BELTING, Hans. Igreja e Imagem - A Doutrina Da Igreja e A Iconoclastia. P. 177-201.
BELTING, Hans. Igreja e Imagem - A Doutrina Da Igreja e A Iconoclastia. P. 177-201.
BELTING, Hans. Igreja e Imagem - A Doutrina Da Igreja e A Iconoclastia. P. 177-201.
SEMELHANÇA
E PRESENÇA
A história da imagem antes da era da arte
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ARS URBE
Rio DE JANEIRO
Copyright © 2010 do autor
Todos os direitos desta edição reservados à
MARIA BEATRIZ DE MELLO E SouZA
ISBN: 978-85-63447-00-5
Bild und Kult. Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst.
© Verlag C. H. Beck oHG, Munique, 2004
ISBN 978 3406 37768 6
Likeness and Presence. A History of the lmage before the Era ofArt
University of Chicago Press, 1994
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Ministério
daCultura
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O fato de uma guerra civil ter sido empreendida por conta do ícone é motivo sufi-
ciente para investigarmos mais profundamente o significado cultural e religioso de seu uso
público até o séc. VIII. Afinal, não foi o ícone em si, mas o culto a ele que resultou no longo
conflito da iconoclastia e dividiu a sociedade oriental. Para entender as questões envolvidas
nos debates, responsáveis por causar tamanhas hostilidades, precisamos analisar as práticas
e as teorias que tiveram uma longa história antes de produzirem o conflito aberto. O ícone,
embora fosse um herdeiro da antiga pintura em madeira, acabou por tornar-se o símbolo
de conflitos religiosos, os quais não somente constituíam o objeto de preocupação dos
teólogos, como também remetiam a assuntos relativos à identidade étnica e religiosa que
ameaçavam constantemente a frágil unidade do Império oriental.
OR~d~r4AL
se
178 . SEMELHANÇA E PRE~ENÇA
época, pois este último poderia, involuntariamente, confundir a imagem com o que ela
representava. Alguns séculos depois, João Damasceno, o primeiro teólogo de imagens (ca.
680-749), insistiu oficialmente em uma idéia que, na verdade, deveria dispensar explicações:
"A imagem é uma semelhança que expressa o arquétipo de tal maneira que sempre há uma
diferença entre os dois". 6 Certamente, mesmo essa diferença entre a representação e a
pessoa representada, neste meio tempo, tornou-se menos clara.
A primeira utilização de imagens religiosas pela Igreja de que se tem notícia data do séc.
VI. Significativamente, a família imperial teve um papel importante nesse desenvolvimento,
como quando doou imagens votivas à igreja de Blachernae ou quando ordenou que uma
imagem da Virgem, representando, com efeito, um novo gênero de imagem, fosse enviada
de Jerusalém a Constantinopla. Supostamente foi pintada por Lucas, o Evangelista, a partir
do modelo vivo (cap. 4d). 7
Quando já não era mais possível ignorar o culto às imagens, os teólogos começaram a adotar
posições a favor ou contra elas, muito embora ainda não fossem completamente permitidas no
séc. VI. Foi por motivos pedagógicos que o bispo Hipatio de Éfeso permitiu o uso de imagens
apenas àqueles que delas necessitavam - ou seja, as pessoas simples e incultas. 8 Essa idéia de
que as imagens eram a Bíblia dos analfabetos acabou se tomando o ensinamento oficial da
Igreja Romana. 9 Nas lendas sobre santos datadas do séc. VII, aparecem as primeiras justifi-
cativas do novo culto a imagens praticado no Oriente. A lenda grega sobre o Sto. Pancras de
Taormina faz referência a um retrato de Cristo encomendado por São Pedro, que o entregou
ao santo para que o leva~se à Sicília, juntamente com manuscritos dos Evangelhos e quadros
para serem utilizados como modelos para a decoração de igrejas. 10
b. lconoclastia Bizantina
A utilização exagerada(; o mau uso de ícones em uma parte do Império e sua rejeição,
em outra, logo levaram à iconoclastia. A promoção fervorosa de imagens pode ter dividido
a Igreja e a sociedade antes, mas o conflito começou abertamente quando o Estado proibiu-
as oficialmente, dando assim início a hostilidades que duraram mais de um século e, por
vezes, culminaram em guerra civil. O debate público, resultado imediato dos primeiros atos
de violência, foi o momento da primeira doutrina de imagens, que até então tinha tido im-
portância somente para os gregos que viviam fora das fronteiras sob as leis árabes. A crise foi
necessária para introduzir a questão da imagem no debate dos teólogos, se eles eram contra
ou a favor do ícone. O debate, rico em definições sutis e até excessivamente minuciosas, em
geral se caracterizava mais pela polêmica do que por uma verdadeira tentativa de resolver o
problema. Os defensores das imagens não hesitavam em forjar um antigo costume em que
não havia, e não poderia haver, uma tradição contínua de adoração de imagens. Os escritos
da parte vencida, denominados "inimigos das imagens" (ikonomaclwi), permanecem apenas
nas citações de seus oponentes, as quais serviam para contestá-los e fazê-los parecerem ridí-
ORIGINAL
se
180 . SEMELHANÇA E PRESENÇ.-\
culos. Também o escopo dos atos de violência foi distorcido pelos oponentes. Sabemos,
entretanto, que as imagens foram retiradas dos locais públicos (seção d abaixo).
A iconoclastia, certamente o capítulo mais discutido na história dos icones,u produziu
uma literatura moderna com avaliações contraditórias dos eventos que não podem ser ex-
plicados por um só motivo. Muitas vezes, as imagens eram apenas a questão superficial de
conflitos mais profundos existentes entre a Igreja e o Estado, centro e províncias, grupos
centrais e marginais da sociedade oriental. A corte e o exército lutaram contra os monges
em uma frente em constante mudança. Movimentos hereges adentraram a disputa, especial-
mente movimentos das províncias localizadas nas fronteiras anatolianas, que ameaçavam a
unidade do Império, o que fez com que o centro fosse, às vezes, conciliador, e outras vezes,
repressivo. Fatores econômicos também influenciaram o início e o curso do conflito. Os
militares, que sempre apóiam os vencedores, envolveram-se nos acontecimentos desde o
início. Por meio da leitura das fontes, perguntamo-nos por que eram as imagens que de-
sencadeavam ou, ao menos, expunham os conflitos. Sobre os motivos, apenas conjecturas
são possíveis, pois as explicações oficiais tendem a abster-se do assunto.
O principal tema das imagens - a figura do homem-Deus - naturalmente era o ponto
central das considerações teológicas, de modo que a imagem era percebida como um símbolo
ou como um obstáculo à pureza e unidade da fé. As imagens se prestam a tal papel, visto que
são visíveis a todos e, portanto, podem ser veneradas ou ultrajadas, oficialmente expostas
ou oficialmente retiradas da vista pública. O consenso e a discordância são mais facilmente
manifestados por meio do uso geral de imagt:;ns do que de escritos, aos quais poucas pessoas
tinham acesso na época. O ícone promoveu a disciplina unificadora de uma facção, à medida
que a argumentação sofisticada com freqüência obscurecia diferenças e conclusões. O poder
dos proprietários das imagens locais e a impotência dos imperadores, que se viam rebaixados
a substitutos das imagens divinas, eram outro problema no início da iconoclastia. O colapso
das grandes cidades nas guerras do séc. VII contra os árabes demandou uma forte autoridade
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central que, caso necessário, colocaria a unidade da Igreja acima de todos os símbolos poten- '
cialmente divisores, como os ícones. Somente a cruz, como um signo do sucesso militar do
Império, estava imune tanto à discordância teológica quanto a cobranças de idolatria como
aquela que trouxe o castigo de Deus contra os israelitas. A questão da iconoclastia claramente
transcende as fronteiras de uma história de ícones como gênero pictórico.
Até a tentativa de descrever o mero curso dos fatos se mostra bastante difícil. Os
acontecimentos tiveram início em 726, com o que, aparentemente, foi um édito contra as
imagens e com a destruição do ícone de Cristo na entrada do palácio (seção d abaixo),U
o que fez com que o patriarca Germano, um defensor das imagens, renunciasse, em 730.
O imperador Leão Ill (717-41), nascido no interior da Síria, aparentemente representava
a maioria do exército ao iniciar a iconoclastia. O sucesso na guerra parecia depender da
observância da fé verdadeira. Claramente presente estava o modelo do califa, cujos exércitos
A DOUTRINA DA IGREJA E A ICONOCLASTL'\. • 181
ORIGINAL
8G
182 • SE!v!ELHANÇA E PRESENÇA
Essas imagens polêmicas, que utilizam versos dos Salmos como se o salmista tivesse
previsto os fatos, aparecem muitas vezes. No Salmo 25:4~ por exemplo, "uma vez" e "agora"
são utilizados para fazer menção ao sínodo iconoclástico de 815 e ao patriarca que havia
sido expulso na época, mas que havia voltado ao poder, então. 26 Uma vez, diz a ilustração,
o ícone de Cristo foi encoberto, o que resultou em sangue, como se saísse de uma ferida
corpórea. Agora o mesmo ícone foi restaurado. O prelado segura-o no vinco de sua sobrepeliz,
onde em geral está o Evangeliário, e chama nossa atenção para ele com a outra mão. Nos
detalhes da longa história da iconoclastia, somos novamente lembrados de que a imagem
de Cristo, como testemunho da Verdadeira Fé, era um ponto central do debate.
Determinamos que os ícones do Senhor (...) devem ser venerados e expostos com
o mesmo respeito atribuído aos Livros dos Evangelhos. Como todos os que obtêm
a salvação por meio das palavras do Evangelho, da mesma forma, todos - os sábios
e os ignorantes - beneficiam-se dos efeitos pictóricos da pintura (... ) Portanto, se
um homem não prestar homenagem ao ícone de Cristo, ele também não poderá
reconhecer Sua Forma na Segunda Vinda. 35
Nos dias de hoje, uma pessoa terá dificuldades em perceber o quão ousado e perigoso
era, nessa época, a reivindicação de que se venerassem as imagens, uma vez que as Sagradas
Escrituras, como a verdadeira palavra de Deus, constituía o único meio de Revelação. Como
doutrina de redenção, o cristianismo unia salvação à Revelação as quais, por sua vez, residiam
na Palavra escrita de Deus. Por isso, era uma proposição pouco comum estender este privilégio
sagrado a uma imagem de Deus e assim confrontar a difícil pergunta sobre se e como Deus
se revelava para a humanidade também por meio de imagens e não só por Suas Palavras. A
teologia das imagens teve de enfrentar o desafio de responder a essas perguntas. Sua tarefa
era a promoção da imagem como meio de salvação, uma imagem que, conforme as tradições
da Igreja, era feita de matéria morta - madeira e tinta - e produzida por pintores humanos
imitando a natureza de Deus. A Palavra era relevada por Deus, ao passo que a imagem era
criada por artistas (e, segundo a lei mosaica, inicialmente fora até proibida por Deus).
Os teólogos que ousaram justificar as imagens a partir da tradição da antiga lgrej~
encontravam-se, então, em uma posição delicada. Entretanto, eles faziam uso da autoridade
dos Pais da Igreja, que não utilizavam imagens para seu próprio bem, mas haviam se referido
.'\ DOl"TRi\.-\ DA IGREJA E A ICONOCLASTL'\ • 185
ORIGIP4AL
se
186 . SEMELHA~ÇA E PRESENÇA
a elas, como exemplos, para elucidar as duas naturezas de Cristo. Assim sendo, esses textos
foram uma escolha óbvia, pois a imagem mais importante, a imagem que demandava vene-
ração, era a imagem de Cristo. Seria possível representar Cristo? Em caso afirmativo, qual
das duas naturezas estava presente na imagem? A identidade de Cristo, inclusive a relação
do Pai com o Filho, de fato preocupou os antigos Pais da Igreja acima de tudo.
Este argumento, que balançou profundamente a Igreja, baseava-se na premissa de
que Deus, no monoteísmo, era único e invisível. Então, quem era Cristo? Ele era apenas
semelhante (ou seja, homoi-ousios) a Deus, ou igual (ou seja, homo-ousios) a Deus? Os antigos
teólogos trataram esta pergunta básica mencionando a experiência comum da imagem e
sua relação com a pessoa representada. Eles argumentavam que Deus tornara-se visível
em Cristo, como em uma imagem, ao passo que os novos teólogos, como defensores da
imagem, afirmavam que Cristo poderia tornar-se visível em sua imagem. Diziam que, se
Deus invisível havia se tornado visível no homem Jesus, então este poderia ser visível em
imagens. A realidade da representação de Cristo, um dogma ainda amplamente discutido,
estava associada à possibilidade de sua representação, e a imagem foi assim promovida a
um critério de ortodoxia.
Entretanto, não era suficiente reivindicar para as imagens o direito de representar
um ser humano chamado Jesus, pois elas sempre representaram corretamente pessoas que
existiam em um corpo humano. Afinal, a imagem de Cristo demandava veneração e, por
isso, pedia para si um argumento que era familiar na longa história do platonismo. Se Cristo
como homem podia ser retratado, a imagem não se limitaria à sua natureza humana, uma
vez que Ele próprio era uma imagem de Deus (assim como todas as pessoas, embora de
maneira diferente). O fato de que sua imagem continha seu próprio arquétipo havia sido
citado como uma maneira de esclarecer a questão. Deus, como o arquétipo, foi materiali-
zado no Filho do Homem como em uma imagem. De acordo as explicações do livro dos
Gênesis, o homem foi criado segundo a imagem ou semelhança de Deus. A partir disso, os
Pais da Igreja concluíram que um homem não era a imagem em si, mas seguia a imagem,
ou modelo, que eles identificavam com Cristo, o homem-Deus, e, portanto, o arquétipo
da Criação. Basílio Magno (ca. 330-79) resumiu o argumento com a famosa definição de
que a semelhança trazida em uma imagem por sua forma se realizava na relação do Pai e
Filho pela natureza divina. 36
Para explicar este argumento, Basílio recorreu à famosa experiência da imagem imperial,
que, na época, recebia homenagens em nome do imperador, chegando até mesmo, em seu
lugar, a presidir processos judiciais. ·~sim como ninguém que observa a imagem imperial
no mercado e reconhece o imperador deduziria a existência de dois imperadores, primeiro
a imagem e depois o imperador verdadeiro, a situação aqui é a mesma. Se a imagem e o
imperador podem ser somente um (pois a imagem não resulta em uma multiplicação do
imperador), o mesmo é verdadeiro para Deus e o Logos divino"Y Atanásio (295-373) utiliza
t
f
J
A DOL:TR!:--JA DA IGREJA E A !CONOC!ASTIA • 187
este argumento e vai além: "Na imagem, as características do imperador foram preservadas
e não foram modificadas de modo que qualquer pessoa que a visse nela reconheceria o
imperador( ... ) Portanto, a imagem poderia dizer: "Eu e o imperador somos um."( ...) Aquele
que presta honras ao ícone imperial presta, assim, honras ao próprio imperador".38
Podemos chegar a duas conclusões com base nesta comparação. A primeira se refere
às implicações teológicas da pessoa de Cristo. Se, por um lado, a imagem e seu modelo são
coisas distintas, isso não significa que representem duas pessoas diferentes. Pai e Filho tam~
bém são distintos, mas não estão separados em dois deuses. A segunda conclusão se refere
à veneração da pessoa de Cristo. Uma vez que ela continha o Pai como em uma imagem,
o Pai podia ser honrado no Filho. Esta linha de raciocínio foi posteriormente aplicada ao
ícone, ao painel pintado, que serviu para prestar honras à imagem do próprio Cristo. A
antiga fórmula também se aplica aqui; a saber, a distinção da imagem se refere ao arquétipo
(Basílio). A semelhança não é reverenciada em nome da imagem, mas em nome da pessoa
representada, sendo a imagem apenas um meio com vistas a um fim.
No entanto, a argumentação não parou por aí, pois também precisava combater os
iconoclastas. Estes objetavam que a questão era a imagem do Pai no Filho, ou seja, uma
imagem criada pela natureza, enquanto agora se tratava de uma imagem criada por um artista.
Assim, faziam uma distinção entre a imagem produzida pela natureza (por meio daphysis) e
a imagem produzida por imitação ou arte (por meio de thesis ou mimesis), as quais não eram
intercambiáveis. 39 Os defensores das imagens tiveram então de deixar a antiga doutrina de
Platão e afirmar que a imagem do pintor também tinha seu lugar na sequência cósmica das
imagens. Cada imagem, independentemente de sua natureza, originava~se de um protótipo,
no qual havia uma essência (por dynamis) desde o início. Assim como uma impressão faz
parte de um selo e uma sombra ou reflexo pertence a um corpo, uma semelhança pertence
a um modelo. 40 Desta maneira, a imagem era aparta~a do capricho do pintor e relacionada
a seu arquétipo, o qual ela espelhava em uma forma concordante com o princípio cósmico
da similitude. Vista por este ângulo; a imagem não era uma mera invenção do pintor; ao
contrário, era mais ou menos propriedade - na verdade, o produto - de seu modelo. Sem
o modelo, a imagem não poderia se tornar realidade. Ao adotar a essência do ·arquétipo, a
imagem era investida do poder sobrenatural que justificava sua adoração.
O argumento chegou a um extremo quando não era mais a encarnação de Deus que
era elucidada pela imagem, mas a imagem é que era explicada com o auxílio da Encarnação,
culminando na afirmação de que a imagem de Deus havia sido ofuscada pelo Espírito Santo
como havia ocorrido com Maria na concepção de Cristo. A imagem era considerada a
encarnação ·da forma na matéria. O Espírito Santo tomava agora o lugar do pintor, como
havia tomado o lugar de um pai humano na concepção de Cristo. 41 No fim, o argumento
remontava à filosofia pagã e declarava o culto à imagem como a base da divindade. As
imagens foram promovidas a seres quase pessoais e, como tais, justificadas por uma meta~
física que tinha suas raízes no neoplatonismo pagão. Restava aos seus defensores somente
188 . SEMELHANÇA E PRESENÇA
assegurar que sua prática não seria excessiva ou mal empregada. A adoração a Deus foi
diferenciada da mera veneração à imagem. Ao serem traduzidos para o latim sem distinção,
esses conceitos foram entendidos erroneamente pelos carolíngios, que prontamente rejei-
taram toda a doutrina de imagens dos gregos (texto 33). 42
Essas deliberações têm suas raízes na visão de Platão de que os produtos da natureza
são reflexos de imagens primitivas, nas quais existem em uma forma mais pura. Não há
evolução biológica do primitivo a formas mais desenvolvidas, mas sim uma dependência
de um mundo pré-existente e eterno de idéias e arquétipos, que é refletido na variedade
transitória da natureza física. Na verdade, a natureza é gerada pela lei da semelhança e
reprodução e não pela lei de desenvolvimento - em resumo, como uma imagem. Dessa for-
ma, a imagem se tornou um agente cósmico no aparecimento de um mundo físico. É este
significado universal da imagem como agente ou princípio que é refletido em sua utilização
no debate sobre a natureza da pessoa de Cristo. 43
Na Idade Média, .as imagens de Deus normalmente eram imagens de Cristo, tido como
aquele que se assemelha a Deus em sua natureza divina, além de ter tomado Deus visível
em seu corpo humano. Assim sendo, seu corpo na carne provia a semelhança a Deus, o
invisível. A lei da semelhança, como existe entre o modelo e a imagem, fornece a analogia
para explicar a pessoa de Cristo. Da mesma forma que o modelo e sua imagem são uma
e a mesma pessoa, o modelo na vida e a imagem na representação, assim também Deus e
Cristo, o modelo e a imagem viva, são um e o mesmo Deus (embora, quanto a questões que
transcendem nossa discussão, não sejam a mesma pessoa). Dessa .forma, os teólogos não
se cansavam em apontar a semelhança entre o modelo e a imagem. Eles insistiam que o
modelo é que gerava uma imagem de si mesmo por intermédio do pintor (ou, diretamente,
por intermédio do espelho). O pintor não criava a imagem, mas dependia do modelo. E
como a imagem traz um testemunho da pessoa representada, conclui-seque ela pode receber
as honras destinadas àquela pessoa.
Os teólogos que defendiam a questão da imagem lutavam em duas frentes: contra
seus oponentes eles defendiam a veneração legítima, porém sem abuso. Mas, além disso, a
refeFência à cristologia elevava a discussão sobre as imagens a um alto nível teológico, em
que uma teoria totalmente desenvolvida tinha o objetivo de fornecer o controle necessário
sobre a imagem e também sobre sua utilização pelos fiéis. Visto que a teoria da arte se
tomou assunto da Igreja, podemos perguntar de que forma esta doutrina determinou o
aparecimento formal das imagens, se é que isso ocorreu.
Podemos começar com a existência da "prova de realidade" que era esperada da
.imagem. Segundo as crenças de Platão, da mesma forma como tudo foi criado a partir de
uma imagem preexistente e, por sua vez, poderia gerar uma imagem de si, nada que não
pudesse ser representado por uma imagem poderia afirmar-se como sendo real. Teodoro
de Studion, que comparou o corpo e sombra ao arquétipo e imagem, afirmõu: "Se o que
A DOUTRINA DA IGREJA E A ICONOC!ASTIA • 189
não está presente pode ser contemplado pela mente e não pode também ser visto em uma
representação visual, então também nega a si mesmo aos olhos da mente". 44 De fato, a
imagem refere-se a uma realidade que é colocada em questão tão logo se rejeite a imagem.
Quem contesta a possibilidade da representação de Cristo, na verdade, duvida de sua
realidade como ser humano. Esta linha de raciocínio, tão importante para o debate, será
ilustrada por três exemplos que utilizam a idéia da prática pictórica.
Esta resolução, que foi resumida na época da iconoclastia, tem_ uma relação explícita
com a realidade da imagem. Se Cristo é real, não há alternativa para seu retrato. Assim
sendo, a imagem assume o status de confissão de fé: aquele que reconhece Cristo reconhece
também sua imagem. O Novo Testamento indica que Cristo encarnou na Terra. Por isso, o
termo "verdade" pode ser traduzido por "realidade". A imagem reivindica realidade a tudo
o que representa. O símbolo, por outro lado, é considerado obsoleto no momento em que
pode ser substituído pela imagem, ou seja, pelo original.
A chamada Cruz do imperador Justino, em Roma, claramente antecipa a mudança his-
tórica ocorrida na avaliação da imagem de Cristo que acaba de ser descrita. 46 Na interseção 92
dos braços da cruz, onde se espera encontrar Cristo crucificado, há um medalhão onde se
vê o Cordeiro de Deus. Por outro lado, a Crucificação na capela de Teodoto, em S. Maria
Antiqua, em Roma (cap. 7f), ao representar um homem barbado com uma vestimenta roxa,
enfatiza a realidade completa da morte na cruz. Entretanto, para ser considerada prova da 70
teologia oficial, a Crucificação deveria mostrar o Cristo morto na cruz. O afresco, em Roma,
não o faz, mas muitos dos primeiros ícones simY 71
~--.
ORiGiNAL
&C
190 . SEMELHANÇA E PRESENÇA
........-ii
A DOLTRIN:\ OA IGREJA E A ICONOCIASTIA • 191
88. Inimigos de Cristo e os iconoclastas, após 843. Moscou, Museu Histórico; Cod. 129, foi. 67.
192 . SEMELHA:-.:ÇA E PRESENÇA
QRIGH'~AL
&(;
194 . SEMELHANÇA E PRESENÇA
89. Mosaico em abside da igreja da Dormição da Virgem (Twimésis), destruída, sécs. VIII e IX. lznik (Nicéia)
A fl()I.'TRI:-:A f'A !GREI.'\ E A 1(:0:-:0CI.ASTIA • 195
90. Mosaico em abside, séc. VIII. Istambul, 91. Sala lateral com cruzes substituindo figuras. Istam-
igreja de Sta. lrene bul, Hagia Sofia
92. Cruz do imperador Justino li, sé~. VI. 93. Fragmento de tecido com representação do Nasci-
Roma, S. Pedro mento de Cristo, séc. VIII. Roma,
Museu do Vaticano
196 . SEMELHANÇA E PRESENÇA
profanação. Novamente, ela foi substituída por uma cruz. A inscrição explica a medida,
como segue: "O imperador Leão e seu filho Constantino sustentam ser uma profanação do
divino Cristo que ele apareça em cima do portão do palácio como uma imagem de madeira
muda e morta (num painel de madeira). Por isso, substituíram o que as Sagradas Escrituras
proíbem pela cruz, como o signo de salvação e garantia da fé. " 60
Após o triunfo da ortodoxia, em 843, ocorreu o último ato do drama. A terceira imagem
de Cristo que aparece nesse lugar foi um mosaico de corpo inteiro que, segundo consta,
foi feito por uma vítima dos iconoclastas, o pintor mutilado Lázaro. O patriarca Metódio
(843-47) compôs uma epígrafe de 29linhas para o referido mosaico:
Com sua imagem imaculada e sua cruz esculpida perante meus olhos, ó Jesus,
reverencio, devotamente, seu corpo verdadeiro. Embora sua natureza seja eterna
como a palavra [Logos] do Pai, o Senhor assumiu uma natureza humana por meio
de seu nascimento de uma mãe mortal (...) Ao tornar visível seu corpo passível de
sofrimento, confesso que o Senhor é invisível em sua natureza como Deus. Porém,
os adeptos de Mani, que [vêem) sua encarnação como um fantasma( ... ) não podiam
suportar a contemplação de sua imagem( ...) Em oposição a este erro ilegítimo por
eles cometido, a imperatriz Teodora, a guardiã da fé (...), a exemplo dos piedosos
imperadores cuja piedade foi por ela superada, restituiu esta imagem com piedosa
intenção a seu lugar sobre a entrada do palácio, para sua fama e glória, para a honra
de toda a Igreja, para o benefício da raça humana e para a perdição de todos os
bárbaros e inimigos malignosY
Uma questão importante era a relação do culto à imagem com a fé ortodoxa. Por isso,
as imagens do sexto Concílio Ecumênico (680) eram ou objeto de destruição ou então
de um r~stabelecimento igualmente veemente. Eram figuras didáticas com o objetivo de
influenciar decisões sobre assuntos da fé. Em 711, o imperador monotelítico Filípico
Bardanes recusou-se a entrar em Constantinopla até que a imagem do sexto Concílio,
no vestíbulo do palácio, tivesse sido substituída no milion apenas por pinturas dos cinco
primeiros concílios.62 Posteriormente, o bispo de Nápoles orde"nou que fossem pintadas
imagens do Concílio, direcionadas, propositalmente, contra o Império Bizantino.63
A leitura sobre a vida de Estêvão, o Jovem, mostra que Constantino V foi ao milion, onde
"os seis santos Concílios Ecumênicos haviam sido retratados pelos piedosos imperadores
dos tempos antigos e expostos de :modo a proclamar a fé ortodoxa para as pessoas comuns,
do interior e estrangeiros". O imperador fez com que tais pinturas fossem "apagadas e ex-
pôs em seu lugar uma corrida de cavalos satânica e aquele auriga adorador do demônio a
quem ele chamava Uranico [celestialmente]," a quem ele prestava mais homenagens do que'
aos "santos Fundadores [da lgreja]." 64 A arte profana era claramente domínio do impera-
dor e mostrava variados temas antigos que a pintura religiosa havia suprimido. O próprio
imperador, na qualidade de ícone verdadeiro de Deus, desejava ter lugar de destaque para
•__ ....,..;oi
A DOL'TRINA DA IGREJA E A lCONOClA5TL-\ • 197
37. Basil, De spiritu sancto 17.44 (PG 32, 149); Ladner (1953), 1; e Mango (1972), 47. Cf. Basil, De spirito
sancto 18.45.
38. Oratio JII contra arianos 3.5 e 5 (PG 26, 322 e 332). Cf. Ladner (1953), 11-12.
39. João Damasceno, De imaginibus 3.18. A discussão pode ser encontrada em Basil (ver n. 36 acima). Cf. Ladner
(1953), 2-3, 25ff.
40. Teodoro de Studion (PG 99, 432-33; 95, 163). Cf. Lange (1969), 222-23.
41. Essa idéia está em João Damasceno, Oratio de imaginibus 1.19-20 (PG 94, 1252) e 2.14. Cf. Kollwitz(1954),
339, e Mengers (vern. 28 acima), 76ff.
42. C f., mais recentemente, Gero (1973b), 7ff.; além disso, os estudos de G. Ostrogorsky, E. Caspar e G. B. Ladner
merecem atenção especial.
43. Sobre o tema geral, cf. Willms (1935); também Dürig (1952), sobre aplicação à liturgia, e G. Sõrbom, Mimesis
and Art (Gothenburg, 1966), sobre aplicação na arte.
44. Ver n. 40 acima.
45. Cânone 82 do conselho in trullo (ou seja, na câmara do palácio); o Cânone também era conhecido como
quinisextum, devido a seu tratamento do quinto e sexto concílios ecumênicos em relação a resoluções
disciplinares (Beck, 1959), 47; cf. Mansi (1901), 11:977, e Mango (1972), 139-40.
46. Grabar ( 1966), fig. 359. e C. Belting-Ihm, "Das Justinuskreuz in der Schatzkammer der Peterskirche zu Rom,"
Jahrbuch des Rõmisch-Germanischen Zentralmuseums 12 (1965):142ff.
47. Ver cap. 7, n. 11.
48. Nordhagen (1968) (ver cap. 7, n. 1), 50ff. e 95ft Cf. correções em B. Beck, em Byzantinische Zeitschrift 64
(1971): 394-95. Exemplos para comparação e discussão sobre essa iconografia estão em Ihm (1960), 146-47
e em comparação a S. Cosme e S. Damião, 137-38.
49. Apologeticus (PG 100, 549). Sobre o autor e seu trabalho, ver n. 32 acima.
50. Ver n. 52 abaixo.
51. C f. G. Mercati, "Santuari e reliquie constantinopolitane ... , Rendiconti. Atti della Pontificia Accademia Romana
di Archeologia 12 (1937): 133ff., esp. 143.
52. Moscou, Museu Histórico, Códice 129, foi. 67. Ilustração com números de fólio em Scepkina (1977); ver nn.
24-26 acima; Grabar (1957), 149 e fig. 146; e Corrnack (1985)-
53. Ver n. 42 acima e G. Haendler, Epochen karolingischer Theologie. Eine Untersuchung über die karolingischen
Gutachten zum byzantinischen Bllderstreit (Berlim, 1958).
54. Wulff (1903), 194ff. e P. A. Underwood, 'The Evidence of Restorations in the Sanctuary Mosaics of the
Church ofthe Donnition at Nicaea", Dumbarton Oaks Papers 13 (1959): 235ff. Cf. Cormack (1977b), 147-
48, e Cormack (1985)
55. Cf. Grabar (1957), 154ff. e fig. 88; Cormack (1977a), 35.
56. PG 100, 428. Cf. Lange (1969), 213. Sobre o tema da similaridade, cf.literatura na n. 36 acima, esp. Ladner
(1953), 15ff., e P. Schwanz, !mago Dei ais anthropologisches Problem in der Geschichte der alten Kirche
(Halle, 1970).
57. Cf. R. Comarck e E. J. Hawkins, "The Mosaics of St Sophia at Istanbul: The Patriarchal Apartments",
Dumbarton Oaks Papers 31 (1977): 177ff., e Cormack (1985).
58. Fontes em Mango (1959), 108ff. Cf. Grabar (1957), 130-31; Antologia E, 24-25, em Bryer e Herrin (1977),
185, e Speck (1978), 606ft
59. Mango (1959), 121.
60. Reproduzido em Teodoro de Studion (PG 99, 437); cf. Mango (1959), 122-23.
61. Mango (1959), 126ff.; Mango (1972).
..
A DOUTRINA DA IGREJA E A ICONOCLAST!A • 201
62. Mango (1972), 141. Cf. Walter (1970), 14ff., 20ff. e Grabar (1957), 55ff.
63. Walter (1970), 22-23, e Grabar (1957), 55-56.
64. Mango (1972), 153, e Brown (1982), 293-94. Sobre a Vida de Estêvão, o Jovem, cf. J. Gill, "A Note on
the Life of Stephen the Younger by Simeon Metaphrastes", Byzantinische Zeitschrift 39 (1939): 382ff.; G.
Huxley, "On the Vita ofStephen the Younger", Greek, Roman, and Byzantine Studies 18 (1977): 97ff.; e esp.
Cormack (1985).
65. PG 108, 1028 e 1032.
66. Uma refutação da acusação pode ser encontrada em Nicéforo (PG 100, 436; cf. Lange (1969), 211), para que
as pessoas saibam a quem devem venerar e a quem não devem venerar.
67. LP 2:32. Sobre o assunto em questão, cf. L. D. Longman, em Art Bulletin 12.2 (1930): 115ff.; W. F. Volbach,
I tessuti del Museo Sacro Vaticano (Roma, 1942), no T 104-5.