e prisional.

4
5
RESUMO

A presente dissertação de mestrado tem como objeto de estudo a pena


relativamente indeterminada. A pena relativamente indeterminada é o instituto por
excelência a aplicar ao delinquente especialmente perigoso. Este instituto cumula uma
pena de prisão com uma medida de segurança de internamento de inimputável. Para o
efeito, o delinquente especialmente perigoso imputável à data da sentença condenatória é
convertido em inimputável durante a execução da pena. Apoiando-se na cura e no
tratamento, este instituto aplica uma pena que excede a medida da culpa do agente pelo
facto ilícito. Ao delinquente especialmente perigoso condenado em pena relativamente
indeterminada tem de ser elaborado, obrigatoriamente, durante a execução da pena um
plano individual de readaptação que influencia a concessão da liberdade condicional ou
da liberdade para prova, caso se verifiquem melhorias no seu tratamento. O delinquente
especialmente perigoso apenas conhece o tempo de pena que efetivamente irá cumprir
durante a fase de execução da sua pena.

Nesta dissertação pretendemos analisar a eficácia da pena relativamente


indeterminada aferida pela concessão ou negação da liberdade condicional e da liberdade
para prova, atendendo aos planos individuais de readaptação. A necessidade de aferir a
eficácia desta pena leva a que este estudo seja realizado sobre duas abordagens,
designadamente: uma prática através da consulta de processos que correm termos no
Tribunal de Execução de Penas de Lisboa e outra teórica através da análise da lei, doutrina
e jurisprudência. A escolha da vertente em análise assentou no facto de a finalidade
especial preventiva de ressocialização ser a principal finalidade deste instituto.

Deste modo, ao longo deste estudo, é imperativo compreender se o modo como


esta pena é executada cumpre a finalidade especial preventiva de ressocialização, ou, caso
não cumpra, saber se esta pena se transforma num meio ótimo de expiar a culpa e a
perigosidade do condenado.

PALAVRAS-CHAVE

Pena relativamente indeterminada; delinquente especialmente perigoso; imputabilidade


e inimputabilidade; planos individuais de readaptação; liberdade condicional e liberdade
para prova.

6
ABSTRACT

The present master's thesis has as object of study the relatively indeterminate
penalty. The relatively indeterminate penalty is the institute par excellence to apply to
especially dangerous offender and applies a prison sentence cumulated with a measure of
security of internment of inimputable. For this purpose, the especially dangerous
delinquent is attributed to the punishable offender. Relying on healing and treatment, this
institute applies a penalty that exceeds the extent of the fault of the agent in the wrongful
act. A particularly dangerous offender convicted in a relatively undetermined sentence
must be drawn up during the execution of the sentence an individual readaptation plan
that influences the granting of parole or the freedom to prove if there are improvements
in its treatment. The especially dangerous offender knows only the time of penalty that
he will effectively fulfill during the execution phase of his sentence.

This dissertation intends to analyze the effectiveness of the relatively


undetermined penalty assessed by the granting or denial of probation and the freedom to
prove according to individual readaptation plans. The need to assess the effectiveness of
this sentence leads to this study being carried out on two approaches, namely: a practice
through the consultation of cases that run in the Court of Execution of Sentences and
another theory through the analysis of Law, doctrine and jurisprudence. The choice for
the part under analysis was based on the fact that the special preventive purpose of
resocialization is the main purpose of this institute.

Thus, in the course of this study, it is imperative to understand if the way in which
this penalty is executed fulfills the special preventive purpose of resocialization, or, if it
does not comply, whether this penalty becomes an optimal means of atoning the guilt and
danger of the condemned.

KEY-WORDS

Relatively undetermined penalty; especially dangerous offender; imputability and


nonimputability; individual readaptation plans; conditional freedom and proof for
freedom.

7
NOTAS DE LEITURA

A presente dissertação está redigida segundo o acordo ortográfico de 16 de


dezembro de 1990.

As siglas e abreviaturas utilizadas ao longo do texto encontram-se catalogadas


previamente.

As citações estão efetuadas cumprindo um determinado critério. Assim sendo, a


citação de uma monografia ou analítico segue a seguinte ordem: nome do autor em
maiúsculas, data e páginas. Caso o mesmo autor tenha várias obras do mesmo ano a data
é numerada. Se se verificar referências iguais à obra citada anteriormente, empregamos
somente a expressão Ibidem. No entanto, se as referências forem iguais à obra citada
anteriormente, à exceção das páginas, empregamos a expressão Idem seguida das páginas
em causa.

As transcrições de doutrina, jurisprudência ou outros documentos estão feitas de


acordo com o texto original.

Na bibliografia final encontram-se as referências completas de todas as obras


citadas e consultadas.

A jurisprudência citada está catalogada no final da presente dissertação pela


seguinte ordem: tribunal, data, número do processo e relator.

A presente dissertação está atualizada com referência a julho de 2019.

8
SIGLAS E ABREVIATURAS

Ac. Acórdão

Apud Em (utiliza-se para fazer uma citação indireta)

Art.º Artigo

CEDH Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CEPMPL Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade

Cfr. Confira

CP Código Penal
CRP Constituição da República Portuguesa
ed. Edição
i.e. Isto é
Ibidem. Mesmo autor, mesma obra, mesma página
Idem. Mesmo autor, mesma obra
MP Ministério Público
n.º Número
n.ºs Números
p. Página
pp. Páginas
PRI Pena Relativamente Indeterminada
RGEP Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais
ss. Seguintes
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TC Tribunal Constitucional
TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TEP Tribunal de Execução de Penas

TRC Tribunal da Relação de Coimbra


TRL Tribunal da Relação de Lisboa
Vide Remeter para
Vol. Volume

9
10
ÍNDICE

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 15

CAPÍTULO I

ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS DO TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE


PENAS

1. Exposição de casos concretos relativos à concessão ou negação da liberdade


condicional ou da liberdade para prova na aplicação de uma pena relativamente
indeterminada ............................................................................................................. 20

1.1 Caso n.º 1 – Delinquente por tendência A .......................................................... 20

1.2 Caso n.º 2 – Delinquente por tendência B .......................................................... 25

2. Levantamento de problemas .................................................................................... 31

CAPÍTULO II

HISTÓRIA DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Antecedentes históricos ........................................................................................... 35

1.1 Vadios e mendigos............................................................................................. 35

1.1.1 Antes e durante das Ordenações .................................................................. 35

1.1.2 Código Penal de 1852.................................................................................. 36

1.1.3 Código Penal de 1886.................................................................................. 38

1.1.4 Lei de 20 de julho de 1912 .......................................................................... 41

1.2 Delinquentes de difícil correção ......................................................................... 42

1.2.1 Reforma prisional de 1936 .......................................................................... 42

1.2.2 Código Penal de 1982.................................................................................. 49

11
CAPÍTULO III

INSTITUTO DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Pressupostos de aplicação........................................................................................ 52

1.1 Delinquentes por tendência ................................................................................ 52

1.1.1 Pressupostos formais ................................................................................... 52

1.1.2 Pressupostos materiais ................................................................................. 56

1.1.4 Casos especiais............................................................................................ 58

1.2 Delinquentes alcoólicos e equiparados ............................................................... 60

1.2.1 Pressupostos ................................................................................................ 60

1.2.2 Limites legais de duração ............................................................................ 61

1.3 Delinquentes por incêndio florestal .................................................................... 62

1.3.1 Pressupostos ................................................................................................ 62

1.3.2 Limites legais de duração ............................................................................ 63

1.4 Determinação dos limites e da duração da pena ................................................. 63

2. Natureza jurídica ..................................................................................................... 66

2.1 Finalidades e fundamentos ................................................................................. 66

2.2 Monismo e dualismo.......................................................................................... 70

2.3. Posição adotada ................................................................................................ 74

CAPÍTULO IV

(IN) IMPUTABILIDADE DO DELINQUENTE ESPECIALMENTE PERIGOSO

1. Figura do delinquente especialmente perigoso ......................................................... 76

2. Inimputabilidade no Código Penal........................................................................... 78

3. Fronteira entre a pena relativamente indeterminada e a inimputabilidade ................. 82

4. Alcance do n.º 3 do artigo 90º do Código Penal ....................................................... 84

12
CAPÍTULO V

EXECUÇÃO DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Plano individual de readaptação .............................................................................. 90

1.1 Regime legal...................................................................................................... 91

1.2 Considerações.................................................................................................... 94

2. Liberdade condicional ou liberdade para prova ........................................................ 97

2.1 Concessão ou negação da liberdade condicional ................................................ 99

2.1.1 Pressupostos, duração e incumprimento ...................................................... 99

2.2 Concessão ou negação da liberdade para prova ................................................ 103

2.2.1 Pressupostos, duração e incumprimento .................................................... 103

3. Liberdade definitiva e liberdade obrigatória .......................................................... 107

3.1 Liberdade definitiva ......................................................................................... 107

3.2 Liberdade obrigatória ....................................................................................... 110

CAPÍTULO VI

REFLEXÕES

1. No plano da reinserção social ................................................................................ 120

2. No plano da constitucionalidade ............................................................................ 125

2.1 Violação do n.º 1 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa ........ 128

2.2 Violação dos princípios referentes à preferência pelas reações não detentivas, à
culpa e à proporcionalidade ................................................................................... 129

2.3 Violação ao princípio da socialização dos condenados ..................................... 131

3. No plano internacional .......................................................................................... 133

3.1 Ilnseher c. Alemanha ....................................................................................... 133

3.2 W.D. c. Bélgica ............................................................................................... 138

3.3 Morsink c. Países Baixos ................................................................................. 143

13
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 147

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 153

JURISPRUDÊNCIA ............................................................................................... 164

APÊNDICES E ANEXOS....................................................................................... 169

14
INTRODUÇÃO

O objeto da presente dissertação é a pena relativamente indeterminada.

A pena relativamente indeterminada é o instituto por excelência a aplicar aos


delinquentes especialmente perigosos. Os delinquentes especialmente perigosos são os
indivíduos que possuem uma acentuada inclinação para o crime verificada através da
reiteração na prática de crimes e consequentes condenações. Desde cedo, que o Direito
tentou arranjar um regime jurídico capaz de responder de forma correta às necessidades
deste género de delinquentes. No entanto, não obstante os esforços realizados, a figura do
delinquente especialmente perigoso continua a existir atualmente e simultaneamente os
problemas que lhe são intrínsecos, ou seja, os tempos mudam mas os delinquentes
especialmente perigosos continuam a existir e dificilmente irão desaparecer. Assim, o
tema da pena relativamente indeterminada adquire a devida importância para ser
explorado e analisado na presente dissertação. Além do mais, também a evolução do
Direito dita a necessidade de repensar neste instituto (quer na perspetiva do condenado
quer na perspetiva da sociedade), uma vez que ideias como: a pena de prisão está em crise
e os condenados têm dignidade durante o cumprimento da sua pena, ganham cada vez
mais ênfase.

A pena relativamente indeterminada é um instituto que revela uma grande


complexidade jurídica, na medida em que aplica uma pena de prisão cumulada com uma
medida de segurança de internamento de inimputáveis. Para o efeito, converte os
delinquentes imputáveis à data da sentença condenatória em delinquentes inimputáveis
durante a execução da pena. Em nome da cura e do tratamento, este instituto permite a
aplicação de uma pena que excede a medida da culpa do agente pelo facto ilícito por um
período de dois, quatro ou seis anos. A fase de execução desta pena é a fase de especial
relevo para o condenado, pois é aqui que descobre o tempo de pena que efetivamente irá
cumprir mediante a apreciação que é feita ao seu processo de ressocialização e
reabilitação.

À evidência, da aplicação e execução da pena relativamente indeterminada advêm,


desde logo, várias questões que importam tratar ao longo deste estudo. Nomeadamente:
qual é a natureza jurídica do instituto? Este instituto colide com princípios
constitucionais, uma vez que aplica uma pena que excede a medida da culpa? Qual é a

15
legitimidade do instituto para ordenar que se aplique um regime mais gravoso como é o
de internamento de inimputáveis, a delinquentes imputáveis que são convertidos em
inimputáveis para o efeito? Qual é o sentido de se aplicar um regime que, para além de
ter como finalidade principal o tratamento e a cura de um delinquente, faz ainda depender
a duração da sua pena deste mesmo tratamento e cura que, na verdade, pode nunca vir a
existir ou, existindo, não produz os efeitos ressocializadores esperados?

Face ao exposto, a escolha da pena relativamente indeterminada como objeto deste


estudo deve-se à importância que a figura do delinquente especialmente perigoso ainda
ocupa nos dias de hoje, mas também à necessidade de responder às questões de ordem
dogmática, teórica e de execução prática que o instituto ainda suscita, quer
jurisprudencialmente quer doutrinalmente.

Neste sentido, a procura de respostas empurrou a presente dissertação para um


estudo profundo e detalhado sobre a construção dogmática e teórica do instituto e sobre
a fase de execução da pena relativamente indeterminada. Pelo contrário, afastou-a do
estudo de outras questões de ordem substantiva ou processual.

Para o efeito, esta dissertação de mestrado adotará duas abordagens diferentes. A


primeira corresponde a uma perspetiva prática do problema e consistiu na consulta prévia
de processos relativos a condenações em pena relativamente indeterminada que correm
termos no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. Esta consulta teve como objetivo
filtrar e compreender os verdadeiros problemas que na prática esta pena suscita na fase
da execução e, ainda, analisar, através da aferição da concessão ou negação em casos
concretos da liberdade condicional ou liberdade para prova tendo em conta os planos
individuais de readaptação, se a maioria dos reclusos que cumpre este tipo de pena
beneficia da concessão da liberdade condicional ou da liberdade para prova, por ter sido
eliminada ou neutralizada a tendência criminosa. Ou se, pelo contrário, a maioria dos
reclusos só é liberto quando alcança o limite máximo da pena relativamente
indeterminada, portanto, a sua tendência criminosa nunca chegou a ser eliminada ou
neutralizada. A segunda abordagem traduz-se em uma perspetiva mais teórica do
problema, então analisaremos o modo como a lei, a doutrina e a jurisprudência tratam o
tema da pena relativamente indeterminada.

Consequentemente, este estudo está divido em duas partes. A parte I refere-se ao


enquadramento prático e é constituída pelo capítulo I. No capítulo I iremos dar a conhecer

16
dois casos práticos e os problemas subjacentes aos mesmos. Neste capítulo, o principal
objetivo é proporcionar ao leitor a oportunidade de conhecer este instituto na prática (ao
invés de conhecê-lo apenas enquanto construção teórica como é o habitual), mas também
tem ainda como objetivo guiar o leitor para os problemas que irão ser tratados nos demais
capítulos.

A parte II refere-se ao enquadramento teórico e é constituída pelos capítulos II,


III, IV, V e VI. No capítulo II realizaremos uma viagem pela história do instituto, desde
os tempos mais remotos até à atualidade, com o objetivo de compreender quando e como
surgiram pela primeira vez os conceitos de habitualidade, tendência criminosa,
personalidade perigosa e prorrogação da pena. Depois de compreendida a história, no
capítulo III abordaremos o funcionamento do instituto hoje em dia, em especial as
diferentes modalidades de aplicação, os pressupostos, os limites e a sua duração com o
propósito de, no final deste capítulo, conseguirmos alcançar uma resposta quanto à sua
natureza jurídica. Fechados estes três capítulos, pretendemos que o instituto da pena
relativamente indeterminada esteja plenamente apresentado para em seguida
procedermos à análise dos problemas centrais que nos propusemos tratar. Assim, no
capítulo IV analisaremos a questão da imputabilidade ou inimputabilidade do delinquente
especialmente perigoso, com a intenção de compreendermos se estas figuras se
aproximam ou se afastam uma da outra e o verdadeiro alcance da norma que ordena a
aplicação do regime da medida de segurança de internamento de inimputável a este
género de delinquentes. Seguidamente, compreendida a questão da transição de regimes
e a conversão do delinquente imputável especialmente perigoso em inimputável durante
a execução da pena, no capítulo V iremos descrever a própria fase de execução da pena
relativamente indeterminada com forte incidência na elaboração dos planos individuais
de readaptação e na concessão da liberdade condicional ou da liberdade para prova. Ainda
dentro deste capítulo, iremos analisar a questão relativa à compatibilização da liberdade
definitiva e da liberdade obrigatória. Para finalizar, no capítulo VI realizaremos três
reflexões sobre as principais questões analisadas ao longo deste estudo. Uma relativa à
reinserção social, analisando o modo como a ressocialização e reabilitação do delinquente
condenado numa pena relativamente indeterminada são efetuadas; outra situa-se no plano
da constitucionalidade, no qual averiguaremos se a construção dogmática e teórica do
instituto é ou não inconstitucional e se o modo como o mesmo é executado viola ou não
algum princípio constitucional; a última situa-se no plano internacional, onde

17
analisaremos a perspetiva de interpretação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,
nomeadamente a jurisprudência internacional relativa a regimes similares ao da pena
relativamente indeterminada, com o propósito de alcançarmos uma solução mais coerente
e equilibrada no Direito nacional.

Em conclusão, com a presente dissertação pretendemos saber, sobretudo, qual a


eficácia da pena relativamente indeterminada aferida pela concessão ou negação da
liberdade condicional ou liberdade para prova tendo em conta os planos individuais de
readaptação.

18
PARTE I - ENQUADRAMENTO PRÁTICO

19
CAPÍTULO I

ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS DO TRIBUNAL DE


EXECUÇÃO DE PENAS

1. Exposição de casos concretos relativos à concessão ou negação da liberdade


condicional ou da liberdade para prova na aplicação de uma pena relativamente
indeterminada1

1.1 Caso n.º 1 – Delinquente por tendência A


O delinquente por tendência A cumpre atualmente pena de prisão no estabelecimento
prisional de Vale dos Judeus e cumpre sucessivamente as seguintes penas:

i. Pena relativamente indeterminada com o limite mínimo de 2 anos e 8 meses e limite


máximo de 10 anos de prisão, sendo 4 anos a pena que concretamente caberia ao
crime. Esta condenação foi efetuada pelo Tribunal da Comarca da Grande Lisboa
Noroeste em 22/03/2013, pela prática de dois crimes de roubo na forma consumada,
em coautoria e concurso real nos dias 17/02/2012 e 29/03/2012. Este tribunal aplicou
a cada um dos dois crimes de roubo, as penas respetivas de 2 anos e 6 meses de prisão
e 3 anos de prisão. Procedeu, ainda, à determinação da pena única e fixou-a em 4 anos
de prisão efetiva, dadas as circunstâncias dos factos e o percurso criminoso do agente.
Todavia, A foi considerado delinquente por tendência, uma vez que o tribunal
entendeu que de acordo com o n.º 1 do artigo 83º do Código Penal estavam
preenchidos os pressupostos para aplicação do instituto.
ii. Remanescente de 1 ano, 10 meses e 25 dias de prisão resultante da revogação da
liberdade condicional, que tinha sido atribuída em 15/07/2011 e que foi revogada em
10/07/2014, pela condenação em PRI por crimes cometidos no ano de 2012.

1
A realização da consulta dos processos relativos à apreciação da liberdade condicional e liberdade para
prova, na aplicação de uma pena relativamente indeterminada, iniciou-se com o envio de um requerimento
em 4 de dezembro de 2018 à Ex.ª Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a solicitar a
consulta dos autos que correm termos no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa (conforme apêndice 1).
Obtida a autorização necessária em 18 de dezembro de 2018, iniciámos a consulta e o estudo (conforme
anexo 2). Tivemos oportunidade de consultar nove processos no total, porém, devido à extensão destes e
da presente dissertação, foi necessário selecionar os processos que entendemos serem os mais relevantes.

20
O delinquente por tendência A foi detido preventivamente no dia 25/07/2012, data
em que começou a contar o início do cumprimento da sua pena. Os marcos a ter em conta
para efeitos de apreciação da liberdade condicional foram e serão as seguintes datas2:

- 08/03/2016 (data em que atinge o limite mínimo da PRI acrescido de metade do


remanescente da pena concreta, conforme n.º 1 do artigo 90º, n.º 3 e o n.º 2 do artigo 61º
do CP);

- 01/07/2016 (data em que atinge o limite mínimo da PRI acrescido de dois terços do
remanescente da pena concreta, conforme n.º 1 do artigo 90º e o n.º 3 do artigo 61º do
CP);

- 19/06/2024 (data em que ocorre o termo das penas).

Para apreciação da liberdade para prova, a data que importa é a de 19/06/2018 (data
em que atinge o cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime da PRI e a
totalidade da pena concreta que resulta do remanescente da revogação da liberdade
condicional, conforme n.º 3 do artigo 90º do CP).

O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa esclareceu que A cumpre duas penas com
naturezas diferentes. Sendo que a primeira tem uma natureza mista, nomeadamente de
pena até se mostrar cumprida a pena que concretamente caberia ao crime (neste caso 4
anos) e, a partir desse momento, é executada como medida de segurança até atingir o
limite máximo conforme estipula o n.º 3 do artigo 90º do CP. Ao passo que a segunda é
somente uma pena concreta e determinada. Por isso, a tramitação da liberdade condicional
neste caso obedece a um processado próprio, de modo a compatibilizar-se com os dois
regimes. Quando estiver cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, o regime
de tramitação passa a ser equivalente ao do internamento de inimputável com a renovação
da instância de dois em dois anos. Este tribunal explicou ainda: A deve esgotar primeiro
o cumprimento da pena concreta e determinada e só depois pode iniciar o cumprimento
do regime da medida de segurança. No fundo isto pressupõe, que, pelo menos e no limite,
o delinquente A deve ser «desligado» da PRI até à data em que atinge a pena que
concretamente caberia ao crime em que foi condenado numa PRI. Em seguida deve ser
«ligado» à pena concreta e só depois é que se volta a «religar» à PRI, regressando A nesta

2
Com o objetivo de se apurar os marcos de apreciação da liberdade condicional, neste caso, é necessário
conjugar as regras do n.º 1 do artigo 90º do CP respeitante à PRI e as do n.ºs 2 e 3 do artigo 61º e do n.º 2
do artigo 63º do CP respeitante à liberdade condicional em caso de execução sucessiva de várias penas.

21
altura novamente ao cumprimento da PRI, mas agora como medida de segurança. O
tribunal fundamentou este raciocínio com base nos princípios gerais de Direito e nas
exigências de prevenção geral e especial.

A história de vida do delinquente por tendência A é sumariamente a seguinte. No seu


percurso criminal estão registados antecedentes criminais pela prática de crimes de tráfico
de estupefacientes, condução sem habilitação legal, desobediência, roubo agravado,
recetação, resistência, coação sobre funcionário e detenção ilegal de arma. A já cumpriu
duas reclusões anteriormente. A primeira reclusão iniciou-se aos 16 anos de idade e
ocorreu entre os anos de 31/07/1996 a 31/05/2002. A segunda reclusão ocorreu entre os
anos de 25/09/2003 a 17/05/2011. A cumpre agora a terceira reclusão. Sobre os demais
dados pessoais releva que, à data da última condenação, A vivia num meio indicado como
problemático com o seu agregado familiar que se caracterizava por ser economicamente
carenciado e constituído pela sua progenitora, pelos irmãos, um sobrinho menor e uma
filha. Releva, ainda, que este delinquente manifesta bastantes dificuldades de adaptação
no meio escolar. O seu percurso escolar é marcado pelo absentismo e apenas concluiu o
1º ciclo com 14 anos de idade. A nível laboral tem um trajeto curto, marcado por
desempenho de tarefas indiferenciadas e descontínuas no sector da construção civil. A
consome drogas desde a adolescência e tem uma personalidade frágil, apresentando
instabilidade emocional.

Relativamente ao seu percurso prisional verificamos que iniciou o cumprimento da


sua pena no estabelecimento prisional de Lisboa e, em dezembro de 2017, foi transferido
para o estabelecimento prisional de Vale dos Judeus. Durante os primeiros anos em meio
prisional, A não se encontrou laboralmente ocupado nem nunca frequentou programas
específicos ou atividades socioculturais. Até 2017, também não integrava nenhum curso
de ensino, com a justificação de que não queria perder os contactos com os seus
companheiros de religião. Nessa altura as suas competências estavam direcionadas para
a frequência do culto cristão. No entanto, desde 2017 começou a frequentar o ensino
regular e apresentou motivação para aumentar as suas qualificações escolares e
profissionais. No percurso prisional de A registam-se uma punição por infração
disciplinar em 2013 (por posse de objetos proibidos) e outra punição por infração em
2018 (por posse de um cartão de telemóvel). A nunca beneficiou de medidas de
flexibilização. Apresenta a necessidade de acompanhamento médico especializado ao
nível da psiquiatria e, devido aos seus comportamentos aditivos, consta do seu plano

22
individual de readaptação que deve beneficiar de acompanhamento psicológico. Contudo,
apenas se regista uma entrevista na valência da psicologia. Durante os primeiros tempos
de reclusão, A não teve visitas nem qualquer projeto de trabalho. Entretanto, estabeleceu
uma relação afetiva em reclusão através da religião que partilha. A sua companheira
visita-o frequentemente e apoia-o financeiramente. Em meio livre, A pretende reintegrar
o seu agregado familiar que é economicamente carenciado e que reside num meio
comunitário indicado como problemático. Não tem assegurado nenhum projeto de
trabalho, mas mencionou que pode vir a trabalhar na empresa onde a atual companheira
trabalha (que não obstante as tentativas de contacto com a empresa, nunca se conseguiu
estabelecer uma ligação).

O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa apreciou a concessão da liberdade


condicional facultativa de A em 09/05/2016, em 16/06/2017 e em 29/05/2018. Em todas
as apreciações decidiu pela negação da mesma. O Ministério Público e o Conselho
Técnico emitiram sempre pareceres desfavoráveis e o delinquente A deu sempre o seu
consentimento relativo à eventual concessão de liberdade condicional. Nas três
apreciações realizadas, este tribunal concluiu que os pressupostos formais se encontravam
preenchidos, nomeadamente o tempo de cumprimento da pena e a concordância do
delinquente com a eventual libertação condicional. Porém, no que respeita ao pressuposto
material de atribuição da liberdade condicional, este tribunal concluiu similarmente que
não era possível efetuar um juízo de prognose favorável sobre o delinquente por tendência
A.

De forma sucinta apresentamos os motivos pelos quais o tribunal não conseguiu emitir
um juízo de prognose favorável nas três apreciações de liberdade condicional realizadas:
longo passado criminal e prisional; insucesso nas concessões de liberdade condicional
anteriores; historial aditivo associado à problemática na área da saúde mental com
prognóstico reservado; atitude criminal negativa, nomeadamente revelar baixa
consciência crítica relativa aos crimes praticados por si (justificando-os com o domínio
dos “espíritos do mal” e outras influências externas); percurso prisional insuficientemente
evolutivo ao nível da mudança de personalidade 3; não ter usufruído ainda de medidas de
flexibilização da pena e não ter uma rede ou suporte exterior consistente.

3
Note-se que a concessão da liberdade condicional, quer nas penas determinadas quer na PRI, não pode
depender do requisito da mudança de personalidade que se consubstancia essencialmente no
arrependimento e interiorização da culpa do condenado, uma vez que este requisito viola os princípios

23
Cabe concluir que a liberdade condicional de A foi sempre negada por falta de
preenchimento do pressuposto material.

Consta ainda dos autos, que A foi «desligado» do processo da PRI em 25/07/2016 (ou
seja, quando alcançou a pena que concretamente caberia ao crime de 4 anos de prisão),
para ser «ligado» ao cumprimento do processo da pena determinada resultante do
remanescente da revogação da liberdade condicional. Findo o cumprimento da pena que
concretamente caberia ao crime da PRI e da pena determinada, o Tribunal de Execução
de Penas de Lisboa ordenou o prosseguimento dos autos para o cumprimento do
remanescente da PRI como medida de segurança de internamento. Assim, em 19/06/2018,
este tribunal determinou que o delinquente A fosse «desligado» do processo da pena
determinada e «religado» novamente ao processo da PRI.

Entretanto, julgamos ser relevante expor que o mandatário do delinquente A, face à


ordem de prosseguimento dos autos para cumprimento do remanescente da PRI como
medida de segurança de internamento, interpôs um requerimento a solicitar a cessação do
internamento de A e a realização de avaliações psiquiátricas quanto à sua personalidade.

À evidência, de extrema importância foi a resposta dada pelo Tribunal de Execução


de Penas de Lisboa ao requerimento enviado. Este tribunal referiu que o requerimento
apresentado era completamente anómalo e infundado. Esclareceu de novo quais as penas
que o delinquente por tendência A cumpre e qual a fase de execução em que se encontram.
Referiu que a pena, que concretamente caberia ao crime da PRI, e a pena determinada já
se encontram cumpridas e extintas. Logo, o regime de cumprimento da pena passou a
seguir o regime específico da apreciação da liberdade para prova de dois em dois anos,
sendo que na altura realizar-se-á a perícia sobre a personalidade e avaliação da capacidade
do agente. E, indo mais longe, o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa mencionou:
“O recluso não «passou a inimputável», simplesmente passa a estar sujeito a um regime
próprio de apreciação da liberdade com momentos diferentes do regime da liberdade
condicional «tradicional». Esses momentos de instrução e apreciação encontram-se
previamente estabelecidos na lei e não são escolhidos ad hoc (…) “.

constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade, de acordo com os artigos 1º, 18º, 25º, 26º e
27º da CRP. Na verdade, este requisito é sempre incompatível com o Estado de Direito Democrático, de
acordo com o artigo 2º da CRP.

24
Face ao exposto, concluímos que, de 25/07/2012 a 25/07/2016, o delinquente por
tendência A cumpriu 4 anos de pena de prisão que correspondem à pena que
concretamente caberia ao crime que resulta da aplicação da PRI. De seguida, de
25/07/2016 a 19/06/2018, cumpriu 1 ano 10 meses e 25 dias de pena de prisão que
corresponde ao cumprimento da pena determinada que resultou da revogação da liberdade
condicional. Por último, de 19/06/2018 até 19/06/2024, poderá vir a cumprir 6 anos de
internamento de inimputável que corresponde ao remanescente da aplicação da PRI. Isto
significa, que, à presente data, A já cumpriu a PRI até à pena que concretamente caberia
ao crime e encontra-se a cumprir o seu remanesceste, nomeadamente a fase de execução
da pena como medida de segurança de internamento de inimputável. A concessão da
liberdade para prova irá ser apreciada obrigatoriamente em 19/06/2020. Totalizando tudo,
verificamos que, desde julho de 2012 até ao momento, A está preso há 6 anos e 10 meses
e não beneficiou ainda de liberdade condicional. Cumulando ainda os dois períodos
anteriores de reclusão (sensivelmente de 5 anos e 10 meses e 6 anos e 8 meses) com este
em cumprimento, alcançamos rapidamente que A esteve encarcerado durante um total de
20 anos e 2 meses, ou seja, A viveu (ainda vive) mais de metade da sua idade adulta em
reclusão.

1.2 Caso n.º 2 – Delinquente por tendência B


O delinquente por tendência B cumpre igualmente pena de prisão no estabelecimento
prisional de Vale dos Judeus e cumpre sucessivamente as seguintes penas:

i. Pena relativamente indeterminada com limite mínimo de 13 anos e 4 meses e limite


máximo de 25 anos, sendo 20 anos a pena que concretamente caberia ao crime. Esta
condenação foi efetuada pelo Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa em
20/01/1997, pela determinação do cúmulo jurídico superveniente das penas parcelares
pela prática de crimes de furto e roubo nos dias 20 e 16 de março e 4 e 11 de abril do
ano de 1991, e pela prática de crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade
em 10 outubro de 1994. Este tribunal fixou como moldura penal abstrata do cúmulo,
o limite mínimo 7 anos de prisão e o limite máximo de 74 anos de prisão, e determinou
a pena única de 20 anos de prisão efetiva. Contudo, B foi considerado delinquente por
tendência, visto que este tribunal concluiu que os pressupostos de aplicação do
instituto se encontravam preenchidos, de acordo com o n.º1 do artigo 83º do Código
Penal.

25
ii. Pena determinada de 5 anos pela prática de um crime de roubo que ocorreu durante
uma licença de saída jurisdicional em 28/08/2012.

Atualmente, o delinquente por tendência B já cumpriu a integralidade da PRI e


encontra-se efetivamente a cumprir a pena determinada de 5 anos. Antes de analisarmos
o seu processo, salientamos que para o nosso estudo apenas importa apreciar a fase de
execução do cumprimento da PRI, uma vez que o regime de execução sucessivo de penas
não foi cumprido de forma rigorosa.

Diferentemente do que aconteceu no caso do delinquente por tendência A, neste caso


o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa clarificou que não era viável realizar-se a
aplicação rigorosa de um regime de execução sucessiva de penas que incluía a PRI (na
fase final) e a pena concreta. Assim, determinou que as duas penas fossem cumpridas de
forma autónoma uma da outra. Isto quer dizer que o delinquente por tendência B primeiro
cumpriu a PRI na sua totalidade e só depois é que veio cumprir a pena determinada. Esta
foi a opção processual de cumprimento das penas, porque quando B foi condenado na
pena determinada já se encontrava quase a alcançar o termo final da prorrogação da PRI
(designadamente faltava sensivelmente 1 ano e 3 meses). Portanto, entendeu-se que não
fazia sentido «desligar» o delinquente da PRI, «ligar» a pena determinada e depois voltar
a «religar» à PRI.

O delinquente por tendência B cumpre ininterruptamente pena desde 12/04/1991,


sendo esta a data em que começou a contar o início do cumprimento da sua pena. Os
marcos a ter em conta para efeitos de apreciação da liberdade condicional foram as
seguintes datas4 :

- 12/08/2004 (data em que atingiu o limite mínimo da PRI, conforme o n.º 1 do artigo 90º
do CP);

- 12/04/2016 (data em que atingiu o limite máximo da PRI).

Para a apreciação da liberdade para prova, a data tida em conta foi a de 12/08/2011
(data em que atingiu a pena que concretamente caberia ao crime, conforme o n.º 3 do
artigo 90º do CP).

4
Neste caso, para se apurar os marcos de apreciação da liberdade condicional importa apenas observar as
regras do n.º 1 do artigo 90º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 61º do CP.

26
A história de vida do delinquente B é a seguinte. No que diz respeito ao seu percurso
criminal registam-se antecedentes criminais pela prática de dez crimes de roubo, sete
crimes de furto qualificado e um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade
e averba condenações desde 1979. A primeira reclusão ocorreu aos 16 anos de idade e
desde essa altura que se registam longos períodos de reclusão intercalados com outros em
liberdade. Quanto aos demais dados pessoais, assinala-se que B é oriundo de um meio
socioeconómico desfavorecido e é o mais novo dos irmãos. A sua dinâmica familiar à
data da última condenação caracterizava-se por atitudes maternas de proteção enquanto o
seu pai lhe infligia maus tratos. O delinquente B em liberdade sempre viveu num meio
ambiente relacionado com a marginalidade e desde novo que frequentou instituições
tutelares de menores. Não concluiu o ensino básico e começou a trabalhar aos 14 anos de
idade. Nunca conseguiu exercer qualquer atividade profissional de forma regular. Desde
a sua adolescência que consome drogas. No ano de 1985 estabeleceu uma relação marital
de onde resultou uma filha. B manifesta dificuldades em antecipar o resultado das suas
ações e adota uma postura orientada para a satisfação imediata dos seus interesses e
elevada permeabilidade a pressões externas.

O percurso prisional deste delinquente iniciou-se com o cumprimento da sua pena no


estabelecimento prisional de Vale dos Judeus e, em outubro de 2001, foi transferido para
o estabelecimento prisional de Coimbra. Em 08/06/2004, voltou a ser novamente
transferido para o estabelecimento prisional de Vale dos Judeus. Durante os anos de 2004,
2005 e 2006, B não investiu em qualquer atividade laboral. A partir de 2008, demonstrou
algum investimento pessoal, começou a trabalhar na lavandaria, em seguida trabalhou na
carpintaria e na construção civil. Até 2011, não frequentou nenhuma formação escolar ou
profissional. No início da sua reclusão, B adotava um comportamento institucional
globalmente positivo, porém, a partir do ano de 2004 passou a assumir um
comportamento institucional incorreto, demonstrando alguma instabilidade psico-
emocional. De 2004 a 2011 registaram-se 26 infrações disciplinares e, nessa mesma
altura, B beneficiou de cinco saídas precárias que ocorreram sem registo de incidentes. O
delinquente B esteve em regime aberto no interior de 05/03/2008 a 05/02/2009. Em meio
livre projeta trabalhar como marceneiro para o cunhado e viver com o seu agregado
familiar. A sua habitação está inserida num bairro que apresenta problemas de
criminalidade. B identifica a toxicodependência como a principal fonte criminógena, mas
ainda não se submeteu a um tratamento especializado, invocando como suficiente a sua

27
motivação para se manter abstinente. É referido que B revela pouco sentido crítico quanto
aos factos que motivaram a sua reclusão, não tendo ainda interiorizado o desvalor da sua
conduta e a necessidade de optar por outro estilo de vida.

O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa analisou a concessão da liberdade


condicional facultativa de B em 28/01/2004, 10/10/2005, 04/12/2006, 20/02/2008,
13/03/2009, 12/06/2010 e 30/06/2011. Em todas as apreciações efetuadas decidiu pela
negação da liberdade condicional ao delinquente B. Concomitantemente, o Ministério
Público e o Conselho Técnico emitiram sempre pareceres desfavoráveis e B prestou
sempre o consentimento relativo à eventual concessão da sua liberdade condicional. Na
verdade, os pressupostos formais encontravam-se preenchidos em todas as apreciações,
nomeadamente o tempo de cumprimento da pena e a concordância do delinquente com a
eventual libertação condicional. Porém, este tribunal entendeu, similarmente, que o
pressuposto material de atribuição da liberdade condicional não se encontrava reunido.

Em síntese, nas sete apreciações de liberdade condicional realizadas, o tribunal


concluiu que não era possível formular um juízo de prognose favorável e conceder
liberdade condicional a B pelas seguintes razões: antecedentes criminais e
comportamentais; problemática aditiva; percurso institucional instável e perspetivas de
vida inseridas num meio problemático (sem trabalho ou meios de subsistência
assegurados).

Conforme demonstram os autos, sucede que em 16/10/2011 o delinquente por


tendência B enviou um requerimento onde solicitou que lhe fosse concedida a liberdade
condicional obrigatória de acordo com o n.º 4 do artigo 61º do Código Penal em
12/02/2012, visto que, nessa data alcançaria o cumprimento de cinco sextos da pena de
prisão.

De relevante interesse para o nosso estudo, destacamos as respostas concedidas pelo


Tribunal de Execução de Penas de Lisboa e pelo Tribunal da Relação de Lisboa (dado o
recurso interposto por B da primeira decisão).

O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa a 06/12/2011 indeferiu o requerimento


apresentado por B e explicou o seguinte: “(…) para a pena relativamente indeterminada
está afastada a liberdade obrigatória prevista para os 5/6 das penas normais pelo
argumento «a contrario sensu», pois o art. 90º n.º 1 do Cód. Penal apenas remete para o
n.º1 e n.º 3 do art. 61º do mesmo diploma, e não, portanto para o n.º 4 deste último preceito

28
onde está prevista a referida liberdade condicional obrigatória”. Mencionou, ainda, que
B está preso desde 12/04/1991 e já cumpriu mais de 20 anos de prisão que corresponde à
pena que concretamente caberia ao crime. Assim sendo, a instância para apreciação de
nova liberdade renova-se em 30/06/2013, de acordo com o n.º 3 do artigo 90º e n.º 2 do
artigo 93º do CP.

No mesmo sentido e confirmando a decisão do Tribunal de Execução de Penas de


Lisboa, em 24/01/2012, o Tribunal da Relação de Lisboa referiu que a norma do n.º 4 do
artigo 61º do CP não se aplica aos casos de PRI. Logo, o delinquente B não pode
beneficiar de liberdade a 12/02/2012. Este tribunal esclareceu ainda: “No presente caso,
o arguido não obteve a liberdade condicional quando atingiu o limite mínimo da respetiva
pena relativamente indeterminada (…) tendo já cumprido mais de 20 anos de prisão (…)
pelo que está, neste momento, sujeito ao regime do art. 90º n.º 3 do CP, o qual nos remete
para as disposições legais que regem as medidas de segurança, das quais resulta que a
medida finda «quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal»,
sendo a apreciação de tal questão obrigatória sempre que invocada uma causa justificativa
da cessação da medida ou, oficiosamente, quando se completa o período correspondente
à pena que concretamente caberia ao crime cometido (…) e decorridos dois anos sobre a
decisão que tenha mantido a medida. Ou seja, terá a questão da libertação – ponderando-
se, nomeadamente, a aplicação do disposto no art. 94º (liberdade para prova) - de ser
oficiosamente reapreciada a cada dois anos”.

Diante disto, entendemos que ambos os tribunais se pronunciaram no sentido de que,


embora o delinquente por tendência B já tenha cumprido 20 anos de prisão (que é
nomeadamente a pena que concretamente caberia ao crime), não pode beneficiar de
concessão de liberdade condicional a cinco sextos da pena de prisão. Ultrapassada a pena
que concretamente caberia ao crime, B deve cumprir o restante tempo de pena em regime
de medidas de segurança de internamento e a sua situação deve ser apreciada até ao limite
máximo da PRI, que foi alcançado em 12/04/2016.

Em seguida, a 20/09/2013, o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa apreciou


novamente a liberdade condicional do delinquente por tendência B5. O MP e o Conselho

5
Importa notar que o TEP de Lisboa não devia ter afirmado que se apreciava na altura a liberdade
condicional, devia sim ter afirmado que apreciava a liberdade para prova, pois àquela data B já tinha
alcançado a pena que concretamente caberia ao crime (designadamente alcançou-a em 12/08/2011).
Repare-se que, desde a última apreciação da liberdade condicional que decorreu em 30/06/2011, passaram
dois anos para se verificar a renovação da instância. Portanto, na prática, o tribunal aplicou a regra do n.º 2

29
Técnico prestaram parecer desfavorável e o delinquente B prestou mais uma vez a sua
concordância à eventual concessão de liberdade condicional. Para o efeito, este tribunal
teve em conta todas as considerações acerca do delinquente já referidas anteriormente e
acrescentou que, embora tenha reiniciado as saídas jurisdicionais em março de 2011, as
mesmas terminaram em junho de 2012, visto que, durante o gozo de uma saída, B foi
conduzido ao estabelecimento prisional como suspeito pela prática de um crime 6.
Considerando esta última circunstância, e somando as demais referidas anteriormente,
este tribunal decidiu não conceder liberdade condicional pelo facto de não ser possível
efetuar novamente um juízo de prognose favorável acerca de B.

Durante o gozo da saída jurisdicional em que B foi considerado suspeito da prática


de um crime, esteve em ausência ilegítima por um dia. Deste modo, a sua licença de saída
jurisdicional foi revogada e foi acrescentado um dia ao cumprimento da pena. Logo, o
limite máximo da PRI só foi alcançado em 13/04/2016.

Em 11/01/2016, o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa realizou mais uma vez


a apreciação da liberdade condicional7. Resumidamente, salientamos que, embora os
pressupostos formais se encontrassem preenchidos, este tribunal negou a concessão da
liberdade condicional. Assinalou ainda que, todas as circunstâncias referidas nas restantes
apreciações de liberdade, cumuladas com mais uma condenação em pena de prisão efetiva
de 5 anos, não permitiam realizar um juízo de prognose favorável sobre o delinquente por
tendência B.

O delinquente por tendência B foi «desligado» do processo da PRI em 13/04/2016,


por já ter alcançado o limite máximo da PRI, e foi «ligado» ao processo da pena
determinada para iniciar o seu cumprimento (a qual se encontra ainda a cumprir
atualmente).

Posto isto, concluímos que o delinquente por tendência B esteve em reclusão durante
25 anos à ordem do processo da PRI, designadamente desde 12/04/1991 a 13/04/2016.

do artigo 93º ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP. E, pela mesma razão, deveria ter aplicado igualmente a norma
do artigo 94º do mesmo diploma legal. Como foi aplicada de forma errada a figura da liberdade condicional,
o TEP de Lisboa aferiu a liberdade provisória de B depois de cumprida a pena que concretamente caberia
ao crime nos moldes iguais à apreciação da liberdade condicional quando atingido o limite mínimo da PRI,
e não de acordo com a liberdade para prova que era a que na verdade estava em causa.
6
Durante a saída jurisdicional, B cometeu um crime em 28/08/2012 e veio a ser condenado em 30/01/2015
pelo Tribunal Judicial de Lisboa pela prática de um crime de roubo qualificado na pena de 5 anos de prisão
efetiva.
7
Nesta fase, também deveria ter sido apreciada a liberdade para prova, e não a liberdade condicional.

30
Logo, B cumpriu na totalidade a PRI. Durante a execução da PRI foram apreciadas nove
vezes as eventuais concessões de liberdade condicional8 e foram todas negadas, incluindo
a aplicação da liberdade condicional obrigatória a cinco sextos da pena de prisão. No ano
de 2012, durante o gozo de uma licença de saída jurisdicional, o delinquente por tendência
B cometeu um crime e veio a ser condenado em pena determinada de 5 anos de prisão
efetiva. À presente data, B encontra-se a cumprir a pena determinada e já cumpriu
integralmente a condenação em PRI. Cabe salientar que o delinquente B, tal como o A,
também viveu (ainda vive) mais de metade da vida adulta em reclusão.

2. Levantamento de problemas
Dos dois casos anteriormente apresentados resultam questões e problemas que vamos
em seguida destacar, com o objetivo de os analisarmos e tratarmos na parte II da presente
dissertação.

Em primeiro lugar, evidenciamos que existem dificuldades de compreensão da


natureza jurídica do instituto da PRI, visto que se aplicam penas cumulativamente com
medidas de segurança. Estas dificuldades aumentam, nomeadamente, quando estamos
perante um caso em que se tem de articular o cumprimento sucessivo de uma PRI com
uma pena determinada, tal como aconteceu no caso n.º 1 relativamente ao delinquente por
tendência A. Logo, a primeira questão que colocamos relaciona-se com a natureza
jurídica do instituto da pena relativamente indeterminada.

Em segundo lugar, na sequência do exposto, assinalamos que o instituto da PRI,


permite que inicialmente o delinquente cumpra uma pena de prisão até ao momento em
que alcança a pena que concretamente caberia ao crime e, em seguida, cumpra uma
medida de segurança de internamento de inimputável até ao limite máximo estabelecido.
Isto significa que este instituto permite que o delinquente venha a cumprir uma pena que
excede a medida da culpa. É o próprio CP no n.º 3 do artigo 90º que refere que, caso o
delinquente não se encontre em liberdade condicional e já tenha alcançado o cumprimento
da pena que caberia ao crime, se deve aplicar a partir desse momento o regime de medidas
de segurança de internamento de inimputável. No entanto, esta transição de regime cria
alguma confusão, pois não compreendemos como é que um delinquente, que foi
considerado imputável à data da sentença condenatória, parece ser agora considerado

8
Recordamos que, nas duas últimas vezes, devia ter sido apreciada a liberdade para prova e não a liberdade
condicional.

31
inimputável. Recordamos que este problema foi suscitado pelo mandatário do delinquente
por tendência A no caso n.º 1. Assim, questionamos sobre qual o sentido e alcance da
consagração legal que ordena a transição de regimes, convertendo (aparentemente)
delinquentes imputáveis em delinquentes inimputáveis.

Em terceiro lugar, devido à possibilidade de transição de regimes na aplicação de uma


PRI é possível apreciar-se, durante a execução da pena de prisão, a concessão da liberdade
condicional de um em um ano e, durante a execução da medida de segurança de
internamento, a concessão da liberdade para prova de dois em dois anos. A este respeito,
tendo como exemplo o caso n.º 2 sobre o delinquente por tendência B, concluímos que a
possibilidade de aplicação destas duas figuras cria alguma complexidade na sua
apreciação e aplicação. Deste modo, surge a necessidade de esclarecermos quando e
como é que devem ser atribuídas e apreciadas a liberdade condicional e a liberdade
para prova.

Em quarto lugar, deste instituto resultam problemas relativos à aplicação da liberdade


obrigatória e da liberdade definitiva. Por exemplo, no caso n.º 2 relativo ao delinquente
por tendência B, levantou-se a questão de saber se um delinquente por tendência pode
beneficiar da liberdade condicional obrigatória a cinco sextos da pena de prisão. Contudo,
podemos ir mais longe e mais dúvidas suscitar, nomeadamente, se tentarmos
compreender qual é a interpretação da palavra «pena» prevista no n.º 4 do artigo 61º do
CP. Será que a palavra «pena» corresponde à pena que concretamente caberia ao crime
da PRI, ou será que corresponde à pena que constitui o limite máximo legal estipulado
para a PRI? A isto acresce ainda a problemática de saber quando é que devemos libertar
definitivamente um delinquente condenado em PRI, designadamente, quando o estado de
perigosidade cessou ou quando se alcançou o limite máximo estipulado (mesmo que o
estado de perigosidade não tenha cessado), ou, pelo contrário, podemos prorrogar o
internamento por períodos sucessivos de dois anos até cessar o estado de perigosidade?
Ou seja, importa analisarmos como é que se compatibilizam as figuras da liberdade
condicional obrigatória e da liberdade definitiva.

Para finalizar, da conjugação dos dois casos apresentados cabe levantar por último a
seguinte questão: se, na realidade, um delinquente condenado em PRI não é um
«verdadeiro» inimputável, como é possível este cumprir uma pena para além da
medida da culpa e qual o sentido de se aplicar um regime mais gravoso ao mesmo,

32
que impossibilita (por exemplo) que este beneficie de uma liberdade obrigatória a
cinco sextos da pena de prisão?

33
PARTE II - ENQUADRAMENTO TEÓRICO

34
CAPÍTULO II

HISTÓRIA DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Antecedentes históricos
A pena relativamente indeterminada foi consagrada pela primeira vez no Código Penal
de 1982, aprovado pelo Decreto de Lei n.º 400/82; desde essa época que persiste no
ordenamento jurídico português. Importa realçar que, embora a PRI só tenha sido
consagrada há 37 anos no nosso ordenamento jurídico, os principais conceitos inerentes
a este instituto, nomeadamente, conceitos como habitualidade, tendência criminosa e
personalidade perigosa remontam a séculos passados.

Assim sendo é essencial distinguirmos dois momentos históricos que representam as


grandes marcas que impulsionaram a criação deste instituto. O primeiro momento diz
respeito à preocupação demonstrada com uma faixa de população cujos elementos eram
designados de vadios e mendigos (GUARDADO LOPES: 1995, 80), uma vez que viviam
sem residência fixa, sem profissão e consequentemente sem meios de subsistência. O
segundo momento diz respeito à preocupação demonstrada com um grupo de indivíduos
designados por delinquentes de difícil correção (BELEZA DOS SANTOS: 1947, 15 e
seguintes), que ou revelavam um hábito criminoso ou uma tendência criminosa, ou eram
considerados indisciplinados.

1.1 Vadios e mendigos


1.1.1 Antes e durante das Ordenações
Inicialmente, os países Europeus demonstraram uma grande preocupação pela
punição da vadiagem e mendicidade 9. Como ensina GUARDADO LOPES, Portugal não
foi exceção; na idade média, no séc. XIV, o rei D. Fernando publicou uma lei em 1367 e
em 1383 que estabelecia que todos os vadios e mendigos que estivessem nas suas plenas
capacidades, ou seja, não fossem velhos ou doentes, tinham de ser expulsos da cidade ou

9
Por exemplo, no ano de 1389, os vagabundos em Espanha eram sujeitos a trabalho obrigatório e, no ano
de 1596, foram criados o “Rasphius d’Amsterdam” (onde os homens eram obrigados a trabalhar com
madeira) e o “Spinhuis” (onde as mulheres eram obrigadas a tecer). Similarmente, em França, o antigo
regime esforçou-se por neutralizar a existência de mendigos, vagabundos e as pessoas da má-vida,
designadamente no ano de 1770 criaram-se estabelecimentos onde os homens eram obrigados a tecer e as
mulheres a costurar. Repare-se que também em Inglaterra foram criados os célebres estabelecimentos
denominados por «Bride-wells» que mais não eram que casas de correção destinadas a criar hábitos de
trabalho. Cfr. MARC ANCEL: 1971, 47-49.

35
eram obrigados a prestar certos serviços (GUARDADO LOPES: 1995, 80 e ss.).
Igualmente, em 1409, as Cortes de Lisboa instituíram a figura do «Pai dos Velhascos»,
sendo este a pessoa responsável pela vigilância dos vadios e encarregue de encontrar amos
e trabalho para os mesmos.

Durante a idade moderna, com a entrada em vigor das Ordenações 10, consagraram-se
regras de punição para os vadios. Particularmente, as Ordenações Filipinas (1603)
ordenavam açoites públicos e pena de degredo para África por um ano. Os vadios podiam
ainda ser mandados para o Brasil ou para as galés pelo tempo que fosse determinado pelos
desembargadores do paço. Ainda nos séc. XVII e XVIII foram publicadas diversas
providências legislativas que refletiam esta realidade, nomeadamente: o Decreto de 1608
que repartia pelos bairros de Lisboa julgadores com o intuito de fiscalizar a prisão dos
vadios e mendigos (GUARDADO LOPES: 1995, 155-156); a lei de março de 1641 que
determinava a prisão para os vadios (GUARDADO LOPES: 1995, 157); e o alvará de 4
de novembro de 1755 que impunha como castigo que os vadios e mendigos tinham de
trabalhar nas obras da cidade (EDUARDO CORREIA: 1977, 104-105).

1.1.2 Código Penal de 1852


Posteriormente, já na idade contemporânea, com a difusão dos ideais iluministas de
MONTESQUIEU e BECCARIA11 e das ideias liberais, Portugal começou a sentir a
necessidade de realizar uma reforma urgente nas suas legislações 12. Deste modo, foi
elaborada a Constituição de 1822, que representou um sinal de mudança no pensamento
português. Este diploma consagrou no artigo 10º: “nenhuma lei, muito menos a penal,

10
Até às ordenações, o sistema de punição português caracterizava-se pelo uso da vingança privada e da
composição pecuniária. Mais tarde, com o desenvolvimento do poder público proibiu-se o uso da vingança
privada e criou-se uma autoridade pública que concentrou em si o poder de punir e castigar os delinquentes.
Surgiu, assim, a necessidade de criar uma legislação de Direito penal, tendo sido esta consagrada e
compilada nas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603). Foi o livro V das
Ordenações que estipulou as regras de Direito penal. Cfr. AGOSTINHO FEVEREIRO/AUGUSTO
GOUVÊA: 1920, 69-72 e EDUARDO CORREIA: 1993, 101-104.
11
MONTESQUIEU defendeu a proporcionalidade entre o delito e a pena e BECCARIA, sendo discípulo
deste, defendeu que as penas deveriam ter uma finalidade exclusivamente preventiva, justificando a sua
tese com base no contrato social. Ambos os pensadores, afirmaram a necessidade de eliminar penas
arbitrárias e limitar o poder do Estado absoluto. Para tal, assinalaram que apenas a finalidade preventiva da
pena é que devia ser considerada, sendo guiada pela gravidade do crime e culpa do agente. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2004, 63-66.
12
A necessidade de reforma sentiu-se principalmente no Direito penal das Ordenações que se encontrava
em vigor, pois este caracterizava-se por aplicar penas arbitrárias, desproporcionais, cruéis, desiguais e
transmissíveis e tendo como a única finalidade da pena a repressão e criação de um sistema de terror. Tal
como se pode entender, todas estas características colidiam com os princípios humanísticos do iluminismo
e com as ideias liberais. Cfr. AGOSTINHO FEVEREIRO/AUGUSTO GOUVÊA: 1920, 72-74 e
EDUARDO CORREIA: 1993, 101-106.

36
será estabelecida sem absoluta necessidade”, e no artigo 11º: “toda a pena deve ser
proporcionada ao delito e nenhuma deve passar a pessoa do delinquente” (FIGUEIREDO
DIAS: 2004, 63-64). Foi assim, introduzido no ordenamento jurídico português, o que
nos dias de hoje designamos como dois princípios basilares do Direito penal, que são: o
princípio da proporcionalidade (consagrado no n.º 2 do artigo 18º da Constituição da
República Portuguesa) e o princípio da culpa (consagrado no artigo 1º e n.º 1 do artigo
25º da CRP e n.º 2 do artigo 40º do Código Penal).

Já instaurado o regime liberal em Portugal, foram publicados os Decretos de 14 de


abril de 1836 e de 18 de maio de 1837, que proibiram a mendicidade nas cidades de
Lisboa e do Porto. No seguimento desta proibição, criaram-se «Asilos de Mendicidade»,
com o objetivo de hospedar os vadios e mendigos.

No que concerne, à necessidade de ser efetuada uma reforma urgente no Direito penal
português das Ordenações destacamos a implementação do primeiro Código Penal
português em 1852, inspirado principalmente no Código Napoleónico de 1810
(EDUARDO CORREIA: 1993, 107)13. Este código assumiu como finalidade da pena a
prevenção geral, limitada pelos princípios da proporcionalidade e da culpa, já
consagrados na Constituição de 1822. Refletiu assim, nas palavras de FIGUEIREDO
DIAS, o “património ideológico do Iluminismo Penal” (FIGUEIREDO DIAS: 2004, 65).
Foram introduzidas neste código duas grandes novidades: a primeira foi a possibilidade
de se poder optar pela aplicação de uma pena fixa ou de uma pena variável 14; a segunda
grande inovação consistiu na adoção de três tipos de sanções penais: penas maiores, penas
correcionais e penas especiais para funcionários públicos (EDUARDO CORREIA: 1977,
116 e ss. e SOUSE E BRITO: 1986, 51-57).

Interessa destacar a pena correcional pois era a aplicada aos vadios e mendigos.
Inspirada na escola correcionalista de ROEDER15, a pena correcional distinguiu-se das
demais, pois defendia a possibilidade de correção dos delinquentes criminosos,
consagrando assim a nova finalidade das penas: a prevenção especial. Concretizando, a

13
EDUARDO CORREIA refere ainda que o código português também foi inspirado no código espanhol
de 1848, no código brasileiro de 1831, no código austríaco de 1803, no código de Nápoles de 1819 e numa
lei belga sobre o duelo.
14
A pena variável consiste na existência de uma moldura penal abstrata que varia entre um mínimo e um
máximo, em que caberá ao juiz determinar no caso concreto a medida concreta da pena. Enquanto a pena
fixa pressupõe uma pena fixa e concreta já determinada que será sempre essa que o juiz aplica, não deixando
espaço para interpretações casuísticas.
15
ROEDER pensador da época e defensor da escola correcionalista, opôs-se à finalidade retributiva da pena
e reafirmou o valor da prevenção especial na aplicação da pena. Cfr. João OSÓRIO: 2010, 18.

37
aplicação desta consistia no seguinte: depois de certos indivíduos serem declarados
vadios, eram punidos com uma pena correcional de 6 meses e de seguida teriam de
realizar trabalho pelo tempo que se considerasse necessário. Esta forma de punição
manifestava por um lado, a ideia de sentença indeterminada 16 e, por outro, a ideia de
medida de segurança ou complemento da pena17, que só mais tarde foram discutidas pela
doutrina.

Os mendigos foram equiparados aos vadios quanto à sua punição. A única ressalva
efetuada é que eram considerados mendigos todos os que mendigassem embora fossem
capazes de se sustentar pelo trabalho. A pena destes podia acrescer em mais dois anos,
quando simulassem alguma doença.

Concluindo, o Código Penal de 1852 introduziu duas finalidades da pena: prevenção


geral e prevenção especial de forma mitigada. Manifestou paralelamente as primeiras
ideias de sentença indeterminada e medida de segurança. O Código de 1852 refletiu um
sistema dualista de penas e medidas de segurança, visto que sujeitava os vadios e
mendigos, em primeiro lugar, ao cumprimento de uma pena e, em segundo lugar, à
obrigatoriedade de realização de trabalho. Esta realização de trabalho pelo tempo que se
julgava conveniente era nitidamente uma medida de segurança com carácter de sentença
indeterminada que tinha como objetivo reabilitar os delinquentes (GUARDADO LOPES:
1995, 82 e JOÃO OSÓRIO: 2010, 19).

1.1.3 Código Penal de 1886


O Código de 1852 foi muito censurado pela doutrina portuguesa da época
(EDUARDO CORREIA: 1993, 108 e ss.), portanto, em 1861, nomeou-se uma comissão
para elaborar um projeto de revisão. LEVY MARIA JORDÃO fez parte da comissão que
elaborou o projeto de revisão. Este autor defendeu que o código de 1852 continha algumas
ideias que colidiam frontalmente com as ideias iluministas aceites em Portugal,
designadamente, a possibilidade de execução da pena de morte que apelava à única
finalidade de retribuição da pena. Este autor, influenciado pela escola correcionalista de

16
ANABELA RODRIGUES sublinha que a atual ideia de pena relativamente indeterminada teve origem
na indeterminação absoluta da pena. Inicialmente começou a ser aplicada em sentenças eclesiásticas,
progredindo para a aplicação na Constitutio Criminalis Carolina em 1532, em seguida para a aplicação na
Constitutio Criminalis Theresiana e foi até à aplicação das «Indeterminate Sentence» no Reformatório de
Elmira. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 288.
17
“(…) cumprida a pena, se o criminoso não der mostras de emendado, sofrerá mais algum tempo de prisão
a título de medida de segurança. (…) A medida de segurança é indeterminada como naturalmente é
indeterminado o perigo que ela tenta combater “. Cfr. ARMANDO PEREIRA: 1927, 53 -55.

38
ROEDER, defendeu que se devia abolir do código a distinção entre penas maiores e
correcionais, visto que a finalidade de todas as penas deveria ser apenas a de prevenção
especial, ou seja, de correção e emenda dos delinquentes (LEVY JORDÃO: 1975, 289-
313). Inspirando-se no sistema de filadélfia 18, pretendeu consagrar uma classificação de
criminosos condenados ao degredo, nomeadamente os incorrigíveis, os duvidosos e os
melhoráveis. Propôs, ainda, a consagração de um sistema da liberdade condicional de
origem francesa19 com o propósito de promover a ressocialização dos delinquentes e a
sua progressiva preparação para o reingresso na vida livre. Todavia, este projeto de
Código Penal não foi aprovado, mas as ideias consagradas no mesmo foram muito
relevantes para as futuras legislações20.

Só em 1886, com base na nova reforma penal de 1884, é que se consagrou um novo
Código Penal. Este Código Penal, influenciado pelas ideias da escola moderna ou positiva
(HERMAN MANNHEIM: 1984, 328-332; e EDUARDO CORREIA: 1971, 5-38) e de
autores como LOMBROSO, FERRI, GAROFALO (em Itália) e FRANZ VON LISZT
(na Alemanha)21, veio traduzir uma solução equilibrada relativamente às finalidades das
penas, harmonizando as finalidades retributivas com as preventivas (gerais e especiais).
A maior novidade transferida para este código foi a consagração de critérios para a
determinação concreta da medida da pena, tendo em conta as circunstâncias atenuantes e
agravantes.

Retomando a ideia de punição da vadiagem e da mendicidade, tudo se manteve igual.


Tal como o código anterior prescrevia, este novo código manteve também a realização de
trabalho obrigatório depois de cumprida a pena. Portanto, o Código de 1886 igualava-se
ao Código de 1852, no que se refere à aplicação de um sistema dualista. Como menciona
GUARDADO LOPES, na punição da vadiagem e da mendicidade “tratava-se claramente
de uma medida de segurança não determinada por anomalia mental, que seguia ao

18
O sistema de filadélfia consistia no isolamento total do delinquente. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2004, p.
67.
19
O instituto da liberdade condicional surgiu devido à verificação do aumento da reincidência no séc. XIX
e foi consagrado a primeira vez na lei francesa no ano de 1885, baseando-se na doutrina de BONEVILLE
DE MARSANGY de 1846, que se apoiou no instituto da liberté provisoire relativa a jovens delinquentes
em 1832 e no sistema dos tickets of leave adotado em 1853 no Reino Unido. Cfr. ALMEIDA COSTA:
1989, 401-431e FIGUEIREDO DIAS: 2011, 527-533.
20
A lei 1 de julho de 1867, logo no título I e no artigo 1º, consagrou a abolição da pena morte - Vide LUÍS
OSÓRIO: 1923, 9. O Decreto de 6 de julho de 1893 consagrou o sistema de liberdade condicional - Vide
EDUARDO CORREIA: 1993, 110.
21
Estes autores defendiam de um modo geral a substituição da finalidade ético-retributiva pela especial-
preventiva. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2004, 68.

39
cumprimento da pena. Adotava-se portanto, um sistema dualista (pena e medida de
segurança cumpridas em estabelecimentos diferentes)” (GUARDADO LOPES: 1995,
82).

De extrema importância na altura foi, igualmente, a introdução da Lei de 12 de abril


de 1892, inspirada na relégation francesa22, que fortaleceu a aplicação de um sistema
dualista no Direito penal português. Esta lei veio implementar a possibilidade de se poder
aplicar medidas de segurança depois do cumprimento da pena de prisão 23, desde que
fossem estabelecidas na mesma decisão condenatória 24, ou seja, aos reclusos entre os 18
anos e os 60 anos de idade, que já tivessem sido condenados um determinado número de
vezes e segundo alguma gravidade, depois de terem cumprido a pena de prisão podiam
ser colocados à disposição do governo para serem transportados para o ultramar onde
iriam cumprir trabalho obrigatório. Este trabalho tinha a duração mínima de 3 anos e só
depois desse período, se apresentassem bom comportamento, é que podiam requerer a sua
libertação. Para os casos mais graves a duração mínima deste trabalho era de 6 anos.

Repara-se ainda que o instituto da liberdade condicional, mencionado por LEVY


MARIA JORDÃO, entrou em vigor no ordenamento jurídico português pelo Decreto de
6 junho de 1893 e pelo Regulamento de 16 de novembro do mesmo ano. Inicialmente,
este instituto caracterizava-se por ser um incidente de execução da pena de prisão, em que
a sua concessão ficava dependente do consentimento do condenado e a sua duração não
podia ultrapassar o tempo de prisão que ao condenado faltasse cumprir (FIGUEIREDO
DIAS: 2004, 532).

22
A reforma francesa de 1885, inspirando-se na escola positivista, ultrapassou o conceito de reincidência e
consagrou o conceito de habitualidade. Paralelamente, consagrou também a aplicação de medida de
segurança privativa da liberdade a delinquente habitual que só terminaria quando o perigo que o mesmo
representasse se encontrasse extinto. Cfr. NORVAL MORRIS: 1951, 174-175; e ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 289.
23
No código penal português de 1852 esta ideia já existia quando se aplicava uma pena correcional como
demonstrado anteriormente. Contudo, ainda não era aceite como uma verdadeira aplicação de uma medida
segurança depois do cumprimento da pena de prisão. Salientamos ainda que o código penal suíço de 1893,
com base no pensamento de STOSS, estipulou a aplicação de medidas de segurança ao lado das penas como
processo subsidiário à pena aplicada a delinquentes por tendência. Similarmente, o código penal norueguês
de 1902 foi o primeiro código a implementar as medidas de segurança. Cfr. NORVAL MORRIS: 1951,
174 -175; e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 289.
24
Note-se que também os códigos penais: italiano, polaco, argentino, a lei belga de defesa social, o
Prevention of crime Act de 1908, e o projeto brasileiro seguiram esta diferenciação e distinguiam a pena da
medida de segurança. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 333-335.

40
1.1.4 Lei de 20 de julho de 1912
Uns anos mais tarde, em 20 de julho de 1912, foi publicada uma lei (LUÍS
GAMA/CASTRO BATISTA: 1923, 509 e ss.) que definiu com toda a clareza o regime
obrigatório para os indivíduos que eram declarados vadios.

O artigo 1º consagrou que vadio era “aquele que, sendo maior de 16 anos, não tenha
meios de subsistência, nem exercite habitualmente alguma profissão ou ofício, ou outro
mistér em que ganhe a sua vida (…) “. O artigo 5º equiparou a vadios os que “(…) sendo
maiores de 16 anos e não tendo ainda completado sessenta, incorressem por crime nas
condenações indicadas em alguns dos números seguintes; duas condenações em penas
maiores (…)”. Os artigos 7º, 8º e 9º equipararam a vadios: os que eram encontrados a
mendigar em terceira reincidência; os condenados por vícios contra a natureza em
segunda reincidência; os que mendigavam com simulação de doença e os que vivessem
à custa de mulheres prostitutas em primeira reincidência.

Para o efeito, os vadios e equiparados, em regra, cumpriam a sua pena em


estabelecimentos próprios, tendo sido criadas casas correcionais de trabalho e colónias
penais agrícolas25. Os vadios e equiparados ficavam sujeitos a internamento por tempo
indeterminado, no mínimo de 3 meses e no máximo de 6 anos. Caso fosse a segunda
condenação em prática de crime, o mínimo de 3 meses passava a ser o dobro (6 meses) e
o limite máximo não podia nunca exceder os 6 anos. O artigo 13º concedia ainda a
possibilidade de se deportar para qualquer das prisões ultramarinas os delinquentes que
se mostrassem incorrigíveis ou cuja presença representasse um perigo num determinado
estabelecimento. Evidencia-se o facto de ser o ministro da justiça e o conselho disciplinar
do estabelecimento de internamento que declaravam a cessação da medida e concediam
a liberdade condicional ou definitiva.

Relativamente às regras das colónias correcionais de trabalho, o Regulamento de 1915


estipulava que nos primeiros dias, os internados ficavam em regime de observação a fim
de se traçar o seu perfil bem como conhecer as suas aptidões. Posteriormente, os
delinquentes eram distribuídos por uma das atividades que existiam na colónia. Como

25
A criação de casas correcionais de trabalho e colónias penais agrícolas foi inspirada pela doutrina da
escola positiva italiana e da escola moderna alemã. Só em 1913 é que se criou um estabelecimento desta
categoria na Figueira da Foz. Em 1914 criou-se a Colónia Penal Agrícola de Valverde, o Forte de Monsanto
e uma casa de trabalho ao lado do Forte de Monsanto. Em 1915 criou-se a Colónia Penal de Sintra. Cfr.
GUARDADO LOPES: 1995, 84 e ss. e PINTO ALBUQUERQUE: 2003, 514-515.

41
recompensa por bom comportamento eram-lhes oferecidos prémios no trabalho, licenças
para saída nos dias de descanso e podia, ainda, ser-lhes concedida liberdade vigiada.

Em 1916 foi publicada a Portaria de 16 de fevereiro que estipulou que as sentenças


de declaração como vadios não tinham de mencionar um prazo mínimo ou máximo, ou
seja, a medida de segurança duraria o tempo que se considerasse correto de acordo com
a perigosidade do agente, manifestando-se assim, mais uma vez, a ideia de sentença
indeterminada26. Em 10 de setembro de 1926, o regulamento aprovado pelo Decreto n.º
12:293 estabeleceu que o período mínimo de internamento era de 12 meses e determinou
que excecionalmente a liberdade definitiva podia ser precedida de liberdade vigiada ou
condicional.

Concluindo, a Lei de 20 de junho de 1912 equiparou a vadios as categorias


supramencionadas, que, no fundo, pressupunham reiteração na prática de crimes ou
gravidade destes. Portanto, o conceito original de vadiagem e mendicidade evoluiu e
alargou-se, de modo a abranger os casos de delinquência especialmente perigosa.

1.2 Delinquentes de difícil correção


1.2.1 Reforma prisional de 1936
Em 28 de maio de 1936, o Decreto n.º 26643 entrou em vigor e determinou uma
grande reforma na organização prisional27 ao estipular regras penais relativas à
delinquência especialmente perigosa uma vez que as existentes eram incompletas, quer
em relação aos “delinquentes loucos não imputáveis, mas perigosos” (BELEZA DOS
SANTOS: 1947, 3), quer em relação aos “doentes mentais ou anormais de carácter, com
imputabilidade diminuída” (Ibidem), quer em relação aos “delinquentes alcoólicos ou por
outra forma intoxicados que podem ser socialmente perigosos” (Ibidem) e, por fim, em
relação aos “habituais ou profissionais” (Ibidem).
Tal como ensina BELEZA DOS SANTOS, este diploma legal veio implementar o
conceito de delinquentes de difícil correção. Este conceito subdividia-se em outros três

26
JIMÉNEZ ASÚA desenvolveu a ideia de sentenças indeterminadas e designou-as como «penas
determinadas à posteriori», apoiando-se na ideia de que o delinquente deveria ser submetido a um regime
penal exatamente como um doente é enviado para um hospital em que só sai de lá quando estiver
recuperado. Cfr. JIMÉNEZ ASÚA: 1913, 63.
27
Salienta-se a influência das reformas penais na Europa no nosso Direito, nomeadamente dos códigos
penais: norueguês, no ano de 1929; italiano, no ano de 1930; polaco, no ano de 1932; e alemão, no ano de
1933. Todos consagravam o conceito de criminoso habitual embora de maneira diferente, mas todos o
submetiam a prisão por tempo suplementar ilimitado, dependendo da necessidade de proteção da sociedade
contra a perigosidade do agente. Cfr. PINTO ALBUQUERQUE: 2003, 517-518.

42
conceitos (BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 353-355): os delinquentes habituais, os
delinquentes por tendência e os delinquentes indisciplinados.

Os delinquentes habituais28 eram o grupo maior considerando-se como tal os que


tinham sido declarados judicialmente como possuindo um hábito criminalmente perigoso.
Porém, para a declaração de habitualidade ser efetuada era necessário: 1) prática de
crimes dolosos; 2) habitualidade (que se presumia quanto ao delinquente que, antes da
última condenação, já tivesse sofrido um certo número de condenações que variavam
segundo uma determinada gravidade de crimes, designadamente: dois ou mais crimes aos
quais fora aplicada uma pena maior privativa da liberdade, ou três ou mais crimes tendo
sido aplicada qualquer pena privativa da liberdade num total de 5 anos); 3) se o
delinquente em causa tivesse praticado um certo número de crimes mesmo sem ter havido
condenações, devia-se aplicar 3 anos de condenação se ao crime praticado correspondesse
pena maior de prisão, ou 4 anos de condenação, se ao crime praticado correspondesse
pena privativa da liberdade (neste último caso não se presumia a declaração de
habitualidade pelos crimes praticados, pois o tribunal devia aferir o hábito de delinquir
do criminoso de acordo com a espécie e gravidade de crimes praticados, com as
circunstâncias que determinaram a prática do crime e com o género de vida do
delinquente). Como menciona BELEZA DOS SANTOS “no primeiro caso haverá, como
se diz no direito italiano, um hábito criminoso presumido por lei, e no segundo um hábito
criminoso declarado pelo juiz” (BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 386). Os efeitos
da declaração da habitualidade eram essencialmente a possibilidade de existir uma
privação da liberdade por tempo indefinido para além da pena, caso os mesmos ainda se
demonstrassem perigosos, a designada prorrogação da pena29; e podia haver também
um agravamento do regime ou uma forte desclassificação social. Esta categoria de
indivíduos cumpria a sua pena num estabelecimento especial para presos de difícil
correção e estava vinculada a um regime prisional progressivo. A concessão da liberdade
condicional destes delinquentes só podia acontecer finda a pena (salvo casos excecionais
em que era concedida a liberdade condicional depois de cumpridos dois terços da pena)

28
BELEZA DOS SANTOS explica que delinquentes habituais são, por exemplo, “(…) os refractários ao
trabalho e os que cometem delitos patrimoniais (…), os que agem dominados por reactividade primitiva
(…), os delinquentes sexuais, com tendências para reincidir (…).”. Explica ainda que esta categoria se pode
dividir em subgrupos e que perante o subgrupo que nos encontramos, a abordagem que se realiza deve ser
diferente. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1959, 71.
29
“Não poderá ser outra a mensagem a retirar deste regime senão aquela de que, no limite, se permitia uma
prorrogação perpétua da pena”. Cfr. JOÃO OSÓRIO: 2010, 28.

43
e a mesma era obrigatória 30 durante um período de 3 anos prévios à concessão da
liberdade definitiva.

Significa isto que, em primeiro lugar, estes delinquentes habituais sofriam a pena que
lhes era imposta, traduzindo esta medida a finalidade de prevenção geral que se acreditava
ser necessária. Em segundo lugar, com o término da pena, se estes delinquentes se
mostrassem perigosos, cumpririam uma medida de segurança prorrogada e revista por
períodos de 2 anos até que mostrassem a idoneidade certa para seguir uma vida honesta,
caso contrário eram libertos. Esta última medida 31 cumpria a finalidade de prevenção
especial.

À evidência verificamos que, foram equiparados aos delinquentes habituais, os


delinquentes por tendência e os delinquentes indisciplinados. Equiparação esta que dizia
respeito ao cumprimento da pena em estabelecimento próprio para delinquentes de difícil
correção; à imposição do respetivo regime e dos seus efeitos, como por exemplo, a
possibilidade de prolongamento da pena enquanto estes se considerassem perigosos.

Assim sendo, os delinquentes por tendência eram aqueles que: 1) não eram
delinquentes habituais e eram imputáveis penalmente; 2) tinham uma tendência criminosa
que se presumia quando já tinham praticado pelo menos um crime grave contra pessoas
(exemplo: o homicídio a que corresponda uma pena maior); 3) revelavam perversão ou
malvadez (ou seja, uma insensibilidade ou prazer em causar sofrimento alheio); 4)
possuíam uma especial perigosidade. Em síntese, repare-se que esta subcategoria dos
delinquentes por tendência distancia-se da doutrina que faz referência ao “delinquente
nato”32, pois admite-se a possibilidade de correção, de emenda e de readaptação social
nos delinquentes por tendência. Os delinquentes por tendência teriam assim defeitos de
carácter que os influenciavam na prática de crimes graves contra as pessoas.

30
BELEZA DOS SANTOS refere que “como se trata de delinquentes de difícil correção, a lei não permite
que eles passem logo ao regime de falta de liberdade que têm na prisão para uma liberdade sem limites,
nem amparo. Obriga a uma fase preparatória de liberdade condicional, isto é, com obrigações que o
libertado tem de cumprir, sob pena de voltar a ser preso”. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1947, 25.
31
Observa-se ainda que BELEZA DOS SANTOS, relativamente ao cumprimento da medida de segurança
como prolongamento da pena, defende que a mesma deve ser cumprida no mesmo estabelecimento onde
foi cumprida a pena. Cfr. Idem, 24.
32
“O criminoso (nato) não passaria, segundo LOMBROSO, de um indivíduo que «reproduz na sua pessoa
os instintos ferozes da humanidade primitiva e dos animais inferiores». Cfr. FIGUEIREDO DIAS / COSTA
ANDRADE: 1984, 171-172. Pode-se ler igualmente em HERMAN MANNHEIM: 1984, 319: “(…) o
criminoso nato, delinquente nato (…), isto é, um individuo propenso, ou mesmo determinado, a praticar
crimes”.

44
Já os delinquentes indisciplinados eram aqueles que, estando presos, eram
inadaptáveis ao regime prisional comum, logo eram considerados também delinquentes
de difícil correção. Salienta-se, ainda, que enquanto os delinquentes habituais e por
tendência eram declarados como tal judicialmente pelo tribunal de julgamento, os
delinquentes indisciplinados eram declarados como tal pelo juiz de execução de penas.

Relativamente aos vadios, mendigos e equiparados, a reforma prisional de 1936 fez


uma efetiva distinção em relação aos delinquentes de difícil correção. Os primeiros
deviam cumprir a sua pena em estabelecimentos projetados para o cumprimento de
medidas de segurança em colónias agrícolas e casas de trabalho. Os segundos deviam
cumprir a pena num estabelecimento especial próprio ou, estando na prisão comum,
deveriam estar em secções próprias separados dos demais. A única semelhança entre estas
duas categorias era a possibilidade de aplicação do regime de prorrogação da pena.

No que concerne ao instituto da liberdade condicional, a reforma prisional de 1936


distinguiu a liberdade condicional facultativa e obrigatória 33 e estatuiu, designadamente
para o caso dos delinquentes de difícil correção, a aplicação de liberdade condicional
obrigatória, depois de estes terem cumprido a totalidade da pena de prisão e as respetivas
prorrogações. Assim sendo, a reforma de 1936 permitia, a aplicação da liberdade
condicional para as penas de prisão e para as medidas de segurança de internamento.
Porém, a liberdade condicional aplicada às medidas de segurança de internamento
confundia-se com a figura da liberdade vigiada (ALMEIDA COSTA: 1989, 420-421 e
429 nota de rodapé n.º 49). Salienta-se, ainda, que inicialmente a concessão da liberdade
condicional era da competência do ministro da justiça, sob parecer favorável do conselho
superior dos serviços criminais e proposta fundamentada do diretor do estabelecimento
prisional, ou seja, revestia-se natureza graciosa (ALMEIDA COSTA: 1989, 421 e
JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 50-52). Apenas em 16 de maio de 1944, pela Lei n.º 2000,
e em 30 de abril de 1945, pelo Decreto n.º 34.553, é que foram criados os Tribunais de
Execução de Penas, deste modo a competência para concessão ou negação da liberdade
condicional e da sua modificação ou revogação passou a pertencer a estas entidades
(RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DE ESTUDO E DEBATE DA REFORMA DO
SISTEMA PRISIONAL: 2004, 16 e 17).

33
A liberdade condicional obrigatória seria aquela que devia ser obrigatoriamente aplicada, por exemplo a
um delinquente de difícil de correção, e a liberdade facultativa seria aquela que podia ser ou não aplicada
a um delinquente, consoante fosse decidido por quem de direito. Cfr. ALMEIDA COSTA: 1989, 421-426.

45
Para finalizar, importa, para o estudo em causa, verificar que, relativamente à figura
da prorrogação da pena, consagrada pela reforma de 1936, surgiu uma grande
controvérsia doutrinária. MARIA JOÃO ANTUNES explica que a grande controvérsia
debruçava-se sobre a natureza jurídica da prorrogação ilimitada da pena de prisão,
podendo constituir um mero cumprimento ou prolongamento da pena, ou a execução de
uma medida de segurança (MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 25 e ss.). Ressalva-se que
o grande problema era que “a prorrogação ilimitada da pena de prisão «ultrapassava o
âmbito da responsabilidade do direito penal da culpa» (…)” (PINTO ALBUQUERQUE:
2003, 519). Quer isto dizer que a prorrogação perpétua da pena de prisão violava
frontalmente o princípio da culpa no Direito penal, dado que a culpa do agente é o
pressuposto e o limite da pena.

EDUARDO CORREIA defendeu que a prorrogação da pena constituía uma


verdadeira pena. Justificava a sua posição através da doutrina da culpa pela formação da
personalidade (EDUARDO CORREIA: 1945/1946, 24-35) e conferia a esta prorrogação
uma finalidade retributiva pela censura da personalidade do delinquente. Portanto, esta
prorrogação não excedia o limite da culpa devido à existência no agente de uma
personalidade criminalmente perigosa que deve ser censurada. Citando o autor: “(…) a
prorrogação da pena para os habituais, prevista na Reforma Prisional de 1936, poderia
referir-se a essa culpa pela não formação conveniente da personalidade, (…) seria
suscetível de se interpretar no quadro de um sistema monista ético-retributivo”
(EDUARDO CORREIA: 1971, 27)34.

CAVALEIRO FERREIRA defendeu igualmente que a prorrogação da pena consistia


numa verdadeira pena, contudo, mencionou que esta prorrogação seria como uma pena
de segurança na modalidade de «pena curativa». Sustentou que, sempre que a
personalidade do delinquente for consequência do seu processo de formação e imputável

34
Note-se que, a certa altura, EDUARDO CORREIA parece demonstrar algumas dúvidas na posição
defendida por si: “Com esta prorrogação sem limites prévios – aliás de duvidosa legitimidade
constitucional: vide art. 8.º, 11.º II da Constituição -, sobreposta a uma pena que já engloba a culpa pelo
facto e pela personalidade, esquece-se que uma reação aplicada a um delinquente que já expiou toda a sua
culpa só pode pretender justificar-se por considerações de prevenção e de defesa da sociedade, nunca por
razões de justiça ou retribuição ética; caso em que tal reação perderá o seu ponto de apoio ético e não
deverá, por conseguinte, considerar-se uma pena. Para além disto porém – objetar-se-á – como se pode
pretender que a nossa lei consagra um sistema monista ético-retributivo, se o próprio Código Penal prevê a
existência de medidas de segurança e determina os casos em que elas são aplicáveis?”. Cfr. EDUARDO
CORREIA: 1993, 74 e 75.

46
à sua culpa, está demonstrada a possibilidade de futura delinquência e encontra-se
justificada a prorrogação como uma verdadeira pena.

Em sentido diverso, BELEZA DOS SANTOS reconheceu que a prorrogação da pena


consistia numa verdadeira medida de segurança, visto que a “pena” era condicionada
apenas pelo estado de perigosidade. Referiu, ainda, que o sistema aplicado pela reforma
de 1936 expressava a ideia de dualismo (BELEZA DOS SANTOS: 1947, 24). Contudo,
defendeu que a pena e a medida de segurança deviam ser executadas no mesmo
estabelecimento por ser mais vantajoso para o agente35, traduzindo-se isto no que
designou de «monismo prático» de penas e medidas de segurança36.

VÍTOR FAVEIRO esclareceu que, relativamente aos delinquentes habituais, era


muito difícil caracterizar a natureza jurídica da prorrogação da pena (DUARTE
FAVEIRO: 1952, 154-155). Explicou que se, por um lado, a sua pena, antes da
prorrogação, já foi agravada por via da reincidência, por outro lado, quando se realizar a
prorrogação da pena, a mesma é agravada em função da culpa do delinquente na formação
da sua personalidade (que se manifesta através da repetição de factos criminosos, ou seja,
reincidência também). Portanto conclui que não é possível considerar a prorrogação da
pena uma verdadeira pena de segurança, pois entende que, se assim fosse, aconteceria
que o delinquente estava a ser punido duas vezes pela mesma situação de culpa
manifestada na reincidência criminosa 37. Este autor, levanta ainda a dúvida de saber como
é possível caracterizar-se a prorrogação da pena como uma medida de segurança, se tal
prorrogação é executada no mesmo estabelecimento onde ocorreu a execução da pena de
prisão, visto que a medida de segurança, ao basear-se na obtenção de um fim de melhoria
que a pena não foi capaz de realizar, deve ser cumprida num estabelecimento e num
regime diferente daquele em que foi cumprida a pena de prisão.

35
De modo a compreender-se os possíveis inconvenientes que existiam quando se transferia um recluso
que sofreu uma pena para outro estabelecimento para cumprir a medida de segurança, deve consultar-se
BELEZA DOS SANTOS: 1947, 20-23.
36
BELEZA DOS SANTOS “(…) defendeu (…) a ideia de se tratar ali de uma verdadeira medida de
segurança; todavia escondida sob o desígnio de «pena», para efeitos de estabelecimento de um monismo
prático que considera preferível do ponto de vista da execução (…)”. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 557.
37
Esta ideia reflete o que nos dias de hoje designamos por possível violação do princípio do ne bis in idem,
consagrado no n.º 5 do artigo 29º da CRP, no sentido de ser proibida a realização de duplas valorações e
duplas punições do mesmo facto. Nomeadamente, a impossibilidade de se poder valorar duas vezes o
mesmo elemento na determinação da medida da pena, caso se use esse elemento como justificação para a
mesmo tipo de finalidades e fundamentos. Ou seja, valorar esse elemento duas vezes sem exercer duas
funções autónomas. Cfr. INÊS FERREIRA LEITE: 2016, 380-385 e 612-613.

47
Resumidamente, a doutrina designou o sistema implementado na reforma de 1936 ora
como «sistema monista ético-retributivo», ora como «sistema de monismo prático».
Compreende-se, pois, a reforma de 1936 consagrou uma conciliação entre as diversas
finalidades das penas, inspirando-se no relatório da Nova Reforma Prisional de 1884,
onde se pode ler: “(…) a pena deveria realizar em justa proporção as condições
necessárias de castigo, intimidação e emenda” (BELEZA DOS SANTOS: 1947, 8).

Na verdade, o sistema de prorrogação da pena só foi introduzido no Código Penal de


1852-1886 através da reforma de 1954. Todavia, a única alteração que se fez foi à regra
de revisão bienal da prorrogação, que se alterou para trienal, ou seja, permaneceu tal como
na reforma de 1936 a possibilidade de a pena ser indefinida, portanto, perpétua. Observa-
se, ainda, que esta reforma introduziu no Código Penal de 1852-1886 o artigo 120º que
veio estipular parcialmente as regras do instituto da liberdade condicional. No entanto, ao
permitir-se a aplicação deste artigo por via de remissão para o regime da liberdade
vigiada, gerou-se ainda mais confusão e manteve-se igualmente a indefinição da natureza
jurídica do instituto da liberdade condicional38. Note-se que a liberdade só era igualmente
atribuída ao delinquente, caso o mesmo já estivesse recuperado.

Só em virtude da reforma de 1972 é que se estipulou a proibição de prorrogação da


pena indefinidamente, pois passou a permitir-se a possibilidade de prorrogação da pena
apenas por dois períodos de três anos. No final desses dois períodos (ou seja, seis anos),
se a perigosidade do delinquente persistisse, tinha de se aplicar uma medida de segurança
em manicómio criminal. Por último, proibiu-se finalmente as penas de prisão perpétuas.
E, novamente no que respeita ao instituto da liberdade condicional, foi também com a
reforma de 1972 que este instituto retomou ao seu sentido original e a sua natureza de
forma de execução da pena de prisão que não podia ultrapassar o tempo de prisão que
faltasse ao delinquente cumprir (ALMEIDA COSTA: 1989, 429-431). Porém, à liberdade
condicional contrapunha-se o instituto da liberdade vigiada que era aplicado como uma
verdadeira medida de segurança. A reforma de 1972 eliminou como pressuposto da
liberdade condicional o consentimento do condenado e a liberdade condicional
obrigatória, permanecendo apenas a liberdade condicional facultativa, que podia ser
concedida ou negada pelo Tribunal de Execução de Penas.

38
ALMEIDA COSTA mencionou que o instituto da liberdade condicional tinha uma «natureza híbrida».
Cfr. ALMEIDA COSTA: 1989, 429.

48
1.2.2 Código Penal de 1982
No seguimento das variadíssimas reformas e alterações que foram referidas
anteriormente, em 1963 foi elaborado um projeto de um novo Código Penal (EDUARDO
CORREIA: 1963, 108-113). Neste projeto destacou-se o trabalho de EDUARDO
CORREIA que, tendo em conta os pensamentos de FRANZ VON LISZT, apresentou um
novo sistema monista para os delinquentes habituais e perigosos39. Este autor introduziu
o conceito de pena relativamente indeterminada com o intuito de solucionar os grandes
problemas resultantes da implementação do sistema de prorrogação de penas 40.
Consequentemente, introduziu o conceito de sentenças indeterminadas 41 em Portugal,
mais concretamente de sentenças ou penas relativamente indeterminadas42. A pena
relativamente indeterminada teria um limite mínimo e um limite máximo, sendo que este
limite máximo seria inultrapassável43. A criação deste limite inultrapassável traduzia a
proibição de aplicação de penas de prisão perpétuas. Neste projeto de 1963, também fo i
discutida a natureza jurídica do instituto da liberdade condicional, nomeadamente a sua
aplicação nos casos de PRI (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 584).

O autor do projeto estipulou, no artigo 94º, que a PRI devia ser aplicada a um certo
tipo de crimes, nomeadamente, crimes contra o património, vadiagem, mendicidade,
prostituição, rufianaria, entre outros. O cumprimento da PRI devia ser realizado em
colónias agrícolas ou casas de trabalho, mas a principal finalidade da pena era sempre a
ressocialização do condenado. Igualmente, estipulou nos artigos 95º e 96º que, este tipo

39
GOMES DA SILVA entendeu que a pena relativamente indeterminada “(…) lhe parecia inconciliável
com a concepção «monista» tão apregoada pelo Autor do Projeto”. Cfr. ACTAS DAS SESSÕES DA
COMISSÃO REVISORA DO CÓDIGO PENAL: 1970, 171.
40
Já FIGUEIREDO DIAS acreditou que este instituto tinha muitas vantagens face à prorrogação indefinida
da pena, visto que, a PRI tem um máximo inultrapassável e torna mais fácil a sua execução e a socialização
dos delinquentes. Cfr: FIGUEIREDO DIAS: 2011, 558.
41
“(…) a chamada «sentença indeterminada» (…) impõe ao delinquente uma privação de liberdade cuja
duração não é fixada de forma precisa na decisão condenatória, ficando dependente de uma ulteriora
apreciação da autoridade a quem por lei compete pronunciar a libertação do recluso”. Cfr. ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 287.
42
Em conformidade com o movimento da Nova Defesa Social (defendido por MARC ANCEL e que
defendia os princípios da legalidade e da humanidade das penas), abandonou-se a ideia de que as sentenças
indeterminadas eram as sanções ideais para a criminalidade especialmente perigosa ou por tendência.
Defendeu-se as penas indeterminadas, não no seu sentido original de penas absolutamente indeterminadas,
mas sim no sentido de penas relativamente indeterminadas. O Código Penal Grego em 1950 implementou
a pena relativamente indeterminada para delinquentes habituais e profissionais. Cfr. MARC ANCEL: 1971,
19-21 e JOÃO OSÓRIO: 2010, 43-44.
43
Salienta-se a influência dos ensinamentos de FRANZ VON LISZT para a construção de EDUARDO
CORREIA: “Paralelamente à ideia de um limite superior que a retribuição ou a expiação sempre apontam,
ligada à necessidade prática de garantir os indivíduos contra arbítrios e de estimular a própria administração
penal na execução da sentença indeterminada, impõe que a esta seja fixado um máximo de duração. Com
o que somos conduzidos a uma pena relativamente indeterminada (…) para certo tipo ou tipos de
delinquentes (…)”. Cfr. EDUARDO CORREIA: 1971, 34 e ss.

49
de pena também deveria ser aplicada aos delinquentes com inclinação ou tendência para
o crime. A aplicação da PRI só aconteceria se: 1) o crime praticado e os crimes cometidos
anteriormente fossem dolosos; 2) da avaliação conjunta dos factos e da personalidade do
agente resultasse uma perigosa inclinação para o crime; 3) no momento da condenação a
perigosidade do delinquente persistisse; 4) caso os crimes anteriores tivessem sido
realizados já há mais de 5 anos, não podiam ser tomados em conta para a aplicação do
instituto44. O artigo 97º também consagrou a aplicação da PRI aos delinquentes com
menos de 26 anos de idade e que tenham sido condenados anteriormente em dois ou mais
crimes. Paralelamente, os artigos 98º e 99º previam a aplicação deste tipo de pena aos
alcoólicos e toxicodependentes. Neste tipo de indivíduos interessava unicamente que o
crime praticado anteriormente tivesse sido em estado de embriaguez ou de intoxicação
por consumo de estupefacientes, sendo que tal estado ou consumo tinha de estar associado
a um grau de dependência. O cumprimento da pena para alcoólicos e equiparados ocorria
em estabelecimentos próprios destinados a desintoxicação.

Em todas as modalidades de aplicação de PRI estava previsto que a administração


prisional era obrigada a elaborar um plano individual de readaptação do delinquente com
a sua concordância. Neste plano constavam as informações e o percurso a seguir, de
acordo com o artigo 101º. EDUARDO CORREIA referiu ainda que este plano deveria
ser modificado com o decurso do cumprimento da pena. Em relação à concessão da
liberdade consagrada no artigo 100º, a PRI podia permitir a liberdade condicional e
paralelamente impor determinadas condições ao recluso, por exemplo, o internamento em
lar ou casa de transição ou ainda outras condições previstas para o regime de prova que
fossem adequadas à sua inserção social.

Porém, o projeto de EDUARDO CORREIA não foi aprovado. Só em 1976 é que se


retomou a ideia da necessidade de rever o Código Penal de 1886, que estava em vigor
desde então. Desta maneira, realizou-se um novo projeto em 1976 onde se recorreu às
ideias originais consagradas no projeto de 1963. Como consequência, foi elaborado um
novo Código Penal, aprovado pelo Decreto de Lei n.º 400/82, que consagrou a PRI no
ordenamento jurídico português. A consagração da PRI no Código Penal de 1982 não foi
igual à proposta de EDUARDO CORREIA. Neste novo código a PRI só podia ser
aplicada quando os delinquentes tivessem cometido anteriormente um determinado

44
“Neste sentido se orientaram, por exemplo, a lei alemã de 1933, o projecto checo-slovaco e o projecto
brasileiro de ALCANTRA MACHADO”. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 4.

50
número de crimes e quando demonstrassem que a sua personalidade revelava uma
acentuada inclinação para o crime. Excluiu-se ainda, deste código, a aplicação de PRI a
certas espécies de crimes.

Concluímos que, desde a implementação deste instituto em 1982, passados agora 37


anos, este continua a existir embora com algumas alterações. O instituto da PRI continua
a atuar com o mesmo propósito de neutralização e eliminação da tendência criminosa ou
da tendência aditiva com o objetivo de ressocializar o delinquente. Noutras palavras e de
forma simplificada: o instituto da PRI continua a atuar com os propósitos de emenda e
correção dos delinquentes por tendência, delinquentes alcoólicos e equiparados e
delinquentes por incêndio florestal, tal como iremos demonstrar no próximo capítulo.

51
CAPÍTULO III

INSTITUTO DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Pressupostos de aplicação
O atual Código Penal regula o instituto da pena relativamente indeterminada nos
artigos 83º a 90º e distingue diferentes modalidades de aplicação deste instituto,
nomeadamente, consagra três modalidades: 1) delinquentes por tendência; 2)
delinquentes alcoólicos e equiparados; 3) delinquentes por incêndio florestal. Para se
poder aplicar qualquer uma destas modalidades é necessário que, num primeiro momento,
estejam preenchidos um determinado conjunto de pressupostos formais e, que num
segundo momento, estejam também preenchidos um determinado conjunto de
pressupostos materiais. Só depois de todos os pressupostos formais e materiais estarem
cumulativamente preenchidos é que podemos aplicar este instituto em qualquer de uma
das modalidades previstas na lei. Note-se que, se optarmos pela aplicação do instituto da
PRI, afasta-se a possibilidade de se recorrer ao instituto da reincidência, conforme
determina o n.º 2 do artigo 76º do CP45.

1.1 Delinquentes por tendência


Antes de mais, salientamos que esta modalidade se subdivide em outras duas
submodalidades, que são a delinquência por tendência grave e a delinquência por
tendência menos grave (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 563 e ss.). Observamos ainda, que
dentro desta modalidade está prevista uma aplicação «especial» deste regime para os
casos de agentes que têm menos de 25 anos de idade.

1.1.1 Pressupostos formais


O n.º 1 do artigo 83º do CP consagra a submodalidade de delinquência por tendência
grave. Para o efeito, exige como pressuposto formal para a sua aplicação: “Quem praticar
crime doloso a que devesse aplicar-se concretamente prisão efetiva por mais 2 anos e tiver

45
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04 de novembro de 2009, no processo n.º
540/08.3GCALM.S1, referiu: “Não é de considerar a aplicação da agravação da pena em virtude da
verificação da reincidência, nos termos do art.º 76.º, n.º 2, do CP, na medida em que as disposições sobre a
pena relativamente indeterminada prevalecem sobre as regras da reincidência, não havendo lugar à dupla
agravação”.

52
cometido anteriormente dois ou mais crimes dolosos a cada um dos quais tenha sido ou
seja aplicada prisão efetiva também por mais de 2 anos (…)”.

O n.º 1 do artigo 84º do CP consagra a submodalidade de delinquência por tendência


menos grave, estatuindo o seguinte: “Quem praticar crime doloso a que devesse aplicar-
se concretamente prisão efetiva e tiver cometido anteriormente quatro ou mais crimes
dolosos, a cada um dos quais tenha sido ou seja aplicada pena de prisão efetiva (…) “.

Os preceitos legais citados anteriormente explicitam de forma indiscutível que o


artigo 83º prevê uma submodalidade mais grave que é baseada na gravidade dos crimes,
tanto no que concerne à pena do crime praticado como às penas dos crimes anteriormente
praticados (exigindo um mínimo de 2 anos de prisão efetiva). Já o artigo 84º prevê a
submodalidade menos grave, pois não se baseia na gravidade dos crimes (não exigindo
um mínimo de prisão efetiva), mas baseia-se na reiteração (exigindo no mínimo a prática
de 4 crimes ou mais). Contudo, a lei exige nas duas submodalidades três pressupostos
formais: 1º) prática de crimes dolosos; 2º) crimes punidos com prisão efetiva e 3º)
crimes cometidos anteriormente.

1º) Prática de crimes dolosos: este requisito formal diz respeito a uma exigência de
política-criminal. Sendo que, ao exigir-se a prática atual ou anterior de crimes dolosos,
acaba por exigir-se também que este instituto seja apenas aplicado a uma criminalidade
mais grave, que em princípio encontra na sua base uma carreira criminosa. FIGUEIREDO
DIAS explica que a prática de crimes negligentes pode demonstrar uma certa
perigosidade, porém, dada a natureza das coisas, a criminalidade mais grave não se liga
à partida aos crimes negligentes (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 564).

2º) Crimes punidos com prisão efetiva: note-se que este requisito formal tanto vale
para o crime atual como para o crime anteriormente praticado. Na aplicação deste
requisito a lei parece já não suscitar grandes dúvidas 46, uma vez que consagra
expressamente a expressão «prisão efetiva». Deste modo, sendo exigida a punição com
prisão efetiva, significa à contrário que a pena de prisão não pode ser suspensa na sua
execução nem substituída por outra pena.

46
Antes da revisão de 1995 a expressão «efetiva» não estava consagrada na lei, pelo que a doutrina discutia
qual a interpretação que devia ser atribuída somente à palavra «prisão». FIGUEIREDO DIAS tomou a
posição no sentido de que a palavra «prisão» apenas podia ser entendida como prisão efetiva. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 565.

53
Relativamente à exigência de prisão efetiva quanto ao crime anteriormente praticado,
FIGUEIREDO DIAS chama atenção para o facto de a lei não estatuir a possibilidade de
valer para o preenchimento do requisito em causa a prática anterior de crimes punidos
com medidas de segurança de internamento. Explica que, embora as medidas de
segurança de internamento se apliquem em regra a agentes inimputáveis, nada obsta a
que um delinquente por tendência possa ter praticado algum dia um crime em estado de
inimputabilidade. Por isso entende que a condenação anterior de um crime com medida
de segurança de internamento pode valer para o preenchimento deste pressuposto formal
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 564). No entanto, entendemos que esta interpretação não é
permitida em Direito penal à luz do princípio da legalidade previsto no artigo 1º do CP,
uma vez que extravasa o sentido das palavras da disposição legal e é prejudicial ao
arguido. Além do mais, repare-se que valorar o cumprimento de uma medida de segurança
para aplicação de uma PRI, é incoerente, dado que a medida de segurança não exige culpa
e a PRI exige.

Relevante também é a problemática de saber se os casos de penas amnistiadas,


totalmente perdoadas ou que beneficiaram de indulto podem valer para o preenchimento
do requisito formal da exigência de punição com prisão efetiva por crime anteriormente
praticado. PINTO DE ALBUQUERQUE a este respeito entende que as penas
amnistiadas, totalmente perdoadas ou que beneficiaram de indulto não podem valer para
o preenchimento deste requisito (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 396). Contudo,
MAIA GONÇALVES distingue as situações de amnistia própria ou imprópria, e defende
em sentido contrário que, apenas a situação de amnistia própria é que não pode ser tomada
em conta para o preenchimento deste requisito. As demais situações (amnistia imprópria,
perdão e indulto) poderão ser tidas em conta, visto que apenas permitem que a execução
da pena deixe de produzir efeitos, executando-se a decisão condenatória, conforme
previsto no n.º 2 do artigo 128º do CP (MAIA GONÇALVES: 1998, 287). Note-se que
não concordamos com o entendimento de MAIA GONÇALVES pois coloca em causa o
Direito de graça concedido ao arguido (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 685 e ss.).
3º) Crimes cometidos anteriormente: sobre este requisito interessa em primeiro lugar
referir que a partir do momento em que a lei consagrou a expressão «tenha sido ou seja
aplicada» deixou de ser pertinente a discussão doutrinária relativa à dificuldade de saber
se só valem para o preenchimento deste pressuposto os crimes com condenações já

54
transitadas em julgado ou não47. Com a consagração desta expressão na lei, passou a
entender-se com clareza que se permite que os crimes cometidos anteriormente possam
ser crimes que já tenham sido julgados e crimes singulares que estejam incluídos num
processo por concurso de crimes, ou seja, conclui-se que basta a mera prática de crimes
para o preenchimento deste pressuposto.

Interessa ainda realizar duas objeções sobre este requisito. A primeira diz respeito ao
que se designa de «prescrição da tendência» elencada n.º 3 do artigo 83º e n.º 3 do artigo
84º, que estatuem a regra que se, entre a prática do crime atual e a prática do crime
anterior, tiverem decorridos 5 anos esses crimes não podem valer para o preenchimento
do requisito elencado anteriormente. A lei estipula, ainda, que, se durante esses 5 anos, o
delinquente por tendência estiver a cumprir uma medida processual, pena de prisão ou
medida de segurança privativa da liberdade, o prazo dos 5 anos não é computado, dada a
impossibilidade de praticar crimes48. Todavia, esta solução dada pela lei levanta alguns
problemas, relativamente às situações em que os delinquentes cometam crimes mesmo
estando presos ou a cumprir medida de segurança 49.
A segunda objeção prende-se com a previsão do n.º 4 do artigo 83º e do n.º 4 do artigo
84º, que consagram que valem para o preenchimento deste 3º) requisito formal as
sentenças estrangeiras que aplicaram pena de prisão efetiva, desde que o ordenamento
jurídico português também aplique pena de prisão efetiva ao crime cometido 50.

47
Anteriormente grande parte da doutrina defendeu que só a condenação já transitada em julgado de um
determinado crime é que servia para preencher este requisito. Vide MAIA GONÇALVES: 1998, 282;
LEAL HERIQUES/SIMAS SANTOS: 2002, 982 e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 296. Em sentido
contrário, FIGUEIREDO DIAS: 2011, 566-567 defendeu que os crimes que cabem no processo por
concurso de crimes valiam para o preenchimento deste pressuposto, dado que o que interessa na PRI é o
problema da habitualidade do crime fundado na perigosidade do agente, e não a reincidência propriamente
dita.
48
FIGUEIREDO DIAS refere que a medida de coação processual privativa da liberdade deveria equiparar-
se às demais, contudo não é possível porque seria necessário recorrer-se a um argumento analógico que no
fundo acaba por desfavorecer a liberdade do delinquente por tendência. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011,
569. Diferentemente, PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 395 refere que as situações como os tempos de
detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação, prisão contínua e medida de
internamento não podem ser consideradas para este prazo de 5 anos, dado que não existe a possibilidade de
cometer crimes nessa altura. Contudo, refere que as situações como períodos de prisão em regime de
permanência na habitação ou regime de semidetenção já podem ser consideradas.
49
JOÃO OSÓRIO explica que um delinquente por tendência poderá praticar crimes dentro do
estabelecimento prisional e a prática destes crimes poderá manifestar uma acentuada inclinação para o
crime. Portanto, conclui que só não devem ser considerados os períodos de tempo em que o agente cumpriu
medida processual, pena de prisão ou medida de segurança privativas da liberdade se durante esses períodos
o agente não cometeu nenhum crime que esteja ligado à habitualidade criminosa que lhe é reconhecida.
Cfr. JOÃO OSÓRIO: 2010, 89-91 e nota rodapé 169.
50
Até a revisão de 1995, este preceito suscitou alguns problemas. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 568-569
referiu: quando a lei exigia que o facto fosse de novo julgado pelos tribunais portugueses, estava a efetuar
uma exigência inadequada e que levantava sérias dificuldades processuais, nomeadamente, implicava desde

55
Por fim, importa mencionar que, segundo FIGUEIREDO DIAS, os crimes cometidos
anteriormente devem ser uma repetição da prática de crimes da mesma natureza e não
uma mera repetição de crimes de naturezas diferentes. Este autor indica que deve haver
uma ligação concreta entre os vários crimes praticados, pois só assim se poderá aferir de
modo coerente a perigosidade do agente. Segundo este autor: “(…) parece dever exigir-
se que o perigo de repetição esteja ligado à espécie do ilícito-típico praticado (…)”
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 442-443). Em sentido oposto, CAVALEIRO FERREIRA e
PINTO DE ALBUQUERQUE entendem que não é obrigatória a verificação da mesma
natureza na prática dos diversos crimes (tendência homótropa), basta a mera verificação
da prática de crimes cometidos de forma reiterada mesmo que estes tenham naturezas
diferentes (tendência polítropa) (CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 25 e PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015, 396).

1.1.2 Pressupostos materiais


Nas duas submodalidades de delinquência por tendência grave ou menos grave, a lei
exige ainda um pressuposto material que acresce aos pressupostos formais elencados
anteriormente51.

O n.º 1 do artigo 83º refere “(…) sempre que a avaliação conjunta dos factos
praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime,
que no momento da condenação ainda persista”.

O n.º 1 do artigo 84 º remete para o n.º 1º do artigo 83 º, quando refere “(…) sempre
que se verificarem os restantes pressupostos fixados no n.º 1 do artigo anterior”.

Simplificando, concluímos que o pressuposto material que a lei refere é: acentuada


inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persiste, e que se
traduz na tendência criminosa. Este pressuposto baseia-se na análise dos factos
cometidos e na personalidade do delinquente, sendo que desta análise tem de resultar uma
imagem de um delinquente inserido numa carreira criminosa (FIGUEIREDO DIAS:
2011, 572). FIGUEIREDO DIAS explica que esta tendência criminosa não tem de ser

logo uma quebra com o princípio processual da imediação da prova. No entanto, dada a nova redação este
problema deixou de ser suscitado.
51
O Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23 de fevereiro de 2011, processo n.º
2643/08.5PBAVR.C1, explica que a aplicação de uma PRI não resulta “ipso facto” da verificação de
requisitos formais, mas que é necessário efetuar um juízo de valor alicerçado em factos provados sobre a
personalidade do agente e que estes factos devem constar do despacho de pronúncia e da acusação. O
arguido não pode ser surpreendido com aplicação de uma medida tão gravosa como é a PRI, sem lhe ser
concebida a possibilidade de defesa quanto à mesma.

56
fruto de um hábito adquirido, mas que basta a mera comprovação de que essa tendência
existe, ou seja, é irrelevante que a tendência seja inata ou adquirida por habitualidade 52.
O autor explica, ainda, que, para se poder analisar e avaliar a personalidade do delinquente
em causa, tem que se considerar as circunstâncias da sua vida, nomeadamente a situação
familiar, a vida profissional e os tempos livres. E repare-se que, para efeitos de verificação
da acentuada inclinação para o crime, tanto pode valer a tendência homótropa ou a
tendência polítropa, consoante a posição que se adote. Contudo, independentemente da
posição adotada, a doutrina e a jurisprudência referem que é sempre essencial observar
os crimes e as condenações anteriores, mesmo que estas não se possam ter em conta para
o preenchimento dos pressupostos formais (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 572; PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015, 396 e Ac. do STJ de 22 de maio de 2003, processo n.º
03P1223). Salientamos que este entendimento doutrinal e jurisprudencial é muito
duvidoso do ponto de vista do princípio da legalidade – n.º 3 do artigo 1º do CP, visto que
coloca em causa, por exemplo o limite legal de consideração da tendência criminosa
previsto no n.º 3 do artigo 83º do CP, quando admite que se valorem os crimes cometidos
há mais de 5 anos. Note-se ainda que a acentuada inclinação para o crime deve persistir à
data da condenação, senão não se encontram justificadas as necessidades de prevenção
especial que a PRI assume (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 396).

Interessa mencionar que este pressuposto material tem de ser aplicado em


conformidade com ao princípio da proporcionalidade, na medida em que possibilita a
aplicação de medida de segurança e a lei, quando exige que se verifique a inclinação para
o crime, refere a palavra «acentuada». A palavra «acentuada» significa “alta
probabilidade de repetição” e não mera “probabilidade de repetição de factos de certa
gravidade“ (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 573). A necessidade deste requisito estar em
conformidade com o princípio da proporcionalidade também nos permite compreender a
proibição de aplicação do instituto da PRI às bagatelas penais ou à pequena criminalidade,
mesmo que na prática se verifique uma tendência criminosa. Como ensina FIGUEIREDO
DIAS, deve considerar-se implícita a conclusão de que a PRI exige que a inclinação se
verifique para crimes de certa gravidade 53.

52
FIGUEIREDO DIAS menciona que este foi o grande avanço do código 1886 para o código de 1982, uma
vez que se abandonou a distinção entre delinquentes habituais e delinquentes por tendência, passando a
existir apenas delinquentes especialmente perigosos. Chama atenção que a PRI consagrada nestes termos
pode ser aplicada a imputáveis diminuídos. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 570-572.
53
FIGUEIREDO DIAS chega mesmo a levantar a questão de saber se o instituto da PRI não se devia aplicar
apenas aos casos de grande criminalidade e de acentuada inclinação para o crime demonstrada por ela, visto

57
1.1.3 Limites legais de duração

O n.º 2 do artigo 83º prevê que se aplique aos delinquentes por tendência grave “(…)
um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que concretamente caberia ao
crime cometido e um máximo de correspondente a esta pena acrescida de 6 anos, sem
exceder os 25 anos no total”.

Para os casos de delinquência por tendência menos grave dispõe o n.º 2 do artigo 84º
que se aplique “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime e um máximo correspondente a esta pena acrescida de 4
anos, sem exceder os 25 anos no total”.

Concluímos, assim, que a sentença que aplique o instituto da PRI tem de estabelecer
de forma clara a pena que concretamente caberia ao crime, pois só assim é que se pode
criar a moldura penal abstrata, constituída por um limite mínimo e um limite máximo
inultrapassável. Se a pena que concretamente caberia ao crime não estiver estabelecida,
não é possível determinar a duração efetiva desta pena, como iremos observar mais
adiante.

1.1.4 Casos especiais


Conforme foi mencionado, a modalidade de delinquentes por tendência, para além de
se subdividir em duas submodalidades, prevê ainda a possibilidade de aplicação deste
instituto a casos «especiais».

Nos termos do n.º 1 do artigo 85º, “se os crimes forem praticados antes de o agente
ter completado 25 anos de idade, o disposto nos artigos 83º e 84º só é aplicável se aquele
tiver cumprido prisão no mínimo de 1 ano”. Ou seja, os casos «especiais» previstos na lei
aplicam-se aos menores de 25 anos de idade. A ideia subjacente a estes casos especiais é
a de que, até aos 25 anos de idade, a personalidade do agente em causa ainda não alcançou
a completa maturidade e como tal, o instituto da PRI deve ser aplicado de forma atenuada
no que concerne ao limite máximo da PRI54. Menciona-se também que, devido à tenra

o particular peso que este instituto representa para o delinquente por tendência. Assinala esta ideia em
comparação ao código penal alemão que exige que se aplique medida de internamento de segurança só para
os factos penais significativos ou importantes, ou seja, só para a alta criminalidade. Cfr. FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 573. Deve consultar-se, ainda, INÊS FERREIRA LEITE: 2016, 612 nota de rodapé n.º 6330
que se pronuncia igualmente neste sentido.
54
Antes o Código Penal, para os casos especiais do artigo 85º, permitia que se aplicasse por exclusiva
remissão o regime do artigo 84º previsto para os delinquentes por tendência menos graves. Já o regime do
artigo 83º, previsto para os delinquentes por tendência mais grave, não podia ser aplicado por remissão aos
menores de 25 anos de idade, uma vez que a lei não o consagrava. Por esta razão FIGUEIREDO DIAS

58
idade e à falta de maturação da personalidade deste tipo de delinquentes, é mais fácil
aplicar esforços de socialização alternativos à pena de prisão (TERESA BELEZA: 1983
(1), 27-28; JOÃO OSÓRIO: 2010, 97-98 e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 295)55,
de modo a atenuar-se os efeitos negativos que esta pena pode causar 56.

Deste modo, o nº 1 do artigo 85º remete para os regimes dos delinquentes por
tendência grave e menos grave e estatui como pressupostos formais que o delinquente
tenha menos de 25 anos de idade e que já tenha cumprido no mínimo 1 ano de prisão
efetiva em virtude de condenação anterior. O pressuposto material, nestes casos especiais,
mantém-se o mesmo, nomeadamente a acentuada inclinação para o crime que no
momento da condenação ainda persista. O n.º 3 do mesmo artigo refere que o prazo de
prescrição da tendência criminosa, em vez de ser de 5 anos é de 3 anos. Por último,
também o n.º 2 estipula que a aplicação da PRI nestes casos implica que o limite máximo
corresponda a um acréscimo de 4 ou 2 anos de prisão que concretamente caberia ao crime,
consoante se apliquem as submodalidades de delinquência por tendência grave ou menos
grave. Os limites mínimos mantêm-se iguais, pois aplica-se um mínimo correspondente
a dois terços da pena de prisão que concretamente caberia ao crime, conforme previsto
no n.º 2 do artigo 83º e no n.º 2 do artigo 84º do CP.

Nestes casos «especiais» observa-se uma atenuação na aplicação da PRI que é


demonstrada pela menor exigência de pressupostos formais (pois apenas se exige que o
delinquente tenha 25 anos e que tenha cumprido anteriormente no mínimo 1 ano de prisão
efetiva) e pela diminuição de anos exigidos, quer para a prescrição da tendência criminosa
(que passa de 5 para 3 anos), quer para criação do limite máximo da moldura legal abstrata
(que passa de 6 para 4 anos ou de 4 para 2 anos consoante a modalidade de delinquência
por tendência grave ou menos grave se aplique).

referiu que a política criminal que estava subjacente no artigo 85º era questionável, uma vez que a
delinquência por tendência é cada vez mais um fenómeno dos jovens imputáveis com menos de 25 anos e
a lei não permitia a aplicação do regime mais grave do artigo 83º. Concluiu, assim, que a ideia do artigo
85º só se encontraria justificada, caso fosse consagrada na letra da lei a possibilidade de o artigo 85º ser
aplicado aos dois tipos de delinquência por tendência. A letra da lei mais tarde veio consagrar o defendido
por FIGUEIREDO DIAS, logo esta problemática deixou de ser relevante. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011,
575.
55
Porém, FIGUEIREDO DIAS pronuncia-se em sentido divergente referindo que não há provas que estes
agentes tenham hipóteses acrescidas de socialização ou sofram maior estigmatização pelo cumprimento de
uma pena de prisão. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 575.
56
TERESA BELEZA menciona que se deve minorar os efeitos negativos da institucionalização e deve-se
lutar contra a estigmatização que deriva das medidas não detetivas. Cfr. TERESA BELEZA: 1983 (2), 168.

59
As considerações realizadas para as submodalidades de delinquência por tendência
grave e menos grave valem para esta submodalidade, desde que se realizem as devidas
adaptações.

1.2 Delinquentes alcoólicos e equiparados


Em primeiro lugar cumpre explicar que esta modalidade é aplicada aos agentes
alcoólicos ou que tenham uma tendência para abusar de bebidas alcoólicas57. Na verdade,
o que está aqui implícito é sempre a tendência para abusar ou exagerar de bebidas
alcoólicas. Todavia, aos agentes alcoólicos são equiparados os agentes
toxicodependentes, ou que tenham uma tendência para abusar de estupefacientes 58. Isto
significa que também é a tendência para abusar ou exagerar no consumo de
estupefacientes que está aqui em causa. Ora, o regime dos agentes alcoólicos consagrado
nos artigos 86º e 87º do CP aplica-se por via do artigo 88º do CP aos agentes
toxicodependentes. Em ambos os casos, a tendência para comportamentos aditivos tanto
pode ser inata como adquirida, culposa ou não culposa. A tendência aditiva tem apenas
que se revelar intensa, no sentido de o agente se encontrar frequentemente em estados de
embriaguez ou intoxicação. Esta modalidade de PRI só pode ser aplicada exclusivamente
a este género de agentes. PINTO DE ALBUQUERQUE refere que o artigo 88º do CP é
muitas vezes um meio apto a solucionar certo tipo de criminalidade, porém, crítica a sua
falta de aplicação, referindo: “(…) o número de vezes em que este artigo é aplicado, por
ano, conta-se pelos dedos de uma mão” (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 395)59.
1.2.1 Pressupostos
O n.º 1 do artigo 86º dispõe que se aplica o instituto da PRI “se um alcoólico ou pessoa
com tendência para abusar de bebidas alcoólicas praticar um crime a que devesse aplicar-
se concretamente prisão efetiva e tiver cometido anteriormente crime a que tenha sido
aplicada também prisão efetiva (…)”. Este preceito legal consagra assim dois
pressupostos formais: 1º crime punido com prisão efetiva; 2º crime anteriormente
cometido e punido com prisão efetiva. Para a interpretação destes dois pressupostos

57
“O alcoólico distingue-se da pessoa com tendência para abusar de bebidas alcoólicas e a diferença reside,
segundo o autor do projeto do CP, na circunstância de o «alcoólico» padecer de uma embriaguez crónica
que lhe altera a personalidade”. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 400.
58
O toxicodependente é a pessoa que padece de uma dependência que lhe provoca uma alteração
psiquiátrica da personalidade e a pessoa com tendência para abusar de estupefacientes é a pessoa que
embora não tenha uma dependência tem uma inclinação séria para o seu consumo. Cfr. Idem, 401.
59
ANASTASIYA MYRNA, no estudo empírico realizado a condenados em PRI, conclui similarmente que
este artigo não é usado, mesmo quando nos encontramos em casos claros de preenchimento da previsão
desta norma. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 131-132.

60
formais remetemos para as considerações efetuadas anteriormente o ponto 1.1.1 para a
modalidade de delinquentes por tendência.
A grande novidade desta modalidade, em relação à analisada anteriormente, é que o
n.º 1 do artigo 86º exige “(…) sempre que os crimes tiverem sido praticados em estado
de embriaguez ou estiverem relacionados com o alcoolismo ou com a tendência do
agente”. Entende-se, assim, que o pressuposto material desta modalidade é a tendência
para comportamentos aditivos, exigindo-se uma especial relação entre o facto e a
tendência aditiva do agente. Ou seja, é necessário “(…) que o facto praticado seja
expressão da tendência que possui o agente e que, em consequência, deste sejam de
esperar novos factos ilícitos-típicos da mesma espécie” (FIGUEIREDO DIAS: 2011,
578). FIGUEIREDO DIAS elucida que, em respeito ao princípio da proporcionalidade,
esta «causalidade interna» tem de ser exigida, visto que o objetivo desta modalidade é
combater as tendências para o álcool ou drogas quando as mesmas manifestem um perigo
de continuação da realização de crimes de certa gravidade (Ibidem). PINTO DE
ALBUQUERQUE refere, mais uma vez, que também nesta modalidade de delinquência
não é exigível a verificação de uma tendência homótropa (PINTO DE ALBUQUERQUE:
2015, 400-402).
1.2.2 Limites legais de duração
Relativamente aos limites legais de duração, prescreve o n.º 2 do artigo 86º que se
aplique “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime cometido e um máximo correspondente a esta pena
acrescida de 2 anos na primeira condenação e de 4 anos nas restantes, sem exceder 25
anos no total”. Para este efeito, vale o que mencionámos anteriormente no ponto 1.1.3
deste capítulo, visto que é sempre necessário determinar de forma clara a pena que
concretamente caberia ao crime.
O artigo 87º do CP estipula que a execução desta pena é orientada no sentido de
eliminar o alcoolismo ou a toxicodependência do agente ou combater a sua tendência para
abusar de bebidas alcoólicas ou drogas (Ac. do STJ, de 01 de julho de 1992, processo n.º
042851). Significa isto que a aplicação de menos ou mais pena, consoante se trate da
primeira ou segunda condenação, justifica-se pela perigosidade e prevenção especial, e
nunca através da culpa e da retribuição, tal como ensina FIGUEIREDO DIAS, dado que,
neste tipo de agentes, a multireincidência legitima que se submeta o agente a tratamentos
de desintoxicação de álcool e drogas mais profundos e prolongados (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 579).
61
1.3 Delinquentes por incêndio florestal
Para finalizar, analisemos a última modalidade de aplicação deste instituto. A Lei n.º
94/2017, de 23 de agosto, veio aditar ao Código Penal o nº 4 e do artigo 274º - A, e
estabeleceu a possibilidade de se poder aplicar uma PRI aos delinquentes que pratiquem
o crime de incêndio florestal previsto no artigo 274º do CP60. Este aditamento ao código,
tal como explica MARIA JOÃO ANTUNES, teve como objetivo criar uma sanção de
natureza penal que simultaneamente fosse a “mais adequada à tutela dos bens jurídicos
protegidos pela incriminação” e, por outro lado, respondesse às necessidades de
“reintegração do condenado na sociedade” (MARIA JOÃO ANTUNES: 2018, 9-20). A
exposição de motivos da proposta de Lei n.º 90/XIII mencionava que a PRI deve ser
aplicada aos agentes imputáveis com acentuada inclinação para a prática de crime de
incêndio florestal, sendo esta “sanção orientada, na sua execução, no sentido de eliminar
essa acentuada inclinação, atendendo não apenas à culpa, mas também à perigosidade
criminal do agente” (PROPOSTA DE LEI N.º 90/XIII: 2017, 5).

1.3.1 Pressupostos
O n.º 4 do artigo 274º - A estatui que se aplique PRI a “quem praticar crime doloso
de incêndio florestal a que devesse aplicar-se concretamente pena de prisão efetiva e tiver
cometido anteriormente crime doloso de incêndio florestal a que tenha sido ou seja
aplicada pena de prisão efetiva (…)”. A lei consagra igualmente três pressupostos
formais: 1º) prática de crimes dolosos; 2º) punidos com prisão efetiva e 3º) cometidos
anteriormente. Neste sentido, remetemos mais uma vez para as considerações já
realizadas no ponto 1.1.1 do presente capítulo. Contudo, importa ressalvar que este
preceito exige que o crime cometido atualmente e o crime cometido anteriormente, ambos
punidos com pena de prisão efetiva, devem ser sempre os dois especificamente crimes de
incêndio florestal, ou seja, os crimes têm de ser da mesma natureza e espécie. MARIA
JOÃO ANTUNES ensina o seguinte: “Diferentemente do que dispõe (…), a aplicação de
pena relativamente indeterminada ao agente da prática do crime de incêndio florestal não
depende da gravidade da pena de prisão efetiva aplicada ao crime anterior e ao reiterado,
da prática anterior de mais do que um crime e do não decurso do prazo de cinco anos
entre a prática do crime anterior e a do seguinte” (MARIA JOÃO ANTUNES: 2018,14).

60
A lei anterior apenas possibilitava, no n.º 9 do artigo 274º, a aplicação de medida de segurança, na forma
de internamento intermitente, a inimputável nos meses de maior ocorrência de fogos; e no mesmo sentido
também o n.º 2 do artigo 274º - A prevê esta possibilidade de aplicação de medida de segurança a
inimputável.

62
Relativamente ao pressuposto material, o n.º 4 do mesmo artigo refere: “sempre que
avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma
acentuada inclinação para a prática deste crime, que persista no momento da
condenação”. Importa também aqui ter em consideração a análise já realizada no ponto
1.1.2 deste capítulo, visto que o pressuposto material é o mesmo. Apenas salientamos, tal
como fizemos relativamente aos pressupostos formais, que para aplicação desta
modalidade de PRI a tendência criminosa tem de ser exclusivamente para a prática
de crimes da mesma natureza e espécie: crimes de incêndio florestal.
Resumidamente, esta modalidade de aplicação de PRI exige a verificação de uma
tendência homótropa quer na prática dos crimes anteriores quer na prática dos crimes
futuros. Isto é, exige-se uma tendência criminosa homótropa na prática e para a prática
de crimes de incêndio florestal.
1.3.2 Limites legais de duração
O n.º 5 do artigo 274º - A remete para os limites legais de duração do n.º 2 do artigo
86º e para a finalidade referida no artigo 87º com as devidas alterações. Quer isto dizer
que, para a modalidade da PRI aplicável a delinquentes por incêndio florestal, deve-se
aplicar igualmente “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime cometido e um máximo correspondente a esta pena
acrescida de 2 anos na primeira condenação e de 4 anos nas restantes, sem exceder 25
anos no total”. Nesta modalidade de PRI, a execução da pena é orientada no sentido de
eliminar ou combater a perigosidade inerente à reiteração da prática de crimes de incêndio
florestal. Mais uma vez devemos recordar os ensinamentos de FIGUEIREDO DIAS já
referidos no ponto 1.2.2 deste capítulo: também aqui é a perigosidade e a prevenção
especial que legitimam a variação da pena aplicável consoante estejamos perante a
primeira ou a segunda condenação.

1.4 Determinação dos limites e da duração da pena


Depois de analisarmos todas as modalidades de PRI previstas na lei, importa
compreender, neste momento, quais são os limites e qual é a duração da pena quando se
aplica este instituto. Note-se que este instituto se diferencia dos demais, pois, no que
concerne à determinação dos limites e à duração da pena, segue um sistema de
determinação da pena diferente.
Vejamos: pela prática de um crime em que não se aplique o instituto da PRI, o juiz de
julgamento realiza a tarefa de determinação da pena em três fases distintas: 1º determina

63
a moldura penal ou pena aplicável; 2º determina a medida concreta da pena ou a pena
aplicada; e 3º escolhe a espécie de pena e o âmbito das sanções aplicáveis (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 198-212). Aqui, o juiz de julgamento e o delinquente à data da sentença
alcançam a pena que este último efetivamente irá cumprir.
Ora, quando se aplica uma PRI, a determinação da pena não segue apenas o processo
«normal» que foi o enunciado anteriormente. Em caso de aplicação de uma PRI, em
qualquer das suas modalidades, inicialmente o juiz de julgamento realiza a tarefa de
determinação da pena conforme as três fases mencionadas, porém, essas fases não
chegam. Acresce a este processo «normal», um outro que se baseia em duas fases
distintas: 1º o juiz de julgamento determina à luz do artigo 71º do CP a pena que
efetivamente o agente deve cumprir; 2º o juiz de julgamento cria uma moldura penal
abstrata da PRI, que é constituída por limites mínimos e máximos consagrados na lei
(designadamente no n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2 do artigo 85º, nº 2 do
artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A do CP)61. A lei consagra ainda que o limite máximo
da moldura penal abstrata não pode exceder os 25 anos no total62. Portanto, na PRI, o juiz
de julgamento e o delinquente à data da sentença não alcançam a pena que este último
efetivamente irá cumprir.

Concretizando, quando se aplica uma PRI, o delinquente só irá conhecer a duração ou


o tempo de pena que efetivamente irá cumprir posteriormente, nomeadamente, durante

61
Repare-se que, se estivermos perante um processo de aplicação de PRI em que haja pluralidade de crimes,
o TRL, no Ac. de 28 de janeiro de 1987 (COLETÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA: 1987,157-159),
mencionou que, em caso de concurso de crimes, deve fixar-se as penas parcelares para cada crime, depois
fixar a pena única e no final determinar a moldura penal abstrata da PRI. Problema diferente, mas
igualmente importante consiste em saber qual o procedimento adequado para a determinação da pena
quando temos de achar a pena única de concurso de crimes anteriores (aos quais se aplicou uma PRI e uma
pena determinada) e aplicar no final uma PRI. A este respeito, o STJ no Ac. de 19 de abril de 1995, processo
n.º 047346, entendeu que se deve realizar em primeiro lugar o cúmulo jurídico entre a pena determinada
(tendo em conta a pena efetivamente aplicada) e a pena relativamente indeterminada (tendo em conta a
pena que concretamente caberia ao crime), de forma a alcançar-se uma pena única. Em seguida, tendo como
base essa pena única, deve alcançar-se a PRI de acordo com a lei. MARIA JOÃO ANTUNES sufraga a
posição do STJ e conclui que este processo apenas pode ocorrer se, em todos os crimes em concurso,
estiverem preenchidos todos os pressupostos formais e materiais. Cfr. MARIA JOÃO ANTUNES: 1996,
307-321. NÉLSON FERNANDES acompanha a posição de MARIA JOÃO ANTUNES, mas menciona
que, quando não se verifique o preenchimento total dos pressupostos formais e materiais, deve o
delinquente ficar submetido ao cumprimento cumulativo de duas penas (pena determinada e PRI). Porém,
entende que a PRI deve ficar sujeita às regras do artigo 99º do CP (teoria do vicariato), porque a PRI ao
nível da execução corresponde a uma medida de segurança na parte em que excede a pena que
concretamente caberia ao crime. Conclui assim: “(…) a parte da PRI efetivamente cumprida pelo
delinquente, depois de pelo mesmo ter sido cumprida a parte da pena adequada à sua culpa, deve ser
descontada, quando for este o caso, na pena de prisão que o mesmo tiver para cumprir por força de outra
decisão proferida”. Cfr. NÉLSON FERNANDES: 2016, 43-71.
62
O objetivo desta estatuição é zelar pela constitucionalidade do regime, respeitando assim o preceituado
no n.º 1 do artigo 30 da CRP.

64
a execução da PRI, período em que são aplicadas as regras dos artigos 89º e 90º do CP.
Ao delinquente condenado em PRI deve ser elaborado um plano individual de
readaptação e, durante a fase da execução da pena, pode beneficiar de diferentes situações
de libertação. Distinguem-se no essencial duas situações: a primeira ocorre quando se
verifica a libertação do delinquente até ao cumprimento da pena que concretamente
caberia ao crime e a segunda ocorre quando se verifica a libertação do delinquente depois
de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime.

Na primeira situação, o delinquente encontra-se a cumprir pena de prisão (aplicando-


se as regras relativas à execução da pena de prisão) e podem ocorrer duas hipóteses: ou o
juiz de execução concede liberdade condicional ao delinquente quando este já cumpriu o
limite mínimo da PRI (n.ºs 1 e 2 do artigo 90º CP); ou o juiz de execução, renovada a
instância, concede liberdade condicional ao delinquente até que este cumpra a pena que
concretamente cabe ao crime.

Na segunda situação, o delinquente encontra-se a cumprir medida de segurança de


internamento de inimputável (aplicando-se as regras relativas à execução da medida de
segurança de internamento) conforme o preceituado no n. º 3 do artigo 90º do CP, pois já
alcançou e ultrapassou a pena que concretamente caberia ao crime e, portanto, também
aqui podem verificar-se duas hipóteses: ou o juiz de execução concede liberdade para
prova, porque viu melhorias no delinquente de acordo com o artigo 94º do CP; ou o juiz
de execução concede liberdade definitiva, porque o limite máximo inultrapassável
estipulado pela moldura legal abstrata da PRI já foi alcançado. Importa notar, ainda, que
durante a segunda situação acresce outra hipótese possível e completamente diferente das
duas hipóteses já expostas, que é a possibilidade de libertação do delinquente a título
definitivo, caso o juiz de execução verifique que cessou o estado de perigosidade criminal
do delinquente, de acordo com o n.º 1 do artigo 92º do CP.

Em síntese, para se aplicar qualquer uma das modalidades de PRI tem de se criar
obrigatoriamente uma moldura penal abstrata constituída por limites mínimos e
máximos. Estes limites são criados usando sempre como referência a pena que
concretamente cabe ao crime, portanto, esta pena tem de estar sempre explícita de forma
clara na sentença condenatória. Todavia, note-se que a pena que concretamente caberia
ao crime pode ser ultrapassada (excedendo-se assim a culpa do agente). A única pena
inultrapassável é a medida da pena que consta do limite máximo da moldura penal
abstrata criada pelo juiz de julgamento mediante o regime da PRI.
65
O objetivo da criação da moldura penal abstrata é balizar os mínimos e máximos de
pena que poderão vir a ser cumpridos, pois só assim se consegue assegurar ao delinquente
a proibição de decisões arbitrárias e surpresas, dada a natureza de sentença indeterminada
que a PRI pressupõe. A moldura penal abstrata criada é também a única maneira de
garantir que esta pena não seja absolutamente indeterminada, mas só relativamente
indeterminada63.

Conclui-se, assim, que o limite da PRI é constituído por uma moldura penal abstrata
criada pelo juiz de julgamento e a que duração da pena fica dependente da fase da
execução da mesma.

E, como ensina ANABELA RODRIGUES, “(…) a fase de execução da pena deve


pois ser encarada como a de mais decisivo relevo para o delinquente que sofre a sanção,
por outro lado ela representa também uma fase em que se joga decisivamente o destino
de todo o sistema penal” (ANABELA RODRIGUES: 1988, 7). A fase de execução da
pena é orientada por dois princípios fundamentais: o de prevenção especial de
socialização e o de que o recluso deixou de ser «objeto» para passar a ser «sujeito» de
execução (Idem, 14 e ANABELA RODRIGUES: 2002, 29-128). Contudo, dada a
especial atenção que estas matérias merecem, as mesmas serão abordadas nesta
dissertação de forma autónoma mais adiante.

2. Natureza jurídica
Após compreendermos os pressupostos, os limites e a duração do instituto da pena
relativamente indeterminada, podemos avançar para a análise da natureza jurídica deste
instituto, que é tão peculiar.

2.1 Finalidades e fundamentos


O instituto da PRI tem como finalidade a prevenção, conforme alude o n. º1 do artigo
40º do CP. Isto significa que, por um lado, a PRI impõe necessariamente que os
delinquentes cumpram uma pena com uma duração mínima, seguindo assim a finalidade
de prevenção geral. Por outro lado, a PRI impõe necessariamente que estes delinquentes
vejam a sua pena ser agravada e, se for necessário, prorrogada, com o objetivo de se
alcançar a neutralização ou eliminação do estado de perigosidade, que se consubstancia
ou na tendência criminosa (n.º 1 do artigo 92º ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP) ou na

63
Só através da sentença relativamente indeterminada ou da PRI é que se consegue assegurar a
constitucionalidade do regime, à luz do n.º 1 do artigo 30 do CRP. A sentença absolutamente indeterminada
ou a pena absolutamente indeterminada corresponderiam a um regime inconstitucional à luz deste artigo.

66
tendência para comportamento aditivos (artigo 87º do CP) ou na tendência de reiteração
na prática de crimes de incêndio florestal (artigo 87º do CP ex vi n.º 5 do artigo 274º A).
Esta agravação e eventual prorrogação prosseguem a finalidade de prevenção especial,
que, no fundo, é a finalidade principal da PRI.

Nomeada como finalidade deste instituto a preventiva, importa refletir sobre os


fundamentos que legitimam a sua aplicação. De acordo com o n.º 2 do artigo 40º do CP,
num primeiro momento, este instituto parece colidir e violar frontalmente o princípio da
culpa64, pois permite que se aplique uma pena agravada e uma pena maior que a
determinada pela medida concreta da culpa. Apesar de a PRI estar balizada por limites
mínimos e máximos inultrapassáveis, é permitido prolongar-se a pena para além da
medida concreta da pena que caberia ao crime, tal como já demonstrámos. Ora, significa
isto que, na verdade, o limite máximo inultrapassável mais não é que um limite máximo
legal, que não corresponde nem traduz qualquer vinculação ao limite máximo
determinado pela culpa concreta do agente pelo facto ilícito.

A controvérsia doutrinária suscitada no ponto 1.2.1 do capítulo II deste estudo,


relativa à natureza jurídica da prorrogação ilimitada da pena, importa neste momento tê-
la presente com as devidas adaptações, já que agora, a análise é referente a uma
prorrogação limitada da pena consagrada a partir do código de 1982. Interessa assim
questionar quais são os fundamentos que legitimam na PRI a aplicação de uma pena
agravada e a prorrogação limitada da pena? Será a culpa pela formação da
personalidade ou a perigosidade do agente? E cabe perguntar ainda se a PRI é uma
pena de culpa, uma pena de segurança ou uma medida de segurança?

Recordamos a posição de EDUARDO CORREIA, para quem a PRI constitui uma


verdadeira pena e o fundamento que legitima a agravação e a prorrogação limitada da
pena do delinquente especialmente perigoso é a culpa pela não formação da

64
FIGUEIREDO DIAS entende que “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside
efectivamente numa incondicional proibição do excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui
o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer
considerações ou exigências preventivas (…). A função da culpa (…) é estabelecer o máximo de pena ainda
compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento
da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático”. Cfr. FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 79-80. No mesmo sentido GERMANO MARQUES DA SILVA entende também que “A
culpa é um elemento da estrutura do crime; não há crime sem culpa. Mas sendo pressuposto necessário
da pena é, além disso, elemento condicionante da sua própria medida, pois a pena não pode ultrapassar
a medida da culpa”. Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA: 2008, p. 27. Já CAVALEIRO FERREIRA
entende que “O princípio da «culpa» é o verdadeiro fundamento de toda a responsabilidade penal (…)”.
Cfr. CAVALEIRO FERREIRA: 1981, 412. Negrito nosso.

67
personalidade. Na sua obra explicou que um indivíduo que não corrigiu, tratou ou
educou o seu modo de ser de maneira a harmonizá-lo com um tipo de personalidade
condizente com os valores jurídico-criminais do sistema, isso só pode significar que esse
indivíduo realizou uma omissão do dever de corrigir a sua personalidade. E, com base
neste raciocínio, o autor defendeu ser possível aplicar a esse indivíduo uma pena agravada
e prorrogada que pode ir até ao ponto de restabelecer, reparar e readaptar a personalidade
desvaliosa do delinquente (EDUARDO CORREIA: 1945/1946, 24-35).
Num sentido próximo, ANABELA RODRIGUES afirma que o fundamento de
agravação e prorrogação da pena na PRI só pode ser a culpa do agente pela
personalidade desvaliosa e que a PRI é uma pena de culpa. Para o efeito, a autora
explica que a perigosidade de determinado indivíduo considerado especialmente perigoso
é irrelevante para o juízo de censura, que se realiza à sua personalidade, uma vez que um
indivíduo especialmente perigoso deve responder pela sua personalidade desvaliosa que
traduz uma acentuada inclinação para o crime. Portanto, a autora conclui que “esta pena
não será (…) uma pena de segurança, mas uma pena de culpa, que terá de possuir um
máximo de duração inultrapassável, correspondente ao máximo de pena suportado pela
culpa (agravada) do delinquente” (ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 293). Todavia,
explica que “se expiada a culpa, persistir ainda a perigosidade naturalística, nada pode
justificar a prorrogação da pena ou aplicação de uma adicional medida de segurança”
(Ibidem). No fundo, a autora entende que é possível prorrogar a PRI em dois, quatro ou
seis anos (criando-se assim um limite máximo legal de acordo com o regime da PRI),
desde que tal prorrogação se encontre suportada na culpa agravada do delinquente. No
entanto, refere que jamais é possível prorrogar a pena depois de alcançado o limite
máximo legal de duração estipulado na PRI, nem mesmo por razões de prevenção
especial.

Diversamente, FIGUEIREDO DIAS entende que a doutrina da culpa pela formação


da personalidade é inaceitável, pois essa conceção deixa de fazer referência ao facto, para
fazer apenas referência à personalidade do agente. Ao invés de se punir factos passar-se-
ia a punir personalidades desvaliosas (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 559). Ensina que o
homem cria em liberdade a sua personalidade65 e que a culpa jurídico-penal,

65
A liberdade mencionada não é uma liberdade baseada no «poder agir de outra maneira», ou seja, não é a
conceção de liberdade em termos absolutos, visto que, FIGUEIREDO DIAS: 1983, 54 e 245-246 e CLAUS
ROXIN: 1983, 4-8 apresentaram obstáculos a esta liberdade: pelo facto de ser absolutamente inverificável
e por se revelar incapaz de responder às exigências político-criminais, designadamente aos níveis da
inimputabilidade, falta de consciência da ilicitude e inexigibilidade que são causas capazes de excluir o

68
correspondendo à atitude interior do agente, faz com que o mesmo tenha que responder
pela sua personalidade desvaliosa que é manifestada no facto-ilícito típico66. Logo,
conclui que a culpa de um delinquente especialmente perigoso pode ser uma culpa
agravada, pois a reiteração na prática de crimes é fundamento de maior culpa e legitima
uma pena mais pesada (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 559-560). Ora, isto significa que a
culpa da personalidade de um delinquente por tendência fundamenta a pena agravada, no
entanto, não fundamenta a prorrogação da pena.

Prosseguindo, FIGUEIREDO DIAS esclarece: a PRI não pode ser uma pena de
culpa, pois uma pena de culpa pressupõe que o julgador determine uma medida de culpa
no caso concreto e determine que a mesma seja inultrapassável. E não é isto que acontece
na PRI, pois o tribunal do julgamento, embora fixe a pena que concretamente caberia ao
crime em função da culpa do agente e de seguida crie uma moldura constituída pelo
mínimo e o máximo legal inultrapassável, em momento algum o tribunal de execução de
penas fica vinculado à aplicação da medida que concretamente caberia ao crime. O autor
clarifica que no instituto da PRI a pena que concretamente caberia ao crime pode ser
ultrapassada por razões de perigosidade até ao máximo legal estipulado. Só depois do
máximo legal permitido estar cumprido e, se a perigosidade de um agente persistir, é que
já nada se pode fazer. Portanto, refere que o quantum exato da pena só é determinado no
momento da sua execução e irá depender do estado de perigosidade que o delinquente
revelar (n.º 1 do artigo 92º ex vi n.º 3 do artigo 90º). Conclui assim: a perigosidade67 é
que fundamenta a aplicação de uma pena agravada e a prorrogação da pena para
além da medida que concretamente caberia ao crime. Afirma ainda que a prorrogação
da pena na PRI constitui uma verdadeira medida de segurança 68, pois encontra o seu
fundamento na perigosidade especial do agente e tem como finalidade principal a
especial-preventiva. Embora FIGUEIREDO DIAS admita que a natureza da PRI é de uma

«poder agir de outra maneira». Relativamente ao conceito de liberdade na formação da culpa afirma
também MARIA FERNANDA PALMA: 2005, 36 e 40: “Seremos culpados na medida em que formos
livres para obedecer ou desobedecer ao direito (…)“ e “(…) a liberdade que ao Direito parece interessar
não será, fundamentalmente, um fenómeno causal-naturalístico, corresponde antes à representação do poder
da subjetividade, do desejo sobre o mundo e do poder sobre modificações íntimas vividas”.
66
FIGUEIREDO DIAS afirma que a única via, para ligar a ideia de liberdade expressa no «poder agir de
outra maneira» à culpa, é a personalidade que o agente deu a si mesmo, que se manifesta no facto ilícito e
típico. Substituiu assim a conceção da culpa da vontade pela conceção da culpa no carácter. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 559 e FIGUEIREDO DIAS: 1983, 151-153.
67
Perigosidade interpretada no sentido de “uma probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes
de certa espécie. (…) Uma coisa é, em todo o caso, segura: não basta nunca a mera possibilidade de
repetição, pois que esta, em rigor, existe sempre; necessária é sempre uma possibilidade qualificada”. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 441.
68
Perfilhando, assim, a opinião de BELEZA DOS SANTOS.

69
verdadeira medida de segurança, acaba no final por concluir que a PRI deve ser
considerada uma pena de segurança, ou seja, disfarça a “verdadeira natureza de medida
de segurança da PRI sob roupagem de uma pena” de forma a poder garantir a ideia de
monismo prático que acredita ser a mais vantajosa (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 563).

Relembramos, por último, a posição de CAVALEIRO FERREIRA, o qual


similarmente defendeu que na PRI “(…) a fixação da pena corresponde à culpabilidade,
enquanto a sua prorrogação se justifica exclusivamente como medida de segurança em
razão da sua perigosidade criminal. O modo de execução é idêntico e por isso será uma
pena indeterminada (ou pena de segurança)” (CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 60-61).
Apontou ainda que a culpabilidade não é apenas a vontade culpável traduzida na decisão
voluntária, mas expressa também a personalidade do delinquente69 e que a “perigosidade
é a probabilidade de um dano futuro; perigosidade criminal é a probabilidade de futura
delinquência” (CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 1 e 15).

2.2 Monismo e dualismo


Estudada a finalidade e os diferentes fundamentos que legitimam a aplicação da
PRI, consoante a opinião sufragada por cada autor, interessa em seguida examinar se este
instituto concretiza um sistema de Direito penal monista ou dualista.

Antes de mais, importa explicar que o sistema punitivo português consagra duas
reações penais: as penas e as medidas de segurança sendo que ambas prosseguem
finalidades de prevenção. O n.º 1 do artigo 40º do CP esclarece que ambas as reações
penais visam “proteção de bens jurídicos” (ideia de prevenção geral) e “reintegração do
agente na sociedade” (ideia de prevenção especial positiva). Embora estas reações penais
prossigam finalidades iguais de modo geral, elas opõem-se uma à outra. Enquanto a pena
é inseparável do princípio da culpa, tal como determina o n.º 2 do artigo 40 do CP; já a
medida de segurança é inseparável do princípio da proporcionalidade, conforme
determina o n.º 3 do artigo 40º do CP. Ou seja, enquanto a pena pressupõe que seja
efetuado um juízo de culpa baseado na ideia de que “em caso algum a pena pode
ultrapassar a medida da culpa”, a medida de segurança pressupõe que seja efetuado um
juízo de perigosidade baseado na ideia que “a medida de segurança só pode ser aplicada
se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

69
Para este efeito relembra-se também o conceito de culpa jurídico-penal. Para FIGUEIREDO DIAS: 2011,
559: é a “(…) culpa da atitude interior manifestada no facto que leva o agente a ter de responder pelas
qualidades desvaliosas da sua personalidade que fundamentam aquele (…)”.

70
A doutrina portuguesa, com a qual concordamos (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 417-
423 e MARIA JOÃO ANTUNES: 2010/2011, 9), entende que o sistema dualista70 é um
sistema que permite que se possa aplicar cumulativamente, ao mesmo agente e pelo
mesmo facto, uma pena e uma medida de segurança71. Em sentido contrário, um sistema
monista é um sistema que reconhece a existência de penas e medidas de segurança, mas
só permite a aplicação de uma das reações penais, afastando a possibilidade de cumular
duas reações sobre o mesmo agente e pelo mesmo facto.

O Código Penal português consagra um sistema tendencialmente monista, pois


permite a aplicação a um agente, pela prática de um crime, de uma pena ou de uma medida
de segurança (MARIA JOÃO ANTUNES: 2010/2011, 9 e CARLOTA ALMEIDA: 1996,
20)72. Normalmente, o código consagra a aplicação de penas aos indivíduos considerados
imputáveis73 e de medidas de segurança aos indivíduos considerados inimputáveis 74.
Contudo, nem sempre isto é assim tão claro pois o código prevê excecionalmente a
possibilidade se poder aplicar medidas de segurança a indivíduos imputáveis (artigo 104º
e 105º do CP) e prevê ainda a possibilidade de se aplicar cumulativamente, ao mesmo
agente e pelo mesmo facto, uma pena e uma medida de segurança (n.º 3 do artigo 90º do
CP)75. Neste sentido poder-se-á dizer que o sistema português consagra igualmente um
sistema dualista.

Ora, salientamos que é exatamente nestes últimos termos que se enquadra o regime
da PRI, sede em que se suscita a maior problemática quanto à querela entre monismo e
dualismo. Como já demonstramos, o instituto da PRI aplica os conceitos de culpa e de

70
Ou também designado por “sistema de la «doble vía»”. Cfr. HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS
WEIGEND: 2002, 865.
71
LOPES ROCHA faz referência a HANS-HEINRICH JESCHECK e afirma que o sistema dualista tenta
resolver conflitos entre fins das penas. Explicando que a culpabilidade pelo facto às vezes não chega para
responder à missão preventiva do Direito penal, visto que a duração da pena às vezes mostra-se insuficiente,
pois é necessário o tratamento pedagógico ou terapêutico dos delinquentes que não pode ocorrer durante o
cumprimento da pena. Cfr. LOPES ROCHA: 1983, 10.
72
Contudo, EDUARDO CORREIA entende que o sistema português deixaria de ser um sistema monista
se aplicasse medidas de segurança a imputáveis, visto que estas apenas deveriam ser aplicadas a
inimputáveis. Cfr. LOPES ROCHA: 1983, 9 e ss.
73
A imputabilidade significa que os agentes são capazes de culpa, ou seja, podem ser responsabilizados
penalmente. Sobre esta questão vide ANA SOFIA CABRAL/ANTÓNIO MACEDO/DUARTE NUNO
VIEIRA: 2009, 189.
74
A inimputabilidade significa que os agentes são incapazes de culpa e como tal não podem ser
responsabilizados penalmente. Vide: ibidem e artigo 20º do CP. Como exemplo da aplicação de medidas
de segurança a inimputáveis temos o artigo 91º do CP.
75
Repara-se que excecionalmente o código prevê que se aplique as duas reações penais a indivíduos
imputáveis, como é o caso da imputabilidade diminuída de delinquentes habituais, por tendência ou
análogos. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 413-415.

71
perigosidade e permite a aplicação cumulativa de penas e medidas de segurança ao
mesmo agente pelo mesmo facto. É o n.º 3 do artigo 90º do CP que permite que, durante
a fase de execução da sentença, aos agentes que se encontram a cumprir pena de prisão
(caso a liberdade condicional não for concedida ou for revogada e já tenham cumprido a
pena que concretamente caberia ao crime) se passe a aplicar o regime das medidas de
seguranças. Para tal é necessário converter o delinquente imputável em inimputável,
aplicando o instituto de fronteira da inimputabilidade que é o dos imputáveis diminuídos,
i.e., dos agentes que se revelem incapazes de ser influenciados pelas penas de acordo com
o n.º 3 do artigo 20º do CP. Note-se que este estado de inimputabilidade do condenado
em PRI só é alcançado na fase da execução, porque à data da sentença estes agentes foram
considerados capazes. Contudo, não importa agora tratar da discussão sobre a
imputabilidade ou inimputabilidade do delinquente condenado em PRI, mas, devido à
importância que tem, abordaremos este assunto posteriormente num capítulo autónomo.

Verificada a possibilidade de aplicação cumulativa de penas e medidas de


segurança, enfrenta-se assim a problemática de saber qual a natureza jurídica deste
instituto, visto que, parece absorver na sua totalidade e plenitude um sistema dualista de
penas e medidas de segurança, que foi e é largamente criticado pela doutrina (HANS-
HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: 2002, 92-93; CARLOTA ALMEIDA:
1996, 20 e FIGUEIREDO DIAS: 2011, 420-423).

As grandes críticas que podemos efetuar ao sistema dualista (e consequentemente


ao instituto da PRI) são as seguintes: não se entende como se pode aplicar ao mesmo
agente imputável e pelo mesmo facto uma pena e cumulativamente uma medida de
segurança. Um agente ou é responsável (imputável) ou não é responsável
(inimputável); ou se realiza um juízo de censura e aplica-se o princípio da culpa e a
sua pena não pode exceder a medida concreta da culpa; ou se realiza um juízo de
perigosidade e aplica-se o princípio da proporcionalidade e a sua medida de
segurança é compatibilizada com a sua perigosidade concreta. Com isto, pretende
dizer-se que a aplicação do sistema dualista na PRI coloca em causa a conciliação de
penas e medidas de segurança e dos princípios fundamentais do Direito penal, tais como:
culpa e proporcionalidade. Outra crítica que importa efetuar é a seguinte: a execução de
duas reações sobre o mesmo agente, coloca em causa o propósito socializador que
constitui a finalidade principal da medida de segurança e que também deve ser
alcançada na pena, uma vez que estas reações penais seguem diferentes formas de

72
execução, por exemplo, as penas de prisão são cumpridas em estabelecimentos prisionais
e as medidas de segurança devem ser cumpridas preferencialmente em unidades de saúde
ou estabelecimentos vocacionados para o tratamento. Além do mais, a execução de duas
reações sobre o mesmo agente criam mais tempo de reclusão que se espelha numa maior
dessocialização do condenado.

Com o intuito de atenuar as críticas levantadas, surgiu o princípio do «vicariato»76


na execução, em caso de aplicação cumulativa de uma pena e de uma medida de
segurança, devendo o mesmo ser concebido “«como unidade de efeitos reciprocamente
determinada»77.

De modo a alcançarmos uma posição própria sobre o assunto, há que expor de


forma sintética as posições da doutrina portuguesa quanto à questão: qual a natureza
jurídica da PRI e qual o sistema que consagra?

Existe um primeiro grupo de autores, como EDUARDO CORREIA, que defendem


que a PRI consagra um sistema monista; e, na base deste pensamento, defendem que a
natureza jurídica da PRI só pode ser a de uma pena, cujo fundamento é a culpa da vontade
referida à personalidade do agente (ACTAS DAS SESSÕES DA COMISSÃO
REVISORA DO CÓDIGO PENAL: 1970, 171).

Surge igualmente um segundo grupo de autores, como BELEZA DOS SANTOS,


CAVALEIRO FERRIRA78 , MARIA JOÃO ANTUNES79 e FIGUEIREDO DIAS que
defendem que a PRI consagra um sistema monista prático, já que formalmente este
instituto utiliza penas, mas do ponto de vista material utiliza verdadeiras medidas de
segurança. Segundo este entendimento, por exemplo para BELEZA DOS SANTOS, a
natureza jurídica é de uma medida de segurança e o fundamento deste instituto é apenas

76
O sistema de vicariato na execução baseia-se nas seguintes ideias: 1) deve ser determinada qual a ordem
em que se cumpre as reações criminais; 2) a segunda reação cumpre todos os efeitos úteis que na primeira
não foram alcançados; 3) aplica-se na execução medidas substitutivas e medidas que favoreçam a
socialização tais como suspensão da execução e liberdade condicional. Note-se ainda que FIGUEIREDO
DIAS, com o intuito de ultrapassar as críticas realizadas ao sistema dualista, assumiu a essencialidade do
princípio da culpa. Todavia, referiu que o princípio da culpa não é o princípio jurídico constitucional de
todo o ordenamento jurídico, pois existem outras formas de limitar o poder sancionatório do Estado,
nomeadamente pela aplicação do princípio da proporcionalidade, em que se baseiam as medidas de
segurança. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 421-423 e MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 124-132.
77
Expressão de ZIPF citada por FIGUEIREDO DIAS. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 422.
78
“O novo Código Penal denomina a pena de segurança «pena indeterminada», mantendo o sistema monista
(…) “. Cfr. CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 60.
79
MARIA JOÃO ANTUNES refere relativamente à aplicação da PRI na modalidade de delinquentes por
incêndio florestal: “Mantém-se, (…) intocada a opção por um sistema sancionatório monista, ainda que só
tendencialmente monista”. Cfr. MARIA JOÃO ANTUNES: 2018, 15.

73
a perigosidade do agente; porém, como entende que as duas reações penais devem ser
cumpridas no mesmo estabelecimento, conclui que a PRI mais não é que um sistema
monista prático. Já FIGUEIREDO DIAS conclui que a natureza jurídica da PRI é de uma
verdadeira medida de segurança, mas que deve estar mascarada de pena de segurança, de
modo a consagrar um sistema monista prático que é mais vantajoso face às críticas
realizadas ao sistema dualista. Relativamente aos fundamentos, FIGUEIREDO DIAS
conclui que a PRI é uma reação mista 80, pois, por um lado, aplica o conceito de culpa,
como pressuposto e limite capaz de, a partir dela, se poder calcular a medida concreta que
caberia ao crime e criar a moldura penal abstrata, pelo menos até ao cumprimento mínimo
da pena de prisão (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 562-563). Por outro lado, aplica o
conceito de perigosidade, como fundamento justificável para a utilização de uma medida
de segurança que é obrigatória dadas as exigências de socialização e de proteção. Este
último autor esclarece que o sistema de monismo prático não constitui uma «mera burla
de etiquetas»81, uma vez que não põe em causa o princípio da culpa nem o princípio da
socialização.

Por último, existe um terceiro grupo de autores, como TAIPA DE CARVALHO 82,
que defendem que a PRI consagra um sistema dualista. Na base deste entendimento, a
natureza jurídica da PRI é de cumulativamente se aplicar de forma mecânica uma pena e
uma medida de segurança, em que os fundamentos do instituto só podem ser igualmente
a culpa e a perigosidade.

2.3. Posição adotada


Chegados aqui, temos de tomar partido perante as posições apresentadas ao longo
deste estudo. Para o efeito, cumpre recordar que concluímos que a finalidade da PRI é de
prevenção, contudo é a finalidade especial-preventiva (positiva e negativa)
consubstanciada na eliminação ou neutralização do estado de perigosidade criminal
traduzido, ou na tendência criminosa, ou na tendência para comportamentos aditivos, ou

80
Neste sentido também se pronunciam MARIA JOÃO ANTUNES: 2010-2011, 9 e JOÃO OSÓRIO: 2010,
116 e ss.
81
A expressão «mera burla de etiquetas» significa que apenas se faz o uso da expressão de monismo prático
para mascarar o sistema, porque na verdade está-se perante um verdadeiro sistema dualista.
82
TAIPA DE CARVALHO refere que a PRI consagra um sistema dualista, porque (…) é, real e
materialmente, um misto, um compósito de pena mais medida de segurança; logo, a conclusão inevitável
é a de que, a partir de 1982, o nosso CP passou a ser dualista, apesar da “burla de etiquetas”, isto é, da
designação como “pena” que pode enganar o menos atento à substância das figuras jurídicas”. Cfr. TAIPA
de CARVALHO: 2016, 87-88.

74
na tendência de reiteração na prática de crimes de incêndio florestal, que constitui a
principal e essencial finalidade deste instituto.

Em consequência disto, consideramos que: a culpa do agente atua como limite e


pressuposto da pena e é tida em conta pelo menos até se aplicar a pena que concretamente
caberia ao crime, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 90º do CP; a perigosidade do agente
atua como limite e fundamento da medida de segurança e é tida em conta depois de
cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, conforme dispõe o n.º 1 do artigo
92º ex vi nº 3 do artigo 90º do CP. Todavia, importa realizar duas observações. A primeira
é que este instituto, ao exigir que depois de cumprida a pena que concretamente caberia
ao crime se passe obrigatoriamente a aplicar o regime de fronteira da inimputabilidade
dos imputáveis diminuídos, está a zelar até ao limite pelo cumprimento e respeito do
princípio da culpa. Isto é, a transição de pena para medida de segurança é imprescindível
e funciona com o objetivo de garantir que não ocorre nenhuma violação deste princípio,
pois, caso contrário, não se encontrava justificada a aplicação de mais tempo de pena. A
segunda é que este instituto, ao proibir a prorrogação da medida de segurança (mesmo
que o estado de perigosidade se mantenha) para além da pena máxima estipulada pela
moldura penal abstrata da PRI, está a zelar pelo cumprimento e respeito do princípio da
proporcionalidade.

Ora, ao considerarmos que, de forma indiscutível, a culpa é o limite e o pressuposto


da pena e a perigosidade é o limite e fundamento da medida de segurança no instituto da
PRI e que a pena que concretamente caberia ao crime pode ser ultrapassada por razões de
prevenção especial (sendo esta a finalidade principal do instituto), concluímos que a PRI
é uma sanção mista de pena e medida de segurança. Por outro lado, ao considerarmos
que este instituto não permite nenhuma violação aos princípios da culpa e da
proporcionalidade, chegamos à conclusão, perfilhando a opinião de FIGUEIREDO
DIAS, de que a PRI tem natureza jurídica de pena de segurança e concretiza um
sistema de monismo prático.

75
CAPÍTULO IV

(IN) IMPUTABILIDADE DO DELINQUENTE ESPECIALMENTE


PERIGOSO

1. Figura do delinquente especialmente perigoso83


A figura do delinquente especialmente perigoso consagrada atualmente no instituto
da PRI tornou-se mais clara a partir da resenha histórica que tivemos oportunidade de
apresentar no capítulo II. Recordamos de forma sumária que inicialmente puniu-se a
vadiagem e a mendicidade com fundamento na perigosidade social. Mais tarde, evoluiu-
se para a punição dos delinquentes de difícil correção, que se dividiam em três categorias
distintas, mas que tinham todas o mesmo fundamento de punição, a denominada
perigosidade criminal. No projeto do Código Penal de 1963, EDUARDO CORREIA
defendeu, através da criação da figura da pena relativamente indeterminada, a punição de
condutas antissociais, nomeadamente a prostituição, a vadiagem, a mendicidade, entre
outras. Todavia, a figura da PRI só foi consagrada na lei pelo Código Penal de 1982 e,
nessa altura, esbateu-se a forte penalização das condutas antissociais e apenas se manteve
a punição das categorias de delinquentes por tendência e alcoólicos ou equiparados. Estas
duas categorias de delinquentes permanecem até aos dias de hoje como uma marca
referente à criminalidade perigosa. Recentemente foi englobado no instituto da PRI mais
uma categoria de criminalidade perigosa: do delinquente com tendência à prática de
crimes de incêndio florestal.

Sabemos, ainda, que a figura do delinquente especialmente perigoso surgiu por


influência da escola positiva italiana, designadamente de LOMBROSO e GARAFOLO,
que defenderam que o crime ou delinquência eram uma patologia que traduzia uma
anormalidade congénita e normalmente incurável (CELINA MANITA: 1997, 55-65;
CELINA MANITA: 2001, 37-39 e HERMAN MANNHEIM: 1984, 317-327).

Especificamente quanto ao delinquente por tendência, repare-se que autores como


CARLOTA ALMEIDA e TIAGO MARQUES demonstram que um delinquente por

83
Ao longo da presente dissertação iremos empregar o conceito de «delinquente especialmente perigoso»
para referir todos os tipos de delinquentes que o instituto da PRI engloba nas suas diferentes modalidades
de aplicação, nomeadamente: aos delinquentes por tendência; aos delinquentes alcoólicos e equiparados e
aos delinquentes por incêndio florestal.

76
tendência não possui em regra nenhuma doença mental nem é um indivíduo anormal,
logo não pode ser considerado inimputável (CARLOTA ALMEIDA: 2000, 112-113 e
TIAGO MARQUES: 2007, 135-161). Sem esquecer que, conforme expusemos no caso
n.º 1 referente ao delinquente por tendência A, também o Tribunal de Execução de Penas
de Lisboa se pronunciou neste sentido.
Quanto aos delinquentes alcoólicos ou equiparados, CARLOTA ALMEIDA e
JOÃO CURADO NEVES chamam a atenção para o facto de que não é por um agente se
encontrar em estado de embriaguez ou intoxicação que o mesmo alcança um verdadeiro
estado de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída capaz de afastar a sua
responsabilidade penal (CARLOTA ALMEIDA: 2003, 115-117 e JOÃO CURADO
NEVES: 2003, 140 e 149)84.

Por último, quanto aos delinquentes por incêndio florestal, CARLOS BRAZ
SARAIVA refere que estes delinquentes podem de facto sofrer de uma anomalia psíquica
que os torne inimputáveis, mas isto não significa que esta seja a premissa a adotar. Com
efeito, estes delinquentes podem igualmente ser portadores de perturbações da
personalidade denotadas numa personalidade antissocial, que mais não é do que um
estado de imputabilidade ou imputabilidade diminuída no Direito penal português
(CARLOS BRAZ SARAIVA: 2004, 109-118).

Concluímos, assim, que o delinquente especialmente perigoso oferece maior


perigosidade comparativamente aos demais delinquentes e menos esperanças de
recuperação. Na verdade, esta figura parece demonstrar que estamos perante “(…)
indivíduos sobre quem as penas parecem não surtir efeitos e que requerem, portanto, a
adopção de medidas especiais” (CARLOTA ALMEIDA: 2000, 106).

O regime da PRI declara como delinquente especialmente perigoso aquele que, para
além de preencher os pressupostos formais, preenche igualmente o pressuposto material
que é a acentuada inclinação para o crime, ou acentuada inclinação para o crime
proveniente de uma tendência para adoção de comportamentos aditivos, ou acentuada

84
Repare-se que CARLOTA ALMEIDA esclarece ainda: “(…) todos sabemos que um indivíduo
alcoolizado se encontra, mais ou menos, conforme os casos, afetado nas suas capacidades, mas parece
também evidente que raramente terá atingindo um ponto em que se possa dizer que não tem consciência do
teor dos seus actos ou não dispõe de nenhuma liberdade de decisão”. Conclui que existe uma grande
dificuldade em declarar-se a inimputabilidade do indivíduo descrito anteriormente e que, para além desta,
acresce ainda a dificuldade em considerar a imputabilidade diminuída do mesmo, visto que a
imputabilidade diminuída, prevista no n.º 2 do artigo 20º, permite que se declare artificialmente a
inimputabilidade, mas só em caso de anomalia psíquica “não acidental” e o consumo de álcool ou drogas é
claramente uma causa acidental. Cfr. CARLOTA ALMEIDA: 2003, 115-117.

77
inclinação para o crime de incêndio florestal. Na prática, isto significa que a lei “(…) não
os considera vítimas de uma deficiência congénita, meros doentes, mas agentes
responsáveis pelos seus actos” (CARLOTA ALMEIDA: 2000, 107).

Conforme demonstramos, a doutrina portuguesa, em regra, não considera o


delinquente especialmente perigoso por excelência inimputável 85, mas sim imputável86.
No entanto, como já referimos, o n.º 3 do artigo 90º do CP87 possibilita que se aplique ao
delinquente especialmente perigoso, primeiro uma pena como imputável, e depois uma
medida de segurança como inimputável, ou seja, converte este delinquente imputável em
inimputável durante a execução da sua pena. Portanto, a dúvida continua a persistir: afinal
o delinquente especialmente perigoso é um verdadeiro imputável ou um
inimputável?

2. Inimputabilidade no Código Penal


Até este momento, ainda não conseguimos determinar se o delinquente especialmente
perigoso é realmente ou não um indivíduo imputável ou inimputável. Assim sendo,
interessa examinarmos como é que o atual Código Penal trata este assunto.

A palavra imputar significa atribuir algo a alguém. Logo, a imputabilidade é, para o


Direito penal, “(…) a capacidade do agente, no momento da perpetração do facto, de
avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação, isto é, a
capacidade, no momento da prática do facto ilícito, de discernir o mal do crime ou de se
determinar no sentido de o não cometer” (GERMANO MARQUES DA SILVA: 2015,

85
Recentemente, surgiu a problemática de saber se as designadas «perturbações da personalidade» são
suscetíveis de afetar a capacidade do agente na prática do crime, de forma a torná-lo inimputável.
FERNANDO VIEIRA/ANA SOFIA CABRAL/CARLOS BRAZ SARAIVA: 2017, 152-157: entendem
que a figura do delinquente por tendência aproxima-se do conceito psiquiátrico de perturbação da
personalidade antissocial. Afirmam que não se sabe de forma consensual se as perturbações da
personalidade são uma verdadeira doença ou não, mencionando que, mesmo que sejam consideradas como
tal, é muito difícil enquadrá-las no quadro das anomalias psíquicas graves, portanto, permanecem fora do
n.º 2 do artigo 20º do CP. Contudo, referem ainda que se desconhece se estes agentes podem ou não
efetivamente aprender com o cumprimento das penas, ou se simplesmente não aprendem porque as penas
aplicadas não foram as adequadas ou suficientemente pesadas. Importa notar, ainda, que JOANA COSTA:
2010,15-21 e 32-35 demonstrou que a jurisprudência italiana numa decisão da Suprema Corte di
Cassazione, de 8 de março de 2005, fixou jurisprudência obrigatória relativamente à inclusão das
perturbações da personalidade no âmbito da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída e que,
contrariamente, a jurisprudência portuguesa inclui esta problemática no âmbito das circunstâncias
modificativas agravantes ou atenuantes da pena. Para o efeito deve-se consultar a título de exemplo o Ac.
do TRC, de 15 de outubro de 2014, proc. n.º 497/10.0GBOBR.C1.
86
“(…) já o dissemos mais do que uma vez, segundo o sistema da nossa lei, o delinquente habitual é um
ser imputável, penalmente responsável pelos actos cometidos”. Cfr. FERNANDO BARBOSA: 1942/1943,
33.
87
Repare-se que este artigo se aplica a todas as modalidades de PRI consagradas no Código Penal.

78
264). A inimputabilidade será exatamente o contrário, porém, esta é definida pela lei,
como iremos observar.

O tema da inimputabilidade penal em razão de anomalia psíquica é regulado no artigo


20º do Código Penal. MARIA FERNANDA PALMA ensina que “(…) a maturidade do
desenvolvimento dita as possibilidades de atribuição de responsabilidade, também é
certo, inversamente, que são as noções de responsabilidade jurídica e as das suas
consequências que indicarão às «Ciências do desenvolvimento humano» as
características de intelecção e de vontade adequadas aos discernimento do proibido e
permitido, do censurável e não censurável, pressuposto pelo Direito”. A autora conclui
que o artigo 20º do CP revela um cruzamento cibernético entre o nível jurídico e o nível
das «Ciências do desenvolvimento» (MARIA FERNANDA PALMA: 2004, 101-107).

O artigo 20º do Código Penal é constituído por quatro números. O n.º 1 é a base do
conceito de inimputabilidade e estatui que é inimputável quem, por força de anomalia
psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de
se determinar de acordo com essa avaliação. O n.º 2 distingue-se do n.º 1, pois estipula a
denominada “inimputabilidade diminuída”, no sentido de possibilitar a declaração de
inimputabilidade de quem, por força de anomalia psíquica grave, não acidental e cujos
efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver no momento da prática
do facto, a capacidade de avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com
essa avaliação sensivelmente diminuída. Repare-se que tanto o n.º 1 como o n.º 2
consideram inimputáveis os indivíduos que por razão de anomalia psíquica 88 são
incapazes de culpa penal. O n.º 4 trata a figura da actio libera in causa e estatui que não
é considerado inimputável o agente que tiver provocado em si mesmo uma anomalia
psíquica com o intuito de praticar o facto ilícito. Por fim, o n.º 3 refere que, caso se
comprove a incapacidade do agente de ser influenciado pelas penas, pode-se aplicar a
situação prevista no n.º 2, isto é, pode converter-se o agente em inimputável. Salientamos
que existe uma grande diferença entre os preceitos que declararam a inimputabilidade,
pois, enquanto os n.ºs 1 e 2 remetem somente para o momento da comissão do crime ou

88
“(…) a anomalia psíquica inclui não apenas a doença mental (com base orgânica), mas também as
psicoses exógenas e endógenas, a oligofrenia, as psicopatias, as neuroses, as taras sexuais, as perturbações
profundas da consciência (patológicas ou não patológicas). Portanto, a anomalia psíquica pode ser acidental
ou transitória (…), mas não inclui a tendência para o crime, nem a herança caracterológica”. Cfr. PINTO
DE ALBUQUERQUE: 2015, 179-178

79
da prática do facto, o n.º 3 remete para o momento de execução da pena, uma vez que não
depende de fatores biopsicológicos.

Pelo facto de estarmos a tratar, no presente capítulo a problemática da imputabilidade


ou inimputabilidade do delinquente especialmente perigoso, exclusivamente durante a
fase de execução da pena, apenas nos interessa compreender e analisar de forma detalhada
o n.º 3 do preceito legal citado anteriormente, visto que esta é a única regra que permite
converter um agente imputável em inimputável durante esta fase. Contudo, note-se que,
o n.º 3 liga-se e depende do n.º 2 do mesmo preceito legal, na medida em que o n.º 3 é
indício do n.º 2.

MARIA JOÃO ANTUNES menciona acerca do n.º 3 do artigo 20º “(…) é de


estranhar, no contexto de uma lei como a portuguesa, que não ligou o efeito normativo da
anomalia psíquica à incapacidade de o delinquente sofrer a pena, à inidoneidade da
personalidade para ser influenciado pela pena (…)” (MARIA JOÃO ANTUNES: 1993,
73).

Diante disto, temos de refletir em que consiste este preceito e quem é que ele pretende
integrar quando se refere à “comprovada incapacidade do agente para ser influenciado
pelas penas”.

Este preceito legal foi criado por EDUARDO CORREIRA, que apoiado na doutrina
de V. Liszt, entendia semelhantemente que o critério de delimitação dos imputáveis era,
“(…) não só a capacidade para uma determinação normal pelos motivos, mas ainda «a
capacidade para ser influenciado pelas penas»”. O autor acreditava que existiam dois tipos
de delinquentes imputáveis: os corrigíveis e os incorrigíveis. Diferenciava-os porque, aos
delinquentes imputáveis corrigíveis, devia aplicar-se uma pena, pois possuíam a
capacidade de determinação normal pelos motivos e ainda a capacidade para serem
influenciados pelas penas; quanto aos delinquentes imputáveis incorrigíveis, que eram os
delinquentes criminalmente perigosos, habituais ou incorrigíveis, devia declarar-se a
imputabilidade diminuída destes, uma vez que, embora possuíssem a capacidade para
avaliar a ilicitude do facto e se determinar em harmonia com essa avaliação, não possuíam
a capacidade para ser influenciados pelas penas. Ora, a declaração desta imputabilidade
diminuída convertia o delinquente em inimputável e era fundamentada na ideia da
incorrigibilidade (EDUARDO CORREIA: 1971, 31-33).

80
Adotando a doutrina de EDUARDO CORREIA para os dias de hoje, o atual n.º 3 do
artigo 20º do CP expressa duas ideias, como ensina MARIA JOÃO ANTUNES. A
primeira ideia traduz-se na regra de que só se deve aplicar uma pena a um delinquente, se
este for capaz de a compreender e, caso não a compreenda, a execução da pena deve ser
substituída por uma medida de segurança. Aqui a incapacidade de compreensão da pena
não está condicionada pelo elemento biopsicológico. A segunda ideia traduz-se na regra
de que é necessário que a pena realize de forma suficientemente capaz as exigências
preventivas gerais e especiais e, caso não o faça, deve ser igualmente substituída por uma
medida de segurança (MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 73-75)

Ou seja: existem duas abordagens da inimputabilidade, uma é a plasmada nos n.º s 1


e 2 do artigo 20º do CP, que é a relativa à inimputabilidade relacionada com a culpa;
outra, que é a plasmada no n.º 3 do mesmo artigo, e consiste na inimputabilidade baseada
na insusceptibilidade de um delinquente se reinserir socialmente, i.e. na incorrigibilidade.
Seguindo a doutrina de EDUARDO CORREIA, transitamos de um Direito penal da culpa
para um Direito penal da cura e do tratamento, pois a aplicação de uma pena só é legitima
se tiver em vista a correção do delinquente (EDUARDO CORREIA: 1983 (2), 18).

CARLOTA ALMEIDA considera que os delinquentes abrangidos pelo n.º 3 do artigo


20º do CP não estão isentos de culpa, pois a insensibilidade às penas não demonstra que
lhes falta capacidade de entender e querer. Embora haja quem argumente que a
insensibilidade às penas constitui um indício de perturbação mental, a autora explica:
“(…) isso seria ignorar o larguíssimo número de pluri-reincidentes plenamente
imputáveis, admitir que as penas têm capacidade de influenciar os delinquentes a elas
sujeitos é negar a evidência de que a carreira criminosa é, para certos indivíduos, uma
estratégia de vida e mais: a única que conhecem e, por vezes, a única que alguma vez
conheceram”. Sendo assim, conclui que a inimputabilidade a que se refere o n.º 3 do
artigo 20º do CP é meramente funcional, uma vez que se declara a inimputabilidade de
um agente por se constatar que a medida de segurança é a reação adequada ao mesmo,
dada a inutilidade da pena. E, indo ainda mais longe explica que na realidade este preceito
normativo não se refere a verdadeiros inimputáveis, mas sim a imputáveis que podem ser
declarados inimputáveis89. Por último questiona se “será legítimo aplicar medidas de

89
Neste sentido, também se pronuncia FERNANDO VIEIRA/ANA SOFIA CABRAL/CARLOS BRAZ
SARAIVA: 2017, 157 quando referem: “(…) compreende-se que o legislador tenha aberto a porta a que
também estes indivíduos possam ser considerados inimputáveis, e serem sentenciados numa medida de

81
segurança a imputáveis, declarando-os, para esse efeito, artificiosamente, inimputáveis?”
(CARLOTA ALMEIDA: 2000, 97-102).

Para concluir, entendemos que a norma do n.º 3 do artigo 20º do Código Penal foi
criada para acolher a figura do delinquente incorrigível, ou seja, aquele que, ou não se
consegue reinserir socialmente, ou tem fraca probabilidade de reinserção social.

3. Fronteira entre a pena relativamente indeterminada e a inimputabilidade


Observámos anteriormente que, em regra, a doutrina portuguesa considera o
delinquente especialmente perigoso um agente imputável. Por outo lado, observámos
igualmente que o n.º 3 do artigo 20º do CP foi criado para acolher a figura do delinquente
incorrigível e convertê-lo em inimputável. Cabe agora examinar como é que se articula a
figura do delinquente especialmente perigoso imputável (artigo 83º e ss. do CP) com a
figura do delinquente incorrigível inimputável por imputabilidade diminuída (n.º 2 do
artigo 20º ex vi n.º 3 do artigo 20º do CP).

Devemos notar em primeiro lugar que os regimes da PRI e o do delinquente


incorrigível aproximam-se um do outro. Basta observarmos os artigos 83º, 84º, 85º, 86º e
274º - A do CP, referentes à PRI, e o n.º 3 do artigo 20º do CP, referente à imputabilidade
diminuída, que rapidamente chegamos à conclusão que todos os artigos citados têm o
mesmo fundamento: a perigosidade, demonstrada pela “acentuada inclinação para o
crime” e pela “incapacidade de ser influenciado pelas penas”.

Todavia, o conceito de perigosidade, embora esteja relacionado com a condenação


por crimes de certa espécie e gravidade ou ligado ao hábito de delinquir (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 570-571), não deixa de ser um conceito indefinido. Como demonstra
CARLOTA ALMEIDA, essa indefinição está presente na própria história do Direito
penal e é um reflexo de quão relativa e efémera é a classificação de comportamentos
criminosos; antigamente punia-se, por exemplo, a homossexualidade ou o adultério e hoje
já não se pune. Ou, transpondo esta verificação para o mundo da PRI, também aqui se
punia antigamente a vadiagem a mendicidade e hoje já não (CARLOTA ALMEIDA:
2000, 115-116). No mesmo sentido, CARNEIRO DOS SANTOS esclarece que o
conceito de delinquência é ambíguo, uma vez que está relacionado com o conceito que
cada sociedade tem de comportamento normal. E esse “(…) é variável, dependendo de

segurança, judicialmente preferida face à perigosidade destes indivíduos em alternativa a uma pena cujo
efeito por definição sempre seria nulo.”

82
múltiplos factores como sejam: os usos e costumes ancestrais, as características gerais da
população, o regime político vigente, a religião ou religiões dominantes, o estádio de
desenvolvimento da própria sociedade, as situações de estabilidade ou convulsão da
própria sociedade, etc…” (CARNEIRO DOS SANTOS: 1978, 72)90.

Acresce à semelhança da perigosidade uma outra aproximação entre as duas figuras.


O n.º 3 do artigo 90º do CP, referente à PRI, ordena que se aplique ao delinquente
especialmente perigoso o regime das medidas de segurança, depois de a liberdade
condicional não ter sido concedida ou ter sido revogada e já se mostrar cumprida toda a
pena que concretamente caberia ao crime. No fundo, a lei realiza uma presunção de
incorrigibilidade91 baseada na seguinte ideia: como o delinquente especialmente perigoso
até à pena que concretamente caberia ao crime não conseguiu beneficiar de liberdade
condicional, isto significa que ele é incorrigível e como tal a pena deve ser substituída
por uma medida de segurança. Semelhantemente, o n.º 3 do artigo 20º do CP, referente à
imputabilidade diminuída, consagra a incapacidade de o agente ser influenciado pelas
penas como sinónimo da sua incorrigibilidade através da pena. Ou seja, ambos os artigos
(n.º 3 do artigo 90º e n.º 3 do artigo 20º) pressupõem a incorrigibilidade do delinquente.

Face ao exposto, podemos concluir que existe uma grande aproximação entre a
figura da PRI e a figura da inimputabilidade por imputabilidade diminuída. É a
perigosidade e a incorrigibilidade do delinquente especialmente perigoso, revelada na
fraca esperança de recuperação e exigência de maior ressocialização, que justificam a
incapacidade de ser influenciado pelas penas, a equiparação a inimputável e a substituição
da execução da pena de prisão pela execução de uma medida de segurança.

Sufragamos assim, a opinião de CARLOTA ALMEIDA quando refere que não se


estabelece uma divisão estanque entre ambas as figuras, mas sim uma continuação.
Embora a lei tente traçar uma fronteira entre as duas figuras (dado que cria dois regimes
diferentes a aplicar), essa fronteira não está estabelecida por critérios válidos 92. Portanto,

90
Similarmente, JOSÉ MARTINS DA COSTA/NUNO MIGUEL CARNEIRO/PEDRO MIGUEL
COSTA: 2001, 43-44 referem que o conceito de perigosidade é plurívoco e dinâmico e só poderá ser
compreendido à luz da sua evolução histórica. Já esteve ligado à loucura, ao risco, e hoje em dia comporta
quatro vertentes que são: a jurídico-penal que prevê o procedimento pericial e a valoração dos antecedentes
criminais; a psicológica que é relativa às características da personalidade; e a criminológica que se resume
na questão de saber se o indivíduo vai ou não reincidir no crime.
91
Utilizando a expressão de EDUARDO CORREIA.
92
A este respeito, CARLOTA ALMEIDA: 2000, 118 explica que “a distinção que fará a triagem entre os
delinquentes que ficarão sujeitos ao regime da inimputabilidade e os que sofrerão uma pena (…) dependerá
assim, e apenas, do julgador. Não se fixando quaisquer referências que limitem a subjetividade”.

83
na prática, não existe uma separação das figuras, pelo contrário, existe uma comunicação,
que opera somente a partir do cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime
cometido.

Porém, cabe destacar, que FIGUEIREDO DIAS defende que é irrelevante que a
PRI se aplique a agentes imputáveis ou imputáveis diminuídos, visto que esta pena apenas
tenta dar resposta à perigosidade que o agente manifesta (FIGUEIREDO DIAS: 2011,
571-572). PINTO DE ALBUQUERQUE ensina, igualmente, que o delinquente alcoólico
ou equiparado só pode ser condenado em PRI se for considerado um agente imputável ou
imputável diminuído, pois, sempre que o agente estiver inimputável pelo estado de
intoxicação, e tal estado não tenha sido provocado com o propósito de praticar o crime, o
mesmo deve ser considerado inimputável e aplicar-se uma medida de segurança. (PINTO
DE ALBUQUERQUE: 2015, 400). Porém, se o estado de intoxicação for provocado
dolosamente pelo agente imputável para praticar o crime, o agente deve ser considerado
imputável e responsabilizado por via da aplicação da designada actio liberae in causa
(MARIA FERNANDA PALMA: 2019, 65-68; TAIPA DE CARVALHO: 2016, 478-482
e TERESA QUINTELA DE BRITO: 1991, 141-159)

Todavia, concluímos que o delinquente especialmente perigoso é um indivíduo


imputável, que é convertido pela lei em inimputável por via da aproximação da figura da
PRI à da inimputabilidade por imputabilidade diminuída. Contudo, uma questão continua
a persistir: é legítimo, por simples remissão da lei, converter um delinquente
especialmente perigoso imputável em inimputável, dado que, no momento da
sentença condenatória, foi considerado imputável e foi-lhe aplicada uma pena?

4. Alcance do n.º 3 do artigo 90º do Código Penal


Face às questões que foram suscitadas ao longo do presente capítulo relativo à
transição do regime a aplicar ao delinquente especialmente perigoso e consequentemente
à sua conversão de imputável em inimputável por imputabilidade diminuída, para
finalizar importa compreender afinal qual é o alcance da norma que ordena esta transição
de regimes e que aproxima o instituto da PRI da inimputabilidade, designadamente,
importa compreender qual é o alcance e sentido da norma do n.º 3 do artigo 90º do CP.

O n.º 3 do artigo 90º do CP estabelece: “Se a liberdade condicional, a que se referem


os números anteriores, não for concedida ou vier a ser revogada, aplica-se
correspondentemente, a partir do momento em que se mostrar cumprida a pena que

84
concretamente caberia ao crime cometido, o disposto no n.º 1 do artigo 92º e nos números
1 e 2 do artigo 93º e nos artigos 94º e 95º”.

Em nossa opinião, esta solução legal suscita algumas perplexidades. Será que a lei
consagrou esta solução porque entende que estes agentes são realmente incapazes de
serem influenciados pelas penas (e consequentemente inimputáveis) e, por isso,
necessitam de mais tempo de ressocialização? Ou a lei apenas consagrou esta solução
para prevenir possíveis problemas de inconstitucionalidade e mascarou estes agentes de
inimputáveis? Será, portanto, este preceito legal uma válvula de segurança de prevenção
de inconstitucionalidades, ou será muito mais do que isso?

Por um lado, cumpre recordar que a culpa é o limite e o pressuposto da PRI e a


perigosidade é o limite e o fundamento da PRI. A culpa norteia a PRI até à pena que
concretamente caberia ao crime e a perigosidade norteia a PRI depois de cumprida a pena
que concretamente caberia ao crime e até ao limite máximo legal estipulado, tal como já
tivemos oportunidade de referir. À evidência, o n.º 3 do artigo 90º do CP ao ordenar que,
depois de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, se transite para a
aplicação de uma medida de segurança, está no fundo a salvaguardar os princípios da
culpa e da proporcionalidade. Salientamos que, à luz do princípio da culpa, não podia ser
outra a estatuição consagrada, pois, caso a lei não ordenasse a conversão do delinquente
imputável em inimputável e ordenasse a aplicação do regime das medidas de segurança
depois de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, não era legítimo (e nem
sequer justificável) continuar-se a aplicar a este delinquente uma pena que ultrapassasse
a sua medida da culpa. Logo, um dos alcances do n.º 3 do artigo 90º do CP é salvaguardar
o respeito dos princípios da culpa e da proporcionalidade. Mas será este o único alcance
deste preceito legal?

Note-se que, por outro lado, o preceito legal supracitado permite a aplicação do
regime das medidas de segurança e da liberdade para prova aos delinquentes
especialmente perigosos, quando estes não puderem ser colocados em liberdade
condicional ou a liberdade condicional foi revogada, e já cumpriram a pena que
concretamente caberia ao crime. Com isto, parece-nos que, em segundo lugar, a lei tenta
salvaguardar igualmente, pelo tratamento e correção do delinquente especialmente
perigoso, visto que o mesmo oferece uma fraca esperança de recuperação e uma maior
exigência de ressocialização. Portanto, o n.º 3 do artigo 90º do CP terá também o alcance

85
de salvaguardar a prevenção especial positiva e negativa do delinquente especialmente
perigoso.

No entanto, é importante realizarmos três observações. Primeira observação: este


preceito legal, realiza uma presunção “automática” de incorrigibilidade pois considera
que, como a liberdade condicional não foi concedida ou foi revogada, este delinquente é
incapaz de ser influenciado pelas penas (de acordo com o n.º 3 do artigo 20º ex vi n.º 2 do
artigo 20 do CP), logo, este delinquente passa a ser considerado um inimputável por
imputabilidade diminuída e consequentemente é-lhe aplicado o regime das medidas de
segurança. Repare-se que o CP não obriga que se faça nenhum juízo “sério” de
comprovação da sua incapacidade de ser influenciado pelas penas, parte apenas de uma
presunção que opera automaticamente e faz uma remissão, convertendo-o em
inimputável93. Todavia, o n.º 3 do artigo 90º do CP tem de estar em conformidade com a
CRP, designadamente, com os princípios do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da
CRP); da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, 18º, 25º e 26º da CRP), liberdade e
segurança (artigo 27º da CRP), necessidade e proporcionalidade (n.º s 2 e 3 artigo 18º da
CRP). Ora, a presunção “automática” de incorrigibilidade representada no n.º 3 do artigo
90º do CP viola os princípios constitucionais mencionados, uma vez que, de acordo com
os mesmos, a incorrigibilidade devia ser comprovada e não presumida automaticamente.
E, tal como ensinam FERNANDO VIEIRA, ANA SOFIA CABRAL e CARLOS BRAZ
SARAIVA, “de facto, classicamente, é dito que estes indivíduos são incapazes de
aprender com a experiência ou com os seus atos, mas, em bom rigor científico, não só
não podemos garantir que não aprendem com as penas, como efetivamente
desconhecemos se tal acontece tão-só porque as penas não foram adequadas ou, no dizer
de alguns, suficientemente pesadas” (FERNANDO VIEIRA/ANA SOFIA
CABRAL/CARLOS BRAZ SARAIVA: 2017, 157).

Segunda observação: se considerarmos que o delinquente especialmente perigoso não


é um inimputável (pois não possuí nenhuma anomalia psíquica de acordo com os n.º 1 e
2 do artigo 20º do CP) e que nem sequer se consegue comprovar com rigor e certeza a

93
Existem condenados em pena de prisão determinada e concreta, relativamente aos quais, durante a
execução da pena, não é possível realizar um juízo de prognose favorável em ordem a conceder-lhes a
liberdade condicional. Na verdade, eles só beneficiam de liberdade condicional porque a lei assim o obriga,
uma vez alcançados os quintos sextos da pena. Na prática, isto significa que há muitos condenados (que
não em PRI) que, sendo já reincidentes no sistema prisional, chegam ao final da sua pena e não se encontram
reinseridos socialmente, e não é por isso que são considerados “incorrigíveis” e submetidos a uma medida
de segurança.

86
sua incorrigibilidade (manifestada na incapacidade de ser influenciado pelas penas de
acordo com o nº 3 do artigo 20º do CP), isto, no limite, significa que não é legítimo nem
justificável converter o delinquente especialmente perigoso em inimputável e sujeitá-lo a
um regime mais gravoso como é o das medidas de segurança, visto que este não é
inimputável nem «verdadeiramente» nem «artificialmente» por via do n.º 3 do artigo 20º
do CP.

Terceira observação: o delinquente imputável perigoso, “convertido” em inimputável


perigoso, não é colocado (em regra) a cumprir a sua medida de segurança em unidade de
saúde94, e nem sequer passa a beneficiar de um tratamento diferente (mais especializado)
do que aquele que já tinha durante o cumprimento da pena de prisão, tal como se pode
observar na exposição efetuada do caso n.º 1 referente ao delinquente por tendência A.
Assim, se se converte o delinquente imputável perigoso em inimputável com o propósito
de garantir mais ajuda na ressocialização do delinquente, na realidade isto não acontece 95.

Contudo, dada a gravidade da aplicação de PRI e da alteração de regime para o de


internamento de inimputáveis, entendemos que, se o CP quer de facto converter um
delinquente especialmente perigoso imputável em inimputável, deve ser mais exigente na
conversão do delinquente imputável perigoso em delinquente inimputável perigoso e na
transição de regime da pena para a medida de segurança96. Ou seja, na prática,

94
O CEPMPL refere, no n.º 2 do artigo 126º, que as medidas de segurança de internamento de inimputável
devem ser executadas “preferencialmente em unidade de saúde mental não prisional e, sempre que se
justificar, em estabelecimentos prisionais ou unidades especialmente vocacionados”. No entanto, dos
processos que consultámos, observámos que os delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI
cumprem medida de segurança (quando é o caso) no estabelecimento prisional onde cumpriram a pena de
prisão que caberia concretamente ao crime cometido, tal como acontece no caso n.º 2 do delinquente por
tendência B. No mesmo sentido ANASTASIYA MYRNA expõe uma decisão do TEP, na qual o mesmo
afirma que não faz sentido um indivíduo condenado em PRI, que já está em cumprimento de medida de
segurança de internamento, continuar no Estabelecimento Prisional de Lisboa, que por sua vez não detém
as condições necessárias para a execução desta medida. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 131 e Anexo
4.
95
ANASTASIYA MYRNA, no estudo empírico realizado, expôs que quatro dos reclusos que inquiriu já
se encontravam a cumprir medida de segurança e todos eles afirmam que não existem quaisquer diferenças
na execução da pena após a transição de regime, “exceto o facto de ter deixado de ser analisada a
possibilidade de concessão da liberdade condicional, passando a ser analisada periodicamente a
possibilidade de libertação”. Face a isto, a autora concluiu: “ou seja, para além de ser criticável que o
verdadeiro “tratamento” seja deixado para o fim do tempo da pena, ainda é mais controverso que este nem
sequer seja posto em prática. Na verdade, na segunda parte da sua pena, os reclusos passam a ter mais
atendimento psiquiátrico e psicológico, que de nada mais serve, na prática, que para possibilitar a realização
das perícias previstas no artigo 158º, n.º 2, alínea a), do CEPMPL, para a reavaliação do seu internamento”.
Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 115 e 132.
96
CARLOTA ALMEIDA levantou igualmente esta questão, quando referiu: “por certo não é também
admissível que, por simples remissão, um delinquente que o tribunal considerou imputável passe a ser
considerado como se de inimputável se tratasse, em todos os aspetos e assumindo todas as consequências

87
entendemos que não deve operar a presunção “automática” de incorrigibilidade prevista
no n.º 3 do artigo 90º do CP que viola a CRP. Entendemos sim, que o CP deve exigir a
realização de um juízo “sério” de comprovação de incorrigibilidade, por exemplo, através
da realização de uma perícia médica efetuada antes da conversão do delinquente
imputável em inimputável e da consequente transição de regime. Além do mais,
entendemos também que o CP deve garantir maior reinserção social a estes delinquentes
do que aquela que garantiu durante a execução da pena de prisão.

Em nossa opinião, a falta de comprovação e verificação de forma séria (e não por


mera presunção “automática” e remissão) da inimputabilidade do delinquente
especialmente perigoso (seja ela «verdadeira», de acordo com o n.º 1 e 2 do artigo 20º do
CP; ou seja ela «artificial», de acordo com o n.º 3 do artigo 20º do CP), conjugada com a
separação existente entre os regimes da PRI e da inimputabilidade (mas em que no fundo
um é a continuação do outro) e com a falta de verificação de maior reinserção social nesta
fase, geram uma grande confusão e uma falta de rigor quanto ao estado de imputabilidade
ou inimputabilidade que este delinquente possui.

Mesmo que assumíssemos que o delinquente especialmente perigoso não é um


«verdadeiro» inimputável e dificilmente pode ser considerado de forma «artificial» um
inimputável, ou que aceitássemos ultrapassar a problemática da falta de rigor da
caracterização do estado de inimputabilidade do delinquente especialmente perigoso,
ainda assim continua a persistir a dúvida sobre se faz sentido aplicar ao delinquente
imputável perigoso, convertido artificialmente em delinquente inimputável perigoso, um
regime tão gravoso como é o de internamento de inimputáveis, se este regime não vem
garantir maior reinserção social do que aquela que foi garantida durante a execução da
pena de prisão.

Em nosso entender deve responder-se negativamente à dúvida acabada de suscitar,


uma vez que não se justifica colocar em causa os direitos e garantias que o delinquente
beneficiaria se fosse imputável, em nome da sua incorrigibilidade que, para além de não
ser comprovada, o sistema também não garante as condições suficientes (ou sequer mais
condições) para a mesma ser tratada.

gravosas para os direitos e garantias inerentes à situação de inimputabilidade”. Cfr. CARLOTA


ALMEIDA: 1996, 16.

88
Deste modo, concluímos que o CP mascara estes delinquentes de inimputáveis de
forma a salvar a constitucionalidade do regime da PRI. Noutras palavras, o que
pretendemos demonstrar é que a passagem da execução da pena para a execução de uma
medida de segurança e a conversão do delinquente especialmente perigoso em
inimputável, funciona apenas como válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos. O n.º 3 do artigo 90º do CP poderia ter vários alcances, mas, dada a falta de
rigor na sua conjugação com o artigo 20º do CP e uma vez que não existe maior perspetiva
de reinserção social do delinquente perigoso durante a execução da medida de segurança,
esse preceito serve apenas de válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos, de modo a não se vislumbrar a inconstitucionalidade do instituto da pena
relativamente indeterminada.

89
CAPÍTULO V

EXECUÇÃO DA PENA RELATIVAMENTE INDETERMINADA

1. Plano individual de readaptação


Ao longo dos anos foram sendo dirigidas várias críticas ao sistema prisional e como
consequência admitiu-se progressivamente a ideia de que o “erro” do sistema prisional
reside na própria prisão (EDUARDO CORREIA: 1963, 44-56)97. Consagrou-se o
princípio da intervenção mínima 98 e a regra do atual artigo 70º do CP que estipula que as
penas privativas da liberdade funcionam como ultima ratio do sistema, pois deve-se
aplicar preferencialmente penas não privativas da liberdade 99, ou seja, as penas de prisão
ou os internamentos de inimputáveis estão limitados pelos princípios da necessidade e da
subsidiariedade (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 74 e 75). Porém, em certos casos, a
aplicação de penas e medidas não privativas da liberdade não realiza de forma adequada
e suficiente as finalidades da punição 100. Assim sendo, a aplicação de uma pena ou medida
privativa de liberdade corresponde a um «mal necessário» (ANABELA RODRIGUES:
1983 (1), 297). Nomeadamente no caso dos delinquentes especialmente perigosos
justifica-se a aplicação de uma pena de prisão e de uma medida de segurança de
internamento dada a circunstância de só ser possível eliminar ou neutralizar a tendência
criminosa ou aditiva destes recorrendo a estes tipos de punições.

Todavia, reconhecendo-se os efeitos negativos provenientes da aplicação de uma pena


de prisão e reconhecendo-se a necessidade de a aplicar no caso dos delinquentes
especialmente perigosos condenados em PRI, importa igualmente assumir que a
eliminação ou neutralização da tendência criminosa ou aditiva “só pode pretender

97
Sobre a vida na prisão vide: EDWIN H. SUTHERLAND/DONALD R. CRESSEY: 1978, 593-604.
98
No sentido de que um Estado de Direito só deve recorrer ao Direito penal como último recurso para a
proteção de bens jurídicos. Como refere MARIA JOÃO ANTUNES: 2013, 90: “«Consistindo as penas, em
geral, na privação ou sacrifício de determinados direitos (máxime, a privação da liberdade, no caso da
prisão), as medidas penais (…) só serão constitucionalmente exigíveis quando se trata de proteger um
direito ou um bem constitucional de primeira importância e essa proteção não possa ser suficiente e
adequadamente garantida de outro modo»”. Deve-se consultar ainda o Ac. do Tribunal Constitucional n.º
85/85, de 29 de maio de 1985, processo n.º 95/84.
99
TERESA BELEZA ensina que a prisão não reabilita ninguém e que se deve investir em medidas não
privativas da liberdade. Cfr. TERESA BELEZA: 1983 (1), 9-38 e TERESA BELEZA: 1983 (2), 159-170.
ANABELA RODRIGUES: 2002, 31 acompanha esta posição.
100
Como afirma ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 297: “Cremos que ainda não chegou o momento de
esvaziar as prisões”.

90
alcançar-se desde que se encare e compreenda essa privação da liberdade como meio
particularmente apto a promover a sua reinserção social” (ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 298 e ANABELA RODRIGUES: 2002, 35-63). Devido a esta
exigência de reinserção social dos delinquentes especialmente perigosos que cumprem
uma PRI, é necessário que o Estado e a administração penitenciária criem meios eficazes
para a reforma e tratamento destes delinquentes 101. Deste modo, nasceu a obrigação de
elaboração do plano individual de reinserção ou readaptação 102.

O plano individual de readaptação é uma peça fundamental e essencial que guia a fase
de execução da PRI. A elaboração deste plano ocupa um papel importantíssimo, visto que
o instituto da PRI é uma sanção mista que tem como finalidade principal a especial-
preventiva. Isto significa que só através do plano individual de readaptação é que se
garante a finalidade específica de reeducação que legitima a aplicação de PRI, uma vez
que sem a elaboração deste plano a fase de execução da PRI converter-se-ia “num
mero processo de custódia preventiva” (ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 299).

1.1 Regime legal


As principais regras que estipulam o regime legal aplicável estão no artigo 89º do CP;
no artigo 21º do Código de Execução Penas e Medidas Privativas da Liberdade e ainda
no artigo 69º Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais. Note-se que estes
diplomas se completam de forma harmoniosa uns aos outros103.

O n. º 1º do artigo 89º do CP estatui que caso se aplique uma PRI (em qualquer das
suas modalidades) é elaborado um plano individual de readaptação com base nos
conhecimentos que existem acerca do delinquente. Este plano individual de readaptação
deve ser elaborado com a maior brevidade possível e com a concordância do delinquente.
O n.º 2 do mesmo artigo menciona que durante o cumprimento da pena devem ser
realizadas alterações ao plano quando estas se mostrem necessárias devido ao progresso

101
ANABELA RODRIGUES esclarece que “(…) compete ao Estado, máxime à administração
penitenciária, assegurar, nomeadamente, estabelecimentos prisionais apropriados às diversas categorias de
delinquentes, pessoal especializado, adequado apetrechamento técnico, etc. Igualmente importante é a
consciência que a própria administração penitenciária tenha da função activa que lhe cabe na preparação
do delinquente para que não volte a cometer crimes.” Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 298.
Similarmente, JOSÉ MANUEL LOURENÇO QUARESMA: 2014, 57.
102
Repare-se que, em casos de pena determinada que pressuponham alguma gravidade, pode ser elaborado
um plano similar ao plano individual de readaptação. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 403 e Vide
n.º 1 do artigo 21º do CEPMPL. Porém, ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 299 menciona que é no
domínio da PRI que este plano tem particular relevo.
103
Sobre o regime vigente no CEPMPL, vide: MARIA JOÃO ANTUNES/INÊS HORTA PINTO: 2011.

91
ou a outras circunstâncias relevantes que se observem. As alterações que forem efetuadas
ao plano individual de readaptação devem ser comunicadas ao delinquente, conforme
estipula o n.º 3 do mesmo artigo 104.

O CEPMPL vem esclarecer que o plano individual de readaptação de acordo com o


n.º 2 e n.º 3 do artigo 21º é obrigatório quando houver condenação numa PRI e esclarece
ainda que o mesmo consiste na elaboração de um plano que estabelece “as medidas e
atividades adequadas ao tratamento prisional do recluso, bem como a sua duração e
faseamento, nomeadamente nas áreas de ensino, formação, trabalho, saúde, atividades
socioculturais e contactos com o exterior”. Este plano visa preparar o delinquente para
a vida em liberdade, portanto, o plano individual de readaptação traduz num conjunto
de estratégias, caminhos e táticas que devem ser seguidas pelo delinquente com o objetivo
de alcançar a sua socialização e reinserção social. Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS:
“pode dizer-se, sem exagero, que desta articulação deriva um verdadeiro plano de
condução da vida social e profissional do delinquente, que este deve cumprir”
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 404).

Observamos ainda que o n.º 4 do artigo 21º do CEPMPL remete para o artigo 19º do
mesmo diploma legal, prevendo que este plano deve ser elaborado com base na
avaliação prévia do recluso. A avaliação do recluso condenado deve ser efetuada no
prazo de 72 horas após o seu ingresso e deve ter em consideração: a natureza do crime
cometido, a duração da pena, o meio familiar e social, as habilitações, o seu estado de
saúde, o eventual estado de vulnerabilidade, os riscos para a segurança do próprio e de
terceiros, o perigo de fuga e os riscos resultantes para a comunidade e para a vítima,
conforme explica o n.º 1 e 2 do artigo 19º do CEPMPL. Verifica-se que estes elementos
auxiliam na justificação das necessidades que o plano estipular.

O RGEP no n.º 2 do artigo 69º determina as matérias que devem constar das medidas
de apoio e de controlo, constantes do plano, e o n.º 3 do mesmo artigo prevê que o plano
individual de readaptação seja elaborado pelos serviços responsáveis pelo
acompanhamento da execução da pena e ainda pelos serviços de vigilância e
segurança e os serviços clínicos. O condenado deve participar ativamente na elaboração
do plano e demonstrar a sua adesão ao mesmo (n.º 5 do artigo 21º do CEPMPL e n.º 4 do

104
Similarmente o n.º 1 do artigo 21º do CEPMPL e o n.º 7 do artigo 69º do RGEP pronunciam-se no
mesmo sentido de o plano individual de readaptação poder ser avaliado, alterado e modificado.

92
artigo 69º do RGEP). No caso de o recluso ser menor, os pais ou representante ou pessoa
que tenha a sua guarda podem participar se se entender ser vantajoso (n.º 6 do artigo 21º
do CEPMPL e n.º 5 do artigo 69º RGEP). O n.º 6 do artigo 69º do RGEP explicita ainda
que a execução do plano individual de readaptação é continuamente acompanhada pelos
serviços que o elaboraram e o mesmo é avaliado anualmente, salvo se for estipulado um
prazo de avaliação inferior.

Do n.º 4 do artigo 19º do CEPMPL retira-se a conclusão que, ao delinquente


condenado em PRI, deve ser elaborado o plano individual de readaptação no prazo de 60
dias, contando-se a partir do momento em que dá entrada no estabelecimento prisional e
a sua sentença transitou em julgado.

Depois de estar efetuado o plano (ou caso haja alterações), o n.º 7 do artigo 21º do
CEPMPL e o artigo 70º do RGEP esclarecem que o diretor prisional tem de o aprovar
e de seguida o Tribunal de Execução de Penas deverá homologá-lo de acordo com o
estipulado no artigo 172º do CEPMPL.

Resumidamente, resulta dos preceitos legais citados que a reinserção social e o


tratamento prisional de um delinquente especialmente perigoso são realizados através de
um plano individual de readaptação que, sendo obrigatório, deve ser sempre elaborado
quando se aplica uma PRI. Este plano corresponde à estipulação de medidas e atividades
adequadas ao tratamento prisional de um dado delinquente com base numa avaliação
prévia que lhe é efetuada, visando a sua preparação para a vida em liberdade. O plano
individual de readaptação é elaborado com a maior brevidade possível105 pelos serviços
responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena e pelos serviços de vigilância,
segurança e clínicos. O cumprimento do plano ocorre dentro do estabelecimento
prisional106 depois do diretor do estabelecimento o aceitar e o TEP o homologar. Ao
delinquente é atribuída a possibilidade de participar ativamente na elaboração do plano

105
A expressão consagrada no CP no n.º 1 do artigo 89º «com a maior brevidade possível» é concretizada
pela norma do n.º 4 do artigo 19º do CEPMPL. Assinala-se a relevância que esta norma possui. O prazo de
60 dias deve ser imperativamente cumprido visto que a elaboração do plano individual de readaptação é
um Direito que cabe por força da lei ao delinquente e do qual depende a execução da sua pena. Note-se
que, se o prazo de 60 dias for incumprindo, o delinquente está mais dias sem ter um plano, piorando assim
a sua conduta e dificultando a sua reinserção e socialização, o que não aconteceria se o plano já existisse.
106
Tal como ensina FIGUEIREDO DIAS o plano individual de readaptação é equivalente ao plano de
reinserção social que é efetuado quando se aplica o regime de prova previsto no artigo 54º do CP. Porém,
a grande diferença reside em que o plano de reinserção social previsto para o regime da prova é cumprido
em liberdade, enquanto que o plano individual de readaptação é cumprido dentro do estabelecimento
prisional. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 579-580.

93
ou nas modificações que lhe forem realizadas. As modificações efetuadas ao plano são
estritamente necessárias, visto que ao longo do tempo deve ajustar-se o método de
tratamento consoante as necessidades e a evolução do delinquente que são averiguadas
durante a fase de execução da pena, logo, este plano não pode ser fixo.

1.2 Considerações
A primeira consideração que importa efetuar é que o plano referido anteriormente
deve ser elaborado para todos os delinquentes a que se aplique uma PRI, ou seja,
independentemente da duração da pena e da modalidade de PRI que se aplique
(delinquentes por tendência, alcoólicos e equiparados, ou por incêndio florestal) tem que
se realizar obrigatoriamente este plano. Não estando expressamente prevista na lei
alguma exceção que possibilite a não realização do mesmo.

A segunda consideração a efetuar consiste em assinalar que o sucesso e êxito do plano


individual de readaptação depende de duas premissas: 1º conhecimento individualizado
de cada delinquente; 2º necessidade de o recluso concordar com o plano que lhe vai
ser aplicado (ANABELA RORDRIGUES: 1983 (1), 300-309 e JOÃO OSÓRIO: 2010,
123).

Relativamente ao conhecimento individualizado de cada delinquente importa


referir que, em regra, quanto melhor for a caraterização do delinquente, melhor ocorrerá
a elaboração do plano capaz de suprir as necessidades concretas e específicas desse
delinquente. Realçamos ainda que o plano deve ser orientado e refletir as necessidades
inerentes a cada modalidade de PRI que é aplicada 107, na medida em que estamos perante
delinquentes por tendência, alcoólicos ou equiparados ou por incêndio florestal “(…) em
que a «inimizade» para com o Direito se encontra enraizada no próprio carácter do
indivíduo” (JOÃO OSÓRIO: 2010, 123) e em que a execução da pena ocorre no sentido
de eliminação ou neutralização dos comportamentos criminosos ou aditivos ou da
reiteração na prática do crime de incêndio florestal. O plano é da responsabilidade da
administração penitenciária dado que é esta que tem de identificar os problemas e as

107
Como nota e bem JOSÉ QUARESMA: 2014, 58: “Reinserir afirma-se uma tarefa difícil e que depende,
em primeira linha, da intervenção do próprio recluso (…). Mas, para além disso, seria necessário, atenta a
consistência penitenciária (marcada por percursos derivados do fracasso escolar, pela escassa qualificação
profissional, pela toxicodependência, pelo alcoolismo, pelas perturbações do foro psiquiátrico), proceder a
uma efetiva abordagem casuística do recluso, avaliando as suas reais necessidades, envolvendo essa tarefa
meios humanos e alocação de verbas consideráveis”.

94
possíveis soluções. A administração penitenciária e todo o pessoal penitenciário 108 devem
colaborar ao longo da execução da pena de forma ativa no cumprimento deste plano,
nomeadamente disponibilizando as condições materiais e psicológicas necessárias à sua
concretização. Os técnicos responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena do
delinquente têm um papel muito importante no progresso da reinserção social deste.
Todavia, os técnicos estão proibidos de conduzir a vida do delinquente no que ultrapasse
os limites colocados pelo plano. Na função de aconselhamento que lhes compete, têm que
se conter nos limites da legalidade impostos pelo plano (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 406-
407).

Quanto à necessidade de o delinquente concordar com o plano que lhe vai ser
aplicado, tem sido discutido pela doutrina se, quando a lei consagrou na última parte do
n.º 1 do artigo 89º do CP a fórmula «sempre que possível com a sua concordância»,
admitiu a possibilidade de a reinserção social ou o tratamento ser efetuado de forma
coerciva, visto que parece prescindir da sua concordância quando a mesma não for
possível.

Sobre o problema da ideologia do tratamento, seguimos a posição maioritária da


doutrina e entendemos que não se pode impor coativamente um tratamento a um
delinquente (EDUARDO CORREIA: 1983 (1), 7-15; FIGUEIREDO DIAS: 2011, 404;
ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 309; ANABELA RODRIGUES: 1983 (2),175-204;
ALMEIDA COSTA:1989, 450-451; CARLOTA ALMEIDA: 1996, 124)109. Antes de
mais, interessa compreender que a imposição coerciva de um tratamento a um delinquente
é incompatível com o Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP). O Estado
oferece ajuda não coativa ao delinquente através da elaboração do plano individual de
readaptação, que tem como objetivo torná-lo capaz de não voltar a cometer crimes, e não
de o obrigar ou impor que se comporte de determinada maneira que é “aceite” como
correta pelo Estado, dada a liberdade humana individual que é intrínseca de cada

108
“Mesmo a nível do pessoal de vigilância (…) se fomenta uma atuação que contribua positivamente para
o processo de reinserção social do delinquente. Entretanto, e do mesmo passo, reforça-se a necessidade de
o Estado criar as condições necessárias, não só à criteriosa selecção dos funcionários mas também, e
sobretudo, à sua cuidadosa preparação técnica”. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 300.
109
Em sentido contrário, pronuncia-se PINTO DE ALBUQUERQUE nomeadamente quando refere que,
embora o tribunal ou os serviços de reinserção social devam sempre ouvir o condenado acerca do plano
que irá ser aplicado, isto não obsta a que, caso o tribunal não consiga obter o acordo do condenado, esse
plano não possa imposto sem a concordância do delinquente. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015,
403.

95
indivíduo110. Como nota CARLOTA ALMEIDA, “(…) parece existir uma grande
distância entre oferecer ao delinquente meios para uma reintegração bem sucedida e a
imposição de planos individuais que mais não visam do que corrigir as suas características
consideradas negativas e moldá-lo até atingir uma forma «aceitável»”(CARLOTA
ALMEIDA: 1996, 29)111. Logo, concluímos que existe um Direito de tratamento e não
um dever de tratamento, por parte do condenado em PRI. Embora o Estado esteja
obrigado a facultar a possibilidade de tratamento ao delinquente especialmente perigoso,
pois só assim se legitima a aplicação de uma PRI e se atua conforme a ideia de
solidariedade112, o Estado não pode obrigar o delinquente especialmente perigoso a
reabilitar-se, tratar-se, corrigir-se e emendar-se de modo a não cometer crimes. Aliás,
observe-se que, se um delinquente não colaborar de forma ativa e voluntária, o plano
nunca terá êxito, pois cabe unicamente ao delinquente dentro da sua liberdade individual
decidir intrinsecamente se quer receber ajuda e consequentemente deixar de cometer
crimes. Caso um delinquente não queira receber ajuda ou auxílio para se tratar, recuperar
ou reabilitar, isso será um problema que transcende o Estado e a Sociedade “(…) e dá aos
delinquentes ou marginais que a recusem um «triste direito de ser diferente»”
(EDUARDO CORREIA: 1983 (1), 15). Indo mais longe, podemos concluir que de nada
vale impor coercivamente um plano, se pensarmos que o mesmo até pode resultar em
“uma boa conduta prisional” mas isso “pode não significar uma real reinserção social”
(ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 308 e EDWIN H. SUTHERLAND/DONALD R.
CRESSEY: 1978, 560), pois, quando o delinquente se encontrar em liberdade, terá mais
uma vez de escolher se quer usar as ferramentas que lhe foram ensinadas para não praticar
mais crimes ou se o continuará a fazer. Isto é, o êxito do plano individual de readaptação
e da reinserção social do delinquente especialmente perigoso depende sempre em última
instância da atitude interna do mesmo em aproveitar ou não as ferramentas e a ajuda que
o Estado lhe oferece de forma não coativa. Concluímos assim que, mesmo quando o

110
A liberdade humana individual, nomeadamente a liberdade de autodeterminação fundamentada na
dignidade da pessoa humana, permite que cada delinquente possa decidir e escolher se quer atuar em
conformidade com o Direito ou contra ele. CARLOTA ALMEIDA:1996, 24-33 afirma que obrigar um
delinquente a um plano é tratar sem respeito a especificidade de cada indivíduo e o seu modo de estar no
mundo, tentando recolocar nos padrões da sociedade todos o que escapam à norma. Traduzindo isto a
arrogância de “«se não pensa como eu, não sabe pensar»”.
111
Esta autora vai ainda mais longe e, citando ROXIN, questiona: “«onde obtemos o direito de educar e
submeter a tratamento pessoas adultas, contra a sua vontade?”. Cfr. CARLOTA ALMEIDA: 1996, 29.
112
A ideia de solidariedade baseia-se no dever de cada um e da sociedade ativamente colaborarem na
regeneração e na recuperação dos delinquentes, que justamente se encontram num particular estado de
necessidade e desespero. Cfr. EDUARDO CORREIA: 1983 (1), 15.

96
Estado proporciona as condições necessárias para a ressocialização não coativa, um
delinquente só deixará de o ser se efetivamente o desejar.

2. Liberdade condicional ou liberdade para prova


“A liberdade condicional é o instituto jurídico fundamental e referencial do direito da
execução das penas. É o principal instrumento que permite adequar a execução da pena
ao estado do processo de readaptação social do condenado” (JOAQUIM BOAVIDA:
2018, 123). O ponto 9 da exposição de motivos do Decreto de Lei n.º 400/82, de 23 de
setembro, referiu que o instituto da liberdade condicional é a fase de transição da reclusão
para a liberdade definitiva.

No capítulo III no ponto 1.4 da presente dissertação expusemos que o CP possibilita


que ao instituto da PRI se aplique as figuras da liberdade condicional e da liberdade para
prova, uma vez que o n.º 1 do artigo 90º do CP permite que, durante a execução da pena
de prisão, a partir do momento em que se alcance o limite mínimo da PRI e até ao
cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime, pode ser concedida liberdade
condicional, e o n.º 3 do artigo 90º do CP permite que, durante a execução da medida de
segurança até ao limite máximo da pena que consta da moldura abstrata da PRI, pode ser
concedida a liberdade para a prova (MARIA JOÃO ANTUNES: 2010/2011, 87-90).
Ambas as figuras auxiliam, durante a fase de execução da PRI, à determinação concreta
do tempo de privação da liberdade que o delinquente efetivamente irá cumprir, dado que
à data da sentença condenatória este tempo não é fixado. Igualmente, ambas seguem
também o propósito de prevenção especial de socialização, visando a preparação para a
vida em liberdade. Portanto, chegamos à conclusão que estas duas figuras aplicadas à PRI
assumem, por um lado, a função de incidente de execução fundado em razões de
prevenção especial de socialização e, por outro, assumem a função de tarefa de
determinação concreta da medida efetiva da sanção (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 581).
A grande diferença entre estes dois institutos é que a liberdade condicional é aplicada
durante a execução da pena de prisão, enquanto que a liberdade para prova é aplicada
durante a execução da medida de segurança. Como refere PINTO DE ALBUQUERQUE:
“(…) a liberdade para prova está para o inimputável como a liberdade condicional está
para o imputável” (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 433).

Evidenciamos que para se determinar o tempo que o condenado em PRI irá


efetivamente cumprir é possível observarem-se dois sistemas. Um primeiro sistema refere

97
que o delinquente especialmente perigoso pode ser liberto definitivamente assim que se
verifique que cessou o estado de perigosidade criminal que deu origem à PRI. Outro
sistema, que é o consagrado na nossa lei onde se entende que “«A libertação do
delinquente [condenado em PRI] é sempre condicional»”, dado que a libertação do
delinquente especialmente perigoso pressupõe sempre uma libertação provisória, a título
de ensaio, experimental ou para prova, quer pela aplicação do regime da liberdade
condicional, quer pela aplicação do regime da liberdade para prova (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 580-581).

Antes de mais, repare-se que a competência para a concessão ou negação da liberdade


condicional ou da liberdade para prova pertence ao TEP113, conforme estipula a alínea c)
do n.º 4 do artigo 138º do CEPMPL. No que concerne à aplicação da liberdade
condicional ao delinquente especialmente perigoso, aplicam-se as regras gerais da
liberdade condicional prevista para a pena de prisão, nomeadamente os n.ºs 1 e 3 do artigo
61º e o artigo 64º ex vi n.º 1 do artigo 90º do CP. À liberdade para prova do delinquente
especialmente perigoso aplicam-se as regras gerais das medidas de segurança e da
liberdade para prova, nomeadamente o n.º 1 do artigo 92º, os n.ºs 1 e 2 do artigo 93º, e os
artigos 94º e 95º do CP ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP.

Importa referir, ainda, que a possibilidade de concessão da liberdade condicional e da


liberdade para prova traduzem a conformidade do sistema com os princípios da
necessidade e da subsidiariedade, na medida em que a privação da liberdade de um
delinquente só se deve manter quando for estritamente necessária. Isto é, se durante a
execução da PRI for observada uma alteração favorável no delinquente capaz de
possibilitar que o mesmo cumpra o resto da sanção criminal em regime de liberdade, ao
invés de a cumprir em regime prisional ou de internamento, deverá ser esta a opção a
tomar.

Face ao exposto, interessa de seguida analisar concretamente cada um dos regimes


em causa e a sua aplicação à PRI.

113
Como bem nota ANABELA RODRIGUES: “(…) a presença de juiz é sempre vantajosa, nomeadamente
no que se refere à proteção do recluso contra as decisões injustas ou ilegais que a seu respeito podem ser
tomadas no decurso da execução (…)”. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 307.

98
2.1 Concessão ou negação da liberdade condicional
2.1.1 Pressupostos, duração e incumprimento
O n.º 1 do artigo 90º do CP estipula que: “Até dois meses antes de se atingir o limite
mínimo da pena relativamente indeterminada, a administração penitenciária envia ao
tribunal parecer fundamentado sobre a concessão da liberdade condicional, aplicando-se
correspondentemente o disposto nos n.ºs 1º e 3 artigo 61º e 64º “. O n.º 2 do artigo 90º do
CP estipula ainda que: “A liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo que
faltar para atingir o limite máximo da pena, mas não será nunca superior a cinco anos”.

Compreendemos que, a partir do momento em que o delinquente está quase a alcançar


o cumprimento do limite mínimo da PRI estipulado na moldura penal abstratamente
criada (designadamente, dois meses antes), a administração penitenciária deve enviar um
parecer114 ao TEP, que é o órgão competente conforme determina a alínea c) do n.º 4 do
artigo 138º CEPMPL, o qual decide pela concessão ou negação da liberdade condicional
ao delinquente especialmente perigoso115. A lei estipula como primeiro pressuposto
formal a exigência de o delinquente especialmente perigoso já ter cumprido pena até
limite mínimo da PRI, ou seja, já tenha cumprido dois terços da pena que
concretamente caberia ao crime. Esta exigência justifica-se de acordo com as
finalidades de prevenção geral, sendo que, se fosse possível conceder liberdade

114
A administração penitenciária envia um parecer fundamentado que é elaborado pelo Conselho Técnico,
que é o órgão auxiliar do TEP de acordo com o n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 142º do CEPMPL. O
Conselho Técnico, para além de emitir parecer fundamentado sobre a concessão ou negação da liberdade
condicional, deve ainda indicar quais as condições a que a liberdade condicional ficará sujeita se for
concedida. Sendo que estas decisões tomadas pelo Conselho Técnico devem ser apuradas através de
votação de cada um dos seus membros, conforme estipula o n.º 2 do artigo 175º do CEPMPL.
115
O juiz de execução de penas, até 90 dias antes da data admissível para a concessão da liberdade
condicional, solicita: 1º o relatório aos serviços prisionais que contêm a avaliação da personalidade do
recluso, as competências adquiridas, o seu comportamento prisional e relação com o crime cometido; 2º o
relatório aos serviços de reinserção social que contem a avaliação das necessidades subsistentes de
reinserção social, as perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e as condições
a que deve estar sujeita a liberdade condicional; 3º outros elementos que considere ser relevantes (n.º 1 do
artigo 173º do CEPMPL). Esta instrução, levada a cabo pelo juiz de execução de penas, não pode demorar
mais que 60 dias (n.º 2 do artigo 173º do CEPMPL), e encerrada a instrução o juiz convoca o Conselho
Técnico para prestar os esclarecimentos que forem necessários (n.º 1 do artigo 174º e n.º 1 do artigo 175º).
O juiz de execução de penas deve ainda ouvir o recluso, de acordo com o artigo 176º do CEMPPL. Em
seguida o Ministério Público emite parecer quanto à concessão ou negação da liberdade condicional e das
condições a que a mesma deve estar sujeita se for concedida, e o juiz de execução da pena determina se
concede ou nega a liberdade condicional (artigo 177º do CEPMPL). É ainda possível ao juiz de execução
da pena suspender esta decisão pelo período de 3 meses, tendo em vista a verificação de determinadas
circunstâncias ou condições ou a elaboração de um plano de reinserção social (artigo 178º do CEPMPL).
Esta decisão é recorrível de acordo com o artigo 179º do mesmo diploma. Para saber mais sobre o processo
de concessão da liberdade condicional, deve consultar-se: JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 163-181.

99
condicional ao delinquente antes deste tempo, colocar-se-ia em causa esta finalidade de
proteção do ordenamento jurídico.

Em seguida, a lei estipula, que caso este primeiro pressuposto formal esteja
preenchido, aplica-se o artigo n.º 1 e n.º 3 do artigo 61º ex vi n.º 1 do artigo 90º do CP,
onde se atribui a possibilidade de o juiz do TEP conceder liberdade condicional ao
delinquente mediante o preenchimento de mais dois pressupostos, nomeadamente: o
consentimento do condenado e se for fundamentadamente de esperar que o
condenado uma vez em liberdade irá conduzir a sua vida de modo socialmente
responsável, sem cometer crimes.

Relativamente ao pressuposto formal do consentimento do condenado, consagrado no


n.º 1 do artigo 61º do CP, esta exigência pretende proibir que a liberdade condicional
deixe de ser um incidente da forma de execução de pena, para passar a ser uma medida
coativa de socialização (SANDRA SILVA: 2004, 367-368 e JOAQUIM BOAVIDA:
2018, 130-131). Relativamente à problemática da imposição coerciva da reinserção social
do recluso, remetemos para as considerações efetuadas sobre os planos individuais de
readaptação, onde concluímos pela impossibilidade de se impor coativamente um
tratamento a um delinquente, devido à falta de êxito desta imposição e à existência do
Direito à diferença e de autodeterminação que cabem ao mesmo num Estado de Direito
Democrático. Logo, por maioria de razão, sendo a liberdade condicional uma forma de
reinserção social, entendemos também que a mesma não pode ser imposta coativamente;
portanto, este pressuposto de concordância do delinquente para atribuição da liberdade
condicional faz todo o sentido116.

O último pressuposto que a lei consagra na alínea a) do n.º 2 do artigo 61º ex vi n.º 3
do artigo 61º do CP é o facto de ser fundamentalmente de esperar, atentas as
circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta

116
Note-se que diferentemente, FIGUEIREDO DIAS refere que é necessário ter algum cuidado às críticas
efetuadas, senão mesmo abandoná-las, à concordância do delinquente na aplicação da liberdade condicional
na PRI. O autor esclarece que, na PRI, a liberdade condicional serve como forma de determinação concreta
do tempo de privação da liberdade a cumprir, portanto, entende ser evidente que o seu funcionamento não
pode estar dependente da concordância do condenado na aplicação da liberdade condicional, pois, se o
condenado não concordasse com a sua libertação, teria de considerar-se que a prisão se prolongaria
necessariamente até ao máximo legalmente possível, o que acabaria por violar a finalidade da própria
sanção e a sua própria fonte de legitimação. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 582. No entanto, não
sufragamos este entendimento de FIGUEIREDO DIAS, uma vez que assumimos ser imprescindível a
necessidade de concordância do condenado em PRI na concessão da liberdade condicional senão violar-se-
ia o princípio constitucional do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP).

100
durante a execução da pena de prisão, que o condenado uma vez em liberdade irá conduzir
a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Este pressuposto, agora
material, pressupõe que, quando haja bom comportamento prisional e o delinquente se
mostre capaz de se readaptar à vida social e tenha vontade séria de o fazer, pode ser
efetuado um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do delinquente
em liberdade e a forma de o mesmo resolver os seus problemas (SANDRA SILVA: 2004,
376-380 e JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 134-150). Exige-se uma certa medida de
probabilidade de que, no caso da libertação do condenado, este conduza a sua vida em
liberdade de modo socialmente responsável sem cometer crimes. Esta medida de
probabilidade deve ser suficiente, de modo a ser razoável sustentar que o risco da
libertação pode ser comunitariamente suportado. Repare-se que a vontade subjetiva do
delinquente de se readaptar à vida social tem de ser completada pela sua capacidade
objetiva de readaptação117.

Em síntese, a primeira conclusão a retirar é a de que, caso os pressupostos estejam


todos preenchidos e o juiz de execução de penas decida pela concessão da liberdade
condicional ao delinquente, de acordo com o n.º 2 do artigo 90º do CP, este encontrar-se-
á a cumprir liberdade condicional durante o tempo que faltar para se atingir o limite
máximo da pena. Sendo que, para o efeito, este período de liberdade condicional nunca
poderá ser superior a cinco anos118. A este respeito, importa notar que cinco anos é o
tempo suficiente para se poder afirmar que um delinquente já se encontra em condições
de conduzir a sua vida de forma socialmente responsável e como tal não cometer crimes,
ou seja, o delinquente já está ressocializado (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 546 e SANDRA
SILVA: 2004, 390-392).

A liberdade condicional aplicada a uma PRI pode ficar sujeita a regras de conduta
(artigo 52º do CP), a um regime de prova (artigo 53º do CP) e à elaboração de um plano
de reinserção social (artigo 54º do CP), conforme estipula o n.º 1 do artigo 64º do CP ex
vi n.º 1 do artigo 90º do CP. Interessa salientar uma especificidade relativa à PRI na
modalidade de delinquentes por incêndio florestal: a liberdade condicional pode ficar

117
FIGUEIREDO DIAS refere que o contrário já não se exige, aludindo ao seguinte exemplo: “não se
compreenderia que o juízo de prognose favorável fosse recusado a um condenado que, apesar de não revelar
uma vontade séria de readaptação, estivesse em circunstâncias tais (…) que permitissem o juízo fundado
de que, uma vez posto em liberdade, ele conduziria a sua vida de modo socialmente responsável, sem
cometer crimes”. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 539.
118
Isto significa que cumprida a liberdade condicional pelo período máximo de cinco anos, “será
considerado extinto todo o tempo que o ultrapasse”. Cfr. ARTUR VARGUES: 2008, 57-58

101
subordinada à regra de conduta de obrigação de permanência na habitação nos períodos
coincidentes com os meses de maior risco de ocorrência de incêndios, mediante a
fiscalização de meios técnicos de controlo à distância, de acordo com o preceituado na
alínea f) do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 33/2010 de 2 de setembro (MARIA JOÃO
ANTUNES: 2018, 15 e 16).

Se o delinquente incumprir o que for estipulado no plano de liberdade condicional,


nomeadamente, as regras de conduta, o regime de prova ou o plano de reinserção social,
o TEP pode usar uma das atribuições consagradas no artigo 55º do CP ou revogar a
liberdade condicional conforme o artigo 56º do CP (SANDRA SILVA: 2004, 393-395 e
JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 187-197). Caso o TEP revogue a liberdade condicional, o
delinquente irá cumprir o restante tempo que falta da pena de prisão (n.º 2 do artigo
64º)119. Isto, sem prejuízo de a instância se renovar até ao cumprimento da pena que
concretamente caberia ao crime, decorridos dois anos sobre o início da continuação do
cumprimento da pena quando a liberdade condicional foi revogada, e, daí em adiante
renovar-se decorrido um ano, caso a liberdade condicional não tenha sido concedida
(alínea b) do n.º 2 do artigo 180º CEMPL).

Contudo, se o delinquente cumprir de forma correta tudo o que tiver sido estipulado
pelo TEP, a pena extingue-se decorrido o período estabelecido para o cumprimento da
mesma em liberdade condicional (artigo 57º do CP ex vi n.º 1 do artigo 64 do CP).

Para finalizar, interessa referir ainda que, em caso de aplicação de PRI, se os


pressupostos para a concessão da liberdade condicional não estiverem preenchidos e
consequentemente o juiz de execução da pena negar a concessão da liberdade condicional,
a instância renova-se, até ao cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime,
decorrido um ano sobre a não concessão da liberdade condicional, conforme alínea a) do
n.º 2 do artigo 180º do CPMPL (JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 153-154).

Concluindo: a concessão ou negação, pelo juiz de execução de penas, da liberdade


condicional na PRI depende do preenchimento dos pressupostos formais e materiais 120,

119
Repare-se que os artigos 183º, 184º, 185º, 186º, 187º do CEPMPL preveem igualmente a execução e o
incumprimento da liberdade condicional, e estabelecem também que, caso estas regras sejam incumpridas,
o delinquente volta a cumprir pena de prisão.
120
ANASTASIYA MYRNA: 2018, 132-133 refere, relativamente às apreciações de liberdade condicional
realizadas aos condenados em PRI que inquiriu: “não querendo discutir o mérito das decisões em si,
consideramos, no entanto, que as mesmas foram muitas vezes tomadas com forte incidência sobre o passado
destes agentes, ao invés de ser feito um verdadeiro juízo de prognose favorável conforme no artigo 61º do

102
mas somente pode ser atribuída até à pena que concretamente caberia ao crime, de
acordo com o n.º 3 do artigo 90º do CP; durante a fase de execução da pena de prisão, em
caso de PRI, não é possível atribuir liberdade definitiva.

A liberdade condicional não pode ultrapassar a pena de prisão que falta cumprir. No
caso da PRI, a liberdade condicional (que é um instituto por excelência aplicado à fase de
execução da pena de prisão mesmo na PRI) não pode ser aplicada depois de o delinquente
já ter cumprido a pena que concretamente caberia ao crime, sob pena de violação do
princípio da culpa. Deste modo, o CP consagrou a seguinte solução: quando um
delinquente já tiver cumprido a pena que concretamente caberia ao crime e por razões de
prevenção especial, nomeadamente em nome da perigosidade que se manifeste no agente,
se determine a necessidade de este continuar a cumprir mais tempo de privação da
liberdade, é possível ultrapassar-se a medida da pena que concretamente caberia ao crime
e aplicar-se a medida de segurança de internamento de inimputáveis, através da utilização
do regime de fronteira da inimputabilidade, correspondente aos imputáveis diminuídos.
Durante a execução da medida de segurança de internamento, será apreciada a liberdade
para prova e já não a liberdade condicional. Nesta premissa, a lei aproxima o instituto da
PRI à inimputabilidade e consagrou aquilo que anteriormente designamos como a válvula
de segurança do sistema para imputáveis perigosos.

2.2 Concessão ou negação da liberdade para prova


2.2.1 Pressupostos, duração e incumprimento
Relativamente à concessão ou negação da liberdade para prova, como já houve
oportunidade de referir, o n.º 3 do artigo 90º do CP remete para o regime das medidas de
segurança de internamento de inimputáveis e, consequentemente, para a liberdade para
prova, quando ao delinquente especialmente perigoso não foi concedida liberdade
condicional ou a liberdade condicional foi revogada e este já alcançou o cumprimento da
pena que concretamente caberia ao crime 121. Deste modo, o delinquente especialmente

CP (…)”.Ou seja, a autora entende que nestas apreciações se devia valorar mais, por exemplo, o bom
comportamento do condenado e a sua ressocialização.
121
O n.º 4 do artigo 164º do CEPMPL refere que tratando-se de PRI e a mesma se aplique de acordo com
o n.º 3 do artigo 90º do CP, deve iniciar-se o processo de internamento do delinquente. Este processo de
internamento inicia-se com a autuação de certidão da decisão que, não tenho sido concedida ou tendo sido
revogada a liberdade condicional, declare cumprida a pena que concretamente caberia ao condenado em
PRI, conforme dispõe o n.º 4 do artigo 165º do CEPMPL. Relembramos mais uma vez que o n.º 2 do 126º
CEPMPL estipula que o internamento de inimputável deve ser preferencialmente executado em unidade de
saúde mental não prisional. No entanto, no caso dos condenados em PRI, normalmente estes cumprem a
sua medida de segurança de internamento de inimputável no estabelecimento prisional onde cumpriram
pena de prisão.

103
perigoso, agora considerado inimputável por via da aplicação do instituto de fronteira da
imputabilidade diminuída (n.º 3 do artigo 20º do CP), até atingir o máximo legal
estabelecido na moldura penal abstratamente criada, pode ser colocado em liberdade para
prova pelo TEP que é o órgão competente de acordo com a alínea c) do n.º 4 do artigo
138º do CEPMPL (JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 154-155).

Daqui concluímos que para a liberdade para prova ser concedida pelo juiz de execução
de penas122 é necessário verificar-se o preenchimento dos seguintes pressupostos
formais: não ter sido concedida liberdade condicional ou a liberdade condicional ter
sido revogada e o delinquente já ter cumprido a pena que concretamente caberia ao
crime. Ou seja, para ser atribuída liberdade para prova ao delinquente especialmente
perigoso, este tem de encontrar-se a cumprir a medida de segurança de internamento de
inimputável.

Verificados estes dois pressupostos formais, para a liberdade para prova ser concedida
é necessário ainda que se verifique cumulativamente um pressuposto material. Este
pressuposto material está previsto no n.º 1 do artigo 94º do CP e é o seguinte: quando
houver razões para esperar que a finalidade de medida pode ser alcançada em meio
aberto, o tribunal coloca o internado em liberdade para prova. Isto significa que para
a liberdade para prova ser concedida é necessário que o tribunal realize um juízo de
prognose favorável acerca das alterações do delinquente, ou seja, verifique que o risco de
reincidência diminuiu sensivelmente, sendo este capaz de em liberdade cumprir as
finalidades da medida de segurança123. Não é necessário verificar-se a cessação do estado
de perigosidade, necessário é verificar-se que esse estado de perigosidade se alterou para
melhor (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 479-481 e PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015,
433). A aferição e apreciação deste pressuposto material pelo TEP é obrigatória
decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver

122
O juiz de execução de penas é novamente o órgão competente, tal como o era para a concessão ou
negação da liberdade condicional, uma vez que o n.º 2 do artigo 168º refere que nos casos de concessão ou
negação da liberdade para prova na PRI aplica-se o artigo 163º, que por si remete a execução e o
incumprimento da liberdade para prova para o regime da liberdade condicional prevista nos artigos 173º a
181º. Portanto a este respeito valem as considerações processuais realizadas nas notas de rodapé da presente
dissertação referentes ao processo de concessão da liberdade condicional.
123
“o critério para a concessão da liberdade para prova consiste na adequação da libertação do internado
com as necessidades de prevenção especial positiva e negativa do agente (…)”. Cfr. PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015,433.

104
mantido, independentemente de requerimento, conforme a regra do n.º 2 do artigo 93º do
CP124.

Caso se verifique o preenchimento dos pressupostos referidos e o juiz de execução de


penas conceda a liberdade para prova ao condenado, a duração desta é fixada num
mínimo de dois anos e no máximo de 5 anos, não podendo nunca ultrapassar o tempo
que faltar para o limite máximo de duração do internamento, conforme estipula o n.º
2 do artigo 94º do CP. Igualmente a este respeito valem as considerações realizadas sobre
a liberdade condicional onde concluímos que o período de 5 anos é o tempo suficiente
para se compreender que um delinquente já está ressocializado.

Similarmente como na liberdade condicional, também na liberdade para prova o n.º 3


do artigo 94º e os n.ºs 3 e 4 do artigo 98º, remetem para aplicação das regras estipuladas
nos artigos 52º, 53º e 54º. Significa isto que a liberdade para prova pode ser concedida
sujeitando-se o delinquente a regras de conduta, a regime de prova ou a um plano de
reinserção social. Relativamente à modalidade de PRI de delinquentes por incêndio
florestal pode afirmar-se de novo que também a concessão da liberdade para prova (tal
como acontece na concessão da liberdade condicional) pode ficar sujeita ao regime de
permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, no
período coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos de acordo com
o preceituado na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 33/2010 de 2 de setembro
(MARIA JOÃO ANTUNES: 2018, 15 e 16).

Se o delinquente colocado em liberdade para prova adotar um comportamento que


revele a indispensabilidade de internamento (nomeadamente o incumprimento do
estipulado no plano) ou vier a ser condenado em pena privativa da liberdade, a liberdade
para prova é revogada e consequentemente o delinquente é reinternado, conforme o artigo
95º do CP. No entanto, se a liberdade para prova do delinquente não for revogada, findo
o tempo de duração desta, a medida de internamento é declarada extinta (n.º 4 do artigo
94º CP).

124
A este respeito, o n.º 1 do artigo 168º remete para o artigo 158º do CEPMPL, segundo o qual, o juiz de
execução da pena até dois meses antes da data calculada para a revisão, oficiosamente ou a requerimento
do Ministério Público, do internado ou do seu defensor: ordena a realização de perícia psiquiátrica ou sobre
a personalidade e fixa o prazo para apresentação do relatório, ou determina a realização de diligências que
possam ser importante para a decisão. Depois de o juiz de execução da pena ter os relatórios dos serviços
de reinserção social e do estabelecimento prisional, deve ouvir o internado. Em seguida o defensor do
internado pode alegar o que achar conveniente e o MP dá parecer e o juiz decide, de acordo com os artigos
160º e 161º do CEPMPL.

105
Todavia, caso a liberdade para prova não tenha sido concedida (ou tiver sido
revogada), a instância já não se renova segundo as regras da alínea a) e b) do n.º 2 do
artigo 180º do CEPMPL, visto que, nesta fase já foi cumprida a pena que concretamente
caberia ao crime. Assim, por força do n.º 2 do artigo 93º do CP em conjugação com o
158º do CEPMPL, a revisão da situação de internamento (e consequentemente a
apreciação de nova concessão ou negação da liberdade para prova) do condenado em PRI
ocorre de forma obrigatória de dois em dois anos sobre o início do internamento ou da
decisão que o manteve125. Sem esquecer que, se se verificar que cessou a causa
justificativa que deu origem ao internamento, o TEP deve apreciar esta questão a todo o
tempo de acordo com o n.º 1 do artigo 93º do CP e artigo 159º do CEPMPL e o
internamento finda conforme o n.º 1 do artigo 92º do CP.

Para concluir, devemos efetuar duas notas sobre a liberdade para prova na PRI.
Primeira: esta não tem como pressuposto a concordância do delinquente especialmente
perigoso na sua eventual concessão. Compreendemos que assim seja, porque a liberdade
para prova é uma figura por excelência do regime das medidas de segurança de
internamento de inimputáveis e, nestes casos, estes indivíduos, como inimputáveis que
são, não conseguem discernir sobre esta questão. No entanto, a aplicação desta regra ao
delinquente especialmente perigoso parece acarretar algumas dúvidas, visto que o
delinquente especialmente perigoso é um individuo imputável que é convertido em
inimputável pela lei e, como ficou explicado no capítulo IV deste estudo, este indivíduo
não é um «verdadeiro» inimputável, logo cabe perguntar se ao prescindir-se da sua
concordância na sua eventual libertação não se está a violar o seu Direito à liberdade
pessoal? Direito que neste caso se consubstancia no Direito à liberdade de dizer que
prefere permanecer na prisão (ANABELA RODRIGUES: 2002, 173).

Segunda: a liberdade para prova pode ser concedida somente até se alcançar o limite
máximo estipulado na moldura legal abstrata da PRI de acordo com o n.º 2 do artigo
94º do CP. E, é exatamente aqui que reside uma das grandes diferenças face à liberdade

125
TAIPA DE CARVALHO considera excessivo o prazo de revisão obrigatória de 2 em 2 anos, entendendo
que este prazo deveria ser de 1 ano em nome do princípio da indispensabilidade da privação da liberdade
do inimputável e em nome da necessidade pragmática de evitar a inércia dos serviços médicos psicológicos
e psiquiátricos penitenciários, e da administração penitenciária. Cfr. TAIPA DE CARVALHO: 2016, 102-
103. Observe-se ainda que o Ac. do TEDH de 26 de fevereiro de 2002, no caso Magalhães Pereira c.
Portugal, queixa n.º 44872/98, pronunciou-se no sentido de o prazo superior a dois anos não ser correto,
tendo TEDH condenado Portugal por violação do n.º 4 do artigo 5º da CEDH no processo em causa, pois a
revisão do internamento só ocorreu passados dois anos, seis meses e dezoito dias depois de o requerente ter
pedido a sua libertação.

106
condicional: enquanto esta pode ser atribuída até à pena que concretamente caberia ao
crime, a liberdade para prova só pode ser concedida até ao limite máximo de moldura
penal abstrata da PRI. Assim, durante a execução da medida de internamento de
inimputável é possível atribuir-se liberdade definitiva (diferentemente do que acontece
durante a execução da pena de prisão), nomeadamente, quando se atinge o limite máximo
da moldura penal abstrata da PRI, que resulta do n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º,
n.º 2 do artigo 85º, n.º 2 do artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP, e quando se
verifique que cessou o estado de perigosidade de acordo com o n. º1 do artigo 92º do CP.
Contudo, em seguida, iremos analisar mais detalhadamente este assunto.

3. Liberdade definitiva e liberdade obrigatória


Como refere FIGUEIREDO DIAS, o maior problema que a respeito da atribuição da
liberdade na PRI se coloca é o de saber como se compatibiliza o princípio de que toda a
libertação é sempre condicional e ao mesmo tempo é suscetível de ser concedida a
liberdade definitiva na PRI (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 584 e ss.).

Antes de mais relembramos que o nosso sistema penal se guia pelo princípio de que
a libertação do condenado em PRI ocorre sempre a título provisório ou
experimental, pois, em regra, antes de o delinquente ser colocado em liberdade
definitiva, o mesmo deve viver um período de experiência de liberdade provisória, que é
nomeadamente atribuído pela concessão da liberdade condicional ou de liberdade para
prova.

Porém, temos de compreender se este princípio tem total e plena aplicação ou se


enfrenta hoje em dia algumas exceções, consagrando particularmente a aplicação da
designada liberdade definitiva do condenado. E, em sentido oposto, importa compreender
também se em nome deste princípio que consagra a libertação do condenado em PRI
sempre a título provisório ou experimental, deve existir ou não no âmbito desta pena uma
liberdade obrigatória do condenado.

3.1 Liberdade definitiva


Durante a execução da PRI é possível observar-se duas situações em que o TEP, de
acordo com os artigos 24º e 25º e alíneas r) e s) do artigo 138º do CEPMP, deve colocar
imediatamente o condenado em liberdade definitiva. Assim sendo, existem duas
exceções consagradas na lei ao princípio de que a libertação do condenado em PRI é
sempre provisória.

107
A primeira exceção relaciona-se com o facto de que, sendo a PRI constituída por uma
moldura penal abstratamente criada que fixa um limite mínimo e um limite máximo legal
inultrapassável, a mesma não pode ser cumprida para além desse limite máximo admitido
(ANABELA RODRIGUES: 1988, 39-40). Embora a liberdade condicional possa ser
atribuída até à pena que concretamente caberia ao crime e, depois, possa igualmente
atribuir-se liberdade para prova, jamais se pode aceitar que a liberdade para prova
seja cumprida para além do limite máximo legal estipulado no regime da PRI. Se se
acolhesse uma tese em sentido contrário 126, estar-se-ia a admitir soluções
inconstitucionais por violação do princípio da legalidade e da proporcionalidade. Nas
palavras de FIGUEIREDO DIAS: “quando a lei dispõe sobre o limite máximo da PRI
(…) isso só pode significar que, uma vez efetivamente cumprido o tempo de pena
respetivo, o delinquente não pode continuar a ver pesarem sobre si quaisquer limites aos
seus direitos e liberdades fundamentais ainda reconduzíveis à pena cumprida”
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 586). Por outro lado, salienta-se que alcançado o limite
máximo da moldura legal abstrata da PRI, para além de não se poder aplicar liberdade
para prova, também não se pode manter o internamento para além do limite máximo
estipulado no regime da PRI, mesmo que o estado de perigosidade se mantenha. Se
se admitisse uma solução em sentido divergente, violar-se-ia frontalmente de novo os
princípios da legalidade e da proporcionalidade. Não existe qualquer justificação legítima
para se aceitar que um delinquente especialmente perigoso fique sujeito ao regime da
liberdade para prova ou fique internado depois de já ter cumprido toda a pena a que foi
condenado pelo regime da PRI. Aceitar isso seria consagrar soluções ilegais e
desproporcionais, uma vez que a PRI tem um limite máximo fixo determinado que é
imposto pela aplicação dos preceitos legais: n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2
do artigo 85º, n.º 2 do artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP. Também o n.º 2
do artigo 94º do CP ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP refere que a liberdade para prova não
pode exceder o tempo máximo que faltar para o limite máximo de duração do
internamento. Consequentemente, resulta da aplicação destes preceitos legais que a PRI
é uma pena com um limite máximo determinado e inultrapassável, logo não se pode
aplicar a regra do n.º 3 do artigo 92º do CP127. Portanto, não pode nunca o internamento
em PRI ser prorrogado por períodos sucessivos de dois anos até se verificar que o estado

126
ALMEIDA COSTA: 1989, 442-445 defendeu que se poderia aplicar liberdade condicional obrigatória
ou necessária depois do cumprimento da pena.
127
Esta interpretação encontra-se em conformidade com o preceituado no n.º 2 do artigo 30º da CRP.

108
de perigosidade cessou, tal como se faz aos restantes inimputáveis condenados em medida
de segurança de internamento. Isto é: sempre que o limite máximo legal estipulado no
regime da PRI for alcançado, o delinquente especialmente perigoso deve ser
imediatamente colocado em liberdade definitiva, mesmo que o estado de
perigosidade se mantenha (MARIA JOÃO ANTUNES: 2017, 134-135)128.

A segunda exceção ao princípio de que toda a libertação do delinquente condenado em


PRI é provisória resulta do n.º 1 do artigo 92º do CP que se aplica ex vi n.º 3 do artigo 90º
do CP. O n.º 1 do artigo 92º do CP estipula que o internamento de inimputável deve
terminar caso se verifique que o estado de perigosidade que lhe deu origem cessou; em
conformidade o n.º 1 do artigo 93º do CP estatui que essa apreciação pode ser feita a todo
o tempo. Significa isto que o delinquente deve ser imediatamente colocado em
liberdade definitiva assim que se concluir pela cessação do seu estado de
perigosidade, mesmo que ainda não tenha alcançado o limite máximo legal
estipulado no regime da PRI, mas caso já tenha cumprido a pena que concretamente
caberia ao crime. Esta solução consagrada na lei aplicada à PRI é legítima, pois a
libertação definitiva só é prevista posteriormente ao cumprimento da pena que
concretamente caberia ao crime e quando o delinquente se encontra a cumprir
internamento de inimputável. Configurando-se este internamento como uma medida de
segurança, a razão que permite a privação da liberdade neste momento é exclusivamente
a prevenção especial (ou seja, a eliminação ou neutralização do estado de perigosidade
através da ressocialização) e já não a prevenção geral (visto que já se ultrapassou a pena
que concretamente caberia ao crime). Portanto, nada obsta à libertação definitiva do
delinquente, caso se verifique de forma absoluta e indiscutível que o estado de
perigosidade do mesmo cessou durante a fase de execução do internamento de
inimputável A verificação da cessação do estado de perigosidade é uma tarefa muito
difícil que cabe ao TEP e em regra baseia-se na possibilidade de se conseguir emitir um
juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do internado
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 479 e 589-590).

128
Salientamos que CARLOTA ALMEIDA: 1996, 16 e 17 considera incoerente o facto da PRI conhecer
um limite máximo. Entende que a justificação do prolongamento para além da pena aplicável ao caso
concreto é a perigosidade do agente, mas depois a lei fixa um limite a partir da qual, ainda que a reconhecida
perigosidade se mantenha, a medida privativa da liberdade tem de cessar. A autora reconhece que não podia
ser outra a solução por razões de constitucionalidade, porém assume que a lógica interna do sistema é
incoerente.

109
3.2 Liberdade obrigatória
Desde a reforma prisional de 1936 que se distinguiram duas modalidades de liberdade
condicional. Uma seria a liberdade condicional facultativa e outra a liberdade condicional
obrigatória. A grande diferença entre as duas é que a concessão da liberdade condicional
facultativa depende, não apenas do preenchimento de pressupostos formais, mas também
de pressuposto materiais, ou seja, opera ope judicis. A liberdade condicional obrigatória
depende apenas do preenchimento de pressupostos formais, ou seja, operam ope legis
(JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 126). Assim, a liberdade condicional obrigatória é
atribuída sem ser efetuada qualquer valoração judicial autónoma, logo, é «automática»
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 542-544 e ANABELA RODRIGUES: 1988, 32-33).
Repare-se que foi e é aqui exatamente que reside o cerne do problema desta última
modalidade de liberdade, dado que durante muito tempo foi discutido se fazia sentido
atribuir-se a liberdade condicional «automática», mesmo que as expetativas de
socialização do delinquente fossem completamente desastrosas.

Atualmente, o CP consagra a modalidade de liberdade condicional obrigatória no n.º


4 do artigo 61º mencionando: “sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o
condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo
que houver cumprido cinco sextos da pena”. O fundamento desta modalidade de liberdade
condicional reside na prevenção especial de socialização, ao reconhecer-se que a duração
longa de uma pena de prisão, por mais que consiga ter um efeito ressocializador num
delinquente, provoca igualmente “uma profunda desadaptação à comunidade em que vai
reingressar, e deste modo, dificuldades acrescidas na sua reinserção” (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 542). Portanto, é através da colocação do delinquente em liberdade
condicional obrigatória que se visa combater ou minorar estas consequências,
funcionando como uma forma de ajuda ao mesmo. Utilizando outras palavras, a liberdade
condicional obrigatória funciona como fase de transição entre a prisão e a liberdade ou
uma fase de transição para a vida normal (ALMEIDA COSTA: 1989, 451). Todavia, esta
modalidade cumpre igualmente a tarefa de defesa da coletividade pois mantém o
delinquente sob algum controlo (SANDRA SILVA: 2004, 385). Para além disto, a forma
como esta modalidade de liberdade condicional é consagrada no CP, no que concerne à
sua execução, não parece suscitar grandes dificuldades uma vez que a mesma é cumprida
como uma liberdade antecipada. Quer isto dizer que o delinquente é colocado em
liberdade antes de completar o termo final de duração da sua pena, ou seja, a liberdade

110
condicional obrigatória não é imposta depois de a sanção criminal já ter sido cumprida.
É, sim, imposta, antes de ser atingido o máximo de duração da sanção criminal em que o
recluso foi condenado. O grande inconveniente desta modalidade de liberdade
condicional obrigatória, tal como já referimos anteriormente, é que esta não depende do
preenchimento do pressuposto material que é o juízo de prognose favorável acerca do
delinquente129. Quer isto dizer que, verificado o preenchimento do pressuposto formal de
o delinquente ter sido condenado em pena superior a seis anos e já ter cumprido cinco
sextos da pena, esta liberdade é sempre aplicada. Ora, qualquer delinquente em que se
vislumbre estas características formais, mesmo que não reúna as capacidades objetivas
de ressocialização ou mesmo que o seu estado de perigosidade se mantenha ou tenha
piorado, é colocado em liberdade condicional com o intuito de facilitar o reingresso à
vida livre. Embora estas e outras dúvidas130 persistam ainda hoje em dia, o CP é bastante
claro quanto à imposição da sua aplicação aos casos de pena determinada.

Após as considerações realizadas anteriormente, interessa perceber se a liberdade


condicional obrigatória ou uma “espécie” de «liberdade para prova obrigatória» é
aplicada, ou devia ser aplicada, aos delinquentes especialmente perigosos condenados em
PRI.

A jurisprudência portuguesa tem entendido que a norma do n.º 4 do artigo 61º do CP


não pode ser aplicada à PRI (Ac. do STJ: de 28 de maio de 2014, processo n.º
2849/10.7TXPRT.K.S1 e de 23 de dezembro de 2015, processo n.º 154/15.1YFLSB.S1;
Ac. do TRL, de 24 de janeiro de 2012, processo n.º 6187/10.7TXLSB-G.L1-5; e Ac. do
Tribunal da Relação de Évora: de 19 de novembro de 2015, processo n.º

129
Note-se que, quando o n.º 4 do artigo 61º do CP refere “sem prejuízo do disposto nos números anteriores”
é importante analisar se isto não significa que a liberdade condicional obrigatória deve ser interpretada e
aplicada em conformidade, nomeadamente, com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 64º do CP, ou
seja, deve ser realizado um juízo de prognose favorável. Contudo, salientamos que se se interpretasse o n.º
4 do artigo 61º do CP neste sentido, esta liberdade condicional perderia o carácter automático que lhe é
intrínseco e já não funcionaria como a fase de transição entre o encarceramento e a liberdade que facilita o
reingresso do condenado na vida livre e minora as consequências desastrosas da prisão, uma vez que ficaria
dependente deste juízo. É exatamente por isto que a maioria da doutrina entende que o n.º 4 do artigo 61º
do CP não exige que se realize um juízo de prognose favorável ao condenado.
130
JOAQUIM BOAVIDA refere que é questionável a subsistência da denominada liberdade condicional
obrigatória, porque entende: 1º que por si só, estar preso durante cinco anos não tem efeitos
dessocializadores ou criminógenos; 2º a liberdade condicional obrigatória dificilmente se compatibiliza
com as exigências de defesa da sociedade e de proteção dos bens jurídicos; 3º não há razão substancial para
conceder obrigatoriamente a liberdade condicional a quem não dispõe de condições para dela beneficiar;
4º não faz sentido a existência desta num ordenamento onde não vigoram as penas de morte e de prisão
perpétua; 5º as penas não devem ser excessivas, mas esse é um problema que se deve colocar na fase de
aplicação da pena e não na fase da sua execução. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 199-205

111
1558/10.1TXEVR-G-E1 e de 18 de abril de 2017, processo n.º 1558/10.1TXEVR-G-E1).
Interessa destacar, ainda, que tal como exposto no capítulo I da presente dissertação, o
TEP também perfilhou esta opinião no caso n.º 2 referente ao delinquente por tendência
B.

No mesmo sentido se pronuncia alguma doutrina. FIGUEIREDO DIAS refere que na


PRI a liberdade condicional deve ser reduzida à liberdade condicional facultativa e deve
renunciar-se a uma liberdade condicional obrigatória, dadas as dúvidas que esta última
modalidade levanta, nomeadamente aplicar-se independentemente de qualquer
apreciação do estado de perigosidade do delinquente. O professor acrescenta ainda que,
se é duvidosa a aplicação desta modalidade em sede de pena de culpa, mais duvidosa é a
sua aplicação em sede de medida de segurança visto que o fundamento da mesma é o
estado de perigosidade do delinquente. Conclui-se, assim, que a chamada liberdade
condicional obrigatória apresenta mais inconvenientes do que vantagens e pode ser
substituída por um sistema de assistência pós-institucional (FIGUEIREDO DIAS: 2011,
592). PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE refere similarmente que o condenado em
PRI não beneficia de liberdade condicional obrigatória e, uma vez que a lei não prevê
uma «liberdade para prova obrigatória» nos casos de PRI, em que é consagrado um limite
máximo, a liberdade definitiva de um inimputável pode não ser antecedida de um período
de liberdade para prova (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 404-405).

Sufragamos a posição da não aplicação da liberdade condicional obrigatória,


consagrada no n.º 4 do artigo 61º do CP, aos casos da PRI. Significa isto que entendemos
que não se aplica a figura da liberdade obrigatória quando o delinquente já tiver
cumprido cinco sextos da pena que concretamente caberia ao crime. Nomeadamente,
consideramos não ser necessário atribuir liberdade condicional obrigatória ao
delinquente especialmente perigoso condenado em PRI, visto que, neste momento, o
delinquente encontra-se a cumprir a pena de prisão e poderá transitar para o cumprimento
do regime de fronteira da inimputabilidade, correspondente aos imputáveis diminuídos.
Durante a execução do internamento pode ainda beneficiar de várias concessões da
liberdade (agora liberdade para prova) até ser colocado em liberdade definitiva, ou seja,
a finalidade desta figura, que é criar um período de transição entre o encarceramento e a
liberdade, ainda continua por si só salvaguardada nesta data.

Relativamente à aplicação de uma liberdade obrigatória na PRI, quando o delinquente


já cumpriu cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da PRI esta
112
não se encontra prevista de forma exata na lei. Contudo, achamos relevante equacionar
se a mesma deve ser aplicada ou não aos condenados em PRI. Note-se que, nesta altura,
o delinquente já se encontra a cumprir a medida de segurança de internamento de
inimputáveis (ou seja, a última fase da execução da PIR) e, uma vez que a PRI é
constituída por uma pena máxima legalmente admitida que não pode ser prorrogada
(diferentemente do estipulado para a generalidade de inimputáveis que cumprem medidas
de segurança de internamento), o delinquente especialmente perigoso, quando alcança o
cumprimento dos cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da PRI,
irá brevemente ser colocado em liberdade definitiva. Assim, quando cumpridos os cinco
sextos da pena máxima legalmente admitida na PRI, o delinquente especialmente
perigoso já não dispõe de muitas oportunidades de concessão da liberdade provisória
como dispunha (comparativamente) à data em que alcançou o cumprimento dos cinco
sextos da pena que concretamente caberia ao crime da PRI. Na realidade, o que se pode
vir a observar é que, caso esta liberdade provisória não seja concedida até ao limite
máximo estipulado na moldura legal abstrata da PRI, o delinquente especialmente
perigoso poderá vir a ser colocado em liberdade definitiva sem ter beneficiado da
experiência de contactar com a liberdade ou sem ter vivido em liberdade nos últimos
tempos (ou, na pior das hipóteses, desde que iniciou o encarceramento). Portanto,
questionamos: não se deve aplicar à PRI uma liberdade obrigatória quando o
delinquente especialmente perigoso já cumpriu cinco sextos da pena máxima
legalmente admitida pelo regime da PRI, com o intuito de ser garantido e
salvaguardado um período de transição entre o encarceramento longo e a liberdade
definitiva?

Em nossa opinião, nos casos de PRI, deve interpretar-se o n.º 4 do artigo 61º do CP
no sentido de que o cumprimento de cinco sextos da pena é da pena máxima
legalmente admitida pelo regime da PRI e não da pena que concretamente caberia
ao crime da PRI e, consequentemente, em vez de o delinquente especialmente perigoso
ser colocado em liberdade condicional obrigatória, devia sim ser colocado em
«liberdade para prova obrigatória», visto que é durante a execução da medida de
segurança que alcança os cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime
da PRI. Na prática, os cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da
PRI que referimos, correspondem aos cinco sextos da prorrogação da PRI em dois, quatro
ou seis anos consoante a modalidade de delinquência por tendência que está em causa, de

113
acordo com o n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2 do artigo 85º, n.º 2 do artigo
86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP. Repare-se que FIGUEIREDO DIAS alude a
esta possibilidade de interpretação quando refere: “(…) «pena» entendida como a pena
máxima legalmente admitida; não como pena concretamente determinada para o facto
(…)” (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 588).

Todavia, a ideia mencionada anteriormente pode ser alvo de várias críticas,


nomeadamente que a «liberdade para prova obrigatória» é aplicada automaticamente sem
ser realizado um juízo de prognose favorável acerca da perigosidade do agente, de onde
podem advir consequências negativas; ou que a «liberdade para prova obrigatória» não
tem sentido de ser, porque só prossegue finalidades de prevenção especial (ou seja,
eliminação da perigosidade). Embora consideremos o valor destas duas críticas, não
vemos nas mesmas obstáculos à aplicação da denominada «liberdade para prova
obrigatória» aos casos de PRI, uma vez que os delinquentes especialmente perigosos, em
regra, cumprem grandes períodos de reclusão, ou próximos dos 25 anos de prisão ou até
mesmo superiores a 25 anos de prisão, tal como expusemos nos casos práticos
apresentados no capítulo I deste estudo.

Assim, de modo a superar ou temperar as críticas suscitadas anteriormente, atentemos


no seguinte:

i. O Estado e a Sociedade têm de estar conscientes de que um dia os delinquentes vão


deixar de cumprir a medida privativa da liberdade a que estão sujeitos. A própria CRP,
no n.º 1 do artigo 30º, determina que não podem existir reações criminais (penas e
medidas de segurança) de carácter perpétuo, de duração ilimitada ou indefinida. Em
conformidade com a CRP, a PRI é constituída por um limite máximo legal estipulado
pelo seu regime, de acordo com o n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2 do artigo
85º, n.º 2 do artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP, que não pode ser
ultrapassado e nem sequer pode ser prorrogado em nome da perigosidade. Portanto,
os delinquentes especialmente perigosos cumprem uma pena de duração determinada
e um dia esse tempo determinado de pena chegará ao fim e os delinquentes vão
naturalmente abandonar os estabelecimentos prisionais e irão voltar a viver e conviver
em comunidade. Ou seja, uma das únicas certezas que temos é que um dia todos os
reclusos condenados em PRI vão ser libertos.
ii. Dada esta certeza, o Estado e a Sociedade têm que se preocupar com a libertação dos
condenados (ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 302 e ss.). Portanto, a tarefa de
114
prevenção especial, nomeadamente a de socialização e a de prevenção de
reincidência, passa a ser uma tarefa essencial e imprescindível com que o Estado e a
Sociedade se devem preocupar, para que um dia todos consigam viver e conviver em
comunidade de forma harmoniosa. Assumimos assim o importante papel que a
prevenção especial ocupa.
iii. Esta tarefa de prevenção especial ganha ainda mais valor, quando se compreende que
os delinquentes especialmente perigosos necessitam de ser preparados para a vida em
liberdade. Dados os efeitos negativos de desadaptação e de desinserção social que a
privação da liberdade desencadeia é necessário garantir uma fase de transição entre o
encarceramento e a liberdade (no sentido de os ajudar e ensinar a viver em
liberdade)131.
iv. Deste modo, percebe-se perfeitamente que não se pode encarcerar os delinquentes
especialmente perigosos em estabelecimentos prisionais, como se apenas de um
castigo prisional se tratasse (ou seja, mantê-los encarcerados unicamente em nome da
proteção da coletividade e dos possíveis riscos desfavoráveis que podem advir da sua
libertação) e esperar que estes, um dia, quando forem libertos saibam comportar-se
em comunidade de acordo com as normas e padrões sociais 132. Logo, a fase de
transição entre o encarceramento e a liberdade só pode ser garantida através de uma
experiência real em liberdade no mundo exterior 133.
v. É obvio que o plano individual de readaptação realizado durante a execução da pena
ensina como é que se deve viver em liberdade, mas uma coisa é tentar cumprir um
plano dentro da prisão, coisa bem diferente é tentar cumprir o plano individual de
readaptação fora desse ambiente de “confronto” e que lhes é familiar.

131
As medidas de flexibilização da pena de prisão (como, por exemplo, a liberdade condicional) permitem
atenuar os efeitos da dessocialização, nomeadamente em penas de longa duração, sendo indiscutível a sua
relevância numa perspetiva humanitária. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 292.
132
Não são precisos grandes estudos científicos para se vislumbrar esta problemática. Por exemplo, se
imaginarmos que um delinquente tem de cumprir 25 anos de medida privativa da liberdade a começar a
contar agora no ano de 2019, e que essa medida privativa da liberdade só terminará ao fim desses 25 anos,
nomeadamente no ano de 2044, conseguimos perfeitamente compreender o quanto o mundo exterior será
diferente do ano de 2019 (o último ano em que viveu em liberdade) para o ano de 2044 (ano em que voltará
a viver em liberdade), nomeadamente ao nível das tecnologias, robótica e por aí adiante, tendo em conta a
velocidade veloz em que o desenvolvimento tem fluído.
133
“A ressocialização, enquanto preparação para a vida em liberdade e combate à exclusão, pressupõe que
o tratamento penitenciário (…) envolva uma maior aproximação da vida prisional à vida em liberdade,
traduzido num movimento do interior para o exterior. A forma de tornar efetivo esse processo é através da
flexibilização da pena, pois só assim se atenuam as barreiras que separam o «mundo livre» do «mundo
prisional». A preparação da liberdade faz-se, também, através de uma progressiva aproximação ao meio
livre, tal como a criança aprende a andar andando”. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 291.

115
vi. Entendemos, assim, que mesmo que da aplicação desta liberdade advenham
consequências desastrosas, só através do contacto com a realidade do mundo exterior
é que os delinquentes se conseguem preparar para a liberdade e aprender como é que
se devem comportar.
vii. Observe-se, ainda, que, sendo o Estado português um Estado de Direito Democrático,
o mesmo tem de proporcionar aos condenados medidas e formas adequadas de se
reabilitarem. Portanto, cabe ao Estado proporcionar a experiência de liberdade (e de
ajuda na ressocialização) referida anteriormente.
viii. Para além de o Estado ter de proporcionar a experiência de liberdade aos condenados,
de forma a permitir-lhes a sua ressocialização, e de ter de assegurar as finalidades de
prevenção especial, o Estado deve ainda proteger toda a coletividade da possível
criminalidade.
ix. E repare-se que a proteção da coletividade pode ser efetuada através da colocação dos
delinquentes especialmente perigosos em liberdade, visto que, a libertação dos
mesmos fica sujeita a regras de vigilância, de conduta, a regimes de prova e a planos
de reinserção social. Quer isto dizer que a liberdade do condenado pode funcionar
como uma garantia do sistema.
x. Aliás, mais cedo (na altura de colocação em liberdade para prova obrigatória proposta
por nós) ou mais tarde (na altura da colocação em liberdade definitiva porque
alcançaram o limite máximo legal estipulado pelo regime da PRI), estes delinquentes
irão ser libertos, dado que a PRI é constituída por um limite máximo legal
inultrapassável. Portanto, a não concessão desta «liberdade para prova obrigatória»
neste último momento é apenas uma maneira de evitar o inevitável, pois os
delinquentes irão ser colocados em liberdade definitiva muito em breve mesmo que o
estado de perigosidade dos mesmos se mantenha.
xi. Em regra, não é o cumprimento, em regime de encarceramento, do tempo
correspondente à diferença de cinco sextos da pena e o alcance do limite máximo
legalmente estipulado na PRI, que vai proporcionar uma melhor reinserção dos
delinquentes antes de estes serem libertos definitivamente134.

134
JOAQUIM BOAVIDA: 2018. 291 ensina que se tem conseguido demonstrar que a severidade do regime
penitenciário é causa de maior reincidência, ou seja, quanto mais rígida é a execução da pena, maior é a
probabilidade de re-condenação. Acompanham esta posição: VICTÓRIA RAMOS BARBERO/RODRIGO
J. CARCERO GONZALEZ: 2012, 329-338 e apud JOÃO LUÍS MORAES ROCHA: 2018, 39.

116
xii. Assinalando-se mais uma vez que os delinquentes brevemente irão viver em liberdade
por mais perigosos que sejam, assumimos ser preferível que estes tenham recaídas
enquanto o Estado ainda tem o poder de controlá-los e vigiá-los (e em última instância
ensiná-los e com isso aprenderem), pois ainda se encontram a cumprir a sanção
criminal, do que os delinquentes terem recaídas quando já se encontram em liberdade
definitiva. Aí o Estado já não pode controlá-los ou vigiá-los, a única coisa que pode
fazer é voltar a condená-los pela prática de novo crime e aplicar mais uma vez sanções
criminais.
xiii. Desta maneira, se a liberdade obrigatória em sede de medidas de segurança de
condenados em PRI fosse aplicada, cumpriria uma dupla função: por um lado, de
prevenção especial visto que ao colocar os condenados em liberdade os prepararia
para a sua libertação definitiva (que iria acontecer brevemente); e, por outro lado, de
defesa da coletividade visto que permitiria controlar e vigiar a liberdade antecipada
dos condenados, funcionando esta como uma garantia do sistema.
xiv. Por último, recordamos que os delinquentes especialmente perigosos condenados em
PRI não são «verdadeiros» inimputáveis, mas sim imputáveis que a lei entende que
podem ser convertidos «artificialmente» em inimputáveis, portanto, questionamos
qual o sentido de se excluir a aplicação de uma liberdade obrigatória em sede de
medidas de segurança?
xv. Aliás, repare-se que a lei não permite a prorrogação de internamento aos delinquentes
especialmente perigosos condenados em PRI (como permite aos demais condenados
em medidas de segurança por via do n.º 3 do artigo 92º do CP), isto significa que a lei
abre uma exceção nestes casos de PRI e aplica um regime mais benevolente. Assim,
questionamos: porque é que a lei não pode abrir igualmente uma exceção
relativamente à aplicação de uma liberdade para prova obrigatória em sede de
medidas de segurança aos condenados em PRI?

Face ao aludido, entendemos que seria benéfico aplicar à PRI a «liberdade para
prova obrigatória», quando os delinquentes especialmente perigosos já cumpriram cinto
sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da PRI. Destaca-se que esta
figura só poderia ser aplicada durante a execução de internamento de inimputável e como
uma liberdade antecipada à atribuição da liberdade definitiva, nunca como uma liberdade
para prova atribuída depois de a liberdade definitiva já ter sido alcançada e concedida 135,

135
Pronunciamo-nos em sentido contrário ao que ALMEIDA COSTA: 1989, 445 defendeu.

117
senão violar-se-ia a legalidade visto que a PRI é constituída por um limite máximo legal
inultrapassável. Isto é: os delinquentes especialmente perigosos, ao alcançarem cinco
sextos do limite máximo legal admitido pela moldura penal abstratamente criada pelo
regime da PRI, deveriam beneficiar de um período de liberdade provisória,
nomeadamente a designada «liberdade para prova obrigatória». O ponto de partida para
a aplicação desta figura seria o n.º 4 do artigo 61º do CP conforme a interpretação
explicada supra136. Repare-se que um dos grandes objetivos desta figura seria garantir e
assegurar a existência de uma liberdade provisória que antecedesse a liberdade definitiva,
visto que aquela liberdade tem um peso fundamental na preparação da libertação do
condenado e funciona como uma fase de transição entre o encarceramento prolongado e
a liberdade definitiva. A possibilidade desta liberdade obrigatória durante a execução de
internamento de inimputável solucionaria aqueles casos em que os delinquentes se viram
privados de obter e beneficiar de uma liberdade de prova (ou mesmo liberdade
condicional) anterior à colocação em liberdade definitiva. A «liberdade para prova
obrigatória» seria uma medida de última oportunidade e de ajuda aos delinquentes
condenados em PRI, dado que possibilitaria aos mesmos desfrutarem de um período
obrigatório em que poderiam viver em liberdade (ou porque nunca viveram ou porque já
viveram, mas não se souberam comportar e perderam-na), independentemente da
realização de qualquer juízo de prognose favorável (pois o importante nesta fase não seria
medir o estado de perigosidade mas sim tentar ajudá-lo na sua ressocialização). Contudo,
interessa destacar que esta liberdade, para ser aplicada, deve ficar dependente da
concordância dos delinquentes, pois, como defendemos ao longo de todo este estudo, o
processo de reinserção dos delinquentes perigosos imputáveis não pode ser imposto
coativamente pelo Estado137. Quer isto dizer que a designação “obrigatória” apenas pode
ser interpretada no sentido de o TEP ter de conceder e aplicar a liberdade de forma
automática aos delinquentes caso estes a aceitem; nunca pode ser interpretada no sentido
de esta liberdade ser imposta coercivamente aos delinquentes.

136
Sufragamos ainda o entendimento de FIGUEIREDO DIAS quando refere que se fosse possível aplicar
a liberdade (condicional) obrigatória à PRI, esta devia ser aplicada a todo o âmbito da PRI e não só às penas
de prisão superiores a seis anos, em nome do princípio de que a libertação na PRI é sempre condicional.
Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 588.
137
Acompanhamos a posição defendida por ALMEIDA COSTA: 1989, 452 e ANABELA RODRIGUES:
1988, 31 quando referem que todas as modalidades de liberdade condicional (facultativa e obrigatória)
devem ficar sujeitas ao prévio consentimento do condenado.

118
Salientamos, ainda, que concordamos com FIGUEIREDO DIAS quando refere que é
essencial criar um sistema de assistência pós-institucional, contudo, consideramos que
isto por si só não chega. Por um lado, atualmente não existe um sistema de assistência
pós – prisional (JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 289), logo, não podemos deixar a tarefa
de transição entre a reclusão e a liberdade ficar dependente da eventual criação deste
instituto138. Por outro, esta modalidade de liberdade obrigatória traduz um “(…) processo
seguro de o Estado não largar inteiramente mão do condenado, o que pode representar
para este, em vez de benefício, um pesado e duradouro encargo, e é ainda uma cautelosa
fase de transição entre uma longa prisão e uma plena liberdade” (MAIA GONÇALVES:
1998, 227).

Para finalizar, mencionamos que, a «liberdade para prova obrigatória» responde de


forma harmoniosa e coerente às necessidades de reinserção social do delinquente e, em
última instância, às necessidades de proteção da coletividade, conciliando e prosseguido
de forma adequada estas duas finalidades. Aliás, realiza, até à última oportunidade, o
equilíbrio entre o princípio de que a libertação do condenado em PRI é sempre provisória
e as exceções ao mesmo que impõem a aplicação da liberdade definitiva. Até à pena que
concretamente caberia ao crime da PRI pode ser concedida liberdade condicional,
assegurando-se assim o princípio de que a libertação do condenado em PRI é sempre
provisória, e até ao máximo legal da pena admitida pelo regime da PRI pode igualmente
ser concedida liberdade para prova (inclusive «liberdade para prova obrigatória»),
assegurando-se assim mais uma vez o cumprimento daquele princípio até à última
oportunidade. Esta solução não colide com as exceções de imposição de colocação do
condenado em liberdade definitiva, nomeadamente quando o seu estado de perigosidade
cessou ou quando alcançou o limite máximo da pena admitida pela PRI. Assim,
concluímos que a «liberdade para prova obrigatória» cria uma solução de concordância
prática entre as duas realidades (liberdade definitiva e liberdade obrigatória) e o princípio
supramencionado segundo o qual a libertação do condenado em PRI é sempre provisória.
No limite, a aplicação desta figura enfraqueceria também as consequências negativas da
conversão do delinquente imputável perigoso em delinquente inimputável perigoso.

138
Não obstante de continuarmos a concordar com a necessidade de criação deste sistema de assistência
pós-institucional ou pós-prisional.

119
CAPÍTULO VI

REFLEXÕES

1. No plano da reinserção social


No capítulo V da presente dissertação abordámos o tema do plano individual de
readaptação e da liberdade condicional ou liberdade para prova do delinquente
especialmente perigoso. Tivemos oportunidade de referir que a pena de prisão está em
crise, dado que se tem verificado que a prisão por si só não reabilita ninguém. Partindo
desta premissa e conjugando-a com a necessidade de se aplicar, ainda assim, medidas
privativas da liberdade (pena de prisão cumulada com medida de segurança) aos
delinquentes especialmente perigosos, vimos que estas só seriam legítimas se
permitissem a reinserção social dos mesmos. Aliás, verificámos que no caso específico
destes delinquentes perigosos é obrigatório elaborar um plano individual de readaptação
que constitui uma peça fundamental na execução desta pena e que tem como objetivo
ensiná-los a conduzirem a sua vida (pessoal e profissional) de forma adequada. Interessa
neste momento do nosso estudo refletir sobre o modo como a reinserção social dos
delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI é efetuada.

JOAQUIM BOAVIDA ensina que existem vários problemas estruturais no sistema


prisional e de reinserção social, que condicionam a forma como a aplicação das medidas
de flexibilização da pena de prisão são efetuadas e ainda o próprio sucesso destas
(JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 260-293). Dos problemas nomeados pelo autor
salientamos os seguintes:

 Sobrepopulação prisional e insuficiências do parque penitenciário no sentido de a


população prisional ser objetivamente excessiva e as instalações encontrarem-se
degradadas e inapropriadas à execução das penas de prisão, manifestando-se na
impossibilidade de se separar os reclusos consoante as suas necessidades (por
exemplo os menos perigosos são misturados com os mais perigosos);
 Insuficiência dos meios financeiros traduzida na impossibilidade de proporcionar aos
reclusos: obras nos estabelecimentos prisionais, alimentação, cuidados de saúde,
atividades e programas adequados;

120
 Falta de meios humanos dado que os técnicos, guardas e funcionários que são as
pessoas que têm maior contacto com os reclusos são insuficientes e têm falta de
formação139;
 Insuficiência dos programas laborais, escolares e de formação profissional, fruto da
sobrepopulação prisional e da restrita disponibilidade de vagas (existindo mesmo uma
lista de espera para a atribuição de um posto de trabalho);
 Falta de assistência pós-prisional, pois, quando um condenado sai em liberdade não
beneficia de qualquer tipo de acompanhamento nem é auxiliado por uma entidade
com vocação para assistir ex-reclusos e, embora formalmente seja supervisionado por
parte dos serviços de reinserção social, na prática isto não acontece por falta de
recursos.

JOAQUIM BOAVIDA aponta ainda que todos estes problemas estruturais são mais
acentuados no caso dos reclusos mais vulneráveis140 por duas ordens de razão. A primeira
prende-se com o quadro de sobrelotação prisional; falta de meios humanos e materiais;
deficientes condições internas de segurança; permeabilidade à introdução de
estupefacientes e objetos proibidos em ambiente prisional e o domínio de secções
prisionais por parte de reclusos organizados (com vista ao tráfico de utilidades). Verifica-
se assim que os reclusos mais vulneráveis e que necessitam de maior acompanhamento,
como não o têm, acabam por ser instrumentalizados pelos reclusos mais fortes e tornam-
se vítimas do próprio sistema prisional. A segunda razão entronca no quadro da falta de
assistência pós-prisional, onde se verifica que os reclusos mais vulneráveis, como não
dispõem de condições no exterior favoráveis e de uma vontade inequívoca de não voltar
a praticar crimes, o sucesso da sua reinserção social fica mais uma vez dependente de
uma ação planificada e integrada que cabe ao Estado garantir e que no fundo não garante.
Logo, o autor conclui que, nos casos dos reclusos mais vulneráveis, a falta de preparação
dos mesmos alicerçada nos problemas estruturais do sistema prisional e de reinserção
social, traduz-se no verdadeiro insucesso da sua reinserção social.

139
“É habitual ver guardas prisionais a tratar da medicação dos reclusos ou técnicos superiores de
reeducação ou assistentes técnicos a apoiar presos em assuntos jurídicos ou outros sem qualquer conexão
com as respetivas funções”. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 275.
140
“A fragilidade, aqui abordada na dimensão intrínseca do recluso, pode resultar das especiais
características da sua personalidade, doença, problemática aditiva, limitações cognitivas, falta de formação
escolar ou profissional, entre muitos outros factores. (…) As vulnerabilidades externas, que em grande parte
coexistem com as internas, podem emergir, por exemplo, do ambiente social onde se vai inserir ou da falta
ou deficiente apoio no exterior” Cfr. Idem, 285-287 e 289.

121
Transpondo a realidade apresentada para os condenados em PRI (e repare-se que
os delinquentes especialmente perigosos são em regra os reclusos mais vulneráveis 141)
podemos afirmar que os problemas estruturais do sistema prisional e de reinserção social
que existem atualmente, condicionam de forma acentuada a possibilidade de os
delinquentes especialmente perigosos beneficiarem do acesso à liberdade condicional e à
liberdade para prova e, no limite, condicionam o sucesso da própria sanção que lhes é
aplicada. Aliás, nos processos consultados por nós, podemos observar que os delinquentes
condenados em PRI, normalmente apresentam insucesso nas medidas que lhes são
aplicadas. Basta recordar o caso n.º 2 relativo ao delinquente por tendência B, onde
verificámos que, embora este já estivesse em reclusão há 21 anos, durante uma saída
jurisdicional, cometeu novo crime de roubo pelo qual veio a ser condenado em 5 anos de
prisão efetiva.

Cumpre ainda refletirmos sobre um estudo empírico realizado por ANASTASIYA


MYRNA, onde a autora através da aplicação de inquéritos e consulta de processos
individuais de 9 reclusos condenados em PRI, o que corresponde a 22.5 % da totalidade
de reclusos a nível nacional em cumprimento desta pena, concluiu o seguinte. Primeiro:
perante os dados sociodemográficos recolhidos não era possível traçar nenhum perfil
comum aos delinquentes, dada a variedade de realidades apresentadas. Segundo:
relativamente aos planos individuais de readaptação, estes demoram em média 3 anos a
serem elaborados e homologados, portanto, o prazo de 60 dias que é previsto na lei não é
cumprido. Particularmente, um dos reclusos inquiridos, que cumpre pena há 20 anos e 6
meses, nunca teve e não tinha à data do presente estudo empírico nenhum plano
elaborado. A autora realçou, ainda, que os planos são elaborados de forma vaga e
genérica, pois não têm objetivos concretos e que a maior parte dos reclusos inquiridos
afirmou que estes planos não lhes dão ferramentas suficientes para poderem seguir uma
vida conforme o Direito quando forem libertos142. Além disto, mencionou que, embora
os planos sejam implementados com o consentimento dos reclusos, pôde observar que
eles não participam e nem sequer lhes é explicado o conteúdo dos mesmos. Apurou
igualmente que os planos não são alterados nem modificados ao longo da execução da
pena e não cumprem as previsões desejadas. Por sua vez, expôs que os reclusos inquiridos

141
Deve consultar-se as histórias de vida dos delinquentes por tendência A e B, expostas no capítulo I.
142
ANASTASYA MYRNA chega mesmo a afirmar que constatou que existem alguns sujeitos que têm
perturbações do foro psicológico ou psiquiátrico (embora não se possam equiparar às situações de
«anomalia psíquica grave») e que não têm em regra qualquer tipo de acompanhamento, sendo claro que
esta situação coloca vários entraves à sua reinserção social. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 136-138.

122
afirmaram que não estão motivados para cumprir os planos, pois nem sempre têm
oportunidade de ser inseridos nas medidas neles previstas. Por fim, a autora destacou que
os problemas vislumbrados ao nível da elaboração, cumprimento e execução do plano
individual de readaptação não são causados pela negligência dos técnicos de educação e
serviços de reeducação, mas sim pela falta de meios 143. ANASTASIYA MYRNA
concluiu que o instituto da PRI está a ser muito mal aplicado pois foge às principais
finalidades de ressocialização (ANASTASYA MYRNA: 2018, 87-138).

Face aos dois ensinamentos apresentados por dois autores distintos (um de forma
geral e outro de forma específica relativo a condenados em PRI), podemos concluir que
a tarefa de reinserção social dos delinquentes especialmente perigosos condenados
em PRI não está a ser realizada da melhor forma, devido aos problemas estruturais
que o sistema prisional e de reinserção social enfrentam.

Portanto, em primeiro lugar temos que concluir que, devido à falta de técnicos
qualificados que participam no tratamento penitenciário, os planos individuais de
readaptação dos reclusos condenados em PRI ficam completamente comprometidos (e
consequentemente a sua reinserção social), ou porque não são elaborados, ou porque são
elaborados tardiamente e de um modo pouco eficiente e capaz.

Em segundo lugar, concluímos também que direta ou indiretamente estes planos iriam
ajudar os condenados em PRI a reinserirem-se e consequentemente iriam possibilitar e
influenciar os juízos de prognose que são realizados em sede de concessão de liberdade
condicional e de liberdade para prova. Porém, como os mesmos não são efetuados ou são
efetuados de um modo pouco adequado, a reinserção social e o juízo de prognose
favorável (que é realizado pelo juiz de execução de penas em sede de atribuição de
medidas de flexibilização da pena) fica unicamente dependente da capacidade de
resiliência do próprio recluso, quando na realidade cabe ao Estado proporcionar de forma
suficiente as medidas de ressocialização 144.

143
No mesmo sentido, pronunciam-se JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 275 e DANIELA VARGES GOMES:
2015, 67 e 68.
144
MAIA GONÇALVES ensina que a existência de um plano individual de readaptação é fundamental,
porque cria uma “obrigação imposta à entidade competente de periodicamente emitir parecer fundamentado
sobre o qual o tribunal possa decidir sobre a concessão da liberdade condicional do delinquente”. Isto é, na
verdade o plano individual de readaptação influencia a possibilidade de concessão ou negação da liberdade
condicional. Cfr. MAIA GONÇALVES: 1998, 285.

123
Em terceiro lugar, acrescem à falta de elaboração dos planos e à falta de concessão de
medidas de flexibilização da pena (nomeadamente da liberdade condicional e da
liberdade para prova por ser impossível realizar um juízo de prognose favorável), todos
os demais problemas estruturais existentes, como, por exemplo, a falta de condições dos
espaços físicos de cumprimento da pena, devido à sobrepopulação prisional, e de
tratamento médico especializado. Estes problemas ganham especial relevo quando
existem delinquentes condenados em PRI que já transitaram para a aplicação do regime
de medidas de segurança. Nestes casos, seria mais benéfico que estes delinquentes
cumprissem o remanescente da sua pena num estabelecimento vocacionado para o seu
tratamento com apoio especializado, porém, isto também não se verifica.

Deste modo, todas estas circunstâncias somadas, permitem observar frequentemente


o total insucesso da pena aplicada, ou seja, o delinquente especialmente perigoso
condenado em PRI, em regra, nunca consegue alcançar um estado positivo durante a
execução da pena que possibilite a sua libertação (quer provisória quer definitiva). E, nas
piores situações, observa-se que o delinquente especialmente perigoso condenado em
PRI, durante a execução da sua pena, comete vários crimes em reclusão ou durante saídas
jurisdicionais.

Na realidade, existe um círculo vicioso que não permite a ressocialização destes


delinquentes e o sucesso da PRI. Se o plano individual de readaptação falha, verifica-se
mau comportamento prisional e falta de ressocialização, que em seguida se traduz na
impossibilidade de realização do juízo de prognose favorável que permita a libertação
provisória do condenado, quer a título de liberdade condicional ou de liberdade para
prova.

Para finalizar, relembramos que os delinquentes especialmente perigosos condenados


em PRI são conhecidos pela sua incorrigibilidade que se manifesta na incapacidade de
serem influenciados pelas penas. Pretendemos ainda chamar atenção, que poderá sempre
haver quem argumente que a reinserção social destes delinquentes falha, não por culpa
do sistema prisional e de reinserção social, mas sim porque estes indivíduos é que não
são capazes de se reabilitarem. Mas, repare-se que se, por um lado esta ideia até pode ser
verdadeira, por outro lado, não se pode simplificar a visão do problema deste modo e por
dois motivos. Primeiro, porque, como demonstrámos anteriormente, esta incapacidade
está longe de ser comprovada e além disso não se sabe qual a sua causa (pois pode ser
devido à própria personalidade ou ao facto de a pena não ter sido adequada). Segundo,
124
também como já referido, a lei não afere esta incapacidade com rigor, limita-se a fazer
uma presunção “automática” baseada na não concessão de liberdade condicional até à
pena que concretamente caberia ao crime.

Visto que o delinquente especialmente perigoso pode ser ou não ser incorrigível, não
podemos, com base na potencial incorrigibilidade, criar um dogma absoluto relativo à sua
reinserção social. E, mais, mesmo que se entenda que este delinquente é incorrigível no
sentido de ser incurável, isto não isenta o Estado de Direito de ter de lhe proporcionar
medidas adequadas à sua reinserção social (e que pelo demonstrado anteriormente estão
muito aquém do suficiente e desejado).

Sendo assim, questionámos se a falta de cumprimento da finalidade de prevenção


especial da sanção aplicada ao delinquente especialmente perigoso, manifestada na
reinserção social do mesmo (nomeadamente no seu plano individual de readaptação e
nas suas apreciações de liberdade condicional ou liberdade para prova), devido a razões
que lhe são alheias, não vem converter esta sanção ” (…) num mero processo de
custódia preventiva, que não corresponde, de todo em todo, à intenção que o legislador
teve em mente ao consagrar tal reacção criminal (…)” (ANABELA RODRIGUES: 1983
(1), 299)?

Utilizando as palavras de JOSÉ QUARESMA: “Sem medidas que permitam um


consistente resgate do condenado e a sua recuperação, temos afirmações de direitos sem
conteúdo, o cavar do fosso entre a população intramuros e a comunidade livre, o
exponenciar do risco de reincidência e, em último trecho, a descrença generalizada nas
virtudes do sistema vigente” (JOSÉ QUARESMA: 2014, 59).

2. No plano da constitucionalidade
Depois de efetuadas as reflexões no plano da reinserção social do delinquente
especialmente perigoso condenado em PRI, consideramos ser de especial interesse refletir
também sobre a constitucionalidade do próprio instituto da PRI.

As reflexões que podemos efetuar sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade


da PRI podem ser apresentadas sobre 3 perspetivas diferentes de análise: 1ª violação do
n.º 1 do artigo 30º da CRP; 2ª violação dos princípios referentes à preferência pelas
reações não detentivas; à culpa e à proporcionalidade; 3ª violação do princípio da
socialização dos condenados.

125
Antes de avançarmos na nossa análise, gostaríamos de realizar breves considerações
sobre os princípios supramencionados.

O princípio da preferência pelas reações não detentivas manifesta a ideia de que as


penas e medidas privativas da liberdade devem ser encaradas como a última ratio
do sistema e, sempre que possível, devem ser substituídas por penas e medidas não
privativas da liberdade. No entanto, as penas e medidas não privativas da liberdade (ou
reações não detentivas) nem sempre conseguem responder de forma adequada às
necessidades de punição. Quando isto acontece, devem ser aplicadas penas e medidas
privativas da liberdade (ou reações detentivas). Porém, estas últimas, quando aplicadas,
devem ocorrer no sentido decisivamente virado para a socialização do delinquente
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 52-74).

O princípio da culpa, previsto no n.º 2 do artigo 40º do CP, estabelece que “em caso
algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Na verdade, o que este preceito
normativo nos transmite é que a culpa é o pressuposto e o limite do Direito de punir,
ou seja, um determinado indivíduo só pode ser punido penalmente de acordo e na medida
do facto ilícito por si cometido. Não há pena sem culpa e a pena não pode exceder a culpa
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 73 e GERMANO MARQUES DA SILVA: 2015, 229-230).
Embora este princípio não esteja previsto de forma escrita na constituição portuguesa, ele
integra o «bloco da constitucional» na medida em que é reconduzível ao princípio da
dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º e no n.º 1 do artigo 25º da CRP
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 84)145. MARIA JOÃO ANTUNES ensina: “Este princípio
exprime-se, em direito penal, a vários níveis: veda a incriminação de condutas destituídas
de qualquer ressonância ética; impede a responsabilização objetiva, obrigando ao
estabelecimento de um nexo subjetivo (…) entre o agente e o seu facto; obsta à punição
sem culpa e à punição que excede a culpa” (MARIA JOÃO ANTUNES:2013, 96 e Ac.
do TC n.º 496/91, processo 183/90, de 08 de novembro de 1991).

O princípio da proporcionalidade traduz a ideia que uma pena só é aplicada de forma


adequada, consoante as exigências de necessidade e utilidade, de modo a salvaguardar
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (GERMANO MARQUES DA
SILVA: 2015, 230-231). O princípio penal da proporcionalidade é outro princípio que,

145
Repare-se SOUSA E BRITO:1978, 199-200 refere que este princípio decorre diretamente, para além do
princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio do Direito à liberdade (n.º 1 do artigo 27º da CRP).

126
embora não esteja escrito na constituição portuguesa, decorre diretamente do n.º 2 do
artigo 18º da CRP. Este princípio indica-nos que se deve censurar as soluções legislativas
que contenham sanções que sejam manifesta e claramente excessivas (MARIA JOÃO
ANTUNES: 2013, 97 e Ac. do TC n.º 108/99, de 10 de fevereiro de 1999, processo n.º
469/98). Tendo ainda como referência o n.º 3 do artigo 40º do CP, que determina “a
medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à
perigosidade do agente”, FIGUEIREDO DIAS ensina que o princípio da
proporcionalidade está para as medidas de segurança como o princípio da culpa está
para as penas de prisão. Logo, o princípio da proporcionalidade nas medidas de
segurança “(…) limita a necessidade de proteção de bens jurídicos e a desejável
reintegração social do agente pela exigência de respeito pela eminente dignidade pessoal
daquele” (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 448-449).

O princípio da socialização dos condenados baseia-se na ideia de que a culpa ou a


proporcionalidade são as condições necessárias para aplicação de uma pena ou de uma
medida de segurança, contudo, não são as condições suficientes. Sendo necessária
igualmente a condição de socialização do condenado que se traduz no princípio da
socialidade ou solidariedade (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 73-74 e GERMANO
MARQUES DA SILVA: 2008, 27 e 28). A jurisprudência constitucional autonomiza este
princípio a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, visto que este também não
está expresso de forma escrita na constituição portuguesa. O princípio da socialização dos
condenados traduz-se na ideia de que “(…) incumbe ao Estado a tarefa de proporcionar
ao condenado as condições necessárias para a sua reintegração na sociedade” (MARIA
JOÃO ANTUNES: 2013, 116, Ac. do TC n.º 336/2008, processo n.º 84/2008, de 19 de
junho de 2008 e Ac. do TRC, processo n.º 263/04 de 24 de março de 2004). Isto é, nas
palavras de FIGUEIREDO DIAS, o Estado tem o “(…) dever de ajuda e de
solidariedade para com o condenado, proporcionando-lhe o máximo de condições para
prevenir a reincidência e prosseguir a vida no futuro sem cometer crimes” (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 74).

Após a breve caracterização de cada um dos princípios em causa, cumpre agora


realizar a análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do instituto da PRI.

127
2.1 Violação do n.º 1 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa
A questão da constitucionalidade da pena relativamente indeterminada à luz do n.º 1
do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa foi analisada pelo Tribunal
Constitucional, designadamente nos acórdãos n.º 43/86 e n.º 549/94.

No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 43/86, processo n.º 100/85, de 19 de


fevereiro de 1996, foi analisada a constitucionalidade dos artigos 83º e 84º do CP
referentes ao instituto da PRI, visto que o Tribunal Coletivo da comarca de Setúbal
recusou a aplicação desses artigos por considerar que os mesmos estabelecem uma pena
indefinida, pois permitem a aplicação de uma pena que oscila entre um limite mínimo e
um limite máximo, sem surgir doseada em concreto. Logo, violam o n.º 1 do artigo 30º
da Lei Fundamental. Neste sentido, o TC analisou se o instituto da PRI contende ou não
com o n. º1 do artigo 30º do CRP. Concluiu que a PRI não se pode subsumir ao conceito
de pena de duração indefinida e explicou que o n.º 1 do artigo 30 da CRP pretende garantir
que as penas sejam determinadas e certas, de modo a garantir-se o Direito à liberdade e à
segurança. Contudo, isso não significa que as penas têm de ter uma duração fixa, na
verdade o que interessa é que a sua aplicação não gere incertezas relativamente ao
quantum da punição e ao modo da sua expressão. Relativamente à PRI, o TC afirmou que
não há risco de arbítrio porque a pena encontra-se definida, uma vez que o juiz parte da
pena concreta aplicável ao facto e fixa uma moldura penal constituída por um limite
mínimo e um limite máximo “dentro dos quais a mesma se executará tendo em mira
atingir o objetivo ressocializador do delinquente”. Face ao exposto, o TC não julgou os
artigos 83º e 84º do CP inconstitucionais.

No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 549/94, processo n.º 646/92, de 19 de


outubro de 1994, foi igualmente analisada a constitucionalidade do instituto da PRI, mas
agora tendo em vista o artigo 88º do CP. Neste caso, o Tribunal Coletivo da comarca de
Barcelos recusou a aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 86º ex vi do artigo 88º
do CP por colisão com o n.º 1 do artigo 30º da CRP. O TC, para responder a esta questão,
remeteu para o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 43/86 e referiu: “Os fundamentos
da solução a que se chegou no acórdão mencionado são inteiramente transponíveis para
o caso que agora este Tribunal tem entre mãos”. Desta maneira, o TC seguiu a linha de
jurisprudência proferida nesse acórdão e não julgou inconstitucional o artigo 88º do CP.

DAMIÃO DA CUNHA ensina igualmente que o termo «sanção perpétua»


corresponde à pena para toda a vida; o termo «sanção de duração ilimitada» corresponde
128
às situações que a lei não fixa nem um limite mínimo nem um limite máximo e que o
termo «sanção de duração indefinida» corresponde às situações em que a lei não define o
limite máximo, ficando este dependente de uma decisão administrativa ou judicial
(DAMIÃO DA CUNHA: 2010, 677-681).

Em sentido contrário, CARLOTA ALMEIDA julga que a questão sobre a


constitucionalidade da PRI é bem mais complexa do que aquela que foi analisada no
acórdão do Tribunal Constitucional n.º 43/86, pois é necessário encontrar o exato sentido
do n.º 1 do artigo 30º da CRP. Deste modo, explica que o termo «ilimitada» não
corresponde a «perpétua», mas sim às situações em que se prolonga uma pena sem
qualquer limite. Quanto ao termo «indefinida» entende que o mesmo corresponde às
penas que não fixam um quantum concreto. Face a estes entendimentos, a autora conclui
que, como na PRI não é permitido após o julgamento saber a duração da pena a cumprir,
a PRI é “(…) uma pena limitada mas indefinida e, como tal, incompatível com o
normativo constitucional” (CARLOTA ALMEIDA: 1996, 96, 9-10).

Perfilhamos as opiniões que defendem que o instituto da PRI não é inconstitucional à


luz do n.º 1 do artigo 30º da CRP, pois a PRI não é uma sanção “para toda a vida” e é
fixada sobre determinados limites mínimos e máximos. Como expusemos no ponto 1.4
do capítulo III da presente dissertação, é exatamente a construção da moldura penal
abstrata, que faz com que esta pena não seja inconstitucional. Caso contrário, esta pena
em vez de ser relativamente indeterminada e, portanto, constitucional, seria
absolutamente indeterminada e, portanto, inconstitucional.

2.2 Violação dos princípios referentes à preferência pelas reações não detentivas, à
culpa e à proporcionalidade
No caso de condenação em PRI de delinquentes especialmente perigosos não podemos
preferir a aplicação de reações não detentivas, pois as mesmas não conseguem prosseguir
de forma suficiente e adequada as finalidades da punição. Isto é, aos delinquentes
especialmente perigosos devem aplicar-se as reações detentivas, conforme o princípio da
preferência pelas reações não detentivas indica.

Aplicadas as reações detentivas da liberdade e caracterizando-se a PRI como uma


sanção mista, cumpre recordar a análise efetuada no ponto 2.3 do capítulo III da presente
dissertação, onde evidenciámos que a culpa atua como o limite e o pressuposto da punição
do delinquente na pena de prisão, até à pena que concretamente caberia ao crime

129
respeitando o princípio da culpa. Enquanto a perigosidade atua como o limite e
fundamento da punição do delinquente na medida de segurança de internamento de
inimputável, até ao limite máximo legal estipulado pela PRI, respeitando o princípio da
proporcionalidade146. Melhor dizendo, por ser realizado na PRI um juízo de culpa (que é
o ponto de referência da pena que concretamente caberia ao crime) para aplicação da pena
de prisão, e por ser realizado um juízo de perigosidade para aplicação de internamento de
inimputável, não se vislumbra qualquer violação dos princípios da culpa e da
proporcionalidade.

No entanto, relativamente ao princípio da proporcionalidade, há que realizar ainda


duas considerações ao nível da vertente da proibição do excesso.

A primeira diz respeito aos ensinamentos de FIGUEIREDO DIAS e INÊS FERREIRA


LEITE quando afirmam que a PRI, por ser uma sanção extremamente intrusiva, não pode
ser aplicada a bagatelas penais ou pequena criminalidade. E, visto que se tem verificado
que este instituto é muitas vezes aplicado em violação deste princípio 147, estes dois
autores concluem que talvez seja necessário consagrar no regime do próprio instituto uma
exigência no sentido de este só poder ser aplicado à grande criminalidade e à inclinação
para essa (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 573 e INÊS FERREIRA LEITE: 216, 612, nota
de rodapé n.º 6330).

A segunda diz respeito ao que foi referido por nós no capítulo IV. Se concluímos que
o n.º 3 do artigo 90º da CP serve como válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos de forma a garantir a constitucionalidade do regime de acordo com o princípio

146
Como refere DAMIÃO DA CUNHA: 2010, 683 relativamente à regra do n.º 2 do artigo 30º do CRP:
“(…) o carácter excepcional do preceito (…) implica que a possibilidade de «prorrogação» só possa ser
legalmente prevista quando, além do respeito por aquele núcleo essencial, a medida de segurança tenha por
fundamento a perigosidade com base na anomalia psíquica, não podendo pois, «estender-se» este conceito
a medidas de segurança que assentem num qualquer outro fundamento”.
147
ANASTASIYA MYRNA no estudo empírico que realizou constatou que é gritante a situação de um dos
reclusos que apesar de ter sido condenado por 13 crimes de roubo, foi condenado a uma pena concreta de
18 anos que acrescido de mais 6 anos de medida de segurança (resultante da PRI), o que perfaz um total de
24 anos de reclusão de moldura máxima legal e que autora considera notavelmente excessivo e
potencialmente dessocializador. Além desta situação, salienta ainda outra situação de um recluso que terá
de cumprir no máximo um total de 25 anos de PRI devido à transposição de uma pena que sofreu em
Inglaterra (Imprisonmente for Public Protection que corresponde a uma pena de carácter indeterminado,
onde se estabelece apenas o limite mínimo), porém, a autora explica que esse limite máximo aplicado lhe
parece excessivo uma vez que esse tipo de pena foi abolido em Inglaterra no ano de 2012 e quando foi feita
a transposição da sentença em 2013 o tribunal não teve esta alteração em conta. Cfr. ANASTASIYA
MYRNA: 2018, 130-131. Aliás, no caso n.º 2 referente ao delinquente por tendência B exposto por nós
nesta dissertação, verificamos igualmente a aplicação de uma PRI muito longa face aos crimes cometidos.

130
da culpa, por outro lado, somos obrigados a concluir que o regime da PRI colide com
princípio da proporcionalidade, pois é desproporcional e excessivo aplicar um regime
mais gravoso (como é o do internamento de inimputáveis) aos delinquentes imputáveis
perigosos sem ter certezas sobre o seu estado de inimputabilidade e sem lhes conceder
mais garantias de reinserção social durante o cumprimento da medida de segurança.

2.3 Violação ao princípio da socialização dos condenados


Por último, relativamente à violação do princípio da socialização dos condenados,
verificámos que em sede de PRI prevê a lei a obrigatoriedade de ser elaborado um plano
individual de readaptação (artigo 89º do CP) e a possibilidade de concessão de liberdade
condicional ou liberdade para prova durante a execução da sanção (artigo 90º do CP).

O Tribunal Constitucional, no acórdão do n.º 43/86, processo n.º 100/85, de 19 de


fevereiro de 1996, efetuou os seguintes esclarecimentos. O princípio da culpa e o
princípio da ressocialização são princípios que assentam no princípio constitucional da
dignidade humana e que “a pena justa tem de cumprir (…) uma função preventiva e
outra reeducadora na comunidade (…)”148. Explicou que o problema do delinquente
por tendência sempre foi uma preocupação do legislador, pois, por um lado, existe uma
necessidade de defesa da comunidade onde ele se integra e, por outro, existe a necessidade
de implementar esforços que realizem a reinserção social do mesmo. No seguimento deste
raciocínio afirmou que a PRI é orientada em conformidade com o plano individual de
readaptação e com a concessão da liberdade condicional, portanto, não se vislumbra
nenhum risco de arbítrio. Assinalamos ainda que o TC deixou expresso de forma clara
neste acórdão que, quando o legislador instituiu a PRI, “(…) pretendeu que o Estado se
assumisse como um Estado de Direito Democrático, actuando no respeito do basilar
princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais”.

Deste modo, podemos concluir que o regime da PRI consagra regras que têm em vista
permitir a ressocialização dos delinquentes especialmente perigosos, zelando assim pelo
cumprimento do princípio da socialização dos condenados. No entanto, concluímos
igualmente que a tarefa de reinserção social dos condenados em PRI não está a ser
realizada da melhor forma e fica muito aquém do desejado, devido aos problemas
estruturais existentes no sistema prisional e de reinserção social.

148
Sublinhado nosso.

131
Segundo o princípio da socialização dos condenados, cabe ao Estado proporcionar e
garantir as condições necessárias para que os delinquentes especialmente perigosos se
ressocializem. Contudo, o princípio da socialidade ou solidariedade é muito mais que isto,
na medida em que os direitos sociais são direitos «sob a reserva do possível», pois o seu
conteúdo não é constitucionalmente determinado ou determinável, e, “(…) num contexto
de escassez de recursos materiais e de consequente necessidade de fixação de prioridades
de repartição (…), são, essencialmente determinados por uma irredutível (…) margem de
livre decisão do legislador democraticamente legitimado” (REIS NOVAIS: 2011, 293-
294).

O que com isto queremos demonstrar é que a essência do problema não reside na lei,
pois esta assegura os direitos à socialização dos delinquentes especialmente perigosos
através da elaboração dos planos individuais de readaptação e das medidas de
flexibilização da pena149. O problema reside na falta de recursos do Estado. Na prática, é
a falta de recursos financeiros que não permite que os direitos de socialização se
concretizem na sua plenitude, ou seja, temos direitos escritos que na prática se convertem
em direitos ocos e sem sentido.

Por tudo isto, entendemos que, embora o modo como a reinserção social dos
delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI está a ser efetuado represente
uma grande falha, não podemos concluir que o princípio da socialização dos condenados
está a ser violado, visto que o Estado o tenta garantir na reserva do possível.

Na verdade, o que podemos concluir é que a falta e a falha de reinserção social dos
delinquentes especialmente perigosos consubstanciam-se no limite numa violação do
princípio da proporcionalidade. Como referiu o Tribunal Constitucional: uma pena justa
tem de cumprir a função preventiva e reeducadora. A execução da PRI não tem cumprido
a função reeducadora, que aliás é a finalidade principal deste instituto. No fundo, uma
pena relativamente indeterminada sem qualquer sentido de ressocialização é uma pena
destituída da sua real eficácia e, em vez pressupor um processo de tratamento, pressupõe
apenas um processo de expiação da tendência criminosa para lá da culpa pelo facto.

149
Embora, repare-se que se pode discutir se a lei devia consagrar de uma forma mais garantista a reinserção
social dos delinquentes especialmente perigosos condenado em PRI, nomeadamente quando estes cumprem
a fase da medida de segurança. Por exemplo: será que a lei devia afirmar de forma expressa, clara e
obrigatória que estes delinquentes, quando transitam para o cumprimento de medida de internamento,
devem ser colocados em unidades de saúde ou estabelecimentos mais vocacionados para o seu tratamento
e ressocialização?

132
3. No plano internacional
Para terminar o nosso estudo, vamos analisar a perspetiva de interpretação do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem relativamente a três regimes estrangeiros similares ao
da pena relativamente indeterminada que visam igualmente o tratamento de delinquentes
especialmente perigosos.

3.1 Ilnseher c. Alemanha


O acórdão do TEDH de 18 de dezembro de 2018, Ilnseher c. Alemanha, queixa n.º
10211/12, refere-se a uma subsequente detenção de segurança de um agente condenado
pela prática de um crime de homicídio com fundamento na sua perigosidade.

No acórdão em apreço, o requerente foi condenado pelo Tribunal Regional alemão,


em outubro de 1999, numa pena de dez anos de prisão pela prática, no ano de 1997, de
um crime de homicídio motivado por razões de cariz sexual. O tempo de cumprimento de
pena foi subsequentemente prorrogado por sucessivas decisões judiciais proferidas pelo
Tribunal Regional alemão, nomeadamente pela decisão de 3 de agosto de 2012. As
decisões judiciais de prorrogação foram fundamentadas num relatório de perícia
psiquiátrica que concluiu que o requerente ainda representava um perigo sério para a
sociedade, devido à grande probabilidade de vir a cometer novos crimes graves e
violentos contra a vida e a autodeterminação sexual se colocado em liberdade. Em 4 de
maio de 2011, o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu acórdão que declarou
que as disposições relativas às prorrogações dos tempos de prisão e às ordens
subsequentes de detenção de segurança, designadas pelo Direito alemão por
sicherungsverwahrung, eram incompatíveis com a lei fundamental alemã. Assim, este
tribunal impôs uma alteração legal que foi concretizada pela lei que entrou em vigor em
1 de junho de 2013 e que estabeleceu a diferenciação entre detenção de segurança e pena
de prisão (KLAUS MICHAEL BÖHM: 2018, 155-163 e DEUTSCHER BUNDESTAG:
2010, 49-61). Portanto, a partir do dia 20 de junho de 2013, o requerente passou a estar
detido num centro de detenção de segurança onde foi submetido a um plano de tratamento
intensivo destinado a agressores sexuais. Em 18 de setembro de 2014, a detenção de
segurança foi revista, tendo sido proferida novamente uma decisão que determinou a
manutenção da medida.

Em 2 fevereiro de 2017, uma das seções do TEDH decidiu por unanimidade pela não
violação dos artigos 5º §1 e 7º §1 da Convenção Europeia do Direitos do Homem (GUIA
DE JURISPRUDÊNCIA DO TEDH: 2019, 23-26 e 7-11) quanto à detenção do
133
requerente realizada a partir do dia 20 de junho de 2013, visto que os tribunais alemães
justificaram a aplicação da medida de detenção de segurança com fundamento na
perturbação mental do requerente e com a finalidade de o submeterem a tratamento em
ambiente terapêutico adequado. Devido a este propósito de submissão do requerente a um
tratamento terapêutico adequado, esta seção entendeu ainda que a medida de detenção de
segurança não podia ser qualificada como uma «pena». Por último, decidiu igualmente
pela não violação dos artigos 5º §4 e 6º §1 da CEDH, pois foram cumpridos o tempo de
duração do processo judicial de reexame da detenção de segurança e a imparcialidade do
juiz do Tribunal Regional alemão.

Todavia, em 29 de maio de 2017, a pedido do requerente, o processo foi devolvido ao


TEDH, funcionando em plenário. Este tribunal analisou o processo do requerente e
decidiu o seguinte:

1º - Relativamente ao período em análise: só tinha competência para analisar o período


entre 20 de junho de 2013 (data em que o requerente foi transferido para o novo centro
de detenção de segurança) e 18 de setembro de 2014 (data em que ocorreu a revisão
judicial periódica da detenção de segurança);

2º - Relativamente ao artigo 5º §1 alínea e) da CEDH: não houve violação deste preceito


legal, uma vez que a privação da liberdade do requerente, nomeadamente a aplicação da
subsequente detenção de segurança em centro terapêutico foi justificada de acordo com a
detenção legal de «alienado mental», pois o requerente sofria de uma forma grave de
sadismo sexual comprovada por perícia médica, deste modo, legalmente o requerente foi
considerado portador de doença mental150 e como tal beneficiou de um ambiente
terapêutico adequado à sua condição;

3º - Relativamente ao artigo 7º §1 da CEDH: não houve violação deste preceito legal,


pois a detenção de segurança do requerente não pôde ser qualificada como «pena» para
efeitos da previsão final do artigo 7º §1 da CEDH, nomeadamente quando a letra da lei
refere “não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em
que a infracção foi cometida”, dado que esta medida tem natureza distinta da prisão, pois
visou o tratamento médico e terapêutico individualizado dos antecedentes criminais do
requerente e apagou a sua conexão com o crime pretérito. O requerente foi transferido

150
De acordo com o Direito alemão não é exigível que uma perturbação mental seja de tal modo grave que
exclua ou mitigue a responsabilidade penal do autor do crime para assumir relevância penal.

134
para o novo centro de detenção de segurança onde beneficiou de terapias adequadas às
suas necessidades, mostrando-se cada vez mais apto a colaborar na sua libertação. Além
do mais, a medida ordenada ao requerente foi imposta por tribunal competente, aplicada
como uma medida de última ratio e sujeita a um reexame judicial regular realizado em
curtos intervalos de tempo.

4º - Relativamente aos artigos 5º §4 e 6º §1 da CEDH: igualmente, não houve violação


destes dois preceitos legais, visto que foi respeitado o Direito do requerente de obter
decisão em curto prazo de tempo e o juiz não agiu com preconceito pessoal contra o
requerente.

Em síntese as principais ideias a reter deste acórdão são:

- Uma perturbação mental (como por exemplo o sadismo sexual do requerente),


comprovada por perícia médica e consequente necessidade de tratamento médico
especializado e adequado, independentemente de excluir ou mitigar a responsabilidade
penal do autor do crime, é suficiente para o TEDH considerar que existe uma doença
mental reconduzida à previsão legal do artigo 5º § 1 da alínea e) da CEDH;

- Pouco importa que os tribunais à data da condenação considerem um agente plenamente


imputável e mais tarde venham concluir pela existência de uma perturbação mental grave,
dado que o TEDH considera que basta que se determine a perturbação mental grave na
data em que a medida privativa da liberdade é aplicada, ou seja, apenas interessa a
perturbação mental verificada à data em que a medida subsequente de detenção de
segurança é aplicada, e não a verificada à data em que o crime pretérito foi praticado;

- Para se apurar uma perturbação mental de forma legítima, de modo a considerá-la apta
a desencadear uma detenção legal de «alienado mental», é necessário avaliar a
perigosidade do agente quer presente quer futura;

- A privação da liberdade ou a detenção legal de um alienado mental, de acordo com o


artigo 5º §1 alínea e) da CEDH, tem de ser executada em instituição adequada que
promova um ambiente terapêutico eficaz capaz de produzir melhorias no agente151;

151
No Ac. de 31 de janeiro de 2019, Rooman c. Bélgica, queixa n.º 18052/11, o TEDH decidiu que existe
a obrigação de proporcionar meios e ultrapassar obstáculos linguísticos no âmbito do tratamento de um
indivíduo que sofre de perturbação mental.

135
- Para a medida subsequente de detenção de segurança (que opera como uma prorrogação
da privação da liberdade depois de cumprida a pena de prisão) ser legal, à luz do artigo
7º §1 da CEDH, é necessário distingui-la de forma clara da pena de prisão comum,
embora a primeira seja um desenvolvimento da segunda;

- A distinção entre estas duas medidas deve ser efetuada pela criação de centros de
detenção de segurança que proporcionem melhores condições materiais de privação da
liberdade, principalmente quando estas forem comparadas com as proporcionadas nos
estabelecimentos prisionais comuns;

- As melhores condições materiais de privação da liberdade nos centros de detenção de


segurança devem verificar-se ao nível de melhores cuidados médicos especializados,
melhores planos de tratamento e mais apoio psicológico, de ressocialização e de
reinserção;

- A medida subsequente de detenção de segurança deve distinguir-se ainda da prisão, pelo


facto de que a primeira não pode estar conexionada com o crime pretérito, pois deve ser
ordenada pela forte necessidade de tratar um agente, transformando-se, assim, numa
medida que visa o tratamento médico e terapêutico individualizado de um agente com
antecedentes criminais;

- Note-se também, que a medida subsequente de detenção de segurança não é uma medida
de segurança de internamento que pressuponha a prática de um ilícito típico por um
inimputável perigoso, nos termos do n.º1 do artigo 91º do nosso CP;

- Além do mais, a medida subsequente de detenção de segurança deve ser aplicada por
um tribunal competente como uma medida de última ratio dado o seu carácter severo,
uma vez que é aplicada sem períodos mínimos e máximos de duração e depende sempre
da extinção do perigo (cooperação do agente com as medidas terapêuticas consideradas
necessárias) e deve ser revista judicialmente, de forma frequente, em curtos intervalos de
tempo, de forma a não vigorar por demasiado tempo e atenuar a sua gravidade;

- No fundo, o TEDH considera que, quando a medida subsequente de detenção de


segurança for aplicada e prorrogada com fundamento na necessidade de submissão do
agente ao tratamento de uma doença mental segundo uma determinada terapia médica
especializada em ambiente adequado, esta medida é completamente distinta da prisão e
como tal não pode ser qualificada como uma «pena» na aceção do artigo 7º, §1 do CEDH,

136
logo é uma medida legal, dado que não é aplicada como uma pena mais grave do que a
aplicável no momento da prática do crime (vide: Ac. de 7 de janeiro de 2016, Bergmann
c. Alemanha, queixa n.º 23279/14, e Ac. de 6 de outubro de 2016, W.P. c. Alemanha
queixa n.º 55594/13).

- No entanto, note-se que, a contrario sensu, o TEDH considera que a medida subsequente
de detenção de segurança pode ser qualificada como «pena» na aceção do artigo 7º, §1
do CEDH, caso esta não se diferencie de forma clara e eficaz da pena de prisão e seja
cumprida em estabelecimento prisional comum que não proporcione melhores condições
materiais de cumprimento do que as permitidas pela privação da liberdade executada
como prisão. Neste caso, a medida subsequente de detenção de segurança, considerada
como «pena», será uma medida ilegal e, portanto, violadora do artigo 7º da CEDH, uma
vez que é aplicada como uma pena mais grave do que a aplicável no momento da prática
do crime (vide: Ac. de 17 de dezembro de 2009, M. c. Alemanha, queixa n.º 19359/04, e
Ac. de 28 de novembro de 2013, Glien c. Alemanha, queixa n.º 7345/12).

Por fim, concluímos que a medida alemã de detenção de segurança para tratamento de
doença mental geradora de perigosidade criminal subsequente ao cumprimento da pena
de prisão é semelhante à nossa PRI, pois ambas as medidas implicam uma
prorrogação do tempo de privação da liberdade, depois de cumprida a totalidade da
pena de prisão, com fundamento na perigosidade criminal do condenado (e nunca
com fundamento no crime pretérito) e na necessidade de o submeter a um tratamento
médico e terapêutico especializado. No entanto, embora, a PRI seja semelhante à
medida alemã de detenção de segurança, na parte correspondente à prorrogação do tempo
de privação da liberdade que constitui uma medida de segurança de internamento
(orientada para o tratamento do condenado) depois de cumprida a pena que concretamente
caberia ao crime, convertendo, para o efeito, os delinquentes especialmente perigosos
imputáveis em inimputáveis, a PRI também se distingue da medida alemã de detenção de
segurança, uma vez que tal prorrogação: é aplicada de forma “automática” (ou seja
sem a realização de perícia médica que comprove a existência de uma perturbação mental
e consequente perigosidade criminal no momento em que se prorroga o tempo de privação
da liberdade); não é executada em estabelecimento adequado (pois o regime de
tratamento na PRI não é efetuado num ambiente terapêutico especializado que
proporcione condições materiais de privação da liberdade e tratamento médico capaz de
produzir melhorias no condenado); não se distingue de forma clara da pena de prisão

137
anteriormente cumprida (apesar de a prorrogação da privação da liberdade na PRI ter
uma natureza e finalidade diferente da pena de prisão cumprida até à pena que
concretamente caberia ao crime e pretender transformar-se exclusivamente numa medida
para tratamento, como na prática o regime de tratamento não é executado em condições
adequadas, a prorrogação da PRI confunde-se com a pena de prisão cumprida
anteriormente, transformando-se, assim, apenas na continuação do cumprimento da pena
de prisão).

Logo, perante as diferenças apresentadas e seguindo a linha de pensamento deste Ac.,


concluímos que a prorrogação da privação da liberdade ao abrigo da nossa PRI é
desconforme com a CEDH, designadamente por violação dos artigos 5º, §1, alínea e), e
7º, §1, na medida em que, pelas razões expostas, a prorrogação da privação da liberdade
é ilegal e traduz-se na aplicação de uma «pena» mais grave do que a legalmente cominada
aplicável no momento em que a infração foi cometida.

3.2 W.D. c. Bélgica


O acórdão do TEDH de 6 de setembro de 2016, WD c. Bélgica, queixa n.º 73548/13,
refere-se a um “internamento” em estabelecimento penitenciário de duração
indeterminada de um agente com uma personalidade marcada por autismo e tendências
sexuais perigosas.

O requerente foi detido em 30 de novembro de 2006, por suspeita da prática de um


crime de atentado ao pudor sobre um menor de 16 anos (sem violência ou ameaças). Em
27 de fevereiro de 2007, o requerente foi condenado pelo tribunal de primeira instância
em pena de prisão de duração indeterminada pela prática do crime anteriormente
mencionado, nos termos do artigo 7º da loi de défense sociale de 09 de abril de 1930 que
visa a proteção social contra delinquentes anormais, habituais e com tendências para a
prática de crimes sexuais (YVES CARTUYVELS ET GAËTAN CLIQUENNOIS: 2015

138
e CÉCILE MARCEL: 2018)152. O tribunal de condenação considerou ainda que o
requerente, no momento da prática dos factos, sofria de uma perturbação mental que
impediu de controlar as suas ações. Deste modo, a partir de 2 de julho de 2007, o
requerente começou a cumprir a sua pena de prisão na seção de defesa social do
estabelecimento prisional de Merksplas, que, no fundo, mais não era que uma enfermaria
psiquiátrica dentro da prisão. Segundo os relatórios psiquiátricos do serviço psicossocial
do estabelecimento penitenciário de Merksplas, o requerente foi considerado um
indivíduo com baixo nível intelectual; portador de uma perturbação da personalidade
(dada a sua predisposição para a perversão) e com deficiente controlo dos seus impulsos.
Deste modo, em 2008, o requerente passou a beneficiar de uma pré-terapia destinada a
tratá-lo, reabilitá-lo e ressocializá-lo. Já no ano de 2009, o requerente foi considerado um
indivíduo que necessitava de acompanhamento numa instituição externa de tratamento
vocacionada para agentes com perturbações mentais, nomeadamente, na VAPH - Vlaams
Agentschap voor Personen met een Handicap. De 2010 a 2015, o requerente mostrou
melhorias no seu comportamento e beneficiou de autorizações de saídas de natureza
precária e participou em eventos desportivos. Neste sentido, o requerente formulou vários
pedidos para deixar de estar “internado” na prisão de Merksplas e ser integrado numa
VAPH, que, sendo um estabelecimento de tratamento externo, possuía um regime menos
severo de reclusão e um tratamento mais adequado à sua condição mental. No entanto,
não obstante os esforços realizados pelo requerente durante anos, a comissão de proteção
de defesa social belga decidiu sempre manter o requerente no estabelecimento prisional
de Merksplas. As próprias instituições de cuidado e internamento alternativas à prisão
recusaram receber o requerente devido à sua personalidade, explicando que o seu
distúrbio autista era impossível de tratar e de conduzi-lo à liberdade, e que, além do mais,
o requerente não se encaixava na instituição dadas as suas limitadas capacidades

152
Esta lei foi substituída pela lei de 21 de abril de 2007 que, tendo sido amplamente criticada antes de
entrar em vigor, foi novamente substituída pela lei de 5 maio de 2014 que entrou em vigor a 01 de outubro
de 2016. Note-se que esta nova lei ainda não terminou com todos os problemas existentes.

139
intelectuais e o risco de comportamentos sexuais inadequados. O requerente,
inconformado com as decisões, apresentou dois procedimentos cautelares nos tribunais
nacionais, o primeiro foi indeferido, e o segundo, que foi instaurado em 2015, continuava
pendente. O requerente pediu ainda à Cour de Cassation que o seu processo fosse
examinado pela Cour Constitutionnelle, de acordo com os artigos 5º e 6º da CEDH, no
entanto, mais uma vez, o seu pedido foi negado.

Face ao exposto, o requerente decidiu queixar-se ao TEDH com base na violação dos
artigos: 3º e 5º §1 da CEDH pelo facto de estar preso há mais de nove anos em lugar
inadequado à sua condição mental, e 5º § 4 e 13º da CEDH pelo facto de os recursos por
si realizados não serem efetivos e não corrigirem a sua situação de detenção.

O TEDH analisou o processo do requerente e decidiu o seguinte:

1º - Relativamente ao artigo 3º da CEDH: houve violação deste preceito legal pois a


prisão executada ao requerente por mais de nove anos em estabelecimento prisional por
tempo indeterminado, sem alternativas à prisão (pois, embora tenha sido recomendado
transferi-lo para uma instituição de tratamento externo, designadamente a VAPH, tal não
aconteceu) e em condições inadequadas à sua condição mental153 (pois o acesso aos
cuidados médicos foi insuficiente e inadequado devido à falta de: local de internamento
correto; inadequação geral do pessoal; superlotação prisional e não ter existido uma
supervisão médica e uma perspetiva real de reintegração e ressocialização) sujeitou-o a
uma situação de angústia perpétua, apagando a sua esperança quanto à evolução da sua
pena. Portanto, foi decidido que o Estado belga não assegurou o tratamento adequado ao
requerente, violando o Direito à proibição de tortura e de tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes.

2º - Relativamente ao artigo 5º §1 da CEDH: houve também violação deste preceito


legal porque a decisão da comissão de proteção de defesa social, que manteve o
requerente em cumprimento de pena de prisão no estabelecimento prisional,
consubstanciou uma privação da liberdade ilegal. O TEDH baseou-se no seguinte:

153
Note-se que o TEDH evidenciou que o Estado Belga assumiu que a manutenção do requerente numa ala
psiquiátrica ou enfermaria psiquiátrica dentro do estabelecimento prisional era uma solução “transitória”
na medida em que se esperava encontrar uma estrutura adequada e adaptada às suas necessidades e que, a
manutenção do requerente na prisão era completamente inadequada e que tal só acontecia porque existia
um defeito estrutural de alternativas à prisão.

140
- por um lado, a detenção não foi considerada uma verdadeira «pena» à luz do artigo 5º
§1 alínea a) da CEDH, visto que tinha duração indeterminada e não se encontrava
justificada devido à perturbação mental do requerente e necessidade de tratamento;

- por outro, embora tenha sido reconhecida ao requerente uma perturbação mental, para
efeitos da previsão do artigo 5º §1 alínea e) da CEDH na parte referente a «alienado
mental», como as condições de detenção a que este foi submetido foram inadequadas às
suas necessidades, concluiu-se também que a aplicação do artigo 5º §1 alínea e) da CEDH
e a consequentemente justificação legal da privação da liberdade não pôde operar.

Aliás, o TEDH reconheceu que a condenação do requerente em “pena” de prisão foi


inadequada, visto que rompeu o vínculo existente entre o objetivo da privação da
liberdade e as condições em esta que ocorreu.

3º - Relativamente aos artigos 5º §4 e 13º da CEDH: mais uma vez decidiu que houve
violação destes dois preceitos legais pois, embora o recluso tenha esgotado os múltiplos
recursos de natureza judicial e não judicial possíveis, nunca conseguiu alcançar uma
resposta razoável à sua situação, ou seja, o requerente não beneficiou de um recurso
efetivo contra a sua detenção.

Note-se ainda que o TEDH verificou neste acórdão que este caso contra a Bélgica, não
foi o primeiro (vide: Ac. de 2 de outubro de 2012, L.B. c. Bélgica, queixa n.º 22831/08;
Ac. de 10 de Abril de 2013, Claes c. Bélgica , queixa n.º 43418/09; Ac. de 10 de janeiro
de 2013, Dufoort c. Bélgica, queixa n.º 43653/09 e Ac. de 10 de janeiro de 2013, Swennen
c. Bélgica, queixa n.º 53448/10154), logo, evidenciou a existência de um problema de
natureza sistémica contra agentes considerados doentes mentais que, por manifestarem
alguma perigosidade, têm de enfrentar “penas” de prisão de duração indeterminada que
podem ser cumpridas perpetuamente em estabelecimentos penitenciários inadequados ao
seu tratamento.

Por fim, salientamos ainda as principais ideias deste acórdão:

- Para a privação da liberdade se encontrar em conformidade com o artigo 3º da CEDH,


tem de ocorrer em condições adequadas que são aferidas consoante as necessidades do

154
Este conjunto de jurisprudência reforça a necessidade de nestes casos a privação da liberdade cumprir
uma dupla finalidade: por um lado a defesa da sociedade contra os delinquentes perigosos com perturbações
mentais e por outro, a necessidade de estes receberem um tratamento apropriado que os ajude a
reintegrarem-se o melhor possível na sociedade.

141
condenado e tem de proporcionar uma perspetiva real de reintegração e ressocialização
do condenado na sociedade, criando um sentimento de esperança na sua libertação (vide:
Ac. de 26 de abril de 2016, Murray c. Países Baixos, queixa n.º 10511/10);

- A privação da liberdade aplicada a agente considerado doente mental cumprida em


estabelecimento inadequado e sem tratamento psicológico e psiquiátrico adequado é uma
privação da liberdade ilegal, de acordo com o artigo 5º §1 alínea e) da CEDH.

Finalmente, comparando a nossa PRI à pena de prisão por tempo indeterminado


cumprida em estabelecimentos prisionais comuns, por agentes portadores de anomalia
psíquica criminalmente perigosa, prevista pela lei belga de defesa social, concluímos que
ambos os regimes podem equiparar-se na medida em que pretendem tratar
delinquentes especialmente perigosos e, para tal, aplicam penas indeterminadas.
Contudo, a nossa PRI apresenta a vantagem de ser apenas relativamente indeterminada
e não absolutamente indeterminada, ou seja, a PRI não é uma pena perpétua
(diferentemente da pena belga de prisão por tempo indeterminado), pois, quando o
condenado alcança o limite máximo legal previsto no regime da PRI é colocado em
liberdade definitiva independentemente da persistência do estado de perigosidade
criminal. Apesar disto, tal como a pena belga de prisão por tempo indeterminado, também
o regime de tratamento da PRI é cumprido por tempo indeterminado em
estabelecimentos penitenciários inadequados à condição mental dos delinquentes
especialmente perigosos (por exemplo: delinquentes com perturbações da
personalidade, alcoólicos ou toxicodependentes que necessitam de tratamento médico
especializado) sem um regime de tratamento alternativo à prisão e não proporciona
uma real perspetiva de reinserção social dos seus condenados (pois, como já foi
oportunamente demonstrado, os planos individuais de readaptação elaborados para os
delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI ficam muito aquém do
desejado e não produzem o tratamento e a reabilitação destes, além do mais os
delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI não têm esperança quanto à
evolução da sua pena e dificilmente beneficiam de liberdade provisória).

Deste modo, visto que o regime de tratamento na PRI é executado de forma semelhante
ao da pena belga de prisão por tempo indeterminado, se seguirmos a linha de interpretação
deste Ac., concluímos que o regime de tratamento de delinquentes especialmente
perigosos previsto na nossa PRI é desconforme com a CEDH, nomeadamente por

142
violação dos artigos 3º e 5º §1, na medida em que submete os condenados em PRI a
tratamentos desumanos ou degradantes e aplica uma privação da liberdade ilegal.

3.3 Morsink c. Países Baixos


O acórdão do TEDH, de 11 de maio de 2004, Morsink c. Países Baixos, queixa n.º
48865/99, refere-se à privação da liberdade de um agente em regime de pré-colocação em
centro de detenção, por mais de quinze meses, enquanto aguardava pela sua transferência
para uma clínica de custódia.

Entre os anos 1975 e 1995, o requerente foi condenado dezanove vezes pela prática
dos crimes de roubo, dano e ofensas à integridade física simples e agravadas. Em 21 de
janeiro de 1997, o requerente foi condenado pelo Tribunal Regional de Arnhem pela
prática do crime de ofensas à integridade física no ano de 1996. Este tribunal entendeu
que, no momento da prática dos factos, o recorrente compreendia a ilegalidade dos seus
atos, contudo sofria de uma perturbação mental que só permitiu que fosse
responsabilizado de forma diminuída. Assim, o requerente foi condenado em quinze
meses de pena de prisão, cumulados com uma subsequente ordem de TBS em clínica de
custódia de tratamento, designada pelo Direito holandês como ter beschikking stelling
(JUDITH DE BOER/JAN GERRITS: 2007, 459-461). O condenado recorreu desta
decisão; no entanto, em 16 de setembro de 1997, o tribunal de recurso confirmou o Ac.
proferido a 21 de janeiro de 1997. Repare-se que a pena de prisão aplicada ao requerente
foi executada em primeiro lugar e tinha como fundamento o crime de ofensas à
integridade física, ou seja, a parte em que o requerente podia ser responsabilizado
penalmente. Enquanto que a ordem de TBS foi executada em segundo lugar e tinha como
fundamento a perigosidade e a perturbação mental do requerente, ou seja, a parte em que
o requerente já não podia ser responsabilizado penalmente e, portanto, devia ser tratado
e ajudado. Em 5 de fevereiro de 1998, o requerente completou o cumprimento da sua
pena de prisão e a ordem de TBS entrou em vigor. No entanto, o requerente não foi
imediatamente transferido para uma clínica de custódia, foi mantido em regime de pré-
colocação em centro de detenção. À data do acórdão, 11 de maio de 2004, o Direito
holandês admitia legalmente que, nos casos em que se verificasse que as clínicas de
custódia eram incapazes de receber um agente a quem foi aplicada uma medida de TBS,
esse podia ser mantido em centro de detenção por seis meses e a partir daí por períodos
sucessivos de três meses, desde que houvesse decisão do ministro da justiça nesse sentido.
Com base nesta previsão legal, o requerente foi mantido em centro de detenção por quinze

143
meses até 17 de maio de 1999, data em que foi internado numa clínica de custódia. Dado
o exposto, o requerente interpôs vários recursos nos tribunais nacionais contra as
sucessivas prolongações da sua detenção em regime de pré-colocação. Os tribunais
nacionais, em junho de 1999, decidiram que não houve violação do direito do requerente
no que se refere às duas primeiras prorrogações, contudo, em novembro de 1999, em
sentido contrário, decidiram que relativamente à terceira prorrogação, o direito do
requerente foi violado e como tal este foi indemnizado.

Contudo, o requerente queixou-se ainda junto do TEDH, alegando que a privação da


liberdade a que foi sujeito de 5 de fevereiro de 1998 a 17 de maio de 1999 em regime de
pré-colocação em centro de detenção era ilegal, pois violava o artigo 5º §1 da CEDH. O
requerente alegou que a medida de TBS tinha um carácter não punitivo e foi
fundamentada na sua perigosidade e perturbação mental, logo a sua privação da liberdade
determinada por esta medida já não se enquadrava no artigo 5º §1 alínea a) da CEDH,
mas sim no artigo 5º §1 alínea e) da CEDH. Consequentemente, se a ordem de TBS se
enquadrava legalmente na privação da liberdade legal de «alienado mental», esta tinha de
ser efetuada em hospital, clínica ou outro estabelecimento adequado às necessidades
psíquicas do requerente. Para além disto, o requerente alegou, por último, que quando o
Tribunal Regional de Arnhem lhe aplicou a ordem de TBS pretendia que, logo após o
cumprimento da pena de prisão, ele fosse submetido a um tratamento em clínica de
custódia e não que permanecesse sem tratamento num centro de detenção. No fundo, o
requerente defendeu que a privação da liberdade em regime de pré-colocação em centro
de detenção aplicada a agentes, como ele, que sofrem de perturbações mentais e
necessitam de tratamento médico especializado, devia ser considerada inaceitável,
independentemente do tempo de duração. Neste sentido, o TEDH decidiu:

1º - Relativamente ao artigo 5º §1 da CEDH: houve violação deste preceito legal.


Primeiro, porque, perante as circunstâncias apresentadas, não foi respeitado um equilíbrio
razoável entre os interesses envolvidos, nomeadamente os interesses do requerente e do
Estado. Segundo, porque a indisponibilidade de colocação do requerente numa clínica de
custódia não foi uma situação imprevista e excecional, pelo contrário, esta
indisponibilidade constitui um problema estrutural já identificado pelo TEDH em 1986.
Neste sentido, o TEDH explicou: dada a natureza diferente das duas medidas (pena de
prisão e ordem de TBS), visto que, uma tem carácter punitivo e outra não, era irrealista e
demasiado rígido exigir-se ao Estado holandês que garantisse a disponibilidade imediata

144
de aplicação da medida de TBS em clínica de custódia. Logo, o TEDH admitiu que até
podia aceitar que, por razões ligadas à gestão eficiente de fundos públicos, houvesse uma
certa dificuldade de a garantir imediatamente, desde que se verificasse um equilíbrio
razoável entre o interesse do Estado e do requerente. No entanto, este tribunal evidenciou
ainda que devia ter sido atribuído um peso especial ao direito à liberdade do recorrente,
de acordo com o artigo 5º §1 da CEDH, na medida em que um atraso significativo na
admissão em clínica de custódia atrasaria o início do tratamento e as perspetivas de
sucesso do mesmo, aumentando assim as oportunidades de prolongar a medida de TBS
aplicada ao requerente. No fundo, este tribunal veio concluir que um atraso de quinze
meses na admissão do requerente em clínica de custódia era inaceitável, pois aceitar este
atraso implicava aceitar um grave enfraquecimento do direito fundamental à liberdade do
requerente, bem como prejudicar a própria essência deste direito.

Destacamos ainda que neste Ac. houve dois votos vencidos. Um que defendeu que, em
5 de fevereiro de 1998, o requerente deveria ter sido transferido imediatamente para uma
clínica de custódia pois a indisponibilidade de vagas não podia, por si só, justificar a
privação da liberdade do requerente em regime de pré-colocação em centro de detenção,
pois, se se aceitasse este raciocínio, estar-se-ia a criar um risco de arbitrariedade e a
permitir que os Estados usem os seus problemas práticos como uma desculpa para não
cumprirem a CEDH. Outro que defendeu que a detenção do recorrente em regime de pré-
colocação em centro de detenção foi ilegal, contudo, não por violação do artigo 5º §1 da
CEDH, mas sim por violação do artigo 3º da CEDH, pois o requerente nessa data estava
detido legalmente por ser “alienado mental” e não beneficiou das condições adequadas à
sua condição mental, designadamente de cuidados médicos.

Em suma, deste acórdão é importante reter as seguintes ideias:

- O TEDH admite que se cumule uma pena de prisão (fundamentada no artigo 5º, §1,
alínea a), da CEDH) com um regime subsequente que visa o tratamento de um condenado
(portador de perturbação mental e considerado perigoso) num local vocacionado que
detenha as condições médicas especializadas adequadas e suficientes (fundamentada no
artigo 5º, §1 alínea e), da CEDH);

- O TEDH entende também que, quando um regime de tratamento entra em vigor,


depois de cumprida a totalidade da pena de prisão, este deve ser cumprido no local
estabelecido como o adequado e, quando tal não for possível (dada a indisponibilidade de

145
vagas) e o condenado for colocado em centro de detenção como uma solução provisória
(ou seja, enquanto aguarda por vaga), esta detenção apenas é legal se o tempo de espera
for razoável e conciliar os interesses do Estado e do condenado, sendo que o direito à
liberdade do condenado tem especial relevo (vide: Ac. de 11 de maio de 2004, Brand c.
Países Baixos, queixa n.º 49902/99, e Ac. de 5 de abril de 2011, Nelissen c. Países Baixos,
queixa n.º 6051/07).

Por último, evidenciamos que a nossa PRI se equipara ao regime de TBS holandês,
designadamente na parte correspondente à prorrogação do tempo de privação da liberdade
que constitui uma medida de segurança de internamento, depois de cumprida a pena que
concretamente caberia ao crime, convertendo, para o efeito, os delinquentes imputáveis
especialmente perigosos em inimputáveis. Note-se que a prorrogação da PRI tem
igualmente um carácter não punitivo; usa como fundamento a perigosidade criminal
e a necessidade de tratar e reabilitar os condenados. Todavia, esta prorrogação da PRI
distingue-se da medida de TBS holandesa porque, enquanto a medida holandesa ordena
e obriga a que a sua execução se dê em clínica de custódia de tratamento, o regime
português de prorrogação da PRI para tratamento de um delinquente especialmente
perigoso não ordena nem obriga a que a sua execução ocorra em estabelecimento
médico especializado e adequado à sua condição mental.

Perante o exposto e adotando os ensinamentos deste Ac., concluímos que a execução


da prorrogação da privação da liberdade na PRI é desconforme à CEDH, por violação do
artigo 5º, §1, alínea e), na medida em que consubstancia uma privação da liberdade ilegal
dada a falta de condições materiais e de estabelecimentos adequados para tratamento dos
delinquentes especialmente perigosos. O TEDH pode até admitir que, devido à
dificuldade de gestão eficiente de fundos públicos, podem não existir as condições
adequadas ao tratamento dos delinquentes perigosos no exato momento em que se aplica
a prorrogação da PRI, no entanto, já não admite que tais condições não se criem num
tempo de espera razoável.

146
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do nosso estudo foi aferir a eficácia do instituto da pena relativamente


indeterminada, através da concessão/negação da liberdade condicional e da liberdade para
prova, tendo em conta os planos individuais de readaptação.

A presente dissertação foi dividida em duas abordagens, uma prática e outra


teórica, deste modo, também as nossas considerações finais têm de ser efetuadas sobre
estas duas perspetivas, que no final se cruzam e dão a resposta desejada.

A abordagem prática, realizada através da consulta dos processos sobre PRI que
correm termos no TEP de Lisboa e a exposição de dois desses processos e dos problemas
inerentes aos mesmos, permite-nos concluir que:

1ª) A realidade confirma que em regra os condenados em PRI cumprem a totalidade da


pena a que são condenados e não beneficiam de liberdade condicional ou liberdade para
prova durante a execução da pena, uma vez que não conseguem mostrar melhorias no seu
comportamento que permita ao Juiz do TEP emitir um juízo de prognose favorável sobre
a sua libertação provisória (quanto mais definitiva).

2ª) Aliás, a realidade confirma também que os condenados em PRI frequentemente


cometem crimes durante a reclusão, que, consequentemente, vêm aumentar as suas
condenações e transformar as suas reclusões em reclusões perpétuas.

3ª) Para os condenados em PRI a prisão serve como escola do crime, ao invés de servir
como escola de preparação para a vida em liberdade, que os ensine a viver conforme o
Direito.

4ª) Os condenados em PRI não eliminam ou neutralizam a sua tendência criminosa e


perigosidade durante a execução da pena. Os condenados em PRI são apenas colocados
em liberdade quando alcançam o cumprimento do limite máximo da PRI, logo, eles são
libertos sem estarem ressocializados e reabilitados. Na verdade, eles continuam a possuir
a tendência criminosa que dispunham à data da prática do crime e continuam a ser
perigosos.

Antes de avançar, importa salientar que o estudo prático realizado permitiu-nos


ainda compreender os grandes problemas jurídicos que o instituto da PRI suscita e

147
conduzir a dissertação buscando dar uma resposta aos mesmos, filtrando, assim, o que
seria de tratar na parte teórica.

A abordagem teórica, realizada através da análise da lei, doutrina e jurisprudência


sobre a PRI, permite-nos realizar também várias considerações finais sobre a construção
dogmática e teórica do instituto, nomeadamente as seguintes:

1ª) A figura do delinquente especialmente perigoso (que é por excelência o indivíduo que
deve ser condenado em PRI) tem contornos históricos muito antigos. Este indivíduo
considerado perigoso, vestido com diferentes roupagens ao longo dos anos, na verdade,
sempre existiu. O Direito começou por punir a vadiagem e a mendicidade, em seguida
evoluiu para a punição dos delinquentes de difícil correção até chegar à punição dos
delinquentes especialmente perigosos através do instituto da PRI, consagrado legalmente
no ordenamento jurídico português no ano de 1982. No fundo, percebemos que o Direito
inicialmente aplicou o Direito penal do castigo e mais tarde passou a aplicar o Direito
penal da cura e do tratamento. O estudo da história da PRI permite-nos concluir ainda que
a discussão sobre a natureza jurídica da prorrogação da PRI é uma discussão também
antiga e controversa, que pode ser resumida em duas linhas de pensamento: ou a
prorrogação se fundamenta na culpa pela personalidade, ou se fundamenta na
perigosidade do agente.

2ª) A PRI é constituída por três modalidades: delinquentes por tendência; delinquentes
alcoólicos e equiparados; delinquentes por incêndio florestal. Para se poder aplicar estas
modalidades de PRI é necessário preencherem-se os pressupostos formais e materiais de
cada uma das modalidades. Consoante a modalidade, é possível acrescentar à pena que
concretamente caberia ao crime dois, quatro ou seis anos. Concluímos, ainda, que depois
de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, caso seja necessário o
condenado em PRI continuar a cumprir mais tempo de reclusão, deve este transitar para
o regime de cumprimento de medida de segurança de internamento de inimputável e,
como tal, deve ser convertido em delinquente inimputável. É durante a execução da PRI
que o condenado descobre o tempo que efetivamente irá cumprir, consoante a avaliação
que é feita ao seu processo de ressocialização através do plano individual de readaptação
e da concessão ou negação de liberdade condicional ou liberdade para prova.

3ª) O instituto da PRI tem como finalidade principal a especial-preventiva denotada no


propósito ressocializador e inevitavelmente, a culpa é o limite e o pressuposto da pena de

148
prisão e a perigosidade do agente é o limite e o fundamento da medida de segurança. Isto
significa que a PRI é uma sanção mista e, como a construção do seu regime não coloca
em causa os princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade, podemos concluir
que tem natureza jurídica de uma pena de segurança e consagra um sistema de monismo
prático.

4ª) O delinquente especialmente perigoso condenado em PRI é um indivíduo imputável.


No entanto, o regime da PRI (n.º 3 do artigo 90º do CP) ordena que se aplique, depois de
cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, o regime de internamento de
inimputável e para tal converte «artificialmente», durante a execução da pena, este
indivíduo imputável em inimputável, por via da aproximação da figura da PRI à da
imputabilidade diminuída verificada pela perigosidade e pela incorrigibilidade denotada
na incapacidade de ser influenciado pelas penas (n.º 2 e 3 do artigo 20º do CP).

5ª) O n.º3 do artigo 90º do CP pode ter vários alcances, mas na verdade apenas tem um,
que é salvaguardar a constitucionalidade do regime, uma vez que, na prática, esta norma
não afere o estado de inimputabilidade do condenado em PRI de forma “séria” e muito
menos esse estado de inimputabilidade pode ser comprovado através de ideia de
incorrigibilidade. Além disto, esta transição de regimes e a conversão “automática” do
estado de imputabilidade em inimputabilidade também não vêm permitir maiores
perspetivas de ressocialização do condenado durante o internamento de inimputável. Isto
significa que os delinquentes imputáveis condenados em PRI são mascarados de
inimputáveis e o n.º 3 do artigo 90º do CP apenas serve como uma válvula de segurança
do sistema para imputáveis perigosos.

6ª) Durante a fase de execução da PRI tem de ser elaborado de forma obrigatória o plano
individual de readaptação do condenado. Este plano vem ensinar o condenado em PRI a
viver conforme o Direito e serve como um guia não coercivo de tratamento e de
ressocialização do condenado.

7ª) Durante a fase de execução da PRI o condenado, mediante o preenchimento de


pressupostos formais e materiais pode ser colocado em liberdade condicional (até ao
cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime) e em liberdade para prova
(depois de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime e até ser alcançado o
máximo legal previsto no regime da PRI).

149
8ª) O condenado em PRI tem ser colocado imediatamente em liberdade definitiva quando:
alcança o limite máximo legal estipulado no regime da PRI, mesmo que o estado de
perigosidade se mantenha (pois não se aplica o regime das prorrogações sucessivas
estipulado no n.º 3 do artigo 92º do CP); e quando o seu estado de perigosidade cessa,
caso já tenha cumprido a pena que concretamente caberia ao crime.

9ª) Por sua vez, o condenado em PRI não beneficia do regime da liberdade condicional
obrigatória e, não existindo um regime de liberdade para prova obrigatória, também não
beneficia do mesmo. Face a isto, concluímos que os condenados em PRI devem poder
beneficiar de liberdade obrigatória a cinco sextos da pena máxima legalmente admitida
pelo regime da PRI, ou seja, de «liberdade para prova obrigatória». Defendemos que a
aplicação desta liberdade funcionaria como uma medida de última oportunidade e de
ajuda do condenado em PRI e, no fundo, criaria uma solução de concordância prática
entre a liberdade definitiva e a liberdade obrigatória e de respeito pelo princípio de que a
libertação do condenado em PRI deve ser sempre provisória. Além do mais, a aplicação
desta liberdade permitiria atenuar as consequências negativas da conversão do
delinquente imputável perigoso em delinquente inimputável perigoso.

10ª) Os problemas estruturais do sistema prisional e de reinserção social têm afetado


gravemente o modo como a tarefa de reinserção social dos condenados em PRI tem sido
executada. Constatámos que os planos individuais de readaptação do condenado em PRI,
ou não são elaborados, ou, quando são elaborados, não são executados da melhor maneira
e consequentemente as medidas de flexibilização da pena como a liberdade condicional
e a liberdade para prova não são concedidas; e os condenados em PRI nem sequer têm
oportunidade de cumprirem a medida de internamento de inimputável num
estabelecimento especializado.

11ª) A falta de reinserção social dos delinquentes condenados em PRI (manifestada na


não ressocialização e na não reabilitação) conduz esta pena ao total insucesso e ao não
cumprimento da finalidade especial preventiva.

12ª) A forma como o instituto da PRI foi construído e organizado, dogmática e


teoricamente, à primeira vista, não colide com princípios constitucionais, uma vez que
não viola o n.º 1 do artigo 30º da CRP, nem os princípios referentes à preferência pelas
reações não detentivas, à culpa, à proporcionalidade e à socialização dos condenados.

150
13ª) As únicas violações no plano da constitucionalidade que se podem vislumbrar
ocorrem na fase de execução da PRI. Concluindo que o n.º 3 do artigo 90º do CP funciona
como válvula de segurança do sistema para delinquentes imputáveis perigosos de forma
a garantir a constitucionalidade do regime, isto na verdade significa que, quando o regime
da PRI ordena que se aplique um regime mais gravoso como é o da medida de segurança
de internamento de inimputáveis e converte “automaticamente” os condenados em PRI
em inimputáveis sem ter certezas sobre o seu estado de inimputabilidade e sem lhes
garantir mais perspetivas de reinserção social durante o cumprimento do internamento de
inimputável, é desproporcional e excessivo, portanto, viola o princípio constitucional da
proporcionalidade. Por outro lado, sendo o propósito ressocializador o que fundamenta a
prorrogação da PRI e a principal finalidade deste instituto, se a PRI não cumpre esta
função ressocializadora e reeducadora, o regime da PRI é igualmente aplicado de forma
desproporcional e excessiva, violando assim mais uma vez o princípio constitucional da
proporcionalidade. Não é proporcional aplicar-se uma pena tão grave e tão longa como a
PRI, se na verdade ela não cura nem trata o condenado.

14ª) No plano internacional, verificámos que o TEDH admite que se cumule uma pena de
prisão (com fundamento no artigo 5º §1 alínea a), da CEDH) com um regime subsequente
de privação da liberdade (com fundamento no artigo 5º §1 alínea e) da CEDH) que visa
o tratamento de delinquentes especialmente perigosos.

15ª) Conforme a jurisprudência do TEDH apresentada, concluímos também que para um


regime de tratamento subsequente ao cumprimento de uma pena de prisão ser legal à luz
da CEDH (no caso do ordenamento jurídico português, referimo-nos à parte da PRI que
consiste na aplicação de medida de segurança de internamento de inimputável depois de
cumprida a pena que concretamente caberia ao crime) é necessário: existir uma
perturbação mental (e consequentemente perigosidade) comprovada por perícia médica
averiguada no exato momento em que se aplica o regime de tratamento; ordenar o
cumprimento com fundamento na necessidade de tratamento médico especializado e
adequado, e não com fundamento no crime pretérito; aplica-lo através de tribunal
competente como uma medida de última ratio que é revista judicialmente de forma
frequente; executá-lo em instituição adequada que promova um ambiente terapêutico
eficaz capaz de produzir melhorias no condenado; distingui-lo de forma clara do
cumprimento da pena de prisão; garantir melhores condições materiais de privação da
liberdade; assegurar tratamento médico especializado adequado; proporcionar uma real

151
perspetiva de reintegração e ressocialização do condenado na sociedade que crie um
sentimento de esperança de libertação e, por último, garantir a colocação imediata do
condenado em estabelecimento adequado ao tratamento, ou quando não for logo possível
devido a indisponibilidade de vagas, garantir um tempo de espera razoável que respeite o
Direito à liberdade deste.

Após as considerações finais efetuadas quer sobre a abordagem prática quer sobre
a abordagem teórica, para finalizar, cumpre agora concluir: o modo como a pena
relativamente indeterminada tem sido executada espelha a total ineficácia do
instituto e uma aplicação desproporcional do mesmo, uma vez que, não cumprindo
a finalidade principal de ressocialização, este instituto transforma-se apenas num
modo eficaz de expiar a culpa e a perigosidade do agente ao invés de o tratar e curar.

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- Ac. n.º 336/2008, de 19 de junho de 2008, processo n.º 84/2008, relator Conselheiro
João Cura Marinho, disponível em:
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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- Ac. de 01 de julho de 1992, processo n.º 042851, relator Ferreira Vidal disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4d92bf2261081a8480
2568fc003ab752?OpenDocument.
-Ac. de 19 de abril de 1995, processo n.º 047346, relator Vaz dos Santos, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f6bf859d18f48fad802
568fc003ab9db?OpenDocument.
- Ac. de 22 de maio de 2003, processo n.º 03P1223, relator Pereira Madeira, disponível
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980256d8e003235af?OpenDocument.
- Ac. de 04 de novembro de 2009, processo n.º 540/08.3GCALM.S1, relator Armindo
Monteiro, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/29d0e16491a0607280
25767200387e64?OpenDocument.
- Ac. de 28 de maio de 2014, processo n.º 2849/10.7TXPRT.K.S1, relator Isabel São
Marcos, disponível em:
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- Ac. de 24 de Março de 2004, processo n.º 263/04, relator Orlando Gonçalves, disponível
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http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/63b75f59fdf3b5dc80
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- Ac. de 23 de fevereiro de 2011, processo n.º 2643/08.5PBAVR.C1, relator Paulo Guerra,
disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c97784bf923dcffd80
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- Ac. de 15 de outubro de 2014, processo n.º 497/10.0GBOBR.C1, relator Maria José
Nogueira disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/9c71a37d0a6594368
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- Ac. de 28 de janeiro de 1987 consultado em: Coletânea de Jurisprudência, Ano XII,
Tomo I, 1987, pp. 157-159.
- Ac. de 24 de janeiro de 2012, processo n.º 6187/10.7TXLSB-G.L1-5, relator José
Adriano, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/dae1b0aa78f82a37802
57999004a1fe6?OpenDocument.

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- Ac. de 19 de novembro de 2015, processo n.º 1558/10.1TXEVR-G-E1, relator Maria
Isabel Duarte, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/38c3f191f61dda7180
257f0e00407866?OpenDocument.
- Ac. de 18 de abril de 2017, processo n.º 1558/10.1TXEVR-G-E1, relator António João
Latas, disponível em:

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http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4dc46a80151add6980
25811400388a00?OpenDocument.

168
APÊNDICES E ANEXOS

APÊNDICE 1 – Requerimento à Ex.ª Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de


Lisboa

169
170
ANEXO 1 – Resposta ao Requerimento

171

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