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Teoria Tomista Da Beleza

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Teoria tomista da Beleza

Pe. Elílio de Faria Matos Júnior

O que pretendemos aqui é estabelecer, em última instância, o que define o


belo. Trata-se, pois, de uma elucubração filosófica a respeito do conceito de
belo. Assim, nosso objetivo é atingir uma noção que diga respeito ao belo
enquanto tal ou que o caracterize a título exclusivo. É um empreendimento que
procura atingir a essência do belo, isto é, aquilo pelo qual o belo é belo e não
outra coisa. Não se trata, pois, de dizer tudo sobre o belo, mas de identificar o
que, segundo nossa posição, o define enquanto tal.

A nosso ver, o que define o belo enquanto tal foi muito bem trabalhado pela
tradição clássica. Grande porta-voz dessa tradição é, sem sombra de dúvida,
Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Tomaremos, pois, de empréstimo, sua
definição do belo. Tomá-la-emos não porque nos apoiamos em sua autoridade,
sem mais, como que invocando a célebre sentença: magister dixit; mas, antes,
faremos dela uso por ser firme a nossa convicção de que ela, verdadeiramente,
coloca em luz meridiana a essência do belo. A definição de Santo Tomás é
breve e simples: pulchrum est id quod visum placet [1] (o belo é aquilo que
agrada à visão).

Tal definição, simples como é, exige desdobramento. Podemos dizer que ela
implica dois elementos constitutivos que devem ser analisados de per si. São
eles: a visão ou conhecimento (visum), de um lado, e, de outro lado, o deleite,
gozo ou alegria (placet).

O visum caracteriza o belo como algo que é visto ou conhecido, de tal modo


que sem visão não se pode falar de beleza. Podemos perguntar-nos: como se
dá tal visão? A visão simplesmente sensível, animal, seria suficiente no caso?
Se assim fosse, os brutos também possuiriam a consciência do belo. Mas tal
não se dá [2]. Resulta, pois, que a afirmação do belo implica,
imprescindivelmente, referência à inteligência [3]. O homem, sim, por ser
animal racional, possui o senso do belo. A afirmação do belo supõe, ainda que
implicitamente, um juízo da consciência. Ora, o juízo só aos seres inteligentes
compete. É certo, entretanto, que a beleza é acessível aos sentidos: o ouvido
encanta-se por uma bela música e os olhos deleitam-se com uma bela forma.
Mas a acessibilidade do belo aos sentidos só é possível porque eles estão
penetrados de razão. Santo Tomás diz que os sentidos que percebem o belo
são os que mais ligados estão com a potência cognitiva, como é o caso da
vista e da audição; ao contrário, com relação aos demais sentidos, não usamos
o conceito de belo para caracterizar seus sensíveis, pois não dizemos que os
sabores e os odores são belos [4]. Em virtude da unicidade substancial, no
homem, de espírito e matéria, os sentidos são perpassados pelo espírito, e o
gozo que o homem experimenta pelos sentidos não se pode compreender sem
referência à inteligência. O senso do belo supõe sempre a consciência, que,
por sua vez, é uma categoria do espírito. É pelo espírito, realidade misteriosa,
sem a qual, contudo, não compreendemos o homem como convém, que
o homo sapiens sapiens distingue-se dos irracionais, os quais podem até
saber, mas certamente não sabem que sabem, isto é, não têm consciência.
A visão, portanto, que constitui elemento essencial para a afirmação do belo é,
em última instância, conhecimento, e por isso, referente à potência intelectual.
Há, sem dúvida, o conhecimento que o homem assume pelos sentidos (a
beleza sensível) e o conhecimento puramente intelectual (que se dá quando o
espírito deleita-se com a contemplação da verdade de um ser, e, então, tanto
maior será a deleitação quanto mais inteligível for a verdade, isto é, quanto
mais clara for). Devido a nossa constituição de espírito encarnado, o nosso
conhecimento sempre começa pelos objetos sensíveis, conhecimento este que
desperta em nós os primeiros princípios da inteligência, a partir dos quais
podemos, pela operação que Santo Tomás denominou separatio [5], alcançar
o puro inteligível. Concluamos, pois, que a intuição (o ato de ver, sempre
relacionado de um modo ou de outro à inteligência) é condição indispensável
para que se fale de beleza.

O segundo elemento constitutivo de nossa definição, devemos analisá-lo


agora: o placet diz respeito ao deleite, agrado ou alegria de que a beleza é
fonte. Destarte, o belo, considerado como aquilo que agrada é, de certa forma,
um bem para o conhecimento. E o bem é aquilo para o qual o apetite tende. Já
ficou assentado que o belo refere-se à inteligência; contudo, sua razão formal
não se confunde com a da verdade. A verdade é o objeto próprio da
inteligência, já que é a conformidade da inteligência com a realidade
(adaequatio intellectus ad rem). Se o verdadeiro e o belo relacionam-se com a
inteligência, qual é, então, a razão de serem conceitos distintos? Na realidade,
o verdadeiro e o belo se identificam, distinguindo-se apenas por uma distinção
de razão. O verdadeiro resulta da adequação da inteligência com a coisa,
enquanto o belo resulta do deleite proporcionado por essa adequação. Com
outras palavras, à noção de verdadeiro corresponde a conformidade do
intelecto com a coisa, e à noção de belo corresponde o repouso agradável
decorrente do conhecimento da coisa [6]. Vê-se, portanto, que o conhecimento
é condição indispensável do deleite que é constitutivo do belo. A
agradabilidade, deleitação ou alegria, constitutivos do belo, podem ser
descritas como um certo prazer experienciado [7] pelo contemplante, como
índice de felicidade ou repouso satisfatório; no caso do homem, em virtude de
sua unidade substancial de matéria e espírito, este gozo nunca é puramente
intelectual, ainda que a beleza contemplada seja supra-sensível, mas é um
prazer que, referente em última instância ao intelecto, envolve o homem todo
em suas dimensões corporal, psicológica e espiritual. Há como que um
transbordamento do deleite, atingindo o homem em todas as suas dimensões.

Diante do que analisamos, não nos poderíamos furtar de fazer menção ao


bem, que, assim como a verdade, é um transcendental do ser. Dissemos que o
belo é um certo bem do conhecimento. O bom é aquilo para o qual tende o
apetite. Mas, onde está a diferença do bom e do belo, já que este, como
afirmamos, é um certo bem para o conhecimento? Devemos dizer que
enquanto pertence à noção de bom a relação com o apetite ou vontade, à
noção de belo pertence, como já se viu, a relação com a potência cognitiva [8].
No bom a apreensão do apetite encontra o repouso; no belo o repouso da
apreensão se dá por referência à potência cognitiva.
Temos, assim, três conceitos distintos, mas que, na realidade, são
inseparáveis: o verdadeiro, o bom e o belo são transcendentais do ser, e entre
eles não há senão distinção de razão. O verdadeiro indica a correspondência
da inteligência com o ser; o bom é o ser para o qual tende o apetite [9] e no
qual ele encontra repouso; o belo, por sua vez, é como que a coroação do
verdadeiro e do bom, é a fonte de alegria decorrente do conhecimento da
correspondência da inteligência com o seu objeto (o verdadeiro) e do repouso
da vontade no seu objeto (o bom). A razão formal do belo diz respeito à alegria
ou ao gozo; pertence ao belo que o conhecimento encontre repouso deleitável
no ato do conhecimento, que aquele que repousa no objeto querido se veja
arrebatado pelo gozo e pleno de amor.9]

Entre a verdade e o bem há uma correspondência que pode ser assim


delineada: na verdade a inteligência encontra o seu bem enquanto que no bem
a vontade encontra a sua verdade. Vê-se, pois, como o primado de prioridade
lógica cabe à inteligência, uma vez que até mesmo o bem, objeto da vontade,
seria absurdo se não fosse, antes, a verdade da vontade [10]. Mesmo nos
seres naturais, destituídos de inteligência, e que, por isso, tendem
inconscientemente para o seu bem, há a prioridade da inteligência, uma vez
que essa tendência ao bem (apetite) não se dá senão em referência a uma
Inteligência Superior por quem são governados. O primado de prioridade da
inteligência poderia ser resumido pelo famoso postulado filosófico: o que não é
conhecido não pode ser amado. O que antes não é conhecido pela inteligência
não pode ser desejado pelo apetite. A verdade é o bem da inteligência, e o
bem é a verdade da vontade, enquanto o belo é a coroação deleitosa de
ambos, da verdade e do bem. Desse modo, os três conceitos estão
intimamente relacionados; são inseparáveis do ser. Ou melhor: são aspectos
do ser, aspectos estes, porém, que a palavra ser por si não diz. O ser é
verdadeiro para a inteligência, bom para o apetite e, por fim, belo, porque
proporciona ao que conhece o gozo do conhecimento, e ao que quer, a alegria
da posse.

O belo, assim, é o ser de cuja apreensão, seja pelo conhecimento sensível


(sentidos intelectuais, como a vista e a audição), seja pelo conhecimento
puramente intelectual, decorre sempre e necessariamente o gozo. Quanto mais
puro e sublime o conhecimento, mais intenso o gozo que dele resulta. Mas, é
preciso fazer uma observação. Alguém poderia ser levado a confundir a
apreensão perfeita com o caráter último do conhecimento enquanto tal. Toda
vez que conhecemos um ser que ofereça à nossa inteligência um objeto cuja
apreensão não deixa nada a desejar, temos, então, uma apreensão perfeita.
Isso quer dizer que certas verdades se nos apresentam sob uma forma tão
pura que traz ao conhecimento a rara alegria de uma apreensão pura e perfeita
da verdade. Tal é o caso, por exemplo, da beleza sensível [11] e das
conclusões a que chegamos a partir de dados seguros, lógica indiscutível e
plena apreensão. Mas o caráter último do conhecimento não diz respeito a
outra coisa senão à verdade absoluta, termo para o qual tende
espontaneamente a atividade de nossa inteligência. Entretanto, a verdade
absoluta, meta última do nosso conhecimento, não nos é evidente, embora
possa ser evidentíssima em si mesma [12] e disso possamos ter consciência.
O fato, contudo, de apreendermos só imperfeitamente a verdade absoluta não
quer dizer que não possamos amá-la perfeitamente ou alegrarmo-nos com ela.
Por estar acima de nossa capacidade de compreensão não deixa de ser boa e
bela para nós. Ao contrário, a contemplação da verdade absoluta é causa do
gáudio mais intenso que o homem pode esperar nesta vida . Isso assim se
explica: o amor e o gozo não se medem pelo conhecimento perfeito que
possamos ter de um objeto, embora o conhecimento seja condição necessária
para o amor ou o gozo. Se não podemos apreender perfeitamente a verdade
absoluta devido à deficiência de nosso intelecto, podemos contudo conhecê-la
por aquilo que ela não é e amá-la. Tal conhecimento, ainda que seja negativo,
não deixa de ser um conhecimento que aponta para a sublimidade do objeto
contemplado e desperta na potência apetitiva o amor. É do conhecimento da
sublimidade da verdade última, ainda que não possamos abarcá-la
completamente pela nossa limitada inteligência, que experimentamos o amor
sublime, que é capaz de guiar-nos no escuro rumo à união com a excelência
do objeto, resultando disso tudo o gozo sublime. Por isso, os místicos ousam
afirmar que, embora não possamos conhecer o Absoluto nesta vida senão
imperfeitamente e por analogia, podemos, entretanto, amá-lo perfeitamente. 

A doutrina tomista, de base gnosiológica realista como é, assinala três


condições do belo, que outra coisa não são senão as condições mesmas do
ser; tais são elas: a) a integridade: não deve faltar nada do que convém ao ser;
o ser deve possuir tudo o que lhe é devido; b) a proporção ou unidade: o ser é
necessariamente proporcional a si mesmo; todo ser é não-contraditório, é
uno; c) a claridade ou o resplendor da inteligibilidade: o ser é na medida em
que é inteligível; quanto mais inteligível, mais claridade e resplendor. O belo
possui, pois, uma fundamentação ontológica e, desse modo, não está entregue
à manipulação subjetiva.. A nossa inteligência mesma está como que invadida
pelo sentido da integridade, proporção e claridade do ser. Poderíamos chamar
esse fenômeno de senso gestáltico, que nos é conatural. Tendemos sempre à
ordem, à afirmação do cosmo sobre o caos.

Da reflexão exposta depreende-se que todas as coisas são belas na mesma


medida em que são (existem). Não há o feio absoluto ou a fealdade em si, do
mesmo modo que não há o nada absoluto. O que chamamos de fealdade outra
coisa não é senão o belo carente de alguma beleza que lhe é devida. Para que
se possa falar de feio, é preciso que, antes, haja o ser, que é necessariamente
belo, como suporte para cuja perfeição falta algo. Com muita sabedoria, afirma
Santo Agostinho: "Porque todo ser, em qualquer grau em que se encontre, é
algo de bom, visto que o sumo Bem é o sumo Ser" [13]; e ainda: "a beleza
(que) reina em tudo o que existe, desde o mais alto até o mais baixo" [14]. O
ser é sempre bom e belo. O ser, em seu mais ínfimo grau, é superior ao
nada[15]
Há, evidentemente, uma hierarquia de graus de beleza. Quanto mais algo tem
de ser, mais beleza possui. Isso equivale a dizer que quanto mais íntegro, uno
e claro for o ser, eo ipso mais belo será. Se pudermos, então, afirmar a
existência de um ser absoluto (Ipsum Esse Subsistens), ainda que não
possamos abarcá-lo totalmente com nossa limitada inteligência, afirmaremos,
conseqüentemente, a existência da beleza absoluta.
[1] “Santo Tomás define o belo como sendo o que agrada ver (id quod visum
placet) ou o que agrada pelo conhecimento” (Jolivet, Régis. Tratado de filosofia
III. Metafísica. Rio de Janeiro: Agir, 1965, p.259).
[2] Verdade é que alguns animais parecem sensíveis à beleza; tal é o caso da
serpente encantada pela flauta ou o caso de cavalos excitados pelo clarim.
Essas reações não implicam inteligência, mas explicam-se ou pelo instinto ou
pelo reflexo condicionado. Isso, contudo, não desvincula o belo de sua relação
com a inteligência, mas  mostra que a constituição natural do animal foi
"pensada" por uma Inteligência.
[3] “A beleza é objeto de inteligência ou de conhecimento intuitivo, enquanto
resulta de condições que não são acessíveis senão à inteligência. Essas
condições são: a integridade do objeto, a proporção ou unidade na variedade,
enfim, a clareza ou resplendor da inteligibilidade” (Jolivet, Régis. Curso de
filosofia. 20.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998, p.338).
[4] “Unde et illi sensus praecipue respiciunt pulchrum, qui maxime cognoscitivi
sunt, scilicet visus et auditus rationi deservientes; dicimus enim pulchra visibilia
et pulchros sonos. In sensibilibus autem aliorum sensuum non utimur nomine
pulchritudinis; non enim dicimus pulchros sapores aut odores” (ST, I-II, q.
XXVII, a.1).
[5] O termo separatio designa o gesto metafísico da inteligência pela qual é
afirmado o que é negativamente imaterial (as noções de ser, de substância, de
causa... que, em si, não implicam materialidade, mas podem realizar-se na
matéria.) e o que é positivamente imaterial (Ipsum Esse Subsistens, isto é,
Deus, cujo ser exclui toda materialidade).
[6] Veja o que diz Santo Tomás: “ad rationem pulchri pertinet quod in eius
aspectu seu cognitione quietetur apprehensio” (ST, I-II, q. XXVII, a. 1, ad 3).
[7] Pelo adjetivo experienciado entendemos o que se dá no âmbito de uma
verdadeira experiência pessoal, ao passo que o experimentado seria do
domínio da experiência empírica, próprio das ciências empiriológicas.
[8] “Dicendum quod pulchrum est idem bono sola ratione differens. Cum enim
bonum sit quod omnia appetunt, de ratione boni est quod in eo quietetur
appetitus. Sed de ratione pulchri pertinet quod in eius aspectu seu cognitione
quietetur apprehensio" (ST, I-II, q. XXVII, a. 1).
[9] Todos os entes têm apetite, uma vez que todos desejam ser, isto é, tem
uma propensão ou disposição natural  a ser o que são (conatus essendi).
[10] A propósito escreve Paul Gilbert: "De um ponto de vista psicológico, não
se pode dizer que uma de nossas faculdades tenha uma prioridade absoluta
sobre a outra: a inteligência precede a vontade e vice-versa. Do ponto de vista
da intenção da vontade, é verdade que não se pode querer sem saber o termo
para o qual se há de tender. A inteligência precede, pois, a vontade
determinando seu termo. Querer qualquer coisa não é querer. Para paralisar a
vontade nada é tão eficaz como lhe apresentar escolhas totalmente
indeterminadas. A inteligência determinante tem, pois, uma prioridade do ponto
de vista da intenção final querida. Além do que, pondo esse fim em sua
unidade própria, ela objetiva o termo ao qual a vontade quer unir-se em sua
alteridade. A inteligência dirige, assim, a intenção da vontade" (Gilbert, Paul. A
simplicidade do princípio. Prolegômenos à metafísica. São Paulo: Loyola,
2004, p. 36).
[11] Todo o nosso conhecimento tem origem nos sentidos, de modo que o
sensível é o objeto próprio de nosso conhecimento.
[12] A Verdade absoluta, evidentíssima em si mesma, é o Absoluto, no qual se
identificam inteligente em ato e inteligível em ato, atingido, de modo imperfeito
e analógico, pela razão filosófica.
[13] Santo Agostinho. A verdadeira religião. In ______. A verdadeira religião. O
cuidado devido aos mortos.  São Paulo, Paulus, 2002, p. 58.
[14] Ibidem, p. 111.
[15] "Ora, toda obra da natureza, seja ela a última, a ínfima, é digna de elogio
em comparação ao nada" (Ibidem, p.105).

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