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Ressureição e Vida - Yvonne A. Pereira

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Yvonne A.

Pereira

RESSURREIÇÃO E VIDA

Pelo Espírito
Léon Tolstoi
Sumário

Introdução 7
Apresentação 13

1 – O reino de Deus 15
2 – A lição materna 29
3 – O sonho de Rafaela 39
4 – O sonho do Startsi (Parábola) 45
5 – O discípulo anônimo 65
6 – Ressurreição e vida! 85
7 – O paralítico de Kiev 105
8 – O segredo da felicidade 183
Primeira Parte 183
Segunda Parte 225
Terceira Parte 248
Quarta Parte 273

Conclusão 319
Introdução

Este volume será a contribuição do meu amor às comemorações do


centenário de O evangelho segundo o espiritismo, organizado por Allan
Kardec sob orientação dos Espíritos prepostos pelo Senhor para a reedu-
cação da humanidade. Beneficiária que sou desse compêndio admirável,
em suas páginas encontrando roteiro generoso para os trabalhos de rea-
bilitação espiritual que me cumpria, aqui deponho o meu testemunho de
respeito e veneração às sábias entidades que o inspiraram e à memória de
Allan Kardec, o nobre codificador do Espiritismo.

Não desconheço, entretanto, a grande responsabilidade que assu-


mo, perante Deus e os homens, apresentando este livro ao público e
atribuindo sua autoria a uma individualidade das mais eminentes que
a Terra tem hospedado em suas sociedades, isto é, ao Espírito Léon
Tolstoi. No entanto, eu o faço sem temor porque tão convencida estou
dessa realidade que não vacilo na atitude que tomo.

Jamais tive a pretensão de supor que semelhante entidade pudesse


vir até mim para ditar um trabalho mediúnico. Não o desejei sequer.
Nada pedi, como jamais pedi aos amigos espirituais, que me honraram
com seus ditados literários. Nem mesmo me detinha a pensar em Léon
Tolstoi. Nunca lera um único livro de sua autoria, e de sua importan-
te bagagem literária eu apenas tinha conhecimento de uma transcrição
existente em Os milagres do amor, de O. S. Marden, o qual, com palavras

7
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

próprias, narra o conto “Jesus e o aldeão russo” daquele escritor. Não obs-
tante, em junho de 1961, tive, por assim dizer, a maior surpresa de minha
vida de espírita quando, durante a noite, notei que uma entidade amiga
vinha buscar meu Espírito para algo que no momento não pude prever.
Segui-a de boa mente, presa de encantamento sedutor, irresistível. Não
foi possível recordar integralmente o que se passou então. Lembro-me,
porém, com certeza absoluta, que caminhando ao seu lado me vi trata-
da com polidez principesca, uma afetividade comovedora. Reconheci na
entidade o grande “apóstolo russo”, como é chamado, mas tal coisa, assim
em Espírito, não me atemorizou, não me surpreendeu, nem sequer me
admirou. Mantive-me naturalmente, como se fôssemos antigos conheci-
dos. E ele disse:

— Desejava escrever algo ao mundo terreno, por seu intermédio...

Então, sim, admirei-me, e como que um vago temor sobressaltou-me.


Num relance, passou por meu entendimento a dificuldade do feito: um
escritor de tal renome, russo, sem grandes afinidades comigo, pois nem
mesmo conhecia uma única obra sua... Ainda se fosse Victor Hugo, que
nos é familiar, ou algum outro francês...

Ele, porém, prosseguiu:

— Desejo escrever, mas quero regionalismo russo.

Protestei, sem temor:

— Não será possível... O regionalismo é sempre difícil, mesmo para


o feito mediúnico...

— Não no seu caso... — respondeu docemente — pois saiba que


teve uma existência na Rússia... embora no momento esteja esqueci-
da... Encontrei no seu subconsciente o cabedal necessário... Peço-lhe
confiança...

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Ressurreição e vida

Também essa revelação não me admirou. Conheço bastante a


Revelação Espírita para não duvidar da possibilidade de havermos
existido em qualquer parte da Terra, ontem ou remotamente. Não
tenho maior ou menor simpatia por aquele país do que por outro
qualquer. A Terra toda é grata ao meu coração e eu viveria de boa
vontade em qualquer país, segundo creio, não conservando precon-
ceitos contra nenhum deles. Respondi-lhe após, sinceramente:

— Se for da vontade de Deus, meu irmão, então estarei às vossas


ordens, com todo o meu coração, pronta às disciplinas necessárias e a
qualquer sacrifício. Dai-me, pois, as vossas ordens...

Levou-me então à sua pátria. Vi-me vagando a seu lado pelas ruas
de Moscou (a antiga Moscou imperial, da época em que ele próprio vi-
veu), em São Petersburgo e várias outras cidades cujos nomes me são
desconhecidos; pelas aldeias e lugarejos. Mostrou-me e explicou-me mil
coisas, de que não conservei lembrança. Fez-me examinar indumentá-
rias masculinas, trajadas por personagens que se encontravam sempre à
mão. Mostrava-me mangas e punhos de blusas masculinas, botas, tipos
de calçados, interiores domésticos, utensílios como o samovar, aparelho
onde se prepara a água para o chá, de que eu nunca ouvira falar antes;
mostrou-me fachadas de residências nobres com seus parques sugesti-
vos, e também as residências humildes das aldeias, a que chamou isbás.1
E depois, amavelmente, disse ainda:

— Agora lhe mostrarei o outono em minha terra. Como é poético!...

E com efeito, um panorama belíssimo, com um pôr de sol nostál-


gico, quando já se sentia frio; o céu cinzento-azulado, com reflexos ró-
seos; as folhas se desprendendo das árvores e rodopiando no ar, caindo
de encontro a janelas fechadas, de várias casas senhoriais, tocou-me a
sensibilidade e um sentimento intraduzível, misto de atração e nostalgia

1
N.E.: pequena casa de madeira muito usada na Rússia, para os homens do campo.

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Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

profunda, sucedeu-se em meu espírito. Tão forte fora a sugestão por mim
recebida, ou a “recordação” extraída do meu subconsciente, que cheguei
a ouvir o rumor do vento e das folhas que se despegavam das árvores
para tapetarem o chão...

E a entidade tornou a dizer docemente:

— Vejamos agora o inverno...

Então, planícies geladas se sucederam, tempestades de neve, granizo;


e habitações, e ruas, e estradas, e jardins e parques cobertos de neve, todo o
panorama detalhado do que possa ser o inverno na Rússia surgiu à minha
vista com particularidades que seria longo enumerar. Caminhávamos, en-
tretanto, e tão real era a visão, ou o que quer que seja, que eu ouvia os passos
do meu acompanhante rumorejando sobre a neve, que rangia sob seus pés.

Um convívio doce e afetuoso seguiu-se então entre os nossos


Espíritos, a partir dessa data. Desse convívio, uma impressão terna, gra-
tíssima, eu conservo: a impressão de que meus pecados mais graves fo-
ram perdoados por Deus, porque recebi a graça de ter podido conviver
espiritualmente com a alma de um santo.

Seis meses depois do primeiro encontro, sem que eu estivesse


preparada, pois tencionava terminar outro trabalho que tinha em mãos,
apresentou-se ele subitamente e ditou, pela psicografia, de uma única
arrancada, O sonho de Rafaela, que aqui figura em terceiro lugar, o pri-
meiro dentre dois trabalhos sem referências à Rússia. E ao terminar ex-
clamou auditivamente:

— Foi para decidi-la de uma vez... e ver como será fácil, pois sei que
desconhece também assuntos piemonteses...

E, realmente, embora o ditado se verificasse tão só psicografica-


mente, desacompanhado das visões a que me habituei com as demais

10
Ressurreição e vida

entidades com quem tenho trabalhado, foi esta a obra que mais fácil se
me tornou captar do Além-túmulo. Entrego-a, pois, ao público, esperan-
do que ela reconforte os corações sedentos de esperança, para satisfação
da nobre alma de apóstolo que amorosamente ma concedeu.

Yvonne A. Pereira
Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1964.

11
APRESENTAÇÃO

Sejam estas páginas, extraídas de um sincero desejo de ser útil, o tes-


temunho da minha solidariedade aos homens, meus irmãos perante Deus.
Que eles saibam que no dia em que o túmulo se fechar sobre o corpo inerte
de um homem raiará, para sua alma, nova era de um destino imortal.

Que se estanquem as lágrimas da saudade à beira das sepulturas; que


serene o desespero no coração das mães diante do esquife de um filho que
não mais sorri; que se levante a fronte do ancião, cujo desânimo só tem a
morte por finalidade. Para aquém do túmulo existe, é real, é infinitamente
mais intensa e positiva, a vida com que o Criador nos dotou, vida que
nos cenários terrenos tão curta e tão angustiosa nos parece! O ser huma-
no sobrevive em Espírito, em inteligência e vontade, após a corrupção da
morte, que nada mais é do que a transição de um estado anormal — o de
encarnação — para o estado normal e verdadeiro — o espiritual!

Se um só dos prováveis leitores destas páginas conseguir acalentar


dores e dirimir dúvidas quanto ao importante assunto da imortalidade
da alma humana, certificando-se da verdade que há milênios se tenta
testemunhar, dar-me-ei por bem recompensado das dificuldades que
precisei arredar a fim de ditá-las. Se apenas um, dentre eles, sentir que
seu coração nelas se inspirou para a procura dos santos ensinamentos
cristãos, exultarei de alegria, louvando o Senhor por me haver concedi-
do ensejo de ser útil ao meu próximo. E se um só adepto da Revelação

13
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

Espírita — à qual hoje tributo respeito e admiração — entender que


contribuí, com pequena colaboração, para a sementeira dos vastos cam-
pos que ela será chamada a cultivar, terei a consciência reconfortada
pela certeza de que cumpri um sacrossanto dever.

Mas escrevo apenas para os pobres, os simples e os sofredores. Sei


que somente eles me compreenderão e aceitarão. Dou-lhes, pois, o meu
testemunho de imortalidade além do túmulo. Que esse testemunho seja
motivo de paz, alegria e fraternidade para os que me lerem, são os votos
que aqui deixo.

L. T.
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1962.

14
1

O REINO DE DEUS

Tendo-lhe feito os fariseus esta pergunta: “Quando virá o


reino de Deus?” Respondeu-lhes Jesus: “O reino de Deus
não virá com mostras exteriores. Nem dirão: Ei-lo aqui;
ou: Ei-lo acolá. Porque eis que o reino de Deus está dentro
de vós”.
(Lucas, 17:20 e 21.)

E, tendo entrado em Jericó, atravessava Jesus a cidade. E


vivia nela um homem chamado Zaqueu, e era ele um dos
principais entre os publicanos, e pessoa rica. E procurava
ver Jesus, para saber quem era, mas não o podia conseguir,
por causa da muita gente, porque era pequeno de estatura.
E correndo adiante subiu a um sicômoro para o ver, porque
por ali havia Ele de passar. E quando Jesus chegou àquele lu-
gar, levantando os olhos, ali o viu, e lhe disse: “Zaqueu, desce
depressa, porque importa que Eu fique hoje em tua casa”. E
desceu ele a toda pressa, e recebeu-o satisfeito. Vendo isso,
todos murmuravam, dizendo que tinha ido hospedar-se em
casa de um homem pecador. Entretanto, Zaqueu, posto na
presença do Senhor, disse-lhe: “Senhor, eu estou para dar aos
pobres metade dos meus bens, e naquilo em que eu tiver de-
fraudado alguém, pagar-lhe-ei quadruplicado”. Ao que lhe

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Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

disse Jesus: “Hoje entrou a salvação nesta casa, porque este


também é filho de Abraão. Porque o Filho do homem veio
buscar e salvar o que estava perdido”.
(Lucas, 19:1 a 10.)

Eu trouxera para a vida do Além o desejo sincero de aprender a


amar e servir o meu próximo. Creio mesmo que nos últimos tempos de
minha vida intuições protetoras, bondosamente alimentadas por amigos
celestes, que se compadeciam do meu pesar por não me haver sido possí-
vel ser tão fraterno para com os outros, como o desejara, falavam-me de
rumos novos que deveria tomar, bem diversos daqueles que a sociedade
viciosa do meu tempo me apontara.

Carreguei para o túmulo esse pesar. E esse pesar se acentuou aquém


do túmulo e se transformou em aflição. Em vergonha depois. E em re-
morso. Compreendi por isso que, além dos umbrais da morte, o mérito
que se nos permite é aquele que o amor confere. E eu, que desejara amar,
sem realmente ter amado; que fora rancoroso quando devera ser brando
de coração; que usara da impaciência e do desdém — quantas vezes?! —
onde se recomendariam a ternura e o interesse complacente, entendi que
nada sabia, que nada fizera de bom e que urgia reaprender tudo o que uma
alma necessita para a reabilitação de si mesma ante o próprio conceito.

Um dia (direi um dia para que os homens me entendam, porque


nestas plagas espirituais não se poderá expressar assim, visto que se
desconhecem os dias e as noites, para somente se integrar a mente no
eterno momento), um dia roguei, Àquele que é, a piedade de me pro-
porcionar ensejos de um aprendizado de legítimo amor ao próximo,
mas um aprendizado que saciasse a minha alma até as suas remotas
fibras, fazendo desaparecer o complexo da ideia do desamor em que me
considerava ter vivido.

Pus-me a “passear” pelo Espaço ilimitado, pensativo e compungi-


do, e por vezes recordando meus antigos passatempos pela floresta de

16
Ressurreição e vida

Iasnaia-Poliana, ao passo que confabulava com a própria consciência,


estabelecendo resoluções definidas e programas urgentes.

Havia pouco tempo que abandonara aos vermes aquilo que fora a
minha personalidade social humana, a mente, afeita desde o berço às pai-
sagens russas, figurava para si própria os quadros habituais de minha terra
natal: estepes geladas a se confundirem com o horizonte, onde o vento
soprava levantando a neve, para reuni-la em montículos que se multipli-
cavam a perder de vista; as aldeias com suas isbás, movimentadas pelo
trabalho dos moradores sempre preocupados com suas lides; o gado ru-
morejando à hora do repouso; as camponesas palrando ou cantarolando
ao recolherem as roupas que secavam ao vento desde manhã; os trenós e
as troikas2 regressando com seus nédios proprietários, bem aquecidos e
ainda mais tranquilos sob suas peliças, depois de vencerem 5 ou 8 verstas,3
satisfeitos com os resultados de suas compras e vendas...

Mas de súbito tudo mudou.

Vi-me perdido em campo azul-pálido, lucilante de uma aurora


cujo resplendor matizava de doces coloridos a região imensa. E acolá,
sentado, meditativo, como a contemplar algo que eu era impotente para
também distinguir, entrevi um vulto atraente, cujo aspecto me surpreen-
deu. Dir-se-ia encontrar-me em presença de um daqueles discípulos do
Nazareno, daqueles que, no anonimato, o seguiam em suas idas e vindas
pelos contrafortes da Judeia e as planícies de trigo da Galileia.

Reparando de mais perto, e mais atentamente, compreendi que o


vulto discursava para a pequena assembleia de ouvintes sentados pelo
chão, à sua volta, como de uso no Oriente, e como se concedesse uma
entrevista ou uma aula. Em derredor, estendia-se um panorama oriental
recordando as descrições bíblicas. Veio-me a impressão de que o tempo

2
N.E.: carro conduzido por três cavalos.
3
N.E.: antiga medida russa para distâncias, equivalente a 1,067 km.

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Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

recuara dois milênios, transportando-me, sem que eu o percebesse, à


Galileia da época da peregrinação do Senhor por suas paragens.

A luz da aurora, inalterável, incidia suavemente sobre o grupo e a


pradaria em torno, com irradiações de madrepérola esbatendo claros e
sombras tão singulares que eu desafio, a todos os artistas que têm pas-
sado pela Terra, a reproduzirem em suas telas um só daqueles celestes
reflexos que então tive a ventura de contemplar.

Aproximei-me de mansinho do grupo entrevisto, discreto, algo


curioso. E me considerei discípulo daquele provável mestre, como os ou-
tros que o rodeavam. E eis o que ouvi e presenciei:

— Retornaremos a qualquer momento para nova experimentação terre-


na, mestre Zaqueu... Fala-nos de ti mesmo, dos tempos apostólicos, das prega-
ções do Nazareno expondo a sua Boa Nova, que provavelmente ouviste... Seria
de muito bom proveito que levássemos detidos nas comportas da consciência,
algo estimulante, deslumbrador, desse tempo... para que, uma vez nos sentindo
novamente homens, pouco a pouco se fossem destilando, pelos escapamentos
da intuição, essas lições salvadoras que sabes contar, à guisa de reminiscências
levadas deste plano espiritual em que nos encontramos... — rogaram sorrindo
os discípulos, todos atraentes personagens, muito agradáveis de ver.

Sobressaltei-me.

“Zaqueu?...” — pensei. — “Mas seria aquele que subiu ao sicômoro,


quando o Senhor entrava em Jericó, para vê-lo passar?... Seria aquele
em cuja casa Jesus se hospedara? que oferecera ao Mestre um festim,
enquanto o reino de Deus fora mais uma vez ensinado aos de boa von-
tade, entre os convivas?... Seria possível, mesmo, que eu me encontrasse
em presença de um Espírito que fora publicano4 ao tempo do Senhor, na

4
N.E.: cobrador de rendimentos públicos, na Roma antiga e países submetidos por ela. Os judeus
desprezavam os próprios compatriotas que se permitiam servir ao Império Romano, que então
dominava Israel.

18
Ressurreição e vida

Judeia; que viesse a conhecer alguém que, por sua vez, houvera conhe-
cido a Jesus Cristo?...”

Excitado, aproximei-me ainda mais. Pus-me à sua frente, sentado


como os outros, a olhar para ele.

Ao que observava, aquela sociedade retratava uma democracia


modelar, superior em moral e fraternidade mesmo à que eu sonhara
outrora para a Rússia e o mundo, nas horas de desesperança, quando
observava o mal perseguindo o bem, a força dominando o direito, a
treva sobrepondo-se à luz. Eu chegava ali sem credenciais, sem apre-
sentações. Sentava-me entre todos, confiante, como se compartilhasse
benefícios da casa paterna entre irmãos. Imiscuía-me para junto do
mestre que discursava e ninguém me censurava a impertinência, não
me pediam satisfações pela intromissão. Mais tarde eu soube que, se tal
acontecia, era devido a mera questão de afinidades. Somente o fato de
havermos todos gravitado para aquele plano valeria pela credencial, que
outra não era senão aquela mesma. Quem estivesse ali, estava porque
poderia e deveria estar. Mais nada. Eu estava ali. Devia estar. No Além
não existem dubiedades nem meias medidas. O que é, é! E era por isso
que ninguém me enxotava de junto do mestre que discursava. Eu tinha
direitos de estar junto daquele mestre. E estava.

Olhei-o, àquele a quem haviam chamado Zaqueu. Semblante se-


reno, bondoso, enternecido, ainda jovem. Olhos cintilantes e perscru-
tadores, como alimentados por uma resolução invencível. Lábios finos,
queixo estirado, com pequena barba negra em ponta, recordando o ca-
racterístico fisionômico dos varões judaicos. Tez alva, sobrancelhas es-
pessas, mãos pequenas, pequena estatura, coifa discreta, listrada em azul
forte e branco, manto azul forte, barrado de galões amarelos e borlas na
ponta — eis a materialização do homem que teria sido, há dois mil anos,
aquele Espírito que assim mesmo se apresentava a seus ouvintes do mun-
do espiritual, disposto a cativá-los por meio da “regressão da memória” a
essa personalidade remota que tivera sobre a Terra.

19
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

Confesso que durante meus antigos estudos sobre o Evangelho nu-


trira grande simpatia por essa personagem que vemos, nas páginas san-
tas, admiradora incondicional de Jesus, dotada de inclinações generosas
a serviço do próximo, desejando repartir entre a pobreza parte da própria
fortuna, desinteresse raro em qualquer tempo, sobre a Terra. Eu a entre-
via, então, pelos versículos de Lucas, um caráter profundamente terno,
simples, um idealista disposto ao auxílio aos semelhantes, não obstante
tratar-se de pessoa que, embora poderosa e influente na localidade em
que vivia, como chefe dos cobradores de impostos que era, se via, por isso
mesmo, repelida e moralmente estigmatizada por aquela sociedade pre-
conceituosa. E foi com o coração excitado por todos os raciocínios conse-
quentes de tais lembranças que a ouvi atender à solicitação dos discípulos:

— A bondade do Mestre galileu, honrando-me com uma visita e


uma refeição em minha casa, eu, um renegado pela sociedade porque um
publicano, tocou-me para sempre o coração, meus amados, conforme sa-
beis... — ia ele dizendo. — Ele compreendeu as minhas necessidades mo-
rais de estímulo para o bem, o meu aflitivo desejo de ser bom. Penetrou,
com sua solicitude inesquecível, os mais remotos escaninhos do meu ser
moral; contornou, com seu amor de arcanjo, todas as aspirações do meu
Espírito, filho de Deus, que sofria por algo sublime que lhe aclarasse as
ações... E conquistou-me assim, por toda a consumação dos séculos...

“Muito sofri e chorei quando esse Mestre foi levantado no suplício


da cruz. Não, eu não o abandonei jamais, desde aquele dia em que passou
por Jericó! Segui-o. E o pouco que ainda viveu depois disso teve-me em
suas pegadas para ouvi-lo e admirá-lo. Eu não me ocultei das autoridades,
receando censuras ou prisão, nem tive preconceitos, e tampouco me im-
portunou a vigilância dos tiranos de Roma ou o despeito dos asseclas do
Templo de Jerusalém. Achava-me bem visível entre o povo, transitando
pelas ruas, embora ignorado, humilhado pela minha condição de funcio-
nário romano... e assisti aos estertores da agonia sublime, naquela tarde
do 14 de Nisan... Soube, é certo, da ressurreição que a todos revigorou de
esperanças... Mas não logrei tornar a ver e ouvir o Mestre, não fui bastante

20
Ressurreição e vida

merecedor dessa ventura imensa... Ele só se apresentou, depois da ressur-


reição, aos discípulos — homens e mulheres — e aos Apóstolos...

“Inconsolável por sua ausência e sentindo em mim um vazio ater-


rador, meu recurso para não desesperar ante a saudade e o pesar pelo
desaparecimento desse Amigo incomparável foi insinuar-me entre seus
discípulos, a fim de ouvir falarem dele...

“Fui a Betânia, quantas vezes?!... e tentei tornar-me assíduo da gran-


ja de Lázaro, de tão gratas recordações... Mas tudo ali estava tão mudado
e tão triste, depois do 14 de Nisan...

“No entanto, ali, na granja de Lázaro, sob o frescor das figueiras


viçosas que Marta plantara; à luz do luar, junto das oliveiras que farfa-
lhavam docemente, ao impulso das virações que desciam do Hermon;
no próprio pátio onde rescendiam os lírios que Maria plantara, perdido
entre o anonimato dos forasteiros que acorriam a Betânia quando ali o
sabiam hospedado, eu ouvira pregações do Mestre pouco antes da sua
morte, saciando-me até a alegria e o deslumbramento com as palavras
daquela doutrina que Ele concedia ao povo, o qual ignorava que a dois
passos se ergueria a cruz, arrebatando-o da nossa vista...

“Visitei Pedro, esperando consolar a minha grande dor ouvindo-o


dissertar sobre aquele que se fora do alto do Calvário, com a eloquência
com que sempre soube arrebatar as multidões.

“Perlustrei, choroso e desarvorado, as praias de Cafarnaum e de Genesaré,


sem saber o que tentar em meu próprio socorro, mas esperançado de que os
irmãos Boanerges, filhos de Zebedeu, me compreendessem e adotassem para
discípulo do seu bando, como eu via que acontecia a tantos outros...

“Mas nenhum deles sequer prestava atenção em minha insignifi-


cante pessoa... Não me olhavam, não me viam, e eu temia importuná-los
dirigindo-lhes a palavra... Eram tantos os pretendentes ao aprendizado

21
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

do amor, ao redor deles! Eles tinham tantas preocupações, preparando-


-se chocados, para o heroico apostolado!... E como eu era publicano, um
malvisto cobrador de impostos da alfândega romana, convenci-me, erro-
neamente, de que era por isso que não me recebiam, não obstante saber
que entre os doze principais havia também um publicano, o qual fora
diretamente convidado pelo próprio Nazareno...

“Recolhi-me então à minha mágoa imensa, sem, todavia, deixar de


seguir, discretamente, os Apóstolos, orando para que não tardasse o so-
corro a vir fortalecer a fé e a esperança que eu depositava naquele Reino
de Deus que havia de vir, Reino cujas leis me fora dado entrever do verbo
e das ações do próprio Messias esperado pelos homens de Israel.

“Recolhi-me, mas não desanimei.

“Continuava percebendo que aquele amor que, um dia, não se di-


minuíra em visitar minha casa, sentar-se à minha mesa e repousar sob o
meu teto, continuava incentivando-me, prolongando suas atenções em
torno dos meus passos. No fim de pouco tempo, de tanto ouvir as pre-
gações dos seus Apóstolos e dos outros setenta — fosse pelas sinagogas,
aos sábados, pela praias e praças públicas ou pelos domicílios domésticos
dos santos,5 então frequentados pelos outros santos — eu aprendera os
pormenores da doutrina já exposta pelo Senhor.

“Por esse tempo, eu deixara Jericó, desligara-me das funções adu-


aneiras, dera parte dos meus bens aos pobres, conforme prometera a
Jesus, provera, com a outra parte, recursos para minha família, distri-
buíra minhas terras entre os camponeses mais necessitados, reservando
o estritamente necessário à minha manutenção pelos primeiros tempos.
Fizera-me errante e vagabundo para acompanhar os discípulos e ouvi-
-los contar às multidões as conversações íntimas que o Senhor entretive-
ra com eles, antes do Calvário e depois da gloriosa ressurreição.

5
N.E.: os primeiros cristãos assim se denominavam uns aos outros.

22
Ressurreição e vida

“Como eu conhecesse bem as letras e as matemáticas, falando mes-


mo o grego, tão usado em Jerusalém, e também o latim, igualmente
usado graças à influência romana, à parte os nossos dialetos da Síria,
da Galileia e da Judeia, se me escasseavam recursos apresentava-me às
escolas mantidas pelas sinagogas. Empregava-me ali como adjunto dos
escribas, para as lições aos jovens, ou então nas casas particulares ricas,
como professor, e assim ganhava meu sustento. Se não houvesse lições a
transmitir era certo que nunca faltariam madeiras a serrar, aqui ou ali;
águas a carregar, a fim de saciar a sede das famílias; paredes a reparar nas
casas dos romanos, os quais, se eram agressivos no trato pessoal com o
povo hebreu, sabiam, no entanto, remunerar com justiça aqueles que os
serviam, desde que não se tratasse de escravos.

***

“Um dia — foi em Jerusalém — correra a nova sensacional de que


certo jovem fariseu, responsável pelo apedrejamento e morte do nosso
querido Estevão, a quem o Espírito do Senhor inspirava com tantas gló-
rias, acabara por se converter à Causa, porque o Senhor lhe aparecera
em ressurreição triunfante, exatamente quando ele entrava na cidade de
Damasco, para onde se dirigia tencionando prender os nossos santos
domiciliados naquela localidade. Aparecera-lhe o Senhor e convidara-o
diretamente para o seu ministério, como o fizera aos outros doze, antes
de sua paixão e morte. E que, agora, já inteiramente submisso aos desejos
do Mestre Nazareno, com tremendas responsabilidades pesando-lhe nos
ombros, conferidas pelo mesmo Mestre, pela primeira vez ia falar à as-
sembleia dos discípulos, em Jerusalém, narrando o que se passara.

“Fui ouvi-lo.

“Esse fariseu era Saulo (Saul), o de Tarso, “que é também chama-


do Paulo”.6

6
N.E.: Atos, 13:9.

23
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

“Contou ele, à assembleia silenciosa e atenta, o seu colóquio com o


Nazareno, à entrada de Damasco, e logo conquistou o coração de muitos
que se achavam presentes. Foi de pé (alguns se ajoelharam) que ouvimos
os pormenores da aparição do Senhor a Paulo, e a conversa que tivera
com ele mesmo, Paulo, e a sequência dos acontecimentos que envolve-
ram Ananias, um dos nossos amados santos de Damasco.7 Muitos chora-
ram, eu inclusive, e também Paulo.

“Se, no entanto, essa aparição fez a redenção de Paulo, de certo modo


contribuiu para minha definitiva estabilidade na doutrina do Mestre, por-
que daquele dia em diante tudo se modificou em minha vida.

“Nunca mais deixei Paulo, até hoje!

“Procurei-o então, em Jerusalém. Fui recebido com afeto e bondade.


Fiz-lhe a minha confissão, o que não tivera coragem de fazer aos demais
discípulos. Narrei-lhe os meus sofrimentos íntimos por Jesus. Quisera
servi-lo, a Ele, Jesus. Sinceramente o queria! Mas não sabia como iniciar
nem o que fazer.

“Pelo amor de Jesus, Paulo ouviu-me com solicitude digna daque-


le mesmo Mestre que o admoestara em Damasco. E aconselhou-me, e
guiou-me!

“Desse dia em diante, em vez de apenas ouvir as pregações sobre a


doutrina do Senhor e meditar sobre ela, pus-me a trabalhar também, por
amor do mesmo Mestre, sob orientação de Paulo, que, como aquele, não
desprezava publicanos. Ele deu-me incumbências:

“— Não te limites à adoração inativa, que poderá cristalizar-se em


fanatismo. A doutrina de Jesus é afanosa por excelência... E Ele precisa de
servos trabalhadores, enérgicos, ágeis para mil e uma peripécias, de boa

7
N.E.: Atos, 9:1 a 31 (Conversão de Saulo).

24
Ressurreição e vida

vontade para a propagação da Verdade que nos trouxe... Tu, que possuis
noções da prática da beneficência, porque já a havias mais ou menos
praticado antes do teu encontro com o Mestre, testemunha o teu amor
por Ele, servindo também aos teus irmãos que sofrem ou erram, pois
tal é o segredo da boa prática da nova doutrina. Nenhum de nós será
tão pobre que não possa favorecer o próximo com algo que possua para
distribuir: o pão, o lume, o agasalho, o bom conselho, a advertência so-
lidária, a assistência moral no infortúnio, o ensinamento do bem, a lição
ao ignorante, a visita ao enfermo, o consolo ao encarcerado, a esperança
ao triste, o trabalho ao necessitado de ganhar o próprio sustento honro-
samente, a proteção ao órfão, o seu próprio coração de amigo e irmão em
Cristo, a prece rogando aos Céus bênçãos que aclarem os caminhos dos
peregrinos da vida, o perdão àqueles que nos ferem e nos querem mal...

“De tais conselhos fiz, então, o meu lema.

“Em vez de só ouvir falar do Mestre, pus-me a falar, eu mesmo,


dele e da sua doutrina, que teoricamente eu já conhecia bastante; dos
seus atos, das maravilhas que operara por entre os doentes, os pecado-
res e os desgraçados, pois eu o conhecera, estava devidamente informa-
do a seu respeito. E, se não curei leprosos, estanquei a aflição de muitas
lágrimas com exposições a respeito dele. Se não levantei paralíticos,
pelo menos ergui a coragem da fé em muitos corações desanimados
ante a incúria pelas coisas santas. Se não expulsei demônios, é certo
que alijei o ateísmo, recuperando almas para o dever com Deus. E se
não ressuscitei mortos, renovei esperanças na alma de muitas matro-
nas desgostosas com a indiferença dos próprios filhos na prática do
bem, revigorei a decisão de muitos pecadores que temiam procurar o
bom caminho, porque envergonhados de se apresentarem a Deus, pela
oração, a fim de se renovarem para jornadas reabilitadoras. E, assim,
minha alma se alegrava em Cristo, dilatavam-se os meus propósitos de
progresso... E eu sentia que, de dia para dia, quando orava, mais inci-
diam sobre mim forças e novas bênçãos para mais me desdobrarem em
operações objetivas, que tendiam a me fazer comungar com a vontade

25
Yvonne A. Pereira / Léon Tolstoi

daquele Unigênito dos Céus, que um dia penetrou os umbrais pecami-


nosos de minha casa para me levar a salvação.

“E encontrei, então, dentro de mim próprio, aquele reino de Deus


que Ele anunciara... Encontrei-o na paz do dever cumprido, que me em-
balava o coração...”

Eu ouvia, embevecido, a empolgante exposição daquele Zaqueu,


cujo nome, no Evangelho, atraía as minhas simpatias, mas a quem as re-
ferências são mínimas, no Livro Santo. Mas acontecia que a força mental
do humilde discípulo do Nazareno distendera em torno um círculo de
luz fulgurante, o qual nos envolveu a todos, e nos levou a vibrar com ele,
e nos dominou a vontade, submetendo nossas vontades à vontade dele
próprio, nosso pensamento ao seu pensamento, nosso sentimento ao
seu sentimento, nosso raciocínio ao seu raciocínio, tal se, completamen-
te mergulhados nas ondas das suas irradiações, ficássemos à sua mercê
para lhe obedecermos às sugestões. Era a “faixa vibratória” dele mesmo,
onda transmissora do pensamento, capaz dos mais belos feitos psíquicos,
que nos atingia e dominava. Então, o mais edificante foi que o pensamen-
to de Zaqueu e suas recordações, revividas nos haustos de uma expansão
solene, criaram novamente os fatos passados e nos deram a presenciar
com ele tudo quanto era narrado. Seguimo-lo, assim, em suas idas e vin-
das atrás dos discípulos do Cristo. Presenciamos suas silenciosas lágri-
mas, seus sofrimentos ante a dificuldade em iniciar o ministério do bem,
expandindo objetivamente o que já existia no íntimo do seu coração.
Com ele vagamos chorosos, pelas praias de Cafarnaum, recordando as
prédicas sublimes que não mais se ouviam, mas às quais os discípulos
nunca deixavam de se referir durante as exposições da Boa Nova para o
povo... E, desse modo, quantas vezes com ele subimos o Calvário, sob a
nostalgia do crepúsculo, vendo-o chorar, sozinho e sofredor, a saudade
daquele que ali expirara para legar ao mundo o patrimônio do amor! E
aprendemos com ele, vendo-o agir, como se pratica o verdadeiro bem,
como se estancam as lágrimas da desgraça e se recupera o pecador para
o dever, ocultamente, silenciosamente, sem os alardes da vaidade nem os

26
Ressurreição e vida

elogios da História, fiel a um ministério santo, incansável, em torno das


criaturas sofredoras, pelo amor de Jesus Cristo...

***

Foi esse um dos mestres que encontrei aquém do túmulo. Seus en-
sinamentos, os exemplos de ternura em favor do próximo, que me deu,
revigoraram minhas forças. Sob seus conselhos amorosos orientei-me,
dispondo-me a realizações conciliadoras da consciência.

E se tu, meu amigo, desejas encontrar aquele reino de Deus de que


Jesus dá notícias, ama os desgraçados! Cada lágrima que enxugares em
seus olhos, cada conselho bom que dispensares ao pobre desarvorado
da vida é mais um passo que darás em direção a esse reino que, final-
mente, encontrarás dentro do teu próprio coração, que assim aprendeu
o cumprimento da suprema Lei: amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a si mesmo...8

8
N.E.: Mateus, 22:37 a 39.

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