Anne Bishop - Trilogia Das Jóias Negras 3 - Rainha Das Trevas
Anne Bishop - Trilogia Das Jóias Negras 3 - Rainha Das Trevas
Anne Bishop - Trilogia Das Jóias Negras 3 - Rainha Das Trevas
1 / Terreille
“Carregarei o remorso e o peso desses actos até ao fim dos meus dias.
Mas agora vos digo: FUI USADA! Há algumas semanas, ao utilizar as
minhas
mestrias como Viúva Negra para tecer uma teia entrelaçada de sonhose
visões, rasguei inadvertidamente um véu mental que me envolvia ao
longo
dos séculos em que fui Sacerdotisa Suprema de Hayll. Abri caminho,
acusto, através desse nevoeiro mental e observei, por fim, o que as
minhasteias entrelaçadas me tentavam transmitir há muito.
8
esses monstros para Territórios frágeis e, por causa deles, Rainhas
morreram.
Alturas houve em que cortes inteiras foram destruídas. Tanto eu
comoPrythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, julgávamos que os
estávamos aenviar para servirem noutras cortes obedecendo à nossa
própria vontade,
na esperança de que pudessem ser controlados. Contudo, fomos
manipuladas
para que fossem enviados para esses Territórios pois são os filhos do
Senhor Supremo! São a descendência daquela criatura brutal e
tornaram-
se nas suas ferramentas de destruição. O controlo que julgávamos
exercersobre os dois não passava de uma mera ilusão, uma venda para
esconder overdadeiro propósito.
2 / Terreille
10
Briarwood, que fora edificado para acolher e tratar de crianças
emocionalmente
perturbadas, estava fechado havia vários anos, desde que
aquelainexplicável enfermidade começara a afligir dúzias de homens
das famíliasaristocratas de Beldon Mor, a capital de Chaillot – uma
enfermidade queparecia interligada àquele lugar.
Um dos homens que Rose citou foi Robert Benedict, o anterior marido
de Leland e um membro importante do conselho de machos –
umconselho que fora já dizimado por aquela enfermidade misteriosa.
11
face ao conselho de machos, que não vira o perigo já existente.
Disseramque era o mesmo do que discutir com um homem por lhe
apalpar os seiosjá tendo a pila enfiada entre as pernas.
Culpavam-na por Robert Benedict ter vivido na sua casa durante tantos
anos e ter dormido com a sua filha. Se não conseguia reconhecer o
perigo
quando se sentava à sua frente, dia após dia, como poderia proteger
oseu povo contra qualquer outro tipo de ameaça?
– Wilhelmina tinha agora vinte e sete anos, já não era uma rapariga.
Nãoimportava. Não deixava de ser da família. Era ainda a sua neta.
Alexandra abanou a cabeça para quebrar a linha de pensamento e
reparou
que Philip caminhava na sua direcção. Sustendo a respiração,
perscrutou-
lhe os olhos cinzentos.
— Não está lá— disse Philip calmamente.
Alexandra soltou a respiração com um suspiro. — Graças às Trevas.
— Contudo, compreendeu o que ficara por dizer: ainda não.
Philip ofereceu-lhe o braço. Aceitou, agradecida pelo apoio. Era umbom
homem, o oposto do seu meio-irmão. Ficara satisfeita quando ele
eLeland celebraram esponsais e a satisfação foi ainda maior quando
decidiram
casar, passado o ano de esponsais.
12
Alexandra olhou para trás, para a plataforma onde Dorothea
proferiraaquele horripilante discurso. — Acreditas nela? — perguntou
baixinho.
13
tar da plataforma. Os corpos mutilados que foram deixados para
observação
macabra não o incomodavam. Fogo do Inferno, Dorothea fizera omesmo
– ou pior – a tantas outras pessoas, quando se sentia com vontadede
brincar. Contudo, parecia que ninguém se lembrava disso. Ou,
porventura,
nenhum dos imbecis aqui presentes alguma vez presenciara um
dosacessos de fúria da Sacerdotisa.
14
4 / Terreille
— A ideia de enviar Sadi para Chaillot foi minha, mas não me consigo
lembrar
de quem partiu a sugestão ou a razão pela qual concordei. Sobre
essasmemórias existe um véu que ainda não consegui romper.
Alexandra levou a chávena aos lábios mas voltou a baixá-la, sem beber.
Bom, logo que Kaeleer sucumbisse, faria alguns acertos na sua corte.
Talvez até fizesse com que os idiotas morressem em batalha, sufocando
nahonra ensanguentada.
— Estiveste bem hoje, Irmã — disse uma voz rouca mas ainda
ameninada.
— Eu própria não teria feito melhor.
Dorothea não se virou. Ao olhar Hekatah, a Sacerdotisa das Trevas
demónia-morta e autoproclamada Sacerdotisa Suprema do Inferno,
ficavacom o estômago às voltas. — As palavras eram as vossas, não as
minhas,
por isso não admira que estejais satisfeita.
17
feiticeira a aprender os deveres de uma Sacerdotisa bem como a Arte
deViúva Negra. Fora Hekatah que lhe acalentara as ambições e os
sonhos depoder, que lhe indicara as possíveis rivais que poderiam
interferir com essessonhos. E fora Hekatah que ajudara a eliminar
essas rivais. A SacerdotisaSuprema estivera presente, a cada passo,
orientando, aconselhando.
— E quando ganharmos?
— Quando ganharmos, poderemos fazer o que nos der na real gana.
Dominaremos os Reinos, Dorothea. Não só Terreille, mas todos –
Terreille,
Kaeleer e o Inferno.
Deliciando-se com a possibilidade, Dorothea nada disse durante vários
minutos. Por fim, relutantemente, perguntou: — Julgais deveras que
«Pode evitar-se?«
— Vê por ti.
Aceitando o convite formal, a Rainha arachniana abriu a mente aos
sonhos e às visões da grande teia entrelaçada que Jaenelle tecera entre
umpedregulho e uma árvore próxima.
20
Afastando-se dos sonhos e das visões, examinou a própria teia e
reparou
em dois elementos estranhos. Um era o delicado anel em prata comuma
Jóia Ébano que fora colocado no centro da teia. Raramente se teciauma
lasca de Jóia numa teia entrelaçada visto que a magia que moldava
essas teias era suficientemente poderosa – e perigosa – e esta Jóia
emparticular pertencia a Jaenelle, que era a Feiticeira, o mito vivo, os
sonhostornados realidade. O outro elemento estranho era o triângulo.
Muitos dosfios estavam ligados ao anel, mas existiam três fios
sobrepostos a todos osoutros, que formavam um triângulo à volta do
anel.
— E onde foi que aprendi a tecer uma teia entrelaçada? Se não a estou
a
interpretar correctamente talvez não tenha sido bem ensinada.
A aranha fez uso da Arte para produzir um zumbido irritante indi
21
cador de uma séria desaprovação. «Não é culpa da aranha que ensina se
apequena aranha dá mais atenção a apanhar mosca do que à lição.«
— O seu dedo hesitou no lado direito do triângulo. — Mas este fio não
éAndulvar. Devia ser, uma vez que é o Guarda-Mor, mas é outro.
Alguémque ainda não está aqui, alguém que me guiará às respostas de
que necessitopara caminhar pelo outro caminho.
«O fio não dizer o seu nome?«
22
tor nos fios da teia entrelaçada. Voltou-se para trás, olhando para a
aranha.
Uma teia, uma visão. Era esse o costume. Contudo, quando a Feiticeira
tecia uma teia…
23
que, de alguma forma, se encaixavam, tornando-se num sonho único.
Na gruta, existia uma teia que fora iniciada há muito, muito tempo.
Geração após geração, as Rainhas arachnianas cardaram um dos fios
desuporte dessa teia, escutaram os sonhos e adicionaram mais
filamentos.
Tantos sonhadores nesta teia, tantos sonhos que se conjugaram para se
tornarem
num só. Há vinte e cinco anos, pelo cálculo humano, esse
sonhoganhara, enfim, corpo.
24
CAPÍTULO DOIS
1 / Kaeleer
Essa era uma das vantagens em relação aos outros homens que
vagueavam
de mesa em mesa para examinarem as listas da feira de serviços.
Ninguém o acotovelava ou se queixava por levar muito tempo a
perscrutaros nomes, pois ninguém queria intrometer-se com um
Príncipe dos Senhores
da Guerra que usava Jóias Ébano-Acinzentadas, que era um
guerreiroeyrieno nascido e criado e que tinha um temperamento cruel e
a reputaçãode soltar as rédeas a esse temperamento – e aos punhos –
sem pensar duasvezes. Acrescia ainda o facto de pertencer a uma das
famílias mais poderosas
do Reino, bem como encontrar-se ao serviço da Corte das Trevas em
Ebon Askavi, não sendo, pois, de admirar que outros homens
rapidamentelhe dessem precedência.
25
durante várias horas – ou, ainda, se seria simplesmente uma forma de
selembrar de que agora era o comprador e não a mercadoria.
26
dos até ao ponto de ruptura. Quase conseguia saborear o desespero.
A forma como usava o cabelo era uma quebra na tradição, uma vezque
os guerreiros eyrienos usavam o cabelo curto para evitar que o inimigo
— Lucivar.
Lucivar centrou a atenção no Príncipe dos Senhores da Guerra comJóia
Azul-Safira que avançara para a frente do grupo. — Falonar.
28
— Por que motivo deveria agraciar-te com cortesias?
— Porque eu uso a Ébano-Acinzentada — respondeu Lucivar com
demasiada
delicadeza ao reposicionar-se ligeiramente, deixando que o outrohomem
percebesse o desafio e tomasse uma opção.
— Parem lá com isso, os dois — disse Hallevar bruscamente. —
Estamos
todos a pisar areias movediças neste lugar. Não precisamos que
nosretirem o chão debaixo dos pés só porque vocês continuam a querer
provarqual dos dois tem a pila maior. Esmurrei ambos quando eram
fedelhos presunçosos
e ainda consigo fazê-lo.
Lucivar sentiu a tensão a fenecer e recuou um passo. Hallevar sabiatão
bem quanto ele que poderia partir o homem mais velho em dois comas
mãos ou com a mente, contudo Hallevar fora um dos poucos que vira
oguerreiro latente, que não se importara com a linhagem – ou a
inexistênciade uma.
29
Falonar mexeu-se, chamando novamente a atenção de Lucivar – e da
sua fúria – para alguém que a pudesse defrontar. Depois olhou de
modocontundente para Hallevar e para dois outros homens que
conhecera antesde séculos de escravidão o terem afastado das cortes e
dos campos de caçaeyrienos.
Porém, passara 1.700 anos na crença de que era uma bastardo mestiço
e os insultos e os golpes de que fora alvo, ainda rapaz, nos campos
decaça, ajudaram a moldar o temperamento assombroso que herdara
do pai.
Depois disso, as cortes onde servira como escravo depositaram o
possanteremate cruel.
— Oito anos.
— Então já cumpriste o teu contrato.
Lucivar sorriu sarcasticamente. — Dirige as tuas ambições para
outrolado, Príncipe. O meu contrato é vitalício.
Falonar ficou tenso. — Julguei que os Príncipes dos Senhores da
Guerra
só necessitavam servir cinco anos numa corte.
Lucivar acenou com a cabeça em sinal afirmativo e reprimiu o
prazerque o assaltou ao ver Hallevar a dirigir-se a ele. — É essa a
exigência. — Sorriu
maliciosamente. — A Senhora demorou apenas três anos a perceberque
não foram essas as minhas condições.
— E pertencem?
Os olhos de Hallevar inflamaram-se. — Se fossem meus, tê-los-ia
reconhecido,
mesmo que as mães negassem a paternidade. Nos registos temde
constar um genitor para que uma criança não seja considerada
bastarda,
mesmo que o homem não tenha a possibilidade de ser pai.
32
vi em Terreille e Dorothea SaDiablo tinham tecido as suas teias de
mentiras
para o separar de Luthvian, a sua mãe, para além de terem alterado os
documentos
de nascimento pois não queriam que ninguém soubesse quem era,
de facto, o seu pai. Ficara estarrecido quando soube que o
ressentimentoque carregava consigo devido a esse ludíbrio não era nada
em comparaçãocom a raiva de Saetan.
33
— Assim será — prometeu Lucivar, friamente.
Quer fosse por ver os primeiros a ser aceites, quer fosse por precisarem
de algum tempo para reunir coragem, outros foram-se aproximando.
Aproximou-se o jovem Senhor da Guerra, Endar e a mulher, Dorian,
34
além dos que esperavam. Sem esquecer os demónios-mortos. Tendo
emconta o lugar para onde os levava, depressa teriam de aceitar a
realidade deter demónios-mortos a caminhar entre eles.
— Estamos prontos.
2 / Kaeleer
35
Daemon não deu qualquer indicação de que a advertência fora
sentidacom a intensidade de uma estocada. Não, não podia ignorar as
opções limitadas
se quisesse permanecer em Kaeleer. Mas não sabia se conseguiria
suportar
qualquer uma daquelas mulheres durante o tempo suficiente para
fazeraquilo que aqui o trouxera. E não conseguia deixar de imaginar
qual seria adimensão da oferenda que Jorval receberia da Rainha que
escolhesse.
36
temperamento já bastante aguçado, relembrando-lhe que quase não
comera
nos últimos dois dias. O choque de aromas intensos misturados
comodores corporais de igual intensidade, ajudaram-no a recordar a
razão que
37
Se estivesse, de facto, no Reino das Sombras, já perdera cinco anos
quepoderia ter passado junto a ela. Não iria passar os cinco anos
seguintes noutra
corte, almejando à distância.
Daemon foi invadido por uma alegria desvairada, ficando com o coração
na boca e os olhos a arder cheios de lágrimas. Lucivar.
Mas é óbvio que não podia ser. Lucivar morrera há oito anos, ao
fugirdas minas de sal de Pruul.
Tinha dado apenas alguns passos quando sentiu uma mão a agarrar-
lhe o braço direito e a virá-lo.
o Santuário da Feiticeira.
Tal poderia não significar nada. Fosse ou não vigiada por Príncipe
dosSenhores da Guerra – e fosse ou não governada por uma Rainha – a
terranão deixaria de existir.
39
ela enviado Lucivar à feira de serviços à sua procura? Teria um dos
inquéritos
do Senhor Magstrom chegado às suas mãos? Estaria ela…
— Olha, docinho…
— Surreal — Daemon chamou baixinho. Abanou a cabeça. O que não
vinha nada a calhar era que Surreal e Lucivar se desentendessem.
Surreal silvou. Quando tentou libertar-se da mão do Príncipe Aaron,
o deixa enfurecido.
Aaron, que estava junto a eles, começou a tossir com violência,
tentando
abafar as gargalhadas.
Ao ver Lucivar a interromper a conversa, dirigindo-se a eles,
Daemonsuspirou e desejou saber um feitiço que silenciasse Surreal
durante as próximas
horas.
41
— Sendo assim, talvez fosse melhor se me deixasses ir embora — disse
Surreal com um veneno adocicado.
Lucivar riu-se baixinho e com maldade. — Se achas que vou explicar
àRainha das Harpias a razão pela qual a sua filha serve noutra corte
quandoestive defronte dela, é melhor pensares duas vezes, feiticeirazita.
42
fosse melhor. Assinariam um contrato pelo privilégio de rastejar, se
essafosse a única forma de permanecerem em Kaeleer.
— Ora bem, Senhor Friall — disse Lucivar, ainda com um tom de voz
sereno, — sabeis tão bem como eu que um indivíduo tem de ser aceite
antesdas badaladas finais, mas depois disso, temos uma hora para
preencher eassinar contratos.
— Se pretendeis assinar o contrato para os que já se encontram nalista,
podeis levá-los convosco de imediato. Os outros terão de aguardar
atéamanhã — insistiu Friall.
Lucivar ergueu a mão direita e coçou o queixo.
44
passar Surreal. Olhou de relance para Lucivar, cujos olhos dourados e
vítreos
simplesmente o olhavam fixamente.
Daemon hesitou. Não sabia a que tipo de estigma era sujeito um bas
A pergunta não foi expressa de viva voz pois não queria testemunhar
aexpressão desorientada nos seus rostos ao ouvirem o nome – e
também pornão ter a certeza sobre a sua própria reacção se detectasse
reconhecimento.
Seria melhor perguntar a Lucivar – em privado. E as perguntas que
agora
45
lhe surgiam sobre mulheres e família… Também essas teriam de ficar
paramais tarde.
Afastaram-se dele.
46
Surreal semicerrou os olhos e acabou por aceitar a verdade que
eratambém uma mentira. — Compreendo. Este sítio arrepia-me.
47
gstrom acrescentou: — Já vi o Senhor Jorval proceder deste modo
muitasvezes. Explicou que podíamos confiar nos Administradores para
que produzissem
cópias exactas e que era a única forma de tornar mais expedito
oprocesso de instalação dos imigrantes nas suas novas casas.
— Eu procuro-os. Entra.
Olhando para os olhos ainda vítreos de Lucivar e detectando uma
premência
tensa no odor psíquico do irmão, Daemon obedeceu.
Surreal, Wilhelmina e Andrew entraram logo a seguir, seguidos
porvários eyrienos. Passado um minuto, Daemon respirou de alívio ao
ver Jazena ajudar Manny a subir os degraus para a Carruagem.
Entraram mais algunseyrienos e, nessa altura, a Carruagem foi
envolvida por um escudo Ébano-
Acinzentado, encerrando todos no seu interior, à excepção de Daemon,
visto
que era o único que usava uma Jóia mais escura do que Lucivar.
48
para a Carruagem. À frente, havia uma porta que levava ao
compartimentodo condutor. Talvez nesse compartimento pudesse
sentar-se outra pessoa,
permitindo aos restantes um pouco mais de espaço para respirarem.
Movendo-
se com cuidado, Daemon dirigiu-se ao pequeno e estreito corredorna
retaguarda da Carruagem. À esquerda, existia uma pequena divisão
privada
que continha uma secretária estreita e uma cadeira de costas direitas,
uma poltrona e um descanso para pés e ainda uma cama individual. A
divisão
à direita tinha um lavatório e uma sanita.
«Porquê?«
Não foi possível perceber qual dos dois se moveu primeiro. Num
momento,
estavam tão distantes quanto conseguiam na ínfima divisão e,
nomomento seguinte, estavam nos braços um do outro, abraçando-se
comose as suas vidas dependessem desse abraço.
51
— Daemon — disse Lucivar, rapidamente. — Tenho algo a dizer-te.
Julgo que já deves saber, mas tens de ouvir.
Está viva! Sentiu um novo estremecimento a percorrer-lhe o corpo.
— Não — disse. — Agora não. — Abriu a porta e saiu aos tropeções para
ocorredor. Mal mantendo o equilíbrio, entrou na casa de banho,
trancando-acom a Negra. O corpo tremia com violência. O estômago
dava voltas. Debruçando-
se na sanita, combateu a necessidade de vomitar.
Demasiado tarde.
Demasiado tarde.
Logo, não poderia permitir que Lucivar lhe dissesse o que precisavade
ouvir, desesperadamente. E não era por não querer saber que
Jaenelleestava viva, sem sombra de dúvida; era por não estar preparado
para serinformado sobre a aliança de ouro na mão esquerda de Lucivar.
3 / Kaeleer
52
cessário esse tipo de linguagem, especialmente com crianças por perto.
Além disso, fui criada durante muitos anos. Era uma forma honesta de
ganhar
a vida e da qual não me envergonho.
53
criancinhas. Tinham a pele morena, os olhos dourados e o cabelo preto
típico
nas três raças de longevidade prolongada, embora o cabelo da
meninafosse naturalmente ondulado, ainda que ligeiramente. Surreal
conjecturouse o cabelo da menina seria uma indicação de que uma das
linhagens dospais não era completamente eyriena, se aquele ondulado
teria traído umsegredo e se seria essa a razão pela qual estas pessoas
deixaram o seu Território
de origem.
Estando sentada a seu lado, com o braço a tocar o dele, Surreal sentiu
a tensão – e a irritação? – mas Khardeen não deu qualquer sinal
exterior.
Ao olhar para ela, a sua expressão era séria mas os olhos azuis
revelavamdivertimento.
4 / Kaeleer
56
Hekatah sentou-se com graciosidade no colo do homem envolvendo-
lhe o pescoço com um braço. Ao sentir as unhas longas a deslizarem
pelorosto, Jorval perguntou-se se iria perder um olho. Talvez fosse
preferível.
Cego, não a poderia ver. Pensando melhor, não. Hekatah usava Jóias
maisescuras do que ele. Poderia forçá-lo a abrir a mente e a imprimir-
lhe umaimagem cem vezes pior do que o seu aspecto real.
— É veneno? — perguntou.
Hekatah fez desaparecer a taça e inclinou-se para trás, com os
olhosarregalados de espanto. — Achas realmente que eu envenenaria
um homem
que me é leal? E és-me leal, não és, querido? — Abanou a cabeça,
comtristeza. — Não, querido, é apenas uma infusãozita afrodisíaca.
5 / Kaeleer
58
Surreal estava no lado de fora da Carruagem, olhando espantada para
— Merda.
O chão começou a girar sob os pés de Daemon. Estendeu um braço,
que Lucivar agarrou, equilibrando-o. — Não consigo — murmurou. —
Lucivar,
não consigo.
59
— Desce daí, Daemonar — disse Lucivar, rispidamente.
— Não!
Daemon sentiu os olhos a arder com lágrimas ao olhar para o rapaz.
Engoliu em seco para que o coração não lhe saísse pela boca.
Lucivar avançou mais um passo e abriu lentamente as asas escuras e
com membranas. — Se não desceres, eu vou aí buscar-te.
— Não lhe deverias ter dito que deixasse que as crianças ficassem com
os
pais? Duvido que se sintam à vontade, num sítio que lhes é estranho.
O Príncipe Aaron pigarreou ruidosamente.
61
O Senhor Khardeen inclinou a cabeça e começou a estudar o tecto.
— Chamaste-lhe Daemonar.
— Foi o mais parecido que consegui, mantendo o nome eyrieno —
disse Lucivar baixinho, com a voz ligeiramente enrouquecida.
— Estou lisonjeado.
Lucivar resfolegou. — Poderias estar quando era ainda um bebé.
Logoque se pôs em pé, transformou-se num monstrinho. — Passou os
dedospelo cabelo que lhe batia nos ombros. — E a culpa não é só
minha. Não o
fiz sozinho. Mas parece que ninguém se lembra disso.
Passando uma mão possessiva pelo cabelo de Marian que caía até
àcintura, Lucivar disse afectuosamente: — A Marian faz-me a honra de
ser
minha mulher.
— Daemon?
64
A voz de Lucivar dissipou-se, calada por uma poderosa vaga de
emoções.
Daemon abriu uma porta e entrou numa sala de estar. Numa das
paredespodiam ver-se estantes encastradas por cima de armários em
madeira fechados
e que lhe davam pela cintura. Um sofá, duas mesas triangulares de
apoioe duas cadeiras constituíam a mobília à volta de uma mesa baixa
e comprida.
Nas mesas de apoio podia ver-se um par de candeeiros curvados e
patinados.
Ao lado de uma das cadeiras estava um grande cesto repleto de meadas
delã e de fios de seda e um bordado praticamente acabado. À frente das
portasem vidro encontrava-se uma secretária, e essas portas abriam
para a varanda.
Num dos cantos estava um suporte com degraus carregado de plantas.
— Daemon.
Também se recordava daquela voz profunda. Ouvira-a com um
ardivertido. Ouvira-a repleta de raiva e de poder feríssimo. Ouvira-a
enrouquecida
e extenuada. Ouvira-a a suplicar-lhe que ascendesse, que aceitassea
ajuda e a força que lhe era oferecida.
— Daemon.
Deu um passo em frente. Levantou a mão, de dedos esguios e
unhaslongas e tingidas a negro. Desta vez, era a sua própria fragilidade
que temia.
Desta vez, aceitaria as promessas de Saetan.
65
— Mantém a cabeça baixa, rapazola. Respira devagar. Isso mesmo.
Serenidade força e calor fluíam da mão que lhe afagava o cabelo, o
pescoço, as costas.
O esforço deixou-o nauseado, mas, passado um momento,
Daemonconseguiu que o cérebro e a mente funcionassem em conjunto e
abriu osolhos. Viu o tapete entre os pés – tons terra, com espirais verde-
claro e vermelho
velho. Obviamente, o tapete não conseguia decidir-se se representava
a Primavera ou o Outono.
— Onde está?
66
— Está a fazer o périplo de Outono aos Territórios dos parentes — disse
Saetan. — Fazemos o possível por não interromper, mas eu podia…
— Não. — Daemon fechou os olhos. Precisava de algum tempo parase
recompor antes de voltar a encontrá-la. — Posso esperar. —
Esperaratreze anos. Mais alguns dias não seriam relevantes.
Saetan hesitou, olhando de relance para Lucivar que acenou
afirmativamente
com a cabeça. — Tens algo em que pensar antes de Jaenelle regressar.
— Invocou um pequeno estojo de jóias e abriu-o com o polegar.
67
desnudado. Virando-se de lado, fitou demoradamente o estojo que
pusera
na mesinha de cabeceira.
6 / Kaeleer
— Rrrf.
Fogo do Inferno, pensava Surreal ao lavar as mãos e pentear o cabelo.
Devia estar mais cansada do que pensava uma vez que estava a
imaginarinflexões de tons nos sons emitidos pelo cão que faziam com
que parecesseque estava mesmo a responder-lhe. E podia jurar que
aquele último “Rrrf”
estava carregado de divertimento. Tal como podia jurar que alguém
estavaa tentar alcançá-la num fio psíquico de comunicações e que era
ela que se
estava a atrapalhar com a ligação.
69
Quando regressou, o estado de espírito do cão tinha-se alterado.
Aoabrir a porta do quarto, olhou para ela com um ar triste e esgueirou-
se para
o corredor.
O Príncipe Aaron estava encostado à parede oposta.
Era um homem bonito de cabelo preto, olhos cinzentos e apresentava
uma altura e uma constituição que as mulheres considerariam
atraente. Aolado de Sadi, ficaria num distante segundo lugar – bem, o
mesmo aconteceria
com qualquer outro homem – mas decerto que nunca lhe
faltariamconvites para a cama.
— Visto que não conheceis o lugar, passei aqui para vos acompanhare à
Senhora Benedict até à sala de jantar — disse Aaron, parecendo estar
aesforçar-se para não sorrir. — Contudo, vejo que já tendes companhia.
As orelhas do cão arrebitaram-se. Começou a abanar a cauda.
Convencida.
Não tinha de dizê-lo em voz alta. A sua expressão era suficiente.
— Mas é claro.
— Qual o motivo para estar no Paço?
— Bem, assim de repente, diria que está a travar amizades.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas,
pensou
Surreal. O que significava aquilo? — Assim sendo, parece que não
éverdadeiramente selvagem. Se está dentro de casa, deve estar
domesticado.
Merda.
71
era também o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan… que
eratambém o Senhor Supremo do Inferno… cujo nome era Saetan
DaemonSaDiablo.
— Rrrf?
Surreal olhou por cima do ombro. O lobo inclinou a cabeça.
— Não sou submisso, mas a verdade é que sirvo. Será sensato que não
confundas estes dois aspectos ao conviveres com os machos desta
corte.
Oh, maravilhoso.
73
Anuiu. — Queria descobrir o que lhe tinha acontecido.
— Oh, merda.
A gargalhada de Saetan era calorosa e robusta. — Estavas disposta
adefrontar-me como Senhor Supremo, como Administrador e como
patriarca
da família, mas ao saberes que sou o Sacerdote ficas sem chão debaixo
dos pés?
74
Saetan examinou a porta fechada. — Vejo que travaste
conhecimentocom o Senhor Colmilho Cinzento.
75
dia seduzir. Era um gesto tão natural para ele como respirar.
Mas que não estava a ter um efeito benéfico na respiração de Surreal.
— Pensa nisto — disse Saetan. — O nome pode não lhe ter sido
atribuído
por ser pardo e por ter presas mas sim por ser o colmilho da Cinzenta.
— Mãe Noite — disse Surreal, olhando para a sua Jóia.
Saetan baixou a Jóia até ficar pousada sobre o peito de Surreal. —
Adecisão é tua e eu apoiarei qualquer decisão que tomes. Contudo,
ponderabem, Surreal. As visões de uma Viúva Negra não devem ser
rejeitadas deuma penada.
76
Jogando a roupa suja para um cesto na casa de banho, apressou o
seuritual nocturno, enfiou-se na cama e desligou o candeeiro da
mesinha dacabeceira.
— Tu falas!
Lentamente, os pêlos do Colmilho Cinzento assentaram. Escondeu
osdentes. «Sou parente. Nem sempre queremos falar com os humanos,
massabemos falar.«
— Rrrf.
— Obrigada — disse Surreal debilmente. Pela manhã, pensava
enquanto
se aconchegava de novo sob os cobertores, sentindo o ColmilhoCinzento
a encostar-se às suas costas. Pensaria nisto pela manh…
77
CAPÍTULO TRÊS
1 / Kaeleer
— E os serviçais?
— São… educados.
Daemon sentiu o calafrio preambular à fúria e dominou-a, com afinco.
Jazen já sofrera bastante. Se tivesse de abanar o Paço até aos alicerces,
certificar-se-ia de que a vida do homem não seria ainda mais
dificultadapor criados que não faziam ideia da brutalidade que os
homens enfrentavam
nos Territórios terreilleanos sob o jugo de Dorothea.
2 / Kaeleer
— Fez uma pausa, permitindo que Philip engolisse o anzol bem como
oisco.
— Está encurralada pelos três, não é verdade? Está encurralada
entreYaslana, Sadi e o Senhor Supremo – tal como Jaenelle.
— Sim. — Jorval suspirou. — Segundo nos foi dado a saber,
Yaslanalevou-a para o Paço dos SaDiablo em Dhemlan. Quanto tempo
aí permanecerá…
— Estendeu as mãos num gesto de impotência. — Poderá surgiralguma
oportunidade de a retirar do Paço, mas logo que a levem para
asmontanhas que rodeiam Ebon Rih, não é provável que a volteis a
recuperar
– pelo menos enquanto ainda restar algo dela que mereça o risco.
Philip afundou-se na cadeira.
Jorval limitou-se a esperar. Por fim, disse: — Desta vez, não há nada
que o Conselho das Trevas possa fazer oficialmente para vos ajudar.
Noentanto, oficiosamente, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance
pararecuperar Jaenelle Angelline e Wilhelmina Benedict para a família
legítimade ambas.
82
Guerra de Jóia Cinzenta, com o comprido cabelo loiro-prateado,
orelhasdelicadamente pontiagudas e enormes olhos de um tom azul-
floresta. Todos
os instintos territoriais de Daemon subiram à superfície, bramindo,
quando pousou os olhos em Chaosti – talvez porque Chaosti era o tipo
dehomem que poderia ser um adversário assombroso,
independentementedas Jóias que usava, ou talvez por Daemon ver um
pouco mais do que queria
de si próprio nesse outro homem. Somente a presença de Saetan
evitouque os cumprimentos cáusticos se transformassem num
confronto aberto.
Esse encontro deixara-o nervoso e demasiadamente consciente da sua
própria
fragilidade interior.
Que era Viúva Negra natural – e, para além de Saetan, o único macho
Viúva Negra – fora algo que conseguira manter em segredo durante sécu
83
los, desde que o corpo atingira a maturidade sexual, tal como
conseguiraesconder o dente de serpente e a bolsa de veneno sob o dedo
anelar da mãodireita. O que quer que tivesse feito instintivamente para
impedir que outra
Viúva Negra o detectasse, falhara agora redondamente, numa altura
emque nada havia a fazer em relação a uma tal denúncia pública.
— Estás perdido?
Daemon olhou de soslaio para Lucivar que estava encostado à soleirade
uma porta. — Não estou perdido — retrucou. Parou de andar e
suspirou.
— Mas estou muito confundido.
— Sim.
— O Colmilho Cinzento quer ser amigo de Surreal. É jovem e aindanão
tem muita experiência com humanos, em especial com as fêmeas.
Aoque parece, numa tentativa de reforçar essa amizade e melhorar a
compreensão
das fêmeas, juntou-se a Surreal enquanto estava no duche. Comoestava
com a água a correr, não se apercebeu da sua presença até lhe enfiar
o focinho onde não devia.
— Isso teria contribuído para um melhor entendimento das fêmeas
— disse Daemon friamente.
— Exactamente. Depois, quando se lamentou por ter sabonete no
pêlo, Surreal arrastou-o até ao duche e lavou-o. E agora cheira a flores.
Daemon mordeu o lábio. — Isso remedeia-se facilmente.
Lucivar pigarreou. — Sim, normalmente, mas logo que saíram, ela
— Já te vi.
— Jaenelle põe-me a comer terra. — Lucivar sorriu de orelha a orelhaao
ver a boca aberta de Daemon. — Não é frequente, posso garantir-te,
masjá o fez.
Daemon matutou naquela informação preciosa enquanto Lucivar falava
aos machos eyrienos. Pensou com afinco. Quando Lucivar regressou,
com um olhar interrogativo, despiu o casaco, enrolou as mangas da
camisae rosnou: — Onde estão as malditas botas?
4 / Kaeleer
88
cinco homens. Quatro dos membros da escolta tinham-na
acompanhadodesde Chaillot. O quinto, escolhido por Dorothea
SaDiablo, fora “emprestado”
por uma das Rainhas de estimação de Dorothea, de outro Território.
O homem arrepiava-a, contudo Dorothea garantira-lhe que seria capaz
delibertar Wilhelmina dos seus “captores”, entregando-a depois a outro
grupode machos leais que a aguardavam em Kaeleer.
89
5 / Kaeleer
91
— Não estiveste mal para um principiante — disse Andulvar.
— Logo que recupere os movimentos, vou esborrachar-lhe a cabeça
— resmungou Daemon.
Saetan e Andulvar trocaram um olhar divertido.
— Ah — exclamou Saetan, — os séculos podem ir e vir, mas o
sentimento
não muda.
— Foram essas as palavras que usaste da primeira vez que tu e
Lucivarandaram à pancada — disse Andulvar.
92
— Qual é o pedido?
Saetan proferiu com delicadeza: — A tua mãe gostaria de ver-te.
6 / Kaeleer
Fogo do Inferno, não deveria ter deixado escapar que é Viúva Negra.
Percebera-o no momento em que viu a fúria gelada nos olhos de
Daemon.
Todavia, estava transtornada pela teia entrelaçada que tecera dois dias
antese consumida pela tentativa de entender as imagens ocultas que
vira… Bem,
ter conhecido Daemon Sadi explicara, sem dúvida, muitas dessas
imagens.
Vira o Senhor Supremo a olhar-se ao espelho, mas o reflexo não era o
dele.
Vira verdades protegidas por mentiras. Vira uma Viúva Negra de Jóia
Negra
a tornar-se inimigo para poder manter-se amigo. E vira a morte
suspensa
por um anel. A sua própria morte.
95
Daemon hesitou. — Quiçá seja melhor explicares-me essas regras.
96
Daemon observou a casinha arranjada e o pátio limpo. — Sempre
quisque Tersa vivesse num local deste género.
— Mas não deixaste de fazer as tarefas que a tua mãe te atribuiu antes
de vires para aqui — disse Saetan, docilmente, aceitando o copo de
vinhotinto que Tersa lhe ofereceu, mas não desviando os olhos de
Mikal.
Mikal contorceu-se sob aquele olhar informado e, por fim,
murmurouentre dentes: — A maior parte.
— Leva-o contigo.
Quando saíram, ouvindo Mikal ainda a protestar vigorosamente,
Daemon
olhou para Tersa. — Como é bom voltar a ver-te — disse, ternamente.
7 / Kaeleer
Saetan mudou para uma posição sentada no sofá do seu gabinete. Não
necessitava
usar uma sonda psíquica para saber quem estava do outro lado
daporta. O odor a medo foi suficiente. — Entre.
Wilhelmina Benedict entrou, hesitando a cada passo.
98
Não era justo responsabilizar Wilhelmina, de alguma forma, pelo
queacontecera a Jaenelle, porém não deixava de se sentir ressentido
pela presença
da rapariga na casa que lhe pertencia e pelo ressurgimento na vidada
irmã.
— O que posso fazer por ti, Senhora Benedict? — Tentou, sem êxito,
esconder a irritação.
— Não sei o que faça. — A sua voz era quase imperceptível.
— Em relação a quê?
— Todos os que assinaram contrato têm algo para fazer, mesmo queseja
apenas elaborar uma lista das respectivas aptidões. Mas eu…
Retorceu as mãos com tanta força que Saetan crispou-se apiedado pelos
ossos delicados.
— Sim.
— Oh, céus.
— É uma forma de o expressar.
Baixou a cabeça para abafar uma gargalhada. Quando se atreveu a
voltar
a olhar para Saetan, pôde ver que estava a ponderar, a reavaliar o Paço,
bem como as pessoas que aí habitavam.
— Disse-me para tentar não desmaiar pois isso iria afligir os machos.
Saetan suspirou. — Vindo de Lucivar, foi quase uma delicadeza.
Temrazão. Foi rude, mas não deixa de ter razão. Os machos reagem
vigorosa-
mente face à angústia feminina.
101
— Se a intenção é tranquilizar-me, talvez fosse melhor dar uma
escovadela
a Lucivar — disse, com um ligeiro indício de mordacidade.
Saetan desatou às gargalhadas. — Minha querida, se queres dar-tebem
com Lucivar, mostra-lhe essa veia mordaz. Visto que viveu com Jaenelle
durante os últimos oito anos, reconhecerá a sua essência.
8 / Kaeleer
Parou. — Olha, isto tem de parar. Posso não ser um guerreiro eyrieno
mas sou perfeitamente capaz de andar alguns quilómetros sem cairpara
o lado, consigo atravessar um riacho sem me molhar se assim odesejar
e não preciso que uma bola de pêlos baixinha me trate comose não
fosse capaz de sobreviver sem ser numa casa cheia de serviçais.
Percebes?
102
Daemon olhou para o riacho, olhou para o sceltita e, de seguida,
caminhou
pelo ar sobre o riacho, até à outra margem.
103
«
«Se algum deles conseguir passar por nós sem o detectarmos, há algu
104
está nesse local. Nada passará por essas escadas. E o Senhor Supremo
estáa descer por aí.«
106
Controlando igualmente os movimentos, Daemon serviu-se de
outrocopo de conhaque. — Achais que a Rainha consentirá?
— Não. Visto que os seus familiares só lhe infligiram mal a ela e nãoa
outrem, irá opor-se à execução. Mas não deixarei de apresentar-lhe o
pedido.
Daemon fez o conhaque girar lentamente no copo. — Se, por
algumarazão, não se opuser, posso assistir?
9 / Kaeleer
107
preenchia os contratos e desejava-lhes boa sorte e uma boa vida – e fica
aimaginar se a nova vida na Pequena Terreille seria deveras diferente da
vidaà qual tentavam escapar.
108
terreilleanos que tinham entrado em Kaeleer para os quais não existia
agoraqualquer registo?
109
10 / Kaeleer
Sabia que não fora por cortesia que lhe tinham servido o jantar,
bemcomo à sua comitiva, numa pequena sala de jantar próxima dos
quartos doshóspedes. O Senhor Supremo não se importaria com o facto
de Alexandrase sentir demasiado exausta física e emocionalmente para
enfrentar os encontros
com outros que ali habitassem. Também não se importaria se elanão
conseguisse engolir uma colherada de comida se tivesse de partilhar
amesa com Daemon Sadi.
E agora, quando aquilo que mais ansiava era poder retirar-se para oseu
quarto e dormir na medida do possível, depois de um dia esgotante, ele
solicitara a presença de Alexandra – e não tinha sequer tido a
delicadeza deestar presente à sua chegada.
110
bora pressentisse que esta seria a única oportunidade que lhe seria
dada. Setransigisse, Saetan nunca lhe concederia o que quer que fosse.
— Visto que uma Rainha pode fazer o que lhe der na gana,
independentemente
da crueldade do acto, independentemente dos danos causados.
— Não distorceis as minhas palavras — ripostou, esquecendo tudo
o resto sobre o Senhor Supremo, à excepção de que era um macho e
nãodevia tratar uma Rainha deste modo.
— As minhas desculpas, Senhora. Visto que vós já as distorceis
sobremaneira,
esforçar-me-ei para não contribuir para isso.
Alexandra concedeu-se um momento para meditar. — Estais a
tentarprovocar-me deliberadamente. Porquê? Para que possais justificar
a minhaexecução?
111
— Nem vós.
Alexandra agarrou com força os braços da cadeira e cerrou os dentes.
— A idade da maioridade reconhece algumas condições que têm deser
correspondidas. Se uma criança for considerada incapaz, de alguma
forma,
a família mantém o direito de cuidar do seu bem-estar mental e físico e
de tomar decisões em seu nome.
— E de quem é a decisão de considerar a criança incapaz? A famíliaque
exerce controlo sobre ela? Que conveniente. E não vos esqueceis,
estaisa falar de uma Rainha que vos é superior.
— Não me esqueço. E não tenteis vir com moralismos – como se
tivésseis
a mínima noção de moral.
Os olhos de Saetan cobriram-se de gelo. — Muito bem. Vamos analisar
a vossa noção de moralidade. Dizei, Alexandra, que justificação
tendespara as alturas em que era óbvio que Jaenelle passava fome?
Como justifiqueis
as queimaduras de corda por ser amarrada, as nódoas negras dos
espancamentos?
Minimizastes a questão como sendo a disciplina necessáriapara
controlar uma criança indisciplinada?
Saiu do gabinete.
Enganos e mentiras. Dissera que Jaenelle tinha sete anos, mas que
idade
teria quando o Senhor Supremo começara a sussurrar-lhe as
mentirasadocicadas e envenenadas ao seu ouvido? Possivelmente, teria
criado ilusões
de unicórnios e de dragões que pareciam reais e convincentes. Nãoseria
a apreensão que Jaenelle por vezes lhe despertava, um travo de Saetane
não da própria criança?
113
olhos para saborear melhor a tensão e a raiva a desaparecerem
enquantoDaemon persuadia os músculos a relaxarem. — Não — disse,
por fim. —
Disse-lhe que Jaenelle era a Rainha, o que devia ter sido suficiente,
mas…
11 / Kaeleer
115
O sorriso afectado na voz de Lucivar fê-la virar-se apenas para ele.
— Não sei quanto a ti, mas eu não estou habituada a dormir com um
lobo.
— Qual é o problema do Colmilho Cinzento ficar no teu quarto? —
perguntou Daemon.
O tom condescendente da voz de Daemon só contribuiu para a
enfurecer.
— Peida-se — ripostou, e logo acenou com a mão desdenhosamente.
117
visão quando caçam. Torna-os predadores extremamente eficazes.
12 / Kaeleer
Durante a maior parte dos seus 1.700 anos acreditara, sem sombra
dedúvida, que nascera para ser o amante da Feiticeira. Há treze anos,
peranteuma rapariga de doze anos, essa crença não fora abalada. O seu
coraçãocomprometera-se; a união física teria apenas de ser adiada por
alguns anos.
Contudo, interpunham-se agora entre eles uma violação brutal e os
anosque passara sem rumo na loucura, e não sabia se suportaria
encará-la paraver nos seus olhos unicamente um sentido de obrigação
ou, pior ainda, depiedade.
118
cal dedicado à realização dos rituais formais dos Sangue nos dias
sagradosde cada estação, contudo duvidava que Saetan não tivesse
construído nasua casa um local dedicado a meditações informais e
íntimas.
119
cabeça de uma pequena mulher adormecida. A outra estava erguida,
comas garras à mostra.
— Daemon…
— Compreendes o que representa? — perguntou rapidamente,
inclinando
a cabeça ligeiramente para indicar a estátua.
Os cantos dos lábios de Jaenelle curvaram-se num indício de sorriso
mordaz. — Oh, sim, Príncipe, é claro que compreendo o que representa.
Daemon engoliu em seco. — Assim sendo, não me insultes exprimindo-
me pesares. Um macho é dispensável. Uma Rainha não –
especialmentesendo a Feiticeira.
o mesmo.
— E estava certo.
— Ora, sendo um Príncipe dos Senhores da Guerra feito com o mesmo
molde, seria de esperar que assim achasses, não é? — Começou a
sorrirpara logo semicerrar os olhos. Concentrou-se com mais afinco.
Daemon teve a clara impressão de que algo nele não era do agrado
deJaenelle. Quando a concentração intensa terminou logo a seguir,
percebeu
120
que tinha chegado a uma decisão em relação a si, tal como o fizera
quando
— resmungou.
Olhou-o com um ar de divertimento exasperado. — Adivinha.
Quase pronunciou “Saetan” mas reflectiu melhor. — Lucivar — disse,
consternadamente.
121
— É maior do que eu — queixou-se.
— Talvez devesse ser lembrado de que te serve.
Jaenelle riu-se tanto que tropeçou em Daemon. — Ele próprio lembra-
me desse pormenor quando lhe convém. E quando assim não é,
eutenho de lidar com o meu irmão mais velho. Seja como for, a maior
partedas vezes é mais fácil se concordarmos com ele.
122
CAPÍTULO QUATRO
1 / Kaeleer
123
sentidos aguçaram-se até ao limite, o calor do desejo invadiu-o e o odor
deoutros machos tornou-se numa declaração de rivalidade.
124
Dando uma tímida e bravia olhadela a Daemon e
cumprimentandoquase inaudivelmente, Jaenelle lançou-se sob o braço
de Lucivar.
«Lucivar…« começou.
125
tra Jazen, que carregava um tabuleiro com uma cafeteira de café fresco
ecanecas lavadas.
— Seria mais interessante se vestisse algo que não fosse um fato preto
euma camisa branca, todos os dias — murmurou Jazen entre dentes.
Lucivar reprimiu uma gargalhada. Daemon sentiu o rosto a enrubescer,
sem saber se era de raiva ou de vergonha. Jazen parecia horrorizado.
Foi então que se ouviu o riso aveludado e argentino de Jaenelle. — Bem,
esforçar-nos-emos por amarrotá-lo. — Ao passar por Jazen, passou-lhe
amão esquerda no ombro. — Bem-vindo a Kaeleer, Senhor da Guerra.
— Eu levo isso — disse Holt, um dos lacaios que tinha trazido os outros
tabuleiros.
Jazen olhou de relance para Daemon, entregou o tabuleiro a Holt e
retirou-
se tão depressa quanto conseguiu, sem recorrer ao passo de corrida.
126
ser do tipo de se interessar pela roupa interior de uma antiga
prostituta.
— Porquê?
— Lucivar irá insistir que se dispam para a lição.
— Despir? — questionou Wilhelmina. — À frente daqueles homens?
— Não queremos que os movimentos sejam restringidos pela roupa
— disse Marian, amavelmente. — E a seguir vão querer vestir uma peça
deroupa que esteja seca.
— Suponho que vá transpirar — disse Surreal. Olhou de soslaio
paraWilhelmina, perguntando-se se o exercício seria uma boa ideia. A
jovemmulher parecia tão pálida como água e tão assustada que parecia
prestes aquebrar-se.
— Julgo que não irá esforçar os principiantes, mas tu… — Os
olhosdourados de Marian saltitaram para as orelhas pontiagudas de
Surreal. —
És Dea al Mon. É capaz de puxar mais por ti, só para ficar inteirado do
queés capaz.
— Sorte a minha — murmurou Surreal entre dentes, enquanto
atravessavam
o relvado na direcção das outras mulheres que já se
encontravamreunidas na arena de treino.
Marian sorriu. — A minha primeira arma foi a frigideira.
127
Surreal ficou por um momento a olhar para Marian, boquiaberta,
paralogo começar a pensar seriamente.
Foi nessa altura que Lucivar começou a falar, pelo que afastou as
preocupações
com Daemon, por enquanto.
128
— Hallevar — disse Lucivar, ao mesmo tempo que começava também
a andar à volta. — Começa a contar o tempo.
Surreal sentiu Falonar, que estava a seu lado, a ficar tenso.
— Visto que isso não pôde ser uma opção, desta vez…
Não, pensou Surreal ao mesmo tempo que Marian a olhava inquisiti130
vamente. Se Lucivar nunca sugerira uma alternativa ao coito, não seria
ela,
com toda a certeza, a fornecer as informações.
Devia ter dito “não” quando foi informada pelo Senhor Supremo
queestavam no Paço e que pretendiam falar-lhe. Porém, sentia-se na
obrigaçãode os ver, dado que tinham vindo de tão longe.
Sentira que ficaram tão insultados quanto ela própria ficou aliviada,
mas ficaram satisfeitos por vê-la. Abraçaram-na e elogiaram-na,
dizendoque se tinha tornado numa linda mulher, e expressaram a
preocupação quesentiram e o quanto sentiram a sua falta...
131
Foi então que Alexandra disse que não se preocupasse.
Encontrariamuma forma de quebrar o contrato e de retirá-la deste local
para longe destagente. Tentou explicar que queria cumprir o contrato,
que o Senhor Supremo
e o Príncipe Yaslana não eram os monstros que Alexandra queria fazer
parecer.
Não lhe deram ouvidos, tal como não o fizeram anos atrás quando opai,
Robert Benedict tentara forçá-la, depois do desaparecimento de Jaenelle
– uns meses depois de ter contraído a enfermidade que acabaria por
olevar à morte. Fugira pois tivera receio de que um dia, ninguém iria
ouvir osseus gritos ou, acaso ouvissem, iriam ignorá-los por se estar a
tornar numacriança “difícil”, tal como Jaenelle.
Não lhe deram ouvidos. Tal era a convicção de que estavam certos,
de que sabiam o que era melhor. Até Philip. Dizia-lhe incessantemente
deque tudo ficaria bem, agora, Robert estava morto e tudo iria correr
bem.
Mas não seria assim, não podia correr tudo bem pois julgavam que
estava“danificada” de algum modo – podia ver-lhe isso nos olhos – e
tudo o quepensasse ou sentisse ou desejasse seria tingido por essa
convicção. Mas, porestimar Philip e saber que sofreria, não lhes podia
explicar a razão pela qualqueria deveras permanecer neste local.
132
Áureo.
Quando Lucivar lhe voltou a oferecer outro trago, aceitou. Aquele calor
glorioso derreteu-lhe os receios e produziu um ardor sensual no
seuinterior. Se tomasse outro trago, poderia até sentir-se destemida –
imensamente,
maravilhosamente destemida.
Mas Lucivar não lhe ofereceu mais. Não se apercebeu de que a largara,
mas percebeu que tinha a rolha numa das mãos e o frasco na outra e
queestava prestes a guardar aquele calor delicioso.
— Consigo voaaaar.
Quando voltou a alcançá-la, passou-lhe um braço à volta da cintura,
bateu uma única vez na porta defronte deles e empurrou-a para dentro.
— Gata!
Os olhos de Wilhelmina encheram-se de lágrimas ao ver Jaenelle sairdo
quarto adjacente. O sorriso afectuoso de saudação era tudo o que
precisava
ver.
136
decerto, que administrasse aquele tónico nalgum rapazinho enfermo,
semse importar com o que aquela mistela provocaria a uma criança.
— Leland é tua mãe. Eu sou tua avó. Somos a tua família, Jaenelle.
Jaenelle abanou a cabeça devagar. — Este corpo pode traçar a sua
linhagem
a ti. Isso faz-nos ter relações de parentesco. Não nos torna família.
137
— Não, não queres — respondeu Jaenelle, com demasiada delicadeza.
— Não queres apresentar-te perante o Trono das Trevas. — Fez uma
pausa.
— Agora, se me dás licença, tenho de terminar este tónico. Já ferveu
otempo suficiente.
Estava a ser dispensada. Com toda a indiferença, estava a ser
dispensada.
A sua avó paterna fora uma Viúva Negra natural. Fora por isso quese
sentira atraída pela Ampulheta. Mas, por essa altura, já os Sangue
daaristocracia em Chaillot sussurravam que as Viúvas Negras eram
mulheres“contranatura”, pelo que as outras Rainhas e os Príncipes dos
Senhores da
Guerra jamais escolheriam uma Rainha que também fosse feiticeira
dasassembleias da Ampulheta.
4 / Kaeleer
Olhando pela janela, pôs a mão dentro da camisa e sentiu o pequeno e
finofrasquinho em vidro pendurado numa corrente ao pescoço. A
SacerdotisaSuprema de Hayll garantira-lhe que tinha tecido,
juntamente com a Sacerdotisa
das Trevas, os feitiços mais potentes que conheciam para que
passassedespercebido. Até agora, tinham resultado. Ninguém detectara
que era maisdo que um mero acompanhante que Alexandra Angelline
trouxera com ela.
Era um homem insípido, praticamente invisível. Servia perfeitamente.
138
Parecera tão fácil quando lhe foi transmitida a missão. Localizar oalvo,
drogá-la para que ficasse complacente e, então, levá-la para fora doPaço
até aos homens que estariam a aguardar, logo a seguir aos limites
dapropriedade. Quando se deu conta da dimensão do local, julgou que
seriaainda mais fácil.
5 / Terreille
6 / Kaeleer
— Tens uma razão para tal — afirmou Jaenelle com a voz da meia-
noite. Não era uma questão.
— Sim. — Quanto teria de revelar para convencer Jaenelle? E quantodo
que vira na teia entrelaçada poderia ficar por dizer?
Jaenelle retomou o bordado. — Se for para ser usado num dedo, deve
estar adornado para que a finalidade real não seja óbvia — disse,
serenamente.
— Julgo que o interesse que demonstras pelo Anel reside especialmente
nos feitiços de protecção que lhe acrescentei.
7 / Kaeleer
142
çara-o a perceber que lhe tinha atribuído o título de Consorte por
algumsentimento de obrigação, mas não o desejava.
Vendo o montículo sob a ténue luz, julgou que alguém teria entrado
e largado uma coberta de pêlo branco sobre a cama, deixando-a
poralisar.
Foi nessa altura que viu uma cabeça erguer-se das almofadas e
músculos
a agitarem-se sob o pêlo branco enquanto o enorme felino mudavade
posição.
Mesmo que não tivesse visto a Jóia Vermelha entre o pêlo branco,
Daemon
não teria a mínima dúvida sobre quem estava esparramado na sua
cama.
143
Teria sentido sobeja confiança em si próprio para se equiparar àquela
arrogância felina, mesmo tendo a prudência de ceder, se necessário.
Agora…
— Daemon?
Girou sobre si próprio, sentindo uma dificuldade inesperada em
respirar.
Jaenelle estava na soleira da porta que conduzia à outra zona dos seus
aposentos, com um pijama de cor azul-safira.
Jaenelle voltou a olhar para a porta que ligava os dois quartos. Semi
Sim. Não. Não queria vir ter com ela como um macho assustado
ecarente. Do mesmo modo, também não iria recusar aquele que poderia
vira ser o único convite para a cama de Jaenelle. — Sim, por favor.
145
A névoa rodopiava, dançava, girava.
Uma cama estreita com tiras para prender mãos e pés – a cama de
Briarwood.
Uma cama faustosa com lençóis de seda. Uma armadilha sedutora
feita de amor e de mentiras e de verdades – uma armadilha para salvar
umacriança. O Sádico a segredar que ela morderia o isco pois ele, em
todas a suaglória sexual de macho, era o isco.
— Obrigado.
— Não quero a tua gratidão — ripostou.
Observando-a, Daemon abriu as barreiras interiores o bastante
parasentir as emoções de Jaenelle. O sofrimento que detectou
surpreendeu-o.
146
em Terreille apelidaram de Sádico. Quando a raiva arrefeceu, foi
substituídapor outro tipo de ardor.
A última coisa de que se deu conta foi a névoa a ficar cada vez
maisdensa e a rodopiar à sua volta até nada restar.
***
147
— Jaenelle acordou num estado de espírito semelhante — disse
Lucivar,
placidamente. — Deve ter sido uma noite interessante.
— Não aconteceu nada — resmungou Daemon, enquanto afastava
ocabelo para trás.
— Nada físico — disse Lucivar. — Mas eu próprio já dancei muitas
vezes com o Sádico para o reconhecer quando o vejo.
Daemon limitou-se a aguardar.
Os lábios de Lucivar formaram aquele sorriso letárgico e arrogante.
148
CAPÍTULO CINCO
1 / Kaeleer
149
amante estável na sua própria corte há mais de vinte e cinco anos –
desdeque solicitara a Philip que acompanhasse Leland na Noite da
Virgem. Nãoteria sido justo para ninguém se tivesse pedido a Philip que
lhe aquecessea cama depois disso, quando tudo o que desejava era ser
amante da sua filha,
e os outros homens que considerara, desde então, estavam muito
maisinteressados no poder que poderiam exercer como Consortes do
que emproporcionar-lhe prazer.
150
panheiros. Ou tão próximos do conceito de companheiros quanto
possível– ou tolerável. Significava também que a fidelidade dos machos
era um requisito
do casamento e qualquer homem que olhasse para além da camada
esposa poderia rapidamente ver-se sem casa nem família, podendo
atéperder os filhos.
151
acordo tácito por parte da Rainha que, ao aceitar o macho, estava
tambéma aceitar o seu direito de opinar sobre as suas decisões e sobre
a sua vida. Se
a Rainha desse uma ordem à qual a maior parte dos machos do
PrimeiroCírculo se opusesse, poderia submeter-se à decisão deles ou
dispensá-los da
corte. Todavia, não lhes podia infligir qualquer mal por se oporem a ela.
153
— Não referiu, Senhora.
Jaenelle acenou com a cabeça, pensativamente. — Vou pensar no
assunto.
E saiu do gabinete.
Os ombros de Jaenelle descaíram ligeiramente por um instante e
voltaram
a endireitar-se ao virar-se para Daemon. — Vai com ele, por favor.
Era o primeiro pedido que lhe fazia, mas não estava certo se conseguiria
executá-lo. — O que aconteceu há sete anos?
154
perguntar-lhe — disse calmamente. — E, se não gostar da resposta,
também
terá de passar por mim. — Para a proteger, sacrificaria toda e
qualqueroportunidade de se tornar amante de Jaenelle.
4 / Kaeleer
Por meio da Arte, qualquer membro dos Sangue que usasse Jóias
conseguiria
lançar um machado com precisão através de um pedaço de madeira.
Daemon chegou à conclusão que Lucivar não estava a usar mais nada
paraalém de força muscular e fúria, enquanto observava o machado a
rachar amadeira ao meio.
156
pelo que o processo da cura deixaria Jaenelle fisica e mentalmente
exausta,
mas não o suficiente que a levasse a chamar outras Curandeiras para
alémdas da Pequena Terreille. Pois se tivesse chamado Gabrielle ou
Karla para aajudar, seriam acompanhadas por um acompanhante
masculino.
— Posso ajudar-vos?
Osvald, o acompanhante, cerrou os dentes e esforçou-se por sorrir ao
virar-
se para o lacaio. Fogo do Inferno, não existiria um único homem neste
maldito local que não estivesse desejoso de andar à bulha? — Parece
que virei
no sítio errado, por isso estou a apreciar os quadros nesta zona do
Paço.
— Será com grande prazer que vos indicarei o caminho de volta
aosvossos aposentos — disse Holt, com uma cortesia gélida.
Em Terreille, poderia mandar açoitar o lacaio simplesmente pela falta
desubserviência. Em Terreille, os serviçais não ostentariam as Jóias tão
manifestamente,
forçando os superiores sociais a reconhecerem-lhes a força. Estandonas
boas graças da Sacerdotisa Suprema de Hayll, mortificava-o ter de
reconhecer
um lacaio, que era também um Senhor da Guerra de Jóia Opala.
Poderia ser uma vantagem, pensava enquanto seguia Holt de voltaà ala
onde Alexandra estava hospedada, bem como todo o séquito que
aacompanhava. Não seria de estranhar que um acompanhante fosse o
portador
de um recado de uma Senhora para outra - especialmente se
julgassemque trabalhava para essa família há muitos anos.
6 / Kaeleer
«Quando fazem parelha, são perigosos« Andulvar dirigiu-se a Saetan,
através
de um fio de comunicação Ébano-Acinzentado.
158
Olhando para Lucivar e Daemon, Saetan compreendeu a distinçãoque
Andulvar acabara de constatar. Todos os Príncipes dos Senhores
daGuerra são perigosos, mas quando dois homens com forças
complementares
se tornam uma equipa… «Tal como nós éramos com a idade deles«
respondeu, causticamente. «Continuamos a ser.«
«Se alguma vez nos envolvermos numa contenda, não quero ter
deenfrentar aqueles dois« disse Andulvar, ponderadamente.
159
podia perceber pela súbita explosão nos olhos de Daemon e pela
acutilância
nos de Lucivar que tinha iniciado o período da lua. Queria suspirar.
Fogo do Inferno, como poderia canalizar a agressividade instintiva de
Daemon
ao mesmo tempo que se debatia para controlar a sua? As
feiticeirasficavam vulneráveis durante os primeiros três dias do período
da lua vistonão puderem usar as respectivas Jóias nem realizar mais do
que Arte básicasem que isso lhes provocasse dor física. E, tratando-se
da vulnerabilidadeda sua Rainha, o temperamento de um Príncipe dos
Senhores da Guerracavalgava na orla assassina durante esses dias.
Foi o suficiente para que a Rainha voltasse a ser a irmã mais nova,
balbuciante
e rezingona. — “Nós” quem? — perguntou ameaçadoramente.
— A família.
Saetan perguntou-se se mais alguém teria reparado no olhar que
Daemon
lançou ao irmão e que deveria ter deixado Lucivar a sangrar. E
perguntou-
se também se Lucivar se apercebera que, quer tenha incluído quertenha
excluído Daemon do termo “família”, não tinha caído bem ao Consorte
da Rainha.
161
— Acham? — perguntou Daemon, com demasiada delicadeza.
— Também eu, confesso. — Ou gostaria de achar se tivesse a certeza
deque não me estrangularias antes de terminar.
Os olhos dourados de Daemon apresentavam o ar entediado e letárgico
que Saetan bem conhecia – alturas houve em que se olhou ao espelho
eviu esse mesmo olhar.
7 / Kaeleer
162
Fogo do Inferno. Por que não os tinha Jaenelle deixado ficar sozinhos?
As refeições eram certamente mais descontraídas e as conversas mais
interessantes
quando Alexandra e a sua gente tomavam as refeições em separado.
Quando referira essa questão a Saetan, informara-a que a ideia partira
de Jaenelle, que permitiu que Alexandra e os seus acompanhantes
sejuntassem aos restantes para as refeições, na esperança de que
pudessemcompreender melhor Kaeleer.
163
tranquilamente, noutro local, teria algumas coisas a dizer a alguém por
não
ser avisada.
— Podias…
Surreal rodou a cabeça e olhou para Aaron, com a faca de trinchar
apairar sobre o peru. — Não ias sugerir que não sei manusear uma
faca, poisnão, docinho?
Aaron arregalou os olhos. — Não seria tolo ao ponto de sugerir queuma
feiticeira Dea al Mon não sabe manusear uma faca — disse, num tom
suspeitosamente submisso. — Ia pedir-te se não te importas de trinchar
umpedaço para mim?
— É claro que ias pedir — respondeu com azedume. Sentiu que algoem
Aaron se descontraiu e praguejou em silêncio sobre o malvado
comportamento
masculino. Por outro lado, divagou ao trinchar o peito de peru,
erapossível que os machos estivessem tão habituados a esta mistura
agridoce
164
na personalidade de uma feiticeira que conseguiam descontrair-se.
Podia
Surreal fez convergir o poder das Jóias Cinzentas para as mãos demodo
a aumentar a força, contudo, deu-se conta de um escudo impenetrável
à volta de Aaron que absorvia toda a energia.
Foi nessa altura que viu de relance o rosto de Aaron e soube que
nenhuma
das outras pessoas presentes naquela divisão iria acercar-se de
umPríncipe dos Senhores da Guerra com tal aspecto glacial e
implacável.
165
«Ajuda-me!«
«Surreal…«
Foi nesse momento que chegou Chaosti que, com as mãos, prendeu
opulso direito de Aaron. As mãos de Lucivar sobrepuseram-se às de
Surreal,
acrescentando força e resistência.
— SILÊNCIO.
De imediato, os copos que se encontravam na mesa ficaram cobertosde
gelo. Vania olhou de relance na direcção de Jaenelle e parou de gritar.
166
— Aguarda-me no gabinete do Senhor Supremo — disse Jaenelle.
Com esforço, Aaron levantou-se e saiu da sala de refeições.
Surreal olhou para aqueles gélidos olhos azul-safira, sentiu um toque
suavíssimo de uma imensa raiva na corda bamba e começou a tremer.
As
pernas cederam. Sentou-se na mesa.
Jaenelle aproximou-se da mesa, devagar e dirigiu o olhar a Lucivar.
— Sim, Senhora.
Os olhos azul-safira cravaram-se, de seguida, em Chaosti. — E tu irása
seguir a Lucivar.
Foi então que Jaenelle olhou para Vania – e o gelo começou a causti
car.
falado em voz alta até ouvir Lucivar a emitir um som que era um
cruzamento
entre uma gargalhada e um gemido.
168
A surpresa e o interesse tremeluziram nos olhos de Falonar e a sua
vozencerrava pesar: — Não, acho que não seria uma boa ideia… hoje.
8 / Kaeleer
— Exactamente.
Continuava sem compreender. Daemon passou os dedos pelo cabelo.
— Fogo do Inferno, mulher, o homem tem esposa e uma filha bebé.
Setivesse dito alguma coisa, teria Kalush realmente acreditado na sua
inocência?
— É claro que sim! — gritou Jaenelle. — Mas se achava que não
podiacontar a Kalush, podia ter-me contado, ou a Karla, ou a Gabrielle.
— E como é que isso teria ajudado? — Daemon gritou também. —
Terias
contado a Kalush e continuariam a desconfiar de algo que não
cometera,
que nem sequer queria fazer.
— Porque insistes na desconfiança? Isto…
— Não estou a insistir.
— …não tem nada a ver com desconfiança.
— Assim sendo, qual a razão para estares tão furiosa com ele? —
bramiu
Daemon.
— PORQUE MAGOOU-SE E ISSO NÃO DEVIA TER ACONTECIDO!
— Os olhos de Jaenelle ficaram subitamente repletos de lágrimas.
— Estou muito zangada com ele por se ter magoado. Achas que não
seiquão enlevado e apavorado tem andado desde que Kalush ficou
grávida? Oquanto ela e Arianna significam para ele? Quão vulnerável se
sente quandooutra mulher demonstra interesse nele? — Limpou uma
lágrima que lheescorria pelo rosto. — Mas esconderam tudo tão bem
que não conseguimos
detectar mais nada para além do nervosismo que os rapazolas
têmsentido desde que aquelas... pessoas... chegaram ao Paço. Se
tivéssemos tidoconhecimento, a assembleia teria agido precocemente.
Percebendo algo mais sob as palavras, Daemon semicerrou os
olhosdourados. — E que mais?
Avançou para ela tão celeremente que Jaenelle deu um passo rápido
para trás e tropeçou na cauda do vestido. Agarrando-a pelos braços,
Daemon
puxou-a para junto de si. — Não vais afundar-te na culpa, Jaenelle
170
— disse, ferozmente. — Estás a ouvir-me? Não o irás fazer. É tua avó.
Uma
mulher adulta e, como tal, responsável pelas suas acções. Como
Rainha, éresponsável por controlar a sua corte. Se há alguém que
deveria dividir aculpa com Vania, esse alguém é Alexandra. Foi avisada
quanto à situação enada fez. — Quando Jaenelle começou a
argumentar, deu-lhe um safanãode tal ordem que a fez cerrar os dentes
e rosnar-lhe. — Se quiseres arcarcom a culpa e a responsabilidade por
estarem aqui, então Wilhelmina éigualmente culpada e igualmente
responsável.
Oh, a ferocidade protectora naquele olhar.
humanos e vivos do Primeiro Círculo que Vania não tentou levar para
acama?
— Lucivar está bastante magoado por te teres zangado tanto com ele —
disse
baixinho. — Todos os rapazolas estão magoados.
— Eu sei. — Suspirou. — Estou demasiado cansada para pensar
numatarefa para cada um deles. Parece que vou ter de dar uma topada.
— Perdão? — As mãos pararam de acariciar por um momento.
— Bato com o pé e deixo que se aflijam e que corram de um lado parao
outro ao meu serviço e assim saberão que já não estou zangada com
eles.
— Acreditarão realmente que um toque no pé é um ferimento grave?
Jaenelle resfolegou baixinho. — É claro que não. É mais um género
deritual.
— Falaste do quê?
Daemon massajou a nuca enquanto observava circunspectamente oseu
pai. Sentira-se na obrigação, de macho para macho, de advertir Saetan
173
planos. Contudo, depois de a cabra da Rainha pálida ter-se atirado aos
machos
da corte por esse acontecimento, afastaram-se todos para lamber
asferidas emocionais e não foram avistados durante o resto do dia.
A fúria de Jaenelle teria sido uma oferenda que lhe viera parar às
mãosse Wilhelmina Benedict estivesse no seu quarto. Mas não estava e
não faziaideia onde a procurar. Se estivesse com as outras cabras, não
a poderia abordar.
Não queria que nenhuma delas reparasse nele antes de estar prestes
adesaparecer.
10 / Kaeleer
Fogo do Inferno, não devia estar a ter tanto trabalho com um jogo
decartas. Era apenas uma variação do jogo do “peixinho” que Jaenelle
jogara
em criança. Tudo bem, eram vinte e seis variações do “peixinho”. Ainda
assim, não devia estar com tantas dificuldades para ganhar uma
partida.
Contudo, havia algo diferente neste jogo, algo que desafiava o
pensamento
racional. O pensamento masculino.
174
Continuando a baralhar as cartas, Daemon examinou o tabuleiro de
jogos minuciosamente, examinou as pedras e os discos de marfim.
Pensouna forma como cada peça podia interagir com as restantes – e
com as cartas.
11 / Kaeleer
Surreal olhou para a rua. Mas o vidro escurecido pela noite não a
deixava
ver mais nada a não ser o seu próprio reflexo – e isso fê-la pensar
nasperguntas que ficaram por responder durante tanto tempo. —
Porque nãoviemos para aqui antes? — perguntou calmamente. —
Porque não voltastea casa depois de teres fugido de Kartane? —
Hesitou. — Foi por minhacausa?
175
eles passar por todos os guardas de Dorothea para chegarem a
Kartane?
176
Bateu com força na porta e abriu-a de par em par. — Senhor Supremo!
177
resposta, entrou. Saiu passado um minuto. — Está no jardim com
Dejaal.
Ele ficará com ela.
178
respeitoso, disfarçando a surpresa por vê-la. Sabia que era demónia-
morta,
mas não esperava vê-la no Paço – e não estava a gostar da atitude tensa
deTitian, tal como não estava a gostar da neutralidade controlada de
Saetan.
180
Saetan resmoneou de frustração. — À excepção da cabra da Vania,
ninguém agiu ainda de modo a justificar uma execução. — Abanou a
cabeça.
— Assegurámo-nos de que nada se irá passar esta noite. Depois do
pequeno-
almoço, falarei com Jaenelle sobre mandar aquelas... pessoas... para
longe do Paço e para fora de Kaeleer.
1 / Kaeleer
– que era mais do que recebera de manhã. Uma vez que matar Lucivar
estava
fora de questão – pelo menos, naquele momento – observou Jaenelle
aescolher dois pedaços de pêra e uma colherada de ovos mexidos.
Ao virar-se para se afastar do aparador, Lucivar esticou o braço,
enfiouum garfo num naco de carne e deixou-o cair no prato de Jaenelle.
— Hojeprecisas de carne. Come.
2 / Kaeleer
183
Fora necessário esforçar-se mais para a convencer a mandar Leland e
Philiptomarem o pequeno-almoço para dar a ideia de que os restantes
estavamsimplesmente atrasados. Com tantos ausentes, ninguém
saberia com segurança
quem faltava até já estar bem longe do Paço.
Não. Não podia duvidar. Os feitiços que tinham evitado que fosse
detectado
faziam prova suficiente de que Dorothea e a Sacerdotisa das
Trevassabiam como lidar com o canalha que governava este sítio.
Fugiria com oprémio de valor mais baixo, é certo, mas esse prémio de
menor valor, bemespremido, poderia servir como um excelente engodo
para capturar Jaenelle
Angelline.
184
Osvald olhou-a com um ar triste. — Receou que rejeitásseis o pedidoe
não queria enfrentar pessoalmente essa rejeição.
dem. Sai para o corredor e fecha a porta. Sai para o corredor e fecha a
porta.
Sai para…
3 / Kaeleer
185
O Colmilho Cinzento rosnou. Antes de conseguir perguntar qual era
— Caso se magoe por não ter esperado por mim, vou-lhe dar
tantaporrada que terá de erguer a cauda para ver o mundo —
resmungou.
— Esperai aqui — disse Falonar ao observar o pátio, lá em baixo.
186
— Gostais de ter tomates? — ripostou Surreal, torcendo-se para
olharem volta. Não obstante, retirou os dedos debaixo do cinto para que
o eyrieno
não se preocupasse se ela iria cumprir a ameaça.
Recobrou o fôlego e praguejou. O jovem tigre, Dejaal, estava
estendidono pátio, imóvel. Um lacaio contorcia-se com dores. O
Colmilho Cinzentoprecipitava-se para a frente e para trás, não estando
activamente envolvidonum ataque mas mantendo a atenção do homem
que segurava firmementeWilhelmina, que também se debatia sem êxito.
Falonar apontou.
Surreal poderia ter sentido algum consolo pela presença dos trêsnão
fosse o rosto do Senhor Supremo empalidecer ao ver o corpo deDejaal.
Alexandra começou a falar, mas antes de conseguir pronunciar
umúnico som, as suas mãos voaram até à própria garganta e os seus
olhos ar-
regalaram-se, apavorados.
189
Todos se afastaram para deixar passar Jaenelle que se ajoelhou junto
aDejaal. A mão que acariciava o pêlo era dócil e afectuosa, contudo, os
olhosque finalmente se ergueram e se centraram em Wilhelmina…
Jaenelle olhou para Karla, que fez uma vénia formal antes de se dirigira
Wilhelmina para a examinar.
190
crescente – e percebeu que ninguém que usasse uma Jóia mais clara do
quea Cinzenta poderia sentir o que quer que fosse.
— Daemon!
Quando ouviu Saetan a correr no seu encalço já alcançara a porta.
Mediante a Arte, abriu a porta e entrou no quarto.
O frio parecia ter recortes que eram dolorosos fisicamente, mas
quasenão os notou pois, ao olhar à volta, não conseguia compreender
exactamente
o que estava a ver. A sua mente identificou o resto depois de perceber
que as pequenas e singulares pintas vermelhas nas janelas eram
gotascongeladas de sangue…
— Daemon.
… e percebeu o que Lucivar lhe contara sobre o casamento forçado
deJaenelle. Ficou borrifado pelo quarto.
— Daemon.
Percebeu a súplica na voz de Saetan, mas não conseguia reagir.
Umtorpor peculiar instalara-se nas suas emoções… e, não sendo capaz
de sentir,
conseguia pensar.
Sabia o motivo pelo qual Saetan não queria que visse este quarto.
Devido
à natureza inerente aos deveres, o Consorte não podia inibir-se na
suarelação com a Rainha. Um Consorte disponibilizava-se fisicamente à
Rainha,
consciente e de bom grado, como nenhum outro macho da Corte.
UmConsorte que receava a sua Rainha não funcionava na cama.
193
4 / Kaeleer
Contudo, as pessoas que viviam com Jaenelle não viviam num terror
constante. De facto, reflectindo sobre o modo como Karla e Lucivar
agiramno pátio, designaria esse comportamento como prudente mais do
que temente
– e essa prudência também não era habitualmente visível.
Ora isso era insultuoso. — Uma vez que é essa a vossa opinião,
docinho,
eu saio do vosso caminho. — Impulsionou-se da parede.
Falonar estendeu a mão e tocou-lhe no braço. — Surreal… Tínheis
194
razão. Deveria ter matado o sacana. Agora tenho de aceitar as
consequências
desse erro. — Hesitou e acrescentou em voz baixa: — Poderia ter-vos
assassinado ou à Senhora Benedict com aquela faca envenenada.
5 / Kaeleer
195
que têm de ser tomadas, seria cruel forçá-la a sentir antes de estar
preparadapara tal.
6 / Kaeleer
Bem, não havia problema. Não havia qualquer problema. Não precisava
de ficar ali, a perder o tempo com um macho insensível e cabeça
duraque não desejava a sua presença.
Olhou para Lucivar nesse preciso momento, viu o divertimento
sarcástico
naqueles olhos dourados e sabia que, se tentasse sair agora,
exigiriamque ficasse. Por isso, ao invés de se amaldiçoar pela sua
teimosia, amaldi
196
çoou Lucivar. E vendo que ficava ainda mais divertido, compreendeu
queLucivar sabia – o sacana.
198
CAPÍTULO SETE
1 / Kaeleer
199
Ao chegar a casa, correu para o gabinete e rabiscou uma nota ao
Senhor
Magstrom.
2 / Kaeleer
Alexandra tinha de sair dali, tinha de se afastar dele. — Uma vez que,
supostamente, estamos numa corte, julgo ser altura de falar com esta
vossaRainha misteriosa. A verdadeira Rainha. Na verdade, exijo falar-
lhe.
3 / Kaeleer
Com o coração na boca, Alexandra seguiu o Senhor Supremo pelas
escadasem pedra escura. As colossais portas duplas ao fundo da
escadaria abriram-
se em silêncio, revelando uma obscuridade intensa.
202
Protestara quando soube que Leland, Philip e o resto do séquito quea
acompanhara também tinham sido convocados à Fortaleza. Não
surtiraqualquer efeito. Ninguém dera a mais pequena indicação de que
tinhamsequer ouvido os seus protestos, quanto mais aceder a eles.
…soube reconhecê-lo.
203
Atreveu-se a olhar de relance para Daemon. Também ele a reconhecera.
Reconhecera-a e…
Executá-la?
«Onde...?«
205
«Com certeza que fizeste! O que foi que lhe fizeste? Devoraste o espírito
para poder usar o corpo?«
«Porque és horrenda.«
«E seja o que isso for, não nasceu da minha filha. Não nasceu de mim.«
«Muito bem.«
***
Abriu os olhos. Viu Saetan sentado numa cadeira junto à cama e disse,
com a voz enrouquecida: — Não vos quero.
206
Instintivamente, em desespero, mergulhou no seu interior,
tentandoalcançar a profundidade da sua força Opala. Nem conseguiu
sequer alcançar
a profundidade da Branca. O abismo estava-lhe interdito e a sua
menteparecia estar encerrada em pedra.
207
— É o mito vivo, os sonhos tornados realidade — disse Saetan, com
frieza.
— Bem, não era este o meu sonho — ripostou Alexandra. — Comoé que
aquela criatura repugnante e deformada poderia ser o sonho de
alguém...
— Não volteis a pisar o risco, Alexandra — advertiu Saetan.
Detectando o nervosismo na voz de Saetan, encolheu-se. Podia rangeros
dentes e fechar a boca pois não tinha escolha, mas não conseguia
deixarde pensar naquela criatura. Vivera na sua casa. Arrepiou-se.
Todos os anos
no Winsol, dançamos pela glória da Feiticeira. Todos os anos,
celebramosaquilo.
208
— Quase nunca — disse Daemon entre dentes – e depois lembrou-
sequem era a sua interlocutora.
Mas Draca acenou com a cabeça, como se se sentisse satisfeita
pelaconfirmação. — É sensato que oss machoss saibam quando devem
ceder eobedecer. Porém, o Consorte tem permissão para contornar
muitass dass
regrass.
— Era uma boa Rainha, não era? — perguntou Jaenelle com uma
vozsuplicante, passados alguns minutos.
Daemon sentiu uma guinada de dor. Noutra altura, a mentira teriasido
fácil, mas não esta noite. Sabendo que iria destruir a derradeira
justificação
para o comportamento de Alexandra, transmitiu-lhe a verdade
tãosuavemente quanto conseguiu. — Comparada com as outras
Rainhas deTerreille, era uma boa Rainha. Comparada com qualquer
uma das Rainhascom as quais travei conhecimento desde que estou em
Kaeleer… Não, meuamor, não era uma boa Rainha.
211
CAPÍTULO OITO
1 / Kaeleer
Passara vários dias com a neta mais velha e com o respectivo marido
– dias que foram passados em excitação e apreensivamente ao invés
do repouso de que tanto precisava. A sua neta estava grávida do
primeiro filho e, embora maravilhada, estava também bastante enferma.
Por isso, passara a maior parte do tempo a sossegar o marido de
que a sua neta não se divorciaria do homem que amava
simplesmentepor não conseguir manter o pequeno-almoço no estômago
durante algumas
semanas.
214
naquele rosto deteriorado e em decomposição. Deu um passo na
direcçãode Magstrom que, por sua vez, deu um passo à retaguarda.
Depois, recuououtro... e outro... até já não restar saída.
2 / Kaeleer
216
— Eu protejo-a, Bastardolas. Podes contar com isso. — Depois sorriude
modo indolente e arrogante. — Mas tu é que vais tomar conta dela.
Nãotens sequer uma hora para fazer as malas, meu velho. Conta
também comdois dias em Amdarh.
Daemon olhou atónito para Lucivar para depois recuar e enfiar asmãos
nos bolsos das calças. — Não se sente à vontade comigo, Bastardinho.
3 / Kaeleer
— Estás a pensar que vais tecer uma teia medicinal daquele tamanho?
— perguntou.
— Não é para a teia medicinal; é para a sombra.
Voltou a contemplar o estojo. Uma “sombra” era uma ilusão
elaboradaque podia enganar o olhar, levando a acreditar na presença
real de umapessoa. Jaenelle tinha a capacidade de criar uma sombra
tão realista que aúnica diferença entre essa sombra e o seu próprio
corpo era que, enquantoa sombra conseguia apanhar ou tocar em
qualquer objecto, não era possíveltocar-lhe. Produzira esse tipo de
sombra há oito anos, quando iniciara a
217
demanda por Daemon, de modo a trazê-lo do Reino Distorcido e Lucivar
tinha ainda bem presente as consequências físicas nefastas que tal acto
acarretara.
4 / Kaeleer
Caminhou até às janelas e olhou para a rua. Não havia razão para
quesoubesse que a aguardava ansiosamente, não havia razão para lhe
concederessa pequena dose de poder sobre ele. — Entrai — disse
quando voltarama bater à porta.
Não ouviu a porta abrir, mas quando se virou, viu uma figura envolta
numa capa negra e com capuz.
218
— Não será necessário. Sei o que se passa convosco.
Os dedos imobilizaram-se no botão. — Já vistes esta enfermidade
anteriormente?
— Não.
— Mas sabeis do que se trata?
— Sim.
Irritado com as respostas sucintas, pôs de parte os esforços de civismo.
— Então o que raio é isto, em nome do Inferno?
— Chama-se Briarwood — respondeu a voz da meia-noite.
Kartane ficou sem pinga de sangue na cabeça, sentindo tonturas.
— Briarwood é o veneno embelezado — prosseguiu a voz ao
mesmotempo que as mãos de pele clara afastavam o capuz. — Não há
cura paraBriarwood.
Kartane fitou-a boquiaberto. A última vez que a vira, treze anos atrás,
assemelhava-se mais a uma marioneta sedada do que a uma criança –
umjoguete fechado num dos cubículos de Briarwood, à espera de ser
utilizado.
Porém, jamais olvidara aqueles olhos azul-safira ou o terror que sentira
aotentar tocar-lhe a mente.
— Tu. — A palavra foi proferida como pouco mais do que uma exalação.
— Julguei que Greer te tinha destruído.
— Tentou.
Foi então que se apercebeu. Apontou um dedo acusador. — Foste tuque
me fizeste isto. Foste tu!
— Estão todos mortos, cabra estúpida! Sou o único que resta. Ninguém
sobreviveu a esta tua teia.
— A teia apenas definiu as condições. Se nenhum dos outros
sobreviveu…
Quantas das crianças que foram enviadas para Briarwood viverampara
além de todos vós?
— Visto que não vieste aqui para me curar, porque te deste ao trabalho
de vir? Só para te regozijares?
— Não. Vim representar as que já partiram.
Kartane observou-a e, de seguida, abanou a cabeça. — Podes
acabarcom isto.
5 / Kaeleer
Visto que a apreciava tanto, sentiu-se tentado a recusar para que fosseo
único a saber fazê-la para ela, mas rapidamente se apercebeu de que
otempo passado com Jaenelle a uma mesa repleta de ervas seria muito
maisproveitoso.
6 / Kaeleer
Kartane irrompeu na sala de jantar de Jorval. — Aquela cabra está
viva?
— questionou.
Jorval correu na sua direcção enquanto um homem que Kartane nunca
vira continuou sentado à mesa, limitando-se a olhar fixamente.
221
— Senhor Kartane — disse Jorval, ansioso. — Se soubesse que o
tratamento
seria tão rápido, teríamos aguardado...
— Maldito sejais, respondei à pergunta! Está viva?
— A Senhora Angelline? Sim, claro que está viva. Porque perguntais?
Não compareceu?
— Compareceu — resmoneou Kartane.
— Não compreendo — disse Jorval, quase em guisa de lamentação.
— É a melhor Curandeira do Reino. Se ela...
— FOI ELA QUE ME FEZ ISTO!
O olhar chocado de Jorval foi celeremente substituído por um
olharmatreiro. — Compreendo. Juntai-vos a nós, por favor. Vejo que
passastesuma tarde perturbadora. Porventura alguma comida e
companhia possamfazer-vos sentir melhor.
— Nada me fará sentir melhor até aquela cabra ser dominada — ri-
postou Kartane, aceitando sentar-se à mesa e enchendo de imediato
umcopo de vinho. Olhou furiosamente para o outro homem, que
continuavaa fitá-lo.
— Senhor Kartane — disse Jorval de modo adulador, — apresento-
vos o Senhor Hobart. Também ele tem razões para querer ver Jaenelle
Angelline
subjugada.
— E não só Jaenelle Angelline — resmungou Hobart.
— Oh? — exclamou Kartane, afastando a raiva à medida que aguçava
o interesse em Hobart.
— O Senhor Hobart controlou o Território de Glacia durante vários
anos — disse Jorval. — Quando a sobrinha se tornou a Rainha do
Território…
— A galdéria ingrata EXILOU-ME! — gritou Hobart.
— E pretendeis recuperar o controlo — disse Kartane, começando
aperder o interesse.
Ao que Jorval acrescentou: — A Senhora Karla é amiga íntima de
Jaenelle.
Kartane escolheu comida ao acaso dos pratos que lhe eram
apresentados,
ao mesmo tempo que digeria aquela informação. Não havia nadamais
prazenteiro neste momento do que magoar uma amiga íntima daquela
cabra. — Talvez possa ajudar. A minha mãe é a Sacerdotisa Suprema
deHayll.
1 / Kaeleer
Saetan olhou para o amigo de longa data com o olhar mais gélido
queconseguiu. — Não. Estou. A. Amuar.
o quarto pulsar.
— Precisas de uma bacia? — perguntou Saetan, sem compaixão
dequalquer espécie.
— Não — respondeu Daemon com humildade.
Por fim, conseguiu deitar-se. A última recordação que lhe ficou foi amão
de Saetan a afastar-lhe o cabelo numa carícia meiga.
226
Surreal fechou a porta do quarto de Lucivar no momento exacto emque
Saetan saía do quarto de Daemon.
— Não tem ideia. Por isso, fiz um funeral condigno ao peixe, no mar,
por assim dizer, consegui convencer Lucivar que despir-se da cintura
paracima não era indecoroso visto que sou da família e deixei o que
restava delecair na cama. — Surreal olhou em redor.
— Dizei-me, não ides aconchegar Jaenelle?
— Neste momento — disse Saetan, friamente, — Jaenelle está na
cozinha,
a aconchegar-se a um fausto pequeno-almoço.
— Oh, bolas! — disse Surreal, rindo-se à gargalhada.
3 / Kaeleer
— Mais ninguém poderá usar este anel. Foi concebido para ti. Se
outrem
tentar activar o escudo, os resultados serão… desagradáveis.
— Compreendo. — Não pediu que Jaenelle definisse “desagradável”.
Jaenelle observou Karla por um momento. — Faz bom uso dele,
Irmã.
229
CAPÍTULO DEZ
1 / Kaeleer
231
O rosto de Jaenelle foi invadido por um ar de repugnância. — Dentes,
línguas e baba.
— Ora, aí tens…
— Tinha doze anos.
Surreal indignou-se automaticamente face à ideia de um homemadulto
a beijar uma criança, mas ponderou no homem por um instante.
Há beijos e beijos. E Daemon saberia exactamente como beijar uma
miúdasem passar os limites – especialmente tratando-se de Jaenelle. —
Beijou-tequando tinhas doze anos — disse, cautelosa.
233
estava certa se aquele olhar de concentração intensa no rosto de
Jaenelleaugurava algo de bom para o homem que fosse receber aquela
atenção, mastinha feito o melhor possível. Outras instruções teriam de
vir de Daemon
– e boa sorte para ele. Para uma mulher que crescera rodeada por
algunsdos machos mais sensuais que Surreal jamais encontrara,
Jaenelle era aterradoramente
fechada ao sexo. Possivelmente com a chegada de Daemon, asua
sexualidade tivesse despertado, mas era de esperar que tivesse
apanhado
algumas pistas.
Como é que, em nome do Inferno, dois amantes inexperientes
conseguiam
compreender o funcionamento das coisas?, perguntava-se Surreal.
O que a levou a pensar em tudo o que poderia correr mal logo que
Daemone Jaenelle fossem para além dos beijos.
Talvez não.
2 / Kaeleer
E teria de o deixar.
Um mês não era muito, não era nada no bailado da corte. Contudo,
jáesperara tanto tempo pelo surgimento da Feiticeira. Quando ela lhe
ofereceu
o anel de Consorte, esperara que...
235
Falaria com Saetan, devolveria o anel, tentaria saber se existiria uma
corte remota algures no Reino onde pudesse cumprir o tempo exigido
parapermanecer em Kaeleer. Iria…
Abriu-se uma porta. Jaenelle saiu para o corredor. Ficou lívida ao vê-lo.
236
— Beijar não é difícil — disse Daemon cautelosamente.
Lançou-lhe um olhar furioso ao passar por ele. — Lucivar diz o mesmo
sobre cozinhar — resmungou. — Os lobos nem sequer esperaram
quesaísse do forno e começaram a escavar um buraco para lá o enfiar.
237
abertos na sua cama. Agira como se fosse uma mulher experiente que
seaproveitaria da disponibilidade de Daemon.
3 / Kaeleer
Esquecera-se de todas.
Contudo, desejando mais do que sexo por ele mas também por ela,
tinha recuado – e esperava agora, sinceramente, que quando entrasse
noquarto de Jaenelle…
239
ra e das velas perfumadas agrupadas aqui e ali pelo quarto. A coberta
daenorme cama estava puxada para trás. Numa mesa junto à lareira
estavamdispostos pratos cobertos, dois copos e uma garrafa de
espumante.
Apertou-a nos braços, puxou-a para junto dele, ao mesmo tempo quelhe
acariciava as costas, somente pelo prazer que lhe transmitia.
240
E, quando se apercebeu que estava na cama, ouvindo-a ronronarde
prazer enquanto se movia dentro dela, não foi sequer capaz de pensar.
4 / Terreille
— Mas que machos tão úteis. Depreende-se que Kartane não obteve
qualquer
compensação do Senhor Supremo.
— Parece que não — respondeu Dorothea, esforçando-se por
parecerindiferente enquanto a fúria da traição de Kartane lhe crestava o
sangue.
— Sugere que o Senhor Hobart receberia de bom grado qualquer tipo
deajuda que Hayll lhe pudesse facultar para arrancar Glacia da cabra
da Rainha,
que é sua sobrinha. Permanecerá na Pequena Terreille como
elementode ligação.
— Parece que o teu filho compreendeu finalmente a quem deve lealdade.
Dorothea amarrotou a carta. — Não é meu filho. Deixou de ser. É um
instrumento como qualquer outro.
5 / Kaeleer
241
do Paço. Concluí que agora é relativamente desconfortável viver ali
paraquem use Jóias mais escuras do que a Vermelha.
— Para ambos.
— Então porque é que Saetan está assanhado?
— Porque, apesar dos esforços de Daemon para isolar o quarto, a…
hum… pândega costuma vazar pelos escudos, o que deixa os
residentesde Jóias mais escuras em pulgas. E ninguém quer abordar o
assunto comJaenelle para lhe pedir que seja ela a criar os escudos visto
que está perdidamente
feliz e alheada de tudo à sua volta, à excepção do seu Consorte –
eSaetan, para não falar em Daemon, quer mantê-la nesse estado de
espírito.
— Bem — disse Lucivar maliciosamente, — se Saetan precisa de
umintervalo da folia a decorrer no Paço, pode sempre passar um serão –
oudois – com Sylvia.
— Ora, Lucivar — repreendeu Prothvar, — sabes que são só amigos.
— É claro que são. — Reparando na lua, Lucivar fez um rápido
cálculomental, para logo olhar Prothvar contundentemente. — Alguém
falou aDaemon sobre as infusões contraceptivas?
— Foi tratado. Fiquei com a ideia de que Daemon deseja uma criançano
futuro, mas, por agora, quer desfrutar a cama da Senhora.
— Nesse caso, Saetan deve ter uma prorrogação de alguns dias
embreve. — Lucivar olhou para as luzes das janelas da sua casa e
pensou emdesfrutar da cama da sua própria Senhora, logo que
Daemonar adormecesse.
Contudo, não deixou de perguntar educadamente: — Queres entrar?
Tenho um pouco de yarbarah.
— Agradeço-te mas não vou aceitar — respondeu Prothvar. —
Aindatenho de apresentar o relatório a Andulvar. — Desejou as boas-
noites, abriuas asas escuras e levantou voo em direcção ao céu
nocturno.
Enquanto caminhava de regresso a casa, ouviu um lobo solitário a
uivar.
Sorriu. Visto que o som vinha na direcção da casa alcantilada de
Falonar,
não precisava de perguntar onde Surreal ia passar a noite.
242
— Ia fazer um chá — disse. — A noite está fria.
Devolveu o sorriso e deu-lhe um beijo demorado e íntimo. — Conheço
uma forma melhor de te aquecer.
6 / Kaeleer
243
244
CAPÍTULO ONZE
1 / Kaeleer
É claro que sim. Contudo, por reinar sobre um Território onde existiam
pessoas que continuavam a apoiar o Senhor Hobart e as suas ideias de
como deveria ser a sociedade dos Sangue, Karla poderia ignorar
bastantepara parecer invulnerável. Mas se fosse uma enfermidade de
maior gravidade,
Karla dir-lhe-ia, certo? Não usaria a Arte para ocultar uma enfermidade
das outras Curandeiras ao invés de obter ajuda, pois não?
247
2 / Kaeleer
Era verdade que os machos arcerianos que não eram parentes tinhama
fama de matar as próprias crias e não era pelo facto de um arceriano
serparente que o instinto ou o comportamento felinos desapareciam.
Contudo,
os machos parentes ressentiram-se com esta exclusão – em especial
osPríncipes dos Senhores da Guerra. Permitiam-lhes que deixassem a
carnejunto aos covis das companheiras e podiam ficar a observar os
gatinhos àdistância, mas nunca lhes fora permitido que brincassem
com os filhotes ouque fossem eles a ensinar-lhes a caçar e a Arte.
248
uma aldeia de humanos em Glacia e conhecera uma gatinha humana.
Aoinvés de se sentir amedrontada por um enorme predador, ficara
encantadae tornaram-se amigos. Depois de muitos encontros secretos
ao longo doVerão e do início do Inverno, as fêmeas, quer a humana quer
a felina, descobriram
a amizade – e nenhuma ficou satisfeita.
249
humanos, de um terreno aberto e um arvoredo compacto onde
KaeAskavi
250
Kaelas galopou de volta ao covil dos humanos e atravessou a parede
aolado da janela por onde a rapariga tinha surgido. O quarto tinha o
seu odor
Desejou que Ladvarian estivesse ali com ele. Apesar de ter vivido quase
toda a sua vida entre humanos, não os compreendia tão bem como o
cão.
O canídeo saberia prover às necessidades da pequena fêmea.
251
a Senhora – um feitiço de aquecimento no interior e um feitiço para
manter
«A minha mãe não irá aceitar uma gatinha humana no seu covil«
protestou
KaeAskavi.
«Diz-lhe que a mãe gata lutou contra os caçadores para salvar a cria – e
morreu.«
3 / Kaeleer
252
— Costuma responder a essas mensagens?
— Sim. E normalmente vem sozinho.
— Nesse caso, é melhor prepararmo-nos para receber visitas em breve.
Designa cinco arqueiros para se posicionarem por detrás da teia de
desembarque.
O Senhor da Guerra examinou a chacina. — Se Morton vir isto, o mais
certo é apanhar novamente os Ventos de regresso, para ir dar conta do
sucedido.
4 / Kaeleer
— Mas isso também não foi por simpatia — disse Khary depois de pedir
café e bolos. Sentou-se numa cadeira confortável junto à lareira. —
Permitiu-
me sair de casa. Quanto ao jantar, será um prazer falar com alguémque
não vá resmungar comigo devido a um estômago indisposto.
— Sem ser isso, a Morghann está a passar bem? — perguntou Daemon,
sentando-se na outra cadeira.
— Oh, está muito bem para uma feiticeira de Jóia escura no
primeirotrimestre de gravidez. Assim me diz Maeve a toda a hora. — O
sorriso deKhary era ligeiramente pesaroso. — Uma Rainha de Território
repentina253
mente limitada a Arte básica enquanto carrega uma criança no ventre
nãoé uma Senhora de temperamento dócil.
254
de café. Chegou a mordiscar um pedacinho de bolinho de avelã – o
quesignificava que os homens podiam também servir-se sem levarem
com otabuleiro na cabeça.
5 / Kaeleer
6 / Kaeleer
— Sim.
Venenos que enfraqueceram o seu corpo mas que nunca a
fizeramadoecer tão gravemente a ponto de levantar suspeitas – apesar
de ter sidoadvertida sobre a sua própria morte na teia entrelaçada que
criara no último
Outono. Oh, tinha sido prudente. Sabia demasiado sobre venenos
paranão o ser. O facto de não ter conseguido detectar os venenos
significava queas plantas usadas não eram autóctones de Glacia. Se
assim fosse, tê-las-ia
reconhecido de imediato, independentemente da forma como
estivessemdisfarçadas.
257
— Porquê? — Karla perguntou. Como podia ter subestimado esta
cabra?
O que lhe teria escapado?
Ulka fez beicinho. — Julguei que me iria tornar numa Senhora de relevo
na vossa corte. Deveria pertencer ao primeiro Círculo e não ao Terceiro.
«KARLA!«
«Morton? Morton!«
Nada. Um vazio ocupava o local onde tinha estado alguém desde que
se lembrava.
Um tipo diferente de frio invadiu Karla – um frio glacial que lhe nutria
258
Decepou as mãos de Ulka, ao que se seguiu a cabeça. O último
golpeatravessou o ventre e rasgou a coluna.
7 / Kaeleer
— Tenho.
«Eu consigo ser mais rápido. Monta.«
Segurando-se a uma mão cheia de pêlos da crina do Bailarino do Sol,
içou-se para a garupa em pêlo do Príncipe dos Senhores da Guerra.
260
Isso era importante. Por isso, levaria o seu Irmão para longe do inimigo
e,
depois, decidiria o passo seguinte.
261
posto entre Kaelas e a carne envenenada. Satisfeito, fez Morton levitar
no armediante a Arte, estendeu o escudo de visão de modo a cobri-los a
ambos
e correu para o arvoredo.
9 / Kaeleer
262
Era tão familiar. Não precisava do bafo a podridão presente nalgunsdos
odores psíquicos para reconhecer a mão de Dorothea.
Testemunharaesta situação amiúde em Terreille. Aqueles cuja ambição
era bastante superior
às capacidades que possuíam, venderiam o próprio povo em troca
do“auxílio” de Hayll. As lutas eliminariam os machos e as fêmeas mais
fortes,
os que mais capacidades teriam de se opor a Dorothea e os que
ficavam...
A porta estava aberta. Viu uma mulher mutilada que jazia num
tapeteensopado em sangue. Viu cinco homens que lançavam detonação
após detonação
de poder contra o escudo que envolvia outra mulher. Karla.
263
e libertou uma raiva gélida, transformando os seus cérebros em pó
cinzentoe consumindo as forças psíquicas, concluindo as mortes.
265
viagem, ciente de que a areia da ampulheta deslizava com demasiada
rapidez.
10 / Kaeleer
«Viemos caçar mas não levaremos carne de volta aos covis?« perguntou
outro macho irritadamente.
Outra onda de raiva, desta vez dirigida aos malvados machos alados.
Os arcerianos não achavam grande utilidade aos humanos, mas
gostavamda Senhora Karla e adoravam a Senhora. Por elas, caçariam e
regressariamaos covis sem as presas.
266
11 / Kaeleer
— Não sentirá tanto quando for necessário mudar uma toalha do quese
tivéssemos de mudar um lenço — disse Morghann baixinho,
indicandocom o olhar que sabia o que tinha pensado – e que ficara
magoada.
Não havia tempo para pedidos de desculpa. Morghann e Maeve
despiram
a camisa de noite e o roupão ensanguentados e retiraram com
movimentos
ágeis o sangue que cobria a pele de Karla. Jaenelle não prestou
amínima atenção aos cuidados físicos, permanecendo concentrada no
tratamento.
Se obteve uma resposta, foi privada – de Irmã para Irmã. Mas foi oinício
de uma cura tão macabra que Daemon desejou ardentemente
nuncamais voltar a testemunhar nada do género.
12 / Kaeleer
Kaelas atentou nos sons que provinham do quarto e rosnou
silenciosamente.
O Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra de Jóia Verde estava
aacasalar com a fêmea pálida, a jovem Sacerdotisa. Os gritos da fêmea
perturbavam-
no. Não se assemelhavam aos sons que a Senhora emitia comDaemon.
Nestes sons, havia medo e dor.
268
Estava prestes a atravessar o escudo Verde que o macho erguera à
voltado quarto, estava praticamente decidido a retribuir a morte de
Morton comuma morte rápida ao invés do tipo de morte que merecia,
quando a fêmeagritou: — Mas eu ajudei-vos. Ajudei-vos!
269
CAPÍTULO DOZE
1 / Kaeleer
270
elas conseguem usar um... merda. — Uma mulher com o arco
aparelhado
começou a virar-se para Hallevar que acrescentava instruções.
Hallevarsaltou e empurrou-a para que o arco roçasse pela relva e não
numa dasmulheres a seu lado.
— Sim, com certeza que deve doer. Não me lembrei de avisar Marian
quan271
do lhe ensinei e já tinha treinado Jaenelle. Mas a Marian tem... um
peito
mais generoso.
Falonar engasgou-se.
«Já!«
272
rando-se e abrindo as asas para esconder o campo de treinos,
resmoneou:
273
sentes. «E matou os humanos pálidos que pertenciam à Senhora Karla.«
2 / Kaeleer
275
— Draca pediu-me que viesse — respondeu Saetan, mexendo
lentamente
o conteúdo da malga. — O que te traz aqui?
— Morton morreu.
A mão de Saetan deteve-se por um instante para logo retomar o
movimento.
— Eu sei.
Lucivar crispou-se e disse cautelosamente: — Está no Reino das
Trevas?
— Não, está aqui. Foi essa a razão que levou Draca a solicitar que
viesse.
Veio informar-nos.
Lucivar começou a andar para trás e para a frente, numa inquietação.
o pano cair.
276
— Kaelas — informou Lucivar, respondendo à questão tácita.
— Compreendo — disse Saetan placidamente. — Vais regressar aEbon
Rih?
Lucivar abanou a cabeça. — Vou, acompanhado de alguns homens,
ao Altar das Trevas em Glacia dar uma vista de olhos, para ver se
encontroalgumas respostas.
4 / Kaeleer
279
Lucivar aguardou até os braços lhe começarem a doer. Por fim,
sentiuum prudente toque psíquico. «És Irmão de Kaelas« disse uma voz
que era ao
mesmo tempo um rosnado.
280
— Fogo do Inferno — disse Falonar, a repugnância a tomar conta deleao
mesmo tempo que recuava. — Bem, acho que a violação colectiva é um
tipo de execução lenta. Mas por que razão só mantiveram esta? E o que
oslevou a espancá-la até à morte quando o que tinham feito já seria
suficientepara a matar?
— Porque as outras mulheres debateram-se ao passo que esta
esperavaum tipo diferente de recompensa — respondeu Lucivar.
Quando Falonar
o fitou com os olhos plenos de horror, Lucivar deu uma gargalhada,
gravee sórdida. — Passaste tempo suficiente nas cortes terreilleanas
para sabercomo te conspurcar, Príncipe Falonar. Aquele canalha de
Jóia Verde tevede contar com a ajuda de alguém para atravessar o
Portão de volta a Terreille
– ou, pelo menos, para evitar que a idosa Sacerdotisa percebesse que
o Portão estava a ser usado sem o seu conhecimento nem
consentimento.
Quanto ao espancamento… Imagino que quando o canalha percebeu
queestava aprisionado precisou de descarregar em alguém.
— O gatarrão não o matou com a lentidão que merecia — disse Falonar
entre dentes, afastando-se do quarto. — Nem de perto.
Suponho que o Senhor Supremo saberá extrair o pagamento final
peladívida, pensou Lucivar, mas não o disse a Falonar.
281
«Minha« disse o gato.
«Comida dos humanos.« O felino deu uma entoação à frase que parecia
uma questão esperançosa.
— Sim, é.
«Uma gatinha apreciaria esta comida?«
Lucivar coçou o queixo. — Não sei.
O felino emitiu uma rosnadela, mas o som expressava desânimo.
«Queimámos carne para ela, mas não a quis comer.« Torceu o focinho
paraindicar o que pensava sobre arruinar um belo pedaço de carne,
cozinhando-
o. «Prometi levar-lhe comida de humanos.«
282
com eyrienos, neste momento. — E fora essa a principal razão pela
qualLucivar insistira para que Daemon o acompanhasse a Arceria.
— Mas era Lucivar que estava a perguntar, por isso fez um esforço. —
Nãoexiste antídoto para o sangue-de-feiticeira. O veneno teve de ser
levado parauma parte do corpo de modo a salvar os órgãos internos,
tendo depois deser extraído. Provocou a… morte a grande parte dos
músculos e o músculoteve de ser… — Sentiu o estômago a revolver-se
ao recordar os membrosatrofiados que tinham sido pernas saudáveis.
— Esquece — disse Lucivar, com afabilidade. — Esquece.
Ambos respiraram fundo e irregularmente antes de Daemon dizer:
— Quanto mais depressa apresentarmos os nossos relatórios, mais
depressapoderemos regressar aos nossos lares. — Para Daemon, o lar
não era umlugar, era uma pessoa – e naquele momento, precisava de
saber que Jaenelle
estava em segurança.
6 / Terreille
— O quê? Como?
— O mensageiro que se encontrou com Kartane não conseguiu
descobrir
o que sucedeu aos eyrienos, somente soube dizer que dizimaramos
aldeões e que, por seu turno, foram igualmente dizimados. — Fez
umcompasso de espera. — O Senhor Hobart também está morto.
Hekatah ficou petrificada. — E a cabra da Rainha, Karla? Pelo menosaí
alcançámos o objectivo?
– um haylliano e um eyrieno.
— Todos em Terreille julgarão tratar-se de Sadi e Yaslana — disse
Dorothea
com satisfação. — Depreenderão que o Senhor Supremo ordenou
oataque e que enviou os filhos para o orientarem.
— Exactamente.
— O que virá provar que todas as minhas advertências eram justifica-
das. E logo que as pessoas comecem a magicar nas razões da ausência
denotícias dos amigos e dos entes queridos… — Dorothea deslizou na
cadeiracom um suspiro de satisfação e, de seguida, endireitou-se
relutantemente.
— Temos ainda de encontrar uma forma de controlar Jaenelle Angelline.
— Oh, com o incentivo adequado, irá colocar-se à nossa mercê,
voluntariamente.
Dorothea resfolegou. — Que tipo de incentivo a levaria a tal acto?
286
Não foi preciso um grande esforço mental para entender o padrão,
especialmente por tê-lo reconhecido. Cinquenta mil anos que se
eclipsaramcomo se nunca tivessem existido. Poderiam ter sido Andulvar
e Mephis alisentados, dando voz às preocupações que sentiam face a
ataques repentinos
e aparentemente aleatórios, que visavam um homem que insistira que,
como Guardião, deixara de poder interferir nos assuntos dos vivos.
Aindaera Guardião, mas estava demasiado enredado nos assuntos dos
vivos paraseguir as regras impostas aos Guardiões.
A guerra ia começar.
287
— Encontrei esse envelope na secretária do quarto de hóspedes
estamanhã — disse o homem, apressadamente. — Não sabia que lá
estava.
Saetan olhou para o envelope. Só tinha o seu nome escrito. —
Entãoencontraste-lo esta manhã. Isso é relevante?
— Sim, obrigado, ela está, mas tem tido cuidado. O avô Magstrom
nãoreferiu a carta. Pelo menos, não me lembro de qualquer referência e,
depoisde ter sido... assassinado... — O homem tinha as mãos trémulas.
— Esperoque não fosse nada urgente. Logo que a descobri, soube que
tinha de virsem demora. Espero que não fosse nada urgente.
— Com certeza que não era — respondeu Saetan, afavelmente. —
Devem
ser as informações habituais que o Senhor Magstrom me fazia
chegarapós uma feira de serviços – uma corroboração mais do que
outra coisa.
O alívio do homem era visível.
Saetan olhou de relance para a Jóia Amarela do Senhor da Guerra.
— Não. — E quanto mais lia, menos gostava de ter recebido este relato.
Ao reler a carta, quase deixou de ouvir a conversa entre Lucivar e
Daemon
– até Daemon referir algo que lhe despertou a atenção. — O que foi
quedisseste?
288
— Disse que o Senhor Magstrom referiu que ia enviar cartas a algumas
das Rainhas fora da Pequena Terreille — repetiu Daemon, fazendo
oconhaque rodopiar no copo. — Mas depois de Jorval se apossar do
meuprocesso de imigração, fui informado de que as Rainhas fora da
PequenaTerreille não teriam em consideração um Príncipe dos Senhores
da Guerrade Jóia Negra.
Lucivar resfolegou. — Muito provavelmente, Jorval fez com que ascartas
não seguissem. Fogo do Inferno, Daemon, conheceste as outras Rainhas
de Território. Constituem a assembleia. Se alguma delas tivesse
recebido
uma carta, faria chegar o Administrador à feira de serviços tão
depressaquanto possível para assinar o contrato.
rias.
Durante toda a estação fria, fora arrancada dos seus próprios sonhos,
forçada a estudar a teia que moldara o mito vivo, a Rainha que era
Feiticeira.
E compreendera que não seria suficiente, pois ao viver na carne o
sonhotinha sofrido alterações. Agora, representava mais. E, de alguma
forma,
precisava de acrescentar esse “mais” à teia. Sem esse elemento, o
Coraçãode Kaeleer desapareceria durante muitas estações – e não
voltaria a ser omesmo quando o sonho regressasse.
1 / Kaeleer
– e Jaenelle, que tinha estado ali sentada nas últimas duas horas com
umolhar inexpressivo, ao ponto de Saetan já se ter perguntado se não
teriacriado uma sombra simples para preencher o espaço na mesa.
— Se nos limitarmos à defesa face a estes ataques, as nossas terras e
osnossos povos não ficarão salvaguardados — disse Aaron. — Os
exércitosterreilleanos estão a reunir-se para nos atacar. Se o inimigo
que já se encontra
em Kaeleer obtiver o controlo sobre um Portão e o abrir para
essesexércitos… precisamos agir imediatamente.
— Sim, é preciso agir — disse Jaenelle, num tom cavernoso. — Têmde
bater em retirada.
291
Numa vaga sonora, ergueram-se protestos de todas as direcções.
2 / Kaeleer
Havia algo mais que sabia sobre Daemon, algo que visionara na
teiaentrelaçada que a advertira sobre a sua própria morte: era ele o
amigo quese tornaria inimigo para permanecer amigo.
3 / Kaeleer
— O que é que Daemon tem que assusta Lucivar como o caraças? —
perguntou
Andulvar logo que os quatro homens entraram numa pequena salade
estar na Fortaleza.
— Não sei — respondeu Saetan, aquecendo um copo de yarbarah
numalabareda de fogo encantado como forma de evitar os olhares dos
outros.
294
Não sabia. Lucivar esquivara-se sempre a falar sobre o tempo em queele
e Daemon se metiam em confusões quando se juntavam nas cortes
terreilleanas.
Lucivar dissera em tempos que se tivesse de escolher entre defrontar
o Sádico ou o Senhor Supremo, optaria pelo Senhor Supremo poisassim
teria alguma hipótese de vencer.
4 / Kaeleer
Como poderia um lugar tão grande como o Paço não ter aquilo de
queprecisava? Oh, encontrara muitas coisas que quase serviam, mas
nada que
fosse adequado. A isso se devia a frustração. A raiva…
295
Uma cama baixa e estreita – exactamente o tipo à procura do
qualrevirara o Paço. Aproximou-se com cautela e abriu os sentidos
internos eexternos. Não tinha odores. Deviam estar presentes os cheiros
de humanosbem como os odores psíquicos residuais de quem tinha
feito a cama, o colchão
e a roupa da cama.
296
rias de Jaenelle, mais velha, prometendo encontrar Daemon. Memórias
deconversas, gargalhadas, de encanto pelo mundo. As memórias de
Tersa.
— Não.
— Tens o poder para marcar a diferença. Se libertares...
— Não posso.
— Podes.
— Não posso.
— E POR QUE NÃO?
Virou-se contra ele. — PORQUE, MALDITO SEJAS, SOU DEMASIADO
FORTE! Se libertar a minha força, destruirei os Sangue. Todos os
Sangue. Em Terreille. Em Kaeleer. No Inferno.
298
Abraçando-se, Jaenelle caminhava de um lado para o outro. — A
Fortaleza
é o Santuário. Não seria afectada. Mas quantos abrigaria?
Algunsmilhares, no máximo? Quem escolhe, Daemon? E se forem feitas
escolhas
erradas e a contaminação permanecer, encoberta por alguém com
umacerteza maldita de que tem razão?
o fez!
— Não, não sei. Nunca levantei o registo escrito. Decidi deixá-lo
ondetinha sido escondido, fora do alcance de Dorothea.
— Achas que consegues encontrá-lo? — perguntou Jaenelle, ansiosa.
— Não deve ser difícil — respondeu Daemon friamente, enquanto
aabraçava, com uma vontade súbita de lhe tocar. — Deixou-o aos
cuidados
do bibliotecário da Fortaleza.
— Trouxe-o da Fortaleza de Terreille da primeira vez que viestes
paraEbon Askavi com Jaenelle — disse Geoffrey ao entregar a Daemon
um embrulho
cuidadosamente embrulhado. — Na altura, perguntei-me por querazão
não o solicitastes. O que vos levou a pensar nele agora?
A pergunta parecia de uma curiosidade inocente, mas de inocente
nãotinha nada.
Olhando directamente para os olhos negros de Geoffrey, Daemonsorriu.
— Veio-me à ideia.
300
percebia as preocupações que sentiam. Não deixava de se sentir
magoado.
Por fim, quando regressou para junto de Jaenelle, deu com ela na
salade estar, abraçando-se a si própria, olhando com um ar
desanimado pelajanela.
6 / Kaeleer
301
Saetan observava as gotas de chuva que escorriam pela janela.
Queria que Sylvia estivesse a salvo. Bem como os filhos, Mikal e Beron.
302
Compreendera os motivos pelos quais, durante algumas semanas
apósesse episódio, não surgiram convites para a cama de Sylvia.
Compreendera
os motivos pelos quais estava sempre “ocupada” quando a visitava,
parapassar algum tempo com os rapazes.
Agora, a fitar a chuva, quase desejava ter dito “sim” naquela noite
deWinsol, quase desejava ter-lhe pedido para se apresentar com ele
peranteuma Sacerdotisa quando chegaram a Amdarh. E desejava que
fosse possívelvoltar a fazer amor com ela uma vez mais para apagar a
infelicidade que osacompanhara na cama da última vez.
Ficara muito por dizer naquela noite em Amdarh. Nunca lhe dissera
303
CAPÍTULO CATORZE
1 / Kaeleer
2 / Kaeleer
304
do que um dos olhos da meia-noite de Lorn. Isso fê-lo sentir
extremamente
pequeno.
Mas o facto de ter sido aqui convocado por Lorn e Draca no momentoem
que a Rainha arachniana estava prestes a terminar aquela teia
oníricaespecial… assustava-o. Se proibissem os parentes de avançar…
os parentesnão deixariam de o fazer, a qualquer custo.
Ainda com cautela, Ladvarian disse: «Não tem categoria. Não sabe o
que é.«
«Ainda não ssabe o que é« concordou Lorn. «Mas tem um nome: Aurora
do Crepúsculo.«
«««
305
— Arriscass demasiado ao confiar-lhe uma Jóia ssemelhante — disse
Draca.
«Não há motivo para arriscar em demasia« respondeu Lorn. «A Feiticeira
está prestess a terminar a teia?«
— Sserá suficiente?
A pergunta à qual nenhum dos dois podia responder ficou a pairarentre
ambos.
3 / Kaeleer
306
— Há uns minutos disseste-me que ainda precisavas de um par
deelementos para concluir a teia.
— E isso será demorado — protestou.
Inclinou-se e beijou-a suavemente, mas de modo persuasivo. Quandoa
sentiu ceder, murmurou-lhe junto aos lábios. — Jantaremos
tranquilamente.
Depois jogamos dois jogos de “peixinho”. Até te deixo ganhar.
— Acho que estou com fome — disse Jaenelle sem fôlego, quando
Daemon
lhe deu oportunidade de falar.
Depois de satisfazerem exaustivamente um dos apetites, sentaram-se,
por fim, à mesa.
5 / Inferno
— Tersa, esta não pode ser a única razão que te levou a viajar até
àFortaleza.
— Ai não? — disse, com um ar intrigado. — Para logo acrescentar:
— Não, não é.
Saetan aguardou. Tersa nada disse.
— Minha querida — incitou delicadamente, — o que te trouxe aqui?
O olhar de Tersa desanuviou-se e Saetan sentiu que, pela primeira
vezem todos os séculos em que privara com ela, estava a ter um
vislumbreda Tersa que existira antes de ser quebrada. Era formidável –
e um poucoofuscante.
308
Dorothea caminhava à volta da sala. — Estão a reunir-se exércitos por
todo
309
Caramba, o homem era o Consorte e devia ter tomado conta dela.
Estava
macérrima e a pele sob os olhos estava marcada levemente pelo
cansaçoextremo. E nos seus olhos conseguia perceber um brilho
esquisito, quasedesesperado.
Mãe Noite.
Não tinha dúvidas de que o plano iria resultar. Jaenelle não teria
ditoque o faria se tivesse dúvidas. Contudo... Mãe Noite.
Tal como Mephis e Prothvar, sabia que seria inútil combater umaguerra
da mesma forma. Tal como eles, olhara à volta da mesa quando
oPrimeiro Círculo discutira uma declaração formal de guerra e
perguntara-
se quantos restariam entre os vivos depois de terminada.
310
certo – como se estivesse a omitir algum pormenor. Saetan saberia
dizer,
mas Saetan…
«Jaenelle?«
Nos seus olhos pôde ver uma tristeza imensa e um imenso prazer aovê-
lo. — O que foi, Irmãozinho?
— Qual é a mensagem?
«Ela disse que o triângulo tem de ficar unido para sobreviver. O espelho
conseguirá manter os outros a salvo, mas unicamente se
estiveremjuntos.« Hesitou ao ver que Jaenelle se limitava a olhá-lo
fixamente. «Quem
é o espelho?«
311
quarto sem permissão. E maldito Lucivar por insistir que fosse para a
Fortaleza
e por insistir que fosse acompanhada. Não precisava de acompanhantes
– especialmente Palanar que mal tinha idade para se assoar.
312
das Trevas e regressar aos Reinos dos vivos. Quiçá.
Fora um teste, mas ela era a única que sabia. Sempre que voltava
amencionar os escudos depois de Luthvian ter rejeitado a ideia, sempre
quesuportara a sua língua afiada quando a ajudava nalguma situação,
tudo foraum teste para provar que gostava dela.
10 / Kaeleer
313
Olhou para a mala de viagem a seu lado, depois para Palanar.
Desde quando Luthvian esperava que um macho lhe carregasse fosse
o que fosse? Da última vez que tentara, quase que lhe rachara a cabeça.
Hallevar
estava certo ao dizer: — Tens de te conformar com a ideia de que
umamulher pode mudar de opinião enquanto dás um peido.
Deu alguns passos na direcção da mulher e parou.
314
«Não te safarás se morreres, guerreirozeco« disse a feiticeira. «Sou a
Sacerdotisa
Suprema. Não é dessa forma que me escaparás.«
«Agora, vai!«
11 / Kaeleer
— Lucivar!
Lucivar virou-se vendo Hallevar a correr na sua direcção. Reparou
emFalonar e Kohlvar a saírem da casa alcantilada comunitária que era
o maisparecido que os eyrienos tinham a estalagens e tabernas. Ambos,
ouvindoa agitação na voz de Hallevar, dirigiram-se a ele.
317
para se certificar de que não estava ninguém à espera que baixasse
guarda,
e ajoelhou-se junto ao corpo.
12 / Kaeleer
319
ao mesmo tempo que se deixava cair para trás. O pontapé não foi
certeiro,
mas chegou para surpreender o homem ao ponto de a largar e o
movimento
inesperado desequilibrou-o. Enquanto se tentava equilibrar, ouviu-
seuma seta a assobiar pelo ar, enterrando-se no peito do homem.
— Não sei.
320
Atrás deles, ouviu Tamnar a dizer, com algum ressentimento: — Ora,
guerreirazinha, acabaste de matar pela primeira vez.
321
thvar e Mephis. O que fez com que Saetan se apercebesse de que
tambémnão vira nenhum deles recentemente.
Aguardou mais uma hora e só então usou a Arte para trazer o envelope
até à entrada. Ainda do outro lado do escudo Azul-Safira, Falonarcriou
uma bola de fogo encantado para iluminar a inscrição, o nome
dodestinatário.
Um grande temor percorreu-lhe o corpo. Era a mesma caligrafia
damensagem dirigida a Lucivar. Mas esta estava dirigida ao Senhor
Supre
322
mo.
15 / Kaeleer
Era evidente que não libertariam Lucivar, não o podiam fazer. Assim
que conseguisse pôr Marian e Daemonar a salvo, iria virar-se contra
Hekatah
e Dorothea com todo o poder destrutivo que encerrava.
Por isso, era um acordo falso desde o início.
323
quilómetros em redor.
Mas isso não iria acabar com a guerra. Agora já não. Talvez
nuncaviesse a ser possível. E era precisamente a guerra que tinha de
acabar, nãosomente as duas feiticeiras que a tinham desencadeado.
Por isso, iria entrar no jogo… pois iria facultar-lhe a arma de que
precisava.
Como era óbvio, não voltaria a ser o mesmo depois daquelas duas
cabras
terminarem. Nunca mais…
16 / Kaeleer
324
que lhes dissesse, mas esperava que Saetan ainda pudesse agir com
sensatez.
Estava bastante seguro de que poderia transmitir o suficiente de modo
aque o Senhor Supremo compreendesse que a evasão de Jaenelle tinha
umobjectivo, de que tudo o que precisavam era de mais alguns dias.
Mais unsdias e a ameaça a Kaeleer iria terminar, a ameaça que
Dorothea e Hekatahsempre representaram para os Sangue iria chegar
ao seu término.
— Será que é agora que vais fazer alguma coisa? — perguntou Surreal,
batendo com os punhos na secretária. — Já não estão a matar
desconhecidos.
Aquelas putas têm o teu pai e o teu irmão.
Com grande sofrimento, conseguiu manter o tom de voz entediado.
A voz de Surreal foi invadida por veneno. — Pelo menos vais informar
Jaenelle?
325
ficado furiosa, praguejado, chorado lágrimas amargas. Não sabia o que
fazer
a esta mulher queda que embalara no seu colo na última hora.
Por fim, decorridas quase duas horas, mexeu-se. — O que achas queirá
acontecer agora? — perguntou, como se não tivesse existido aquele
hiato
entre as notícias e a pergunta.
326
17 / Kaeleer
«Mais uma coisa« disse a aranha. «Cão cinzento. Conheces este cão?«
327
Surgiu uma imagem na mente de Ladvarian. «É o Colmilho Cinzento.
É um lobo.«
18 / Terreille
— Saetan.
— Hekatah. — Caminhou até ao centro do chão em terra batida.
328
— Vieste negociar? — perguntou Hekatah, cortesmente.
Anuiu. — Uma vida por uma vida.
Sorriu. — Por vidas. Metemos a cabra e o fedelho na negociação. Não
temos grande utilidade para os dois.
Julgaria ela que Saetan não sabia que nunca iriam entregar Daemonar?
Durante séculos, empenharam-se em conseguir uma criança de Lucivar
oude Daemon para que a pudessem controlar e criar de modo a
recuperaremuma linhagem escura.
— Estás com bom aspecto para a idade que tens — disse, recuandopara
examinar minuciosamente o corpo desnudado de Saetan.
Sorriu docilmente. — Infelizmente, minha querida, não posso dizer
omesmo de ti.
O rosto de Hekatah contorceu-se de rancor. — Já era altura de
aprenderes
uma lição, Senhor Supremo. — Ergueu a mão ao mesmo tempo
queDorothea, que exibia um olhar de satisfação perversa.
Nada o poderia ter preparado para a dor que lhe atingiu o pénis e
ostestículos antes de se espalhar pelo corpo. Os nervos ficaram a arder,
aomesmo tempo que uma dor atroz se instalou entre as pernas. Não
conseguia
resistir, mal conseguia pensar.
329
19 / Kaeleer
Tudo bem, não era justo. A mulher estava a fazer o luto pelo seu
primoMorton, já para não mencionar que estava passar por uma lenta
recuperação
de um envenenamento cruel. Ainda assim…
— Parecia que era uma maçada que vinha interferir com a manicurado
canalha — Surreal estava enraivecida. — “Veremos o que se poderá
arranjar.”
Fogo do Inferno, trata-se do seu pai e do seu irmão!
— Não sabes quais são as suas intenções — disse Karla, com
serenidade.
A placidez fez com que a fúria de Surreal subisse de tom. — Não
pretende
fazer nada!
— Como sabes?
Surreal cuspiu, praguejou, andou para trás e para a frente. — É comose
ele e Jaenelle quisessem que perdêssemos esta guerra.
Pela primeira vez, a fúria inflamou a voz de Karla. — Não sejas
estúpida.
— Olha, docinho…
— Olha tu — ripostou Karla. — Está na altura de todos vós observarem
e pensarem e lembrarem-se de algumas coisas. Os instintos dos
rapazolas
estão a impeli-los para a guerra. Não podem alterar esse factor talcomo
não podem deixar de ser machos. E a assembleia é constituída
porRainhas cujos instintos as estão a instigar a proteger os respectivos
povos.
— Que é exactamente o que deveriam estar a fazer! — gritou Surreal.
— E não me parece que esse problema te aflija — acrescentou com
maldade.
Olhou de relance para as pernas tapadas de Karla e arrependeu-se
daspalavras que proferiu.
— Quando Jaenelle tinha quinze anos — disse Karla, — o Conselhodas
Trevas tentou declarar que o Tio Saetan era inapto para ser seu
tutorlegal. Decidiram nomear outra pessoa. E ela respondeu-lhes que
podiamfazê-lo “quando o sol voltasse a nascer”. Sabes o que aconteceu?
Finalmente parada, Surreal abanou a cabeça.
— O sol não nasceu durante três dias — disse Karla placidamente.
— Não voltou a nascer até o Conselho revogar a decisão que tomara.
Surreal deixou-se cair no chão. — Mãe Noite — sussurrou.
330
— Jaenelle não queria formar corte, não queria governar. A única razão
pela qual se tornou Rainha de Ebon Askavi foi para deter os
terreilleanos
que estavam a invadir os Territórios dos parentes e a chaciná-los.
Achasmesmo que a mulher que tomou estas atitudes tenha passado as
últimastrês semanas a torcer as mãos e à espera que isto passe? Eu
não acho. Precisade nós aqui por alguma razão – e dir-nos-á quando for
a altura de nos dizer.
— Karla parou por um instante. — E digo-te outra coisa, só entre nós:
porvezes um amigo tem de se tornar inimigo para permanecer amigo.
Karla estava a referir-se a Daemon. Surreal pensou um pouco e abanou
a cabeça. — A forma como se tem comportado...
— Julgo que é altura de Jaenelle saber que estás aqui — disse Hekatah,
passando
por detrás de Saetan. — Talvez fosse boa ideia enviar-lhe uma
singelaprenda.
Sentiu que lhe agarrava o dedo mindinho da mão esquerda. Sentiu
afaca a cortar pele e osso. E sentiu raiva quando ela caiu de joelhos e
fechou aboca sobre a ferida para beber o sangue. O sangue de um
Guardião.
331
Reunindo forças, enviou uma explosão de calor pelo braço, um
fogopsíquico que cauterizou a ferida.
21 / Kaeleer
Daemon preferia que Surreal não estivesse por perto quando Geoffrey
trouxe
a pequena caixa cinzelada com floreados que fora entregue na
Fortalezaem Terreille. Sugerira que a presença de Surreal não seria
necessária, umavez que a mensagem oral especificara que era um
“presente” para Jaenelle.
Contrapusera dizendo que fazia parte da família e que tinha tanto
direitode saber o que se passava quanto Daemon ou Jaenelle. O que,
infelizmente,
era verdade.
Perfeito. Se essa era a forma daqueles dois jogarem este jogo, não
haviaqualquer problema. Usava uma Jóia Cinzenta e era uma hábil
assassina.
333
Não via motivos para não entrar à socapa em Terreille e libertar Lucivar
e oSenhor Supremo – e Marian e Daemonar – daquelas duas vacas.
— Set… Mas está tudo preparado. Tudo o que tens a fazer é reunir
asforças e libertar o poder.
— Preciso de setenta e duas horas.
Olhou-a fixamente, aceitando vagarosamente aquilo que ela lhe estavaa
dizer. Se efectuasse um mergulho controlado no abismo, poderia
descerao nível das Jóias Negras numa questão de minutos, reunindo
assim todo oseu poder. Jaenelle iria demorar setenta e duas horas a
fazer o mesmo.
vergonha que lhe provocava. Devia saber que não era possível esconder
oSádico da Feiticeira. E percebeu, por fim, o que ela lhe estava a pedir.
Incapaz de a olhar nos olhos, virou-se e começou a sua ronda
vagarosapela divisão.
Não passava de um jogo. Um jogo ignóbil e vil – o género de jogo que
335
— Diz-me o que precisas, Daemon.
Não queria fazê-lo. Não queria voltar àquele tipo de vida, nem
mesmopor setenta e duas horas. Iria mutilar a vida que começara a
construir nestelocal e a assembleia, os rapazolas, nunca mais iriam...
336
Bebeu um gole. Um gosto a avelã, ligeiramente ácido. Na verdade,
bastante…
337
— Príncipe Ssadi.
Daemon hesitou mas virou-se na direcção da voz. — Draca.
Estendeu uma mão, mal cerrada. De modo obediente, Daemon colocou
a sua mão sob a dela. Ao abrir a mão, missangas coloridas caíramna
mão de Daemon – o tipo de missangas que as mulheres pregavam
nosvestidos para reflectirem a luz.
— O que achas que tenho estado a fazer desde que recebemos aquele
presente
esta manhã? E o que julgavas que conseguirias fazer, sozinha?
— Fui assassina durante muitos anos, Sadi. Podia ter…
— Assassinatos de um contra um — resmoneou. — Isso não te levará
muito longe num acampamento militarizado. E se libertares a
Cinzentapara te livrares dos guardas, podes ter a certeza de que as
quatro pessoasque vais salvar morrerão antes de chegares junto delas.
— Não sabes…
— Sei, pois — gritou Daemon. — Cresci sob o jugo daquela cabra.
Seimuito bem.
A raiva de Surreal não era comparável à de Daemon, especialmentepor
ter sido capaz de pôr o dedo em todas as dúvidas que tinha quanto
aoêxito da sua missão. — Tens uma ideia melhor?
Arregalou os olhos quando lhe disse o que queria, mas não disse
nadapara além de: — É melhor dar-te um Anel com um escudo que
ninguém
consiga atravessar.
22 / Kaeleer
Era a primeira vez que a vira, desde que Jaenelle recusara dar
permissão
para que Kaeleer entrasse em guerra. Mas mesmo agora, tendo sido
aprópria Jaenelle a convocá-la e a Gabrielle, a Rainha de Ebon Askavi,
mantinha-
se de costas para elas, limitando-se a olhar pela janela.
1 / Terreille
Com os olhos toldados pela dor que lhe fora infligida durante os
últimosdois dias, Saetan observou Hekatah a aproximar-se e a
examiná-lo demoradamente.
Sempre que lhes apetecia, ela e Dorothea tinham usado o Anel
deObediência para o fazer sofrer, mas agora faziam-no com mais
cautela, parando
imediatamente antes de Saetan desmaiar de dor. Tinham-no deixado
acorrentado ao poste durante as horas de sol, o que era ainda mais
grave. Jáenfraquecido pela dor, o sol vespertino drenara-lhe a força
psíquica e perfurara-
lhe os olhos, resultando numa dor de cabeça tão violenta que nem ador
do Anel a absorvia.
por uma mão gigante. Os seus pés bateram no chão, mas não
conseguiudesacelerar e continuou em frente. Enrolou-se e rolou,
ficando de joelhosde frente para a escuridão para além da área
iluminada pelos candeeiros.
Guardas!
345
Dorothea silvou.
— Fez uma pausa. — Bem, existe outra diferença. Uma vez que estava a
receber por isso, ela teve de adquirir algumas competências na cama.
Dorothea estremeceu de raiva. — Guardas! Capturem-no!
Vinte homens precipitaram-se para a frente e logo caíram por terra.
Daemon limitou-se a sorrir. — Talvez seja melhor matar os restantes
— Olá, Bastardinho.
Lucivar virou a cabeça, viu Daemon a deslizar da escuridão e circundá-
lo para se posicionar defronte dele.
Observou atentamente aquele jogo inicial, aguardando algum tipo
desinal da parte de Daemon indicativo de que era altura de atacar. As
correntes
enfeitiçadas não o podiam deter e, ao contrário de Saetan, a dor
proveniente
do Anel de Obediência não o debilitava durante muito tempo –
pelomenos, não o esgotava como parecia suceder com o Senhor
Supremo. Não,
o que o fazia conter-se e aguardar era a ameaça que pairava sobre
Marian eDaemonar. Havia sempre um guarda dentro da barraca
distante que estavaa ser usada como prisão e esse guarda tinha ordens
para matar a sua esposae o seu filho caso se libertasse. Por isso,
aguardava, especialmente depois de
348
Saetan se ter entregado àquelas cabras, pois dera-se conta que Saetan
sabiaque não iria haver qualquer troca, chegara à espera de ser feito
prisioneiro etinha tido uma razão para o fazer.
Por isso, quando viu Daemon, pensou que se dera início ao jogo.
Todavia,
neste momento, ao ver aquele olhar entediado, letárgico, terrível…
Outrora, dançara bastas vezes com o Sádico para saber que aquele
olharsignificava que estavam todos em sérias dificuldades.
— DAEMON!
Decorridos alguns minutos, Lucivar ouviu os gritos do filho.
Dorothea cerrou as mãos. — Garanto-vos, é algum truque. Eu conheço
Sadi.
— Conheces? — ripostou Hekatah.
Julgo que será mais correcto dizer que sou o homem que o meu pai
poderia
ter sido, se tivesse tido coragem.
Sim, conseguira detectar a desumanidade, a ambição, a sexualidade
349
bárbara em Daemon Sadi. Assustava-a um pouco. Excitava-a ainda
mais.
— Nunca lhe interessou usar a força que possui para conquistar poder.
Contrariou todas as tentativas que fiz para o persuadir.
— Isso aconteceu porque lidaste com Daemon inadequadamente
— resmoneou Hekatah. — Se tivesses acarinhado Sadi como
acarinhaste
aquela tua espécie de filho…
— Costumáveis achar graça à forma como eu fazia jogos de alcovacom o
rapaz do Senhor Supremo. Dissestes que faria dele um homem.
E assim fora. Tinha aguçado a crueldade de Sadi, o gosto pelo
prazerperverso e assim o sentira. Tal como sentira que não seria fácil
contornar
o ódio profundo que Daemon sentia por Dorothea. Bem, não deixaria
queesse facto interferisse com as suas próprias ambições. Além disso,
Dorothea
estava a tornar-se complicada, falível. De qualquer forma, teria de
eliminara cabra depois de ganharem a guerra.
— Digo-vos, está a tramar alguma — insistiu Dorothea. — E deixaisque
ande pelo acampamento a fazer sabe-se lá o quê.
— E o que posso eu fazer? — retorquiu Hekatah. — Sem margem
demanobra não podemos enfrentar a Negra a pensar que sairemos
triunfantes.
— Temos margem de manobra — disse Dorothea com os dentes
cerrados.
Hekatah deu uma gargalhada maldosa. — Qual margem de manobra?
Se destruiu, de facto, Andulvar, Prothvar e Mephis não vai ter qualquer
problema
em ver as entranhas de Saetan espalhadas pelo chão.
350
Confirmando a ausência momentânea de guardas junto a eles,
Surrealinclinou-se o mais possível para Saetan. — Tio Saetan, este não
é momentopara começares a dar uns passeios mentais. Temos de
pensar numa formade sairmos daqui.
Também eu. — Lucivar tem a força física e eu safo-me bem numa luta,
mas tu tens a experiência para engendrar um plano que possa tirar o
melhor
partido dessa força.
Limitou-se a olhá-la. O sorriso que, por fim, lhe surgiu nos lábios
eraagridoce. — Querida... envelheci bastante nos últimos dois dias.
351
movimento que os mantinha a flutuar fazia com que pequenos pedaços
sedesprendessem. E as suas peles…
Lucivar rastejou.
Sabia que era perigoso, mas não sabia que albergava isto. Ajudei-o,
encorajei-
o. Oh, criança-feiticeira, que género de monstro permiti que partilhasse
a tua cama, que ocupasse o teu coração?
353
Estremeceu.
354
mas, desta vez, ninguém se sobressaltou, já habituados àquele ruído.
Ninguém
prestava muita atenção às criações invulgares de Tersa. Os rapazolas,
numa tentativa de provarem que podiam ser corteses, tinham admirado
as
primeiras… estruturas… e feito algumas perguntas, mas assim que as
respostas
de Tersa começaram a tornar-se cada vez mais confusas, afastaram-
se, por fim, deixando-a em paz.
«Para Jaenelle.«
355
— Não sei se te poderei dar uma gota de sangue, Irmãozinho —
disseKarla, com cautela. — O meu sangue ainda está um pouco
contaminadopelo veneno.
— Não terá qualquer influência — disse Tersa distraidamente, usandoa
Arte para manter os cubos suspensos. — Já o que te vai no coração…
Sim,
isso influenciará grandemente.
— Porquê? — perguntou Karla – e crispou-se quando Tersa olhoupara
ela. Voltou a centrar a atenção em Ladvarian. — E isso é tudo o
queteremos de fazer? Uma única gota de sangue em cada bolha?
«Ao oferecerem o sangue têm de pensar em Jaenelle.
Pensamentosagradáveis« acrescentou a rosnar, olhando de soslaio para
os outros machos.
«Eu vi.« Olhou para Tersa, que lhe devolveu o olhar com olhos
assustadoramente
clarividentes. Ela sabe. Mãe Noite, o que quer que vá acontecer…
Tersa sabe. Bem como Ladvarian.
356
— Muito bem, Irmãozinho — disse Karla. Exactamente antes de usar
a unha do polegar para picar um dedo, Gabrielle tocou-lhe no ombro.
— Julgo… — Gabrielle vacilou, respirou fundo. — Julgo que deveria
ser realizado como um ritual.
Para que fosse tão potente quanto conseguissem. — Sim, tens razão.
3 / Terreille
Até agora.
— Chega.
Surreal saltou da cama e cuspiu todas as pragas que conhecia, a plenos
pulmões, antes de voltar a atacar.
Empurrou-a e vociferou violentamente. — Porra, Surreal, já chega.
— Se julgas que vou abrir as pernas para ti, é melhor pensares duas
vezes, Sádico.
— Cala-te, Surreal — disse Daemon, em voz baixa, mas com veemência.
Sentiu os escudos a envolverem a barraca. Para além do escudo
protector Negro, sentiu também um escudo auditivo Negro. O que
significava
que ninguém conseguia ouvir o que se passava no interior dabarraca.
358
Estendeu as mãos, observando-o – e testemunhou a fúria no seu olhar
ao arrancar as grilhetas e ver a carne viva.
359
Mais escura do que a Negra? Sadi não tinha capacidade para um feitiço
deste género. O que significava...
Mãe Noite.
são?
5 / Terreille
O mais difícil fora o ódio que vira nos olhos de Saetan. Queria contar-
lhe. Oh, como tinha ansiado por dizer qualquer coisa, o que quer que
fossepara fazer desaparecer aquele olhar. E talvez tivesse dito, não fosse
Daemonter escolhido esse momento para deslizar por perto e lançar um
comentárioincisivo e devastador. Depois disso, no decorrer da manhã,
Surreal evitara oSenhor Supremo – e não se atrevera sequer a
aproximar-se de Lucivar.
Contudo, certificara-se de que Dorothea a vira. Sentiu a cabra a
tentarsondá-la para descobrir se tinha sido efectivamente quebrada e se
estavagrávida. Tudo indicava que os feitiços ilusórios tinham
funcionado poisDorothea sugeriu com amabilidade que se deitasse um
pouco e repousasse.
A cabra estava praticamente a babar-se com a ideia de pôr as mãos
emqualquer criança gerada por Sadi.
362
voltaria a surgir para que Hekatah pudesse farejá-la. Nessa altura, tudo
oque teria de fazer era passar despercebida pelas sentinelas e pelos
marca-
dores do perímetro, pegar em Marian e Daemonar e levá-los para casa.
Eratudo o que... Merda.
363
— Surreal... — Viu Daemon surgir do lado oposto do círculo de chão
em terra batida, um segundo antes de Surreal.
Com um guincho quase convincente, Surreal fugiu atarantadamente.
Lucivar fitou Daemon. À distância, Daemon devolveu o olhar.
6 / Terreille
Arrastado por um sono toldado pela dor, Saetan sentiu o cálice junto
aoslábios. O primeiro gole foi fruto de um acto reflexo, o segundo fruto
daavidez. À medida que o sabor de sangue fresco lhe invadia a boca, o
poderNegro aí presente fluiu pelo seu corpo, oferecendo forças.
364
tamanho da sua mão, Jóia esta que misturava as cores de todas as
outrasJóias. Na extremidade de cada linha de orientação podia ver-se
uma lasca deJóia iridescente do tamanho da unha do polegar.
366
Limpando as lágrimas com as costas da mão, acercou-se das teias e
estudou-
as meticulosamente.
o teu poder…
Explodiria pela enorme Jóia Ébano no centro da primeira teia,
deslocando-
se através de todos os fios, varreria todas as mentes que
ressoassemnesses fios, atingiria todas as lascas Ébano, indo ao
encontro de uma pequenaparte de si numa colisão de energia
devastadora que iria aniquilar quem fosseapanhado por ela. De seguida,
prosseguira para a teia seguinte, escassamenteatenuada.
367
Foi nesse momento que se apercebeu que Daemon estava à sua frente,
a poucos metros, a observá-lo com uma intensidade assustadora.
7 / Terreille
Poderia ser tão simples como saltar por cima para que o contacto entre
os cristais não fosse interrompido? Não, disso lembrar-se-ia.
368
— A barraca perdeu-se — disse, acenando a mão num gesto vago.
O homem aproximou-se, com os olhos repletos de desconfiança e
suspeição.
— Responde, cabra. Porque estás aqui tão longe?
O homem fez um esgar perverso. — Ora, não irá saber, pois não?
«Baixa-te, Surreal!«
gue.
— E a aranha?
369
«Ficará de guarda à teia. Depressa, Surreal.«
Maldito lobo idiota e tolo. Já era bastante mau ter ido a Arachna e ter
trazido uma pequena aranha consigo. Mas conviver com a Rainha...
Assim que viu o carreiro da caça, reconheceu o local. Fora por aquique
Daemon os trouxera pelo perímetro do acampamento. «Sozinha, nunca
conseguiria voltar a dar com este sítio.«
8 / Terreille
— E ela acede?
O sorriso de Daemon era gélido e brutal. — Acede a muitíssimas outras
coisas – e implora por mais.
Hekatah olhou para aqueles olhos vítreos e vibrou de excitação. O
arestava impregnado com o odor picante e grosseiro do sexo. Já era seu.
Sóque ele ainda não sabia. — Uma parceria seria vantajosa para ambos.
372
Daemon fechou a porta da barraca-prisão que tinha vindo a usar
sempre
que precisava de ficar nalgum sítio durante algum tempo. Do bolso
docasaco retirou as Jóias que fora reaver à cabana de Dorothea – o anel
Negrode Saetan; o berloque, o anel e o Anel de Honra de Lucivar.
Conhecia-amuito bem, sabia exactamente onde procurar o esconderijo.
Não demoraramais do que um minuto a contornar os feitiços de
protecção de Dorothea ea surripiar as Jóias enquanto falava com ela.
10 / Terreille
374
— Fogo do Inferno, Bastardolas — disse Lucivar, sentindo-se nauseado.
— O que me fizeste para eu acabar neste estado?
— Não sei — respondeu Daemon penosamente. — Mas estou certoque
Hekatah conseguirá imaginar qualquer coisa. — Hesitou, engoliu
emseco. — Olha, Bastardinho, uma vez na vida, faz o que te dizem. Vai
para aFortaleza. Todos aqueles que mais amas aguardam-te aí.
— Nem todos — disse Lucivar, compassivamente.
— Eu tiro daqui o Senhor Supremo. — Daemon aguardou.
Lucivar sabia o que Daemon aguardava, o que desejava. Queria ouvir
que Saetan não era o único que importava e que ficava para trás.
uma jogada.
11 / Terreille
375
enelle não gostava de matar. Não iria destruir todos os Sangue se
pudesse...
376
pamento no fio da navalha, Saetan tinha tempo para repousar, para
reunirforças, para pensar.
Era Rainha e uma Rainha não podia pedir aquilo que ela própria não
Não sabe. Não lhe disseste. Veio aqui acreditando que estarias à sua
espera
quando regressasse. Oh, criança-feiticeira.
E fora por essa razão que lhe pedira para zelar por Daemon, pois
sabiaque iria necessitar do seu auxílio.
Mas talvez não fosse demasiado tarde. Quiçá existisse ainda uma forma
de evitar, de a deter.
— Vamos — disse, bruscamente.
Daemon envolveu ambos num escudo de visão e escapuliram-se do
acampamento.
Ao chegarem ao local onde podiam apanhar os Ventos, começou a
soprar um vento gélido e cortante.
Saetan parou, inspirou pela boca, saboreando o ar.
13 / Kaeleer
Tinha sido muito à justa. Não esperara que a viagem nos Ventos fosse
tão
agitada ou que a resistência física de Saetan se esgotasse tão
rapidamente
– ou a sua própria resistência. Tiveram de sair do Vento Vermelho e
passar
379
ao Azul-Safira e, por fim, na última parte da viagem, viram-se obrigados
apassar ao Verde.
Depressa. Depressa.
— Saetan! SAE-TANNNN!
Daemon olhou para trás. Hekatah trepava pela encosta acima. A
cabradevia ter viajado sempre pelo Vento Vermelho para ter ali chegado
logo aseguir a eles.
380
Daemon abriu os olhos. Demorou um momento a perceber
porqueparecia tudo tão… estranho… e a reajustar-se. Demorou outro
instante aconfirmar que ainda estava ligado, ainda que
longinquamente, ao corpo – eque o corpo jazia no chão frio em pedra da
Fortaleza onde tinha tombado,
juntamente com Lucivar e Saetan, quando Jaenelle libertou o seu poder
absoluto.
«Está tudo muito bem« resmoneou Lucivar, «mas preferia uma ordem
directa.«
«Estass teiass são a melhor magia que voss posso providenciar« disse
Lorn, irritado. «Usem-nass para amparar o sonho. Se ela ass atravessar
atodass, regressará àss Trevass. Irão perdê-la.«
Lucivar bufou. «Foi bastante claro. Ora então, onde…« Olhou para
cima quando os relâmpagos voltaram a relampejar. «O que é aquilo?«
382
Lucivar anuiu. «Eu vou para a Rosa. Não sei que forças restam a
Saetan.
Se ainda a conseguir aguentar, juntarei a minha força à dele. Se não…«
«Na Verde. Devo conseguir aguentá-la até lá.« Lucivar hesitou. «Boa-
sorte, Bastardolas.«
A Violácea. A Opala.
383
As Jóias Negras de Daemon estavam praticamente exauridas,
masaguentou-se, aguentou-se, aguentou-se enquanto flutuavam até à
teia Negra.
Tudo se desvaneceu.
15 / Terreille
Deu outro encontrão a Lucivar pois não podia, nem desta forma
simples,
afastar Daemon. Não o podia fazer neste momento.
O resmoneio de Lucivar transformou-se num rosnado, mas por fim láse
mexeu, o que despertou Daemon.
Saetan observou-o e viu o brilho que crescia nos seus olhos, o júbilo, a
384
Aceitou a ajuda de Daemon para se levantar – e reparou na frieza
comque Lucivar tratava o irmão. Iria passar. Teria de passar. Contudo,
Lucivarnão estaria acessível até ver Marian e Daemonar, por isso seria
despropositado
provocar a fúria eyriena. Além disso, estava terrivelmente cansadopara
enfrentar Lucivar neste momento.
Quem sabe se era isso que Draca lhes ia comunicar – que Jaenelle
evitara
a guerra, que Kaeleer estava a salvo. Logo que esta comunicação
terminasse,
sairia sorrateiramente e iria aconchegar-se junto dela. Bem,
primeiroprecisava tomar um banho. O odor que exalava não era muito
agradável.
Lucivar surgiu a seu lado, tão próximo que os seus ombros tocaram-
se. Saetan aproximou-se e posicionou-se do outro lado, com Surreal por
perto.
387
e as duas Jóias Ébano estilhaçadas. Não estavam apenas exauridas.
Estilhaçadas.
Bem como o chifre em espiral.
16 / Kaeleer
388
Tersa vacilou. — É muito cedo para sabermos. Contudo, o
triânguloevitou que o sonho regressasse às Trevas e agora os parentes
lutam paramanter o sonho no corpo.
Por Jaenelle.
Por Daemon.
E por si própria, pois queria a amiga de volta.
389
CAPÍTULO DEZASSEIS
1 / Kaeleer
À noite, arrastava-se da sua cama para a cama de Jaenelle visto que era
— Tersa não se cansa de me dizer que ficará tudo bem, para confiarem
quem vê — disse à estátua. — Surreal insiste para que não desista,
queos parentes conseguirão trazer-te de volta. Contudo, quando faço
uma pergunta
directa a Tersa sobre ti, hesita, diz que é prematuro tirar conclusões,
diz que os parentes estão a lutar para que o sonho permaneça no corpo.
A
lutar para que o sonho permaneça no corpo. — Deu uma gargalhada
amarga.
— Não estão a lutar para que o sonho permaneça no corpo, Jaenelle.
Estão a esforçar-se por reconstituir-te o suficiente de modo a que exista
algo
390
para onde o sonho possa regressar. E tu sabias o que iria suceder, não
sabias?
Quando decidiste fazê-lo, já sabias.
Mas agora…
391
E Daemon perdoara-o pois, como dissera, já tinha sentido a perda de
umirmão uma vez e não queria voltar a senti-la.
Por conseguinte, iria fazer o que estivesse ao seu alcance para corrigira
situação, por si e também por Daemon. Durante os longos anos de
escravidão,
em que só se tinham um ao outro, a ira inflamava-se por vezes
emmomentos de ódio, mas o amor sempre estivera subjacente.
2 / Kaeleer
393
estavam ainda aturdidos devido à devastação – e à liberdade repentina.
3 / Kaeleer
394
por ordem. Alguns eram extremamente antigos, mas todos tinham
sidoelaborados requintadamente. Ao caminhar lentamente à volta do
salão,
percebeu que os retratos abarcavam as espécies que constituíam os
Sangue
Tentou passar por ela, mas viu que Draca moveu a mão como se
fossedetê-lo. Podia ter-se esquivado sem dificuldades, mas, por ser
quem era,
não podia realizar um acto tão desrespeitador.
396
Daemon pousou com cuidado a pequena Carruagem no prado e saiu.
Na orla do prado, Ladvarian aguardava-o.
397
levava a uma enseada abrigada. Uma enorme tenda estava colocada
bastante
distante da linha de água. O tecido colorido devia manter afastada aluz
do sol, mas parecia que tinha sido tecido ligeiramente solto para deixar
entrar ar.
Mais perto da água, podiam ver-se vários castelos de areia mal feitos.
Sorriu ao ver Kaelas a tentar ajeitar a areia com as enormes patas.
Daemon fechou os olhos. Não. Doces Trevas, não. Devia ter sofrido
dores atrozes, devia ter padecido. O que não teria acontecido se tivesse
permanecido
nas teias curativas.
398
acreditar, as dúvidas ter-se-iam infiltrado – e poderiam ter destruído
tudo oque queria salvar. — Tersa disse-me que tudo iria ficar bem. Não
a ouvi.
Ladvarian tinha razão. Estava intacta, mas era pouco mais do que
umdelicado revestimento de pele sobre órgãos e ossos.
399
apesar do que Ladvarian dissera... devido ao que Ladvarian dissera... já
não
tinha tanta certeza de que ela o iria desejar.
Fim
400