Periferia É Periferia - Análise Da Manifestação Do Racismo E Violência No
Periferia É Periferia - Análise Da Manifestação Do Racismo E Violência No
Periferia É Periferia - Análise Da Manifestação Do Racismo E Violência No
Catarina.
Resumo
cinematográfica, que mostra a conjuntura das periferias do Rio Janeiro no contexto dos anos
70 e 80, se mantém atual, visto que o cenário retratado se mantém nos mesmos moldes das
desenvolvimento psicossocial.
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
Introdução
“última nação das Américas a abolir a escravização de pessoas africanas, o Brasil também foi
o maior país escravista dos tempos modernos, sendo que o tráfico de escravizados para esta
nação foi responsável pela deportação de cerca de seis milhões de negros(as) da África
subsaariana” (Reis & Gomes, 2005 como citado em Conselho Federal de Psicologia [CFP],
2017). Por meio de uma política escravocrata desenvolvida por elites dominantes brancas,
2008).
visto que está inteiramente ligado com as estruturas sociais que determinam e organizam as
relações sociais, os modos de ser, pensar, sentir e agir da população. Nesse sentido, o corpo
detrimento da população negra - racismo institucional (Almeida, 2019). “De outro modo, o
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Fischer & Silva (2021)
preconceito de “origem” referente à ancestralidade, ainda que o sujeito não tenha traços
negróides visíveis no corpo, entretanto, este tipo de preconceito parte do pressuposto que o
sujeito tenha em seus genes alguma ascendência fenotipicamente negra, o que não tornaria o
sujeito um negro necessariamente por conta de sua aparência, mas pelo sangue. No Brasil, o
classe liberta. Buscando mitigar este temor, a elite e o governo importaram e adaptaram
Estas teorias racistas, de acordo com Ferreira e Pinto (2014), adaptadas para a realidade do
Brasil levando ao incentivo da ideia de que a mestiçagem seria uma forma de aprimorar a
falsa ideia de que há uma plena convivência respeitosa entre todos os grupos étnico-raciais, e
que as desigualdades sociais existem apenas por diferenças de renda e acesso à educação).
Nesse sentido, após a abolição da escravidão em 1888, o Estado brasileiro não adotou
nenhuma política reparativa visando a inclusão dos ex-escravizados na sociedade. Para todas
cativeiro e escravização, mas também o direito à terra, educação, trabalho formal e demais
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
direitos de cidadania que a população branca já tinha acesso (Albuquerque & Fraga Filho,
2006). Ilustrando o racismo como estrutural e estruturante do Brasil, a Lei de Terras de 1850
determinava que negros não tivessem o direito de serem proprietários de terras (de Amorim
& Tárrega, 2019). Como consequência, esta parcela da população passou a habitar cortiços e
ocupar os morros, surgindo assim as favelas e a dicotomia morro-cidade (Lima, et al., 2020).
indicar quem pode viver e quem pode morrer” (Costa & Queiroz, 2021, p.117). Foucault
(1970, como citado em Costa & Queiroz, 2021), nos faz perceber que o poder está
disciplinares, estando assim diretamente ligado aos discursos de ódio, violência social e
estatal, que se tornaram regras nas nações do mundo (Costa & Queiroz, 2021). Nesse
sentido, devemos pensar nas políticas atuais de governo, como aponta Achille Mbembe
mais afetados são os indivíduos negros que vivem em sua maioria nas periferias. O estado é
sem dar oportunidade de vida para esses sujeitos. A necropolítica enfatiza os marcadores da
morte, que são determinados por raça, classe social, orientação sexual, gênero e idade. “A
necropolítica é complementar a ideia quando se fala em genocídio racial no Brasil, uma vez
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Fischer & Silva (2021)
controlar corpos” (Lima, et al., 2020, p. 153). Desta forma, o estado reproduz o racismo
estrutural que está presente nas facetas da sociedade, em que os corpos marcados para morrer
este produz a exclusão e violência sistemática contra corpos negros, mesmo após a abolição
(Lima et al, 2020). Compreendemos também, considerando o racismo como pilar opressivo
Dessa forma, foi analisado o filme Cidade de Deus (2002) que é um marco para o
cinema nacional, pois representa para o telespectador um retrato de extrema importância que
revela a realidade da sociedade brasileira, trazendo à tona o abandono e exclusão social que
ocorrem de forma sistemática nas favelas, marcadas pela pobreza e por um crescimento da
violência nas periferias brasileiras nos anos 60, 70 e 80. Entretanto, apesar da passagem do
tempo, em 2021 o retrato das periferias no Brasil permanece o mesmo, visto que vivemos em
uma política de morte, em que os mais afetados tem cor e classe social, e estão em condições
promove mortes em larga escala, pois “a soberania é a capacidade de definir quem importa e
quem não importa, quem é descartável e quem não é” (Mbembe, 2018, p.41).
Assim, foi situado racismo estrutural e violência como potentes categorias de análise
comportamental desta produção, a partir da análise do filme Cidade de Deus (2002), visto
que a construção histórica do Brasil enquanto nação se deu a partir de processos que violam
direitos humanos elementares de acesso à vida e dignidade humana de pessoas negras, e que
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
a necropolítica que determina quais corpos estão marcados para morrer e viver em condições
Posto isto, esta produção tem como objetivo principal a reflexão sobre a manifestação
violência se configura como um elemento presente nas vivências e trajetórias de vida das
dialogar sobre as questões de violência e racismo estrutural e suas relações com outros
construção de um novo cenário nas suas periferias. Esta produção visa, através da análise
deste filme, colaborar para o debate acerca destas questões, visto que a consciência a respeito
destas temáticas é fundamental para pensarmos caminhos para a elaboração de um país mais
igualitário.
Metodologia
O filme Cidade de Deus foi lançado em 2002, com direção do cineasta Fernando
nome e dissertação de mestrado do escritor Paulo Lins, publicado em 1970 - dividiu a crítica
brasileira e levou mais de 3 milhões de pessoas ao cinema. Paulo Lins foi morador da favela
carioca Cidade de Deus, e considera sua produção um romance baseado em fatos reais. Desta
forma, o filme conta a história dos moradores desta favela na década de 60 e 70,
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Fischer & Silva (2021)
Posto isto, esta produção tem por objetivo a análise do filme Cidade de Deus, a partir
Participantes
Zé Pequeno
Pequeno, o personagem é um homem negro de pele retinta, magro. O filme não mostra a
infância e adolescência do personagem se deu em situação de rua. Desde criança teve contato
com a criminalidade e violência, normalizando crimes hediondos como assassinato, visto que
protagonizou a chacina mais sangrenta da Cidade de Deus na década de 60. Desejava ser
bandido desde que era Dadinho, pois entendia que era a maneira de ser respeitado, ter
dinheiro e poder. Largou os estudos muito cedo, e aos 18 anos, Zé Pequeno era conhecido
Buscapé
Pequeno. Buscapé desde criança não tinha o desejo de ser bandido nem policial, pois tinha
medo de levar tiro, como o mesmo diz no início do filme. Como morador da Cidade de Deus,
na comunidade, mas cresceu tendo suporte e apoio do pai e da mãe. Teve um irmão
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
conhecido como Marreco, assassinado por Dadinho, que foi expulso de casa pelo pai por
conta dos atos criminosos cometidos, visto que era membro do Trio Ternura, primeira
comprar uma câmera fotográfica, mas não teve coragem. Se interessou por fotografia na
jornalista.
Procedimento
estrutural e violência. É importante enfatizar que consideramos racismo também como uma
expressão de violência, porém, para fins de uma análise aprofundada de Cidade de Deus
(2002) e as temáticas que perpassam o filme, separamos estes dois fenômenos em duas
por meio de agressões físicas, verbais, psicológicas (“piadas” que humilham o fenótipo e
cultura negra, por exemplo), entre outras formas de manifestação do menosprezo pelo grupo
racial negro, que introjeta esta opressão. Serão três cenas a serem analisadas nesta categoria.
década de 60 (08 min e 22seg). Adiante, analisamos uma cena na qual o traficante Bené
conversa com Juninho, garoto branco da zona sul do Rio de Janeiro, manifestando seu desejo
de vestir-se igual ao morador da área nobre da cidade (51min e 10seg). Analisamos também a
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Fischer & Silva (2021)
12seg). Desta maneira, propomos uma análise crítica sobre as questões raciais presentes no
psicológica e sexual são alguns exemplos, que se manifestam ao longo do filme). A categoria
de análise violência perpassa todo o filme, porém escolhemos cenas emblemáticas para
melhor observação, sendo uma delas que faz referência ao assalto mais sangrento da Cidade
de Deus, em que o até então o personagem Dadinho matou vários inocentes (44min e 49seg).
análise da categoria violência, encerramos com a morte Zé Pequeno e a ascensão dos novos
Resultados e discussão
Analisamos, usando como base as cenas do filme Cidade de Deus (2002), a categoria
Racismo Estrutural
Estrutural” (2019), o autor elucida como o racismo é sempre estrutural, e que todas as outras
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. De tal sorte, todas
diferentes maneiras que se articulam, conforme Almeida (2019) divide de modo didático:
consideramos esta concepção também como a internalização do racismo pelos sujeitos, isto é,
identidade da pessoa negra (Ferreira & Pinto, 2014). Desta forma, consideramos racismo
estrutural como categoria comportamental a ser analisada nesta produção, entendendo que a
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Fischer & Silva (2021)
em 1888 no Brasil, não houve nenhuma política reparativa e de inclusão social dos
ex-escravizados, que ficaram desamparados diante do Estado visto que não tinham
perspectivas de acesso à educação, terra e/ou moradia, trabalho, lazer, cultura e exercício de
demais direitos que garantem a plena cidadania em igualdade com a população branca
(Ferreira & Pinto, 2014). Desta forma, com a liberdade recém conquistada, mas sem nenhum
apoio, incentivo e aceitação social, passou a ocorrer um movimento de migração dos negros
recém-libertos para os cortiços e morros das cidades, formando assim, o que conhecemos
como favela. Há uma dicotomia favela-cidade, visto que a favela é o “locus da pobreza
excludente” (Lago & Ribeiro, 2001), evidenciando um marcante contraste social entre a
favela e demais bairros da cidade, em especial os bairros de classe média alta. Há uma
separação simbólica e material existente desde o início do século XX entre favela e demais
década de 60, conforme demonstra o filme de mesmo nome, analisado nesta produção. A
cena descrita abaixo destaca o processo de segregação urbana, marcado pela dicotomia
favela-cidade.
60. Marcada pela pobreza, a comunidade tinha ruas de chão batido (sem asfalto), os
moradores em grande maioria eram pessoas negras, com vestimentas simples. Algumas
enquanto brincam de empinar pipa. As casas são todas bem parecidas, uma ao lado da outra,
em um tom amarelado. A cena mostra também muitas famílias com malas, mochilas, sacolas
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
dos moradores da comunidade, Buscapé, que nesta cena é um menino negro e magro de cerca
de 10 anos, usando uma camiseta branca e calção amarelado, que narra enquanto as imagens
paraíso. Um monte de famílias tinham ficado sem casa por causa das enchentes e de alguns
incêndios criminosos em algumas favelas”. Enquanto Buscapé narra, aponta junto de seu
amigo para a instalação de um poste de luz, animados mostrando que era o início da
mostra mais famílias chegando no local, e os dois meninos correndo perto de um trator pelo
chão sem asfalto “a rapaziada do governo não brincava. Não tem onde morar? Manda pra
Cidade de Deus. Lá não tinha luz, não tinha asfalto, não tinha ônibus, mas pro governo e os
ricos, não importava o nosso problema. Como eu disse, a Cidade de Deus fica muito longe
governamentais e por parte da academia, a favela foi vista (e ainda é, para alguns setores da
sociedade) durante muito tempo como uma ameaça à tranquilidade pública, local com
péssimas condições de higiene (sem saneamento básico, acesso a água e luz, sem nenhum
de Cidade de Deus (2002) mostra, há uma grande mudança de várias famílias para a
comunidade, visto que não tinham para onde ir, e a comunidade apenas muito recentemente
comunidade Cidade de Deus. Joachim Hirsch (como citado em Almeida, 2019, p.56) define
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Estado como “condensação material de uma relação social de força”, fornecendo um conceito
que abrange a potência do racismo como elemento estrutural da sociedade. Portanto, há uma
relação complexa entre poder, economia, política e cultura nas relações sociais que dão corpo
ao Estado.
A cena descrita acima evidencia que o Estado brasileiro tem o racismo como base
organizador das relações sociais falha ao não adotar políticas de inclusão das pessoas negras e
pobres, pois como aponta Buscapé, “não tem pra onde ir? Vai pra Cidade de Deus”,
mito da democracia racial, afinal, se não há racismo, não há porque discuti-lo ou fomentar
década de 60 por famílias que não tem moradia garantida, e pela narração do personagem
Buscapé, que evidencia a falta de assistência na comunidade por parte do Estado. Deste
modo, percebe-se a favela como um local esquecido pelo Estado no que tange às políticas
públicas que visam a garantia de direitos humanos básicos, mas como alvo de diversas
formas de violências.
ou seja, uma outra dimensão do racismo estrutural interiorizada pelos sujeitos. A análise dos
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psique.
desvalorização sistemática de tudo que diz respeito ao negro, considerado como sinônimo de
sujo, errado, feio, criminoso, incapaz, que serve apenas para prazeres sexuais, entre outros
estigmas racistas (Sousa, 1983). Desta forma, o sujeito negro tem a sua identidade destruída,
para ser edificada em ideias que reforçam estigmas e preconceitos raciais negativos em
relação a pessoa negra, visto que o ego do negro é construído a partir do ideal de ego branco
amparado pelo mito da democracia racial, há uma dificuldade da nomeação dos efeitos do
social vigente de privilégios de um grupo racial em detrimento de outros (Ferreira & Pinto,
2014). Deste modo, a fim de alcançar prestígio e aceitação social, o sujeito negro, que não
certo, enquanto o negro é a personificação do mal e do errado, logo, deve ser combatido,
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material e simbólica deste grupo racial como superior em todos os sentidos, em relação ao
grupo racial negro, considerado inferior. No filme, o personagem Bené, junto de seu fiel
Cidade de Deus e, vendo o modo como o garoto branco Thiago, de classe média alta, se
veste, deseja parecer como ele, esbanjar sua condição sócio-econômica através de roupas
marcadamente ocupados por pessoas brancas. Sousa (1983) aponta como o sujeito negro, ao
algoz como forma de garantir reconhecimento social, sendo uma dessas maneiras de
demonstração de ascensão social a preferência por pessoas brancas como parceiros amorosos.
É importante destacar, entretanto, que Bené ascende socialmente no sentido de ter acesso a
dinheiro e poder, porém, permanece como vítima do Estado racista ao ocupar o local de negro
comprar pó (cocaína). Thiago é um menino branco de cabelos ruivos, cerca de 17 anos, vestia
uma camiseta listrada branca e vermelha, um calção preto com listras azuis e brancas até
metade das coxas, e um tênis marrom. Bené, traficante e amigo de confiança de Zé Pequeno,
é um menino negro de cerca de 18 anos, cabelos pretos no estilo black power, vestia uma
regata azul e uma bermuda listrada até os joelhos. Ele observa bem Thiago que estava se
afundando cada vez mais no uso da droga, depois que terminou o namoro com Angélica,
conforme narra Buscapé. Thiago troca um relógio de seu pai por uma trouxinha de pó.
Buscapé narra que “quando o cara é muito viciado, ele acaba ficando na mão do traficante.
No caso do Thiago, isso acontecia de um jeito diferente”. Depois de fazer a troca, Thiago vai
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embora com sua bicicleta, e Bené vai atrás dele com a bicicleta emprestada de um de seus
colegas.
Quando Bené alcança Thiago, propõe que apostem uma corrida, a qual Bené vence
após Thiago apertar os freios da bicicleta percebendo que ia ganhar a corrida. Em seguida,
Bené pergunta onde Thiago comprou os tênis e a camiseta que usava, e o garoto responde que
comprou as roupas de marca em Madureira e na Zona Sul. Bené pergunta “Se eu te der um
dinheiro, tu não compra umas peça dessa pra mim não?” entregando uma quantidade
significativa de dinheiro para o menino, que partem para uma aproximação com palmos das
medidas de Bené, que pede também “uns cordão maneiro” para Thiago comprar.
Em seguida, a cena corta para Bené, que aparece com o cabelo sendo pintado por uma
mulher negra, e imediatamente Thiago chega segurando sacolas de lojas, mostrando as novas
roupas da moda de Bené, compradas em zonas nobres da cidade. Por fim, o filme corta para
uma cena em que os garotos estão na praia usando apenas bermuda. Bené, já com o cabelo
descolorido, conhece os amigos de Thiago, em grande parte brancos. Buscapé também estava
presente, e é apresentado a Bené por Thiago, que informa que os dois já se conheciam.
Angélica prontamente se apresenta a Bené, que escaneia o corpo da garota. Buscapé percebe
os olhares e sorrisos trocados e não parece muito contente, visto que tem interesse por
Desta forma, quando Bené usa uma roupa de marca, e é apresentado a amigos brancos
de Thiago na praia, o personagem negro chama atenção de Angélica, uma garota branca que
Buscapé tinha interesse afetivo-sexual, mas que nunca retribuiu este interesse por ele.
Buscapé, como anuncia no início do filme ainda criança, não quer ser bandido nem policial
pois tem medo de levar tiro e, dessa forma, trabalha formalmente, dá continuidade aos
estudos e não esbanja poder ou dinheiro. Por outro lado, Bené abandonou a escola ainda
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criança, quando já se envolveu com a criminalidade até alcançar o ápice do poder aos 18 anos
junto de seu parceiro Zé Pequeno, chefe do tráfico de drogas da comunidade Cidade de Deus.
receber a mesma atenção ainda que invista em conseguir uma chance da garota, pode-se
considerar como um exemplo de como o racismo é introjetado pelos negros, visto que Bené,
ao alcançar maior poder econômico, prefere a mulher branca como parceira, entendida a
homem negro (Souza, 1983). Este mesmo sujeito negro é posicionado e se posiciona em
estereotipos racistas, reforçando a ideia do homem negro sensual, bandido, com poder e
dinheiro, que para atestar sua ascensão social, usa roupas semelhantes a de seu amigo branco
internalização do racismo por pessoas negras como inferiores, e de pessoas brancas como
superiores, sendo neste caso, a cena que demonstra o reconhecimento profissional de Buscapé
como fotógrafo.
olha a foto de seu rival, Mané Galinha, estampada no jornal “eu que mando nessa porra, a
foto do arrombado que sai no jornal… acharam minha foto aí?”. Cada um dos colegas de Zé
Pequeno tem um jornal em mãos, em que analisam buscando por alguma imagem ou menção
ao chefe do crime local, indignado por não ser mencionado de forma alguma no jornal. Desta
forma, Zé Pequeno pede que Thiago tire fotos suas e de seus companheiros portando armas,
mas não conseguindo fazer isso e irritando ainda mais Zé Pequeno, Thiago vai atrás de
Buscapé, convocado a tirar fotos dos criminosos que posam com armas. Como recompensa,
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
Buscapé leva as fotos para o jornal que trabalha como entregador e pede ajuda de um
colega branco para revelá-las. Entretanto, o colega diz que não pode ajudá-lo visto que
apenas é permitido a revelação de fotos para o jornal. No mesmo momento, outro jornalista
que Buscapé admira chega no local, e pede para o colega que conversa com o personagem
revelar outras fotos, assim como as que Buscapé tirou. Assim, o personagem aprendeu
oportunidade de visualizá-las já quando estava entregando jornais com outros colegas, pois
seu trabalho foi publicado sem seu consentimento, o que causa grande nervosismo no
personagem por pensar que seria assassinado por Zé Pequeno. Dessa forma, Buscapé
nervoso e irritado retorna ao local de trabalho em que as fotos foram reveladas, questionando
Marina, uma jornalista branca responsável pela publicação de seu trabalho. Depois de
discutirem, Marina explica que foi um equívoco, pois como as fotos estavam no local, foram
publicadas, mas logo em seguida paga Buscapé pelo seu trabalho e pergunta se ele pode tirar
outras fotos de Zé Pequeno. O personagem aprende também algumas noções de como mexer
irá dormir naquela noite, e dorme na casa de Marina. Na casa dela havia chuveiro quente, e o
personagem revela que nunca havia tomado banho de chuveiro quente. Os dois personagens
tem relação sexual nesta noite, o que foi uma grande surpresa para Buscapé que em pouco
fotógrafo, se dá apenas quando ele tem suas fotografias publicadas sem sua autorização por
uma jornalista branca, a qual o personagem também posteriormente tem relação sexual,
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Fischer & Silva (2021)
tornar fotógrafo apenas quando seu trabalho é publicado primeiramente por jornalistas
brancos, e quando alcança essa ascensão social e reconhecimento profissional, visto que os
jornalistas pedem que ele tire outras fotos como as já divulgadas, ele também alcança um
objetivo muito almejado, de ter sua primeira relação sexual que, neste caso, foi com Marina.
Podemos pensar que, talvez se Buscapé continuasse como entregador de jornal, não
conquistaria o interesse de Marina por ele, assim como, se suas fotos não tivessem chegado
nas mãos dos jornalistas brancos, não teria atingido o reconhecimento tão desejado como
fotógrafo. Posto isso, é perceptível como o racismo estrutural implica tanto na subjetividade
das pessoas negras como no modo em que são vistas no ambiente de trabalho, visto que em
muitas ocasiões por conta de esteriótipos que inferiorizam a imagem e capacidade do negro, o
trabalho produzido pelo sujeito negro por vezes precisa ser primeiramente reconhecido por
Violência
caracteriza violência pelo “uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou
efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa, grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem
desenvolvimento ou privações”. Assim, a natureza dos atos violentos pode ser física, sexual,
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
Neste sentido, a OMS estabelece uma tipologia da violência, a qual caracteriza seus
diferentes tipos e estabelece os vínculos entre eles, sendo estes: violência auto-infligida,
longa-metragem.
Deus, os atos violentos fazem parte da rotina dos moradores, que vivem em meio aos caos do
violência e sucessivamente da morte com grande teor de crueldade é abordado na cena aos 44
próximo à Cidade de Deus. Dadinho tem tudo planejado e muito esquematizado. Quando
chega o grande dia do assalto, o Trio Ternura entra no motel e usando armas roubam os
hóspedes, tudo parece sair como o planejado até que a polícia entra em cena. Os assaltantes
do Trio Ternura fogem em direção a Cidade de Deus, e inicia-se uma perseguição policial.
Dadinho é abandonado no motel por seus comparsas, enquanto o Trio Ternura foge em
direção a Cidade de Deus. Dadinho, que estava como vigia do assalto, está impaciente e
irritado do lado de fora do motel “eles estão lá se divertindo, eu aqui esperando, isso não
pode ficar assim”. Depois de atirar em uma janela de vidro, sinal combinado entre ele e o
Trio Ternura para alertar a chegada da polícia, Dadinho entra no motel com uma expressão de
extrema alegria, dispara o primeiro tiro em um dos hóspedes, e segue sorridente ao longo da
suas vítimas. A banalização da morte e da violência ficam evidentes nesta cena, pois
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Fischer & Silva (2021)
Dadinho, ainda criança, mostra-se satisfeito e contente à medida que atira nos hóspedes,
sendo que a proposta inicial do Trio Ternura era apenas roubar, sem que houvesse mortes.
Com a entrada de Dadinho no motel, o assalto se torna o mais sangrento da Cidade de Deus
para a época, demonstrando assim toda crueldade do futuro Zé Pequeno, que matava suas
vítimas a sangue frio, sem nenhuma clemência e piedade sobre aqueles corpos. Dadinho se
mostra frio e calculista diante de cada indivíduo presente na cena, sem demonstrar qualquer
senso de empatia. A violência física presente na cena é notória, pois o personagem coloca a
sua intenção em violar a vida do próximo, levando ao ato extremo de assassinar outra pessoa
sujeito violento pelas circunstâncias sociais que vive. Abandonado à margem da sociedade,
Dadinho passa boa parte de sua infância sendo castigado e maltratado por várias pessoas,
inclusive os amigos mais velhos do Trio Ternura e, portanto, fica evidente que Dadinho é
uma criança em situação de rua que sobrevive às violências que o Estado promove. Sem
assistência, sem família, sem nenhum cuidado, a sobrevivência dessa criança depende cada
vez mais de suas próprias ações. Por isso, Dadinho aprende a roubar e matar para sobreviver
vivência cotidiana daqueles que praticam as ações violentas, como também naqueles que
sofrem seus efeitos – posições na maioria das vezes coexistentes, pois os agentes de ações
violentas em geral são também suas vítimas: "vítima e vitimizador" (Sallas, 1999, p.21 como
citado em Salvalaggio, 2009, p.20). A violência é a única saída e opção que Dadinho
Dadinho é uma vítima, que sofre com as limitações do Estado, que não atende de
maneira efetiva as pessoas marginalizadas dentro da narrativa social. Sendo o tempo todo
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
discriminado, maltratado, e violentado. Como fugir dessa estratégia genocida promovida pelo
Estado desde o período de escravização até o pós-abolição sem recorrer a violência? Portanto,
a vivência de Dadinho é regra em muitas periferias brasileiras, onde crianças são aliciadas
pelo tráfico de drogas ou são vítimas constantes da violência. É evidente a cena aos 59
minutos e 24 segundos em que Dadinho cresce e, aos 18 anos, torna-se Zé Pequeno, ainda
mais cruel e conhecido por ser o bandido mais respeitado da Cidade de Deus, que obtém tudo
à base da força. A comunidade ganha novos ares com o comando de Zé Pequeno, que atribui
leis e normas de convivência para o morro, sendo proibido matar ou roubar no local, a não ser
que as ordens viessem do mesmo. Desta forma, um grupo de crianças, conhecido como os
menores do caixa baixa, eram alvos fáceis para o bando do Zé Pequeno, pois não respeitavam
as leis impostas por ele na comunidade, e realizavam pequenos furtos dentro da Cidade de
dos comerciantes do bairro que os informa de um furto realizado pelos garotos do caixa
baixa. Bené, amigo de Zé Pequeno, diz “pega leve com os moleque, Zé”, e logo em seguida
Zé Pequeno sai andando pelas ruas da comunidade com seu bando, e também convida o
personagem Filé-com-fritas, uma criança preta de cerca de 10 anos, para andar com eles pela
comunidade. Zé Pequeno diz “aí Filé - com - fritas que dar um rolê com a gente no morro?”
e o garoto responde “sair com vocês, eu quero” enquanto demonstra um enorme entusiasmo,
como se a partir daquele momento pertencesse a um lugar e posição social por estar andando
seus comparsas enquadram os meninos do caixa baixa, que estavam comendo o que roubaram
no mercado. Algumas crianças conseguem fugir, entretanto, dois meninos são encurralados,
então Zé Pequeno fala “qual é a de vocês seus moleques fedorentos, ladrãozinho de merda,
aqui na minha favela você não rouba não” enquanto demonstra em sua face uma expressão
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Fischer & Silva (2021)
entre 6 e 8 anos, se desesperam naquela viela sem ter para onde fugir, enquanto do outro lado
havia divertimento e escárnio, pois Zé Pequeno apontando uma arma engatilhada perguntava
aos meninos “no pé ou na mão?” que, chorando muito, mexem timidamente as mãos
qualquer empatia por elas, que diante da dor choram mais forte. Em seguida, Filé-com-fritas
é intimidado ao ser questionado por Zé Pequeno, que entrega a arma “você não quer andar
com a gente? Escolhe um deles pra matar”. O menino aparenta uma expressão de muito
segurando a arma enquanto é pressionado por todos os bandidos, aponta para as crianças,
fecha os olhos e dispara. O choro do garoto que sobreviveu fica ainda mais intenso, e Zé
Pequeno fala para ele “não chora não, isso é uma lição pra tu e teus amigos, agora vaza
daqui moleque, segue teu rumo e avisa pro teus amigos que quem manda aqui é o Zé
Pequeno”.
cultural brasileira, pois existe uma dinâmica que está circunscrita em torno de masculinidade
e agressividade, em que tudo e qualquer coisa deve ser conquistada a base da força. Zé
perceptível ao longo de suas ações o quanto ele é frágil, e como as circunstâncias da vida o
fizeram ser esse homem atormentado por uma masculinidade oriunda do abandono e
Como abordado na cena aos 125 minutos na qual mostra as humilhações e violências
cometidas contra a família de Mané Galinha, que teve dois familiares assassinados pelo
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
pretendente Mané Galinha foi obrigado a assistir a cena de violência sexual cometida contra
sua companheira. A rivalidade começa quando o narrador expõe que “Mané Galinha era um
sujeito bom, bonito, falava bem, vivia rodeado de mulher, por que ele as amava e as tratava
bem. Já Zé Pequeno era feio feito raio, só tinha mulher se pagasse ou tomasse a força”.
frágeis, pelo fato de seu rival ser um homem bonito, simpático, trabalhador e que conquista
tudo através da gentileza. Após tantas violações sofridas, Mané Galinha se revolta e inicia-se
um longo confronto entre os dois personagens, que duelam para ver quem fica com o
batalha. Entretanto, Zé Pequeno está em dívida com a polícia por um contrabando de armas
mal executado. Após um ano, a guerra entre Zé Pequeno e Mané Galinha se encerra em mais
um confronto armado, com a morte de Mané Galinha e a curta detenção de Zé Pequeno, que
encurralado em uma das vielas, quando os menores do caixa baixa aparecem, ele diz para as
crianças “os homi levaram todo o dinheiro, tô pobre, vou precisar de vocês para fazer uns
sacam as armas, e falam “quem disse que a boca é tua? Essa é pelo nosso amigo” enquanto
realmente sejam efetivas dentro e fora das periferias brasileiras. Cardoso (2018), dissertando
sobre o termo necropolítica de Mbembe (2011), comenta sobre três questões principais acerca
deste conceito:
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Fischer & Silva (2021)
para tratar das figuras de soberania nas quais o poder, o governo se referem ou apelam
inimigo (p.963).
poder que regulam a proporção dos nascimentos e dos óbitos, o índice de reprodução e a
fecundidade da população. Neste sentido, Mbembe (2011), afirma que há uma transição da
morte, e não mais da vida. Atestando, assim, quais corpos podem morrer, quais violências
apenas aos personagens aqui abordados e suas características psicossociais, mas sim das
comunicação comum em uma sociedade em que os corpos estão divididos em dignos de viver
escancarando a desumanização para com estes cidadãos que enfrentam violência no seu
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Considerações finais
análise do filme Cidade de Deus (2002). Fica evidente que o Brasil é um país que se sustenta
material de quem sempre esteve à margem e subjugado nesta nação, na qual o Estado
violência como normal na sociedade brasileira, visto que é promovido e respaldado pelo
Estado, em especial nas periferias, e que se apresenta como constante nas vivências, atitudes,
do Brasil, não apenas nas periferias, mas em toda a sociedade, na qual se tornou banal e
maneira física, verbal ou psicológica, visto que o racismo e a desigualdade também são
Foram exploradas as categorias de racismo e violência, entretanto, fica claro que essas
duas categorias andam juntas, pois de fato estão inteiramente atreladas ao contexto
psicossocial do Brasil, trazendo assim uma dimensão histórica de segregação e morte, pois as
maiores vítimas da violência ainda hoje são frutos da intolerância e do preconceito racial, em
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que o alvo tem cor e endereço: os corpos marcados para morrer e sofrer com abandono do
Dessa forma, para além desta produção textual que objetivou a análise do racismo
reparação e proteção aos direitos humanos e também visando a justiça de quem vive às
grupo de rap brasileiro que surgiu no final dos anos 80, rimando e denunciando as condições
precárias de vida nas periferias. É notável a atualidade das letras do grupo, visto que
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Revista de Pesquisa e Prática em Psicologia (UFSC)
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