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Paulus Etnogeometria

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Paulus Gerdes

Copyright © 2012 by Paulus Gerdes

www.lulu.com
http://www.lulu.com/spotlight/pgerdes

2
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Paulus Gerdes

ETNOGEOMETRIA
CULTURA E O DESPERTAR DO
PENSAMENTO GEOMÉTRICO

Reedição

Moçambique
2012

3
Paulus Gerdes

Ficha técnica da reedição:

Autor: Paulus Gerdes

Etnogeometria: Cultura e o despertar do pensamento geométrico,


Instituto Superior de Tecnologias e de Gestão (ISTEG), Belo
Horizonte, Boane, Moçambique, 2012.

Prefácios:

Ubiratan D’Ambrosio (atualmente Universidade Bandeirante


(UNIBAN), São Paulo);

Dirk Jan Struik (1894-2000), Massachusetts Institute of


Technology, Cambridge MA, Estados Unidos da América.

Resenha:

Mariano Hormigón (1946-2004), Universidade de Zaragoza,


Espanha.

Reedição: Instituto Superior de Tecnologias e Gestão (ISTEG),


Belo Horizonte, Boane, Moçambique, 2012

Autor:
Paulus Gerdes,
C. P. 915, Maputo, Moçambique (Paulus.Gerdes@gmail.com)

Distribuição:

www.lulu.com
http://www.lulu.com/spotlight/pgerdes

4
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Índice

Página
Prefácio à edição brasileira (Ubiratan D’Ambrosio) 9
Prefácio à edição americana (Dirk J. Struik) 11
Resenha (Mariano Hormigón) 17
Apresentação (1991) 19
Apresentação (2012) 22

1 Matemáticos sobre a origem de conceitos 23


geométricos elementares
* A geometria teve alguma vez um início? 24
* Geometria = geometria dedutiva? 25
* Ainda no escuro...o que é a geometria? 25
* ... Organizar experiências espaciais? 26
* Que pessoas podem percepcionar formas 26
geométricas?

2 Sobre o nascimento da geometria como ciência 29


* Em linhas gerais 29
* Primeiros passos: aprender a percepcionar formas 30
espaciais

3 Atividades sociais importantes e o despertar do 35


pensamento geométrico
3.1 Sobre a formação do conceito de ângulo recto 35
3.2 De onde viria a ideia de hexágono regular? 40
* Como se podem entrelaçar cestos com um padrão 46

5
Paulus Gerdes
de espaços abertos?
3.3 Como se podem entrelaçar tiras? 50
3.4 Como se pode entrelaçar um botão? 63
3.5 Sobre a formação do conceito de círculo 68
3.6 De onde viria a ideia de pentágono regular? 77
3.7 Como se podem entrelaçar cestos com fundo achatado? 84
3.8 Sobre a formação de alguns padrões de entrelaçamento 93
e uma medida de volume
3.9 Como determinar a configuração da base duma 105
construção rectangular?
* Exemplos de conhecimentos antigos sobre 106
rectângulos
* Exemplos da construção de rectângulos 116

4 Sobre a posterior elaboração artística de ideias de 119


simetria que nasceram na atividade laboral
4.1 Como se pode trepar a uma palmeira espinhosa? 119
4.2 Sobre Lévi-Strauss e simetrias na arte 126

5 O possível papel da atividade social na formação da 135


geometria antiga
5.1 A geometria teve uma origem ritual? 135
5.2 Sobre a possível formação de conceitos de pirâmide 138
* Pirâmides de tangerinas 139
* Pirâmides entrelaçadas 141
5.3 Uma possível elaboração posterior: sobre o “brilhante” 148
da matemática no Egito Antigo
5.4 Como o “Teorema de Pitágoras” podia ter sido 160
descoberto milhares de anos antes de Pitágoras?
* Descoberto apenas uma única vez? 160
* Gêmeos 162

6
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
* Pista certa ou trilho falso? 163
* Segunda fase 164
* Terceira fase 169
* Possíveis desenvolvimentos posteriores 171
* Para os “triplos pitagóricos” 171
* Para o “Teorema de Pitágoras” 183
* Sobre aproximações de   2 187
* Retrospectiva 188
5.5 Como se determinava a área do círculo na 189
Mesopotâmia antiga?
* Primeira hipótese 190
* Segunda hipótese 191

6 Generalidades sobre a génese da geometria 195


* Metodologia 195
* A atividade e o despertar do pensamento 196
geométrico
* Possibilidades de desenvolvimento 197
intramatemático
* “Sedimento” possível de pensamento mágico na 198
imaginação do espaço
* Uniformidade relativa de estruturas ideais 198
* Hipóteses novas acerca da história da geometria 198
antiga
Bibliografia 201
Fontes escritas para as ilustrações 207

Anexos 209
A1 Três métodos alternativos para obter a fórmula do 211
Egito Antigo para a área do círculo
Introdução 211

7
Paulus Gerdes
Conjecturas anteriores 211
Conjecturas sugeridas por um exame de técnicas 213
artesanais africanas
Conjecturas sugeridas ao jogar com objetos 219
circulares
Agradecimentos 221
Referências 221
A2 Um outro método para obter a fórmula do Egito Antigo 223
para a área do círculo

Edições anteriores 227

O autor 231
Livros em Português do mesmo autor 233
Livros em outras línguas 236

8
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Prefácio
1
à edição brasileira

Sinto-me especialmente honrado com o convite para prefaciar a


importante contribuição de Paulus Gerdes á história das ideias. A
honra se associa ao prazer de reler a versão de sua tese de
doutoramento agora preparada especialmente para publicação no
Brasil. De parabéns a Editora da Universidade Federal do Paraná por
ter assumido a publicação desta importante contribuição à história,
filosofia e pedagogia da matemática.
Tem sido comum situar no mundo grego a origem da Geometria
e mesmo da matemática. O facto de a língua grega ter fornecido
praticamente todos os nomes das várias disciplinas científicas, tais
como Geometria, Matemática e outras tantas, e das ideias filosóficas
em geral, reforça essa impressão de ser todo o nosso conhecimento
resultado do pensamento grego. Há mesmo quem sugira que o
pensamento humano atinge o nível de abstração com os gregos. De
facto, a presença do estilo de pensamento grego na evolução da ciência
na Europa, representado sobretudo pela lógica subjacente à Geometria
como explicada por Euclides, é inegável. Mas esse conhecimento, que
evolui há milhares de anos e que constitui o conhecimento moderno, é
resultado de um elaborado processo de dinâmica cultural na qual
muitos povos contribuíram com seus distintos modos de explicação, de
entendimento, de convívio com a realidade para compor novos modos
de pensar. Embora partindo de uma mesma matriz, a espécie tem
evoluído, biológica e cognitivamente, de acordo com distintos
entornos ambientais. Essa dinâmica cultural é que permite que a
evolução dos diversos grupos humanos que povoam este planeta seja
mutuamente e incessantemente enriquecida pelos contactos entre
diversos estilos e resultados distintos que diferentes entornos
ambientais têm sugerido à nossa espécie.
No curso da história, sobretudo nesses últimos quinhentos anos,
inúmeras deformações no processo de dinâmica cultural têm ocorrido.

1
Sobre o despertar do pensamento geométrico, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 1992, 105 p.
9
Paulus Gerdes
Tem sido difícil reconhecer que outros povos e outras culturas tenham
tido e ainda tenham modos de pensar e de atuar que correspondem ao
conhecimento científico. Embora baseado em outras fundamentações
cognitivas e sociais, entre outras origens e outras finalidades, esse
conhecimento responde muitas vezes melhor, à necessidade de
explicar, de conhecer, de conviver com sua realidade, o que é próprio
da natureza humana, qualquer que sejam suas origens geográficas e
étnicas. Diferentes etnias têm distintas maneiras, desenvolveram
diferentes técnicas, diferentes práticas e teorizações para explicar, para
conhecer, para manejar e conviver com a realidade que os cerca.
Paulus Gerdes alia uma sólida base teórica à vivência de anos de
prática na construção de um sistema escolar integrado na realidade de
seu país adoptado, Moçambique. Ele vai buscar justamente na
Geometria, a disciplina que representa a espinha dorsal do
conhecimento científico moderno e normalmente identificada com a
herança cultural grega, o elemento contestador da propalada
hegemonia do modo de pensar ocidental no pensamento moderno.
Mostrando que o pensamento geométrico está presente em todas as
atividades do dia a dia da população, desde as atividades de
sobrevivência, como colheita e caça, até aquelas que respondem ao
impulso em direção à transcendência, como cultos, rituais e arte,
Paulus Gerdes nos leva a uma profunda reflexão sobre a própria
história do conhecimento matemático através da “reapropriação das
tradições e da história da matemática dos povos outrora colonizados e
escravizados”. Paulus Gerdes nos brinda com esse importante estudo
sobre a contribuição histórica e atual do pensar africano no marco
conceitual da etnomatemática, completando assim as importantes
obras Black Athena, de Bernal e a reedição recente de Civilization et
Barbarie, de Cheik Anta Diop e seus próprios trabalhos anteriores,
alguns já publicados no Brasil.
Embora situada no contexto africano, especificamente em
Moçambique, a obra de Paulus Gerdes nos convida a reflexões de
alcance universal, ajudando-nos a perceber as dificuldades e indicando
direções para a reconstrução do conhecimento pelas populações que
lutam pela liberdade e pela independência social, política, económica e
cultural.

Ubiratan D’Ambrosio
Universidade de Campinas

10
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Prefácio
à edição americana 1

Como é que os nossos conceitos matemáticos tiveram origem? E


como apareceu a nossa ciência da matemática?
Para muitos matemáticos a resposta à segunda questão tem sido
fácil. A matemática é uma ciência dedutiva e, por isso, teve origem na
Grécia, começando com Thales e Pitágoras c. 500 a.C. Deles
provieram muitos dos nossos termos, mesmo o próprio termo
matemática. O termo geometria mostra que os Gregos tomaram muitas
das suas ideias dos Egípcios, porque referiu-se à medição anual das
terras depois das inundações do rio Nilo. Assim, de acordo com esta
teoria, os Egípcios – e os Babilónios também – tinham matemática,
mas principalmente de uma maneira empírica. O mesmo era
verdadeiro para a China.
Quando com a publicação de obras como as de Neugebauer sobre a
Babilónia e de Needham sobre a China se tornou claro, nos anos 1930
e mais tarde, que a matemática dos impérios da Idade de Bronze era de
longe mais complicada do que se acreditava, muitos matemáticos
estavam dispostos a admitir que a origem da matemática como ciência
devia remontar do quarto século a.C. aos Sumérios e talvez aos
Egípcios e Chineses também.
Isto significou que a matemática nasceu no período quando os
escribas dos estados da Idade de Bronze começaram a utilizar
símbolos e termos especiais para conceitos matemáticos. Contudo,
donde emergiram estes conceitos e alguns dos termos já existentes?
No passado remoto havia uma resposta simples. Deus tinha dado a
Adão no Paraíso muito conhecimento matemático que ele, após a sua
expulsão, legou ao seu filho Seth, o pai de Enos. Enos, tendo um
pressentimento em relação ao Dilúvio, tinha o seu conhecimento

1
Awakening of Geometrical Thought in Early Culture, MEP
Publications, Minneapolis MN, 2003, 184 p.
11
Paulus Gerdes
inscrito em dois pilares, que sobreviveram o Dilúvio. No decurso do
tempo, aqueles pilares foram vistos e estudados por muitos viajantes,
entre eles o patriarca Abrão, que trouxe este conhecimento ao Egito. E
os Egípcios ensinaram-no aos Gregos.
Encontramos uma tal estória em Josephus, nas escritas do
matemático Tacquet do século 17 e noutros lugares. Ofereçamos esta
estória aos nossos amigos, os Criacionistas, mas preferimos procurar a
origem de conceitos matemáticos noutro lugar.
Teremos que observar a evolução gradual do Homo Sapiens
passando pelos milénios do período pré-histórico, pelos estágios mais
antigos da fabricação de ferramentas, da pesca e da caça até à
agricultura, pastorícia e comércio – até à Idade de Pedra.
Houve muita especulação sobre como o processo de aquisição do
conhecimento de conceitos matemáticos, de formas e do número,
atualmente tenha ocorrido.
Uma abordagem pode ser encontrada nas palavras de um
historiador segundo o qual “as primeiras considerações geométricas [e
aritméticas] do Homem ... parecem ter tido a sua origem em
observação simples, derivando da habilidade humana para reconhecer
forma física [e quantidade], e comparar formas e tamanhos.” Por
exemplo: a forma do Sol, da Lua, de certas cabeças de flores levaram
ao conceito do círculo, a forma das cordas a linhas e curvas, tal como
teias de aranha e favos de abelha a formas mais intricadas, a
triângulos, espirais, sólidos. Comparando montes de objetos uns com
outros levou à contagem, inicialmente somente um, dois, muitos, etc.
Esta abordagem enfatiza observação, reflexo. É um ponto de vista
estático. Podemos chamar isto a atitude do homo observans.
Uma outra abordagem, apresentada por Seidenberg, olha para
impulsos religiosos como a construção de altares. Como se explica
neste livro, isto não é muito satisfatório. O que Gerdes salienta,
ultrapassa isto e também a observação, e é a abordagem através dos
efeitos do labor. Sempre desde que os hominídeos começaram a andar
erectamente, as suas mãos ficaram livres para fazer ferramentas, na
produção da sua vida – inicialmente muito primitivas, mas
gradualmente envolvendo em artefactos bem construídos. O Homem
descobre, melhora, constrói, usa todos os tipos de formas. O conceito
de número cresce. O Homem constrói tendas, casas, faz cestos, pastas,
redes, cerâmica e armas. Através dos milénios, inicialmente muito
12
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
lentamente, depois mais rapidamente, obteve-se uma quantidade
grande de conhecimento de arte matemática. Esta é uma abordagem
dinâmica, a abordagem do homo laborans. É implícito o ponto de vista
marxista, que podemos encontrar, por exemplo, numa nota escrita por
Friedrich Engels (1885), onde ele assinala que as ideias básicas de
linha, superfície, ângulo, número são todas emprestadas da realidade,
na interação do Homem com a Natureza. Os objetos vistos na natureza
e em ferramentas, nas aldeias e nos campos, nunca são exatamente
linhas retas, círculos, triângulos, quadrados. Apenas através da sua
atividade durante os séculos o Homem podia ser levado dessas formas
aos conceitos abstratos da matemática.
O Homem, ao mudar a Natureza, muda a si próprio.
Não negamos por completo o valor de outras abordagens, elas
estão numa relação dialéctica uma para a outra e para o ponto de vista
dinâmico. Ainda há outros factores a tomar em conta, por exemplo, o
do Homem a brincar e jogar, o Homem dos jogos com uma vertente
matemática. O homo ludens.
Durante muitos séculos as ferramentas melhoraram. Por exemplo,
pontas de flecha e machados de mão ficaram mais eficientes, bem
feitos. O mesmo vale para cestos, cerâmica, redes. As ferramentas
tornaram-se mais simétricas por causa da maior eficiência; e assim
encontramos, por exemplo, cestos que tomam a forma de cilindros ou
prismas.
Incidentalmente, a simetria, a harmonia de formas que se tornam as
mais eficientes (muitos exemplos neste livro) parecem também as mais
agradáveis, mais belas. Uma fonte do nascimento da estética?
Podemos referir ao livro.

Para obter mais informação factual sobre o desenvolvimento da


Idade de Pedra, podemos procurar vestígios daquela idade. Há
algumas varas, de madeira ou de osso, encontradas em África,
remontando a talvez 10.000 anos, nas quais foram entalhadas linhas
paralelas, talvez o registo de resultados de caça. Também há as
pinturas rupestres famosas na Espanha e na França, igualmente muito
antigas, que mostram traços matemáticos, se apenas pelo facto que elas
são projeções bidimensionais de corpos sólidos e assim exercícios em
13
Paulus Gerdes
mapeamento. Podemos estudar também pontas de seta e outros
artefactos.
Informação muito mais rica pode ser obtida estudando a cultura de
povos indígenas atuais que vivem ainda em condições da Idade de
Pedra ou que, de qualquer modo, conseguiram reter costumes e
memórias de tempos mais antigos antes de a influência “ocidental” ter
entrado. A sua cultura pode conter muitos vestígios de milénios
passados. Embora tenhamos alguns relatos sobre saber matemático por
parte de viajantes ou de missionários, tal como alguns relatórios sobre
a contagem de Índios Americanos, ou sobre os jogos de Polinésios,
datando do século 19 ou do início do século 20, um estudo sistemático
daquelas culturas dum ponto de vista matemático tem começado
somente nos anos depois da Segunda Guerra Mundial e isto levou a
uma área nova, chamada etnomatemática, um termo proposto pelo
Professor D’Ambrosio do Brasil, que estudou, entre outras matérias,
culturas indígenas da América Latina.
Uma das razões deste interesse tem sido política e é o
anticolonialismo. Iniciando com a impulso dado pela Revolução
Russa, a luta contra o colonialismo levou, depois da Segunda Guerra
Mundial, à dissolução de impérios coloniais velhos. Os estados novos
politicamente independentes tinham de lidar com a influência
devastadora do regime colonial sobre as culturas nativas antigas,
especialmente em África, Poli- e Micronésia. Tem sido uma luta para
recuperar ou conservar identidades nativas, se possível. Pesquisar
conceitos matemáticos inerentes a estas culturas nativas faz parte dessa
procura de uma identidade.
Neste contexto destaca-se o trabalho pioneiro de Claudia
Zaslavsky publicado no livro África Conta (1973), em que ela
apresenta uma visão panorâmica de ideias matemáticas (ou “proto-
matemáticas”, se preferir) nas culturas dos povos que vivem ao Sul da
Sahara. Ela encontra ideias matemáticas em contagem, arquitetura,
ornamentação, jogos, enigmas, tabus, conceitos de tempo, peso e
medidas e até em quadrados mágicos.
Desde a aparição do livro dela, muitos estudos nesta área foram
publicados. A título de exemplo podemos mencionar o livro
Etnomatemática (1991) de Marcia Ascher, que dá exemplos
provenientes de várias partes do Terceiro Mundo, inclusive de relações
de parentesco. Quanto a África, aqui as investigações principais têm

14
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
sido dirigidos por Paulus Gerdes e os seus colaboradores. Neste livro
ele trata de um aspecto geométrico e ornamental da matemática nativa.
Aprendemos neste livro como conceitos matemáticos estavam
envolvidos na construção de cestos, esteiras, pastas, feitos de cana,
folhas e de outras partes de plantas, tal como na construção de casas –
e pirâmides. No decurso dos séculos os artefactos e os métodos de
construção melhoraram e assim os conceitos de triângulo, hexágono,
círculo, rectângulo podiam ser desenvolvidos até levarem às
abstrações da ciência matemática.
Ele mostra como no decurso do tempo, propriedades dessas figuras
geométricas podiam ter sido descobertas, incluindo o teorema de
Pitágoras. Sempre foi um mistério como o conhecimento deste
teorema aparece na Babilónia por volta de 2000 a.C. – donde veio?
Este olhar sobre a feitura, uso e melhoramento de artefactos pode levar
também a outras propriedades. Será possível que o conhecimento
egípcio do volume de uma pirâmide foi desenvolvido a partir da
maneira como frutos (digamos maças) se encontravam amontados nos
bazares (podia isto levar também ao triângulo de Pascal?). Gerdes
acredita que o conhecimento do volume dum pirâmide truncada podia
também ter sido o resultado de métodos sofisticados nascidos de
práticas.
Ainda há mais uma face de estudos etnomatemáticos. É a sua
importância para a educação. Se alunos das aldeias (e dos guetos e
favelas) virem à escola e entrarem em salas de aula modernas,
facilitará a matemática indígena da sua vivência a sua aquisição da
matemática moderna na sala de aula? O uso da matemática nativa
“intuitiva” poderá ajudar em eliminar o “medo” pela matemática do
qual ouvimos falar tanto.
Isto traz a etnomatemática como um factor na discussão ampla
sobre o melhoramento da educação matemática nas nossas escolas. As
ideias do Professor Gerdes podem ter aplicação ampla. Para a
literatura e a discussão deste tópico, outras escritas dele contribuíram
também.

Dirk J. Struik [1894 – 2000]


Professor Emérito M. I. T.
(Instituto Tecnológico de Massachusetts)
Belmont MA, EUA
Março de 1998
15
Paulus Gerdes

16
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Resenha 1

El nombre de Paulus Gerdes es de unos años a esta parte más y


más conocido y más y más respetado, lo mismo que os otros colegas
del Instituto Superior Pedagógico de Maputo (Mozambique) partícipes
cada vez más frecuentes en los foros internacionales de educación e/o
historia de las matemáticas. Respeto y aprecio cada vez más palpable
no sólo en los medios del tercer Mundo que les son propios, sino en
los círculos académicos de la opulenta Europa. Sin duda, con ese
respeto bien ganado tienen que ver el orgullo de una ciudadanía
soberana y el trabajo profesional bien hecho. Un trabajo profesional en
el que se entrelazan, como en los cestos y tejidos que estudian Gerdes
y sus colegas, las llamadas matemáticas modernas y las más genuinas
tradiciones mozambiqueñas.
En cierto sentido este libro de Gerdes es, por lo escrito, una obra
inaugural de una línea de trabajo investigador en las pistas de
formación de muchos conceptos geométricos, que demasiado
gratuitamente se han adjudicado a la gloria del periodo clásico heleno
y que parece sensato pensar que tengan referentes, si no raíces claras,
en el vasto periplo que la especia humana desarrolló en el continente
africano durante muchos miles de años antes de las edades del hierro y
del bronce. Indudablemente la acumulación de estos estudios
etnomatemáticos sobre los saberes tradicionales de África, América,
Asia y Oceanía va a obligar a todos los historiadores de la ciencia del
primer mundo – y afines – a matizar en pro de la verdad histórica
muchos prejuicios adquiridos.
El libro de Gerdes es un texto muy bien construido y, por lo
tanto, muy didáctico. Arranca de una documentada exposición sobre
distintas concepciones de algunos matemáticos sobre los saberes
matemáticos de los pueblos colonizados hasta fijar las ideas más
extendidas en la comunidad profesional sobre la conformación del
nacimiento de la geometría como ciencia. Dedica los capítulos tercero
y cuarto al estudio de la conexión entre algunas relaciones sociales

1
LLULL, Revista de la Sociedad Española de Historia de las
Ciencias y de las Técnicas, Zaragoza, 1994, 17(33), 522-523.
17
Paulus Gerdes
importantes y la formación de conceptos geométricos emblemáticos
como el ángulo recto, pentágono y hexágono regulares, círculo,
rectángulo y relaciones entre dos y tres dimensiones. El capítulo V es
una reflexión miscelánea sobre los orígenes de la geometría y el
estudio monográfico de algunos tópicos en los que pretende enlazar los
saberes etnomatemáticos con algunos temas que se consideran
cruciales en las culturas matemáticas de la edad del bronce como, por
ejemplo, las pirámides o el teorema de Pitágoras.
Paulus Gerdes abre en el capítulo final una ventana a la atención
de los investigadores en geometría antigua con unos planteamientos
que transcienden el campo estricto de la actividad intelectual humana
de la que quedan rastros más antiguos, esto es de las matemáticas. Para
los pueblos colonizados y para muchas razas oprimidos y marginadas
es importante la aceptación de una de las tesis del autor
mozambiqueño: la Humanidad es un todo único donde las diferencias
de estatus han sido añadidas por los sistemas sociales que han ido
dividiendo a los hombres en clases sociales con diferentes
obligaciones y derechos.
Dos apuntes finales imprescindibles. El libro de Gerdes va
prologado por uno de los patriarcas de la historia de las matemáticas,
el irrepetible Ubiratan d’Ambrosio, que avala el texto de manera
concluyente al constatar la importante contribución de Paulus Gerdes a
la historia de la ideas. El segundo apunto se refiere a sus referentes
básicos. Para mi, en tanto que lector de textos de historia de las
matemáticas, encontrar un autor prestigioso que se apoye en la
Dialéctica de la Naturaleza de Engels y se reafirme en que la
geometría nació de las necesidades de los hombres es un soplo de aire
fresco que me permite superar la atmósfera viciada de los medios
académicos de las sociedades opulentas del primer mundo, donde todo
parece haber surgido antes de ayer de las cabezas de unos pocos listos
de derechas.

Mariano Hormigón (1946-2004)


Universidade de Zaragoza, Espanha

18
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Apresentação
(1991)

Os fracassos da introdução da “Nova Matemática” nos países do


Terceiro Mundo obrigaram a uma reflexão profunda.
Já em 1967 Gay e Cole chegaram à conclusão de que, referente
ao ensino da matemática no seio da etnia Kpelle na Libéria (África
ocidental), os objectivos, métodos e conteúdos do currículo
“transplantado” do Primeiro Mundo não faziam sentido sob o ponto de
vista da cultura dos Kpelle. Diversos estudos e análises posteriores
(D’Ambrosio, Carraher, Ferreira, Luna, Posner, Eshiwani, El Tom,
Nebres, Njock, etc.) mostraram que o problema é bastante geral e
grave. Através do currículo importado é sugerido que não existe nem
existiu matemática na vida e na história dos povos do Terceiro Mundo.
A escola reprime e perturba a matemática-da-vida, aprendida e
desenvolvida fora da escola, provocando em muitas crianças um
sentimento de falhanço e de dependência.
Para superar o bloqueio psicológico e cultural gerado pela
transplantação curricular, torna-se necessária uma reforma curricular
radical que sabe reconhecer, integrar e valorizar as matemáticas
“espontânea” (D’Ambrosio), “natural” (Carraher), “informal”
(Posner), “indígena” (Gay e Cole), “não-estandardizada” (Carraher),
“oral” (Kane) dos povos outrora colonizados. Incorporando as
etnomatemáticas (D’Ambrosio) no currículo, contribui-se para a
descolonização cultural. Reganhando autoconfiança cultural, social e
individual nas suas capacidades, os povos podem desenvolver
criativamente aquela(s) matemática(s) de que gostam e que lhes
interessam.
O reconhecimento e a valorização propostos não dizem respeito
apenas às etnomatemáticas atuais. Pretende-se igualmente uma
recuperação, uma re-apropriação das tradições e da história da
matemática dos povos outrora colonizados e escravizados. As
“histórias” dominantes da matemática sugerem que (quase) não houve
matemática fora da Europa, “esquecendo” de que a colonização
contribuiu para a estagnação e a eliminação de tradições científicas nas
Américas, África, Ásia e Austrália. Como se pode tentar recuperá-las,
pelo menos, parcialmente?
19
Paulus Gerdes
É neste contexto global que se enquadra o estudo que aqui se
apresenta: uma análise do pensamento-geométrico-na-vida de
caçadores, recolectores, camponeses, artesãos, que obriga a uma
reflexão sobre O que é geometria? e sobre a sua história.
Complementa outros estudos, 1 em que analiso possíveis implicações
pedagógicas / didáticas de uma reflexão etnomatemática e apresento
algumas sugestões e propostas de incorporação e valorização da
etnogeometria.
Cultura e o despertar do pensamento geométrico constitui a
versão condensada da tese de doutoramento “Sobre o despertar do
pensamento geométrico” (em alemão, 1985), da qual se adaptou a
linguagem e se suprimiram o primeiro capítulo “Sobre o
subdesenvolvimento matemático e a sua superação”, os anexos e a
maioria das anotações e referências bibliográficas, para a tornar mais
acessível a um público mais alargado. Com este estudo abre-se uma
área de investigação que se encontra na “confluência” da etnografia,
arqueologia, psicologia, matemática e historiografia e que toca em
questões fundamentais da filosofia como a da relação entre pensar e
ser.
No primeiro capítulo de Cultura e o despertar do pensamento
geométrico analisam-se opiniões de matemáticos e historiadores
conhecidos sobre a origem de conceitos geométricos. Mostra-se que,
na maioria dos casos, a sua concepção da geometria dificulta uma
compreensão das possíveis realizações geométricas dos povos outrora
colonizados, dificulta uma compreensão do despertar e desenvolver do
pensamento geométrico. No segundo capítulo procura-se uma
plataforma teórica e metodológica provisória para compreender o
nascimento da geometria como ciência.

1
Na série Vivendo a Matemática (Editora Scipione, São Paulo) foi
publicado em 1990 o livro Desenhos da África e aparecerá dentro
em breve Mundial de trançados e de futebol. O Instituto Superior
Pedagógico / Universidade Pedagógica (Maputo, Moçambique)
publicou os livros Lusona: Recreações geométricas de África
(1991) e Etnomatemática: Cultura, Matemática, Educação (1991)
e editará os estudos Geometria dos SONA africanos e Pitágoras
Africano? Um estudo em cultura e educação matemática.
20
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Em seguida investiga-se, no terceiro capítulo, a origem de
conceitos geométricos, tais como ângulo recto, rectângulo, hexágono
regular, circunferência, pentágono regular, cone, cilindro, quadrado.
Verifica-se que a atividade laboral desempenha um papel muito
importante na formação desses conceitos e das suas conexões mútuas.
Uma vez mostrada, em geral, a origem de formas geométricas
básicas na atividade social, surge a questão: em que direções puderam
ter lugar posteriores desenvolvimentos. No quarto capítulo, analisam-
se elaborações artísticas, em particular, de ideias de simetria. Depois
de uma crítica da hipótese concernente a uma origem ritual da
geometria, discutem-se, no quinto capítulo, possíveis elaborações
geométricas posteriores. Primeiramente mostra-se como os antigos
Egípcios podiam ter encontrado a sua fórmula para o volume de uma
pirâmide truncada. Depois analisa-se como o “Teorema de Pitágoras”
podia ter sido descoberto centenas de anos antes de Pitágoras. Em
ambos os casos parte-se de técnicas de produção muito antigas e de
relações matemáticas empiricamente estabelecidas. Após uma etapa
intramatemática, baseada na anterior, chega-se à referida fórmula e ao
“Teorema de Pitágoras”.
No sexto e último capítulo apresentam-se algumas conclusões
provisórias respeitantes ao despertar do pensamento geométrico e em
relação à metodologia de investigação.

Julho de 1991

Paulus Gerdes

21
Paulus Gerdes

Apresentação
(2012)

Na reedição atual do livro Etnogeometria: Cultura e o Despertar


do Pensamento Geométrico incluíram-se, para além do texto da edição
de 1991, o prefácio à edição americana, escrito por Dirk Struik, na
altura Professor emérito do Instituto Tecnológico de Massachusetts
(Cambridge, Estados Unidos da América), a resenha elaborada pelo
Professor Mariano Hormigón da Universidade de Zaragoza (Espanha)
e as secções sobre o cálculo da área do círculo na Mesopotâmia e no
Egito Antigo, incluídas no texto original de 1985.
Ao título do livro acrescentou-se a palavra etnogeometria,
expressão esta utilizada pelo Professor Donald Crowe da Universidade
de Wisconsin (Madison, Estados Unidos da América) para caraterizar
o meu trabalho de investigação, numa resenha publicada na revista
internacional The Mathematical Intelligencer (New York, Vol. 9, Nº 2,
1987, p. 90).

Paulus Gerdes
Maputo, Moçambique
24 de Julho de 2012

22
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 1

Matemáticos sobre a origem de


conceitos geométricos elementares

O conhecimento das realizações matemáticas da maioria dos


povos outrora colonizados é ainda muito limitado.
Existe uma literatura relativamente ampla, quer sobre as fases
iniciais do desenvolvimento do conceito de número, quer sobre a
elaboração de sistemas de numeração. As mais importantes tendências
gerais de desenvolvimento foram analisadas por A. Alexandrov (1977)
e F. Klix (1985). Tanto no que diz respeito às realizações geométricas
dos povos outrora colonizados como em relação às fases iniciais do
pensamento geométrico em geral, encontramo-nos numa situação
completamente diferente. A razão principal para que o surgir e o
desenvolver de conceitos de número e de sistemas de numeração
tenham sido melhor investigados que o desenvolvimento da geometria,
talvez resida no facto de o desenvolvimento do conceito de número
estar mais vinculado ao aparato linguístico e, por isso, poder constituir
mais facilmente objecto de reflexão do que o de conceitos
geométricos.
Sem dúvida houve nos últimos anos uma série de publicações de
D. Crowe (1971, 1975, 1981), D. Washburn (1977) e S. Mead (1971),
onde se analisam padrões geométricos. Nos seus estudos sobre a
geometria da arte africana, Crowe ocupa-se principalmente em
classificar os padrões que se repetem, conforme os 24 grupos de cristal
investigados por Federov e Polya. É interessante saber que todos ou
quase todos os 24 tipos possíveis aparecem na arte do Benim ou dos
Yoruba, mas isso ainda não explica por que e como eles foram
descobertos na história. Atualmente, Washburn e Crowe investigam
como os 17 grupos de simetria dois-dimensional podem ser aplicados
para comparar a cerâmica e a cestaria de várias culturas nos seus
supostos aspectos essenciais, aspectos estes que não dependem da
elaboração especial por parte dos artesãos e artistas individuais. Deste
23
Paulus Gerdes
modo, eles esperam contribuir para o esclarecimento de diversas
questões não resolvidas até ao momento, que dizem respeito à
migração e à atividade comercial de civilizações antigas. Com a ajuda
do isolamento de 34 unidades de padrão das formas de fixar os cabos
das enxadas, Mead conseguiu determinar a idade relativa dos modos
polinésios de fabrico de enxadas. Contudo, de novo não se esclarece
por que estas formas mais antigas de fixar os cabos foram escolhidas
pelos artesãos.
Neste capítulo discutirei algumas conhecidas opiniões de
matemáticos sobre a origem e o desenvolvimento da geometria. Em
que medida é que elas permitem analisar as realizações geométricas
dos povos outrora colonizados?

A geometria teve alguma vez um início?

“A geometria teve alguma vez um início?” é uma pergunta que J.


Coolidge provoca implicitamente no seu conhecido livro Uma história
de métodos geométricos (1963), quando ele escreve: “Qualquer que
seja a nossa definição de Homo sapiens, ele deve ter tido algumas
ideias geométricas; de facto, a geometria existiria, mesmo se não
tivesse havido Homines sapientes nenhuns” (1963, p. 1). Formas
geométricas aparecem tanto na natureza “inanimada” como na vida
orgânica e estes fenómenos podem ser explicados na base de causas
mecânicas e fisiológicas. Além desta necessidade mecânica, prossegue
Coolidge, qual é o exemplo mais antigo de uma construção geométrica
intencional? Talvez a feitura de uma cela de colmeia, se evitarmos
dificuldades metafísicas respeitantes ao problema da liberdade do
querer. Não, a abelha só optimiza, mas o geómetra mais capaz no seio
dos animais é, de certeza, a aranha, que tão belas teias tece! (1963, p.
2) Para Coolidge a geometria existe fora do Homem e da sua
atividade. A geometria é eterna. A história coolidgeana dos métodos
geométricos (humanos?) tem pois o seu início, completamente
arbitrário, na Mesopotâmia, porque lhe falta um critério para saber
achar quando e quais seres humanos se tornaram capazes de observar
(percepcionar) as formas geométricas da natureza.

24
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Geometria = geometria dedutiva?

Ouve-se dizer frequentemente que a geometria começou no


Egito antigo. Problemas da medição de terrenos deram motivo a toda
uma série de fórmulas geométricas, a maior parte das vezes
aproximativas, mas, assim conclui L. Blumenthal, “os agrimensores
egípcios não eram mais geómetras que Adão era zoologista ao dar
nomes aos animais” (1969, p. 1). Segunda a sua opinião, a geometria
surgiu como ciência logo que ela se tornou dedutiva na Antiguidade
grega. Mesmo se se concorda em identificar geometria com geometria
dedutiva, surge ainda uma outra dúvida: as reflexões espaciais pré-
gregas foram raramente ou nunca dedutivas? E uma indução não
pressupõe uma dedução?
Também H. Meschkowski inicia o seu conhecido livro Evolução
do pensamento matemático (1965) com os Elementos de Euclides:
“Com o desenvolvimento dum rigoroso sistema de demonstrações
matemáticas foram ultrapassados os primeiros passos infantis. Na
verdade, os antigos egípcios e babilónios tinham descoberto muitos
teoremas geométricos, todavia estes conhecimentos tinham sido
adquiridos por intuição e observação direta” (1965, p. 6). A passagem
da intuição e da observação imediata ao sistema rigoroso de
demonstrações matemáticas permanece não esclarecida e aparece, por
isso, como absoluta. E não teria sido especialmente esta passagem – se
ela tivesse ocorrido de facto!.. – uma das transformações mais
importantes na evolução do pensamento matemático? Agora esta
passagem aparece como um salto (não-dialéctico). Por outro lado, o
chamado Teorema de Pitágoras, por exemplo, teria sido descoberto
através de mera intuição? Ou teria sido o resultado de pura percepção
imediata?

Ainda no escuro... o que é a geometria?

O presidente da Sociedade Matemática (1955-1956) e da


Associação Matemática (1965-1966) dos Estados Unidos da América,
R. Wilder, sublinha, no capítulo sobre a geometria do seu livro
Evolução de conceitos matemáticos (1968) que “... em vez de procurar
milagres ou deuses ou indivíduos sobre-humanos” (1968, p. 88) para
compreender o nível da geometria grega, se deve tentar encontrar a
25
Paulus Gerdes
linha contínua que conduz da geometria egípcia e babilónica a esta.
Levanta-se ainda a questão se esta linha começou na antiguidade
oriental ou mais cedo. A resposta permanece, contudo, no escuro:
“Havia uma altura” – quando e onde? (pg) – ... em que a matemática
não incluía nada que se podia colocar numa categoria separada e
chamar de geometria. Naquela altura matemática consistia apenas
numa aritmética dos números inteiros e das fracções em conjunto com
uma álgebra embrionária (embora bastante notável) ...” As fracções
deviam ter surgido antes dos primeiros conceitos geométricos? O que
é, então, geometria?

... Organizar experiências espaciais?

Em contraposição a Blumenthal e Meschkowski, o conhecido


geómetra e didático da matemática, H. Freudenthal, avalia o
significado dos métodos dedutivos gregos de modo totalmente
diferente, quando salienta energicamente: “Em vez de considerar como
um elemento positivo as tentativas gregas de formular e demonstrar
conhecimentos ... através de métodos desajeitados e governados por
convenções estritas, sou inclinado a vê-los como um sintoma de um
dogmatismo terrificante” (1982, p. 444), que, até aos dias de hoje,
retardou e, por vezes, pôs seriamente em perigo a divulgação dos
conhecimentos matemáticos. Para Freudenthal (1980, p. 278), a
geometria não começa tão tarde com o formular de definições e
teoremas, mas muito mais cedo com o organizar de experiências
espaciais que conduzem a essas definições e proposições.
Por que, quando e onde começou este organizar de experiências
espaciais? Ou, que pessoas podem percepcionar formas geométricas?

Que pessoas podem percepcionar formas geométricas?

No seu ensaio A história da geometria (1969), bastante


divulgado entre professores de matemática norte-americanos, H. Eves
responde à pergunta “Que pessoas podem percepcionar formas
geométricas?” da mesma maneira que Coolidge: “Todas”. Todavia
alega outras razões para tal: “As primeiras considerações geométricas
do Homem parecem ter tido a sua origem em observações simples que
26
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
provêm da habilidade humana de reconhecer forma física e de
comparar figuras e tamanhos” (1969, p. 165). Aqui a capacidade de
reconhecer e comparar formas é assumida como uma qualidade natural
dos seres humanos, dada de uma vez e para sempre. Por conseguinte,
torna-se relativamente fácil a Eves explicar a origem dos conceitos
geométricos mais antigos. Por exemplo, o contorno do Sol e da Lua,
do arco-íris e das corolas de muitas flores conduziram à concepção do
círculo. Uma pedra lançada descreve uma parábola; um fio suspenso
forma uma catenária; uma corda enrolada fica espiral; teias de aranha
ilustram polígonos regulares, etc. Até aqui pode-nos parecer empirista
a posição de Eves: as propriedades comuns a objetos diferentes são de
carácter imediatamente visível. Esta percepção permanece a maior
parte das vezes passiva. Porém ele nota que “formas físicas que
possuem um carácter ordenado... atraem necessariamente a atenção da
mente refletiva” (1969, p. 166), e este observar leva a uma geometria
“subconsciente”. Mas como é que o Homem sabe quais são as formas
que possuem um carácter ordenado? Ou melhor, por que e como o
Homem aprende, necessariamente, a descobrir ordem na natureza? Por
que a geometria “subconsciente” se transforma em geometria
“científica”, no Egito Antigo e na Mesopotâmia?
Estas perguntas indicam já, como é que a posição de Eves deve
ser dialecticamente superada: para geometrizar são necessários não só
objetos geometrizáveis, mas também já a capacidade de, na percepção
destes objetos, abstrair de todas as demais propriedades, para além da
sua figura – e esta capacidade é o resultado de um longo
desenvolvimento histórico de experiências humanas, se me for
1
permitido parafrasear aqui F. Engels.

1
“Para contar são necessários não só objetos contáveis, mas
também já a capacidade de, na percepção destes objetos, abstrair
de todas as demais propriedades, para além do seu número – e esta
capacidade é o resultado de um longo desenvolvimento de
experiências humanas” (Engels, 1975, p. 36).
27
Paulus Gerdes

28
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 2

Sobre o nascimento da geometria como ciência

A geometria nasceu das necessidades dos homens. Segundo


Engels, “as ideias de linhas, superfícies, ângulos, de polígonos, cubos,
esferas, etc. são todas derivadas da realidade” (1975, p. 36). Levanta-
se de imediato uma importante questão: como é que estas ideias
geométricas foram derivadas da realidade? Ou, como se formou
historicamente a capacidade de geometrizar?
Na sua Dialética da Natureza Engels indica como e onde se
podem procurar respostas: “... na medida em que o Homem aprendeu a
transformar a natureza, ... cresceu a sua inteligência”. O Homem
coloca a natureza exterior “através das suas transformações ao serviço
dos seus fins... E esta é a última diferença, a diferença essencial entre o
Homem e os restantes animais, e é...o trabalho que causa esta
diferença” (1975, p. 452, 498).

Em linhas gerais

A geometria nasceu como uma ciência empírica ou


experimental. Na “confrontação” com o seu meio ambiente o Homem
da Antiga Idade da Pedra chegou aos primeiros conhecimentos
geométricos. O processo da aquisição pelo trabalho de imagens
abstractas das relações espaciais entre os objetos físicos e as suas
partes decorreu, primeiro, de uma forma extremamente lenta. Depois
de ter sido reunido suficiente material factual respeitante às formas
espaciais mais simples, tornou-se possível, sob condições sociais
especiais, como, por exemplo, no Egito antigo, Mesopotâmia e China,
sistematizar consideravelmente o material factual recolhido. Com isso
começou a transformação da geometria de uma ciência empírica numa
ciência matemática, que, com os Elementos de Euclides, alcançou, na
opinião de Alexandrov, uma primeira conclusão: geometria como uma
“ciência matemática com a sua coesão lógica – demonstrar

29
Paulus Gerdes
proposições e abstrair do seu conteúdo inicial o objeto considerado”
(1974, p. 47).

Primeiros passos: aprender a percepcionar formas espaciais

O caminho de desenvolvimento que conduzia à já mencionada


transformação da geometria, era, segundo Alexandrov (1974, p. 47) e
Molodschi (1977, p. 23) longo e complicado. Os corpos materiais e as
suas formas e relações espaciais existiam já antes do Homo Sapiens. O
contorno do Sol e da Lua, a superfície plana dum lago, a rectiliniedade
de um raio de luz etc. estiveram sempre presentes e ofereceram, por
assim dizer, ao Homem a possibilidade de os observar. Mas, na
natureza nunca existem círculos, rectas ou triângulos exatos. Por isso é
claro que a razão principal para que os homens, gradualmente,
tivessem elaborado estes conceitos, resida no facto da observação da
natureza não ser uma observação passiva, mas sim ativa: para poderem
satisfazer as suas necessidades diárias, os homens produziam objetos
com formas cada vez mais regulares. Quando construíam os seus
abrigos, cercavam parcelas de terreno, esticavam o arco, moldavam
panelas de barro etc., descobriram que uma panela é curva, mas a
corda do arco é recta...
Resumindo, Alexandrov sublinha que os homens “... deram em
primeiro lugar forma ao seu material e só depois eles reconheceram
forma como algo imprimido ao material e que, por isso, pode ser
considerada por si só, como uma abstração do material” (1977, p. 10).
Como os homens produziam objetos de forma mais regular e os
comparavam uns com os outros, eles aprendiam a percepcionar a
“forma desligada da particularidade qualitativa dos corpos
comparados” (Molodschi, 1977, p. 23). Uma vez, capazes de
reconhecer a forma em si dos corpos, os homens podiam fabricar
produtos de melhor qualidade, o que, de novo, contribuiu para a
elaboração mais precisa do conceito abstracto de forma. A relação
dialéctica entre vida ativa e pensamento abstracto é o “motor” do
desenvolvimento da geometria.
O estudo mais profundo de que tomei conhecimento e em que
foram analisados aspectos fundamentais da elaboração das formas
geométricas mais antigas é o de B. Frolov (1977) sobre os números na
arte gráfica do Paleolítico. Ele mostra na base de investigações
30
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
arqueológicas e paleoneurológicas, que não só o Homo Sapiens, mas
também já os seus antecessores do tempo do Paleolítico Médio, como
os Moustérien, possuíam uma linguagem bem desenvolvida e um nível
bastante alto de conceitos abstractos. Já durante a cultura de machado
de pedra, Acheuléen, do Paleolítico Antigo, o trabalho exerceu uma
influência observável no desenvolvimento do pensamento: os
machados tornaram-se mais pequenos e mais elegantes, obtinham uma
forma geometricamente regular e simétrica. Para fabricá-los era
necessária uma sequência de múltiplas e variadas operações, o que
provocou uma transformação das funções mentais mais altas tais como
atenção, memória e língua. Não foi por acaso que uma forma simétrica
foi gradualmente escolhida: uma forma simétrica da superfície de corte
diminui a resistência de um corpo duro, reduz o atrito e precisa de
menor esforço muscular etc.; uma forma simétrica era, por isso, a mais
racional. Por outras palavras, as primeiras fases do fabrico de
ferramentas mostram que a escolha de uma forma simétrica não foi
uma imitação de padrões simétricos na natureza, mas sim o resultado
de tradições de produção de milhares de gerações. Esta formação do
conceito de simetria foi dialéctica. Aconteceu uma reviravolta: a forma
mais racional passou a ser considerada bela; a figura simétrica passou
a ser um objectivo em si; a forma adquire uma crescente importância
independente, técnica e estética.
Os Moustérien fabricavam já mais de sessenta tipos diferentes de
ferramentas. Eles sabiam construir abrigos e fizeram os primeiros
desenhos que se conhecem. Em particular, um osso, encontrado em La
Ferrasie, na França, no qual, há mais de 50.000 anos, tinha sido
entalhada uma série de finos traços paralelos, provocou muitas
especulações. Okladnikov interpreta estes primeiros ornamentos do
nosso planeta como um passo decisivo no desenvolvimento da arte e
da lógica de conceitos abstractos. Ele escreve que o criador desses
traços “tinha sido capaz de superar a inércia da estagnação mental de
longa duração e o caos de associações. Ele trouxe ordem ao caos
tempestuoso de impressões. A partir delas selecionou o que era
significativo para ele, e expressou-o na forma abstracta de linhas
geométricas, simetricamente colocadas. Clareza em vez de “inclareza”
e “difusão”, ordem no lugar de desordem, lógica em vez de sensações
nebulosas e faíscas: é este o significado objetivo deste tipo antigo de
ornamentação” (citado por Frolov, 1977, p. 155). Frolov vê, nesta
composição de grupos de traços paralelos, uma primeira “estrutura
matemática”, que nasceu depois de centenas de milhares de anos de
31
Paulus Gerdes
aplicação prática de séries de golpes rítmicos para fabricar machados
de mão e depois de muitas experiências de preparação de ossos com
instrumentos de corte, que legaram os entalhes. Esta é uma
interpretação possível, mas não esclarece ainda porque foram
entalhados traços exatamente paralelos. Será que o pensamento do seu
criador era já suficientemente independente, suficientemente livre da
matéria para poder conceber tal padrão de traços paralelos? Ou talvez
os Moustérien dispusessem doutras situações de trabalho onde
encontraram linhas paralelas? A procura doutros contextos possíveis é
ainda mais estimulada quando Frolov observa sobre as pinturas murais
das cavernas dos Moustérien: “... o uso do factor tempo no
desenvolvimento das composições na profundidade das caves e o
enrolar das cenas em muitos lugares nas superfícies cilíndricas de
objetos móveis é de interesse particular... A génese de figuras
rectangulares na arte paleolítica refletiu, em particular, a existência
naquela altura de concepções sobre as áreas de objetos” (Frolov, 1978,
p. 75). Mas qual deveria ter sido a razão para o desenvolvimento da
ideia da área dum objecto?
Linhas paralelas, espirais, ângulos rectos ... em que outros
contextos estes conceitos poderiam ter surgido?
Na sua principal obra A ciência na história, o cientista
enciclopédico J. Bernal dá-nos uma sugestão onde talvez possamos
procurar uma resposta à nossa pergunta: “... a ideia de ângulo recto já
existia, com certeza, antes da construção e, provavelmente, mesmo
antes da tecelagem. Entre as pinturas murais das cavernas de Lascaux
encontram-se os chamados “brasões”, figuras rectangulares divididas
como um tabuleiro de xadrez, um tanto ou quanto irregular, em que os
quadrados alternantes são pintados de cores diferentes. A origem mais
provável destes desenhos deve encontrar-se na arte de entrançar, que
sabemos ter sido realmente praticada no Paleolítico” (1971, p. 251).
Não apenas a ideia de ângulo recto, mas também as de linhas paralelas
e de espirais que se enrolam com o avanço do tempo poderiam ter sido
formadas no trabalho de entrelaçamento. A cestaria era já conhecida
no Paleolítico e foi, provavelmente, um pré-estágio da tecelagem.
Ambas estas técnicas se baseiam numa regularidade e levaram o
Homem talvez, como Bernal supõe, “a distinguir padrões e a aplicá-los
na arte e mais tarde em figuras geométricas e na análise matemática”
(Bernal, 1971, p. 51). Quando se quer analisar esta hipótese depara-se,
por agora, com algumas dificuldades.

32
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 2.1

Já a dobragem duma folha conduz a uma linha recta (vide Figura


2.1). Em poucos minutos pode-se fazer de folhas de palmeira um cesto
simples para transporte de peixe como o na Figura 2.2, proveniente da
província moçambicana de Nampula. Depois de ser utilizado uma
única vez, deita-se fora o cesto. A efemeridade dos materiais utilizados
torna quase totalmente impossível conhecer-se imediatamente a
história do trabalho de entrelaçamento. Não é, pois, por acaso, que
conhecidos livros da história da técnica, como os de Jonas et al. (1969)
e de Sworykin et al. (1964), concedam pouco ou nenhum lugar ao
trabalho de entrelaçamento. Para ter uma ideia da sua história, a
etnografia pode e deve ser consultada. Com a ajuda de dados
etnográficos podemos tentar reconstruir o processo de formação de
“conceitos de entrelaçamento geométricos”.
Nos capítulos seguintes tentarei desenvolver uma metodologia
que permite analisar as relações entre o desenvolvimento da técnica
(em particular, de entrelaçamento), o das expressões artísticas e o
despertar do pensamento geométrico. Uma vez que a técnica de
entrelaçamento constitui um elemento cultural que em muitos países
do Terceiro Mundo conseguiu (parcialmente) sobreviver à
colonização, utilizo-a como um ponto de partida para a análise
33
Paulus Gerdes
proposta. Com a reconstrução de ideias geométricas “escondidas” na
evolução das técnicas (em particular, de entrelaçamento), contribui-se,
desta forma, para o conhecimento de algumas tradições matemáticas
dos povos outrora colonizados.

Figura 2.2

34
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 3

Atividades sociais importantes e o despertar do


pensamento geométrico

3.1 Sobre a formação do conceito de ângulo recto

Já nos trabalhos do Paleolítico antigo os hominídeos haviam


desenvolvido um primeiro sentimento para amplitudes de ângulo, por
exemplo, em que direção talhar para se obter machados de mão mais
afiados (vide Figura 3.1), fabricar as pontas de arpões (vide Figura 3.2)
ou lançar as azagaias (vide Figura 3.3).

Figura 3.1

Figura 3.2 Figura 3.3

35
Paulus Gerdes
Para evitar a queda dos seus abrigos de vento os aborígenes
australianos foram obrigados a colocar as placas de casca e os paus de
armação perpendicularmente (vide Figura 3.4). Para evitar o
desmoronamento das suas barragens, os Wagheni do Congo, os
Lamútios da península de Camchatca e os índios Camaiura do Brasil
foram obrigados a amarrar perpendicularmente os paus das barragens e
das armações. A broca incendiária de madeira dura devia ser rodada
perpendicularmente à madeira mole para se incendiar o mais rápido
possível (vide o exemplo de aborígenes da Austrália na Figura 3.5).

Figura 3.4

Figura 3.5

Muitos povos descobriram que as suas setas voavam com mais


força e facilidade quando eram disparadas perpendicularmente ao arco
(vide Figura 3.6). Os pescadores moçambicanos aprenderam a fixar
perpendicularmente os flutuadores dos seus barcos “mitumbuí” e
“cangaia” para os manter em equilíbrio (vide Figura 3.7).

Figura 3.6 Figura 3.7

36
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Estes são apenas alguns exemplos de situações onde o Homem
se sentiu forçado (no seu trabalho e obrigado pelo material) a preferir
direções perpendiculares entre si, para melhor poder satisfazer as suas
necessidades. No entanto, a mais divulgada de tais situações e que se
repete diariamente (e talvez a mais antiga) é uma outra.

ângulo de dobra
Figura 3.8

Figura 3.9 Figura 3.10

Um problema que sucede frequentemente, por exemplo no


entrelaçamento de cestos e esteiras, na construção de jangadas ou
barcos, na construção de abrigos de vento ou de palhotas, é como
amarrar bem dois ou mais paus, hastes ou ramos, com a ajuda de tiras
ou fios mais estreitos. Se se escolhe um ângulo de dobra arbitrário,
como na Figura 3.8, então os paus podem facilmente afrouxar (vide
Figura 3.9) e desatar-se. Através da experiência aprende-se que, para
atar dois paus, apenas uma posição é adequada (vide Figura 3.10). Para
se amarrarem três ou mais paus com a mesma linha, aproximar-se-á
tanto mais da mesma posição perpendicular quanto mais estreita for a
linha (vide Figura 3.11).

Figura 3.11
37
Paulus Gerdes

Figura 3.12

A mesma posição perpendicular surge, também,


necessariamente quando se cosem canas umas às outras para obter
uma esteira. A maneira mais fácil de se fazer um buraco com uma
agulha é perpendicularmente (vide Figura 3.12), porque assim oferece
menos dificuldade.

Figura 3.13

Quando, ao apertar, se estica o fio, ele toma automaticamente –


independentemente da vontade do Homem – uma posição
perpendicular em relação à cana (vide Figura 3.13). Seguindo esta
experiência costuram-se da mesma maneira as outras linhas (vide
Figura 3.14). Por onde é que as últimas linhas deviam atravessar a
cana? Descobre-se que um fio que não passa por todos os caniços,
como (1), não é o mais apropriado (vide Figura 3.14). Caniços (muito)
mais compridos do que os outros, como (2), são desvantajosos, por
exemplo, ao enrolar as esteiras.

38
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.14

Compreende-se que neste processo não só se prossegue na


formação do conceito de ângulo recto, mas também se desenvolve uma
primeira noção de rectângulo. A rectangularidade descoberta e quase
necessária da esteira (vide Figura 3.15), essa regularidade facilita, por
seu lado, o fabrico doutras esteiras semelhantes: precisa-se, como
matéria prima, de caniços com o mesmo comprimento. No Paleolítico
já havia agulhas que, além de terem servido para o trabalho com peles
e, talvez, para o fabrico de colares de pérolas, foram, possivelmente,
também usadas para a confecção de esteiras.

Figura 3.15 Figura 3.16

39
Paulus Gerdes
Pode-se, de outra forma, chegar a igual padrão rectangular, por
exemplo, nas esteiras chinesas ou nas redes de dormir dos índios
Yanoama do Norte do Brasil, em que cada vez duas linhas se
entrelaçam alternadamente, por cima e por baixo, como na Figura
3.16.
Os conceitos de ângulo recto e de rectângulo foram
desenvolvidos pelo Homem no processo da realização das suas
atividades. Uma vez descobertos e consolidados, eles poderão ser
aplicados em outras situações onde não existe nenhuma necessidade
material imediata para se preferirem estas formas, como, por exemplo,
no entrelaçamento rectangular de tiras (aproximadamente) da mesma
largura (vide Figura 3.17), onde outras amplitudes de ângulo são
possíveis e por vezes são realmente escolhidas (vide Figura 3.18).

Figura 3.17 Figura 3.18

3.2 De onde viria a ideia de hexágono regular?

Terá sido a ideia de hexágono regular o resultado da observação


direta, por exemplo, dos favos das abelhas? Ou um produto do
pensamento puro?
Em regiões geográficas do mundo, muito afastadas umas das
outras, encontram-se elementos culturais antigos de forma hexagonal:
por exemplo, os índios Ticuna e Omagua no Noroeste brasileiro
fabricam grandes cestos de transporte de entrelaçado hexagonal; os
índios Pukóbye no Nordeste do Brasil entrelaçam os seus anéis de
cabeça hexagonalmente, tal como os índios Micmac-Algonkin do
Canadá oriental o fazem com as suas raquetas de neve. Na faixa
40
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
costeira do Norte de Moçambique entrelaça-se hexagonalmente o cesto
de pesca “lema” e o cesto de transporte “litenga”. Também entre os
Kha-ko no Laos e na China se veem cestos entrelaçados
hexagonalmente. No Bornéu (Indonésia) vê-se caniço entrelaçado
hexagonalmente e entre os Munda, na Índia, uma armadilha para
pássaros entrelaçada da mesma maneira. Poderemos, talvez, descobrir,
na confecção de tais peças de entrelaçamento, “um germe” possível da
ideia de hexágono regular?

a b
Figura 3.19

Um problema prático que surge na confecção de muitos cestos é


como se pode produzir um rebordo simultaneamente forte,
relativamente liso e estável. Frequentemente o rebordo não liso é
dobrado ou ata-se ao cesto um rebordo separado e forte para resolver o
problema (vide Figura 3.19). Vejamos agora como o entrelaçamento
hexagonal resolve o mesmo problema.
Para fixar bem o rebordo, pode-se tentar enrolar as outras tiras
da planta no rebordo, como mostram as Figuras 3.20, 3.21 e 3.22 para
o caso de uma tira.

rebordo

tira
Uma dobra Duas dobras
Figura 3.20 Figura 3.21
41
Paulus Gerdes

Três dobras
Figura 3.22

Materialmente impossível Possível, mas a linha de dobra


Figura 3.23 não fica paralela ao rebordo
Figura 3.24

Possível e necessariamente simétrico


Figura 3.25

Repara-se, de passagem, que este dobrar obriga o artesão a


formas simétricas, quer ele/ela queira ou não. Inicialmente ele não
terá, talvez, consciência da ideia de simetria, mas em todo o caso o
desenvolvimento do conceito de simetria já começou (vide as Figuras
3.23, 3.24 e 3.25). Apenas uma ou duas dobras são pouco
convenientes. No primeiro caso o rebordo tem a liberdade de deslizar
para baixo. No segundo, o rebordo perde a sua função de limitante. No
mínimo são necessárias três dobragens. O que é que o nosso artesão
42
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
pode, então, escolher livremente? (vide as Figuras 3.26a e b). O ângulo
de incidência é ainda variável. Com um ângulo de incidência
relativamente pequeno, o rebordo pode desfazer-se rapidamente. Por
isso, precisa-se de um ângulo máximo de incidência que se forma
materialmente quando, no momento em que se executa a segunda
dobragem, um lado da tira toca o outro. Na Figura 3.27 vê-se que esse
ângulo máximo de incidência mede 60o, se a tira e o rebordo têm a
mesma largura. Se, depois disto, se atam outras tiras ao rebordo e se
juntam, obtém-se a imagem da Figura 3.28.

a. Ângulo de incidência pequeno

b. Ângulo máximo de incidência


Figura 3.26

Figura 3.27 Figura 3.28

43
Paulus Gerdes

Figura 3.29

Figura 3.30

Entrelaçando outras tiras horizontais, obtém-se automaticamente


um padrão hexagonal regular (vide Figura 3.29), ou, se de cada vez se
salta uma tira horizontal, obtém-se um padrão pentagonal como entre
os índios Caraíbas (vide Figura 3.30). Ambos os padrões de
entrelaçamento são muito estáveis: os espaços abertos resultantes
quase não podem ser alargados ou reduzidos.

44
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Depois de ter sido descoberto este padrão a partir do rebordo
torna-se possível produzir um trabalho semelhante de entrelaçamento
sem rebordo (vide Figura 3.31). Este padrão plano pode ser usado para
a parede vertical dum cesto, por exemplo, na etnia dos Kha-ko para
uma parede de forma cilíndrica. Mas se o padrão hexagonal for
aplicado no fundo de um cesto, que forma deve tomar esse fundo? Um
triângulo equilátero, um trapézio isósceles e um losango pertencem às
formas materialmente possíveis, assim descobre o nosso artesão.
Todavia, porque ele sabe, na base da sua experiência, que uma forma
convexa e simétrica, mais redonda melhor se presta à confecção de um
cesto prático com bom equilíbrio, é obrigado, pelo padrão hexagonal, a
escolher também a forma hexagonal para todo o fundo de cesto. A
semelhança entre os pequenos espaços abertos hexagonais e o fundo
hexagonal reforça a ideia crescente de “hexágono” regular, sem que o
cesteiro, como se pode presumir, esteja consciente, em primeira
instância, dos seis ângulos ou dos seis lados dos espaços abertos do
seu cesto.

Figura 3.31

Um primeiro conceito de hexágono pode ser elaborado (“labor”


= trabalho), como se descreve acima, numa ação recíproca e dialéctica
entre a escolha do objectivo, a experimentação, e a natureza e a forma
do material usado. O sentimento pela ordem cresce: para produzir um
cesto forte com buracos é necessário um padrão regular e repetitivo.
Pela feitura repetida de cada “célula” do cesto desenvolve-se mais a
capacidade de poder comparar. Observa-se, em particular, a
congruência entre si dos pequenos buracos hexagonais e a semelhança
com o fundo hexagonal. Isto permite ver a semelhança com
“hexágonos” dados naturalmente e assim aprender a observar a
hexagonalidade na natureza, por exemplo, dos favos das abelhas. Por
45
Paulus Gerdes
outras palavras, quero sublinhar que a capacidade para observar e
reconhecer ordem e formas espaciais regulares na natureza se
desenvolveu através da atividade laboral. Mas não só a capacidade
para observar e reconhecer. Simultaneamente, com o desenvolvimento
da capacidade de observação e reconhecimento, nasce e cresce o
apreço pelo padrão hexagonal: cestos fortes e mel doce.
As valiosas propriedades práticas do padrão hexagonal
encontrado e a descoberta de figuras semelhantes na natureza aumenta
o interesse por essa forma em si e pelos seus elementos característicos
como, por exemplo, o ângulo de 60o. Não pode, portanto, ser casual –
um presente de deus ou um produto do pensamento puro –, que os
índios Ticuna, para os quais o mel representa uma comida adicional
bem-vinda – já vimos que eles fazem cestos de transporte entrelaçados
hexagonalmente – liguem, hexagonalmente, ambas as peles dos seus
tambores, sem que uma necessidade material os obrigue a escolher
essa forma! (vide Figura 3.32). O pensamento, que se desenvolveu
forçosamente no trabalho ativo – para poder obter um produto válido –
libertou-se aqui do “reino da necessidade”, porque neste caso não
existe qualquer necessidade de optar por um ângulo de incidência de
60o. Isto é um exemplo, muito cedo na história cultural, do nascer e
desenvolver dum pensamento “matemático” relativamente
independente. Descobriram-se as “diagonais” e o “centro” de um
hexágono regular, assim como uma conexão entre hexágonos e
triângulos equiláteros (vide de novo Figura 3.32).

Figura 3.32

Como se podem entrelaçar cestos com um padrão de espaços abertos?

O padrão hexagonal pode, também, ter sido descoberto de uma


outra maneira, em que a intenção tenha sido não tanto a construção de
um rebordo sólido, mas sim o fabrico de um cesto com (um padrão de)

46
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
espaços abertos. Para a satisfação de muitas necessidades quotidianas,
preferem-se cestos com espaços abertos pequenos: a água deve poder
escorrer para fora através da nassa; pequenos animais como, por
exemplo, pássaros, devem ter ventilação suficiente quando são
transportados em cestos; cestos com espaços abertos são mais leves e
necessitam de menos material para o seu fabrico, etc.
Uma primeira possibilidade de fazer tais cestos cria o conhecido
padrão de entrelaçamento rectangular “em cima – em baixo”, em
particular quando os ramos ou tiras são relativamente grossos no
respeitante à sua largura (vide Figura 3.33), como, por exemplo, em
alguns tipos de peneiras moçambicanas. Obtém-se uma variante
quando se aplicam, nas duas direções, tiras de larguras diferentes (vide
Figura 3.34), como, por exemplo, em cestos de transporte muito
utilizados no Sul de Moçambique. Se as tiras fossem relativamente
finas e largas, então, não seria possível obter um cesto forte, porque
tiras nessas condições facilmente sairiam do lugar.

Figura 3.33 Figura 3.34

Se essa solução de duas direções perpendiculares não satisfaz,


porque, por exemplo, os espaços abertos são demasiado estreitos ou
porque a matéria prima para tal é difícil de se encontrar em quantidade
suficiente, pode-se tentar entrelaçar em três direções. Como se deve
então começar? Três direções arbitrárias entre si (como, por exemplo,
na Figura 3.35a), são possíveis como base, mas como continuar a
entrelaçar para se obter um objecto que não se solte? Para se evitar um
resvalo, é importante que uma segunda tira (4) corra na mesma direção
que (1), passando, pelo ponto de nó (A), do mesmo lado que a tira (1).
Ao entrelaçar da mesma maneira a tira (5), observa-se que esta última
tira em geral não fica paralela à terceira tira (vide Figura 3.35b), etc.
47
Paulus Gerdes
Experimentando descobre-se um padrão regular (vide Figura 3.29), ou
semi-regular (vide Figura 3.36). Os índios Nambikwara do Brasil
partem de duas direções, perpendiculares entre si, e entrelaçam
diagonalmente a terceira direção como na Figura 3.36.

a b
Figura 3.35

Figura 3.36

O facto de a solução ser óptima na prática pode ter contribuído


para a apreciação do padrão hexagonal e para o isolamento e a
elaboração dos seus elementos geradores. Por exemplo, a Figura 3.37 é
utilizada pelos Ibo e Efik do Sul da Nigéria como símbolo de amor
profundo.
A escolha de três direções “iguais entre si”, levando ao padrão
hexagonal regular, pode ter sido sugerida também por outras
experiências de produção. Índios da América do Sul descobriram que
o triângulo equilátero é a óptima solução para a configuração da base
dum aparelho para peneirar farinha de mandioca (vide Figura 3.38).
48
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.37

Figura 3.38

Encontra-se uma outra possibilidade, por exemplo, na Tailândia.


Aqui a solução parte de quatro direções: duas direções principais e
duas direções auxiliares (vide Figura 3.39). Descobre-se novamente
um padrão regular. A forma dos espaços abertos maiores é a de um
octógono semi-regular.

49
Paulus Gerdes

Figura 3.39

3.3 Como se podem entrelaçar tiras?

Em muitas situações em que se necessita de cordas, por


exemplo, para amarrar um feixe de paus, as tiras de planta, sozinhas,
não são suficientemente fortes. Levanta-se, então, a questão de, se e
como, talvez com mais tiras, se pode obter uma maior firmeza. Para se
poder colocar esta questão, pressupõe-se já a aquisição na prática da
ideia de que a quantidade e a espessura se relacionam com a firmeza:
por exemplo, a experiência de se poder rebocar mais lastro sobre uma
ponte de três tábuas que numa com uma só tábua; ou a experiência de
que um abrigo de vento com ramos mais grossos é mais estável que
um de ramos mais finos.
Obtém-se uma primeira possibilidade de solucionar o problema
em análise se se aplicarem várias tiras umas sobre ou ao lado das
outras, como, por exemplo, se observa frequentemente no atar de
rebordo num cesto. Por outro lado, é também possível entrelaçar
algumas tiras em trança, onde amadurece o conceito de entrelaçamento
propriamente dito. Observemos esta segunda possibilidade mais de
perto.

50
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.40

Figura 3.41

Quando se começa só com duas tiras, pode-se dobrar uma sobre


a outra, entrelaçando-a como na Figura 3.40; ou esticá-la mais
fortemente para evitar o escorregamento, como na Figura 3.41. Mais
uma vez vemos que o próprio material obriga à regularidade e
simetria. Em muitos casos, todavia, este entrelaçamento não
corresponde às exigências práticas: ambas as tiras encolhem e dilatam-
se diferentemente em consequência do calor ou humidade, etc. Por
isso, ambas as tiras devem ser entrelaçadas da mesma maneira. Como
fazer isto na prática? Em que sentido da “mesma maneira”? Entrelaçar,
não uma tira à volta da outra mas ambas as tiras uma na outra. Pode-se
51
Paulus Gerdes
começar a ligar as duas tiras perpendicularmente. Perpendicularmente,
porque esta relação já deu provas de ser vantajosa noutras situações,
ou porque dá um nó simples e seguro (vide Figuras 3.42 e 3.43).

Figura 3.42 Figura 3.43

Agora ambas as tiras estão ligadas e, simultaneamente, afastam-


se perpendicularmente. Se, depois disso, se dobrar “arbitrariamente”
uma tira sobre a outra, será difícil decidir como, “de igual forma”,
continuar a entrelaçar (vide Figura 3.44). Porém existe uma outra
possibilidade. Pode-se dobrar a segunda tira de maneira que ela venha
a ficar junto à primeira (vide Figura 3.45). Pode-se, então, reproduzir a
posição perpendicular, dobrando a primeira tira, de igual modo, sobre
a segunda, como na Figura 3.46. Continuando desta maneira, obtém-se
uma trança (vide Figura 3.47).

Figura 3.44 Figura 3.45

52
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.46

a b
Figura 3.47

A primeira é de facto uma pseudo-trança: uma tira encontra-se


sempre sobre a outra. A segunda trança é já muito mais segura, mas
desfaz-se por uma rotação em torno do seu eixo. Levanta-se então a
questão: quando não se consegue obter com duas tiras uma trança mais
forte, será isso possível com três tiras?
A Figura 3.48 ilustra o que acontece quando se entrelaçam do
mesmo modo três em vez de duas tiras. Nesta atividade de
“entrelaçamento” descobrem-se as vantagens da alternância cima-
baixo para o aumento da firmeza da trança. A trança obtida desta
maneira (vide Figura 3.49) é, de facto, muito firme e mostra-se
53
Paulus Gerdes
também muito vantajosa em bastantes aplicações, como, por exemplo,
na construção de palhotas ou no entrelaçamento de esteiras redondas
de tranças feitas de fibra de sisal, na África Austral. A necessidade
prática obrigou o Homem trabalhador ao processo da descoberta da
trança de três tiras. A regularidade da alternância cima-baixo da trança
construída é o resultado de trabalho humano criativo e não o seu
pressuposto. São vantagens práticas, realmente existentes, da forma
regular descoberta, que conduzem à consciência crescente dessa ordem
e regularidade e que estimulam à comparação com outros resultados de
trabalho. A regularidade da trança simplifica a sua reprodução e
reforça assim a consciência da sua forma e o interesse por ela. Com a
crescente consciência e interesse, forma-se simultaneamente a
valorização da forma descoberta: a forma é também aplicada onde ela
não é necessária, por exemplo, no entrançamento do cabelo ou como
decoração de objetos de bronze no Benim e de copos de madeira no
Congo; ela torna-se bela.

Figura 3.48
54
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.49

Figura 3.50

O entrançar de três tiras, coroada de sucesso, prepara o caminho


para experiências com mais tiras. Com quatro tiras torna-se claro que
um cruzamento perpendicular das tiras não é necessário (vide Figura
3.50). Na prática, verifica-se que, também com mais tiras, os artesãos
escolhem sempre o mesmo ângulo de dobra (vide Figura 3.51): ele é o
único ângulo de incidência que garante que ambas as partes das tiras,
antes e depois da dobra, fiquem perpendiculares uma à outra. Pondo
duas tranças uma ao lado da outra, descobre-se que tal ângulo de
incidência especial tem ainda uma outra relação com o ângulo recto:
esse ângulo é metade de um ângulo recto (vide Figura 3.52).

55
Paulus Gerdes
rebordo

Figura 3.51

Figura 3.52 Figura 3.53

Comparando aprende-se a reconhecer o mesmo ângulo (de 45o)


também em outras situações, por exemplo, ao atar perpendicularmente
dois paus de igual grossura (vide Figura 3.53) ou na variação mais
simples quando se entrelaça rectangularmente com fibras de duas
cores distintas (vide Figura 3.54). Aqui formam-se a consciência deste
ângulo particular e o interesse por ele. Assim, pode também não ser
casual que o ângulo recto e a sua metade apareçam frequentemente em
muitas formas artísticas (vide os exemplos da África na Figura 3.55).

56
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.54

a b

c
Figura 3.55

57
Paulus Gerdes
Quando se utilizam muitas tiras em vez de apenas três ou quatro,
obtém-se uma esteira rectangular de rebordo relativamente estável
(vide Figura 3.56). Este tipo de esteira está amplamente espalhado em
África.

Figura 3.56

Nota-se que teoricamente também existem outras possibilidades,


como por exemplo esteiras rectangulares com entrelaçamento não-
perpendicular, onde os ângulos incidentes são diferentes para os lados
adjacentes do rectângulo (vide Figura 3.57). Na prática, não se
encontra esta variante. É dada preferência ao cruzamento
perpendicular das tiras.

Figura 3.57

O padrão regular descoberto (vide Figura 3.56) provoca, por sua


vez, maior reflexão e aplicação. Por exemplo, os (Ba)Kuba no atual
Congo / Zaire fizeram uso deste padrão, chamado “mbolo” na
58
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
decoração colorida de tecidos e em xilogravuras. As suas crianças
brincavam com esses padrões na areia: como desenhar estas figuras
(vide Figura 3.58) sem levantar o dedo? (Vide Zaslavsky, 1973, p.
532).

a b
Figura 3.58

Com estas reflexões na arte e em jogos, o pensamento


matemático inicial começou a libertar-se da necessidade material; a
forma torna-se mais independente da matéria e, assim, nasce o
conceito de forma; abriu-se caminho para uma etapa de
desenvolvimento “intra-matemático”.

Figura 3.59

O processo de entrelaçamento rectangular aqui descrito não é o


único possível. Por exemplo, em Moçambique existe uma outra
maneira de fabrico que se mostra muito adequada, por exemplo, para a
confecção de chapéus (vide Figura 3.59) e carteiras. O ângulo básico
59
Paulus Gerdes

de entrelaçamento mede 60o. Porque 60o? Uma descoberta ocasional?


O resultado de experimentação? Ou um ângulo que já se mostrou
vantajoso noutras situações, como, por exemplo, a forma hexagonal de
fabrico das nassas? Observemos mais de perto o processo de fabrico
da trança “hexagonal”.

Figura 3.60

Começa-se com duas tiras de igual largura, onde uma é dobrada


uma vez à volta da outra (vide Figura 3.60), de maneira a que o ângulo
de incidência meça 60o como no entrelaçamento do rebordo que
analisámos em §3.2. Se se dobra, da mesma maneira, a segunda tira à
volta da primeira, obtém-se uma figura que permite continuar um
entrelaçamento normal do tipo cima-baixo (vide Figura 3.61).

a b
Figura 3.61
60
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Partindo desta base, podem-se obter vários tipos de trança, como
mostram as Figuras 3.62a e b. Uma trança como na Figura 3.62a
constituiu talvez o estímulo para o entrelaçamento em três direções de
esteiras fechadas (vide Figura 3.63). A trança “dentada” (vide Figura
3.62b) presta-se bem para a confecção de chapéus (vide o começo na
Figura 3.64) na forma de uma espiral, ou para o fabrico da borda de
leques como na China e nas Filipinas.

a b
Figura 3.62

Figura 3.63

61
Paulus Gerdes

Figura 3.64

Se o ângulo de incidência fosse diferente de 60o, como na Figura


3.65a, obter-se-ia, então, uma posição (vide Figura 3.65b), em que não
é possível continuar a entrelaçar. Por outras palavras, a escolha do
ângulo não foi de modo algum ocasional, ela foi imposta pela matéria.
Necessariamente, o ângulo de incidência deve ser também aqui de 60o.
Da percepção dessa necessidade e da possibilidade assim obtida de a
utilizar para determinados fins, resultou a liberdade humana de
produzir carteiras e chapéus entrelaçados hexagonalmente, úteis e de
reconhecida beleza.

b
Figura 3.65
62
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

3.4 Como se pode entrelaçar um botão?

Um problema frequentemente encontrado na prática cesteira,


consiste em fechar um cesto com ajuda de uma tampa. Uma solução
possível obtém-se do modo seguinte. Fixam-se na tampa pelo menos
dois laços como na Figura 3.66. À parede do cesto prende-se um
número igual de botões. Para fechar o cesto puxam-se os laços em
torno dos botões respectivos. Mas para garantir que os laços não
deslizem com facilidade, qual será a forma mais vantajosa para os
botões? Na atividade prática do Homem desenvolveu-se a experiência
de que uma forma poligonal é preferível à forma redonda. É nesta
sequência que se utiliza no Sul de Moçambique uma forma quadrada
(vide Figura 3.67).

Figura 3.66 Figura 3.67

Uma vez descobertas as vantagens de um botão quadrado e


decidida a sua fabricação, o artesão-inventor encontra-se perante a
tarefa de desenvolver os passos sucessivos da feitura de um botão
quadrado. Aqui ele pode partir de uma esteira quadrada pequena e da
fabricação da mesma. À primeira vista compreende-se que pelo menos
quatro tiras são precisas para entrelaçar uma esteirinha (vide Figura
3.68).

63
Paulus Gerdes

Figura 3.68

Como é que se pode, a partir daqui – sem outro material –


produzir um botão robusto, que não se desfaz com facilidade?
Verifica-se ser útil dobrar para cima uma parte duma tira que se
encontra em baixo de uma outra parte duma tira que lhe é
perpendicular. Ao realizar isto, na sequência indicada na Figura 3.69, e
empurrando a parte dobrada da última tira em baixo da parte dobrada
da primeira tira, obtém-se um entrelaçado estável. Se se cortassem no
final as partes salientes das tiras, perder-se-ia a estabilidade. Por isso,
não se cortam as partes salientes, mas repete-se a fase anterior do
processo de produção, dobrando-as sucessivamente e entrelaçando-as.
Continua-se a repetir a mesma fase até acabar uma das tiras. Em
seguida cortam-se as partes ainda salientes. Deste modo obtém-se um
botão em forma de um paralelepípedo de base quadrada. Para evitar
que no fim ainda se precise de cortar algumas partes de tira, escolhem-
se logo de início quatro tiras de igual comprimento e o cesteiro coloca-
as numa posição de simetria rotacional (vide o exemplo na Figura
3.70).

64
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.69

Figura 3.70
65
Paulus Gerdes

Para evitar o entrelaçar um pouco difícil com pares de partes de


tira, prefere-se uma posição inicial como na Figura 3.70c, que
possibilita, depois de dobrar as partes de tira pequenas, continuar a
entrelaçar apenas com as partes mais compridas. Contudo, aparece
agora uma outra dificuldade. O início, isto é o primeiro “andar” do
botão desfaz-se com relativa facilidade. Os cesteiros moçambicanos
ultrapassaram esta dificuldade ao começar por duas tiras de planta, em
vez de quatro. Dobram por duas vezes cada tira mais ou menos ao
meio, de tal modo (vide Figura 3.71a e b) que ambas as partes
extremas desempenhem a mesma função que duas tiras paralelas no
caso anterior. Em seguida entrelaçam a parte “inferior” das partes
ainda salientes (vide Figura 3.71c e d). O botão que se obtém desta
maneira é muito robusto e estável.

a b

c d
Figura 3.71
66
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

No processo que acabei de descrever desenvolveram-se e


tornaram-se mais profundamente compreendidos no Homem ativo, no
inventor, vários conceitos geométricos tais como congruência, simetria
rotacional e paralelepípedo. A relação proporcional entre a altura do
botão, quer dizer o número de “andares” e o comprimento da tira pode
ser encontrada.
O primeiro “andar” do botão (vide Figura 3.71d) pode também
ter sido descoberto ou aplicado num contexto completamente
diferente. Nas Ilhas Gilbert na Micronésia e nas Ilhas Ellice na
Polinésia ocidental, ele é colocado num caule de planta e com uma
dessas “ventoinhas”, como brinquedo, na mão, as crianças correm
contra o vento (vide Figura 3.72).

Figura 3.72

Uma outra variante sobre o mesmo tema encontra-se em Nonouti


(Ilhas Gilbert). Ao acrescentar uma terceira tira, pode-se, a partir do
mesmo primeiro “andar” fabricar um cubo. Entrelaça-se deste modo o
exterior da bola cúbica para o jogo “bwebwe” (vide Figura 3.73).

Figura 3.73

67
Paulus Gerdes

3.5 Sobre a formação do conceito de círculo

Por meio do fabrico de objetos de formas cada vez mais


adequadas em concordância com as suas necessidades quotidianas, o
Homem aprendeu a reconhecer não só a forma em si e a distinção
entre forma e material, mas também as mudanças de forma, fossem
elas devidas ao seu trabalho ou observadas na natureza: o minguar e o
crescimento regulares da Lua; a construção do ninho de aves; a
centopeia que se enrola em espiral quando se sente ameaçada; uma
aranha que fabrica a sua teia, etc. As mudanças de forma na natureza,
agora mais claramente observadas, podem, por seu lado, levar os
Homens a novas ideias e experimentações. A construção do ninho
pode estimular à ideia de cesto. O enrolar duma centopeia (vide Figura
3.74) ou a postura de ovos feita por uma mosca-aljava em uma espiral
pode ter contribuído para a ideia do possível fabrico em forma de
espiral de esteiras de fibra redondas.

Figura 3.74

O entrelaçamento de teias de aranha (vide Figura 3.75) pode ter


exercido um efeito estimulante sobre o trabalho de entrelaçamento.
Vários paus ou tiras podem ser ligados entre si e parecer a armação de
uma teia de aranha (vide Figura 3.76). Quando se entrelaçam fibras
(em cima – em baixo) em forma de espiral partindo do nó dos paus,
obtém-se um primeiro entrelaçado (vide Figura 3.77). Para aumentar a
estabilidade do entrelaçado é necessário esticar fortemente as fibras.
Aí a homogeneidade das fibras obriga a ajustar e igualar os ângulos
entre os paus. Ao “mesmo tempo”, descobre-se que, para produzir um
entrelaçado relativamente horizontal, se devem entrelaçar em forma
68
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
de espiral duas fibras simultaneamente, mas de modo contrário (cima-
baixo e baixo-cima) (vide Figura 3.78).

Figura 3.75

Figura 3.76 Figura 3.77

69
Paulus Gerdes

Figura 3.78

Figura 3.79

O entrelaçado em si torna-se circular. Quando ele já está


suficientemente grande, podem-se quebrar os paus pelo rebordo (vide
Figura 3.79). Aprende-se, com crescente experiência, a escolher paus
(tiras) que tenham o mesmo comprimento e a colocá-los um sobre
outro no seu ponto médio, para evitar ter que quebrá-los mais tarde.
Neste processo forma-se o conceito de raio do círculo: em todas as
direções os raios são iguais; nasce o conceito de centro dum círculo
(vide Figura 3.80), etc. Este resultado pode entrar reforçado na
consciência ao comparar-se com outras construções como, por
70
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
exemplo, a confecção de uma esteira redonda de fibras de sisal, na
qual o “centro” serve como ponto de partida e se pode contar a
distância entre o contorno do círculo e esse centro (vide Figura 3.81).

Figura 3.80

Figura 3.81

71
Paulus Gerdes
Quando, em vez de se quebrarem os paus ou tiras, estes são
dobrados para cima e se continua a entrelaça-los em espiral, resulta
uma figura espacial, normalmente um cesto cilíndrico ou com a forma
de cone truncado (vide Figura 3.82).

Figura 3.82

Figura 3.83

Também aqui o material homogéneo força a uma forma regular,


à forma cilíndrica ou cónica (tensão superficial constante).
Uma vez elaborado o conceito de raio, nasce a possibilidade de
uma nova construção do círculo / circunferência, somando-se aos
métodos da espiral e da tensão igual (vide Figura 3.81 e 3.83). A nova
construção com um “compasso” pode em primeiro lugar e de imediato
ser aplicada onde a distância igual da periferia até a um centro
desempenha um papel importante. Num dos métodos usados na faixa
72
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
costeira do Norte de Moçambique para secar peixe, espetam-se os
peixes em pauzinhos na areia a igual distância de uma fogueira. Que
os peixes devem estar afastados “à mesma distância” do fogo quando
não sopra nenhum vento, é já um resultado da experimentação e
reflexão. Como se deve, então, colocar os peixes “equidistantemente”
do fogo? Pode-se aplicar o procedimento da espiral, mas é
relativamente complicado. A simetria de “rotação” – um cesto com a
forma de cone truncado pode ser fechado de muitas maneiras, com
uma tampa de forma “circular espiralada” (vide Figuras 3.80 e 3.84) –
dá já uma sugestão para a construção do círculo / circunferência. As
Figuras 3.85 e 3.86 ilustram como os pescadores da Ilha de
Moçambique aplicam a construção para secar os seus peixes.

Figura 3.84

Figura 3.85

73
Paulus Gerdes

Figura 3.86

A confecção dum leque circular, na mesma faixa costeira,


constitui uma variação interessante da já citada construção com um
“compasso”, como se ver na Figura 3.87.

a. Leque fechado b. Abrir o leque c. Leque aberto


Figura 3.87

Em segundo lugar, a construção descoberta com um “compasso”


pode ser aplicada em situações onde não existe uma necessidade
imediata para a configuração circular como, por exemplo, na
construção de palhotas. Porque é que as palhotas deveriam ter uma
base circular?

74
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
F. Frescura no seu livro sobre a construção de palhotas na África
Austral tenta esboçar o desenvolvimento histórico das habitações, das
cavernas e tendas até às atuais casas-cortiço e casas cilíndrico-cónicas.
O que ele todavia não esclarece é porque é que, em devido tempo, se
escolheu para palhotas uma base circular. A construção prática de um
tipo de palhota de capim, que foi descrita por W. Knuffel para os
Ngwane na África do Sul pode dar-nos uma ideia de como funciona,
num caso concreto, a ação recíproca e dialéctica entre a vida ativa e o
pensamento abstracto.

Figura 3.88

Uma maneira de fabrico de peneiras redondas amplamente


divulgada, pelo menos em África, pode ser esquematicamente
resumida do seguinte modo: amarra-se uma esteira entrelaçada
rectangularmente a um rebordo circular (vide Figura 3.88). O rebordo
é circular em consequência da homogeneidade do material dobrado; o
fundo é entrelaçado rectangularmente não por causa de uma
necessidade material (a Figura 3.89 dá uma construção alternativa de
forma espiral), mas porque ela é uma forma de confecção de esteiras já
conhecida (transplantação da ideia). O cesto assim feito pode também
ser invertido para cobrir algo (vide Figura 3.90).

Figura 3.89 Figura 3.90

75
Paulus Gerdes
A experiência de um cesto invertido e da construção mais antiga
de uma tenda podiam, unidas na reflexão humana, conduzir à ideia de
“cabana – cesto invertido”, como a construção da habitação dos
Ngwane (vide Figura 3.91) ou a construção em espiral dos iglu dos
Esquimós deixam supor.

a b

c
Figura 3.91

Na construção de casas não existe qualquer necessidade prática


(imediata) de entrelaçar rectangularmente o esqueleto a partir de cima
nem de escolher uma base circular. As ideias já se tinham
desenvolvido num outro contexto como, por exemplo, no acima
descrito, e foram aqui aplicadas livres da necessidade material. A
maneira de confeccionar o rebordo redondo do cesto não se presta bem
76
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
para construir a base circular da “cabana – cesto invertido”, mas, pelo
contrário, a construção com um “compasso” é simples de se aplicar,
como, de facto, acontece.
De modo análogo pode-se tentar esboçar o possível
desenvolvimento do pensamento que leva do cesto cónico, passando
pela palhota cónica ou pelo chapéu cónico, à palhota cilíndrico-cónica
(vide Figura 3.92).

cesto chapéu casa


Figura 3.92

3.6 De onde viria a ideia de pentágono regular?

A ideia de pentagrama teria sido o resultado de observação


direta, por exemplo, de estrelas do mar? (vide Figuras 3.93 e 3.94). Ou
ela é derivada do pentágono regular, no qual se desenharam diagonais?

Figura 3.93
77
Paulus Gerdes

Figura 3.94

A ideia de pentágono regular corresponderia a um


desenvolvimento intramatemático dos conceitos de triângulo
equilátero, quadrado e hexágono regular? Ou ela existiu desde sempre
independente do mundo real dos objetos, nalgum mundo especial de
“ideias”?
O pentagrama foi para os Pitagóricos o emblema da sua ordem.
Na Idade Média europeia a estrela pentagonal devia proteger os
homens dos druidas e doutros espíritos maus. Por que justamente
proteger?
Examinemos o seguinte problema prático, que surge na colheita
de cereais, para descobrir uma relação real – e por isso não mágica –
entre a proteção e a forma do pentágono regular.
Amiúde debulham-se os grãos de cereal da espiga que fica no
talo, ou então, arrancam-se as espigas com as mãos. Como se pode
proteger as mãos contra arranhões e cortes nesse trabalho? Sem luvas?
O que acontece, quando se tenta, com uma tira de planta,
entrelaçar um “dedal”?
É possível dobrar uma tira à volta do dedo. Mas como continuar
a entrelaçar? (vide Figura 3.95). Como cobrir a ponta do dedo e
conseguir estabilidade?

78
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.95

Em todo o caso é necessário juntar ambas as partes da tira.


Tiremos a tira do dedo e façamos o nó mais simples (vide Figura
3.96). Se se aperta agora, com cuidado, o nó, obtém-se uma figura que
facilita bastante a continuação do entrelaçar (vide Figura 3.97a). Uma
vez tomado este caminho, verifica-se não ser difícil continuar a
entrelaçar de tal modo, que, de facto, se obtenha um dedal estável e
forte, que está fechado em quatro lados e, no quinto, deixa passar o
dedo (vide Figura 3.97 e 3.98). O protetor de dedo, obtido desta
maneira, é pentagonal e regular, não porque um Deus ou alguém o
desejou antes, não porque um Pitagórico o tenha podido imaginar, mas
porque isso resultou da atividade humana: na interação entre o
problema – como evitar os arranhões? –, a primeira sugestão para a
sua solução – produzir um dedal – e as possibilidades materiais.

Figura 3.96
79
Paulus Gerdes

Figura 3.97

Figura 3.98
80
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Para debulhar os grãos de cereal na ilha indonésia de Roti, usa-se


um protetor de dedo, feito com folhas da planta Lontar. No indicador e
no polegar põe-se, em cada um deles, um dedal deste tipo pentagonal-
regular (vide Hirschberg, 1966, p. 263).
O problema aqui resolvido apareceu já muito cedo na história
humana: uma economia de recolecção nasceu, durante o Paleolítico
posterior e Mesolítico, em algumas regiões geográficas limitadas, onde
se verificava uma presença massiva de plantas silvestres. Assim é
inteiramente possível que a solução através do dedal pentagonal-
regular derive desse período. Se fosse esse o caso, suscitaria menos
surpresa que o pentágono regular aparecesse já nas tábuas de escrita
cuneiforme babilónicas.
Outros trabalhos de entrelaçamento ou de amarrar podiam
também ter contribuído para a formação do conceito de pentágono
regular. As tiras das vassouras moçambicanas são muitas vezes
amarradas pentagonalmente umas às outras (vide Figura 3.99). Reside
ainda aqui uma possível causa para a ligação das ideias de
“pentágono” e “proteção”? Daremos mais um exemplo no §3.9.

Figura 3.99

81
Paulus Gerdes
A descoberta do protetor de dedo, pentagonal-regular, pode
estimular jogos como, por exemplo, entrelaçar vários nós em linha
(vide Figura 3.100a), ou o uso em emblemas familiares tradicionais do
Japão (vide os exemplos na Figura 101). Quando se produzem seis
pentágonos e se une o primeiro ao sexto, obtém-se um anel como na
Figura 3.100b. Continuando a experimentar – já se saiu do “reino da
necessidade”, da satisfação imediata das necessidades humanas e da
obrigação material da forma –, pode-se tentar entrelaçar uma figura
“redonda” fechada. Inesperadamente perde-se agora a liberdade
acabada de conquistar: como única possibilidade resulta o dodecaedro,
quer dizer, o sólido de doze faces limitado por pentágonos regulares
(vide Figura 3.100d).

b c

d
Figura 3.100
82
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.101

“É surpreendente”, escreve Wussing, “o conhecimento (dos


Pitagóricos na Antiguidade) do dodecaedro; isto está talvez
relacionado com o facto de que a pirite encontrada na Itália se
cristaliza em dodecaedros” (1979, p. 47). Um dodecaedro etrusco
produzido em pedra de sabão remonta ao século 6 a.C. (Van der
Waerden, 1954, p. 100). Dodecaedros de bronze e ferro serviram como
despojos funerários em túmulos celtas e etruscos. Estes dodecaedros
foram o produto de pura fantasia? Ou o cristal de pirite serviu de
modelo? Talvez, no entanto, tivesse havido antes situações que
tivessem resultado de atividade social mais antiga como, por exemplo,
a acima descrita, na qual se descobriu a forma dodecaédrica. Se tivesse

83
Paulus Gerdes
sido esse o caso, então o dodecaedro etrusco e o conhecimento
pitagórico parecer-nos-iam menos “surpreendentes”.

3.7 Como se podem entrelaçar cestos com fundo achatado?

Quando se domina a técnica do cordão espiralado, para se


poderem fabricar esteiras redondas e pratos rasos, descobre-se, quase
automaticamente, como se devem confeccionar cestos com um fundo
arredondado: uma vez alcançado o diâmetro ou perímetro desejado,
cose-se, então, a espiral seguinte do cordão em cima da última do
fundo (vide Figura 3.102), e assim, continua-se a entrelaçar para cima,
podendo a forma ser escolhida à vontade. Esta escolha só se mostra
livre na medida em que o método da espiral sempre leva
obrigatoriamente, quando se parte de um fundo circular, a recipientes
com simetria de rotação.

Fundo circular Para cima Por exemplo, cesto cilíndrico


Figura 3.102

Com a técnica de entrelaçamento, analisada no §3.5, obtêm-se


também formas com simetria rotacional, tais como cestos de forma
cilíndrica ou de tronco de cone.

Figura 3.103

84
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
O entrelaçamento em espiral reflete-se na técnica mais recente
da olaria mais antiga, onde o barro é primeiro moldado na forma de
varas redondas que depois são enroladas umas contra as outras em
espiral. Mais tarde, ajusta-se a forma (vide Figura 3.103), mas ela
permanece com a simetria de rotação. A origem da simetria das
panelas assim produzidas reside na imitação da técnica do cordão
espiralado. Embora o novo material – o barro – tenha dado ao Homem
a liberdade de escolher outras formas, o seu pensamento, no início,
estava ainda demasiado influenciado pela tradição do entrelaçamento
para, no contexto do fabrico de recipientes, poder imaginar, de algum
modo, outras formas possíveis. Uma vez ultrapassado o horizonte
limitado desse pensamento, o Homem pôde experimentar novas
formas. Mas, de maneira absolutamente fortuita, circunstâncias
imprevistas impeliram-no de volta à tradição da simetria de rotação:
recipientes com cantos quebram-se na combustão mais facilmente do
que os com forma arredondada; panelas desequilibradas são mais
difíceis de se transportar à cabeça, etc. Não se encontraria aqui uma
causa fundamental para a relativa uniformidade das panelas de barro
de todo o Mundo? Não se encontraria aqui uma razão importante para
aquilo que os sociólogos denominaram, o conservadorismo dos oleiros
(Foster, 1961)? Não se poderia compreender a partir daqui o exagero
idealista – desligado da atividade social – segundo o qual, por exemplo
(Junod, 1974, Vol. 2, p. 106), os oleiros do Sul de Moçambique
produzem instintivamente figuras “circulares”?... Além disso, o fabrico
de recipientes de barro com simetria de rotação não deveria antes ter
sido pressuposto para a descoberta da placa ou disco giratório do que o
contrário? Uma vez descoberta a placa ou o disco giratório, torna-se
ainda mais fácil e mais precisa a reprodução de recipientes de simetria
de rotação, o que, por seu lado, reforça o estímulo para a elaboração
desse conceito de simetria.
Voltemos agora à nossa questão: como se podem entrelaçar
cestos com fundo achatado?
Uma espécie amplamente divulgada de esteiras produz-se por
meio de entrelaçamento de juncos dispostos paralelamente uns ao lado
dos outros, com outros correndo perpendicularmente aos primeiros.
Como se pode continuar a entrelaçar para cima de forma a obter um
recipiente com fundo achatado? Quando se dobram para o mesmo lado
as partes dos juncos que ficam de fora, surge o esqueleto dum cesto
(vide Figura 3.104).

85
Paulus Gerdes

Figura 3.104
Como se deve agora ligar umas às outras as partes dos juncos
virados para cima? De imediato, sem juncos auxiliares isso não é
possível. Porém, se se entrelaçam novos juncos horizontalmente ou em
espiral com os existentes, obtém-se automaticamente um cesto de
forma de um paralelepípedo (vide Figura 3.105); as paredes são
necessariamente perpendiculares ao fundo. Por exemplo, o cabaz de
Portugal é entrelaçado desta maneira.

Figura 3.105
86
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Se, em contrapartida, se acrescentar aos quatro cantos algumas


tiras verticais (vide Figura 3.106), obtém-se então um cesto mais
espaçoso, como o cesto de transporte utilizado no Sul de Moçambique
(vide Figura 3.107). Também aqui, a simetria do fundo reflete-se,
quase que independente da vontade dos artesãos, na forma particular
do produto do trabalho. Quase independentemente, porque ele ainda só
tem a liberdade de escolher à vontade o número de tiras auxiliares nos
quatro cantos. Uma vez dada a preferência a um número igual de
juncos para os quatro cantos, as duas simetrias axiais do fundo
rectangular geram duas simetrias bilaterais no espaço (vide Figura
3.108). Nestes trabalhos de entrelaçamento continuam a desenvolver-
se os vários conceitos de simetria: verifica-se uma certa conexão entre
a igualdade do número de juncos do canto e a “igualdade de forma” ou
seja das propriedades da simetria do cesto confeccionado.

Figura 3.106

Figura 3.107
87
Paulus Gerdes

Figura 3.108

Por outro lado, levanta-se a questão: com a mesma técnica


rectangular será possível entrelaçar imediatamente cestos com fundo
achatado, isto é, sem juncos auxiliares? Evidentemente uma
possibilidade só pode resultar se se dobrarem para o mesmo lado, não
só as tiras que ainda ficam de fora (vide Figura 3.104), mas também
uma ou mais partes das tiras da base já entrelaçada. Mas que partes?
Quando se dobra uma parte rectangular, pode-se, uma vez mais,
confeccionar um cesto paralelepipédico (vide Figura 3.109). Contudo,
quando não se dobrem rectângulos mas triângulos, deve-se fazê-lo,
simultaneamente nos quatro cantos e ainda com hipotenusas adjacentes
(vide Figura 3.110) para se poder obter um cesto sem buracos.
Em princípio, verifica-se ser possível a produção de recipientes
com um fundo tão “irregular”, como na Figura 3.110, mesmo se deles
ainda se exigir que as paredes devam ser entrelaçadas de maneira
cruzada. De início o cesto será ainda mais irregular que o seu fundo:
onde os ângulos internos do fundo forem agudos, o cesto inclinar-se-á
para fora, e onde forem obtusos, para dentro. Além disso, quanto mais
obtuso um ângulo interno é, tanto mais difícil se mostra o
entrelaçamento conjunto das paredes que lhe pertençam. Esta
88
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
experiência pode levar o nosso artesão à procura de ângulos internos
iguais – tão “agudos” quanto possível. Ele descobre que todos os
ângulos devem ser rectos...isto é, o quadrilátero “inscrito” deve ser um
rectângulo.

Figura 3.109

Rectângulo original Dobrar os triângulos

Forma do fundo
Figura 3.110
89
Paulus Gerdes

Como já foi dito, o cesto teria sido, no início, ainda mais


“irregular” que o seu fundo. Mas quando o cesteiro prossegue, a forma
torna-se cada vez mais “regular”: adquire a forma cilíndrica (vide
Figura 3.111). Para se garantir a posição vertical do cesto, pode-se
agora tentar escolher uma forma “mais igual” ou “mais regular” para o
fundo: pelo menos um rectângulo. Por este caminho, o artesão chega
igualmente à conclusão de que o quadrilátero inscrito deve ser um
rectângulo.

Figura 3.111 Figura 3.112

Quando se parte de um rectângulo inicial arbitrário, não é fácil,


em geral, inscrever nele um novo rectângulo. Isso obriga o artesão a
escolher o rectângulo original tão “igual” quanto possível: um
quadrado. Neste caso são passíveis de escolha muitos rectângulos
inscritos, cujos lados formam ângulos de 45o com os do quadrado
inicial (vide Figura 112).
O nosso hipotético artesão pode ter igualmente chegado à mesma
conclusão, de outra forma. Talvez ele já conhecesse ângulos de 45o
num outro contexto, por exemplo, da trança de três tiras. Ou até – na
base de experiências pessoais ou socialmente veiculadas e da criação,
a elas ligada, de valores estético-utilitários – ele escolhe, quase de
imediato, saltando as fases experimentais anteriormente resumidas, um
quadrado como rectângulo inicial e dobre os triângulos de maneira a
que o fundo do cesto confeccionado se torne um rectângulo ou, até, um
quadrado (vide Figura 3.113).

90
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.113 Figura 3.114

Obtêm-se recipientes cilíndricos, cujos eixos ficam


perpendiculares ao fundo. Ao continuar a entrelaçar, a forma
rectangular fica suprimida, independentemente da vontade do artesão:
conforme as leis da natureza, impõe-se, “cilindricamente”, a curva
fechada mais homogénea, a “curva-de-tensão-constante”, quer dizer, a
circunferência. Esses cestos cilíndricos com fundo quadrado podem
ser vistos nas regiões mais distantes do Mundo, por exemplo, entre os
índios Carajá, Timbira e Guajajara do Oriente do Brasil, na ilha
indonésia de Bornéu e entre os Makonde do Norte de Moçambique.
Um processo semelhante pode ser observado em cestos
entrelaçados-em-três-direções. Para facilitar a continuação do
entrelaçamento para cima deve-se escolher “automaticamente” um
fundo hexagonal. Desta vez a forma hexagonal fica “suprimida” ou
“ultrapassada” pela forma circular da abertura do cesto (vide Figura
3.114). Quando não se faz uso de juncos auxiliares horizontais, obtém-
se um cesto com buracos em forma de losangos.
Recipientes tomam, amiúde, a forma de cilindro ou de cone, ou
outras formas simétricas. À primeira vista isto pode parecer resultante
de impulsos instintivos ou duma preferência inata para estas formas ou
– numa outra variante idealista – como que produzidas por uma “alma
cultural” comum ou também como imitação de fenómenos naturais.
Na realidade, contudo, o Homem cria estas formas para poder
satisfazer as suas necessidades quotidianas. A sua compreensão
continua a desenvolver-se durante a descoberta, reprodução e
transmissão social dos métodos de fabrico de pratos, taças, copos,
91
Paulus Gerdes
cestos, etc. A sua compreensão cresce na confrontação com o material
para realmente poder produzir algo útil: arcos, barcos, machados de
mão, cangas, cestos, selas, panelas... Já muito cedo na história humana,
esta apreensão crescente de simetrias ganhou uma certa autonomia. Na
Figura 3.115 vê-se uma composição artística de uma caveira e ossos
de ursos das cavernas. Esta construção do Homem do Neandertal,
descoberta na gruta de Drachenloch na Suiça exigia “...do seu criador,
ideias precisas sobre ordem e simetria, não obstante a sua
simplicidade”, como sublinha Panow (1985, p. 69). Simultaneamente,
esta composição exprime que o seu criador já tinha aprendido a
reconhecer simetrias na natureza.

Figura 3.115

As sempre repetidas velhas e novas vantagens práticas de formas


simétricas contribuíram para a sua apreciação estética e para a sua
aplicação, mesmo onde esta não era necessária ou imediatamente útil
como, por exemplo, no ornamento dos lábios “ndona” de forma
cilíndrica, dos Makonde (vide Figura 3.116).

Figura 3.116
92
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

3.8 Sobre a formação de alguns padrões de entrelaçamento e


uma medida de volume

Já no §3.5 encontrámos um tipo de prato entrelaçado, “ungo”


dos Suahili, ou de cesto, “chelo” dos Makonde, que se utiliza
massivamente na África oriental e austral. Usam-no como peneira ou
travessa de comida. Para tirar o debulho, sacode-se nele o milho contra
o vento. Como se produz um cesto deste tipo, tão útil?

Figura 3.117

Figura 3.118

Primeiro, entrelaça-se de forma cruzada uma esteira rectangular.


Dobra-se em arco uma lasca de madeira e atam-se ambos os extremos
um ao outro fortemente. Assim obtém-se o rebordo para o cesto.
Amarram-se, então, os lados da esteira pelo meio ao rebordo, como se
mostra na Figura 3.117. Depois, o cesteiro molha a esteira e, com um
pé, comprime uniformemente a esteira, assim tornada mais flexível,
para dentro (vide Figura 3.118). Por fim, ele corta as partes da esteira
93
Paulus Gerdes
que ficam de fora e prende o fundo ao rebordo, como por exemplo, na
Figura 3.119.

Figura 3.119

O rebordo deste cesto “chelo” é necessariamente circular: a


homogeneidade do material dobrado força esta forma. A esteira
entrelaçada rectangularmente deve ser quadrada, assim ensina a
experiência: se ela não fosse quadrada, seria então mais difícil de se
amarrar ao rebordo e o cesto virar-se-ia com relativa facilidade. Para
se poder abaular a esteira é necessário que se amarrem todos os seus
quatro lados ao rebordo, e não só dois ou três. Também aqui a
experiência desempenha um importante papel: os lados não devem ser
amarrados ao rebordo num lugar arbitrário, mas precisamente no seu
ponto médio. Caso isto não aconteça, então vê-se que nas partes mais
curtas a esteira é mais difícil de se abaular: a distorção dos ângulos
rectos entre as tiras de planta torna-se maior.
Como é que o cesteiro pode garantir que a esteira tenha
efetivamente uma forma quadrada? Como é que ele pode determinar
os pontos médios dos lados?
Com sorte? Sorte vinda da experiência, sim, isso acontece. O
cesteiro pode também, por exemplo, comparar os comprimentos dos
lados com a palma das mãos. Ou pode contar as tiras. Uma outra
solução é vulgar: apuram-se os pontos médios dos lados não depois do
entrelaçamento, mas antes disso. De maneira especial, o nosso artesão
garante, de antemão, que sejam visíveis as linhas que unem os futuros
pontos médios dos lados opostos (vide Figura 3.120). Para tal existem
dois métodos diferentes. Eles podem ser utilizados simultaneamente
como na Figura 3.121.

94
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.120

Figura 3.121

Num a linha do meio é reconhecida através de uma coloração


distinta, noutro, por meio duma modificação da maneira de entrelaçar.
Quando se entrelaça desta maneira a partir do centro da esteira, é mais
fácil observar se a esteira, efetivamente, tomou uma forma quadrada:
95
Paulus Gerdes
as linhas do meio atuam como auxiliares visuais. Uma outra
possibilidade consiste em “entrelaçar circularmente”, duma maneira
sistemática como aclara a Figura 3.122.

Figura 3.122

Se, pelo contrário, se entrelaça constantemente com duas cores,


o padrão de entrelaçamento colorido pode dar tanto apoio, que tanto
uma rigorosa observação final como contar ou medir se tornam
completamente supérfluos (vide os exemplos na Figura 3.123): o
padrão não deixa qualquer dúvida nem sobre se a esteira é ou não
quadrada, nem sobre onde se encontram os pontos médios dos lados. A
eficácia destes padrões de entrelaçamento coloridos contribui para a
sua beleza social! Eles podem tornar-se um fim em si e ocasionar
novas experiências com padrões coloridos. O cesteiro descobre novas

96
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
variações de forma (vide Figuras 3.124 [centros de esteiras quadradas]
e 3.125 [peneiras redondas de Guiana]) e pode aplicá-las também
noutras técnicas de entrelaçamento, onde o processo de produção ainda
não exigia a procura de novas formas. As variações de cor emancipam-
se. Tornam-se ornamentos. Uma vez transferidas, primeiramente, de
um tipo de cesto para outro, podem então continuar a libertar-se e a
refletir-se noutros materiais, como por exemplo na decoração de
panelas de barro ou em tatuagens do corpo (vide os exemplos na
Figura 3.126).

a. Centro; b. Esboço da esteira quadrada; c. Esboço do cesto

a. Centro; b. Esboço da esteira quadrada; c. Esboço do cesto


(visto de cima)
Figura 3.123
97
Paulus Gerdes

a. Vietname b. China c. Angola

d. Quénia
Centros de esteiras quadradas
Figura 3.124

98
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

e. Quénia

f. Ilha Halmahera (Arquipélago Malaio)


Centros de esteiras quadradas
Figura 3.124

99
Paulus Gerdes

g. Índios Chitimacha (EUA)


Centros de esteiras quadradas
Figura 3.124

Peneiras redondas da Guiana (vistas de cima)


Figura 3.125

100
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

a. Angola b. Camarões c. Camarões


Gravuras em madeira
Figura 3.126

Quando se observa um cesto “chelo” de cima, no qual as duas


linhas do meio, perpendiculares entre si, são visíveis, obtém-se uma
figura (vide Figura 3.127), que deu motivo a muitas atividades
artísticas (vide os exemplos na Figura 3.128).

Figura 3.127

Gravuras em madeira (Madagáscar)


Figura 3.128

101
Paulus Gerdes
No §3.7 vimos como se entrelaça um cesto cilíndrico com fundo
quadrado a partir de uma esteira quadrada, depois de se dobrarem
quatro triângulos congruentes isósceles. Entre os Makonde do Norte de
Moçambique produz-se desta maneira o cesto “likalala”. Como é que
o cesteiro do “likalala” sabe se a sua esteira é quadrada e onde se
encontram os pontos médios dos lados? Por outras palavras, ele tem de
resolver, essencialmente, o mesmo problema que com o cesto “chelo”.
O artesão entrelaça, primeiro, ambas as linhas que devem ligar os
pontos médios dos lados opostos, quer dizer, as diagonais do futuro
fundo quadrado, por meio do seguinte procedimento: com dois grupos
de seis tiras da mesma largura, ele confecciona o centro duplamente
simétrico da esteira (vide Figura 3.129). Chama-se a este centro
“yuyumunu”, quer dizer, mãe.

Figura 3.129

“Yuyumunu” gera a esteira com indicação dos elementos


desejados. Depois do centro entrelaçam-se as linhas do meio através
de repetição parcial do “centro-mãe”: de cada vez são entrelaçadas
quatro tiras (vide Figura 3.130). Se o número destas repetições, em
cada uma das quatro direções, é igual, isto significa que a esteira,
depois do término do entrelaçamento, ficará quadrada. Uma vez
entrelaçadas as linhas do meio, então a esteira completa-se quadrante
por quadrante (vide Figuras 3.131 e 3.132).

102
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.130

Conclusão do 1º quadrante
Figura 3.131
103
Paulus Gerdes

Conclusão dos quatro quadrantes


Figura 3.132

Evitou-se aqui a contagem direta das tiras. Conta-se apenas o


número de repetições: as tiras são, assim, agrupadas em conjuntos de
quatro. Talvez estas experiências ou outras semelhantes tenham
contribuído em fases culturais muito antigas para a contagem com 3, 4,
5 ou 6 como número de base.
Com esta maneira de produção a partir da “yuyumunu”
conseguiu-se a possibilidade da estandardização dos cestos “likalala”.
Logo que a correspondente necessidade social se mostre, esta
possibilidade pode ser realizada, como de facto aconteceu entre os
Makonde. Por exemplo, foi necessário conhecer os rendimentos de
milho, mapira, feijão etc., a fim de saber quanto ficou para a troca.
Mede-se a colheita em unidades-“likalala”, quando se despeja o milho
ou mapira num silo de cereais. No “likalala” repete-se cinco vezes o
padrão básico; as tiras têm aproximadamente 16 mm de largura.
104
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Uma vez estandardizado o fundo, obtém-se então a medida de
volume “likalala” (aproximadamente 50 litros), se as alturas dos cestos
forem também iguais entre si. Uma medida de volume menor que a do
“likalala” dos Makonde é o cesto “ipichi” de igual forma
(aproximadamente 13 litros), onde o padrão básico se repete apenas
quatro vezes; as tiras são mais estreitas, aproximadamente 9 mm
(Guerreiro, 1966, p. 17).
Os padrões de entrelaçamento que aparecem na confecção dos
cestos “chelo” e “likalala”, podem ser empregues e aperfeiçoados não
só na arte, como também na geometria, como o deixam supor, por
exemplo, os desenhos dos textos cuneiformes da antiga Mesopotâmia
(vide Figura 3.133).

Figura 3.133

3.9 Como determinar a configuração da base duma construção


rectangular?

A hipótese sugerida por M. Cantor (1829-1920) segundo a qual


agrimensores ou “esticadores de corda” no Egito Antigo construíram
os ângulos rectos da configuração das bases dos templos e pirâmides,
com ajuda duma corda na qual se encontravam 3+4+5 = 12 nós, teve
em 90% dos livros o acolhimento de verdade absoluta (Van der
Waerden, 1954, p. 6). Não existe, contudo, um único indício de que os
matemáticos do Egito Antigo tivessem conhecido esse método baseado
105
Paulus Gerdes
na relação factual que, hoje, denominamos por “Teorema de
Pitágoras” (Gillings, 1972, p. 238, 242). Sobre a determinação da
configuração da base de um templo, que teve lugar num ato solene, K.
Vogel informa: “A orientação efetuou-se através do visionamento da
direção norte com vista à Ursa Maior ... ; a direção, determinada
através de uma vara de prumo e mira, é fixada através de duas cavilhas
espetadas no solo à volta das quais o fio é enlaçado e depois esticado.
Não se conta como foi encontrada a segunda direção básica
perpendicular ao meridiano” (Vogel, 1959, p. 59, 60). Por que é que
isso não foi explicado? Talvez porque isso dissesse respeito a uma
construção tão largamente conhecida que não valesse a pena descrevê-
la. Que construção podia, naquele tempo, ter sido tão amplamente
conhecida?

Exemplos de conhecimentos antigos sobre rectângulos

Com o nascimento da agricultura começou uma nova etapa da


construção de casas. O modo de vida sedentário tornou possível a
construção de casas mais duradouras e maiores. Em Hacilar na
Anatólia ocidental e Çatal Hüyük na Anatólia central (atual Turquia)
foram edificadas, já no 8º milénio a.C. construções de habitação de
vários quartos rectangulares. A forma rectangular – por exemplo,
esteiras rectangulares – e a sua utilização remontam provavelmente de
há muito mais tempo, se tomarmos em consideração a história de
outros povos que originalmente não construíam casas rectangulares:
por exemplo, no Norte de Moçambique cortava-se duma árvore um
rectângulo de casca para fabricar com isso um recipiente cilíndrico, no
qual se conservava o cereal (vide Figura 3.134).

Rectângulo de casca Recipiente cilíndrico


Figura 3.134

106
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Que conhecimentos poderiam, na base da experiência, ser
adquiridos sobre rectângulos?
Da produção de esteiras rectangulares resulta, quase de imediato,
que os seus lados opostos são de igual comprimento: por um lado os
caniços são de igual comprimento e, por outro, não se altera o seu
número quando se vai de um lado para o outro (vide Figura 3.135).
Caniços de igual comprimento

Número igual de caniços


Figura 3.135

Quando se dobra uma esteira pelo meio, resulta uma com a


metade do seu tamanho; quando se vira uma esteira sobre o seu
comprimento ou largura ela ocupa o mesmo lugar. Por outras palavras,
o rectângulo tem dois eixos de simetria (vide Figura 3.136). Novas
conclusões poderiam ter sido tiradas a partir da simetria do rectângulo,
como por exemplo, que as suas diagonais são iguais (vide Figura
3.137), baseando-se provavelmente também noutras experiências de
simetria dentro de uma mesma cultura .

a. Dobrar pelo meio

b. Virar sobre o comprimento


107
Paulus Gerdes

Primeiro eixo de simetria:

c. Virar sobre a largura

Segundo eixo de simetria


Figura 3.136

Figura 3.137

Quando se colocam esteiras do mesmo tamanho umas ao lado


das outras, por exemplo, ao comer, dormir ou trabalhar, como na
Figura 3.138, obtêm-se rectângulos maiores. Com isto está já
encontrada uma possibilidade para a determinação da configuração da
base de uma construção rectangular.

108
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.138

Figura 3.139

Amiúde guarda-se um fio ou uma corda enrolando-os à volta de


alguns paus cruzados (vide Figura 3.139). Desta maneira evitam-se os
nós. Com esta experiência abriu-se caminho para posteriores jogos.
Quando se conduz o fio, em espiral à volta de dois paus cruzados e,
cada vez que se alcança um pau, se estica o fio, surge – inesperada e
independentemente da vontade humana! – uma cruz de fio,
rectangular (vide Figura 3.140). Vendo o resultado, o jogador pode
concluir que as quatro radiais de pau – depois de se terem quebrado as
partes salientes – têm o mesmo comprimento, porque todas elas foram
envolvidas pelo fio o mesmo número de vezes. Pressupõe-se apenas
que os paus foram envolvidos da mesma maneira.

109
Paulus Gerdes

Figura 3.140

Assim, pôde-se descobrir não só que as diagonais dum


rectângulo são iguais, mas também que elas se cruzem no meio. O
rectângulo tem um centro de rotação (vide Figura 3.141). E se, além
disso, o conceito de circunferência como conjunto de pontos
equidistantes de um centro já tiver sido adquirido, pode também ter
sido descoberto que os vértices de um rectângulo se situam numa
circunferência cujo centro coincide com o do último, o que conduz à
chamada figura fundamental de Thales de Mileto (vide Figura 3.142).

Figura 3.141

Figura 3.142
110
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 3.143

Se no início os dois paus tivessem sido cruzados


perpendicularmente, resultaria, automática e independentemente da
vontade do jogador, um quadrado (vide Figura 3.143), como por
exemplo, a cruz de fio dos índios Guajajara do Nordeste do Brasil.
Esta cruz de fio quadrada servia de brinquedo e representava as asas
do morcego (Neumann, 1983, p. 36). Estas asas nunca poderiam ter
sido o modelo para a cruz de fio quadrada; pelo contrário, só a cruz
pronta possibilitou ao homem compará-la e interpretá-la como asas de
morcego. Não só se possibilitaram interpretações, como também
puderam ser adquiridos novos conhecimentos:
* se as diagonais dum rectângulo ficam perpendiculares entre si,
então, o rectângulo será um quadrado, ou, inversamente, as
diagonais de um quadrado cruzam-se perpendicularmente;
* as diagonais de um quadrado são iguais e cruzam-se no meio;
* os vértices de um quadrado ficam numa circunferência cujo
centro coincide com o ponto de intersecção das diagonais.
As últimas conclusões podem ter sido tiradas pelos índios
Guajajara e outros grupos étnicos, na base dos seus cestos redondos
com fundos quadrados.
Já encontrámos uma relação entre rectângulos e cilindros: um
rectângulo de casca de árvore foi cosido em forma de recipiente
cilíndrico. Novas relações podem ser descobertas no fabrico de cestos
ou de carteiras de uso a tiracolo. Os Tsonga do Sul de Moçambique
confeccionam as carteiras (de uso a tiracolo) “huama” ou “funeco”
como se segue.
Duas tiras de planta podem ser atadas – pentagonalmente! – uma
à outra, como mostra Figura 3.144. Observemos o nó mais de perto. O
111
Paulus Gerdes
pentágono do nó – em três lados partes de tira salientam-se, em dois
lados o nó está fechado – é, quando achatado, semi-regular com
ângulos de 108o, 90o, 90o, 126o e 126o (vide Figura 3.145a). Porém,
encontra-se escondido nele o pentágono regular e o pentagrama. Se se
entrelaçar, a brincar, um tal nó de duas tiras de planta, relativamente
largas e finas e se colocar em frente à luz, então aparecem, ao mesmo
tempo, um pentágono regular e um pentagrama quase completo (vide
Figura 3.145b). Encontra-se aqui um nascimento alternativo do
pentagrama?

Com duas tiras


Figura 3.144

a b
Figura 3.145

112
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Com quatro tiras


Figura 3.146

Para confeccionar as carteiras “huama” e “funeco”, não se atam


duas tiras uma à outra, mas dois pares de tiras de palmeira. O modo de
atar é o mesmo e a Figura 3.146 mostra o resultado: um nó pentagonal
feito com quatro tiras. Agora entrelaçam-se, quase perpendicularmente
e conforme a alternância “duas para cima – duas para baixo”, estes
grupos de quatro tiras assim atadas. Obtém-se uma esteira (vide Figura
3.147).

Figura 3.147

Mas não se prossegue por demasiado tempo esse entrelaçamento:


flecte-se circularmente a esteira e o primeiro e o último nós tornam-se
vizinhos. Depois continua-se a entrelaçar normalmente. Assim obtém-
se, como que automaticamente, uma parede cilíndrica. Quando a
parede é suficientemente alta, dobra-se, no lado de baixo, a série de
113
Paulus Gerdes
nós para dentro, comprime-se o cilindro e cosem-se as duas metades
da série de nós uma à outra (vide Figura 3.148): a forma cilíndrica fica
suprimida e surge uma carteira rectangular.

Figura 3.148

Com a maior das probabilidades, quando esta forma de carteira


foi descoberta, não havia de antemão qualquer intenção em dar-lhe
uma forma rectangular: inesperadamente, o cilindro, que por seu lado
tinha suprimido a esteira plana (rectangular), foi necessariamente
suprimido pela carteira rectangular – esta deveria ficar fechada no lado
de baixo. Se, em vez de tiras paralelas de palmeira, se usarem tiras
que, gradualmente, se tornam mais estreitas, obter-se-á uma parede
com a forma de tronco de cone e depois de ter fechado no lado de
baixo, uma carteira trapezoidal (vide Figura 3.149). Na Figura 3.150
podem-se ver os possíveis acabamentos desta carteira, com duas pegas
ou com tampa da mesma forma e com alça. Como as figuras já
mostram, entrelaçam-se habitualmente tiras de palmeira de cor
amarelo-pálido e também algumas de cores escuras de forma a resultar
bandas diagonais. Por razões de simetria ou porque todas as tiras têm o
mesmo comprimento, pode-se deduzir que ambas as diagonais, de
cada rectângulo e de cada trapézio isósceles, são de igual comprimento
(vide Figura 3.151).

Figura 3.149
114
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

a b c
Figura 3.150

Da mesma maneira, podem ser obtidos outros conhecimentos,


como, por exemplo, que os segmentos que ligam os vértices de dois
ângulos adjacentes dum rectângulo com o meio do lado oposto (vide
Figura 3.151c), são iguais. O interesse pelo rectângulo com as suas
diagonais reflete-se nos ornamentos de recipientes de barro não só em
Moçambique mas também, por exemplo, na chamada “cultura das
taças campanuladas” do fim do 3º a.C. no Oeste e Sul da Europa (Van
der Waerden, 1983, p. 34).

a b c
Figura 3.151

115
Paulus Gerdes
Exemplos da construção de rectângulos

O interesse pelo rectângulo e suas diagonais não é apenas


estético. Estes conhecimentos “invertem-se”: se os lados opostos de
um quadrilátero são iguais e as suas diagonais são também iguais entre
si, então o quadrilátero é um rectângulo. E, assim, isso forneceu aos
camponeses de Moçambique e igualmente, por exemplo, aos Kpelle da
Libéria, um método simples e aplicável para obter a configuração
rectangular da base das suas casas.

Figura 3.152

K. Vogel (1959, p. 60) formula a hipótese de os antigos Egípcios


terem aplicado o “esquadro de marceneiro” (vide Figura 3.152) ou
terem realizado a conhecida construção baseada na figura do triângulo
isósceles, para fixar duas direções perpendiculares. É possível. Mas
estes métodos têm a desvantagem de deverem ser aplicados, no
mínimo, três vezes para se construir um rectângulo. Em contrapartida,
o método de comparação das diagonais tem a vantagem de conduzir
simultaneamente a quatro ângulos rectos internos. A armação
simétrica de uma mesa do túmulo de Tutancámon (c. 1346-1336 a.C.)
deixa supor que os artesãos no Egito Antigo sabiam que as diagonais
de um rectângulo são de igual comprimento (vide Figura 3.153).

Figura 3.153

116
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Talvez conhecessem o método de comparação das diagonais ou
o procedimento dos índios Kwakiutl. Os Kwakiutl da Ilha de
Vancouver fixavam a configuração quadrada da base das suas casas do
seguinte modo. Do ponto A, que deveria tornar-se o ponto médio do
lado da frente da casa, esticavam um fio até ao ponto médio B do lado
de trás. Depois, dividiam ao meio esse fio e esticavam, a partir do
primeiro ponto A, a primeira metade do fio para a esquerda (ponto
terminal C) e a outra para a direita (ponto terminal D) (vide Figura
3.154). Então, com a ajuda de um segundo fio eles comparavam a
distância entre C e B com a distância entre D e B, e, se necessário,
ajustavam as posições de C e D até que BC e BD fossem iguais. Uma
vez igualadas tinham-se achado os vértices do lado da frente. De igual
modo achavam-se os vértices do lado de trás (Struik, 1948;
Seidenberg, 1962a). Com uma pequena modificação, o método dos
Kwakiutl pode também aplicar-se à construção de rectângulos não
quadrados. Tanto com o método de comparação das diagonais como
com o método dos Kwakiutl pode-se alcançar uma alta precisão, em
particular, se as dimensões dos lados da base forem relativamente
grandes, como o foi, por exemplo, no caso das pirâmides de Gizé no
Antigo Egito.

Figura 3.154

Ambos os métodos apresentam, todavia, uma desvantagem, que se


torna tanto mais problemático quanto maiores forem as medidas:
devia-se caminhar com o fio para trás e para diante para se poderem
comparar as distâncias. Este incómodo pode ser evitado se, em vez de
um fio, se trabalhar simultaneamente com dois fios. Mas nestes
circunstâncias impõe-se, talvez, uma outra maneira de comparar:
medir! Uma vez obrigado à medição pode aqui ser encontrada uma
117
Paulus Gerdes
razão para comparar os comprimentos dos lados e diagonais de
rectângulos. Se isso aconteceu, então pode-se compreender, porquê é
que no texto mesopotâmico antigo – “Plimpton 322” –, que foi escrito
durante a dinastia de Hamurabi, cerca de 1800 a.C. – onde, pela
primeira vez, aparecem os triplos pitagóricos, os triplos se referem ao
comprimento, largura e diagonais de rectângulos (Vide Van der
Waerden, 1983, p. 2).
Todavia, também sem medições é possível construir rectângulos
de grandes dimensões. Uma experiência, como a que, por exemplo, se
cristalizou na cruz de fio dos índios Guajajara poderia conduzir à
seguinte fixação de um rectângulo: esticam-se dois fios de igual
comprimento, de forma que os seus pontos médios coincidam – então
os extremos dos fios determinam um rectângulo (vide Figura 3.155) –,
tal como, de facto, é feito em algumas zonas de Moçambique.

Figura 3.155

118
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 4

Sobre a posterior elaboração artística de ideias de


simetria que nasceram na atividade social

4.1 Como se pode trepar a uma palmeira espinhosa?

Para se poderem apanhar na devida altura os frutos duma


palmeira, pode-se tentar subir à árvore. Numa árvore estreita e lisa,
isso é relativamente fácil sem meios auxiliares. Todavia, para se poder
trepar a uma palmeira espinhosa, provavelmente são necessários meios
auxiliares. Se se conhece a escada de mão, pode-se utilizá-la para tal.
Contudo, num bosque parece pouco cómodo andar a arrastar uma
escada. Precisa-se dum instrumento relativamente pequeno ou dum
que possa ser facilmente produzido no local onde ele é necessário. O
recolector pode então pensar num “banquinho” fácil de fabricar em
que ele possa sentar-se ou manter-se de pé e que se possa empurrar
para cima ao longo da árvore. Que aspecto deve ter tal banco?
Só com uma estaca de madeira não se pode fazer tal banco. E
com duas? Talvez. As duas estacas devem, para tal, ser ligadas uma à
outra. Quando se atam as estacas aproximadamente pelo meio, uma
das extremidades pode ser levada à volta da árvore e a outra servir de
banco para se sentar (vide Figura 4.1).

Figura 4.1

119
Paulus Gerdes

Figura 4.2

Para evitar uma queda, deve-se ligar a primeira extremidade, por


exemplo com a ajuda de uma liana, à árvore, de tal maneira que,
simultaneamente, se mantenha a possibilidade de a empurrar para cima
ou para baixo (vide Figura 4.2). Quando ambas as estacas se afastam
demasiado uma da outra, a deslocação fica impedida. Por isso é
oportuno atá-las, mais uma vez, uma à outra, desta vez, talvez, com
uma terceira estaca que simultaneamente possa ser útil como lugar
para se sentar ou para se manter de pé (vide Figura 4.3). Para não ter
de se virar para nenhum lado, o nosso recolector é obrigado a amarrar
esta terceira estaca de modo a que o triângulo de madeira se torne
isósceles (vide Figura 4.4).

Figura 4.3
120
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 4.4

Ao mesmo tempo as duas primeiras estacas devem ter o mesmo


comprimento. Só então o recolector pode garantir o equilíbrio do seu
banco. Assim ele produziu de facto um banco para se sentar,
deslocável e de fácil fabrico (vide Figura 4.5). Só se coloca ainda a
questão de como, com esse banco para se sentar, se subiria à árvore.

Figura 4.5
121
Paulus Gerdes

É impossível deslocar-se para cima ao mesmo tempo que


empurra o banco. Só se se encontrar fora do banco é que o recolector
pode empurrá-lo para cima (ou para baixo). Por isso são precisos
simultaneamente dois destes bancos para se sentar: se o recolector se
encontrar num, desloca o outro um bocadinho para cima; transfere-se,
então, ele próprio, para o outro banco e puxa o primeiro para cima.
A técnica de trepar aqui descrita é utilizada pelos índios
Yanoama para colher os frutos da palmeira Bactrix (Biocca, 1980,
Fotos 25, 26). Estes caçadores, recolectores e camponeses semi-
nómadas viviam até aos anos sessenta do nosso século quase
completamente isolados na selva dificilmente penetrável entre o Rio
Negro e o Orinoco superior, na região fronteiriça da Venezuela e
Brasil. A maioria dos objetos por eles confeccionados – no seu
conjunto, existem entre os Yanoama relativamente poucos produtos
materiais do trabalho – são, como o seu banco de trepar,
obrigatoriamente simétricos, quer dizer, na interação entre a
reconhecida necessidade social, as possibilidades materiais e a
experimentação, a forma simétrica mostrou-se a melhor: pontas de
seta, redes de descanso, aljavas, arcos, recipientes alongados para sopa
de banana, cestos redondos entrelaçados hexagonalmente, taças para
beber e gamelas de casca de frutos cortados ao meio.

Figura 4.6

O simétrico, que é, independentemente da vontade dos índios


Yanoama, comum a muitos dos seus produtos de trabalho, impõe-se-
lhes quase irresistivelmente: outros objetos de consumo, como paus de
combate e pastas de pele de jaguar, obtêm também uma forma
122
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
simétrica, sem que para tal no processo de trabalho exista uma
necessidade imediata. Não só. A disposição das suas aldeias é circular
ou oval, com uma praça central. Aqui, a liberdade de escolha da forma
era ainda relativamente reduzida, porque a forma da praça da aldeia
devia resultar vantajosa, por exemplo, para facilitar a defesa contra
agressões inimigas. Nos penteados a escolha da forma já é muito
maior, mas a experiência, veiculada socialmente, imprimiu o seu
cunho na fantasia: homens e mulheres aparam a cabeça deixando uma
calva circular (vide Figura 4.6). No âmbito cerimonial, o poder de
imaginação parece fugir completamente à obrigação da forma: quando
um Yanoama morre durante uma viagem ou uma epidemia, o morto é
envolvido num invólucro de ramos e deixado no cimo de uma
plataforma até que os ossos se descarnem; então, os ossos são
queimados na praça da aldeia e os parentes mais próximos do falecido
comem as cinzas. Que forma dão os Yanoamas a tais plataformas?
Inesperadamente, pelo menos para nós que estamos fora dessa cultura,
aparece de novo a forma do banco de trepar à palmeira (vide Figura
4.7).

Figura 4.7
123
Paulus Gerdes

Figura 4.8

Uma vez tomado o caminho do enterro dos Yanoamas, a sua liberdade


é de novo materialmente restringida, obedecendo às leis da natureza:
se os triângulos da plataforma não fossem isósceles, o andaime cairia
imediatamente. Assim, a forma de simetria grava-se ainda mais no
pensamento yanoama ou, talvez melhor: conceitos de simetria
continuam a formar-se. E este processo de formação não termina por
aqui. Objetos de adorno recebem formas simétricas, como, por
exemplo, pendentes de orelha, as de uma “âncora” ou de um triângulo
isósceles (vide Figura 4.8). Já nessa altura, as formas de simetria na
natureza há muito tinham sido descobertas. A atividade social em
conjunto com a constituição geral do Homem assim o possibilitaram!
Nas cerimónias como, por exemplo, em ritos de iniciação, os
Yanoamas pintam o corpo. A reconhecida forma de simetria do corpo
humano convida ao desenho simétrico, como mostram os exemplos da
Figura 4.9.

Figura 4.9
124
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Aqui os ornamentos são compostos de elementos, como


circunferências, rectas, ovais ou linhas duplo-senóides, que foram
abstraídas do processo de produção, por exemplo a curva duplo-
senóide, presumivelmente do entrelaçamento de redes de descanso
(vide Figura 4.10).

Figura 4.10

Figura 4.11
125
Paulus Gerdes

Constituiu apenas um convite, uma sugestão. Agora o material –


a cor – não impõe mais a forma: os índios Yanoama ganharam a
liberdade para formas não-simétricas (vide Figura 4.11). Pontas de
seta, paus de combate e braceletes de tecido de algodão são enfeitados
com desenhos (vide Figura 4.12). Em particular, o simples ornamento
senóide com pontos é popular. Assim se liberta o pensamento.
Descobrem-se novas formas, inclusive aquelas que com a dada base
económica ainda não encontram qualquer aplicação na produção. Já
podem, seguramente, ser utilizados como símbolos.

Figura 4.12

4.2 Sobre Lévi-Strauss e simetrias na arte

Os estudos comparados de arte caíram em descrédito nos anos


quarenta. Até essa altura tais investigações, segundo C. Lévi-Strauss,
quase só tinham a tendência de tentar provar contactos culturais:
sempre que se observassem semelhanças, pressupunha-se uma origem
comum. Contra este difusionismo extremo das anteriores pesquisas
sobre arte levantou-se uma resistência. Os historiadores diziam, por
exemplo, que entre o Alasca e a Nova Zelândia um contacto na era
pré-colombiana estava fora de hipótese. Esta crítica é correta, assim
julga Lévi-Strauss em 1944. Todavia, prossegue aquele etnólogo e
sociólogo francês, com isso as semelhanças entre a arte maori e a dos
126
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
índios da costa noroeste da América ainda não deviam ser postas de
lado e consideradas incompreensíveis ou completamente casuais. Tal
negação seria estéril (Lévi-Strauss, 1969, p. 269 e seg.). Mas, como é
que as concordâncias podem então ser explicadas?

Ornamento dos índios Tsimshian


Figura 4.13

Segundo a influente opinião de Lévi-Strauss – durante algum


tempo Secretário Geral do Conselho Internacional das Ciências Sociais
– , devemos recorrer à ajuda da psicologia ou da análise estrutural das
formas para encontrar uma resposta: que conexões internas de
natureza psicológica ou lógica possibilitam uma explicação do
fenómeno da semelhança artística? O elemento comum à arte arcaico-
chinesa e à arte dos índios Tsimshian ou Haida do noroeste da
América, dos Maori e dos índios Caduveo do Brasil consiste no “juntar
de duas metades iguais” (Lévi-Strauss, 1969, p. 291) (vide o exemplo
na Figura 4.13); por outras palavras, as representações mostram uma
simetria bilateral. Porquê? No estudo de Lévi-Strauss O
desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América falta
uma resposta bem cristalizada a esta pergunta. Quando muito, talvez
uma conexão externa: “A arte está intimamente ligada à organização
social... , aquela arte servia para traduzir e para afirmar os graus da
hierarquia” (Lévi-Strauss, 1969, p. 281). Uma conexão possível, mas
ainda nenhuma explicação convincente. Existem contraexemplos: Há
tatuagens dos Yao e dos Makonde do norte de Moçambique que são
127
Paulus Gerdes
bilateralmente simétricos (vide os exemplos na Figura 4.14), mas que
todavia não exprimem qualquer distinção pessoal ou social.

Tatuagens makonde
Figura 4.14

Mais tarde Lévi-Strauss tentou completar a sua análise com base


nas pinturas corporais dos índios Caduveo no capítulo Uma sociedade
indígena e o seu estilo do seu livro Tristes trópicos (1979, p. 171 e
seg.). A arte dos Caduveo é marcada por um dualismo:

Homens ←→ Mulheres
escultores ←→ pintoras
estilo naturalista ←→ estilo não representativo

As mulheres combinam dois estilos “igualmente inspirados pelo


espírito decorativo e pela abstração”; um é “angular” e “geométrico”
(!), o outro é “curvilíneo” e “livre” (!). Uma vez terminada a pintura,
esta traduz claramente, segundo Lévi-Strauss, a preocupação da artista
pelo equilíbrio. A oposição dos dois estilos, esta assimetria, é
parcialmente suprimida e superada pelo equilíbrio ou pela simetria
(vide o exemplo na Figura 4.15).
128
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 4.15

A estrutura social dos Guanas (Paraguai) e dos Bororo (Mato


Grosso Central), é análoga à desta arte dos Caduveo. Também aqui
existe uma oposição bilateral entre a estrutura assimétrica de castas e a
divisão simétrica em duas metades exógamas; por outras palavras a
oposição entre os mecanismos sociais baseados uns, na hierarquia, e os
outros na reciprocidade. Porque é que Lévi-Strauss sublinha esta
analogia? Entre os Caduveo faltava o princípio de reciprocidade das
duas metades exógamas. Havia apenas castas endogâmicas. O aborto e
o infanticídio eram tão normais que a continuidade da tribo só poderia
ser garantida por meio da adopção, isto é, por meio do rapto de
crianças – um importante objectivo das suas expedições bélicas (Lévi-
Strauss, 1979, p. 184). Com isto, Lévi-Strauss pensa ter encontrado a
chave para a decifração da arte gráfica das mulheres Caduveo: a
reciprocidade social em falta é superada artisticamente por meio da
simetria. A misteriosa sedução e a complicação, à primeira vista
gratuita, das suas pinturas corporais pode ser explicada como um
“fantasma duma sociedade que procura, com uma paixão insaciada, o
meio de exprimir simbolicamente as instituições que poderia ter –
como os seus vizinhos –, se os seus interesses e as superstições não a
impedissem disso” (p. 191). Uma especulação muito bela; contudo ...
129
Paulus Gerdes
mesmo se Lévi-Strauss tivesse razão no caso específico da arte das
mulheres Caduveo, teria ele contribuído com isso para o
esclarecimento geral das paralelas na arte dos Caduveo, Tsimshian,
Haida, Maori e da China antiga, como foi prometido no
“Desdobramento”? Não, para isso aquelas sociedades encontram-se
em fases de desenvolvimento demasiado distintas. Ou, ... isso não tem
importância; isso não constitui nenhum problema histórico?! Ainda
segundo Lévi-Strauss, a história investiga as “expressões conscientes”
da vida social; em contrapartida, a etnologia, assim acha ele, devia
descobrir “as condições inconscientes da vida social”. Uma estrutura
comum do inconsciente constitui o fundo de todos os indivíduos,
instituições sociais e formas de consciência, inclusive da arte. O poder
criador do Homem não é absolutamente livre: Apenas “certas
combinações dentro dum repertório ideal” podem ser escolhidas – um
repertório, que se pode comparar com o Sistema Periódico dos
Elementos (químicos) (Lévi-Strauss, 1979, p. 171). De facto, Lévi-
Strauss deduz assim – em concordância com a tradição do positivismo
francês – o estilo artístico e todos os outros fenómenos sociais a partir
das leis imutáveis do espírito. Com isso, tanto as simetrias da pintura
corporal dos Caduveo como a sua hierarquia de castas são reduzidas à
expressão de estruturas de espírito eternas e inconscientes. A relação
entre a sociedade de castas e o estilo artístico não é causal; ela consiste
apenas numa “homologia interna” (Lévi-Strauss, 1973, p. 150). Este
reducionismo é característico de Lévi-Strauss que, por exemplo,
termina o seu estudo sobre o totemismo com a seguinte conclusão: “...
a realidade do totemismo é reduzida à de uma ilustração particular de
certos modos de pensamento” (1973, p. 177), em especial da “lógica
binária”. Alguns teóricos de cultura, como Kaplan e Manners, não
sabem bem como se podem criticar as concepções de Lévi-Strauss:
“Que tipo de provas se podia imaginar...para mostrar que os axiomas
básicos de cultura não são relações lógicas, construídas na base de
“oposições binárias”?” (Kaplan & Manners, 1972, p. 179).
Se Lévi-Strauss tivesse razão, como se explicaria então que se
tivessem passado, na história humana, mais de 900.000 anos até ao
surgimento dos primeiros vestígios de manifestação artística?
Nos capítulos anteriores já falei de como as ideias de simetria
bilateral nasceram da atividade produtiva. Vemos agora, como,
possivelmente, a origem da outra forma básica das pinturas corporais
das mulheres Caduveo pode ser compreendida como produto da
atividade laboral do Homem.
130
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 4.16

Figura 4.17

131
Paulus Gerdes

Figura 4.18

Em que consiste a forma básica das pinturas corporais dos


Caduveo, representadas nas Figuras 4.15 e 4.16? São comuns a
existência de dois eixos perpendiculares entre si e uma simetria de
rotação: quando se roda a figura sobre um ângulo de 180o em torno do
ponto de encontro de ambos os eixos, ela fica sobreposta a si mesma.
As pinturas corporais nas Figuras 4.16 e 4.17 deixam antever já a sua
origem, com as suas espirais e linhas dentadas: trabalho de
entrelaçamento (Vide também a decoração em couro na Figura 4.18).
A Figura 4.19 dá exemplos de padrões de entrelaçamento, que
mostram a mesma forma básica que estas representações dos Caduveo.
Já analisei no capítulo 3 como surgiram tais padrões (Figura 4.19),
provavelmente da tentativa de satisfazer necessidades da vida
produtiva e social. Por isso também não é de admirar que noutros
povos, onde aparecem estes padrões de entrelaçamento, se possa
encontrar a mesma forma básica que a das pinturas Caduveo. A Figura
4.20 mostra um exemplo deste tipo numa tatuagem dos Makonde do
Norte de Moçambique. Uma vez abstraída a forma básica do material
de entrelaçamento, abre-se então o caminho para posterior elaboração
artística. Ao pintarem o seu corpo, os índios Caduveo encontraram a
liberdade material para desenvolver a forma básica: mais eixos e mais
curvinhas (vide Figura 4.15), repetição da mesma forma básica e um
certo aperfeiçoamento, etc. A escolha das interpretações sociais destas
figuras, é na fase de desenvolvimento da sociedade, aqui considerada
muito mais livre do que a escolha original da forma básica. Para poder
132
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
compreendê-las é necessário mais conhecimento sobre a história dos
Caduveo.

Moçambique Quénia
a b

Guiana Índios Maquiritare


c (Venezuela)
d
Figura 4.19

133
Paulus Gerdes

Tatuagem makonde
Figura 4.20

134
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 5

O possível papel da atividade social na


formação da geometria antiga

5.1 A geometria teve uma origem ritual?

Segundo A. Seidenberg houve, até meados dos anos 1970, uma


tendência predominante na historiografia da matemática, segundo a
qual a Grécia clássica era a fonte da tradição geométrica ou
construtiva, e a antiga Babilónia era a fonte da tradição algébrica ou
aritmética na matemática (Seidenberg, 1978, p. 316). Seidenberg
critica esta opinião: “... ambas as fontes que são consideradas as duas
principais da matemática ocidental, a saber a matemática pitagórica e a
matemática da Babilónia antiga, derivam de uma fonte ainda mais
antiga” (Seidenberg, 1978, p. 329). Onde é que pode ser encontrada a
tal fonte mais antiga? A origem comum reside, ainda segundo
Seidenberg, na mais antiga matemática indiana, quer dizer dos Veda,
ou numa matemática ainda mais antiga que lhe era semelhante.
Nos Sulba-sûtra, quer dizer “regras de cordão”, são dadas
instruções de carácter geométrico para a construção de altares onde se
utilizavam cordões e varas de bambu. A forma do altar dependia do
ritual. Havia altares rectangulares, redondos e também, por exemplo,
compostos em forma de falcão. O altar principal em forma de falcão
!
tinha uma área de 7 !    purusha quadradas. Na construção de altares
! !
maiores, para o mesmo fim ritual, com uma área de 8 !, 9 ! , etc.
purusha quadradas, essa mesma forma era também exigida. Para a
solução deste problema de construção aplicaram-se, efetiva e
explicitamente, os conhecimentos de como pode ser encontrado um
quadrado cuja área seja igual à soma das áreas de dois quadrados. Esta
construção é executada com a ajuda do chamado “Teorema de
Pitágoras”. Daqui Seidenberg conclui: “Nos sucessivos aumentos do
altar de forma de falcão não só se aplica o Teorema de Pitágoras, mas
neles encontramos muito provavelmente o motivo para a sua
invenção” (Seidenberg, 1962a, p. 492). Contudo, ainda na mesma
página do seu artigo A origem ritual da geometria, Seidenberg

135
Paulus Gerdes
contradiz-se a si próprio quando reconhece que: “...a observação que
num triângulo rectângulo o quadrado sobre a hipotenusa é a soma dos
quadrados sobre os catetos teria uma aplicação teológica imediata”. E
agora, motivo ou aplicação? Como é que os ritualistas védicos,
pergunta Seidenberg, puderam “adoptar” o “Teorema de Pitágoras” da
Grécia ou da Babilónia e fazer dele uma parte vital dos seus rituais
festivos? O processo inverso seria mais fácil de compreender:
secularização de atos rituais (Seidenberg, 1962a, p. 501). Assim,
Seidenberg decide-se então por “motivo”.
Voltarei à descoberta do “Teorema de Pitágoras” no § 5.4, onde
tentarei mostrar que não é necessário procurar a causa da sua
descoberta em especulações teológicas. Agora coloco uma outra
pergunta: mesmo se Seidenberg tivesse tido razão, e o “Teorema de
Pitágoras” e os problemas clássicos da “quadratura do círculo” e da
“duplicação do cubo” tivessem nascido como uma espécie de
geometria teológica (Seidenberg, 1962a, p. 520), de uma praxis ritual,
devia com isso ser simultaneamente provado que o nascimento de toda
a geometria tenha sido ritual?
Talvez como resposta a esta, ou a uma pergunta semelhante dum
redator da revista internacional Arquivo para a História das Ciências
Exatas, Seidenberg termina o seu famoso artigo com um capítulo
etnográfico muito curto. Em Madagáscar uma ritualista de nome
“mpanandro” participa na determinação da configuração da base de
construções. A construção de um quadrado pelos Kwakiutl (vide § 3.9)
recorda-nos bastante os Sulba-sûtra. A forma circular das suas casas
era considerada como divina pelos índios Omaha. Os índios Chavante
dispõem as suas aldeias numa circunferência perfeita, e “como esta
forma não pode ter um objectivo utilitário, ...” – muito duvidável! (pg)
– “..indica-se a sua origem no ritual” (Seidenberg, 1962a, p. 522). E
então, sem mais material de prova, Seidenberg conclui que a
circunferência, o círculo e o quadrado encontram a sua origem em atos
rituais e que a forma circular ou quadrada doutros objetos nascem da
praxis ritual (1962a, p. 523). Todavia aqui Seidenberg torna-se vítima
dos seus próprios preconceitos, como mostram as minhas
investigações: muitas das formas mais antigas são materialmente
necessárias. Ou a matéria devia, na opinião de Seidenberg, ser também
de origem ritual?
As tentativas de Seidenberg para demonstrar a origem ritual da
geometria não são isoladas. De modo análogo ele esforça-se por
136
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
provar a origem ritual da contagem (Seidenberg, 1962b). Ele admite
sem rodeios que os seus estudos tencionam contribuir para a teoria
geral segundo a qual toda a civilização é de origem ritual (Seidenberg,
1962a, p. 489). Esta teoria está estreitamente relacionada com a
doutrina da difusão, de acordo com a qual a ampla divulgação de
vários bens culturais pode ser explicada na base duma difusão, em
geral a partir de um único centro de nascimento. Assim, Seidenberg
conclui em relação à contagem: “A contagem foi inventada num
centro civilizado, na elaboração do ritual da Criação, como um meio
para chamar os participantes no ritual para aparecer na cena ritual,
inventada apenas uma única vez, e a partir daí difundida” (Seidenberg,
1962b, p. 37). No prefácio da edição alemã da História concisa das
matemáticas de D. Struik, observa-se que “O leitor pode ele próprio
julgar quão improvável é que a contagem tenha uma origem comum a
todos os povos, se ele tiver presente o isolamento dos territórios de
fixação pré-históricos e a evidente desigualdade do desenvolvimento
do cálculo entre os vários povos; se ele imaginar que num mesmo
povo foram usadas várias palavras para a designação do mesmo
número de objetos de diferentes espécies etc.” (Struik, 1976, p. 28).
Por isso não nos espanta que, dentro da etnologia, as preconcepções da
teoria de difusão cultural tenha sido veementemente criticada. Por
exemplo, M. Harris escreve no seu monumental trabalho O surgimento
da teoria antropológica sobre o difusionismo o seguinte: “Se
admitimos – e a arqueologia do Mundo Novo obriga-nos agora a isto –
que invenção independente ocorreu em escala massiva, então difusão
é, por definição, não só supérflua, mas mesmo a encarnação da
anticiência” (Harris, 1969, p. 378). Através da aceitação dum primado
da difusão sobre a invenção independente os representantes do
difusionismo subestimam as capacidades criativas do Homem. Tal
como a teoria da difusão em geral, também a concepção de Seidenberg
sobre-estima a importância da difusão para o desenvolvimento da
geometria e exagera as possíveis conexões entre ideias religiosas e
geometria. Com isso não devíamos, porém, cair no outro extremo. De
facto, divulgação / difusão desempenha um papel importante no
desenvolvimento da matemática. Interessa saber compreender
historicamente a dialéctica da divulgação e invenção independente. De
facto, pensamento mágico ou religioso pode – em determinados
períodos – refletir-se nas concepções de número e de espaço. Interessa
saber analisar as razões que levam a isto.

137
Paulus Gerdes
5.2 Sobre a possível formação de conceitos de pirâmide

A maior pirâmide de Gizé, de 147 m de altura e erigida no Egito


Antigo durante o reinado de Xeops (c. 2545 – 2520 a.C.) foi
considerada, na Antiguidade, uma das sete maravilhas do mundo. Os
faraós gozavam, naquela época, de adoração divina. A forma
maravilhosa dos seus túmulos monumentais devia por isso ter nascido
da sua fantasia divina e, assim, ficar também incompreensível ao
povo?

a. Mastaba b. Pirâmide-em-degraus c. Pirâmide


Figura 5.1

Havia pirâmides-em-degraus (vide Figura 5.1b) nas ilhas Tonga


e Taiti na Polinésia, no litoral nortenho peruano e também nas culturas
mesoamericanas, onde constituíam as bases dos templos. Tal como no
Egito Antigo trata-se já de sociedades de classe. Os “marae” taitianos
representaram a hierarquia da sociedade (Bellwood, 1978, p. 82).
Embora o carácter de classe de tal sociedade permita entender as
diferenças das dimensões das suas pirâmides, a forma das mesmas não
fica, com isso, imediatamente clara. A forma piramidal dos templos da
América central tentaria talvez imitar os vulcões poderosos? Mas
donde provém então a sua regularidade, por exemplo, a sua base
quadrada? Teria sido uma tentativa arquitectónica para ultrapassar o
caos da natureza, para a qual Wertheim aponta, referindo-se ao centro
cerimonial da Monte Albán na vale de Oaxaca: “... já a sua concepção
constitui uma partida da natureza. Os homens que o construíram não
só não respeitavam a configuração do terreno; rejeitavam-na,
considerando-a como parte do caos ao qual o Homem deve impor a
ordem” (citado em Wolf, 1974, p. 97)? Porém, como já mostrei através
de vários exemplos, o pensamento em termos de ordem não cai do céu:
reflete a experiência social de produção. Se esta experiência se tiver
fixado de tal modo – e isto, com certeza, foi o caso dessas “sociedades

138
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
de pirâmide” – que a regularidade tenha obtido um valor estético,
então podiam ser criadas formas, novas e, em certo sentido, ordenadas,
sem que tenha existido para tal uma obrigação material, imediata e
inevitável: as pirâmides no Egito Antigo “devem, no que diz respeito à
sua forma e ideia básica, ser deduzidas do túmulo simples de areia
acumulada, cuja forma monumentalizada, a mastaba (vide Figura
5.1a), constituiu o ponto de partida construtivo para a configuração da
pirâmide-em-degraus da 3ª dinastia (complexo de Djoser, Saqqara, c.
2600 a.C.). Sob os soberanos da 4ª dinastia (c. 2570 – 2450 a.C.), as
pirâmides obtiveram a sua forma clássica de faces lisas e de base
quadrada. Isto foi o resultado de um processo secular da história de
construção ...” (Herrmann, 1984, Vol. 2, p. 182). Quando afirmei:
“sem que exista para tal uma obrigação material, imediata e
inevitável”, então isto quer dizer, neste caso concreto, que, por um
lado, outras formas teriam sido possíveis, como por exemplo a do
cone, e, por outro lado, que a escolha de forma era limitada: é mais
fácil construir uma pirâmide-em-degraus do que uma torre da mesma
altura. Ainda se levanta a questão: se se trata aqui duma figura
totalmente nova, descoberta pela primeira vez, ou se uma forma já
conhecida teria talvez servido de modelo. Consideremos agora duas
situações, que já se verificaram provavelmente em fases de
desenvolvimento cultural que antecederam a construção de pirâmides
no Egito Antigo e que levaram à formação de conceitos de pirâmide.

Figura 5.2

Pirâmides de tangerinas

Ao trocar ou vender frutos, pode-se utilizar o peso, o volume ou


o número como medida. Nos bazares moçambicanos vendem-se, por
139
Paulus Gerdes
exemplo, tangerinas normalmente em conjuntos de quatro ou cinco.
Para poder colocar organizadamente os frutos, sem ocupar demasiado
espaço, eles são amontoados como mostra a Figura 5.2. Encontrei o
mesmo método também noutros bazares em África, na Ásia e na
América do Sul, por vezes com quatro frutos na base (vide Figura 5.3).

Figura 5.3

Figura 5.4

Se alguém quiser, pode continuar a amontoar os frutos em


grupos de 10 ou 20 (vide Figura 5.4). 1 Esta experiência pode ter
contribuído para a formação de um conceito de tetraedro: reflete o

1
Neste sentido 4, 10 e 20 são “números tetraédricos”. Residirá aqui
talvez mais uma razão para o facto de tantos sistemas de
numeração possuírem a base 10 ou 20?
140
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
modo optimizado de acumulação (cada tangerina duma camada nova
apoia-se em apenas três da anterior), em que se evita o rolar dos frutos
para baixo, ao mesmo tempo que se ocupa o mínimo de espaço
possível do plano de base. Se se tiver lugar suficiente no plano de
base, então torna-se possível amontoar em pirâmides-em-degraus de
base quadrada como, por exemplo, acontecia nos portos da África
ocidental ao acumular sacos de cereal. Pode-se perguntar se Demócrito
(c. 460-370 a.C.) – ou outros atomistas antes dele – não tinha tal tipo
de pirâmide de tangerinas como modelo, ao demonstrar que duas
pirâmides da mesma base e altura têm o mesmo volume: ao amontoar
de novo e cuidadosamente as 10 tangerinas dum “tetraedro”, obtém-se
uma pirâmide de altura aproximadamente igual, em que uma aresta
coincide com a altura; as duas pirâmides têm volumes iguais, porque
em camadas correspondentes se apresentam quantidades iguais de
“átomos”, quer dizer tangerinas, 6, 3 e 1, etc. (vide Figura 5.5).

Figura 5.5

Pirâmides entrelaçadas
Suponhamos que se domina a técnica amplamente divulgada de
entrelaçamento perpendicular de esteiras, utilizando juncos de igual
largura. Como é que se pode produzir, partindo duma esteira assim
fabricada e sem outros meios de ajuda, uma tigela, uma travessa ou um
funil? É fácil dobrar a esteira numa única direção (vide Figura 5.6). Ao
soltar, no entanto, a esteira curvada, ela volta à forma plana. Se se
tentar curvar a esteira em duas direções ao mesmo tempo, sente-se
fortemente como o material resiste; parece haver demasiado material
para se poder transformar a esteira plana numa tigela curva. A maneira
mais fácil para diminuir a sua quantidade consiste em tirar, de um
lado, alguns juncos paralelos (vide Figura 5.7).
141
Paulus Gerdes

Figura 5.6

Figura 5.7

Figura 5.8

142
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

E agora alguma coisa deve ser feita às partes dos juncos, que
ficam de fora. Porém, o quê? Um grupo das tiras salientes pode ser
entrelaçado com o outro, como na Figura 5.8. Obrigatoriamente – quer
isto dizer para evitar espaços abertos – os dois grupos são entrelaçados
perpendicularmente entre si (Figura 5.9).

Figura 5.9

De facto obtém-se, deste modo, uma “tigela” ou “funil”. Todavia


o processo de produção ainda pode ser melhorado. Descobre-se que,
para evitar que as tiras dum lado saiam mais para fora do que as do
outro lado, ambos os grupos de tiras devem ter o mesmo tamanho
(Figura 5.10).

Figura 5.10
143
Paulus Gerdes

Figura 5.11
No intuito de evitar que no fim ainda seja necessário cortar
partes salientes dos juncos, descobre-se que o número de juncos
tirados deve corresponder à metade da largura da esteira (vide Figura
5.11), quer dizer, ambos os grupos de partes salientes das tiras ficam
agora quadrados. Até este momento todo o processo de descoberta
decorreu automaticamente, isto é, em dependência do objectivo
(entrelaçar perpendicularmente uma “tigela” ou um “funil” sem outros
meios auxiliares), do material e da sua interação recíproca. Agora
verifica-se que a escolha do comprimento da esteira é livre. No
entanto, se não se meditar conscientemente sobre esta liberdade, ela é
apenas relativa: é culturalmente enquadrada. Talvez o artesão prefira
imediatamente a forma quadrada para a esteira rectangular inicial,
porque esta forma já se mostrou, noutros contextos, vantajoso, racional
ou bonita. Ou, ao dar a preferência a uma “tigela” ou a um “funil” de
simetria rotacional (vide Figura 5.12), ele descobre que o rectângulo
inicial deve ser um quadrado.

a. Visto de cima b. Visto de lado


Figura 5.12

144
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Independentemente de como se chegou a esta última conclusão,
podemos observar que os artesãos das províncias de Niassa e Nampula
(Norte de Moçambique) partem dum quadrado (ou melhor: tomam
uma esteira quadrada como ponto de partida). O resultado foi
considerado bonito e inspirou talvez oleiros da mesma zona para a
produção de novos moldes para recipientes (vide Figura 5.13).
Todavia isto não foi uma simples transplantação de forma, um copiar
puro. O modelo, as possibilidades objectivas do novo material – barro
– e as experiências dos oleiros refletem-se, unidos no processo criativo
de trabalho, nesta nova forma de recipientes.

Figura 5.13

Não foi apenas uma fonte de inspiração para oleiros. O cesteiro


observa que os juncos laterais se soltam ao utilizar muito a “tigela” ou
“funil”. Para evitar isto, ele é obrigado a fixar um rebordo à “tigela”.
Se empregar para tal raminhos fortes e se os juncos forem
relativamente bem flexíveis – tais como os usados pelos cesteiros
daquela zona de Niassa e Nampula –, obtém-se – inesperadamente! –
um objecto muito particular (vide Figura 5.14): tem três paredes
planas; cada face obtém a forma dum triângulo, ao mesmo tempo,
isósceles e retangular, e o rebordo a forma dum triângulo equilátero
(vide Figura 5.15). O quadrado entrelaçado é transformado numa

145
Paulus Gerdes
pirâmide; o rebordo quadrado inicial “gerou” o rebordo, triangular e
equilátero, dessa pirâmide. 1

Visto de cima

Visto de lado
Figura 5.14

a. Forma duma face b. Forma do rebordo


Figura 5.15

Nasceu assim, neste processo de trabalho, um conceito de


pirâmide. Com isso estabeleceu-se um fundamento para continuar a
sua formação. Por exemplo, se se juntarem quatro dessas “pirâmides-
de-Niassa” – chamadas “iheleo” (Singular: “eheleo”) na língua
Makhuwa –do mesmo tamanho, como na Figura 5.16a, obtém-se uma

1
Se se fixa um rebordo circular ao cesto, obtém-se um objecto
cónico, que pode servir de funil ou chapéu como nas ilhas de
Sumatra, Java e Bornéu (Indonésia) e na China.
146
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
pirâmide de base quadrada. E ao juntar duas destas pirâmides novas ou
oito “pirâmides-de-Niassa” (Figura 5.16b), obtém-se um octaedro
regular!

b
Figura 5.16

No Norte de Moçambique, no Sul da Tanzânia e no Congo /


Zaire, utiliza-se, na produção de sal, uma “pirâmide-de-Niassa” como
funil. Numa “pirâmide-de-Niassa” pendurada coloca-se terra salina
sobre a qual se deita um pouco de água. Debaixo do cesto apanha-se a
água salgada num recipiente (vide Figura 5.17).
147
Paulus Gerdes

Funil “eheleo”
Figura 5.17

5.3 Uma possível elaboração posterior: sobre o “brilhante” da


matemática no Egito Antigo

“O “brilhante” da matemática no Egito Antigo é composto pela


indicação exata do volume duma pirâmide truncada (de base
quadrada), que leva à aplicação da fórmula
!
V= !
!! + !" +   ! ! ”.
(Wussing, 1979, p. 37). “Um resultado extraordinário”, acha Van der
Waerden (1954, p. 34), ou “o topo absoluto da realização matemática
egípcia”, segundo Gillings (1972, p. 187). Por azar, o texto original do
“Papiro Moscovo”, em que se encontra o exercício sobre a pirâmide
truncada, não permite decidir como foi achado o resultado.
Provavelmente, a fórmula não tinha sido descoberta por via puramente
empírica: “deve ter sido obtida na base dum argumento teórico;
como?”(Van der Waerden, 1954, p. 34). Para responder a esta

148
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
pergunta “como?” formularei uma nova hipótese. Coolidge (1963) e
Gillings (1972) dão um resumo de hipóteses anteriores.
Técnicas de entrelaçamento tinham alcançado, no Egito Antigo,
um alto nível de desenvolvimento (cf. Schmidl, 1928). Suponhamos
agora, que o tipo de “pirâmide-de-Niassa”, acima analisado, já tenha
sido conhecido naquela altura ou ainda mais cedo.
Se se despejar algumas vezes uma “pirâmide-de-Niassa”,
enchida de cereal, por exemplo, num cesto cúbico de aresta igual,
descobre-se que o cesto fica exatamente cheio depois da sexta vez. Ou,
ao contrário, com um cesto cúbico cheio podem-se encher exatamente
seis “pirâmides-de-Niassa” cujas arestas tenham o mesmo
comprimento que as do cesto. Uma vez conhecida a fórmula Vc = s3
para o volume de um cubo de aresta s, segue-se imediatamente para o
volume duma “pirâmide-de-Niassa” (Vpn):

Vpn = (!) s3,


!
(1)
onde s representa o comprimento da sua aresta (vide Figura 5.18).

Figura 5.18

Consideremos agora uma pirâmide de base quadrada que é


constituída por quatro “pirâmides-de-Niassa” iguais (como na Figura
5.16); então achamos para o seu volume (Vp):

149
Paulus Gerdes

Vp = 4. (!) s3,
!
(2)
onde s significa o comprimento da aresta das “pirâmides-de-Niassa”.
Se a representar o comprimento de um lado da base da nova
pirâmide, então é, obviamente, válida a relação:
(3) a2 = 2 s2,
através dum movimento simples da sua base (vide Figura 5.19).

Figura 5.19

Com isso, a fórmula anterior pode ser transformada em:


Vp = 4. (!) s3 = (!) s.a2,
! !
(4)
ou, se agora se extrapolar para quaisquer pirâmides de base quadrada:
Vp = (!) h.a2,
!
(5)
onde h representa a altura da pirâmide. Por outras palavras, acha-se o
volume de tal pirâmide como um terço do produto da altura e da área
da base.
Avancemos agora para o “brilhante”: uma pirâmide truncada de
base quadrada pode ser considerada a “diferença” de duas pirâmides
(vide Figura 5.20). O seu volume (Vpt) é, por isso e conforme a última
fórmula (5) dado por:
Vpt = Vp – Vp = (!) m.a2 – (!) n.b2 ,
! !
(6)
1 2
onde m e n representam as respectivas alturas e a e b os comprimentos
dos lados das bases das duas pirâmides. Porém, como se pode aplicar
150
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
essa fórmula, se não se conhecer m e n, mas apenas a altura da
pirâmide truncada ou seja m – n? É extremamente provável que, para
tal, se precisam de mais conhecimentos, por exemplo, da relação de
semelhança
h : n = (a – b) : b.

Figura 5.20

Assim partimos da fórmula mais geral (5) e ficámos sem “saída”.


Consideremos por isso, primeiramente, casos particulares, por
exemplo o da pirâmide truncada que pode ser concebida como a
“diferença” de duas “pirâmides-de-Niassa” (vide Figura 5.21). Agora,
atendendo à fórmula (1), obtém-se:
Vpt = Vpn – Vpn = (!) s3 – (!) t3 = (!) (! ! − ! ! ),
! ! !
(7)
1 1 2
onde s e t representam os respectivos comprimentos das arestas das
duas “pirâmides-de-Niassa”.

151
Paulus Gerdes

Figura 5.21

Figura 5.22

Ao juntar agora quatro dessas pirâmides truncadas, obtém-se uma


pirâmide truncada de base quadrada, cujo volume é o quádruplo do da
anterior (vide Figura 5.22):
!
(8) Vpt = 4.Vpt = 4. (!) (! ! − ! ! ).
1
Como é que se pode transformar esta fórmula numa em termos
dos comprimentos a e b dos lados dos respectivos quadrados e da
altura h?
152
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 5.23

Obviamente tem-se h = s – t. O que se segue agora? s3– t3


corresponde à diferença dos volumes de dois cubos. Pode-se
representar esta diferença também de uma outra maneira? Uma
decomposição simples do maior dos dois cubos, como na Figura 5.23,
mostra:
s3 = t3 + (s–t)s2 + (s–t)st + (s–t)t2,
ou seja
(9) s3– t3 = (s–t)(s2 + st + t2) = h.(s2 + st + t2) .
Por isso:
= (!) (! ! − ! ! )= (!) h. (s2+ st + t2) =
! !
(10) Vpt

= (!) h. (2s2 + 2st + 2t2).


!

Já se sabia a2 = 2s2 e, do mesmo modo, obtém-se: b2 = 2t2.


153
Paulus Gerdes

Figura 5.24

Com base na Figura 5.24, deduz-se, que


ab + s2 + t2 = 2st + s2 + t2,
ou seja ab = 2st.
Por esta via, chega-se a
!
(11) Vpt = !
!! + !" +   ! !
para o volume de tal pirâmide truncada. Uma vez formulada desta
forma, ela pode ser generalizada para o volume de qualquer pirâmide
truncada de base quadrada.
Comparemos agora a minha hipótese com as conhecidas de
Gillings, Neugebauer e Van der Waerden.
Gillings considera a pirâmide truncada de base quadrada como a
diferença de duas pirâmides (vide Figura 5.20). Para o seu volume
temos, como já vimos:
m.a2 –  n.b2 ,
! !
(6) Vpt = Vp – Vp =
1 2 ! !

onde m e n representam as respectivas alturas e a e b os comprimentos


dos lados das bases das duas pirâmides. Como já mostrei, em geral é
difícil aplicar essa fórmula conhecendo apenas a, b e a altura h da
pirâmide truncada. Por isso, assim supõe Gillings, um escrivão no
Egito Antigo podia primeiro ter analisado um caso especial. Se a = 2b,
então tem-se m = 2n ou seja h = n. Agora é fácil transformar a
fórmula (6) como se segue:
 m.a2 –  n.b2 =
! !
Vpt =
! !

154
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

[ (h+n).a2 – n.b2 ] =
!
= !

[ ha2 + na2 – n.b2 ] =


!
= !

.h.[ a2 + (a2 – b2) ] .


!
(12) = !

Figura 5.25

Da Figura 5.25 deduz-se


(13) a2 – b2 = ab + b2,
se a = 2b. E deste modo pode-se realizar “magicamente” a transição
da fórmula (12) para o “brilhante” da matemática no Egito Antigo:
!
(11) Vpt = !
!! + !" +   ! ! .

Depois disso, o escrivão podia ter verificado a fórmula noutros casos,


como a = 3b, a = 4b, a = 5b, etc. e então ter tirado a conclusão de que
ela vale para todas as pirâmides truncadas de base quadrada (Gillings,
1972, p. 191-193).
Muito bonito! Porém a reconstrução, por Gillings, da sequência
de pensamentos dum escrivão egípcio fica incompleta. A transição de
(12) para (11) não é imediatamente necessária: por enquanto, já basta a
fórmula (12):
.h.[ a2 + (a2 – b2) ] .
!
(12) Vpt = !

155
Paulus Gerdes
ou seja
 .h.[ 2a2 – b2 ],
!
Vpt = !
porque estava formulada só em termos de a, b e h. Devia ser
transformada apenas no momento em que se verificou, que ela não é
verdadeira noutros casos. E qual seria a transformação necessária, para
obter uma fórmula válida em geral, também não é imediatamente clara
à partida. As alternativas
(14) a2 + (a2 – b2) = a2 + 3b2,
(15) a2 + (a2 – b2) = 3ab + 3b2,
podiam ter sido escolhidas em vez de
(13) a2 + (a2 – b2) = a2 + ab + b2.
Por outras palavras, a hipótese de Gillings pressupõe, por parte
dos escrivães egípcios, uma experiência de verificação e, se por
conseguinte fosse necessária, de adaptação de fórmulas. Nisto reside
uma distinção importante em relação à minha hipótese. No meu caso,
verifica-se imediatamente que a fórmula
!
(8) Vpt = (!) (! ! − ! ! ).
não satisfaz por ainda não ser expressa em termos dos comprimentos a
e b dos lados das bases quadradas e da altura h e por assim não poder
ser generalizada. Por isso, a sua transformação é imediatamente
necessária; quer isto dizer que não se supõem tentativas de verificação
para se poder tirar a referida conclusão.
O. Neugebauer considera, no seu livro Matemática pré-grega, o
caso especial em que uma aresta da pirâmide truncada coincide com a
altura da mesma, e ele decompõe a pirâmide truncada em quatro
partes, um paralelepípedo rectangular, dois prismas e uma pirâmide,
como mostra a Figura 5.26. O volume da pirâmide truncada é igual à
soma dos volumes das suas partes:
Vpt = hb2 + 2. .(a – b)2.
! !
(16) !
.b(a – b) + !
Neugebauer conjectura, que a fórmula (11) do Egito Antigo
podia ser deduzida a partir daqui através duma transformação
algébrica. Porém “... pode-se justificar que os Egípcios eram capazes
de fazer uma transformação algébrica desta natureza? Eles eram
156
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
capazes de calcular com números concretos, mas não com quantidades
gerais” pergunta Van der Waerden (1954, p. 136). Ele propõe a
possibilidade de que essa transformação tivesse sido realizada por via
geométrica.

Decomposição de Neugebauer
Figura 5.26
Substituem-se os dois prismas na Figura 5.26 por paralelepípedos
rectangulares de meia altura e transforma-se também a pirâmide num
bloco desse género, desta vez, no entanto, de um terço da altura
original (vide Figura 5.27).

Primeira fase da transformação de Van der Waerden


Figura 5.27
157
Paulus Gerdes

Segunda fase da transformação de Van der Waerden


Figura 5.28

Terceira fase da transformação de Van der Waerden


Figura 5.29

Em seguida, tira-se o terço superior de um dos dois primeiros blocos e


coloca-se em cima do segundo (vide Figura 5.28). Desta maneira
aparece um corpo, que pode ser decomposto em três camadas
!
horizontais, cada uma de altura ! (vide Figura 5.29). A área da inferior
é igual a a2, a da do meio é igual a ab e a da camada superior é igual
a b2. Por isso:
158
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

 a2 +  b2 =
! ! ! !
(11) Vpt = ! !
 ab + ! !
.(!! + !" + ! ! )
“Esta dedução da fórmula não transcende o nível da matemática
egípcia” observa Van der Waerden no seu livro O despertar da ciência
(1954, p. 35). No entanto, uma pergunta muito importante – e nisso
distingue-se a sua hipótese da minha – não é respondida por Van der
Waerden: porque é que o escrivão teria escolhido exatamente essa
transformação e não uma outra? A escolha dessas transformações
geométricas foi o resultado da experimentação? Ou então, o escrivão
!
já conhecia a fórmula, em particular o factor comum ! e procurava
apenas uma justificação post factum? No seu livro novo Geometria e
Álgebra em Civilizações Antigas Van der Waerden formula a
conjectura de que a fórmula correta para o volume duma pirâmide
truncada, fórmula essa que se encontra tanto na Antiga China como no
Egito Antigo tenha uma “fonte comum pré-babilónica” (Van der
Waerden, 1983, p. 44). A matemática da Antiga China foi resumida na
obra Matemática em nove livros. Esta compilação ficou conservada
numa elaboração por Liu Hui, do ano 263. Liu Hui dá uma dedução
para o volume duma “fang-t’ing”, quer dizer, duma pirâmide truncada
de base quadrada, em que a decompõe num paralelepípedo, quatro
prismas e quatro “yang-ma”’s (pirâmides de base quadrada, onde uma
aresta coincide com a altura (vide Figura 5.30) (Wagner, 1979, p. 169).

Decomposição dum “fang-t’ing” por Liu Hui


Figura 5.30
159
Paulus Gerdes
Para explicar que o volume duma “yang-ma” é igual a dois
terços do volume dum prisma de base e altura iguais, Liu Hui aplica
um processo de limite (Wagner, 1979, p. 173). “Estas explicações
apresentam muitos aspectos que caraterizam atualmente uma
demonstração matemática”, julga Wagner (1979, p. 164). Um
pensamento em termos de limite não pode estar no início; a dedução
de Liu Hui é, de facto, uma justificação de conhecimentos já
adquiridos de outro modo. Pelo menos algumas partes da “Matemática
em nove livros” datam, por causa da transmissão oral, duma época
muito anterior, talvez até dum período pré-babilónico.
Talvez a minha hipótese preencha aqui uma lacuna. A dedução,
por mim conjecturada, da fórmula para o volume duma pirâmide
truncada de base quadrada, parte de produtos materiais de trabalho
(“pirâmide-de-Niassa” e cestos cúbicos) e das suas relações
!
empiricamente descobertas (Vpn = !  Vc ou Vc = 6 Vpn ) e cada
passo seguinte do pensamento é construtivo no sentido de que resulta
– sem desvios – da procura da resposta a uma pergunta “s3 – t3 = ...?”
ou “2st = ... ?”.

5.4 Como o “Teorema de Pitágoras” podia ter sido descoberto


milhares de anos antes de Pitágoras?

Descoberto apenas uma única vez?

Tanto na Antiguidade grego-helenística como também na antiga


Mesopotâmia, Índia e China não só “triplos pitagóricos” tinham sido
calculados, como se conhecia também o “Teorema de Pitágoras”. As
pesquisas de A. Thom e A. S. Thom sobre a geometria dos túmulos
megalíticos na ilha britânica tentaram mostrar como os seus
construtores utilizaram “triplos pitagóricos” (Cf. Van der Waerden,
1983, p. 16 e seg.). A relação entre estes triplos numéricos (a, b, c)
com a2+b2=c2 e o teorema sobre triângulos rectângulos não é, em si
só, imediatamente evidente. Ainda por cima, não é nada fácil descobrir
o “Teorema de Pitágoras”, conforme supõe Van der Waerden (1983, p.
16).

160
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Van der Waerden conjectura que “uma origem comum de toda a
teoria seja muito provável” (1983, p. 10, 45). O “Teorema de
Pitágoras” já foi, segundo Van der Waerden, conhecido cerca de 2000
a.C., quando os antepassados dos Gregos e das tribos áricas que mais
tarde invadiram a Índia, ainda viviam uns ao lado dos outros na região
do Danúbio (1983, p. 14).
Será realmente tão difícil de conjecturar o “Teorema de
Pitágoras” de tal modo que ele só tenha sido descoberto uma única vez
na história humana? Talvez Van der Waerden, Seidenberg e outros
tenham razão. No entanto ..., pelo menos o caso mais simples do
teorema, em que ambos os catetos do triângulo rectangular têm o
mesmo comprimento, sempre foi e continua a ser descoberto. Aqui não
tem importância, se e como se formula este caso particular do teorema
(vide os exemplos nas Figuras 5.31 e 5.32).
Certamente surge agora a pergunta, como, a partir desse caso
particular se pôde chegar ao teorema geral ...

Padrão de cerâmica Halaf


(Mesopotâmia, 6º milénio a.C.)
a

Malekula (Oceânia) Índios Apenayé (Brasil)


b c
Figura 5.31

161
Paulus Gerdes

a. Dogon (Mali)

b. Madagáscar
Figura 5.32

Gémeos

Mesmo que mais tarde nos trabalhos de Euclides, Arquimedes e


Apolónio já não tenham aparecido “triplos pitagóricos”, mas apenas o
“Teorema de Pitágoras”, isto ainda não significa que a relação entre
esses triplos numéricos e o teorema do mesmo nome nunca –
independentemente da história humana – tenha sido imediatamente
clara, mas apenas que, num determinado momento histórico, essa
relação “desapareceu”. Isto não quer dizer que os matemáticos já não
tenham sido capazes de a compreender. Pelo contrário. Os “triplos
pitagóricos” tinham ficado supérfluos para os geómetras: o “Teorema
de Pitágoras” tinha sido liberto; tinha sido generalizado de tal forma
que qualquer referência a esses triplos de números inteiros o
restringiria de novo. O teorema e os triplos numéricos tinham nascido
como gémeos, porém, mais tarde, cada um tomou o seu próprio
caminho: geometria e teoria de números.

162
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Esta reflexão já nos faz progredir na procura duma pista do(s)
possível(eis) nascimento(s) dos gémeos: devemos procurar situações
onde se encontram ao mesmo tempo quadrados, somas de quadrados,
ângulos rectos e números inteiros. O mais provável é que quadrados
geométricos sejam mais antigos que os quadrados aritméticos. Em que
contexto aparecem quadrados geométricos cujas áreas são contáveis?
Ao entrelaçar e ao tecer! Ao bordar e ao fazer azulejos...

Figura 5.33

Pista certa ou trilho falso?

Ao entrelaçar da maneira simples e perpendicular tiras de planta,


da mesma largura, aparecem quadrados, que podem ser decompostos
em pequenos quadrados unitários e cujas áreas são, por isso,
relativamente fáceis de serem contadas (vide Figura 5.33).

Figura 5.34

Desta maneira obtemos, com efeito, quadrados, mas ainda não


imediatamente aqueles quadrados que são a soma de dois quadrados.
Só se se tiver por acaso sorte, descobre-se que 52 = 42+32 (vide Figura
5.34) e pode-se ser estimulado para continuar a procurar tais
particularidades. Por esta via, a descoberta do “Teorema de Pitágoras”
parece certamente bastante difícil.
163
Paulus Gerdes
Se se entrelaçar com tiras de duas cores, obtém-se o padrão dum
tabuleiro de xadrez, que, com certeza, permite considerar quadrados
como somas (vide Figura 5.35), mas ainda não como somas de
quadrados.
Entrámos no trilho falso, ou encontramo-nos na pista certa?

Figura 5.35

Segunda fase

Regressemos ao caso mais simples do “Teorema de Pitágoras” e


observemos que os lados do quadrado maior e dos dois quadrados
menores, em geral, não são paralelos (vide Figura 5.36).

Figura 5.36
164
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Que padrão de entrelaçamento podia ter sido modelo para esta
posição não-paralela dos três quadrados? Amiúde o padrão de
entrelaçamento, “dentado” e amplamente difundido, da Figura 5.37,
reflete-se em ornamentos lisos de recipientes de barro, de madeira ou
metálicos como na Figura 5.38. Do mesmo modo, os padrões de
entrelaçamento da Figura 5.39 correspondem ao caso mais simples do
“Teorema de Pitágoras”.

Padrão de entrecruzamento
Figura 5.37

Ornamentos lisos
Figura 5.38

Figura 5.39

165
Paulus Gerdes
Agora encontramo-nos provavelmente na pista certa: tais
quadrados entrelaçados e dentados – de colorações distintas – são
largamente conhecidos, como salientam os exemplos na Figura 5.40.

a. Mbangala (Angola)

b. Índios Kríkati (Brasil)


Figura 5.40

A Figura 5.41 mostra quadrados dentados com o padrão preto-


branco dum tabuleiro de xadrez. Este tipo de quadrados dentados
constitui um ornamento apreciado em muitas culturas, conhecido por
nomes como tartaruga (no seio dos Tchokwe de Angola), estrela
(Índios Salish, EUA) e costas de veado (Índios Pomo, EUA).

166
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 5.41

Não é apenas uma ornamentação que aparece em todos os continentes,


mas também uma decoração muito antiga: A Figura 5.42 ilustra uma
parte duma pintura mural no túmulo de Rekhmire (c. 1475-1420 a.C.),
em que se representa um cesto do Egito Antigo.

Figura 5.42

Ao considerarmos um destes quadrados dentados com o padrão


dum tabuleiro de xadrez, podemos verificar uma coisa surpreendente
(vide Figura 5.43): na direção indicada, há em cada uma das linhas
pretas exatamente três quadradinhos pretos e em cada uma das outras
duas linhas exatamente dois quadradinhos brancos. Por outras palavras,
o quadrado dentado é a soma de dois quadrados, o primeiro dos
quadradinhos pretos e o outro composto pelos quadradinhos brancos
(vide Figura 5.43).

Figura 5.43
167
Paulus Gerdes

Será mero acaso?


Este resultado estimula a continuar a pesquisa. Como o exemplo
da Figura 5.44 nos mostra, não foi um mero acaso.

Figura 5.44

Uma outra transformação geométrica, como a na Figura 5.45,


pode levar à mesma conclusão de que cada quadrado

Figura 5.45

168
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Terceira fase

Uma nova fase surge quando o nosso “Pitágoras” descobrir uma


particularidade do caso seguinte. Por um lado, ele (ou ela) observa
(vide Figura 5.46) que o quadrado dentado tem a mesma área que dois
quadrados de 3 e 4 unidades de lado respectivamente, em conjunto.

Figura 5.46

Por outro lado, ele (ou ela) chega por via puramente geométrica
(vide Figura 5.47a), ou por via aritmético-geométrica (vide Figura
5.47b ou 5.47c) à conclusão (vide Figura 5.48) de que dois quadrados
de 3 e 4 unidades de lado respectivamente, têm, em conjunto, a mesma
área que um quadrado de cinco unidades de lado, ou seja 32+42=52.

a
Figura 5.47

169
Paulus Gerdes

c
Figura 5.47

Figura 5.48

Uma casa dum jogo de tabuleiro, encontrado num dos túmulos


reais de Ur (meados do 3º milénio a.C.) deixa supor que já naquela
altura era conhecida essa particularidade do quadrado dentado de 7
quadradinhos numa diagonal (vide Figura 5.49).

170
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 5.49

Este caso (32+42=52) será o único ou haverá mais?


Sigamos o nosso “Pitágoras” ao continuar a sua procura de
quadrados dentados, que são constituídos por um número quadrado de
quadradinhos iguais ou que podem ser transformados num quadrado
liso.

Possíveis desenvolvimentos posteriores

A partir daqui pode-se continuar em várias direções. Estes


possíveis desenvolvimentos posteriores podem ter lugar
independentemente uns dos outros ou podem, simultaneamente,
influenciar-se mutuamente.

Para os “triplos pitagóricos” (1)

Pode-se elaborar uma lista das somas de quadrados de dois


números (naturais) consecutivos e, ao comparar-se com uma tabela de
números quadrados, descobrir que
202+212=292,
1192+1202=1692,
etc. Este caminho, puramente aritmético, parece pouco provável.

171
Paulus Gerdes
Para os “triplos pitagóricos” (2)

De modo análogo à Figura 5.47a pode-se tentar transformar


outros quadrados dentados em “verdadeiros” quadrados lisos. Se esta
transformação se fizer arbitrariamente, então raramente se tem sorte.
Um quadrado liso só aparece pela segunda vez quando a diagonal do
quadrado dentado for composto por 41 quadradinhos iguais. No
entanto, se se analisar melhor o caso especial (vide Figura 5.47a),
pode-se tentar “cortar”, de todos os cantos do quadrado dentado,
“triângulos” iguais com catetos dentados e hipotenusa lisa (vide Figura
5.50), procurar transformá-los em “triângulos”, de igual área, com
catetos lisos e hipotenusa dentada (vide Figura 5.51) e depois tentar
juntar estes últimos aos lados originais do quadrado dentado para obter
um quadrado liso (vide o esquema na Figura 5.52).

Figura 5.50

Figura 5.51

172
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

b
Figura 5.52

173
Paulus Gerdes

c
Figura 5.52

Pela primeira vez isto torna-se possível (vide Figura 5.53), quando o
lado do primeiro “triângulo” tiver 6 dentes.

Figura 5.53

174
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Por isso, um quadrado dentado com 21 quadradinhos iguais
(6+8+1+6=21, vide Figura 5.54) em cada lado e com 41 quadradinhos
iguais na diagonal, pode ser transformado num quadrado liso de 29
destes quadradinhos em cada lado (8+1+11+1+8=29). Por outras
palavras:
202+212=292.

Figura 5.54

Figura 5.55

O mesmo resultado (e mais outros) podem ser também


alcançados ao perceber-se que a transformação pretendida só é
possível se o número dos quadradinhos do primeiro “triângulo” (vide
Figura 5.50) for igual ao do segundo, ou seja, dito doutra maneira, se
um número quadrado (vide Figura 5.55) for igual a um número
triangular. Somente é preciso comparar as listas de ambos os tipos de
números (vide Tabela 5.1) para descobrir
(6+8+6)2 + (6+8+6+1)2 = [8+1+(2.6-1)+1+8]2
ou seja
175
Paulus Gerdes

202+212 = 292
e
(35+49+35)2 + (35+49+35+1)2 = [49+1+(2.35-1)+1+49]2
ou seja
1192+1202 = 1692 , etc.

Tabela 5.1

Números naturais Números quadrados Números triangulares


1 1 1
2 4 3
3 9 6
4 16 ...
... ... ...
6 36 ...
7 ... ...
8 ... 36
... ... ...
35 1225 ...
... ... ...
49 ... 1225
... ... ...

Nota-se de passagem que, desta maneira, pode ser descoberto


que a soma dos n primeiros números ímpares é sempre um quadrado
n2 (vide Figura 5.55).

176
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Para os “triplos pitagóricos” (3)

A que observações o nosso “Pitágoras” poderá chegar, se


considerar um quadrado dentado juntamente com o seu quadrado
circunscrito e liso (vide Figura 5.56)?

Figura 5.56

Figura 5.57

Ao contar os quadradinhos dentro e fora do quadrado dentado,


verifica-se que lá dentro há sempre mais um do que lá fora (vide
Figura 5.57).
Por via puramente geométrica é possível chegar à mesma
conclusão, se se decompuser um quadrado dentado como na Figura
5.58.

177
Paulus Gerdes

Figura 5.58

Daqui segue, que o número dos quadradinhos do quadrado liso


circunscrito (=d2) mais um é igual a duas vezes o número N dos
quadradinhos contidos no quadrado dentado correspondente (vide
Figura 5.59), ou seja, d2+1 = 2N.

Figura 5.59

Por outras palavras, N é um número quadrado se a metade de


2
d +1 for um quadrado. Para encontrar tais N’s, faz-se então uma
tabela (vide tabela 5.2) a qual será comparada com uma tabela de
quadrados (vide tabela 5.3).

178
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Tabela 5.2

d d2 d2+1 !! + 1
2
1 1 2 1
3 9 10 5
5 25 26 13
7 49 50 25
9 1 82 41
... ... ... ...
41 1681 1682 841
... ... ... ...
239 57121 57122 28561
... ... ... ...

Tabela 5.3

t t2
1 1
... ...
5 25
... ...
29 841
... ...
169 28561
... ...

Desta maneira pode-se achar as soluções desejadas da equação


d2+1 = 2N:
179
Paulus Gerdes

12 + 1 = 2.12,
72 + 1 = 2.52,
412 + 1 = 2.292,
2392 +1 = 2.1692,
etc.
Agora, quais são os quadrados dentados constituídos por 52, 292,
1692, etc. quadradinhos iguais? O comprimento do quadrado
circunscrito é igual ao número de quadradinhos nas diagonais do
quadrado dentado. E, por sua vez, este número de quadradinhos em
cada diagonal é igual à soma dos comprimentos dos lados dos dois
quadrados lisos, em que se pode decompor o quadrado dentado (vide
as Figuras 5.43 e 5.44). Por isso, mediante 7=3+4, 41=20+21,
239=119+120, etc., obtêm-se os resultados:
32 + 42 = 52,
202 + 212 = 292,
1192 + 1202 = 1692,
etc.

Para os “triplos pitagóricos” (4)

É possível que o nosso “Pitágoras” chegue a observar o seguinte


se se decompuser um quadrado dentado em dois quadrados lisos, então
a diferença entre estes novos quadrados é igual ao número de
quadradinhos em cada diagonal. Esta observação pode ser resultado
tanto de natureza aritmética como também geométrica:
4 – 1 = 3,
9 – 4 = 5,
16 – 9 = 7,
25 – 16 = 9,

180
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
etc. ou ele descobre primeiro uma decomposição nova do quadrado
dentado, em que as duas partes tenham a mesma área que os dois
quadrados lisos (vide Figura 5.60).

Figura 5.60

De passagem é de notar que também deste modo pode ser


descoberto que a soma dos primeiros n números ímpares é sempre um
quadrado n2.

Figura 5.61

Por outro lado, o número de quadradinhos nas diagonais é igual à


soma dos comprimentos dos lados dos dois quadrados lisos (vide
Figura 5.43 e 5.44). Por isso, pode-se chegar à conclusão apresentada
na Figura 5.61. Se agora essa soma dos comprimentos dos lados dos
181
Paulus Gerdes
dois quadrados lisos, ou melhor, a soma dos quadradinhos dos lados
dos dois quadrados lisos, por sua vez, for igual a um quadrado, então
obtém-se de novo que a soma de dois quadrados é igual a um terceiro
quadrado. Para achar estes casos é apenas necessário procurar os
números quadrados ímpares: 9, 25, 49, 81, 121, 169... e obtêm-se
sucessivamente:

9=4+5 → 9 + 42 = 52 → 32 + 42 = 52
25 = 12 + 13 → 25 + 122 = 132 → 52 + 122 = 132
49 = 24 + 25 → 49 + 242 = 252 → 72 + 242 = 252
... → ... → ...

Figura 5.62

O processo da Figura 5.61 podia ter sido descoberto fora deste


contexto. O nosso contexto, no entanto, explica porque surgiu,
intralogicamente, a ideia de procurar quadrados que são a soma de
outros quadrados. Este procurar podia, talvez, ter sido reforçado por
ideias extramatemáticas. Uma vez descoberto esse processo, ele pode
ser generalizado (vide Figura 5.62) e, analogamente, podem agora ser
achados novos “triplos pitagóricos”:
82 + 152 = 172,
122 + 352 = 372, etc.
Exprimindo duma maneira ainda mais geral, agora podem ser
encontrados, em princípio, todos os “triplos pitagóricos” com ajuda da
transformação geométrica da Figura 5.63, ou seja,
c2 = b2+ [c(c–b) + b(c–b)],
c2 = b2 + (c+b) (c–b).

182
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Para achar os “triplos pitagóricos” (a ,b, c), devem-se procurar
soluções da equação
(c+b) (c–b) = a2 .

Figura 5.63

Para o “Teorema de Pitágoras”

A experiência particular com o quadrado dentado, cuja diagonal


tem comprimento 7, e o quadrado, cujo lado tem comprimento 5 – eles
têm a mesma área (vide Figuras 5.47 e 5.64) pode estimular também a
continuação da procura geométrica: não podia, de facto, ser verdade
que houvesse quadrados dentados que não fossem iguais a um
verdadeiro quadrado liso...Consideremos o menor quadrado dentado
(vide Figura 5.65). Como se pode obter um verdadeiro quadrado com a
mesma área?

Figura 5.64
183
Paulus Gerdes

Figura 5.65

a b c
Figura 5.66

Os quadrados a tracejado das Figuras 5.66 a e b são obviamente


demasiado grandes. O quadrado a tracejado na Figura 5.66c é
demasiado pequeno: tira claramente mais do quadrado dentado do que
lhe acrescenta ao mesmo tempo. Porém o caminho em que se entrou
parece vantajoso. Ao continuar a experimentar, encontra-se uma
solução: tira-se exatamente tanto quanto se acrescenta (vide Figura
5.67). Esta experiência bem sucedida pode ser facilmente transferida
para outros casos, como, por exemplo, na Figura 5.68.

Figura 5.67

O resultado que se obtém, quando o comprimento da diagonal do


quadrado dentado for igual a 7, pode ser comparado com o resultado
anteriormente já encontrado (vide Figura 5.64). Realmente, ambos os
quadrados são do mesmo tamanho; os seus lados são iguais. Se o
nosso “Pitágoras” ainda tivesse duvidado, agora ficaria convencido de
que, por esta via, sempre se obtém um quadrado liso da mesma área.
184
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 5.68

Se o nosso “Pitágoras” marcar o novo quadrado numa rede de


grelha, juntamente com os dois quadrados cuja soma das áreas seja
igual à daquele, existem somente poucas possibilidades distintas de
desenhá-los um ao lado dos outros, de tal modo que se toquem (vide
Figura 5.69). Talvez uma comparação com o caso mais simples (vide
Figura 5.70) pudesse ter contribuído para a escolha dessa posição
(Figura 5.69b).

b
Figura 5.69
185
Paulus Gerdes

Figura 5.70

Uma vez desenhado como na Figura 5.69b (compare com Figura


5.71), o “Teorema de Pitágoras” podia ter sido adivinhado na sua
forma geral. Simultaneamente, o desenho na rede de grelha oferece
uma boa base para a descoberta de uma demonstração do “Teorema de
Pitágoras” (vide Figura 5.72a), como na China antiga, implicando
(Van der Waerden, 1983, p. 27):
c2 = (a+b)2 – 2ab = a2 + b2 ,
ou como o indiano Bhâskara II (c.1169) (vide Figura 5.72b), levando
a:
c2 = (a–b)2 + 2ab = a2 + b2 ,
ou ainda como o método de Tabit Ibn-Qurra (c.836-901), que
trabalhava em Bagdad (vide Figura 5.72c).

Figura 5.71
186
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura 5.72

Sobre aproximações de 2

Por esta via podem ter sido descobertos não só “triplos


pitagóricos” e o “Teorema de Pitágoras”, como também considerações,
com isso relacionadas, podem ter levado, por exemplo, a boas
aproximações de !, como agora quero mostrar.
Voltemos à Figura 5.68b. A diagonal do quadrado liso de lado 5
é um pouco menor que a diagonal, 7, do quadrado dentado. Por isso, a
proporção do comprimento da diagonal para o comprimento do lado de
um quadrado liso é um pouco maior que Error! , ou seja
!
!      ≥    = 1,4.
!

187
Paulus Gerdes
Melhores aproximações são encontradas com “triplos
pitagóricos” (a, b, c) maiores, onde b = a+1. Por exemplo, com (20,
21, 29) obtém-se
!"!!"
!    ≥ = 1,41379....
!"
O primeiro triplo que aparece em Plimpton 322 da antiga
Mesopotâmia, (119, 120, 169) (Neugebauer, 1969, p. 37), leva a:
119+120
!     ≥       169
= 1,414201....
Este valor aproximado está já bastante perto do valor que se encontra
num texto cuneiforme da Babilónia antiga: 1,414213... (Neugebauer,
1969, p. 35).

Retrospectiva

Partindo de padrões de entrelaçamento amplamente divulgados,


mostrei como a relação factual que atualmente denominamos por
“Teorema de Pitágoras” podia ter sido descoberto, em conexão direta
com os “triplos pitagóricos”, passo por passo e intramatematicamente
– não houve saltos, que apenas com a ajuda de estímulos
extramatemáticos podiam ser explicados: não “caíram do céu” nem o
ângulo recto nem a soma de quadrados que aparecem no “Teorema de
Pitágoras”. Com isso se tornou supérflua a suposição de Seidenberg
(1962a, p. 492, 498), segundo a qual o motivo para a descoberta desse
teorema deve ser procurado na identificação ritual de deus com um
quadrado (a ideia religiosa da unificação de vários deuses num único
deus seria, ainda segundo Seidenberg, a razão para a procura de
quadrados que são somas de quadrados).
Em segundo lugar, as possíveis pré-fases do “Teorema de
Pitágoras”, aqui descritas, são tão simples, em particular se as
compararmos com o nível da matemática da antiga Mesopotâmia, que
conjecturo que já eram conhecidas, pela primeira vez, muito antes de
2000 a.C. Pela mesma razão parece-me, por enquanto, demasiado cedo
supor que sejam duma origem comum os conhecimentos da antiga
Mesopotâmia, Índia, China, Grécia e Grã-Bretanha neolítica.

188
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

5.5 Como se determinava a área do círculo na Mesopotâmia


antiga?

Uma série de tábuas de barro com conteúdos matemáticos foi


encontrada, em 1933, em Susa (atualmente Shush, Irão), a antiga
capital de Elam, a aproximadamente 200 km a leste de Babilónia. Os
textos cuneiformes datam do fim da primeira dinastia de Babilónia, ca.
1894-1595 a.C. Mostram que o nível da geometria da Mesopotâmia
antiga era mais alto do que os historiadores da matemática tinham
pensado antes (Bruins e Rutten 1961, p. 18). A matemática da
Mesopotâmia tinha realmente chegado a uma compreensão não só do
conteúdo teórico do “Teorema de Pitágoras”, mas também das
conexões entre áreas e perímetros de polígonos regulares e de círculos
(Wussing, 1979, p. 41).
A primeira parte das tábuas de barro sobreviventes consiste
duma tabela com constantes geométricas. A segunda fila apresenta 5’
!
ou !" como a constante do círculo-GAM – isto é, a área do círculo AC
!
é igual a !" do quadrado do perímetro p:
!
(1) AC = !" p2
!" !
A terceira e quarta fila dão 20’ = !"
ou !
como a constante do
!" !
diâmetro d dum círculo-GAM, e 10’ = !"
ou !
como a constante do
raio r dum círculo-GAM, isto é:
!
(2) d = ! p,
e
!
(3) r = ! p,
Para um círculo “real”, as relações (1), (2), e (3) deviam ser
substituídas por:
!
(4) AC = !! p2
!
(5) d=!p
e

189
Paulus Gerdes
!
(6) r = !! p,
Por outras palavras, nas três primeiras filas, o valor aproximado
π ≈ 3 é usado para calcular a área, o diâmetro e o raio dum círculo.
Como era o caso no Egito Antigo, os cálculos eram feitos
frequentemente com este valor aproximado. Os escribas de Susa, no
entanto, estavam conscientes de que este valor π ≈ 3 constitui uma
aproximação, como a fila nº 30 da tábua mostra. A fila nº 30 apresenta
!" !" !"
57′ 36″ =
!"
+ !"!
= !"
como valor corretivo para o círculo-SAR
“perfeito”, isto é, (1), (2), e (3) são corrigidas da maneira seguinte:
!" ! 2
(7) AC =
!" !"
 ! p
!" !
(8) d=
!"
 ! ! p,
e
!" !
(9) r =    !   ! p,
!"
Uma comparação de (8) com (5), por exemplo, leva
imediatamente a:
!
(10) π =  3   ! .
Como este resultado foi descoberto pelos matemáticos da
Mesopotâmia (ou pelos seus predecessores) ainda é uma questão não
resolvida.
Apresentarei duas hipóteses como respostas possíveis. Assumo,
como ponto de partida, que a técnica de fabricação de esteiras era
provavelmente conhecida na Mesopotâmia Antiga (vide Forbes 1956,
p. 172 e seguintes e a Figura 3.133).

Primeira hipótese

Esteiras circulares podem ser produzidas enrolando uma banda


de sisal em espiral (Figura 3.81). O diâmetro duma esteira circular
pode ser facilmente contado quando se utilizar a largura da banda
como unidade de medição. A quinta espiral tem um comprimento de
25 unidades. Quando se começa esta espiral, o diâmetro é de 7
unidades; no fim da quinta espiral, o diâmetro é de 9 unidades (Figura
5.73). O diâmetro médio é de 8 unidades. Por outras palavras, um
190
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
círculo com um diâmetro de 8 unidades tem um perímetro de
aproximadamente 25 unidades, isto é:
! !" !
(11) π= ≈ =    3   .
! ! !

Figura 5.73

Segunda hipótese

Uma maneira, muito antiga e bem difundida, de produzir


peneiras circulares foi descrita no capítulo 3 (Figuras 3.117–19). Pode
ser resumida do seguinte modo: os quatro lados de uma esteira
quadrada são fixados, nos seus pontos médios, ao aro circular; o
cesteiro puxa a esteira uniformemente pelo aro, corta as quinas da
esteira e amarra o resto do fundo ao aro. Ao fazer isto, o cesteiro
amiúde seleciona um padrão de entrecruzamento de tal modo que se
possa ver imediatamente se a esteira é quadrada ou não e onde se
encontram os pontos médios dos lados da esteira (vide o exemplo na
Figura 5.74).

191
Paulus Gerdes

Esteira quadrada Esteira não-quadrada


Figura 5.74

A profundidade ou a altura da peneira feita desta maneira


depende da proporção entre o diâmetro do aro circular e o
comprimento do lado da esteira quadrada. O cesteiro pode colocar o
aro na esteira antes de a fixar (de tal modo que os centros respetivos
coincidam) para determinar a proporção correta, que garante a altura
desejada da peneira (vide os exemplos na Figura 5.75).

Figura 5.75

Neste contexto, um artesão podia ter observado que quando o


quociente do raio do aro circular e a metade do lado da esteira
quadrada for igual a 4:5 (sob certas condições das dimensões e do
padrão de entrecruzamento, esta proporção é imediatamente visível,
como o exemplo na Figura 5.76a mostra), então as áreas do círculo Ac
e do quadrado menor visível Ame que toca o quadrado maior nos pontos
médios dos seus lados, são quase iguais (Figura 5.76b).
192
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

b
Figura 5.76
193
Paulus Gerdes

Por outras palavras, se


!
(12) r: !
= 4 : 5,
então
(13) Ac ≈ Ame,
onde s denota o comprimento da lado da esteira quadrada.
A partir de (12) e da relação
! ! 2
(14) Ame = Ama = s,
! !
(onde Ama denota a área do quadrado maior – isto é, da esteira
quadrada), é possível transformar (13) em:

! 2 ! ! !" 2 1
(15) AC ≈ s = ( x 2r )2 = r = 3    8 r2,
! ! ! !
isto é
!! !
(16) π= ≈ 3     .
!! !
O cesteiro podia, neste contexto, também chegar à seguinte
conclusão equivalente. Para fabricar o aro do cesto, curva-se uma lasca
de madeira e ambos os extremos são atados entre eles. Ao fazer isto, o
artesão podia ter observado que, se a lasca de madeira mede 5/2 vezes
o comprimento do lado da esteira quadrada, as áreas do círculo e do
quadrado menor visível, formado pelos pontos médios dos lados da
esteira quadrada, são quase iguais (vide mais uma vez Figura 5.76).
Por outras palavras, se
!
(17) p= s,
!
então
(13) AC ≈ Ame,
A partir de (14) e (17) obtém-se, então, para a área do círculo
! ! ! !
(18) A C ≈ s 2 = ( x p )2 = p2
! ! ! !"
ou
! !! ! !" !
(19) π =   = x ≈ 3     .
! !! ! ! !
194
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Capítulo 6

Generalidades sobre a génese da geometria

Metodologia

O estudo, que aqui se apresenta, tenta contribuir para o


conhecimento das realizações geométricas dos povos anteriormente
colonizados. Uma vez que se trata de uma área de investigação
relativamente nova, exige-se o desenvolvimento de métodos
adequados de pesquisa.
Fontes escritas quase não existem e a tradição oral não pode dar
uma resposta imediata à pergunta sobre a evolução do conhecimento
geométrico. Neste trabalho inicia-se a elaboração desta metodologia
tornada necessária. Um dos métodos explorados consiste no seguinte:
o investigador aprende, em primeiro lugar, as técnicas de fabricação
sobreviventes (por exemplo, as técnicas de entrelaçamento) de
produtos de trabalho tradicionais como de esteiras, cestos, nassas,
armadilhas, etc. e, em cada fase do processo de fabricação, ele coloca a
pergunta “que considerações de natureza geométrica desempenham
um papel para se chegar à fase seguinte?” Verifica-se que este ponto
de partida metodológico é fértil: rapidamente se encontram elementos
de um pensamento geométrico “escondido” ou “congelado”.
Com o “desvendar” do pensamento geométrico ‘escondido’ em
técnicas que têm uma longa história, como as de entrelaçamento,
torna-se possível refletir sobre o despertar histórico da geometria. A
este respeito o meu estudo mostra que o aspecto da atividade tem sido,
até agora, demasiado pouco considerado na tentativa de compreender a
origem dos conceitos e relações geométricos básicos.

195
Paulus Gerdes
A atividade e o despertar do pensamento geométrico

A multiplicidade de formas na natureza é tão grande, que se


precisa de fundamentar porque é que o Homem adquiriu,
gradualmente, a possibilidade de observar/percepcionar determinadas
formas na natureza. Não há formas naturais que, à priori, se
distinguem para a observação humana. Foi na atividade que se formou
a capacidade do Homem de reconhecer, na natureza e também nos
seus próprios produtos, formas geométricas.
A capacidade de reconhecer ordem e formas espaciais regulares
na natureza formou-se através da atividade laboral. A regularidade é o
resultado do trabalho criativo do Homem e não o seu pressuposto. São
vantagens práticas, realmente existentes, da forma regular descoberta
que conduzem à consciência crescente dessa ordem e regularidade. As
mesmas vantagens estimulam à comparação com outros resultados de
trabalho e com fenómenos naturais. A regularidade do produto de
trabalho simplifica a sua reprodução e assim se reforça a consciência
da sua forma e o interesse por ela. Com a crescente consciência e
interesse forma-se, simultaneamente, uma valorização positiva da
forma descoberta: a forma é também aplicada onde ela não é
necessária; ela é sentida e apreciada como bela.
A forma cilíndrica ou cónica e outras formas simétricas de
recipientes, o padrão hexagonal de cestos, chapéus e carteiras etc.
podem, à primeira vista, parecer resultantes de impulsos instintivos ou
duma preferência inata para estas formas ou – numa outra variante
idealista – como que gerados por uma ‘alma cultural’ ou ‘arquétipo’
comum, ou também mecanicamente como uma imitação de fenómenos
naturais, tais como da estrutura de cristais ou dos favos de abelha. Na
realidade, contudo, o Homem cria estas formas para poder satisfazer
as suas necessidades quotidianas. A compreensão das formas
materialmente necessárias nasce e cresce na confrontação com o
material presente para realmente se poder produzir algo útil. No
reconhecimento destas necessidades de forma e nas possibilidades
assim obtidas de as empregar para realizar determinados objectivos,
nasceu a liberdade humana para produzir objetos úteis e apreciados
como belos.
A atividade social desempenha um papel importante na
formação e elaboração das mais antigas formas geométricas. Aqui, no
entanto, não se deve esquecer que ela assume este papel de maneiras
196
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
diversas e bem diferentes. Não houve nenhum indivíduo, que, de
repente – quer dizer, sem condições prévias – chegasse à conclusão de
que machados de mão deviam ser simétricos. Pelo contrário. A forma
simétrica do machado de mão era o resultado dum desenvolvimento
histórico longo. A necessidade prática da utilização de um ângulo
recto, por exemplo, para garantir estabilidade, era e continua a ser
“sentida”, quer dizer, descoberta diariamente por indivíduos isolados
ou no trabalho conjunto. A descoberta da necessidade duma medida de
o
60 para poder fixar bem e com estabilidade um rebordo a um cesto,
era o resultado de experiência e reflexão individual ou colectiva. Neste
último caso, a consciência da forma resultante – padrão hexagonal –
fica provavelmente mais acentuada – pelo menos nas pessoas que
participaram neste processo de descoberta – do que nos casos
anteriores. Merece ser investigado de que maneira estes processos
diferentes de descoberta entraram (e entram) no conhecimento social
da geometria.

Possibilidades de desenvolvimento intramatemático

Com o reflexo, na arte e em jogos, de formas elaboradas na


atividade, o pensamento matemático inicial já começou a libertar-se da
necessidade material: a forma emancipa-se, torna-se mais
independente da matéria e, assim, nasce o conceito de forma; abriu-se
caminho para um desenvolvimento intramatemático.
Na interação de necessidades socialmente importantes,
possibilidades materiais e atividade experimental verificou-se que
determinadas formas, por exemplo simétricas, são as melhores. O
pensamento em termos de ordem e de simetria não precisa duma
explicação mítica; reflete a experiência social de produção. Se esta
experiência se tiver fixado de tal modo que a regularidade tenha obtido
um valor estético, então podem ter sido criadas formas novas e, em
certo sentido, ordenadas, sem que tenha existido para tal uma
obrigação material, imediata e inevitável. Neste processo se continua a
desenvolver o pensamento geométrico inicial, quer dizer a capacidade
de criar formas possíveis de serem concebidas pelo pensamento.

197
Paulus Gerdes
“Sedimento” possível de pensamento mágico na imaginação do
espaço

A origem na atividade de determinadas formas básicas, como


por exemplo, as de quadrado e circunferência, podia ter sido
“esquecida” no decorrer da história. Podiam desconhecê-la não só
aqueles artesãos – que copiam as formas materialmente necessárias,
contudo sem sempre ter consciência das razões porque elas são
necessárias –, como também e, em particular, as pessoas que se
encontram fora deste processo de reprodução. Com a extinção do
conhecimento sobre a origem dessas formas básicas podia sedimentar-
se, na imaginação do espaço, um pensar mágico ou religioso – como,
por exemplo, a identificação de deus e quadrado.

Uniformidade relativa de estruturas ideais

Frequentemente não se explica realmente a uniformidade relativa


de estruturas ideais: procura-se um refúgio em deus, num mundo
objectivo de ideias, independente dos homens (platonismo) ou, por
exemplo, numa difusão geral a partir dum único local de descoberta
original (cf. §5.1). Contudo o meu estudo mostra, no que diz respeito
ao despertar do pensamento geométrico, que essa uniformidade
relativa de estruturas ideais reflete a unidade do Homem, ou ainda
melhor, a unidade da natureza: circunstâncias iguais conduziram, em
geral, a problemas idênticos com tentativas de solução similares, não
obstante toda a diferenciação no detalhe. As concordâncias na
atividade social em conjunto com a constituição humana geral
possibilitaram a elaboração de formas básicas iguais.

Hipóteses novas acerca da história da geometria antiga

Na base de formas muito antigas e amplamente divulgadas torna-


se possível formular novas hipóteses acerca da história da geometria
antiga. Por exemplo, podia ter havido razões práticas para o
significado das figuras básicas de Thales. A importância da construção
de rectângulos para a vida quotidiana de muitos povos, por exemplo,
para erguer as suas casas, podia ter sido reflectida na geometria
198
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
“grega”. Neste estudo mostrei, por exemplo, como se pode, de maneira
simples – quer isto dizer, mais simples do que nas hipóteses até aqui
formuladas – deduzir a fórmula correta do Egito Antigo para o volume
duma pirâmide truncada de base quadrada. A nova dedução parte de
determinados produtos materiais de trabalho e das suas relações
empiricamente descobertas, e cada passo seguinte do pensamento é
construtivo no sentido de que resulta – sem desvios – da procura de
respostas possíveis a questões ainda não resolvidas. Talvez o resultado
mais surpreendente desta linha de pesquisa resida na explicação de
como, partindo de padrões de entrelaçamento amplamente divulgados,
a relação factual, hoje denominada por “Teorema de Pitágoras” podia
ter sido descoberta, passo a passo e intramatematicamente, em
conexão direta com os “triplos pitagóricos”.
A possibilidade da formulação de tais hipóteses reforça a tese
sobre a unidade do Homem no que concerne ao despertar do
pensamento geométrico.

199
Paulus Gerdes

200
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

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205
Paulus Gerdes

206
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Fontes escritas para as ilustrações

Desenhos: Marcelino Januário (Departamento de Desenho,


Universidade Eduardo Mondlane), Clementino Almeida
(Departamento de Desenho, Universidade Eduardo Mondlane: Figura
2.2) e Marcos Cherinda (Figuras 3.75 e 3.76).

Figura:

3.2 Leroi-Gourhan, p. 119


3.3 Leroi-Gourhan, p. 123
3.4 UNESCO, p. 13
3.5 UNESCO, p. 15
3.37 Escher, p. 10
3.38 Kästner, p. 84
3.55 Mveng, p. 120, 52
3.72 Koch, 1961, p. 148
3.73 Koch, 1965, p. 185
3.115 Panow, p. 69
3.124 a, b, d, e: cestos na coleção do autor; c: Bastin, p. 134; f:
Nieuwenhuis, T. XXIX; g: Merwin, fig. 13
3.125 Appleton, T. 78
3.126 Mveng, p. 78, 51, 128, 75
3.128 Mveng, p. 52, 159
3.133 Neugebauer, 1935, p. 139, 140, T. III
3.153 Cantor, p. 107

4.6 Biocca, p. 423


4.7 Biocca, p. 269, 429
4.8 Biocca, p. 18
207
Paulus Gerdes
4.9 Biocca, p. 45
4.10 Biocca, p. 152
4.11 Biocca, p. 45
4.12 Biocca, p. 90, 229
4.13 Boas, p. 149
4.14 Dias & Dias, p. 60, 70
4.15 Lévi-Strauss, 1979, p. 188
4.16 Lévi-Strauss, 1979, p. 175
4.17 Lévi-Strauss, 1979, p. 173
4.18 Lévi-Strauss, 1979, p. 183
4.19 a, b: cestos na coleção do autor; c, d: Luquet, p. 741, 748
4.20 Dias & Dias, p. 64
4.21 Lévi-Strauss, 1979, p. 186

5.17 Weule, T. 19
5.32 a: Burney, p. 52; c, d: Denyer, p. 120, 121; e: Mveng, p. 56; f:
Neumann, p. 84
5.40 a: Redinha, p. 107; b: Neumann, p. 78
5.42 Wilson, 1986, p. 21, T. 23
5.49 Burney, p. 81

208
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Anexos

209
Paulus Gerdes

210
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Anexo 1

Três métodos alternativos para obter a fórmula do


Egito Antigo para a área do círculo *

* Artigo publicado em Inglês na revista internacional Historia


Mathematica (Vol. 12, p. 261-268, New York, 1985) e traduzido
por Joaquina Silva, docente do Departamento de Matemática na
Delegação do Instituto Superior Pedagógico na Cidade da Beira,
Moçambique

Introdução

Para determinar a área do círculo, os matemáticos do Egito


!
Antigo usaram o quadrado de do seu diâmetro. Isso implica a
!
seguinte aproximação de π:
! 2 !"#
π≈4( ) = = 3,1605,
! !"
a qual é na realidade “uma grande perfeição” (Van Der Waerden 1954,
p. 32). Contudo, como K. Vogel realçou, “Não sabemos como esta
notável aproximação foi encontrada” (Gillings 1972, p. 142). Depois
de uma curta descrição de tentativas anteriores para explicar como
podia ter sido encontrada a fórmula egípcia, apresentamos três
métodos alternativos.

Conjecturas anteriores

O próprio Vogel formulou uma conjectura interessante relativa à


origem deste processo egípcio. Ele usa um octógono semi-regular que
se aproxima bastante bem do círculo (vide Figura A1.1). A área do

211
Paulus Gerdes
! !"
octógono ABCDEFGH é igual a (ou ) do quadrado do diâmetro, 1
! !"
!"
isto é, quase igual à quantidade desejada de ( ) d2.
!"

F E

G D

H C

A B

Figura A1.1

Usando uma variação no tema do octógono semi-regular, R.


Gillings (1972, p. 143-146) chegou a um método alternativo para obter
a fórmula. Uma vez mais, há um salto de 63 para 64. Mas nas palavras
de Gillings, o escriba egípcio A’h-mose “certamente sabe que o
método não é exato ... o seu método permite-lhe encontrar um
quadrado aproximadamente igual a um círculo; por isso, podemos, “en
caprice”, por assim dizer, acreditar ter sido A’h-mose o primeiro
autêntico quadrador do círculo na história!” (1972, p. 145).
Para H. Engels, a conjectura do octógono semi-regular parece ser
“muito complicada” (1977, p. 137). Ele sugeriu uma alternativa mais
simples e foi o primeiro a ligar a sua hipótese à produção material: os

!
1 Seguindo a construção de Vogel até , temos um método didático
!
para obter um valor útil para π na escola primária (Gerdes 1983):
!
π ≈ 4.( ) ≈ 3,11
!
212
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
pedreiros egípcios cobriam os seus desenhos e paredes de modo a
formar um relevo com redes ortogonais. Os pontos de intersecção das
linhas da rede e os contornos do desenho eram então transferidos em
razões fixadas. Que pode ser dito sobre os círculos que apareciam
nessas redes ortogonais?

Figura A1.2

O círculo na Figura A1.2 tem, “intuitivamente”, a mesma área


que o quadrado ABCD. Dividindo cada quadrado em 16 sub-
quadrados iguais, os egípcios podiam ter descoberto, argumenta
! !! !!
Engels, que = , ou que a = , onde a designa o comprimento do
! ! !
!!
lado do quadrado ABCD. De facto, a não é exatamente igual a ,
!
!!
mas, usando o teorema de Pitágoras, igual a . Contudo, o erro
!
relativo é menor que 0,62% (Engels 1977, p. 139).

Conjecturas sugeridas por um exame de técnicas artesanais africanas

Estão espalhados por África dois padrões geométricos


relacionados com o círculo: a chamada curva da cobra (vide Figura
A1.3) e o conjunto de círculos concêntricos equidistantes (vide Figura
A1.4.) Um exame de alguns exemplos destes padrões circulares sugere

213
Paulus Gerdes
várias conjecturas alternativas para a origem da fórmula egípcia para a
área do círculo.

Figura A1.3 Figura A1.4

Figura A1.5

1
Parecida com a espiral de Arquimedes, a Figura A1.3 representa
simbolicamente a cobra em Angola (Mveng 1980, p. 54). Estas
“curvas da cobra” foram gravadas em portas de madeira na Nigéria
(Denyer 1978, p. 89) e podem também ser encontradas no fabrico de
cestos (e.g., Sudão, Egito moderno) e esteiras (e.g. Moçambique). Ao
mesmo tempo, este padrão espiral é um motivo comum para as
decorações de paredes de locais fúnebres no Egito Antigo (e.g., perto
de Deir el-Medina). Cerca de 2600 A.C., o “jogo da cobra” era jogado
numa mesa espiral circular (Erman & Ranke 1963, p. 327) (Figura
A1.5). Sob Ramsés III (1198-1167 A.C.), o pão real tomou a forma de
espiral (Erman & Ranke 1963, p. 257) (Figura A1.6). A descrição da
produção de uma esteira espiral em sisal ilustrará a nossa primeira
conjectura.
Uma tira de sisal é enrolada à volta de um ponto fixo (vide
Figura A1.7) e é então cosida em espirais sucessivas. Normalmente, o
fim será cortado um pouco de modo a dar a impressão de um círculo
(vide Figura A1.8). Suponhamos que os artesãos no Egito Antigo
sabiam como fazer esteiras semelhantes.
214
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura A1.6

Figura A1.7 Figura A1.8

Uma tira de sisal pode ser considerada um rectângulo, cuja


largura é tomada como unidade de medida. Quando o comprimento L
da tira é igual a um quadrado n2, a área A da tira é igual à área de um
quadrado com lado n. Deve ser assumido, naturalmente, que ao enrolar
a tira a sua área não muda. Assim, o diâmetro d do “círculo espiral”
pode ser contado desde o ponto final da espiral até ao lado oposto
(vide Figura A1.7). Para n = 8; encontra-se, experimentalmente, d=9.
Deste modo, obtemos
2 !! 2
A=L=n =( )
!
i.e., exatamente a antiga fórmula egípcia para a área do círculo (Figura
A1.9).

215
Paulus Gerdes

Figura A1.9

Mas por que escolher n=8 e não, digamos, n=6? Encontra-se a


resposta, investigando o comprimento L da parte da tira necessária
para obter um “círculo espiral” com um número natural W de voltas
completas como função de W. A Tabela A1.1 mostra as relações entre
W e L (d=2W-1) encontradas experimentalmente. Os valores de L
foram arredondados. O menor valor de n para o qual L é um quadrado
perfeito ocorre quando W = 5, i.e., d = 9 e n =8. Daí a escolha de n=8.
Resta o problema prático de como contar as voltas completas: Quando
está completa a primeira volta? Uma vez n=8 escolhido, segue-se
!! 2
imediatamente, como tínhamos visto, que A = ( ).
!

Tabela A1.1

W 2 3 4 5 6
L 7 20 39 64 95
d 3 5 7 9 11

Ao formular esta conjectura, pressupusemos que os artesãos no


Egito Antigo conheciam como fabricar esteiras circulares espirais,
mais ou menos do modo descrito. A interação frequente entre as
culturas egípcias antigas e as ao Sul do Sahara é uma importante mas
não suficiente justificação. Que outra evidência suporta a suposição? A
Figura A1.10 mostra um detalhe de um relevo no túmulo de Ptakotep
(cerca de 2378 A.C.) em Sakkara. Caçadores estão apanhando pássaros
usando uma corda para fechar a armadilha. O extremo da tira está
enrolado em espiral. Utilizando uma perspectiva particular, o artista
216
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
desenhou a espiral numa posição vertical (cf. Figura A1.5). Além
disso, uma corda enrolada horizontalmente parece bastante irrealista
numa cena de caça. A presença de uma “curva da cobra” neste relevo,
só como um motivo artístico, é improvável. Pode concluir-se que
enrolar tiras em “círculos espirais” era conhecido noutros contextos
culturais além do da caça. O fabrico de esteiras podia bem ter sido um
desses contextos. Esta familiaridade com tiras enroladas foi alcançada
pelo menos 700 anos antes do escriba A’h-mose (cerca de 1650 A.C.;
Gillings 1972, p. 45) ter apresentado a sua famosa fórmula para a área
do círculo. Além disso, é bem conhecido que foram usadas cordas
esticadas para medir comprimentos no Egito Antigo (Van Der
Waerden 1954, p. 15).

Figura a1.10
2
Uma outra possibilidade é sugerida por um conjunto de círculos
concêntricos equidistantes aparecendo como decoração de paredes
(e.g. Tanzânia (Denyer 1978, p. 41), em tecidos (e.g. Camarões (vide
as imagens em Mveng 1980, p. 121)) e em telhados (e.g. Guiné
(Denyer 1978, p. 143)). Foi encontrado numa sepultura como um
símbolo de círculos cósmicos (e.g. Angola (vide Mveng 1980, p. 79))
e ainda em antigas pinturas rupestres em Moçambique (vide Oliveira
1975, p. 21). Ao mesmo tempo, estes padrões geométricos podem
também ser encontrados no Egito Antigo, e.g., em colares sucessivos
circulares de Kagemni em Sakkara (cerca de 2280 A.C.) ou na coroa
azul de Ramsés II (vide Wiesner 1971, p. 168).
Esteiras circulares de sisal, com um padrão de círculos
concêntricos equidistantes, são feitas de maneira semelhante ao

217
Paulus Gerdes
método descrito para as esteiras espirais. Corta-se um pequeno círculo
cujo diâmetro é igual à largura da tira. Este pequeno círculo serve
como “círculo central”. À volta do círculo central, fabrica-se a esteira
anel por anel (vide Figura A1.11), cosendo os anéis sucessivos. De
cada vez, é cortada a parte da tira que preenche completamente o anel
correspondente.

Figura A1.11 Figura A1.12

Suponhamos que os artesãos egípcios faziam esteiras circulares


da maneira aqui descrita. Para obter uma esteira com T anéis, qual
deveria ser o comprimento L da tira necessária? Como anteriormente,
tomemos a largura da tira como unidade de medida. A tabela A1.2
mostra resultados experimentais arredondados. Os valores menores
para T e d (d = 2T + 1) para os quais L se torna igual a um quadrado,
n2, são T = 4 e d = 9, respectivamente (vide Figura A1.12), com n = 8.
!!
Neste caso, temos n = ( ).d e, como consequência, chegamos mais
!
uma vez à antiga fórmula egípcia para a área do círculo:
2 !! 2
A=L=n =( )
!

Tabela A1.2

T 1 2 3 4 5
L 7 20 39 64 95
d 3 5 7 9 11

218
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Conjecturas sugeridas ao jogar com objetos circulares

Um jogo de tabuleiro, referido frequentemente pelo seu nome


árabe mancala (Zaslavsky 1972, p. 118), é muito popular em toda a
África. No Egito Antigo era jogado num tabuleiro com três filas de
catorze buracos e um vaso para armazenagem (Zaslavsky 1972, p.
126). As peças deste jogo eram sementes, eixos ou feijões quase
esféricos. O jogo da cobra era também jogado com pequenas bolas.
Como mostra a Figura A1.5, as pedras egípcias eram pequenos
cilindros rectos. Estes e outros jogos não eram as únicas manifestações
culturais onde se podiam encontrar muitos objetos iguais circulares,
cilíndricos ou esféricos. Anilhas de pesagem e feitura de contas
(Erman & Ranke 1963, p. 623, 643) representavam também tais
situações no Egito Antigo.

triângulo rectângulo
Figura A1.13

um anel dois anéis

Figura A1.14

Em contextos como estes, por exemplo, quando um participante


num jogo espera pelos movimentos de outro participante, é quase
natural que comece a jogar com as próprias pedras, feijões ou anilhas.
Pode bem “desenhar”, transformar e contar padrões geométricos (vide
exemplos na Figura A1.13). Pode-se agora perguntar – e um jogador,
artista ou escriba egípcio podia bem ter perguntado ... – é possível
219
Paulus Gerdes
“desenhar” círculos grandes usando círculos pequenos, i.e., com
pequenas bolas esféricas ou pedras cilíndricas? Um modo simples de
obter círculos grandes e construí-los anel por anel, como mostra a
Figura A1.14. Seja d o diâmetro do círculo grande e D o diâmetro do
círculo pequeno. Por conveniência, façamos D=1. Por experimentação,
verifica-se que 64 círculos pequenos ficam num círculo grande de
diâmetro 9 (vide Figura A1.15). É o menor diâmetro para o qual T, o
número total de círculos pequenos, é um quadrado perfeito. Os
mesmos 64 círculos pequenos “preenchem” também um quadrado de
lado 8 (vide Figura A1.16).

Figura A1.15

220
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura A1.16

Desta maneira, um egípcio podia bem ter concluído que um


círculo grande de diâmetro 9 e um quadrado de lado 8 têm – mais ou
menos – a mesma área, porque ambos são “cobertos” pelo mesmo
número (64) de círculos pequenos.

Agradecimentos

O autor esta grato ao Professor H. Engels (Aachen, Alemanha) e


aos docentes Doutor G. Baumbach (Jena, Alemanha) e Doutor W.
Willemer (Dresden, Alemanha) pelos seus valiosos comentários a este
artigo e a Atílio Armando pelos seus desenhos.

Referências

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London.
Engels, H. (1977), Quadrature of the circle in Ancient Egypt, Historia
Matematica, New York, Vol. 4, 137-140.

221
Paulus Gerdes
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Paris.
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222
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico
Anexo 2

Um outro método para obter a fórmula do


Egito Antigo para a área do círculo *

Por vezes calculava-se, no Egito Antigo, a área dum círculo de


diâmetro d segundo a fórmula
! 2
(d – )
!
Na base do desenhos ao lado do exercício nº 48 no Papiro ‘Rhind’ de
A’h-mosè, E. Bruins, K. Vogel e R. Gillings (vide Anexo 1)
supuseram que o escriba aproximava o círculo, inscrito num quadrado,
!
por um octógono semi-regular. A área deste octógono é igual a a ou
!
!"
da do quadrado. Por isso, podia concluir-se
!"
!" 2 ! 2
Área do círculo ≈ d = ( !)
!" !
Agora apresenta-se uma outra interpretação do mesmo desenho,
a qual nos possibilita deduzir a fórmula egípcia sem o salto de 63 para
64.

Figura A2.1

223
Paulus Gerdes
O octógono semi-regular que tinha sido esboçado apenas
‘grosseiramente’ pelo escriba, pode corresponder a uma figura dentada
(vide as Figuras A2.1 e A2.2), tal como os outros exemplos deste tipo
de correspondência encontradas no Capítulo 5 (Figuras 5.36 – 5.38).

Figura A2.2

Imaginemos uma circunferência, traçada numa rede de grelha,


como na Figura A2.3. O contorno dentado na mesma figura, composto
por todos os quadradinhos da rede de grelha que se encontram
completamente ou por mais da sua metade dentro do círculo, tem mais
ou menos a mesma área que o círculo. Através duma transformação
geométrica simples (Figura A2.4), verifica-se que a figura dentada tem
a mesma área que o novo quadrado. E o lado deste novo quadrado é
!
menos do que o diâmetro do círculo (Figura A2.5). Por isso:
!
Área do círculo ≈ área da figura dentada =
! 2
= área do quadrado novo = (d – )
!

224
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Figura A2.3

Figura A2.4

225
Paulus Gerdes

Figura A2.5

226
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

Edições anteriores

Título original em Alemão (1985):

Zum erwachenden geometrischen Denken. Gesellschaftliche Tätigkeit


und die mögliche Herkunft einiger früher geometrischer Begriffe und
Relationen unter besonderer Berücksichtigung der Mathematik der
Entwicklungsländer (Tese de doutoramento em Filosofia, Área:
Problemas filosóficos da matemática e das ciências da natureza,
Pädagogische Hochschule Karl-Friedrich Wander, Dresden,
Alemanha: Classificação: Summa Cum Laude).

Versão publicada em Alemão:

Ethnogeometrie: Kulturanthropologische Beiträge zur Genese und


Didaktik der Geometrie, Franzbecker Verlag, Bad Salzdetfurth ü.
Hildesheim, Alemanha, 1990, 1995 e 2001, 347 p.

1990 2001

227
Paulus Gerdes
Prefácio (1988): Ethnomathematik und Curriculumexport
(Etnomatemática e a exportação de curricula), escrito por: Peter
Damerow (1939-2011), Max Planck Institut für
Wissenschaftsgeschichte (Instituto Max Planck para a História da
Ciência), Berlim, Alemanha.

Versão publicada em Inglês:

Awakening of Geometrical Thought in Early Culture, MEP


Publications, University of Minnesota, Minneapolis MN, Estados
Unidos da América, 2003, 184 p.

Prefácio (1998): Dirk J. Struik (1894-2000), Massachusetts Institute of


Technology (MIT), Cambridge MA, Estados Unidos da América.

Tradução: Autor; Revisão linguística: Erwin Marquit & Doris Marquit,


University of Minnesota, Minneapolis.

Versões condensadas publicadas em Português:

Sobre o despertar do pensamento geométrico: Actividade social e a


possível origem de alguns conceitos e relações geométricos muito
antigos, considerando em particular a matemática dos ‘países em vias
de desenvolvimento’, Universidade Eduardo Mondlane (UEM),
Maputo, Moçambique, 1987, 284 p.

Tradução: Ângelo Jorge, Instituto Nacional do Desenvolvimento da


Educação (INDE), Cap. 1-5.1; autor: Cap. 5.2-6, Anexo 2; Joaquina
Silva, Universidade Pedagógica (UP): Anexo 1; Revisão linguística:
Fernanda Duran, Ida Alvarinho e Almiro Lobo (UEM).

228
Etnogeometria: Cultura e o Despertar do Pensamento Geométrico

1987

Cultura e o despertar do pensamento geométrico, Instituto Superior


Pedagógico / Universidade Pedagógica, Maputo, 1991, 146 p.

Sobre o despertar do pensamento geométrico, Universidade Federal


do Paraná, Curitiba PR, Brasil, 1992, 105 p.

Prefácio: Ubiratan D’Ambrosio (1932-...), Universidade de Campinas,


Brasil.

229
Paulus Gerdes

1991 1992

230
O Autor

O professor catedrático Paulus Gerdes tem leccionado nas


Universidades Eduardo Mondlane e Pedagógica (Moçambique).
Desempenhou os cargos de Diretor da Faculdade de Educação (1983-
1987) e da Faculdade de Matemática (1987-1989) da Universidade
Eduardo Mondlane e de Reitor da Universidade Pedagógica (1989-
1996). Em 2006-2007, foi Presidente da Comissão Instaladora da
Universidade Lúrio, a terceira universidade pública de Moçambique,
com sede em Nampula.
Foi conselheiro do Ministro da Educação (2000-2005).
Atualmente é conselheiro para Pesquisa e Qualidade no Instituto
Superior de Tecnologias e de Gestão (ISTEG), Boane, Moçambique.
Entre as suas funções ao nível internacional constam as de
Presidente da Comissão Internacional para a História da Matemática
em África (desde 1986) e de Presidente da Associação Internacional
para Ciência e Diversidade Cultural (2000-2004). Em 2000, sucedeu o
brasileiro Ubiratan D’Ambrosio como Presidente do Grupo
Internacional de Estudo da Etnomatemática.
É membro da Academia Internacional para a História da Ciência
(sede em Paris). Desde 2005 é Vice-Presidente da Academia Africana
de Ciências, responsável para a África Austral.
Escreveu diversos livros sobre geometria, cultura e história da
matemática, tendo recebido vários prémios.

231
232
Livros em Português do mesmo autor

* Tinhlèlo, Entrecruzando Arte e Matemática: Peneiras Coloridas


do Sul de Moçambique, Alcance Editores, Maputo, 2012
(Prefácio: Aires Ali, Primeiro Ministro de Moçambique)
* Etnomatemática: Cultura, Matemática, Educação. Colectânea
de textos (1979-1991), ISTEG, Boane (Moçambique) [Edição
original: Universidade Pedagógica, Maputo, 1991]
* Teses de doutoramento de Moçambicanos ou sobre
Moçambique, Academia de Ciências de Moçambique, Maputo,
2011, 178 p. [Primeira edição: Ministério da Ciência e
Tecnologia, Maputo, 2006]
* Mundial de Futebol e de Trançados, Lulu, Morrisville NC, 2011,
76 p.
* Geometria dos Trançados Bora na Amazônia Peruana, Livraria
da Física, São Paulo, 2011, 190 p.
* Mulheres, Cultura e Geometria na África Austral, Centro
Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática, Maputo & Lulu,
Morrisville NC, 2011, 200 p.
* Aventuras no Mundo das Matrizes, Lulu, Morrisville NC, 2011,
258 p.
* Pitágoras Africano: Um estudo em Cultura e Educação
Matemática, Centro Moçambicano de Pesquisa Etnomatemática,
Maputo & Lulu, Morrisville NC, 2011, 118 p. (edição a cores)
[Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1992]
* Da etnomatemática a arte-design e matrizes cíclicas, Editora
Autêntica, Belo Horizonte, 2010, 182 p.
* Geometria Sona de Angola: Matemática duma tradição
africana, Lulu, Morrisville NC, 2008, 244 p. [Primeira edição:
Universidade Pedagógica, Maputo, 1993]
* (Org.) A numeração em Moçambique: Contribuição para uma
reflexão sobre cultura, língua e educação matemática, Lulu,
Morrisville NC, 2008, 186 p. [Primeira edição: Universidade
Pedagógica, Maputo, 1993]

233
* Os manuscritos filosófico-matemáticos de Karl Marx sobre o
cálculo diferencial. Uma introdução, Lulu, Morrisville NC,
2008, 108 p. [Primeira edição: Universidade Eduardo Mondlane,
Maputo, 1983]
* Otthava: Fazer Cestos e Geometria na Cultura Makhuwa do
Nordeste de Moçambique, Lulu, Morrisville NC, 2007, 292 p.
* Etnomatemática: Reflexões sobre Matemática e Diversidade
Cultural, Edições Húmus, Ribeirão (Portugal), 2007, 281 p.
* Sipatsi: Cestaria e Geometria na Cultura Tonga de Inhambane,
Moçambique Editora, Maputo, 2003, 176 p. (Capítulo 1: autoria
de Gildo Bulafo)
* Lusona: Recreações Geométricas de África, Moçambique
Editora, Maputo & Texto Editora, Lisboa 2002, 128 p.
[Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo, 1991]
* Geometria Sona: Reflexões sobre uma tradição de desenho em
povos da África ao Sul do Equador, Universidade Pedagógica,
Maputo, 1993/1994, 3 volumes, 489 p.
* (Org.) Matemática? Claro!, Manual Experimental da 8ª Classe,
Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação (INDE),
Maputo, 1990, 96 p.
* Teoremas famosos da Geometria (co-autor Marcos Cherinda),
Universidade Pedagógica, Maputo, 1992, 120 p.
* Trigonometria, Manual da 11ª classe, Ministério da Educação e
Cultura, Maputo, 1981, 105 p.
* Trigonometria, Manual da 12ª classe, Ministério da Educação e
Cultura, Maputo, 1980, 188 p.

Livros sobre jogos e puzzles, publicados pela Editora Lulu, Morrisville


NC, Estados Unidos da América (http://stores.lulu.com/pgerdes,
www.lulu.com/spotlight/pgerdes)

* Mais divertimento com puzzles de biLLies, 2010, 76 p.


* Divertimento com puzzles de biLLies, 2010, 76 p.
* Divirta-se com puzzles de biLLies, 2010, 250 p.
* Puzzles e jogos de bitrapézios, 2008, 99 p.
234
* Jogos e puzzles de meioquadrados, 2008, 92 p.
* Jogo dos bisos. Puzzles e divertimentos, 2008, 68 p.
* Jogo de bissemis. Mais de cem puzzles, 2008, 87 p.
* Puzzles de tetrisos e outras aventuras no mundo dos poliisos,
2008, 188 p.

235
Livros em outras línguas

* History of Mathematics in Africa: AMUCHMA 25 Years (co-


autor: Ahmed Djebbar), AMUCHMA & Lulu, Morrisville NC,
2011, 2 volumes (Volume 1: 1986-1999; Volume 2: 2000-2011),
924 p.
* Tinhlèlò, Interweaving Art and Mathematics: Colourful Circular
Basket Trays from the South of Mozambique, Mozambican
Ethnomathematics Research Centre, Maputo & Lulu, Morrisville
NC, 2010, 132 p.
* Otthava: Making Baskets and Doing Geometry in the Makhuwa
Culture in the Northeast of Mozambique, Lulu, Morrisville NC,
2010, 290 p. & Otthava Images in Colour: A Supplement, 68 p.
* Sipatsi: Basketry and Geometry in the Tonga Culture of
Inhambane (Mozambique, Africa), Lulu, Morrisville NC, 2009,
422 p. & Sipatsi Images in Colour: A Supplement, 56 p.
* Adventures in the World of Matrices, Nova Science Publishers
(Series Contemporary Mathematical Studies), New York, 2008,
196 p.
* Mathematics in African History and Cultures. An annotated
Bibliography (co-autor Ahmed Djebbar), União Matemática
Africana & Lulu, Morrisville NC, 2007, 430 p.
* African Doctorates in Mathematics: A Catalogue, União
Matemática Africana & Lulu, Morrisville NC, 2007, 383 p.
* Sona Geometry from Angola: Mathematics of an African
Tradition, Polimetrica International Science Publishers, Monza
(Itália), 2006, 232 p.
* Awakening of Geometrical Thought in Early Culture, MEP
Press, Minneapolis MN, 2003, 200 p.
* Geometry from Africa: Mathematical and Educational
Explorations, The Mathematical Association of America,
Washington DC, 1999, 210 p. (‘Outstanding Academic Book
2000’, Choice Magazine)
* Ethnomathematics and Education in Africa, Universidade de
Estocolmo (Suécia), 1995, 184 p.

236
* L’EthnoMathématique en Afrique, Lulu, Morrisville NC, 2009,
148 p. [Primeira edição: Universidade Pedagógica, Maputo,
1993]
* Les Mathématiques dans l’Histoire et les Cultures Africaines.
Une Bibliographie Annotée (co-autor Ahmed Djebbar),
Universidade de Lille (França), 2007, 332 p.
* Le cercle et le carré: Créativité géométrique, artistique, et
symbolique de vannières et vanniers d’Afrique, d’Amérique,
d’Asie et d’Océanie, L’Harmattan, Paris (França), 2000, 301 p.
* Ethnomathematik dargestellt am Beispiel der Sona Geometrie,
Spektrum Verlag, Heidelberg (Alemanha), 1997, 436 p.
* Ethnogeometrie. Kulturanthropologische Beiträge zur Genese
und Didaktik der Geometrie, Verlag Franzbecker, Bad
Salzdetfurth (Alemanha), 1990, 360 p.
* Pitagora africano: Uno studio di cultura ed educazione
matematica, Lampi di stampa, Milan (Itália), 2009, 115 p.
* Disegni Africani dall’Angola: Per vivere la matematica, Lulu,
Morrisville NC, 2008, 73 p.

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