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Anne Bishop - Trilogia Das Jóias Negras 3 - Rainha Das Trevas

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Título: Rainha das Trevas

Autoria: Anne Bishop


Editor: António Vilaça Pacheco
Esta edição © 2007 Edições Saída de Emergência Lda.
Título original The Queem of Darkness, Copyright © Anne Bishop

Tradução: Cristina Correia


Revisão: Rosa Vilaça
Composição: Saída de Emergência, em caracteres Minion, corpo 12
Design da capa e interiores: Saída de Emergência
Ilustração: Michael Whelan

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra - Viseu


1ª edição: Junho, 2007
2ª edição: Outubro, 2008
3ª edição: Outubro, 2009
ISBN: 978-972-8839-90-1
Depósito Legal: ??????/07

Edições Saída de Emergência

Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dtº, 2775-274 Parede, Portugal


Tel e Fax: 214 583 770
www.saidadeemergencia.com
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CAPÍTULO UM

1 / Terreille

Dorothea SaDiablo, a Sacerdotisa Suprema do Território Hayll, subiu


devagar
os degraus até à plataforma em madeira. Era uma manhã soalheira
noinício do Outono e uma vez que Draega, a capital de Hayll, estava
localizadamais a sul, os dias permaneciam a uma temperatura
agradável. O pesado manto preto que envolvia o corpo de Dorothea fazia
com que transpirasse.
Sob o grande capuz, o cabelo estava húmido e sentia comichão no
pescoço.
Não importava. Dentro de breves minutos, poderia rasgá-lo em pedaços.

Ao chegar à plataforma, viu a lona grosseira estendida à frente, juntoà


multidão expectante, começando de imediato a respirar pela boca, a
umritmo rápido. Tola. Usara todos os feitiços que conhecia para manter
emsegredo aquilo que se encontrava debaixo da lona, até ao momento
certo.
Esforçando-se por respirar normalmente, atravessou a plataforma,
detendo-
se a alguns centímetros da lona.

A observá-la com circunspecção e ressentimento, estavam as Rainhasde


todos os Territórios do Reino de Terreille. Exigira que todas as
Rainhasde Territórios se fizessem acompanhar de duas das Rainhas de
Provínciamais poderosas e dos Príncipes dos Senhores da Guerra que
as servissem.
Estava ciente de que muitas dessas Rainhas, em especial as que
provinhamdos Territórios mais a ocidente, aguardavam algum tipo de
armadilha.

Bem, as cabras tinham razão. Contudo, se o engodo fosse apresentado


de forma apropriada, iriam atirar-se para a armadilha sem pensar duas
vezes.

Dorothea ergueu os braços. O rumorejo da multidão foi-se silenciando.


Usando a Arte para aumentar o volume da voz, permitindo assim
quetodos a ouvissem, iniciou a jogada seguinte no jogo mortal pelo
poder.

— Minhas Irmãs e meus Irmãos, convoquei-os para vos prevenir


emrelação ao que descobri recentemente, algo que ameaça todos os
membrosdos Sangue em todo o Reino de Terreille.
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“No passado, pratiquei acções horrivelmente cruéis. Fui responsávelpela
destruição de Rainhas e de alguns dos melhores machos do Reino.
Difundi
o medo nos Sangue para me tornar no poder dominante de Terreille.
Eu. Uma Sacerdotisa Suprema que tem presente, melhor do que
ninguém,
que uma Sacerdotisa não pode substituir uma Rainha, mesmo que
possuaum grande domínio e um grande poder na Arte.

“Carregarei o remorso e o peso desses actos até ao fim dos meus dias.
Mas agora vos digo: FUI USADA! Há algumas semanas, ao utilizar as
minhas
mestrias como Viúva Negra para tecer uma teia entrelaçada de sonhose
visões, rasguei inadvertidamente um véu mental que me envolvia ao
longo
dos séculos em que fui Sacerdotisa Suprema de Hayll. Abri caminho,
acusto, através desse nevoeiro mental e observei, por fim, o que as
minhasteias entrelaçadas me tentavam transmitir há muito.

“Há alguém que pretende dominar Terreille. Há alguém que


tencionasubjugar todos os Sangue deste Reino. Mas não sou eu. Fui o
instrumentode um ser maléfico e monstruoso que deseja esmagar-nos e
reduzir-nos acinzas, que brinca connosco da mesma forma que um gato
brinca com umrato antes de desferir o golpe mortal. Esse monstro tem
nome – um nomeque foi temido durante milhares e milhares de anos e
justificadamente. Onosso aniquilador é o Príncipe das Trevas, o Senhor
Supremo do Inferno.

Da multidão, ergueu-se um burburinho apreensivo.

— Duvidam do que digo? — gritou Dorothea. Arrancou o manto,


lançando-
o para o lado. O cabelo branco e fino que fora espesso e preto até
háalgumas semanas, caía-lhe pelos ombros. O rosto abatido e vincado
porrugas contorceu-se e os olhos dourados encheram-se de lágrimas ao
mesmo
tempo que o burburinho dava lugar a exclamações chocadas. — Vejam
o que me aconteceu ao lutar para me libertar dos seus encantamentos
ardilosos.
Olhem para mim. Foi este o preço que paguei, para vos alertar do
perigo.
Dorothea pôs a mão no peito, respirando com dificuldade.
O seu Administrador avançou e segurou-lhe o braço delicadamente,
para a apoiar. — Tendes de parar, Sacerdotisa. É demasiado para vós.

— Não — arfou Dorothea, continuando a usar a Arte para amplificar


o som da sua voz. — Tenho de lhes dizer tudo enquanto consigo.
Possonão dispor de outra oportunidade. Logo que se aperceba de que
me dei
conta…
A multidão ficou em silêncio.

Baixando a mão, Dorothea endireitou-se o melhor que pôde, ignorando


a dor na coluna. — Não fui o único instrumento do Senhor Supremo.
Entre vós, há quem tenha sofrido a desdita de ter Daemon Sadi ou
LucivarYaslana a servir nas vossas cortes. Que as Trevas me perdoem,
eu enviei

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esses monstros para Territórios frágeis e, por causa deles, Rainhas
morreram.
Alturas houve em que cortes inteiras foram destruídas. Tanto eu
comoPrythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, julgávamos que os
estávamos aenviar para servirem noutras cortes obedecendo à nossa
própria vontade,
na esperança de que pudessem ser controlados. Contudo, fomos
manipuladas
para que fossem enviados para esses Territórios pois são os filhos do
Senhor Supremo! São a descendência daquela criatura brutal e
tornaram-
se nas suas ferramentas de destruição. O controlo que julgávamos
exercersobre os dois não passava de uma mera ilusão, uma venda para
esconder overdadeiro propósito.

“Ambos desapareceram há muitos anos. A maioria de nós esperavaque


tivessem morrido. Não foi assim. Fui informada por alguns Irmãos
eIrmãs que revelaram uma grande coragem e que vivem actualmente na
Pequena
Terreille, localizada no Território de Kaeleer, que tanto Yaslana
comoSadi estão no Reino das Sombras, onde o Senhor Supremo tem
vivido soba capa de Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan. As
crias da víboraregressaram ao ninho.

“Mas há mais. O Senhor Supremo exerce uma influência nefasta sobrea


maioria das Rainhas de Territórios em Kaeleer e controla em absoluto
uma jovem mulher que é a Rainha mais poderosa de todos os Reinos.
Coma força dela a apoiá-lo, dominar-nos-á — a menos que ataquemos
primeiro.
Não temos escolha, meus Irmãos e minhas Irmãs. Se não destruirmos o
Senhor
Supremo e todos os que o servem, as crueldades que pratiquei comoseu
instrumento parecerão brincadeiras de criança.

Dorothea fez uma breve pausa. — Muitos de vós têm amigos ou


entesqueridos que fugiram para Kaeleer como forma de escaparem à
violênciaque tem vindo a sufocar Terreille. Vejam o que aconteceu a
muitos dos quecorreram para os braços sedutores do Senhor Supremo.

Mediante a Arte, afastou abruptamente a lona que cobria a parte


dafrente da plataforma. De imediato, colocou a mão sobre a boca para
nãovomitar, enquanto as moscas esvoaçavam dos corpos mutilados.

Os gritos apoderaram-se do ambiente. Um guincho pungente de dore de


raiva sobrepôs-se às outras vozes. Depois outro e outro, à medida queas
pessoas junto à plataforma reconheciam o que restava de um rosto
oureconheciam uma jóia.
Novamente utilizando a Arte, Dorothea voltou a colocar a lona sobre
os corpos, com delicadeza. Aguardou vários minutos até os gritos se
tornarem
soluços abafados.

— Quero que saibam — disse. — Farei uso de tudo o que aprendi


naArte, de cada gota de forças que possua para derrotar este monstro.
Todavia,
sozinha certamente serei derrotada. Se nos mantivermos unidos e
lutarmos
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juntos, temos hipóteses de nos livrarmos do Senhor Supremo e
daquelesque o servem. Muitos de nós não sobreviverão a esta batalha,
mas os nossosfilhos… — A voz embargou-se. Levou um momento a
prosseguir. — Masos nossos filhos conhecerão a liberdade que nos
custou tanto a obter.

Voltando-se, tropeçou. O Administrador e o Guarda-Mor ajudaram-


na a atravessar a plataforma e a descer os degraus. Enquanto
instalavamDorothea cuidadosamente na carruagem aberta para a curta
viagem de regresso
à mansão, tinham lágrimas nos olhos que denotavam um orgulhoferoz.
Quando tentaram acompanhá-la, abanou a cabeça.

— Têm obrigações a cumprir aqui — afirmou, debilmente.


— Mas, Sacerdotisa… — tentou protestar o Guarda-Mor.
— Por favor — disse Dorothea. — A vossa força irá servir-me melhor
se ficarem aqui. — Invocando um pedaço de papel dobrado, entregou-o
aoAdministrador. — Se estas Rainhas pedirem para falar comigo, marca
umaaudiência para esta tarde. — Dorothea viu o protesto nos olhos do
Administrador,
que nada disse.
O cocheiro incitou os cavalos.
Dorothea recostou-se e fechou os olhos para esconder a satisfação.

Bem, grande filho da puta, aí está a minha primeira jogada. E agora,


faças oque fizeres, tudo será usado contra ti.

2 / Terreille

Alexandra Angelline sentiu arrepios de frio apesar do calor do sol


matinal,
enquanto aguardava que Philip Alexander regressasse da verificaçãodos
corpos dilacerados que jaziam na plataforma em madeira. Lançou
umfeitiço de aquecimento no pesado xaile de lã, certa de que de nada
serviria.
Nenhuma fonte externa de calor aqueceria o frio no seu âmago.

É prematuro, pensou, desesperada. Wilhelmina atravessou o Portão


ontem
de manhã. Não pode estar entre…

Vania e Nyselle, as duas Rainhas de Província que a acompanharam,


já tinham regressado à estalagem, juntamente com os acompanhantes.
Nãose tinham oferecido para aguardar com ela. Alguns anos atrás –
algumas
semanas atrás – ter-se-iam oferecido. Ainda acreditavam nela, apesar
dosproblemas no seio da sua família.
Contudo, algumas semanas atrás, alguém enviara mensagens
misteriosas
às trinta feiticeiras mais fortes de Chaillot – excluindo-a, bem como
à filha, Leland –, convidando-as para uma visita a Briarwood e
prometendo
resolver o enigma sobre o que acontecera às jovens raparigas das
suasfamílias internadas no hospital e que desapareceram sem deixar
rasto.

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Briarwood, que fora edificado para acolher e tratar de crianças
emocionalmente
perturbadas, estava fechado havia vários anos, desde que
aquelainexplicável enfermidade começara a afligir dúzias de homens
das famíliasaristocratas de Beldon Mor, a capital de Chaillot – uma
enfermidade queparecia interligada àquele lugar.

As feiticeiras chegaram na noite indicada e foram-lhes revelados


ossegredos e os horrores de Briarwood. A guia, uma rapariga demónia-
mortachamada Rose, foi implacável ao apresentar-lhes os fantasmas.
Uma Sacerdotisa
encontrou a prima emparedada, desaparecida desde criança.
UmaRainha de Província reconheceu o que restava da filha de uma
amiga.

Viram as salas de jogos. Viram os cubículos que continham as


camasestreitas. Viram a horta e a rapariga com a perna amputada.

Entorpecidas pelo que testemunhavam, seguiam Rose, que lhes sorriae


lhes contava detalhadamente a razão pela qual cada criança morrera e
omodo como morrera. Contou-lhes acerca das outras crianças
demóniasmortas
que passaram para o Reino das Trevas, indo viver com as restantes
cildru dyathe. Recitou a lista dos “tios” de Briarwood, os homens
queapoiaram e usaram aquele deturpado parque de diversões carnal. E
recitouuma lista de feiticeiras quebradas provenientes das famílias
aristocratas cujainstabilidade emocional fora “curada” – tendo também
sido despojadas dopoder interior – e que regressaram a casa.

Um dos homens que Rose citou foi Robert Benedict, o anterior marido
de Leland e um membro importante do conselho de machos –
umconselho que fora já dizimado por aquela enfermidade misteriosa.

Quando uma Curandeira do grupo inquiriu sobre a doença, Rose sorriu,


uma vez mais, e disse: — Briarwood é o veneno embelezado. Não existe
cura para Briarwood.

Alexandra fechou o xaile mas os arrepios continuaram.

A raiva que grassou teve como resultado a dilaceração de Chaillot.


Beldon Mor tornou-se um campo de batalha. Os membros do
conselhode machos que ainda não tinham morrido devido à
enfermidade, foramcruelmente executados. Depois de vários homens
das famílias aristocratasterem morrido por envenenamento, muitos
outros fugiram para estalagensou para um dos seus clubes visto terem
um medo de morte de comeremou beberem o que quer que tivesse
passado pelas mãos das mulheres dasrespectivas famílias.
Passada a primeira vaga de raiva, as feiticeiras dirigiram a fúria
paraAlexandra. Não a responsabilizavam por Briarwood, uma vez que
foraconstruído antes de se tornar Rainha de Chaillot, contudo
culpavam-na,
isso sim, e amargamente, pela cegueira. Estava tão obcecada em
manter ainfluência de Hayll afastada de Chaillot e a tentar preservar
algum poder

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face ao conselho de machos, que não vira o perigo já existente.
Disseramque era o mesmo do que discutir com um homem por lhe
apalpar os seiosjá tendo a pila enfiada entre as pernas.

Culpavam-na por Robert Benedict ter vivido na sua casa durante tantos
anos e ter dormido com a sua filha. Se não conseguia reconhecer o
perigo
quando se sentava à sua frente, dia após dia, como poderia proteger
oseu povo contra qualquer outro tipo de ameaça?

Culpavam-na por Robert Benedict e por todas as jovens feiticeiras


quemorreram ou que foram quebradas em Briarwood.

Culpava-se a si própria pelo que acontecera a Jaenelle, a sua neta


maisnova. Permitira que essa criança invulgar e complicada fosse
fechada naquele
lugar. Não tinha conhecimento dos segredos de Briarwood, porém,
se não tivesse ignorado as histórias fantasiosas de Jaenelle, se as
tivesse encarado
como a súplica de uma criança por atenção ao invés de um problema
social embaraçoso, Jaenelle nunca teria sido internada em Briarwood.
E se não tivesse ignorado o ódio da rapariga pelo Dr. Carvay, teria
sabidoda verdade mais cedo?

Não sabia. E era tarde demais para encontrar as respostas.

Agora, o problema familiar era outro. Há onze anos, Wilhelmina


Benedict,
a filha do primeiro casamento de Robert, fugira depois de alegarque
Robert a tentara assediar sexualmente. Philip Alexander, o meio-irmão
bastardo de Robert, encontrara a sobrinha, recusando-se revelar o seu
paradeiro. Na altura, Alexandra ficara enfurecida com Robert por
manterem segredo a localização de Wilhelmina. Posteriormente,
perguntou-se sePhilip teria alguma ideia do que se encontrava sob a
aparência zelosa deBriarwood, em especial por ter sido determinante
para o empurrão finalque viria a ditar o encerramento daquele sítio.

Há dois dias, recebera uma carta de Wilhelmina, informando-a de


que a rapariga estava de partida para Kaeleer, o Reino das Sombras.
Não

– Wilhelmina tinha agora vinte e sete anos, já não era uma rapariga.
Nãoimportava. Não deixava de ser da família. Era ainda a sua neta.
Alexandra abanou a cabeça para quebrar a linha de pensamento e
reparou
que Philip caminhava na sua direcção. Sustendo a respiração,
perscrutou-
lhe os olhos cinzentos.
— Não está lá— disse Philip calmamente.
Alexandra soltou a respiração com um suspiro. — Graças às Trevas.
— Contudo, compreendeu o que ficara por dizer: ainda não.
Philip ofereceu-lhe o braço. Aceitou, agradecida pelo apoio. Era umbom
homem, o oposto do seu meio-irmão. Ficara satisfeita quando ele
eLeland celebraram esponsais e a satisfação foi ainda maior quando
decidiram
casar, passado o ano de esponsais.

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Alexandra olhou para trás, para a plataforma onde Dorothea
proferiraaquele horripilante discurso. — Acreditas nela? — perguntou
baixinho.

Philip conduziu-a através de magotes de pessoas que se


encontravamainda em choque e que se agrupavam, reunindo coragem
para examinaremos corpos mutilados. — Não sei. Mesmo que somente
uma parte do quedisse corresponda à verdade… se Sadi… — Faltou-lhe
a voz.

Alexandra ainda tinha pesadelos com Daemon Sadi. Também Philip,


por razões distintas. Sadi tinha ameaçado Alexandra quando Jaenelle
foiinternada em Briarwood pela última vez, proporcionando-lhe o sabor
datumba. Quando libertou o poder negro para quebrar o Anel de
Obediência,
destruíra metade dos Sangue com Jóias de Beldon Mor. Apanhado por
essaexplosão, a força de Philip fora quebrada, regredindo para a Jóia
Verde deDireito por Progenitura.

— Podemos apanhar uma Carruagem esta noite — disse Philip. —


Seadquirirmos passagem para uma que viaje pelos Ventos mais
escuros, estaremos
em casa pela manhã.
— Ainda não. Gostaria que falasses com o Administrador de Dorothea.
Tenta marcar uma audiência.
— És Rainha — ripostou Philip. — Não devias ter de mendigar poruma
audiência com uma Sacerdotisa, não importa quem…
— Philip. — Apertou-lhe o braço. — Agradeço a tua lealdade, porém,
neste momento, somos mendigos. Não me posso dar ao luxo de mais
suposições.
Não estou convencida de que Dorothea não seja o monstro que
sempre aparentou ser, mas estou plenamente convencida de que o
Senhor
Supremo representa uma ameaça maior. — Arrepiou-se. — Temos de ir
aKaeleer à procura de Wilhelmina. Não podemos ir sem ter todo o
conhecimento
possível sobre o inimigo, independentemente da fonte de informações.
— Está bem — disse Philip. — E Vania e Nyselle? Acompanham-
nos?
— Ficarão ou irão, a escolha é delas. Com certeza não se
importarãocom o que faço. — Suspirou. — Quem diria, há um mês, que
teria de considerar
a ideia de ter Dorothea como aliada?
3 / Terreille

Kartane SaDiablo vagueava pelos jardins clássicos, esforçando-se por


ignorar
os olhares inquisitivos ou compadecidos das poucas pessoas que
aindanão se tinham recolhido.

Aguardara até a carruagem de Dorothea desaparecer antes de se afas

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tar da plataforma. Os corpos mutilados que foram deixados para
observação
macabra não o incomodavam. Fogo do Inferno, Dorothea fizera omesmo
– ou pior – a tantas outras pessoas, quando se sentia com vontadede
brincar. Contudo, parecia que ninguém se lembrava disso. Ou,
porventura,
nenhum dos imbecis aqui presentes alguma vez presenciara um
dosacessos de fúria da Sacerdotisa.

Mas o Administrador e o Guarda-Mor… Idiotas de tomates mirrados.


Tinham, verdadeiramente, lágrimas nos olhos ao ajudarem-na a subir
paraa carruagem. Como podiam acreditar que estava sob o efeito de um
encantamento
ao longo de todos estes séculos, de que não se tinha deleitado com

o sofrimento das suas vítimas?


Oh, sem dúvida que parecera sincera e repesa. Kartane não
acreditounem por um momento. Qualquer homem que tivesse sido
obrigado a proporcionar
prazer a Dorothea na cama não teria acreditado. Daemon nãoteria, isso
podia Kartane asseverar.

Daemon. O filho do Senhor Supremo. Isso explicava bastante sobre

o seu “primo”. Durante os anos em que Daemon foi criado como


bastardona corte de Dorothea, saberia ela? Com certeza que sabia. O
que significavaque o Senhor Supremo do Inferno não nutriria qualquer
afecto pela Sacerdotisa
Suprema de Hayll.
O que o trazia de volta às suas próprias preocupações.

A misteriosa enfermidade que começara há quase treze anos, estavaa


debilitá-lo. Todos os outros homens que desfrutaram do pequeno
parque
de diversões secreto de Briarwood já estavam debaixo de terra. Por
serhaylliano, uma das raças de longevidade prolongada, e por nunca
mais terregressado a Chaillot, era o único que restava. E sentia que o
tempo estava
a esgotar-se.

Depois de ter sido revelada a ligação entre a enfermidade e Briarwood,


algumas semanas atrás, pôs-se a pensar – quando a sua mente não
estava
consumida por pesadelos, permitindo que pensasse – e chegava
sempreà mesma conclusão: as únicas Curandeiras com poderes
suficientes paracurar esta enfermidade antes que o destruísse e as
únicas que não tinhamconhecimento da causa, encontravam-se em
Kaeleer. Serviriam, com certeza,
nas cortes das Rainhas de Territórios, que, se Dorothea não tivesse
mentido
sobre esse ponto, estavam sob o controlo do Senhor Supremo. O
quesignificava que teria de encontrar algo que comprasse o auxílio do
SenhorSupremo. Graças ao discurso de Dorothea, dispunha agora de
informaçõesque julgava serem do interesse do Príncipe das Trevas.

Satisfeito com a decisão tomada, Kartane sorriu. Passaria mais


algunsdias a esquadrinhar informações, para depois visitar o Reino das
Sombras.

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4 / Terreille

Alexandra Angelline sentou-se delicadamente na cadeira, aliviada por


Dorothea
ter optado por uma sala de recepções privada em vez de uma salade
audiências oficial. Este encontro já iria ser bastante difícil sem ter
quesuportar uma corte repleta de hayllianos escarnecedores.

Todavia, estar sozinha com Dorothea também acarretava alguns


inconvenientes.
Ouvira dizer que a Sacerdotisa Suprema de Hayll tinha sidouma bela
mulher. Oh, o espectro dessa beleza ainda estava presente, mashavia
uma inclinação inegável nos ombros de Dorothea, uma curvatura
nacoluna. Manchas de idade salpicavam-lhe as costas das mãos
morenas e ocabelo e o rosto…

Acontece a todos, mais tarde ou mais cedo, pensava Alexandra ao


observar
Dorothea a servir o chá em chávenas finas. Mas como seria deitar-se
à noite como uma mulher no seu auge e acordar na manhã seguinte
comouma velha de pele descaída?

— Agradeço-vos… por me terdes concedido uma audiência —


disseAlexandra, tentando não se atrapalhar.
Os lábios de Dorothea curvaram-se num ligeiro sorriso ao passar
aAlexandra a chávena de chá. — Fiquei surpreendida por terdes
solicitadouma audiência. — O sorriso desvaneceu-se. — Não estivemos
de acordo no
passado. E, tendo em conta o que aconteceu à vossa família, tendes
razõespara me odiar. — Hesitou, bebeu um gole de chá e prosseguiu
calmamente:

— A ideia de enviar Sadi para Chaillot foi minha, mas não me consigo
lembrar
de quem partiu a sugestão ou a razão pela qual concordei. Sobre
essasmemórias existe um véu que ainda não consegui romper.
Alexandra levou a chávena aos lábios mas voltou a baixá-la, sem beber.

— Achais que foi obra do Senhor Supremo?


— Sim, acho. Sadi é uma arma bela e cruel e o seu pai sabe usá-la
convenientemente.
E a verdade é que alcançaram os seus objectivos.
— Que objectivos? — inquiriu Alexandra, zangada. — Sadi dilaceroua
minha família e matou a minha neta mais nova. Qual foi o desígnio
detais acções?
Dorothea recostou-se, bebeu um gole de chá e disse, calmamente: —
Esqueceis-vos, Irmã. O corpo da rapariga nunca foi encontrado.
Alexandra sentiu arrepios perante o modo expectante como Dorotheaa
olhava. — Não tem qualquer significado. É um coveiro muito discreto.

— Colocou a chávena e o pires na mesa, sem tocar no chá. — Não vim


aquipara falar do passado. Quão perigoso é o Senhor Supremo?
— Daemon Sadi é o filho do seu pai. Isso responde à vossa pergunta?
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Alexandra tentou sem êxito disfarçar um calafrio. — E julgais
deverasque pretende destruir os Sangue em Terreille?

— Tenho a certeza. — Dorothea tocou no cabelo encanecido. — Paguei


um preço elevado para ter essa certeza.
— A minha outra neta, Wilhelmina Benedict, viajou recentemente
para Kaeleer — disse Alexandra, com delicadeza.
Dorothea ficou tensa. — Quando foi isso?

— Atravessou ontem o Portão.


— Mãe Noite — exclamou Dorothea, descaindo na cadeira. — Lamento
imenso, Alexandra. Lamento imenso.
— Eu e o Príncipe Alexander pretendemos viajar para Kaeleer logoque a
“feira de serviços” termine e voltem a permitir a entrada de visitantes.
Com sorte, conseguiremos encontrá-la e convencer a Rainha com a
qualtenha assinado contrato a libertá-la dessa obrigação.
— O perigo em que se encontra é muito maior — disse Dorothea,
comum ar preocupado.
— Não há qualquer razão para que Wilhelmina atraia atenções —
objectou
Alexandra, com a voz estridente de medo — Não há qualquer razãopara
aceitar um contrato fora da Pequena Terreille.
— Existem duas razões: o Senhor Supremo e a feiticeira que controla.
Se não a encontrarem rapidamente, Wilhelmina irá parar aos seus
braçostenebrosos e nessa altura não restará a mínima esperança.
Embora a sala estivesse aquecida, Alexandra sentiu um arrepio de frioa
percorrer-lhe a coluna.
Dorothea limitou-se a olhá-la por um longo momento. — Eu disse-vos

– Sadi e o Senhor Supremo atingiram os seus objectivos. Ninguém


procuraum cadáver durante muito tempo quando é preciso tratar dos
que ficaram.
E o corpo da vossa neta nunca foi encontrado.
Alexandra olhava estupefacta para Dorothea. — Julgais que Jaenelle é
a feiticeira poderosa controlada pelo Senhor Supremo? Jaenelle? — Riu-
se
amargamente. — Fogo do Inferno, Dorothea, Jaenelle nem conseguia
realizar
a Arte mais básica.

— Se soubermos ler entre as linhas de alguns dos registos mais…


restritos…
da história dos Sangue, descobriremos que existiram algumas mulheres
– muito poucas, graças às Trevas – que possuíam enormes reservasde
poder que não conseguiam extrair sozinhas. Necessitavam de uma…
ligação… emocional com alguém que possuísse a capacidade de
canalizar
o poder para o usar. Contudo, nem sempre podiam escolher a forma
como
era usado. — Dorothea fez uma pausa. — Os rumores que têm
chegadorecentemente da Pequena Terreille sobre o bichinho de
estimação do Senhor
Supremo descrevem-na como “excêntrica”, “algo perturbada emocio16
nalmente”. Parece-vos familiar?

Alexandra não conseguia respirar. Não havia ar suficiente na sala.


Porque razão não havia ar suficiente?

— Se decidirdes agir, dar-vos-ei a ajuda que estiver ao meu alcance.


— Dorothea olhou-a tristemente. — Não o podeis ignorar, Alexandra.
Independentemente do que queirais pensar ou daquilo em que
queiraisacreditar, não podeis ignorar o facto de a feiticeira de estimação
do SenhorSupremo, a feiticeira que Daemon Sadi ajudou a conquistar,
responder pelonome de Jaenelle Angelline.
5 / Terreille

Dorothea afastou os cortinados pesados e escuros e fitou o jardim


envolvido
pela escuridão da noite. Sentia-se exaurida, fisica e emocionalmente.
Oh, como tinha ansiado por enterrar as unhas e arrancar o olhar
patéticoe esperançado dos olhos dos machos do seu Primeiro Círculo.
Queriamagarrar-se a qualquer desculpa pelo seu comportamento ao
longo dos séculos.
Queriam acreditar que fora um macho que a tornara cruel, que fora
um macho que a manipulara e que controlara os seus pensamentos,
que
fora um macho que tinha estado por detrás da sua ascensão ao poder e
dasatrocidades que se seguiram e que tornaram possível o
enfraquecimento e

o desbaste da maior parte dos outros Territórios de Terreille.


Não a queriam responsabilizar por nada. Queriam que tivesse sidouma
vítima para que não se sentissem envergonhados por a servirem,
paraque pudessem fingir que a serviram por uma questão de honra e
não pelamesquinhez e pelo temor.

Bom, logo que Kaeleer sucumbisse, faria alguns acertos na sua corte.
Talvez até fizesse com que os idiotas morressem em batalha, sufocando
nahonra ensanguentada.

— Estiveste bem hoje, Irmã — disse uma voz rouca mas ainda
ameninada.
— Eu própria não teria feito melhor.
Dorothea não se virou. Ao olhar Hekatah, a Sacerdotisa das Trevas
demónia-morta e autoproclamada Sacerdotisa Suprema do Inferno,
ficavacom o estômago às voltas. — As palavras eram as vossas, não as
minhas,
por isso não admira que estejais satisfeita.

— Ainda precisas de mim — ripostou Hekatah ao arrastar-se parauma


cadeira junto à lareira. — Não te esqueças disso.
— Eu nunca me esqueço — respondeu Dorothea baixinho, não
desviando
o olhar do jardim.
Fora Hekatah que vira o seu potencial quando era ainda uma jovem

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feiticeira a aprender os deveres de uma Sacerdotisa bem como a Arte
deViúva Negra. Fora Hekatah que lhe acalentara as ambições e os
sonhos depoder, que lhe indicara as possíveis rivais que poderiam
interferir com essessonhos. E fora Hekatah que ajudara a eliminar
essas rivais. A SacerdotisaSuprema estivera presente, a cada passo,
orientando, aconselhando.

Não se recordava do momento em que se apercebera que


Hekatahprecisava tanto dela como ela própria precisava de Hekatah.
Essa necessidade
fizera com que se desprezassem mutuamente, pese embora
estivessemligadas pelo sonho comum de dominarem todo um Reino.

— Credes verdadeiramente que, depois de tudo o que fizemos


paracontrolar Terreille, aquelas Rainhas irão acreditar que foi tudo
culpa do Senhor
Supremo?
— Se tiveres lançado adequadamente os feitiços de persuasão, não há
razão
para não acreditarem — afirmou Hekatah, com um veneno adocicado.
— Não há nenhum problema com as minhas capacidades na Arte,
Sacerdotisa
— retorquiu Dorothea com igual veneno, virando-se para encarara
outra mulher.
— As tuas capacidades não serviram para eludir o encantamento
comque Sadi te envolveu, pois não?
— Tal como as vossas capacidades não vos protegeram ou ajudaram
ainverter os males.
Hekatah silvou, furiosa, e Dorothea voltou-se novamente para a janela,
sentindo uma pequena satisfação pelo anzol bem lançado.
Sete anos atrás, Hekatah tentara controlar Jaenelle Angelline e eliminar
Lucivar Yaslana. Algo correu mal com o seu plano e a repercussão
desse
confronto retirara-lhe a capacidade de passar por viva, tornara-a
numcadáver ressequido e em decomposição. Nos primeiros dois anos,
insistiraque tudo o que precisava era ingerir grandes quantidades de
sangue frescopara renovar o corpo. Contudo, os demónios-mortos eram,
de certa forma,
espíritos que ainda possuíam demasiada energia psíquica para
regressaremàs Trevas e que se encontravam retidos num corpo sem
vida. Enquanto aenergia subsistia, podendo ser renovada, o corpo podia
ser mantido pelaingestão de sangue. Mas nada iria recuperar a
aparência de Hekatah. O fluído
tinha sido espremido da carne morta e nos últimos sete anos o corpo,
morto há 50.000 anos, tinha vindo a deteriorar-se.

— Acreditarão que o Senhor Supremo é o responsável por todas as


perversões
em Terreille — afirmou Hekatah, surgindo por detrás de Dorothea,
tão próxima que o seu reflexo podia ver-se no vidro da janela,
obscurecidopela noite. — Querem acreditar. É um mito, uma história
terrível sussurrada
durante milhares de anos. E quem quer que tenha dúvidas em relação
ao Senhor Supremo, não as terá em relação a Yaslana e a Sadi. A ideia
de ver
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os três unidos e a utilizarem uma feiticeira poderosa como ferramenta
serásuficiente para unir Terreille contra Kaeleer. No fim de contas, não
importa
a razão pela qual se juntam à luta, importa unicamente que lutem.

— Ganhámos uma aliada obstinada esta tarde – Alexandra Angelline,


aRainha de Chaillot. — Os lábios de Dorothea formaram um sorriso
maldoso.
— Ficou chocada ao descobrir que a neta mais nova tem estado sob o
domínio
do Senhor Supremo durante todos estes anos, graças a Daemon Sadi.
Hekatah franziu o sobrolho. — É uma tola, mas não é estúpida.
Seconvencer Jaenelle a ajudá-la a manter o controlo sobre Chaillot…

Dorothea abanou a cabeça. — Não acredita que Jaenelle tenha poderes.


Pude ver nos seus olhos. Inventei uma historiazita sobre mulheres
quesão reservas de poder em bruto – também não acreditou. É capaz de
aceitar

o facto de que Sadi e o Senhor Supremo pretenderam chegar a Jaenelle


porrazões perversas, contudo, continuará a acreditar no que quiser
acreditar
sobre Jaenelle Angelline. Logo que chegue à Pequena Terreille, o
SenhorJorval estará a aguardá-la para oferecer ajuda. Nunca irá referir
que Jaenelleé a Rainha de Ebon Askavi. E duvido que Alexandra
acredite no que lhe fordito no Paço, qualquer que seja o seu
interlocutor.
Hekatah deu uma gargalhada de satisfação.

— E imagino que logo que conheça efectivamente o Príncipe


SaetanDaemon SaDiablo, o Senhor Supremo do Inferno, terá o maior
prazer emenviar-nos as informações que julgue serem úteis para nós.
— E se ele descobrir a sua traição… — Hekatah encolheu os ombros.
— Bem, de qualquer forma teríamos de nos ver livres dela depois da
guerra.
Dorothea olhou fixamente para os reflexos das duas no vidro.
Emtempos, tinham sido mulheres encantadoras. Presentemente,
Hekatah assemelhava-
se a um cadáver devorado por vermes e ela própria…

Sadi criara uma espécie de encantamento para envelhecer e deformaro


corpo de Dorothea, pese embora nada tivesse feito para lhe diminuir
odesejo sexual. Os Sangue chamavam-lhe Sádico, mas ainda não tinha
tidooportunidade de apreciar até onde ia a sua crueldade. Sadi conhecia
os seusdesejos – era óbvio que os conhecia dado que, na sua juventude,
teve de ossatisfazer. Sabia também a humilhação que Dorothea sentiria
ao ver a repulsa
nos olhos dos machos que montava ao invés da mistura excitante
deluxúria e temor. Agora, depois da confissão chorosa, nem isso
conseguiriaobter.

— Informaste as tuas Rainhas de estimação que terão de se abster


dosprazeres mais – imaginativos – por agora? — questionou Hekatah.
— Disse-lhes — respondeu Dorothea, irritada. — Se irão comedir-se
ou não é difícil dizer.
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— Aquelas que cederem terão de ser eliminadas.
— E como iremos explicar isso?
Hekatah emitiu um som de impaciência. — Como é óbvio, tambémelas
têm vivido sob a influência do encantamento do Senhor Supremo. Atua
heróica luta para te libertares também libertou algumas das tuas
Irmãsmas, infelizmente, nem todas. Bastará matar uma ou duas para
que as outras
compreendam a mensagem e se portem como deve ser.

— E quando ganharmos?
— Quando ganharmos, poderemos fazer o que nos der na real gana.
Dominaremos os Reinos, Dorothea. Não só Terreille, mas todos –
Terreille,
Kaeleer e o Inferno.
Deliciando-se com a possibilidade, Dorothea nada disse durante vários
minutos. Por fim, relutantemente, perguntou: — Julgais deveras que

o temor suscitado pelo Senhor Supremo será suficiente para iniciar


uma
guerra? Julgais mesmo que irá resultar?
O que restava dos lábios de Hekatah formou um sorriso pavoroso.

— Da última vez resultou.


6 / Kaeleer

A Rainha de Arachna instalou-se junto ao ombro da mulher de cabelo


lou

ro, com ar cansado, que se apoiava num pedregulho plano.

«É mau?« perguntou a grande aranha dourada de voz suave.

Jaenelle Angelline afastou o cabelo do rosto e suspirou. Os seus


perturbados
olhos azul-safira semicerraram-se ligeiramente face à luz do solda
manhã, estudando outra vez os filamentos delicados da teia entrelaçada
que tecera durante a noite. — Sim, é mau. Avizinha-se uma guerra.
Umaguerra entre os Reinos.

«Pode evitar-se?«

Jaenelle abanou a cabeça devagar. — Não. Ninguém a poderá evitar.

A aranha mexeu-se com inquietação. O ar que rodeava a mulher


tinhaum sabor de tristeza – e a uma raiva gélida e crescente. «Os de
duas pernas
já lutaram antes. É pior desta vez?«

— Vê por ti.
Aceitando o convite formal, a Rainha arachniana abriu a mente aos
sonhos e às visões da grande teia entrelaçada que Jaenelle tecera entre
umpedregulho e uma árvore próxima.

Tanta mortandade. Tanto sofrimento e pesar. E uma


contaminaçãogradual que maculava os sobreviventes.

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Afastando-se dos sonhos e das visões, examinou a própria teia e
reparou
em dois elementos estranhos. Um era o delicado anel em prata comuma
Jóia Ébano que fora colocado no centro da teia. Raramente se teciauma
lasca de Jóia numa teia entrelaçada visto que a magia que moldava
essas teias era suficientemente poderosa – e perigosa – e esta Jóia
emparticular pertencia a Jaenelle, que era a Feiticeira, o mito vivo, os
sonhostornados realidade. O outro elemento estranho era o triângulo.
Muitos dosfios estavam ligados ao anel, mas existiam três fios
sobrepostos a todos osoutros, que formavam um triângulo à volta do
anel.

Intrigada, a aranha continuou a observar a teia. Já vira aquele


triângulo.
Força, paixão, coragem. Lealdade, honra, amor. Quase conseguia sentir

o cheiro acre a macho naqueles fios.


— Se Kaeleer aceitar o repto de Terreille e entrar na guerra — disse
Jaenelle
baixinho, — os Sangue de ambos os Reinos serão aniquilados. Todosos
Sangue. Mesmo os parentes.
«Alguns sobreviverão. Sempre assim foi.«

— Desta vez será diferente. Oh, alguns sobreviverão fisicamente


àguerra, mas… — Jaenelle ficou com a voz embargada. Respirou fundo.
— Todas as minhas Irmãs, todos os meus amigos desaparecerão. Todas
asRainhas desaparecerão. Todos os Príncipes dos Senhores da Guerra.
«Todos?«

— Não restarão Rainhas para sararem a terra, não restarão


Rainhaspara manterem os Sangue unidos. A carnificina prosseguirá até
não restarninguém para chacinar. As feiticeiras ficarão tão estéreis
quanto a terra. Odom do poder que nos foi oferecido há tanto tempo
será a derradeira armaque nos irá destruir. Se Kaeleer entrar na guerra
contra Terreille.
«Ter de combater« disse a aranha. «Ter de parar contaminação gradual.
«

Jaenelle sorriu amargamente. — A guerra não a deterá. Sei quem


nutriu
as sementes e se a eliminação de Dorothea e de Hekatah impedisse
quetal acontecesse, eu própria as destruiria neste preciso momento.
Todavia,
não iria evitar o que quer que fosse, não nesta altura. Iria apenas adiá-
la eisso seria mais grave. Este é o sítio certo e a altura certa para
purificar osSangue dessa contaminação.
«Falas de caminhos que não levam a lado nenhum« repreendeu a
aranha.
«Dizes não poder combater mas ter de combater. Baralhada?
Talveztenhas lido mal teia.«

Jaenelle virou a cabeça para a aranha, com um olhar divertido e frio.

— E onde foi que aprendi a tecer uma teia entrelaçada? Se não a estou
a
interpretar correctamente talvez não tenha sido bem ensinada.
A aranha fez uso da Arte para produzir um zumbido irritante indi

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cador de uma séria desaprovação. «Não é culpa da aranha que ensina se
apequena aranha dá mais atenção a apanhar mosca do que à lição.«

O riso argentino e aveludado de Jaenelle espalhou-se pelo ar. — Nunca


tentei apanhar moscas. E prestei mesmo atenção à aranha que
ensinava.
Afinal, na altura era a Rainha das Tecedeiras de Sonhos.

A Rainha arachniana voltou a acomodar-se, ligeiramente apaziguada.

A boa disposição de Jaenelle desvaneceu-se ao dirigir os olhos azul-


safira de volta para a teia. — Terreille irá para a guerra.

«Assim sendo, Kaeleer irá pelejar.«

— Esta teia mostra dois caminhos — disse Jaenelle serenamente.


«Não« retorquiu a aranha com firmeza. «Uma teia, uma visão. É esse o
costume.«

— Dois caminhos — insistiu Jaenelle. — Se seguir o segundo caminho,


Kaeleer não entrará em guerra com Terreille e as Rainhas e os Príncipes
dosSenhores da Guerra sobreviverão para cuidar do Reino das Sombras
e protegê-
lo.
«Então quem combaterá com Terreille?«
Jaenelle hesitou. — A Rainha das Trevas.
«Mas a Rainha és tu!«
Jaenelle exalou bruscamente. — Uma guerra que depure os Reinos,

salde as dívidas, recupere o dom do poder que foi oferecido. Existe


umaforma. Tem de existir uma forma, contudo a teia ainda não me
mostra porcausa disto. — O seu dedo indicava o triângulo. — Este não
é o triânguloda Rainha. — Com o dedo, delineou o lado esquerdo do
triângulo. — Estefio é o Senhor Supremo. — Delineou o fio da base. —
E este fio é Lucivar.

— O seu dedo hesitou no lado direito do triângulo. — Mas este fio não
éAndulvar. Devia ser, uma vez que é o Guarda-Mor, mas é outro.
Alguémque ainda não está aqui, alguém que me guiará às respostas de
que necessitopara caminhar pelo outro caminho.
«O fio não dizer o seu nome?«

— Diz que o espelho está a chegar. Que tipo de resposta é… — Ficando


tensa, Jaenelle pôs-se de joelhos. — Daemon — sussurrou. — Daemon.
A aranha mexeu-se com inquietação. A Feiticeira saboreara o ar comum
intenso prazer ao sussurrar aquele nome – porém, sob o prazer
estavaum ligeiro travo a medo.
— Tenho de ir — disse Jaenelle à pressa, pondo-se em pé de um salto.
— Ainda tenho de parar nalguns Territórios dos parentes antes de
regressarao Paço. — Hesitou, olhou de relance para a aranha. — Com a
tua permissão,
gostaria de guardar esta durante uns tempos.
«As tuas teias ser bem-vindas entre as Tecedeiras de Sonhos.«
Erguendo a mão, Jaenelle usou a Arte para lançar um escudo protec

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tor nos fios da teia entrelaçada. Voltou-se para trás, olhando para a
aranha.

— Que as Trevas te protejam, Irmã.


«E a ti, Rainha Irmã« respondeu cerimoniosamente a aranha.
A Rainha arachniana aguardou até que Jaenelle apanhasse um dos
Ventos, as estradas psíquicas que percorriam as Trevas, antes de usar a
Artepara flutuar com delicadeza em direcção à teia entrelaçada.

Uma teia, uma visão. Era esse o costume. Contudo, quando a Feiticeira
tecia uma teia…

Fazendo uso do instinto e de todos os seus ensinamentos, a aranha


roçou
levemente com uma das patas num dos pequenos fios que
flutuavamsoltos do anel Ébano. A teia entrelaçada desvendou-lhe o
segundo caminho.

A aranha recuou bruscamente. «NÃO!« gritou, enviando um fio psíquico


de comunicação tão longe quanto conseguia alcançar. «NÃO! Não pelo
segundo caminho. Não é resposta! Tu não caminhar por esse caminho!«

Não obteve resposta. Nem um tremeluzir da mente poderosa da


Feiticeira
que indicasse que tinha ouvido.

«Tu não caminhar por esse caminho« voltou a dizer a aranha


tristemente,
vendo com nitidez onde esse caminho conduziria.

Talvez não. A Feiticeira conseguia tecer uma teia entrelaçada melhordo


que qualquer outra Viúva Negra, mas nem a Feiticeira conseguia
detectar
todos os aromas nos fios.

A Rainha arachniana voltou para a teia e sentiu um leve puxão.


Caminhando
pelo ar, seguiu o puxão até um fio junto ao lado da teia que
seencontrava apoiado na árvore. Com cautela, roçou uma pata no fio.

Cão. O cão castanho e branco que vira na primeira teia que


teceradepois de passar a estação do frio. Pedira à Feiticeira que
trouxesse o cão,
Ladvarian, à ilha das Tecedeiras. Queria ver este Senhor da Guerra – e
queria
que ele a visse.
Puxou pelo fio de Ladvarian, sentindo as vibrações a percorrerem ateia.
Muitos dos fios ligados ao anel Ébano – os fios dos parentes –
começaram
a brilhar. Também os fios humanos brilhavam, mas não com igual
intensidade,
não com igual perseverança. Tinha de se lembrar disso. E
aqueletriângulo…

Mantendo a pata apoiada no fio de Ladvarian, a aranha deixou a mente


pairar até à gruta secreta, a gruta sagrada no centro da ilha. Era aí que
asRainhas arachnianas se dirigiam vezes sem conta para ouvirem os
sonhos

– e para tecerem, fio a fio, as teias especiais que ligavam os sonhos ao


corpo,
sendo o primeiro passo tangível na criação da Feiticeira.
Pequenas teias. Teias maiores. Por vezes, fora uma única raça, fora
umúnico tipo de sonhadores, a dar corpo à Feiticeira. Outras vezes, os
sonhadores
eram originários de sítios diferentes, tendo necessidades diferentes

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que, de alguma forma, se encaixavam, tornando-se num sonho único.

Quando o tempo desse sonho corpóreo terminava, cessando a sua


viagem
pelos Reinos, a Rainha arachniana cortava respeitosamente os fios
desuporte que mantinham a teia presa às paredes da gruta, enrolava a
seda dearanha numa bola e depositava-a num nicho para depois,
mediante a Arte,
fazer com que crescessem cristais sobre a abertura. Existiam muitos
nichosfechados, mais do que os Sangue humanos poderiam pensar. A
verdade éque os parentes sempre se revelaram sonhadores mais
crentes.

Na gruta, existia uma teia que fora iniciada há muito, muito tempo.
Geração após geração, as Rainhas arachnianas cardaram um dos fios
desuporte dessa teia, escutaram os sonhos e adicionaram mais
filamentos.
Tantos sonhadores nesta teia, tantos sonhos que se conjugaram para se
tornarem
num só. Há vinte e cinco anos, pelo cálculo humano, esse
sonhoganhara, enfim, corpo.

No centro dessa teia especial existia um triângulo. Três sonhadores


poderosos.
Três fios que foram reforçados tantas vezes que eram agora grossose
extraordinariamente poderosos.

E, enquanto devorava a carne da sua antecessora, oferecida de


livrevontade, fora transmitida a mesma mensagem a cada Rainha:
Lembra-tedesta teia. Conhece esta teia. Compreende cada fio.

A aranha voltou a centrar a atenção na nova teia.

Sonhos tornados realidade. Um espírito sustentado nas Trevas,


moldado
pelos sonhos. E uma teia entrelaçada, igualmente sustentada e
escondida
numa gruta repleta de poder vetusto, que guiava esse espírito para
otipo corpóreo adequado.

Por vezes, surgiram momentos em que a aranha viu coisas terríveisnas


suas teias oníricas e visionárias, momentos em que se perguntou seesse
espírito específico teria, verdadeiramente, encontrado o corpo indicado;
momentos em que se questionou se, porventura, alguns dos fios
nãoseriam demasiado antigos. Não, existia uma razão para que este
espíritotivesse sido moldado neste corpo. O sofrimento e as chagas não
foram daresponsabilidade do acto de sonhar – nem dos sonhadores.
A aranha extraiu seda do seu corpo, ligando-a cuidadosamente ao fiode
Ladvarian.

Ora bem. A Feiticeira optaria pelo segundo caminho, não tendo


consciência
de que ao salvar Kaeleer e os seus entes queridos, iria provocar
adestruição do Coração de Kaeleer.

Tinha de haver uma maneira de salvar o Coração de Kaeleer.

Tecendo um fio de suporte entre o tronco da árvore e um ramo robusto,


a Rainha arachniana começou a tecer a sua própria teia entrelaçada.

24
CAPÍTULO DOIS

1 / Kaeleer

Lucivar Yaslana folheou a lista de volta à primeira página de nomes


ordenadamente
escritos e afastou-se da mesa, subtilmente divertido perante oshomens
apanhados entre a vontade de consultar as listas na mesa e a vontade
de não se chegarem muito perto dele.

Essa era uma das vantagens em relação aos outros homens que
vagueavam
de mesa em mesa para examinarem as listas da feira de serviços.
Ninguém o acotovelava ou se queixava por levar muito tempo a
perscrutaros nomes, pois ninguém queria intrometer-se com um
Príncipe dos Senhores
da Guerra que usava Jóias Ébano-Acinzentadas, que era um
guerreiroeyrieno nascido e criado e que tinha um temperamento cruel e
a reputaçãode soltar as rédeas a esse temperamento – e aos punhos –
sem pensar duasvezes. Acrescia ainda o facto de pertencer a uma das
famílias mais poderosas
do Reino, bem como encontrar-se ao serviço da Corte das Trevas em
Ebon Askavi, não sendo, pois, de admirar que outros homens
rapidamentelhe dessem precedência.

Mas nem todos esses factores contribuíam para se sentir tranquilo


nafeira de serviços em Goth, a capital da Pequena Terreille. Fosse qual
fosse onome que lhe dessem, esta feira tinha o travo acentuado às feiras
de escravos
que ainda se realizavam no Reino de Terreille.

Dirigindo-se para a porta com lentidão, Lucivar respirou fundo e,


deimediato, desejou não o ter feito. O enorme salão estava à cunha e,
mesmocom as janelas abertas, o ar tresandava a suor e a cansaço – e
ao medo edesespero que pareciam erguer-se dos milhares de nomes
naquelas listas.

Logo que se encontrou no exterior do edifício, Lucivar abriu as


asasescuras e com membranas em toda a sua envergadura. Não estava
certo seseria por desafio devido a todas as vezes que esse movimento
natural lhevalera o golpe de um chicote ou se queria unicamente sentir
o sol e o vento
nas asas por um momento, depois de ter estado no interior do edifício

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durante várias horas – ou, ainda, se seria simplesmente uma forma de
selembrar de que agora era o comprador e não a mercadoria.

Fechando as asas, dirigiu-se ao canto mais distante do recinto


reservado
para o “acampamento” eyrieno.

Reparara em vários nomes eyrienos que lhe interessavam, mas não


oúnico nome – o nome haylliano – que era a razão principal pela qual
passaraas últimas horas a pesquisar aquelas malditas listas. Contudo,
nos últimoscinco anos viera sempre procurar o nome de Daemon nas
listas, desde queos idiotas do Conselho das Trevas decidiram que estas
“feiras de serviços”
bianuais seriam a forma de encaminhar as centenas de pessoas que
fugiamde Terreille e que tentavam encontrar algo a que se agarrar em
Kaeleer. Equestionou-se, como sempre acontecia, sobre a razão da
ausência do nomede Daemon. E rejeitava, como sempre acontecia,
todas as razões, exceptouma: não estava a procurar o nome correcto.

Mas tal não seria provável. Independentemente do nome que


Daemonusasse para chegar a Kaeleer, uma vez na feira teria de usar o
próprio nome.
Aqui, muita gente o reconheceria e, dado que o castigo por mentir sobre
asJóias usadas era a expulsão imediata do Reino – seja de volta para
Terreilleou a derradeira morte – alterar o nome mas continuar a admitir
que usavaas Jóias Negras só o faria parecer idiota visto que era o único
macho, paraalém do Senhor Supremo, a usar as Negras em toda a
história dos Sangue.
As Trevas sabiam que Daemon era muitas coisas, mas não era idiota.

Afastando a punhalada da desilusão, Lucivar magicou sobre a


formacomo iria explicar isto a Ladvarian. O Senhor da Guerra sceltita
fora tãoinsistente para que, desta vez, Lucivar verificasse as listas
minuciosamente,
parecera tão confiante. A maioria das pessoas acharia estranho este
sentimento
de apreensão por poder desapontar um cão que mal lhe chegavaaos
joelhos, contudo, tendo esse cão como melhor amigo mais de
trezentosquilos de temperamento felino, um homem inteligente não
ignoraria sentimentos
caninos.

Lucivar afastou estes pensamentos ao chegar ao “acampamento”


eyrieno:
um grande cercado em terra batida, uma caserna em madeira
deficientemente
construída, uma bomba de água e uma enorme tina. Não era assimtão
diferente dos redis de escravos em Terreille. Oh, existiam
alojamentosmelhores no recinto para aqueles que ainda dispunham dos
marcos emouro ou prata para pagar, com água quente e camas que não
eram merossacos-cama no chão. Mas para a maioria, resumia-se a isto:
um grande esforço
para ficar apresentável depois de dias de espera, a remoer, com
esperanças.
Mesmo aqui, entre uma raça em que a arrogância era tão naturalcomo
respirar, conseguia detectar os odores da fadiga extrema
provocadapelos escassos víveres, pelo pouco tempo de sono e pelos
nervos desgasta

26
dos até ao ponto de ruptura. Quase conseguia saborear o desespero.

Abrindo o portão, Lucivar entrou. A maior parte das mulheres


estavajunto à caserna. A maior parte dos homens dividia-se em
pequenos grupos,
próximos do portão. Alguns olharam-no de relance e ignoraram-no.
Outros ficaram tensos ao reconhecê-lo, desviando o olhar, ignorando-o
damesma forma que haviam ignorado o rapaz bastardo que acreditara
ser.

Contudo, alguns dos machos começaram a dirigir-se a Lucivar.


Cadatraço do corpo a lançar um desafio.

Lucivar sorriu-lhes devagar e de modo arrogante, numa aceitação


ostensiva
do desafio, para logo a seguir lhes virar as costas e dirigir-se ao Senhor
da Guerra cuja atenção estava centrada nos dois rapazes
empenhadosnum exercício de treino com os bastões.

Um dos rapazes reparou em Lucivar, esquecendo-se do seu


companheiro
de treino. O outro rapaz usou essa vantagem e espicaçou o primeirocom
força na barriga.

— Fogo do Inferno, rapaz — disse o Senhor da Guerra com uma tal


irritação
que Lucivar fez um esgar. — Tens sorte por só ficares com a
barrigadorida e não com uma amolgadela nessa tola bronca. Baixaste a
guarda.
— Mas… — disse o rapaz, começando a erguer a mão e a apontar.
O Senhor da Guerra ficou tenso, mas não se virou. — Se começas a
preocupar-te com o homem que ainda não te alcançou, aquele com
quemestás a lutar irá matar-te. — Foi nesse momento que se virou,
devagar, arregalando
os olhos.

O esgar de Lucivar acentuou-se. — Estás a amolecer, Hallevar.


Costumavas
pôr-me a barriga a doer e depois ainda levava um estalo por
terpermitido que isso acontecesse.

— Baixas a guarda numa luta? — rezingou Hallevar.


Lucivar limitou-se a rir.
— Então por que estás para aí a lamuriar-te? Põe-te direito, rapaz,
edeixa-me olhar bem para ti.
As bocas dos rapazes estavam escancaradas face ao desrespeito de
Hallevar
por um Príncipe dos Senhores da Guerra. Os machos que
repararamnele e que decidiram falar – ou lutar – tinham formado um
semicírculo doseu lado direito. Contudo, Lucivar manteve-se imóvel
enquanto os olhosde Hallevar percorriam o seu corpo; nada disse em
resposta aos sons deaprovação do homem mais velho e reprimiu uma
gargalhada ao ver o olharfurioso de desaprovação pelo cabelo preto e
espesso, que lhe dava pelosombros.

A forma como usava o cabelo era uma quebra na tradição, uma vezque
os guerreiros eyrienos usavam o cabelo curto para evitar que o inimigo

o agarrasse. Contudo, depois de se evadir das minas de sal de Pruul, há


oito
27
anos, e tendo vindo parar a Kaeleer em vez de morrer, menosprezara
bastantes
tradições – e, ao fazê-lo, encontrara outras ainda mais antigas.

— Bem — rosnou Hallevar, por fim, — desenvolveste-te bem e, embora


não tenhas uma cara nem de longe tão bonitinha como a desse
bastardosádico a quem chamas de irmão, conseguirás enganar as
Senhoras durantealgum tempo, desde que mantenhas a fúria com rédea
curta. — Massajoua nuca. — Mas este é o último dia da feira. Não resta
muito tempo paraatraíres a atenção de alguém.
— Nem a ti — retorquiu Lucivar — e a pôr esses cachorrinhos à
provanão demonstrarás a ninguém aquilo de que és capaz.
— Quem quer carne rija quando podem ter carne fresca? — resmoneou
Hallevar, desviando o olhar.
— Não comeces a cavar a tua própria sepultura — disse Lucivar
bruscamente,
não ficando satisfeito pelo alívio que sentiu ao ver a raiva a incendiar
os olhos de Hallevar. — És um guerreiro experiente e um mestre
dearmas conhecedor com anos pela frente que permitirão ainda treinar
maisuma ou duas gerações. Este é apenas outro tipo de campo de
batalha, porisso, agarra na tua arma e mostra a tua coragem.
Hallevar sorriu com relutância.

Necessitando de um contrapeso, Lucivar virou-se para os outros


homens.
Pelo canto do olho, reparou que algumas mulheres se aproximavam.
E reparou que algumas traziam com elas crianças muito pequenas.

Refreou as emoções que começavam a fervilhar demasiado próximas


da superfície. Tinha de escolher com cuidado. Alguns
conseguiriamadaptar-se ao modo de vida dos Sangue em Kaeleer e
construiriam aquiuma vida agradável. Outros depressa morreriam de
forma violenta por nãoconseguirem, ou não desejarem, adaptar-se.
Tinha feito algumas escolhaserradas nas duas primeiras feiras,
depositara confiança e não o devia terfeito. Por isso, carregava a culpa
pelas vidas estilhaçadas de duas feiticeirasque foram violadas e
espancadas – e carregava a memória da raiva doentiaque sentira ao
executar os machos eyrienos responsáveis por esses actos.
Depois disso, encontrara uma forma de confirmar as suas escolhas.
Nemsempre confiara no seu próprio discernimento, mas nunca
duvidara do deJaenelle.

— Lucivar.
Lucivar centrou a atenção no Príncipe dos Senhores da Guerra comJóia
Azul-Safira que avançara para a frente do grupo. — Falonar.

— Príncipe Falonar — ripostou Falonar.


Lucivar mostrou os dentes num sorriso feríssimo. — Julguei que
estávamos
a ser informais pois tenho a certeza que um macho da aristocraciacomo
tu não esqueceria algo como cortesia elementar.

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— Por que motivo deveria agraciar-te com cortesias?
— Porque eu uso a Ébano-Acinzentada — respondeu Lucivar com
demasiada
delicadeza ao reposicionar-se ligeiramente, deixando que o outrohomem
percebesse o desafio e tomasse uma opção.
— Parem lá com isso, os dois — disse Hallevar bruscamente. —
Estamos
todos a pisar areias movediças neste lugar. Não precisamos que
nosretirem o chão debaixo dos pés só porque vocês continuam a querer
provarqual dos dois tem a pila maior. Esmurrei ambos quando eram
fedelhos presunçosos
e ainda consigo fazê-lo.
Lucivar sentiu a tensão a fenecer e recuou um passo. Hallevar sabiatão
bem quanto ele que poderia partir o homem mais velho em dois comas
mãos ou com a mente, contudo Hallevar fora um dos poucos que vira
oguerreiro latente, que não se importara com a linhagem – ou a
inexistênciade uma.

— Assim é melhor — disse Hallevar a Lucivar, acenando a cabeça em


sinal de aprovação. — E tu, Falonar. Tiveste duas ofertas, que é mais do
quea maioria de nós pode dizer. Talvez fosse melhor se atentasses
nelas.
O rosto de Falonar ficou ainda mais tenso. Inspirou fundo e expirou.

— Talvez fosse melhor. Não parece que o canalha vá aparecer.


— Que canalha é esse? — perguntou Lucivar serenamente. Mais
mulheres
e alguns dos homens que se recusaram a reconhecê-lo tinham-
seaproximado devagar.
A resposta foi dada por um jovem Senhor da Guerra. — O Príncipedos
Senhores da Guerra de Ebon Rih. Ouvimos…

— Ouviram…? — Lucivar incitou o Senhor da Guerra a terminar,


reparando no movimento de um homem que se aproximou um
poucomais da feiticeira que segurava nos braços uma adorável menina.
Os olhosdourados de Lucivar semicerraram-se enquanto abria os
sentidos psíquicosmais um pouco. Uma pequena Rainha. Desviou o
olhar para o rapaz quesegurava com ambas as mãos a saia da mulher.
Sentiu força, sentiu potencialidades.
Sentiu algo a deslocar-se no seu interior, a intensificar-se. — Oque
ouviram?
O Senhor da Guerra engoliu em seco. — Ouvimos dizer que é
umcanalha severo, mas que é justo se o servirmos bem. E não…

Foi o medo nos olhos da mulher e a forma como a sua pele


morenaempalideceu que afilaram a fúria de Lucivar. — E não come uma
mulher anão ser que ela o encoraje? — disse, com extrema delicadeza.
Detectou um acesso de raiva feminina nas proximidades. Antes
deconseguir localizar a origem, lembrou-se das crianças que,
provavelmente,
já apresentariam demasiadas mazelas. — O que ouviram é correcto.
Não ofaz.

29
Falonar mexeu-se, chamando novamente a atenção de Lucivar – e da
sua fúria – para alguém que a pudesse defrontar. Depois olhou de
modocontundente para Hallevar e para dois outros homens que
conhecera antesde séculos de escravidão o terem afastado das cortes e
dos campos de caçaeyrienos.

— É por isso que têm aguardado? — Embora com esforço,


conseguiumanter a voz indiferente.
— Tu não esperarias? — retribuiu Hallevar. — Pode não ser o Território
que conhecíamos em Terreille, mas também aqui lhe chamam Askavi
etalvez não nos pareça tão… estranho.
Lucivar cerrou os dentes. A tarde estava a voar. Tinha de escolher e
tinha de o fazer neste momento. Voltou-se para Falonar. — Irás vacilar
sempre
que receberes ordens minhas?

Falonar ficou tenso. — E por que deveria eu aceitar ordens vindas de


ti?

— Porque eu sou o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih.


Choque. Quietude tensa. Alguns homens – muitos dos que se tinham
aproximado – olharam-no com aversão e afastaram-se.
Falonar semicerrou os olhos. — Já tens contrato?

— De longa data. Pensa bem, Príncipe Falonar. Se servir sob as minhas


ordens te ficar atravessado na garganta, é melhor aceitares uma
dessasofertas uma vez que, se quebrares as regras que eu determinar,
desfaço-teem bocadinhos. E tu – e todos os que aqui aguardavam – têm
que pensarmelhor no que é Ebon Rih.
— É o Território da Fortaleza — disse Hallevar. — Como o Vale Negroem
Terreille. Nós sabemos.
Lucivar acenou com a cabeça, não desviando os olhos de Falonar. —
Existe uma grande diferença. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu
sirvona Corte das Trevas em Ebon Askavi.

Várias pessoas arquejaram. Os olhos de Falonar arregalaram-se.


Foientão que olhou para a Jóia Ébano-Acinzentada que pendia da
correnteem ouro ao pescoço de Lucivar, mas não era um olhar
insultuoso, era antesum olhar de deferência. — E lá existe mesmo uma
Rainha? — perguntoudevagar.

— Oh, claro — respondeu Lucivar afavelmente. — Existe lá uma


Rainha.
Também deves ter presente o seguinte: eu apresento-lhe as
minhasescolhas relativamente a quem me serve em Ebon Rih, mas a
decisão finalé dela. Se ela disser ‘não’, tu desapareces. — Olhou para as
pessoas nervosase silenciosas que o observavam. — Não resta muito
tempo para decidir. Euaguardo junto ao portão. Quem estiver
interessado pode ir ter comigo parafalarmos.
30
Caminhou na direcção do portão, consciente dos olhares que o
seguiam.
Manteve-se de costas para eles, olhando para as cercas que serviamde
áreas de espera para outras raças. Observou tudo e não viu nada.

Já não deveria ter importância. Aqui tinha um lugar, aqui tinha


umafamília, uma Rainha que amava e que se sentia honrado por servir.
Era respeitado
pela inteligência, pela perícia como guerreiro e pelas Jóias que usava.
E era admirado e amado por ser quem era.

Porém, passara 1.700 anos na crença de que era uma bastardo mestiço
e os insultos e os golpes de que fora alvo, ainda rapaz, nos campos
decaça, ajudaram a moldar o temperamento assombroso que herdara
do pai.
Depois disso, as cortes onde servira como escravo depositaram o
possanteremate cruel.

Já não deveria ter importância. Já não tinha importância. Não


permitiria
que isso o voltasse a magoar. Mas sabia também que, se Hallevar
decidisse
voltar a Terreille ou aceitasse as migalhas que lhe eram oferecidas
noutracorte ao invés de assinar contrato com Lucivar, passaria muito
tempo até que

o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih voltasse à feira de


serviços.
— Príncipe Yaslana.
Lucivar quase sorriu face à relutância na voz de Falonar, contudo,
manteve o rosto com uma expressão cuidadosamente neutra ao voltar-
separa encarar o outro homem. — Já estás a sufocar? — Surpreendeu-
se coma circunspecção cautelosa que viu nos olhos de Falonar.

— Nunca simpatizámos um com o outro, por diversas razões. Agora,


não temos de simpatizar um com o outro para trabalharmos juntos.
Juntos,
combatemos os jhinkas. Sabes do que sou capaz.
— Nessa altura, éramos combatentes inexperientes, ambos recebíamos
ordens de outrem — disse Lucivar, com cautela. — Agora é diferente.
Falonar acenou com a cabeça, solenemente. — Agora é diferente.
Todavia,
pela oportunidade de servir em Ebon Rih, estou disposto a pôr
opassado de lado. E tu?

Tinham sido rivais, adversários, dois jovens Príncipes dos Senhoresda


Guerra a debaterem-se para provar a respectiva superioridade.
Falonarpartira para servir no Primeiro Círculo da Sacerdotisa Suprema
de Askavi.
Lucivar partira para a escravidão.

— Consegues cumprir ordens? — perguntou Lucivar. Não era


umapergunta despropositada. Os Príncipes dos Senhores da Guerra
faziam assuas próprias leis. A menos que entregassem o coração, para
além do corpo,
a obediência a ordens não era fácil para nenhum deles. Nem naquela
alturatinha sido fácil.
— Consigo cumprir ordens — disse Falonar, para depois acrescentarem
voz baixa: — Quando as consigo tolerar.
31
— E estás disposto a seguir as regras que eu determinar, mesmo
quesignifique perder alguns dos privilégios que estarias à espera?
Falonar semicerrou os olhos dourados. — Não me digas que já não
quebras algumas regras?
A pergunta fez com que Lucivar soltasse uma gargalhada surpresa.

— Oh, ainda quebro algumas. E depois levo uns belos pontapés no


rabo.
Falonar abriu a boca para, de imediato, a voltar a fechar.
— O Administrador e o Guarda-Mor — disse Lucivar friamente, em
resposta à pergunta tácita.
— E essas Jóias não te dão uma margem de manobra? —
questionouFalonar, inclinando a cabeça para indicar a Jóia Ébano-
Acinzentada de Lucivar.
— Com aqueles dois, nem pensar.
Falonar pareceu surpreendido, depois ficou pensativo. — Estás aquihá
quanto tempo?

— Oito anos.
— Então já cumpriste o teu contrato.
Lucivar sorriu sarcasticamente. — Dirige as tuas ambições para
outrolado, Príncipe. O meu contrato é vitalício.
Falonar ficou tenso. — Julguei que os Príncipes dos Senhores da
Guerra
só necessitavam servir cinco anos numa corte.
Lucivar acenou com a cabeça em sinal afirmativo e reprimiu o
prazerque o assaltou ao ver Hallevar a dirigir-se a ele. — É essa a
exigência. — Sorriu
maliciosamente. — A Senhora demorou apenas três anos a perceberque
não foram essas as minhas condições.

Falonar hesitou. — Como é a Senhora?

— Maravilhosa. Bela. Espantosa. — Lucivar olhou para Falonar


deforma apreciativa. — Vens para Ebon Rih?
— Vou para Ebon Rih. — Falonar acenou com a cabeça para Hallevare
afastou-se para deixar passar o homem mais velho.
— Gostaria de ir contigo — disse Hallevar repentinamente.
— Mas? — disse Lucivar.
Hallevar olhou por cima do ombro para os dois rapazes que
pairavamfora do alcance do ouvido. Voltou-se para Lucivar. — Afirmei
que me pertenciam.

— E pertencem?
Os olhos de Hallevar inflamaram-se. — Se fossem meus, tê-los-ia
reconhecido,
mesmo que as mães negassem a paternidade. Nos registos temde
constar um genitor para que uma criança não seja considerada
bastarda,
mesmo que o homem não tenha a possibilidade de ser pai.

As palavras dilaceravam-no. Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Aska

32
vi em Terreille e Dorothea SaDiablo tinham tecido as suas teias de
mentiras
para o separar de Luthvian, a sua mãe, para além de terem alterado os
documentos
de nascimento pois não queriam que ninguém soubesse quem era,
de facto, o seu pai. Ficara estarrecido quando soube que o
ressentimentoque carregava consigo devido a esse ludíbrio não era nada
em comparaçãocom a raiva de Saetan.

— A mãe de um deles é uma prostituta numa casa da Lua Vermelha —


disse Hallevar. — Não admira que não soubesse quem a fecundou. A
outramulher era a conhecida amante de um Senhor da Guerra da
aristocracia.
A feiticeira com quem casara era estéril e era do conhecimento geral que
secertificava de que a sua amante não convidava mais nenhum homem
paraa cama. Queria a criança, tê-la-ia reconhecido. Contudo, quando
nasceu, amãe indicou uma dúzia de homens na corte que declarava
puderem ser osgenitores. Fê-lo propositadamente e, por querer vingar-
se do pai, condenoua criança.

Lucivar acenava simplesmente com a cabeça, debatendo-se com a


iraque ardia no seu interior.

— Este é um lugar novo, Lucivar — suplicou Hallevar. — Uma


novaoportunidade. Tu sabes como é. Deves compreender melhor do que
ninguém.
Não são fortes como tu. Nenhum dos dois irá usar Jóias escuras.
Massão bons rapazes e terão o seu valor. E são eyrienos puros —
acrescentou.
— Por isso não carregam o estigma de serem mestiços —
argumentouLucivar, demonstrando um controlo implacável.
— Nunca usei essa palavra contigo — disse Hallevar calmamente.
— Não, não usaste. Mas é uma palavra que sai facilmente sem pensar.
Por isso, dou-te um conselho, Senhor Hallevar. É uma palavra que
serámelhor esqueceres, pois nada poderei fazer para te salvar se a
proferires napresença do meu pai.
Hallevar olhou espantado para Lucivar. — O teu pai está aqui?
Conhece-
lo?

— Conheço. E acredita, não sabes o que é a fúria até seres o receptorda


ira do meu pai.
— Não me esquecerei. E os rapazes?
— Sem mentiras, Hallevar. Levá-los-ei por eles próprios e terão de
sesujeitar à aprovação da Rainha, como qualquer outro macho.
Hallevar sorriu, claramente aliviado. — Vou-lhes dizer para reuniremos
nossos pertences. — Um aceno curto com a mão e os rapazes
correrampara a caserna. Sem olhar para Lucivar, perguntou: — Tem
orgulho de ti?

— Quando não me quer esganar ou dar um pontapé no rabo.


Hallevar tentou reprimir uma gargalhada e acabou por produzir
umapieira. — Gostaria de conhecê-lo.

33
— Assim será — prometeu Lucivar, friamente.
Quer fosse por ver os primeiros a ser aceites, quer fosse por precisarem
de algum tempo para reunir coragem, outros foram-se aproximando.
Aproximou-se o jovem Senhor da Guerra, Endar e a mulher, Dorian,

o filho deles, Alanar e a filha Orian, a pequena Rainha.


A mulher estava apavorada, o homem nervoso. Todavia, a meninasorriu
ternamente para Lucivar, desencostou-se da mãe e estendeu-lhe
osbraços.

Lucivar pegou nela, apoiou-a na anca e sorriu abertamente. — Não


venhas
com ideias, olhos vivos. Já estou comprometido — disse-lhe, ao mesmo
tempo que lhe fazia suaves cócegas, suscitando-lhe risadinhas.
Quandoa entregou de volta à mãe, Dorian fitava-o como se lhe tivesse
nascido outracabeça.

De seguida, aproximaram-se Nurian, uma Curandeira que ainda


nãocompletara a formação, com a irmã mais nova, Jillian, que estava
prestes afazer a passagem de rapariga para mulher.

Depois veio Kohlvar, um artesão de armas. Seguiram-se Rothvar e


Zaranar,
dois guerreiros que Lucivar recordava dos campos de caça.

Enquanto falava com eles, um pensamento importunava-o. Qual


omotivo que os tinha trazido aqui? Kohlvar era um jovem homem, pelos
padrões
das raças de longevidade prolongada, quando Lucivar fora
mandadoembora de Askavi. Mesmo nessa altura, Kohlvar tinha acabado
de terminar
a sua aprendizagem e já era conhecido pela força e pelo equilíbrio
dasarmas que fabricava. Poderia ter tido uma boa vida em Terreille e
poderiater-se mantido afastado das intrigas da corte, se assim o
quisesse. Rothvare Zaranar eram guerreiros experientes, que poderiam
ter encontrado umaposição na maioria das cortes de Askavi ou
poderiam ter aceitado qualquertipo de trabalho independente, se assim
o desejassem.

E por que razão um Príncipe dos Senhores da Guerra da


aristocraciadeixaria Terreille?

A circunspecção que sentia avolumou-se. Estaria a situação em


Terreillemuito pior do suspeitavam ou estariam estes homens aqui por
outra razão?
Lucivar afastou estes pensamentos. Não detectara nada nas pessoasque
o procuraram que o levasse a rejeitá-las, por isso deixaria esta
dúvidasossegada, por agora. E deixaria que Jaenelle as julgasse.

Quando o último homem partiu para ir buscar os seus pertences


àcaserna, Lucivar concordara levar consigo vinte machos e uma dúzia
defêmeas.

Quantos sobreviveriam até ao final dos contratos?, perguntou-se aovê-


los dirigirem-se apressadamente para ele, com os parcos pertences
quetinham sido autorizados a trazer. Em Kaeleer, existiam outros
perigos para

34
além dos que esperavam. Sem esquecer os demónios-mortos. Tendo
emconta o lugar para onde os levava, depressa teriam de aceitar a
realidade deter demónios-mortos a caminhar entre eles.

Inspirou fundo e deixou sair o ar lentamente. — Prontos?

Achou divertido, embora não o tivesse surpreendido, ver Falonar


ainspeccionar o grupo e responder-lhe como se Lucivar já o tivesse
aprovadocomo o seu segundo-comandante.

— Estamos prontos.
2 / Kaeleer

Daemon Sadi cruzou as pernas, juntou os dedos e apoiou o queixo nas


longas
unhas tingidas a negro. — E as Rainhas nos outros Territórios? —
perguntou
com a sua voz profunda e culta.

O Senhor Jorval sorriu, enfadado. — Tal como expliquei anteriormente,


Príncipe Sadi, as Rainhas que não são da Pequena Terreille não
estãodispostas a aceitar de bom grado os Irmãos e Irmãs terreilleanos
nas suascortes e mesmo os imigrantes que conseguem contratos não se
sentem desejados.

— Indagastes? — Os olhos dourados de Daemon ficaram


momentaneamente
vidrados. Um estranho ou um conhecimento de passagem poderiam
pensar que parecia cansado ou entediado, contudo, aquele
olharletárgico teria apavorado quem realmente o conhecesse.
— Indaguei — disse Jorval, com alguma rispidez. — As Rainhas
nãoresponderam.
Daemon olhou de relance para as quatro folhas de papel espalhadas
nasecretária à sua frente. Nos últimos dois dias, ele e Jorval tinham-se
sentado
nesta sala por seis vezes. Aquelas folhas de papel, com as quatro
Rainhasinteressadas na obtenção dos seus serviços, tinham-lhe sido
apresentadasna primeira reunião. Foram as únicas.

Jorval entrelaçou as mãos e suspirou. — Tendes de compreender.


Um Príncipe dos Senhores da Guerra é considerado um elemento
perigoso,
mesmo quando usa uma Jóia mais clara e serve no seio do seu próprio
povo. Um homem com o vosso vigor e reputação… — Encolheu
osombros. — Tenho consciência de que as vossas expectativas
pudessem serdiferentes. As Trevas bem sabem, são muitos os que
possuem uma ideiairrealista da vida em Kaeleer. Mas posso afiançar-
vos, Príncipe, que o factode termos quatro Rainhas dispostas a aceitar o
desafio de vos ter ao serviçonas suas cortes durante os próximos cinco
anos é insólito – e não é umaoportunidade que se deva ignorar.

35
Daemon não deu qualquer indicação de que a advertência fora
sentidacom a intensidade de uma estocada. Não, não podia ignorar as
opções limitadas
se quisesse permanecer em Kaeleer. Mas não sabia se conseguiria
suportar
qualquer uma daquelas mulheres durante o tempo suficiente para
fazeraquilo que aqui o trouxera. E não conseguia deixar de imaginar
qual seria adimensão da oferenda que Jorval receberia da Rainha que
escolhesse.

De repente, era demasiado: a privação de sono, a pressão para


fazeruma escolha incómoda, os nervos à flor da pele devido ao que
planeara – eas questões que se tinham levantado das conversas que
escutara ao passearpela feira de serviços.

— Vou considerá-las e depois informo-vos — disse Daemon, dirigindo-


se para a porta com a agilidade graciosa que levava os observadores
aimaginar um predador felino.
— Príncipe Sadi — chamou Jorval bruscamente.
Daemon parou à porta e voltou-se.
— O último sino soará em menos de uma hora. Se até lá não tiverdes
escolhido, não restará qualquer opção. Tereis de aceitar qualquer tipo
deoferta que vos for proposta ou abandonar Kaeleer.
— Estou ciente da situação, Senhor Jorval — disse Daemon, com
demasiada
delicadeza.
Saiu do edifício, enfiou as mãos nos bolsos das calças e começou a
caminhar sem destino.
Desprezava o Senhor Jorval. Havia algo no odor psíquico do homem,
algo infectado. E, por detrás daqueles olhos sombrios e inexpressivos,
muito
havia escondido. Desde o primeiro encontro, vira-se forçado a combater

o desejo instintivo de ascender à orla assassina e de enfiar o mirrado


Senhorda Guerra numa cova funda e secreta.
Que motivo teria levado o Senhor Magstrom a encaminhá-lo paraJorval?
Ao chegar a Goth, falara sucintamente com o ancião, a uma horatardia
no terceiro dia da feira e estava cautelosamente disposto a confiarna
opinião do homem. Ao exprimir o desejo de servir numa corte fora
daPequena Terreille, os olhos azuis de Magstrom cintilaram de regozijo.

As Rainhas para além das fronteiras da Pequena Terreille são


bastanteselectivas quanto às escolhas que fazem, dissera Magstrom.
Contudo, dispõem
de uma vantagem relativamente a um homem como vós – sabem
lidarcom machos de Jóias escuras.

Magstrom prometera recolher informações e combinaram encontrar-


se no dia seguinte, de manhã cedo. Mas quando Daemon chegou, quem
oaguardava era o Senhor Jorval com os nomes de quatro Rainhas que
pretendiam
controlar a sua vida durante os cinco anos subsequentes.

Os odores a comida duvidosa que detectava ao passar afilaram-lhe o

36
temperamento já bastante aguçado, relembrando-lhe que quase não
comera
nos últimos dois dias. O choque de aromas intensos misturados
comodores corporais de igual intensidade, ajudaram-no a recordar a
razão que

o levou a não comer.


Mais do que isso, a incapacidade de dormir e a falta de apetite deviam-
se a questões para as quais não encontrava respostas. Não neste local.
Após sair do Reino Distorcido demorara cinco anos a chegar a Kaeleer.
Não havia pressa. Jaenelle não estava a aguardá-lo, tal como
prometeraquando marcou o trilho que indicava a saída da loucura.
Ainda não sabia

o que efectivamente acontecera quando tentara trazer Jaenelle do


abismopara que salvasse o corpo. As memórias dessa noite, passados
treze anos,
estavam ainda baralhadas, ainda lhe faltavam partes. Tinha a vaga
memóriade que alguém lhe dissera que Jaenelle estava morta – que o
Senhor Supremo
convencera outro macho a tornar-se o instrumento de destruição de
uma criança extraordinária.
Por isso, quando não encontrou Jaenelle na ilha onde Surreal e Manny

o mantiveram a salvo e escondido, e quando Surreal lhe contou acerca


dasombra que Jaenelle criara para o trazer para fora do Reino
Distorcido…
Passara os últimos cinco anos na crença de que ele assassinara a
criança
que era a sua Rainha; passara os últimos cinco anos na crença de
queela usara todas as derradeiras forças no esforço de o tirar da
loucura paraque saldasse a dívida que lhe era devida; passara os
últimos cinco anos aaprimorar as competências na Arte, permitindo que
a mente sarasse tanto
quanto possível com um único objectivo: vir para Kaeleer e aniquilar
ohomem que o usara como instrumento – o seu pai, o Senhor Supremo
doInferno.

Contudo, estando agora aqui…

Falatório e especulação sobre as feiticeiras no Reino das Sombras


circulavam
neste local, correntes de pensamentos facilmente apanhadas no ar.
As correntes que o enervaram ao passear pela feira no dia anterior
foramas especulações sobre uma estranha e terrível feiticeira que
conseguia vera alma de um homem só com um olhar. De acordo com o
falatório, quemquer que assinasse um contrato fora da Pequena
Terreille era levado à presença
dessa feiticeira e quem quer que fosse considerado inaceitável
nãosobrevivia para ver a luz de um novo dia.

Podia ter ignorado esse falatório, não fosse ter-lhe finalmente


ocorridoque, porventura, Jaenelle estivera à sua espera, mas não em
Terreille. Deixara
a mágoa toldar-lhe os pensamentos, bloqueando todas as memórias,
àexcepção das melhores que correspondiam aos poucos meses que
privaracom ela. Por conseguinte, esquecera-se dos laços que já ligavam
Jaenelle aKaeleer.

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Se estivesse, de facto, no Reino das Sombras, já perdera cinco anos
quepoderia ter passado junto a ela. Não iria passar os cinco anos
seguintes noutra
corte, almejando à distância.

Isto é, se ela estivesse viva.

Uma alteração nos odores psíquicos à sua volta fê-lo abandonar


ospensamentos. Olhou à volta e praguejou baixinho.

Estava na extremidade mais afastada do recinto da feira. A julgar


pelofirmamento, teria de correr para regressar ao edifício administrativo
e fazera sua escolha antes de soar o sino que indicava o término do
último dia dafeira. Mesmo assim, poderia não chegar a fazer uma
escolha se Jorval nãoestivesse a aguardá-lo.

Ao voltar-se para regressar, reparou num dos estandarte


vermelhosindicativos de um posto onde eram preenchidos os contratos
das cortes.
De um lado, estavam alguns eyrienos e, aguardando a vez, estava uma
filadeles. Contudo, foi o guerreiro eyrieno que observava os
procedimentosque imobilizou Daemon.

O homem usava um colete em cabedal e as calças pretas e justas queos


eyrienos apreciavam. O cabelo preto caía-lhe pelos ombros, o que
erainvulgar num macho eyrieno. Porém, foi a forma de estar, a forma
como semovia que lhe pareceu tão penosamente familiar.

Daemon foi invadido por uma alegria desvairada, ficando com o coração
na boca e os olhos a arder cheios de lágrimas. Lucivar.

Mas é óbvio que não podia ser. Lucivar morrera há oito anos, ao
fugirdas minas de sal de Pruul.

Foi nessa altura que o homem se virou. Por um momento,


Daemonpensou vislumbrar a mesma alegria desvairada nos olhos de
Lucivar antesde a ver perdida numa fúria fulminante.

Testemunhando a fúria e relembrando-se que os assuntos


inacabadosentres os dois só poderiam terminar em derramamento de
sangue, Daemon
refugiou-se por detrás da máscara gélida com a qual vivera a
maiorparte da vida e começou a afastar-se.

Tinha dado apenas alguns passos quando sentiu uma mão a agarrar-
lhe o braço direito e a virá-lo.

— Há quanto tempo estás aqui? — questionou Lucivar.


Daemon tentou livrar-se da mão, mas os dedos de Lucivar estavam
cravados com tanta força que deixariam marcas. — Há dois dias —
respondeu
Daemon com uma delicadeza fria. Sentiu que a máscara lhe estavaa
escapar por isso tinha de sair dali antes que as emoções
transbordassem.
Neste preciso momento, não estava certo se iria enfrentar a ira de
Lucivarcom lágrimas ou com raiva.

— Já assinaste algum contrato? — Lucivar abanou-o. — Já?


38
— Não, e resta-me pouco tempo para o fazer. Se tu me permitires.
Lucivar rosnou, apertou com mais força e quase levantou Daemon
dochão. — Não constavas das listas — resmoneou enquanto arrastava
Daemon
em direcção à mesa sob o estandarte vermelho. — Eu verifiquei.
Nãoconstavas de nenhuma das abomináveis listas.

— Peço perdão pelo inconv…


— Cala-te, Daemon.
Daemon cerrou os dentes e caminhou com passos mais largos
paraacompanhar o irmão. Não sabia qual era a jogada de Lucivar, mas
malditofosse se iria permitir ser arrastado como um cachorro avesso.

— Olha, Bastardinho — disse Daemon, tentando contrabalançar o


temperamento volúvel de Lucivar com a razoabilidade, — tenho de…
— Vais assinar contrato com o Príncipe dos Senhores da Guerra
deEbon Rih.
Daemon bufou, arreliado. — Não achas melhor discutir
antecipadamente
o assunto com ele?
Lucivar olhou-o de modo incisivo. — Não costumo discutir os assuntos
comigo próprio, Bastardolas. Fica aqui.
Daemon sentiu o chão a girar e decidiu que era um bom conselho.

— Há quanto tempo estás em Kaeleer? — perguntou, sentindo-se


enfraquecido.
— Há oito anos. — Lucivar silvou enquanto um ancião Senhor
daGuerra eyrieno assinava um contrato e se desviava da mesa. — Fogo
doInferno. Por que demora aquela larva tanto tempo a escrever uma
linha?
— Avançou um passo para a mesa. Depois virou-se e disse afavelmente:
— Não tentes sair daqui. Se o fizeres, parto-te as pernas em tantos
sítios quenem conseguirás rastejar.
Daemon nem sequer se deu ao trabalho de responder. Lucivar nãofazia
ameaças vãs e, num confronto físico, Daemon sabia que não
conseguiria
derrotar o seu meio-irmão eyrieno. Além disso, o chão sob os seuspés
não parava de rodopiar de formas inesperadas que ameaçavam o
seupróprio equilíbrio.

O Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih. Lucivar era o Príncipe


dos Senhores da Guerra do território que pertencia a Ebon Askavi,
aMontanha Negra a que também chamavam Fortaleza – e que era
também

o Santuário da Feiticeira.
Tal poderia não significar nada. Fosse ou não vigiada por Príncipe
dosSenhores da Guerra – e fosse ou não governada por uma Rainha – a
terranão deixaria de existir.

Todavia, o facto de Lucivar estar aqui, vivo, acalentava em Daemon


aesperança de se ter também enganado em relação à morte de Jaenelle.
Teria

39
ela enviado Lucivar à feira de serviços à sua procura? Teria um dos
inquéritos
do Senhor Magstrom chegado às suas mãos? Estaria ela…

Daemon abanou a cabeça. Demasiadas perguntas – e este não era


olocal nem a altura para obter respostas. Mas, oh, como começava a
acalentar
esperanças.

Quando Lucivar se aproximou da mesa, alguém chamou: —


PríncipeYaslana. Estão aqui mais duas para juntar ao contrato.

Virando-se na direcção da voz, Daemon sentiu o chão a escapar-


lheainda mais. Dois homens, um Senhor da Guerra de Jóia Azul-Safira
e um
Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Vermelha, arrastavam duas
mulheres
até à mesa. Um homem de cabelo castanho com uma pala preta noolho
e a coxear vincadamente seguia-os, furioso.

A mulher assustada tinha cabelos negros, pele clara e olhos azuis. Já


láiam treze anos desde que estivera com Wilhelmina Benedict, a meia-
irmãde Jaenelle. Tornara-se numa bela mulher, mas não abandonara o
receio
delicado que a caracterizava como adolescente. Arregalou os olhos ao
vê-lo,
mas nada disse.

A mulher que resmoneava, de longos cabelos pretos, pele morena


detons dourados, orelhas delicadamente pontiagudas e ardentes olhos
verde-
dourados, era Surreal. Deixara a ilha há quatro meses, não dando
qualquerexplicação para além de que tinha um assunto a tratar.

De início, não reconheceu o homem que mancava. Ao ver o lampejode


reconhecimento nos olhos azuis do homem, sentiu uma pontada
nocoração. Andrew, o moço da cavalariça que o ajudara a escapar aos
guardas
hayllianos, depois de levarem Jaenelle de novo para Briarwood.

— Senhor Khardeen. Príncipe Aaron — disse Lucivar, cumprimentando


formalmente o Senhor da Guerra de Jóia Azul-Safira e o Príncipe
dosSenhores da Guerra de Jóia Vermelha.
— Príncipe Yaslana, estas Senhoras devem fazer parte do contrato
— pronunciou o Príncipe Aaron, de modo respeitoso.
Lucivar olhou para ambas as mulheres com um olhar que poderia
esfolá-
las vivas. De seguida, olhou para Khardeen e Aaron. — Aceites.
Wilhelmina tremia manifestamente, mas Surreal prendeu o cabeloatrás
das orelhas pontiagudas e semicerrou os olhos, dirigindo-se a Lucivar.

— Olha, docinho…
— Surreal — Daemon chamou baixinho. Abanou a cabeça. O que não
vinha nada a calhar era que Surreal e Lucivar se desentendessem.
Surreal silvou. Quando tentou libertar-se da mão do Príncipe Aaron,

o homem soltou-a, posicionando-se de forma a bloquear qualquer


tentativa
de fuga. Fitando Lucivar com um desagrado profundo, deslocou-se
atéficar ao lado de Daemon. — É o teu irmão? — perguntou em voz
baixa.
40
— Aquele que estava presumivelmente morto?
Daemon acenou afirmativamente com a cabeça.
Surreal observou Lucivar durante um minuto. — E está morto?
Pela primeira vez desde que chegara a Kaeleer, Daemon sorriu. —
Osdemónios-mortos não suportam a luz do dia – pelo menos, é que o
rezamas histórias – por isso, eu diria que Lucivar está bem vivo.

— E então, não consegues dissuadi-lo? Tenho um marco de


travessiasegura e um passe de visitante válido por três meses. Não vim
aqui assinarcontratos para servir em cortes e no dia em que tiver de
saltar quando aquele
cabrão estalar os dedos é o dia em que o sol brilhará no Inferno.
— Não apostes nisso — segredou Daemon, observando Lucivar a
examinar
o membro do Conselho das Trevas que estava a preencher o contrato.
Antes de Surreal ter oportunidade de responder, Wilhelmina
aproximou-
se furtivamente. — Príncipe Sadi — disse com uma voz à beira
dopânico. — Senhora.

— Senhora Benedict — respondeu Daemon formalmente,


enquantoSurreal acenava com a cabeça, em reconhecimento.
Wilhelmina olhava atemorizada para Lucivar, que falava agora com
oancião Senhor da Guerra eyrieno. — É assustador — sussurrou.
Surreal sorriu maliciosamente e falou em voz alta. — Se um homem
usa as calças assim tão justas, é normal que lhe apertem os tomates, o
que

o deixa enfurecido.
Aaron, que estava junto a eles, começou a tossir com violência,
tentando
abafar as gargalhadas.
Ao ver Lucivar a interromper a conversa, dirigindo-se a eles,
Daemonsuspirou e desejou saber um feitiço que silenciasse Surreal
durante as próximas
horas.

Lucivar deteve-se à distância de um braço, ignorando a forma


comoWilhelmina se encolhia e centrando a atenção em Surreal. O
sorriso letárgico
e arrogante que exibia era, habitualmente, o único aviso que
precediaum confronto.

Surreal baixou a mão direita, deixando o braço estendido ao longo do


corpo.

Reconhecendo o gesto como o sinal de aviso de Surreal, Daemon tirou


as mãos dos bolsos das calças e mexeu-se ligeiramente, preparando-se
para adeter antes que cometesse a insensatez de ameaçar Lucivar com
uma faca.

— És filha de Titian, não és? — perguntou Lucivar.


— O que te interessa isso? — ripostou Surreal.
Lucivar examinou-a por um momento. Depois, abanou a cabeça e
resmungou
entre dentes: — Vais ser difícil de aturar.

41
— Sendo assim, talvez fosse melhor se me deixasses ir embora — disse
Surreal com um veneno adocicado.
Lucivar riu-se baixinho e com maldade. — Se achas que vou explicar
àRainha das Harpias a razão pela qual a sua filha serve noutra corte
quandoestive defronte dela, é melhor pensares duas vezes, feiticeirazita.

Surreal cerrou os dentes. — A minha mãe não é uma harpia. E eu


nãosou uma feiticeirazita. E não vou assinar uma porcaria de um
contrato quete dê controlo sobre mim.

— Pensa melhor — disse Lucivar.


A mão de Daemon fechou-se no braço direito de Surreal. Aaron
agarrou-
lhe o braço esquerdo.

O sino que indicava o término da feira de serviços soou três vezes.

Surreal praguejou violentamente. Lucivar limitou-se a sorrir.

De repente, ouviu-se a voz de um homem a protestar, subindo de tom,


e todos centraram as atenções na mesa.

Daemon viu de relance o homem espalhafatosamente vestido que


endireitava
papéis diligentemente e que ignorava o jovem Senhor da Guerraeyrieno.

Resmoneando, Lucivar dirigiu-se a passos largos para a mesa,


passoupela fila de eyrienos confusos e perturbados e parou ao lado do
homem quecontinuava a fingir não reparar em nenhum deles.

— Há algum problema, Senhor Friall? — perguntou Lucivar


serenamente.
Friall afastou os folhos dos pulsos e continuou a reunir a papelada.

— Já soou o sino que indica o término da feira. Se estas pessoas ainda


estiverem
disponíveis quando chegardes amanhã para o dia da reclamação,
podeis fazer-lhes um contrato de acordo com a regra da primeira oferta.
Daemon ficou tenso. O Senhor Jorval explicara várias vezes a regrada
primeira oferta da feira de serviços. Durante a feira, era permitido
aosimigrantes recusarem uma oferta de serviço numa corte ou
aguardarempor outra oferta proveniente de uma corte diferente, ou
ainda, tentaremnegociar uma posição melhor. Contudo, o dia que se
seguia à feira era odia da reclamação. Restava uma única opção. O
imigrante poderia aceitarqualquer tipo de oferta que fosse feita pela
primeira corte que preenchesseuma pretensão relativamente à sua
pessoa – e Jorval insinuara que qualquerposição oferecida na
reclamação era, geralmente, degradante – ou poderiaregressar a
Terreille, voltando a tentar a sorte na feira seguinte. Gastara
emsubornos dois milhões de marcos em ouro, só para poder ser
incluído naslistas de imigração desta feira de serviços. Tinha meios para
o voltar a fazercaso se atrevesse a regressar a Terreille. Todavia, a
maioria gastara tudo oque possuía nesta oportunidade única por uma
vida que, assim se esperava,

42
fosse melhor. Assinariam um contrato pelo privilégio de rastejar, se
essafosse a única forma de permanecerem em Kaeleer.

— Ora bem, Senhor Friall — disse Lucivar, ainda com um tom de voz
sereno, — sabeis tão bem como eu que um indivíduo tem de ser aceite
antesdas badaladas finais, mas depois disso, temos uma hora para
preencher eassinar contratos.
— Se pretendeis assinar o contrato para os que já se encontram nalista,
podeis levá-los convosco de imediato. Os outros terão de aguardar
atéamanhã — insistiu Friall.
Lucivar ergueu a mão direita e coçou o queixo.

O que se seguiu foi tão rápido que Daemon nem se apercebeu do


movimento.
Num momento, Lucivar estava a coçar o queixo. No momentoseguinte, a
sua espada de guerra eyriena repousava delicadamente no
pulsoesquerdo de Friall.

— Ora bem — disse Lucivar de modo agradável, — podeis terminarde


preencher esse contrato ou decepo-vos a mão esquerda. A escolha é
vossa.
— Merda — murmurou Surreal, aproximando-se mais de Daemon.
— Não podeis fazer isto — lamuriou-se Friall.
A mão de Lucivar não pareceu mover-se pese embora tenha surgidoum
fino fio de sangue no pulso de Friall.

— Informarei o Conselho — gemeu Friall. — Arranjareis um belo


sarilho.
— É possível — respondeu Lucivar. — Mas isso não vos trará de voltaa
mão esquerda. Com sorte, será tudo o que ireis perder. Se não…
Um movimento apressado desviou o olhar de Daemon para a esquerda.
O Senhor Magstrom, o membro do Conselho das Trevas com quemtinha
falado em primeiro lugar, parou no lado oposto da mesa.

— Quiçá possa ajudar-vos, Príncipe Yaslana? — perguntou o ancião,


esbaforido.
Lucivar levantou os olhos e Magstrom ficou petrificado, não lhe
restando
pinga de sangue no rosto.

— Mãe Noite — murmurou Aaron. — Elevou-se até à orla assassina.


Daemon não se mexeu. Nem os outros. Um Príncipe dos Senhoresda
Guerra na orla assassina era um homem violento e incontrolável. Usava
a Negra, a única Jóia mais escura do que a Ébano-Acinzentada de
Lucivar,
mas qualquer tentativa para controlar o seu irmão só iria arruinar o
escassoautocontrolo que ainda lhe restava. No mínimo, Friall morreria.
Na piordas hipóteses, seria uma carnificina.
— O Senhor Friall afirma que os contratos não podem ser preenchidos
após a badalada final — disse Lucivar com uma serenidade falaciosa.
43
— Com certeza que se equivocou — respondeu Magstrom, de imediato.
— Existe um período de tolerância após a badalada final, permitindoque
os papéis sejam preenchidos. — Vendo que Lucivar não respondia,
respirou
com cautela. — O Senhor Friall parece estar indisposto. Com a
vossapermissão, eu próprio terminarei de preencher os contratos.
Nesta altura, o folho branco à volta do pulso de Friall era de um
vermelho
húmido e vivo. Do nariz do homem corria ranho e choramingavaem
silêncio.

Lucivar anuiu com um aceno de cabeça e Magstrom puxou os papéisda


pequena poça de sangue na mesa, pegando na caneta que estava junto
aospapéis. Dirigindo-se à extremidade oposta da mesa, Magstrom
sentou-se.

Lucivar ergueu a mão esquerda e apontou para Daemon. — Primeiro,


ele.

Magstrom completou o topo do contrato e depois olhou para Daemon,


à espera. A sua testa estava salpicada por gotas de suor.

Mexe-te, maldito sejas, mexe-te. Durante um momento de tensão, o


corpo de Daemon recusou-se a obedecer-lhe. Quando, por fim, as
pernascomeçaram a funcionar, teve a sensação arrepiante de estar a
caminhar sobre
gelo fino e rachado e um passo em falso seria desastroso.

— Daemon Sadi — disse Magstrom calmamente, escrevendo o nomecom


uma caligrafia simples. — De Hayll, não é verdade?
— Sim — respondeu Daemon. Aos seus próprios ouvidos, a sua
vozsoava-lhe enrouquecida, cavernosa. Magstrom não deu qualquer
indicaçãode ter reparado.
— Quando nos conhecemos, lembro-me que me dissestes que usaisuma
Jóia escura, mas não me lembro qual.
Na reunião com Magstrom, dissera que a Vermelha era a sua Jóia
deDireito por Progenitura, contudo, evitara mencionar a categoria
actual dasua Jóia. Agora já não era possível continuar a evitar. — A
Negra.

Magstrom olhou para cima, com os olhos arregalados pelo choque.


De seguida, preencheu o espaço no papel. — E trouxestes convosco
doiscriados?

— Manny é uma feiticeira de Jóia Branca. Jazen é um Senhor da


Guerra
de Jóia Violácea.
Magstrom anotou as informações e depois virou o contrato para
Daemon.
— Assinai aqui, pondo depois as vossas iniciais nos espaços paraas
outras duas assinaturas, indicando que aceitais a responsabilidade
pelosvossos criados. — Quando Daemon se inclinou para assinar o
contrato,
Magstrom sussurrou: — Esta corte teria sido a minha escolha para vós.
Pertenceis-
lhe.

Mantendo-se em silêncio, Daemon afastou-se da mesa para deixar

44
passar Surreal. Olhou de relance para Lucivar, cujos olhos dourados e
vítreos
simplesmente o olhavam fixamente.

— Nome? — perguntou Magstrom.


— Surreal.
Percebendo que não acrescentaria mais nada, Magstrom disse
docilmente:
— Embora não sejam muito usados em Kaeleer, é usual
registarformalmente um nome de família.

Surreal olhou-o fixamente para logo sorrir maliciosamente. — SaDiablo.

Magstrom arquejou. Khardeen e Aaron olharam por momentos paraela,


boquiabertos, antes de se afastarem da mesa.

Daemon fechou os olhos e deixou de ouvir as restantes respostas.


Umavez que era a filha bastarda de Kartane SaDiablo, provavelmente
disse-ocomo uma bofetada à mãe do seu pai, Dorothea. Não havia
forma de saberque o nome era carregado de significado em Kaeleer.

— Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas


— exclamaram duas vozes em uníssono.
Daemon abriu os olhos. Aaron e Khardeen estavam à sua frente,
observando
Surreal a afastar-se da mesa.

Aaron olhou para Daemon. — É deveras o seu nome de família?

Daemon hesitou. Não sabia a que tipo de estigma era sujeito um bas

tardo em Kaeleer e devia bastante a Surreal para revelar um ponto


potencialmente
fraco. — O homem que a gerou responde por esse nome — respondeu,
com cautela.

— O que achas que devemos fazer? — perguntou Aaron a Khardeen.


— Vender bilhetes — respondeu Khardeen, de imediato. — E depois,
temos de encontrar um lugar seguro para ver a explosão.
A diversão à conta de Surreal inflamou a fúria de Daemon. —
Representará
algum problema?

— Podemos dizer que sim — disse Khardeen jovialmente para logoficar


com uma expressão séria. — Vede bem, o que a Senhora Surreal
aindanão percebeu é que, ao declarar formalmente ser membro da
família Sa-
Diablo, acaba de adquirir Lucivar como primo.
— E se achais que Lucivar tem uma personalidade dominante
relativamente
aos outros machos, devíeis vê-lo com as mulheres da família
— acrescentou Aaron.
E com Jaenelle?

A pergunta não foi expressa de viva voz pois não queria testemunhar
aexpressão desorientada nos seus rostos ao ouvirem o nome – e
também pornão ter a certeza sobre a sua própria reacção se detectasse
reconhecimento.
Seria melhor perguntar a Lucivar – em privado. E as perguntas que
agora

45
lhe surgiam sobre mulheres e família… Também essas teriam de ficar
paramais tarde.

— E nem sequer iremos tentar imaginar o que acontecerá quando


semeter com os machos do lado Dea al Mon da sua família — disse
Khardeen.
— E que motivo teriam para se imiscuir? — perguntou Daemon.
— É filha de Titian, que chegou, finalmente, a casa — disse Aaron.
Depois, sorriu abertamente. — A Senhora Surreal estás prestes a
descobrirque agora tem parentes machos de ambas as descendências
que irão meter-
se na sua vida – e vários desses machos são Príncipes dos Senhores
daGuerra.
Mãe Noite! — Nunca irá tolerar — disse Daemon.

— Bem, não terá muito por onde escolher — respondeu Khardeen.


— Os Sangue são matriarcais. Não é assim em Kaeleer?
— Claro que sim — disse Aaron, animadamente. — Contudo, os machos
têm direitos e privilégios e tiramos deles o máximo partido. — Examinou
Daemon por um momento. — Poderíeis tentar mantê-la calma enquanto
nós ficamos de olho em Lucivar? Se ninguém o pressionar, é provável
que consiga controlar a fúria.
— Conhecei-lo assim tão bem? — perguntou Daemon.
Percebeu nos seus olhares que sabiam, mas que tinham mantido
cuidadosamente
camuflado até agora. Sabiam que era irmão de Lucivar. E sabiam…

— Todos servimos na mesma corte, Príncipe Sadi — disse Aaron,


serenamente.
— Todos servimos no Primeiro Círculo da Senhora.

Afastaram-se dele.

Poderiam até ter gritado dos telhados. Está viva!

Júbilo e ansiedade guerrearam dentro de si, provocando


batimentosdesenfreados do coração, levando o sangue a zurzir nas veias
a grande velocidade.
Está viva!

Mas o que pensaria dele? O que sentiria por ele?

Não tinha respostas. Aqui não. Por enquanto.

Com um cuidado exagerado, Daemon dirigiu-se a Surreal. No mo


mento em que parou, sentiu que balançava como um salgueiro sob
rajadasde vento.
Surreal passou os braços à volta do braço esquerdo de Daemon e
firmou
os pés.

— O que se passa? — perguntou baixinho, com urgência. —


Estásdoente?
Melhor do que ninguém, Surreal seria capaz de adivinhar exactamente
o que se passava, mas Daemon não estava disposto a admiti-lo. Não
nestemomento. — Quase não dormi nem comi nos últimos dias —
disse.

46
Surreal semicerrou os olhos e acabou por aceitar a verdade que
eratambém uma mentira. — Compreendo. Este sítio arrepia-me.

Daemon abriu o reservatório de poder armazenado na Jóia Negra.


Fluiupelo corpo e, pela primeira vez desde que vira Lucivar, sentiu-se
estável.

Surreal detectou a alteração. Soltou um braço, deixando o outro


entrelaçado
com o de Daemon, de modo afectuoso. — Porque achas que oSenhor da
Guerra ancião que está a elaborar os contratos ficou tão
chocadoquando lhe disse que o meu nome de família era SaDiablo? A
cabra da Dorothea
é assim tão conhecida por estes lados?

— Não sei — disse Daemon, ponderadamente. — Mas já ouvi que


onome do Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan é S. D.
SaDiablo.
— Esta não era a altura adequada para lhe contar que o Príncipe dos
Senhores
da Guerra de Dhemlan era também o Senhor Supremo do Inferno
– bem como o seu pai e o de Lucivar.
— Merda — resmoneou Surreal para logo encolher os ombros. —
Bom, não me parece que o venha a conhecer e, se alguém perguntar,
possodizer que talvez sejamos parentes distantes. Muito distantes.

Recordando os comentários de Khardeen e de Aaron, Daemon emitiu


um ruído que se assemelhava a um gemido.

— Tens a certeza que estás bem? — perguntou Surreal, examinando-o.


— Estou bem. — Muito bem. Mais do que isso. Acreditaria, insistiria,
até se tornar autêntico. — Faz-me um favor. Pergunta a Khardeen ou a
Aaron
se vamos viajar nas Carruagens da Teia e depois entra em contacto
coma Manny para que ela e Jazen possam ir ter connosco.
Não perguntou qual o motivo para ele próprio não o fazer, e
Daemonsentiu-se grato.
Por fim, chegou a vez do último eyrieno assinar o contrato e afastar-
seda mesa. Lucivar, que não se mexera nem proferira uma palavra
desde que

o Senhor Magstrom começara a preencher os contratos, invocou um


panolimpo, limpou o sangue da espada, fez com que ambos
desaparecessem econtornou a mesa para assinar os contratos.
Segurando o pulso que sangrava contra o peito, Friall limpou o narizna
manga limpa e disse, com uma voz amuada: — Tendes de fazer cópias.
Não pode levar o contrato sem fazerdes cópias.
Lucivar endireitou-se lentamente e virou-se para Friall.

Uma voz masculina praguejou baixinho.

Olhando de modo contundente para Friall, Magstrom disse apressa

damente: — Providenciarei contratos em branco ao Príncipe Yaslana.


OAdministrador da Corte poderá produzir as cópias, devolvendo-as
depoisao Conselho das Trevas para que os funcionários os registem. —
Vendo queFriall estava prestes a protestar e, decerto, a provocar a
própria morte, Ma

47
gstrom acrescentou: — Já vi o Senhor Jorval proceder deste modo
muitasvezes. Explicou que podíamos confiar nos Administradores para
que produzissem
cópias exactas e que era a única forma de tornar mais expedito
oprocesso de instalação dos imigrantes nas suas novas casas.

Invocando uma pasta fina em pele, Lucivar arquivou os contratos e fê-


la desaparecer. Acenou educadamente a Magstrom com a cabeça, virou-
separa os imigrantes que aguardavam e disse rispidamente: — Vamos.

Daemon voltou-se graciosamente quando Lucivar se aproximou


eacompanhou a passada larga do eyrieno.

Já tinham caminhado desta forma, lado a lado. Não muitas vezes,


poisos Sangue de Terreille, que os temiam como indivíduos, tinham
pavor deos ver juntos. Nem o Anel de Obediência fora suficiente para
impedir adestruição que provocaram em cortes terreilleanas.

Ao dirigirem-se às Carruagens concebidas para viajar nos Ventos,


Daemon perguntou-se durante quanto tempo poderiam adiar os
assuntospendentes.

Era quase noite quando chegaram às duas enormes Carruagens,


protegidas
pela Ébano-Acinzentada, na extremidade mais distante da área
dedesembarque.

Lucivar retirou os escudos Ébano-Acinzentados, abriu a porta da


primeira
Carruagem, olhou para Daemon e disse: — Entra.

Daemon olhou à volta. — Os meus criados ainda não chegaram.

— Eu procuro-os. Entra.
Olhando para os olhos ainda vítreos de Lucivar e detectando uma
premência
tensa no odor psíquico do irmão, Daemon obedeceu.
Surreal, Wilhelmina e Andrew entraram logo a seguir, seguidos
porvários eyrienos. Passado um minuto, Daemon respirou de alívio ao
ver Jazena ajudar Manny a subir os degraus para a Carruagem.
Entraram mais algunseyrienos e, nessa altura, a Carruagem foi
envolvida por um escudo Ébano-
Acinzentado, encerrando todos no seu interior, à excepção de Daemon,
visto
que era o único que usava uma Jóia mais escura do que Lucivar.

Uma Carruagem da Teia deste tamanho podia transportar normalmente


trinta pessoas, mas os eyrienos precisavam de mais espaço por
causadas asas. Reparando na falta de assentos, Daemon conjecturou se
a Carruagem
seria normalmente usada para transportar outros seres ou se Lucivar,
com a intenção de trazer eyrienos, retirara os assentos habituais. Os
únicos
objectos que poderiam ser usados como assentos eram algumas
caixasrobustas em madeira, encostadas às paredes, com almofadas em
cima e aparte da frente aberta para arrumação de bagagem.

Depois de examinar as pessoas que estavam encostadas às paredes,


deixando uma passagem estreita ao centro, Daemon voltou as atenções

48
para a Carruagem. À frente, havia uma porta que levava ao
compartimentodo condutor. Talvez nesse compartimento pudesse
sentar-se outra pessoa,
permitindo aos restantes um pouco mais de espaço para respirarem.
Movendo-
se com cuidado, Daemon dirigiu-se ao pequeno e estreito corredorna
retaguarda da Carruagem. À esquerda, existia uma pequena divisão
privada
que continha uma secretária estreita e uma cadeira de costas direitas,
uma poltrona e um descanso para pés e ainda uma cama individual. A
divisão
à direita tinha um lavatório e uma sanita.

Daemon estava prestes a recuar para o compartimento principal


quando
ouviu a voz de Lucivar pela porta aberta da Carruagem.

— Não me interessa o que diz aquela larva ranhosa —


resmoneouLucivar.
— O comportamento do Senhor Friall não está em causa — disse
umavoz que Daemon reconheceu como pertencendo ao Senhor Jorval.
— Este assunto
será levado ao Conselho das Trevas e posso assegurar-vos que não
nosdeixaremos intimidar de modo a ignorar o vosso comportamento
imoral.
— Se tendes algum problema comigo, podeis apresentá-lo ao
Administrador,
ao Guarda-Mor ou à minha Rainha.
— A vossa Rainha teme-vos — escarneceu Jorval. — É do conhecimento
geral. Não vos consegue controlar e o Administrador e o Guarda-
Mor não irão exigir restrições ao vosso comportamento uma vez que
seadequa aos seus objectivos.
Lucivar baixou a voz, tornando-a num silvo malévolo: — Não vos
esqueceis,
Senhor Jorval, que enquanto vós e o Senhor Friall estiverem a
fazerqueixinhas ao Conselho, eu certificar-me-ei de que as Rainhas dos
Territórios
tomam conhecimento da existência de certos membros do Conselho
que ignoram ostensivamente as próprias regras da feira de serviços.

— Mas é uma completa mentira!


— Assim sendo, Friall é incompetente e não lhe deveria ter sido
atribuída
aquela tarefa.
— Friall é um dos melhores membros do Conselho!
— Nesse caso, estaria apenas lixado por contar com uma
percentagemdos subornos daquela mesa, não se apercebendo que já
estavam no vossobolso?
— Como vos atreveis? — Seguiu-se uma pausa prolongada. — É
possível
que o Senhor Friall seja responsável, em parte, por este lamentável
incidente,
porém, o Conselho irá manter-se firme em relação a este outro
assunto.
— E que assunto é esse? — trauteou Lucivar.
— Não podemos permitir que tenhais ao vosso serviço um macho
queusa Jóias mais escuras que as vossas.
49
— As Rainhas da Pequena Terreille fazem-no constantemente.
— São Rainhas. Sabem controlar machos.
— Eu também.
— O Conselho proíbe esta situação.
— O Conselho pode ir para as entranhas do Inferno.
Lucivar ocupou, de súbito, a porta da Carruagem.
— Não podeis fazê-lo! — gritou Jorval atrás de Lucivar.
Lucivar voltou-se e sorriu para Jorval de modo indolente e arrogante.
— Sou um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Ébano-
Acinzentada.
Posso fazer aquilo que me der na gana. — Fechou a porta na cara de
Jorvale olhou de relance para o compartimento do condutor na
dianteira da Carruagem,
enviando uma ordem num fio psíquico. A Carruagem elevou-sede
imediato.
Ao dar um passo para voltar a entrar no compartimento principal,
Lucivar posicionou-se à frente de Daemon, bloqueando-lhe totalmente
aentrada no corredor. Aceitando a ordem implícita, Daemon enfiou as
mãosnos bolsos das calças e encostou-se à parede.

Quando teve a certeza de que Lucivar terminara de transmitir as


instruções
silenciosas a quem quer que estivesse a conduzir as Carruagens,
usou um fio masculino Ébano-Acinzentado para perguntar: «Isto vai
trazer-
te problemas?«

«Não« respondeu Lucivar. Passou os olhos pelos imigrantes.


Todosdesviaram repentinamente o olhar, evitando olhá-lo nos olhos.

«Este Conselho não enviará uma mensagem, exigindo algum tipo


decastigo?«

«Assim será. O Administrador irá lê-la, provavelmente irá mostrá-laao


Guarda-Mor e, depois, irão ignorá-la.«

Daemon apercebeu-se de que estava a respirar demasiado rapidamente,


demasiado superficialmente, não conseguindo controlar-se ao forçar-
sea fazer a questão subsequente: «Mostrá-la-ão à tua Rainha?«

«Não« disse Lucivar, devagar. «Se puderem evitar, não irão


mencionarnada disto à Rainha. E se não puderem, tentarão minimizar o
assunto semmentirem abertamente.«

«Porquê?«

«Porque o Conselho das Trevas já a pressionou noutras ocasiões e


resultou
num grande cagaço para todos.« Lucivar moveu-se. — Já estamos
longe de Goth — disse, subindo ligeiramente o tom de voz. — Tentem
acomodar-
se o melhor que puderem. Ainda demoraremos cerca de duas horasa
chegar ao local onde nos dirigimos.

— Não vamos para Ebon Rih? — alguém perguntou.


— Ainda não. — Lucivar avançou para o pequeno corredor, forçando
50
Daemon a afastar-se. Deslizou a porta do compartimento privado e
disse:

— Lá para dentro —, entrando de lado para passar as asas.


Daemon seguiu com relutância e deslizou a porta, fechando-a.
Lucivar ficou numa das extremidades da divisão. Daemon ficou à porta.

Lucivar inspirou fundo e expirou lentamente. — Perdoa-me por te


teratacado. Não estava zangado contigo. Eu… Caramba, Daemon
verifiqueitodas as listas de que me lembrei e o teu nome deve ter-me
escapado. Se nãofosse um golpe de sorte, terias acabado noutra corte e
talvez não houvesseforma de te livrar desse contrato.

Daemon sentiu uma camada de tensão a aliviar-se. Forçou os lábios a


curvarem-se num sorriso. — Bem, desta vez a sorte esteve do nosso
lado.

— Depois olhou, olhou verdadeiramente para Lucivar e o sorriso


tornou-se
genuíno. — Estás vivo.

Lucivar devolveu o sorriso. — E tu estás são de espírito.

Daemon sentiu um frémito a percorrer-lhe o corpo e reforçou o auto-


controlo. Sentiu os olhos a arder, com lágrimas. — Lucivar —
sussurrou.

Não foi possível perceber qual dos dois se moveu primeiro. Num
momento,
estavam tão distantes quanto conseguiam na ínfima divisão e,
nomomento seguinte, estavam nos braços um do outro, abraçando-se
comose as suas vidas dependessem desse abraço.

— Lucivar — Daemon voltou a sussurrar, com o rosto junto ao pescoço


do irmão. — Julguei-te morto.
— Fogo do Inferno, Daemon — disse Lucivar ternamente, com a
vozrouca, — não te conseguimos encontrar. Não sabíamos o que se
passaracontigo. Procurámos. Juro-te, procurámos por ti.
— Não faz mal — Daemon afagou a cabeça de Lucivar. — Não faz
mal.
Os braços de Lucivar apertavam Daemon com tanta força que lhe
magoavam
as costelas.
A mão de Daemon entrelaçou-se nos cabelos de Lucivar. — Lucivar…
Bem sei que existem assuntos entre nós que têm de ser resolvidos. Mas,
poderemos esquecê-los, só por algum tempo?
— Podemos esquecê-los — disse Lucivar, baixinho.
Daemon recuou. Com os polegares, limpou com delicadeza as lágrimas
do rosto de Lucivar. — É melhor juntarmo-nos aos outros. — Virou-see
estendeu a mão para a porta.

Atrás dele, Lucivar agarrou o braço esquerdo do irmão com a


mãoesquerda e Daemon pousou sobre ela a mão direita, por um
momento. Aodeslizar os dedos da mão de Lucivar, olhou para baixo e
compreendeu porfim o significado do que vira, mas que não vira
verdadeiramente.

51
— Daemon — disse Lucivar, rapidamente. — Tenho algo a dizer-te.
Julgo que já deves saber, mas tens de ouvir.
Está viva! Sentiu um novo estremecimento a percorrer-lhe o corpo.

— Não — disse. — Agora não. — Abriu a porta e saiu aos tropeções para
ocorredor. Mal mantendo o equilíbrio, entrou na casa de banho,
trancando-acom a Negra. O corpo tremia com violência. O estômago
dava voltas. Debruçando-
se na sanita, combateu a necessidade de vomitar.
Demasiado tarde.

Se tivesse tentado encontrá-la há cinco anos, quando regressara


pelaprimeira vez do Reino Distorcido, talvez tivesse sido diferente. Se
tivesseprocurado o Senhor Supremo e se tivesse tentado, no mínimo,
entender oque efectivamente se passara naquela noite no Altar de
Cassandra…

Demasiado tarde.

Conseguia aguentar. Iria aguentar. A sua mente estava bastante


maisfragilizada do que dava a entender aos outros. Oh, estava intacta.
Perderaalgumas memórias, escassos e ínfimos fragmentos do cálice de
cristal, masestava completo e sadio. Contudo, a cura nunca ficaria
completa visto queperdera a única pessoa necessária para a completar.
Não importara na altura
em que queria manter-se íntegro somente o tempo necessário para
aniquilar
o Senhor Supremo. Agora, já não tinha grande importância.
Poderiasobreviver o tempo suficiente para a ver, uma única vez.

Nada mais havia a fazer. Tratando-se de outro homem qualquer,


teriaaplicado todo o seu ser e toda a sua sapiência para se tornar seu
amante.
Tratando-se de outro homem. Mas não de Lucivar. Não se tornaria rival
do
seu irmão.

Logo, não poderia permitir que Lucivar lhe dissesse o que precisavade
ouvir, desesperadamente. E não era por não querer saber que
Jaenelleestava viva, sem sombra de dúvida; era por não estar preparado
para serinformado sobre a aliança de ouro na mão esquerda de Lucivar.

3 / Kaeleer

Surreal empurrou a última das caixas almofadadas para junto das


outras,
formando um banco encostado à parede. — Senta-te, Manny — disse
paraa mulher mais velha.
— Não seria correcto — disse Manny. — Uma criada não se deveria
sentar.
Surreal olhou-a de modo contundente. — Não sejas imbecil. És ‘criada’
simplesmente por ser a única forma de Sadi te trazer com ele.
Manny comprimiu os lábios, em sinal de desaprovação. — Não é ne

52
cessário esse tipo de linguagem, especialmente com crianças por perto.
Além disso, fui criada durante muitos anos. Era uma forma honesta de
ganhar
a vida e da qual não me envergonho.

Ao contrário de mim? Surreal perguntou-se. Nunca negara que, durante


séculos, fora uma prostituta muito bem-sucedida até se retirar há
trezeanos, não mais conseguindo tolerar os jogos de alcova. Aquela
noite noAltar de Cassandra deixara marcas em todos.

Os sentimentos de Manny em relação às mulheres que trabalhavamnas


casas da Lua Vermelha eram ambivalentes. O que pensaria se
tivesseconhecimento da outra profissão de Surreal? Como conseguiria
lidar amulher mais velha com o conhecimento de que Surreal fora – e
ainda era

– uma assassina com bastante êxito?


Não importava. Tornaram-se amigas durante os dois anos em
queDaemon estivera a caminhar para fora do Reino Distorcido,
contudo, assim
que recuperou a sanidade mental, Manny sofrera uma viragem mental,
tratando-os ambos com o afecto caseiro existente entre uma criada
especiale uma criança da aristocracia. Daemon não notara nada de
estranho neste
comportamento; era provável que Manny sempre assim o tivesse
tratado.
Mas o facto é que aborrecera Surreal, que crescera depressa e a custo
nasruas. Também lhe proporcionara bastante experiência a lidar com
as opiniões
inflexíveis de Manny.

— Olha — disse, com extrema delicadeza. — O criado da Senhora


Benedict tem ar de que não irá aguentar duas horas em pé sem
sofrimento.
Se te sentares, pode ser que se convença também.
Passados poucos minutos, Manny, Andrew, Wilhelmina Benedict
eSurreal estavam sentados no banco improvisado.

Surreal olhou para o espaço à sua direita. Em nome do Inferno,


ondeestaria Sadi? Não estava estabilizado mentalmente como
demonstrava e o
encontro com Lucivar devia tê-lo abalado. E o que teria pensado o
eyrienoao voltar a ver o meio-irmão? Depois de Jaenelle desaparecer, há
treze anos,
Daemon dirigira-se a Pruul, com o objectivo de resgatar Lucivar das
minasde sal. Por alguma razão, Lucivar recusara-se a acompanhá-lo.
Sempre suspeitara,
pelo que Daemon não lhe dizia, que se tinha dado uma colisão violenta
de temperamentos e que se abrira uma fenda entre ambos. E
sempredesconfiara que o motivo dessa fenda tinha tido início, como
tantas outrascoisas, no Altar de Cassandra.

A porta do compartimento do condutor abriu-se, deslizando. O Senhor


Khardeen saiu e olhou de relance para os eyrienos, que ficaram
nervosos
quando o viram surgir. Em silêncio, caminhou até à ponta do
bancoimprovisado e sentou-se ao lado de Surreal.

No lado oposto, à frente deles, encontrava-se a mulher com as duas

53
criancinhas. Tinham a pele morena, os olhos dourados e o cabelo preto
típico
nas três raças de longevidade prolongada, embora o cabelo da
meninafosse naturalmente ondulado, ainda que ligeiramente. Surreal
conjecturouse o cabelo da menina seria uma indicação de que uma das
linhagens dospais não era completamente eyriena, se aquele ondulado
teria traído umsegredo e se seria essa a razão pela qual estas pessoas
deixaram o seu Território
de origem.

O rapaz mais velho mantinha-se junto à mãe, mas a menina sorriupara


Khardeen e deu dois passos na sua direcção.

— Béu-béu — disse alegremente, estendendo um animal de peluche


gasto.
Khardeen inclinou-se para a frente e sorriu. — Pois é o que faz. Comose
chama?

— Béu-béu. — Deu um abraço forte ao boneco. — Meu.


— Pois é.
Com um olhar receoso, a mulher puxou a menina. — Orian,
nãoaborreças o Senhor da Guerra.

— Não me está a aborrecer — disse Khardeen, de maneira agradável.


A mulher puxou a menina para junto de si e tentou sorrir. — Gostade
animais. A mãe do meu marido fez-lhe uma boneca antes de partirmos,
mas Orian preferiu trazer este.

E onde estava a tua própria mãe enquanto essa cabra te atacava


verbalmente?
Perguntou-se Surreal enquanto observava as sombras que se
aglomeravam
nos olhos da mulher, detectando um tremeluzir de vergonha noodor
psíquico. Bom, aí estava a resposta relativamente ao lado do legado
damenina que estava em questão.

O Senhor da Guerra que protestara quando Friall se recusara a


terminar
o contrato desviou a atenção da conversa que mantinha com
doismachos eyrienos, passou um olhar contundente sobre Khardeen
para logose aproximar, de modo protector, da mulher e das crianças.

Khardeen recostou-se, devolvendo o olhar contundente com um olhar


plácido.

Estando sentada a seu lado, com o braço a tocar o dele, Surreal sentiu
a tensão – e a irritação? – mas Khardeen não deu qualquer sinal
exterior.
Ao olhar para ela, a sua expressão era séria mas os olhos azuis
revelavamdivertimento.

— Imagino a reacção da mãe da pequena Rainha quando vir os


“béubéus”
que a filha abraçará — disse, ternamente.
— E mordem? — perguntou Surreal.
— Se vão morder a menina? Não. A mãe? — Khardeen encolheu os
ombros.
54
Entendendo a advertência sob o ar divertido, Surreal sentiu um calafrio.
Nesse momento, Daemon aproximou-se e Surreal expirou
ruidosamente.

Deslocava-se cuidadosamente, como um homem que acabara de


sermortalmente ferido e que sangrava em silêncio até à morte.

Khardeen levantou-se e gesticulou para o lugar vazio. — Por que nãovos


sentais? Tenho de tratar de alguns assuntos.

Logo que se sentou, Daemon envolveu-se com os braços.

Surreal já vira aquele gesto protector noutras ocasiões, nos


momentosem que se esforçara demasiado nos estudos de Arte, quando
os sonhos lheensombravam o sono.

Khardeen olhou para Surreal com um olhar interrogativo e ela abanoua


cabeça. Ficava reconhecida pela preocupação, mas não havia nada a
fazerpor Daemon nestes momentos, a não ser deixá-lo retirar-se até se
sentirfortalecido para voltar a enfrentar o mundo.

Um minuto mais tarde, Lucivar saiu da divisão privada, com uma


expressão
escrupulosamente neutra.

Durante toda a viagem, Daemon ficou sentado ao lado de Surreal,


deolhos fechados e Lucivar ficou de pé, na retaguarda da Carruagem, a
conversar
calmamente com os machos eyrienos que se aproximaram dele,
àcautela.

Durante toda a viagem, Surreal conjecturou sobre o que se


passaranaquela pequena divisão. E ficou desassossegada.

4 / Kaeleer

O Senhor Jorval estava encolhido na cadeira, observando a Sacerdotisa


das
Trevas a percorrer enfurecidamente a sala da suíte que alugara para
este
encontro.

As casas da Lua Vermelha tinham surgido em Kaeleer há quatro anos

– e ainda não existiam em qualquer outro local a não ser na Pequena


Terreille.
Todavia, alguns membros influentes do Conselho das Trevas, nosquais
se incluía, defenderam que os imigrantes machos mais fortes,
cujashipóteses de virem a ter uma amante nascida em Kaeleer eram
escassas,
precisavam de alguma forma de aliviar a tensão sexual. As Rainhas
daPequena Terreille transigiram, não sem um protesto simbólico, pois
rapidamente
reconheceram a utilidade de semelhantes locais. Presentemente,
uma visita a uma casa da Lua Vermelha tornara-se uma forma de
premiaros machos por bom comportamento nas cortes das Rainhas.
Podiam descarregar
as frustrações e as agressões em mulheres que não as podiam re55
cusar, que não podiam exigir delicadeza e obediência. E ninguém
reparava

– e se reparassem, não se importavam – que todas as mulheres nessas


casaseram imigrantes reclamadas no dia posterior à feira de serviços.
E alguns machos de Kaeleer, nos quais se incluía, descobriram o prazer
retirado da obediência aduladora de uma mulher.
Optara por esta casa da Lua Vermelha, na orla dos bairros
degradadosque se multiplicaram junto ao recinto da feira, pois os
proprietários não levantariam
questões. Os dois homens que detinham o estabelecimento nãose
importavam se uma mulher sofria de danos físicos ou mentais, desde
quefossem convenientemente recompensados. Do mesmo modo, não se
importavam
com o jovem que estava preso e amordaçado no quarto adjacente –
adádiva que trouxera na esperança de mitigar a ira da Sacerdotisa
Suprema.

Hekatah despiu à pressa o manto que lhe envolvia o rosto e o corpo.

Jorval engoliu em seco. Numa ocasião, não se conseguira controlar


eficara agoniado ao ver aquele corpo demónio-morto em decomposição.
Ocastigo que lhe fora aplicado por tal descontrolo proporcionara-lhe
pesadelos
durante meses a fio.

Alturas havia em que desejava desesperadamente nunca a ter


conhecido
ou nunca se ter deixado envolver nos seus esquemas. Não obstante,
fora ela que estivera por detrás da sua ascensão ao poder no Conselho
dasTrevas, descobrindo que lhe pertencia antes de sequer se ter
apercebido queaceitara servi-la.

— Tínhamos quatro Rainhas que se adequavam aos nossos propósitos


— remordeu Hekatah. — Quatro. E mesmo assim não conseguiste
escondê-
lo até encontrarmos uma forma de o usar.
— Tentei, Sacerdotisa — disse Jorval, com a voz trémula. — Impedia
indagação de Sadi sobre o serviço para lá da Pequena Terreille.
Aquelesforam os únicos nomes que lhe apresentei.
— Assim sendo, qual o motivo para não estar com uma delas?
— Saiu a meio da última reunião — exclamou Jorval. — Só soube
quetinha assinado outro contrato quando Friall me informou.
— Assinou outro contrato — trauteou Hekatah. — Com o irmão!
O peito de Jorval estremecia com o esforço para respirar. —
Tenteiimpedir! Tentei… — A voz perdeu-se enquanto Hekatah se
aproximava.
— Não lidaste com ele da melhor forma — disse, o tom ameninado a
tornar-se perigosamente dócil. — Por essa razão, está agora ligado à
corteque não queríamos que tivesse conhecimento da sua presença em
Kaeleere não temos forma de usar todo aquele poder das Jóias Negras
em nossobenefício.
Jorval tentou levantar-se. Sentiu um aperto na garganta ao perceberque
Hekatah o mantinha pregado à cadeira, mediante a Arte.

56
Hekatah sentou-se com graciosidade no colo do homem envolvendo-
lhe o pescoço com um braço. Ao sentir as unhas longas a deslizarem
pelorosto, Jorval perguntou-se se iria perder um olho. Talvez fosse
preferível.
Cego, não a poderia ver. Pensando melhor, não. Hekatah usava Jóias
maisescuras do que ele. Poderia forçá-lo a abrir a mente e a imprimir-
lhe umaimagem cem vezes pior do que o seu aspecto real.

Lamuriou-se ao sentir o estômago às voltas numa antecipação funesta.

— Tal como são dadas recompensas pelos êxitos, são aplicados


castigospelos falhanços — disse Hekatah enquanto acariciava o rosto de
Jorval.
Tendo plena consciência do que lhe era exigido, murmurou: — Sim,
Sacerdotisa.

— E falhaste, não foi, querido?


— S-sim, Sacerdotisa.
Formou um sorriso com o que lhe restava dos lábios. Pela Arte, invocou
uma garrafa em cristal com uma rolha e uma pequena taça em prata.
Flutuaram no ar enquanto removia a rolha e deitava o líquido escuro e
espesso
na taça. Voltou a colocar a rolha na garrafa e fê-la desaparecer, pondoa
taça, de seguida, junto aos lábios de Jorval.

— Trouxe-vos uma oferenda fresca — disse Jorval, debilmente.


— Eu vi. Que rapaz tão bonitinho, repleto do vinho cálido e adocicado.
— Premiu a taça contra o lábio inferior do homem. — Já tratarei dele.
Não lhe restando outra alternativa, Jorval abriu a boca. O líquido
deslizou
pela língua como uma lesma quente e comprida. Engasgou-se,
masconseguiu engolir.

— É veneno? — perguntou.
Hekatah fez desaparecer a taça e inclinou-se para trás, com os
olhosarregalados de espanto. — Achas realmente que eu envenenaria
um homem
que me é leal? E és-me leal, não és, querido? — Abanou a cabeça,
comtristeza. — Não, querido, é apenas uma infusãozita afrodisíaca.

— S-safframate? — Teria preferido veneno.


— Só o suficiente para tornar a noite interessante — respondeu
Hekatah.
Ficou prostrado, indefeso, enquanto Hekatah acariciava a pele que
começava
a estremecer ao mais ligeiro toque. Gemendo, envolveu-a com osbraços,
já sem reparar no cheiro a decomposição, já sem se importar comquem
ou com o que ela era, já sem se importar com mais nada a não serusar
aquele corpo feminino sentado no seu colo.

Quando tentou enfiar-lhe a língua na boca, Hekatah recuou com


umagargalhada de satisfação.

— Pois agora, querido — disse, ao mesmo tempo que o acariciava,


— vai buscar uma daquelas prostitutas.
57
O nevoeiro da lascívia dissipou-se ligeiramente. — Para aqui?

— Ainda temos de tratar do teu castigo — disse Hekatah docilmente,


maldosamente. — Vai buscar uma com cabelo louro e olhos azuis.
A lascívia tornou-se violenta, quase penosa. — Como Jaenelle Angelline.

— Exactamente. Encara isto como um pequeno ensaio para o dia


emque aquela cabra pálida tenha de se sujeitar a mim. — Beijou-o na
têmpora,
lambeu a pulsação que latejava. — Será excitante para ti se eu beber
umpouco de sangue quando estiveres dentro dela?
Jorval olhou-a, descontroladamente excitado e apavorado.

— Também beberei dela. Nessa altura não te importarás se estiveres


amontar um cadáver, mas não te farei isso, meu querido. Afinal de
contas, éapenas um ensaio, para a noite em que tiveres Jaenelle
debaixo de vós.
— Sim — sussurrou Jorval. — Sim.
— Sim — ecoou Hekatah, satisfeita. Levantou-se e caminhou
devagarpara a porta do quarto. — Não te preocupes com a possibilidade
de o nossojoguinho ser exposto pela prostituta. Confundirei a mente da
vaca de formaa nunca mais ter a certeza de nada, a não ser que foi bem
usada.
Levantando-se, Jorval deslocou-se titubeando, para a porta exterior,
penosamente consciente do olhar de Hekatah.

— O rapazinho jeitoso será o aperitivo e a sobremesa — disse Hekatah.


— O medo confere ao sangue um gosto agradavelmente apimentado e,
no final da noite, estará no ponto. Por isso, não demores muito a
escolher,
querido. Um aperitivo come-se num instante e, se ficar impaciente, é
provável
que tenhamos de rectificar o teu castigo. E não queres isso, pois não?
Aguardou até a porta se fechar atrás dela para então sussurrar: — Não,
não quero.

5 / Kaeleer

Uma mão cálida apertou-lhe delicadamente o ombro.

— Daemon — disse Lucivar baixinho. — Anda, meu velho. Chegámos.


Daemon abriu os olhos com relutância. Queria afastar-se do mundo,
queria afundar-se no abismo e, simplesmente, desaparecer. Em breve,
prometeu
a si mesmo. Em breve. — Estou bem, Bastardinho — disse com
lassidão.
Estava a mentir e ambos sabiam.
Pondo-se de pé com rigidez, Daemon rodou os ombros. Os
músculoszuniram devido à tensão e, ao mesmo tempo, estava a
instalar-se uma violenta
dor de cabeça por detrás dos olhos. — Onde estamos?

Sem responder, Lucivar conduziu-o para fora da Carruagem.

58
Surreal estava no lado de fora da Carruagem, olhando espantada para

o gigantesco edifício em pedra cinzenta. — Fogo do Inferno, Mãe Noite e


que as Trevas sejam misericordiosas. Que lugar é este?
O Príncipe Aaron sorriu abertamente. — O Paço dos SaDiablo.

— Merda.
O chão começou a girar sob os pés de Daemon. Estendeu um braço,
que Lucivar agarrou, equilibrando-o. — Não consigo — murmurou. —
Lucivar,
não consigo.

— É claro que consegues. — Segurando-lhe no braço, Lucivar levou-


oaté às portas duplas da entrada principal. — Será mais fácil do que
pensas.
Além disso, Ladvarian tem estado à espera para te conhecer.
Daemon não tinha energias para conjecturar, quanto mais para se
importar,
qual o motivo para este Ladvarian o querer conhecer, não no momento
em que o próximo passo poderia colocá-lo frente-a-frente, de novo,
com o Senhor Supremo – ou com Jaenelle.

Lucivar empurrou as portas, abrindo-as. Daemon seguiu-o para osalão


principal, com os outros imigrantes agrupados atrás dele.
Tinhamavançado apenas alguns passos quando Lucivar se deteve
imprevistamente,
praguejando baixinho.

Daemon olhou à volta, tentando perceber o rasgo de prudência


quedetectara em Lucivar. No lado mais distante do salão, uma criada
estava
ajoelhada por baixo de um dos lustres de cristal, a lavar o chão. A
algunspassos deles encontrava-se um enorme Senhor da Guerra de Jóia
Vermelha,
vestido com um uniforme de mordomo. A expressão que apresentavaera
mais gélida do que estóica.

Olhando para o mordomo, Lucivar disse cautelosamente: — Beale.

— Príncipe Yaslana — respondeu Beale com uma formalidade rígida.


Lucivar crispou-se. — O que…
Ouviram-se umas risadinhas. Olharam todos para cima.
Muito acima das suas cabeças, um rapaz eyrieno desnudado, que devia
ter começado a andar há pouco tempo, balançava-se precariamente
nolustre mais próximo.
Lucivar olhou de relance para Beale e avançou dois passos. — O
queestás a fazer aí, rapazola?
— A voa’ — disse o rapazinho.
— Adivinhem lá — rezingou a criada, atirando o pano para um baldee
levantando-se.
— Escapaste-te de quem estava a tomar conta de ti, não foi? —
resmoneou
Lucivar.
A criança voltou a dar umas risadinhas e, logo de seguida, produziu
um som tosco.

59
— Desce daí, Daemonar — disse Lucivar, rispidamente.
— Não!
Daemon sentiu os olhos a arder com lágrimas ao olhar para o rapaz.
Engoliu em seco para que o coração não lhe saísse pela boca.
Lucivar avançou mais um passo e abriu lentamente as asas escuras e
com membranas. — Se não desceres, eu vou aí buscar-te.

Daemonar abriu as pequenas asas. — Não!

Lucivar lançou-se pelo ar. Ao passar pelo lustre, tentou agarrar Da

emonar que se esquivou, mergulhando a pique. O rapaz voava como


umzangão embriagado a tentar fugir a um falcão, mas não se deixou
apanhar.

— O rapaz mexe-se bem — disse Hallevar num tom aprovador,


passando
para a frente do grupo.
Surreal olhou de soslaio para o Senhor da Guerra eyrieno mais velho.

— Parece que foi buscar o melhor de Yaslana.


Hallevar resfolegou quando Lucivar passou velozmente por Daemonar
e lhe fez cócegas no pé, provocando guinchos no rapaz, que se esquivou.

— Podia tê-lo agarrado à primeira. O pequenito terá de dar-se por


vencidomas na sua mente ficará gravado que deu luta. Não, Lucivar
sabe bem comotreinar um guerreiro eyrieno.
Daemon quase nem os ouvia. Fogo do Inferno! Será que Lucivar nãose
apercebia que a criança estava a ficar cansada? Iria insistir até que o
bebécaísse ao chão?

Quando a criança voou na sua direcção, Daemon avançou, ergueu


obraço e agarrou uma perna roliça.

Daemonar berrou e bateu as asinhas com toda a força.

Puxando-o com delicadeza, Daemon envolveu Daemonar com o outro


braço, encostando-o ao peito.

Um pequeno punho acertou-lhe no queixo. Com a outra mãozinha,


agarrou-lhe os cabelos e puxou, provocando-lhe lágrimas nos olhos.
Umguincho de indignação atravessou-lhe o tímpano e vibrou-lhe na
cabeça.

Lucivar pousou e esfregou a boca com a parte de trás da mão.


Mesmoassim, o sorriso não desapareceu. Passando o braço esquerdo à
volta dacintura do rapaz, forçou a pequena mão a abrir-se. — Deixa o
tio Daemon.
A intenção é que goste de ti. — Afastou-se rapidamente, prendeu os pés
dorapaz com uma mão e rugiu: — Não é o sítio indicado para
pontapeares oteu pai.

Daemonar produziu um som tosco e sorriu abertamente.


Lucivar olhou para o rapaz que se contorcia e disse pesarosamente:

— Naquela altura, parecia ser uma boa ideia conceber-te.


— Sim! — Foi então que Daemonar reparou na mulher e na meninaao
seu colo. — Bebé! — gritou, contorcendo-se para se libertar. — Minha!
60
— Mãe Noite — resmungou Lucivar entre dentes, virando-se para tapar
a vista a Daemonar.
Duas mulheres molhadas e em desalinho entraram no salão. Uma delas
segurava um toalhão de banho. — Nós tratamos dele, Príncipe Yaslana.

— Graças às Trevas. — Com algum esforço, Lucivar e as duas mulheres


conseguiram embrulhar Daemonar no toalhão e levá-lo do salão.
Seguindo-os com o olhar, o coração de Daemon ficou apertado. O rapaz
parecia-se com Lucivar. Não sabia se deveria sentir-se desconsolado
oualiviado por não ver qualquer indício de azul-safira nos olhos
dourados dacriança, pela inexistência de um tom mais claro no cabelo
preto ou na pelemorena, por não detectar qualquer traço da beleza
exótica da mãe.

Lucivar regressou prontamente.

— Logo que os convidados se instalem nos respectivos aposentos,


ojantar será servido na sala de jantar formal — informou o mordomo.
— Obrigado, Beale — respondeu Lucivar, com alguma humildade.
— O pessoal deverá ser informado de alguns preparativos em especial?
Lucivar gesticulou para que o jovem Senhor da Guerra, que se
mantivera
protectoramente junto à mulher com as duas pequenas crianças,
seaproximasse. — Este é o Senhor Endar, o marido da Senhora Dorian.

Endar crispou-se diante do olhar atento de Beale.

O Príncipe Aaron passou a mão à volta do braço de Surreal e puxou-


apara a frente. — Eu acompanho a Senhora SaDiablo e a Senhora
Benedict
aos seus aposentos.

— A Senhora SaDiablo? — perguntou Beale, surpreso.


Aaron sorriu de orelha a orelha.
Surreal silvou.
— Tenho a certeza que o Senhor Supremo ficará satisfeito por recebera
Senhora — disse Beale, com um brilho suspeito nos olhos.
Antes que Surreal o pudesse impedir, Aaron afastou-lhe o cabelo,
revelando
uma orelha delicadamente pontiaguda. — E também o PríncipeChaosti.

Os lábios de Beale estremeceram. De seguida, recuperou o


comportamento
estóico, dirigindo-se aos imigrantes. — Os que aqui estão comocriados,
sigam o Holt — disse, indicando o lacaio que aguardava. — Osrestantes,
façam o favor de me acompanhar.
Logo que todos os eyrienos saíram do salão, à excepção do
PríncipeFalonar, bem como Manny, Jazen e Andrew, Surreal dirigiu-se
a Lucivar.

— Não lhe deverias ter dito que deixasse que as crianças ficassem com
os
pais? Duvido que se sintam à vontade, num sítio que lhes é estranho.
O Príncipe Aaron pigarreou ruidosamente.

61
O Senhor Khardeen inclinou a cabeça e começou a estudar o tecto.

Lucivar limitou-se a olhá-la fixamente por um momento antes de dizer,


devagar: — Se queres ensinar a Beale e a Helene como devem gerir este
lugar,
não faças cerimónia. Mas antes, deixa que me afaste da linha de fogo.

— Vinde, Senhora Surreal — disse Aaron. — Vamos instalar-vos antes


que comeceis a desmoronar tudo à nossa volta.
Lucivar aguardou que Aaron e Khardeen acompanhassem Surreal e
Wilhelmina para fora do salão, antes de se voltar para Falonar. — O que
foi?
Falonar encolheu os ombros. — Porque escolheste Endar?

— Desde que o pessoal da casa saiba que Endar é marido de Dorian,


ninguém contestará o facto de partilhar a cama dela. E acredita no que
tedigo, há machos aqui que não hesitariam em despedaçá-lo se não
soubessem
que essa partilha é consentida por ela. — Inspirou fundo e expirou
devagar.
— Amanhã explicarei as regras. Por hoje, informa os homens que
semantenham afastados de todas as mulheres. — Fez uma pausa e
acrescentou:
— O melhor é que te vás instalar. Permaneceremos aqui alguns dias.
Depois de Falonar sair, Lucivar virou-se para Daemon. — Anda. Vamos
lá terminar isto para que possamos comer e descansar.
Daemon seguiu Lucivar pela escadaria da sala de recepções informal
epelo labirinto de corredores. Decorridos alguns minutos de silêncio,
disse:

— Chamaste-lhe Daemonar.
— Foi o mais parecido que consegui, mantendo o nome eyrieno —
disse Lucivar baixinho, com a voz ligeiramente enrouquecida.
— Estou lisonjeado.
Lucivar resfolegou. — Poderias estar quando era ainda um bebé.
Logoque se pôs em pé, transformou-se num monstrinho. — Passou os
dedospelo cabelo que lhe batia nos ombros. — E a culpa não é só
minha. Não o
fiz sozinho. Mas parece que ninguém se lembra disso.

— Não imagino porque será — disse Daemon friamente,


observandoLucivar a inchar de indignação.
— Quando faz algo encantador, é o filho da sua mamã. Quando fazalgo
inteligente, é o neto do Senhor Supremo. Contudo, quando se
portacomo um monstrinho ordinário, é o meu filho. — Lucivar
massajou o peito.
— Às vezes, parece que faz certas coisas só para ver se o meu coração
pára.
— Como há pouco?
Lucivar acenou a mão com indiferença. — Não, aquilo era apenas…
apenas… merda. O que queres que te diga? É um monstrinho.
Ao virarem uma esquina quase chocaram com uma bela mulhereyriena.
Usava uma camisa de noite comprida e prática e segurava um livro
espesso.

— O teu filho — disse, espaçando as palavras, — não é um monstro.


62
— Deixa lá — disse Lucivar, semicerrando os olhos. — Marian, porque
não estás na cama? Hoje devias estar a descansar.
Marian bufou irritada. — Dormitei a maior parte da manhã.
Brinqueium pouco com Daemonar esta tarde e depois dormimos ambos
uma sesta.
Acabei de me levantar para ir buscar um livro. Vou voltar para a
camaantes de Beale me trazer uma caneca de chocolate quente e um
pires combiscoitos.

Lucivar semicerrou os olhos um pouco mais. — Não comeste nadahoje?


Daemon olhou atónito para Lucivar. Até um idiota – ou um
machoeyrieno – conseguia ver que esta mulher estava a crepitar em
silêncio.

— O tio Andulvar veio verificar se eu tinha comido um bom pequeno-


almoço. Prothvar trouxe-me um lanchinho a meio da manhã. Almocei
com Daemonar. Certo de que estaria esfomeada, Mephis trouxe um
lanchinho
a meio da tarde. E o teu pai já andou a indagar o que foi o meu jantar.
Já fui bastante massacrada por hoje.
— Não te estou a massacrar — resmungou Lucivar – para logo
acrescentar,
baixinho: — Ainda não tive oportunidade de o fazer.
Marian olhou intencionalmente para Daemon. — Não deverias estara
tratar dos teus hóspedes?

— Não é um hóspede. É o meu irmão.


Sorrindo calorosamente, Marian estendeu a mão. — Deves ser o
Daemon.
Oh, estou tão feliz por finalmente teres chegado. Agora tenho maisum
irmão.

Irmão? Pegando-lhe na mão, Daemon olhou para Lucivar com um


arperplexo.

Passando uma mão possessiva pelo cabelo de Marian que caía até
àcintura, Lucivar disse afectuosamente: — A Marian faz-me a honra de
ser
minha mulher.

E a mãe de Daemonar. O chão desapareceu debaixo dos pés de Daemon


para reaparecer de supetão.

Marian apertou-lhe a mão, com os olhos repletos de preocupação.


Oolhar de Lucivar tornou-se mais contundente.
As emoções colidiam dentro de si, de encontro à frágil sanidade.
Sempoder oferecer-lhes qualquer tipo de alento, recuou e reiniciou o
esforçopara recuperar o controlo dos seus sentimentos.

Porventura percebendo que Daemon precisava de tempo, Lucivar puxou


o livro que Marian segurava, tentando ler o título.
Marian agarrou-o com força e afastou-se de Lucivar.

— É um livro de fungadelas? — perguntou Lucivar, desconfiado.


Marian abriu e fechou as asas com um estalido. — Um quê?
63
— Tu sabes. Um desses livros que as mulheres gostam de ler e
ficamtodas chorosas. Da última vez que leste um desses, ficaste
abalada quandofui ver o que se passava. Atiraste-me com o livro.
A crepitação de Marian deixara de ser silenciosa. — Não fiquei abalada
com o livro. Entraste de rompante no quarto com as armas em riste e
assustaste-me.

— Estavas a chorar. Pensei que te tivesses magoado. Ouve, só


querotomar conhecimento antecipadamente se te vais pôr a
choramingar.
— Quando Jaenelle o leu, aposto que não a surpreendeste quando elase
pôs a choramingar.
Lucivar olhou para o livro como se lhe tivessem acabado de
nascerpresas. — Oh. Esse livro. — Protegeu a barriga com o braço. —
Na verdade,
eu surpreendi-a. Mas a pontaria dela é melhor que a tua.

A resmunguice de Marian deu lugar a uma gargalhada. — Pobre


Lucivar.
Tentas proteger as mulheres da família com tanto afinco e nós
nãomostramos o nosso apreço, pois não?

Lucivar fez um trejeito. — Bem, se essa história tiver cenas de amor


interessantes,
marca as páginas e poderás avaliar-me dentro de alguns dias.

Marian olhou de soslaio para Daemon e corou.

Lucivar beijou-a delicadamente e afastou-se para a deixar passar. —

Agora vai para a cama.

— Até amanhã, Daemon — disse Marian, com alguma timidez.


— Boa noite, Senhora Marian — respondeu Daemon. Foi tudo o
queconseguiu expressar.
Ficaram a observá-la até entrar nos seus aposentos, que eram
tambémde Lucivar, e, nesse momento, Lucivar estendeu a mão.
Daemon crispou-se,
rejeitando o toque.

Deixando cair a mão, Lucivar disse: — Os aposentos do Senhor


Supremo
são ao fundo do corredor. Com certeza que desejará ver-te.
Daemon não se conseguia mexer. — Pensei que tivesses casado
comJaenelle.

— E o que te levou a pensar que tinha casado com Jaenelle?


O espanto na voz de Lucivar despertou a fúria de Daemon. —
Estavasaqui — rosnou. — Por que não haverias de querer casar com
ela?
Lucivar manteve-se em silêncio durante um longo minuto. Depois,
calmamente, respondeu: — Esse foi sempre o teu sonho, Daemon. Não
omeu. — Virando-se, começou a caminhar pelo corredor. — Anda.

Daemon seguiu-o devagar. Quando Lucivar parou e bateu a uma porta,


continuou a caminhar, atraído pelo forte e obscuro odor psíquico
feminino
proveniente de um quarto do lado oposto do corredor.

— Daemon?
64
A voz de Lucivar dissipou-se, calada por uma poderosa vaga de
emoções.

Daemon abriu uma porta e entrou numa sala de estar. Numa das
paredespodiam ver-se estantes encastradas por cima de armários em
madeira fechados
e que lhe davam pela cintura. Um sofá, duas mesas triangulares de
apoioe duas cadeiras constituíam a mobília à volta de uma mesa baixa
e comprida.
Nas mesas de apoio podia ver-se um par de candeeiros curvados e
patinados.
Ao lado de uma das cadeiras estava um grande cesto repleto de meadas
delã e de fios de seda e um bordado praticamente acabado. À frente das
portasem vidro encontrava-se uma secretária, e essas portas abriam
para a varanda.
Num dos cantos estava um suporte com degraus carregado de plantas.

O odor psíquico inundava-o, arrastava-o. Oh, recordava-se


perfeitamente
do odor obscuro. Contudo, havia agora algo de diferente, um
toquedelicado e agradável a almíscar.

O corpo de Daemon ficou tenso, depois inchado de interesse masculino


até a sua mente compreender o significado dessa diferença. Foi então
quereparou nos chinelos azul-safira junto a uma cadeira. Chinelos de
mulher.

Contra toda a sensatez, apesar do anseio, mesmo quando julgara


queLucivar tinha casado com ela, não absorvera inteiramente o facto de
queJaenelle já não era a criança que conhecera. Crescera.

As paredes do quarto começaram a ficar acinzentadas, para depois


escurecerem
e começarem a fechar-se, formando um túnel à sua volta.

— Daemon.
Também se recordava daquela voz profunda. Ouvira-a com um
ardivertido. Ouvira-a repleta de raiva e de poder feríssimo. Ouvira-a
enrouquecida
e extenuada. Ouvira-a a suplicar-lhe que ascendesse, que aceitassea
ajuda e a força que lhe era oferecida.

Virando-se com lentidão, deparou-se com Saetan. O Príncipe das


Trevas.
O Senhor Supremo do Inferno. O seu pai.
Saetan estendeu a mão, de dedos esguios e unhas longas e tingidas
anegro. — Daemon… Jaenelle está viva — disse, docilmente.

O quarto contraiu-se. O túnel continuava a fechar-se. A mão


aguardava-
o, oferecendo força, segurança, conforto – tudo o que rejeitara no
ReinoDistorcido.

— Daemon.
Deu um passo em frente. Levantou a mão, de dedos esguios e
unhaslongas e tingidas a negro. Desta vez, era a sua própria fragilidade
que temia.
Desta vez, aceitaria as promessas de Saetan.

Deu mais um passo, na direcção da mão que espelhava a sua.


Imediatamente antes de tocar com os dedos nos dedos de Saetan, o
quarto esvaiu-se.

65
— Mantém a cabeça baixa, rapazola. Respira devagar. Isso mesmo.
Serenidade força e calor fluíam da mão que lhe afagava o cabelo, o
pescoço, as costas.
O esforço deixou-o nauseado, mas, passado um momento,
Daemonconseguiu que o cérebro e a mente funcionassem em conjunto e
abriu osolhos. Viu o tapete entre os pés – tons terra, com espirais verde-
claro e vermelho
velho. Obviamente, o tapete não conseguia decidir-se se representava
a Primavera ou o Outono.

— Queres um copo de conhaque ou uma bacia? — perguntou Lucivar.

Por que haveria de querer uma bacia?

Sentiu o estômago às voltas. Engoliu com cuidado. — Conhaque —


disse, cerrando os dentes na esperança de não ter feito a escolha
errada.

Quando Lucivar regressou, pôs-lhe na mão um copo de balão


generosamente
servido e enfiou-lhe uma bacia entre os pés.

A mão que massajava as costas de Daemon parou de se mover. —


Lucivar
— disse Saetan, num tom de voz divertido e aborrecido em medidas
iguais.

— A Helene não ficará nada contente se vomitar no tapete.


Daemon não reconheceu a palavra que Saetan usou, embora lhe tivesse
soado desagradável. Era insignificante, mas sentiu uma satisfação
infantilpois o seu pai tomara o seu partido.

— Vai para o Inferno — disse Daemon, endireitando-se para beberum


gole do conhaque.
— Não sou eu que ainda há um minuto ia batendo com o nariz nochão
— resmoneou Lucivar, farfalhando as asas.
— Crianças — avisou Saetan.
Visto que o estômago não rejeitou de imediato o conhaque,
Daemonbebeu outro gole – acercando-se gradualmente das perguntas
que necessitavam
de respostas. — Está mesmo viva?

— Está mesmo viva — respondeu Saetan, com afabilidade.


— Viveu aqui desde… — Não conseguiu exprimir.
— Sim.
Daemon virou a cabeça, precisando de ver a resposta nos olhos
deSaetan, assim como ouvi-la. — E conseguiu curar-se?
— Sim.
Todavia, detectou um tremeluzir de hesitação nos olhos dourados.
Bebendo mais um gole de conhaque, apercebeu-se finalmente que,
embora o odor psíquico de Jaenelle ocupasse o quarto, não era recente.

— Onde está?
66
— Está a fazer o périplo de Outono aos Territórios dos parentes — disse
Saetan. — Fazemos o possível por não interromper, mas eu podia…
— Não. — Daemon fechou os olhos. Precisava de algum tempo parase
recompor antes de voltar a encontrá-la. — Posso esperar. —
Esperaratreze anos. Mais alguns dias não seriam relevantes.
Saetan hesitou, olhando de relance para Lucivar que acenou
afirmativamente
com a cabeça. — Tens algo em que pensar antes de Jaenelle regressar.
— Invocou um pequeno estojo de jóias e abriu-o com o polegar.

Daemon olhou abismado para o rubi lapidado no anel de ouro. Umanel


de Consorte. Já vira aquele anel no Reino Distorcido, à volta do pé
deum cálice de cristal que fora estilhaçado e cuidadosamente reunido.
O cálice
de Jaenelle. A promessa de Jaenelle.

— Não é a ti que te cabe oferecê-lo — disse Daemon. Apertou comforça


o copo de conhaque para escapar à tentação de pegar no anel.
— A oferta não é minha, Príncipe. Como Administrador da Corte
dasTrevas, foi-me confiada a sua guarda.
Daemon humedeceu os lábios. — Já foi usado alguma vez? —
Jaenelletinha agora vinte e cinco anos. Não havia motivo para crer –
para ter esperança
– que nunca tivesse sido usado no dedo de outro homem.

Os olhos de Saetan continham uma mistura de alívio e de tristeza.

— Não. — Fechou o estojo e ofereceu-o a Daemon.


Daemon agarrou-o bruscamente, fechando-a na mão com força.
— Anda, rapazola — disse Saetan, entregando o copo de conhaque
aLucivar e ajudando Daemon a levantar-se. — Eu levo-te ao teu quarto.
Beale
irá trazer um tabuleiro dentro de alguns minutos. Tenta comer e
dormirum pouco. De manhã, voltaremos a falar.
Abrindo a porta em vidro, Daemon saiu para a varanda. O roupão
emseda era demasiado fino e não impedia que a brisa nocturna
dispersasse ocalor que adquirira num banho prolongado, todavia,
precisava de estar aoar livre por um momento. Precisava de ouvir a
água a cantar nas pedras dafonte de aspecto natural no centro do
jardim, lá em baixo. Nos quartos querodeavam o jardim, só dois deles
exibiam uma ténue luz. Quartos de hóspedes?
Ou esses quartos seriam ocupados por Khardeen e Aaron?

Saetan dissera que nenhum homem usara o anel de Consorte, mas…

Daemon inspirou fundo e expirou devagar. Era Rainha e uma


Rainhatinha direito a qualquer prazer que os machos da sua corte lhe
pudessemproporcionar.
E agora estava aqui.

A tiritar, voltou para o quarto, trancou a porta em vidro e puxou


oscortinados. Despiu o roupão, deitou-se e puxou os cobertores sobre o
corpo

67
desnudado. Virando-se de lado, fitou demoradamente o estojo que
pusera

na mesinha de cabeceira.

Estava aqui. Agora, a escolha era sua.

Tirou o anel de Consorte do estojo e enfiou-o no dedo anelar da


mãoesquerda.

6 / Kaeleer

Depois de dispor o último dos seus produtos de higiene pessoal no


armárioda casa de banho, Surreal deteve-se por um instante, à escuta.
Sim, entraraalguém no seu quarto. Teria a criada regressado para outra
educada contenda
verbal? Dissera à mulher que não precisava de ajuda para desfazer
asmalas – e ficara a pensar no comentário entre dentes da criada. Não
haja
dúvidas, é uma SaDiablo.

Talvez se tivesse precipitado um pouco. Afinal, não queria ter de


tratarda roupa enquanto aqui permanecesse.

Dirigindo-se à porta da casa de banho, Surreal enviou uma


prudentesonda psíquica na direcção do quarto. Nos seus lábios formou-
se um rosnado.
Não era a criada que estava de volta, era um macho a pôr-se à
vontadeno seu quarto. Surreal hesitou. O odor psíquico era de um
macho, não tinha
dúvidas – mas havia algo que era um pouco diferente.

Invocando o seu punhal preferido, usou a Arte para o ocultar mediante


um escudo de visão. Com os braços ao lado do corpo e a mão
direitaligeiramente dobrada a segurar no punho, ninguém suspeitaria
que tinhauma arma a postos – a não ser que soubessem que era uma
assassina. Muitoprovavelmente, seria um macho que tomara
conhecimento da sua profissão
anterior e imaginara que ficaria agradada por o acolher – como os
canalhas
ordinários da feira de serviços que não paravam de insistir para
queassinasse um contrato numa casa da Lua Vermelha “aristocrática”.

Bom, se este macho esperava uma pândega, teria de informá-lo que,


em primeiro lugar, teria de falar com o Administrador relativamente a
contrapartidas.
A menos que fosse o próprio Administrador. Esperaria comprá-
la para que desistisse de um contrato que não tinha desejado
assinardesde logo?

Com o temperamento a fervilhar, Surreal entrou de rompante noquarto


– e parou abruptamente, não sabendo se deveria gritar ou rir.

Um grande cão cinzento tinha a cabeça enfiada no baú aberto de


Surreal.
A ponta da cauda abanava como um metrónomo acelerado ao
mesmotempo que farejava as roupas.

— Encontraste alguma coisa interessante? — perguntou Surreal.


68
O cão saltou do baú, dirigindo-se para a porta. Foi então que parou e

o seu corpo foi percorrido por um tremor nervoso enquanto olhava


paraSurreal com os seus olhos castanhos. A cauda abanou por duas
vezes, com
um toc-toc esperançoso, para depois a enfiar entre as pernas.
Surreal fez o punhal desaparecer. Não tirando os olhos do cão, verificou
o baú. Se tivesse feito algo nojento às suas roupas… Vendo que
nadamais fizera do que farejar, relaxou e virou-se de frente para o cão.

— És enorme — disse, num tom agradável. — Tens permissão paraestar


dentro de casa?
— Rrrf.
— Tens razão. Tendo em conta a dimensão deste lugar, foi uma
pergunta
parva. — Estendeu a mão ligeiramente fechada.
Aceitando o convite, o cão farejou-lhe avidamente a mão, os pés,
osjoelhos, a…

— Não me metas o focinho entre as pernas — resmoneou Surreal.


O cão recuou dois passos e espirrou.
— Bem, essa é a tua opinião.
Abriu a boca numa careta canina. — Rrrf.
Rindo, Surreal guardou as roupas no guarda-fatos e no toucador.
Depois
de pendurar a última peça, fechou o baú.

Percebendo que tinha de novo a atenção da mulher, o cão sentou-se


eofereceu-lhe uma pata.

Bem, parecia amistoso.

Depois de lhe apertar a pata, passou-lhe as mãos pelo pêlo, coçou


atrásdas orelhas e massajou-lhe a cabeça até que os olhos do cão
começaram afechar-se de satisfação. — És um lindo menino, não és?
Um menino enorme
e peludo.

Deu-lhe dois beijos entusiastas, embora ensopados, no queixo.


Surreal levantou-se, espreguiçando-se. — Agora tenho de ir, rapazola.
O meu jantar está algures neste lugar e tenciono encontrá-lo.

— Rrrf. — O cão saltitou para a porta, com a cauda a abanar.


Surreal fitou-o. — Bem, acho que deves saber onde encontrar comida.
Deixa-me despachar e depois partiremos à caça do jantar arredio.

— Rrrf.
Fogo do Inferno, pensava Surreal ao lavar as mãos e pentear o cabelo.
Devia estar mais cansada do que pensava uma vez que estava a
imaginarinflexões de tons nos sons emitidos pelo cão que faziam com
que parecesseque estava mesmo a responder-lhe. E podia jurar que
aquele último “Rrrf”
estava carregado de divertimento. Tal como podia jurar que alguém
estavaa tentar alcançá-la num fio psíquico de comunicações e que era
ela que se
estava a atrapalhar com a ligação.

69
Quando regressou, o estado de espírito do cão tinha-se alterado.
Aoabrir a porta do quarto, olhou para ela com um ar triste e esgueirou-
se para

o corredor.
O Príncipe Aaron estava encostado à parede oposta.
Era um homem bonito de cabelo preto, olhos cinzentos e apresentava
uma altura e uma constituição que as mulheres considerariam
atraente. Aolado de Sadi, ficaria num distante segundo lugar – bem, o
mesmo aconteceria
com qualquer outro homem – mas decerto que nunca lhe
faltariamconvites para a cama.

Porventura fosse essa a explicação para a prudência sob a confiança


arrogante.

— Visto que não conheceis o lugar, passei aqui para vos acompanhare à
Senhora Benedict até à sala de jantar — disse Aaron, parecendo estar
aesforçar-se para não sorrir. — Contudo, vejo que já tendes companhia.
As orelhas do cão arrebitaram-se. Começou a abanar a cauda.

O corredor encheu-se de correntes masculinas incomodativas. Surreal


considerou por breves instantes dar uma bofetada a um deles,
quebrando oque quer que se estivesse a passar, mas perder os
acompanhantes significavater de dar sozinha com a sala de jantar.

Felizmente, Wilhelmina Benedict escolheu esse preciso momentopara


sair do quarto, que era ao lado do quarto de Surreal. Depois de
Aaronexplicar que as acompanharia, ofereceu um braço a cada mulher
e os três,
com o cão a segui-los de perto, iniciaram a longa caminhada pelo Paço.

— Os criados devem ficar exaustos ao final do dia — disse Surreal ao


virarem para mais outro corredor.
— Nem por isso — respondeu Aaron. — O pessoal trabalha por turnos
e é-lhes atribuída uma das alas do Paço. Dessa forma, todos acabam
por trabalhar na ala da família e na ala onde reside a corte, quando
aqui
permanece.
— Isso quer dizer que vou voltar à mesma discussão com outra criada?
— Surreal queixou-se.
Aaron lançou-lhe um olhar divertido. — Quer dizer que preparastes
ovosso próprio banho?
— Nem me dei ao trabalho de tomar banho — ripostou Surreal. —
Sentai-vos contra o vento.

Convencida.
Não tinha de dizê-lo em voz alta. A sua expressão era suficiente.

Surreal olhou para trás para o acompanhante peludo. Bem, os


animaisdeveriam ser um assunto seguro para conversa de
circunstância. — Temautorização para estar dentro de casa?

— Oh, claro — disse Aaron. — Embora ficasse surpreendido por vê-lo


70
aqui. A alcateia fica normalmente nos bosques a norte quando há
estranhospor estes lados.

— A alcateia? — Qual é a raça deste cão?


— Não é um cão. É um lobo. E é parente.
Wilhelmina sobressaltou-se e olhou para o lobo com um ar assustado.
— Mas… os lobos não são animais selvagens?
— É também Senhor da Guerra — disse Aaron, ignorando a perguntade
Wilhelmina.
Surreal sentiu-se ligeiramente nauseada. Já ouvira falar dos parentes,
que teriam algum tipo de magia animal. Mas chamar-lhe Senhor da
Guerra…
— Quereis dizer que é Sangue?

— Mas é claro.
— Qual o motivo para estar no Paço?
— Bem, assim de repente, diria que está a travar amizades.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas,
pensou
Surreal. O que significava aquilo? — Assim sendo, parece que não
éverdadeiramente selvagem. Se está dentro de casa, deve estar
domesticado.

Aaron olhou-a com um ar feroz. — Se com “domesticado” quereisdizer


que não mija nos tapetes, então é domesticado. Porém, por esses
padrões,
também eu sou domesticado.

Surreal cerrou os dentes. Que se dane a conversa de circunstância.


Neste local, transformava-se em areias movediças verbais.

Fez eco do suspiro de alívio de Wilhelmina quando chegaram a


umaescadaria. Felizmente, a sala de jantar não estava muito distante e
pôde afastar-
se um pouco do seu acompanhante. Acompanhantes. Seja o que for.

Merda.

Talvez Khardeen estivesse na sala de jantar. Era Senhor da Guerra,


seu semelhante em casta e as Jóias Cinzentas de Surreal eram
superioresàs Azul-Safira, o que lhe proporcionava uma vantagem. Neste
momento,
desejava uma vantagem pois tinha a impressão vincada de que, dos
doisacompanhantes, o que possuía a dentadura mais impressionante
era, naverdade, o que representava menor perigo.
Surreal olhava fixamente para a porta em madeira fechada,
desejandotê-lo feito antes de comer. O bife alto e a caçarola de vegetais
estavam deliciosos,
tal como o pão, o queijo e as maçãs ligeiramente ácidas, que deglutira
com entusiasmo. Agora o estômago comprimido estava a moldar
todaaquela comida numa bola rígida.

Resmoneando baixinho, ergueu o punho para bater à porta. Fogo


doInferno, não passava de uma reunião necessária com o
Administrador dacorte… que detinha agora a autoridade para controlar
a sua vida… que

71
era também o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan… que
eratambém o Senhor Supremo do Inferno… cujo nome era Saetan
DaemonSaDiablo.

— Rrrf?
Surreal olhou por cima do ombro. O lobo inclinou a cabeça.

— Acho que é melhor ficares aqui — disse, batendo uma única e


enérgica
vez na porta. Ao ouvir uma voz grave dizer: — Entre —, deslizou paraa
divisão, fechando a porta antes que o lobo a conseguisse seguir.
A divisão tinha a forma de um L invertido. A parte mais alongada
eracomposta por uma área de estar confortável, com mesas, cadeiras e
um sofáem pele preta. Nas paredes podia ver-se uma variedade de
quadros, desdepinturas comoventes a óleo a bizarros rascunhos a
carvão. Intrigada pelasescolhas, virou-se na direcção do recanto.

As paredes estavam forradas a veludo vermelho escuro. A parede


aofundo era composta por prateleiras de livros do chão ao tecto. Uma
secretária
em madeira escura preenchia o centro do espaço. Dois candeeiros
iluminavam
o tampo da secretária, bem como o homem sentado atrás dela.

À primeira vista, julgou que Daemon lhe estava a pregar alguma


partida.
Depois, olhou com mais atenção.

O rosto parecia-se com o de Daemon, sendo gracioso, mais do quebelo.


Era, sem dúvida, mais velho, e o espesso cabelo negro estava a
ficargrisalho nas têmporas. Usava óculos em meia-lua, dando-lhe um ar
de escrivão
benévolo. Porém, as mãos elegantes possuíam unhas longas, tingidasa
negro, tal como as de Daemon. Na mão esquerda, usava um anel de
Administrador.
Na mão direita, um anel com uma Jóia Negra.

— Senta-te, por favor — disse, continuando a tomar notas no papel


àsua frente. — É só um minuto.
Surreal deslocou-se de lado para a cadeira à frente da secretária,
sentando-
se com delicadeza. Aquela voz tinha o mesmo timbre profundo davoz de
Daemon, estava dotada com a mesma capacidade de tocar nos ossosde
uma mulher, deixando-a ansiosa. Pelo menos, o calor que jorrava
deDaemon mesmo quando tentava mantê-lo firmemente controlado, não
sefazia ouvir no Senhor Supremo. Quiçá devido à idade.

Nessa altura, pôs a tampa na caneta, pousou os óculos na secretária,


recostou-se na cadeira e juntou os dedos de ambas as mãos, pousando
oqueixo sobre eles.

Sentiu um aperto na garganta. Presenciara Daemon sentar-se


exactamente
naquela posição sempre que a conversa era de tom “formal”. Fogo do
Inferno, qual era a ligação entre Sadi e o Senhor Supremo?

— Então — disse, calmamente. — És Surreal. A filha de Titian.


Surreal sentiu um calafrio a percorrê-la. — Conhecestes a minha mãe?
72
Sorriu friamente. — Ainda conheço. E uma vez que sou família da
suafamília, considera-me um amigo tolerável, apesar de ser macho.

As palavras que a tinham vindo a atormentar, durante todo o


percursoaté este local, saíram precipitadamente. — A minha mãe não é
uma Harpia.

Saetan olhou-a de modo pensativo. — Uma Harpia é uma feiticeiraque


morreu de forma violenta às mãos de um macho. Diria que essa
descrição
assenta a Titian, não concordas? Além disso — acrescentou, — não
creio que ser Rainha das Harpias possa ser considerado insultuoso.

— Oh. — Surreal prendeu o cabelo atrás das orelhas. Disse-o com um


artão prosaico e não restavam dúvidas quanto ao respeito presente na
sua voz.
— Gostarias de a ver? — perguntou Saetan.
— Mas… se é demónia-morta…
— Podíamos combinar um encontro aqui no Paço. Posso perguntar-
lhe se é essa a sua vontade.
— Visto que sois o Senhor Supremo, fico surpreendida por não
lheordenares simplesmente que venha — disse Surreal, com algum
azedume.
Saetan deu uma gargalhada abafada. — Minha querida, posso ser
oSenhor Supremo, mas também sou macho. Não vou dar ordens a uma
Rainha
Viúva Negra sem uma boa razão.

Surreal semicerrou os olhos. — Não vos imagino submisso.

— Não sou submisso, mas a verdade é que sirvo. Será sensato que não
confundas estes dois aspectos ao conviveres com os machos desta
corte.
Oh, maravilhoso.

— Especialmente tendo declarado formalmente que fazes parte da


família
— acrescentou Saetan.
Mãe Noite. — Vede — disse Surreal, inclinando-se para a frente, —
não sabia que havia quem usasse este nome por estas bandas. — E
com
certeza que não esperava encontrá-los.

— Se pensarmos bem, tens tanto direito a esse nome como


KartaneSaDiablo — disse, enigmaticamente. — E, visto que o registaste
de facto,
tens de aceitar as consequências.
— E quais são? — questionou Surreal, desconfiada.
Saetan sorriu. — A versão mais curta é que, como patriarca da família,
sou agora responsável por ti e é a mim que tens de prestar contas.

— Quando o sol brilhar no Inferno — ripostou Surreal.


— Cuidado com as condições que estabeleces, feiticeirazita — disse,
docilmente. — Jaenelle tem formas sinistras – e, por vezes, inquietantes
– de corresponder às condições impostas.
Surreal engoliu em seco. — Está mesmo em Kaeleer?
Saetan pegou no marco de travessia segura que repousava na
secretária.
— Não foi por isso que vieste?

73
Anuiu. — Queria descobrir o que lhe tinha acontecido.

— Podes fazer essas perguntas directamente a Jaenelle. Regressará


acasa dentro de alguns dias.
— Mora aqui?
— Não é a sua única casa, mas, sim, mora aqui.
— E Daemon sabe disso? — perguntou. — Não foi jantar.
— Sabe — respondeu Saetan, com afabilidade. — Está um
poucotranstornado.
— Isso é um eufemismo — murmurou entre dentes. De seguida, pensou
em algo diferente, algo que lhe acirrara a curiosidade durante
trezeanos. Se existia alguém nos Reinos capaz de responder, era com
certeza oSenhor Supremo. — Alguma vez ouvistes falar do Sacerdote
Supremo daAmpulheta?
O sorriso de Saetan ganhou um ar sarcástico. — Eu sou o Sacerdote
Supremo.

— Oh, merda.
A gargalhada de Saetan era calorosa e robusta. — Estavas disposta
adefrontar-me como Senhor Supremo, como Administrador e como
patriarca
da família, mas ao saberes que sou o Sacerdote ficas sem chão debaixo
dos pés?

Surreal olhou-o furiosamente. Colocado dessa forma, era realmente


uma tolice. Mas não deixava de ser desconcertante descobrir que o
macho
perigoso cujo odor detectara naquela noite no Altar de Cassandra era

o mesmo homem com ar divertido, sentado do outro lado da secretária.


— Assim sendo, podereis contar a Daemon o que aconteceu naquela
noite.
Podereis contar-lhe aquilo de que não se lembra.
Saetan abanou a cabeça. — Não, não posso. Posso confirmar o
queaconteceu enquanto estávamos ligados e posso contar-lhe o que se
passouposteriormente. Contudo, só uma pessoa lhe poderá narrar o
que se passouno abismo.

Surreal suspirou. — Temo o que possa descobrir.

— Não me preocuparia demasiadamente. Quando Jaenelle


formouoficialmente a sua corte, o anel de Consorte foi guardado para
ele, por suaimposição. Por isso, o que quer que tenha acontecido entre
ambos, nãopoderá ter sido assim tão inquietante. Pelo menos para ela
— acrescentoucom solenidade. Levantando-se, contornou a secretária.
— Ainda tenho
de receber vários eyrienos esta noite bem como ouvir os relatos de
Aaron,
Khardeen e Lucivar. Se necessitares de ajuda para compreender os
Sanguedeste sítio, vem ter comigo e falaremos.
Aceitando a dispensa, Surreal levantou-se e olhou de relance para
aporta. — Só mais uma coisa.

74
Saetan examinou a porta fechada. — Vejo que travaste
conhecimentocom o Senhor Colmilho Cinzento.

Surreal reprimiu uma gargalhada.

— Bem sei. Os nomes deles soam-nos tão estranhos como os nossos


a eles. Embora tenham mais motivos para assim julgarem. Quando as
criasdos parentes nascem, uma Viúva Negra realiza o passo ao lado
mental, entrando
nos sonhos e nas visões. Por vezes, nada vê. Outras vezes, apelidauma
das crias consoante as visões.
— Bem — disse Surreal, sorrindo, — é cinzento e tem presas. O
Aarondisse que estava no Paço para fazer amigos.
Saetan olhou-a de modo estranho. — Diria que é correcto. Os cães e
cavalos
parentes dão-se bem com os humanos dos Sangue uma vez que viveram
entre eles durante tanto tempo, embora em segredo, até há oito anos.
Osrestantes parentes costumam manter-se afastados da maioria dos
humanos.
Contudo, quando se deparam com um humano que consideram
compatível,
tentam estabelecer um vínculo, para melhor nos compreenderem.

— E porquê eu? — perguntou Surreal, intrigada.


— Aqui, as Rainhas possuem cortes poderosas e os machos do Primeiro
Círculo têm direito ao quinhão principal do seu tempo e das
suasatenções. Um jovem como o Colmilho Cinzento tem de esperar a
sua vez,
mas depois terá ainda de partilhar esse tempo com outros jovens
machosna mesma posição. Mas tu és uma feiticeira de Jóia Cinzenta
que não possui,
por enquanto, outras pretensões de machos.
— À excepção dos machos da família — disse Surreal, amargamente.
— À excepção dos machos da família — concordou Saetan. — De
ambos os lados.
Surreal bufou.

— Mas essa pretensão não é exactamente da mesma natureza. Não


ésRainha, cujas cortes são formadas por um Protocolo diferente. Por
isso, seaceitares o Colmilho Cinzento antes de os outros machos se
aperceberem datua presença, ele irá manter a posição dominante em
relação a todos os outros
machos, exceptuando o teu parceiro, mesmo que os outros usem
Jóiasmais escuras. Uma vez que não chegou ainda à idade de realizar a
Dádiva àsTrevas e ainda usa a Jóia Violácea de Direito por Progenitura,
as probabilidades
de um macho de Jóia mais escura se vir a interessar por ti são
elevadas.
— Mas isso não explica o motivo do interesse em mim.
Saetan estendeu o braço lentamente. Com o indicador da mão esquerda
segurou na corrente em ouro à volta do pescoço de Surreal, retirando-
apara fora da blusa até a Jóia Cinzenta ficar pendurada entre ambos.

No início, Surreal julgou que a carícia que acompanhava o


movimentoera um tipo de sedução subtil. Depois apercebeu-se que
Saetan, não preten

75
dia seduzir. Era um gesto tão natural para ele como respirar.
Mas que não estava a ter um efeito benéfico na respiração de Surreal.

— Pensa nisto — disse Saetan. — O nome pode não lhe ter sido
atribuído
por ser pardo e por ter presas mas sim por ser o colmilho da Cinzenta.
— Mãe Noite — disse Surreal, olhando para a sua Jóia.
Saetan baixou a Jóia até ficar pousada sobre o peito de Surreal. —
Adecisão é tua e eu apoiarei qualquer decisão que tomes. Contudo,
ponderabem, Surreal. As visões de uma Viúva Negra não devem ser
rejeitadas deuma penada.

Acenando com a cabeça, apreciou a sensação da mão de Saetan


nassuas costas ao conduzi-la até à porta. Quando pegou na maçaneta,
Surrealpôs a mão na porta para não deixar que a abrisse. — Qual é a
natureza davossa ligação a Daemon?

— Ele e Lucivar são meus filhos.


Era de esperar.
— Daemon herdou o vosso bom aspecto — disse Surreal.
— E também o meu temperamento.
Entendendo a advertência na voz de Saetan, reconheceu, no fundo
daqueles olhos dourados, a mesma prudência que vira nos olhos de
Aaron.
Fogo do Inferno, teria de encontrar depressa alguém que lhe pudesse
explicar
as regras machos-fêmeas em Kaeleer. A desconfiança por ser uma
assassina
era uma coisa. A desconfiança por ser mulher… Não gostava. Nãovindo
dele. Não gostava mesmo nada.

— Gostaria de me encontrar com a minha mãe — disse, bruscamente.


Saetan acenou afirmativamente com a cabeça. — A corte chega
estanoite e não posso sair até a Rainha aprovar os recém-chegados,
mas fareicom que a mensagem chegue a Titian.

— Obrigada. — Maldição, pára de empatar. Sai daqui. Saiu


rapidamente
do gabinete logo que Saetan abriu a porta.
Com o Colmilho Cinzento a saltitar a seu lado, Surreal continuava a
sentir aquele estranho toque psíquico nas suas barreiras interiores.
Sem ele, ter-se-ia perdido por duas vezes, embora tivesse reparado
napresença de lacaios em todos os corredores principais. Cada um dos
homens
erguia-se da sua cadeira, olhava de relance para o Colmilho Cinzento,
sorria para Surreal e permanecia em silêncio. Assim, seguiu o lobo até
seencontrar de volta à segurança do seu quarto.
Quando a deixou, para tratar dos seus próprios afazeres noctívagos,
Surreal despiu-se rapidamente e vestiu um pijama de mangas
compridas. Amaior parte das vezes ainda preferia camisas de noite em
seda, mas noutrasocasiões – como esta noite – apetecia-lhe vestir algo
que parecesse e que lhetransmitisse a sensação de ser assexuado.

76
Jogando a roupa suja para um cesto na casa de banho, apressou o
seuritual nocturno, enfiou-se na cama e desligou o candeeiro da
mesinha dacabeceira.

Alguém colocara um ténue feitiço de aquecimento nos lençóis.


Provavelmente,
fora a criada. Agradecendo silenciosamente à mulher,
Surrealaconchegou-se sob os cobertores.

Estava já a adormecer quando se apercebeu da passagem de uma


sombra
na porta de vidro. Crispou-se, expectante, até sentir um corpo a
subirpara a cama, a dar três voltas e a aconchegar-se a seu lado, com
um suspirode satisfação.

Virando ligeiramente o tronco, olhou para o Colmilho Cinzento.


Sentindo
uma vez mais aquele estranho toque psíquico, deixou-se levar,
demasiado
cansada para pensar no que estava a fazer e mais preocupada emsaber
se iria acordar com pulgas na manhã seguinte.

«Pulgas não« disse uma voz masculina ensonada através de um fio


psíquico.
«Os parentes sabem feitiços contra pulgas e outras sarnas.«

Com um berro, Surreal sentou-se de um pulo.

O Colmilho Cinzento levantou-se, com os dentes cerrados e os


pêloseriçados. «Onde está o perigo?« questionou. «Não farejo perigo.«

— Tu falas!
Lentamente, os pêlos do Colmilho Cinzento assentaram. Escondeu
osdentes. «Sou parente. Nem sempre queremos falar com os humanos,
massabemos falar.«

Mãe Noite, Mãe Noite, Mãe Noite.

Com a cauda a abanar, chegou-se à frente e lambeu a bochecha


deSurreal. «Ouviste-me!« disse, feliz. «Ainda nem sequer foste treinada e
consegues
ouvir os parentes!« Levantou a cabeça e uivou.

Surreal agarrou-o pelo focinho. — Cala-te. Vais acordar toda a gente.

«Ladvarian vai ficar contente.«

— Óptimo. Fico feliz. — Em nome no Inferno, quem é Ladvarian?


— Agora vamos dormir, está bem? — E dado que não fazia ideia como
tinha
conseguido estabelecer esta ligação, como iria cortá-la para que os
seuspensamentos voltassem a ser privados?
Sentiu uma ligeira pressão mental e, de seguida, novamente aquele
toque
estranho.

— Rrrf.
— Obrigada — disse Surreal debilmente. Pela manhã, pensava
enquanto
se aconchegava de novo sob os cobertores, sentindo o ColmilhoCinzento
a encostar-se às suas costas. Pensaria nisto pela manh…
77
CAPÍTULO TRÊS

1 / Kaeleer

Daemon compôs cuidadosamente os punhos da camisa e do casaco.


Sentia-
se mais seguro esta manhã, embora não sentisse que tivesse
repousado.
O sono tinha sido interrompido por sonhos vagos e rasgos de memórias,
pela consciência de que apenas uma porta o separava do quarto de
Jaenellee por um corpo excitado e desassossegado, que sabia com
ferocidade aquiloque desejava.

Ao enfiar as mãos nos bolsos das calças apercebeu-se do anel de


Consorte
na mão esquerda. Como se não tivesse consciência da sua
existênciadesde que despertara. Não era unicamente a sensação
estranha de um anelnaquela mão; eram os deveres e as
responsabilidades que o anel acarretavaque o faziam sentir-se
apreensivo. Oh, o corpo executaria os deveres avidamente.
Pelo menos, assim julgava que seria. E era essa a intenção, não era?
Não sabia como iria reagir quando voltasse a encontrar Jaenelle. Da
mesmaforma, não sabia como ela iria reagir.

Dando-se conta, por fim, que Jazen, o seu criado particular,


cumpriavagarosamente as tarefas matinais, Daemon observou o
homem.

— Instalaste-te comodamente ontem à noite? — perguntou Daemon.


Jazen esforçou-se por sorrir mas não o olhou directamente. — As
instalações
dos serviçais são bastante espaçosas.

— E os serviçais?
— São… educados.
Daemon sentiu o calafrio preambular à fúria e dominou-a, com afinco.
Jazen já sofrera bastante. Se tivesse de abanar o Paço até aos alicerces,
certificar-se-ia de que a vida do homem não seria ainda mais
dificultadapor criados que não faziam ideia da brutalidade que os
homens enfrentavam
nos Territórios terreilleanos sob o jugo de Dorothea.

— Não sei bem o que é esperado de mim para hoje.


Jazen acenou com a cabeça. — Os outros criados particulares indica78
ram-me que o vestuário hoje seria informal uma vez que o Primeiro
Círculo
irá avaliar os recém-chegados. Aqueles que se sentam à mesa do
SenhorSupremo terão de se vestir adequadamente. Mas não é
necessário fato decerimónia — acrescentou quando Daemon ergueu
uma sobrancelha. —
Contudo, consegui apurar que as Senhoras vestem de forma
descontraídadurante o dia.

Daemon remoeu aquelas informações ao caminhar pelos corredorespara


a sala de jantar. Com base na sua experiência em cortes terreilleanas,
aroupa informal significava vestuário prático elaborado com tecidos
ligeiramente
menos faustosos dos que aqueles que se usavam durante o jantar.

Ao virar a uma esquina, reparou na feiticeira de pele clara e cabeloruivo


que caminhava na sua direcção. Usava calças coçadas de um tom
castanho-
escuro e uma camisola de lã comprida, larga, verde-urze e com
remendos
decorativos. Pôde ver a aprovação na avaliação rápida que os seusolhos
verdes realizaram ao seu corpo, mas não detectou qualquer
interesseactivo. — Príncipe — disse, educadamente, ao passar por ele.

— Senhora — respondeu com igual delicadeza, imaginando como éque


um picuinhas como suspeitava que Beale era, permitia que um
serviçalse vestisse daquela forma. Quando sentiu uma lufada do odor
psíquico damulher, girou sobre si próprio e ficou a olhar boquiaberto
para ela, até virarnuma esquina e desaparecer.
Rainha. Aquela mulher era Rainha.

Sentiu o estômago a dar horas, o que o levou a retomar o caminho.

Uma Rainha. Bem, se aquele era o conceito que as Senhoras


tinhamrelativamente a roupa informal, apoiava veementemente a
insistência doSenhor Supremo sobre as regras de vestuário para o
jantar – um sentimentoque, tinha fortes suspeitas, deveria guardar para
si.

Estava perto da sala de jantar quando se encontrou com Saetan.

— Príncipe Sadi, precisamos discutir um assunto — disse Saetan


serenamente,
embora com uma expressão carregada.
A utilização do título formal por Saetan provocou-lhe um arrepio pelas
costas abaixo.
— Então vamos lá despachar isso — respondeu Daemon,
seguindoSaetan até ao gabinete oficial do Senhor Supremo. Sentiu uma
camada detensão a aliviar-se ao ver que Saetan a encostar-se à parte da
frente da secretária
em madeira escura, em vez de se sentar atrás dela.
— Tens consciência de que o teu criado particular foi totalmente
rapado?
— perguntou Saetan delicadamente, sinistramente.
— Sei disso — respondeu Daemon com igual delicadeza.
— Entre nós, são escassas as leis que justificam esses castigos,
quandoquebradas. Todas são de carácter sexual.
79
— Jazen nada fez a não ser estar no sítio errado na altura errada —
redarguiu
Daemon. — Dorothea fez-lhe aquilo para diversão da sua assembleia.
— Tens a certeza?
— Eu estava presente, Senhor Supremo. Nada pude fazer por ele anão
ser iludir as drogas que lhe deram para o manter consciente e fazê-
loperder os sentidos. A sua família tratou-o durante uns tempos mas
muitosencontram-se a servir a tempo inteiro. Logo que a notícia se
espalhasse – eDorothea garante sempre que assim seja – Jazen seria
considerado impuro
porque, claro está, tal não teria acontecido se não o merecesse. Se
tivesse ficado
junto à sua família, também eles perderiam os seus postos. É um
bomhomem e é leal. Merecia muito mais do que aquilo que lhe
aconteceu.
— Compreendo — disse Saetan, calmamente. Endireitou-se. —
Explicarei
a situação a Beale. Tomará conta do assunto.
— Até que ponto terás de o informar? — perguntou Daemon,
preocupado.
— Direi apenas que a mutilação foi injustificada.
Daemon sorriu amargamente. — Crês realmente que isso irá mudar
aopinião dos outros criados em relação a Jazen? Que irão acreditar?

— Não, mas irá suspender o julgamento até que a Senhora regresse.


— Saetan tomou um ar solene. — Mas tens de compreender, Príncipe.
SeJaenelle se virar contra ele, não há nada que possas fazer ou dizer,
nem eu,
nem ninguém, que possa fazer diferença. Em Kaeleer, logo que ponhas
o péfora da Pequena Terreille, a Feiticeira é a lei. As suas decisões são
irrevogáveis.
Daemon ponderou e, de seguida, acenou afirmativamente com a cabeça.
— Aceitarei a decisão da Senhora. — Ao seguir Saetan até à sala
dejantar, não conseguia deixar de desejar que a mulher em que Jaenelle
setornara não fosse muito diferente da criança que recordava – e que
tinhaamado.

2 / Kaeleer

O coração do Senhor Jorval saltava-lhe no peito ao regressar à sala


onde oaguardava o homem de cabelo ruivo e olhos cinzentos. Sentou-se
atrás dasecretária e entrelaçou as mãos para encobrir o tremor da
excitação.

— Já descobristes o destino da minha sobrinha? — perguntou


PhilipAlexander.
— Sim, descobri — respondeu Jorval, solenemente. — Quando
meexplicastes as relações familiares, fiquei com uma ideia onde
procurar.
80
Philip agarrou os braços da cadeira com uma tal força que poderiapartir
a madeira. — Assinou contrato com uma corte da Pequena Terreille?

— Infelizmente, tal não aconteceu — disse Jorval, esforçando-se


porcolocar a dose certa de compaixão na voz. — Tendes de
compreender, Príncipe
Alexander. Não tínhamos forma de saber quem era. Dois membros
doConselho lembram-se de ouvi-la dizer que procurava a irmã, mas
partiramdo princípio que a irmã imigrara anteriormente – e, de certa
forma, assimfoi. Porém, nunca chegou ao Conselho das Trevas um
registo da origem deJaenelle Angelline, antes de o Senhor Supremo
ganhar a sua tutela. Não havia
razão para estabelecerem uma ligação entre as duas mulheres e,
quandose começaram a aperceber do significado das suas indagações,
já era demasiado
tarde.
— O que significa ‘demasiado tarde’? — perguntou Philip rispidamente.
— Foi… persuadida… a assinar contrato com o Príncipe dos Senhores
da Guerra de Ebon Rih – que é Lucivar Yaslana.
Jorval sentiu-se animado ao observar Philip a empalidecer. — Vejoque
já ouvistes falar dele. Podeis, pois, compreender o perigo que corre
avossa sobrinha. E não se fica por Yaslana, pese embora já seja
bastante cruel.

— Fez uma pausa, permitindo que Philip engolisse o anzol bem como
oisco.
— Está encurralada pelos três, não é verdade? Está encurralada
entreYaslana, Sadi e o Senhor Supremo – tal como Jaenelle.
— Sim. — Jorval suspirou. — Segundo nos foi dado a saber,
Yaslanalevou-a para o Paço dos SaDiablo em Dhemlan. Quanto tempo
aí permanecerá…
— Estendeu as mãos num gesto de impotência. — Poderá surgiralguma
oportunidade de a retirar do Paço, mas logo que a levem para
asmontanhas que rodeiam Ebon Rih, não é provável que a volteis a
recuperar
– pelo menos enquanto ainda restar algo dela que mereça o risco.
Philip afundou-se na cadeira.
Jorval limitou-se a esperar. Por fim, disse: — Desta vez, não há nada
que o Conselho das Trevas possa fazer oficialmente para vos ajudar.
Noentanto, oficiosamente, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance
pararecuperar Jaenelle Angelline e Wilhelmina Benedict para a família
legítimade ambas.

Philip levantou-se como um homem que fora sujeito a um


espancamento
brutal. — Agradeço-vos, Senhor Jorval. Transmitirei estas informações
à minha Rainha.
— Que as Trevas vos guiem e vos amparem, Príncipe Alexander.
Jorval aguardou um minuto depois de Philip sair, antes de se recostar
81
na cadeira e suspirar, satisfeito com o encontro. Graças às Trevas que
Philipera Príncipe. Ficaria preocupado e a matutar, mas, ao contrário de
um Príncipe
dos Senhores da Guerra, regressaria para junto de Alexandra Angellinee
acataria a sua decisão. E a sorte que tivera por Philip não se lembrar
deperguntar se Yaslana servia uma Rainha – ou quem era ela. Como é
óbvio,
mentiria se tal lhe fosse perguntado, mas não deixava de ser
interessanteque Philip não tivesse considerado, nem por um momento,
que Jaenellepudesse ser uma Rainha com um poder descomunal a
ponto de controlaros machos da família SaDiablo.

E quanto a Alexandra Angelline... Seria um instrumento útil para


distrair
o Senhor Supremo e para dividir as lealdades na corte de Ebon Askavi

– desde que não se apercebesse da verdadeira importância de afastar


Jaenelle
da Corte das Trevas.
3 / Kaeleer

Daemon vagueava pelos quartos do primeiro andar do Paço, reparando


distraidamente
na função de cada divisão, com a mente repleta de impressõesrecebidas
durante o pequeno-almoço. Ao chegar a uma porta que dava paraum
dos pátios a céu aberto, saiu e começou a caminhar devagar, na
esperança
de que o ar fresco e a vegetação o ajudassem a desanuviar a cabeça.

Esperava encontrar a sala de refeições cheia de gente. Afinal, os


eyrienos
quereriam comer antes de se dedicarem aos planos que Lucivar
lhesdestinara. E esperara que Khardeen e Aaron ali estivessem e que
reparassem
e compreendessem no anel de Consorte, entendo o seu significado.
Estava
preparado para essa situação. Mas não estava preparado para os outros
machos que constituíam o Primeiro Círculo.

Estava presente Sceron, o Príncipe dos Senhores da Guerra de


JóiaVermelha de Centauran. O centauro de pêlo escuro ficara junto à
mesa derefeições, a saborear uma omeleta de vegetais e a conversar
com Morton,
um Senhor da Guerra loiro e de olhos azuis, de Glacia. Estava também
presente
Jonah, o Senhor da Guerra de Jóia Verde, um sátiro cujo pêlo escuro
o cobria da cintura aos cascos abertos em dois, mas que não cobria na
totalidade
as partes ostensivamente masculinas. Ali se encontrava tambémElan,
um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Vermelha de Tigrelan,
cuja pele era trigueira e raiada a negro e cujas mãos terminavam em
garrasrecolhidas. Ao observar Elan, Daemon apostaria que o homem
tinha maisem comum com o gato às riscas escuras que vislumbrara da
janela do queapenas traços físicos.
E ainda lá estava Chaosti, o Príncipe Dea al Mon dos Senhores da

82
Guerra de Jóia Cinzenta, com o comprido cabelo loiro-prateado,
orelhasdelicadamente pontiagudas e enormes olhos de um tom azul-
floresta. Todos
os instintos territoriais de Daemon subiram à superfície, bramindo,
quando pousou os olhos em Chaosti – talvez porque Chaosti era o tipo
dehomem que poderia ser um adversário assombroso,
independentementedas Jóias que usava, ou talvez por Daemon ver um
pouco mais do que queria
de si próprio nesse outro homem. Somente a presença de Saetan
evitouque os cumprimentos cáusticos se transformassem num
confronto aberto.
Esse encontro deixara-o nervoso e demasiadamente consciente da sua
própria
fragilidade interior.

Logo a seguir, chegou o Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia


Cinzenta
e que se apresentara como Mephis, o seu irmão mais velho. A sala
inclinara-
se ligeiramente quando Daemon se apercebeu que, como filho
primogénito
de Saetan, Mephis era demónio-morto há mais de 50.000 anos.
Estava convicto de que se conseguiria equilibrar se, nesse momento, o
Príncipe
Andulvar Yaslana e o Senhor Prothvar Yaslana não tivessem entrado,
provocando a comoção colectiva dos machos eyrienos que se
aperceberamdas suas identidades – e que, posteriormente, se
aperceberam o que eram

– e essa comoção atingiu-o como uma carroça desgovernada. Depois


devarrerem com o olhar os eyrienos intimidados e dirigindo um
comentárioao Senhor Supremo, o Príncipe dos Senhores da Guerra
demónio-mortobem como o seu neto saíram da divisão.
Nessa altura, Daemon ansiava sinceramente por conhaque em vez
decafé – um desejo que deveria ser notório. O líquido de uma garrafa de
prata
que Khardeen lhe deitara no café não era conhaque, mas toldara-lhe
osnervos, permitindo-lhe comer.

Ainda demasiado abalado para apreciar a refeição, tinha acabado


determinar o seu modesto pequeno-almoço quando Surreal entrou de
rompante,
resmoneando algo sobre demorar mais tempo do que o previsto“para
nos escovar”. Parecera chocada ao deparar-se com Chaosti, a
únicapessoa que alguma vez vira pertencente à raça da mãe, contudo,
no momento
em que Chaosti se dirigiu a ela, Surreal cerrou os dentes e anunciouque
o próximo macho que se aproximasse dela antes de tomar o pequeno-
almoço iria provar o gosto da lâmina de uma faca.

Pelo menos, Surreal desfrutara de um pequeno-almoço sossegado esem


interrupções.

Estava prestes a sair quando uma feiticeira alta e esguia, de cabelo


loiroesbranquiçado e espetado entrou na sala, olhou para Daemon e
disse, tão altoque devia ter sido ouvida em todo o Paço: — Fogo do
Inferno, é Viúva Negra!

Que era Viúva Negra natural – e, para além de Saetan, o único macho
Viúva Negra – fora algo que conseguira manter em segredo durante sécu

83
los, desde que o corpo atingira a maturidade sexual, tal como
conseguiraesconder o dente de serpente e a bolsa de veneno sob o dedo
anelar da mãodireita. O que quer que tivesse feito instintivamente para
impedir que outra
Viúva Negra o detectasse, falhara agora redondamente, numa altura
emque nada havia a fazer em relação a uma tal denúncia pública.

A tensão na sala dissipou-se quando Saetan respondeu placidamente:

— Bem, Karla, é meu filho e é o Consorte.


A surpresa da feiticeira transformou-se numa reflexão arguta. — Oh
— exclamou. Nesse caso… — Floresceu lentamente um sorriso
perverso.
— Beijinho, beijinho.
Passando por Lucivar, Daemon fugiu da sala de refeições e passara
aúltima hora a deambular pelo Paço, tentando controlar os
pensamentos eas emoções desinquietas.

— Estás perdido?
Daemon olhou de soslaio para Lucivar que estava encostado à soleirade
uma porta. — Não estou perdido — retrucou. Parou de andar e
suspirou.
— Mas estou muito confundido.

— Claro que estás. És macho. — Com um sorriso de orelha a orelhaface


ao resmoneio de Daemon, Lucivar caminhou para o pátio. — Por isso,
se uma das queridas da assembleia se oferecer para te explicar, não
aceites.
Tentará ajudar-te, com a maior boa vontade, mas quando terminar de
te“desconfudir”, estarás a bater com a cabeça nas paredes e a
lastimares-te.
— Porquê?
— Porque para cada cinco regras que aprendeste em Terreille sobre
ocomportamento adequado de um macho, os Sangue de Kaeleer só
conhecem
uma – e todos têm interpretações díspares.
Daemon encolheu os ombros. — Obediência é obediência.

— Não, não é. Para os machos dos Sangue, a Primeira Lei é honrar,


estimar e proteger. A segunda é servir. A terceira é obedecer.
— E se a obediência interferir com as primeiras duas leis?
— Manda-a pela janela.
Daemon pestanejou. — Tens-te safado com isso?
Lucivar coçou a nuca e ficou com um ar pensativo. — Não é bem uma
questão de me safar. Para os Príncipes dos Senhores da Guerra, é
quase umrequisito do serviço na corte. No entanto, se ignorares uma
ordem do Administrador
ou do Guarda-Mor, tens de te certificar de que consegues justificaras
tuas acções e tens de estar disposto a aceitar as consequências caso
nãoaceitem essa justificação, o que é raro. Eu tenho arranjado mais
problemascom o Senhor Supremo como meu pai do que como
Administrador.

Pai. Administrador. Os laços da família e da corte.

— Porque é que ainda estás aqui, Bastardinho? — perguntou Daemon


84
circunspectamente. — Porque é que não estás no campo de treinos a
observar
os guerreiros que seleccionaste?

— Estava à tua procura porque não apareceste no campo de treinos.


— Lucivar mexeu-se ligeiramente, equilibrando o peso.
Ainda não, pensou Daemon. Agora não. — E porque temos assuntos
por resolver — disse devagar.

— E porque temos assuntos por resolver. — Lucivar inspirou fundo


eexpirou lentamente. — Acusei-te de teres assassinado Jaenelle.
Acusei-te decoisas ainda mais infames. Estava errado e isso custou-te a
sanidade e oito
anos de vida.
Daemon desviou os olhos da mágoa e da tristeza nos olhos de Lucivar.

— Não tiveste culpa — disse compassivamente. — Eu já estava


debilitado.
— Eu sei. Eu percebi – e usei esse facto como arma.
Recordando-se da discussão entre os dois naquela noite em Pruul,
Daemon
fechou os olhos. A fúria de Lucivar não o magoara tanto como o
seupróprio receio de que as acusações pudessem ter um cunho de
verdade. Setivesse a certeza sobre o que se passara no Altar de
Cassandra, a discussão teriaterminado de forma diferente. Lucivar não
teria passado mais anos nas minasde sal de Pruul e ele próprio não
teria passado oito anos no Reino Distorcido.

Daemon abriu os olhos e olhou para o irmão, percebendo por fimque


Lucivar não estava a desafiá-lo para um confronto mortal por algo
queDaemon tivesse feito, mas como ressarcimento pelo que sofrera no
ReinoDistorcido. Oh, Lucivar lutaria, e lutaria afincadamente pois tinha
que terem consideração uma esposa e um filho pequeno, mas não
hesitaria se Daemon
o exigisse, mesmo sabendo qual seria o resultado quando a Ébano-
Acinzentada defrontava a Negra.

Sabia também a razão pela qual Lucivar estava a forçar a questão.


Nãoqueria que a esposa e o filho pesassem na balança, não queria que
Daemontivesse tempo para desenvolver sentimentos por eles antes de
tomar a decisão.
Seguindo as tradições antigas dos Sangue, se perdoasse a dívida
nestemomento, não poderia exigir ressarcimentos posteriores. Caso
contrário,
desconfiariam sempre um do outro, teriam sempre a necessidade de
tomarprecauções enquanto aguardavam o ataque inesperado.
E, de certa forma, não tinha a dívida já sido cobrada? Os anos
quepassara no Reino Distorcido contrabalançaram os anos que Lucivar
passounas minas de sal, em Pruul. O seu pesar pela pretensa morte de
Lucivarcontrabalançava o pesar de Lucivar pela pretensa morte de
Jaenelle às mãosde Daemon. E se as posições estivessem trocadas, teria
acreditado noutraversão ou teria agido de forma diferente?

— É esse o único assunto por resolver entre nós? — perguntou


Daemon.
85
Lucivar acenou coma a cabeça, cautelosamente.

— Então, esquece, Bastardinho. Já sofri uma vez a perda do meu


irmão.
Não quero voltar a passar por isso.
Observaram-se mutuamente durante um minuto, pesando tudo o
queestava para além das palavras. Por fim, Lucivar descontraiu-se. O
seu sorriso
era indolente, arrogante e tão irritantemente familiar que Daemon
sorriutambém.

— Nesse caso, Bastardolas, estás atrasado para o treino — disse


Lucivar,
gesticulando na direcção de uma porta.
— Morde aqui a ver se eu deixo— resmungou Daemon, acompanhando-
o.
— Não é uma boa sugestão, meu velho. Tenho tendências para morder,
lembras-te? — Sorrindo, Lucivar massajou o braço. — E a Marian
também.
Fica agressiva quando está irritada.
Sentindo o afecto e o contentamento nos olhos de Lucivar, Daemon
reprimiu impiedosamente uma vaga de inveja.
Chegados a uma porta exterior, dirigiram-se aos eyrienos reunidos
naextremidade mais distante do extenso relvado.

— Já agora — disse Lucivar, — enquanto andavas a ruminar…


— Não andava a ruminar — resmungou Daemon.
— … perdeste a diversão desta manhã.
Daemon cerrou os dentes. Não iria perguntar. Não o faria. —
Quediversão?

— Estás a ver o lobo sozinho com ar envergonhado?


Daemon olhou para o animal de pêlo cinzento a observar um grupode
mulheres que praticava uma espécie de exercício com bastões eyrienos.

— Sim.
— O Colmilho Cinzento quer ser amigo de Surreal. É jovem e aindanão
tem muita experiência com humanos, em especial com as fêmeas.
Aoque parece, numa tentativa de reforçar essa amizade e melhorar a
compreensão
das fêmeas, juntou-se a Surreal enquanto estava no duche. Comoestava
com a água a correr, não se apercebeu da sua presença até lhe enfiar
o focinho onde não devia.
— Isso teria contribuído para um melhor entendimento das fêmeas
— disse Daemon friamente.
— Exactamente. Depois, quando se lamentou por ter sabonete no
pêlo, Surreal arrastou-o até ao duche e lavou-o. E agora cheira a flores.
Daemon mordeu o lábio. — Isso remedeia-se facilmente.
Lucivar pigarreou. — Sim, normalmente, mas logo que saíram, ela

ameaçou dar-lhe um açoite caso se sujasse.

— Tudo tem um preço — disse Daemon, com a voz abafada. Reparan86


do na mulher com quem Surreal estava a falar, deu uma violenta
cotoveladaa Lucivar. — É sensato que Marian esteja a fazer algo tão
extenuante no seuperíodo da lua?

Lucivar silvou. — Não comeces. — Parou e observou as mulheres


com os olhos semicerrados. — Disse-lhe que podia fazer a série do
exercício
de aquecimento. Sorrateiramente, fará mais qualquer coisa, com a
desculpa
de estar a demonstrar movimentos, mas depois vai-lhe saber bem
repousar.

Daemon olhou para as mulheres e depois para Lucivar. — Disseste àtua


mulher o que podia fazer?

— É claro que não disse à minha mulher — disse Lucivar, indignado.


— Tenho cara de parvo? Foi o Príncipe dos Senhores da Guerra de
EbonRih que disse a uma mulher que vive no seu território.
— Ah. Assim é diferente.
— Podes crer que é. Se dissesse à minha mulher, tentaria rachar-me
acabeça com um bastão.
Daemon riu-se enquanto retomaram o caminho na direcção dos
guerreiros
eyrienos. — Agora tenho pena de ter perdido isso.
Lucivar centrou a atenção em Falonar e em Rothvar, que entraram
naquele
momento na arena de treino, ao mesmo tempo que Daemon observava
Surreal e Marian a executarem alguns movimentos.

— Quem é? — perguntou Daemon quando a feiticeira de cabelo


espetado
se juntou às outras mulheres.
Lucivar olhou de relance para as mulheres e voltou a centrar a
atençãonos guerreiros eyrienos. — É Karla, a Rainha de Glacia. É Viúva
Negra eCurandeira. Uma das três que possui o dom tríplice.

Um dom tríplice e uma língua-de-trapos, pensou Daemon


sorumbaticamente.

— Hoje estás dispensado do treino, mas amanhã espero que sejas


pontual
— disse Lucivar.
Daemon falou precipitadamente. — Não me vou exercitar com bastões
contra guerreiros eyrienos.
Lucivar resfolegou e olhou para os pés de Daemon. — Tenho um parde
botas que te devem servir até mandares fazer umas para ti.
— Não o farei.
— Até que a transferência oficial esteja concluída, é a mim que pertence
o contrato que assinaste, meu velho. Não tens escolha.
Daemon praguejou baixinho, perversamente.
Lucivar começou a afastar-se para falar com Falonar.

— Dá-me uma boa razão para que eu me sujeite a isto — exigiu


Daemon,
de dentes cerrados.
87
Lucivar virou-se. — Tens a noção da minha destreza com os bastões
eyrienos? — perguntou serenamente.

— Já te vi.
— Jaenelle põe-me a comer terra. — Lucivar sorriu de orelha a orelhaao
ver a boca aberta de Daemon. — Não é frequente, posso garantir-te,
masjá o fez.
Daemon matutou naquela informação preciosa enquanto Lucivar falava
aos machos eyrienos. Pensou com afinco. Quando Lucivar regressou,
com um olhar interrogativo, despiu o casaco, enrolou as mangas da
camisae rosnou: — Onde estão as malditas botas?

4 / Kaeleer

Aconchegando um pouco mais o xaile que a envolvia, Alexandra


Angellineenrolou os braços à volta da cintura enquanto olhava pela
janela da estalagem
com vista para o recinto da feira de serviços. A chuva que começara
acair há uma hora não passava de um chuvisco que sujava a terra que
tudocobria em vez de uma carga de água que a arrastasse.

Isto é Kaeleer? pensou lugubremente. Este é o Reino das Sombras que


tantos tentam desesperadamente alcançar? Oh, seria decerto injusto
julgartodo um Reino por um terreno que fora desgastado por centenas
de pessoas
que ali tinham aguardado, na esperança de serem escolhidas para
umcontrato de serviços. Mas sabia que, independentemente do que
viesse acontemplar, seria sempre o que imaginaria quando alguém
mencionasseKaeleer.

Sentiu alguém aproximar-se, mas não se virou quando a filha, Leland,


se juntou a ela à janela.

— Porque quereria Wilhelmina vir para este sítio? — murmurou Leland.


— Ficarei satisfeita quando pudermos sair daqui.
— Não tens de ficar, Leland. Em especial porque Vania e Nyselle
insistiram
tão benevolentemente em me acompanhar.
— Não nos acompanharam por lealdade — disse Leland serena
masamargamente. — Só queriam uma oportunidade para ver o Reino
das Sombras
e sabiam que poderiam não conseguir entrar de outra forma.
Alexandra cerrou os dentes perante a verdade da observação de Leland,
que a corroía. Vania e Nyselle, as duas Rainhas de Província que
aacompanharam contrariadas a Hayll, tinham-se tornado maçadoras na
solicitude
demonstrada logo que anunciara a sua ida a Kaeleer, no encalço
deWilhelmina. Por isso, essas Rainhas e os respectivos Consortes
acompanharam-
na, juntamente com Philip e Leland para além de uma escolta de

88
cinco homens. Quatro dos membros da escolta tinham-na
acompanhadodesde Chaillot. O quinto, escolhido por Dorothea
SaDiablo, fora “emprestado”
por uma das Rainhas de estimação de Dorothea, de outro Território.
O homem arrepiava-a, contudo Dorothea garantira-lhe que seria capaz
delibertar Wilhelmina dos seus “captores”, entregando-a depois a outro
grupode machos leais que a aguardavam em Kaeleer.

Custa-me dizê-lo, expressara Dorothea, mas se conseguires libertar


apenas
uma das tuas netas do controlo do Senhor Supremo, tem de ser
Jaenelle.
Ela representa o perigo para Terreille.

Alexandra não acreditou por um único momento que Jaenelle nãofosse


mais do que um fantoche usado para camuflar quem quer – o que
quer – que representasse a verdadeira ameaça para Terreille. Todavia,
docesTrevas, esperava não ter de optar entre Wilhelmina e Jaenelle –
pois no fundo
do coração sabia qual a criança que deixaria para trás.

— Além disso — acrescentou Leland baixinho, — tenho de ficar. Sempre


foi uma criança estranha, mas Jaenelle era… é… minha filha. Só
depensar que esteve sob o controlo daquele monstro durante todo este
tempo…
— Leland estremeceu. — Não há forma de saber o que lhe terá feito.
E não havia forma de saber o que lhe acontecera em Briarwood. Seria
deveras mentalmente frágil ou teria aquele local provocado essa
fragilidade?
Não, decidiu com firmeza. As estadias de Jaenelle em Briarwood
podem ter contribuído para o enfraquecimento de uma estabilidade já
desi fragilizada, mas as excentricidades da criança constituíram a razão
principal
que levou à decisão de enviar a rapariga para Briarwood.

— O que vamos fazer? — perguntou Leland, discretamente.


Alexandra olhou por cima do ombro para as restantes pessoas
queaguardavam, inquietas, a sua decisão. Philip, que perdera o
autocontrolodiversas vezes enquanto relatava as informações
transmitidas pelo SenhorJorval, iria com ela, não somente por ter
casado com Leland mas tambémpor se preocupar genuinamente com
Wilhelmina e Jaenelle. Vania e Nyselle
também a acompanhariam para puderem conhecer Kaeleer em
maisdetalhe, para além deste terreno árido. Os Consortes e os
acompanhantesseguiriam as Rainhas por dever. A curiosidade e o dever
seriam suficientescontra algo como o Senhor Supremo?

Não importava. Aceitaria toda a ajuda oferecida.


Virando as costas à janela, disse: — Príncipe Alexander, fazes favorde
tratar do transporte numa Carruagem, tão depressa quanto possível?
Vamos ao Paço dos SaDiablo.

89
5 / Kaeleer

Na certeza de ter mais dores de músculos do que propriamente


músculos,
Daemon avançou com lentidão para o salão principal onde, de acordo
comBeale, o Senhor Supremo aguardava.

Nunca mais. Nunca nunca mais. Deveria ter-se recordado do que


significava
“Vamos começar com calma”, deveria ter-se recordado que quaisquer
outros exercícios não preparavam o corpo para os exercícios com armas
eyrienas. Oh, se quisesse ser imparcial – e não tinha qualquer
intençãode o ser num futuro próximo – Lucivar começara pelos
exercícios básicosde aquecimento. Contudo, mesmo ao ritmo de treino,
quando o parceirodesse treino era Lucivar, trabalhava-se a sério.

Abriu uma porta na extremidade mais distante do salão principal


eesqueceu-se dos músculos doridos ao ver Saetan a afastar o cabelo do
rostode uma atraente feiticeira dhemlana. Nesse gesto, havia ternura,
bem comoafecto. Conjecturando se estaria a fazer a interpretação
correcta, avançou omais discretamente possível.

A feiticeira reparou nele em primeiro lugar. Desorientada, deu


umgrande passo para trás e fitou-o de modo nervoso. Todavia, o que o
deixoupreocupado foi o rasgo de fúria que detectou do pai.

Nesse momento, Saetan virou-se, viu Daemon e descontraiu-se porum


instante antes de se apressar ao seu encontro.

— O que te aconteceu? — inquiriu Saetan. — Estás ferido?


— O que me aconteceu foi o Lucivar — respondeu Daemon, entredentes
cerrados.
— Andaram embrulhados? — perguntou Saetan, num tom de voz
ilusoriamente
indiferente, ao qual estava subjacente a desaprovação paternal.
— Não andámos embrulhados, estivemos a treinar. Mas fico encantado
por alguém, para além de mim, ter dificuldades em compreender
adistinção.
A feiticeira afastara-se deles e começara a emitir sons bizarros. Quando
se virou, os seus olhos dourados estavam animados pelo riso. —
Perdoem-
me — disse, não parecendo minimamente arrependida. — Tendo
sidoreceptora da instrução de Lucivar, compartilho dessa sensação.

— E qual o motivo para efectuares exercícios de armas com Lucivar?


— perguntou Saetan.
— Porque sou imbecil. — Daemon ergueu a mão para afastar o cabeloda
testa. O braço ficou imobilizado a meio caminho, sem acção. Baixou o
braço devagar, agradecido por conseguir fazer esse movimento. —
Anseiopor estar presente da próxima vez que Jaenelle o fizer comer
terra.
— E quem não anseia? — murmurou a feiticeira.
90
Saetan soltou um suspiro arreliado. — Sylvia, este é Daemon Sadi.
Daemon,
esta é a Senhora Sylvia, Rainha de Halaway.

Sylvia arregalou os olhos. — Este é o rapaz?

Daemon crispou-se até Saetan lhe dar um brusco toque mental.

— “Rapaz” é um termo relativo — disse Saetan.


— Com certeza que é — respondeu Sylvia, tentando disciplinar o rosto
numa expressão adequada.
Saetan limitou-se a contemplá-la.

— Bem — disse Sylvia com demasiada vivacidade, — vou cumprimentar


a assembleia e deixar que os dois resolvam o assunto.
— Vais emprestar-me o livro? — perguntou Saetan, formando nos lábios
um sorriso sabedor e malicioso.
— De que livro falas, Senhor Supremo? — indagou Sylvia, tentando
parecer
inocente, ao mesmo tempo que corava a uma velocidade vertiginosa.
— Aquele que não admites que leste.
— Oh, creio que não te despertará qualquer interesse —
balbuciouSylvia.
— Tendo em conta a tua reacção sempre que lhe faço referência,
julgoque terei todo o interesse na sua leitura.
— Podes comprar um exemplar.
— Prefiro pedir-te o teu emprestado.
Sylvia fulminou-o com o olhar. — Empresto-te o livro na condição de
admitires perante a assembleia que estás a lê-lo.

Saetan ficou em silêncio. As suas faces ficaram ligeiramente coradas.

Satisfeita, Sylvia sorriu afectuosamente para Daemon. — Bem-vindo

a Kaeleer, Príncipe Sadi.

— Obrigado, Senhora — respondeu Daemon, cortesmente. — Conhecer-


vos revelou-se extremamente educativo.

Saetan silvou. Sylvia não perdeu tempo em ausentar-se.

Logo que saiu, Saetan passou os dedos pelo cabelo, inspeccionando

depois a mão vazia. — Consigo compreender a razão da queda do


cabelodo pai dela — resmungou. — O meu vai ficando cada vez mais
grisalho, epor isso, creio que devo ficar agradecido.

— É uma amiga? — perguntou Daemon, com malícia.


— Sim, é uma amiga — retrucou Saetan, realçando a última palavra.
Franziu o sobrolho. — Anda, cria. Vamo-nos sentar antes que tombes.
Daemon seguiu obedientemente o pai até ao gabinete oficial, divertidoe
imensamente curioso em relação ao tom nervoso e defensivo na voz de
Saetan.

Quando conseguiu que os músculos rebeldes vergassem o suficiente,


permitindo que se sentasse, já Andulvar Yaslana se juntara aos dois.

91
— Não estiveste mal para um principiante — disse Andulvar.
— Logo que recupere os movimentos, vou esborrachar-lhe a cabeça
— resmungou Daemon.
Saetan e Andulvar trocaram um olhar divertido.
— Ah — exclamou Saetan, — os séculos podem ir e vir, mas o
sentimento
não muda.
— Foram essas as palavras que usaste da primeira vez que tu e
Lucivarandaram à pancada — disse Andulvar.

Daemon examinou os dois homens com os olhos semicerrados.

— Eram os dois cerca de dois anos mais velhos do que Daemonar —

disse Saetan. — Encontraste com uma vara comprida que tinha o


diâmetroadequado à mão de uma criança, cortado ao meio, e foi então
que Lucivarse empenhou em mostrar-te os exercícios que andava a
praticar.

— Sempre demonstrou um talento natural para as armas — disse


Andulvar,
— embora com aquela idade não fosse muito eficaz na explicaçãodos
exercícios.
— Por isso — prosseguiu Saetan, — lá conseguiu dar umas boas
varadas
e tu, por sorte ou temperamento, conseguiste igualmente dar um parde
varadas. Nessa altura, os dois puseram de lado os bastões e
começarama usar os punhos. Manny acabou com a diversão lançando-
vos um baldede água fria.
Daemon teve de se esforçar deliberadamente para não se contorcer.

— Vais passar o tempo nisto? — rosnou para Saetan.


— Nisto? — perguntou Saetan, ternamente.
— Debitar episódios embaraçosos da minha infância.
Saetan limitou-se a sorrir.
— Anda, cria — disse Andulvar. — Precisas de um banho quente,
deuma massagem e de algo para comer. A manhã ainda agora começou
e tens
o resto do dia à tua frente.
O rosnado de Daemon converteu-se num ganido quando Andulvar
olevantou pelas costas da camisa.

— Um momento — disse Saetan, serenamente.


Detectando a alteração no estado de espírito, Daemon virou-se,
encarando
Saetan de frente. — Mandaste chamar-me.
Saetan observou Daemon durante um minuto. — Recebi um pedido.
Setencionas ou não honrá-lo, é uma escolha que te cabe a ti. Caso
decidas quenão estás preparado ou que não o desejas realizar de todo,
tentarei explicar.

Daemon sentiu gelo a correr-lhe nas veias, mas resistiu ao impulsode


ceder à raiva gélida. Tinha muito a aprender sobre dar e receber entreos
machos e as fêmeas de Kaeleer. Não deveria partir do princípio que
umpedido neste local tinha o mesmo significado de um pedido em
Terreille.

92
— Qual é o pedido?
Saetan proferiu com delicadeza: — A tua mãe gostaria de ver-te.
6 / Kaeleer

Bebendo uma chávena de chá de ervas, Karla passeava pelos jardins


interiores,
na esperança de que o som da fonte a serenasse. Ergueu o olhar,
apreensivamente,
para as janelas do segundo andar do lado sul do pátio. EstariaSadi lá
em cima, a observá-la por detrás das finas cortinas?

Fogo do Inferno, não deveria ter deixado escapar que é Viúva Negra.
Percebera-o no momento em que viu a fúria gelada nos olhos de
Daemon.
Todavia, estava transtornada pela teia entrelaçada que tecera dois dias
antese consumida pela tentativa de entender as imagens ocultas que
vira… Bem,
ter conhecido Daemon Sadi explicara, sem dúvida, muitas dessas
imagens.
Vira o Senhor Supremo a olhar-se ao espelho, mas o reflexo não era o
dele.
Vira verdades protegidas por mentiras. Vira uma Viúva Negra de Jóia
Negra
a tornar-se inimigo para poder manter-se amigo. E vira a morte
suspensa
por um anel. A sua própria morte.

Perturbada pela incapacidade de interpretar a visão do Senhor


Supremo,
começara a questionar-se se, de alguma forma, não teria
compreendidoerroneamente a teia entrelaçada. Agora, as dúvidas
tinham-se amontoado.

Esvaziou a chávena e suspirou. Restava mais uma coisa que devia


esclarecer
antes do regresso de Jaenelle – para o bem de todos.

Daemon pegou no casaco preto que estendera na cama e voltou a deter-


se ao ouvir novamente as batidas, um pouco mais fortes desta vez.
Estava
alguém no exterior da porta em vidro da varanda da sala de estar.

Deixando o casaco, dirigiu-se à sala de estar, afastou a cortina e fitou


afeiticeira de cabelo espetado, à espera na varanda. O primeiro impulso
foi
o de largar a cortina e ignorá-la. Não desejava a presença física ou o
odorpsíquico de Karla nos seus aposentos. Não queria que ninguém se
interrogasse
acerca dos motivos que o levavam a receber outra mulher antes de
serformalmente aceite pela Rainha.
Não queria saber se era Rainha de Território. Contudo, o facto de
fazerparte do Primeiro Círculo da corte de Jaenelle era de extrema
importância.
Relutante, abriu a porta e recuou para a deixar passar.

— Tenho um compromisso dentro de alguns minutos — disse,


friamente.
— Vim desculpar-me — disse Karla. — Não demorarei muito. Nãotenho
muito jeito para desculpas, por isso tento encurtá-las.
93
Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças e aguardou.

Karla respirou fundo. — Não deveria ter anunciado que pertencias


àAmpulheta de forma tão pública. De qualquer forma, o Primeiro
Círculoseria informado, mas não devia tê-lo dito tão bruscamente.
Pensava noutras
questões que me vinham a confundir, e quando te vi… — Encolheu
osombros.

— Como soubeste? Em Terreille, ninguém se apercebeu.


Os seus lábios curvaram-se. — Bem, duvido que algum deles
tenhapassado os últimos dez anos a aborrecer o Tio Saetan. Quem,
como nós,
assim o fez, daria conta das similaridades dos vossos odores psíquicos
echegaria à conclusão certa.

Daemon pestanejou. — Tio Saetan?

Terminou a curvatura dos lábios no característico sorriso perverso. —


Adoptou Jaenelle e todos nós adoptámos Saetan. Viemos passar um
Verãoe nunca mais regressámos verdadeiramente a casa. Podes
imaginar comoficou entusiasmado quando percebeu que ganhara dez
feiticeiras adolescentes
em vez de uma única – e os rapazolas também, é claro.

— É claro — disse Daemon, debatendo-se para não sorrir. — Que


surpresa.
— Mmm. Nesse primeiro Verão, quando todos lhe caímos em cima,
aassembleia especializou-se em tónicos calmantes. Era tão angustiante
ouvi-
lo lastimar-se.
Daemon abafou uma gargalhada para, logo de seguida, o divertimento
se desvanecer. Era hábil, esta Rainha de olhos azuis como o gelo e
cabeloloiro esbranquiçado e espetado. Deve ter percebido a sua vontade
em ouvirhistórias sobre a adolescência de Jaenelle.

Karla observou-o. — Se contribuir para que te sintas melhor, podes


ameaçar esganar-me.
Ficou incapaz de falar por um momento. — Perdão?

— Nesta corte, é a forma aceite de um macho expressar


contrariedadeem relação a uma feiticeira.
— Consideram admissível a ameaça de esganar uma mulher? —
Daemon
inquiriu, convicto de ter percebido mal.
— Desde que seja enunciado de forma calma para que se saiba quenão
pretende fazê-lo.
Um macho que consiga manter-se calmo neste local deve ser
possuidorde um grande autocontrolo, pensou Daemon. Massajou a
testa e começoua perceber a advertência de Lucivar quanto às
explicações dadas pelas feiticeiras
da assembleia.

— Não vos incomoda que Lucivar vos ameace? — perguntou Daemon.


Visto que Lucivar normalmente mantinha a calma ao ameaçar al94
guém, só um tolo não o levaria a sério.

Karla crispou os ombros. — Oh. Bem. Lucivar. Raramente nos dirigea


palavra quando está agastado connosco. Limita-se a pegar em nós e
amandar-nos para o charco de água mais próximo. — Fez uma pausa.
— Sebem que, para ser justa…

— Ser justa, para quê? — resmungou Daemon.


— Passaste a manhã com ele, não foi? — disse Karla, sabedora. — Se
for uma tina de água ou uma fonte, ele mergulha-nos em vez de nos
mandar
para que não nos magoemos. Porém, é o Lucivar. Desencorajamos
comveemência outros machos de adquirirem esse hábito em particular.
— Se assim não fosse, estariam ensopadas a maior parte do tempo
— murmurou Daemon, entre dentes.
Antes de Karla conseguir responder ao comentário, Morghann, a Rainha
de Scelt – a Rainha de cabelo ruivo com quem se cruzara de manhã –
eGabrielle, a Rainha dos Dea al Mon, bateram simbolicamente na porta
davaranda antes de entrarem.

— As portas da assembleia dão todas para este jardim interior, por


issoé mais rápido usar as portas das varandas em vez de dar a volta por
dentro
— disse Morghann ao mesmo tempo que Karla perguntava: — Onde
estáSurreal?
Gabrielle pôs o cabelo loiro-prateado por trás das orelhas pontiagudase
sorriu de orelha a orelha. — Chaosti reclamou-a sob o pretexto de
mostrar-
lhe o Paço. Ela ainda estava a resmungar que tinha de pedir
desculpasao Colmilho Cinzento por parecer demasiado realista quando
ameaçoudar-lhe um açoite.

— Estava a explicar algumas regras a Daemon — disse Karla.


— Eu tenho realmente um compromisso — resmungou Daemonpara, de
seguida, dizer: — Entre — em voz alta, quando alguém bateu àporta da
sala de estar.
Saetan entrou, passou os olhos pelas três mulheres e parou.

— Beijinho, beijinho — disse Karla.


— Íamos explicar as regras a Daemon — disse Morghann.
— Que as Trevas tenham piedade de Daemon — exprimiu Saetan,
friamente.
— Vou buscar o casaco — disse, Daemon, não querendo deixar escapar
uma oportunidade de se escapulir. O orgulho impedia-o de correr para
o quarto. O senso comum fê-lo demorar-se mais do que o necessário,
porisso, quando regressou à sala de estar, só Saetan o aguardava.
— Já foram atormentar outro? — perguntou Daemon, com azedume,
ao saírem dos aposentos, começando a caminhar pelos corredores.
Saetan deu uma gargalhada abafada. — Por agora.

95
Daemon hesitou. — Quiçá seja melhor explicares-me essas regras.

— Vou providenciar um livro de Protocolo de corte para reveres.


— Não, o que quero dizer são as regras próprias desta corte. Como…
— Não quero saber — disse Saetan, serena mas firmemente.
— Tens de saber. És o Administrador.
— Exactamente. E se esta corte se rege por algumas regras das quais,
ditosamente, não tive conhecimento nestes cinco anos como
Administrador,
não é agora que pretendo ser informado.
— Mas… — disse Daemon. O olhar implacável de Saetan deteve-o.
— É uma atitude algo afectada.
— Do teu ponto de vista, talvez seja. Do meu ponto de vista, faz todo
o sentido. És mais novo. Enfrenta a situação.
Antes de conseguir fazer um comentário do qual se pudesse arrepender,
um pequeno cão castanho e branco correu na direcção de ambos
eparou a alguns centímetros, com a cauda a abanar desenfreadamente
numcumprimento fervoroso.

«Já chegou! O parceiro de Jaenelle chegou finalmente!«


Daemon ficou sem fôlego, não só por ter ouvido o cão falar, mas
também
por ter visto a Jóia Vermelha escondida no pêlo branco do pescoço.

— Daemon, este é o Senhor Ladvarian — disse Saetan. — Ladvarian,


este é…
«Um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra« disse Ladvarian,
saltitando à frente deles. «É um Príncipe dos Senhores da Guerra de
JóiaNegra. Tenho de contar a Kaelas.« O cão correu pelo corredor,
desaparecendo.

— Mãe Noite — disse Saetan, baixinho. — Anda. Vamos sair daquiantes


que encontremos mais alguém. Já tiveste ensinamentos suficientespara
o primeiro dia na corte.
— É parente — disse Daemon debilmente, seguindo Saetan. — Quando
Lucivar disse que alguém chamado Ladvarian ficaria satisfeito por
mever, pensei… A não ser que se referisse a outrem?
— Não, é este Ladvarian. Ele próprio teria ido à feira de serviços
procurar-
te, mas os parentes não são muito bem recebidos na Pequena Terreillee
não estava disposto a colocá-lo em perigo. A sua capacidade de explicar
ocomportamento dos parentes aos humanos e o comportamento dos
humanos
aos parentes fá-lo único. E a influência que exerce no Príncipe
Kaelasnão deve ser julgada de ânimo leve.
— Quem é Kaelas?
Saetan olhou-o de modo estranho. — Vamos deixar o Kaelas para outro
dia.

96
Daemon observou a casinha arranjada e o pátio limpo. — Sempre
quisque Tersa vivesse num local deste género.

— Aqui, vive uma vida descansada — disse Saetan, abrindo a portada


frente. — Uma assistente Viúva Negra reside com Tersa para lhe
fazercompanhia. E tem também o Mikal — acrescentou, enquanto
seguiam osom de vozes até à cozinha.
Daemon entrou na cozinha, olhou de relance para o rapaz sentado
àmesa da cozinha e, depois, fixou os olhos em Tersa, que estava a
resmonearpara si própria, enquanto preparava comida.

O cabelo preto estava tão embaraçado quanto se recordava, mas o


vestido
verde-escuro estava lavado e parecia quentinho.

O rapaz engoliu à pressa um pedaço de bolinho de avelã antes de


perguntar,
num tom de voz desconfiado: — Quem é ele?

Tersa levantou os olhos. Os seus olhos dourados encheram-se de


alegria,
fazendo com que sorrisse de modo radiante. — É o rapaz — disse,
aomesmo tempo que se lançava nos braços de Daemon.

— Olá, querida — disse Daemon, sentindo-se inundado pelo prazerde a


rever.
— Não é um rapaz — disse o rapaz.
— Mikal — chamou Saetan, severamente.
Afastando-se de Daemon, Tersa olhou para Mikal, depois
novamentepara Daemon. — É um grande rapaz — disse, com firmeza.
Puxou Daemon
para a mesa. — Senta-te. Há comida. Tens de comer.

Daemon sentou-se à frente do rapaz, que o considerava


notoriamentecomo um rival inoportuno. — Não devias estar na escola?
Mikal rolou os olhos. — Não é dia de escola.

— Mas não deixaste de fazer as tarefas que a tua mãe te atribuiu antes
de vires para aqui — disse Saetan, docilmente, aceitando o copo de
vinhotinto que Tersa lhe ofereceu, mas não desviando os olhos de
Mikal.
Mikal contorceu-se sob aquele olhar informado e, por fim,
murmurouentre dentes: — A maior parte.

— Nesse caso, depois de comermos, irei acompanhar-te até casa e


poderás
terminá-las — disse Saetan.
— Mas tenho de ajudar Tersa a mondar o jardim — protestou Mikal.
— As ervas daninhas não fogem — disse Tersa, serenamente.
Olhoupara os dois “rapazes”, franziu o sobrolho para os copos de leite
que levavanas mãos e colocou os dois à frente de Mikal. Deu umas
palmadinhas noombro de Daemon. — Já tem idade para beber vinho.
— Graças às Trevas — murmurou Daemon.
A refeição passou-se com pouca conversa. Saetan quis saber como ia
o trabalho escolar de Mikal, obtendo as respostas evasivas que já
esperava.
97
Tersa tentou fazer comentários banais sobre a casa e o jardim, mas os
comentários
iam-se tornando cada vez mais incoerentes.

Daemon cerrou os dentes. Queria dizer-lhe para parar de tentar.


Magoava
vê-la esforçar-se tanto para caminhar na fronteira da sanidade mental
por sua causa e a preocupação e o rancor nos olhos de Mikal perante
odesmoronamento do controlo de Tersa feriam-no profundamente.

Saetan pousou o copo de vinho na mesa e levantou-se. — Vamos, cria

— dirigiu-se a Mikal. — Vou levar-te agora a casa.


Mikal pegou rapidamente num bolinho de avelã. — Ainda não acabeia
refeição.

— Leva-o contigo.
Quando saíram, ouvindo Mikal ainda a protestar vigorosamente,
Daemon
olhou para Tersa. — Como é bom voltar a ver-te — disse, ternamente.

Os olhos de Tersa encheram-se de mágoa. — Não sei ser tua mãe.

Pegou-lhe na mão. — Basta seres a Tersa. Foi sempre mais do que


suficiente.
— Sentiu que Tersa absorvia a aceitação, sentiu a tensão a abandonar-
lhe o corpo.

Por fim, sorriu. — Estás bem?

Devolveu o sorriso e mentiu: — Sim, estou bem.

A mão de Tersa apertou a de Daemon. Os seus olhos ficaram desfoca

dos, ficaram distantes e perspicazes. — Não — disse baixinho, — não


estás.
Mas irás ficar. — De seguida, levantou-se. — Anda. Vou mostrar-te o
meujardim.

7 / Kaeleer

Saetan mudou para uma posição sentada no sofá do seu gabinete. Não
necessitava
usar uma sonda psíquica para saber quem estava do outro lado
daporta. O odor a medo foi suficiente. — Entre.
Wilhelmina Benedict entrou, hesitando a cada passo.

Observando-a, Saetan segurou as rédeas do seu temperamento


comfirmeza. Não era culpa dela. Há treze anos, era praticamente uma
criança.
Nada poderia ter feito.

Contudo, se Jaenelle não tivesse permanecido em Chaillot para proteger


Wilhelmina, aquela última e horrenda noite em Briarwood não
teriaacontecido. Teria deixado a família que não compreendera nem
prezara oque Jaenelle era. Teria vindo para Kaeleer, teria vindo ao seu
encontro – e
teria evitado a violenta violação que lhe deixara tantas e tão profundas
cicatrizes
emocionais.

98
Não era justo responsabilizar Wilhelmina, de alguma forma, pelo
queacontecera a Jaenelle, porém não deixava de se sentir ressentido
pela presença
da rapariga na casa que lhe pertencia e pelo ressurgimento na vidada
irmã.

— O que posso fazer por ti, Senhora Benedict? — Tentou, sem êxito,
esconder a irritação.
— Não sei o que faça. — A sua voz era quase imperceptível.
— Em relação a quê?
— Todos os que assinaram contrato têm algo para fazer, mesmo queseja
apenas elaborar uma lista das respectivas aptidões. Mas eu…
Retorceu as mãos com tanta força que Saetan crispou-se apiedado pelos
ossos delicados.

— Odeia-me — disse Wilhelmina, com a voz a subir de tom devido ao


desespero. — Todos aqui me odeiam e não sei porquê.
Saetan indicou-lhe a extremidade oposta do sofá. — Senta-te. —
Aguardando o cumprimento da ordem, imaginou como teria
conseguidoesta mulher tão amedrontada e fragilizada emocionalmente
fazer a viagematravés de um dos Portões entre os Reinos, tentando,
posteriormente, obterum contrato na feira de serviços. Quando
Wilhelmina se sentou, Saetan disse:
— Odiar é uma palavra demasiadamente forte. Ninguém aqui te odeia.

— O Yaslana odeia. — Enfiou os punhos no colo. — E vós idem.


— Não te odeio, Wilhelmina — disse serenamente. — Embora me
sinta ressentido com a tua presença.
— Porquê?
Confrontado com o sofrimento e a desorientação da mulher, sentiu-
se tentado a expressar a verdade sem rodeios, mas decidiu conceder-
lhea delicadeza da honestidade. — Porque és a razão pela qual Jaenelle
nãoabandonou Chaillot com a brevidade necessária.

Ficou sobressaltado pela célere mudança de assustada em feroz,


maspercebeu que não deveria ter-se alarmado. Devia ter procurado a
base comum
entre Wilhelmina e Jaenelle ao invés de deixar que o passado lhe
toldasse
o pensamento.

— Sabeis onde encontrá-la, não é verdade? Sabeis?


Parecia prestes a arrancar-lhe a resposta aos safanões. Intrigado
pelamudança, perguntou-se se seria realmente capaz de tentar.
— Neste preciso momento, não sei — disse, de modo tranquilo. —
Mas em breve, estará de regresso a casa.

— A casa? — A ferocidade voltou a transformar-se em perplexidade,


passando depois a reflexão ao passar o olhar pelo gabinete. — A casa?
— Sou o pai adoptivo de Jaenelle. — Não obtendo qualquer reacção,
acrescentou: — Lucivar é seu irmão.
99
Saltou como se a tivesse picado com um alfinete. Os seus olhos
azuisestavam repletos de algo semelhante a horror enquanto olhava
estupefactapara Saetan. — Irmão?

— Irmão. Se te serve de consolo, embora ambos estejam


relacionadoscom a mesma mulher, tu e Lucivar não têm qualquer
relação um com o
outro.
O alívio de Wilhelmina foi tão notório que quase fez Saetan rir.

— Ela gosta dele? — perguntou Wilhelmina, baixinho.


Não conseguiu evitar. Riu-se mesmo. — A maior parte do tempo.
— Depois examinou-a. — É essa a razão que te trouxe a Kaeleer? Para
procurar
Jaenelle?
Anuiu. — Todos diziam que tinha morrido, que o Príncipe Sadi a
matara,
mas eu sabia que não era verdade. Ele nunca teria magoado Jaenelle.
Julguei que fora viver com um dos seus amigos secretos ou com o seu
professor.
— Olhou-o como se estivesse a comparar o que via com algo quesabia.
— Éreis vós, não éreis? Veio ter convosco para que a ensinásseis.

— Sim. — Aguardou. — O que vos levou a pensar em Kaeleer?


— Foi Jaenelle que me disse. Posteriormente. — Wilhelmina passouum
dedo pela Jóia Azul-Safira. — Quando o Príncipe Sadi libertou as
JóiasNegras para escapar aos hayllianos que vieram buscá-lo, ouvi
Jaenelle a gritar
“deixem-se ir, deixem-se ir”. E assim fiz. Quando terminou, dei comigoa
usar uma Jóia Azul-Safira. Ficaram todos abalados pois julgavam que,
dealguma forma, tinha realizado a Dádiva às Trevas. Mas a Jóia não me
pertencia.
Era de Jaenelle. Não conseguia fazer uso dela, mas protegia-me.
Porvezes, quando estava assustada ou não sabia o que fazer, a Jóia
sempre meofereceu a mesma resposta: Kaeleer. Saí de casa porque o
Bobby… — Cerrou
os lábios e respirou fundo por duas vezes. — Saí de casa. Logo que
completei
vinte anos, realizei a Dádiva. E obtive esta Jóia. A outra desapareceu.
— E passaste estes últimos anos a tentar chegar aqui?
Hesitou. — Durante muito tempo, não me sentia preparada. Um dia,
pus-me a pensar se algum dia estaria preparada. Por isso, vim de
qualquer
maneira.

O que significava que esta mulher tinha mais coragem do que


aparentava.
— Diz-me, Wilhelmina — disse Saetan, docilmente. — Se, há treze
anos, Jaenelle tivesse decidido deixar Chaillot e se te tivesse pedido que
aacompanhasses, tê-lo-ias feito?
Demorou muito a responder. Por fim, relutante, disse: — Não sei.

— Olhou ao seu redor, com um semblante triste. — Jaenelle pertence


aqui.
Eu não.
— És irmã de Jaenelle e uma feiticeira de Jóia Azul-Safira. Não faças
100
julgamentos precipitados. — Da mesma forma, também eu tentarei não
fazer
julgamentos precipitados. — Além disso, terias tido uma opinião
muitodiferente deste lugar se nos tivesses visitado na altura em que
aqui residiamdez feiticeiras adolescentes — acrescentou, com uma voz
propositadamente
pesarosa.

Arregalou os olhos. — Referis-vos às Rainhas que aqui estão?

— Sim.
— Oh, céus.
— É uma forma de o expressar.
Baixou a cabeça para abafar uma gargalhada. Quando se atreveu a
voltar
a olhar para Saetan, pôde ver que estava a ponderar, a reavaliar o Paço,
bem como as pessoas que aí habitavam.

— Continuo sem nada para fazer — disse, vacilante.


A expectativa quase esperançosa presente nos olhos da mulher levou-
o a compreender que dera um grande passo em direcção à aceitação
deSaetan como patriarca da família – e esperando, por isso, que
cumprisse osdeveres inerentes a essa posição.

— Lucivar não disse nada? — perguntou, consciente de que a


únicarazão pela qual Lucivar a trouxera era para afastá-la de quem
quer que tentasse
usar a relação que tinha com Jaenelle.
Pela primeira vez, um pedacinho de fúria tremeluziu-lhe no olhar.

— Disse-me para tentar não desmaiar pois isso iria afligir os machos.
Saetan suspirou. — Vindo de Lucivar, foi quase uma delicadeza.
Temrazão. Foi rude, mas não deixa de ter razão. Os machos reagem
vigorosa-
mente face à angústia feminina.

Wilhelmina franziu o sobrolho. — É por isso que aquele enorme gatoàs


riscas anda sempre a seguir-me?

Saetan olhou para a porta do gabinete. Uma pergunta breve num


fiopsíquico masculino facultou-lhe a resposta. — Chama-se Dejaal. É
filho doPríncipe Jaal. Autoproclamou-se teu protector até que te sintas
à vontadecom os outros machos do Paço.

— É parente? Ouvi histórias…


— Os Sangue da Pequena Terreille não acham grande utilidade
aosparentes e os parentes ainda acham menos utilidade aos Sangue da
Pequena
Terreille — disse Saetan, para logo acrescentar em silêncio: Excepto
quando têm fome.
Levantando-se, ofereceu a mão a Wilhelmina e conduziu-a até à porta.
Invocou uma escova e ofereceu-lha. — Se queres ocupar-te com algo
quenos ajudará a todos neste momento, leva Dejaal até um dos jardins
exteriores
e escova-o. Logo que te habitues à sua presença, talvez seja mais
fácilpermaneceres na nossa companhia.

101
— Se a intenção é tranquilizar-me, talvez fosse melhor dar uma
escovadela
a Lucivar — disse, com um ligeiro indício de mordacidade.
Saetan desatou às gargalhadas. — Minha querida, se queres dar-tebem
com Lucivar, mostra-lhe essa veia mordaz. Visto que viveu com Jaenelle
durante os últimos oito anos, reconhecerá a sua essência.

8 / Kaeleer

— Tens a certeza que este é o caminho de regresso ao Paço? —


perguntou
Daemon ao esquivar-se a um ramo baixo.
«Saímos do caminho« disse Ladvarian. «Temos de atravessar o riacho e

o caminho não tem ponte.«


— Não preciso de uma ponte para atravessar o riacho.
Ladvarian olhou para os sapatos de Daemon. «Irias molhar-te.«
— Sobreviveria — resmungou Daemon, entre dentes.
Quando deixou a casa de Tersa, encontrara Ladvarian a aguardar para
o acompanhar de volta ao Paço. Ao início, julgou que se poderia tratar
deum tipo subtil de insulto, insinuando que não conseguia dar com o
caminho
sozinho. Posteriormente, quando Ladvarian se ofereceu para lhe
mostrar
um atalho entre Halaway e o Paço, julgou que estaria a ser-lhe
preparada
uma emboscada. Por fim, percebeu que o cão queria
simplesmentepassar algum tempo a conhecer o macho cujos deveres o
tornavam numaparte importante da vida da Rainha.
Mas não gostava da impressão de que estava a ser rotulado como
umhumano que precisava de ser mimado.

Parou. — Olha, isto tem de parar. Posso não ser um guerreiro eyrieno
mas sou perfeitamente capaz de andar alguns quilómetros sem cairpara
o lado, consigo atravessar um riacho sem me molhar se assim odesejar
e não preciso que uma bola de pêlos baixinha me trate comose não
fosse capaz de sobreviver sem ser numa casa cheia de serviçais.
Percebes?

Ladvarian abanou a cauda. «Sim. Queres ser tratado como um macho


de Kaeleer.«

Daemon rodou nos calcanhares e examinou o sceltita. — Foi isso


quedisse?

«Sim.« Ladvarian correu na diagonal. «Por aqui.«

Passado um minuto, chegaram ao riacho. Ladvarian avançou a passo


rápido até à margem e saltou. Normalmente, deveria ter aterrado no
meiodo riacho mas continuou a deslocar-se e, ao pousar, ficou a pairar
a trintacentímetros acima do chão, com uma careta canídea no focinho.

102
Daemon olhou para o riacho, olhou para o sceltita e, de seguida,
caminhou
pelo ar sobre o riacho, até à outra margem.

«Foi Jaenelle que te ensinou isso?«

Recordando a tarde em que Jaenelle lhe demonstrara como caminhar


noar, Daemon sentiu um aperto no peito. — Sim — disse docilmente, —
foi.

«Também a mim.« Ladvarian parecia satisfeito.

Ao passarem outro arvoredo, Daemon avistou a estrada. O caminho,


corrigiu. Quando a estrada a norte de Halaway atravessava a ponte,
torna-
va-se no caminho que levava ao Paço e os terrenos que se estendiam à
suafrente faziam parte da propriedade da família.

Dirigiu-se ao caminho, e logo girou sobre si próprio ao ouvir Ladvarian


a rosnar, na expectativa de um ataque apesar das demonstrações
deamizade do cão.

Contudo, Ladvarian estava virado para o local de onde tinham vindo.


A ponte estava escondida sob a ondulação do terreno, mas o vento
sopravadessa direcção.

— O que se passa? — perguntou Daemon, abrindo ligeiramente a


primeira
barreira interior de maneira a perscrutar a área em redor.
«Estão a chegar humanos. Três carruagens. Avisei os outros
machosmas agora temos de regressar.« Ladvarian dirigiu-se num passo
rápido emlinha recta para o Paço, forçando Daemon a apressar-se para
o acompanhar.

— Qual é o problema de virem humanos ao Paço?


O odor psíquico de Ladvarian tornou-se hostil. «Transmitem-me uma
sensação desagradável.«
A ferocidade repentina era uma nítida advertência de que o
pequenomacho que trotava a seu lado era também um Senhor da
Guerra de JóiaVermelha e, tendo Lucivar orientado uma parte do treino
de Ladvarian, osceltita era um lutador bastante mais impressionante do
que alguém podiasuspeitar.

«O Noitibó leva-te até ao Paço. Ele é mais rápido.«

Antes que Daemon pudesse reflectir sobre aquele comentário


enigmático,
ouviu o som de cascos na sua direcção.

Noutras circunstâncias, mal visse o cavalo negro, teria recusado a


oferta
– não somente porque montar um garanhão sem sela não era uma
ideiamuito saudável, mas também porque o vento e os movimentos do
cavalolevantaram ligeiramente a franja que lhe encobria a testa e, por
um breveinstante, vislumbrou a Jóia Cinzenta aí escondida. Apesar das
diferençasentre as duas espécies, reconheceu o agressivo odor psíquico
de outro Príncipe
dos Senhores da Guerra. Porém, não se moveu quando o cavalo paroua
seu lado e Ladvarian mordiscou-lhe a barriga da perna.

103
«

«Vai, Daemon. Já.

Mal teve tempo de montar e agarrar-se à longa crina e já o Noitibópartia


num galope desenfreado a corta-mato. Sem saber como Ladvarianos
acompanharia a este ritmo, olhou para trás e viu o cão equilibrado
nagarupa do cavalo.

Quando o cavalo avançou em direcção à última secção extensa e recta


do caminho, Daemon deu um puxão na crina e gritou: — Mais devagar

— com receio de que o Noitibó resvalasse na gravilha àquela velocidade.


Sentiu uma ligeira subida e depois… não ouviu nada. Não ouviu
oscascos nem a gravilha a espalhar-se. Espreitando por cima do ombro
esquerdo
do Noitibó, viu as patas dianteiras a deslocarem-se pelo ar, na direcção
da porta principal.

Quando já estavam tão perto a ponto de verem os detalhes da cabeçado


dragão no batente da porta, o Noitibó pousou nas patas traseiras,
detendo-
se por fim a um palmo da escadaria.

Daemon desmontou e subiu os degraus, sem saber se as pernas


tremiam
devido aos músculos tensos ou devido aos nervos em franja. Aochegar à
porta, olhou para trás, mas não havia sinais do Noitibó, emborasentisse
a presença próxima do garanhão.

— Fogo do Inferno — murmurou entre dentes quando um lacaio


lheabriu a porta.

Ladvarian passou à sua frente a correr e desapareceu.

Daemon entrou mais devagar, sentindo a pressão da hostilidade mas

culina. Para além do lacaio, a única pessoa visível no salão principal


eraBeale, o mordomo, mas duvidava que fossem os únicos presentes.

— Parece que estamos prestes a ter companhia — disse Daemon


aoajeitar o cabelo e compor o casaco preto.
— Assim parece — respondeu Beale fleumaticamente. — Se não
vosimportais de aguardar aqui, o Príncipe Yaslana e o Senhor Supremo
estãoprestes a chegar.
Daemon olhou ao seu redor e entrou na sala de visitas formal,
posicionando-
se de forma a não ser visto por quem quer que passasse pela porta.

Observando a movimentação, Beale mudou de posição, colocando-


sedirectamente na linha de visão de Daemon.

«Lucivar« chamou Daemon, através de um fio masculino Ébano-


Acinzentado.

«Estou a entrar pela porta de serviço nas traseiras do Paço.«

«Se algum deles conseguir passar por nós sem o detectarmos, há algu

ma forma de chegar à zona dos aposentos?«


«A única forma de chegar aos andares de cima a partir dessa zona
doPaço é pelas escadas na sala de visitas informal. Não te preocupes.
Kaelas

104
está nesse local. Nada passará por essas escadas. E o Senhor Supremo
estáa descer por aí.«

Daemon ouviu as carruagens a pararem à frente do Paço, viu Beale


aacenar com a cabeça ao lacaio quando alguém bateu à porta.

Passos. O ruge-ruge de roupas. A voz de uma mulher.

— Exijo ver Wilhelmina Benedict.


A raiva gélida soltou-se dentro de Daemon invadindo-o com uma
talrapidez que se viu na orla assassina antes mesmo de perceber que
tinhadado o primeiro passo nessa direcção. Há treze anos que não ouvia
aquelavoz, mas reconheceu-a.

— A Senhora Benedict não está disponível — disse Beale, impassível.


— Não me venham com essa. Sou a Rainha de Chaillot e…
Daemon saiu da sala de visitas. — Boa-tarde, Alexandra — disse, com
uma placitude exagerada. — Que prazer voltar a ver-vos.

— Tu. — Alexandra fitou-o, de olhos arregalados e aterrorizados.


Seguiu-
se a raiva. — Foste tu que organizaste aquela ‘visita’ a Briarwood,
nãofoste?
— Bem vistas as coisas, era o mínimo que podia fazer. — Deu umpasso
em direcção a Alexandra. — Eu avisei que, se me traísseis, inundariade
sangue as ruas de Beldon Mor.
— Também disseste que me mandarias para a sepultura.
— Cheguei à conclusão que deixar-vos viver seria um castigo bemmais
rigoroso.
— Canalha! Tu… — Alexandra começou a tiritar. Todos os que
aacompanhavam começaram a tiritar.
O frio intenso e cauterizante atingiu-o no momento seguinte, deixando-
o tão aturdido que se afastou da orla assassina.
É este o meu aspecto quando fico gélido?, cogitou Daemon, incapaz
dedesviar o olhar daqueles olhos vítreos e letárgicos e do sorriso
malevolamente
dócil.

— Senhora Angelline. — A voz de Saetan ribombou no Paço comoum


suave trovão. — Sempre soube que nos encontraríamos um dia
paraajustarmos contas, mas não julguei que fosseis assim tão tola para
vir aqui.
Alexandra cerrou os punhos mas foi incapaz de parar de tremer. —
Vim com o objectivo de levar as minhas netas para casa. Deixei que
venham
e iremos embora.
— A Senhora Benedict será informada da vossa presença. Se
desejarver-vos, marcaremos um encontro – sempre com
acompanhamento, claro.
— Como vos atreveis a insinuar que eu represento algum género de
perigo?
105
— Eu sei que assim é. A única questão prende-se com a dimensão
desse perigo.
A voz de Alexandra subiu de tom. — Não tendes qualquer direito…

— Aqui governo eu — rosnou Saetan. — Sois vós que não


tendesqualquer direito, Senhora. Nenhum. Exceptuando aqueles que eu
vos possaconceder. E concedo-vos muito pouco.
— Quero ver as minhas netas. Ambas.
No fundo dos olhos de Saetan, algo feríssimo bruxuleou. Olhou
paraLeland e Philip, voltando a centrar a atenção em Alexandra. A sua
voz converteu-
se num trauteio monocórdico: — Passei dois longos e terríveis anosa
congeminar a execução perfeita para os três. Dois longos e terríveis
anosé o tempo que demorarão a definhar até à morte e, a cada minuto,
a dorsentida irá para além do que possam imaginar. Neste caso,
contudo, necessito
da anuência da minha Rainha antes de começar. — Virou-lhes costas.

— Beale, prepara acomodações para os nossos hóspedes. Ficarão


connosco
por uns tempos.
Ao passar por Daemon em direcção ao seu gabinete, os seus olhares
cruzaram-se.
Daemon olhou para Leland que estava agarrada a Philip e a
chorarbaixinho; para as outras Rainhas e os respectivos machos que
estavam juntos
e encolhidos de medo; e, por fim, para Alexandra, que o fitava comolhos
apavorados e cuja tez estava desprovida de cor.

Girando sobre os calcanhares, dirigiu-se para o gabinete e reparou


queLucivar estava discretamente ao fundo do corredor.

«Se entrares ali, tem cuidado, Bastardolas« avisou Lucivar.

Acenando com a cabeça, Daemon entrou no gabinete.

Saetan estava em pé, junto à secretária, servindo-se diligentemente de

um copo de conhaque. Levantou os olhos, serviu outro copo e ofereceu-


oa Daemon.
Daemon aceitou o copo e bebeu um trago substancial, na esperançade
que o aquecesse ligeiramente.

— A raiva de outro macho não te deveria afectar ao ponto de te


afastares
da orla assassina — disse Saetan, calmamente.
— Na verdade, nunca senti nada semelhante.
— E se voltares a sentir, irá afectar-te de igual modo?
Daemon olhou para o homem que estava à distância de um braço
ecompreendeu que era o Administrador da Corte das Trevas e não o seu
paique lhe estava a colocar a questão. — Não, não irá.

Movendo-se cautelosamente, como se tivesse consciência de que


qualquer
movimento repentino poderia libertar a violência que ainda fremia
noseu interior, Saetan apoiou-se na secretária em madeira escura.

106
Controlando igualmente os movimentos, Daemon serviu-se de
outrocopo de conhaque. — Achais que a Rainha consentirá?

— Não. Visto que os seus familiares só lhe infligiram mal a ela e nãoa
outrem, irá opor-se à execução. Mas não deixarei de apresentar-lhe o
pedido.
Daemon fez o conhaque girar lentamente no copo. — Se, por
algumarazão, não se opuser, posso assistir?

O sorriso de Saetan era encantador e cruel. — Meu querido Príncipe,


se Jaenelle der o seu consentimento, poderás fazer mais do que
simplesmente
assistir.

9 / Kaeleer

O Senhor Magstrom suspirou ao pousar uma pilha de pastas na


grandemesa, já de si atulhada de pilhas de pastas. Voltou a suspirar
quando deuuma cotovelada involuntária a uma das pilhas, espalhando
pelo chão o conteúdo
da volumosa pasta do topo. Apoiando-se num joelho, começou
aapanhar os papéis.

Graças às Trevas que o dia de reclamação terminara e que a feira


deserviços de Outono fora oficialmente encerrada. Quiçá devesse
recusar o
trabalho na feira de serviços, na próxima Primavera. As horas
esgotanteseram árduas para um homem com a sua idade, embora fosse
a esperançae o desespero desoladores nos rostos dos imigrantes que o
atormentavam.
Como podia olhar para uma mulher que não era mais velha do que a
suaneta mais nova e não desejar ajudá-la a encontrar um local para
viver, onde

o medo latente no fundo dos seus olhos fosse substituído pela


felicidade?
Como podia olhar para um homem cortês e eloquente que fora
horrivelmente
atemorizado por tentativas repetidas de lhe “ensinar obediência” enão
desejar enviá-lo para uma aldeia sossegada onde pudesse recuperar
orespeito por si próprio, sem ter de magicar no que lhe iria suceder
sempreque a Rainha que aí governasse olhasse na sua direcção?
Não existiam lugares semelhantes na Pequena Terreille. Não mais.
Contudo, eram as Rainhas deste Território que continuavam a
oferecercontratos e a atulhar as cortes de imigrantes. As outras Rainhas
de Kaeleer,
nos Territórios que respondiam à Rainha de Ebon Askavi, eram
maisprecavidas e muito mais selectivas. Por isso, esforçava-se ao
máximo paraencontrar os imigrantes que possuíam uma aptidão ou um
sonho ou algoque pudesse angariar-lhes um contrato fora da Pequena
Terreille, e levavaessas pessoas ao conhecimento dos machos do
Primeiro Círculo de JaenelleAngelline, sempre que se deslocavam à feira
de serviços. Quanto aos outros,

107
preenchia os contratos e desejava-lhes boa sorte e uma boa vida – e fica
aimaginar se a nova vida na Pequena Terreille seria deveras diferente da
vidaà qual tentavam escapar.

E tentava nem sequer lembrar-se daqueles que não tinham sido


afortunados,
não recebendo qualquer tipo de contrato, e que eram enviados de
volta para Terreille.

Magstrom abanou a cabeça enquanto reorganizava os papéis para


queficassem minimamente ordenados. Que trabalho mal feito, enfiar as
listas
de entradas de imigração no mesmo ficheiro do que as listas de serviços
edo que as listas daqueles que iriam regressar a Terreille. Como
poderiam osescrivães…

A mão apertou uma folha de papel. A lista haylliana de entradas.


Mastinha sido ele próprio que se encarregara da lista haylliana – até ao
final doterceiro dia, quando Jorval decidira fiscalizar essa lista em
particular. Nalista que facultara a Jorval estavam vinte nomes. Agora,
restavam apenasdoze. Teria alguém feito uma nova cópia da lista,
colocando apenas os nomes
daqueles que foram aceites ao serviço? Não, porque o nome de Daemon
Sadi não constava da lista.

Magstrom rebuscou os papéis rapidamente, procurando a lista


haylliana
de quem regressava a Terreille, que seria usada pelos guardas para
secertificarem de que ninguém tentaria escapar e passar à
clandestinidade. Alista tinha quatro nomes. Uma vez que Sadi se
encontrava agora em Dhemlan,
restavam três pessoas das quais não havia qualquer informação
masque tinham estado na lista de entradas que facultara a Jorval.

Ao ouvir passos a aproximarem-se, voltou a enfiar os papéis na pasta,


resmungou baixinho ao levantar-se e pousou a pasta numa pilha onde
nãopudesse ser facilmente derrubada ao chão.

Os passos detiveram-se à porta e depois prosseguiram.

Magstrom ficou à escuta por um momento, usando a Arte para sondar


a área. Ninguém. Contudo, sentiu um arrepio de inquietação a
percorrer-
lhe o corpo.

Impelido por essa inquietação, saiu do edifício e apressou-se até à


estalagem
onde se hospedara durante a feira de serviços. Logo que chegou
aoquarto, começou a fazer as malas.

Pela lógica, deveria ter procurado outros membros do Conselho e


informá-
los sobre as disparidades nas listas hayllianas. Talvez fosse um simples
erro administrativo – demasiados nomes, demasiado trabalho para
sefazer apressadamente. Todavia, quem se iria “esquecer” de colocar um
Príncipe
dos Senhores da Guerra como Daemon Sadi na lista? A menos que
aomissão tivesse sido deliberada. E se esse fosse o caso, quem poderia
saberquantos outras listas teriam disparidades semelhantes, quantos
seriam os

108
terreilleanos que tinham entrado em Kaeleer para os quais não existia
agoraqualquer registo?

E quem sabe o que poderia acontecer às provas de tais disparidades


sefalasse com os membros errados do Conselho?

Se viajasse pelo Vento Branco, que seria o menos exigente,


poderiaainda alcançar a fronteira de Nharkhava ao nascer do dia. Uma
das suas
netas vivia aí e Kalush, Rainha de Nharkhava, concedera-lhe uma
dispensaespecial que permitia visitar o seu Território sem ter de passar
sempre portodas as formalidades. E se, logo que chegasse à teia de
desembarque nafronteira, solicitasse uma escolta até à casa da neta…
Os guardas poderiamjulgar que era um pedido invulgar, mas não se
recusariam a auxiliar um ancião.
Depois de dormir um pouco, elaboraria uma carta dirigida ao
SenhorSupremo, explicando as disparidades nas listas.

Quiçá não passasse de um erro administrativo. Mas se fosse, de facto, o


primeiro indício de problemas, pelo menos Saetan ficaria de sobreaviso
– esaberia também onde procurar a origem.

Jorval olhou para a folha sob a mesa e para os papéis enfiados à


pressana pasta volumosa.

Ora, ora. O velho jarreta tinha andado a bisbilhotar. Que pena.

Magstrom podia ter sido um espinho no Conselho das Trevas


durantemuitos anos, mas não deixava de ter a sua utilidade – em
especial por ser oúnico membro do Conselho ao qual era permitido
solicitar uma audiênciacom o Senhor Supremo e a quem era concedida.

Contudo, parecia que o préstimo de Magstrom estava a esgotar-se. Enão


se podia esquecer que, se não fosse Magstrom ter-se imiscuído na
tardedo dia anterior, a Sacerdotisa das Trevas teria tido a sua arma de
Jóia Negraa salvo, num lugar seguro, algures onde pudesse ter alguma
utilidade.

Estava tentado em enviar alguém para tratar de Magstrom nessa


mesma
noite, mas o momento poderia conduzir determinadas pessoas – como

o Senhor Supremo – a investigar a feira de serviços com demasiada


minúcia.
Podia esperar. Magstrom não podia ter visto assim tanto. E se fosse
levantada alguma questão, era relativamente fácil demitir um ou dois
funcionários
por negligência e desfazer-se em pedidos de desculpas.
Mas quando chegasse a altura certa…

109
10 / Kaeleer

Alexandra encolhia-se na cadeira defronte da secretária em madeira


escura.

O Senhor Supremo solicita a vossa presença.

Solicita? Exige era mais adequado. Contudo, quando aquele


volumosomordomo de rosto empedernido lhe abriu a porta, o gabinete
encontrava-
se vazio e, passados quinze minutos, ainda estava à espera. Na verdade,
não tinha pressa de voltar a encarar o Senhor Supremo.

Reforçou o feitiço de aquecimento que colocara no xaile mas fez


umesgar perante a futilidade de procurar um pouco de calor neste
lugar. Nãoera bem o lugar – que, de facto, era muito bonito se fosse
possível ultrapassar
a sensação obscura e opressiva – eram as pessoas que provocavam
calafrios.

Sabia que não fora por cortesia que lhe tinham servido o jantar,
bemcomo à sua comitiva, numa pequena sala de jantar próxima dos
quartos doshóspedes. O Senhor Supremo não se importaria com o facto
de Alexandrase sentir demasiado exausta física e emocionalmente para
enfrentar os encontros
com outros que ali habitassem. Também não se importaria se elanão
conseguisse engolir uma colherada de comida se tivesse de partilhar
amesa com Daemon Sadi.

Não, ela e os seus acompanhantes tinham jantado


desacompanhadosporque ele não os queria presentes à sua mesa.

E agora, quando aquilo que mais ansiava era poder retirar-se para oseu
quarto e dormir na medida do possível, depois de um dia esgotante, ele
solicitara a presença de Alexandra – e não tinha sequer tido a
delicadeza deestar presente à sua chegada.

Devia ir-se embora. Era Rainha e o insulto de a deixar à espera já


seprolongara em demasia. Se o Senhor Supremo a quisesse ver, que
fosse ao
seu encontro.

Ao levantar-se, abriu-se uma porta e o odor psíquico obscuro de Saetan


inundou a divisão. Deixou-se cair na cadeira. Necessitou da totalidade
do seu autocontrolo para não se encolher de medo quando Saetan
passoupor ela, instalando-se na cadeira por detrás da secretária em
madeira escura.
— Quando um macho solicita um encontro com uma Rainha, não a
deixa à espera — disse Alexandra, tentando evitar que a voz
estremecesse.
— E vós, que atribuís tanta importância à cortesia, nunca
deixastesninguém à espera? — perguntou Saetan, placidamente, depois
de uma longa
pausa.
A cintilação estranha e ardente nos olhos de Saetan assustava-a, em

110
bora pressentisse que esta seria a única oportunidade que lhe seria
dada. Setransigisse, Saetan nunca lhe concederia o que quer que fosse.

Colocou na voz o desdém frio que usava sempre que um macho


daaristocracia precisava de saber o seu lugar. — Aquilo que uma
Rainha faz éirrelevante.

— Visto que uma Rainha pode fazer o que lhe der na gana,
independentemente
da crueldade do acto, independentemente dos danos causados.
— Não distorceis as minhas palavras — ripostou, esquecendo tudo
o resto sobre o Senhor Supremo, à excepção de que era um macho e
nãodevia tratar uma Rainha deste modo.
— As minhas desculpas, Senhora. Visto que vós já as distorceis
sobremaneira,
esforçar-me-ei para não contribuir para isso.
Alexandra concedeu-se um momento para meditar. — Estais a
tentarprovocar-me deliberadamente. Porquê? Para que possais justificar
a minhaexecução?

— Oh, já possuo todas as justificações necessárias para uma execução


— respondeu Saetan, calmamente. — Não, é mais simples do que isso.
Ofacto de eu vos apavorar não nos leva a lado nenhum. Se estiverdes
irritada,
pelo menos, falarás.
— Nesse caso, quero que as minhas netas me sejam devolvidas.
— Não tendes qualquer direito sobre nenhuma das duas.
— Tenho todos os direitos!
— Olvidais algo muito básico, Alexandra. Wilhelmina tem vinte e
seteanos. A maioridade é atingida aos vinte. Já não tendes qualquer
poder dedecisão sobre as suas vidas.
— Assim sendo, nem vós. Cabe a elas decidir se ficam ou se vão.
— Já decidiram. E eu tenho muito mais poder de decisão sobre as
suasvidas do que vós. Wilhelmina assinou um contrato com o Príncipe
dos Senhores
da Guerra de Ebon Rih que, por sua vez, serve na Corte das Trevas.
Eu sou o Administrador. Por isso, a hierarquia da corte concede-me
algunsdireitos decisórios sobre a sua vida.
— E Jaenelle? Também serve nesta Corte das Trevas?
Saetan olhou-a de forma estranha. — Realmente não compreendeis,
pois não? Jaenelle não serve, Alexandra. Jaenelle é a Rainha.

Por um momento, a convicção na voz de Saetan quase a convenceu.

Não. Não. Se Jaenelle fosse realmente Rainha, teria sabido. Os seme


lhantes reconhecem os semelhantes. Oh, poderia existir uma Rainha a
governar
esta corte, mas não era, não podia ser, Jaenelle.
Porém, a declaração de Saetan deu-lhe uma arma. — Se Jaenelle é a
Rainha, não tendes qualquer direito de controlar a sua vida.

111
— Nem vós.
Alexandra agarrou com força os braços da cadeira e cerrou os dentes.
— A idade da maioridade reconhece algumas condições que têm deser
correspondidas. Se uma criança for considerada incapaz, de alguma
forma,
a família mantém o direito de cuidar do seu bem-estar mental e físico e
de tomar decisões em seu nome.
— E de quem é a decisão de considerar a criança incapaz? A famíliaque
exerce controlo sobre ela? Que conveniente. E não vos esqueceis,
estaisa falar de uma Rainha que vos é superior.
— Não me esqueço. E não tenteis vir com moralismos – como se
tivésseis
a mínima noção de moral.
Os olhos de Saetan cobriram-se de gelo. — Muito bem. Vamos analisar
a vossa noção de moralidade. Dizei, Alexandra, que justificação
tendespara as alturas em que era óbvio que Jaenelle passava fome?
Como justifiqueis
as queimaduras de corda por ser amarrada, as nódoas negras dos
espancamentos?
Minimizastes a questão como sendo a disciplina necessáriapara
controlar uma criança indisciplinada?

— Mentis! — gritou Alexandra. — Nunca testemunhei qualquer indício


de tais práticas.
— Limitastes-vos a atirá-la para Briarwood e não vos destes ao trabalho
de a voltar a ver até decidirdes deixá-la sair?
— É claro que a visitava! — Alexandra fez uma pausa. O seu peitofoi
acometido por uma dor ao lembrar-se do modo distante, quase
acusatório
como Jaenelle olhava para ela e para Leland quando, por vezes,
avisitavam. A circunspecção e a suspeição nos olhos da rapariga,
dirigidas aelas. Recordava como tinha sofrido, como Leland tinha
chorado baixinho
durante a viagem de regresso a casa, após o Dr. Carvay lhes ter
comunicadoque Jaenelle estava demasiadamente instável a nível
emocional para puderreceber visitas. E recordou as vezes em que se
tinha sentido aliviada porJaenelle estar escondida num lugar seguro,
para que os outros não tivessemconhecimento directo das histórias
fantasiosas da rapariga. — Visitava-asempre que se encontrava
suficientemente estabilizada a nível emocionalpara puder receber
visitas.
Saetan resmoneou baixinho.

— Estais aí sentado a julgar-me, mas não tendes ideia como era


tentarlidar com uma criança que…
— Jaenelle tinha sete anos quando a conheci.
Por um momento, Alexandra não conseguiu respirar. Sete. Podia
imaginar
aquela voz a envolver uma criança, a tecer mentiras. — Assim sendo,
quando contava histórias sobre unicórnios e dragões, encorajava-la.

— Acreditava nela, é verdade.


112
— Porquê?
O sorriso de Saetan era terrível. — Porque existem.
Abanou a cabeça, ficou sem palavras pelo conflito de demasiados
pensamentos,
demasiados sentimentos.

— O que seria necessário para vos convencer, Alexandra? Ser empalada


num chifre de unicórnio? Continuarias a insistir que era uma
históriafantasiosa?
— Podíeis levar qualquer um a acreditar naquilo que quisésseis.
O olhar de Saetan ficou vítreo e letárgico. — Compreendo. — Levantou-
se. — Não me interessa o que penseis de mim. Não me interessa o
quepenseis sobre o que quer que seja. Mas se sentir um tremeluzir de
angústiade Wilhelmina ou de Jaenelle causado por vós, atacar-vos-ei
com todas asminhas forças. — Fitou-a com aqueles olhos gélidos, tão
gélidos. — Nãosei porque Jaenelle foi parar convosco. Não sei qual o
motivo para que asTrevas tivessem colocado um espírito tão
extraordinário sob os cuidadosde alguém como vós. Não a merecíeis.
Não mereceis sequer conhecê-la.

Saiu do gabinete.

Alexandra manteve-se sentada durante muito tempo.

Enganos e mentiras. Dissera que Jaenelle tinha sete anos, mas que
idade
teria quando o Senhor Supremo começara a sussurrar-lhe as
mentirasadocicadas e envenenadas ao seu ouvido? Possivelmente, teria
criado ilusões
de unicórnios e de dragões que pareciam reais e convincentes. Nãoseria
a apreensão que Jaenelle por vezes lhe despertava, um travo de Saetane
não da própria criança?

Não podia negar que tinham sido cometidos horrores em Briarwood.


Mas teriam aqueles homens cometido tais acções de livre vontade ou
estaria
um bonecreiro invisível a puxar os cordelinhos? Já sentira a
crueldadede Daemon Sadi. Não seria de esperar que o seu pai lhe
tivesse refinado ogosto? Teriam a dor e sofrimento sido causados para
vulnerabilizar umacriança em particular a ponto de a tornar
emocionalmente dependentedestes homens?

Dorothea tinha razão. O Senhor Supremo era um monstro. Ali sentada,


Alexandra só tinha uma certeza: faria o que fosse necessário para
afastarWilhelmina e Jaenelle de Saetan.

Sentiu as mãos de Daemon a deslizarem pelas omoplatas e a fixarem-


se nos ombros, um momento antes daqueles dedos fortes e esguios
começarem
a massajar os músculos tensos.

— Disseste-lhe que Jaenelle é a Feiticeira? — perguntou Daemon


suavemente.
Saetan bebeu um gole de yarbarah, o vinho de sangue, e fechou os

113
olhos para saborear melhor a tensão e a raiva a desaparecerem
enquantoDaemon persuadia os músculos a relaxarem. — Não — disse,
por fim. —
Disse-lhe que Jaenelle era a Rainha, o que devia ter sido suficiente,
mas…

— Não teria tido qualquer importância — disse Daemon. —


Naquelaúltima noite, na festa de Winsol, quando compreendi por fim o
que eraBriarwood, tinha intenções de contar a Alexandra sobre
Jaenelle. Convencera-
me a mim próprio de que me ajudaria a levar Jaenelle para longe
deChaillot.
— Mas não lhe contaste.
As mãos de Daemon fizeram um interregno, para logo começarem
atrabalhar noutro grupo de músculos hirtos. — Sem ser notado, ouvi-a
dizera outra mulher que a Feiticeira era apenas um símbolo para os
Sangue, masse o mito vivo chegasse de facto, esperava que alguém
tivesse coragem de aestrangular no berço.

Uma vaga de raiva invadiu Saetan subitamente, embora não


conseguisse
perceber se tinha tido origem em si ou em Daemon. — Mãe Noite,
como odeio essa mulher.

— Philip e Leland não são inocentes.


— Não, não são, mas seguem apenas a liderança de Alexandra
comoRainha e matriarca da família. Acusou-me de urdir mentiras para
enredarJaenelle, mas quantas mentiras disseram eles, encobrindo-as
com a convicção
da verdade? — Emitiu um som que poderia ser uma gargalhada
amarga.
— Posso dizer-te quantas. Durante anos, observei as cicatrizes
emocionais
provocadas por essas palavras.
— E o que acontecerá quando descobrir que estão aqui?
— Trataremos disso quando chegar o momento.
Daemon inclinou-se, roçou os lábios no pescoço de Saetan. —
Possocriar uma sepultura que ninguém jamais descobrirá.
O beijo que se seguiu a esta declaração abalou Saetan o suficiente
parase recordar que este filho tinha de ser tratado com desvelo. Poderia
entregar-
se à ideia da sepultura imaginária para canalizar alguma da raiva
quesentia, mas Daemon não hesitaria em torná-la real.

Voltou a sobressaltar-se ao sentir um toque suave como uma pena


depoder obscuro e feminino no limite mais profundo das suas barreiras
interiores.
— Saetan? — chamou Daemon com uma delicadeza extrema.
A canção dos lobos invadiu a noite.
— Não — respondeu Saetan de modo afável, mas com firmeza,
aoafastar-se e virar-se para olhar Daemon de frente. — Agora é
demasiadotarde.
— Porquê?
114
— Porque este coro de boas-vindas significa que Jaenelle está de volta.
— Vendo Daemon a empalidecer, Saetan passou a mão pelo braço do
filho.
— Vem até ao meu gabinete e vamos beber um copo. Levamos
tambémLucivar uma vez que já deve ter importunado tanto Marian que
já deveestar irritada.
— E Jaenelle?
Saetan sorriu. — Rapazolas, depois de uma viagem destas, o
cumprimento
aos machos, sejam eles quem forem, vem num distante terceiro lugar
na sua lista de prioridades – sendo o primeiro, um banho demoradoe
quente e o segundo, uma fausta refeição. Visto que não temos
qualquerhipótese, o melhor é sentarmo-nos confortavelmente e
descontrairmo-nosenquanto aguardamos que ela se decida a vir até
nós.

11 / Kaeleer

Surreal avançava intempestivamente pelos corredores. Sempre que


chegavaa uma intersecção de corredores, um lacaio silencioso e de
expressão soleneapontava a direcção certa. Provavelmente o primeiro
avisara os restantesdepois de Surreal o ter interpelado com rispidez: —
Onde fica o gabinetedo Senhor Supremo?

Não deixou de ficar algo admirada por nenhum dos lacaios


parecersurpreendido com a sua troada pelos corredores sem mais do
que uma camisa
de noite. Bem, tendo em conta que as feiticeiras tinham de convivercom
os machos que aqui habitavam, provavelmente não seria invulgar.

Ao chegar à escadaria que descia para a sala de visitas informal,


levantou
a camisa de noite até aos joelhos para não tropeçar na bainha,
correuescadas abaixo e até ao salão principal, praguejando por sentir o
piso demármore frio nos pés descalços. Ao invés de algumas delicadas
batidas, deuum forte murro na porta e dirigiu-se pesadamente à
secretária em madeiraescura onde Saetan estava sentado, a olhar para
Surreal, com um copo deconhaque parado a meio caminho dos lábios.

Daemon e Lucivar, sentados descontraidamente em duas cadeiras


defronte
da secretária, olhavam-na pasmados.

Agora que estava ali, a vontade de se dirigir directamente ao


SenhorSupremo dissipara-se pelo que se virou ligeiramente para
Daemon e Lucivar
e perguntou bruscamente: — Tenho ou não tenho o direito de decidirse
quero uma macho na minha cama?
O ar por detrás da secretária arrefeceu de imediato, mas Lucivar
perguntou
maliciosamente: — Colmilho Cinzento? — e o ar regressou ao normal.

115
O sorriso afectado na voz de Lucivar fê-la virar-se apenas para ele.

— Não sei quanto a ti, mas eu não estou habituada a dormir com um
lobo.
— Qual é o problema do Colmilho Cinzento ficar no teu quarto? —
perguntou Daemon.
O tom condescendente da voz de Daemon só contribuiu para a
enfurecer.
— Peida-se — ripostou, e logo acenou com a mão desdenhosamente.

— Bem, vocês fazem todos o mesmo.


Alguém emitiu um som abafado. Pensou que tinha sido Daemon.
— Estás melindrada pela sua presença por ser lobo ou porque está
aimpedir que outra espécie de macho te vá aquecer a cama? —
perguntouLucivar.
Talvez não tivesse sido uma insinuação ao facto de ter sido uma
prostituta,
mas Surreal interpretou o comentário dessa forma pois assim
poderiadescarregar a fúria em Lucivar. — Bem, docinho, pelo que vejo,
não hámuito por onde escolher. Ocupa mais do que a parte da cama
que lhe é destinada,
ressona e dá beijos babosos. Contudo, se me fosse dado a escolher,
escolhia-o a ele. Pelo menos, consegue lamber os seus próprios tomates!

Ouviu-se um copo a bater na mesa com um som ameaçador.

Surreal fechou os olhos e mordeu o lábio.

Merda. Estava tão concentrada na sua fúria dirigida a Lucivar que se

esqueceu do Senhor Supremo.


Antes que se pudesse virar, já Saetan lhe agarrava firmemente no
braço,
arrastando-a para a porta.

— Se não desejas que o Colmilho Cinzento pernoite contigo, diz-lhe


— disse Saetan, parecendo estar engasgado com alguma coisa. — Se
insistir...
Bem, Senhora, ele usa a Jóia Violácea e tu a Cinzenta. Um escudo à
volta do quarto deve resolver a questão.
— Eu pus um escudo no quarto — protestou Surreal. — Mas voltei
aacordar e dei com ele ali. Parecia satisfeito por ter escudado o quarto
contra‘machos estranhos’, mas, ao perceber que não conseguia entrar,
foi ajudadopor um tal de Kaelas.
A mão de Saetan imobilizou-se na maçaneta da porta. Endireitou-
sedevagar. — Kaelas ajudou-o a atravessar o escudo — disse,
intervalando aspalavras.
Surreal anuiu cautelosamente.
Saetan abriu a porta rapidamente. — Nesse caso, Senhora, sugiro
vivamente
que o assunto seja resolvido entre ti e o Colmilho Cinzento.
Quando se deu conta, estava no salão principal, olhando
boquiabertapara uma porta fechada.

— Dissestes que ajudarias — resmoneou. — Dissestes que poderia di-


rigir-me a vós caso necessitasse.
116
Quando a porta se voltou a abrir, sentiu uma réstia de esperança de
sernovamente chamada pelo Senhor Supremo. Ao invés, Daemon e
Lucivarforam empurrados para o salão e a porta fechou-se com um
estrondo atrásdeles.

Ficaram a olhar embasbacados para a porta por uns momentos e,


deseguida, olharam para Surreal.

— Parabéns — disse Lucivar. — Estás aqui há pouco mais de vinte


equatro horas e já te expulsou do gabinete. No meu caso, consegui
chegar aoterceiro dia até me expulsar pela primeira vez.
— Vai mais é sentar-te numa lança — rosnou Surreal.
Lucivar abanou a cabeça e emitiu um tsc. Daemon parecia estar a
esforçar
demasiados músculos para não se rir.

— Então e expulsou-vos porquê? — perguntou Surreal.


— Privacidade. Repara que agora existem escudos poderosíssimos
àvolta da divisão, incluindo um escudo auditivo. — Lucivar olhou para
aporta fechada. — Tendo presenciado este comportamento diversas
vezes,
os machos do Primeiro Círculo chegaram à conclusão de que está para
alisentado a rir que nem um louco ou está a ter uma ataque histérico,
mas, seja
o que for, não quer que tenhamos conhecimento.
— Disse que me ajudaria — resmoneou Surreal.
Os olhos de Lucivar pareciam rir. — Tenho a certeza que tinha a
intenção
de explicar algumas situações ao Colmilho Cinzento – até
mencionaresKaelas.

— Esse nome é recorrente — disse Daemon. — Mas afinal quem


éKaelas?
Lucivar olhou ponderadamente para Daemon, acabando por dirigira
resposta a Surreal. — Kaelas é um Príncipe Arceriano dos Senhores
daGuerra que usa a Jóia Vermelha. Todavia, devido a uma argúcia no
talentoque possui ou no treino a que foi sujeito, consegue atravessar
qualquer tipode escudo – incluindo o Negro.

— Mãe Noite — murmurou Daemon, entre dentes.


— E são trezentos e cinquenta quilos de músculo e temperamento
felino.
— Lucivar sorriu sinistramente. — Tentamos arduamente não aborrecer
Kaelas.
— Merda — exclamou Surreal, debilmente.
— Vamos — disse Lucivar. — Acompanhamos-te ao teu quarto.
Ser acompanhada por dois machos, parecia, de súbito, uma
excelenteideia.
Decorridos breves minutos, Surreal disse: — Sendo tão grande, ao
menos é fácil de detectar.
Lucivar hesitou. — Os Sangue arcerianos costumam usar escudos de

117
visão quando caçam. Torna-os predadores extremamente eficazes.

— Oh. — A cada momento que passava, ter um lobo como amigoparecia


cada vez mais agradável.

Ao chegarem ao quarto, deu as boas-noites e entrou.

O Colmilho Cinzento estava exactamente onde o tinha deixado. Bem,


de facto dissera: — Fica aí quieto — e ele levara as suas palavras à
letra.

Observando a tristeza naqueles olhos castanhos, suspirou.

Amor cão. Era uma expressão usada pelas prostitutas ao descreverem

os jovens machos desajeitados e ansiosos durante as primeiras


semanas deexperiência sexual. Por um breve período, tentariam agradar
para que nãolhes fosse recusado um lugar na cama. Mas, passado o
efeito da novidade,
passavam a dirigir-se àquelas mesmas mulheres com insensibilidade
nosolhos e desprezo nas vozes.

— Amanhã temos de chegar a acordo relativamente a alguns detalhes


— comunicou Surreal ao Colmilho Cinzento.
A cauda fez toc-toc, uma única vez.
Rendendo-se, subiu para a cama e bateu nos cobertores a seu lado. O
Colmilho Cinzento saltou na cama e deitou-se, observando-a
cautelosamente.
Fez-lhe uma festa que o deixou com o pêlo despenteado, desligou aluz e
deu consigo a sorrir. Viera ter a um lugar em que, quando alguém
sereferia a amor cão, referia-se a um cão verdadeiro.

12 / Kaeleer

Demasiado nervoso para dormir e demasiado inquieto para se distrair


comum livro, Daemon vagueava pelos corredores mal iluminados do
Paço.

Estás a fugir, pensava, amarguradamente ciente das dúvidas e dos


receios
que o tinham assolado ao aproximar-se dos seus aposentos – e aosentir
a presença de Jaenelle nos quartos contíguos.

Durante a maior parte dos seus 1.700 anos acreditara, sem sombra
dedúvida, que nascera para ser o amante da Feiticeira. Há treze anos,
peranteuma rapariga de doze anos, essa crença não fora abalada. O seu
coraçãocomprometera-se; a união física teria apenas de ser adiada por
alguns anos.
Contudo, interpunham-se agora entre eles uma violação brutal e os
anosque passara sem rumo na loucura, e não sabia se suportaria
encará-la paraver nos seus olhos unicamente um sentido de obrigação
ou, pior ainda, depiedade.

Precisava encontrar um lugar que o ajudasse a recuperar o equilíbrio.

Daemon deteve-se e sorriu relutantemente ao aperceber-se de que


nãoestava a fugir mas a procurar. Algures na propriedade deveria
existir um lo

118
cal dedicado à realização dos rituais formais dos Sangue nos dias
sagradosde cada estação, contudo duvidava que Saetan não tivesse
construído nasua casa um local dedicado a meditações informais e
íntimas.

Fechou os olhos, abrindo os sentidos internos. Passado um momento,


estava novamente a andar, de volta à área do Paço reservada aos
aposentosda família.

Não se teria apercebido da entrada não fosse ter vislumbrado o


seureflexo no vidro da porta.

Saiu para o exterior e olhou para o jardim mais abaixo. Canteiros


deflores altas contornavam os quatro lados à excepção do local onde os
degraus
em pedra desciam até ao jardim. Duas estátuas dominavam o espaço.
A alguns centímetros à frente destas, estavam posicionados uma laje
empedra elevada e um banco de madeira. Candeeiros diligentemente
colocados
iluminavam as estátuas, bem como os degraus.

As estátuas atraíam-no. Desceu os degraus, hesitou um momento


eavançou para a relva.

O ar estava impregnado de energia, tornando-o tão denso a ponto dese


tornar quase irrespirável. Ao encher os pulmões com esse ar, sentiu
ocorpo a absorver a força e a paz albergadas neste jardim. Na laje em
pedraencontravam-se meia dúzia de velas em recipientes de vidro
colorido. Escolhendo
um ao acaso, criou uma pequena labareda de fogo encantado pormeio
da Arte e acendeu-o. Sentiu um toque de alfazema antes de
caminharaté à fonte onde se encontrava a estátua feminina.

A parte de trás da fonte era uma parede curva de pedra em bruto


encoberta
pela água que corria para um lago limitado por pedras. Metadedo corpo
da mulher erguia-se do lago, com o rosto erguido para o céu. Osolhos
estavam fechados e nos seus lábios podia ver-se um ligeiro sorriso.
Tinha as mãos erguidas como se estivesse prestes a retirar a água do
cabelo.
Tudo nela encarnava força serena e celebração da vida.

Não reconheceu o corpo maduro mas reconheceu o rosto. E conjecturou


se o escultor teria prosseguido com os detalhes refinados para alémda
anca que se erguia da água, imaginou o que poderiam os seus
dedosencontrar se deslizasse as mãos abaixo da barriga.

E devido a essas suposições, virou-se para a outra estátua – o macho.


A besta.

A reacção visceral ao corpo ostensivamente masculino e inclinado,


que era uma mistura de humano e animal, foi um sentimento de
reconhecimento
instintivo. Era como se alguém lhe tivesse arrancado a pele, revelando
o que verdadeiramente se encontrava sob a superfície.

Os ombros largos suportavam uma cabeça felina com os dentes


cerrados
num rosnado de raiva. Uma pata/mão apoiava-se no chão, junto à

119
cabeça de uma pequena mulher adormecida. A outra estava erguida,
comas garras à mostra.

Alguém como Alexandra olharia para esta criatura e partiria do


princípio
que se preparava para esmagar e desfazer a fêmea, e que a única forma
de controlar aquela força física e aquela raiva era mantendo-as
acorrentadas.
Alguém como Alexandra jamais conseguiria ver para além
dessepressuposto, não conseguiria reparar nos pequenos pormenores.
Com amão estendida da mulher adormecida, com os dedos quase a
tocarem napata/mão junto à sua cabeça. Como o corpo inclinado a
abrigava. Comoos olhos em pedra verde e brilhante que fitavam quem
quer que se aproximasse
e como aquela raiva ríspida provinha do desejo, da necessidade de
proteger.

Daemon respirou fundo, expirando devagar – e ficou tenso. Não ouvira


passos embora não precisasse de se virar para saber quem se
encontravaao fundo da escadaria. — O que achas dele? — perguntou
serenamente.

— É lindo — respondeu Jaenelle com a voz da meia-noite.


Daemon virou-se lentamente.
Trazia um longo vestido preto. As rendas à frente terminavam logo
abaixo do peito, revelando pele clara suficiente para deixar um homem
comágua na boca. O cabelo louro espalhava-se pelos ombros e caía-lhe
pelascostas. Os vetustos olhos azul-safira já não pareciam tão
perturbados comose recordava, mas tinha a angustiante suspeita de ser
ele próprio a razão datristeza que via neles.

Enquanto o silêncio entre os dois se alongava, Daemon não se


conseguia
mexer na direcção de Jaenelle, nem conseguia ir-se embora.

— Daemon…
— Compreendes o que representa? — perguntou rapidamente,
inclinando
a cabeça ligeiramente para indicar a estátua.
Os cantos dos lábios de Jaenelle curvaram-se num indício de sorriso
mordaz. — Oh, sim, Príncipe, é claro que compreendo o que representa.
Daemon engoliu em seco. — Assim sendo, não me insultes exprimindo-
me pesares. Um macho é dispensável. Uma Rainha não –
especialmentesendo a Feiticeira.

Jaenelle emitiu um som estranho. — Em tempos, Saetan disse quase

o mesmo.
— E estava certo.
— Ora, sendo um Príncipe dos Senhores da Guerra feito com o mesmo
molde, seria de esperar que assim achasses, não é? — Começou a
sorrirpara logo semicerrar os olhos. Concentrou-se com mais afinco.
Daemon teve a clara impressão de que algo nele não era do agrado
deJaenelle. Quando a concentração intensa terminou logo a seguir,
percebeu

120
que tinha chegado a uma decisão em relação a si, tal como o fizera
quando

o conhecera. E agora, como então, não sabia qual fora a decisão.


O anel de Consorte pesava-lhe imensamente no dedo, todavia, porcausa
dele, podia pedir algo que desejava ardentemente.

— Posso abraçar-te por um minuto?


Tentou justificar a hesitação de Jaenelle com a surpresa e não devidoà
circunspecção, mas não se conseguiu convencer. Tal não o impediu
deenvolvê-la com os braços quando Jaenelle caminhou ao seu encontro.
Talnão impediu as lágrimas de lhe arderem nos olhos ao sentir os
braços deJaenelle a envolverem-lhe cuidadosamente a cintura e ao
pousar a cabeçano seu ombro.

— Estás mais alta do que me lembrava — disse, sentindo os cabelosde


Jaenelle no seu rosto.
— Espero que sim.
A voz de Jaenelle soou um pouco cáustica, mas podia perceber o sorriso
aí presente.
Oh, como as suas mãos ansiavam por acariciar e explorar, mas
temiaque se afastasse dele, por isso, manteve-as estáticas. Estava viva e
estava comela. Era tudo o que interessava.

Podia ter ficado ali toda a noite, abraçando-a, sentindo-lhe a respiração


leve, mas, decorridos alguns minutos, Jaenelle afastou-se.

— Anda, Daemon — disse, estendendo-lhe a mão. — Tens de descansar


e tenho ordens para te levar de volta para o teu quarto para que
possasdormir um pouco antes do nascer do sol.
A sua fúria avivou-se de imediato. — Quem se atreve a dar-te ordens?

— resmungou.
Olhou-o com um ar de divertimento exasperado. — Adivinha.
Quase pronunciou “Saetan” mas reflectiu melhor. — Lucivar — disse,
consternadamente.

— Lucivar — concordou Jaenelle, pegando-lhe na mão e levando-oem


direcção às escadas. — E acredita no que te digo, rapazolas, não
vaisquerer que Lucivar te arraste da cama por não estares no campo de
treinosquando te disse para estares.
— O que poderá fazer? Mandar-me com um balde de água? —
disseDaemon ao chegarem ao corredor e dirigirem-se aos seus
aposentos.
— Não, porque encharcar a cama faria com que Helene ficasse furiosa.
Mas não hesitaria em arrastar-te para debaixo de um duche gelado.
— Ele não…
Jaenelle limitou-se a olhar para Daemon.
A opinião de Daemon era franca e explícita. — Porque aturas tudo
isso?

121
— É maior do que eu — queixou-se.
— Talvez devesse ser lembrado de que te serve.
Jaenelle riu-se tanto que tropeçou em Daemon. — Ele próprio lembra-
me desse pormenor quando lhe convém. E quando assim não é,
eutenho de lidar com o meu irmão mais velho. Seja como for, a maior
partedas vezes é mais fácil se concordarmos com ele.

Chegaram à porta dos aposentos de Jaenelle. Com relutância, Daemon


largou-lhe a mão.

— Lucivar não mudou nada, pois não? — disse Daemon, sentindouma


guinada de ansiedade ao recordar quão instável Lucivar sempre fora
numa corte.
Ao olhar para Jaenelle pôde ver uma luz invulgar nos seus olhos. —
Não — disse, com a voz da meia-noite, — não mudou nada. Mas a
verdade
é que também ele compreende o que a estátua representa.

122
CAPÍTULO QUATRO

1 / Kaeleer

— Diz-me lá outra vez por que não pude tomar o pequeno-almoço —


disseDaemon, com a respiração ofegante, ao mesmo tempo que limpava
comuma toalha o rosto e o pescoço transpirados.
— Porque ninguém quer andar a saltitar à volta se não te
conseguiresdefender e te acertarem na barriga — respondeu Lucivar,
bebendo o cafée observando Palanar e Tamnar envolvidos numa rotina
de aquecimentocom os bastões. — E esta manhã estamos a madrugar
visto que quero despachar
os machos antes que as mulheres cheguem para a primeira lição.
Daemon bebeu um gole do café de Lucivar e devolveu-lhe a caneca.

— Vais mesmo ensinar as mulheres a usarem os bastões?


— Quando terminar, conseguirão manejar o bastão, o arco e a faca.
Uma ordem ríspida de Hallevar levou os jovens a recuarem e a
repetirem
um movimento devagar.

— Aposto que os guerreiros não ficaram satisfeitos quando lhes


contaste
— disse Daemon, observando os movimentos.
— Queixaram-se. A maioria das mulheres também não pareceu
terficado muito satisfeita. Não espero transformá-las em guerreiras mas
poderão
defender-se até que um guerreiro venha em seu auxílio.
Daemon fitou Lucivar pensativamente. — Foi por isso que
treinasteMarian?

Lucivar acenou afirmativamente com a cabeça. — Resistiu bastante


pois tradicionalmente as fêmeas eyrienas não tocam nas armas de um
guerreiro.
Disse-lhe que se um macho a ferisse por ser demasiado teimosa
paraaprender a se defender, dava-lhe um enxerto de porrada. E ela
ripostou quese alguma vez lhe levantasse a mão, me esventraria.
Julguei que estávamosno bom caminho.

Daemon riu-se. A gargalhada recolheu-se para os pulmões ao ver


Jaenelle
aproximar-se a passos largos pelo relvado, dirigindo-se a eles. Os seus

123
sentidos aguçaram-se até ao limite, o calor do desejo invadiu-o e o odor
deoutros machos tornou-se numa declaração de rivalidade.

— Controla-te, meu velho — murmurou Lucivar, olhando por cimado


ombro e depois para Daemon.
Palanar e Tamnar terminaram a rotina e Hallevar e Kohlvar entraram
na arena de treino.
Os lábios de Palanar formaram um sorriso escarninho. — Lá vem uma
toda empertigada, a pensar que lhe vão nascer tomates.
Daemon virou-se bruscamente, com os olhos cobertos por uma neblina
escarlate de fúria.
Hallevar girou sobre si próprio e bateu com o bastão nas nádegas
dorapaz com tanta força que o fez saltar.

— É a minha irmã, rapazolas — disse Lucivar, com demasiada


serenidade.
Palanar parecia nauseado. Alguém praguejou terrivelmente entre
dentes.

— Ora bem, vou esquecer o que disseste — prosseguiu Lucivar,


comigual serenidade, — desde que não volte a ouvir as mesmas
palavras. Casocontrário, chegará uma manhã em que entrarás na arena
de treino e euestarei à tua espera.
— S-sim, senhor — gaguejou Palanar. — Perdão, senhor.
Hallevar deu uma palmada na nuca do rapaz. — Vai comer
qualquercoisa — disse com dureza. — Talvez com comida no estômago
consigasusar mais a cabeça do que a boca.

Palanar esquivou-se, seguido por Tamnar.

Hallevar mediu a distância entre eles e Jaenelle, chegando à


conclusãode que se encontrava suficientemente próxima para ter ouvido
e praguejoubaixinho: — Não foram os ensinamentos que lhe transmiti.

Lucivar encolheu um ombro. — Já tem idade para querer que lhe


gabem
a pila. Isso torna-o estúpido. — Olhou para o Senhor da Guerra
maisvelho. — Não se pode dar ao luxo de ser estúpido. As Rainhas
desta cortepodem estar dispostas a deixar passar certas atitudes dos
jovens, mas osmachos não deixarão – pelo menos, à segunda vez.

— Vou pôr-lhe as orelhas em bolhas para ter a certeza que entende


amensagem — prometeu Hallevar. — Já agora, é melhor fazer o mesmo
aTamnar. — Regressou à arena e iniciou a rotina de aquecimento com
Kohlvar.
Daemon virou-se na direcção de Jaenelle, tendo já esquecido Palanar.
Ao ver o olhar feríssimo, o sorriso dissipou-se antes de sequer se ter
formado.

Lucivar limitou-se a erguer o braço esquerdo.

124
Dando uma tímida e bravia olhadela a Daemon e
cumprimentandoquase inaudivelmente, Jaenelle lançou-se sob o braço
de Lucivar.

Lucivar baixou o braço e, com a mão que lhe pousou na cintura,


encostou-
a ao seu flanco. O braço direito de Jaenelle estava pousado nas costas
de Lucivar e a mão cobria-lhe o ombro desnudado.

É uma posição habitual para ambos, pensou Daemon debatendo-separa


controlar o ciúme – e o sofrimento – pois mal olhara para ele.

Contudo, suspeitava que Lucivar teria uma melhor preparação


paralidar com aquele olhar feríssimo do que ele próprio. Também isso o
faziasofrer.

— Vamos agora às apresentações? — perguntou Lucivar baixinho.


Jaenelle abanou a cabeça. — Primeiro quero aquecer.
— Quando estiveres pronta, faço uma série contigo.
Olhou de relance para o peito desnudado de Lucivar. — Pensava quejá
tinhas terminado o treino.

— Já fiz dois. Nem sequer transpirei.


— Ah.
Lucivar fez uma pausa. — A tua irmã está cá.
— Eu sei. — Deu uma olhadela para a arena de treino das mulheres,
que se encontrava vazia. — Estou surpreendida por não a teres
arrastadoaté aqui.
— Tem mais trinta minutos para vir por si própria antes de ser
arrastada.
— Lucivar sorriu abertamente, de modo sinistro. — Prometo
quecomeçarei com calma.
— Um-um.
Isso era o que gostava de ver, pensou Daemon com azedume.
— E temos companhia — disse Lucivar.
Os olhos de Jaenelle gelaram. — Eu sei — disse, com a voz da meia-
noite.
Daemon deu um passo na direcção de Jaenelle. Não sabia o que poderia
dizer ou fazer, mas sabia que teria – ele próprio ou outrem – de mudar
oestado de espírito em que se encontrava.

«Lucivar…« começou.

«Deixa que tudo corra suavemente e sem dificuldades, Bastardolas«


respondeu Lucivar. «O treino irá amenizá-la.«

Daemon deu outro passo na direcção de Jaenelle, que mudou a


expressão
para algo semelhante a pânico – e percebeu que, na noite
anteriorquando deixou que a abraçasse, a Rainha estava a cumprir o
seu dever perante
um dos machos do Primeiro Círculo, contudo a mulher não queria
sequer aproximar-se dele.

Precipitando-se para longe de Lucivar – e de Daemon – quase foi con

125
tra Jazen, que carregava um tabuleiro com uma cafeteira de café fresco
ecanecas lavadas.

— Quem és tu? — disse Jaenelle, com uma delicadeza exagerada.


Jazen fitou-a nos olhos, imobilizado. — Jazen — disse, por fim. —
Ocriado particular do Príncipe Sadi.
Os olhos gelados de Jaenelle mudaram para um olhar curioso. — Éum
trabalho interessante?

— Seria mais interessante se vestisse algo que não fosse um fato preto
euma camisa branca, todos os dias — murmurou Jazen entre dentes.
Lucivar reprimiu uma gargalhada. Daemon sentiu o rosto a enrubescer,
sem saber se era de raiva ou de vergonha. Jazen parecia horrorizado.
Foi então que se ouviu o riso aveludado e argentino de Jaenelle. — Bem,
esforçar-nos-emos por amarrotá-lo. — Ao passar por Jazen, passou-lhe
amão esquerda no ombro. — Bem-vindo a Kaeleer, Senhor da Guerra.

Daemon aguardou até Jaenelle chegar à arena de treino das


mulheresantes de se dirigir ao criado. — Devo desculpar-me pelo meu
gosto enfadonho
no que respeita a vestuário? E por que raio estás aqui fora, a fazer
otrabalho de um lacaio?

— Beale pediu-me para trazer este tabuleiro. — Jazen engoliu em seco.


— Não sei o que me levou a dizer aquilo.
— Disseste aquilo que pensas — disse Lucivar, divertido. — Não
tepreocupes. Quando terminarmos, terás de trabalhar afincadamente
pararecuperares o teu aspecto imaculado.
Daemon rosnou para o irmão e olhou Jazen furiosamente.

— Eu levo isso — disse Holt, um dos lacaios que tinha trazido os outros
tabuleiros.
Jazen olhou de relance para Daemon, entregou o tabuleiro a Holt e
retirou-
se tão depressa quanto conseguiu, sem recorrer ao passo de corrida.

— Parece que está a ser ali servido o pequeno-almoço — disse Lucivarao


reparar nos vários pratos que estavam a ser postos na mesa.
Daemon respirou fundo e observou Jaenelle a executar os movimentos
de aquecimento. — Devia falar-lhe, explicar a situação de Jazen
antesque o julgue.

Lucivar olhou-o de forma estranha. — Meu velho, acabou de o fazer.


Deu-lhe as boas-vindas a Kaeleer. É tudo o que precisamos saber.

— Por aqui — indicou Marian, com um gesto amistoso para que


Wilhelmina
Benedict a acompanhasse, enquanto observava a túnica de mangas
compridas e as calças de Surreal. — O que tens vestido por baixo
datúnica?
Surreal fez um esforço para manter a voz cordial. Marian não parecia

126
ser do tipo de se interessar pela roupa interior de uma antiga
prostituta.

— Porquê?
— Lucivar irá insistir que se dispam para a lição.
— Despir? — questionou Wilhelmina. — À frente daqueles homens?
— Não queremos que os movimentos sejam restringidos pela roupa
— disse Marian, amavelmente. — E a seguir vão querer vestir uma peça
deroupa que esteja seca.
— Suponho que vá transpirar — disse Surreal. Olhou de soslaio
paraWilhelmina, perguntando-se se o exercício seria uma boa ideia. A
jovemmulher parecia tão pálida como água e tão assustada que parecia
prestes aquebrar-se.
— Julgo que não irá esforçar os principiantes, mas tu… — Os
olhosdourados de Marian saltitaram para as orelhas pontiagudas de
Surreal. —
És Dea al Mon. É capaz de puxar mais por ti, só para ficar inteirado do
queés capaz.
— Sorte a minha — murmurou Surreal entre dentes, enquanto
atravessavam
o relvado na direcção das outras mulheres que já se
encontravamreunidas na arena de treino.
Marian sorriu. — A minha primeira arma foi a frigideira.

— Parece perigoso — disse Surreal, devolvendo o sorriso.


— Estava a trabalhar como governanta na casa de Lucivar há
quatromeses. O sangramento da lua começara nessa manhã e não me
estava asentir bem. Em retrospectiva, compreendo agora que Lucivar
deve ter passados
os outros períodos da lua de dentes cerrados para evitar comentários.
Mas essa manhã, começou a importunar-me para abrandar e eu achei
queera uma crítica em como não conseguia fazer o meu trabalho. Atirei-
lhecom um bule. Bem, não foi exactamente dirigido a ele. Não lhe
queria acertar,
sentia-me apenas tão enfurecida que precisava de atirar com
algumacoisa. Atingiu a parede a cerca de meio metro de Lucivar.
“Olhou para o bule, apanhou-o e saiu. Podia ouvi-lo a atirá-lo e
penseique estaria a fazê-lo para não usar os punhos em mim, como
alguns machos
eyrienos o fariam.

“Voltou para dentro, a resmungar entre dentes, pegou numa das


frigideiras
e voltou a sair. Uns minutos mais tarde, arrastou-me para fora.
Disseque um bule não tinha o equilíbrio necessário, mas uma frigideira
poderia
resultar se fosse lançada adequadamente. Passei dois meses a praticar
o lançamento da frigideira antes que Lucivar me declarasse competente
deacordo com os seus critérios.
— O que é competente para Lucivar? — perguntou Surreal.
Marian já não tinha o mesmo ar divertido. — Conseguir partir
ossosnove em dez vezes.

127
Surreal ficou por um momento a olhar para Marian, boquiaberta,
paralogo começar a pensar seriamente.

Era uma excelente assassina. Até que ponto, sob a orientação de


Lucivar,
poderiam as suas competências ser aperfeiçoadas?

Ao chegarem à arena de treino, Wilhelmina ficou para trás.


Surrealempurrou-a para a frente. Um guerreiro eyrieno resmungou com
Surrealpor lhe ter dado uma cotovelada nas costelas e ela resmungou
também,
ficando satisfeita por ter sido ele a ceder.

Olhou à volta, viu Daemon e sentiu dificuldades em respirar.


Pareciatranquilo, de pé, com uma caneca de café numa mão, mas o seu
rosto possuía
aquele olhar fixo que Surreal testemunhara na Carruagem a
caminhodeste local. Não parecia tão grave como da outra vez, mas não
era nadabom.

Foi nessa altura que Lucivar começou a falar, pelo que afastou as
preocupações
com Daemon, por enquanto.

— Existem razões para que os machos eyrienos sejam guerreiros —


disse Lucivar, passando os olhos pelas mulheres enquanto caminhava
lentamente
ao longo da linha, para trás e para a frente. — Somos maiores,
maisfortes e possuímos o temperamento para matar. Vós tendes outras
forças eoutras competências. A maior parte do tempo, tudo corre bem
dessa forma.
Mas isso não significa que não sejais capazes de vos defenderdes. E
antesque me venham com tretas porque não conseguem manejar uma
arma,
recordo-vos que a maior parte de vós não tem qualquer problema em
manejar
facas de cozinha e algumas delas são tão grandes como facas de caça.
Diferem apenas no aspecto. E algumas de vós tentarão escapar aos
treinosdizendo que, independentemente do que aprender, uma mulher
não consegue
bater-se com um homem. Certo? — Olhando para a outra arena
detreino, bramiu: — GATA! Chega aqui!

Sem saber para que Lucivar haveria de querer um felino, Surreal


olhouna direcção da arena. Expirou produzindo um silvo ao ver virar-se
a mulherque falava com Karla, Morghann e Gabrielle. — Jaenelle —
sussurrou.
Voltou a concentrar-se em Daemon. Não parecia surpreendido porver
Jaenelle. Possivelmente já teriam tido oportunidade de falar. Talvez…
Não, devia ser extremamente prematuro para pensar nesses “talvez”.

As outras mulheres caminharam a passos largos para a arena de treino.


Jaenelle avançou mais devagar, com os olhos postos em Lucivar ao
mesmotempo que zurzia o bastão à volta da cintura, flagelando o ar.

Lucivar caminhou de lado até ao centro da arena, sempre de olho


emJaenelle. — Anda brincar comigo, Gata — disse, olhando-a de modo
arrogante.

Jaenelle rosnou e começou a andar à volta.

128
— Hallevar — disse Lucivar, ao mesmo tempo que começava também
a andar à volta. — Começa a contar o tempo.
Surreal sentiu Falonar, que estava a seu lado, a ficar tenso.

— O que significa? — perguntou, dando-lhe uma cotovelada quandonão


respondeu.
— Dez minutos — respondeu Falonar, sinistramente. — Vai derrubá-
la muito antes disso.
Surreal lançou um olhar para Daemon e começou a transpirar. Se
talacontecesse, qual seria a reacção de Sadi? A resposta era fácil. A
questãomais complicada era saber o que poderia ser feito para impedir
que despedaçasse
Lucivar?

O primeiro embate dos bastões fez-lhe o coração saltar do peito. Depois


disso, não teve consciência de mais nada a não ser Jaenelle e Lucivar
amoverem-se graciosamente numa dança selvagem.

Os segundos transformaram-se em minutos.

— Mãe Noite — murmurou Falonar. — Está a dar-lhe água pela barba.


O peito de Lucivar brilhava com a transpiração. Surreal podia ouvir
arespiração ofegante. O seu próprio suor arrefeceu-lhe a pele ao ver o
olharferoz nos olhos de Jaenelle.

Não se apercebeu de quanto tempo tinha passado quando, depois


demeia dúzia de movimentos tão rápidos como um relâmpago, Jaenelle
perdeu
o equilíbrio por um brevíssimo instante. Lucivar fez um passo de
dançaà retaguarda, o que deu tempo para que Jaenelle se voltasse a
equilibrar,
antes de voltar a atacar.

— Poderia tê-la deitado ao chão, acabando com isto — disse Falonar,


afavelmente.
— Lucivar quer treiná-la, não quer enfurecê-la para que vá mesmoatrás
dele — respondeu Chaosti com igual afabilidade, surgindo por detrásde
Surreal.
Por fim, Hallevar gritou: — TEMPO!
Lucivar e Jaenelle andavam às voltas, davam estocadas, colidiam.

— MALDITOS SEJAM OS DOIS, EU DISSE TEMPO!


Separaram-se, afastaram-se.
Hallevar entrou de rompante na arena e retirou o bastão das mãos de
Lucivar. Olhou para Jaenelle, hesitou e recuou quando Lucivar abanou
acabeça.
— Vamos, Gata — disse Lucivar, ofegante, avançando para Jaenelle.
— Temos de andar para arrefecer.
Levantou a cabeça. Colocou os pés numa posição de combate.
Lucivar ergueu as mãos e continuou a avançar.
O olhar feroz nos olhos de Jaenelle dissipou-se. — Água.
129
— Primeiro, caminhamos — disse Lucivar, retirando-lhe o bastão das
mãos.
— Sacana — rosnou, sem convicção, caminhando a seu lado.
— Se não tornares as coisas mais difíceis, podes até tomar o pequeno-
almoço. — Lucivar entregou o bastão a Falonar quando passou por ele.
Pegou em duas toalhas que Aaron segurava, colocou uma delas ao
pescoçode Jaenelle e começou a passar a outra pelo corpo.
Olhando em redor, Surreal reparou que Khardeen também se
encontrava
na multidão, vigilante e alerta. E reparou, com um suspiro de alívio,
que Saetan falava tranquilamente com Daemon.

Voltando-se para Falonar, passou os dedos pelo bastão. — Achas


queconseguirei pelo menos metade daquela destreza com um destes? —
Esperava
um comentário depreciativo, mas como não obteve resposta, levantouos
olhos e deu com Falonar a examiná-la com seriedade.

— Se conseguires chegar a metade daquele domínio do bastão,


conseguirás
vencer qualquer macho, à excepção dos guerreiros eyrienos —
disseFalonar, pausadamente. — Ainda assim, conseguirás também
vencer metade
deles. — Olhou depois para Marian. — Estais bem, Senhora?
Marian expirou com uma tal violência que estremeceu. — Estou bem,
obrigada, Príncipe Falonar. É que… às vezes quando transmitem esta
intensidade…

Falonar fez uma vénia reveladora de respeito e afastou-se para falarcom


Hallevar.

— Estás mesmo bem? — perguntou Surreal, afastando Marian


discretamente
da multidão.
O sorriso de Marian estava ligeiramente tenso. — Lucivar fica
semprenervoso a seguir à feira de serviços e tem andado preocupado
com Daemon.

Olhando para trás, Surreal viu que Daemon se dirigia para o


Paçoacompanhado pelo Senhor Supremo. Bem, era uma preocupação a
menos
por agora.

Reparou também como Jaenelle olhava de relance para Daemon,


constantemente, enquanto Lucivar lhe enchia o prato de comida.
Sorriu.
— Normalmente consigo ajudá-lo a aliviar a tensão — prosseguiu
Marian.
A expressão constrangida indicou a Surreal qual o método usado
porMarian para lhe aliviar a tensão. Era corajosa, esta mulher, meter-se
na camacom um homem como Lucivar quando já estava com o
temperamento nofio da navalha.

— Visto que isso não pôde ser uma opção, desta vez…
Não, pensou Surreal ao mesmo tempo que Marian a olhava inquisiti130
vamente. Se Lucivar nunca sugerira uma alternativa ao coito, não seria
ela,
com toda a certeza, a fornecer as informações.

Passado um momento, Marian encolheu os ombros. — Normalmente,


quando Jaenelle é a sua parceira de treino, praticam
incessantementeaté toda a tensão ter saído pelos poros. Mas esta
manhã… O surgimentoinesperado dos familiares de Jaenelle também a
deixou no limite.

— Pois, voltar a ver a família não é motivo de celebrações.


Marian ficou tensa. — A família dela mora aqui.
— Sim — disse Surreal, decorrido um minuto, — parece que sim.
2 / Kaeleer

Wilhelmina caminhava em silêncio ao lado de Lucivar, que a


acompanhavaao quarto. Desejava que a amparasse. Quiçá parasse de
tiritar. Quiçá deixasse
de se sentir tão apavorada.

Era curioso. Ainda há escassas horas, sentia um medo terrível dele,


especialmente depois de o ter visto e a Jaenelle, a investirem um contra
ooutro com os bastões.

Logo a seguir, tentara regressar furtivamente ao Paço, antes que alguém


reparasse, pois estava certa de que o seu coração iria rebentar sealgum
daqueles guerreiros eyrienos lhe gritasse se não fizesse os exercícios
adequadamente. Contudo, Lucivar apercebera-se da sua escapadela
eagarrou-a pela parte de trás da túnica, arrastando-a até à arena de
treino.

E fora amável. Enquanto os outros eyrienos instruíam as


restantesmulheres e depois de Marian e de algumas mulheres da
assembleia teremdemonstrado os movimentos, trabalhara com ela e
com a rapariga, Jillian.
Sem pressas, paciente, com as mãos firmes ainda que brandas ao
reposicionar-
lhe o corpo, com a voz sempre calma e encorajadora.

Não esperara essa atitude de Lucivar. E não esperara que a


acompanhasse
quando foi ao encontro de Alexandra, Leland e Philip.

Devia ter dito “não” quando foi informada pelo Senhor Supremo
queestavam no Paço e que pretendiam falar-lhe. Porém, sentia-se na
obrigaçãode os ver, dado que tinham vindo de tão longe.

Ficaram furiosos quando Lucivar não permitiu a presença das Rainhas


de Província e dos acompanhantes, recusando-se ele próprio a sair.
Oh, saíra para a varanda, mas ninguém se esqueceria da sua presença.

Sentira que ficaram tão insultados quanto ela própria ficou aliviada,
mas ficaram satisfeitos por vê-la. Abraçaram-na e elogiaram-na,
dizendoque se tinha tornado numa linda mulher, e expressaram a
preocupação quesentiram e o quanto sentiram a sua falta...

131
Foi então que Alexandra disse que não se preocupasse.
Encontrariamuma forma de quebrar o contrato e de retirá-la deste local
para longe destagente. Tentou explicar que queria cumprir o contrato,
que o Senhor Supremo
e o Príncipe Yaslana não eram os monstros que Alexandra queria fazer
parecer.

Não lhe deram ouvidos, tal como não o fizeram anos atrás quando opai,
Robert Benedict tentara forçá-la, depois do desaparecimento de Jaenelle
– uns meses depois de ter contraído a enfermidade que acabaria por
olevar à morte. Fugira pois tivera receio de que um dia, ninguém iria
ouvir osseus gritos ou, acaso ouvissem, iriam ignorá-los por se estar a
tornar numacriança “difícil”, tal como Jaenelle.

Não lhe deram ouvidos. Tal era a convicção de que estavam certos,
de que sabiam o que era melhor. Até Philip. Dizia-lhe incessantemente
deque tudo ficaria bem, agora, Robert estava morto e tudo iria correr
bem.
Mas não seria assim, não podia correr tudo bem pois julgavam que
estava“danificada” de algum modo – podia ver-lhe isso nos olhos – e
tudo o quepensasse ou sentisse ou desejasse seria tingido por essa
convicção. Mas, porestimar Philip e saber que sofreria, não lhes podia
explicar a razão pela qualqueria deveras permanecer neste local.

O receio de que pudessem efectivamente levá-la depois de se ter


esforçado
tão arduamente para entrar em Kaeleer intensificou-se ao ponto
desaltar do sofá e gritar: — Não! Não quero!

Lucivar entrou na divisão e apressou-se a levá-la para fora antes


quequalquer um deles se pudesse mexer.

Contudo, não conseguia parar de tremer e o temor estava a devorá-la


viva.

A mão de Lucivar pousou sobre o ombro de Wilhelmina, fazendocom


que parasse. Logo a seguir, invocou um frasco. Fez a rolha desaparecer,
agarrou-lhe na nuca com uma mão e levou o frasco até aos seus lábios.

— Se continuas a tremer dessa forma, vais romper alguma coisa —


disse, parecendo aborrecido. — Bebe um trago disto. Vai acalmar-te os
nervos.

— Não quero tomar um calmante — disse Wilhelmina, tentando afastar-


se, ao mesmo tempo que o desespero crescia dentro de si. — Não
sepassa nada comigo.
— Nada a não ser que estás para lá de assustada e isso não é bom
parati. — Lucivar fez uma pausa, examinando-a. — Não é um calmante,
Wilhelmina
— disse, serenamente. — É a infusão caseira de Khary. Tem
qualquercoisa que te irá acalmar – e que impedirá que te estilhaces. Vá,
tapa o narize engole.
Não tapou o nariz. Engoliu o trago que Lucivar lhe ofereceu.

132
Áureo.

Fluiu pela língua como ameixas maduras e canícula de Verão, assentou


no estômago por um instante, para depois fluir para os membros.

Quando Lucivar lhe voltou a oferecer outro trago, aceitou. Aquele calor
glorioso derreteu-lhe os receios e produziu um ardor sensual no
seuinterior. Se tomasse outro trago, poderia até sentir-se destemida –
imensamente,
maravilhosamente destemida.

Mas Lucivar não lhe ofereceu mais. Não se apercebeu de que a largara,
mas percebeu que tinha a rolha numa das mãos e o frasco na outra e
queestava prestes a guardar aquele calor delicioso.

Arrancou-lhe o frasco das mãos e correu pelo corredor, virou


numaesquina e bebeu com sofreguidão o que conseguiu antes de
Lucivar a alcançar
e lhe retirar o frasco.

Wilhelmina encostou-se à parede e sorriu para Lucivar. Sentiu-se


extremamente
satisfeita por vê-lo recuar alguns passos e observá-la
circunspectamente.

Lucivar cheirou o frasco, bebeu um pequeno gole e disse: — Merda.

— Isso seria algo muito indelicado para se fazer no corredor.


Praguejou baixinho ao fechar o frasco, fazendo-o desaparecer,
emborasoasse mais a uma risada. — Anda, feiticeirazita. Vamos lá
acomodar-te
algures, enquanto ainda consegues andar.

Wilhelmina caminhou na direcção de Lucivar para lhe provar


queconseguia fazê-lo, mas o chão ficou subitamente aos altos e baixos
pelo quetropeçou, esbarrando no eyrieno.

— Sou muito corajosa — disse-lhe, encostando-se ao peito de Lucivar.


— Estás muito bêbeda.
— Nãã’ estou. — Lembrou-se de repente de algo importante que tinhaa
fazer. Era o mais importante. — Quero ver a minha irmã. — Bateu com
amão com toda a força que possuía na superfície à qual estava apoiada
pararealçar a importância da questão. Olhou para a mão dorida. — Dói.
— Teremos nódoas negras a condizer — disse Lucivar, sarcasticamente.
— ‘Tá bem.
A resmungar entre dentes, conduziu-a pelos corredores.
Wilhelmina sentia-se maravilhosamente, queria cantar, mas todas as
canções que conhecia pareciam tão... educadas. — Sabes alguma
cançãomalandreca?

— Mãe Noite — resmoneou.


— Nã’ conheço essa. Como é?
— É assim — disse, fazendo com que virasse para outro corredor.
133
Afastou-se de Lucivar e correu pelo corredor fora, batendo os braços.

— Consigo voaaaar.
Quando voltou a alcançá-la, passou-lhe um braço à volta da cintura,
bateu uma única vez na porta defronte deles e empurrou-a para dentro.

— Gata!
Os olhos de Wilhelmina encheram-se de lágrimas ao ver Jaenelle sairdo
quarto adjacente. O sorriso afectuoso de saudação era tudo o que
precisava
ver.

Libertando-se de Lucivar, deu dois passos aos tropeções e abraçou


Jaenelle.

— Tive saudades tuas — disse Wilhelmina rindo, ao mesmo tempoque


lhe corriam lágrimas pelo rosto. — Tive tantas saudades tuas. Perdoa-
me por não ter sido mais corajosa. Eras a minha irmã mais nova e
deviater tomado conta de ti. Mas foste tu que tomaste sempre conta de
mim.
— Inclinou-se para trás, segurando Jaenelle pelos ombros para se
equilibrar.
— Estás tão bonita.
— E tu estás embriagada. — Os olhos azul-safira fitaram Lucivar. —
Oque lhe fizeste?
— Tinha os nervos em franja depois do encontro com a família e
tivemedo que acabasse por se estilhaçar. Por isso, pedi a Khary a
infusão maisforte que tivesse num frasco pois julguei que não tomaria
mais do que umgole. — Lucivar retraiu-se. — Emborcou metade do
frasco – e não era umadas infusões caseiras de Khary, era a mescla que
criaste.
Jaenelle arregalou os olhos. — Deixaste que bebesse um “coveiro”?

— Não, não, não — disse Wilhelmina, abanando a cabeça. — Só se


deve beber um coveiro depois de tomar banho. — Sorriu serenamente
enquanto
Jaenelle e Lucivar olhavam pasmados para ela.
— Mãe Noite — murmurou Lucivar, entre dentes.
— Conheces esta canção? — perguntou Wilhelmina a Jaenelle.
— O que foi o teu pequeno-almoço? — questionou Jaenelle.
— Água. Estava demasiado nervosa para comer. Mas já não estou
nervosa.
Sinto-me muito corajosa e audaz.

Lucivar agarrou-lhe no braço. — E se agora te sentasses no sofá?

Atravessou a divisão a direito – mais ou menos. Quando Lucivar a


começou a ajudar a contornar a mesa, fincou pé.

— Consigo atravessar a mesa — anunciou, orgulhosa. — Apliquei-mena


minha Arte. Quero mostrar a Jaenelle que agora consigo fazê-lo.
— Queres algo realmente desafiador? — perguntou Lucivar. —
Vamoscaminhar à volta da mesa. Neste momento, isso, sim, será
impressionante.
— ‘Tá bem.
Contornar a mesa era deveras um desafio, especialmente por que Lu134
civar estava sempre a atrapalhá-la metendo-se à frente. Ao chegar,
finalmente,
ao sofá, deixou-se cair ao lado de Jaenelle. — Escovei o Dejaal eagora
gosta de mim. Se escovar o Lucivar, achas que também irá gostar
demim?

— Até prometeria gostar de ti se parasses de o pisar —


resmungouLucivar baixinho, ao mesmo tempo que a descalçava.
— Cabe à Marian escovar Lucivar — disse Jaenelle, com um ar solene.
— ‘Tá bem.
— Vou pedir que tragam café e torradas — anunciou Lucivar.
Wilhelmina ficou a olhar para Lucivar até sair da sala. — Julgava
queera assustador. Mas só é grande.

— Um-um. Deita-te por uns instantes — disse Jaenelle.


Wilhelmina obedeceu. Quando Jaenelle a tapou com um cobertor,
disse: — Todos disseram que tinhas morrido, mas quando me
comunicaram
disseram que te tínhamos “perdido”. Mas eu sempre soube que
nãoestavas perdida por que me disseste onde te encontrar. Como
poderias estarperdida se sabias onde estavas?

Olhou nos olhos azul-safira de Jaenelle. A mente por detrás


daquelesolhos era imensa. Porém, já não temia essa imensidão. —
Sempre soubesteonde estavas. Não é?

— Sim — respondeu Jaenelle baixinho. — Sempre soube.


3 / Kaeleer

Alexandra parou por um momento, respirou fundo e abriu a porta


sembater.

A mulher de cabelos louros que moía ervas com um pilão e um


almofariz
não se virou nem deu qualquer indicação de se ter apercebido
dapresença de alguém. Sobre a mesa pairava uma grande malga,
aquecidapor três labaredas de fogo encantado. Uma colher mexia
vagarosamente oconteúdo da malga.

Alexandra aguardou. Decorrido um minuto, disse numa voz angustiada:


— Podes parar de remexer nisso por um minuto e vir cumprimentara
tua avó? Afinal, passaram treze anos desde a última vez que te vi.

— Mais minuto, menos minuto, não fará qualquer diferença


numcumprimento que espera há treze anos — respondeu Jaenelle,
despejandoas ervas finamente pisadas no conteúdo fervilhante da
malga. — Contudo,
fará toda a diferença para que este tónico desenvolva a energia
adequada.
— Virou-se de enviesado, olhou brevemente para Alexandra de modo
corrosivo
e voltou a centrar a atenção na infusão.
135
Alexandra cerrou os dentes, recordando a razão pela qual achara
queesta neta requeria um trato tão díspar. Mesmo em criança, Jaenelle
exibia jáestes gestos de superioridade, insinuando que não tinha
motivos para mostrar
respeito pelos mais velhos ou para se submeter a uma Rainha.

Porquê? Pela primeira vez, Alexandra questionou-se. Sempre partirado


princípio, como todos os outros, que essas demonstrações eram
tentativas
de compensar o facto de não usar Jóias, por ser inferior às
outrasfeiticeiras da família. Contudo, talvez fossem o resultado de
mentiras cativantes
sussurradas ao ouvido de uma criança – pelo Senhor Supremo,
porexemplo –, levando-a a acreditar que era superior.

Abanou a cabeça. Era difícil acreditar que a criança que não


conseguiarealizar os exercícios mais simples de Arte pudesse ter
crescido para se tornar
numa ameaça terrível e poderosa ao Reino de Terreille, como
Dorotheadeclarava. Se tal fosse verdade, onde estava o poder? Mesmo
neste precisomomento, em que tentava detectar a força de Jaenelle,
parecia… emudeci-
da… como sempre acontecera. Distante, tal como a sensação
transmitidapor uma fêmea dos Sangue que não possuía força psíquica
suficiente parausar uma Jóia.

O que significava que Jaenelle não passava de um peão num jogo


elaborado.
O Senhor Supremo – ou, porventura, a Rainha misteriosa que reinava
nesta corte – pretendiam um testa-de-ferro para se encapotarem.

— O que estás a fazer? — perguntou Alexandra.


— Um tónico para um rapaz que está enfermo — respondeu Jaenelle,
acrescentando um líquido escuro à infusão.
— Não devia ser uma Curandeira a fazê-lo? — Fogo do Inferno, deixam-
na realmente produzir tónicos para as pessoas?
— Eu sou Curandeira — respondeu Jaenelle acerbadamente. —
Também
sou Viúva Negra e Rainha.
É claro que és. Com algum esforço, Alexandra reprimiu as palavras.
Permaneceria calma; estabeleceria uma ligação, de alguma forma, com
aneta mais nova; teria em mente que Jaenelle já passara por
experiênciasterríveis.

Nessa altura, Jaenelle terminou o tónico e voltou-se.

Ao fitar aqueles olhos azul-safira, Alexandra esqueceu-se que tinhade


manter-se calma ou que tinha de estabelecer uma ligação.
Atordoadapela… coisa… que a olhava com aqueles olhos, procurou uma
explicaçãoque se adequasse.

Ao encontrar essa explicação, sentiu vontade de chorar.

Jaenelle estava louca. Completamente louca. E o monstro que


aquidominava satisfazia essa loucura pelas suas próprias razões.
Deixava queJaenelle acreditasse que era Curandeira e Viúva Negra e
Rainha. Permitiria,

136
decerto, que administrasse aquele tónico nalgum rapazinho enfermo,
semse importar com o que aquela mistela provocaria a uma criança.

— O que te traz aqui, Alexandra?


Alexandra sentiu calafrios ao ouvir aquela voz da meia-noite, e deuum
abanão mental a si própria. A criança sempre se entregara a
dramatismos.
— Vim para vos levar, a ti e à Wilhelmina, para casa.

— Porquê? Nestes últimos trezes anos julgavas-me morta. Uma vezque


era muito mais conveniente para ti do que me teres viva, por que
nãocontinuaste a fingir que estava morta?
— Não estávamos a fingir — disse Alexandra, inflamadamente.
Aspalavras de Jaenelle magoavam, especialmente porque eram
verdadeiras.
Fora mais fácil chorar a morte de uma criança do que lidar com a
raparigacomplicada. Mas isso Alexandra nunca admitiria. —
Julgávamos-te morta,
que Sadi te tinha assassinado.
— Daemon jamais me magoaria.
Mas tu magoarias - e assim o fizeste. Era essa a mensagem subjacente
à
resposta fria e absoluta.

— Leland é tua mãe. Eu sou tua avó. Somos a tua família, Jaenelle.
Jaenelle abanou a cabeça devagar. — Este corpo pode traçar a sua
linhagem
a ti. Isso faz-nos ter relações de parentesco. Não nos torna família.

— Deslocou-se para a porta. Quando estava prestes a passar junto a


Alexandra,
deteve-se. — Chegaste a ser aprendiza numa assembleia da
Ampulhetadurante algum tempo, não foi? Antes de teres de escolher
entre tornares-teViúva Negra ou Rainha de Chaillot.
Alexandra anuiu, conjecturando sobre o propósito deste assunto.

— Aprendeste o suficiente para tecer as teias entrelaçadas mais


simples,
do tipo que absorveria um desígnio convergente, atraindo-o para ti.
Não é verdade? — Quando Alexandra voltou a acenar com a cabeça em
sinal de concordância, os olhos de Jaenelle foram invadidos de tristeza
e
de compreensão. — Quantas vezes te sentaste defronte de uma dessas
teiassonhando com algo que mantivesse Chaillot longe do avanço de
Hayll?
Alexandra não conseguia falar, mal conseguia respirar.
— Já te ocorreu que isso poderá ser a solução do enigma? Saetan
eratambém um sonhador frenético. A diferença é que quando o sonho
surgiu,
soube reconhecê-lo. — Jaenelle abriu a porta. — Volta para casa,
Alexandra.
Aqui não há nada – nem ninguém – para ti.
— Wilhelmina — murmurou Alexandra.
— Cumprirá os dezoito meses de contrato. Decorrido esse período,
procederá como entender. — O sorriso de Jaenelle tinha algo de irónico
ehorrível. — Ordens da Rainha.
Alexandra respirou fundo. — Quero ver essa Rainha.

137
— Não, não queres — respondeu Jaenelle, com demasiada delicadeza.
— Não queres apresentar-te perante o Trono das Trevas. — Fez uma
pausa.
— Agora, se me dás licença, tenho de terminar este tónico. Já ferveu
otempo suficiente.
Estava a ser dispensada. Com toda a indiferença, estava a ser
dispensada.

Alexandra saiu da oficina, aliviada por estar longe de Jaenelle.


Encontrou
um dos jardins interiores e sentou-se num banco. Talvez o sol
conseguisse
levar o frio que se infiltrara nos ossos. Talvez conseguisse acreditarque
estava a tremer de frio e não pelo facto de Jaenelle ter mencionado
algoque nunca referira a ninguém.

A sua avó paterna fora uma Viúva Negra natural. Fora por isso quese
sentira atraída pela Ampulheta. Mas, por essa altura, já os Sangue
daaristocracia em Chaillot sussurravam que as Viúvas Negras eram
mulheres“contranatura”, pelo que as outras Rainhas e os Príncipes dos
Senhores da
Guerra jamais escolheriam uma Rainha que também fosse feiticeira
dasassembleias da Ampulheta.

Por isso, abandonara a aprendizagem e, alguns anos mais tarde,


quando
a avó materna abdicou, tornara-se Rainha de Chaillot. Todavia, durante
os primeiros anos como Rainha, tecera em segredo aquelas simples
teias entrelaçadas.
Sonhara que alguém ou algo surgiria na sua vida e que a ajudariaa
combater a deterioração da sociedade de Chaillot. Na altura, julgou que
setrataria de um Consorte – um macho forte que a apoiaria e a
ajudaria. Masnenhum homem desse género surgiu na sua vida.

Foi quando a sua avó Viúva Negra estava moribunda que


Alexandrarecebeu o que passou a chamar de enigma. O teu sonho
advirá, porém senão fores prudente, permanecerás na cegueira até ser
demasiado tarde.

Por isso, aguardara. Observara. O sonho não chegara. E não iria


acreditar,
não podia acreditar, que uma criança perturbada e excêntrica
pudesseser a solução do enigma.

4 / Kaeleer
Olhando pela janela, pôs a mão dentro da camisa e sentiu o pequeno e
finofrasquinho em vidro pendurado numa corrente ao pescoço. A
SacerdotisaSuprema de Hayll garantira-lhe que tinha tecido,
juntamente com a Sacerdotisa
das Trevas, os feitiços mais potentes que conheciam para que
passassedespercebido. Até agora, tinham resultado. Ninguém detectara
que era maisdo que um mero acompanhante que Alexandra Angelline
trouxera com ela.
Era um homem insípido, praticamente invisível. Servia perfeitamente.

138
Parecera tão fácil quando lhe foi transmitida a missão. Localizar oalvo,
drogá-la para que ficasse complacente e, então, levá-la para fora doPaço
até aos homens que estariam a aguardar, logo a seguir aos limites
dapropriedade. Quando se deu conta da dimensão do local, julgou que
seriaainda mais fácil.

Contudo, apesar da dimensão, o Paço estava atulhado de


machosagressivos, desde o mais subalterno dos criados até ao Senhor
Supremo. Eparecia que as cabras nunca estavam sozinhas. Arrastara-
se pelos corredores
durante horas sem sequer um cheirinho de nenhuma delas.

Estremeceu ao recordar-se do único vislumbre da cabra de cabelos


louros.
Fora-lhe transmitido, vezes sem conta, que ela era o alvo principal,
masnão tinha qualquer intenção de se aproximar dela, pois assustava-o
e nãosabia se os feitiços subsistiriam sob aquele olhar azul-safira. Por
isso, raptaria
a outra, a irmã. Mas teria de fazê-lo em breve. Só conseguiria esquivar-
sede tantos machos ríspidos e desconfiados durante um breve período.

Talvez acompanhasse Wilhelmina durante todo o caminho de regresso


a Hayll. Assim que a tirasse dali para fora, que diferença faria se
dessempela sua falta?

E era-lhe indiferente se Alexandra ficasse para explicar o


desaparecimento
da neta - ou que fosse ela a pagar o preço que o Senhor
Supremoexigisse.

5 / Terreille

A raiva contorcia-se dentro de Dorothea como uma trepadeira


asfixiante.
O relatório sucinto estava suspenso numa mão.

— Estás angustiada, Irmã — disse Hekatah, entrando na sala a


arrastaros pés e sentando-se.
— Kartane partiu para Kaeleer. — Não conseguia inspirar ar
suficientepara conferir à voz alguma força.
— Partiu com o intuito de consultar as Curandeiras de lá, para saber
se o conseguem curar? — Hekatah ponderou por um momento
nestaspalavras. — Mas porquê agora? Poderia ter ido lá em qualquer
altura nosúltimos anos.
— Quiçá julgue possuir agora algo mais valioso com que negociar do
que marcos em ouro.
Hekatah silvou, compreendendo de imediato. — Até que ponto vão
osseus conhecimentos?
— Estava presente na minha “confissão” naquele dia, mas isso não
égrande coisa para contar.
139
— É o suficiente para deixar Saetan atento — disse Hekatah de
modoaziago. — É o suficiente para começar a indagar.
— Assim sendo, talvez devêssemos tomar providências antes
queKartane tenha possibilidades de falar com alguém fora da Pequena
Terreille
— disse Dorothea em voz baixa, quase distraidamente.
Conseguialembrar-se de algumas “providências” interessantes
relativamente a umfilho que pretendia cortejar o inimigo.
Hekatah levantou-se e caminhou de um lado para o outro durante
umminuto. — Não. Vamos ver se conseguimos usar Kartane como isco
paraatrair uma Curandeira específica à Pequena Terreille.

Dorothea resfolegou. — Acreditais realmente que Jaenelle Angellinevai


ajudar Kartane?

— Vou esta noite à Pequena Terreille e falarei com o Senhor Jorval.


Ele saberá como redigir um pedido discreto. — Chegada à porta,
Hekatahdeteve-se. — Logo que o teu Senhorzinho da Guerra regresse a
casa, talvezlhe devas dar uma lição sobre lealdade.
Dorothea aguardou que Hekatah saísse e dirigiu-se até à lareira. Deixou
cair o relatório nas labaredas e ficou a contemplar as chamas a
devorarem
o papel.

Quando terminasse a guerra que estavam a iniciar, construiria


umagrande fogueira ao ar livre e ficaria a olhar para as chamas a
devoraremaquele cadáver ressequido. E enquanto observava Hekatah a
arder, daria aoseu filho uma lição sobre lealdade.

6 / Kaeleer

— Preciso que me faças um favor — disse Karla, abruptamente, depois


dedez minutos de conversa de circunstância e de discussão sobre os
eyrienosque Lucivar trouxera.
Jaenelle ergueu os olhos do bordado em que estava a trabalhar, comum
olhar repleto de divertimento desconfiado. — Está bem.

— Quero um Anel de Honra como os que ofereceste aos rapazolas


doPrimeiro Círculo.
— Meu amor, eles usam o Anel de Honra na pila. Podes ser uma mulher
com tomates, mas não tens nada parecido a isso.
— Os machos parentes não os usam aí. Mandaste fazer pequenosAnéis
que se põem na corrente onde usam as Jóias.
— Queres então um Anel de Honra — disse Jaenelle, mantendo
o ar divertido e continuando a acrescentar pontos ao desenho do
bordado.
140
Karla acenou afirmativamente com a cabeça, de modo solene. — Para
toda a assembleia.

Jaenelle levantou os olhos, já sem o ar divertido.

Karla olhou-a directamente, reconhecendo na alteração subtil daqueles


olhos azul-safira que já não estava a falar com Jaenelle, a sua amiga
eIrmã. Estava a dirigir-se à Feiticeira, a Rainha de Ebon Askavi. A sua
Rainha.

— Tens uma razão para tal — afirmou Jaenelle com a voz da meia-
noite. Não era uma questão.
— Sim. — Quanto teria de revelar para convencer Jaenelle? E quantodo
que vira na teia entrelaçada poderia ficar por dizer?

Decorreram alguns minutos, em silêncio.

Jaenelle retomou o bordado. — Se for para ser usado num dedo, deve

estar adornado para que a finalidade real não seja óbvia — disse,
serenamente.
— Julgo que o interesse que demonstras pelo Anel reside especialmente
nos feitiços de protecção que lhe acrescentei.

— Sim — concordou Karla, em voz baixa. Os feitiços de protecção,


os escudos Ébano que Jaenelle colocara nos Anéis, eram a razão pela
qualdesejava possuir um.
— Pretendes que os Anéis estejam ligados somente entre as
constituintes
da assembleia ou que tenham também ligação aos rapazolas?
Karla hesitou. Um Anel de Honra normal permitia que a Rainha vigiasse
as emoções dos machos do seu Primeiro Círculo. Devido a um equívoco
no modo como Jaenelle fabricara o primeiro Anel de Honra – aqueleque
Lucivar ainda usava – os machos do Primeiro Círculo da Corte das
Trevas tinham, igualmente, a capacidade de sentir o estado de espírito
daRainha. Desejaria ela, ou qualquer outra das feiticeiras da
assembleia, ter delidar com machos ainda mais sensíveis aos estados de
espírito femininos doque os rapazolas costumavam ser? Esse ligeiro
distanciamento emocionalcompensaria a perda da possibilidade de
enviar um aviso que não podia,
de forma alguma, ser bloqueado? — Devem estar ligados aos machos
doPrimeiro Círculo.

— Produzirei os Anéis logo que possível — disse Jaenelle, com


serenidade.
— Obrigada, Senhora — respondeu Karla, agradecendo sobretudo à
Rainha, e não tanto à amiga.
Outro silêncio invadiu a divisão.

— Mais alguma coisa? — perguntou Jaenelle, passado algum tempo.


Karla inspirou profundamente, expirando devagar. — Não gosto dosteus
familiares.

— Ninguém aqui gosta deles — respondeu Jaenelle, embora sob o ar


141
divertido pudesse ser detectada aspereza – e mágoa. A seguir,
acrescentoucom uma extrema tranquilidade: — Saetan solicitou
formalmente o meuconsentimento para a sua execução.

— E consentiste? — perguntou Karla, com um tom de voz neutro.


Sabia a resposta de antemão. Encontrara-se na mesma situação há
cincoanos quando se tornara Rainha de Glacia. Exilara o tio, o Senhor
Hobart, aoinvés de o executar, embora tivesse fortes suspeitas de que
fora responsávelpela morte dos seus pais e dos pais de Morton.
Jaenelle, se fosse pressionada, faria a mesma escolha.

— Se te serve de consolo, gosto da tua irmã — disse Karla, vendo


queJaenelle não respondia. — Adaptar-se-á lindamente à vida em
Kaeleer seconseguir deixar de ter medo durante um período que lhe
permita respirar.
Jaenelle pareceu ligeiramente afligida. — Lucivar embebedou-a.
Ofereceu-
se para o escovar.

— Oh, Mãe Noite. — Quando as gargalhadas esmoreceram, Karla


levantou-
se do sofá, a gemer, deu as boas-noites a Jaenelle e dirigiu-se aos
seus aposentos.
Na privacidade do seu quarto, permitiu-se alguns grunhidos e gemidos
enquanto se preparava para se deitar. Independentemente do exercício
que fazia durante as estadias na sua casa, levava sempre alguns dias
aadaptar-se aos treinos a que Lucivar a sujeitava. Mas não iria perder
qualquer
oportunidade de treinar um pouco mais com Lucivar. Especialmente
agora.

Mais tarde, quando estava quase a adormecer, ocorreu-lhe que


Jaenelle,
que era uma Viúva Negra poderosíssima e muito dotada, poderia ter
assuas próprias razões para ter acedido ao favor.

7 / Kaeleer

Com um desvelo exagerado, Daemon atou o cinto do roupão. O


banhoquente tinha-lhe reconfortado os músculos tensos e exaustos,
relaxando-
os. Uma quantidade generosa de conhaque iria toldar-lhe as arestas
vivasda mente. Nenhum desses dois elementos poderia mitigar um
coração magoado
e a sangrar.

Jaenelle não o queria. Estava a tornar-se dolorosamente evidente.


Quando o foi procurar na noite anterior, pensara que ficara
satisfeitapor voltar a vê-lo, sentira-se confiante de que poderiam
recomeçar. Hojeporém, tinha-se afastado sempre que Daemon tentara
uma aproximação,
amparando-se em Lucivar ou em Chaosti ou em toda a assembleia. For

142
çara-o a perceber que lhe tinha atribuído o título de Consorte por
algumsentimento de obrigação, mas não o desejava.

Durante quanto tempo, magicava Daemon ao entrar no seu quarto,


conseguiria observá-la a interagir com os outros machos da corte ao
mesmo
tempo que o bania da sua vida? Durante quanto tempo a sua
estabilidade
mental resistiria, se, dia após dia, estando prestes a tocar-lhe, não lhe
erapermitido fazê-lo? Durante quanto tempo…

Vendo o montículo sob a ténue luz, julgou que alguém teria entrado
e largado uma coberta de pêlo branco sobre a cama, deixando-a
poralisar.

Foi nessa altura que viu uma cabeça erguer-se das almofadas e
músculos
a agitarem-se sob o pêlo branco enquanto o enorme felino mudavade
posição.

As patas da frente, pendendo para o lado da cama, flectiram-se


pararevelarem garras impressionantes. Uns olhos cinzentos fitavam-no
como seestivessem a desafiá-lo para que tentasse fazer mais do que
respirar.

Mesmo que não tivesse visto a Jóia Vermelha entre o pêlo branco,
Daemon
não teria a mínima dúvida sobre quem estava esparramado na sua
cama.

Tentamos arduamente não aborrecer Kaelas, dissera Lucivar.

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas.

Com o coração a bater desmesuradamente, Daemon recuou


cautelosamente
para a porta. Os aposentos de Saetan eram em frente. Podia…

Assim que pousou a mão na maçaneta, sentiu algo enorme a


embaterviolentamente do outro lado da porta.

Os lábios de Kaelas formaram um rosnado mudo.

Só lhe restava uma saída.

Sem desviar os olhos de Kaelas, Daemon deslocou-se de lado até à


porta que separava o seu quarto do quarto de Jaenelle. Abriu a porta
apenas
o suficiente para conseguir passar e entrou no quarto de Jaenelle,
trancoua porta com a Negra e acrescentou um escudo Negro. Se o que
Lucivarcontara sobre Kaelas conseguir atravessar qualquer escudo
correspondesseà verdade, a fechadura e o escudo seriam inúteis, mas
contribuíam para lheproporcionar uma sensação de conforto.
Enquanto recuava cada vez mais para dentro do quarto, começou
a tremer. Kaelas não era a causa, com rigor. Qualquer homem com um
instinto saudável de sobrevivência teria um receio prudente de um
gatodaquele tamanho – em especial se esse gato fosse também um
Príncipedos Senhores da Guerra de Jóia Vermelha. Mas tinha
consciência de
que, antes de ter estilhaçado a mente da primeira vez naquela noite
noAltar de Cassandra, não teria sentido este tipo de medo avassalador.

143
Teria sentido sobeja confiança em si próprio para se equiparar àquela
arrogância felina, mesmo tendo a prudência de ceder, se necessário.
Agora…

— Daemon?
Girou sobre si próprio, sentindo uma dificuldade inesperada em
respirar.
Jaenelle estava na soleira da porta que conduzia à outra zona dos seus
aposentos, com um pijama de cor azul-safira.

Ao vê-la, perdeu o equilíbrio de várias formas.

Jaenelle correu ao seu encontro e envolveu-lhe a cintura com os braços

para impedir que caísse. — O que se passa? Estás doente?

— Eu… — Transpirava devido ao esforço de tentar respirar.


— Consegues andar até à cama?
Incapaz de falar, acenou afirmativamente com a cabeça.
— Senta-te — disse Jaenelle. — Põe a cabeça entre os joelhos.
Obedeceu e, ao fazê-lo, o roupão abriu-se. Inclinou-se ainda mais,
naesperança de não estar a revelar nada que Jaenelle não desejasse
ver, umavez que estava acocorada à sua frente.

— Podes contar-me o que se passa? — perguntou Jaenelle,


enquantopassava os dedos pelo cabelo de Daemon.

Não me amas. — Na minha cama — arquejou.

Jaenelle voltou a olhar para a porta que ligava os dois quartos. Semi

cerrou os olhos. — O que está Kaelas a fazer no teu quarto?

— Está a dormir. Na minha cama.


— O quarto pertence-te. Porque não lhe disseste para sair?
Porquê? Porque não queria morrer esta noite.
Contudo, Jaenelle soou tão estupefacta que Daemon ergueu a cabeça
para olhá-la. Estava a falar seriamente. Não pensaria duas vezes e
arrastaria

trezentos e cinquenta quilos de felino rosnador para fora da cama.

Jaenelle ergueu-se. — Eu vou mand...

Daemon pegou-lhe na mão. — Não. Não há problema. Eu vou procurar


outra cama. Um sofá. Fogo do Inferno, até durmo no chão.
Aqueles olhos vetustos examinaram-no. Por um instante,
vislumbrouum brilho invulgar. — Queres dormir aqui esta noite? —
perguntou serenamente.

Sim. Não. Não queria vir ter com ela como um macho assustado
ecarente. Do mesmo modo, também não iria recusar aquele que poderia
vira ser o único convite para a cama de Jaenelle. — Sim, por favor.

Afastou os cobertores tanto quanto conseguiu com Daemon


aindasentado na cama. — Entra.

— Eu… — Sentiu o rosto a arder.


144
— Deduzo que para dormir usas o mesmo do que qualquer outro macho
deste local — disse Jaenelle sarcasticamente.

O que significava “nada”.

Caminhou até ao lado oposto do quarto, de costas educadamente


voltadas.

Daemon despiu rapidamente o roupão e enfiou-se na colossal cama.


Não admirava que o tivesse convidado a ficar. A cama era tão grande
quenunca daria conta de outro ocupante.

Decorrido um minuto, Jaenelle deitou-se, mantendo-se manifestamente


no seu lado da cama. Ao desligar o candeeiro, murmurou: — Boa-
noite, Daemon.

Durante muito tempo, ficou deitado às escuras escutando a


respiraçãode Jaenelle e certo de que, tal como ele próprio, ela não
estava a dormir.

Por fim, a cama quentinha, o murmúrio da fonte no jardim e o odordo


sabonete ou do perfume de Jaenelle embalaram-no num sono profundo.

Os sons serenos, quase furtivos, despertaram-no.

Daemon abriu os olhos.

Escuridão. Névoa rodopiante.

Apoiando-se num cotovelo, olhou ao seu redor e viu-a junto ao altar.


A juba loura que não era exactamente cabelo nem exactamente pêlo.
Asorelhas delicadamente pontiagudas. A estreita faixa de pêlo que
percorria acoluna até à cauda de corça que se movia sobre as nádegas.
As pernas humanas
que terminavam em cascos. As mãos com garras recolhidas.

Feiticeira. O mito vivo. Os sonhos tornados realidade.

Estava de volta ao local enevoado, no abismo profundo. O localonde…

Levantou-se devagar. Movendo-se cautelosamente para não a assustar,


caminhou ao redor do altar até ficar de frente para Jaenelle.

No altar encontrava-se um cálice de cristal com fendas da espessura


deum cabelo. Enquanto a observava em silêncio, Jaenelle pegou numa
lascade cristal e colocou-a no devido lugar.
No seu interior, Daemon sentiu algo a mudar. Fitando o cálice commais
atenção, percebeu que se tratava da sua própria mente estilhaçada.

Reparou noutros três diminutos fragmentos. Estendeu a mão para


umdeles e Jaenelle deu-lhe uma palmada na mão.

— Tens ideia do trabalho que tive para os encontrar? — disse-lhe


comrispidez.
Virou o cálice e voltou a colocar outra diminuta lasca no
respectivolugar.

145
A névoa rodopiava, dançava, girava.

A cair, a cair, a cair no abismo. A mente a estilhaçar-se. Acordar no


local
enevoado. Ver Jaenelle como Feiticeira pela primeira vez enquanto ela
lhe reconstruía
o cálice de cristal.

Outra lasca encontrou o seu lugar.

Uma cama estreita com tiras para prender mãos e pés – a cama de
Briarwood.
Uma cama faustosa com lençóis de seda. Uma armadilha sedutora
feita de amor e de mentiras e de verdades – uma armadilha para salvar
umacriança. O Sádico a segredar que ela morderia o isco pois ele, em
todas a suaglória sexual de macho, era o isco.

Colocou a última lasca no respectivo lugar.

A restabelecer a ligação psíquica com Saetan depois de ter


convencidoJaenelle a subir até ao nível das Jóias Vermelhas. Os dois a
forçá-la a curar o
próprio corpo dilacerado e a sangrar. O pânico de Jaenelle ao ouvir os
machosde Briarwood a combater as defesas que Surreal levantara nos
corredores quelevavam ao Altar. Cassandra a abrir o Portão entre os
Reinos e a levar Jaenelle.

O cálice de cristal ficou incandescente, aquecido pelo poder obscuroda


Feiticeira que cobriu todas as fendas, selando-as.

Agora que as fendas estavam preenchidas, as memórias voltaram


aformar-se e, por fim, lembrou-se rigorosamente do que acontecera no
Altarde Cassandra, há treze anos. Compreendeu, por fim,
rigorosamente tudo o
que fizera – e o que não fizera.

Inspirou fundo e expirou devagar.

Jaenelle olhou-o de relance, os nervos a debaterem-se com a


inteligência
feríssima e acutilante presente nos seus olhos vetustos. — Os
pedaçosque faltavam produziam pontos fracos que fragilizavam o cálice.
Agora deves
ficar bem.

— Obrigado.
— Não quero a tua gratidão — ripostou.
Observando-a, Daemon abriu as barreiras interiores o bastante
parasentir as emoções de Jaenelle. O sofrimento que detectou
surpreendeu-o.

— E o que queres, afinal? — perguntou, calmamente.


Acariciou, nervosa, o pé do cálice. Daemon conjecturou se ela se
aperceberia
de que podia sentir aquelas carícias. E conjecturou se ela faria ideiado
que aquelas carícias lhe estavam a provocar. Começou a circundar
oaltar, com os dedos a tocarem levemente na pedra.

— Nada — disse Jaenelle em voz baixa, enquanto dava meio passopara


se afastar dele. Acrescentou: — Mentiste-me. Não desejavas a Feiticeira.
Foi invadido pelo ardor da raiva, despertando o lado a que os Sangue

146
em Terreille apelidaram de Sádico. Quando a raiva arrefeceu, foi
substituídapor outro tipo de ardor.

A voz ganhou um ronronar sexual. — Amo-te. E aguardei toda umavida


para me tornar teu amante. Mas eras demasiado jovem, Senhora.

Ergueu a cabeça, com o corpo hirto de dignidade. — Não era assimtão


nova aqui, no abismo.

Lentamente, continuou a circundar o altar. — O teu corpo fora violado.


A mente estava estilhaçada. Ainda que assim não fosse, eras
extremamente
jovem – mesmo aqui no abismo.

Surgiu por detrás de Jaenelle. Passou-lhe as pontas dos dedos


levemente
pelas ancas, pela cintura. Deslocando-se para cima, abriu as mãosnas
costelas, com os dedos a tocarem ligeiramente a parte inferior dos seios.
Aproximou-se, sorrindo com um prazer selvagem enquanto a cauda
decorça que abanava nervosamente o provocava e o excitava.

Beijou-a na ligação entre o pescoço e o ombro. O primeiro beijo foileve e


casto. No segundo beijo, fez uso dos dentes para a manter imóvel
aomesmo tempo que a ponta da língua acariciava e saboreava a pele.

Podia sentir-lhe o coração aos saltos, cada palpitação ofegante.

Deixando um trilho de suaves beijos pelo pescoço acima, sussurrou-


lhe, por fim, ao ouvido: — Já não és demasiado nova.

Jaenelle soltou um guinchinho arquejante ao senti-lo roçar-se com


delicadeza
no seu corpo.

Subitamente, ficou com as mãos vazias e viu-se sozinho.

Sentiu um desejo ardente a bramir no seu interior. Virou-se num


círculo
lento, a procurar, a sondar – o predador à procura da presa.

A última coisa de que se deu conta foi a névoa a ficar cada vez
maisdensa e a rodopiar à sua volta até nada restar.

***

Debatia-se para atravessar o nevoeiro denso de sono quando sentiu


alguéma agarrar-lhe o braço e a arrastá-lo para fora da cama.
Atordoado, tentoudespertar o suficiente e magicou na razão pela qual
estava a ser arrastado eespicaçado pelo quarto.

Não teve qualquer dificuldade em acordar quando Lucivar o empurrou


para a cabina de duche, ligando a água fria com toda a potência.

Daemon tacteou até encontrar o manípulo, conseguindo desligar aágua.


Apoiando-se com uma mão na parede, tentou convencer os músculos
empedernidos pelo frio a libertarem os pulmões pelo menos durante
operíodo suficiente para respirar. Foi então que lançou um olhar furioso
aLucivar.

147
— Jaenelle acordou num estado de espírito semelhante — disse
Lucivar,
placidamente. — Deve ter sido uma noite interessante.
— Não aconteceu nada — resmungou Daemon, enquanto afastava
ocabelo para trás.
— Nada físico — disse Lucivar. — Mas eu próprio já dancei muitas
vezes com o Sádico para o reconhecer quando o vejo.
Daemon limitou-se a aguardar.
Os lábios de Lucivar formaram aquele sorriso letárgico e arrogante.

— Bem-vindo a Kaeleer, irmão — disse, afavelmente. — É bom ter-te de


volta. — Parou à porta da casa de banho. — Já te trago uma chávena de
café.
Isso e um banho quente devem ser suficientes para te despertar.
— Despertar para quê? — perguntou Daemon circunspectamente.
O sorriso de Lucivar ganhou contornos perversos. — Estás
atrasadopara o treino, meu velho. Mas, tendo em contas as
circunstâncias, concedo-
te mais quinze minutos para chegares ao campo de treinos antes de
viroutra vez à tua procura.

— E se tiveres de vir outra vez? — perguntou Daemon com


demasiadaafabilidade.
— Acredita. Se tiver de vir procurar-te novamente, não vai ser nadado
teu agrado.
Já não estava a ser do seu agrado. Mas bebericou o café que Lucivarlhe
trouxe ao mesmo tempo que a água quente lhe caía no pescoço e
nascostas – e o Sádico começou a planear a sedução serena e dócil de
JaenelleAngelline.

148
CAPÍTULO CINCO

1 / Kaeleer

Alexandra caminhava pelos corredores, com Philip a seu lado. Teria


preferido
a companhia de Leland ao invés de um macho indisponível, mas aforma
como Philip se tinha prontamente oferecido para a acompanhar
significava
que pretendia discutir algo em privado, sem tornar essa
intençãonotória.

Irritada pela sua presença, Alexandra explodiu: — Estamos aqui hámais


de uma semana e não aconteceu nada. Quanto tempo espera
aquele“acompanhante” que permaneçamos hóspedes?

Philip não precisava salientar que Osvald, o acompanhante que


Dorothea
providenciara, não tinha tido oportunidade de se aproximar querde
Wilhelmina quer de Jaenelle, sem que estivessem acompanhadas
porum macho, quanto mais aproximar-se o suficiente para as levar do
Paço.
Também não precisava salientar que seriam “hóspedes” até que o
SenhorSupremo – ou a verdadeira Rainha que governava esta corte –
decidissem
de modo diferente.

— Lucivar procurou-me esta manhã — disse Philip, abruptamente.


Detectando a tensão na voz de Philip, Alexandra olhou-o de relance,
para depois olhar de forma mais atenta para o rubor que obscurecia o
rostode Philip. Seria raiva ou vergonha? — E?

— Sugeriu vivamente que pusesses rédea curta na Vania antes que


semagoe. Parece que tem vindo a ser demasiado agressiva nas suas
tentativasde aliciar um macho de Kaeleer para a sua cama. Disse que
se está assim tãoansiosa por um macho, deveria convidar o seu
Consorte, pois é para issoque aqui se encontra.
Pessoalmente, Alexandra achava que Vania se comportava como
umacabra. Contudo, Vania era também generosa quanto à partilha dos
seusmachos com as Rainhas que a visitavam – uma generosidade que
Alexandra
nunca recusava sempre que visitava essa Província. Não mantinha um

149
amante estável na sua própria corte há mais de vinte e cinco anos –
desdeque solicitara a Philip que acompanhasse Leland na Noite da
Virgem. Nãoteria sido justo para ninguém se tivesse pedido a Philip que
lhe aquecessea cama depois disso, quando tudo o que desejava era ser
amante da sua filha,
e os outros homens que considerara, desde então, estavam muito
maisinteressados no poder que poderiam exercer como Consortes do
que emproporcionar-lhe prazer.

Mas, ao lembrar-se da generosidade de Vania – e no facto de


tambémnão ter um macho para lhe aquecer, de momento, a cama –
Alexandra ficouà defesa: — Não teria de ser “agressiva” se esta corte se
lembrasse de proporcionar
as comodidades básicas às Rainhas visitantes.

— Eu referi essa questão — disse Philip, com os dentes cerrados. —


Efoi-me comunicado que, nesta corte, não existem machos cujos
requisitosde serviços incluam esse dever.
— Custa-me a acreditar. Nem todas as Rainhas que aqui se
deslocamtêm de ter necessariamente um Consorte ou têm de se fazer
acompanharpelo seu actual Consorte. Tem de existir alguma forma… —
Calou-se, abalada
pela profundidade do insulto. — É por sermos de Terreille, não é?
— Sim — respondeu Philip categoricamente. — Disse que alguns
machos
do Segundo ou do Terceiro Círculo estariam, normalmente, dispostosa
receber uma convidada da corte, se assim lhes fosse solicitado, mas
visto
que as Rainhas terreilleanas não sabem desfrutar de um macho sem o
maltratarem,
nenhum macho de Kaeleer se ofereceria de livre vontade. — Vacilou.
— Acrescentou que não existem escravos de prazer em Kaeleer.
Aquela estalada verbal magoou tanto como um murro visto ser
umachamada de atenção para o facto de Daemon Sadi ter
desempenhado a função
de escravo de prazer na sua corte, durante alguns meses.

— Compreendo — disse, crispada.


— Apesar da raiva que demonstrou em relação a esta situação, Lucivar
parecia deveras preocupado — disse Philip, parecendo desconcertado.
— Sobretudo porque Vania concentrou os esforços no Príncipe Aaron.
— Aaron é um homem muito bem-parecido e…
— É casado.
Não havia muito a argumentar em relação a esse facto,
especialmentepor sentir as vagas de ansiedade que fluíam de Philip. A
manifesta atençãode Vania relativamente a um homem casado deveria
representar uma lembrança
vincada da sua própria vulnerabilidade.
Enquanto em Terreille cada vez mais casamentos no seio da aristocracia
estavam a ser realizados por razões sociais e políticas, a maioria dos
machos
dos Sangue ainda prezava o conceito do casamento visto ser a
únicarelação em que os géneros permaneciam em pé de igualdade,
como com

150
panheiros. Ou tão próximos do conceito de companheiros quanto
possível– ou tolerável. Significava também que a fidelidade dos machos
era um requisito
do casamento e qualquer homem que olhasse para além da camada
esposa poderia rapidamente ver-se sem casa nem família, podendo
atéperder os filhos.

— Há mais outra razão para refrear Vania — disse Philip. — Se


osmachos deste sítios ficarem ainda mais enervados…
— Bem sei — respondeu Alexandra, rispidamente. Nunca conseguiriam
levar Wilhelmina e Jaenelle do Paço se os machos se tornassem ainda
mais hostis do que já eram. — Bem sei — disse novamente, mitigando
otom de voz. — Irei falar-lhe.
— Em breve?
Não gostava de desvalorizar Philip pela ansiedade presente na sua
voz.

— Sim, Philip — disse, afavelmente. — Falarei com Vania em breve.


2 / Kaeleer

Um ajuntamento interessante, pensava Daemon ao enfiar as mãosnos


bolsos das calças, conjecturando sobre o significado que poderia tera
convocação do Guarda-Mor, do Consorte e do Primeiro
Acompanhantepelo Administrador da Corte ao seu gabinete, com o
propósito de “discutiralgo”.

Passara os últimos dois dias a estudar o livro de Protocolo que Saetan


lhe facultara e ficara surpreendido com as diferenças entre estas
regrase as que lhe foram incutidas em Terreille. Este Protocolo, muito
embora
reforçando a natureza matriarcal dos Sangue, proporcionava aos
machosalguns direitos e privilégios que contribuíam para equilibrar o
poder. Oque explicava a refrescante ausência de receio e de
subserviência nestes machos.
Compreendiam os limites que definiam o comportamento aceitávelpor
parte dos homens e, dentro desses limites, mantinham-se inabaláveis,
nunca tendo de matutar sobre o que lhes aconteceria se deixassem de
estarnas boas graças de uma determinada Senhora.

Ficara também surpreendido pela secção do Protocolo que envolviaos


machos do Primeiro Círculo uma vez que nunca vira sequer uma
brevereferência a essa parte do Protocolo em Terreille.

Deparou-se com uma frase que resumia a entrega de um macho


aoserviço formal: A vossa vontade é a minha vida. Concedia à Rainha o
direito
de fazer o que bem entendesse com um macho, incluindo matá-lo.
Issonão era novidade e, em Terreille, era um risco sério. A diferença
residia no

151
acordo tácito por parte da Rainha que, ao aceitar o macho, estava
tambéma aceitar o seu direito de opinar sobre as suas decisões e sobre
a sua vida. Se
a Rainha desse uma ordem à qual a maior parte dos machos do
PrimeiroCírculo se opusesse, poderia submeter-se à decisão deles ou
dispensá-los da
corte. Todavia, não lhes podia infligir qualquer mal por se oporem a ela.

Acaso os machos em Terreille tivessem conhecimento dessa parte


doProtocolo, poderiam ter conseguido questionar o comportamento das
Rainhas
de estimação de Dorothea, poderiam ter conseguido manter as jovense
fortes feiticeiras a salvo e íntegras, poderiam ter encontrado uma
formade combater as ameaças de escravidão e de castração que
amedrontavamterrivelmente a maior parte dos machos, impedindo-os
de desafiarem asfeiticeiras que detinham o poder.

Contudo, algo – ou alguém – havia eliminado as secções que abordavam


o poder masculino dos livros de Protocolo em Terreille e isso acontecera
há tanto tempo que já ninguém tinha memória da sua existência.

Não admirava que os terreilleanos achassem tão chocante residir


emKaeleer. E, finalmente, fazia sentido a exigência que impunha a
prestação deserviço numa corte pelos imigrantes oriundos de Terreille.
Precisavam desse
tempo para absorver as novas regras e para compreender de que
formaessas regras se aplicavam na vida quotidiana.

O que contribuía para lhe aguçar ainda mais a curiosidade em


relaçãoao dar-e-receber formal entre a Rainha e o triângulo masculino.

Partindo do princípio, como era óbvio, que a Rainha iria comparecer.

— Alguém avisou a Gata de que deveria estar presente? —


perguntouLucivar, fazendo eco do pensamento de Daemon.
Saetan olhou Lucivar de modo terno. — Eu disse-lhe. No entanto, o
Senhor Ladvarian já a tinha encurralado para discutir uns assuntos.
Julgoque virá logo que consiga dar a volta ao que quer que Ladvarian e
Kaelastenham em mente. — O olhar terno dirigiu-se agora a Daemon.

Daemon devolveu um olhar igualmente terno ao mesmo tempo que

o seu batimento cardíaco se lançava a galope – uma vez que tinha a


nítidasensação de que o que quer que Ladvarian e Kaelas quisessem
discutir comJaenelle o envolvia de alguma forma.
Tentava encontrar uma desculpa que lhe permitisse arrastar
Lucivarpara o salão principal para lhe perguntar a razão do interesse
que os parentes
demonstravam pelo Consorte, quando Jaenelle entrou de rompante
nogabinete.

— Desculpem, eu… — Deteve-se quando os viu e a sua pressa


transformou-
se, subitamente, em precaução. — É família ou corte? — perguntou
circunspectamente.
— Corte — respondeu Saetan.
152
Fascinado, Daemon observou a mudança subtil de mulher para Rainha.

— E qual é a vontade da corte? — perguntou Jaenelle, com serenidade.


Daemon chegou à conclusão de que não havia vestígio de escárnio
nasua voz, reconhecendo uma das aberturas cerimoniais das
discussões.

— Recebi uma mensagem do Senhor Jorval — explicou Saetan,


comigual serenidade, embora o seu olhar parecesse demasiadamente
inexpressivo.
— Alguém de uma prestigiada família aristocrata veio a Kaeleer
àprocura do auxílio de uma Curandeira devido a uma doença que
deixouperplexas todas as Curandeiras em Terreille. Visto que é do
conhecimentogeral que és a melhor Curandeira do Reino, solicita que te
desloques urgentemente
a Goth para lhe ofereceres a tua opinião.
Lucivar rosnou baixinho, mas agressivamente. Um gesto curto
masabrupto de Andulvar silenciou-o.

— Jorval acrescenta que, embora tenha a certeza de que a doença nãoé


contagiosa, parece afectar unicamente machos. E visto que não deseja
queos machos da tua corte sejam afligidos por qualquer mal…
Desta vez, foi Andulvar que resfolegou.
—… ofereceu-se para providenciar uma escolta que te
acompanhedurante a tua permanência na Pequena Terreille.

— NÃO! — Lucivar explodiu em movimentos, dando passadas furiosas.


— Não vais à Pequena Terreille para realizares uma cura sem
umaescolta completa constituída pelos teus próprios machos. Outra vez
não.
Nunca mais. Se essa pessoa quer ver-te tão desesperadamente, por que
razão
não se desloca aqui?
— Consigo pensar nalgumas razões — disse Jaenelle com um sentidode
humor cáustico, enquanto observava Lucivar.
O sangue de Daemon cantou quando os seus olhares se cruzaram
momentaneamente
para logo de seguida gelar quando olhou de relance paraSaetan e viu
um tremeluzir ao fundo daqueles olhos dourados. O que estaria
o Senhor Supremo a tentar ocultar por detrás daquele olhar
propositadamente
indiferente – e o que aconteceria se a trela rebentasse?

— Jorval referiu a proveniência deste indivíduo? Ou algo mais quepossa


ser útil? — perguntou Jaenelle, voltando-se para Saetan,
enquantoLucivar caminhava para trás e para a frente, praguejando.
— Somente que as raças de longevidade reduzida parecem ser as
maisafectadas — disse Saetan.
Os lábios de Jaenelle suavizaram-se deixando transparecer o vestígiode
um sorriso devaneador mas suficientemente malévolo para provocar
arrepios
em Daemon. — As raças da zona mais ocidental de Terreille? —
perguntou
com a voz da meia-noite.

153
— Não referiu, Senhora.
Jaenelle acenou com a cabeça, pensativamente. — Vou pensar no
assunto.

— Não há nada para pensar — resmoneou Lucivar. — Não vais.


Podesnão te recordar muito do que aconteceu há sete anos, mas eu
lembro-me.
Não vamos voltar a passar por isso, e tu em especial.
Daemon estudou Lucivar. Para lá da fúria existia um pavor que
tocavaas raias do pânico. Reprimiu um suspiro, descontente por se opor
à sua Rainha,
precisamente no primeiro acto oficial como Consorte. Porém, o quequer
que fosse que amedrontava Lucivar daquela forma não podia ser
algocom o qual concordasse de ânimo leve.

Reparou então no rosto de Jaenelle ao virar-se para Lucivar – e


imaginou
quantos seriam os homens que se atreveriam a fazer frente à
Feiticeiraagora que atingira a maturidade e que estava no auge do seu
poder.

Lucivar imobilizou-se a meio de uma passada ao sentir aqueles olhoscor


de safira postos em si. Estremeceu, mas o seu olhar não fugiu ao dela,
e manteve a voz firme ao dizer baixinho: — A única forma de chegares
àPequena Terreille é passares por mim.

E saiu do gabinete.
Os ombros de Jaenelle descaíram ligeiramente por um instante e
voltaram
a endireitar-se ao virar-se para Daemon. — Vai com ele, por favor.

— Porquê? — questionou Daemon, serenamente.


O olhar fixo da Rainha amoleceu ligeiramente, em desespero. — Porque
tens força suficiente para o deter e não quero que enerve os
rapazolasrelativamente a uma decisão que ainda não tomei.

Era o primeiro pedido que lhe fazia, mas não estava certo se conseguiria
executá-lo. — O que aconteceu há sete anos?

O rosto de Jaenelle ficou pálido como a morte e demorou algum tempo


a responder. — É melhor perguntares a Lucivar. Tal como ele
próprioafirmou, lembra-se melhor do que eu.

Aguardou durante algumas batidas de coração. — De quanto


tempoprecisas?
Desta vez, Jaenelle olhou para Saetan. — Uma hora seria conveniente?
— Teremos todo o gosto em nos reunirmos novamente dentro de
umahora — disse Saetan.
— Muito bem — disse Daemon. — Posso retê-lo por uma hora.
Acenando com a cabeça para confirmar que o tinha ouvido,
Jaenellesaiu celeremente da divisão.
Daemon fitou a porta fechada, plenamente consciente de que Andulvar
e Saetan aguardavam alguma indicação sobre o que iria fazer. — Vou

154
perguntar-lhe — disse calmamente. — E, se não gostar da resposta,
também
terá de passar por mim. — Para a proteger, sacrificaria toda e
qualqueroportunidade de se tornar amante de Jaenelle.

— Não vais gostar da resposta — disse Saetan, — mas não me


preocuparia
sobre uma tomada de posição. Se Jaenelle decidir deslocar-se àPequena
Terreille, terá de passar por todo o Primeiro Círculo. Como nãodeve ser
provável que se bata com a corte por causa desta cura específica,
é uma atitude respeitosa deixar que a Senhora leve o seu tempo a
chegar aessa conclusão por si própria.
— Nesse caso, se me dão licença, é melhor ir ver o que posso fazer
paracontrolar o temperamento de Lucivar.
3 / Kaeleer

«Lucivar está descontente« disse Ladvarian ao mesmo tempo que


observavaJaenelle a olhar fixamente a queda de água e os lagos de
vários níveis queconstruíra neste jardim interior, muitos anos atrás.

— Quero pensar, Senhor da Guerra — disse Jaenelle, baixinho. — A


sós.
O sceltita mexeu as patas, pensou por um momento, e fincou o pé.
«Está ríspido e perturbado e não fala com nenhum de nós.« Este odor
específico
de raiva e de medo proveniente de Lucivar só se sentia quandoJaenelle
ou Marian faziam algo para perturbar o eyrieno. Uma vez que Marian
nada fizera de inusitado – já conferira – significava que Jaenelle era
aresponsável. Ou que estaria prestes a fazer algo.

Os lábios afastaram-se num rosnado mudo. «Jaenelle.«

Ao virar-se para o encarar, Ladvarian viu que segurava uma


grandeampulheta em madeira escura. Sem proferir uma palavra, virou-
a, pousou-
a na borda em pedra do lago mais baixo e caminhou até à
extremidadeoposta do jardim.

Ladvarian rosnou baixinho para a ampulheta.

Os parentes tinham dificuldades em perceber a forma como os


humanos
dividiam o dia nestas pequenas parcelas a que chamavam horas
eminutos. Tinham compreendido com relativa facilidade que, por vezes,
asfêmeas humanas queriam ficar sozinhas, embora, durante algum
tempo,
continuassem a regressar cedo demais, resultando em repreensões. Por
isso
o Senhor Supremo e a Senhora tinham inventado estas ampulhetas de
fácilcompreensão. Se a areia tivesse passado na totalidade para a parte
de baixo,
a fêmea estava novamente disposta a brincar. Se tal não fosse o caso, o
parente
ia-se embora sem a perturbar.
155
Jaenelle dispunha de dois conjuntos de ampulhetas. Cada conjunto
tinha
uma ampulheta dimensionada para uma hora, meia hora e um
quartode hora. Jaenelle usava o conjunto em madeira clara como um
pedido parafruir de algum tempo a sós, mas podia ser interrompida se
fosse necessário.
A Feiticeira, a Rainha, usava o conjunto em madeira escura e essas
ampulhetas
representavam uma ordem implícita.

Ladvarian saiu do jardim a saltitar, aceitando a dispensa.

Não desafiaria a Rainha, mas aprendera que, se Lucivar fosse


severamente
espicaçado, iria rebentar. Nessa altura, Ladvarian e os outros
machosficariam a par dos projectos que a Senhora tencionava pôr em
prática.

4 / Kaeleer

Por meio da Arte, qualquer membro dos Sangue que usasse Jóias
conseguiria
lançar um machado com precisão através de um pedaço de madeira.
Daemon chegou à conclusão que Lucivar não estava a usar mais nada
paraalém de força muscular e fúria, enquanto observava o machado a
rachar amadeira ao meio.

E isso, mais do que tudo o que observara desde a sua chegada a


Kaeleer,
mostrava-lhe quão diferente era aqui o serviço numa corte. Em
Terreille,
Lucivar teria começado uma briga com outro macho possante e a
violência
que daí resultasse teria desencadeado uma contenda violenta capaz
dedespedaçar uma corte. E ali estava ele, a descarregar a fúria na
madeira queserviria para aquecer o Paço nos dias de Inverno que se
aproximavam.

— Mandou-te aqui para me manteres peado? — disse Lucivar


comrispidez, arremessando novamente o machado.
— O que aconteceu há sete anos, Lucivar? — perguntou Daemon,
calmamente.
— O que te leva a esta oposição veemente quanto ao facto deJaenelle
efectuar uma cura na Pequena Terreille?
— Não me vais dissuadir, Bastardolas.
— Não tenho qualquer interesse em fazê-lo. Só pretendo saber a
razãopela qual estou prestes a colocar-me do lado oposto aos desejos da
minhaRainha.
O machado golpeou com força suficiente para a lâmina ficar enfiada
no tronco.

Lucivar invocou uma toalha e limpou o suor do rosto. — Sete anosatrás,


Jaenelle estava na Pequena Terreille, numa daquelas visitas que
constituíram
uma cedência ao Conselho das Trevas. Uma criança ferira-se
gravemente
e solicitaram-lhe que realizasse a cura. Quem quer que tenha armado
a jogada, fê-lo com inteligência. Os ferimentos eram bastante extensos

156
pelo que o processo da cura deixaria Jaenelle fisica e mentalmente
exausta,
mas não o suficiente que a levasse a chamar outras Curandeiras para
alémdas da Pequena Terreille. Pois se tivesse chamado Gabrielle ou
Karla para aajudar, seriam acompanhadas por um acompanhante
masculino.

“Quando terminou o tratamento, alguém lhe deu comida ou


bebidamisturada com drogas e Jaenelle estava demasiado cansada para
as detectar.
Tornaram-na obsequiosa ao ponto de fazer o que lhe mandavam – e foi-
lheordenado que assinasse um contrato de casamento.

Daemon sentiu uma corrente gelada a deslocar-se pelas veias,


adocicada
e mortífera. Não estavas presente. Não podes pensar em traição
vistoque não estavas presente. Não importava. Um Consorte nunca
passaria deuma comodidade física. Mas um marido... — E onde está
ele? — perguntoucom uma delicadeza exagerada.

Lucivar torceu a toalha. — Não sobreviveu à consumação.

— Trataste disso? Agradeço-te.


— Já estava morto quando cheguei. — Lucivar fechou os olhos e engoliu
em seco. — Fogo do Inferno, Daemon, ficou borrifado pelo quarto.
— Abriu os olhos. O desânimo aí presente provocou arrepios a Daemon.
— Para além da outra droga, deram-lhe uma dose generosa de
safframate.
O corpo de Daemon ficou completamente entorpecido por uns instantes.
Sabia muito bem o que o safframate provocava numa pessoa. —
Cuidaste
dela? — O que significava: proporcionaste-lhe o sexo de que precisava?
Não havia espaço para sentir ciúmes ou insídia, somente a esperança
desesperada
de que Lucivar tivesse cumprido o que era necessário.

Lucivar desviou o olhar. — Levei-a à caça em Askavi.


Daemon limitou-se a olhar atónito para o irmão, deixando que a
grandeza
daquelas palavras amadurecesse. — Acompanhaste-a como isco?

— O que esperavas que fizesse? — ripostou Lucivar. — Deixá-la


trancada
em Ebon Askavi, em sofrimento? O derramamento de sangue alivia
o tormento provocado pelo safframate tanto quanto o sexo. — Fez
umapausa e respirou fundo para recuperar o controlo. — Não foi fácil,
mas sobrevivemos.
E era tudo o que Lucivar tencionava contar sobre um período que
deveria
ter sido um pesadelo para ele, compreendeu Daemon.

— Desde então, regressou à Pequena Terreille por duas vezes e


sempreacompanhada por uma escolta armada, onde eu me incluía —
disse Lucivar.
— Não mais voltou a esse lugar desde que estabeleceu formalmente a
corte.
— Compreendo — disse Daemon em voz baixa. — Está quase na horade
ouvir a sua decisão. Queres ir refrescar-te?
— Para quê? — perguntou Lucivar com um sorriso desconsolado.
— Depois de a ouvir, com toda a certeza que regressarei aqui.
157
5 / Kaeleer

— Posso ajudar-vos?
Osvald, o acompanhante, cerrou os dentes e esforçou-se por sorrir ao
virar-
se para o lacaio. Fogo do Inferno, não existiria um único homem neste
maldito local que não estivesse desejoso de andar à bulha? — Parece
que virei
no sítio errado, por isso estou a apreciar os quadros nesta zona do
Paço.
— Será com grande prazer que vos indicarei o caminho de volta
aosvossos aposentos — disse Holt, com uma cortesia gélida.
Em Terreille, poderia mandar açoitar o lacaio simplesmente pela falta
desubserviência. Em Terreille, os serviçais não ostentariam as Jóias tão
manifestamente,
forçando os superiores sociais a reconhecerem-lhes a força. Estandonas
boas graças da Sacerdotisa Suprema de Hayll, mortificava-o ter de
reconhecer
um lacaio, que era também um Senhor da Guerra de Jóia Opala.

— Por aqui — disse Holt, no preciso momento em que Wilhelminasaía


do quarto.
Osvald praguejou em silêncio. Se Holt tivesse aparecido uns
minutosmais tarde, poderia ter agarrado na cabra e deixado este sítio.
Foi nesse momento que viu o enorme gato listrado a sair do quartoe a
fixar, de imediato, aqueles olhos imperturbáveis em Osvald, que
deugraças pela presença de Holt. Quando os lábios do gato começaram
a desenhar
um rosnado, não precisou de ser instigado. Cumprimentou Wilhelmina
educadamente, sentindo-se imensamente aliviado quando a
mulherdevolveu o cumprimento de forma tão automática que soou a
proximidadeinformal, o tipo de resposta automática que as outras
cabras deste local sódirigiam a machos que conheciam razoavelmente.
Com os restantes machos,
faziam sempre uma pausa brevíssima, mas que praticamente apregoava
“estranho”.

Poderia ser uma vantagem, pensava enquanto seguia Holt de voltaà ala
onde Alexandra estava hospedada, bem como todo o séquito que
aacompanhava. Não seria de estranhar que um acompanhante fosse o
portador
de um recado de uma Senhora para outra - especialmente se
julgassemque trabalhava para essa família há muitos anos.

Sim, poderia resultar maravilhosamente.

6 / Kaeleer
«Quando fazem parelha, são perigosos« Andulvar dirigiu-se a Saetan,
através
de um fio de comunicação Ébano-Acinzentado.

158
Olhando para Lucivar e Daemon, Saetan compreendeu a distinçãoque
Andulvar acabara de constatar. Todos os Príncipes dos Senhores
daGuerra são perigosos, mas quando dois homens com forças
complementares
se tornam uma equipa… «Tal como nós éramos com a idade deles«
respondeu, causticamente. «Continuamos a ser.«

«Se alguma vez nos envolvermos numa contenda, não quero ter
deenfrentar aqueles dois« disse Andulvar, ponderadamente.

Acaso tivesse a sentir uma ponta de diversão, escoou-se com


aquelaafirmação. O coração queria bradar: Nunca serão inimigos. São a
minha
prole, os meus filhos. Contudo, outra parte de Saetan – a que avaliava o
potencial
perigo de outro macho possante – não estava tão segura. Tinha a
certeza quando Lucivar ainda estava sozinho. Mas Daemon…

Lucivar suportara uma infância brutal, mas, de alguma forma, forauma


brutalidade pura. Não tinha sido enredado por uma corte até à
adolescência.
Já Daemon tinha sido criado na corte de Dorothea e absorvera as
lições distorcidas que ali aprendera, tornando-as parte de si mesmo,
usando-
as posteriormente como uma arma.

Embora pudesse lutar contra indivíduos, Lucivar conseguira abraçara


lealdade à família e à corte. Saetan tinha profundas suspeitas de que
alealdade de Daemon seria sempre superficial, de que a única lealdade
comque os restantes poderiam contar era a sua dedicação a Jaenelle. O
que significava
que Daemon tudo faria em nome dessa lealdade. O que significavaque
este filho tinha de ser tratado com imenso desvelo.

Jaenelle não estava a ajudar ao agir como um coelho perante a


raposaDaemon. Com outro homem, Saetan teria achado graça a esta
perseguição.
Assim acontecia com os rapazolas e conseguia compreender a satisfação
quesentiam face à reacção de Jaenelle a Daemon. Mas calculava que
Daemonnão se sentia minimamente divertido e magicou no que poderia
acontecerquando o temperamento do filho estoirasse – e quem sofreria
com isso.

Quando Jaenelle entrou no gabinete, Saetan pôs de lado o problemaque


ainda não tinha surgido para tratar daquele que se encontrava à porta.

— Senhor Supremo — disse Jaenelle formalmente.


— Senhora — respondeu Saetan, com igual formalidade.
Respirou fundo e virou-se para Lucivar. — Príncipe Yaslana,
comoPrimeiro Acompanhante, quero que providencies acomodações
algures aolongo da fronteira da Pequena Terreille para mim e para um
séquito limitado.
Mas que não seja uma estalagem. Uma casa privada ou um posto
devigia. Um local que garanta discrição. A escolha do Território fica ao
teucritério. De igual modo, decidirás o momento do encontro – embora
nãopossa realizar-se nos próximos três dias.

Não estava suficientemente perto de Jaenelle para sentir o odor, mas

159
podia perceber pela súbita explosão nos olhos de Daemon e pela
acutilância
nos de Lucivar que tinha iniciado o período da lua. Queria suspirar.
Fogo do Inferno, como poderia canalizar a agressividade instintiva de
Daemon
ao mesmo tempo que se debatia para controlar a sua? As
feiticeirasficavam vulneráveis durante os primeiros três dias do período
da lua vistonão puderem usar as respectivas Jóias nem realizar mais do
que Arte básicasem que isso lhes provocasse dor física. E, tratando-se
da vulnerabilidadeda sua Rainha, o temperamento de um Príncipe dos
Senhores da Guerracavalgava na orla assassina durante esses dias.

— Não tens de comunicar a ninguém os preparativos que fizeste —


prosseguiu Jaenelle. — No entanto, por uma questão de cortesia,
deverásinformar o Administrador, o Guarda-Mor e o Consorte. O
Administrador
entrará em contacto com o Senhor Jorval para confirmar o local do
encontro
na Pequena Terreille.

— Para que serve montar um lugar seguro se vais para a Pequena


Terreille?
— perguntou Lucivar e Saetan reparou que estava a manter um tomde
voz cuidadosamente respeitoso.
— Porque vou à Pequena Terreille sem ir à Pequena Terreille. Assim,
as preocupações da corte relativamente ao meu bem-estar ficarão
salvaguardadas,
permitindo-me desta forma encontrar-me com esse indivíduo.
Lucivar semicerrou os olhos, a considerar. — Podias simplesmente
recusar.

— Tenho as minhas razões para o fazer — respondeu Jaenelle com avoz


da meia-noite.
E assim, Saetan estava certo, quanto a Lucivar o assunto ficaria
encerrado.
Mas Lucivar ainda estava a estudá-la. — Se concordar, podemos
atormentar-
te durante os próximos três dias sem reagires com sete pedras namão?

Foi o suficiente para que a Rainha voltasse a ser a irmã mais nova,
balbuciante
e rezingona. — “Nós” quem? — perguntou ameaçadoramente.

— A família.
Saetan perguntou-se se mais alguém teria reparado no olhar que
Daemon
lançou ao irmão e que deveria ter deixado Lucivar a sangrar. E
perguntou-
se também se Lucivar se apercebera que, quer tenha incluído quertenha
excluído Daemon do termo “família”, não tinha caído bem ao Consorte
da Rainha.

— Papá! — exclamou Jaenelle, rodopiando para o olhar de frente.


— Criança-feiticeira? — respondeu placidamente, embora pudessesentir
as gotas de perspiração a brotarem na testa ao ver o rosto de Daemona
alterar-se para uma máscara gélida e indecifrável.
160
Jaenelle olhou-o por um momento, e voltou a rodopiar para se dirigira
Lucivar. — Dentro de limites razoáveis — retorquiu. — E sou eu
quemdecide o que é razoável.

Quando Lucivar se limitou a sorrir abertamente, saiu como um furacão


do gabinete. O enorme sorriso desvaneceu-se ao olhar para Andulvar.

— Sendo o Guarda-Mor, deveria ter-te pedido para tratares dos


preparativos.
Andulvar encolheu os ombros. — Não tenho o ego ferido, cria. É
umaRainha excelente que compreende as necessidades dos machos que
a servem.
Neste momento, mais do que eu, és tu que precisas ocupar-te com
ospreparativos. — O seu sorriso tinha contornos sarcásticos. — Porém,
senão me mantiveres informado, sentir-me-ei ultrajado.

— Se dispuseres de algum tempo, podemos dar uma olhadela ao mapa


— disse Lucivar.
— Estás a aprender, cria — disse Andulvar ao passar um braço sobre
osombros de Lucivar, levando-o para fora do gabinete. — Estás a
aprender.
Vendo que Daemon não fizera qualquer movimento para sair,
Saetaninclinou-se na secretária em madeira escura. — O que te
preocupa, Príncipe?

— Estou-me a borrifar para os laços familiares que vós e Lucivar


reclamam
ter com ela, mas eu não sou seu irmão — disse Daemon, com
demasiada
serenidade.
— Ninguém disse que o eras. O facto de ser pai adoptivo de Jaenelle e,
por acaso, seres meu filho é irrelevante. Nunca pensaste nela como
irmã eela nunca pensou em ti como irmão. Isso não mudou.
O gelo nos olhos de Daemon derreteu-se em frialdade. — Poderá
nãopensar em mim como irmão, mas também não deseja que seja outra
coisa.

Saetan pôs-se em sentido. — Isso não é verdade.

O ténue sorriso de Daemon encerrava ressentimento e pesar. —


Normalmente,
consigo seduzir uma mulher em menos de uma hora, quandome
empenho. Quando não me empenho, não demoro mais do que duas.
A maioria das vezes nem me consigo aproximar dela o suficiente para
conversar.
A capacidade reconhecida de Daemon para seduzir arrepiava Saetan.
Visto que as pessoas que relatavam não sabiam estarem a falar do seu
filho,
ouvira bastantes histórias sobre o Sádico, o que o fazia sentir-se
apreensivo.
As habilidades de alcova, tal como o homem que as empregava, eram
umafaca de dois gumes.

Se Daemon fosse impelido a usar essas habilidades prematuramente...


Saetan cruzou os braços para ocultar o ligeiro tremor nas mãos. —
Osrapazolas acham graça a esta perseguiçãozita entre ti e Jaenelle.

161
— Acham? — perguntou Daemon, com demasiada delicadeza.
— Também eu, confesso. — Ou gostaria de achar se tivesse a certeza
deque não me estrangularias antes de terminar.
Os olhos dourados de Daemon apresentavam o ar entediado e letárgico
que Saetan bem conhecia – alturas houve em que se olhou ao espelho
eviu esse mesmo olhar.

— Achas? — perguntou Daemon.


— Há dois dias, Jaenelle pediu-me a opinião sobre o vestido que
iriausar ao jantar.
— Lembro-me que era um vestido encantador.
— Fico encantado por teres apreciado. — Saetan fez uma pausa. —
Poderás também apreciar o facto de que, nos treze anos em que aqui
vive,
Jaenelle nunca demonstrou qualquer preocupação em relação ao
vestuárioao ponto de pedir a minha opinião sobre o que quer que fosse
que estivessea usar? E poderás apreciar o pormenor de que não estava
a pedir-me a opinião
como Administrador ou como pai, mas sim como homem? Admitoque,
tendo em conta o modo como aquele vestido lhe assentava, a
opiniãocomo pai teria divergido consideravelmente da opinião como
homem.

Daemon quase sorriu.

— Ela vê-te como homem, Daemon. Um homem, não um amigo macho.


Pela primeira vez na vida, está a tentar lidar com os seus próprios
desejos
carnais. Por isso, esquiva-se.
— Não é a única a esforçar-se por lidar com o assunto —
resmoneouDaemon entre dentes embora o olhar letárgico se tivesse
transformadonum vivo interesse. — Sou o Consorte. Podia ao menos…
Saetan abanou a cabeça. — Achas mesmo que Jaenelle te exigiria isso?

— Não. — Daemon passou os dedos pelo cabelo. — O que posso fazer?


— Não precisas de fazer mais nada para além do que já estás a fazer.
— Saetan ponderou por um momento. — Sabes preparar alguma
infusãopara aliviar o desconforto do período da lua?
— Sei fazer umas quantas.
Saetan sorriu. — Nesse caso, sugiro que o Consorte prepare uma
infusão
para a sua Senhora. Nem mesmo Jaenelle poderá discordar que isso
sepoderá enquadrar na categoria de “tormento razoável”.

7 / Kaeleer

Surreal parou em frente à entrada da sala de jantar e praguejou


baixinho.
Os únicos na sala eram Alexandra e o respectivo séquito.

162
Fogo do Inferno. Por que não os tinha Jaenelle deixado ficar sozinhos?
As refeições eram certamente mais descontraídas e as conversas mais
interessantes
quando Alexandra e a sua gente tomavam as refeições em separado.
Quando referira essa questão a Saetan, informara-a que a ideia partira
de Jaenelle, que permitiu que Alexandra e os seus acompanhantes
sejuntassem aos restantes para as refeições, na esperança de que
pudessemcompreender melhor Kaeleer.

A intenção pode ter sido boa, pensava Surreal furiosa ao caminhar


apassos largos para a mesa, mas a realidade revelava-se um falhanço
lastimoso.
Nem uma única pessoa daquele grupo, de Alexandra até ao
acompanhante
de categoria mais baixa, desejavam compreender o que quer quefosse
sobre os Sangue de Kaeleer. E as refeições do meio-dia eram as
pioresocasiões uma vez que Saetan estava ausente.

Ao chegar à mesa, as duas Rainhas de Província, Vania e Nyselle,


olharam-
na com um ar que aliava sobranceria afectada e aversão. Poderia ter-
sesentido pessoalmente ofendida se não soubesse que olhavam com
aquele arpara todas as feiticeiras que ali habitavam – incluindo as
Rainhas que lheseram muito superiores.

Nesse momento, Vania olhou para a porta e a expressão alterou-separa


um deleite de predador.

Olhando de relance, Surreal viu Aaron parar momentaneamente à


entrada
– e chegou à conclusão de que se assemelhava bastante a um homema
quem fora anunciada a data da execução. Calculando que Aaron não
precisava
de outra mulher a mirá-lo, voltou a atenção para a mesa.

O primeiro ponto de interesse residia na forma como este grupo


sedividira. Alexandra, Philip e Leland estavam sentados numa das
extremidades
da mesa. Nyselle encontrava-se na extremidade oposta, com o Consorte
e os acompanhantes à sua volta. O Consorte de Vania estava sentadoà
esquerda da sua Senhora, com um ar infeliz. A cadeira à direita de
Vaniaestava vazia, tal como as que se encontravam à frente dela.

O segundo ponto de interesse residia nas travessas dispostas na mesa.


O pequeno-almoço e a refeição do meio-dia eram distribuídos pelo
enorme
aparador lateral para que todos se pudessem servir e, depois, sentarem-
se conforme desejado. O jantar era a única refeição que tinha horário
marcado
e era também a única refeição servida pelos lacaios. Esta refeição do
meio-dia apresentava-se de modo familiar, como se fosse aguardado
umnúmero reduzido de pessoas.

Não tinha importância, pensava Surreal ao começar a servir-se


dastravessas mais próximas. Não tinha qualquer importância – desde
que todos
os outros estivessem a passar fome para evitarem estar na presença
dosconvidados. Porém, se descobrisse que estava a ser servido outro
almoço,

163
tranquilamente, noutro local, teria algumas coisas a dizer a alguém por
não
ser avisada.

— Posso juntar-me a ti? — perguntou Aaron baixinho ao chegar pertode


Surreal.
Estava prestes a responder com frieza, referindo as cadeiras vazias,
quando reparou no olhar perturbado de Aaron.
Como se o facto de ter reparado nele fosse sinónimo de algum tipo
depermissão, aproximou-se ainda mais de Surreal. Estava tão próximo
queSurreal podia sentir o modo como os músculos estremeciam com a
tensãooriginada pelo controlo firme de emoções fortes.

— Porque não vos sentais aqui, Aaron? — disse Vania, com um


sorrisodelico-doce, ao mesmo tempo que dava pequenas batidas na
cadeira à suadireita.
Bem, isso explicava claramente o olhar perturbado.

Durante a sua estadia no Paço, Surreal observara que os machos –


desde
o macho mais subalterno até ao Senhor Supremo – tinham ideias
bastante
específicas sobre o que era distância física aceitável e a cortesia fria
comque tratavam uma mulher quando essa distância não era
respeitada, funcionava,
normalmente, como um afastamento eficaz. Os machos do Primeiro
Círculo não só toleravam a aproximação e o contacto físico com todas
as feiticeiras
do primeiro Círculo como aceitavam de bom grado essa
intimidadeamistosa. Mas não a aceitavam de bom grado de mais
ninguém.

Considera-me uma delas, percebeu, sentindo um sobressalto aprazível


face à aceitação. Considera-me de confiança. Por isso, ao responder-lhe:

— Claro — tentou soar tão tranquilizadora quanto possível. O que,


poralgum motivo, o angustiou.
Era uma prostituta competente, pensou ao pegar no garfo e na faca
detrinchar da travessa que continha o peru assado. Uma prostituta do
melhor.
Então porque é que, de repente, se tornou impossível entender os
machos?

— Podias…
Surreal rodou a cabeça e olhou para Aaron, com a faca de trinchar
apairar sobre o peru. — Não ias sugerir que não sei manusear uma
faca, poisnão, docinho?
Aaron arregalou os olhos. — Não seria tolo ao ponto de sugerir queuma
feiticeira Dea al Mon não sabe manusear uma faca — disse, num tom
suspeitosamente submisso. — Ia pedir-te se não te importas de trinchar
umpedaço para mim?

— É claro que ias pedir — respondeu com azedume. Sentiu que algoem
Aaron se descontraiu e praguejou em silêncio sobre o malvado
comportamento
masculino. Por outro lado, divagou ao trinchar o peito de peru,
erapossível que os machos estivessem tão habituados a esta mistura
agridoce
164
na personalidade de uma feiticeira que conseguiam descontrair-se.
Podia

ser um gosto que se adquiria, como as bagas azedas.

Esse pensamento fê-la soltar um riso abafado.

Depois de pousar novamente o garfo e a faca de trinchar na travessa,


preparou-se para comer. Não se seguiu muita conversa, o que lhe
agradou

– em especial porque todos os comentários de Vania eram dirigidos a


Aaron
e as respostas que este lhe dava tornaram-se curtas e grossas.
Na tentativa de quebrar ou, pelo menos, alterar a tensão que se estavaa
avolumar a cada momento, Surreal levantou os olhos, com a intenção
de perguntar a Alexandra quando iriam deixar o Paço. Contudo, ficou
emsilêncio e deu consigo a olhar directamente para Vania. Nos olhos da
mulher
podia perceber-se um tipo sórdido de raiva focado directamente
emAaron.

Depois de brincar com a comida por uns instantes, Vania afastou


oprato e sorriu com um ar afectado de timidez. — Devo dizer, o cansaço
étanto que nem consigo comer. O Aaron foi tão estimulante esta manhã.

Foi necessário um segundo demasiado longo para Surreal compreender


o comentário.

Com um rugido de raiva, Aaron precipitou-se por cima da mesa,


agarrou
Vania pelos cabelos e puxou-a. A mão esquerda do homem agarrou
afaca de trinchar e começou a dirigi-la à garganta de Vania.

Surreal segurou o pulso esquerdo de Aaron com ambas as mãos,


puxando-
o para trás com toda a força. O homem cedeu uns escassos
centímetros,
mas de imediato os músculos recuperaram, lançando-se para afrente.

A ponta da faca golpeou o pescoço de Vania que gritou, ao mesmotempo


que o sangue começou a jorrar da ferida.

Surreal fez convergir o poder das Jóias Cinzentas para as mãos demodo
a aumentar a força, contudo, deu-se conta de um escudo impenetrável
à volta de Aaron que absorvia toda a energia.

Muito bem. Músculo contra músculo. Podia detê-lo durante os breves


segundos que os outros homens que estavam à mesa demorariam a
alcançá-
los.

Todavia, ninguém se mexeu.

Foi nessa altura que viu de relance o rosto de Aaron e soube que
nenhuma
das outras pessoas presentes naquela divisão iria acercar-se de
umPríncipe dos Senhores da Guerra com tal aspecto glacial e
implacável.

Bateu-se com mais afinco, apoiou-se onde conseguiu. Estava-se a


borrifar
se cortasse a garganta a Vania, mas não queria que Aaron
arranjasseproblemas simplesmente porque a cabra tinha ido longe
demais.

«Surreal?« chamou ansiosamente o Colmilho Cinzento.

165
«Ajuda-me!«

O lobo devia estar por perto pois entrou na sala de refeições


segundosdepois de lhe ter pedido ajuda.

«Surreal…«

«Não fiques aí especado. Faz alguma coisa!«

«Aaron é do Primeiro Círculo« ganiu o Colmilho Cinzento. «Não posso


mordê-lo.«

«Então vai buscar alguém que possa!«

O Colmilho Cinzento saiu a correr.

Se pudesse, teria usado a Arte para fazer a faca desaparecer, mas


Aarontinha estendido o maldito escudo até à arma. Não conseguia
chegar à faca,
não conseguia sequer partir-lhe o pulso para o deter.

A força com que segurava o pulso de Aaron vacilou por um instante– o


suficiente para que a faca voltasse a cortar o pescoço de Vania.

Foi nesse momento que chegou Chaosti que, com as mãos, prendeu
opulso direito de Aaron. As mãos de Lucivar sobrepuseram-se às de
Surreal,
acrescentando força e resistência.

Aaron debatia-se irreflectidamente, concentrado unicamente no


assassínio.

— Porra, Aaron — rosnou Lucivar. — Não me obrigues a partir-te


opulso.
Boa sorte, pensou Surreal amargamente, sentindo as mãos de Lucivara
apertarem as dela. Esperava que ele se lembrasse que as mãos dela
estavam
no meio antes de começar a partir ossos.

Aaron parecia estar para além da capacidade de os ouvir,


conquantoreagiu quando uma voz gélida da meia-noite pronunciou: —
Príncipe Aaron,
ao meu serviço.

Aaron começou a tremer descontroladamente. Lucivar retirou-lhe de


imediato a faca e fê-la desaparecer. Chaosti forçou a mão direita de
Aaron aabrir-se para que soltasse o cabelo de Vania.
Vania continuava a gritar – tinha estado aos gritos, apercebeu-se
Surreal,
desde o primeiro golpe.

— SILÊNCIO.
De imediato, os copos que se encontravam na mesa ficaram cobertosde
gelo. Vania olhou de relance na direcção de Jaenelle e parou de gritar.

— Príncipe Aaron — prosseguiu Jaenelle com demasiada serenidade.


— Ao meu serviço.
Titubeando, Aaron endireitou-se devagar. Chaosti e Lucivar largaram-
no e afastaram-se.
Pálido como a morte, Aaron caminhou até ao sítio onde estava Jaenelle
e caiu de joelhos.

166
— Aguarda-me no gabinete do Senhor Supremo — disse Jaenelle.
Com esforço, Aaron levantou-se e saiu da sala de refeições.
Surreal olhou para aqueles gélidos olhos azul-safira, sentiu um toque
suavíssimo de uma imensa raiva na corda bamba e começou a tremer.
As
pernas cederam. Sentou-se na mesa.
Jaenelle aproximou-se da mesa, devagar e dirigiu o olhar a Lucivar.

— Sabias o que se estava a passar.


Ofegante, Lucivar expirou e inspirou várias vezes antes de responder:
— Sabia.
— E nada fizeste.
Engoliu em seco. — Esperava que fosse resolvido sem alaridos.
Jaenelle limitou-se a fitá-lo para, depois, dizer: — Vai ter comigo ao
gabinete do Senhor Supremo dentro de trinta minutos, Príncipe
Yaslana.

— Sim, Senhora.
Os olhos azul-safira cravaram-se, de seguida, em Chaosti. — E tu irása
seguir a Lucivar.

— Com todo o prazer, Senhora — respondeu Chaosti, com a voz rouca.

Oh, duvido muito, pensou Surreal, ainda a tremer.

Foi então que Jaenelle olhou para Vania – e o gelo começou a causti

car.

— Se voltares a perturbar algum dos meus machos, física, mental


ouemocionalmente, penduro-te pelos calcanhares e esfolo-te viva.

Ninguém falou, ninguém se mexeu até Jaenelle sair da sala.

Seria capaz de o fazer? magicou Surreal. Não se apercebeu que tinha

falado em voz alta até ouvir Lucivar a emitir um som que era um
cruzamento
entre uma gargalhada e um gemido.

— No estado de espírito em que se encontra? Não só o faria como nemse


daria ao trabalho de usar uma faca.
Surreal olhou para as suas próprias mãos, pensou no assunto por
unsinstantes e, depois, perguntou-se se alguém se importaria se
vomitasse nochão.
— Surreal? — A mão de Lucivar tremia ao mesmo tempo que lhe
levantava
a cabeça.
Está borrado de medo. Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas
sejammisericordiosas.

— Surreal? Estás ferida?


A preocupação intensa presente na voz de Lucivar fê-la concentrar-se.
— Ferida? Não, acho que não...
— Tens sangue no rosto e no pescoço.
— Oh. — Sentiu o estômago a revolver-se. — Devo ter sido salpicada
167
quando… — Manter a boca fechada parecia agora uma excelente ideia.
Lucivar olhou por cima do ombro. — Falonar?

— Príncipe Yaslana — respondeu Falonar baixinho.


— O teu único dever esta tarde é tomares conta da Senhora Surreal.
— Com todo o prazer.
— A Senhora Vania precisa de uma Curandeira — disse um dos
acompanhantes,
aflito.
— Olha que merda — exclamou Surreal, sentindo-se
ligeiramenteembriagada, de repente, — estão vivos. Conseguem falar e
mexer-se. Pelaforma como estavam petrificados há uns minutos, fiquei
com dúvidas. Fiquei
mesmo.
— Cala-te, cabra — gritou um dos acompanhantes.
Lucivar, Chaosti e Falonar rosnaram para o homem.
— Sugiro que peçam ao Senhor Beale que mande vir uma Curandeirade
Halaway — disse Lucivar, friamente.
— Certamente que existe uma Curandeira no Paço — disse Alexandra,
parecendo indignada.
— A Senhora Gabrielle e a Senhora Karla são Curandeiras — respondeu
Lucivar. — Se fosse a vós, neste momento não pediria a nenhuma
dasduas.
— Também podem pedir a Jaenelle — disse Surreal com um
sorrisovirulento.

A resposta foi um silêncio aterrado.

Com dois acompanhantes a apoiarem Vania, Alexandra e o


respectivoséquito saíram apressadamente da sala. Lucivar e Chaosti
olharam Falonarseveramente antes de saírem.

Falonar aproximou-se de Surreal, com cautela. — Deve ter sido…


perturbador…
para vós. — Parecia estar prestes a morder um sapo. — Precisaisde sais
para cheirar ou algo do género?

Surreal semicerrou os olhos. — Docinho, sou uma assassina. Já fiz


coisas
muito piores ao jantar.

— Não estava a falar de… — Olhou para a mesa salpicada de sangue.


— Oh. — Pelo menos tinha esperteza suficiente para perceber que
nãotinha sido Aaron a assustá-la.
Fez uma pausa e acrescentou: — Não era minha intenção insultar-
vos.
— Não insultastes — respondeu. Era a sua vez de fazer uma pausa. —
Noutro dia qualquer, estaria disposta a ficar a par das regras para
convidarum homem a passar uma tarde suada de sexo, nem que fosse
para afastar opensamento de tudo isto por algumas horas. Mas creio
que hoje o sexo dequalquer tipo não seria uma boa ideia.

168
A surpresa e o interesse tremeluziram nos olhos de Falonar e a sua
vozencerrava pesar: — Não, acho que não seria uma boa ideia… hoje.

— Sendo assim, podíamos treinar uma rotina com os bastões. Gostava


de sair deste edifício por um bocado.
Falonar acenou pensativamente com a cabeça. — Sabeis manusearuma
faca?
Surreal sorriu. — Sei manusear uma faca. — Olhou de relance paraas
partes baixas de Falonar. — Também sei manejar lanças com
algumadestreza.

Falonar chegou a corar ligeiramente. — Arco?


Ainda a sorrir, Surreal abanou a cabeça.

— Uma nova mestria requer concentração.


— Bem como algumas mestrias antigas… se quisermos fazê-las bem.
O rubor acentuou-se e o interesse aguçou-se.
Surreal levantou-se. — Vamos lá concentrar-nos numa nova mestria.
— E discutir a possibilidade de praticar mestrias antigas?
— Oh, sem dúvida.
Amparando-se mutuamente, apressaram-se a fugir à fúria crescenteque
invadia o Paço.

8 / Kaeleer

Daemon parou momentaneamente à porta da sala de estar de Jaenelle.


Res

pirou fundo, endireitou os ombros e bateu à porta.

Não houve resposta.

Jaenelle estava lá. Podia sentir a fúria a rodopiar no quarto. E


podiasentir o frio.

Voltou a bater e entrou, ignorando o facto de não ter sido convidado.

Jaenelle percorria a sala de estar, com os braços à volta da cintura.


Olhou-o furiosa e disse rispidamente: — Vai-te embora, Daemon.

Hoje devia estar a repousar, pensava Daemon ao mesmo tempo que


oseu temperamento se avivava. Provavelmente era o que estaria a fazer
antesdaquela cena na sala de refeições.

— Visto que sou o único macho do Primeiro Círculo que não é o


receptor
do teu descontentamento, pensei vir verificar se necessitas de
algumacoisa. Já agora, porquê tudo isso? — Apesar dos esforços para
manter o tomsereno, a sua voz deixava transparecer algum nervosismo.
Plausivelmente,
sabia que devia estar agradecido por ter escapado aos açoites verbais
comque os outros foram contemplados. Ao invés, estava melindrado
pela exclusão
– até sentir a estocada certeira daquele olhar glacial de cor azul-safira.
169
— Sabes que devias ter comunicado a perseguição de Vania a Aaron?
— questionou Jaenelle com uma serenidade exagerada.
— Não, não sabia. Mas mesmo que soubesse, não teria comunicado.
— E por que raio é que não o farias? — bradou Jaenelle.
Calor. Daemon sentiu as pernas a fraquejarem ao mesmo tempo queera
invadido pelo alívio. Graças às Trevas, já não era raiva gélida mas
simira inflamada. Podia dar a volta à ira inflamada. — Porque era ela
que o estava
a perseguir. Aaron não estava a lançar engodos nem a enviar
convitesimplícitos. Era ela que estava a tentar atraí-lo para a sua cama
pois desejavaa conquista. Estava-se nas tintas para o que lhe iria
provocar.

— Exactamente.
Continuava sem compreender. Daemon passou os dedos pelo cabelo.
— Fogo do Inferno, mulher, o homem tem esposa e uma filha bebé.
Setivesse dito alguma coisa, teria Kalush realmente acreditado na sua
inocência?
— É claro que sim! — gritou Jaenelle. — Mas se achava que não
podiacontar a Kalush, podia ter-me contado, ou a Karla, ou a Gabrielle.
— E como é que isso teria ajudado? — Daemon gritou também. —
Terias
contado a Kalush e continuariam a desconfiar de algo que não
cometera,
que nem sequer queria fazer.
— Porque insistes na desconfiança? Isto…
— Não estou a insistir.
— …não tem nada a ver com desconfiança.
— Assim sendo, qual a razão para estares tão furiosa com ele? —
bramiu
Daemon.
— PORQUE MAGOOU-SE E ISSO NÃO DEVIA TER ACONTECIDO!
— Os olhos de Jaenelle ficaram subitamente repletos de lágrimas.
— Estou muito zangada com ele por se ter magoado. Achas que não
seiquão enlevado e apavorado tem andado desde que Kalush ficou
grávida? Oquanto ela e Arianna significam para ele? Quão vulnerável se
sente quandooutra mulher demonstra interesse nele? — Limpou uma
lágrima que lheescorria pelo rosto. — Mas esconderam tudo tão bem
que não conseguimos
detectar mais nada para além do nervosismo que os rapazolas
têmsentido desde que aquelas... pessoas... chegaram ao Paço. Se
tivéssemos tidoconhecimento, a assembleia teria agido precocemente.
Percebendo algo mais sob as palavras, Daemon semicerrou os
olhosdourados. — E que mais?

Jaenelle hesitou. — Alexandra é a minha avó.

Avançou para ela tão celeremente que Jaenelle deu um passo rápido
para trás e tropeçou na cauda do vestido. Agarrando-a pelos braços,
Daemon
puxou-a para junto de si. — Não vais afundar-te na culpa, Jaenelle

170
— disse, ferozmente. — Estás a ouvir-me? Não o irás fazer. É tua avó.
Uma
mulher adulta e, como tal, responsável pelas suas acções. Como
Rainha, éresponsável por controlar a sua corte. Se há alguém que
deveria dividir aculpa com Vania, esse alguém é Alexandra. Foi avisada
quanto à situação enada fez. — Quando Jaenelle começou a
argumentar, deu-lhe um safanãode tal ordem que a fez cerrar os dentes
e rosnar-lhe. — Se quiseres arcarcom a culpa e a responsabilidade por
estarem aqui, então Wilhelmina éigualmente culpada e igualmente
responsável.
Oh, a ferocidade protectora naquele olhar.

Daemon deslizou as mãos para baixo e para cima nos braços de


Jaenelle,
de modo tranquilizador. — Se uma das netas não deve ser
responsabilizada
pelas acções de Vania ou pela inacção de Alexandra, como poderás,
com toda a equidade, responsabilizar a outra?

— Porque eu sou a Rainha e uma Rainha não controla unicamente asua


corte, também a protege.
Daemon resmoneou, frustrado, e murmurou entre dentes
algumascoisas pouco lisonjeiras sobre a teimosia feminina.

— Não é teimosia quando a razão está do nosso lado — ripostou


Jaenelle.
Não iria conseguir vencer esta contenda se ela mantivesse aquela
posição,
por isso tentou deslocar-se para um terreno diferente. — Muito bem.
Devíamos ter comunicado. — Ou resolvido o assunto entre eles melhor
do
que o fizeram.

Fitou-o desconfiada. — Qual o motivo para, de repente,


concordarescomigo?

Daemon arqueou uma sobrancelha. — Julguei que preferias que


osmachos concordassem contigo — disse, placidamente. —
Continuamos adiscutir?

— Sempre que algum de vós desiste tão depressa é só porque outroestá


preparado para continuar a argumentar de outra perspectiva.
— Da maneira como falas, fazer com que o Primeiro Círculo se
assemelhe
a uma alcateia a caçar — disse Daemon, esforçando-se por suprimirum
riso abafado.
— Acho que aprenderam a táctica com os lobos — respondeu
Jaenellecom azedume.
Daemon começou a massajar-lhe o pescoço e os ombros.

Fechou os olhos. — Sabias que tu e Lucivar foram os únicos machos

humanos e vivos do Primeiro Círculo que Vania não tentou levar para
acama?

— Não se atreveria a tentar comigo — disse Daemon com


demasiadaafabilidade.
171
— E foi esperta por não o fazer com Lucivar. Quando é colocado
numasituação desse género, tende a bater primeiro e discutir depois.
— Parece-me um método dissuasor eficaz.
— Mmm. Oh, é mesmo aí.
Daemon centrou-se obsequiosamente num nó de músculo tenso.
Enquanto
acariciava e massajava, aliciou-a subtilmente a encostar-se a ele
atéJaenelle lhe envolver a cintura com os braços e pousar a cabeça nos
ombros.

— Lucivar está bastante magoado por te teres zangado tanto com ele —
disse
baixinho. — Todos os rapazolas estão magoados.
— Eu sei. — Suspirou. — Estou demasiado cansada para pensar
numatarefa para cada um deles. Parece que vou ter de dar uma topada.
— Perdão? — As mãos pararam de acariciar por um momento.
— Bato com o pé e deixo que se aflijam e que corram de um lado parao
outro ao meu serviço e assim saberão que já não estou zangada com
eles.
— Acreditarão realmente que um toque no pé é um ferimento grave?
Jaenelle resfolegou baixinho. — É claro que não. É mais um género
deritual.

— Compreendo. A Rainha não se desculpa pela disciplina aplicadamas


terá de dar um sinal claro de que terminou.
— Exactamente. Se tivesse sido só um deles, solicitaria a sua ajudapara
uma tarefa que eu própria realizaria sem dificuldades, e ele
teriacompreendido. Com tantos ao mesmo tempo, tenho de deixar que
andem
numa azáfama. — Resmoneou levemente. — Afofarão almofadas e
aconchegarão os cobertores, mesmo que eu não os queira. Obrigar-me-
ãoa dormir sestas.
— Sendo assim não é só perdão, inclui também uma pequena vingança.
— A vingança não é assim tão pequena. Normalmente, uma das
participantes
da assembleia far-me-á chegar um livro, sorrateiramente, para
quepossa ler durante as “sestas”. Um vez, o Papá veio ver como estava e
eu enfiei
o livro debaixo de uma almofada, mas não ficou completamente coberto.
Nada disse. Quando Khary e Aaron entraram, até empurrou o livro
maispara baixo da almofada para o esconder melhor. Foi então que
Saetan tevetomates para dizer que eu estava ruborizada para que eles
ainda andassemmais atarantados à minha volta.
Daemon parou por um instante, separando a distinção que
Jaenellefizera entre “Papá” e “Saetan”. — Meu amor — disse,
cautelosamente, — se
Saetan tem tomates, o Papá também os tem.
— Parece-me desrespeitoso dizer algo desse género sobre o Papá.
— Compreendo — disse Daemon num tom de voz indicativo de quenão
compreendia de todo.
172
— O Papá — explicou Jaenelle, — é charmoso e inteligente, um
companheiro
requintado.
Pensando em Saetan e Sylvia, Daemon disse sarcasticamente: —
Nãocreio que Saetan seja o companheiro requintado.
Uma longa pausa. E depois: — Dirias que a figura de Sylvia é
requintada?
Daemon mordeu a língua. Estaria a perguntar sobre Sylvia por ter
detectado
um dos seus pensamentos errantes ou por uma ligação óbvia
detópicos? E, em nome do Inferno, como poderia um Consorte
responder deforma segura a uma pergunta destas? — A figura de Sylvia
é mais requintada
do que a de Saetan — tentou ser vago – e foi nessa altura que
atirouSaetan para o fosso oral, sem hesitações. — Parecem gostar um
do outro,
mesmo que Sylvia não lhe queira emprestar aquele livro.

Quando Jaenelle ergueu a cabeça, o brilho nos seus olhos não


apresentava
qualquer frieza. — Qual livro?

— Falaste do quê?
Daemon massajou a nuca enquanto observava circunspectamente oseu
pai. Sentira-se na obrigação, de macho para macho, de advertir Saetan

– e agora desejava sinceramente não o ter feito.


Saetan olhava-o estupefacto. — Que raio te passou pela cabeça para
lhe falares sobre isso?
Oh, não. Não iria repetir nada do que o levara àquele comentário.

— Agora, Jaenelle está a sentir-se melhor.


— Tenho a certeza que sim. — Saetan passou a mão pelo rosto. — Oque
está a fazer?
— A descansar — disse Daemon. — Vou pedir ao Beale que leve
umtabuleiro para a sala de estar de Jaenelle. Jantaremos aí e
jogaremos às cartasa seguir.
O modo como os olhos de Saetan se iluminaram repentinamente
provocou
algum nervosismo em Daemon.

— Vais jogar às cartas com Jaenelle? — perguntou Saetan.


— Sim — respondeu Daemon, cautelosamente.
— Nesse caso, Príncipe, diria que compensaste e muito o facto de
teresreferido aquele livro.
9 / Kaeleer

Osvald andava pelo corredor.


Primeiro, julgou que a lascívia voraz de Vania tivesse arruinado todos os

173
planos. Contudo, depois de a cabra da Rainha pálida ter-se atirado aos
machos
da corte por esse acontecimento, afastaram-se todos para lamber
asferidas emocionais e não foram avistados durante o resto do dia.

A fúria de Jaenelle teria sido uma oferenda que lhe viera parar às
mãosse Wilhelmina Benedict estivesse no seu quarto. Mas não estava e
não faziaideia onde a procurar. Se estivesse com as outras cabras, não
a poderia abordar.
Não queria que nenhuma delas reparasse nele antes de estar prestes
adesaparecer.

Em breve, pensava enquanto regressava ao seu próprio quarto.


Embreve.

10 / Kaeleer

E é a mim que me chamam Sádico, pensava Daemon enquanto fitava o


tabuleiro
de jogos e as cartas – e esforçou-se por não rosnar de frustração.

— Estiveste quase a ganhar esta — mencionou Jaenelle, tentando


nãoparecer demasiado satisfeita ao registar a pontuação.
Daemon cerrou os dentes numa fraca imitação de um sorriso. — É a
minha vez de dar?
Anuindo, Jaenelle virou o papel ao contrário diligentemente, desenhou
uma linha vertical a dividir o papel ao meio e escreveu os nomes
deambos no topo.

Daemon pegou nas cartas e começou a baralhar.

Fogo do Inferno, não devia estar a ter tanto trabalho com um jogo
decartas. Era apenas uma variação do jogo do “peixinho” que Jaenelle
jogara
em criança. Tudo bem, eram vinte e seis variações do “peixinho”. Ainda
assim, não devia estar com tantas dificuldades para ganhar uma
partida.
Contudo, havia algo diferente neste jogo, algo que desafiava o
pensamento
racional. O pensamento masculino.

Um tabuleiro de jogos com pedras coloridas e discos de marfim


comsímbolos gravados de um dos lados. Uma mão de cartas. E a
interacçãorebuscada entre todos os elementos. Podia imaginar a
assembleia sentadaà volta da mesa, numa tarde tormentosa de inverno,
a organizar este jogo,
peça a peça, construindo uma variação a seguir à outra, adicionando
pedaços
de outros jogos das suas próprias culturas, até terem criado algo que
erauma autêntica tortura para o cérebro masculino. Desprezava em
especial ojogo do jóquer visto que o jogador que controlava o tabuleiro
podia invocaruma variação diferente quando surgisse o jóquer – o que
poderia mandaruma boa mão e um bom plano de jogo para o lixo.

Tinha de haver uma forma de tirar partido disso. Tinha de haver…

174
Continuando a baralhar as cartas, Daemon examinou o tabuleiro de
jogos minuciosamente, examinou as pedras e os discos de marfim.
Pensouna forma como cada peça podia interagir com as restantes – e
com as cartas.

Sim, isso daria resultado. Isso daria um excelente resultado.

— Que variação queres jogar? Perguntou Jaenelle ao colocar as pedrase


os discos nas posições iniciais.
Daemon sorriu da forma que costumava aterrorizar as Rainhas
deTerreille. — Variação vinte e sete.
Jaenelle franziu o sobrolho. — Daemon, a variação vinte e sete não
existe.
Deu as cartas e ronronou: — Agora existe.

11 / Kaeleer

Era tão jovem, pensava Surreal ao examinar a mãe. Lembrava-me dela


como
sendo enorme, robusta. Mas é mais pequena do que eu... e era tão
jovemquando morreu.

Titian pôs os pés na soleira da janela e abraçou os joelhos. — Aindabem


que vieste para Kaeleer.

Surreal olhou para a rua. Mas o vidro escurecido pela noite não a
deixava
ver mais nada a não ser o seu próprio reflexo – e isso fê-la pensar
nasperguntas que ficaram por responder durante tanto tempo. —
Porque nãoviemos para aqui antes? — perguntou calmamente. —
Porque não voltastea casa depois de teres fugido de Kartane? —
Hesitou. — Foi por minhacausa?

— Não — disse Titian rispidamente. — Optei por ficar contigo, Surreal.


Tive de lutar contra a rejeição instintiva do meu corpo face a uma
criança
concebida à força, e escolhi-te a ti. — Agora era Titian que hesitava. —
Naaltura, existiam outras razões para não regressar a casa. Se o tivesse
feito, atua vida teria sido mais fácil, mas…
— Mas o quê? — ripostou Surreal. — Se tivesses regressado a casa,
não terias de te ter prostituído por comida e refúgio. Se tivesses saído
deTerreille, não terias morrido tão jovem. Que razão pode existir para
contra-
balançar esses factos?
— Eu amava o meu pai — disse Titian serenamente. — E amava
osmeus irmãos. A violação é punível com a execução, Surreal. Se tivesse
regressado
a casa assim que fugi de Kartane, o meu pai e os meus irmãosteriam
ido a Hayll para o matar.
Surreal olhou-a estupefacta. — Em nome do Inferno, como contavam

175
eles passar por todos os guardas de Dorothea para chegarem a
Kartane?

— Teriam morrido — disse Titian, simplesmente. — E eu não queriaque


o meu pai e o meu irmão morressem. Consegues compreender?
— Nem por isso, visto que passei a maior parte da minha vida a
preparar-
me para o dia em que matarei Kartane. Mas se tivesse sido a tua mãe…
— Surreal tentou sorrir mas não conseguiu. — O que achas que o teu
paiteria dito em relação à escolha que fizeste?
Titian sorriu pesarosamente. — Eu sei o que disse. Esteve durante
algum
tempo no Reino das Sombras antes de regressar às Trevas. Mas
viveutodos os anos da sua vida, Surreal, e os meus irmãos criaram
filhos quenunca teriam nascido. — Fez uma pausa. — E se a minha
escolha tivessesido diferente, nunca terias estado em Chaillot há treze
anos e teríamos perdido
a melhor Rainha que os Sangue alguma vez conheceram.

— E se não tivesses ido parar a Terreille, sob o jugo de Kartane,


teriassido Rainha e Viúva Negra.
— Continuo a ser Rainha e Viúva Negra — retorquiu Titian. — Quando
Kartane me quebrou, separou-me da força que eu teria possuído,
masnão conseguiu arrancar-me aquilo que sou.
— Lamento — disse Surreal, sem saber como exprimir pesar sem
parecer
insultuosa.
— Não carregues mágoas, feiticeirazita — disse Titian afavelmente,
levantando-
se. — Carrega apenas o fardo das tuas acções e não as de outrem.
— Estendeu a mão. — Anda. Precisas de estar fresca se vais praticar
comLucivar amanhã.
Surreal levantou-se penosamente e seguiu Titian. Entre a cena
comVania ao meio-dia, o treino adicional com Falonar e ter de lidar com
o rescaldo
da fúria de Jaenelle, estava mais do que disposta a rastejar até à cama.
Tinha abraçado mais machos consternados nesse dia do que em toda a
suavida. O que lhe trouxe algo à memória. — Como é que hei-de lidar
com os
familiares machos que ganhei repentinamente?

— Tens de impor limites — respondeu Titian ao chegarem ao corredor


perto do quarto de Surreal. — És tu quem decide o que queres
quefaçam por ti e o que queres fazer sozinha. Depois de decidires,
informa-los
– com delicadeza. Estamos em Kaeleer, Surreal. Tens de lidar com os
machos…
— Titian ficou imóvel. As suas narinas dilataram-se.
— Titian? — chamou Surreal, alarmada pela terrível expressão no rosto
da mãe. — O que se passa?
— Onde está o Senhor Supremo? — rosnou Titian. Sem esperar
pelaresposta, correu até às escadas mais próximas.
Surreal seguiu-a a correr, alcançando-a no momento em que
Titianparou repentinamente em frente de uma porta.

176
Bateu com força na porta e abriu-a de par em par. — Senhor Supremo!

Ouviu-se um som abafado proveniente do quarto contíguo.

Titian abriu a porta de rompante e entrou a correr no quarto.


Surrealprecipitou-se atrás dela e parou abruptamente.

Saetan ficou petrificado no preciso momento em que estendia a


mãopara o roupão em cima da cama. Endireitou-se devagar e voltou-se
de frente
para as mulheres.

Surreal não conseguiu evitar uma olhadela rápida, profissional – e


deaprovação.

Titian não parecia ter reparado que tinha apanhado de surpresa


umhomem desnudado e, agora, irritado.

— Está um macho impuro no Paço — disse Titian bruscamente.


Saetan fitou-a por um momento. Depois, agarrou no roupão e
dissesecamente: — Onde? — e saiu porta fora, com Titian colada aos
seus calcanhares,
antes de Surreal conseguir recuperar.

Quando os alcançou, Titian farejava o corredor de um lado para ooutro,


como um cão de caça a procurar o odor enquanto Saetan procurava
com mais lentidão. Nenhum deles prestou atenção quando Surreal
chegou.

— Estava aqui — disse Titian enquanto procurava. — Estava aqui.


— Ainda conseguis senti-lo? — perguntou Saetan com uma delicadeza
exagerada.
Os ombros de Titian crisparam-se. — Não. Mas estava aqui.

— Não estou a duvidar de vós, Senhora.


— Mas vós não detectais nada.
— Não. O que só pode significar que, quem quer que criou os
feitiçospara o ocultar sabia exactamente de quem e do que o ocultar.
— Foi Hekatah — disse Titian.
Saetan aquiesceu. — Ou Dorothea. Ou ambas. Quem quer que seja,
certificaram-se de que passaria despercebido para que não existisse
qualquer
razão para lhe dar uma maior atenção. O que não conseguiram
preverfoi que uma Harpia detectasse um vestígio do seu verdadeiro odor
psíquico.
Mas porque estaria neste local? — Voltou-se para examinar as portas.
— O quarto de Surreal. E o quarto de Wilhelmina.
Surpreendida pelo seu próprio desconforto, Surreal pigarreou. —
Poderia
ser simplesmente um homem que não tenha sido informado de queme
reformei das casas da Lua Vermelha.

Saetan olhou-a de modo demorado e apreciativo e, de seguida, virou-


se para Titian, que abanou a cabeça. — Concordo — disse,
enigmaticamente.
Deu umas batidas rápidas na porta de Wilhelmina. Não obtendo

177
resposta, entrou. Saiu passado um minuto. — Está no jardim com
Dejaal.
Ele ficará com ela.

Surreal demorou um momento a ligar o nome ao jovem tigre que


viracom frequência na companhia de Wilhelmina.

— O Colmilho Cinzento vem a caminho — disse Saetan, olhando


Surreal de modo firme. — Esta noite não sairá de perto de ti.
Demorou mais outro momento a juntar as peças. Indignou-se. — Altoaí,
Senhor Supremo. Sei tomar conta de mim.

— É um Senhor da Guerra — retorquiu Saetan. — Defende e protege.


— Usa a Violácea e eu a Cinzenta. Não estais a presumir que este
outromacho usa uma Jóia mais clara do que o Colmilho Cinzento?
— Não estou a presumir nada. Defende e protege.
Furiosa, Surreal avançou a passos largos para Saetan e agarrou-lhe
oroupão com as duas mãos. — Não é forragem — rosnou. — Não está
certoque morra se eu for perfeitamente capaz de me defender.

Um divertimento mordaz invadiu lentamente os olhos de Saetan. —


Não irás magoar o seu orgulho dizendo-lhe que não é capaz de te
proteger.
Contudo, uma vez que as Rainhas partilham a tua opinião, é
considerado
admissível que facultes os escudos protectores para ti e para o proteger
aele.

— Oh. — Largando-o, Surreal tentou alisar os vincos do roupão,


provocados
pelas suas mãos. Quando reparou que Saetan estava cada vez
maisdivertido, desistiu e recuou.
— Ireis montar guarda esta noite? — perguntou Titian.
Saetan pensou por um instante para logo abanar a cabeça. — Não.
Hoje não farei nada assim tão óbvio. As Senhoras da corte estarão
protegidas.
Quanto ao resto, será tratado pela manhã. — Olhou para Surreal.

— Peço-te que permaneças no quarto esta noite ou no jardim interior


paraonde dá o teu quarto. Ninguém chegará a ti, ou a Wilhelmina,
dessa direcção.
Os instintos de Surreal aguçaram-se ao ponderar nas formas comoum
assassino poderia entrar. — Os quartos estão todos ocupados? —
perguntou
pensativamente. Entrar sorrateiramente num quarto vazio,
entrarsorrateiramente no jardim, entrar no quarto da vítima pelas
portas em vidro
que dão para o jardim…
— Dois quartos de visitas estão vazios — disse Saetan, — mas ninguém
vos alcançará pelo jardim. Kaelas ficará nesse local.
Daemon olhou para Saetan e Titian, saiu para o corredor e fechoua
porta da sala de estar de Jaenelle. — Senhora Titian — disse de modo

178
respeitoso, disfarçando a surpresa por vê-la. Sabia que era demónia-
morta,
mas não esperava vê-la no Paço – e não estava a gostar da atitude tensa
deTitian, tal como não estava a gostar da neutralidade controlada de
Saetan.

— Como Administrador da Corte, solicito formalmente que permaneças


com a Rainha esta noite — disse Saetan baixinho. — Toda a noite.
Daemon ficou tenso. Esta noite era a primeira vez desde que
Jaenelleterminara de lhe curar a mente que se mostrara disposta a
passar algumtempo com ele e esperava que, ao jogar umas cartadas, ela
se recordassede que era um amigo, e isso seria o primeiro passo em
direcção à aceitaçãode Daemon como amante. Todavia, se lhe dissesse
que ia passar a noite nacama com ela, voltaria a afastar-se dele. Será
que Saetan não compreendia?

Sim, percebeu ao examinar a neutralidade controlada, Saetan


compreendia.
Mas o Administrador da Corte, embora compreendesse a hesitaçãoe os
sentimentos do Consorte, sentia-se na obrigação de os ignorar.

— Estou a solicitar o mesmo a todos os Consortes e Primeiros


Acompanhantes
— acrescentou Saetan.
Daemon acenou afirmativamente com a cabeça, ao mesmo tempoque
considerava essa informação. Um pedido formal deste género,
nestacorte, era o mesmo do que convocar uma batalha. Todos os
Príncipes dosSenhores da Guerra do Paço estariam na orla assassina
esta noite. — Lucivar
ficará com Marian?

— Não — disse Saetan — Prothvar permanecerá com Marian e


Daemonar.
Lucivar irá… percorrer… o Paço esta noite.
— E onde estará Kaelas? — perguntou Daemon. De repente, todaaquela
força e temperamento felinos eram um consolo.
— Kaelas permanecerá no jardim. Proporciona-lhe mais flexibilidade.
— Assim sendo, desejo-vos uma boa-noite – e uma boa caçada —
acrescentou Daemon, com uma delicadeza extrema. — Senhor
Supremo.
Senhora.

— Há algum problema? — perguntou Jaenelle quando regressou à


sala de estar.
Daemon hesitou mas não conseguiu pensar noutra forma de o dizer.

— O Administrador solicitou-me formalmente que permanecesse


contigoesta noite.
O tremeluzir de pânico nos olhos de Jaenelle magoou-o, porém foi
aforma nervosa como fitou a porta da sala de jantar que o deixou
desconfiado
– especialmente quando o olhar se voltou a centrar em Daemon.

— Esse pedido foi feito a todos os Consortes e Primeiros


Acompanhantes?
— perguntou a Feiticeira com a voz da meia-noite.
— Sim, Senhora, foi.
179
Um longo silêncio. Jaenelle franziu o nariz. — Um pedido formal pare-
ce-me demasiado para obrigar os rapazolas a saltarem dos sofás esta
noite.

Daemon reprimiu um suspiro de alívio. Estava disposta a fingir queera


unicamente esse o significado do pedido. O mais provável era que
pretendesse
mais algumas horas antes de admitir que Alexandra ou alguémda sua
comitiva tivesse praticado algum acto grave relativamente ao qualtivesse
de tomar medidas.

— Queres jogar outra vez? — perguntou, sentando-se.


Semicerrou os olhos. — Quem é agora a dar?
Daemon sorriu. — Sou eu.
— Porque não o informastes acerca do macho impuro? —
perguntouTitian.
— Não posso contar com o autocontrolo de Daemon, nesta altura
— respondeu Saetan após uma longa pausa. — Um Príncipe dos
Senhoresda Guerra que está concentrado em ser aceite como Consorte
tem um temperamento
extremamente instável.
Decorrido um momento, Titian abanou a cabeça. — Mesmo que
maisninguém tenha detectado os feitiços que Dorothea e Hekatah
criaram, nãocompreendo como Jaenelle não se deu conta.

— Nem eu. Mas como disse, Dorothea e Hekatah sabiam exactamente


de quem o tinham de esconder — respondeu Saetan, sentindo os
batimentos
de coração a aumentarem até sentir cada batida como uma pancada.
— Mesmo assim, Jaenelle examina sempre atentamente as pessoas
quepretendem ficar em Kaeleer.
— Mas não teria razões para examinar com minúcia alguém que não
tivesse pretensões de ficar, especialmente se questões emocionais e
pessoaisestivessem a ser usadas como uma venda para esconder
objectivos diferentes.
Titian franziu o sobrolho. — Quem mais está no Paço?

— Os familiares de Jaenelle oriundos de Chaillot e os


respectivosacompanhantes. — Viu o seu próprio ódio reflectido no rosto
de Titian.
— E nada fizestes?
— O pedido formal que fiz foi negado — respondeu Saetan, esforçando-
se por não responder à acusação presente na voz de Titian. — Ficar-me-
á atravessada na garganta, mas acatarei a decisão. Além disso, há-de
surgiroutra oportunidade, noutro lugar, para cobrar essas dívidas —
acrescentoucompassivamente.
Titian anuiu. — Se me infiltrar nos seus quartos, quiçá consiga detectar
alguma coisa. Nessa altura, poderíamos tratar discretamente do
machoimpuro, ainda esta noite.

180
Saetan resmoneou de frustração. — À excepção da cabra da Vania,
ninguém agiu ainda de modo a justificar uma execução. — Abanou a
cabeça.
— Assegurámo-nos de que nada se irá passar esta noite. Depois do
pequeno-
almoço, falarei com Jaenelle sobre mandar aquelas... pessoas... para
longe do Paço e para fora de Kaeleer.

— Suponho que seja o melhor a fazer. — Caminharam em


silênciodurante algum tempo. — Estão cá todos os familiares de
Jaenelle?
— Menos Robert Benedict. Morreu há alguns anos – e permaneceuno
Reino das Trevas por um breve período.
Titian parou de caminhar. Saetan virou-se para a olhar de frente. Titian
levou a mão ao rosto de Saetan e acariciou-o levemente.

— E, durante esse período, teve alguma conversa em privado com


oSenhor Supremo do Inferno? — perguntou, com uma candura
malévola.
— Sim — respondeu Saetan com uma afabilidade exagerada, — teve.
181
CAPÍTULO SEIS

1 / Kaeleer

Os nervos de Daemon estavam à flor da pele quando entrou com


Jaenellena sala de refeições na manhã seguinte e os olhares
especulativos dos outros
machos do Primeiro Círculo em nada ajudavam. Não importava
quefosse o período da lua de Jaenelle e, por isso, nada mais podia ter
feito doque aquecer-lhe a cama. Sabia o que era esperado de um
Consorte e sabiaque os outros homens estavam cientes de que não
estava a cumprir os seusdeveres.

Tentou afastar esses pensamentos. Outras razões exigiam que


estivessehoje de sobreaviso.

Lucivar estava junto ao aparador, bebericando uma caneca de café,


enquanto
Khardeen e Aaron se serviam. Leland e Philip, os únicos membrosda
comitiva de Alexandra que estavam presentes, tomavam o pequeno-
almoço
numa das extremidades da mesa. Surreal e Karla estavam na
extremidade
oposta.

Jaenelle fitou de modo guloso a caneca nas mãos de Lucivar. —


Vaispartilhar?

Lucivar cerrou os dentes e sorriu. — Não.

Lançou-lhe um olhar glacial mas beijou-o no rosto.

Daemon poderia ter matado Lucivar de bom grado, por ter


recebidoaquele beijo. Fora um beijo mal-humorado e normal, mas fora
um beijo

– que era mais do que recebera de manhã. Uma vez que matar Lucivar
estava
fora de questão – pelo menos, naquele momento – observou Jaenelle
aescolher dois pedaços de pêra e uma colherada de ovos mexidos.
Ao virar-se para se afastar do aparador, Lucivar esticou o braço,
enfiouum garfo num naco de carne e deixou-o cair no prato de Jaenelle.
— Hojeprecisas de carne. Come.

Jaenelle resmoneou. Lucivar continuou a beber o café.

— Foi uma noite difícil? — perguntou Daemon baixinho a Lucivar.


182
— Já tive piores — respondeu Lucivar com um sorriso que ganhouum
ar mordaz ao olhar para Philip e Leland, subindo depois o tom de voz
o suficiente para ser ouvido. — Então e tu, meu velho? Parece que a
noitetambém foi difícil para ti.
— Foi interessante — disse Daemon, cauteloso. Não queria admitirque
tinham ficado a jogar às cartas até que, de olhos turvados, caíram
nacama para umas escassas horas de sono agitado e irregular.
Jaenelle resfolegou. — Há algo traiçoeiro nas posições da variação vinte
e sete que dão a um macho uma grande vantagem, mas não
conseguidar-lhe a volta… ainda.

Daemon reparou na raiva lívida de Philip – e reparou na forma


comoKhardeen e Aaron ficaram em sentido.

— Conheces vinte e sete variações? — perguntou Khardeen


espaçadamente.
Daemon nada disse.

— Sim, conhece — resmungou Jaenelle. — E a variação é genial.


Traiçoeira,
mas genial. — Estudou o prato de bifes, escolheu mais dois bocadose
dirigiu-se para a mesa.
Antes que Daemon conseguisse pegar num prato, Khardeen estava
aagarrar-lhe um dos braços e Aaron o outro, arrastando-o para fora da
salade refeições.

— Tomaremos o pequeno-almoço mais tarde — disse Khary ao mesmo


tempo que conduziam Daemon até à sala vazia mais próxima. —
Primeiro,
temos de ter uma conversinha.
— Não é o que pensam — disse Daemon. — Não é nada de especial.
— Nada de especial? — precipitou-se Aaron, enquanto Khary dizia:
— Se descobriste uma nova variação do “peixinho” que dá vantagem
aohomem, é teu dever como Irmão do Primeiro Círculo partilhá-la com
osrestantes antes que a assembleia descubra uma forma de lhe dar a
volta.
Ficou a olhar para eles, não sabendo se os tinha ouvido bem.
Aaron sorriu. — Ora, o que é que julgavas que os Consortes fazem à
noite?
Daemon desatou às gargalhadas.

2 / Kaeleer

Osvald bateu à porta de Wilhelmina e recuou, segurando firmemente a


caixa
em madeira entalhada com ambas as mãos.
Não fora necessário esforçar-se muito para convencer Alexandra
amanter a maior parte dos seus acompanhantes nos respectivos
aposentos.

183
Fora necessário esforçar-se mais para a convencer a mandar Leland e
Philiptomarem o pequeno-almoço para dar a ideia de que os restantes
estavamsimplesmente atrasados. Com tantos ausentes, ninguém
saberia com segurança
quem faltava até já estar bem longe do Paço.

Partindo do princípio, claro está, de que os feitiços que Dorothea e


aSacerdotisa Suprema tinham preparado para cortar uma “porta” nos
escudos
defensivos do Senhor Supremo resultariam efectivamente.

Não. Não podia duvidar. Os feitiços que tinham evitado que fosse
detectado
faziam prova suficiente de que Dorothea e a Sacerdotisa das
Trevassabiam como lidar com o canalha que governava este sítio.
Fugiria com oprémio de valor mais baixo, é certo, mas esse prémio de
menor valor, bemespremido, poderia servir como um excelente engodo
para capturar Jaenelle
Angelline.

Estava tudo no sítio certo. Os três homens que Dorothea providenciara


para o ajudar estavam à sua espera na ponte. Existia um Altar das
Trevas
junto ao Paço, mas fora avisado de que os feitiços de detecção que
envolviamo Altar alertariam de imediato o Senhor Supremo e não
conseguiria abrir oPortão a tempo de fugir. Assim sendo, levaria
Wilhelmina para Goth e aí oSenhor Jorval iria ajudá-lo a alcançar outro
dos Portões.

Ao final da tarde, estaria de volta a Terreille com o prémio e Alexandra,


juntamente com os tolos que a acompanhavam, estariam ainda a
explicar
o desaparecimento de Wilhelmina ao Senhor Supremo… ou prestes
a morrer.

A sorrir, Osvald bateu novamente à porta de Wilhelmina. Um momento


mais tarde, impaciente, bateu com mais força. Ela estava lá dentro.
Desta vez, tinha-se certificado. O que a estaria a demorar tanto para
abrir amaldita porta?

Estava tentado a usar um dos feitiços simples de coacção que Dorothea


lhe preparara, mas só dispunha de dois e não queria gastar um
paraisto. Ainda assim, cada minuto que demorasse aumentava as
hipóteses dealguém reparar em si.

Estava prestes a ceder e a desencadear um dos feitiços de


coacçãoquando a porta se abriu, por fim. — Bom-dia, Senhora
Wilhelmina. — Sorrindo,
ergueu a caixa o suficiente para lhe chamar a atenção. — A
SenhoraAlexandra pediu que vos trouxesse esta caixa.

— O que é? — perguntou Wilhelmina, não parecendo ansiosa.


— Um símbolo do seu afecto por vós – e um gesto de boa vontade.
Pensa ir-se embora em breve e sente-se desolada por achar que a
preocupação
que sente por vós tenha sido mal interpretada. Espera que, ao
aceitardesesta simples lembrança, possais recordar-vos dela com afecto
no futuro.
Wilhelmina parecia ainda desconfiada. — Porque não a trouxe ela?

184
Osvald olhou-a com um ar triste. — Receou que rejeitásseis o pedidoe
não queria enfrentar pessoalmente essa rejeição.

— Oh — disse Wilhelmina baixinho, deixando que a desconfiança


setransfigurasse lentamente em compaixão. — Não lhe guardo
ressentimentos.
O homem estendeu-lhe a caixa, quer para a aliciar quer para manter

o rosto tão afastado quanto possível. Ao abrir a tampa, um vapor de


drogassairia da caixa. Surpreendida, arquejaria, inalando a quantidade
suficienteda droga potente para a tornar obsequiosa de modo a
conseguir levá-lapara longe do quarto e do corredor antes de fazê-la
engolir a segunda dose,
em líquido.
Dentro do quarto, ouviu-se um ruído surdo no chão.
O maldito gato às riscas.
Osvald desencadeou o primeiro feitiço de coacção e formulou a or

dem. Sai para o corredor e fecha a porta. Sai para o corredor e fecha a
porta.
Sai para…

Sorriu quando Wilhelmina, parecendo ligeiramente confundida,


obedeceu.

— Foi-me solicitado que comunicasse a vossa reacção à oferenda —


disse, como se estivesse a pedir desculpas por incomodá-la com mais
estepedido.

Wilhelmina manteve-se junto à porta, com a mão ainda a segurar a


maçaneta.

Praguejando em silêncio, desencadeou o segundo feitiço de coacção.


Avança até à caixa e levanta a tampa. Avança até à caixa…

Embora parecesse que os seus músculos estavam a debater-se face


aoesforço, Wilhelmina avançou até à caixa e levantou a tampa devagar.

3 / Kaeleer

Com o Colmilho Cinzento a seu lado, Surreal vagueava à volta de um


dosjardins interiores. Os comentários enigmáticos de Jaenelle e Karla
ao pequeno-
almoço sobre uma nova variação intrigavam-na e afligiam-na.

Existiam várias variações sexuais que concediam vantagem ao macho,


por isso julgava não estarem a falar disso… infelizmente. Daemon
estava a
ficar inflamado pela sua própria energia sexual e a tensão de tentar
mantê-lacontrolada para não assustar Jaenelle começava a
transparecer. Não sabiadurante quanto tempo mais conseguiria
Daemon suportar a ternura complacente
que Jaenelle distribuía pelos outros machos do Primeiro Círculoantes
de explodir. Talvez devesse falar com o Senhor Supremo...

185
O Colmilho Cinzento rosnou. Antes de conseguir perguntar qual era

o problema, o lobo desatou a correr, dirigindo-se em linha recta para a


parede.
Ao aproximar-se, saltou e escalou pelo ar como se estivesse a
escalaruma encosta íngreme, trepou pelo telhado e desapareceu.
— Colmilho Cinzento! — gritou Surreal.
«Dejaal está a ser atacado« respondeu. «Vou em seu auxílio.«
Surreal praguejou furiosamente ao correr para a porta mais próxima.
— Surreal!
Rodopiou nos calcanhares.
Falonar dirigia-se na sua direcção a passos largos, vindo do outro lado
do jardim. — Lucivar pediu que vos procurasse uma vez que não
aparecestes
no...

— Conseguis fazer-me passar este telhado? — perguntou Surreal


comuma tal fúria na voz que fez com que Falonar parasse
repentinamente. — OColmilho Cinzento disse que o Dejaal está a ser
atacado e o filho da mãepartiu sem mim!
Nas duas passadas que levou a alcançá-la, transfigurou-se de
machoprudente em guerreiro. — Agarrai-vos a mim — ordenou.

Surreal hesitou por um instante, tentando decidir onde se


poderiaagarrar sem embaraçar as asas. Passou um braço à volta do
pescoço de Falonar
e enfiou os dedos da outra mão sob o largo cinto em couro.

Só quando sentiu as asas a abanarem Surreal conjecturou se o


eyrienoconseguiria suportar o peso adicional de outra pessoa. — Tenho
de aprender
a andar pelo ar para não ter de voltar a ser carregada por aí —
resmoneou.

— Não me importo de vos carregar — disse Falonar bruscamente,


pousando de modo não muito delicado no telhado.
Surreal cerrou os dentes. Um macho de cada vez. E era o pardo
peludoque ia ter, em primeiro lugar, o gostinho da sua fúria. — Vede-lo?
— perguntou
ao perscrutar o pátio mais abaixo.

— Não. Pode ter...


Do pátio ao lado, presenciaram uma explosão de energia das Jóias,
seguida pelo grito de uma mulher.
Falonar lançou-se do telhado com tal rapidez que Surreal rodeou
umadas pernas do eyrieno com as suas para se conseguir agarrar com
maisfirmeza. Rangeu os dentes ao sentir que o seu corpo, com um
sentido deoportunidade chocante, exprimiu a aprovação relativamente à
coxa firmedo macho entre as suas pernas, mas nada fez quanto à sua
fúria.

— Caso se magoe por não ter esperado por mim, vou-lhe dar
tantaporrada que terá de erguer a cauda para ver o mundo —
resmungou.
— Esperai aqui — disse Falonar ao observar o pátio, lá em baixo.
186
— Gostais de ter tomates? — ripostou Surreal, torcendo-se para
olharem volta. Não obstante, retirou os dedos debaixo do cinto para que
o eyrieno
não se preocupasse se ela iria cumprir a ameaça.
Recobrou o fôlego e praguejou. O jovem tigre, Dejaal, estava
estendidono pátio, imóvel. Um lacaio contorcia-se com dores. O
Colmilho Cinzentoprecipitava-se para a frente e para trás, não estando
activamente envolvidonum ataque mas mantendo a atenção do homem
que segurava firmementeWilhelmina, que também se debatia sem êxito.

Voltou a praguejar ao reconhecer o homem. Osvald. Um dos


acompanhantes
de Alexandra. Mãe Noite.

— Conseguis equilibrar-vos? — perguntou Falonar, no momento


anterior
a largá-la e a afastar-se dela.
Pelo menos perguntou, pensou Surreal ao usar a Arte para não
escorregar
pelo telhado.
O Colmilho Cinzento atacou baixo, como se tentasse incapacitar Osvald.
Surreal viu o clarão da Jóia Opala de Osvald. Enviou um escudo
Cinzento
para envolver o Colmilho Cinzento, com a rapidez necessária paraevitar
que fosse atingido por uma explosão fatal de poder, mas não foi atempo
de evitar que fosse derrubado pelo embate das forças Cinzenta eOpala.

Vendo o lobo a cair, Wilhelmina gritou e arranhou a mão que


lheprendia o braço. Osvald virou-se bruscamente e bateu-lhe com
bastanteforça para a tombar, atordoada. Depois, virou-se para atacar
de novo o Colmilho
Cinzento, que se erguera com dificuldades.

— Dizei ao lobo para recuar — disse Falonar ao invocar o arco eyrienoe


colocar uma flecha em posição.
Surreal obedeceu celeremente – e sentiu-se aliviada quando o Colmilho
Cinzento reagiu. Enquanto os uivos e rugidos dos parentes
alertavamtodos os habitantes do Paço, Surreal podia sentir a torrente
de força masculina
desenfreada que se dirigia ali, proveniente de todas as direcções.
Esentiu o poder gélido feminino na sua esteira.

Falonar apontou.

— Enfiai-a pelo cabrão — sussurrou Surreal.


— Não sabemos o que se está ali a passar — respondeu Falonar.
Ai não? pensou Surreal ferozmente. Que mais precisamos ver?
No preciso momento em que Osvald se virava para Wilhelmina, Falonar
lançou a flecha, fazendo-a trespassar o joelho esquerdo do homem.
Osvald caiu, aos gritos.
Agarrando Surreal pelo braço esquerdo, Falonar desceu-os do telhado

– um salto fracamente afrouxado pelas asas abertas.


187
— Ficai com a mulher — disse Falonar ao correr para Osvald,
tendosubstituído o arco eyrieno por um bastão laminado.
— Eu posso…
— Fazei o que vos digo.
Não era altura para discussões. Invocando a sua faca de menor
qualidade,
Surreal correu para Wilhelmina. Viu Osvald a agarrar o tornozelode
Wilhelmina com a mão esquerda e amaldiçoou a esperteza do homem.
Era possível que alguém soubesse como fazê-lo, mas enquanto
mantivesse

o contacto físico com Wilhelmina, não conseguiria lançar um escudo


protector
à volta da rapariga. Foi nesse momento que viu a luz do sol reflectidano
pequeno punhal que Osvald segurava na mão direita – e soube,
pelamescla de raiva e de triunfo no rosto do homem que o veneno aí
contidoseria rápido e letal.
Outro clarão sob os raios de sol. Ao mesmo tempo que a mão de Osvald
desenhava o arco que a levaria a trespassar a perna de Wilhelmina,
Falonar cortou os ossos do pulso como se fossem manteiga, para logo
virara lâmina do bastão e apanhar a mão decepada e a faca que ainda
segurava,
lançando-a para longe de Wilhelmina.

O bastão laminado cintilou novamente, decepando a mão que agarrava


o tornozelo de Wilhelmina.

No momento seguinte, Surreal alcançou Wilhelmina – e Lucivar


juntamente
com a maioria dos machos do Primeiro Círculo invadiram o pátio.
Assim como Karla e Gabrielle.

Assim como Alexandra e o respectivo séquito.

Não resultou como tinhas planeado, pois não? pensou Surreal ao


observar
Alexandra a percorrer o pátio com o olhar e a ficar lívida.
Fazendodesaparecer a faca, pousou uma mão nas costas de Wilhelmina
e a outrano Colmilho Cinzento que cambaleou até ela, e criou um
escudo Cinzentoà volta dos três. Talvez já não fosse necessário, mas
não havia motivo paracorrer riscos. Olhou para Falonar, que se
posicionara de modo a que, dapróxima vez, o bastão laminado cortasse
o pescoço do cabrão. Estendeu oescudo a Falonar. Sentiu a surpresa e
o prazer do eyrieno quando o escudose posicionou à sua volta – e
conjecturou sobre a razão do medo de Falonar.
Gabrielle correu em auxílio do lacaio enquanto Karla, sem tocar
efectivamente
em Osvald, usou Arte medicinal para estancar as veias decepadas.

— O que está aqui a acontecer? — questionou Alexandra, cujo tom


devoz soava mais assustado do que zangado. — Porque estão a atacar
um dosmeus acompanhantes?
— Enviastes-lo? — perguntou Lucivar, num tom estranho.
188
— Pedi-lhe que levasse uma oferenda a Wilhelmina — disse Alexandra.
O riso de Lucivar tinha algo de singular e amargo. — E o canalha feza
entrega, não fez?

— Quando fui entregar-lhe a oferenda, a Senhora Wilhelmina


estavaindisposta — lamuriou-se Osvald. — Ofereci-me para a
acompanhar numpasseio para que pudesse apanhar ar fresco. Foi
então que aquela criatura
nos atacou.
Lucivar olhou para Osvald e depois para Falonar. — Se esse
canalhavoltar a abrir a boca, corta-lhe a língua.
Falonar pareceu ficar chocado, mas acenou afirmativamente com
acabeça.

— Como vos atreveis? — disse Alexandra. — Sois apressado a


fazerexigências para que controle a minha corte, contudo permitis
este...
— Calai-vos — disse Lucivar abruptamente. — A situação já é má.
Não a torneis pior.
Surreal olhou Lucivar de modo contundente. O que se estaria aqui
apassar?
A tremelicar, o Colmilho Cinzento chegou-se mais perto dela. «A raiva
da Rainha é funesta, Surreal. Os machos temem a raiva da Rainha. Até
o
Kaelas.«

Seguindo o olhar fixo do lobo, Surreal viu o colossal gato branco


notelhado, ao lado de um tigre. Aquele era Kaelas? Mãe Noite!

«Quem é o tigre?« perguntou.

«É Jaal. É o genitor de Dejaal.«

Surreal engoliu em seco. O tigre parecia enfezado em comparaçãocom


Kaelas e, ainda assim, era duas vezes maior do que o jovem tigre
quejazia no pátio. «Dejaal morreu, não morreu?«

«Regressou às Trevas« respondeu tristemente o Colmilho Cinzento.

Como iriam explicar isto a Jaenelle?

Como se o pensamento tivesse invocado a mulher, Jaenelle chegou


aopátio, ladeada por Daemon e Saetan.

Surreal poderia ter sentido algum consolo pela presença dos trêsnão
fosse o rosto do Senhor Supremo empalidecer ao ver o corpo deDejaal.
Alexandra começou a falar, mas antes de conseguir pronunciar
umúnico som, as suas mãos voaram até à própria garganta e os seus
olhos ar-
regalaram-se, apavorados.

Surreal não sabia ao certo de quem tinha partido aquela acção,


masapostaria em Daemon, que criara a mão fantasma que estava a
estrangularAlexandra em silêncio.

189
Todos se afastaram para deixar passar Jaenelle que se ajoelhou junto
aDejaal. A mão que acariciava o pêlo era dócil e afectuosa, contudo, os
olhosque finalmente se ergueram e se centraram em Wilhelmina…

O que Surreal percebeu naqueles olhos azul-safira estava tão para


alémda raiva gélida que não havia palavras que pudessem descrever.

Sim, havia, compreendeu enquanto o Colmilho Cinzento gania baixinho.


Era isto a que o lobo se referia como raiva da Rainha.

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas.

Conseguiu unicamente pronunciar as palavras que, esperava, a


libertariam
daquele olhar: — Está viva.

Jaenelle olhou para Karla, que fez uma vénia formal antes de se dirigira
Wilhelmina para a examinar.

— Disseste as palavras certas — murmurou Karla a Surreal


enquantoexaminava Wilhelmina para, de imediato, praguejar e
acrescentar: — O quequer que faças, segue o Protocolo à risca. —
Respirando fundo, levantou-see virou-se de frente para Jaenelle. —
Wilhelmina tem algumas escoriaçõesresultantes da luta – e está
fortemente drogada.
— Consegues neutralizar o efeito? — perguntou Jaenelle com
demasiada
serenidade.
— Preciso de mais tempo para determinar a natureza exacta da
drogaque foi usada — respondeu Karla calmamente. — Mas não detecto
nadaque provoque danos permanentes. Recomendo isolamento vigiado
e repouso.
Com a tua permissão, vou levá-la neste preciso momento para o
seuquarto e tratar dela.
— Agradeço-te, Irmã.
Como resposta ao gesto subtil de Karla, o seu primo, Morton, pegouem
Wilhelmina ao colo e seguiu Karla para fora do pátio.
Surreal permaneceu acocorada junto ao Colmilho Cinzento, reticenteem
fazer algum movimento que voltasse a chamar a atenção daqueles
olhosazul-safira.

— Então e eu? — gemeu Osvald.


Falonar olhou para Lucivar, questionando silenciosamente se
deveriacumprir a ordem e cortar a língua ao homem. Lucivar abanou a
cabeça,
num movimento quase imperceptível.
Jaenelle atravessou o pátio, olhou para Osvald no chão e sorriu. —
Vouencarregar-me de ti pessoalmente.

Lucivar saltou para a frente. — Senhora, com todo o respeito, Dejaalera


nosso Irmão e os machos têm direito…

Erguendo simplesmente a mão, Jaenelle silenciou-o. Por um momento,


permaneceu de pé, no mesmo sítio, mas Surreal podia sentir o zurzir
depoder que irrompeu da mulher tão velozmente quanto uma sonda
psíquica

190
crescente – e percebeu que ninguém que usasse uma Jóia mais clara do
quea Cinzenta poderia sentir o que quer que fosse.

— Estão três homens a aguardar junto à ponte para Halaway —


disseJaenelle. Um refulgir terrível invadiu-lhe os olhos ao dirigir-se a
Osvald.
— Três estranhos. Não quero saber o que lhes irá acontecer.
Osvald flutuou até à posição vertical. Quando Jaenelle se virou e
sedirigiu para fora do pátio, flutuou atrás dela, reclamando inocência.

— Kalush e Morghaan estão a chegar — disse Gabrielle, com


lágrimasnos olhos. — Ficaremos com Dejaal até…
Indicando Alexandra, Lucivar olhou para Falonar. — Acompanha
estas…
pessoas… aos respectivos aposentos e leva Surreal contigo. — Fezuma
pausa. — Se algum vos causar sarilhos, matem-no.

— Com todo o prazer — disse Surreal. Falonar limitou-se a acenarcom a


cabeça.
Lucivar saiu do pátio, seguido pelos outros Príncipes dos Senhores
daGuerra do Primeiro Círculo. Quando Daemon se preparava para os
seguir,
Saetan disse — Não. Ficas comigo.

Juntando rapidamente os prisioneiros, Surreal apressou-se a levá-los

– com Falonar e o Colmilho Cinzento – para fora do pátio. Não sabia


qualseria a ideia do Senhor Supremo, mas preferia não estar por perto
durantea discussão.
Daemon afastou-se quando Morghann e Kalush entraram no pátio de
rompante.

— Vamos sair daqui — disse Saetan, com a voz rouca de mágoa


reprimida
– e algo mais que poderia até ser medo.
Foi esse medo – e a preocupação pelo homem – que levou Daemon
aseguir o pai. Mas nem mesmo esses factores eram suficientes para
engolira sua própria raiva.

Ao saírem devagar do pátio, Daemon disse: — Posso não ter a


habilidade
de Lucivar com armas mas consigo tratar de um inimigo com bastante
eficácia.

Saetan parou. — Lembra-te com quem estás a falar, Príncipe. Se


existealguém que tem consciência da tua eficácia como predador, esse
alguém
sou eu.
— Assim sendo, porque me detiveste?
— Lucivar não precisa da tua ajuda para dar conta de quem quer
queesteja à espera daquele canalha na ponte – em especial tendo a seu
lado osmachos que o acompanharam. Mas eu preciso de ti. Neste
momento, preciso
de cada gota de força e de cada grão de mestria de que disponhas
paralidar com Jaenelle. Fogo do Inferno, Daemon. Não percebes o que
aqui sepassou?
191
Esforçando-se imensamente, Daemon reprimiu a fúria. —
Alexandraarmou-se em cabra e planeou o rapto da própria neta.

Saetan abanou a cabeça devagar. — Alexandra estava de conluio


comDorothea e Hekatah na planificação do rapto da própria neta.

Daemon absorveu o impacto daquelas palavras – e percebeu o


quepoderia acontecer logo que Jaenelle soubesse disso. — Mãe Noite.

— E que as Trevas sejam misericordiosas — acrescentou Saetan. —


Temos em mãos uma Rainha enfurecida que, por esta altura, já desceu
tãoprofundamente no abismo que não temos forma de a alcançar – e
não temos
forma de deflectir o que quer que liberte no estado emocional em que
se encontra.

— O que posso fazer? — perguntou Daemon, embora estivesse


terrivelmente
certo do destino desta conversa.
— A questão é o que podemos nós fazer como Administrador e
Consorte,
o que o Protocolo nos permite fazer nestas situações.
— O Protocolo não tem em conta uma Rainha que possui duas
vezesmais poder do que um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia
Negra!
A mão de Saetan tremia ligeiramente ao alisar o cabelo. — Seis vezesas
nossas forças combinadas.

— O quê? — exclamou Daemon, debilmente. Apoiou-se na paredecom


uma mão.
— Não existe uma forma autêntica de medir o poder de Jaenelle.
Contudo,
tendo em conta a quantidade de Jóias Negras de Direito por Progenitura
que foram convertidas em Ébano quando realizou a Dádiva às Trevas,
julgo que, no auge do seu poder, tem seis vezes mais força do que as
nossasforças plenas combinadas.
— Mãe Noite. — Daemon concentrou-se durante um minuto
paraconseguir respirar. — E quando tencionavas revelar-me estes
factos? Ounão tinhas essa intenção?
Saetan retraiu-se. — Queria que se sentissem... à vontade... um com
ooutro antes de te contar. Mas agora...

Uma explosão de poder fez o Paço estremecer, lançando-os ao chão.

Daemon sentiu que estava a agarrar-se desesperadamente a uma


margem
que se desmoronava, a centímetros de um dilúvio enfurecido que nãosó
o arrastaria como também o esmagaria.
Sentiu Saetan a agarrá-lo, com firmeza.

Aquela torrente de poder desapareceu tão depressa como surgiu – e

isso assustou-o mais do que a explosão. Para Jaenelle libertar e


absorver talquantidade de poder num período de tempo tão curto…

— Jaenelle — disse Daemon, pondo-se em pé de um salto. Enviouuma


sonda psíquica, procurando rapida e especificamente por ela, e tocou
192
levemente num local do Paço que estava gelado ao ponto de abrasar.
Apesarde se ter retirado velozmente, a dor lancinante quase o fez cair de
joelhos.
E isso fê-lo correr.

— Daemon, não! — chamou Saetan, pondo-se em pé com dificuldades.


Daemon correu pelos corredores. Já não precisava de procurar.
Oscorredores ficavam cada vez mais frios quanto mais se acercava da
divisãoonde Jaenelle libertara o poder.

— Daemon!
Quando ouviu Saetan a correr no seu encalço já alcançara a porta.
Mediante a Arte, abriu a porta e entrou no quarto.
O frio parecia ter recortes que eram dolorosos fisicamente, mas
quasenão os notou pois, ao olhar à volta, não conseguia compreender
exactamente
o que estava a ver. A sua mente identificou o resto depois de perceber
que as pequenas e singulares pintas vermelhas nas janelas eram
gotascongeladas de sangue…

— Daemon.
… e percebeu o que Lucivar lhe contara sobre o casamento forçado
deJaenelle. Ficou borrifado pelo quarto.

— Daemon.
Percebeu a súplica na voz de Saetan, mas não conseguia reagir.
Umtorpor peculiar instalara-se nas suas emoções… e, não sendo capaz
de sentir,
conseguia pensar.

Sabia o motivo pelo qual Saetan não queria que visse este quarto.
Devido
à natureza inerente aos deveres, o Consorte não podia inibir-se na
suarelação com a Rainha. Um Consorte disponibilizava-se fisicamente à
Rainha,
consciente e de bom grado, como nenhum outro macho da Corte.
UmConsorte que receava a sua Rainha não funcionava na cama.

Porém, já testemunhara antes este lado de Jaenelle. Oh, fora apenas


umdébil vislumbre, mas ficara ciente de que esta era outra faceta da
Feiticeira.

E este era o lado da Feiticeira que emergia quer devido à


excitaçãointensa quer devido à raiva profunda. Poderia viver com isso?
Conseguiriaconduzir a dança sexual uma vez revelado este lado de
Jaenelle?
O ardor do desejo sexual, a necessidade motriz de acasalar com a
Feiticeira
que, de súbito, o atingiu, consumiu o torpor emocional, deixando noseu
lugar uma aprovação sinistra face ao que estava a presenciar.

Saiu do quarto e fechou a porta.

— Daemon — disse Saetan, ternamente, observando-o.


Daemon sorriu. — Só é pena o papel de parede. Era um lindo padrão.

193
4 / Kaeleer

— Bem — disse Surreal ao afastar o cabelo do rosto, — não creio que


algumdos “hóspedes” esteja ansioso por deixar o quarto por agora, não
achais?
— Sim — respondeu Falonar, soando ligeiramente intranquilo, —
acho.

— Pois. — Surreal encostou-se à parede e fechou os olhos. — Merda.


— Ficastes magoada com… aquilo? — perguntou Falonar, referindo-
se à explosão de energia que fizera estremecer o Paço. Tocou-lhe
levemente
no ombro antes de se afastar.
Surreal abanou a cabeça. Magoada? Não. Borrada de medo? Oh, claro.

Contudo, as pessoas que viviam com Jaenelle não viviam num terror
constante. De facto, reflectindo sobre o modo como Karla e Lucivar
agiramno pátio, designaria esse comportamento como prudente mais do
que temente
– e essa prudência também não era habitualmente visível.

Afastando esses pensamentos, lançou um olhar carrancudo a Falonare


decidiu enfrentar algo mais fácil – como o modo arrogante como lhe
tinha
dado ordens depois de terem chegado ao pátio. — Eu teria dado
contadaquele cabrão.

Falonar pareceu sentir-se insultado. — O macho tem o dever de


defender
e proteger.
Surreal cerrou os dentes. — Não é a primeira vez que ouço essa
cantilena
e…

— Assim sendo, devíeis prestar atenção a essa cantilena, Senhora –


erespeitá-la.
— Porquê? Porque sou uma desgraçadinha que não se consegue
defender
numa luta? — disse, com uma doçura envenenada.
— Porque sois mais letal — ripostou. Afastou-se uns passos de Surreal,
vociferou e voltou a aproximar-se. — É por isso que são os machos
quedefendem, Senhora Surreal. Porque vós, as fêmeas, são mais letais
quandoestão inflamadas – e são implacáveis quando atingem a orla
assassina. Se forvencido numa contenda, pelo menos não tenho de lidar
convosco a seguir.
Sem saber se tinha sido elogiada ou insultada, Surreal manteve-seem
silêncio. Estava prestes a admitir que Falonar poderia ter alguma
razãoquando lhe bramiu: — Escolhestes uma péssima altura para vos
armaresem cabra. Já vai ser bastante difícil ter de enfrentar o Yaslana
sem ter de
andar agora nesta dança convosco.

Ora isso era insultuoso. — Uma vez que é essa a vossa opinião,
docinho,
eu saio do vosso caminho. — Impulsionou-se da parede.
Falonar estendeu a mão e tocou-lhe no braço. — Surreal… Tínheis

194
razão. Deveria ter matado o sacana. Agora tenho de aceitar as
consequências
desse erro. — Hesitou e acrescentou em voz baixa: — Poderia ter-vos
assassinado ou à Senhora Benedict com aquela faca envenenada.

Surreal encolheu os ombros. — Não tínheis forma de saber e não matou


nenhuma de nós, por isso…

— E que diferença faz? — disse Falonar rudemente. — O meu erro


proporcionou-lhe a oportunidade.
Surreal estudou-o. — Julgais que vais ser castigado?

— Com toda a certeza. A única questão é o grau de dureza do castigo.


— Bem, tenho algumas coisas a dizer quanto a isso. Quando
Lucivarabordar essa questão…
— Não há nada a dizer — interrompeu Falonar abruptamente. — É
o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih. Fará como entender.

Desviou o olhar. — Prefiro ser atado ao poste do que ser enviado de
voltapara Terreille.
— Mas não há motivo para qualquer castigo!
Falonar sorriu sinistramente. — É assim que funciona, Senhora
Surreal.
É o que vamos ver, pensou Surreal.

5 / Kaeleer

Daemon observou Saetan a servir-se generosamente de um conhaque.



Consegues beber isso? — perguntou, num tom ligeiramente curioso.

— Fico com dores de cabeça atrozes — respondeu Saetan, servindoum


outro copo para Daemon. — Mas duvido que vá piorar a que já sinto,
por isso… — Ergueu o copo num brinde, engolindo de seguida metade
doconhaque. — Dejaal era filho do Príncipe Jaal.
A menção ao tigre Príncipe dos Senhores da Guerra pareceu-lhe
umamudança brusca de assunto. — Lucivar encontrou os homens?

— E obteve as informações que pretendia antes de serem executados.


Daemon observou o pai. Algo não estava a bater certo. Como não sabia
que questões colocar, expressou as suas próprias preocupações. —
Jaenelle
não está cá, pois não?

Saetan abanou a cabeça. — Partiu para Ebon Askavi – e pediu paranão


ser incomodada por agora.

— Vais acatar os seus desejos? — perguntou Daemon, com cautela.


O olhar de Saetan era firme e demasiado sapiente. — Nós vamos acatar
os seus desejos. Se deseja manter-se gélida para poder tomar as
decisões

195
que têm de ser tomadas, seria cruel forçá-la a sentir antes de estar
preparadapara tal.

Daemon anuiu. Não lhe agradava, mas aceitava. Voltou a pensar


nostrês homens que aguardavam Osvald para auxiliá-lo no rapto de
Wilhelmina.
— Esses homens serviam Hekatah e Dorothea?

— Trabalhavam para elas.


Sentiu que Saetan se afastava, por isso insistiu. — Lucivar executouos
homens? — Não seria a primeira vez que Lucivar matava, pelo que
nãodevia ser isso que estava a atormentar Saetan. Haveria algo
diferente numaexecução formal?

— Os outros machos do Primeiro Círculo renunciaram ao direito


quelhes assistia de cobrarem parte da dívida pela morte de um Irmão —
disseSaetan.
— O que significa isso? — perguntou Daemon espaçadamente.
Saetan hesitou e terminou o conhaque antes de responder. —
Significaque entregaram os homens a Jaal... e a Kaelas.

6 / Kaeleer

Irada, Surreal fulminava com o olhar os quatro homens no gabinete


doSenhor Supremo. Resmungou tanto que conseguiu estar presente
nestapequena discussão, para logo lhe ser rudemente comunicado que
a suapresença seria tolerada desde que não interferisse. A sua opinião
não seriasolicitada nem necessária.

Se fossem quaisquer outros homens, ter-lhes-ia oferecido a sua opinião,


porventura entregue na ponta do punhal. Contudo, Lucivar pareciaestar
já no limite e não hesitaria em mandá-la porta fora – com a porta
fechada. E Saetan e Andulvar Yaslana não eram o tipo de homens
quepermitiam que alguém desafiasse a sua autoridade como
Administrador eGuarda-Mor.

Mas o que realmente a estava a martirizar era Falonar não ter


olhadopara ela nem uma única vez desde que conseguira impor a sua
presença.
Pensava que ficaria grato por ter alguém a abonar em sua defesa.
Porém,
ele...

Bem, não havia problema. Não havia qualquer problema. Não precisava
de ficar ali, a perder o tempo com um macho insensível e cabeça
duraque não desejava a sua presença.
Olhou para Lucivar nesse preciso momento, viu o divertimento
sarcástico
naqueles olhos dourados e sabia que, se tentasse sair agora,
exigiriamque ficasse. Por isso, ao invés de se amaldiçoar pela sua
teimosia, amaldi

196
çoou Lucivar. E vendo que ficava ainda mais divertido, compreendeu
queLucivar sabia – o sacana.

Saetan encostou-se à secretária em madeira escura e cruzou os braços.

— Príncipe Falonar, podes explicar-nos as tuas acções desta manhã?


O seu tom de voz era educado, ligeiramente curioso. Surreal
conjecturou
se seria um mau sinal.
Falonar respondeu. Na opinião de Surreal, a recitação objectiva
dasacções ficou aquém de uma explicação, contudo os restantes
homens nãopareceram reparar nesse facto.

Quando Falonar terminou, Saetan olhou para Andulvar e Lucivar e


denovo para Falonar. — Pecaste por excesso de zelo — disse Saetan,
calmamente.
— É compreensível. E, sendo um Príncipe dos Senhores da Guerra,
é, de igual modo, inadmissível. Não te podes dar ao luxo de ser
cauteloso.

Falonar engoliu com dificuldade. — Sim, senhor.

— Compreendes a indispensabilidade do castigo?


— Sim, senhor.
Saetan acenou com a cabeça, parecendo satisfeito. Olhou para Lucivar.
— A decisão cabe-te a ti.
Falonar virou-se de frente para Lucivar.
Lucivar examinou-o por instantes. — Cinco dias de rondas adicionais,
a começar amanhã.
Ao contrário de ficar aliviado, Falonar parecia ter levado uma bofetada.

— Há algo mais que queiram discutir? — perguntou Saetan.


Lucivar olhou para Surreal, depois para Saetan que, depois de uma
pausa, fez uma saudação praticamente imperceptível com a cabeça.

Lucivar abriu a porta do gabinete e aguardou.

Depois de fazer uma vénia a Saetan e a Andulvar, Falonar saiu. Umavez


que lhe parecia ser o mais apropriado, Surreal fez também uma
véniaaos dois homens e seguiu Falonar para fora do gabinete tão
rapidamenteque lhe pisou os calcanhares.

Praguejando, Falonar alongou as passadas, parando por fim ao


chegarao centro do salão principal.
Surreal alcançou-o. — Bem, não foi… — Calou-se face ao desagrado eà
ira no rosto do homem ao observar Lucivar aproximar-se.
— Cinco dias de rondas adicionais é insultuoso — disse Falonar.
Surreal arrepanhou a longa túnica com as mãos para não lhe dar
ummurro. Tolo. Idiota. Deveria estar grato por não ter sido pior.

— Não é insultuoso — respondeu Lucivar afavelmente. — É justo.


Cometeste
um erro, Falonar. Tem de haver um ressarcimento da tua parte.
Agiste, mas por pouco não saíste frustrado por seres excessivamente
zeloso.
197
— Sei bem o que o meu zelo poderia ter custado.
— Sim, sabes. E é por isso que o castigo é justo. — Os lábios de
Lucivararquearam-se num sorriso indolente e arrogante. — Não te
preocupes. Irásfazer mais rondas adicionais muito mais vezes antes de
completares um anoneste sítio. Foi isso que me aconteceu.
Falonar olhou-o estupefacto. — Tu?

O sorriso acentuou-se. — É difícil acreditar que tivesse pecado por


excesso
de zelo, não é? Mas eu queria ficar em Kaeleer e queria servir a
minhaRainha, por isso controlei a minha fúria tanto quanto possível –
por mim.
E acabava sempre naquele gabinete, enfrentando aqueles dois, tantas
vezesque deixei de contar. — Lucivar fez uma pausa. — Estamos em
Kaeleer.
Aqui, a fúria de um Príncipe dos Senhores da Guerra é considerada
comoum elemento valioso da corte.

Falonar demorou algum tempo a digerir aquelas palavras. Foi entãoque,


com cortesia, disse: — Rondas adicionais não parecem
importantestendo em conta que poderia ter custado a vida a uma
feiticeira.

— Bem, há algo mais no... castigo — afirmou Lucivar. Inclinou a cabeça


na direcção de Surreal. — Tens de a aturar até ao nascer do sol. Dado
que parece que vai desfazer os seus próprios dentes a não ser que berre
comum macho, que sejas tu. — O sorriso acentuou-se ainda mais. — É
claroque podes oferecer-te para lhe aquecer a cama e ficarás a saber se
com issoconsegues alguma clemência.
Falonar engasgou-se. Surreal produziu um som semelhante a
umachaleira prestes a ferver.

— Consideras que passar a noite comigo é uma forma de castigo? —


gritou Surreal. — Sacana… pois eu diria que é uma recompensa!

Lucivar encolheu os ombros. — Como queiras. Mas tenham


presenteque, se ambos decidirem prolongar este “castigo” para além
desta noite, têmde obter a permissão formal por parte do Administrador
da Corte. Concordou
em deixar passar esta formalidade até ao nascer do sol, mas só até
essaaltura. E esta é uma área em que não é muito sensato provocar
Saetan.

Depois de Lucivar desaparecer, Surreal e Falonar fitaram-se.

— Parece que não consegui manter o meu… interesse… em estar


convosco
tão… contido… como pensava uma vez que Lucivar se deu conta
— disse Falonar.
Ou o Senhor Supremo, pensou Surreal. Como patriarca da família
eorientador sexual, tinha a certeza que pouco deixaria passar.

— E então — disse Falonar com cautela, — ides gritar comigo?


Surreal sorriu. — Bem, docinho, posso não gritar contigo. Com os
estímulos
adequados, posso somente gritar.

198
CAPÍTULO SETE

1 / Kaeleer

O Senhor Jorval instalou-se numa cadeira na sala de estar de Kartane


Sa-
Diablo. — O vosso encontro com a Curandeira foi adiado.

— Porquê? — perguntou Kartane rispidamente. — Julguei que


estavatudo tratado.
— E estava — tranquilizou Jorval. — Mas ocorreu um… incidente…
na residência da Curandeira, por isso demorará mais alguns dias antes
dese poder encontrar convosco.
— Podíeis ter insistido — disse Kartane. — Talvez não tenha
compreendido
a importância de…
— De nada serviria insistir — interrompeu Jorval. — Quando aquivier,
quereis que centre a sua atenção em vós e não que se disperse
comtrivialidades domésticas.
— Não me resta outra opção senão esperar.
Jorval levantou-se. — Não existe outra opção.
Ocorreu um incidente que exige um adiamento…

Um incidente, pensava Jorval no caminho de regresso a casa. Fora


dessa
forma que o Senhor Supremo se expressara, com cautela e cortesia.
Dadoque os homens que se dirigiram a Halaway para auxiliar o
acompanhantetinham desaparecido subitamente, e face à inexistência
de qualquer sinal doacompanhante, fazia uma pequena ideia acerca do
“incidente” que estava aatrasar a viagem de Jaenelle Angelline à
Pequena Terreille.

O que significava que tinha de avisar a Sacerdotisa das Trevas de que,


muito provavelmente, Alexandra já não era uma ferramenta profícua.

Hekatah não ficaria satisfeita com essa revelação, possivelmente


correriapara a Pequena Terreille numa fúria desenfreada – que
descarregaria nele.

Quem sabe se não poderia redireccionar essa fúria? Quem sabe se


nãoseria uma boa altura para resolver o outro problemazito?

199
Ao chegar a casa, correu para o gabinete e rabiscou uma nota ao
Senhor
Magstrom.

2 / Kaeleer

— Onde está o meu acompanhante? — questionou Alexandra ao sentar-


seno gabinete do Senhor Supremo. Depois de ter estado confinada aos
seusaposentos durante dois dias, sentia-se aliviada por sair do quarto,
pese embora
não sentisse qualquer alívio por estar nesta divisão – ou por estar com
ele.
Saetan reclinou-se na cadeira e juntou as mãos à sua frente, pousando

o queixo nas longas unhas tingidas a negro. Os olhos dourados tinham


um
ar letárgico – tal como acontecera quando a vira pela primeira vez.
Consciente do frio na divisão, Alexandra aconchegou o xaile ao corpo.

— É interessante constatar que perguntais primeiro por Osvald — disse


Saetan com demasiada placidez.
— E por quem deveria perguntar? — retorquiu Alexandra, com a voz
estridente pelo medo.
— Pela vossa neta, Wilhelmina. Está a recuperar das drogas que
aquelecanalha lhe ministrou. Não sofrerá sequelas permanentes.
— Mas é claro que não sofrerá sequelas. Foi apenas um sedativo fraco.
— O que lhe deu foi muito mais do que um sedativo fraco, Senhora
— respondeu Saetan, ficando também com a voz estridente.
Alexandra hesitou. Estava a mentir. É claro que estava a mentir.
Saetan olhou-a com curiosidade. — Não consigo deixar de pensar na
recompensa que Dorothea e Hekatah vos terão oferecido que valesse a
vidada vossa neta.
Saltou da cadeira. — Estais a insultar-me!

— Estou? — respondeu, tendo o tom de voz regressado àquela placidez


exasperante – e assustadora.
— Não estava a vender Wilhelmina a Dorothea, estava unicamente a
tentar afastá-la de vós!
Um olhar invulgar apoderou-se do rosto de Saetan. — Sim, essa parece
ser sempre uma justificação plausível, não parece? Levem a criança
paralonge de mim e que se dane o que possa vir a acontecer à criança.
Toda umavida de sofrimento, humilhação e tortura é, sem dúvida,
melhor do quepermanecer comigo.

Alexandra voltou a sentar-se, observando-o. Estava concentrado, a


seguir
uma linha de pensamento íntima – e com certeza que já não estaria
areferir-se a Wilhelmina.
200
— O que julgaríeis que iria suceder a Wilhelmina? — perguntou.
— Osvald ia fazê-la sair de Kaeleer para depois a levarmos para casa.
Enquanto a fitava, os olhos de Saetan foram invadidos por uma tristeza
profunda. — Sendo assim, não haveria recompensa — disse baixinho,

— era uma moeda de troca.


— Do que falais?
— Como tencionáveis retirar Wilhelmina de Hayll?
Alexandra olhou-o pasmada. — Não ia para Hayll.
— Ia, pois. Eram essas as ordens, Alexandra. Wilhelmina seria
“convidada”
de Dorothea durante o tempo que estivésseis disposta a fazer cedências.
Quantas cedências poderias vir a fazer a Hayll antes de o vossopovo
ficar sufocado por elas, recusando-se a continuar a aceitar-vos
comoRainha? O que terias então para negociar para a manter ilesa?
— Não — disse Alexandra. — Não. Dorothea concordou ajudar-
meporque… — Porque Dorothea estava a preparar-se para iniciar uma
guerracom este homem e queria afastar do seu controlo o alegado poder
obscurode Jaenelle. Porém, não podia permitir que Saetan tivesse
conhecimentodeste factor. — Wilhelmina não era moeda de troca. —
Mas Jaenelle não se
teria tornado exactamente nisso? Uma moeda de troca nos jogos de
guerra?
Era diferente. Jaenelle já estava obviamente urdida de forma
permanente
pelas atenções do Senhor Supremo e se Jaenelle tivesse acabado por ser
“convidada” de Dorothea…
Com uma honestidade brutal, Alexandra admitiu que nunca teria
cedido
perante Hayll de modo a garantir o bem-estar de Jaenelle. À sua corte,
faria o discurso de um sacrifício familiar pelo bem do povo. E, na
verdade,
não teria sentido mais do que uma pontada de culpa por esse sacrifício.
Foisempre uma criança tão, tão difícil…

— Wilhelmina não era moeda de troca — voltou a afirmar, de modo


pouco convincente.

Saetan resfolegou ligeiramente. — Pensai como quiserdes.

Aquela indiferença despreocupada, como se já não fosse importante,

perturbou-a. — O que aconteceu a Osvald? Pelo menos trataram das


suasferidas?
Algo invulgar apoderou-se dos olhos de Saetan. — Foi executado.
Bem como os três homens que o aguardavam.
Alexandra ficou atónita. — Que direito vos assiste…
— Tentou raptar um membro da corte e assassinou outro.
Esperáveisrealmente que ficássemos de braços cruzados e engolíssemos
esses actos?
— Não estava a raptá-la! — gritou Alexandra. — Estava a ajudá-la asair
deste lugar. Aquele animal atacou-o. Teve de se defender.
— Estava a levá-la contra a sua vontade. Isso é rapto.
201
— Estava a fazer cumprir os desejos da família de Wilhelmina.
— É uma mulher adulta — ripostou Saetan. — Não tendes
qualquerdireito de tomar decisões em seu nome.
— Está mentalmente debilitada. Não tem capacidade para decidir…
— É essa a vossa forma de lidar com aqueles que não partilham a
vossaopinião? — A voz de Saetan elevou-se num bramido. — Declarais
que sãomentalmente incompetentes para que possais justificar fechá-
las num sítioonde se deleitam a violá-las e a torturá-las?
— Como vos atreveis?
— Sabendo o que sei sobre Briarwood, atrevo-me bastante.
Alexandra sentiu o ar fugir-lhe dos pulmões. Saetan apresentava
umódio no olhar que já não se dava ao trabalho de disfarçar.
Com algum esforço, reuniu forças e levantou-se, endireitando-se
paralhe dirigir a palavra. — Sou Rainha…

— Sois uma cabra crédula e presunçosa — ripostou Saetan num


trauteio
melódico que dava às palavras uma sensação de carícia violenta –
evioladora. — Vivei uma longa vida, Alexandra. Vivei uma longa vida e
extingui-
vos quando chegar o vosso fim para que regresseis directamente
àsTrevas. Se assim não for, se fizerdes a transição para demónia-morta,
euestarei à vossa espera.
Demorou alguns instantes a compreender as palavras. O Senhor
Supremo
do Inferno.

— Robert Benedict fez a transição — trauteou Saetan, — e pagou aparte


da dívida que tinha para comigo pelo que fizeram à filha da minhaalma.
— Nada vos devo. — Alexandra tentou parecer firme, mas não
conseguiu
evitar que a voz tremesse.

Saetan sorriu de modo dócil e terrífico.

Alexandra tinha de sair dali, tinha de se afastar dele. — Uma vez que,
supostamente, estamos numa corte, julgo ser altura de falar com esta
vossaRainha misteriosa. A verdadeira Rainha. Na verdade, exijo falar-
lhe.

Saetan não mexeu um único músculo. — Parece que também


desejafalar-vos — disse num tom de voz invulgar. — Fostes convocada a
EbonAskavi, para que vos apresenteis perante o Trono das Trevas.

3 / Kaeleer
Com o coração na boca, Alexandra seguiu o Senhor Supremo pelas
escadasem pedra escura. As colossais portas duplas ao fundo da
escadaria abriram-
se em silêncio, revelando uma obscuridade intensa.

202
Protestara quando soube que Leland, Philip e o resto do séquito quea
acompanhara também tinham sido convocados à Fortaleza. Não
surtiraqualquer efeito. Ninguém dera a mais pequena indicação de que
tinhamsequer ouvido os seus protestos, quanto mais aceder a eles.

Protestara igualmente quando Daemon e Lucivar se juntaram ao


Senhor
Supremo como “acompanhantes”. Neste momento sentia-se
ridiculamente
grata pela força masculina que a guardava. Achara o Paço
aterradormas, comparado à Fortaleza, o Paço não passava de um
agradável solar.

À medida que Saetan avançava, começaram a acender-se tochas


atérestar apenas o fundo da sala em completa escuridão.

Acendeu-se outra tocha. Olhou estupefacta para a enorme cabeça


dedragão que saía da parede do fundo. As escamas de tom dourado-
prateado
cintilavam. Os seus olhos eram tão obscuros como a meia-noite. Num
estrado ao lado da cabeça podia ver-se uma simples cadeira em madeira
escura.
A mulher aí sentada ainda se encontrava demasiado envolta em
sombras
para que Alexandra conseguisse destrinçar mais do que uma forma.

Ora aqui estava a Rainha de Ebon Askavi.

A luz da sala sofreu uma alteração imperceptível, iluminando


suavemente
o corno de unicórnio do ceptro que a mulher segurava nas mãos.

Ao olhar para os anéis nas mãos da Rainha, sentiu um calafrio de


pavor.
À primeira vista diria que os anéis continham pedaços de uma Jóia
Negra,
mas as Jóias nesses anéis pareciam ainda mais escuras do que a Negra.
O que era impossível – não era?

A luz continuou a aumentar de intensidade, e no decorrer desse


processo,
o poder na sala avolumava-se. O rosto da mulher continuava na
penumbra,
mas agora Alexandra conseguia divisar o vestido negro e outraJóia-
Negra-que-não-era-Negra incrustada num colar que se assemelhava
auma teia de aranha feita de fios dourados e prateados.
A luz intensificou-se. Alexandra subiu o olhar e deu consigo a fitar
osálgidos olhos azul-safira de Jaenelle.

Os segundos revelaram-se vagarosos até aquele olhar se focar em


Leland
e Philip, Vania e Nyselle e nos Consortes e acompanhantes que
compunham
o seu séquito.

Livre do olhar glacial, Alexandra apertou o estômago com a mão,


numatentativa desesperada de não se inclinar. Neste cenário formal,
compreendeu
por fim o que Jaenelle dissera quando se encontraram pela primeiravez
no Paço. A diferença é que, quando o sonho surgiu, soube reconhecê-lo.

O poder obscuro que dimanava de Jaenelle podia ter mantido


Chaillotlonge da influência de Dorothea. Mas como poderiam esperar
que tivessereconhecido isto numa criança difícil e excêntrica?

…soube reconhecê-lo.

203
Atreveu-se a olhar de relance para Daemon. Também ele a reconhecera.
Reconhecera-a e…

Mas não fora isso que Dorothea dissera? O Sádico e o Senhor


Supremotinham reconhecido o potencial de todo aquele poder obscuro e
empenharam-
se em seduzi-la e moldá-la. Era evidente a razão pela qual
Dorotheaqueria o controlo de Jaenelle, mas isso não alterava a provável
verdade doque dissera acerca de Daemon e do Senhor Supremo.

Os pensamentos rodopiavam, retorciam-se – até que aqueles olhosazul-


safira voltaram a fixar-se nela.

— Conspiraste com Dorothea SaDiablo e com Hekatah SaDiablo,


quesão inimigas notórias, com a intenção de lhe entregar um membro
da minha
corte, a minha irmã. — A voz, embora tranquila, ouvia-se em todaa
imensa sala. — Na tentativa de executar esse plano, assassinaste
outromembro da minha corte, um jovem Príncipe dos Senhores da
Guerra.
Leland exaltou-se, não deixando que Philip a impedisse. — Não passava
de um animal.
Uma ferocidade terrível invadiu o rosto de Jaenelle. — Era Sangue…
eera Irmão. A sua vida valia tanto como a tua.

— Não o matei — disse Alexandra, em surdina.


Sob o gelo daqueles olhos azul-safira evidenciava-se uma raiva
mortífera
na orla da loucura. — Não desferiste o golpe fatal — concordou
Jaenelle.
— E por isso decidi não te executar.

Alexandra teria tombado se Philip não tivesse corrido a segurá-la.

Executá-la?

— Contudo — prosseguiu Jaenelle, — tudo tem um preço e um


preçoserá pago pela morte de Dejaal.
O desespero começou a brotar em Alexandra. — Não existe qualquerlei
contra o assassinato.

— Não, não existe — respondeu Jaenelle com demasiada delicadeza.


— Porém, uma Rainha pode exigir um preço pela vida que se perdeu.
Vania ou Nyselle choramingaram. Alexandra não conseguiu
perceberqual delas.
— Já não são bem-vindos em Kaeleer. Jamais o voltarão a ser. Se
algumde vós regressar seja por que razão for, será executado. Sem
prorrogações.
— Pode fazer isso? — murmurou Nyselle.
Os olhos de Jaenelle saltaram para as Rainhas de Província antes de
voltarem a fixar Alexandra. — Eu sou a Rainha. A minha vontade é lei.
E ninguém, percebeu Alexandra, ninguém desafiaria essa vontade.

— Serão conduzidos ao Altar de Cassandra e, por esse Portão,


serãoenviados de regresso a Terreille — informou Jaenelle. — Senhor
Supremo,
ficarás encarregue dos preparativos.
204
— Com todo o prazer, Senhora — respondeu Saetan, solenemente.
— Podem ir. — O ceptro balançou até que o corno do unicórnio apontou
directamente para o peito de Alexandra. — Excepto tu.
Leland protestou silenciosamente, mas não discutiu quando Philip,
com um ar pálido e nauseado, lhe pegou no braço e a conduziu para
forada sala. Os restantes membros da comitiva apressaram-se a segui-
los, comSaetan, Daemon e Lucivar atrás, a um passo mais lento.

Quando as portas duplas se fecharam e só restavam as duas na sala,


Jaenelle baixou o ceptro. — Devias ter-te ido embora quando te disse
daprimeira vez. Agora…

Alexandra demorou um minuto para pronunciar: — E agora?

Jaenelle não respondeu.

Alexandra oscilou e deu um pequeno passo para se tentar equilibrar

ao sentir a sala a começar a girar, ficando em total obscuridade.

O que é que acabou de acontecer, em nome do Inferno? cogitou


Alexandra
ao equilibrar-se. Foi então que olhou ao seu redor.

Estava sozinha no centro de um amplo círculo em pedra. O chão


eracompletamente liso. À volta do círculo existia um muro sólido de
rochaíngreme e irregular que se elevava muito acima da sua cabeça.
Para lá desse
muro…

Sentiu a pressão enorme contra o muro, como se algo estivesse a


tentarforçar a entrada e destruir aquela área.

«Onde...?«

«Estamos na profundidade do abismo« disse uma voz da meia-noite.

Alexandra virou-se para o sítio de onde vinha a voz de Jaenelle – eficou


perplexa perante a criatura que se encontrava a alguns metros. Fitou

o corpo humano esguio e desnudado; as pernas humanas que


terminavamem cascos delicados; as mãos humanas que tinham garras
retraídas no lugar
de unhas; as orelhas delicadamente pontiagudas; a juba dourada
quenão era exactamente cabelo nem exactamente pêlo; o ínfimo chifre
em espiral
no meio da testa; os gélidos olhos azul-safira.
«O que és?« murmurou Alexandra.
«Sou os sonhos tornados realidade« respondeu. «Sou a Feiticeira.«
A voz de Jaenelle. Os estranhos olhos de Jaenelle. Contudo…
Alexandra recuou. Não. Não. «És o interior…«
Não conseguiu verbalizar. A repulsa deixou-a sem fala. Tinha sido isto

que a sua filha Leland dera à luz? Isto?


«O que fizeste à minha neta?« questionou Alexandra.
«Nada lhe fiz.«

205
«Com certeza que fizeste! O que foi que lhe fizeste? Devoraste o espírito
para poder usar o corpo?«

«Se te estás a referir ao casulo a que chamas Jaenelle, o corpo foi


sempremeu. Nasci naquela pele.«

«Nunca! Nunca! Não podes ter nascido de Leland.«

«E porque não?« perguntou a Feiticeira.

«Porque és horrenda.«

Um silêncio pungente. Depois, a Feiticeira disse friamente: «Sou o que


sou.«

«E seja o que isso for, não nasceu da minha filha. Não nasceu de mim.«

«Os teus sonhos…«

«NÃO! NÃO HÁ NADA DE MIM EM TI!«

Outro longo silêncio. Para lá do muro de pedras, parecia ouvir-se


umatempestade agreste a formar-se.

«Tens algo mais a acrescentar?« perguntou a Feiticeira serenamente.

«A ti, nunca terei nada a dizer« respondeu Alexandra.

«Muito bem.«

Os muros de pedra desapareceram. A energia do abismo precipitou-


separa encher o espaço vazio – e tentou preencher o receptáculo dentro
desse
espaço.

Alexandra sentiu que essa torrente súbita de poder começava a esmagá-


la, para logo sentir que outra fonte de poder equilibrava e
controlavaessa torrente, evitando que a sua mente se estilhaçasse.
Sentiu algo a romper-
se dentro de si e, por um segundo fugaz, sentiu uma dor atroz e
umsofrimento agonizante.

E depois, não sentiu mais nada.

***

Alexandra acordou lentamente. Estava deitada na cama, tapada e


confortável,
mas demorou apenas um momento para compreender que algo
estavaerrado. Na cabeça tinha a estranha sensação de estar cheia de lã
e o corpoestava doído como se estivesse febril.

Abriu os olhos. Viu Saetan sentado numa cadeira junto à cama e disse,
com a voz enrouquecida: — Não vos quero.

— Também não vos quero — retorquiu de modo seco, pegando


numacaneca que se encontrava sobre a mesinha de cabeceira. —
Tomai. Irá ajudar-
vos a desanuviar a cabeça.
Resmungando, Alexandra apoiou-se num cotovelo – e viu as
JóiasOpala, o berloque e o anel, sobre a mesa. Estavam vazias,
totalmente exauridas,
despojadas do reservatório de poder armazenado.

206
Instintivamente, em desespero, mergulhou no seu interior,
tentandoalcançar a profundidade da sua força Opala. Nem conseguiu
sequer alcançar
a profundidade da Branca. O abismo estava-lhe interdito e a sua
menteparecia estar encerrada em pedra.

— Resta-vos a Arte básica — disse Saetan tranquilamente.


Alexandra fitou-o horrorizada. — Arte básica?
— Sim.
Não deixou de o fitar ao lembrar-se da torrente esmagadora de poder
edo brevíssimo momento de dor. — Quebrou-me — murmurou
Alexandra.

— Aquela cabra quebrou-me.


— Cuidado com a maneira como vos referis à minha Rainha — rosnou
Saetan.
— E o que fareis? — retorquiu. — Ireis arrancar-me a língua?
Saetan nada teve de dizer, a resposta estava presente nos olhos.
— Bebei — disse, com uma calma exagerada, oferecendo-lhe a caneca.
Não se atrevendo a rejeitar, bebeu a infusão e devolveu-lhe a caneca.

— Já nem sequer sou feiticeira — disse, com os olhos cheios de


lágrimas.
— Uma feiticeira é sempre uma feiticeira, mesmo que esteja quebradae
já não possa usar as Jóias. Uma Rainha é sempre uma Rainha.
Alexandra riu-se amargamente. — Oh, é fácil dizer, não é? Que tipode
Rainha poderei ser? Julgais realmente que conseguirei manter uma
corteà minha volta?

— Assim o fizeram outras Rainhas. A força psíquica é unicamente


umdos factores que atrai os machos fortes e os leva a servir. Não
necessitaisdesse tipo de força se puderes usar a deles.
— E julgais que conseguirei manter uma corte com poder suficientepara
continuar a ser a Rainha de Chaillot?
— Não — respondeu Saetan após uma longa pausa. — Mas isso nãotem
nada a ver com a vossa capacidade de usar as Jóias.
Ficou sem palavras face ao insulto, sem se atrever a fazer o que
querque fosse. — Compreendeis o que irá acontecer agora a Chaillot?

— O vosso povo irá, com toda a certeza, escolher outra Rainha.


— Não existe mais nenhuma Rainha com poder suficiente para
seraceite como Rainha do Território. É por isso… — que ainda sou eu a
governar.
Não, não podia dizer-lhe.
Sentou-se e aguardou que a cabeça desanuviasse. Aquela sensação
invulgar
e sufocante acabaria por desaparecer, porém o sentimento de
perdapermaneceria para sempre. Fora a cabra que se fizera passar por
sua netaque provocara esta situação. — É um monstro — disse entre
dentes.

207
— É o mito vivo, os sonhos tornados realidade — disse Saetan, com
frieza.
— Bem, não era este o meu sonho — ripostou Alexandra. — Comoé que
aquela criatura repugnante e deformada poderia ser o sonho de
alguém...
— Não volteis a pisar o risco, Alexandra — advertiu Saetan.
Detectando o nervosismo na voz de Saetan, encolheu-se. Podia rangeros
dentes e fechar a boca pois não tinha escolha, mas não conseguia
deixarde pensar naquela criatura. Vivera na sua casa. Arrepiou-se.
Todos os anos
no Winsol, dançamos pela glória da Feiticeira. Todos os anos,
celebramosaquilo.

Não se apercebeu de que tinha falado em voz alta até o quarto se


cobrirde gelo. — Quero ir para casa — disse baixinho. — Podeis
encarregar-vosdisso?

— Com todo o prazer — trauteou Saetan.


4 / Kaeleer

Daemon fitou com um desagrado imenso a ampulheta em madeira


escuraque pairava à porta do quarto de Jaenelle. Ao reparar na
ampulheta pelaprimeira vez quando viera saber como estava Jaenelle,
Ladvarian, o Senhorda Guerra sceltita, explicara o seu significado. Por
isso, aceitara a oferta deLadvarian para ser seu guia e explorar um
pouco a Fortaleza. Ao regressar,
decorrida uma hora, descobrira que a ampulheta tinha sido virada, e a
areiaescorria para o fundo, assinalando outra hora de isolamento. Era a
terceiravez que a areia escorria e, desta vez, iria aguardar à porta até
cair o último
grão de areia.

— Estaiss impaciente? — ouviu-se uma voz sibilante.


Daemon virou-se e ficou de frente com Draca, a Senescal da Fortaleza.
No primeiro momento em que chegaram à Fortaleza, Lucivar avisara-
oenigmaticamente: Draca é um dragão sob forma humana. No momento
em
que vira a Senescal, compreendera as palavras de Lucivar. As suas
feições,
combinadas com a sensação de ancianidade e de um poder vetusto e
profundo,
fascinaram-no.

— Estou preocupado — respondeu, encontrando aqueles olhos


obscuros
que o trespassavam. — Não devia estar sozinha.
— Apesar disso, permaneceiss à porta.
Daemon lançou um olhar mortífero à ampulheta flutuante.
Draca produziu um som que poderia considerar-se uma gargalhada
abafada. — Soiss sempre assim tão obediente?

208
— Quase nunca — disse Daemon entre dentes – e depois lembrou-
sequem era a sua interlocutora.
Mas Draca acenou com a cabeça, como se se sentisse satisfeita
pelaconfirmação. — É sensato que oss machoss saibam quando devem
ceder eobedecer. Porém, o Consorte tem permissão para contornar
muitass dass
regrass.

Daemon ponderou atentamente naquelas palavras. Era difícil


detectarinflexões naquela voz sibilante, mas julgava tê-la percebido. —
Tendes maisconhecimentos sobre os pontos delicados do protocolo do
que eu — disse,
observando-a atentamente. — Agradeço o esclarecimento.

O rosto de Draca não sofreu alterações, mas Daemon teria jurado


verum sorriso. Ao afastar-se, Draca acrescentou: — A ampulheta esstá
quasevazia.

Com a mão pousada na maçaneta, rodou-a devagar ao mesmo tempo


que os últimos grãos de areia deslizavam para a base da ampulheta.
Aoabrir a porta, viu a ampulheta a girar para anunciar outra hora de
isolamento.
Deslizou velozmente para o quarto, fechando a porta.

Jaenelle estava junto a uma janela, contemplando a noite, ainda com

o vestido negro. Como homem, aquele vestido atraía-o de todas as


formasimagináveis associadas a uma peça de roupa feminina, e tinha
esperançasde que não o usasse unicamente em ocasiões formais.
Afastou esses pensamentos. Não só eram inúteis esta noite como
levavam
também a que o seu corpo desejasse reagir a ela de uma forma quenão
seria aceitável.

— Já foram embora? — perguntou Jaenelle baixinho, ainda a olharpela


janela.
Daemon observou-a, tentando perceber se era conversa de
circunstância
ou acaso se teria refugiado tão profundamente no seu próprio interior
que, de facto, não sabia.

— Já foram embora. — Dirigiu-se lentamente a Jaenelle, com cautela,


até se encontrar apenas a alguns centímetros e num ângulo que
permitiavê-la de perfil.
— Foi o castigo adequado — disse Jaenelle ao mesmo tempo que
outralágrima lhe escorria pelo rosto. — É o castigo adequado quando
uma Rainha
viola a corte de outra, infligindo danos.
— Podias ter pedido a qualquer um de nós para o fazer — disse
Daemon,
tranquilamente.
Jaenelle abanou a cabeça. — Sou a Rainha. Cabia-me a mim fazê-lo.

Não se isso te for consumir.

— Existe uma forma tradicional de quebrar um membro dos Sangue,


209
de destituí-lo do poder sem lhes provocar outros males. É rápido e
perfeito.

— Hesitou. — Arrastei-a até ao fundo do abismo.


— Levaste-a até ao lugar brumoso?
— Não — respondeu Jaenelle, rapida e contundentemente. — Esse éum
sítio especial. Não queria vê-lo corrompido... — Mordeu o lábio.
Daemon não desejava analisar o alívio que sentiu ao saber que
Alexandra
não tinha conspurcado o lugar brumoso com a sua presença.
Continuando a estudá-la, ocorreu-lhe tão inesperadamente que osentiu
como um murro no estômago: Jaenelle não se tinha recolhido a
talprofundidade no seu interior pela mágoa de ter quebrado outra
feiticeira;
retirara-se para lidar com uma espécie de sofrimento pessoal.

— Meu amor — disse Daemon, serenamente, — qual é o problema?


Diz-me, por favor. Deixa-me ajudar.
Quando se virou para olhá-lo, não viu uma mulher adulta ou
umaRainha ou a Feiticeira. Viu uma criança atormentada.

— Leland… a Leland preocupava-se, creio, mas nunca esperei


muitodela. Philip preocupava-se, mas não havia muito que pudesse
fazer. Alexandra
era a m-mãe da família. Era ela que tinha a força. Era a ela que
todosqueríamos agradar. E eu nunca a conseguia agradar, nunca
conseguia ser…
Amava-os a todos – Leland e Alexandra e Philip e Wilhelmina. — A
respiração
de Jaenelle deteve-se num soluço reprimido. — Eu amava-a – e ela
d-disse que eu era h-horrenda.
Daemon ficou a olhar para Jaenelle, impedido momentaneamente
defalar pela raiva repentina que o assolou. — A cabra disse o quê?

Sobressaltada pela virulência na voz de Daemon, olhou-o lucidamente


antes de voltar a esboroar-se. — Disse que era horrenda.

Quase podia ver as profundas cicatrizes da infância a reabrirem-se,


a sangrarem. Esta era a rejeição final, a dor final. A criança desafiara
essarejeição, tentara justificar o parco amor que lhe era dado de modo
condicional.
A criança tentara encontrar uma justificação para ser enviada
paraaquele horror, Briarwood. Todavia, a criança já não era criança e a
angústiade enfrentar uma verdade amarga estava a dilacerá-la.

Daemon percebeu ainda que, confrontada com estes maus


tratosemocionais, estava agora a agarrar-se à única parede sólida da
sua infância:
o amor e a aceitação de Saetan.
Ora bem, podia providenciar outra parede à qual se agarrar. Abriu
osbraços o suficiente para serem convidativos mas não para que fossem
vistoscomo uma exigência. — Anda cá — disse afectuosamente. — Vem
a meusbraços.

Sentiu o coração apertado ao vê-la arrastar-se, evitando olhá-lo, ao ver

o modo como o seu corpo estava preparado para a rejeição.


210
Envolveu Jaenelle com os braços, reconfortantes e protectores.

— Era uma boa Rainha, não era? — perguntou Jaenelle com uma
vozsuplicante, passados alguns minutos.
Daemon sentiu uma guinada de dor. Noutra altura, a mentira teriasido
fácil, mas não esta noite. Sabendo que iria destruir a derradeira
justificação
para o comportamento de Alexandra, transmitiu-lhe a verdade
tãosuavemente quanto conseguiu. — Comparada com as outras
Rainhas deTerreille, era uma boa Rainha. Comparada com qualquer
uma das Rainhascom as quais travei conhecimento desde que estou em
Kaeleer… Não, meuamor, não era uma boa Rainha.

Com as lágrimas, o sofrimento adveio, ao mesmo tempo que


Jaenelledesistia finalmente das pessoas que outrora tentara amar.

Abraçou-a, em silêncio. Limitou-se a abraçá-la, deixando que todo oseu


amor a envolvesse.

A porta abriu-se silenciosamente. Ladvarian entrou, seguido por Kaelas.

Daemon observou-os, perguntando-se se teriam decidido


sozinhosdesafiar a ordem de isolamento ou se teriam equiparado a
presença de Daemon
à permissão para entrarem.

Passado um minuto, a ponta da cauda de Ladvarian abanou uma única


vez. «Voltaremos mais tarde.«
Saíram tão discretamente quanto entraram.

211
CAPÍTULO OITO

1 / Kaeleer

O Senhor Magstrom caminhava enervado pela divisão onde estavam


arquivados
os registos da feira de serviços. Estava em casa há dois dias apenas
e ainda estava a pôr em dia os assuntos oficiais da sua própria aldeia.
Contudo, o Senhor Jorval solicitara que regressasse com urgência à
capitalda Pequena Terreille com o objectivo de discutirem um assunto
da “maiorimportância”.

Passara vários dias com a neta mais velha e com o respectivo marido
– dias que foram passados em excitação e apreensivamente ao invés
do repouso de que tanto precisava. A sua neta estava grávida do
primeiro filho e, embora maravilhada, estava também bastante enferma.
Por isso, passara a maior parte do tempo a sossegar o marido de
que a sua neta não se divorciaria do homem que amava
simplesmentepor não conseguir manter o pequeno-almoço no estômago
durante algumas
semanas.

Não devia ter referido “algumas semanas”. Ao ouvir tais palavras, o


jovem homem parecia prestes a desmaiar.

Chegara a escrever uma carta à pressa ao Senhor Supremo relatandoas


disparidades encontradas nos registos da feira de serviços mas,
posteriormente,
hesitara em enviá-la, conjecturando se o seu próprio cansaçonão teria
transformado em algo sinistro aquilo que não passava de
trabalhoadministrativo descuidado.

Não importava. Logo que regressasse a casa, elaboraria uma cartamais


ponderada e redigida com mais desvelo, expressando preocupação enão
alarmismo.

Acabara de tomar esta decisão quando a porta se abriu de rompante e

o Senhor Jorval entrou na sala.


— Ainda bem que viestes, Senhor Magstrom — disse Jorval, quase
sem fôlego. — Não sabia ao certo em quem mais poderia confiar. Mas
212
quem quer que tenha trabalhado convosco sabe que não poderíeis
estarenvolvido nisto.

— E o que é “isto” exactamente? — perguntou Magstrom,


cautelosamente.
Jorval dirigiu-se às prateleiras dos registos e retirou uma pasta
volumosa.
Magstrom sentiu um aperto no estômago. Era a pasta haylliana –
amesma que estivera a examinar antes de partir apressadamente de
Goth.
Com as mãos trémulas, Jorval folheava os papéis, pousando vários
namesa larga.

— Vede. Existem disparidades nestas listas. — Regressou à pressa


àsprateleiras, retirou várias pastas e deixou-as cair na mesa. — E não é
sónas listas hayllianas. De início, julguei ser um erro administrativo,
mas…
— Retirando uma folha de uma das pastas, apontou. — Lembrais-vos
deste
homem? Era completamente desajustado para Kaeleer. Completamente
desajustado.
— Lembro-me dele — disse Magstrom debilmente. Um homem
brutocujo odor psíquico lhe provocara calafrios. — Foi aceite numa
corte?
— Sim — disse Jorval sinistramente. — Nesta.
Magstrom semicerrou os olhos para tentar decifrar os gatafunhos.
Onome da Rainha bem como o Território que governava eram quase
ilegíveis.
O único elemento que conseguia perceber distintamente era que
oterritório estava localizado na Pequena Terreille. — Quem é esta...
Hektek?

— Não sei. Não existe nenhuma Rainha chamada Hektek que


governenem que seja uma aldeia na Pequena Terreille. Contudo, foram
aceites trinta
terreilleanos nesta pretensa corte. Trinta.
— Sendo assim, para onde se estão a dirigir estas pessoas?
Jorval hesitou. — Estou convicto de que alguém está a criar um exército
em segredo, mesmo debaixo dos nossos narizes, servindo-se da feira
deserviços para cobrir os rastos.

Magstrom engoliu em seco. — Sabeis de quem se trata? — perguntou,


mais ou menos à espera de que Jorval acusasse o Senhor Supremo – o
queseria ridículo.

— Julgo que sim — respondeu Jorval, com um brilho invulgar nosolhos.


— Caso se confirmem as minhas suspeitas, as Rainhas de Territóriode
Kaeleer têm de ser avisadas de imediato. Foi por isso que solicitei
queviesses. Hoje à noite vou encontrar-me com alguém que alega ter
informações
sobre as pessoas que faltam nas listas. Queria ser acompanhado
poroutro membro do Conselho como testemunha, de modo a confirmar
aquilo
que irá ser dito. Solicitei-vos a vós pois, se estivermos em perigo, o
Senhor
Supremo dar-vos-á ouvidos.
213
Foi o suficiente para que Magstrom tomasse uma decisão. — Visto quea
revelação destas informações envolve algum risco, não devemos
deixaressa pessoa à espera.

— Não — respondeu Jorval, num tom de voz esquisito, — não devemos.


Praticamente assim que saíram do edifício, conseguiram um
cabriolédisponível. O cabriolé foi envolto num silêncio pesado até que,
decorridosuns minutos, parou.

Magstrom saiu, olhou em redor e sentiu um receio pungente.


Estavamnos limites dos bairros degradados de Goth e este não era um
sítio para osincautos – ou para um idoso.

— Bem sei — apressou-se Jorval a dizer, ao pegar Magstrom pelobraço,


conduzindo-o pelas ruas estreitas e sujas. — Parece um sítio improvável
para um encontro, mas julgo ser essa a razão que levou a estaescolha.
Mesmo que fôssemos reconhecidos, pensariam estar equivocados.
Com a respiração ofegante, Magstrom debateu-se para
acompanharJorval. Podia sentir os olhos que os observavam das
entradas envoltas emsombras – e sentia igualmente o tremeluzir de
energia que advinha de quemos observava. As razões que levavam um
macho de Jóias escuras a ir parara um lugar destes eram diversas.

Por fim, entraram discretamente na porta das traseiras de um


enormeedifício e subiram as escadas em silêncio. Numa porta do
segundo andar,
Jorval introduziu uma chave desajeitadamente, para se afastar logo de
seguida,
cedendo passagem a Magstrom.

A mobília da sala de estar era em segunda mão e estava gasta. A


própria
divisão parecia não ter sido minimamente limpa há muito tempo. Efedia
a deterioração.

— Há algum problema? — perguntou Jorval, num tom de voz


estranhamente
alegre.
Magstrom dirigiu-se às janelas estreitas. Um pouco de ar poderia ajudar
a aliviar o fedor. — É provável que tenha morrido um rato ou
umaratazana no interior das paredes, por isso…

Jorval emitiu um som invulgar – uma risada aguda – no preciso


momento
em que a porta do quarto se abriu e por ela passou uma
silhuetaencapuzada.

Magstrom virou-se – e não conseguiu pronunciar uma única palavra.


As articulações dos dedos espreitavam pela pele rachada enquanto
asmãos escuras afastavam o capuz.
Magstrom olhou estupefacto para os olhos dourados repletos de ódio

214
naquele rosto deteriorado e em decomposição. Deu um passo na
direcçãode Magstrom que, por sua vez, deu um passo à retaguarda.
Depois, recuououtro... e outro... até já não restar saída.

Jorval sorriu-lhe. — Julguei que era altura de conhecerdes a


Sacerdotisa
Suprema.

2 / Kaeleer

— Há algum problema? — Daemon perguntou a Saetan. Olhou de


relancepara Lucivar, que observava o pai com atenção.
Por fim, Saetan ergueu os olhos do papel que se encontrava em cimada
secretária. — Recebi uma carta do Senhor Jorval, informando-me que
oSenhor Magstrom foi brutalmente assassinado ontem à noite.

Daemon expirou devagar enquanto Lucivar vociferava. — Estive


porbreves instantes com Magstrom na feira de serviços. Parecia ser um
homem
respeitável.

— Era — respondeu Saetan. — E era também o único membro


doConselho das Trevas com o qual Jaenelle se dispunha a falar.
— Como morreu? — perguntou Lucivar sem rodeios.
Saetan hesitou. — Encontraram-no num beco dos bairros degradadosde
Goth. O corpo estava tão dilacerado que correm conjecturas
desgovernadas
de que Magstrom foi morto por parentes.

Daemon disse: — Por que razão suspeitariam dos parentes? —,


aomesmo tempo que Lucivar resmoneava: — Foi uma morte absoluta?

— Sim, foi uma morte absoluta — disse Saetan sinistramente,


respondendo
primeiro à pergunta de Lucivar. — Por isso não há sequer uma ínfima
hipótese de Magstrom se tornar fantasma no Reino das Trevas
pelotempo suficiente que permita contar a alguém o que
verdadeiramente lheaconteceu. Existem matilhas feríssimas e podem
representar um grande perigo,
contudo um escudo produzido pela Arte teria protegido Magstrom.
Somente uma matilha de parentes ou alguém que usasse Jóias mais
escurasdo que Magstrom teria a capacidade de lhe esgotar o poder
psíquico deforma a concluir a morte.
— E isso é plausível? — perguntou Daemon.
— Se um humano desconhecido entrar num dos Territórios dos
parentes,
é quase certo. Mas em Goth? Não.
— Assim sendo foi mutilado de modo a ocultar as verdadeiras feridas
fatais.
— Assim parece.
— Jorval pretende adiar a cura? — perguntou Lucivar.
215
Saetan abanou a cabeça. — O encontro continua agendado para o final
desta tarde. Está tudo a postos?

Lucivar anuiu. — Saímos na próxima hora.

— O local para onde levas Jaenelle é seguro? — questionou Saetan.


— É uma casa da guarda em Dea al Mon — disse Lucivar. — Chaostiirá
acompanhar-nos e os guardas dos Dea al Mon irão providenciar a
protecção
física adicional. A Gata disse que tinha alguns afazeres em Amdarhpor
isso é para aí que nos encaminharemos depois, permanecendo por
umou dois dias. Chaosti regressará aqui para apresentar o relatório.
Com algum esforço, Daemon enclausurou o ciúme que o estava
acorroer por dentro. Lucivar não tinha motivos para pensar duas vezes
eplanear a estadia de dois dias com Jaenelle, apesar dos eyrienos que
aindaaguardavam ser instalados em Askavi antes que o Inverno
chegasse, apesarde ter uma esposa e um filho. Jaenelle não era apenas
sua irmã, era tambémsua Rainha. Não havia sombra de dúvida de que
a acompanharia sempreque precisasse dele e fosse para onde fosse.

Afastando esses pensamentos, Daemon concentrou-se no horário.


Não tinha tomado muita atenção à viagem de Goth para o Paço, mas
deviater demorado no mínimo duas horas. A viagem para este local
secreto emDea al Mon demoraria ainda mais, com toda a certeza. Se
Lucivar contava
sair no decorrer da hora seguinte para chegar à casa da guarda,
contavachegar com o tempo suficiente para que Jaenelle descansasse e
comesse umalmoço tardio antes de se dedicar ao que quer que fosse
fazer. Somente otempo suficiente...

O Sádico despertou. Olhou para Saetan e viu as suas próprias


suspeitasreflectidas nos olhos do pai. — Quando encontraram o corpo?
— perguntou
com demasiada afabilidade.

Lucivar pôs-se em sentido para logo praguejar ferozmente.

Saetan devolveu-lhe o olhar por um momento. — Se Jorval tivessesido


informado de imediato, só lhe restaria tempo para escrevinhar umanota
apressada e enviá-la por mensageiro.

— Foi escrita à pressa?


— Não, eu diria que não.
O que significava que Jorval teve conhecimento da morte de Magstrom
antes de encontrarem o corpo. E fora Jorval a tratar de tudo para
queJaenelle fosse à Pequena Terreille.

Logo que Daemon e Lucivar se distanciaram do gabinete de Lucivar,


Daemon pousou uma mão no ombro de Lucivar, com as longas unhas
tingidas
a negro a tocarem levemente mas garantindo que o seu irmão estavaa
prestar atenção. — Farás tudo o que for necessário para mantê-la a
salvo etomar conta dela, não farás?

216
— Eu protejo-a, Bastardolas. Podes contar com isso. — Depois sorriude
modo indolente e arrogante. — Mas tu é que vais tomar conta dela.
Nãotens sequer uma hora para fazer as malas, meu velho. Conta
também comdois dias em Amdarh.
Daemon olhou atónito para Lucivar para depois recuar e enfiar asmãos
nos bolsos das calças. — Não se sente à vontade comigo, Bastardinho.

— Não conseguira admitir nem sequer a Lucivar como Jaenelle tinha


praticamente
fugido dos seus próprios aposentos para se afastar dele, depois deter
passado a noite com ela. — A minha presença só a iria angustiar.
— És o seu Consorte — disse Lucivar com brusquidão. — Impõe-te.
— Mas…
— Não irá dar atenção a nenhum de nós antes deste encontro e estarei
contigo quando fores a Amdarh. Enquanto Jaenelle estiver ocupada
aamaldiçoar-me por andar sempre a tropeçar em mim, não terá tempo
de sesentir nervosa pela tua presença. — Lucivar calou outro protesto,
ainda quedébil. — Quero que estejas na casa da guarda, Daemon.
Compreendeu, por fim. Lucivar não o queria presente por ser o
Consorte
mas por ser o Sádico.
Daemon acenou afirmativamente com a cabeça. — Estarei
prontoquando tu estiveres.

3 / Kaeleer

Reparando no pesar reprimido nos olhos de Jaenelle, Lucivar não


precisoude perguntar se fora informada sobre a morte do Senhor
Magstrom. Sentiu-
se tentado a perguntar se queria adiar o encontro, mas não o fez.
Haviaalgo mais naquele olhar que lhe dizia que iria levar a cabo este
encontro, porrazões pessoais.

Fitou o grande estojo achatado junto à mala de viagem de Jaenelle.


Tinha vários estojos desse género, de tamanhos diferentes, que
continhamas estruturas em madeira que usava para tecer as diversas
teias.

— Estás a pensar que vais tecer uma teia medicinal daquele tamanho?
— perguntou.
— Não é para a teia medicinal; é para a sombra.
Voltou a contemplar o estojo. Uma “sombra” era uma ilusão
elaboradaque podia enganar o olhar, levando a acreditar na presença
real de umapessoa. Jaenelle tinha a capacidade de criar uma sombra
tão realista que aúnica diferença entre essa sombra e o seu próprio
corpo era que, enquantoa sombra conseguia apanhar ou tocar em
qualquer objecto, não era possíveltocar-lhe. Produzira esse tipo de
sombra há oito anos, quando iniciara a
217
demanda por Daemon, de modo a trazê-lo do Reino Distorcido e Lucivar
tinha ainda bem presente as consequências físicas nefastas que tal acto
acarretara.

— Sentes-te com forças suficientes para canalizar toda essa energia


peloteu corpo para que a sombra seja capaz de realizar uma cura
abrangente?
— Não será necessária uma cura assim tão profunda —
respondeuJaenelle calmamente.
Não fora essa a impressão com que ficara, nem Saetan, pelas
cartasprementes de Jorval, mas sabia que era melhor manter-se em
silêncio. Terestado ao serviço de Jaenelle durante os últimos anos,
ensinara-o a saber as
alturas certas de transigir.

Jaenelle fez desaparecer o estojo e a mala de viagem e pegou numacapa


negra comprida e com capuz. — Vamos?

4 / Kaeleer

Kartane SaDiablo caminhava agitadamente de um lado para o outro na


salade estar dos seus aposentos.

A cabra estava atrasada. Se estivesse na sua casa, a cabra não se


atreveria
a deixar o filho de Dorothea à espera. Fogo do Inferno, quase que
sesentia satisfeito por estar prestes a regressar a Hayll.

Enervando-se ao ponto de se sentir ofensivamente ultrajado, quasenão


se seu conta da leve batida à porta. Tentou dominar-se. Precisava
destacabra que, Jorval assegurara, era a melhor Curandeira de Kaeleer.
Se fossegrosseiro, nada, nem ninguém a impediria de sair porta fora.

Caminhou até às janelas e olhou para a rua. Não havia razão para
quesoubesse que a aguardava ansiosamente, não havia razão para lhe
concederessa pequena dose de poder sobre ele. — Entrai — disse
quando voltarama bater à porta.

Não ouviu a porta abrir, mas quando se virou, viu uma figura envolta
numa capa negra e com capuz.

De início, julgou tratar-se daquela feiticeira a que Dorothea chamavade


Sacerdotisa Suprema, contudo, no odor psíquico da Sacerdotisa
Suprema
sentia-se uma certa viscosidade ao passo que este odor...

Kartane franziu o sobrolho. Não conseguia detectar qualquer


odorpsíquico. — Sois a Curandeira? — perguntou de modo duvidoso.
— Sou.
Kartane sentiu calafrios ao ouvir aquela voz da meia-noite.
Tentandoignorar o desconforto, começou a desabotoar a camisa. —
Julgo que pretendeis
examinar-me.

218
— Não será necessário. Sei o que se passa convosco.
Os dedos imobilizaram-se no botão. — Já vistes esta enfermidade
anteriormente?

— Não.
— Mas sabeis do que se trata?
— Sim.
Irritado com as respostas sucintas, pôs de parte os esforços de civismo.
— Então o que raio é isto, em nome do Inferno?
— Chama-se Briarwood — respondeu a voz da meia-noite.
Kartane ficou sem pinga de sangue na cabeça, sentindo tonturas.
— Briarwood é o veneno embelezado — prosseguiu a voz ao
mesmotempo que as mãos de pele clara afastavam o capuz. — Não há
cura paraBriarwood.
Kartane fitou-a boquiaberto. A última vez que a vira, treze anos atrás,
assemelhava-se mais a uma marioneta sedada do que a uma criança –
umjoguete fechado num dos cubículos de Briarwood, à espera de ser
utilizado.
Porém, jamais olvidara aqueles olhos azul-safira ou o terror que sentira
aotentar tocar-lhe a mente.

— Tu. — A palavra foi proferida como pouco mais do que uma exalação.
— Julguei que Greer te tinha destruído.
— Tentou.
Foi então que se apercebeu. Apontou um dedo acusador. — Foste tuque
me fizeste isto. Foste tu!

— Sim, fui eu que criei a teia entrelaçada. Quanto ao que te aconteceu,


Kartane, foste tu próprio a infligi-lo.
— Não!
— Sim. Cada um receberá aquilo que infligiu. Foi a única instruçãoque
teci na teia.
— Visto que foste tu a provocar isto, podes perfeitamente desfazê-
lo!
Abanou a cabeça. — Muitas das crianças que constituíam os fios dateia
entrelaçada regressaram às Trevas. Mesmo para mim, são inatingíveis
enão existe forma de desfazer a teia sem elas.

— Mentes — gritou Kartane. — Se te puser nas mãos bastante ouro,


depressa encontrarás uma forma.
— Não existe cura para Briarwood. Mas existe uma forma de acabar
com isto, se te serve de consolo. A cada um o que infligiu.
— O QUE SIGNIFICA ISSO?
— Cada murro, cada ferida, cada violação, cada momento de terror
que alguma vez infligiste a outrem regressará a ti. Estás a recuperar
aquiloque ofereceste, Kartane. Quando estiver tudo recuperado, a dívida
ficará
219
saldada e a teia irá libertar-te tal como o fez com os outros machos que
sedeleitaram em Briarwood.

— Estão todos mortos, cabra estúpida! Sou o único que resta. Ninguém
sobreviveu a esta tua teia.
— A teia apenas definiu as condições. Se nenhum dos outros
sobreviveu…
Quantas das crianças que foram enviadas para Briarwood viverampara
além de todos vós?
— Visto que não vieste aqui para me curar, porque te deste ao trabalho
de vir? Só para te regozijares?
— Não. Vim representar as que já partiram.
Kartane observou-a e, de seguida, abanou a cabeça. — Podes
acabarcom isto.

— Já te disse, não posso.


— Podes acabar com isto. Podes acabar com o sofrimento. Raios me
partam se não vais fazê-lo!
Com um uivo de raiva, Kartane lançou-se sobre Jaenelle – e atravessou-
a. Bateu contra a porta, incapaz de se deter.
Quando se voltou, a sala estava vazia.

5 / Kaeleer

Daemon aproximou-se cautelosamente de Jaenelle, relutante em


perturbara sua solidão e sem saber o que pensar da invulgar mescla de
tristeza e desatisfação no rosto da mulher. A solidão era ilusória,
obviamente. Ao sair do
seu quarto na casa da guarda, indo sentar-se junto ao riacho, foi
seguida porLucivar, Chaosti e meia dúzia de guardas Dea al Mon que
desapareceramagilmente na floresta. Não conseguia ver nenhum mas
sabia que estavampróximos, a observar e a escutar.

— Toma — disse baixinho, oferecendo-lhe uma caneca. — É um simples


chá de ervas. Nada de mais. — Quando Jaenelle agradeceu, enfiou
asmãos nos bolsos das calças, constrangido. — Está tudo bem?
Jaenelle hesitou. — Fiz o que tinha vindo fazer. — Bebeu um gole
dechá, examinou o interior da caneca e olhou para Daemon. — É de
quê?

— Um pouco disto e daquilo.


— Um-um.
Se aquele tom duvidoso tivesse provindo de outra mulher, ter-se-
iasentido insultado. Mas a concentração – e o vestígio de frustração –
nosseus olhos ao beber mais um pouco indicava que a sua dúvida era
causadaprincipalmente pelo seu desdenhoso “nada de mais” do que
pela própriainfusão.
220
Fitou-o de modo especulativo. — Estarás disposto a trocar a
receitadesta infusão por uma das minhas?

Visto que a apreciava tanto, sentiu-se tentado a recusar para que fosseo
único a saber fazê-la para ela, mas rapidamente se apercebeu de que
otempo passado com Jaenelle a uma mesa repleta de ervas seria muito
maisproveitoso.

Daemon sorriu. — Sei fazer algumas infusões que deves achar


interessantes.

Jaenelle devolveu o sorriso, para logo esvaziar a caneca e pôr-se de pé.

— Gostava de partir logo que possível para Amdarh — disse, ao


caminharem
de regresso à casa da guarda. — Assim, poderemos instalar-nos
aindaesta noite.
Apesar dos avisos convictos de Lucivar e de Chaosti, Daemon teve
demorder a língua para não lhe sugerir que comesse algo antes de
partir. Informaram-
no de que a resistência às tentativas de comer alguma coisa
seriaproporcionalmente directa ao estado de espírito depois de voltar
daquele
encontro. Necessitara unicamente de um olhar de relance ao seu rosto
quando saiu do quarto para saber que qualquer sugestão teria sido
inútil.

— Creio que irás gostar de Amdarh — disse Jaenelle. — É uma linda...


— Parou de caminhar e farejou o ar. — Será guisado?
— Julgo que sim — respondeu Daemon afavelmente. — Lucivar
eChaosti preparam-no. Deve estar quase pronto.
— Fizeram guisado silvestre?
— Julgo ser esse o nome.
Jaenelle mirou-o. — Deves estar com fome.
Mesmo que nunca tivesse entendido uma indirecta na sua vida, não
era possível deixar esta passar. — Na verdade, estou. Achas que
podemospartir para Amdarh depois de jantar?
Jaenelle virou a cabeça, mas Daemon conseguiu vê-la a lamber os
lábios.
— Não demoraria muito a comer uma tigela de guisado. Ou duas

— acrescentou ao apressar-se para a casa da guarda.


Daemon alargou o passo para a acompanhar e magicou até que pontoos
machos iriam disputar o seu quinhão.

6 / Kaeleer
Kartane irrompeu na sala de jantar de Jorval. — Aquela cabra está
viva?

— questionou.
Jorval correu na sua direcção enquanto um homem que Kartane nunca
vira continuou sentado à mesa, limitando-se a olhar fixamente.

221
— Senhor Kartane — disse Jorval, ansioso. — Se soubesse que o
tratamento
seria tão rápido, teríamos aguardado...
— Maldito sejais, respondei à pergunta! Está viva?
— A Senhora Angelline? Sim, claro que está viva. Porque perguntais?
Não compareceu?
— Compareceu — resmoneou Kartane.
— Não compreendo — disse Jorval, quase em guisa de lamentação.
— É a melhor Curandeira do Reino. Se ela...
— FOI ELA QUE ME FEZ ISTO!
O olhar chocado de Jorval foi celeremente substituído por um
olharmatreiro. — Compreendo. Juntai-vos a nós, por favor. Vejo que
passastesuma tarde perturbadora. Porventura alguma comida e
companhia possamfazer-vos sentir melhor.

— Nada me fará sentir melhor até aquela cabra ser dominada — ri-
postou Kartane, aceitando sentar-se à mesa e enchendo de imediato
umcopo de vinho. Olhou furiosamente para o outro homem, que
continuavaa fitá-lo.
— Senhor Kartane — disse Jorval de modo adulador, — apresento-
vos o Senhor Hobart. Também ele tem razões para querer ver Jaenelle
Angelline
subjugada.
— E não só Jaenelle Angelline — resmungou Hobart.
— Oh? — exclamou Kartane, afastando a raiva à medida que aguçava
o interesse em Hobart.
— O Senhor Hobart controlou o Território de Glacia durante vários
anos — disse Jorval. — Quando a sobrinha se tornou a Rainha do
Território…
— A galdéria ingrata EXILOU-ME! — gritou Hobart.
— E pretendeis recuperar o controlo — disse Kartane, começando
aperder o interesse.
Ao que Jorval acrescentou: — A Senhora Karla é amiga íntima de
Jaenelle.
Kartane escolheu comida ao acaso dos pratos que lhe eram
apresentados,
ao mesmo tempo que digeria aquela informação. Não havia nadamais
prazenteiro neste momento do que magoar uma amiga íntima daquela
cabra. — Talvez possa ajudar. A minha mãe é a Sacerdotisa Suprema
deHayll.

Hobart ficou bastamente impressionado mas igualmente apreensivo.


Pigarreou. — É uma oferta generosa, Senhor Kartane. Uma oferta
bastante
generosa, mas…

— Mas já estais a ser auxiliado pela Sacerdotisa das Trevas —


conjecturou
Kartane. Ao ver Hobart empalidecer, cruzou dois dedos e levantou222
-os. — Talvez não tenhais conhecimento de que a minha mãe e a
Sacerdotisa
Suprema são assim.

Hobart engoliu em seco. Jorval limitou-se a beber o seu vinho e a


observá-
los com olhos obscuros, repletos de aprazimento matreiro.

— Compreendo — disse Hobart, por fim. — Nesse caso, a vossa ajudaé


muito bem-vinda.
223
CAPÍTULO NOVE

1 / Kaeleer

Andulvar instalou-se numa cadeira à frente da secretária em madeira


escura
de Saetan. — A Karla diz que estiveste aqui enfiado a amuar nas
últimasduas horas, desde que recebeste uma mensagem da Senhora
Zhara.

Saetan olhou para o amigo de longa data com o olhar mais gélido
queconseguiu. — Não. Estou. A. Amuar.

— Tudo bem. — Andulvar aguardou. — Sendo assim, o que estás a


fazer?
Saetan recostou-se na cadeira. — Responde a isto: se quisesse fugir
decasa, haveria algum sítio nos Reinos para onde pudesse ir e não ser
encontrado?

Andulvar coçou o queixo. — Bem, se te quisesses esconder das Rainhas


de Dhemlan ou da assembleia, existem bastantes lugares onde poderias
ocultar-te. Se quissesses esconder-te da tua prole masculina,
existemalguns sítios no Reino das Trevas que até Mephis demoraria a
lembrar-se.
Mas se fosse Jaenelle a procurar-te…

— E é precisamente por isso que ainda estou aqui sentado. —


Saetanmassajou a testa e suspirou. — Zhara convocou-me a Amdarh
para tratarde um problema.
Andulvar franziu o sobrolho. — Lucivar está em Amdarh, não está?
Se Zhara precisa de ajuda de um macho mais poderoso do que aqueles
queservem na sua corte, por que não lhe pediu a ele?

Saetan semicerrou os olhos dourados e deixou que as palavras


atingissem
Andulvar como pedras atiradas com precisão. — Lucivar está
emAmdarh com Jaenelle.

O silêncio ficou tão pesado como uma cortina de ferro.

— Ah — disse Andulvar, por fim. — Bem, Daemon…


— Está em Amdarh com Lucivar e Jaenelle.
— Mãe Noite — murmurou Andulvar entre dentes, para logo
224
acrescentar circunspectamente: — Quais foram as palavras de Zhara?
Saetan pegou no papel com a mensagem e leu com uma voz lúgubre:

— Os vossos filhos estão a divertir-se imenso. Vinde buscá-los.


2 / Kaeleer

Daemon apoiou a cabeça nas mãos e fechou os olhos.

— Mãe Noite — exclamou Lucivar, articulando as palavras


espaçadamente.
— Nunca estive tão embriagado — gemeu Daemon baixinho.
Lucivar olhou-o espantado, com os olhos raiados de sangue. — É
claroque já estiveste.

— Talvez umas duas vezes naquela estúpida fase de adolescente,


masnunca desde que uso a Negra. O meu corpo consome o álcool tão
depressaque não consigo embriagar-me.
— Mas não desta vez — disse Lucivar, acrescentando depois de
umalonga e possivelmente meditativa, pausa: — Eu já estive assim tão
embriagado.
— De verdade? Quando?
— Da última vez que fui correr as capelinhas com Jaenelle. Grandeerro.
Devia ter-me lembrado. E assim teria acontecido se estivesse sóbrio
quando me lembrei efectivamente.
Depois de um minuto de árduo esforço, Daemon desistiu de
tentardecifrar esse comentário e encontrou algo mais em que pensar. —
Nuncafui expulso de uma cidade.

— É claro que já foste — disse Lucivar tão ruidosamente que ambos


gemeram.
Daemon abanou a cabeça, apercebendo-se desse erro um pouco
tardedemais. Mesmo quando conseguiu parar, a divisão continuava a
balançarpara a frente e para trás, e o que restava do cérebro
chapinhava ruidosamente
no interior do seu crânio. Engoliu com cuidado. — Fui expulso decortes
e proibiam-me de regressar à cidade por ser o território da Rainha,
mas isso é diferente.

— ‘Tá tudo bem — disse Lucivar. — Dentro de algumas semanas,


Zhara receber-te-á de braços abertos.
— Não me pareceu insensata. Por que razão faria tal coisa?
— Porque nós representamos uma influência moderadora em Jaenelle.
— Ai sim?
Ficaram a olhar um para o outro até a porta da sala de jantar se abrir.
225
Daemon apoiou-se, com a certeza absoluta de que o ruído da porta
abater o iria matar.

— Mãe Noite — disse Surreal, reprimindo o riso. — São patéticos.


— São, não são? — Na resposta de Saetan não estava presente qualquer
indício de riso.
Os passos suaves que se aproximavam da mesa faziam a sala vibrar.

— Não gritem, por favor — choramingou Daemon.


— Tal não me passaria pela cabeça — respondeu Saetan num tom
devoz que, não obstante, fez retinir os ossos de Daemon. — Não faria
sentidogritar. Ficariam estatelados no chão, inconscientes, após a
primeira palavra.
Por isso, guardarei o sermão para quando estiverem sóbrios de modo a
entenderem,
pois é minha intenção fazê-lo num volume bastante elevado. Aúnica
questão que quero ver respondida neste momento é saber que porcarias
enfiaram pela garganta abaixo para vos deixar neste estado?
— Coveiros — balbuciou Lucivar.
— Quantos? — perguntou Saetan com um ar ameaçador.
Lucivar respirou fundo um par de vezes. — Não tenho bem a certeza.
Ficou tudo um bocado vago depois do sétimo.

— Depois do… — Uma longa pausa. — Conseguem andar até aosvossos


quartos?
— Claro que sim — disse Lucivar. Foram necessárias umas
quantastentativas mas conseguiu pôr-se de pé.
Não querendo ser superado, Daemon também se levantou –
arrependendo-
se de imediato.

— Leva Lucivar — disse Saetan a Surreal. — Parece conseguir


equilibrar-
se melhor.
— Isso é porque não acabei as bebidas — Lucivar apontou para
Daemon,
inclinou-se para um lado e quase esmagava Surreal contra a mesa.
— É por isso que estás tão bêbedo. Eu avisei-te para não as beberes até
ao
fim.
Daemon tentou produzir um ruído grosseiro, acabando por
atingirSaetan com uma cuspidela.
Sem mais comentários, foi arrastado para fora da sala e para uma
escadaria
terrivelmente a pique. Ao chegar junto à cama, tentou deitar-se masfoi
puxado para cima e despido ao mesmo tempo que a ira do seu pai fazia

o quarto pulsar.
— Precisas de uma bacia? — perguntou Saetan, sem compaixão
dequalquer espécie.
— Não — respondeu Daemon com humildade.
Por fim, conseguiu deitar-se. A última recordação que lhe ficou foi amão
de Saetan a afastar-lhe o cabelo numa carícia meiga.

226
Surreal fechou a porta do quarto de Lucivar no momento exacto emque
Saetan saía do quarto de Daemon.

— Agradeço o teu auxílio — disse Saetan quando se encontraram ao


cimo das escadas.
Surreal sorriu de orelha a orelha. — Não perderia isto por nada.
Começaram a descer as escadas. — Conseguiste deitar Lucivar?

— Fartou-se de rosnar e não parava de me dizer para lhe tirar asmãos


de cima pois é um homem casado. Não se queria despir mas eusalientei
que, sendo casado, deveria saber que não devia tentar ir para acama
com botas naquele estado. Enquanto nos debatíamos com as botas,
reflectimos no modo como aquele pequeno peixe foi parar entre
osatacadores.
Saetan parou no final da escadaria. — E como é que foi parar entre os
atacadores?

— Não tem ideia. Por isso, fiz um funeral condigno ao peixe, no mar,
por assim dizer, consegui convencer Lucivar que despir-se da cintura
paracima não era indecoroso visto que sou da família e deixei o que
restava delecair na cama. — Surreal olhou em redor.
— Dizei-me, não ides aconchegar Jaenelle?
— Neste momento — disse Saetan, friamente, — Jaenelle está na
cozinha,
a aconchegar-se a um fausto pequeno-almoço.
— Oh, bolas! — disse Surreal, rindo-se à gargalhada.
3 / Kaeleer

Karla retirou o anel do estojo e colocou-o no segundo dedo da mão


direita.
Era um anel simples em ouro amarelo e branco, com uma pequena
safiraoval. De bom gosto, embora não chamasse a atenção, era feminino
o bastante
para que alguém não magicasse sobre o facto de uma mulher o usar.
Um anel prático, em oposição a um anel vistoso. — É perfeito.

— Tinha pedido a Banard que fizesse esse em primeiro lugar —


disseJaenelle, — mas acabou por fazer todos os anéis da assembleia
dada a simplicidade.
— Fez uma pausa, para logo acrescentar: — Também encomendei
anéis para Surreal e Wilhelmina. Estão prontos na semana que vem.
Karla acenou com a cabeça ao examinar o anel. — Como faço
paraactivar o escudo no seu interior?

— Poderias activá-lo deliberadamente pela Jóia Cinzenta. Mas


estáafinado da mesma forma que os Anéis de Honra dos rapazolas e
reagirá aomedo, à raiva e à dor causada por um ferimento grave. Está
definido paraemoções de grande intensidade pois quando é activado,
quem quer que
227
esteja ao alcance e que use um Anel ligado a este irá agir como se fosse
umchamamento de guerra. E é isso que é.

— Qual é o alcance? — perguntou Karla. — Se for activado,


Mortonpoderá sentir ainda que não se encontre na mesma cidade?
Jaenelle olhou-a de modo estranho. — Karla, se alguma coisa despertar
o escudo desse anel, não terás apenas Morton a bater-te à porta,
aparecerão
Sceron, Jonah, Kaelas, Mistral e Khary – bem como as nossas
Irmãsdessa zona do Reino.

— Mãe Noite! — Karla franziu o sobrolho para o anel. — Mas… peloque


sei, os rapazolas já usaram este escudo ocasionalmente e os outros não
se passaram.
— Não creio que responderiam a um sinal proveniente de um anelusado
por uma Rainha da mesma forma que reagiriam a um sinal de
outroIrmão da corte — disse Jaenelle, com frieza. — Além disso, nesta
altura,
os machos já estão todos em sintonia uns com os outros. Sabem
quandodevem permanecer alerta, aguardando outro sinal e quando
devem largartudo e correr a toda a velocidade ao encontro de quem se
encontre em sarilhos.
— Achas que não irão aguardar?
— Nem pensar.
Karla suspirou. Era um pouco mais de atenção masculina do que
antecipara
e agradecia a advertência.

— Agora vou ligá-lo à tua Jóia Cinzenta — disse Jaenelle, estendendoa


mão direita.
— Os rapazolas não irão detectar isso? — perguntou Karla, pousandoa
sua mão direita na de Jaenelle.
— Vão e demorarão menos de dois minutos a perceberem que alguémna
assembleia está a usar um anel ao qual se podem agora ligar.
Bem, quantos mais, melhor, pensou Karla. Com todos a usarmos um
anel destes...

— E demorarão cerca de um minuto a perceberem a sensação distintiva


deste anel específico e a reconhecê-lo como sendo teu.
— Fogo do Inferno.
O sorriso de Jaenelle era compreensivo, mas divertido. — Espera
atéLucivar aparecer pela primeira vez. É uma experiência e tanto.

— Tenho a certeza que sim — balbuciou Karla.


Decorridos alguns instantes, sentiu um rasgo de frio seguido por
umrasgo de calor. O anel pulsava no seu dedo. As sensações
dissiparam-se masKarla podia sentir o profundo reservatório de poder
que aguardava inacessível.
— Também tens que ter em conta que, quando o escudo é activado, as
228
únicas pessoas que te poderão tocar se necessitares fisicamente de
ajuda sãotodos os restantes membros do Primeiro Círculo — informou
Jaenelle.

Karla anuiu. — Nesse caso, é melhor usá-lo permanentemente.


Nãoquero que alguém o enfie e que tenha esse tipo de protecção.

— Mais ninguém poderá usar este anel. Foi concebido para ti. Se
outrem
tentar activar o escudo, os resultados serão… desagradáveis.
— Compreendo. — Não pediu que Jaenelle definisse “desagradável”.
Jaenelle observou Karla por um momento. — Faz bom uso dele,
Irmã.

— Agradeço-te. Assim farei.


— Vou levar os anéis à assembleia. — Jaenelle pegou na mala que
continha
os outros estojos com os anéis, para logo hesitar. — Tens mesmo deir-te
embora amanhã? — perguntou num tom ligeiramente lamentoso.
— O dever chama-me — disse Karla, sorrindo. Aguardou até
Jaenellesair antes de acrescentar: — E o Tio Saetan deixou bem claro
que não aceitaria
nenhuma desculpa para aqui permanecer.
Todas as Rainhas estavam a regressar aos seus Territórios natais.
Bemcomo os machos do Primeiro Círculo. Lucivar ia levar a família e os
outros
eyrienos para Ebon Rih. Surreal e Wilhelmina acompanhá-lo-iam.
Andulvar
e Prothvar já estavam a caminho de Askavi e Mephis partira para a
suacasa de cidade em Amdarh.

Compreendia o motivo que levava Saetan a estar a evacuar o Paço.


Todos compreendiam. Até amanhã à tarde, todos os amigos que
Jaenelle vinha
a usar como protecção teriam partido. As únicas companhias
humanasseriam o Senhor Supremo que, Karla estava certa, pouco se
deixaria ver, eDaemon. O Consorte teria caminho livre para cortejar a
sua Senhora.

— Que as Trevas nos ajudem — murmurou Karla entre dentes,


aocaminhar a passos largos até à porta, abrindo-a de par em par. Ficou
paradana soleira da porta, pasmada.
Lucivar, Aaron, Chaosti, Khardeen e Morton sorriam.

— Bom, bom, bom — trauteou Lucivar. — Olhem só quem


encontrámos.
Tentando devolver o sorriso, Karla disse debilmente: — Beijinho,
beijinho
—, e esperou sinceramente que Jaenelle não demorasse muito a activar
os outros anéis.

229
CAPÍTULO DEZ

1 / Kaeleer

Depois de duas semanas em Ebon Rih, Surreal regressou ao Paço,


olhoupara Daemon de passagem e foi à caça de Jaenelle.

Detectou-a, por fim – na verdade, foi o Colmilho Cinzento que detectou


Ladvarian, que se encontrava com Jaenelle –, numa área do Paço
tãoafastada dos aposentos da família que praticamente garantia que
ninguémse lembraria de a procurar nesse local.

Jaenelle saiu de uma divisão e reparou em Surreal a dirigir-se a si


apassos largos pelo corredor. O seu rosto iluminou-se de alegria. —
Surreal!
Não esperava que regressasses tão…

Surreal agarrou Jaenelle pelo braço, arrastando a mulher mais jovemde


novo para a divisão de onde tinha saído. — Conversa de mulheres —
resmoneou
ao Colmilho Cinzento e a Ladvarian. — Vão regar uns arbustos.

— E fechou a porta nos dois focinhos surpreendidos e peludos.


— Surreal — disse Jaenelle, libertando-se das mãos que a
agarravamfirmemente, — aconteceu alguma coisa em...
— Em nome do Inferno, o que raio estás a fazer? — gritou Surreal.
Jaenelle ficou com um ar desconfiado e desconcertado. — Estava a ler.
— Não me estou a referir ao que estavas a fazer há cinco minutos.
Estou
a falar de Daemon. Porque lhe estás a fazer isto?
Jaenelle retraiu-se e disse defensivamente: — Não lhe estou a fazer
nada.

— É exactamente essa a questão. Caramba, Jaenelle, é o teu Consorte.


Porque não o estás a usar?
Num segundo, testemunhou a mudança de uma jovem mulher à defesa
numa Rainha irritada.

— Já foi muito usado, não achas? — disse Jaenelle calmamente, com


a voz da meia-noite. — E não serei a seguinte numa lista infindável de
mulheres
que o forçaram a uma intimidade física.
230
— Mas… — Surreal recuou um passo mental. Não tinha sido esta
arazão que esperara ouvir como justificação para a resistência de
Jaenelle
– e tinha a certeza que Daemon não fazia ideia que era por isto que não
lheestava a ser permitida a entrada no quarto dela. Ah, docinho, pensou
com
mágoa. Deste os passos errados pelas razões certas. — Era diferente.
Nessa
altura era um escravo de prazer, não era Consorte.
— Será que a diferença é assim tão grande, Surreal?
Lembra-te com quem estás a falar. Lembra-te do que deve ter
presenciado
em Briarwood – e que tipo de conclusões terá retirado uma rapariga
dedoze anos que conhecia esse lado do sexo, sobre o tempo que
Daemon passoucomo escravo do sexo.

— Os rapazolas que são Consortes não parecem importar-se de realizar


os seus deveres. De facto, bem pelo contrário.
— Nunca foram escravos do sexo. Nunca foram forçados. Tudo bem,
é verdade que, por vezes, é pedido ao Consorte mais do que lhe apetece
naquele
momento, mas quando um homem aceita o anel de Consorte, aceitaesse
tipo de serviço de bom grado e por sua própria opção.
— Daemon fez essa opção — salientou Surreal serenamente. — Nãoé
que queira o estatuto de Consorte e que esteja disposto a aturar os
deveres
que daí advêm, mas por desejar ser teu amante. — Observou Jaenelle.
— Gostas dele, não gostas?
— Amo-o.
Surreal auscultou um vasto rio de sentimentos naquela singela
expressão.

— Além disso — disse Jaenelle, voltando a ser uma jovem mulher


nervosa,
— nem sei bem se ele quer fazer... aquilo. Nem sequer tentou beijar-
me — acrescentou com tristeza.
Surreal prendeu o cabelo atrás das orelhas pontiagudas. Porra, porra,
porra. Como é que o chão se tinha tornado tão pantanoso de repente?
— Sebem compreendo as regras pelas quais um Consorte se deve reger,
não é aRainha que deve iniciar o primeiro beijo para que o Consorte
saiba que assuas atenções serão acolhidas com agrado?

— É — respondeu Jaenelle, com relutância.


— Mas também não o beijaste?
Jaenelle resmoneou, frustrada, começando a andar de um lado para o
outro. — Já não tenho doze anos.
Surreal pôs as mãos nas ancas. — Docinho, parece-me que isso é bom.
Jaenelle ergueu os braços e gritou: — Não percebes? Não sei como é

que se fazem estas coisas!


Surreal limitou-se a olhar boquiaberta. — Nunca foste beijada? Beijosda
família e dos amigos não contam — corrigiu rapidamente.

231
O rosto de Jaenelle foi invadido por um ar de repugnância. — Dentes,
línguas e baba.

— Lobos e cães também não contam.


Jaenelle deu uma curta gargalhada irritada e disse com frieza: — Não
me estava a referir aos parentes.
Merda. — Nunca houve um beijo de que gostasses?
Jaenelle hesitou. — Bem, Daemon beijou-me uma vez.

— Ora, aí tens…
— Tinha doze anos.
Surreal indignou-se automaticamente face à ideia de um homemadulto
a beijar uma criança, mas ponderou no homem por um instante.
Há beijos e beijos. E Daemon saberia exactamente como beijar uma
miúdasem passar os limites – especialmente tratando-se de Jaenelle. —
Beijou-tequando tinhas doze anos — disse, cautelosa.

Jaenelle encolheu os ombros e pareceu incomodada. — Foi no Winsol,


antes de… tudo ter acontecido. Oferecera-me uma pulseira em prata e
eujulguei que um beijo era uma forma mais adulta de agradecer.

— Certo — disse Surreal, acenando com a cabeça. — E então beijaste-


o e ele beijou-te.
— Sim.
— E não se babou?
Os lábios de Jaenelle estremeceram. — Não, não se babou.
— Sendo assim, por que é que não o podes beijar agora?
— Porque já não tenho doze anos! — gritou Jaenelle.
— E o que é que isso tem a ver para o caso? — gritou também Surreal.
— Não quero que se ria de mim!
— Duvido que o riso fosse a sua primeira reacção. Para ser sincera,
acho que nem sequer lhe ocorreria. — Surreal fez uma pausa. Fogo do
Inferno,
isto é tão difícil como falar com uma adolescente.
Deixou que esse pensamento assentasse. Se pusesse a idade de lado
econsiderasse unicamente a experiência, não estaria a falar com uma
adolescente?
Tinha de haver uma chave que pudesse girar, alguma forma de
fazerparecer que Daemon precisava desesperadamente de ajuda. Se
assim fosse,
Jaenelle…

— Sabes, docinho, Daemon está tão nervoso como tu.


— Porque estaria nervoso? — perguntou Jaenelle, circunspectamente.
— Sabe beijar e é…
— Virgem.
Jaenelle ficou de queixo caído. — Mas... mas ele é...
— Virgem. É certo que sabe umas coisas sobre beijar, mas há
muitasoutras coisas que só conhece em teoria.
232
— Mas… Surreal, não pode ser.
— Acredita em mim, é.
— Oh.
— Percebes então porque está nervoso — disse Surreal, sentindo-
setambém ligeiramente enervada. Se Daemon chegasse a descobrir que
tinham
tido esta conversazita, era natural que acabasse como
ingredienteprincipal no guisado de um animal carnívoro. —
Sinceramente, docinho,
quando chegar o momento decisivo, tudo o que tens a fazer é estares
deitadinha.
Mas se ele estiver nervoso quanto à sua capacidade de um
bomdesempenho... — Levantando o cotovelo, Surreal esticou a mão e os
dedos,
para logo os deixar descair.
Jaenelle examinou a mão que pendia durante tanto tempo que
Surrealcomeçou a transpirar, para depois exclamar: — Oh. — Arregalou
os olhos.

— Oooh. — Abanou a cabeça. — Não, isso não sucederia a Daemon.


A confiança ingénua nas capacidades de Daemon era tocante.
Assustadora,
embora tocante. E não ia apresentá-la à realidade.

— Vamos sentar-nos — disse Surreal, dirigindo-se a um sofá. — Trinta


minutos devem chegar, mas é melhor estarmos confortáveis.
— Chegar para quê? — disse Jaenelle, sentando-se na
extremidadeoposta do sofá.
— Vou explicar-te as bases da técnica de beijar. — Havia um
ténuesarcasmo no sorriso de Surreal. — Concordas que sei algumas
coisas sobre
o assunto?
— Claro — respondeu Jaenelle, cautelosamente.
— E nunca te passou pela cabeça perguntar-me durante o mês
quepermaneci em Kaeleer? — E isso amargurava-a.
— Pensei nisso — murmurou Jaenelle entre dentes. — Não me pareceu
correcto.
Oh, Mãe Noite. Bem, isso explicava o olhar vidrado que reparara
algumas
vezes nos olhos do Senhor Supremo. Quantas seriam as noites que
passara
no seu gabinete completamente desorientado pela maneira de agir
comuma Rainha com todo este poder mas que se preocupava em ser
educada?

— Agradeço a tua preocupação, mas visto pertencermos à mesma


família,
não me sentiria ofendida com umas conversas de mulheres.
Os olhos de Jaenelle indicavam cogitação. Surreal quase conseguia ver
as perguntas a amontoarem-se.

— Por hoje, concentremo-nos nas técnicas básicas de beijar.


— Devo tomar notas? — perguntou Jaenelle seriamente.
— Não — respondeu Surreal com lentidão, — mas julgo que deves
tentar praticar logo que possível.
Surreal fechou a porta suavemente e apressou-se pelo corredor. Não

233
estava certa se aquele olhar de concentração intensa no rosto de
Jaenelleaugurava algo de bom para o homem que fosse receber aquela
atenção, mastinha feito o melhor possível. Outras instruções teriam de
vir de Daemon

– e boa sorte para ele. Para uma mulher que crescera rodeada por
algunsdos machos mais sensuais que Surreal jamais encontrara,
Jaenelle era aterradoramente
fechada ao sexo. Possivelmente com a chegada de Daemon, asua
sexualidade tivesse despertado, mas era de esperar que tivesse
apanhado
algumas pistas.
Como é que, em nome do Inferno, dois amantes inexperientes
conseguiam
compreender o funcionamento das coisas?, perguntava-se Surreal.
O que a levou a pensar em tudo o que poderia correr mal logo que
Daemone Jaenelle fossem para além dos beijos.

O que a levou a pensar que talvez fosse melhor informar o Senhor


Supremo
acerca desta conversa. Talvez fosse melhor. Por via das dúvidas.
Ao virar num dos corredores, quase esbarrou contra a última pessoaque
desejava ver neste momento.

— Qual é o problema? — perguntou Daemon.


— Problema? — disse Surreal, dando um passo à retaguarda. —
Eporque razão tem de haver um problema?
— Estás pálida.
Oh, merda. — Hum. — Talvez devesse contar a Daemon acerca daquela
conversa, para o deixar de sobreaviso. Daemon, tive uma conversazita
com Jaenelle acerca de sexo. Julgo que irás apreciar os resultados.

Talvez não.

— Surreal? — chamou Daemon, denotando um ligeiro nervosismo


na voz.

Surreal respirou fundo. — Age de modo nervoso. Irá ajudar.

E passou por ele, desatando a correr pelos corredores. Alguns minutos

mais tarde, ofegante, irrompeu no gabinete de Saetan.


Saetan ficou petrificado, com a caneta a pairar sobre os papéis na
secretária.
— Surreal — disse cautelosamente.
Sentou-se na cadeira defronte da secretária e sorriu algo
desesperadamente.
— Olá. Pensei em fazer-vos companhia por um bocado.
— Porquê?
— Preciso de uma razão?
Ao que tudo indicava, aquela pergunta tinha um significado
diferentepara Saetan visto que colocou delicadamente a caneta no
suporte, pousouos óculos em meia-lua na secretária, recostou-se na
cadeira e fitou a portado gabinete antes de fixar o olhar em Surreal.

— Se pretendes ver-me a tratar da papelada, não preferes passar


essacadeira para trás da secretária? — perguntou afavelmente.
234
Dessa forma, Saetan ficaria interposto entre ela e um macho irado

– nomeadamente Daemon – que viesse a entrar pela porta. — Que


ideiamagnífica — exclamou Surreal. — Pegou na cadeira e transportou-
a à voltada secretária.
Quando se ia sentar, Saetan pegou na cadeira e levou-a para junto
dasestantes que preenchiam o fundo do recanto. — Senta-te — disse
enquantopassava os dedos pelos títulos nas prateleiras. Seleccionou um
livro e entregou-
o a Surreal. — É uma história dos Dea al Mon. Devias saber mais sobre

o povo da tua mãe. E representará uma desculpa plausível para estares


aquisentada não vá alguém entrar e ficar admirado. — Fez uma pausa.
Aguardou.
— Estás à espera de alguém?
— Não, não estou à espera de ninguém.
— Compreendo. Nesse caso, vou tratar de mais umas papeladas
enquanto
recuperas o fôlego. Depois, temos que ter uma conversazita.

Surreal sorriu debilmente. — Parece que é o dia das conversas.

Felizmente, a resposta de Saetan foi resmoneada tão baixinho que Sur

real pôde fingir não a ter ouvido.

2 / Kaeleer

Daemon ficou a olhar para o corredor vazio, abanou a cabeça e


continuoua andar. Passara o dia a caminhar, primeiramente nos
terrenos da propriedade
e agora pelos corredores do Paço.

Depois de um mês em Kaeleer, começara a amar o local. Amava


asensação que lhe transmitia, o tamanho descomedido do edifício, o
mobiliário.

E teria de o deixar.

Chegara a essa conclusão depois de outra longa noite insone. Oh,


osrapazolas tinham tentado ajudar, relatando histórias de perseguição
às suasSenhoras, mas era cada vez mais dolorosamente evidente que
não restavaesperança para ele. Quem sabe se não usasse o anel de
Consorte e não serecordasse a cada minuto da relação subjacente,
talvez pudesse aceitar serunicamente um amigo ou – que as Trevas o
ajudassem – outro irmão maisvelho. Quiçá conseguisse ultrapassar o
desejo que se tornara penoso e simplesmente…

Simplesmente o quê? Ficar a ver Jaenelle a aceitar outro homem,


umdia? Fingir que podia extinguir o fogo que o consumia?

Um mês não era muito, não era nada no bailado da corte. Contudo,
jáesperara tanto tempo pelo surgimento da Feiticeira. Quando ela lhe
ofereceu
o anel de Consorte, esperara que...

235
Falaria com Saetan, devolveria o anel, tentaria saber se existiria uma
corte remota algures no Reino onde pudesse cumprir o tempo exigido
parapermanecer em Kaeleer. Iria…

Abriu-se uma porta. Jaenelle saiu para o corredor. Ficou lívida ao vê-lo.

Daemon parou. Poderia ter de desistir de tudo mas nunca deixaria de


a amar.

— Hum. Daemon — disse Jaenelle com uma voz estranha. — Tens


um minuto?
— Claro. — Foi difícil, mas sorriu-lhe de modo afectuoso e
tranquilizador
e seguiu-a.
Jaenelle posicionou-se de modo a que Daemon não a pudesse alcançar
e ficou a olhar para o chão, parecendo apreensiva – como se estivesse
atentar achar a melhor forma de dar más notícias. Vai pedir-me que
devolva o
anel de Consorte. Assim que este pensamento se formou, Daemon
enterrouimpiedosamente as ideias sobre sacrifícios nobres. Não iria
desistir facilmente.
E não iria devolver o anel de Consorte sem se debater.

— O que é que custa? — murmurou Jaenelle entre dentes.


Daemon limitou-se a aguardar.
Suspirando ruidosamente, Jaenelle caminhou para Daemon, colocou-
lhe as mãos nos ombros, pôs-se ligeiramente em bicos dos pés, juntou
oslábios aos dele e afastou-se a correr de novo para onde não a pudesse
alcançar,
ficando a mirá-lo circunspectamente.

Daemon não sabia o que dizer sobre esta atitude inesperada.


Comobeijo, deixava muito a desejar. Como um beijo de Jaenelle…
Esforçou-se para não lamber os lábios.

— Estás nervoso? — perguntou Jaenelle, continuando a mirá-lo


circunspectamente.
Precisava ter uma conversa com Surreal quanto à inutilidade de
conselhos
enigmáticos. Todavia, tinha uma vaga ideia quanto à resposta correcta.

— Na verdade, estou apavorado, não vá dizer ou fazer algo estúpido


enão queiras voltar a beijar-me.
Talvez tivesse sido uma resposta demasiado correcta. Agora
pareciapreocupada. Foi então que ergueu as mãos num gesto de
desamparo desesperado.
— Não sei o que estou a fazer — quase gemeu, para acrescentar emvoz
baixa: — Surreal devia ter-me deixado tomar notas.
Daemon prendeu a língua entre os dentes. Pois é, precisava mesmo
deter uma conversazita com Surreal.
Jaenelle começou a andar de um lado para o outro. — Parece sempretão
fácil nos romances.

236
— Beijar não é difícil — disse Daemon cautelosamente.
Lançou-lhe um olhar furioso ao passar por ele. — Lucivar diz o mesmo
sobre cozinhar — resmungou. — Os lobos nem sequer esperaram
quesaísse do forno e começaram a escavar um buraco para lá o enfiar.

Parecia uma história interessante. Também teria de ter uma


conversazita
com Lucivar.

— Beijar não é difícil — disse Daemon com firmeza. — Acabaste deme


beijar.
— Não saiu muito bem — resmungou.
Sabendo que era melhor não responder, Daemon observou-a.
Frustração.
Vergonha. E uma emoção que o deixava sem ar – desejo ardente.

— O que te levou a perguntar a Surreal sobre beijos?


— Ela contou-te?
— Não, imaginei. — E entre ter conseguido ouvir a observação de
Jaenelle
relativa a tirar notas e as instruções sucintas de Surreal, não era difícil
chegar à conclusão correcta.
Jaenelle resmungou e rosnou alguns comentários num idioma que,
felizmente, não compreendia. Depois, disse: — Queria impressionar-te
enão queria que te risses de mim.

— Rir não é exactamente o que me apetece fazer — disse Daemon,


friamente. Passou os dedos pelo cabelo. — Meu amor, se te serve de
consolo,
também eu te quero impressionar.
— Queres? — Pareceu admirada.
Começou a pensar no que teria acontecido nos últimos treze anos quea
levaria a ficar tão pasmada com a ideia – mas já sabia. Dissera-lhe da
primeira
vez que dera consigo no lugar brumoso, ao tentar trazer a Feiticeirade
volta para curar o corpo ferido. No que dizia respeito ao prazer físico,
osmachos queriam satisfazer-se com o corpo não tendo de lidar com
quemvivesse no seu interior. E Jaenelle, com os horrores de Briarwood
presentesno seu passado, jamais se entregaria dessa forma.

— Sim, quero — respondeu.


Reflectiu. — Kaelas está aborrecido contigo.
Parecia uma mudança repentina de assunto – e que não era desejada.
— Porquê? — perguntou Daemon cautelosamente.
— Porque não tenho dormido bem ultimamente e estou sempre a dar-
lhe pontapés. Chegou à conclusão de que a culpa é tua.

Oh, maravilhoso. — Também não tenho dormido bem.


Afastou os olhos, parecendo aflita.

Chega, pensou Daemon. A culpa de terem passado um mês difícil

cabia-lhe mais a ele do que a ela. Saetan dissera-lhe que Jaenelle


nunca tinha
tido um amante e, ainda assim, esperava que ela o acolhesse de braços

237
abertos na sua cama. Agira como se fosse uma mulher experiente que
seaproveitaria da disponibilidade de Daemon.

Fora o seu maior erro. Jaenelle não era capaz de se aproveitar de


quemquer que fosse que servisse na sua corte. Bem, dera o primeiro
passo vacilante.
Agora era a sua vez.

Libertou ligeiramente o controlo sufocante da sua sexualidade,


produzindo
uma sensação subtil no ar mas não deixando que fosse forte a pontode
Jaenelle a reconhecer.

— Vem cá — disse baixinho.


Com um ar perplexo, obedeceu.
Pousando as mãos na cintura de Jaenelle, puxou-a para junto de si. —
Beija-me outra vez. Assim. — Roçou os lábios nos dela, suavemente,
comdelicadeza. — E assim. — Beijou-a no canto da boca. — E assim. —
Beijou-
lhe o pescoço.

Jaenelle imitou cada movimento – até beijar o pescoço de Daemon.


Quando sentiu a ponta da língua de Jaenelle a passar-lhe na pele,
inclinou-
lhe a cabeça para trás, juntou a boca à dela e beijou-a fervorosamente.
Beijou-
a com todo o desejo que crescera durante o mês que passara,
durantetoda a vida. Beijou-a ao mesmo tempo que as mãos percorriam
as costase as ancas e exploravam delicadamente os seios. Beijou-a até
ouvi-la gemer.
Beijou-a até que se abriu para ele, deixando que a língua de
Daemondançasse com a dela. Beijou-a até que as mãos de Jaenelle
deslizaram pelascostas de Daemon e se fixaram nos ombros. Beijou-a
até que os gemidos setornaram num rosnado ávido, sentindo-lhe as
unhas a picarem-lhe a peleatravés da camisa e do casaco.

E foi nessa altura que se apercebeu que os tinha conduzido mais


longedo que pretendia por agora. Voltou a colocar as mãos na cintura
de Jaenellee recuou lentamente para os beijos suaves e tranquilos.

Sentindo o afastamento, Jaenelle voltou a rosnar – e no som estava


presente não só o desejo como a raiva. — Não me desejas? —
perguntoucom a voz da meia-noite.

Puxou ligeiramente as ancas de Jaenelle na sua direcção como


testemunho
da sua resposta. — Sim, desejo-te. — Cedeu por mais um instante,
fechou a boca no pescoço de Jaenelle e chupou com força suficiente
paradeixar um chupão. Afastando a boca, deu-lhe beijos delicados do
queixo atéà têmpora. — Mas isto é só uma brincadeira, não passa de
um aperitivo.

— Brincadeira? — perguntou a Feiticeira, desconfiada.


— Mmm —respondeu, lambendo o local da testa da mulher onde
seencontraria o ínfimo chifre em espiral, se estivessem no abismo. —
Não é osítio adequado para mais do que brincadeiras.
— Porquê?
238
— Porque gostava que a minha primeira vez fosse numa cama.
A raiva de Jaenelle desvaneceu-se instantaneamente. — Oh, claro, seria
mais confortável.
Convidas-me para a tua cama esta noite? Sabia que não devia
perguntar
tão descaradamente, mas, ao mesmo tempo, sabia que tinha de
perguntar.
— Posso ir ter contigo esta noite? — Sentindo que ficava tensa,
apressou-
se a colocar-lhe um dedo sobre os lábios. — Não digas nada. Um
beijoserá a resposta.

A resposta de Jaenelle foi tudo aquilo que sempre desejara.

3 / Kaeleer

Daemon apoiou as mãos na cómoda e fechou os olhos.


Respira, maldito sejas, pensou ferozmente. Respira.

Como é que, em nome do Inferno, os homens faziam isto da


primeiravez? Quiçá, para um jovem, a excitação fosse suficiente para
ultrapassar asdúvidas. Quiçá fosse mais fácil da primeira vez se a
mulher não fosse especial
– ou se a hora seguinte não fosse determinante para saber se a
mulherque desejava desesperadamente o receberia.

Sabia dúzias e dúzias de maneiras de beijar, de acariciar, e de


excitaruma mulher e fazê-la ansiar tê-lo na cama.

Esquecera-se de todas.

Daemon endireitou-se, voltou a atar o cinto do roupão que usava


porcima das calças do pijama em seda… e vociferou com uma
intensidadesentida.

Devia ter-se deixado levar até onde aqueles beijos os estavam a


conduzir
naquela tarde, devia ter cedido ao desejo que despertara em Jaenelle,
devia ter agido ao invés de recuar, concedendo-se as últimas horas
parapensar até entrar em pânico.

Contudo, desejando mais do que sexo por ele mas também por ela,
tinha recuado – e esperava agora, sinceramente, que quando entrasse
noquarto de Jaenelle…

Sorriu perante a ironia amarga, de que a única coisa que nunca


fizeracom uma mulher, a única coisa que nunca desejara fazer e que
agora desejava
acima de tudo, era a única coisa que poderia não conseguir cumprir.

O que o fez avançar foi a preocupação de que se adiasse por mais


tempo,
Jaenelle poderia entender como rejeição.

Quando bateu à porta que dividia o quarto de ambos, interpretou osom


abafado como um convite e entrou.

A única iluminação no quarto provinha do lume que ardia na larei

239
ra e das velas perfumadas agrupadas aqui e ali pelo quarto. A coberta
daenorme cama estava puxada para trás. Numa mesa junto à lareira
estavamdispostos pratos cobertos, dois copos e uma garrafa de
espumante.

Jaenelle estava em pé no centro do quarto, retorcendo os dedos


entrelaçados.
A ponta daquilo que parecia ser uma camisa de noite transparente
em seda de aranha preta espreitava por baixo da bainha de um
roupãogrosso e coçado – que Daemon julgava que seria usado em noites
chuvosasquando se aconchegava no quarto para ler. Parecia uma
fedelha perdidacontrariamente a uma mulher ávida de sexo.

Observou-o por momentos. — Estás com o aspecto daquilo que sinto.

— Maldisposto e aterrorizado? — Crispou-se, desejando não ter


ditoaquelas palavras.
Jaenelle anuiu. — Julguei… que alguma comida… — Olhou de soslaio
para os pratos cobertos e empalideceu. Depois, olhou de soslaio para
acama e ficou ainda mais pálida. — Que fazemos? — sussurrou.

Não fizera nenhum favor a nenhum dos dois ao conceder-lhes


tempopara pensarem. — As bases — disse. — Começaremos com algo
extremamente
simples. — Deu um passo em frente e abriu os braços. — Um abraço.

Jaenelle ponderou um instante. — Parece-me bastante fácil — disse


edeixou-se abraçar.

Daemon fechou os olhos e abraçou-a delicadamente. Limitou-se a


abraçá-la. Inspirou o odor de Jaenelle.

Decorrido algum tempo, dobrou os dedos. Aquele roupão coçado tinha


uma textura reconfortante, tal como era reconfortante a forma como o
cabelo de Jaenelle lhe tocava na mão.

Apertou-a nos braços, puxou-a para junto dele, ao mesmo tempo quelhe
acariciava as costas, somente pelo prazer que lhe transmitia.

Jaenelle suspirou. A tensão dos músculos aliviou-se ligeiramente,


encostando-
se em Daemon com mais convicção.

Não estava a pensar em sedução quando as suas mãos começaram


avaguear por ela – ou quando as mãos dela o afagaram hesitantemente.
Não estava a pensar em sedução quando o seu corpo se regozijou coma
diferença entre a pele sedosa do pescoço de Jaenelle sob os seus lábios
e oroupão sob as suas mãos.

Não pensava em sexo ao abrir o seu próprio roupão e, depois, o dela,


ficando unicamente aquela película de seda de aranha a separar a pele
dapele. Nem sequer quando a seda de aranha deixou de estar entre
ambos.

Não pensava em sexo quando a sua boca se fechou sobre a dela,


fazendo-
os deslizar para o desejo obscuro e ardente.

240
E, quando se apercebeu que estava na cama, ouvindo-a ronronarde
prazer enquanto se movia dentro dela, não foi sequer capaz de pensar.

4 / Terreille

Dorothea segurava uma carta na mão. — Parece que Kartane travou


conhecimento
com o Senhor Jorval e o Senhor Hobart.

Os lábios de Hekatah arquearam-se num grande e horrendo sorriso.

— Mas que machos tão úteis. Depreende-se que Kartane não obteve
qualquer
compensação do Senhor Supremo.
— Parece que não — respondeu Dorothea, esforçando-se por
parecerindiferente enquanto a fúria da traição de Kartane lhe crestava o
sangue.
— Sugere que o Senhor Hobart receberia de bom grado qualquer tipo
deajuda que Hayll lhe pudesse facultar para arrancar Glacia da cabra
da Rainha,
que é sua sobrinha. Permanecerá na Pequena Terreille como
elementode ligação.
— Parece que o teu filho compreendeu finalmente a quem deve lealdade.
Dorothea amarrotou a carta. — Não é meu filho. Deixou de ser. É um
instrumento como qualquer outro.

5 / Kaeleer

Lucivar caminhou até ao ponto mais distante do jardim de muros


baixosque cercava um dos lados da sua casa. Marian estava a ler uma
históriaa Daemonar e os lobos tinham-se juntado no quarto para ouvir,
por issosabia que o que Prothvar tivesse para lhe dizer não seria
escutado por maisninguém.

Há duas semanas, Saetan mandara Surreal de volta a Ebon Rih com


uma mensagem concisa – e estranhamente atormentada –, dizendo-
lhesem rodeios para se manter longe do Paço. A única razão que o levou
a obedecer
foi por Saetan ter assinado como Administrador da Corte. Depois
deduas semanas de silêncio, Andulvar, como Guarda-Mor, enviara
Prothvar
ao Paço a solicitar mais informações ao Administrador. Agora Prothvar
regressara,
querendo encontrar-se com ele, longe de todos. — Problemas?

— perguntou Lucivar baixinho.


Os dentes de Prothvar refulgiram quando os cantos dos lábios se
curvaram
num sorriso feríssimo. — Não há, desde que te mantenhas afastado

241
do Paço. Concluí que agora é relativamente desconfortável viver ali
paraquem use Jóias mais escuras do que a Vermelha.

— Mãe Noite — murmurou Lucivar entre dentes, massajando a nuca.


O que raio se passara? — Seria melhor que o Senhor Supremo
enviasseDaemon para aqui por uns tempos.
— Oh, julgo que não é sensato afastar Daemon do Paço.
Lucivar ficou a olhar para Prothvar por uns instantes. Depois sorriu
deorelha a orelha. — Bem, já não era sem tempo.

— Para ambos.
— Então porque é que Saetan está assanhado?
— Porque, apesar dos esforços de Daemon para isolar o quarto, a…
hum… pândega costuma vazar pelos escudos, o que deixa os
residentesde Jóias mais escuras em pulgas. E ninguém quer abordar o
assunto comJaenelle para lhe pedir que seja ela a criar os escudos visto
que está perdidamente
feliz e alheada de tudo à sua volta, à excepção do seu Consorte –
eSaetan, para não falar em Daemon, quer mantê-la nesse estado de
espírito.
— Bem — disse Lucivar maliciosamente, — se Saetan precisa de
umintervalo da folia a decorrer no Paço, pode sempre passar um serão –
oudois – com Sylvia.
— Ora, Lucivar — repreendeu Prothvar, — sabes que são só amigos.
— É claro que são. — Reparando na lua, Lucivar fez um rápido
cálculomental, para logo olhar Prothvar contundentemente. — Alguém
falou aDaemon sobre as infusões contraceptivas?
— Foi tratado. Fiquei com a ideia de que Daemon deseja uma criançano
futuro, mas, por agora, quer desfrutar a cama da Senhora.
— Nesse caso, Saetan deve ter uma prorrogação de alguns dias
embreve. — Lucivar olhou para as luzes das janelas da sua casa e
pensou emdesfrutar da cama da sua própria Senhora, logo que
Daemonar adormecesse.
Contudo, não deixou de perguntar educadamente: — Queres entrar?
Tenho um pouco de yarbarah.
— Agradeço-te mas não vou aceitar — respondeu Prothvar. —
Aindatenho de apresentar o relatório a Andulvar. — Desejou as boas-
noites, abriuas asas escuras e levantou voo em direcção ao céu
nocturno.
Enquanto caminhava de regresso a casa, ouviu um lobo solitário a
uivar.
Sorriu. Visto que o som vinha na direcção da casa alcantilada de
Falonar,
não precisava de perguntar onde Surreal ia passar a noite.

Então Surreal estava aninhada com Falonar, Jaenelle estava aninhada


com Daemon e Marian…
Ao entrar na sua casa alcantilada, Marain estava à porta da cozinha.
Sorriu daquela forma calma que o deixava sempre excitado e com o
coração
a palpitar.

242
— Ia fazer um chá — disse. — A noite está fria.
Devolveu o sorriso e deu-lhe um beijo demorado e íntimo. — Conheço
uma forma melhor de te aquecer.

6 / Kaeleer

A Rainha arachniana pairava no ar defronte da teia entrelaçada de


sonhos
e visões – a teia que ligara à teia tecida pela Feiticeira.

A estação do frio estava prestes a chegar. Estava na altura das


Tecedeiras
de Sonhos se recolherem às grutas e às tocas, mas precisava olhar
paraesta teia mais uma vez… para se assegurar.

Examinou primeiro a teia entrelaçada da Feiticeira.

Um pequeno fio estava escuro, escuro, escuro. A primeira morte.

Mais viriam. Muitas mais.

A seguir, examinou a sua própria teia entrelaçada.

Mas só na estação de aquecimento da terra. Até os humanos tendiama


permanecer nas suas tocas durante a estação fria.

Seria nessa altura. Podia abrigar-se na sua própria toca na gruta


sagrada
onde poderia repousar e sonhar os sonhos agradáveis. Quando
asestações voltassem a mudar, falaria com o cão castanho, Ladvarian.
Era a
ligação entre os Sangue parentes e humanos. Os parentes obedeciam-
lhe eos humanos escutavam-no. E precisava dele para o que tinha de
ser feito.

Quando a terra voltasse a aquecer, necessitaria de toda a mestria e


força
– e de toda a mestria e força que o cão castanho conseguisse reunir
paraa auxiliar – para salvar o Coração de Kaeleer.

243
244
CAPÍTULO ONZE

1 / Kaeleer

Depois de guardar o recado na gaveta central, Morton fechou a


secretáriaà chave e franziu o sobrolho. Estava preocupado com as
profundas inquietações
que a Sacerdotisa do Santuário deixara entender, mas sobre as
quaisnada dissera em concreto – especialmente por aquele Santuário
albergarum Altar das Trevas, um dos treze Portões que ligavam os
Reinos de Terreille,
Kaeleer e Inferno.

Ao longo dos meses de Inverno a Sacerdotisa tinha enviado


váriasmensagens inquietas – e inquietantes. Provisões que
desapareciam. Vozespela calada da noite. Indicações de que o Portão
fora aberto sem o conhecimento
nem o consentimento da Sacerdotisa.

A verdade é que a mulher chegara a uma idade em que as


memóriasinsignificantes poderiam fugir-lhe sem se dar conta. Existiam
explicaçõesrazoáveis para todas as preocupações. As provisões
poderiam simplesmenteter sido gastas, não tendo sido substituídas. A
jovem Sacerdotisa em aprendizagem
poderia ter levado um amante e as vozes tardias não passariam deum
encontro amoroso. Os Portões...

Era essa a questão que o afligia – e afligia Karla, igualmente. Estariam


alguns terreilleanos a servir-se do Portão em Glacia para
entrarsorrateiramente em Kaeleer ao invés de suportarem as feiras de
serviços?
Sempre existiram umas quantas pessoas que, por sorte ou instinto,
conseguiam acender as velas negras pela ordem correcta e enunciar
osfeitiços certos para abrir o Portão entre os Reinos. Contavam-se
históriasque rezavam que o poder contido nesses locais vetustos
reconhecia porvezes a necessidade de um espírito de voltar a casa e
abria o Portão para

o Reino correcto, mesmo que a pessoa desconhecesse o feitiço. O


maisprovável era essa pessoa ter encontrado a chave nalgum texto
antigo daArte. Mas a outra versão era mais consentânea com as longas
noites deInverno.
246
Assim sendo, deslocar-se-ia a essa pequena aldeia junto à fronteira
arceriana
e falaria com a Sacerdotisa.

Morton verificou os bolsos para se certificar de que estava munidode


um lenço limpo e de alguns marcos de prata para poder pagar o jantare
uma rodada na taberna. Por último, com um ligeiro toque de Arte
certificou-
se de que a sua Jóia Opala estava vinculada ao Anel de Honra à voltado
seu órgão.

Sorriu. Desde que Jaenelle ofertara Anéis semelhantes à Assembleia,


os machos do Primeiro Círculo, por um consenso tácito, começaram a
usaros deles permanentemente. Esse método adicional de conseguirem
decifraros estados de espírito femininos aborrecera tanto as feiticeiras
quanto agradara
aos machos.

Morton parou por um instante à porta e abanou a cabeça. Não


haviamotivo para incomodar Karla. Viajaria até à aldeia, falaria com a
Sacerdotisa
e, depois, informaria a prima.

Além disso, pensava ao deixar a mansão que era a residência da


Rainha,
este mês o período da lua de Karla estava a proporcionar-lhe mais
desconforto
do que o habitual. E tinha sofrido de enfermidades de menor gravidade
intermitentemente, durante todo o Inverno – nariz entupido, uma“dor
provocada pela mudança de tempo” nas articulações, gripes ligeiras.
As duas Curandeiras que serviam na corte de Karla não conseguiam
encontrar
nada que justificasse esta vulnerabilidade repentina. Sugeriram
quetalvez andasse a trabalhar em demasia e que estaria enfraquecida.
Rejeitaraessa explicação, dizendo causticamente que também ela era
Curandeira, ede Jóia Cinzenta. Se existisse algo de errado, não se
aperceberia?

É claro que sim. Contudo, por reinar sobre um Território onde existiam
pessoas que continuavam a apoiar o Senhor Hobart e as suas ideias de
como deveria ser a sociedade dos Sangue, Karla poderia ignorar
bastantepara parecer invulnerável. Mas se fosse uma enfermidade de
maior gravidade,
Karla dir-lhe-ia, certo? Não usaria a Arte para ocultar uma enfermidade
das outras Curandeiras ao invés de obter ajuda, pois não?

Sabendo a resposta a essa questão, Morton praguejou. Bem,


Jaenelleestava a realizar a visita de Primavera pelos Territórios e estaria
em Sceltdentro de alguns dias. Faria chegar-lhe uma mensagem por
Khardeen,
solicitando formalmente os seus serviços como Curandeira, em nome de
Karla.

Tendo tomado essa decisão, apanhou um dos Ventos e viajou pelo


caminho
psíquico através das Trevas, até à aldeia da Sacerdotisa.

247
2 / Kaeleer

Apesar da impaciência evidente nas resmungadelas-rosnadelas do


gatinho,
Kaelas manteve um passo tranquilo. Afinal, o gatinho tinha metade do
seutamanho e as suas passadas também eram mais curtas. Mesmo a
este ritmocalmo, KaeAskavi tinha de correr frequentemente para o
conseguir acompanhar.

A viagem agradava-lhe pois nunca conhecera o seu próprio genitor.


Essa não era a tradição arceriana. Uma pequena assembleia de
feiticeirasarcerianas podia estabelecer os seus covis junto umas das
outras, reunindo-
se para protecção e unindo as várias perícias de Arte dominadas por
cadauma delas. Contudo, os machos ficavam de fora, tidos como uma
ameaça
depois do nascimento das crias.

Era verdade que os machos arcerianos que não eram parentes tinhama
fama de matar as próprias crias e não era pelo facto de um arceriano
serparente que o instinto ou o comportamento felinos desapareciam.
Contudo,
os machos parentes ressentiram-se com esta exclusão – em especial
osPríncipes dos Senhores da Guerra. Permitiam-lhes que deixassem a
carnejunto aos covis das companheiras e podiam ficar a observar os
gatinhos àdistância, mas nunca lhes fora permitido que brincassem
com os filhotes ouque fossem eles a ensinar-lhes a caçar e a Arte.

Tendo sido criado pela Senhora e tendo vivido no seio da sua


famíliahumana, melindrara-se ainda mais com essa exclusão. Os
machos parentesde outras espécies não eram excluídos. E com certeza
que os parentes humanos
não o eram. Podiam brincar com os filhotes e tratar deles e ensiná-
los.

Por isso, trouxera a sua companheira para o Paço logo após o


nascimento
da cria de Lucivar. Reconhecera outro predador, ainda que tivesse
asas e duas pernas. Observara Lucivar a tratar do filhote. Observara
oSenhor Supremo. E observara as fêmeas humanas – e a Senhora –
queaprovavam que o gatinho humano passasse pelas mãos destes
machosadultos.

Devido a essa visita e por se sentir honrada pelo facto de a Senhorater


baptizado a sua cria – com um nome que, no Idioma Antigo, significava
Montanha Branca –, a sua companheira permitira, prudentemente,
queentrasse no covil pouco depois de KaeAskavi ter nascido.
E assim, a sua cria estava a aprender o modo arceriano de caçar,
bemcomo os métodos humanos que Lucivar lhe ensinara discretamente.
Essa
exposição aos humanos estimulara a curiosidade de KaeAskavi – razão
pelaqual tinham empreendido esta viagem.

Durante uma ronda solitária, KaeAskavi aproximara-se demasiado de

248
uma aldeia de humanos em Glacia e conhecera uma gatinha humana.
Aoinvés de se sentir amedrontada por um enorme predador, ficara
encantadae tornaram-se amigos. Depois de muitos encontros secretos
ao longo doVerão e do início do Inverno, as fêmeas, quer a humana quer
a felina, descobriram
a amizade – e nenhuma ficou satisfeita.

Por isso, KaeAskavi recorrera a Kaelas, solicitando a sua aprovação


relativamente
à amizade com esta jovem fêmea humana.

Kaelas podia compreender este fascínio pela gatinha humana de


umaforma que a sua companheira nunca iria conseguir. KaeAskavi era
um Príncipe
dos Senhores da Guerra e os Príncipes dos Senhores da Guerra
tinhamdificuldades em passar sem a companhia de uma fêmea.
Passariam muitasestações até KaeAskavi ou a pequena fêmea
começarem a procurar umacompanheira ou um companheiro. Se a
gatinha era uma amiga adequada,
qual o motivo para não puderem fazer companhia um ao outro?

Ainda que Kaelas não gostasse especialmente de humanos pois


jamaisolvidara os caçadores que chacinaram a sua mãe. Todavia,
existiam humanos
capazes de ser mais do que mera carne. Os que pertenciam à Senhora,
por exemplo. E o companheiro da Senhora. Apesar de ter apenas duas
patase umas presas ínfimas, havia muito de felino naquele humano,
algo queKaelas aprovava.

Por isso, observaria esta pequena fêmea e, se chegasse à conclusão


deque poderia ser aceite pelos parentes, pediria à Senhora que também
a observasse.
A Senhora saberia se era uma amiga adequada a este gatinho.

De repente, o vento mudou, soprando agora da aldeia, que se


encontrava
ainda a mais de um quilómetro.

Kaelas ficou imóvel. Sangue e morte impregnavam o ar.

«Della!« KaeAskavi precipitou-se para a frente.

Com uma patada, Kaelas derrubou o gatinho.

«Quando sangue e morte impregnam o ar, não corremos ao seu


encontro
« disse Kaelas severamente.
«A aldeia de Della!«

Mediante a Arte, Kaelas sondou a área em redor. A estação que os


humanos
chamavam Primavera já tinha chegado a outras terras, mas aqui
oInverno ainda mostrava as garras – e uma espessa camada de neve.

«Faz uma lura. Mantém-te escondido« ordenou Kaelas.

KaeAskavi rosnou mas enroscou-se de imediato numa posição


submissa
quando Kaelas avançou na sua direcção.

«Eu sei lutar« disse KaeAskavi em jeito de desafio.

«Ficarás escondido até te chamar.« Kaelas esperou um instante. «Como


é o covil da gatinha?«

Da mente de KaeAskavi recebeu a imagem de um pequeno covil de

249
humanos, de um terreno aberto e um arvoredo compacto onde
KaeAskavi

costumava aguardar pela amiga.

«Fica aqui« disse Kaelas. «Escava a lura.«

Kaelas não esperou para confirmar se KaeAskavi lhe obedeceria.


Envolvendo-
se num escudo de visão e caminhando pelo ar para não deixarpistas na
neve, dirigiu-se à aldeia, numa passada larga que o fez percorrer
adistância nalguns minutos.

O ar junto à aldeia cheirava a medo e a desespero bem como a sanguee


a morte. Os seus ouvidos vigilantes detectaram sons de lutas e o
embatede armas dos humanos.

Por meio da Arte, sondou cautelosamente a aldeia e mostrou as


presasnum rosnado mudo ao detectar um Príncipe dos Senhores da
Guerra deJóia Verde. Havia algo naquele odor...

Chegado ao arvoredo que dava directamente para as traseiras do


covilda gatinha, ouviu o grito de uma fêmea e o berro de um macho.
Abriu-seuma janela. Uma jovem fêmea humana trepou pela janela e
saltou para aneve. Ao tentar levantar-se, voltou a tombar, sem forças.

Kaelas irrompeu das árvores, investindo em direcção ao local ondea


gatinha jazia, ao mesmo tempo que um Senhor da Guerra eyrieno
contornava
a esquina da casa. Localizando a gatinha, o eyrieno ergueu a
armaensanguentada e avançou para o golpe fatal.

O macho humano não detectou o perigo até sentir trezentos e cinquenta


quilos de ódio contra si.

Kaelas arrancou à dentada o braço que segurava a arma, ao


mesmotempo que lhe dilacerava o ventre. Uma detonação de poder
psíquico extinguiu
a mente do humano, concluindo a morte.

Deteve-se para mordiscar um pouco de neve limpa. Tal como o


odorpsíquico, havia algo neste humano que sabia a carne estragada.

Abanou a cabeça, e dirigiu-se à rapariga que olhava fixamente para


omacho sem vida. «Pequenina« rosnou.

Levantou a cabeça com algum esforço e olhou em volta,


desesperadamente.
«KaeAskavi?«

«Kaelas« disse. Com a mesma delicadeza que aplicava à sua própriacria,


agarrou-a pela cintura e trotou com ela, dirigindo-se às árvores
queserviam de abrigo.

Não produziu um único som. Não se debateu. Admirou a coragem


darapariga. E agora era órfã, tal como Kaelas.

Escolhendo um local onde a neve se acumulasse, manteve a raparigaa


pairar no ar, escavou rapidamente uma pequena lura, acomodou-a aí
ecobriu a maior parte da entrada. «Fica« ordenou.

A rapariga enrolou-se numa bola trémula.

250
Kaelas galopou de volta ao covil dos humanos e atravessou a parede
aolado da janela por onde a rapariga tinha surgido. O quarto tinha o
seu odor

– e de outras coisas, coisas muito ruins.


A porta que conduzia às outras áreas do covil estava aberta.
Vislumbrou
um braço feminino ensanguentado. Não detectando qualquer sinal
devida, não se deu ao trabalho de ir farejá-la para se assegurar.

Desejou que Ladvarian estivesse ali com ele. Apesar de ter vivido quase
toda a sua vida entre humanos, não os compreendia tão bem como o
cão.
O canídeo saberia prover às necessidades da pequena fêmea.

Pensou por um momento. Precisaria de pelagem dos humanos. Pormeio


da Arte, abriu as gavetas e o guarda-fatos e fez desaparecer todo
oconteúdo.

O que mais levaria Ladvarian? Olhando à volta do quarto, fez


desaparecer
as cobertas entufadas da cama que cheiravam a penas. A gatinhapodia
envolver-se nisso para se aquecer. A necessidade premente de sairdeste
lugar instigava-o, mas pensou mais um pouco...

Os parentes não achavam grande utilidade aos objectos, mas…

Apercebeu-se daquilo, junto à cama. Primeiro, sentiu um ódio cego,


mas quando se aproximou para farejar o falso gato branco, apercebeu-
se deque tinha sido fabricado em peluche e não em pêlo arceriano,
como julgarade imediato. Estava impregnado de um intenso odor à
gatinha humana – e,
embora mais sumido, o odor da gata-mãe também estava presente. E
detectou
ainda um odor psíquico no brinquedo, um odor associado à Senhora.
O Senhor Supremo dissera que era amor.

Fazendo o brinquedo desaparecer, deslocou-se com cautela até à


portaaberta. A fêmea morta tinha ainda uma faca na mão. Lutara com
um macho
mais forte para manter a gatinha a salvo – tal como a sua própria
mãelutara com os caçadores para que Kaelas pudesse fugir.

Ao observá-la pensou que, se soubesse que a sua cria estava protegidae


segura, não se importaria que a jovem fêmea permanecesse agora entre
osfelinos arcerianos.

Atravessando a parede do fundo da casa, parou junto ao macho eyrieno


morto. Mediante a Arte, fez com que os restos mortais se
afundassemnos primeiros centímetros de neve e, de seguida, empurrou-
os para o fundo.
A neve ficou manchada de sangue, mas ninguém viria procurá-lo
parajá. E, até conseguirem retirar o corpo, não saberiam que o humano
foramorto por um elemento da sua espécie.

Correndo de volta ao arvoredo, Kaelas invocou KaeAskavi. «Vem


ligeiro…
e em silêncio.«
Chegado à lura improvisada, escavou a entrada. Invocando a
cobertaentufada, estendeu-a sobre a neve, usando dois feitiços que
aprendera com

251
a Senhora – um feitiço de aquecimento no interior e um feitiço para
manter

o tecido seco no exterior. Erguendo a gatinha, envolveu-a


desajeitadamente
na coberta.
Ela limitou-se a olhar o vazio.

Apreensivo, farejou-a minuciosamente. Não estava morta, mas sabiaque


aqueles olhos fixos e que nada viam não eram bom sinal.

Sentindo a aproximação de KaeAskavi, ergueu a cabeça.


Conseguiadetectar o espectro débil do escudo de visão de uma Jóia
mais clara e rosnou
baixinho em guisa de aprovação.

«Della!« KaeAskavi farejou a fêmea embrulhada.

«Leva a gatinha à minha companheira« disse Kaelas. «Viaja pelos Ventos


logo que encontres um fio no qual possa viajar. A pequenina
necessitaurgentemente de ajuda.«

«A minha mãe não irá aceitar uma gatinha humana no seu covil«
protestou
KaeAskavi.

«Diz-lhe que a mãe gata lutou contra os caçadores para salvar a cria – e
morreu.«

KaeAskavi ficou imóvel por um momento para, de seguida, dizer


tristemente:
«Dir-lhe-ei.« Abocanhando zelosamente a coberta, afastou-se
rapidamente
com a gatinha.

Kaelas aguardou, seguindo-os por um fio psíquico. Ao sentir Kae-


Askavi a apanhar o Vento que levaria o jovem gato até próximo do covil,
regressou à aldeia.

3 / Kaeleer

O Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra de Jóia Verde passou os


olhospela carnificina com satisfação. Este Portão estava agora seguro
para ser utilizado
pela Sacerdotisa das Trevas. Seleccionara já as sessenta pessoas caras-
pálidas
e louras que substituiriam as que ele e os seus homens tinham
acabadode chacinar – pessoas que adquirira nas últimas duas feiras de
serviços. Desdeque a aldeia parecesse habitada e que as pessoas
parecessem prosseguir assuas rotinas diárias, duvidava que alguém
olhasse duas vezes para elas. E seum visitante conhecesse a aldeia o
suficiente para se aperceber que os habitantes
eram todos estranhos, qual era o problema de mais um cadáver?

Virou-se quando o Senhor da Guerra que era seu segundo-comandante


se aproximou. — A cabra velha da Sacerdotisa enviou a mensagem?

O Senhor da Guerra acenou afirmativamente com a cabeça. — Enviou-


a para o Senhor Morton, primo e Primeiro Acompanhante da
Rainhaglaciana.

252
— Costuma responder a essas mensagens?
— Sim. E normalmente vem sozinho.
— Nesse caso, é melhor prepararmo-nos para receber visitas em breve.
Designa cinco arqueiros para se posicionarem por detrás da teia de
desembarque.
O Senhor da Guerra examinou a chacina. — Se Morton vir isto, o mais
certo é apanhar novamente os Ventos de regresso, para ir dar conta do
sucedido.

— Assim sendo, tenho de me certificar de que o consigo atrair de


maneira
a que se afaste o suficiente da teia de desembarque, ficando ao
alcancedos arqueiros — disse o Príncipe dos Senhores da Guerra. — A
carcaça daSacerdotisa está morta?
— Sim, Príncipe.
Ouviu um grito débil e angustiado. — E a jovem Sacerdotisa?
O Senhor da Guerra sorriu de modo maldoso. — Está a ter a
recompensa
que merece por ter traído o seu próprio povo.

4 / Kaeleer

Daemon seguiu Khardeen para dentro de casa. — Foi simpático da tua


parte
teres-me convidado para jantar.

— A simpatia não é para aqui chamada — respondeu Khary. — Nãofaz


sentido andares de um lado para o outro sozinho enquanto esperas
porJaenelle.
Acompanhara-a durante a grande parte do périplo de Primavera
aosTerritórios de Kaeleer, mas chegada a altura de visitar os parentes,
sugeriudelicadamente, mas com convicção, que prosseguisse para Scelt,
onde sejuntaria a ele. Passariam aqui alguns dias antes de
prosseguirem a visita aosrestantes Territórios desta zona do Reino. —
Bem, não tinhas de despenderde uma tarde para me mostrares Maghre.
Poderia ter dado uma volta sozinho
pela localidade.

— Mas isso também não foi por simpatia — disse Khary depois de pedir
café e bolos. Sentou-se numa cadeira confortável junto à lareira. —
Permitiu-
me sair de casa. Quanto ao jantar, será um prazer falar com alguémque
não vá resmungar comigo devido a um estômago indisposto.
— Sem ser isso, a Morghann está a passar bem? — perguntou Daemon,
sentando-se na outra cadeira.
— Oh, está muito bem para uma feiticeira de Jóia escura no
primeirotrimestre de gravidez. Assim me diz Maeve a toda a hora. — O
sorriso deKhary era ligeiramente pesaroso. — Uma Rainha de Território
repentina253
mente limitada a Arte básica enquanto carrega uma criança no ventre
nãoé uma Senhora de temperamento dócil.

— Visto que ambos tiveram de deixar de tomar a infusão


contraceptivapara que isto sucedesse, a culpa não é toda tua — disse
Daemon, sorrindo.
— Ah, mas não sou eu que desperdiço o pequeno-almoço. Isso
parecemarcar a diferença. E há – frustrações – adicionais para
Morghann nestemomento. Não ouviste a briga esta manhã? Fico
admirado pois a tua casafica a menos de um quilómetro da nossa.
Estava convicto de que Maghreinteira ouvira os seus gritos esta manhã.
— Gritava contigo?
— Não, graças às Trevas. Com o Bailarino do Sol. — Depois de
agradecer
à criada que trouxe o tabuleiro, Khary serviu o café. — Morghannqueria
montar esta manhã. Maeve, a Curandeira de Maghre, dissera quenão
havia problema. Jaenelle dissera que não havia problema desde que
Morghann se sentisse capaz.
— Mas? — incitou Daemon, com a chávena de café a meio caminho
dos lábios.
— O Bailarino do Sol não achou o mesmo. Disse que, uma vez que
aséguas prenhas não podem ser montadas, julgava que uma égua
humanaprenha também não devia montar.
— Oh, céus — disse Daemon – e deu uma gargalhada. — Não
admiraque quisesses sair de casa.
A porta abriu-se. Morghann fez uma cara feia para o tabuleiro,
depoispara Khary. Mas sorriu para Daemon.
Pousando a chávena, levantou-se para a beijar. Ao longo dos meses
emKaeleer, aprendera o valor destes pequenos gestos de afecto – e
aprendera aretirar prazer dos mesmos.

Khary, reparou ligeiramente divertido e com uma grande dose


decompaixão, também se levantara mas não se tentara aproximar da
esposa,

o que era uma atitude sensata.


À porta, apareceu uma criada. — Desejais uma chávena daquele cháde
ervas que Maeve vos preparou, Senhora Morghann?

— Acho que sim — resmoneou Morghann.


Olhando de relance para Khary, Daemon sorriu com o seu
melhorsorriso. — Querida — dirigiu-se a Morghann, — fico feliz por te
juntaresa nós.

— Porquê? — questionou Morghann sombriamente, ao sentar-se.


— Porque o aniversário de Jaenelle é dentro de dois meses e queria oteu
conselho quanto à prenda.
Enquanto discutiam ideias, Morghann embrenhou-se bastante aoponto
de não reparar que estava a beber um chá de Curandeira ao invés

254
de café. Chegou a mordiscar um pedacinho de bolinho de avelã – o
quesignificava que os homens podiam também servir-se sem levarem
com otabuleiro na cabeça.

Ao fim de uma hora, Morghann levantou-se. — Tenho alguma


correspondência
para tratar. Vemo-nos ao jantar?

— Espero ansiosamente — Daemon respondeu.


Beijou-o no rosto – e agraciou Khary com um beijo mais generoso.
Khary aguardou um minuto depois de a porta se fechar. Ergueu a
chávena
de café num brinde. — Foi excelente, Príncipe Sadi. Os meus
agradecimentos.
Daemon ergueu a chávena em resposta. — Foi um prazer,
SenhorKhardeen.

5 / Kaeleer

Morton deus dois passos ao sair da teia de desembarque e ficou


petrificado,

sem conseguir desviar os olhos dos corpos que jaziam na neve.

Em nome do Inferno, o que teria acontecido?

Sentiu um zunido ligeiro do Anel de Honra, quase em forma de


pergunta,
o que o fez despertar do estado de choque, levando-o a criar umescudo
Opala. Esteve prestes a activar o escudo do Anel, mas hesitou.
Essaacção iria invocar os outros rapazolas – e alarmar Karla. Não
queria nadadisso, por agora.

Tentou sondar a área, mas não conseguiu detectar nada indicativo


deque se encontrava em perigo. Mas conseguia sentir a presença de
várias pessoas
vivas.

A primeira reacção foi a de correr para ajudar os sobreviventes.


Foinesse momento que todo o treino a que fora sujeito veio à superfície.
O quequer que aqui tivesse sucedido era mais do que conseguiria
enfrentar sozinho.
E estando aqui há um minuto, começava a sentir algo de errado neste
local, para além da carnificina.

Deu um passo à retaguarda, tencionando apanhar os Ventos, dirigir-


se à povoação mais próxima e trazer ajuda.
Ao recuar outro passo, um eyrieno dobrou a esquina de um prédio eviu-
o.

— Senhor Morton? — chamou o eyrieno.


Morton não reconheceu o Príncipe dos Senhores da Guerra de
JóiaVerde. Ficou tenso, preparado para apanhar os Ventos e fugir.

— Senhor Morton! — O eyrieno acenou com uma mão e correu nasua


direcção. — Graças às Trevas, recebestes a mensagem de Yaslana!
255
Esse nome bastou para que Morton se catapultasse alguns metros
nadirecção do eyrieno. — O que aconteceu aqui?

— Não sabemos ao certo — respondeu o eyrieno, parando à distânciade


alguns centímetros. — Yaslana encontrou pegadas vindas do Altar
dasTrevas. Juntou alguns homens e seguiu-as. — Olhou por cima do
ombro deMorton, com o rosto marcado pela preocupação. — Não
trouxestes Curandeiras?
— Não, eu…
Aconteceu a grande velocidade. Uma detonação de poder da Jóia Verde
do eyrieno estilhaçou o escudo Opala, no preciso momento em que
trêssetas lhe trespassavam o corpo. O escudo Ébano do Anel de Honra
de Jaenelle
desencadeou-se de imediato. Duas outras setas bateram no escudo e
desfizeram-se em pó.

Fez uso da Arte para se manter em pé e amaldiçoou-se a si próprio


porser triplamente tolo e não ter activado o escudo de imediato. Agora,
nadalhe podiam fazer, nem sequer impedi-lo de voltar até à teia de
desembarquea andar ou a rastejar, e de viajar pelos Ventos para longe.
E as feridas, peseembora dolorosas, não eram graves. Tinha uma seta
atravessada em cadaperna e uma no ombro esquerdo, muito acima do...

Sentiu um frio letal a invadir-lhe os membros e soube de imediato do


que se tratava. Veneno nas pontas das flechas. Mas quão virulento seria
oveneno?

Obteve a resposta no sorriso cruel do eyrieno.

Caiu de joelhos. Não restava tempo para enviar todos os avisos


queprecisava enviar. Não restava tempo. Por isso, concentrou-se em
enviar umaviso à pessoa que sempre lhe fora mais querida.

Enquanto a morte se apoderava do corpo, reuniu forças e enviou


umaúnica palavra. «KARLA!«

6 / Kaeleer

Karla estava sentada ao toucador, com uma mão apoiada no tampo e a


outra
a pressionar o abdómen. As dores do período da lua não
costumavamprolongar-se por tanto tempo, nem costumavam ser tão
dolorosas.

— Estais aqui — disse Ulka de modo agradável, pousando uma


canecafumegante no toucador. — Esta infusão para o período da lua irá
fazer-vossentir uma outra mulher num instante.
— Obrigada, Ulka — murmurou Karla. Aceitara Ulka no Terceiro
Círculo
pela mesma razão que aceitara outras feiticeiras das famílias
aristocratasde Glacia – para as aplacar depois de ter exilado o seu tio,
Hobart. E, embora
256
não gostasse de Ulka, tinha de admitir que a mulher tinha sido uma
companheira
solícita ao longo deste Inverno, preocupando-se exageradamente comas
enfermidades passageiras mas possuindo um excelente instinto quanto
àsoportunidades ideais para tagarelar e para se manter em silêncio.

Logo que a infusão arrefeceu um pouco, Karla bebeu um trago


generoso.
Fazendo um esgar enojado, pousou a caneca. A infusão tinha umsabor
invulgar a ranço. Fogo do Inferno, teriam algumas das ervas
ficadobafientas ou ter-se-iam estragado de alguma forma? Pensando
bem, durante
todo o Inverno foram frequentes as vezes em que a comida não lhe
tinhasabido bem. Ou talvez estivesse mal habituada às infusões
deliciosas queJaenelle produzia. O sabor não interessava. Não iria
mitigar a dor se ficasse
na caneca.

Ao pegar novamente na caneca, olhou para o espelho. Sentiu um


calafrio
a percorrer-lhe o corpo ao vislumbrar a expectativa atenta nos olhos
deUlka. — Puseste-lhe veneno, não foi? — disse Karla, sem rodeios.

— Foi — disse Ulka, num tom de voz presunçoso e satisfeito.


Karla sentiu o corpo a unificar-se vagarosamente para a batalha contra
o veneno. Por ser Viúva Negra, a sua tolerância aos venenos era
superior àsoutras pessoas, mas até uma Viúva Negra podia sucumbir a
um veneno que
o corpo não reconhecesse ou tolerasse.
Enquanto olhava atónita para o reflexo da outra mulher, compreendeu
finalmente. Todas as enfermidades passageiras, todas as comidas
quetinham um sabor estranho. E Ulka sempre presente, tão solícita,
agindode modo tão preocupado. — Puseste venenos fracos em muitas
coisas aolongo deste Inverno.

— Sim.
Venenos que enfraqueceram o seu corpo mas que nunca a
fizeramadoecer tão gravemente a ponto de levantar suspeitas – apesar
de ter sidoadvertida sobre a sua própria morte na teia entrelaçada que
criara no último
Outono. Oh, tinha sido prudente. Sabia demasiado sobre venenos
paranão o ser. O facto de não ter conseguido detectar os venenos
significava queas plantas usadas não eram autóctones de Glacia. Se
assim fosse, tê-las-ia
reconhecido de imediato, independentemente da forma como
estivessemdisfarçadas.

Com algum esforço, Karla levantou-se. Num momento as pernas foram


acossadas de picadas ardentes, para logo de seguida ficarem
dormentes.
Inundou o corpo com a força da Cinzenta, aceitando a dor que o
seupróprio poder lhe causava devido ao período da lua, para conseguir
combater
o veneno.

Ao mesmo tempo que uma espantosa torrente de dor se alastrava,


sentiu
o escudo Ébano do anel que Jaenelle lhe dera a envolvê-la.

257
— Porquê? — Karla perguntou. Como podia ter subestimado esta
cabra?
O que lhe teria escapado?
Ulka fez beicinho. — Julguei que me iria tornar numa Senhora de relevo
na vossa corte. Deveria pertencer ao primeiro Círculo e não ao Terceiro.

— Uma feiticeira que envenena a sua Rainha não é digna de servirno


Primeiro Círculo — disse Karla, causticamente. — É uma questão
delealdade.
— Eu era leal — retorquiu Ulka. — Mas não consegui nada sendo-
vosleal. Foi então que tive uma oferta mais vantajosa. Logo que
desapareçais eque o Senhor Hobart volte a controlar Glacia, eu serei
uma Senhora importante.
— Não passarás de rameira de um homem qualquer — disse Karla
secamente.
O rosto de Ulka ganhou um ar ameaçador. — E vós estareis morta!
Enão penseis que não concluirão o assassínio para se certificarem de
que selivram de todos vós!

O anel que Jaenelle lhe ofertara produziu uma picada aguda de


advertência
segundos antes do grito de aviso de Morton lhe invadir a mente.

«KARLA!«

«Morton? Morton!«

Nada. Um vazio ocupava o local onde tinha estado alguém desde que

se lembrava.
Um tipo diferente de frio invadiu Karla – um frio glacial que lhe nutria

o corpo, que lhe dava forças. — Mataste Morton — disse, com


demasiadacalma.
— Eu não — respondeu Ulka. — Mas a esta hora já está morto.
O bastão laminado eyrieno que Lucivar lhe oferecera estava nas
suasmãos e a silvar pelo ar antes que Ulka tivesse tempo de perceber o
perigo.
As lâminas, mortalmente afiadas, atravessaram os ossos das pernas de
Ulkacom a mesma facilidade com que atravessaram o vestido de lã da
mulher.

O sangue jorrou. Ulka caiu, aos gritos.

Karla cambaleou, apoiou-se. Não iria conseguir usar o corpo destaforma


ao mesmo tempo que combatia o veneno enquanto aguardava…
Pelo quê? Com Morton morto, quem chegaria em seu auxílio com
abrevidade necessária? Não importava. Lutaria pela vida enquanto
tivesseforças. E tinha mais poder à sua disposição do que os inimigos
imaginavamuma vez que não tinha de usar as Jóias Cinzentas para se
proteger.

Baixando o olhar para Ulka, Karla ergueu o bastão laminado. — Bem,


cabra, posso não ter forças para concluir a morte, mas posso garantir
quenão terás porcaria de serventia nenhuma quando te tornares
demónia-
morta.

258
Decepou as mãos de Ulka, ao que se seguiu a cabeça. O último
golpeatravessou o ventre e rasgou a coluna.

Karla recuou alguns passos, cambaleando, afastando-se da poça


crescente
de sangue. Deixando-se cair no chão, alongou-se cuidadosamente,
com o braço direito à volta do abdómen e a mão esquerda agarrada ao
bastão
laminado.

Visionara a sua própria morte na teia entrelaçada e fizera o


possívelpara alterar essa parte da visão. Porém, se tivesse de morrer
neste momento,
iria aceitar a morte.

Um poder obscuro inundou-a, aquecendo os braços gélidos. Sentiuuma


gavinha de poder a enrolar-se à sua volta e reconheceu o fio curativoque
a ajudava a lutar contra o veneno.

Envolvida pela força de Jaenelle, recolheu-se ao seu interior,


concentrando-
se no campo de batalha em que o seu corpo se tornara.

7 / Kaeleer

Daemon rosnou de frustração ao sentir a picada oriunda do Anel de


Honrade Jaenelle. Ainda não dominava a interpretação de todas as
informaçõesque podiam ser absorvidas pelo Anel. Reconheceu esta
sensação específica
como um pedido de ajuda, mas não fazia ideia da origem do pedido.

— Sentes… — disse, voltando-se para Khardeen.


A perturbação intensa nos olhos de Khary, bem como a sensação
deescuta atenta, impediram-no de continuar.

— Morton — disse Khary baixinho. — E Karla. — Precipitou-se para


a porta.
Daemon agarrou-o. — Não. És necessário aqui.

— Não é assim que as coisas funcionam — disse Khary rispidamente.


— Quando um de nós precisa de ajuda…
— Mordem todos o isco? — perguntou Daemon com igual rispidez.
— Tens uma Rainha grávida que não se pode defender sem correr o
riscode abortar. O teu lugar é aqui. Eu encarrego-me de Karla – e de
Morton.
— Examinou Khary. — Quem mais terá recebido o pedido de ajuda?
— Todos os membros do Primeiro Círculo que vivem na parte ocidental
de Kaeleer. O Anel tem um alcance maior do que se tentássemoschegar
a alguém por nós, mas o alerta não seria sentido para lá desse alcance.
Contudo, todos os machos que sentiram esse pedido de ajuda
irãoretransmitir um aviso através de um fio de comunicação aos
membros do
Primeiro Círculo que estiverem no seu raio de alcance.
— Assim sendo, retransmite esta mensagem ao Primeiro Círculo tão
259
rápido quanto conseguires: “Fiquem onde estão. Mantenham-se
atentos.”

— Daemon fez uma pausa. — “E encontrem Jaenelle.”


— Sim — disse Khary sinistramente. — As Rainhas têm de ser
protegidas.
E ela em particular.
Satisfeito, Daemon saiu da casa a correr e praguejou. Daqui não
iriaalcançar nenhum dos Ventos.
Começou a correr pelo caminho de entrada, para logo se virar na
direcção
do som de cascos a galope. O Bailarino do Sol deslizou antes de sedeter
ao lado de Daemon.

«Ouvi o pedido« disse o Bailarino do Sol. «Tens de viajar pelos Ventos?


«

— Tenho.
«Eu consigo ser mais rápido. Monta.«
Segurando-se a uma mão cheia de pêlos da crina do Bailarino do Sol,
içou-se para a garupa em pêlo do Príncipe dos Senhores da Guerra.

Foi uma cavalgada breve mas atribulada. O garanhão optou pelo


caminho
mais rápido para alcançar os Ventos mais próximos sem se
importarcom o que encontrava pelo caminho e as pernas de Daemon
tremiam aodeslizar da garupa do Bailarino do Sol. Antes de conseguir
proferir umaúnica palavra, o garanhão girou sobre si próprio e partiu.

«Dá-lhes luta!« disse o Bailarino do Sol enquanto galopava velozmentede


volta para a casa de Khary e de Morghann.

— Podes ter a certeza — respondeu Daemon com demasiada delicadeza.


Apanhando o Vento Negro, dirigiu-se a Glacia.
8 / Kaeleer

Kaelas saltou com destreza para o telhado de um covil de humanos a


tempode ver Morton tombar. Rosnou em silêncio, o desejo de atacar a
guerrearcom o instinto de prudência. Retirando-se para a profundidade
da sua JóiaVermelha, onde não poderia ser detectado pelos machos
alados que se ali seencontravam, abriu a mente e deixou que uma
gavinha psíquica deslizassena direcção de Morton.

Sentiu de imediato o escudo da Senhora. Não era um obstáculo. A


Senhora produzira Anéis de Honra também para os parentes machos.
Porisso, dispunha da mesma protecção e, o que neste momento era
ainda maisimportante, podia atravessar o escudo em segurança.
Assim que o fez, percebeu que o corpo de Morton estava sem vidamas
conseguia ainda senti-lo muito debilmente, dentro do corpo. Mortonera
um Irmão na corte da Senhora e os Irmãos olhavam uns pelos outros.

260
Isso era importante. Por isso, levaria o seu Irmão para longe do inimigo
e,
depois, decidiria o passo seguinte.

Olhando na direcção contrária, viu o Santuário que albergava o


Altardas Trevas. Na cercania, havia uma enorme e velha árvore que não
voltariaa despertar. Os humanos pálidos deviam tê-la cortado para a
queimar nosseus fogos. Agora já não iriam precisar dela.

Por meio da Arte, abriu a porta do Santuário, deixando que


oscilassedevagar, como se não tivesse ficado bem trancada.

Saltando do telhado, circundou as traseiras dos covis dos humanos,


caminhando pelo ar para não deixar rastos. Não era por estar invisível
devido
ao escudo de visão que ia ser negligente. Os jogos de “perseguição
eataque súbito” com Lucivar assim o tinham ensinado.

Ao pensar em Lucivar, lembrou-se de algo mais: nunca mostres toda


aforça que possuis ao inimigo até se revelar absolutamente necessário.

A sua Jóia de Direito por Progenitura era a Opala. A categoria da Jóiade


Morton era a Opala. Sim, isso poderia confundir os machos alados.

Revelando os dentes cerrados no que poderia ser descrito como


umsorriso felino, Kaelas libertou uma explosão de força Opala na árvore
tombada.
Explodiu. Os ramos em chamas elevaram-se em todas as direcções.
Outra explosão de poder estilhaçou as janelas nos covis junto ao
Santuário.
Outra explosão de poder lançou para o ar a quantidade de neve
suficientepara formar uma pequena tempestade de neve. A última
explosão controlada
de poder embateu na porta do Santuário.

O Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra de Jóia Verde girara sobre


si próprio na primeira explosão, o rosto contorcido de raiva.
Outrosmachos gritavam. Ao ouvir o estrondo da porta do Santuário, o
eyrienodesatou a correr, bramindo ordens.

— Então e aquele cabrão? — gritou um dos outros homens.


O Príncipe dos Senhores da Guerra hesitou momentaneamente. —
Deixem-no. Não vai a lado nenhum. Concluiremos a morte depois de
tratarmos
das novas visitas.
Kaelas avançou em posição de ataque, usando todos os sentidos
paradetectar os humanos alados. A grande velocidade, aproximou-se de
Morton.

Bastou farejar o corpo para o fazer recuar, confundido. Morton cheirava


a carne envenenada. Não queria fincar os dentes em carne envenenada.
Porém, tinha de levar Morton para longe dos machos alados.

Avançando novamente, roçou o escudo da Senhora, sentiu o


reconhecimento
do Anel de Honra que ele próprio usava e deixou-o atravessar.
Colocou um pequeno e justo escudo Opala à volta do braço esquerdo
deMorton. Ao agarrar o braço entre os dentes, o escudo Opala estava
inter

261
posto entre Kaelas e a carne envenenada. Satisfeito, fez Morton levitar
no armediante a Arte, estendeu o escudo de visão de modo a cobri-los a
ambos
e correu para o arvoredo.

Aí chegado, desacelerou ligeiramente, mas só parou ao alcançar a


luraescavada por KaeAskavi, que servia de esconderijo. Largando o
braço deMorton, examinou a lura. O humano caberia perfeitamente sem
os pauspontiagudos – as setas – sobressaídos. Mas a parte do pau daria
jeito àCurandeira para remover a seta. Não daria?

Depois de ponderar um pouco, usou a Arte para quebrar as hastesao


meio. Aconchegou Morton na lura e colocou as metades partidas a
seulado. Voltou a parar por um instante.

Nunca vira os Sangue humanos a tornarem-se demónios-mortos.


Não sabia quanto tempo demoraria Morton a despertar e a reclamar a
carne
morta. O que sabia com segurança era que quando Morton
despertassee desse consigo nestes estranho local, imaginaria se teria
sido o inimigo acolocá-lo ali.

Kaelas pressionou uma pata dianteira na neve junto à cabeça de


Morton,
deixando uma marca profunda, protegeu a marca com um escudo para
quenão fosse apagada sem intenção. Morton veria a marca e
compreenderia.

Satisfeito por ter entendido a complicada forma de pensar


necessáriapara lidar com humanos, cobriu a lura, deixando um
pequeno orifício derespiração. Um humano morto não precisava de ar,
mas o ar fresco indicaria
a Morton o sítio mais acessível para sair.

Agora era chegada a altura de tratar dos malvados machos alados.

Depois de enviar um chamamento para que os Príncipes dos


Senhoresda Guerra e os Senhores da Guerra arcerianos de Jóias
escuras se juntassema ele, Kaelas dirigiu-se de novo à aldeia.

9 / Kaeleer

Ignorando a teia de desembarque oficial, Daemon saltou dos Ventos


nolocal mais próximo possível da casa de Karla. Logo que chegou a uma
rua,
envolveu-se num escudo de visão Negro, num escudo psíquico e num
escudo
de protecção. Correu durante alguns quarteirões, dobrou uma esquina
e parou.

A rua estava pejada de homens que lutavam. Explosões de poder


deJóias transmitiam ao ambiente um odor a relâmpagos. Os que já
tinhamesgotado as Jóias ou os que nunca as tinham usado, lutavam
com armasbanais. Reparou nalgumas mulheres que lutavam
desesperadamente aindaque sem êxito.

262
Era tão familiar. Não precisava do bafo a podridão presente nalgunsdos
odores psíquicos para reconhecer a mão de Dorothea.
Testemunharaesta situação amiúde em Terreille. Aqueles cuja ambição
era bastante superior
às capacidades que possuíam, venderiam o próprio povo em troca
do“auxílio” de Hayll. As lutas eliminariam os machos e as fêmeas mais
fortes,
os que mais capacidades teriam de se opor a Dorothea e os que
ficavam...

Agora já não precisava de passar despercebido. Agora já não


precisavade dançar à volta das dores atrozes que Dorothea lhe infligiria
se suspeitasseda sua interferência. Mas a subtileza estava arraigada em
Daemon. Alémdisso, um predador silencioso era o mais temido.

Com um sorriso gélido e cruel, Daemon enfiou as mãos nos bolsosdas


calças e deslizou entre aglomerados de combatentes – invisível,
indetectável
– deixando um rasto de devastação.

Entrou na mansão de Karla. Os combates pareciam ter começadoaqui,


espalhando-se de seguida para a rua. Passou por cima de cadáveres,
concentrou-se nos odores psíquicos que tinham um travo associado a
Dorothea,
matando esses lutadores tão expeditamente e com uma tal perfeição
que os seus oponentes ficavam estáticos por um instante, aturdidos
eperplexos.

Um Príncipe dos Senhores da Guerra com a divisa de Guarda-


Morestava a debater-se para afastar outros machos junto à escadaria,
fazendouso das últimas forças das Jóias para se proteger contra três
homens quetinham começado a lutar e não estavam cansados.

Três safanões de poder Negro. Três homens tombados.

Ao começar a subir as escadas, Daemon viu o olhar contundente de


caçador nos olhos do outro Príncipe dos Senhores da Guerra,
presenciando

o momento em que o homem depreendeu que algo perigoso estava a


subiras escadas.
Um Senhor da Guerra de Jóia Branca investiu contra o Príncipe
dosSenhores da Guerra, forçando-o a concentrar-se no inimigo que o
atacava.
Daemon subiu as escadas. Mesmo exausto, o Príncipe dos Senhoresda
Guerra não teria dificuldades com o Senhor da Guerra e ficaria
ocupadopor mais uns instantes.
Não era necessário procurar o quarto de Karla. O Anel de Honraguiou-o
infalivelmente, a palpitação no seu órgão a irritá-lo o suficientepara
aguçar a fúria que já estava na orla assassina.

A porta estava aberta. Viu uma mulher mutilada que jazia num
tapeteensopado em sangue. Viu cinco homens que lançavam detonação
após detonação
de poder contra o escudo que envolvia outra mulher. Karla.

Não sabia quem eram os homens – e não se importava. Subindo


dasprofundidades da Negra, infiltrou-se sob as barreiras interiores dos
homens

263
e libertou uma raiva gélida, transformando os seus cérebros em pó
cinzentoe consumindo as forças psíquicas, concluindo as mortes.

Antes mesmo de tombarem, já Daemon atravessara o quarto.


Ajoelhando-
se ao lado de Karla, baixou o escudo de visão e esticou a mão
prudentemente.

O escudo à volta de Karla continha uma ânsia feríssima e mortal.

Sem saber exactamente como atravessar o escudo, e


conjecturandosobre o que poderia libertar se não o fizesse
correctamente, Daemon respirou
fundo e aproximou a mão um pouco mais.

Um tremeluzir de energia na palma da mão. Apreciação. Aceitação.

A mão atravessou o escudo, incólume.

— Karla — disse, ao mesmo tempo que a agarrava pelo braço. — Karla.


— O ruído áspero que emitiu ao tentar respirar indicou-lhe que
estavaviva. Mas se tivesse embarcado num sono curativo tão profundo a
ponto denão o ouvir...
— Beijinho, beijinho — arquejou Karla.
Daemon sentiu-se invadido por um enorme alívio. Inclinou-se paraque
ela o pudesse ver sem precisar de mexer a cabeça. — Beijinho, beijinho.

— Envenenada — disse. — Não consigo identificar. Ruim.


Afastando-lhe o roupão, Daemon pousou a mão esquerda no peito
deKarla e enviou uma sonda psíquica. Os conhecimentos que possuía
sobreArte medicinal eram limitados, mas de venenos sabia ele. E
reconheceu
pelo menos uma parte.

— Tira a mão… da minha… mama — disse Karla.


— Não sejas resmungona — respondeu Daemon placidamente,
sondando
com mais afinco. O corpo de Karla estava a debater-se muito melhordo
que julgaria possível, mas não conseguiria sobreviver sem ajuda
adicional.
Hesitou. — Karla...
— Restam-me… cerca de… três horas. Corpo… não consegue
lutarmais…
Viajando pelos Ventos Negros, demorara quase duas horas de Sceltaqui.
Pandar e Centauran eram mais próximos mas não conhecia Jonah
ouSceron tão bem como conhecia Khardeen, e não sabia se as
Curandeiras
sátiras ou centauras tinham capacidade para tratar deste veneno.

Além disso, Jaenelle iria provavelmente dirigir-se a Scelt. E isso fê-


lochegar a uma decisão.

— Vou levar-te daqui para fora — disse, pegando-lhe ao colo.


Nessemomento percebeu que a mão de Karla ainda agarrava o bastão
laminado.
— Querida, larga o bastão.
— Tenho de limpar… lâmina. Não… guardar arma… sem limpar lâmina.
Lucivar… esfola-me.
264
Daemon esteve prestes a opinar sucintamente sobre essa questão,
masao olhar por cima do ombro para a mulher esquartejada, engoliu as
críticasque pudesse ter tido quanto aos métodos de treino de Lucivar. —
Eu limpoas lâminas. E prometo não dizer a Lucivar que não foste tu a
fazê-lo.

Os lábios de Karla arquearam-se no sorriso quase imperceptível. —


Até podias ser… simpático… se não fosses tão… macho.

— A minha Rainha gosta de mim deste modo — disse Daemon


mordazmente.
Fez o bastão laminado desaparecer, levantou Karla com cuidadoe virou-
se.
O Guarda-Mor de Karla estava a bloquear a porta. — O que estais
afazer à minha Rainha?

— A levá-la daqui — respondeu Daemon baixinho. — Foi envenenada.


Precisa de ajuda.
— Temos Curandeiras.
— Confiaríeis nelas? — Daemon viu o instante de hesitação. — Não
tenho motivo de queixa contra vós, Príncipe. Não me obrigueis a
passarpor vós.
O outro homem examinou-o, concentrando-se no Anel de Jóia Negra.

— Sois o Consorte da Senhora Angelline.


— Sou.
O homem desviou-se. Quando Daemon passou por ele, o homem disse
baixinho: — Tomai conta dela, peço-vos.

— Assim farei. — Daemon deteve-se. — Vistes Morton?


O Guarda- Mor abanou a cabeça.
Não havia tempo para pensar em Morton ou no que lhe poderia ter
sucedido. — Se o virdes, dizei-lhe que levo Karla para Scelt. Não
informeismais ninguém a não ser Morton.

O homem anuiu. — Vinde por aqui. Nas traseiras temos uma


carruagem
impelida pela Arte. Levar-vos-á aos Ventos com mais brevidade.

O Guarda-Mor conduziu a carruagem enquanto Daemon seguravaKarla,


fazendo uso desses preciosos minutos para envolvê-la em
escudosNegros, de modo a protegê-la durante a viagem pelos Ventos.
Pararam aalguns centímetros do local onde tinha desembarcado.

— Que as Trevas vos protejam, Príncipe — disse o homem.


— E a vós. — Segurando Karla nos braços, Daemon apanhou o
VentoNegro e viajou diligentemente em direcção a Scelt.
Parou uma vez, a meio caminho, para enviar uma mensagem a Khary.
«Estou a chegar com Karla. Foi envenenada. Precisamos de uma
Curandeira
e de uma Viúva Negra. As melhores que conheceres.«

«Jaenelle está a caminho« respondeu Khary.


Era tudo o que precisava saber. Voltou ao Vento Negro e prosseguiu

265
viagem, ciente de que a areia da ampulheta deslizava com demasiada
rapidez.

10 / Kaeleer

Protegido por um escudo de visão, Kaelas e vinte machos arcerianos


acocoravam-
se nos telhados dos covis dos humanos, observando os movimentos
dos malvados machos alados pela aldeia. Alguns dos covis estavam
iluminados
agora que a noite caíra e sentia-se o cheiro de comida a ser preparada.

«Carne?« perguntou um dos Senhores da Guerra arcerianos.

«Não« respondeu Kaelas. Sentiu uma onda de raiva a percorrer os


outros
machos. «A carne sabe mal.«

«Viemos caçar mas não levaremos carne de volta aos covis?« perguntou
outro macho irritadamente.

«Prometemos à Senhora que não caçaríamos humanos« disse um macho


mais jovem, timidamente.

«Estes machos mataram um macho que pertencia à Senhora« disse


Kaelas
com firmeza. «Mataram os humanos pálidos que pertenciam à Senhora
Karla.«

Outra onda de raiva, desta vez dirigida aos malvados machos alados.
Os arcerianos não achavam grande utilidade aos humanos, mas
gostavamda Senhora Karla e adoravam a Senhora. Por elas, caçariam e
regressariamaos covis sem as presas.

O vento mudou ligeiramente, trazendo um odor diferente.

«Levaremos os animais que pertenciam aos humanos pálidos« disse


Kaelas. «Os humanos já não precisam deles. Será o pagamento pelo
trabalho.
« Ficou contente por se ter lembrado desta ideia típica dos humanos.
Sea Senhora se irritasse com ele por ter trazido animais da aldeia dos
humanos,
poderia argumentar com essas palavras.

«Pagamento pelo trabalho?« ecoou um par de machos, para logo um


deles perguntar: «É coisa de humanos?«
«É. Mataremos estes malvados machos e depois poderemos levar
boacarne para os covis.«

Satisfeitos, os arcerianos posicionaram-se para estudar as presas.

Kaelas observou os machos alados durante um minuto. «Temos ser


rápidos… e silenciosos.«

«Mortes rápidas« concordaram os outros.

Kaelas observou o Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Verde


aencaminhar-se para um covil próximo do Santuário. Excepto para
aquele.

266
11 / Kaeleer

Jaenelle estava à espera quando Daemon chegou à casa de Khary e de


Morghann.

— Está a sangrar em demasia para ser unicamente devido ao períododa


lua — disse abruptamente ao entrar a correr no quarto de hóspedes,
seguido por Morghann, Khary e Maeve, a Curandeira da povoação. — E
jánão resta muito tempo.
Jaenelle pousou uma mão no peito de Karla, com os olhos a fixaremalgo
que somente ela podia ver. — Há tempo — disse, com demasiada
serenidade.

Morghann colocou uma camada de toalhas na cama.

Daemon lançou-lhe um olhar gélido ao deitar Karla na cama. Estariaa


mulher mais preocupada com a bela roupa da cama do que com
umaamiga que fora envenenada?

— Não sentirá tanto quando for necessário mudar uma toalha do quese
tivéssemos de mudar um lenço — disse Morghann baixinho,
indicandocom o olhar que sabia o que tinha pensado – e que ficara
magoada.
Não havia tempo para pedidos de desculpa. Morghann e Maeve
despiram
a camisa de noite e o roupão ensanguentados e retiraram com
movimentos
ágeis o sangue que cobria a pele de Karla. Jaenelle não prestou
amínima atenção aos cuidados físicos, permanecendo concentrada no
tratamento.

Daemon estava prestes a informá-la sobre o que sabia acerca do veneno


quando olhou para a manga ensopada em sangue. Foi invadido
pelasmemórias do momento em que ficou ensanguentado pelo sangue
de Jaenelle.
Rasgou o casaco e a camisa. Khary levou a roupa e passou-lhe umpano
húmido.

Enquanto Daemon limpava o sangue, Jaenelle disse: — Foram


usadosdois venenos. Não conheço um deles.
Devolvendo o pano a Khary, Daemon aproximou-se da cama. —
Umdeles provém de uma planta que cresce apenas a sul de Hayll.
Jaenelle levantou os olhos inexpressivos e gélidos. — Sabes preparar
oantídoto? — perguntou com uma calma tão invulgar que o alarmou.
— Sei. Mas as ervas de que disponho já têm muitos anos. Não sei
seainda mantêm o vigor.
— Eu consigo aumentar-lhes o vigor. Prepara o antídoto, Daemon.
— E quanto ao outro veneno? — perguntou enquanto começava
apreparar um espaço de trabalho na mesinha de cabeceira.
267
— É sangue-de-feiticeira.
Sentiu um calafrio. O sangue-de-feiticeira crescia apenas no local
ondeuma feiticeira tivesse sido assassinada de forma violenta – ou onde
tivesse
sido enterrada. Usado como veneno era virulento e mortal – e,
normalmente,
imperceptível.

— Consegues detectá-lo? — perguntou Daemon, cautelosamente.


— Consigo detectar o sangue-de-feiticeira seja qual for a forma emque
se apresente – respondeu Jaenelle, com a voz da meia-noite.
Foi assolado por outra memória. Jaenelle defronte do canteiro de
sangues-
de-feiticeira que plantara no recanto da propriedade dos Angelline.
Sabíeis que, se cantardes a melodia certa, dir-vos-ão os nomes das que
já morreram?

Mesmo secas e transformadas em veneno, as plantas diriam à Feiticeira


os nomes das que partiram?

Trancando as memórias, bem como o coração, Daemon concentrou-


se na elaboração do antídoto.

— Maeve — disse Jaenelle, — prepara uns emplastros simples.


Temosde extrair uma certa quantidade de veneno. Morghann, peço-te
que saiasdo quarto. Não voltes aqui, seja por que razão for, até eu te
dizer.
— Mas…
Jaenelle limitou-se a olhar para Morghann.
Morghann saiu rapidamente do quarto.
— Posso ficar? — perguntou Khary serenamente. — Vocês os três
estarão
compenetrados no tratamento. Vão precisar de um par de mãos
livrespara vos passar o que precisarem.
— Não vai ser fácil, Senhor Khardeen — disse Jaenelle.
Khary empalideceu ligeiramente. — Também é minha Irmã.
Jaenelle acenou com a cabeça, consentindo, e foi então que se
debruçou
sobre a cama, dizendo num tom de voz tão baixo que Daemon tinha
acerteza que fora o único a ouvir: — Braços ou pernas, Karla?

Se obteve uma resposta, foi privada – de Irmã para Irmã. Mas foi oinício
de uma cura tão macabra que Daemon desejou ardentemente
nuncamais voltar a testemunhar nada do género.

12 / Kaeleer
Kaelas atentou nos sons que provinham do quarto e rosnou
silenciosamente.
O Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra de Jóia Verde estava
aacasalar com a fêmea pálida, a jovem Sacerdotisa. Os gritos da fêmea
perturbavam-
no. Não se assemelhavam aos sons que a Senhora emitia comDaemon.
Nestes sons, havia medo e dor.

268
Estava prestes a atravessar o escudo Verde que o macho erguera à
voltado quarto, estava praticamente decidido a retribuir a morte de
Morton comuma morte rápida ao invés do tipo de morte que merecia,
quando a fêmeagritou: — Mas eu ajudei-vos. Ajudei-vos!

Recordando-se da gatinha de KaeAskavi, que agora era órfã, e de todos


os outros humanos pálidos que pertenciam à Senhora Karla e que
estavam
mortos, Kaelas deu um passo à retaguarda. A fêmea maculara o
seupróprio covil, deixara entrar carne envenenada. Merecia este macho
aladocomo parceiro.

Com desvelo para não perturbar o escudo Verde e alertar o macho,


colocou um escudo Vermelho à volta do quarto, aprisionando os
humanos.
Adicionou um escudo psíquico Vermelho para que o macho não
fossecapaz de advertir os outros machos alados ao dar-se conta de estar
aprisionado.

Escapulindo-se do edifício, Kaelas deteve-se e escutou. Os


machosalados eram mais do que os felinos, mas isso não importava. O
Príncipe dosSenhores da Guerra de Jóia Verde era o único dos machos
alados que usava
uma das Jóias escuras e encontrava-se aprisionado. Entre os felinos
queaqui estavam presentes, Kaelas era o único que usava uma Jóia
Vermelha,
mas os escudos das Jóias Opala, Verde e Azul-Safira que os restantes
usavam
serviriam para os proteger enquanto atacavam com unhas e dentes.

«Agora« disse Kaelas.

Silenciosos, invisíveis, os felinos espalharam-se e começaram a caçada.

269
CAPÍTULO DOZE

1 / Kaeleer

Lucivar e Falonar mantiveram-se a uma distância prudente enquanto


observavam
as mulheres no treino de tiro ao arco. Hallevar estava a
algunscentímetros atrás das mulheres, transmitindo instruções que
podiam serouvidas na manhã tranquila tão nitidamente quanto o som
do embate dosbastões que provinha do campo de treinos.

O tempo mudara durante a noite, trazendo a promessa reconfortanteda


Primavera. Não seria duradouro, mas enquanto durasse, Lucivar
pretendia
que as mulheres treinassem duas horas no campo de treinos, todasas
manhãs. Esta era a primeira manhã em que estavam, de facto, a
fazerpontaria a um alvo. Seria divertido observá-las, se não se sentisse
tão irritadiço.

Decorrera um dia e meio desde que a ordem de Daemon: ““Fiquemonde


estão. Mantenham-se atentos” fora retransmitida pelo Primeiro Círculo
– uma ordem que fora reforçada por Jaenelle, duas horas depois.
Aúnica mensagem adicional que recebera fora igualmente sucinta:
Karla foraenvenenada e Morton estava desaparecido.

Teria ignorado a ordem se Daemon não estivesse junto de Jaenelle,


porém sabia que se alguém podia proteger a Rainha melhor do que ele
próprio,
esse alguém seria o Sádico.

Por isso ficara… e observara… e aguardara.

Falonar bufou quando uma mancha de setas fez uma tentativa


patéticade alcançar os alvos. — Achas mesmo que irão conseguir? —
perguntou,
duvidoso.

Lucivar resfolegou. — Durante os teus primeiros meses nos camposde


caça, nem sequer conseguias acertar em algo mais pequeno do que
aencosta de uma montanha.

Falonar fitou-o. — Mas não me lamuriei pelo tempo que poderia


seraproveitado para arejar a roupa da cama. Qual é o interesse de fingir
que

270
elas conseguem usar um... merda. — Uma mulher com o arco
aparelhado
começou a virar-se para Hallevar que acrescentava instruções.
Hallevarsaltou e empurrou-a para que o arco roçasse pela relva e não
numa dasmulheres a seu lado.

Lucivar e Falonar crisparam-se face aos palavrões que Hallevar


usoupara explicar aquele pequeno erro.

— Estás a ver? — perguntou Falonar.


— Hallevar não aprendeu agora a saltar assim, pois não é a primeiravez
que alguém faz algo tão estúpido — respondeu Lucivar. Hesitou,
paralogo acrescentar: — O que é que te está realmente a chatear nisto?
Falonar raspou com a bota no chão. — Se não formos os guerreiros eos
protectores, não nos resta muito a oferecer – até a mulher procurar
umgaranhão. E isso não é fácil de engolir.

— Sabes cozinhar? — perguntou Lucivar, impassível.


Falonar fulminou-o com o olhar. — Mas é claro que sei cozinhar.
Qualquer eyrieno que tenha frequentado os campos de caça sabe
prepararuma refeição rudimentar.

Lucivar acenou com a cabeça, afirmativamente. — Então relaxa. Lá


porque uma mulher sabe caçar o seu próprio jantar não significa que
lhecresçam tomates, tal como não te crescem mamas por saberes
cozinhar.

— Observou Surreal a acertar com a seta no anel exterior do alvo e


sorriu.
— Queres ir lá e dizer-lhe que achas que não consegue manusear
umarco?
— Não, pelo menos enquanto tiver uma arma nas mãos — resmungou
Falonar, entre dentes.

Deram um salto ao ouvirem uma mulher a gritar alto.

Lucivar sossegou ao reparar na forma como Hallevar massajava a boca

com a mão e a mulher massajava furtivamente o peito direito com o


braço.

— Cinco minutos de treino livre — gritou Hallevar antes de correr


nadirecção dos outros dois homens.
— O que aconteceu? — questionou Falonar.
— Que maldição — disse Hallevar, não conseguindo deixar de
sorririronicamente. — Não me lembrei de as avisar porque… bem, fogo
do Inferno,
nunca tive de ter isso em conta. Como é que ia adivinhar que
umamama podia ficar presa na corda de um arco?
— Presa na… — Falonar olhou para as mulheres – que estavam
todasviradas a observá-los furiosamente. Baixou os olhos e pigarreou –
váriasvezes. — Aposto que dói.
Lucivar sentiu cãibras nos maxilares devido ao esforço para não se rir.

— Sim, com certeza que deve doer. Não me lembrei de avisar Marian
quan271
do lhe ensinei e já tinha treinado Jaenelle. Mas a Marian tem... um
peito

mais generoso.

Falonar engasgou-se.

Hallevar limitou-se a acenar com a cabeça, de modo solene. — É uma


maneira agradável e respeitosa de colocar a questão – especialmente
quando
está ali um grupo de mulheres que podiam ficar cegas de raiva e
atingirem
alguma coisa se a colocasses de outro modo.

— Precisamente — disse Lucivar, com sarcasmo. — Treinem até


acabarem
as setas da aljava e…
Antes de o primeiro grito de pânico ser abafado por brados enfurecidos,
já Lucivar corria na direcção do campo de treinos. Saltou para cima
domuro baixo em pedra que separava os dois campos. O seu coração
gelouao ver Kaelas a dar uma sapatada descontraída num Príncipe
Eyrieno dosSenhores da Guerra de Jóia Verde, abrindo-lhe a parte de
trás da coxa. Ogelo que se formara transformou-se numa gaiola
dolorosa ao ver Rothvar eZaranar a correrem na direcção do estranho
com as armas em riste.

«NÃO!« gritou num fio masculino. «Esventro o homem que erguer


uma arma!«

Pararam repentinamente, debatendo-se entre o choque desta ordem ea


fúria. Todavia, os dois, bem como os restantes homens que se
encontravam
no campo de treino, obedeceram.

— Ajudem-me! — berrou o desconhecido ao mesmo tempo que investia


com a espada de guerra contra Kaelas, tentando manter o felino àsua
frente, enquanto retrocedia, coxeando, na direcção dos outros homens.
— Malditos sejam nas entranhas do Inferno, ajudem-me!
Lucivar virou-se e olhou para as mulheres. «Marian, leva todas as
mulheres
e sobe para a nossa casa alcantilada. Fecha as portadas. «
«Lucivar, o que…«

«Já!«

Caminhou a passos largos até ao círculo de homens, seguido de


pertopor Falonar e Hallevar. Sentiu uma satisfação instintiva ao
observar a facilidade
com que Kaelas se esquivava às tentativas de contra-ataque do homem

– e perguntou-se o que diriam os outros homens se soubessem que


tinhasido Lucivar a ensinar o felino a mover-se perante armas dos
humanos.
Logo que o homem se colocou numa posição de combate,
Kaelasinvestiu. A velocidade e o peso bruto da investida derrubaram o
homem,
arrastando-o vários metros para trás. As garras rasgaram os ombros
doeyrieno e desceram pelos braços, deixando-os inábeis. O gato
afastou-secom um salto e começou a andar lentamente à volta do
homem, que mal seconseguia pôr de pé.

Falonar olhou para trás e praguejou baixinho mas ferozmente. Vi

272
rando-se e abrindo as asas para esconder o campo de treinos,
resmoneou:

— Sai daqui com as outras mulheres.


— Não me venhas com essas... oh, merda — disse Surreal ao fintar
Falonar e conseguir ver com clareza o homem e o felino.
Kaelas prosseguiu com as sapatadas ligeiras, quase em jeito de
brincadeira,
infligindo feridas superficiais que iriam levar a presa a esvair-se
emsangue, aos poucos. Continuou até o eyrieno desconhecido abrir as
asasferidas e tentar voar. O gato saltou com o homem e pousou
delicadamente.
O homem, com as costas rasgadas, caiu pesadamente.

— Mãe Noite — sussurrou Surreal, — está a brincar com aquele


homem.
— Está a brincar — disse Lucivar sinistramente ao mesmo tempo queas
suas entranhas se contorciam, — mas não é um jogo. É uma
execuçãoarceriana.
Surreal compreendeu antes de Falonar. Lucivar viu o rosto da mulhera
ficar tenso – e percebeu que os seus olhos estavam repletos de um
friointeresse profissional.

— Yaslana — alertou Falonar.


Lucivar sentiu a tensão crescente nos outros homens e sabia que
nãodemoraria muito até um deles desobedecer à ordem que dera e se
juntar à“luta”. Começou a aproximar-se.

Kaelas também devia ter sentido o mesmo pois as brincadeiras


acabaram.
O desconhecido eyrieno gritou enquanto as garras lhe dilaceravam
opeito e as coxas até ao osso.

— Kaelas — chamou Lucivar com firmeza, — já… — Sentiu a crepitação


de energia da Jóia Vermelha no momento em que as garras voltaram
ainvestir. O objecto voou na direcção de Lucivar tão rapidamente que só
tevetempo de o apanhar instintivamente, para não lhe embater contra o
peito.
Durante um ou dois segundos, Lucivar fitou a cabeça que fora
decepada nabase do pescoço. E deixou-a cair.
— Mãe Noite — disse Surreal baixinho.
A mão direita do eyrieno, com o anel de Jóia Verde, rasgou o ar e
caiucom um baque ao lado da cabeça.
Com uma raiva gutural, Kaelas rosnou enquanto esventrava o
homempara, de seguida, defecar no abdómen aberto antes de se afastar
do cadáver.
Por fim, olhou para Lucivar. «Ainda está lá dentro… para o Senhor
Supremo.
«

Lucivar tentou engolir, em vão. Kaelas não concluíra deliberadamente


a morte. «Porquê?«
«Assassinou Morton« respondeu Kaelas, esforçando-se ao tentar usarum
fio de comunicação que pudesse ser ouvido por todos os humanos pre

273
sentes. «E matou os humanos pálidos que pertenciam à Senhora Karla.«

Lucivar sentiu uma torrente de fúria, um fogo purificador. «Onde?«


Surgiu-lhe uma imagem na mente, estranhamente focada, mas com a
nitidez
suficiente para conseguir identificar o local. «Agradeço-te, Irmão« disse,
usando um fio masculino dirigido especificamente ao felino.

Kaelas saltou, apanhou os Ventos e desapareceu.

— Já fiz muitas coisas na minha actividade de assassina — disse


Surreal,
prendendo o cabelo atrás das orelhas, — mas nunca caguei num
cadáver.
É algum tipo de excentricidade felina?
— É a forma de os arcerianos mostrarem desdém pelo inimigo —
disseLucivar. Olhou para Falonar que parecia estar a esforçar-se para
não vomitar.
Uma olhadela rápida bastou para confirmar que a maioria dos
homensestava a passar pelo mesmo, apesar da experiência de batalhas.
— Não oreconheço? E tu?
Falonar abanou a cabeça.

— Eu reconheço — disse Rothvar com dificuldades, acercando-se.


— Quando soube que eu ia imigrar para Kaeleer, ofereceu-me uma
posiçãona sua companhia. Disse que não ia lamber as botas a
nenhuma cabra, queestaria a dominar um belo pedaço de terra no
prazo de um ano. Nuncasimpatizei com ele, por isso recusei. Mas... —
Olhou de relance para a cabeça,
para logo desviar o olhar. — Ouvi... pareceu-me ouvir... O gato
falavaverdade?
— Não iria mentir. — Lucivar respirou fundo. — Falonar, escolhe quatro
homens para nos acompanharem. — Olhando ao redor, percebeu
queSurreal já não estava junto deles.
Falonar também se virou e praguejou. — Maldição, provavelmenteestá
para aí a vomitar...

Surreal saltou por cima do muro baixo em pedra e saltitou na direcção


dos homens, segurando um grande e amolgado balde em metal.
Comoficaram todos a olhar para ela, bufou e dirigiu-se a Lucivar, de
modo mordaz:
— Estavas a pensar levar aquela coisa debaixo do braço até ao
SenhorSupremo?

Lucivar sorriu relutantemente. — Obrigado, Surreal. — Vacilou. Tinha


as mãos já ensanguentadas, mas, ainda assim, vacilou.

Surreal não vacilou. Bufando novamente, lançou a cabeça e a mão


para o balde e cobriu-o com um pedaço de pano escuro.

Os homens retraíram-se. Surreal rosnou-lhes.

Percebendo a circunspecção nos olhos de Falonar, Lucivar disse: —

Cumpre as ordens que te foram transmitidas, Príncipe.


Falonar e Rothvar foram-se embora com mais rapidez do que discrição.

— Diz-me que não se comporta deste modo no campo de batalha


274
— disse Surreal com uma ponta de azedume. — Provavelmente teria
sidomelhor se eu me agarrasse ao seu braço e pedisse sais de cheiro.
— Não o condenes precipitadamente — disse Lucivar, serenamente.
— Não está habituado a uma mulher como tu.
Surreal insurgiu-se. — E que tipo de mulher é esse?
— Uma feiticeira Dea al Mon.
Devagar, surgiu um genuíno sorriso. — Suponho que devia ter
maistacto. — Acenou com a mão para o balde e hesitou. — Gostava de
te acompanhar.

— Não. Quero que fiques aqui com as outras mulheres.


Uma geada cobriu-lhe os olhos. — Porquê?
Bruscamente impaciente, resmoneou: — Porque usas a Cinzenta e
confio em ti. — Aguardou até se certificar de que Surreal compreendera.

— A minha casa alcantilada está protegida com escudos Ébano-


Acinzentados,
mas Marian sabe penetrá-los. Não deixes entrar ninguém que ela
nãoreconheça – seja por que motivo for. Voltarei logo que possível.
Surreal anuiu. — Está bem. Mas tem cuidado. Se te magoares, dou-te
um murro.

Lucivar aguardou até Surreal já não o conseguir ouvir para logo


acenara Hallevar, que se aproximou. — Manda o Palanar à casa da
minha mãe.
Ele que acompanhe a Senhora Luthvian para a minha casa alcantilada
semdelongas.

Hallevar moveu-se constrangidamente. — Vai dar uma descasca ao


rapaz.

— Diz-lhe que é uma ordem do Príncipe dos Senhores da Guerra


deEbon Rih — disse Lucivar. — Quero que mantenhas os olhos abertos.
Sevires, ouvires ou detectares algo que não é do teu agrado, manda um
dosrapazes à Fortaleza e outro ao Paço para ir buscar ajuda. A alcateia
tambémficará de vigia. Se vires alguém que não more nas redondezas,
mesmo queos conheças bem de Terreille, encara-os como inimigos.
Compreendido?
Acenando afirmativamente com a cabeça, Hallevar partiu para tratardas
suas obrigações.
Pouco tempo depois, Lucivar e cinco dos seus homens voavam
emdirecção à Fortaleza.

2 / Kaeleer

Lucivar pousou o balde de metal na extremidade oposta da mesa de


trabalho
e observou Saetan a deitar sangue fresco numa malga de líquido
aferver. — Julguei que estavas no Paço, a aguardar notícias.

275
— Draca pediu-me que viesse — respondeu Saetan, mexendo
lentamente
o conteúdo da malga. — O que te traz aqui?
— Morton morreu.
A mão de Saetan deteve-se por um instante para logo retomar o
movimento.
— Eu sei.
Lucivar crispou-se e disse cautelosamente: — Está no Reino das
Trevas?

— Não, está aqui. Foi essa a razão que levou Draca a solicitar que
viesse.
Veio informar-nos.
Lucivar começou a andar para trás e para a frente, numa inquietação.

— Ainda bem. Vou falar com ele antes de...


— Não.
O tom implacável da voz de Saetan deteve-o – por um instante. —
Nãome importa se agora é demónio-morto.

— Mas ele importa-se. — A voz de Saetan suavizou-se. — Não querver-


te, Lucivar. A nenhum de vós.
— E por que não, em nome do Inferno? — gritou Lucivar.
Saetan rosnou. — Julgas que é fácil fazer a transição? Achas que
alguma
coisa será igual para ele? Está morto, Lucivar. É um jovem que já
nãoterá oportunidade de realizar actos grandiosos, que já não é quem
era nem

o que era. Existem razões para que os mortos permaneçam, a grande


partedo tempo, entre os mortos.
Lucivar continuou a andar. — Não é que o Primeiro Círculo não
estejahabituado ao convívio com demónios-mortos.

— Não os conheceste quando caminhavam entre os vivos — disse


Saetan, com serenidade. — Não existiam laços que precisassem de
sercortados. É verdade, os laços têm forçosamente de ser cortados —
disse,
sobrepondo-se ao protesto de Lucivar. — Os vivos têm de seguir em
frente
– bem como os mortos. Se não consegues respeitar esse facto, pelo
menosrespeita o facto de Morton precisar de tempo para se adaptar
antes de terde vos enfrentar.
Lucivar rogou pragas. — Qual é a gravidade...?

Saetan pousou a colher e deslocou-se para o lado oposto da mesa. —


As feridas não são visíveis quando está vestido. Na verdade, não teriam
sidofatais se as setas não contivessem veneno.
— Veneno — disse Lucivar ao olhar para o balde.
— Morton não te poderia dar muitas informações e sem mais elementos,
o que ele sabe não nos servirá de grande ajuda.
Lucivar apontou para o balde. — É possível que encontres ali as
respostas.
Saetan levantou o pano escuro, olhou para dentro do balde e deixou

o pano cair.
276
— Kaelas — informou Lucivar, respondendo à questão tácita.
— Compreendo — disse Saetan placidamente. — Vais regressar aEbon
Rih?
Lucivar abanou a cabeça. — Vou, acompanhado de alguns homens,
ao Altar das Trevas em Glacia dar uma vista de olhos, para ver se
encontroalgumas respostas.

— A ordem da nossa Rainha foi bastante explícita — lembrou Saetan,


com serenidade.
— Vou arriscar que ela fique furiosa comigo.
Saetan acenou com a cabeça. — Assim sendo, como Administrador
da Corte, solicito oficialmente que te dirijas ao Altar das Trevas em
Glaciapara esclarecer o sucedido.

— Não preciso de me esconder atrás do teu título — ripostou Lucivar.


Saetan sorriu com frieza. — Estou a fazê-lo tanto por Jaenelle comopor
ti. Desta forma, poderá recuar com graciosidade, não tendo de te
confrontar
por teres desobedecido a uma ordem directa.

— Oh. Nesse caso…


— Toca a andar, rapazolas. Depois, informa-me no Paço. E,
PríncipeYaslana — acrescentou Saetan quando Lucivar alcançou a
porta, — lembra-
te que Glacia não é o teu território. Aí não és a lei.
— Sim, senhor, não me esquecerei. Limitar-nos-emos a observar e
ainformar.
3 / Kaeleer

Atenta ao olhar reservado de Marian e à forma como Luthvian


conseguiatransmitir silenciosamente a desaprovação relativa à escolha
da esposa que

o filho fez, Surreal conjecturou quão danado ficaria Lucivar se levassem


amãe dele para o jardim e se a usassem como alvo para treinarem.
— Como é que conseguiste fazer alguma coisa esta manhã? —
perguntou
Nurian, a Curandeira assistente, aceitando um bolinho de avelã
datravessa que Marian estava a fazer circular. — Melhor, como é que
consegues
fazer o que quer que seja depois destes treinos matinais?
— Oh — exclamou Marian com um sorriso tímido, — já estou habituada
e…
— Sois Curandeira — interrompeu Luthvian, olhando friamente
paraNurian. — O facto de sentires dificuldades na prática de uma Arte
exigentedepois destes treinos é compreensível. Mas não servem de
desculpa para anegligência dos deveres se nos referirmos a Arte caseira.
Afinal,…
277
— Vão-nos dar licença — disse Surreal, puxando Luthvian para que
selevantasse. — Eu e a Senhora Luthvian temos uns assuntos a tratar.
— Larga-me — resmoneou Luthvian enquanto Surreal a arrastavapara
fora da sala. — Não se trata uma Curandeira Viúva Negra como sefosse
uma…
— Uma feiticeira doméstica? — disse Surreal com uma doçura
peçonhenta
enquanto empurrava Luthvian para o jardim.
— Exactamente — respondeu Luthvian sombriamente. — Mas nãocreio
que uma prostituta…
— Cala-te, cabra — disse Surreal com uma serenidade exagerada.
Luthvian inspirou ruidosamente. — Estás a esquecer-te do teu lugar!
— Não, docinho, isso é exactamente o que não me estou a esquecer.
Podes pertencer a uma casta superior, mas as minhas Jóias são
superioresàs tuas. Julgo que isso equilibra as coisas – pelo menos no
seio da família.
Não gostas de mim, mas isso serve-me às mil maravilhas pois eu
tambémnão gosto de ti.
— Não é sensato enfurecer uma Viúva Negra — disse Luthvian,
suavemente.
— Do mesmo modo, não é sensato enfurecer uma assassina. — Surreal
sorriu quando Luthvian arregalou os olhos. — Por isso, vamos
simplificara questão. Se voltas a fazer algum comentário depreciativo
sobre Marian,
pego em ti e bato com a tua cara na parede até te entrar algum bom
sensona cabeça.
— O que julgas que Lucivar diria sobre isso? — A voz de Luthvian
parecia segura, mas nos olhos havia dúvida.
— Oh — respondeu Surreal, — não creio que Lucivar tivesse algo a
dizer,
pelo menos a mim. — Ao ver a estocada verbal a acertar no alvo, sentiu
uma compaixão momentânea por Luthvian. A mulher afastava as
pessoas,
mas depois parecia ficar perplexa por se ver sozinha.
— Podia ter arranjado melhor — protestou Luthvian. — Não precisava
de se contentar com uma feiticeira doméstica de Jóia Violácea.
Surreal observou Luthvian. — Isto não tem nada a ver com Lucivar,
pois não? Tu é que estás envergonhada porque o teu filho casou com
umafeiticeira doméstica. Marian é uma mulher dócil e carinhosa que o
ama ecuja presença o faz feliz. Se tivesse casado com uma Curandeira
Viúva Negra
e se fosse infeliz, bem, isso não importava, porque teria casado comuma
mulher digna de um Príncipe dos Senhores da Guerra. Certo? — Além
disso, acrescentou em silêncio, o Senhor Supremo aprova a escolha do
filho,

o que levava Surreal a desconfiar que era essa a razão principal da


desaprovação
de Luthvian. — Lembra-te do que te disse, Luthvian. — Começou
aafastar-se.
278
— Lá porque o Senhor Supremo tolera que faças uso do nome Sa-
Diablo, isso não muda o que foste – e ainda és — disse Luthvian, de
mododesagradável.
Surreal olhou por cima do ombro. — Não — disse, — não muda.
Também é bom que te lembres disso.

4 / Kaeleer

Lucivar sentiu o formigueiro de poder remanescente no preciso


momentoem que saiu da teia de desembarque. Enquanto os outros
eyrienos olhavamatónitos para os cadáveres e segredavam
apreensivamente, Lucivar manteveos olhos na neve batida, alguns
centímetros à sua frente. Dirigiu-se a esselocal e circundou-o.

— O que foi? — perguntou Falonar, evitando igualmente o sítio.


— Foi aqui que Morton morreu — disse Lucivar baixinho.
— Não foi o único a morrer — disse Rothvar sinistramente, olhando
para os cadáveres maltratados dos eyrienos.
— Não, não foi o único — respondeu Lucivar. Mas foi o único que
vicrescer de jovem respeitável até se tornar num homem excepcional. —
Rothvar,
tu e o Endar…
Se não tivesse vivido os últimos oitos anos com parentes, nunca
detectaria
este odor psíquico específico – e nunca saberia da presença dos
felinosarcerianos até ser demasiado tarde.

Passou os olhos pelos telhados da povoação de uma forma


descontraída,
ao mesmo tempo que se recolhia nas profundidades da sua Jóia Ébano-
Acinzentada e sondava a área. Oito arcerianos. Dois deles eram
Príncipesdos Senhores da Guerra. Todos usavam Jóias escuras.

— Não peguem nas armas — disse Lucivar, mantendo um tom devoz


baixo e sem variações. — Temos companhia. — Movendo-se devagar,
desapertou a curta capa de lã, abrindo-a para mostrar o peito e a Jóia
Ébano-
Acinzentada que pendia da corrente à volta do pescoço. Levantou
osbraços, afastando-os das armas. — Sou Lucivar Yaslana — disse em
voz
alta. — Pertenço à Senhora. E estes machos pertencem-me.
«Não consigo detectar nada« disse Falonar num fio masculino Safira.
«Normalmente, os parentes não anunciam a sua presença« disse
Lucivar,
friamente. «Especialmente os arcerianos.«
«Mãe Noite!« Falonar olhou para os cadáveres maltratados dos eyrienos.
«Os gatarrões ainda estão por aqui? Quantos?«
«Oito. Esperemos que cheguem à conclusão que somos amigos ou
istovai dar uma grande confusão. «

279
Lucivar aguardou até os braços lhe começarem a doer. Por fim,
sentiuum prudente toque psíquico. «És Irmão de Kaelas« disse uma voz
que era ao
mesmo tempo um rosnado.

«E Kaelas é meu Irmão« respondeu Lucivar. Baixou os braços.

«O que vos traz aqui?« questionou o felino.

«Para prestar testemunho à Senhora.«

Uma longa pausa. «Kaelas disse-nos para tomarmos conta deste


localpara que mais nenhuma carne estragada atravesse o Portão.«

Lucivar esperou que os felinos que o observavam julgassem que o


arrepio
se devera ao frio e não à referência aos eyrienos como “carne estraga-
da”. «Kaelas é sensato.«

«Observem e depois vão-se embora.« Não era uma pergunta.

Lucivar virou-se para os seus homens. Levantou a voz para se certificar


de que o felino arceriano que se encontrava mais próximo pudesse
ouviras ordens. — Ergam escudos básicos.

Cinco homens olharam-no perplexos, seguindo-se uma rápida


compreensão.
Foram envolvidos por escudos protectores.

«Estes escudos conseguirão proteger-nos?« perguntou Falonar a


Lucivar,
usando um fio Safira para que os outros homens não o
conseguissemouvir.

«Não« respondeu Lucivar laconicamente. «Armas em riste. Invocou a


sua espada eyriena e acenou com a cabeça em guisa de aprovação
quandoos outros seguiram o exemplo.«

— Kohlvar, tu e Endar ficam de guarda na teia de desembarque.


Rothvar
e Zaranar, vão pelo lado esquerdo da aldeia. Falonar, segue-me. — «E
se algum dos arcerianos surgir, mostrem-lhe a mesma reverência que
mostrariam
perante outro guerreiro« acrescentou num fio masculino geral.
Moveram-se devagar, com cautela, com a consciência absoluta de queos
felinos observavam todos os movimentos, todos os gestos.
— Como é que aqueles gatarrões conseguiram matar tantos
eyrienossem que ninguém fizesse soar um alarme? — perguntou
Falonar baixinho,
depois de terem verificado metade das casas no lado da povoação de
queestavam incumbidos. Era óbvio que um grande número dos homens
denada suspeitara até serem atacados.
— Quando um arceriano caça, normalmente não nos apercebemos
dasua presença até nos matar — respondeu Lucivar distraidamente ao
verificar
rapidamente outra casa. Havia indícios de pequenas escaramuças
emtodas as casas, mas foram glacianos contra eyrienos. — Isso torna-
os extremamente
eficientes.
Ao chegarem aos aposentos no Santuário, ficaram ambos
embasbacados
a olhar para a Sacerdotisa – ou para o que restava dela.

280
— Fogo do Inferno — disse Falonar, a repugnância a tomar conta deleao
mesmo tempo que recuava. — Bem, acho que a violação colectiva é um
tipo de execução lenta. Mas por que razão só mantiveram esta? E o que
oslevou a espancá-la até à morte quando o que tinham feito já seria
suficientepara a matar?
— Porque as outras mulheres debateram-se ao passo que esta
esperavaum tipo diferente de recompensa — respondeu Lucivar.
Quando Falonar
o fitou com os olhos plenos de horror, Lucivar deu uma gargalhada,
gravee sórdida. — Passaste tempo suficiente nas cortes terreilleanas
para sabercomo te conspurcar, Príncipe Falonar. Aquele canalha de
Jóia Verde tevede contar com a ajuda de alguém para atravessar o
Portão de volta a Terreille
– ou, pelo menos, para evitar que a idosa Sacerdotisa percebesse que
o Portão estava a ser usado sem o seu conhecimento nem
consentimento.
Quanto ao espancamento… Imagino que quando o canalha percebeu
queestava aprisionado precisou de descarregar em alguém.
— O gatarrão não o matou com a lentidão que merecia — disse Falonar
entre dentes, afastando-se do quarto. — Nem de perto.
Suponho que o Senhor Supremo saberá extrair o pagamento final
peladívida, pensou Lucivar, mas não o disse a Falonar.

Quando iam a sair do Santuário, Zaranar acenou-lhes para que


seaproximassem.

— Rothvar está na porta das traseiras — disse Zaranar, agitado. —


Penso
que é melhor tratardes disto. Limitámo-nos a vigiar as portas —
acrescentou
depressa.
Antes que Lucivar conseguisse dar um passo, Kohlvar enviou uma
mensagem urgente. «Príncipe, encontra-se um glaciano na teia de
desembarque
que diz que é o Guarda-Mor da Senhora Karla. Está acompanhadode
quarenta guardas.«

«Diz-lhe para não sair daí« respondeu Lucivar rispidamente enquantose


dirigia com Falonar para as traseiras da casa. «Já vou falar com ele
dentro
de alguns minutos.«

Antes de chegar à porta das traseiras, ouviu rosnados nervosos


queprovinham de dentro da casa. Rothvar afastou-se. Lucivar
preparava-separa entrar, mas parou abruptamente.

O Senhor da Guerra arceriano tinha praticamente atingido a


maturidade
por isso não restava muito espaço na diminuta cozinha para um
gatodaquele tamanho andar de um lado para o outro. Na mesa, estava
disposto
um sortido invulgar de comida. No chão, jazia uma cabra, habilmente
morta.

Quando Lucivar deu um passo na direcção da cabra, o felino saltoupara


cima da presa e rosnou.

281
«Minha« disse o gato.

— Tudo bem — respondeu Lucivar conciliatoriamente.


O felino parecia intrigado pelo rápido consentimento. «Pagamento
pelo trabalho.«
Interessante, pensou Lucivar. Seria este um teste dos parentes a
umaideia dos humanos? — Uma vez que estás a vigiar este sítio ao
invés de caçares,
é justo que sejas pago com carne.

Descontraindo-se ligeiramente, o felino olhou para a mesa e


Lucivartambém. Não havia nada ali que se adequasse ao gosto de um
felino. — Istotambém é pagamento pelo trabalho?

«Comida dos humanos.« O felino deu uma entoação à frase que parecia
uma questão esperançosa.

— Sim, é.
«Uma gatinha apreciaria esta comida?«
Lucivar coçou o queixo. — Não sei.
O felino emitiu uma rosnadela, mas o som expressava desânimo.
«Queimámos carne para ela, mas não a quis comer.« Torceu o focinho
paraindicar o que pensava sobre arruinar um belo pedaço de carne,
cozinhando-
o. «Prometi levar-lhe comida de humanos.«

Um arrepio percorreu as costas de Lucivar. — Há uma criança


quesobreviveu?
«Sim. A gatinha. A amiga de KaeAskavi.« O gato examinou-o,
perguntando
a seguir, de modo hesitante: «Irás ajudar?«
Lucivar pestanejou para reprimir as lágrimas que poderiam confundir

o felino. — Sim, ajudarei.


5 / Kaeleer

— Agimos correctamente? — perguntou Daemon enquanto


caminhavapelo ar com Lucivar, sobre a neve alta e em direcção ao local
consideradocomo teia de desembarque oficial. Não estavam a fazê-lo
somente para quenão se afundassem em neve até à cintura; as pegadas
poderiam indicar aum inimigo onde estavam localizados os covis
arcerianos.
— Que mais poderíamos fazer? — respondeu Lucivar, abatido. —
Arapariga perdeu a mãe, a aldeia, toda a gente que conhecia. KaeAskavi
é
o único amigo que lhe resta. Há focos de combates a decorrer por toda
aGlacia, por isso colocá-la noutra aldeia... Não temos garantias de que
sobreviveria
ao próximo ataque a uma povoação. Eu e Marian levá-la-íamos
paraviver connosco, mas…
Daemon abanou a cabeça. — Tens razão. Não aguentaria o convívio

282
com eyrienos, neste momento. — E fora essa a principal razão pela
qualLucivar insistira para que Daemon o acompanhasse a Arceria.

— E não a podemos levar para mais lado nenhum — acrescentou


Lucivar,
tristemente. — Primeiro temos de saber se este ataque fez parte deuma
tentativa de Hobart voltar a controlar Glacia ou se é algo mais do
queisso. Disseste que a rapariga estava bem a nível físico.
— Torceu um pé, mas as Curandeiras arcerianas dispõem da Artepara
tratar de membros feridos. Para além disso, estava… ilesa. —
Nãoconseguia proferir a palavra “violação”. Jamais se olvidaria do
pânico que ograssara quando rastejou para o covil e viu Della – a Della
de cabelo louro,
de olhos azuis, com dez anos. Não era minimamente parecida com
Jaenelle,
excepto na tez, mas isso fora suficiente para que as memórias do
queacontecera em Chaillot há treze anos regressassem e o invadissem.
Tinhaas mãos trémulas ao examiná-la, procurando ferimentos, ao usar
uma delicada
sonda psíquica para responder a essa questão específica. As mãos
nãodeixaram de tremer ao ver que Della agarrava um gato de peluche
numamão e na outra, um punhado de pêlo de KaeAskavi – o que
significava que
o gato tinha estado literalmente em cima dela. Fora a forma como se
tinhaagarrado a KaeAskavi que o forçara a deixá-la naquele lugar.
Precisava dese sentir segura para sarar – e parecia óbvio que
aconchegar-se a cento ecinquenta quilos de músculo e de pêlo lhe dava
uma enorme sensação de
segurança.
Lucivar pousou uma mão no ombro de Daemon. — Algumas semanas
entre os arcerianos não a irão prejudicar. Pelo menos desta forma,
poderá
ser ter os “cuidados maternais” sem a sensação de que está a deixar
quealguém ocupe o lugar da mãe.

Daemon assentiu. — Vais regressar a Ebon Rih? — Tencionava dirigir-


se à Fortaleza pois Jaenelle estava a caminho com Karla e Morghann.

Lucivar abanou a cabeça. — O Senhor Supremo pediu que o informasse


no Paço. Esta excursão inesperada adiou esse relatório alguns dias,
por isso é melhor dar corda aos sapatos, antes que Saetan decida puxar
oscordelinhos.

— Assim sendo, acompanho-te.


Ao chegarem ao local onde poderiam apanhar os Ventos, Lucivar
hesitou.
— Como está a Karla? Não tive oportunidade de a ver antes de partirem
para a Fortaleza.
Daemon fixou o olhar na neve lisa. — Sobreviverá. Jaenelle julga
queconseguirá tratar as pernas para que Karla volte a andar.

— Jaenelle julga que conseguirá? — Lucivar empalideceu. — Mãe


Noite, Daemon, se Jaenelle não tem certeza, o que fizeram…
— Não queiras saber — disse Daemon com rispidez. Esforçou-se por
283
suavizar o tom de voz. — Não queiras saber. Não… quero falar sobre
isso.

— Mas era Lucivar que estava a perguntar, por isso fez um esforço. —
Nãoexiste antídoto para o sangue-de-feiticeira. O veneno teve de ser
levado parauma parte do corpo de modo a salvar os órgãos internos,
tendo depois deser extraído. Provocou a… morte a grande parte dos
músculos e o músculoteve de ser… — Sentiu o estômago a revolver-se
ao recordar os membrosatrofiados que tinham sido pernas saudáveis.
— Esquece — disse Lucivar, com afabilidade. — Esquece.
Ambos respiraram fundo e irregularmente antes de Daemon dizer:
— Quanto mais depressa apresentarmos os nossos relatórios, mais
depressapoderemos regressar aos nossos lares. — Para Daemon, o lar
não era umlugar, era uma pessoa – e naquele momento, precisava de
saber que Jaenelle
estava em segurança.
6 / Terreille

— Kartane enviou um relatório. — Dorothea seleccionou zelosamente


um
pedaço de fruta cristalizada, deu uma dentada e mastigou lentamente,
somente
para deixar Hekatah à espera.
— E? — perguntou Hekatah, passados uns instantes. — O Portão
emGlacia está sob controlo para o podermos usar? A aldeia está
preparadapara receber os nossos imigrantes escolhidos a dedo?
Dorothea escolheu outro pedaço de fruta. Desta vez, deu-lhe
duaslambidelas delicadas antes de responder. — Os aldeões foram
eliminados.
Bem como os eyrienos.

— O quê? Como?
— O mensageiro que se encontrou com Kartane não conseguiu
descobrir
o que sucedeu aos eyrienos, somente soube dizer que dizimaramos
aldeões e que, por seu turno, foram igualmente dizimados. — Fez
umcompasso de espera. — O Senhor Hobart também está morto.
Hekatah ficou petrificada. — E a cabra da Rainha, Karla? Pelo menosaí
alcançámos o objectivo?

Dorothea encolheu os ombros. — Desapareceu durante as altercações.


Tendo em conta que Ulka morreu de modo tão... dramático... só
podemospartir do princípio que ingeriu o veneno.

— Então está acabada — disse Hekatah, com um vago sorriso de


satisfação.
— Mesmo que alguém consiga descobrir um antídoto para o
venenohaylliano a tempo, o sangue-de-feiticeira dará conta do resto.
— Os nossos planos para Glacia ficaram pelo caminho. Ou isso nãovos
ocorreu?
284
Hekatah acenou com a mão como se estivesse a afastar essa afirmação.

— Tendo em conta o que alcançámos, é um inconveniente de somenos


importância.
Dorothea deixou cair a fruta na tigela. — Não alcançámos nada!

— Estás a ficar inflexível, Dorothea — disse Hekatah, com uma peçonha


adocicada. — Começas a ter atitudes de velha, tão adequadas ao teu
aspecto.
Dorothea sentia o sangue a latejar-lhe nas têmporas e desejava – oh,
como desejava – libertar somente uma pequena parte dos sentimentos
quetinham vindo a tornar-se cada vez mais virulentos. Odiava Hekatah,
mas
também precisava da cabra. Por isso, recostou-se e infligiu uma ferida
quemagoaria muito mais profundamente do qualquer golpe físico. —
Pelo menos,
ainda tenho cabelo. Esse pedaço de careca está a começar a alastrar-se,
minha cara.

Hekatah levantou automaticamente a mão para esconder a área.


Comesforço, baixou-a antes de chegar à cabeça.

O ódio impotente nos olhos dourados e sem brilho de Hekatah


assustava
ligeiramente Dorothea, embora produzisse também uma sensação
desatisfação perversa.

— Teremos de nos contentar em entrar sorrateiramente pelos


outrosPortões — disse Hekatah. — Agora temos algo melhor.
— O quê? — perguntou Dorothea, de modo educado.
— A desculpa de que precisávamos para começar a guerra. — O sorriso
de Hekatah continha uma malevolência pura.
— Compreendo — disse Dorothea, devolvendo o sorriso.
— Os imigrantes que escolhemos para substituir os aldeões irão
para Glacia – tal como teria acontecido se Hobart nos tivesse oferecido
aquela aldeia como pagamento pela nossa ajuda. Acrescentaremos
alguns imigrantes de outros Territórios terreilleanos. Os
acompanhantes
serão machos sem conhecimento da localização original da aldeia.
Só os condutores das Carruagens serão informados do local onde irão
deixar as famílias felizes – local esse que não será nas proximidades
de uma área habitada, por isso não haverá forma de os detectarem.
Os acompanhantes, como é óbvio, ficarão consternados por não
vislumbrarem
qualquer sinal de uma povoação a aguardar habitantes.
— Os olhos de Hekatah ganharam um ar sonhador. — A companhia
de guerreiros eyrienos que estará a aguardá-los encarregar-se-á do
resto. A carnificina será… hórrida. Contudo, um par de sobreviventes
conseguirá fugir. Sobreviverão o tempo necessário para alcançarem a
Pequena Terreille e contarem a umas quantas pessoas sobre os
terreilleanos
que estão a ser chacinados em Kaeleer. E sobreviverão o tempo
285
necessário para contarem que eram dois os homens que comandavam

– um haylliano e um eyrieno.
— Todos em Terreille julgarão tratar-se de Sadi e Yaslana — disse
Dorothea
com satisfação. — Depreenderão que o Senhor Supremo ordenou
oataque e que enviou os filhos para o orientarem.
— Exactamente.
— O que virá provar que todas as minhas advertências eram justifica-
das. E logo que as pessoas comecem a magicar nas razões da ausência
denotícias dos amigos e dos entes queridos… — Dorothea deslizou na
cadeiracom um suspiro de satisfação e, de seguida, endireitou-se
relutantemente.
— Temos ainda de encontrar uma forma de controlar Jaenelle Angelline.
— Oh, com o incentivo adequado, irá colocar-se à nossa mercê,
voluntariamente.
Dorothea resfolegou. — Que tipo de incentivo a levaria a tal acto?

— Servirmo-nos de alguém que ama como isco.


7 / Kaeleer

Em pele de galinha, Saetan ouviu os relatos de Lucivar e Daemon.


Gostariade acreditar que o Senhor Hobart contratara uma companhia
de eyrienospara o ajudar a tomar o poder em Glacia, gostaria de
acreditar que a mortede Morton e que o ataque a Karla eram questões
estritamente glacianas.
Porém, tinham-lhe sido feitos outros relatos nas últimas vinte e quatro
horas.
Duas Rainhas de Concelho em Dharo tinham sido assassinadas,
juntamente
com os acompanhantes. Uma multidão de plebeus atacara umaalcateia
de parentes que se reunira recentemente à volta de uma jovemRainha.
Enquanto os machos enfrentavam essa ameaça, alguns
Sangueapanharam-nos de surpresa, mataram a Rainha e
desapareceram, deixando
os plebeus para trás, à mercê da fúria dos machos. Em Scelt,
encontraram
um Príncipe dos Senhores da Guerra, um jovem que ainda não
tinhachegado à idade de realizar a Dádiva às Trevas, por detrás da
taberna dasua terra natal. Tinha a garganta cortada.

Ainda mais inquietante, Kalush fora atacada ao passear num parqueem


Tajrana, a capital do seu próprio Território. Kalush e a sua pequena
filhanão sofreram qualquer ferimento somente devido à incapacidade
reveladapelos atacantes de penetrarem no escudo protector que as
envolvia – o escudo
Ébano do anel que Jaenelle lhe oferecera – e também porque Aaron,
alertado pela ligação do Anel de Honra que usava, chegara celeremente,
jáa roçar a orla assassina, destruindo os atacantes com uma ferocidade
quetocava as raias da loucura.

286
Não foi preciso um grande esforço mental para entender o padrão,
especialmente por tê-lo reconhecido. Cinquenta mil anos que se
eclipsaramcomo se nunca tivessem existido. Poderiam ter sido Andulvar
e Mephis alisentados, dando voz às preocupações que sentiam face a
ataques repentinos
e aparentemente aleatórios, que visavam um homem que insistira que,
como Guardião, deixara de poder interferir nos assuntos dos vivos.
Aindaera Guardião, mas estava demasiado enredado nos assuntos dos
vivos paraseguir as regras impostas aos Guardiões.

A guerra ia começar.

Imaginou se Daemon e Lucivar já se teriam apercebido desse facto.

E imaginou quantos entes queridos teria de ajudar, desta vez, na


transição
para demónios-mortos – e quantos desapareceriam sem deixar rasto.
Como o filho de Andulvar, Ravenar. Como o seu próprio filho, o seu
segundo
filho, Peyton.

— Pai? — chamou Daemon, em voz baixa.


Percebeu que ambos o estavam a fitar com atenção, mas foi em Daemon
que se concentrou. O filho que era o espelho, que era o seu
verdadeiroherdeiro. O filho que melhor compreendia – e que menos
compreendia.

Antes de começar a relatar-lhes os outros ataques, Beale bateu à


portado gabinete e entrou.

— Perdoai a intromissão, Senhor Supremo — disse Beale, — mas estálá


fora um Senhor da Guerra para vos falar. Traz uma carta.
— Sendo assim, fica com a carta. Não desejo ser incomodado agora.
— Foi o que sugeri, Senhor Supremo. Disse que precisa de a
entregarpessoalmente.

Saetan aguardou um momento. — Muito bem.

Lucivar saltou da cadeira, posicionando-se de modo a flanquear


quemquer que estivesse junto à secretária. Daemon levantou-se e
encostou-se aum dos cantos da secretária.

O guerreiro ferrenho e o macho indolente. Saetan imaginou que já


tivessem
desempenhado estes papéis noutras ocasiões – e era uma representação
perfeita. Com a fúria de Lucivar à superfície, a atenção centrar-se-ianele
– mas o golpe mortal seria desferido por Daemon.
O Senhor da Guerra que entrou no gabinete estava pálido, nervoso e
atranspirar. Empalideceu ainda mais ao deparar-se com Lucivar e
Daemon.

Saetan contornou a secretária. — Tendes uma carta que me é dirigida?

O Senhor da Guerra engoliu em seco. — Sim, senhor. — Mostrou


umenvelope, com a tinta um pouco esborratada pelas suas mãos.

Saetan sondou o envelope. Não encontrou nada. Nenhum vestígio


defeitiços. Nenhum vestígio de veneno. Pegou no envelope e olhou para
oSenhor da Guerra.

287
— Encontrei esse envelope na secretária do quarto de hóspedes
estamanhã — disse o homem, apressadamente. — Não sabia que lá
estava.
Saetan olhou para o envelope. Só tinha o seu nome escrito. —
Entãoencontraste-lo esta manhã. Isso é relevante?

— Espero que não. Quer dizer… — O homem respirou fundo, fez


umesforço para se acalmar. — O Senhor Magstrom é… era… o avô da
minhaesposa. No último Outono veio visitar-nos, imediatamente antes
de... Bem,
antes. Parecia transtornado, mas não lhe demos muita atenção. A
minha
esposa... Acabáramos de ter a confirmação de que estava grávida.
Tinhasofrido um aborto no ano anterior e estávamos preocupados que
pudessevoltar a ocorrer. A Curandeira avisou-a para ter cuidado.
Porque estava o homem a desculpar-se? — A vossa esposa está bem?

— Sim, obrigado, ela está, mas tem tido cuidado. O avô Magstrom
nãoreferiu a carta. Pelo menos, não me lembro de qualquer referência e,
depoisde ter sido... assassinado... — O homem tinha as mãos trémulas.
— Esperoque não fosse nada urgente. Logo que a descobri, soube que
tinha de virsem demora. Espero que não fosse nada urgente.
— Com certeza que não era — respondeu Saetan, afavelmente. —
Devem
ser as informações habituais que o Senhor Magstrom me fazia
chegarapós uma feira de serviços – uma corroboração mais do que
outra coisa.
O alívio do homem era visível.
Saetan olhou de relance para a Jóia Amarela do Senhor da Guerra.

— Posso oferecer-vos uma Carruagem para vos levar a casa?


— Oh, não quero maçar-vos.
— Não custa nada – e com um motorista que consiga viajar pelosVentos
mais escuros, chegareis a casa a tempo de jantardes com a
vossaSenhora.
O Senhor da Guerra hesitou por mais uns instantes. — Agradeço-vos.
Não… gosto de ficar longe dela por muito tempo. — Pareceu
ligeiramenteenvergonhado. — Ela diz que me preocupo com ninharias.

Saetan sorriu. — Ides tornar-vos pai. Tendes o direito de vos afligirdes.

— Acompanhou o homem, deu instruções a Beale relativamente à


Carruagem
e regressou para junto de Daemon e de Lucivar. Com o abre-cartas
dasecretária, abriu o envelope cuidadosamente. Invocou os óculos em
meia-
lua, abriu a carta e leu.
— Recebias relatórios de Magstrom relativos às feiras de serviço? —
perguntou Lucivar, aceitando o copo de conhaque que Daemon lhe
servira.

— Não. — E quanto mais lia, menos gostava de ter recebido este relato.
Ao reler a carta, quase deixou de ouvir a conversa entre Lucivar e
Daemon
– até Daemon referir algo que lhe despertou a atenção. — O que foi
quedisseste?
288
— Disse que o Senhor Magstrom referiu que ia enviar cartas a algumas
das Rainhas fora da Pequena Terreille — repetiu Daemon, fazendo
oconhaque rodopiar no copo. — Mas depois de Jorval se apossar do
meuprocesso de imigração, fui informado de que as Rainhas fora da
PequenaTerreille não teriam em consideração um Príncipe dos Senhores
da Guerrade Jóia Negra.
Lucivar resfolegou. — Muito provavelmente, Jorval fez com que ascartas
não seguissem. Fogo do Inferno, Daemon, conheceste as outras Rainhas
de Território. Constituem a assembleia. Se alguma delas tivesse
recebido
uma carta, faria chegar o Administrador à feira de serviços tão
depressaquanto possível para assinar o contrato.

— Lê isto — disse Saetan, passando a carta a Daemon.


— Não percebo — disse Daemon, depois de ler metade da carta. —
Aslistas não têm de indicar todos os imigrantes presentes na feira de
serviços?
— Têm pois — disse Lucivar sombriamente, lendo por cima do ombrode
Daemon. — E tu não estavas em nenhuma. — Olhou para Saetan. —
Naaltura, referi este facto.
— Sim, é verdade — respondeu Saetan, — mas como Daemon
acaboupor vir parar à Corte das Trevas, fui incapaz de avaliar a
importância dessecomentário.
Daemon devolveu a carta a Saetan. — Tinha de haver uma lista algures.
Caso contrário, como poderiam as Rainhas da Pequena Terreille
terconhecimento da minha disponibilidade?

Saetan manteve um tom de voz brando. — E que Rainhas eram essas?

— Quatro Rainhas da Pequena Terreille estavam dispostas a receber-


me — disse Daemon, espaçadamente. — Jorval insistiu que eram as
únicas.
— Assim sendo, se não tivesses encontrado Lucivar por acaso…
Daemon ficou petrificado. — Teria assinado contrato com uma delas.
Rogando pragas em voz baixa, Lucivar começou a andar de um lado
para o outro.

Saetan limitou-se a acenar com a cabeça. — Terias assinado contrato


com uma das Rainhas escolhidas por Jorval e terias acabado enfiado
algures
na Pequena Terreille – sem mais ninguém saber do teu paradeiro.

— E qual seria o objectivo? — questionou Daemon, irritado.


— Na Pequena Terreille usam o Anel de Obediência em machos
imigrantes
— retorquiu Lucivar. — Era esse o objectivo. Seria reviver Terreille.
— Não necessariamente — disse Saetan, mantendo ainda um tom de
voz brando. — Se Daemon fosse bem tratado, se lidassem com ele
cautelo289
samente – e estou certo de que isso faria parte do acordo –, não teria
razões
para deixar de usar a força das suas Jóias contra um inimigo que
ameaçassea Rainha que servisse. E a seguir à primeira detonação da
Negra, não haveria
meio de voltar atrás. As linhas seriam traçadas.

Daemon olhou-o estupefacto.

— O que importa? — disse Lucivar, olhando para os dois com


inquietação.
— Daemon está connosco.
— Sim — disse Saetan compassivamente, — está. Mas onde estão
osoutros homens cujos nomes desapareceram daquelas listas?
8 / Kaeleer

A aranha dourada examinou as duas teias entrelaçadas oníricas e


visioná

rias.

Mais mortes. Muita mortandade.

Tinha chegado o momento.

Recorda-te desta teia. Recorda cada filamento, cada fio.

Durante toda a estação fria, fora arrancada dos seus próprios sonhos,
forçada a estudar a teia que moldara o mito vivo, a Rainha que era
Feiticeira.
E compreendera que não seria suficiente, pois ao viver na carne o
sonhotinha sofrido alterações. Agora, representava mais. E, de alguma
forma,
precisava de acrescentar esse “mais” à teia. Sem esse elemento, o
Coraçãode Kaeleer desapareceria durante muitas estações – e não
voltaria a ser omesmo quando o sonho regressasse.

Continuou a examinar as teias.

O cão castanho, Ladvarian, era a chave. Seria ele que iria


conseguirlevar-lhe aquele “mais” de que precisava.

Sim. O momento chegara.

Regressou à câmara nas grutas sagradas e começou a tecer a teia


dossonhos que já se tinham tornado realidade.
290
CAPÍTULO TREZE

1 / Kaeleer

O Primeiro Círculo da Corte das Trevas estava reunido na Fortaleza.


Pelos menos, assim acontecia com os humanos do Primeiro Círculo,
corrigiu
Saetan ao ouvir o relato sinistro de Khardeen sobre os ataques que
tinham
tido lugar em Scelt durante as últimas três semanas. Nas últimas
trêssemanas, os ataques tinham-se verificado por todo o lado.
Possivelmente
fora por esse motivo que os parentes não tinham respondido à
convocaçãode Jaenelle. Quiçá as Rainhas e os Príncipes dos Senhores
da Guerra parentes
não desejassem arredar as forças dos seus territórios. Quiçá
estivessema manter-se afastados daquilo que consideravam ser um
conflito entre humanos,
para se salvaguardarem.

Contudo, esperara que pelo menos Ladvarian estivesse presente,


parapoder explicar o que se passava aos restantes parentes. Teria
compreendidoque o conflito não se restringia aos humanos. Fogo do
Inferno, os parentestambém já tinham sofrido ataques.

Mas Ladvarian não viera – e isso preocupava-o.

Tinha outros dois motivos de preocupação: as palpitações de pesar ede


resignação que detectava em Andulvar, Prothvar e Mephis – sendo
quetodos tinham lutado e tombado na última guerra entre Terreille e
Kaeleer

– e Jaenelle, que tinha estado ali sentada nas últimas duas horas com
umolhar inexpressivo, ao ponto de Saetan já se ter perguntado se não
teriacriado uma sombra simples para preencher o espaço na mesa.
— Se nos limitarmos à defesa face a estes ataques, as nossas terras e
osnossos povos não ficarão salvaguardados — disse Aaron. — Os
exércitosterreilleanos estão a reunir-se para nos atacar. Se o inimigo
que já se encontra
em Kaeleer obtiver o controlo sobre um Portão e o abrir para
essesexércitos… precisamos agir imediatamente.
— Sim, é preciso agir — disse Jaenelle, num tom cavernoso. — Têmde
bater em retirada.
291
Numa vaga sonora, ergueram-se protestos de todas as direcções.

— Têm de bater em retirada — repetiu Jaenelle. — E irão enviar todasas


Rainhas e Príncipes dos Senhores da Guerra dos vossos Territórios
paraa Fortaleza.
A declaração foi recebida com um silêncio pasmado.

— Mas, Jaenelle — disse Morghann passado um minuto, — precisamos


dos Príncipes dos Senhores da Guerra para liderarem os combates.
Epedir às Rainhas que abandonem as terras enquanto os seus povos
estão aser atacados…
— Não necessitarão delas se o povo também bater em retirada.
— Até onde teremos de recuar? — disse Gabrielle rispidamente.
— Até onde for necessário.
Aaron abanou a cabeça. — Temos de reunir os nossos guerreiros
emexércitos para combater os terreilleanos e…

— Kaeleer não entrará em guerra com Terreille — disse Jaenelle, com


a voz da meia-noite.
Chaosti saltou da cadeira. — Já estamos em guerra!

— Não, não estamos.


— Então estamos em guerra com a Pequena Terreille, uma vez que élá
que estes atacantes têm estado escondidos — resmungou Lucivar. —
Vaidar ao mesmo.
O olhar de Jaenelle ficou gélido. — Não estamos em guerra com
ninguém.

— Gata, não estás a pensar…


— Lembra-te com quem estás a falar.
Lucivar olhou-a nos olhos e ficou lívido. Por fim, com relutância, disse:

— As minhas desculpas, Senhora.


Jaenelle levantou-se. — Se conseguirem fugir antes do ataque, façam-
no. Se não conseguirem, as lutas deverão limitar-se ao mínimo possível.
Defendam até que for possível bater em retirada, mas não ataquem. E
tragam
as Rainhas e os Príncipes dos Senhores da Guerra para a Fortaleza.
Não há excepções e não aceitarei qualquer tipo de desculpas.

Depois de Jaenelle sair, a sala foi invadida por um silêncio que se


prolongou.

— Não está a pensar com clareza — disse Kalush, hesitante.


— Desde o primeiro ataque que está a comportar-se de modo estranho
— acrescentou Gabrielle com rispidez, para logo olhar para Karla,
emjeito de pedido de desculpas.
— Tudo bem — disse Karla espaçadamente, evidenciando dificuldades.
— Tem efectivamente andado a comportar-se de forma estranha.
Seráque ao curar-me ficou afectada?
292
— O que a afecta é a aversão que tem a matar — resmoneou Lucivar.
— Mas normalmente é bastante perspicaz face ao óbvio. Estamos em
guerra.
Os floreados à volta da palavra não alterarão esse facto.
— Desafiarias a tua Rainha? — perguntou Daemon afavelmente, quase
de modo indolente.
A imediata tensão que assolou Lucivar, no fio da navalha, a todos
sobressaltou.
O que se passa entre os dois? perguntou-se Saetan, enquanto Daemone
Lucivar se limitavam a fitar-se mutuamente. Percebendo o olhar
letárgicode Daemon, sentiu gelo a formar-se à volta da sua coluna
dorsal.

— Creio que a Senhora não entende as repercussões da ordem


quetransmitiu — disse Lucivar, com cautela.
— Oh — ronronou Daemon, — creio que as entende muito bem. Mastu
não concordas com ela e isso não é razão suficiente para lhe
desobedecer.
— Tendo em conta o teu percurso noutras cortes, não és
exactamenteum modelo de obediência — disse Lucivar, ligeiramente
inflamado.
— É irrelevante. Estamos a falar de ti e desta corte. E digo-te, Yaslana,
que não a irás afligir com provocações e desobediências. Se o fizeres...
— Daemon limitou-se a sorrir.
Lucivar estremeceu.
Depois de Daemon deslizar para fora da sala, Saetan perguntou: —
Está a fazer bluff? — Ficou apreensivo ao ver que Lucivar não tirava os
olhosda mesa. — Lucivar?

— O Sádico não faz bluff — disse Lucivar com a voz enrouquecida.


— Não precisa. — Saiu da sala a passos largos.
— Parece que não resta nada para discutirmos — disse Saetan,
erguendo-
se da mesa. Com uma olhadela, fez com que Andulvar, Prothvar
eMephis se levantassem.
Deixando que os outros homens passassem à sua frente, estava a
fechar
a porta quando ouviu Aaron dizer: — O que sabemos verdadeiramente
sobre Daemon Sadi?

Fechou a porta sem fazer barulho. Quando se virou para os


outroshomens, viu a mesma pergunta nos olhos de Andulvar – mas já
não estavacerto de poder responder.

2 / Kaeleer

— O que sabemos verdadeiramente sobre Daemon Sadi? — perguntou


Aaron.
293
Karla deixou que os murmúrios de opiniões e conversas se
transformassem
num marulhar ao mesmo tempo que se recolhia nos seus pensamentos
mais profundos.

O que sabiam verdadeiramente sobre Daemon Sadi?

Era Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra e Viúva


Negranatural – um homem belo e explosivamente perigoso.

Era o espelho do Senhor Supremo, embora não fosse um reflexo


perfeito.

Era um homem que, durante a maior parte da sua vida, estivera


acorrentado,
de uma forma ou de outra, a Dorothea SaDiablo, inimiga de Kaeleer.

Era um homem que compreendia as mulheres. Incapaz de suportar


acompaixão nos olhares dos criados que a ajudaram no banho, alguns
diasapós a cura, insistira que não necessitava de ajuda. Mediante a
Arte, conseguiu
despir-se e entrar na banheira, mas não conseguiu lavar-se bem,
emespecial devido à reacção provocada pelos venenos, que lhe
provocavamescaras na pele, a um ritmo grotesco. Uma noite, Daemon
aparecera paraa ajudar. Falara-lhe rispidamente, exigira que se fosse
embora. A respostaque obteve, proferida com uma voz tão agradável que
demorou alguns segundos
a entender as palavras, foi tão obscenamente criativa que se viu
nabanheira a ser delicada e exaustivamente lavada, antes de conseguir
voltar apensar. O toque de Daemon não fora impessoal e também não
fora sexual,
mas quando começou a massajar-lhe o couro cabeludo, foi inundada
porum prazer sensual como nunca experimentara anteriormente.

Por isso, compreendia a inquietação dos restantes. Uma mulher


podiaficar facilmente viciada naquele toque, estaria disposta a muito
para evitarque lhe fosse retirado. E Jaenelle andava efectivamente a
comportar-se deforma estranha desde o primeiro ataque. Todavia,
julgava não estar relacionado
com Daemon.

Havia algo mais que sabia sobre Daemon, algo que visionara na
teiaentrelaçada que a advertira sobre a sua própria morte: era ele o
amigo quese tornaria inimigo para permanecer amigo.

3 / Kaeleer
— O que é que Daemon tem que assusta Lucivar como o caraças? —
perguntou
Andulvar logo que os quatro homens entraram numa pequena salade
estar na Fortaleza.
— Não sei — respondeu Saetan, aquecendo um copo de yarbarah
numalabareda de fogo encantado como forma de evitar os olhares dos
outros.
294
Não sabia. Lucivar esquivara-se sempre a falar sobre o tempo em queele
e Daemon se metiam em confusões quando se juntavam nas cortes
terreilleanas.
Lucivar dissera em tempos que se tivesse de escolher entre defrontar
o Sádico ou o Senhor Supremo, optaria pelo Senhor Supremo poisassim
teria alguma hipótese de vencer.

O que estaria por detrás daquele sorriso de Daemon que abalava


Lucivar
daquela forma? O que encerraria o Sádico para conseguir fazer
recuarum homem com a agressividade de Lucivar? E o que poderia
representarpara os restantes a presença de Daemon na Fortaleza?

— Senhor Supremo! — Prothvar empurrou a mão de Saetan para


aafastar da labareda de fogo encantado, imediatamente antes do
yarbarahcomeçar a ferver.
Saetan pousou o copo. O yarbarah deixara de ser bebível.

— SaDiablo — disse Andulvar num tom calmo, — achas que temosde


nos acautelar?
Não lhe ocorreu oferecer-lhes uma mentira tranquilizadora. — Não
sei.

4 / Kaeleer

Ladvarian caminhava a passo rápido, penosamente, em direcção a


Halaway,
respondendo a um chamamento dócil mas insistente. De vez em
quando,
rosnava para dar livre curso à frustração e à raiva crescente.

Como poderia um lugar tão grande como o Paço não ter aquilo de
queprecisava? Oh, encontrara muitas coisas que quase serviam, mas
nada que
fosse adequado. A isso se devia a frustração. A raiva…

Os parentes tinham aguardado tanto tempo pela chegada deste mito


vivo. Este mito. Este mito especial. E agora ia ser arruinado por
humanos.

Não. Não seria arruinado. Os parentes estavam a reunir-se. Logo que


aTecedeira de Sonhos lhes dissesse o que fazer, partiriam para os actos.

Quando chegou à casa de campo bem arranjada em Halaway, dirigiu-


se à porta das traseiras e ladrou uma única vez, de forma educada.

Tersa abriu uma janela do andar de cima. — Entra, Irmãozinho.


Por meio da Arte, flutuou até à janela e entrou. A maioria dos parentes
referia-se a Tersa como “A Insólita”. Não pretendiam ser desrespeitosos.
Reconheciam que era uma Viúva Negra que percorria estradas que a
maiorparte dos Sangue nunca veria. Era especial. Tinha essa
característica emcomum com a Senhora.

Mesmo sabendo tudo isso, não conseguiu evitar que os pêlos no


pescoço
se eriçassem ao entrar no quarto.

295
Uma cama baixa e estreita – exactamente o tipo à procura do
qualrevirara o Paço. Aproximou-se com cautela e abriu os sentidos
internos eexternos. Não tinha odores. Deviam estar presentes os cheiros
de humanosbem como os odores psíquicos residuais de quem tinha
feito a cama, o colchão
e a roupa da cama.

— Está tudo purificado — disse Tersa, calmamente. — Não restam


odores psíquicos que possam interferir com a tecelagem de sonhos.
«A tecelagem de sonhos?« perguntou Ladvarian com cautela.

— Aquele baú faculta arrumação e pode também ser usado como


mesinha
de cabeceira. Lembra-te que tens de trazer vestuário para o
tempoquente bem como para a Primavera. Peças favoritas. Roupa que
mantenha
o seu odor, mesmo depois de lavada.
Ladvarian recuou. «Tenho de trazer vestuário para quê?«
Tersa sorriu e disse afavelmente: — Porque a Feiticeira não tem pêlo.
— Os seus olhos fixaram-se numa distância interior, tornaram-se
desfocados
e perspicazes. — Aproxima-se o momento de cobrar as dívidas. Os
quesobreviverem servirão, mas poucos sobreviverão. O clamor… Repleto
dealegria e de sofrimento, raiva e celebração. Ela está a chegar. —
Voltou a fixar
o olhar em Ladvarian. — E os parentes irão reforçar o sonho no corpo.
«Sim, Senhora« disse Ladvarian, respeitosamente.

Tersa pegou numa malga azul-cobalto que estava numa cómoda.


Mediante
a Arte, deixou a malga a pairar no ar. — Quando voltares a ver
aTecedeira de Sonhos, diz-lhe que é esta é a forma de obter aquele
“mais” deque necessita.

Ladvarian mudou o peso de uma pata para a outra, de modo


impaciente.
A Rainha arachniana não mencionara Tersa. Como sabia Tersa tanto
sobre a Rainha arachniana?

Tersa mergulhou um dedo na malga. Ao levantar a mão, trazia umagota


de água presa ao dedo. Ao invés de deslizar, a gota começou a expandir-
se, como uma pequena bolha de vidro soprado, uma pérola de água.
Com a unha do polegar, Tersa perfurou um dedo da outra mão. Uma
gotade sangue brotou no dedo. — E o Sangue cantará ao Sangue.

Ladvarian sentiu o poder que fluía para aquela gota de sangue.

— Deixai que o sangue seja o rio da memória. — Voltando a mão,


passou com a gota de sangue pela gota de água. O sangue fluiu pela
bolhade água, até ficar retido no interior.
Depois de colocar um escudo protector à volta da bolha, Tersa colocou-
a numa pequena caixa acolchoada e ofereceu-a a Ladvarian. — Olha.

Ladvarian abriu a mente, enviou uma tímida sonda psíquica.

Imagens, memórias passaram a grande velocidade. Memórias de uma

menina a guiar uma mulher exausta para fora do Reino Distorcido.


Memó

296
rias de Jaenelle, mais velha, prometendo encontrar Daemon. Memórias
deconversas, gargalhadas, de encanto pelo mundo. As memórias de
Tersa.

— Dirás à Tecedeira? — perguntou Tersa.


Ladvarian fez a caixa desaparecer. «Dir-lhe-ei.«
— Mais uma coisa, Irmãozinho. Não recuses a oferenda de Lorn. A
Tecedeira também irá precisar dela.
5 / Kaeleer

Deixando a porta aberta, Daemon entrou na oficina de Jaenelle. Todos


osdias aqui passava muitas horas desde que trouxera Karla para a
Fortaleza demodo a continuar o tratamento, mas Daemon estava certo
que a distracçãode Jaenelle ou o frenesi controlado das suas
actividades não estariam relacionados
com Karla. Na realidade, tinha a certeza que fora o único a quemfora
permitido um vislumbre desse frenesi. Algo a estava a corroer e,
depoisda pequena cena na sala de reuniões, estava determinado em
descobrir.

— Jaenelle, temos de falar.


Levantou os olhos da pilha de livros numa das mesas. — Agora
nãotenho tempo para conversas, Daemon — disse, dando-lhe pouca
atenção.
Com um pensamento rápido, fez a porta bater com tanta força quetodos
os objectos na oficina saltaram – incluindo Jaenelle.

— Arranja tempo — disse docilmente. Interrompeu-a, logo que começou


a protestar.
— Faço tudo por ti. Tudo. Mas antes de me opor aos restantes membros
do Primeiro Círculo, quero saber a razão.
— Kaeleer não pode entrar em guerra com Terreille. — Tinha a
voztrémula.
— Porque não?
Os seus olhos encheram-se de lágrimas inflamadas e irritadas. —
Porque
se entrarmos em guerra, todos os que se encontravam naquela
salamorrerão.

— Não sabes se isso acontecerá — retorquiu Daemon.


As lágrimas caíram-lhe pelo rosto, cortando o coração de Daemon.
— Sei, sim.
Daemon balançou nos calcanhares. Era uma Viúva Negra muito
poderosa
e dotada. Se vira as mortes de todos numa teia entrelaçada de sonhos
e de visões, não havia sombra de dúvida. Isso explicava a resistência.

Respirou fundo para se acalmar. — Meu amor… por vezes é imperativo


matar. Por vezes, é o único caminho a tomar para salvar o que é bom.

— Bem sei. — Jaenelle fechou um livro com um estrondo. — Passei as


297
últimas três semanas na demanda de uma resposta. Não, passei mais
tempoainda, mas o tempo está a esgotar-se. Posso senti-lo.

— Jaenelle — disse, cautelosamente, — tens a força… — O olhar da


mulher roçava o ódio, mas Daemon insistiu. — Uma fracção da tua
força
chegaria para eliminar um exército terreilleano.
— Mas enquanto eu estivesse a eliminar esse, outros seis estariam
adizimar os Sangue de Kaeleer noutros Territórios. Mesmo que os
destrua atodos, a um exército de cada vez, não fará diferença.
— Não estarias sozinha nessa luta — insistiu Daemon, apoiando-sena
mesa com uma mão para se inclinar sobre Jaenelle. — Fogo do Inferno,
mulher, atenta na força dos machos deste Reino. Atenta nas Jóias. As
Negras.
As Ébano-Acinzentadas. As Cinzentas. Somos a força dominante.
— Kaeleer também era a força dominante na última guerra —
respondeu
Jaenelle, num tom de voz sereno. — E Kaeleer venceu – por
escassavantagem, mas Kaeleer venceu. Porém, todos aqueles machos
pereceram.
E não fez qualquer diferença. A contaminação que alimentou essa
guerraainda está entre os Sangue, ainda mais forte.
— Hekatah e Dorothea podem ser destruídas.
Jaenelle começou a caminhar à volta da mesa. — Nesta altura, não
serviria de nada. Mesmo que sejam eliminadas, mesmo que Kaeleer
vença abatalha inicial, o Reino das Sombras não triunfará. A
contaminação já estádemasiado alastrada. Terreille continuará a enviar
exércitos. Continuará a
enviá-los sem parar e as batalhas prosseguirão, em Terreille e em
Kaeleer,
até os Sangue se olvidarem de quem são ou das suas
responsabilidadescomo vigilantes dos Reinos.

— Estamos em guerra, Jaenelle — disse Daemon com seriedade. —


Não interessa se foi declarada formalmente ou não. Estamos em guerra.

— Não.
— Tens o poder para marcar a diferença. Se libertares...
— Não posso.
— Podes.
— Não posso.
— E POR QUE NÃO?
Virou-se contra ele. — PORQUE, MALDITO SEJAS, SOU DEMASIADO
FORTE! Se libertar a minha força, destruirei os Sangue. Todos os
Sangue. Em Terreille. Em Kaeleer. No Inferno.

As pernas de Daemon pareciam varas verdes. Sem forças, afastou


alguns
livros para se poder sentar na mesa. Disseste que era seis vezes mais
poderosa
do que as nossas forças combinadas. Oh, Pai, como estavas enganado.
Seis vezes? Seiscentas vezes? Seis mil vezes?

Tanto poder que chegava para exterminar os Sangue.

298
Abraçando-se, Jaenelle caminhava de um lado para o outro. — A
Fortaleza
é o Santuário. Não seria afectada. Mas quantos abrigaria?
Algunsmilhares, no máximo? Quem escolhe, Daemon? E se forem feitas
escolhas
erradas e a contaminação permanecer, encoberta por alguém com
umacerteza maldita de que tem razão?

Pensava em Alexandra. Teria alguém considerado que Alexandra estava


contaminada? Mal orientada, com certeza, mas a não ser que
estivessemobviamente desvirtuadas, as Rainhas estariam seguramente
entre os escolhidos.
E relativamente a mulheres como Vania? Não estava contaminada
da forma como Jaenelle se referia, mas era o tipo de mulher que
poderiairritar os machos à sua volta e, um dia, provocar a desgraça de
uma terra.
Exactamente o tipo de mulher que Dorothea criava.

— Os Sangue são os Sangue — prosseguiu Jaenelle. — Duas pernas,


quatro patas, não importa. Os Sangue são os Sangue. A dádiva da Arte
teveuma única origem que nos une a todos.
Também não podia abdicar dos parentes. Não admirava que tudo istoa
estivesse a dilacerar.

— E Kaeleer sairá triunfante? — perguntou Daemon placidamente.


Passou um minuto até Jaenelle responder. — Sim. Mas a vitória teráum
preço: todas as Rainhas e os Príncipes dos Senhores da Guerra de
Kaeleer.

Daemon pensou em todas as pessoas decentes que conhecera desdeque


chegara a Kaeleer. Pensou nos parentes. Pensou nas crianças. Acima
detudo, pensou em Daemonar, o filho de Lucivar. Se, por alguma razão,
nãoconseguissem aniquilar Dorothea e Hekatah e as duas pusessem as
garrasem Daemonar… — Fá-lo — disse. — Liberta o teu poder. Destrói
os Sangue.

Jaenelle ficou boquiaberta. Fitou-o, atónita.

— Fá-lo — repetiu. — Se essa for a única forma de limpar a


contaminação
que Dorothea e Hekatah espalharam pelos Sangue, então, pelasTrevas,
Jaenelle, mostra alguma compaixão por aqueles que amas e fá-lo.
Recomeçou a caminhar. — Tem de haver uma maneira de separar
osSangue dos Sangue. Tem de haver.
Uma memória provocou-o, mas não estava a conseguir retê-la pois
osmovimentos frenéticos de Jaenelle pareciam tudo fazer remexer. —
Não temexas — disse bruscamente.

Parou de repente e bufou.


Daemon ergueu uma mão, exigindo silêncio. A memória espreitava,
mas conseguiu apanhar-lhe uma ponta. — Julgo que existe uma forma.
Jaenelle arregalou os olhos mas obedeceu à ordem de silêncio.

— Alguns séculos atrás, havia uma Rainha que se chamava Senho299


ra Cinzenta. Numa ocasião em que a povoação onde se encontrava
estavaprestes a ser atacada por guerreiros hayllianos, descobriu uma
forma de separar
os aldeões dos hayllianos para que, ao libertar o seu poder, os
aldeõesfossem poupados.

— Como conseguiu fazê-lo? — perguntou Jaenelle, num tom de


vozmuito baixo.
— Não sei. — Hesitou – e perguntou-se qual o motivo da hesitação.
— Conheci um homem que estava com ela na altura. Alguns anos
antesde morrer, enviou-me uma mensagem para me informar que
registara porescrito a “aventura” e que a deixara num local seguro para
mim. Era umaRainha notável, a última a manter Dorothea à distância.
Queria que fosserecordada.
Jaenelle saltou, agarrando-o. — Assim sendo, sabes mesmo como ela

o fez!
— Não, não sei. Nunca levantei o registo escrito. Decidi deixá-lo
ondetinha sido escondido, fora do alcance de Dorothea.
— Achas que consegues encontrá-lo? — perguntou Jaenelle, ansiosa.
— Não deve ser difícil — respondeu Daemon friamente, enquanto
aabraçava, com uma vontade súbita de lhe tocar. — Deixou-o aos
cuidados
do bibliotecário da Fortaleza.
— Trouxe-o da Fortaleza de Terreille da primeira vez que viestes
paraEbon Askavi com Jaenelle — disse Geoffrey ao entregar a Daemon
um embrulho
cuidadosamente embrulhado. — Na altura, perguntei-me por querazão
não o solicitastes. O que vos levou a pensar nele agora?
A pergunta parecia de uma curiosidade inocente, mas de inocente
nãotinha nada.
Olhando directamente para os olhos negros de Geoffrey, Daemonsorriu.
— Veio-me à ideia.

Não o desembrulhou, não olhou para o objecto. Limitou-se a sondá-


lo para se certificar de que não tinha feitiços disfarçados que
poderiamser desencadeados se alguém, que não Daemon, lhe tocasse.
De seguida,
entregou-o a Jaenelle e passou as horas seguintes a negar o acesso à
Rainhaa praticamente todos os membros do Primeiro Círculo, o que
causara algum
mal-estar, mas não tinha sido difícil. A ninguém, para além do
Administrador,
do Guarda-Mor e do Consorte, era permitido livre-trânsito aosaposentos
da Rainha. A Lucivar bastara um olhar para se retirar. Tinha sidomais
difícil desencorajar Saetan e Andulvar e pressentia que bastariam
maisalguns confrontos educados para corroer a confiança que tinham
em Daemon.
Tendo em conta o comportamento de Jaenelle nos últimos tempos,

300
percebia as preocupações que sentiam. Não deixava de se sentir
magoado.

Por fim, quando regressou para junto de Jaenelle, deu com ela na
salade estar, abraçando-se a si própria, olhando com um ar
desanimado pelajanela.

— Não serviu? — perguntou docilmente, pousando-lhe uma mão


noombro com delicadeza.
— Na verdade, serviu. Encontrei a resposta. Não posso fazer o
mesmoque fizeram, mas posso usá-lo como base para o que preciso de
fazer.
Virou-se e beijou-o com um desespero que o assustou, mas deu-lhe
oque precisava. Durante horas, deu-lhe o que ela precisava.
Quando chegou ao ponto em que se sentiu satisfeita por estar
simplesmente
nos braços de Daemon, disse: — Amo-te —, adormecendo deseguida.

Apesar de estar exausto fisica e emocionalmente, Daemon ficou


acordado
durante muito tempo, magicando na sensação daquele “amo-te” quelhe
tinha soado a “adeus”.

6 / Kaeleer

— A Senhora mudou de ideias — disse Saetan formalmente às Rainhas


de
Território que constituíam a assembleia. — As Rainhas da assembleia
bemcomo os machos do Primeiro Círculo permanecerão na Fortaleza,
mas as outras
Rainhas dos vossos Territórios podem permanecer onde se encontram.
— E porque temos nós de ficar? — perguntou Chaosti. — O nosso
povo está a morrer. Devíamos estar nas nossas terras, preparando as
batalhas.
— O que a levou a mudar de ideias? — questionou Morghann. — Oque
respondeu quando lhe perguntaste?

Saetan hesitou. — As instruções foram transmitidas pelo Consorte.

Sentiu o tremeluzir de raiva e as suspeitas crescentes relativamente a

Daemon. Pior ainda, ele próprio partilhava esses sentimentos.

— A Rainha ordena — disse, ciente de que não fazia sentido


quandoestavam todos a receber relatos de combates nas suas terras
natais.
— Tudo bem, Senhor Supremo — disse Aaron, friamente. — A Rainha
ordena. Contudo, parece-me óbvio que ninguém informou os
parentesdesse facto. Nenhum dos que pertencem ao Primeiro Círculo
tem de permanecer
na Fortaleza.
Entreolharam-se ao mesmo tempo que essa tomada de
consciênciacomeçou a fazer sentido. Mas foi Karla que perguntou, por
fim: — Ondeestão os parentes?

301
Saetan observava as gotas de chuva que escorriam pela janela.

Quando Jaenelle emitira a ordem para que todas as Rainhas


viessempara a Fortaleza, não protestara por uma razão: Sylvia. Queria
tê-la na Fortaleza,
onde estaria em segurança.

Porém, agora que Jaenelle mudara de ideias – ou que fora levada


amudar de ideias, por outrem – emitiria as suas próprias ordens como
Príncipe
dos Senhores da Guerra de Dhemlan, convocando todas as Rainhasde
Dhemlan para o Paço. Era arriscado. O Paço não possuía as defesas
daFortaleza. Nenhum outro lugar tinha essas defesas. Mas fora
concebido parasuportar ataques e as defesas existentes eram melhores
do que as de qualquer
outro lugar para onde as Rainhas fossem obrigadas a fugir, no caso
deos combates subirem de tom. E era bastante espaçoso, o que permitia
queas Rainhas trouxessem as famílias, os filhos.

Queria que Sylvia estivesse a salvo. Bem como os filhos, Mikal e Beron.

Atrevida, obstinada, adorável Sylvia. Mãe Noite, amava-a.

Mesmo depois de se aperceber que a potência do tónico de


Jaenelledepois de realizar a Dádiva às Trevas trouxera de volta o desejo
ardentemasculino – e a capacidade de o satisfazer – poderia ter resistido
a tornar-
se amante de Sylvia, poderia ter encontrado forças para se manter
apenasum amigo se não tivesse detectado a mágoa em Sylvia, infligida
pelo últimoConsorte. Fechara-se ao prazer sexual, nenhum homem lhe
despertara acuriosidade bastante para voltar a tentar – até se tornar
amiga de Saetan.

Não eram amantes confessos. Por insistência de Saetan, em


públicomantinham a ilusão de serem apenas amigos. Oh, as razões que
invocavaeram bastante lógicas, assaz ponderadas. Sabia que Luthvian
ficaria furiosase Saetan assumisse publicamente ser amante de outra
mulher e não desejava
que despejasse a sua raiva na família – ou em Sylvia. E não desejavaque
as pessoas se afastassem de Sylvia por ter escolhido um Guardião como
amante.

De início, concordara com Saetan, principalmente por estar a


redescobrir
os prazeres da cama e aceitara Saetan como amante no quarto e
amigofora dele. Contudo, de forma gradual ao longo do último ano,
ficara cadavez mais entristecida com o secretismo, pretendia uma
relação pública.
Saetan esperara que ela o deixasse. Ao invés, uma noite durante as
celebrações
de Winsol há alguns meses, Sylvia pedira-o em casamento. E, queas
Trevas o ajudassem, queria ter respondido afirmativamente. Queria
partilhar
a cama, a vida, com ela.

Mas não respondeu afirmativamente. Não por Luthvian ou por


serGuardião, mas devido a uma inquietação vaga que o advertira para
serprudente, para aguardar. Por isso, sorrira e respondera: — Pergunta-
me nopróximo Winsol.

302
Compreendera os motivos pelos quais, durante algumas semanas
apósesse episódio, não surgiram convites para a cama de Sylvia.
Compreendera
os motivos pelos quais estava sempre “ocupada” quando a visitava,
parapassar algum tempo com os rapazes.

Sentira muito mais a falta da amiga do que da amante, mas a verdadeé


que sentira falta daquelas horas na cama dela.

Foi então que, alguns dias antes do ataque a Glacia, decidiram


passardois dias juntos em Amdarh, longe de tudo e de todos, na
tentativa de reconstruírem
a relação. E tinham feito amor, mas Saetan apercebera-se assim
que a tocou que, apesar de o desejar, Sylvia estava a esforçar-se por
semanter emocionalmente à distância, tentando proteger-se para não
voltar asofrer. Mesmo quando se deixou levar pelo orgasmo, Saetan
apercebeu-se.

Agora, a fitar a chuva, quase desejava ter dito “sim” naquela noite
deWinsol, quase desejava ter-lhe pedido para se apresentar com ele
peranteuma Sacerdotisa quando chegaram a Amdarh. E desejava que
fosse possívelvoltar a fazer amor com ela uma vez mais para apagar a
infelicidade que osacompanhara na cama da última vez.

Mas no seu interior crescia há dias a convicção de que não haveriaoutra


oportunidade.

Ficara muito por dizer naquela noite em Amdarh. Nunca lhe dissera

o que efectivamente significava para ele, o quanto a amava. Devia ter-


lhedito. Agora não lhe podia oferecer mais do que palavras, mas pelo
menosisso ainda lhe podia oferecer.
Voltando costas à janela, sentou-se à secretária e começou a escrever.

303
CAPÍTULO CATORZE

1 / Kaeleer

— Preciso de um favor — disse Jaenelle ao dirigir-se resolutamente para


amesa de trabalho, pegando em dois pequenos frascos de vidro.
— Basta pedires — respondeu Titian. Tem estado a canalizar muito
poder, não dando tempo ao corpo para recuperar. O que estará a
planear quea consome desta maneira?
— Um favor discreto.
— Percebido.
— Preciso de sangue de duas pessoas que tenham sido
contaminadaspor Dorothea ou por Hekatah. De preferência, uma de
cada.
Titian pensou por um segundo. — O Senhor Jorval vive na capital
daPequena Terreille, não é?
Jaenelle engoliu. Até esse gesto parecia exigir esforço. — É, Jorval
moraem Goth. E também, de momento, Kartane SaDiablo.

— Ah. — Olhando para a mulher exaurida, Titian recordou-se dacriança


que Jaenelle fora. E vieram-lhe à lembrança outras recordações.
— Fará diferença se nenhum deles voltar a ver o Sol nascer?
Os olhos azul-safira de Jaenelle foram invadidos por um frio mortal.
— Não.
Titian sorriu. — Nesse caso, com a tua permissão, levarei Surreal
comigo.
Está na altura de cobrar umas dívidas.

2 / Kaeleer

Na enorme câmara do Trono das Trevas, Ladvarian tremia ao olhar


paraLorn. Não por ter receio de Lorn – pelo menos, tal não era habitual.
MasLorn era o Príncipe dos Dragões, a raça lendária que criara os
Sangue. Lornera muito, muito idoso e muito sábio e enorme. Ladvarian
era mais pequeno

304
do que um dos olhos da meia-noite de Lorn. Isso fê-lo sentir
extremamente
pequeno.

Estava também presente Draca, a Senescal da Fortaleza, que fora


parceira
de Lorn e a Rainha dos Dragões antes de sacrificar a sua
verdadeiraforma para dotar as outras criaturas com a Arte.

Sacrifícios. Não, não pensaria em sacrifícios. Não haveria um sacrifício.


Os parentes não o iriam permitir.

Mas o facto de ter sido aqui convocado por Lorn e Draca no momentoem
que a Rainha arachniana estava prestes a terminar aquela teia
oníricaespecial… assustava-o. Se proibissem os parentes de avançar…
os parentesnão deixariam de o fazer, a qualquer custo.

«Irmãozinho« disse Lorn com a sua voz grave, tranquila e ribombante.

«Príncipe Lorn.« Ladvarian tremia visivelmente.

«Tenho uma oferenda para ti, Irmãozinho. Oferece-a à Tecedeira


deSsonhoss.«

Uma bonita caixa entalhada e plana surgiu no ar à frente de Ladvarian.


Abriu-se, revelando um pingente simples em ouro branco e amarelo e
umanel de igual simplicidade. Contudo, a Jóia em cada um dos objectos
eriçou-
lhe os pêlos do pescoço e as suas orelhas ficaram coladas à cabeça.

Não tinha cor, embora não fosse incolor. Inquieta, tremeluzia,


ansiosapor concluir a transformação. Sentia o apelo que procurava uma
ligação à
sua mente.

Retrocedeu um passo. Erguendo o olhar para Lorn, zangado e confuso


a ponto de emitir um desafio que seria tão disparatado quanto inútil,
reparou que as escamas de Lorn possuíam o mesmo tremeluzir
translúcido.
Foi arrebatado pelo entendimento. Recuou outro passo e ganiu.

«Nada temass, Irmãzinho. É uma oferenda. A Tecedeira necessitará


dela para a teia.«

Reunindo coragem, Ladvarian aproximou-se da caixa. «Nunca vi Jóia


igual.«

«E não voltaráss a ver« respondeu Lorn brandamente. «Jamaiss existirá


outra igual.«

Ainda com cautela, Ladvarian disse: «Não tem categoria. Não sabe o
que é.«

«Ainda não ssabe o que é« concordou Lorn. «Mas tem um nome: Aurora
do Crepúsculo.«

«««

Quando Ladvarian se pôs a caminho para Archna com a caixa, Dracae


Lorn entreolharam-se.

305
— Arriscass demasiado ao confiar-lhe uma Jóia ssemelhante — disse
Draca.
«Não há motivo para arriscar em demasia« respondeu Lorn. «A Feiticeira
está prestess a terminar a teia?«

— Ssim. — Pela primeira vez desde que conhecera Jaenelle,


Dracasentiu o peso dos anos.
«Não podemoss expurgar a contaminação, Draca« disse Lorn,
afavelmente.
«Ela pode.«

— Bem ssei. Quando concedi o dom da magia, concedi-o sem


restriçõess,
ssabendo que nunca poderia alterar o que fosse realizado com essedom.
— Draca hesitou. — Se o fizer, sserá o sseu fim.
«É o Coração de Kaeleer. Não pode acabar.« Lorn fez um interregno e
acrescentou docilmente: «Oss parentess sempre foram sonhadoress
poderososs.
«

— Sserá suficiente?
A pergunta à qual nenhum dos dois podia responder ficou a pairarentre
ambos.

3 / Kaeleer

Um movimento furtivo e o súbito clarão de uma pequena bola de fogo


encantado
acordaram Jorval de um sono agitado. — Sacerdotisa?

Uma mão puxou-lhe o cabelo, inclinou-lhe a cabeça para trás. — Não

— disse a mulher de cabelo grisalho ao mesmo tempo que lhe cortava


agarganta com um punhal. — Sou a vingança.
4 / Kaeleer

— Chega — disse Daemon, conduzindo Jaenelle à sala de estar. — Tens


dedescansar.
— A teia está praticamente concluída. Preciso de…
— Descansar. Se cometeres um erro por estares demasiado
cansadapara pensar, terá sido tudo em vão.
Emitiu uma débil tentativa de resmungar, deixando-se cair numa
cadeira.
Daemon queria enfurecer-se com ela, mas sabia que não serviria de
nada.
Perdera peso que não se podia dar ao luxo de perder, a um ritmo
assustador.
Colocar obstáculos no caminho de Jaenelle só a forçaria a gastar
energias quenão podia despender, por isso Daemon optou por outro
caminho.

306
— Há uns minutos disseste-me que ainda precisavas de um par
deelementos para concluir a teia.
— E isso será demorado — protestou.
Inclinou-se e beijou-a suavemente, mas de modo persuasivo. Quandoa
sentiu ceder, murmurou-lhe junto aos lábios. — Jantaremos
tranquilamente.
Depois jogamos dois jogos de “peixinho”. Até te deixo ganhar.

A gargalhada abafada de Jaenelle despertou-lhe outro apetite. Beijou-


alongamente enquanto lhe acariciava o peito.

— Acho que estou com fome — disse Jaenelle sem fôlego, quando
Daemon
lhe deu oportunidade de falar.
Depois de satisfazerem exaustivamente um dos apetites, sentaram-se,
por fim, à mesa.

5 / Inferno

Foi acordado pela dor.


Kartane abriu os olhos. Duas bolas de fogo encantado a extinguirem-se
foram
suficientes para se aperceber de que estava na rua. Depois apercebeu-
se de que estava de cabeça para baixo. Alguém o tinha amarrado de
pernas
para baixo.

Ouviu um rumor nos arbustos próximos.


Voltando ligeiramente a cabeça, ficou a olhar admirado para um estra

nho monte de roupa castanha, dobrada com desvelo.


De repente, o coração disparou. De repente, tornou-se difícil respirar.
As sombras circundantes deslocaram-se o suficiente para ver que o

monte estranho não era vestuário, era pele morena.


Ao inspirar para gritar, na escuridão que o rodeava surgiram olhos

vermelhos que faiscavam.


Mesmo com a cabeça submersa, Surreal ouviu os gritos de Kartane.
Saltou para fora da água, baixando-se de imediato até ficar com água

pelo pescoço. A lagoa, alimentada por uma nascente de água quente,


estava

deliciosamente cálida mas o ar frio entranhava-se até aos ossos.


Ouviu rosnados, um uivo, um guincho atemorizado.
Por estes lados, não era unicamente o ar frio que se entranhava.
— Então isto é o Inferno — disse, olhando à volta. Estava demasiado
escuro para discernir o que quer que fosse, mas a área que circundava
alagoa tinha uma espécie de beleza crua.
— É o Inferno — respondeu Titian, com um sorriso de felicidade
estampado
no rosto. Endireitou-se e olhou Surreal com um ar inquiridor.
— A dívida foi paga a teu contento, Surreal?
307
Os rosnados e os guinchos pararam momentaneamente para logo
recomeçarem.

— Sim — respondeu Surreal, recostando-se com um suspiro. — Dou-


me por satisfeita.
6 / Kaeleer

— Por vezes o coração revela mais do que as vidraças.


Saetan virou costas à janela, ficou tenso, deu um passo em frente,
parou.
— Tersa, o que te traz à Fortaleza?
Sorrindo, Tersa atravessou a sala e estendeu um envelope espesso.

— Vim entregar-te isto.


Antes mesmo de pegar no envelope, já sabia quem era o remetente.
Sylvia tinha por hábito adicionar uma gota de óleo de alfazema ao lacre.
Pousando uma mão no ombro de Saetan, Tersa beijou-o na boca –
umbeijo demorado que o surpreendeu. Que o inquietou.
Tersa deu um passo à retaguarda. — Esta foi a outra parte da
mensagem.
— Já estava quase a sair quando Saetan voltou a si.

— Tersa, esta não pode ser a única razão que te levou a viajar até
àFortaleza.
— Ai não? — disse, com um ar intrigado. — Para logo acrescentar:
— Não, não é.
Saetan aguardou. Tersa nada disse.
— Minha querida — incitou delicadamente, — o que te trouxe aqui?
O olhar de Tersa desanuviou-se e Saetan sentiu que, pela primeira
vezem todos os séculos em que privara com ela, estava a ter um
vislumbreda Tersa que existira antes de ser quebrada. Era formidável –
e um poucoofuscante.

— A minha presença é necessária aqui — disse calmamente e saiu da


sala.
Saetan ficou imóvel durante vários minutos, a fitar o envelope que
segurava
nas mãos. — Mostra que tens tomates, SaDiablo — murmurou entre
dentes, ao abrir o envelope devagar. — Seja lá o que for que a carta
disser,
não será o fim do mundo.

Era uma carta extensa. Leu-a duas vezes antes de a guardar.


Não tinha podido dar a Sylvia mais do que palavras, mas ao que
parecia,
felizmente, tinha bastado.
7 / Terreille

308
Dorothea caminhava à volta da sala. — Estão a reunir-se exércitos por
todo

o Reino de Terreille, os Territórios no Reino das Sombras têm vindo a


sofrer
ataques há semanas pelas pessoas que escondemos na Pequena
Terreille eKaeleer ainda não declarou guerra formalmente.
— Isso deve-se ao facto de Jaenelle Angelline não ter o carácter
adequado
ao poder que possui — disse Hekatah ao ajeitar com cuidado a
capacomprida. — Não passa de um ratinho atarantado no seu buraco
enquantoos gatos se reúnem para o banquete.
— Até um rato morde — ripostou Dorothea.
— Este rato não irá morder — retorquiu Hekatah calmamente. —
Édemasiado susceptível a nível emocional para conseguir dar um passo
queiniciaria uma chacina em larga escala.
Dorothea não tinha tanta certeza como Hekatah, mas o facto de
Jaenelle
ter poupado a vida de Alexandra depois do descalabro do rapto eraum
indicador crível da ausência de um temperamento adequado. Ela
própria
não teria poupado a cabra, com toda a certeza. Essa carência em
Jaenelle
estava a favor delas, mas… — Parece que vos estais a esquecer
daspresas do Senhor Supremo, que não tem qualquer pudor em usá-
las.

— Quando se trata de Saetan, eu não me esqueço de nada —


resmoneou
Hekatah. — A honra entrava-o, como sempre aconteceu, e as fraquezas
emocionais serão o seu açaime. Com a persuasão certa, enfiará a
caudaentre as pernas, submetendo-se a tudo o que lhe for exigido.
Dorothea esperava que aquele saco de ossos podres tivesse razão.
Eracrucial eliminar Saetan, Lucivar e Daemon. Depois destes três
desaparecerem,
os exércitos terreilleanos conseguiriam aniquilar as Rainhas e
osPríncipes dos Senhores da Guerra de Kaeleer. Exércitos inteiros
seriam dizimados
mas sairiam triunfantes da guerra. E chegaria a altura em que ela,
Dorothea, dominaria os Reinos – depois de despachar a Sacerdotisa
dasTrevas para um merecido e eterno descanso.

Satisfeita com essa ideia, Dorothea parou de calcorrear a sala e


reparouque Hekatah se preparava para sair. — Onde ides?

O sorriso de Hekatah era malévolo. — A Kaeleer. Está na altura de ir


buscar a primeira parte do engodo que nos proporcionará o controlo
sobreJaenelle Angelline.
8 / Kaeleer

Tendo obtido, por fim, permissão de acesso à sala de estar de Jaenelle,


Andulvar
examinou-a e pensou naquilo que gostaria de fazer a Daemon Sadi.

309
Caramba, o homem era o Consorte e devia ter tomado conta dela.
Estava
macérrima e a pele sob os olhos estava marcada levemente pelo
cansaçoextremo. E nos seus olhos conseguia perceber um brilho
esquisito, quasedesesperado.

— Príncipe Yaslana — disse Jaenelle em voz baixa.


Ora bem. Ia ser formal.
— Senhora — respondeu Andulvar, de modo rígido. — Uma vez quenão
me encontro aqui como teu tio, estou aqui presente como Guarda-Mor?
— Vendo Jaenelle retrair-se, arrependeu-se da brusquidão das
palavras.
Não parecia ter capacidade para aguentar muitos mais golpes
emocionais.
— Eu… Tenho algo a dizer-te. E preciso da tua ajuda.
Esforçou-se por suavizar o tom de voz. — Porque sou o Guarda-
Mor?
Abanou a cabeça. — Por seres o Príncipe dos Demónios. Depois
deSaetan, és quem tem mais autoridade no Inferno. Os demónios-
mortosirão escutar-te – e seguir-te.

Aproximou-se de Jaenelle e abraçou-a delicadamente, receando quese a


abraçasse como desejava poderia despedaçá-la. — Do que se trata,
fedelha?

Descontraiu-se ao ponto de o olhar nos olhos. — Descobri uma forma


de nos livrarmos de Dorothea e de Hekatah e da contaminação
queespalharam pelos Sangue. Mas os restantes membros dos Sangue
correrãoriscos, a menos que os demónios-mortos estejam dispostos a
ajudar-me.

Decorridos trinta minutos, Andulvar fechou a porta da sala de estar,


deu dois passos e deixou-se cair de encontro à parede.

Mãe Noite.

Não tinha dúvidas de que o plano iria resultar. Jaenelle não teria
ditoque o faria se tivesse dúvidas. Contudo... Mãe Noite.

Combatera na última guerra entre Terreille e Kaeleer. Essa guerra


devastara
ambos os Reinos e milhões pereceram. E não fizera qualquer diferença.
Estavam à beira desse mesmo precipício, combatendo uma avidez euma
ambição que regressaria se não fosse eliminada de modo absoluto.

Tal como Mephis e Prothvar, sabia que seria inútil combater umaguerra
da mesma forma. Tal como eles, olhara à volta da mesa quando
oPrimeiro Círculo discutira uma declaração formal de guerra e
perguntara-
se quantos restariam entre os vivos depois de terminada.

Jaenelle não se perguntara. Sabia que nenhum deles sobreviveria.


Fogodo Inferno, não admirava que estivesse a fazer tudo ao seu alcance
para osmanter no único sítio onde estariam em segurança.

E agora tinha um plano que… Mãe Noite.


Mesmo depois de lhe ter contado, havia algo que parecia não bater

310
certo – como se estivesse a omitir algum pormenor. Saetan saberia
dizer,
mas Saetan…

Jaenelle tinha razão quanto a isso. A assembleia e os rapazolas


iriamprecisar da sabedoria e da experiência de Saetan para curar as
feridas já infligidas
a Kaeleer. Não podia transmitir ao amigo o que Jaenelle
tencionavafazer, não podia correr o risco de Saetan optar por juntar
forças aos restantes
ao invés de ficar a assistir. Não poderia fazê-lo dado que, depois de
tudoter terminado, os vivos precisariam do Senhor Supremo.

Ladvarian aguardou na penumbra até se certificar de que Andulvarfora


mesmo embora. Foi então que entrou sorrateiramente na sala de
estarde Jaenelle.

Jaenelle olhava fixamente pela janela. Queria dizer-lhe que tudo se


iriaresolver, mesmo não tendo a certeza de que assim fosse acontecer.
Sim, tinhaa certeza. Tudo iria ficar bem. Os parentes não iriam duvidar.
Os parentesseriam corajosos. Mas não lhe podia dizer pois esta era a
altura das presas edas garras. Esta era a altura de lutar. E não tinham
a certeza se Jaenelle seriacapaz de matar se lhe dissessem o que iria
acontecer posteriormente.

Contudo, havia algo diferente que tinha de lhe dizer.

«Jaenelle?«

Nos seus olhos pôde ver uma tristeza imensa e um imenso prazer aovê-
lo. — O que foi, Irmãozinho?

«Tenho uma mensagem para ti – da Tecedeira de Sonhos.«

Ficou petrificada e Ladvarian receou que a Feiticeira o


examinasseprofundamente, descobrindo o que pretendia ocultar.

— Qual é a mensagem?
«Ela disse que o triângulo tem de ficar unido para sobreviver. O espelho
conseguirá manter os outros a salvo, mas unicamente se
estiveremjuntos.« Hesitou ao ver que Jaenelle se limitava a olhá-lo
fixamente. «Quem
é o espelho?«

— Daemon — respondeu distraidamente. — É o reflexo do seu pai.


Pareceu perdida por momentos, o tempo que bastou para o deixar
nervoso. «Compreendes a mensagem?«
— Não — disse, ficando extremamente pálida. — Mas tenho a
certezaque a irei compreender.
9 / Kaeleer

Luthvian ouviu a porta do quarto abrir-se, mas continuou a enfiar


roupas
numa mala de viagem e não se virou. Maldita cria eyriena, a entrar no
seu

311
quarto sem permissão. E maldito Lucivar por insistir que fosse para a
Fortaleza
e por insistir que fosse acompanhada. Não precisava de acompanhantes
– especialmente Palanar que mal tinha idade para se assoar.

Ao virar-se para lhe dar conta destes pensamentos, uma silhueta


encapuzada
lançou-se a ela. De imediato, instintivamente, levantou um
escudoVermelho. No mesmo momento, foi atingida por uma explosão de
poderVermelho, obstando a que o escudo se formasse, e a silhueta
agarrou-a.
Tombaram ao chão.

Luthvian não se apercebeu de ter sido esfaqueada até que o


inimigopuxou a lâmina do seu corpo.

Como Curandeira, sabia que era grave – uma ferida mortal.

Furiosa, consciente de que não lhe restava muito tempo, arrancou


ocapuz do atacante e fitou-o pasmada por um momento, imóvel. — Tu.

Hekatah enfiou a faca no abdómen de Luthvian. — Cabra – silvou.

— Comigo podias ter chegado longe. Agora não passarás de um cadáver.


Luthvian tentou debater-se, tentou arranhar, mas os braços estavam
demasiados
pesados para lutar. Nada conseguiu fazer, nem quando Hekatah
lheenfiou os dentes na garganta e o seu sangue alimentou a desprezível
cabra.

Já nada podia fazer pelo corpo, mas o Eu…

Reunindo as forças e a raiva, canalizou-as para as barreiras interiores.

Hekatah embatia nas barreiras enquanto se alimentava, batia e em-


batia, tentando arrebentá-las para concluir o assassinato. Mas
Luthvianaguentou, deixando que a raiva formasse a ponte entre a vida e
a morteenquanto vazava as forças nas barreiras interiores. Vazou e
vazou até nadamais restar. Nada.

A dada altura, os embates cessaram e Luthvian sentiu uma satisfação


sinistra face à incapacidade da cabra em penetrar.

Muito ao longe, sentiu Hekatah a rolar de cima de si. Algures na


distância
vaga e brumosa viu umas unhas afiadas a descerem na direcção do
seu rosto.
A mão deteve-se no momento em que as unhas estavam prestes a tocar-
lhe os olhos.

— Não — disse Hekatah. — Se conseguires fazer a transição para de-


mónia-morta, quero que testemunhes o que farei ao teu rapaz.

Movimento. A porta do quarto fechou-se. Silêncio.

Luthvian sentiu-se a esmorecer. Com esforço, flectiu os dedos –


ligeiramente.

A raiva provocara uma transição rápida sem se ter dado conta,


semHekatah se ter apercebido. Era demónia-morta, mas não tinha
forças paraaguentar. O seu Eu depressa se tornaria um sussurro nas
Trevas. Quiçá, umdia, depois de ter repousado e adquirido alguma
força, o Eu pudesse sair

312
das Trevas e regressar aos Reinos dos vivos. Quiçá.

Quantas vezes Lucivar a advertira para que erguesse escudos de avisoà


volta da casa? E sempre que o fizera, ela rejeitava a sugestão com um ar
dedesdém. Contudo, ficava secretamente contente por Lucivar ter
tentado.

Fora um teste, mas ela era a única que sabia. Sempre que voltava
amencionar os escudos depois de Luthvian ter rejeitado a ideia, sempre
quesuportara a sua língua afiada quando a ajudava nalguma situação,
tudo foraum teste para provar que gostava dela.

Oh, algumas vezes, ao ver a tensão no rosto e a frieza nos olhos


deLucivar, dizia a si própria que seria a última vez, o último teste.
Quandovoltasse a mencionar os escudos, faria como lhe pedia para que
soubesseque também ela gostava dele.

E a vez seguinte chegava e Luthvian queria mais um teste, necessitava


de mais um teste. Só mais um. E mais outro. Sempre mais outro.

Agora os testes tinham cessado, mas o seu filho, o seu belo


PríncipeEyrieno dos Senhores da Guerra, nunca saberia que o amara.

Bastaria uma hora como um dos demónios-mortos. Uma hora paralhe


dizer. Nem uma mensagem lhe podia deixar. Nada.

Não. Um momento. Talvez fosse possível dizer-lhe o mais importante,


algo que a estava a corroer desde que Surreal a repreendera.

Reuniu todas as forças que lhe restavam, deu-lhes a forma de uma


bolha
para que pudesse conter um pensamento, e empurrou-a para cima,
paracima, para cima até pousar imediatamente a seguir às barreiras
interiores.

Lucivar daria com ela. Luthvian estava certa.

Não havia âncora alguma. Nada a que se pudesse agarrar. Repleta


deremorsos atenuados por uma bolha de amor confesso, desvaneceu-se,
regressando
às Trevas.

10 / Kaeleer

Palanar bateu de modo relutante à porta da cozinha. Supunha que


seriauma honra ter sido escolhido para acompanhar a Senhora
Luthvian à Fortaleza,
contudo, já deixara claro de que não gostava de machos eyrienos.
Por isso, não sabia se esta era a forma de Hallevar mostrar que tinha
confiança
em si ou se seria um castigo subtil por algo que fizera.

Abriu a porta e espreitou com cautela. — Senhora Luthvian?

Estava na cozinha, de pé junto à mesa, a olhá-lo fixamente. Sorriu


edisse: — Não tens tomates, guerreirozeco?

Ofendido, entrou na cozinha. — Estais pronta? — perguntou,


empenhando-
se em colocar o tom de voz arrogante de Falonar ou Lucivar.

313
Olhou para a mala de viagem a seu lado, depois para Palanar.
Desde quando Luthvian esperava que um macho lhe carregasse fosse

o que fosse? Da última vez que tentara, quase que lhe rachara a cabeça.
Hallevar
estava certo ao dizer: — Tens de te conformar com a ideia de que
umamulher pode mudar de opinião enquanto dás um peido.
Deu alguns passos na direcção da mulher e parou.

— Algum problema? — perguntou Luthvian, desconfiada.


Fedia. Era esse o problema. Tresandava. Mas não podia dizê-lo. Foi
nessa altura que reparou que parecia um pouco... estranha.

— Algum problema? — perguntou novamente, avançando um passo.


Palanar recuou dois passos.
O rosto de Luthvian alterou-se, tremeu. Por um instante, julgou ver
outra pessoa. Alguém que não conhecia – e que não desejava conhecer.

E recordou-se de outra frase de Hallevar: por vezes, correr era a atitude


mais inteligente que um guerreiro inexperiente podia tomar.

Correu para a porta.

Não conseguiu alcançá-la. Uma explosão de poder atravessou-lhe


asbarreiras interiores. Agulhas trespassaram-lhe a mente,
desenvolveramganchos e espetaram-se mais profundamente,
arrancando pedacinhos doseu Eu. O corpo vibrava ao debater-se numa
espécie de jogo da corda,
enquanto tentava sair pela porta ao mesmo tempo que ela o puxava
paradentro.

Impotente, sentiu-se a girar – e viu a feiticeira que o mantinha preso.


Gritou.

— Irás exactamente onde te mandar — disse. — Dirás exactamente o


que te ordenar.
— N-n-não.
No rosto em decomposição brilharam olhos dourados e Palanar sentiu
a dor a cauterizá-lo.

— É uma tarefa de pequena monta, cria. E depois de a concluíres, li-


berto-te.
Mostrou um pequeno cristal que ficou a flutuar no ar. O braço esquerdo
do eyrieno estendeu-se para o apanhar.
Disse-lhe exactamente onde se dirigir, exactamente que palavras
proferir,
exactamente o que fazer ao feitiço no cristal. No final, voltou a virá-lo,
como uma marioneta. Saiu porta fora.

Um guerreiro não o faria, fosse qual fosse o preço. Um guerreiro não


ofaria.

Tentou levar a mão direita à faca. Podia cortar a garganta, os pulsos,


fazer algo para se livrar dela.

A mão deteve-se sobre o cabo.

314
«Não te safarás se morreres, guerreirozeco« disse a feiticeira. «Sou a
Sacerdotisa
Suprema. Não é dessa forma que me escaparás.«

Deixou cair a mão ao lado do corpo, vazia.

«Agora, vai!«

Palanar abriu as asas e voou tão depressa quanto possível para


realizaralgo que um guerreiro não faria.

Não era o vento no rosto que lhe provocava as lágrimas.

11 / Kaeleer

Lucivar pousou na sua casa alcantilada e gritou: — Marian! — Onde


raioestaria a mulher?, pensava ao caminhar a passos largos para a
porta. Háhoras que devia ter chegado à Fortaleza.

Entrou e viu a pilha arrumada de malas de viagem. O coração


paroumomentaneamente. Quando voltou a senti-lo bater, já estava na
orla assassina.
— Marian!

A casa era grande, mas não demorou muito a percorrê-la


minuciosamente.
Marian e Daemonar não estavam ali. Contudo, tinha feito as malas,
por isso o que a teria impedido de partir? Talvez Daemonar tivesse
adoecido?
Teria ido à casa alcantilada de Nurian para que a Curandeira o
observasse?

Sendo o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih, a sua


casaencontrava-se um pouco mais distante das outras casas aninhadas
na montanha,
mas bastaram dois minutos para pousar à frente da casa de Nurian.
Antes de tocar com os pés no chão, já sabia que ali não estavam.

— Lucivar!
Lucivar virou-se vendo Hallevar a correr na sua direcção. Reparou
emFalonar e Kohlvar a saírem da casa alcantilada comunitária que era
o maisparecido que os eyrienos tinham a estalagens e tabernas. Ambos,
ouvindoa agitação na voz de Hallevar, dirigiram-se a ele.

— Viste a cria, Palanar? — perguntou Hallevar.


Antes de Lucivar responder, Falonar adiantou-se. — Não o mandastea
casa da Senhora Luthvian para a acompanhar à Fortaleza?
— Mandei — disse Hallevar, com um ar carregado. — E disse-lhe
quemexesse aquele rabo de volta para aqui. — Olhou para Lucivar. —
Estava cáa magicar se não estaria a mandriar na Fortaleza para se
escapar às tarefas.
— Palanar não chegou à Fortaleza. Nem Luthvian. Nem Marian nem
Daemonar — acrescentou Lucivar, com uma serenidade exagerada.
Os outros homens ficaram agitados.

— Mandei-o logo de manhã — disse Hallevar.


315
— Há sinais de problemas na tua casa alcantilada? — perguntou
Falonar
bruscamente.
— Não — disse Lucivar. — As malas estavam feitas e arrumadas juntoà
porta. — Praguejou baixinho mas violentamente. — Onde raio é que
semeteu?
— Foi à casa de Senhora Luthvian — disse uma voz feminina e jovem.
Viraram-se todos e ficaram a olhar para Jillian, a irmã mais nova de
Nurian.

Encolheu os ombros e parecia prestes a correr de volta para casa.

Hallevar apontou para o chão com um dedo a alguns centímetros do

local onde se encontrava. — Aqui, guerreirazinha — disse, com


severidade.
Assustada, Jillian arrastou os pés até ao local, deu uma olhadela
aosenormes guerreiros que a circundavam e fitou os pés.

— Faz o relato — disse Hallevar naquele tom de voz que, embora


fosseencorajador, fazia com que todos os jovens machos que tinham
treinado sepusessem em sentido.
Produziu o mesmo efeito em Jillian. Ficou hirta e concentrada em
Hallevar.
— Estava a fazer a minha corrida de resistência esta manhã. —
Aguardou
até Hallevar acenar com a cabeça, em aprovação. — E pensei em ir
pelocaminho que leva à casa alcantilada do Príncipe Yaslana porque,
pensei eu,
bem, talvez a Senhora Marian apreciasse uma ajuda com o Daemonar, e
eupodia tomar conta dele um bocado, para que ela conseguisse fazer
algumacoisa. Não é que me estivesse a esquivar ao treino, ou algo
assim, pois tomarconta de Daemonar é exercício.

Apesar da preocupação, os lábios de Lucivar tremelicaram ao debater-


se para não sorrir.

— Estava quase a chegar quando vi Marian à porta a falar com Palanar


que parecia… adoentado. Estava a transpirar muito e… não sei.
Nuncavi ninguém daquela maneira. E foi então que Marian estremeceu
como sealguém lhe tivesse batido, mas Palanar nem sequer lhe tocou.
Disse: “Trazei
o rapaz.” Marian entrou e regressou com Daemonar. Daemonar
olhoupara Palanar e começou num pranto. Sabem, aquele som que
Daemonarfaz quando não gosta de alguma coisa?
Lucivar acenou afirmativamente com a cabeça. Sentiu um suor frio a
cobrir-lhe a pele.
— Palanar agarrou Marian por um braço. Não parava de dizer:
“Lamento,
lamento.”
— E viu-te? — perguntou Lucivar, com demasiada calma.
Jillian abanou a cabeça. — Mas Marian viu. Olhou directamente para
316
mim e o seu rosto tinha o mesmo aspecto adoentado de Palanar e ela
disse:
“Casa da Luthvian”. Depois foram-se embora. — Tendo terminado o
relato,
a confiança desvaneceu-se ao olhar para os homens de rostos
carregados.

— Não contaste isto a mais ninguém? — perguntou Lucivar.


Lívida, Jillian abanou a cabeça. — Eu… Nurian não estava em casa
quando voltei e… não sabia que tinha de apresentar relatório —
terminounuma voz quase inaudível.

E teria hesitado em dirigir-se a um dos guerreiros pois arriscava


sermandada embora com indiferença. Alguns meses a viver em Kaeleer
nãotinham sido suficientes para subjugar as tácticas de sobrevivência
queaprendera desde que saíra do berço.

— Quando um guerreiro vê algo fora do vulgar, ele – ou ela – deverádar


conta aos seus superiores — disse Hallevar numa voz firme
emborameiga. — É uma das formas de um jovem guerreiro ganhar
experiência.
— Sim, senhor — sussurrou Jillian.
— Foi um belo primeiro relatório, Jillian — disse Lucivar. — Agora,
volta aos teus deveres.
Jillian endireitou os ombros. Os seus olhos brilhavam de gáudio. —
Sim, senhor.
Nenhum dos homens proferiu uma única palavra até a rapariga
terentrado em casa.

— Parece um feitiço de coacção — disse Falonar baixinho.


— Sim — retorquiu Lucivar, tristemente, — parece. Falonar, fica deolho
por aqui.
— Vais à casa de Luthvian? — perguntou Hallevar enquanto Lucivarse
afastava. — Então vou contigo.
— Não vens, não — disse Falonar. — Kohlvar, traz todos para juntodas
casas. Hallevar, tens maior influência sobre os jovens. Mantém-nos
derédea curta.
— E tu o que farás? — perguntou Lucivar, com demasiada serenidade.
Falonar colocou-se em posição de combate. — Eu vou contigo.

Encontraram Palanar no chão, antes da porta da cozinha.

— Eu tomo conta dele — disse Falonar. — Entra tu.


Invocando a espada de guerra eyriena, Lucivar abriu a porta da cozinha
com um pontapé, precipitando-se para o interior. O fedor naquele
localfê-lo sentir náuseas, trazendo-lhe a ideia clara de carne em
putrefacção.
Esse pensamento catapultou-o pelas outras divisões do andar de baixo.
Não encontrando nada, subiu furiosamente as escadas. Pontapeou
aporta do quarto e ao abrir-se – viu Luthvian. Sondou o quarto
rapidamente

317
para se certificar de que não estava ninguém à espera que baixasse
guarda,
e ajoelhou-se junto ao corpo.

Primeiro, pensou que ainda estivesse viva. As feridas que conseguia


detectar
eram graves, mas devia haver mais sangue se tivesse sangrado. Ao
afastar-
lhe o cabelo do pescoço, percebeu o motivo da inexistência de sangue.

Pousou a mão pela cabeça de Luthvian. Tudo bem. O corpo faleceramas


tinha força suficiente para realizar a transição para demónia-morta.
Se existisse algum sinal de que ainda ali permanecia, o sangue fresco
iriafortalecê-la.

Sondou zelosamente para não lhe perfurar as barreiras interiores e,


inadvertidamente, concluir a morte.

Imediatamente antes das barreiras interiores estava uma pequena


bolha
de poder. Fez uma pausa, ponderou. A bolha tinha uma sensação
deafecto emocional que o deixou desconfiado. Não era o tipo de emoções
queassociaria a Luthvian. Contudo, nada detectou que o fizesse
acreditar quese encontrava em perigo, por isso roçou, levemente, uma
pequena gavinhapsíquica na bolha.

Lucivar… Estava errada quanto a Marian. Fizeste a escolha acertada.


Espero que sejam felizes.

Sentiu os olhos a arderem com lágrimas. Tocou as barreiras


interioresque se abriram sem resistência. Procurou por Luthvian,
procurou o maispequeno bruxulear do seu espírito. Nada.

Luthvian regressara às Trevas.

Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto. — Fogo do Inferno, Luthvian

— disse, com a voz embargada. — Porque esperaste até morrer para


medizeres isso? Porque...
— Lucivar!
Pôs-se em pé de um salto, reagindo à aflição e à raiva na voz de
Falonar.
Parou à porta e olhou para trás. — Que as Trevas te envolvam, Mãe.
Falonar esperava-o na cozinha.

— Palanar? — perguntou Lucivar.


Falonar abanou a cabeça. Não precisava de perguntar sobre Luthvian.
— Vi isso aí. — Indicou uma folha de papel dobrada em cima da mesa.
Lucivar fitou o papel que tinha o seu nome. Não reconheceu a caligrafia
e sentiu uma repulsa instintiva em tocar o papel. Por meio da Arte,
desdobrou o papel, leu-o e saiu intempestivamente pela porta.

— Lucivar! — gritou Falonar, correndo no seu encalço. — Onde vais?


— Regressa às casas alcantiladas — disse Lucivar enquanto prendiaas
manoplas de combate nos braços. — Agora és o responsável,
PríncipeFalonar.
— Onde vais?
318
Lucivar ascendeu à orla assassina, sentiu a raiva gélida e adocicada
ainundá-lo. — Vou tirar a minha esposa e o meu filho das garras
daquelascabras.

12 / Kaeleer

O ataque começou logo que Falonar regressou às casas alcantiladas. O


escudo
Azul-Safira envolveu-o no segundo anterior a uma seta o atingir, quelhe
poderia ter trespassado as costas. Invocou o arco, colocou uma
flechaem posição, adicionou um pouco de energia da Azul-Safira à
ponta e largou-
a.

Demorou uns instantes a sondar a área e a avaliar o inimigo. Praguejou


violentamente. Estava ali uma companhia inteira de guerreiros
eyrienos.
Nenhum deles usava uma Jóia mais escura do que a Verde por issoa
sua Jóia Azul-Safira iria equilibrar um pouco as hipóteses, mas os
seuspróprios guerreiros estavam em grande desvantagem numérica.
Todos oshomens cairiam a lutar, conquanto não fosse suficiente para
salvar as mulheres
e as crianças.

— A casa alcantilada comunitária! — gritou Hallevar, conduzindo


asmulheres e as crianças nessa direcção. — Depressa! Depressa!
Boa jogada, pensou Falonar em aprovação, lançando outra flecha.
Tinha
espaço para todos e dava aos guerreiros um campo de batalha
concentrado
em vez de vários dispersos.

O seu escudo deflectiu mais uma dúzia de flechas. Tendo ascendido


à orla assassina, deixou-se envolver pela raiva gélida e lutou com a
mentedespida de emoções. As suas flechas atingiam os alvos.

Ouviu alguém gritar. Olhou para a esquerda e viu Nurian a debater-


se com um Senhor da guerra eyrieno. Começou a virar-se, mas antes
deconseguir puxar o arco, um outro guerreiro investiu contra Falonar
comum bastão laminado. Fazendo desaparecer o arco e a seta, invocou
o seupróprio bastão laminado e fez frente ao ataque. Com um passo de
dança,
recuou à procura de uma abertura e Nurian voltou a gritar.

Que se dane a honra. Estavam em guerra. Quando o adversário investiu


novamente, recebeu o golpe com uma manobra desonesta e maldosaque
aprendera recentemente com Lucivar e que liquidou o oponente
comintensidade.
No momento em que se virou, julgando ser demasiado tarde para salvar
a Curandeira, ouviu Jillian gritar: — Baixa-te, Nurian!
A voz de Jillian transformou Nurian de mulher indefesa em aprendizade
guerreira. Pontapeou furiosamente a zona genital do Senhor da Guerra

319
ao mesmo tempo que se deixava cair para trás. O pontapé não foi
certeiro,
mas chegou para surpreender o homem ao ponto de a largar e o
movimento
inesperado desequilibrou-o. Enquanto se tentava equilibrar, ouviu-
seuma seta a assobiar pelo ar, enterrando-se no peito do homem.

Jillian estava já a colocar outra flecha no arco e a fazer pontaria


aomesmo tempo que Nurian se levantava apressadamente e corria,
curvadapara ficar fora da linha de fogo.

Falonar lançou um escudo Azul-Safira para a frente de Jillian a


tempode deter as flechas que lhe acertariam em cheio. — Retirar! —
gritou, quasea espumar da boca quando Jillian lançou outra flecha,
com toda a calma.

— Porra, guerreira, retirar!


Sobressaltou-se ao ouvir esta ordem, mas foi o grito de Nurian que afez
correr.
Preparado para lhes cobrir a retirada, Falonar olhou para trás – e
lançou
as piores pragas que conhecia. Nurian estava agora envolvida
numaluta, somente com um bastão eyrieno. Nem era um bastão
laminado. Que
raios pensava aquela mulher fazer com aquilo? Julgaria que um
guerreiro aatacaria com as próprias mãos? Tola. Idiota.

Dirigiu-se a Nurian de costas, constantemente atento ao próximo


ataque.
— Retirar — rosnou-lhe – e reparou de seguida que Jillian, ao invésde
correr até à casa alcantilada comunitária, parara a meio caminho
paraassumir uma posição à retaguarda. — Se voltarem a desobedecer-
me eupróprio vos açoitarei até ficarem sem pele nas costas. A ambas.
Agora, batam
em retirada!

Reagiram tal como um guerreiro eyrieno: ignoraram a ameaça e


mantiveram
as posições. Assim, Falonar bateu em retirada, obrigando-as a
seguirem-
no. Isso, já estavam dispostas a fazer. Lucivar devia estar louco ao
pensar que uma mulher iria obedecer a uma ordem sensata. E Falonar
sentiu-
se grandemente agradecido por Surreal não estar naquele local. Só
asTrevas sabiam como conseguiria mantê-la afastada destes combates.

Quando já se encontravam junto à casa alcantilada comunitária,


Hallevar
agarrou em Jillian e Kohlvar praticamente atirou Nurian pela porta.
Falonar foi o último a entrar. Assim que atravessou a soleira da porta,
colocou
um escudo Azul-Safira à entrada, para que ficassem protegidos ao
mesmo
tempo que viam o que se passava, sem impedimentos. Alguns
homenstinham tomado posições nas janelas protegidas com escudos do
andar debaixo. Outros encontravam-se nas divisões dos pisos
superiores. As mulheres
e as crianças estavam amontoadas no salão principal.

Hallevar juntou-se a Falonar à porta. — Achas que estão a reorganizar-


se?

— Não sei.
320
Atrás deles, ouviu Tamnar a dizer, com algum ressentimento: — Ora,
guerreirazinha, acabaste de matar pela primeira vez.

Falonar e Hallevar viraram-se em simultâneo e lançaram a mesma


mensagem, em uníssono. «CALA-TE!«

O rapazinho retraiu-se, pareceu surpreso perante a reprimenda severae


esgueirou-se até à janela vigiada por Kohlvar.

Jillian ficou a olhar estupefacta para os dois, tendo a pele


normalmentetrigueira adquirido uma tez pálida e doentia. — Matei-o?

Antes que Falonar conseguisse construir uma resposta cautelosa,


Hallevar
resfolegou. — Fizeste-lhe uns arranhões, o que permitiu que Nurianse
escapulisse.

Alguma da tensão escoou da rapariga. — Oh. Isso é... Oh.

— Agora vais assumir uma posição à retaguarda ali — disse Hallevar,


indicando um canto distante do salão.
— ‘Tá bem — disse Jillian, parecendo ligeiramente atordoada.
Falonar voltou-se para olhar para fora. — Enfiou a seta em cheio
nocoração do sacana — disse, mantendo a voz baixa.

— Não é necessário que saiba disso agora — respondeu Hallevar,


também
baixinho. — Ela que acredite que só lhe fez uns arranhões. Não
nospodemos permitir que bloqueie se chegarmos a esse ponto.
— Se chegarmos a esse ponto — disse Falonar compassivamente,
enquanto
se preparava para aguardar.
13 / Kaeleer

Saetan deambulava pelos corredores da Fortaleza, demasiado


desassossegado
para ficar parado num sítio, demasiado nervoso para tolerar estar
nacompanhia de outras pessoas.

Lucivar deveria ter regressado há horas. Sabia que Lucivar tinha


saídosorrateiramente da Fortaleza de manhã para se ir inteirar sobre o
que estaria
a atrasar Marian e Daemonar, mas estava a escurecer e não havia sinal
de nenhum deles.

Duvidava que mais alguém tivesse dado conta. A assembleia e os


rapazolas
estavam reunidos numa das amplas salas de estar, tal como
vinhasendo hábito desde que Jaenelle lhes dera ordens para que
permanecessemna Fortaleza. Por isso, não se aperceberiam de que
Lucivar tinha saído. Equanto a Jaenelle e Daemon… Bem, também não
era provável que se tivessem
apercebido.

Surreal apercebera-se da ausência de Lucivar, mas encarou o


assuntocom um encolher de ombros, dizendo que estaria provavelmente
com Pro

321
thvar e Mephis. O que fez com que Saetan se apercebesse de que
tambémnão vira nenhum deles recentemente.

Tinha de encontrar uma forma de Jaenelle o ouvir, tinha de descobrir

o motivo pelo qual os mantinha a todos controlados com mão de ferro.


Admitindo ou não, a verdade é que estavam em guerra. As Rainhas e
osmachos do Primeiro Círculo não iriam tolerar esta permanência
indefinida,
enquanto o povo estava a combater. Algo tinha de mudar. Alguém tinha
de agir.
14 / Kaeleer

Falonar aceitou a caneca de cerveja que Kohlvar lhe ofereceu.

— Não faz sentido — disse Kohlvar, abanando a cabeça. — Acabaram os


ataques directos, não envidam esforços para montarem um cerco,
unicamente
umas setas aqui e ali para se certificarem de que sabemos que
aindaestão por aqui.
— Estamos encurralados — respondeu Falonar. — Estamos em
desvantagem
numérica e sabem disso.
— Mas qual o objectivo de nos encurralarem?
Não podemos ir a lado nenhum, pensou Falonar. Não podemos
transmitir
nada.

— Qual é o objectivo? — repetiu Kohlvar.


— Não sei. Mas julgo que iremos descobrir mais cedo ou mais tarde.
A resposta chegou com o entardecer. Um Senhor da Guerra aproximou-
se a descoberto da casa alcantilada comunitária, com os braços abertos
e as mãos afastadas das armas.

— Trago uma mensagem — gritou, segurando um envelope branco.


— Pousa-o no chão — gritou-lhe Falonar.
O Senhor da Guerra encolheu os ombros, pousou o envelope no
chãocolocando uma pequena pedra em cima para evitar que fosse
levado pelovento. Voltou pelo mesmo caminho.

Decorridos alguns minutos, Falonar observou a companhia eyriena


alevantar voo.

Aguardou mais uma hora e só então usou a Arte para trazer o envelope
até à entrada. Ainda do outro lado do escudo Azul-Safira, Falonarcriou
uma bola de fogo encantado para iluminar a inscrição, o nome
dodestinatário.
Um grande temor percorreu-lhe o corpo. Era a mesma caligrafia
damensagem dirigida a Lucivar. Mas esta estava dirigida ao Senhor
Supre

322
mo.

Chamou Kohlvar, Zaranar e Hallevar. — Vou levar a mensagem à


Fortaleza
e apresentar o relato dos acontecimentos.

— Pode ser uma cilada — disse Hallevar. — Podem estar a aguardar


o próximo passo.
Sim, tinha a certeza de que era uma cilada – mas não dirigida a
si.

— Não creio que nos venham importunar mais, mas mantenham-sede


vigia. Fiquem atentos. Não deixem ninguém entrar, seja quem for.
Ficareina Fortaleza até ao amanhecer. Se regressar antes... dêem o
vosso melhor
para me matar.
Entenderam as suas palavras. Se viesse antes, deviam partir do
princípio
que estava a ser controlado e deviam agir em conformidade.

— Que as Trevas te protejam — disse Hallevar.


Falonar atravessou o escudo Azul-Safira. Pegando no envelope, voouem
direcção ao céu e rumou para a Fortaleza.

15 / Kaeleer

Saetan olhava fixamente para o pedaço de papel. As emoções


aglomeravam-
se, por isso afastou-as.

Tenho o vosso filho.


Hekatah

O que também significava que se tinha apoderado de Marian e


Daemonar,
visto que esse era o único engodo possível a ponto de provocarLucivar a
ir a Hayll.

Agora era Lucivar que servia de engodo para Saetan.

Compreendia o jogo. Hekatah e Dorothea estariam dispostas a negociar:


Saetan por Lucivar, Marian e Daemonar.

Era evidente que não libertariam Lucivar, não o podiam fazer. Assim
que conseguisse pôr Marian e Daemonar a salvo, iria virar-se contra
Hekatah
e Dorothea com todo o poder destrutivo que encerrava.
Por isso, era um acordo falso desde o início.

Podia viajar até Hayll e destruir Dorothea e Hekatah. Duas Sacerdotisas


de Jóia Vermelha não conseguiam fazer frente a um Príncipe dos
Senhores
da Guerra de Jóia Negra. Podia ir até lá, lançar um escudo Negrosobre
Lucivar, Marian e Daemonar para os manter resguardados, e
nessaaltura libertar o seu poder – e matar todas as criaturas numa
extensão de

323
quilómetros em redor.

Mas isso não iria acabar com a guerra. Agora já não. Talvez
nuncaviesse a ser possível. E era precisamente a guerra que tinha de
acabar, nãosomente as duas feiticeiras que a tinham desencadeado.

Por isso, iria entrar no jogo… pois iria facultar-lhe a arma de que
precisava.

Tudo tem um preço.

Retirou o berloque com a Jóia Negra e pousou-o na secretária. Retirou

o anel de Administrador da mão esquerda – o anel que continha o


mesmoescudo Ébano que Jaenelle colocara nos Anéis de Honra.
Mesmo que Daemon estivesse a influenciar Jaenelle, mesmo que
fosseele a razão que a levava a resistir a uma declaração formal de
guerra, nemmesmo ele conseguiria evitar que Jaenelle reagisse. Não
perante estes factos.

Não penses. Sê um instrumento.

Ao avançar para a armadilha que Dorothea e Hekatah lhe armaram,


iria dar azo a algo que sabia que iria trazer à superfície o lado explosivo
eselvagem de Jaenelle – o sofrimento de Saetan.

Como era óbvio, não voltaria a ser o mesmo depois daquelas duas
cabras
terminarem. Nunca mais…

Abriu a gaveta da secretária, acariciou o envelope com odor a alfazema.


— Por vezes, o dever segue por um caminho que não pode ser
percorrido
pelo coração. Lamento, Sylvia. Teria sido uma honra ser teu cônjuge.
Lamento.

Fechou a gaveta, pegou na capa e saiu discretamente da Fortaleza.

16 / Kaeleer

Daemon deslizou pelos corredores da Fortaleza. Passara as últimas


horasa confeccionar os tónicos de Karla para três meses, de acordo com
as instruções
de Jaenelle. Quando tentou questioná-la, lembrando-lhe que os tónicos
medicinais que continham sangue perderiam o vigor passado
essetempo, dissera-lhe que calculara esse factor para que o vigor se
reduzissegradualmente, em conformidade. E quando lhe perguntou
porquê...

Bom, seria de esperar que ficasse esgotada ao libertar a quantidade


deenergia necessária para deter Dorothea e Hekatah de forma absoluta.
Masos três meses que demoraria a recuperar deixavam-no preocupado.
E agoraque estava prestes a terminar... o que quer que fosse... estava
também preocupado
que os rapazolas pudessem finalmente escapar à trela e lançarem-sena
batalha.

Estavam demasiado hostis com Daemon e não iriam ouvir nada do

324
que lhes dissesse, mas esperava que Saetan ainda pudesse agir com
sensatez.
Estava bastante seguro de que poderia transmitir o suficiente de modo
aque o Senhor Supremo compreendesse que a evasão de Jaenelle tinha
umobjectivo, de que tudo o que precisavam era de mais alguns dias.
Mais unsdias e a ameaça a Kaeleer iria terminar, a ameaça que
Dorothea e Hekatahsempre representaram para os Sangue iria chegar
ao seu término.

Bateu à porta de Saetan e entrou com cautela quando ouviu a voz


deSurreal a responder: — Entra.

Estava defronte da secretária mais pequena. Falonar estava a seu lado,


com um ar cansado e irritado. Surreal não tinha um ar cansado e
estava
longe de demonstrar irritação. — Vê isto — disse.

Mesmo do sítio onde estava conseguia ver o berloque e o anel de


Administrador.
Enfiando as mãos nos bolsos das calças, contornou a secretária,
reconhecendo em silêncio o golpe emocional quando Surreal se
afastoudeliberadamente dele. Leu a mensagem e sentiu um calafrio
afiado comogarras a percorrer-lhe as costas.

— Será que é agora que vais fazer alguma coisa? — perguntou Surreal,
batendo com os punhos na secretária. — Já não estão a matar
desconhecidos.
Aquelas putas têm o teu pai e o teu irmão.
Com grande sofrimento, conseguiu manter o tom de voz entediado.

— Lucivar e Saetan optaram por correr o risco quando desobedeceram


àsordens. Nada mudou. — Não podia mudar. Não podia pois Jaenelle ia
salvar
Kaeleer.
— Também estão na posse de Marian e Daemonar.
É claro. Sentiu alguma apreensão relativamente a Marian, mas nãoficou
verdadeiramente preocupado. Se Marian fosse violada ou ferida
dealgum modo, nem mesmo um Anel de Obediência poderia impedir
Lucivar
de iniciar uma chacina em larga escala. Por isso, não estava
verdadeiramente
preocupado com Marian, mas bastava a ideia de Daemonar nasmãos
daquelas cabras nem que fosse por uma hora... — É natural que exijam
algum tipo de resgate — disse, com indiferença. — Veremos o que
sepoderá arranjar.

— O que se poderá arranjar? — disse Surreal. — O que se poderá


arranjar?
Não sabes o que Dorothea e Hekatah lhes irão fazer?

Era óbvio que sabia, muito melhor do que Surreal.

A voz de Surreal foi invadida por veneno. — Pelo menos vais informar

Jaenelle?

— Vou, julgo que a Senhora terá de ter conhecimento deste


inconveniente.
— Saiu enquanto Surreal cuspia pragas.
Desejava que tivesse chorado. Desejava que tivesse gritado, berrado,

325
ficado furiosa, praguejado, chorado lágrimas amargas. Não sabia o que
fazer
a esta mulher queda que embalara no seu colo na última hora.

Comunicara-lhe da forma mais delicada que conseguira. Nada dissera.


Pousara a cabeça no ombro de Daemon e retirara-se para o interior,
descendo
tão profundamente no abismo que não conseguia sequer senti-la.

Por isso, abraçou-a. Por vezes afagava-a, acariciava-a – não para a


excitar
mas para a descontrair. Podia tê-la trazido de volta pelo sexo, mas
issoseria uma violação da confiança que depositava nele e não era isso
que iriafazer. Quando lhe pousara a mão no peito, fora como forma de
se assegurarde que o coração ainda batia. Cada sopro quente no
pescoço era uma promessa
tácita de que iria regressar.

Por fim, decorridas quase duas horas, mexeu-se. — O que achas queirá
acontecer agora? — perguntou, como se não tivesse existido aquele
hiato
entre as notícias e a pergunta.

— Mesmo a viajar pelos Ventos Negros, Saetan demoraria duas horasou


mais a chegar a Hayll. Não sabemos quando partiu...
— Mas a esta hora já lá deve ter chegado.
— Já. — Fez um interregno, ponderou novamente no assunto. —
Lucivar
e Saetan não são o prémio. São o engodo. E o engodo perde valorse
estiver danificado. Por isso, julgo que estão relativamente seguros, por
agora.
— Dorothea e Hekatah esperam que entregue Kaeleer para ter Lucivare
o Papá de volta, não é verdade? — À falta de resposta, Jaenelle levantou
acabeça e examinou Daemon. — Não. Isso não lhes serviria, pois não?
Paraque possam manter Kaeleer terão de ter controlo sobre mim, terão
de fazeruso da minha força para dominarem.
— Sim. Lucivar e Saetan são o engodo. O prémio és tu. —
Daemonafastou-lhe o cabelo do rosto. — Falta-te muito para acabar o...
feitiço?
— Sabia que era muito mais do que um feitiço, mas era uma palavra
tãoadequada como outra qualquer.
— Mais algumas horas. — Mexeu-se um pouco mais. — Devia retomar
o trabalho.
Abraçou-a com mais força. — Ainda não. Fica comigo mais um pouco.
Por favor.
Jaenelle descontraiu-se nos seus braços. — Vamos trazê-los de volta,
Daemon.
Pai. Irmão. Fechou os olhos e encostou a face à cabeça dela, carecendo
do seu calor e contacto. — Sim — murmurou, — vamos trazê-los de
volta.

326
17 / Kaeleer

Ladvarian observou o espaço que iria ser a casa da Feiticeira durante


unstempos. Um velho tapete que trouxera do Paço cobria o chão em
pedra.
Trouxera também dois candeeiros e muitas velas perfumadas. A cama
estreita
que Tersa lhe dera estava ao centro do quarto. O baú estava ao ladoe
continha algumas mudas de roupa, alguns livros que Jaenelle
gostavade ler quando tinha necessidade de se aconchegar para
descansar por umdia, os seus cristais de música preferidos e alguns
artigos de higiene. Nãotrouxera quadros pois as três paredes e o tecto
do quarto estavam cobertoscom camadas de teias curativas. A parede
ao fundo estava coberta pelateia entrelaçada de sonhos e de visões que
formara o mito vivo, os sonhostornados realidade, a Feiticeira.

«Está pronto?« perguntou, de modo respeitador, à enorme aranha


dourada
que era a Tecedeira de Sonhos.

«A teia está pronta« respondeu a Rainha arachniana, roçando


delicadamente
uma pata numa das gotas de sangue seladas em bolhas de águase
protegidas por escudos. «Agora acrescento memórias. Mas... Preciso
memórias
humanas.«

Ladvarian indignou-se. «Era o nosso sonho mais do que o deles.«

«Mas também era deles. Preciso memórias de parentes e de humanos


para esta Feiticeira.«

Ladvarian ficou desanimado. Teria sido mais fácil com os parentes.


Informara-os do que era necessário e de que era para a Senhora. Era
tudo

o que os parentes precisavam de saber. Já os humanos iriam querer


saberporquê, porquê, porquê. Demoraria tempo a convencê-los – e
tempo eraalgo de que não dispunha.
«A Insólita irá ajudar-te« disse a aranha.

«Mas a Senhora conhece matilhas de humanos, multidões. Como…«

«O Primeiro Círculo tem memórias possantes. Serão suficientes.


Falacom a Viúva Negra Cinzenta. Para humana, é excelente tecedeira.«

Referia-se a Karla. Sim. Se conseguisse convencer Karla…


«Espera melhor oportunidade para pedires. Assim que a Feiticeirapartir
para própria teia. Nessa altura, humanos escutarão com mais atenção.
«

«Agora vou para a Fortaleza e ficarei a aguardar.« Ladvarian olhou ao


redor mais uma vez. Não restava mais nada para fazer. O quarto
estavapronto. A teia entrelaçada estava concluída. Os parentes que
pertenciam àcorte da Senhora estavam reunidos na ilha dos
arachnianos para transmitirem
força à teia da Tecedeira, quando chegasse a altura.

«Mais uma coisa« disse a aranha. «Cão cinzento. Conheces este cão?«

327
Surgiu uma imagem na mente de Ladvarian. «É o Colmilho Cinzento.
É um lobo.«

«Manda-o vir ter comigo. Há algo que tem de saber.«

18 / Terreille

Estava num acampamento militar e não seria este o género de lugar


ondeprocuraria Hekatah ou Dorothea. À volta do extenso perímetro,
estacas demetal tinham sido espetadas no chão, com escassos metros
de intervalo.
As estacas tinham dois cristais embutidos, um de cada lado,
enfeitiçados
de modo a que se alguma coisa passasse entre as estacas, o cristal
perderiacontacto com o cristal da estaca seguinte, alertando os
guardas. O próprioacampamento tinha aglomerados de tendas para os
guarda, algumas cabanas
em madeira construídas junto umas das outras, perto do centro
doacampamento, e duas barracas em madeira com barras nas janelas e
camadas
de feitiços de protecção a rodeá-las. Para prisioneiros. Como engodo.

Logo que atravessou as estacas do perímetro, tomaram conhecimentode


que estava a chegar. Na viagem que o trouxe aqui, pensara novamente
sobre o que iria fazer. Podia matar Hekatah e Dorothea. Podia libertara
força das Jóias Negras, destruir todos no acampamento e levar Lucivar,
Marian e Daemonar para casa. Mas isso não iria travar a guerra.
Terreilleprecisava de ver-se confrontada com um poder que pudesse
atemorizar aspessoas ao ponto de não se atreverem a enfrentá-lo. E
voltava sempre à ideiade provocar Jaenelle ao ponto de a fazer libertar o
poder Ébano, dando aosterreilleanos um motivo para não saírem do seu
Reino.

Enquanto caminhava para o centro do acampamento, foi seguido


porguardas. Ninguém se aproximou nem tentou tocar-lhe.

Candeeiros redondos assentes em altos postes de metal iluminavam

o chão em terra batida e manchado de sangue precisamente no centro


doacampamento. Lucivar estava acorrentado à última estaca. As feridas
dosgolpes de chicote no seu peito e coxas tinham criado crosta e não
pareciammuito profundas, pelo que não lhe provocariam danos graves.
Tinha nódoas
negras no rosto, mas também não resultariam em danos permanentes.
Saetan parou no limite da luz. Há dez anos que não via Hekatah –
pouco
mais de um suspiro de tempo para alguém com a sua longevidade.
Econhecera-a durante a maior parte desses anos de vida. Ainda assim,
apesarde Dorothea estar a seu lado, tinha definhado de tal modo,
estava de tal madeira
deteriorada, que não teve a certeza de que seria ela, até ouvi-la falar.

— Saetan.
— Hekatah. — Caminhou até ao centro do chão em terra batida.
328
— Vieste negociar? — perguntou Hekatah, cortesmente.
Anuiu. — Uma vida por uma vida.
Sorriu. — Por vidas. Metemos a cabra e o fedelho na negociação. Não
temos grande utilidade para os dois.

Julgaria ela que Saetan não sabia que nunca iriam entregar Daemonar?
Durante séculos, empenharam-se em conseguir uma criança de Lucivar
oude Daemon para que a pudessem controlar e criar de modo a
recuperaremuma linhagem escura.

— A minha vida pelas deles — disse. Tudo tem um preço.


— NÃO! — gritou Lucivar, procurando libertar-se das correntes
enfeitiçadas.
— Mata-as!
Ignorando Lucivar, centrou a atenção em Hekatah. — Temos acordo?

— Por uma oportunidade de ver o Senhor Supremo humilhado?


— disse Hekatah melosamente. — Oh, claro que temos acordo. Assim
que
estiveres dominado, libertarei os outros. Dou-te a minha palavra de
honra.

Deram-lhe ordens para que se despisse – e assim o fez.

Retirando o anel com a Jóia Negra, atirou-o para o chão. Tinha-o


envolvido
com um escudo bem justo para que ninguém lhe pudesse tocar,
defacto. Se precisasse invocá-lo, não queria que o ouro estivesse
impregnadode imundície.

Enquanto dois guardas o prendiam ao poste central, Hekatah enfiou-


lhe um Anel de Obediência no órgão genital.

— Estás com bom aspecto para a idade que tens — disse, recuandopara
examinar minuciosamente o corpo desnudado de Saetan.
Sorriu docilmente. — Infelizmente, minha querida, não posso dizer
omesmo de ti.
O rosto de Hekatah contorceu-se de rancor. — Já era altura de
aprenderes
uma lição, Senhor Supremo. — Ergueu a mão ao mesmo tempo
queDorothea, que exibia um olhar de satisfação perversa.

Lucivar tentara explicar aos rapazolas o motivo pelo qual um Anel


deObediência conseguia forçar um macho poderoso a submeter-se, por
issoSaetan pensava estar preparado para o que o esperava.

Nada o poderia ter preparado para a dor que lhe atingiu o pénis e
ostestículos antes de se espalhar pelo corpo. Os nervos ficaram a arder,
aomesmo tempo que uma dor atroz se instalou entre as pernas. Não
conseguia
resistir, mal conseguia pensar.

Os seus filhos tinham suportado este sofrimento, tinham-se debatido


contra o controlo de Dorothea sabendo que era isto que os esperava
apóscada acto de desobediência. Durante séculos, suportaram o
sofrimento.
Como podia um homem não ficar alterado depois disto? Como…

Gritou – e continuou a gritar até que o seu corpo se desligou.

329
19 / Kaeleer

Surreal caminhava de um lado para o outro na sala de estar de Karla,


ficando
mais irritada a cada minuto que passava. Não sabia o que a tinha
levadoa decidir desabafar as suas frustrações com Karla. Porventura
por parecertão indiferente a tudo o que se vinha a passar.

Tudo bem, não era justo. A mulher estava a fazer o luto pelo seu
primoMorton, já para não mencionar que estava passar por uma lenta
recuperação
de um envenenamento cruel. Ainda assim…

— Parecia que era uma maçada que vinha interferir com a manicurado
canalha — Surreal estava enraivecida. — “Veremos o que se poderá
arranjar.”
Fogo do Inferno, trata-se do seu pai e do seu irmão!
— Não sabes quais são as suas intenções — disse Karla, com
serenidade.
A placidez fez com que a fúria de Surreal subisse de tom. — Não
pretende
fazer nada!

— Como sabes?
Surreal cuspiu, praguejou, andou para trás e para a frente. — É comose
ele e Jaenelle quisessem que perdêssemos esta guerra.
Pela primeira vez, a fúria inflamou a voz de Karla. — Não sejas
estúpida.

— Olha, docinho…
— Olha tu — ripostou Karla. — Está na altura de todos vós observarem
e pensarem e lembrarem-se de algumas coisas. Os instintos dos
rapazolas
estão a impeli-los para a guerra. Não podem alterar esse factor talcomo
não podem deixar de ser machos. E a assembleia é constituída
porRainhas cujos instintos as estão a instigar a proteger os respectivos
povos.
— Que é exactamente o que deveriam estar a fazer! — gritou Surreal.
— E não me parece que esse problema te aflija — acrescentou com
maldade.
Olhou de relance para as pernas tapadas de Karla e arrependeu-se
daspalavras que proferiu.
— Quando Jaenelle tinha quinze anos — disse Karla, — o Conselhodas
Trevas tentou declarar que o Tio Saetan era inapto para ser seu
tutorlegal. Decidiram nomear outra pessoa. E ela respondeu-lhes que
podiamfazê-lo “quando o sol voltasse a nascer”. Sabes o que aconteceu?
Finalmente parada, Surreal abanou a cabeça.
— O sol não nasceu durante três dias — disse Karla placidamente.
— Não voltou a nascer até o Conselho revogar a decisão que tomara.
Surreal deixou-se cair no chão. — Mãe Noite — sussurrou.
330
— Jaenelle não queria formar corte, não queria governar. A única razão
pela qual se tornou Rainha de Ebon Askavi foi para deter os
terreilleanos
que estavam a invadir os Territórios dos parentes e a chaciná-los.
Achasmesmo que a mulher que tomou estas atitudes tenha passado as
últimastrês semanas a torcer as mãos e à espera que isto passe? Eu
não acho. Precisade nós aqui por alguma razão – e dir-nos-á quando for
a altura de nos dizer.
— Karla parou por um instante. — E digo-te outra coisa, só entre nós:
porvezes um amigo tem de se tornar inimigo para permanecer amigo.
Karla estava a referir-se a Daemon. Surreal pensou um pouco e abanou
a cabeça. — A forma como se tem comportado...

— Daemon Sadi é totalmente dedicado à Feiticeira. O que quer quefaça,


fá-lo por ela.
— Não sabes se é assim.
— Ai não? — disse Karla com demasiada afabilidade.
Viúva Negra. As palavras brotaram na mente de Surreal até já não
restar
espaço para mais nada. Viúva Negra. Talvez Karla não fosse tão
indiferente
ao que se estava a passar. Quiçá tivesse visto algo numa teia entrelaça-
da. — Estás certa quanto a Sadi?

— Não — respondeu Karla. — Mas estou disposta a considerar a


possibilidade
de que o que diz em público possa ser muito diferente daquiloque faz
em privado.
Surreal passou os dedos pelo cabelo. — Bem, fogo do Inferno, se
Daemon
e Jaenelle estavam a engendrar algum plano, pelo menos podiam ter
informado a corte.

— Fui envenenada por um membro da minha corte — disse Karla


baixinho.
— E não nos esqueçamos da avó de Jaenelle, porque ela com certezanão
se esqueceu. Por isso, diz-me tu, Surreal, se estivesses a tentar
encontraruma forma de aniquilar aquelas duas cabras, em quem
confiarias?
— Podia ter confiado no Senhor Supremo.
— E onde está ele neste preciso momento? — perguntou Karla.
Surreal não respondeu, pois ambas sabiam a resposta.
20 / Terreille

— Julgo que é altura de Jaenelle saber que estás aqui — disse Hekatah,
passando
por detrás de Saetan. — Talvez fosse boa ideia enviar-lhe uma
singelaprenda.
Sentiu que lhe agarrava o dedo mindinho da mão esquerda. Sentiu
afaca a cortar pele e osso. E sentiu raiva quando ela caiu de joelhos e
fechou aboca sobre a ferida para beber o sangue. O sangue de um
Guardião.

331
Reunindo forças, enviou uma explosão de calor pelo braço, um
fogopsíquico que cauterizou a ferida.

Hekatah afastou-se com brusquidão, aos gritos.

Enquanto ainda tinha tempo para o fazer, usou um pouco de


Artemedicinal para limpar a ferida e cerrar a carne para evitar
infecções.

Hekatah continuava a gritar. Dorothea saiu a correr da cabana. De


todas
as direcções, surgiram guardas a correr.

Por fim, os gritos cessaram. Ouviu Hekatah a procurar algo no chão ea


levantar-se lentamente. Circundou-o e Saetan pôde ver o que a
detonaçãode poder lhe infligira. Dado que a boca de Hekatah estava
fechada sobre aferida, o fogo psíquico prosseguira depois de ter
cauterizado as veias. Derretera-
lhe parte do queixo, dando uma nova e grotesca forma ao seu rosto.

Numa das mãos, segurava o dedo mindinho de Saetan. Na outra, tinha


a faca. — Vais pagar por isto — disse, numa voz indistinta.

— Não — disse Dorothea, avançando. — Fostes vós que referistes


quetemos de limitar os danos ao mínimo até controlarmos Jaenelle.
Hekatah virou-se para Dorothea. Saetan sabia que a repulsa no rostode
Dorothea levaria Hekatah para além da capacidade de pensar
racionalmente.

— Até controlarmos Jaenelle — disse Hekatah, com esforço. — Mas…


isso não quer dizer… que não possa pagar por isto. — Virando-se para
Saetan,
ergueu a mão.
Pela segunda vez, a dor atroz proveniente do Anel de Obediência
alastrou-
se pelo corpo. Era devastadora. Hekatah também castigou o filho pelos
feitos do pai e, ao ouvir o grito de guerra de Lucivar, pleno de dor
aindaque enfurecido, sentiu uma dor muito mais intensa.

21 / Kaeleer

Daemon preferia que Surreal não estivesse por perto quando Geoffrey
trouxe
a pequena caixa cinzelada com floreados que fora entregue na
Fortalezaem Terreille. Sugerira que a presença de Surreal não seria
necessária, umavez que a mensagem oral especificara que era um
“presente” para Jaenelle.
Contrapusera dizendo que fazia parte da família e que tinha tanto
direitode saber o que se passava quanto Daemon ou Jaenelle. O que,
infelizmente,
era verdade.

— Queres que abra? — perguntou a Jaenelle, vendo que ela estava


aolhar para a caixa há vários minutos.
— Não — disse, com demasiada serenidade. Mediante a Arte, levantou
a tampa da caixa.
332
Ficaram os três a olhar pasmados para o dedo mindinho
aconchegadonum leito de seda – um dedo mindinho com uma unha
longa, tingida a
negro.

— Bem, docinho, eu diria que essa mensagem é clara — disse Surreal,


fitando Jaenelle. — Quantas mais partes do corpo precisas de receber
antes
de agires? Estamos a ficar sem tempo!
— Sim — disse Jaenelle. — Chegou a hora.
Está em estado de choque, pensou Daemon. E olhou-a nos olhos –
nãoconseguindo reprimir um arrepio. Gelo azul-safira. Porém, por
detrás dogelo residia uma Rainha que tinha sido pressionada muito
para além daquilo
que raiva gélida nos machos poderia desencadear. Por saber o
queprocurar e graças a poder descer a uma profundidade no abismo
que lhepermitia sentir, percebeu que a pequena oferta de Hekatah
despertara completamente
o lado selvagem, o lado mortal da Feiticeira. Deixara de ser uma
jovem mulher que acabara de receber o dedo do pai como exigência
pelasua capitulação; agora era um predador que estudava o engodo
lançadopelo inimigo.

Dorothea e Hekatah tinham conhecido a jovem mulher. Não faziamideia


com quem estavam deveras a lidar.

— Vem comigo — disse Jaenelle, tocando-lhe levemente no braço antes


de sair.
Mesmo através da camisa e do casaco, a mão de Jaenelle estava tão
gelada que queimava.
Mantendo os olhos e a expressão zelosamente desinteressadas,
olhoupara Surreal – e sentiu-se um pouco consternado pelo olhar de
fúria retribuído.
Foi quando se apercebeu que, apesar de estar enregelado até aos
ossos, o quarto estava ameno.

Jaenelle não demonstrara a raiva que se encontrava sob a superfície,


não dera qualquer indicação de que estava a reunir os poderes para
umataque. Nada.

Olhou de relance para o dedo e sentiu o estômago apertado. E saiu.

Malditos sejam os dois, pensava Surreal ao fitar o dedo na caixa. Oh,


testemunhara um ténue tremeluzir de consternação no rosto de Sadi
quando
o viu, mas desaparecera celeremente. E Jaenelle? Nada. Fogo do
Inferno!
Mostrara mais fúria e preocupação quando Aaron fora encurralado
porVania! Nessa altura, mostrara uma raiva glacial e terrível. Mas a
mulher recebe
um pedaço do pai dirigido a ela e... nada. Nem uma porcaria que fosse.
Nem a mais pequena reacção.

Perfeito. Se essa era a forma daqueles dois jogarem este jogo, não
haviaqualquer problema. Usava uma Jóia Cinzenta e era uma hábil
assassina.

333
Não via motivos para não entrar à socapa em Terreille e libertar Lucivar
e oSenhor Supremo – e Marian e Daemonar – daquelas duas vacas.

Surreal mordeu o lábio inferior. Bem, tirá-los a todos incólumes poderia


revelar-se problemático.

Tudo bem, pensaria um pouco no assunto, arranjaria algum plano.


Pelo menos, ia agir!

E, enquanto ponderava, talvez mencionasse este pequeno incidente


aKarla para ver se a Viúva Negra continuaria a pensar que se passava
maisdo que nada.

Quando Daemon chegou à oficina, o gelo nos olhos de Jaenelle tinha-


se estilhaçado em fragmentos afiados e apercebeu-se de algo que o
aterrorizou:
ódio gélido e genuíno.

— O que achas que irá agora acontecer? — perguntou Jaenelle comuma


serenidade exagerada.
Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças para não mostrar
quetremiam. Pigarreou levemente. — Creio que não irá acontecer mais
nadaaté que o mensageiro regresse a Hayll e confirme a entrega da
caixa. Esta-
mos quase a meio da manhã. Não devem esperar que sejas capaz de
tomardecisões de imediato, o que nos dá algumas horas. Talvez um
pouco mais.

Jaenelle caminhou devagar. Parecia estar a discutir consigo própria.


Por fim, suspirou – como se tivesse saído vencida da discussão – e
olhoupara Daemon. — A Tecedeira de Sonhos enviou-me uma
mensagem. Disseque o triângulo tem de permanecer unido para
sobreviver, que os outrosdois lados não são suficientemente fortes sem
a força do espelho – e o espelho
a todos protegerá.

— O espelho? — questionou Daemon, com cautela.


— És o espelho do teu pai, Daemon. És um dos lados do triângulo.
De súbito, Tersa veio-lhe à memória, anos atrás, a desenhar-lhe um
triângulo na palma da mão, repetidamente, explicando o mistério do
triângulo
de quatro lados dos Sangue.

— Pai, irmão, amante — murmurou. Três lados. E o quarto lado era


ocentro do triângulo, aquele que dominava todos os outros.
— Exactamente — respondeu Jaenelle.
— Queres que vá a Hayll.
— Quero.
Anuiu acenando a cabeça com lentidão, sentido-se
repentinamentenuma fragilizada ponte pedonal e um passo em falso
faria com que mergulhasse
num abismo de onde jamais poderia escapar. — Se fosse tentar
outratroca de prisioneiros, talvez ganhasse mais algumas horas.

— Nunca disse para te entregares a elas — disse Jaenelle, com rispidez.


334
O seu rosto estava pálido desde que vira o dedo de Saetan. Agora
empalidecera
ainda mais. — Daemon, preciso de setenta e duas horas.

— Set… Mas está tudo preparado. Tudo o que tens a fazer é reunir
asforças e libertar o poder.
— Preciso de setenta e duas horas.
Olhou-a fixamente, aceitando vagarosamente aquilo que ela lhe estavaa
dizer. Se efectuasse um mergulho controlado no abismo, poderia
descerao nível das Jóias Negras numa questão de minutos, reunindo
assim todo oseu poder. Jaenelle iria demorar setenta e duas horas a
fazer o mesmo.

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas.

Mas não havia forma de…

Percebeu o entendimento nos olhos de Jaenelle – e debateu-se com a

vergonha que lhe provocava. Devia saber que não era possível esconder
oSádico da Feiticeira. E percebeu, por fim, o que ela lhe estava a pedir.
Incapaz de a olhar nos olhos, virou-se e começou a sua ronda
vagarosapela divisão.
Não passava de um jogo. Um jogo ignóbil e vil – o género de jogo que

o Sádico sempre jogara na perfeição. Assim que soltou as rédeas a essa


suafaceta, o plano ganhou forma tão naturalmente como respirar.
Mas… Tudo tem um preço. Sendo que iria perder a companhia dequase
todos aqueles que sempre amara, a recompensa teria de justificar o
custo.

— Consigo fazê-lo — trauteou, circundando Jaenelle com lentidão. —


Conseguirei manter Dorothea e Hekatah tão desorientadas que os
outros ficarão
a salvo, ao mesmo tempo que evitarei que essas Senhoras consigam
darordens para enviar os exércitos terreilleanos para Kaeleer.
Conseguirei dar-tesetenta e duas horas, Jaenelle. Mas vai-me sair caro
pois vou ter atitudes quetalvez nunca venham a ser perdoadas, por isso
quero algo em troca.

Daemon conseguiu sentir a ligeira perplexidade de Jaenelle antes


dedizer: — Está bem.

— Já não quero usar o anel de Consorte.


Um golpe de dor, rapidamente abafado. — Está bem.
— Quero antes uma aliança de casamento.
Um rasgo de alegria, imediatamente seguido por mágoa. Sorriu
aomesmo tempo que os seus olhos se enchiam de lágrimas. — Seria
maravilhoso.

As palavras eram sentidas. Assim sendo, qual seria o motivo da mágoa,


a razão para a angústia? Teria de perceber quando regressasse.

O temperamento de Daemon estava a ficar nervoso, perigoso. —


Considerarei
que a resposta é “sim”. Preciso de alguns elementos que não consigo
criar na perfeição para este jogo.

335
— Diz-me o que precisas, Daemon.
Não queria fazê-lo. Não queria voltar àquele tipo de vida, nem
mesmopor setenta e duas horas. Iria mutilar a vida que começara a
construir nestelocal e a assembleia, os rapazolas, nunca mais iriam...

— Confias em mim? — disse, de súbito.


— Sim, confio.
Sem hesitações, sem sombra de dúvida.
Parou de andar e encarou-a. — Sabes quão arrebatadamente te amo?
Tinha a voz embargada ao responder-lhe: — Tanto quanto eu te
amo?

Abraçou-a, agarrou-se a Jaenelle como a sua tábua de salvação, a


suaâncora. Iria ficar tudo bem. Desde que Jaenelle ficasse a seu lado,
tudo iria
ficar bem.

Por fim, relutantemente, largou-a aos poucos. — Anda, temos


muitotrabalho pela frente.

— É o último — disse Jaenelle, passadas várias horas. Guardou


cuidadosamente
o estojo que continha todos os artigos enfeitiçados que criarapara
Daemon. — Não é bem o último.
Daemon bebia o café fortíssimo que fizera. Fisicamente, estava cansado.
Mentalmente, tinha a cabeça à roda. À medida que Jaenelle ia
criandoos feitiços que lhe pedira, tinha de aprender a usá-los –
explicava-lhe o processo
enquanto criava um feitiço e depois obrigava-o a praticar
enquantocriava os outros que Daemon levaria. Examinava os seus
esforços, dava-lhemais instruções para esmerar o efeito – e nem uma
vez lhe perguntou o quepretendia fazer, o que o deixou grato. É claro
que também Daemon nãosabia exactamente o que Jaenelle iria fazer.
Existiam assuntos sobre os quaisuma Viúva Negra não questionava
outra.

Jaenelle segurava num frasco do tamanho do seu dedo indicador e


quecontinha um pó escuro. — É um estimulante. Poderoso. Uma dose
manter-
te-á em pé durante cerca de seis horas. Podes misturá-lo com
qualquertipo de bebida — olhou para o café, — mas se o misturares
com um líquidodessa intensidade, irá produzir ainda mais energia.

— O frasco tem uma dose? — perguntou Daemon. Mordendo a língua


para não se rir, desejou ter uma fotografia da careta que fez.
— Neste frasco estão doses suficientes para os próximos três dias
eainda sobram algumas — disse, friamente.
— Bem, é melhor ficar a saber o que provoca. — Daemon estendeu
acaneca de café.
Jaenelle abriu o frasco e deu-lhe umas pancadinhas leves sobre a
caneca.
O borrifo de pó dissolveu-se instantaneamente.

336
Bebeu um gole. Um gosto a avelã, ligeiramente ácido. Na verdade,
bastante…

Arquejou. O corpo ficou repentinamente numa espécie de alerta


debatalha, com uma necessidade intensa de se mexer. A mente deixou
de estar
toldada pela fatiga mental. Decorridos os primeiros segundos
explosivos,
sentiu-se a acalmar, ainda que permanecesse aquela reserva viva de
energia.

Esvaziou a caneca, aguardou alguns segundos. Não se deu


nenhumaalteração física, somente a sensação maravilhosa de que a
reserva estava a
aumentar.

Jaenelle acondicionou o frasco na caixa com desvelo. — Tudo tem um


preço, Daemon — disse, com firmeza.

Bastou para que ficasse atento. — Causa dependência?

O olhar que lhe lançou bastava para abrir um homem ao meio. —


Não, não causa. Eu própria tomo um pouco, por vezes – facto que não
irásmencionar a ninguém da família. Era provável que lhe dessem três
ataquesse soubessem. Esta substância irá dar-te alento, mesmo que
não comas nemdurmas, mas se não renovares a dose de seis em seis
horas, as pernas vãoceder e prepara-te para dormir um dia inteiro.

— Por outras palavras, se falhar uma dose, não conseguirei acordarnem


se me açoitar a mim próprio, independentemente do que se passar
àminha volta.
Acenou afirmativamente com a cabeça.

— Está bem, não me vou esquecer.


Mostrou-lhe outro frasco cheio de líquido escuro. — Isto é um
tónicopara Saetan. Calculo que deva estar enfraquecido a nível físico
por isso fi-lopotente. Vai estimulá-lo como uma parelha de cavalos.
Adiciona-o a umaquantidade igual de bebida – vinho ou sangue fresco.

— Se eu beber o estimulante, posso usar o meu sangue para juntar


aesse tónico?
— Sim — disse Jaenelle, quase conseguindo evitar que os lábios
tremessem.
— Mas se usares o teu sangue, certifica-te de que lho enfias
pelagarganta antes de dizeres o que é pois vai sentir o estímulo de duas
parelhasde cavalos – e não ficará muito satisfeito contigo nos primeiros
minutos.
— É justo. — Esperava que Saetan estivesse em condições que lhe
permitissem
berrar por estar a ser drogado.

Jaenelle inspirou fundo e expirou lentamente. — Sendo assim, é tudo.

Daemon pousou a caneca na mesa de trabalho. — Quero supervisio

nar a preparação da comida que vou levar. Não demorará muito.


Esperaspor mim?
O sorriso nos lábios de Jaenelle não chegou aos seus perturbados
olhosazul-safira. — Espero.

337
— Príncipe Ssadi.
Daemon hesitou mas virou-se na direcção da voz. — Draca.
Estendeu uma mão, mal cerrada. De modo obediente, Daemon colocou
a sua mão sob a dela. Ao abrir a mão, missangas coloridas caíramna
mão de Daemon – o tipo de missangas que as mulheres pregavam
nosvestidos para reflectirem a luz.

Perplexo, olhou para as missangas, depois para Draca.

— Quando chegar o momento certo, dai issto a Ssaetan. Irá entender.


Sabe, pensou Daemon. Sabe, mas... Não, Draca nada diria à assembleia
nem aos rapazolas. A Senescal de Ebon Askavi manteria o seu
próprioconselho pelas suas próprias razões.

Enquanto Draca se afastava, Daemon enfiou as missangas no bolsodo


casaco.

Surreal saltou quando a porta do quarto se abriu de par em par.

— O que raio pensas que estás a fazer? — perguntou Daemon, batendo


com a porta.
— O que te parece que estou a fazer? — ripostou Surreal. Praguejouem
silêncio. Mais uns minutos e teria conseguido escapulir-se sem ser
detectada.
— Parece que estás prestes a arruinar várias horas de planos cuidados
— Daemon ripostou por sua vez.
Ao ouvir estas palavras, deteve-se. — Que planos? — perguntou
desconfiadamente.
Praguejou com uma baixeza tão criativa que a deixou surpreendida.

— O que achas que tenho estado a fazer desde que recebemos aquele
presente
esta manhã? E o que julgavas que conseguirias fazer, sozinha?
— Fui assassina durante muitos anos, Sadi. Podia ter…
— Assassinatos de um contra um — resmoneou. — Isso não te levará
muito longe num acampamento militarizado. E se libertares a
Cinzentapara te livrares dos guardas, podes ter a certeza de que as
quatro pessoasque vais salvar morrerão antes de chegares junto delas.
— Não sabes…
— Sei, pois — gritou Daemon. — Cresci sob o jugo daquela cabra.
Seimuito bem.
A raiva de Surreal não era comparável à de Daemon, especialmentepor
ter sido capaz de pôr o dedo em todas as dúvidas que tinha quanto
aoêxito da sua missão. — Tens uma ideia melhor?

— Sim, Surreal, tenho uma ideia melhor — respondeu Daemon com


frieza.
Surreal humedeceu os lábios, respirou com cautela. — Eu podia aju
338
dar, criar uma diversão ou algo do género. Fogo do Inferno, Daemon,
também
são a minha família, a primeira que alguma vez tive. São
importantespara mim. Deixa-me ajudar.

Ao fitá-la, algo invulgar invadiu os olhos de Daemon. — Sim —


dissenum trauteio sedoso, — julgo que poderás ser de grande utilidade.
— Avoz alterou-se, ganhou um tom irritadiço e eficiente ao observar os
mantimentos
amontoados na cama de Surreal. — Pelo menos tiveste a sensatez
de levar a tua própria comida e água visto que não poderás confiar em
nadaque possas ingerir naquele sítio. — Dirigiu-se à porta. — Preciso de
maisduas horas. Nessa altura, partiremos.

— Mas… — O olhar de Daemon fê-la recuar. — Duas horas —


concordou.
Foi só depois de Daemon sair que Surreal começou a pensar que
nãosabia muito bem com o que tinha concordado fazer.

Tolinha, pensava Daemon ao dirigir-se intempestivamente para a


oficina
de Jaenelle. Idiota. Se o pessoal da cozinha não tivesse referido
queSurreal acabara de solicitar uma merenda idêntica, não teria sabido
queestava a planear ir para Hayll, não estaria preparado para lidar com
a suapresença. Oh, podia ajudá-lo neste joguinho. Não demorara mais
de umminuto a reconhecer as várias formas de ajuda que lhe podia
prestar. Contudo,
maldição, se tivesse partido e conseguisse deixar todos com os
nervosem franja antes de Daemon chegar… Tinha de ganhar setenta e
duas horaspara Jaenelle. Uma luta directa e limpa poderia libertá-los
mas não teriaalcançado aquele objectivo.

Por isso, continuaria o seu jogo – e Surreal teria a oportunidade


dedançar com o Sádico.

Entrou na oficina e resmoneou para Jaenelle: — Preciso de mais


doisartigos.

Arregalou os olhos quando lhe disse o que queria, mas não disse
nadapara além de: — É melhor dar-te um Anel com um escudo que
ninguém
consiga atravessar.

Visto que calculava que Lucivar e Surreal iriam querer arrancar-lhe


ocoração dentro de algumas horas, achou que era uma excelente ideia.

Os três encontravam-se no lado de fora da sala que albergava o


Altardas Trevas na Fortaleza.
Jaenelle abraçou Surreal. — Que as Trevas te protejam, Irmã.

— Vamos trazê-los de volta — disse Surreal, retribuindo o abraço.


— Podes contar com isso. — Olhando de relance para Daemon, entrou
nasala do Altar e fechou a porta devagar.
339
Daemon limitou-se a fitar Jaenelle, com o coração tão cheio que
nãoconseguia falar. Além disso, as palavras pareciam inadequadas
neste momento.
Passou um polegar pela face de Jaenelle, beijou-a docemente. Respirou
fundo. — O jogo começa à meia-noite.

— E à meia-noite, setenta e duas horas decorridas, estarás a viajar


pelos
Ventos de regresso à Fortaleza em Terreille. Sem paragens, sem
delongas.
— Fez um interregno, aguardou que Daemon anuísse e acrescentou:
— Não viajes em nenhum Vento que seja mais escuro do que o
Vermelho.
Os outros ficarão instáveis.
Foi com esforço que evitou que o queixo caísse. Uma poderosa
tempestade
de feiticeira podia criar uma perturbação em parte das estradas
psíquicas
que atravessavam as Trevas, podia até levar a que alguém caísse daTeia
e se perdesse nas Trevas, mas “instável” soava a algo muitíssimo pior.

— Muito bem — disse, por fim. — Ficaremos pelo Vermelho.


— Daemon — disse Jaenelle delicadamente, — quero que me prometas
uma coisa.
— Tudo.
Ficou com os olhos cheios de lágrimas. Demorou um minuto
pararecuperar o controlo. — Há treze anos, deste tudo o que tinhas
para meajudares.

— E voltarei a dar-te tudo — respondeu, com igual delicadeza.


Abanou a cabeça vigorosamente. — Não. Acabaram-se os sacrifícios,
Daemon. Pelo menos da tua parte. É isso que quero que me prometas.

Engoliu em seco. — A Fortaleza será o único lugar seguro. Quero que
meprometas que, à hora marcada, estarás a caminho da Fortaleza. Não
importa
a quem tenhas de virar costas, não importa quem tiveres de deixar
paratrás, tens de chegar à Fortaleza antes de amanhecer. Promete-me,
Daemon.

— Agarrou-lhe o braço com tanta força que o magoou. — Tenho de ter


acerteza que estás a salvo. Promete.
Retirou-lhe a mão delicadamente, ergueu-a e beijou-lhe a palma –
esorriu. — Nada farei que possa fazer-me chegar atrasado ao meu
próprio
casamento.

Um acesso de dor acometeu os olhos de Jaenelle, fazendo-o pensar se


ela quereria realmente casar-se com ele. Não. Não iria começar a ter
dúvidas,
não podia dar-se a esse luxo. — Voltarei para ti — disse. — Juro.

Jaenelle beijou-o rapida mas intensamente. — Faz por isso.


Estava lívida e tinha um ar exausto. Sob os olhos podiam ver-se
olheiras
vincadas. Nunca lhe parecera tão bela.

— Vemo-nos dentro de poucos dias.


— Adeus, Daemon. Amo-te.
Ao aproximar-se do Altar das Trevas que era um Portão entre os Rei340
nos, sentia que as últimas palavras de Jaenelle não tinham sido
tranquilizadoras.

22 / Kaeleer

Karla instalou-se com suavidade numa cadeira da sala de estar de


Jaenelle.
Conseguia usar a Arte para flutuar de um lado para o outro e conseguia
atéficar em pé, sozinha, durante alguns momentos, com a ajuda de
duas bengalas.
Porém, ao canalizar o poder pelo corpo, ficava rapidamente exausta
eficar em pé provocava-lhe dores nas pernas. Ainda assim, o cálice
diário dotónico de Jaenelle estava a resultar. Todavia, tinha a incómoda
sensação de
que viria a precisar das forças para algo bem diferente, em breve.

Era a primeira vez que a vira, desde que Jaenelle recusara dar
permissão
para que Kaeleer entrasse em guerra. Mas mesmo agora, tendo sido
aprópria Jaenelle a convocá-la e a Gabrielle, a Rainha de Ebon Askavi,
mantinha-
se de costas para elas, limitando-se a olhar pela janela.

— Preciso que as duas mantenham os rapazolas controlados por


maisalguns dias — disse Jaenelle, calmamente. — Não será fácil, mas é
imprescindível.
— Porquê? — questionou Gabrielle. — Fogo do Inferno, Jaenelle,
temos de reunir os exércitos e lutar. Espalhados como estamos, mal
nosconseguimos aguentar e nem sequer estamos a combater os
exércitos quepossam vir de Terreille, só os terreilleanos que já se
encontravam em Kaeleer.
Os cabrões. Chegou o momento de entrarmos em guerra. Temos de ir
para a guerra. Não é unicamente o povo que está a perecer. A terra está
a ser
igualmente dizimada.
— As Rainhas poderão sarar a terra — respondeu Jaenelle,
continuando
sem olhar para elas. — É esse o dom especial das Rainhas. E o
númerode mortos entre o nosso povo não é assim tão significativo como
parecemachar.
— Não — disse Gabrielle, com azedume, — mas estão a morrer de
vergonha pois foi-lhes ordenado que abandonassem as suas terras.
— Conseguirão sobreviver a um pouco de vergonha.
Karla pousou a mão no braço de Gabrielle. Tentando manter um tomde
voz moderado, disse: — Não creio que reste outra opção, Jaenelle. Se
nãopararmos de bater em retirada e se não começarmos a atacar, não
nos restará
um único sítio para tomarmos posição quando os exércitos
terreilleanosrealmente cá chegarem.

— Não receberão ordens para entrar em Kaeleer nos próximos dias.


Nessa altura, não fará qualquer diferença.
341
— Porque seremos forçados a nos render — ripostou Gabrielle.
A mão de Karla apertou o braço de Gabrielle com mais força. Nãotinha
muita força, mas o gesto foi suficiente para controlar a fúria da
outraRainha – pelo menos por enquanto.

— Kaeleer vai finalmente entrar em guerra com Terreille? — perguntou.


— Não — respondeu Jaenelle. — Kaeleer não irá entrar em guerracom
Terreille.
Foi a ténue entoação que fez com que Karla sentisse um arrepio geladoa
percorrer-lhe o corpo. Pela forma como o braço de Gabrielle ficou
tensosob a sua mão, soube que a outra mulher também tinha reparado.

— Assim sendo, quem irá entrar em guerra com Terreille?


Jaenelle virou-se.
Gabrielle susteve a respiração.
Pela primeira vez, estavam na presença do sonho sob o corpo.
Karla olhou atónita para as orelhas pontiagudas que pertenciam aos
Dea al Mon, as mãos com as garras retraídas que provinham dos Tigre,
os cascos que espreitavam sob o vestido preto que podiam descender
doscentauros ou dos cavalos ou dos unicórnios. Acima de tudo, fitou o
ínfimo
chifre em espiral.

O mito vivo. Os sonhos tornados realidade. Contudo, oh, teria


algumdeles efectivamente pensado na identidade dos sonhadores?
Não admira que os parentes a amem. Não admira que todos a tenhamos
amado.

Karla pigarreou baixinho para fazer a pergunta que, de repente,


esperava
que não fosse respondida. — Quem vai entrar em guerra com Terreille?

— Eu vou — disse a Feiticeira.


342
CAPÍTULO QUINZE

1 / Terreille

Com os olhos toldados pela dor que lhe fora infligida durante os
últimosdois dias, Saetan observou Hekatah a aproximar-se e a
examiná-lo demoradamente.
Sempre que lhes apetecia, ela e Dorothea tinham usado o Anel
deObediência para o fazer sofrer, mas agora faziam-no com mais
cautela, parando
imediatamente antes de Saetan desmaiar de dor. Tinham-no deixado
acorrentado ao poste durante as horas de sol, o que era ainda mais
grave. Jáenfraquecido pela dor, o sol vespertino drenara-lhe a força
psíquica e perfurara-
lhe os olhos, resultando numa dor de cabeça tão violenta que nem ador
do Anel a absorvia.

Pedaço a pedaço, a dor destruíra todos os efeitos revitalizantes queos


tónicos de Jaenelle tinham produzido, alterando-lhe o corpo de voltaao
estado em que se encontrava quando a conheceu – mais parecido
aosdemónios-mortos do que aos vivos.

Se pudesse ter realizado uma transição rápida de Guardião para de-


mónio-morto podia ter considerado essa opção – o tipo de transição
deAndulvar e Prothvar no campo de batalha há tantos séculos. Estavam
tãoembrenhados na fúria da batalha que nem se aperceberam de que
tinhamsofrido golpes mortais. Se pudesse fazer a transição dessa forma,
talvez ativesse feito. Seria fácil cortar uma veia e sangrar até à morte e
seria menosdoloroso. Mas ficaria mais vulnerável e, sem uma dose de
sangue fresco, aluz do sol iria enfraquecê-lo de tal modo que, quando
Jaenelle chegasse porfim, não passaria de uma responsabilidade para
ela ao invés de encontraruma forma de lutar a seu lado.

Quando Jaenelle chegasse por fim. Se Jaenelle viesse. Já devia ter


reagido,
já devia estar ali – se é que estava a dirigir-se para ali.

— Está na altura de mandar outro presentinho a Jaenelle — disse


Hekatah, a voz ameninada agora deturpada pela mandíbula disforme.
— Outro dedo? — Usava o mesmo tom de voz que outra mulher poderia
343
usar ao tentar avaliar os méritos de um prato em detrimento de outro
para

o jantar. — Talvez um dedinho do pé, desta vez. Não, muito


insignificante.
Um olho? Muito desfigurador. Não queremos que ela comece a pensar
quete tornaste demasiado repugnante para merecer ser salvo. — Focou
o olharnos testículos – e sorriu. — Já não passa de carne morta, mas
ainda teráutilidade para isto.
Saetan não reagiu. Não se permitiria uma reacção. Era carne morta
neste momento – a última zona revitalizada, a primeira a fenecer. Não
reagiria.
E não pensaria em Sylvia. Agora não. Nunca mais.

Fitando-se mutuamente, Hekatah avançou e ficou cada vez mais perto.


Com umas das mãos acariciou, afagou, fechou-se, segurando-o para
afaca.

Um guincho enfurecido interrompeu os habituais sons nocturnos.

Hekatah deu um salto para trás e rodopiou na direcção do som.

Surreal surgiu a voar no acampamento como se tivesse sido atirada

por uma mão gigante. Os seus pés bateram no chão, mas não
conseguiudesacelerar e continuou em frente. Enrolou-se e rolou,
ficando de joelhosde frente para a escuridão para além da área
iluminada pelos candeeiros.

— CANALHA INSENSÍVEL E CRUEL! — gritou Surreal. — GRANDE


FILHO DA PUTA COBARDE!
Dorothea saiu precipitadamente da cabana, aos gritos. — Guardas!

Guardas!

Precipitaram-se guardas de três lados do acampamento. Ninguémsurgiu


da escuridão defronte deles.

— GUARDAS! — voltou a chamar Dorothea.


Dessa escuridão, ouviu-se uma voz grave e com um ar divertido: —
Não te vão responder, querida. Foram retidos de forma permanente.
Daemon Sadi saiu da escuridão, parando no limite da zona iluminada.
O seu cabelo negro estava ligeiramente desgrenhado pelo vento.
Tinhaas mãos descontraidamente enfiadas nos bolsos das calças. O
casaco pretoestava aberto, revelando a camisa em seda branca que
estava desabotoadaaté à cintura. A Jóia Negra ao pescoço cintilava de
energia, assim como cintilavam
os seus olhos dourados.
Ao ver aquela cintilação invulgar nos olhos de Daemon, Saetan
sentiucalafrios. Algo estava errado. Muito errado.
Hekatah virou-se de lado, pousando a faca no abdómen de Saetan.

— Mais um passo e esventro-o – e mato também o eyrieno.


— Força — disse Daemon prazenteiramente, enquanto avançava para
o acampamento. — Assim poupas-me o trabalho de arquitectar uns
quantos
acidentes, o que teria de fazer em breve de qualquer forma, visto que
oAdministrador e o Primeiro Acompanhante estavam a tornar-se...
incómo344
dos. Por isso, mata-los, eu aniquilo-te – para depois voltar a Kaeleer e
consolar
a Rainha desolada. Sim, isso resultará às mil maravilhas. Serás
acusada
das suas mortes e Jaenelle nunca olhará para mim conjecturando sobre
omotivo pelo qual serei o único macho que restou e no qual pode
confiar.

— Estás a esquecer-te do Guarda-Mor — disse Hekatah.


Daemon sorriu de um modo dócil mas brutal. — Não, não me esqueci.
Também não me esqueci de Prothvar ou de Mephis. Já não
representammotivo de preocupação.
Por um instante, Saetan julgou que Hekatah o tinha efectivamente
esventrado.
Contudo, embora a ferida não fosse física, a dor era bem real.

— Não — disse. — Não. Não eras capaz.


Daemon riu-se. — Ai não? Então onde estão eles, velhote?
Por se ter feito a mesma pergunta, Saetan não conseguia dar uma
resposta.
Ainda assim, continuou em negação. — Não foste capaz. São a tua
família.

— A minha família — disse Daemon, pensativamente. — Quão


conveniente
terem decidido tornar-se “família” depois de me ter tornado Consorte
da Rainha mais poderosa da história dos Sangue.
— Não é verdade — disse Saetan, impelindo-se para a afrente, apesarda
faca ainda encostada ao seu abdómen. Era uma insensatez estar a
discutir
este assunto, mas todos os seus instintos lhe gritavam que tinha de
ser agora, pois poderia não voltar a surgir outra oportunidade para
alteraraquele olhar nos olhos de Daemon.
— Não é? — disse Daemon amargamente. — E onde estavam eles há
1.700 anos, quando ainda era uma criança? Onde estavas tu? Onde
estava
qualquer um de vós durante todos os anos desde aí até hoje? Não me
fales
de família, Senhor Supremo.
Saetan encostou-se ao poste. Mãe Noite, todas as preocupações
quetivera sobre a lealdade de Daemon estavam a materializar-se.

— Que comovente — escarneceu Hekatah. — Estás à espera que


acreditemos
nessas patranhas? És o filho do teu pai.
Os olhos dourados de Daemon fixaram-se em Hekatah. — Julgo
queserá mais correcto dizer que sou o homem que o meu pai poderia ter
sido,
se tivesse tido coragem.

— Não deis atenção ao que diz — disse Dorothea, de súbito. — É


umaartimanha, uma armadilha. Está a mentir.
— Parece que reservou o dia para isso — resmoneou Surreal com
azedume.
Depois de uma olhadela depreciativa a Surreal, Daemon centrou
aatenção em Dorothea. — Olá, querida. Pareces uma bruxa velha. Fica-
tebem.

345
Dorothea silvou.

— Trouxe-te um presente — informou Daemon, olhando de novopara


Surreal.
Dorothea olhou para as orelhas pontiagudas de Surreal e fez uma
expressão
de desprezo. — Já ouvi falar dela. Não passa de uma puta.

— É verdade — concordou Daemon placidamente, — é uma rameirade


primeira categoria, que abre as pernas a tudo o que lhe dê dinheiro.
Étambém tua neta. Filha de Kartane. A única que alguma vez gerou e
gerará.
A única prossecução da tua linhagem.
— Rameira alguma poderá ser minha neta — rosnou Dorothea.
Daemon ergueu uma sobrancelha. — Realmente, querida, julguei
queesse fosse ser o argumento que te convenceria. A única diferença
entre asduas é que ela fica debaixo de um macho na maioria das vezes,
enquantotu ficas por cima. Mas as tuas pernas abrem-se igualmente de
par em par.

— Fez uma pausa. — Bem, existe outra diferença. Uma vez que estava a
receber por isso, ela teve de adquirir algumas competências na cama.
Dorothea estremeceu de raiva. — Guardas! Capturem-no!
Vinte homens precipitaram-se para a frente e logo caíram por terra.
Daemon limitou-se a sorrir. — Talvez seja melhor matar os restantes

de imediato para evitar mais aborrecimentos.


Hekatah baixou lentamente a faca. — Porque estás aqui, Sadi?

— Os vossos esquemazecos estão a interferir com os meus planos eisso


aborrece-me.
— Terreille vai entrar em guerra com Kaeleer. Não chamaria isso
de“esquemazeco”.
— Bem, isso depende se tens ou não o poder para vencer, não é
verdade?
— trauteou Daemon. — Contudo, não me interessa dominar um
Reino devastado por uma guerra, por isso decidi que era altura de
termosuma conversazinha.
Dorothea deu um salto para a frente. — Não o escuteis!

— Como podes tu dominar um Reino? — perguntou Hekatah, ignorando


Dorothea.
O sorriso de Daemon ficou ainda mais gélido, mais cruel. — Controloa
feiticeira que tem a força para dizimar todos os seres vivos no Reino
deTerreille.

— NÃO! — gritou Saetan. — Tu não controlas a Rainha.


Quando o olhar de Daemon se voltou a fixar nele, recomeçou a tiritar.
— Ai não? — ronronou Daemon. — Não te questionaste por que razão
não respondeu ela ao “presente”, Senhor Supremo? Oh, ficou
bastanteconsternada. Não fez nada a não ser chorar desde a chegada do
dedo. Po346
rém, não é ela que está aqui – e não irá estar pois preza mais a minha
piladentro dela do que te preza a ti. A qualquer um de vós. — Pela
primeira vez,
Daemon olhou de relance para Lucivar.

Saetan abanou a cabeça. — Não. Não podes fazer isto, Daemon.

— Não me digas o que posso fazer. Tiveste a tua oportunidade, velhote,


e não tiveste tomates para a agarrar. Agora é a minha vez e eu tenho
intenções de dominar.
— É mais uma mentira — ripostou Dorothea. — Nunca estiveste
interessado
em governar.
Daemon dirigiu a raiva gélida e cáustica para Dorothea. — O que sabes
tu sobre os meus desejos, cabra? Nunca me deste qualquer
oportunidade de
governar o que quer que fosse. Querias apenas fazer uso do meu poder
semnunca ofereceres algo em troca.

— Mas eu ofereci-te algo.


— O quê? Tu? Utilizaste-me, Dorothea. Como poderias imaginar
quesuportar mais do mesmo poderia representar algum tipo de
recompensa?
— Cabrão! Tu… — Deu um passo na direcção de Daemon, com amão
erguida numa garra.
Uma pancada de uma mão fantasma derrubou-a, indo cair em cimade
Surreal, que praguejou violentamente, empurrando-a.
Arrancando o olhar de Daemon, Saetan olhou para Hekatah – e
percebeu
que tremia, mas não devido à raiva.

— O que queres, Sadi? — questionou Hekatah, incapaz de manter avoz


firme.
Passou um longo e arrepiante momento antes de Daemon voltar a
centrar
a atenção em Hekatah. — Vim negociar em nome da minha Rainha.

— Eu bem vos disse… — murmurou Dorothea entre dentes – sem se


tentar levantar.
— E o que dirás à tua Rainha? — perguntou Hekatah.
— Que cheguei demasiado tarde para salvar qualquer um deles.
Estoucerto que conseguirei incitá-la a uma reacção adequadamente
violenta.
— Destruirá mais do que nós se libertar esse tipo de poder.
O sorriso de Daemon era de regozijo. — Exactamente. Destruirá tudo.
E quando todos tiverem desaparecido… Bem, terão ainda de se dar
mais
algumas batalhas em Kaeleer para eliminar os machos mais maçadores
dacorte. Contudo, depois disso, julgo que tudo se irá acalmar. — Virou-
se ecomeçou a ir-se embora.

Nunca conseguirá convencê-la a destruir todos em Terreille, pensou


Saetan,
fechando os olhos face à má disposição que lhe dava voltas ao
estômago.
Nunca conseguirá manobrá-la a tal ponto. Não a Jaenelle.

— Espera — disse Hekatah.


347
Saetan abriu os olhos.

Daemon estava quase no limite da zona iluminada. Virando-se, arqueou


uma sobrancelha com um ar interrogativo.

— Foi essa a única razão que te trouxe aqui? — perguntou Hekatah.


Daemon voltou a olhar de relance para Lucivar e sorriu. — Não. Pensei
que poderia cobrar algumas dívidas já que aqui estava.
Hekatah devolveu o sorriso. — Assim sendo, Príncipe, talvez tenhamos
algo a discutir. Mas não de imediato. — Por que não satisfazes os
teusdesejos enquanto eu… enquanto eu e Dorothea pensamos numa
forma detratar do assunto de forma amigável.

— Tenho a certeza de que encontrarei algo divertido para passar otempo


— disse Daemon. Saiu da luz e desapareceu na escuridão.
Hekatah olhou para Saetan. Já não conseguia ocultar os sentimentos,
manter o rosto inexpressivo.
Dorothea pôs-se de pé e apontou para Surreal. — Prendam aquelavaca
— disse rispidamente a dois guardas, voltando-se de seguida
paraHekatah. — Não é possível que acrediteis realmente em Sadi.

— O Senhor Supremo acredita — disse Hekatah baixinho. — O queé


muito interessante. — Silvou quando Dorothea começou a protestar. —
Discutiremos o assunto em privado.
Dirigiu-se à cabana com Dorothea a segui-la com relutância.

Depois de acorrentarem Surreal ao poste à esquerda de Saetan,


osguardas recolheram os corpos dos homens mortos e, com olhares
inquietospara a escuridão que os rodeava, voltaram, por fim, aos seus
deveres.

— O teu filho é um cabrão insensível — disse Surreal em voz baixa.


Saetan pensou no olhar de Daemon. Pensou no homem que
deveriaconhecer profundamente – e que não conhecia de todo.
Fechando os olhos,
encostou cabeça ao poste e disse: — Já só tenho um filho – e é eyrieno.

— Olá, Bastardinho.
Lucivar virou a cabeça, viu Daemon a deslizar da escuridão e circundá-
lo para se posicionar defronte dele.
Observou atentamente aquele jogo inicial, aguardando algum tipo
desinal da parte de Daemon indicativo de que era altura de atacar. As
correntes
enfeitiçadas não o podiam deter e, ao contrário de Saetan, a dor
proveniente
do Anel de Obediência não o debilitava durante muito tempo –
pelomenos, não o esgotava como parecia suceder com o Senhor
Supremo. Não,
o que o fazia conter-se e aguardar era a ameaça que pairava sobre
Marian eDaemonar. Havia sempre um guarda dentro da barraca
distante que estavaa ser usada como prisão e esse guarda tinha ordens
para matar a sua esposae o seu filho caso se libertasse. Por isso,
aguardava, especialmente depois de
348
Saetan se ter entregado àquelas cabras, pois dera-se conta que Saetan
sabiaque não iria haver qualquer troca, chegara à espera de ser feito
prisioneiro etinha tido uma razão para o fazer.

Por isso, quando viu Daemon, pensou que se dera início ao jogo.
Todavia,
neste momento, ao ver aquele olhar entediado, letárgico, terrível…
Outrora, dançara bastas vezes com o Sádico para saber que aquele
olharsignificava que estavam todos em sérias dificuldades.

— Olá, Bastardolas — disse, à cautela.


Daemon aproximou-se. Com as pontas dos dedos, percorreu o braçode
Lucivar, o ombro e desenhou a clavícula.

— Qual é a jogada? — perguntou calmamente, para logo


estremecerenquanto os dedos de Daemon avançaram para o pescoço,
percorrendo oqueixo.
— É bastante simples — trauteou Daemon, passando levemente comum
dedo no lábio inferior de Lucivar. — Tu morres e eu dominarei. — Os
seus olhares encontraram-se e Daemon sorriu. — Tens alguma ideia do
queé o Reino Distorcido, Bastardinho? Fazes a mínima ideia? Por tua
causa, ali
passei oito anos de suplício.
— Perdoaste a dívida — rosnou Lucivar baixinho. — Dei-te
oportunidade
para a cobrares e optaste por perdoar.
A mão de Daemon pousou delicadamente no pescoço de Lucivar.
Inclinou-se para a frente até os seus lábios quase tocarem nos de
Lucivar.

— Acreditaste mesmo que te perdoaria?


Da barraca distante, ouviram um berro indignado de uma criança.
Daemon recuou. Sorriu. Enfiou as mãos nos bolsos das calças. — Vais
pagar por esses anos, Bastardinho — disse Daemon suavemente. —
Vaispagar bem caro.

O coração de Lucivar quase lhe saía do peito ao ver Daemon deslizarem


direcção à barraca onde estavam Marian e Daemonar. — Bastardolas?
Bastardolas, espera. A dívida é minha. Não podes… Daemon? Daemon!

Daemon entrou na barraca. Passado um instante, o guarda saiu


precipitadamente.

— DAEMON!
Decorridos alguns minutos, Lucivar ouviu os gritos do filho.
Dorothea cerrou as mãos. — Garanto-vos, é algum truque. Eu conheço
Sadi.
— Conheces? — ripostou Hekatah.
Julgo que será mais correcto dizer que sou o homem que o meu pai
poderia
ter sido, se tivesse tido coragem.
Sim, conseguira detectar a desumanidade, a ambição, a sexualidade

349
bárbara em Daemon Sadi. Assustava-a um pouco. Excitava-a ainda
mais.

— Nunca lhe interessou usar a força que possui para conquistar poder.
Contrariou todas as tentativas que fiz para o persuadir.
— Isso aconteceu porque lidaste com Daemon inadequadamente
— resmoneou Hekatah. — Se tivesses acarinhado Sadi como
acarinhaste
aquela tua espécie de filho…
— Costumáveis achar graça à forma como eu fazia jogos de alcovacom o
rapaz do Senhor Supremo. Dissestes que faria dele um homem.
E assim fora. Tinha aguçado a crueldade de Sadi, o gosto pelo
prazerperverso e assim o sentira. Tal como sentira que não seria fácil
contornar

o ódio profundo que Daemon sentia por Dorothea. Bem, não deixaria
queesse facto interferisse com as suas próprias ambições. Além disso,
Dorothea
estava a tornar-se complicada, falível. De qualquer forma, teria de
eliminara cabra depois de ganharem a guerra.
— Digo-vos, está a tramar alguma — insistiu Dorothea. — E deixaisque
ande pelo acampamento a fazer sabe-se lá o quê.
— E o que posso eu fazer? — retorquiu Hekatah. — Sem margem
demanobra não podemos enfrentar a Negra a pensar que sairemos
triunfantes.
— Temos margem de manobra — disse Dorothea com os dentes
cerrados.
Hekatah deu uma gargalhada maldosa. — Qual margem de manobra?
Se destruiu, de facto, Andulvar, Prothvar e Mephis não vai ter qualquer
problema
em ver as entranhas de Saetan espalhadas pelo chão.

— Escolhestes o homem errado, a ameaça errada — disse Dorothea,


irritada, acenando com a mão. — Poderá não querer saber de Saetan,
massempre cedeu quando Lucivar corria perigo. Lucivar sempre foi o
elo comque podíamos contar para controlar Sadi. Se ameaçardes… —
Vacilou,
cheirou, olhou para a porta e disse, apreensiva: — Que cheiro é este?
***

— Que cheiro é este? — perguntou Surreal entre dentes. Já passava da


meia-
noite. Estariam os guardas a assar carne para as refeições do dia
seguinte?
Possivelmente, mas não conseguia pensar em alguém que quisesse
comeralgo com aquele cheiro nojento. — Não sentem? — Virou a cabeça
para Saetan
– e não gostou do que viu. Nem um pouco. Desde que Daemon
abandonara
o acampamento pela primeira vez, o Senhor Supremo limitara-se aolhar
fixamente o vazio. A olhar o vazio. — Tio Saetan?
Virou a cabeça, devagar. Os seus olhos focaram-se em Surreal –
muitíssimo
devagar.

350
Confirmando a ausência momentânea de guardas junto a eles,
Surrealinclinou-se o mais possível para Saetan. — Tio Saetan, este não
é momentopara começares a dar uns passeios mentais. Temos de
pensar numa formade sairmos daqui.

— Lamento que estejas aqui, Surreal — disse, com a voz cansada. —


De verdade, lamento imenso.

Também eu. — Lucivar tem a força física e eu safo-me bem numa luta,
mas tu tens a experiência para engendrar um plano que possa tirar o
melhor
partido dessa força.

Limitou-se a olhá-la. O sorriso que, por fim, lhe surgiu nos lábios
eraagridoce. — Querida... envelheci bastante nos últimos dois dias.

Surreal já se tinha apercebido e estava assustada. Sem ele, não


estavacerta de conseguirem sair deste sítio.

Ouvindo uma porta a abrir, endireitou-se de imediato e afastou osolhos


de Saetan.

— Fogo do Inferno — disse Dorothea, irritada, — que cheiro é este?


— Avançou entre os postes onde se encontravam Surreal e Saetan.
Surreal cerrou os dentes. Usava uma Jóia Cinzenta; Dorothea usava
uma Vermelha. Seria relativamente fácil deslizar sob as barreiras
interiores
de Dorothea e tecer um feitiço mortal – algo terrível para que, quando
fossedesencadeado, os gritos e a confusão lhes dessem uma
oportunidade de
escaparem.

Iniciou uma descida cautelosa para que ninguém se apercebesse,


masantes de alcançar a profundidade da sua Jóia Cinzenta, abriu-se
outra porta.

O cheiro repugnante intensificou-se e Surreal sentiu-se nauseada.

Daemon Sadi saiu descontraidamente da barraca-prisão, com as


mãosenfiadas nos bolsos das calças. Continuou a andar até alcançar o
centro da
área iluminada. Não olhou para eles. Os seus olhos cintilantes estavam
intensamente
focados em Lucivar que lhe devolvia o olhar.

Ninguém se atreveu a mexer um dedo.


Por fim, Daemon olhou na direcção da barraca-prisão e disse
prazenteiramente:
— Marian, querida, sai e mostra ao néscio do teu marido opreço pelos
anos que passei no Reino Distorcido.

Duas… coisas… desnudadas flutuaram da barraca para a luz. Há


umahora eram uma mulher e um rapazinho. Agora…

Surreal ficou ofegante, esforçando-se por não vomitar. Mãe Noite,


Mãe Noite, Mãe Noite.

Os dedos das mãos e os pés de Marian tinham desaparecido, bemcomo


o longo e belo cabelo. Os olhos de Daemonar já não existiam, nemas
suas mãos e pés. As suas asas estavam tão quebradiças que o simples

351
movimento que os mantinha a flutuar fazia com que pequenos pedaços
sedesprendessem. E as suas peles…

Com o sorriso gélido e cruel, o Sádico libertou Marian e Daemonar


doseu controlo. O rapazinho caiu no chão com um baque e começou a
berrar.
Marian aterrou nos cotos dos pés e caiu. Ao cair, a pele estalou e…

Surreal apercebeu-se que não era sangue, fitando estupefacta com


umfascínio estupidificado e doentio. Seivas cozidas escorriam dessas
gretas napele.

O Sádico não os tinha somente queimado, tinha-os cozido – e ainda


estavam vivos. Nem sequer demónios-mortos, vivos.

— Lucivar — sussurrou Marian com a voz enrouquecida,


tentandorastejar para o marido. — Lucivar.
Lucivar gritou, mas o grito sofrido transformou-se num grito de guerra
eyrieno. As correntes rebentaram ao explodir do poste, lançando-se
directamente
para Daemon. Quando já tinha percorrido metade do caminho,
um possante golpe psíquico derrubou-o, enviando-o de regresso
aoposte. Pôs-se em pé de um salto e voltou a precipitar-se para Daemon
– evoltou a ser derrubado. E outra vez. E outra vez.

Já sem se conseguir pôr em pé, rastejou até Daemon de dentes cerrados


e olhos repletos de ódio.

Sadi baixou-se, agarrou o braço de Daemonar e torceu-o até o arrancar,


tal como outro homem arrancaria uma perna de galinha.

Isso deu alento a Lucivar, que se pôs de pé. Quando investiu,


embateunum escudo Negro e caiu de joelhos.

Daemon limitou-se a observar e a sorrir.

Tentou atravessar o escudo, tentou quebrá-lo, despedaçá-lo com as

mãos, bateu-lhe repetidamente – para, finalmente, se encostar ao


escudo,
a chorar.

— Daemon — implorou. — Daemon… mostra alguma compaixão.


— Queres compaixão? — respondeu Daemon afavelmente. A
umavelocidade de predador, pisou a cabeça de Daemonar.

O crânio desfez-se como uma casca de ovo.


Daemon caminhou até Marian que continuava a sussurrar, a
tentarrastejar. Mesmo com os lamentos angustiados de Lucivar, os
restantes puderam
ouvir os ossos a quebrarem-se quando Daemon lhe pisou o pescoço.

Fazendo uso do braço de Daemonar como ponteiro, Sadi


gesticulouelegantemente indicando os dois corpos, ao mesmo tempo
que observavaLucivar e sorria. — Ainda têm energia suficiente para
efectuarem a transição
para demónios-mortos — disse, de modo prazenteiro. — Duvido que

o fedelho se lembre de grande coisa, mas os últimos pensamento da tua


352
esposa… Quão afavelmente se lembrará de ti, Bastardinho, sabendo
quefoste o culpado?

— Acaba com tudo — suplicou Lucivar. — Deixa que partam.


— Tudo tem um preço, Bastardinho. Paga e deixarei que partam.
— O que queres de mim? — perguntou Lucivar com a voz embargada.
— Diz de uma vez o que queres de mim.
O sorriso de Daemon tornou-se ainda mais gélido, mais maldoso. —
Prova que és um rapazinho bem comportado. Rasteja de volta ao poste.

Lucivar rastejou.

Dois dos guardas que tinham estado a observar, resguardados na


áreasem iluminação, aproximaram-se de Lucivar e ajudaram-no a
levantar-seenquanto dois outros voltavam a colocar as correntes
partidas.

Foram bastante afáveis quando o prenderam ao poste.

Lucivar olhou para Daemon com olhos transtornados pelo sofrimen

to profundo. — Estás satisfeito?

— Sim — disse Daemon, com demasiada melifluidade. — Estou


satisfeito.
Surreal sentiu um sacão de poder obscuro e, logo a seguir, outro. Tocou
Marian, quase apavorada com a perspectiva de obter resposta ao
toquepsíquico. Mas nada restava, ninguém.

Foi nesse momento que se apercebeu que estava, tinha estado, a


chorar.

Largando o braço de Daemonar, Sadi usou um lenço para limpar


meticulosamente
a gordura da mão. De seguida, dirigindo-se a Surreal, usou omesmo
lenço para limpar-lhe as lágrimas do rosto.

Quase lhe vomitou em cima.

— Não gastes as tuas lágrimas neles, feiticeirazinha — disse Daemon,


placidamente. — A seguir és tu.
Ficou a fitá-lo enquanto se afastava, desaparecendo novamente na
escuridão.
Posso ser a próxima, cabrão insensível, mas não cairei sem dar luta.
Não consigo vencer-te, mas juro, por tudo o que sou, que não me
deixareivencer sem dar luta.
Saetan fechou os olhos, incapaz de suportar a visão das silhuetas
imóveis
que jaziam a alguns metros.

Sabia que era perigoso, mas não sabia que albergava isto. Ajudei-o,
encorajei-
o. Oh, criança-feiticeira, que género de monstro permiti que partilhasse
a tua cama, que ocupasse o teu coração?

Logo que regressaram à cabana de Hekatah, Dorothea caiu pesada-


mente na cadeira mais próxima. Cometera alguns actos atrozes e
perversosna sua vida, mas isto...

353
Estremeceu.

Hekatah apoiou as mãos na mesa. — Ainda achas que irá ceder


seameaçarmos Lucivar? — perguntou com a voz trémula.

— Não — respondeu Dorothea com a voz igualmente trémula. — Jánão


sei o que fará. — Durante séculos, fora conhecido entre os Sangue
emTerreille como Sádico. Por fim, percebia a razão.
2 / Kaeleer

Karla observava enquanto Tersa construía estranhas criações com


cubos deconstrução em madeira castanha. Sentia-se grata pela
presença da mulhermais velha e sabia que Gabrielle partilhava estes
sentimentos.

Jaenelle desaparecera pouco depois de se dirigir a elas. Por sua vez,


as duas tinham falado com os restantes membros da assembleia,
dizendo
apenas que os rapazolas tinham de ser contidos por mais alguns dias.
Nadadisseram sobre a intenção da Feiticeira entrar em guerra com
Terreille – sozinha.
Tinham compreendido a ordem tácita quando Jaenelle lhes mostrara,
finalmente, o sonho que habitava sob a pele humana.

Por conseguinte, a assembleia, descontente ainda que unida, juntara


osrapazolas antes que algum deles se escapasse à trela. Não fora fácil e
a hostilidade
dos machos face ao que consideravam traição fora bastante cruel,
levando Karla a conjecturar se algum dos casamentos do Primeiro
Círculoresistiria. Alguns dos casamentos poderiam ter terminado ali,
naquele momento,
se Tersa não tivesse surgido e repreendido os rapazolas pela faltade
cortesia demonstrada. Uma vez que os machos não estavam dispostos
avirar-se contra ela, tinham cedido.

Quase vinte e quatro horas de convívio forçado não aplanaram a


situação,
apesar de ser a única forma de garantirem a presença permanente
dosmachos. Mesmo pelos padrões da Fortaleza, a sala de estar que a
assembleiaescolhera como local de reclusão era uma sala ampla com
vários aglomerados
de mobília e bastante espaço para caminhar – e, ainda assim, nãoera
suficientemente grande. A assembleia confinava-se, maioritariamente,
às cadeiras e sofás para evitar os rosnados dos machos que
deambulavam.
E quando os rapazolas não estavam a caminhar de um lado para o
outro,
estavam amontoados a um canto, a segredarem.
— Iremos ter de suportar isto durante quantos dias? — murmurouKarla
entre dentes, para si própria.
— Quantos forem necessários — respondeu Tersa, em voz baixa.
Examinou
a construção mais recente por um minuto, para logo a derrubar.
Os cubos em madeira estrepitaram na longa mesa defronte do sofá,

354
mas, desta vez, ninguém se sobressaltou, já habituados àquele ruído.
Ninguém
prestava muita atenção às criações invulgares de Tersa. Os rapazolas,
numa tentativa de provarem que podiam ser corteses, tinham admirado
as
primeiras… estruturas… e feito algumas perguntas, mas assim que as
respostas
de Tersa começaram a tornar-se cada vez mais confusas, afastaram-
se, por fim, deixando-a em paz.

Na verdade, Karla teria apostado que não estavam a prestar


grandeatenção ao que quer que se passasse naquela divisão – até
Ladvarian entrare aproximar-se dela a passo rápido.

O sceltita tinha um ar insuportavelmente abatido e os olhos


castanhosmanifestavam uma tristeza profunda – e um pouco de
incriminação.

«Karla?« Chamou Ladvarian.

— Irmãozinho — respondeu Karla.


Surgiram duas malgas na mesinha junto à cadeira de Karla. Uma delas
continha…

Karla pegou numa e examinou-a minuciosamente.

… bolhas de água circundadas por escudos protectores que formavam

uma espécie de pele. A outra malga continha uma bolha vermelha.


«Preciso de uma gota de sangue de cada um de vós« explicou Ladvarian.

— Para quê? — questionou Karla enquanto examinava a bolha. Erauma


amostra espantosa de Arte.

«Para Jaenelle.«

Ouvindo a resposta, Chaosti intrometeu-se. — Se Jaenelle pretende

algo de nós neste momento, pode pedir-nos pessoalmente.

— Chaosti — silvou Gabrielle.


Chaosti rosnou-lhe.
Ladvarian retraiu-se perante a raiva presente naquela divisão, mas
nunca afastou os olhos de Karla.

— Porquê? — perguntou Karla.


— Porquê, porquê, porquê — disse Tersa, irritada, ao deitar abaixo
oscubos de construção. — Os humanos nem sequer conseguem fazer
umasingela dádiva sem perguntarem porquê porquê porquê. Destina-se
à vossaRainha. Que mais precisam de saber? — De seguida, como se o
acesso nunca
tivesse ocorrido, voltou aos cubos.
Karla estremeceu ao fitar Ladvarian. Havia duas formas de interpretar
“para Jaenelle”. O cão poderia ser apenas o correio e levaria estas
gotasde sangue a Jaenelle por precisar delas para alguma coisa… ou
Ladvarianqueria-as para Jaenelle. Mas como poderia colocar as
questões certas, demodo a obter mais do que uma resposta evasiva?
Tinha a certeza de queLadvarian se tornaria evasivo se o pressionasse
em demasia.

355
— Não sei se te poderei dar uma gota de sangue, Irmãozinho —
disseKarla, com cautela. — O meu sangue ainda está um pouco
contaminadopelo veneno.
— Não terá qualquer influência — disse Tersa distraidamente, usandoa
Arte para manter os cubos suspensos. — Já o que te vai no coração…
Sim,
isso influenciará grandemente.
— Porquê? — perguntou Karla – e crispou-se quando Tersa olhoupara
ela. Voltou a centrar a atenção em Ladvarian. — E isso é tudo o
queteremos de fazer? Uma única gota de sangue em cada bolha?
«Ao oferecerem o sangue têm de pensar em Jaenelle.
Pensamentosagradáveis« acrescentou a rosnar, olhando de soslaio para
os outros machos.

Karla abanou a cabeça. — Não percebo. Por que…

— Porque o Sangue cantará ao Sangue — respondeu Tersa


serenamente.
— Porque o sangue é o rio da memória.
Agravada, Karla olhou para Tersa mas foi a estrutura que lhe chamou
a atenção.

Uma espiral. Uma espiral negra e reluzente.

Nesse momento, os cubos em madeira castanha caíram com um


estrondo
sobre a mesa.

«Karla« disse Gabrielle, delicadamente.

«Eu vi.« Olhou para Tersa, que lhe devolveu o olhar com olhos
assustadoramente
clarividentes. Ela sabe. Mãe Noite, o que quer que vá acontecer…
Tersa sabe. Bem como Ladvarian.

E com esse conhecimento, já não havia necessidade de


perguntar“porquê”.

Pedindo permissão a Ladvarian com um olhadela, Karla enviou a


gavinha
psíquica mais delicada que conseguiu criar e tocou levemente na bolha
vermelha.

Ladvarian, ainda cachorro, a aprender a caminhar pelo ar com Jaenelle.


A ser escovado e afagado. A ser ensinado...

Recuou. Eram memórias privadas, as melhores que tinha para dar.


Engoliu em seco – e sentiu o sabor de lágrimas. — O que Jaenelle está

a tentar realizar... É perigoso?


«É« respondeu Ladvarian.

— Mais algum dos parentes fez esta oferenda?


«Todos os que a conhecem.«
E aposto que nenhum deles quis saber porquê porquê porquê. Karla
olhou para os restantes membros do Primeiro Círculo. Não havia
qualquervestígio de raiva. Já não. Meditariam nas acções de Jaenelle ao
longo as últimas
semanas e chegariam à conclusão correcta.

356
— Muito bem, Irmãozinho — disse Karla. Exactamente antes de usar
a unha do polegar para picar um dedo, Gabrielle tocou-lhe no ombro.
— Julgo… — Gabrielle vacilou, respirou fundo. — Julgo que deveria
ser realizado como um ritual.
Para que fosse tão potente quanto conseguissem. — Sim, tens razão.

— Karla voltou a colocar a bolha límpida na malga.


— Vou buscar os elementos de que vamos precisar — disse Gabrielle.
— Vou contigo — disse Morghann.
Quando Gabrielle e Morghann passaram pelos machos, Chaosti eKhary
estenderam as mãos, tocando as respectivas esposas delicadamente,
em guisa de pedido de desculpas, e afastaram-se para as deixar passar.

Com um suspiro abatido, Ladvarian desviou-se e deitou-se.


Tersa levantou-se.

— Tersa? — chamou Karla. — Não vais fazer a oferenda?


Os olhos clarividentes fixaram-se em Karla. Tersa sorriu e disse: — Já
fiz — e saiu da sala.
Foi suficiente para que Karla soubesse quem tinha explicado aos
parentes
como criar aquelas espantosas demonstrações de Arte.
Observando os machos a trocarem de lugares e a tomarem as habituais
atitudes protectoras, Karla ficou com lágrimas nos olhos e desejou,
frivolamente, que Morton pudesse estar com eles.

Tudo se resolverá, pensava ao ver Aaron a envolver Kalush com os


braços.
As palavras severas serão perdoadas e tudo ficará bem.
E Jaenelle ficaria bem?

3 / Terreille

— É a tua vez, cabrazinha — disse Daemon, ao desprender as correntes


do
poste.
Surreal fitou-o. Passava da meia-noite – tinham passado quase vintee
quatro horas desde que assassinara Marian e Daemonar. O dia fora
relativamente
tranquilo. Sadi rondara o acampamento, enervando a todos eDorothea e
Hekatah tinham jogado às escondidas.

— O que vais fazer a essa cabra? — perguntou Dorothea, aproximando-


se dos postes.

Até agora.

Daemon olhou para Dorothea e sorriu. — Bem, querida, vou usá-la


para te dar o que sempre desejaste.

— O que queres dizer? — questionou Dorothea, apreensiva.


— Quero dizer — ronronou Daemon, — que vou quebrar a rameira
357
da tua neta. Depois vou montá-la até a fecundar com a minha semente.
Está fértil. Vai pegar. E vou-me certificar de que terá todos os
incentivosnecessários para não tentar provocar um aborto. A tua
linhagem e eu, Dorothea.
Precisamente o que sempre quiseste de mim. E só terás de tolerar aideia
de que o resultado possa vir com orelhas pontiagudas.

Às gargalhadas, arrastou Surreal para a mesma barraca onde


tinhamestado Marian e Daemonar.

Aguardou até Daemon se virar e fechar a porta para invocar o punhale


o atacar. Daemon girou sobre si próprio, ergueu um braço para
bloquear

o punhal. Surreal enroscou-se, direccionando o punhal para debaixo


dobraço de Daemon, com a intenção de o enfiar entre as costelas até ao
cabo.
Contudo, o punhal embateu num escudo e deslizou, passando por
Daemon
até ficar espetado na porta.
Antes de conseguir arrancar a arma da madeira, Daemon agarrou-a,
empurrando-a de volta ao centro da pequena divisão. Aos gritos,
investiuuma vez mais. Agarrou-a pelas mãos e fê-la recuar
violentamente até osjoelhos de Surreal baterem na beira da cama
estreita. Caiu com Daemonpor cima.

De imediato, Daemon rolou de cima dela e pôs-se em pé num salto.

— Chega.
Surreal saltou da cama e cuspiu todas as pragas que conhecia, a plenos
pulmões, antes de voltar a atacar.
Empurrou-a e vociferou violentamente. — Porra, Surreal, já chega.

— Se julgas que vou abrir as pernas para ti, é melhor pensares duas
vezes, Sádico.
— Cala-te, Surreal — disse Daemon, em voz baixa, mas com veemência.
Sentiu os escudos a envolverem a barraca. Para além do escudo
protector Negro, sentiu também um escudo auditivo Negro. O que
significava
que ninguém conseguia ouvir o que se passava no interior dabarraca.

Daemon respirou profundamente, passou os dedos pelo cabelo. —


Bem — disse, com frieza, — aquele teatro deve chegar para convencer
ascabras de que algo se está aqui a passar.

Surreal tinha estado a recompor-se para voltar a investir, com a


intenção
de atacar os testículos, desta vez. Contudo, aquele tom de voz e
aquelaspalavras lembravam-lhe… Daemon… de tal maneira que
vacilou. E veio-
lhe à memória a advertência de Karla sobre um amigo que se torna
inimigo
para poder permanecer amigo.

Daemon mirou-a e aproximou-se prudentemente. — Deixa-me veros


pulsos.

358
Estendeu as mãos, observando-o – e testemunhou a fúria no seu olhar
ao arrancar as grilhetas e ver a carne viva.

Surreal exaltou-se. — Caramba, Sadi, que tipo de jogo é este?

— Um jogo perverso — respondeu, invocando um estojo em pele.


Vasculhou os seus conteúdos, retirou um frasco e ofereceu-lho. — Põe
isto
nos pulsos.
Surreal abriu o frasco e cheirou-o. O unguento de uma Curandeira.
Enquanto o passava nos pulsos, Daemon invocou outro estojo.
Conseguiuver várias bolas de barro em ninhos de papel. Dois dos
ninhos estavamvazios.

— Ainda tens a merenda que trouxeste?


— Ainda. Não tive oportunidade de comer — acrescentou
sarcasticamente.
— Come agora alguma coisa — disse, ainda a examinar o estojo. —
Dava-te alguma coisa da minha merenda, mas dei a maior parte a
Marian.
Surreal sentiu um calafrio pelas costas abaixo. Sentiu um zumbido
esquisito
na cabeça. — A Marian?

— Lembras-te da barraca onde parámos quando chegámos a Hayll?


— Sim. — É claro que se lembrava. Ficava a cerca de três quilómetrosdo
acampamento. Fora aí que Daemon se transfigurara em Sádico. Estavaa
indicar-lhe detalhadamente a localização das sentinelas e a explicar-
lheas estacas do perímetro que alertariam os guardas e, quando se deu
conta,
estava de mãos atadas e Daemon ronronava que devia ter ficado
debaixo deFalonar e fora do seu caminho. Assustara-a, grandemente. E
por isso, estavaagora furiosa. — Podias ter-me contado, filho da puta.
Levantou os olhos. — Terias sido igualmente convincente?
Indignou-se, sentindo-se insultada. — Podes ter a certeza que sim.

— Bem, teremos oportunidade de descobrir. Disseste que querias


ajudar,
Surreal. Que estavas disposta a criar uma distracção.
De facto, fora o que dissera, mas julgava que saberia quando tal
acontecesse.
— E então?

— Então agora podes fazê-lo. — Aproximou-se dela e mostrou-lheuma


pequena argola dourada. — Ouve com atenção. Isto irá criar a ilusãode
que foste quebrada. — Enfiou a argola num dos elos do colar de
ondependia a Jóia Cinzenta. — Ninguém conseguirá detectar que ainda
usas aCinzenta, a não ser que faças uso dela. Se precisares de a usar,
não hesites.
Eu arranjarei forma de lidar aqui com a situação.
— O Senhor Supremo saberá que não fui quebrada.
Daemon abanou a cabeça ao voltar-se para procurar algo mais no
estojo.
— É necessária uma Jóia mais escura do que a Negra para
conseguirdetectar esse feitiço.

359
Mais escura do que a Negra? Sadi não tinha capacidade para um feitiço
deste género. O que significava...

Mãe Noite.

— Isto — Daemon mostrou-lhe um frasquinho em cristal antes de


ocolocar no colar — convencerá quem quiser conferir que não só estás
emperíodo fértil como estás agora grávida. Uma Curandeira poderá
perceberpassadas vinte e quatro horas — acrescentou, respondendo à
questão implícita.
Pegando no colar, Surreal examinou o frasquinho. — Pediste a Jaenelle
que criasse a ilusão de que estou grávida de um filho teu?

Reparou que o seu rosto ficou tenso.

Sim, pedira a Jaenelle. E esse pedido magoara-o.

Tentando mudar de assunto, apontou para as bolas de barro. — O que

são?

— Os feitiços em bruto para a criação de sombras.


Sombras. Ilusões que podiam ser criadas para que outros acreditassem
na autenticidade da pessoa defronte deles.

— Marian e Daemonar — disse debilmente, olhando estupefacta paraos


dois invólucros de papel vazios.
— Sim — respondeu com rispidez.
Surreal silvou. — Não confiaste em mim, uma prostituta, para encenar
um belo espectáculo, mas achaste que Lucivar seria convin… — A sua
voz
perdeu-se. — Não sabe, pois não?

— Não — disse Daemon serenamente, — não sabe.


As pernas de Surreal desfaleceram com tal rapidez que teve de se sentar
no chão. — Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam
misericordiosas.

— Eu sei. — Daemon hesitou. — Estou a ganhar tempo, Surreal. Tenho


de empatar e ainda tenho de conseguir tirar todos daqui. Para que
Dorothea
e Hekatah acreditassem que Marian e Daemonar estavam mortos,
Lucivar também tinha de acreditar.
— Mãe Noite. — Surreal pousou a testa nos joelhos. — O que vale
umpreço destes?
— A minha Rainha precisa de tempo para conseguir salvar Kaeleer.
— Oh, merda, Sadi. — Levantou a cabeça. — Diz-me uma coisa. Mesmo
sabendo que era uma ilusão, como conseguiste controlar o
estômagoposteriormente?
Engoliu em seco. — Não consegui.

— És louco — murmurou Surreal entre dentes, ao mesmo tempo quese


levantava.
— Sirvo — disse incisivamente.
360
Por vezes, para um macho, tudo se resumia ao mesmo.

— Muito bem — disse Surreal ao prender o cabelo atrás das orelhas.


— O que precisas que faça?
Daemon vacilou e começou com rodeios. — É perigoso.
— Daemon — disse, paciente, — precisas do quê? — Não
obtendoresposta, tentou adivinhar. — Queres que eu vagueie pelo
acampamento alamuriar-me, como uma mulher que foi violada até
enlouquecer e que estáaterrorizada com o que lhe poderá acontecer se
abortar, ainda que espontaneamente,
a criança resultante dessa violação. Correcto?
— Correcto — respondeu Daemon, debilmente.
— E depois?
— Marian e Daemonar estão nessa barraca. Foge do
acampamentoamanhã à noite, pega neles e dirige-te à Fortaleza. Não
pares nem vás a maisnenhum sítio. Vai directamente para a Fortaleza.
Tens de viajar pelo VentoVermelho. Os mais escuros vão estar instáveis.
— Ins… Esquece, não quero saber. — Ponderou tudo minuciosamente.
Sim, conseguiria levar isto até ao fim. Uma mulher quebrada desta
forma
passaria bastante tempo a esconder-se, pelo que permitiria que a
vissemocasionalmente e de relance durante o dia, o que seria suficiente
– e encobriria
o facto de ter desaparecido.
Daemon pegou numa das bolas de barro.

— E para que é isso? — perguntou Surreal.


— Ter-te-ias debatido enquanto te restassem forças — disse Daemon,
sem a olhar directamente. — Teria de parecer que te debateste. Assim
quecriar a ilusão, podes levar isto e...
— Não. — Surreal sacudiu-se para despir o casaco e começou a
desabotoar
a camisa. — Não podes levar isto até ao fim com ilusões, caso queiras
convencer Dorothea e Hekatah durante o tempo que Jaenelle precisa.
Os olhos de Daemon ficaram de um tom amarelo-torrado. — Vou
perder muito com tudo isto, Surreal, mas não irei quebrar os meus
votos
de fidelidade.

— Eu sei — respondeu calmamente. — Não foi isso que quis dizer.


— Então e o que quiseste dizer? — retorquiu Daemon.
Inspirou fundo para se dominar. — Tens de tornar as contusões reais.
4 / Kaeleer

Invocando a malga, Ladvarian pousou-a com cuidado no chão do quarto


eobservou a Rainha arachniana a tocar delicadamente nas pequenas
bolhasjá repletas de sangue e memórias.
361
«Boas« disse a aranha, em aprovação. «Boas memórias. Memórias
pujantes.
Tão robustas como as dos parentes.«

Ladvarian olhou para a malga posicionada defronte da enorme


teiaentrelaçada. Na malga ainda restavam muitas oferendas dos
parentes. Oque a Tecedeira estava a fazer era demorado.

«Tens de descansar« disse a aranha ao seleccionar uma bolha das


oferendas
dos humanos, flutuando até um fio da teia. «Todos parentes têm
derepousar. Têm de estar fortes quando chegar altura de ancorar sonho
no
corpo.«

«Tereis tempo para adicionar todas as memórias?« perguntou Ladvarian


repeitosamente.

A Tecedeira de Sonhos não deu qualquer resposta durante muito


tempo.
Até que disse: «Chegará. Bastará.«

5 / Terreille

Os lamentos não eram completamente simulados.


Porém, fogo do Inferno, pensava Surreal enquanto deambulava sem
destino
pelo acampamento, não esperava ter de acicatar Daemon daquela forma
antes de pôr as mãos na massa. E compreendeu que a raiva que lhe
impeliaos dentes e as mãos se devia ao facto de ter de tocar uma
mulher, que nãoJaenelle, nalguns pontos mais íntimos. Mas, porra, não
era preciso morder-
lhe o peito com tanta força.

Por outro lado, escolhera os alvos zelosamente. A julgar pelos olhares


de quem a via, as contusões eram impressionantes, mas nenhuma
delascausava dificuldades de movimentos nem viria a paralisar um
músculo setivesse de lutar.

O mais difícil fora o ódio que vira nos olhos de Saetan. Queria contar-
lhe. Oh, como tinha ansiado por dizer qualquer coisa, o que quer que
fossepara fazer desaparecer aquele olhar. E talvez tivesse dito, não fosse
Daemonter escolhido esse momento para deslizar por perto e lançar um
comentárioincisivo e devastador. Depois disso, no decorrer da manhã,
Surreal evitara oSenhor Supremo – e não se atrevera sequer a
aproximar-se de Lucivar.
Contudo, certificara-se de que Dorothea a vira. Sentiu a cabra a
tentarsondá-la para descobrir se tinha sido efectivamente quebrada e se
estavagrávida. Tudo indicava que os feitiços ilusórios tinham
funcionado poisDorothea sugeriu com amabilidade que se deitasse um
pouco e repousasse.
A cabra estava praticamente a babar-se com a ideia de pôr as mãos
emqualquer criança gerada por Sadi.

Ia esconder-se durante algum tempo, aguardaria até ao pôr-do-sol, e

362
voltaria a surgir para que Hekatah pudesse farejá-la. Nessa altura, tudo
oque teria de fazer era passar despercebida pelas sentinelas e pelos
marca-
dores do perímetro, pegar em Marian e Daemonar e levá-los para casa.
Eratudo o que... Merda.

Não tinha estado a prestar atenção para onde caminhava – e


agoraestava a olhar Lucivar directamente nos olhos.

Passara a manhã a observá-la sempre que se deixava ver. Um


bomdesempenho, embora com alguma falta de naturalidade. Mas
decerto quemais ninguém se teria apercebido. Oh, de certeza que
Dorothea e Hekatah emuitos dos guardas já tinham visto feiticeiras
quebradas, mas duvidava quealgum deles lhes tivesse prestado muita
atenção depois de terem sido quebradas.
Já Lucivar, ao contrário, tomara conta de algumas em várias cortes.
Não conseguira impedir que as quebrassem, mas depois cuidara delas.
Etodas tinham algo em comum: nos dois primeiros dias a seguir a
terem sidoquebradas, sentiam frio. Cobriam-se de xailes e de mantas,
mantinham-sejunto a qualquer fonte de calor disponível.

Ora ali andava Surreal, a vaguear pelo acampamento, unicamentecom


uma camisa que parecia rasgada nos sítios certos de modo a
mostrarumas quantas contusões impressionantes. E esse facto pô-lo a
meditar sobre
muitas questões.

— Devias vestir um casaco, querida — disse, carinhosamente.


— Casaco? — disse Surreal debilmente, ao mesmo tempo que
tentavacobrir alguns rasgões na camisa com as mãos.
— Um casaco. Estás com frio.
— Oh. Não, não tenho…
— Frio.
Surreal tiritou, embora não se devesse ao frio mas sim aos nervos.

— Não tens de carregar o filho daquele canalha — disse Lucivar,


calmamente.
— Podes abortar. Uma feiticeira quebrada ainda tem esse poder.
E logo que fiques estéril, não há motivo para olharem para ti.
— Não posso — disse Surreal, amedrontada. — Não posso.
Ficariafurioso e… — Olhou para o sítio onde Marian e Daemonar
pereceram.
Perguntou-se se estaria enganado, se a mente de Surreal estaria tão
dilacerada que ainda não lhe permitia que sentisse frio. Se fosse
verdade,
compreendia agora o receio que lhe ouvia na voz. Temia que o Sádico
lhefizesse o mesmo que fizera a Marian e a Daemonar.
Todavia, o que viu quando Surreal voltou a olhá-lo não era medo,
erafrustração inflamada.
Sentiu o sangue a bramir-lhe novamente nas veias, sangue que
estiverainerte desde que rastejara de volta ao poste, duas noites atrás.

363
— Surreal... — Viu Daemon surgir do lado oposto do círculo de chão
em terra batida, um segundo antes de Surreal.
Com um guincho quase convincente, Surreal fugiu atarantadamente.
Lucivar fitou Daemon. À distância, Daemon devolveu o olhar.

— Canalha — murmurou Lucivar. Daemon não conseguia ouvir


aspalavras, mas não importava. Sadi saberia o que fora dito.

Daemon foi-se embora.

Lucivar recostou a cabeça no poste e fechou os olhos.

Se Surreal não estava quebrada, se tudo isto não passava de um jogo,


então Marian e Daemonar...

Devia ter-se lembrado desse pormenor relativamente ao Sádico. Sabia,


melhor do que todos os que aqui estavam presentes, quão feroz
Daemonpodia ser, contudo, o Sádico nunca fizera mal a um inocente,
jamais magoara
uma criança.

Tinha estado a aguardar o sinal, mas o jogo tivera início antes de


Daemon
entrar no acampamento. Ainda assim, desempenhara bem o seu papel
– e continuaria a fazê-lo.

Porquanto compreensão e perdão eram duas questões


completamentediferentes.

6 / Terreille

Arrastado por um sono toldado pela dor, Saetan sentiu o cálice junto
aoslábios. O primeiro gole foi fruto de um acto reflexo, o segundo fruto
daavidez. À medida que o sabor de sangue fresco lhe invadia a boca, o
poderNegro aí presente fluiu pelo seu corpo, oferecendo forças.

«Aguenta« uma voz grave sussurrou-lhe na mente. «Tens de aguentar.


Por favor.«

Ouviu o cansaço naquela voz. Ouviu a súplica de um filho a um pai


ereagiu. Sendo o homem que era, não podia agir de outro modo. Por
isso,
abriu caminho pela neblina de dor.

Ao abrir os olhos, tudo o que viu foi a luz do dia a desaparecer e


conjecturou
se teria sonhado com a súplica que ouvira na voz de Daemon.
Se bem que conseguia ainda saborear o sangue obscuro, encorpado
efresco.

Voltando a fechar os olhos, deixou que a mente vagueasse.

Estava numa caverna colossal algures no âmago de Ebon Askavi.


Nochão estava gravada uma gigantesca teia orlada a prata. No centro,
onde todas
as linhas de orientação se encontravam, estava uma Jóia iridescente do

364
tamanho da sua mão, Jóia esta que misturava as cores de todas as
outrasJóias. Na extremidade de cada linha de orientação podia ver-se
uma lasca deJóia iridescente do tamanho da unha do polegar.

Já estivera neste local, na noite em que estabelecera ligação a


Daemonpara trazer Jaenelle de volta ao seu corpo.

Contudo, agora sentia outra presença na caverna.

Estendidas ao longo da teia prateada no chão estavam três enormes


teiasentrelaçadas, interligadas, que se erguiam a cerca de trinta
centímetros dochão até quase duas vezes o seu tamanho. No centro de
cada teia encontrava-
se uma Jóia Ébano.

A Feiticeira encontrava-se defronte dessas teias, vestida com o


vestidonegro em seda de aranha e segurando o ceptro que tinha duas
Jóias Ébano e

o corno em espiral que Kaetien lhe ofertara quando o mataram, cinco


anosatrás.
Por detrás das teias, encontravam-se dúzias de demónios-mortos. Um
deles acercou-se das teias, sorriu e desvaneceu-se. No momento em que
a pessoa
se extinguiu, uma pequena estrela da mesma cor da Jóia dessa
pessoaresplandeceu na teia central.

Intrigado, deslocou-se para ver melhor as teias entrelaçadas.

A primeira causou-lhe repulsa. Os fios pareciam distendidos,


bolorentos,
contaminados. Na extremidade de cada linha de ligação dessa teia
estavauma lasca de Jóia Ébano.

A teia do meio era linda, repleta de milhares daquelas pequenas


estrelascoloridas e salpicos de lascas de Jóias Negras e Ébano.

A última era uma teia singela, simetricamente perfeita, elaborada


comfios cinzentos, ébano-acinzentados e negros. Também tinha lascas
Negras eÉbano zelosamente colocadas nos fios de modo a formarem
uma espiral.

Olhou de relance para a Feiticeira que estava concentrada na tarefa,


porisso deslocou-se novamente para poder observar.

Viu Char, o líder das cildru dyathe, a aproximar-se das teias. O


rapazsorriu rasgadamente para Saetan, despediu-se com um aceno de
mão alegre edesvaneceu-se, tornando-se noutra estrela brilhante.
Titian acercou-se de Saetan, beijou-o no rosto. — Sinto-me
orgulhosapor vos ter conhecido, Senhor Supremo. — Dirigiu-se às teias
e evolou-se.

Enquanto a observava, havia algo que o importunava e que estava


relacionado
com a estrutura daquelas teias. Mas antes de conseguir entender,
Dujae, o artista que leccionara pintura à assembleia, aproximou-se.

— Agradeço-vos, Senhor Supremo — disse o imenso homem. —


Agradeço-
vos por me terdes permitido conhecer as Senhoras. Encontram-se já
noPaço, em Kaeleer, todos os quadros que desenhei para elas e que vos
ofereço.
— Obrigado, Dujae — respondeu, perplexo.
365
Enquanto Dujae se afastava, Prothvar aproximou-se. — É um campo
debatalha diferente, mas não deixa de ser uma excelente forma de luta.
Toma
conta da fedelha, Tio Saetan. — Prothvar abraçou-o.

Seguiu-se Cassandra. Cassandra, que não via desde a primeira festa,


emque conheceram a assembleia e os rapazolas.

Sorriu, com tristeza, e pousou-lhe uma mão no rosto. — Gostava de


tersido uma melhor amiga. Que as Trevas te protejam, Saetan. —
Beijou-o. Aodesvanecer-se, uma gloriosa estrela Negra surgiu brilhante,
na teia central.

— Mephis — disse ao ver o filho mais velho a acercar-se. — Mephis, o


que…
Mephis sorriu e abraçou-o. — Tenho orgulho de te ter tido como pai
esinto-me honrado por te ter conhecido como homem. Não sei se
alguma vezte disse isto. Queria que soubesses. Adeus, Pai. Amo-te.

— E eu também te amo, Mephis — disse, controlando-se com


dificuldades
ao sentir uma grande mágoa a crescer no peito.
Depois de Mephis se desvanecer na teia, Andulvar era o único dos
demónios-
mortos que restava.

— Andulvar, o que se passa?


— E o Sangue cantará ao Sangue — respondeu Andulvar. — De
igualpara igual. — Olhou para as teias. — Descobriu uma forma de
distinguir osque foram contaminados daqueles que ainda honram os
costumes dos Sangue.
Contudo, precisava de ajuda para evitar que os que seguem os
costumesantigos sejam arrastados com os restantes quando proceder à
deflagração.
Essa é a função dos demónios-mortos – a nossa força irá servir de
âncora
aos vivos. Extinguir-nos-emos ao fazê-lo mas, como Prothvar disse, é
umaexcelente forma de luta.
Andulvar sorriu. — Cuida de ti, SaDiablo. E toma conta das tuas crias.
De ambas. Lembra-te que o teu espelho é efectivamente o teu espelho.
Bastaolhares para vislumbrares a verdade. — Andulvar abraçou-o. —
Homem algum
poderia ter desejado um melhor amigo ou um melhor Irmão. Aguenta.
Luta. Cabe-te o fardo mais pesado, mas os teus filhos irão ajudar-te.

Andulvar caminhou para as teias. Abriu as asas escuras, ergueu os


braços…
e evolou-se.
Tentando evitar que as lágrimas caíssem, viu Jaenelle aproximar-se.
Envolveu-
a com os braços. — Criança-feiticeira…
Jaenelle abanou a cabeça, beijou-o e sorriu. Porém, tinha os olhos
cheiosde lágrimas.

— Agradeço-te por teres sido meu pai. Foi sublime, Saetan. —


Encostou-
se e sussurrou-lhe ao ouvido: — Zela por Daemon. Por favor. Vai
precisar deti.
Não se desvaneceu na teia, desapareceu, simplesmente.

366
Limpando as lágrimas com as costas da mão, acercou-se das teias e
estudou-
as meticulosamente.

A primeira teia, a teia bolorenta, representava os Sangue


contaminadospor Dorothea e Hekatah. A segunda teia, com todas as
estrelas de Jóias, consistia
nos Sangue que ainda honravam os costumes antigos. A terceira teia,
com a espiral, era a Feiticeira.

Prosseguindo a análise às teias, começou a abanar a cabeça, devagar


aoprincípio, para logo acelerar cada vez mais. — Não, não, não, criança-
feiticeira
— disse entre dentes. — Não podes ligá-los deste modo. Se libertares
todo

o teu poder…
Explodiria pela enorme Jóia Ébano no centro da primeira teia,
deslocando-
se através de todos os fios, varreria todas as mentes que
ressoassemnesses fios, atingiria todas as lascas Ébano, indo ao
encontro de uma pequenaparte de si numa colisão de energia
devastadora que iria aniquilar quem fosseapanhado por ela. De seguida,
prosseguira para a teia seguinte, escassamenteatenuada.

A teia do meio, com aqueles milhares de contas de poder, facultaria


umaextraordinária resistência enquanto a força dela a percorria. Os
demónios-
mortos, proporcionando um escudo e uma âncora aos vivos,
absorveriamalguma da energia ao passar por eles, mas nem todos
aqueles milhares decontas seriam suficientes. Aquela força
descarregada prosseguiria para a terceira
teia e…

A energia fluiria pela simetria perfeita, extinguiria a teia e


estilhaçariatodas as lascas de Jóias ao regressar explosivamente pela
espiral. E quandoa última lasca de Jóia se estilhaçasse, o que restava
para voltar a absorver aenergia remanescente seria…

— NÃO, criança-feiticeira — gritou, às voltas, procurando por ela. —


Não! Um impacto dessas proporções irá dilacerar-te! Jaenelle!

Voltou-se para as teias. Quiçá, se descobrisse uma forma de se ligar à


teiada Feiticeira, pudesse retirar até à última gota de poder de reserva
da sua JóiaVermelha de Direito por Progenitura e da Jóia Negra…
Quiçá fosse possívelprotegê-la de modo a mantê-la a salvo quando o que
restasse daquela explosão
de poder regressasse desenfreadamente a Jaenelle.
Deu um passo em frente…
… e tudo se desvaneceu.

Saetan abriu os olhos. Penumbra. Quase noite.

Um sonho? Apenas um sonho? Não. Os longos anos como Viúva Negra


permitiam-lhe distinguir perfeitamente entre um sonho e uma visão.
Mas estava a desvanecer-se. Não se conseguia lembrar exactamente,
mas
havia algo nessa visão que precisava desesperadamente de se recordar.

367
Foi nesse momento que se apercebeu que Daemon estava à sua frente,
a poucos metros, a observá-lo com uma intensidade assustadora.

Lembra-te que o teu espelho é efectivamente o teu espelho. Basta


olharespara vislumbrares a verdade.

As palavras de Andulvar. A advertência de Andulvar.

E assim, com os olhos toldados pelas lágrimas, contemplou o seu


reflexo,
o seu homónimo, o seu legítimo herdeiro. E viu.

Sem desviar o olhar, Daemon meteu a mão no bolso do casaco. A sua


mão saiu meio fechada. Abriu os dedos, inclinou a mão.

Pequenas missangas coloridas, o tipo de missangas que as


mulherescosiam nos vestidos para reflectirem a luz, espalharam-se pelo
chão.

Saetan olhou-as fixamente. Provocavam-lhe calafrios, mas não sabia


a razão para tal.

E quando ergueu novamente os olhos para Daemon… Podia quaseouvir


a súplica tácita para que pensasse, para que soubesse, para que se
lembrasse.
Porém, a sua mente estava ainda demasiado repleta daquela outravisão
que se tornara esquiva.

Daemon foi-se embora.

Saetan fechou os olhos. Missangas e teias. Se conseguisse descobrir


aligação, encontraria as respostas.

7 / Terreille

Surreal praguejava em silêncio enquanto fitava as estacas do perímetro.


Devia haver um truque para passar. Fogo do Inferno, Daemon
conseguira
introduzi-los no acampamento sem que ninguém se apercebesse,
masestava ainda demasiado atordoada pela mudança de Daemon em
Sádico enão prestou muita atenção. E tinha retirado Marian e
Daemonar sem que
ninguém se apercebesse.

Poderia ser tão simples como saltar por cima para que o contacto entre
os cristais não fosse interrompido? Não, disso lembrar-se-ia.

— O que estás a aqui a fazer? — perguntou uma voz.


Merda.
Virou-se para a sentinela que se dirigia a ela. Estava demasiado
afastada
do acampamento para que alguém acreditasse que era apenas
umafeiticeira quebrada a deambular. Mas tinha de tentar convencer
este sacana.
Ou matá-lo discretamente. Se tivesse de lutar e fosse obrigada a usar as
JóiasCinzentas, Daemon saberia que se tinha deparado com sarilhos e
alterariaos planos, levando a que aquelas cabras percebessem que
tinham sido enganadas
e, nessa altura, dariam início à guerra, sem hesitações.

368
— A barraca perdeu-se — disse, acenando a mão num gesto vago.
O homem aproximou-se, com os olhos repletos de desconfiança e
suspeição.
— Responde, cabra. Porque estás aqui tão longe?

— A barraca perdeu-se — repetiu, esforçando-se por imitar o modocomo


a mente de Tersa tendia a devanear. Apontou. — Devia estar
juntoàquele poste torto, mas perdeu-se.
A sentinela olhou na direcção indicada. — Aquilo é uma árvore, cabra
estúpida. Agora… — Parou, olhou-a de alto a baixo e sorriu. Olhandoem
volta para se assegurar de que mais ninguém estava nas proximidades,
tentou agarrá-la.

Surreal deu um passo à retaguarda, colocou uma mão protectora sobre


o abdómen e abanou a cabeça. — Não posso tocar noutro macho.
Ficafurioso comigo se tocar noutro macho.

O homem fez um esgar perverso. — Ora, não irá saber, pois não?

Surreal hesitou. Dessa forma conseguiria aproximar-se e enterrar-


lheuma faca entre as costelas, mas iria tomar-lhe tempo de que não
dispunha.
Nesse caso, teriam de ser as Jóias Cinzentas e uma morte súbita – e
queas Trevas ajudassem Sadi com o que pudesse acontecer
posteriormente no
acampamento.

«Baixa-te, Surreal!«

Sentiu umas patas traseiras a roçarem-lhe as costas quando se


atiroupara o chão.

Logo a seguir, a sentinela jazia morta, com a garganta esfacelada.

Desvaneceu-se o escudo de visão, revelando o lobo manchado de san

gue.

— Colmilho Cinzento? — sussurrou Surreal. Tocou na Jóia sob a


camisa.
O colmilho da Cinzenta. O Senhor Supremo tinha razão.

Contornando o homem morto, estendeu a mão para o lobo.

«Espera« disse o Colmilho Cinzento.


Foi nessa altura que reparou no pequeno alto dourado entre as
orelhasdo lobo. O alto levantou-se, planou até à estaca de perímetro
mais próximae desenrolou as patas.

Surreal observava deslumbrada a pequena aranha dourada a tecer


afadigadamente
uma teia entrelaçada simples entre duas das estacas. Depoisde
terminar, caminhou cautelosamente até ao centro da teia.

A sentinela desapareceu. No chão, não restava qualquer vestígio de


sangue.

«Agora já não o encontrarão« disse o Colmilho Cinzento. «Só conseguirão


ver aquilo que a teia os deixar ver.« Abocanhou o braço de Surreal e
começou a puxá-la.

— E a aranha?
369
«Ficará de guarda à teia. Depressa, Surreal.«

Abanou o braço para se livrar dos dentes do lobo. Seria mais


fácilacompanhá-lo se não estivesse acocorada. Num fio de comunicação,
perguntou:
«O que estás aqui a fazer? Como conseguiste passar as estacas
doperímetro?«

«Os humanos são insensatos. O carreiro da carne não tem vigilância.


Demasiadas patas a deslocarem-se pelo carreiro. Os humanos
cansaram-sede mostrar as presas sempre que a carne passava.«

Carreiro da carne? Oh, o carreiro da caça. «Como tiveste conhecimento


do carreiro? Como conseguiste encontrar-me?«

«A Tecedeira de Sonhos disse-me para fixar o cheiro do gato de


duaspatas e para lhe seguir o rasto. É um bom caçador« acrescentou o
Colmilho
Cinzento, em aprovação. «Tem muito de felino. Assim diz Kaelas.«

Sadi, cuja graciosidade predatória era reconhecida até pelos parentes.


O Colmilho Cinzento seguira Sadi. «Quem é a Tecedeira?« Rapidamente,
surgiu-lhe uma imagem mental de uma enorme aranha dourada – e
tropeçou.

Maldito lobo idiota e tolo. Já era bastante mau ter ido a Arachna e ter
trazido uma pequena aranha consigo. Mas conviver com a Rainha...

«Foi ela que me convidou, Surreal« disse o Colmilho Cinzento


submissamente,
quando Surreal lhe rosnou. «Não é bom recusar um pedido da
Tecedeira.«

Surreal cerrou os dentes e retomou o ritmo. «Falaremos sobre isto mais


tarde.«

Assim que viu o carreiro da caça, reconheceu o local. Fora por aquique
Daemon os trouxera pelo perímetro do acampamento. «Sozinha, nunca
conseguiria voltar a dar com este sítio.«

«Tens um focinho diminuto« disse o lobo amavelmente. «Não consegues


farejar rastos.«

Surreal olhou para o Colmilho Cinzento – para o Colmilho da Cinzenta


– e sorriu.

— Vamos — sussurrou. — Sabes o caminho para a barraca?


«Sei.«
Uma hora mais tarde, Surreal, Marian, Daemonar e o Colmilho
Cinzento
viajavam pelo Vento Vermelho para a Fortaleza.

8 / Terreille

— Julgo que está na hora de termos uma conversazita — disse


Hekatah,
tentando sorrir de modo recatado para Daemon.
370
— Deveras?
Oh, a arrogância, a grosseria, a maldade naquela voz. Se o pai
tivessesido metade do homem que o filho era…

— Um Reino demora imenso a recuperar de uma guerra, portanto seria


disparatado avançar se a pudermos evitar — disse Hekatah,
estendendoa mão e acariciando-lhe o rosto enquanto tecia um feitiço de
sedução emredor de Daemon.
Recuou. — Não voltes a tocar-me sem a minha permissão —
rosnoubaixinho. — Nem Jaenelle tem autorização para me tocar sem o
meu consentimento.

— E ela acede?
O sorriso de Daemon era gélido e brutal. — Acede a muitíssimas outras
coisas – e implora por mais.
Hekatah olhou para aqueles olhos vítreos e vibrou de excitação. O
arestava impregnado com o odor picante e grosseiro do sexo. Já era seu.
Sóque ele ainda não sabia. — Uma parceria seria vantajosa para ambos.

— Mas já tens uma parceira, Hekatah – à qual eu jamais me associarei.


Agitou a mão com desdém. — Podemos tratar dela facilmente. — Fezum
interregno. — A querida Dorothea não tem dormido bem. Acho quelhe
vou preparar uma coisita que a irá ajudar.

Olhou-a com o olhar vítreo, como um homem excitado de modo


assustador
– e extremamente estimulante.

— Nesse caso… — Daemon segurou-lhe o rosto entre as mãos. Osseus


lábios tocaram nos dela.
Ficou desapontada pela delicadeza – até Daemon a beijar
verdadeiramente.
Cruel, dominador, implacável, exigente, dolorosamente excitante.
Porém, Hekatah era demónia-morta. O seu corpo não tinha capacidades
de responder daquela forma, não podia…
Deixou-se inundar por aquele beijo, atordoada por sensações ausentes
há séculos do seu corpo.
Por fim, Daemon desviou-se.
Hekatah fitou-o embasbacada. — Como… Não é possível.

— Julgo que acabámos de provar que é mentira — trauteou Daemon.


— Costumo castigar as mulheres que me mentem.
— Ai sim? — sussurrou Hekatah, a balançar. Não conseguia desviar
oolhar do prazer cruel naqueles olhos. — Eu trato da Dorothea.
Voltou a beijá-la. Desta vez, Hekatah sentiu o escárnio na docilidade.
Nada havia de dócil em Daemon. Nada.
— Eu trato da Dorothea — repetiu. — E então seremos parceiros.
— Pois eu prometo, minha querida — ronronou Daemon, — irás tertudo
o que mereces.
371
9 / Terreille

Dorothea acordou já a manhã ia longa e gemeu face à dor no estômago.


Parecia que as dores do período da lua de todo um ano se tinham
instaladonas suas entranhas. Não podia adoecer nesta altura. Não
podia. Talvez uma
chávena de chá de ervas ou um caldo. Fogo do Inferno, estava com frio.
Porque raio estaria com tanto frio?

A tiritar, arrastou-se para fora da cama – e tombou.

A seguir ao choque surgiu o medo ao lembrar-se da infusão que


Hekatah
lhe tinha preparado na noite anterior. Para a ajudar a dormir. Em
queestaria a pensar para não testar algo vindo das mãos de Hekatah?

Não pensara. Não…

A cabra. Aquele pedaço de carne putrefacta andante devia ter-lhe


lançado
um feitiço de coacção para que bebesse – e para que esquecesse quefora
coagida a beber.

Sentiu os músculos a comprimirem-se, a contorcerem-se.

Não estava enferma. Fora envenenada.

Precisava de ajuda. Precisava…

A porta da cabana abriu-se e fechou-se.

Arquejando devido ao esforço, rolou de lado e deu de caras com


Daemon
Sadi.

— Daemon — choramingou, tentando estender uma mão na sua


direcção.
— Daemon... ajuda...
Daemon não se mexeu, continuando a observá-la. Sorriu. — Parece
que o sangue-de-feiticeira fez parte da infusão da noite passada —
disse,
prazenteiramente.

Dorothea estava sem fôlego. — Foste tu. Foste tu.

— Estavas a tornar-te inconveniente, querida. Não é nada pessoal.


Sentiu a estocada da injúria mesmo através da dor física. — Hekatah…
— Sim — ronronou Daemon, — Hekatah. Vá lá, não te preocupes,
querida. Levantei um escudo auditivo e de protecção à volta da cabana
paraque não te incomodem durante todo o dia.
Saiu da cabana.
Tentou arrastar-se até à porta, tentou gritar a pedir ajuda. Não
conseguiu
concretizar nenhuma dessas vontades.
Não demorou muito até o seu mundo ficar reduzido à dor.

372
Daemon fechou a porta da barraca-prisão que tinha vindo a usar
sempre
que precisava de ficar nalgum sítio durante algum tempo. Do bolso
docasaco retirou as Jóias que fora reaver à cabana de Dorothea – o anel
Negrode Saetan; o berloque, o anel e o Anel de Honra de Lucivar.
Conhecia-amuito bem, sabia exactamente onde procurar o esconderijo.
Não demoraramais do que um minuto a contornar os feitiços de
protecção de Dorothea ea surripiar as Jóias enquanto falava com ela.

Examinou as Jóias e suspirou de alívio. Ambos tinham colocado


poderosos
escudos a envolver as peças antes de as entregarem àquelas vacas,
pelo que não havia forma de terem sido adulteradas ou contaminadas.
Ainda
assim…

Colocando as Jóias no lavatório, deixou a água correr, acrescentou


algumas
ervas adstringentes para as purificar e deixou-as de molho.

Este seria o último dia, a última noite. Conseguiria aguentar até ao


fim. Tinha de conseguir.

Fechou os olhos. Em breve, meu amor. Mais algumas horas e estarei


acaminho de casa, de regresso aos teus braços. E depois casaremos.

Imaginando Jaenelle a colocar-lhe a aliança de ouro puro no dedo,


sorriu.

E lembrou-se do feitiço de sedução que Hekatah tecera à sua volta.


Oh, tinha-se apercebido, podia tê-lo quebrado facilmente – mas deixara
ocorpo reagir ao tocar Hekatah. Ao beijar Hekatah. Ao odiar Hekatah.

Era só um jogo. Um jogo sórdido e cruel.

Mal teve tempo de pegar no bacio do quarto para vomitar discretamas


violentamente.

10 / Terreille

— É a tua vez, Bastardinho.


Por estar a procurar, por saber o que estava a procurar, Lucivar viu o
intenso
desespero nos olhos de Daemon.
Portanto, manteve-se impassível enquanto Daemon lhe retirava
ascorrentes e o conduzia para a outra barraca-prisão, a que se
encontravamais próxima. E manteve a mesma impassividade enquanto
Daemon desarrumava
febrilmente a pequena cama.

Foi nesse altura que emitiu um angustiado grito de guerra eyrieno


quesobressaltou Daemon de tal forma que caiu sobre a cama.

— Fogo do Inferno, Bastardinho — resmoneou Daemon ao levantar-


se.
— Foi convincente? — perguntou Lucivar serenamente.
373
Daemon ficou petrificado.

As máscaras caíram. Lucivar viu um homem fisica e emocionalmente


exausto, um homem que mal se aguentava em pé.

— Porquê? — perguntou em voz baixa.


— Tive de ganhar algum tempo para Jaenelle. Para isso, precisava
doteu ódio.
Tão elementar. Tão penoso. Daemon lastimaria, lamentaria
profundamente,
mas não hesitaria em arrancar o coração do irmão se fosse isso
que Jaenelle necessitasse. E fora exactamente o que fizera.

— Estás aqui com o consentimento de Jaenelle — disse Lucivar,


querendo
ouvir a confirmação.
— Estou aqui sob as suas ordens.
— Para representares este jogo.
— Para representar este jogo — concordou Daemon, com um ar calmo.
Lucivar acenou afirmativamente com a cabeça e deu uma
gargalhadaamarga. — Bem, Bastardolas, fizeste um bom jogo. —
Vacilou, para logodizer friamente: — Onde estão Marian e Daemonar?

As mãos de Daemon tremiam ligeiramente ao passar os dedos


pelocabelo. — Uma vez que Surreal não teve de aniquilar ninguém com
a Cinzenta
para sair daqui, posso depreender que chegou em segurança ao
esconderijo
onde os deixei. A esta altura, já estarão todos na Fortaleza.

Lucivar deixou que essas palavras fizessem sentido e permitiu-se


ummomento de alívio e júbilo. — E agora, o que irá acontecer?

— Agora vou criar uma sombra de ti e tu vais para a Fortaleza.


Mantém-
te no Vento Vermelho. Os mais escuros estão instáveis.
Sombras. Daemon jamais conseguiria criar sombras tão convincentes.
Pelo menos, sozinho. E Jaenelle… Jaenelle, tendo crescido com
Andulvar
e Prothvar, saberia que um guerreiro eyrieno aceitaria a dor do campo
debatalha, independentemente do aspecto desse campo.

— Do que precisas? — perguntou Lucivar.


Daemon hesitou. — Alguns cabelos, pele e sangue.
— Ora vamos lá levar o jogo até ao fim.
Trabalharam juntos em silêncio. O único som que Lucivar emitiu
durante
todo esse tempo foi um suspiro de alívio quando Daemon lhe colocou
o Anel de Honra no pénis, usando-o para remover o Anel de Obediência
deforma a não ser detectado.
Colocando as Jóias Ébano-Acinzentadas que Daemon lhe devolvera,
observou os passos finais do feitiço que resultaria numa sombra de si
próprio.
E estremeceu ao ver a criatura torturada e angustiada cujos lábios
estavam
retraídos num esgar forçado.

374
— Fogo do Inferno, Bastardolas — disse Lucivar, sentindo-se nauseado.
— O que me fizeste para eu acabar neste estado?
— Não sei — respondeu Daemon penosamente. — Mas estou certoque
Hekatah conseguirá imaginar qualquer coisa. — Hesitou, engoliu
emseco. — Olha, Bastardinho, uma vez na vida, faz o que te dizem. Vai
para aFortaleza. Todos aqueles que mais amas aguardam-te aí.
— Nem todos — disse Lucivar, compassivamente.
— Eu tiro daqui o Senhor Supremo. — Daemon aguardou.
Lucivar sabia o que Daemon aguardava, o que desejava. Queria ouvir
que Saetan não era o único que importava e que ficava para trás.

Lucivar nada disse.

Daemon desviou o olhar e disse com um ar abatido: — Vamos. Resta

uma jogada.

11 / Terreille

Saetan olhava fixamente para as missangas espalhadas pelo chão.


Porquelhes teria Daemon dado tanta importância? E qual seria o motivo
para lheprovocarem tais calafrios?

Silvou de frustração para logo se sobressaltar com o som sibilante.

— Desejaiss compreender issto?


Missangas a flutuar num depósito de água. Draca a segurar uma
pedralisa de forma oval, ligada a um cordel fino de seda. — Uma
esspiral.
A pedra a deslocar-se em movimentos circulares, girando, girando até
atotalidade da água acompanhar essa deslocação, todas as missangas
apanhadas
pelo movimento.

— Um redemoinho — dissera Geoffrey.


— Não — respondera Draca. — Um turbilhão… Irá quase ssempre
efectuar
esspiraiss… Não podeiss alterar a ssua natureza… Mass o turbilhão…
Protegei-a, Ssaetan. Protegei-a com a vossa força e o vosso amor e talvez
nunca
venha a acontecer.
— E se acontecer? — perguntara Saetan.
— Será o fim doss Ssangue.
Fim doss Ssangue.
Fim dos…
Aquelas missangas não eram uma mensagem de Daemon, eram
umaadvertência de Draca. Jaenelle ia entrar em espiral até à
profundidade imensa
de todo o seu poder para libertar o turbilhão. O fim dos Sangue. Fora
porisso que insistira para que o Primeiro Círculo permanecesse na
Fortaleza?
Por ser o único local que poderia resistir àquele poder devastador? Não.
Ja

375
enelle não gostava de matar. Não iria destruir todos os Sangue se
pudesse...

Maldição. Maldição, tinha de recuperar aquela visão. Precisava de


vernovamente aquelas teias para se recordar do único elemento
importanteque lhe estava a escapar. Fora colocado um véu sobre essa
visão para impedir
que se lembrasse até ser demasiado tarde.

Contudo, se ela ia libertar o turbilhão, o que raio estava Daemon a


fazer aqui?

A empatar. A ganhar tempo. A manter Dorothea e Hekatah distraídas.


A fazer joguinhos para… Marian e Daemonar. Seguiu-se Surreal.
OuviraLucivar a gritar há duas horas, mas desde então não dera
qualquer sinal devida. Restava…

As missangas foram cobertas por uma sombra.

Ergueu os olhos e deparou-se com os olhos vítreos de Daemon.

— Chegou a hora de dançarmos — trauteou Daemon.


Podia ter dito algo, mas sentia o odor de Hekatah nas proximidades.
Por isso, deixou que Daemon o conduzisse à barraca-prisão e
continuouem silêncio enquanto era atado à cama.

Quando Daemon se estendeu a seu lado, Saetan segredou: —


Quandotermina o jogo?

Daemon ficou tenso, engoliu em seco. — Dentro de duas horas — disse,


mantendo a voz baixa. — À meia-noite. — Pousou delicadamente a mão
no peito de Saetan. — Não irá acontecer nada. Somente…

Ouviram alguém a encostar-se à porta e ambos sabiam quem estavaà


escuta.
Saetan abanou a cabeça. Tudo tem um preço. — Tens de ser
convincente,
Daemon — murmurou.
Testemunhou a triste resignação e o pedido de desculpas nos olhos
deDaemon antes de o filho o beijar.
E ficou a saber as razões que levaram os Sangue a apelidar Daemonde
Sádico.

Saetan estava deitado de lado, a olhar fixamente para a parede.

Na verdade, Daemon pouco lhe fizera. Muito pouco. Porém, conseguira


convencer a cabra que pairava do outro lado da porta que um
filhoestava a violar o próprio pai, não fazendo nada que impedisse
qualquer umdos dois a voltar a olhar o outro nos olhos. Uma
demonstração de mestria
bastante impressionante.

E muito breve. Ficara preocupado, mas quando Daemon saiu da


barraca,
ouvira um comentário sussurrado e a gargalhada deliciada e
corrosivade Hekatah.

Assim, enquanto Daemon continuava a percorrer e a manter o acam

376
pamento no fio da navalha, Saetan tinha tempo para repousar, para
reunirforças, para pensar.

O jogo terminaria à meia-noite. Que significado teria a meia-noite?


Bem, era considerada a hora mágica, o momento suspenso entre um
dia e ooutro. E teriam decorrido setenta e duas horas desde que
Daemon chegara
ao acampamento.

Saetan levantou-se de supetão. Setenta e duas horas.

Confinado a uma sala de estar na Fortaleza, Saetan andava de um lado


para o outro. — Desde o pôr-do-sol ao nascer do sol. Era essa a duração
daDádiva. Seja Branca, seja Negra, é esse o tempo que demora.

— Isso aplicou-se ao Príncipe das Trevas — dissera Tersa enquanto


encaixava
as peças de um quebra-cabeças. — E quanto à Rainha?
Quando Jaenelle efectuara a Dádiva às Trevas, demorara três dias.
Setenta
e duas horas.

— Mãe Noite — murmurou, sentando-se.


A porta abriu-se. Daemon entrou rapidamente e deixou cair um monte
de roupas na cama.
Antes que Saetan pudesse falar, Daemon agarrou-lhe a nuca com
umadas mãos e com a outra aproximou-lhe uma chávena dos lábios, de
ondecaiu um líquido morno. Não teve outra opção senão engolir ou
engasgar-se.
Engoliu. Passado um instante, desejou ter-se engasgado.

— Fogo do Inferno, o que foi que me deste? — arquejou, ao


mesmotempo que se dobrava e punha a cabeça entre os joelhos.
— Um tónico — disse Daemon. Massajando energicamente as costasde
Saetan.
— Pára — disse Saetan, com rispidez. Virou a cabeça o suficiente
eolhou furiosamente para Daemon. — Um tónico de quem?
— De Jaenelle – com o meu sangue misturado.
Saetan praguejou baixinho, violentamente e com uma enorme
sinceridade.
Daemon crispou-se e resmoneou: — Jaenelle disse que te ia
estimularcomo duas parelhas de cavalos.

— Só alguém que nunca tenha experimentado um destes


tónicozitospoderia descrevê-los com tal ligeireza.
Daemon deixou-se cair de joelhos defronte de Saetan e abriu as
correntes.
— Não consegui encontrar as vossas roupas, por isso trouxe-vos estas.
Não devem ficar mal.

Saetan cerrou os dentes enquanto Daemon lhe massajava as pernas eos


pés. — Onde as foste buscar?

— A um guarda. Já não irá precisar delas.


— Aquelas porcarias devem ter piolhos.
377
— Aguentai — resmungou Daemon. Retirando uma bola de barro
dobolso do casaco, rebolou-a até se tornar num cilindro atarracado. De
seguida,
forçou com cuidado o Anel de Obediência a abrir-se ligeiramente
paradeslizar do órgão de Saetan. Agarrou-se ao barro com a mesma
ferocidadecom que se agarrara à carne.
Pousando o cilindro na cama, Daemon olhou de relance para o pénisde
Saetan e inspirou ruidosamente.

— Não importa — disse Saetan, calmamente. — Sou Guardião. Já


passei
essa fase da vida.
— Mas… — Daemon cerrou os lábios. — Veste isto. — Depois deajudar
Saetan a vestir as calças, voltou a ajoelhar-se para lhe calçar as meiase
as botas. — É quase meia-noite. Vai ser apertado pois ainda temos
umlongo caminho a percorrer até alcançarmos o filamento mais
próximo dosVentos. Mas dentro de poucas horas, estaremos na
Fortaleza. Estaremos
em casa.
A ansiedade desesperada nos olhos de Daemon arrancou o véu à visão.

Duas teias. Uma bolorenta, contaminada. A outra bela, repleta de


contas
brilhantes de energia.

Encontrara uma forma de separar os que viviam segundo os


costumesdos Sangue daqueles que foram desvirtuados por Hekatah e
Dorothea.

Todavia, a terceira teia…

Era Rainha e uma Rainha não podia pedir aquilo que ela própria não

pudesse oferecer. E era, porventura, o único acto egoísta que alguma


vezfizera. Sacrificando-se, não teria de carregar o fardo de todas as
vidas queestava prestes a aniquilar. Mas…

Não sabe. Não lhe disseste. Veio aqui acreditando que estarias à sua
espera
quando regressasse. Oh, criança-feiticeira.

E fora por essa razão que lhe pedira para zelar por Daemon, pois
sabiaque iria necessitar do seu auxílio.

Mas talvez não fosse demasiado tarde. Quiçá existisse ainda uma forma
de evitar, de a deter.
— Vamos — disse, bruscamente.
Daemon envolveu ambos num escudo de visão e escapuliram-se do
acampamento.
Ao chegarem ao local onde podiam apanhar os Ventos, começou a
soprar um vento gélido e cortante.
Saetan parou, inspirou pela boca, saboreando o ar.

— É só vento — disse Daemon.


— Não — respondeu Saetan sinistramente, — não é. Vamos.
378
12 / Terreille

Duas horas mais tarde, Hekatah entrou de rompante na cabana de


Dorothea,
brandindo um cilindro de barro atarracado. — Fomos intrujadas.
Desapareceram
todos. Aquela coisa na barraca-prisão não é Lucivar, é umaespécie de
ilusão. E Saetan… — Arremessou o cilindro. — Aquele canalhado Sadi
mentiu-nos.

Estendida no chão onde estivera todo o dia, Dorothea olhou


insolentemente
para Hekatah. Ao mesmo tempo que os seus intestinos soltavammais
fluidos corporais, começou a rir-se à gargalhada.

13 / Kaeleer

Durante toda a noite, estivera a formar-se uma tempestade – trovões,


relâmpagos,
vento. Agora, com a aproximação da aurora, o vento intensifica-
ra-se, lembrando uma voz.

— Vem — disse Tersa, ajudando Karla a chegar ao sofá. — Agora tensde


te deitar. Morghann, vem até aqui e deita-te no chão.
— O que se passa? — perguntou Khardeen ao ver Morghann a obedecer
e a deitar-se no chão, junto ao sofá. Foi buscar uma almofada e
colocou-
a sob a cabeça da esposa.
— Seria aconselhável que todos se deitassem no chão. Até a
Fortalezavai sentir esta tempestade.
Todos os membros do Primeiro Círculo entreolharam-se, apreensivos,
e obedeceram.

— O que é? — perguntou Karla quando Tersa a envolveu com umbraço


protector e pousou a outra mão no ombro de Morghann.
— Chegou o dia em que se irá exigir o pagamento das dívidas e
osSangue terão de justificar aquilo em que se tornaram.
— Não entendo — disse Karla. — Que significado tem a tempestade?
Clarões de relâmpagos. O vento a uivar.
Tersa fechou os olhos – e sorriu. — Ela está a chegar.
14 / Terreille

Tinha sido muito à justa. Não esperara que a viagem nos Ventos fosse
tão
agitada ou que a resistência física de Saetan se esgotasse tão
rapidamente
– ou a sua própria resistência. Tiveram de sair do Vento Vermelho e
passar
379
ao Azul-Safira e, por fim, na última parte da viagem, viram-se obrigados
apassar ao Verde.

Não podiam desembarcar exactamente na Fortaleza. Tinham sido


erguidos
escudos a circundar o lugar. Por conseguinte, concentrou-se na
JóiaÉbano-Acinzentada de Lucivar – e no único sítio nos escudos que
Lucivarmantinha aberto com as Jóias – e saltou dos Ventos com
Saetan, tão próximo
quanto possível. Não fora suficientemente perto, pois eram dois
homensexaustos que tentavam trepar por um caminho na montanha
íngreme.

E agora, com o portão à vista e a exortação mental de Lucivar para


quese apressassem, Daemon ajudava Saetan a subir a encosta,
debatendo-se acada passo com um vento feroz e sibilante.

Estavam quase a chegar. Quase. Quase.

O céu estava a clarear. O sol surgiria no horizonte a qualquer momento.

Depressa. Depressa.

— Saetan! SAE-TANNNN!
Daemon olhou para trás. Hekatah trepava pela encosta acima. A
cabradevia ter viajado sempre pelo Vento Vermelho para ter ali chegado
logo aseguir a eles.

Sem gastar o fôlego a praguejar, retomou o ritmo o melhor que


conseguiu,
arrastando Saetan.

— Sadi! — gritou Hekatah. — Sacana aldrabão!


— RÁPIDO! — gritou Lucivar. Estava a manter o portão aberto mediante
a Arte, esgotando-se fisica e mentalmente para evitar que se fechassee
os deixasse do lado de fora.
Mais perto. Quase lá. Quase.
Daemon agarrou as barras do portão e usou a força da Jóia Negra para

o manter aberto. — Leva-o para dentro — disse, empurrando Saetan


paraLucivar. De seguida, virou-se e aguardou.
Hekatah surgiu no cimo da encosta, deteve-se a alguns metros. —
Sacana
aldrabão!
Daemon sorriu. — Não menti, querida. Disse que ias ter tudo o
quemerecias. — Largou o portão. Fechou-se com um estrondo e foi
resguardado
pelo último escudo.

Quando se virou e correu pelo pátio exterior, ouviu Hekatah a gritar.


E ouviu um uivo selvagem, um som pleno de júbilo e sofrimento, de
raivae celebração.

Atravessou a soleira da porta para a segurança da Fortaleza e no


instante
seguinte Jaenelle soltou o turbilhão.

«Tenss de acordar« disse uma voz profunda e sibilante. «Tenss de


acordar.
«

380
Daemon abriu os olhos. Demorou um momento a perceber
porqueparecia tudo tão… estranho… e a reajustar-se. Demorou outro
instante aconfirmar que ainda estava ligado, ainda que
longinquamente, ao corpo – eque o corpo jazia no chão frio em pedra da
Fortaleza onde tinha tombado,
juntamente com Lucivar e Saetan, quando Jaenelle libertou o seu poder
absoluto.

«Soiss o triângulo que ajudou a moldar a teia de sonhoss. Agora tendess


de amparar o sonho. O tempo urge.«

A gemer, sentou-se e olhou em redor. E despertou de imediato.

Mãe Noite, onde estamos?

Tocou Saetan que estava deitado de bruços e abanou Lucivar.

«Fogo do Inferno, Bastardolas« disse Lucivar. Ergueu a cabeça. «Merda.


«

Ambos estenderam os braços e abanaram Saetan, até o acordar.

«Pai, acorda. Temos problemas« disse Daemon.

«O que é agora?« Resmungou Saetan. Apoiou-se nos cotovelos.


Arregalou
os olhos. «Mãe Noite.«

«E que as Trevas sejam misericordiosas« acrescentou Lucivar. «Onde


estamos?«

«Algures no abismo. Acho eu.«

Com cautela, puseram-se em pé e olharam à volta.

Estavam à beira de um precipício profundo e amplo. Uma teia


Opalaestava estendida sobre o precipício. Por baixo deles, encontravam-
se teiasnas cores das Jóias mais escuras. Sobre eles, encontravam-se
teias nas cores
das Jóias mais claras.

«O que fazemos aqui?« perguntou Lucivar.

«Somos o triângulo que ajudou a dar forma ao sonho« disse Daemon.


«Devemos amparar o sonho.«

«Não me venhas com enigmas, Bastardolas« rosnou Lucivar.


Daemon devolveu-lhe o rosnado.

Saetan ergueu a mão. Calaram-se ambos.

«Quem te disse isso?« perguntou Saetan.

«Uma voz sibilante.« Daemon vacilou. «Parecida à de Draca, mas


masculina.
«

Saetan acenou afirmativamente com a cabeça. «Lorn.« Voltou a olhar


em volta.

Muitíssimo acima deles, lampejavam relâmpagos.

«Por que razão Jaenelle te pediu para vires a Hayll, Daemon?«


perguntou
Saetan.

«Disse que o triângulo tinha de se manter unido para sobreviver. Que

o espelho tinha a força para manter os outros dois a salvo.«


381
«Viu isso numa teia entrelaçada?«

«Não. Foi-lhe transmitido pela Tecedeira de Sonhos.«

Lucivar começou a vociferar.

O olhar de Saetan era perspicaz, penetrante, meditativo.

Os relâmpagos aproximaram-se ligeiramente.

«Pai, irmão, amante« disse Saetan suavemente.

Daemon anuiu, recordando-se do triângulo que Tersa lhe desenharana


palma da mão. «O pai veio primeiro. O irmão fica entre ambos.« Quando
os dois olharam para ele, agitou-se constrangidamente. «Algo que Tersa
me
disse há tempos.«

«Avisos de Tersa, da Rainha arachniana e de Draca« disse Saetan. «Um


homem pode até ignorar um aviso por sua conta e risco, mas os três?«
Abanou
a cabeça devagar. «Não creio.«

Os relâmpagos aproximaram-se um pouco mais.

«Está tudo muito bem« resmoneou Lucivar, «mas preferia uma ordem
directa.«

«Estass teiass são a melhor magia que voss posso providenciar« disse
Lorn, irritado. «Usem-nass para amparar o sonho. Se ela ass atravessar
atodass, regressará àss Trevass. Irão perdê-la.«

Lucivar bufou. «Foi bastante claro. Ora então, onde…« Olhou para
cima quando os relâmpagos voltaram a relampejar. «O que é aquilo?«

Olharam para cima em simultâneo, aguardaram o relâmpago seguinte

– e vislumbraram o pequeno ponto escuro a cair a pique na direcção


das
teias.

«Jaenelle« sussurrou Daemon.

«Vai atravessá-las« disse Saetan. «Temos de tentar usar a nossa


própriaforça para tentar desacelerar a velocidade.«

«Muito bem« disse Lucivar. «Como vamos fazer?«


Saetan olhou para Daemon e, em seguida, para Lucivar. «Pai, irmão,
amante.« Não aguardou por uma resposta. Elevou-se a toda a
velocidadepara interceptar a Feiticeira antes que atingisse a teia
Branca.

Lucivar observou por um instante, virou-se para as teias com os


olhossemicerrados. «Se as atingir no centro, irá rasgá-las. Portanto,
temos de a rebolar.
« Pousou a mão no ombro de Daemon, apontando com a outra mão.
«Afastado da beira para que não corras o risco de embater contra as
paredes
do precipício, mas longe do meio. Depois, enrola-te e rebola ao
mesmotempo que usas a tua própria força como travão.«

Daemon olhou para as teias. «Isso servirá para quê?«


«Por um lado, o movimento contrário deverá diminuir a velocidade. E
se ficar enrolada nas teias…«
«Formaremos um casulo de poder.«

382
Lucivar anuiu. «Eu vou para a Rosa. Não sei que forças restam a
Saetan.
Se ainda a conseguir aguentar, juntarei a minha força à dele. Se não…«

«Onde devo posicionar-me?« perguntou Daemon, disposto a submeter-


se às aptidões e à experiência de combate de Lucivar.

«Na Verde. Devo conseguir aguentá-la até lá.« Lucivar hesitou. «Boa-
sorte, Bastardolas.«

«Para ti também, Bastardinho.«

Lucivar levantou voo.

Decorrido um momento, Daemon ouviu o bramido de desafio de Saetan


quando a teia Branca se estilhaçou. Através do clarão, conseguia
verduas pequenas silhuetas a cair, a cair.

Desceu, planando, até à teia Verde.

A teia Amarela estilhaçou-se. Seguiu-se a Olho-de-Tigre.

Ouviu o grito de guerra de Lucivar.

Quando a teia Rosa se estilhaçou, viu um rodopio de cor ao


mesmotempo que Lucivar rebolava, debatendo-se com a velocidade da
queda.

Embateram na Azul-Celeste. Agarrado às pernas da Feiticeira, Lucivar


rebolou para o outro lado, apanhando grande parte da teia antes de a
atravessar.

A Violácea. A Opala.

Daemon juntou-se a ele entre a Opala e a Verde.

«Solta-a, Bastardinho, antes que estilhaces a Ébano-Acinzentada.«

Com um grito desafiador, sofrido e receoso, Lucivar soltou-a.

Daemon sentiu-se invadido pela fúria. O amor impeliu-o. Daemon ea


Feiticeira embateram na teia Verde. Rebolou, mas não tinha a perícia
deLucivar. Irromperam junto ao centro da teia. Continuou a rebolar
para que,
quando atingissem a Azul-Safira estivessem mais perto da beira.
Rebolouem sentido contrário, envolvendo-a no poder da teia.
Atravessaram a Azul-Safira, mas já não estavam a cair à mesma
velocidade.
Dispunha de um pouco mais de tempo para se preparar, para planear,
para vazar a força das suas Jóias Negras na luta contra a queda.

Embateram na Vermelha, rebolaram, sustiveram-se por um segundo


antes de caírem para a Cinzenta. Somente metade dos filamentos
daCinzenta se partiu de imediato. Empregou todas as suas forças ao
puxarpara trás. Quando a outra metade se partiu, rebolou para cima
enquanto ateia os puxava para baixo, balançando, em direcção à
Ébano-Acinzentada.
Contrariou o balanço, oscilando em sentido contrário, abrandando o
movimento,
abrandando.

Quando o lado oposto da Cinzenta se quebrou, planaram em direcçãoà


Ébano-Acinzentada. A teia cedeu quando a atingiram, esticou,
esticouum pouco mais até que os filamentos começaram a partir-se.

383
As Jóias Negras de Daemon estavam praticamente exauridas,
masaguentou-se, aguentou-se, aguentou-se enquanto flutuavam até à
teia Negra.

E nada mais aconteceu.

A tremer, com calafrios, Daemon olhou atónito para a teia Negra,


nãoousando acreditar.

Demorou um minuto até conseguir soltar as mãos que ainda


estavamcerradas. Quando conseguiu largá-la, flutuou com cautela
sobre a teia. Junto
ao ombro de Jaenelle, reparou em dois curtos filamentos partidos.
Comdesvelo, alisou os fios Negros sobre as outras cores que formavam o
casulo.

Mal a conseguia distinguir, entrevia somente o ínfimo chifre em espiral.


Mas era suficiente.

«Conseguimos« sussurrou ao mesmo tempo que os seus olhos se


enchiam
de lágrimas. «Conseguimos.«

«Ssim« disse Lorn, com uma serenidade imensa. «Agiram correctamente.


«

Daemon olhou para cima, olhou em redor. Voltou a olhar para a


Feiticeira
que se desvaneceu.

Tudo se desvaneceu.

15 / Terreille

Saetan abriu os olhos, tentou mover-se e percebeu que estava


aprisionadoentre dois corpos quentes que o envolviam. Os seus filhos.

Oh, criança-feiticeira. Espero que o custo tenha compensado.

Tentou mover-se novamente, resmungou por não conseguir e, porfim,


deu uma cotovelada a Lucivar.

Por sua vez, Lucivar também resmungou entre dentes e aninhou-


seainda mais.

Deu outro encontrão a Lucivar pois não podia, nem desta forma
simples,
afastar Daemon. Não o podia fazer neste momento.
O resmoneio de Lucivar transformou-se num rosnado, mas por fim láse
mexeu, o que despertou Daemon.

— Fico encantado por acharem que sou uma almofada confortável


— disse Saetan com sarcasmo, — mas um homem com a minha idade
prefere
não dormir num chão frio em pedra.
— Nem um homem da minha idade — protestou Lucivar, levantando-
se. Girou os ombros, alongou as costas.

Daemon sentou-se com um gemido.

Saetan observou-o e viu o brilho que crescia nos seus olhos, o júbilo, a

ansiedade. Partiu-lhe o coração.

384
Aceitou a ajuda de Daemon para se levantar – e reparou na frieza
comque Lucivar tratava o irmão. Iria passar. Teria de passar. Contudo,
Lucivarnão estaria acessível até ver Marian e Daemonar, por isso seria
despropositado
provocar a fúria eyriena. Além disso, estava terrivelmente cansadopara
enfrentar Lucivar neste momento.

Ao caminhar para as portas, juntaram-se a ele, um de cada lado.

Crepúsculo. Passara um dia inteiro.

Atravessaram o pátio externo. Lucivar abriu o portão.

Uma rajada de vento fez algo esvoaçar, chamando a atenção de Saetan.


Um pedaço de tecido do vestido de uma mulher. Do vestido de Hekatah.

Não fez qualquer referência ao facto.

— Não me sinto com forças por agora — disse, calmamente. — Vocêsos


dois podiam...
Lucivar olhou para sul, Daemon para norte. Decorrido um minuto,
os seus rostos apresentavam a mesma expressão sinistra,
deliberadamentecalma.

— Restam alguns Sangue — disse Daemon, espaçando as palavras.


— Poucos.
— Igualmente — disse Lucivar.
Alguns. Somente alguns. Que as doces Trevas permitam uma
respostadiferente em Kaeleer. — Vamos para casa.

Sentiu a diferença logo que atravessaram o Portão entre os Reinos.


Quando saíram da Sala do Altar, Daemon e Lucivar olharam em
simultâneo
na direcção que os levaria ao Primeiro Círculo – e aos outros.

Saetan virou na direcção oposta, não se sentindo preparado para


lidarcom o que o aguardava. — Venham comigo. — Embora com alguma
relutância,
obedeceram.

Levou-os até um terraço de muros baixos com vista para Riada, a


povoação
dos Sangue mais próxima.

Daemon olhou para a povoação, lá em baixo. Lucivar olhou na direcção


da comunidade eyriena.
Daemon suspirou de alívio. — Não sei quantas pessoas ali
habitavamontem, mas aqui ainda persistem muitos Sangue.

— Falonar! — gritou Lucivar. Olhou para eles com um sorriu de orelha


a orelha. — Toda a comunidade. Estão bem. Bastante abalados, mas
estão bem.
— Graças às Trevas — murmurou Saetan. E as lágrimas brotaram,
deorgulho e de pesar, em doses iguais. Prothvar dissera que era um
campode batalha diferente, ainda que um excelente campo para se
lutar. Estava
certo. Era um campo de batalha meritório. Ao invés de testemunharem
a
385
transformação de mais amigos em demónios-mortos, partiram
sabendoque esses amigos sobreviveriam. Char, Dujae, Morton, Titian,
Cassandra,
Prothvar, Mephis, Andulvar. Sentiria a falta de todos. Mãe Noite, como
iriater saudades deles. — E o Sangue cantará ao Sangue. Cantaram
sublimemente
a melodia, meus amigos. Cantaram sublimemente.

Também teria de contar a Lucivar e a Daemon sobre o que sucedera

– e a Surreal. Mas ainda não. Agora não.


Temia esse momento, mas sabia que não poderia detê-los por
muitomais tempo. — Venham, crias. Estou certo de que a assembleia
vai ter alguns
comentários a fazer.

Fora pior do que estava à espera.

A assembleia e os rapazolas caíram em cima de Lucivar, que


abraçavaMarian e Daemonar. Cumprimentaram Daemon com um
comedimentodistante. À excepção de Karla que disse: — Beijinho,
beijinho — e que obeijara, de facto. E de Surreal, que olhara Daemon
friamente e dissera: —
Estás uma lástima, Sadi. — Saetan tê-la-ia repreendido por esse
comentáriose Daemon não tivesse retrucado mordazmente que os
elogios de Surrealeram sempre imensamente calorosos – e se ela não
tivesse sorrido abertamente
face ao comentário.

E de Tersa, que segurara o rosto do filho entre as mãos e o olhara


nosolhos. — Tudo se resolverá, Daemon — disse, carinhosamente. —
Confia
em quem vê. Ficará tudo bem.

Saetan não estava certo de Daemon se ter apercebido da indiferença,


não estava certo se Daemon tinha sequer reparado em quem o
cumprimentara
e em quem não o tinha feito. Esquadrinhava continuamente a divisão,
à procura de alguém que não estava presente – alguém que não iria
estar presente.

Estava a tentar pensar numa desculpa plausível para afastar


Daemondos outros quando Geoffrey surgiu à porta. — Solicitam a vossa
presençano Trono das Trevas. Draca quer ver-vos.

Ao saírem ordenadamente da sala, Saetan colocou-se ao lado de


Lucivar.
— Fica junto ao teu irmão — disse, em voz baixa.
— Julgo que seria melhor…
— Não penses, Príncipe, limita-te a cumprir ordens.
Lucivar olhou-o dos pés à cabeça e avançou para alcançar Daemon.
Surreal enfiou o braço no de Saetan. — Lucivar está lixado?
— Pode dizer-se que sim — respondeu Saetan, causticamente.
— Se achas que poderá ajudar, posso dar-lhe um belo pontapé nos
tomates.
Embora me pareça que assim que Marian se aperceba do motivo
daarrelia de Lucivar, fará muito mais e melhor do que qualquer um de
nós.
386
Saetan deu uma gargalhada abafada que era também uma lamentação.

— Ora isso vai ser interessante. — Ficou repentinamente sério. —


Daemonfez o mesmo jogo contigo.
— Pois fez. Mas há alturas em que a melhor forma de enganar
uminimigo é convencendo um amigo.
— A tua mãe disse-me algo idêntico em tempos – depois de me dar
um murro.
— Deveras? — Surreal sorriu. — Quem sai aos seus não degenera.
Decidiu que seria melhor não lhe pedir esclarecimentos sobre
aquelaafirmação.

Desconcertado, Daemon aguardou a comunicação que Draca ia fazer.


Não tinha importância. Teria de ir sorrateiramente a Amdarh nos
próximos
dias e falar com o joalheiro, Banard, para que criasse uma aliança
paraJaenelle. Adquirira a esse joalheiro uns brincos para lhe oferecer
no Winsole apreciara o que vira do trabalho do homem.

O aniversário de Jaenelle aproximava-se. Será que se importaria de


secasar no dia do aniversário? Bem, talvez ele se importasse. Não estava
disposto
a partilhar a celebração do casamento com mais nada. Mas
podiamrealizá-lo pouco tempo depois. Ainda estaria cansada e a
recuperar do feitiço,
mas podiam passar a lua-de-mel num sítio tranquilo. Não
importavaonde.

Onde estava Jaenelle? Possivelmente, estaria já nos seus aposentos, a


repousar.

Quem sabe se era isso que Draca lhes ia comunicar – que Jaenelle
evitara
a guerra, que Kaeleer estava a salvo. Logo que esta comunicação
terminasse,
sairia sorrateiramente e iria aconchegar-se junto dela. Bem,
primeiroprecisava tomar um banho. O odor que exalava não era muito
agradável.

Onde estava Jaenelle?

Foi nesse momento que olhou para Lorn e sentiu um lampejar de


inquietação.

Não. Salvaram-na. O triângulo salvara-a. Consumira-se imensamente,


ascendera tão acima dela própria que caíra a pique, mas os três
detiveram
a queda. Detiveram a queda.

Lucivar surgiu a seu lado, tão próximo que os seus ombros tocaram-
se. Saetan aproximou-se e posicionou-se do outro lado, com Surreal por
perto.

Draca pegou num objecto que estava no assento do Trono, vacilou e,


por fim, virou-se de frente para todos.

Daemon ficou petrificado.

Tinha nas mãos o ceptro de Jaenelle. Todavia, o metal estava retorcido

387
e as duas Jóias Ébano estilhaçadas. Não estavam apenas exauridas.
Estilhaçadas.
Bem como o chifre em espiral.

— A Rainha de Ebon Asskavi partiu — disse Draca, serenamente.


— A Corte dass Trevass cessou de exisstir.
Ouviu-se alguém gritar. Um grito repleto de pânico, raiva, negação
esofrimento.
Só quando Lucivar e Saetan o agarraram é que Daemon se
apercebeuque a pessoa que gritava era ele próprio.

16 / Kaeleer

— De que serviu? — questionou Gabrielle, zangada, ao mesmo tempo


queas lágrimas caíam livremente. — De que serviu oferecermos as
memóriasse não iam ter qualquer serventia?
Surreal passou os dedos pelo cabelo e decidiu que um estalo a
alguémprovavelmente não iria servir de muito. Bem, ela iria sentir-se
melhor. Graças
às Trevas que conseguira, juntamente com o Tio Saetan, sedar
Daemonfortemente. Não iria conseguir suportar o que se estava agora a
passar.

Gostaria de aprofundar mais esta coisa das memórias, mas estava


maisintrigada pela calma e impassibilidade de Tersa – e sentia-se um
pouco zangada.
Seria necessário que alguém fizesse uma grande asneira para enfurecer
Tersa.

— Sim, Tersa — disse Karla, irritada, — de que serviu?


— O sangue é o rio da memória. E o Sangue cantará ao Sangue —
respondeu
Tersa.
Gabrielle foi lacónica e obscena.

— Cala-te, Gabrielle — disse Surreal, bruscamente.


Tersa estava sentada na mesa longa defronte do sofá, ao lado de
ummonte de cubos de construção em madeira. Surreal acocorou-se a
seu lado.

— Para que eram as memórias? — perguntou, com serenidade.


Tersa afastou o cabelo emaranhado do rosto. — Para alimentar a teia
de sonhos. Já não estava intacta. Vivera, crescera.

— Mas morreu! — lamentou-se Morghann.


— A Rainha desapareceu — disse Tersa, ligeiramente inflamada. —
Era apenas isso que representava para vós?
— Não — respondeu Karla. — Era Jaenelle. E isso era suficiente.
— Exactamente — disse Tersa. — Ainda é suficiente.
Surreal abanou-se, mal se atrevendo a ter esperança. Tocou na mão
deTersa, aguardou até se certificar de que a mulher lhe estava a prestar
atenção.
— A Rainha desapareceu, mas Jaenelle não?

388
Tersa vacilou. — É muito cedo para sabermos. Contudo, o
triânguloevitou que o sonho regressasse às Trevas e agora os parentes
lutam paramanter o sonho no corpo.

Esta afirmação levantou protestos de Gabrielle e de Karla.

— Esperem lá — disse Gabrielle, olhando de relance para Karla,


queaquiesceu. — Se Jaenelle está ferida e precisa de uma Curandeira,
devíamos
estar com ela.
— Não — negou Tersa, soltando a rédea à sua ira. — Vocês não deviam
estar com ela. Não conseguiriam olhar para o estado do corpo e
continuar aacreditar que ainda pudesse sobreviver. Porém, entre os
parentes não reinaa dúvida. Os parentes só acreditarão nisso e em mais
nada. E é por isso que,
se for possível fazê-lo, serão eles a concretizá-lo. — Pôs-se em pé de
umsalto e correu para fora da sala.
Surreal aguardou um instante e seguiu-a. Não encontrou Tersa,
masdeparou-se com o Colmilho Cinzento que rondava por perto,
ganindo ansioso.

Examinou o lobo. Os parentes não têm dúvidas. Recolher-se-iam e


lutariam
por aquele sonho com garras e dentes, jamais o abandonando. Bem,
poderia nunca vir a ter um focinho para farejar os rastos, mas podia
aprender
muito bem a ser teimosa como um lobo. Fincaria os dentes na crença
de
que Jaenelle estava simplesmente a recuperar algures num recanto
privado,
depois de realizar um feitiço de uma dificuldade extrema. Fincaria os
dentes
e agarrar-se-ia a esse pensamento.

Por Jaenelle.
Por Daemon.
E por si própria, pois queria a amiga de volta.

389
CAPÍTULO DEZASSEIS

1 / Kaeleer

Daemon desceu a escadaria para o jardim do Paço, o jardim com duas


estátuas.

Quando acordou do sedativo que Surreal e Saetan lhe administraram,


pedira para deixar a Fortaleza. Os dois acompanharam-no. Bem como
Tersa.

Mas Lucivar não viera.

Transcorrera uma semana.

Não tinha a certeza como passara esses dias. Passaram, simplesmente.


E à noite…

À noite, arrastava-se da sua cama para a cama de Jaenelle visto que era

o único sítio onde conseguia dormir. O odor dela permanecia e, na


penumbra,
quase conseguia acreditar que se tinha ausentado por pouco tempo,
que uma manhã ao acordar, iria encontrá-la aninhada junto a si.
Olhou com atenção para a estátua do macho, com a pata/mão
curvadade modo protector sobre a mulher adormecida. Parte humano,
parte animal.
A ferocidade a proteger a beleza. Porém, agora via algo mais nos
seusolhos: a angústia, o preço que, por vezes, tinha de ser pago.

Virou-se, dirigiu-se à outra estátua e fitou o rosto da mulher –


aquelerosto familiar e adorado – durante muito, muito tempo.
As lágrimas brotaram – novamente. A dor era constante.

— Tersa não se cansa de me dizer que ficará tudo bem, para confiarem
quem vê — disse à estátua. — Surreal insiste para que não desista,
queos parentes conseguirão trazer-te de volta. Contudo, quando faço
uma pergunta
directa a Tersa sobre ti, hesita, diz que é prematuro tirar conclusões,
diz que os parentes estão a lutar para que o sonho permaneça no corpo.
A
lutar para que o sonho permaneça no corpo. — Deu uma gargalhada
amarga.
— Não estão a lutar para que o sonho permaneça no corpo, Jaenelle.
Estão a esforçar-se por reconstituir-te o suficiente de modo a que exista
algo
390
para onde o sonho possa regressar. E tu sabias o que iria suceder, não
sabias?
Quando decidiste fazê-lo, já sabias.

Andou para trás e para a frente, às voltas e regressou à estátua.

— Fi-lo por ti — disse baixinho. — Ganhei tempo, entrei no jogo.


Por ti. — Prendeu a respiração, soltando-a num soluço. — Estava ciente
de que tinha de cometer actos que nunca seriam perdoados. Soube-
oquando me pediste que fosse a Hayll, mas não deixei de o fazer. P-
porti. Porque ia regressar para ti e tudo o resto não importava. P-porque
ia
regressar para ti. Porém, deixaste-me ir sabendo que não estarias
aquiquando regressasse, sabendo... — Caíu de joelhos. — Disseste que
nãoquerias sacrifícios. Fizeste-me prometer que não ia haver sacrifícios.
Mas
o que é isto, Jaenelle? O que é? Assim que regressasse, c-casaríamos…
E
abandonaste-me. Maldita sejas, Jaenelle, fi-lo por ti e abandonaste-me.
Abandonaste-me.
Sucumbiu na relva junto à estátua, a soluçar.

Lucivar pousou um punho na parede em pedra e inclinou a cabeça.


Mãe Noite. Daemon entrara no jogo na expectativa de regressar para

o seu próprio casamento. Mãe Noite.


Estava agora neste local por Marian o ter atacado nessa manhã, dando-
lhe a ver toda a força do temperamento que vivia sob a sua
naturezaserena. Dissera-lhe que, sim, Lucivar tinha sofrido, tinha
sofrido para ossalvar. Perguntara-lhe se teria preferido perder
efectivamente a esposa e ofilho para que os seus sentimentos fossem
poupados. E disse-lhe que o homem
com quem casara teria a coragem de perdoar.

Fora isso que o trouxera até aqui.

Mas agora…

Na altura em que eram ambos escravos em Terreille, tinha participado


em variadíssimos jogos com Daemon, tinham-se usado um ao outro,
tinham-se magoado mutuamente. Por vezes, faziam-no como forma de
aliviar
a própria dor, outras vezes por uma razão mais nobre. Contudo,
foramsempre capazes de olhar para além dessas jogadas e perdoar o
sofrimentopois não estava mais ninguém envolvido. Bateram-se um
com o outro, mas
também se bateram um pelo outro.
Presentemente, tinha mais pessoas, um círculo alargado para amar.
Uma esposa, um filho. Possivelmente fora esse facto que marcara a
diferença.
Não precisava de Daemon. Porém, fogo do Inferno, Daemon precisava
dele neste momento.

Mas era mais do que isso. Há treze anos, acusara Daemon


injustamentede ter assassinado Jaenelle. Fora o primeiro golpe
marcante que terminaracom Daemon no Reino Distorcido, durante oito
anos, perdido na loucura.

391
E Daemon perdoara-o pois, como dissera, já tinha sentido a perda de
umirmão uma vez e não queria voltar a senti-la.

Daemon acreditara numa mentira penosa durante treze anos. Lucivar


acreditara numa mentira penosa durante dois dias. Marian tinha razão
ematacá-lo.

Por conseguinte, iria fazer o que estivesse ao seu alcance para corrigira
situação, por si e também por Daemon. Durante os longos anos de
escravidão,
em que só se tinham um ao outro, a ira inflamava-se por vezes
emmomentos de ódio, mas o amor sempre estivera subjacente.

Desencostando-se da parede, Lucivar desceu a escadaria e ajoelhou-


sena relva junto a Daemon. Tocou no ombro do irmão.

Daemon olhou para Lucivar, o seu rosto devastado pelo


sofrimentoprofundo, e lançou-se nos braços abertos do irmão.

— Quero tê-la de volta — chorou Daemon. — Oh, Lucivar, quero-a


de volta.
Lucivar abraçou-o com força, ao mesmo tempo que as lágrimas
lhecaíam pelo rosto. — Eu sei, meu velho. Eu sei.

2 / Kaeleer

— Vais-te embora? — Lucivar pôs-se em pé de um salto e olhou


espantadopara Saetan. — O que queres dizer com “ir embora”? Para
onde? — A caminhar
de um lado para o outro por detrás das duas cadeiras defronte
dasecretária em madeira escura, apontou um dedo acusador ao pai. —
Nãovais para o Reino das Trevas. Não resta ninguém. E não vais ficar
sozinho.
— Lucivar — disse Saetan, calmamente. — Lucivar, ouve, por favor.
— Quando o sol brilhar no Inferno.
«Bastardinho« disse Daemon num fio masculino Ébano-Acinzentado.
«E porque raio te limitas a ficar aí sentado?« perguntou Lucivar.
«Também
é teu pai.«

Daemon reprimiu a irritação. «Deixa que fale, Bastardinho. Se não


gostarmos do que ouvirmos, nessa altura agiremos.« — Vais-te embora
por
causa de Sylvia? — perguntou a Saetan.

Lucivar imobilizou-se, praguejou em voz baixa e voltou a sentar-se.


— Em parte — disse Saetan. — Um Guardião não deve
permanecerentre os vivos. Não dessa forma. — Vacilou, para
acrescentar de seguida:
— Se ficar… Não posso ficar e ser um amigo e encorajá-la a… Merece
estarcom alguém que lhe possa dar mais do que eu posso neste
momento.
— Podias vir para Ebon Rih e viver connosco — disse Lucivar.
— Agradeço-te, Lucivar, mas não. Ofer… — Saetan respirou fundo.
392
— Ofereceram-me uma posição na Fortaleza como
historiador/bibliotecário
assistente. Geoffrey diz que está a começar a sentir o peso dos anose
culpa-me por ter mais trabalho agora do que nunca pois fui eu que deia
conhecer a biblioteca da Fortaleza à assembleia e está na altura de fazer
alguma coisa útil.
— A Fortaleza fica apenas a uma montanha de distância da nossa
casaalcantilada — disse Lucivar.
— Não vais levar o Daemonar para a biblioteca.
Lucivar sorriu mordazmente para Saetan. — Levaste-me aí quandotinha
a idade de Daemonar?

— Uma vez — disse Saetan, friamente. — E, ocasionalmente,


Geoffreyainda me faz recordar essa pequena aventura. — Olhou de
relance para Daemon.
— Visitarei os dois, nem que seja para saber os sarilhos que andam
a provocar.
Daemon sentiu a tensão a aliviar-se. Queria ver o seu pai, mas não
emEbon Askavi. Jamais voltaria a entrar na Fortaleza.

— A família é proprietária de três condados em Dhemlan —


disseSaetan. — Dividi-os entre vocês. Daemon, ofereço-te o Paço, bem
como
todas as terras e respeitantes contribuições. Lucivar, ficarás com as
terrasjunto à fronteira com Askavi. A outra propriedade será de ambos,
conjuntamente.
— Não preciso de terras — protestou Lucivar.
— Ainda és o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih porque o
teu povo deseja que sejas o Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon
Rih.
Todavia, Daemonar poderá não querer governar – ou poderás vir a ter
outros
filhos ou filhas que desejem um tipo de vida diferente. Serás o
vigilantedessas terras pois a família SaDiablo tem sido vigilante dessas
terras durante
milhares de anos. Compreendido?
— Sim, senhor — disse Lucivar, num tom calmo.
— E tu? — disse Saetan, olhando vincadamente para Daemon.
— Sim, senhor — respondeu, no mesmo tom calmo. Bem, isso explicava
o motivo pelo qual Saetan insistira em passar os últimos dois meses
aensinar-lhe o negócio da família. Pensara que era uma forma de o
manterentretido e demasiado ocupado para grandes devaneios.
Acolhera a ocupação de bom grado, especialmente quando se apercebeu
que Saetan assumira o fardo de ajudar Geoffrey numa tarefa
extremamente
difícil. Os resultados tinham sido comunicados a Daemon e a
Lucivar, mas sabia que não teria suportado reunir as informações.
Mais de quarenta por cento dos Sangue em Terreille tinham
desaparecido.
Desaparecido sem deixar rasto. Trinta por cento tinham sido quebrados
e só podiam usar Arte básica. Os Sangue que restaram em Terreille

393
estavam ainda aturdidos devido à devastação – e à liberdade repentina.

Não perguntara o que acontecera a Alexandra, Leland e Philip – e


Saetan
não divulgara essa informação. Ou, se o fez, fê-lo unicamente a
Wilhelmina.

Os números na Pequena Terreille eram idênticos aos do Reino de


Terreille.
Contudo, as restantes regiões de Kaeleer encontravam-se
maioritariamente
incólumes – à excepção de Glacia. Karla debatia-se na tentativa devoltar
a unir o povo e voltar a forma corte. A contaminação que Dorotheae
Hekatah espalharam nos Sangue foi destruída, mas as cicatrizes
permaneceram.

Tudo tem um preço.

— E a casa de Jaenelle em Maghre? — perguntou Lucivar.


Daemon abanou a cabeça. — Wilhelmina que fique com ela.
Decidiuinstalar-se em Scelt e…
— A casa foi alugada para Jaenelle — disse Saetan, com firmeza. —
Continua a ser de Jaenelle. Se não tiverem objecções quanto a
Wilhelminaaí viver até encontrar uma casa, assim seja.

Daemon cedeu. Também gostava da casa, mas não estava certo


deconseguir voltar a viver nela. E não sabia se o seu pai acreditava
realmenteque Jaenelle ia regressar ou se não estava disposto a fazer o
que quer quefosse que confirmasse que não ia regressar. Afinal, tinham
passado doismeses sem notícias, apenas a garantia persistente – e
inútil – de Tersa, deque tudo se iria resolver. — É tudo?

Leu a mensagem nos olhos de Saetan. — Já vou ter contigo — disse


aLucivar quando o irmão se levantou e olhou para Daemon.
A sós, Saetan disse com prudência: — Sei o que sentes relativamentea
Ebon Askavi.
Daemon disse precipitadamente: — Espero sinceramente que
venhasvisitar-me, Pai, pois jamais voltarei a pôr os pés na Fortaleza.
Saetan disse afavelmente: — Tens de ir, uma vez mais. Draca quer ver-
te.

3 / Kaeleer

— Quero mostrar-voss uma coisa. — Draca abriu uma porta fechada à


chave
e afastou-se.
Daemon entrou num vasto salão que era uma galeria de retratos.
Dúzias
e dúzias de quadros nas paredes.
Ao início, só viu um. O último.
Incapaz de olhar, voltou-lhe costas e começou a examinar os restantes

394
por ordem. Alguns eram extremamente antigos, mas todos tinham
sidoelaborados requintadamente. Ao caminhar lentamente à volta do
salão,
percebeu que os retratos abarcavam as espécies que constituíam os
Sangue

– e eram unicamente fêmeas.


Ao chegar ao último, observou o retrato de Jaenelle demoradamente e
olhou para a assinatura. Dujae. Claro.
Virou-se e olhou para Draca.

— Todass eram sonhoss tornadoss realidade, Príncipe — disse Draca


docilmente. — Algumass só tiveram uma espécie de sonhador,
outrassconstituíram uma união. Foram Feiticeirass.
— Mas… — Daemon voltou a percorrer os quadros com os olhos.
— Não vejo o retrato de Cassandra.
— Era uma feiticeira de Jóia Negra, a Rainha de Ebon Asskavi.
Massnão era Feiticeira. Não era ssonhoss tornadoss realidade.
Abanou a cabeça. — A Feiticeira usa a Negra. É sempre uma Rainhade
Jóia Negra.

— Não. Esse não é ssempre o ssonho, Daemon. Exisstiram


ssonhosstranquiloss e ssonhoss possantess. Exisstiram Rainhass e
cantadeirass. —
Fez uma pausa, aguardou. — O vosso ssonho era tornar-voss Conssorte
daRainha de Ebon Askavi. Correcto?
O coração de Daemon começou a bater desenfreadamente. — Julguei
que eram a mesma pessoa. Julguei que a Feiticeira e a Rainha de
EbonAskavi fossem a mesma pessoa.

— E sse não forem?


Sentiu os olhos a arder com lágrimas. — Se não fosse a mesma pessoa,
se tivesse de escolher entre a Rainha e Jaenelle… nunca teria posto os
pésneste sítio. Perdoai-me, Draca. Eu…

Tentou passar por ela, mas viu que Draca moveu a mão como se
fossedetê-lo. Podia ter-se esquivado sem dificuldades, mas, por ser
quem era,
não podia realizar um acto tão desrespeitador.

A mão vetusta de Draca moveu-se devagar, pousando no braço de


Daemon.

— A Rainha de Ebon Asskavi desapareceu — disse, com uma


serenidade
extrema. — Mass aquela que é o Coração de Kaeleer, aquela que
éFeiticeira, vive.
4 / Kaeleer

— Aceitarás o rendimento que estabeleci para ti — resmoneou Saetan


enquanto
passeava com Surreal num dos jardins do Paço. Julgara que esta se395
ria uma tarefa simples, algo com que ocupar algum do seu tempo
enquantoaguardava que Daemon regressasse da Fortaleza.

Surreal resmoneou do mesmo modo. — Não preciso que me dês


umrendimento.

Parou e virou-se para Surreal. — És ou não és família?

Avançou para Saetan até os seus sapatos se tocarem. — Sim, sou


família,
mas…

— Então aceita a porra do rendimento! — gritou Saetan.


— Porquê? — gritou também.
— Porque eu amo-te! — berrou Saetan. — E quero dar-te isso.
Surreal rogou-lhe pragas.
Fogo do Inferno, por que tinham de ser todos os seus filhos tão
teimosos?
Controlou a fúria. — É uma prenda, Surreal. Por favor, aceita.
Prendeu o cabelo atrás das orelhas. — Posto dessa forma...
Ouviu-se um lobo numa invulgar série de uivos e latidos.

— Não é o Colmilho Cinzento — disse Surreal.


Saetan ficou com os nervos à flor da pele. — Não. Pertencem à
alcateiados bosques a norte.
Os olhos de Surreal encheram-se de preocupação. — Um deles
regressou?
Que significam estes sons?

— Os Tigre usam tambores para passarem mensagens – como


divertimento:
uma dança, uma reunião improvisada — respondeu Saetan,
distraidamente.
— Os lobos ficaram intrigados com o sistema e desenvolveramuns
quantos uivos específicos.
Ouviu-se a mesma série de uivos e latidos.

— O Colmilho Cinzento podia ter-me dito — protestou Surreal. — Oque


significam estes?
— Significam que devemos atentar numa mensagem.
O lobo voltou a elevar a voz numa canção diferente, à qual se
juntououtro lobo. E outro. E outro.
Atento, Saetan começou a chorar – e a rir. Só havia uma razão para
levar os lobos a juntarem as vozes daquela forma.
Surreal agarrou-lhe no braço. — Tio Saetan, o que é?

— É uma canção de exaltação. Jaenelle regressou.


5 / Kaeleer
O Outono estava a começar. Passara quase um ano desde que chegara
aKaeleer.

396
Daemon pousou com cuidado a pequena Carruagem no prado e saiu.
Na orla do prado, Ladvarian aguardava-o.

Durante semanas, enfurecera-se e suplicara, implorara e praguejara.


Não servira de nada. Draca teimava em dizer que não sabia o local
exactoonde os parentes tinham escondido Jaenelle. Dizia também que a
recuperação
estava ainda numa fase extremamente delicada e uma presença forte

– e emoções complicadas – poderiam interferir no processo. Por fim,


desesperada,
Draca sugerira a Daemon que fizesse algo de útil.
Por isso, atirou-se ao trabalho. Todas as noites escrevia uma carta a
Jaenelle, descrevendo como tinha sido o seu dia, desabafando os seus
sentimentos.
Duas ou três vezes por semana, dirigia-se à Fortaleza e importunava
Draca.

Por fim, a mensagem chegara. Os parentes tinham feito tudo o que


podiam.
A recuperação não estava concluída, mas o que restava iria
demoraralgum tempo e Jaenelle deveria estar num covil aquecido dos
humanos.

Fora-lhe indicado o local onde deveria levar a Carruagem que


transportaria
Jaenelle de volta ao Paço.

Atravessou o prado e parou a alguns centímetros de Ladvarian. O


sceltita
estava magríssimo, mas os seus olhos castanhos estavam repletos
dealegria – e de circunspecção.

— Ladvarian — cumprimentou Daemon tranquilamente, com respeito.


«Daemon.« Ladvarian remexeu-se de modo apreensivo. «Os machos
humanos… Alguns machos humanos dão uma importância exagerada
àaparência.«

Entendeu o aviso, ouviu o receio. E percebia agora a razão pela qualnão


o tinham deixado vir antes – tinham receio que não conseguisse
suportar
a visão. O receio permanecia.

— Não importa, Ladvarian — disse afavelmente. — Não importa.


O sceltita perscrutou-o. «Está muito débil.«
— Eu sei. — Draca dissera o mesmo à exaustão, antes de permitir
queviesse.
«Dorme muito.«

Fez um sorriso amarelo. — Eu quase nem dormi.

Convencido, Ladvarian virou-se. «Por aqui. Tem cuidado. Há muitas


teias de protecção.«

Olhando em redor, Daemon viu as teias entrelaçadas capazes de


enredar
a mente de uma pessoa, arrastando-a para estranhos sonhos –
oupesadelos hediondos.

Caminhou com prudência.


Caminharam durante alguns minutos até chegarem a um trilho que

397
levava a uma enseada abrigada. Uma enorme tenda estava colocada
bastante
distante da linha de água. O tecido colorido devia manter afastada aluz
do sol, mas parecia que tinha sido tecido ligeiramente solto para deixar
entrar ar.

Mais perto da água, podiam ver-se vários castelos de areia mal feitos.
Sorriu ao ver Kaelas a tentar ajeitar a areia com as enormes patas.

As abas frontais da tenda estavam afastadas, dando a ver a mulher


quedormia no interior. Vestia uma saia comprida de cores em
redemoinho. Acamisa azul-arroxeada estava desabotoada e deslizara
para os lados, expondo-
a da cintura para cima.

Daemon olhou para ela e correu, afastando-se da tenda.

Deteve-se a alguns metros e tentou respirar normalmente enquanto


oseu estômago se contorcia e retorcia.

Os parentes tinham feito o melhor que conseguiram. Dedicaram meses


de devoção concentrada e perseverante para conseguirem esta
recuperação.
Jamais iria querer saber que aspecto tinha quando a trouxeram para
este local.

Sentiu que Ladvarian se aproximava. Uma vez que o sceltita vira


oaspecto inicial de Jaenelle, talvez não conseguisse compreender a
reacçãode Daemon. — Ladvarian…

«Ergueu-se das teias curativas prematuramente« disse Ladvarian num


tom de voz amargo e recriminatório. «Por causa de ti.«

Daemon virou-se devagar, com o coração a sangrar do golpe verbal.

«Tentámos dizer-lhe que não estavas ferido. Tentámos convencê-la a


permanecer mais tempo nas teias curativas. Tentámos dizer-lhe que a
Ins…
que Tersa te diria que ia regressar, que o Senhor Supremo tomaria
conta dasua cria. Mas ela não parava de dizer que estavas magoado e
que prometera.
Manteve-se nas teias até as suas entranhas sararem e depois ergueu-
se. Mas
ao ver…«

Daemon fechou os olhos. Não. Doces Trevas, não. Devia ter sofrido
dores atrozes, devia ter padecido. O que não teria acontecido se tivesse
permanecido
nas teias curativas.

— Tersa disse-me — afirmou, com a voz embargada. — Uma e outravez.


Mas… tudo o que sabia era que Jaenelle prometera casar comigo e
queme abandonara, e… — Não conseguiu prosseguir.
«Talvez nós te pudéssemos ter dito« disse Ladvarian, relutante, depois
de um longo silêncio. «Achámos que os humanos não iriam acreditar
queela pudesse recuperar – pelo menos não acreditariam com um
ânimo conveniente.
Porém, se te tivéssemos contado acerca das teias, talvez conseguisses
acreditar.«

Seria improvável. Independentemente da vontade que teria tido em

398
acreditar, as dúvidas ter-se-iam infiltrado – e poderiam ter destruído
tudo oque queria salvar. — Tersa disse-me que tudo iria ficar bem. Não
a ouvi.

Mais silêncio. «É difícil acreditar quando temos a pata presa numa


armadilha.
«

Aquela compreensão, tanto perdão, magoavam. Olhou para o sceltita,


precisando ver a verdade. — Ladvarian… estropiei-a?

«Não« disse Ladvarian, docilmente. «Recuperará, Príncipe. Está a


recuperar
de dia para dia. No entanto, o processo será mais demorado.«

Daemon dirigiu-se à tenda e entrou.

Desta vez, viu unicamente Jaenelle.

«Está intacta« disse Ladvarian, ansioso.

Acenando afirmativamente com a cabeça, Daemon descalçou-se, despiu


o casaco e deitou-se com cautela ao lado de Jaenelle, apoiando-se
numcotovelo para poder olhá-la. Estendeu a mão, passou com os dedos
timidamente
no cabelo louro e curto, receando até esse ligeiro toque. Estava tãodébil.
Extremamente débil. Mas estava viva.

«Tivemos de lhe cortar o cabelo rente.«

Tendo em conta as condições em que chegou, foi uma solução


práticapara as questões de higiene que os parentes devem ter
enfrentado.

Passou-lhe os dedos pela face. O seu rosto, embora terrivelmente


emaciado,
era o mesmo.

Nesse momento, reparou na Jóia que repousava no peito de Jaenelle.


À primeira vista, julgou tratar-se de uma Violácea. Mas, nas
profundidadesda Jóia, vislumbrou reflexos Rosa, Azul-Celeste e Opala.
Verde, Azul-Safirae Vermelho. Cinzento e Ébano-Acinzentado. E um
indício de Negro.

«Chama-se Aurora do Crepúsculo« disse Ladvarian. «Não existe Jóia


igual.« E o sceltita saiu, deixando-o sozinhos.

Observou-a enquanto dormia. Limitou-se a observá-la. Depois de algum


tempo, reuniu a coragem para deixar que os dedos explorassem um
pouco.

Ladvarian tinha razão. Estava intacta, mas era pouco mais do que
umdelicado revestimento de pele sobre órgãos e ossos.

Enquanto um dedo contornava o mamilo delicadamente, deteve-se,


pensou na camisa aberta e olhou para a praia onde Ladvarian se
encontrava,
junto a Kaelas, a observá-lo. «Não sabia que eu vinha, pois não?«

«Não« respondeu Ladvarian.

Não teve de perguntar porquê. Se não tivesse conseguido aceitar o


quevia, os parentes nunca lhe teriam dito que tinha vindo – e Ladvarian
tê-la-ialevado para outro lugar, para junto de outrem, de modo a
recuperar durante
os meses de Inverno.

Sabia a resposta. Amava-a e desejava unicamente estar com ela. Mas

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apesar do que Ladvarian dissera... devido ao que Ladvarian dissera... já
não
tinha tanta certeza de que ela o iria desejar.

Nesse momento, Jaenelle agitou-se ligeiramente e Daemon teve a


certeza
de que não iria a lado nenhum a não ser que ela o mandasse embora.

Apoiando-se com cuidado para não a magoar, inclinou-se e roçou


oslábios levemente nos dela.

Daemon afastou-se um pouco. Os perturbados olhos azul-safira


fitavam-
no.

— Daemon? — Tanta incerteza naquela voz.


— Olá, meu amor — disse, com a voz enrouquecida pelo esforço
paranão chorar. — Tive saudades tuas.
Jaenelle deslocou a mão devagar, com esforço, até a pousar no rosto
deDaemon. Os seus lábios arquearam-se num sorriso. — Daemon.
Desta vez, o seu nome soara a uma carícia encantadora, a uma
promessa.

Fim

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