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Pestilência Os Quatro Cavaleiros de Laura Thalassa

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COPYRIGHT © 2018 LAURA THALASSA

COPYRIGHT © 2022 EDITORA CABANA VERMELHA


Título original: Pestilence.
Todos os direitos reservados.
Diretora Editorial: Elaine Cardoso
Tradução: Erika Robles
Preparação: Mariana Félix
Revisão: Renata Broock
Revisão final: Rebecca Pessoa / Nadja Moreno
Capa: Mirella Santana
Projeto Gráfico - Diagramação: Elaine Cardoso

ISBN: 978-65-87221-48-9

Esta obra foi revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico,
mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso da internet, sem permissão
expressa da autora (Lei 9.610 de 19/02/1998).
Para Teresa, que se importa avidamente,
doa infinitamente, e ama totalmente.
Você é algo que o mundo precisa mais.
Observei quando o Cordeiro abriu o primeiro dos sete selos. Então ouvi
um dos seres viventes dizer com voz de trovão: “Venha!” Olhei, e diante de
mim estava um cavalo branco. Seu cavaleiro empunhava um arco, e foi-lhe
dada uma coroa; ele cavalgava como vencedor determinado a vencer.

— Apocalipse 6:1-2 Nova Versão Internacional


SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
CAPÍTULO 48
CAPÍTULO 49
CAPÍTULO 50
CAPÍTULO 51
CAPÍTULO 52
CAPÍTULO 53
CAPÍTULO 54
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS.
SOBRE A AUTORA
SINOPSE

Eles desceram à Terra: Pestilência, Guerra, Fome, Morte.


Quatro cavaleiros montando seus corcéis ruidosos, correndo para os quatro
cantos do mundo. Quatro cavaleiros com o poder de destruir toda a
humanidade. Eles desceram à Terra, e vieram para acabar com todos nós.

Quando Pestilência chega à cidade de Sara Burns, uma coisa é certa:


todos que ela conhece e ama estão marcados para morrer. A menos, é claro,
que o cavaleiro de aparência angelical seja impedido de continuar, o que é
exatamente o que Sara tem em mente quando ela atira na fera profana,
derrubando-a de seu corcel.
Pena que ninguém a tinha informado que Pestilência não pode ser morto.
Agora, o cavaleiro, muito vivo e muito chateado, a fez prisioneira, e está
ansioso para fazê-la sofrer. Só que, quanto mais tempo ela está com ele,
mais incerta fica sobre os verdadeiros sentimentos dele em relação a ela... e
os dela em relação a ele.
E agora, bem, Sara ainda pode salvar o mundo. Mas, para isso, terá que
sacrificar seu coração no processo.
PRÓLOGO

ELES VIERAM COM A tempestade.


O céu surgiu, grandes plumas de nuvens rolando e se agitando juntas. O
ar do deserto ficou denso, com sensação de umidade e um cheiro podre
incomum.
Relâmpagos reluziram.
BOOM!
O mundo acendeu como se estivesse em chamas, e ali estavam – quatro
grandes homens bestiais, montados em seus corcéis terríveis.
As montarias monstruosas empinaram, dando patadas no ar, enquanto
seus mestres olhavam para o mundo com olhos estranhos e temíveis.
Pestilência, com sua coroa pousada na fronte.
Guerra, com sua lâmina de ferro erguida.
Fome, uma foice e uma balança nas mãos.
E Morte, o flagelo da Morte, suas asas escuras fechadas nas costas, uma
tocha de fumaça biliosa apertada em sua mão.
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, chegando para reivindicar a Terra e
acabar com os mortais que ali moravam.
O céu escureceu, e os corcéis avançaram, suas patas erguendo poeira ao
galopar.
Norte. Leste. Sul. Oeste.
Os cavaleiros cavalgaram para os quatro cantos do mundo e, no seu
encalço, máquinas quebraram, fusíveis estouraram. A internet caiu e
computadores morreram. Motores falharam e aviões despencaram do céu.
Pouco a pouco, as grandes invenções do mundo deixaram de existir, e o
globo escorregou para a escuridão.
E assim foi, e assim será, pois a Era do Homem acabou, e a Era dos
Cavaleiros começou.
Eles vieram para a Terra, e vieram para acabar com todos nós.
CAPÍTULO 1

Ano 5 dos Cavaleiros

— VAMOS TIRAR NO PALITO de fósforo.


Volto meus olhos cor de mel para os pequenos pedaços de madeira no
punho de Luke. Ele acende um na nossa mesa áspera, a chama queimando
brilhante por um segundo antes de apagar.
Ao nosso redor, as luzes do teto zumbem da maneira angustiante que a
maioria dos eletrônicos faz hoje em dia, como se a qualquer momento
pudessem morrer.
Luke segura o fósforo com a ponta preta.
— O perdedor fica para trás para colocar nosso plano em ação.
Essa foi a decisão dolorosa que tomamos. Uma pessoa condenada a
morrer, as outras três a viver.
Tudo para que pudéssemos matar aquele filho da puta pavoroso.
Luke pega o fósforo queimado junto com outros três que não tinham sido
acesos, e então coloca as mãos sob a mesa para os misturar.
Do lado de fora, além de um dos nossos caminhões de bombeiro
desativados, todos os nossos pertences necessários estão empacotados,
prontos para uma fuga rápida.
Se, é claro, formos um dos três sortudos.
Luke finalmente ergue a mão, as hastes dos palitos salientes no seu
punho fechado.
Felix e Briggs, os outros dois bombeiros, vão primeiro.
Felix puxa um palito…
Ponta vermelha.
Ele solta a respiração. Posso ver que quer relaxar na cadeira; seu alívio é
óbvio. Mas é muito machão e muito ciente do resto de nós para fazê-lo.
Briggs pega o dele…
Ponta vermelha.
Luke e eu trocamos um olhar.
Um de nós vai morrer.
Posso ver Luke se preparando para ficar para trás. Vi essa expressão no
rosto dele apenas uma vez, quando estávamos apagando um incêndio que
havia praticamente nos encurralado. O fogo se movia como se o diabo o
estivesse guiando, e Luke tinha a expressão de um morto-vivo.
Nós dois sobrevivemos àquela experiência. Talvez sobrevivêssemos a
esse diabo também.
Ele ergue a mão fechada para mim. Dois palitos de madeira para fora.
Chances meio a meio.
Não penso muito. Pego um dos fósforos. Preciso de um segundo para
registrar a cor.
Preto.
Preto significa… preto significa morte.
O ar escapa dos meus pulmões. Dou uma olhada para meus colegas de
time, que estão com expressões variadas de horror e pesar.
— Todos temos que morrer um dia, certo? — pergunto.
— Sara… — Era Briggs. Tenho quase certeza de que ele gosta de mim
mais do que um colega e amigo deveria.
— Vou no seu lugar — fala, como se sua coragem valesse algo. Você
não pode sair com uma garota se estiver morto.
Fecho a mão em volta do fósforo.
— Não — retruco, a determinação assentando em meus ossos. — Já
decidimos isso.
Ficando para trás. Estou ficando para trás.
Respiro fundo.
— Quando tudo isso acabar — digo —, alguém, por favor, conte para
meus pais o que aconteceu.
Tento não pensar na minha família, que evacuou com o resto da cidade
no início da semana. Minha mãe, que costumava cortar as cascas dos meus
sanduíches quando era pequena; e meu pai, que estava muito chateado
quando contei que havia me voluntariado para ficar no último turno.
Naquele dia, ele olhou para mim como se eu fosse uma mulher morta.
Deveria encontrá-los na cabana de caça do meu avô. Isso não vai
acontecer mais.
Felix concorda.
— Cuido disso, Burns.
Levanto-me. Ninguém mais está se movendo.
— Vão — ordeno, afinal —, ele vai estar aqui em dias. Se não horas.
Devem ver que não estou de sacanagem, porque não perdem tempo
discutindo ou se demorando muito. Um por um, eles me dão abraços
apertados, puxando-me para perto.
— Deveria ter sido diferente — Briggs sussurra no meu ouvido, o último
a me soltar.
Deveria, poderia, teria. Não tem sentido remoer isso agora. O mundo
inteiro deveria ser diferente. Mas não é, e é isso o que importa.
Observo por uma das grandes janelas enquanto os homens vão embora,
Luke soltando o cavalo da garagem, Briggs e Felix pegando suas motos,
seus pertences atados atrás.
Espero até estarem bem longe antes de começar a recolher minhas
coisas. Meus olhos passam pela minha mochila, cheia com todo o tipo de
equipamento de sobrevivência – e um livro com os melhores trabalhos de
Edgar Allan Poe – antes de pousarem na espingarda do meu avô, o metal
oleado particularmente letal.
Sem tempo para medo, não até que a façanha esteja feita.
Posso estar condenada a morrer, mas vou levar aquele cuzão infernal
comigo.
CAPÍTULO 2

NINGUÉM SABE DE ONDE OS quatro cavaleiros vieram, só que um


dia apareceram em seus corcéis, cavalgando por cidades e áreas selvagens.
E enquanto passavam de cidade em cidade, a tecnologia humana quebrava
como ondas sobre as pedras.
Ninguém sabia o que significava. Especialmente quando todos os Quatro
Cavaleiros desapareceram de uma vez, tão repentinamente quanto tinham
aparecido.
Nossos eletrônicos nunca se recuperaram, mas começamos a racionalizar
os eventos inexplicáveis: tinha sido uma erupção solar. Terroristas. Pulsos
eletromagnéticos sincronizados. Esqueça que nenhuma dessas explicações
fazia qualquer sentido – eram mais razoáveis do que algum apocalipse
bíblico, então fizemos caretas e engolimos essas teorias de meia tigela.
E então, Pestilência reapareceu.

[...]

Sento-me na nossa mesa por um longo tempo depois que meus colegas –
antigos colegas – foram embora, passando os dedos pela madeira polida da
espingarda do meu avô, acostumando-me com a sensação dela nas minhas
mãos.
Além de me familiarizar com a arma pelas duas últimas semanas quando
atirei para caramba em algumas latas de alumínio, faz anos desde que
manuseei uma arma de fogo. No total, matei apenas uma criatura com essa
arma (um faisão cuja morte assombrou meus sonhos aos doze anos).
Vou ter que usar novamente.
Levanto-me, dando mais uma olhada pela janela. Minha moto e o trailer
que amarrei na rabeira estão no final da estrada, minha comida, kit de
primeiros socorros e outros suprimentos presos atrás. Para além da minha
moto, a natureza canadense se empoleira nas colinas que fazem limite com
a nossa cidade de Whistler. Quem pensaria que um cavaleiro viria aqui,
para este canto solitário do mundo?
Num ímpeto, vou até a geladeira e pego uma cerveja – o mundo pode
estar acabando, mas foda-se, eu tenho cerveja.
Abrindo a lata, ando até a sala de estar e ligo a televisão. Nada.
— Ah, puta que o pariu. — Vou sofrer uma morte horrível de merda, e a
televisão decide que hoje é o dia que vai parar de funcionar.
Bato sobre ela com a mão aberta. Nada ainda.
Murmurando xingamentos que deixariam meu avô orgulhoso, chuto a
televisão inútil, mais por irritação do que qualquer outra coisa. A tela oscila
à vida, e uma imagem chuviscada de uma jornalista aparece, seu rosto
deformado pelas faixas de cor e distorções que o aparelho faz.
— …parece estar se movendo pela Colúmbia Britânica… na direção no
Oceano Pacífico… — É difícil entender as palavras da repórter sob o ruído
da estática. — …Relatos da Febre Messiânica no seu encalço… —
Pestilência precisa apenas cavalgar por uma cidade para esta ser infectada.
Pesquisadores – aqueles que continuam dedicados ao seu trabalho
mesmo depois da tecnologia cair – ainda não sabem muito a respeito dessa
praga, só que é chocantemente contagiosa e o vetor primário de transmissão
é o cavaleiro. Mas um nome foi dado a ela mesmo assim: a Febre
Messiânica, ou apenas a Febre. O nome foi inventado por canastrões, mas é
isso que o mundo se tornou – canastrões, santos e pecadores.
Desligando a televisão, pego a mochila, a arma e saio, assobiando a
música tema de Indiana Jones. Talvez fingir que isso é uma aventura e sou
a heroína me leve a pensar menos no que vou ter que fazer para salvar
minha cidade e o resto do mundo.
Passo a maior parte do dia e boa parte da noite montando acampamento
perto da rodovia Sea to Sky, a rota que é mais provável que ele pegue. Por
Deus, como espero que o cavaleiro passe enquanto ainda está claro. Minha
mira é uma merda em plena luz do dia, mas à noite é mais plausível que eu
atire em mim mesma do que nele.
Tendo em vista como está minha sorte hoje, há uma chance, uma boa
chance, de que eu vá foder com tudo. Talvez Pestilência faça um desvio, ou
decida ser esperto e se aproxime por outra direção. Talvez passe sem eu
sequer perceber.
Talvez, talvez, talvez...
Ou talvez até coisas aterrorizantes e selvagens tenham uma pitada de
lógica.
Pego a arma e munição extra, espreito para perto da rodovia, e me
acomodo para esperar.

[...]

Ele vem com a primeira neve da temporada.


O mundo inteiro está quieto na manhã seguinte enquanto os flocos de pó
branco cobrem a paisagem e fazem a estrada ficar com um brilho perolado.
Mais neve flutua e se acomoda, e tudo isso parece ridiculamente bonito.
Repentinamente, os pássaros alçam voo das árvores. Eu me assusto
quando os vejo bem alto acima de mim, seus corpos escuros contra o céu
encoberto. Então, de uma dúzia de locais diferentes, lobos começam a uivar,
o som enviando um tremor primitivo pela minha coluna. É como um aviso,
e no seu encalço, o resto da floresta ganha vida. Predadores e presas fogem
e passam por mim. Guaxinins, esquilos, coelhos, coiotes – todos correndo.
Vejo até um puma entre eles.
E então eles estão longe.
Solto uma respiração trêmula.
Ele está vindo.
Agacho na floresta escura, espingarda apertada nas mãos. Verifico o
receptáculo da arma. Removo e recarrego os cartuchos apenas para garantir
que estão no lugar certo. Ajusto e reajusto minha pegada.
Enquanto estou conferindo pela segunda vez a munição no meu bolso, o
cabelo da minha nuca eriça. Bem devagar, ergo a cabeça, o olhar fixo na
rodovia abandonada.
Escuto antes de vê-lo. O barulho abafado dos cascos do seu corcel ecoa
na manhã fria, primeiro tão baixo que quase acho que estou imaginando.
Mas então fica cada vez mais alto, até ele aparecer.
Perco segundos preciosos olhando boquiaberta para essa… coisa.
Ele está coberto com uma armadura dourada e montado em um cavalo
branco. Em suas costas está um arco e uma aljava. Seu cabelo loiro está
contido por uma coroa de ouro, e seu rosto – seu rosto é angelical,
orgulhoso.
Ele é quase demais para se olhar. De tirar o fôlego demais, nobre demais,
sinistro demais. Não esperava isso. Não esperava me distrair ou esquecer da
minha tarefa mortal. Não esperava me sentir… abalada por ele. Não com
todo esse medo e ódio chafurdando no meu estômago.
Mas estou completamente dominada por ele, o primeiro cavaleiro do
apocalipse.
Pestilência, o Conquistador.
CAPÍTULO 3

NINGUÉM SABE POR QUE OS CAVALEIROS chegaram há cinco


anos, ou por que desapareceram logo em seguida, ou por que agora
Pestilência, e apenas Pestilência, retornou para desencadear a devastação
dos vivos.
Claro, Deus e o mundo tinham as respostas para essas perguntas, a
maioria tão plausível quanto a fada do dente, mas ninguém realmente teve
uma chance de encurralar um desses cavaleiros e arrancar as verdadeiras
respostas deles.
Então podemos apenas supor.
O que sabemos mesmo, é que em uma manhã, sete meses atrás, os
noticiários acordaram para a vida: um cavaleiro, visto perto da região de
Everglades, na Flórida. Levou boa parte de uma semana para o resto da
notícia nos alcançar. De como uma estranha doença estava se espalhando
como uma tempestade pela população de Miami.
E aí, a primeira morte foi anunciada. Fizeram uma grande reportagem
sobre aquela mulher, que monopolizou por poucas horas o título individual
de tragicamente morta. Mas, rapidamente, a contagem de mortos duplicou,
e depois duplicou mais uma vez. Cresceu de forma exponencial, primeiro
assolando Miami, depois Fort Lauderdale, depois Boca Raton. Subiu pela
costa leste dos Estados Unidos, junto com os movimentos desse viajante
sombrio.
Dessa vez, quando o cavaleiro passava por uma cidade, não era a
tecnologia que destruía, mas corpos. Foi aí que o mundo soube que
Pestilência havia voltado.

[...]

Encaro Pestilência. Não é humano mais do que sua montaria é animal.


Na última filmagem que vi, ele estava avançando por Nova Iorque como
uma tempestade, uma flecha posicionada no arco, atirando na debandada de
pessoas que retrocediam gritando, determinadas a fugir dele. Precisei
assistir a reportagem cinco vezes antes de acreditar. E então não pude
assistir mais.
Agora, aqui está ele. Pestilência, em carne e osso.
Pocotó-pocotó-pocotó. O viajante e seu cavalo se movem lentamente.
Neve acumulou nos ombros e cabelo dele. E de alguma forma, até os flocos
de neve agregam à sua beleza estranha e exótica.
Fico parada, com medo de que a névoa saindo da minha respiração
revele minha presença. Mas ele parece totalmente despreocupado com o
que o cerca. Não precisaria ficar; ninguém além de mim escolheria de bom
grado se aproximar tanto da personificação literal da praga.
Sem tirar os olhos de Pestilência, ergo a espingarda. Preciso de apenas
alguns segundos para alinhar a mira. Fixo o alvo no seu peito, que é o único
local que posso esperar acertar de verdade. Meu estômago começa a revirar
enquanto observo o cavaleiro pela mira da arma.
Vi homens morrerem. Vi fogo queimar corpos até serem cobertos por
bolhas que os deixavam além do ponto de reconhecimento, e senti o cheiro
enjoativo de pele cozinhando. E ainda assim. Ainda assim meu dedo hesita
no gatilho.
Eu nunca matei (com exceção do faisão). Esqueça que essa criatura não
é humana, que está talhando um caminho de carnificina pela América do
Norte; ele parece vivo, senciente, humano. É razão suficiente para lutar
comigo mesma.
Ajusto a pegada da arma e fecho os olhos. Se fizer isso, minha mãe vai
viver, meu pai vai viver. Briggs, Felix e Luke vão viver. Meus amigos e
colegas e suas famílias vão viver. O mundo inteiro que Pestilência colocou
sob sua mira vai viver.
Tudo o que tenho que fazer é mover o dedo um centímetro.
Nunca pensei que era covarde, mas por um único segundo, quase desisto.
Foda-se sua moral, Burns, não faça sua morte ser inútil.
Respiro fundo, exalo, e então puxo o gatilho. BOOM!
O som explosivo é quase mais chocante do que o coice da espingarda, o
barulho ecoa pela floresta silenciosa. Na minha frente, o cavaleiro grunhe,
os projéteis o atingem no peito, e a força do impacto o derruba do corcel.
Seu cavalo empina, dá patadas no ar e relincha assustado, e depois foge.
Minha barriga se revolta.
Vou vomitar.
O cavalo ainda está correndo para longe. Talvez o animal esteja
espalhando a praga, e não o homem. Ou talvez ambos estejam.
Não posso arriscar.
— Sinto muito — sussurro enquanto alinho a mira mais uma vez.
É mais fácil puxar o gatilho dessa vez. Talvez porque já o fiz antes,
talvez porque estou pronta para sentir o coice da espingarda ou ouvir a
explosão de fogo e pólvora, ou somente porque matar uma besta é mais
fácil do que matar um homem – não importa que nenhum seja o que
aparenta.
As patas dianteiras do corcel se erguem, o corpo se contorce brevemente
enquanto solta um relincho agonizado. Cai de lado a trinta metros do seu
mestre, e então não se move.
Passo vários segundos recuperando o fôlego. Está feito. Deus me salve,
realmente fiz isso.
Coloco minha arma de lado e vou para a estrada, os olhos colados no
cavaleiro. Sua armadura está uma bagunça. Não consigo dizer se os
projéteis passaram pelo peitoral da sua armadura ou se simplesmente
distorceram o metal, mas vários deles rasgaram aquele rostinho bonito.
Bile quente queima o fundo da minha garganta. Um halo de sangue já
está surgindo em volta da cabeça dele e, apesar do resto ser uma massa de
ferimentos, escuto um gemido.
— Ah, Deus — sussurro. Essa coisa ainda está viva.
Mal tenho tempo de me virar para o lado antes de vomitar. Sua
respiração sai em arfadas molhadas. Ele estica a mão para mim, dedos
roçando minhas botas.
Pulo para trás, soltando um grito e quase caindo de bunda. Nem percebi
como havia me aproximado dele.
Preciso acabar com isso.
Corro de volta para a arma em passos cambaleantes. Por que a deixei
para trás?
Através da névoa do pânico, não consigo lembrar em qual árvore a
deixei, e o cavaleiro ainda está vivo. Desisto de procurar a arma e volto
para o pequeno acampamento que organizei para mim. No meio das minhas
coisas estão fósforos e fluido de isqueiro. Minhas mãos tremem quando os
pego. Volto mecanicamente.
Você vai mesmo fazer isso? Olho como uma boba para os itens na minha
mão. Ele ainda está vivo e você vai queimá-lo enquanto respira. Você, uma
bombeira.
Fogo não é uma morte limpa. Na verdade, deve ser uma das piores
formas de morrer. Não odeio Pestilência o suficiente, porque mal posso
aguentar o pensamento do que estou prestes a fazer.
Volto para o cavaleiro e abro a tampa do fluido de isqueiro, mordo o
lábio até sangrar enquanto viro a garrafa, o líquido gorgolejando dela. Eu o
ensopo, da cabeça aos pés. Preciso parar para vomitar outra vez. Então a
garrafa está vazia.
Não consigo segurar os fósforos que pego. Minhas mãos estão tremendo
tanto que continuo a derrubá-los. Finalmente minha mão se estabiliza o
bastante para segurar um, mas aí o problema é acertar a caixa.
Mais uma vez, o cavaleiro procura meu tornozelo com a mão.
— …favor… — geme pela ruína que deveria ser sua boca.
Um grito me escapa. Acho que era um apelo.
Não olhe para ele.
Preciso de cinco tentativas, mas acabo acendendo um maldito fósforo.
Não derrubo de forma consciente – se dependesse de mim, provavelmente
teria encarado a chama até queimar os dedos –, mas minha mão treme e o
fósforo cai.
As roupas de Pestilência pegam fogo na hora, e o escuto gritar
agonizado. O cheiro de pele queimando flutua dele enquanto o fogo se
inflama.
Percebo tarde demais que a armadura está bloqueando a maior parte do
fogo, fazendo uma morte que já seria lenta, mais demorada ainda. Ele está
queimando muito para eu tocá-lo, senão poderia ter removido a armadura
ou abafado as chamas.
Começo a vomitar, mas não tem mais nada para sair. Não tenho certeza
se poderia ter dado uma morte mais suja a essa criatura.
[...]

Ele grita até não poder mais. Ninguém merece perecer assim. Nem
mesmo um arauto do apocalipse. Eu me afasto, e então minhas pernas
cedem. Isso não parece um ato nobre. Não me sinto uma heroína, salvando
o mundo. Eu me sinto uma assassina.
Deveria ter trazido uma cerveja – ou cinco. Não é algo para se assistir
sóbria.
Mas o faço. Observo sua pele criar bolhas e escurecer e queimar.
Observo-o morrer lentamente, cada segundo tão obviamente agonizante.
Fico parada ali por horas, sentada na estrada abandonada pela qual ninguém
mais viaja. Todo esse tempo, minhas únicas testemunhas são as árvores que
param como sentinelas ao nosso redor.
Neve acumula no corpo dele, derretendo em seus restos fumegantes.
Em algum ponto, desvio o olhar, só para perceber que seu cavalo sumiu,
um rastro de sangue e neve pisoteada guiando para a floresta.
Racionalmente, sei que deveria pegar a espingarda e seguir a trilha do
cavalo até encontrar a besta, e então deveria matá-la.
Eu sei, racionalmente. Mas não significa que o faço.
Chega de mortes por um dia. Amanhã termino o trabalho.
O céu escurece. E ainda assim eu permaneço, até o frio se infiltrar nos
meus ossos.
Por fim, o clima me força a voltar para a barraca. Desdobro meus
membros rígidos, todo meu corpo dolorido e doente. Não sei se a praga da
criatura já me tomou, ou se é apenas o que se sente quando se negligencia
comer ou beber e encontrar abrigo e calor durante um dia inteiro. De
qualquer forma, eu me sinto doente.
Caio de qualquer jeito no saco de dormir, sem me importar em puxá-lo
sobre mim. Para melhor ou pior, eu o fiz.
Pestilência está morto.
CAPÍTULO 4

ACORDO COM A SENSAÇÃO DE UMA mão na minha garganta.


— De todos os humanos desprezíveis que cruzaram meu caminho, você
pode muito bem ser a pior.
Meus olhos se abrem de uma vez. Um monstro se assoma sobre mim, o
rosto marcado por buracos sangrentos, a pele queimada, contorcida e
ausente em alguns lugares. Não o reconheceria se não fossem os olhos.
Azuis angelicais. Aquela merda que estão sempre pintando em tetos de
igrejas.
Esse é meu cavaleiro. Vivo, direto do túmulo.
— Impossível — falo, minha voz baixa.
Ele cheira a cinzas e pele queimada. Como poderia ter sobrevivido
àquilo? Aperta meu pescoço um pouco mais.
— Sua humana tola. Em toda minha existência, você realmente nunca
pensou que outro já não havia tentado o que você falhou em fazer?
“Tentaram atirar em mim em Toronto, me esquartejar em Winnipeg, me
sangrar em Buffalo, e me estrangular em Montreal. Eles tentaram fazer tudo
isso e mais, em tantas outras cidades com nomes que duvido que você
reconheceria porque vocês, humanos volúveis, nunca se importam em olhar
para longe do próprio umbigo.”
Alguém já… tentou? Tentou e falhou.
É como levar um balde de água fria na cara. Claro que já tentaram
acabar com ele. Eu deveria saber. Mas não vi filmagens disso, não ouvi
nenhuma reportagem a respeito das tentativas. Quem quer que tenha tentado
tirá-lo de cena, não conseguiu alertar o público de que ele não pode ser
morto.
— Em todos os lugares que vou — continua —, encontro alguém como
você. Alguém que acha que pode me matar para salvar seu mundo maligno.
É difícil olhar para o rosto dele, grotesco como está. E ainda assim
parece muito melhor do que quando o deixei, quando ele não era nada além
de cinzas.
Pestilência me puxa para perto.
— E agora você vai pagar por ousar fazê-lo.
Ele me ergue pelo pescoço. Qualquer vestígio de sono que perdurava em
mim, desaparece. Estico o braço e toco a mão dele, gritando quando sinto
diretamente ossos e tendões. Como ele sequer pode usar a mão quando tudo
o que resta são ossos e tendões? Sua pegada é como ferro, inflexível.
Pestilência me arrasta para fora da barraca, jogando-me no chão. Minhas
mãos e joelhos afundam na neve rasa. Um momento depois o joelho dele
empurra com força minhas costas. Ele passa as mãos no meu torso,
procurando armas extras. Estremeço com a sensação. Ele está me tocando
com puro osso. Alcança meus bolsos, esvaziando-os, meu canivete suíço e
minha caixa de fósforos vão embora.
No brilho azul profundo que antecede a aurora, a floresta passa uma
sensação quase sinistra. É quieta como um túmulo, seus antigos habitantes
há muito partiram.
Pestilência faz uma pausa depois da inspeção.
— Onde está sua luta? — pergunta ironicamente quando continuo
deitada onde me jogou. — Você foi rápida para agir antes. Onde está aquele
maldito fogo humano agora?
Ainda estou tentando compreender o fato de que o monte de carne
fumegante do qual me afastei ontem à noite se regenerou de alguma
maneira. E fala.
— Não tem nada para dizer? Hmm... — Um momento depois, ele pega
meus pulsos, e os prende juntos sobre minha cabeça com uma corda de
material áspero que tenho quase certeza que ele pegou das minhas coisas.
— Bom, provavelmente é melhor assim. Conversas mortais sempre deixam
algo a desejar.
A pressão contra minhas costas diminui.
— Levante — comanda.
Demoro um segundo longo demais para processar a ordem, então ele usa
a corda para me colocar de pé. Mais uma vez, dou uma boa olhada nele.
Está ainda mais monstruoso do que pensei inicialmente. O cabelo, o
nariz e as orelhas desapareceram. A pele ainda está escura. Ele mal é um
homem, e certamente não é algo que deveria estar vivo.
A armadura dourada continua no lugar, parecendo imaculada mesmo
quando deveria estar carbonizada e cheia de furos de bala. Não posso ver
muito dos braços sob ela, mas devem estar bem ruins, julgando a forma que
o metal chacoalha solto no corpo dele. E as mãos… as mãos não são nada
além de ossos brancos e pedaços de carne, assim como os pés e tornozelos.
Ele amarrou na cintura um dos meus cobertores, provavelmente o afanou
enquanto eu dormia. Faço uma careta com o pensamento.
Pestilência me leva de volta para a estrada, puxando-me pelos meus
pulsos atados. Fico pálida ao ver o cavalo branco dele esperando
pacientemente pelo seu mestre, o flanco coberto de sangue escarlate. O
animal dá patadas no asfalto coberto de neve, bufando. Quando me vê,
relincha ansiosamente, dando um passo para o lado.
Sem ligar para o humor do cavalo, Pestilência prende a outra ponta da
corda na parte de trás da sela do corcel.
Olho para meus pulsos atados e depois para o a montaria dele.
— O que você está fazendo?
Ele me ignora, montando no cavalo.
— Você não vai me matar? — por fim pergunto.
Ele se vira, o rosto destruído parecendo amargo.
— Ah, não, não vou deixar você morrer. Rápido demais. Sofrimento foi
feito para os vivos. E, ah! Como vou te fazer sofrer...
CAPÍTULO 5

PESTILÊNCIA GUIA O CAVALO PELA RODOVIA em um ritmo


acelerado por todo o dia, forçando-me a correr atrás dele, com risco de ser
arrastada pelos pulsos se não conseguir alcançá-lo. É uma pequena benção
ser uma bombeira e não trabalhar em um escritório; estou acostumada a
horas e horas de trabalho penoso. Ainda assim, apesar de conseguir
acompanhar cavalo e cavaleiro, é desconfortável para caralho, e logo
minhas roupas quentes estão pingando de suor.
Passamos por Whistler, e meus olhos correm pelos pontos de referência
familiares. Essa é minha cidade natal, onde nasci, onde passei invernos
fazendo snowboard e verões espirrando água no Lago Cheakamus, onde
aprendi a dirigir o carro da família, e onde tive minha primeira paixonite e
meu primeiro beijo, e todos os momentos importantes que significaram algo
para mim. Tenho que mandar um beijo de adeus para tudo isso conforme
abandonamos a cidade.
Corro por horas, até meus pulsos friccionarem e sangrarem, a exaustão
se aproxima.
Não posso continuar assim para sempre.
Não ajuda que o cavaleiro não dê indicação de quando ou se vai parar.
Cada quilômetro parece uma eternidade. Quando ele por fim sai da rodovia,
quero chorar de alegria. Estou cagando e andando para os horrores que ele
pode ter em mente para mim em seguida. Contanto que signifique que essa
corrida dos infernos acabou, eu aceito.
Seguimos pela estrada coberta de neve até abrir em um “T” em uma
casa. E então – bendito seja Deus – paramos na frente dela.
Pestilência não se importou de olhar para trás, para mim, desde essa
manhã, e mesmo agora, enquanto salta do seu corcel e prende as rédeas em
um poste próximo, eu poderia ser invisível pelo tanto de atenção que ele me
dá. Mas assim que ele rodeia sua montaria, está claro que não se esqueceu
de mim.
Respiro fundo com sua imagem. O cavaleiro angelical em que coloquei
os olhos pela primeira vez está de volta, a pele rasgada de seu rosto agora
quase curada. Ainda tem alguns pedaços vermelhos e pele brilhante onde
ferimentos de queimadura e balas ainda estão cicatrizando, mas ele tem um
nariz, lábios e orelhas. Todos os pedaços importantes estão de volta. Até o
cabelo se regenerou, e as mechas douradas compridas o bastante para passar
os dedos.
Agora que ele está inteiro outra vez, não consigo parar de encará-lo.
Queria que fosse apenas um encantamento horrorizado que atrai meu olhar,
mas estaria mentindo.
Ele é dolorosamente belo, com seus olhos azuis tristonhos e suas maçãs
do rosto altas e orgulhosas, e a definição mortal de sua mandíbula. Uma das
minhas mãos treme enquanto tento, constrangida, colocar uma mecha de
cabelo castanho suado atrás da orelha.
O que há de errado comigo?
— Gostou da sua corrida? — ele pergunta.
— Vai se foder. — Não tenho energia para colocar muito veneno nas
palavras.
De qualquer forma, ele curva o lábio superior ao soltar a corda da sela.
Como o rosto, suas mãos estão quase curadas. Não vejo ossos ou
cartilagem, nenhuma veia ou artéria ou qualquer tipo de entranhas que
várias horas atrás estavam do lado de fora. Mas parecem um pouco
vermelhas e com crostas.
Ele se vira, e tenho uma boa visão do arco e aljava dourados nas suas
costas.
Ele matou humanos com essas armas e vai continuar no futuro, o mundo
está fodido como o inferno porque ele não pode morrer; parando a morte,
não vai parar a matança.
Eu me esforcei tanto para acabar com ele.
O cobertor ainda está amarrado na cintura de Pestilência, e isso somado
a seus pés descalços e pernas (também quase curadas) deveria parecer
cômico, mas o cavaleiro é um homem formidável.
Encaro por mais tempo do que necessário, e Deus me perdoe, não posso
evitar observar que seu corpo é tão agradável quanto seu rosto. Ele tem
ombros enormes e quadris estreitos, e eu quero arrancar os olhos com uma
colher agora. Deve ter alguma regra contra secar o cara que você tentou
matar.
Na minha frente, ele puxa a corda. Xingo ao trocar os pés tentando
acompanhá-lo enquanto ele caminha para a casa.
Olho para a casa de dois andares. É bonita, mas razoavelmente normal;
revestimento externo de madeira tratada, porta verde-floresta, e uma
jardineira coberta de neve sob uma das janelas.
Por que diabos o cavaleiro veio para esse lugar?
Pestilência caminha direto até a porta da frente e, erguendo um pé, a
chuta. É uma maneira de se abrir a porta. A outra é tentar a porra da
maçaneta como uma pessoa normal.
Ele me arrasta para dentro, como se eu fosse um cachorro travesso que
ele precisa manter na coleira.
Pelo silêncio da casa, é obvio que os donos não estão por perto, e
provavelmente não estão desde que os avisos de evacuação foram
divulgados – graças a Deus. Qualquer lugar é melhor do que aqui, no
momento.
Pestilência cruza a sala de estar, puxando-me junto pela maldita corda.
Agora que não estou correndo pela minha vida, todas as outras dores e
incômodos estão surgindo. Meus pulsos estão começando a latejar e o suor
que me cobre está esfriando rapidamente contra o corpo. Não quero nem
pensar em como minhas pernas estarão doloridas pela manhã.
O cavaleiro amarra a corda no corrimão da escada uma, duas, três vezes.
— Você sabe que no momento em que eu estiver fora da sua vista, vou
tentar escapar — falo.
— Pareço preocupado, humana? — pergunta, dando uma última puxada
no nó.
— Não posso dizer, muitos pedaços estão faltando.
Não é verdade, mas ele ainda não viu o próprio reflexo, então não
saberia.
Pestilência me encara por um longo segundo, sua aversão por mim é
quase palpável, então vai para o segundo andar, seus passos ecoando pela
casa.
Não estava brincando sobre escapar. No momento em que vai embora,
ataco o labirinto de nós como se minha vida dependesse disso, o que é
verdade.
Estou desesperadamente puxando os laços que me prendem no corrimão
(quando caralho esse cavaleiro aprendeu a dar um nó correto assim?),
quando ele volta carregando uma muda de roupa limpa. Roupas e fita
adesiva.
Tudo o que precisamos é de calças de couro e um chicote para fazer
disso uma festa. Mas duvido que Pestilência tenha esse tipo de sofrimento
em mente. Deve ser melhor assim. Não acho que seja apropriado um sexo
de conciliação com o cara que você tentou matar. Pelo menos não na
primeira noite.
Pestilência joga as roupas no sofá, mantendo o olhar em mim. Remove a
armadura peça por peça. Sob ela, os resquícios da camisa que usa se
desintegram, revelando seu torso nu.
Mesmo machucado, é o apogeu do espécime masculino. Tem músculos
em cima de músculos, os braços grossos e fortes, o peitoral bem
arredondado e abdômen ridiculamente definido.
A pele do peito ainda parece nova e vermelha em alguns lugares. Deve
ter sido terrivelmente doloroso cavalgar pelo dia congelante com nada além
de um cobertor enquanto a armadura esfolava sua pele queimada.
Preciso de um segundo para meus olhos registrarem que suas feridas não
são a única coisa marcando a pele de Pestilência. Adornando o peito dele
como um colarinho, há uma série de letras estranhas que brilham. Um
segundo conjunto delas começa nos ossos do quadril, curvando sob a borda
do cobertor; elas cintilam como âmbar na luz baixa.
Encaro, petrificada. Já vi tatuagens antes, mas nenhuma que brilha. Se a
natureza imortal dele não fosse prova o bastante das suas origens de outro
mundo, isso seria.
Seu bíceps incha quando estica o braço para o cobertor, desvio o olhar
antes de ver qualquer outra coisa.
Um minuto depois, Pestilência volta para meu lado com o rolo de fita
adesiva na mão. A roupa que usa agora – jeans e uma camisa de flanela – é
bem diferente da que usava quando o vi pela primeira vez, mas lhe serve
bem, considerando que a maioria dos homens não são nem de perto tão alto
ou tem ombros tão largos quanto os do cavaleiro.
Ele fixa aqueles olhos azuis afiados em mim enquanto começa a
desenrolar a fita.
— Porque você foi tão gentil ao anunciar suas intenções… — Passa a
fita em volta da corda que amarrou no corrimão, depois em volta dos meus
pulsos, sabotando qualquer esperança minha de fuga. — Acho que isso
deve te manter imóvel por um tempo.
Pestilência rasga o final da fita e joga o rolo para o lado.
Olho feio para ele, mas não adianta. Não está mais sequer prestando
atenção em mim.
O cavaleiro vai para o fogão a lenha e acende o fogo.
— Então, o que agora? — pergunto. — Você vai só me manter cativa até
eu morrer da praga?
Praga que com certeza não estou sentindo – ou talvez esteja. É difícil
dizer quando você se sente como um animal morto na estrada por três dias.
Pestilência vira a cabeça apenas um pouco na minha direção e continua a
cuidar do fogo. Levam meros minutos para as chamas estarem estalando, e
mais alguns minutos para eu sentir o calor.
Senta-se frente ao fogo, de costas para mim, esfregando uma mão no
rosto.
— Eu implorei — finalmente diz. — Quebrado e sangrando, supliquei
por misericórdia e você não me deu.
Meu estômago embrulha.
— Você não pode me fazer sentir pena — minto, porque pode. Já o fez.
Sentia muito antes de puxar o gatilho, e mais uma vez quando soltei o
fósforo. Não muda nada, mas ainda assim – sentia muito. Eu sinto muito. E
isso deixa um gosto amargo e intragável na minha boca.
— Não ouso esperar tanto da sua espécie — afirma, anda não se
incomodando em se virar.
— Foi você quem veio nos destruir. — Eu o lembro.
Como se precisasse me defender. Nem sei por que me importo.
— Humanos fizeram um trabalho perfeitamente bom de se destruírem
sem minha ajuda. Estou aqui apenas para terminar o trabalho.
— E você se pergunta por que não te mostrei misericórdia.
— Misericórdia. — Ele cospe a palavra como uma maldição. — Se você
apenas soubesse a ironia da sua posição, humana…
Ele volta a atenção para o fogo e pousa o queixo no punho e acho que a
conversa acabou. Permanece encarando aquelas chamas, e em algum ponto,
acho que esquece que sequer existo.
Minha mente vaga para minha família. Mais do que qualquer coisa,
espero que estejam longe o bastante do cavaleiro para evitar sua praga.
Diferente de vírus normais, a Febre Messiânica não segue as regras da
ciência. Você pode estar a quilômetros de distância de Pestilência, em
quarentena na própria casa e, ainda assim, pegar. Não está claro o quão
longe é necessário estar para evitar a praga por completo, só que se você
ficar em uma cidade pela qual Pestilência passar, vai morrer. É simples
assim.
Você ainda não está morta, minha mente sussurra.
Faz mais de um dia desde que fiquei cara a cara com o cavaleiro pela
primeira vez. Com certeza deveria estar sentindo alguma coisa agora.
Falando de sentir alguma coisa…
Eu mudo de posição. Não é apenas meus pulsos e pernas que estão
doendo. Meu estômago está roncando e minha bexiga está prestes a
explodir.
Limpo a garganta.
— Preciso ir ao banheiro.
— Então vá onde está. — Pestilência continua a encarar aquelas chamas
como se pudesse ler o futuro nelas.
Isso faz eu me sentir menos culpada por ter atirado nele e o queimado.
— Se você espera me manter viva — falo —, vou precisar comer, beber,
dormir, cagar e mijar.
Algum arrependimento ainda, colega?
Ele suspira e se levanta. Pestilência caminha até mim, sua estatura
autoritária; dificilmente é o monstro que me acordou essa manhã, e isso me
incomoda demais.
Vestido com uma camisa de flanela, jeans e botas, parece dolorosamente
humano. Até seus olhos, que pareceram tão estranhos quando os vi pela
primeira vez, agora parecem cheios de vida. Vida e agonia.
Ele engancha um dedo sob a fita adesiva que está prendendo meus
pulsos, e com um puxão firme, a rasga em duas.
Nota mental: esse filho da puta é forte.
Ele arranca o resto da fita e solta a corda do corrimão. Uma vez que a
segura, leva-me pelo corredor, parando apenas quando chegamos no
banheiro.
O primeiro problema aparece assim que fecha a porta atrás de nós.
Olho para o peito enorme que bloqueia a saída.
— Chama-se privacidade — falo.
— Conheço o termo, humana ardilosa — retruca, cruzando os braços. —
O que você pensa que merece é uma questão de poder superior.
Bufo e me viro para longe dele.
O segundo problema aparece depois que tento abrir as calças. Mal sinto
as mãos, menos ainda tenho a destreza necessária para a tarefa.
Maldição.
— Preciso de ajuda.
Pestilência se inclina contra a porta.
— Não estou inclinado a te dar alguma.
— Ah, pelo amor de…
— Deus? — termina por mim, erguendo as sobrancelhas. — Você
realmente acha que Ele vai te ajudar?
A acadêmica em mim se interessa na hora por suas palavras, mas agora
não é bem a hora de aprender todos os mistérios do universo.
Eu bufo.
— Olha, se você está se arrependendo de me manter viva, então me
mate, mas se não, realmente apreciaria se você puxasse minhas malditas
calças para baixo.
— Te faria sofrer, se sujar? — ele pergunta.
Hesito. Ele devia saber que essa é uma pergunta maldosa.
Qual resposta é mais propensa a não me ferrar?
— Sim — finalmente respondo, escolhendo a verdade —, faria.
Ele se apoia na porta.
— Como disse, não estou inclinado a ajudar.
Ele não se move para sair, no entanto, e agora estou simplesmente grata
por ter um vaso para poder me aliviar.
Aperto os dentes ao tentar abrir as calças mais uma vez. A corda
pressiona meus pulsos irritados, que gritam em protesto. Leva uma
quantidade agonizante de tempo, mas finalmente consigo desabotoar o
jeans, e depois puxá-lo para baixo junto com a roupa íntima.
Pestilência me observa com um olhar impessoal, olhando para minhas
partes íntimas, que estão em plena vista.
Mate-me agora.
Ele curva o lábio.
— Desculpe — falo —, mas se essa porra te incomoda, então pode
esperar lá fora. — E me deixar fazer xixi em paz.
— Se esvazie, humana. Estou cansado de ficar de pé aqui.
Murmurando vários palavrões, faço exatamente isso.
Um cavaleiro do apocalipse está me observando fazer xixi.
De todas as frases na língua que falo em que poderia pensar, essa não é
uma que imaginei. Seguro uma risada maluca. Vou morrer, mas não antes
da minha dignidade ser assassinada.
Limpar, dar descarga, e puxar as calças para cima levam ainda mais
tempo – bem como lavar as mãos.
Pelo menos ainda tem água para lavar as mãos. Diferente da energia nas
nossas residências, a água corrente foi bem menos afetada. Não faço ideia
do porquê, mas não vou reclamar. Ajudou a apagar vários incêndios desde
que o mundo acabou.
Uma vez que termino, o cavaleiro me guia de volta pelo corredor, dando
um puxão nas minhas amarras e quase me derrubando. E então estou
amarrada no maldito corrimão mais uma vez, e ele está de volta ao fogo.
— Então, é isso o que você faz? — pergunto. — Vai de cidade em cidade
e invade a casa das pessoas?
— Não — responde por cima do ombro.
— Então por que paramos aqui? — questiono.
Ele exala, como se eu fosse impossivelmente tediosa – o que sou, mas
honestamente, o rapazinho tem uma longa caminhada de aprendizagem pela
frente porque ainda não viu nada – e me ignora.
Essa é sua principal reação, estou aprendendo.
Desvio a atenção das costas dele para meus pulsos feridos.
— O que aconteceu com os outros? — pergunto, mais comedida.
— Que outros? — responde ríspido.
Estou honestamente chocada que ainda esteja conversando comigo.
— Os outros que tentaram te matar.
O cavaleiro desvia o olhar do fogo, seus olhos gélidos refletindo a luz
das chamas.
— Acabei com eles.
Também não vejo nenhum remorso por essas mortes no rosto dele.
— Então sou sua primeira vítima de sequestro? — sondo.
Ele bufa.
— Mal é uma vítima — fala. — Mas vou te manter por perto e fazer de
você um exemplo. Talvez aí sua espécie estúpida pense duas vezes a
respeito de planos para me destruir.
Agora, e só agora, está mesmo caindo a ficha da minha situação.
Ah, não, não vou deixar você morrer. Rápido demais, ele tinha dito.
Sofrimento foi feito para os vivos. E, ah! Como vou te fazer sofrer...
Um tremor espontâneo percorre minha coluna. Pulsos ensanguentados e
pernas doloridas podem ser os menores dos meus problemas.
O pior, tenho certeza, ainda está por vir.
CAPÍTULO 6

AINDA NÃO ESTOU DOENTE.


E ainda estou viva – embora não esteja muito entusiasmada com isso.
Tudo dói muito mais no dia seguinte. Meus pulsos são um latejar afiado
e ardente, meus ombros estão duros e doloridos devido a todas as horas que
passei na mesma posição atada, meu estômago está tentando se comer, e
minhas pernas estão inúteis de dor.
Ah, e ainda estou acorrentada a essa merda de corrimão.
A única parte boa foram os poucos copos de água que Pestilência trouxe
para mim (acidentalmente me dei um banho com um deles ao invés de
colocar na boca porque minhas mãos ainda estavam atadas e Deus me
odeia, na real), e o fato que o cavaleiro foi gentil o bastante para me levar
mais uma vez ao banheiro para que não precisasse sentir o “cheiro do meu
fedor vil”.
Odeio o belo bastardo.
— Acima de tudo, sê fiel a ti mesmo — murmuro baixo. A frase de
Hamlet me vem na memória. O seu significado está gasto como pedras no
rio, por tempo e excesso de uso, mas as palavras ainda me afetam da mesma
maneira. — Disso se segue, como a noite ao dia… — Minha voz falha
quando vejo Pestilência.
Ontem à noite ele usava jeans e camisa de flanela, mas esta manhã está
usando um traje preto que serve nele como uma luva. O tecido e o corte das
suas roupas conseguem parecer simultaneamente arcaicos e futuristas,
apesar de eu não conseguir explicar bem o porquê. Talvez não sejam as
roupas – talvez seja a coroa ou o arco e aljava jogados de qualquer jeito
sobre o ombro. O que quer que ele seja, está parecendo distintamente de
outro mundo.
— Vou te soltar do corrimão, humana — fala em vez de me
cumprimentar —, mas lembre-se: se tentar fugir, vou atirar em você, e então
te arrastar de volta.
Olho para o “V” profundo da sua camisa escura, vislumbrando um pouco
daquelas tatuagens brilhantes.
— Você me ouviu? — ele pergunta.
Pisco, e meu olhar corre pelo seu rosto.
A última das feridas do cavaleiro se curou – até o cabelo terminou de
crescer. Só precisou de um dia para ele se regenerar completamente. Que
decepcionante.
— Se correr, sou carne morta. Entendi.
Suas sobrancelhas franzem e ele me estuda por mais um segundo antes
de grunhir. Com isso, ele me arrasta para a cozinha.
Usando um dos seus pés calçados em botas, chuta uma cadeira.
— Sente.
Franzo o cenho para ele, mas faço o que comanda.
Pestilência se afasta de mim, abrindo as portas dos armários de um jeito
que parece aleatório antes de fechá-las e seguir em frente. Por fim, abre a
geladeira da casa e pega um pão (quem refrigera pão?) e uma garrafa de
molho inglês.
— Aqui está seu sustento — fala, jogando-os para mim. Por algum
milagre consigo pegar a garrafa de molho inglês com as mãos amarradas. O
pão me acerta na cabeça.
— Vai ter que comer enquanto corre — continua —, não vou perder
tempo com pausas humanas hoje.
Ainda estou presa na garrafa de molho inglês. O cavaleiro acha mesmo
que posso beber isso?
Ele dá um puxão nas minhas amarras, indo para a porta, e tenho que
agilizar para pegar o pão que caiu no chão. Enquanto Pestilência me amarra
na parte de trás da sela, consigo enfiar duas fatias grossas de pão na boca e
colocar mais algumas nos bolsos. E então saímos, e sou forçada a deixar
cair o resto do pão para me concentrar em manter o passo.
Imediatamente, fico ciente que hoje não será como ontem. Minhas
pernas estão muito doloridas e minha energia esgotada. Cada passo é
agonizante, e nenhuma quantidade de medo pode me forçar a correr tão
rápido ou tão longe quanto preciso.
Corro vinte, talvez vinte e cinco quilômetros antes de cair, batendo na
estrada com força.
O cavalo dá um tranco com meu peso e solto um grito quando meus
braços são violentamente puxados e quase arrancados do lugar. A corda
afunda na pele dos meus pulsos e grito outra vez com a dor lancinante.
Não terminou. A pressão nos meus ombros e pulsos é quase
insuportável. Arfo uma respiração, pronta para gritar mais uma vez, mas é
tudo tão violento e repentino que perco o fôlego.
Pestilência deve saber que caí, deve sentir a resistência, e sei que ouviu
meus gritos, mas nem olha para trás, para mim. Eu o odiava antes, mas tem
algo na crueldade dele que corta mais afiado que uma faca.
Ele está aqui para matar a raça humana, o que mais você esperava?
Tenho que erguer a cabeça enquanto meu corpo arrasta atrás do cavalo
para evitar me machucar. A neve de ontem está quase toda derretida, e o
asfalto exposto agora age como uma lixa nas minhas costas. Quase posso
sentir as camadas do meu casaco grosso desintegrando sob a força dele.
Uma vez que acabar… não sei por quanto tempo um humano pode aguentar
assim.
Não tenho a chance de descobrir.
Antes de sentir o toque da estrada na minha pele exposta, Pestilência
para o cavalo na frente de outra casa.
Apoio a cabeça no braço, totalmente exausta pela dor. Vagamente, estou
ciente do cavaleiro soltando minhas amarras da sua montaria.
Seus passos vêm para meu lado, e então param sombriamente.
— Levante.
Lamento em resposta. Tudo dói muito, caralho.
Um segundo depois, ele se abaixa e me pega no colo.
Solto um gemido. Até o toque dele dói. Fecho os olhos e coloco uma
bochecha esgotada contra a armadura dourada do seu peito enquanto ele me
carrega para a soleira da casa.
Não vejo Pestilência derrubar a porta, apenas escuto. Gritos soam de
dentro da casa.
— Ah, meu Deus — uma mulher diz. — Ah, meu Deus… ah, meu Deus.
Forço os olhos abertos. Tem uma senhora de meia-idade olhando para
nós com um olhar de puro horror.
Por que ela não evacuou? O que estava pensando?
— Vamos ficar aqui — o cavaleiro diz enquanto passa por ela.
Ela balança a cabeça em surpresa enquanto o observa invadir a casa.
— Não na minha casa! — afirma com uma voz aguda.
— Minha prisioneira vai precisar comer, dormir e usar suas
dependências — continua, como se ela não tivesse falado.
Atrás de nós, escuto-a engasgar-se em várias palavras antes de dizer:
— Você precisa sair. Agora.
As palavras dela encontram ouvidos surdos. Pestilência sobe as escadas.
Quando chega no segundo andar, começa a chutar as portas abertas, e não
há nada que ela possa fazer. Ele nos leva para dentro de um quarto com
poucos móveis, chutando a porta e fechando-a atrás de si.
Ele me coloca na cama, então se afasta, cruzando os braços no peito.
— Você está me atrasando, humana.
Eu o fuzilo de onde estou deitada.
— Então me deixe ir. Ou me mate. — Honestamente, a morte pode ser
uma opção mais gentil nesse momento.
— Você esqueceu minhas palavras tão rapidamente? Não tenho intenção
de te deixar ir, pretendo fazer você sofrer.
— Você está fazendo um bom trabalho — falo baixo.
Seu olhar de desaprovação apenas se aguça com minhas palavras.
Estranho, pensei que ele ficaria feliz com isso.
Acena para a cama onde estou deitada.
— Durma — ordena.
Ah, como se fosse simples assim.
Mesmo sentindo como se tivesse sido chutada até quase a morte, não
posso simplesmente dormir, ainda mais quando o sol está penetrando pela
janela e posso ouvir a dona da casa ficando histérica do outro lado da porta.
— Preciso que você solte minhas mãos primeiro — digo, erguendo meus
braços amarrados para ele.
Seu olhar semicerra com desconfiança, mas ele vem até mim e solta a
corda.
Ele se inclina, próximo de mim.
— Nada de truques, humana.
Porque estou muito sorrateira no momento.
Uma vez que meus pulsos estão soltos, sangue escorre pelas minhas
mãos, a sensação é agonizante. Um gemido baixo sai da minha garganta.
— Se você quer minha piedade, ficará desapontada — Pestilência diz,
voltando para a porta.
Para ser honesta, esse cara é insuportável – mesmo que seja
irritantemente bonito. Na verdade, pode ser isso que esteja tonando as
coisas piores. Ele é como a forma mais agressiva do meu mais odiado
combo masculino: o babaca gostoso.
Meus olhos se movem por Pestilência enquanto ele cruza os braços,
contente em apenas me olhar, um olhar de repulsão moderada no rosto.
O sentimento é mútuo.
— Não vou pegar no sono com você me encarando — falo.
— Que pena.
Então é assim que vai ser.
Sento-me e rigidamente tiro minhas roupas, que agora se parecem mais
com trapos. Jogando-as para o lado, escorrego sob os lençóis e tento não
estremecer com o fato que estou me deitando no quarto de hóspedes de uma
mulher que a praga de Pestilência logo vai matar.
Isso é tão epicamente perturbador.
Sob as cobertas, esfrego os pulsos e tenho que morder o lábio inferior
quando percebo que é excruciante demais para tocar. Até os lençóis suaves
de flanela são uma agonia contra a pele em carne viva.
Pestilência se senta no chão, apoiando as costas na porta e sua
mensagem não dita é clara: não vou a lugar algum.
Viro-me para que possa fingir por cinco segundos que ele não existe, e o
dia de hoje não existe, e nada disso existe.
Fico deitada ali por um tempo. Tempo o bastante para ponderar se algum
dos meus colegas de time sobreviveram à Febre. Tempo o bastante para me
preocupar mais uma vez com meus pais. Eu me forço a imaginá-los seguros
no chalezinho de caça do meu avô, jogando pôquer ao lado do fogo como
costumávamos fazer quando eu era mais nova.
Eles acham que estou morta.
Lembro-me das lágrimas do meu pai no começo da semana. Como foram
chocantes. Ele ficou tão orgulhoso quando me juntei ao departamento de
bombeiros. Nunca quis que eu fosse para a universidade; não importava que
desde pequena fosse obcecada por literatura inglesa, tanto que cheguei até a
me fantasiar de Edgar Allan Poe um ano, no Halloween (sim, era disso que
os sonhos molhados eram feitos), ou que passasse longos finais de semana
escrevendo poemas. Uma vez que o cavaleiro chegou, a universidade era
um sonho lindo e nada mais.
Inviável demais, meu pai havia dito. Para que você vai usar um diploma,
de qualquer maneira?
Eu me pergunto o que ele diria sobre isso agora…
— Cavaleiro — chamo.
Silêncio.
— Sei que pode me ouvir.
Ele não responde.
Suspiro.
— Sério? Você vai só me ignorar?
Ele solta uma respiração. Sim.
Mexo com um fio solto do meu cobertor emprestado.
— Nós sorteamos — começo —, para decidir quem te mataria.
Pestilência ainda está quieto, mas agora posso jurar que sinto seus olhos
nas minhas costas.
— Restavam quatro de nós — continuo. — Eu, Luke, Briggs e Felix.
Trabalhávamos juntos no corpo de bombeiros, e nos últimos dias antes de
você chegar, ajudamos a polícia montada a avisar os residentes que
precisavam evacuar. Não tínhamos certeza, claro, que você cavalgaria pela
nossa cidade. Whistler não é tão grande, mas está bem na rodovia Sea to
Sky, a mesma rodovia em que o noticiário havia te visto antes.
“Quando tiramos a sorte, todos os outros bombeiros já haviam ido
embora com suas famílias. Aqueles que não possuíam família, ficaram para
trás.”
O rosto do meu pai flutua pela minha mente.
Você tinha uma família, assim como Felix e Briggs e Luke. Você só não
tinha um marido e filhos. E no final, foi por isso que aceitou o último turno.
Menos pessoas para sentirem nossa falta.
— Restavam quatro de nós — continuo —, e pensamos que talvez…
— Por que está me contando isso? — Pestilência interrompe.
Paro de falar.
— Não quer saber por que atirei em você? — questiono.
— Já sei por que você atirou em mim, humana. — A voz do cavaleiro
está afiada. — Você queria que eu parasse de espalhar a praga. Todas essas
justificativas que você está me dizendo não são para meu benefício, são
para o seu.
Isso me cala.
Estava tentando salvar o mundo. Não sou má como você acha, quero
dizer. Mas de certo modo, suas palavras derretem essas explicações como
ácido.
O quarto fica em silêncio por um longo tempo.
— Você está certo — finalmente falo, virando-me para encará-lo. —
Elas são.
Meus motivos não fazem diferença para ele; não mudam o fato que eu o
queimei e atirei nele. Que não ouvi quando me implorou para parar.
O cavaleiro está com os antebraços apoiados nos joelhos dobrados, seu
olhar penetrante sobre mim.
— O que você espera ganhar concordando comigo? — pergunta.
— Você é o que todos chamam de Pestilência, o Conquistador — falo.
— Não consegue nem perceber quando ganhou uma discussão?
Pestilência faz uma careta. Puxo o fio solto do cobertor outra vez.
— Se serve de consolo, sinto muito.
— Sobre o quê?
— Te matar – ou tentar, de qualquer maneira. — Duas vezes,
tecnicamente, já que Pestilência provavelmente sobreviveu aos tiros porque
era imortal.
Ele solta uma risada vazia.
— Mentiras. Você só está me contando isso agora porque é minha
prisioneira e teme o que pretendo fazer com você.
É verdade que tenho medo de qualquer punição aterrorizante que
Pestilência queira infligir em mim, mas…
— Não — falo. — Não me arrependo de tentar te matar. Absolutamente
odiei o que fiz com você, e nunca vou ser a mesma pessoa por causa disso,
mas não me arrependo das minhas escolhas quando as fiz. Ainda assim,
sinto muito.
O cavaleiro fica em silêncio por um longo tempo enquanto me examina.
— Vá dormir — diz, por fim.
E é o que faço.
CAPÍTULO 7

ACORDO NO MEIO DA NOITE, ARRANCADA do sono pelo som de


um choro. Pisco, olhando em volta. Pensei que todos os vizinhos tivessem
evacuado…
Procuro pela minha lamparina ao lado da cama antes de perceber que
não tem lamparina a óleo do lado da cama. Não é meu quarto. Não é meu
apartamento.
Então os últimos dias me atingem como um banho de água fria.
Tirar a sorte, atirar em Pestilência, as corridas brutais que fui forçada a
aguentar até não conseguir mais. Enquanto as memórias me invadem, as
dores remanescentes também voltam.
Você fez esse sanduíche de merda, Burns, agora precisa comê-lo.
O som do choro corta meus pensamentos e me lembro da dona da casa.
Quantas horas se passaram desde que aparecemos na soleira da sua porta?
Doze? Mais? Menos?
Procuro outra vez por uma lamparina a óleo; agora que a eletricidade
está oscilando, as pessoas mantêm lamparinas e lanternas por perto. Meus
dedos deslizam por uma mesa de cabeceira, mas encostam em algo que não
é uma lamparina. Passo a mão em volta do copo de água e a jarra ao lado.
Pestilência deixou isso aqui?
Recuso o pensamento. Seria gentil demais para o tipo de pessoa que ele
é.
Puxando as cobertas, saio da cama e desço pelo corredor, pronta para ir
na direção do som de choro, que parece estar vindo de um quarto nos
fundos da casa. Mas então hesito.
O que você vai fazer, Sara? Confortá-la? Você é uma estranha
brincando de Cachinhos Dourados na casa dela. Você acha que ela quer
algo com você?
Fico parada ali, duvidando de mim mesma, quando finalmente meus
pensamentos me alcançam. Meus olhos percorrem o corredor escuro uma,
duas vezes, procurando Pestilência. Volto para o quarto e espio dentro. A
escuridão encobre muita coisa, mas não pode esconder um cavaleiro, e não
tem um no meu quarto.
Ele desapareceu.
Não me dou tempo o suficiente para ponderar para onde Pestilência
escapuliu. Tenho Deus sabe quanto tempo até que retorne. Não vou
desperdiçar.
Preciso me forçar a ignorar o choro da mulher. Não posso ajudá-la agora.
Ela vai morrer como o resto deles – como eu deveria estar morrendo – e
não tem nada que eu possa fazer a esse respeito.
Eu tentei, quero dizer para ela, eu tentei, mas o cavaleiro não pode ser
morto, e sinto muitíssimo, mas não acho que algum de nós vai sair dessa
vivo.
Só que eu vou. Esta noite. Agora.
Pego a pilha de roupas que tirei mais cedo e que estavam ao lado da
cama. Tão silenciosa quanto ouso, eu as coloco, minhas mãos se
atrapalhando com os botões quando começam a tremer.
Rápido, rápido. Antes que ele volte.
Pegando minhas botas, eu as coloco e caminho suavemente até a janela.
Puxo o painel para cima e faço uma careta com o ar gelado que entra,
ardendo meus pulmões e bagunçando meu cabelo.
Maldição. Realmente não quero sair em uma noite como essa.
Hesito. Poderia ficar com Pestilência; afinal, ele não está tentando me
matar.
Ele quer fazer você sofrer.
Vai ter mais corrida, mais pulsos sangrando e mais dias como hoje, que
não consigo acompanhar. Isso supondo que Pestilência não decida que
preciso sofrer mais do que já estou. Prefiro não ficar por perto para ver
quais punições criativas ele tem em mente.
Decidida, empurro a tela da janela para fora. Um momento depois,
escuto o barulho suave que ela faz ao cair no chão abaixo.
Respiro fundo para criar coragem.
Passo primeiro uma perna, depois a outra, pelo parapeito da janela. Do
lado de fora está nevando outra vez, uma fina camada formando um carpete
no chão. É o que me deixa nervosa. Sentada dois andares acima, como
estou, a queda pode quebrar minhas pernas. Pode ser um pouso ruim, mas
vai ter que ser isso. Meticulosamente, abaixo até estar pendurada para fora
da janela pelas mãos e agradeço ao destino, pois lutar contra o fogo me deu
uma boa força nos membros superiores.
E então eu me solto.
Por um longo momento, não tenho peso. Então o momento acaba, e
meus pés colidem contra o solo. Lentamente, eu me estico. Nada de
tornozelos torcidos, nada de ossos quebrados – pelo menos uma vez, a sorte
está ao meu lado.
Dou um último olhar para a casa, e então corro. Acelero quando alcanço
a rua, apesar do meu corpo não estar em condições de correr. Estou livre.
Puta merda, estou livre!
Atrás de mim escuto um silvo baixo e habilidoso, um som que confundo
com o vento, até o que parece uma faca acertar minhas costas, bem abaixo
da minha omoplata direita. Engasgo com a dor, meus pés cambaleando
enquanto calor se espalha do ferimento.
Sangue, minha mente compreende. Você está sangrando porque tem uma
flecha enfiada nas suas costas.
Deveria saber, mas quando vi o quarto vazio, não poderia não agir. A
esperança é algo amaldiçoado. E agora – Jesus, Maria e José, a queimação
da ferida atinge minha traqueia.
Não me incomodo em olhar para trás enquanto forço os pés a
continuarem se movendo. Sei o que vou ver. Pestilência orgulhoso, arco na
mão, mirando em mim como um caçador. Se eu parar agora, ele vai me
capturar.
Eu corro para caralho, a neve é triturada sob minhas botas enquanto vou
na direção da linha de árvores na minha frente. Se chegar até a floresta,
ainda posso conseguir escapar dele. A flecha afunda mais no músculo com
cada movimento dos meus braços e torso.
Você aguentou coisa pior, Burns. Você andou pelo fogo, sentiu as
chamas queimarem sua pele e cozinharem seu corpo. Você vai sobreviver a
isso.
Vou sobreviver a isso… contanto que essa flecha não esteja coberta com
veneno… ou praga. Vou tentar não pensar nesse último. Tento não imaginar
o que vai acontecer se escapar. Em como posso escapar apenas para morrer
da Febre.
Estou quase na floresta quando a próxima flecha me atinge, a ponta
entrando na minha lombar. Mais uma vez, tropeço, quase caindo de joelhos.
Essa, essa parece que atingiu mais do que apenas músculo. Sinto uma
sensação nauseante e insistente que parece errada toda vez que me mexo.
Atrás de mim escuto o galope das batidas dos cascos.
Mova-se! Grito para mim mesma enquanto flocos de neve rodopiam à
minha volta.
Tropeço em meus pés, forçando-me a continuar.
Minha energia está acabando rapidamente, e posso sentir mais sangue
encharcando minhas roupas rasgadas, o tecido se tornando gelado muito
rápido.
O cavaleiro precisa de menos de um minuto para me alcançar, o hálito
do seu cavalo virando vapor no ar. Posso sentir o olhar quente de
Pestilência em mim, apesar de não ousar olhar para ele. Escapar agora é
fútil, mas ainda não vou me forçar a parar.
Escuto o barulho pesado da sua armadura quando ele desmonta, as botas
amassando a neve e a vegetação rasteira.
Em duas passadas longas ele chega até mim. Sua mão envolve uma haste
da flecha.
— Não…
Sem piedade, ele puxa. Grito quando a lâmina corta mais músculo e
tendão ao ser removida. Ele a joga para o lado, sem dizer uma palavra.
Sinto outro puxão doentio quando pega a outra flecha alojada nas minhas
costas.
Por favor. A palavra está na ponta da minha língua para implorar a ele,
mas tenho a sensação de que é exatamente o que Pestilência quer – que
implore pela minha vida do jeito que ele implorou pela dele. Mordo,
cerrando os dentes. Maldito seja, não vou lhe dar o que quer.
Quando puxa a segunda flecha, a dor faz minhas pernas dobrarem sob
mim. Posso sentir rios de sangue escorrendo pelas minhas costas, a
sensação nauseante me irritando.
— Porque você provou ser tão ardilosa quanto o resto da sua espécie —
fala, seu tom tão cortante quanto as armas —, não vai mais dormir. É um
luxo que você não vai ter mais.
Bruscamente, ele segura minhas mãos, pega e solta uma corda que
estava presa no quadril dele. Puxo minhas mãos, tentando sair do aperto.
— O que você está fazendo? — pergunto, começando a entrar em pânico
de verdade.
Não a corda. Não novamente. Ah, Deus. Está caindo a ficha, tentei
escapar e falhei, e agora tudo vai ser muito pior.
Ajoelhando-se na neve, ele começa a atar meus pulsos, sua expressão
sombria e irritada. Se eu não conseguir escapar agora, vou morrer. Eu o
chuto, minha bota acertando sua coxa com força. Ele nem se move.
Pestilência aperta os nós no meu pulso e eu grito com a dor lancinante. Seus
lábios formam uma linha fina enquanto amarra a outra ponta na sela.
— Não. — Por favor. — Não, não, não. — Estou balbuciando quase sem
sentido, algumas lágrimas saindo dos olhos.
Tenho duas feridas abertas nas costas, e o ar da noite está tão frio que
entra pela minha roupa e queima a pele.
— Por que você está fazendo isso? — A pergunta é quase um soluço.
Pestilência olha para mim, taciturno.
— Você esqueceu tão rápido o que você fez para mim? — Ele dá um
puxão na corda. — Levante.
Não me levanto. Não tenho o que é preciso para me levantar.
O cavaleiro não fica por perto para ver se sigo ou não as ordens. Ele
monta no cavalo e faz um som parecido com um clique.
O corcel começa a trotar e tenho apenas um rápido segundo para
endireitar minhas pernas antes de ser forçada a me mover.
E aí, partimos outra vez.
CAPÍTULO 8

NÃO SEI QUANTO TEMPO VIAJAMOS na noite escura e gelada, só


que parece uma eternidade. Minhas mãos estão dormentes, minhas pernas
duras com o frio, e minhas costas latejam de maneiras estranhas e doloridas
que me fazem pensar que meus ferimentos são mais do que machucados
superficiais.
Ainda assim, Pestilência nos guia adiante.
Primeiro, o cavalo se move devagar, apesar de não achar que é para me
mostrar misericórdia. Na verdade, presumo que seja para alongar minha
agonia por mais tempo possível. Devagar, o corcel começa a ganhar
velocidade, até seu trote se tornar um galope leve.
Posso dizer que os acompanho por um tempo. Apesar de tudo, de alguma
forma eu consigo. Mas ninguém além da cruel criatura imortal pode seguir
em frente sem parar. A falta de sono, as refeições parcas, o frio, meus
ferimentos e meu cansaço – todos me exauriram.
Tropeço, caindo na estrada coberta de neve, e não me levanto. Sou
puxada pelos meus pulsos, a força arrancando ao menos um braço da
articulação. Agora eu grito e enlouqueço.
Meu corpo está em chamas, uma pessoa poderia enlouquecer com esse
tipo de dor. Não sabia nem que podia doer tanto assim e ah, Deus, ah, Deus,
ah, Deus... Faça isso parar, sinto muito que tenha atirado no seu adorado
cavaleiro, apenas faça parar.
Mas a dor não para. Se Deus tem qualquer piedade, não é usada comigo.
Sou arrastada pela neve, e o frio dói tanto que queima. Qualquer
proteção que minhas roupas possuem não dura muito. Sinto a estrada gelada
nas minhas costas, e não sei onde minha agonia acaba e eu começo. Tudo o
que sei é que não passei por nada pior do que isso.
Grito até minha garganta ficar rouca. Meus braços vão ser arrancados do
meu corpo. Não tem outra maneira disso terminar. E estou com tanta dor
que espero que isso aconteça para que eu possa sangrar e morrer mais
rápido do que isso.
Isso não acontece.
Tem dor, e dor, e dor, tanta maldita dor. Estou queimando com ela apesar
de não ter fogo, estou queimando. Faça parar, por favor, faça parar, por
favor, por favor, por favor…
CAPÍTULO 9

ACORDO BREVEMENTE COM UMA INTENSA fisgada de dor em


um dos ombros. Grito enquanto mãos me soltam e um pouco da agonia
acaba.
O mundo ao meu redor está fora de foco, consigo ver apenas faixas de
cor, e meu corpo lateja de uma forma horrível. Por que tudo dói? Ao meu
redor, as cores começam a aguçar o bastante para eu identificar um rosto.
Um anjo paira sobre mim, seu rosto ainda um pouco borrado.
Estou no céu? Deveria sentir dor se estou no céu?
Estico o braço e toco o rosto do anjo com minha mão trêmula, meus
pulsos ensanguentados e meus dedos roxos. Ele recua, saindo do meu
alcance.
— Estou morta? — acho que pergunto, mas o anjo não responde. —
Fique comigo — murmuro. Procuro por uma mão. Quando encontro o que
estou procurando, enlaço meus dedos aos dele. — Por favor.
Não deveria dizer essa palavra. Por que não deveria dizer essa palavra?
Algo sobre implorar, mas agora não lembro bem… tudo está flutuando para
cada vez mais longe de mim.
Aperto a mão que seguro com força.
— Fique comigo — falo outra vez.
Mas o anjo e o resto do mundo derretem.

**
Abro os olhos e pisco, encarando o teto acima de mim. Por um
momento, minha vida é normal, minha mente limpa de memórias. Alguém
aperta minha mão e eu viro a cabeça, aturdida. E então o vejo. Eu grito.
Não há nada – nada – mais monstruoso do que aquela face sedutora que
Pestilência possui, com a coroa dourada pousando orgulhosamente na
cabeça.
Apenas quando ele solta minha mão como se ela queimasse que percebo
que o maldito estava a segurando. Preciso de mais um segundo para
processar porque exatamente isso me enche de fúria cega.
Fugir do cavaleiro. Flechas nas costas. Amarrada no seu corcel e
forçada a correr. Cair. Arrastar. Dor. Morrer.
Arfo com a memória, e agora a força total da minha agonia surge.
— Estou… viva.
Parece impossível frente a tudo o que passei. Parecia que estava sendo
rasgada ao meio.
— Sofrimento é para os vivos — Pestilência responde de onde está
sentado. Observo o ambiente em que estamos. É outro quarto de hóspedes,
provavelmente em outra casa que Pestilência decidiu invadir.
Minhas mãos afundam nos lençóis gastos sob mim. Ele me trouxe para
esse quarto e me colocou na cama, e presumivelmente estou aqui desde
então. Não posso dizer se esse cenário me aterroriza totalmente, ou se
diminui um pouco meu medo.
Ele não me deixou morrer. Ele pretende me melhorar… apenas para que
possa sofrer mais. Sento-me na cama, contendo um grito com a dor intensa
que explode das minhas costas.
— Por que estou aqui? — questiono.
— Não vou deixar você morrer.
Mais uma vez, não sei se ele me salvar é uma gentileza ou uma
maldição.
É óbvio que é uma maldição, sua biscate estúpida. Ele não está te
salvando para seduzir seu traseiro.
— Você atirou em mim, depois me amarrou e me arrastou pela neve. —
Apenas dizer essas palavras faz um tremor espalhar por mim.
Os olhos azuis estão firmes em mim.
— Sim.
Giro um ombro, a articulação dolorida.
— Meu braço foi deslocado — falo, lembrando-me da sensação
excruciante.
Ele olha para mim por um longo momento, cada pedaço parecendo um
maldito anjo, e então concorda. Olho para baixo e me observo. Minha
camiseta sumiu, foi trocada pela de uma estranha – uma mulher grande com
um guarda-roupa ultrapassado, julgando pela estampa floral espalhafatosa.
Alguém me viu sem blusa. Meus olhos vão para Pestilência, que está me
encarando passivamente. É provável que tenha sido ele, o que significa que
agora ele viu minha vagina e meus peitos. Argh. Por que eu?
Movo a minha mão, a ação parecendo restrita. Puxando uma manga,
percebo que meus pulsos estão atados com uma atadura macia de algodão
branco. Passo o polegar em uma das bandagens.
Pestilência cuidou de mim? Lembro da forma cruel que arrancou as
flechas das minhas costas. De jeito nenhum…
Meus pensamentos são interrompidos pelo pulsar horrível nas minhas
costas. Inclino-me para frente para suavizar um pouco a pressão, e sinto um
tecido afundar na pele da minha barriga.
Erguendo a barra da camisa, encaro meu torso, que, como os pulsos, está
envolvido por camadas de bandagens. Passo o polegar pela atadura.
— Quem fez isso?
Pestilência me dá um olhar indecifrável.
— Você? — por fim pergunto.
Sinto o sangue queimando sob a minha pele com horror e vergonha e…
algo mais com o pensamento dele rasgando minhas roupas e cuidando de
mim. Tento imaginá-lo limpando e cobrindo minhas feridas, e descubro que
não consigo. Não quero.
Ele aperta os lábios em uma linha fina.
— Lembre-se da minha bondade.
— Sua bondade? — pergunto, incrédula. — Foi você que infligiu essas
feridas.
E vai fazer isso várias e várias e várias vezes até me quebrar.
Ah, ele estava certo quando me prometeu sofrimento. O lábio superior
dele se contrai, como se estivesse lutando contra uma careta. Pestilência se
levanta, a forma grande assomando sobre mim.
— Não tente escapar outra vez, mortal — avisa e então deixa o quarto.

— PESTILÊNCIA! — grito pela milionésima vez.


Paro, escutando. Nada ainda. Claro que ele pode me pegar fugindo em
cinco segundos cravados, mas quando preciso mesmo dele, não está em
lugar algum para ser encontrado.
— Pestilência!
Escuto um gemido distante, o que me deixa sóbria bem rápido. Há mais
alguém na casa? Passos pesados interrompem meu pensamento. A porta
abre, e ali está Pestilência, parecendo como um príncipe de um conto de
fadas. Seus olhos primeiro vão para a cama, onde eu deveria estar, antes de
caírem para o chão, onde estou.
— O que você está fazendo fora da cama, humana? — pergunta, olhando
para mim com suspeita.
Porque estou tão pronta para tentar escapar outra vez.
— Preciso de ajuda. — Machuca boa parte do meu orgulho dizer isso.
Suas sobrancelhas franzem, e ele entra mais no quarto, fechando a porta
atrás de si.
— Você entende que estou relutante em te oferecer tal coisa, dado nosso
histórico.
Nosso histórico. De alguma forma ele faz parecer que tem toda essa saga
entre nós.
— Eu sei — falo.
Ele espera meu pedido, mas agora que está aqui, parecendo como um
modelo masculino retocado, estou perdendo um pouco da minha coragem.
— Hm — começo, inquieta no chão, as costas gritando de dor —,
preciso ir ao banheiro. — Tecnicamente, isso não é diferente de nenhuma
outra vez que pedi ajuda a ele para ir ao banheiro, mas agora estou ferida ao
invés de atada e minha fragilidade me faz sentir mais vulnerável.
É por isso que estou sentada no chão. Tentei levantar-me da cama e ir até
o banheiro sozinha. Só não imaginei como estaria fraca, ou quanto minhas
feridas iriam doer. Cheguei até o meio do caminho da porta antes de
desistir. E agora aqui estamos nós.
Por um longo momento, Pestilência não se mexe. Então,
silenciosamente, vem até mim. Fico um pouco tensa quando ajoelha ao meu
lado. Sei que pedi ajuda, mas não posso evitar, mesmo agora, lembrar de
toda agonia que ele me infligiu.
É uma reviravolta horrível do destino que tenho que depender da própria
pessoa que me colocou nessa posição. Os braços de Pestilência escorregam
sob meu corpo e ele me ergue. Grito com a pontada afiada de dor que corre
por mim com o movimento. Para minha humilhação eterna, envolvo os
braços no pescoço de Pestilência para aliviar um pouco a pressão das
minhas costas.
A posição me deixa desconfortavelmente perto da boca do cavaleiro, e
tenho a falta de sorte de perceber como seu lábio superior é mais cheio do
que o inferior.
Ele me carrega para o banheiro sem dizer nada, colocando-me no vaso,
apesar de eu ainda estar usando calças. Mexo no jeans cobrindo minha parte
de baixo. Estou usando jeans de velha, também conhecido como as
minivans do mundo das calças. Definitivamente não fui eu que os vesti.
O que quer dizer… Ugh. O cavaleiro viu minhas partes íntimas outra
vez. O dito cavaleiro paira sobre mim.
— Tente escapar outra vez…
— Tá, tá — falo. — Não vou a lugar algum.
Pestilência faz uma careta e sai do banheiro, fechando a porta atrás de si.
Deve saber que não estou em condições de tentar fugir, ou não tenho
dúvidas que não me deixaria sozinha aqui.
Isso, ou sabe que pode apenas atirar em você outra vez se tentar mancar
para longe de novo.
Vou ao banheiro e dou descarga depois.
— Pestilência! — chamo quando termino, apoiando a maior parte do
peso na pia onde consegui lavar as mãos.
Quando ele entra, quase desabo sobre ele. Dessa vez, quando passo os
braços em volta do seu pescoço, sinto-me deplorável demais para sequer ser
humilhada. Ele empurra a porta do quarto para abri-la e me coloca de volta
na cama.
— Pensei que tivesse me proibido de dormir — falo enquanto ele afasta
os braços. Próxima dele, posso ver o azul cristalino de seus olhos. São da
cor do céu em um dia claro. Sobre eles, sua coroa repousa, a visão dela uma
lembrança sombria de quem ele é. Seus olhos semicerram, e os lábios
relaxados se curvam para baixo.
— Não faça me arrepender da minha bondade.
Acho mesmo que ele precisa reavaliar o significado dessa palavra. Antes
de ter uma chance de responder, ele sai do quarto, e estou sozinha outra vez.

Mais dois dias se passam antes que eu esteja forte o bastante para sair da
cama sozinha. Até lá, Pestilência passou a me alimentar (e julgando pelas
suas escolhas de comida, ele não tem ideia do que as pessoas na verdade
comem) e me levar ao banheiro.
Em outras palavras, tem sido mega divertido. Só que não.
Quando o cavaleiro não está cuidando de mim, passo o tempo dormindo.
Dormindo e sonhando sonhos estranhos onde meus pais rondam por perto,
fora de alcance por bem pouco, e murmuram algo para mim, algumas vezes
gritam, e no final apenas dão uma fraca tosse antes de desaparecer de vista.
Agora piso no corredor com pernas trêmulas, vibrando por finalmente
estar andando. Não que esteja de volta ao normal ou algo assim. Tudo ainda
dói, mesmo meus pulmões, e não deveria estar fora da cama, mas preciso
fazer xixi e estou cansada de precisar chamar Pestilência.
Depois de usar o banheiro e beber água da torneira da pia, decido
explorar a casa em que estamos.
Ao sair, paro por um momento para ouvir. Se o cavaleiro está por perto,
não revela sua presença. Mas duvido seriamente que esteja. Agora que nós
dois estabelecemos um tipo de rotina, uma onde grito seu nome e ele só às
vezes aparece, estou começando a pensar que a única vez que vaga pela
casa mesmo é quando me traz comida e água ou me ajuda a ir ao banheiro.
Não vou pensar no fato de que esteve cuidando de mim. Vou lembrar que
atirou nas minhas costas – duas vezes – e então me arrastou pela neve até a
dor ser tão grande que me fez desmaiar. Vou lembrar que ainda está se
movendo de cidade em cidade, trazendo praga com ele e me arrastando
junto pela viagem.
Somos inimigos, pura e simplesmente. Ele não se esqueceu disso desde
que atirei nele. Eu deveria me lembrar disso também, não importa quão
prestativo ele tenha sido desde então.
Um zumbido chama minha atenção para o teto. Acima da minha cabeça,
a luz brilha suavemente. É a primeira vez que percebo que a casa tem
eletricidade, um luxo para a época em que vivemos. Sortudos. O
apartamento em que eu vivia nunca teve. Eram lamparinas a óleo e
lanternas por todo o caminho.
Ando pelo corredor, indo na direção do que parece ser a sala de estar e a
cozinha além dela. Agora que minhas necessidades mais urgentes foram
resolvidas, posso sentir o pulsar contorcido do meu estômago vazio sob as
outras dores mais fortes.
Qualquer coisa nesse ponto será melhor do que os combos estranhos de
comida que Pestilência pensa em me trazer, como mostarda e macarrão cru.
Estou apenas deduzindo aqui, mas se precisasse adivinhar, diria que o
cavaleiro não é muito familiarizado com comida humana.
O ar no lugar tem um cheiro rançoso, como se estivesse fechado por
muito tempo, deixando comida perecível estragar no calor.
As imagens penduradas nas paredes chamam minha atenção. Fotos de
família. Meu estômago se contrai. É fácil se deixar levar pelos horrores
óbvios do apocalipse e esquecer que as pessoas que foram afetadas tinham
famílias assim como eu.
Meus olhos se movem de foto a foto, as imagens organizadas em
sequência. Primeiro são as fotos de bebê constrangedoras – do tipo que seus
pais fotografam você pelado e acham absolutamente adorável, até você
estar mais velho e aguentar a chacota dos amigos quando as encontram por
acidente.
Essas fotos são seguidas por outras de criancinhas doces, então há
sorrisos sem dente na época do ensino fundamental. Inevitavelmente, essas
se transformam em fotos de família que de alguma forma parecem datadas,
entre o grande colarinho rendado que a esposa usa, os óculos bifocais
gigantes que fazem os olhos do marido menores ainda, e os cortes de cabelo
de cuia dos dois garotos.
Toco a moldura, sorrindo um pouco com a imagem. Quantos anos esses
dois garotos têm agora? Uns trinta? Quarenta? Têm suas próprias famílias?
As fotos chegam a um fim abrupto com o final do corredor e entro na
sala de estar. Engulo um grito. Tem um homem deitado no sofá, vestido
apenas em cuecas, e algo está muito errado com ele. Centenas de pequenos
caroços pressionam a pele onde suas roupas não cobrem. Para meu horror,
alguns desses caroços parecem ter estourado, revelando sangue, pus e
outras coisas gosmentas que me fazem sentir o gosto da bile no fundo da
garganta.
Vi várias coisas perturbadoras durante meus poucos anos como
bombeira, mas nada como isso. Há um cheiro enjoativo no ar, um que não
percebi antes. É o odor da infecção – putrefação.
Ele pegou a Febre.
Uma parte vergonhosa de mim quer ir para o mais longe possível que
posso do homem. Com certeza ele é contagioso.
Você é uma socorrista, Burns. É isso o que significa no final. Sacrifício e
morte, se necessário.
Meus olhos voltam para o rosto do homem. Seu cabelo é de um marrom
opaco que está perdendo a batalha para o cinza, e seu rosto tem aquela
aparência esticada e gasta que a pele começa a ter quando a pessoa chega
nos quarenta. Os olhos vermelhos me encaram apáticos enquanto seu peito
sobe e desce o mínimo possível.
Meu Deus, ele ainda está vivo.
CAPÍTULO 10

PESTILÊNCIA QUERIA QUE EU VISSE ISSO. Sei disso com a


mesma certeza de que sei o meu nome. Machucar-me fisicamente era
apenas parte da minha punição por tentar matá-lo. Esta é a outra parte –
observar a morte na forma mais abominável.
Não, não apenas observar. E não apenas ser incapaz de impedi-la, mas
acompanhar Pestilência como uma cúmplice, me fazer desempenhar algum
papel na disseminação da doença.
Olho para o homem, sem conseguir sair do lugar, tentando lembrar todas
as histórias que ouvi dessa praga. Os noticiários mencionavam os caroços.
Como podiam inchar e cobrir cada centímetro do corpo. E como, perto dos
estágios finais da doença, explodiam abertos como frutas muito maduras
enquanto o corpo da pessoa apodrecia de dentro para fora.
Necrose, eles chamam – o corpo apodrecendo enquanto o organismo
ainda vive.
Eu me arrepio, pois sei que deveria estar sofrendo disso. Não – deveria
estar morta por causa disso. Ao contrário, estou viva e com saúde o bastante
para assistir ao homem sucumbir à doença.
Observo-o mais uma vez com todas as feridas abertas. Esse tipo de
morte não tem lugar no mundo moderno. É o tipo de coisa que pertence a
um filme de terror antigo e contos da Europa Medieval. Não aqui, quando
tão recentemente, carros corriam e aviões voavam, telefones ligavam e a
internet existia.
Mas o mundo moderno desapareceu, morto nos meses que seguiram a
chegada dos cavaleiros. E agora todo mundo está lutando para seguir a vida
em uma era em que perdemos quase tudo.
Apesar de querer fugir, dou um passo hesitante para frente. Sou uma
bombeira, maldição. Estou acostumada a ver merdas assustadoras todos os
dias. Ver e ajudar. Eu me aproximo mais e percebo os olhos apáticos do
homem tentando me acompanhar.
Vivo e consciente.
Agacho na sua frente, sentindo o cheiro de amônia e excremento
humano. Pestilência pode estar me ajudando a ir ao banheiro, mas não foi
tão benevolente com nosso anfitrião – ou quem quer que seja esse homem.
Novamente, hesito. Parte de mim se preocupa que ao tentar ajudá-lo vou
apenas causar mais dor nele. Sem mencionar que tem uma boa chance de
pegar a doença no processo, e essa não é uma boa forma de morrer. De
qualquer forma, estive ao lado de Pestilência mais tempo do que esse
homem. Fui amarrada, alvejada e arrastada pela neve e ainda estou viva –
viva e intocada pela Febre.
De alguma forma, ela passou por mim.
Mas mesmo se não tivesse feito, mesmo se simplesmente eu tivesse
conseguido evitá-la até agora, o que poderia acontecer de pior? Vou sentir
dor? Desafio o destino a me dar pior do que já aguentei. E se eu morrer?
Bom, então pelo menos não vou ter que aturar mais a presença do cavaleiro.
Sou bem otimista.
Agacho na frente do homem, pegando sua mão. Está quente ao toque.
Ele força sua garganta seca e tenta mexer a cabeça.
— Não… deveria… tocar… doente — sussurra.
Aperto sua mão.
— Não tem problema — digo com gentileza. — Estou aqui para te
ajudar.
Ele fecha os olhos.
— Todooos… mortooos… — Ele geme, seu rosto fazendo uma careta.
— Eu… últiiimooo...
Sinto um oco no estômago. O cheiro de putrefação pode não estar vindo
apenas dele. Pode estar vindo de outras pessoas… pessoas que agora são
apenas corpos. E durante todo esse tempo que eu estive me recuperando,
não havia percebido que tinham outras pessoas na casa.
Você estava dormindo a maior parte do tempo, eu lembro.
… E ainda assim, talvez eu houvesse percebido. Talvez todos os meus
sonhos febris não tivessem sido sonhos febris, afinal, mas os barulhos que
estavam entrando no quarto enquanto eu dormia, barulhos que minha mente
transformou em rostos através dos sonhos.
Minha atenção volta para o homem na minha frente. Ele teve que assistir
quem mais vivia aqui adoecer e então morrer. E em algum lugar no fundo
da sua mente, ele pode ter ficado ciente de que seria o último a morrer, sem
alguém para cuidar dele.
Coloco o dorso da mão na testa dele, e depois no pescoço. Ele está
queimando. Quando consigo observar além dos caroços e furúnculos que
transformaram o corpo dele em algo grotesco, posso ver que os lábios estão
partidos e cobertos por uma crosta.
Levanto-me de repente e vou até a cozinha. Pego um guardanapo de
pano e o molho na torneira. Então, procurando nos armários, pego um copo
vazio e uma garrafa de Red Label que encontro.
Depois de encher o copo com água, levo tudo de volta para a sala de
estar, tentando e falhando em não pensar no fato que eu tenho uma cama
naquela casa, mas o homem não. Pestilência que fez isso? Ou esse homem?
Colocando meus itens na mesa de centro que está perto do sofá, pego a
toalha molhada e começo a passar gentilmente no rosto e pescoço do
homem. Passo meticulosamente pelo corpo dele, tentando evitar os caroços
e furúnculos, que parecem doloridos ao toque.
Pego o copo de água e a garrafa de Red Label da mesa de centro.
Segurando os dois, pergunto:
— Qual você prefere?
Não tem nem um segundo de deliberação. Os olhos do homem vão para
o whisky.
— Boa escolha.
Despejo o copo de água direto no carpete – porque ninguém vai dar a
mínima para uma poça em uma casa cheia de praga – e encho o copo até a
metade com a bebida.
Passando uma mão sob as costas do homem, ergo o corpo dele apenas o
suficiente para que ele possa engolir, ignorando minhas próprias dores que
surgem com o esforço. Usando a outra mão, seguro o copo de whisky nos
lábios dele.
Ele acaba com o líquido em cinco goles fortes.
— Mais — fala rouco, e sua voz parece mais forte.
Encho o copo até a metade outra vez, e novamente ele o bebe. E depois
mais uma vez.
É álcool o bastante para mandá-lo para o hospital, mas acho que é esse o
objetivo. Não tem como vencer essa praga. A taxa de mortalidade dessa
coisa é de cem por cento. Nesse ponto, tudo o que qualquer um de nós pode
fazer é controlar a dor desse homem.
Uma vez que esvazia o terceiro copo, pego a garrafa mais uma vez, mas
ele ergue a mão apenas um pouco.
Chega.
— Obrigado — ele fala com um chiado.
Aceno com a cabeça, engolindo o nó na minha garganta. Pego sua mão
quente e seguro entre as minhas.
— Gostaria que eu ficasse? — questiono. Não me importo em
acrescentar, pelas suas últimas horas. Mesmo olhando na cara da morte,
não pareço conseguir tratá-la pelo nome.
O homem fecha os olhos, o corpo já relaxando com os efeitos do whisky,
e aperta minha mão uma vez, o que tomo como um “sim”.
Meu polegar faz círculos na pele dele, e começo a recitar Poe
suavemente.
— Olhai! A morte edificou o seu trono, em uma estranha cidade
solitária…
As palavras de “Cidade no Mar” são sussurradas por mim, palavras que
li e memorizei há muito tempo. Após terminar de recitar o poema, sigo em
frente citando “E Vós Estais Morto, Tão Jovem e Belo” e então algumas
passagens de Macbeth, pedaços de poesia e prosa que memorizei aqui e ali.
O mundo pode ter parado de se importar com esses poetas há muito tempo,
mas suas palavras imortalizadas agora são mais apropriadas do que nunca.
Ao meu lado, o homem não abre os olhos outra vez, mas de tempo em
tempo inclina a cabeça apenas um pouco na minha direção, deixando-me
saber que está ouvindo. Em algum momento, para de se inclinar. As
respirações chiadas ficam lentas enquanto cochila. Sento-me nos
calcanhares, segurando a mão dele, e assisto até o levantar e cair do peito
dele se dissolver em nada. Mesmo assim, seguro sua mão, não soltando até
sua pele começar a esfriar.
Não cheguei a saber seu nome. Segurei sua mão e aliviei seu sofrimento,
e a visão do seu corpo consumido pela praga vai me assombrar pelo resto
dos meus dias, mas não soube seu nome. Isso vai me incomodar.
Por impulso, pego a garrafa de Red Label e dou vários goles. Coloco a
garrafa embaixo do braço. Já sei que vou precisar outra vez, e logo. Sem
dúvida terei mais tormentos pela frente.
Afinal, meu sofrimento está apenas começando.
CAPÍTULO 11

SAÍMOS EM MENOS DE UMA HORA APÓS o homem sem nome


morrer. Pestilência me guia para fora com uma mão no meu ombro, seu
arco e aljava dourados nunca longe da minha visão.
Apenas um lembrete do que pode fazer comigo.
O corcel espera por nós, as rédeas dele não estão amarradas a nada,
apenas parado ali como se a criatura não tivesse nada melhor a fazer do que
esperar seu mestre.
Pestilência pega a corda guardada em um dos alforjes. Soltando-a, ele
envolve uma ponta em meus pulsos, que ainda estão cobertos com
bandagens.
Começo a sentir todas as dores novamente quando vejo minhas mãos
atadas.
Correr novamente. Deveria saber.
Mas ao invés de amarrar a outra ponta na parte de trás da sela, ele passa
por um dos passadores de cinto.
Ergo as sobrancelhas. Isso é inesperado.
Pestilência toma cuidado para evitar meus olhos enquanto se vira para
mim e enfia os braços sob os meus. Apesar de ter me carregado até o
banheiro pelos últimos dois dias, ainda fico surpresa com a pressão das
mãos dele sob minhas axilas. Antes que eu possa reagir, ele me ergue para o
cavalo. Um segundo depois, monta atrás de mim.
O couro range enquanto Pestilência se acomoda na sela. Solto uma
respiração sibilante com a dor que surge quando sou pressionada contra sua
armadura. Sua mão esquerda me envolve, espalmada na minha barriga. A
outra mão pega as rédeas.
Ele se inclina para mim.
— Se pular — avisa, sua respiração quente na minha orelha —, vou
fazer você correr atrás de mim novamente.
Não duvido, mas nesse momento, tudo o que posso pensar é em como é
repulsivo e íntimo estar perto assim dele. Pestilência faz um barulho com a
língua, e o cavalo parte.
Estou cavalgando com um dos cavaleiros do apocalipse.
Puta merda.
Agora tenho lugar na primeira fileira para o fim do mundo.

Mesmo com todas as dores que repuxam meus ferimentos, cavalgar é um


meio de viajar bem melhor do que correr com os pulsos atados atrás de um
cavalo.
— Estava bem perto da morte, não estava? — pergunto, referindo-me a
quando Pestilência arrastou meu corpo já machucado pela rodovia.
— Você precisa falar?
Como ele é agradável...
— Você precisa espalhar a praga?
Ele não responde, entretanto, posso sentir seu mau humor contra minhas
costas.
— Por que você me salvou? — cutuco.
— Eu não salvei você, humana. Mantive você viva. Tem uma diferença.
E a mantive viva para fazê-la sofrer. Pensei que tivesse sido claro quanto a
isso.
Toco o meu peito. Sob as camadas de roupas emprestadas estão as
bandagens que protegem meus ferimentos.
— Você se deu muito trabalho para me manter viva.
— Verdade — fala, depois de um momento de pausa. — Mas te punir
várias e várias vezes me traz grande alegria.
Suas palavras são amargas, mas ainda assim… não acredito nelas. Deus,
como quero acreditar, porque ah... como o desprezo, mas não acredito nele.
Não totalmente. E não sei por quê.
Cavalgamos em silêncio por mais alguns minutos, nossos corpos
balançando com o ritmo do trote do cavalo, antes de eu tentar outra vez.
— Onde você aprendeu a limpar e fazer curativo em feridas? —
questiono.
— Qual a importância disso? — retruca.
Dou uma olhada para trás, para ele, encontrando seu olhar azul gélido
enquanto o vento sopra algumas mechas do cabelo em volta do rosto dele.
Que desperdício de beleza.
A mandíbula de Pestilência trava quando o observo nos olhos, e ele
desvia o olhar de volta para a rodovia.
— Nenhuma, acho. Só estou grata. — Estou mesmo. Descubro que não
estou pronta para morrer, mesmo que fosse a opção mais fácil naquele
momento.
— Não me interessa — fala de forma rude.
Peguei ele de bom humor, mesmo. Só que não.
— Então… — Praticamente posso sentir o temperamento dele piorar,
mas continuo: — Não fiquei doente.
— Observação astuta, mortal.
— É apenas sorte, ou você controla quem contrai a praga? — questiono.
— Você nasceu com todos os seus órgãos intactos? — contesta.
Não posso ver o rosto dele, então não posso saber a intenção da
pergunta.
— Sim… — respondo com cuidado.
— Bom — retruca —, então espero que use o que está sob seu crânio.
Maldição. Esse insulto queimou um pouco.
— Então você controla a doença.
Ele não diz nada sobre isso.
— E você me poupou — acrescento.
— Mais uma vez você insiste que meus motivos foram altruístas. Não
presuma nem por um momento que dou valor a sua vida. Você só está viva
para satisfazer minha vingança.
É, que seja. Olho para a mão bronzeada do cavaleiro, que ainda está
espalmada no meu abdômen.
— Para onde estamos indo?
O modo como Pestilência solta o ar consegue transmitir seu cansaço do
mundo.
— Quero dizer — continuo sem desanimar —, qual seu destino final?
Essa única pergunta assombrou as pessoas ao redor do mundo. Para onde
Pestilência estava cavalgando?
— Não tenho um, humana — fala. — Cavalgo simplesmente até
completar minha tarefa.
Até estarmos todos mortos. É o que ele quer dizer. Ele vai guiar seu
cavalo pelo mundo até ter infectado todos nós. A verdade pesa como uma
pedra na boca do meu estômago. O braço de Pestilência aperta minha
cintura.
— Chega de conversa fiada. Suas perguntas me cansam.
Não tenho vontade de responder com sarcasmo. Depois da última
resposta, descubro que também não quero falar com ele. E assim nós dois
cavalgamos em um silêncio horrível e perturbador, e durante todo o tempo,
o cavaleiro continua espalhando sua praga.

Está anoitecendo quando Pestilência para. Olho timidamente para a casa


de apenas um andar a nossa frente enquanto o cavaleiro salta do corcel.
Espero mesmo que a pessoa que mora aqui tenha evacuado.
Pestilência estica o braço para mim. Depois de ficar sentada em uma sela
o dia inteiro, não consigo hesitar com o toque dele.
Olho para ele enquanto me ajuda a descer do cavalo. É um sentimento
estranho, estar vulnerável perto de alguém que te machucou e cuidou de
você. Atadas como minhas mãos estão, dependo deste homem diabólico até
para algo tão fácil quanto desmontar de um cavalo, e descobri que estou
procurando sua bondade e compaixão em cada pequeno detalhe. É
completamente ridículo de minha parte, considerando que foi ele mesmo
quem me colocou na situação em que estou, mas não me impede de
continuar procurando.
Por um breve momento, os olhos de Pestilência encontram os meus e,
pela primeira vez, estão livres da ira e amargor que normalmente possuem.
Claro, no momento que penso isso, tornam-se reservados mais uma vez.
Minhas pernas quase se dobram quando ele me coloca no chão.
— Jesus, Maria e José — praguejo baixo. A parte de dentro das minhas
coxas parece esfolada, e os músculos doem.
Olho para os céus.
Já entendi, Chefão, não sou sua pessoa favorita agora.
O cavaleiro não me olha novamente quando começa a andar. Alguns
segundos depois, sinto um puxão nos meus pulsos quando a corda que me
prende a ele tensiona.
— Acompanhe, humana — fala sobre o ombro.
Como desprezo esse homem. Cambaleante, vou atrás dele, vendo com
desaprovação quando ele chuta a porta da frente e me arrasta para dentro.
Demora vários segundos para meus olhos se ajustarem ao novo ambiente
escuro. O lugar tem cheiro de mofo como se tivesse ficado fechado por
muito tempo. Entre isso e o jeito que minha respiração se transforma em
névoa na minha frente, é claro que quem mora aqui está longe no momento.
Pestilência se aproxima de mim e pega minhas mãos de forma brusca.
— Sabe as regras — fala enquanto desata os nós. — Você corre, e minha
bondade acaba.
Meus olhos vão para a aljava de Pestilência, onde as pontas emplumadas
de uma dúzia de flechas douradas espreitam por cima do ombro dele. Ainda
posso sentir as pontas dessas flechas na minha pele. Minhas costas
começam a latejar em resposta.
— Você realmente se apegou a essa palavra.
Bondade.
Bondade é cortar lenha para um casal de idosos que não tem nem o
dinheiro nem os meios de adquiri-la. Bondade é um abraço caloroso ou um
sorriso suave. Bondade não é essa merda.
A corda escorrega dos meus pulsos, e olho para Pestilência ao esfregar
as bandagens. Dando um último olhar taciturno para o cavaleiro, ando até a
lareira. Os donos têm toras, fósforos, e sobras de papel velho disponíveis.
Pegando-os, começo a empilhar a madeira e coloco as aparas em alguns
locais específicos. Durante todo o tempo, ignoro cuidadosamente o
cavaleiro cujo olhar sinto nas minhas costas.
— Acabou? — chamo.
Tem uma pausa.
— Com o que, humana?
— De encarar minha bunda – olhou o suficiente? — pergunto, minha
voz pingando com desdém.
— Deveria ficar insultado com isso? — Ele soa genuinamente perplexo.
Se vai me fazer soletrar, então…
— Sim.
Ele grunhe.
— Vou tentar me lembrar da próxima vez que me cortar com palavras
afiadas.
Quase posso sentir o prazer dele com a pequena afronta. Boa, cavaleiro.
Você realmente me tem nas suas mãos dessa vez…
Olho para ele por cima do ombro. Sua armadura e coroa brilham na
escuridão.
— Você é tão nojento — observo.
Suas sobrancelhas apertam.
— Caso não seja óbvio, é outro insulto — acrescento. Volto para o fogo
e foco a atenção nele.
Pestilência se demora por mais ou menos um minuto, e parte de mim
está curiosa com o que está fazendo ali atrás. Com sorte, está morrendo de
humilhação, apesar de eu ter minhas dúvidas.
Após um tempo, Pestilência deixa a sala de estar, o barulho da sua
armadura ficando cada vez mais fraco. Uma porta fecha e depois escuto o
som da banheira enchendo.
Eu também poderia tomar um banho. Estou cheirando a cavalo e suor, e
meus curativos devem estar sujos. Mas tomar um banho significa pedir
ajuda para remover as bandagens e não estou pronta para implorar a
Pestilência no momento.
Acendo o papel e enfio entre os troncos, então me sento para assistir o
fogo crescer.
Pela primeira vez desde que perdi o sorteio do fósforo, tenho um
momento para mim mesma que não é movido a adrenalina, medo ou dor.
Tento não pensar no que isso significa. É mais fácil entender em que pé as
coisas estão entre mim e o cavaleiro quando ele está buscando me
machucar. Não é tão fácil quando ele é apenas irritante.
Por um longo tempo meus pensamentos ficam sem rumo. Você pensaria
que eu usaria o tempo sabiamente – para planejar minha fuga ou pensar em
maneiras de incapacitar o cavaleiro, mas não. Minha mente está
estranhamente vazia.
Há uma coleção de pequenas estátuas de porcelana enfileirada sobre a
lareira. Uma por uma, analiso suas feições pintadas. É um interesse tão
específico – colecionar essas pequeninas estátuas – e é apenas mais uma
lembrança de como tem muitas pessoas no mundo. Nesse momento, cidades
inteiras estão fugindo por suas vidas.
Imagino todos os cantos solitários do Canadá, cada lar de milhares de
indivíduos deslocados esperando pelo cavaleiro passar. Estamos jogando
um jogo letal de bate martelo, e todos somos o verme.
Encaro meu jeans e camisa fora de moda. Dentre todas as milhares de
pessoas, estão meus pais. Meu coração vacila. Não sei por que minha mente
continua a me levar de volta para eles. Consciência pesada, suponho.
O plano era nós todos nos reunirmos no chalé de caça do meu avô – uma
cabana não acabada localizada a dezenas de quilômetros a noroeste de
Whistler.
Bem no fundo, sabia que nunca chegaria lá.
— Vocês vão na frente — falei aos meus pais. — Preciso terminar de
evacuar a cidade.
A lembrança ainda machuca.
— Não banque a heroína — meu pai disse. — Todo mundo está
abandonando seus postos.
— Preciso fazer meu trabalho.
— Se você fizer seu trabalho, vai morrer! — gritou. Ele nunca gritava.
— Você não pode saber o que vai acontecer.
— Maldição, Sara, eu sei. Você sabe. Qual a taxa de sobrevivência dessa
coisa?
Não tinha uma taxa de sobrevivência. As pessoas ou evitavam a Febre
Messiânica, ou sucumbiam a ela. Eu sabia disso, meu pai sabia, o mundo
inteiro sabia.
— Alguém precisa ajudar as outras famílias — falei.
Meu pai parou de me ouvir aí. Foi uma das poucas vezes que o vi chorar
abertamente.
Ele já acredita que estou morta, lembro de pensar no momento.
E agora, até onde ele sabia, eu estava. Distraidamente, toco minha
bochecha, sentindo a umidade ali.
— Que surpresa. Pensei que tentaria escapar outra vez.
Instintivamente, meus ombros erguem com a voz de Pestilência. Limpo a
garganta e depois passo a mão rapidamente nos olhos. Ele não merece o
prazer de me ver chateada.
— Entendo que você não simpatize muito com as pessoas — falo,
virando-me para ele —, mas isso é só… Jesus!
Parado do outro lado da sala, o cabelo ainda pingando do banho, está um
Pestilência muito pelado.
CAPÍTULO 12

— AH, MEU DEUS. — CUBRO OS OLHOS. — Coloque roupas!


Ninguém quer ver isso!
Ele franze o nariz.
— Seu senso humano de decoro é absolutamente ridículo.
Mesmo com toda a sabedoria desse cara, há falhas bem óbvias na
educação dele – como, por exemplo, o que deixa os humanos
desconfortáveis para caralho.
— Não muda o fato de que ver você nu não está no topo da minha lista
de coisas para fazer durante o apocalipse.
Não que seja um corpo feio ou algo assim. Quero dizer, se as
circunstâncias fossem diferentes…
— É um dilema o motivo de você falar essas coisas quando sabe que
quero fazê-la sofrer — afirma.
— Pode só colocar uma calça?
Sério, é tudo o que peço.
Ele vem até mim, cada centímetro – e quero dizer ca-da centímetro – à
mostra. Olho aquelas tatuagens âmbar brilhantes que são tão estranhas e
bonitas. Meus olhos se movem para seus ombros enormes e seu torso
acinturado; meu olhar abaixa mais, para seu abdômen e então para…
Talvez seja apenas por estar sentada ao lado do fogo, mas de repente, a
vontade de me abanar é avassaladora.
— Por favor — imploro.
— Quando te implorei por piedade, você me deu?
Isso é tão ridículo.
— Não, mas...
— Não. — Pestilência concorda. — E por essa razão, também vou
ignorar suas súplicas.
Ele não entende que levar um tiro no rosto e olhar para um exemplar
impressionante da forma masculina são dois tipos totalmente diferentes de
sofrimento. Não, apague isso, não são nem similares. São homófonos; soam
iguais, mas as palavras possuem significado totalmente diferentes.
— Você realmente é um ávido defensor da justiça olho-por-olho —
murmuro.
Um Deus do Antigo Testamento definitivamente está comandando o
show aqui.
— Você vai mesmo me fazer olhar para você pelado? — questiono.
— Para onde você olha é problema seu. — Ele se aproxima do fogo e
sério, não posso nem frisar como é duro não o olhar ali. Muito, muito duro.
(Aposto que o cavaleiro não entenderia essa piada.)
Meu cérebro é lento para processar o fato que Pestilência está usando o
calor do fogo para se secar. O que quer dizer que vai ficar um bom tempo
parado ali. Hora de dar o fora. Quando estou prestes a sair, o cavaleiro se
adianta. Ele se vira e começa a andar para fora do quarto, os músculos
tensos contraindo com o movimento.
— Deite-se no sofá e tire a camisa — ordena por cima do ombro ao se
retirar.
Congelo com a ordem. Ele está pelado e agora quer que eu me dispa… O
que diabos?
Para ser sincera, estou mais confusa do que qualquer outra coisa. Não
percebi nenhum interesse sexual vindo de Pestilência – apesar do fato de ele
estar feliz ao andar por aí como veio ao mundo. Isso não me impediu de
pegar o atiçador de fogo da lareira. Vou espancar esse cara se tentar algo.
Estou apenas… surpresa com a ideia.
Fico tensa quando escuto os passos do cavaleiro se aproximando. Um
momento depois ele entra na sala de estar. Meus músculos relaxam um
pouquinho quando vejo que colocou sua roupa preta. Ele até colocou as
botas outra vez. Só o que falta são sua armadura e coroa douradas.
Apesar das suas ameaças de permanecer nu, o cavaleiro não tem muita
palavra. Em uma das mãos, segura um pequeno item. Pestilência para
quando me vê, a camisa ainda grudada no corpo, atiçador de ferro na mão.
Ele suspira.
— Que seja. — Dando vários passos longos, ele cruza a sala.
Eu ataco, e assim como todas aquelas vítimas idiotas de filmes de terror,
não consigo fazer nada. Pestilência tira o atiçador da minha mão e segura
minha nuca, arrastando-me até o sofá. Ele me joga de bruços, e então seu
joelho está pressionando minhas costas.
— Humanos — murmura.
Minha respiração está saindo em arfadas pesadas. Resisto, mas de nada
adianta. Um momento depois escuto tecido rasgar quando Pestilência abre a
parte de trás da minha camisa.
Os dedos do cavaleiro engancham nas minhas bandagens, a pressão me
fazendo pular com uma explosão repentina de dor quando minhas feridas
são tocadas, e então ele começa a rasgá-las. Ele rasga o tecido das ataduras
como se não fosse nada além de lenço de papel.
O procedimento machuca. Não acho que Pestilência esteja tentando me
machucar deliberadamente, mas cada roçar dos dedos dele ou puxão contra
minha pele inflama minhas feridas.
Em algum ponto, acaba. Minhas costas arrepiam quando o ar frio da sala
beija minha pele. Há uma pausa, e então a palma quente do cavaleiro roça a
minha pele. O toque permanece ali apenas por um momento.
— Sente-se — ordena.
O quê? Segurando os farrapos que restaram da minha camisa emprestada
no peito, faço o que diz.
— Tire a camisa — fala, levemente irritado.
Solto uma respiração entrecortada. Não quero fazer o que pede, mesmo
que ele seja indiferente com a nudez, eu não sou. Mas agora… estou
lembrando de como meu corpo foi arrastado pelo asfalto, e do olhar sem
remorso de Pestilência a última vez que o desobedeci.
Não é com um humano que estou lidando. Ele não vai hesitar em me
machucar se eu resistir. E estou tão cansada de resistir. Parece tão… inútil
contra a força implacável dele.
Solto a camisa, fazendo o melhor para cobrir meus seios com os braços.
A mão de Pestilência vai para minhas costas, seus dedos espalmados. O
toque é gentil, mas assusto com a sensação mesmo assim.
— Segure isso contra você — fala atrás de mim.
Olho para baixo para ver o que ele está oferecendo. Demoro um segundo
para registrar que o tecido que está segurando para mim é gaze.
Bandagens. Ele quer trocar meu curativo.
Solto um suspiro trêmulo que acaba soando como um soluço. Tudo bem,
talvez tenha sido um soluço. E esse soluço se transforma em uma risada
entrecortada, que se transforma em outra risada. E então não posso evitar
rir, mesmo quando lágrimas começam a sair dos meus olhos e não tenho
mais certeza se estou rindo ou chorando, porque...
Porque...
Porque, ah, meu Deus, atirei em um homem e ateei fogo nele e mesmo
agora quero vomitar quando penso que pude fazer isso com alguém, mesmo
um precursor do apocalipse. Mas o pesadelo não acabava ali. Fui amarrada
e forçada a correr atrás da mesma criatura imortal que pensei que tivesse
matado, a mesma criatura que está matando todos nós. E depois fui
arrastada, e meu braço foi arrancado da articulação e minhas costas
parecem ter sido rasgadas em pedaços – sem mencionar minhas pernas – e
tive que assistir um homem morrer da maneira mais horrorosa, e agora
estou sendo remendada quando pensei que seria humilhada fisicamente, e
ugh, esse pesadelo não vai acabar porque Pestilência é um psicopata ímpio
que não está satisfeito em destruir a vida como conhecemos. Ele fará de
mim um exemplo ao longo do caminho.
Agora não estou mais rindo, e não tenho nem certeza se poderia chamar
isso de chorar. É um soluço de corpo inteiro, como se minha mente
estivesse tentando expurgar tudo o que testemunhei.
— Espero que esteja gostando disso — falo pelas lágrimas.
— Estou — responde sem alegria. — Aqui. — Ele me passa o rolo de
gaze. Ainda tremendo com a força das minhas emoções, pego a bandagem e
envolvo meu torso, e então passo de volta. Nós dois fazemos isso várias e
várias vezes até ele ter trocado o curativo das minhas feridas.
Seco os olhos, limpo a garganta, e me recomponho. Respiro fundo. Vai
ficar tudo bem – ou não vai, mas isso também não tem problema. Quando
confio em mim mesma o suficiente para falar, digo por cima do ombro:
— Aprecio o que está fazendo, mas se não limpar as feridas, vão
infeccionar. — Quero dizer, elas já podem estar, mas é uma aposta.
Suponho que deveria simplesmente ser grata por esse pouquinho de
bondade.
— É desnecessário — o cavaleiro diz.
— O que você quer dizer com desnecessário? — pergunto, tentando
entender sua colocação.
— Suas feridas não vão infeccionar.
Viro-me completamente para encará-lo.
— Como você sabe disso?
Ele olha para cima, como se estivesse tentando encontrar Deus e sua
paciência no teto.
— Porque controlo a infecção em todas as suas formas.
Sério? Então ele não apenas pode prevenir que eu pegue a praga, mas
não precisa limpar minhas feridas para manter uma infecção afastada?
— Então por que sequer trocar as ataduras? — pergunto, olhando para
frente outra vez.
— Uma ferida desse tamanho requer cuidados para curar adequadamente
— Pestilência diz. Ele corta a atadura do rolo, e amarra. — Agora, me dê
seus pulsos.
Eu o faço, estranhamente hipnotizada com a situação – e com
Pestilência, honestamente.
Ele se inclina sobre meus pulsos, o cabelo dourado e ondulado caindo na
frente dos olhos enquanto desenrola a bandagem antiga. Nesse ângulo, o
cavaleiro parece dolorosamente inocente, o que é uma coisa estranha de se
dizer a respeito de um homem, ainda mais um que tem uma boa taxa de
mortes na bagagem. Talvez seja apenas sua gentileza aparecendo pela
primeira vez, ou eu estou finalmente tendo um vislumbre da sua (pequena,
quase desaparecendo) humanidade.
Minhas sobrancelhas se juntam enquanto encaro sua cabeça abaixada.
— Por que você está fazendo isso?
— Sofrimento foi feito para os vivos.
Não sei por que esperava uma resposta diferente. E entendo. Eu o
machuquei, então ele me machuca. Estamos apenas seguindo o roteiro. É só
esse momento que não entendo. Observar o cuidado dele comigo, a
gentileza. É perturbador o bastante esperar uma resposta além de: quero
fazer você sofrer.
Mas se tem outra explicação, não vou recebê-la.
CAPÍTULO 13

BANHOS SERÃO UM PROBLEMA.


No dia seguinte, encaro Pestilência, a banheira às minhas costas, a porta
na dele. Nós dois estamos enfiados dentro de um pequeno banheiro na nova
casa em que decidimos dormir.
Como a última casa em que ficamos, esta está abençoadamente vazia. E
bônus: tem eletricidade, o que quer dizer água quente e que meu traseiro vai
ser limpo.
O único empecilho é o psicopata que pensa que vou fugir, apesar de já
ter me deixado sozinha em um banheiro antes – inferno, ele me deixou
sozinha em quartos, em salas de estar e cozinhas. Ele sabe que já me fez
desistir de fugir dele. Então não entendo por que pensa que tem qualquer
necessidade de ficar no banheiro comigo.
— Tudo bem, você tem que sair — falo, encarando o gigante humanoide
na minha frente.
Os braços dele se cruzam sobre sua armadura dourada. Código cavaleiro
para me obrigue, mocinha.
— Você pode não saber isso, mas as pessoas não assistem as outras
tomarem banho. — Pelo menos eu não acho que assistam. Mas talvez tenha
uma sociedade secreta de depravados sexuais que eu não conheço. Coisas
mais estranhas aconteceram – o homem na minha frente, por exemplo.
— Se você quer uma coleira mais longa, vai ter que provar que merece
— fala, seu rosto altivo.
— E todas aquelas outras vezes quando você me deixou sozinha para ir
ao banheiro?
— Você estava fraca demais para me desobedecer — afirma.
— Não estava noite passada.
Ele apenas me encara. Ergo os braços.
— Vou estar nua e encharcada. Você sabe como está frio lá fora?
Ele não responde.
— Está frio o bastante para congelar meus peitos até eles caírem —
respondo mesmo assim.
Nenhuma reação. Nem mesmo uma risada. Não me surpreende. Tenho
quase certeza de que seu senso de humor é inexistente.
— Por favor. — Estou recorrendo a implorar sem sentir vergonha.
— Por favor? — ecoa. — Esqueceu a nossa história? Implorei e você
negou. — Ele se apoia na porta. — Tome seu banho, humana, ou não, mas
não vou sair daqui sem você.
Considero seriamente desistir do banho. Não sou puritana, mas não estou
exatamente animada de mostrar meus dotes para a criatura que está
tentando acabar com a civilização. Mas, no final, tudo se resume a
praticidade. Estou coberta de sangue e sujeira e quem sabe quais outros
fluidos corporais. Sou um risco biológico.
Dando a Pestilência um olhar feio, abro a torneira de água quente e
começo a tirar as roupas. Ele não tem problemas com nudez, tento me
tranquilizar enquanto tiro as calças. Lembro-me da visão dele pelado como
veio ao mundo. Ele nem mesmo sabe que deveria ficar envergonhado.
Isso me tranquiliza um pouco.
É quando vou tirar a gaze cobrindo meu torso que encontro um
empecilho. Onde quer que Pestilência tenha atado as bandagens, está fora
do meu alcance. Puxo as amarras sem resultado, até o cavaleiro se afastar
da porta.
Ele afasta minhas mãos para longe e vira minhas costas para ele. Estou
prestes a protestar quando rip, ele rasga o tecido nas minhas costas.
Uma vez terminado, aproxima-se da minha orelha.
— Disponha.
Faço uma careta para a parede enquanto ele volta para a porta. Quando a
banheira está quase cheia e abençoadamente aquecida, o resto das minhas
roupas e bandagens já foram removidos.
Os olhos de Pestilência passam pelo meu corpo do mesmo jeito distante
que fizeram antes. Eu poderia ser um abajur, de acordo com o interesse
dele. Deveria estar aliviada. Se ele, no entanto, fosse avaliar cada
imperfeição minha, poderia morrer de vergonha.
Sua indiferença, entretanto, ainda me afeta. Não tenho certeza se quero
que fique impressionado com a visão do meu corpo (eca), ou se me
incomoda que ele não sente nada quando vê uma mulher nua. Humanos têm
um monte de opiniões quando se trata do corpo feminino (não é possível
fazer os cuzões pararem de falar disso), e a falta de reação de Pestilência só
serve para me lembrar de que ele não é humano.
Entro na banheira, a água abençoadamente quente. Suspiro ao afundar.
Do outro lado do banheiro, o cavaleiro coloca o arco e aljava de lado,
apoiando as armas na parede próxima antes de descansar a cabeça na porta.
Seu olhar se arrasta por mim, sem ser rude ou nojento, mas curioso e
levemente interessado.
Pondero se isso é tudo estranho e novo para ele. Mulheres, nudez,
banheiras, água corrente – o troço todo. Não é como se ele tivesse nascido
nesse mundo e não desse valor a essas coisas.
Afundo mais na água, absorvendo o calor.
Faz tanto tempo que tomei um banho decente.
Quando o faço, é apenas uma chuveirada gelada que preciso tomar
correndo antes de adoecer. Esta noite, vou ficar aqui até as pontas dos meus
dedos parecerem uva passa.
— De onde você veio? — pergunto.
Os olhos de Pestilência estreitam.
— Outro lugar.
Claro que sim.
Pego uma barra de sabonete caseiro e uma toalha de banho dobrada, e
começo a me limpar, iniciando pelos dedos dos pés. Subo pelo corpo,
esfregando a pele até parecer esfolada e limpa. Pedaços de sangue e sujeira
soltam-se de mim.
Não tem xampu ou condicionador – não é uma grande surpresa,
considerando que são extravagâncias – então espumo o cabelo com
sabonete, esfregando o melhor que posso com os dedos, sabendo muito bem
que a sensação vai ser estranha quando secar.
Melhor do que sujo, suponho.
É apenas depois que todo o resto está limpo que, relutantemente, tento
lavar as costas. Tão logo a toalha roça minhas costas, as feridas gritam.
Infelizmente, esse não é nem o maior problema que tenho. Tem um bom
pedaço das minhas costas que não consigo alcançar, não importa o quanto
tente.
E estou tentando muito.
Escuto o tilintar de metal quando Pestilência se move.
Eu o observo com cautela quando ele se ajoelha ao lado da banheira. Ele
pega o pano da minha mão, e uma das suas mãos segura meu ombro,
deixando-me tensa.
Ele me olha nos olhos.
— Só estou fazendo isso porque suas tentativas fracassadas de higiene
são dolorosas de se assistir — avisa.
Meus lábios se partem, mas antes de ter chance de falar, ele segura
minha nuca.
— Se incline para frente.
Hesito, irritada com a forma como está me tratando, mas eventualmente
me inclino, envolvendo os braços nas panturrilhas.
Seus dedos afastam o cabelo molhado, o toque fazendo meus braços
arrepiarem.
É apenas o ar frio, digo para mim mesma. Aperto os dentes quando
Pestilência começa a limpar minhas feridas, seu toque é
surpreendentemente gentil. Dói, de qualquer forma.

— Como sua raça se machuca fácil... — murmura enquanto a toalha


passa outra vez sobre minha pele ferida.
É o mais perto que vai chegar de uma desculpa, e acho que é bom o
bastante. Quero dizer, pelo menos ele não tentou me matar como fiz com
ele.
Apenas porque quer te fazer sofrer.
Uma vez que Pestilência termina, ele devolve a toalha, e volta para a
porta, sentando-se com as costas apoiadas nela. Pega o arco e o repousa no
colo, transformando-se mais uma vez no guarda da prisão.
A água está encardida e esfriando rápido, e ainda assim, estou hesitante
em sair. Minhas costas ainda doem onde Pestilência esfregou a toalha, e
meus nervos estão ainda mais em frangalhos. Estou me sentindo um pouco
estranha ao lado dele. Não sei se é um estranho bom, ou ruim –
provavelmente um estranho ruim.
Puxo os joelhos para o peito, apoiando minha bochecha neles.
— Você ainda não sabe meu nome — digo.
— Não preciso saber — afirma, tirando uma mecha de cabelo solta do
rosto. — “Humana” é bom o bastante.
— Não, não é.
Seus olhos se estreitam.
— Sara — falo. — Meu nome é Sara.
Ele franze o nariz.
— Qual a importância em como você é chamada? — contesta. — Vocês
são todos iguais.
— Nossa, você sabe como fazer uma garota se sentir especial.
Sua boca se curva para baixo.
— Você não é especial. Nenhum de vocês é. São vis e violentos.
— Diz o cara que está matando as pessoas aos milhares.
— Eu não gosto de fazê-lo — afirma.
— Eu também não gostei. — A memória de Pestilência sangrando na
estrada, sangrando e ainda assim vivo, ainda me faz cerrar os dentes.
— Você quase me enganou — retruca.
Forço uma risada.
— Então você não é tão bom em ler os humanos quanto em julgá-los.
Ele inclina a cabeça.
— Talvez — concorda —, mas não preciso lê-los, preciso?
Ele só precisa matá-los.
Ficamos quietos por um tempo. O cavaleiro está verificando a
flexibilidade do arco, e estou deixando o frio da água tocar minha pele.
— Você tem um nome? — questiono. — Além de “Pestilência, o
Conquistador”?
Ele coloca o arco de lado.
— Não recebi um nome.
Não penso muito na informação implícita que alguém poderia tê-lo
nomeado.
— Por que não?
Os olhos de Pestilência focam nos meus.
— Não preciso de um nome para ter um propósito. São os humanos que
exigem nomes para cada folha de grama nessa boa terra verde.
Porque nomear as coisas as humaniza. E uma vez que você humaniza
algo, está essencialmente reconhecendo a sua existência. Considerando que
o cavaleiro está em uma missão para matar o máximo de pessoas possível,
posso ver por que teria problema com humanizar qualquer coisa.
Ele não recebeu um nome. A minha ficha cai.
Colocando de lado meu desgosto intenso pelo homem, tem uma parte
minha que sente pena dele. Ele não tem nem um nome próprio.
Fique feliz, Sara. De outra forma, corre o risco de você humanizá-lo. E
isso não seria horrível?
— Então… não tem problema te chamar de Pestilência? — pergunto. Ele
inclina a cabeça.
— É apenas um nome.
Apenas um nome. Que irônico, considerando que nem um minuto atrás
ele insistiu que não havia sido nomeado. Ainda assim, talvez eu esteja
errada. Pestilência, o Conquistador, foi o nome que nós demos a ele. Não é
como se estivesse estampado no seu peito no dia em que chegou, ou algo
que havia declarado quando estava massacrando cidades inteiras.
Encaro mais um pouco o cavaleiro. Ele realmente machuca meus olhos.
É bom eu não confiar em homens bonitos. Porque esse é definitivamente o
mais bonito que já vi, e também o pior de todos – tirando, talvez, os irmãos
dele, mas já que o mundo não viu nem sinal deles… Pestilência continua
sendo o pior.
Ele se levanta, passando primeiro o arco e depois a aljava pelo ombro.
— Venha — diz. Ele pega uma toalha do suporte e joga para mim. Não
consigo pegar a tempo, e uma boa parte dela acerta a água. — Sei que
terminou de se banhar — continua, alheio ao olhar irritado que estou dando
a ele —, e estou ansioso para deixar essa latrina.
— Não é uma latrina — falo, levantando e me enrolando na toalha. — É
um banheiro.
Ele balança a cabeça enquanto abre a porta.
— Ba-nhei-ro. — Ele separa a palavra em três partes. — A ironia da
palavra não me escapa.
— O que você quer dizer?
— Apenas vocês humanos pensariam em colocar a privada perto dos
lugares de banho.
Parece razoável para mim. Quero dizer, você caga e então se limpa. Qual
o problema com essa disposição?
— Onde você colocaria? — pergunto, inclinando a cabeça para secar o
cabelo com a toalha.
Ele abre a porta.
— Não um ao lado do outro.
Ah, isso ajuda muito.
— Claro que você reclamaria de um problema sem realmente ter uma
solução — falo.
Ele olha para mim por cima do ombro, pavoneando-se pelo corredor.
— Não precisa de solução para um problema quando se vê um.
— Sua solução provavelmente seria queimar banheiros em todos os
lugares. Certo? “Eles são lugares vis e nojentos. Apenas se livre deles!”
Na minha frente, Pestilência gargalha.
— Apenas uma humana criaria uma solução tão ridícula.
— Estava zombando de você!
— Essa zombaria deveria ser um insulto? — questiona ao olhar para
mim. — Até onde posso ver, você que comparou sua espécie com latrinas.
Ugh. Comparei, não é mesmo?
— Você não está entendendo o ponto — falo.
— Não consigo descobrir se você tem um.
Isso nunca vai acabar. Nós dois poderíamos continuar em rodadas
intermináveis disso até o fim do mundo.
— Esquece — murmuro, deixando o cavaleiro e indo em busca de
roupas.
No quarto principal, encontro uma camisa feminina, calças e tudo o
mais. É um pouco curta e apertada, mas consigo encontrar um par de calças
que não me fazem sentir como uma salsicha muito cheia e uma camisa que
cobre todas as partes importantes.
Uma vez vestida, volto para a sala de estar. Minha respiração falha
quando vejo o cavaleiro. A luz do sol poente brilha pelas janelas, fazendo o
cabelo dele brilhar como ouro fiado. Meu coração aperta da mesma forma
que fez quando vi fotos da Capela Sistina. Uma beleza tão incrível que faz
você se sentir mais perto de Deus. Esqueço que estávamos discutindo e que
ele é o inimigo. Por um único segundo, sinto um incômodo estranho sob
minhas costelas.
Tão perto de Deus…
Um Deus que quer todos nós mortos.
CAPÍTULO 14

— EXPERIMENTA.
— Absolutamente não.
— Ah vai, experimenta! — insisto.
— Eu disse não.
No que diz respeito a manhãs pós-Pestilência, essa começou bem. O sol
está pintando o mundo à nossa volta em uma suave luz rosa (tão lindo),
minhas mãos misericordiosamente não estão atadas pela primeira vez e
aconchegado entre elas está um copo térmico contendo minha própria
versão da salvação.
Cutuco Pestilência, que está sentado atrás de mim, com o cotovelo.
— Sabe que está curioso.
— Acho que sei melhor do que você o que eu quero.
Alguém aqui leva tudo literalmente demais. Pressiono o copo térmico
mais perto do cavaleiro, nem um pouco dissuadida por causa dos seus
protestos. Quer dizer, é chocolate quente que estou oferecendo. Também
quero mesmo ver se esse cara é capaz de beber fluidos. Não o vi tocar
comida ou bebida até agora.
A mão de Pestilência afunda no meu quadril, onde me segura contra si
na sela.
— Se eu experimentar, você vai ficar quieta?
— Não, mas você sabe que não me quer quieta.
Minhas palavras são pontuadas pelo constante som do cavalo de
Pestilência, que eu secretamente nomeei Trixie Skillz, que soa como
Tricksy Skills e significa malandro habilidoso. Tenho quase certeza de que
o corcel é macho (não chequei porque, diferente de algumas pessoas que
conheço, respeitar a privacidade de alguém é importante), mas não importa.
Tenho toda a história criada também. Trixie Skillz, o nobre corcel, uma
vez viveu uma vida de pobreza e medo, fazendo truques nas ruas por
cenouras e grãos, quando Pestilência o salvou. Agora os dois são
inseparáveis. Fim.
Pestilência pega o copo térmico da minha mão, erguendo o recipiente
para analisá-lo melhor.
— Se isso for veneno, humana, vou te amarrar atrás do cavalo outra vez
e te fazer correr.
Faço um barulho zombeteiro.
— Pestilência, se fosse veneno, eu teria problemas maiores do que
receber outra massagem do asfalto. — Problemas como tombar e morrer.
Ele franze o cenho para mim, e depois para o copo.
— Não sei por que estou encorajando essa… irritação.
Porque você gosta, quero dizer, mas não o faço. Tenho quase certeza de
que parte de Pestilência – talvez uma pequenina parte dele, mas uma parte
mesmo assim – está começando a gostar da minha companhia, com
irritação e tudo.
Tudo bem, talvez tolerar seja uma palavra melhor. Estamos tolerando
um ao outro apesar de nos odiar abertamente. É um relacionamento
estranho, mas já que ele se recusa a morrer e não vai me matar, estamos
presos nisso juntos.
Depois de encarar o copo por décadas, Pestilência o leva para os lábios.
Puta merda, ele vai fazer isso! Ele finalmente vai beber alguma coisa!
O cavaleiro hesita, então estica a mão e vira o copo para o lado,
derrubando o conteúdo. Por um segundo, olho como uma boba para o
pequeno fio de líquido marrom saindo do bocal, então entro em ação.
— Seu herege! — Pego o copo dele. — Poderia apenas ter dito não.
— Eu o fiz.
— Bom, poderia ter falado sério.
— Eu o fiz.
Confiro o cantil morno. Ainda tem uma quantidade decente de chocolate
quente sobrando. Legal. A mão de Pestilência retorna para meu quadril
enquanto volto a beber o líquido quente.
— Por que você não come ou bebe? — pergunto, por fim.
— Porque não preciso — responde, seco.
— E?
— E? — ecoa, parecendo ofendido. Ele olha para mim, talvez para ter
certeza de que estou falando sério. — Estou confuso. Por que deveria comer
ou beber se não preciso?
— Porque é divertido e tem um gosto bom – quer dizer, tirando o bolo
de frutas da minha tia Milly. Aquela merda tem gosto de cu sujo. Mas sim,
comida tem um bom sabor, assim como o chocolate quente que você
desperdiçou um minuto atrás.
— Me diga — ele fala —, se eu me esbaldar como um humano, como
serei melhor que um?
Ah, céus.
— Podemos não fazer tudo ser uma batalha pomposa entre o bem e o
mal? É apenas comida.
Ele fica tanto tempo em silêncio que acho que não vai responder, mas
finalmente diz:
— Vou pensar no que acabou de me dizer.
Depois disso, nós dois ficamos quietos. Odeio o silêncio.
Não me leve a mal, normalmente fico confortável sozinha na minha
própria mente. Tem sempre coisas como filosofia e literatura, história e
política para pensar. E quando esses assuntos ambiciosos ficam chatos, tem
a enxurrada normal de barulho para preencher minha cabeça, como lembrar
de declarar meus impostos de renda, ou descobrir como, logisticamente,
receber toda minha família no meu apartamento do tamanho de uma
caixinha de fósforo, ou ponderando em quais livros usados vou desperdiçar
meu salário.
Mas nesse momento minha mente não é aquela velha amiga confiável
que já foi uma vez. Toda vez que o silêncio chega, minha mente vaga para
aquela vítima da praga de quem cuidei, ou para o fato de que mais pessoas
estão morrendo a cada quilômetro que viajamos. Pior de tudo é quando
rumino sobre o homem nas minhas costas. Ainda sou sua prisioneira, mas
quanto mais tempo passo perto dele, mais confusos meus sentimentos
ficam.
Pressiono a mão no pescoço do cavalo.
— Com longo olhar escruto a sombra, que me amedronta, que me
assombra, e sonho o que nenhum mortal há já sonhado[1]… — murmuro
para mim mesma.
— Do que você está falando? — Pestilência pergunta.
— Estou citando “O Corvo”. É um poema do Edgar Allan Poe.
Pestilência faz um barulho no fundo da garganta.
— Deveria saber que o breve lampejo de eloquência não era do seu
feitio.
— Você sequer tem a habilidade de falar sem me insultar? — pergunto.
Juro que esse babaca está apenas tentando matar minha alegria matinal.
— Claro. — Posso sentir o sorriso presunçoso em sua voz. — É que há
muitas coisas em você que valem a pena insultar.
Se esse chocolate quente não fosse tão precioso para mim, derrubaria o
resto na cabeça dura de Pestilência, foda-se as consequências. Acho que o
cavaleiro está esperando que eu o aplauda – para ser bem honesta, acho que
ele gosta dos duelos verbais que temos –, mas ele foi e arruinou Poe, então
não vou lhe dar nada mais.
Quando o silêncio se alonga, o cavaleiro fala, suave:
— Eu gostei dessa pequena amostra de poesia.
Dou uma bufada. Não vou morder a isca, bonitinho. Nem quando
realmente quero – porque, é Poe. Começo a acariciar a crina de Trixie, sinto
o pelo branco sedoso do cavalo na ponta dos meus dedos.
— Me conte sobre você — Pestilência exige.
Eu me arrepio com o tom da sua voz. Dito tão altivamente, como se eu
estivesse aqui para servi-lo. Sem mencionar que as últimas vezes que tentei
conversar, ele foi rude.
— Não.
Essa resposta o faz se calar. Quase posso senti-lo estudar a parte de trás
da minha cabeça.
— Você é uma criatura muito estranha — fala. — Em um momento você
diz que não vai parar de falar, no próximo se recusa.
Ele está mesmo tentando me provocar. Se não soubesse melhor, diria que
o cavaleiro estava rapidamente criando um apetite para conversas.
Ele suspira.
— Humana, você atiçou meu interesse – um feito raro. Não desperdice.
— Desperdice? — Esse cara. — Você quer dizer, me recusando a
conversar? — Isso é bem fofo. — Vou te mostrar um feito raro – me irritar.
Ele gargalha.
— Você quer dizer que essa natureza afiada sua é atípica?
Ele traz à tona todas as minhas tendências afiadas.
— Você quer saber sobre mim? — Quase grito. — Tudo bem. Meu nome
todo não é humana, é Sara Burns. Tenho vinte e um anos de idade. E uma
semana atrás fui sequestrada por um cavaleiro insuportável. Gostaria de
discutir sobre isso também?
Estou tão pronta para explodir com Pestilência.
— Hmm. — É tudo o que ele diz.
Nenhum comentário afiado ou observações espertinhas. Apenas hmmm.
Eu poderia matar alguém agora.
— O que você faz para preencher seus dias? — ele pergunta.
Tenho que olhar para trás para garantir que estou conversando com o
mesmo homem que estava me provocando literalmente segundos atrás. Ele
me encara, parecendo sincero. Faço uma careta.
— Fazia — ralho. Não faço nada no momento, tirando (com alegria)
atrasar o cavaleiro. (Todos temos que tirar nossa alegria de algum lugar.)
Virando-me para frente, acrescento:
— Era uma bombeira.
Seus dedos tamborilam na minha cintura.
— Você gostava disso?
Ergo os ombros.
— Era apenas um trabalho. Não me definia. — Não do jeito que fazia
com alguns de meus colegas, que sonharam a vida inteira em serem
bombeiros. Solto uma respiração. — Sempre quis ir para faculdade estudar
inglês — confesso. Não sei por que estou admitindo isso.
— Inglês? — Pestilência questiona, curioso. — Mas você fala bem,
ainda que um pouco estranho.
— Não inglês como a língua — esclareço, tomando o restinho do
chocolate quente. Coloco o cantil em um dos alforjes. — Inglês tipo
literatura escrita em inglês. Queria estudar os trabalhos de Shakespeare e
Lord Byron e – meu favorito – Poe.
— Poe — o cavaleiro repete, sem dúvida lembrando o nome mais cedo.
— Por que você não estudou esses poetas?
O arrependimento traz um gosto amargo no fundo da minha garganta, e
não tem mais chocolate para tirar.
— Quatro cavaleiros vieram para terra e fizeram uma bagunça com o
mundo.

Quando entramos na cidade de Squamish, está tão abandonada quanto


esperei que estaria. Passamos por um posto de gasolina cujas bombas estão
enferrujadas com os anos de desuso, mas a loja está cheia com prateleiras
de produtos em conserva, nozes e doces. Mais adiante, as luminárias a gás
recém-instaladas ainda queimam, apesar do sol estar alto há horas. O
acendedor de luzes deve ter sido evacuado antes que pudesse apagar as
chamas.
Como a loja do posto de gasolina, os postos de troca que passamos ainda
estão cheios de mercadoria, um sinal de que seus donos fugiram antes que
tivessem chance de armazená-las. Como resultado, alguns foram invadidos
e roubados.
Sob as camadas de roupa, minha pele se arrepia. Tudo isso poderia ter
acontecido horas atrás, e ainda assim, não tem uma única alma a vista. É
muito enervante passar por uma cidade que deveria estar cheia de pessoas.
Parece… assombrada.
Como devem parecer Quebec e Ontário e o resto das províncias para o
leste agora que Pestilência passou por elas? Como a Costa Leste dos
Estados Unidos deve parecer agora?
Você saindo viva ou não, o mundo nunca vai ser o mesmo. Pestilência sai
da rua principal e começa a vagar pela cidade, e não tenho ideia de qual é o
plano dele. É cedo demais para invadir a casa de alguma pobre alma, e até o
momento, é a única hora que o cavaleiro sai da rodovia principal.
Não é até nos aproximarmos do hospital de Squamish que começo a me
sentir desconfortável.
— O que você está fazendo? — questiono.
— Seu corpo débil precisa de cuidados.
Encaro o hospital com horror crescente. Cuidados tipo gaze. Ficamos
sem os curativos de algodão essa manhã.
— Não preciso de mais curativos — falo, rápido.
— Sim, precisa. — Com mais gentileza, Pestilência diz: — Você
realmente acha que preciso ir ao hospital para todos eles morrerem? Sara,
preciso apenas andar por uma cidade para ver sua ruína.
Olho para trás, para ele. Sei que deveria estar processando suas palavras,
mas estou presa no fato de que ele, na realidade, disse meu nome.
Ele continua, destemido.
— Se eu entrar no hospital ou não, não importa. Os humanos ainda vão
adoecer, ali em específico.
Não é novidade o que ele está dizendo, mas eu não quero ver os rostos
dos que estavam doentes e fracos demais para fugir, enquanto a morte
encarnada anda entre eles.
Há uma chance de a cidade ter tomado providências especiais para
mover os pacientes do hospital. É possível. Mas também é possível que os
indivíduos mais fracos não tenham conseguido evacuar.
Pego o antebraço do cavaleiro quando um pensamento passa por mim.
— Um supermercado — falo como se tivesse descoberto a cura do
câncer. — Terão curativos lá.
Pestilência olha para onde seguro seu braço.
— Você viu um supermercado no caminho até aqui?
— Vi pelo menos três deles. — Hoje em dia há um posto de troca ou
supermercado em cada canto, cada um existindo porque tem alguma
vantagem no mercado.
O cavaleiro estreita os olhos para mim.
— E você acha que devemos ir para lá ao invés do hospital?
— Absolutamente.
— Então está resolvido — fala objetivamente.
Foi… foi fácil assim mesmo convencê-lo? Por um instante quase
acredito. Mas então Trixie Skillz continua a trotar em frente, e o hospital
paira cada vez mais perto.
— E o supermercado? — Olho por cima do ombro para Pestilência.
Seu rosto é sinistro quando encontra o meu.
— Minha intenção é fazê-la sofrer.
CAPÍTULO 15

HOSPITAIS SEMPRE SÃO OS PRIMEIROS a sucumbir. Essa foi uma


das coisas que os filmes acertaram. Assim que as pessoas começaram a
ficar doentes, as instalações médicas encheram, pensamos que a medicina
moderna curaria a praga. Pensamos que estávamos melhores do que os
pobres coitados que pegaram a Peste Negra. Todos aqueles séculos que
passamos estudando enfermidades e as subjugando – com certeza
estávamos mais bem equipados para parar uma epidemia.
Estávamos errados.
Pestilência pula do cavalo, arco e aljava nas costas, olhando para o
prédio. Agora que estamos perto, posso ver alguns rostos assustados
olhando pela janela. Um deles é uma mulher segurando o rosário, seus
lábios se movendo em oração.
Deus não vai te salvar, quero dizer a ela. É Ele quem te quer morta.
Virando-se para mim, o cavaleiro estica os braços e envolve minha
cintura.
— Venha, Sara, e olhe nos rostos dos que partirão em breve.
— Te odeio — falo enquanto ele me ergue do corcel.
— Ah... ódio! Mais uma emoção distintamente humana. — Ele me
coloca no chão.
Não acho que é uma emoção distintamente humana – o próprio cavaleiro
parece senti-la bastante. Ele caminha na minha frente para as portas duplas,
parecendo um galante cavaleiro em sua armadura. Pela primeira vez na sua
maldita vida, tenta abrir as portas do jeito apropriado. Elas não se movem.
Não é nenhuma surpresa; hospitais possuem procedimentos de segurança
para esse tipo de situação. O cavaleiro se vira, seus olhos encontrando os
meus brevemente, e brilham em desafio. Em um movimento rápido, vira-se
outra vez. Seu punho avança, batendo na porta como uma britadeira.
Com um gemido, as portas duplas se dobram para dentro, mas de forma
chocante, ainda permanecem fechadas. Meu coração acelera enquanto
assisto o cavaleiro. Isso é um filme de terror, um onde o cara malvado está
entrando na casa para matar todas as crianças. Só que essa é a vida real,
filmes não existem, e o cavaleiro é um demônio de carne e osso.
Seu punho bate na porta uma segunda vez, com uma força sobrenatural,
e com um guincho metálico, as portas caem para dentro.
Pestilência dá um passo para o lado quando os alarmes do hospital
começam a soar, o olhar amedrontador encontra o meu.
— Depois de você.

De algumas maneiras, a visita não foi tão ruim como temi que seria. De
outras, foi pior. É cedo demais para as pessoas sucumbirem à Febre, então
as poucas pessoas no hospital são o grupo comum de funcionários e
pacientes. Mas todas aquelas expressões aterrorizadas… Meu estômago se
repuxa com a memória delas, enquanto nos distanciamos do hospital, a
porra da gaze preciosa do cavaleiro guardada nos alforjes que pendem de
cada lado da sela do Trixie.
Pestilência me fez olhar para todos eles. Todas aquelas pessoas com suas
mortes programadas. Seria uma mentira dizer que gostou de me fazer olhar
– ele estava tão taciturno quanto eu –, mas isso importa no final? Ele ainda
me fez olhar para todas aquelas pessoas presas ali dentro, só porque sabia
que me machucaria.
— Espero que esteja satisfeito — falo quando o hospital está bem longe
de nós.
O braço na minha cintura me aperta.
— Humana, você não sabe? Eu nunca estou satisfeito, e assim cavalgo
em frente.
Não falo nada em relação a isso. A tristeza tem um jeito de entrar nos
seus ossos e se acomodar por um bom tempo. E no final, é isso que sinto.
Não raiva de Pestilência – apesar de guardar mais do que um pouco de
ressentimento –, mas tristeza por aqueles rostos que simplesmente deixarão
de existir em alguns dias. O pesar me engole.
Fico quieta por tanto tempo que se torna perceptível.
— Não quero que essa experiência seja agradável, humana. Se fosse
agradável, você estaria morta.
Alguém quase poderia pensar que o cavaleiro está tentando racionalizar
suas ações. Mas isso significaria que sente remorso pelo que fez, e sei que
não é o caso. Olho direto para frente, meu olhar pousando em uma máquina
de lavar enferrujada parada do lado da estrada.
— Nenhuma resposta cortante para mim? — Pestilência pergunta vários
minutos depois, quando ainda não respondi. — Preciso dizer, estou quase
decepcionado.
O que ele quer de mim? Não é o bastante que cada uma dessas paradas
mate um pouquinho de algo que tenho dentro de mim? Não falo mesmo
quando Pestilência se aproxima de uma casa, essa acolhida no meio de uma
dúzia de outras. Não há ninguém ali, mas ainda estou em um humor muito
ruim para me importar de verdade.
Ele desmonta, o movimento parecendo muito agitado. Sigo obediente,
sem esperar que me ajude a descer. Ele avança pela varanda da frente, sua
armadura brilhando na luz do dia. Pestilência ergue o pé com a bota, e
derruba a porta com um único chute forte. Não espera por mim antes de
entrar, mas sei que se eu tentasse fugir, ele estaria sobre mim em um
instante. Provavelmente é o que quer.
Uma vez que o sigo para dentro da casa vazia, ele me encurrala.
— Por que você não fala comigo?
Não faz muito tempo ele não queria nada além do meu silêncio. Mas isso
foi quando o cavaleiro não sabia que tinham coisas melhores do que
cavalgar solitário.
— Não quero falar com você — falo.
Dando alguns passos rápidos, ele diminui a distância entre nós e pega
meu queixo.
— A última vez que conferi — fala, dando tapinhas na minha bochecha
com o dedo —, não estava te mantendo prisioneira porque você queria.
Um sorriso amargo distorce meu rosto, mas não consigo encontrar forças
para discutir. Ele solta meu queixo com uma bufada.
— Tudo bem. Faça beicinho, humana. Não vai te ajudar em nada. Eles
ainda vão morrer.
Por que ele precisa continuar trazendo isso à tona? Esfrego as têmporas.
— Você queria que eu sofresse, e estou sofrendo. Então pegue sua vitória
e me deixe em paz — por fim falo.
Os olhos de Pestilência endurecem.
— Esse não é nem o começo do sofrimento, humana. Posso fazer isso
pior. Muito pior.
Tenho certeza de que pode, mas nesse momento realmente não dou a
mínima.
Começo a me afastar. Tudo o que quero é encontrar um quarto vazio
longe do cavaleiro onde possa me enrolar e fingir que não estou vendo
aqueles rostos toda vez que fecho os olhos. Estou prestes a sair da sala
quando paro.
— Por toda virtude que possui — falo por cima do ombro —, você é
mesmo um babaca sem coração.
CAPÍTULO 16

EU ME ACOSTUMEI A ROUBAR AS vítimas de Pestilência. Cada vez


que invadimos a casa de alguém, é exatamente isso que faço. Roubo as
camas, comida e água, a casa deles e – se são infelizes o bastante para
permanecerem – seu tempo. Pestilência pode tomar suas vidas, mas eu pego
todo o resto. E estou começando a ficar bem com isso. Bom, tão bem
quanto qualquer pessoa pode ficar na minha situação.
Vou até a cozinha na manhã seguinte, vejo os sapatos de neve e esquis
antigos pendurados na parede do outro lado. Do lado de fora, a chuva bate
ferozmente contra as janelas e o vento balança as árvores. Esfrego os
braços, grata pelo fogo crepitante que Pestilência começou. O tempo pode
estar uma bagunça do lado de fora, mas o interior da casa está bem
aquecido.
A tempestade abafa o som da água espirrando vindo do corredor. O
Bonitinho precisa dos banhos de monstro dele.
Banhos de monstro gelados, corrijo enquanto vou para os armários. A
eletricidade não funciona aqui, logo, não temos água quente.
Meu estômago ronca, lembrando-me de que não como desde ontem.
Abro os armários um por um. No total, encontro dois potes de picles, uma
lata de feijão e uma cebola embolorada. Delícia.
A cozinha tem uma geladeira, mas julgando o fato que não há
eletricidade, duvido que esteja funcionando. Ainda assim, nunca se sabe; as
pessoas transformaram essas coisas em caixas de gelo.
Abro e...
— Uau.
Garrafas. Fileiras e mais fileiras de garrafas de destilado caseiro. Olho
para todas elas enquanto um rio do que provavelmente um dia foi gelo
escorre para o chão. Por curiosidade, pego uma das garrafas da prateleira e
abrindo a tampa, cheiro o conteúdo. Faço uma careta. Não apenas caseira,
mas ruim.
— E você espera que eu beba de boa vontade suas bebidas.
Grito ao ouvir a voz de Pestilência e a garrafa escorrega da minha mão.
Rápido como um raio, o cavaleiro dá um pulo para frente e pega o
recipiente, nos salvando de ficar cobertos em mijo fermentado.
— Cuidado, Sara — fala ao se endireitar e coloca a bebida no balcão
próximo.
A voz suave e rouca dele transforma meu nome em algo íntimo e
exótico. Acho que odeio como ele a faz soar adorável. O cabelo dele está
pingando água, e me pego encarando primeiro as mechas escurecidas, que
são da cor do trigo, antes de desviar a atenção para as maçãs do rosto altas,
onde algumas gotas de água gelada beijam sua pele. Meu olhar abaixa para
sua boca, com seus lábios grossos e esculpidos.
Minhas bochechas esquentam com a visão deles.
Ele se afasta de mim, alheio aos meus pensamentos, e olha a cozinha
com um leve interesse. Os pés descalços pisam na poça de gelo derretido
enquanto olha dentro da geladeira.
— Não tem muito aqui, tem? — fala, movendo os potes para o lado.
Quando o faz, vislumbro...
— Ah, meu Deus! Torta!
Está quase no fim, provavelmente mais velha do que meu avô, e comer
antes do meio-dia deve quebrar umas três regras diferentes de etiqueta, mas
quem liga? É torta.
Sem gentileza alguma, tiro Pestilência do caminho com o quadril e a
pego. Olhando mais perto, consigo ver que é torta de maçã (minha favorita,
porque né) e ainda resta quase um quarto dela. O suficiente para uma única
garota comer sem muita culpa…
O cavaleiro me observa com atenção enquanto coloco a torta na mesa da
cozinha, deixando-a apenas por tempo o bastante para procurar um garfo.
Ele segue meu exemplo, pegando um garfo da gaveta e voltando para a
mesa.
— O que você está fazendo? — pergunto quando ele se senta na minha
frente com o utensílio de metal na mão.
Pestilência estuda meus lábios enquanto responde.
— Você queria que eu experimentasse comida humana.
Meus olhos se movem entre a torta e o garfo dele.
— Você está falando sério? — Suponho que seja sua maneira de aliviar o
aborrecimento do dia anterior. Meu entusiasmo desmorona com o
pensamento.
Você estava pronta para dividir seu chocolate quente com ele, Sara. Mas
torta de maçã está acima até de chocolate quente. Ele vai dar só uma
mordida. Não vai nem gostar, só está tentando provar algo. Sem palavras,
empurro a torta para o lado dele.
O cavaleiro encara a torta por um momento antes de cautelosamente dar
uma garfada. Leva aos lábios como se tivesse feito isso centenas de vezes
antes, e depois de uma breve hesitação, dá uma mordida na torta de maçã.
Eu o observo com um tipo de satisfação estranha. É preciso algo muito
importante para me distrair de torta, mas Pestilência ingerindo comida pela
primeira vez é exatamente isso. Seu rosto permanece sem expressão o
tempo inteiro.
Ele não gostou. Graças a Deus, ele não gostou. Ele abaixa o garfo e olha
para mim, o rosto sério.
— Você estava certa.
Estava? Sobre o quê? Minha testa franze em confusão.
— Não precisar de algo não quer dizer que não se pode aproveitá-lo. —
Com isso, ele pega o garfo mais uma vez e dá outra garfada.
— O que você está fazendo? — Fico com vergonha de como minha voz
soa cheia de alarme.
— Comendo.
— Então… você gosta? — sondo.
— Quer um pedido formal de desculpa? — Pestilência pergunta. —
Você gostaria que eu admitisse que estava errado?
Gostaria que você não gostasse da minha torta roubada, muitíssimo
obrigada.
— Pensei que você tivesse mencionado que comida era uma corda
bamba na depravação moral? — falo, puxando a bandeja de volta para meu
lado da mesa e dando uma mordida na torta.
Está um pouco rançosa, e prefiro torta quente, mas é, em uma palavra,
divina. O cavaleiro arrasta a torta de volta para seu lado da mesa.
— Pensei no assunto. — Pega outra garfada cheia. Mais uma mordida…
perdida para essa besta. — Comida, por si só, não é perversa.
Arrasto a bandeja de volta para mim.
— Mas indulgência provavelmente é.
Agora que eu sei que ele pode ingerir comida, o suspense acabou.
Apenas devolva minha torta. É tudo o que peço.
— Talvez — concorda. Isso não o impede de continuar a comer a
sobremesa, e acontece que ele dá as maiores garfadas do mundo.
A torta rapidamente desaparece, a maior parte indo para o homem na
minha frente, homem que nem precisa comer. Isso é injusto pra caralho.
Depois que termina, Pestilência recosta na cadeira, passando um pé sobre o
outro joelho. Tem algo tão terrivelmente normal nessa situação. Um homem
e uma mulher compartilhando o café da manhã. É fácil imaginar o cavaleiro
sem a coroa e a armadura douradas e suas armas. É fácil imaginá-lo apenas
como um homem.
E isso é muito, muito perigoso.
— Eu estava errado — fala suavemente, os olhos azuis encontrando os
meus.
— Sobre o quê? — pergunto, distraída, raspando as últimas migalhas da
torta do fundo da assadeira.
É, sou patética esse tanto.
— Sobre comer.
Meus olhos sobem para os dele. Seu olhar é muito direto. Não sei o que
quer de mim. Ergo os ombros.
— Legal.
Os olhos de Pestilência vão para meus lábios.
— Você usa uma linguagem tão estranha às vezes.
Isso vindo de um cara que chama o banheiro de latrina. Desvio o olhar
por nenhuma outra razão do que perceber como ele é bonito quando é
gentil.
Meu olhar vaga para a tempestade do lado de fora. Ela continua tão forte
como antes. Sei por experiência própria que, se estiver tão frio quanto
penso do lado de fora, a água da chuva vai queimar como gelo.
— Por favor, não nos faça viajar hoje. — O pedido meio que apenas
escapa de mim.
— Por favor? — Seus olhos se iluminam como fogo. Merda.
Ele ama essas palavras. Sua cadeira arrasta para trás.
— Humana, acho que você acabou de decidir nosso dia.
CAPÍTULO 17

SINTO O FRIO E O CAVALEIRO JUNTO com ele. Meus dentes batem


sem parar enquanto Trixie Skillz trota sempre em frente. Mesmo sob as
camadas de roupas e o cobertor de lã que uso, meu corpo não para de
tremer.
Posso ser a única canadense que não aguenta o frio. Todo mundo é tipo:
“hey, olha, posso ver o sol hoje, e apesar de estar frio o bastante para
congelar a água, por Deus, acho que é um clima para usar camiseta!”
Enquanto isso, sou o que acontece quando um humano e um cubo de gelo
têm um bebê.
Tenho quase certeza de que fui trocada na maternidade.
— Ma-mais quanto te-tempo? — pergunto, meus tremores bagunçando
minha fala.
Vou ter hipotermia e morrer aqui. E isso não seria irônico? Prisioneira de
Pestilência morre de exposição: não à praga, mas aos elementos da
natureza.
O cavaleiro olha para mim de onde me segura firme contra sua rígida
armadura dourada.
— Não tenho certeza — fala. — Poderia pedir com gentileza e me ajudar
a decidir.
Ele quer dizer que eu poderia pedir por favor outra vez e me ferrar.
— Ou pode continuar quieta e podemos cavalgar pela noite.
Viro-me para encará-lo.
— Vo-você é o babaca ma-mais orgulhoso que-que já co-conheci!
Volto a olhar para frente, puxando meu cobertor molhado mais apertado
à minha volta. Quando tudo isso acabar, vou mudar para o México. Aposto
que ninguém morre de frio no México.
Se pensei que Pestilência reagiria à minha explosão, estava errada.
Continuamos em frente, os minutos passando penosamente. Passamos por
alguns assentamentos tão pequenos que se espirrássemos os perderia de
vista. A tempestade dá uma breve trégua, só para voltar duas vezes pior.
Em algum ponto durante o dia, meus tremores diminuem, mas não é
porque consegui me aquecer. Tenho ciência de que isso é ruim vagamente.
Meus dedos estão duros e difíceis de mover, e meus olhos ficam se
fechando.
É só quando o cobertor escorrega e cai na rua que chamo a atenção de
Pestilência.
— Não vou voltar por ele — fala.
Eu me balanço onde estou sentada, minhas pálpebras se fechando. Eu
não ligo. Não tenho certeza se penso ou se falo, só que o braço do cavaleiro
de repente é o lugar perfeito para descansar a cabeça. Fecho os olhos, mal
percebendo como Pestilência está tenso.
— Sara?
— Hmm? — Não abro os olhos.
— Sara.
Só vou cochilar um pouco…
— Sara. — Vira meu rosto para ele. Pisco enquanto seu olhar analisa
minhas feições, demorando-se nos meus lábios.
Ele começa a parecer aflito.
— Você não está bem.
Não estou, estou?
Acho que o escuto xingar baixo e então faz um barulho com a língua,
apertando o braço à minha volta. Trixie começa a galopar, seus cascos
espirrando água gélida nas minhas pernas.
— Por que não disse nada? — Pestilência urra. Ou talvez seja o vento e a
chuva que estão urrando…
— Tenho que sofrer.
Ele bufa, e juro que escuto ele dizer:
— Não assim. — Mas isso é ridículo porque deveria sofrer exatamente
assim.
No próximo desvio, o cavaleiro puxa as rédeas, virando o corcel por um
caminho enlameado. Olho para ele, chuva e gelo grudam seu cabelo no
rosto. Lá se foi o banho do Bonitinho mais cedo.
— Pa-para onde estamos indo? — questiono. Minha língua parece
grossa e desajeitada na boca.
— Parece que mais uma vez subestimei como você é frágil.
É o mais perto que ele chega de uma resposta. Talvez um quilômetro,
mais ou menos, mais tarde, vislumbro uma casa amarela que já viu dias
melhores. Pestilência caminha em linha reta até ela, sem parar até estarmos
quase na soleira da porta.
Ele desce do cavalo e me pega nos braços. Em três passos largos, ele está
na porta. Seu pé com bota bate na madeira, chutando a porta para dentro.
Escuto gritos agitados.
Não, mais pessoas não.
— Saiam do meu caminho! — o cavaleiro grita.
Tenho um breve vislumbre de um casal de meia-idade e atrás deles, duas
crianças curiosas. Não. Pestilência me coloca na frente de um fogão a lenha,
segurando-me próxima enquanto tremo.
Seguro o braço dele e forço meus olhos a continuarem abertos.
— Não podemos ficar aqui — falo, minha voz fraca.
— Preciso de cobertores — exige. Ele não está nem olhando para mim.
Minhas pálpebras insistem em se fechar.
Meu corpo parece pesado. Tão pesado.
— Por favor — murmuro. Sei que é a coisa errada a se dizer, mas não
posso evitar. De que outra forma eu deveria implorar pela vida de alguém?
— Ssshhh. Cobertores! E mais lenha!
Uma mão afasta meu cabelo para trás, e quero ver a quem essa mão
pertence, mas meus olhos estão pesados demais para abrir. Finalmente me
sinto segura e cuidada, e isso é tudo o que meu corpo precisa no momento.
Começo a relaxar, minha cabeça encontrando a curva de um braço mais
uma vez.
Um lugar tão estranhamente confortável para dormir.
As crianças!
Começo a me sentar mais uma vez, forçando-me a acordar.
— Sshh, Sara. Estou bem aqui.
Quem?
Não as crianças.
Não as crianças.

Recobro a consciência gradualmente, localizando-me aos poucos. Um


monte de cobertores me cobre, e na minha frente está um fogão a lenha com
um fogo queimando alegremente dentro dele. Encaro as chamas como se
elas tivessem as respostas para todas as minhas perguntas.
Eu me movo lentamente, sentindo como se tivesse bebido meu peso em
destilado ruim e depois decidido correr uma maratona antes de ser atingida
por um trem de carga. Ontem não foi meu melhor dia.
Gemo, começando a rolar.
Assim que me movo, sinto o vento roçar minha pele nua. O que diabos?
Estou nua?
Um braço aperta minha cintura, parecendo uma faixa de aço.
… Espereaporradeumminuto.
Minha mente para de repente.
Não.
Nãonãonãonãonãonãonãonão.
Naaaaãooooooooo.
Olho por cima do ombro e com certeza, ali está Pestilência, deitado de
conchinha comigo como se fôssemos amantes. Pelo que posso ver, ele não
está usando camisa.
Respire fundo, Burns.
— Nós…? — Não posso nem terminar a frase.
— Você estava com hipotermia.
Ah. Claro. Essa seria a sequência lógica de eventos. E não foder o ser
mais odiado do mundo. Porque isso seria tão fora de questão que… Por que
estou sequer cogitando isso? Seguro os cobertores à minha volta, apertando-
os contra mim, e me sento com o máximo de modéstia que consigo.
— Onde estamos?
Pestilência senta-se ao meu lado, e agora realmente parece que nós dois
estávamos de safadeza.
— Em uma casa — responde.
Faça uma pergunta boba…
Ao longe, escuto vozes abafadas.
“Não você não pode ir lá.”
“Mas estou com fome.”
“Aquele é mesmo o cavaleiro?”
“Quero fazer carinho no cavalo dele!”
“Voltem para seus quartos, você dois.”
Pequenos pés batem no chão. Meu estômago contrai. Crianças. É
mesmo. Esfrego a mão contra um dos meus olhos, desejando que as últimas
vinte e quatro horas desapareçam.
Crianças. Sob o mesmo teto que Pestilência.
— Não os deixe morrer — sussurro.
— Todo mundo morre, Sara.
Fecho os olhos. Tudo dói para caralho. Meu corpo, meu coração, minha
mente.
Eles vão morrer.
Viro-me para encará-lo, pressionando o cobertor contra mim. Tem carros
de corrida estampados nele. O cobertor de um garotinho, sacrificado para
que eu pudesse me aquecer. De vez em quando são os pequenos detalhes
que machucam mais.
— Honestamente — falo —, essa é a maior pilha de esterco que já ouvi
de você.
Ele estreita os olhos para mim.
— Todo humano morre — corrige, sem entender nada.
— Não significa que eles têm que morrer hoje! — sibilo, tentando
manter minha voz baixa pelo bem da família.
— Não vão. Ainda tem mais alguns dias.
De repente não posso olhar para ele, e não aguento ficar ao seu lado. Ele
vai matar crianças. Crianças. Claro, ele já havia matado crianças. Milhares
e milhares delas. Mas agora, a realidade disso está sendo esfregada na
minha cara e não posso aceitar.
Sem palavras, Pestilência me dá uma pilha de roupas, sem dúvida algo
que pegou dos donos. Essa pode ser a pior parte disso tudo. O cavaleiro
pode pensar em pegar roupas para mim enquanto deixa sua maldita praga
matar crianças.
Pestilência se apoia nos antebraços, observando enquanto me visto, seus
olhos não tão desinteressados no meu corpo como estavam na última vez
que o viu.
Devo estar imaginando coisas. Finalmente encontro seu olhar.
— Mude de ideia.
— Não.
Minha mandíbula aperta enquanto olho para ele com olhos acusadores.
Ele encontra meu olhar sem hesitar.
— Não estou aqui para fazer todas suas vontades. — A voz de
Pestilência é equilibrada, sem sentimentos. — Estou aqui para acabar com o
mundo.
CAPÍTULO 18

DEMORA TRÊS DIAS PARA A PRAGA matar um homem. Quatro, se


ele for particularmente sem sorte. Essa família é particularmente sem sorte.
Não sei se é simplesmente a natureza trabalhando, ou se Pestilência está
puxando os fiozinhos (seja para me punir por irritá-lo, ou para chegar a um
“meio-termo” comigo e dar um pouco mais de tempo para essa família
viver).
Demora quatro longos e agonizantes dias de doença antes da família
inteira perecer. Mãe, pai, filho e filha. Todos eles levados por essa praga
estúpida e sem sentido.
Quatro dias que permaneci naquela casa pela insistência de Pestilência
enquanto me recuperava, quatro dias que o cavaleiro desapareceu, quatro
dias que cuidei da família – contra seus desejos. Eles desejavam que eu
fosse embora. Pelo menos até estarem fracos demais para cuidarem de si
mesmos.
— Por que ele está fazendo isso? — a mulher, Helen, me perguntou um
dia antes de morrer.
Ajoelhei ao seu lado da cama.
— Não sei.
— Por que ele te salvou? — insistiu.
— Tentei matá-lo — expliquei. — Está me mantendo viva para que
possa me punir.
Ela balançou a cabeça.
— Acho que não — murmurou. — Pode ter suas razões, mas não acho
que punição é uma delas.
Minha pele se arrepiou com suas palavras e, pela primeira vez, não tive
certeza sobre minha situação. Por que mais o cavaleiro me manteria por
perto se não fosse para me punir?
Lembro-me da tortura que aguentei, e minha incerteza desaparece. Helen
apenas não sabia o que Pestilência me fez passar. Era só isso.
De todos os membros da família, o pai parte primeiro. Ele era um cara
grandalhão que parecia um tanque, e de todos eles, teria pensado que
aguentaria mais. Ao invés disso, nas primeiras horas do quarto dia, ele
fechou os olhos, deu uma última tosse ruidosa e faleceu na grande cama que
dividia com a esposa.
No momento em que morreu, Helen estava doente demais para tirá-lo da
cama. Consegui arrastar seu corpo cheio de fístulas, mas Helen não me
deixou removê-lo do quarto.
— As crianças não deveriam vê-lo… assim — protestou, fraca.
Então o arrastei para o banheiro da suíte, e Helen precisou ficar deitada a
meros metros do corpo dele que esfriava e apodrecia. E apesar de estar
sucumbindo à própria morte nesse ponto, viveu tempo o bastante para
reconhecer o horror disso.
O filho foi depois. Antes de morrer, levei-o para o quarto dos pais, para
que Helen pudesse segurá-lo quando fosse embora.
Ela seguiu duas horas depois.
A última a ir foi Stacy, a pequena filha que morreu vestindo pijamas de
unicórnio, deitada sob um céu de estrelas que brilham no escuro. Ela
chamou pela mãe quando a febre a tomou, chorou pelo pai quando as
feridas abertas em seu corpo doeram mais do que podia aguentar.
Segurei sua mão e acariciei seu cabelo o tempo todo, fingindo ser sua
mãe para que, em sua confusão, ela encontrasse um pouco de paz. E então
se foi como o resto da família. Em silêncio. Como sair de um ambiente para
outro, seu peito subindo e descendo cada vez mais devagar até parar de
subir de vez.
Isso foi vinte minutos atrás. Ou talvez uma hora. O tempo prega peças
em você quando menos espera.
Sento-me ao lado da cama da Stacy e seguro sua mão mesmo depois que
sei que partiu. Vi o bastante durante meu tempo como bombeira para
desenvolver uma casca grossa, mas isso… isso é algo totalmente diferente.
Ela era apenas uma criança. E ela morreu por último, com ninguém além
de uma ex-bombeira para vê-la partir.
Atrás de mim, a porta range ao abrir.
— Hora de ir — Pestilência diz nas minhas costas.
Limpo algumas lágrimas perdidas das minhas bochechas. Colocando a
mão de Stacy em seu peito, levanto-me e vou para onde ele está parado no
batente da porta.
Chego tão perto dele que posso sentir o calor do seu corpo.
— Por que você tem que levar as crianças? — sussurro rouca.
Sua mão pousa em meu ombro, guiando-me para fora do quarto.
— Preferia uma morte lenta para elas, é isso?
— Preferia que nem mesmo morressem.
— O que você acha que vai acontecer, humana, depois que as famílias
delas morrerem? Uma vez que essas crianças estejam todas sozinhas? Acha
que podem caçar sozinhas? Procurar comida sozinhas?
Todas as minhas réplicas são como pedras na minha boca, rolando uma
sobre a outra. No final, apenas olho feio para ele.
— Vê — fala —, você mesma sabe que minhas palavras são verdadeiras,
mesmo que as despreze.
— Por que você sequer precisa matar? — digo, enquanto ele me guia
pelo corredor.
— Por que você precisava arruinar o mundo? — o cavaleiro retruca.
— Eu não arruinei.
— Arruinou. Assim como não preciso tocar em cada homem para matá-
lo, você não precisa pessoalmente colocar fogo no mundo para ser o motivo
dele queimar.
Esfrego os olhos. Cada vez que conversamos, sinto como se estivesse
batendo a cabeça na parede, machucando-me e não tendo nenhum resultado
pelo meu esforço.
— Por que precisa ser tão horrível? — sussurro. — Os caroços, as
fístulas.
— É praga. Não deveria ser agradável.
Ele me guia para fora, onde Trixie espera, os alforjes cheios de coisas
roubadas da casa. Ver todas essas coisinhas guardadas, sinto como uma
ladra de túmulos, furtando dos mortos. Sei que não precisam mais de
comida e casacos, mas ainda não posso me desvencilhar do sentimento de
ser errado.
Travada, subo no cavalo, Pestilência se juntando a mim um momento
depois. E bem assim, nós dois deixamos a casa e seus antigos ocupantes
trágicos para trás. Mal andamos um quilômetro quando o cavaleiro pega um
sanduíche embrulhado de um dos alforjes e me entrega.
— Você não comeu — explica.
Viro o item várias vezes na mão.
— Você… fez isso para mim?
— Gosto do gosto de geleia. Pensei que também poderia gostar.
Então sim, ele fez para mim. O mesmo homem que acabou de conceder
a morte me fez um sanduíche porque percebeu que eu não havia comido.
Aperto os olhos fechados e respiro fundo. Por que isso tem que ser tão
complicado? Por que ele não pode apenas ficar quietinho na caixinha da
minha mente que etiquetei de “mau” e ficar por isso mesmo? Esses breves
lampejos em que ele é atencioso e gentil, estão lentamente me quebrando.
Abrindo os olhos, puxo o embrulho do sanduíche, e com certeza, entre
duas fatias rústicas de pão caseiro está uma porção generosa de geleia. E
apenas geleia.
Não deixo escapar como isso é parecido com uma torta – duas
superfícies de pão segurando um recheio de fruta doce. Levo à boca e
mordo. Não é ruim. Não sei por que pensei que seria. Talvez tenha
presumido que sanduíches de geleia deveriam tem um sabor errado. Talvez
depois do dia que tive, qualquer coisa teria gosto de terra na minha boca.
Ao invés disso, tem sabor de indulgência. Enquanto como, imagino
Pestilência naquela pequena cozinha abarrotada que acabamos de deixar,
fazendo isso para mim ao lado da geladeira, transformada em caixa de gelo,
que estava coberta com desenhos de homenzinhos de palito e imãs de
alfabeto. Durante todo o tempo, no final do corredor, assisti uma garota
respirar pela última vez.
O gosto doce de açúcar do sanduíche amarga na minha boca. Respiro
fundo algumas vezes antes de tentar morder novamente.
— Não gosto de vê-los morrer — Pestilência admite atrás de mim.
Abaixo o sanduíche. Ele esteve praticamente ausente durante os quatro
dias que ficamos com a família. Pensei que talvez tivesse algum outro
motivo para isso.
— Por que você não nos forçou a continuar? — Isso poderia ter sido
evitado se ele não permanecesse em um lugar por qualquer período de
tempo.
— Você precisava descansar — responde.
Distraidamente, toco um dos curativos cobrindo meus pulsos.
Ele só está me mantendo viva para me punir, eu havia dito para Helen.
Acho que não, ela disse. Pode ter suas razões, mas não acho que
punição é uma delas.
Guardo meus pensamentos para mim.
— Mas você ainda os infecta — afirmo.
— Ainda os infecto — concorda. — E vou continuar a infectar até meu
tempo passar. Mas não gosto de vê-los morrer.

Nós cavalgamos pelo resto do dia, passando por uma série de


acampamentos pequenos e desertos. Minhas coxas finalmente pararam de
ficar tão doloridas por causa da sela, e minhas costas coçam onde a pele
está se curando.
O tempo também decidiu me dar trégua, com o sol fraco de inverno
brilhando forte sobre nós. Ainda está mais frio do que as tetas de uma
bruxa, mas hey, não está chovendo. Aceito.
As árvores cercam a rodovia à nossa esquerda, e à direita, as bonitas
águas do Howe Sound brilham. Espalhadas por elas estão uma série de
ilhas, e além delas a outra costa continental. A visão seria de tirar o fôlego,
se não fossem pelas fileiras e mais fileiras de carros enferrujados parados
entre mim e a vista.
Os automóveis mortos permanecem abandonados de cada lado da
estrada. Esse deve ser um dos locais que ainda esperam a limpeza
financiada pelo governo. A Chegada que derrubou a maior parte da nossa
energia, também encalhou milhares e milhares de pessoas nos seus carros
no meio da estrada.
Se eu fechar os olhos, ainda posso ver algumas das imagens arrepiantes
dos engavetamentos, carros esmigalhados com seus ocupantes ainda dentro.
Não falamos mais sobre aquela primeira onda de fatalidades, não desde que
Pestilência reapareceu, mas tantas, tantas pessoas morreram naquele
primeiro dia – em batidas de carro, em aviões caindo do céu, pelas
máquinas de suporte de vida falhando, e tantos cenários estranhos que
ninguém nunca imaginou.
À minha volta, os carros enferrujados são lembretes tristes do dia que o
mundo mudou. Pestilência não perde tempo olhando para eles. Ele e Trixie
só tem olhos para o horizonte.
Cavalgamos durante o dia inteiro, não paramos nem para comer. Acabo
por descobrir que é porque Pestilência não fez um, mas três sanduíches de
geleia e embalou um vidro de corações de alcachofra e uma lata de
sardinhas. Não tenho coragem de dizer a ele que não vai querer sentar-se
perto de mim se eu abrir mesmo essa lata de peixe.
Até aí, poderia fazê-lo experimentar o peixe… veríamos o tanto que
gostaria de comida humana depois disso.
O céu já está em um azul profundo quando saímos da rodovia.
Pestilência passa por várias casas, algumas escuras, outras com lamparinas
a óleo queimando forte no interior, antes de finalmente subirmos pela
entrada da garagem da casa de alguma alma sem sorte.
A porta de tela bate com o vento, fazendo um barulho sinistro e gritante.
E agora que estou procurando por isso, percebo que as janelas estão
fechadas com tábuas. Está claro que quem vivia aqui, não o faz há um bom
tempo.
Sinais como esse não são incomuns. Talvez o poço da propriedade tenha
secado, ou a bomba parou de funcionar, talvez a casa fosse longe demais da
civilização agora que carros são obsoletos. Talvez um parente tenha
acolhido os antigos donos, ou talvez eles tenham morrido e ninguém queira
comprar essa casa no meio do nada. As histórias por trás de casas como
essa são todas diferentes, mas todas levam ao mesmo destino: abandono.
Ouvi dizer que tem cidades fantasmas inteiras onde pessoas um dia
viveram, mas não o fazem mais. Las Vegas, Dubai…
O pensamento de todas aquelas cidades um dia entupidas e agora
paradas como ossos no deserto, as atrações brilhantes embaçadas por areia e
caindo em ruínas, faz um tremor passar pela minha coluna.
A morte edificou o seu trono em uma estranha cidade solitária… As
palavras de Poe ecoam na minha cabeça.
Minha atenção volta para a casa na nossa frente. Não gosto de vê-los
morrer, Pestilência disse. Parte de mim pensa que talvez seja por isso que
escolheu esse lugar. O cavaleiro cuida de Trixie enquanto entro na casa.
Assim que dou um passo para dentro, bato a mão na parede até encontrar
um interruptor. Quando encontro, acendo, sempre otimista que a casa vai ter
eletricidade.
Por um momento cegante, o hall de entrada explode em brilho com a luz.
Então, com um estouro e um pop, a luz desaparece tão rápido quanto surgiu.
— Merda.
Acho que deveria estar grata que o dano não é maior. Eu tive que apagar
mais fogos elétricos do que florestais nos últimos anos. Todos esses
pequenos confortos estão em pane.
Pestilência entra atrás de mim, já retirando sua armadura pesada. Ele
solta o arco e a aljava em uma mesa de apoio próxima, e depois cada peça
da armadura. Por fim, tira a coroa e passa a mão pelo cabelo.
É tudo muito humano. Eu me pergunto se ele sabe disso.
— Luz? — pergunta.
— Não funciona. — Vou para outro interruptor, acendo e apago. Nada
acontece. — Nope, definitivamente não.
Começo a tatear pela sala de estar, procurando velas, lamparinas, pavios,
fósforos – qualquer coisa que possa iluminar esse lugar agora que o sol se
pôs. Pestilência sai novamente, deixando-me tatear sozinha.
Ele entra alguns minutos depois, carregando vários itens. Passa por mim
e os coloca no que parece ser a cozinha. Escuto o sibilar de um fósforo
sendo aceso, e um momento depois, ele acende uma lamparina que deve ter
pegado em uma das últimas casas em que ficamos.
Ele dá a lamparina para mim, depois atravessa o corredor escuro da casa.
Eu o observo ir, ouvindo enquanto abre e fecha outra porta. O som abafado
do portão de uma garagem sendo manualmente erguido chega até mim, em
seguida vem o som regular de cascos batendo no cimento enquanto guia
Trixie para abrigá-lo do clima.
Ergo o lampião, dando uma olhada pela casa. Metade dos móveis está
protegida por lençóis puídos, e o que não está protegido, está coberto em
uma camada grossa de poeira.
Vou até a lareira. Ainda tem fotos na cornija. Pego uma, usando o
polegar para limpar a camada de poeira. Sob ela, está o retrato de uma
mulher no começo de seus vinte anos, o cabelo em um permanente,
encaracolado e afofado até não poder mais. Escolho outra foto
aleatoriamente, tirando poeira o bastante para ver um grupo de crianças de
olhos apertados usando roupas de banho, boias empurradas altas nos braços.
Coloco de volta quando meus arrepios aumentam. Há uma vida inteira
aqui que parece ter parado de forma abrupta. Quer seja morte ou
deslocamento que os tenha levado, o fez rapidamente.
Cidades inteiras vão ter essa aparência no futuro.
Não serão apenas Vegas ou Dubai. Vai ser todo lugar que Pestilência
visitar e nesse futuro distópico, alguém como eu vai passar de casa em casa,
desviando de corpos decrépitos que foram deixados dentro sem enterrar.
Estremeço com o pensamento.
A porta da garagem abre e fecha, e os passos pesados de Pestilência
cobrem o caminho de volta para a sala de estar. Quando aparece, traz várias
toras secas com ele. Olha para mim antes de se aproximar, começando a
empilhar a madeira na lareira.
Uma hora mais tarde, o fogo está aceso, meia dúzia de velas estão
tremeluzindo pela sala e um colchão e alguns cobertores comidos por traças
foram arrastados de um dos armários e colocados na sala para que eu possa
dormir onde está aquecido.
Sento-me no colchão, joelhos dobrados sob o queixo, bebericando água
de uma antiga caneca de barro (o poço ainda funciona) e encarando as
chamas. Ao meu lado, Pestilência relaxa no colchão, as pernas dobradas à
sua frente.
— Por que você os ajuda? — ele pergunta.
Seus olhos encontram os meus, as chamas dançando neles. Mesmo
iluminado pelo fogo, ele parece um anjo.
O diabo também era um anjo.
— Ajudo quem? — questiono.
— Aquela família. E o homem antes deles.
Ele está falando sério? Estudo suas feições, meu coração acelerando a
contragosto porque meu corpo é um idiota que não sabe discernir um fdp
perverso de um humano gostoso.
— Como posso não ajudar? — finalmente pergunto.
— Você sabe que eles vão morrer de qualquer forma — afirma.
É um argumento tão frio e pragmático. Como se o caminho para o fim
não significasse nada perto do próprio fim.
— E? — Olho de volta para as chamas. — Se posso aliviar o
desconforto deles, então o farei.
Posso sentir o olhar dele sobre mim, mais quente que o fogo.
— Mas você não faz apenas para aliviar as dores deles, faz? — retruca.
— Você faz para aliviar a sua.
Que cavaleirinho esperto ele é. Aperto os lábios, franzindo o cenho.
— Você está certo — digo. — Sofrimento é para os vivos, e você me fez
sofrer. — Observar aquelas crianças sucumbirem, afogando nos seus
próprios fluidos, tendo que ouvir seus choros… — E como te desprezo por
isso.
— Não espero nada além disso da humana que me queimou vivo.
Viro-me para ele, minha raiva crescendo.
— Então ainda é sobre o seu sofrimento, não é? Você devastou cidades
inteiras, mas no final do dia você foi o ferido. Quer saber de uma coisa? Te
cacei como um maldito animal porque você merece. E faria de novo, e de
novo e de novo.
Faria mesmo? Uma pequena e traidora parte de mim não tem tanta
certeza. Sem me afetar com esse pensamento, continuo:
— Você está matando todos nós cruelmente, e nos odeia por isso.
Ele não fala nada da minha explosão, apenas continua sentado ali,
estudando-me.
— Parte da vida — falo —, é sentir dor, dor sem propósito. — Poderia
contar mil histórias para ele sobre as injustiças do mundo. Mas por que
perder tempo? Ele não dá a mínima para nossos problemas.
— Sou o que sou — afirma, resoluto. Ele soa quase… derrotado. — Vim
aqui com uma tarefa, e vou garantir que seja concluída.
— Quem te deu a tarefa? Deus? O diabo? — Jogo as mãos para o alto.
— O maldito coelhinho da Páscoa? Pensei que fosse Pestilência, o
Conquistador, não o maldito garoto de recados de alguém!
— Cuidado, humana — avisa, sua voz perigosa.
— Cuidado? Se você está com tanto medo das minhas palavras, então
cale minha boca.
Fui longe demais. Soube assim que falei.
Pestilência ergue as sobrancelhas com meu desafio. Um segundo depois,
rasga um pedaço do lençol empoeirado que cobre o sofá próximo.
Levantando-se, torce o algodão nas mãos. A ação parece ameaçadora.
Ele se ajoelha na minha frente, os olhos encontrando os meus. E então
enfia o tecido entre meus lábios. Nunca na minha vida alguém tentou me
amordaçar.
Por um momento, fico pasma, mas aí o momento passa, e viro um touro
bravo, soltando a caneca de água e lutando contra Pestilência enquanto ele
amarra o material com firmeza atrás da minha cabeça. Não consigo muito
mais do que bater em seu rosto antes dele pegar meu ombro e afundar
minha cabeça no colchão. Ele pressiona o joelho nas minhas costas.
Luto contra ele enlouquecidamente, tentando empurrá-lo, mas ele é mais
sólido do que apenas carne e osso, e meus esforços não me levam a nada.
Atrás de mim escuto mais um rasgo e então ele está enlaçando meus pulsos
com o lençol.
Estou gritando na mordaça improvisada.
— Eeeeeuuuuuuu feeelooooo da uutaaaaa! — urro.
Ele amarra meus pulsos apertados. Uma vez terminado, ele me senta e
agacha na minha frente. Ergo o pé e enfio na cara de garotinho bonito. Erro.
Ele recua e pega meus tornozelos.
— Também preciso amarrá-los?
— Ooouu acaaaar coo oceee!
Ele segura meu pé, esperando por mim como se fosse uma criancinha
fazendo uma birra sem motivo. Dou alguns puxões no meu pé antes de
desistir. Esse cara faz poucas ameaças vazias, e não estou muito interessada
em ser totalmente amarrada.
Quando paro de lutar, solta meu pé, erguendo uma mão para o rosto para
esfregar onde o acertei.
— Você bate bem para uma humana, reconheço isso.
— Aaa sssh odeeer!
— Estou surpreso que está brava assim; você que sugeriu te silenciar.
Dou outro grito.
— Se acalme, pequena humana. Talvez assim te liberte.
Pequena?
Ele volta para o lado do fogo e se perde nas chamas.
Fico ali sentada ao lado dele, fervilhando, minha respiração saindo em
bufadas irregulares. Na próxima chance que tiver, vou chutá-lo nas suas
bolas sagradas.
Uma quantidade de tempo incontável passa dessa maneira, nós dois
sentados próximos, mas a léguas de distância mentalmente.
Finalmente, Pestilência olha para mim.
— Está pronta para ser civilizada?
— Eee oodeeer!
— Não? Hmm, talvez te dê um pouco mais de tempo.
O orgulho é um soldado solitário, cumprindo seu tempo de vigília
quando não tem mais ninguém para se importar. Pensei que o treinamento
contra o fogo tivesse queimado a maior parte disso de mim, mas não.
No final, eu me acalmo. Ficar brava com um dos cavaleiros do
apocalipse por desencadear o fim do homem é como ficar bravo com o gelo
por ser frio. Deito-me de lado, ignorando a pontada de dor quando meu
peso pressiona uma das mãos atadas.
Sem dizer nada, Pestilência se levanta e solta minhas amarras, primeiro
removendo minha mordaça, e então, quando não o xingo, removendo o
material que ata meus pulsos.
Ele se senta outra vez, encarando o fogo. Olho dele para o fogo e então
viro as costas para os dois, enrolando-me no colchão e puxando um dos
cobertores mofados sobre mim. Ainda é o começo da noite, mas estou farta
do dia. De Pestilência e sua tarefa macabra. Do luto e raiva e todas aquelas
outras emoções que pesam sobre mim.
Posso sentir o olhar de Pestilência nas minhas costas pesando tanto
quanto se tivesse colocado uma mão ali, mas não me manifesto. Fecho os
olhos e me forço a dormir.
Meu corpo está mais cansado do que presumo porque, dentro de
minutos, apago.
CAPÍTULO 19

Vancouver, 18 km.

ENCARO A PLACA COM HORROR crescente. Até agora, vi o


cavaleiro passar apenas por assentamentos e cidades pequenas. Mas
Vancouver é um outro tipo de besta.
Centenas de milhares de pessoas vivem lá. Com certeza eles já
publicaram avisos de evacuação. Com certeza a cidade está vazia o
bastante...
Nós continuamos pela rodovia, e a cada hora que passa fico mais
nervosa. A natureza abre caminho para bairros chiques. Há casas em cada
lado da rodovia, a maioria escondida atrás de grandes árvores e arbustos,
mas ainda visíveis o bastante para terem a vista da água à nossa direita.
Não tem uma viva alma à vista.
Quanto mais nos aproximamos da cidade, menores e mais próximas as
casas se tornam. Nos arredores dos subúrbios, vejo os primeiros verdadeiros
sinais de vida. Um motociclista distante, os sons fracos de gritos.
O barulho dos cascos de Trixie no asfalto de repente se torna
ensurdecedor. Ele me lembra demais do momento em que Pestilência
dobrou a esquina na floresta onde eu estava. Então não deveria ficar
surpresa quando um tiro corta os sons normais do dia. Mas estou. Quase
caio do meu assento com o barulho. O cavaleiro aperta o braço que está em
volta de mim.
— Segure-se.
Ele faz um barulho com a língua e Trixie dispara em um galope.
Corremos pela rodovia em uma velocidade vertiginosa. Outro tiro segue
o primeiro, e depois vários mais quando alguns indivíduos condenados
tentam sua versão de justiça vigilante. No entanto, nenhuma das balas
acerta o alvo. Mesmo quando o som de tiros fica para trás com a distância,
Pestilência continua correndo.
A rodovia se divide, a 99 separando da 1. Instintivamente o cavaleiro vai
para oeste, continuando na 99. Não sei se tem consciência disso, mas ele
toma uma boa decisão.
Arrancamos pela rodovia, cruzando a ponte antes de entrar no Stanley
Park. Aqui a cidade é interrompida por um pedaço denso de natureza.
Ainda assim, meu corpo está preparado para um novo ataque. Em uma
cidade com tantos habitantes, deve haver mais. O parque passa por nós
como um borrão, as árvores se misturando para criar um fundo verde.
Do outro lado do parque, quadras e mais quadras de arranha-céus se
erguem à nossa frente e à nossa direita, suas molduras de aço e vidro
brilham na luz do meio do dia. Entre cada quadra deles tenho vislumbres do
oceano.
É tudo o que percebo antes de os tiros recomeçarem.
Pestilência puxa as rédeas de Trixie e nos leva para uma rua lateral,
percorrendo um caminho reto até a água. As estruturas colossais pairam
como sentinelas de cada lado enquanto corremos pela rua.
Não posso ouvir muito além do barulho dos cascos, apenas o contínuo
barulho crescente de tiros. Se nos tirar da rodovia deveria resolver nossa
situação, Pestilência não o fez.
Como eu, outras pessoas – muitas delas, pelo barulho – decidiram se
sacrificar para matar o cavaleiro. Eu me pergunto se eles também
acreditaram que o cavaleiro podia morrer. Sinto uma bala passar por mim.
Se as coisas continuarem assim, vou ser acertada.
Percebo as pessoas se demorando nas portas dos prédios, ou se
inclinando para fora das janelas. Outras ainda estão correndo abertamente
em nossa direção com armas na mão. Mas isso, isso é uma verdadeira
emboscada.
Sem aviso, Pestilência me empurra do cavalo. Fico tão surpresa que
esqueço de gritar quando caio. Bato na rua com força, minha visão
escurecendo com o impacto. Todas as minhas feridas antigas gritam ao
serem tão violentamente chacoalhadas. Na minha frente, mais tiros ecoam.
Algumas pessoas correm pela rua, tentando conseguir uma boa mira do
cavaleiro. Na minha frente, Pestilência maneja seu arco. Agora que suas
mãos estão livres, ele as usa para atirar flecha após flecha em seus
agressores. Vejo um homem despencar de uma janela três andares acima, e
outro cair de onde estava abaixado atrás de uma árvore.
Ele cavalga para longe de mim enquanto mata seus agressores, algumas
vezes virando em sua cela para atirar para trás. Eu o observo por algum
tempo antes de voltar à realidade.
Você é uma bombeira, Burns. Levante-se e aja como uma.
Eu me forço a levantar, perna ante perna. Até onde posso dizer, nada está
quebrado, apesar de que vou ter um belo de um hematoma onde caí em
cima da coxa. Começo a me mover, um mancar lento que não me leva para
longe muito rápido, mas até aí, não estou tentando fugir. Examino a rua,
procurando pelos feridos.
Vou para a vítima mais próxima, um homem magro cujo cabelo (o pouco
que ainda tem) é mais branco do que castanho.
— Senhor, você está...? — Minha voz corta quando vejo a pele crua e
ensanguentada da garganta dele. Não foi nem o cavaleiro que acertou esse
cara. Uma das balas que errou Pestilência encontrou outra vítima.
Ele tenta falar comigo, a boca abrindo e fechando, os olhos arregalados
com choque. Tudo que sai são algumas bolhas vermelhas que acumulam em
seu pescoço. Não tem nada a ser feito por ele.
Pego sua mão, chutando a arma para o lado, ele não precisa dela agora.
— Você está bem — digo, tentando confortá-lo. Ambos sabemos que é
mentira. — Estou bem aqui com você. Não vou te deixar.
Sua mão aperta mais a minha, e seus lábios continuam se movendo. Eu
me aproximo para ouvi-lo melhor, mas tudo o que escuto é o borbulhar
molhado que vem da sua garganta. Concordo mesmo assim, agindo como se
estivesse bastante ciente do que ele está falando. Os lábios dele ficam mais
lentos até não ter nada mais a dizer. Ele ainda segura minha mão, mas então
seus olhos se movem para acima de mim, depois além de mim, e sua mão
relaxa.
Foda-se a morte. Sério, foda-se esse negócio horripilante que todos
precisamos sofrer. Solto a mão dele e me levanto, meus olhos já procurando
a próxima pessoa. Mais à frente, uma mulher está tentando levantar-se, uma
das flechas do cavaleiro saindo do peito. Corro até ela, ignorando a dor na
coxa.
O tempo vira um borrão enquanto me movo de pessoa a pessoa,
fornecendo toda a ajuda que posso, o que não é muito, mas chama a atenção
de um soldado transformado em paramédico. Ele se junta ao esforço, e isso,
por sua vez, chama a atenção de um médico.
Quanto mais tempo ficamos na rua, mais pessoas saem dos prédios em
que estavam se protegendo para dar uma mão. Minha garganta aperta com a
visão. Isso é o que Pestilência não vê enquanto sua missão é nos matar.
Que, bem ao lado do pior da natureza humana, está o seu melhor.
Todos trabalhamos juntos. Ninguém diz nada, mas posso praticamente
ouvir os pensamentos a minha volta.
Estou infectado?
Já é tarde demais?
Quanto tempo ainda tenho?
Quando vou começar a me sentir doente?
Uma série de gritos corta o ar.
Olho ainda ajoelhada por cima do homem que estou ajudando, o médico
está ao meu lado. Ao longe, Pestilência galopa de volta pela rua no seu
corcel branco, a armadura e rosto manchados de sangue.
O que ele fez?
Ele segura o arco, uma flecha engatilhada, pronto para matar qualquer
um que ousar se levantar contra ele. Fico tensa com a visão. Quase acreditei
que esse seria o fim da nossa parceria.
Eu deveria saber. Pestilência, o Conquistador, está com a faca e o queijo
na mão.
— O que diabos? — o paramédico murmura ao meu lado. — Ele voltou?
Levanto-me, atraindo alguns olhares para mim. A mandíbula de
Pestilência está tensa, seus olhos examinando a rua enquanto avança.
Quando o cavaleiro me vê, a expressão dele não muda, mas juro que relaxa.
Por que ele me quer tanto?
Ele segue em frente, a velocidade do corcel aumentando enquanto os
dois caminham direto para mim.
Corra, uma parte irracional de mim pensa – como se fosse fazer muita
diferença agora que ele me avistou. Ao invés disso, vou para o meio da rua
e me afasto das outras pessoas reunidas.
— O que você está fazendo? — o médico pergunta para mim.
Eu o ignoro, o olhar fixo no cavaleiro. Pestilência, por sua vez, não dá
atenção aos seus últimos agressores. E nem precisa. Os tiros que cortaram o
ar mais cedo agora estão silenciosos.
O silêncio embrulha meu estômago. O cavaleiro acabou com todas essas
pessoas sem esforço. Como alguém consegue se impor contra esse tipo de
poder? É forte demais, implacável demais.
Ao se aproximar de mim, Pestilência se inclina para o lado da sela, sem
diminuir a velocidade. Não entendo o que quer fazer até estender o braço.
E agora, mesmo sabendo que não vou escapar, eu corro. Não sei o que
me leva a isso. Talvez seja a velocidade alta do corcel de Pestilência, talvez
seja o olhar feroz nos olhos do cavaleiro. Ou talvez seja que o cavaleiro e
montaria pareçam ter se banhado no sangue dos seus inimigos.
Forçando minhas coxas doloridas ao extremo, corro pela rua, na direção
da rodovia. Os cascos de Trixie soam cada vez mais altos conforme os dois
se aproximam de mim. Movo os braços, obrigando minhas pernas a se
moverem mais rápido.
Não chego muito longe antes de sentir o braço de Pestilência envolver
minhas costas. Com um puxão que faz minhas feridas quase curadas
gritarem em protesto, ele me ergue do chão, colocando-me com suavidade
no assento a sua frente.
— Se segure, Sara — comanda, sem reduzir a velocidade.
Avançando rápido como estamos, não conseguiria mudar minha posição,
então envolvo o torso de Pestilência com os braços, segurando firme nele
enquanto nos guia para a água. Seu braço descansa quase possessivamente à
minha volta, prendendo-me mais ainda a ele.
Passamos correndo pelos grandes prédios uma segunda vez e ao
percorrer a rua vejo sinais de mais atiradores derrotados deitados em poças
do próprio sangue, seus corpos alvejados por flechas. Paro de olhar quando
vejo uma das flechas douradas projetando-se do olho de um homem morto.
Todo a cena é tão pavorosa, violenta e triste.
Pestilência não os poupou. Não como me poupou. E ele pode pensar que
tive o pior destino, mas no final de tudo, sinto-me sortuda de estar sentada
no corcel do cavaleiro ao invés de descobrir o que me espera do outro lado
da morte.
De repente, os prédios dão espaço a areia, e tenho uma vista livre da
enseada que vislumbrei várias vezes. Olho para a água e além dela, a ilha de
Vancouver.
Os passos de Trixie batem na areia, os cascos espirrando os grãos finos
em mim. Faz anos desde que estive perto assim do mar, mas não tenho
chance de apreciar. A areia seca vira molhada, e ainda assim o cavalo não
reduz a velocidade.
— O que você está fazendo? — grito para Pestilência entre o barulho
dos cascos, sem exatamente poder tirar os olhos da água.
Além de me trazer ainda mais perto contra ele, Pestilência não responde.
Minha respiração falha quando a praia acaba, e então, bem de repente,
estamos trovejando sobre a água. Espere, isso não está certo…
Olho para baixo.
— Ah, meu Deus — falo, olhando para as ondas quebrando. — Ah, meu
Deus. — O corcel não está cavalgando pela água, está galopando sobre ela.
Os cascos de Trixie espirram na superfície da água como se o mar não
fosse nada além de uma poça, jogando algumas gotas perdidas de água
salgada em mim e no cavaleiro.
Estamos cavalgando sobre a água.
Aperto os olhos fechados, em seguida os abro outra vez. Ainda sobre a
água. Não sei por que estou surpresa. Pestilência pode espalhar praga
apenas se movendo por uma cidade, e é imune à morte. O que é mais um
poder estranho?
Uma vez que estamos bem longe da costa, o corcel de Pestilência
diminui a velocidade para uma marcha razoável. Só agora posso,
desajeitadamente, jogar uma das pernas pela sela e olhar para frente. (Ainda
quase caio no processo.)
A costa nos cerca por todos os lados enquanto nos movemos pela água,
gotas frias espirrando nas minhas coxas. Pestilência se apoia em mim, o
peitoral pressionando contra mim com força o bastante para forçar a me
inclinar.
Maldição, ele é pesado.
— Pode se afastar um pouco? — peço.
Tão perto de dar uma cotovelada nele.
Ele ignora meu pedido. Típico.
Os minutos passam, um pouco mais do peso dele me pressiona.
Acontece de forma tão gradual que estou consideravelmente curvada para
frente antes de perceber que isso pode não ser intencional.
— Pestilência? — Sem resposta. — Pestilência? — chamo com um
pouco mais de urgência dessa vez.
Nada.
Maldito seja, mas meu estômago está queimando com preocupação.
Começo a me virar quando percebo o sangue pingando do pulso que segura
as rédeas. Alguma coisa está errada com ele. Muito errada.
Eu o olho da melhor maneira que consigo. Os olhos dele estão fechados,
o rosto em repouso, e a coroa levemente torta na cabeça. Essa última o faz
parecer, contraditoriamente, ao mesmo tempo mais devasso e mais
inocente.
Coloco os dedos no pescoço dele, procurando um pulso, mas não
consigo encontrar com o jeito que nossos corpos estão balançando no
cavalo.
— Pestilência, pode me ouvir? — Tento me afastar o bastante dele para
ter uma resposta.
A cabeça inclina para trás até parecer que ele está olhando para o céu, e
preciso pegar a coroa antes que ela escorregue. O corpo dele balança no
assento, então se inclina para frente outra vez, o rosto afundando na curva
do meu ombro e pescoço. Envolvo meus braços à sua volta no momento
que seu corpo começa a escorregar para o lado.
O que acontece se ele cair? Vai pousar sobre a água ou vai afundar? O
que vai acontecer com Trixie – e comigo – se ele o fizer?
Não quero mesmo descobrir.
Eu o seguro desajeitadamente nos braços ao guiar o corcel na direção de
uma ilha próxima. Claro, uma vez que a costa paira grande o bastante para
eu ver os detalhes, consigo identificar ruas e prédios – muitos e muitos
deles.
Merda.
Puxo as rédeas, mudando a trajetória, durante todo o tempo tentando
estabilizar Pestilência, que pode ou não estar morto. Temporariamente
morto, mas morto ainda assim.
Como deixei isso passar? Ouvi os tiros e vi o sangue besuntado nele
quando veio por mim. E agora que estou procurando, posso ver que está
sangrando de uma dúzia de feridas diferentes, o líquido o cobrindo e agora
me manchando.
Pelo amor de Deus, ele estava sangrando em cima de mim e ainda assim
não percebi. Embalada pelo trote constante do cavalo e distraída pelo fato
que estávamos viajando sobre a água. Por fim, Trixie vai na direção de
outro pedaço de terra. No momento em que o cavalo se aproxima da costa,
meus braços estão tremendo com o esforço de manter Pestilência na sela.
Consigo relaxar apenas quando o cavalo está trotando pela areia. O
corpo do cavaleiro desliza para o lado, e então nós dois caímos da montaria.
Pestilência geme fraco quando acertamos a areia, nossos membros se
enroscando.
Vivo.
Solto uma respiração de alívio. Não sei o que mais esperava de um
homem imortal. E definitivamente não sei por que, de todas as coisas, sinto
alívio.
Arrasto meu corpo de baixo do dele, então o deito na areia, tirando suas
armas e jogando-as para o lado. Ele está ainda pior do que pensei, suas
roupas saturadas com sangue, que vaza por baixo da sua armadura e pinga
na areia. E sua armadura…
Algumas das balas conseguiram penetrar o metal, fazendo o peitoral
dourado da armadura parecer uma fatia de queijo suíço. Peça por peça, solto
a armadura, franzindo o rosto quando mais sangue pinga na areia. Os olhos
vão para o rosto de Pestilência. A pele normalmente bronzeada está pálida e
abatida. Passo os dedos pela bochecha dele, sentindo o frio que agora se
agarra a sua pele.
Seu peito ergue e abaixa, a respiração superficial. Pelo menos ele está
respirando.
Desde quando você quer que ele respire?
Afasto o que consigo das roupas molhadas do cavaleiro. Buracos de bala
estão espalhados por seus braços, suas pernas e peito. O rosto, no entanto,
não foi tocado. Foi por isso que não percebi. Estava tão compenetrada pela
sua beleza e intensidade – intensidade que ele focou em mim – que não
percebi.
Paro quando vejo sangue coagulado na areia em volta da sua cabeça.
Ousaria? Antes que eu possa pensar duas vezes sobre isso, ergo a cabeça
dele e cutuco a parte de trás do seu crânio. Quase vomito quando entro em
contato com algo macio. Ele faz um barulho lamurioso com meu toque. É
claramente doloroso para ele.
Claro que é doloroso – é uma ferida de cabeça que você está cutucando,
sua idiota.
— Me desculpe — sussurro, sem ter certeza do porquê estou
sussurrando.
Olho em volta. Trixie Skillz está parado por perto, e como seu dono, o
cavalo está pontilhado com buracos de bala.
E ainda assim o cavalo carregou não uma, mas duas pessoas pelo
oceano.
Inspiro de forma trêmula e olho pela praia. De cada lado meu, a costa é
densa com árvores. Ao longe na praia à minha esquerda, uma casa solitária
está aconchegada entre elas. Pelo menos temos um lugar para ficar se
precisarmos.
Movo a cabeça de Pestilência para que descanse em meu colo. Não sei
por que faço isso, ou por que removo a coroa dele para que possa acariciar
seu cabelo emaranhado. Mesmo com sangue e água do mar o embaraçando,
as mechas loiras são tão macias, mais macias do que qualquer cabelo tem o
direito de ser.
Meu polegar passa sobre uma das suas sobrancelhas irritantemente
perfeitas. Surrado e quebrado como está, meu coração estúpido se parte por
ele.
É apenas porque ele é estupidamente bonito, falo para mim mesma.
Passo os nós dos dedos na sua fronte.
— Sinto muito que fizeram isso com você — admito. Bem como sinto
muito por tudo o que ele fez com eles. É como estar entre a cruz e a espada.
Continuo a acariciar seu cabelo, esperando que ele se cure.
Você poderia escapar nesse momento – sumir enquanto está se
recuperando. Aí você nunca teria que respondê-lo novamente.
Minhas pernas continuam dobradas sob sua cabeça.
Estou atrasando Pestilência, argumento comigo. Estou dando mais
tempo para as pessoas escaparem. O mundo está preso em um jogo inútil
de gato e rato, e eu sei que no final o cavaleiro vai percorrê-lo e matar todos
nós mesmo assim, mas estou atrasando o progresso dele. Isso conta como
algo, não é?
As sombras da praia estão maiores quando a primeira das balas sai do
corpo de Pestilência. Ela serpenteia para fora da panturrilha dele por alguns
segundos e depois cai inofensiva na areia.
Vários minutos mais tarde, o cavaleiro se move pela primeira vez, uma
respiração dolorida escapando dele.
— Estou bem aqui — murmuro, continuando a passar os dedos pelo seu
cabelo. — Estou cuidando de você.
Pestilência trava.
— …Sara? — Ele força os olhos a se abrirem. Estão desfocados ao olhar
para mim.
— Oi.
Ele estica o braço para cima, seus dedos ensanguentados tocando minha
bochecha.
— Você não fugiu.
Solto uma risada que é trêmula demais para meu gosto.
— Provavelmente deveria ter fugido — digo.
— Provavelmente — concorda.
Sua mão cai, e ele fecha os olhos outra vez.
— Pestilência? Pestilência. — Mas ele está inconsciente de novo.
CAPÍTULO 20

DEPOIS DE MAIS DUAS BALAS SAÍREM do corpo dele, decido que


está na hora de nos movermos. O sol abaixou no horizonte vinte minutos
atrás, e minha bunda está congelando.
Dou alguns olhares furtivos para a casa de praia mais próxima. Mal
posso ver a silhueta escura dela. A falta de luz provavelmente é uma coisa
boa, tendo em vista que vou arrombar a porta.
Remexo-me para sair de baixo de Pestilência, pego o peitoral da
armadura e coloco sobre meu peito. Mesmo sem a ajuda de um espelho, sei
que pareço ridícula usando a armadura dele. Fica enorme no meu torso,
dando a ilusão de que sou pequena. Não sou; é o cavaleiro que tem um
tamanho monstruoso.
Decido deixar o resto da armadura e armas na areia. Depois ele terá que
buscá-las uma vez que se recuperar. Coloco a coroa de Pestilência na
cabeça (olha a maldita rainha bem aqui), engancho os braços sob os ombros
dele.
Eu me preparo, respirando fundo para buscar força.
— Isso provavelmente vai doer — aviso – não que ele possa me ouvir.
Começo a me mover, arrastando-nos na direção da casa pouco a pouco.
Pestilência geme, lutando fracamente contra meu aperto.
— Se você pode andar, fique à vontade — digo. — Se não, pare de se
mover a não ser que queira que eu te derrube.
Ele para de se mexer, mas mesmo sem resistir aos meus esforços,
demora quase uma maldita eternidade para chegar na casa. Meu Deus, ele é
pesado. Tropeço duas vezes no caminho, acordando o cavaleiro com as
sacudidas quando acontece. Atrás de nós, Trixie Skillz segue em passo
lento como o corcel fiel que é.
Uma vez que chego na casa, coloco Pestilência no chão e analiso o lugar.
Não tem luz vindo de dentro, e agulhas de pinheiros se acumulam na
soleira. Seja quem for o dono desse lugar, não vem aqui há algum tempo.
Provavelmente era a casa de veraneio de alguém.
Vou para a porta decorada. Quatro painéis de vidro permitem um
vislumbre do interior. Parece aconchegante. Uma pena que vai parecer com
um homicídio triplo quando terminarmos por aqui.
Tento a maçaneta – quer dizer, nunca se sabe. As pessoas no lugar onde
eu moro quase nunca trancam as portas. Essa não se move. Meus olhos vão
para os vidros. Vou ter que fazer isso do jeito difícil.
Tiro o casaco e envolvo meu punho com o tecido. Estou esperançosa de
que o vidro que estou lidando não seja temperado ou a minha ideia brilhante
pode não ser bem-sucedida.
Com um golpe fluido, eu o acerto.
— Filho da puta! — grito, balançando o punho. Mesmo com o casaco
protegendo, minha mão lateja com o impacto. Fuzilo o vidro, ainda intacto.
Maldito vidro temperado. E porra, como isso doeu. Atrás de mim,
escuto uma respiração difícil e passos cambaleantes.
— Mova-se, Sara.
Viro-me para trás e olho para o cavaleiro com olhos arregalados. Não sei
se sinto mais choque ou alívio com a imagem dele, acordado e de pé. Dou
um passo para o lado enquanto Pestilência se arrasta até a porta, apoiando a
maior parte do peso contra a parede e deixando uma mancha de sangue no
revestimento.
Ele estica a mão e pega a maçaneta. Com uma volta rápida do pulso,
quebra a fechadura e a porta abre. É irritante como ele a quebrou tão fácil,
como se não fosse nada. Eu o ajudo a entrar, deixando-o apoiar seu peso
significativo em mim enquanto o manobro para um sofá xadrez. Trixie entra
atrás de nós.
Deito o cavaleiro no sofá e então tiro a armadura e a coroa que estou
usando, deixando os itens baterem no chão ao meu lado. Na minha frente,
os olhos de Pestilência se fecham e sua respiração se equilibra quando ele
perde a consciência mais uma vez.
Enganchando os dedos no tecido úmido da camisa dele, rasgo o tecido e
o tiro do corpo dele o melhor que posso. Seu torso ainda é uma bagunça
manchada de hematomas e buracos de bala, os ferimentos distorcendo as
marcas brilhantes que circundam seu peitoral. Meus olhos encontram os
outros ferimentos de bala que marcam seus ombros, peito, pescoço, braços,
pernas e um bem acima da sua clavícula. Toco levemente a pele sob o
último.
Com a pressão dos meus dedos, as pálpebras de Pestilência estremecem
e se abrem, os olhos focam em mim.
— O que você está fazendo? — ele pergunta. Confusão e suspeita estão
estampados nas feições dele.
Além de cutucá-lo?
— Estou cuidando de você.
No momento que falo as palavras, registro a força que elas possuem.
Estou ajudando o cavaleiro a se recuperar. Ajudando-o, quando há pouco
tempo eu era a pessoa apertando o gatilho. Mal posso acreditar.
O choque no rosto dele deve espelhar o meu. Ele pega minha mão, os
olhos queimando forte ao olharem para mim.
— Estou bem, Sara.
Ele não quer minha ajuda. Não imaginava isso.
— Não, não está. Você foi alvejado com uma quantidade de balas digna
de um pequeno exército.
Ele começa a se sentar.
— Já aguentei pior.
Sim, eu sei. Eu estava lá. Ser queimado vivo deve estar no topo da lista
de “Situações de Merda do Ano”. Vou até Trixie e, depois de acender um
interruptor e ver a luz do teto tremeluzir com vida, começo a procurar nos
alforjes do cavaleiro. Conforme o faço, uma das balas cai ao lado da
montaria, atingindo o chão com um barulho alto. Pobre cavalinho.
Por fim, minha mão envolve uma garrafa de Red Label que afanei em
uma de nossas paradas. Leva um pouco mais de tempo para encontrar o rolo
de gaze, mas uma vez que encontro, volto para o sofá onde o cavaleiro está
esparramado.
Os olhos de Pestilência vão para os itens na minha mão.
— São seus pertences — fala, incisivo, como se não quisesse ter nada
com eles.
Talvez Pestilência tenha mais medo da minha bondade do que eu tenho
da dele.
— Bom, esta noite estou com vontade de compartilhar — falo, soltando
a gaze enquanto vou na direção dele.
Ele começa a se erguer, mas não o deixo ir muito longe. Pego seu ombro
e o forço de volta no sofá.
— Vou me curar sozinho — insiste, fazendo uma careta para a gaze,
depois para o destilado que está em uma mesa de centro próxima.
— Sim, você vai. — Pego uma cadeira da cozinha e arrasto para perto.
Sento-me na sua frente e abro a tampa do uísque, os olhos fixos em suas
feridas.
— Não concordo com isso — fala, mas não está mais tentando fugir. Na
verdade, se eu pudesse arriscar, diria que vejo curiosidade brilhando nos
olhos de Pestilência.
Ninguém nunca cuidou dele.
— Não perguntei se concordava — respondo, pegando o rolo de gaze e
embebendo com um pouco de uísque.
— Mulher irritante.
Ergo as sobrancelhas e concordo a contragosto. Posso mesmo ser
irritante.
— Você não quer que eu sofra? — pergunta com pesar, acompanhando
todos os meus movimentos.
— Nunca quis que você sofresse — afirmo. — Nem quando atirei em
você.
Movo o tecido encharcado de álcool para a primeira das suas feridas. Ele
sibila quando entra em contato com sua carne exposta.
— Você mente, humana. Isso é sofrimento.
Ele levou uma dúzia de tiros e ainda assim reclama de um pouco de
álcool nas feridas?
— Isso é desinfetante.
— Posso limpar minhas feridas bem o bastante sem seus métodos
arcaicos.
Ah, é mesmo.
— Tudo bem. — Levanto-me e vou para a cozinha, procurando pelos
armários até encontrar dois copos. Eu os trago de volta. Servindo uma dose
em cada um deles, entrego o copo para ele. Ele pega, cheirando antes de
estremecer.
— Para ajudar com a dor — explico.
— Qual a importância disso? — ele diz, abaixando o copo. — Ela vai
acabar um dia.
— Ah, pelo amor de… — Eu me sirvo uma dose dupla e dou um longo
gole. Completo minha bebida e depois deixo o uísque de lado.
Pestilência é uma merda como paciente. Pego o rolo de gaze mais uma
vez, pretendendo pelo menos fazer um curativo nas feridas dele. Mas
quando estico a mão, ele pega meu punho.
— Sara — fala com suavidade — pare com isso. — Aprecio o gesto,
mas é em vão.
Ao falar, uma bala da sua garganta escorrega do buraco no qual afundou.
Tão bizarro. Meus olhos encontram os dele.
— Tudo bem. — Não vou insistir em tentar ajudá-lo se ele não quer.
Levanto-me, pego a garrafa de Red Label e meu copo. Estou no meio do
caminho saindo da sala de estar quando ele chama:
— Aonde você está indo?
— Tomar um banho. — Preciso de um maldito tempo sozinha.

Fecho os olhos e me recosto na banheira, com os braços apoiados nas


bordas e a mão preguiçosamente rodando o copo de uísque. Quase posso
esquecer que minha vida se tornou, total e completamente, uma merda.
Escuto uma batida e um som de Pestilência se arrastando pelo corredor
enquanto se aproxima do banheiro. Um minuto depois, a porta abre com um
rangido. Entreabro os olhos apenas o suficiente para vê-lo mancar para
dentro, segurando o torso com cuidado, seu copo de uísque ainda cheio na
mão.
— Quero ficar sozinha — digo, fechando os olhos outra vez. Não me
dou ao trabalho de me cobrir. Ele já me viu nua. Mais de uma vez. E mais,
duvido que esteja se sentindo muito luxurioso quando mal se mantém
inteiro.
— Humana, você claramente esqueceu que é minha prisioneira.
Um dia, eu fui, e ele precisava manter guarda para garantir que não
fugisse. Mas não sei se ainda sou. Isso deveria me incomodar, mas nesse
momento não me importo mais.
Faço um barulho zombeteiro.
— Você realmente acha que vou fugir?
— Fugiu em Vancouver.
Não vou abrir os olhos e deixá-lo arruinar esse momento que estou
aproveitando.
— Você também fugiria se estivesse prestes a ser pisoteado por um
cavaleiro.
Ele dá uma risada, mas depois fica em silêncio.
— Essa bebida tem um gosto horrível — fala depois de um momento.
Então ele provou quando eu não estava olhando. Cavaleiro sorrateiro.
— Na opinião popular, você não bebe destilado porque o sabor é bom.
— Dou um gole do meu copo.
Ele grunhe. Abro os olhos apenas o bastante para vê-lo acabar com a
dose que dei a ele. Pego a garrafa ao meu lado e seguro como uma oferta de
paz. Depois de uma pausa durante a qual ele com certeza está considerando
a perversidade do álcool e o quanto sua alma está se corrompendo
rapidamente, ele pega a garrafa e se serve de mais um drinque. Tem a mão
pesada, provavelmente porque não sabe como o negócio é potente. Olha
para o rótulo depois.
— Johnnie Walker Red Label. — Lê. Seus olhos lampejam para mim. —
Vi você dando isso para aquele homem moribundo.
Aquele primeiro homem sem nome que assisti morrer de praga, ele quer
dizer. Pestilência me viu dando destilado a ele?
— Beber isso ajuda com a dor — digo.
— As pessoas não bebem isso para se livrarem da dor — replica. É uma
afirmação, e ainda assim tenho a distinta impressão de que ele está
sondando.
— Algumas vezes bebem. — Mas até aí, não é sempre dor física que
estão amortecendo. — Mas não, nem sempre. — Ergo a mão que segura o
copo para a têmpora e dou tapinhas na cabeça com o indicador. — Algumas
vezes simplesmente o fazem para alterar seu estado mental.
Pestilência fica quieto depois disso. Deixo meus olhos se fecharem e
finjo que ainda estou desfrutando alegremente de um bom banho e não
extremamente consciente da sua presença.
— Você cuidou de mim da mesma forma que faz com seus humanos —
enfim diz. Tem algo em sua voz…
Abro os olhos. Pego Pestilência estudando meu rosto, os olhos
iluminados com o que parece desejo. Com a visão, meu peito começa a
subir e descer cada vez mais rápido. O que é essa reação? Eu não gosto
dele. Não mesmo. É só que ele é bonito, e faz um tempo desde que alguém
olhou para mim dessa forma.
Isso é tudo.
Bom, isso e o fato da camisa dele ainda estar aberta do colarinho até o
umbigo, expondo as tatuagens brilhantes e o torso musculoso. Eu teria que
estar morta para não reagir a essa visão. Ele desvia o olhar para a sua
bebida.
— Não sei como me sentir sobre isso.
Ele tem cílios muito bonitos. São grossos, escuros e compridos. Não
tenho certeza se algum dia reparei nos cílios de alguém. Por que estou
reparando nos cílios de Pestilência? Forço os pensamentos para longe dos
cílios e corpo da criatura divina e bonita.
— Também não tenho certeza de como me sentir sobre isso — ecoo.
Sobre o que sequer estamos falando nesse momento?
Ele concorda amigavelmente e leva o copo aos lábios, dando dois goles
longos antes de estremecer.
— Isso realmente tem um gosto horrível.
Dou uma risada suave.
— Então por que está bebendo?
Ele encontra meu olhar. Os olhos dele estão pesados.
— Você já alterou minha mente. Desejo alterá-la de volta.
Não é assim que funciona, quero dizer. Ao invés disso, dou outro gole.
— Sei o que você quer dizer.
Ele semicerra os olhos para mim, rodando o líquido âmbar várias vezes
no copo.
— Você deveria me matar, e não me ajudar.
O gosto remanescente do uísque amarga na minha boca. Lavo com o
resto do meu drinque.
— Não vai mudar nada, sabe — acrescenta.
— Sei — falo tão baixo que mal escuto as palavras.
Ele ainda vai seguir em frente, comigo ao lado, infectando cidade após
cidade.
O banho está ficando frio, e não comecei a me lavar. Termino a bebida,
coloco o copo de lado e começo a esfregar o sangue e sujeira do meu corpo,
sentindo os olhos de Pestilência sobre mim o tempo todo. Dessa vez, ele
não se oferece para lavar minhas costas, e não perco tempo pedindo para
fazê-lo.
Quando olho furtivamente para ele, está me encarando de um jeito que
não tem mais um afastamento clínico como um dia teve. Na verdade, é um
olhar decididamente humano. É assim que o desejo aparenta ser, percebo.
Meu alarme entra em guerra com essa horripilante leveza. É a mesma
emoção que senti quando ouvi um rumor que Tom Becker, minha paixonite
do ensino médio, queria me chamar para sair. No fim, ele queria chamar
Sarah (assim é a vida: adora te chutar no saco), mas por vinte e quatro
felizes horas, senti como se anjinhos estivessem voando no meu estômago.
Assim como me sinto agora.
Tomei uma quantidade aceitável de uísque, mas não o bastante para
impedir a percepção sóbria que gostar do olhar de Pestilência no meu corpo
nu decididamente não é uma reação apropriada.
Ele esfrega o rosto, parecendo cansado e com dor, bem como um homem
se recuperando após ter sido alvejado deveria parecer. Ergue o copo e vira o
segundo drinque que se serviu (que consiste em pelo menos três doses de
destilado). Ele pega a garrafa de Red Label e seu copo agora vazio e se
levanta, suas pernas um pouco trêmulas.
Segura a maçaneta e pausa, de costas para mim.
— Não tente correr — avisa sobre o ombro. — Odiaria ter que te pegar.
Foi derramado sangue o bastante hoje.
CAPÍTULO 21

FIZ PESTILÊNCIA FICAR muito bêbado.


Isso fica claro quando termino meu banho e o encontro escarrapachado
no sofá, a garrafa de uísque agora quase vazia na mão, e o copo perdido em
algum lugar. Quando um cavaleiro sucumbe, ele sucumbe com vontade.
A cabeça dele cai na minha direção.
— Você estava certa — fala, segurando a garrafa. — Minha mente está
alterada.
Bom, pelo menos ele ainda está perceptivo. Ele encara o rótulo por um
segundo.
— Nem tem gosto ruim mais.
Quantos pontos do inferno acabei de ganhar, deixando esse cara bêbado?
Quando ele volta a me observar, seus olhos vão para minhas roupas. O olhar
que ele dá a elas não pode ser um elogio.
Consegui descolar uma roupa do armário no quarto principal. De acordo
com o que encontrei, os donos eram um casal mais velho bem de vida. O
homem gostava de calças cáqui passadas e com vincos, e a mulher gostava
de roupas drapejadas e brilhantes. Estou praticamente nadando no top preto
que estou usando, e precisei apertar o jeans roxo apedrejado até não poder
mais para evitar que escorregasse.
Foi o melhor que pude fazer.
Continuo a andar, passando por Pestilência enquanto caminho até a
cozinha, meu estômago dando cãibras de fome. Passo por Trixie; o cavalo
conseguiu deitar-se em um quarto ao lado, manchando o tapete dos donos
de sangue.
Definitivamente vamos deixar essa casa parecendo a cena de um crime.
O piso está gelado sob meus pés descalços quando entro na cozinha. Agora,
procurar se esse lugar tem algo para comer.
Só preciso abrir a despensa para ver que tem o bastante. As prateleiras
fundas estão quase transbordando com comidas conservadas e enlatadas,
grãos secos e uma quantidade absurda de bebidas alcoólicas. Nós dois
poderíamos nos abrigar aqui por várias semanas se precisássemos – não que
Pestilência fosse ficar parado por tanto tempo.
Enquanto procuro pelo estoque, pegando macarrão e uma lata de molho
vermelho, o cavaleiro manca até uma cadeira na cozinha. Ele está se
curando rapidamente agora, as feridas expostas de bala parecendo mais
como cicatrizes vermelhas elevadas do que buracos sangrentos. Ele tirou a
camisa rasgada, e seu torso esculpido e esguio agora está todo à mostra.
Ele me observa por um longo tempo, sem falar nada quando começo a
ferver o macarrão e esquentar o molho (eletricidade funciona aqui, yay!) É
apenas depois que termino de preparar a comida e pego outra garrafa de
álcool (bourbon dessa vez) que me junto a Pestilência na mesa.
Ele não se incomoda em atacar o prato de macarrão que coloco na frente
dele, ao invés disso, escolhe servir uma boa quantidade de bourbon. Ele dá
um longo gole no copo.
O cara está a caminho de uma bela ressaca do jeito que está atacando o
álcool. Ele me olha com atenção.
— Por que você não me deixou? — pergunta, parecendo quase
desesperado por uma resposta. — Você poderia ter deixado.
Meu estômago aperta, embrulhando, e esqueço que tenho um prato
fumegante de macarrão bem na minha frente. Ele continua voltando a esse
maldito assunto. Esperava que fosse deixar isso passar.
— Você estava com medo de que eu te encontrasse e machucasse? —
Pestilência pressiona.
Poderia mentir. Ele provavelmente não perceberia que o enrolei com
uma lorota. O único problema é que nenhuma boa desculpa me vem à
mente. Abro a boca, e depois escolho me servir de outra bebida ao invés de
responder. Inferno – ele não está fazendo isso sóbrio; eu também não
deveria. Com vários grandes goles, viro o bourbon, depois coloco o copo
vazio na mesa com força.
— Não sei — respondo, servindo-me mais um drinque antes de deixar a
garrafa de lado. — Essa é a verdade. — Olho para meus pulsos cheios de
casquinha. — Em Vancouver, tudo o que podia pensar era ajudar as pessoas
que foram feridas em meio ao caos. — Respiro, e continuo, meus olhos
relutantemente erguendo para seus azuis turbulentos. — E uma vez que
chegamos na praia, tudo o que podia pensar era em te ajudar.
Ele franze o cenho para mim. Se estivesse procurando por consolo na
minha explicação, não dei nenhum.
— Por que você voltou por mim? — questiono. — Em Vancouver.
Ele parece ofendido pela pergunta.
— Você é minha prisioneira. Não tenho intenção de te deixar ir.
— Você me empurrou do cavalo — afirmo.
Sua expressão é inescrutável.
— Você fez isso para que eu não levasse um tiro, não foi? — pergunto,
olhando para ele de soslaio.
Se Pestilência está perturbado pelo fato que fiquei com ele e cuidei das
suas feridas (ou tentei, pelo menos), então estou muito irritada pelo fato que
me poupou da dor.
— Você não vale nada para mim morta, Sara.
— Por quê? — pergunto, procurando seu rosto. — Por que estou viva e
aqui com você enquanto seus outros agressores estão mortos nas ruas de
Vancouver?
Sua boca aperta.
— Porque decidi isso.
Tomo mais um gole do meu bourbon.
— Isso não é uma resposta.
— É a única que você vai ter.
Maldito seja, essa dúvida vai me enlouquecer. A contragosto, volto
minha atenção para o macarrão, virando o garfo nos fios e pegando uma
porção. Assim que toca minha língua, tiro um momento para saborear.
Meu Deus, havia esquecido como comida é gostosa depois que você
bebe um pouco. Se não tomar cuidado, aquela quantidade de comida
suficiente para duas semanas vai ser consumida até o final da noite –
particularmente se tudo for tão gostoso como isso.
Na minha frente, o olhar do cavaleiro está fixo na minha boca. Ele
desvia o olhar para o próprio prato. Erguendo o garfo, tenta abocanhar uma
porção, mas o espaguete fino escorrega pelos dentes de metal.
Não posso evitar, dou risada. Levantando-me, chego perto dele. Ele olha
para mim, os olhos brilhantes e talvez um pouco vulneráveis. Acho que o
álcool está afetando nós dois.
Inclinando por cima do ombro dele e tentando não perceber como seu
torso é bonito (que vergonha, Sara, ele ainda está machucado) pego a mão
que está segurando o garfo.
— O que você está fazendo? — pergunta, olhando para nossas mãos
unidas. Tem um tom na sua voz…
— Aqui, vire seu garfo assim. — Desajeitada, manobro o utensílio em
um círculo. — Depois puxe. — Ergo o garfo, os fios de macarrão agora
enrolados nele. — É assim que você come.
Não posso ver a expressão dele, e ele não responde nada, então volto
para meu lugar, sentindo que passei dos limites, o que é ridículo frente a
tudo o que nós dois passamos. Pestilência dá uma mordida receosa no
macarrão. Se eu estava esperando algum tipo de reação surpreendente, fico
muito desapontada. Ele apenas olha feio para o prato ao mastigar.
— Não deveria estar comendo isso.
Não me importo em perguntar o motivo. Já sei como ele é estranhamente
encanado com “vícios mortais”. Acho que está descobrindo do jeito difícil
que, apesar da disposição do espírito do cavaleiro, até mesmo a sua carne é
fraca.
Falando do cavaleiro…
— Onde estão os outros três cavaleiros? — questiono. Essa é uma das
muitas perguntas que assombram o mundo: onde os outros três cavaleiros
estão. Seria otimismo demais presumir que foram embora de alguma forma;
se Pestilência ainda existe, os outros também.
Pestilência cutuca o macarrão antes de virar o garfo no prato, hesitante.
— Meus irmãos ainda dormem — responde, franzindo a testa ao dar
outra mordida.
Dormem?
— Hm, quando vão acordar?
Ele não olha para cima.
— Quando for a hora.
Até mesmo alegre de bebida, Pestilência ainda consegue responder as
perguntas da forma mais misteriosa possível. Apesar de sentir culpa por
consumir bebida e comida, o cavaleiro é rápido em terminar sua refeição e a
maior parte do seu bourbon.
Consumo o destilado consideravelmente mais devagar do que ele. Sou o
que você chamaria, com afeição, de um encontro barato. Se posso fazer
meus drinques durarem, farei.
Recosto no meu assento.
— Depois que você chegou aqui na Terra, também dormiu? — Cinco
anos se passaram desde a última vez que Pestilência foi visto.
Ele concorda, afastando o prato. Meio que quero perguntar para ele onde
conseguiu dormir por cinco anos sem ser encontrado.
— Por que dormir? — Por que esperar?
— Existia a possibilidade… — Ele não completa, perdido em algum
pensamento.
— Que possibilidade? — cutuco.
Ele se anima.
— A possibilidade que a humanidade se redimiria. — Ele pega o copo e
gira. — Mas nem mesmo o Fim dos Dias pode alterar a natureza depravada
da sua espécie amaldiçoada.
Ah, esse discurso outra vez. Bem quando pensei que o cavaleiro havia
parado com seus comentários ácidos sobre os humanos por um tempo,
também. Pestilência ergue o copo e encara o pouco líquido que ainda resta,
as pálpebras parecendo pesadas.
— Isso é veneno — fala de forma repentina.
— Uhum — concordo. Quero dizer, tecnicamente, é.
Seus olhos deslizam para mim.
— Era esse seu plano o tempo todo? Me envenenar?
Ah, Deus, agora esse negócio de veneno. Quão idiota ele deve pensar
que sou para tentar envenenar um homem que não morre?
— Você que está servindo — falo.
Essa lógica parece apaziguá-lo. Um pouco. De repente, Pestilência se
levanta, pega a cadeira e arrasta em volta da mesa de forma que fique ao
meu lado. Ele se senta com o encosto para frente, sem ter consciência em
como meus olhos traiçoeiros o acham sexy. Ele me dá um dos seus olhares
incisivos.
Nervosa, eu me afasto dele.
— O quê?
— Não sei — admite. — Sinto … alguma coisa quando olho para você.
Minha mente volta para o banheiro e a expressão intensa no rosto dele.
Um rubor sobe pelo meu pescoço, o álcool fazendo queimar e espalhar mais
do que iria se estivesse sóbria. Forço meus olhos a ficarem no rosto dele
quando tudo o que quero é desviar o olhar e observar seu torso.
— Não consigo compreender o que essa coisa é — continua. — E Sara,
está me enlouquecendo.
Entre para o maldito clube. Estamos aceitando candidatos.
— Você é humana — afirma. — Não gosto da sua espécie. Não deveria
gostar de você.
Não respiro por um segundo. Não faça a pergunta, Burns. Não…
— Mas gosta? — falo.
Seus olhos caem para minha boca. Ele toca meu lábio inferior com seu
polegar, esfregando com gentileza.
— Deus me perdoe, gosto.
CAPÍTULO 22

ENGULO, SENTINDO AQUELA LEVEZA incômoda na barriga. Perto


desse jeito, Pestilência enche meu campo de visão. Posso ver os resquícios
da ferida de bala bem acima da sua clavícula, e seu denso cabelo loiro, que
ainda está embaraçado com sangue e maresia. Não diminui em nada sua
glória. Posso ver o oceano nos olhos muito azuis dele e os cílios grossos
que os cercam.
E agora estou encarando a boca dele e aquele lábio superior grosso que
faz parecer que sempre está fazendo beicinho. Ele não tem ideia do quanto
é bonito. Apague isso – bonito é um termo reservado para humanos que são
atraentes, com imperfeições e tudo o mais. Esse negócio inumano, com suas
feições angelicais, não é bonito, ele é estonteante, de tirar o fôlego. É a
perfeição encarnada. E isso não é cosmicamente injusto? Ele é um
mensageiro do apocalipse. Ele não precisa ser atraente, mas é.
Seus olhos continuam a encarar meus lábios. Tem algo primordial e
poderoso na sua expressão, como se a bebida o tivesse deixado faminto por
outras coisas proibidas. Coisas humanas. Ele move o polegar pelo meu
lábio inferior mais uma vez, e sinto aquele toque simples em todos os
lugares.
Abaixando a mão, ele se aproxima. Não tenho certeza de que está ciente
do que está fazendo – movendo-se na direção da boca com a qual está
fixado. Durante todo o percurso que fiz ao lado dele, fiquei próxima a
Pestilência, mas não assim.
Não assim.
Ele está tão perto que nossa respiração está se misturando. Meu pulso
lateja até se tornar tudo o que consigo ouvir.
Tum, tum, tum.
Ele vai me beijar.
Aquela onda de calor se espalha do meu âmago. Não deveria fazer isso.
Não posso fazer isso. Não vou.
Sua mão desliza para meu pescoço, inclinando minha mandíbula para
cima, seu olhar ainda preso nos meus lábios. Nossas bocas estão tão
próximas. Só um gostinho, justifico. Não é muito ruim, não é? Só um
gostinho. Ninguém poderia me culpar por ser curiosa. O cavaleiro
supostamente é a justiça e a vingança de Deus. Como posso estar fazendo
qualquer coisa errada se deixar Seu cavaleiro me tocar?
Eu meio que acredito nas minhas ponderações malucas. Neste momento,
com o bourbon aquecendo minhas entranhas e amolecendo minha
determinação, distorceria praticamente qualquer raciocínio lógico para
deixar isso acontecer.
Pestilência hesita. Diferente de mim, imagino que deve estar tendo um
último momento para se convencer de não fazer isso.
Nesse momento, recobro meus sentidos. Minhas pálpebras abaixam e
encaro os lábios dele.
— Por favor — sussurro.
A mão no meu pescoço pressiona minha pele, e então, desaparece de
uma vez.
Feitiço quebrado.
— Por favor? — Pestilência se afasta para me olhar com nojo. — Você
diz isso para mim agora? — Ele passa a mão sobre a boca e a mandíbula,
depois olha em volta, como se estivesse acordando de um sonho. Levanta-
se, e eu apenas consigo continuar olhando para ele. Não tenho nada a dizer.
Nenhuma palavra para melhorar a situação, porque eu a criei
conscientemente.
Começo a me levantar também, mas Pestilência coloca uma mão no meu
ombro para me manter sentada, quase como se fosse eu que o estivesse
perseguindo. Ele suspira, de repente parecendo cada centímetro exausto
como deveria estar, considerando o dia que teve.
— Está tarde, Sara — fala. — Melhor você dormir um pouco,
cavalgamos cedo amanhã.
Com isso ele deixa a mim e ao bourbon e essa emoção que tenho quase
certeza que é arrependimento. Sei que deveria sentir alívio – triunfo, até.
Mas, como diz a Palavra, o espírito pode estar determinado, mas a carne é,
de fato, fraca.
CAPÍTULO 23

RESSACAS SÃO AS PIORES COISAS do mundo. Na manhã seguinte,


forço as panquecas que fiz para dentro, odiando que mal posso apreciá-las
por causa da minha náusea. É por isso que não bebo regularmente. Bom,
isso e o fato que na maior parte do tempo só posso bancar destilados
caseiros. Você nem precisa ficar bêbada com aquele mijo amargo para ficar
de ressaca.
Faço carinho no cavalo de Pestilência, que passou a noite dentro de casa
e agora está de pé na cozinha, cheirando as panquecas como se pudesse
querer uma mordida. Abandono as panquecas, levanto-me e foco a atenção
no animal.
Passo a mão pelo pescoço do corcel.
— Sabe, por baixo desse seu exterior endurecido, tem apenas uma
mulher que quer amor e aceitação — falo para Trixie.
— Meu corcel é um homem. — Pestilência afirma ao entrar no recinto.
Fico tensa com a voz dele. Essa é a primeira vez que compartilhamos o
mesmo espaço depois da noite de ontem.
Ele caminha até o meu lado e coloca a mão com delicadeza no cavalo, e
maldito seja meu corpo, mas estou ciente de cada centímetro do cavaleiro.
— Não dê ouvidos a ele, Trixie — falo para o cavalo, ignorando o
homem ao meu lado.
— Você deu um nome a ele? — Pestilência pergunta, incrédulo.
Ele não olha para mim. Quero dizer, também não olho para ele, mas foi
ele que se afastou ontem à noite, então… Não vou olhar primeiro para ele.
Aparentemente ressacas me fazem infantil. Acaricio o pelo branco de
Trixie. É uma cor tão pura... como neve.
— Ele precisava de um nome.
— “Tricksy”? — Desaprovação escorre da voz de Pestilência. — Meu
corcel não é malandro. Ele é um animal nobre e real.
Esse… não é o motivo que que coloquei o nome de Trixie no cavalo.
— Você não pode julgar como o chamo — falo —, quando você nem
sequer dá um nome a ele.
O cavaleiro se vira para mim, e doces anjos, só a sensação do seu olhar
está revirando meu estômago. Finalmente crio coragem de olhar para
Pestilência. Ele está usando seu uniforme completo mais uma vez, as roupas
pretas inteiras e sem manchas. A armadura agora está suave e sem marcas.
O arco e aljava estão nas suas costas, a última cheia de flechas quando
tenho certeza de que ontem estava quase vazia. É interessante que não é
apenas o corpo dele que pode se regenerar. Interessante – e perturbador.
O olhar de Pestilência pousa na minha roupa – o top verde-limão e calça
floral larga me fazem parecer como a filha bastarda de uma diva e um
cigano – mas depois sobe, parando na minha boca.
Lembrando de ontem.
Ainda posso sentir a pressão do seu polegar ali, e o quase beijo que se
seguiu. Compartilhamos todo tipo de pequenas intimidades, cada uma
suportada por uma emoção diferente, mas as que passaram entre nós
ontem… sinto minhas bochechas esquentarem um pouco. Elas vão
permanecer comigo.
Pestilência parece muito arrependido, mas não tenho como saber
exatamente do quê.
— Você comeu? — ele pergunta.
Limpo a garganta.
— Sim — falo, feliz por focar em outra coisa.
Não existe um “nós”, Burns.
— Embalei um pouco de comida também — acrescento.
Os alforjes estão cheios. Também coloquei mais bebida, apesar da
festinha de ontem à noite.
— Bom, então podemos partir.
Saímos da casa e voltamos para a praia, Trixie trotando atrás de nós. Não
posso evitar dar uma olhada na área onde segurei Pestilência. Está longe
demais para identificar o sangue que com certeza ainda mancha a areia.
Viro-me para o cavaleiro, o corcel atrás de mim.
— Deveríamos conversar sobre ontem à noite? — questiono.
Sua mandíbula tensiona, e um segundo passa. Depois dois, três, quatro…
— O que tem para ser falado, humana? — finalmente retruca.
Ah. Então os limites voltaram essa manhã. Na luz forte do dia, mais uma
vez sou a arqui-inimiga de Pestilência, e ele o meu. Olho para ele um
momento, depois suspiro. Não sei o que quero, mas não acho que seja isso.
Começo a me virar para encarar Trixie quando ele agarra minha cintura. Por
um minuto, minha imaginação louca dispara. Até sinto aquele maldito frio
na barriga.
O cavaleiro também não quer que as coisas fiquem como as deixamos.
Mas então, ao invés de me puxar em um abraço, ele me ergue no seu
corcel, juntando-se a mim segundos depois. Na mesma velocidade que meu
coração levantou voo, agora ele afunda.
Por que eu me importo? Foda-se ele e essa coisa suave e fraca que sinto
por ele. Não posso acreditar que tive a audácia de sentir pena dele e das
suas feridas ontem, como se fosse uma vítima e não o instigador.
Como sempre, Pestilência usa uma das suas mãos para me segurar
próxima a ele, mas hoje isso parece errado. Impessoal e frio. Mesmo
quando me odiava, ele queimava com a emoção. Agora tem uma
indiferença no toque dele, e prefiro arrancar meus olhos a deixar as coisas
assim.
O cavaleiro faz um som com a língua, e Trixie começa a galopar pela
praia, na direção do mar. Mal tenho tempo de registrar que vamos viajar
pelo oceano outra vez antes de chegarmos na água. Uma onda de vertigem
passa por mim quando olho, observando o jeito que a superfície ondula.
Fico esperando o oceano começar a obedecer às leis da física e nos engolir,
mas permanece firmemente sólido.
Só quando estamos além das ondas que percebo que a vertigem não é
totalmente mental.
Ah, Deus, cavalos e ressacas não se misturam.
O movimento do corpo de Trixie está misturando tudo no meu estômago
para a direita, e depois para a esquerda e de volta para a direita. Fiquem,
ordeno em silêncio para as panquecas no meu estômago. Respiro pelo nariz.
Isso vai passar, isso vai…
Nãonãovainãovaipassarpassarpassar…
Inclino-me para o lado. O movimento repentino e violento faz meu corpo
desequilibrar, e ao invés de vomitar, escorrego do cavalo.
— Sara!
Atinjo a água com um barulho, e a primeira coisa que consigo pensar
quando respiro água salgada é como o Pacífico é frio para caramba.
Cruelmente frio. Água não tem direito de ser fria desse jeito. Faz os banhos
frios que tive que tomar desde o fim do mundo parecerem brandos em
comparação.
Quando mergulho para as profundezas escuras do oceano, paralisada
pelo frio, que percebo que estou afundando, a água não mais obedecendo
qualquer força sobrenatural que permitiu o cavaleiro cavalgar sobre ela. E
parece que o mar está ganancioso para me puxar para baixo, como se eu
fosse o dízimo que o cavaleiro precisa para atravessar ileso.
Bato a perna como louca na direção da superfície, minhas roupas
estúpidas e espalhafatosas me arrastando para baixo. No meu pânico, mal
percebo o braço que envolve minha cintura, puxando-me para longe da
escuridão.
Percebo que o cavaleiro me salvou quando sou arrastada de volta para a
praia. Não tenho muito tempo para me concentrar naquele pequeno detalhe
antes de virar para o lado e começar a expelir o conteúdo do meu estômago
junto com toda água salgada que respirei. Tchau, panquecas.
Vomito até não ter mais nada dentro de mim. Mesmo assim, meu corpo
não acredita totalmente, meu estômago continua se contraindo.
— Você não vai se matar! — Pestilência praticamente berra, a água do
mar pingando do seu cabelo. Parece enlouquecido de raiva, e seus olhos são
de um azul vívido.
Esfrego o pescoço, minha garganta esfolada.
— Não estava tentando — falo, rouca, sentando-me.
— Mentiras! — grita. — Vi você se jogar do cavalo.
— Precisava vomitar. — As palavras saem ásperas. — Isso é tudo. —
Limpo a garganta, focando-me nele. — De qualquer forma, por que você
está tão preocupado? — pergunto, levantando-me em pernas trêmulas.
Meus olhos semicerram enquanto o observo. — Você deixou bem claro hoje
que não se importa muito comigo.
Essas duas últimas frases deveriam ter ficado presas firmes dentro da
minha boca.
O cavaleiro olha feio para mim, suas sobrancelhas apertadas.
— Sofrimento é…
Meus ombros caem.
— Para os vivos. Sim, sim, eu sei.
Pega meu queixo, forçando-me a olhar para ele. Seus olhos procuram os
meus, e estão cheios de raiva.
De uma vez, ele puxa meu rosto para frente e me beija.
CAPÍTULO 24

É DURO. RAIVOSO. QUASE VIOLENTO. Suponho que esse é o


único tipo de beijo adequado para nós. E então me dou conta que
Pestilência está me beijando, seus lábios estão colidindo com os meus, seu
toque fervendo ao me apertar contra si. Pego os antebraços dele com
minhas mãos congeladas involuntariamente, usando-o para me equilibrar.
Ele está me beijando.
Não tenho fôlego ou vontade de pedir por favor outra vez, para afastar
seus braços e impedir isso de acontecer. Não quero que pare.
Depois que os primeiros segundos passam, fica claro que Pestilência não
sabe o que os lábios deveriam fazer em um beijo. Todo seu entusiasmo (de
ódio) está ali, mas está contido pela rigidez da sua boca.
Sou eu que acabo conduzindo, meus lábios deslizando sobre os dele. Ele
segue meus movimentos, toda sua raiva fazendo a boca quase bruta em sua
ferocidade. Sinto como se estivesse me afogando outra vez, o gosto e o
toque dele me sugando para baixo. Tudo é brutal – o frio da minha pele, o
queimar dolorido da minha garganta, o roçar feroz dos seus lábios nos
meus. Água salgada escorre pelos nossos rostos, misturando-se com nosso
beijo.
Não sei por quanto tempo nós dois ficamos presos juntos assim até eu
perceber que estou molhada e congelando e acabei de vomitar (para ser
justa, ele não parece se importar). E ah, estou beijando Pestilência.
Ainda assim, precisa de uma quantidade surpreendente de força de
vontade para me afastar. Cambaleio para trás e finjo que é apenas a areia
que faz meus joelhos bambos. Pestilência está arfando, seu peito erguendo e
abaixando laboriosamente. Ele dá um passo à frente, os olhos presos na
minha boca.
Quer continuar de onde paramos.
No último segundo, parece cair em si. Ele faz uma careta, seus olhos
azuis gélidos encontrando os meus.
— Você não vai tentar se matar outra vez.
— Não estava tentando…
— Não me desafie, Sara! — berra. Depois, mais suave, continua: — Não
vou deixar você morrer.
Não faz sentido me explicar. Pestilência está disposto a acreditar que
tentei envenená-lo com álcool, mas não conecta os pontos óbvios que fui eu
que me envenenei com o negócio.
— Tudo bem — falo, minha voz torcendo as palavras. — Não vai
acontecer de novo.
Ele concorda, os olhos voltando para meus lábios.
— Bom. – Bom.

A segunda tentativa de deixar a ilha dá mais certo que a primeira. Isso,


claro, depois de voltarmos para a casa da praia e me aquecer com mais um
banho quente e outro conjunto de roupas secas – tudo isso sob a insistência
de Pestilência.
Vem como um choque particularmente desagradável que o cavaleiro se
importa com meu bem-estar. Quer dizer, sei desde que me sequestrou que
me quer viva, mas isso parece… diferente. E não tenho certeza se gosto.
Passo os dedos pelos lábios. Ainda posso sentir a pressão da boca dele
contra a minha, e apesar de não termos conversado sobre O Acontecimento,
está bem ali entre nós, permanecendo como um convidado indesejado.
Depois que deixamos a casa de praia, continuamos nossa viagem pela
água. Pestilência faz questão de manter um braço firme na minha cintura. É
tão hilário quanto ridículo. Se quisesse me matar “outra vez”, dificilmente
tentaria a mesma tática fracassada.
O vento nos assola, e mesmo usando camadas de roupas quentes, o frio
de alguma maneira consegue se esgueirar. Tudo fica pior com o fato que
meu torso não está mais coberto por camadas de curativos, os ferimentos
nas minhas costas curados o bastante para abandoná-los. Não havia
percebido até agora que a gaze me protegia um pouco.
Estremeço, a ação fazendo Pestilência me trazer mais para perto.
— Você vai me dizer se ficar com muito frio — ordena, sua respiração
aquecendo uma das minhas orelhas.
Concordo com um movimento na mão.
— Claro. — Não vou brigar com ele por isso.
Seguimos pelo litoral na direção sul, ficando longe o bastante da terra
para evitar contato direto com as pessoas, mas perto o bastante para
identificar os detalhes costeiros à nossa esquerda. De vez em quando vemos
um veleiro ou canoa, mas mesmo esses estão a uma boa distância.
É fim de tarde quando as nuvens finalmente se abrem e o sol brilha sobre
nós. Aquece meu cabelo e reflete na água, e em pouco tempo, meu couro
cabeludo e rosto parecem arder. Não ficaria surpresa se, até o anoitecer,
minha pele ficasse um tom nada lisonjeiro de vermelho. Essa não é a única
coisa me incomodando.
Eu me movo desconfortável em Trixie Skillz.
— Hey, Pestilência — falo —, preciso usar o cagódromo.
Sua mão aperta meu quadril.
— Humana, você está falando na sua língua.
— A latrina — esclareço, minha voz zombeteira.
— Ah. — Ele deixa passar o fato que estou zombando dele.
Puxa as rédeas, virando o cavalo na direção da terra. Vinte minutos mais
tarde, a água ondulante sob os cascos de Trixie é substituída por terra firme.
Solto um pequeno suspiro de alívio por estar de volta ao chão.
À nossa volta, pinheiros se estendem até onde os olhos podem ver. Onde
quer que estejamos, não tem nem sinal de vida humana por perto. Estou
aceitando o fato que vou precisar mijar nas árvores quando encontramos
uma estrada pavimentada, e aí, pouco tempo depois, um posto avançado.
A mulher trabalhando ali dá uma olhada em nós e foge, quase
tropeçando nos próprios pés ao tentar chegar na moto. Eu peço licença e
encontro um banheiro atrás do prédio. Quando volto, Pestilência está
prendendo cobertores e o que parece varetas de barraca na traseira da sela
de Trixie.
— O que você está fazendo? — pergunto, olhando para o cavalo. Nesse
momento, seu corcel parece menos como a força motora sobrenatural por
trás da praga de Pestilência e mais como um cavalo de carga.
— Juntando suprimentos.
Olho para o posto avançado. Ali tem todo tipo de equipamento de
sobrevivência, de cantis de água a protetor solar caseiro, de kit para acender
fogueira até comida desidratada.
Certo.
— Por quê?
— Caso não encontremos abrigo — afirma, apertando uma das correias
da sela.
Isso nunca foi um problema antes, estávamos viajando pela rodovia até
essa tarde. Nesse momento, estamos essencialmente fora de alcance. Olho
para o horizonte, onde nuvens escuras e densas estão perseguindo o sol.
Não é mesmo um bom dia para acampar.
Pestilência volta para o posto avançado, indo para a seção de caça da
loja. Uma parede inteira é dedicada a vários tipos de armas e munições. Ele
caminha direto até elas. Com calma, ergue um rifle da parede e olha para
ele, uma mão envolvendo o cano, a outra perto da base de madeira.
Meu corpo inteiro fica tenso com a visão da arma nas mãos dele. Não sei
o que sinto exatamente. Não é medo, certo? Pestilência não precisa de uma
arma para matar. É letal o bastante sozinho. Talvez seja simplesmente o
jeito estranho que está olhando para a coisa, sua expressão inescrutável.
Suas mãos apertam o rifle, os músculos do braço flexionando, e então o
metal geme enquanto ele curva o cano, dobrando a arma praticamente ao
meio. Olho que nem boba para ele, minha cabeça levando um tempo
ridiculamente longo para aceitar o fato que o cavaleiro é forte o bastante
para entortar metal.
Ele solta o rifle no chão, o negócio totalmente esquecido ao pegar outro.
Pestilência não para até ter destruído até a última das armas que o posto
avançado vendia – inferno, ele até consegue encontrar a que estava
escondida embaixo do balcão antes de arruiná-la também. Há uma boa pilha
delas nos fundos.
O dono vai pirar quando vir que alguém dobrou suas armas no meio.
Uma vez que Pestilência acaba, deixa a loja tão serenamente quanto
entrou.
— Pronta para cavalgar em frente? — pergunta ao passar por mim.
Dou uma olhada nas armas arruinadas espalhadas pela loja.
— Hm… claro.
Quando estamos bem longe do posto avançado, Trixie nos guiando por
uma densa floresta costal, é que voltamos a conversar.
— É meu arrependimento que, apesar de muitas coisas terem sido
destruídas com minha chegada na terra, nenhuma das armas foi.
Ergo as sobrancelhas com suas palavras.
— Estou surpresa — falo.
— Por que minha opinião te surpreenderia?
Eu viro um pouco a cabeça na sua direção.
— Você não quer que humanos matem uns aos outros?
Espero um longo tempo pela resposta.
— Hmm — fala eventualmente —, vou precisar pensar nisso.
E deve pensar, porque a parte final da nossa viagem passa em silêncio.
Até o céu estar de um sinistro cinza arroxeado e as sombras longas,
Pestilência e eu ainda não tínhamos passado por uma casa. O cavaleiro
direciona Trixie para fora da estrada para uma área relativamente plana
aninhada entre pinheiros cobertos de musgos.
— Vamos passar a noite aqui — Pestilência anuncia, fazendo o cavalo
parar.
Nós dois passamos a próxima hora erguendo acampamento. Primeiro
vem o fogo irrisório, que é mais para aparências do que qualquer outra
coisa, já que a madeira que queimamos está verde demais para fazer muito
além de fumaça e estalar. O que é lamentável, considerando que as
primeiras gotas de chuva me atingem bem quando terminamos de acendê-
lo.
Depois vem a barraca, e é bem óbvio que esse equipamento é velho. O
material é aquele sintético à prova d'água que ninguém mais faz, e a cor é
um cinza e marrom desbotados pelo tempo. As varetas de alumínio que vêm
com ela estão gastas e tortas.
Ainda assim, aposto que era uma das coisas mais caras naquele posto
avançado. Uma pena que provavelmente descartaremos na próxima cidade
que encontrarmos. Franzo o cenho para a estrutura quando terminamos de
montar. Não é só velha, é pequena. Isso significa que Pestilência e eu
vamos ter que nos aconchegar. Meu coração dá um pulo traiçoeiro com a
possibilidade.
— Você fez de propósito — acuso.
— Fiz o quê? — o cavaleiro pergunta, ficando de pé do outro lado da
barraca. Ele limpa as mãos.
— Encontrou uma barraca pequena.
Ele se aproxima de mim e avalia a barraca, os braços musculosos
cruzados. Sua armadura e armas estão de lado, e o material sedoso da
camisa parece abraçar seus ombros largos e cintura fina.
— Podia ser maior — Pestilência concorda. E então se afasta,
descarregando o resto dos nossos suprimentos.
É isso?
Mordisco meu lábio inferior. A chuva está começando a cair de forma
constante, e sei que só vai piorar. De jeito nenhum que vou dormir do lado
de fora hoje. Não tem cobertores o suficiente.
Realmente vou ter que me aconchegar ao lado do cavaleiro. A ideia me
deixa distintamente nervosa, especialmente quando ainda posso sentir a
memória do seu beijo nos meus lábios. Olho o cavaleiro de canto de olho.
Ele agacha na frente do nosso fogo fraco, a madeira sibilando e crepitando
ao cuidar dele.
Por que ele não está afetado por isso?
Sentindo o peso do meu olhar nele, olha para mim, seus olhos azuis
penetrantes. Ele se endireita um pouco quando vê minha expressão.
— O que foi, Sara?
Sara. Ele fala meu nome como se fosse parte de uma prece.
— Nada — respondo, esfregando os braços, sob minhas camadas de
roupa, arrepios percorrem minha pele. Ele percebe isso, sua testa franzindo.
— Não é nada. — Pestilência se levanta, olhando em volta. — Do que
você está com medo?
Eu não vou ter essa conversa. Não vou. Tiro o cabelo do rosto.
— Eu só… pensei que ouvi alguma coisa.
Pestilência faz uma careta.
— Qualquer um que tentar chegar perto de nós está condenado. Você
está segura, Sara.
Mas não estou. Não dele, e não do meu próprio coração.
CAPÍTULO 25

PUXO MEU CASACO CONTRA o corpo enquanto encaro as chamas


crepitantes entre mim e Pestilência. A noite trouxe consigo um frio cortante
que nem mesmo uma fogueira meio decente pode afastar. E essa não é uma
fogueira meio decente.
A chuva cai insistentemente, mas ainda não é ruim o bastante para me
fazer entrar na Barraca da Perdição. A última das nossas refeições está
confortável no meu estômago.
Não nossa refeição, corrijo. Minha refeição. Pestilência não estava
disposto a comer nada do que estávamos transportando, nem beber água.
Não preciso, Sara, falou quando ofereci a ele. Você precisa.
Ele pode não precisar, mas seus olhos ainda se demoraram na comida do
mesmo jeito que estavam voltando para meus lábios várias e várias vezes.
Ele pode não precisar dessas coisas, mas desenvolveu um apreço por elas.
Seguro minha caneca de alumínio entre as mãos, o chá mantendo o frio
longe dos dedos. Do outro lado do fogo, o olhar de Pestilência é como a
carícia de um amante. Posso sentir como se fossem dedos suaves roçando
pela minha pele nua.
Meus olhos sobem para os dele.
A fumaça nebulosa distorce as feições do cavaleiro, mas ainda posso
distinguir sua mandíbula definida e o cabelo dourado ondulado. Uma perna
está esticada, a outra dobrada perto do peito. Se o frio o está afetando de
alguma forma, não deixa transparecer.
Ele olha para mim, o olhar parece ao mesmo tempo familiar e estranho.
É o tipo de olhar que me faz abaixar a cabeça e colocar uma mecha de
cabelo atrás da orelha, como se fosse melindrosa. É o tipo de olhar que me
lembra que, a despeito de suas intenções, Pestilência ainda é um homem, e
um muito bonito ainda por cima.
— O quê? — pergunto, rodando o chá várias vezes na minha caneca
amassada.
Não é a porra de um vinho, Burns. Você não precisa arejar.
— Não entendo sua pergunta — responde.
Claro que não.
— Você está me encarando — explico. — Quero saber por quê.
— Não posso olhar para você sem precisar me explicar?
— É rude encarar alguém. — Ainda não olho para ele.
— Você está ofendida? — pergunta, curioso.
Estou lisonjeada. E isso me ofende.
— Desconfortável — falo. — Me sinto desconfortável com isso.
— Por que não estou surpreso? — murmura para si mesmo. — Você
quer que eu entenda sua espécie, e ainda assim quando demonstro interesse
você condena minha curiosidade.
Literalmente, não tenho nada para dizer disso. Nem sei se ele está certo
ou se apenas juntou palavras bonitas o bastante para parecer certo. Não vou
analisar essa.
— Tudo bem — digo, tomando mais um gole do chá e encontrando o
olhar dele. — Olhe o quanto quiser.
Seus olhos me encaram, irredutíveis.
— Olharei.
Estou prestes a desviar o olhar porque realmente parece estranho ter
alguém te avaliando tão abertamente, mas, até aí, foda-se isso. Se ele vai me
encarar, então também vou. Eu o examino, das pontas arqueadas da coroa
dourada até a camisa escura e botas de couro macio. Meu olhar desvia para
suas mãos – ele tem mãos estranhamente atraentes para um homem.
Claro que tem, Sara. Tudo nele é atraente. É você que só está
começando a perceber os pequenos detalhes.
Pestilência sorri enquanto meus olhos passam por ele, e juro que ele
estufa o peito só um pouco com minha inspeção.
— Está gostando do que vê? — pergunto, ao mesmo tempo que o sorvo.
O comentário deveria ser sarcástico, mas sai mais como se estivesse
pedindo um elogio.
— Sua forma é estranhamente agradável para mim.
Como todo o resto que Pestilência fala, suas palavras evocam duas
emoções opostas. Meu sangue esquenta e ainda assim… agradável? Uma
pintura é agradável. E estranhamente?
Uma mulher não deveria ser estranhamente agradável. Ela deveria ser
uma filha da puta destruidora de bolas, esmagadora de crânios e impossível
de esquecer. Uma linha se forma entre as sobrancelhas de Pestilência.
— Não esperava isso – gostar da sua aparência – assim como não
esperava comida me fascinar ou sua bebida me encantar.
Dou mais um gole no chá.
— O que você esperava?
— Ser estoico e indiferente para todas as coisas humanas.
Deveria me encher de esperança de que Pestilência esteja afetado por
essas coisas, e enche, mas… mordo meu lábio inferior. O negócio é que é
recíproco. Por mais que eu esteja afetando sua visão dos humanos, ele está
afetando minha visão dos cavaleiros.
— Você ainda não mencionou Deus — falo.
Pestilência olha para mim de forma curiosa.
— Você fica mencionando como odeia humanos, como é seu trabalho
acabar com eles, e como é chocante gostar das mesmas coisas que eles, mas
em todas as nossas conversas, você não chegou a mencionar Deus.
Uma ruga se forma entre suas sobrancelhas.
— Por que deveria?
Ergo um ombro.
— É esse o motivo, não é? A fúria de Deus?
— Isso não é sobre Deus — Pestilência diz, equilibrado. — É sobre
humanos e sua natureza venenosa.
Pego uma vareta e cutuco as toras, distraída, fazendo o fogo pular e
estalar.
— Apenas imaginei que Ele estava por trás da sua existência — afirmo.
O cavaleiro olha para mim, olhos semicerrados.
— Não é para eu discutir com você as razões pelas quais estou aqui.
— Então Deus existe de forma inequívoca? — cutuco. — E é um
homem? E te colocou para fazer isso? — Não é como se ele tivesse dito
essas coisas, mas ele também não negou quando eu as mencionei.
— Sara — Pestilência fala um pouco exasperado —, com certeza você
sabe nesse ponto que alguma coisa além desse mundo mortal existe. Não
sou prova o bastante?
Bom, sim, mas ele poderia pelo menos confirmar, para oficializar e tal.
— No que diz respeito a gênero — continua —, apenas a débil mente
humana poderia imaginar um ser superior, e depois ter a audácia de fazê-lo
a sua imagem – e dar-lhe um gênero.
Pestilência continua:
— Deus não é um homem ou uma mulher. Ele é algo completamente
diferente.
— Então por que você continua usando pronomes masculinos? —
questiono.
— Porque você usa.
Dou um olhar duvidoso a ele.
— Como eu sei inglês? — retruca. — Ou uso um arco e flecha? Por que
uso calças e armadura e tenho aparência humana? Eu, como Deus, fui
moldado a algo que você pode compreender. — Mas isso — gesticula para
o corpo —, não é o que realmente sou.
— Não… é? — Estou tendo dificuldade com essa.
— Sou pestilência, Sara — fala, suave. — Não um homem. Tenho um
corpo, uma voz e senciência não para meu próprio benefício, mas para o
seu.
Não vou mentir, essa deve ser a conversa mais estranha que já tive.
— Então… — digo, fechando o círculo —, Deus não é um homem.
Ele inclina a cabeça.
— Você parece surpresa.
Pareço? Eu me mexo, desconfortável.
— Não estou surpresa. É só…
— É só o quê? — Pestilência pergunta quando não termino a frase. Pela
primeira vez ele está sendo um pouco aberto comigo.
— Não sei — falo. Cutuco o fogo com a vareta que ainda seguro. — Ele,
ou Ela, ou Isso, sequer é Cristão? — Os Quatro Cavaleiros, afinal, foram
mencionados na Bíblia.
Pestilência me dá um olhar depreciativo.
— Vocês humanos e suas amarras com nomes e rótulos. Deus não é
Cristão – assim como não é Judeu ou Muçulmano ou Budista ou qualquer
outra denominação. Deus é Deus.
Uma resposta que não vai satisfazer ninguém. O cavaleiro se inclina para
trás e me observa.
— Em que você acredita, Sara?
Solto o graveto e dou um gole no meu chá que esfria.
— Antes de você vir para a Terra, não acreditava em nada.
— Você não acreditava em nada? — Pestilência está olhando para mim
como se quisesse uma explicação.
Sabendo como se sente a respeito do Mundo Antes, realmente não quero
falar sobre isso com ele.
— Tínhamos ciência, e isso era um tipo de religião própria — falo. —
Pelo menos para mim, era. Explicava por que o mundo funcionava do jeito
que fazia – respondia o mistério de tudo.
— Sei o bastante da sua ciência, Sara. Nunca respondeu os mistérios
mais importantes, como você os chama. O que é uma alma, para onde vai
quando você morre, o que está além…
Ergo uma mão.
— Já entendi, colega.
Ele franze a testa com o apelido.
— Eu não precisava das respostas para essas questões. Presumi que essa
vida era tudo o que qualquer um tinha e estávamos todos nos iludindo por
pensar que existia mais.
— Mas mudou de ideia? — provoca.
Dou um sorriso triste.
— É difícil não mudar quando os Quatro Cavaleiros aparecem e o
mundo todo vai para o inferno.
Posso ouvir a televisão do corpo de bombeiros na minha cabeça, a
reportagem interminável passando. Políticos de carreira foram substituídos
por líderes religiosos e teólogos, cada um explicando sua interpretação da
Bíblia, do Alcorão e o Hadiz, os Sutras, os Vedas, o Torá, a Mishná, o
Talmude e Midrash, e milhares outros textos bíblicos que de repente
apontavam O Caminho para a redenção. Eu meio que ouvi quando cada
pastor e padre, rabino e imame suplicou ao mundo para encontrar Deus
antes de ser tarde demais.
— É só… religião até agora era uma questão de fé. Mal parece religião
para eu acreditar agora que temos prova.
Ainda é difícil para mim acreditar em religião, mas omito isso, agora que
nossa prova vem na forma de quatro seres que querem nos matar. Se de
repente somos todos cordeiros para o abate, qual o sentido da vida? E mais
importante, se uma morte dolorosa e prematura é o que devo esperar da
vida, então o que deveria esperar da pós-vida?
Parte de mim supõe que Pestilência vai pregar para mim, mas não o faz.
Ele apenas continua a me dar aquele olhar enervante dele.
Encontro seu olhar, e mantenho. A fumaça da fogueira forma fitas
elegantes entre nós e a chuva mancha nossa roupa. Mesmo na luz do fogo,
posso ver os olhos azuis claramente. São de uma cor apropriada, sinto como
se estivesse afogando neles, em Pestilência.
Uma sensação calorosa e borbulhante se espalha sob minha pele.
Uma vez ouvi dizer que você pode se apaixonar por alguém
simplesmente olhando-o nos olhos por tempo o bastante. Não é isso (por
favor, Deus, não deixe ser isso), mas é alguma coisa.
Como um relâmpago, compreensão me atinge: apesar de toda ferida que
infligimos um no outro, apesar de ele tentar acabar com meu mundo e meu
mundo tentar acabar com ele, ele me quer…
E eu o quero.
Não sei quem se move primeiro, só sei que coloquei o chá de lado e ele
está se levantando. Não tem pressa nos nossos movimentos. Tive várias
noites desse tipo, que você não pode se mover rápido o bastante porque no
momento que diminuir a pressa, vai perceber que o que está fazendo é
desesperado e estúpido e na verdade você acha a outra pessoa irritante, mas
você só quer sentir a pressão da pele dela contra a sua, então você perdoa
tudo até a manhã do dia seguinte.
Nós dois temos tempo o bastante para nos afastarmos. Para traçar a linha
na areia onde ele é uma entidade bíblica que veio para acabar com o mundo
e eu sou uma humana simplesmente tentando impedi-lo. Mas nesse
momento, ele não odeia humanos nem perto do que quer acreditar, e não
desejo desafiá-lo por mais que eu queira acreditar.
Antes que tenha chance de me levantar, ele ajoelha na minha frente. O
fogo que antes era uma barreira entre nós agora paira como uma sentinela
ao nosso lado.
— Não posso decidir se você é uma toxina ou um tônico — fala,
erguendo a mão para minha bochecha. — Só que você atormenta meus
pensamentos e enche minhas veias.
Pestilência podia trabalhar um pouco seus elogios. Seu polegar acaricia
minha pele.
— Me diga que sente o mesmo.
— Sou sua prisioneira — falo, evitando responder.
— Esse é o menor dos problemas entre nós. — Ele se inclina para perto.
— Me diga — repete.
Sem pensar, pressiono a boca na dele. Por um longo momento
agonizante, ele congela sob meus lábios. Bem quando esperava que se
afastasse, solta um leve gemido, que soa como desejo, derrota e surpresa,
tudo junto. E então seus lábios estão pressionando os meus, encontrando
cada toque.
Hesitante, suas mãos se enroscam no meu cabelo. Ele segura meu rosto,
o beijo suave, tão exageradamente suave. Seguindo a deixa dele, coloco a
mão na sua mandíbula, meus dedos roçando a pele da sua bochecha. Ele se
afasta, os olhos iluminados com desejo.
— Sara…
Minha pele eriça, mesmo quando meus olhos encontram os dele.
Eu não quis fazer isso. É o que eu deveria dizer. Mas as palavras estão
presas dentro de mim.
Seu olhar volta para minha boca, e qualquer reserva que ele ainda tinha
se desintegra. Seus lábios voltam para os meus, mais fortes e determinados
do que antes. O beijo anterior poderia ser chamado de erro, mas não esse.
Ele me beija com vontade, inclinando-se sobre mim até o peito quente
pressionar o meu. Deixo as mãos vagarem pelo seu rosto como se estivesse
tentando memorizá-lo pelo toque. Meus polegares passam pelas suas
pálpebras fechadas e aqueles cílios de causar inveja, roçam as têmporas e as
maçãs do rosto.
O cheiro de terra, fumaça e agulhas de pinheiro enchem meu nariz, a
chuva que cai gela minha pele exposta. Estamos tão longe da humanidade
que agora Pestilência parece mais como magia do que como uma praga
antiga.
Os braços dele me envolvem e sem interromper o beijo ele me carrega
para a barraca. Não tenho tempo de temer aquele espaço apertado antes que
ele afaste a abertura e me deite nos cobertores. Ajoelha entre minhas
pernas, usando um momento para tirar a coroa, seu olhar enraizado no meu
rosto.
Languidamente, seu corpo cobre o meu, sua boca encontrando a minha
mais uma vez. Quase gemo quando seu peso se acomoda sobre mim. Faz
tanto tempo – tempo demais – desde que fiz isso, e descubro que estou
desejando esse conforto e conexão.
As mãos do cavaleiro tremem ao passar por mim, explorando com
cuidado. Eu me pergunto se isso é tabu para ele – tocar uma mulher, uma
vítima que tem poupado. Pergunto-me como ele se sente a esse respeito. Eu
me pergunto, simplesmente, como ele se sente. Como ele pensa. Não sei
quando comecei a me importar, mas agora, com ele tão perto de mim,
parece importante.
Meus lábios separam os dele e começo a explorar sua boca.
Outro gemido escapa dele, esse menos surpreso e mais primitivo. Ele
aperta a boca na minha e nosso beijo doce está se tornando mais faminto,
mais sombrio. Seus quadris esfregam contra os meus, e interrompo o beijo
para suspirar meu desejo.
— Sara — fala, quase sem fôlego —, sinto… sinto que estou me
perdendo para essa sensação – para você. — Seus olhos procuram os meus.
— Isso é… isso é amor?
Fico sóbria muito rápido. Minhas mãos foram até sua lombar,
pressionando seu corpo rente ao meu, e de alguma forma minhas pernas o
envolveram. Me deixei levar mais do que um pouco…
Sento-me, empurrando-o com gentileza para longe de mim. Relutante,
ele rola para longe. Lambo os lábios, sentindo o gosto dele na boca. O resto
daquela sensação nebulosa sensual recua completamente, deixando um frio
arrepiante no lugar. Dei uns amassos em Pestilência – e estava pronta para
fazer mais.
Balanço a cabeça.
— Não, isso não é amor.
Ele parece… decepcionado. Acho.
Não posso dizer com exatidão o que eu estou sentindo, ou por quê. É
alguma combinação doentia entre querer e desejar e a profunda certeza que
isso é errado. Muito, muito errado.
— Então o que é?
— Luxúria — falo simplesmente.

Não consigo dormir. Não nessa floresta enquanto o granizo assola nossa
barraca. O frio tem garras, e posso senti-las afundar na minha pele através
do cobertor e todas minhas camadas de roupa. Deito-me na minha cama
improvisada, tremendo e me sentindo totalmente miserável. Quero te fazer
sofrer. Posso ouvir suas palavras claras como o dia. Pestilência, que vagou
para longe horas atrás e ainda não retornou. Que não gostou do que eu tinha
para dizer mais cedo, seja porque luxúria não é uma emoção tão altiva
quanto amor, ou porque sentir qualquer coisa é simplesmente problemático
para ele.
Ele está longe há horas, e tem toda possibilidade de que provavelmente
esteja escondido esperando que eu fuja, para que possa me punir de alguma
forma cruel e incomum, e forçar as coisas a serem como antes.
Acho que nos faria bem ter as coisas de volta como eram. Mas isso é
impossível de acontecer. Você não pode desfazer um beijo ou um olhar.
Estamos ferrados.
É tarde quando Pestilência volta, e a chuva praticamente parou. Posso
ouvir suas botas quando ele pisa nas agulhas de pinheiro. Ele não disfarça
sua chegada. Um momento mais tarde, a tenda se abre e o espaço se enche
com sua presença sublime. Por vários longos segundos, ele não se move.
Por fim, o cavaleiro ajoelha ao meu lado. Ele cuidadosamente tira sua
armadura e coroa pela segunda vez nessa noite. E então entra no espaço ao
meu lado.
— Presumi que você não dormisse — falo. Minha voz parece ecoar no
silêncio.
Tem uma pausa. Depois de um momento, ele fala:
— Não preciso, mas posso.
Ele se move mais para perto de mim, e depois de um segundo de
hesitação, o cavaleiro passa um braço sobre meu corpo e me puxa para
perto. Fecho os olhos com a sensação, dividida entre desfrutar do toque dele
e saber que não deveria. Meu corpo treme contra o dele por causa da
temperatura.
— Você está com frio — fala, surpresa colorindo sua voz.
Estou mais do que com frio; sou praticamente um picolé humano a essa
altura.
— Estou bem.
Ele me aconchega ainda mais perto dele, jogando uma das pernas sobre
as minhas, prendendo-me contra seu corpo. De conchinha, porra. Não
tenho nem a dignidade de ficar chateada com isso porque estou grata para
caralho pelo calor de Pestilência.
Você também gosta do jeito que ele se encaixa em você…
— Tente dormir — fala, sua voz grossa. — Amanhã partimos na
primeira luz.
Ótimo. Odeio acordar cedo – junto com o frio. Quando tudo isso acabar,
vou me mudar para o México e dormir o quanto quiser. Pressionada contra
a fornalha humana que também é conhecida como Pestilência, meu corpo
gelado logo se aquece. Não muito tempo depois, minhas pálpebras
começam a fechar.
Bem quando estou prestes a dormir, acho que escuto Pestilência
murmurar contra meu cabelo:
— Não é luxúria que sinto, querida Sara. E espero que você esteja tão
assustada com isso quanto estou.
Mas eu provavelmente estava sonhando.
CAPÍTULO 26

ACORDO DEVAGAR, LÂNGUIDA, UM calor delicioso me


envolvendo. Alongo, minha coluna estalando quando arqueio as costas. O
braço envolvendo minha cintura me aperta, a mão acariciando minhas
costas para cima e para baixo.
Abro os olhos e encaro dois azuis. Meu corpo enrijece. O rosto de
Pestilência está a apenas centímetros do meu, e o resto dele está
pressionado contra mim. Resquícios de sono perduram na expressão dele, e
o cabelo está bagunçado. Como o acho atraente me dói.
Diferente de mim, o cavaleiro não parece surpreso de nos encontrar tão
próximos. Ele me observa, o olhar ao mesmo tempo desconfiado e
fascinado. Devagar, me solta. Beijando, aconchegando, e agora dormindo
juntos. Indo rápido demais, Burns.
Tecnicamente, essa não é a primeira vez que dormimos juntos. Teve
aquela vez quando estava hipotérmica. Sentindo-me um pouco mais
tranquila, afasto-me dos braços dele e passo uma mão pelo meu cabelo
castanho ondulado. Não olho para ele ao me recompor, mas, maldição,
posso sentir a presença dele a minha volta.
Preciso sair dessa barraca.
Colocando as botas, saio do pequeno espaço sem olhar outra vez para o
cavaleiro. Do lado de fora, o sol está alto no céu. E sairíamos na primeira
luz...
A barraca abre atrás de mim, e o cavaleiro sai andando. Sua boca está em
uma linha severa, e os olhos tristes quando encontram os meus. O monstro
que é meu cavaleiro é um ser solitário e melancólico. Ele pega a armadura e
começa a colocá-la, afastando-se de mim na direção onde Trixie espera.
— Venha, Sara — chama por cima do ombro —, a hora da nossa partida
tarda.
Olho para nossa barraca, compreendendo que ele não tem intenção de
levar nenhum dos nossos suprimentos desembalados. Então me apresso
para pegar as poucas coisas que não posso considerar deixar para trás e o
sigo.
Ele não olha para mim ao colocar o arco e a aljava nas costas. Nem
enquanto guardo os itens que peguei do nosso acampamento. Nem quando
me ergue para a sela de Trixie. Ele não registra minha presença assim como
eu não quis registrar a dele quando fugi da barraca. Estou provando do meu
próprio veneno, e isso está me enlouquecendo. Há tanta tranquilidade e
conexão em um olhar. Ele o guardar apenas me faz querer mais.
— Você tem certeza de que não deveríamos embalar a barraca? —
pergunto, dando um último olhar a ela. Parece tão solitária perto dos restos
da fogueira. Há uma chance de ainda estarmos no meio do nada quando
pararmos mais tarde.
Pestilência segue meu olhar e faz uma careta para a barraca.
— Não vamos precisar novamente. Vamos encontrar uma casa para
dormir essa noite, ou não vamos dormir.

Existe mais de uma maneira de machucar uma pessoa. Dessa vez não
precisei atirar no cavaleiro ou atear fogo nele para lhe causar dor. Tudo o
que precisei fazer foi agir como se noite passada tivesse sido um erro. E
foi?
Eu quero que seja um erro, e Deus sabe que me sinto mal agora, mas não
porque beijei o cavaleiro. Ou porque me aconcheguei a ele. Eu me sinto
péssima porque ele ainda está me tratando com a indiferença que começou
horas atrás, e está funcionando.
Isso está me enlouquecendo.
Já contei para ele histórias aleatórias da minha infância, como a vez que
quebrei o dente porque literalmente tropecei no meu próprio cadarço, ou
como meus amigos e eu tínhamos uma tradição anual de pular no Lago
Cheakamus assim que o gelo derretia. Até admiti para ele como desenvolvi
medo de palco (caí na frente de toda minha sala do ensino fundamental no
caminho para o púlpito – não consegui soltar uma palavra depois disso).
Ele não reagiu a nenhuma, apesar de eu saber que estava ouvindo com
atenção pela forma que sua mão ficava tensa e relaxava ao me segurar.
Então tentei poesia, para variar.
— Era noite alta e sombria, fraco e farto eu refletia… — Comecei a
recitar O Corvo de Edgar Allan Poe. Recito o poema inteiro, e outra vez,
posso dizer só pelo jeito que Pestilência se porta que está me ouvindo.
Mas, assim como minhas histórias, ele não fala nada quando acabo de
recitar. Vou de “O Corvo” para Hamlet.
— Ser ou não ser, eis a questão…
Recito a peça de teatro por mais tempo que consigo, mas eventualmente
as falas se emaranham em minha cabeça e preciso abandonar o monólogo.
Nada de Pestilência ainda. Recito Lord Byron (“Escuridão”) e Emily
Dickinson (“Porque não podia parar pela Morte”) e mais Poe (“Annabel
Lee”) e o tempo todo Pestilência não dá um pio. Nem mesmo para me
mandar calar a boca.
Desisto.
— O que você está pensando? — por fim pergunto.
Ele não responde. Coloco a minha mão sobre a que pressiona contra
minha barriga, prendendo-o a mim.
— Pestilência?
Sua mão flexiona.
— Ontem à noite não podia decidir o que você era, tônico ou toxina —
fala. — Hoje descobri que é ambos.
Faço uma pequena careta com suas palavras.
— Você despertou coisas em mim que não sabia que estavam dormentes
— continua. — Agora que estou ciente delas, não posso ignorar sua
existência. Temo que estou me tornando… como você. Humano e cheio de
desejos. Eu preciso que esse anseio desapareça.
— Anseio? — Quase engasgo com a palavra.
— Não me diga que também estou errado nisso — fala, amargo. —
Amor, luxúria, anseio – você não pode modificar meus sentimentos.
Conheço meu coração, Sara, mesmo que seja estranho para você.
Onde fui me meter?
— O que você quer de mim? — questiono.
— Nada! Tudo! Caralho — xinga, o palavrão surpreendente saindo da
boca dele. — Isso é tão confuso.
Estou prestes a falar quando ele me corta.
— Quero sentir o gosto dos seus lábios mais uma vez. Quero te segurar
como fiz na barraca. Não entendo por que quero essas coisas, só sei que as
quero.
Meu rosto aquece. É errado me sentir lisonjeada quando Pestilência está
claramente tendo uma crise existencial? Não? Tudo bem.
— Amor, afeição, compaixão, essas são algumas qualidades redentoras
que sua espécie tem — fala —, e agora estou sendo tentado por elas e isso
está me partindo ao meio.
Já ficou preso em uma situação da qual queria desesperadamente
escapar, mas não achou uma saída? Essa é igual, montada em Trixie Skillz e
ouvindo Pestilência me contar tudo a respeito dos seus sentimentos.
— Posso sentir você se afastando de mim — diz. — Quanto mais quero
de você, mais relutante você é em dar. Eu não sei o que fazer.
Eu sei.
— Pare de espalhar a praga.
Ele ri sem diversão.
— Não posso evitar o que sou mais do que você pode evitar quem é.
Mas será que isso é realmente verdade? Ele me poupou, o que significa
que tem pelo menos um pouquinho de controle sobre sua habilidade letal.
— Estamos presos nesses papéis, você e eu — diz —, e não sei o que
fazer desse tormento.
Ele soa tão desolado, tão desesperançoso. Aperto sua mão. Meu coração
dói outra vez. Esse homem é muito pior do que todos os outros que já
conheci, e ainda assim me sinto esfolada viva por ele. Estico a mão e
inclino sua cabeça para a minha, e depois dou um beijo em seus lábios.
Posso sentir sua doce agonia no beijo. Ele apoia a testa contra a minha.
— Isso é um tormento, Sara — repete. — Mas é o tormento mais doce
que já senti. Não quero que pare.
Eu me odeio um pouco quando digo:
— Não vai parar.

É o meio da noite antes de encontrarmos uma casa. Passamos por uma


cidade, então não é como se não houvesse outras opções, mas guiado por
qualquer força supernatural que o controla, Pestilência não para.
Ao desmontar, semicerro os olhos para observar ao longe. Talvez seja
apenas minha imaginação, mas juro que vejo pontos fracos de luz. Outra
cidade? Com esse pensamento, um medo residual de Vancouver surge.
Ainda posso ouvir os tiros, ver o pânico, e sentir o sangue quente de
Pestilência na minha pele.
O cavaleiro passa por mim, a armadura e armas fazendo um tilintar
abafado ao caminhar até a frente da casa. Ele pega a maçaneta e gira,
quebrando a fechadura sem fazer muito barulho. A porta abre, rangendo.
— Sabe, poderia tentar bater — digo.
— E permitir que seus companheiros humanos peguem suas armas?
Acho que não, querida Sara.
Pestilência entra, sem se importar em disfarçar. Mais para dentro, escuto
sussurros furiosos e depois passos cambaleantes.
— Quem quer que seja — um homem grita —, tem um minuto para sair
da porra da minha casa. Ou vou abrir um maldito buraco na sua cabeça.
Olho para a silhueta de Pestilência.
— Parece que o cara vai pegar a arma de qualquer maneira.
Está escuro demais para ver a reação do cavaleiro, mas já sei que tem
uma expressão sombria. Escuto mais do que vejo Pestilência pegar o arco e
armar uma flecha.
Os passos do homem ficam mais altos ao se aproximar. Ele deve estar
carregando uma lamparina a óleo porque nossos arredores se iluminam
sutilmente. Posso ver uma sala de estar abarrotada com parafernália em
cada pequeno canto.
Assim que o homem chega na entrada, sua lamparina a óleo aparecendo,
o arco de Pestilência solta um pequeno sibilo. Um segundo mais tarde, o
homem na nossa frente solta um grito, derrubando algo pesado – algo que
soa como uma arma.
— Que porra é essa? — berra.
Com mais um som suave, uma segunda flecha é armada no arco de
Pestilência.
— Vá na direção da arma, e minha mira vai ser um pouco melhor.
O homem ergue a lamparina um pouco mais alto, dando uma boa olhada
no cavaleiro. Ele xinga ao reconhecê-lo.
— Dê o fora da minha casa! — o homem ruge.
Dou um passo para trás, a força de suas palavras o bastante para me
empurrar para a noite. Pestilência segura meus braços, mantendo-me no
lugar.
— Vamos ficar — o cavaleiro diz.
— O inferno que vão.
Escuto mais vozes vindas do corredor. Fecho os olhos quando percebo
que é mais uma família. Mais crianças que precisarei assistir morrer. Mais
um par de passos vem na nossa direção.
— O diabo vai dançar no meu túmulo antes que eu hospede você — o
homem diz para Pestilência. Seus olhos deslizam para mim. Ele me dá um
olhar malvado e cruel, como se eu fosse menos do que a sujeira da bota
dele. — Você e sua puta.
No próximo momento, Pestilência dá dois passos até o homem.
Pegando-o pelo pescoço, ele o arremessa na parede, fazendo o gesso ceder.
Uma mulher – claramente a esposa do homem – entra no vestíbulo, um
grito preso na garganta ao ver Pestilência e o marido, que se encontra sob as
garras dele. Ela cobre a boca, os olhos se movendo de volta para o corredor
onde suas crianças estão.
— Uma coisa é você me insultar — Pestilência grunhe, ignorando
completamente a mulher —, outra é insultar ela. — Ele acena com a cabeça
na minha direção. — Um vai ganhar minha raiva, o outro, uma morte
dolorosa. — Ele aperta o pescoço do homem com força o bastante para
fazê-lo engasgar-se. — Entendeu?
— Deem o fora — o homem diz.
Pestilência o balança um pouco.
— Entendeu? — repete, um tom perigoso na sua voz.
O homem olha feio para Pestilência, sua expressão cheia de malícia, mas
segura a língua e concorda. De uma vez, o cavaleiro o solta, e o homem
desaba no chão.
— Agora — Pestilência diz, virando-se para a mulher que ainda está
assistindo tudo isso com as mãos cobrindo a boca —, minha companheira
precisa de comida e uma cama.
— Não temos comida ou camas sobrando — o homem diz, frio, de onde
está deitado, esfregando o pescoço.
Nesse ponto, decido sair da casa. Atrás de mim, posso ouvir mais
ameaças saindo do cavaleiro. Eu só não consigo assistir enquanto
arruinamos a vida de mais uma família. Encontro uma grande pedra nos
limites do jardim da frente e me sento ali até não sentir mais minhas mãos e
meu nariz.
Odeio como sou vista como cúmplice de Pestilência. Posso sentir atração
pelo cavaleiro, mas de jeito nenhum concordo com o que está fazendo. Por
fim, escuto passos pesados vindos na minha direção.
— Tem uma cama e refeição quente esperando por você lá dentro —
Pestilência diz.
Cutuco um pouco de grama com o pé.
— Estou bem.
— Então você vai ficar sentada aqui fora a noite toda? — pergunta,
semicerrando os olhos para as estrelas.
Se meu corpo fosse tão forte quanto minha determinação, ficaria.
— Por que você precisa invadir as casas das pessoas? — ao invés disso
pergunto.
Mesmo quando pergunto, sei que o cavaleiro não faz isso porque quer,
ele faz porque sou eu que precisa de comida e descanso. Sou eu quem ele
paparica, mesmo às custas das suas vítimas.
— O mundo todo é meu — Pestilência diz. — Mesmo a casa desse ogro.
— Ele olha feio para o lugar.
Talvez essa sensação doentia seja culpa de sobrevivente. Ou talvez seja
remorso pela minha lealdade mudando. De qualquer maneira, as palavras
do cavaleiro se embrenham na minha pele. O mundo inteiro é meu. Claro
que Pestilência, o Conquistador, acreditaria nisso.
— Não é o bastante morrer pela sua mão? — falo. — Também
precisamos beijá-la ao deixarmos esse mundo?
Porque isso é essencialmente o que o cavaleiro está fazendo quando
força essas pessoas a fazerem o que ordena.
— Você gostou bastante do ato, até onde me lembro — fala, suave, os
olhos abaixando para meus lábios.
Estou feliz que Pestilência não pode ver o rubor que se espalha pelas
minhas bochechas. Desvio o olhar.
— Você está brava comigo? — ele pergunta.
Suspiro.
— Não. Eu só… isso é um tormento — falo, voltando para as palavras
do cavaleiro mais cedo.
Ele me estuda por vários segundos.
— Venha para dentro — diz, gentil.
Meus olhos se voltam lentamente para ele. Agora quando ele olha para
mim, vejo mais do que apenas um rostinho bonito. Vejo o primeiro
despertar de compaixão em seus olhos.
Isso é novo. Toda minha determinação cede sob o ardor dos olhos de
Pestilência. Ninguém nunca olhou para mim dessa maneira. Levanto-me,
encantada pelo olhar. O fantasma de um sorriso toca os cantos da boca dele
enquanto o deixo me guiar para dentro.
O cavaleiro aprendeu a sentir. Nada de bom pode resultar disso.
Nada mesmo.
CAPÍTULO 27

NICK JAMESON É UM HOMEM MUITO, muito cruel. Ele não


precisava que um cavaleiro aparecesse na sua soleira para isso. A única
qualidade que redime nosso hospedeiro, até onde posso dizer, é que ele ama
sua família, apesar de até isso ser um tipo de amor possessivo e egoísta.
Mais de uma vez, vi os brancos dos olhos dos seus filhos ao darem olhares
rápidos ao pai, e a maior parte do tempo sua esposa mantém a cabeça e o
olhar baixos.
Durante todo o dia seguinte, Nick me observa, seu ódio marcado tão
claramente pelo rosto, os lábios pressionados em uma linha fina. Pestilência
pode ser o homem responsável por espalhar a praga, mas é claro quem Nick
Jameson culpa.
Não vejo nada além daquele ódio até o final da tarde. A mulher de Nick
– Amelia, acho que é seu nome – me encontra do lado de fora, parada do
outro lado da caixa de gelo deles, acariciando Trixie.
— Sara — ela chama, aproximando-se.
Eu paro, minha mão descansando no impressionante pelo branco de
Trixie.
— Sim? — Meus olhos relutantemente vão para ela. O rosto de Amelia
está corado com os primeiros sinais de febre. Como o resto da família, a
praga já está afundando as garras nela.
— Como você… como você acabou na companhia do cavaleiro? —
pergunta, vindo para meu lado.
Viro-me para Trixie, minha mão se movendo pelo pescoço do cavalo
mais uma vez.
— Tentei matá-lo — digo sem emoção. — Ele não morre — acrescento
no caso de Amelia ou Nick terem ideias.
Amelia se aproxima.
— Há quanto tempo foi isso? — ela pergunta.
— Semanas. — Parece que passaram vidas inteiras.
— Como você ainda está viva? — questiona, quase maravilhada.
Meus dedos afundam na crina de Trixie.
— É sua maneira de me punir.
Depois de vários segundos ela diz:
— Então você tentou matá-lo? — Posso ouvir em sua voz um plano se
formando.
Viro-me completamente para encarar Amelia. Seus olhos estão
vermelhos e inchados e suas bochechas tão rosa que parecem ter acabado de
levar um tapa.
— Não vai funcionar — digo.
— O que não…
— Tentar fazê-lo poupar vocês e sua família. Se você acha que ele vai te
salvar da morte como fez comigo, estou aqui para dizer que não vai. Desde
que me sequestrou, ele matou todo mundo que tentou acabar com a vida
dele.
Seus olhos procuram os meus.
— Por que ele te poupou?
Balanço a cabeça.
— Não sei.
Quero dizer, ele continua dizendo que preciso sofrer, mas faz um tempo
desde que me fez sofrer de verdade.
— Então não há esperança? — insiste. — Não tem nenhum jeito de
ajudar minha família?
— Ele não conhece a piedade — falo para ela.
Não conhece? Ele sente ódio, luxúria e anseio, talvez ele tenha se sentido
misericordioso uma vez ou duas…
Amelia esfrega os olhos.
— Não posso assistir meus filhos morrerem — afirma. — Você não
entende? Eu dei vida a eles. Eu os segurei dentro de mim e depois nos meus
braços. Todos esses anos eu os protegi, então se tem uma maneira de salvá-
los, qualquer maneira, por favor me diga.
O pesar mais uma vez me tem em suas garras. Eu me pergunto quando
vou superar isso; quando vou ficar insensível para toda dor e sofrimento a
minha volta. Os olhos dela procuram os meus.
— Teve algo que você fez – um acordo…?
Engulo. Acho que sei aonde ela quer chegar.
— Amelia, se tivesse algo que pudesse fazer, eu faria. — Se dar meu
corpo para o cavaleiro fosse pagar pela vida de alguém, eu faria isso de bom
grado. Mas não vai.
Uma lágrima escapa pelo canto do seu olho. Seguro o braço dela.
— Você precisa entrar...
— De que isso importa? — fala, frustração cobrindo suas palavras.
Ela tem sua lógica, mas não perco tempo em dizer isso. Ao invés disso, a
guio de volta a seu quarto.
— Descanse — digo para ela, demorando-me na porta. Nick não está por
perto. — Vou pegar um copo de água para você e seus garotos.
A casa está assustadoramente silenciosa quando ando de volta para a
cozinha. Se não soubesse da situação, diria que sou a única dentro de casa.
Só quando passo por um dos quartos dos garotos é que escuto um choro
rouco e masculino atrás da porta fechada. Sei, sem olhar para dentro, que é
Nick, partido pelo luto.
Pouco depois de entrar na cozinha, escuto a porta da frente abrir, e então
os passos pesados de Pestilência, com seu uniforme completo. Meu coração
idiota acelera ao som. Essa queimação lenta que sinto pelo cavaleiro é
agonia. Pura e intensa agonia.
Ao pegar copos do armário, Pestilência aparece atrás de mim. Ele tira
meu cabelo do caminho e roça um beijo carinhoso na minha nuca, os lábios
se demorando.
Esqueço o que estava fazendo por um minuto. Um longo minuto.
— Você o deixa tocá-la?
Eu me assusto, quase derrubando os copos de vidro com o som da voz de
Nick. Viro-me, olhando para além do cavaleiro. Nick está parado do outro
lado da cozinha, os olhos brilhantes com o começo da febre. Há muito nojo
na expressão dele.
Com relutância, meu olhar vai para Pestilência que, pela primeira vez,
não está com a expressão estoica costumeira. O cavaleiro parece vulnerável,
sincero e até mesmo um pouco inseguro de si mesmo.
Ele encontra meus olhos e vejo que ele acha que fez algo errado. Isso me
afeta. Toco o rosto dele.
Está tudo bem, quero falar para ele.
— Inacreditável para caralho.
Agora meus olhos voltam para Nick. Ele pode estar doente e fraco, mas
está lúcido o bastante, e há muito ódio nos olhos dele.
— Pensei que talvez você estivesse apenas fodendo a aberração — fala
—, o que é ruim o bastante…
Pestilência dá um passo a minha frente.
— Você está andando em uma corda bamba, Nick — fala, cortando o
homem. — Espero que não tenha esquecido minhas palavras.
Nick me dá um olhar que diz que o assunto está longe de acabar, e então
recua para o corredor. Respiro fundo. Preciso voltar lá para levar água para
sua esposa e filhos, o que significa que vou precisar interagir com o homem
outra vez.
— Toda vez que você abala minha crença na perversão humana, um
homem como aquele invariavelmente me lembra exatamente porque preciso
eliminar sua espécie — o cavaleiro diz.
Tenho várias objeções para isso, mas não dou voz a nenhuma.
— Deveríamos ir, Pestilência — digo no lugar. — Não pertencemos a
esse lugar.
Não você não pertence aqui, mas nós.
— Não, Sara. Ficamos até o ato estar terminado.
Ele quer que você sofra, mesmo agora, depois que cuidou dele, o
segurou, o beijou.
— Então é assim? — pergunto.
— Você é minha prisioneira.
Que tola você é, Burns, se importar com alguém que tem tão pouca
consideração com você. O que sinto por esse homem é agonia. Terrível e
devastadora agonia. Viro-me para encarar Pestilência.
— Se é assim que as coisas são, então mantenha suas mãos e boca para
si mesmo.
Pestilência é o inimigo. Nunca posso esquecer isso.
CAPÍTULO 28

DUAS NOITES MAIS TARDE, UMA mão muito quente pressiona


minha boca, acordando-me.
— Sem nenhuma palavra — uma voz rude comanda.
Pisco os olhos de forma grogue. O que está acontecendo? Aperto os
olhos para a escuridão, esperando identificar as impressionantes feições de
Pestilência. Mas é outro homem que olha feio para mim, seu rosto mais
rude, redondo, e francamente, mais feio do que o do cavaleiro.
Sinto o toque frio do metal sob minha mandíbula.
— Levante — Nick ordena, sua voz baixa.
Minha mente está tentando furiosamente entender o que está
acontecendo. Arma. Nick. Acordando-me no meio da noite. Jogo o cobertor
de lã surrado para o lado e me levanto do sofá com cuidado. Ele me
empurra para frente, pela sala de estar e na direção da porta que leva para o
quintal dos fundos.
— Saia, em silêncio.
Medo estremece meus ossos, mas a emoção é muito fraca. Sobrevivi por
muitos incêndios para temer a morte. A única coisa que me mantém
seguindo na direção da porta é a preocupação ridícula que os filhos ou a
esposa de Nick possam ser arrastados para o meio disso – ou precisem
testemunhar isso.
Atrás de mim, em um dos quartos a distância, escuto uma tosse forte e
molhada. Eles têm preocupações o bastante como estão.
Deixo Nick me guiar para fora, meus pés descalços ficando dormentes
ao andar sobre neve fresca. Mais flocos caem, beijando meu rosto e
embaraçando no meu cabelo. Na minha frente, não há uma cerca para
separar o quintal de Nick da floresta densa que o cerca. Posso identificar a
caixa de gelo e a área onde Trixie estava preso mais cedo. O cavalo não está
aqui, mas provavelmente com seu cavaleiro – que não vejo desde o jantar.
Nick me empurra para frente com o cano da arma.
— Continue andando.
Se esta noite acontecer de acordo com os planos desse cara, sei como vai
acabar. Nick e eu vamos caminhar pela floresta e apenas um de nós vai sair.
Não vou deixar isso acontecer.
— Onde está Pestilência? — questiono.
— Quer dizer seu namorado? — fala, sua voz pingando malícia. Nada e
ninguém no mundo pode tirar o ódio desse homem.
— Ele não é meu namorado.
Só preciso enrolar até chegar na floresta. É difícil atirar em alguém com
uma árvore no caminho.
— Não? — Nick fala, fingindo surpresa. — Então você está apenas
prostituindo seu corpo para aquela coisa para comprar um pouco de tempo
para si?
A família desse cara está à beira da morte, e ele está preocupado com
minha vida sexual?
— Sabe, nem o culpo tanto assim — Nick continua atrás de mim. —
Quem não iria querer pegar uma gostosa, se pudesse? Mas você — fala
acusadoramente —, foi você que virou as costas para sua própria maldita
espécie quando começou a dar para aquele monstro.
Nem me importo em dizer para ele que não estou dando para aquele
monstro. A verdade não vai me salvar.
— O que você pode possivelmente esperar conquistar ao me matar? —
pergunto, passando pelo primeiro dos pinheiros que cercam a propriedade.
Mal posso sentir os pés a essa altura. Preciso fazer algo, e logo.
— Vingança pela minha família.
Ergo minhas sobrancelhas apesar de ele não poder ver a reação. Sei que
o cavaleiro gosta de me beijar, mas duvido que minha morte o abalaria tanto
assim.
— Pestilência não vai se importar — falo. — Você vai me matar por
matar.
A bota de Nick colide com minhas costas, fazendo-me esparramar na
neve. Qualquer chance que eu tinha de escapar, desapareceu. Meus pés
estão frios demais, meu corpo muito exposto. Desperdicei o tempo que
tinha conversando com esse homem raivoso.
— O que é mais uma morte? — pergunta, olhando para mim. —
Estamos todos morrendo aqui mesmo, porra. Vou ficar feliz de livrar o
mundo de uma puta traiçoeira.
Até agora, o cavaleiro, a praga, os eletrônicos morrendo, nada disso
pareceu apocalíptico de verdade. Nem mesmo ver aquelas cidades vazias
que Pestilência e eu passamos, seus ocupantes escondidos. É neste
momento, deitada na neve e com uma arma nas costas, que compreendo.
Esse é realmente o Fim dos Dias. Porque mesmo com todas as dificuldades,
no mundo onde cresci, não nos virávamos uns contra os outros. Não assim.
Viro-me e encaro a espingarda. Nick puxa a trava de segurança,
colocando uma bala no receptáculo. Merda, ele realmente vai fazer isso.
Há mortes piores do que ferimentos a bala, penso, encarando o cano.
— Abaixe a arma. — A voz estoica vem da floresta atrás de mim.
Nick e eu olhamos por cima do meu ombro. Parado em um feixe de luz
da lua, parecendo como nunca como uma divindade, Pestilência segura o
arco preparado, sua coroa brilhando na luz fraca. Nick reajusta a arma nas
mãos.
— Salve minha família e eu a deixarei ir.
— Não faço barganhas com mortais. — Pestilência dá um passo à frente,
sua mira sem fraquejar.
— Fique longe! — Nick grita. — Se quer que ela sobreviva, mantenha a
distância, cavaleiro!
Está tudo acontecendo de forma errada, como uma linha solta desfiando
a roupa.
— Te garanto, não vou.
Eu respiro fundo para me firmar. Só olhar para o porte calmo do
cavaleiro me acalma.
— Vou atirar nela! — Nick ameaça, a raiva se transformando em pânico
enquanto seu momento de vingança escapa por entre os dedos.
— Faça por sua própria conta e risco.
Meus olhos vão para Nick, e vejo o momento que ele decide que me
matar ainda é a melhor opção. Não vejo seu dedo puxar o gatilho. O ar se
move ao lado da minha orelha e então… BOOM!
Meu corpo todo estremece com o som. Meu Deus.
Minha mão vai para meu peito. Mas a dor que espero nunca vem. Só
depois que puxo várias respirações assustadas que percebo que não fui
atingida.
Tump. Tump—tump—tump.
Mais rápido do que posso reagir, o corpo de Nick parece dançar ao ser
cravejado de flechas. Ele grunhe, derrubando a arma e caindo de joelhos.
Seus dedos vão para o peito, onde as flechas saem. Olho por cima do ombro
para Pestilência, que está caminhando na nossa direção, seu rosto cheio de
determinação severa.
— Ela não é sua para matar — declara.
Virando-me, engatinho até Nick e empurro a espingarda para longe do
seu alcance. Meus olhos se movem para seus ferimentos, e meu treinamento
de paramédica entra em ação. Não importa que tenho um forte ódio por
Nick; começo a analisar seus ferimentos.
— Não… me toque… puta da praga. — Nick fala entre respirações
laboriosas. — Você não é nada além… de uma maldita… puta.
Escuto a tensão de uma corda em madeira e quando olho para cima,
Pestilência tem mais uma flecha já preparada, a ponta fixa em Nick.
— Deixei suas palavras venenosas passarem da primeira vez — o
cavaleiro diz —, mas não uma segunda.
Nick arfa uma respiração, o som molhado.
— Você e eu… sabemos… que é verdade. Quantas vezes… ela
precisou… chupar seu… pau antes…
A flecha o atinge no ombro com um barulho firme. Ele solta um grito
embaralhado.
— Teste-me mais uma vez, humano.
— Faça — Nick provoca. — Seria uma… morte mais… rápida do que…
você deu para… minha família.
— Não — falo para o cavaleiro. Ele impediu que Nick atirasse em mim.
Ele não é mais nenhum tipo de ameaça.
Pestilência anda até o homem e olha para ele, a flecha ainda apontada.
— Se conheço qualquer misericórdia — fala —, a culpa é de Sara.
Se conheço qualquer misericórdia, a culpa é de Sara. Apenas dias atrás
disse para Amelia que o cavaleiro era incapaz de sentir isso. Você o está
mudando assim como ele está te mudando.
Nick deve desejar a morte porque diz:
— Vai se foder e essa vadia…
A última flecha rasga a garganta de Nick, e agora ele está se engasgando
com suas palavras, afogando nelas.
— Humano vil — Pestilência diz, pairando sobre o moribundo. — Você
poderia ter passado suas respirações finais implorando por sua família, mas
vejo apenas ódio em seu coração.
Não posso ouvir o que Nick diz, mas duvido que o que murmurou para o
cavaleiro seja particularmente gentil. Leva menos de um minuto para Nick
sangrar até a morte, e ele deixa o mundo com ódio nos olhos. Meus ombros
caem com a exaustão.
Pestilência joga o arco sobre o ombro e ajoelha ao meu lado, suas mãos
passando pelo meu corpo.
— Você está machucada? — ele pergunta, preocupado.
Balanço a cabeça, levantando-me.
— Estou bem.
O cavaleiro me pega pelo braço.
— Eu estava errado, Sara, essa casa amaldiçoada não é lugar nem
mesmo para minha fúria. Venha. — Ele me guia para Trixie.
Olho para o cavalo, e depois para meus pés congelados.
— Hm, preciso de sapatos… e meu casaco… e um sutiã. E todo o resto.
Pestilência olha para mim, dos meus pijamas emprestados até meus
dedos dos pés. Juro que posso vê-lo encaixar as peças do que aconteceu –
como fui tirada da cama e levada para a mata para uma execução à meia-
noite.
Ele compreende que Nick queria me matar para machucá-lo? Ele
entende motivos humanos bem o bastante para associar isso? E se Nick
tivesse sido bem-sucedido, o cavaleiro teria sequer se importado com minha
morte?
Sem outra palavra, Pestilência me pega no colo. Grito em protesto ao
balançar nos seus braços.
— O que você está fazendo?
— Te ajudando — fala, carregando-me de volta para a casa.
Ele me coloca no chão na sala de estar, onde o fogo não é nada além de
brasas que morrem. Ajoelhando na minha frente, pega meus pés e, um de
cada vez, massageia até aquecê-los.
— Por que você está fazendo isso? — pergunto, observando-o com
cuidado.
Ele balança a cabeça, mas não me responde.
Depois que estou aquecida mais uma vez, pego minhas roupas e as
coloco. Durante todo o tempo, o resto da casa está completamente em
silêncio.
Partimos pouco tempo depois. E apesar de ser o meio da noite, e a neve
estar caindo com mais força, estou tão aliviada – por estar viva, por estar
deixando essa casa, por sentir Pestilência nas minhas costas, seu braço me
segurando firme.
Mal chegamos na rodovia quando Pestilência puxa as rédeas, fazendo
Trixie parar. Olho em volta com confusão.
— O que estamos…?
Pestilência inclina minha mandíbula e então sua boca colide com a
minha, seu outro braço me apertando contra ele. É o beijo de um homem
desesperado. Como se estivesse tentando me inalar para dentro de si.
Qualquer falta de jeito inicial que tinha com o ato desapareceu, trocada por
ferocidade.
Ele eventualmente se afasta, lábios inchados. Os olhos azuis de
Pestilência estão iluminados.
— Você chegou… perto demais da morte para meu gosto.
É como se ele só estivesse processando isso agora. E aqui está a resposta
para minha pergunta mais cedo – minha morte teria afetado o cavaleiro.
Discretamente, pressiono a mão no meu coração acelerado. Significo algo
para ele. Que choque. Ele desvia o olhar para o horizonte, faz um som com
a língua e retomamos nosso ritmo acelerado mais uma vez.
— Quanto tempo você planeja me manter prisioneira? — É quase uma
pergunta hilária, considerando como nossos papéis se tornaram confusos.
Pestilência está quieto. Olho para cima, só para vê-lo olhar para mim,
seus olhos profundos.
— Até minha tarefa estar completa, você e eu iremos cavalgar juntos —
fala.
Até sua tarefa estar completa. É uma afirmação tão simples, mas engloba
uma vasta e quase inimaginável missão à nossa frente. Viajar pelo mundo
inteiro no lombo de um cavalo, assistindo milhões sucumbirem à praga.
Quantos meses levaria? Quantas pessoas precisarei ver morrer antes da
minha mente se partir? Quantos encontros mais com a morte precisarei
encarar?
Seria insuportável.
— Então vou viajar o mundo todo?
— Sim. — Ele parece satisfeito.
Vou morrer. Não pelas mãos de Pestilência, mas vai existir alguém em
alguma cidade que vai fazer o que Nick não conseguiu. Sempre foi esse o
plano, Sara. No momento que você tirou aquele fósforo queimado, você
soube que era uma mulher morta. Não fique com remorso agora. Claro,
minha existência persistente me incomoda quase tanto quanto minha morte
iminente.
Procuro seu rosto na escuridão.
— De todas as pessoas cujo caminho você cruzou, por que escolheu a
mim?
Ele fica quieto por um longo tempo. Tão longo, na verdade, que suponho
que não vai responder. Só quando estou prestes a virar para frente que o faz.
— Senti a mão de Deus me mover para te poupar — fala.
A surpresa me atinge como uma onda. Imaginei que ele pudesse me dar
sua história sobre fazer um exemplo de mim. Mas isso… Deus disse a ele
para me poupar. Não tenho ideia de como me sentir sobre isso.
Ele franze o nariz.
— Pensei… vim para esse mundo para desferir Sua ira, mas naquela
noite, e em todas desde então, eu me perguntei…
Espero Pestilência terminar a frase, mas dessa vez o silêncio se prolonga
até eu perceber que não terei algo mais. É muito mais do que ele me deu no
passado, então vou aceitar.
— Como é Deus? — questiono.
— Esse não é um assunto que posso discutir com mortais.
Claro que não.
— Bom, então pode pelo menos me contar como é? — peço.
— Como é o quê? — A mão de Pestilência se move de forma que ele
agora está segurando meu braço, seu polegar fazendo círculos na minha
pele.
— Não sei… a morte. O Grande Além. — Estico a mão para pegar um
floco de neve.
— Seria mais fácil explicar a visão para um cego — Pestilência
responde. — Não pode ser entendido apenas por descrição; deve ser
experimentado.
Qual o uso de ter um cavaleiro por perto se ele não vai responder
nenhuma das perguntas divertidas? Deixo minha mão cair no meu colo.
— Pode pelo menos me dizer se humanos têm almas ou não?
— Claro que humanos têm almas, Sara. — Posso ouvir a diversão na sua
voz. — Eu não estaria aqui se não tivessem.
A mão de Pestilência volta para seu lugar de sempre – pressionada
contra minha barriga – consigo ver o anel que usa no dedo indicador, uma
pedra redonda e escura no meio. Não é a primeira vez que percebo que tem
muito mais nesse homem que desconheço completamente, apesar de beijá-
lo, dormir com ele, viver e cavalgar com ele.
Da forma mais gentil que posso, passo a mão sobre seu anel. Seus dedos
flexionam com o toque.
— Me conte sobre sua vida — falo, distraída, ainda focada no anel e na
mão que o usa.
— O que tem para contar? — A voz de Pestilência retumba atrás de
mim.
— Não sei, me conte uma memória. — Qualquer coisa para conhecê-lo
para que não seja apenas um cavaleiro de outro mundo.
— Minhas memórias te perturbariam — fala, seco.
Em oposição a minha realidade onde pessoas morrem de jeitos
torturantes e dolorosos?
— Ainda quero ouvi-las.
Ele respira fundo. Não sei como o faz, mas consegue fazer algo tão
simples como inalar o ar parecer feito com relutância.
— O que você quer saber? Devo te contar sobre as primeiras cidades dos
homens? Lembro de acordar, minha atenção presa nas suas tentativas de se
elevarem das outras criaturas. Eu os vi desviar água de rios e plantar as
primeiras safras. Eu os vi construir casas rústicas e domar feras selvagens.
Admito, fiquei maravilhado com a visão do homem moldando a natureza
em algo agradável, algo que ele pudesse usar.
Depois vieram as cidades e municípios, reis e leis. O mundo se movia
mais rápido conforme o homem construía, criava, inovava e conquistava.
Estive presente para ver tudo isso, e estive aqui desde então.
“Parei em bazares antigos, andei por centros de cidade, demorei-me em
castelos e becos, e tudo entre eles. Fiquei em milhares de casas diferentes e
beijei a fronte de incontáveis humanos e me deitei com cada um.
“Eu vim para a Terra e a toquei, e o mundo conheceu o terror.”
Jesus.
— Sou Pestilência e minha memória é mais antiga do que a história
registrada – é mais antiga do que o homem. Vim antes dele e, querida Sara,
vou sobreviver ao seu fim.
CAPÍTULO 29

AINDA ESTÁ ESCURO QUANDO PESTILÊNCIA para Trixie na


frente de outra casa. Apenas a visão dela faz meu coração acelerar. Não
quero encarar outra família tão cedo. O cavaleiro desmonta do corcel.
— Espere aqui — ordena.
Ele vai até a casa escura, abrindo o portão para o quintal lateral antes de
desaparecer de vista. Acaricio o pescoço de Trixie enquanto espero o
cavaleiro. O que ele possivelmente poderia estar aprontando agora? Um
minuto depois, a porta da frente se abre e Pestilência caminha até mim.
— Vamos ficar aqui esta noite — fala.
Pulo de Trixie e o sigo desconfiada para dentro da casa. Só quando sinto
o cheiro de lixo que ficou muito tempo exposto que percebo que o lugar
está vazio. Meus músculos relaxam. Vou para um interruptor e acendo.
Acima de mim, a luz de entrada oscila para a vida. Eletricidade. Vitória.
Timidamente, começo a explorar a casa, acendendo e apagando as luzes
aqui e ali ao passar. O lugar é um altar para tralhas, montes delas estão
empilhadas em todos os cantos. Revistas e frascos de remédio velhos, livros
danificados pelo tempo e roupas comidas por traças – tudo isso empilhado
em montes precários.
Aposto que quem vivia aqui precisou ser praticamente arrastado da sua
casa quando as ordens de evacuação foram dadas. Ninguém passa tanto
tempo acumulando tranqueira só para deixar tudo para trás.
Franzo o nariz para o cheiro pungente no ar. Não é apenas lixo velho,
também tem o cheiro de animais. Vou para a cozinha, onde encontro várias
tigelas de alumínio, uma cheia com água e o resto, vazias. Mistério
resolvido. O proprietário tinha um cachorro ou três.
Pestilência se levanta de onde estava sentado na frente da lareira,
abanando as mãos com um fogo crescente atrás de si. Com as costas
iluminadas pelas chamas, ele parece formidável e talvez um pouco sinistro.
Pega seu arco e aljava de onde os deve ter colocado de lado e passa por
mim.
— Durma, Sara — fala por cima do ombro. Seu tom tão brusco que, se
não tivesse me beijado pouco tempo atrás, diria que o deixei bravo.
— Aonde você está indo? — pergunto, inquieta com a ideia de ele sair.
Ele para, virando-se para olhar para mim.
— Patrulhar a região — diz. — Sempre tem humanos me caçando. Eles
espreitam nas horas silenciosas para lançar suas armadilhas.
— É onde você estava antes, quando Nick…
O rosto de Pestilência escurece com a lembrança.
— Infelizmente essa noite eu não vi o perigo bem na minha frente.
Acho que é sua maneira estranha de pedir desculpas. Mordo a bochecha
e aceno com a cabeça.
— Bom… tome cuidado. — As palavras soam terrivelmente estranhas.
Por que sequer quero que meu captor inumano e imortal tome cuidado? O
que possivelmente poderia acontecer com ele? Pestilência hesita, sua feição
suavizando com minhas palavras.
— Não posso morrer, Sara — fala, gentil.
— Ainda pode se machucar.
Sério, de onde todo esse sentimentalismo está saindo? O canto da sua
boca se curva para cima.
— Juro que farei meu melhor para não me machucar. Agora descanse.
Sei que precisa.
Eu preciso. Meu corpo parece chumbo agora que o resto da adrenalina
está finalmente saindo do meu organismo. Depois que Pestilência sai, olho
em cada quarto. Tem duas camas, posso usar ambas, mas tem algo nelas que
é intensamente desagradável. Talvez seja o cheiro forte de cachorro saindo
delas, ou as pilhas mofadas de roupas velhas, pratos quebrados e bonecas
desgrenhadas que estão à sua volta. Não quero dormir em nenhum desses
quartos.
Pego alguns cobertores que encontro dobrados no sofá e me deito na
frente do fogão a lenha. Depois da noite que tive, pensei que ficaria horas
acordada, repassando aqueles minutos fatídicos na floresta atrás da casa de
Nick. Mas assim que me deito, pego no sono.

Não sei por quanto tempo durmo, só que sou acordada pelo som de
passos. Vai te matar. Ele vai te matar. Uma onda de medo alaga meu corpo,
e me mexo para me sentar, forçando os olhos a focar no barulho. Pestilência
vem até mim, uma toalha na sua cintura.
— Fique calma — diz, ajoelhando ao meu lado. Ele coloca uma mecha
do meu cabelo castanho atrás da minha orelha. — Sou eu.
É apenas Pestilência, o único ser que o resto do mundo teme. E a visão
dele me traz uma quantidade vergonhosa de alívio.
— Foi um dia longo. — Respiro trêmula e profundamente.
O cabelo molhado do cavaleiro pinga entre nós e regatos de água cortam
o peito dele. Sinto uma onda de calor com a visão de sua pele nua. A luz do
fogo acaricia cada vale e curva e, não pela primeira vez, percebo o primor
da sua forma. Suas maçãs do rosto altas e lábios carnudos parecem mais
exagerados conforme as sombras dançam por eles. E então há o resto dele,
que é tão distintamente masculino, dos seus ombros poderosos e esculpidos
até seus grossos e delineados braços.
Meus olhos vão para baixo, onde o peitoral definido abre caminho para o
abdômen trincado. Mas é impossível olhar para seu torso sem prestar
atenção nas marcas estranhas e incandescentes que brilham na escuridão,
iluminando a pele em volta.
Estico a mão e passo os dedos sobre as letras que curvam em suas
clavículas como um colar. Elas brilham como fogo dourado, sua forma
estranha e bela. Sob meu toque, a pele de Pestilência se arrepia. Ele fica
imóvel, deixando-me explorar o seu corpo.
— O que é isso? — pergunto. É obvio que é escrita, mas é uma
linguagem diferente de tudo o que já vi.
Ele olha para mim, seus olhos iluminados.
— Meu propósito, escrito na pele.
O cavaleiro coloca uma mão sobre a minha, prendendo-a contra um dos
símbolos. Guiando minha mão com a dele, me faz traçar a marca.
— Essa significa “sob ordem divina” — explica, soltando minha mão.
Ergo a sobrancelha para ele antes da minha atenção voltar para seu peito.
Movo a mão sobre vários caracteres, parando em um que está à esquerda do
seu coração.
— E esse? — pergunto.
— Sopro de Deus.
Traço a palavra. Sob meu toque, a pele de Pestilência se arrepia.
— Que linguagem é essa? — pergunto.
— Uma divina. — Seus olhos estão em mim, seguindo meus
movimentos. Se tivesse um pouco mais de coragem, minha mão desceria
mais, onde outra faixa de desenhos circula seu quadril, o símbolo mais
baixo sumindo por debaixo da toalha. Mas eu não tenho essa coragem.
— Você pode pronunciá-la? — pergunto.
Sua mão pressiona a minha mais uma vez, segurando minha palma
contra seu coração.
— Sara, é minha língua nativa.
Encaro a escrita com fascínio. Sinto uma presença na sala escura. Está
bem próxima. Posso ver no fundo do olhar firme do cavaleiro, e posso
sentir na própria batida do coração dele. Volto a fitá-lo nos olhos.
— Diga algo para mim.
Seus olhos brilham.
— Não posso — fala, gentil. — Falar a língua divina é impor a vontade
divina no mundo.
Puxo a mão, afastando-me dele.
— Não é isso o que você já está fazendo? — De que outra forma deveria
interpretar Pestilência cavalgando pelo mundo e espalhando sua praga?
Ele se inclina para frente, parecendo lupino e feral ao se aproximar.
— O que é dito não pode ser inaudito. Não é para ouvidos mortais.
Mas… não estou acima de compartilhar uma palavra ou duas com você.
Esqueço de respirar conforme sua própria respiração cobre minhas
bochechas, seus lábios – e o resto do seu corpo quase nu – tão, tão
próximos.
Bem quando penso que vai compartilhar uma dessas palavras sagradas
ele diz:
— Volte a dormir. Vou cuidar de você.
Não quero dormir, não quando ainda sinto o toque da pele macia dele
sob meus dedos, marcada com figuras estranhas e divinas. Estou
insuportavelmente solitária, meu corpo dolorido pela ausência de um
parceiro, e maldito seja, mas o parceiro que eu quero é ele. Eu o quero.
Inteiro. Em mim, à minha volta, ao meu lado, enchendo minha cabeça,
corpo, vida – e isso é tantos tipos diferentes de perturbação, e estou tão
cansada disso, tão cansada de me sentir dividida.
Pestilência se levanta, afastando-se para os cantos escuros da casa.
Quase o chamo. Seria tão fácil persuadi-lo até mim, remover a toalha e
puxá-lo para baixo e sentir seu peso se acomodar sobre mim.
Para minha vergonha, não é minha lealdade com a humanidade que me
impede de chamá-lo de volta. É o medo profundo de que possa recusar
minhas investidas. Tem um limite de situações de merda que uma garota
pode aguentar em um único dia.
CAPÍTULO 30

A BOA NOTÍCIA: ESSA CASA VEM COM um estoque de todo tipo


de comida que o homem pode imaginar. A má notícia: parece que tudo
venceu há sete anos. É o que ganhamos por invadir a casa de um
acumulador. Pelo menos tem café – e creamer em pó.
Bebo minha xícara vorazmente enquanto estou sentada na cozinha, o
lugar amontoado de pratos sujos, correspondência e mais alguns vidros de
remédio vazios.
Olho para fora da janela, observando o quintal com a fina camada de
neve, aquecendo as mãos na caneca que seguro. Meu olhar vaga da janela
para a pilha mais próxima de tralhas. Descansando em cima dela está um
panfleto com um desenho de Pestilência.

Aviso! Pestilência está vindo!

As palavras estão estampadas em vermelho. Sob elas, em tamanho


menor, está um parágrafo detalhando seus movimentos e encorajando os
residentes a evacuarem, de preferência por pelo menos uma semana. Viro a
página e quase engasgo. Olhando de volta para mim, está meu rosto. Não é
muito fiel; tem a mesma aparência de retratos falados policiais. O rosto é
mais largo, bochechas mais cheias e o queixo mais pontudo, mas ainda sou
eu.

Viajando com uma Mulher Misteriosa!


O parágrafo abaixo diz que, apesar de evidências sugerirem que sou
prisioneira de Pestilência, é provável que esteja trabalhando para ele, e para
manter distância. Por último, a página tem um mapa da América do Norte,
com uma linha vermelha desenhada pela costa Leste antes de atravessar o
Canadá, que termina com a ponta curvada para baixo, sugerindo que o
cavaleiro e eu estamos descendo a Costa Oeste, o que parece certo o
bastante.
Atrás de mim, a porta abre, chamando minha atenção. Afasto o papel
para longe.
Provável que esteja trabalhando para o cavaleiro. O aviso se repete na
minha cabeça várias vezes, e me sinto uma traidora em cada pedaço do meu
corpo. Porque o panfleto acertou em cheio a minha situação, não é mesmo?
— Sara! — Pestilência clama, seus passos pesados a caminho da
cozinha.
Ele sorri quando os olhos pousam em mim, a expressão tão estranha e
incrível que mesmo no humor que estou meu coração balança com a visão.
— Sabia que te encontraria aqui — fala.
Respondo com um sorriso sem graça. Demora apenas alguns momentos
para ver que estou incomodada. Seu sorriso some.
— Qual é o problema?
Deveríamos ser inimigos, mas apesar de tudo, meio que gosto de você.
Ah, e o resto da humanidade também descobriu essa parte. Balanço a
cabeça.
— Apenas… cansada.
Ele vem até mim, vestido com todos os seus apetrechos. Não existe nada
como ver Pestilência vestido com todos os seus adornos para fazer uma
garota se sentir como uma carcaça há três dias na beira da estrada.
Ele se inclina, estudando meu rosto, e pressiona um polegar bem abaixo
do meu olho.
— Você está ficando exausta — ele percebe.
Apague isso – carcaça de sete dias na beira da estrada. Estamos falando
dos pedaços perturbadores das criaturas que permanecem grudados no
asfalto muito tempo depois de morrerem.
— Todo esse cavalgar cobrou o preço— admito.
O estresse, os dias longos presa na sela, minhas feridas que se
acumulam, o frio implacável do inverno, as refeições incertas – fiz o melhor
para aguentar, mas só preciso que Pestilência perceba isso para tudo voltar à
minha consciência.
Exaustão provavelmente não vai ser o que vai te matar, eu me lembro.
Pestilência faz uma careta.
— Então você vai descansar. Vamos permanecer aqui por… — Ele olha
pela janela, vendo o sol fraco de inverno. — Mais dois dias.
Não tenho coragem de dizer para ele que mais dois dias não vão fazer
muita diferença. Que não fizeram muita diferença. Sempre que paramos,
passamos alguns dias assim. Nunca vai ficar mais fácil com Pestilência. Por
mais que ele se importe, sempre vai ser impérvio para as coisas que vão me
matar, e por isso ele sempre vai me forçar mais do que sou capaz.
Mas não falo essas coisas. Ao invés disso, concordo e dou outro sorriso
fraco. Sua carranca aumenta.
— Não gosto desse olhar — fala, estudando minhas expressões. — Você
mente com o rosto. Precisa de mais tempo? Três dias? Quatro? Você vai ter
– apenas remova esse olhar triste e derrotado. Não posso aguentar.
Acho que ninguém nunca me disse nada de forma tão genuinamente
franca e gentil. Por impulso, o puxo para mim, abraçando forte o cavaleiro.
No começo, ele fica tenso, mas conforme os segundos passam, ele me
envolve com os braços, hesitante, e me sinto totalmente engolida por ele.
— Você é um bom homem, Pestilência — admito.
E aí está o meu problema. Ele não é um homem bom, não é um homem
de paz, mas ele é um bom homem. Fecho os olhos e respiro seu cheiro. Ele
cheira a sabonete barato, e sob isso, divindade. (Nem sabia que alguém
podia literalmente cheirar a divindade, mas aí está.)
Seus lábios roçam minha orelha.
— Você esquece, não sou um homem, Sara.
Uma risada me escapa.
— Tudo bem. Você é um bom mensageiro do apocalipse.
Ele me segura mais forte, sua bochecha raspando minha têmpora.
— E você é uma mulher compassiva. — Sinto-o tocar uma mecha do
meu cabelo com um dedo. — Compassiva demais, para ser honesto — fala
baixo.
Sinto algum consolo no fato que, o que quer que seja que estou
começando a sentir, Pestilência também está sentindo isso. E podemos os
dois estar detonando nossa moral, mas pelo menos estamos fazendo isso
juntos.

Acabamos deixando a casa dois dias depois. Esse foi o tempo que
consegui aguentar naquele lugar bagunçado. Não sou um exemplar de
limpeza, mas aquela casa… mesmo agora, a quilômetros de distância,
minha pele se arrepia com a lembrança.
Sou tirada dos meus pensamentos quando avisto uma placa na nossa
frente. Depois de fugirmos de Vancouver, viajamos a maioria do tempo por
estradas secundárias e lugares fora do comum, mas inevitavelmente,
Pestilência fez o caminho de volta para as rodovias principais. E agora vejo
algo que não havia percebido.
Respiro fundo.

Seattle, 86 quilômetros.

— O que é? — Pestilência pergunta.


— Estamos na América.
Em algum lugar entre Pestilência ser atacado em Vancouver e meu
próprio encontro com a morte alguns dias atrás, nem havia percebido que
mudamos de país.
— Ah, América — Pestilência diz com desgosto, arrastando-me de volta
para o presente. — Aqui eles são particularmente maldosos.
Uma onda ridícula de medo passa por mim com isso.
— Pestilência, precisamos sair da estrada principal.
— Por quê? — pergunta, genuinamente curioso.
Ainda posso sentir a sua cabeça em ruínas, embalada no meu colo. Não
estou pronta para passar por isso outra vez.
— Tem uma cidade grande se aproximando — falo. — Maior do que a
última. — Tinham dúzias de pessoas esperando por Pestilência em
Vancouver; quantas mais teriam em Seattle? — Vamos desviar.
— Não vou ser afugentado do meu caminho pela presença de humanos.
É a última coisa que fala desse assunto. Meu temor aumenta conforme
chegamos na metrópole. Algo ruim vai acontecer. Posso sentir assim como
você sente uma tempestade chegando; o próprio ar está cheio disso.
Como Vancouver, a entrada na cidade é gradual. Primeiro passamos por
uma cidade satélite sonolenta, que abre caminho para outra que é um pouco
mais densa. E depois mais uma. Uma onda de déjà vu passa por mim
quando andamos pelos mesmos tipos de comunidades de Vancouver.
O braço de Pestilência aperta minha cintura. Ele também pode sentir? A
promessa de violência que dá sabor ao próprio ar. Puxo o casaco de
encontro ao meu corpo. Quanto mais viajarmos para o sul, mais vai piorar.
Portland, São Francisco, Los Angeles… O pesadelo que encontramos em
Vancouver vai se repetir várias e várias vezes. E mesmo depois de
passarmos pela Costa Oeste, tem outros países inteiros para atravessar.
As sombras estão apenas começando a esticar seus dedos finos pela terra
quando Pestilência deixa a rodovia, guiando Trixie para um bairro de casas
com aparência cansada que parecem como se tivessem se acomodado nos
seus ossos velhos para um longo descanso.
Pestilência vira Trixie no acesso à garagem de uma casa escura, os
cascos do cavalo estalando contra o concreto rachado. A tinta verde pálida
do lugar parece gasta e desbotada pelo tempo.
Cavalgamos direto para a porta antes de Pestilência desmontar. Pegando
a maçaneta, ele gira, quebrando a tranca e empurrando a porta aberta. Só
percebo o brilho difuso de uma lamparina a óleo vindo de dentro quando
desmonto Trixie Skillz, a chama mantida o mais baixo possível. Reclinando
no sofá ao lado dela está uma velha mulher, seu cabelo branco cortado rente
à cabeça, seus óculos apoiados baixo no nariz. Ela olha por cima deles para
nós, o livro nas suas mãos completamente esquecido.
Nós invadimos a casa da vovó de alguém. Bem quando pensei que
havíamos deixado os horrores para trás, mais um chega.
— Não temos nada de valor, te garanto — ela diz, sua voz
surpreendentemente firme para alguém que acha que sua casa está sendo
invadida.
— Não estou aqui pelas suas coisas — Pestilência fala. — Estou aqui
pela sua hospitalidade.
A mulher aperta os olhos para o cavaleiro, curiosa. Colocando o livro de
lado, ela se levanta. A idade a fez suave e gordinha, mas tem uma certa
força silenciosa nela.
— Ruth — uma voz rouca e fraca chama de outro aposento na casa —,
quem está na porta?
Ele perdeu a parte que invadimos a casa deles? O olhar de Ruth
permanece em Pestilência por um longo tempo, indo do seu arco e aljava
para sua coroa, antes de pousar no seu rosto.
— Acredito que seja um dos Quatro Cavaleiros, querido. — Seus olhos
movem-se para mim. — E trouxe com ele uma amiga.
— O que…? — Sons de pés arrastando vêm do quarto dos fundos.
Qualquer choque que passou por Ruth momentos atrás, agora
desaparece. Tudo de uma vez, ela começa a se mover, apressando-se para
frente.
— Bom, vamos, vocês dois devem estar com frio. Entrem, entrem… e
pelo amor de Deus, fechem a porta atrás de vocês.

Pestilência olha com confusão entre ela e a maçaneta, que está


pendurada em um ângulo estranho. Empurro a porta atrás dele, fechando-a.
Ruth vem até mim e me ajuda a tirar o casaco. Suas mãos ressecadas tocam
as minhas.
— Céus, garota! — ela exclama, segurando uma. — Você vai encontrar
sua morte lá fora. Está fria como gelo. — Ruth estala a língua para
Pestilência. — Você deveria se envergonhar por deixá-la ficar gelada.
O cavaleiro encara Ruth em choque, e tento não sorrir. Está claro que ele
nunca encontrou uma doce velhinha antes. Nesse momento, um homem
velho sai mancando de um corredor à esquerda. Ele balança ao parar.
— Meu Deus! — Ele coloca uma mão sobre o coração. — Você não
estava brincando, Ruthie — fala, encarando Pestilência.
Com cautela, ele se aproxima, os olhos sorvendo o cavaleiro.
— Sério, você é real?
O queixo de Pestilência está erguido em um ângulo quase pedante,
apesar da sua expressão ser mais curiosa do que arrogante.
— Claro que sou — fala, calmo.
Repentinamente, o homem solta um grito rouco de celebração.
— Bom, maldito seja. Venha, sente. Mi casa es su casa — ele diz.
Isso tem que ser uma das situações mais estranhas que já participei. E
considerando as últimas semanas da minha vida, isso é algo. Nós dois
seguimos o casal de idosos para a cozinha, Pestilência mais relutante do que
eu. Ele olha para o casal com suspeita, sua mão indo na direção do arco.
Claramente não sabe o que fazer com essa hospitalidade. Verdade seja dita,
nem eu.
Ruth vai até o fogão, aquecendo um bule de chá enquanto o homem
gesticula para uma mesa de madeira gasta.
— Por favor, vocês devem estar cansados. — Ele olha pela janela. — O
tempo está ruim para se viajar.
Quase choro, grata por me sentar. Faz tanto tempo desde que outro ser
humano me tratou com qualquer tipo de cuidado genuíno. Quase esqueci
que pessoas faziam isso. O velho arrasta a perna para o outro lado da
cozinha, onde Ruth está pegando canecas.
— Sente, amor, deixe-me fazer isso — fala.
Ela bufa.
— Você que precisa se sentar — ela diz. — Esse joelho vai te dar
trabalho esta noite.
— Bah! Tudo me dá trabalho esses dias. — Ele olha na minha direção e
pisca, o gesto fazendo Pestilência olhar entre nós.
Ruth pega uma espátula e acerta no marido, que agora está tentando
movê-la com o corpo.
— Eu cuido disso. Agora para de me bolinar na frente dos nossos
convidados e vai se sentar.
O homem resmunga, dizendo mais alto:
— Aceito meu carinho de onde puder.
Sua esposa lhe dá um olhar caloroso sobre o ombro enquanto ele se senta
na nossa frente. O cavaleiro observa toda a cena com o máximo de fascínio.
— Sou Rob, e essa é Ruth — o velho diz, acomodando-se na cadeira ao
fazer as apresentações.
Pestilência inclina a cabeça.
— Sou Pestilência, e essa é Sara — ele diz, acenando para mim.
— Pestilência — Rob repete, os olhos brilhando com reverência. Caindo
em si, ele olha para mim e acena com a cabeça. — E Sara. Prazer conhecer
vocês dois.
Olho para todo mundo, quase tão surpresa quanto o cavaleiro está.
Passamos a esperar um certo diálogo entre nós e nossos anfitriões, e esse
desviou loucamente do roteiro.
— Mas é mesmo? — Pestilência pergunta, analisando o homem. — Um
prazer nos conhecer, digo?
— Bom, claro que é! — Rob diz, batendo a mão na mesa por ênfase. —
Com qual frequência um dos Quatro Cavaleiros param na sua soleira?
Ruth arrasta os pés, trazendo várias xícaras de chá fumegantes,
colocando-as na frente de cada um de nós.
— Obrigada — murmuro quando me dá uma caneca.
Pestilência franze o cenho para a própria bebida, suas narinas se
alargando com o cheiro. Rob dá tapinhas no lado de Ruth quando ela se
senta ao seu lado.
— Obrigado pelo chá. — Seu olhar se demora nela, e é íntimo o bastante
para me fazer desviar os olhos.
Empurrando a bebida para longe, Pestilência se inclina na cadeira, sua
expressão presa em algum lugar entre perturbada e esperançosa.
— A maioria dos mortais não aceita minha presença com gentileza.
— Parece que temo a morte? — Rob pergunta.
Os olhos do cavaleiro se estreitam com astúcia.
— Sou velho, meu corpo dói, e minha sagacidade já foi pela metade. —
Ele olha para Ruth. — Nossos filhos cresceram e nos deixaram, e agora os
filhos deles estão quase todos crescidos. Se o fim chegou, bom, estou feliz
por deixar o mundo ao lado da minha esposa.
Uma ruga marca a fronte de Pestilência.
— Não é uma boa morte — admite.
Não sei por que ele sequer está se dando ao trabalho de isso parecer ser
ruim. Essas pessoas querem gostar dele.
— Bem melhor do que perder a cabeça, memória por memória — Ruth
diz. Ela estremece. — Foi assim que minha mãe foi. É ruim o bastante
perder alguém, mas ver a morte levá-los pedaço por pedaço até não sobrar
nada além de uma casca. — Ela balança a cabeça. — Não, tem jeitos bem
piores de morrer do que pela praga.
— Temos intenção de ficar aqui por vários dias — Pestilência fala. —
Sara vai precisar de uma cama, e comida, e água.
Novamente, Pestilência parece querer provocar o casal de idosos. Seus
esforços, no entanto, parecem ser em vão. Quando seus olhos se movem
para mim, suas expressões são gentis.
— Isso não é um problema — Rob responde. — Como eu disse, mi casa
es su casa.
Analiso o perfil carrancudo de Pestilência quando percebo. Ninguém
nunca gostou dele antes. Não até agora. Ele não confia em Ruth ou Rob, por
que deveria? As pessoas odeiam Pestilência, o disseminador da praga.
Pego a mão do cavaleiro, uma ação que atrai os olhos do casal de idosos
para mim. Ignoro os dois e me aproximo de Pestilência.
— Posso falar com você a sós um minuto?
Os olhos dele vão para nossas mãos unidas, depois para meu rosto. Sem
uma palavra, sua cadeira arrasta no chão e ele desdobra todo seu corpo de
mais de um metro e oitenta. Pestilência me segue de volta para a entrada.
Quando me viro para encará-lo, está parado perto, suas roupas tocando as
minhas.
— O que é, Sara? — pergunta, tocando uma mecha do meu cabelo como
se não pudesse evitar.
— Essas pessoas não estão tentando te enganar, Pestilência. Eles estão
genuinamente animados por você estar aqui. O que é louco para caramba se
me perguntar, mas ei, ninguém está perguntando, então…
— Como você sabe disso? — questiona, sem perder tempo para negar o
fato que está cético.
Ergo os braços exasperada.
— Apenas sei.
Ele me estuda, esfregando a mandíbula distraidamente ao pensar. Tento
não pensar em como essa pequena ação é sexy. Finalmente, ele concorda.
— Tudo bem. Vou… me esforçar para confiar nessas pessoas, porque
você confia.
Pego sua mão mais uma vez e aperto. Estou prestes a soltar quando ele
aperta.
— Sara — fala. Sua outra mão se junta à primeira; ele segura a minha
como se fosse um presente.
O olhar nos olhos dele me faz estremecer. O olhar dele é profundo
demais, o rosto sincero demais… o que é que ele está para me dizer, meu
coração não está pronto para isso. Puxo a mão e volto para a cozinha, sem
esperar que ele me siga.
Vários segundos depois de me sentar, escuto seus passos pesados. Os
olhos dele estão fixos em mim quanto se senta. Quase posso sentir as
palavras que ele precisa dizer, as palavras das quais fugi. Seus olhos
permanecem em mim por mais um tempo, mas eventualmente seu corpo
relaxa, e ele passa um braço casual sobre o encosto da minha cadeira. Juro
que cada centímetro meu está demasiado ciente desse braço.
O tempo todo, Ruth e Bob nos observam, impassíveis. Isso faz minhas
palmas suarem, perguntando-me o que estão pensando quando nos veem.
— Então, o que te traz à nossa casa? — Ruth pergunta, alegre.
— Sara precisa descansar e se recuperar — Pestilência diz. Posso sentir
seu olhar em todo o lugar. — Os longos dias de viagem cobraram o preço
sobre ela.
— Ah — Ruth diz, sorvendo suas palavras e comportamento. — E você?
Vai precisar de uma cama?
Pestilência descansa na cadeira, suas pernas longas esticadas.
— Sou Pestilência, o Conquistador, o primeiro dos Quatro Cavaleiros
que veio para reivindicar seu mundo. Sou eterno, e minha tarefa constante.
Não necessito de nada para me sustentar.
Tuuuuudo bem, então. Ruth ergue as sobrancelhas agradavelmente.
— Bom, tem uma cama extra se você precisar. Agora — ela fala, ficando
confortável na cadeira. — Como vocês se conheceram? — Ela olha para
mim e para o cavaleiro enquanto dá um gole na sua bebida.
Ela é astuta, essa Ruth. Fingindo que não está mapeando meu
relacionamento estranho com Pestilência.
— Tentei matar o cavaleiro — digo.
Ruth abaixa o chá, sua caneca batendo na mesa, claramente chocada com
a resposta.
— Atirei nele com a espingarda do meu avô — continuo —, e então
coloquei fogo no seu corpo.
Nossos dois anfitriões estão sem palavras. Provavelmente não precisava
entrar em tantos detalhes… Acho que Pestilência não é o único tentando
sabotar a hospitalidade do casal.
— Ela é minha prisioneira — o cavaleiro explica.
Faço uma careta por trás da caneca. A afirmação soa decididamente falsa
para meus ouvidos.
— Se você não se importa que eu pergunte, o que planeja fazer com ela?
— Rob faz a pergunta gentil o bastante, mas posso perceber que está pronto
para enxotar Pestilência para fora se der a resposta errada. Aperto minha
caneca um pouco mais. Não esperava que estranhos se importassem
comigo, especialmente os que estão verdadeiramente ansiosos para
hospedar um cavaleiro.
— Vou ficar com ela — Pestilência diz.
Outra vez, aquele olhar do cavaleiro. Meu estômago afunda, e tento me
dizer que é temor, mas não posso me iludir. Você está ansiosa pelo que está
por vir, Burns.
Nem Ruth ou Rob contestam a resposta de Pestilência, mas posso ver
que os incomoda. Se eu tivesse tentado matar um humano – bom, temos
sistemas judiciais que lidam com esses tipos de crime. Mas me punir me
mantendo prisioneira… isso não é feito.
O cavaleiro afasta a cadeira e se levanta.
— Preciso cuidar do meu corcel. Entretenham-se na minha ausência.
Fala como se fosse o maldito rei do castelo e não algo que o gato trouxe
para dentro. Sem mais uma palavra, caminha para fora da casa. Na ausência
dele, a cozinha fica muito, muito silenciosa. Finalmente:
— Você está bem, querida? — Ruth pergunta.
Esfrego o polegar pela borda da caneca.
— Sim, estou. — Olho para cima. — Quer dizer, é tudo relativo a essa
altura, mas não estou morta, e isso é mais do que pode ser dito de todos os
outros. — Minha voz quebra. Não me escapa que estou sentada à uma mesa
com mais duas vítimas de Pestilência. Ruth se inclina para frente e coloca
uma das mãos sobre a minha. Aperta.
— Você vai ficar bem — ela me tranquiliza.
Não sabia que precisava ouvir essas palavras até sentir meus olhos
arderem. Aceno para ela com a cabeça, tirando força do que ela disse. É
errado aceitar sua gentileza e coragem quando é ela qume realmente
precisa disso.
— Sinto muito — sussurro rouca. — Sobre… tudo. — Estou pedindo
perdão por mais do que apenas invadir as vidas de Rob e Ruth junto com
Pestilência. Estou pedindo perdão por todas as famílias cujas vidas vamos
colocar de cabeça para baixo. Estou pedindo perdão por falhar em acabar
com o cavaleiro, por agora gostar do monstro. Estou pedindo perdão por
cada coisinha errada e fodida que aconteceu desde que Deus decidiu que era
hora de todos nós pagarmos o cobrador.
Rob acena com a mão.
— Recebemos ordem de evacuação. Sabíamos o que significava ficar —
fala, tentando me absolver da culpa.
— O cavaleiro — Ruth começa —, ele não está… — procura as palavras
certas — forçando você a fazer nada contra sua vontade, está?
Estupro, ela quer dizer. Ela está preocupada que ele esteja me
estuprando.
— Não. – Não. — Eu me apresso a dizer. Pestilência pode ser brutal,
mas ele também é nobre, da sua própria maneira estranha. Ele cortaria a
própria mão antes de me tomar contra minha vontade. — Ele não pensa
mesmo desse jeito — admito. — Seu entendimento da natureza humana é
limitado pelo que viu em suas viagens e pelo que aprendeu comigo.
Mas isso é realmente verdade? Tem tanto que ainda não sei sobre ele.
— Se você não se importa que eu seja franca — Ruth diz —, o cavaleiro
pode dizer que você é prisioneira dele, mas não a trata como tal.
Minha respiração fica presa na garganta. Não quero ouvir suas próximas
palavras.
— Ele te trata como… bom, como se estivesse interessado em você.
Meu estômago aperta desconfortável.
— Eu sei — digo baixo. Eu não tenho colhões para admitir que o
interesse é mútuo.
Nesse momento, a porta da frente abre e Pestilência volta. Seus olhos
encontram os meus imediatamente, e há muito anseio exposto neles.
Quando fomos de odiar um ao outro para isso? Ele se senta ao meu lado,
puxando a cadeira para perto da minha.
— Você está com fome? — Pestilência pergunta, toda a atenção voltada
para mim.
— Estou bem.
— Essa não é uma resposta verdadeira — fala.
— É a única que você vai ter — respondo, áspera.
Claro, isso é tudo que Ruth precisa ouvir para se ocupar organizando um
prato de nozes, fruta e queijo. Rob se inclina para frente.
— Quanto você pode nos contar das suas origens? — pergunta, mudando
de assunto totalmente.
A atenção de Pestilência relutantemente desvia de mim.
— Essa pergunta tem várias respostas — o cavaleiro replica. Ele remove
o arco ao falar, depois solta a aljava.
— Você é uma entidade Cristã? — Rob pressiona.
Deveria ter antecipado essa linha de inquisição pela cruz pendurada
sobre a mesa da cozinha. Pestilência coloca suas botas enormes na mesa,
cruzando os pés nos tornozelos. Não tenho ideia se ele sabe que é rude fazer
isso, mas parece estar confortável o bastante. Ele descansa o braço no
encosto da minha cadeira outra vez.
— Cristão, Muçulmano, Judeu, Budista… todos estão errados e todos
estão certos — ele diz. — Não são os detalhes que importam. É a
mensagem em sua totalidade.
Sinto os dedos do cavaleiro brincado com meu cabelo, a sensação me faz
querer me aproximar do seu toque (sou louca por cafunés na cabeça).
— Moralidade, e não fé — continua —, é o que importa para Deus.
Os olhos de Rob estão iluminados com alegria.
— Claro — ele diz. Ele solta uma risada surpresa, como se a conversa
toda fosse surpreendente assim, o que, não brinca, Burns, é. — Ah, nunca
pensei que esse dia fosse chegar. Sou o homem mais sortudo do mundo, por
estar sentado aqui, com prova da Sua existência. E quanto você sabe sobre a
Bíblia?
— A Bíblia é um trabalho do homem, não de Deus. Que uso tenho de
algo que é mais errado do que certo?
Fico tensa, esperando Ruth ou Rob se eriçarem, mas não o fazem. Tenho
quase certeza de que Pestilência poderia peidar e achariam isso encantador.
— E o que é certo? — Ruth pergunta, voltando com a bandeja de
petiscos, acomodando-se na cadeira.
— Que eu e meus irmãos viemos conquistar essa terra, e a menos que os
humanos mudem, tudo será arrasado e seu dia de julgamento cairá
rapidamente sobre vocês.
Ele podia mesmo lubrificar a entrada, ao invés de apenas enfiar essa
merda na gente desse jeito. Rob se inclina para frente.
— Como mudamos?
— A natureza de vocês está corrompida — Pestilência diz. — Os
corações duros e mentes fixas em um caminho egoísta e destrutivo. Vocês
exterminaram incontáveis criaturas, fizeram troça da natureza, viraram as
costas uns para os outros. A menos que mudem, serão eliminados.
Rob passa uma mão pelo seu cabelo branco e curto.
— Isso é uma tarefa difícil para nós — fala, triste.
— É por isso que a humanidade vai perecer. — Pestilência afirma isso
com tanta certeza que preciso conter um tremor.
Ele não acredita que somos capazes de mudança. Rob se inclina para
frente.
— Mas tem uma chance de não perecermos?
Pestilência hesita.
— Sim — diz, por fim. — Tem uma chance. Até a Morte ter cavalgado
pela terra e considerado ela indigna – até o Próprio Deus nos chamar de
volta – tem uma chance.
Fico deitada e acordada por um bom tempo, minha mente lenta para
desligar. Mesmo depois que o faz, meu sono é bem leve. Uma gargalhada
ou uma palavra rouca do outro lado da casa é o bastante para me acordar.
Pestilência fica acordado até tarde com o casal de idosos, falando sobre
coisas que não posso entender bem. Trechos e pedaços da conversa flutuam
para o quarto, e é o bastante para que eu compreenda que estão conversando
sobre Deus e religião. Tenho a impressão de que o cavaleiro é mais solto
com suas palavras perto deles do que é comigo.
Surpreendentemente, sinto uma faísca de ciúmes. Eu nem quero falar
com Pestilência sobre Deus, então não sei por que isso me incomoda. Você
quer que ele compartilhe seus pensamentos mais particulares com você, e
apenas com você. E pensar que ele está contando coisas para esse casal que
não profere na minha frente… sob o ciúme e irritação, está mágoa. Você é
prisioneira dele, algo que parece esquecer várias e várias vezes.
Depois do que parece com uma eternidade de sono inquieto, escuto
cadeiras arrastarem, e depois o som de passos suaves enquanto Ruth e Rob
vão para o fundo da casa deles. Eu me forço a escutar mais, cada segundo
que passa me acordando mais, mas não ouço nada. Pestilência está sentado
sozinho no escuro?
Algum tempo depois, o som de uma cadeira se movendo para trás me
acorda pela milionésima vez e escuto os passos característicos de
Pestilência. Ele segue pelo corredor na direção do meu quarto. Meu coração
acelera ao escutá-lo se aproximar. Ele está vindo até mim? O pensamento
que um dia me encheu de repulsa agora me deixa excitada. Escuto o
cavaleiro parar do lado de fora da minha porta, o silêncio se prologando. O
que ele está fazendo?
A maçaneta vira e ele entra. Mal posso ver sua silhueta na escuridão. É
apenas uma sombra grande no meio de outras sombras, sua forma
parecendo gigantesca ao preencher o portal. Ele se move para a direita da
cama, sentando-se no chão e apoiando as costas contra a parede.
Não sei o que fazer. Deveria estar dormindo, mas não estou, e isso
parece como uma grande mentira. Pestilência deve perceber que estou
acordada, certo? Tenho certeza de que estou respirando alto demais ou
imóvel demais.
— Entre minha crescente lista de falhas está a covardia — Pestilência
fala na escuridão. — Venho até você agora como um ladrão noturno, pois
temo que você nunca vá me ouvir sob a luz do dia — sua voz é suave como
um sussurro —, e devo confessar todas as coisas no meu coração.
Tuuudo bem. Isso deve ser interessante. E agora estou bem acordada.
— Acho você linda, querida Sara, tão linda... Mas é uma beleza afiada e
contundente – como o fio das pontas das minhas flechas – porque me
lembro que você não é como eu. Um dia, você vai morrer, e eu estou
ficando ansioso com esse fato.
Preciso me forçar a respirar e segurar o barulho estranho de engasgo que
realmente quer escapar dos meus pulmões. Ninguém nunca falou comigo
desse jeito.
— Admito — continua —, não tenho ideia do que me acometeu. Nunca
em toda minha longa existência me senti assim. Não até que vim para seu
mundo nessa forma que pude sentir. E antes de te conhecer, mesmo isso era
limitado ao vitríolo que queimava quente na minha barriga. Tudo o que um
dia quis foi disseminar a civilização.
“Não foi até te conhecer, odiada como era, que entendi o significado das
palavras de Deus. De misericórdia.”
Ele fala isso como se fosse de extrema importância.
— E agora entendo por que ainda há esperança para sua espécie. Porque
junto com o ruim, há isso.
Okay, tenho quase certeza de que esse cara não tem a mínima ideia de
que estou acordada.
— E não consigo entender o que é isso — continua —, só que sinto isso
quando te vejo e quando penso em você. Quando cavalgamos juntos e te
seguro, sinto como se tudo estivesse certo. E quando você ri, penso que
posso morrer de verdade. Isso é um tipo de prazer agonizante, e ah! Tão
desconcertante... Não entendo como dor e afeto podem coexistir.
Ele suspira, inclinando a cabeça para encarar o teto.
— Quando você me ignora, queimo com inquietação; parece que o sol
me deu as costas. E quando sorri para mim, quando olha para mim como se
pudesse enxergar minha alma, sinto… sinto como se eu estivesse pegando
fogo, como se você tivesse sido chamada por Deus para arrasar meu mundo.
Ele está me partindo no meio. Ninguém nunca falou comigo assim –
ninguém nunca sequer pensou assim de mim – e não tenho defesa contra
isso.
Ele se levanta e vai até a porta. Para ali.
— Por bem ou por mal — ele fala sobre o ombro —, fui
indubitavelmente mudado por você.
É apenas depois dos passos de Pestilência desaparecerem que solto um
choro engasgado. É ruim o bastante que quero seu corpo. Se apenas a
atração parasse por aí. Mas meu coração está abrindo caminho para as
palavras do cavaleiro, e temo que no final, eu possa ser apenas mais uma
das conquistas dele.
CAPÍTULO 31

NA MANHÃ SEGUINTE, ARRASTO OS pés até a cozinha,


percebendo o prato frio de ovos mexidos e presunto deixado na mesa junto
com uma caneca vazia, um saquinho de chá, e uma garrafa térmica cheia de
água quente. Meu dedo toca a borda da caneca preguiçosamente enquanto
olho para fora de uma janela próxima. O sol já está alto no céu. Esfrego a
cabeça, bagunçando meu cabelo castanho.
Dormi demais – tempo o bastante para nossos anfitriões moribundos me
fazerem café da manhã. O som dos passos pesados de Pestilência faz meu
corpo todo entrar em curto-circuito. Não posso decidir se devo dar um grito
de alegria ou fugir do local.
— Bom dia, Sara.
Eu me forço a virar e parecer normal, como se não tivesse escutado
coisas ontem à noite que não deveria.
— Hm, bom dia.
O olhar do cavaleiro é profundo, os olhos cheios de todas aquelas coisas
sobre as quais estava fazendo poesia ontem à noite. Não aja como se não
tivesse guardado todos aqueles elogios para saborear mais tarde.
— Onde estão Rob e Ruth? — pergunto ao pegar a garrafa térmica e me
ocupar fazendo uma caneca de chá.
O rosto de Pestilência se torna sombrio.
— A praga começou a cobrar seu preço.
Minha pele queima, quente com culpa, e por um instante me sinto tão
doente quanto eles devem se sentir. Estou comendo o café da manhã deles e
dormindo na cama deles como a Cachinhos Dourados enquanto eles
morrem com a praga que eu literalmente trouxe para sua soleira.
O cavaleiro dá um passo mais para perto, encarando o chá que estou
infundindo. E quando você ri, penso que posso morrer de verdade.
— Entendo álcool, mas não entendo café, e definitivamente não entendo
mesmo o chá — fala, totalmente ignorante dos meus pensamentos.
Dou de ombros.
— Tem gosto e cheiro acre.
— Você chegou a experimentar? — pergunto, erguendo as sobrancelhas
ao trazer a caneca para os lábios.
Ele faz uma careta.
— Noite passada, depois que você foi dormir, Ruth e Rob insistiram que
experimentasse.
Dou uma risadinha.
— Você os deixou te pressionarem a experimentar chá quando eu nem
consegui fazer você beber chocolate quente?
Que puxa-saco. Pestilência olha feio para mim. Dou outro gole do chá
para esconder meu sorriso. Apesar da nossa conversa casual, a mão que
segura a caneca estremece. Acho você linda, querida Sara, tão linda. Suas
palavras da noite passada me cercam; não posso ficar apenas normal perto
dele. Argh. Estou toda tensa.
Meus olhos vagam para o café da manhã reservado para mim. Entre a
doença de Ruth e Rob e a atenção de Pestilência, o pensamento de comer
está revirando meu estômago. Sinto como se estivesse pegando fogo, como
se você tivesse sido chamada por Deus para arrasar meu mundo.
Em um impulso, viro-me para ele e roço um beijo nos seus lábios.
As mãos de Pestilência vão para minha cintura e ele me puxa para perto,
e o que era para ser apenas um selinho se transforma em um beijo longo e
lânguido. Por vários segundos eu sucumbo e me deixo ser consumida por
isso. Mas então, em algum ponto, caio em mim.
Interrompo o beijo conforme a vergonha fervilha baixo na minha barriga.
Algum dia isso vai parar, ou vou ter que lidar com isso dia após dia, cidade
após cidade, até que o mundo todo tenha queimado e apenas eu permaneça?
Ainda olhando para meus lábios, o cavaleiro dá um passo à frente,
pronto para retomar o beijo. Coloco uma mão em seu peito. Ele olha para
ela.
— Devo acreditar que você não quer mais meu afeto quando um minuto
atrás o procurou?
Conto a verdade para ele?
— Pestilência, eu… — Não posso fazer isso aqui. Não quando um casal
está morrendo no quarto ao lado e você é o responsável. Limpo a garganta.
— Preciso ir cuidar de Rob e Ruth.
Os olhos do cavaleiro vagam na direção do quarto deles, deixando-o
tenso. Sem outra palavra, ele deixa a casa, o som da porta fechando e
ecoando por muito tempo depois da sua partida.
CAPÍTULO 32

DESSA VEZ QUANDO CUIDO DO casal de idosos, Pestilência decide


me ajudar. Ele é ruim nisso de uma maneira fofa, e mais atrapalha do que
ajuda, mas na verdade se importa o bastante para tentar e isso é bom o
suficiente para mim.
Claro, não é apenas nisso que ele é ruim. Ele está taciturno e rabugento
ao ajudar o casal a se sentar para comer e beber o pouco que conseguem. O
temperamento dele piora toda vez que Rob o agradece ou Ruth dá tapinhas
amáveis na mão dele.
Se não o conhecesse, diria que o cavaleiro não gosta de assistir sua praga
levar esse casal.
No final do segundo dia, horas depois de Pestilência ter deixado a casa e
nunca ter voltado, entro no quarto de Ruth e Rob. Os dois estão na cama, os
corpos virados um para o outro. As mãos estão enlaçadas e os olhos
fechados. O pouco que posso ver da pele deles – e o cheiro que posso sentir
– sei que as feridas já estão abrindo.
— Deus, pedimos que você possa trazer alguma medida de paz para seu
cavaleiro, pois ele está tendo problemas com seu invólucro mortal — Rob
diz, a voz tensa e fraca. — E pedimos que você dê forças para Sara, a garota
que colocou ao lado dele. Ela está suportando o papel que você atribuiu a
ela, e está fazendo isso com graça, mesmo assim é profundamente afetada
por suas circunstâncias…
Não escuto mais do que isso. Como uma covarde, fujo do quarto. A
gentileza dele já é grande, mas isso é algo totalmente diferente. Não posso
fazer isso. Mesmo quando pedem força para seu Deus, estou surtando
porque não posso fazer isso. Não posso comer a comida deles e nem dormir
sob o teto deles e observá-los morrer de maneira horrenda enquanto rezam
por mim e por Pestilência.
Quero rir dessa última. Eles estão rezando pelo único homem impérvio à
ira de Deus. Mas ele é? É um pensamento quieto, e fácil de ignorar. Ao
longe, escuto a porta abrir, e então os passos pesados do cavaleiro. De todos
os momentos para Pestilência voltar, ele escolheu o pior.
Ele entra no quarto de hóspedes em silêncio, e me encontra sentada na
beirada da cama. A mão dele cobre meus olhos enquanto meus ombros
balançam.
— Sara? — chama, hesitante.
Descubro meus olhos, olhando então para minhas mãos.
— Não os deixe morrer — peço, minha voz quebrando. Não posso olhar
para ele.
— O que foi? — ele pergunta.
— Eles são pessoas boas — falo, as palavras me fazendo engasgar. —
Não merecem morrer desse jeito.
— A vida não leva em conta o que é justo — Pestilência diz. — Presumi
que você, de todas as pessoas, soubesse disso.
— Maldição, Pestilência, você me salvou! — exclamo, meu humor
explodindo. — Você também pode salvá-los.
Tem uma longa pausa. Depois:
— Não vou.
Eu me forço a olhar para ele. Preciso ignorar o olhar agonizado em seus
olhos.
— Por favor.
Ele desvia o olhar.
— Essas malditas palavras.
Havia esquecido o quanto ele não gosta delas até esse momento. Culpa e
mágoa me preenchem. Agora ele vai matá-los simplesmente porque as
disse. E também vai gostar disso. Mas, pela primeira vez, isso não acontece.
Ao invés disso, talvez pela primeira vez, ele parece dividido.
Posso vê-lo se recompor.
— Não — fala, resoluto. — Não me peça isso outra vez.
Levanto-me, meu desespero se transformando em algo mais quente, mais
maldoso, ao encarar o ser senciente que poderia remover a doença.
— Ou o quê? — pergunto, dando um passo na sua direção. Empurro seu
torso. — Você vai me amarrar novamente? Me arrastar atrás do seu cavalo
até que eu esteja à beira da morte? Me expor ao clima até eu ter hipotermia?
Ele semicerra os olhos.
— São todas boas sugestões.
— Por que me salvar, mas não a eles?
— Minha intenção é fazer você…
— Sofrer. Eu sei. Deus, como eu sei. — Eu me afasto dele e me sento
mais uma vez na cama, cansada.
Ele olha para mim por um longo momento, e depois dá um passo à
frente. Fico tensa, e Pestilência deve perceber a reação, porque para. Então,
desafiador, acaba com o resto da distância entre nós. Senta-se ao meu lado,
o corpo agigantado perto do meu. Estou prestes a me levantar quando ele
coloca um braço em volta dos meus ombros.
Deveria estar empurrando-o para longe, gritando com ele ou saindo de
forma tempestuosa do quarto. Deveria estar fazendo uma centena de coisas
de outro modo. Ao invés disso, busco apoio em seu abraço e afundo a
cabeça em seus ombros largos. Meu corpo treme quando começo a chorar, e
deixo escapar grandes soluços. Seu braço me envolve e ele me puxa para
seu colo, embalando-me contra o torso massivo. Recebo um conforto
perverso, ainda que ele seja responsável pelo meu luto.
Ele pressiona a bochecha na minha têmpora, segurando tão firme que me
pergunto se também está recebendo conforto desse abraço.
— Não fique triste — fala, os lábios roçando contra minha pele.
Balanço a cabeça no seu peito. O que ele está pedindo é impossível. E
ainda assim, quanto mais tempo me segura, melhor me sinto. Inalo seu
cheiro.
— Não vou conseguir sobreviver a isso — sussurro meu maior medo
para ele.
O corpo de Pestilência trava.
— Você vai — insiste —, porque precisa.
Eu me afasto tempo o bastante para olhar nos olhos dele.
— Não vou — repito. — Vou morrer antes que você tenha terminado
com esse mundo.
E então Pestilência será o único a sofrer.
CAPÍTULO 33

VOCÊ PODE SENTIR O FIM SE aproximar, como uma onda. Ela se


move sobre você, sente-se em casa sob sua pele. Ela se acomoda em seus
pulmões e escorrega no seu coração e eventualmente se insere na sua
mente. Essa coisa terrível, horrível chamada de morte passa de uma
eventualidade distante para uma certeza repentina.
Conforme a noite progride, Ruth e Rob precisam de mais e mais
cuidados, e é em algum ponto durante esse tempo que sinto a Morte se
juntar a nossa pequena festa, espreitando nas sombras, esperando pelo
momento certo para ceifar essas almas. O casal de idosos também deve
sentir porque, apesar de estarem fracos e com dores cada vez piores,
conseguem se mover para um abraço.
Pestilência olha para eles, curioso, como se nunca tivesse visto nada
assim antes.
A pele deles é velha, os ossos são velhos e os corações são velhos. E eles
se amaram por um longo, longo tempo. E ainda assim é claro que, mesmo
depois de todos os anos que passaram juntos, essa despedida é antecipada
demais. Cedo demais.
Sinto um bolo na minha garganta. Isso é… pessoal. Muito, muito
pessoal. E de partir o coração – e não é para meus olhos. Abaixo a cabeça e
por fim saio do quarto. O cavaleiro não me segue, escolhendo ser um
intruso. Cinco minutos passam, depois dez. O que ele pode estar fazendo lá
dentro?
Finalmente, quando parece que uma eternidade passou, abro a porta
novamente e dou uma olhadinha. Pestilência está sentado ao lado da cama,
a silhueta grande fazendo a cadeira parecer pequena. Ele observa o casal
com um olhar desconcertado no rosto. Argh, preciso lembrar que esse cara
não tem nenhuma habilidade social.
Eu me esgueiro para dentro, pego a mão dele e o puxo da cadeira e do
quarto. Ele parece muito confuso com os novos acontecimentos e com o
casal que estava encarando de forma assustadora.
— O que é, Sara? — pergunta quando fecho a porta atrás de nós.
— Essas são a últimas horas deles. Tenho certeza de que querem passá-
las sozinhos.
Seu olhar desliza de volta para a porta fechada.
— Como você sabe que querem ficar … sozinhos?
Posso perceber que ele acha minha escolha de palavra estranha – sozinho
é viajar por uma terra desconhecida por semanas sem fim e nunca falar com
outra viva alma. Definitivamente não é segurar outro ser humano
murmurando em tons baixos sobre coisas que apenas amantes sabem.
Pestilência está olhando para mim, esperando minha resposta.
Como explicar isso? Nunca pensei que fosse precisar explicar algo óbvio
assim para alguém.
— Quero dizer que querem ficar sozinhos juntos — falo. — Eles querem
compartilhar o tempo que os resta aproveitando a companhia do outro, não
a nossa.
O cavaleiro ainda está olhando para mim com uma quantidade nada
pequena de confusão, então continuo explicando.
— Temos apenas uma certa quantidade de tempo vivos — falo. —
Quando você encontra alguém digno de passar esse tempo junto, você não
quer compartilhá-lo com mais ninguém. — Particularmente não seus
minutos finais.
Por um longo tempo, Pestilência digere isso. Eventualmente, inclina a
cabeça.
— Então vou deixá-los… sozinhos.
Olho de perto para ele.
— Por que você os estava observando?
Pestilência não gosta mesmo de observar as pessoas morrerem, apesar de
toda a morte que ele entrega. Hesita antes de dizer:
— Eles estão apaixonados.
Agora sou eu que não acompanho. Quando Pestilência percebe isso,
explica:
— Essa foi a primeira vez que vi humanos apaixonados. É… curioso,
irresistível, ver um lado da natureza humana que antes estava escondido de
mim.
Não sei o que fazer sobre isso.
— Mas você esteve vivo para testemunhar milhares de anos de história
humana. Deve ter visto amor em algum ponto durante todo esse tempo.
Afinal, é ele que está sempre sendo proclamado como eterno.
— Sim — fala lentamente. — Mas não assim.
Não como um ser que vive, respira e sente. E de alguma forma, isso faz
toda a diferença.
CAPÍTULO 34

ROB SE VAI PRIMEIRO, EM UMA manhã fria e morosa. O grito de


Ruth me acorda. Apesar de o som ser fraco, tem algo nele que me atinge no
estômago, e apenas sei que ele se foi. O grande amor da vida dela partiu.
Corro para o quarto dela, mesmo que não tenha razão para me apressar
nesse ponto. Pestilência já está lá, o corpo fraco e marcado de Rob
embalado em seus braços. Os olhos pesarosos do cavaleiro encontram os
meus, e ele parece não ter um rumo nem esperança. Não consigo
compreender sua emoção, esse cavaleiro insistiu que precisavam morrer.
Passo por ele e me ajoelho ao lado de Ruth. Mesmo no meio de sua febre
ela chora, fraca. Puxo uma cadeira ao seu lado da cama e fico com ela,
apertando sua mão na minha conforme seu luto passa pelo corpo. Você
poderia pensar que depois de uma vida inteira juntos, Ruth ficaria
inconsolável, mas nem uma hora depois que entrei em seu quarto, sua
tristeza passou como uma tempestade se movendo por uma cidade.
— Vou estar com ele em breve— ela me diz. — Realmente é uma
benção, deixar esse mundo juntos. E viver em uma era que eu sei, sem
sombra de dúvidas, que vou vê-lo outra vez – e logo. Quase posso fingir
que ele apenas saiu de casa para fazer algo.
Só que Rob não vai voltar. Os olhos dela ficam distantes e tristes.
— Eu não posso acreditar que acabou…
Nesse momento, Pestilência volta para o quarto, sua presença como a do
Ceifador. Mas talvez seja apenas eu, porque quando Ruth o vê, tem um
sorriso no rosto para o cavaleiro. Ao invés de retribuir o olhar, Pestilência
olha na minha direção, a testa enrugando com preocupação ao fazer uma
careta. Ele para bem distante da cama.
— Não seja tímido agora. — Ruth dá uma bronca nele. — Chegue mais
perto.
O cavaleiro se move em direção a Ruth como se ela fosse uma cobra
pronta para dar o bote. É quase de dar risada, ver o formidável Pestilência
receoso da suave e amável Ruth. Ela dá tapinhas na cama ao seu lado. Fico
tensa até mesmo com essa pequena ação. Sei como as escoriações fazem os
movimentos inacreditavelmente dolorosos.
Gentilmente, Pestilência se senta onde ela indicou. A velha mulher estica
o braço e acaricia sua bochecha.
— Eu te perdoo, querido.
Pestilência parece ser pego de surpresa.
— Por quê?
Mas ele sabe. Posso ver no rosto dele. Ele sabe exatamente por que ela o
está perdoando, e está encobrindo o fato de que está tremendo.
— Você não tem uma tarefa fácil pela frente — ela diz. — Por qualquer
razão, Deus considerou apto que você sinta o que é ser humano, a perda, o
coração partido, tudo isso.
De repente, Pestilência parece bem jovem. Só agora vejo nele o que Ruth
vê: ele é um de nós quando se distancia. Não é ignorante da nossa dor e
tormento da maneira que gostaria de acreditar que é. Precisa carregar isso
como algum tipo de penitência.
Com essa compreensão, todo o eixo do meu mundo vira. Ele é uma
vítima desse apocalipse assim como eu. O nobre e galante Pestilência, que
precisa observar todos nós morrermos, que precisa fazer todos nós
morrermos, mesmo que a morte o incomode muito. Não é surpresa que ele
nos odeie tanto. Ele precisa. Caso contrário, está assassinando milhares e
milhares de pessoas sem nenhum bom motivo além do fato que foi
ordenado a isso.
— Você vai ficar bem. Você anda na Sua luz — Ruth fala como a pessoa
direta que é. Quero dizer, puta merda, essa mulher está no seu leito de morte
e ainda está confortando o cara que a colocou ali. Se isso não é feroz, não
sei o que é.
As narinas de Pestilência se alargam, como se estivesse contendo alguma
emoção forte.
— Rob não está aqui para dizer — Ruth continua —, então vou falar por
ele: cuide daquela mocinha que está com você, certo?
Ele olha para ela da mesma maneira que fez na primeira noite, como se
nunca tivesse encontrado uma Ruth antes. Lentamente, ele concorda.
— Com a minha vida, eu juro.
Algo caloroso e desconfortável se espalha por mim. Ela lhe dá mais um
dos seus sorrisos doces.
— Agora, se você não se importar, estou com muita sede.
Ela mal precisa proferir o pedido para Pestilência fazer sua vontade. Nós
duas o observamos sair, e apenas depois que ele fecha a porta atrás de si que
Ruth me chama.
— Se aproxime, Sara.
Quase não vou. Agora que é minha vez de me sentar na cama e ouvir as
palavras finais de Ruth, descubro que realmente não quero fazê-lo. Uma
parte infantil minha acredita que se evitar isso, ela pode viver mais, como se
essa enfermidade fosse um feitiço que pode ser quebrado. Relutante, sento-
me no colchão e pego a mão dela.
Ela me olha de perto.
— Ah, como você é jovem.
Agora que estamos sozinhas, ela parece mais cansada, mais fraca. Não
importa quantas mortes eu acompanhe, sempre esqueço como o final vem
assustadoramente rápido para as vítimas da praga.
— Apenas do lado de fora — falo. Parece como se tivesse vivido uma
centena de vidas diferentes, cada uma delas violenta e sangrenta. Acho que
é o que a mágoa faz com você – envelhece sua alma.
Ruth dá uma risadinha triste.
— Se essa não é a verdade… — Seus olhos vagam antes de voltarem
para mim. Ela aperta minha mão, seu aperto surpreendentemente forte. —
O que você está fazendo… — começa.
Imediatamente, meu coração começa a bater como louco. Tenho a
sensação horrível de que sei aonde ela quer chegar com isso.
— É… bom — termina.
— Não sei do que você está falando. — Assim como Pestilência, estou
me escondendo da verdade nas palavras de Ruth. E assim como Pestilência,
estou abalada por ver como ela é perceptiva. Ruth me dá um olhar astuto.
— Mas acho que sabe.
Remexo sob seu olhar.
— Estive viva tempo o bastante para conhecer os sinais — continua.
Os sinais de quê?
— Não tem problema em se importar com ele, até mesmo amá-lo —
Ruth diz.
— Eu não o amo — falo, fervorosa demais. Minhas palavras soam falsas
para meus próprios ouvidos, e não sei por quê. Eu não estou apaixonada por
ele.
Ela dá tapinhas na minha mão.
— Bom, no caso de você acabar amando, deveria saber que não é errado,
e definitivamente não é algo para se sentir culpada.
Mas, não é? Amar a criatura que está destruindo o nosso mundo? Na
melhor das hipóteses parece algo de mau gosto, na pior, imperdoável.
— Amor é o maior presente que podemos dar ou receber — Ruth
continua, sem saber dos meus pensamentos turbulentos —, e tenho a
sensação — fala baixo —, que amor é a única coisa que vai nos tirar dessa
enrascada. Seus olhos semicerram. — Você me entende?
Claro que entendo. É o slogan que cada intrometido religioso tem gritado
a plenos pulmões desde a Chegada. Exceto que quando Ruth diz isso, uma
mulher que não apenas profere o sentimento, mas o viveu, finalmente levo
as palavras um pouco a sério. Ela acena para a porta com a cabeça.
— Aquele garoto ali fora — apenas Ruth teria a pachorra de chamar
Pestilência de garoto —, viu muito da natureza humana, a maioria ruim. Só
agora está vendo a beleza dela, e em grande parte graças a você.
Ela aperta minha mão mais uma vez.
— Mostre para ele o que nos faz brilhar. Mostre para ele que a
humanidade é digna de redenção.
CAPÍTULO 35

RUTH EXPIRA MENOS DE DUAS HORAS depois da nossa conversa.


Ela cede à morte quase ansiosamente, como se finalmente se reunisse a um
velho amigo. Assim que parte, a casa parece fria e solitária, como se sua
alma tivesse partido com a de seus donos.
Diferentemente das outras famílias com as quais ficamos, Pestilência não
permite que os corpos de Rob e Ruth embolorem em suas próprias casas.
Ao invés disso, eu o vejo no quintal, com uma pá na mão, cavando uma
cova larga.
Ando até lá e o ajudo a mover os corpos para a terra. Os pelos na minha
nuca se arrepiam ao tocá-los. A morte é perversa. Agora que o que animava
Ruth e Rob partiu, descubro que o que resta deles é quase intolerável de
tocar.
— Está tudo bem, Sara — Pestilência diz, vendo meu desconforto. —
Entre. Vou terminar de cuidar deles.
Meu olhar vai para os corpos, as formas enlaçadas. Deveria estar
pensando como é apropriado que serão enterrados nos braços um do outro,
mas para mim a visão me faz engolir a bile. A mão de Pestilência aperta
meu ombro.
— Entre — repete, mais gentil do que antes.
Agora eu sou a fraca, a que não pode aguentar a visão, e Pestilência é o
forte e firme. Faço o que ele diz e entro, e acabo preparando um banho para
mim no banheiro da suíte de Rob e Ruth. O processo demora um tempo
ridiculamente longo já que preciso ferver água para aquecer a banheira. Por
outro lado, a falta de eletricidade me dá a desculpa de reunir todas as velas
e lamparinas que posso encontrar e espalhá-las pelo banheiro.
Suspiro quando finalmente entro na banheira, a água quase escaldante.
Enchi demais a já grande bacia porque hoje vou me mimar, porra.
Bem no meio do meu banho, Pestilência volta para dentro. Ele deve estar
procurando por mim já que por fim faz o caminho até o banheiro principal.
Meu primeiro pensamento quando o vejo é que não é justo ele ser bonito
desse jeito. Mesmo coberto com lama, ele é a criatura mais bonita que já vi.
Seu olhar suaviza quando me olha.
— Você está se sentindo melhor?
Dou de ombros e a ação atrai seus olhos para baixo. A primeira vez que
me viu nua, tinha um certo distanciamento clínico no seu olhar.
Definitivamente não é o caso agora. Quanto mais ele olha, mais faminta sua
expressão se torna.
Foda-se.
— Quer se juntar a mim? — pergunto por que – me mimando.
Ao invés de responder, ele começa a soltar sua armadura. Vou entender
isso como um sim. Essa tem que ser minha melhor – ou pior – ideia até o
momento. Os olhos de Pestilência estão em mim quando tira o resto das
roupas. Ele é perfeito, o corpo fluindo de um contorno esculpido para o
próximo. E agora tenho certeza de que sou eu que estou com a expressão de
desejo.
Pestilência entra na banheira, a água escurecendo com a lama que solta
dele.
Pensei que tinha espaço o bastante para nós dois, mas assim que o
cavaleiro se senta, percebo como ele é grande, mesmo encolhido.
Meu pé está tocando o quadril dele, e suas pernas me prendem no lugar.
Nossas peles se tocam em cada pedaço e é extremamente perturbador.
Preguiçosamente, ele passa a mão para cima e para baixo na minha perna,
fazendo-me pegar fogo devagar. Meu pé pula no momento que os nós dos
dedos dele o roçam.
— O que você está pensando, Sara? — finalmente diz.
Que estou a uma decisão ruim de me atirar em você.
— Por que você os enterrou? — pergunto ao invés disso.
Pestilência pega minha perna, estudando-a ao colocá-la no colo.
— Não vamos falar de coisas tristes agora. — Ele deliberadamente passa
um polegar no arco do meu pé, sorrindo um pouco quando minha perna se
mexe outra vez em resposta. — A maioria dos humanos toma banhos
juntos? — pergunta.
Apenas os estúpidos.
— Não.
Ele aperta meu pé.
— Então por que você me convidou para entrar?
— Porque gosto de estar perto de você — digo, minha voz baixa.
Suas sobrancelhas erguem com a minha confissão. Acho que ambos
estamos surpresos com minha honestidade.
— Você vai se arrepender disso amanhã?
— Provavelmente — respondo.
Seus olhos voltam para minha perna. Por um longo minuto ele passa a
mão para cima e para baixo nela. Toda vez que seus dedos se movem para o
alto da minha coxa, fico tensa.
— Como um humano escolhe um parceiro? — Pestilência pergunta,
repentinamente.
Rob e Ruth claramente o afetaram.
— Bom, para começar — falo —, não chamamos de parceiros – bom,
pelo menos não normalmente. Temos todo tipo de nome para pessoas
especiais – namorado, namorada, esposo, esposa, alma gêmea.
Seus olhos semicerram de um jeito que sugere que está levando minhas
palavras a sério demais. Durante todo o tempo, sua mão sobe e desce na
minha perna. Sobe e desce. Na sétima carícia, meus mamilos estão prontos
para cortar vidro e sinto desejo puro entre minhas pernas. Ele sabe como o
toque dele está me enlouquecendo?
— Como alguém encontra uma… pessoa especial?
Dou tapinhas na água com a mão, qualquer coisa para me distrair da
atenção de Pestilência. Já é problemático para meus hormônios, mas em
vista do que estamos falando… bom, ele está me lembrando que é um
mundo solitário e essa garota não se dá bem há muito tempo.
— Não sei — falo —, qualquer lugar, acho. Na verdade, não importa
como ou onde ou por que vocês se conhecem. É mais sobre como elas te
fazem sentir.
— E como elas deveriam te fazer sentir?
O tom da sua voz me faz arrepiar, e não posso evitar olhar para ele. Um
erro. Seus olhos brilham de um jeito que decididamente não está ajudando
meu batimento cardíaco. Meus olhos continuam a deslizar para seu torso, o
corpo musculoso dolorosamente prazeroso de se olhar.
Foco, Burns.
— Hm… elas deveriam te fazer sentir bem. — Passo as mãos pela
superfície da água. — Mas até aí, sair com alguém – ter uma namorada ou
namorado – não é o mesmo que Ruth e Rob tinham. Eles eram almas
gêmeas, e até onde posso dizer, almas gêmeas trazem à tona o melhor que
há um no outro. — Diferente de todos os meus ex, que traziam o meu pior.
— São com elas que você gostaria de passar todos os seus minutos —
Pestilência acrescenta, ligando essa conversa na que tivemos mais cedo. Ele
está olhando para mim como se estivesse tendo uma luz.
— Hm, é — concordo. Não percebi como estava prestando atenção nas
minhas palavras com tanto cuidado. — Acho que quando você encontra a
pessoa certa, você vai querer passar todos os minutos que tiver com ela.
— E como alguém sabe que encontrou a pessoa… certa? — Pestilência
sonda, seu olhar procurando o meu.
Dou um olhar sem esperança a ele.
— Não faço a mínima ideia. Nunca conheci um homem que me fizesse
sentir assim.
Mentirosa, uma parte traidora do meu cérebro sussurra. Essa conversa
está chegando perigosamente perto das coisas que fazem Sara Burns
perversamente desconfortável.
Pestilência faz uma cara feia para essa resposta.
Abruptamente, movo meu corpo, minha perna escorregando para longe
da mão do cavaleiro. Com a ação, o olhar do cavaleiro cai para meus seios
expostos. Ele parece totalmente atento a eles. Sabe, não é nada ruim, ser a
primeira mulher que esse cara encontrou. Meu corpo está cheio de defeitos,
e ainda assim o cavaleiro olha para ele como se tivesse sido criado pela mão
de um mestre.
O que aconteceria se eu cedesse a esse olhar?
Não tem problema em se importar com ele – até mesmo amá-lo. As
palavras de Ruth ecoam na minha cabeça. Isso não é amor, mas é algo.
Agindo por impulso, movo meu corpo escorregadio para suas coxas. Não
pense demais nisso. Inclino para frente e roço um beijo em seus lábios.
Suas mãos passam de leve sobre meu torso, os polegares encostando na
parte inferior dos meus seios. Mas ele não vai além. Seguro um gemido
impaciente. Me mover para o colo dele deveria ser evidência o bastante que
quero que as coisas progridam, mas Pestilência não entende as indiretas, e
mesmo se entendesse, não tenho certeza se o nobre cavaleiro agiria mesmo
assim. Vou ter que tomar a frente disso.
Pego suas mãos e as coloco sobre meus seios. Ele respira fundo.
— Sara…
— Você pode me tocar — falo. — Gostaria se você me tocasse.
Suas mãos permanecem imóveis. Tudo bem, se ele não fizer alguma
coisa nos próximos segundos, ficarei mortificada.
— Por favor. — Sai completamente por acidente.
Ah, caralho.
Pestilência solta um gemido.
— Não deveria — fala, os olhos fixos nos meus seios —, não quando
você atira essa palavra em mim, e não quando você oferece sua carne. Mas
descubro… que não tenho em mim… resistir a essa súplica.
Abençoados sejam todos os benditos santos, quase atinjo o clímax com a
sensação das mãos dele ao acariciarem meus seios.
— Nunca imaginei que seriam macios assim — murmura. Ele está
olhando para meus seios como se fosse um menino de treze anos
descobrindo as revistas de mulher pelada do seu pai pela primeira vez.
No que parece um capricho, ele se inclina para frente e envolve um
mamilo com a boca. Um gemido de surpresa escapa de mim com a
sensação. A cabeça do seu pau roça contra mim, e parece duro para
caramba. Todo tipo de pensamento ilícito passa pela minha cabeça.
Como seria ter tudo isso pressionado contra mim? Estou quase perdendo
a cabeça com a necessidade de descobrir. Nós dois estamos em um jogo
perigoso. Apague isso, eu estou em um jogo perigoso. Pestilência
provavelmente não está nem ciente que tem um jogo acontecendo.
Vá devagar, se não para o seu bem, então para o dele.
As mãos dele estão começando a escorregar para baixo quando me
afasto, voltando para meu lado da banheira. Sua expressão ainda é quente, e
parece estar debatendo se vem atrás de mim ou não.
— Não deveríamos estar fazendo isso — falo, completamente ciente que
estou dando sinais confusos para esse cara. — Não aqui, pelo menos —
acrescento, como se esse lugar fosse sacrossanto quando um minuto atrás
eu não dava a mínima.
— O que importa para os mortos? — Pestilência diz. — Estão além
dessas coisas.
Bem pensado. Ainda assim, não tenho pressa.
Pego a mão de Pestilência e pressiono os dedos dele contra minha
bochecha. Um pouco do desejo fervoroso em seus olhos suaviza. Ele puxa
minha mão e me leva até ele, mas ao invés de continuar nosso amasso, ele
apenas me abraça. De alguma maneira, apesar do que estávamos fazendo
segundos atrás, o abraço consegue ser afetuoso, amoroso.
Também é difícil para ele, lembro. Ele ainda tem essa tarefa, mas
entende o horror dela, e agora, a perda.
E ainda assim, está me dando conforto. Encosto nele e o deixo me
segurar. Ele embala minha cabeça contra ele, e sinto tocar um beijo na linha
do meu cabelo. Nem sabia que era isso que queria o tempo todo, mas é.
— Relaxe, Sara.
E a verdade terrível é que, nos seus braços, eu o faço.
CAPÍTULO 36

ATÉ DEIXARMOS A CASA DE RUTH E Rob, há um silêncio nos


bairros ao redor e um cheiro fraco no ar. É a morte se acomodando para
uma longa estadia. É desconcertante como o inferno.
Chove quando partimos – o que não é lá muito surpreendente
considerando que estamos viajando pela costa Noroeste do Pacífico, o local
de nascimento das tempestades.
Quando o cavaleiro e eu estamos sozinhos, podemos fingir ignorar os
defeitos um do outro. Ele pode ser meu intrépido e nobre cavaleiro e eu
posso ser sua companheira peculiar, mas uma vez que estamos na estrada
onde é impossível ignorar os sinais do apocalipse, nós dois lembramos
como as coisas são na verdade.
Pela milionésima vez, espero que meus pais estejam bem. Eu me
resignei à realidade que nunca os verei novamente, mas agora, depois de
ver Ruth e Rob morrerem, estou mais ciente do que nunca que minha mãe e
meu pai podem ter sido acometidos pelo mesmo destino. E essa
possibilidade me aterroriza totalmente, então ao invés disso escolho ter
esperança de que escaparam incólumes da Febre.
Pestilência guia Trixie Skillz em um galope, forçando o cavalo que não
se cansa de correr quilômetros por vez. É assim que entramos em Seattle
propriamente dita – com casas e postes de luz, estábulos recentemente
abandonados e vitrines de lojas há muito mortas, todos passando num
borrão.
Aprecio a velocidade. A maioria do meu foco está em permanecer no
cavalo, e não em qual tipo de recepção desagradável está esperando por nós
em uma das maiores cidades dos Estados Unidos. Ainda assim, apesar da
distração, não posso enganar meu corpo para relaxar. Meus músculos estão
tensos e doloridos, e meus membros tremem – por causa do frio terrível e
da minha ansiedade crescente.
Quanto mais tempo passamos sem alguma coisa – qualquer coisa –
acontecer, mais apreensiva fico. Não tem viva alma à vista. Nenhuma única
alma assustada.
Até os prédios precários e baixos e falecidos shoppings abrirem caminho
para arranha-céus em ruínas que percebo que isso é incomum. Muito, muito
incomum. Cidades evacuadas tem mais vida do que isso, ainda mais quando
são grandes assim. Você está fadado a encontrar alguém.
— Onde está todo mundo? — pergunto.
Provavelmente esperando para te emboscar, Burns.
Nas minhas costas, Pestilência está quieto, quase contemplativo. Uma
onda de trepidação passa por mim. Alguma coisa mudou quando nós dois
ficamos na casa de Ruth e Rob? O Grande Homem jogou a toalha e decidiu
que nenhum de nós era digno de redenção?
Se isso fosse verdade, Einstein, você também estaria morta.
Por fim, vejo um homem com uma barba desgrenhada e cabelo castanho
sujo apoiado na parede de um arranha-céu. Eu me sinto tão estranhamente
aliviada só de ver outro ser humano que demoro um minuto para perceber
que algo está muito errado. Tem várias escoriações abertas no rosto dele, e
ele encara apaticamente a rua.
— Pare o cavalo. — Fico surpresa com a veemência na minha voz.
Pestilência puxa as rédeas e Trixie para. Deslizando do corcel, corro na
direção do homem. Mesmo a muitos metros de distância, ele cheira a
necrose e fluidos corporais e seus olhos não saem da rua.
Morto. Essa é minha análise profissional. Mas quando coloco dois dedos
no pescoço dele, o pulso bate fraco. Balanço nos calcanhares. Merda, ele
está vivo. Não por muito tempo.
Seus olhos febris lentamente encontram os meus, e seus lábios rachados
se movem.
— Ajuda.
Meu âmago contrai com seu pedido. Não tenho coração para dizer a ele
que não tem muito que possa fazer nesse ponto. Ao invés disso, volto para
Trixie e pego alguns comprimidos para dor que afanei da casa de Ruth e
Rob, junto com um cantil de água. Quando volto para o homem, mostro os
comprimidos para ele.
— Não vão te curar — explico —, mas podem aliviar a dor.
Ele abre a boca, fraco, cansado demais para sequer pegar o remédio.
Coloco eles na sua língua, depois seguro o cantil na sua boca. Atrás de
mim, escuto o relincho impaciente de Trixie, e sinto o olhar fuzilante de
Pestilência.
O homem dá alguns goles fracos, quase se engasgando no processo.
Estou prestes a se levantar quando ele segura minha mão com uma força
surpreendente. Seus olhos febris presos nos meus.
— Eu o vejo — fala.
Minhas sobrancelhas se juntam.
— Quem?
Não deveria ser permissiva com o homem. A Febre deve estar o fazendo
alucinar, e seu estado desgrenhado sugere que pode não ter sido saudável
antes de ser acometido pela praga.
— A Morte de Asas — ele sibila.
Tento não ficar assustada, mas minha pele arrepia mesmo assim. Esse é o
ano cinco dos cavaleiros. O sobrenatural existe, e é furioso. Morte ainda
dorme.
Dando em sua mão um aperto final, eu me afasto do homem e volto para
Pestilência. Ele ainda se senta na sua montaria, esperando-me, solícito.
— Ele está vindo por mim! — o homem grita nas minhas costas. — Ele
está vindo por todos nós… — Suas palavras são cortadas por um acesso de
tosse.
Meus olhos encontram os de Pestilência.
— Você já esteve aqui — falo.
A verdade está estampada por todo o corpo do homem moribundo. O
cavaleiro inclina a cabeça.
— Cavalguei por aqui algumas noites atrás — admite. — Não queria que
Vancouver se repetisse.
Não sei como me sinto sobre isso. Grata, suponho. Sei que fez mais para
meu bem do que para o dele. Mas até aí, que tipo de pessoa isso me faz,
sentir gratidão pela morte vir mais cedo para essas pessoas? Tonta, volto a
montar em seu corcel.
Cavalgamos mais para dentro de Seattle, o silêncio agourento da cidade
afundando nos meus ossos. Algumas folhas de papel voam no vento.
Vislumbro uma. Evacuem agora, leio em letras vermelhas e grossas, antes
de voar para longe.
O lugar me dá arrepios. Posso sentir Morte aqui, sua mão pressionada
nas paredes desse lugar, sua sombra eclipsando o sol. Vejo vários
indivíduos – alguns apoiados nas paredes como o último homem, outros
caídos no meio da rua, como se seus corpos tivessem cedido antes que
pudessem chegar aonde precisavam ir. Já posso sentir o cheiro de necrose
no vento.
A cada pessoa que encontro, faço Pestilência parar o cavalo para que
possa prestar ajuda – se estiver vivo para receber. A maioria não está. O
bater do casco de Trixie ecoa nas laterais dos prédios ao nos movermos por
ruas abandonadas.
— Pensei que teriam mais… corpos — digo, afinal.
Talvez seja macabro da minha parte, mas agora sabendo que Pestilência
já passou por Seattle, fico esperando ver os mortos em todos os lugares.
Centenas, talvez milhares de pessoas tem que ter ficado para trás em uma
cidade grande assim. Onde estão seus corpos?
— Humanos preferem cantos quietos para morrer — Pestilência diz.
Com suas palavras, minha pele formiga e meu olhar se move pelos
prédios se assomando sobre nós. Pela lógica, sei que ninguém mais mora
alto desse jeito – os elevadores não funcionam mais – mas não posso evitar
me perguntar quantos corpos estão isolados nessas estruturas enormes,
corpos que vão apodrecer e feder e infectar os vivos só Deus sabe por
quanto tempo.
Pestilência aperta o braço e faz um barulho com a língua. O trote
contínuo de Trixie se transforma em um galope, e as estruturas enormes
começam a passar em um borrão. Mais à frente na rua está mais um corpo
de bruços, mas o cavaleiro não mostra sinais de parar.
— Pesti…
— Chega, Sara. Você não pode ajudar todo mundo.
É óbvio que não posso. Já tentei esse caminho e ele me levou até onde
estava, na companhia de um cavalo que faz truques e seu mestre
monstruoso e trágico. Meu estômago embrulha quando passamos pela
pessoa – uma mulher idosa. Ela parece morta, eu me tranquilizo.
Mas nem todos parecem. Alguns gritam quando passamos, implorando
por ajuda ou pela morte – o que preferirem. Atinge uma parte profunda e
fundamental minha, não fazer nada.
Mas no final, é exatamente isso que acontece. Deixamos a cidade de
Seattle e a horrível tempestade de gelo para trás, até não serem nada além
de uma sombra sinistra nas nossas costas.
CAPÍTULO 37

A SEMANA SEGUINTE É UMA sequência miserável de dias ao nos


movermos de Seattle para Tacoma, e depois para Olympia, o trecho infinito
de paisagem urbana me mantém tensa. Durante a noite, a maioria das casas
nas quais Pestilência e eu nos refugiamos estão vazias, mas em um caso, a
falecida ainda estava deitada em sua cama, o corpo como uma terra
devastada pelas escoriações.
Conforme Pestilência e eu viajamos pelos infindáveis centros urbanos, e
eu passo por mais pessoas mortas e morrendo salpicando as ruas, torna-se
claro que o cavaleiro está criando o hábito de me deixar depois que pego no
sono para cavalgar na frente e espalhar sua maldita praga. Ele não faz
nenhuma menção adicional a isso, mas não precisa, a prova está bem na
minha cara.
Quando Olympia fica bem para trás e os campos e florestas tomam o
lugar de prédios dilapidados, sinto que posso respirar novamente. Nessa
noite, a cabana que invadimos pertence claramente a um solteiro. Tem
pôsteres de times de esportes e mulheres seminuas e marcas de cerveja por
todo o lugar. Porcarias de antes da Chegada. De muito bom gosto.
Pestilência vê tudo isso com uma mistura de curiosidade e repulsa.
Pelo menos o dono se evadiu. Ele pode gostar que peitos pareçam
mecanismos de flutuação, mas o cara tem senso prático o bastante para dar
o fora da cidade antes do Ceifador bater na sua porta. Literalmente.
Depois que acendo as poucas velas e lamparinas a óleo que encontro,
vou para a cozinha. Infelizmente, o solteirão só tem um pote de beterrabas
(sério, cara – beterrabas? Beterrabas?), alguns restos sebosos na caixa de
gelo que definitivamente vão me dar intoxicação alimentar, molho tabasco e
cerveja. Muita, muita cerveja; destilado caseiro, ales chiques, artesanais
engarrafadas, e até algumas latas de antes da Chegada. Bom, acho que sei
qual vai ser meu jantar.
Enquanto bisbilhoto, Pestilência não acende o fogo, mas sai pelos fundos
da casa, onde uma grande varanda expõe a paisagem de densos pinheiros
que cercam a propriedade.
Mantenho um olho no cavaleiro ao pegar as coisas da cozinha. Ele não
conversou muito o dia todo. Na verdade, se eu não o conhecesse, diria que
Pestilência está um pouco… melancólico. É difícil sentir pena da força que
arruinou seu mundo, ainda assim, é como me sinto. Ele se senta na beirada
da varanda, deixando os pés balançarem pela balaustrada. Não posso ler
suas emoções pelas suas costas largas, mas tenho a sensação de que são
tempestuosas.
Pego as coisas que reuni e saio. Um vento frio bagunça meu cabelo,
trazendo com ele o cheiro de pinheiro. Sento-me ao lado de Pestilência e
passo uma cerveja para ele, já aberta. Foi um dia longo. Cervejas são boas
para esse tipo de coisa.
— Você não gosta de matar as pessoas, né? — pergunto.
É um pensamento quase inimaginável, mas não sei, Pestilência parece…
chateado. Ele franze o cenho para as árvores.
— Não importa o que eu gosto.
O que importa é a tarefa que ele foi enviado a cumprir.
— Você não precisa fazer isso — falo, bem, bem suave.
— E o que você sabe das minhas escolhas? — Ele se vira para mim, a
expressão tumultuosa.
— Sei que você as tem — retruco.
Todos temos. Até mesmo eu. É por isso que carrego essa culpa apesar do
fato que a situação foi imposta a mim. Porque fui complacente quando não
precisava ser.
— Tenho? — Pestilência pergunta, desafiando-me, como se eu não
tivesse a mínima ideia de que porra de escolha ele na verdade tinha. Olha
feio para a garrafa em suas mãos, como se tivesse percebido só agora que
estava ali. — O que devo fazer com isso? — pergunta, erguendo-a.
Ergo um ombro.
— Beba, derrame, assopre para fazer barulho no gargalo. Não dou a
mínima — respondo, levando minha própria garrafa aos lábios.
Chega de dar conselhos para Pestilência; só saem pela culatra mesmo.
A raiva esvai do rosto dele, deixando-o com uma expressão desolada. Ele
me observa com aqueles olhos azuis tristonhos antes de se virar para frente
outra vez. Depois de um momento, leva a cerveja aos lábios e dá um longo
gole. Faz uma careta com o gosto, depois dá um gole ainda mais demorado
na garrafa. Ele abaixa.
— Não posso deixar meus sentimentos interferirem na minha tarefa.
Claro que não pode.
— Mas é muita gentileza da sua parte se importar com meus
sentimentos, não importa seus motivos — acrescenta.
O som do vento sibilando pelas árvores preenche o silêncio que se segue.
Esfrego o polegar na garrafa de cerveja.
— Quem é você, de verdade? — pergunto, erguendo meu olhar para ele.
O cavaleiro está certo, eu me importo com seus sentimentos. Eu me
importo com ele, e quero conhecê-lo e entender por que não pode vacilar
em seu propósito. Talvez assim faça sentido para mim. Talvez assim eu pare
de pressioná-lo. A testa de Pestilência franze.
— Essa é uma pergunta estranha, Sara.
Ele sempre diz meu nome com uma inflexão estranha, e sempre fico um
pouco agitada com isso.
— Sou Pestilência — ele finalmente responde.
— Não, isso não é quem você é, isso é só… — Luto para encontrar as
palavras certas. — Sua tarefa.
Aqueles lábios carnudos se curvam para baixo.
— Não funciono do jeito que você imagina — fala, suas feições
perturbadas. — Meu passado é uma série de impressões completamente
afastadas desse corpo e experiência. E desde que vim para a Terra nessa
forma, bom, eu sou minha tarefa e ela sou eu – é a soma total da minha
existência.
Mas não é, e não tem sido por Deus sabe quanto tempo. Provavelmente
desde que o cavaleiro me sequestrou e começou a ter um gosto pelas
mesmas coisas que está destruindo. E isso me faz perguntar: Pestilência é
impérvio à ira de Deus? Desde que Ruth chamou a atenção para o assunto,
fico voltando para essa questão. Quero dizer, Pestilência está cumprindo a
tarefa do Grande Cara, então deveria ser, e ainda assim… suas ações estão
pesando sobre ele. Posso ver agora, mais do que nunca. Há incerteza ali,
como se não tivesse mais certeza se o que está fazendo é certo. Mesmo que
Deus tenha decretado, e mesmo que tenha sido gravado em sua pele,
Pestilência está vacilando.
Num ímpeto, pego a mão dele e a aperto, enlaçando meus dedos com os
dele. Ele olha para nossas mãos unidas, e depois exala. Seus olhos
encontram os meus.
— Minha posse favorita é meu corcel.
No começo, não entendo bem o que ele está dizendo. Mas depois, cai a
ficha. Suavizo. Ele está tentando. Tentando me contar sobre ele.
— O corcel que você não vai nomear? — pergunto.
— O corcel que você já nomeou — corrige. — E você deu a ele um
nome terrivelmente ignóbil. — Ele toma um gole da cerveja, claramente
incomodado por ter uma opinião e expressá-la.
— E por que Trixie Skillz é sua posse favorita? — cutuco.
Ele pousa a cerveja.
— Porque ele é um companheiro fiel, impassível e constante.
— São bons motivos — digo.
— Você está sendo condescendente — fala, o olhar se estreitando.
— Não estou. — Não estou mesmo.
Ele deve ver a verdade porque sua atenção vira para a paisagem e
continua.
— Amo o amanhecer – o nascer do dia. Neve faz tudo mais fácil aos
olhos. Comida humana ou é surpreendentemente terrível ou boa… — ergue
a garrafa —, apesar de que às vezes, admito, pode ser os dois ao mesmo
tempo. Acho as roupas humanas ásperas, gosto de acender fogos, dormir é
uma experiência perturbadora – mas é estranhamente agradável quando
você tem alguém para abraçar…
Um rubor sobe pelas minhas bochechas.
— … E minha pessoa favorita é você.
Agora meu rosto está inflamado na escuridão.
— Sou a única pessoa que você conhece — respondo. Poderia ser a
pessoa mais merdinha que existe, e ainda assim seria sua favorita.
— Conheci muitas pessoas. Te garanto, você não ganhou o título à
revelia.
Não sei o que dizer frente a esse tipo de galanteio. Sem mencionar que
toda vez que Pestilência admite algo assim, meu corpo entra em curto-
circuito.
Odeio ter uma paixonite. Mas isso é mais do que apenas uma paixonite,
e não tem como fingir o contrário. Gosto do jeito que Pestilência fala, o
jeito que pensa. Gosto dos seus elogios e sua consideração. Gosto dos seus
galanteios, sua gentileza. Gosto dele, apesar do fato que está trazendo o fim
do mundo – e isso é imensamente perturbador.
Ele olha para sua bebida.
— Não quero falar mais de mim — fala. Seu foco vira para mim.
— O quê? — digo.
— É sua vez de me contar sobre você.
Merda, ele está me colocando sob os holofotes. Continuo esfregando o
polegar na garrafa.
— Você já sabe muito sobre mim. — Falo de mim mesma o tempo todo
quando estamos juntos na sela, com frequência apenas para preencher o
silêncio. — O que mais você poderia querer saber?
— Recite mais dos seus poemas favoritos. Conte-me mais da sua vida. É
tudo tão fascinante.
Vê, essa aqui é a prova que esse cara precisa sair mais.
— Não é tão fascinante assim. Eu não sou tão fascinante assim.
Mesmo na escuridão, vejo os olhos de Pestilência semicerrarem ao me
escrutinar.
— Você acredita mesmo nisso?
Acredito? Claro, tenho um trabalho legal como bombeira, mas o que
realmente existe na minha vida além de trabalho e minha coleção humilde
de livros? Solto uma risada sarcástica.
— Sim, acredito.
— Então está errada. — Pestilência afirma isso com certeza. — Você é
caridosa com até mesmo o pior da sua espécie. Você ajuda os moribundos.
Você se importa com fervor, com muito fervor. Não são feitos comuns. E
isso não está nem perto do que você significa para mim.
Minha respiração fica presa.
— Você conseguiu o que ninguém mais conseguiu: você despertou meu
coração. Então, sim, Sara. De todas as palavras que usaria para te descrever,
fascinante definitivamente seria uma delas.
CAPÍTULO 38

VOCÊ DESPERTOU meu coração.


Ali está, exposto, aquilo do que tenho fugido desesperadamente. Um
tremor passa por mim enquanto analiso a silhueta de Pestilência. Ele não é
o único que foi afetado pela presença de outra pessoa. Começo a me
aproximar dele, pronta para fazer todo tipo de coisa estúpida e mal-
intencionada porque estou tão cansada de lutar contra isso. Antes de ter a
chance, o cavaleiro estica o braço e passa uma mão para cima e para baixo
no meu.
— Você está fria — fala. — Me desculpe, Sara, o clima não me afeta da
mesma maneira. — Ele se levanta, e depois oferece a mão para mim.
Pegando a cerveja, deixo-o me ajudar a levantar e o sigo para dentro,
meu corpo tenso com antecipação. Essa tensão não dissipa – não quando
Pestilência se afasta para começar um fogo, não quando movo as velas e
lamparinas a óleo para a sala de estar. A única coisa que parece ter algum
efeito nos meus nervos excitados é minha cerveja… e também não diria
exatamente que está ajudando a situação.
Não que isso me impeça de pegar mais duas na caixa de gelo – uma para
mim, outra para Pestilência.
Quando volto para a sala, o fogo está crescendo.
Passo uma garrafa para o cavaleiro, sentindo um toque de culpa por ter
lhe dado um gosto pela coisa. Mas aí meus olhos encontram os dele e minha
excitação cresce e louvo a Deus em toda Sua glória colérica porque o álcool
existe. Dando um longo gole, sento-me ao lado do fogo. Pestilência relaxa
na minha frente, apoiando o peso em um dos antebraços, sua nova cerveja
intocada ao lado. Seu olhar se move do fogo para mim, chamas dançando
em seus olhos.
— Você alguma vez desejou que as coisas fossem diferentes? —
pergunto. — Que você e eu não fôssemos inimigos mortais?
— O que desejar nos beneficia, Sara? — retruca.
Quero dizer para ele que desejar faz toda a diferença, mas soa clichê
demais, como algo que as pessoas costumavam dizer antes dos Quatro
Cavaleiros aparecerem, quando o mundo ainda fazia sentido. Desejar não
enche sua barriga, ou impede sua casa de queimar. Não faz seu carro
funcionar ou te salva da praga.
— Não sei — por fim, falo. — Só quero parar de me sentir assim. —
Odeio essa culpa que está me consumindo. — Quando costumava olhar
para você, via um monstro. — Um monstro lindo, mas ainda assim um
monstro. — Mas não mais.
— O que você vê quando olha para mim?
Ao invés de responder, eu me inclino para frente e toco os lábios
suavemente nos dele. O cavaleiro parece contente com isso, a mão dele se
ergue para acariciar meu rosto. Com gentileza, empurro o ombro dele até
que ele cai de costas no chão. Ele me puxa consigo, nossos corpos
pressionados juntos. Minha boca encontra a dele mais uma vez e o fogo de
repente não está simplesmente atrás de mim. Está em volta de mim, em
mim, inflamando minhas veias.
Paro para passar um dedo pelo rosto do cavaleiro. Ele é mesmo
problematicamente lindo, com suas maçãs do rosto altas, mandíbula
definida e olhos inocentes.
— Nesse momento — falo, finalmente pronta para responder à pergunta
dele —, vejo um homem.
Um homem para beijar, para tocar, para me perder nele.
— Sou eterno, Sara.
Se isso deveria fazer algum tipo de sentido, se perde em mim. Talvez
seja sua maneira de protestar minha resposta. Que seja. Volto para seus
lábios e sou arrebatada pelo seu beijo. Ele pode ser eterno, pode ser uma
força da natureza e não um humano, mas no final, percebo que não me
importo mesmo. Pestilência é Pestilência, e isso é tudo o que realmente
importa para mim nesse momento.
O corpo musculoso dele se encaixa perfeitamente com o meu, e o toque
dele parece que foi feito para mim. Estico a mão para as amarras de sua
armadura, totalmente confusa em como removê-las. Sua mão cobre a
minha, e por meio segundo, meu estômago afunda. Ele vai me impedir.
Ao invés disso, Pestilência move minha mão e solta o peitoral metálico
da sua armadura. Ele faz da remoção da sua armadura uma tarefa rápida, até
que esteja espalhada no chão à nossa volta. Descubro que o problema com a
armadura, é que mesmo depois de todo o trabalho para removê-la, ainda
restam as roupas. Mas até aí, quanto mais tempo leva para despi-lo, maior é
a antecipação…
Ele me observa maravilhado enquanto pego a barra da camisa dele e
puxo pela sua cabeça. Homem glorioso. Poderia olhar para ele por horas,
tentando memorizar cada centímetro da pele linda e estranha. Hesitante, ele
pega minha jaqueta, e o ajudo a tirar. Nós dois removemos minhas muitas
camadas de roupa com urgência, até eu estar apenas de sutiã e jeans.
Escorrego as alças dos meus ombros, depois coloco o braço para trás para
soltar os colchetes que o prendem.
Pestilência encara meus seios expostos, e parte de mim está morrendo de
curiosidade para saber o que ele está pensando. Ele estica a mão,
timidamente passando-a pelos meus seios. O desejo toma a expressão do
rosto dele. Ele pode dizer que não é um homem, mas mesmo assim está
excitado.
Eu me aproximo e pressiono um beijo no peitoral dele, bem em cima de
uma das marcas angelicais.
— O que essa significa? — pergunto, minha respiração cobrindo a
palavra desconhecida.
Ele me dá um olhar estranho.
— Pestilência. — Seu nome.
Movo a atenção para baixo, onde outra faixa de marcas douradas afunda
no cós da sua calça. Tive um vislumbre de toda a extensão antes, mas nunca
tive chance de realmente olhar para esses caracteres mais baixos. Mesmo
agora, estão escondidos. Minha mão se move para sua calça. Pestilência
pega meu pulso, seu peito arfando com desejo óbvio. Acho que ele sabe que
isso é diferente. Esta noite é diferente. Uma coisa é beijar e admirar – até
tocar – mas outra é seguir com isso. Ele me encara pelo que parece uma
eternidade. E então, tomando alguma decisão, fica de pé.
Acho que é aqui eu serei rejeitada. Só que isso nunca acontece.
Ele estica a mão para as botas e as tira. Depois as mãos do cavaleiro vão
para suas calças. Ele hesita apenas por um instante antes de as abrir. O
tempo todo seus olhos estão em mim. Pestilência tira o resto das suas
roupas, ficando tão gloriosamente nu como no dia em que nasceu… ou…
foi criado.
É fisicamente difícil olhar para a perfeição dele na luz do fogo. Faz sua
pele reluzir como ouro fosco, e suas marcas brilharem mais forte. Ele olha
para mim com intensidade.
— Não te contei toda a verdade, Sara.
Olho para ele, confusa.
— O que você quer dizer?
Por um momento, tudo o que escuto é o crepitar do fogo. Parecendo
como se estivesse tomando uma grande decisão, Pestilência respira fundo.
— Aquele dia na floresta, no dia que te encontrei, eu tinha intenção de te
matar.
Uma boa dose do meu desejo diminui com sua admissão. Nada como
ouvir que seu namorado pós-apocalíptico queria te matar para quebrar o
clima. Sento-me nos meus calcanhares.
— O que fez você mudar de ideia?
Ele ajoelha na minha frente.
— A luz que filtrava pelas árvores aquela noite formou sombras
estranhas na sua barraca, e uma delas era essa. — Ele pega minha mão e a
move para baixo, em sua pelve, bem acima de um dos caracteres curvos.
Preciso de um esforço descomunal para olhar para a palavra brilhante e não
deixar meus olhos continuarem a rumar para baixo.
Acaricio sua pele com toques suaves.
— O que significa?
— Misericórdia. — Suspira.
Alguma coisa supersticiosa ondula pela minha espinha, incitando um
arrepio.
— E por isso você não me matou — afirmo, meu olhar encontrando o
dele.
— E por isso não te matei — concorda, o fogo cintilando em seus olhos.
Todo esse tempo estive odiando Deus, quando Ele (ou Ela – vamos
praticar a igualdade de gênero) foi a própria coisa que impediu o cavaleiro
de me matar todas aquelas semanas atrás. E agora, aqui estamos nós.
Suas mãos vão para meu jeans. Ele hesita, provavelmente esperando que
eu mude de ideia. E talvez depois daquela admissão, deveria mudar de
ideia. Mas não o faço. Ergo o quadril, angulando o corpo para ajudá-lo a
remover minha calça. Pestilência assim o faz, dando um olhar reverente
para cada pedaço de pele ao ser revelada. Ele passa um dedo pela costura da
minha calcinha que não serve bem.
— Desejei ser convencido da depravação humana… — fala, baixo —,
mas no lugar, isso.
Seus dedos engancham na roupa íntima, e então ele a está tirando de
mim. E com isso, o resto das roupas entre nós desaparece. Movendo-se
agonizantemente devagar, Pestilência cobre minha pele com seu corpo.
Quase suspiro com a sensação do seu peso e calor sobre mim. Minhas mãos
envolvem suas costas, deslizando pelos músculos retesados. Eu o puxo para
perto, sentindo a pressão do seu pau preso entre nós.
Pestilência, o Conquistador, não teve o gosto da conquista mais carnal.
Não até agora. Ele engancha um braço na minha perna e a ergue para uma
posição indecente. Ele olha para baixo, entre nós, e mesmo que tenha
certeza de que apenas queria ver como nossa anatomia se encaixa, seu olhar
pousa no meu núcleo e ali fica.
O que ele vê faz seu pau pulsar. Estico o braço entre nós e o envolvo
com uma mão, arrancando um gemido dele.
— Sara, isso é… sem palavras.
E ainda nem chegamos na melhor parte. Eu o guio para minha abertura.
Por vários segundos agonizantes, ele fica ali, imóvel, sorvendo o momento.
— Por favor. — Acabo por dizer. Minhas mãos vão para sua lombar e o
instigam.
— Por favor — ele repete, soltando uma risada dolorida. — Deveria
negar, mas eu não posso.
A respiração dele está mais rápida, os olhos azuis lancinantes ao mesmo
tempo em que seu pau começa a me penetrar. Solto um suspiro com a
sensação dele me preenchendo. Ele parece … sublime. Pestilência só entrou
parcialmente quando para, a testa caindo no meu ombro. Ele solta uma
respiração trêmula, e então ergue a cabeça mais uma vez para olhar para
meu rosto ao me penetrar, a expressão arrebatada. Seu olhar continua a se
iluminar até estar totalmente acomodado em mim.
— Isso é sofrimento — fala. — Delicioso sofrimento.
Deus, ele está certo. Esse é o lugar onde dor e prazer se encontram.
Estico a mão para ele. Meus dedos tocam sua coroa, que de alguma maneira
conseguiu permanecer na sua cabeça esse tempo todo. Gentilmente, coloco-
a de lado. Ele segue todos os meus movimentos, mas não protesta.
Não posso acreditar que ele está dentro de mim.
Se ele era de tirar o fôlego antes, agora, perto assim, ele é quase
insuportável de se olhar – como tentar encarar o sol. Lentamente ele se
afasta, depois avança. Um gemido escapa dele.
— Não posso deixar de conhecer essa sensação… com certeza vai me
assombrar pelo resto dos meus dias.
Ele começa devagar, saboreando cada estocada dos seus quadris como
faço com um bom chocolate. Mas como um bom chocolate, saborear abre
caminho para a indulgência. Seu ritmo aumenta, e logo ele não está mais
me acariciando gentilmente, mas me fodendo em um frenesi. Suas mãos
encontram meus quadris e me trazem para mais perto, e mais perto.
Ele olha para mim como se nunca tive experimentado nada tão incrível.
— Sara, eu estou… eu estou em você. Uma parte de você.
Engulo em seco. A ideia de que Pestilência pode alcançar meu interior e
tocar algo profundo e íntimo – ainda que apenas no sentido físico – deveria
me incomodar, mas decididamente não estou incomodada. Na verdade, tudo
nisso parece dolorosamente certo, como se ele sempre pertencesse a esse
lugar.
Acaricio seu rosto.
— Você está.
Contenho um gemido conforme seu pênis grosso desliza para dentro e
para fora de mim, nossos corpos fazendo sons escorregadios ao se
encontrarem. Ele apoia a testa conta a minha.
— Eu quis estar perto assim de você — fala. — Perto o bastante para
sentir seu coração batendo na minha pele.
Pressiono a mão no seu peito, bem acima do seu coração. Sob minha
palma, sinto o bater acelerado. Ele fecha os olhos com a sensação. Quando
os abre, eles brilham com tantas emoções.
— Não quero ir embora nunca.
Também não quero que você vá. Dou um sorriso suave.
— Você ainda não precisa.
Ele fica maravilhado comigo toda vez que me contorço sob ele. Eu o
seguro apertado, forçando cada uma das suas estocadas a irem mais fundo
no momento que meu núcleo contrai à sua volta. Pestilência geme com a
sensação, o som grave aumentando meu prazer. Eu me sinto subindo,
subindo…
— Ai, meu Deus. — Eu suspiro. Queria segurar mais. — Ah, meu
Deus, ah, meu Deus.
O cavaleiro para, olhando para mim com preocupação.
— Não pare — imploro.
Ele retoma com estocada seguida de estocada e…
Ah. Meu. Deus.
Eu grito quando meu orgasmo me arrebata de repente. Minhas costas
arqueiam quando ele corre o meu corpo, cegando-me por um momento. As
penetrações de Pestilência ficam mais profundas, até ele estar estocando
com força. Suas sobrancelhas erguem, olhando para mim com glorioso
choque ao ser arrastado para o próprio clímax. Sinto seu pau engrossar, e
com um gemido rouco, ele está gozando dentro de mim. Meu corpo
estremece com a sensação.
Ele olha para mim, extasiado, conforme suas estocadas diminuem
gradativamente.
— Isso foi… — ele fala uma palavra que espalha pela minha pele, e é
como se Deus estivesse na sala conosco por um breve momento.
Angélico – seja qual for aquela palavra, foi dita em Angélico.
— O que isso quer dizer? — pergunto, ciente de como ele tem sido
relutante em compartilhar sua língua nativa comigo.
Pestilência me dá um olhar profundo.
— Divino. Isso foi divino.
CAPÍTULO 39

NOTA: PESTILÊNCIA NÃO É adepto do sexo casual.


Está claro que casos rápidos não existem para ele. Apesar que, para ser
justa, sexo em qualquer forma não existe para ele. Pelo menos não até eu o
ter corrompido. Não posso decidir se isso me faz sentir particularmente
orgulhosa de mim mesma, ou um pouco desprezível. Acho, se estiver sendo
honesta, que estou me sentindo um pouco dos dois.
Ele também não vai ficar tranquilo com isso, já posso dizer.
Depois de terminarmos ontem à noite, ele me levou para a cama. Não
lembro de muito a não ser da pressão quente do seu corpo atrás do meu,
segurando-me próxima a ele. Ele me acordou duas vezes com seus lábios
vagantes, e depois de um pouco mais de exploração, encaixou-se dentro de
mim e me fodeu até eu gritar seu nome.
Não era isso que era ruim. Não tenho reclamação alguma quanto ao rala
e rola. É tudo o que aconteceu desde então. Tipo me trazer café na cama –
café que ele com certeza tirou da casa de outra pessoa porque o dono desta
aqui não tinha bacon e ovos. E eu também não sabia que Pestilência sabe
cozinhar.
Ele pode ter forçado alguém a cozinhar esse café para você.
Acabo com esse pensamento antes de imaginar que tipo de cenário possa
ter levado a esse resultado. Ele também tem me puxado para o lado durante
a manhã inteira para roubar beijos rápidos, ou confessar todas as coisas que
já admitiu na noite que eu estava “dormindo”.
Não me leve a mal, são gestos legais, gestos que fazem meu coração
flutuar e enchem minha barriga com aquele friozinho bobo, mas a noite
passada foi apenas uma rodada de sexo sujo e rápido, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Muito tempo depois de termos deixado a casa-do-solteirão-
transformada-em-ninho-de-amor para trás, depois de ter recitado um pouco
de Poe (é tudo o que vemos ou parecemos apenas um sonho dentro de um
sonho?) para Pestilência, acho que o pior da sua adoração passou.
Até ele nos levar para uma igreja. Eu encaro, sem entender, o prédio,
com sua torre e a marquise que diz: os escolhidos de Deus nunca morrem
de verdade.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Sara, você se ofereceu para mim, completa e totalmente. Quero te
mostrar meu comprometimento.
Faço uma careta, sua intenção não fica imediatamente clara para mim.
Demoro vários segundos ridículos de longos para compreender. Mas
depois… Ele quer… ele quer… casar comigo? Depois da noite passada?
Puta que o pariu. Quero dizer, sou uma foda decente, mas não sou boa
assim. Olho para ele por cima do ombro.
— É um pedido por dó?
Ele aperta os olhos.
— Não entendi.
Suspiro, olhando para a igreja outra vez. É duvidoso que ao menos tenha
um padre dentro para celebrar a cerimônia… Por que estou sequer pensando
nisso?
— Não quero me casar com você — falo.
Vários segundos de silêncio passam. Por fim:
— Por que não? — Pestilência soa ofendido. — Você tem vergonha de
mim?
— Hã? — Estou completamente confusa. Viro-me para ele. — Você sabe
que as pessoas não só… — Se casam.
Tirando que várias pessoas sim, só se casam – pessoas que se conhecem
bem menos do que nós e por motivos bem menos sólidos do que “eu te fodi,
você agora é minha”.
É só que eu, Sara Burns, preciso de um pouco mais de motivação antes
de me casar com a porra de um cavaleiro do apocalipse.
— Por que você quer casar comigo? — pergunto.
Essa é uma conversa que nunca imaginei que fosse ter.
— Você se ofereceu para mim, assim como o fiz a você — Pestilência
diz. — Você é minha, mente, espírito, carne.
Argh. Definitivamente lidando com um Deus do Antigo Testamento.
Pestilência provavelmente também espera duas vacas e quatro cabras do
meu pai.
— Então por que sou a primeira mulher que abriu as pernas para você,
você quer colocar um anel no meu dedo? — digo só para garantir que estou
entendendo a situação corretamente.
— Não fale sobre isso desse jeito.
— Você quer dizer “abri minhas pernas”? — Ainda estou olhando para a
igreja com um pouco de desgosto. — Por que não?
— É obsceno e o que fizemos ontem à noite não foi obsceno.
— O termo que você está procurando é fazer amor — digo.
— Fazer amor. — Ele ecoa, soando satisfeito.
— E Pestilência — continuo —, desculpe acabar com sua alegria, mas o
que fizemos ontem à noite não foi amor. Foi uma trepada, se conheço bem.
Mentirosa de carteirinha. Aquilo foi o mais íntimo que jamais cheguei
quando se trata de sexo, mas ele não precisa saber disso. Quando olho por
cima do ombro para o cavaleiro, sua expressão escureceu com
descontentamento.
Ele inclina a cabeça como se um pensamento tivesse sido entregue a ele.
— Você já fez isso antes? — pergunta, analisando-me.
— Fez o quê? — respondo, sabendo muito bem o que ele está falando.
— Amor. Você fez isso com outra pessoa?
— Ahn … não amor. — Por assim dizer.
— Foder. — Pestilência corrige, curvando um pouco o lábio ao dizer a
palavra. — Fez?
Por que sinto como se estivesse brincando de batata quente com uma
granada acionada? Ah, eu sei, porque estamos tendo a Conversa dos Ex
horas depois de ter tirado a virgindade de Pestilência. Foda-se minha vida.
Ou não. Foder é claramente o que me colocou em maus lençóis. E preciso
parar de pensar nessa palavra. Foder. Ahh.
— Sim… — digo, relutante.
Seu humor taciturno apenas piora.
— Claro que sim. Esperar mais de você é uma prova do meu idealismo
amaldiçoado.
— Continue falando assim, Pestilência, e vou te empurrar desse cavalo.
Ele ri.
— Você não poderia me desmontar nem se tentasse, humana.
E estamos de volta ao humana.
— Você está sendo um babaca.
— Nada é sagrado? — ele berra. — Eu estava dentro de você. Dentro
de você. Senti você se mover ao meu redor. Te dei minha essência. E você
está tratando isso, tudo isso, como se tivéssemos apenas dançado juntos.
Não foi mesmo assim que imaginei essa conversa acontecendo. Eu me
sinto corar. Ele limpa a garganta.
— Você não vai ficar com outro — afirma.
— Você está fodendo com a minha cara? — Quase grito.
Meu Deus, pare com a palavra foder, Sara.
— Não vou dividir você como se o que fizemos não tivesse tido um
significado – ainda que você pense assim.
Quero esganar esse homem.
— Com quem eu transo não é decisão sua.
— Não vou compartilhar você! — o homem ruge. — Mesmo que
signifique te acorrentar a mim, não vou!
— E eu não vou me casar com seu traseiro louco! — grito de volta para
ele. — Mesmo que signifique ser amarrada e arrastada atrás do seu cavalo
estúpido pelo resto da minha vida!
Seu braço aperta.
— Não me tente, humana.
— E pare de me chamar de humana! — acrescento, acalorada. — Tenho
um nome!
— Um que só uso quando gosto muito de você, o que não acontece
agora.
— Grande surpresa, Capitão Óbvio. Também não gosto muito de você
agora.
Ele fervilha atrás de mim.
— Tudo bem — fala depois de vários segundos. — Não vou me casar
com você hoje. Mas essa discussão não acabou.
— O inferno que não! — Preciso bater em alguma coisa. Cavalgamos
em silêncio depois disso. Graças à foda.
Argh. Pare com essa palavra.
CAPÍTULO 40

VIAJAMOS CERCA DE UM QUILÔMETRO depois da igreja quando


escuto o barulho do tiro. Não tenho tempo para pensar no fato que o
cavaleiro deve ter parado de cavalgar na frente durante a noite. Pulo bem na
hora que o ar se move violentamente perto da minha têmpora esquerda. No
próximo instante, o corpo de Pestilência cai para trás, seu braço a minha
volta pendendo ao mesmo tempo que seu sangue forma uma névoa na
minha pele.
Alguém atirou no meu cavaleiro. Ah, Deus, alguém atirou nele. Viro-me
na sela.
— Pestilência?
Seu corpo balança, e preciso segurá-lo para impedir que caia do corcel.
A cabeça de Pestilência pende para frente, e vejo o sangue, o sangue e…
Ah, Deus, ah, Deus, ah, Deus. Onde deveria estar o lado esquerdo do rosto
dele, agora tem apenas uma cratera deformada. Vou vomitar…
O sangue dele está pingando em todo lugar. Há tanto sangue...
Pessoas usando máscaras de gás começam a nos cercar. Trixie empina,
batendo os cascos no ar. Grito quando sinto o cavaleiro escorregar por entre
meus braços. Ele cai da sela atrás de mim, atingindo o chão com um baque
surdo e molhado. Com o barulho, quase devolvo o café da manhã que
Pestilência fez para mim.
Olho para seu corpo sem vida, sem conseguir desviar o olhar.
— Está tudo bem, ele se foi.
— Não pode mais te machucar.
As palavras dos moradores são baixas e distorcidas atrás das máscaras.
Eles estão se aproximando, parecendo estranhos e sinistros. Eles o
machucaram. Vindo para o lado de Trixie, eles me tiram do cavalo à força.
Avanço para Pestilência, mas eles me puxam para longe.
Minhas últimas palavras para o cavaleiro foram declarações gritadas
com raiva.
Estou lutando para voltar para o corpo arruinado dele, mas as pessoas me
impedem. Você pensaria que eu estaria acostumada a vê-lo assim, mas não
importa o quanto me tranquilize que tudo ficará bem, meus olhos me dizem
o contrário. Ele geme do chão.
Jesus. Mesmo que metade do seu rosto não exista mais, ele ainda está
consciente. Solto um grito agudo. Ele está consciente. A dor deve ser
insuportável. Alguém atira nele outra vez – e outra, e mais uma – tentando
matar uma coisa impossível de se matar.
Grito com o som de cada bala, horrorizada com o jeito que seu corpo
dança sob a saraivada. Ainda estou gritando enquanto sou forçada a sair da
estrada e entrar em um prédio próximo. Só depois que alguém me empurra
em um banco que percebo que me arrastaram para uma igreja.
O idiota queria se casar comigo!
Aperto os olhos bem fechados. Talvez a manhã teria sido diferente se
tivesse dito sim para o pedido de casamento de Pestilência. Ele estava tão
ávido, e havia jogado na cara dele como se o que fizemos ontem à noite não
importasse, quando importa. Deus, importa.
Respiro, trêmula, e olho em volta. Uma por uma, as pessoas que me
guiaram desaparecem em outro aposento para removerem as máscaras.
Quando voltam, não aparentam ser mais tão ameaçadoras. Os homens e
mulheres que enchem a igreja são civis, civis que decidiram sacrificar suas
vidas para derrubar o cavaleiro. Civis que estão me trazendo cobertores e
café.
Civis que estão me ajudando, uma ex-bombeira, da melhor forma que
podem. Não muda o fato que o machucaram. Ainda podem estar
machucando.
Levanto-me, o cobertor de lã escorregando dos meus ombros, sentindo
como se minhas emoções tivessem passado por um moedor de carne.
Onde ele está?
— Os outros estão cuidando dele — alguém diz, e só assim percebo que
fiz a pergunta em voz alta.
— Ouvimos falar de você, sabe — uma das mulheres que está por perto
diz. — Os relatos continuavam a mencionar que ele tinha uma prisioneira.
— Ela não parecia sua prisioneira — outra pessoa murmura.
— Shhhh! — outro sibila.
Seco os olhos e olho em volta. Há oito mulheres e três homens, todos
entre as idades de trinta e sessenta anos. Todos eles agora marcados para
morrer. (As máscaras de gás são um acessório fofo, mas nem elas podem
impedir a praga de Pestilência).
Quando a mídia vai compreender que o cavaleiro não pode ser morto?
Quando as pessoas vão parar de sacrificar suas vidas para acabar com um
ser imortal?
Um ser imortal com quem por ventura me importo. Preciso ir até ele.
Preciso salvá-lo. Começo a me mover pelo corredor central, indo em
direção à saída. Ando apenas alguns metros quando sou interceptada por
um dos homens. Ele é um cara grande e forte com um bigode branco e uma
arma de fogo no coldre no seu quadril.
— Vamos te sentar novamente — fala, seu tom condescendente para
caralho.
Pegando meu bíceps, ele me leva de volta para um banco.
— Estou sendo presa? — pergunto.
— Claro que não — fala —, mas você teve uma manhã difícil. Por que
não descansa um pouco?
Olho para ele, e depois para os outros. Eles não vão me deixar ir. Posso
ver em seus rostos. Não sei por que se importam. E aí a ficha cai…
sobrevivi à praga. Eles devem estar cientes disso. E quem não iria querer
manter alguém assim por perto? Eu poderia saber a cura; inferno, eles
podem pensar que sou a cura.
Volto para o banco como uma boa garotinha (ugh), e me sento ali,
deixando todo mundo pensar que sou dócil. Cinco minutos passam numa
lerdeza agonizante. Ao longe, escuto um relincho fraco. Trixie. Tenho
intenção de esperar um pouco, mas ouvir o cavalo de Pestilência é o que
acaba com o resto da minha paciência. Não posso continuar sentada aqui
quando não tenho ideia do que está acontecendo com o meu cavaleiro.
Eu me afasto do banco outra vez. O Bigodão fica tenso quando me vê de
pé de novo. Antes que possa sair do banco, ele me impede.
Não olhe para o cinto dele.
— Você precisa de alguma coisa? — pergunta, cruzando os braços no
peito.
— Sim, preciso.
Antes que tenha chance de responder, avanço para sua arma. Minha mão
encosta no metal frio bem no momento que ele solta um grito de surpresa.
Aponto a arma para ele e solto a trava de segurança.
— Saia do meu caminho.
Ao meu redor, escuto suspiros de surpresa. O homem ergue os braços.
— Espere só um segundo. Não faça nada impulsivo. Só estamos
tentando te ajudar.
Não devo parecer tão ameaçadora quanto me sinto porque várias outras
pessoas começam a se aproximar.
Melhor tomar uma atitude antes que isso saia do controle.
Aponto a arma para cima e atiro. O som, já ensurdecedor, fica bem mais
alto devido a acústica da igreja. As pessoas gritam, vários cobrindo as
cabeças. Acima de mim, pedaços de gesso começam a cair. Aponto a arma
mais uma vez para o homem.
— Estou indo embora — falo. — E você pode me ajudar saindo do meu
maldito caminho.
O Bigodão deve perceber que tem um pouquinho de loucura nos meus
olhos para seu próprio bem. Ele dá um passo para o lado. Viro a arma na
direção das outras pessoas que estão paradas entre mim e a saída. Eles
recuam, os braços no ar.
Um silêncio desconfortável paira na igreja, meus passos abafados no
carpete gasto são o único som. Estou quase nas portas duplas quando o
Bigodão grita para mim:
— Por que você abandonou sua própria espécie por aquela coisa?
Ele tem a audácia de fazer a pergunta dentro de uma igreja. Volto a
encarar o homem, meu olhar passando pelo resto das pessoas de olhos
arregalados que me encaram.
— Não fui eu quem os abandonou — respondo. — Foi Deus.
CAPÍTULO 41

TRIXIE ESTÁ BEM DO LADO DE FORA da igreja. Assim que me vê,


o corcel se aproxima, o focinho cutucando minha bochecha. Quase posso
imaginar que está me saudando com afeto. Passo a mão pelo rosto dele,
franzindo o cenho para as manchas escuras no seu dorso.
O sangue do cavaleiro. Subo na sela e acaricio a crina do corcel.
— Me leve até Pestilência.
Fomos emboscados na esquina da igreja, então não demora muito para o
animal voltar ao lugar. Ainda assim, quando chegamos, Pestilência já está
meio enterrado em uma cova rasa do lado da estrada. As pessoas com
máscaras de gás estão paradas ao redor da cova, jogando terra dentro dela
com pás.
A arma roubada ainda está quente na minha mão. Até o primeiro homem
erguer a cabeça na minha direção, já estou mirando nele. Ele faz um
barulho de surpresa, derrubando a pá. Os outros homens olham para ele
antes de olhar ao redor em confusão. Eles também estão surpresos quando
me veem montada no cavalo de Pestilência, arma em punho.
Agora que tenho a atenção deles…
— Vocês têm cinco segundos para darem o fora. Depois começo a atirar.
Ninguém se move.
— Um…
Agora as pessoas começam a correr.
— Dois…
Um dos homens tenta pegar a arma. Dou um tiro de aviso, a arma dando
um coice na minha mão. Eles soltam as pás e abandonam a cova. Alguns
deles saem correndo, mas alguns ainda se demoram, não estão prontos para
deixar uma mulher os assustar.
— Três…
Os homens mascarados vão para a rua, recuando para longe de mim,
alguns com as mãos no ar.
Como se isso fosse me aplacar.
— Quatro…
Eles se afastam um pouco mais rápido.
— Cinco.
Faço um som com a língua, tentando imitar o que Pestilência faz. Sob
mim, Trixie avança para frente, correndo pela rua. Agora o resto dos
homens mascarados correm pelas suas vidas. Nada como ter um cavalo
imortal correndo atrás de você para se mover. Dou outro tiro, só para dar
um bom susto neles. Corro até a metade da rua, puxo as rédeas e deixo os
homens fugirem de nós, observando as silhuetas ficarem cada vez menores.
Essas pessoas sabiam antes de me ver que eu estava viajando com
Pestilência.
Um presságio passa por mim e me arrepia. Se isso chegar até a mídia, o
mundo logo vai saber que não sou mais sua prisioneira.

Engulo o choro quando olho para a cova improvisada de Pestilência. Ele


está quase impossível de se identificar, o corpo coberto de sangue, sujeira e
pedaços de pele e carne. Não quero movê-lo por medo de machucá-lo.
As pessoas vão voltar. Você pode ter apenas minutos. É isso que faz eu
me mover.
Coloco a arma de lado, ajoelho ao lado da cova e engancho os braços
pelas axilas de Pestilência.
— Sinto muito — sussurro.
E aí começo a puxar. Ele solta um grito de agonia, o som embaralhado
pela ruína da sua boca, e o tiro do túmulo. Uma lágrima silenciosa escorre
do canto do meu olho com o som. Se meu “eu” de algumas semanas atrás
pudesse me ver agora. A que ponto cheguei, chorar por uma criatura que
não pode morrer. Pela mesma criatura que deveria ter matado. Olhe para
mim agora: apontando armas para qualquer um que tente tirá-lo de mim.
Bem devagarinho, puxo Pestilência na terra. Trixie ajoelha ao meu lado,
o corcel antecipando as necessidades do cavaleiro. Arrasto o corpo do
cavaleiro para a sela.
Não vai ser muito confortável, mas vai ter que servir.
Eu me acomodo atrás dele, e faço o som com a língua outra vez. Trixie
se levanta, nós dois equilibrados no seu lombo, e então o corcel parte.
Vários tiros soam, e me abaixo sobre o cavaleiro conforme as balas passam.
Olho por cima do ombro. Os homens que há tão pouco tempo afastei agora
correm de volta para a rua de onde haviam se escondido, apontando as
armas para nós.
Merda.
Puxo as rédeas de um lado, trazendo a cabeça de Trixie, e nos tirando do
caminho. O corpo de Pestilência escorrega um pouco, e preciso de toda
minha força para manter o cavaleiro no corcel. Mas pelo menos as balas
destinadas a mim e a Trixie não nos acertam.
Puxo as rédeas para o outro lado, forçando o cavalo a mudar a trajetória
mais uma vez, fazendo zigue-zague na estrada até os tiros silenciarem.
Quando olho por cima do ombro mais uma vez, os homens nas máscaras de
gás estão fora de alcance.
Seguros. Estamos seguros – por enquanto.

Não ouso diminuir o passo do cavalo até a cidade ficar para trás. Quando
o faço, é apenas para procurar uma casa nos arredores. Considerando minha
sorte de merda nesse dia, provavelmente vou escolher uma casa com o
babaca mais maldoso morando lá. Sem Pestilência para colocar o medo de
Deus nos homens, quem sabe quão ruim a situação pode ficar?
Respiro fundo. Não tem outro jeito.
Acabo escolhendo uma casa que sai direto na estrada, esperando que
quem more aqui já tenha partido faz tempo. Demora um tempo
agonizantemente longo para entrar, mas pelo lado bom, o local está vazio.
Guio Trixie pela porta atrás de mim, tomando cuidado para não dar
nenhum solavanco no corpo de Pestilência no processo. Só depois que
movo o corcel para o lado do sofá que arrasto o cavaleiro da sela. Ele
escorrega nos meus braços, desequilibrando-me, e nós dois caímos em um
monte no sofá.
Muito suave, Burns.
Eu rastejo para uma posição confortável sob Pestilência, sentindo o
sangue dele começar a encharcar minhas roupas pelos seus múltiplos
ferimentos. Agora que o estou segurando, descubro que não posso soltá-lo.
Seu rosto ainda está destruído, e está ainda mais turvo pela terra grudada
em sua pele. Com uma mão trêmula, passo os nós dos dedos por uma parte
intacta de bochecha.
Trouxa. Você se apaixonou por essa criatura.
Ele se move nos meus braços, e quase grito. Quase esqueci que ainda
está ali dentro. Ainda ciente do que está acontecendo. Sinto bile subir na
minha garganta com o pensamento. E pensar que fiz coisa pior do que
aqueles homens com Pestilência.
— Shh — falo, saindo de baixo dele com gentileza. Eu o arrumo no sofá,
o corpo longo dele mal cabe.
Pego uma das suas mãos na minha, dando um beijo nos seus dedos
cobertos de terra.
— Tente dormir — falo. — Vou estar bem aqui.
Pestilência murmura algo – nem sei como ele está fazendo barulho. Eu o
silencio mais uma vez, e ele se acalma, caindo em algo que, se não é sono,
deve ser parecido. Mantenho minha palavra, fico ao lado dele – saindo
apenas para acender o fogo e arrumar alguns trapos e água, que uso para
nos limpar o melhor que posso. Depois que termino, pego sua mão,
segurando-a perto de mim.
Conforme as horas passam, consigo ver a lenta, mas milagrosa, evolução
do cavaleiro; de algo que deveria estar morto para um lindo homem
adormecido.
Parece algo saído direto de um conto de fadas.
Com um gemido metálico, o peitoral cheio de furos da armadura de
Pestilência se retorce para o lugar, as placas douradas voltando para a
superfície lisa original bem devagar. Tão incrivelmente quanto, vejo seu
rosto se reconstruir, de ossos para músculos, tendões e pele. Por fim,
observo até os cílios longos de Pestilência brotarem da sua pálpebra recém-
formada.
Isso é magia. Isso é fé. Esse é um mero vislumbre do leviatã que é Deus.
Mesmo depois que seu corpo praticamente se curou, Pestilência não acorda.
Sob suas pálpebras fechadas, seus olhos se movem de um lado para outro.
O que os cavaleiros sonham?
Pensar nele sonhando me aflige. Ele é muito mais humano do que jamais
imaginei que fosse. Dei uma mãozinha para isso – mais do que uma mão se
estou sendo honesta. Ele come porque lhe dei um gosto disso, bebe cerveja
porque ofereci a ele. Faz amor comigo porque me ofereci para ele.
Faz amor. Mordo meu lábio inferior com o termo.
A mão que seguro contrai, dispersando meus pensamentos. Quando olho
para cima, os olhos de Pestilência piscam e abrem. Sento-me mais ereta,
levando nossas mãos enlaçadas para meus lábios. Um pequeno sorriso
começa a desabrochar em seu rosto, mas depois some e sua testa enruga no
lugar.
— Você está bem?
São suas primeiras palavras. Bem quando pensei que esse homem não
podia me afetar mais. Aperto os lábios para a verdade não escapar. Porque
não, não estou bem. Não tenho estado bem desde que Pestilência foi
derrubado do seu cavalo. Mesmo antes disso, não tenho certeza de quanto
estava bem.
Estou tendo mais do que um pouquinho de problema para lidar com
amar gostar desse cavaleiro.
Ele começa a se sentar, parecendo cada vez mais alarmado quando vê o
sangue em mim.
— Onde você está…?
— Não é meu sangue, é seu. Eles … atiraram em você — sussurro a
última parte porque a emoção está engasgada nas minhas cordas vocais.
Meus canais lacrimais já estão trabalhando; quando pisco, algumas lágrimas
escorrem. Agora que Pestilência está acordado, estou tendo dificuldade em
permanecer forte.
Ele se senta, uma careta no rosto ao ver meus olhos de avelã.
— Você está chorando… por mim? — pergunta, sua voz envolta em
descrédito.
Quero falar algo sarcástico. Ao invés disso limpo as bochechas.
— Talvez.
Pestilência olha para mim como se não pudesse entender a cena.
— Você sabe que não posso ser morto — fala, baixo.
— Mas você pode ser ferido. — E eles o feriram tanto.
— Isso te incomoda? — Sua voz fica mais gentil.
Aceno para minhas bochechas molhadas e olhos vermelhos.
— Sim.
Seu olhar suaviza.
— Sara. — Ele fala meu nome com amor, e é o que me desfaz.
Eu me inclino para frente, e meus lábios encontram os dele. Seus braços
me envolvem, puxando-me conforme sua boca responde à minha,
devorando-me com tanta vontade quanto eu a ele. É fácil esquecer como ele
é forte quando está ferido, mas agora que se regenerou, sinto sua força ao
me envolver.
Ainda assim, ele está ensanguentado, e odeio isso. E odeio odiar isso,
mas não o bastante, e não estou fazendo sentido, mas honestamente, nada
na minha vida faz sentido agora, então…
— Sinto muito — digo. — Sinto muito pelo que aquelas pessoas fizeram
com você, pelo que eu fiz com você – e pelo que todo mundo fez com você
desde que chegou.
Pestilência veio para cá com uma tarefa terrível, e ele se armou contra a
atrocidade disso se convencendo que humanos são monstros. E provamos
que ele estava certo toda vez que o atacamos. É isso que o ódio faz – traz à
tona o seu pior.
Ele está apenas tendo vislumbres da nossa bondade, e ainda assim é tudo
o que precisou para suas ações pesarem em si. Porque é isso que compaixão
faz – traz a melhor parte da sua natureza para fora.
— Sinto muito por cada coisa estúpida que disse mais cedo — continuo.
— O que fizemos juntos significa algo para mim. Você significa algo para
mim.
Pestilência me abraça.
— Isso quer dizer que você vai se casar comigo?
Dou risada pelas minhas lágrimas.
— Não, não aceito pedidos de casamento por dó. Mas estou aberta a
sexo de conciliação.
Pestilência me beija mais uma vez, uma das suas mãos subindo
reverentemente pela minha bochecha e para meu cabelo.
— Não era pedido por dó, Sara — murmura.
Ele se senta, meu corpo pressionado firmemente o dele, e depois se
levanta, segurando-me em seus braços. Seus lábios encontram os meus mais
uma vez, e retomamos o beijo. Mal estou ciente que estamos nos movendo
pela casa até Pestilência me colocar na cama da suíte principal. Estremeço
com a visão de Pestilência acima de mim enquanto remove a armadura
renovada, o olhar me aquecendo o tempo todo. Ele tira a coroa por último,
colocando-a na mesa de cabeceira.
Despido de seus ornamentos dourados, ele não é mais meu Pestilência
nobre e de outro mundo, mas meu amante de carne e osso. Ele vem até
mim, encaixando seu corpo sobre o meu.
— Sara, Sara, Sara. — Suspira, beijando minhas pálpebras, minhas
bochechas, meus lábios, meu queixo. — Confesso que suas desculpas me
comoveram, mas mesmo assim são desnecessárias. Você não precisa pedir
meu perdão – você já o tem, e mais, se você apenas aceitar o que ofereço.
Acho que ele quer dizer casamento… e pela primeira vez esse
pensamento me intriga para caramba. Eu poderia me casar com ele. Ele
beija o comprimento do meu pescoço, da mandíbula até a fúrcula.
— Você tem minha misericórdia, minha mente, minha adoração, meu
corpo, minha… vida.
Poderia jurar que por um momento, ele estava prestes a dizer outra
palavra de quatro letras, mas talvez tenha sido só minha imaginação. E pela
primeira vez, estou decepcionada que ele não disse. Mas isso não faz
sentido. Vida é uma promessa grande o bastante, vinda de um homem
imortal. Sou apenas uma vaca gananciosa.
Pestilência remove rápido a camisa. Quase suspiro ao ver os músculos
densos dos seus braços e torso sarado. Minha mão vai primeiro para seu
peitoral, depois para seu tanquinho, pela primeira vez ignorando as marcas
que cobrem sua pele. Sob meus dedos, seus músculos ficam tensos, como se
sua pele fosse hipersensitiva ao meu toque.
O cavaleiro me dá um sorriso puramente masculino, curtindo minha
exploração. Ele volta a me cobrir com o corpo, erguendo minha camiseta
para expor a pele da minha barriga. Estremeço quando o ar gélido encontra
a pele exposta, mas as mãos quentes de Pestilência estão passando por ela, e
seus lábios a estão reivindicando, beijo por beijo.
— Mais uma vez tenho você para agradecer por me proteger – me salvar
— ele diz contra minha pele.
Salvar, é uma palavra importante vindo dele, o homem que é impérvio à
morte e que acredita que é poderoso demais para necessitar de resgate – ou
pelo menos costumava acreditar. Não sei quando as coisas mudaram em sua
mente, só que mudaram.
— Me diga, querida Sara — continua —, como posso retribuir?
Balanço a cabeça, olhando para ele.
— Não é algo que você precisa retribuir. Não fiz isso para que você
fique me devendo. Fiz porque me importo com você.
Seus olhos encontram os meus, suaves e brilhantes e queimando com
tanto… amor. Ou também estou imaginando isso? Tudo o que sei é que o
olhar é carinhoso demais para ser luxúria e apaixonado demais para ser
gentileza ou compaixão. Não, meus olhos não estão me enganando. Agora,
e apenas agora, estou vendo os sentimentos dele pelo que realmente são.
Amor.
Eu prendi esse homem a mim. Cultivei um apetite bem humano nele, e
esse é o resultado. Amor. Deveria ficar assustada com o pensamento, mas
um tipo estranho de excitação aparece em mim. Dessa vez, é Pestilência
que toma o controle. Suas mãos passam pelo meu corpo, jogando minhas
roupas encharcadas de sangue para longe uma peça de cada vez, seu toque
firme e forte.
Minha luxúria cresce; junto com essa deliciosa incerteza – como se o
cavaleiro conhecesse coisas proibidas que não conheço, e hoje ele irá me
apresentá-las. Acho que Pestilência tem intenção de ir devagar – eu sei que
eu tenho –, mas no final nossos movimentos são apressados. O resto das
nossas roupas são retiradas, e então são apenas centímetros e mais
centímetros de pele gloriosa.
Seus braços bronzeados tensionam conforme ele desce mais e mais no
meu torso, deixando um rastro de beijos pelo meu corpo. Ele para quando
chega no meu núcleo, e o encara por um longo segundo. E então ele
também beija ali.
Meus quadris se erguem da cama de forma involuntária. Uau.
Pestilência abre bem minhas pernas, dando-se uma vista desobstruída de
mim. Ele sorve a cena antes de subir pelo meu corpo e acomodar os quadris
entre minhas coxas. Eu o sinto grosso contra mim, seu pau pressionado na
minha entrada. Sem aviso, Pestilência me penetra. Quase gemo quando me
preenche, cobrindo-se com meu desejo.
— Senti falta disso — fala ao se afastar. Ele estoca forte mais uma vez,
seus movimentos profundos e exigentes.
Passo as mãos pelas costas dele, arrancando arrepios de sua pele.
— Eu também.
Agora que ele está perto assim de mim, vivo assim, finalmente,
finalmente posso banir os últimos pensamentos dessa manhã para os
recôncavos da minha mente. Pestilência segura meu rosto.
— Isso não é foder.
Ele escolhe agora para defender seu argumento? Ele me encara ao
estimular meu núcleo e percebo que espera uma resposta. Não posso
lembrar do meu maldito nome nesse momento.
— Hmm — falo. Isso é evasivo o bastante.
Ele se move para dentro e para fora, dentro e fora.
— Isso é fazer amor — ele afirma, não ordena.
Ele realmente se apegou ao termo com vontade.
— Me conte seus pensamentos — ele quase comanda. — Preciso ouvi-
los.
Como ele consegue pensar agora? Mas um olhar em seus olhos me faz
ficar sóbria rápido. Isso é importante para ele.
— Isso não é foder — concordo, e falo sério. Tem muito subtexto
emocional aqui entre nós. Cada toque apressado é cheio de anseio, de
amo…
— É fazer amor — Pestilência concorda, como se nós dois estivéssemos
na mesma página.
Balanço a cabeça. Estou em negação? Não? Sim?
— Fazer amor é mais lento, mais reverente… — Isso é tudo o que tenho.
O cavaleiro franze o cenho e seu ritmo – maldição – seu ritmo diminui.
Mas suas estocadas aprofundam, seu pau grosso latejando dentro de mim, e
ele revela seu olhar para que tudo o que sinta esteja bem ali, olhando para
mim. Ele está olhando para mim como se eu fosse amada. Seu polegar
acaricia a maçã do meu rosto.
— Desse jeito? — pergunta ao me penetrar lentamente.
— Sim — respondo, inquieta para caramba porque a força total do seu
olhar adorador é chocante. — Bem assim.
Seus olhos vão para meus lábios enquanto se move fundo dentro de
mim.
— E se eu te beijar, ainda vou estar fazendo amor com você?
Quase esqueço de respirar.
— Está tudo relacionado a sua intenção.
Sua boca segue o olhar até que sinto o doce roçar dos lábios dele nos
meus. O próprio toque deles ao passar pela minha boca parece carinhoso,
amoroso. E quando ele persuade meus lábios a se abrirem e nossas línguas
se tocam, isso também parece ser feito como se venerasse até mesmo o meu
gosto. Ele se afasta.
— Minha intenção foi clara?
— Muito.
Pestilência segue lento e profundo por um tempo, mas então, talvez em
resposta ao meu próprio desejo fervoroso por mais, ele começa a acelerar,
suas estocadas se tornando rápidas e fortes.
— Quero continuar a fazer amor com você, mas não posso resistir a esse
desejo…
— Então não resista.
Minhas palavras são permissão o bastante. Ele toma minha boca de
novo, e dessa vez o beijo é selvagem. Seu ritmo dobra, como se não
pudesse evitar ir mais fundo, mais rápido, até a cabeceira estar batendo na
parede. Eu enrosco minhas pernas nas dele, precisando que ele toque o
máximo possível de mim.
Cada estocada me faz queimar mais quente e mais forte. É como se eu
tivesse criado uma tempestade. Acho que é isso que acontece quando você
coloca uma força da natureza no corpo de um homem. Seus olhos se fixam
nos meus. O momento se alonga. Algo passa entre nós, algo que não vou
dar nome, mas algo que vem de mim na mesma proporção que vem dele.
Algo que me preocupa profundamente.
Eu me contenho até não poder mais, mas aquele olhar. Sou impotente
frente a ele. Com um grito, eu gozo, a sensação correndo por mim ao
clamar seu nome. Ele grita enquanto me contraio ao seu redor, seu próprio
clímax seguindo o meu. Pestilência segura minhas mãos nas dele,
prendendo-as na cama enquanto suas duras estocadas finais me atingem.
E aí o momento acaba.
Pestilência me aninha junto a si, e mesmo depois de não estar mais
dentro de mim, ainda parece ansioso para me manter por perto. Seus lábios
tocam minha testa.
— Gosto de fazer amor com você, Sara Burns.
Meu estômago dá um pulo.
— Acho que pode ser minha nova coisa favorita no mundo, junto com
isso. — Seus braços me apertam um pouco.
Passo a mão pelo seu peito e abdômen, dando um sorriso suave.
— Você prefere isso às minhas loucas habilidades de conversa? —
provoco.
— Pergunte outra vez amanhã, quando estivermos cavalgando — fala,
sorrindo. — Tenho certeza de que minha resposta vai mudar.
Aquele sorriso! Aquilo me faz perder o fôlego.
— Você só está falando isso para me agradar.
— Sara, você é totalmente agradável. Estou dizendo isso porque cada
momento com você é o meu novo favorito.
Você pensaria que começaria a me acostumar com seus galanteios, mas
como sempre, as palavras de Pestilência têm uma forma de me assoberbar.
Nós dois ficamos quietos por um tempo, e eu estou muito feliz de apenas
me deitar aconchegada nele, desfrutando dos toques preguiçosos da sua
mão nas minhas costas.
Mas quanto mais tempo fico ali, mais preocupantes meus pensamentos
se tornam. Os acontecimentos da manhã ressurgem, ainda mais arrepiantes
agora que Pestilência está em meus braços e posso sentir o peso das minhas
emoções me pressionando de todos os lados.
Esses ataques vão continuar a acontecer. Sei disso com a mesma certeza
de que tenho certeza que Pestilência sabe. Não sei por que isso é uma
revelação séria agora. Eu era, afinal, uma das pessoas que tentou acabar
com ele. Claro que vai continuar a acontecer. A humanidade é desesperada
o bastante, estúpida o bastante, corajosa, abnegada o bastante…
Vingativa o bastante.
Porque no final do dia, mesmo que humanos não o parem, eles podem
pelo menos fazê-lo se arrepender de colocar os pés na terra verde de Deus.
Eles. O pronome me gela. Nesse último pensamento, eu disse eles, não nós.
Eu me excluí do grupo.
É mais um daqueles momentos, onde o eixo do meu mundo vira. Esse
tempo todo estava tão focada em como havia mudado o cavaleiro que não
estava prestando atenção em como ele me mudou.
— Não sou sua prisioneira — sussurro.
O toque de Pestilência para. Ele não responde.
— Não sou — insisto. — Não mais. — Estou traçando uma linha na
areia.
O canto da sua boca se curva para cima.
— Aceite meu pedido, então.
Seu humor é leve – sexo costuma fazer isso –, mas estou em um humor
sombrio.
— Estou falando sério, Pestilência. Mais cedo, roubei a arma de um
homem e o ameacei com ela. Teria matado ele por você, se precisasse. —
Essa admissão machuca ao sair. — Então não, não sou sua prisioneira —
reitero —, não mais.
Por um longo momento, ele não diz nada.
— Tudo bem — Pestilência finalmente concorda. — Você não é mais
minha prisioneira.
A verdade é que acho que nenhum de nós sabe o que eu sou. Posso não
ser mais sua prisioneira, mas também duvido que poderia me afastar
livremente dele. Nesse ponto, estou cedendo à compreensão que não quero
me afastar, que me importo com esse terrível e maravilhoso ser.
— O que você fez comigo? — sussurro, procurando seu rosto.
Eu me propus a destruir esse homem, não a protegê-lo.
— A mesma coisa que você fez comigo, imagino — Pestilência diz,
colocando uma mecha do meu cabelo para o lado. — Você quer que seu
povo sobreviva, mas não está disposta que eu seja ferido. Quero que seu
povo padeça, mas não posso te machucar. Cada um de nós está preso entre
nossas mentes e nossos corações.
— Não é o mesmo — falo, rouca. — Você só está me salvando porque
Deus te enviou um sinal.
Pestilência dá um beijo na minha têmpora. Ele é surpreendentemente
bom em ficar aninhado.
— Deus pode ter intercedido por você uma vez — fala —, mas Ele não
precisou fazê-lo desde então. Você é minha, e nada – nada – vai mudar isso.
CAPÍTULO 42

PARTIMOS AO AMANHECER, E NÃO demora muito para Pestilência


começar a me cutucar para recitar outro poema. Quais eram as chances de
eu encontrar um homem que gostasse de poesia? Já que gostou de “O
Corvo”, começo “Lenore”.
— …Venha! deixe o rito funeral ser lido – a música funeral ser cantada!
Um hino para a rainha mais morta que jamais morreu tão jovem…
Não chego nem no final da segunda estrofe de “Lenore” de Poe, antes de
perceber que Pestilência não está prestando atenção. E isso depois de me
atormentar para ouvir um poema.
— E então — continuo —, a gata gostosa Lenore morreu, e as pessoas
aparentemente não ficaram muito tristes porque ela era foda e eles a
odiavam por isso e agora você quer matar todo mundo porque somos todos
babacas de proporções épicas.
Paro, esperando Pestilência dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas não
diz. Suspiro. O cavaleiro acaricia minha barriga, distraído, perdido em seus
pensamentos.
— Você já pensou em crianças? — fala, acordando das suas
ponderações.
A pergunta me pega de surpresa.
— Oi?
— Crianças — repete.
— Do que você está falando?
— Fizemos sexo sem proteção – duas vezes. Posso ser novo nessas
partes, mas até eu sei que o propósito da reprodução é reproduzir.
Uma onda de tontura e enjoo passa por mim. Coloco a mão na cabeça.
Nenhuma vez pensei em usar proteção. E agora… Ah, merda.
— Isso pode acontecer? — pergunto. — Entre nós, quero dizer.
Ele não é humano, eu me tranquilizo, e um pouco do meu incômodo
recua. Biologicamente, não somos programados do mesmo jeito. Certo?
— Não sei por que não — fala. — Posso comer e beber e fazer amor
assim como um mortal. Talvez também possa gerar uma criança assim
como um.
Bom, ali se vai minha manhã calma e tranquila.
— Mas você não sabe? — pergunto, o tom da minha voz subindo.
Tem um breve silêncio e depois:
— Sara, sinto que você está com medo da possibilidade.
Ding, ding, ding! Adivinhou corretamente.
Ele continua.
— Para uma mulher que toma minha pele dentro de si com tanto
fervor…
Jesus. Minhas bochechas esquentam.
— … Você está demasiado relutante para lidar com todo o resto que vem
com o ato.
Estou, não é mesmo? Mas em minha defesa, estamos falando sobre uma
criança.
Ele a protegeria, assim como faz com você. Não é esse o ponto, cérebro.
Não seja um idiota comigo.
Incrível, agora estou discutindo comigo mesma. Quase certeza de que
isso me faz comprovadamente louca.
— Você pensou sobre isso? — pergunto para Pestilência ao invés de
discorrer sobre seu comentário.
— Pensei.
Espero, mas ele não fala mais nada.
— E? — finalmente encorajo.
— E acho a possibilidade … excitante.
Isso o excita? Minhas partes íntimas estão felizes demaaaaaais com isso.
— Como você deve imaginar — fala —, minha excitação me perturba
muito. Estou matando sua espécie. O que acontece se eu for o pai de uma?
Quero muito limpar a garganta porque, uh, o cara também está comendo
uma pessoa da espécie, e isso não é motivo o bastante?
— Poderia ser imortal — falo, apesar de estar mais perguntando do que
qualquer outra coisa.
— Poderia ser — concorda, e meu estômago afunda com isso.
Eu poderia parir uma divindade. Um filho de Deus. Não. Não, não, não.
Nã-nani-na-não. Essa conversa está rapidamente passando de
desconfortável para minha-vagina-está-fazendo-motim-não-importa-que-
você-é-sexo-ambulante-bom-tudo-bem-talvez-importe-um-pouco-esquece-
minha-vagina-não-tem-problema-com-isso.
É isso que acontece quando se é incomodamente bonito. Minha libido
fica estúpida – correção, mais estúpida (porque vamos encarar, em um dia
normal minha libido ainda é uma biscate).
— Mas também poderia ser mortal. Humana — diz. — E eu a teria
criado, eu que fui encarregado pela destruição da sua espécie.
Aquele garoto ali fora viu muito da natureza humana, a maior parte feia.
Ele só agora está vendo a beleza dela, e em grande parte graças a você.…
Mostre para ele que a humanidade é digna de redenção.
As palavras finais de Ruth ecoam nos meus ouvidos.
Pestilência está dividido entre duas naturezas em guerra – a divina, que
exige que todos nós morramos, e a mortal, que não quer nos matar, talvez
até queira nos salvar … E cada dia que passa comigo sua natureza mortal se
fortalece. Eu a estou fortalecendo. O pensamento me deixa maravilhada, e
não é pouco.
— Então, o que você vai fazer sobre isso? — pergunto.
Seus lábios tocam a concha da minha orelha.
— O que vai acontecer, ainda veremos. Uma coisa é certa: não posso
ficar longe de você.
Minha barriga se contrai com isso. Nem eu de você. Estou ponderando se
devo emitir minha opinião quando o braço de Pestilência me aperta. Olho
para ele, mas está olhando para frente, além. Sigo seu olhar, e meus olhos
arregalam. Ao longe, entre prédios protegidos com tábuas que cercam a
rodovia, está um mar de pessoas todas vestidas de branco.
Conforme nos aproximamos, observo espantada a massa. Elas enchem a
rua, os corpos curvados em súplica. Curvados para Pestilência. Esperaram
por ele, oferecendo suas vidas por livre e espontânea vontade para essa
demonstração. Olho para o cavaleiro bem a tempo de ver seu lábio superior
se curvar em desgosto.
— Rezando para ídolos falsos — fala. — Merecem a praga que vai levá-
los.
Há menos de um segundo eu pensei que a sede de sangue dele estava
abrandando? Perdão, estava errada.
— A mesma que eu mereço? — digo.
— Você foi tocada pela mão de Deus — responde, suave.
Mais quatro pessoas de túnicas brancas estão paradas no meio da estrada,
obstruindo nosso caminho. Uma delas é um homem mais velho com olhos
enlouquecidos e cabelo acinzentado. Ao seu lado estão três jovens, lindas
mulheres.
Quando chegamos perto o bastante, o homem dá um passo à frente,
fazendo Trixie parar. Posso sentir Pestilência fervilhar atrás de mim, mas o
cavaleiro não tenta fazer sua montaria se mover novamente.
— Eu, o Profeta Ezekiel, venho até você na nossa hora de escuridão — o
homem diz. — Eu dou a você, o Conquistador, essas três mulheres para ter
e manter.
Para ter e manter? Eca.
Ezekiel parece tão magnânimo sobre sua oferta, como se você devesse
lhe dar um cookie pelo esforço que teve para conseguir essas mulheres. O
pagador de santo avança, as mulheres em seu encalço. Algo escuro e
possessivo cresce em mim com o jeito que as mulheres estão olhando para
Pestilência. Elas parecem um pouco ansiosas demais para serem as servas
do cavaleiro.
— O que é isso? — Pestilência pergunta, seu olhar passando pelo mar de
homens e mulheres de túnicas.
— Esperamos há muito pela sua chegada — Ezekiel de olhos loucos diz.
Atrás de mim, o cavaleiro grunhe.
— E elas? — Pestilência inclina o queixo para as mulheres.
— Elas são suas — Ezekiel responde.
— O que deveria fazer com elas? — Pestilência pergunta, suas
sobrancelhas se juntando em confusão. Do nosso grupo, ele é claramente o
único que não está entendendo o contexto delicado da situação.
Ele quer que você as leve para a Fodição. Obviamente. Mas mantenho a
boca fechada porque realmente quero que o agora um pouco desconfortável
Ezekiel explique.
— O que te agradar — o profeta (ah!) diz, suave. Seus olhos passam por
mim bem no momento que Pestilência aperta o braço no meu torso. Vejo
Ezekiel conter uma careta. Aw, ele estava esperando que o cavaleiro me
trocasse por uma melhor? Uma pena que Pestilência gosta do seu modelo
antigo.
— Se você fosse eu, o que faria com elas? — o cavaleiro pergunta.
— Não cabe a mim presumir — o profeta diz com humildade. Pelo
menos ele acha que está sendo humilde e modesto, com seus olhos virados
para o chão e a cabeça arqueada.
As mulheres estão ficando inquietas. Acho que todas imaginaram que
essa troca aconteceria um pouquinho diferente.
— E em troca? — Pestilência pressiona. — O que você quer em troca
dessas mulheres?
Fico tensa. O cavaleiro não está seriamente considerando isso, está? Os
olhos de Ezekiel se erguem. Eles brilham com avareza.
— Esperava que você pudesse nos poupar. — Sua mão acena para o mar
de pessoas. — Seus seguidores mais leais.
O olhar do cavaleiro analisa a multidão.
— Hmm.
O profeta parece animadíssimo com a deliberação de Pestilência. Por
fim, a atenção do cavaleiro se volta mais uma vez para Ezekiel.
— Você presume muita coisa, e me atrasa quando o faz — Pestilência
diz, a voz calma.
O rosto de Ezekiel cora.
— Quanto à barganha — o cavaleiro continua, sua voz endurecendo —,
você deseja me dar três humanas em troca de centenas – acha que sou tolo?
Pela primeira vez desde que o encontramos, o profeta parece um pouco
inseguro.
— N-não…
— Suas mulheres não seriam nada além de um estorvo para mim —
Pestilência diz, falando por cima do homem. — Quanto ao resto do seu
povo, você deveria saber a esse ponto que não posso salvá-lo. Posso apenas
matá-lo.
Minha pele formiga com suas palavras.
— Se você acredita em Deus, o que parece fazer — o cavaleiro continua
—, sugeriria rezar para Ele. É o único que pode salvar todos vocês agora.
CAPÍTULO 43

— COMPREENDI A INTENÇÃO DE Ezekiel — Pestilência diz, depois


que o profeta e seu povo ficaram bem para trás de nós. — Tem muito nesse
mundo que me surpreende, mas aquilo não o fez.
Então ele entendeu que as mulheres eram oferendas sexuais. E bem
quando o cavaleiro criou gosto pelo corpo feminino…
Ezekiel deve ter escutado os rumores que Pestilência tinha uma mulher
prisioneira, uma que não sucumbia à Febre. Deve ter pensado que se
oferecesse mais algumas mulheres poderia providenciar que seus escolhidos
sobrevivessem. Aposto que ele achou que era bem esperto também.
Passamos rapidamente por várias cidades, uma atrás da outra, parando
apenas uma vez em um posto para que eu pudesse usar o banheiro e
Pestilência pegar uma barraca e mais algumas coisinhas. Acho que vamos
acampar outra vez essa noite.
E, naturalmente, à medida que o dia termina, os céus decidem se abrir
em mais uma tempestade torrencial. Porque acampar já não é uma bosta
grande o bastante. Ao cair da noite, a chuva bate na nossa barraca e nem
mesmo o material à prova d'água é o suficiente para mantê-la para fora. Ela
penetra do chão lamacento e pelas costuras da barraca. A estrutura frágil
treme e balança ao ser açoitada.
O cavaleiro e eu estamos enrolados na escuridão.
— Então, isso é divertido — falo.
Pestilência bufa uma risada.
— Não é nossa pior noite juntos.
Não, tecnicamente não é. Que pensamento deprimente. Não posso nem o
ver na escuridão, mas seu calor está em todos os lugares.
— Pobre Trixie — falo.
Ele ainda está lá fora. Logo depois que desmontamos, Pestilência deu
uma batidinha no flanco do cavalo e a criatura trotou para dentro da
floresta.
— Meu corcel é imortal. Te garanto, ele está bem. — A respiração do
cavaleiro se espalha pela minha bochecha. — Você ainda não terminou de
recitar o poema de Edgar Allan Poe.
Dessa manhã? Ele lembra mesmo disso?
— Você estava ouvindo?
— Estava, apesar de não ter certeza de que seu poeta macabro é do tipo
que inclui “babacas” na sua poesia.
Sorrio na escuridão, lembrando quando desviei do roteiro para chamar a
atenção do cavaleiro.
— Poe tem uma boca atrevida.
— Ele tem? — Posso ouvir o sorriso na voz de Pestilência. — Quais
outros segredos bem guardados do universo você sabe?
— Hmmm. — Finjo ponderar isso. — Quarta-feira é o dia mais
subestimado da semana. Banhos quentes podem curar quase todas as
enfermidades. Catarro é a palavra mais horrível que existe – não úmido,
como minha mãe insiste. O mundo é digno de salvação, e quero te chamar
de outra coisa além de Pestilência porque, apesar do que você diz, nomes
importam.
Não tive intenção de que a conversa de repente ficasse séria, ou que eu
ficasse moralista, mas ali estava. Pestilência fica tenso ao meu lado.
— Não busco te mudar; por que você precisa tentar me mudar?
Porque você está destruindo meu mundo.
— Não posso te mudar, Pestilência, apenas você pode fazer isso.
— Escute-me, Sara: eu não vou mudar.
Agora é minha vez de ficar tensa em seus braços. Ele me vira para que
possa olhar para mim.
— Estou meramente fingindo ser um homem, nada mais — diz. — Meu
corpo não precisa de comida, ou água, ou sono, nem de todos os mistérios
da carne. Eu sucumbo a eles porque sucumbo a você.
— Ah, e esse é o único motivo? — digo, só um pouquinho ácida.
Quero dizer, dá um tempo. Ele sucumbe a todas aquelas coisas porque
gosta do sabor da comida e bebidas fortes e a sensação do corpo dele junto
ao meu. Pestilência pode não ser um homem, mas ele desesperadamente
deseja ser.
— Chega disso — fala, afiado como uma faca. — Você quer saber por
que uso essa coroa?
Posso dizer pelo seu tom que sua intenção é me machucar, me assustar,
me lembrar do monstro que ele é. Deveria contar para ele que isso, também,
é uma característica humana? Como nós mortais gostamos de afastar um ao
outro para nos protegermos da nossa própria dor?
— Sou o primeiro cavaleiro — continua —, o que foi incumbido de
desmantelar sua antiga forma de viver. Você e sua estirpe tola acreditaram
que poderiam se mover mais rápido que Deus. Vocês construíram e
inovaram e, no seu empenho, vocês roubaram a terra da sua pureza, e
esqueceram que vocês todos tinham um outro mestre.
“Vocês todos viraram as costas para Deus – sim, até você, querida Sara –
e estou aqui para fazer vocês se lembrarem.
“Sou sua mortalidade. Sou a verdade dura que seus corpos são
impermanentes, fracos, corruptos. Sou o lembrete que todos os homens
devem encarar um grande e temível acerto de contas. — A chuva troveja
com sua voz. — Isso é o que sempre fui, e sempre serei: imortal, imutável.”
Ele fica em silêncio.
— Isso é pura merda.
Sinto, e não vejo, sua surpresa.
— Acha que estou mentindo?
— Você está agindo como se não pudesse mudar, mas viver é mudar, e
agora, você está vivo. Mesmo que não possa morrer, você ainda anda entre
nós. Você ama como nós, e sente dor como nós.
Ele não responde nada, então continuo:
— Talvez o mundo tenha esquecido de Deus, e você deva despejar Sua
justiça, mas não aja como se isso não fosse uma escolha. Toda vez que você
passa por uma cidade, você escolhe infectá-la. Você escolhe matar, e
nenhum deus que você defenda vai te proteger dessa verdade.
Vários segundos passam, o bater da chuva violento contra nossa barraca
é o único som entre nós.
— Se sou um monstro tão grande — Pestilência finalmente diz —, então
isso faz o que de você, que caiu em meus braços pela própria vontade?
— Uma tola e uma idiota — falo —, mas isso não é nada novo.
— Não vou parar.
Poderia jurar que ele parece incomodado, mas não posso dizer qual parte
da nossa conversa o afetou.
— E não vou parar de falar nisso até você o fazer.
— Você não pode esperar ganhar — avisa.
— Se você acha que isso é sobre ganhar — afirmo — então você não
tem escutado nada do que falo.
— Hmm — ele pondera, passando uma mão para cima e para baixo no
meu braço enquanto olha para mim. — Você me deu muito em que pensar.
Espera, algo que eu disse na verdade o atingiu? E bem quando achei que
teria mais impacto conversando com uma parede.
— Chega disso por esta noite. Quero sentir esses lábios tolos e
maliciosos nos meus e seu corpo sob mim – pois tal é o preço da minha
companhia — ele diz, sua respiração soprando em mim.
— Terrivelmente otimista da sua parte pensar em se dar bem depois
daquele discursinho…
— Se dar bem?
— Explico depois.
— Bom. Estou cansado de declarar guerra contra sua boca. — Ele se
aproxima. — Mostre-me o outro lado de viver.
E assim o faço.
CAPÍTULO 44

DEVERIA FICAR DESCONFIADA DE DIAS como hoje, quando o sol


brilha quente e o céu está em um tom de azul cegante – o tipo de dia que
dói seus olhos e aperta seu coração. É o tipo de dia que, mesmo no meio do
inverno, te lembra como é o verão.
É um maldito dia falso, e assim como todas as coisas dolorosamente
bonitas, deveria fazer algo melhor do que confiar nele.
O acampamento de ontem à noite ficou bem para trás quando Pestilência
e eu entramos na primeira cidade do dia, nós dois curtindo o sol da manhã
enquanto conversamos.
— … Ouvi um barulho embaixo da minha pia — conto para ele, bem no
meio da minha estória —, e quando fui ver o que era, não tinha um, mas
três ratos. — Faço uma pausa dramática.
— Não entendo como isso levou ao … alarme de incêndio disparar —
fala, hesitando um pouco antes de repetir o termo. Havia acabado de
explicar para ele o que era um alarme de incêndio, e como o do meu
apartamento sobreviveu à Chegada sem problema nenhum.
— Eles correram na minha direção! — exclamo.
— E?
— E? Ratos não correm para as pessoas. — Principalmente em uma era
que as pessoas comem os tais ratos. — Então peguei uma lata de spray para
cabelo e um fósforo, e fiz um lança-chamas.
Ninguém expulsa essa vaca da casa dela. Com isso, o cavaleiro joga a
cabeça para trás e gargalha. Paro de falar só para poder me virar na sela e
encará-lo. Somente Pestilência pode brilhar mais do que o sol.
— Não me diga que você tentou machucar as criaturas? — pergunta
quando suas risadas diminuem.
— Sabe, isso é muito bom vindo de você.
Ele começa a rir novamente, e meu novo objetivo de vida é fazer
Pestilência rir mais.
— Funcionou? — ele pergunta.
— Claro que não!
Isso só faz ele rir mais.
— Bom, eu não achei que foi muito engraçado na época — falo, mas não
consigo ficar com o rosto sério. É impossível quando ele se ilumina desse
jeito.
Ele consegue controlar a risada o bastante para dizer:
— O seu trabalho é tirar seres do fogo, e não…
BOOM! Meu corpo é violentamente atirado para frente quando o mundo
explode à minha volta. Sinto o calor, o terrível e escaldante calor nas
minhas costas ao rodopiar pelo ar. Estala contra minha pele, apesar do
corpo de Pestilência me proteger do pior. Colido contra o chão, meu corpo
explodindo de dor no impacto. Ao meu redor, pedaços pequenos de asfalto
e sujeira caem do céu, sapecando-me em uma dúzia de lugares diferentes.
Fico deitada no chão por vários segundos, respirando forte enquanto
fumaça densa serpenteia pelo ar. O que diabos acabou de acontecer? Do
outro lado da estrada, Pestilência está caído, preso sob Trixie, uma poça de
sangue se espalhando da parte de trás da sua cabeça. O corpo do seu cavalo
desapareceu parcialmente, e o que resta está sangrento e chamuscado. Sinto
meus olhos lacrimejarem com a imagem.
Erguendo o torso, começo a me arrastar para eles, meus membros
gritando em protesto. Uma parte da estrada foi detonada, e é isso, mais do
que a forma inconsciente de Pestilência ou o corpo arruinado de Trixie que
me faz perceber que acabamos de sobreviver a uma explosão. Alguém
plantou uma bomba. Meu Deus.
Eles saem das árvores enquanto me arrasto para o cavaleiro, suas formas
quietas e sinistras. Há pelo menos uma dúzia deles, talvez mais e essas
pessoas não se importam em usar máscaras, diferente da última emboscada.
Sabem que vão morrer.
No entanto, eles se vestem de forma similar. Muito couro preto e pintura
de camuflagem. Gangue, minha mente completa. Seu ódio é visceral;
contorce os rostos deles e espessa o ar. Eles não serão como os outros. Não
vou sobreviver a isso.

— PESTILÊNCIA. — Tento chamá-lo aos gritos, mas minha voz está


rouca demais devido à dor e a fumaça.
Apesar de não ser possível me escutar, de onde está preso, ele vira a
cabeça lentamente para mim. Seus olhos estão carregados de medo. Por
mim, compreendo, enquanto os homens fecham o cerco.
O grupo não se importa em vir até mim primeiro. Ao invés disso,
aglomera-se em volta de Pestilência. Eles erguem Trixie do cavaleiro com
destreza, e por um momento, quase parece que o estão salvando de ser
esmagado até a morte, mas eu sei que não é isso. As pessoas não são nem
de perto altruístas desse jeito quando se trata do cavaleiro.
Um deles segura uma espingarda no quadril, apontando para Pestilência.
Novamente, o olhar do meu cavaleiro vem para mim antes de se voltar para
as pessoas que o cercam.
— Poupem minha…
BOOM! A espingarda é acionada, o cartucho explodindo o rosto de
Pestilência. Um grito de choque é arrancado da minha garganta. Alguém se
afasta do grupo. Uma mulher, percebo. Ela vem até mim, inclina a cabeça,
analisando-me como um pássaro faria com uma minhoca. O que observa, a
faz franzir o cenho.
Com um chute rápido, ela mete a bota na minha têmpora e o mundo
desaparece.
CAPÍTULO 45

ACORDO COM UM GEMIDO. Minha cabeça parece ter o seu próprio


batimento cardíaco. Tento erguer a mão para tocar minha têmpora, mas
meus pulsos estão presos nas costas. As pernas também estão atadas nos
tornozelos, prendendo-me no lugar. Pisco para dissipar o resto da minha
confusão.
Alguém me prendeu e me apoiou contra um prédio em decadência, com
a tinta gasta pelo tempo. Algumas pessoas permanecem ao meu lado, mas a
maioria está aglomerada em volta de um poste próximo. Estreito os olhos
para eles, tentando descobrir o que está acontecendo. Demoro vários
segundos, mas finalmente vejo o corpo ensanguentado para o qual encaram.
Pestilência.
Um homem grande o está amarrando na base do poste, a corda enrolada
um número atordoante de vezes em volta da forma arruinada do cavaleiro.
Pilhas de lenha estão aos pés de Pestilência. O rosto de Pestilência quase
desapareceu e a maior parte das suas costas deve estar queimada devido à
explosão. Se fosse mortal, o cavaleiro estaria morto, e não faria sentido
amarrá-lo. O fato que essas pessoas o estão contendo significa que sabem
que ele não pode morrer.
Alguém além de mim finalmente aprendeu a terrível verdade. E agora
essas pessoas estão usando isso contra ele.
Solto um grito desesperado.
Depois que o homem termina de prender Pestilência no poste, os pregos
e martelos aparecem. Mesmo quando estão aproximando os itens do corpo
de Pestilência, não posso compreender o que vão fazer; meu cérebro não
deixa. Só quando martelam o primeiro prego na pele do cavaleiro que
entendo.
Eles querem crucificá-lo.
O corpo de Pestilência dá um pulo com a dor. Um segundo prego segue
rapidamente o primeiro, e depois um terceiro, e um quarto. Seu corpo
estremece várias e várias vezes.
Começo a gritar, e depois que começo, descubro que não posso parar.
No meu ramo de trabalho, estou acostumada a ver compaixão e
sacrifício. Vi homens serem hospitalizados porque correram para dentro de
uma casa em chamas para resgatar um cachorro. Vi vizinhos esvaziarem as
despensas e abrir as casas para vítimas porque queriam ajudar pessoas
necessitadas. Vi tanta bondade. Meu trabalho sempre me mostrou que,
mesmo na pior das circunstâncias, humanos podem ser a melhor versão de
si mesmos. Nós, como pessoas, somos bons. Nós somos.
Então é muito mais chocante para mim ver esse lado da natureza
humana. O lado frio e cruel dela. Tão chocante que a única palavra que vem
à mente é inumano.
Várias pessoas ajudam a crucificar Pestilência enquanto as outras ficam
paradas em volta, contentes, assistindo seus camaradas torturarem meu
cavaleiro.
Grito até ficar rouca, implorando para pararem.
— Essa vadia chora pelo bastardo — alguém perto de mim diz,
acenando com a cabeça na minha direção.
Um dos homens vem até mim, uma espingarda apoiada no ombro.
Agachando na minha frente, ele dá uma olhada no meu rosto por um
segundo, depois me golpeia com o dorso da mão.
Escuto o urro enrolado de Pestilência no momento que minha cabeça
vira para o lado.
— Puta que pariu, Jesus, essa coisa não morre mesmo.
Rolo a cabeça de volta para encarar o homem na minha frente, a
bochecha latejando com o golpe. É apenas mais uma dor para somar às
outras.
— Pare de machucá-lo — sussurro. Meu rosto está molhado, e é a
primeira vez que percebo que estive chorando esse tempo todo.
O homem na minha frente aperta os olhos, analisando minhas lágrimas.
— Acho que temos um casal aqui. O cavaleiro e sua vagabunda humana.
Olho para ele com tristeza. É uma imagem aterrorizante, olhar nos olhos
de alguém que floresce com violência e ódio. Por toda sua carnificina,
Pestilência nunca se divertiu.
— Me diga, garota, quantas vezes você precisou foder aquela coisa antes
que ela decidisse ficar com você?
Outra pessoa chama:
— Talvez devêssemos experimentar – ver o que é tão especial na boceta
dela.
Uma mulher grita:
— Não vou ficar parada aqui enquanto todos vocês fodem ela. Se atenha
ao plano, Mac.
Mac, o homem na minha frente, olha para a mulher com irritação por
cima do ombro. Soltando a espingarda do ombro, pega uma faca de
aparência cruel do cinto. Segura as amarras nos meus tornozelos e começa a
serrá-las.
— Tente me chutar, garota — fala, baixo —, e vou garantir que todos
aqui aproveitem sua boceta.
Chutá-lo é tentador, mas minhas pernas estão fracas demais para fazer
algum estrago. Depois que corta as amarras, ele pega a arma e se levanta.
— Mova-se — ordena, chutando minhas panturrilhas. Ele aponta com a
espingarda para uma parte aleatória da estrada uns quinze metros de
distância.
Forçando minhas pernas feridas sob meu peso, levanto, e manco pela
rua, Mac atrás de mim. Consigo dar dez passos mais ou menos quando me
chuta para o chão. Ao longe, escuto risadas e um gemido agonizante.
Pestilência. Aparentemente ele tem espaço e visão boas o bastante para ver
o que está acontecendo.
— Levante-se — Mac manda, divertido.
Seguro um gemido com a dor ao me levantar, depois continuo a andar.
Alguns passos depois, ele me chuta até eu voltar ao chão. Outra vez, as
pessoas gargalham e Pestilência grita. E outra vez, Mac ordena que eu me
levante só para me chutar logo depois. Toda a cena acontece mais algumas
vezes, até a risada acabar e os gemidos do cavaleiro se tornarem um
lamento contínuo. Depois disso, eu simplesmente tropeço pela rua, meu
coração pesado como uma bigorna no meu peito.
Acho que é essa a sensação quando seu espírito se parte. Quando não
tem nada mais para acreditar. O inconquistável Pestilência foi conquistado,
esses humanos perderam sua humanidade, e eu vou morrer no dia mais
bonito do inverno.
Quando chego ao meu destino, Mac ordena:
— Fique parada aí. Bem assim.
Viro-me e olho para ele conforme se afasta de mim, sua espingarda
frouxamente apoiada nas mãos. Ele está quase de volta com seus
companheiros, alguns dos quais agora estão olhando para nós, quando Mac
aponta a arma para minha barriga. O grupo deles se organizou de forma
que, mesmo amarrado, o cavaleiro possa me ver claramente.
Pestilência dá um grito de lamento, enfraquecido, e meus olhos
encontram o que sobrou dos dele.
— Não esqueça sua misericórdia — falo para ele enquanto Mac
engatilha sua arma, colocando um cartucho no lugar. — Ou o que você
significa para mim. Teria desistido de tudo por você…
— Hey! — Mac grita. — Por que você não cala a porra da sua boca,
vagabunda? Ah… — acrescenta —, e diga oi para Satã por mim.
BOOM! Não escuto o rugido de Pestilência por cima do som da explosão
da arma. Meu corpo sacode quando uma chuva de projéteis rasga meu
torso. A dor é repentina e em todos os lugares, cegando-me e tirando meu
fôlego. Surge de uma dúzia de lugares diferentes.
Caio de joelhos. Não consigo respirar.
Escuto o urro do cavaleiro quando coloco a mão no peito e vejo meu
sangue escapar entre os dedos.
Todos os cavalos do Rei e todos os homens do Rei não podiam colocar
Humpty no lugar outra vez.
É essa frase sem sentido que se repete na minha cabeça. E sei que é sem
sentido e que minha vida está sangrando por mim e esses segundos finais
são mais preciosos do que tudo aquilo que qualquer um de nós considera
querido, mas não posso calar a boca do meu cérebro com essa rima infantil.
Mac não se dá ao trabalho de atirar em mim mais uma vez. Ao invés
disso, ri com seus camaradas sobre sua última frase espertinha ao colocar a
espingarda sobre o ombro. Alguém começa a despejar fluido de isqueiro na
madeira seca empilhada aos pés do cavaleiro. Eles vão queimar Pestilência.
Assim como eu fiz.
O último cheiro que sinto é de fumaça.
Não sei quanto tempo pairo à beira da morte.
O chumbinho não deve ter atingido nada importante, penso comigo
mesma. Outra parte de mim pensa que talvez eu já tenha morrido. Quero
dizer, como que qualquer um de nós realmente sabe como é a morte?
— Sara…
— Sara…
— Sara…
Alguém chama meu nome. Tento abrir os olhos, mas o que vejo não faz
sentido. A gangue se foi. Tudo o que sobrou da sua memória é uma pilha
fumegante de cinzas. Isso e o coto de homem que está cegamente se
arrastando para longe do que resta do fogo.
Pestilência…
— Sara — ele coaxa. Seu corpo está escurecido e seu rosto… não pode
ser chamado assim. Não posso identificar nenhuma feição reconhecível,
apesar de obviamente ter uma boca em algum lugar no meio de tudo isso, já
que ele que tem chamado por mim dos restos esfarrapados de sua garganta.
Faço algum som baixo. Não tenho vida o bastante em mim para ficar
triste, ou surpresa, ou horrorizada. A paisagem desaparece.
Quando volta em foco novamente, Pestilência conseguiu arrastar o que
sobrou de si para o meu lado. Ele curva seu corpo carbonizado ao redor do
meu, quase protetoramente.
— Sara, Sara, Sara… — Dessa vez sua voz está mais forte. Ainda rouca,
mas agora soa mais como se tivesse um caso grave de laringite do que uma
caixa vocal cozida. — Fale alguma coisa.
Deveria ser mais fácil para mim falar do que é para ele, e mesmo assim,
tudo o que consigo é um gemido baixo. Sinto o peso de um braço envolver
meu torso. Sinto me puxar para perto. E então o corpo de Pestilência
começa a tremer. Nunca soube que o cavaleiro podia chorar. Não até ouvir
os soluços dele. O som é horrível, ainda pior do que seus gritos.
— Me perdoe, Sara.
O que tem para perdoar?
É o que quero perguntar, mas não consigo formar as palavras. Minha
boca não funciona direito; tenho quase certeza que é apenas minha mente se
segurando à vida. Mesmo a dor não é mais tão ruim. Só está ali, como um
pulso.
E então fico aliviada que não posso dar voz aos meus pensamentos
porque tem muita coisa mesmo que precisa de perdão. A crueldade dele, a
minha, toda a morte e violência.
Esses prazeres violentos têm fins violentos …
Antes eram rimas infantis; agora é Shakespeare passando pela minha
cabeça. Mas Pestilência não era tão violento no final, era? Ele era triste,
estranho, e veio para a Terra com um propósito que o peguei questionando
uma vez ou duas.
Deus, por favor, não me deixe morrer.
Caso contrário, Pestilência ficará sozinho, e esse pensamento corta mais
fundo do que meus ferimentos a bala. Ficamos deitados ali, juntos, nossos
membros enlaçados. Um tipo de escuridão serena cutuca os cantos da
minha visão. Eu luto contra ela.
Mas acabo por perder a luta e escorrego suavemente para ela.
CAPÍTULO 46

SOU ARRANCADA DO SONO PELA DOR. Um grito escapa de mim,


fraco e lamentável.
Não posso estar morta se sinto dor. Certo? Você não deveria sentir dor
na morte… A não ser que esteja queimando no fogo do inferno. Sempre tem
uma possibilidade. Meus olhos abrem, e olho para uma pele em carne viva.
Preciso de um momento para focar minha visão, e então estou encarando
o rosto ainda muito danificado de Pestilência. Seus olhos se formaram outra
vez, mas seu nariz ainda não – é apenas um buraco preto – e não muito dos
seus lábios. Mas tem áreas onde pedaços pretos de pele estão se soltando.
Sob eles, sua pele está num tom avermelhado saudável, que sei que em um
dia vai se aprofundar para um bronzeado dourado.
Meu cavaleiro.
Ele olha para mim.
— Fique comigo, Sara. Fique comigo, querida.
Meu corpo balança outra vez, a dor tirando meu fôlego. Só aí percebo
que ele está andando. Não posso olhar para baixo para ver os restos
queimados das suas pernas e pés, mas ainda devem estar horrendos. Ele está
andando e – ainda mais surpreendente, – está fazendo isso enquanto me
carrega nos braços.
Ainda não vejo sinal das pessoas que nos machucaram, apesar que
devem estar em algum lugar por aqui. Ou talvez sejam como meu cachorro
de infância, que se arrastou para baixo do deque para morrer, voltando para
seu próprio canto quieto do universo para lavar o fedor do assassinato e
deixar a praga os levar.
Um relincho doloroso me tira dos pensamentos. Consigo virar a cabeça
apenas o bastante para ver a montaria de Pestilência. Trixie Skillz está
deitado de lado, a maior parte do seu corpo queimado.
Eles não pouparam nem o cavalo?
Bastardos.
Trixie está olhando para seu mestre, dando patadas fracas no chão. Não
pensei que tivesse energia o bastante em mim para lamentar, especialmente
por um cavalo imortal, mas tenho. Aperto os olhos e apoio no peito de
Pestilência, meu corpo gritando em protesto à medida que um soluço
silencioso atravessa meu corpo.
Os braços do cavaleiro se apertam à minha volta. Quando chega ao lado
de Trixie, ele se demora ali por um momento. Depois começa a andar
novamente, deixando seu corcel para trás.
O mundo sai de foco conforme pego no sono e acordo, adormeço e
acordo. Não estou dormindo. O pensamento corta minha mente grogue.
Estou perdendo a consciência. Em algum ponto, o cheiro de fumaça é
trocado pelo cheiro forte de antisséptico. Recobro a consciência com o odor,
fraca demais para erguer a cabeça ou abrir os olhos.
— …cure-a…
— …pudesse, ainda tem infecção para preocupar…
— …cuide… ou morra…
— Não.
— Não? — Isso, de Pestilência.
Solto um pequeno gemido. Em resposta, os lábios de Pestilência
pressionam minha testa.
— Fique comigo, Sara — sussurra contra minha pele.
Pressiono uma mão fraca no seu peito, meus dedos tocando a pele quente
na base do seu pescoço. Quero dizer para ele que estou bem. Para não se
preocupar comigo, mas tem um muro de dor que preciso atravessar
primeiro e pareço não conseguir.
— Você se importa com ela? — a voz do estranho pergunta.
— Eu a amo.
Meus dedos flexionam na sua pele. Preciso abrir os olhos. Preciso ver a
expressão no seu rosto ao dizer aquelas palavras. Preciso ouvi-las mais uma
vez enquanto ele olha para mim. Apesar dos meus maiores esforços, meus
olhos permanecem bem fechados.
— Você a ama?
— Foi o que acabei de dizer, humano.
Pela minha consciência turva, já posso perceber que Pestilência está
perdendo a paciência.
— Então espero que doa assisti-la morrer.
Um silêncio horrível e longo se segue.
— Que assim seja — o cavaleiro diz, solene.
Mesmo pela névoa de dor, arrepio com o seu tom. O estranho – uma
mulher, eu acho – começa a gritar. O som ecoa pelo corredor, ganhando
força. Força, ou… São outras vozes? Pare. Tento dizer, mas tudo o que sai é
um gemido.
E então as vozes estão na minha cabeça, dando vida à minha dor. Elas
crescem e crescem nos ouvidos, e sob a pele, queimando-me de dentro para
fora. Caio na escuridão novamente, e dessa vez, não é tão fácil me arrastar
para a vigília.
Pisco os olhos, observando a penumbra. Está em todo lugar – sobre
mim, abaixo de mim, à minha volta. Toco minha barriga, mas não sinto
mais dor. Eu não estou mais ferida; não tem sangue, pele rasgada, nada.
— Então essa é a mortal por quem meu irmão se apaixonou.
Semicerro os olhos a minha frente, para o brilho fraco da luz. Dela, uma
sombra começa a aparecer, sua silhueta borrada.
— Pestilência? — chamo.
— Não exatamente.
Com cada segundo que passa, a sombra se aprofunda, sua forma se
aguçando até que posso identificar a forma de um homem desfigurado.
Espera, não desfigurado, penso, ao observar os montes nas suas costas.
Alado.
Tânato.
O Quarto Cavaleiro.
Ele olha para mim, é quando percebo que estou deitada no chão – se
você pode chamar essa coisa insubstancial sob meu corpo de chão. Depois
de um momento, o cavaleiro estica a mão para mim...
— Estou morta? — pergunto, ignorando a mão.
— Momentaneamente.
Estou… morta.
Isso deveria me incomodar – assim como o cavaleiro alado e assustador
na minha frente –, mas por qualquer motivo estranho, não ligo muito para
a situação. Talvez seja esse lugar. A mão de Tânato ainda está estendida, e
relutantemente, eu a pego.
— Preciso voltar — digo quando me puxa para cima. — Pestilência
precisa de mim.
— Ah, ele precisa? —Morte inclina a cabeça, seu cabelo preto se
movendo, as ondas emoldurando o rosto como um manto funeral.
Ele é bem bonito, percebo. Assim como seu irmão. Só que a beleza de
Pestilência é assoberbante; Morte tem um rosto trágico e afiado. Ele ainda
não soltou minha mão.
— Da última vez que o vi, não precisava de ninguém. — Tânato continua
a me estudar. — Parece que ele… sucumbiu.
Não tenho ideia do que ele quer dizer.
— E você? — Morte pergunta. — Você precisa dele?
Como o ar para respirar.
— Sim.
As asas da Morte se abrem, batendo um pouco, quase em agitação.
— Seu corpo não te quer de volta, Sara Burns.
Como ele sabe meu nome? Morte aperta minha mão e suas asas
começam a bater de verdade. Sua intenção é me carregar para longe?
— Tem outras coisas que te esperam — fala.
— Quero voltar. — Não posso abandonar Pestilência. Não vou.
Os olhos de ônix de Tânatos procuram os meus.
— Poderia acabar com isso agora, e ainda assim, estou muito… curioso.
— Suas asas se fecham. — Tudo bem. Que assim seja…
Ele solta minha mão e caio para longe dele. Encaro o poderoso Morte o
caminho todo para baixo, mesmo quando sua silhueta encolhe e a luz baixa
escurece.
Caio cada vez mais…
CAPÍTULO 47

MEU PEITO ARQUEIA E RESPIRO FUNDO, estremecendo. Jesus, a


dor! Como se alguém estivesse segurando uma tocha flamejante perto do
meu peito. Forço os olhos a se abrirem e observo o quarto de hospital
esparso à minha volta. Não estou morta. O pensamento parece absurdo
depois do ferimento a bala que sofri.
Minha mão vai para o pijama de hospital. Eu afasto o tecido o bastante
para olhar o peito enfaixado. Não tem muito para ver além das ataduras de
linho, mas maldição, a dor compensa.
Estou, definitivamente, na terra dos vivos. Estar morta não podia doer
tanto, e duvido que o Além tenha esse maldito cheiro ruim. O ar está denso
com o cheiro de produtos químicos que todos os hospitais têm – como se
esse fosse o último grito de defesa da humanidade contra a doença. E
julgando pelo odor de morte que também mancha o ar, é um grito de defesa
bem fraco.
Depois de um tempo, percebo que não faço ideia de como cheguei a esse
quarto e não tem ninguém por perto para preencher as lacunas para mim.
Escuto por um minuto, forçando a audição a captar qualquer som além do
meu quarto, mas tudo está quieto. O lugar inteiro é apenas um longo e
terrível silêncio.
Começo a chutar os lençóis e em seguida sibilo.
Cristo, esse ferimento dói mais do que ser arrastada atrás do corcel de
Pestilência. A dor está por todo lado e em tudo. Agora que a despertei,
parece me cercar. Respiro fundo várias vezes, fechando os olhos contra a
pontada violenta quando meu peito infla. Quando finalmente diminui,
começo a me mover novamente, dessa vez tensa e lentamente.
Aperto os dentes para segurar a dor quando chego na porta. Preciso me
apoiar nela por vários segundos, apenas recuperando o fôlego. Vacilo. Não
vou chegar muito longe depois daqui. Ainda assim pego a maçaneta. Viro o
metal frio e abro a porta.
O cheiro me atinge primeiro. Como se a Morte tivesse abaixado as
calças e cagado. Minha garganta se fecha, recusando-se a inalar o fedor.
Meu coração começa a bater enlouquecido enquanto saio no corredor.
É quando os vejo. Dezenas de corpos inchados e apodrecendo, sentados
contra a parede ou deitados espalhados no chão. Engasgo com a imagem.
Se tivesse qualquer coisa no estômago, teria voltado. Por que essas pessoas
não evacuaram quando tiveram a chance?
Eles não quiseram ou não puderam, Burns.
E por isso morreram. O som de cascos ecoa no linóleo. Depois de um
momento, Pestilência vira o corredor, puxando Trixie atrás de si. Congelo
ao vê-lo.
Diferente de mim, que devo parecer como merda fresca (porque com
certeza me sinto assim), Pestilência está parecendo angelical mais uma vez
– incólume, imaculado, intocável. A única coisa nele que está diferente é o
rosto taciturno. Não havia percebido que o rigor havia sumido da sua
expressão – mesmo quando ele me odiava – até agora. Mas assim que me
vê, o rosto suaviza. Suaviza completamente. Pestilência solta as rédeas do
cavalo e rapidamente vem até mim. Ele segura meu rosto e me beija, seus
lábios se demorando sobre os meus.
— Você está acordada – acordada e viva. — Ele se afasta, os olhos
brilhando ao procurarem os meus.
Engulo. Deveria estar morta. Eu estive morta… não estive?
Por um momento, minha mente conjura um breve lampejo de asas, mas
depois a imagem desaparece.
— Queria estar aqui quando você acordasse. — A mão de Pestilência
desliza por mim, como se precisasse garantir que estou, de fato, viva. —
Não deixei o seu lado, não até uma hora atrás quando busquei Trixie.
Uma das suas mãos se move para cima do meu coração. Ele a descansa
ali, fechando os olhos.
— Pensei que você tivesse morrido. — Sua voz quebra. — Que você
tivesse escorregado para fora do meu alcance.
Toco sua bochecha.
— Você me salvou.
Pestilência se inclina para o toque, abrindo os olhos.
— Eu sempre vou te salvar — diz com fervor. — E o que você passou
nunca vai acontecer novamente.
Um arrepio passa por mim conforme sombras encontram seus olhos. Seu
olhar clareia após um momento e acho que posso ter imaginado tudo.
Pestilência faz uma careta.
— Você não deveria estar fora da cama, Sara.
Não deveria mesmo.
— Estou bem — falo, suave.
A careta do cavaleiro se aprofunda com a mentira. Meus olhos se
movem para além do seu ombro, onde os corpos inchados estão deitados.
— O que aconteceu? — Minha voz está baixa e rouca.
Ao invés de responder, Pestilência começa a me guiar em direção a
Trixie. Tento ficar parada, tento resistir até que me dê respostas, mas ele é
forte e teimoso demais, então o deixo me guiar silenciosamente de volta
para o corcel.
— Oi — falo, fraca, para Trixie. A última vez que vi o cavalo, ele estava
quase morto. Agora o animal abaixa o focinho e me cutuca.
Engatada atrás de Trixie está uma carroça, a caçamba coberta com um
colchão macio, um travesseiro e um cobertor. Para mim.
Uma memória turva surge.
Eu a amo.
Foi o que Pestilência disse. Pego seu antebraço.
— Eu te ouvi. — Viro-me para olhar para Pestilência ao mesmo tempo
que meu coração acelera. Não é apenas dor que me avassala, são todas essas
emoções primorosas que são grandes demais para caberem sob minha pele.
O cavaleiro olha para mim em confusão.
— Ouviu o que, querida Sara?
— Você me ama. — Minha voz oscila.
Não questiono o sentimento como fiz uma vez, quando ele ficou confuso
entre amor e luxúria. Não depois do que nós dois acabamos de passar. Ele
para. Primeiro, vejo alguma hesitação em seu olhar, como se não tivesse
certeza de como vou reagir com a novidade. Mas qual seja a expressão no
meu rosto, faz seus olhos brilharem.
— Sim, Sara, eu amo — fala, resoluto. Feroz. Como se seu amor tivesse
chegado para ficar.
Quando estou prestes a sorrir, outra memória retorna. Então espero que o
machuque vê-la morrer. As palavras fazem meu estômago embrulhar. Um
médico disse isso? Pelos trechos que lembro da conversa, foi o que
aconteceu. E nós estamos em um hospital. Faria sentido Pestilência ter
falado com um médico… um médico que queria que o cavaleiro entendesse
uma coisa ou outra sobre perda.
Foi por aí que os gritos começaram. Pensei que talvez tivessem sido
coisa da minha cabeça, mas agora que olho em volta outra vez, percebo. As
pessoas em volta têm sangue saindo das orelhas e olhos, narizes e bocas.
Vítimas da praga não têm essa aparência.
— O que aconteceu? — repito, olhando para os corpos.
Algo não está certo.
— Eles não queriam te curar. — A voz de Pestilência é fria, muito fria.
Meus olhos passam pelo corredor antes de voltar para ele.
— Todos eles?
— Chega.
Meus olhos se demoram no que costumava ser uma enfermeira, seus
olhos, ouvidos e nariz ensanguentados. Essas mortes não foram pela praga.
Foram assassinatos por vingança. Estou começando a tremer e acho que é
devido ao horror.
— Se todos morreram, então quem me curou? — pergunto.
— Teve um punhado deles que encontrei e os mantive vivos tempo o
bastante para cuidarem de você.
Tempo o bastante.
— Venha — fala, interrompendo o resto das perguntas para que possa
me ajudar a subir na carroça.
Ele me ajuda a deitar e tenho que apertar os olhos porque está sendo tão
gentil, tão cuidadoso. Mesmo que recentemente tenha exterminado um
hospital em massa, ele me trata como se eu fosse delicada.
— Não faça isso, Sara — pede, baixinho.
Ele não vai poupar a humanidade, apenas eu.
— Fazer o quê? — Forço os olhos a abrirem.
— Não aja como se eu fosse o monstro. Eles iam deixar você morrer. —
Seu olhar queima, como se ainda estivesse preso nas chamas.
— Não todos eles — sussurro.
— Chega.
Desvio o olhar do cavaleiro.
— Foi isso que fui criado para fazer! — fala com veemência. — Eles
morreram rápido. Isso não conta?
Conta. E eles teriam morrido mesmo assim. Mas os corpos que eu vi
formam uma imagem que nunca vou tirar da cabeça. Uma coisa é você ver
uma família morrer na própria casa, conversar e cuidar deles e testemunhar
suas mortes. Outra é ver um prédio cheio de corpos apodrecendo, os rostos
aterrorizados. Não posso vê-los pelas pessoas que foram um dia, e isso faz
deles muito mais grotescos. Não respondo. Honestamente, estou cansada
demais para discutir com Pestilência agora.
— Que assim seja — fala.
Que assim seja. Foi isso que ele disse logo antes de forçar sua vontade
em um ambiente cheio de médicos, enfermeiras e pessoas doentes.
Estremeço outra vez, ignorando o rosnado frustrado que deixa a garganta
dele. Ele pisa firme de volta para seu cavalo e monta na sela. Mesmo o som
da sua língua soa irritado.
A carroça dá um solavanco ao passar por cima dos corpos. Enrijeço
quando o movimento atinge meus ferimentos, a dor tão intensa que perco o
fôlego, mas é o pensamento de todos aqueles corpos que me deixa muito
nauseada.
Ele deu uma morte rápida àquelas pessoas; não deveria estar chateada.
Só que dessa vez, estava bravo quando as matou. E eu sou a culpada disso.
Pela primeira vez, uma compreensão obscura e insidiosa me atinge…
O amor de Pestilência por mim não pode salvar vidas humanas. Pode
acabar com elas mais rápido.
CAPÍTULO 48

QUANTO MAIS QUILÔMETROS COLOCAMOS entre nós e o


hospital, mais o meu horror desaparece. Agora o que estou lembrando mais
visceralmente são os gritos de Pestilência ao ser torturado e o jeito que
aquelas pessoas gostaram da sua dor. Ainda posso ver a carcaça
carbonizada do cavaleiro se movendo na minha direção, clamando por mim
da desolação do seu corpo.
Que dor inimaginável deveria estar sentindo, e ainda se arrastou até
mim. Mas ele fez mais do que isso. Lembro do corpo quebrado de
Pestilência ao me carregar em seus braços. Braços que sem dúvida estavam
completamente queimados.
Ele aguentou tudo isso para me salvar.
Até Pestilência parar Trixie – na frente de uma mansão, diga-se de
passagem – estou me sentindo triste, penitente.
Quando ele se aproxima da carroça onde estou, percebo que está
esperando outra discussão. Os ombros estão rijos e a boca pressionada
fechada. Quase posso ouvir os argumentos e contra-argumentos que passou
o caminho inteiro pensando. Mas não brigo com ele.
Ao invés disso, abro os braços.
Ele hesita, claramente surpreso e incerto das minhas intenções com esse
gesto. Por fim, ajoelha e me pega nos braços, abraçando-me como se eu
fosse a própria vida. Eu o seguro perto, apesar do meu peito pulsar como se
tivesse levado outro tiro.
— Nunca fiquei tão assustada na minha vida — sussurro.
Ele concorda contra mim.
— Por você, quero dizer.
Ele se afasta para encontrar meus olhos.
— Não quero ver isso acontecer com você de novo nuca mais — falo,
rouca.
Pestilência toca minha bochecha.
— Nem eu com você. — Mais suave, ele fala: — Pensei que estivesse
morta. — Sua voz quebra na última palavra.
Posso ter estado, penso, lembrando a visão estranha que tive de Tânato.
Ele procura meu rosto.
— Nunca senti tanto… medo. É uma emoção horrível.
Mas é.
— E nunca senti tanto ódio.
Não o culpo – o que aquelas pessoas fizeram foi doentio – e ainda assim
estremeço com suas palavras. O cavaleiro fecha os olhos, apoiando a testa
na minha. Quando os abre, estão cheios de dor.
— Esse negócio de salvar e morrer está se tornando um ciclo perturbador
entre nós.
— Está. — Mas não quero pensar nisso. Movo a mão para acariciar seus
lábios bonitos. — Diga outra vez — sussurro.
Suas sobrancelhas se juntam.
— Dizer o quê?
— Me diga como se sente sobre mim.
Seu rosto parece ganhar vida com a compreensão, os lábios se curvando
em um sorriso malicioso antes de ficarem solenes novamente.
— Eu te amo — diz. — Antes de sequer entender o termo, eu te amei.
Amo sua risada e seu humor indecente. Amo sua compaixão e vivacidade,
sua ferocidade e lealdade.
“Quis fazer você sofrer e olhe para mim agora – desesperado para te
manter nessa terra.”
O olhar suave em seu rosto me dá um frio na barriga. Uma rajada de
vento forte entra pelas minhas roupas, forçando um arrepio de mim e é o
bastante para quebrar o feitiço.
— Vamos te levar para dentro — Pestilência diz.
— Só se você continuar a me contar tudo o que sente — falo, ávida por
ouvir tudo.
— Com prazer, querida Sara. Tem muitas, muitas coisas que ainda tenho
que compartilhar. Desejo que você saiba todas elas.
Ele começa a deslizar os braços sob meu corpo, claramente querendo me
carregar. Coloco uma mão em seu peito.
— Posso me levantar — insisto.
Pestilência parece duvidar, mas se afasta. Com cuidado, passo as pernas
para o lado da carroça, sibilando um pouco ao fazê-lo. Pontos pretos
dançam nas bordas da minha visão. Aguente, Burns. Eu me forço a levantar,
o corpo gritando em protesto, os pontos pretos se espalhando. Não foi ruim
assim no hospital.
Pestilência fica parado na minha frente, todo o carinho desapareceu e
uma carranca de desaprovação cresce no rosto. Dou um passo em sua
direção e desmaio em seus braços.

Depois eu entendo que tentar andar foi um erro.


Pestilência me mantém acamada na mansão (evacuada) enquanto brinca
de enfermeira. No começo, suponho que a situação toda é temporária. Mas
um dia se transforma em dois, depois três, depois quatro, cinco – seis – sete
– oito – nove – treze…?
Os dias passam conforme meu ferimento se cura e o tempo começa a
virar um borrão até eu não lembrar há quanto tempo estamos aqui. Tempo o
bastante para descobrir que Pestilência pode ser mandão e superprotetor,
particularmente quando tento fazer qualquer coisa que se assemelha a viver.
— Não lembro de você ser assim quando chegou perto de me matar —
falo, irritada, afastando as cobertas no dia quinze? dezesseis? Vinte?
— Vou ser punido por me importar demais? — Pestilência pergunta de
onde está, parado ao lado da cama. — É isso que você está sugerindo?
Maldito seja ele por distorcer minhas palavras.
— Não vou ficar nessa merda de cama por mais uma hora. — Não é
mesmo uma merda de cama. Só que a dor e a inatividade me deixaram
irritada, isso é tudo.
— Por Deus, você vai, e se tiver que te segurar nela, me ajude, Sara, eu
vou.
Cavaleiros intrometidos também me irritam.
— Estou curada!
— Luto contra a infecção no seu corpo nesse momento! Você não está.
— Só me deixe andar um pouco!
— Para que possa desmaiar em cima de mim outra vez? Acho que não!
— Isso foi semanas atrás.
Parece ainda mais tempo. Eu preciso me mover.
— Você mal está melhor agora do que estava antes! Seu corpo frágil
ainda está muito machucado.
Corpo frágil?
— Você está sendo um bully, porra! — Fervilho.
— Sou a porra do seu salvador no momento. — Pestilência parece
totalmente farto comigo.
Não lembro de ser inflamável assim com ele antes. Ele está com medo de
que você morra, e você está com medo de deixá-lo entrar do jeito que você
quer. Ele passa a mão pelo cabelo, depois olha para a porta por cima do
ombro.
Seu corpo parece murchar.
— Não vou discutir com você — fala. O calor sumiu de sua voz. Ele
começa a se afastar e então vira nos calcanhares, recuando rápido para a
saída.
— Espere — chamo quando está quase na porta da suíte principal.
Não quero brigar. O cavaleiro para.
— Sinto muito, volte.
E ele volta, sua forma imponente sentando-se no colchão. Tudo o que
precisa é que eu mostre um pouco de vulnerabilidade e Pestilência cede,
trocando sermão por toques suaves e beijos ainda mais suaves. Ele não
passa disso, mas não importa. No momento, tudo o que quero sentir é o
alento do seu amor.
Seu amor.
Ele me dá tão livremente e a sensação é como o calor do sol na minha
pele.
Nossos dias seguem dessa forma, temperados com nossos pequenos
dramas e acalentados por confissões sussurradas e toques que nunca vão
longe o bastante. No fundo da minha mente, continuo a esperar que os
donos da casa retornem, mas nunca o fazem, e assim nossa estadia continua
caindo em um tipo de rotina.
Meus buracos de bala vão de feridas abertas para cicatrizes da cor de
framboesas, a pele ondulada e brilhante. Agora pareço uma criatura do
apocalipse, meu corpo um mapa de feridas antigas. Nunca serei como
Pestilência, cuja forma perfeita se recuperou de brutalidades selvagens sem
nem mesmo uma cicatriz. Uma parte pirracenta de mim lamenta a
suavidade da minha pele, mas a parte mais resistente de mim, a Sara-
Caralho-Burns que lutou contra incêndios e removeu um cavaleiro do seu
corcel com um tiro para proteger sua cidade, está apenas feliz de ter
escapado da morte.
Eu não deveria ter escapado. Várias vezes não deveria ter escapado. E
agora sou honesta o bastante comigo mesma para admitir que Pestilência
sempre foi o motivo disso. Ele salvou minha vida várias e várias vezes. E
agora, sua única razão para estar aqui – espalhar a praga – foi colocada em
hiato.
Tudo para que Pestilência possa cuidar de mim.
Amor tem um jeito engraçado de reorganizar as prioridades. Começou a
reorganizar as minhas. E ainda assim… Eu me sinto incomodada com essa
trégua temporária. Por mais amoroso, enfurecedor e carinhoso que
Pestilência seja, a rigidez que vi pela primeira vez no hospital ainda
permanece em todas as suas feições.
Ficamos naquela mansão abandonada por tanto tempo que o mundo acha
que ele desapareceu. Sei disso porque essa casa tem, entre outras coisas,
uma televisão que funciona.
Ainda mais chocante do que a notícia do “desaparecimento” do cavaleiro
é o quanto os jornalistas sabem sobre mim. Tem algumas fotos desfocadas
de mim e do cavaleiro, uma de quando eu ainda era oficialmente sua
prisioneira, meus pulsos atados, e outra tirada mais tarde, enquanto estava
montada em seu cavalo.
Os jornalistas não sabem o que fazer sobre mim. Eles não sabem se sou a
prisioneira de Pestilência ou a amante (“C”, todas as anteriores) dele, ou o
que aconteceu conosco. Todo o negócio parece terrivelmente confuso para
eles – deveriam me condecorar ou condenar? Eles decidiram por pena.
Pestilência entra no quarto principal onde estou enfurnada – ainda na
maldita cama – sua silhueta grande preenchendo o portal. Ele tira o arco e
aljava e os coloca ao lado da porta. Depois tira a armadura. Ele deixa a
coroa na cabeça, o cabelo sob ela bagunçado pelo vento.
Sei sem perguntar que estava patrulhando o terreno. Não que precise.
Qualquer um que chegar um pouco perto desse lugar vai ficar doente. Acho
que faz isso mais porque está inquieto. A necessidade de se mover por toda
a terra do homem e espalhar a doença deve corroê-lo por dentro.
Ele não é um homem paciente. Exceto, claro, quando diz respeito a mim
e ao meu ah-tão-frágil corpo humano.
Ele se senta na beirada da cama, a expressão no seu olhar me fazendo
arrepiar. Tem amor ali, mas sob ele, tem aquela mesma frieza. Não sei o que
fazer disso. Pestilência ergue a barra da minha camiseta e passa um dedo na
pele irregular. Ele se inclina e beija uma das cicatrizes.
— E pensar que se só um desses projéteis tivesse acertado em outro
lugar, poderia ter te matado.
Percebo o tremor bem leve que passa pelo seu corpo com a menção.
— Como você se sente? — ele pergunta.
— Curada.
Pestilência semicerra os olhos para mim. É a mesma resposta que tenho
dado para ele todo dia durante semanas. E há algum tempo é verdade, mas
tente convencer um ser que não pode morrer e que não sabe intuitivamente
quando um humano está totalmente curado.
Pego sua mão e o puxo para o meu lado. Pela primeira semana mais ou
menos que estava me recuperando, ele se deitava na cama comigo,
segurando-me, sua mão descansando sobre meu coração, só para que
pudesse sentir o ritmo constante. Mesmo depois que se tranquilizou que eu
sobreviveria, ainda deitava comigo, pressionando o corpo perto e pegando
no sono quando se permitia.
Mas dormir e aconchegar era tudo o que ousava fazer comigo.
Agora rolo para cima dele.
— Sara — protesta.
— Não sou uma boneca de porcelana — falo, movendo-me para montar
seus quadris. — Não vou quebrar tão facilmente.
— Você e eu sabemos que isso não é ver…
Eu o silencio com um longo e lento beijo. Acho que ele quer resistir, mas
Pestilência ainda está tão abalado pelos mistérios da carne (como ele diz)
que não faz muito para impedir isso.
Suas mãos se erguem para segurar meu rosto quando meus lábios abrem
os dele. Passo alguns segundos apenas inalando sua essência antes da minha
língua pressionar a dele. No momento que o faz, suas mãos deslizam para
meus braços, segurando-me firme.
Minhas próprias mãos afundam em seu cabelo, tirando sua coroa do
lugar. Ele tem bom senso o bastante para colocá-la na mesa de cabeceira.
Remexo os quadris sobre ele, que solta um gemido.
— Sara, você ainda está se recu…
— Parece que estou com dor? — pergunto.
Ele franze o cenho para mim, mas não discute. E nem luta comigo
quando removo primeiro sua camisa, depois o resto das suas roupas. Mas
também não me ajuda.
Em algum ponto, no entanto, suas atitudes mudam. Ele começa a me
encontrar, toque por toque, beijo por beijo, até estar no comando. Suas
mãos deslizam apressadas por mim e não tem pele o bastante para suas
mãos ásperas cobrirem.
Ele engancha um braço ao meu redor e nos vira, deixando-me de costas e
olhando para ele. Bonito para caralho. Não sei se algum dia vou me
acostumar com sua aparência.
Pestilência remove minhas próprias roupas com habilidade, jogando-as
para o lado sem cuidado. Uma vez que estou nua, seu olhar percorre meu
corpo, parando na junção entre minhas coxas. Ele abaixa, pressionando os
lábios no meu núcleo. Arqueio contra ele em reflexo. Ele abre minhas
pernas e continua a beijar bem-no-meio-das-minhas-coxas.
Cristo.
— O-O que você está fazendo? — pergunto sem fôlego.
Começo a me sentar, só para ele me empurrar de volta para a cama.
— Suponho que seja óbvio — afirma. Ele me dá uma mordiscada, e ah,
Jesus, ele é safado para caralho. Onde ele aprendeu ser safado assim?
Ele desliza a língua e sente meu gosto. Solto um gemido, minhas costas
arqueando da cama.
— Assim você vai me matar — murmuro.
Ele se afasta na hora. No momento que vê minhas bochechas coradas e
olhar atordoado, sua expressão preocupada se transforma em uma satisfação
masculina. Tenho quase certeza de que ninguém deu aulas de anatomia para
Pestilência (além de mim), mas ele descobriu bem rapidinho que meu
clitóris é a fonte de todo bem e toda maravilha do mundo.
O cavaleiro retoma suas carícias e sua língua esperta me faz pular e
contorcer sob ele. Sua respiração quente sopra contra mim enquanto ri.
Pestilência pode ter sido um novato nisso, mas o aprendiz definitivamente
está superando o mestre em tempo recorde.
— Ugh — solto um gemido. — Paa-pare. Demais. Pare.
O filho da puta não para. Ele continua e continua e…
Solto um grito, meus quadris erguendo da cama no momento em que a
sensação correndo por mim me cega pela sua intensidade.
Pestilência não me dá tempo o suficiente para me recuperar. Ele sobe
pelo meu corpo.
— Você me convenceu.
— Ahn?
Ele envolve seu quadril com minhas pernas. Sinto seu pau bem na minha
entrada, duro e insistente.
— Você está curada.
E então ele me penetra.
Outro gemido escapa de mim quando seu pau grosso me alarga. Faz
séculos desde que fizemos isso. Pestilência tem sido tão cuidadoso para não
me machucar ou cutucar minhas feridas que é um choque que de repente
está dentro de mim.
É uma surpresa ainda maior sentir sua energia frenética. Seus
movimentos não são lentos e reverentes, ou mesmo divertidos e
exploratórios. Ele estoca em mim como se não pudesse ir fundo o suficiente
e me aconchega contra ele como se não pudesse me segurar apertado o
bastante. Sua boca queima minha pele ao beijar meu ombro, um dos meus
ferimentos, meu pescoço, meus lábios.
Suas mãos seguram minhas pernas, trazendo-me mais perto.
Bam – bam – bam!
A cabeceira bate na parede várias e várias vezes até tinta e um pouco de
gesso se soltarem. Os olhos de Pestilência brilham intensamente. E não é
apenas amor que estou vendo. É amor, angústia e um desespero possessivo
e – o mais estranho de tudo – perdão. No entanto, não posso compreender
isso agora. Não com seu pau me preenchendo e esfregando em todos os
lugares certos.
Pela segunda vez, caio em um abismo. Eu me contraio ao seu redor,
puxando-o para perto de mim. Com um gemido, ele goza no encalço do
meu clímax, investindo em mim como se sua vida dependesse disso.
Quando começa a voltar a si, ele me beija em todos os lugares, os lábios
roçando cada trecho de pele exposta. Toda aquela energia masculina pura se
convertendo em algo dolorosamente doce e reverente.
Ele me abraça, embalando meu corpo contra o seu. Não há nada como
estar pressionada pele na pele com o homem que me faz sentir totalmente
em paz com o mundo. Minhas pálpebras começam a abaixar.
Ainda não solucionei o problema do contraceptivo, penso, preguiçosa.
Pestilência dá um beijo na minha têmpora.
Ele seria um bom pai.
Não posso acreditar que acabei de ter esse pensamento…
Eu me aconchego mais perto dele conforme me permito pegar no sono.
Um dos seus dedos passa pela minha barriga. Seu corpo escorrega para
longe do meu e sua voz se infiltra nos limites do meu sono.
— Sinto muito, Sara. Estava esperando por isso e pensei que talvez…
talvez quando você estivesse melhor eu mudaria de ideia, mas não mudei.
Só tenho mais certeza do que preciso fazer.
Procuro a mão dele, mas não a acho.
CAPÍTULO 49

NA MANHÃ SEGUINTE, VOU PARA A cozinha, tentando não deixar


Pestilência ver como uma ação simples como da noite anterior me deixou
tão cansada.
Não deveria ter me importado. Pela primeira vez, o cavaleiro nem está
prestando atenção. A televisão na sala de estar está ligada, e Pestilência está
parado na frente dela, os braços cruzados, encarando a tela com uma
expressão sombria.
Dou uma olhada no aparelho, só para ver o que prende a atenção dele.
— …Notícia Urgente: um surto virulento de Febre Messiânica pela
Costa Oeste e Noroeste do Pacífico, espalhando-se para o México.
Governos locais e estaduais estão rapidamente tentando deixar sob
quarentena as áreas infectadas. Nenhum vislumbre do cavaleiro ainda. Por
favor, fiquem em suas casas e evitem centros da cidade. Repito, por favor,
fiquem em suas casas e evitem centros da cidade. Para todos aqueles
afetados: nossas preces e pensamentos estão com vocês.
Meu estômago afunda.
Fico parada ali por um longo tempo, sem falar, sem reagir, apenas…
encarando que nem boba a televisão. A reportagem se repete de cinco
maneiras diferentes, a informação regurgitada para preencher os minutos
vazios. Estão mostrando fotos do Central Park tiradas depois que
Pestilência passou pela cidade meses atrás, com suas valas comuns cheias
de corpos. Depois imagens de Toronto e Montreal aparecem, as poucas
fotos que alguém tem da Febre. Tem até algumas de Vancouver e Seattle,
lugares que vi com meus próprios olhos.
Mas agora novas filmagens se juntam às antigas. Um vídeo trêmulo de
um hospital em São Francisco aparece, o lugar cheio de moribundos. Outra
de Los Angeles, onde as pessoas estão morrendo nas ruas, seus olhos
fundos e rostos corados com o princípio da febre. São Francisco, Los
Angeles. Esses lugares estão a estados de distância.
Fico gelada.
Consigo tirar os olhos da tela, e agora, agora Pestilência está olhando
para mim. Ainda tem aquela maldita desculpa nos seus olhos, mas nenhum
remorso. Nenhum. No seu lugar está uma frieza familiar.
Minha garganta se move. Não quero perguntar, porque se tornaria real, e
isso não pode ser real. As palavras vêm assim mesmo.
— O que você fez? — sussurro.
— Meu propósito.
CAPÍTULO 50

NÃO CONSIGO RESPIRAR.


Nesse exato momento, toda a Costa Oeste da América do Norte é uma
terra devastada. Na minha cabeça, vejo todos aqueles corpos mortos
deitados no corredor do hospital. Tento imaginar uma cidade assim, duas
cidades – inferno, estados inteiros assim –, mas não consigo. A escala dessa
devastação é inimaginável. Minha mente não me permite compreender esse
tipo de perda.
Dentre os vários milhões estão mães, filhas, filhos, irmãos, amigos,
amantes, avós, crianças e bebês. Pessoas que significam algo para outro,
inocentes, pessoas boas. Pessoas que merecem viver. Agora, todos estão
morrendo.
Pestilência não pode ter feito isso. Pestilência, que questiona a
moralidade das suas ações. Pestilência, que me ama. Ele não o faria.
Nós nos encaramos. Espero ver algo defensivo nos olhos de Pestilência –
ele sempre precisou se explicar no passado – mas não há nada ali. Nenhuma
culpa, nenhuma defesa, nenhuma tenacidade teimosa. Seu olhar frio é
firme.
Porque ele fez isso. Mais do que isso, ele planejou isso. Todos os sinais
estavam presentes. Seus humores negros, o gelo em seus olhos azuis, a
suave lembrança do pedido de desculpa que murmurou para mim ontem
quando deixou meu lado.
— Como? — O tamanho da devastação é muito maior do que antes.
Antes, Pestilência precisava passar por uma cidade para infectá-la. Agora
seu alcance parece ser ilimitável, estendendo-se por milhares de
quilômetros para longe de nós.
Ele deve entender o que estou perguntando porque responde:
— Sempre tive esse alcance. Só nunca senti vontade de usá-lo antes.
Não até me conhecer. De alguma forma, sou a faísca que iniciou esse
terrível feito.
— Desfaça — sussurro.
— Está feito — fala, sua expressão intransigente.
Estou balançando a cabeça. Não pode estar feito. Eu me recuso a
acreditar nisso.
— Você curou minha infecção, pode desfazer isso — insisto, minha voz
oscilando.
Não posso ser a única sobrevivente na Costa Oeste. É um tipo único de
inferno.
— Mas eu não vou.
Mas eu não vou.
— Por favor.
Ele retesa com as palavras. Por favor. Começou como uma maldição
dita entre nós, um apelo vocalizado apenas para que pudesse ser negado.
Mas no meio do caminho, por favor se tornou redentor. Só que agora,
Pestilência não quer ser redimido.
Maldição, ainda posso sentir parte dele entre minhas pernas. Estou
dolorida em todos os lugares que seu corpo me tocou ontem, seu amor tão
intenso quanto apaixonado. Ele não pode ter deixado meu lado todas
aquelas vezes só para amaldiçoar um bom pedaço da América do Norte.
— Por favor, Pestilência. Por favor … amor.
Nomes significam muito. Uma rosa pode ter o mesmo valor não importa
o nome que dê a ela, mas a forma como você a vê pode mudar. E vejo
Pestilência de forma diferente – tenho feito isso há um tempo. Mas chamá-
lo por um nome que escolhi, dar-lhe um apelido carinhoso e mostrar a ele
que é mais do que o significado do seu nome, eu não era corajosa o bastante
para isso, até então.
Mas não tenho nada mais a temer. Não frente a essa situação. O
cavaleiro para. Vejo a frieza partir em seu olhar.
— Você não esperava isso, né? — digo. — Eu te amar. — Sei que eu não
esperava. E não sei em qual momento introspectivo a compreensão caiu
sobre mim, mas o fez. — Talvez seja uma tola e uma traidora, mas sou sua.
— Estou piscando para segurar lágrimas. — Mas maldição, você não pode
fazer isso.
Ele dá um passo na minha direção, depois mais um, seus olhos morrendo
um pouco, como se quisesse me tocar, mas soubesse que não vou permitir.
Não agora, com todo esse sangue em suas mãos.
Isso nunca te incomodou antes, Burns.
Mas isso foi quando pensei que pudesse mudá-lo – pará-lo. Deveria
saber melhor.
— Poderia viver com o que aqueles homens fizeram para mim, cruel
como foi — Pestilência diz.
Minha mente volta para o cavaleiro amarrado no poste, a maior parte do
seu rosto indistinta.
— Mas quando eles atiraram em você… — Sua voz corta com a emoção
e percebo meu erro fatal. — Você nunca deveria ter me mostrado o amor,
querida Sara — fala.
Todo esse tempo, presumi que amor iria redimir o cavaleiro e salvar
todos nós. Deveria saber que iria apenas nos condenar a nossos destinos
terríveis.
— Se você agora entende o luto — digo —, então você sabe o que está
tirando dessas pessoas.
Sua mandíbula tensiona.
— Não é mais do que merecem.
— Não é mais do que eles merecem? — falo, horrorizada. — De quem
você está falando? Rob? Ruth? Eu?
A boca de Pestilência tensiona em uma linha fina.
— Você parece pensar que discutir sobre isso vai mudar o destino dessas
pessoas.
— Você e a mudança. — Balanço a cabeça, amarga. — Não sei por que
você pensa que é incapaz disso.
— As pessoas mudam, Sara, mas os cavaleiros não. Não importa o que
você pensa de mim; sou e sempre serei Pestilência, o Conquistador.
Ele não vai ceder. Posso ver agora. Deveria ter visto isso antes, quando
ainda poderia ter protegido meu coração um pouco melhor.
— O que acontece agora? — pergunto. Imediatamente me arrependo da
pergunta, meu estômago revirando com pavor.
— O mundo acaba.
— E eu? — digo, a desolação já se esgueirando em mim.
— Você vai ficar comigo.
Ele não pergunta; nem fala como se fosse um desafio. É dito com
completa autoridade. Concordo lentamente. Pestilência deve sentir que algo
está errado porque dá outro passo na minha direção.
— Não — falo.
Se ele tentar fazer qualquer um de nós se sentir melhor – vai partir o que
sobrou de mim.
E tem tão pouco sobrando para quebrar. Olho em volta. Não posso ficar
no mesmo ambiente que ele. Estou sufocando com toda essa tragédia. Viro
nos calcanhares, ansiosa para me afastar dele.
— Sara — ele me chama antes que possa escapar. Sua voz é paciente.
Eu paro.
— Um dia você me disse que nomes não importam — falo, ainda de
costas para ele —, que como eu chamava você não importava.
Olho para Pestilência por cima do ombro.
Amor. Acho que nós dois podemos ouvir meu apelido carinhoso de mais
cedo no ar entre nós. Sua expressão é desconfiada ao inclinar a cabeça.
— Eu lembro.
— Você está errado, sabe — afirmo. — Eles importam.
Pestilência é o pior da sua natureza. Vislumbrei o melhor dele, mas
aquela parte sua, aquele futuro, não é mais do que um fio de possibilidade,
como fumaça dissipando no vento.
Deixo-o após isso.
CAPÍTULO 51

EU ME AFASTO DELE TEMPO O BASTANTE para pegar minhas


coisas – o pouco que tenho. Não é muito mais do que as roupas que uso.
Olho para o quarto principal por um longo tempo, sentindo como se meu
coração estivesse se desfazendo pedaço por pedaço.
Por que você não podia ter se apaixonado por um garoto normal e
depois tido uma morte normal ao seu lado? Por que você precisava
escolher um cavaleiro? Por que você precisava se colocar entre ele e o
mundo?
Todo esse tempo tem sido um cabo de guerra mortal entre amor e
lealdade. Como eu me iludi que não chegaria a isso, ainda não sei.
Coloco as botas, pego o casaco emprestado e depois vou para a porta da
frente. Pestilência ainda está onde o deixei, ainda parado em guarda na
frente da televisão, ainda consumido pela sua própria fúria. Passo reto por
ele, indo na direção do hall de entrada.
— Aonde você está indo? — chama, sua voz cheia de autoridade. Ele
não parece assustado, perdido ou incerto.
Ele não tem mesmo ideia? Eu o ignoro, abro a porta e saio. Do lado de
fora – está frio, caralho. Cambaleio um pouco com a temperatura. É um
frio molhado e cortante que penetra sob sua pele e se infiltra em você.
Minhas orelhas já estão começando a formigar. Ergo o capuz do casaco.
Você nunca vai sobreviver a isso, enfraquecida como está. Mal equipada
como está.
A porta abre atrás de mim.
— Aonde você está indo?
Paro com a voz de Pestilência. Agora tem algo nela além de raiva
contida. Algo que ainda é confiante demais para ser preocupação. Acho que
pode ser choque e um toque de confusão.
— Retornar à humanidade — falo.
— Não te libertei.
— Não estava ciente que era sua prisioneira — retruco.
Claramente ele parece ter esquecido esse pequeno detalhe.
— Você é minha.
Puxo o casaco mais apertado.
— Não sou de ninguém — afirmo com veemência.
O cavaleiro faz uma carranca para isso, mas não tenta argumentar. Eu o
avalio.
— Vamos dizer que eu fique. O que você vai fazer quando todas as
outras pessoas morrerem?
— Vou permanecer.
— O que você vai fazer quando eu morrer?
— Vou te manter viva — insiste.
Procuro seu rosto.
— Mesmo que você pudesse, mesmo que pudesse me proteger de todas
as tentativas de acabarem com minha vida – porque terão mais, contanto
que eu fique com você – você não seria capaz de me manter viva para
sempre. Um dia, envelheceria. Envelheceria e morreria, e então você estaria
sozinho novamente, só que agora, não existiriam mais humanos, apenas
você.
— E meus irmãos — acrescenta, baixo.
Jogo as mãos para o alto.
— Tudo bem, você e seus irmãos assassinos. — Irmãos que estiveram
ausentes durante esses longos anos. — Mas tirando eles, você estaria
sozinho.
Meu corpo está começando a tremer de frio e os olhos de Pestilência vão
direto para o movimento.
— Pare com essa tolice, Sara. Venha para dentro — diz, mais gentil. —
Vou te aquecer.
Eu lhe dou um olhar incrédulo.
— Você ainda não entendeu? Você está matando todo mundo. Você
achou mesmo que eu ficaria com você depois de algo assim?
— Você ficou comigo antes — o cavaleiro diz acaloradamente, mas não
perco a faísca de medo no fundo de seus olhos.
Solto uma risada sem graça.
— Isso era quando pensava que você odiava o que estava fazendo com
meu mundo.
Quando pensava que você poderia mudar.
Esse não é o detalhe mais horrível de todos? Finalmente consegui o que
queria – Pestilência mudou, só que não para melhor.
— Estou fazendo isso para te vingar!
— Nunca pedi pela sua vingança — falo. — Pedi pela sua misericórdia.
Pestilência recua com a palavra como se tivesse levado um tapa. É a
mesma palavra que salvou minha vida na noite que tentei matar o cavaleiro.
A palavra que me salvou todas as noites desde então.
Misericórdia.
— Você algum dia pensou que a misericórdia do seu Deus nunca foi
para mim? — pergunto. — Que talvez fosse para todo mundo?
Não, não havia, se sua expressão era indicativa de algo. Viro-me,
começando a andar para longe, só para sentir a pressão quente dos dedos de
Pestilência no meu cotovelo.
— Se tiver que te amarrar a mim, eu vou — Pestilência afirma. — Mas
não vou deixar você ir.
Viro-me para encará-lo. Por todas suas notáveis exigências, seu rosto trai
seus reais sentimentos. Posso ver o pânico total em sua expressão. Ele não
havia antecipado isso.
— Pestilência — falo, minha voz calmante —, você pode me forçar a
ficar com você, mas não pode me forçar a querer ficar com você.
— Mas você quer ficar comigo — insiste. — Você me chamou de amor.
Desvio o olhar.
— Eu chamei.
— E você me ama.
Meu coração bate mais rápido. Posso não ter dito as três palavras, mas o
cavaleiro fala a verdade.
Meus olhos se movem para ele.
— Amo — concordo. — E não é o bastante.
Ele dá um passo cambaleante para trás.
— Não é o bastante?
Acho que posso estar machucando-o mais do que qualquer arma algum
dia o fez.
— Não é o bastante para superar outros sentimentos que estão em seu
coração — falo. — Você claramente odeia mais a humanidade do que se
importa comigo.
As narinas de Pestilência dilatam, mas ele segura uma resposta. Ele não
nega. Ai.
— Amor deveria trazer à tona as melhores partes de você — continuo,
lembrando-o da nossa conversa logo após Ruth e Rob falecerem. — Não as
piores — acrescento baixo.
— Fiz isso porque eu te amo — diz com fervor. Tem mais medo em seus
olhos do que antes.
— Amor não funciona dessa forma.
Mas claro, tem outras coisas que andam de mãos dadas com amor –
coisas grandes e tenebrosas. Coisas que pela primeira vez, Pestilência está
começando a sentir.
Você o deixou entrar no Jardim do Éden, você o deixou provar o fruto
proibido. Você deu a ele o conhecimento de bom e mal, e agora vocês dois
estão pagando por isso.
Dou um passo para trás, memorizando seu rosto.
Preciso partir agora, antes que ceda e volte para ele. Nunca me
perdoaria se fizesse isso. No entanto, parece que meu coração está sendo
rasgado no meio com a ideia de partir.
— Adeus, Pestilência.
Dou meia volta e me forço a descer os degraus que levam para longe da
mansão.

Não dei mais do que cinco passos antes do cavaleiro me alcançar. Ele me
ergue e me carrega para dentro, fechando a porta da frente com um chute ao
passar.
— O que você está fazendo? — protesto, contorcendo-me em seus
braços.
Sem resposta. Agora começo a lutar de verdade.
— Me solte.
Ele me coloca no chão da sala. O lugar roda um pouco quando fico de
pé. Tão fraca. Fraca demais. Mas não posso ficar aqui. Volto para a porta, e
outra vez ele me pega e me afasta com o próprio corpo. Novamente, assim
que me coloca no chão, vou na direção da porta. Ele me impede.
— Sara, não posso deixar você partir.
Ele está me implorando com os olhos, e sei que vê o que eu sinto: não
estou forte o bastante, recuperada o bastante. Todas aquelas semanas de
viagens, todos os ferimentos, mesmo com o descanso, meu corpo não está
pronto para mais. E ainda assim sigo em frente.
— Pestilência, não faça isso ser pior do que já é — quase imploro. —
Estou partindo, com sua benção ou contra sua vontade, mas não vou ficar
mais um minuto aqui.
O olhar no seu rosto pulveriza o que resta de mim. Posso ver seu coração
se partindo na minha frente. O lamento puro permanece apenas um
momento, e então suas feições endurecem. Sem uma palavra, ele me ergue
novamente.
— O que você está fazendo? — Eu luto em seus braços. — Pestilência,
me solte!
Ignorando minhas exigências, ele me leva para o quarto principal e me
coloca na cama. Até eu sair dela – levando alguns segundos a mais para
deixar a vertigem passar – ele já chegou na porta. Com um olhar de
despedida, sai e a fecha atrás dele. Corro atrás dele e pego a maçaneta. Eu a
viro, mas a porta não abre. O cavaleiro deve estar mantendo-a fechada.
— Pestilência, me deixe ir. — O tom da minha voz sobe com o pânico.
Ele não quer seriamente me manter aqui, quer?
— Você vai me perdoar — fala, baixo, do outro lado da porta.
— Me solte! — grito mais alto. Mas ele não o faz.
Pestilência isola as janelas do quarto principal com tábuas, e bloqueia
todas as portas que levam para fora. Não antes de eu sair correndo algumas
vezes e ele ter que me arrastar de volta, mas por fim, consegue bloquear
todas as saídas, deixando-me presa do lado de dentro. E assim volto a ser
sua prisioneira.
Pelo menos o cavaleiro é esperto o bastante para manter distância. Eu o
vejo apenas algumas vezes pelo resto do dia, quando traz comida e água,
seus olhos tristes e assombrados.
Acho que talvez qualquer loucura que tenha acometido Pestilência vai
passar. Que por fim ele vai desbloquear as janelas e abrir a porta e implorar
por perdão. Mas nunca acontece. Um dia emenda no outro e ele permanece
longe, vindo até mim apenas para que possa me alimentar. Nem mesmo
durante a noite ele entra no quarto para explicar seus sentimentos aflitos por
mim, ou para cair no sono pressionado contra minhas costas.
Meu corpo sente saudade dele, meu coração sente saudade dele. O
último está morrendo sob minhas costelas, odiando suas traições e ainda
assim o querendo. Não tento escapar. Qual é o propósito? Não posso me
esgueirar de Pestilência despercebida.
Tento não pensar nas milhões de pessoas mortas que devem estar
apodrecendo no mesmo lugar em que morreram. A televisão permanece
desligada por esse motivo. Não posso suportar assistir ao jornal e ver todos
aqueles corpos. Não quando tive um papel (mesmo que sem saber) nas suas
mortes.
Só me resta folhear os poucos livros no quarto ou recitar poesia da
memória.
Algumas vezes posso fisicamente sentir a presença de Pestilência por
perto – ouvindo o som da minha voz, parado do lado de fora da porta. O ar
parece saturado com todas as coisas que ficaram não ditas e inacabadas
entre nós. Coisas que foram deixadas para apodrecer ao lado de todos
aqueles corpos mortos. A vida segue dessa maneira por dias, e então uma
semana inteira.
Isso vai mesmo se tornar o nosso novo normal? Pestilência me mantendo
como um pássaro enjaulado, fadado a não morrer e nem viver plenamente?
Quando a porta abre no oitavo dia, Pestilência parece derrotado. Seus
olhos azuis estão cabisbaixos, e seu cabelo loiro-dourado não tem o brilho
habitual.
— Não posso fazer mais isso — admite. — Eu me rendo.
Congelo onde estou sentada na cama. Pestilência, o Conquistador, se
rendendo? Ele remove a coroa da cabeça e a joga no chão entre nós.
— É sua — fala, amargo. — Posso ter conquistado o mundo, mas perdi
você, a única coisa que realmente quis.
Meu pulso acelera ao olhar primeiro para a coroa descartada, depois para
o homem que a usou.
— Você está livre para partir — fala. — Não vou te impedir.
Seus olhos estão desolados. As sombras se foram, mas também qualquer
faísca de esperança que um dia tiveram desapareceu. Quando tocam os
meus, ele olha para mim como se estivesse se afogando. Deveria estar
exaltada, justiçada de alguma forma, mas aquilo é apenas mais dor para
acrescentar ao resto.
Por vários segundos, não me movo.
— Maldição, Sara, se você quer sua liberdade, parta antes que eu recobre
meus sentidos!
Saio da cama, pegando minhas coisas uma por uma, mantendo um olho
desconfiado nele. Eu meio que espero que ele bata a porta fechada na minha
cara a qualquer momento. Isso deve ser algum truque. Mas não parece ser.
Passo pela soleira do quarto, parando para encará-lo.
— Vá e se junte a sua raça condenada — fala, seu olhar relutantemente
encontrando o meu. Como queima! Ele tem dor para combinar com a
minha. — Mas não espere que eu te mate.
Tarde demais, ao que parece, ele descobriu o significado da palavra
misericórdia.

Depois de tudo que Pestilência fez, não espero que minha partida me
magoe tanto. Pensei que meu coração tivesse sido abusado o bastante para
esquecer que pertence ao cavaleiro. Estava errada.
Não olho para Pestilência quando o deixo na entrada da casa. Andar para
longe me causa dor o bastante. Ver qualquer emoção que enche seu rosto
pode me fazer vacilar. O cavaleiro não usa mais sua coroa. Ainda está
esquecida no quarto. Vou para a rua, cada passo me cortando mais e mais
fundo. Perdi todo o resto – família, amigos, vizinhos. Deixar Pestilência vai
sangrar as últimas partes de mim.
Para onde deveria ir? Quantos quilômetros terei que andar para encontrar
vida? Vou morrer antes disso? Sei que Pestilência não vai permitir que eu
sucumba à praga, mas existem outras formas de morrer. Poderia morrer de
fome, poderia perecer devido ao clima. E se eu não morrer, então o quê?
Um passo de cada vez, Burns.
É só quando chego na estrada que me viro. A mansão em que estávamos
fica em uma pequena colina. Parado como uma sentinela na porta está o
cavaleiro. Pestilência me observa, seu rosto solene. Por um segundo, acho
que vejo esperança faiscar em seus olhos.
Ele acha que estou mudando de ideia.
Eu me fortaleço, viro-me para a rua mais uma vez e me afasto.
CAPÍTULO 52

NÃO ESCUTO A NOVIDADE. Não por semanas e semanas. Ainda


assim, deveria saber. A verdade estava tão na minha cara. Ao invés disso,
precisa de um posto perto da divisa do Canadá para me convencer sem
sombra de dúvidas.
— Aquele maldito cavaleiro se foi. Juro pelos novos mortos que foi — o
homem diz, apoiado no balcão de pinho enquanto somava minhas compras.
A imagem do próprio homem, vivo e se movendo pela loja, é
surpreendente o bastante, mas até aí, encontrei outros no meu caminho
subindo de volta pela costa. Presumi que a presença deles tivesse a ver com
Pestilência espalhando sua praga apenas na direção sul.
Agora encaro o dono da loja, sem entender a novidade.
O mundo pensou que Pestilência tivesse partido quando estávamos
reclusos naquela mansão, mas depois que parti, supus que retomaria suas
viagens.
— Você quer dizer que ele não foi avistado novamente? — pergunto,
abobalhada.
Ele balança a cabeça. Nenhum novo vislumbre dele. Uma sensação
incômoda contorce meu âmago, mas não posso dizer o que causa isso.
Talvez não tenha mais ninguém vivo para avistá-lo. O território de
Washington até a Califórnia é vasto… vasto e cheio de mortos.
— Você não ficou sabendo? — o dono pergunta quando percebe minha
surpresa.
— A última notícia que tive foi que Oregon, Califórnia e partes do
México estavam infectados — falo. Mesmo agora um arrepio passa por
mim com o pensamento. Tive parte nisso.
O homem solta uma risada ofegante, pegando uma caixa fina sob o
balcão. Ele a abre, e tira os ingredientes de um cigarro de dentro e começa a
enrolar.
— Ah, você perdeu bastante coisa.
Intencionalmente. Criei o hábito de evitar conversa fiada como essa, a
culpa é um tipo de doença. Mas agora que estamos no assunto de
Pestilência, uma curiosidade doentia se apodera de mim. Descubro que
preciso saber quanto do mundo ainda vive – e como meu cavaleiro se saiu.
Ouvir que Pestilência não ressurgiu desde que o deixei… A perda parece
física, como se um membro tivesse sido cortado.
O dono do entreposto termina de enrolar a cigarrilha, lambendo a borda
do papel branco para selar.
— Tenho o prazer de te contar que todos os doentes se recuperaram. —
Ele balança a cabeça. — Foi um maldito milagre. — O homem acende um
fósforo e segura a chama na ponta do cigarro, dando uma tragada grata. —
Não sou um homem religioso, mas até eu fiz uma prece quando ouvi a
notícia. Pensei que Ele tivesse nos deixado para morrer.
Espera – o quê? Olho para ele em choque.
Todos os doentes se recuperaram. Não consigo recuperar o fôlego.
— Você quer dizer… todos aqueles doentes, eles… sobreviveram? —
digo, incrédula.
Não pode ser. Eu estava com o cavaleiro. Eu vi sua raiva, testemunhei
sua vontade inabalável. É impossível que tenha mudado de ideia.
— Sim — o homem diz, alegre o bastante, soltando fumaça pelo canto
da boca. — Mesmo nós aqui no Norte nos recuperamos – o jornal não se
deu ao trabalho de mencionar isso. — Ele franze o cenho, como se fosse um
grande absurdo quando ah, meu Deus, todos aqueles milhões sobreviveram.
— A maldita praga voltou bem quando estava reabrindo a loja —
continua. — Pensei que tivesse encontrado a morte.
Há dores no meu peito que são partes iguais de alegria e angústia. Não
quero acreditar nele porque, se entendi errado, a decepção pode me esmagar
viva. Apoio as mãos no balcão ao perder o equilíbrio. Meu Deus.
Pestilência retirou sua praga. Eu não sei como, mas o fez. Ele deve ter feito
isso enquanto estava confinada naquele maldito quarto. Havia pensado o
pior dele no momento e durante todo o tempo ele estava curando a praga
com a qual assolou as massas.
A única coisa além do seu amor que eu jamais quis. Ele me deu.
Se eu apenas tivesse ligado a porra da televisão, teria visto isso.
Pestilência parou a praga, e ainda assim o deixei. Engulo um grito
engasgado. Por que ele não me contou? Por Deus, isso teria mudado tudo.
— E a Febre — pergunto, de alguma maneira encontrando a voz —, se
espalhou desde então?
Tenho que ter certeza de que entendi isso corretamente. O dono do posto
franze o cenho, considerando minhas palavras.
— Não que eu saiba, mas quem sabe em que pé está o mundo esses dias?
Não voltou por essas partes, e isso é bom o bastante para mim.
Agradeço o homem pelas novidades, e deixo o posto atordoada. Meu
último encontro com Pestilência preenche minha cabeça.
Eu me rendo, ele havia dito, jogando a coroa de lado. Ele já havia
revertido a praga nesse ponto. Posso ter conquistado o mundo, mas perdi
você, a única coisa que realmente quis. Por que ele não disse nada? Pensou
que eu estava assistindo jornal naquele quarto, que tinha visto que ele havia
curado todo mundo e ainda assim decidi me afastar?
Esses pensamentos estão acabando comigo. Porque ainda estou
apaixonada por Pestilência, e agora, depois de se vindicar, ele se foi.
CAPÍTULO 53

ATÉ RETORNAR À MINHA CIDADE natal de Whistler, escuto relatos


suficientes e histórias em primeira mão para acreditar no inacreditável. A
praga realmente desapareceu no decorrer de dias. Apenas… puf,
desapareceu, e o cavaleiro com ela. Tento não pensar nisso. Meu coração
dói o suficiente sem isso.
Descubro que, como eu, as pessoas não acreditaram nas notícias – não
no começo, pelo menos. Semanas sem incidentes precisaram passar antes
que qualquer um ousasse ter esperança de que a Febre Messiânica
realmente tivesse acabado e o cavaleiro tivesse desaparecido.
Depois as pessoas começaram a ter esperança – daquele jeito ridículo
que fazemos – que outras coisas fossem voltar ao que um dia foram. Que
eletricidade começaria a funcionar como deveria, que as baterias
segurariam carga, e talvez até a internet voltaria.
Esperaram em vão.
O mundo nunca voltou ao que era. Duvido que um dia volte.
Sem o cavaleiro ao meu lado, ninguém me reconhece como a garota que
ele sequestrou. Apesar das poucas fotos desfocadas que uma vez
circularam, nenhuma pessoa ligou os pontos.
Quando finalmente chego em casa, recebo uma boas-vindas de herói – a
bombeira que desafiou o cavaleiro, a mulher que todos pensavam há muito
estar morta. Meu pai me abraça por um longo tempo, e minha mãe chora
abertamente. Estou balbuciando como um bebê quando os vejo vivos. A
praga nunca os pegou. Nossa reunião é tocante, ridícula e linda, e eu amo
para caralho meus pais.
Quando volto para o Quartel do Corpo de Bombeiros, Luke é o primeiro
que me vê. É quase cômico, o jeito que o choque estampa seu rosto.
— Puta que pariu, caralho! Burns! — Ele quase vira a cadeira na qual
está sentado quando me vê. — Você está viva!
— Você também!
É surpreendente vê-lo depois de todo esse tempo. Ele parece um pouco
mais magro, não que eu estivesse surpresa. Sobreviver um inverno
canadense depois da Chegada é difícil o bastante. Sobreviver um inverno
canadense no meio da floresta congelada é quase impossível. E foi isso que
ele e todos os outros sobreviventes precisaram fazer para escapar da praga.
A exclamação de Luke chama a atenção dos outros, que logo estão
dando tapinhas nas minhas costas e me puxando para abraços, Felix entre
eles. Todos eles escaparam com suas vidas, todos, exceto…
— Briggs? — pergunto, meus olhos procurando por ele.
Pode apenas ser seu dia de folga. Alguém fica sério.
— Não sobreviveu.
— Ele… não? — Meu bom humor despenca. Era eu que deveria ter
batido as botas, não ele.
Com certeza ele teve tempo o bastante para escapar.
— Eles precisaram de ajuda no hospital. Ele voltou mais cedo para
ajudar os doentes.
E morreu por isso. Quanto mais olho em volta, mais percebo outros
homens ausentes.
— Quem mais?
— Sean e Rene. Blake. Foster.
Tantos.
— Todos morreram no cumprimento do dever — outra pessoa
acrescenta.
Deveria saber. Socorristas sempre vão colocar suas vidas em risco pelos
outros. Me dá aquele formigamento sob a pele.
Deveria ter sido eu. Mais de uma dúzia de vezes, deveria. Pestilência
parou a praga totalmente por sua causa, uma voz suave sussurra no fundo
da minha mente. Claro, aquele pensamento vem com sua própria dor
estranha.
— Como você escapou do cavaleiro? — Felix pergunta.
Estão todos olhando para mim. Temi essa pergunta desde que percebi
que teriam sobreviventes em Whistler. Têm tantas coisas pelas quais preciso
responder, e não sei o que incluir e quanto dizer. Então mantenho o simples.
— O cavaleiro… me mostrou misericórdia.

Surpreendentemente, a vida volta ao normal. Ou pelo menos, o mais


normal que posso esperar nesses dias. Eu volto a morar no meu
apartamento, apesar de passar algumas semanas agonizantes transportando
minhas coisas da casa dos meus pais – para onde levaram quando
presumiram que estava morta – de volta para minha residência.
No encalço do meu retorno, as pessoas têm perguntas – tantas perguntas.
Como você sobreviveu ao cavaleiro? Onde você esteve todos esses
meses? Por que você demorou tanto para voltar para casa?
Para a maioria das pessoas, fico tranquila em dar meias respostas. Para
aqueles que importam, dou meias verdades. Em algum ponto, não posso
não dar; a verdade está me matando sufocada. Mas mesmo assim, não conto
tudo – como o jeito que me apaixonei por um monstro, ou como no final,
ele salvou todas nossas vidas miseráveis. Como recitei poesia e o senti
mudar de um pesadelo para um homem.
Não posso me desvencilhar da solidão que agora sinto. Percebi pela
primeira vez no caminho de casa, quando me abriguei em casas
abandonadas ou caminhei por quilômetros de neve intocada. E agora que
estou em casa, ela parece surgir de todos os lados. Estou me afogando na
minha solidão e não importa quanta companhia eu tenha, isso não elimina a
sensação.
Mas nem isso pode comparar à terrível sensação de voltar a uma antiga
vida quando tudo agora é diferente. Como tentar enfiar um quadrado em um
círculo. Odeio isso, mas não tem nada melhor para mim em nenhum outro
lugar, e assim, fico aqui nesse apartamento enfadonho, e todos os dias vou
para o Quartel do Corpo de Bombeiros e finjo que estou bem quando não
estou.
Não estou mesmo.
Algumas vezes, minha mente vaga para quais impossibilidades poderiam
ter ocorrido se Pestilência fosse um homem humano. Como seria estar com
ele sem aquela bagagem. Mas até aí, se fosse humano, Pestilência não seria
Pestilência, então acho que não vale a pena ponderar a possibilidade.
Algumas coisas simplesmente não são para acontecer, suponho.
Agora, com um copo de vinho caseiro e muito suspeito na mão, releio
um livro muito amado. Antes de Pestilência, poderia ter folheado minha
coleção de Shakespeare ou Lord Byron (vadia literária da pesada aqui), mas
os grandes foram arruinados para mim. Particularmente Poe. Sua alma
escura e o coração macabro são similares demais aos meus.
Uma batida na porta me faz colocar o livro de lado.
Enquanto pestanejava, quase cochilando, de repente, veio um ruído,
como de alguém, suavemente, batendo na porta do meu quarto.
Cala a boca, Poe, ninguém pediu seu comentário. Posso estar ficando
louca para valer. Levantando-me, olho do vinho na minha mão para a
espingarda apoiada no canto do sofá. Tenho duas mãos, e preciso de uma
para abrir a porta. Então, o que vai ser – arma ou vinho? Decisão difícil.
Visitantes noturnos sempre são suspeitos, e não estou muito confiante esses
dias, mas… no final, vinho.
Copo na mão, abro a porta da frente.
— Sara.
Derrubo o vinho, o som de vidro quebrando mal sendo registrado.
Pestilência preenche o portal, seu cabelo loiro-dourado emoldurando o rosto
como um halo. Sua coroa desapareceu, o arco desapareceu, a armadura
dourada desapareceu. Mesmo suas roupas são diferentes, não são escuras e
imaculadas. Ele está usando uma camisa de flanela e jeans, e nos seus pés
estão botas humanas gastas.
— Pestilência — ofego, meu coração acelerado. Não pode ser real.
— Não sou mais Pestilência — fala, permanecendo ali parado, sem
ousar se aproximar.
É tão insuportavelmente difícil olhar para ele. Ainda parece um anjo,
mesmo com roupas humanas. Algum dia ele não vai parecer com algo
divino? Mas é mais do que sua beleza estonteante. Demorei um longo
tempo para admitir para mim mesma o quanto eu me apaixonei por ele.
Tarde demais, percebi que amava tudo nele – seu coração, sua mente, sua
própria essência. Mas mesmo quando percebi, eu lamentei porque, nesse
ponto, ele havia partido.
E agora não sei o que fazer, se diminuo a distância entre nós ou me
mantenho longe dele. Não sei em qual estado ele está vindo até mim. Eu o
deixei… quebrado. Mordo minha bochecha.
— Eles disseram que você apenas desapareceu.
Ele procura meu rosto, e talvez estou apenas imaginando, mas parece
que está tentando memorizar todas minhas feições.
— Posso fazer várias coisas, Sara, mas desaparecer não é uma delas.
Uma onda de alívio segue essa declaração.
Ele não pode apenas desaparecer e me deixar. Dou um passo para o
lado, abrindo mais a porta.
— Quer entrar?
O olhar de Pestilência vai para o apartamento atrás de mim, seus olhos
faiscando com interesse e um desejo tão feroz que faz meus joelhos
fraquejarem. Meu cavaleiro voltou por mim. Ele entra com cuidado, vidro
triturando sob as botas. Sua atenção está em todos os lugares, analisando
cada pequeno detalhe da minha humilde vida.
— Onde estão suas coisas? — pergunto, suave, ao fechar a porta, os
olhos passando por ele outra vez. O arco que nunca estava longe do alcance
do seu braço, a coroa que quase sempre decorava sua cabeça, a armadura
dourada que o fazia parecer tão de outro mundo – tudo sumiu.
Eu me rendo, ele havia dito.
Ele se vira para me encarar.
— Servi meu propósito.
O que isso quer dizer? E por que isso me enche de temor?
— E Trixie? — A criatura também serviu seu propósito? Isso me
mataria.
Pestilência acena com o queixo por cima do ombro. Só agora, quando
consigo tirar os olhos do cavaleiro, me importo em olhar pela janela. Na
escuridão além dela, vejo a mera sombra da sua montaria. Trixie Skillz, o
corcel em cujo dorso cavalguei durante todas aquelas semanas, refugia na
escuridão, suas rédeas amarradas em um poste de iluminação quebrado.
Viro-me para encontrar Pestilência parado perto de mim, os olhos me
devorando como um homem faminto.
— Como me encontrou? — pergunto.
— Nunca te deixei.
Franzo a sobrancelha.
— Vamos, Sara — fala vendo minha confusão —, não iria deixar você
escapar da minha vida tão facilmente. Sou teimoso demais e nem de perto
nobre o bastante.
O que ele está dizendo? Que o tempo todo que caminhei de volta para
cá, ele me seguiu?
— Além do mais — continua —, você ainda estava se recuperando, e
não confiava em seu corpo frágil para fazer a jornada de volta.
Não posso respirar o suficiente. Ele se importava. Mesmo quando
pensou que eu não o fazia, ele nunca desistiu.
— Então você me seguiu?
Ele concorda. E eu nunca soube.
— Por que você nunca se fez presente?
Pestilência olha para suas botas.
— Você havia tomado sua decisão. Queria respeitar isso. — Ele dá uma
risada autodepreciativa, cutucando um pedaço de vidro quebrado com a
bota. — Mas no fim, não consegui.
E estou tão feliz por isso.
— Você parou a praga — digo.
Ele encontra meu olhar, sua expressão se tornando reservada.
— Eu parei.
— Por quê? — pergunto, procurando seu rosto.
Os olhos de Pestilência são profundos e verdadeiros.
— Porque o amor traz o seu melhor à tona.
Engulo em seco. Se os últimos meses foram um pesadelo, esse é um
sonho maravilhoso, um onde consigo tudo o que quero. Não confio nisso.
Aprendi a esperar que as coisas que parecem boas demais para serem
verdade, com frequência não são. Por que a única coisa que quero mais do
que qualquer outra deveria seguir uma lógica diferente?
— Na última vez em que nos vimos, por que você não me contou que
curou os doentes? — pergunto. Isso teria evitado meses dessa agonia.
O olhar de Pestilência é agoniado.
— Minha cabeça estava uma confusão na época. Eu… não havia me
comprometido com minhas ações, nem mesmo depois de as colocar em
prática. Nem depois que te deixei ir. Precisei de semanas de contemplação
para aceitar minha decisão. Meu coração falou primeiro; minha mente
seguiu.
Sua expressão se torna intensa.
— Nunca deveria ter deixado você partir. Deveria ter te ouvido,
conversado com você, lutado por você. Só agora estou aprendendo como os
humanos são complexos.
Meu coração bate enlouquecido com suas palavras. A esperança está
começando a correr pelas minhas veias, e isso me assusta para caramba
porque tudo o que a esperança faz é te preparar para uma decepção, e não
sei se posso aguentar mais uma.
— E a praga – desapareceu para sempre? — pergunto.
Pestilência dá um sorriso triste.
— Sara, sempre vai existir enfermidade e doença – isso não posso
mudar. Mas minha praga de origem divina nunca vai infectar outra pessoa.
Eu… servi meu propósito — fala outra vez.
E novamente, aquela única frase me preenche com um temor estranho.
Puxo as mangas da camisa.
— O que acontece com você agora que serviu seu propósito? — Estou
orgulhosa que minha voz não treme como o resto do meu corpo está
começando a fazer.
Não deveria ser possível sentir tanto assim. Excitação, ansiedade e medo
estão todos fervilhando dentro de mim. Mas a maioria é medo, medo pelo
meu cavaleiro. Eu nunca perguntei o que aconteceria se ele simplesmente
parasse de disseminar a Febre. Provavelmente deveria.
Os olhos azuis de Pestilência alfinetam os meus.
— Venha comigo e descubra.
Aquela dor no meu peito aumenta, mas agora dói com algo que está
entre dor e prazer.
— Tem tantas coisas entre nós — falo. Tantas coisas insuperáveis. Eu o
quero tanto que dói, mas juro que parece que é a única coisa que não posso
ter, mesmo depois que todos os seus erros foram corrigidos.
Pestilência fecha o resto da distância entre nós. Gentilmente, pega
minhas mãos, olhando para meus dedos.
— Posso não ser mais Pestilência, o Conquistador, mas vou lutar pelo
que quero, e quero você. — Seus olhos se erguem para os meus. — Me diga
que também me quer.
Estou parada na beirada de um precipício. Tudo o que tenho que fazer é
dar um único passo, e então tudo pode mudar. Tudo vai mudar.
Ele aperta minhas mãos.
— Volte para mim — ele diz. — Recite Poe, Byron, Dickinson e
Shakespeare. Conte-me suas histórias humanas, compartilhe comigo suas
memórias. Deixe-me experimentar sua comida e beber seu vinho. Deixe-me
fazer amor com você e segurar-te em meus braços até o amanhecer.
Compartilhe sua vida comigo.
Fico parada ali, ainda congelada, ainda certa de que ele é uma visão
criada para assombrar meus dias. Certa de que vou acordar. As mãos de
Pestilência sobem para segurar meu rosto.
— Estava errado – sobre a humanidade. E estava errado tantas vezes
quando se tratava de você. Perdoe-me.
Pressiono os olhos fechados, depois os abro. Ele ainda está ali, ainda está
olhando para mim com seus olhos tristes.
— Volte para mim, Sara — repete. — Por favor.
Aquelas malditas palavras. O mundo fica distorcido pelas lágrimas nos
meus olhos.
— Ainda vou morrer um dia — sussurro.
Ele concorda, solene.
— Eu sei.
— E você está tranquilo com isso?
Seu polegar acaricia minha bochecha.
— Sara, não sei quantos minutos você tem, ou eu tenho, mas sei que
quero passar todos eles com você.
Meu coração bate forte no peito.
Olho para seu rosto, seu rosto angelical com aqueles olhos tristes e
solenes. Ele realmente poderia ser um anjo – talvez seja um anjo, se tais
coisas existem. Eu não sei. Não sei muito de nada, exceto que alegria é algo
estranho, e a sinto agora com ele assim como senti centenas de vezes antes
em centenas de pequenos momentos entre nós.
Ergo a mão e envolvo seu pulso.
— Se você não é mais Pestilência, o Conquistador, então como você
gostaria que eu te chamasse? — pergunto, inclinando-me um pouco em seu
toque.
Ele me dá um sorriso tímido e vulnerável.
— “Amor” tinha uma sonoridade legal.
— Tudo bem, amor — falo, percebendo seu pequeno sorriso com o
apelido carinhoso —, os minutos que eu ainda tiver – são seus. Eu sou sua.
Ele demora um tempo para registrar. Os olhos do meu cavaleiro ainda
estão assombrados, e ele parece como se a esperança o tivesse abandonado
completamente em algum lugar de volta em Washington. Mas aí entende e
todo seu rosto se transforma.
Primeiro seu olhar se ilumina, suas sobrancelhas se erguendo, e então um
sorriso que poderia competir com o sol se espalha pelo seu rosto.
Ele abaixa e toma meus lábios, e o beijo é um fim e um começo juntos.
CAPÍTULO 54

GOSTARIA DE DIZER QUE TUDO DEPOIS daquele minuto foi um


conto de fadas lindo de tirar o fôlego. Gostaria de dizer que não arrastei o
traseiro inumano de Pestilência para meu quarto e maculei meus lençóis
como a doida safada que sou. Gostaria de dizer mil coisas para retocar a
merda da noite, mas aí, essa é história de outra garota.
O beijo mal começou quando vai de doce para selvagem e desesperado.
Ele é meu oxigênio e não pude respirar durante meses. Meus dedos vão para
os botões da sua camisa de flanela, mas minhas mãos tremem tanto de
necessidade e desejo e toda-essa-maldita-adrenalina que parece que não
consigo abrir nenhum.
Pestilência me empurra contra a parede, seu quadril esfregando no meu.
— Senti tanto sua falta — fala entre beijos. — O amor é intolerável
quando estraga.
Mas, milagre dos milagres, esse amor não estragou. Pode nos ter
destrinchado de dentro para fora, mas no final não nos transformou em
monstros. Ele impediu Pestilência de matar o mundo, e me fez forte o
bastante para me afastar dele quando não era digno.
E, no final, trouxe ele de volta para mim.
Avanço nos botões de Pestilência outra vez enquanto o cavaleiro tira
minha camiseta. O resto das nossas roupas seguem rápido conforme guio
Pestilência para o quarto. Apenas uma fraca lamparina a óleo tremeluz na
escuridão. Bom, ela e as marcas estranhas do meu cavaleiro, as últimas que
não esmaeceram nem um pouco. Eu as toco com reverência enquanto ele
me deita na cama.
— Ainda estão aqui — falo.
Ele trilha beijos da minha boca, para minha bochecha, para minha
orelha.
— Claro que estão, Sara. Elas não podem simplesmente sumir de mim.
Viro-me e dou risada em seus lábios.
— A Terra te deixou espertinho.
— A Terra me deu uma mulher esperta e ela me deu uma boca
espertinha.
Sua mão vai para meu seio, e arfo com seu toque ao acariciar a pele
suave. Pestilência estava certo de chamar o amor de intolerável. Não posso
imaginar como consegui sobreviver tanto tempo sem ele me tocar. Eu o
envolvo com minhas pernas, querendo mais – precisando mais.
— Faz tanto tempo — sussurro, e meus olhos ardem.
Ah, Deus, vou chorar. Estamos prestes a transar e vou chorar. Mas então
Pestilência está ali, seus lábios pressionando primeiro no canto de um olho,
depois no outro.
— Tempo demais — ele concorda. — Mas tudo isso acabou. Não tem
mais necessidade de tristeza, Sara. Suas pessoas estão salvas, e você está
nos meus braços.
Sua boca se move mais para baixo, agora muito ocupada sentindo o
gosto da minha pele para me dizer todo tipo de coisa bonita. O que
provavelmente é melhor porque meu núcleo está pulsando muito. Ele beija
meus seios, tomando primeiro um mamilo, depois o outro, na boca. Eu me
contorço contra ele conforme seus toques me incendeiam.
Durante todo o tempo, o pau de Pestilência queima contra minha coxa.
Como ele tem paciência para preliminares nesse momento, não faço ideia.
Mas até aí, sempre fui a criança que bisbilhotava meus presentes de Natal
antes de serem embrulhados, então… talvez quando se trata das coisas
divertidas, eu só sou apressada.
Pestilência se afasta o bastante para nos encaixar. Por um instante,
parece iluminado por trás, seu cabelo dourado luminoso, seu corpo
brilhando na escuridão. E nesse instante, ele é algo divino. E então o
momento passa, e ele é um homem outra vez.
Ele me penetra, seu pau grosso fazendo uma pressão extraordinária.
Posso senti-lo em todos os lugares. Meu cavaleiro exala, olhando para mim
com olhos lindos e terríveis.
— Meu Deus — sussurra.
Se não estivesse me sentindo tão emotiva agora, teria feito algum
comentário sarcástico sobre não usar o nome de Deus em vão (ele aprendeu
esse hábito ruim comigo). Poderia até ter dado risada ao saborear a conexão
intensa entre nós dois. Ao invés disso, pego seu rosto, seu glorioso rosto,
nas mãos.
— Eu te amo — sussurro. Ele precisa ouvir. Eu preciso dizer. Aquelas
palavras estavam presas sob meu peito por tempo demais.
Ele se move dentro de mim, os olhos presos nos meus.
— Eu também te amo, Sara Burns.
E então ele me mostra o quanto.

Depois, nós dois deitamos emaranhados nos lençóis, e poderia ficar aqui
para sempre, minha orelha pressionada no seu peito, seu coração batendo
embaixo de mim. Ele acaricia minhas costas nuas.
— Tem uma coisa que guardei — diz. — Uma coisa para a qual minha
coroa e armadura ainda serviram. Gostaria de ver?
Concordo contra ele, apesar de não ter nenhuma ideia do que está
falando. Só estou feliz demais para pensar sobre qualquer coisa exceto o
fato que Pestilência estar aqui em meus braços. Gentilmente, Pestilência me
move para o lado para que possa sair da cama e ir para a sala. Não posso
imaginar o que está vindo.
Trago os lençóis para o corpo e me sento no momento que Pestilência
volta para o quarto. Ele ajoelha ao lado da cama e ergue a mão, seu punho
fechado com força. Um por um, seus dedos se abrem, e na palma, está um
pequeno aro de ouro.
Seus olhos brilham.
— Case comigo, Sara. Por favor.
Minha respiração para enquanto encaro o anel, que parece
impossivelmente perfeito.
Feito do resto das suas regalias douradas. Isso foi o que ele quis dizer
quando disse que tinha guardado algo da sua coroa e armadura. Meu olhar
se ergue para ele. E então sorrio.
— Sim.
Vou me casar com um cavaleiro do apocalipse. Estico a mão e o deixo
colocar o anel no meu dedo trêmulo. Vou me casar com Pestilência.
— Espere — falo afiada.
Meu cavaleiro ergue as sobrancelhas.
— Espere? — repete, parecendo incrédulo. — Você está tendo…
dúvidas?
Posso ver que ele tem dificuldade em dizer a última parte dessa frase.
— Não, mas… quero te chamar de algo que não seja Pestilência. Não
apenas um apelido carinhoso, mas um nome de verdade.
Por bem ou por mal, ele é um homem. Precisa de um nome adequado.
— Você quer dizer, como Trixie? — pergunta, completamente sério.
Deus, não. Não assim.
— Hm, um nome humano.
Na hora me arrependo de mencionar a palavra humano – é um de seus
gatilhos. Mas Pestilência não parece enojado pela ideia. Na verdade,
parece… intrigado. Ele pensa por apenas um segundo ou dois antes de
dizer:
— Tudo bem.
— Tudo bem? — ecoo.
Sério, foi fácil assim? Ele ri um pouco com minha expressão de surpresa.
— Confesso, pensei nisso desde o dia que nossos caminhos divergiram.
Da última vez que conversamos, ele não acreditava em nomes pessoais.
Ele era Pestilência, e Pestilência era quem ele era. Ele era seu propósito, e
era tudo o que alguém precisava saber. Em algum ponto de todos os dias e
semanas que passamos separados, ele mudou de ideia.
— Como você gostaria de ser chamado? — pergunto.
Seu polegar gira o anel no meu dedo.
— Victor — fala, a sombra de um sorriso crescendo em seu rosto.
Ergo as sobrancelhas. Não sei o que estava esperando. Não é como se
Victor fosse menos apropriado do que Bill ou Joe. É só que Victor é
muito… normal. Não estava esperando normal.
Só fiquei feliz que ele não decidiu por Elmer ou Wolfgang.
— Victor — repito, começando a sorrir enquanto olho para ele. Eu
gosto. Muito. — É perfeito.
Seu sorriso alcança seus olhos.
— O que fez você escolher? — pergunto.
Ele sobe na cama e me envolve nos braços mais uma vez. Derreto no
calor delicioso dele. Isso ainda parece um sonho. Algum dia não parecerá?
Algum dia vou acordar e não ficar maravilhada com a força da natureza
pela qual me apaixonei?
— Victor não é muito diferente de Conquistador, é? — fala, ponderando.
Fico tensa com isso. Uma risada retumba profunda em seu peito.
— Não se preocupe, querida Sara — diz. — Não estou me prendendo
aos meus antigos jeitos. — Ele pega minha mão e pressiona no seu coração.
O ritmo constante pulsa contra minha palma.
— Ao invés disso, sou seu Victor. Você vê, vim para conquistar essa
terra e seu povo — explica —, mas ao invés disso, uma das pessoas me
conquistou.
Sei que meus olhos ficaram suaves. É uma boa razão – não, uma ótima
razão – uma que faz os dedos dos meus pés contraírem.
Puxando sua cabeça para mim, eu o beijo, meus lábios fazendo da tarefa
algo longo e lânguido.
Uma vez que o beijo termina, pergunto:
— O que acontece agora?
— Nós vamos embora – ou ficamos e esperamos que o mundo aprenda
assim como eu fiz. De qualquer maneira, fazemos isso juntos – por todos os
minutos que nos resta.
EPÍLOGO

Ano 10 dos Cavaleiros

O sol está se pondo quando acontece.


Victor solta o livro, a lombada acertando minhas pernas, que estão sobre
seu colo. Olho para cima do meu próprio manuscrito, o olhar indo do livro
para seu rosto pálido.
— O que é?
Gentilmente, Victor move minhas pernas para o lado e se levanta. Anda
alguns metros antes de se apoiar pesadamente na parede próxima. Coloco
meu próprio livro de lado, alarmada. Praticamente tenho que criar um
caminho chutando os brinquedos de criança espalhados para chegar até ele.
— Qual é o problema? — pergunto.
Ele está enfartando? Isso é possível?
Quando encontra meus olhos, tem um velho e familiar tormento nos
dele.
— Você pode ter me impedido todos aqueles anos atrás, Sara, mas
temo… — Ele não termina, os olhos indo para a grande varanda da nossa
casa, que tem vista para o Pacífico. — Não posso impedir meus irmãos.
Um arrepio passa por mim. Não conversamos sobre esse assunto por
meses. Para surgir agora, e tão ameaçadoramente…
Victor vai para fora, guiado por uma força que não posso sentir, e não
posso fazer nada além de segui-lo. Ele fica parado na varanda, as mãos
apertando a balaustrada com tanta força que posso ouvir a madeira
começando a estilhaçar. Incrível pensar que aquelas mãos que podem me
segurar com tanta gentileza também podem fazer isso.
— A roda do destino foi colocada em movimento — fala. — Ainda gira
sem minha ajuda.
Apesar do meu desconforto, passo os dedos sobre sua mão. Sob meu
toque, sua pressão na balaustrada diminui.
— Posso sentir — fala, sem se importar em encontrar meu olhar. Seus
olhos se movem inquietos pela terra. — Meu irmão está acordando.
Fico toda gelada.
— O quê?
Ele não olha para mim, seu corpo em uma pose rígida.
— Reze pelo mundo, querida Sara. Guerra está vindo.
AGRADECIMENTOS.

Algumas ideias de livros são pacientes – outras até melindrosas. E aí tem


outras ideias de livros, como a que tive para Pestilência, que simplesmente
despejam de você. Esse romance foi o filho de meses de noites sem dormir
e escrita fervorosa. E ainda assim, por toda minha excitação, esse livro não
seria o que é sem a ajuda de indivíduos incríveis.
Primeiro de tudo, obrigada ao meu marido, que sempre foi meu fã
número um (além de ser literalmente o melhor ser humano que existe). Um
agradecimento especial também vai para minha pequena Joaninha, que na
verdade provavelmente atrasou esse livro mais do que qualquer coisa (olá,
trabalho nos intervalos), mas cuja inteira existência ainda é tão
surpreendente e incrível para mim que isso foi inspiração o bastante.

Obrigada, Leia Stone, você sabe por quê. Shannon Mayer, muito
obrigada por deixar usar seu cérebro para pesquisas bem entediantes. Você é
a melhor.
Para literalmente todas as autoras que mostraram interesse nesse livro –
Grace Drave, Scarlett Dawn, Amber Lynn Natusch, Kelly St. Clare, Linda
Lee, e mais – sério, todas vocês estão me fazendo suar e agora vou dar uma
volta de vitória pós-edição.
Um grito para todas minhas leitoras beta e resenhistas, meu time de
divulgação e todas aquelas maravilhosas blogueiras de livros e instagrams
literários que deram tanto amor a esse livro. Eu “coração” tanto vocês.
Por último, obrigada a você, leitora, que nesse ponto está ganhando
crédito extra por chegar até aqui, no final dos meus agradecimentos. Espero
que tenha gostado de ler sobre esses personagens tanto quanto gostei de
escrevê-los.
SOBRE A AUTORA

Encontrada na floresta quando era jovem, Laura Thalassa foi criada por
fadas, sequestrada por lobisomens e entregue aos vampiros como
pagamento por uma dívida de cem anos. Ela foi trazida de volta à vida duas
vezes e, com um único beijo, ela despertou seu verdadeiro amor do sono
eterno. Ela agora vive feliz para sempre com seu príncipe morto-vivo em
um castelo na floresta ... ou algo assim. Quando não está escrevendo, Laura
pode ser encontrada engolindo guacamole, acumulando chocolate para o
apocalipse ou enrolada no sofá com um bom livro.

Instagram Cabana Vermelha

[1]
Tradução de Machado de Assis, 1883.

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