Pena Relativamente Indeterminada
Pena Relativamente Indeterminada
Pena Relativamente Indeterminada
Faculdade de Direito
2019
2
“É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los. O meio mais seguro, mas ao
mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é
aperfeiçoar a educação”
Cesare Beccaria
3
AGRADECIMENTOS
4
5
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
6
ABSTRACT
The present master's thesis has as object of study the relatively indeterminate
penalty. The relatively indeterminate penalty is the institute par excellence to apply to
especially dangerous offender and applies a prison sentence cumulated with a measure of
security of internment of inimputable. For this purpose, the especially dangerous
delinquent is attributed to the punishable offender. Relying on healing and treatment, this
institute applies a penalty that exceeds the extent of the fault of the agent in the wrongful
act. A particularly dangerous offender convicted in a relatively undetermined sentence
must be drawn up during the execution of the sentence an individual readaptation plan
that influences the granting of parole or the freedom to prove if there are improvements
in its treatment. The especially dangerous offender knows only the time of penalty that
he will effectively fulfill during the execution phase of his sentence.
Thus, in the course of this study, it is imperative to understand if the way in which
this penalty is executed fulfills the special preventive purpose of resocialization, or, if it
does not comply, whether this penalty becomes an optimal means of atoning the guilt and
danger of the condemned.
KEY-WORDS
7
NOTAS DE LEITURA
8
SIGLAS E ABREVIATURAS
Ac. Acórdão
Art.º Artigo
Cfr. Confira
CP Código Penal
CRP Constituição da República Portuguesa
ed. Edição
i.e. Isto é
Ibidem. Mesmo autor, mesma obra, mesma página
Idem. Mesmo autor, mesma obra
MP Ministério Público
n.º Número
n.ºs Números
p. Página
pp. Páginas
PRI Pena Relativamente Indeterminada
RGEP Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais
ss. Seguintes
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TC Tribunal Constitucional
TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TEP Tribunal de Execução de Penas
9
10
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 15
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
11
CAPÍTULO III
1. Pressupostos de aplicação........................................................................................ 52
CAPÍTULO IV
12
CAPÍTULO V
1.2 Considerações.................................................................................................... 94
CAPÍTULO VI
REFLEXÕES
2.1 Violação do n.º 1 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa ........ 128
2.2 Violação dos princípios referentes à preferência pelas reações não detentivas, à
culpa e à proporcionalidade ................................................................................... 129
13
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 147
14
INTRODUÇÃO
15
legitimidade do instituto para ordenar que se aplique um regime mais gravoso como é o
de internamento de inimputáveis, a delinquentes imputáveis que são convertidos em
inimputáveis para o efeito? Qual é o sentido de se aplicar um regime que, para além de
ter como finalidade principal o tratamento e a cura de um delinquente, faz ainda depender
a duração da sua pena deste mesmo tratamento e cura que, na verdade, pode nunca vir a
existir ou, existindo, não produz os efeitos ressocializadores esperados?
16
dois casos práticos e os problemas subjacentes aos mesmos. Neste capítulo, o principal
objetivo é proporcionar ao leitor a oportunidade de conhecer este instituto na prática (ao
invés de conhecê-lo apenas enquanto construção teórica como é o habitual), mas também
tem ainda como objetivo guiar o leitor para os problemas que irão ser tratados nos demais
capítulos.
17
analisaremos a perspetiva de interpretação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,
nomeadamente a jurisprudência internacional relativa a regimes similares ao da pena
relativamente indeterminada, com o propósito de alcançarmos uma solução mais coerente
e equilibrada no Direito nacional.
18
PARTE I - ENQUADRAMENTO PRÁTICO
19
CAPÍTULO I
1
A realização da consulta dos processos relativos à apreciação da liberdade condicional e liberdade para
prova, na aplicação de uma pena relativamente indeterminada, iniciou-se com o envio de um requerimento
em 4 de dezembro de 2018 à Ex.ª Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a solicitar a
consulta dos autos que correm termos no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa (conforme apêndice 1).
Obtida a autorização necessária em 18 de dezembro de 2018, iniciámos a consulta e o estudo (conforme
anexo 2). Tivemos oportunidade de consultar nove processos no total, porém, devido à extensão destes e
da presente dissertação, foi necessário selecionar os processos que entendemos serem os mais relevantes.
20
O delinquente por tendência A foi detido preventivamente no dia 25/07/2012, data
em que começou a contar o início do cumprimento da sua pena. Os marcos a ter em conta
para efeitos de apreciação da liberdade condicional foram e serão as seguintes datas2:
- 01/07/2016 (data em que atinge o limite mínimo da PRI acrescido de dois terços do
remanescente da pena concreta, conforme n.º 1 do artigo 90º e o n.º 3 do artigo 61º do
CP);
Para apreciação da liberdade para prova, a data que importa é a de 19/06/2018 (data
em que atinge o cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime da PRI e a
totalidade da pena concreta que resulta do remanescente da revogação da liberdade
condicional, conforme n.º 3 do artigo 90º do CP).
O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa esclareceu que A cumpre duas penas com
naturezas diferentes. Sendo que a primeira tem uma natureza mista, nomeadamente de
pena até se mostrar cumprida a pena que concretamente caberia ao crime (neste caso 4
anos) e, a partir desse momento, é executada como medida de segurança até atingir o
limite máximo conforme estipula o n.º 3 do artigo 90º do CP. Ao passo que a segunda é
somente uma pena concreta e determinada. Por isso, a tramitação da liberdade condicional
neste caso obedece a um processado próprio, de modo a compatibilizar-se com os dois
regimes. Quando estiver cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, o regime
de tramitação passa a ser equivalente ao do internamento de inimputável com a renovação
da instância de dois em dois anos. Este tribunal explicou ainda: A deve esgotar primeiro
o cumprimento da pena concreta e determinada e só depois pode iniciar o cumprimento
do regime da medida de segurança. No fundo isto pressupõe, que, pelo menos e no limite,
o delinquente A deve ser «desligado» da PRI até à data em que atinge a pena que
concretamente caberia ao crime em que foi condenado numa PRI. Em seguida deve ser
«ligado» à pena concreta e só depois é que se volta a «religar» à PRI, regressando A nesta
2
Com o objetivo de se apurar os marcos de apreciação da liberdade condicional, neste caso, é necessário
conjugar as regras do n.º 1 do artigo 90º do CP respeitante à PRI e as do n.ºs 2 e 3 do artigo 61º e do n.º 2
do artigo 63º do CP respeitante à liberdade condicional em caso de execução sucessiva de várias penas.
21
altura novamente ao cumprimento da PRI, mas agora como medida de segurança. O
tribunal fundamentou este raciocínio com base nos princípios gerais de Direito e nas
exigências de prevenção geral e especial.
22
individual de readaptação que deve beneficiar de acompanhamento psicológico. Contudo,
apenas se regista uma entrevista na valência da psicologia. Durante os primeiros tempos
de reclusão, A não teve visitas nem qualquer projeto de trabalho. Entretanto, estabeleceu
uma relação afetiva em reclusão através da religião que partilha. A sua companheira
visita-o frequentemente e apoia-o financeiramente. Em meio livre, A pretende reintegrar
o seu agregado familiar que é economicamente carenciado e que reside num meio
comunitário indicado como problemático. Não tem assegurado nenhum projeto de
trabalho, mas mencionou que pode vir a trabalhar na empresa onde a atual companheira
trabalha (que não obstante as tentativas de contacto com a empresa, nunca se conseguiu
estabelecer uma ligação).
De forma sucinta apresentamos os motivos pelos quais o tribunal não conseguiu emitir
um juízo de prognose favorável nas três apreciações de liberdade condicional realizadas:
longo passado criminal e prisional; insucesso nas concessões de liberdade condicional
anteriores; historial aditivo associado à problemática na área da saúde mental com
prognóstico reservado; atitude criminal negativa, nomeadamente revelar baixa
consciência crítica relativa aos crimes praticados por si (justificando-os com o domínio
dos “espíritos do mal” e outras influências externas); percurso prisional insuficientemente
evolutivo ao nível da mudança de personalidade 3; não ter usufruído ainda de medidas de
flexibilização da pena e não ter uma rede ou suporte exterior consistente.
3
Note-se que a concessão da liberdade condicional, quer nas penas determinadas quer na PRI, não pode
depender do requisito da mudança de personalidade que se consubstancia essencialmente no
arrependimento e interiorização da culpa do condenado, uma vez que este requisito viola os princípios
23
Cabe concluir que a liberdade condicional de A foi sempre negada por falta de
preenchimento do pressuposto material.
Consta ainda dos autos, que A foi «desligado» do processo da PRI em 25/07/2016 (ou
seja, quando alcançou a pena que concretamente caberia ao crime de 4 anos de prisão),
para ser «ligado» ao cumprimento do processo da pena determinada resultante do
remanescente da revogação da liberdade condicional. Findo o cumprimento da pena que
concretamente caberia ao crime da PRI e da pena determinada, o Tribunal de Execução
de Penas de Lisboa ordenou o prosseguimento dos autos para o cumprimento do
remanescente da PRI como medida de segurança de internamento. Assim, em 19/06/2018,
este tribunal determinou que o delinquente A fosse «desligado» do processo da pena
determinada e «religado» novamente ao processo da PRI.
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade, de acordo com os artigos 1º, 18º, 25º, 26º e
27º da CRP. Na verdade, este requisito é sempre incompatível com o Estado de Direito Democrático, de
acordo com o artigo 2º da CRP.
24
Face ao exposto, concluímos que, de 25/07/2012 a 25/07/2016, o delinquente por
tendência A cumpriu 4 anos de pena de prisão que correspondem à pena que
concretamente caberia ao crime que resulta da aplicação da PRI. De seguida, de
25/07/2016 a 19/06/2018, cumpriu 1 ano 10 meses e 25 dias de pena de prisão que
corresponde ao cumprimento da pena determinada que resultou da revogação da liberdade
condicional. Por último, de 19/06/2018 até 19/06/2024, poderá vir a cumprir 6 anos de
internamento de inimputável que corresponde ao remanescente da aplicação da PRI. Isto
significa, que, à presente data, A já cumpriu a PRI até à pena que concretamente caberia
ao crime e encontra-se a cumprir o seu remanesceste, nomeadamente a fase de execução
da pena como medida de segurança de internamento de inimputável. A concessão da
liberdade para prova irá ser apreciada obrigatoriamente em 19/06/2020. Totalizando tudo,
verificamos que, desde julho de 2012 até ao momento, A está preso há 6 anos e 10 meses
e não beneficiou ainda de liberdade condicional. Cumulando ainda os dois períodos
anteriores de reclusão (sensivelmente de 5 anos e 10 meses e 6 anos e 8 meses) com este
em cumprimento, alcançamos rapidamente que A esteve encarcerado durante um total de
20 anos e 2 meses, ou seja, A viveu (ainda vive) mais de metade da sua idade adulta em
reclusão.
25
ii. Pena determinada de 5 anos pela prática de um crime de roubo que ocorreu durante
uma licença de saída jurisdicional em 28/08/2012.
- 12/08/2004 (data em que atingiu o limite mínimo da PRI, conforme o n.º 1 do artigo 90º
do CP);
Para a apreciação da liberdade para prova, a data tida em conta foi a de 12/08/2011
(data em que atingiu a pena que concretamente caberia ao crime, conforme o n.º 3 do
artigo 90º do CP).
4
Neste caso, para se apurar os marcos de apreciação da liberdade condicional importa apenas observar as
regras do n.º 1 do artigo 90º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 61º do CP.
26
A história de vida do delinquente B é a seguinte. No que diz respeito ao seu percurso
criminal registam-se antecedentes criminais pela prática de dez crimes de roubo, sete
crimes de furto qualificado e um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade
e averba condenações desde 1979. A primeira reclusão ocorreu aos 16 anos de idade e
desde essa altura que se registam longos períodos de reclusão intercalados com outros em
liberdade. Quanto aos demais dados pessoais, assinala-se que B é oriundo de um meio
socioeconómico desfavorecido e é o mais novo dos irmãos. A sua dinâmica familiar à
data da última condenação caracterizava-se por atitudes maternas de proteção enquanto o
seu pai lhe infligia maus tratos. O delinquente B em liberdade sempre viveu num meio
ambiente relacionado com a marginalidade e desde novo que frequentou instituições
tutelares de menores. Não concluiu o ensino básico e começou a trabalhar aos 14 anos de
idade. Nunca conseguiu exercer qualquer atividade profissional de forma regular. Desde
a sua adolescência que consome drogas. No ano de 1985 estabeleceu uma relação marital
de onde resultou uma filha. B manifesta dificuldades em antecipar o resultado das suas
ações e adota uma postura orientada para a satisfação imediata dos seus interesses e
elevada permeabilidade a pressões externas.
27
motivação para se manter abstinente. É referido que B revela pouco sentido crítico quanto
aos factos que motivaram a sua reclusão, não tendo ainda interiorizado o desvalor da sua
conduta e a necessidade de optar por outro estilo de vida.
28
onde está prevista a referida liberdade condicional obrigatória”. Mencionou, ainda, que
B está preso desde 12/04/1991 e já cumpriu mais de 20 anos de prisão que corresponde à
pena que concretamente caberia ao crime. Assim sendo, a instância para apreciação de
nova liberdade renova-se em 30/06/2013, de acordo com o n.º 3 do artigo 90º e n.º 2 do
artigo 93º do CP.
5
Importa notar que o TEP de Lisboa não devia ter afirmado que se apreciava na altura a liberdade
condicional, devia sim ter afirmado que apreciava a liberdade para prova, pois àquela data B já tinha
alcançado a pena que concretamente caberia ao crime (designadamente alcançou-a em 12/08/2011).
Repare-se que, desde a última apreciação da liberdade condicional que decorreu em 30/06/2011, passaram
dois anos para se verificar a renovação da instância. Portanto, na prática, o tribunal aplicou a regra do n.º 2
29
Técnico prestaram parecer desfavorável e o delinquente B prestou mais uma vez a sua
concordância à eventual concessão de liberdade condicional. Para o efeito, este tribunal
teve em conta todas as considerações acerca do delinquente já referidas anteriormente e
acrescentou que, embora tenha reiniciado as saídas jurisdicionais em março de 2011, as
mesmas terminaram em junho de 2012, visto que, durante o gozo de uma saída, B foi
conduzido ao estabelecimento prisional como suspeito pela prática de um crime 6.
Considerando esta última circunstância, e somando as demais referidas anteriormente,
este tribunal decidiu não conceder liberdade condicional pelo facto de não ser possível
efetuar novamente um juízo de prognose favorável acerca de B.
Posto isto, concluímos que o delinquente por tendência B esteve em reclusão durante
25 anos à ordem do processo da PRI, designadamente desde 12/04/1991 a 13/04/2016.
do artigo 93º ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP. E, pela mesma razão, deveria ter aplicado igualmente a norma
do artigo 94º do mesmo diploma legal. Como foi aplicada de forma errada a figura da liberdade condicional,
o TEP de Lisboa aferiu a liberdade provisória de B depois de cumprida a pena que concretamente caberia
ao crime nos moldes iguais à apreciação da liberdade condicional quando atingido o limite mínimo da PRI,
e não de acordo com a liberdade para prova que era a que na verdade estava em causa.
6
Durante a saída jurisdicional, B cometeu um crime em 28/08/2012 e veio a ser condenado em 30/01/2015
pelo Tribunal Judicial de Lisboa pela prática de um crime de roubo qualificado na pena de 5 anos de prisão
efetiva.
7
Nesta fase, também deveria ter sido apreciada a liberdade para prova, e não a liberdade condicional.
30
Logo, B cumpriu na totalidade a PRI. Durante a execução da PRI foram apreciadas nove
vezes as eventuais concessões de liberdade condicional8 e foram todas negadas, incluindo
a aplicação da liberdade condicional obrigatória a cinco sextos da pena de prisão. No ano
de 2012, durante o gozo de uma licença de saída jurisdicional, o delinquente por tendência
B cometeu um crime e veio a ser condenado em pena determinada de 5 anos de prisão
efetiva. À presente data, B encontra-se a cumprir a pena determinada e já cumpriu
integralmente a condenação em PRI. Cabe salientar que o delinquente B, tal como o A,
também viveu (ainda vive) mais de metade da vida adulta em reclusão.
2. Levantamento de problemas
Dos dois casos anteriormente apresentados resultam questões e problemas que vamos
em seguida destacar, com o objetivo de os analisarmos e tratarmos na parte II da presente
dissertação.
8
Recordamos que, nas duas últimas vezes, devia ter sido apreciada a liberdade para prova e não a liberdade
condicional.
31
inimputável. Recordamos que este problema foi suscitado pelo mandatário do delinquente
por tendência A no caso n.º 1. Assim, questionamos sobre qual o sentido e alcance da
consagração legal que ordena a transição de regimes, convertendo (aparentemente)
delinquentes imputáveis em delinquentes inimputáveis.
Para finalizar, da conjugação dos dois casos apresentados cabe levantar por último a
seguinte questão: se, na realidade, um delinquente condenado em PRI não é um
«verdadeiro» inimputável, como é possível este cumprir uma pena para além da
medida da culpa e qual o sentido de se aplicar um regime mais gravoso ao mesmo,
32
que impossibilita (por exemplo) que este beneficie de uma liberdade obrigatória a
cinco sextos da pena de prisão?
33
PARTE II - ENQUADRAMENTO TEÓRICO
34
CAPÍTULO II
1. Antecedentes históricos
A pena relativamente indeterminada foi consagrada pela primeira vez no Código Penal
de 1982, aprovado pelo Decreto de Lei n.º 400/82; desde essa época que persiste no
ordenamento jurídico português. Importa realçar que, embora a PRI só tenha sido
consagrada há 37 anos no nosso ordenamento jurídico, os principais conceitos inerentes
a este instituto, nomeadamente, conceitos como habitualidade, tendência criminosa e
personalidade perigosa remontam a séculos passados.
9
Por exemplo, no ano de 1389, os vagabundos em Espanha eram sujeitos a trabalho obrigatório e, no ano
de 1596, foram criados o “Rasphius d’Amsterdam” (onde os homens eram obrigados a trabalhar com
madeira) e o “Spinhuis” (onde as mulheres eram obrigadas a tecer). Similarmente, em França, o antigo
regime esforçou-se por neutralizar a existência de mendigos, vagabundos e as pessoas da má-vida,
designadamente no ano de 1770 criaram-se estabelecimentos onde os homens eram obrigados a tecer e as
mulheres a costurar. Repare-se que também em Inglaterra foram criados os célebres estabelecimentos
denominados por «Bride-wells» que mais não eram que casas de correção destinadas a criar hábitos de
trabalho. Cfr. MARC ANCEL: 1971, 47-49.
35
eram obrigados a prestar certos serviços (GUARDADO LOPES: 1995, 80 e ss.).
Igualmente, em 1409, as Cortes de Lisboa instituíram a figura do «Pai dos Velhascos»,
sendo este a pessoa responsável pela vigilância dos vadios e encarregue de encontrar amos
e trabalho para os mesmos.
Durante a idade moderna, com a entrada em vigor das Ordenações 10, consagraram-se
regras de punição para os vadios. Particularmente, as Ordenações Filipinas (1603)
ordenavam açoites públicos e pena de degredo para África por um ano. Os vadios podiam
ainda ser mandados para o Brasil ou para as galés pelo tempo que fosse determinado pelos
desembargadores do paço. Ainda nos séc. XVII e XVIII foram publicadas diversas
providências legislativas que refletiam esta realidade, nomeadamente: o Decreto de 1608
que repartia pelos bairros de Lisboa julgadores com o intuito de fiscalizar a prisão dos
vadios e mendigos (GUARDADO LOPES: 1995, 155-156); a lei de março de 1641 que
determinava a prisão para os vadios (GUARDADO LOPES: 1995, 157); e o alvará de 4
de novembro de 1755 que impunha como castigo que os vadios e mendigos tinham de
trabalhar nas obras da cidade (EDUARDO CORREIA: 1977, 104-105).
10
Até às ordenações, o sistema de punição português caracterizava-se pelo uso da vingança privada e da
composição pecuniária. Mais tarde, com o desenvolvimento do poder público proibiu-se o uso da vingança
privada e criou-se uma autoridade pública que concentrou em si o poder de punir e castigar os delinquentes.
Surgiu, assim, a necessidade de criar uma legislação de Direito penal, tendo sido esta consagrada e
compilada nas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603). Foi o livro V das
Ordenações que estipulou as regras de Direito penal. Cfr. AGOSTINHO FEVEREIRO/AUGUSTO
GOUVÊA: 1920, 69-72 e EDUARDO CORREIA: 1993, 101-104.
11
MONTESQUIEU defendeu a proporcionalidade entre o delito e a pena e BECCARIA, sendo discípulo
deste, defendeu que as penas deveriam ter uma finalidade exclusivamente preventiva, justificando a sua
tese com base no contrato social. Ambos os pensadores, afirmaram a necessidade de eliminar penas
arbitrárias e limitar o poder do Estado absoluto. Para tal, assinalaram que apenas a finalidade preventiva da
pena é que devia ser considerada, sendo guiada pela gravidade do crime e culpa do agente. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2004, 63-66.
12
A necessidade de reforma sentiu-se principalmente no Direito penal das Ordenações que se encontrava
em vigor, pois este caracterizava-se por aplicar penas arbitrárias, desproporcionais, cruéis, desiguais e
transmissíveis e tendo como a única finalidade da pena a repressão e criação de um sistema de terror. Tal
como se pode entender, todas estas características colidiam com os princípios humanísticos do iluminismo
e com as ideias liberais. Cfr. AGOSTINHO FEVEREIRO/AUGUSTO GOUVÊA: 1920, 72-74 e
EDUARDO CORREIA: 1993, 101-106.
36
será estabelecida sem absoluta necessidade”, e no artigo 11º: “toda a pena deve ser
proporcionada ao delito e nenhuma deve passar a pessoa do delinquente” (FIGUEIREDO
DIAS: 2004, 63-64). Foi assim, introduzido no ordenamento jurídico português, o que
nos dias de hoje designamos como dois princípios basilares do Direito penal, que são: o
princípio da proporcionalidade (consagrado no n.º 2 do artigo 18º da Constituição da
República Portuguesa) e o princípio da culpa (consagrado no artigo 1º e n.º 1 do artigo
25º da CRP e n.º 2 do artigo 40º do Código Penal).
No que concerne, à necessidade de ser efetuada uma reforma urgente no Direito penal
português das Ordenações destacamos a implementação do primeiro Código Penal
português em 1852, inspirado principalmente no Código Napoleónico de 1810
(EDUARDO CORREIA: 1993, 107)13. Este código assumiu como finalidade da pena a
prevenção geral, limitada pelos princípios da proporcionalidade e da culpa, já
consagrados na Constituição de 1822. Refletiu assim, nas palavras de FIGUEIREDO
DIAS, o “património ideológico do Iluminismo Penal” (FIGUEIREDO DIAS: 2004, 65).
Foram introduzidas neste código duas grandes novidades: a primeira foi a possibilidade
de se poder optar pela aplicação de uma pena fixa ou de uma pena variável 14; a segunda
grande inovação consistiu na adoção de três tipos de sanções penais: penas maiores, penas
correcionais e penas especiais para funcionários públicos (EDUARDO CORREIA: 1977,
116 e ss. e SOUSE E BRITO: 1986, 51-57).
Interessa destacar a pena correcional pois era a aplicada aos vadios e mendigos.
Inspirada na escola correcionalista de ROEDER15, a pena correcional distinguiu-se das
demais, pois defendia a possibilidade de correção dos delinquentes criminosos,
consagrando assim a nova finalidade das penas: a prevenção especial. Concretizando, a
13
EDUARDO CORREIA refere ainda que o código português também foi inspirado no código espanhol
de 1848, no código brasileiro de 1831, no código austríaco de 1803, no código de Nápoles de 1819 e numa
lei belga sobre o duelo.
14
A pena variável consiste na existência de uma moldura penal abstrata que varia entre um mínimo e um
máximo, em que caberá ao juiz determinar no caso concreto a medida concreta da pena. Enquanto a pena
fixa pressupõe uma pena fixa e concreta já determinada que será sempre essa que o juiz aplica, não deixando
espaço para interpretações casuísticas.
15
ROEDER pensador da época e defensor da escola correcionalista, opôs-se à finalidade retributiva da pena
e reafirmou o valor da prevenção especial na aplicação da pena. Cfr. João OSÓRIO: 2010, 18.
37
aplicação desta consistia no seguinte: depois de certos indivíduos serem declarados
vadios, eram punidos com uma pena correcional de 6 meses e de seguida teriam de
realizar trabalho pelo tempo que se considerasse necessário. Esta forma de punição
manifestava por um lado, a ideia de sentença indeterminada 16 e, por outro, a ideia de
medida de segurança ou complemento da pena17, que só mais tarde foram discutidas pela
doutrina.
Os mendigos foram equiparados aos vadios quanto à sua punição. A única ressalva
efetuada é que eram considerados mendigos todos os que mendigassem embora fossem
capazes de se sustentar pelo trabalho. A pena destes podia acrescer em mais dois anos,
quando simulassem alguma doença.
16
ANABELA RODRIGUES sublinha que a atual ideia de pena relativamente indeterminada teve origem
na indeterminação absoluta da pena. Inicialmente começou a ser aplicada em sentenças eclesiásticas,
progredindo para a aplicação na Constitutio Criminalis Carolina em 1532, em seguida para a aplicação na
Constitutio Criminalis Theresiana e foi até à aplicação das «Indeterminate Sentence» no Reformatório de
Elmira. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 288.
17
“(…) cumprida a pena, se o criminoso não der mostras de emendado, sofrerá mais algum tempo de prisão
a título de medida de segurança. (…) A medida de segurança é indeterminada como naturalmente é
indeterminado o perigo que ela tenta combater “. Cfr. ARMANDO PEREIRA: 1927, 53 -55.
38
ROEDER, defendeu que se devia abolir do código a distinção entre penas maiores e
correcionais, visto que a finalidade de todas as penas deveria ser apenas a de prevenção
especial, ou seja, de correção e emenda dos delinquentes (LEVY JORDÃO: 1975, 289-
313). Inspirando-se no sistema de filadélfia 18, pretendeu consagrar uma classificação de
criminosos condenados ao degredo, nomeadamente os incorrigíveis, os duvidosos e os
melhoráveis. Propôs, ainda, a consagração de um sistema da liberdade condicional de
origem francesa19 com o propósito de promover a ressocialização dos delinquentes e a
sua progressiva preparação para o reingresso na vida livre. Todavia, este projeto de
Código Penal não foi aprovado, mas as ideias consagradas no mesmo foram muito
relevantes para as futuras legislações20.
Só em 1886, com base na nova reforma penal de 1884, é que se consagrou um novo
Código Penal. Este Código Penal, influenciado pelas ideias da escola moderna ou positiva
(HERMAN MANNHEIM: 1984, 328-332; e EDUARDO CORREIA: 1971, 5-38) e de
autores como LOMBROSO, FERRI, GAROFALO (em Itália) e FRANZ VON LISZT
(na Alemanha)21, veio traduzir uma solução equilibrada relativamente às finalidades das
penas, harmonizando as finalidades retributivas com as preventivas (gerais e especiais).
A maior novidade transferida para este código foi a consagração de critérios para a
determinação concreta da medida da pena, tendo em conta as circunstâncias atenuantes e
agravantes.
18
O sistema de filadélfia consistia no isolamento total do delinquente. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2004, p.
67.
19
O instituto da liberdade condicional surgiu devido à verificação do aumento da reincidência no séc. XIX
e foi consagrado a primeira vez na lei francesa no ano de 1885, baseando-se na doutrina de BONEVILLE
DE MARSANGY de 1846, que se apoiou no instituto da liberté provisoire relativa a jovens delinquentes
em 1832 e no sistema dos tickets of leave adotado em 1853 no Reino Unido. Cfr. ALMEIDA COSTA:
1989, 401-431e FIGUEIREDO DIAS: 2011, 527-533.
20
A lei 1 de julho de 1867, logo no título I e no artigo 1º, consagrou a abolição da pena morte - Vide LUÍS
OSÓRIO: 1923, 9. O Decreto de 6 de julho de 1893 consagrou o sistema de liberdade condicional - Vide
EDUARDO CORREIA: 1993, 110.
21
Estes autores defendiam de um modo geral a substituição da finalidade ético-retributiva pela especial-
preventiva. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2004, 68.
39
cumprimento da pena. Adotava-se portanto, um sistema dualista (pena e medida de
segurança cumpridas em estabelecimentos diferentes)” (GUARDADO LOPES: 1995,
82).
22
A reforma francesa de 1885, inspirando-se na escola positivista, ultrapassou o conceito de reincidência e
consagrou o conceito de habitualidade. Paralelamente, consagrou também a aplicação de medida de
segurança privativa da liberdade a delinquente habitual que só terminaria quando o perigo que o mesmo
representasse se encontrasse extinto. Cfr. NORVAL MORRIS: 1951, 174-175; e ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 289.
23
No código penal português de 1852 esta ideia já existia quando se aplicava uma pena correcional como
demonstrado anteriormente. Contudo, ainda não era aceite como uma verdadeira aplicação de uma medida
segurança depois do cumprimento da pena de prisão. Salientamos ainda que o código penal suíço de 1893,
com base no pensamento de STOSS, estipulou a aplicação de medidas de segurança ao lado das penas como
processo subsidiário à pena aplicada a delinquentes por tendência. Similarmente, o código penal norueguês
de 1902 foi o primeiro código a implementar as medidas de segurança. Cfr. NORVAL MORRIS: 1951,
174 -175; e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 289.
24
Note-se que também os códigos penais: italiano, polaco, argentino, a lei belga de defesa social, o
Prevention of crime Act de 1908, e o projeto brasileiro seguiram esta diferenciação e distinguiam a pena da
medida de segurança. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 333-335.
40
1.1.4 Lei de 20 de julho de 1912
Uns anos mais tarde, em 20 de julho de 1912, foi publicada uma lei (LUÍS
GAMA/CASTRO BATISTA: 1923, 509 e ss.) que definiu com toda a clareza o regime
obrigatório para os indivíduos que eram declarados vadios.
O artigo 1º consagrou que vadio era “aquele que, sendo maior de 16 anos, não tenha
meios de subsistência, nem exercite habitualmente alguma profissão ou ofício, ou outro
mistér em que ganhe a sua vida (…) “. O artigo 5º equiparou a vadios os que “(…) sendo
maiores de 16 anos e não tendo ainda completado sessenta, incorressem por crime nas
condenações indicadas em alguns dos números seguintes; duas condenações em penas
maiores (…)”. Os artigos 7º, 8º e 9º equipararam a vadios: os que eram encontrados a
mendigar em terceira reincidência; os condenados por vícios contra a natureza em
segunda reincidência; os que mendigavam com simulação de doença e os que vivessem
à custa de mulheres prostitutas em primeira reincidência.
25
A criação de casas correcionais de trabalho e colónias penais agrícolas foi inspirada pela doutrina da
escola positiva italiana e da escola moderna alemã. Só em 1913 é que se criou um estabelecimento desta
categoria na Figueira da Foz. Em 1914 criou-se a Colónia Penal Agrícola de Valverde, o Forte de Monsanto
e uma casa de trabalho ao lado do Forte de Monsanto. Em 1915 criou-se a Colónia Penal de Sintra. Cfr.
GUARDADO LOPES: 1995, 84 e ss. e PINTO ALBUQUERQUE: 2003, 514-515.
41
recompensa por bom comportamento eram-lhes oferecidos prémios no trabalho, licenças
para saída nos dias de descanso e podia, ainda, ser-lhes concedida liberdade vigiada.
26
JIMÉNEZ ASÚA desenvolveu a ideia de sentenças indeterminadas e designou-as como «penas
determinadas à posteriori», apoiando-se na ideia de que o delinquente deveria ser submetido a um regime
penal exatamente como um doente é enviado para um hospital em que só sai de lá quando estiver
recuperado. Cfr. JIMÉNEZ ASÚA: 1913, 63.
27
Salienta-se a influência das reformas penais na Europa no nosso Direito, nomeadamente dos códigos
penais: norueguês, no ano de 1929; italiano, no ano de 1930; polaco, no ano de 1932; e alemão, no ano de
1933. Todos consagravam o conceito de criminoso habitual embora de maneira diferente, mas todos o
submetiam a prisão por tempo suplementar ilimitado, dependendo da necessidade de proteção da sociedade
contra a perigosidade do agente. Cfr. PINTO ALBUQUERQUE: 2003, 517-518.
42
conceitos (BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 353-355): os delinquentes habituais, os
delinquentes por tendência e os delinquentes indisciplinados.
28
BELEZA DOS SANTOS explica que delinquentes habituais são, por exemplo, “(…) os refractários ao
trabalho e os que cometem delitos patrimoniais (…), os que agem dominados por reactividade primitiva
(…), os delinquentes sexuais, com tendências para reincidir (…).”. Explica ainda que esta categoria se pode
dividir em subgrupos e que perante o subgrupo que nos encontramos, a abordagem que se realiza deve ser
diferente. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1959, 71.
29
“Não poderá ser outra a mensagem a retirar deste regime senão aquela de que, no limite, se permitia uma
prorrogação perpétua da pena”. Cfr. JOÃO OSÓRIO: 2010, 28.
43
e a mesma era obrigatória 30 durante um período de 3 anos prévios à concessão da
liberdade definitiva.
Significa isto que, em primeiro lugar, estes delinquentes habituais sofriam a pena que
lhes era imposta, traduzindo esta medida a finalidade de prevenção geral que se acreditava
ser necessária. Em segundo lugar, com o término da pena, se estes delinquentes se
mostrassem perigosos, cumpririam uma medida de segurança prorrogada e revista por
períodos de 2 anos até que mostrassem a idoneidade certa para seguir uma vida honesta,
caso contrário eram libertos. Esta última medida 31 cumpria a finalidade de prevenção
especial.
Assim sendo, os delinquentes por tendência eram aqueles que: 1) não eram
delinquentes habituais e eram imputáveis penalmente; 2) tinham uma tendência criminosa
que se presumia quando já tinham praticado pelo menos um crime grave contra pessoas
(exemplo: o homicídio a que corresponda uma pena maior); 3) revelavam perversão ou
malvadez (ou seja, uma insensibilidade ou prazer em causar sofrimento alheio); 4)
possuíam uma especial perigosidade. Em síntese, repare-se que esta subcategoria dos
delinquentes por tendência distancia-se da doutrina que faz referência ao “delinquente
nato”32, pois admite-se a possibilidade de correção, de emenda e de readaptação social
nos delinquentes por tendência. Os delinquentes por tendência teriam assim defeitos de
carácter que os influenciavam na prática de crimes graves contra as pessoas.
30
BELEZA DOS SANTOS refere que “como se trata de delinquentes de difícil correção, a lei não permite
que eles passem logo ao regime de falta de liberdade que têm na prisão para uma liberdade sem limites,
nem amparo. Obriga a uma fase preparatória de liberdade condicional, isto é, com obrigações que o
libertado tem de cumprir, sob pena de voltar a ser preso”. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1947, 25.
31
Observa-se ainda que BELEZA DOS SANTOS, relativamente ao cumprimento da medida de segurança
como prolongamento da pena, defende que a mesma deve ser cumprida no mesmo estabelecimento onde
foi cumprida a pena. Cfr. Idem, 24.
32
“O criminoso (nato) não passaria, segundo LOMBROSO, de um indivíduo que «reproduz na sua pessoa
os instintos ferozes da humanidade primitiva e dos animais inferiores». Cfr. FIGUEIREDO DIAS / COSTA
ANDRADE: 1984, 171-172. Pode-se ler igualmente em HERMAN MANNHEIM: 1984, 319: “(…) o
criminoso nato, delinquente nato (…), isto é, um individuo propenso, ou mesmo determinado, a praticar
crimes”.
44
Já os delinquentes indisciplinados eram aqueles que, estando presos, eram
inadaptáveis ao regime prisional comum, logo eram considerados também delinquentes
de difícil correção. Salienta-se, ainda, que enquanto os delinquentes habituais e por
tendência eram declarados como tal judicialmente pelo tribunal de julgamento, os
delinquentes indisciplinados eram declarados como tal pelo juiz de execução de penas.
33
A liberdade condicional obrigatória seria aquela que devia ser obrigatoriamente aplicada, por exemplo a
um delinquente de difícil de correção, e a liberdade facultativa seria aquela que podia ser ou não aplicada
a um delinquente, consoante fosse decidido por quem de direito. Cfr. ALMEIDA COSTA: 1989, 421-426.
45
Para finalizar, importa, para o estudo em causa, verificar que, relativamente à figura
da prorrogação da pena, consagrada pela reforma de 1936, surgiu uma grande
controvérsia doutrinária. MARIA JOÃO ANTUNES explica que a grande controvérsia
debruçava-se sobre a natureza jurídica da prorrogação ilimitada da pena de prisão,
podendo constituir um mero cumprimento ou prolongamento da pena, ou a execução de
uma medida de segurança (MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 25 e ss.). Ressalva-se que
o grande problema era que “a prorrogação ilimitada da pena de prisão «ultrapassava o
âmbito da responsabilidade do direito penal da culpa» (…)” (PINTO ALBUQUERQUE:
2003, 519). Quer isto dizer que a prorrogação perpétua da pena de prisão violava
frontalmente o princípio da culpa no Direito penal, dado que a culpa do agente é o
pressuposto e o limite da pena.
34
Note-se que, a certa altura, EDUARDO CORREIA parece demonstrar algumas dúvidas na posição
defendida por si: “Com esta prorrogação sem limites prévios – aliás de duvidosa legitimidade
constitucional: vide art. 8.º, 11.º II da Constituição -, sobreposta a uma pena que já engloba a culpa pelo
facto e pela personalidade, esquece-se que uma reação aplicada a um delinquente que já expiou toda a sua
culpa só pode pretender justificar-se por considerações de prevenção e de defesa da sociedade, nunca por
razões de justiça ou retribuição ética; caso em que tal reação perderá o seu ponto de apoio ético e não
deverá, por conseguinte, considerar-se uma pena. Para além disto porém – objetar-se-á – como se pode
pretender que a nossa lei consagra um sistema monista ético-retributivo, se o próprio Código Penal prevê a
existência de medidas de segurança e determina os casos em que elas são aplicáveis?”. Cfr. EDUARDO
CORREIA: 1993, 74 e 75.
46
à sua culpa, está demonstrada a possibilidade de futura delinquência e encontra-se
justificada a prorrogação como uma verdadeira pena.
35
De modo a compreender-se os possíveis inconvenientes que existiam quando se transferia um recluso
que sofreu uma pena para outro estabelecimento para cumprir a medida de segurança, deve consultar-se
BELEZA DOS SANTOS: 1947, 20-23.
36
BELEZA DOS SANTOS “(…) defendeu (…) a ideia de se tratar ali de uma verdadeira medida de
segurança; todavia escondida sob o desígnio de «pena», para efeitos de estabelecimento de um monismo
prático que considera preferível do ponto de vista da execução (…)”. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 557.
37
Esta ideia reflete o que nos dias de hoje designamos por possível violação do princípio do ne bis in idem,
consagrado no n.º 5 do artigo 29º da CRP, no sentido de ser proibida a realização de duplas valorações e
duplas punições do mesmo facto. Nomeadamente, a impossibilidade de se poder valorar duas vezes o
mesmo elemento na determinação da medida da pena, caso se use esse elemento como justificação para a
mesmo tipo de finalidades e fundamentos. Ou seja, valorar esse elemento duas vezes sem exercer duas
funções autónomas. Cfr. INÊS FERREIRA LEITE: 2016, 380-385 e 612-613.
47
Resumidamente, a doutrina designou o sistema implementado na reforma de 1936 ora
como «sistema monista ético-retributivo», ora como «sistema de monismo prático».
Compreende-se, pois, a reforma de 1936 consagrou uma conciliação entre as diversas
finalidades das penas, inspirando-se no relatório da Nova Reforma Prisional de 1884,
onde se pode ler: “(…) a pena deveria realizar em justa proporção as condições
necessárias de castigo, intimidação e emenda” (BELEZA DOS SANTOS: 1947, 8).
38
ALMEIDA COSTA mencionou que o instituto da liberdade condicional tinha uma «natureza híbrida».
Cfr. ALMEIDA COSTA: 1989, 429.
48
1.2.2 Código Penal de 1982
No seguimento das variadíssimas reformas e alterações que foram referidas
anteriormente, em 1963 foi elaborado um projeto de um novo Código Penal (EDUARDO
CORREIA: 1963, 108-113). Neste projeto destacou-se o trabalho de EDUARDO
CORREIA que, tendo em conta os pensamentos de FRANZ VON LISZT, apresentou um
novo sistema monista para os delinquentes habituais e perigosos39. Este autor introduziu
o conceito de pena relativamente indeterminada com o intuito de solucionar os grandes
problemas resultantes da implementação do sistema de prorrogação de penas 40.
Consequentemente, introduziu o conceito de sentenças indeterminadas 41 em Portugal,
mais concretamente de sentenças ou penas relativamente indeterminadas42. A pena
relativamente indeterminada teria um limite mínimo e um limite máximo, sendo que este
limite máximo seria inultrapassável43. A criação deste limite inultrapassável traduzia a
proibição de aplicação de penas de prisão perpétuas. Neste projeto de 1963, também fo i
discutida a natureza jurídica do instituto da liberdade condicional, nomeadamente a sua
aplicação nos casos de PRI (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 584).
O autor do projeto estipulou, no artigo 94º, que a PRI devia ser aplicada a um certo
tipo de crimes, nomeadamente, crimes contra o património, vadiagem, mendicidade,
prostituição, rufianaria, entre outros. O cumprimento da PRI devia ser realizado em
colónias agrícolas ou casas de trabalho, mas a principal finalidade da pena era sempre a
ressocialização do condenado. Igualmente, estipulou nos artigos 95º e 96º que, este tipo
39
GOMES DA SILVA entendeu que a pena relativamente indeterminada “(…) lhe parecia inconciliável
com a concepção «monista» tão apregoada pelo Autor do Projeto”. Cfr. ACTAS DAS SESSÕES DA
COMISSÃO REVISORA DO CÓDIGO PENAL: 1970, 171.
40
Já FIGUEIREDO DIAS acreditou que este instituto tinha muitas vantagens face à prorrogação indefinida
da pena, visto que, a PRI tem um máximo inultrapassável e torna mais fácil a sua execução e a socialização
dos delinquentes. Cfr: FIGUEIREDO DIAS: 2011, 558.
41
“(…) a chamada «sentença indeterminada» (…) impõe ao delinquente uma privação de liberdade cuja
duração não é fixada de forma precisa na decisão condenatória, ficando dependente de uma ulteriora
apreciação da autoridade a quem por lei compete pronunciar a libertação do recluso”. Cfr. ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 287.
42
Em conformidade com o movimento da Nova Defesa Social (defendido por MARC ANCEL e que
defendia os princípios da legalidade e da humanidade das penas), abandonou-se a ideia de que as sentenças
indeterminadas eram as sanções ideais para a criminalidade especialmente perigosa ou por tendência.
Defendeu-se as penas indeterminadas, não no seu sentido original de penas absolutamente indeterminadas,
mas sim no sentido de penas relativamente indeterminadas. O Código Penal Grego em 1950 implementou
a pena relativamente indeterminada para delinquentes habituais e profissionais. Cfr. MARC ANCEL: 1971,
19-21 e JOÃO OSÓRIO: 2010, 43-44.
43
Salienta-se a influência dos ensinamentos de FRANZ VON LISZT para a construção de EDUARDO
CORREIA: “Paralelamente à ideia de um limite superior que a retribuição ou a expiação sempre apontam,
ligada à necessidade prática de garantir os indivíduos contra arbítrios e de estimular a própria administração
penal na execução da sentença indeterminada, impõe que a esta seja fixado um máximo de duração. Com
o que somos conduzidos a uma pena relativamente indeterminada (…) para certo tipo ou tipos de
delinquentes (…)”. Cfr. EDUARDO CORREIA: 1971, 34 e ss.
49
de pena também deveria ser aplicada aos delinquentes com inclinação ou tendência para
o crime. A aplicação da PRI só aconteceria se: 1) o crime praticado e os crimes cometidos
anteriormente fossem dolosos; 2) da avaliação conjunta dos factos e da personalidade do
agente resultasse uma perigosa inclinação para o crime; 3) no momento da condenação a
perigosidade do delinquente persistisse; 4) caso os crimes anteriores tivessem sido
realizados já há mais de 5 anos, não podiam ser tomados em conta para a aplicação do
instituto44. O artigo 97º também consagrou a aplicação da PRI aos delinquentes com
menos de 26 anos de idade e que tenham sido condenados anteriormente em dois ou mais
crimes. Paralelamente, os artigos 98º e 99º previam a aplicação deste tipo de pena aos
alcoólicos e toxicodependentes. Neste tipo de indivíduos interessava unicamente que o
crime praticado anteriormente tivesse sido em estado de embriaguez ou de intoxicação
por consumo de estupefacientes, sendo que tal estado ou consumo tinha de estar associado
a um grau de dependência. O cumprimento da pena para alcoólicos e equiparados ocorria
em estabelecimentos próprios destinados a desintoxicação.
44
“Neste sentido se orientaram, por exemplo, a lei alemã de 1933, o projecto checo-slovaco e o projecto
brasileiro de ALCANTRA MACHADO”. Cfr. BELEZA DOS SANTOS: 1937/1938, 4.
50
número de crimes e quando demonstrassem que a sua personalidade revelava uma
acentuada inclinação para o crime. Excluiu-se ainda, deste código, a aplicação de PRI a
certas espécies de crimes.
51
CAPÍTULO III
1. Pressupostos de aplicação
O atual Código Penal regula o instituto da pena relativamente indeterminada nos
artigos 83º a 90º e distingue diferentes modalidades de aplicação deste instituto,
nomeadamente, consagra três modalidades: 1) delinquentes por tendência; 2)
delinquentes alcoólicos e equiparados; 3) delinquentes por incêndio florestal. Para se
poder aplicar qualquer uma destas modalidades é necessário que, num primeiro momento,
estejam preenchidos um determinado conjunto de pressupostos formais e, que num
segundo momento, estejam também preenchidos um determinado conjunto de
pressupostos materiais. Só depois de todos os pressupostos formais e materiais estarem
cumulativamente preenchidos é que podemos aplicar este instituto em qualquer de uma
das modalidades previstas na lei. Note-se que, se optarmos pela aplicação do instituto da
PRI, afasta-se a possibilidade de se recorrer ao instituto da reincidência, conforme
determina o n.º 2 do artigo 76º do CP45.
45
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04 de novembro de 2009, no processo n.º
540/08.3GCALM.S1, referiu: “Não é de considerar a aplicação da agravação da pena em virtude da
verificação da reincidência, nos termos do art.º 76.º, n.º 2, do CP, na medida em que as disposições sobre a
pena relativamente indeterminada prevalecem sobre as regras da reincidência, não havendo lugar à dupla
agravação”.
52
cometido anteriormente dois ou mais crimes dolosos a cada um dos quais tenha sido ou
seja aplicada prisão efetiva também por mais de 2 anos (…)”.
1º) Prática de crimes dolosos: este requisito formal diz respeito a uma exigência de
política-criminal. Sendo que, ao exigir-se a prática atual ou anterior de crimes dolosos,
acaba por exigir-se também que este instituto seja apenas aplicado a uma criminalidade
mais grave, que em princípio encontra na sua base uma carreira criminosa. FIGUEIREDO
DIAS explica que a prática de crimes negligentes pode demonstrar uma certa
perigosidade, porém, dada a natureza das coisas, a criminalidade mais grave não se liga
à partida aos crimes negligentes (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 564).
2º) Crimes punidos com prisão efetiva: note-se que este requisito formal tanto vale
para o crime atual como para o crime anteriormente praticado. Na aplicação deste
requisito a lei parece já não suscitar grandes dúvidas 46, uma vez que consagra
expressamente a expressão «prisão efetiva». Deste modo, sendo exigida a punição com
prisão efetiva, significa à contrário que a pena de prisão não pode ser suspensa na sua
execução nem substituída por outra pena.
46
Antes da revisão de 1995 a expressão «efetiva» não estava consagrada na lei, pelo que a doutrina discutia
qual a interpretação que devia ser atribuída somente à palavra «prisão». FIGUEIREDO DIAS tomou a
posição no sentido de que a palavra «prisão» apenas podia ser entendida como prisão efetiva. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 565.
53
Relativamente à exigência de prisão efetiva quanto ao crime anteriormente praticado,
FIGUEIREDO DIAS chama atenção para o facto de a lei não estatuir a possibilidade de
valer para o preenchimento do requisito em causa a prática anterior de crimes punidos
com medidas de segurança de internamento. Explica que, embora as medidas de
segurança de internamento se apliquem em regra a agentes inimputáveis, nada obsta a
que um delinquente por tendência possa ter praticado algum dia um crime em estado de
inimputabilidade. Por isso entende que a condenação anterior de um crime com medida
de segurança de internamento pode valer para o preenchimento deste pressuposto formal
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 564). No entanto, entendemos que esta interpretação não é
permitida em Direito penal à luz do princípio da legalidade previsto no artigo 1º do CP,
uma vez que extravasa o sentido das palavras da disposição legal e é prejudicial ao
arguido. Além do mais, repare-se que valorar o cumprimento de uma medida de segurança
para aplicação de uma PRI, é incoerente, dado que a medida de segurança não exige culpa
e a PRI exige.
54
transitadas em julgado ou não47. Com a consagração desta expressão na lei, passou a
entender-se com clareza que se permite que os crimes cometidos anteriormente possam
ser crimes que já tenham sido julgados e crimes singulares que estejam incluídos num
processo por concurso de crimes, ou seja, conclui-se que basta a mera prática de crimes
para o preenchimento deste pressuposto.
Interessa ainda realizar duas objeções sobre este requisito. A primeira diz respeito ao
que se designa de «prescrição da tendência» elencada n.º 3 do artigo 83º e n.º 3 do artigo
84º, que estatuem a regra que se, entre a prática do crime atual e a prática do crime
anterior, tiverem decorridos 5 anos esses crimes não podem valer para o preenchimento
do requisito elencado anteriormente. A lei estipula, ainda, que, se durante esses 5 anos, o
delinquente por tendência estiver a cumprir uma medida processual, pena de prisão ou
medida de segurança privativa da liberdade, o prazo dos 5 anos não é computado, dada a
impossibilidade de praticar crimes48. Todavia, esta solução dada pela lei levanta alguns
problemas, relativamente às situações em que os delinquentes cometam crimes mesmo
estando presos ou a cumprir medida de segurança 49.
A segunda objeção prende-se com a previsão do n.º 4 do artigo 83º e do n.º 4 do artigo
84º, que consagram que valem para o preenchimento deste 3º) requisito formal as
sentenças estrangeiras que aplicaram pena de prisão efetiva, desde que o ordenamento
jurídico português também aplique pena de prisão efetiva ao crime cometido 50.
47
Anteriormente grande parte da doutrina defendeu que só a condenação já transitada em julgado de um
determinado crime é que servia para preencher este requisito. Vide MAIA GONÇALVES: 1998, 282;
LEAL HERIQUES/SIMAS SANTOS: 2002, 982 e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 296. Em sentido
contrário, FIGUEIREDO DIAS: 2011, 566-567 defendeu que os crimes que cabem no processo por
concurso de crimes valiam para o preenchimento deste pressuposto, dado que o que interessa na PRI é o
problema da habitualidade do crime fundado na perigosidade do agente, e não a reincidência propriamente
dita.
48
FIGUEIREDO DIAS refere que a medida de coação processual privativa da liberdade deveria equiparar-
se às demais, contudo não é possível porque seria necessário recorrer-se a um argumento analógico que no
fundo acaba por desfavorecer a liberdade do delinquente por tendência. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011,
569. Diferentemente, PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 395 refere que as situações como os tempos de
detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação, prisão contínua e medida de
internamento não podem ser consideradas para este prazo de 5 anos, dado que não existe a possibilidade de
cometer crimes nessa altura. Contudo, refere que as situações como períodos de prisão em regime de
permanência na habitação ou regime de semidetenção já podem ser consideradas.
49
JOÃO OSÓRIO explica que um delinquente por tendência poderá praticar crimes dentro do
estabelecimento prisional e a prática destes crimes poderá manifestar uma acentuada inclinação para o
crime. Portanto, conclui que só não devem ser considerados os períodos de tempo em que o agente cumpriu
medida processual, pena de prisão ou medida de segurança privativas da liberdade se durante esses períodos
o agente não cometeu nenhum crime que esteja ligado à habitualidade criminosa que lhe é reconhecida.
Cfr. JOÃO OSÓRIO: 2010, 89-91 e nota rodapé 169.
50
Até a revisão de 1995, este preceito suscitou alguns problemas. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 568-569
referiu: quando a lei exigia que o facto fosse de novo julgado pelos tribunais portugueses, estava a efetuar
uma exigência inadequada e que levantava sérias dificuldades processuais, nomeadamente, implicava desde
55
Por fim, importa mencionar que, segundo FIGUEIREDO DIAS, os crimes cometidos
anteriormente devem ser uma repetição da prática de crimes da mesma natureza e não
uma mera repetição de crimes de naturezas diferentes. Este autor indica que deve haver
uma ligação concreta entre os vários crimes praticados, pois só assim se poderá aferir de
modo coerente a perigosidade do agente. Segundo este autor: “(…) parece dever exigir-
se que o perigo de repetição esteja ligado à espécie do ilícito-típico praticado (…)”
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 442-443). Em sentido oposto, CAVALEIRO FERREIRA e
PINTO DE ALBUQUERQUE entendem que não é obrigatória a verificação da mesma
natureza na prática dos diversos crimes (tendência homótropa), basta a mera verificação
da prática de crimes cometidos de forma reiterada mesmo que estes tenham naturezas
diferentes (tendência polítropa) (CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 25 e PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015, 396).
O n.º 1 do artigo 83º refere “(…) sempre que a avaliação conjunta dos factos
praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime,
que no momento da condenação ainda persista”.
O n.º 1 do artigo 84 º remete para o n.º 1º do artigo 83 º, quando refere “(…) sempre
que se verificarem os restantes pressupostos fixados no n.º 1 do artigo anterior”.
logo uma quebra com o princípio processual da imediação da prova. No entanto, dada a nova redação este
problema deixou de ser suscitado.
51
O Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23 de fevereiro de 2011, processo n.º
2643/08.5PBAVR.C1, explica que a aplicação de uma PRI não resulta “ipso facto” da verificação de
requisitos formais, mas que é necessário efetuar um juízo de valor alicerçado em factos provados sobre a
personalidade do agente e que estes factos devem constar do despacho de pronúncia e da acusação. O
arguido não pode ser surpreendido com aplicação de uma medida tão gravosa como é a PRI, sem lhe ser
concebida a possibilidade de defesa quanto à mesma.
56
fruto de um hábito adquirido, mas que basta a mera comprovação de que essa tendência
existe, ou seja, é irrelevante que a tendência seja inata ou adquirida por habitualidade 52.
O autor explica, ainda, que, para se poder analisar e avaliar a personalidade do delinquente
em causa, tem que se considerar as circunstâncias da sua vida, nomeadamente a situação
familiar, a vida profissional e os tempos livres. E repare-se que, para efeitos de verificação
da acentuada inclinação para o crime, tanto pode valer a tendência homótropa ou a
tendência polítropa, consoante a posição que se adote. Contudo, independentemente da
posição adotada, a doutrina e a jurisprudência referem que é sempre essencial observar
os crimes e as condenações anteriores, mesmo que estas não se possam ter em conta para
o preenchimento dos pressupostos formais (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 572; PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015, 396 e Ac. do STJ de 22 de maio de 2003, processo n.º
03P1223). Salientamos que este entendimento doutrinal e jurisprudencial é muito
duvidoso do ponto de vista do princípio da legalidade – n.º 3 do artigo 1º do CP, visto que
coloca em causa, por exemplo o limite legal de consideração da tendência criminosa
previsto no n.º 3 do artigo 83º do CP, quando admite que se valorem os crimes cometidos
há mais de 5 anos. Note-se ainda que a acentuada inclinação para o crime deve persistir à
data da condenação, senão não se encontram justificadas as necessidades de prevenção
especial que a PRI assume (PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 396).
52
FIGUEIREDO DIAS menciona que este foi o grande avanço do código 1886 para o código de 1982, uma
vez que se abandonou a distinção entre delinquentes habituais e delinquentes por tendência, passando a
existir apenas delinquentes especialmente perigosos. Chama atenção que a PRI consagrada nestes termos
pode ser aplicada a imputáveis diminuídos. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 570-572.
53
FIGUEIREDO DIAS chega mesmo a levantar a questão de saber se o instituto da PRI não se devia aplicar
apenas aos casos de grande criminalidade e de acentuada inclinação para o crime demonstrada por ela, visto
57
1.1.3 Limites legais de duração
O n.º 2 do artigo 83º prevê que se aplique aos delinquentes por tendência grave “(…)
um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que concretamente caberia ao
crime cometido e um máximo de correspondente a esta pena acrescida de 6 anos, sem
exceder os 25 anos no total”.
Para os casos de delinquência por tendência menos grave dispõe o n.º 2 do artigo 84º
que se aplique “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime e um máximo correspondente a esta pena acrescida de 4
anos, sem exceder os 25 anos no total”.
Concluímos, assim, que a sentença que aplique o instituto da PRI tem de estabelecer
de forma clara a pena que concretamente caberia ao crime, pois só assim é que se pode
criar a moldura penal abstrata, constituída por um limite mínimo e um limite máximo
inultrapassável. Se a pena que concretamente caberia ao crime não estiver estabelecida,
não é possível determinar a duração efetiva desta pena, como iremos observar mais
adiante.
Nos termos do n.º 1 do artigo 85º, “se os crimes forem praticados antes de o agente
ter completado 25 anos de idade, o disposto nos artigos 83º e 84º só é aplicável se aquele
tiver cumprido prisão no mínimo de 1 ano”. Ou seja, os casos «especiais» previstos na lei
aplicam-se aos menores de 25 anos de idade. A ideia subjacente a estes casos especiais é
a de que, até aos 25 anos de idade, a personalidade do agente em causa ainda não alcançou
a completa maturidade e como tal, o instituto da PRI deve ser aplicado de forma atenuada
no que concerne ao limite máximo da PRI54. Menciona-se também que, devido à tenra
o particular peso que este instituto representa para o delinquente por tendência. Assinala esta ideia em
comparação ao código penal alemão que exige que se aplique medida de internamento de segurança só para
os factos penais significativos ou importantes, ou seja, só para a alta criminalidade. Cfr. FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 573. Deve consultar-se, ainda, INÊS FERREIRA LEITE: 2016, 612 nota de rodapé n.º 6330
que se pronuncia igualmente neste sentido.
54
Antes o Código Penal, para os casos especiais do artigo 85º, permitia que se aplicasse por exclusiva
remissão o regime do artigo 84º previsto para os delinquentes por tendência menos graves. Já o regime do
artigo 83º, previsto para os delinquentes por tendência mais grave, não podia ser aplicado por remissão aos
menores de 25 anos de idade, uma vez que a lei não o consagrava. Por esta razão FIGUEIREDO DIAS
58
idade e à falta de maturação da personalidade deste tipo de delinquentes, é mais fácil
aplicar esforços de socialização alternativos à pena de prisão (TERESA BELEZA: 1983
(1), 27-28; JOÃO OSÓRIO: 2010, 97-98 e ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 295)55,
de modo a atenuar-se os efeitos negativos que esta pena pode causar 56.
Deste modo, o nº 1 do artigo 85º remete para os regimes dos delinquentes por
tendência grave e menos grave e estatui como pressupostos formais que o delinquente
tenha menos de 25 anos de idade e que já tenha cumprido no mínimo 1 ano de prisão
efetiva em virtude de condenação anterior. O pressuposto material, nestes casos especiais,
mantém-se o mesmo, nomeadamente a acentuada inclinação para o crime que no
momento da condenação ainda persista. O n.º 3 do mesmo artigo refere que o prazo de
prescrição da tendência criminosa, em vez de ser de 5 anos é de 3 anos. Por último,
também o n.º 2 estipula que a aplicação da PRI nestes casos implica que o limite máximo
corresponda a um acréscimo de 4 ou 2 anos de prisão que concretamente caberia ao crime,
consoante se apliquem as submodalidades de delinquência por tendência grave ou menos
grave. Os limites mínimos mantêm-se iguais, pois aplica-se um mínimo correspondente
a dois terços da pena de prisão que concretamente caberia ao crime, conforme previsto
no n.º 2 do artigo 83º e no n.º 2 do artigo 84º do CP.
referiu que a política criminal que estava subjacente no artigo 85º era questionável, uma vez que a
delinquência por tendência é cada vez mais um fenómeno dos jovens imputáveis com menos de 25 anos e
a lei não permitia a aplicação do regime mais grave do artigo 83º. Concluiu, assim, que a ideia do artigo
85º só se encontraria justificada, caso fosse consagrada na letra da lei a possibilidade de o artigo 85º ser
aplicado aos dois tipos de delinquência por tendência. A letra da lei mais tarde veio consagrar o defendido
por FIGUEIREDO DIAS, logo esta problemática deixou de ser relevante. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011,
575.
55
Porém, FIGUEIREDO DIAS pronuncia-se em sentido divergente referindo que não há provas que estes
agentes tenham hipóteses acrescidas de socialização ou sofram maior estigmatização pelo cumprimento de
uma pena de prisão. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 575.
56
TERESA BELEZA menciona que se deve minorar os efeitos negativos da institucionalização e deve-se
lutar contra a estigmatização que deriva das medidas não detetivas. Cfr. TERESA BELEZA: 1983 (2), 168.
59
As considerações realizadas para as submodalidades de delinquência por tendência
grave e menos grave valem para esta submodalidade, desde que se realizem as devidas
adaptações.
57
“O alcoólico distingue-se da pessoa com tendência para abusar de bebidas alcoólicas e a diferença reside,
segundo o autor do projeto do CP, na circunstância de o «alcoólico» padecer de uma embriaguez crónica
que lhe altera a personalidade”. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 400.
58
O toxicodependente é a pessoa que padece de uma dependência que lhe provoca uma alteração
psiquiátrica da personalidade e a pessoa com tendência para abusar de estupefacientes é a pessoa que
embora não tenha uma dependência tem uma inclinação séria para o seu consumo. Cfr. Idem, 401.
59
ANASTASIYA MYRNA, no estudo empírico realizado a condenados em PRI, conclui similarmente que
este artigo não é usado, mesmo quando nos encontramos em casos claros de preenchimento da previsão
desta norma. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 131-132.
60
formais remetemos para as considerações efetuadas anteriormente o ponto 1.1.1 para a
modalidade de delinquentes por tendência.
A grande novidade desta modalidade, em relação à analisada anteriormente, é que o
n.º 1 do artigo 86º exige “(…) sempre que os crimes tiverem sido praticados em estado
de embriaguez ou estiverem relacionados com o alcoolismo ou com a tendência do
agente”. Entende-se, assim, que o pressuposto material desta modalidade é a tendência
para comportamentos aditivos, exigindo-se uma especial relação entre o facto e a
tendência aditiva do agente. Ou seja, é necessário “(…) que o facto praticado seja
expressão da tendência que possui o agente e que, em consequência, deste sejam de
esperar novos factos ilícitos-típicos da mesma espécie” (FIGUEIREDO DIAS: 2011,
578). FIGUEIREDO DIAS elucida que, em respeito ao princípio da proporcionalidade,
esta «causalidade interna» tem de ser exigida, visto que o objetivo desta modalidade é
combater as tendências para o álcool ou drogas quando as mesmas manifestem um perigo
de continuação da realização de crimes de certa gravidade (Ibidem). PINTO DE
ALBUQUERQUE refere, mais uma vez, que também nesta modalidade de delinquência
não é exigível a verificação de uma tendência homótropa (PINTO DE ALBUQUERQUE:
2015, 400-402).
1.2.2 Limites legais de duração
Relativamente aos limites legais de duração, prescreve o n.º 2 do artigo 86º que se
aplique “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime cometido e um máximo correspondente a esta pena
acrescida de 2 anos na primeira condenação e de 4 anos nas restantes, sem exceder 25
anos no total”. Para este efeito, vale o que mencionámos anteriormente no ponto 1.1.3
deste capítulo, visto que é sempre necessário determinar de forma clara a pena que
concretamente caberia ao crime.
O artigo 87º do CP estipula que a execução desta pena é orientada no sentido de
eliminar o alcoolismo ou a toxicodependência do agente ou combater a sua tendência para
abusar de bebidas alcoólicas ou drogas (Ac. do STJ, de 01 de julho de 1992, processo n.º
042851). Significa isto que a aplicação de menos ou mais pena, consoante se trate da
primeira ou segunda condenação, justifica-se pela perigosidade e prevenção especial, e
nunca através da culpa e da retribuição, tal como ensina FIGUEIREDO DIAS, dado que,
neste tipo de agentes, a multireincidência legitima que se submeta o agente a tratamentos
de desintoxicação de álcool e drogas mais profundos e prolongados (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 579).
61
1.3 Delinquentes por incêndio florestal
Para finalizar, analisemos a última modalidade de aplicação deste instituto. A Lei n.º
94/2017, de 23 de agosto, veio aditar ao Código Penal o nº 4 e do artigo 274º - A, e
estabeleceu a possibilidade de se poder aplicar uma PRI aos delinquentes que pratiquem
o crime de incêndio florestal previsto no artigo 274º do CP60. Este aditamento ao código,
tal como explica MARIA JOÃO ANTUNES, teve como objetivo criar uma sanção de
natureza penal que simultaneamente fosse a “mais adequada à tutela dos bens jurídicos
protegidos pela incriminação” e, por outro lado, respondesse às necessidades de
“reintegração do condenado na sociedade” (MARIA JOÃO ANTUNES: 2018, 9-20). A
exposição de motivos da proposta de Lei n.º 90/XIII mencionava que a PRI deve ser
aplicada aos agentes imputáveis com acentuada inclinação para a prática de crime de
incêndio florestal, sendo esta “sanção orientada, na sua execução, no sentido de eliminar
essa acentuada inclinação, atendendo não apenas à culpa, mas também à perigosidade
criminal do agente” (PROPOSTA DE LEI N.º 90/XIII: 2017, 5).
1.3.1 Pressupostos
O n.º 4 do artigo 274º - A estatui que se aplique PRI a “quem praticar crime doloso
de incêndio florestal a que devesse aplicar-se concretamente pena de prisão efetiva e tiver
cometido anteriormente crime doloso de incêndio florestal a que tenha sido ou seja
aplicada pena de prisão efetiva (…)”. A lei consagra igualmente três pressupostos
formais: 1º) prática de crimes dolosos; 2º) punidos com prisão efetiva e 3º) cometidos
anteriormente. Neste sentido, remetemos mais uma vez para as considerações já
realizadas no ponto 1.1.1 do presente capítulo. Contudo, importa ressalvar que este
preceito exige que o crime cometido atualmente e o crime cometido anteriormente, ambos
punidos com pena de prisão efetiva, devem ser sempre os dois especificamente crimes de
incêndio florestal, ou seja, os crimes têm de ser da mesma natureza e espécie. MARIA
JOÃO ANTUNES ensina o seguinte: “Diferentemente do que dispõe (…), a aplicação de
pena relativamente indeterminada ao agente da prática do crime de incêndio florestal não
depende da gravidade da pena de prisão efetiva aplicada ao crime anterior e ao reiterado,
da prática anterior de mais do que um crime e do não decurso do prazo de cinco anos
entre a prática do crime anterior e a do seguinte” (MARIA JOÃO ANTUNES: 2018,14).
60
A lei anterior apenas possibilitava, no n.º 9 do artigo 274º, a aplicação de medida de segurança, na forma
de internamento intermitente, a inimputável nos meses de maior ocorrência de fogos; e no mesmo sentido
também o n.º 2 do artigo 274º - A prevê esta possibilidade de aplicação de medida de segurança a
inimputável.
62
Relativamente ao pressuposto material, o n.º 4 do mesmo artigo refere: “sempre que
avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma
acentuada inclinação para a prática deste crime, que persista no momento da
condenação”. Importa também aqui ter em consideração a análise já realizada no ponto
1.1.2 deste capítulo, visto que o pressuposto material é o mesmo. Apenas salientamos, tal
como fizemos relativamente aos pressupostos formais, que para aplicação desta
modalidade de PRI a tendência criminosa tem de ser exclusivamente para a prática
de crimes da mesma natureza e espécie: crimes de incêndio florestal.
Resumidamente, esta modalidade de aplicação de PRI exige a verificação de uma
tendência homótropa quer na prática dos crimes anteriores quer na prática dos crimes
futuros. Isto é, exige-se uma tendência criminosa homótropa na prática e para a prática
de crimes de incêndio florestal.
1.3.2 Limites legais de duração
O n.º 5 do artigo 274º - A remete para os limites legais de duração do n.º 2 do artigo
86º e para a finalidade referida no artigo 87º com as devidas alterações. Quer isto dizer
que, para a modalidade da PRI aplicável a delinquentes por incêndio florestal, deve-se
aplicar igualmente “(…) um mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que
concretamente caberia ao crime cometido e um máximo correspondente a esta pena
acrescida de 2 anos na primeira condenação e de 4 anos nas restantes, sem exceder 25
anos no total”. Nesta modalidade de PRI, a execução da pena é orientada no sentido de
eliminar ou combater a perigosidade inerente à reiteração da prática de crimes de incêndio
florestal. Mais uma vez devemos recordar os ensinamentos de FIGUEIREDO DIAS já
referidos no ponto 1.2.2 deste capítulo: também aqui é a perigosidade e a prevenção
especial que legitimam a variação da pena aplicável consoante estejamos perante a
primeira ou a segunda condenação.
63
a moldura penal ou pena aplicável; 2º determina a medida concreta da pena ou a pena
aplicada; e 3º escolhe a espécie de pena e o âmbito das sanções aplicáveis (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 198-212). Aqui, o juiz de julgamento e o delinquente à data da sentença
alcançam a pena que este último efetivamente irá cumprir.
Ora, quando se aplica uma PRI, a determinação da pena não segue apenas o processo
«normal» que foi o enunciado anteriormente. Em caso de aplicação de uma PRI, em
qualquer das suas modalidades, inicialmente o juiz de julgamento realiza a tarefa de
determinação da pena conforme as três fases mencionadas, porém, essas fases não
chegam. Acresce a este processo «normal», um outro que se baseia em duas fases
distintas: 1º o juiz de julgamento determina à luz do artigo 71º do CP a pena que
efetivamente o agente deve cumprir; 2º o juiz de julgamento cria uma moldura penal
abstrata da PRI, que é constituída por limites mínimos e máximos consagrados na lei
(designadamente no n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2 do artigo 85º, nº 2 do
artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A do CP)61. A lei consagra ainda que o limite máximo
da moldura penal abstrata não pode exceder os 25 anos no total62. Portanto, na PRI, o juiz
de julgamento e o delinquente à data da sentença não alcançam a pena que este último
efetivamente irá cumprir.
61
Repare-se que, se estivermos perante um processo de aplicação de PRI em que haja pluralidade de crimes,
o TRL, no Ac. de 28 de janeiro de 1987 (COLETÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA: 1987,157-159),
mencionou que, em caso de concurso de crimes, deve fixar-se as penas parcelares para cada crime, depois
fixar a pena única e no final determinar a moldura penal abstrata da PRI. Problema diferente, mas
igualmente importante consiste em saber qual o procedimento adequado para a determinação da pena
quando temos de achar a pena única de concurso de crimes anteriores (aos quais se aplicou uma PRI e uma
pena determinada) e aplicar no final uma PRI. A este respeito, o STJ no Ac. de 19 de abril de 1995, processo
n.º 047346, entendeu que se deve realizar em primeiro lugar o cúmulo jurídico entre a pena determinada
(tendo em conta a pena efetivamente aplicada) e a pena relativamente indeterminada (tendo em conta a
pena que concretamente caberia ao crime), de forma a alcançar-se uma pena única. Em seguida, tendo como
base essa pena única, deve alcançar-se a PRI de acordo com a lei. MARIA JOÃO ANTUNES sufraga a
posição do STJ e conclui que este processo apenas pode ocorrer se, em todos os crimes em concurso,
estiverem preenchidos todos os pressupostos formais e materiais. Cfr. MARIA JOÃO ANTUNES: 1996,
307-321. NÉLSON FERNANDES acompanha a posição de MARIA JOÃO ANTUNES, mas menciona
que, quando não se verifique o preenchimento total dos pressupostos formais e materiais, deve o
delinquente ficar submetido ao cumprimento cumulativo de duas penas (pena determinada e PRI). Porém,
entende que a PRI deve ficar sujeita às regras do artigo 99º do CP (teoria do vicariato), porque a PRI ao
nível da execução corresponde a uma medida de segurança na parte em que excede a pena que
concretamente caberia ao crime. Conclui assim: “(…) a parte da PRI efetivamente cumprida pelo
delinquente, depois de pelo mesmo ter sido cumprida a parte da pena adequada à sua culpa, deve ser
descontada, quando for este o caso, na pena de prisão que o mesmo tiver para cumprir por força de outra
decisão proferida”. Cfr. NÉLSON FERNANDES: 2016, 43-71.
62
O objetivo desta estatuição é zelar pela constitucionalidade do regime, respeitando assim o preceituado
no n.º 1 do artigo 30 da CRP.
64
a execução da PRI, período em que são aplicadas as regras dos artigos 89º e 90º do CP.
Ao delinquente condenado em PRI deve ser elaborado um plano individual de
readaptação e, durante a fase da execução da pena, pode beneficiar de diferentes situações
de libertação. Distinguem-se no essencial duas situações: a primeira ocorre quando se
verifica a libertação do delinquente até ao cumprimento da pena que concretamente
caberia ao crime e a segunda ocorre quando se verifica a libertação do delinquente depois
de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime.
Em síntese, para se aplicar qualquer uma das modalidades de PRI tem de se criar
obrigatoriamente uma moldura penal abstrata constituída por limites mínimos e
máximos. Estes limites são criados usando sempre como referência a pena que
concretamente cabe ao crime, portanto, esta pena tem de estar sempre explícita de forma
clara na sentença condenatória. Todavia, note-se que a pena que concretamente caberia
ao crime pode ser ultrapassada (excedendo-se assim a culpa do agente). A única pena
inultrapassável é a medida da pena que consta do limite máximo da moldura penal
abstrata criada pelo juiz de julgamento mediante o regime da PRI.
65
O objetivo da criação da moldura penal abstrata é balizar os mínimos e máximos de
pena que poderão vir a ser cumpridos, pois só assim se consegue assegurar ao delinquente
a proibição de decisões arbitrárias e surpresas, dada a natureza de sentença indeterminada
que a PRI pressupõe. A moldura penal abstrata criada é também a única maneira de
garantir que esta pena não seja absolutamente indeterminada, mas só relativamente
indeterminada63.
Conclui-se, assim, que o limite da PRI é constituído por uma moldura penal abstrata
criada pelo juiz de julgamento e a que duração da pena fica dependente da fase da
execução da mesma.
2. Natureza jurídica
Após compreendermos os pressupostos, os limites e a duração do instituto da pena
relativamente indeterminada, podemos avançar para a análise da natureza jurídica deste
instituto, que é tão peculiar.
63
Só através da sentença relativamente indeterminada ou da PRI é que se consegue assegurar a
constitucionalidade do regime, à luz do n.º 1 do artigo 30 do CRP. A sentença absolutamente indeterminada
ou a pena absolutamente indeterminada corresponderiam a um regime inconstitucional à luz deste artigo.
66
tendência para comportamento aditivos (artigo 87º do CP) ou na tendência de reiteração
na prática de crimes de incêndio florestal (artigo 87º do CP ex vi n.º 5 do artigo 274º A).
Esta agravação e eventual prorrogação prosseguem a finalidade de prevenção especial,
que, no fundo, é a finalidade principal da PRI.
64
FIGUEIREDO DIAS entende que “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside
efectivamente numa incondicional proibição do excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui
o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer
considerações ou exigências preventivas (…). A função da culpa (…) é estabelecer o máximo de pena ainda
compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento
da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático”. Cfr. FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 79-80. No mesmo sentido GERMANO MARQUES DA SILVA entende também que “A
culpa é um elemento da estrutura do crime; não há crime sem culpa. Mas sendo pressuposto necessário
da pena é, além disso, elemento condicionante da sua própria medida, pois a pena não pode ultrapassar
a medida da culpa”. Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA: 2008, p. 27. Já CAVALEIRO FERREIRA
entende que “O princípio da «culpa» é o verdadeiro fundamento de toda a responsabilidade penal (…)”.
Cfr. CAVALEIRO FERREIRA: 1981, 412. Negrito nosso.
67
personalidade. Na sua obra explicou que um indivíduo que não corrigiu, tratou ou
educou o seu modo de ser de maneira a harmonizá-lo com um tipo de personalidade
condizente com os valores jurídico-criminais do sistema, isso só pode significar que esse
indivíduo realizou uma omissão do dever de corrigir a sua personalidade. E, com base
neste raciocínio, o autor defendeu ser possível aplicar a esse indivíduo uma pena agravada
e prorrogada que pode ir até ao ponto de restabelecer, reparar e readaptar a personalidade
desvaliosa do delinquente (EDUARDO CORREIA: 1945/1946, 24-35).
Num sentido próximo, ANABELA RODRIGUES afirma que o fundamento de
agravação e prorrogação da pena na PRI só pode ser a culpa do agente pela
personalidade desvaliosa e que a PRI é uma pena de culpa. Para o efeito, a autora
explica que a perigosidade de determinado indivíduo considerado especialmente perigoso
é irrelevante para o juízo de censura, que se realiza à sua personalidade, uma vez que um
indivíduo especialmente perigoso deve responder pela sua personalidade desvaliosa que
traduz uma acentuada inclinação para o crime. Portanto, a autora conclui que “esta pena
não será (…) uma pena de segurança, mas uma pena de culpa, que terá de possuir um
máximo de duração inultrapassável, correspondente ao máximo de pena suportado pela
culpa (agravada) do delinquente” (ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 293). Todavia,
explica que “se expiada a culpa, persistir ainda a perigosidade naturalística, nada pode
justificar a prorrogação da pena ou aplicação de uma adicional medida de segurança”
(Ibidem). No fundo, a autora entende que é possível prorrogar a PRI em dois, quatro ou
seis anos (criando-se assim um limite máximo legal de acordo com o regime da PRI),
desde que tal prorrogação se encontre suportada na culpa agravada do delinquente. No
entanto, refere que jamais é possível prorrogar a pena depois de alcançado o limite
máximo legal de duração estipulado na PRI, nem mesmo por razões de prevenção
especial.
65
A liberdade mencionada não é uma liberdade baseada no «poder agir de outra maneira», ou seja, não é a
conceção de liberdade em termos absolutos, visto que, FIGUEIREDO DIAS: 1983, 54 e 245-246 e CLAUS
ROXIN: 1983, 4-8 apresentaram obstáculos a esta liberdade: pelo facto de ser absolutamente inverificável
e por se revelar incapaz de responder às exigências político-criminais, designadamente aos níveis da
inimputabilidade, falta de consciência da ilicitude e inexigibilidade que são causas capazes de excluir o
68
correspondendo à atitude interior do agente, faz com que o mesmo tenha que responder
pela sua personalidade desvaliosa que é manifestada no facto-ilícito típico66. Logo,
conclui que a culpa de um delinquente especialmente perigoso pode ser uma culpa
agravada, pois a reiteração na prática de crimes é fundamento de maior culpa e legitima
uma pena mais pesada (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 559-560). Ora, isto significa que a
culpa da personalidade de um delinquente por tendência fundamenta a pena agravada, no
entanto, não fundamenta a prorrogação da pena.
Prosseguindo, FIGUEIREDO DIAS esclarece: a PRI não pode ser uma pena de
culpa, pois uma pena de culpa pressupõe que o julgador determine uma medida de culpa
no caso concreto e determine que a mesma seja inultrapassável. E não é isto que acontece
na PRI, pois o tribunal do julgamento, embora fixe a pena que concretamente caberia ao
crime em função da culpa do agente e de seguida crie uma moldura constituída pelo
mínimo e o máximo legal inultrapassável, em momento algum o tribunal de execução de
penas fica vinculado à aplicação da medida que concretamente caberia ao crime. O autor
clarifica que no instituto da PRI a pena que concretamente caberia ao crime pode ser
ultrapassada por razões de perigosidade até ao máximo legal estipulado. Só depois do
máximo legal permitido estar cumprido e, se a perigosidade de um agente persistir, é que
já nada se pode fazer. Portanto, refere que o quantum exato da pena só é determinado no
momento da sua execução e irá depender do estado de perigosidade que o delinquente
revelar (n.º 1 do artigo 92º ex vi n.º 3 do artigo 90º). Conclui assim: a perigosidade67 é
que fundamenta a aplicação de uma pena agravada e a prorrogação da pena para
além da medida que concretamente caberia ao crime. Afirma ainda que a prorrogação
da pena na PRI constitui uma verdadeira medida de segurança 68, pois encontra o seu
fundamento na perigosidade especial do agente e tem como finalidade principal a
especial-preventiva. Embora FIGUEIREDO DIAS admita que a natureza da PRI é de uma
«poder agir de outra maneira». Relativamente ao conceito de liberdade na formação da culpa afirma
também MARIA FERNANDA PALMA: 2005, 36 e 40: “Seremos culpados na medida em que formos
livres para obedecer ou desobedecer ao direito (…)“ e “(…) a liberdade que ao Direito parece interessar
não será, fundamentalmente, um fenómeno causal-naturalístico, corresponde antes à representação do poder
da subjetividade, do desejo sobre o mundo e do poder sobre modificações íntimas vividas”.
66
FIGUEIREDO DIAS afirma que a única via, para ligar a ideia de liberdade expressa no «poder agir de
outra maneira» à culpa, é a personalidade que o agente deu a si mesmo, que se manifesta no facto ilícito e
típico. Substituiu assim a conceção da culpa da vontade pela conceção da culpa no carácter. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 559 e FIGUEIREDO DIAS: 1983, 151-153.
67
Perigosidade interpretada no sentido de “uma probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes
de certa espécie. (…) Uma coisa é, em todo o caso, segura: não basta nunca a mera possibilidade de
repetição, pois que esta, em rigor, existe sempre; necessária é sempre uma possibilidade qualificada”. Cfr.
FIGUEIREDO DIAS: 2011, 441.
68
Perfilhando, assim, a opinião de BELEZA DOS SANTOS.
69
verdadeira medida de segurança, acaba no final por concluir que a PRI deve ser
considerada uma pena de segurança, ou seja, disfarça a “verdadeira natureza de medida
de segurança da PRI sob roupagem de uma pena” de forma a poder garantir a ideia de
monismo prático que acredita ser a mais vantajosa (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 563).
Antes de mais, importa explicar que o sistema punitivo português consagra duas
reações penais: as penas e as medidas de segurança sendo que ambas prosseguem
finalidades de prevenção. O n.º 1 do artigo 40º do CP esclarece que ambas as reações
penais visam “proteção de bens jurídicos” (ideia de prevenção geral) e “reintegração do
agente na sociedade” (ideia de prevenção especial positiva). Embora estas reações penais
prossigam finalidades iguais de modo geral, elas opõem-se uma à outra. Enquanto a pena
é inseparável do princípio da culpa, tal como determina o n.º 2 do artigo 40 do CP; já a
medida de segurança é inseparável do princípio da proporcionalidade, conforme
determina o n.º 3 do artigo 40º do CP. Ou seja, enquanto a pena pressupõe que seja
efetuado um juízo de culpa baseado na ideia de que “em caso algum a pena pode
ultrapassar a medida da culpa”, a medida de segurança pressupõe que seja efetuado um
juízo de perigosidade baseado na ideia que “a medida de segurança só pode ser aplicada
se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
69
Para este efeito relembra-se também o conceito de culpa jurídico-penal. Para FIGUEIREDO DIAS: 2011,
559: é a “(…) culpa da atitude interior manifestada no facto que leva o agente a ter de responder pelas
qualidades desvaliosas da sua personalidade que fundamentam aquele (…)”.
70
A doutrina portuguesa, com a qual concordamos (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 417-
423 e MARIA JOÃO ANTUNES: 2010/2011, 9), entende que o sistema dualista70 é um
sistema que permite que se possa aplicar cumulativamente, ao mesmo agente e pelo
mesmo facto, uma pena e uma medida de segurança71. Em sentido contrário, um sistema
monista é um sistema que reconhece a existência de penas e medidas de segurança, mas
só permite a aplicação de uma das reações penais, afastando a possibilidade de cumular
duas reações sobre o mesmo agente e pelo mesmo facto.
Ora, salientamos que é exatamente nestes últimos termos que se enquadra o regime
da PRI, sede em que se suscita a maior problemática quanto à querela entre monismo e
dualismo. Como já demonstramos, o instituto da PRI aplica os conceitos de culpa e de
70
Ou também designado por “sistema de la «doble vía»”. Cfr. HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS
WEIGEND: 2002, 865.
71
LOPES ROCHA faz referência a HANS-HEINRICH JESCHECK e afirma que o sistema dualista tenta
resolver conflitos entre fins das penas. Explicando que a culpabilidade pelo facto às vezes não chega para
responder à missão preventiva do Direito penal, visto que a duração da pena às vezes mostra-se insuficiente,
pois é necessário o tratamento pedagógico ou terapêutico dos delinquentes que não pode ocorrer durante o
cumprimento da pena. Cfr. LOPES ROCHA: 1983, 10.
72
Contudo, EDUARDO CORREIA entende que o sistema português deixaria de ser um sistema monista
se aplicasse medidas de segurança a imputáveis, visto que estas apenas deveriam ser aplicadas a
inimputáveis. Cfr. LOPES ROCHA: 1983, 9 e ss.
73
A imputabilidade significa que os agentes são capazes de culpa, ou seja, podem ser responsabilizados
penalmente. Sobre esta questão vide ANA SOFIA CABRAL/ANTÓNIO MACEDO/DUARTE NUNO
VIEIRA: 2009, 189.
74
A inimputabilidade significa que os agentes são incapazes de culpa e como tal não podem ser
responsabilizados penalmente. Vide: ibidem e artigo 20º do CP. Como exemplo da aplicação de medidas
de segurança a inimputáveis temos o artigo 91º do CP.
75
Repara-se que excecionalmente o código prevê que se aplique as duas reações penais a indivíduos
imputáveis, como é o caso da imputabilidade diminuída de delinquentes habituais, por tendência ou
análogos. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 413-415.
71
perigosidade e permite a aplicação cumulativa de penas e medidas de segurança ao
mesmo agente pelo mesmo facto. É o n.º 3 do artigo 90º do CP que permite que, durante
a fase de execução da sentença, aos agentes que se encontram a cumprir pena de prisão
(caso a liberdade condicional não for concedida ou for revogada e já tenham cumprido a
pena que concretamente caberia ao crime) se passe a aplicar o regime das medidas de
seguranças. Para tal é necessário converter o delinquente imputável em inimputável,
aplicando o instituto de fronteira da inimputabilidade que é o dos imputáveis diminuídos,
i.e., dos agentes que se revelem incapazes de ser influenciados pelas penas de acordo com
o n.º 3 do artigo 20º do CP. Note-se que este estado de inimputabilidade do condenado
em PRI só é alcançado na fase da execução, porque à data da sentença estes agentes foram
considerados capazes. Contudo, não importa agora tratar da discussão sobre a
imputabilidade ou inimputabilidade do delinquente condenado em PRI, mas, devido à
importância que tem, abordaremos este assunto posteriormente num capítulo autónomo.
72
execução, por exemplo, as penas de prisão são cumpridas em estabelecimentos prisionais
e as medidas de segurança devem ser cumpridas preferencialmente em unidades de saúde
ou estabelecimentos vocacionados para o tratamento. Além do mais, a execução de duas
reações sobre o mesmo agente criam mais tempo de reclusão que se espelha numa maior
dessocialização do condenado.
76
O sistema de vicariato na execução baseia-se nas seguintes ideias: 1) deve ser determinada qual a ordem
em que se cumpre as reações criminais; 2) a segunda reação cumpre todos os efeitos úteis que na primeira
não foram alcançados; 3) aplica-se na execução medidas substitutivas e medidas que favoreçam a
socialização tais como suspensão da execução e liberdade condicional. Note-se ainda que FIGUEIREDO
DIAS, com o intuito de ultrapassar as críticas realizadas ao sistema dualista, assumiu a essencialidade do
princípio da culpa. Todavia, referiu que o princípio da culpa não é o princípio jurídico constitucional de
todo o ordenamento jurídico, pois existem outras formas de limitar o poder sancionatório do Estado,
nomeadamente pela aplicação do princípio da proporcionalidade, em que se baseiam as medidas de
segurança. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 421-423 e MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 124-132.
77
Expressão de ZIPF citada por FIGUEIREDO DIAS. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 422.
78
“O novo Código Penal denomina a pena de segurança «pena indeterminada», mantendo o sistema monista
(…) “. Cfr. CAVALEIRO FERREIRA: 2010, 60.
79
MARIA JOÃO ANTUNES refere relativamente à aplicação da PRI na modalidade de delinquentes por
incêndio florestal: “Mantém-se, (…) intocada a opção por um sistema sancionatório monista, ainda que só
tendencialmente monista”. Cfr. MARIA JOÃO ANTUNES: 2018, 15.
73
a perigosidade do agente; porém, como entende que as duas reações penais devem ser
cumpridas no mesmo estabelecimento, conclui que a PRI mais não é que um sistema
monista prático. Já FIGUEIREDO DIAS conclui que a natureza jurídica da PRI é de uma
verdadeira medida de segurança, mas que deve estar mascarada de pena de segurança, de
modo a consagrar um sistema monista prático que é mais vantajoso face às críticas
realizadas ao sistema dualista. Relativamente aos fundamentos, FIGUEIREDO DIAS
conclui que a PRI é uma reação mista 80, pois, por um lado, aplica o conceito de culpa,
como pressuposto e limite capaz de, a partir dela, se poder calcular a medida concreta que
caberia ao crime e criar a moldura penal abstrata, pelo menos até ao cumprimento mínimo
da pena de prisão (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 562-563). Por outro lado, aplica o
conceito de perigosidade, como fundamento justificável para a utilização de uma medida
de segurança que é obrigatória dadas as exigências de socialização e de proteção. Este
último autor esclarece que o sistema de monismo prático não constitui uma «mera burla
de etiquetas»81, uma vez que não põe em causa o princípio da culpa nem o princípio da
socialização.
Por último, existe um terceiro grupo de autores, como TAIPA DE CARVALHO 82,
que defendem que a PRI consagra um sistema dualista. Na base deste entendimento, a
natureza jurídica da PRI é de cumulativamente se aplicar de forma mecânica uma pena e
uma medida de segurança, em que os fundamentos do instituto só podem ser igualmente
a culpa e a perigosidade.
80
Neste sentido também se pronunciam MARIA JOÃO ANTUNES: 2010-2011, 9 e JOÃO OSÓRIO: 2010,
116 e ss.
81
A expressão «mera burla de etiquetas» significa que apenas se faz o uso da expressão de monismo prático
para mascarar o sistema, porque na verdade está-se perante um verdadeiro sistema dualista.
82
TAIPA DE CARVALHO refere que a PRI consagra um sistema dualista, porque (…) é, real e
materialmente, um misto, um compósito de pena mais medida de segurança; logo, a conclusão inevitável
é a de que, a partir de 1982, o nosso CP passou a ser dualista, apesar da “burla de etiquetas”, isto é, da
designação como “pena” que pode enganar o menos atento à substância das figuras jurídicas”. Cfr. TAIPA
de CARVALHO: 2016, 87-88.
74
na tendência de reiteração na prática de crimes de incêndio florestal, que constitui a
principal e essencial finalidade deste instituto.
75
CAPÍTULO IV
83
Ao longo da presente dissertação iremos empregar o conceito de «delinquente especialmente perigoso»
para referir todos os tipos de delinquentes que o instituto da PRI engloba nas suas diferentes modalidades
de aplicação, nomeadamente: aos delinquentes por tendência; aos delinquentes alcoólicos e equiparados e
aos delinquentes por incêndio florestal.
76
tendência não possui em regra nenhuma doença mental nem é um indivíduo anormal,
logo não pode ser considerado inimputável (CARLOTA ALMEIDA: 2000, 112-113 e
TIAGO MARQUES: 2007, 135-161). Sem esquecer que, conforme expusemos no caso
n.º 1 referente ao delinquente por tendência A, também o Tribunal de Execução de Penas
de Lisboa se pronunciou neste sentido.
Quanto aos delinquentes alcoólicos ou equiparados, CARLOTA ALMEIDA e
JOÃO CURADO NEVES chamam a atenção para o facto de que não é por um agente se
encontrar em estado de embriaguez ou intoxicação que o mesmo alcança um verdadeiro
estado de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída capaz de afastar a sua
responsabilidade penal (CARLOTA ALMEIDA: 2003, 115-117 e JOÃO CURADO
NEVES: 2003, 140 e 149)84.
Por último, quanto aos delinquentes por incêndio florestal, CARLOS BRAZ
SARAIVA refere que estes delinquentes podem de facto sofrer de uma anomalia psíquica
que os torne inimputáveis, mas isto não significa que esta seja a premissa a adotar. Com
efeito, estes delinquentes podem igualmente ser portadores de perturbações da
personalidade denotadas numa personalidade antissocial, que mais não é do que um
estado de imputabilidade ou imputabilidade diminuída no Direito penal português
(CARLOS BRAZ SARAIVA: 2004, 109-118).
O regime da PRI declara como delinquente especialmente perigoso aquele que, para
além de preencher os pressupostos formais, preenche igualmente o pressuposto material
que é a acentuada inclinação para o crime, ou acentuada inclinação para o crime
proveniente de uma tendência para adoção de comportamentos aditivos, ou acentuada
84
Repare-se que CARLOTA ALMEIDA esclarece ainda: “(…) todos sabemos que um indivíduo
alcoolizado se encontra, mais ou menos, conforme os casos, afetado nas suas capacidades, mas parece
também evidente que raramente terá atingindo um ponto em que se possa dizer que não tem consciência do
teor dos seus actos ou não dispõe de nenhuma liberdade de decisão”. Conclui que existe uma grande
dificuldade em declarar-se a inimputabilidade do indivíduo descrito anteriormente e que, para além desta,
acresce ainda a dificuldade em considerar a imputabilidade diminuída do mesmo, visto que a
imputabilidade diminuída, prevista no n.º 2 do artigo 20º, permite que se declare artificialmente a
inimputabilidade, mas só em caso de anomalia psíquica “não acidental” e o consumo de álcool ou drogas é
claramente uma causa acidental. Cfr. CARLOTA ALMEIDA: 2003, 115-117.
77
inclinação para o crime de incêndio florestal. Na prática, isto significa que a lei “(…) não
os considera vítimas de uma deficiência congénita, meros doentes, mas agentes
responsáveis pelos seus actos” (CARLOTA ALMEIDA: 2000, 107).
85
Recentemente, surgiu a problemática de saber se as designadas «perturbações da personalidade» são
suscetíveis de afetar a capacidade do agente na prática do crime, de forma a torná-lo inimputável.
FERNANDO VIEIRA/ANA SOFIA CABRAL/CARLOS BRAZ SARAIVA: 2017, 152-157: entendem
que a figura do delinquente por tendência aproxima-se do conceito psiquiátrico de perturbação da
personalidade antissocial. Afirmam que não se sabe de forma consensual se as perturbações da
personalidade são uma verdadeira doença ou não, mencionando que, mesmo que sejam consideradas como
tal, é muito difícil enquadrá-las no quadro das anomalias psíquicas graves, portanto, permanecem fora do
n.º 2 do artigo 20º do CP. Contudo, referem ainda que se desconhece se estes agentes podem ou não
efetivamente aprender com o cumprimento das penas, ou se simplesmente não aprendem porque as penas
aplicadas não foram as adequadas ou suficientemente pesadas. Importa notar, ainda, que JOANA COSTA:
2010,15-21 e 32-35 demonstrou que a jurisprudência italiana numa decisão da Suprema Corte di
Cassazione, de 8 de março de 2005, fixou jurisprudência obrigatória relativamente à inclusão das
perturbações da personalidade no âmbito da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída e que,
contrariamente, a jurisprudência portuguesa inclui esta problemática no âmbito das circunstâncias
modificativas agravantes ou atenuantes da pena. Para o efeito deve-se consultar a título de exemplo o Ac.
do TRC, de 15 de outubro de 2014, proc. n.º 497/10.0GBOBR.C1.
86
“(…) já o dissemos mais do que uma vez, segundo o sistema da nossa lei, o delinquente habitual é um
ser imputável, penalmente responsável pelos actos cometidos”. Cfr. FERNANDO BARBOSA: 1942/1943,
33.
87
Repare-se que este artigo se aplica a todas as modalidades de PRI consagradas no Código Penal.
78
264). A inimputabilidade será exatamente o contrário, porém, esta é definida pela lei,
como iremos observar.
O artigo 20º do Código Penal é constituído por quatro números. O n.º 1 é a base do
conceito de inimputabilidade e estatui que é inimputável quem, por força de anomalia
psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de
se determinar de acordo com essa avaliação. O n.º 2 distingue-se do n.º 1, pois estipula a
denominada “inimputabilidade diminuída”, no sentido de possibilitar a declaração de
inimputabilidade de quem, por força de anomalia psíquica grave, não acidental e cujos
efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver no momento da prática
do facto, a capacidade de avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com
essa avaliação sensivelmente diminuída. Repare-se que tanto o n.º 1 como o n.º 2
consideram inimputáveis os indivíduos que por razão de anomalia psíquica 88 são
incapazes de culpa penal. O n.º 4 trata a figura da actio libera in causa e estatui que não
é considerado inimputável o agente que tiver provocado em si mesmo uma anomalia
psíquica com o intuito de praticar o facto ilícito. Por fim, o n.º 3 refere que, caso se
comprove a incapacidade do agente de ser influenciado pelas penas, pode-se aplicar a
situação prevista no n.º 2, isto é, pode converter-se o agente em inimputável. Salientamos
que existe uma grande diferença entre os preceitos que declararam a inimputabilidade,
pois, enquanto os n.ºs 1 e 2 remetem somente para o momento da comissão do crime ou
88
“(…) a anomalia psíquica inclui não apenas a doença mental (com base orgânica), mas também as
psicoses exógenas e endógenas, a oligofrenia, as psicopatias, as neuroses, as taras sexuais, as perturbações
profundas da consciência (patológicas ou não patológicas). Portanto, a anomalia psíquica pode ser acidental
ou transitória (…), mas não inclui a tendência para o crime, nem a herança caracterológica”. Cfr. PINTO
DE ALBUQUERQUE: 2015, 179-178
79
da prática do facto, o n.º 3 remete para o momento de execução da pena, uma vez que não
depende de fatores biopsicológicos.
Diante disto, temos de refletir em que consiste este preceito e quem é que ele pretende
integrar quando se refere à “comprovada incapacidade do agente para ser influenciado
pelas penas”.
Este preceito legal foi criado por EDUARDO CORREIRA, que apoiado na doutrina
de V. Liszt, entendia semelhantemente que o critério de delimitação dos imputáveis era,
“(…) não só a capacidade para uma determinação normal pelos motivos, mas ainda «a
capacidade para ser influenciado pelas penas»”. O autor acreditava que existiam dois tipos
de delinquentes imputáveis: os corrigíveis e os incorrigíveis. Diferenciava-os porque, aos
delinquentes imputáveis corrigíveis, devia aplicar-se uma pena, pois possuíam a
capacidade de determinação normal pelos motivos e ainda a capacidade para serem
influenciados pelas penas; quanto aos delinquentes imputáveis incorrigíveis, que eram os
delinquentes criminalmente perigosos, habituais ou incorrigíveis, devia declarar-se a
imputabilidade diminuída destes, uma vez que, embora possuíssem a capacidade para
avaliar a ilicitude do facto e se determinar em harmonia com essa avaliação, não possuíam
a capacidade para ser influenciados pelas penas. Ora, a declaração desta imputabilidade
diminuída convertia o delinquente em inimputável e era fundamentada na ideia da
incorrigibilidade (EDUARDO CORREIA: 1971, 31-33).
80
Adotando a doutrina de EDUARDO CORREIA para os dias de hoje, o atual n.º 3 do
artigo 20º do CP expressa duas ideias, como ensina MARIA JOÃO ANTUNES. A
primeira ideia traduz-se na regra de que só se deve aplicar uma pena a um delinquente, se
este for capaz de a compreender e, caso não a compreenda, a execução da pena deve ser
substituída por uma medida de segurança. Aqui a incapacidade de compreensão da pena
não está condicionada pelo elemento biopsicológico. A segunda ideia traduz-se na regra
de que é necessário que a pena realize de forma suficientemente capaz as exigências
preventivas gerais e especiais e, caso não o faça, deve ser igualmente substituída por uma
medida de segurança (MARIA JOÃO ANTUNES: 1993, 73-75)
89
Neste sentido, também se pronuncia FERNANDO VIEIRA/ANA SOFIA CABRAL/CARLOS BRAZ
SARAIVA: 2017, 157 quando referem: “(…) compreende-se que o legislador tenha aberto a porta a que
também estes indivíduos possam ser considerados inimputáveis, e serem sentenciados numa medida de
81
segurança a imputáveis, declarando-os, para esse efeito, artificiosamente, inimputáveis?”
(CARLOTA ALMEIDA: 2000, 97-102).
Para concluir, entendemos que a norma do n.º 3 do artigo 20º do Código Penal foi
criada para acolher a figura do delinquente incorrigível, ou seja, aquele que, ou não se
consegue reinserir socialmente, ou tem fraca probabilidade de reinserção social.
segurança, judicialmente preferida face à perigosidade destes indivíduos em alternativa a uma pena cujo
efeito por definição sempre seria nulo.”
82
múltiplos factores como sejam: os usos e costumes ancestrais, as características gerais da
população, o regime político vigente, a religião ou religiões dominantes, o estádio de
desenvolvimento da própria sociedade, as situações de estabilidade ou convulsão da
própria sociedade, etc…” (CARNEIRO DOS SANTOS: 1978, 72)90.
Face ao exposto, podemos concluir que existe uma grande aproximação entre a
figura da PRI e a figura da inimputabilidade por imputabilidade diminuída. É a
perigosidade e a incorrigibilidade do delinquente especialmente perigoso, revelada na
fraca esperança de recuperação e exigência de maior ressocialização, que justificam a
incapacidade de ser influenciado pelas penas, a equiparação a inimputável e a substituição
da execução da pena de prisão pela execução de uma medida de segurança.
90
Similarmente, JOSÉ MARTINS DA COSTA/NUNO MIGUEL CARNEIRO/PEDRO MIGUEL
COSTA: 2001, 43-44 referem que o conceito de perigosidade é plurívoco e dinâmico e só poderá ser
compreendido à luz da sua evolução histórica. Já esteve ligado à loucura, ao risco, e hoje em dia comporta
quatro vertentes que são: a jurídico-penal que prevê o procedimento pericial e a valoração dos antecedentes
criminais; a psicológica que é relativa às características da personalidade; e a criminológica que se resume
na questão de saber se o indivíduo vai ou não reincidir no crime.
91
Utilizando a expressão de EDUARDO CORREIA.
92
A este respeito, CARLOTA ALMEIDA: 2000, 118 explica que “a distinção que fará a triagem entre os
delinquentes que ficarão sujeitos ao regime da inimputabilidade e os que sofrerão uma pena (…) dependerá
assim, e apenas, do julgador. Não se fixando quaisquer referências que limitem a subjetividade”.
83
na prática, não existe uma separação das figuras, pelo contrário, existe uma comunicação,
que opera somente a partir do cumprimento da pena que concretamente caberia ao crime
cometido.
Porém, cabe destacar, que FIGUEIREDO DIAS defende que é irrelevante que a
PRI se aplique a agentes imputáveis ou imputáveis diminuídos, visto que esta pena apenas
tenta dar resposta à perigosidade que o agente manifesta (FIGUEIREDO DIAS: 2011,
571-572). PINTO DE ALBUQUERQUE ensina, igualmente, que o delinquente alcoólico
ou equiparado só pode ser condenado em PRI se for considerado um agente imputável ou
imputável diminuído, pois, sempre que o agente estiver inimputável pelo estado de
intoxicação, e tal estado não tenha sido provocado com o propósito de praticar o crime, o
mesmo deve ser considerado inimputável e aplicar-se uma medida de segurança. (PINTO
DE ALBUQUERQUE: 2015, 400). Porém, se o estado de intoxicação for provocado
dolosamente pelo agente imputável para praticar o crime, o agente deve ser considerado
imputável e responsabilizado por via da aplicação da designada actio liberae in causa
(MARIA FERNANDA PALMA: 2019, 65-68; TAIPA DE CARVALHO: 2016, 478-482
e TERESA QUINTELA DE BRITO: 1991, 141-159)
84
concretamente caberia ao crime cometido, o disposto no n.º 1 do artigo 92º e nos números
1 e 2 do artigo 93º e nos artigos 94º e 95º”.
Em nossa opinião, esta solução legal suscita algumas perplexidades. Será que a lei
consagrou esta solução porque entende que estes agentes são realmente incapazes de
serem influenciados pelas penas (e consequentemente inimputáveis) e, por isso,
necessitam de mais tempo de ressocialização? Ou a lei apenas consagrou esta solução
para prevenir possíveis problemas de inconstitucionalidade e mascarou estes agentes de
inimputáveis? Será, portanto, este preceito legal uma válvula de segurança de prevenção
de inconstitucionalidades, ou será muito mais do que isso?
Note-se que, por outro lado, o preceito legal supracitado permite a aplicação do
regime das medidas de segurança e da liberdade para prova aos delinquentes
especialmente perigosos, quando estes não puderem ser colocados em liberdade
condicional ou a liberdade condicional foi revogada, e já cumpriram a pena que
concretamente caberia ao crime. Com isto, parece-nos que, em segundo lugar, a lei tenta
salvaguardar igualmente, pelo tratamento e correção do delinquente especialmente
perigoso, visto que o mesmo oferece uma fraca esperança de recuperação e uma maior
exigência de ressocialização. Portanto, o n.º 3 do artigo 90º do CP terá também o alcance
85
de salvaguardar a prevenção especial positiva e negativa do delinquente especialmente
perigoso.
93
Existem condenados em pena de prisão determinada e concreta, relativamente aos quais, durante a
execução da pena, não é possível realizar um juízo de prognose favorável em ordem a conceder-lhes a
liberdade condicional. Na verdade, eles só beneficiam de liberdade condicional porque a lei assim o obriga,
uma vez alcançados os quintos sextos da pena. Na prática, isto significa que há muitos condenados (que
não em PRI) que, sendo já reincidentes no sistema prisional, chegam ao final da sua pena e não se encontram
reinseridos socialmente, e não é por isso que são considerados “incorrigíveis” e submetidos a uma medida
de segurança.
86
sua incorrigibilidade (manifestada na incapacidade de ser influenciado pelas penas de
acordo com o nº 3 do artigo 20º do CP), isto, no limite, significa que não é legítimo nem
justificável converter o delinquente especialmente perigoso em inimputável e sujeitá-lo a
um regime mais gravoso como é o das medidas de segurança, visto que este não é
inimputável nem «verdadeiramente» nem «artificialmente» por via do n.º 3 do artigo 20º
do CP.
94
O CEPMPL refere, no n.º 2 do artigo 126º, que as medidas de segurança de internamento de inimputável
devem ser executadas “preferencialmente em unidade de saúde mental não prisional e, sempre que se
justificar, em estabelecimentos prisionais ou unidades especialmente vocacionados”. No entanto, dos
processos que consultámos, observámos que os delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI
cumprem medida de segurança (quando é o caso) no estabelecimento prisional onde cumpriram a pena de
prisão que caberia concretamente ao crime cometido, tal como acontece no caso n.º 2 do delinquente por
tendência B. No mesmo sentido ANASTASIYA MYRNA expõe uma decisão do TEP, na qual o mesmo
afirma que não faz sentido um indivíduo condenado em PRI, que já está em cumprimento de medida de
segurança de internamento, continuar no Estabelecimento Prisional de Lisboa, que por sua vez não detém
as condições necessárias para a execução desta medida. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 131 e Anexo
4.
95
ANASTASIYA MYRNA, no estudo empírico realizado, expôs que quatro dos reclusos que inquiriu já
se encontravam a cumprir medida de segurança e todos eles afirmam que não existem quaisquer diferenças
na execução da pena após a transição de regime, “exceto o facto de ter deixado de ser analisada a
possibilidade de concessão da liberdade condicional, passando a ser analisada periodicamente a
possibilidade de libertação”. Face a isto, a autora concluiu: “ou seja, para além de ser criticável que o
verdadeiro “tratamento” seja deixado para o fim do tempo da pena, ainda é mais controverso que este nem
sequer seja posto em prática. Na verdade, na segunda parte da sua pena, os reclusos passam a ter mais
atendimento psiquiátrico e psicológico, que de nada mais serve, na prática, que para possibilitar a realização
das perícias previstas no artigo 158º, n.º 2, alínea a), do CEPMPL, para a reavaliação do seu internamento”.
Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 115 e 132.
96
CARLOTA ALMEIDA levantou igualmente esta questão, quando referiu: “por certo não é também
admissível que, por simples remissão, um delinquente que o tribunal considerou imputável passe a ser
considerado como se de inimputável se tratasse, em todos os aspetos e assumindo todas as consequências
87
entendemos que não deve operar a presunção “automática” de incorrigibilidade prevista
no n.º 3 do artigo 90º do CP que viola a CRP. Entendemos sim, que o CP deve exigir a
realização de um juízo “sério” de comprovação de incorrigibilidade, por exemplo, através
da realização de uma perícia médica efetuada antes da conversão do delinquente
imputável em inimputável e da consequente transição de regime. Além do mais,
entendemos também que o CP deve garantir maior reinserção social a estes delinquentes
do que aquela que garantiu durante a execução da pena de prisão.
88
Deste modo, concluímos que o CP mascara estes delinquentes de inimputáveis de
forma a salvar a constitucionalidade do regime da PRI. Noutras palavras, o que
pretendemos demonstrar é que a passagem da execução da pena para a execução de uma
medida de segurança e a conversão do delinquente especialmente perigoso em
inimputável, funciona apenas como válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos. O n.º 3 do artigo 90º do CP poderia ter vários alcances, mas, dada a falta de
rigor na sua conjugação com o artigo 20º do CP e uma vez que não existe maior perspetiva
de reinserção social do delinquente perigoso durante a execução da medida de segurança,
esse preceito serve apenas de válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos, de modo a não se vislumbrar a inconstitucionalidade do instituto da pena
relativamente indeterminada.
89
CAPÍTULO V
97
Sobre a vida na prisão vide: EDWIN H. SUTHERLAND/DONALD R. CRESSEY: 1978, 593-604.
98
No sentido de que um Estado de Direito só deve recorrer ao Direito penal como último recurso para a
proteção de bens jurídicos. Como refere MARIA JOÃO ANTUNES: 2013, 90: “«Consistindo as penas, em
geral, na privação ou sacrifício de determinados direitos (máxime, a privação da liberdade, no caso da
prisão), as medidas penais (…) só serão constitucionalmente exigíveis quando se trata de proteger um
direito ou um bem constitucional de primeira importância e essa proteção não possa ser suficiente e
adequadamente garantida de outro modo»”. Deve-se consultar ainda o Ac. do Tribunal Constitucional n.º
85/85, de 29 de maio de 1985, processo n.º 95/84.
99
TERESA BELEZA ensina que a prisão não reabilita ninguém e que se deve investir em medidas não
privativas da liberdade. Cfr. TERESA BELEZA: 1983 (1), 9-38 e TERESA BELEZA: 1983 (2), 159-170.
ANABELA RODRIGUES: 2002, 31 acompanha esta posição.
100
Como afirma ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 297: “Cremos que ainda não chegou o momento de
esvaziar as prisões”.
90
alcançar-se desde que se encare e compreenda essa privação da liberdade como meio
particularmente apto a promover a sua reinserção social” (ANABELA
RODRIGUES: 1983 (1), 298 e ANABELA RODRIGUES: 2002, 35-63). Devido a esta
exigência de reinserção social dos delinquentes especialmente perigosos que cumprem
uma PRI, é necessário que o Estado e a administração penitenciária criem meios eficazes
para a reforma e tratamento destes delinquentes 101. Deste modo, nasceu a obrigação de
elaboração do plano individual de reinserção ou readaptação 102.
O plano individual de readaptação é uma peça fundamental e essencial que guia a fase
de execução da PRI. A elaboração deste plano ocupa um papel importantíssimo, visto que
o instituto da PRI é uma sanção mista que tem como finalidade principal a especial-
preventiva. Isto significa que só através do plano individual de readaptação é que se
garante a finalidade específica de reeducação que legitima a aplicação de PRI, uma vez
que sem a elaboração deste plano a fase de execução da PRI converter-se-ia “num
mero processo de custódia preventiva” (ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 299).
O n. º 1º do artigo 89º do CP estatui que caso se aplique uma PRI (em qualquer das
suas modalidades) é elaborado um plano individual de readaptação com base nos
conhecimentos que existem acerca do delinquente. Este plano individual de readaptação
deve ser elaborado com a maior brevidade possível e com a concordância do delinquente.
O n.º 2 do mesmo artigo menciona que durante o cumprimento da pena devem ser
realizadas alterações ao plano quando estas se mostrem necessárias devido ao progresso
101
ANABELA RODRIGUES esclarece que “(…) compete ao Estado, máxime à administração
penitenciária, assegurar, nomeadamente, estabelecimentos prisionais apropriados às diversas categorias de
delinquentes, pessoal especializado, adequado apetrechamento técnico, etc. Igualmente importante é a
consciência que a própria administração penitenciária tenha da função activa que lhe cabe na preparação
do delinquente para que não volte a cometer crimes.” Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 298.
Similarmente, JOSÉ MANUEL LOURENÇO QUARESMA: 2014, 57.
102
Repare-se que, em casos de pena determinada que pressuponham alguma gravidade, pode ser elaborado
um plano similar ao plano individual de readaptação. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015, 403 e Vide
n.º 1 do artigo 21º do CEPMPL. Porém, ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 299 menciona que é no
domínio da PRI que este plano tem particular relevo.
103
Sobre o regime vigente no CEPMPL, vide: MARIA JOÃO ANTUNES/INÊS HORTA PINTO: 2011.
91
ou a outras circunstâncias relevantes que se observem. As alterações que forem efetuadas
ao plano individual de readaptação devem ser comunicadas ao delinquente, conforme
estipula o n.º 3 do mesmo artigo 104.
Observamos ainda que o n.º 4 do artigo 21º do CEPMPL remete para o artigo 19º do
mesmo diploma legal, prevendo que este plano deve ser elaborado com base na
avaliação prévia do recluso. A avaliação do recluso condenado deve ser efetuada no
prazo de 72 horas após o seu ingresso e deve ter em consideração: a natureza do crime
cometido, a duração da pena, o meio familiar e social, as habilitações, o seu estado de
saúde, o eventual estado de vulnerabilidade, os riscos para a segurança do próprio e de
terceiros, o perigo de fuga e os riscos resultantes para a comunidade e para a vítima,
conforme explica o n.º 1 e 2 do artigo 19º do CEPMPL. Verifica-se que estes elementos
auxiliam na justificação das necessidades que o plano estipular.
O RGEP no n.º 2 do artigo 69º determina as matérias que devem constar das medidas
de apoio e de controlo, constantes do plano, e o n.º 3 do mesmo artigo prevê que o plano
individual de readaptação seja elaborado pelos serviços responsáveis pelo
acompanhamento da execução da pena e ainda pelos serviços de vigilância e
segurança e os serviços clínicos. O condenado deve participar ativamente na elaboração
do plano e demonstrar a sua adesão ao mesmo (n.º 5 do artigo 21º do CEPMPL e n.º 4 do
104
Similarmente o n.º 1 do artigo 21º do CEPMPL e o n.º 7 do artigo 69º do RGEP pronunciam-se no
mesmo sentido de o plano individual de readaptação poder ser avaliado, alterado e modificado.
92
artigo 69º do RGEP). No caso de o recluso ser menor, os pais ou representante ou pessoa
que tenha a sua guarda podem participar se se entender ser vantajoso (n.º 6 do artigo 21º
do CEPMPL e n.º 5 do artigo 69º RGEP). O n.º 6 do artigo 69º do RGEP explicita ainda
que a execução do plano individual de readaptação é continuamente acompanhada pelos
serviços que o elaboraram e o mesmo é avaliado anualmente, salvo se for estipulado um
prazo de avaliação inferior.
Depois de estar efetuado o plano (ou caso haja alterações), o n.º 7 do artigo 21º do
CEPMPL e o artigo 70º do RGEP esclarecem que o diretor prisional tem de o aprovar
e de seguida o Tribunal de Execução de Penas deverá homologá-lo de acordo com o
estipulado no artigo 172º do CEPMPL.
105
A expressão consagrada no CP no n.º 1 do artigo 89º «com a maior brevidade possível» é concretizada
pela norma do n.º 4 do artigo 19º do CEPMPL. Assinala-se a relevância que esta norma possui. O prazo de
60 dias deve ser imperativamente cumprido visto que a elaboração do plano individual de readaptação é
um Direito que cabe por força da lei ao delinquente e do qual depende a execução da sua pena. Note-se
que, se o prazo de 60 dias for incumprindo, o delinquente está mais dias sem ter um plano, piorando assim
a sua conduta e dificultando a sua reinserção e socialização, o que não aconteceria se o plano já existisse.
106
Tal como ensina FIGUEIREDO DIAS o plano individual de readaptação é equivalente ao plano de
reinserção social que é efetuado quando se aplica o regime de prova previsto no artigo 54º do CP. Porém,
a grande diferença reside em que o plano de reinserção social previsto para o regime da prova é cumprido
em liberdade, enquanto que o plano individual de readaptação é cumprido dentro do estabelecimento
prisional. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 579-580.
93
ou nas modificações que lhe forem realizadas. As modificações efetuadas ao plano são
estritamente necessárias, visto que ao longo do tempo deve ajustar-se o método de
tratamento consoante as necessidades e a evolução do delinquente que são averiguadas
durante a fase de execução da pena, logo, este plano não pode ser fixo.
1.2 Considerações
A primeira consideração que importa efetuar é que o plano referido anteriormente
deve ser elaborado para todos os delinquentes a que se aplique uma PRI, ou seja,
independentemente da duração da pena e da modalidade de PRI que se aplique
(delinquentes por tendência, alcoólicos e equiparados, ou por incêndio florestal) tem que
se realizar obrigatoriamente este plano. Não estando expressamente prevista na lei
alguma exceção que possibilite a não realização do mesmo.
107
Como nota e bem JOSÉ QUARESMA: 2014, 58: “Reinserir afirma-se uma tarefa difícil e que depende,
em primeira linha, da intervenção do próprio recluso (…). Mas, para além disso, seria necessário, atenta a
consistência penitenciária (marcada por percursos derivados do fracasso escolar, pela escassa qualificação
profissional, pela toxicodependência, pelo alcoolismo, pelas perturbações do foro psiquiátrico), proceder a
uma efetiva abordagem casuística do recluso, avaliando as suas reais necessidades, envolvendo essa tarefa
meios humanos e alocação de verbas consideráveis”.
94
possíveis soluções. A administração penitenciária e todo o pessoal penitenciário 108 devem
colaborar ao longo da execução da pena de forma ativa no cumprimento deste plano,
nomeadamente disponibilizando as condições materiais e psicológicas necessárias à sua
concretização. Os técnicos responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena do
delinquente têm um papel muito importante no progresso da reinserção social deste.
Todavia, os técnicos estão proibidos de conduzir a vida do delinquente no que ultrapasse
os limites colocados pelo plano. Na função de aconselhamento que lhes compete, têm que
se conter nos limites da legalidade impostos pelo plano (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 406-
407).
Quanto à necessidade de o delinquente concordar com o plano que lhe vai ser
aplicado, tem sido discutido pela doutrina se, quando a lei consagrou na última parte do
n.º 1 do artigo 89º do CP a fórmula «sempre que possível com a sua concordância»,
admitiu a possibilidade de a reinserção social ou o tratamento ser efetuado de forma
coerciva, visto que parece prescindir da sua concordância quando a mesma não for
possível.
108
“Mesmo a nível do pessoal de vigilância (…) se fomenta uma atuação que contribua positivamente para
o processo de reinserção social do delinquente. Entretanto, e do mesmo passo, reforça-se a necessidade de
o Estado criar as condições necessárias, não só à criteriosa selecção dos funcionários mas também, e
sobretudo, à sua cuidadosa preparação técnica”. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 300.
109
Em sentido contrário, pronuncia-se PINTO DE ALBUQUERQUE nomeadamente quando refere que,
embora o tribunal ou os serviços de reinserção social devam sempre ouvir o condenado acerca do plano
que irá ser aplicado, isto não obsta a que, caso o tribunal não consiga obter o acordo do condenado, esse
plano não possa imposto sem a concordância do delinquente. Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015,
403.
95
indivíduo110. Como nota CARLOTA ALMEIDA, “(…) parece existir uma grande
distância entre oferecer ao delinquente meios para uma reintegração bem sucedida e a
imposição de planos individuais que mais não visam do que corrigir as suas características
consideradas negativas e moldá-lo até atingir uma forma «aceitável»”(CARLOTA
ALMEIDA: 1996, 29)111. Logo, concluímos que existe um Direito de tratamento e não
um dever de tratamento, por parte do condenado em PRI. Embora o Estado esteja
obrigado a facultar a possibilidade de tratamento ao delinquente especialmente perigoso,
pois só assim se legitima a aplicação de uma PRI e se atua conforme a ideia de
solidariedade112, o Estado não pode obrigar o delinquente especialmente perigoso a
reabilitar-se, tratar-se, corrigir-se e emendar-se de modo a não cometer crimes. Aliás,
observe-se que, se um delinquente não colaborar de forma ativa e voluntária, o plano
nunca terá êxito, pois cabe unicamente ao delinquente dentro da sua liberdade individual
decidir intrinsecamente se quer receber ajuda e consequentemente deixar de cometer
crimes. Caso um delinquente não queira receber ajuda ou auxílio para se tratar, recuperar
ou reabilitar, isso será um problema que transcende o Estado e a Sociedade “(…) e dá aos
delinquentes ou marginais que a recusem um «triste direito de ser diferente»”
(EDUARDO CORREIA: 1983 (1), 15). Indo mais longe, podemos concluir que de nada
vale impor coercivamente um plano, se pensarmos que o mesmo até pode resultar em
“uma boa conduta prisional” mas isso “pode não significar uma real reinserção social”
(ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 308 e EDWIN H. SUTHERLAND/DONALD R.
CRESSEY: 1978, 560), pois, quando o delinquente se encontrar em liberdade, terá mais
uma vez de escolher se quer usar as ferramentas que lhe foram ensinadas para não praticar
mais crimes ou se o continuará a fazer. Isto é, o êxito do plano individual de readaptação
e da reinserção social do delinquente especialmente perigoso depende sempre em última
instância da atitude interna do mesmo em aproveitar ou não as ferramentas e a ajuda que
o Estado lhe oferece de forma não coativa. Concluímos assim que, mesmo quando o
110
A liberdade humana individual, nomeadamente a liberdade de autodeterminação fundamentada na
dignidade da pessoa humana, permite que cada delinquente possa decidir e escolher se quer atuar em
conformidade com o Direito ou contra ele. CARLOTA ALMEIDA:1996, 24-33 afirma que obrigar um
delinquente a um plano é tratar sem respeito a especificidade de cada indivíduo e o seu modo de estar no
mundo, tentando recolocar nos padrões da sociedade todos o que escapam à norma. Traduzindo isto a
arrogância de “«se não pensa como eu, não sabe pensar»”.
111
Esta autora vai ainda mais longe e, citando ROXIN, questiona: “«onde obtemos o direito de educar e
submeter a tratamento pessoas adultas, contra a sua vontade?”. Cfr. CARLOTA ALMEIDA: 1996, 29.
112
A ideia de solidariedade baseia-se no dever de cada um e da sociedade ativamente colaborarem na
regeneração e na recuperação dos delinquentes, que justamente se encontram num particular estado de
necessidade e desespero. Cfr. EDUARDO CORREIA: 1983 (1), 15.
96
Estado proporciona as condições necessárias para a ressocialização não coativa, um
delinquente só deixará de o ser se efetivamente o desejar.
97
que o delinquente especialmente perigoso pode ser liberto definitivamente assim que se
verifique que cessou o estado de perigosidade criminal que deu origem à PRI. Outro
sistema, que é o consagrado na nossa lei onde se entende que “«A libertação do
delinquente [condenado em PRI] é sempre condicional»”, dado que a libertação do
delinquente especialmente perigoso pressupõe sempre uma libertação provisória, a título
de ensaio, experimental ou para prova, quer pela aplicação do regime da liberdade
condicional, quer pela aplicação do regime da liberdade para prova (FIGUEIREDO
DIAS: 2011, 580-581).
113
Como bem nota ANABELA RODRIGUES: “(…) a presença de juiz é sempre vantajosa, nomeadamente
no que se refere à proteção do recluso contra as decisões injustas ou ilegais que a seu respeito podem ser
tomadas no decurso da execução (…)”. Cfr. ANABELA RODRIGUES: 1983 (1), 307.
98
2.1 Concessão ou negação da liberdade condicional
2.1.1 Pressupostos, duração e incumprimento
O n.º 1 do artigo 90º do CP estipula que: “Até dois meses antes de se atingir o limite
mínimo da pena relativamente indeterminada, a administração penitenciária envia ao
tribunal parecer fundamentado sobre a concessão da liberdade condicional, aplicando-se
correspondentemente o disposto nos n.ºs 1º e 3 artigo 61º e 64º “. O n.º 2 do artigo 90º do
CP estipula ainda que: “A liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo que
faltar para atingir o limite máximo da pena, mas não será nunca superior a cinco anos”.
114
A administração penitenciária envia um parecer fundamentado que é elaborado pelo Conselho Técnico,
que é o órgão auxiliar do TEP de acordo com o n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 142º do CEPMPL. O
Conselho Técnico, para além de emitir parecer fundamentado sobre a concessão ou negação da liberdade
condicional, deve ainda indicar quais as condições a que a liberdade condicional ficará sujeita se for
concedida. Sendo que estas decisões tomadas pelo Conselho Técnico devem ser apuradas através de
votação de cada um dos seus membros, conforme estipula o n.º 2 do artigo 175º do CEPMPL.
115
O juiz de execução de penas, até 90 dias antes da data admissível para a concessão da liberdade
condicional, solicita: 1º o relatório aos serviços prisionais que contêm a avaliação da personalidade do
recluso, as competências adquiridas, o seu comportamento prisional e relação com o crime cometido; 2º o
relatório aos serviços de reinserção social que contem a avaliação das necessidades subsistentes de
reinserção social, as perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e as condições
a que deve estar sujeita a liberdade condicional; 3º outros elementos que considere ser relevantes (n.º 1 do
artigo 173º do CEPMPL). Esta instrução, levada a cabo pelo juiz de execução de penas, não pode demorar
mais que 60 dias (n.º 2 do artigo 173º do CEPMPL), e encerrada a instrução o juiz convoca o Conselho
Técnico para prestar os esclarecimentos que forem necessários (n.º 1 do artigo 174º e n.º 1 do artigo 175º).
O juiz de execução de penas deve ainda ouvir o recluso, de acordo com o artigo 176º do CEMPPL. Em
seguida o Ministério Público emite parecer quanto à concessão ou negação da liberdade condicional e das
condições a que a mesma deve estar sujeita se for concedida, e o juiz de execução da pena determina se
concede ou nega a liberdade condicional (artigo 177º do CEPMPL). É ainda possível ao juiz de execução
da pena suspender esta decisão pelo período de 3 meses, tendo em vista a verificação de determinadas
circunstâncias ou condições ou a elaboração de um plano de reinserção social (artigo 178º do CEPMPL).
Esta decisão é recorrível de acordo com o artigo 179º do mesmo diploma. Para saber mais sobre o processo
de concessão da liberdade condicional, deve consultar-se: JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 163-181.
99
condicional ao delinquente antes deste tempo, colocar-se-ia em causa esta finalidade de
proteção do ordenamento jurídico.
Em seguida, a lei estipula, que caso este primeiro pressuposto formal esteja
preenchido, aplica-se o artigo n.º 1 e n.º 3 do artigo 61º ex vi n.º 1 do artigo 90º do CP,
onde se atribui a possibilidade de o juiz do TEP conceder liberdade condicional ao
delinquente mediante o preenchimento de mais dois pressupostos, nomeadamente: o
consentimento do condenado e se for fundamentadamente de esperar que o
condenado uma vez em liberdade irá conduzir a sua vida de modo socialmente
responsável, sem cometer crimes.
O último pressuposto que a lei consagra na alínea a) do n.º 2 do artigo 61º ex vi n.º 3
do artigo 61º do CP é o facto de ser fundamentalmente de esperar, atentas as
circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta
116
Note-se que diferentemente, FIGUEIREDO DIAS refere que é necessário ter algum cuidado às críticas
efetuadas, senão mesmo abandoná-las, à concordância do delinquente na aplicação da liberdade condicional
na PRI. O autor esclarece que, na PRI, a liberdade condicional serve como forma de determinação concreta
do tempo de privação da liberdade a cumprir, portanto, entende ser evidente que o seu funcionamento não
pode estar dependente da concordância do condenado na aplicação da liberdade condicional, pois, se o
condenado não concordasse com a sua libertação, teria de considerar-se que a prisão se prolongaria
necessariamente até ao máximo legalmente possível, o que acabaria por violar a finalidade da própria
sanção e a sua própria fonte de legitimação. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 582. No entanto, não
sufragamos este entendimento de FIGUEIREDO DIAS, uma vez que assumimos ser imprescindível a
necessidade de concordância do condenado em PRI na concessão da liberdade condicional senão violar-se-
ia o princípio constitucional do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP).
100
durante a execução da pena de prisão, que o condenado uma vez em liberdade irá conduzir
a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Este pressuposto, agora
material, pressupõe que, quando haja bom comportamento prisional e o delinquente se
mostre capaz de se readaptar à vida social e tenha vontade séria de o fazer, pode ser
efetuado um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do delinquente
em liberdade e a forma de o mesmo resolver os seus problemas (SANDRA SILVA: 2004,
376-380 e JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 134-150). Exige-se uma certa medida de
probabilidade de que, no caso da libertação do condenado, este conduza a sua vida em
liberdade de modo socialmente responsável sem cometer crimes. Esta medida de
probabilidade deve ser suficiente, de modo a ser razoável sustentar que o risco da
libertação pode ser comunitariamente suportado. Repare-se que a vontade subjetiva do
delinquente de se readaptar à vida social tem de ser completada pela sua capacidade
objetiva de readaptação117.
A liberdade condicional aplicada a uma PRI pode ficar sujeita a regras de conduta
(artigo 52º do CP), a um regime de prova (artigo 53º do CP) e à elaboração de um plano
de reinserção social (artigo 54º do CP), conforme estipula o n.º 1 do artigo 64º do CP ex
vi n.º 1 do artigo 90º do CP. Interessa salientar uma especificidade relativa à PRI na
modalidade de delinquentes por incêndio florestal: a liberdade condicional pode ficar
117
FIGUEIREDO DIAS refere que o contrário já não se exige, aludindo ao seguinte exemplo: “não se
compreenderia que o juízo de prognose favorável fosse recusado a um condenado que, apesar de não revelar
uma vontade séria de readaptação, estivesse em circunstâncias tais (…) que permitissem o juízo fundado
de que, uma vez posto em liberdade, ele conduziria a sua vida de modo socialmente responsável, sem
cometer crimes”. Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 539.
118
Isto significa que cumprida a liberdade condicional pelo período máximo de cinco anos, “será
considerado extinto todo o tempo que o ultrapasse”. Cfr. ARTUR VARGUES: 2008, 57-58
101
subordinada à regra de conduta de obrigação de permanência na habitação nos períodos
coincidentes com os meses de maior risco de ocorrência de incêndios, mediante a
fiscalização de meios técnicos de controlo à distância, de acordo com o preceituado na
alínea f) do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 33/2010 de 2 de setembro (MARIA JOÃO
ANTUNES: 2018, 15 e 16).
Contudo, se o delinquente cumprir de forma correta tudo o que tiver sido estipulado
pelo TEP, a pena extingue-se decorrido o período estabelecido para o cumprimento da
mesma em liberdade condicional (artigo 57º do CP ex vi n.º 1 do artigo 64 do CP).
119
Repare-se que os artigos 183º, 184º, 185º, 186º, 187º do CEPMPL preveem igualmente a execução e o
incumprimento da liberdade condicional, e estabelecem também que, caso estas regras sejam incumpridas,
o delinquente volta a cumprir pena de prisão.
120
ANASTASIYA MYRNA: 2018, 132-133 refere, relativamente às apreciações de liberdade condicional
realizadas aos condenados em PRI que inquiriu: “não querendo discutir o mérito das decisões em si,
consideramos, no entanto, que as mesmas foram muitas vezes tomadas com forte incidência sobre o passado
destes agentes, ao invés de ser feito um verdadeiro juízo de prognose favorável conforme no artigo 61º do
102
mas somente pode ser atribuída até à pena que concretamente caberia ao crime, de
acordo com o n.º 3 do artigo 90º do CP; durante a fase de execução da pena de prisão, em
caso de PRI, não é possível atribuir liberdade definitiva.
A liberdade condicional não pode ultrapassar a pena de prisão que falta cumprir. No
caso da PRI, a liberdade condicional (que é um instituto por excelência aplicado à fase de
execução da pena de prisão mesmo na PRI) não pode ser aplicada depois de o delinquente
já ter cumprido a pena que concretamente caberia ao crime, sob pena de violação do
princípio da culpa. Deste modo, o CP consagrou a seguinte solução: quando um
delinquente já tiver cumprido a pena que concretamente caberia ao crime e por razões de
prevenção especial, nomeadamente em nome da perigosidade que se manifeste no agente,
se determine a necessidade de este continuar a cumprir mais tempo de privação da
liberdade, é possível ultrapassar-se a medida da pena que concretamente caberia ao crime
e aplicar-se a medida de segurança de internamento de inimputáveis, através da utilização
do regime de fronteira da inimputabilidade, correspondente aos imputáveis diminuídos.
Durante a execução da medida de segurança de internamento, será apreciada a liberdade
para prova e já não a liberdade condicional. Nesta premissa, a lei aproxima o instituto da
PRI à inimputabilidade e consagrou aquilo que anteriormente designamos como a válvula
de segurança do sistema para imputáveis perigosos.
CP (…)”.Ou seja, a autora entende que nestas apreciações se devia valorar mais, por exemplo, o bom
comportamento do condenado e a sua ressocialização.
121
O n.º 4 do artigo 164º do CEPMPL refere que tratando-se de PRI e a mesma se aplique de acordo com
o n.º 3 do artigo 90º do CP, deve iniciar-se o processo de internamento do delinquente. Este processo de
internamento inicia-se com a autuação de certidão da decisão que, não tenho sido concedida ou tendo sido
revogada a liberdade condicional, declare cumprida a pena que concretamente caberia ao condenado em
PRI, conforme dispõe o n.º 4 do artigo 165º do CEPMPL. Relembramos mais uma vez que o n.º 2 do 126º
CEPMPL estipula que o internamento de inimputável deve ser preferencialmente executado em unidade de
saúde mental não prisional. No entanto, no caso dos condenados em PRI, normalmente estes cumprem a
sua medida de segurança de internamento de inimputável no estabelecimento prisional onde cumpriram
pena de prisão.
103
perigoso, agora considerado inimputável por via da aplicação do instituto de fronteira da
imputabilidade diminuída (n.º 3 do artigo 20º do CP), até atingir o máximo legal
estabelecido na moldura penal abstratamente criada, pode ser colocado em liberdade para
prova pelo TEP que é o órgão competente de acordo com a alínea c) do n.º 4 do artigo
138º do CEPMPL (JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 154-155).
Daqui concluímos que para a liberdade para prova ser concedida pelo juiz de execução
de penas122 é necessário verificar-se o preenchimento dos seguintes pressupostos
formais: não ter sido concedida liberdade condicional ou a liberdade condicional ter
sido revogada e o delinquente já ter cumprido a pena que concretamente caberia ao
crime. Ou seja, para ser atribuída liberdade para prova ao delinquente especialmente
perigoso, este tem de encontrar-se a cumprir a medida de segurança de internamento de
inimputável.
Verificados estes dois pressupostos formais, para a liberdade para prova ser concedida
é necessário ainda que se verifique cumulativamente um pressuposto material. Este
pressuposto material está previsto no n.º 1 do artigo 94º do CP e é o seguinte: quando
houver razões para esperar que a finalidade de medida pode ser alcançada em meio
aberto, o tribunal coloca o internado em liberdade para prova. Isto significa que para
a liberdade para prova ser concedida é necessário que o tribunal realize um juízo de
prognose favorável acerca das alterações do delinquente, ou seja, verifique que o risco de
reincidência diminuiu sensivelmente, sendo este capaz de em liberdade cumprir as
finalidades da medida de segurança123. Não é necessário verificar-se a cessação do estado
de perigosidade, necessário é verificar-se que esse estado de perigosidade se alterou para
melhor (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 479-481 e PINTO DE ALBUQUERQUE: 2015,
433). A aferição e apreciação deste pressuposto material pelo TEP é obrigatória
decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver
122
O juiz de execução de penas é novamente o órgão competente, tal como o era para a concessão ou
negação da liberdade condicional, uma vez que o n.º 2 do artigo 168º refere que nos casos de concessão ou
negação da liberdade para prova na PRI aplica-se o artigo 163º, que por si remete a execução e o
incumprimento da liberdade para prova para o regime da liberdade condicional prevista nos artigos 173º a
181º. Portanto a este respeito valem as considerações processuais realizadas nas notas de rodapé da presente
dissertação referentes ao processo de concessão da liberdade condicional.
123
“o critério para a concessão da liberdade para prova consiste na adequação da libertação do internado
com as necessidades de prevenção especial positiva e negativa do agente (…)”. Cfr. PINTO DE
ALBUQUERQUE: 2015,433.
104
mantido, independentemente de requerimento, conforme a regra do n.º 2 do artigo 93º do
CP124.
124
A este respeito, o n.º 1 do artigo 168º remete para o artigo 158º do CEPMPL, segundo o qual, o juiz de
execução da pena até dois meses antes da data calculada para a revisão, oficiosamente ou a requerimento
do Ministério Público, do internado ou do seu defensor: ordena a realização de perícia psiquiátrica ou sobre
a personalidade e fixa o prazo para apresentação do relatório, ou determina a realização de diligências que
possam ser importante para a decisão. Depois de o juiz de execução da pena ter os relatórios dos serviços
de reinserção social e do estabelecimento prisional, deve ouvir o internado. Em seguida o defensor do
internado pode alegar o que achar conveniente e o MP dá parecer e o juiz decide, de acordo com os artigos
160º e 161º do CEPMPL.
105
Todavia, caso a liberdade para prova não tenha sido concedida (ou tiver sido
revogada), a instância já não se renova segundo as regras da alínea a) e b) do n.º 2 do
artigo 180º do CEPMPL, visto que, nesta fase já foi cumprida a pena que concretamente
caberia ao crime. Assim, por força do n.º 2 do artigo 93º do CP em conjugação com o
158º do CEPMPL, a revisão da situação de internamento (e consequentemente a
apreciação de nova concessão ou negação da liberdade para prova) do condenado em PRI
ocorre de forma obrigatória de dois em dois anos sobre o início do internamento ou da
decisão que o manteve125. Sem esquecer que, se se verificar que cessou a causa
justificativa que deu origem ao internamento, o TEP deve apreciar esta questão a todo o
tempo de acordo com o n.º 1 do artigo 93º do CP e artigo 159º do CEPMPL e o
internamento finda conforme o n.º 1 do artigo 92º do CP.
Para concluir, devemos efetuar duas notas sobre a liberdade para prova na PRI.
Primeira: esta não tem como pressuposto a concordância do delinquente especialmente
perigoso na sua eventual concessão. Compreendemos que assim seja, porque a liberdade
para prova é uma figura por excelência do regime das medidas de segurança de
internamento de inimputáveis e, nestes casos, estes indivíduos, como inimputáveis que
são, não conseguem discernir sobre esta questão. No entanto, a aplicação desta regra ao
delinquente especialmente perigoso parece acarretar algumas dúvidas, visto que o
delinquente especialmente perigoso é um individuo imputável que é convertido em
inimputável pela lei e, como ficou explicado no capítulo IV deste estudo, este indivíduo
não é um «verdadeiro» inimputável, logo cabe perguntar se ao prescindir-se da sua
concordância na sua eventual libertação não se está a violar o seu Direito à liberdade
pessoal? Direito que neste caso se consubstancia no Direito à liberdade de dizer que
prefere permanecer na prisão (ANABELA RODRIGUES: 2002, 173).
Segunda: a liberdade para prova pode ser concedida somente até se alcançar o limite
máximo estipulado na moldura legal abstrata da PRI de acordo com o n.º 2 do artigo
94º do CP. E, é exatamente aqui que reside uma das grandes diferenças face à liberdade
125
TAIPA DE CARVALHO considera excessivo o prazo de revisão obrigatória de 2 em 2 anos, entendendo
que este prazo deveria ser de 1 ano em nome do princípio da indispensabilidade da privação da liberdade
do inimputável e em nome da necessidade pragmática de evitar a inércia dos serviços médicos psicológicos
e psiquiátricos penitenciários, e da administração penitenciária. Cfr. TAIPA DE CARVALHO: 2016, 102-
103. Observe-se ainda que o Ac. do TEDH de 26 de fevereiro de 2002, no caso Magalhães Pereira c.
Portugal, queixa n.º 44872/98, pronunciou-se no sentido de o prazo superior a dois anos não ser correto,
tendo TEDH condenado Portugal por violação do n.º 4 do artigo 5º da CEDH no processo em causa, pois a
revisão do internamento só ocorreu passados dois anos, seis meses e dezoito dias depois de o requerente ter
pedido a sua libertação.
106
condicional: enquanto esta pode ser atribuída até à pena que concretamente caberia ao
crime, a liberdade para prova só pode ser concedida até ao limite máximo de moldura
penal abstrata da PRI. Assim, durante a execução da medida de internamento de
inimputável é possível atribuir-se liberdade definitiva (diferentemente do que acontece
durante a execução da pena de prisão), nomeadamente, quando se atinge o limite máximo
da moldura penal abstrata da PRI, que resulta do n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º,
n.º 2 do artigo 85º, n.º 2 do artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP, e quando se
verifique que cessou o estado de perigosidade de acordo com o n. º1 do artigo 92º do CP.
Contudo, em seguida, iremos analisar mais detalhadamente este assunto.
Antes de mais relembramos que o nosso sistema penal se guia pelo princípio de que
a libertação do condenado em PRI ocorre sempre a título provisório ou
experimental, pois, em regra, antes de o delinquente ser colocado em liberdade
definitiva, o mesmo deve viver um período de experiência de liberdade provisória, que é
nomeadamente atribuído pela concessão da liberdade condicional ou de liberdade para
prova.
107
A primeira exceção relaciona-se com o facto de que, sendo a PRI constituída por uma
moldura penal abstratamente criada que fixa um limite mínimo e um limite máximo legal
inultrapassável, a mesma não pode ser cumprida para além desse limite máximo admitido
(ANABELA RODRIGUES: 1988, 39-40). Embora a liberdade condicional possa ser
atribuída até à pena que concretamente caberia ao crime e, depois, possa igualmente
atribuir-se liberdade para prova, jamais se pode aceitar que a liberdade para prova
seja cumprida para além do limite máximo legal estipulado no regime da PRI. Se se
acolhesse uma tese em sentido contrário 126, estar-se-ia a admitir soluções
inconstitucionais por violação do princípio da legalidade e da proporcionalidade. Nas
palavras de FIGUEIREDO DIAS: “quando a lei dispõe sobre o limite máximo da PRI
(…) isso só pode significar que, uma vez efetivamente cumprido o tempo de pena
respetivo, o delinquente não pode continuar a ver pesarem sobre si quaisquer limites aos
seus direitos e liberdades fundamentais ainda reconduzíveis à pena cumprida”
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 586). Por outro lado, salienta-se que alcançado o limite
máximo da moldura legal abstrata da PRI, para além de não se poder aplicar liberdade
para prova, também não se pode manter o internamento para além do limite máximo
estipulado no regime da PRI, mesmo que o estado de perigosidade se mantenha. Se
se admitisse uma solução em sentido divergente, violar-se-ia frontalmente de novo os
princípios da legalidade e da proporcionalidade. Não existe qualquer justificação legítima
para se aceitar que um delinquente especialmente perigoso fique sujeito ao regime da
liberdade para prova ou fique internado depois de já ter cumprido toda a pena a que foi
condenado pelo regime da PRI. Aceitar isso seria consagrar soluções ilegais e
desproporcionais, uma vez que a PRI tem um limite máximo fixo determinado que é
imposto pela aplicação dos preceitos legais: n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2
do artigo 85º, n.º 2 do artigo 86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP. Também o n.º 2
do artigo 94º do CP ex vi n.º 3 do artigo 90º do CP refere que a liberdade para prova não
pode exceder o tempo máximo que faltar para o limite máximo de duração do
internamento. Consequentemente, resulta da aplicação destes preceitos legais que a PRI
é uma pena com um limite máximo determinado e inultrapassável, logo não se pode
aplicar a regra do n.º 3 do artigo 92º do CP127. Portanto, não pode nunca o internamento
em PRI ser prorrogado por períodos sucessivos de dois anos até se verificar que o estado
126
ALMEIDA COSTA: 1989, 442-445 defendeu que se poderia aplicar liberdade condicional obrigatória
ou necessária depois do cumprimento da pena.
127
Esta interpretação encontra-se em conformidade com o preceituado no n.º 2 do artigo 30º da CRP.
108
de perigosidade cessou, tal como se faz aos restantes inimputáveis condenados em medida
de segurança de internamento. Isto é: sempre que o limite máximo legal estipulado no
regime da PRI for alcançado, o delinquente especialmente perigoso deve ser
imediatamente colocado em liberdade definitiva, mesmo que o estado de
perigosidade se mantenha (MARIA JOÃO ANTUNES: 2017, 134-135)128.
128
Salientamos que CARLOTA ALMEIDA: 1996, 16 e 17 considera incoerente o facto da PRI conhecer
um limite máximo. Entende que a justificação do prolongamento para além da pena aplicável ao caso
concreto é a perigosidade do agente, mas depois a lei fixa um limite a partir da qual, ainda que a reconhecida
perigosidade se mantenha, a medida privativa da liberdade tem de cessar. A autora reconhece que não podia
ser outra a solução por razões de constitucionalidade, porém assume que a lógica interna do sistema é
incoerente.
109
3.2 Liberdade obrigatória
Desde a reforma prisional de 1936 que se distinguiram duas modalidades de liberdade
condicional. Uma seria a liberdade condicional facultativa e outra a liberdade condicional
obrigatória. A grande diferença entre as duas é que a concessão da liberdade condicional
facultativa depende, não apenas do preenchimento de pressupostos formais, mas também
de pressuposto materiais, ou seja, opera ope judicis. A liberdade condicional obrigatória
depende apenas do preenchimento de pressupostos formais, ou seja, operam ope legis
(JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 126). Assim, a liberdade condicional obrigatória é
atribuída sem ser efetuada qualquer valoração judicial autónoma, logo, é «automática»
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 542-544 e ANABELA RODRIGUES: 1988, 32-33).
Repare-se que foi e é aqui exatamente que reside o cerne do problema desta última
modalidade de liberdade, dado que durante muito tempo foi discutido se fazia sentido
atribuir-se a liberdade condicional «automática», mesmo que as expetativas de
socialização do delinquente fossem completamente desastrosas.
110
condicional obrigatória não é imposta depois de a sanção criminal já ter sido cumprida.
É, sim, imposta, antes de ser atingido o máximo de duração da sanção criminal em que o
recluso foi condenado. O grande inconveniente desta modalidade de liberdade
condicional obrigatória, tal como já referimos anteriormente, é que esta não depende do
preenchimento do pressuposto material que é o juízo de prognose favorável acerca do
delinquente129. Quer isto dizer que, verificado o preenchimento do pressuposto formal de
o delinquente ter sido condenado em pena superior a seis anos e já ter cumprido cinco
sextos da pena, esta liberdade é sempre aplicada. Ora, qualquer delinquente em que se
vislumbre estas características formais, mesmo que não reúna as capacidades objetivas
de ressocialização ou mesmo que o seu estado de perigosidade se mantenha ou tenha
piorado, é colocado em liberdade condicional com o intuito de facilitar o reingresso à
vida livre. Embora estas e outras dúvidas130 persistam ainda hoje em dia, o CP é bastante
claro quanto à imposição da sua aplicação aos casos de pena determinada.
129
Note-se que, quando o n.º 4 do artigo 61º do CP refere “sem prejuízo do disposto nos números anteriores”
é importante analisar se isto não significa que a liberdade condicional obrigatória deve ser interpretada e
aplicada em conformidade, nomeadamente, com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 64º do CP, ou
seja, deve ser realizado um juízo de prognose favorável. Contudo, salientamos que se se interpretasse o n.º
4 do artigo 61º do CP neste sentido, esta liberdade condicional perderia o carácter automático que lhe é
intrínseco e já não funcionaria como a fase de transição entre o encarceramento e a liberdade que facilita o
reingresso do condenado na vida livre e minora as consequências desastrosas da prisão, uma vez que ficaria
dependente deste juízo. É exatamente por isto que a maioria da doutrina entende que o n.º 4 do artigo 61º
do CP não exige que se realize um juízo de prognose favorável ao condenado.
130
JOAQUIM BOAVIDA refere que é questionável a subsistência da denominada liberdade condicional
obrigatória, porque entende: 1º que por si só, estar preso durante cinco anos não tem efeitos
dessocializadores ou criminógenos; 2º a liberdade condicional obrigatória dificilmente se compatibiliza
com as exigências de defesa da sociedade e de proteção dos bens jurídicos; 3º não há razão substancial para
conceder obrigatoriamente a liberdade condicional a quem não dispõe de condições para dela beneficiar;
4º não faz sentido a existência desta num ordenamento onde não vigoram as penas de morte e de prisão
perpétua; 5º as penas não devem ser excessivas, mas esse é um problema que se deve colocar na fase de
aplicação da pena e não na fase da sua execução. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 199-205
111
1558/10.1TXEVR-G-E1 e de 18 de abril de 2017, processo n.º 1558/10.1TXEVR-G-E1).
Interessa destacar, ainda, que tal como exposto no capítulo I da presente dissertação, o
TEP também perfilhou esta opinião no caso n.º 2 referente ao delinquente por tendência
B.
Em nossa opinião, nos casos de PRI, deve interpretar-se o n.º 4 do artigo 61º do CP
no sentido de que o cumprimento de cinco sextos da pena é da pena máxima
legalmente admitida pelo regime da PRI e não da pena que concretamente caberia
ao crime da PRI e, consequentemente, em vez de o delinquente especialmente perigoso
ser colocado em liberdade condicional obrigatória, devia sim ser colocado em
«liberdade para prova obrigatória», visto que é durante a execução da medida de
segurança que alcança os cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime
da PRI. Na prática, os cinco sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da
PRI que referimos, correspondem aos cinco sextos da prorrogação da PRI em dois, quatro
ou seis anos consoante a modalidade de delinquência por tendência que está em causa, de
113
acordo com o n.º 2 do artigo 83º, n.º 2 do artigo 84º, n.º 2 do artigo 85º, n.º 2 do artigo
86º e n.º 5 do artigo 274º - A todos do CP. Repare-se que FIGUEIREDO DIAS alude a
esta possibilidade de interpretação quando refere: “(…) «pena» entendida como a pena
máxima legalmente admitida; não como pena concretamente determinada para o facto
(…)” (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 588).
131
As medidas de flexibilização da pena de prisão (como, por exemplo, a liberdade condicional) permitem
atenuar os efeitos da dessocialização, nomeadamente em penas de longa duração, sendo indiscutível a sua
relevância numa perspetiva humanitária. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 292.
132
Não são precisos grandes estudos científicos para se vislumbrar esta problemática. Por exemplo, se
imaginarmos que um delinquente tem de cumprir 25 anos de medida privativa da liberdade a começar a
contar agora no ano de 2019, e que essa medida privativa da liberdade só terminará ao fim desses 25 anos,
nomeadamente no ano de 2044, conseguimos perfeitamente compreender o quanto o mundo exterior será
diferente do ano de 2019 (o último ano em que viveu em liberdade) para o ano de 2044 (ano em que voltará
a viver em liberdade), nomeadamente ao nível das tecnologias, robótica e por aí adiante, tendo em conta a
velocidade veloz em que o desenvolvimento tem fluído.
133
“A ressocialização, enquanto preparação para a vida em liberdade e combate à exclusão, pressupõe que
o tratamento penitenciário (…) envolva uma maior aproximação da vida prisional à vida em liberdade,
traduzido num movimento do interior para o exterior. A forma de tornar efetivo esse processo é através da
flexibilização da pena, pois só assim se atenuam as barreiras que separam o «mundo livre» do «mundo
prisional». A preparação da liberdade faz-se, também, através de uma progressiva aproximação ao meio
livre, tal como a criança aprende a andar andando”. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 291.
115
vi. Entendemos, assim, que mesmo que da aplicação desta liberdade advenham
consequências desastrosas, só através do contacto com a realidade do mundo exterior
é que os delinquentes se conseguem preparar para a liberdade e aprender como é que
se devem comportar.
vii. Observe-se, ainda, que, sendo o Estado português um Estado de Direito Democrático,
o mesmo tem de proporcionar aos condenados medidas e formas adequadas de se
reabilitarem. Portanto, cabe ao Estado proporcionar a experiência de liberdade (e de
ajuda na ressocialização) referida anteriormente.
viii. Para além de o Estado ter de proporcionar a experiência de liberdade aos condenados,
de forma a permitir-lhes a sua ressocialização, e de ter de assegurar as finalidades de
prevenção especial, o Estado deve ainda proteger toda a coletividade da possível
criminalidade.
ix. E repare-se que a proteção da coletividade pode ser efetuada através da colocação dos
delinquentes especialmente perigosos em liberdade, visto que, a libertação dos
mesmos fica sujeita a regras de vigilância, de conduta, a regimes de prova e a planos
de reinserção social. Quer isto dizer que a liberdade do condenado pode funcionar
como uma garantia do sistema.
x. Aliás, mais cedo (na altura de colocação em liberdade para prova obrigatória proposta
por nós) ou mais tarde (na altura da colocação em liberdade definitiva porque
alcançaram o limite máximo legal estipulado pelo regime da PRI), estes delinquentes
irão ser libertos, dado que a PRI é constituída por um limite máximo legal
inultrapassável. Portanto, a não concessão desta «liberdade para prova obrigatória»
neste último momento é apenas uma maneira de evitar o inevitável, pois os
delinquentes irão ser colocados em liberdade definitiva muito em breve mesmo que o
estado de perigosidade dos mesmos se mantenha.
xi. Em regra, não é o cumprimento, em regime de encarceramento, do tempo
correspondente à diferença de cinco sextos da pena e o alcance do limite máximo
legalmente estipulado na PRI, que vai proporcionar uma melhor reinserção dos
delinquentes antes de estes serem libertos definitivamente134.
134
JOAQUIM BOAVIDA: 2018. 291 ensina que se tem conseguido demonstrar que a severidade do regime
penitenciário é causa de maior reincidência, ou seja, quanto mais rígida é a execução da pena, maior é a
probabilidade de re-condenação. Acompanham esta posição: VICTÓRIA RAMOS BARBERO/RODRIGO
J. CARCERO GONZALEZ: 2012, 329-338 e apud JOÃO LUÍS MORAES ROCHA: 2018, 39.
116
xii. Assinalando-se mais uma vez que os delinquentes brevemente irão viver em liberdade
por mais perigosos que sejam, assumimos ser preferível que estes tenham recaídas
enquanto o Estado ainda tem o poder de controlá-los e vigiá-los (e em última instância
ensiná-los e com isso aprenderem), pois ainda se encontram a cumprir a sanção
criminal, do que os delinquentes terem recaídas quando já se encontram em liberdade
definitiva. Aí o Estado já não pode controlá-los ou vigiá-los, a única coisa que pode
fazer é voltar a condená-los pela prática de novo crime e aplicar mais uma vez sanções
criminais.
xiii. Desta maneira, se a liberdade obrigatória em sede de medidas de segurança de
condenados em PRI fosse aplicada, cumpriria uma dupla função: por um lado, de
prevenção especial visto que ao colocar os condenados em liberdade os prepararia
para a sua libertação definitiva (que iria acontecer brevemente); e, por outro lado, de
defesa da coletividade visto que permitiria controlar e vigiar a liberdade antecipada
dos condenados, funcionando esta como uma garantia do sistema.
xiv. Por último, recordamos que os delinquentes especialmente perigosos condenados em
PRI não são «verdadeiros» inimputáveis, mas sim imputáveis que a lei entende que
podem ser convertidos «artificialmente» em inimputáveis, portanto, questionamos
qual o sentido de se excluir a aplicação de uma liberdade obrigatória em sede de
medidas de segurança?
xv. Aliás, repare-se que a lei não permite a prorrogação de internamento aos delinquentes
especialmente perigosos condenados em PRI (como permite aos demais condenados
em medidas de segurança por via do n.º 3 do artigo 92º do CP), isto significa que a lei
abre uma exceção nestes casos de PRI e aplica um regime mais benevolente. Assim,
questionamos: porque é que a lei não pode abrir igualmente uma exceção
relativamente à aplicação de uma liberdade para prova obrigatória em sede de
medidas de segurança aos condenados em PRI?
Face ao aludido, entendemos que seria benéfico aplicar à PRI a «liberdade para
prova obrigatória», quando os delinquentes especialmente perigosos já cumpriram cinto
sextos da pena máxima legalmente admitida pelo regime da PRI. Destaca-se que esta
figura só poderia ser aplicada durante a execução de internamento de inimputável e como
uma liberdade antecipada à atribuição da liberdade definitiva, nunca como uma liberdade
para prova atribuída depois de a liberdade definitiva já ter sido alcançada e concedida 135,
135
Pronunciamo-nos em sentido contrário ao que ALMEIDA COSTA: 1989, 445 defendeu.
117
senão violar-se-ia a legalidade visto que a PRI é constituída por um limite máximo legal
inultrapassável. Isto é: os delinquentes especialmente perigosos, ao alcançarem cinco
sextos do limite máximo legal admitido pela moldura penal abstratamente criada pelo
regime da PRI, deveriam beneficiar de um período de liberdade provisória,
nomeadamente a designada «liberdade para prova obrigatória». O ponto de partida para
a aplicação desta figura seria o n.º 4 do artigo 61º do CP conforme a interpretação
explicada supra136. Repare-se que um dos grandes objetivos desta figura seria garantir e
assegurar a existência de uma liberdade provisória que antecedesse a liberdade definitiva,
visto que aquela liberdade tem um peso fundamental na preparação da libertação do
condenado e funciona como uma fase de transição entre o encarceramento prolongado e
a liberdade definitiva. A possibilidade desta liberdade obrigatória durante a execução de
internamento de inimputável solucionaria aqueles casos em que os delinquentes se viram
privados de obter e beneficiar de uma liberdade de prova (ou mesmo liberdade
condicional) anterior à colocação em liberdade definitiva. A «liberdade para prova
obrigatória» seria uma medida de última oportunidade e de ajuda aos delinquentes
condenados em PRI, dado que possibilitaria aos mesmos desfrutarem de um período
obrigatório em que poderiam viver em liberdade (ou porque nunca viveram ou porque já
viveram, mas não se souberam comportar e perderam-na), independentemente da
realização de qualquer juízo de prognose favorável (pois o importante nesta fase não seria
medir o estado de perigosidade mas sim tentar ajudá-lo na sua ressocialização). Contudo,
interessa destacar que esta liberdade, para ser aplicada, deve ficar dependente da
concordância dos delinquentes, pois, como defendemos ao longo de todo este estudo, o
processo de reinserção dos delinquentes perigosos imputáveis não pode ser imposto
coativamente pelo Estado137. Quer isto dizer que a designação “obrigatória” apenas pode
ser interpretada no sentido de o TEP ter de conceder e aplicar a liberdade de forma
automática aos delinquentes caso estes a aceitem; nunca pode ser interpretada no sentido
de esta liberdade ser imposta coercivamente aos delinquentes.
136
Sufragamos ainda o entendimento de FIGUEIREDO DIAS quando refere que se fosse possível aplicar
a liberdade (condicional) obrigatória à PRI, esta devia ser aplicada a todo o âmbito da PRI e não só às penas
de prisão superiores a seis anos, em nome do princípio de que a libertação na PRI é sempre condicional.
Cfr. FIGUEIREDO DIAS: 2011, 588.
137
Acompanhamos a posição defendida por ALMEIDA COSTA: 1989, 452 e ANABELA RODRIGUES:
1988, 31 quando referem que todas as modalidades de liberdade condicional (facultativa e obrigatória)
devem ficar sujeitas ao prévio consentimento do condenado.
118
Salientamos, ainda, que concordamos com FIGUEIREDO DIAS quando refere que é
essencial criar um sistema de assistência pós-institucional, contudo, consideramos que
isto por si só não chega. Por um lado, atualmente não existe um sistema de assistência
pós – prisional (JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 289), logo, não podemos deixar a tarefa
de transição entre a reclusão e a liberdade ficar dependente da eventual criação deste
instituto138. Por outro, esta modalidade de liberdade obrigatória traduz um “(…) processo
seguro de o Estado não largar inteiramente mão do condenado, o que pode representar
para este, em vez de benefício, um pesado e duradouro encargo, e é ainda uma cautelosa
fase de transição entre uma longa prisão e uma plena liberdade” (MAIA GONÇALVES:
1998, 227).
138
Não obstante de continuarmos a concordar com a necessidade de criação deste sistema de assistência
pós-institucional ou pós-prisional.
119
CAPÍTULO VI
REFLEXÕES
120
Falta de meios humanos dado que os técnicos, guardas e funcionários que são as
pessoas que têm maior contacto com os reclusos são insuficientes e têm falta de
formação139;
Insuficiência dos programas laborais, escolares e de formação profissional, fruto da
sobrepopulação prisional e da restrita disponibilidade de vagas (existindo mesmo uma
lista de espera para a atribuição de um posto de trabalho);
Falta de assistência pós-prisional, pois, quando um condenado sai em liberdade não
beneficia de qualquer tipo de acompanhamento nem é auxiliado por uma entidade
com vocação para assistir ex-reclusos e, embora formalmente seja supervisionado por
parte dos serviços de reinserção social, na prática isto não acontece por falta de
recursos.
JOAQUIM BOAVIDA aponta ainda que todos estes problemas estruturais são mais
acentuados no caso dos reclusos mais vulneráveis140 por duas ordens de razão. A primeira
prende-se com o quadro de sobrelotação prisional; falta de meios humanos e materiais;
deficientes condições internas de segurança; permeabilidade à introdução de
estupefacientes e objetos proibidos em ambiente prisional e o domínio de secções
prisionais por parte de reclusos organizados (com vista ao tráfico de utilidades). Verifica-
se assim que os reclusos mais vulneráveis e que necessitam de maior acompanhamento,
como não o têm, acabam por ser instrumentalizados pelos reclusos mais fortes e tornam-
se vítimas do próprio sistema prisional. A segunda razão entronca no quadro da falta de
assistência pós-prisional, onde se verifica que os reclusos mais vulneráveis, como não
dispõem de condições no exterior favoráveis e de uma vontade inequívoca de não voltar
a praticar crimes, o sucesso da sua reinserção social fica mais uma vez dependente de
uma ação planificada e integrada que cabe ao Estado garantir e que no fundo não garante.
Logo, o autor conclui que, nos casos dos reclusos mais vulneráveis, a falta de preparação
dos mesmos alicerçada nos problemas estruturais do sistema prisional e de reinserção
social, traduz-se no verdadeiro insucesso da sua reinserção social.
139
“É habitual ver guardas prisionais a tratar da medicação dos reclusos ou técnicos superiores de
reeducação ou assistentes técnicos a apoiar presos em assuntos jurídicos ou outros sem qualquer conexão
com as respetivas funções”. Cfr. JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 275.
140
“A fragilidade, aqui abordada na dimensão intrínseca do recluso, pode resultar das especiais
características da sua personalidade, doença, problemática aditiva, limitações cognitivas, falta de formação
escolar ou profissional, entre muitos outros factores. (…) As vulnerabilidades externas, que em grande parte
coexistem com as internas, podem emergir, por exemplo, do ambiente social onde se vai inserir ou da falta
ou deficiente apoio no exterior” Cfr. Idem, 285-287 e 289.
121
Transpondo a realidade apresentada para os condenados em PRI (e repare-se que
os delinquentes especialmente perigosos são em regra os reclusos mais vulneráveis 141)
podemos afirmar que os problemas estruturais do sistema prisional e de reinserção social
que existem atualmente, condicionam de forma acentuada a possibilidade de os
delinquentes especialmente perigosos beneficiarem do acesso à liberdade condicional e à
liberdade para prova e, no limite, condicionam o sucesso da própria sanção que lhes é
aplicada. Aliás, nos processos consultados por nós, podemos observar que os delinquentes
condenados em PRI, normalmente apresentam insucesso nas medidas que lhes são
aplicadas. Basta recordar o caso n.º 2 relativo ao delinquente por tendência B, onde
verificámos que, embora este já estivesse em reclusão há 21 anos, durante uma saída
jurisdicional, cometeu novo crime de roubo pelo qual veio a ser condenado em 5 anos de
prisão efetiva.
141
Deve consultar-se as histórias de vida dos delinquentes por tendência A e B, expostas no capítulo I.
142
ANASTASYA MYRNA chega mesmo a afirmar que constatou que existem alguns sujeitos que têm
perturbações do foro psicológico ou psiquiátrico (embora não se possam equiparar às situações de
«anomalia psíquica grave») e que não têm em regra qualquer tipo de acompanhamento, sendo claro que
esta situação coloca vários entraves à sua reinserção social. Cfr. ANASTASIYA MYRNA: 2018, 136-138.
122
afirmaram que não estão motivados para cumprir os planos, pois nem sempre têm
oportunidade de ser inseridos nas medidas neles previstas. Por fim, a autora destacou que
os problemas vislumbrados ao nível da elaboração, cumprimento e execução do plano
individual de readaptação não são causados pela negligência dos técnicos de educação e
serviços de reeducação, mas sim pela falta de meios 143. ANASTASIYA MYRNA
concluiu que o instituto da PRI está a ser muito mal aplicado pois foge às principais
finalidades de ressocialização (ANASTASYA MYRNA: 2018, 87-138).
Face aos dois ensinamentos apresentados por dois autores distintos (um de forma
geral e outro de forma específica relativo a condenados em PRI), podemos concluir que
a tarefa de reinserção social dos delinquentes especialmente perigosos condenados
em PRI não está a ser realizada da melhor forma, devido aos problemas estruturais
que o sistema prisional e de reinserção social enfrentam.
Portanto, em primeiro lugar temos que concluir que, devido à falta de técnicos
qualificados que participam no tratamento penitenciário, os planos individuais de
readaptação dos reclusos condenados em PRI ficam completamente comprometidos (e
consequentemente a sua reinserção social), ou porque não são elaborados, ou porque são
elaborados tardiamente e de um modo pouco eficiente e capaz.
Em segundo lugar, concluímos também que direta ou indiretamente estes planos iriam
ajudar os condenados em PRI a reinserirem-se e consequentemente iriam possibilitar e
influenciar os juízos de prognose que são realizados em sede de concessão de liberdade
condicional e de liberdade para prova. Porém, como os mesmos não são efetuados ou são
efetuados de um modo pouco adequado, a reinserção social e o juízo de prognose
favorável (que é realizado pelo juiz de execução de penas em sede de atribuição de
medidas de flexibilização da pena) fica unicamente dependente da capacidade de
resiliência do próprio recluso, quando na realidade cabe ao Estado proporcionar de forma
suficiente as medidas de ressocialização 144.
143
No mesmo sentido, pronunciam-se JOAQUIM BOAVIDA: 2018, 275 e DANIELA VARGES GOMES:
2015, 67 e 68.
144
MAIA GONÇALVES ensina que a existência de um plano individual de readaptação é fundamental,
porque cria uma “obrigação imposta à entidade competente de periodicamente emitir parecer fundamentado
sobre o qual o tribunal possa decidir sobre a concessão da liberdade condicional do delinquente”. Isto é, na
verdade o plano individual de readaptação influencia a possibilidade de concessão ou negação da liberdade
condicional. Cfr. MAIA GONÇALVES: 1998, 285.
123
Em terceiro lugar, acrescem à falta de elaboração dos planos e à falta de concessão de
medidas de flexibilização da pena (nomeadamente da liberdade condicional e da
liberdade para prova por ser impossível realizar um juízo de prognose favorável), todos
os demais problemas estruturais existentes, como, por exemplo, a falta de condições dos
espaços físicos de cumprimento da pena, devido à sobrepopulação prisional, e de
tratamento médico especializado. Estes problemas ganham especial relevo quando
existem delinquentes condenados em PRI que já transitaram para a aplicação do regime
de medidas de segurança. Nestes casos, seria mais benéfico que estes delinquentes
cumprissem o remanescente da sua pena num estabelecimento vocacionado para o seu
tratamento com apoio especializado, porém, isto também não se verifica.
Visto que o delinquente especialmente perigoso pode ser ou não ser incorrigível, não
podemos, com base na potencial incorrigibilidade, criar um dogma absoluto relativo à sua
reinserção social. E, mais, mesmo que se entenda que este delinquente é incorrigível no
sentido de ser incurável, isto não isenta o Estado de Direito de ter de lhe proporcionar
medidas adequadas à sua reinserção social (e que pelo demonstrado anteriormente estão
muito aquém do suficiente e desejado).
2. No plano da constitucionalidade
Depois de efetuadas as reflexões no plano da reinserção social do delinquente
especialmente perigoso condenado em PRI, consideramos ser de especial interesse refletir
também sobre a constitucionalidade do próprio instituto da PRI.
125
Antes de avançarmos na nossa análise, gostaríamos de realizar breves considerações
sobre os princípios supramencionados.
O princípio da culpa, previsto no n.º 2 do artigo 40º do CP, estabelece que “em caso
algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Na verdade, o que este preceito
normativo nos transmite é que a culpa é o pressuposto e o limite do Direito de punir,
ou seja, um determinado indivíduo só pode ser punido penalmente de acordo e na medida
do facto ilícito por si cometido. Não há pena sem culpa e a pena não pode exceder a culpa
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 73 e GERMANO MARQUES DA SILVA: 2015, 229-230).
Embora este princípio não esteja previsto de forma escrita na constituição portuguesa, ele
integra o «bloco da constitucional» na medida em que é reconduzível ao princípio da
dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º e no n.º 1 do artigo 25º da CRP
(FIGUEIREDO DIAS: 2011, 84)145. MARIA JOÃO ANTUNES ensina: “Este princípio
exprime-se, em direito penal, a vários níveis: veda a incriminação de condutas destituídas
de qualquer ressonância ética; impede a responsabilização objetiva, obrigando ao
estabelecimento de um nexo subjetivo (…) entre o agente e o seu facto; obsta à punição
sem culpa e à punição que excede a culpa” (MARIA JOÃO ANTUNES:2013, 96 e Ac.
do TC n.º 496/91, processo 183/90, de 08 de novembro de 1991).
145
Repare-se SOUSA E BRITO:1978, 199-200 refere que este princípio decorre diretamente, para além do
princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio do Direito à liberdade (n.º 1 do artigo 27º da CRP).
126
embora não esteja escrito na constituição portuguesa, decorre diretamente do n.º 2 do
artigo 18º da CRP. Este princípio indica-nos que se deve censurar as soluções legislativas
que contenham sanções que sejam manifesta e claramente excessivas (MARIA JOÃO
ANTUNES: 2013, 97 e Ac. do TC n.º 108/99, de 10 de fevereiro de 1999, processo n.º
469/98). Tendo ainda como referência o n.º 3 do artigo 40º do CP, que determina “a
medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à
perigosidade do agente”, FIGUEIREDO DIAS ensina que o princípio da
proporcionalidade está para as medidas de segurança como o princípio da culpa está
para as penas de prisão. Logo, o princípio da proporcionalidade nas medidas de
segurança “(…) limita a necessidade de proteção de bens jurídicos e a desejável
reintegração social do agente pela exigência de respeito pela eminente dignidade pessoal
daquele” (FIGUEIREDO DIAS: 2011, 448-449).
127
2.1 Violação do n.º 1 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa
A questão da constitucionalidade da pena relativamente indeterminada à luz do n.º 1
do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa foi analisada pelo Tribunal
Constitucional, designadamente nos acórdãos n.º 43/86 e n.º 549/94.
2.2 Violação dos princípios referentes à preferência pelas reações não detentivas, à
culpa e à proporcionalidade
No caso de condenação em PRI de delinquentes especialmente perigosos não podemos
preferir a aplicação de reações não detentivas, pois as mesmas não conseguem prosseguir
de forma suficiente e adequada as finalidades da punição. Isto é, aos delinquentes
especialmente perigosos devem aplicar-se as reações detentivas, conforme o princípio da
preferência pelas reações não detentivas indica.
129
respeitando o princípio da culpa. Enquanto a perigosidade atua como o limite e
fundamento da punição do delinquente na medida de segurança de internamento de
inimputável, até ao limite máximo legal estipulado pela PRI, respeitando o princípio da
proporcionalidade146. Melhor dizendo, por ser realizado na PRI um juízo de culpa (que é
o ponto de referência da pena que concretamente caberia ao crime) para aplicação da pena
de prisão, e por ser realizado um juízo de perigosidade para aplicação de internamento de
inimputável, não se vislumbra qualquer violação dos princípios da culpa e da
proporcionalidade.
A segunda diz respeito ao que foi referido por nós no capítulo IV. Se concluímos que
o n.º 3 do artigo 90º da CP serve como válvula de segurança do sistema para imputáveis
perigosos de forma a garantir a constitucionalidade do regime de acordo com o princípio
146
Como refere DAMIÃO DA CUNHA: 2010, 683 relativamente à regra do n.º 2 do artigo 30º do CRP:
“(…) o carácter excepcional do preceito (…) implica que a possibilidade de «prorrogação» só possa ser
legalmente prevista quando, além do respeito por aquele núcleo essencial, a medida de segurança tenha por
fundamento a perigosidade com base na anomalia psíquica, não podendo pois, «estender-se» este conceito
a medidas de segurança que assentem num qualquer outro fundamento”.
147
ANASTASIYA MYRNA no estudo empírico que realizou constatou que é gritante a situação de um dos
reclusos que apesar de ter sido condenado por 13 crimes de roubo, foi condenado a uma pena concreta de
18 anos que acrescido de mais 6 anos de medida de segurança (resultante da PRI), o que perfaz um total de
24 anos de reclusão de moldura máxima legal e que autora considera notavelmente excessivo e
potencialmente dessocializador. Além desta situação, salienta ainda outra situação de um recluso que terá
de cumprir no máximo um total de 25 anos de PRI devido à transposição de uma pena que sofreu em
Inglaterra (Imprisonmente for Public Protection que corresponde a uma pena de carácter indeterminado,
onde se estabelece apenas o limite mínimo), porém, a autora explica que esse limite máximo aplicado lhe
parece excessivo uma vez que esse tipo de pena foi abolido em Inglaterra no ano de 2012 e quando foi feita
a transposição da sentença em 2013 o tribunal não teve esta alteração em conta. Cfr. ANASTASIYA
MYRNA: 2018, 130-131. Aliás, no caso n.º 2 referente ao delinquente por tendência B exposto por nós
nesta dissertação, verificamos igualmente a aplicação de uma PRI muito longa face aos crimes cometidos.
130
da culpa, por outro lado, somos obrigados a concluir que o regime da PRI colide com
princípio da proporcionalidade, pois é desproporcional e excessivo aplicar um regime
mais gravoso (como é o do internamento de inimputáveis) aos delinquentes imputáveis
perigosos sem ter certezas sobre o seu estado de inimputabilidade e sem lhes conceder
mais garantias de reinserção social durante o cumprimento da medida de segurança.
Deste modo, podemos concluir que o regime da PRI consagra regras que têm em vista
permitir a ressocialização dos delinquentes especialmente perigosos, zelando assim pelo
cumprimento do princípio da socialização dos condenados. No entanto, concluímos
igualmente que a tarefa de reinserção social dos condenados em PRI não está a ser
realizada da melhor forma e fica muito aquém do desejado, devido aos problemas
estruturais existentes no sistema prisional e de reinserção social.
148
Sublinhado nosso.
131
Segundo o princípio da socialização dos condenados, cabe ao Estado proporcionar e
garantir as condições necessárias para que os delinquentes especialmente perigosos se
ressocializem. Contudo, o princípio da socialidade ou solidariedade é muito mais que isto,
na medida em que os direitos sociais são direitos «sob a reserva do possível», pois o seu
conteúdo não é constitucionalmente determinado ou determinável, e, “(…) num contexto
de escassez de recursos materiais e de consequente necessidade de fixação de prioridades
de repartição (…), são, essencialmente determinados por uma irredutível (…) margem de
livre decisão do legislador democraticamente legitimado” (REIS NOVAIS: 2011, 293-
294).
O que com isto queremos demonstrar é que a essência do problema não reside na lei,
pois esta assegura os direitos à socialização dos delinquentes especialmente perigosos
através da elaboração dos planos individuais de readaptação e das medidas de
flexibilização da pena149. O problema reside na falta de recursos do Estado. Na prática, é
a falta de recursos financeiros que não permite que os direitos de socialização se
concretizem na sua plenitude, ou seja, temos direitos escritos que na prática se convertem
em direitos ocos e sem sentido.
Por tudo isto, entendemos que, embora o modo como a reinserção social dos
delinquentes especialmente perigosos condenados em PRI está a ser efetuado represente
uma grande falha, não podemos concluir que o princípio da socialização dos condenados
está a ser violado, visto que o Estado o tenta garantir na reserva do possível.
Na verdade, o que podemos concluir é que a falta e a falha de reinserção social dos
delinquentes especialmente perigosos consubstanciam-se no limite numa violação do
princípio da proporcionalidade. Como referiu o Tribunal Constitucional: uma pena justa
tem de cumprir a função preventiva e reeducadora. A execução da PRI não tem cumprido
a função reeducadora, que aliás é a finalidade principal deste instituto. No fundo, uma
pena relativamente indeterminada sem qualquer sentido de ressocialização é uma pena
destituída da sua real eficácia e, em vez pressupor um processo de tratamento, pressupõe
apenas um processo de expiação da tendência criminosa para lá da culpa pelo facto.
149
Embora, repare-se que se pode discutir se a lei devia consagrar de uma forma mais garantista a reinserção
social dos delinquentes especialmente perigosos condenado em PRI, nomeadamente quando estes cumprem
a fase da medida de segurança. Por exemplo: será que a lei devia afirmar de forma expressa, clara e
obrigatória que estes delinquentes, quando transitam para o cumprimento de medida de internamento,
devem ser colocados em unidades de saúde ou estabelecimentos mais vocacionados para o seu tratamento
e ressocialização?
132
3. No plano internacional
Para terminar o nosso estudo, vamos analisar a perspetiva de interpretação do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem relativamente a três regimes estrangeiros similares ao
da pena relativamente indeterminada que visam igualmente o tratamento de delinquentes
especialmente perigosos.
Em 2 fevereiro de 2017, uma das seções do TEDH decidiu por unanimidade pela não
violação dos artigos 5º §1 e 7º §1 da Convenção Europeia do Direitos do Homem (GUIA
DE JURISPRUDÊNCIA DO TEDH: 2019, 23-26 e 7-11) quanto à detenção do
133
requerente realizada a partir do dia 20 de junho de 2013, visto que os tribunais alemães
justificaram a aplicação da medida de detenção de segurança com fundamento na
perturbação mental do requerente e com a finalidade de o submeterem a tratamento em
ambiente terapêutico adequado. Devido a este propósito de submissão do requerente a um
tratamento terapêutico adequado, esta seção entendeu ainda que a medida de detenção de
segurança não podia ser qualificada como uma «pena». Por último, decidiu igualmente
pela não violação dos artigos 5º §4 e 6º §1 da CEDH, pois foram cumpridos o tempo de
duração do processo judicial de reexame da detenção de segurança e a imparcialidade do
juiz do Tribunal Regional alemão.
150
De acordo com o Direito alemão não é exigível que uma perturbação mental seja de tal modo grave que
exclua ou mitigue a responsabilidade penal do autor do crime para assumir relevância penal.
134
para o novo centro de detenção de segurança onde beneficiou de terapias adequadas às
suas necessidades, mostrando-se cada vez mais apto a colaborar na sua libertação. Além
do mais, a medida ordenada ao requerente foi imposta por tribunal competente, aplicada
como uma medida de última ratio e sujeita a um reexame judicial regular realizado em
curtos intervalos de tempo.
- Para se apurar uma perturbação mental de forma legítima, de modo a considerá-la apta
a desencadear uma detenção legal de «alienado mental», é necessário avaliar a
perigosidade do agente quer presente quer futura;
151
No Ac. de 31 de janeiro de 2019, Rooman c. Bélgica, queixa n.º 18052/11, o TEDH decidiu que existe
a obrigação de proporcionar meios e ultrapassar obstáculos linguísticos no âmbito do tratamento de um
indivíduo que sofre de perturbação mental.
135
- Para a medida subsequente de detenção de segurança (que opera como uma prorrogação
da privação da liberdade depois de cumprida a pena de prisão) ser legal, à luz do artigo
7º §1 da CEDH, é necessário distingui-la de forma clara da pena de prisão comum,
embora a primeira seja um desenvolvimento da segunda;
- A distinção entre estas duas medidas deve ser efetuada pela criação de centros de
detenção de segurança que proporcionem melhores condições materiais de privação da
liberdade, principalmente quando estas forem comparadas com as proporcionadas nos
estabelecimentos prisionais comuns;
- Note-se também, que a medida subsequente de detenção de segurança não é uma medida
de segurança de internamento que pressuponha a prática de um ilícito típico por um
inimputável perigoso, nos termos do n.º1 do artigo 91º do nosso CP;
- Além do mais, a medida subsequente de detenção de segurança deve ser aplicada por
um tribunal competente como uma medida de última ratio dado o seu carácter severo,
uma vez que é aplicada sem períodos mínimos e máximos de duração e depende sempre
da extinção do perigo (cooperação do agente com as medidas terapêuticas consideradas
necessárias) e deve ser revista judicialmente, de forma frequente, em curtos intervalos de
tempo, de forma a não vigorar por demasiado tempo e atenuar a sua gravidade;
136
logo é uma medida legal, dado que não é aplicada como uma pena mais grave do que a
aplicável no momento da prática do crime (vide: Ac. de 7 de janeiro de 2016, Bergmann
c. Alemanha, queixa n.º 23279/14, e Ac. de 6 de outubro de 2016, W.P. c. Alemanha
queixa n.º 55594/13).
- No entanto, note-se que, a contrario sensu, o TEDH considera que a medida subsequente
de detenção de segurança pode ser qualificada como «pena» na aceção do artigo 7º, §1
do CEDH, caso esta não se diferencie de forma clara e eficaz da pena de prisão e seja
cumprida em estabelecimento prisional comum que não proporcione melhores condições
materiais de cumprimento do que as permitidas pela privação da liberdade executada
como prisão. Neste caso, a medida subsequente de detenção de segurança, considerada
como «pena», será uma medida ilegal e, portanto, violadora do artigo 7º da CEDH, uma
vez que é aplicada como uma pena mais grave do que a aplicável no momento da prática
do crime (vide: Ac. de 17 de dezembro de 2009, M. c. Alemanha, queixa n.º 19359/04, e
Ac. de 28 de novembro de 2013, Glien c. Alemanha, queixa n.º 7345/12).
Por fim, concluímos que a medida alemã de detenção de segurança para tratamento de
doença mental geradora de perigosidade criminal subsequente ao cumprimento da pena
de prisão é semelhante à nossa PRI, pois ambas as medidas implicam uma
prorrogação do tempo de privação da liberdade, depois de cumprida a totalidade da
pena de prisão, com fundamento na perigosidade criminal do condenado (e nunca
com fundamento no crime pretérito) e na necessidade de o submeter a um tratamento
médico e terapêutico especializado. No entanto, embora, a PRI seja semelhante à
medida alemã de detenção de segurança, na parte correspondente à prorrogação do tempo
de privação da liberdade que constitui uma medida de segurança de internamento
(orientada para o tratamento do condenado) depois de cumprida a pena que concretamente
caberia ao crime, convertendo, para o efeito, os delinquentes especialmente perigosos
imputáveis em inimputáveis, a PRI também se distingue da medida alemã de detenção de
segurança, uma vez que tal prorrogação: é aplicada de forma “automática” (ou seja
sem a realização de perícia médica que comprove a existência de uma perturbação mental
e consequente perigosidade criminal no momento em que se prorroga o tempo de privação
da liberdade); não é executada em estabelecimento adequado (pois o regime de
tratamento na PRI não é efetuado num ambiente terapêutico especializado que
proporcione condições materiais de privação da liberdade e tratamento médico capaz de
produzir melhorias no condenado); não se distingue de forma clara da pena de prisão
137
anteriormente cumprida (apesar de a prorrogação da privação da liberdade na PRI ter
uma natureza e finalidade diferente da pena de prisão cumprida até à pena que
concretamente caberia ao crime e pretender transformar-se exclusivamente numa medida
para tratamento, como na prática o regime de tratamento não é executado em condições
adequadas, a prorrogação da PRI confunde-se com a pena de prisão cumprida
anteriormente, transformando-se, assim, apenas na continuação do cumprimento da pena
de prisão).
138
e CÉCILE MARCEL: 2018)152. O tribunal de condenação considerou ainda que o
requerente, no momento da prática dos factos, sofria de uma perturbação mental que
impediu de controlar as suas ações. Deste modo, a partir de 2 de julho de 2007, o
requerente começou a cumprir a sua pena de prisão na seção de defesa social do
estabelecimento prisional de Merksplas, que, no fundo, mais não era que uma enfermaria
psiquiátrica dentro da prisão. Segundo os relatórios psiquiátricos do serviço psicossocial
do estabelecimento penitenciário de Merksplas, o requerente foi considerado um
indivíduo com baixo nível intelectual; portador de uma perturbação da personalidade
(dada a sua predisposição para a perversão) e com deficiente controlo dos seus impulsos.
Deste modo, em 2008, o requerente passou a beneficiar de uma pré-terapia destinada a
tratá-lo, reabilitá-lo e ressocializá-lo. Já no ano de 2009, o requerente foi considerado um
indivíduo que necessitava de acompanhamento numa instituição externa de tratamento
vocacionada para agentes com perturbações mentais, nomeadamente, na VAPH - Vlaams
Agentschap voor Personen met een Handicap. De 2010 a 2015, o requerente mostrou
melhorias no seu comportamento e beneficiou de autorizações de saídas de natureza
precária e participou em eventos desportivos. Neste sentido, o requerente formulou vários
pedidos para deixar de estar “internado” na prisão de Merksplas e ser integrado numa
VAPH, que, sendo um estabelecimento de tratamento externo, possuía um regime menos
severo de reclusão e um tratamento mais adequado à sua condição mental. No entanto,
não obstante os esforços realizados pelo requerente durante anos, a comissão de proteção
de defesa social belga decidiu sempre manter o requerente no estabelecimento prisional
de Merksplas. As próprias instituições de cuidado e internamento alternativas à prisão
recusaram receber o requerente devido à sua personalidade, explicando que o seu
distúrbio autista era impossível de tratar e de conduzi-lo à liberdade, e que, além do mais,
o requerente não se encaixava na instituição dadas as suas limitadas capacidades
152
Esta lei foi substituída pela lei de 21 de abril de 2007 que, tendo sido amplamente criticada antes de
entrar em vigor, foi novamente substituída pela lei de 5 maio de 2014 que entrou em vigor a 01 de outubro
de 2016. Note-se que esta nova lei ainda não terminou com todos os problemas existentes.
139
intelectuais e o risco de comportamentos sexuais inadequados. O requerente,
inconformado com as decisões, apresentou dois procedimentos cautelares nos tribunais
nacionais, o primeiro foi indeferido, e o segundo, que foi instaurado em 2015, continuava
pendente. O requerente pediu ainda à Cour de Cassation que o seu processo fosse
examinado pela Cour Constitutionnelle, de acordo com os artigos 5º e 6º da CEDH, no
entanto, mais uma vez, o seu pedido foi negado.
Face ao exposto, o requerente decidiu queixar-se ao TEDH com base na violação dos
artigos: 3º e 5º §1 da CEDH pelo facto de estar preso há mais de nove anos em lugar
inadequado à sua condição mental, e 5º § 4 e 13º da CEDH pelo facto de os recursos por
si realizados não serem efetivos e não corrigirem a sua situação de detenção.
153
Note-se que o TEDH evidenciou que o Estado Belga assumiu que a manutenção do requerente numa ala
psiquiátrica ou enfermaria psiquiátrica dentro do estabelecimento prisional era uma solução “transitória”
na medida em que se esperava encontrar uma estrutura adequada e adaptada às suas necessidades e que, a
manutenção do requerente na prisão era completamente inadequada e que tal só acontecia porque existia
um defeito estrutural de alternativas à prisão.
140
- por um lado, a detenção não foi considerada uma verdadeira «pena» à luz do artigo 5º
§1 alínea a) da CEDH, visto que tinha duração indeterminada e não se encontrava
justificada devido à perturbação mental do requerente e necessidade de tratamento;
- por outro, embora tenha sido reconhecida ao requerente uma perturbação mental, para
efeitos da previsão do artigo 5º §1 alínea e) da CEDH na parte referente a «alienado
mental», como as condições de detenção a que este foi submetido foram inadequadas às
suas necessidades, concluiu-se também que a aplicação do artigo 5º §1 alínea e) da CEDH
e a consequentemente justificação legal da privação da liberdade não pôde operar.
3º - Relativamente aos artigos 5º §4 e 13º da CEDH: mais uma vez decidiu que houve
violação destes dois preceitos legais pois, embora o recluso tenha esgotado os múltiplos
recursos de natureza judicial e não judicial possíveis, nunca conseguiu alcançar uma
resposta razoável à sua situação, ou seja, o requerente não beneficiou de um recurso
efetivo contra a sua detenção.
Note-se ainda que o TEDH verificou neste acórdão que este caso contra a Bélgica, não
foi o primeiro (vide: Ac. de 2 de outubro de 2012, L.B. c. Bélgica, queixa n.º 22831/08;
Ac. de 10 de Abril de 2013, Claes c. Bélgica , queixa n.º 43418/09; Ac. de 10 de janeiro
de 2013, Dufoort c. Bélgica, queixa n.º 43653/09 e Ac. de 10 de janeiro de 2013, Swennen
c. Bélgica, queixa n.º 53448/10154), logo, evidenciou a existência de um problema de
natureza sistémica contra agentes considerados doentes mentais que, por manifestarem
alguma perigosidade, têm de enfrentar “penas” de prisão de duração indeterminada que
podem ser cumpridas perpetuamente em estabelecimentos penitenciários inadequados ao
seu tratamento.
154
Este conjunto de jurisprudência reforça a necessidade de nestes casos a privação da liberdade cumprir
uma dupla finalidade: por um lado a defesa da sociedade contra os delinquentes perigosos com perturbações
mentais e por outro, a necessidade de estes receberem um tratamento apropriado que os ajude a
reintegrarem-se o melhor possível na sociedade.
141
condenado e tem de proporcionar uma perspetiva real de reintegração e ressocialização
do condenado na sociedade, criando um sentimento de esperança na sua libertação (vide:
Ac. de 26 de abril de 2016, Murray c. Países Baixos, queixa n.º 10511/10);
Deste modo, visto que o regime de tratamento na PRI é executado de forma semelhante
ao da pena belga de prisão por tempo indeterminado, se seguirmos a linha de interpretação
deste Ac., concluímos que o regime de tratamento de delinquentes especialmente
perigosos previsto na nossa PRI é desconforme com a CEDH, nomeadamente por
142
violação dos artigos 3º e 5º §1, na medida em que submete os condenados em PRI a
tratamentos desumanos ou degradantes e aplica uma privação da liberdade ilegal.
Entre os anos 1975 e 1995, o requerente foi condenado dezanove vezes pela prática
dos crimes de roubo, dano e ofensas à integridade física simples e agravadas. Em 21 de
janeiro de 1997, o requerente foi condenado pelo Tribunal Regional de Arnhem pela
prática do crime de ofensas à integridade física no ano de 1996. Este tribunal entendeu
que, no momento da prática dos factos, o recorrente compreendia a ilegalidade dos seus
atos, contudo sofria de uma perturbação mental que só permitiu que fosse
responsabilizado de forma diminuída. Assim, o requerente foi condenado em quinze
meses de pena de prisão, cumulados com uma subsequente ordem de TBS em clínica de
custódia de tratamento, designada pelo Direito holandês como ter beschikking stelling
(JUDITH DE BOER/JAN GERRITS: 2007, 459-461). O condenado recorreu desta
decisão; no entanto, em 16 de setembro de 1997, o tribunal de recurso confirmou o Ac.
proferido a 21 de janeiro de 1997. Repare-se que a pena de prisão aplicada ao requerente
foi executada em primeiro lugar e tinha como fundamento o crime de ofensas à
integridade física, ou seja, a parte em que o requerente podia ser responsabilizado
penalmente. Enquanto que a ordem de TBS foi executada em segundo lugar e tinha como
fundamento a perigosidade e a perturbação mental do requerente, ou seja, a parte em que
o requerente já não podia ser responsabilizado penalmente e, portanto, devia ser tratado
e ajudado. Em 5 de fevereiro de 1998, o requerente completou o cumprimento da sua
pena de prisão e a ordem de TBS entrou em vigor. No entanto, o requerente não foi
imediatamente transferido para uma clínica de custódia, foi mantido em regime de pré-
colocação em centro de detenção. À data do acórdão, 11 de maio de 2004, o Direito
holandês admitia legalmente que, nos casos em que se verificasse que as clínicas de
custódia eram incapazes de receber um agente a quem foi aplicada uma medida de TBS,
esse podia ser mantido em centro de detenção por seis meses e a partir daí por períodos
sucessivos de três meses, desde que houvesse decisão do ministro da justiça nesse sentido.
Com base nesta previsão legal, o requerente foi mantido em centro de detenção por quinze
143
meses até 17 de maio de 1999, data em que foi internado numa clínica de custódia. Dado
o exposto, o requerente interpôs vários recursos nos tribunais nacionais contra as
sucessivas prolongações da sua detenção em regime de pré-colocação. Os tribunais
nacionais, em junho de 1999, decidiram que não houve violação do direito do requerente
no que se refere às duas primeiras prorrogações, contudo, em novembro de 1999, em
sentido contrário, decidiram que relativamente à terceira prorrogação, o direito do
requerente foi violado e como tal este foi indemnizado.
144
de aplicação da medida de TBS em clínica de custódia. Logo, o TEDH admitiu que até
podia aceitar que, por razões ligadas à gestão eficiente de fundos públicos, houvesse uma
certa dificuldade de a garantir imediatamente, desde que se verificasse um equilíbrio
razoável entre o interesse do Estado e do requerente. No entanto, este tribunal evidenciou
ainda que devia ter sido atribuído um peso especial ao direito à liberdade do recorrente,
de acordo com o artigo 5º §1 da CEDH, na medida em que um atraso significativo na
admissão em clínica de custódia atrasaria o início do tratamento e as perspetivas de
sucesso do mesmo, aumentando assim as oportunidades de prolongar a medida de TBS
aplicada ao requerente. No fundo, este tribunal veio concluir que um atraso de quinze
meses na admissão do requerente em clínica de custódia era inaceitável, pois aceitar este
atraso implicava aceitar um grave enfraquecimento do direito fundamental à liberdade do
requerente, bem como prejudicar a própria essência deste direito.
Destacamos ainda que neste Ac. houve dois votos vencidos. Um que defendeu que, em
5 de fevereiro de 1998, o requerente deveria ter sido transferido imediatamente para uma
clínica de custódia pois a indisponibilidade de vagas não podia, por si só, justificar a
privação da liberdade do requerente em regime de pré-colocação em centro de detenção,
pois, se se aceitasse este raciocínio, estar-se-ia a criar um risco de arbitrariedade e a
permitir que os Estados usem os seus problemas práticos como uma desculpa para não
cumprirem a CEDH. Outro que defendeu que a detenção do recorrente em regime de pré-
colocação em centro de detenção foi ilegal, contudo, não por violação do artigo 5º §1 da
CEDH, mas sim por violação do artigo 3º da CEDH, pois o requerente nessa data estava
detido legalmente por ser “alienado mental” e não beneficiou das condições adequadas à
sua condição mental, designadamente de cuidados médicos.
- O TEDH admite que se cumule uma pena de prisão (fundamentada no artigo 5º, §1,
alínea a), da CEDH) com um regime subsequente que visa o tratamento de um condenado
(portador de perturbação mental e considerado perigoso) num local vocacionado que
detenha as condições médicas especializadas adequadas e suficientes (fundamentada no
artigo 5º, §1 alínea e), da CEDH);
145
vagas) e o condenado for colocado em centro de detenção como uma solução provisória
(ou seja, enquanto aguarda por vaga), esta detenção apenas é legal se o tempo de espera
for razoável e conciliar os interesses do Estado e do condenado, sendo que o direito à
liberdade do condenado tem especial relevo (vide: Ac. de 11 de maio de 2004, Brand c.
Países Baixos, queixa n.º 49902/99, e Ac. de 5 de abril de 2011, Nelissen c. Países Baixos,
queixa n.º 6051/07).
Por último, evidenciamos que a nossa PRI se equipara ao regime de TBS holandês,
designadamente na parte correspondente à prorrogação do tempo de privação da liberdade
que constitui uma medida de segurança de internamento, depois de cumprida a pena que
concretamente caberia ao crime, convertendo, para o efeito, os delinquentes imputáveis
especialmente perigosos em inimputáveis. Note-se que a prorrogação da PRI tem
igualmente um carácter não punitivo; usa como fundamento a perigosidade criminal
e a necessidade de tratar e reabilitar os condenados. Todavia, esta prorrogação da PRI
distingue-se da medida de TBS holandesa porque, enquanto a medida holandesa ordena
e obriga a que a sua execução se dê em clínica de custódia de tratamento, o regime
português de prorrogação da PRI para tratamento de um delinquente especialmente
perigoso não ordena nem obriga a que a sua execução ocorra em estabelecimento
médico especializado e adequado à sua condição mental.
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem prática, realizada através da consulta dos processos sobre PRI que
correm termos no TEP de Lisboa e a exposição de dois desses processos e dos problemas
inerentes aos mesmos, permite-nos concluir que:
3ª) Para os condenados em PRI a prisão serve como escola do crime, ao invés de servir
como escola de preparação para a vida em liberdade, que os ensine a viver conforme o
Direito.
147
conduzir a dissertação buscando dar uma resposta aos mesmos, filtrando, assim, o que
seria de tratar na parte teórica.
1ª) A figura do delinquente especialmente perigoso (que é por excelência o indivíduo que
deve ser condenado em PRI) tem contornos históricos muito antigos. Este indivíduo
considerado perigoso, vestido com diferentes roupagens ao longo dos anos, na verdade,
sempre existiu. O Direito começou por punir a vadiagem e a mendicidade, em seguida
evoluiu para a punição dos delinquentes de difícil correção até chegar à punição dos
delinquentes especialmente perigosos através do instituto da PRI, consagrado legalmente
no ordenamento jurídico português no ano de 1982. No fundo, percebemos que o Direito
inicialmente aplicou o Direito penal do castigo e mais tarde passou a aplicar o Direito
penal da cura e do tratamento. O estudo da história da PRI permite-nos concluir ainda que
a discussão sobre a natureza jurídica da prorrogação da PRI é uma discussão também
antiga e controversa, que pode ser resumida em duas linhas de pensamento: ou a
prorrogação se fundamenta na culpa pela personalidade, ou se fundamenta na
perigosidade do agente.
2ª) A PRI é constituída por três modalidades: delinquentes por tendência; delinquentes
alcoólicos e equiparados; delinquentes por incêndio florestal. Para se poder aplicar estas
modalidades de PRI é necessário preencherem-se os pressupostos formais e materiais de
cada uma das modalidades. Consoante a modalidade, é possível acrescentar à pena que
concretamente caberia ao crime dois, quatro ou seis anos. Concluímos, ainda, que depois
de cumprida a pena que concretamente caberia ao crime, caso seja necessário o
condenado em PRI continuar a cumprir mais tempo de reclusão, deve este transitar para
o regime de cumprimento de medida de segurança de internamento de inimputável e,
como tal, deve ser convertido em delinquente inimputável. É durante a execução da PRI
que o condenado descobre o tempo que efetivamente irá cumprir, consoante a avaliação
que é feita ao seu processo de ressocialização através do plano individual de readaptação
e da concessão ou negação de liberdade condicional ou liberdade para prova.
148
prisão e a perigosidade do agente é o limite e o fundamento da medida de segurança. Isto
significa que a PRI é uma sanção mista e, como a construção do seu regime não coloca
em causa os princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade, podemos concluir
que tem natureza jurídica de uma pena de segurança e consagra um sistema de monismo
prático.
5ª) O n.º3 do artigo 90º do CP pode ter vários alcances, mas na verdade apenas tem um,
que é salvaguardar a constitucionalidade do regime, uma vez que, na prática, esta norma
não afere o estado de inimputabilidade do condenado em PRI de forma “séria” e muito
menos esse estado de inimputabilidade pode ser comprovado através de ideia de
incorrigibilidade. Além disto, esta transição de regimes e a conversão “automática” do
estado de imputabilidade em inimputabilidade também não vêm permitir maiores
perspetivas de ressocialização do condenado durante o internamento de inimputável. Isto
significa que os delinquentes imputáveis condenados em PRI são mascarados de
inimputáveis e o n.º 3 do artigo 90º do CP apenas serve como uma válvula de segurança
do sistema para imputáveis perigosos.
6ª) Durante a fase de execução da PRI tem de ser elaborado de forma obrigatória o plano
individual de readaptação do condenado. Este plano vem ensinar o condenado em PRI a
viver conforme o Direito e serve como um guia não coercivo de tratamento e de
ressocialização do condenado.
149
8ª) O condenado em PRI tem ser colocado imediatamente em liberdade definitiva quando:
alcança o limite máximo legal estipulado no regime da PRI, mesmo que o estado de
perigosidade se mantenha (pois não se aplica o regime das prorrogações sucessivas
estipulado no n.º 3 do artigo 92º do CP); e quando o seu estado de perigosidade cessa,
caso já tenha cumprido a pena que concretamente caberia ao crime.
9ª) Por sua vez, o condenado em PRI não beneficia do regime da liberdade condicional
obrigatória e, não existindo um regime de liberdade para prova obrigatória, também não
beneficia do mesmo. Face a isto, concluímos que os condenados em PRI devem poder
beneficiar de liberdade obrigatória a cinco sextos da pena máxima legalmente admitida
pelo regime da PRI, ou seja, de «liberdade para prova obrigatória». Defendemos que a
aplicação desta liberdade funcionaria como uma medida de última oportunidade e de
ajuda do condenado em PRI e, no fundo, criaria uma solução de concordância prática
entre a liberdade definitiva e a liberdade obrigatória e de respeito pelo princípio de que a
libertação do condenado em PRI deve ser sempre provisória. Além do mais, a aplicação
desta liberdade permitiria atenuar as consequências negativas da conversão do
delinquente imputável perigoso em delinquente inimputável perigoso.
150
13ª) As únicas violações no plano da constitucionalidade que se podem vislumbrar
ocorrem na fase de execução da PRI. Concluindo que o n.º 3 do artigo 90º do CP funciona
como válvula de segurança do sistema para delinquentes imputáveis perigosos de forma
a garantir a constitucionalidade do regime, isto na verdade significa que, quando o regime
da PRI ordena que se aplique um regime mais gravoso como é o da medida de segurança
de internamento de inimputáveis e converte “automaticamente” os condenados em PRI
em inimputáveis sem ter certezas sobre o seu estado de inimputabilidade e sem lhes
garantir mais perspetivas de reinserção social durante o cumprimento do internamento de
inimputável, é desproporcional e excessivo, portanto, viola o princípio constitucional da
proporcionalidade. Por outro lado, sendo o propósito ressocializador o que fundamenta a
prorrogação da PRI e a principal finalidade deste instituto, se a PRI não cumpre esta
função ressocializadora e reeducadora, o regime da PRI é igualmente aplicado de forma
desproporcional e excessiva, violando assim mais uma vez o princípio constitucional da
proporcionalidade. Não é proporcional aplicar-se uma pena tão grave e tão longa como a
PRI, se na verdade ela não cura nem trata o condenado.
14ª) No plano internacional, verificámos que o TEDH admite que se cumule uma pena de
prisão (com fundamento no artigo 5º §1 alínea a), da CEDH) com um regime subsequente
de privação da liberdade (com fundamento no artigo 5º §1 alínea e) da CEDH) que visa
o tratamento de delinquentes especialmente perigosos.
151
perspetiva de reintegração e ressocialização do condenado na sociedade que crie um
sentimento de esperança de libertação e, por último, garantir a colocação imediata do
condenado em estabelecimento adequado ao tratamento, ou quando não for logo possível
devido a indisponibilidade de vagas, garantir um tempo de espera razoável que respeite o
Direito à liberdade deste.
Após as considerações finais efetuadas quer sobre a abordagem prática quer sobre
a abordagem teórica, para finalizar, cumpre agora concluir: o modo como a pena
relativamente indeterminada tem sido executada espelha a total ineficácia do
instituto e uma aplicação desproporcional do mesmo, uma vez que, não cumprindo
a finalidade principal de ressocialização, este instituto transforma-se apenas num
modo eficaz de expiar a culpa e a perigosidade do agente ao invés de o tratar e curar.
152
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TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
- Ac. n.º 85/85, de 29 de maio de 1985, processo n.º 95/84, relator Conselheiro Vital
Moreira, disponível em:
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http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910426.html.
- Ac. n.º 549/94, de 19 de outubro de 1994, processo n.º 646/92, relator Conselheiro Alves
Correia, disponível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19940549.html.
- Ac. n.º 43/86, de 19 de fevereiro de 1996, processo n.º 100/85, relator Conselheiro Mário
Afonso, disponível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19860043.html.
- Ac. n.º 108/99, de 10 de fevereiro de 1999, processo n.º 469/98, relator Conselheiro
Messias Bento, disponível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990108.html.
- Ac. n.º 336/2008, de 19 de junho de 2008, processo n.º 84/2008, relator Conselheiro
João Cura Marinho, disponível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080336.html.
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- Ac. de 23 de dezembro de 2015, processo n.º 154/15.1YFLSB.S1, relator Armindo
Monteiro, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a777549c34f818e680
257f340038b9c6?OpenDocument.
167
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4dc46a80151add6980
25811400388a00?OpenDocument.
168
APÊNDICES E ANEXOS
169
170
ANEXO 1 – Resposta ao Requerimento
171