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Apostila Introdução Aos Estudos Literários 1

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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


LITERÁRIOS

GUARULHOS – SP
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 4

2 O QUE É LITERATURA?....................................................................................... 5

2.1 Função da Literatura............................................................................................ 6

2.2 Gêneros Literários ............................................................................................... 6

2.3 Texto literário X texto não literário ....................................................................... 7

3 A LINGUAGEM LITERÁRIA ................................................................................ 10

3.1 Literariedade ...................................................................................................... 11

3.2 Linguagem literária — poesia e prosa ............................................................... 18

3.3 Prosa de ficção .................................................................................................. 20

3.4 Ficção e discurso ............................................................................................... 22

4 NATUREZA E FUNÇÕES DA LITERATURA ...................................................... 25

4.1 Arte e literatura .................................................................................................. 25

4.2 Prazer e utilidade ............................................................................................... 27

4.3 Literatura e escrita ............................................................................................. 28

5 LEITURA E LITERATURA ................................................................................... 32

5.1 A importância das diferentes formas de leitura no cotidiano escolar ................. 32

5.2 O que diferencia a leitura da literatura da leitura de outros tipos de texto? ....... 36

5.3 Métodos de leitura: diferentes possibilidades para serem aplicadas em sala de


aula 40

6 GÊNEROS DISCURSIVOS LITERÁRIOS ........................................................... 45

6.1 Linguagem literária ............................................................................................ 45

7 RECURSOS LINGUÍSTICOS DO TEXTO LITERÁRIO ....................................... 53

8 NARRATIVA LITERÁRIA ..................................................................................... 56

2
8.1 Autor, narrador e narratário ............................................................................... 56

8.2 Autor & narrador ................................................................................................ 59

8.3 Leitor & narratário .............................................................................................. 61

8.4 Níveis do discurso ............................................................................................. 64

8.5 Níveis do discurso específicos da narrativa ....................................................... 68

8.6 Recursos técnico-discursivos utilizados nas narrativas literárias ...................... 69

9 BIBLIOGRAFIA BÁSICA ...................................................................................... 72

3
1 INTRODUÇÃO

Prezado aluno!

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao


da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se
levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que
seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a
pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é
a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao
protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe
convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e
prazos definidos para as atividades.
Bons estudos!

4
2 O QUE É LITERATURA?

A literatura (do latim littera, que significa “letra”) é uma das manifestações
artísticas do ser humano, ao lado da música, dança, teatro, escultura, arquitetura, dentre
outras. Ela representa comunicação, linguagem e criatividade, sendo considerada a arte
das palavras.
Trata-se, portanto, de uma manifestação artística, em prosa ou verso, muito antiga
que utiliza das palavras para criar arte, ou seja, a matéria prima da literatura são as
palavras, tal qual as tintas é a matéria prima do pintor.
De tal maneira, o conceito de literatura também pode compreender o conjunto de
histórias fictícias inventadas por escritores em determinadas épocas e lugares, sejam
poemas, romances, contos, crônicas, novelas.
Os textos literários possuem uma função muito importante para o ser humano, de
forma que provocam sensações e produzem efeitos estéticos os quais nos fazem
entender melhor nós mesmos, nossas ações bem como a sociedade em que vivemos.
Segundo o crítico literário Afrânio Coutinho:

"A Literatura é, assim, a vida, parte da vida, não se admitindo possa


haver conflito entre uma e outra. Através das obras literárias, tomamos contato
com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares,
porque são as verdades da mesma condição humana."

Nesse sentido, devemos lembrar que o conceito de literatura foi se alterando ao


longo do tempo, e seu significado tal qual conhecemos hoje, é diferente da visão clássica
de antanho.
Para o filósofo Grego Aristóteles, um dos primeiros a focar nos estudos sobre essa
arte: “A Arte literária é mimese (imitação); é a arte que imita pela palavra”.
Com efeito, o conceito de literatura foi se ampliando e abrangendo assim, diversos
textos que englobam os gêneros literários que hoje conhecemos: literatura infantil,
literatura de cordel, literatura marginal, literatura erótica, dentre outros.

5
2.1 Função da Literatura

A arte literária representa recriações da realidade produzidas de maneira artística,


ou seja, que possui um valor estético, de onde o autor utiliza das palavras em seu sentido
conotativo (figurado) para oferecer maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao
texto.
Dessa forma, a literatura possui um importante papel social e cultural envolvido no
contexto em que fora criada, posto que abarca diversos aspectos de determinada
sociedade, dos homens e de suas ações e, portanto, que provoca sensações e reflexões
do leitor. Para o filósofo francês Louis-Gabriel-Ambroise, Visconde de Bonald: “A
literatura é a expressão da sociedade, como a palavra é a expressão do homem. ”

2.2 Gêneros Literários

Os gêneros literários são categorias da literatura que englobam os diversos tipos


de textos literários segundo sua forma e conteúdo.
Tanto o conceito de literatura se modificou ao passar do tempo como o de gênero
literário, uma vez que os gêneros literários, abordado por Aristóteles, eram classificados
de três maneiras, semelhante ao que conhecemos hoje, embora possua diferenças.
De acordo com o esquema proposto por Aristóteles, os gêneros literários eram
divididos em: Lírico (“palavra cantada”), Épico (“palavra narrada”) e Dramático (“palavra
representada”). (MUNIZ,2019)
Atualmente, o gênero épico, que envolvia as narrativas históricas baseado nas
lendas e na mitologia, foi substituído pelo gênero narrativo. Sendo assim, os gêneros
literários são classificados em:

 Gênero Lírico: possui um caráter sentimental com presença do eu-


lírico, por exemplo, as poesias, odes e sonetos.

6
 Gênero Narrativo: possui um caráter narrativo, ou seja, envolve
narrador, personagens, tempo e espaço, por exemplo, os romances,
contos e novelas.
 Gênero Dramático: possui um caráter teatral, ou seja, são textos para
serem encenados, por exemplo, tragédia, comédia e farsa.
(MUNIZ,2019)

Fonte: www.gestaoeducacional.com.br

2.3 Texto literário X texto não literário

A literatura é definida como uma expressão artística realizada por meio da palavra,
no entanto, é preciso tomar um cuidado: nem todo texto é considerado literário.
Basta se lembrar que a finalidade da literatura / de obras literárias é entreter o
leitor. Se determinado texto não tiver como fim o entretenimento, ele não será
considerado literário.

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De modo geral, um texto não literário se caracteriza por ter as seguintes
características de maneira marcante e facilmente identificáveis:

 Função utilitária, com a finalidade de fornecer alguma informação ao


leitor;
 Uso de linguagem denotativa, o que torna o texto objetivo;
 Preservação da impessoalidade e imparcialidade, sem expressar
opiniões;
 Ausência de recursos estilísticos, como as figuras de linguagem,
reforçando a objetividade do conteúdo.

Tais características são encontradas em textos jornalísticos, bulas de


medicamentos, entrevistas, artigos científicos, dicionários, guias técnicos de
equipamentos e eletrônicos, entre outros. (CORTES,2019)
Para elucidar essa questão, separamos exemplos de criações que são
consideradas textos literários e não literários. Confira, a seguir, quais são eles:

Texto literário

“QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes


que não tinha entrado na história”.

Poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, em Alguns Poemas.

8
Texto não literário

INFORMAÇÕES AO PACIENTE

1. PARA QUE ESTE MEDICAMENTO É INDICADO?

Este medicamento é indicado como analgésico (medicamento para dor) e


antitérmico (medicamento para febre).

2. COMO ESTE MEDICAMENTO FUNCIONA?

Dipirona é um medicamento à base de dipirona, utilizado no tratamento das

manifestações dolorosas e de febre. Os efeitos analgésico e antitérmico podem ser

esperados em 30 a 60 minutos após a administração e, geralmente, persistem por,


aproximadamente, 4 horas. (Trecho da bula do medicamento Dipirona, disponibilizada pela Anvisa.)

Fonte: www.textoinstructivosextobasico.com.br

9
3 A LINGUAGEM LITERÁRIA

Existe uma infinidade de formas e estilos literários surgidos desde a origem da


escrita. Entre os teóricos da literatura, há certa afinidade no sentido de reconhecer o que
é e o que não é literário. Porém, nota-se uma divergência muito grande para identificar,
pontualmente, quais aspectos são, de fato, essenciais à constituição do texto literário.
Por conta disso, ao longo dos séculos, surgiram muitas descrições, hipóteses e
prescrições em relação ao literário. Isso se deve ao fato de que a própria literatura muda
ao longo do tempo. (Flach, 2018).
Mesmo assim, parece haver um consenso: a especificidade da literatura está na
linguagem empregada. A literatura, para existir, se vale dos mesmos recursos linguísticos
necessários à comunicação do cotidiano a saber, o domínio de uma língua (português,
espanhol, russo, grego) e da linguagem em todos os seus níveis (vocabulário,
organização textual, sentidos). A linguagem é um produto social, que só existe por meio
da interação entre seus usuários. Daí que, ao fazer uso da linguagem, sempre se leva
em consideração o destinatário da comunicação e os efeitos pretendidos. Contudo, há
uma preocupação estética na linguagem literária que é inexistente ou secundária em
textos não literários.
E é aí que as diferenças começam a se estabelecer. Um conceito mais ou menos
abrangente de literatura é o que a define como uma arte verbal. De fato, na literatura há
um esforço criativo em relação à linguagem cotidiana. Além disso, a definição de literatura
também está relacionada à ideia de uma representação de mundo. Enquanto a
linguagem em uso cotidiano corresponde à ideia de uma verdade, a uma informação, a
linguagem literária corresponde a uma representação da realidade. Justamente por ser
uma representação, não é a realidade. Nesse processo de representação está o olhar
particular do artista, como revela Massaud Moisés (1995, p. 314):

Dado ser impossível captar a realidade por via direta, só resta conhecê-
la por meio de um sinal que a represente, não como tal, visto ser impossível, mas
como pode ser expressa, ou seja, enquanto se submete à expressão: assim,
conhecemos a representação da realidade, não ela própria. Mas fazê-lo implica
“mentir”, “fingir” a realidade que se mostra, de modo que a realidade espelhada
na representação não é a que se deseja conhecer, mas como aparece na mente
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do artista; ou seja, como se reflete na sua imaginação. Daí a concluir que
Literatura é ficção, ou imaginação.

“Mentir” e “fingir” aqui não são empregados em sentido pejorativo, mas com o
propósito de mostrar que a literatura não é a realidade, e sim uma representação
(metafórica, multissignificativa, subjetiva) desta, que se vale das potencialidades da
linguagem para produzir novos sentidos. Tal conceito está ancorado na ideia aristotélica
de mimese, ou seja, a arte literária como imitação da realidade, com meios próprios
(linguagem) e também como possibilidade, como imaginação daquilo que poderia
acontecer. Nesse sentido, toda imitação é criação, não cópia.
Outro ponto que você deve considerar em relação à constituição da literatura é
seu caráter de fruição, ou seja, seu componente lúdico, sua capacidade de seduzir o
leitor, de dar-lhe prazer, de fazê-lo experimentar outras situações, esquecendo-se, muitas
vezes, da realidade. Isso não significa, de modo algum, que a literatura aliena. Pelo
contrário, é também por meio da experiência de leitura que o homem descobre a si
mesmo, o mundo e a sua relação com ele. Nesse processo, o texto literário assume uma
função essencial, de redimensionamento da realidade, de valores, de organizações
sociais, levando o leitor, inclusive, a posicionar-se criticamente. (Flach, 2018).

3.1 Literariedade

Para compreender o que é um texto literário, ou seja, o que o distingue dos demais
tipos de linguagem, é interessante retomar o conceito de literariedade. Como você já viu,
diante de um objeto de estudo tão amplo e diversos quanto a literatura, não se pode
atribuir a um aspecto único (pontual e concretamente expresso) o ser literário. Trata-se,
portanto, de um conjunto de características, expressas com mais ou menos evidência na
constituição do texto literário.
O termo literariedade é bastante amplo e parece dar conta da necessidade teórica
de se estabelecer um objeto de estudo. Ele surgiu entre os formalistas russos, mais

11
especificamente referido por Roman Jakobson, em 1919. O termo surge pela
necessidade de se analisar a literatura por meio da identificação de seus traços poéticos.
Isso não significa que os traços definidores da literariedade sejam os mesmos para todos
os textos, nem que não mudem ao longo do tempo. Pelo contrário, é justamente a ampla
variabilidade inventiva e as várias formas de expressão que tornam possível pensar a
literatura como um objeto de análise tão singular. Para compreender um pouco mais
sobre os traços que podem constituir a literariedade e como a compreensão desse
conceito variou ao longo da história, considere os dois textos reproduzidos a seguir.

Texto 1
Com os descobrimentos, a Nação vai tornar-se consumidora de bens produzidos
fora dela, ou da riqueza que através desses bens consegue. Isso explica que o início do
período das grandes navegações coincida com o termo do período das guerras civis. A
expansão passa a constituir desde então uma espécie de grande projeto nacional, ao
qual todos aderem porque todos esperam vir a ganhar com ele. E explica também que a
política de expansão ultramarina tenha repercutido tão profundamente sobre tantos
aspectos da vida portuguesa (SARAIVA, 1979, p. 132-133).

Texto 2
MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas
noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da
dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deram, Mas nele é que espelhou o céu (PESSOA,
2008, p. 82).

Em ambos os textos, você pode perceber aspectos comuns: o emprego da mesma


língua (português) e a referência ao mesmo fato histórico (o impacto das expansões
marítimas portuguesas na era dos descobrimentos). Como, então, distinguir os textos? É
provável que você saiba quem é Fernando Pessoa, e isso já o leva a concluir que o que

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é escrito por ele pertence ao campo da literatura. O título das obras das quais os textos
foram retirados também já dá pistas de quais são seus enquadramentos.
No entanto, do ponto de vista teórico, as distinções são mais complexas,
envolvendo uma observação mais atenta. O Texto 1 possui uma linguagem referencial,
ou seja, visa a apresentar um fato, descrever uma situação com a maior especificidade
possível, sendo, portanto, um texto informativo, não ficcional. O Texto 2, busca
representar as impressões e sensações decorrentes da percepção artística acerca do
mesmo fato descrito pelo Texto 1. Pode-se afirmar que há, entre ambos, propósitos
distintos e, portanto, ações diferentes entre seus autores.
No caso do texto de história, para que seja validado como tal, deve haver uma
correspondência clara entre o que é dito e a realidade. Qualquer “invenção” ou “exagero”,
nesse caso, tornaria autor e obra desacreditados, um grande problema para a história, o
que não significa que um texto histórico não esteja sujeito a mais de uma interpretação
ou a equívocos em relação a fatos e narrativas. O historiador, em seu compromisso com
a verdade, busca evitar ao máximo esse tipo de ocorrência.
Fernando Pessoa (2008), por sua vez, na condição de poeta, ao compor o verso
“Por te cruzarmos, quantas mães choraram”, não precisa apresentar provas de que isso,
de fato, aconteceu. No entanto, o leitor percebe a legitimidade disso, na medida em que
aceita a ideia da separação como uma fonte de saudade. O mar, no poema, adquire
múltiplas significações, sendo, ao mesmo tempo, motivo de dor (composto de lágrimas,
abismo, perigo) e glória (“Mas nele é que espelhou o céu”). A partir da leitura, você pode
notar certa contradição entre a grandeza do mar e do futuro de Portugal ao desbravá-lo,
por um lado, e a dor da separação que essa audácia implica, por outro.
Ou seja, o texto de Pessoa é um modo poético de expressar a ideia do historiador
José Saraiva (1979) de que a conquista marítima “[...] tenha repercutido tão
profundamente sobre tantos aspectos da vida portuguesa”. Sob outro enfoque, o Texto 1
refere-se a uma realidade estanque, concreta, a um período específico da história. Já o
Texto 2, justamente por sua literariedade, não se encerra em si mesmo, nem se fixa em
um ponto específico. Para confirmar isso, basta você lembrar-se de quantas vezes leu
ou ouviu a expressão “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” aplicada a diversos
contextos de comunicação. Inclusive, é possível ouvir esse trecho num contexto
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qualquer, sem qualquer referência ao seu autor ou ao contexto português no qual o
poema se insere. Isso explicita outros dois aspectos da linguagem literária: sua
atemporalidade e sua universalidade. Ao contrário da linguagem cotidiana, de emprego
puramente comunicativo (como no caso de um texto de história), a linguagem literária
possui significação aberta, adapta-se, recebe novos sentidos, estimula reações e usos
até mesmo nem pensados por seu criador.
O poeta e crítico mexicano Octavio Paz (2012a, p. 46) afirma que “[...] a criação
literária tem início como violência sobre a linguagem”, na medida em que há o “[...]
desarraigamento das palavras”. Ou seja, a palavra literária, por ser empregada em
sentidos e formas diferentes daqueles convencionais, provoca, causa estranheza,
desperta admiração, choca. Daí que essa “violência” esteja associada à ideia de “desvio”,
de quebra de expectativas.
Quanto mais esses aspectos de ruptura chamam a atenção, mais perceptível é o
trabalho de criação e o efeito estético da obra. Essa ideia inicia com os formalistas, para
quem a literatura envolveria traços diferenciais entre um discurso e outro. Portanto, não
seria uma característica perene ou inerente, como explica Terry Eagleton (2006).
A intenção dos formalistas, por essa razão, não era definir “literatura”, mas
“literaturidade” (ou “literariedade”), “os usos especiais da linguagem, que não apenas
podiam ser encontrados em textos ‘literários’, mas também em muitas outras
circunstâncias exteriores a ele” (EAGLETON, 2006, p. 20). O problema disso, para
sustentar uma definição estável de literatura, é que essas características especiais (por
exemplo, o uso de figuras de linguagem, como metáforas) também podem ser
encontradas em outros textos não literários, como a fala cotidiana.
Mesmo assim, para os formalistas, a “essência” do literário era sua estranheza,
ou seja, o impacto que causa no leitor. Mais uma vez, porém, outros tipos de escritas
também poderiam ser considerados “estranhas”, e nem por isso seriam percebidas como
literárias. Ainda assim, um dos elementos que permanece como característica do literário
é o predomínio da linguagem conotativa em oposição à linguagem denotativa, que
caracteriza a linguagem comunicativa. No caso desta última, há um vínculo maior entre
o que está sendo dito/escrito e a realidade.

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Já na linguagem conotativa predomina a representação da realidade, implícita,
figurativa, interferindo, de certa forma, no sentido denotativo. Como exemplo, considere
a palavra “mar”. No poema de Fernando Pessoa indicado previamente, a palavra faz
referência a um significado conhecido por todos (sentido denotativo): uma extensão de
águas salgadas. No entanto, vai além dele. O “mar” de Pessoa é “humanizado”, o eu
lírico dialoga com ele, faz perguntas, o que coloca essa palavra em um plano de
significação para além do seu sentido geográfico. Assim, o mar passa a envolver o
mistério, a grandiosidade, o abismo. O sentido conotativo do texto requer que o leitor
recorra a conhecimentos que estão além do domínio da estrutura da língua.
Envolve questões culturais, míticas, filosóficas, entre outras. Assim, o texto literário
torna-se atemporal na medida em que é sempre ressignificado no tempo (um mesmo
leitor pode ler um texto em momentos diferentes de sua vida e construir sentidos diversos,
assim como leitores diferentes em momentos diferentes). O texto literário também visa
ao universal, já que os temas e a linguagem são comuns a várias culturas. Pense em
como os temas amor, viagem e guerra são tratados na literatura mundial desde os tempos
mais remotos.
São assuntos prontamente reconhecíveis, que impactam diretamente o leitor, em
qualquer lugar ou época, ainda que constantemente recriados pela linguagem. Daí aquilo
que Ezra Pound (2006, p. 33) infere: “Literatura é novidade que permanece novidade”.
Você deve, ainda, considerar a ficcionalidade e a verossimilhança. Na medida em que a
literatura é representação, figuração, é produto de uma imaginação (ficção). Por mais que
um romance, por exemplo, seja histórico, não se pode exigir dele “verdade”, fidelidade
aos fatos, e sim uma equivalência da verdade, a verossimilhança. Por verossimilhança
entende-se a impressão que o texto passa de poder ser verdade, pode acontecer, mesmo
que a história seja fantástica ou sobrenatural.
O texto literário requer uma coerência interna. Ou seja, a pertinência e a
consistência do texto seguem a lógica da imaginação proposta pelo autor. Assim é que,
como leitor, você aceita que um homem seja transformado em inseto, como Gregor
Samsa, em A metamorfose, de Kafka. Afinal, pela lógica interna do texto, você entende
como isso se dá. Sobre essas questões, no entanto, também há questionamentos.
Mesmo os textos históricos partem também de pontos de vista, ainda que possam ser a
15
reunião de muitos pontos de vista convergentes, e sua “verdade” pode ser contestada.
(Flach, 2018).
Além disso, há textos que não necessariamente nasceram como literatura, mas
foram assim considerados posteriormente (como é o caso de “Os sertões”, de Euclides
da Cunha, identificado também como jornalismo literário). Na literatura, de qualquer
modo, exaltam-se a liberdade de expressão e a criatividade do autor em ressignificar e
reestruturar a linguagem referencial, dando forma à linguagem literária. Por conta dessa
liberdade e dessa criatividade, há certa dificuldade para se descrever o texto literário ou
para se prescrever como fazê-lo, já que os limites de criação inexistem. Logo, as
expressões literárias são incontáveis.
O poeta pode ou não se valer das convenções e buscar ressignificá-las, reordená-
las. Na tentativa de classificar ou descrever esses muitos modos de literatura, pense em
quantos estilos literários há, agrupados conforme o tema ou o público leitor (literatura
infantil, gótica, de aventura), ou conforme a época (medieval, barroca, romântica). Mesmo
se você considerar apenas uma dessas subcategorias, há diferentes usos da linguagem.
Considerando todas as características apontadas acima, é possível perceber que
nem sempre todas estão presentes em todas as obras literárias. Há obras que nascem
como literatura, e outras que apenas se tornam literatura depois de um tempo. Há obras
que visam o belo e outras que são consideradas “marginais”. Há um uso especial da
linguagem literária, mas outras linguagens podem por vezes utilizar os mesmos recursos.
Assim, a identificação de um texto como literatura depende também do modo como
alguém o lê, e do valor que lhe é dado. Podemos concluir disto que a literariedade como
conceito passou por transformações ao longo da história. Para Antônio Candido, por
exemplo, na Formação da literatura brasileira, a literatura é um sistema, ou seja, a
literariedade também não dependerá de fatores imanentes à obra, mas sim de sua
relação com a sociedade, partindo de uma tradição e gerando um público leitor.
Nesse sentido, o sistema literário seria constituído por autor, obra e público.
Qualquer desses aspectos que faltasse não geraria um sistema, mas sim apenas uma
manifestação literária. Houve respostas a essa teoria, como a de Haroldo de Campos,
em O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira, em que o autor
argumenta contra a noção de história defendida por Candido e discute a importância do
16
Barroco para a literatura brasileira, que teria sido excluído do cânone nacional a partir da
teorização de Candido.
Recentemente, estudiosos como Terry Eagleton (2006) chamam atenção para o
fato de que, na seleção de um conjunto de obras consideradas literárias, entra em jogo
também juízos de valor e ideologias. Antoine Compagnon, em Literatura para quê? Por
exemplo, assim define o conceito de literariedade: “qualidade da forma que estabelece a
literatura como literatura mais que a função cognitiva, ética, pública da literatura” (2009,
p. 24). Assim, reafirma que a forma é fundamental na composição do literário, mas
também aponta que essa arte está além de outras funções, como a cognitiva ou a ética,
talvez justamente por ser poética.
Ela não se limita, portanto, a uma só função ou definição, mas é uma combinação
de fatores e escolhas. Tudo o que você viu até aqui converge para a conclusão de que a
literatura reúne elementos diversos e não um grupo homogêneo de características
definitivas. Porém, apesar desses traços serem variáveis, é importante descrevê-los e,
mais ainda, discuti-los e questiona-los. A seguir, você vai ver que há diferenças em
relação ao modo como os textos são organizados e aos seus efeitos. Em especial, notam-
se caminhos específicos para a poesia e para a prosa.

Fonte: www.youtube.com.br

17
3.2 Linguagem literária — poesia e prosa

Você viu previamente que a linguagem literária se diferencia da linguagem


convencional (mera comunicação) por conta dos sentidos e efeitos da palavra, que é
empregada em sentido conotativo e envolve criação e imaginação. No âmbito da
literatura, de forma mais específica, há ainda um grande número de recursos linguísticos
e estruturais capazes de definir e organizar os textos. Isso leva a uma variedade bem
significativa. Nesta seção, você vai estudar a linguagem literária por meio da análise de
textos escritos em verso e em prosa. (Flach, 2018).
As características da linguagem literária já apontadas estão presentes em todas
as obras literárias. Porém, há especificidades da linguagem perceptíveis na poesia que
estão menos evidentes nos textos em prosa, e vice-versa. O principal diferenciador é a
presença do verso na poesia e a ausência deste na prosa. Cada vez mais, no entanto,
na literatura moderna e contemporânea, os limites entre uma e outra têm se diluído, com
a supressão de rimas e paralelismos e a substituição pelo verso livre na poesia e com o
maior uso de imagens e ritmo na prosa. Isso não impede, no entanto, que possa haver
uma sistematização quanto a aspectos próprios a cada forma.

Poesia

Ainda que não seja regra, na poesia, tem-se uma linguagem mais “aberta”, ou seja,
mais sugestiva. A própria organização em versos leva a isso. Na prosa, por outro lado,
inclusive pela extensão do texto, as ideias são construídas de modo mais detalhado. Na
poesia, de modo geral, o aspecto estético e visual, o ritmo e os recursos sonoros são
mais evidentes.
Já na prosa essa disposição das palavras e dos sons para fins de apreciação por
si só pode ser secundária ou até dispensável, conforme o estilo. Como você já viu, em
textos mais modernos, essas características específicas tendem a se mesclar. Em textos
mais clássicos, as distinções entre prosa e poesia são mais evidentes. Nota-se, por
exemplo, a organização do texto poético em estrofes, a preocupação intensa com o ritmo,

18
com o tamanho do verso, com a rigidez formal. No poema a seguir, de Alberto de Oliveira,
é clara a preocupação do poeta com a métrica, a rima e o emprego do soneto: forma
clássica de composição poética.

Horas mortas
Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso
Posso a ti me entregar, doce Poesia.

Desta janela aberta, à luz tardia


Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica


Mas é tão tarde! Rápido flutuas tornando
Logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica


Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade (OLIVEIRA, 1967).

Além de ser possível, pela leitura, imaginar o espaço, a casa, percebe-se, ainda,
o cansaço do eu lírico, a expectativa do repouso e da escrita. A Poesia (personificada,
escrita em letra maiúscula) remete a uma ausência, a uma saudade, a alguém que o eu
lírico não esquece. O próprio título apresenta uma simbologia interessante, tanto se
referindo à noite (horas mortas), ao final do dia, quanto a um estado de espírito de
desistência, de inutilidade, de desperdício. O poema constrói-se, então, a partir de vários
19
sentidos. Retomando a ideia da circularidade, proposta por Octavio Paz, você pode
perceber que o poema se volta para si mesmo, ou seja, centra-se na figura do “eu” e em
sua percepção sobre a vida, no seu modo particular de sentir e representar.
O poema parte de uma descrição mais concreta (fim do dia, descanso, casa) e
avança até um sentido mais aberto, remetendo a uma grande possibilidade de
interpretações (“Um verso, um pensamento, uma saudade”). (OLIVEIRA, 1967).

3.3 Prosa de ficção

No caso da prosa, com seu caráter progressivo, que avança, como afirma Octavio
Paz, outros aspectos são mobilizados. A prosa de ficção está relacionada à narrativa.
Romance, conto e novela são alguns exemplos da ficção em prosa, distintos entre si
conforme a extensão e a ênfase dada a um ou mais episódios narrativos. Em comum, há
o fato de que, diferentemente do que ocorre na poesia, focada nas percepções do eu
lírico, tem-se, na prosa, a presença de um narrador. Esta é uma instância que organiza
o discurso literário a partir de um ponto de vista, que pode ser mais ou menos pessoal,
conforme o tipo de narrador (primeira pessoa, terceira pessoa). O texto narrativo parte
de uma situação-problema.
Em torno dela se desenvolve a história, pela ação de personagens e pela
progressão no tempo e no espaço. A ênfase do texto em prosa não é na sonoridade das
frases ou mesmo na sugestão de ideias: é na apresentação de um caso por meio de
narrativa e descrição. Nesse sentido, a verossimilhança adquire importância maior do
que na poesia. É necessário ter maior atenção à coerência interna do texto. O conto a
seguir, de Moacyr Scliar, exemplifica bem a linguagem do texto em prosa.

Mílton e o concorrente
Mílton ainda não abriu a sua loja, mas o concorrente já abriu a dele; e já está
anunciando, já está vendendo, já está liquidando a preços abaixo do custo. Mílton ainda
está na cama, ao lado da amante, desta mulher ilegítima, que nem bonita é, nem
simpática; o concorrente já está de pé, alerta, atrás do balcão. A esposa fiel companheira
de tantos anos está a seu lado, alerta também. Mílton ainda não fez o desjejum
20
(desjejum? Um cigarro, um copo de vinho, isto é desjejum?) O concorrente já tomou suco
de laranja, já comeu ovo, torrada, queijo, já sorveu uma grande xícara de café com leite.
Já está nutrido. Mílton ainda está nu, o concorrente já se apresenta elegantemente
vestido. Mílton mal abriu os olhos, o concorrente já leu os jornais da manhã, já está a par
das cotações da bolsa e das tendências do mercado. Mílton ainda não disse uma palavra,
o concorrente já falou com clientes, com figurões da política, com o fiscal amigo, com os
fornecedores.
Mílton ainda está no subúrbio; o concorrente, vencendo todos os problemas de
trânsito, já chegou ao centro da cidade, já estar solidamente instalado no seu prédio
próprio. Mílton ainda não sabe se o dia é chuvoso, ou de sol, o concorrente já está
seguramente informado de que vão subir os preços dos artigos de couro. Mílton ainda
não viu os filhos (sem falar da esposa, de quem está separado); o concorrente já criou
as filhas, já as formou em Direito e Química, já as casou, já tem netos. Milton ainda não
começou a viver. O concorrente já está sentindo uma dor no peito, já está caindo sobre
o balcão, já está estertorando, os olhos arregalados, já está morrendo, enfim (SCLIAR,
1979, p. 44-45).
O aspecto que mais se destaca nesse conto é o ritmo. Ao contrário da poesia mais
tradicional (verso, rima, sonoridade), aqui o ritmo (rápido) se dá pelo encadeamento das
ações, pelas frases curtas, pela síntese narrativa e pelo grande número de ações
expresso em um curto espaço de tempo.
A comparação entre as ações de Mílton e do concorrente e a rapidez da narrativa
(ritmo) estão a serviço do sentido do texto: levar a uma reflexão sobre modos de vida e
escolhas, sobre a efemeridade do tempo. Observe a extensão dos dois primeiros
parágrafos (ritmo acelerado) e a extensão dos dois últimos (desaceleração). Ainda que
seja improvável, no mundo real, que alguém (como o narrador) possa saber exatamente
o que duas pessoas fazem no mesmo momento (note a sincronia entre suas ações), no
plano literário isso é verossímil. Ou seja, há uma coerência interna ao texto que possibilita
aceitar o domínio que o narrador tem sobre as personagens. Além disso, o leitor aceita
que aquilo que acontece a uma e outra personagem é crível, poderia acontecer no mundo
real.

21
3.4 Ficção e discurso

Um elemento que você ainda deve considerar acerca da linguagem literária é a


constituição do discurso no texto ficcional. Como você já viu, a ficção é uma
representação da realidade. Ela atua sobre os sentidos do real, mas não nega a
realidade. Isso significa que o texto literário traz marcas de várias interações sociais pela
linguagem. Na medida em que um autor organiza o texto literário, leva em consideração
alguém a quem se dirige (destinatário, leitor), fazendo uma seleção de formas da língua.
Esse conjunto individual de escolhas e organizações textuais ditas ou escritas
por um sujeito compõe um discurso. No texto literário, muitas vezes se percebe a
confluência de vários discursos (de um ou mais narradores): das várias personagens, do
próprio autor. Ou seja, o discurso implica uma dimensão social da língua, seus falantes,
sua ideologia. Há, portanto, uma relação dialógica: entre um eu que fala e organiza o
discurso (ou até mais de um, no caso da polifonia) e um tu a quem ele se dirige e que
também é levado em consideração na composição discursiva. (OLIVEIRA, 1967).
O texto literário, em especial em prosa (por conter narrador e personagens), é
capaz de reunir essas várias vozes. Os conceitos de dialogismo e polifonia têm sido muito
importantes para a teoria literária. Eles são uma contribuição do estudioso russo Mikhail
Bakhtin (1895–1975), que chamou a atenção para os vários discursos presentes em um
mesmo texto. Duas de suas obras são fundamentais para você aprofundar o seu
conhecimento nessa área: Marxismo e filosofia da linguagem (para entender melhor o
conceito de dialogismo) e Problemas da poética de Dostoievski (que teoriza a polifonia).
Nessas obras, nota-se o quanto a composição de um texto literário é complexa e como a
linguagem envolve camadas de sentido e vieses de interpretação. Para compreender
melhor os conceitos de discurso, dialogismo e polifonia, leia o seguinte trecho do conto
Chapeuzinho Vermelho, de Millôr Fernandes:
Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho,
portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava
Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio
chamam-se alcunha ou vulgo.) Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque,
colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de

22
duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta
medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da
família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios.
Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal
selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntese para os nossos pequenos leitores:
o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado
de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, natural seria que, volta
e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo, que lhe disse: (Outro parêntese; os
animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e
que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é
ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda
menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha
que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes
geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e
cinco minutos da tarde". Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos
reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everyday Life", The Modern Library Inc. N.Y.).
Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez o que, segundo o conceito
materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a ideia do
capitalismo devorando o proletariado e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com
a roupa da avó (FERNANDES, 1967, p. 31).
Para a compreensão do texto, o leitor recorre ao conhecimento prévio da história
de Chapeuzinho Vermelho. O autor, por sua vez, reforça a trama conhecida a menina na
floresta, a visita à avó, o encontro com o lobo. Porém, no caso da obra de Millôr, tem-se
um desvio desses sentidos morais da fábula conhecida.
E o desvio se dá justamente pela presença de várias vozes além do discurso do
narrador. Aliás, o próprio narrador reproduz a voz “tradicional” do narrador da fábula (“Era
uma vez...”) em associação com um narrador intruso, que comenta o próprio processo
de composição do texto, o que é perceptível por meio do discurso entre parênteses
(“admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia

23
da história”). Além disso, o narrador intruso projeta outros sentidos não diretamente
inferidos (discurso científico, marxismo, teorias freudianas).
Você pode notar também a intertextualidade, aspecto que contribui para a
expressão de múltiplas vozes do texto: fábula de Perrault sobre Chapeuzinho Vermelho,
Freud, Marx. Essas múltiplas vozes também se expressam na percepção de leitores
diferentes (criança, adulto, interessados na fábula, interessados na desconstrução do
discurso fabular): Um parêntese para os nossos pequenos leitores”; “monstruosidade
botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou
pelos pecíolos”.
A referência ao discurso do provável autor (“indica uma intenção crítica do autor,
estando oculta aí a ideia do capitalismo devorando o proletariado”) também cria a
percepção do outro (autor referencial, nesse caso, já que é o próprio criador). A descrição
das personagens, a interação de Chapeuzinho com o lobo, o modo como as ações são
interpretadas também contrastam com as falas do narrador. As interações entre as
personagens ora se dão em discurso direto (uso do travessão), ora indireto, o que
destaca o caráter “híbrido” do texto. O texto, assim, é formado por várias vozes. Note a
constante referência ao outro (dialogismo), a presentificação do discurso do outro
(intertextualidade, falas das personagens, manifestações do narrador), bem como a
coexistência, sem sobreposição, desses vários discursos (polifonia). O trabalho do leitor
é identificar essas camadas, perceber os desvios que essa construção propõe e apreciar
a novidade dessa criação única. (Flach, 2018).

Fonte: www.enem.com.br

24
4 NATUREZA E FUNÇÕES DA LITERATURA

4.1 Arte e literatura

Partindo da premissa de que a arte é uma linguagem, devemos observar os


elementos que a constituem desde sua concepção geral até as mais particulares. Nesse
sentido, precisamos ter como noção a importância da arte como reflexão e como
expressão. Assim, enquanto a reflexão é tudo aquilo que podemos relacionar com sua
produção, desde o momento de sua concepção/elaboração até a nossa leitura, a
expressão é a tentativa sempre incompleta e inconclusa de dizer algo sobre o mundo e
nós mesmos. (Flach, 2018).
A arte que se realiza como “obra-prima”: sim, porque podemos até mensurar a arte
por meio de uma visão mais condescendente àquilo que julgamos bem elaborado e belo.
Segundo Robert Cumming, é caracterizada da seguinte forma:

A função e o objetivo de uma grande obra de arte, as expectativas nela


depositadas e o papel do artista não são constantes, variam conforme a época e
a sociedade. Contudo, algumas obras se destacam por terem a necessidade de
falar de algo além de sua própria época e oferecerem uma inspiração e um
significado que atravessam os tempos (1996, p. 08).

Hannah Arendt comenta que o interesse que é dado ao artista não se limita ao seu
individualismo subjetivo, mas principalmente ao fato de ser ele, afinal, “o autêntico
produtor daqueles objetos que toda a civilização deixa atrás de si como a quintessência
e o testemunho duradouro do espírito que a animou” (1988, p. 252). A relação entre arte
e literatura passa pela leitura das diversas “imagens” que as compõem.
Segundo Octavio Paz, “La imagen es cifra de La condición humana” (1970, p. 98).
Essa noção apresentada por Octavio Paz nos deixa mais atentos para o que é, o que não
é e o que deveria ser... A arte e a literatura entendida como tal têm esse papel: de
desencontrar o homem para reencontrá-lo consigo mesmo. Imaginemos, com Octavio
Paz, a seguinte frase: “Piedras son plumas” e embarquemos em uma leitura que poderá
fazer com que pensemos de forma diferente sobre as definições que nos cercam.
25
Quem não conhece aquela pergunta capciosa: “O que pesa mais: um quilo de
pedra ou um quilo de penas? ”. A redução ao aspecto científico (quilo) que reduz duas
coisas diferentes a uma mesma instância é algo difícil quando tentamos ver cada coisa
com sua própria característica. Ao dizer que pedras são plumas de maneira mais direta,
sem o atenuante científico, caminhamos na direção de entendermos a realidade de outra
forma. Aqui reside não a utilidade de uma obra de arte, mas o seu valor. (OLIVEIRA,
1967).

Fonte: www.futuroeventos.com.br

26
4.2 Prazer e utilidade

Como vimos anteriormente, a literatura não tem a ver com o prazer por si só nem
com o viés utilitário, mas sim com o valor propiciado a partir de cada experiência reflexiva.
Ficamos muito atrelados ao condicionante imposto socialmente, ou melhor, definido por
leituras que nos antecederam e que comprometem, não raras vezes, nossa própria
possibilidade de ler de outra forma. O termo prazer deve ser lido com cuidado e atenção.
Todas as palavras possuem significados diversos e possibilidades igualmente
diversas. Vamos refletir sobre o seguinte pensamento: “Muitas vezes procurei prazer na
leitura, poucas vezes o encontrei”. Se nós entendermos que o prazer é sempre algo bom,
podemos ser induzidos a pensar que existe alguma coisa errada com a leitura ou com o
leitor. Que algo está errado com o texto ou até mesmo com o contexto. No entanto, se
pensarmos que toda a palavra possui aspectos positivos e negativos e que, se
encararmos o prazer como algo negativo, poderemos ter uma nova possibilidade de
leitura. Assim, não há nada de errado com a leitura ou com o leitor ou com o texto... a
leitura realizada não provocou o prazer como sinônimo de estagnação e limitação tal
como os efeitos entorpecentes de uma droga, mas sim exerceu seu papel mais
importante: ao contrário de estagnação, deu indignação, revolta, angústia, medo,
motivação, não conformismo com aquilo que nos cerca. “Poucas vezes encontrei na
leitura o conformismo e a estagnação que muitos procuram” talvez seja a resposta.
Muitos procuram o prazer pelo prazer, sem se aterem ao fato de que este pode ser o
problema.
Antes de avançarmos, é importante apresentarmos algumas perspectivas
advindas da psicanálise evidenciando sua relação com a arte ou, no mínimo, com as
possibilidades interpretativas que se abrem aos nossos olhos. Na virada do século XX, a
arte rompe, através da pintura, com a organização espacial tradicional, vigente desde o
Renascimento. Com Freud, é o sujeito representado por este olho que perde sua
estabilidade, sua posição central. Pois, após o conceito freudiano de inconsciente, o eu
deixo de ser o senhor de sua própria casa e passa a estar irremediavelmente dividido.
O espelho quebrado, oferecido pela arte e pela psicanálise, reflete apenas um eu
fragmentado (RIVERA, 2005). Essa fragmentação tem a ver com a noção de prazer, não

27
aquele prazer limitador, mas a compreensão deste como elemento impulsionador que
influencia e direciona o indivíduo. O prazer é a realização do desejo. E o desejo, segundo
Freud, é a instância na qual todas as tensões se exprimem. Pelo próprio fato de ficar
inconsciente e, portanto, mais ou menos recalcado, o desejo que não se pode satisfazer
ao nível do real transforma-se em permanente.
Permanece eternamente insatisfeito e exigente como se fosse intemporal.
Continuará indefinidamente a manifestar-se simbolicamente através de um disfarce. O
disfarce protege geralmente o indivíduo contra o perigo da angústia que se
desencadearia se o desejo se manifestasse abertamente. O recalcamento (repressão),
ou mesmo a repulsa, supõe que o desejo é condenado por uma parte do indivíduo e não
pode exprimir-se livremente. O desejo não pode ser verbalizado no diálogo com o outro.
O que interessa mais decisivamente à literatura é a originalidade do desejo humano, dos
interesses culturais que dele advêm e das consequências que podem produzir; o que a
sensibilidade humana pede não é efetivamente a satisfação de uma necessidade, é uma
relação com o outro: um diálogo e um intercâmbio. É a busca do desejo do companheiro
que responda ao desejo do sujeito. A fome, que é uma necessidade, tem como objeto
uma coisa, ao passo que o amor, que é um desejo, tem como objeto o desejo de um
outro.
O amor pede um outro desejo que corresponda ao seu. A diferença entre o desejo
e a necessidade é a tendência e a capacidade do desejo de ser dito a um outro, de ser
recebido por outro, de se exprimir e de se verbalizar. É pelo desejo que o homem acede
à palavra. (Flach, 2018).

4.3 Literatura e escrita

Vamos começar pensando sobre os efeitos que podemos exercer sobre os demais
seres e dos efeitos de sentido que podemos lançar mão para dizermos o que ainda é
silêncio. Na originalidade do desejo humano somos capazes de pensar que a literatura é
o silêncio pleno de palavras. O homem se distingue do animal graças à capacidade de
“pensar que está pensando”. Isso o faz um ser sensível. A dor que ele sente é forte não
28
porque sente dor, mas porque sabe que está sentindo dor. O prazer que ele sente é
intenso não porque sente prazer, mas porque sabe que está tendo prazer.
O homem é, portanto, um ser inteligente, criativo e sensível graças à capacidade
de “pensar que está pensando”. E o instrumental que lhe permite isso é a linguagem.
Uma das manifestações da linguagem é a língua escrita. Ao escrever, o ser humano se
insere na matéria, imortalizando o seu pensar e o seu sentir. Escrever é, nesse sentido,
um ato de imortalidade, dado que o indivíduo é hoje o que foi ontem, e será amanhã o
que é hoje. Ao escrever o seu hoje, que amanhã será passado, ele continuará presente.
No entanto, a literatura, por mais difícil que seja aceitar, não se limita à escrita. As
manifestações orais advindas da tradição também fazem parte desse “processo cultural”,
dessa organicidade da qual a literatura é parte.
Mesmo assim, o privilégio da escrita da literatura entendida como essa
manifestação da linguagem por meio do código escrito faz parte do conjunto de valores
ideológicos que perpassam e integram nossa formação individual e coletiva. Nessa
perspectiva, talvez o elemento mais comumente aplicado para se entender o conceito de
literatura esteja calcado na noção de “literariedade”, ou seja, a literatura, segundo Terry
Eagleton, não é a escrita “imaginativa” nem tampouco se limita à distinção entre “fato” e
“ficção”, mas talvez seja “porque emprega a linguagem de forma peculiar” (2006, p. 03).
Essa definição de literário foi apresentada pelos formalistas russos, conforme esclarece
Eagleton:

Os formalistas surgiram na Rússia antes da revolução bolchevista de 1917; suas


ideias floresceram durante a década de 1920, até serem eficientemente
silenciadas pelo stalinismo. Sendo um grupo de críticos militantes, polêmicos,
eles rejeitaram as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado
a crítica literária até então e, imbuídos de um espírito prático e científico,
transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si. (...) Em
sua essência, o formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura;
e como a linguística em questão era do tipo formal, preocupada com as estruturas
da linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram
ao largo da análise do “conteúdo” literário e dedicaram-se ao estudo da forma
literária (2006, p. 03-04).

29
É dessa noção que tiramos a maior parte do nosso referencial de “entrada” no
texto literário. Personagem, narrador, espaço, tempo, temática são alguns dos conceitos
científicos empregados até hoje. No entanto, essa se traduz como uma posição limitada
ao campo da análise da materialidade linguística presente no texto. Há várias outras
possibilidades sempre complementares e a partir dessa materialidade linguística que
colaboram tanto com o entendimento acerca do emprego de determinada forma de
escrita quanto com a compreensão do conteúdo presente nessa obra. Contextos
históricos de produção e de recepção necessitam ser percebidos como continuidade
dessa análise, fundindo-se a ela em uma busca interpretativa. Eagleton encerra a sua
introdução com a seguinte reflexão:

Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva,


também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que,
caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de
caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas
mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do
Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a
literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor
que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles
próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em
última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais
certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros (2006, p. 24).

Mikhail Bakhtin (1993) se preocupou com essa indissociabilidade entre forma e


conteúdo, entre a materialidade linguística e o conteúdo, entre a forma realizada e o
processo de criação, de seus constituintes históricos, enfatizando que essa não é uma
tarefa meramente “instintiva”, ou seja, não é um espaço para a mera intuição.
Essa sistematização visa compreender significativamente a singularidade da
estética, sua relação com os campos da ética e da cognição, seu espaço na cultura
humana e os seus limites enquanto objeto de análise. Isso leva em consideração que
nenhum “valor cultural, nenhum ponto de vista criador pode e deve permanecer ao nível
da simples manifestação, do fato puro de ordem psicológica e histórica; somente uma
definição sistemática na unidade da cultura superará o caráter fatual do valor cultural. ”
(1993, p. 16).
30
A crítica, todavia, na busca por elaborar um juízo científico sobre a arte, aproxima-
se da orientação positivista, caracterizada como uma “base mais estável para a discussão
científica” (1993, p. 17) o que pode levar para a compreensão de que a forma artística se
configura como um dado material demonstrável em alguns casos pela matemática,
criando uma “premissa de caráter estético geral” (1993, p. 18). A presença implícita e
explícita desse pressuposto de caráter estético-geral serve de embasamento a trabalhos
e escolas na afirmação de uma concepção particular da estética geral sem nenhum senso
crítico, chamada por ele de estética material.

Pode-se dizer que a estética material, como hipótese de trabalho, é inócua e,


numa conscientização clara e metódica dos limites do seu emprego, pode até
tornar-se fecunda, se for estudada apenas a técnica da obra de arte, mas tornar-
se-á evidentemente prejudicial e inaceitável quando, baseado nela, se tentar
compreender e estudar a obra de arte como um todo, na sua singularidade e
significação estéticas. (1993, p.19)

Fonte: www.oficiodescribir.com.br

31
5 LEITURA E LITERATURA

5.1 A importância das diferentes formas de leitura no cotidiano escolar

Saber ler e produzir textos de diferentes formatos, com diferentes objetivos e


registros da língua é um ato de cidadania. Saber transitar entre as variações linguísticas
é um dos passos necessários para viver em sociedade: se você precisa encaminhar um
e-mail para seu chefe, mandar um recado de condolências, conversar com um amigo em
um ambiente descontraído ou analisar um edital de um concurso, todas essas diferentes
modalidades exigem uma adaptação do discurso. Às vezes, é requerido que utilizemos
uma variante mais formal da língua; às vezes, uma mais informal. (Flach, 2018).
Portanto, ensinar aos nossos alunos os diferentes registros de uma mesma língua
e como ou quando utilizá-los faz parte de um trabalho maior de formação de um cidadão
consciente e capaz de atuar com propriedade em sociedade. Esse trabalho inclui
proporcionar aos estudantes a possibilidade de tomar contato e de ler diferentes textos
em sala de aula. Depois de ler e de estudar o gênero, os estudantes podem ser
convidados a produzir os seus próprios textos. Se esse trabalho puder ser construído da
forma mais significativa possível, melhor ainda. Por exemplo, quando os alunos estiverem
aprendendo como se escreve cartas ou e-mails, por que não os enviar, de fato? Ou, se
o gênero for notícia de jornal, por que não construir um jornal da turma com as
informações sobre o cotidiano deles e sobre a escola? Tudo para que os estudantes
consigam enxergar como esses diferentes gêneros funcionam na prática. Sobre a
importância da leitura em sala de aula, encontramos a seguinte informação nos
Parâmetros Curriculares Nacionais:

32
A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a
linguagem, etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra,
palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de
seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível
proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai
sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão,
avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas
(BRASIL, 1988, p. 69–70).

Você pode perceber, portanto, a riqueza que é o trabalho com a leitura, que
mobiliza muito mais competências e conhecimentos do que simplesmente os de
decodificar letras, formando palavras. Fica evidente, dessa forma, a importância de se
trabalhar rotineiramente com a leitura em sala de aula.
A leitura pode ocorrer de diferentes formas e modalidades: a leitura realizada pelo
professor para os alunos; a leitura realizada pelos alunos de forma silenciosa ou em voz
alta; a leitura compartilhada; a leitura realizada para apresentar para os colegas. Cada
vez mais, a leitura tem ocupado um local privilegiado nos planejamentos dos professores
e nas aulas, servindo como base para inúmeros tipos de atividades.
Isso porque a leitura pode oferecer inúmeras possibilidades: a leitura para que o
próprio aluno reflita e critique, atribuindo um sentido a ela; para que debata um assunto
junto com os colegas e com o professor; para que releia e compare as conclusões da
primeira leitura com a segunda leitura; ler para ouvir o que os outros têm a dizer sobre o
texto; ler para comparar essa leitura com a leitura de outros textos; ler para apreciar.
(Flach, 2018).
Nesse sentido, é importante que o conceito de fluência leitora esteja claro, visto
que essa é uma das grandes reclamações dos professores: os alunos não leem ou
raramente leem; os alunos não leem com atenção; os alunos não compreendem o que
leem. Para definirmos a fluência leitora, devemos, ainda, discutir a questão do letramento.
Letramento, ao contrário da alfabetização, não pressupõe apenas um sujeito capaz de
decodificar letras e de, consequentemente, desvendar as palavras que formam um texto;
pressupõe um sujeito capaz de decodificar um texto, mas também de interpretá-lo, de
fazer inferências a partir dele e de perceber esse texto dentro do seu contexto.
33
Todo texto é produzido por um autor em uma determinada circunstância, e
entender e perceber como essas informações se relacionam com o conteúdo do texto é
tarefa de um leitor competente. Além disso, o leitor deve ser capaz de saber quando
utilizar determinados tipos ou gêneros de texto de acordo com as diferentes situações e
modalidades da língua e deve saber quais são as suas funções. Um leitor fluente deve
conseguir realizar todas essas etapas de leitura.
Agora, é importante que você perceba quais são os fatores que determinam a
compreensão da leitura de um texto. Koch e Elias (2006) apontam dois elementos
fundamentais para refletirmos sobre o sucesso ou não de uma leitura: o autor/leitor e o
próprio texto. Primeiramente, o aspecto leitor/autor está relacionado ao “[...]
conhecimento dos elementos linguísticos (uso de determinadas expressões, léxico antigo
etc.), esquemas cognitivos, bagagem cultural, circunstâncias em que o texto foi produzido
[...]” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 24). Leia o texto a seguir para perceber como isso funciona
na prática:

VIDE BULA
[...]. Muito se tem tentado com drogas tradicionais, ou novidades, porém até agora
nenhum teve o tão almejado efeito de curar este pobre enfermo. Há bem pouco tempo
foi tentada uma droga novíssima, quase não testada, mas que prometia sucesso total, a
“Collorcaína”, que, infelizmente, na prática de nada serviu, seus efeitos colaterais
extremamente deletérios (como a liberação da “Pecelidona”) quase acaba com o doente.
Porém, para o ano que vem, novos medicamentos poderão ser usados. Enquanto isso
não acontece, o doente consegue se manter com doses de “Itamarina” que é uma espécie
de emplastro que, se não cura, também não mata [...] (KOCH; ELIAS, 2006, p. 25).

Para que o leitor compreenda o texto, ele precisa lançar mão de conhecimentos
de mundo específicos, precisa conhecer a história recente do Brasil, principalmente no
que diz respeito à política e às eleições presidenciais. O autor inventou palavras, como
“Collocaína” e “Itamarina”, a partir de nomes de presidentes ao brincar com outro gênero
textual: a bula de remédio. O doente, no caso, é o Brasil, e os políticos são possíveis
remédios receitados para a cura do paciente. Dessa forma, o leitor deve levar em
34
consideração esses conhecimentos (sobre história e política no Brasil do século XX e
sobre o gênero textual bula) para compreender, de fato, o texto. Assim, as autoras
concluem:

[...] podemos dizer que os conhecimentos selecionados pelo autor na e


para a constituição do texto ‘criam’ um leitor-modelo. Desse modo, o texto, pela
forma como é produzido, pode exigir mais ou exigir menos conhecimento prévio
de seus leitores [...] (KOCH; ELIAS, 2006, p. 28–29).

O segundo elemento que determina a leitura é o próprio texto e a sua legibilidade.


Podemos pensar em aspectos materiais, linguísticos e de conteúdo. Dentre os materiais,
podemos citar: tamanho, fonte e clareza das letras, cor e textura do papel, comprimento
das linhas, tamanho das frases e dos parágrafos, qualidade da tela, etc. Já os linguísticos
abrangem um número extenso de aspectos, como o léxico, o excesso de orações
subordinadas, ausência de nexos para marcar a relação entre orações e frases, ausência
ou inadequação do uso de pontuação, etc. Por último, a questão do conteúdo, que pode
ser mais técnico ou não, mais complexo ou mais simples.

Pensando em todas essas características do texto e da leitura de texto, o professor


deve estar sempre atento para realizar um trabalho diversificado: trabalhar não apenas
com diferentes tipos e gêneros textuais, mas também com atividades que privilegiem
vários aspectos, capacidades, conhecimentos e habilidades que devem ser levados em
35
consideração e mobilizados durante a leitura de um texto. Dessa forma, o aluno começará
a realizar leituras cada vez mais conscientes e efetivas.

5.2 O que diferencia a leitura da literatura da leitura de outros tipos de texto?

Depois de estabelecermos a importância da leitura de variados tipos e gêneros


textuais, é importante que deixemos claro quais são as diferenças entre um texto literário
e um texto não literário, visto que, dentro da leitura de textos, a leitura de textos literários
ocupa um espaço muito importante e que deve ser cada vez mais privilegiado e
destacado. Em primeiro lugar, devemos apontar que, enquanto a conotação é
característica do texto literário, a denotação é característica do texto não literário.
Conotação é a linguagem utilizada em seu sentido metafórico, ao passo que a denotação,
em seu sentido literal.
Claro que, quando falamos dessas características, não queremos dizer que nunca
aparecerá uma metáfora, por exemplo, e uma linguagem mais conotativa em um texto
não literário. O mesmo ocorre com o texto literário e com a denotação: com certeza, em
vários momentos, a linguagem utilizada em seu sentido objetivo, ou dicionarizado,
aparecerá em um texto literário. Estamos tratando aqui de predominâncias, e não de
exclusividades de características que são mais fortes ou marcantes em cada um dos tipos
de texto. O Quadro 1, a seguir, apresenta uma relação entre texto literário e texto não
literário. (Flach, 2018).

36
Em seguida, é fundamental abordarmos a questão da subjetividade, uma das
principais marcas da literatura. A subjetividade pode se referir a, pelo menos, dois
fenômenos relacionados ao texto literário. O primeiro se refere ao fato de que, no texto
literário, nós podemos aprender muito sobre o seu autor. Mesmo que ele não escreva
sobre ele mesmo, mas sobre personagens fictícios, suas crenças e sua visão de mundo
acabarão aparecendo, nem que seja um pouquinho, em seu texto. Isso tem relação com
o fato de o texto literário ser um texto pessoal e não ter preocupação em ser isento, em
apresentar as informações de forma mais objetiva possível. (Flach, 2018).
Além desse primeiro aspecto da subjetividade de um texto literário, há outro ainda:
é possível afirmar que o sentido do texto literário nunca está dado, nunca está pronto. É
sempre o leitor quem definirá o que cada texto literário significará para si, o que tem como
consequência o fato de leitores diferentes, em diferentes tempos e em diferentes lugares,
lerem um mesmo texto de formas diferentes. Mais do que isso, um mesmo leitor, em
momentos distintos de sua vida, pode ler um mesmo texto de modos distintos.
Entretanto, isso não significa que possamos interpretar qualquer coisa a partir de
um texto. Apesar disso, as possibilidades de interpretação são várias. Uma outra marca
que diferencia os textos literários dos textos não literários é a preocupação com a forma.
Se o texto não literário se preocupa em passar uma informação, o texto literário está
muito mais preocupado com a forma como passará essas informações.
Podemos perceber isso a partir da leitura do trecho a seguir, fragmento do livro
Iracema, de José de Alencar.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu
sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que
a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava
sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 1865,
documento on-line).
José de Alencar poderia ter afirmado, de uma forma muito mais simples e direta,
que Iracema era uma moça alta e esguia, com os cabelos negros, com um sorriso bonito
37
e belos lábios, que é bastante rápida na corrida. Se o desejo do escritor fosse o de passar
essas informações ao leitor, ele, com certeza, não teria escolhido a maneira correta de
fazer isso, em vez de um vocabulário mais simples, ele optou por outro, muito mais
rebuscado e cheio de metáfora (i.e., uma figura de linguagem em que se utiliza uma
palavra ou expressão com um significado pouco usual para estabelecer uma
comparação).
No fragmento, por exemplo, o narrador afirma que o talhe de Iracema era parecido
com o de uma palmeira. O que isso quer dizer? Pense na imagem de uma palmeira: elas
costumam ser árvores bastante altas, com um tronco mais fino. Portanto, Iracema
provavelmente é alta e magra. O desejo do escritor não é o de passar informações
diretamente, mas o de, justamente, causar sentimentos, emoções e possibilitar que o
leitor crie uma imagem mental do que está sendo descrito. Apesar de não ser fácil, atente
para a poeticidade do trecho de Iracema, aliás, Alencar começou escrevendo um poema
sobre essa índia virgem dos lábios de mel e depois acabou transformando-o em prosa.
Observe outros dois textos para ver, na prática, como textos literários se diferenciam de
textos não literários. O primeiro é a definição de literatura retirada de um dicionário:

Li·te·ra·tu·ra
(Latim litteratura, -ae)
Substantivo feminino
1. Forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou
estilístico; arte literária.
2. Conjunto das obras literárias de um país, de uma região ou de determinada
época.
3. Disciplina que estuda obras, temas e autores literários.
4. Conjunto de escritores e poetas de uma determinada sociedade
(LITERATURA, 2019, documento on-line).

Aqui, fica claro o desejo de passar informações precisas, diretas e objetivas. Não
era a intenção de quem escreveu o verbete a de que cada leitor pudesse interpretá-lo de

38
uma maneira diferente, por isso a linguagem é direta e não aparece o uso de figuras de
linguagem.
Apresentam-se, dessa forma, quatro definições claras do que podemos considerar
como literatura. A partir de, por exemplo, “conjunto de escritores e poetas de uma
determinada época”, não é possível compreender de outra forma que não a de um grupo
de escritores produzindo em um mesmo tempo. Agora, observe um texto que também
define literatura, mas de uma forma completamente diferente da do verbete de dicionário
acima:

A vaca e o hambúrguer
Parece-me, às vezes, que a literatura funciona como as máquinas de picar carne.
No início está sempre uma vaca concreta e real. Depois mata-se a vaca, corta-se a vaca
e atiram-se os bocados para dentro da máquina trituradora. Do outro lado do aparelho
aparecem, ao fim de um bocado, hambúrgueres, almôndegas e carne picada. Mas não
tenho a certeza de que a vaca ainda seja capaz de se reconhecer se lhe for permitido
contemplar-se, já embalada, nas prateleiras do supermercado (TAVARES; MARMELO;
ASSUNÇÃO, 2016, p. 132).

Logo percebemos a diferença, pois ela fica evidente desde o título do livro:
“Verbetes para um dicionário afetivo”. Qual seria a diferença de um dicionário para um
dicionário afetivo? Essa condição do dicionário não foi evidenciada à toa. Precisamos
nos atentar para o título desse conceito em específico do dicionário: “A vaca e o
hambúrguer”. O que isso significa? Será que o autor se refere a vacas e a hambúrgueres
de verdade? Concretos? Percebemos que não quando ele abre o seu texto falando a
forma como, para ele, a literatura parece funcionar. Mas qual a relação entre vacas,
hambúrgueres e literatura? Aqui, é necessário um esforço extra do leitor para
compreender o texto, pois o sentido não é direto, como no anterior.
Podemos pensar que a vaca real e concreta é a realidade, e o hambúrguer e a
carne picada, a literatura. Isso porque a literatura pode se inspirar no real, mas não é
simplesmente a cópia deste. Há um trabalho do escritor em cima dos dados do mundo
concreto para transformá-los em texto literário. Outra possibilidade de leitura é a seguinte:
39
a vaca real é o texto literário, e o hambúrguer, a interpretação de cada um dos leitores,
que devem trabalhar e construir os sentidos do texto. Perceba, portanto, que o texto
metaforiza, a partir dos elementos vaca e hambúrguer, justamente o que é literatura.
Ele não apenas conceitua literatura, como igualmente é literatura, e a literatura
carrega elementos relacionados aos sentimentos, às emoções, aos sonhos, aos
devaneios e também como aponta o título da obra ao afeto é importante, dessa forma,
que o professor fique atento a essas marcas e características quando for trabalhar com
textos literários em sala de aula. Por essa natureza distinta, as atividades com o texto
literário também devem ser distintas. Deve-se colocar em destaque não só o conteúdo
dos textos (a história, a narrativa, as ações da história), mas também os recursos
linguísticos e estilísticos de que o autor lançou mão para escrever tais textos, visto que,
em um texto literário, como se conta uma história é tão ou mais importante do que a
história em si. É claro que um trabalho mais estruturado deve ser realizado com a
literatura, porém sem nunca perder de vista o caráter lúdico e prazeroso que a leitura
literária deve ter. Os alunos devem sempre estar cientes dessas diferenças, e um dos
papéis do professor é justamente o de salientá-las em sala de aula. (TAVARES;
MARMELO; ASSUNÇÃO, 2016, p. 132).

5.3 Métodos de leitura: diferentes possibilidades para serem aplicadas em sala de


aula

Depois de discutirmos teoricamente sobre a leitura em sala de aula e sobre as


diferenças entre a leitura de textos literários e de textos não literários, chegou o momento
de analisarmos diferentes possibilidades de aplicação de métodos de leitura em sala de
aula. Diferentes tipos e gêneros textuais pedirão diferentes tipos de atividades.
Começaremos com um trabalho a partir de um texto literário. Nesta aula, o
professor introduzirá um gênero literário narrativo a partir da leitura de um conto, para
que os alunos sejam convidados a inferir as características do gênero após a análise do
texto. Assim, os estudantes passarão do concreto (texto literário) para o abstrato
(características do gênero narrativo), e serão os responsáveis por construir esses
conhecimentos, o que será muito mais significativo do que o professor simplesmente

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escrever no quadro a lista para os alunos copiarem. O texto escolhido pode ser o
seguinte:

Grêmio
Quando minha mãe morreu, eu acordava em Florianópolis. Na rodoviária de Porto
Alegre pedi ao taxista que me levasse depressa. A viagem atrasara. Ele disse que, como
o cemitério ficava perto do campo do Grêmio e tinha jogo naquela noite, o trânsito não
estaria fácil. Passamos pelo clarão do estádio. O motorista ostentava quase um
desconsolo, embora eu não tivesse confessado a qualidade íntima do velório. O padre
soube observar meu suor. Horas depois forcei a chave para entrar no apartamento dela.
Por que não tentar desde logo o que eu não ousara formular até ali? Virei-me. O cão
rosnava. Preparava sua fúria para me atacar (NOLL, 1999, documento on-line).

O conto, apesar de curto, guarda inúmeros sentidos e é bastante rico: o professor


pode trabalhar as elipses temporais da narrativa; os significados de expressões, como
“quase um desconsolo”, “qualidade íntima do velório”; o motivo de a frase “o padre soube
observar o meu suor” ser importante na narrativa; o sentido do cão furioso no
apartamento da mãe falecida; a relação entre o (a) narrador (a) e a mãe. Depois desse
trabalho imprescindível com os sentidos do texto, o professor deve questionar os alunos
sobre quais elementos eles encontram nesse texto.
Caso a turma sinta dificuldades, deve ajudar com perguntas, como “quem está
contando a história? ” Ou “essa história se passa em algum lugar? ”. Ao final, os alunos
devem listar os elementos essenciais das narrativas: narrador, personagem, enredo,
tempo e espaço. Outras narrativas podem ser lidas e interpretadas, e esses mesmos
elementos podem ser analisados dentro delas. Outra atividade para colocar em prática
esses conhecimentos é uma produção textual literária: o professor deverá recortar
imagens representando lugares, tempos e personagens.
Deve colocá-los em três sacos distintos, destinados a cada um desses elementos,
e sortear para cada um dos alunos um elemento. Assim, os alunos precisarão construir
uma narrativa com os elementos sorteados. O professor poderá brincar com esses
elementos para que essa seja uma atividade divertida. Por exemplo, como um aluno
41
construirá uma narrativa dando conta de juntar, de forma coerente, o personagem Harry
Potter no Japão em pleno século XIX? Além de trabalhar com os elementos da narrativa,
os alunos ainda deverão utilizar muito da criatividade. Aqui, portanto, o aspecto lúdico da
literatura será igualmente desenvolvido. Para finalizar, o professor poderá propor que
aqueles alunos que se sentirem confortáveis leiam seus textos para os colegas. Esse
pode ser um momento interessante de debates e de trocas ricas. A Figura 1 apresenta
exemplos de elementos que podem ser sorteados entre os alunos para se construir uma
narrativa. (NOLL, 1999, documento on-line).

Outra sugestão de trabalho é com o gênero textual resenha. Depois de o professor


já ter trabalhado com o gênero textual resumo, ele introduzirá o gênero resenha. É
fundamental que os alunos já estejam familiarizados com o resumo, visto que uma das
42
etapas da resenha é justamente o de resumir o objeto resenhado. Primeiramente, os
alunos devem assistir a um filme ou a um documentário, ler um livro ou ir a um museu,
qualquer atividade envolvendo arte, para que, depois, eles possam resenhar. Uma
sugestão é o documentário “Absorvendo o tabu”. Para alunos com 14 anos ou mais, essa
é uma interessante produção; Vencedora do Oscar de Melhor Documentário de Curta-
Metragem em 2019, a obra aborda o tabu criado em torno da menstruação na Índia. Essa
atividade pode, inclusive, fazer parte de um projeto transdisciplinar sobre a saúde do
adolescente.
Um debate deve ser realizado com os estudantes: por que e como uma condição
biológica pode ser considerada como um tabu tão grande? Em que medida a realidade
brasileira se aproxima ou se afasta da realidade indiana? Depois do debate, o professor
deve selecionar algumas resenhas sobre o filme na internet. A sugestão seria a de
escolher três resenhas: uma resenha que o professor julgue muito boa; uma que ele
julgue boa; e outra que ele julgue ruim.
Primeiro, os alunos devem, por si próprios, ler as resenhas; apontar, para cada
uma delas, em que passagens podemos encontrar informações e em que passagens
encontramos a opinião do autor do texto sobre o objeto resenhado; apontar
características positivas e negativas para cada um dos textos; e escolher qual a melhor,
na sua opinião. (Flach, 2018).
Dessa forma, como no exemplo anterior, o aluno construirá conhecimentos sobre
esse gênero textual de forma ativa e significativa, e não estará em uma posição passiva,
de receber informações passadas pelo professor. Em um próximo momento, o professor
deve conduzir a conversa sobre as resenhas e ir explicando o que, em cada um dos
textos, está adequado para o gênero textual e que eles devem tomar como modelo, o
que não está adequado e que eles devem evitar. Em seguida, é chegado o momento de
uma sistematização, que pode ser realizada no quadro: o professor, com o auxílio dos
alunos, deverá elencar as características do gênero textual resenha.
E, é claro, para finalizar esse momento, os alunos deverão produzir as suas
próprias resenhas críticas sobre o documentário. Um último exemplo de trabalho com
texto em sala de aula poderia ser com um conto do escritor moçambicano Mia Couto, O

43
adivinhador das mortes. Na narrativa, surgem diversos neologismos, como observa-se
no trecho a seguir:

No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que adivinhava, com


acerto de álgebra, a data das individuais mortes [...] Pois, em Muitetecate, todos
encorajavam Adabo Salanje a consultar os serviços do adivinheiro [...]. Naquele mesmo
momento, ele se decidiu e se encaminhou para o adivinhista. [...] Desconsigo. Sua
cabeça está muito barulhosa. Aquiete lá o pensamento! [...] O cliente se abismalhou
(COUTO, 2009, p. 189–197).

As palavras em negrito não estão dicionarizadas, mas, nem por isso, o leitor é
incapaz de compreender seus significados. Isso acontece porque essas expressões são
formadas a partir de regras de formação de palavras existentes no nosso idioma e a partir
de afixos e radicais igualmente existentes. Adivinheiro, por exemplo, é formado por
adivinhar com o sufixo “eiro”, que pode indicar o sujeito que pratica uma ação. Assim,
adivinheiro é aquele que adivinha.
Os alunos, portanto, depois de um trabalho de interpretação do texto em sua
íntegra, seriam convidados a refletir sobre essas palavras “estranhas” e sobre o motivo
de, apesar de elas não existirem no idioma, eles conseguirem compreender seus
sentidos. A partir dessa análise, o professor poderá falar sobre a formação das palavras.
Ao final, o professor deverá retomar o conto e questionar seu aluno: por que será
que o autor decidiu inventar essas palavras e não utilizar as que já existem na língua
portuguesa? Qual efeito que essas palavras podem causar no leitor? Essa ideia de
trabalho mostra que é possível utilizar textos literários para trabalhar com questões
linguísticas desde que esse não seja o único fim da leitura. Nesse caso, o estudo sobre
morfologia contribuirá para a ampliação da discussão sobre o conto e seus sentidos e
deve vir, é claro, acompanhada de um debate sobre o conto como um todo.

44
6 GÊNEROS DISCURSIVOS LITERÁRIOS

6.1 Linguagem literária

A linguagem literária consiste em um uso especial da linguagem, que visa a evocar


emoções, sentimentos e reflexões. Ela também aproxima a realidade de outros mundos
possíveis, às vezes similares ao mundo real, às vezes mágicas.
Em comparação com a linguagem científica ou acadêmica, por exemplo, a
linguagem literária oferece uma liberdade muito maior de criação e transmutação de
regras da própria língua e da realidade. De acordo com Proença Júnior (1986), a
linguagem está “a serviço da criação literária”, mas no uso cotidiano ela consiste em
instrumento de informação e ação.
Essa distinção é consistente com funções da linguagem. De acordo com Jakobson
(1991, p. 120), “[...] qualquer conduta verbal tem uma finalidade, mas os objetivos variam
[...]”, havendo consonância entre o efeito que se quer atingir e os meios usados. Todo
ato comunicativo envolve um emissor que envia uma mensagem em um código (que
pode ser idioma, modalidade oral ou escrita, variedade linguística, emojis, gifs, memes,
etc.) por um canal (meio físico), em determinado contexto, para um destinatário. Ligadas
a esses elementos, há as funções da linguagem.
Elas são determinadas de acordo com o elemento em que se centra a
comunicação. Essa proposta é derivada da teoria da informação, relacionada à
comunicação entre máquinas (muito antes da internet). Portanto, é insuficiente para a
complexidade e a dinamicidade da comunicação humana, mas serve como um ponto de
partida de análise. A seguir, você pode ver as principais funções da linguagem. (COUTO,
2009, p. 189–197).

 Função referencial: centra-se no referente ou no contexto. Diz respeito


ao que é denotado, à apresentação e à descrição de informações ou
acontecimentos, como ocorre com placas, avisos, memorandos, etc.

45
 Função emotiva (expressiva): centra-se no remetente (no emissor),
visando à expressão de sua atitude com relação ao que está falando.
Essa função está ligada às emoções, a expressá-las ou provocá-las.
 Função conativa (imperativa): centra-se no destinatário (no receptor),
visando a ter efeito ou influência sobre ele.
 Função fática: centra-se no canal, visando ao prolongamento ou à
manutenção da comunicação.
 Função metalinguística: centra-se no código, visando à verificação do
seu uso. É a linguagem usada para falar sobre a linguagem.
 Função poética: centra-se na mensagem, própria à literatura e às
peças publicitárias. Ela visa ao apelo estético, ao que um uso especial
da linguagem pode evocar.

Embora o conceito de literatura não seja consensual, há características que


perpassam diferentes gêneros literários. Uma característica importante da linguagem
literária é a multissignificação, isto é, a possibilidade de diferentes interpretações de um
texto, bem como as diferentes formas como ele afeta as pessoas. Essa pluralidade pode
ser semântica e pragmática, mas também se relaciona à forma como a linguagem é
usada (como no exemplo a seguir), com a exploração de seus níveis fonético/fonológico,
morfológico, lexical, semântico e sintático. (Flach, 2018).

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Além dessa perda de definição do código, há outra exploração do significado típica
da linguagem literária: a conotação. Diz-se que o significado de algo é conotativo sempre
que há uma atribuição de valor positivo ou negativo, e/ ou sentido figurado (isto é, um
significado metafórico). A conotação também envolve o aspecto cultural, diferenciando-
se da denotação (a grosso modo, sentido literal). Leia os excertos a seguir, do poema
Canção, de Cecília Meireles, retirado do site da Revista Bula (LEITE, 2018, documento
on-line):

E o sorriso que eu te levava


Desprendeu-se e caiu de mim:
E só talvez ele ainda viva
Dentro destas águas sem fim.

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Agora veja o trecho a seguir, retirado de It: A Coisa, de Stephen King (2014):

Música baixa e dardos de luz nos olhos. Ele se lembra dos dardos de luz porque
Richie tinha pendurado o rádio no galho mais baixo da árvore em que estava encostado.
Apesar de eles estarem na sombra, o sol refletia na superfície do Kenduskeag, batia da
frente cromada do rádio e, de lá, ia para os olhos de Bill.
Nos dois excertos, há exemplos de conotação e “quebras” de regras. O poema
Canção, de Cecília Meireles, fala sobre a perda. O sorriso se torna algo que, como objeto,
pode cair, ao mesmo tempo em que é tratado como algo vivo, que talvez ainda resista no
mar. É possível entender que essa perda tirou do eu lírico a alegria, representada pelo
sorriso.
Contudo, ainda há esperança (mesmo que remota) de um dia recuperá-la. Já no
segundo excerto, além de metáforas (dardos de luz), há quebra da estrutura frasal. Para
misturar passado e presente, King (2014) fez uso dessa quebra: uma frase que começa
no passado e termina no presente, tornando a passagem de um tempo para outro
orgânica. Esses também são casos de multissignificação. É difícil dizer “é isso que o
poema significa” ou “é isso que o autor quis dizer/provocar”. De fato, esse tipo de
constatação é até mesmo contra a natureza da linguagem literária. A beleza está na
possibilidade de diferentes níveis de significação, entendidos desde o sentido semântico
(polissemia) até aqueles significados a que remete, que podem ser inclusive emoções.
Essa característica torna a linguagem literária subjetiva, de um lado pela liberdade do
autor e, de outro, pela liberdade do leitor.
Isso não significa, claro, que se pode concluir qualquer coisa a partir de um texto
literário. Há sempre um limite do plausível dentro do universo constituído pela linguagem;
plausibilidade essa que se pode chamar de verossimilhança. Essa é a característica que
permite ao leitor acreditar ser possível existir, no mundo criado pelo autor, um alienígena
que se alimenta do medo e que gosta de aparecer como um palhaço, ou que o universo
foi criado por uma tartaruga que passou mal do estômago, por exemplo. Verossimilhança
é, portanto, uma coerência interna ao universo criado pelo autor.

Gêneros textuais literários


48
Há uma distinção primária para os textos literários: prosa, verso e drama. Sob ela,
existem variados gêneros textuais. A prosa é uma narrativa, ficcional ou não, sem
metrificação intencional. O verso apresenta versos, sendo importante a sonoridade, o
ritmo e, em alguns casos, a metrificação. O drama é o ponto de intersecção entre
literatura e teatro. O texto apresenta as falas e as ações dos personagens organizadas
como um roteiro a ser encenado, podendo ser também em versos.

Gêneros da prosa

De acordo com Proença Júnior (1986, p. 46), os diferentes gêneros textuais da


prosa “[...] envolvem certa visão do mundo e uma maneira de captar as questões que
nele se colocam, caracterizando um sistema que se faz de vários elementos integrados:
personagens em ação (ou não) num tempo e num espaço em torno de um ou mais temas,
traduzindo-se num estilo [...]” e em diferentes perspectivas. A prosa sempre apresenta
narrativa, mas esta não se limita aos gêneros daquela. Há narrativa em versos e em
dramas (como você vai ver à frente), em relatórios, em biografias, entre outros. Veja a
seguir alguns dos elementos da narrativa de forma simplificada e reduzida.

 Enredo: é a história desenvolvida, variando em sua natureza de acordo


com o gênero e o autor. É o nível no qual se situa a ação, “que envolve o
que ocorre com os personagens, o conjunto de suas ações ou reações, os
acontecimentos ligados entre si, tudo isso comunicado pela narrativa”.
Essa, a narrativa, “[...] caracteriza uma sequência, simples ou complexa,
de conflitos ou tensões que se resolvem ou não [...]” (PROENÇA JÚNIOR,
1986, p. 51)
 Personagem: são as figuras que agem na história. Conforme Proença
Júnior (1986), elas podem ser definidas pela função que desempenham,
por sua natureza e pela sua variedade. Quanto à função, podem ser
principais, chamadas de protagonistas, ou antagonistas, que se opõem às
49
primeiras. Por exemplo, o Clube dos Otários (grupo formado pelas
crianças lideradas por Bill em A coisa) é protagonista, enquanto a Coisa é
a antagonista. Sherlock Holmes é protagonista, enquanto o professor
Moriarty é antagonista. Quanto à sua natureza, os personagens podem
ser humanos, animais e elementos da natureza. Eles podem ser:
individuais (quando são caracterizados de forma nítida, como Ana Terra,
de O tempo e o vento); típicos (quando representam um grupo, como
Capitão Rodrigo, também de O tempo e o vento, que representa o
gaúcho); e caricaturais (quando há exacerbação de certas características
marcantes e definidoras, como ocorre com a comadre de Memórias de um
sargento de milícias).
 Narrador: é também uma entidade na história, uma criação do autor, que
lhe permite assumir perspectivas e posições que não necessariamente
coincidem com as suas. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o
personagem principal e também narrador está morto. Em Lolita, o
personagem principal e narrador é o pedófilo. Essas duas figuras não se
confundem com os respectivos autores Machado de Assis e Vladimir
Nabokov. O narrador determina em qual ponto de vista a história é
contada. Ele pode ser confiável ou não. No caso do primeiro, é comumente
identificado com narrador em terceira pessoa, isto é, um ser de fora que
conta a história, podendo ser onisciente (que sabe de tudo) ou observador,
chamado às vezes de câmera (que está limitado ao que é visível).
Entretanto, mesmo o narrador em terceira pessoa pode apresentar uma
visão tendenciosa da história. O narrador em primeira pessoa nunca é
confiável, pois sempre apresenta o ponto de vista de um personagem da
história e sempre depende de sua memória ou interpretação. Esse
narrador pode ser o protagonista, como Humbert Humbert, de Lolita; ou
pode ser coadjuvante, chamado de narrador-testemunha, como Dr.
Watson, nas histórias de Sherlock Holmes. (PROENÇA JÚNIOR, 1986, p.
51)

50
Tempo: há classificação dupla para o tempo nas narrativas: psicológico e
cronológico. O tempo psicológico é subjetivo, “[...] interior e relativo, situado no âmbito da
experiência individual, que avalia a partir de padrões variáveis [...]” (PROENÇA JÚNIOR,
1986, p. 52). O tempo cronológico é objetivo, marcado por de horas, dias, meses, etc. A
história pode se desenvolver linearmente, do começo ou fim, ou não linearmente. Espaço:
é onde se passa a ação na narrativa.
A seguir, veja alguns gêneros literários:

 Conto: é uma história curta, com um único núcleo dramático. Ele “[...]
oferece uma amostra da vida, através de um episódio, um fragrante ou
instantâneo, um momento singular e representativo [...]” (PROENÇA
JÚNIOR, 1986, p. 45). Exemplos: Felicidade Clandestina, de Clarice
Lispector, e Antes do Baile Verde, de Lígia Fagundes Telles.
 Novela: a novela é mais longa do que o conto e mais curta do que o
romance, “[...] com uma trama simples, descrita sem demora na
caracterização dos ambientes, personagens e tempos de ação, com
apenas os elementos essenciais necessários à compreensão dos
acontecimentos narrados [...]” (CEIA, 2010, documento on-line).
Exemplos: A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Um Copo de Cólera,
de Raduan Nassar, e O Alienista, de Machado de Assis.
 Romance: é uma história longa, de trama complexa, com vários núcleos
dramáticos. Exemplos: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, Dom
Casmurro, de Machado de Assis, e Concerto Campestre, de Luiz Antônio
de Assis Brasil.
 Fábula: é uma história curta, de narrativa figurada, que apresenta uma
lição de moral. Exemplos: A Cigarra e Formiga e A Lebre e a Tartaruga,
de Esopo.
 Apólogo: é um gênero alegórico que ilustra uma lição de sabedoria,
utilizando personagens de índole diversa, reais ou fantásticas, animadas
ou inanimadas (CEIA, 2009).

51
Gêneros do verso

Os versos são segmentos frasais que apresentam ritmo de forma nítida e


sistemática. Para a caracterização tradicional do verso, são indicados três elementos
interdependentes: metro, rima e formas fixas. De acordo com Proença Júnior (1986),
metro é, em língua portuguesa, constituído por meio da combinação regular do número
de sílabas e da disposição do acento tônico. A rima é a coincidência de fonemas
(vocálicos e consonantais) em lugares específicos de cada verso, podendo ser no início,
no meio ou no fim.
As formas fixas são gêneros de poemas que apresentam certo número de versos
compondo certo número de estrofes, como soneto, balada, lira. Os versos também
podem ser livres e brancos. Os versos livres não apresentam metrificação, enquanto os
versos brancos, sim, mas não rima. Sua organização de dá com base na “[...] sucessão
de grupos fônicos valorizados pela entoação, pelas pausas e pela maior ou menor rapidez
da enunciação [...]” (PROENÇA JÚNIOR, 1986, p. 58). É possível indicar uma
classificação tripartida clássica de gêneros textuais do verso: poesia lírica, épica e
dramática. A poesia épica (epopeia) é aquela em que, por meio de versos, é narrada uma
história, exaltando um povo representado por um herói. É o caso de Ilíada, Os Lusíadas
e Beowulf. A poesia dramática é aquela destinada à dramatização, ao teatro.
Nesse caso, a narração e as falas são apresentadas em versos. A poesia lírica é
aquela destinada para a representação e a expressão de sentimentos e estados de
espírito. Assim como ocorre com o narrador, o autor não se confunde com o eu lírico na
poesia. De acordo com Soares (2007), é no modo como a linguagem é usada que o eu
lírico ganha forma, sendo diferente em cada texto, guiando o leitor e a recepção. Por isso,
o eu lírico não é o mesmo (necessariamente) que o eu biográfico (autor), ainda que o
texto seja escrito em primeira pessoa. A seguir, você pode conhecer alguns gêneros.

 Elegia: é um poema em tom terno e triste, geralmente um lamento pela


morte de alguém, designando por extensão uma reflexão sobre a morte.

52
 Acróstico: é um poema em que a disposição de certas palavras permite
a formação na vertical de uma ideia, nome ou frase, geralmente por meio
da primeira letra de cada verso.
 Soneto: tem forma fixa bem determinada. Os versos não são livres. O
soneto é organizado em quatro estrofes, dois quartetos (quatro versos)
seguidos de dois tercetos (três versos).
 Ode: é um poema que visa à exaltação de algo ou alguém. Tem forma
bem estruturada.
 Romance: na poesia, é a novela de cavalaria, em que se exalta a
coragem, a generosidade, a lealdade e o amor cortês. Como exemplo,
você pode considerar Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.

Fonte: www.gestaoeducacional.com.br

7 RECURSOS LINGUÍSTICOS DO TEXTO LITERÁRIO

Há uma relação forte e imprescindível entre a qualidade da produção escrita e a


bagagem de leituras de cada pessoa. Quanto mais e mais variados gêneros de texto você
ler, maior será sua chance de produzir um bom texto. Além de fonte de conhecimento e
entretenimento, a literatura é uma forma de “vivenciar” outras experiências, ou seja, de
ampliar o “mundo” de alguém. (Ceia, 2009)

53
Sua contribuição, entretanto, pode ser explorada também por meio de seus
recursos linguísticos para a escrita. Por meio da intertextualidade, é possível apresentar
outros argumentos para defender ou contrapor uma ideia, bem como dar exemplos. A
intertextualidade pode ocorrer de diferentes formas, como citação direta, na qual se usam
as palavras de outro exatamente como estão no original, ou indireta. Neste último caso,
é possível falar sobre algo do texto original, como o contexto em que foi lançado, a
sinopse, os nomes de personagens, etc. Além disso, também é possível fazer uma
paráfrase, em que é mantido o significado original, mas se usam palavras e estrutura
sintática diferentes. (COUTO, 2009, p. 189–197).

As figuras de linguagem também são úteis na produção escrita — se usadas de


forma intencional e pensada. Elas podem ser organizadas em figuras de som, de sintaxe
ou de semântica. Veja, no Quadro 1, alguns exemplos e sua classificação.

54
55
8 NARRATIVA LITERÁRIA

8.1 Autor, narrador e narratário

A narrativa literária tem características na sua forma e no seu conteúdo que


identificam certas obras como pertencentes ao gênero narrativo. A principal característica
desses textos é que eles narram, relatam, contam histórias, fatos, situações e
acontecimentos reais ou imaginários. Todos esses eventos e histórias podem ser
cronológicos ou psicológicos (p. ex., quando o narrador está contando uma história do
56
seu passado, a partir de sua memória). O narrador é um elemento central da narrativa,
pois é ele quem conta a história ao leitor. Dessa forma, é por meio do narrador que o
leitor toma conhecimento da história. (Ceia, 2009)
Segundo Gérard Genette (1980), teórico do gênero narrativo, a análise do discurso
narrativo deve levar em consideração o conteúdo narrado e a forma como este é narrado.
Por isso, é importante aprendermos sobre os níveis do discurso e os diferentes papéis
do narrador e do narratário na compreensão da história. Os acontecimentos narrados
pelo narrador constituem o enredo da história.
As narrativas possuem elementos estruturais que asseguram a sua
verossimilhança, isto é, a coerência interna da história. Para criar um texto narrativo com
verossimilhança, o autor deve responder a perguntas básicas: quem? Onde? Quando?
O que aconteceu? E por quê? Aqui, podemos observar uma importante diferença entre
autor, narrador e narratário. Autor é quem cria a história, inventa, escreve o texto
narrativo; narrador é aquele que conta a história ao leitor; ao passo que narratário é o
receptor desse texto e desse discurso, conforme veremos no próximo tópico. As
narrativas são sequências lógicas de acontecimentos que têm um estado inicial, um meio
e um fim. São sequências de ações que ocorrem e mudam o estado inicial dos fatos.
Segundo Bronckart (1999, p. 219), o esquema narrativo pode ser dividido conforme a
seguir.
Situação inicial ou apresentação: há uma situação inicial estável.

 Complicação: provocada por uma força perturbadora, que instaura um


desequilíbrio.
 Clímax: é o ponto alto da narrativa, que determinará o final.
 Desfecho: o equilíbrio retorna.

Como podemos ver no esquema de Bronckart (1999), há uma situação inicial


estável, em que, normalmente, o autor descreve o lugar onde estão as personagens e
seus estados. Na complicação, algo acontece e perturba esse estado inicial, é uma
situação que desequilibra o estado das coisas.

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O clímax é o auge do enredo, vem depois da complicação, é como os personagens
reagem à situação perturbadora, o que eles pensam, falam, fazem, o que leva a história
ao seu estado final. Bronckart (1999) diz que, no desfecho, fase final da história, o
equilíbrio normalmente retorna, no entanto, é importante observar que, em muitas
narrativas, esse equilíbrio não é o mesmo do estado inicial e não precisa,
necessariamente, ser um estado final feliz. Entretanto, em narrativas literárias infantis
clássicas, como os contos de fadas, vemos que o desfecho representa, sim, um estado
final de equilíbrio em que a situação se estabiliza e o final é feliz para as personagens da
história narrada.
Em geral, os eventos acontecem em ordem cronológica nas narrativas literárias,
mas há também o tempo psicológico. Quando um fato que aconteceu anteriormente ao
tempo presente da história é lembrado pelo narrador e contado ao narratário em ordem
não cronológica, isto é, não sequencial, ocorre o tempo psicológico. A forma do texto e
os recursos formais da linguagem atuam sempre em conjunto com o conteúdo nos
diferentes gêneros textuais. Na narrativa, os tempos verbais utilizados ajudam o autor a
escrever a sua história. Um dos tempos verbais mais empregados em narrativas é o
pretérito imperfeito, utilizado para descrever o estado inicial da história, o cenário e as
personagens. Por exemplo, na tradicional introdução dos contos de fadas “era uma
vez...”, o verbo “ser” está no pretérito imperfeito.
O pretérito perfeito, por sua vez, é utilizado para narrar os acontecimentos, o que
acontece na história que desestabiliza o estado inicial, bastante utilizado na complicação
e no clímax, mas que pode permear todo o texto para narrar as ações das personagens.
Por exemplo, em um final infeliz “o príncipe morreu”, “o príncipe virou sapo”, os verbos
“morrer” e “virar” estão no pretérito perfeito. Os pretéritos perfeitos e mais que perfeito
composto também são utilizados nas narrativas. Esses tempos verbais podem ser
empregados quando o narrador quebra a ordem cronológica dos acontecimentos e conta
ao leitor uma situação que ocorreu antes de outra situação no passado. Por exemplo,
quando o narrador da história lembra de algo: “A essa altura, José já tinha visitado Maria”,
“Quando a mãe chegou, Pedro já tinha sido levado”. As locuções verbais “tinha visitado”
e “tinha sido levado” estão no pretérito perfeito composto.

58
Fonte: www.resumoescolar.com.br

8.2 Autor & narrador

O narrador é uma parte central do gênero narrativo, pois é ele quem conta a
história. O narrador é diferente do autor da obra literária, pois ele é integrado ao texto e,
como veremos, muitas vezes, é uma personagem da narrativa também. Já o autor é o
ser humano da vida real, aquele que escreveu o livro e inventou, inclusive, o narrador. O
foco narrativo é estudado na literatura, pois pode mudar a compreensão da história,
dependendo do ponto de vista do narrador. (Ceia, 2009)
A divisão clássica dos tipos de narrador são os narradores de primeira pessoa e
os narradores de terceira pessoa. Quando a história é contada em terceira pessoa, o
narrador é onisciente e está de fora da história. Os narradores dos contos de fadas são
todos oniscientes, pois eles sabem a história e estão narrando os acontecimentos sem
participar deles. Eles não são, portanto, personagens. Quando a história é contada em
primeira pessoa, o narrador é também uma personagem e está contando a história ao
mesmo tempo que participa ou participou dela. Aqui, reside a importância do foco

59
narrativo, pois os narradores em primeira pessoa contam a história desde o seu ponto de
vista.
O narrador-personagem não é neutro, pois a história contada passa pelo seu
julgamento subjetivo. O gênero diário, que é um tipo de narrativa literária, é um exemplo
de narrador em primeira pessoa, pois o narrador é justamente quem está escrevendo o
diário e contando histórias de seu dia a dia. (COUTO, 2009, p. 189–197).
O narrador é sempre fictício, é criado pelo autor e é ele o emissor do discurso da
narrativa. Assim, pertence somente ao mundo interno da obra literária. Já o autor
pertence à realidade, ao mundo empírico, e é o escritor das obras literárias. Ele pode
criar quantos narradores quiser, um para cada livro ou conto, se assim desejar. Podemos
citar o escritor brasileiro Machado de Assis como exemplo. Como autor, escreveu mais
obras utilizando narradores em primeira pessoa, mas também escreveu obras nas quais
criou narradores em terceira pessoa. No romance Quincas Borba, Machado de Assis
utiliza um narrador em terceira pessoa. Nesse tipo de narrador onisciente, há um
distanciamento entre narrador e personagens, pois o narrador não participa da história.
No entanto, pode comentá-la, quando se trata de um narrador intruso.
Nos romances Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, o escritor
Machado de Assis criou dois narradores que falam em primeira pessoa. Esses narradores
contam a história a partir de seus pontos de vista e também fazem parte dela, são
narradores-personagem. Esses dois romances de Machado demonstram a importância
do foco narrativo. Em Dom Casmurro, a história é contada pelo narrador-protagonista
Bento Santiago, Bentinho, que se transforma no velho Dom Casmurro. Bentinho é
supostamente traído por Capitu, sua esposa, e o ciúme permeia toda a história. No
entanto, os fatos e acontecimentos são todos narrados por Bentinho, impossibilitando o
leitor de ter certeza ao final da história se a traição realmente ocorreu, ainda mais porque
Bento Santiago era um homem extremamente ciumento. Ainda, Bento Santiago está
contando a história de maneira cronológica, mas Machado de Assis também utiliza o
tempo psicológico, pois Bento Santiago já é um homem maduro de 54 anos, advogado,
aristocrata, e está lembrando e contando a história que começou quando ele era jovem.
É interessante que, por muitos anos depois que o romance foi publicado, acreditou-se
que Capitu tinha traído Bentinho.
60
Somente com o passar dos anos, os pesquisadores e estudiosos atentaram para
o fato de o livro estar escrito em primeira pessoa e a história estar sendo contada pelo
narrador-personagem Bentinho. Dessa forma, o romance Dom Casmurro evidencia o
brilhantismo do autor Machado de Assis, que conseguiu, por meio do uso da técnica
discursiva do narrador-personagem em primeira pessoa, criar uma obra literária na qual
a dúvida do acontecimento principal da narrativa, a traição de Capitu, não fosse nunca
resolvida. (COUTO, 2009, p. 189–197).
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis evidencia o seu
talento na escrita narrativa criando, pela primeira vez, um narrador-personagem morto.
Brás Cubas morre e começa a contar a sua história depois de morrer. É um narrador em
primeira pessoa, que conta a história e participa dela, ao mesmo tempo que já não está
mais vivo quando a história é narrada. É um bom exemplo de uso do tempo psicológico
como técnica narrativa.

8.3 Leitor & narratário

O leitor tem também o seu papel na construção da narrativa literária. Leffa (1996,
p. 17) diz que “[...] ler é interagir com o texto”. O leitor é o receptor da mensagem da
narrativa, é o público-alvo do autor, escritor da obra literária. No entanto, ao contrário do
que se pode pensar, o leitor não é um ser passivo, pois a leitura não é um processo
passivo, visto que ler é atribuir significado ao texto.
A obra literária, sem seus leitores, não produz significado, não tem sentido. É o
leitor que dá sentido ao texto. Dessa maneira, é o leitor que faz a interpretação, a
compreensão da narrativa literária, completando-a com a sua visão de mundo. O mesmo
texto pode ter uma interpretação diferente se for lido por pessoas distintas. Uma obra
literária pode provocar reações diferentes em cada pessoa que a lê. E mais ainda, uma
mesma narrativa literária pode ter efeitos de sentido diferentes para uma mesma pessoa
dependendo da época que a leitura acontece. Se você ler Harry Potter com 14 anos e
depois relê-lo aos 45 anos, sua interpretação do texto, dos acontecimentos da história,
61
pode não ser a mesma. Isso porque a interpretação de um texto, literário ou não, depende
também do conhecimento prévio do leitor. As pessoas têm diferentes visões de vida, da
realidade e da sociedade.
As obras literárias trazem em si elementos sociais que são escritos pelos autores
com uma intenção, mas nem sempre a intenção do autor é captada pelo leitor. Ao
escrever um texto e publicá-lo, o autor coloca no mundo a sua obra aberta para
interpretações distintas, mesmo que alguma não seja especificamente a interpretação do
autor ao escrever esse texto. Se a linguagem utilizada, o enredo narrativo da história e a
característica das personagens dão margem à interpretação do leitor, a interpretação é
válida. Também não se pode esquecer que as obras literárias são escritas em uma certa
época, em determinado contexto social. Ao lermos hoje a obra Dom Quixote, escrita por
Miguel de Cervantes, na Espanha, em 1605, podemos não entender todas as nuances
pertinentes à época. Leffa (1996) nos ajuda a entender o papel do leitor na constituição
da obra literária comparando a leitura de uma narrativa à leitura de mundo:

Numa leitura do mundo, o objeto para o qual se olha funciona como um


espelho. Se o objeto for, por exemplo, uma casa, vai oferecer tantas leituras
quantas forem as posições de cada um dos observadores em relação à casa. O
arquiteto fará uma leitura arquitetônica, o sociólogo uma leitura sociológica, o
ladrão uma leitura estratégica, e assim por diante. Sem triangulação não há
leitura (LEFFA, 1996, p. 11).

Dessa forma, vemos, na explicação do autor, que é na relação entre leitor e texto
que se dá a interpretação. O leitor parte de um ângulo singular e, dependendo dos seus
objetivos, toma um posicionamento em relação ao objeto, neste caso, o texto. Não temos
como fazer a leitura de uma casa se não for de uma das posições possíveis. Entretanto,
fica claro, na explicação, que o leitor é dono de sua compreensão da obra literária, e a
faz de seu ponto de vista, com o seu conhecimento de mundo, completando a leitura com
a sua interpretação dos acontecimentos narrados, por exemplo. Precisamos identificar
os papéis do leitor na narrativa literária em específico.
Como vimos na seção anterior, o autor e o narrador não têm a mesma função.
Aqui, também, falando de quem recebe o texto, leitor e narratário não têm a mesma

62
função. O leitor é o público, a audiência do autor, a quem o autor destina o texto. É
extratextual, isto é, tanto o leitor quanto o autor estão fora do texto. O narratário, por sua
vez, está dentro do texto. O narratário é o destinatário do narrador, o narrador conta a
sua história para um narratário, que faz parte do texto em si, constituindo uma relação
intratextual.
Tanto o narrador quanto o narratário estão dentro do texto. O leitor, ser empírico,
é o receptor final do texto, quem atribui a ele uma interpretação. Em algumas narrativas
literárias, os autores, escritores habilmente utilizam o narratário como técnica discursiva
na composição de sua narrativa. O narratário aparece evidente no texto, quando o
narrador se dirige ao leitor diretamente. O romance Dom Casmurro, de Machado de
Assis, é um exemplo. Podemos ver que o narrador, Bentinho, se dirige abertamente ao
leitor. Esse leitor que faz parte da narrativa do narrador é, na verdade, o narratário, pois
ele está dentro do universo do texto. Assim, podemos ver que, às vezes, o narratário fica
explícito nas obras literárias. (Ceia, 2009)
Dom Casmurro é um bom exemplo para entendermos como Machado de Assis
utiliza a técnica discursiva do narratário para chamar o leitor para a construção do
significado dessa narrativa literária. Quem interpreta, compreende e completa a obra
literária é o leitor, receptor final da obra, pois dá sentido a ela. No entanto, o ser que
aparece explícito no texto é o narratário, pois é fictício e comum a todos os leitores.
Analisemos o exemplo de Dom Casmurro. Na obra, o narrador, que é o personagem
protagonista, Bentinho, cria uma relação muito peculiar com o seu leitor, o narratário, pois
ele conversa com o narratário no meio da narrativa. O narrador se dirige, assim,
explicitamente, ao narratário no meio do texto, com intuito de convencê-lo, de trazê-lo
para o seu lado. Assim, no romance Dom Casmurro, o autor Machado de Assis,
habilmente, dá um papel explícito ao seu leitor, o de juiz. Bentinho, como narrador, tenta
convencer o leitor de que Capitu o traiu, contanto situações e mostrando acontecimentos
dúbios.
O leitor, no entanto, tem de estar atento para o fato de que Bentinho é também
personagem da história, e a sua versão é uma das versões da história. É o leitor quem
decide, ao final, se acredita na traição de Capitu ou não. A seguir, temos um trecho dessa

63
obra, em que podemos ver a fala direta do narrador Bentinho com o seu narratário, que
ele chama, obviamente, de leitor:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem
à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor..., mas, não
adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a
denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ela
me denunciou. Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que
denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que
fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não
valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava
Capitu! “Capitu amava-me” E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam,
trêmulas e crentes de abarcar o mundo (ASSIS, 2008, p. 213, grifo nosso).

Podemos ver, nas partes destacadas, que o narrador-personagem estabelece uma


conversa com o leitor, através do narratário, personagem fictício que aparece no texto na
forma de ser que está atento à narrativa contada pelo narrador. Bentinho dirige-se ao
narratário como “leitor amigo” e conversa com ele durante a narrativa.
Dessa forma, o autor Machado de Assis está, claramente, tentando atingir,
conversar, com o leitor. Assim, temos um exemplo bem ilustrativo de como o leitor
também contribui para o sentido da narrativa literária. A interpretação do leitor será uma
convergência da compreensão das palavras escritas pelo autor, da avalição de como o
autor escreveu a história e de seu conhecimento prévio (i.e., conhecimento de mundo
que o leitor traz consigo e utiliza na compreensão final do texto).

8.4 Níveis do discurso

Gêneros literários são um conjunto de obras que possuem características similares


tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Existem três grandes gêneros literários: o
64
gênero narrativo, o gênero lírico e o gênero dramático. Os gêneros literários se
diferenciam pelos seus gêneros discursivos/textuais. Isto é, cada gênero literário é um
tipo de texto diferente. Os gêneros textuais, segundo Bakhtin (1992), são gêneros do
discurso, são tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos nas diferentes
esferas da atividade humana.
Os gêneros do discurso são variados e ilimitados, pois representam as infinitas
situações comunicativas presentes nas relações humanas. São exemplos de gêneros
textuais: cartas, e-mails, receitas culinárias, romances, reportagem, contos, horóscopo,
cardápios, sermão, entre muitos outros. Ou seja, quanto mais situações de linguagem,
tanto orais quanto escritas, forem criadas pelas relações humanas, mais gêneros textuais
existirão. Segundo Marcuschi (2002), os gêneros textuais surgem de acordo com as
necessidades e atividades socioculturais e também na relação com as inovações
tecnológicas. A tecnologia e os novos aparelhos, como tablets e smartphones, interferem
nas situações comunicativas diárias das pessoas. Assim, temos uma explosão de novos
gêneros textuais, devido a essas novas formas de comunicação, tanto faladas quanto
escritas, influenciadas pela tecnologia.
Os gêneros literários são gêneros do discurso que tem a literariedade como
característica, como, por exemplo, a narrativa literária. Assim, são normalmente escritos
e tem uma estética definida. A literariedade é um termo cunhado por Roman Jacobson
para distinguir textos não literários, comuns, de textos pertencentes à literatura. Os textos
literários se servem da realidade para criar mundos fictícios, fantásticos, utilizando-se da
linguagem literária para criar outras formas de ver a experiência humana.
Assim, a ficcionalidade é uma das características principais do texto literário (ainda
que nem toda a literatura seja ficcional), além da linguagem literária. A linguagem literária
é aquela cuidadosamente selecionada pelo autor, uma linguagem estética, que pode
utilizar metáforas e tem como um de seus objetivos a fruição do texto pelo leitor. Apesar
de poderem ser de ficção, ou sobre mundos alternativos, inventados, as obras literárias
precisam ter verossimilhança. Não necessariamente o que está sendo contado,
declamado ou lido necessita existir no mundo real, mas a história inventada necessita de
verossimilhança, isto é, lógica interna, o que ocorre no interior da história deve fazer
sentido naquele mundo interno ao texto. Em resumo, a narrativa literária é um tipo de
65
texto específico que constitui o gênero literário narrativo. A narrativa literária é, portanto,
um gênero do discurso e difere de outros gêneros literários quanto às suas características
formais. A narrativa possui elementos indispensáveis para a sua caracterização e
técnicas discursivas próprias. (Ceia, 2009)
O Quadro 1 nos ajuda a visualizar e a entender a diferença entre gêneros do
discurso e gêneros literários.

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O gênero narrativo literário tem características discursivas bem marcantes. A sua
tipologia textual é narrativa. Nas narrativas, necessariamente, se transmite uma
mensagem, que está inserida em um tempo específico, escrita de modo que o receptor
consiga entendê-la. Essa mensagem começa no estado inicial e termina no desfecho. A
mensagem é emitida pelo narrador, que conta a história, e captada pelo receptor do texto,
o narratário, mas só é compreendida e interpretada pelo leitor real, que faz a interpretação
dessa mensagem olhando o todo: o que foi enunciado e como foi enunciado. Entre o que
é enunciado, por quem e para quem e como, temos os níveis do discurso.
Émile Benveniste é o primeiro linguista, cientista da linguagem, a distinguir a língua
em si do emprego da língua. Benveniste introduz uma visão enunciativa da linguagem
com a Teoria da Enunciação, trazendo para análise o discurso, que é a língua posta em
ação pelo sujeito. Segundo Benveniste (1995), há dois tipos de signos, códigos utilizados
na linguagem: os que pertencem à sintaxe da língua e os que são característicos das
“instâncias do discurso”. Segundo o autor, “Instâncias do discurso” são “[...] atos discretos
e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor”
(BENVENISTE, 1995, p. 277).
Os signos que são característicos às instâncias do discurso são os pronomes
pessoais eu e tu, que só existem na rede de indivíduos que a enunciação cria e se
produzem na e pela enunciação do locutor. Enunciação, para Benveniste, é o ato de se
apropriar da língua e colocá-la em prática no discurso. Cada eu tem sua referência própria
e corresponde cada vez a um ser único. Eu é o “[...] indivíduo que enuncia a presente
instância de discurso que contém a instância linguística ‘eu’” e tu é o “[...] indivíduo
alocutado na presente instância de discurso contendo a instância linguística ‘tu’”
(BENVENISTE, 1995, p. 279, grifo nosso).
Eu e tu não existem como signos virtuais, pois só existem à medida que são
atualizados nas instâncias de discursos, e são eles que marcam o processo de
apropriação do discurso pelo locutor. Benveniste ressalta que eles não remetem à
realidade nem a posições objetivas no espaço ou no tempo, mas remetem à enunciação,
cada vez única, que os contém.

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Aqui, vemos que Benveniste amplia a visão de linguagem para uma linguagem
que é assumida como exercício pelo indivíduo, em contrapartida a uma linguagem vista
como um sistema de signo, códigos escritos, sem interação com o mundo. Dessa
maneira, é possível perceber a preocupação de Benveniste com o discurso, com a
enunciação e o sujeito, ressaltando a presença do homem na língua.
A comunicação intersubjetiva proposta por Benveniste se realiza no discurso. E
“[...] é no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura. Aí começa
a linguagem” (BENVENISTE, 1995, p. 140), ou seja, “[...] o discurso como a linguagem
posta em ação e necessariamente entre parceiros” (BENVENISTE, 1995, p. 284). Para
Benveniste, o discurso é a língua assumida pelo homem que fala, sob a condição de
intersubjetividade, isto é, entre sujeitos, o que torna possível a comunicação linguística.

8.5 Níveis do discurso específicos da narrativa

Podemos aplicar de forma mais prática os conceitos das teorias do discurso à


narrativa literária em específico. Como aprendemos com o conceito de gêneros do
discurso de Bakhtin, a narrativa é um gênero discursivo e, como tal, tem sua função
própria para a comunicação humana. É um tipo de enunciado estável, que tem sempre
os elementos vistos neste capítulo, e transmite uma mensagem de um autor para um
leitor, por meio de narrador e narratário, respectivamente. Fiorin (2007) relaciona as
teorias do discurso e os sujeitos da enunciação aos sujeitos envolvidos nas narrativas.
Segundo o autor, os sujeitos da enunciação são divididos em três níveis do
discurso: o nível do enunciador e do enunciatário; o nível do narrador e do narratário; e o
nível das personagens da narrativa. Todos fazem uso do discurso, em diferentes níveis.
Vejamos a explicação do autor para que possamos melhor entender a distribuição dos
sujeitos no discurso narrativo:

Os sujeitos da enunciação aparecem em três níveis distintos: 1. O autor


e o leitor implícitos, que são pressupostos pela própria existência do enunciado,
chamados enunciador e enunciatário; 2. Aquele que narra e aquele para quem
se narra, projetados no interior do enunciado, denominado narrador e narratário;

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3. As personagens que dialogam entre si no interior do texto, nomeados de
interlocutor e interlocutário (FIORIN, 2007, p. 26).

O autor e o leitor são os sujeitos da enunciação em si. Podemos pensar neles


como as instâncias do discurso de Benveniste o “eu” é o autor e o “tu” é o leitor. O autor
é o eu que se apropria da língua e a coloca em ação na sua narrativa. O narrador e o
narratário são, segundo Fiorin (2007), sujeitos da enunciação. Isto é, o narrador e o
narratário são internos ao texto, mas, dentro do texto, eles são os sujeitos, eles são quem
fala e quem ouve, quem narra e quem lê. As personagens da narrativa também falam
dentro da história, dialogam entre si e põem, de certa forma, a língua em prática, se
utilizam do discurso. As personagens são denominadas interlocutor e interlocutário, pois
dialogam dentro do texto (FIORIN, 2007). A proposta de sujeitos da enunciação feita por
Benveniste abriu novas possibilidades de análise do discurso. O locutor e o destinatário
não são somente polos da comunicação, mas sim entidades que se situam num
determinado tempo histórico e espaço sociocultural.
Assim, as Teorias da Enunciação de Benveniste, bem como as demais teorias de
discurso, abrem a possibilidade de análise das vozes, dos enunciadores, dos sujeitos que
participam da transmissão e da recepção da mensagem da narrativa literária. O narrador
é o enunciador da mensagem do autor, e este, por sua vez, é o eu real que instancia o
discurso da narrativa.

8.6 Recursos técnico-discursivos utilizados nas narrativas literárias

Alguns dos elementos das narrativas literárias que vimos são recursos técnico
discursivos utilizados pelos autores na escrita da obra literária narrativa. O recurso mais
enfatizado neste capítulo foi o diálogo estabelecido na narrativa entre narrador e
narratário. O narrador é um importante recurso, pois pode tornar a narrativa mais
subjetiva ou mais objetiva. O narrador pode ser onisciente e contar os fatos, ou pode ser
uma personagem e contar a sua visão da história. Já o narratário, como vimos, é um
recurso utilizado pelos escritores para falar com o leitor, atingir o público, chamá-lo para
69
integrar a narrativa. Uma outra técnica discursiva que compõe as narrativas literárias são
os tipos de discurso utilizados pelo narrador para registrar as falas das personagens.
As personagens interagem na história, e o registro dessas falas é feito pelo
narrador. Há três tipos de discurso que são utilizados pelos narradores: o discurso direto,
o discurso indireto e o discurso indireto livre. O discurso direto é o registro direto da fala
da personagem, a transcrição ipsis litteris do que e do modo como o personagem falou.
Você pode identificar a fala dos personagens em discurso direto pelo travessão, pelos
dois pontos e pelas aspas. A fala direta dos personagens fica bem evidente nas narrativas
em que há diálogos, em que um personagem fala com outro diretamente, sem
intervenção do narrador. O discurso indireto é diferente do direto, pois nele temos a
interferência do narrador. (BENVENISTE, 1995, p. 277).
No discurso indireto, a fala do personagem é transmitida indiretamente, tendo o
narrador como intermediário, ou seja, o leitor não tem acesso à fala literal do personagem.
Assim, como leitores, somente lemos a voz do narrador, que passa a nós a mensagem
da fala do personagem. Nas narrativas, podemos ver falas indiretas dos personagens
quando o narrador utiliza verbos de introdução de discurso indireto, por exemplo: “Capitu
falou que...”, “Quincas Borba contestou o que foi decidido por.…”. O discurso indireto livre
é uma mistura do discurso direto e do indireto, é um meio termo entre a fala literal do
personagem e a voz do narrador. Normalmente, são falas típicas dos personagens,
expressões ou, principalmente, pensamentos que são mediados pelo narrador.
Quando lemos alguma expressão, como “droga! ”, por exemplo, no meio do texto,
é uma fala indireta de um personagem, mediada pelo narrador e transmitida para nós,
leitores, no texto da narrativa. Como vimos, a narrativa literária tem elementos
específicos, como narrador, personagens, tempo, espaço, enredo. Além disso, o gênero
narrativo é um gênero do discurso, e a narrativa possui técnicas discursivas específicas
a esse gênero. As técnicas discursivas são utilizadas pelos autores para criar o mundo
da narrativa e transmitir a mensagem da história ao leitor, seu receptor final. Os níveis do
discurso são importantes neste jogo de comunicação entre autor/escritor e leitor/receptor.
O Quadro 2, a seguir, apresenta os diferentes papéis discursivos das narrativas literárias
e esclarece quem são os sujeitos envolvidos nessas narrativas.

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9 BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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