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TeoriadaLiteraturaI Aula 03

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Teoria da Literatura I

Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia

Tópico 01: Como compreendemos um texto literário?

A compreensão do texto literário é produto de uma interação entre o leitor e a obra, que leva em
consideração todo um acúmulo de experiências passadas tanto do leitor atual quanto de várias outras
leituras que a obra sofreu. A ideia de compreensão está muito ligada à de apreciação. Vimos que a
compreensão do texto literário não está necessariamente ligada ao querer-dizer do autor; por outro
lado, como o discurso da literatura é rico em conotações, haverá, por conseguinte, várias formas de
compreendê-lo, ou de apreciá-lo. Segundo T. S. Eliot [1].

Não amamos plenamente um poema se não o compreendemos; e, por


outro lado, é igualmente verdadeiro que não compreendemos plenamente um
poema se não o amamos. (ELIOT, citado por COMPAGNON, 1999, p. 87)

Para o poeta Eliot, compreensão e amor são atitudes próximas quando se trata de literatura.

Embora o texto em si seja a fonte privilegiada para a compreensão de uma obra, outros fatores
interferem na leitura. Entre eles, alinham-se as circunstâncias da produção da obra, que podem ser
importantes para sua compreensão; e as circunstâncias de sua recepção (época, lugar, sociedade etc.),
que também podem determinar em grande parte sua compreensão e, consequentemente, a paixão que o
texto suscita.

É preciso, portanto, levar em conta que compreensão diferente não significa traição ao texto. Não
existe, assim, o verdadeiro sentido de um texto; sua recepção certamente será influenciada pelo efeito de
acumulação histórica e pelas idiossincrasias do leitor.

FÓRUM
Vamos estender nossa discussão sobre a constituição do texto literário fazendo uma leitura do
conto “Cães, marinheiros”, do escritor português Herbert Helder. O texto foi publicado no livro Os
passos em volta, que tem edição brasileira (v. bibliografia), mas pode também ser encontrado, em sua
íntegra, no seguinte endereço eletrônico:

http://cercarte.blogspot.com.br/2008/10/ces-marinheiros-de-herberto-helder-os.html [2]

O texto pode ser lido, numa abordagem social, como uma alegoria da opressão, da falta de
liberdade, ou pode ser lido enxergando os eventos narrados como uma reflexão sobre a escrita.
Exercite sua percepção do texto literário, discutindo com os colegas as possibilidades de
interpretação desse texto. Envie seus comentários sobre a narrativa dos cães e seu marinheiro para o
Fórum e depois confira nossos comentários.
Teoria da Literatura I
Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia

Tópico 02: A literatura, o mundo, a recepção

Fonte [3]

A Poética [4], de Aristóteles, escrita no século IV a.C., é o primeiro texto conhecido de teoria da
literatura. Seu autor acreditava que as relações da literatura com a realidade se processavam pela
mimese [do gr. mimèsis, 'imitação'], termo mais geral que concebe essas relações. Segundo o
pensador grego, a literatura devia imitar o mundo real, representando os homens e suas ações como
seres melhores, piores ou iguais aos humanos reais, dependendo da intenção do texto.

Até a segunda metade do século XIX, a concepção mimética da literatura predominou no


pensamento ocidental, até que, a partir do século XX, principalmente, algumas tendências da reflexão
sobre a literatura passaram a apresentar uma visão diferente, e preconizam a autonomia da literatura
em relação à realidade, ao referente, ao mundo.

O referente, ou assunto, portanto, passa, do ponto de vista dessas tendências, a um segundo


plano, ensejando novas relações do texto com a realidade, e o surgimento de novas primazias, como a
da forma sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da
significação sobre a representação.

A teoria da literatura utiliza uma série de termos ligados à relação entre o discurso literário e o
mundo. O mito da referência, da mimese, entretanto, ao ser problematizado, principalmente pelas
teorias que defendem a absolutização do discurso literário, perde-se na cadeia sem origem nem fim
das representações.

TERMOS

“Imitação”, “representação”, “verossimilhança”, “ficção”, “ilusão”, “mentira”, “realismo”,


“referente” ou “referência”, “descrição”. Alguns desses termos já foram usados várias vezes aqui
neste estudo, e reaparecerão durante todo o nosso curso.

A RELAÇÃO DA LITERATURA COM O MUNDO A PARTIR DE


ANTOINE COMPAGNON
O crítico e teórico francês Antoine Compagnon, em seu livro O demônio
da teoria, assim se posiciona sobre a relação da literatura com o mundo:
Assim, na ficção realizam-se os mesmos atos de linguagem que no
mundo real: perguntas e promessas são feitas, ordens são dadas. Mas
são atos fictícios, concebidos e combinados pelo autor para compor um
único ato de linguagem real: o poema. A literatura explora as
propriedades referenciais da linguagem; seus atos de linguagem são
fictícios, mas, uma vez que entramos na literatura, que nos instalamos
nela, o funcionamento dos atos de linguagem fictícios é exatamente o
mesmo que o dos atos de linguagem reais, fora da literatura.
(COMPAGNON, 1999, p. 135)

O mundo ficcional, portanto, passa a ser a referência do leitor quando


este se instala nele, suspendendo sua incredulidade e passando a
acompanhar a ação supra-real:

Os textos de ficção utilizam, pois, os mesmos mecanismos referenciais


da linguagem não-ficcional para referir-se a mundos ficcionais
considerados como mundos possíveis. Os leitores são colocados dentro
do mundo da ficção e, enquanto dura o jogo, consideram esse mundo
verdadeiro, até o momento em que o herói começa a desenhar círculos
quadrados, o que rompe o contrato de leitura, a famosa “suspensão
voluntária da incredulidade”. (COMPAGNON, 1999, p. 137)

A expressão “suspensão voluntária de incredulidade” (willing suspension of disbelief) foi cunhada


pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, no início do século XIX, para se referir à relação que se
estabelece entre o texto e sua recepção. Há, portanto, uma espécie de pacto entre a obra e o leitor, que
garante a credulidade deste, por mais estranho que seja o mundo fictício, que normalmente estabelece
uma relação de possibilidade com o universo real, a menos que o texto literário subverta o contrato.

Considerando a recepção da obra, a literatura vem a ser aquilo que acontece quando o leitor lê, isto é,
os recebedores é que determinam a recepção final do texto. Assim, pode-se considerar que os leitores
recriam os textos que lêem. Os textos terminam por ser a leitura que os leitores fazem deles. A
experiência da leitura é dual, ambígua, dividida, entre compreensão e amor, entre liberdade e imposição,
entre a atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo. Normalmente, o conjunto de recepções das
obras literárias formam as chamadas comunidades interpretativas, que congregam experiências
compartilhadas, tanto literárias como extra-literárias (convenções, um código, uma ideologia etc.). No
dizer de Antoine Compagnon,

As significações não são propriedades nem de textos fixos e estáveis, nem


de leitores livres e independentes, mas de comunidades interpretativas,
responsáveis ao mesmo tempo pelas atividades dos leitores e dos textos que
essas atividades produzem. (COMPAGNON, 1999, p. 162)

CHAT
Após a leitura do texto da aula, do romance Iracema e revendo as aulas anteriores, reflita e
discuta com seus colegas e com o tutor de sua turma, em Chat a ser marcado por ele, as seguintes
questões, que vão servir de base para seus comentários e suas perguntas, bem como de seus
colegas, durante a conversa:

1. Qual é a diferença entre compreender e apreciar um texto literário?

2. Além do texto em si, que outras circunstâncias podem influenciar na compreensão de um texto
literário?

3. No caso de um mesmo texto proporcionar diferentes interpretações de diferentes receptores,


poderemos considerar esse traço como uma virtude ou um defeito do texto literário?

4. É possível atingir o verdadeiro sentido de um texto literário?

5. Qual é a concepção aristotélica de literatura e representação do mundo?

6. Que relação se pode estabelecer entre a obra e a recepção?


Teoria da Literatura I
Aula 03: Literatura - O que Diz, o que se Compreende, o que se Aprecia

Tópico 03: Estilo e juízo de valor

O discurso literário é marcado por seu estilo. Mas o que é o estilo? Essa palavra assume diversas
conotações no decorrer da história da literatura: pode ser a individualidade de um artista, a singularidade
de uma obra, uma escola literária, um gênero.

Desde Aristóteles (384 a 322 a.C.), a noção de estilo assume vários aspectos, conforme as crenças de
uma época em determinada sociedade:

Aspectos do estilo literário

1 - O estilo é uma norma


Em certas épocas, como a clássica, considerava-se o “bom estilo” como um
modelo a ser imitado, um cânone, isto é, uma obra consagrada por sua excelência.
São autores dignos de imitação: Anacreonte, Sófocles, Dante Alighieri, Shakespeare,
Camões etc.

2 - O estilo é um ornamento
Variação contra um fundo comum, efeito ou “toque especial” conferido a uma
determinada obra por um certo autor (a suspeita que plana sobre o estilo: bajulação,
hipocrisia, mentira, imperfeição moral).

3 - O estilo é um desvio
Em relação ao uso corrente da língua (“há várias maneiras de dizer a mesma
coisa”). Essa concepção de estilo é que torna inconfundível, por exemplo, a escrita de
Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, a escrita que carrega a marca do gênio.

4 - O estilo é um gênero ou um tipo


Nesse caso, o estilo é ditado pela conveniência do discurso segundo a
necessidade da situação. Na retórica clássica, essas modalidades de discurso eram
as seguintes: stilus humilis (simples); stilus mediocris (moderado); stilus gravis
(elevado ou sublime). Conforme os objetivos do locutor, os discursos tinham como
finalidade probere (provar), delectare (encantar) ou flectere (comover). Os estilos
literários eram divididos desde a Grécia clássica em épico (relato de uma história),
lírico (expressão da subjetividade e das emoções do locutor) e dramático
(representação de um história). Essas três últimas modalidades serão estudadas
num capítulo à parte, pela importância que assumem na teoria da literatura até os
dias de hoje.

5 - O estilo é um sintoma, uma assinatura


Nesse caso, o estilo é considerado como a visão singular, a marca do sujeito no
discurso (a partir do século XVII, com a consolidação dos valores burgueses), a
determinação de um cânone, do valor de mercado, a avaliação mensurável (a partir
de fins do século XVIII).
6 - O estilo é uma cultura
A alma de uma nação, de uma raça, a unidade da língua e as manifestações
simbólicas de um grupo ensejam o aparecimento de um modelo global, um motivo
dominante.

Ainda segundo Antoine Compagnon,

O estilo, pois, está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa, rica, ambígua,
múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquiria outras, a
palavra acumulou-as e hoje pode comportá-las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma,
cultura, é tudo isso que queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos
de um estilo. (COMPAGNON, 1999, p. 173)

A linguística condena a noção tradicional de estilo, baseada no dualismo, na noção de que


determinada modalidade linguística é “boa” ou “ruim”. De forma semelhante, a literatura contemporânea
não mais considera o julgamento de uma obra literária em termos de modelos ou de certas formas mais
ou menos consagradas de “bom gosto”.

Dizer de forma diferente uma coisa é dizer a mesma coisa? O estilo implica uma escolha entre
diferentes maneiras de dizer a mesma coisa (tornando-as diferentes). A sinonímia, por exemplo, que é um
rico recurso das línguas que admite várias maneiras diferentes de se dizer coisas semelhantes, pressupõe
a referência (uma coisa a ser dita), e a intenção (uma escolha entre diferentes maneiras de dizer). Uma
revisão do conceito de sinonímia pode salvar o estilo:

Em outros termos, para salvar o estilo, não se é obrigado a crer na


sinonímia exata e absoluta, mas somente admitir que há maneiras muito
diferentes de dizer coisas muito semelhantes e, inversamente, maneiras
muito semelhantes de dizer coisas muito diversas.

Excetuando-se sua concepção como norma, prescrição ou cânone, o estilo continua vivo em três
aspectos principais:

a) como variação formal de um referente mais ou menos estável;

b) como um conjunto de características de uma obra que permite a identificação do


autor;

c) como escolha entre várias escrituras.

A discussão acerca do estilo nos leva a uma outra questão: as avaliações literárias podem ter um
fundamento objetivo ou mesmo sensato? Em toda a trajetória da arte e da literatura na chamada
civilização ocidental, deparamo-nos com conceitos ligados ao valor, tais como: cânone, tradição,
clássicos, grandes escritores, panteão, obra-prima, autoridade, originalidade, revisão, reabilitação.
O cânone, por exemplo, é o patrimônio de uma literatura, que a memória coletiva consolidou como
uma classificação relativamente estável.

O valor literário, entretanto, é relativo, instável: as obras entram e saem do cânone ao sabor das
variações do gosto, cujo movimento não se faz racionalmente. Conclui-se, portanto, que não há padrões
definidos de excelência para uma obra literária.

LEITURA COMPLEMENTAR
O texto, de Antoine Compagnon, coloca em evidência a questão do valor relacionado à literatura.
Clique aqui. (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)

REFERÊNCIAS
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Edições Século XXI, 2000.

Fontes das Imagens

1 - http://pt.wikipedia.org/wiki/T._S._Eliot
2 - http://cercarte.blogspot.com.br/2008/10/ces-marinheiros-de-herberto-helder-os.html
3 - http://images.livrariasaraiva.com.br/imagemnet/imagem.aspx/?pro_id=3672824&qld=90&l=430&a=-1
4 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Po%C3%A9tica_(Arist%C3%B3teles)

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