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Meu Vampiro - L. C. Almeida - Nodrm

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Essa é uma obra de ficção, portanto não tem nenhuma relação com pessoas e situações reais.

Todos os direitos reservados para L. C. ALMEIDA.


A distribuição sem autorização expressa da autora, incluindo reprodução completa ou parcial em
qualquer formato, configura CRIME.

POSSÍVEIS GATILHOS: MENÇÃO A UM ATAQUE DE VAMPIRO, CITAÇÃO DE SANGUE,


CITAÇÃO BREVE DE UM RELACIONAMENTO PASSADO TÓXICO, CITAÇÃO BREVE DE
TRAIÇÕES PASSADAS (NENHUMA FEITA PELOS PROTAGONISTAS), CITAÇÃO A
MORTES FAMILIARES, ADOÇÃO E QUESTÕES DE SAÚDE MENTAL. A AUTORA SE
COLOCA À DISPOSIÇÃO PARA QUALQUER DÚVIDA/ESCLARECIMENTO QUE DESEJE
FAZER ANTES DE INICIAR A LEITURA.

Revisão:
Ana Paula Marques
Diana Burin
Gislene Maria Reis
Isabela Piperno
Dessa Rocha
Cilene Almeida

Edição:
Alessandra Cervetto

2024
ÍNDICE
SINOPSE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Descobrir que sou a parceira predestinada ao rei dos vampiros não
fazia parte dos meus planos. Não mesmo.
Uma humana comum não deveria ser a alma gêmea de um dos seres
mais poderosos que há! Nem ser capaz de ouvi-lo tagarelando na minha
mente. Nem ter um laço que faz com que sintamos tudo que o outro está
sentindo e que reclama se ficamos afastados alguns metros que seja.
A magia mais antiga e poderosa que existe decidiu que estaremos
ligados para sempre, mesmo sem nos suportarmos 99% do tempo...
Caos!
Sem contar que alguém tentou me matar e ainda não sabemos quem
foi. Ah! E ele ter uma parceira humana seria o escândalo do século, há toda
uma confusão familiar rolando e eu acabei de sair de um relacionamento
que me fez jurar nunca mais me aproximar de homem algum.
Quer saber como vamos lidar com tudo isso e ainda conseguir um
belo final feliz?! Embarque nessa aventura pelo mundo vampiro comigo!

Romance com toque de fantasia / Almas gêmeas predestinadas /


Aproximação forçada / Slow burn / Amor proibido / Um vampiro
rabugento, uma mocinha que maneja uma adaga como ninguém / Altas
doses de risadas, provocações e sarcasmo!
Para Edward Cullen
Porque uma garota nunca esquece o seu primeiro amor...

(Nunca mesmo! Olha onde estamos quinze anos depois!)


Porque o sinal em seu coração

Diz que ele ainda está reservado para mim

Honestamente, quem somos nós para lutar contra a alquimia?

The Alchemy – Taylor Swift


Vampiros existem!
E tem um morando na minha cabeça.
Humana

Como foi que essa virou a minha vida?


Sentada em um dos bancos de pedra do pátio central da Nobre
Academia Real de Ensino, esfrego o meu peito para tentar acalmar a
queimação que não me abandonou desde que deixei os terrenos do Castelo
Rot. Dei uma desculpa qualquer para vir sozinha ao trabalho hoje,
precisando de uma folga de toda a intensidade do infame Roman Prince,
mas só consegui ficar inquieta, irritada e nervosa — como sempre acontece
quando tentamos ficar longe um do outro.
Não, nós não temos um tipo de relacionamento tóxico. Já tive um
desses e não pretendo ter outro, lição aprendida, amém.
Nós apenas somos conectados por uma poderosa magia antiga.
Literalmente conectados.
Por uma magia de verdade.
A mais forte que existe.
Pegamos o trem da loucura direto para a estação do caos.
Para o meu alívio, logo vejo o Bugatti Chiron entrando no
estacionamento dos docentes, parando na sua vaga cativa — uma das
melhores, na sombra de um enorme carvalho. Porque ele é uma estrela,
mesmo neste lugar onde todos são estrelas.
A queimação no meu peito desaparece.
Eu nem precisaria ter esperado aqui fora. Sentiria quando ele
estivesse se aproximando porque o maldito laço se acalmaria dentro de
mim. Como em um passe de mágica, a onça feroz que mora no meu
estômago se transforma em um adorável filhotinho de gato quando sente o
cheiro do meu Drácula de estimação.
As maluquices de ser ligada a esse homem irritante.
Depois de desligar o motor, ele desce com a sua elegância
indefectível e eu conto três segundos até o “Efeito Roman” começar. Os
alunos que estão por perto e o conhecem se apressam a sair do seu caminho.
Nem tentam disfarçar, dão passos rápidos para o mais longe possível. Os
que ainda não o conhecem estancam no lugar, embasbacados com a beleza
da figura alta, imponente, de traços tão perfeitos que nem parecem ser reais.
Meu chefe e colega de quarto — porque eu me recuso a usar o termo
oficial que a sua mitologia dá para a nossa relação —, não fala com
ninguém, nem olha para ninguém, os óculos escuros lhe ajudando com essa
tarefa. Apenas enfia seu celular no bolso interno do paletó, ajeita as
abotoaduras e começa a caminhar decidido na minha direção.
“Pare de aterrorizar essas crianças”, ralho com ele dentro da minha
mente, usando o nosso canal de comunicação silenciosa.
“Estou apenas andando, não estou aterrorizando ninguém”, sua voz
grossa soa em resposta, arrogante e com uma nota de tédio, me fazendo
revirar os olhos.
Não, ele não gosta de mim.
Não, eu não gosto dele.
Juro que não é por ser o meu chefe.
Ou por toda a ligação mágica que é um pé no saco.
E nem por ser um vampiro.
Porque sim, além de tudo, ele é um fucking vampiro.
Eu fui sortuda o suficiente para ser a primeira humana, em toda a
história, que acabou predestinada a uma versão rabugenta de Edward
Cullen.
Pelo menos, o meu não é do tipo que brilha no sol, porque tenho
certeza de que iria gargalhar na sua cara se o visse reluzindo como uma
pilha de glitter. E, se eu fizesse isso, ele me daria um dos seus olhares
irritados que normalmente são capazes de afugentar qualquer um com o
mínimo de amor à vida. Então, eu acabaria rindo ainda mais e nosso laço se
transformaria em uma confusão de irritação e diversão que nunca cai bem.
Ter dois sentimentos tão diferentes, ao mesmo tempo, sempre parece
uma indigestão das bravas. Não recomendo.
Por outro lado, admito que é bem admirável a parte de nenhum
vampiro se alimentar mais de humanos, graças ao seu trabalho. O homem
inventou sozinho o Blut-X, um sangue artificial que revolucionou o mundo
sobrenatural, um verdadeiro herói, um gênio que todos admiram, blá-blá-
blá...
Se esses seus fãs dividissem uma casa e uns neurônios com ele, não
parariam na parte do “herói”. Acrescentariam um “intragável” também,
aposto.
Juro, nas últimas semanas passamos quase o tempo todo juntos e não
vi o homem sorrir uma vez sequer! Houve momentos em que soltei alguma
piada tão ruim que poderia ter jurado que os cantos da sua boca perfeita
idiota se curvaram alguns milímetros, mas poderia ter sido apenas um sério
caso de desgosto.
Nunca confie em alguém que não sorri.
E que não gosta de café.
Nem cappuccino, nem mocha, nenhum tipo. E nem é uma coisa de
vampiros, porque eles podem consumir coisas humanas, apesar de não
precisarem.
É uma coisa dele.
O psicopata.
Aproveitando a deixa, finjo dar um gole no seu chá amargo, forte e
sem açúcar, enquanto espero que acabe o seu showzinho de intimidação.
Água fervida com mato, quem teve essa ideia?
“Não pense que não vi isso”, avisa como eu sabia que faria, porque
odeia quando eu roubo alguma das suas coisas. Em minha defesa, nunca
bebo do seu copo quando está tomando “sangue”.
Eca.
Limites.
“O meu café acabou enquanto eu te esperava!”, argumento. “Não
tenho culpa que você se atrasou. Quase fiquei preocupada por um
momento”.
“Por ‘preocupada’ quer dizer que estava comemorando?”.
“Ah, você me conhece tão bem”. Abro um enorme sorriso, que ele
consegue ver mesmo dessa distância, e um bufar impaciente soa no meu
cérebro.
“Preciso te lembrar que você saberia se algo acontecesse comigo?”.
“E se fosse eu a causar esse ‘algo’? Hipoteticamente falando, é
claro”. Finjo uma expressão de inocência angelical e aposto que está
estreitando as íris escuras para mim.
“O laço adoraria te ver tentar”, resmunga e eu sinto um puxão no meu
peito, forte o suficiente para me fazer voltar a esfregar a área.
Não, nada de ruim pode acontecer com ele.
Nunca.
“Dois podem jogar esse jogo, vampirão!”, provoco de volta em
vingança, começando a imaginar um cenário catastrófico fictício e
exagerado, envolvendo um furacão, facas voando, muito sangue, o meu
corpo no meio disso tudo... Coloco até um pouco de tripas para fora...
“HUMANA!”, rosna feroz e eu rio, interrompendo a minha
imaginação fértil/psicótica. “Você é impossível”.
“Por que demorou tanto?”, pergunto, mudando de assunto, nada
abalada pela sua irritação. Irritá-lo está se tornando o meu passatempo
preferido.
“Porque alguém deixou uma bagunça completa no nosso quarto”.
Uhum, sei.
Ele é um maníaco por organização, eu nem tanto, admito. Mas a sua
ideia de “bagunça completa” é a roupa que eu trouxe da lavanderia e ainda
não dobrei, pelo amor da minha paciência!
Só para atormentá-lo um pouco mais, finjo dar um longo gole no seu
copo térmico, olhando bem na sua direção. Outro rosnado chega até mim e
eu gargalho sozinha.
Tão nervosinho.
Depois de fazer algumas pessoas tropeçarem, outras soltarem
imprecações e uma derrubar os livros que estava carregando, ele chega até
mim. Para à minha frente com toda a sua altura, com todo seu terno
impecável, com todo o seu perfume masculino, e estende a mão, esperando
pelo seu chá.
Eu poderia entregar...
Se não fosse tão divertido deixá-lo exasperado.
Esse homem precisa de um pouco de emoção na sua vida
perfeitamente planejada, organizada, controlada e etiquetada. Etiquetada em
ordem alfabética, inclusive.
— Humana — rosna em aviso, dessa vez em voz alta, percebendo os
meus planos.
Eu fico em pé também, meus saltos me ajudando a chegar quase ao
seu queixo, encarando-o sem me intimidar. Bem devagar, levo o copo até a
boca em um gesto deliberado, em um enfrentamento óbvio, meus olhos
cravados no seu rosto.
Ele me observa fazer o meu showzinho sem uma mudança sequer na
sua expressão de pedra, os óculos escuros ajudando a esconder qualquer
reação, sua mandíbula esculpida perfeitamente travada.
— Acabou? — pergunta, erguendo uma sobrancelha tão alto que
posso vê-la por cima da armação de metal, que deve custar mais do que o
meu primeiro carro custou.
— Estou apenas começando. — Pisco para ele, que bufa e toma o
copo da minha mão com um gesto impaciente.
— Sei que você não tomaria chá nem sob tortura. — Não compra o
meu blefe, como alguém que me conhece bem demais.
— Eu poderia ter pedido café dessa vez! — cantarolo. — Com muito
creme. Talvez um pouco de chantili...
— Nem você seria tão maléfica. — Recomeça a andar, me fazendo
correr para alcançá-lo com os meus scarpins Prada, cortesia do meu novo
cartão corporativo.
— Continue pensando desse jeito, querido — debocho e puxo o meu
celular da bolsa, abrindo o nosso calendário para recitar seus compromissos
do dia. — Bom, você tem a aula agora, obviamente. Em seguida, almoço
com Niko-lícia...
— Não o chame assim — ralha, parando de andar e tirando seus
óculos apenas para me lançar um olhar de reprimenda, as íris vermelhas
fazendo uma aparição relâmpago, antes de se esconderem de volta atrás do
castanho, combinando bem com a onda de algo amargo que emana pelo
laço. — Ele é um homem casado. E seu rei!
— Já disse que é uma admiração respeitosa, como por uma obra de
arte! — explico, sem parar de sorrir. — E a Luz amou o apelido quando eu
contei.
— Sua majestade, a rainha Luz — corrige. — E não importa o que
ela tenha dito, não é apropriado.
— Não precisa se sentir deixado de lado, posso começar a te chamar
de Rom-lícia também...
Ele volta a andar, as solas de madeira dos seus sapatos ecoando
contra o piso de mármore centenário, os poucos alunos se espremendo nas
paredes para deixá-lo passar.
— Se você espera que eu não atenda… — responde fingindo
impaciência, mas a energia amarga desaparece.
— E que tal Gosto-Rom? — sugiro e uma professora que está
passando por nós me lança um olhar chocado, provavelmente sem acreditar
que alguém possa falar assim com o “senhor Intocável”.
Na maior parte do tempo, ninguém acredita que eu fale com ele e
ponto.
— Claro, por que não estampa isso em uma camiseta para eu usar por
aí? — capricha no sarcasmo.
— Não é seguro me dar ideias tão boas. — Bato com meu ombro no
seu de brincadeira e o olhar que ele me dá...
Impagável.
Entramos no auditório lotado porque, apesar de ser um robô
arrogante, ele é uma referência mundial em antropologia e até eu preciso
admitir que ouvi-lo ensinar é fascinante.
Um silêncio sepulcral cai sobre o espaço assim que percebem a
presença do “professor Prince” — ele odeia ser chamado de “doutor”,
apesar das dúzias de doutorados e pós-doutorados.
Impressionante o que dá para fazer com seu tempo quando se
envelhece tão devagar.
Caminho até a central de multimídia e tiro um pendrive da bolsa,
conectando ao computador. Deixo os slides da aula carregando, enquanto
organizo suas notas escritas em uma caligrafia perfeita no púlpito ao lado,
checando se o sistema de som está funcionando.
Durante esse tempo, ele fica parado bebericando o seu chá e
checando o seu celular. Apesar de não estar nem olhando para os alunos,
todos permanecem quietos a ponto de ser possível ouvir se um alfinete
caísse no chão.
O mesmo acontece quando estamos em uma das suas reuniões com o
conselho dos vampiros, ou sobre as negociações de Blut-X. Ele comanda
uma sala lotada apenas com o olhar e sua aura. Sem nunca levantar a voz,
sem nunca se alterar. Ele emana perigo o suficiente para você saber que não
deve nem fazê-lo notar a sua presença, quanto mais chateá-lo.
Checo tudo mais uma vez, porque podemos irritar um ao outro, mas
trabalhamos perfeitamente bem juntos. E sou uma ótima assistente,
obrigada. Apago as luzes, ocupo meu posto na escrivaninha, abro meu
próprio bloco de notas e estamos prontos para o show.
“Pode começar, Gosto-Rom”.
“Você está demitida”.
Há! Essa ameaça funcionaria se eu não soubesse que está sentindo
apenas a sua impaciência de sempre.
Estou ficando boa em distinguir tudo que recebo pelo nosso laço. É
fácil reconhecer o seu tédio, que me deixa entediada por tabela. Sua
inquietação, quando é obrigado a interagir com humanos, é bem parecida
com a minha — ninguém gosta de pessoas, não precisa ser uma criatura
mística para isso. Sua impaciência, quando algum aluno tenta dar uma
desculpa idiota para não entregar um trabalho. A onda de afeto que me
atinge quando Christian, seu melhor amigo, está por perto. Até por Lila, a
melhor amiga de Chris que está sempre grudada com o outro vampiro. E,
claro, eu reconheço quando odeia alguém como Lorde Amadeo, porque
uma onda gélida passeia por mim. Esses são sempre os sentimentos mais
fortes, levemente aterrorizantes, porque são a prova de que estou lidando
com algo poderoso.
Mas quando sou eu quem o está atormentando?
Sua irritação é... quente.
Só não reconheço mais emoções porque acho que ele não tem outras.
Que os deuses vampiros o livrem de sentir algo como medo ou alegria. E
não, nunca tive coragem de perguntar como ele sente as minhas. Porque, se
sente tudo o que eu sinto quando sou obrigada a estar na presença de caras
como o rei Nikolai, tenho dó da sua alma.
Será que o laço o obriga a achar alguém bonito quando eu acho
alguém bonito? UM DOS SEUS MELHORES AMIGOS, INCLUSIVE?
Não, mais uma coisa para a qual não quero saber a resposta.
“Como se você fosse sobreviver a um dia sem mim”, provoco,
afastando esses pensamentos para um canto da minha mente, onde eu
espero nunca mais tropeçar.
“Eu sobrevivi séculos sem você”.
“E ainda dizem que milagres não existem”.
Outro bufar irritadinho, seguido por uma onda daquela coisa quente
que não vem de mim e me faz sorrir tanto que os alunos da primeira fila me
lançam olhares curiosos.
Para a minha sorte, ele encerra nosso papo e alcança o microfone, sua
voz trovejando pelo anfiteatro.
— Hoje falaremos sobre a conexão entre o simbolismo... —começa a
explicar e o pensamento de mais cedo me volta à mente.
Como foi que essa virou a minha vida?
Ter o soberano dos vampiros tagarelando na minha mente e nossas
emoções todas misturadas, com certeza, não fazia parte do plano. Mas
quase ser assassinada também não. Nem ter sido salva por Roman. Nem
descobrir que somos um tipo maluco de parceiros predestinados que estarão
ligados para sempre.
Mesmo sem nos suportarmos 99% do tempo.
É...
Não importa como.
Essa é a minha vida agora.
E o mais chocante... é que eu não a trocaria por nenhuma outra.
Achar um corpo no seu quintal nunca é um bom sinal.
Semanas antes – O começo de tudo

Roman

“Me ajude”.
Assustado, eu levanto o rosto do meu livro e olho ao redor da
biblioteca, que está tão vazia quanto sempre esteve. Não encontro nada
além dos mesmos móveis que ocupam o espaço faz séculos.
Literalmente.
Franzo o cenho, sem entender. Poderia jurar ter ouvido um pedido de
ajuda... Uma voz feminina...
Não.
Impossível.
Ouvir pensamentos não é nenhuma novidade para mim, mas seria
incogitável acontecer aqui no Castelo, ainda mais agora. Todos os
funcionários já foram embora faz horas, não deve haver um humano sequer
em um raio de vinte quilômetros.
Talvez eu tenha bebido mais vinho do que deveria.
Bom, não seria a primeira vez.
Balanço a cabeça e volto a atenção para as páginas à minha frente.
Esta biografia de Churchill é razoavelmente precisa, mas ainda carrega uma
série de inconsistências óbvias para quem conheceu o velho Winston.
Encontrar erros em registros históricos se transforma em uma espécie de
passatempo estranho quando se assistiu a tudo da primeira fila e...
“Por favor”.
Interrompendo meus pensamentos, a voz soa mais clara do que antes,
muito alta para ser uma alucinação, ou um pensamento lido.
Fecho o exemplar sem ter avançado um parágrafo sequer e o
acomodo no aparador ao meu lado, apurando meus sentidos, tentando ouvir
algo.
Só encontro o silêncio.
Eu me levanto e examino o cômodo outra vez, sem perceber nada
fora do normal, nada além da organização impecável da minha equipe, que
faz questão de não deixar um único ácaro fora do lugar. As poltronas e
cortinas vermelho-sangue, ironia nada sutil, os velhos volumes
encadernados em couro nas prateleiras, a lareira que crepita, apesar de eu
não precisar do seu calor, os tapetes persas, os castiçais de ouro... Tudo
familiar.
Intrigado, caminho até a janela central e abro um dos vitrais. A
dobradiça range em protesto, entregando sua idade, indignada por eu ousar
perturbá-la no seu posto perene. O ar frio da noite me saúda, mas não
incomoda uma criatura noturna como eu. Ele me abraça, se enfiando entre
as minhas roupas, entre o meu cabelo, me lembrando que é uma força à
minha disposição, pronto para obedecer a qualquer ordem.
Sinto meu poder acordando, como um arrepio que percorre a minha
pele, vibrando em expectativa, sabendo que preciso dele.
Os terrenos do Castelo Rot se estendem até onde a vista alcança.
Busco qualquer indício de algo errado na propriedade e encontro apenas o
farfalhar das folhas, o riacho correndo, os pequenos animais vivendo a sua
vida...
Nenhum pedido de ajuda.
Nenhuma voz feminina.
Com certeza, estou imaginando coisas.
Fecho o vidro e, ao invés de caminhar de volta para a minha poltrona,
decido seguir direto para o quarto. Talvez o cansaço esteja me pregando
peças, afinal.
Saio para o corredor e começo a fazer o meu caminho para a ala leste,
mas não consigo dar dez passos antes de congelar mais uma vez.
“Socorro”.
Algo no tom de desespero faz uma angústia se espalhar pelo meu
peito. Uma sensação forte, estranha e inesperada. Bastante inesperada.
Nunca me abalo. Nunca. Em nenhuma situação. Emoções são fraquezas
humanas, não se aplicam a mim.
“Eu não quero morrer”.
Praguejo alto e preciso apoiar uma das mãos na parede de pedra para
sustentar o impacto que me atinge. É quase como se fosse eu em perigo, eu
pedindo socorro, a minha vida em risco.
Não é uma maldita alucinação.
Não pode ser.
Preciso fazer alguma coisa, ainda que não saiba bem o quê...
Mas preciso.
E rápido.
Esfrego a frente da minha camisa, como se isso pudesse acalmar a
queimação ali, respiro fundo em busca de forças e abro a janela mais
próxima. Dessa vez, não penso duas vezes: aceito a oferta do vento e deixo
que ele me leve voando pela floresta escura.
Se há algo, ou alguém aqui, tenho de descobrir.
“Onde você está?”, penso como uma súplica para a escuridão,
desejando que a noite pudesse me ajudar.
Para o meu total espanto, a voz me responde... dentro da minha
cabeça. Como se estivesse falando dentro da minha cabeça, alto e claro.
Não é uma mente em que eu me embrenho para ler, é uma frase anunciada
diretamente para mim. De um modo que nunca havia acontecido antes, em
séculos.
“O rio”.
Não.
Não é possível.
Ouvir pensamentos é parte da minha natureza — um dom, ou uma
maldição, com a qual eu nasci —, mas o “outro lado” não deveria me ouvir
de volta. Elas nunca me ouvem, ou respondem. Não é um diálogo.
Devo estar alucinando.
Só posso estar alucinando.
Para provar a mim mesmo que tudo não passa de uma peça pregada
pelo tédio da minha imaginação, sigo voando em direção ao riacho que
separa a minha propriedade das terras humanas.
Qualquer esperança de estar enganado desaparece assim que me
aproximo das águas negras e revoltas, sentindo um cheiro familiar que, com
certeza, não deveria sentir.
Sangue.
Humano.
Há alguém ferido, de fato.
Voo mais depressa, seguindo o cheiro que em outras épocas seria uma
tentação irresistível, mas que agora serve apenas para piorar a minha
agonia.
Farejo o ar e sigo para o norte... Quase saindo de Himmel e chegando
na fronteira com Almira.
Apesar da escuridão, meus olhos enxergam perfeitamente um corpo
estirado em uma das margens. Pouso com um baque surdo nas pedras que
cobrem o leito e examino a figura abandonada, tal qual uma boneca de
trapos.
Está de bruços, suas costas sobem e descem com dificuldade, mas
ainda respira. As calças finas e a blusa sem mangas não são, nem de longe,
proteção o suficiente para o clima que está fazendo. Tampouco a mancha de
sangue que se forma embaixo de sua cabeça é um bom sinal.
Eu me ajoelho ao lado da moça e afasto uma confusão de fios loiros,
tentando ver o seu rosto. Ela é jovem, os olhos estão fechados com força,
seus traços contorcidos em dor e os lábios entreabertos tentam ajudá-la a
respirar. É o próprio retrato da agonia.
Como chegou até aqui?
O que aconteceu com você?
Penso um pouco no que fazer... Não é do meu feitio sair resgatando
humanos, mas até então nenhum havia sido deixado nas minhas terras.
Além do que, se alguém do meu povo a encontrar, pensará que andei me
alimentando do jeito antigo, do jeito proibido. Dificilmente o
comportamento esperado de um soberano. As repercussões seriam um
pesadelo. Suficientes para uma deposição...
Não posso perder mais tempo.
Preciso tirá-la daqui.
Pego um lenço do bolso e uso para estancar o sangramento que
descubro vir do seu pescoço. Dois furos redondos e perfeitos vazam sangue
em profusão, me dando a prova irrefutável de que não estou lidando com
um mero acidente.
Não existem coincidências desta magnitude.
Alguém quer me incriminar.
“Frio”.
A jovem fala dentro da minha cabeça mais uma vez, seus lábios não
se movendo em nenhum momento. De alguma forma, está se comunicando
sem precisar dizer uma palavra sequer em voz alta.
Será que não se trata de uma humana?
Mas também nunca conheci outro ser que pudesse entrar na minha
mente, que ultrapassasse meus escudos assim.
“Muito frio”.
O tom da garota está ficando mais fraco, a preocupação com a
telepatia estranha terá de esperar. Tiro o meu casaco e cubro a figura
pequena, que estremece. O tecido também não deve estar quente, meu
corpo não tem calor algum para oferecer, mas conto que seja melhor do que
nada.
Passo um dos braços pelas costas, outro pelos seus joelhos e a
levanto. Ela é leve, frágil, como apenas os humanos conseguem ser.
Esperava que fosse abrir os olhos com a movimentação, mas suspeito
que todas as suas forças estejam concentradas em respirar, agarradas a um
fio de vida que parece prestes a arrebentar.
“Não morra”, ordeno, com firmeza.
“Vou tentar”, responde, com uma gotícula de voz.
RESPONDE!
Isso não é natural. E quando alguém que toma sangue para viver diz
isso, significa alguma coisa.
Mas, agora, tenho um problema maior com o qual lidar.
Busco a ajuda do vento da noite, dobro os joelhos, tomo impulso e
me lanço no céu, voando de volta para o Castelo o mais rápido que consigo.
Eu não vou deixá-la morrer.
A mera ideia de que possa morrer...
Não.
Não posso.
Pouso com um baque surdo direto na varanda do meu quarto, chuto
as portas duplas para quebrar a tranca e me apresso a colocá-la na minha
cama. Afasto o lenço apenas por tempo suficiente para ver que ainda está
sangrando sem parar. O veneno de quem a mordeu não vai deixar a ferida
cicatrizar, a menos que aplique o antídoto. E faça isso antes que ela fique
sem sangue nenhum.
Em nome de tudo que é mais sagrado!
Não era o que eu esperava para a minha segunda-feira.
Resgato o meu celular do bolso do paletó que está cobrindo-a e
chamo o último número discado, fazendo uma prece silenciosa para que ele
não esteja com uma das suas muitas... vamos chamar de namoradas.
— Rom? — Christian atende sonolento e eu respiro aliviado. É o
único em quem eu confiaria para me ajudar em um momento como esse.
— Preciso de você aqui — digo, com urgência, sem rodeios. —
Agora.
— Você está ferido? — pergunta e ouço seus barulhos se movendo do
outro lado, provavelmente se levantando. — Em perigo?
— Não, mas alguém largou um corpo humano nos terrenos —
resumo. — Um corpo mordido.
Ele pragueja alto.
— Morto? — pergunta, ao mesmo tempo em que ouço a voz da
humana na minha cabeça.
“Dói”.
“O que dói?”
“Tudo”.
“Aguente firme, por favor”.
Preciso estancar o sangramento, antes de qualquer outra coisa.
Depois, apagar suas lembranças e mandá-la de volta para o lugar de onde
veio, sem ninguém descobrir que esteve aqui.
Mandá-la viva, que fique claro.
— Apenas ferida por enquanto, mas precisamos de antídoto e da Lila
— acrescento. — E de cobertores!
— Cobertores? — Christian repete, sem me entender.
— Humanos sentem frio e nós não temos cobertores de verdade em
todo esse maldito castelo! — explodo, pensando no absurdo que é não
termos uma manta sequer.
Temos malditas armaduras, temos até uma guilhotina e uma berlinda,
e nenhum mísero edredom!
— Certo, certo. Eu tenho alguns aqui — informa em um tom
apaziguador, tentando me acalmar, e logo outra voz murmura ao fundo.
Assim que reconheço o tom, a minha preocupação se alivia mais um pouco.
— Lila está com você? — questiono. Se estiver, ótimo. Ela chegará
mais rápido do que se tivesse que buscá-la.
— Sim, chegaremos aí o mais breve possível — promete. — O Rom
precisa de nós! Coloque o seu casaco. — Ouço-o falando com ela e logo a
linha é cortada.
Quem diria que eu seria tão grato pela ligação estranha entre ele e sua
melhor amiga humana. E médica.
Calculo que irá levar ao menos uns vinte minutos para chegar do seu
apartamento aqui, principalmente porque não pode apenas sair voando do
centro da cidade, por mais nublada que a noite esteja.
Então, preciso mantê-la viva até lá.
Certo.
Fácil.
Eu consigo.
— Aguente firme — sussurro e ela suspira, um calafrio percorrendo o
seu corpo. Seguro o lenço com mais força sobre a sua ferida e uma das suas
mãos escapa por baixo do terno para segurar o meu pulso com firmeza.
Seu toque é gélido.
E me traz uma sensação estranha ao mesmo tempo.
Talvez porque humanos não costumam me tocar.
Eles nem gostam de se aproximar, seus instintos primitivos
reconhecendo o predador em mim.
Por um segundo, fico dividido entre continuar estancando seu sangue
e me afastar dessa reação inesperada... Talvez buscar algumas colchas dos
outros quartos para tentar aquecê-la mais.
Não.
A ideia de me afastar faz outra onda de agonia atingir meu peito,
como se alguma fera inesperada rugisse em protesto, contrariada.
Não posso me afastar.
Não posso deixá-la sozinha.
Eu me sento ao seu lado no colchão e, no mesmo segundo, ela chega
mais perto, se encolhendo contra mim. Puxo a cobertura da cama com a
minha mão livre e jogo por cima do seu corpo, de novo amaldiçoando o fato
de não ter algo mais quente.
“Eu vou morrer?”, ela pergunta, seu cenho delicado se franzindo no
meio do seu torpor.
“Não!”, garanto.
“Mas dói tanto...”.
“A dor já vai passar”.
“Promete?”.
“Prometo”.
Lila precisa chegar logo.
LOGO!
Conto cada respiração sôfrega que a humana consegue dar, dez por
minuto, longe do ideal. Estou contando a respiração 121 quando ouço a
aproximação da Ferrari de Christian pela estrada.
Um carro chamativo ridículo, que é a cara dele.
Meu melhor amigo estaciona cantando pneus, portas se abrem, os
dois conversam alguma coisa e seus passos seguem apressados pelos
degraus de pedra. Sinto o cheiro familiar do jovem, parecido com o de
todos da nossa espécie, mas com alguma nota mais irritante que combina
com a sua personalidade. Logo vem o cheiro de Lila, que é estranhamente
similar ao dele, apesar de humano. Minha teoria é que acabaram se
misturando por passarem tanto tempo juntos. Não é natural ser tão grudado
a alguém assim.
Esquisitos.
Tiro um momento para garantir que a minha mente esteja bem
fechada — nunca quero ler os pensamentos dessa dupla, muito menos se
agora puderem acabar dentro da minha cabeça também. A bagunça que
Christian faria... Seria o equivalente a ter alguém grafitando os meus
neurônios.
Logo eles invadem o meu quarto, Lila na frente com sua maleta em
mãos, Chris carregando uma pilha de cobertas atrás, ambos com expressões
preocupadas.
— Se afasta, Rom — ela ordena com seu jeito decidido usual, mas a
minha reação é completamente inesperada.
Eu a ataco.
Sem pensar.
Meus lábios se erguem em um sibilo ameaçador, veneno se acumula
na minha boca e minhas presas descem, prontas para a ação.
Chris larga as cobertas e corre para se postar entre nós, sibilando do
mesmo jeito, escondendo Lila atrás do seu corpo.
— O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? — ele grita, em uma pose
protetora, como se estivesse pronto para voar em mim se eu der mais um
passo sequer, pronto para a batalha.
A verdade... é que eu não sei o que estou fazendo.
Deve fazer décadas que não ataco ninguém.
Eu atacaria Lila? De verdade? A quem eu vi crescer e é quase uma
irmã mais nova? Ela ter ordenado que eu me afastasse da humana foi
alguma espécie de gatilho? Eu nunca sequer vi essa desconhecida.
Há algo errado aqui.
Muito errado.
Nada de arrancar a cabeça do amiguinho!
Roman

Lila não é um perigo!


Lila é médica.
Deixe que ela se aproxime.
Deixe que ela salve a vida da humana.
Repito isso algumas vezes, até que a fera recém-descoberta dentro de
mim se acalme, até que a vibração no meu peito esteja sob controle.
— Peço desculpas. — Eu me endireito, reassumindo o domínio do
meu corpo, dos meus sentidos, obrigando minhas presas a voltarem para
dentro. — Acredito que os acontecimentos inesperados da noite mexeram
comigo.
A expressão de Chris se suaviza e suas presas também voltam para o
lugar, seus ombros relaxando, ainda que não tenha deixado Lila sair da
proteção das suas costas.
— Só um corpo desovado no seu quintal para te abalar. — Ela
debocha e empurra o amigo com força, passando por mim sem se deixar
intimidar, se aproximando da cama como se nada tivesse acontecido.
Lila é pequena até para um humano, mas isso nunca a impediu de ser
um furacão decidido. Nem se preocupou em se trocar, seus cachos estão
presos com uma caneta e está usando um pijama com várias estampas do
rosto de Chris — imagino que essa seja a ideia dele de um presente.
Os dois juram que são apenas amigos, que sua relação não vai além
disso, mas o fato de que um estava na casa do outro tão tarde da noite me
parece ir contra a convenção social de uma simples amizade.
O que eu sei é que nós somos amigos e eles nunca dormiram comigo.
E, com certeza, não conseguiriam me fazer usar um pijama com as suas
caras.
— Obrigado por ter vindo — agradeço com sinceridade, fazendo um
esforço consciente para manter alguma distância e não a assustar.
— Sempre que precisar. — Sorri com a sua tranquilidade habitual,
sua calma tão indefectível, nem um resquício de medo na sua expressão. —
Mas, agora, preciso que me deixe ver o ferimento dessa jovem, sem
arrancar a minha cabeça por isso.
— Se ele arrancar a sua cabeça, eu arranco a dele — Chris ameaça e
eu tenho certeza de que está falando sério. Podemos nos conhecer desde que
ele tomava sangue na mamadeira, mas Lila é todo seu mundo.
— Que ótima ideia decapitar o soberano dos vampiros, nem é assim
que as guerras começam — brinca ela, se aproximando mais da humana,
depois de tirar luvas de látex da sua maleta.
— Nenhuma cabeça será arrancada — prometo para tranquilizá-la e
me obrigo a dar mais um passo para longe. Apenas um passo. E esse é o
máximo que posso oferecer.
Lila me dá um olhar de reprimenda, um dos seus olhares sérios, e eu
me obrigo a lhe conceder um pouco mais de espaço. Como Chris, ela é um
dos poucos que me conhecem e não se importam, nem por um segundo,
com a parte do “soberano”. Se eu não a deixar fazer o seu trabalho, aposto
que seria a primeira a arrancar a minha cabeça, com um único e perfeito
corte de bisturi.
O monstro começa a reclamar dentro de mim pela “distância”, mas eu
repito que Lila está aqui para ajudar, para salvar a humana.
Neste mesmo instante, ela puxa o lenço e examina o ferimento, seu
rosto concentrado na sua tarefa, seu cenho franzido de preocupação, e toda
nossa atenção também se muda para a paciente inesperada.
— Gaze com soro — pede para Christian, que se apressa em
obedecer, remexendo no conteúdo da bolsa que trouxe.
— O cheiro do sangue... — sugiro com preocupação, porque parece
que só o que eu faço agora é me preocupar com uma desconhecida.
Ele revira os olhos, marcados com algum contorno preto, para mim.
O movimento é tão exagerado que me dá tempo até de perceber que
também está usando um pijama com o rosto de Lila.
Muito esquisitos.
— Não me incomoda — garante e eu examino o seu rosto, buscando
qualquer indício de sede, do predador. Parece estar sob controle, sua
aparência é a mesma do punk de sempre. Seus traços estão concentrados,
uma mão coberta de tatuagens afasta o seu cabelo comprido do rosto, antes
de prendê-lo e começar a vestir luvas também.
Ele tem consumido Blut-X por quase toda sua vida, nem deve se
lembrar do sabor do sangue humano. Ele consegue manter distância. Estou
exagerando. E sendo um insano.
Nada nessa noite faz sentido.
Decido voltar a minha atenção para o problema que temos em mãos e
confiar nas duas pessoas que sempre estão ao meu lado. Lila ainda está
limpando o ferimento com cuidado, Chris lhe passa um antisséptico e, em
seguida, pega um frasco de aparência antiga, empoeirado, lacrado por uma
rolha.
O antídoto para o veneno.
“Faça parar”, pede a humana, ainda agoniada.
“Está quase”, prometo.
Lila pinga uma gota em cada furo e eu vejo o pequeno corpo frágil
estremecer. Fecho as mãos em punhos, me controlando para não avançar e
puxá-la para os meus braços, garantir que tudo vá ficar bem, arrancar as
cabeças de todos aqui, de quem lhe causou isso, de todos que lhe fizeram
mal. De todos e ponto.
Sim.
Aparentemente, eu perdi o juízo.
Balanço a cabeça para tentar colocar os meus pensamentos no lugar, e
vejo Lila aplicando dois curativos de ponto falso por cima da mordida.
Talvez, sem o cheiro de sangue humano pairando no ar, eu consiga
raciocinar como o meu “eu” normal, não essa versão insana.
— Ela vai precisar de uma transfusão — avisa com um suspiro,
descartando suas luvas sujas. — Quem fez isso, sabia bem onde estava a
jugular da nossa amiga misteriosa.
— Christian, pode ir pegar uma bolsa, por favor? — peço, porque não
há chance alguma de eu sair deste quarto agora. Ou em um futuro próximo.
Meu controle está por um fio.
— Vai me deixar entrar no seu laboratório supersecreto? — ele
pergunta, chocado, e meu maxilar se trava.
Nem tinha parado para prestar atenção ao que disse...
Nunca deixei pessoas entrarem no meu laboratório.
Até hoje.
— Não toque em nada! — ordeno, tentando me convencer de que
sempre há uma primeira vez para tudo.
— Vou precisar tocar nas bolsas — debocha e eu rosno.
— Toque apenas nas bolsas da geladeira à esquerda e mais nada. —
“Estou fraca...”. — E vá logo! A senha de entrada é 875629.
— Estou indo, estou indo. — Ele dispara na sua velocidade
sobrenatural pelas escadas e eu tento fazer a humana me ouvir.
“Por favor, aguente firme. Já vai melhorar”.
“Frio”.
“Vou resolver isso”.
— Precisamos aquecê-la — digo para Lila, que assente em
concordância.
— Você pode pegar as cobertas que trouxemos e arranjar umas
roupas limpas para ela, enquanto eu desinfeto os outros arranhões e vejo se
não quebrou nada? — Faz um pedido completamente razoável, mas eu não
me movo. Alguma coisa me mantém pregado ao chão. — Pode ir, ela não
está consciente. — Lila insiste, sem sucesso.
“Não vá!”, a humana se agita na cama, gostando tanto da ideia quanto
eu. Seus olhos ainda estão fechados, mas está ouvindo tudo o que falamos.
Ao menos, este é um sinal de que não está tão perto da morte quanto eu
imaginava, certo?
— Ela está consciente — afirmo. — E Chris pode buscar as roupas
quando voltar.
— Você está mais estranho do que o normal, cara — aponta com a
sua sinceridade sem filtros, tirando o seu estetoscópio da maleta e
colocando no peito que ainda parece ter dificuldade para respirar.
Vamos, antídoto.
Faça sua mágica.
— Precisamos mesmo trabalhar na sua etiqueta com a realeza, cara.
— Deixo a ênfase na última palavra, tentando desviar a sua atenção da parte
do “estranho”.
Porque, sim, estou estranho.
E não tenho nenhuma explicação para lhe oferecer.
— Tecnicamente, meus soberanos são a rainha Luz e o rei Nikolai.
Você é apenas o meu amigo assustador e rabugento. — Ela franze o cenho,
depois de escutar em silêncio por alguns segundos. — Os batimentos
cardíacos estão bem preocupantes, Rom.
— CHRIS! — grito para que se apresse, sabendo que irá me ouvir
mesmo que ainda esteja longe.
— Estou aqui. — Ele se materializa no quarto, trazendo uma bolsa do
sangue neutro que eu criei. E pelo qual eu não sei se já fui tão grato de
existir quanto agora. Se eu não tivesse um estoque à mão, não acho que a
humana iria sobreviver...
Outra onda de agonia me atinge, tão forte que me curvo, segurando
no dossel da cama para me firmar.
A humana se encolhe toda ao mesmo tempo, um gemido de
sofrimento escapando dos seus lábios brancos demais para o meu gosto.
— Não temos um suporte, então alguém vai ter que segurar a bolsa
— Lila avisa, também percebendo a mudança na sua paciente, já pegando
um acesso venoso da sua maleta que parece ter um pouco de tudo.
Preciso dar um jeito de agradecer por ser tão prevenida. Talvez lhe
dar um carro novo, ou um pijama que não tenha a cara de ninguém.
“Não me deixe sozinha”, a humana pede, ouvindo a movimentação
no quarto.
“Não vou”, afirmo.
“Onde você está?”
Ignorando os olhares curiosos dos dois, eu contorno a cama e volto a
me sentar no colchão, agora no lado oposto a Lila, para que tenha espaço
para trabalhar.
Pego a mão livre da jovem na minha, apertando seus dedos frios,
como se o meu toque pudesse lhe enviar alguma força. Um suspiro escapa
dos seus lábios e ela parece relaxar, seu semblante deixando de entregar
tanta agonia.
Alguma coisa se revira dentro de mim também, se acalmando como
se fosse eu a tomar o antídoto.
Não faço a menor ideia do que esteja acontecendo.
E eu deveria saber.
Sou o maldito soberano, inferno.
Abro a conexão e experimento ler a mente de Lila para testar se, do
nada, comecei a ter uma conexão com todos os humanos, além de apenas
ser capaz de ler suas mentes. Não encontro nada além de concentração no
que está fazendo. Tento chamar e ela não responde. Tento sentir o que está
sentindo, mas nada acontece. Fecho a conexão, aliviado.
Apenas uma humana para eu me preocupar.
Uma desconhecida, para piorar.
Chris se senta na minha mesa de cabeceira e segura a bolsa no alto,
enquanto Lila pressiona a agulha até que a ponta afiada desapareça na pele
fina do antebraço pálido. Depois de regular o acesso, o líquido escuro
começa a correr pelo tubo e eu sinto o meu interior se acalmar um pouco
com o pensamento de que está recebendo o que precisa.
A humana não esboça nenhuma reação durante todo o processo e não
consigo decidir se este é um bom ou mau sinal.
— Eu mesma vou buscar as roupas, precisamos limpá-la e aquecê-la
— afirma Lila, desaparecendo decidida na direção do meu closet.
— Ninguém pode descobrir sobre essa bagunça, Roman — Chris
sussurra, soando preocupado, o que é bastante raro para a sua personalidade
descontraída. — Seria muito mais do que uma crise política, se flagrassem
uma humana mordida no seu quintal!
— Eu sei — concordo, ainda que o lado político seja a última das
minhas preocupações agora.
— Terá que limpar a memória da humana. — Lança um olhar
nervoso na sua direção. — E de qualquer um que tenha notado que ela
desapareceu.
— Eu sei — repito.
— E plantar alguma outra recordação sobre como acabou com dois
furos no pescoço — continua recitando, sem nem respirar, e quase consigo
ouvir as engrenagens do seu cérebro trabalhando. — Talvez um daqueles
tasers que usam para se defender e... Qual é o seu problema? — questiona,
percebendo que não estou prestando a atenção que deveria, nem pareço tão
preocupado quanto deveria.
Todo o meu foco está em contar as respirações da humana.
— O meu problema é ter alguém tentando me incriminar com o pior
crime possível? — minto, ainda que saiba que não foi isso que quis dizer.
— Em um dia normal, isso te deixaria sedento por vingança, mas
você parece... — Faz uma pausa, procurando pela palavra certa. —
Desolado?
— É triste que um inocente tenha ficado no meio de algum jogo
político ridículo — improviso, ainda não me sentindo pronto para admitir
sabe-se lá o que esteja acontecendo.
— Humm, certo — murmura com descrença, deixando bem claro que
não acredita em mim.
Para a minha sorte, Lila volta neste momento, carregando uma pilha
de roupas e distraindo nossa atenção. Ela ordena que nós dois fechemos os
olhos, enquanto troca sua paciente com sua experiência de quem sempre
cuida de pessoas acamadas.
— Solte a mão dela, Rom — pede, e mais uma vez eu não me movo.
— Só preciso passar o moletom pelo braço, vamos lá.
Eu me obrigo a obedecer, ainda que algo se inquiete em mim. E nela,
porque um sussurro de protesto ecoa pelo quarto.
Para o meu alívio, logo sua mão é colocada de volta na minha e eu
aperto com firmeza, sabendo que nada vai me tirar daqui tão fácil.
“Ainda dói”, ela reclama.
“Já vai melhorar. Aguente, já vai melhorar”.
— Chris, me dê a bolsa para eu passar pela manga também... —
Ouço-a falar e espero que ele ainda esteja mantendo seus olhos bem
fechados. — Pronto, acabei.
— Ela parece estar com dor — opina ele, quando voltamos a encará-
la, agora debaixo de várias camadas de cobertas.
Sim, ela está.
De alguma forma, eu sinto sua dor.
Sua fraqueza.
Seu frio.
Seu medo.
É como se estivéssemos dividindo o mesmo corpo.
Apenas uma impressão, claro.
Um caso de extrema empatia.
Não que tenham me acusado de ser empático antes.
— O analgésico já vai fazer efeito — Lila tenta nos tranquilizar,
enquanto limpa mais alguns arranhões na mão livre da desconhecida, com
um cuidado que faz eu gostar ainda mais dela. Mais ainda do que por tolerar
o meu melhor amigo irritante, inclusive.
Ela acaba e tenta revezar com Chris para segurar a bolsa de sangue,
mas ganha um revirar de olhos em retribuição.
— Força sobrenatural, lembra? — ele brinca, flexionando os
músculos do braço contra o seu pijama, fazendo os rostos estampados de
Lila se contorcerem de um jeito cômico. — Eu nunca me canso.
— Vampiros exibidos — ela resmunga, nada impressionada, e a
expressão ofendida dele consegue arrancar um pequeno sorriso de mim. É
sempre divertido acompanhar as peripécias dos dois.
Nenhum de nós fala muito pelas próximas horas. Chris fecha os olhos
para seguir surtando com o que está acontecendo. Lila fica monitorando
nossa paciente de tempos em tempos, alternando com a leitura de um
grande livro sobre patologias que tira da sua bolsa gigantesca.
Minha atenção volta para a humana, que parece um pouco mais em
paz do que antes, como se uma onda de tranquilidade emanasse dela. Acho
que estava fazendo alguma atividade física quando foi sequestrada, pelas
roupas que usava antes de Lila trocá-la.
Será que tem família? Alguém preocupado com o seu paradeiro?
Algum marido? Ou esposa?
Esse pensamento incomoda as novas emoções dentro de mim. Olho
para a mão entre as minhas e reparo que não tem uma aliança ali, nem na
outra, que descansa sobre os meus lençóis pretos.
A fera se acalma.
Me ocupo em catalogar cada detalhe do seu rosto, começando pela
pinta que tem em cima do lábio superior, passando pela fileira de brincos
pequenos na sua orelha, para o cabelo que parece quase branco de tão claro,
chegando a uma cicatriz pequena no seu queixo que eu quero saber como
conseguiu...
Se alguém a causou de propósito, eu vou matá-lo.
Até se não foi de propósito, esse alguém precisa morrer.
NÃO.
Inferno, não.
De onde veio esse pensamento?
Eu sou um pacifista.
Seja lá o que tinha no meu vinho mais cedo, preciso superar!
Eu não ligo para humanos.
Muito menos humanos que eu não conheço.
Que podem ter quantas cicatrizes quiserem e nada vai mudar na
minha vida.
— O sangue acabou — Chris anuncia, me despertando do meu torpor,
e ajuda a tirar o acesso intravenoso com delicadeza.
Tenho de admitir que está se saindo um enfermeiro melhor do que eu
esperava, suas mãos firmes de tatuador fazendo um bom serviço.
— O ritmo cardíaco e a respiração melhoraram — Lila anuncia com
seu estetoscópio enfiado por baixo das cobertas, checando os sinais vitais.
Depois, pega o aferidor de pressão e ajusta no braço pálido. — Doze por
oito, ótimo sinal.
— Isso quer dizer que podemos ir embora? — Chris pergunta. —
Porque você precisa descansar.
— Não! — protesto depressa, subitamente apavorado com a ideia de
deixar a humana sem um médico profissional por perto.
— Não há nada mais que eu possa fazer, Rom. — Ela coloca a mão
no meu ombro, me dando um dos seus olhares solenes, calmos. — Agora,
só depende dela.
A fera resmunga dentro de mim.
Ainda não gostamos desse plano.
— Você voltará pela manhã — afirmo, não pergunto, tentando ser um
pouco razoável.
— Claro. — Sorri. — E você pode me ligar se algo acontecer.
— Se algo grave acontecer — Chris corrige. — Do contrário, ele vai
te deixar dormir belas oito horas completas.
— Certo, certo — concordo, a contragosto.
Agora que já decidimos que não ficarão, me pego desejando que
saiam logo. Quero que fique tudo calmo e quieto para a humana descansar
em paz.
— Bom, conhecem a saída — dispenso os dois sem nem tentar
disfarçar. Ela ri, ele bufa de impaciência. Os dois reúnem suas coisas, mas
não estou prestando mais atenção. Ajeito as cobertas ao redor da humana e
afofo um pouco o seu travesseiro, me perguntando se está dormindo. Mais
cedo ela também estava com os olhos fechados, mas não estava dormindo...
— O que deu nele hoje? — Ouço Lila perguntar para Chris, enquanto
os dois descem as escadas, e sua resposta soa exatamente como a minha
seria.
— Eu não faço a menor ideia.
Nenhum de nós faz.
Um suspiro ecoa dentro da minha cabeça e eu aperto um pouco mais
os dedos entrelaçados aos meus.
“Como você está?”, pergunto, apesar de saber que está bem melhor
do que antes. Eu sinto que está melhor.
“Com menos dor”, responde, confirmando as minhas suspeitas.
Confirmando também a minha teoria de que estamos dividindo mais do que
apenas pensamentos.
A questão agora é: por quê?
“Bom, descanse”, é tudo que posso dizer.
“Você vai ficar comigo?”, pede.
“Vou”, acabo respondendo, por mais inesperado que seja fazer uma
promessa como essa. Eu não costumo “ficar” com ninguém, muito menos
com um humano.
“Promete?”, insiste, com uma nota de medo.
“Prometo se me disser o seu nome”. Porque eu preciso saber o nome
dessa pessoa que invadiu meus terrenos e minha mente.
“Amélie”, conta e eu repito o nome na minha mente. Amélie. Outra
onda de algo quente me invade. Amélie.
Sim.
É como se eu já conhecesse, já tivesse ouvido antes.
Parece certo.
Não sei o que parece certo, mas parece certo.
“Te vejo amanhã, Amélie”.
Ela ronrona ao ouvir o seu nome e se aconchega mais perto de mim.
Talvez buscando calor? Sei que não vai encontrar quentura alguma aqui,
então aperto mais as cobertas ao seu redor. Uso o meu celular para apagar
todas as luzes e isso parece agradá-la, porque sinto seu corpo relaxar de vez.
A angústia em que eu estava afogado se transforma em algo que me
permite relaxar também. E eu nunca relaxo. Meu nariz busca o seu cabelo e
eu respiro fundo, sentindo um cheiro doce, que faz o novo monstro dentro
de mim ronronar.
Tomando cuidado para não a tocar, me acomodo melhor ao seu lado,
pronto para ficar aqui, velando seu sono até que acorde.
Porque ela vai acordar.
Ela precisa acordar.
Ela precisa ficar bem.
Quando menos se espera... você leva uma alma gêmea na testa!
Roman

O sol já está brilhando alto quando sinto o pequeno corpo se mover


ao meu lado e me afasto um pouco mais, me sentando na cama para
observá-la. Suas pálpebras se movem por alguns momentos, como se
despertar fosse um esforço...
“Amélie?”, chamo dentro da sua mente e aguardo.
Ela se espreguiça devagar, suspira e começa a abrir os olhos. Assim
que as íris claras encontram as minhas, sou atingido com tanta força que
meu corpo todo sente o impacto. O peso de uma magia antiga, que eu
poderia jurar que nunca iria me atingir, me empurra, me subjuga, me
domina.
Me faz apagar.
O mundo fica escuro.
Eu desmaio.

**

Abro os olhos para descobrir que estou no chão do meu quarto,


encarando as molduras douradas do teto, o piso frio e duro de pedra debaixo
das minhas costas. Mas a primeira coisa que eu sinto não é esse
desconforto.
É o fio enrolado em volta do meu coração.
O fio que se acomodou e se incendiou ali no momento em que nosso
olhar se cruzou pela primeira vez. Tão forte que foi capaz de nos nocautear
quando se firmou. O fio impossível de remover, que sai de mim e se liga a
um idêntico que deve estar no peito dela, formando um laço indestrutível.
As linhas do nosso destino neste planeta se dissolvendo e se fundindo em
uma única.
Aeternus finis.
A minha alma gêmea, ainda que o termo seja simplório demais para o
que representa no nosso mundo. A parceira predestinada para mim. Aquela
a quem o meu cordel da existência estará entrelaçado para sempre. Com
quem eu dividirei tudo. A quem eu devo proteger a qualquer custo.
Uma parte de mim que habita outro corpo.
Um nó que nos une, previsto nas mais antigas escrituras e em todas as
profecias.
Instintivo, primitivo.
Criados um para o outro.
Eu li livros, ouvi histórias, vi acontecer vezes o suficiente para
reconhecer a sensação. Todos os vampiros devem ter a sua aeternus finis,
mas normalmente acontece assim que atingimos a maturidade. O destino
sempre dá um jeito de colocar a pessoa certa no caminho da outra, mais ou
menos na mesma idade.
O que, no meu caso, deveria ter acontecido há muitas décadas.
Inclusive, todos adoram comentar sobre o fato de eu não ter o meu
laço, principalmente pelo posto que eu ocupo. O único rei da história a
governar sem um parceiro.
Tinha certeza de que havia algo errado comigo, que nunca
aconteceria comigo. Assim como sou o único leitor de mentes já
documentado.
Talvez haja algo errado, de fato.
Porque ela é uma humana.
UMA HUMANA.
100% HUMANA.
COMO É QUE FUI ACABAR LIGADO A UMA HUMANA?!
Nunca soube do caso de um vampiro ligado com uma HUMANA.
Pelo menos, isso esclarece a conexão estranha e toda a confusão de
emoções que me atacaram desde ontem.
Eu me esforço para sentar e respiro fundo algumas vezes, por mais
que os meus pulmões não precisem de ar. Algo sobre a repetição funciona,
sem falhas, para me acalmar. Esfrego o peito por cima da camisa para tentar
controlar a queimação e só então consigo ficar em pé novamente.
Ela está em um estado similar ao meu, parecendo ter sido nocauteada
também, os olhos arregalados e uma das mãos sobre o seu osso esterno.
Sentindo o laço.
A garota se move como se tivesse a intenção de se levantar, mas solta
um gemido de dor que ecoa pelo quarto e por mim, voltando a se jogar
contra os travesseiros.
— Vá devagar — peço, mantendo distância para não a assustar mais,
erguendo as minhas mãos para tentar mostrar que não tenho intenção
alguma de lhe fazer mal. — Você ainda deve estar fraca.
— Quem é você? Onde eu estou? — Ela muda a mão para o seu
pescoço, a dor fazendo-a perceber o curativo e o machucado. Sinto o pavor
começando a dominar sua mente, o laço reverberando todo seu medo para
mim. — O que aconteceu comigo?
— O meu nome é Roman Prince, sou um professor na Nobre
Academia Real de Ensino e esta é a minha casa, o Castelo Rot — digo, com
toda calma, tentando imitar o tom tranquilizante de Lila. — Eu a encontrei
na minha propriedade com um ferimento no pescoço, desacordada e
hipotérmica. Te trouxe para cá, chamei uma médica que fez esse curativo, te
deu alguns medicamentos e trocou suas roupas para peças mais quentes. —
Deixo claro este último detalhe, para que não pense que eu a toquei quando
estava apagada.
Ela absorve as minhas palavras e, aos poucos, suas sensações mudam
de medo para confusão.
— Por que não chamou uma ambulância? — Escolhe esta para ser a
sua primeira pergunta, entre tantas que devem estar passando pela sua
mente, falando com um pouco de dificuldade.
Muda seu toque para massagear suas têmporas, como se estivesse
com dor de cabeça, e meus dedos coçam com vontade de ligar para Lila.
Será que já se passaram oito horas?
— Estamos em uma região afastada, demoraria demais — improviso
uma resposta, para evitar a explicação real de que “seria difícil explicar um
ataque de vampiro”. — Além disso, quem te atendeu foi uma cirurgiã do
Hospital Real e uma das minhas amigas mais próximas. Você recebeu o
melhor tratamento possível.
Sinto que ela não acredita muito em mim.
Eu também não acreditaria no seu lugar.
— E como eu vim parar no seu... castelo? — indaga, com um óbvio
olhar de desconfiança.
— Infelizmente, ainda não tenho a resposta para isso — digo,
aliviado por não precisar mentir. Não é fácil mentir para a sua aeternus
finis. — Mas terei, pode acreditar. Essa pessoa não ficará impune — rosno,
sem conseguir me controlar, e o meu tom a faz me encarar com uma nova
emoção na sua expressão, com uma nota de... curiosidade. — Como está se
sentindo? — Me apresso a mudar de assunto, antes que possa pensar
demais, ou que eu me entregue demais.
— Fraca, dolorida e assustada. — Ela tenta se sentar de novo, apenas
para acabar desistindo, fechando os olhos com força. — E o meu peito
parece estar pegando fogo.
— Gostaria que eu avisasse alguém que está aqui? — ofereço, para
que não pense que está em uma situação de refém, ou algo do tipo. —
Podem vir te encontrar, sem problemas.
Ela fecha os olhos.
E não me responde.
Uma onda de pânico a atinge e me atinge.
Seus pensamentos estão uma bagunça.
Seus sentimentos estão uma bagunça.
Ela está se perdendo em uma pilha de dor e medo.
— Humana? — chamo, sem usar o seu nome. Com a descoberta do
laço, “Amélie” se tornou um termo íntimo demais, com significado demais.
Ao invés de me responder, apenas balança a cabeça em negativa, a
crise de pânico se aprofundando.
Começo a me inquietar e isso faz com que se inquiete mais também.
Nossas reações misturadas pioram a situação de um jeito épico.
— Humana! — insisto de novo, com mais firmeza, tentando puxá-la
de volta para a realidade, tentando evitar que se afogue.
Não adianta.
“HUMANA!”, chamo dentro da sua cabeça dessa vez, mudando a
estratégia, e tentando puxá-la pelo laço. Ela arregala os olhos de súbito e sei
que funcionou, que sua atenção está toda em mim.
É um peso abrasador.
— Sua voz — finalmente diz, com um misto de confusão e aflição,
me encarando sem piscar. Me analisa durante vários segundos, me
dissecando camada por camada, franzindo o seu cenho durante todo o
processo. — Seu rosto...
— O que tem eles? — indago, sem entender como estes podem ser os
grandes problemas no meio de todo esse caos. O ataque, o ferimento, o
castelo estranho, o maldito laço que não existia antes no seu coração, tudo
isso parece muito mais preocupante do que a minha voz, ou o meu rosto.
— Acho que preciso de um hospital — murmura, sem se explicar. —
E preciso ir à polícia.
Uma sensação de agonia ao pensar nela indo embora me atinge. E ela
esfrega seu peito com mais força, provavelmente sentindo a minha agonia
também.
Que caos.
Preciso me controlar, colocar meus pensamentos em ordem e, mais
do que tudo, racionalizar essa bagunça. É claro que ela vai embora. Eu vou
apagar a sua memória e ela vai embora, seguir com a sua vida humana. Este
laço não pode estar certo, não posso ter uma parceira como ela.
Só pode ter sido um engano.
Talvez, quando eu apagar suas memórias, consiga apagar este laço
também. Um aeternus finis sem ser forjado entre dois vampiros não deve
ser um aeternus finis válido, perene.
— Por causa da minha voz? — questiono, fingindo um tom de
deboche, mas ela continua me encarando. Tenho a impressão de que tenta
me reconhecer, ligar a minha face a alguém que já viu antes...
— Eu acho que tive uma concussão — anuncia seu veredito, depois
de balançar a cabeça.
— A médica disse que não, mas posso chamá-la e...
— Pare! — pede, erguendo a mão e me interrompendo. — Fique em
silêncio, por favor.
Eu obedeço.
Nem respiro.
Me transformo em uma estátua perfeita.
A única coisa que não consigo silenciar são meus pensamentos que
gritam e correm em dezenas de direções diferentes.
— Eu pedi para você ficar em... — ralha comigo, mas se interrompe
no meio, piscando algumas vezes ao analisar o meu rosto. — Você não está
falando.
Apenas faço um “não” com a cabeça.
Então, entendo o que está acontecendo.
Ela está descobrindo que pode ouvir a minha mente...
Sem querer, ela conseguiu deslizar para dentro do meu cérebro.
Como eu vou explicar isso?
— Você vai achar maluquice, mas acho que estou ouvindo sua voz na
minha cabeça.
Bingo.
— Não se preocupe, vou apagar as suas lembranças antes de te
mandar para casa, não vai se lembrar de nada disso...
Mal acabo de dizer isso e a fera protesta, inconformada. O meu lado
primitivo se debate com a preocupação de que a minha aeternus finis não vá
se lembrar de mim.
Não é natural.
Não deve ser assim.
O peso disso me atinge como uma dor física que quase me coloca de
joelhos. Mas não é como se eu tivesse uma opção. Ela não poderia conviver
com a verdade.
Humanos e vampiros são presa e predador.
Não um casal.
Ela merece algo melhor do que uma criatura como eu...
— Você... — Estreita as íris na minha direção, sem acreditar nas
minhas palavras. — O que foi que você disse?
— Não se preocupe, posso fazer isso agora mesmo. — Eu me
endireito e dou um passo na sua direção.
— Fazer... — repete, confusa, até ser atingida por uma onda de fúria.
— NÃO SE APROXIME! — grita, decidida.
Eu obedeço.
Claro que eu obedeço.
— Não se preocupe, não preciso me aproximar. — Ergo as mãos em
uma pose de rendição. — Tudo terá acabado antes que perceba.
Olho bem nos seus olhos e começo a invadir a sua mente. É bem
fácil, realmente. Sei que preciso adentrar o labirinto e ir para a parte da
memória, depois para as memórias de curto prazo e apenas emitir um tipo
de pulsação ali, sem danificar mais nada. Assim como acontece em
acidentes que deixam a pessoa com amnésia.
O problema é que, assim que entro, sou mandado para fora. Repelido
sem cerimônia.
Tento de novo. E sou expulso de novo.
Insisto, mas seu cérebro... É diferente de qualquer outro que eu já
tenha encontrado. Um livro que eu posso ler, mas não posso alterar as
palavras impressas nas páginas.
A minha certeza de antes cai aos meus pés.
Sinto as paredes começarem a se fechar contra mim, ao mesmo
tempo em que o chão desaparece e os arredores da minha vista se
escurecem.
Eu não posso apagar sua memória.
Eu não posso apagar nosso laço.
Essa humana... vai saber quem eu sou, vai saber sobre nós, vai saber
que está conectada a mim, terá poder sobre mim.
Terá poder sobre todo o mundo vampiro.
— Você está me olhando de um jeito muito, muito estranho —
sussurra, o medo voltando a dominar os seus sentidos. Ou é o meu medo.
Ou é um medo duplo. — Ai, meu Deus, você não pode ser quem eu estou
pensando. Eu vou ligar para a polícia! Eu preciso ligar para a polícia!
Ela não pode ligar para a polícia.
Não agora, quando sabe tanto.
É hora de colocar a minha cabeça no lugar, de proteger o meu povo.
Eles devem ser minha prioridade, sempre.
Foco em repetições de respiração até recobrar um pouco do controle,
até o quarto voltar a entrar em foco. Uma tarefa nada fácil, quando a minha
outra metade está surtando mais do que nunca, prestes a se afogar em
pânico de novo.
“Humana”, chamo, dentro da sua mente e ela congela.
“Meu Deus, eu estou ficando maluca”.
“Você não está ficando maluca”, repito e tento uma nova
aproximação.
— Aaaaaaaah! — ela luta para se afastar, mas ainda está fraca
demais, conseguindo apenas enrolar as cobertas ao seu corpo.
Então, eu me afasto.
Vários passos.
Isso parece funcionar para fazer seu medo ceder um pouco. Agora,
preciso pensar no que fazer. Parte de mim, o monstro, está aliviado por não
ser capaz de apagar sua mente, por pensar que ainda vai se lembrar de nós.
A outra metade não faz ideia de como proceder. Se para mim, que sei o que
está acontecendo, já é confuso, nem imagino como seja para ela.
Quando eu contar o que eu sou...
O que ela representa...
Vai dar um jeito de sair correndo, sem dúvidas.
Humanos conseguem ser bastante impressionáveis.
— Está tudo bem, eu posso explicar — começo, mas ela logo me
interrompe.
— Não tem nada que explicar, nada disso está acontecendo. — Cobre
seus ouvidos, como se assim pudesse fazer tudo sumir. — Eu só preciso
chamar a polícia... E ir para um hospital... E fazer uma tomografia...
Preciso acalmá-la.
Não apenas para proteger o mundo vampiro, mas porque senti-la
sofrendo é... irritante. Talvez a verdade? Quanto mais rápido ela entender,
mais rápido podemos pensar em alguma solução. Racionalizar e argumentar
até que aceite não contar nada para ninguém.
“Humana, pense em um número”.
“Eu não estou ouvindo”.
“Se não está ouvindo, não tem problema algum em pensar em um
número”.
“Dezoito mil novecentos e treze”.
— Dezoito mil novecentos e treze.
— Eu estou falando em voz alta e não estou percebendo? — exclama,
com sua voz aguda pela histeria. — É isso. Só pode ser isso.
— Cubra a sua boca e tente de novo — digo, com impaciência.
— Por que você não está surtando também? — questiona, em um tom
acusador.
— Não sei como responder a isso sem que a minha resposta te faça
fugir e você está fraca demais para fugir. — Cruzo os braços. — Não estou
convencido de que não precisa de outra transfusão e...
— Transfusão? Eu fiz uma transfusão? — Confusa, ela olha para os
próprios braços, encontrando o curativo. — Mas como?! Aqui?! Você tinha
sangue na sua geladeira, ao lado da manteiga?!
— Somos civilizados, usamos uma geladeira separada para o sangue
— conto e ela ri, puxando os cabelos de leve, pensando que estou
brincando.
Um dia, vai descobrir que eu nunca brinco.
— Preciso acordar dessa maluquice, desse pesadelo — resmunga. —
Ele não pode ser ele. Ele não teria me deixado viva, não é? Ele não teria
feito uma transfusão. Eles tiram sangue, não colocam sangue.
Tenho um mau pressentimento sobre as coisas que está balbuciando
agora. Parecem próximas demais da realidade para o meu gosto.
Preciso voltar a assumir o controle.
— Você pode ler a minha mente também, ver que estou falando a
verdade, que não quero tirar seu sangue, nem roubar o seu gato.
— Eu não quero ler a sua mente! E eu não tenho um gato! — Pega
um travesseiro e coloca na sua cara. — Vai, Amélie. Acorda, acorda,
acorda. Acorde desse pesadelo, garota. De volta na sua cama dura, sem
lembrar de nada.
— Adoraria fazer isso acontecer, mas por algum motivo... — Por
alguma magia irritante, melhor dizendo. — Não consigo apagar suas
memórias.
Faz sentido não ser capaz de mexer na mente da minha aeternus finis.
A intenção é ser sempre honesto um com o outro, tanto que o laço comum
garante que os parceiros sejam capazes de sentir o que o outro está
sentindo. Se um está bravo, o outro sabe. Se um está em perigo, o outro
sente e sabe que precisa ajudar. Bastante prático, na minha opinião.
No nosso caso, ainda há o belo agravante da comunicação mental...
Uma garantia de que será impossível manter qualquer tipo de segredo.
Tirei a sorte grande na loteria do laço, não é?!
A pessoa mais reservada do mundo, a que sempre fez questão de
manter distância, ganhou o combo completo.
COM UMA HUMANA.
— Pare de falar sobre apagar mentes! — pede, sua voz saindo
abafada.
— Quanto mais rápido você aceitar, mais rápido vamos...
— Aceitar? Você quer que eu aceite o fato de que tem um
desconhecido dentro da minha cabeça? Falando sobre apagar minha mente
ainda por cima! O dono da casa assustadora onde eu apareci ferida! —
Estreita os olhos em desconfiança novamente, afastando o travesseiro para
me lançar uma encarada acusadora. — Você me drogou?
Agora, estou ofendido.
Não entendo muito da etiqueta do seu povo, mas não tem como
acusar alguém de algum crime grave, sem prova alguma, ser considerado
educado na sua cultura.
— Acredite, eu tenho mais o que fazer do que ficar drogando
humanos desconhecidos por aí — me defendo, indignado.
— E por que você fica me chamando de “humana”?!
— Porque é o que você é! — resumo, sem me abalar.
Além de humana, minha alma gêmea também é exasperante. E
teimosa. Nada como a doce parceira que eu visualizava ao meu lado. A
cada segundo desejo mais que tudo isso não passe de um enorme mal-
entendido.
— E o que você é?
— Já disse! — Bufo com impaciência. — Vamos aceitar a parte do
pensamento primeiro, depois passamos para o sobrenatural.
— Sobrena... — começa, mas eu interrompo.
— Por favor, entre na minha cabeça, veja o que aconteceu ontem,
veja se combina com o que você se lembra e pare de surtar para que
possamos chegar ao que realmente importa.
A proteção do meu povo.
— “Pare de surtar”, fácil assim — reclama. — E como sugere que eu
faça isso?
— Parar de surtar? Basta parar de surtar.
Ela parece prestes a arremessar o travesseiro em mim.
Antes o travesseiro do que uma estaca.
Seria bom lembrar de não deixar nada afiado ao seu alcance.
— O que eu quero saber é como eu leio a sua mente, seu esquisito!
— explica, depois de respirar fundo algumas vezes. — Se é que isso existe
de fato.
Esquisito.
Séculos de vida e nunca me chamaram de “esquisito” antes. Tenho
certeza de que é algum crime ofender um soberano assim.
Ela tem sorte pelo fato de que matá-la acabaria me matando por
tabela.
— Olhe nos meus olhos, se concentre, pare de reclamar e encontrará
o caminho — ensino. — É como ficar em silêncio para ouvir uma história.
Basta prestar atenção.
Sua primeira expressão é de deboche, depois revira os olhos. Finge
uma careta exagerada, mas sinto o momento exato em que acaba deslizando
para dentro. Sem querer, sem sequer acreditar, pela onda de susto que chega
até mim pelo laço.
Ter alguém dentro da minha cabeça não é tão incômodo quanto eu
achei que seria. Não sei por que as pessoas reclamam tanto.
Na verdade, é quase prazeroso.
Como uma coceira irritante que finalmente é coçada.
Suas íris se arregalam quando entende o que está acontecendo,
começando a assistir às minhas lembranças de camarote e percebendo que
combinam com as poucas que também tem.
— Eu te chamei — sussurra, chocada. — Eu te chamei, enquanto
sangrava na beira do rio.
— Sim. — Dou um aceno em concordância.
— E você me salvou.
Concordo de novo, sem dizer nada. Lembrar da sua agonia, do seu
frio, não é algo fácil.
Maldito aeternus finis.
— Mas... Não é possível... — Remexe um pouco mais na minha
cabeça, ofegando alto com o que encontra.
— De qual parte estamos falando?
— Você estava voando!
Ah.
Imagino que isso seja estranho aos seus olhos.
— Eu estava — admito, porque não faz sentido negar. Mas estamos
nos desviando da questão principal aqui. — Você se lembra de quem te
atacou? — questiono, tentando levar o assunto de volta para o que importa.
Pelo que deve ser a milésima vez.
Vou me concentrar em descobrir quem tentou me incriminar e fazê-lo
pagar, ao invés de ficar surtando pelo laço. Como disse Chris, o Roman
normal estaria sedento por vingança. E é o Roman “normal” que preciso
voltar a ser.
— Eu lembro que estava correndo no parque onde eu sempre corro e
alguém me perguntou as horas... — Fecha os olhos e suspira. — Então, eu
acordei na beira do rio, você me pegou e saiu voando comigo. Voando!
VOANDO!
Ignoro esse detalhe.
— Você se lembra de alguma coisa desse “alguém”?
— Não. — Franze o cenho, como se forçasse a sua memória. —
Lembro apenas de responder, não lembro nem da voz. Está tudo embaçado.
Por culpa do choque? Ou culpa de alguém ter tentado adulterar suas
memórias? Existem até drogas humanas que fazem isso, não é?!
— Não é um sonho? Mesmo? — Faz uma pergunta retórica, dando
um gemido de sofrimento depois de analisar o meu rosto mais uma vez. —
Tem certeza de que não pode apagar a minha memória e me fazer esquecer
as últimas horas?
— Não posso — afirmo e ignoro a parte de mim que odeia não poder
dar o que quer. Essa parte é tão irritante quanto ela.
— E não tem outro esquisito, como você, que possa tentar apagar a
minha memória? — Pede e eu franzo o cenho, não gostando de ouvi-la falar
assim da minha espécie.
— Não use esse termo — ordeno. — E sou o único com esse tipo de
dom que há.
— Dom — repete, em um tom debochado e ergue o queixo, com um
olhar altivo, nem um resquício do medo de antes na sua expressão. — Eu
sei o que você é e não tem nada de “dom” nisso.
— Você não sabe — afirmo, tranquilo.
Não tem como ela saber. Humanos não sabem sobre nós. Apenas
criam suas versões fantasiosas que acabam em filmes e livros, que são
risíveis de tão distantes da verdade.
— Minha avó é Suellen Freitas — confessa e essas cinco palavras são
o suficiente para me fazer cair sentado no colchão, embasbacado.
Pisco algumas vezes, absorvendo o que acabou de dizer, tentando a
minha tática da respiração... Não adianta.
Nunca conseguem me surpreender.
Mas ela me surpreendeu agora.
— A pesquisadora brasileira? — questiono, para garantir se não está
falando de outra Suellen Freitas. Não é um nome comum, mas faria mais
sentido do que ser quem estou pensando.
— Ela prefere o termo “referência mundial”, por favor — me corrige
e eu respiro fundo, sabendo que está falando de quem acho que está
falando.
— Como? — pergunto, ainda que a resposta não faça muita
diferença.
Ela sabe.
Se conhece a senhora Freitas, ela sabe de verdade.
Inferno, ela pode saber até sobre o aeternus finis.
— Anos atrás, nossa família se mudou do Brasil para Himmel
justamente para estudar... — Não consegue terminar a frase.
Dessa vez, eu não a julgo.
É uma palavra da qual nem eu gosto.
Uma carregada de séculos de história, de mitologia e, no meu caso,
de um legado que preciso honrar. Do fardo que trago comigo desde o dia
que nasci.
— Você é, não é? — murmura em voz baixa, como se tivesse medo
de alguém ouvir nossa conversa, ainda me encarando com firmeza. — Ela
me mostrou uma foto... Do líder atual... Eu sei que era uma foto sua... Eu
reconheci... Não acreditei, mas reconheci...
Não digo nada.
Ela sabe.
Ela sabe mesmo.
Ela sabe o que eu sou e ainda não saiu correndo, nem parece enojada,
nem está tentando procurar a água benta mais próxima para jogar em mim.
Ela sabe muito mais do que seria seguro saber.
— É por isso que eu posso te ouvir? — continua interrogando, apesar
do meu silêncio. — Porque você é um...
— Não — garanto. Antes fosse. — Você não é a única mente que eu
posso ler, mas é a única que encontrei, em todos esses anos, que consegue
entrar na minha de volta, que consegue se comunicar comigo.
— Por que, então?
Essa é uma ótima pergunta.
E se eu tivesse que dar um palpite... Porque você é minha alma
gêmea, humana. Então, tudo que é meu é seu, inclusive minhas maldições.
Parabéns!
Cutucar cérebros e vampiros de TPM.
Roman

— Estamos interrompendo alguma coisa? — Chris pergunta,


entrando no quarto neste momento e me salvando da parte mais
constrangedora de toda essa conversa.
E nem ouvi eles chegando.
Meus sentidos estão tão perdidos quanto eu.
Não suporto esse descontrole.
A humana se encolhe um pouco ao perceber a dupla de invasores,
enrolando a coberta ao seu redor como uma armadura, e uma nova onda de
medo a atinge, junto com a minha irritação por estarem fazendo-a se sentir
assim.
Ela é enlouquecedora, sim, mas ninguém pode mexer com ela.
Nunca.
De jeito nenhum.
— Não se aproxime mais — ordeno com um rosnado, sentindo
veneno começando a se acumular na minha língua.
Christian congela no lugar, me obedecendo pela primeira vez na vida,
sentindo a hostilidade que estou emanando. Lila, sem sextos sentidos
sobrenaturais, contorna o corpo dele e dá um passo à frente, com sua aura
séria e tranquila, sem um pingo de medo.
— Olá, sou sua médica, 100% humana — cumprimenta, com um
sorriso calmo. — Sei que é muita coisa para processar, nem sei o que ele te
contou, mas te garanto que ninguém aqui vai te fazer mal.
— Nem roubar o meu gato e sugar todo o meu sangue? — questiona
baixinho e Chris acaba rindo, enquanto eu bufo.
— O gato foi apenas um exemplo! — protesto, indignado, e ela finge
não me ouvir, mantendo seu foco na outra mulher.
— E eles não sugam pessoas, o nerd aqui inventou sangue artificial
umas décadas atrás. — Ela me dá um tapinha na cabeça e eu rosno de novo.
— Posso checar seus sinais? Preciso ver se teremos que fazer outra
transfusão.
— Artificial? — repete e um arrepio percorre o seu corpo. — Pelo
menos, explica como tinham sangue fácil assim... Na geladeira separada,
claro. — Respira fundo, se lembrando do que falei mais cedo, e sinto,
através do laço, que está tentando se acalmar para continuar. — Acho que
tudo bem, vá em frente. — Abaixa um pouco a coberta, em um sinal de
rendição, um convite para que a médica se aproxime.
E eu me obrigo a seguir cravado no lugar.
Não avance em Lila, Roman.
— Como está se sentindo? — questiona, usando seu tom profissional,
começando a tirar coisas de dentro da sua maleta.
— Como se estivesse sendo castigada por todas as vezes que duvidei
da minha avó — resmunga e meus lábios se curvam um pouco, um sorriso
tentando escapar de mim.
Essa foi boa, tenho de admitir.
— Sua avó? — Chris pergunta, se intrometendo no papo e se
aproximando da cama, mas muda de ideia quando percebe o meu semblante
assassino.
— Ela é neta de Suellen Freitas — informo e meu amigo tem uma
reação muito similar à minha, um misto de choque com incredulidade, que
logo se transforma em um olhar preocupado. Até Lila solta um assobio
baixo, congelando nas suas tarefas por alguns segundos.
— Então, você sabe bem mais do que todos imaginávamos —
resume, tirando o aparelho de pressão do braço da sua paciente. — Ótimo,
doze por oito. — Tenta sorrir, mas o movimento parece mecânico, então
desiste e passa a encarar bem os olhos da garota. — Tem alguma coisa que
você gostaria de me perguntar? — oferece, preocupada. — Como médica
ou como, bom, humana?
— Eles são mesmo aquilo? — Se apressa a questionar baixinho,
ignorando que a nossa audição superior poderia ouvi-la mesmo a um campo
de futebol de distância. — Não é uma pegadinha, certo?
Pegadinha... Eles são engraçados, esses seres perecíveis, achando que
perderíamos tempo com essas bobagens.
Ainda que tenha o triplo de expectativa de vida, não pretendo
desperdiçar um minuto sequer com anedotas sem sentido.
— Eu também não acreditei quando descobri. — Dá um sorriso,
dessa vez verdadeiro e compreensivo. — Mas sim, eles são tudo isso que
está pensando. E um pouco mais, no caso de Roman.
Um arrepio a percorre.
Um que não consigo decifrar.
— E como você descobriu? — continua interrogando. — E, mais do
que isso, como você aceitou?!
“Aceitou”.
Não somos algo a “aceitar”.
Nós existimos e pronto!
— Conheço o Chris desde criança... — Lila começa a contar, ao
mesmo tempo em que pega seu estetoscópio e cola no peito da humana, por
baixo das cobertas. — Um belo dia, estávamos tomando sorvete e as presas
dele apareceram do nada. É uma coisa de vampiros adolescentes, tipo
ereção involuntária. Tivemos um pouco de gritos, tentei jogar alho nele,
mas ficou meio difícil não aceitar depois disso.
— Espero nunca mais ouvir “Chris” e “ereção” saindo da sua boca —
reclamo, por mais que eu saiba que não vá adiantar nada.
— Você e seus pudores — Chris debocha. — Ereção, ereção,
ereçãoooooo! — cantarola e eu questiono, mais uma vez, como acabamos
amigos.
E como continuamos amigos.
— Muito maduro — aponto e ele pisca para mim, satisfeito consigo
mesmo.
— Sosseguem, vocês dois — manda Lila, colocando uma pequena
lanterna nos olhos de Amélie, checando seus reflexos. Não diz nada, então
acredito que esteja tudo bem. Seu próximo alvo são os pequenos cortes nas
mãos, que devem ter sido causados pela queda quando a largaram na beira
do rio. — Amei a sua tatuagem — ela diz, bem a tempo de me impedir de
ter outra onda de vontade de queimar o mundo até descobrir quem fez isso,
a curiosidade assumindo as rédeas dos meus sentidos. Vejo que toca a pele
do pulso da humana, e eu foco minha atenção ali, percebendo o pequeno
escrito “I am mine” pela primeira vez.
Eu sou minha, algo bem curioso para se ter gravado eternamente.
— Parece o tipo que tem uma história — Chris sugere e eu me
inclino um pouco mais para perto, mesmo que não precise, na expectativa
para ouvir sua resposta, atraído pelo assunto.
O laço quer saber tudo sobre ela, cada detalhe que a faz ser quem é.
Cada pequena alegria e cicatriz que a construiu e a moldou. Cada lembrança
e momento que se juntaram para formar a mulher à minha frente. Cada grão
de trajetória, de personalidade, de sonhos, que me ajudariam a entender por
que os deuses do destino acharam que ela, entre todos os seres que
caminham por esta Terra, seria a combinação perfeita para mim.
— Uma história que precisaria de muito vinho para ser contada —
admite e suas bochechas coram, uma sombra de vergonha chegando até
mim. — E temos assuntos muito mais urgentes a tratar, como o fato de estar
conversando com um vampiro na minha cabeça!
Vampiro.
É a primeira vez que ela usa o termo.
Algo forte atinge a nós dois assim que a palavra é proferida.
Algo solene.
Nossos olhos se encontram com o peso de um contrato selado.
— Você conversa com Roman? — Lila exclama, nos obrigando a
quebrar o contato. — Tipo, não só ele cutuca o seu cérebro, você cutuca o
dele também?
— Como é que é? — Christian se coloca na minha frente, me
encarando como se eu tivesse criado duas cabeças. Uma de gárgula e uma
de unicórnio.
Exagerado.
Imagina o que fará quando descobrir sobre o aeternus finis.
— Ninguém “cutuca” o meu cérebro. — Deixo bem claro.
— Não sei se “cutucar” é o termo certo — concorda a humana, com
uma careta. — Parece nojento.
— É bem irritante quando ele faz isso com a gente, estou amando
essa dose de karma — Lila brinca feliz, sem entender a extensão do
problema.
Chris entende.
Entende tanto que precisa se sentar em uma das poltronas que ficam
próximas à janela, me encarando sem piscar, as engrenagens do seu cérebro
funcionando a todo vapor.
— Estou suspeitando que posso sentir o que ele está sentindo
também, porque tenho certeza de que essa irritação toda, o tempo todo, não
vem de mim — reclama a humana, esfregando o seu peito, e Lila se apressa
a voltar o estetoscópio ali.
Antes o problema fosse esse.
— Você precisa apagar a memória dela. — Chris se recupera o
suficiente para afirmar com uma nota de medo, porque ele sabe exatamente
o que significa sentir o que o outro está sentindo. — O mais rápido
possível.
— Eu não consegui — admito e ele pisca mais algumas vezes, como
se as palavras não fizessem sentido.
— O que quer dizer com “não consegui”? — repete.
— A mente dela não se deixa ser apagada por mim — resumo e um
silêncio pesado cai no quarto. Mudo minha atenção para a paisagem lá fora,
para o dia que já brilha forte, deixando que os três se percam nos seus
pensamentos.
— Garota, quem é você? — Lila pergunta, resumindo bem a situação
mais uma vez.
— Ahn... Amélie, prazer. — Estende a mão e a outra aperta, dando
uma risada.
— Podemos ficar com ela? — me pede, como se estivesse falando de
um cachorrinho. Um bem irritante, a propósito.
— Não, obrigada — a própria responde. — O que eu quero saber é
por que eu posso cutucar, ele não pode apagar, a coisa de sentir o que ele
está sentindo e todo o resto das estranhezas, por favor?
Todos se voltam para mim.
Suspiro.
Não faz sentido adiar.
Eu não conseguiria mentir.
Só me resta dizer a verdade.
— Ela é minha aeternus finis — anuncio, mais uma vez atingido pelo
peso do que para alguns seriam apenas palavras, mas para mim são uma
sentença.
Depois de tanto tempo, eu tenho uma aeternus finis.
Não é um conceito fácil de assimilar.
As duas me dão olhares confusos, sem entender o que eu quero dizer,
enquanto Chris começa a rir. Está gargalhando sozinho e não faço ideia do
motivo.
— Por que, de repente, todo mundo acha que eu estou brincando? —
resmungo, sem paciência.
— Espera, você não está brincando? — O humor desaparece do rosto
do meu melhor amigo, seu corpo se tensionando todo.
— Eu nunca estou brincando — lembro-o e seus olhos se arregalam.
— Alguém pode dizer o que é esse negócio de... eternos filhos? —
Lila questiona, tentando chamar nossa atenção.
— Mas ela é humana! — ele exclama, ainda sem aceitar, balançando
a cabeça. — Não existem aeternus finis humanos! É impossível!
— Acredite, eles existem — insisto. — A prova está bem ali. —
Aponto para a minha metade, que está nos encarando com uma expressão
nervosa, que combina bem com toda a desconfiança que está sentindo.
— Você tem certeza?
— Absoluta — garanto. — Assim que ela abriu os olhos, o laço se
formou. Nocauteou a nós dois. E imagino que tenha feito com que
absorvesse meus dons.
— Explicaria toda a coisa de “arrancar cabeças” de ontem à noite.
Caramba... — Fecha os olhos por alguns segundos, tentando se recompor,
depois se volta para encarar a humana. — Quem é você? — indaga, dessa
vez com um significado diferente.
— Ahn... Amélie? — repete. — Será que alguém pode explicar o que
é essa coisa que estão falando? Porque eu acho que não é nada bom.
Uma sensação diferente escolhe esse momento para me atingir. Algo
que nunca senti antes e, por isso, preciso de um certo tempo para decifrá-
la...
Ah.
Claro.
— Acredito que precisamos te alimentar, antes de qualquer coisa —
sugiro, quando entendo o que está acontecendo. — Você está faminta —
afirmo, sentindo no meu próprio estômago.
— Isso é tão estranho — ela resmunga e volta a alcançar o travesseiro
que estava usando antes, tampando o rosto com ele, como se o material
pudesse bloquear toda essa situação em que se enfiou.
Quem dera.
Eu construiria um forte de travesseiros para ela, se fosse o caso.
— Você está com fome mesmo? — questiona Chris e algo como um
“sim” dolorido e abafado ecoa por baixo do seu esconderijo.
— Que loucura — Lila exclama, impressionada. — Bom, nem eu
entendi bem o que está acontecendo aqui ainda, mas concordo que
precisamos alimentá-la. Qual dos dois vai preparar alguma coisa? — Ela
nos encara. — Eu também poderia comer.
— Chris — anuncio e ele exclama um protesto.
— Eu posso ir embora e me alimentar sozinha. — A humana afasta
seu travesseiro e faz menção de se levantar, mas nem preciso protestar,
porque volta a se deitar no mesmo segundo.
Ainda está fraca.
Lila dá um olhar significativo para o seu amigo, que suspira
resignado, se levantando. Ele nunca conseguiria deixar de fazer algo que ela
pede.
Sempre achei que os dois não seriam o aeternus finis um do outro por
culpa da parte não-vampírica dessa equação. Agora, já não tenho mais
certeza de nada... Seria a minha humana a única exceção à regra?
— Ok, ok. Comida para quem precisa de comida — Christian
concorda. — Algum pedido especial? — Se dirige diretamente a Amélie,
aproveitando para examiná-la com curiosidade, como se ela fosse um
enigma a decifrar, um experimento a dissecar.
Não preciso entrar na sua mente para saber que está se fazendo a
mesma pergunta que eu.
“Por que ela?”.
— Algo leve? Talvez chá e algumas torradas? — sugere e Lila
aprova, fazendo um gesto mandando que se apresse. Ele voa escada abaixo,
literalmente, como um cãozinho obediente. Logo ouço a Ferrari se
afastando pela estrada.
— Alguma outra pergunta para mim, enquanto esperamos? —
oferece a médica, checando o curativo no pescoço, me salvando de ter que
continuar a explicar o laço.
A outra garota parece pensar um pouco...
— Eles brilham no sol?
— FOI UMA DAS PRIMEIRAS COISAS QUE EU PERGUNTEI!
— Lila concorda com uma gargalhada e eu solto um bufar de impaciência.
— Mas não, infelizmente não. Teríamos que jogar glitter no Rom para fazê-
lo brilhar.
Crepúsculo acabou com a nossa reputação.
— Nem pense nisso — rosno em tom de aviso, antes que tenha
ideias.
— Sol também não faz mal a eles, só incomoda. Nem alho, ou cruzes.
Nada de caixões, apesar de precisarem dormir — recita, me ignorando. —
Ah! E não viram morcegos.
— Ter que virar morcego para voar, francamente — resmungo e sinto
o laço me puxar, algo incomodando a humana do nada. — O que foi agora?
— questiono, porque ainda está com a mesma expressão catatônica de
antes.
— Nada, é só que... — Suspira, antes de admitir. — A coisa de voar é
meio difícil de assimilar.
— Mais do que a parte de precisar de sangue para viver? — Ergo
uma sobrancelha, sem conseguir entender a sua lógica.
— Acho que sim. — Dá de ombros. — É sangue artificial, quase um
refrigerante de framboesa.
Décadas e décadas de pesquisa, uma descoberta revolucionária que
salva vidas, resumidos em “refrigerante de framboesa”.
Humana.
Irritante.
— Mais do que a coisa de dividir sentimentos com o ser mais
rabugento que existe? — Lila sugere, com um sorriso espertinho de quem
está adorando me ver exasperado.
— Essa está em segundo lugar.
— Você é estranha — digo, sem me conter.
— E você é um vampiro! — retruca, erguendo o queixo como fez ao
me confrontar antes, um brilho de desafio nos seus olhos, me fazendo ter a
segunda constatação mais chocante das últimas horas.
Linda.
A humana é linda.
Toda a preocupação e as descobertas me distraíram, mas agora, com a
poeira abaixando, me pergunto como pude não notar. Ela é toda esculpida
em traços afiados e pele macia. Lábios cheios. Um pequeno nariz atrevido.
Íris escuras emolduradas por sobrancelhas angulosas. Os cabelos tão claros
que mais parecem uma auréola.
Linda.
— Acredite, eu sei que sou um vampiro — digo, desgostando de
como minha voz acaba saindo rouca, tentando bloquear minhas reações
para que não cheguem até ela.
Ela não precisa saber das minhas sensações vergonhosas.
Já tem coisas suficientes com as quais lidar.
— E quem me atacou também é — completa, sentindo as feridas
onde Lila está trabalhando em silêncio. — Fizeram algo mais comigo?
Além de me morder?
— Nada, só deixaram a mordida no seu pescoço — garante.
O lembrete de que ela foi machucada, talvez por minha causa, faz as
minhas mãos se fecharem em punhos, uma nova remessa de raiva me
dominando com força, funcionando bem para varrer o encantamento de
antes.
Atacaram a minha aeternus finis.
Como ousaram?
— Uau! Devagar — Amélie pede, esfregando o peito, sendo atingida
também. — Do nada, me deu vontade de começar a terceira Guerra
Mundial e minha TPM só deveria ser daqui uns dez dias.
— Tem a ver com a coisa do filho eterno? — Lila se intromete e eu
lhe lanço um olhar feroz, deixando claro que deve ficar fora disso.
— Aeternus finis — repito. — E sim, é a única explicação que
consigo pensar.
— Ainda não nos explicou o que é esse negócio — a humana
reclama. — Aproveite para explicar também o que foi essa maluquice toda
que senti agora. Vampiros também têm TPM?
Ignoro esta última parte.
De propósito.
— Foi apenas uma saudável dose de ira, porque te machucaram nas
minhas terras, uma afronta direta para tentar me incriminar. — Cruzo os
braços, decidido a guiar o assunto para outro caminho. — Você também não
está fazendo as perguntas que deveria.
— Quais? — indaga, com curiosidade.
— Não perguntou se vai virar uma vampira, por exemplo — digo.
Não deveria ser essa a sua preocupação principal? Se transformar em um
ser amaldiçoado? Uma criatura beluína como eu?
— Eu sei que é uma condição genética, você não “vira” vampiro.
Minha avó, lembra? — Bufa, fazendo um gesto de dispensa com a mão, e
decido que deveria ter umas aulas de respeito à monarquia tanto quanto
Lila. — Também sei que devem ter me dado o antídoto, ou eu teria morrido.
— Garota esperta — a médica murmura, dessa vez evitando os meus
olhos, tentando passar despercebida.
— Então, não foi você quem me mordeu mesmo? Tem certeza? —
questiona, com toda sua atenção em mim, querendo checar se estou sendo
sincero. Cometendo a ofensa de achar que não tenho palavra.
— Por que eu te morderia e te salvaria em seguida? — aponto o
óbvio, sem disfarçar o quanto acho que está sendo absurda.
— Simpatia não é o seu forte, não é? — retruca, estreitando os olhos
para mim.
— Te garanto que não — a outra garota se intromete, antes que eu
possa responder. — Mas, em defesa dele, funciona bem para o cargo que
ocupa.
— O cargo, é verdade. — Dá outro gemido de sofrimento e, se não
fosse pelo curativo sendo trocado, aposto que estaria se enfiando embaixo
do travesseiro de novo.
Eu deveria ser o seu porto seguro.
Não uma maldita almofada.
...
Ótimo.
Aparentemente, estou com inveja de seres inanimados agora.
— Você sabe que ele é o rei? — Lila soa espantada pela descoberta.
— Ah! Sua avó? — adivinha e a humana dá um aceno de cabeça em
concordância.
— Eu estou dentro da cabeça do rei dos vampiros... Na cama do rei
dos vampiros... Depois de ter sido mordida por um vampiro...
— Um resumo bem preciso, ainda que potencialmente problemático
— admito, tentando me colocar no seu lugar por alguns instantes.
Posso supor que eu seria um paciente bem menos cooperativo. E bem
mais... bélico.
— “Potencialmente problemático” — repete, imitando a minha voz, e
solta um riso sem humor algum. — Alguma chance de eu poder trocar
aquele chá por algo tipo... Absinto?
— Nenhuma — Lila afirma, apesar do tom carinhoso. — Mas posso
te dar um analgésico dos bons.
— Você é a minha pessoa preferida em todo o mundo — responde,
com a voz mais suave que ouvi até agora, e posso imaginar que as duas
seriam capazes de se tornarem amigas, se tivessem a oportunidade.
Chris teria uma bela crise de ciúmes, aposto.
— Falando em pessoas, posso avisar alguém que você está aqui? —
ofereço novamente, tentando manter a conversa longe de toda a comoção
que será quando descobrir sobre a parte de “parceiros predestinados”.
— Não tenho ninguém para avisar — diz, evitando meus olhos,
parecendo subitamente interessada nos padrões da sua coberta.
— Sua avó...
— Está no Brasil.
— Seu trabalho?
— Eu pedi demissão.
Uma onda de tristeza me atinge. E de preocupação. Estar sem
trabalho é um assunto delicado, que lhe faz mal, que lhe deixa ansiosa.
Não gosto disso.
Meu cérebro começa a pensar sozinho em todas as formas como
posso resolver isso por ela. O laço não quer que se preocupe.
Ela não deve se preocupar com nada.
Não tenho chance de descobrir mais sobre o assunto, porque logo
ouço a Ferrari se aproximando de volta e sua barriga ronca alto o suficiente
para abafar qualquer outra emoção.
Chris entra carregando uma bandeja de copos térmicos, uma
embalagem para viagem, e coloca tudo na cama entre as duas garotas, que
se apressam a atacar sem cerimônia.
— Agora, você e eu vamos conversar. — Ele me dá um olhar grave e
estou pronto para reclamar, para dizer que não vou deixar a humana
sozinha, quando acrescenta: — Estaremos no quarto ao lado, Lila pode
chamar se precisarem de algo.
Eu o conheço bem o suficiente para saber que não vai desistir.
Deveria agradecer que não queira discutir o laço na frente delas.
— Tudo bem. — Acabo concordando e começo a sair para segui-lo,
mas sinto o nervosismo de Amélie por eu estar me afastando.
Ou sou eu quem está ficando nervoso?
Ou somos nós dois ao mesmo tempo?
Maldito laço!
Eu me obrigo a continuar andando e envio, pelo nosso canal mental,
um “Me chame por aqui se precisar” — por mais ridícula que seja a ideia de
não conseguirmos ficar alguns minutos afastados.
Nós nem nos conhecemos!
“Isso é muito estranho”, responde do mesmo jeito, soando meio
incerta, ainda com uma dose de medo.
Imagina quando souber de todo o resto...
Como o pequeno fato de que se eu morrer, ela morre.
E vice-versa.
Morbidamente romântico é minha linguagem de amor.
Humana

A última coisa que eu lembro é de Lila me mandando descansar,


depois de comermos tudo o que Chris trouxe.
E eu apaguei.
Lidar com os sentimentos de duas pessoas completamente diferentes
dentro de mim, sofrer uma tentativa de assassinato e descobrir que criaturas
míticas são reais podem mesmo cansar uma garota.
Criaturas míticas...
Vampiros...
ROMAN PRINCE.
Abro os olhos, sentindo uma necessidade insana de me certificar que
ainda está por perto, que não sonhei tudo isso. Eu logo o encontro em uma
poltrona ao lado da enorme cama, com um notebook no colo e uma
expressão enfezada no rosto.
Sinto sua irritação por esse nosso tipo esquisito de telefone sem fio,
mas me mantenho quieta, aproveitando a chance para estudá-lo com calma.
O soberano dos vampiros.
De quem eu ouvi minha avó falar mais vezes do que posso contar,
ainda que não houvesse nem um pedacinho de mim que acreditasse que
estava falando de um ser que existia, de fato.
Sempre soube que ela era uma pesquisadora, mas, para mim, seria o
equivalente a ser uma especialista na Tinkerbell. Curioso e exótico, sim.
Mas real? De jeito nenhum.
VAMPIROS!
Estamos falando de VAMPIROS.
Deveria ser algo apenas hipotético.
Uma fantasia.
Hotel Transilvânia! A Draculaura de Monster High! Aqueles que a
Buffy caçava. O bom e velho Drácula. Lestat, Blade, Morbius... Sabe o que
todos têm em comum?
ELES NÃO EXISTEM!
Muito menos na forma de um homem comum, que você poderia
encontrar em qualquer mercado. Uma versão mais bonita, admito, mas
ainda tediosamente normal.
Minha avó estava certa esse tempo todo. Ela estava estudando algo
verdadeiro, que caminha no meio de nós sem que façamos ideia.
Lembro de quando me contou sobre como Roman é temido e
respeitado. Implacável, mas justo. Um nome que carrega o peso de uma
longa dinastia, que está no poder faz séculos. Tudo que se espera encontrar
em um conto de fadas, não em um homem de carne e osso.
Seus traços masculinos não são perfeitos, mas são tão marcantes que
tornam impossível desviar os olhos. Seu cabelo não é castanho, é preto.
Preto lustroso, volumoso, em um corte clássico de James Dean. Tão pretos
que parecem quase azuis, arrumados de um jeito impecável, elegante. Suas
maçãs do rosto e seu maxilar disputam pelo posto de mais afiados, exibidos
pelo seu barbear impecável. A camisa social alinhada combina com o tom
das íris escuras e com toda a vibe “castelo gótico, rei de seres sobrenaturais,
saio voando no meio da noite e tenho séculos de existência, queridinha”.
Gosto das pequenas ruguinhas na sua testa, que devem ter aparecido
de tanto franzir o seu cenho e que lhe dão um ar mais humano, menos de
estátua de mármore. Em contrapartida, não há nenhuma daquelas rugas de
riso ao redor dos seus olhos...
— Você nunca sorri? — pergunto e ele levanta o rosto para me
encarar, parecendo surpreso por eu estar acordada.
— Sorrio quando tenho um motivo para sorrir.
O jeito como diz isso me faz pensar que a resposta, na verdade, é
“nunca”. Já deu para perceber que o vampirão anda pelo mundo como
alguém que acabou de mastigar um maço de rúcula crua.
Ele fecha o seu notebook e se levanta, pegando um copo de água na
mesa de cabeceira, entregando para mim. Eu me sento na cama devagar, um
pouco menos fraca do que antes, e aceito a bebida.
— Como está? — pergunta, sem precisar perguntar, porque deve estar
sentindo que estou melhor.
— Acho que vou ficar bem se nenhum outro ser sobrenatural cruzar o
meu caminho — brinco.
— Bom, nós estamos em Himmel... — sugere e eu quase me engasgo
com o que estou bebendo.
— E o que isso quer dizer? — questiono, com medo da resposta.
Lobisomens? Fadas? Coelhinho da Páscoa?
— Tem um porquê para esse país ser assim — afirma tranquilo, como
se não fosse nada de mais. — O clima, por exemplo, é controlado pelos...
— Não, não me conta. — Ergo as mãos, impedindo-o de continuar.
— Podemos falar sobre algo normal, para variar, por favor? Tipo, por que
você estava todo irritado agora há pouco?
A menos que esteja bravo porque as sereias começaram uma guerra
com as bruxas pelo domínio das terras dos dragões. E nem vou poder
reclamar porque fui eu que perguntei.
Por favor, que não existam dragões.
Sereias eu consigo lidar, dragões não!
— Problemas de trabalho — resume, para o alívio da minha sanidade.
— A coisa de rei dos vampiros? — questiono, por educação.
— Na verdade, essa “coisa” — debocha. — É bem simples. Não há
muitos mais de nós. — Seu olhar cai para a ferida no meu pescoço e ele
sibila. — Ainda que alguns poucos já sejam o suficiente para espalhar o
caos.
Outra onda de ódio puro me invade.
Forte e avassaladora.
Se tem uma coisa que o Lestat aqui sabe é ficar bravo.
Menino, todo esse ódio não deve ser bom.
Não sinto tanto ódio nem pelo meu ex lixo.
— Ugh. — Esfrego o meu peito, tentando acalmar a agonia. —
Sossega, cara. Essa coisa de estar irritado o tempo todo é cansativa.
— Não é minha culpa! — protesta, exagerando na expressão
enfezada.
— Não? — Ergo uma sobrancelha. — De quem é, então?
— Do... — Suspira e fecha os olhos por alguns segundos, parecendo
estar com dor. — Do laço — murmura, ainda sem me encarar.
— Laço? — repito, sem entender.
Eu não entendo mais nada do mundo ao meu redor. Logo eu! Que
conseguia lidar com qualquer situação que jogavam no meu colo. E não
eram situações tipo “acabou o papel sulfite”, era um belo “temos uma
ameaça terrorista e uma equipe de trinta agentes para invadir uma
embaixada com bombas plantadas para todos os lados”.
E eu fazia os trinta agentes saírem vivos.
Inteiros.
Com os reféns.
A tempo do café da tarde ainda.
— Faça um teste para mim — pede, se sentando aos pés da minha
cama com um gesto elegante, fazendo aquela coisa de puxar o tecido da
calça de alfaiataria para cima antes. Está usando sapatos de couro em casa,
abotoaduras de verdade e todo o combo que grita “rei riquinho metido”.
Só faltou uma coroa.
— Por favor? — acrescento para provocá-lo, sem resistir.
— Faça um teste para mim, por favor. — Capricha no sarcasmo ao
repetir e ainda acrescenta uma revirada de olhos. — Imagine alguém me
sequestrando, me despejando em um lugar completamente desconhecido,
sangrando para morrer no frio... Ah.
Entendo o seu “ah”.
Dessa vez, sou eu que estou pronta para espalhar o caos. Céline,
minha adaga, teria longas horas de diversão com qualquer um que ousasse
tocar em um fio de cabelo lustroso, que arrancasse uma gota de sangue
vampiresco sequer.
Nada de ruim pode acontecer com Roman.
Nada.
Espera.
O quê?
— Não me entenda mal, você salvou minha vida e não quero que
você morra, mas não te conheço o suficiente para me importar tanto assim.
— Esfrego o peito de novo, tentando dissipar os resquícios do cenário
fictício que me fez imaginar. — Qual é a desse tal de laço? Tem a ver com
aquela outra coisa que falou mais cedo... Das palavras esquisitas?
— Você está com fome e ouvir essa explicação é o tipo de coisa que
eu gostaria de fazer com a barriga cheia — afirma sério, com as
sobrancelhas franzidas. — Ou sob a influência de álcool, mas Lila me fez
prometer que vou te deixar longe do absinto.
— E pensar que eu gostava da garota. — Finjo um suspiro exagerado.
— Podemos ir até a sua cozinha? Preciso esticar um pouco as pernas depois
de todo esse tempo.
— Tem certeza de que está bem para isso?
— Sua cozinha fica tão longe? Logo depois do calabouço, no
corredor das masmorras, perto da sala de sacrifício?
— Você é irritante — fala como se constatasse um fato, estendendo a
mão para me ajudar a levantar.
Enrola seus dedos nos meus e a coisa esquisita que se mudou para
dentro de mim parece gostar da sua pele gelada. Sobrenaturalmente gelada.
Que deveria me dar medo, não ser bom assim.
— Isso é um saco — reclama, provavelmente sentindo a mesma
emoção inesperada.
— Até perguntaria “isso o quê”, mas tudo nessa situação estranha é
um saco. — Eu me firmo no lugar e começo a dar pequenos passos, com ele
pairando ao meu redor como uma mamãe preocupada.
— Espere só até ouvir o resto — resmunga, enquanto nós dois
passamos pelos corredores que devem ter séculos e séculos de história.
Obras de arte nas paredes de pedra, intercaladas com tapeçarias rebuscadas,
tapetes grossos, cortinas de veludo e lustres que suspeito serem de ouro. O
teto é tão alto que olhar para cima me dá tontura.
Só então a minha ficha cai.
Estou no castelo de um rei.
Mais uma maluquice para a minha conta.
Como se não bastasse toda a bagunça que minha vida tinha virado
nas últimas semanas.
Chegamos a uma escadaria gigantesca, que parece saída direto de “A
Bela e a Fera” e ele para no lugar, pensando um pouco, ao invés de descer o
primeiro degrau. Antes que eu pergunte o que foi agora e, sem que eu
perceba, passa um braço pela minha cintura, me erguendo no ar.
— O que está fazendo?! — grito assustada, segurando no seu pescoço
para não cair.
Um osso quebrado era só o que me faltava.
Não que ele pareça estar prestes a me derrubar. Caminha com os
mesmos passos decididos, cadenciados, levemente arrogantes. E o
perfume... Preciso dar um jeito de invadir o seu closet, o seu banheiro, o
que for e descobrir qual é a marca. Deve custar mais do que o meu aluguel?
Sem dúvidas. Mas o paraíso deve ter esse cheiro!
E agora estou me perguntando se anjos existem também.
E demônios!
— Estou evitando que você role por sessenta e três degraus, abra a
cabeça e espalhe sangue e cérebro por todo o meu tapete preferido — diz,
um calafrio percorrendo-o ao descrever a cena.
— Eu não iria rolar! — me defendo. Sou muito graciosa quando não
tenho veneno de vampiro no meu organismo! Sou faixa preta em duas artes
marciais! Fui uma instrutora na academia do serviço secreto e uma agente
condecorada, obrigada.
— Uhum — finge concordar. — Disse a pessoa que dormiu por doze
horas seguidas de tão fraca.
— Doze horas? — Minha voz sai em uma pergunta estridente e só
então reparo em como está escuro lá fora, a noite espreitando pelas enormes
janelas do saguão de entrada.
— Doze horas — repete. — Sem contar que Lila está no plantão do
hospital onde trabalha, então não podemos chamá-la até amanhã ou Chris
vai reclamar pelas próximas três décadas.
— Eles são um casal? — indago, curiosa, sem resistir a uma boa
história.
— Não que eu saiba.
E eu não acho que eles fossem contar para o “senhor Simpatia”
também, se fosse o caso. Imaginar esse homem enorme, sério, estoico e
alinhado discutindo sentimentos é quase tão absurdo quanto toda a coisa de
vampiros existirem.
Acabamos de descer os sessenta e três degraus, não sessenta e dois,
nem sessenta e quatro, mas ele não me coloca no chão, continuando a me
carregar até entrarmos em uma cozinha moderna, bem diferente do resto do
castelo.
Vampiros têm cozinhas!
Deve ser para manter as aparências, imagino.
Só então me larga, me colocando sentada no balcão de pedra ao lado
da geladeira, ignorando completamente a mesa.
— Você tem cadeiras bem ali, sabe?! — Aponto para o belo móvel de
madeira maciça, apenas para receber uma das suas encaradas que devem
fazer homens crescidos correrem.
— Preciso ficar de olho em você, enquanto cozinho — anuncia com o
seu tom entediado, abrindo a geladeira que agora parece abastecida de tudo
que um humano poderia precisar. E sem nenhum sinal de sangue.
— Você sabe cozinhar? — questiono, surpresa.
— Há poucas coisas que eu não sei fazer.
Em qualquer outra pessoa, pareceria que está se gabando, mas vindo
de alguém como ele, é uma simples verdade. Ainda não tive coragem de
pensar em quantos anos tem, em quanto tempo teve para aprender.
Não que vá me impedir de provocá-lo.
— Séculos de vida não é desculpa para arrogância, sabe?
Ele tira uma vasilha dali e joga o que parece ser uma sopa em uma
panela que alcança em um armário alto, sem esforço algum graças a toda
sua estatura de gigante.
— Quase morrer não é desculpa para falar o que quiser, sabe?
— Você é irritante — uso suas palavras contra ele, com um grande
sorriso no rosto.
— Já me chamaram de coisa pior. — Mexe a mistura com uma
experiência de quem já fez isso antes. Várias vezes. Aposto que é um chef
formado na Cordon Bleu, sem nem precisar comer para viver. — Gostaria
de algo para beber? Suco? Água?
— Alguma coisa que venha dali? — Aponto para a enorme adega
refrigerada. — Ou aquela é a geladeira de sangue?
Ele bufa e acaba enfiando um copo de água na minha mão.
— O sangue fica no meu laboratório no porão, onde ninguém está
autorizado a ir. — Aponta a colher na minha direção e parece estar irritado,
mas o sentimento que chega até mim é tranquilo. Uma grande novidade. —
Ninguém. Nunca — insiste.
— Droga, sempre foi o meu sonho ir a um porão assustador, cheio de
sangue. — Reviro os olhos. — Já que não podemos falar sobre as partes
estranhas antes que eu coma, pode me contar sobre o seu outro trabalho?
Acho que disse algo sobre a Nobre Academia Real?
— Sou o chefe do departamento de antropologia — conta.
E eu achando que já tinha atingido a minha cota de surpresas.
Doce engano.
— Você estuda a humanidade? — exclamo, incrédula. — Não é à toa
que parecia tão irritado quando acordei.
— Na verdade, o meu assistente se despediu algumas semanas atrás,
ainda não contratei ninguém e a papelada está se acumulando. — Pega uma
colher de uma gaveta e prova o caldo grosso, que está espalhando um
cheiro delicioso pelo ambiente.
Então, ele pode comer? Só não precisa?
Que vida triste deve ser não poder jantar um bom hambúrguer.
— Posso ver você como um professor todo sério, aterrorizando
alunos desavisados. — Cutuco sua calça com a ponta do meu pé, coberto
por uma meia escura chique que aposto ser dele. — Mas humanidades?
Sério?
Ignora a minha pergunta e se abaixa para pegar uma tigela de
porcelana, fazendo a sua camisa se moldar às suas costas de um jeito que
me obriga a prestar atenção na sopa, antes que acabe enviando alguma
emoção que não deveria.
O vexame!
— Sabe o que você poderia fazer? — Me apresso a mudar de assunto,
para distrair os rumos da minha mente.
— Tenho medo de perguntar — responde, servindo uma porção
generosa para mim, oferecendo junto com uma colher e um guardanapo de
tecido.
Deus nos livre de usar guardanapos de papel!
— Você deveria escrever fanfics de Crepúsculo! — anuncio, toda
séria, a primeira coisa que me vem à cabeça. Claro que seriam fanfics de
Crepúsculo.
Não me julguem!
Tem um tio distante do Edward na minha frente!
Tento me salvar dessa levando uma colherada à boca, me
surpreendendo com o sabor delicioso do caldo quente.
— Não, não deveria — fala, inabalado, mas uma onda de
preocupação me atinge. — Cuidado para não se queimar!
— Você é nervosinho demais.
— Isso deveria ser uma ofensa?
— Leia a minha mente e descubra — provoco, com a boca cheia,
ganhando outra das suas encaradas épicas.
— Ok, vou começar a contar o que preciso contar logo, para você
fugir daqui de uma vez por todas. — Se recosta contra a ilha e cruza os
tornozelos, em uma pose que poderia estar na página de uma revista de
moda. Ou em um daqueles perfis sobre os 40 executivos de maior sucesso
com menos de 40 anos.
Ou com menos de 400 anos nesse caso?
— Se conseguir me surpreender, mesmo depois da coisa de voar por
aí, juro que nunca mais faço piadas sobre Crepúsculo — prometo e ele
ergue uma sobrancelha angulosa.
— Ah, isso vai ser divertido. — Ele me encara bem e deixa um
sorriso preguiçoso, ainda que sem um pingo de humor, se abrir no rosto
bonito.
Está me enrolando de propósito, usando suspense barato!
E eu que levo a fama de irritante.
— Fala de uma vez — ordeno e ele se inclina na minha direção, as
íris brilhando provocantes, se divertindo por saber que o que vai sair pela
sua boca agora vai me apavorar.
— Você, humana, está predestinada a mim — sussurra. — Você é a
minha fucking alma gêmea.
Pisco.
Pisco mais algumas vezes.
E começo a rir.
Gargalho alto.
Fico esperando que ele ria também, que entre na brincadeira, talvez
até dar um risinho solidário. Sabe, quando a gente vê alguém bocejando e
boceja também? Quando alguém ri e você ri junto?
Mas não.
Ele está perfeitamente estoico.
Uma estátua.
Um iceberg.
— Um dia, vão entender que eu não faço brincadeiras — resmunga,
sem nem um resquício de diversão.
— Mas você acabou de fazer uma!
— Não, eu não fiz.
— Mas você disse... Você disse...
— Sim, eu disse.
— Mas você estava brincando!
— Não, eu não estava.
— Mas...
— Eu não estava.
— Você disse algo sobre predestinados!
— Eu disse.
— Você disse que eu sou sua alma gêmea.
— Você é.
— Não, eu não sou.
— Acredite, você é.
— Eu nem gosto de você! — Ataco umas três colheradas seguidas.
— Eu nem te conheço para gostar ou não de você! — digo, de boca cheia.
— Ao contrário de mim, que estou claramente perdido de amor pelo
seu jeito adorável — capricha no sarcasmo, me observando sugar a sopa
como se fosse um aspirador de pó.
— Alma gêmea, por favor — debocho e devoro outras colheradas
que descem queimando. — Isso nem existe.
Juro que tenho mais modos do que isso.
Mas ELE NÃO ESTÁ BRINCANDO.
ELE JURA QUE NÃO ESTÁ BRINCANDO.
Tomo mais sopa.
Eu amo sopa.
— Você pode começar pelo começo, por favor? — peço e ele suspira,
me jogando mais um guardanapo de pano. Linho. Chique. Melhor do que
muita roupa que eu tenho.
— O começo... — recita e organiza seus pensamentos, antes de
continuar. — Aeternus finis é uma magia antiga que acontece com todos os
vampiros. Acredita-se que seja uma forma de assegurar que a gente se
reproduza, já que somos criaturas... difíceis.
— Difíceis. — Um som de desdém escapa de mim. — Espera aí,
você disse REPRODUZIR? — grito, espirrando um pouco de sopa no
balcão.
— Não vai acontecer aqui, não se preocupe. — Revira os olhos. —
Há coisas estranhas acontecendo, mas não tão estranhas.
— Acho bom! — resmungo e obrigo minha mente a manter vinte
quilômetros de distância de qualquer pensamento que envolva esse gigante
delicioso e formas de reprodução. — E o que essa tal magia antiga faz?
— É uma espécie de ligação, de conexão, de laço. Há um parceiro
predestinado para cada vampiro e eles se reconhecem na primeira vez que
se veem. É instintivo, primitivo. — Ele começa a andar pela cozinha e
deduzo que esteja entrando no seu modo “professor”, ensinando almas
desavisadas sobre assuntos complexos demais. — Para resumir, a prioridade
se torna proteger o outro, prover o outro, estar ao lado do outro. Parceiros
em todos os sentidos, garantindo suas sobrevivências. Tanto que os seus
fios da vida se tornam um só. O que quer dizer que quando um dos dois
morre, o outro também morre. Também porque viver sem o outro, sem a sua
metade, seria um destino muito pior do que a morte.
— Morbidamente romântico. — Acabo a sopa e coloco a tigela ao
meu lado no balcão. — Mas se isso é um negócio entre vampiros, o que tem
a ver comigo?
Ele para de andar, se posicionando à minha frente.
Mais alto, mesmo que eu esteja sentada no balcão.
Tão sério que um arrepio me percorre antes mesmo que fale.
— O meu laço é com você, humana.
Quem nunca tentou fingir que nada estava acontecendo, não é?!
Humana

— Mas... Mas... — Balanço a cabeça. — Mas eu não sou uma


vampira! — exclamo o óbvio, minha voz saindo algumas oitavas mais altas.
— Eu não sou, sou?
— Não, você não é. — Balança a cabeça. — Essa parte é um mistério
para mim também. E para o Chris. Não deveria acontecer com um humano,
não há registros em toda a história.
— E você tem certeza de que essa coisa de finis aconteceu entre nós?
— insisto. — Mesmo?
Ao invés de me responder, me dá um olhar significativo e sinto algo
me puxando de verdade. Me puxando pelo peito, como se houvesse um fio
preso ao meu coração e ele segurasse a outra ponta. Ele é o titeriteiro, eu
sou a marionete.
Ah, não.
Não, não, não.
Calma, Amélie.
Será...
Será que eu posso fazer o mesmo?
Se for verdade, quero que ele seja a marionete também.
Não sei bem como fazer, então apenas repito o que me ensinou
quando me instruiu a ler sua mente.
Eu presto atenção.
Deslizo meu olhar para a frente da sua camisa, até encontrar o ponto
onde sinto uma energia diferente, um calor. Tento trazê-lo para perto de
mim e ele dá um passo adiante, arregalando os olhos, assustado.
— Ok, ok. Entendi. Laço. Unidos. — Eu o largo, não me pergunte
como. — Um problema ainda maior do que imaginava. Certo.
Nem estou apavorada.
Você quem está.
— Agora, pense no que as pessoas diriam se soubessem que,
finalmente, depois de séculos, o rei encontrou sua parceira... em uma
humana.
Eu ignoro a parte do “rei”.
Parece um problema pequeno perto do resto.
As belezas de colocar coisas em perspectiva...
— A coisa de ler a mente é por isso? — Escolho essa para ser a
minha próxima pergunta, tentando fazer as peças desse quebra-cabeça se
encaixarem.
— Talvez nós compartilhemos tudo, até os meus dons. Difícil saber,
porque não há mais ninguém que faça o que eu faço.
— Arrogante. — Finjo dar um espirro.
— É um fato. — Enfia outro copo de água na minha mão, depois de
se servir na sua geladeira chique. — Sentir o que o outro está sentindo é
parte do laço, mas em nós parece potencializado. Não é tão claro com os
outros, talvez pelo elo que nossas mentes têm. — Recomeça a andar. — É
óbvio que podem saber quando alguém está irritado, porque até vocês
humanos bobos conseguem, mas não como se fossem suas próprias
emoções. Eu não deveria sentir a sua fome como se não comesse há
séculos.
— E como fazemos isso parar? — Parece a próxima pergunta mais
urgente. E a mais importante. — Você também quer fazer parar, certo? Eu
não quero você de carona na minha cabeça humana boba, nem quero ficar
sugando toda essa sua irritação irritada!
— Irritação irritada é um pleonasmo.
— Apenas irritação é pouco para alguém que fala “pleonasmo”!
— Não, eu não quero a sua cabeça humana irritante — rosna, tão
exasperado quanto eu. — Mas não sei como fazemos isso parar.
— Como você não sabe?! Deixam você ser rei sem saber coisas?
Deveriam fazer uma Elite também, igual aos humanos! Escolher alguém
qualificado! — exclamo, mais nervosa a cada segundo. — A Elite... de
sangue! Pronto!
— Um título bem explicativo, eu diria — resmunga, com seu
sarcasmo indefectível. — Tome sua água e pare de surtar — ordena e eu
obedeço.
Não porque ele mandou.
Porque estou com sede.
E porque odeio surtar.
Pensa, Amélie.
Pensa.
— E se a gente apenas fingisse que nada aconteceu? Só ignorar —
sugiro, do alto da minha loucura. — Talvez você tenha ouvido a minha
mente porque me jogaram no seu quintal e pode ser que a distância
“desligue” isso. Vivi trinta e cinco anos sem você, posso viver o resto
também!
— Não acho que vá funcionar. — Pega o copo da minha mão e
coloca na lavadora de louças. — Mas podemos tentar. Sempre sou a favor
de ignorar, principalmente se isso colocar distância entre nós dois.
— Ótimo. Vamos ignorar — concordo, relevando seu jeito
“adorável”, mais aliviada agora que temos um plano. — Eu posso tomar um
banho? Estou me sentindo nojenta demais para esperar chegar em casa. Aí
você me dá uma carona e nós nunca mais nos vemos, amém! Fim da
história!
— De tudo que disse até agora, essas foram as minhas palavras
preferidas. — Ele me pega pela cintura e me coloca no chão. — A
propósito, Lila deixou algumas roupas para você. As minhas são
gigantescas e as suas estavam nojentas.
— Hey! — protesto, começando a caminhar no meu novo ritmo
“lesma”. Uma lesma que foi envenenada, ainda por cima.
— Elas estavam! — insiste, indignado, mas paira ao meu lado
acompanhando cada passo. — Cheias de lama e sangue.
— Você é uma simpatia mesmo, não é?
— Sim, eu sou — resmunga e volta a passar o braço pela minha
cintura, me erguendo para subir os degraus quando chegamos à escada.
Eu reclamaria, mas o tal laço esquisito dentro de mim parece adorar a
proximidade com Roman. E agora estou imaginando um belo lacinho de
cetim cor-de-rosa morando dentro do meu estômago, com uma casa de
verão no meu apêndice. Aparentemente, o tipo de homem que esse sei-lá-
finis curte é um vampirão mal-humorado e rabugento, que nunca deve ter
sorrido na vida.
Bom, tem gosto para tudo.
Acabamos de subir os degraus, mas ele continua me carregando até a
sua suíte, me colocando no chão só quando chegamos ao banheiro enorme,
todo cinza — desde os pisos, mármores e azulejos, até as toalhas.
— Vou pegar as roupas, tente não se meter em problemas, nem
invadir a cabeça de ninguém na minha ausência — avisa, com toda a sua
fofura.
— Ha-ha, muito engraçado. — Fecho a porta bem na sua cara
ridícula e cambaleio até a grande pia dupla. O meu reflexo me saúda e eu
descubro que estou um caos. O meu cabelo é um enorme emaranhado de
nós, estou com olheiras horríveis, com um pouco de sopa na testa (como
parou ali?) e é assim que a minha “alma gêmea” tem me visto pelas últimas
horas.
Maravilha.
Deve ter ajudado bastante com nosso plano de “ignorar”.
Começo a procurar por uma escova de dentes nova nas muitas
gavetas do gabinete, mas não se passam nem cinco segundos e a porta se
abre, Roman entrando com tudo.
— Hey! — protesto alto. — Você não bate, não?
— É meu banheiro. — Dá de ombros, colocando uma pilha de peças
em uma das pontas do enorme balcão.
— E se eu estivesse pelada?
— Você vai levar horas para se despir, fraca como está.
— Você é impossível.
— Acho que já disse isso.
— Se manda! — Eu o empurro com o pouco de força que me resta.
— E NÃO ENTRE MAIS AQUI.
— Me chame se precisar de ajuda.
— Eu não vou precisar.
Ele solta um riso de deboche.
Odeio-o ainda mais quando demoro mesmo uma eternidade para me
despir, depois preciso ficar sentada na borda da banheira, recuperando o
fôlego por mais uns minutos.
Só então consigo me lavar na ducha chique, com jatos tão fortes que
mais parecem uma agressão. Claro que ele seria um discípulo do amor
difícil.
Pelo menos, a toalha parece um abraço macio e eu fico enrolada nela
por um bom tempo, encostada na pia e questionando todas as minhas
escolhas de vida.
“Sabe que eu posso sentir sua exaustão, não sabe?”, sua voz grossa
ecoa no meu cérebro.
— SAI DA MINHA CABEÇA! — grito e ouço um bufar do outro
lado da porta. Bem encostado na porta.
— Se vista de uma vez, humana — rosna.
— Se vista de uma vez, humana — imito seu timbre irritante.
— Eu ouvi isso!
— Essa era a intenção!
— Eu gostava mais de você quando estava inconsciente!
— E eu gostava mais quando Edward Cullen era o único vampiro da
minha vida!
Visto o conjunto de moletom que Lila arrumou para mim, os tênis de
marca, e faço um agradecimento mental pela calcinha de algodão ainda na
embalagem que encontro escondida entre o tecido dobrado. Ela deve ter
saído para comprar, porque de jeito nenhum as roupas dela caberiam em
mim. Não tem um sutiã, mas nem deve ter passado pela sua cabeça. Ela é
uma daquelas pessoas que não precisam realmente usar um.
Sortuda.
Assim que acabo de pentear o cabelo, a porta se abre. A porta que
jurava estar trancada. Ele nem parece envergonhado por estar invadindo
MAIS UMA VEZ.
— Você disse “pronto” — tenta se defender.
— Não, eu não disse.
— Sua mente disse.
— Ok, a gente precisa resolver isso.
— Sempre podemos matar a huma... — ele tenta dizer, mas se
interrompe, seus traços se contorcendo de dor, a mão esfregando o peito. —
Maldito laço.
— Saber que fazer mal a mim te mataria também me ajuda a ficar
menos nervosa com toda essa maluquice — comento, com um grande
sorriso inocente.
— Feliz em ser útil. — Ele faz um gesto mostrando o quarto, me
apressando a sair.
— Algo me diz que você é incapaz de ser “feliz”.
— E você é incapaz de ficar quieta.
— Por mais divertido que esteja, posso ir embora agora?
— Você pode — concorda, rápido demais para o meu gosto. — A
questão é... Você consegue?
— Cuidado, quase parece que gostaria que ficasse.
— Claro, adoraria que você ficasse aqui e roubasse minha cama por
mais algumas noites.
— Pobre menino rico que mora no castelo onde há mais de
quinhentos quartos nos quais poderia dormir.
— Não são quinhentos.
— Quatrocentos e noventa e cinco? E você não deveria dormir de
cabeça para baixo?
— Ok, vamos embora. — Ele sai a passos largos, virando o rosto para
perguntar por cima do ombro. — Você tem como entrar na sua casa? Não
achei nenhuma chave com o seu corpo.
— “Com o meu corpo” parece que sou um cadáver! — reclamo,
apostando comigo mesma se vai me esperar para descer as escadas...
— Se a carapuça serve — resmunga, mas para no limiar do primeiro
degrau. E aguarda.
Olha só quem não é tão malvadão quanto gosta de parecer!
Implicante, sim.
Malvado, nem tanto.
— Podemos ir voando para a minha casa? — peço, enquanto ele me
levanta no ar, começando a caminhar comigo grudada à sua figura
impressionante.
— Não — afirma, seco.
— Por que não?
— Porque não!
— Por que não?
— Porque não!
— Por que não?
— Porque você quase morreu, humanos quase morrem o tempo todo
e eu não vou arriscar te derrubar a dez mil pés de altura, te fazer pegar uma
pneumonia, ser atingida por um pássaro, ou um raio, ou um avião!
— Ok, então somos muito criativos para catástrofes, entendi —
debocho. — Não é como se eu não soubesse que não quer que eu morra
porque se eu morrer, você morre.
— Um pequeno empecilho, realmente. — Ele me guia na direção
contrária à cozinha, por uma porta lateral. — Além disso, ser visto voando
por aí meio que entregaria a coisa de ser sobrenatural.
— Que sem graça.
— Você ainda não respondeu se tem uma chave, humana.
— Eu deixo uma chave reserva debaixo de um pedaço enferrujado da
mangueira de incêndio.
Ele se vira para me encarar daquele jeito que consegue ser cheio de
julgamento e entediado ao mesmo tempo.
— Muito seguro.
— Estamos em Himmel e... Caramba — exclamo, vendo a coleção de
carros que nos recepciona assim que entramos na garagem. — É sério isso?
— Eu, realmente, não faço brincadeiras!
— Bom, podemos dizer que se você sumisse da face da Terra
amanhã, a Bugatti sentiria sua falta. E a Audi. E a Ferrari.
— Sou bastante querido. — Ele pega uma das chaves em um quadro
no canto e aciona o alarme, destravando o veículo mais próximo a nós.
— Esse Chiron deveria ser a minha alma gêmea, não você. — Fico
com medo até de tocar na pintura escura. — Posso usar a carta do laço para
que me deixe dirigir?
— Não — responde depressa, já indo em direção ao lado do
motorista, ainda que eu tenha sentido uma leve hesitação.
Resignada, cumpro meu cruel destino de me acomodar no interior
confortável, espaçoso e luxuoso. Começo a mexer no painel central,
procurando pelas suas músicas, enquanto ele manobra para fora e eu
explico onde moro.
Ah.
O Bolero de Ravel.
Eu amo.
Me recosto contra o banco e fecho os olhos, me sentindo relaxar com
as notas familiares. Deve ser a primeira vez que eu relaxo desde o ataque.
Ou talvez desde que eu descobri o que Wilbur estava fazendo, sendo mais
honesta...
— Você conhece essa composição? — pergunta, soando surpreso.
— Ano passado, uma das minhas metas era decorar a coreografia que
Béjart criou para ela — conto, voltando a abrir os olhos.
— Você é dançarina?
— Não. — Rio, curtindo uma piada particular, com o quão distante
está da verdade. Sou muito mais familiarizada com invasões de sistemas de
organizações criminosas, do que com sapatilhas.
— Então, por que decorar a coreografia?
— Por que não? — Dou de ombros e volto a fechar os olhos, sabendo
que ainda estamos na área rural de Ilaria, bem longe de casa. — Óbvio que
eu não consegui fazer todos os passos, eu teria que ser Mikhail Dubrov[1]
para isso, mas criei minha própria versão. Foi divertido.
— Divertido — repete, como se o conceito fosse estranho para ele.
— Eu vi Jorge Donn dançando-a ao vivo. Eu chamaria de tocante, não de
divertido.
Eu volto a encará-lo, me virando tão rápido que minha cabeça dói,
uma onda de tontura me atingindo.
Tudo bem, talvez eu ainda não esteja tão recuperada.
— É séri...? Ok, ok. Você não faz brincadeiras — eu mesma me
corrijo, antes que ele revire tanto os olhos que eles nunca mais se desvirem.
Seria uma pena.
Mesmo.
A coisa da encarada séria é sexy.
— Foi no fim da década de 70, na França — murmura, como se não
fosse nada de mais. — Bastante impactante.
— Agora vou ficar intimidada de te mostrar a minha versão — tento
desconversar, mas sei que não adianta quando ele pode sentir que estou
hiperventilando, que meu cérebro escolheu este momento exato para surtar.
— Ok, a verdade é que acabou de cair a minha ficha sobre você ser um
vampiro-barra-alma gêmea — confesso, sem me conter.
— Só agora? — Desvia a atenção da estrada para me dar um olhar
indignado. — E por causa de um balé?!
— Me dá um desconto e não julgue meus gatilhos! Essas foram as
horas mais malucas que já tive! — protesto, me afundando um pouco mais
no assento aquecido. — Eu preciso ficar um pouco sozinha e digerir tudo.
Ou vomitar tudo, parece ser um termo melhor.
— Foque no seu plano de ignorar até que tudo desapareça — sugere,
sério. — Quando sumir, não vai ter nada para digerir. Ou vomitar.
— Até que você é esperto — brinco e volto a me concentrar na
música, que sempre funciona como uma canção de ninar para mim.
Funciona tão bem que acabo cochilando e só percebo quando ele me chama
dentro da minha cabeça.
E que está surtando.
Mais do que eu surtei minutos atrás.
“Não pode ser aqui”, resmunga e eu me endireito no banco, tentando
entender qual é o grande problema.
Vejo que estamos estacionados na frente do meu prédio, mas que ele
não desligou o motor. Está encarando a pintura desbotada, as janelas tortas,
o gramado malcuidado... Consigo sentir sua desaprovação, sua
preocupação, e sei que não vou gostar do que vai sair da sua boca...
— Não, de jeito nenhum. — Balança a cabeça. — Você não pode
ficar aqui.
Viu?!
Não gostei.
— O que foi que disse?
— Você não vai ficar aqui — repete pausadamente, mas as palavras
ainda não fazem sentido.
— Eu moro aqui. — Aponto para trás, para o caso da sua mente
vampiresca não saber processar o conceito de que algumas pessoas não
moram em palácios.
— Não — insiste, seu maxilar travado em teimosia. — Esse lugar
não é seguro.
— Eu tive que mudar para cá depois que saí do meu trabalho, ok? —
falo, na defensiva. — Não é luxuoso, mas nunca me aconteceu nada.
— Não — afirma, como um disco arranhado, sem parecer disposto a
se mover em um futuro breve.
— Pare de repetir isso!
— Vamos pegar suas coisas e você vai voltar para o Castelo Rot
comigo.
— Sua casa tem nome?
— Sim.
— Eu não vou voltar com você para a sua casa com nome! Eu vou
para o meu apartamento, onde todos são humanos, ninguém me ataca e não
tenho nenhuma alma gêmea predestinada maluca! — anuncio, perdendo o
pouco de paciência que me resta.
Luto um pouco com a porta chique, até conseguir me soltar e sair
para a noite fria. Eu adoraria correr para dentro, como eu adoraria, mas não
tenho forças o suficiente para isso. Ando o mais rápido que posso, subo as
escadas no triplo do tempo que normalmente levo e quase choro de alívio
quando resgato a chave reserva do meio da ferrugem.
A porta se fecha e eu me recosto contra ela, respirando fundo. Digo
para mim mesma que a queimação no meu peito é pelo esforço, não pela
distância daquele Drácula da Shopee.
Não pode ser a distância.
Seria uma maluquice completa.
Nós nos conhecemos há dois dias.
Almas gêmeas não existem.
Parceiros predestinados não existem.
VAMPIROS NÃO DEVERIAM EXISTIR.
Esfrego a minha tatuagem do pulso, para me lembrar da minha
promessa de nunca mais entregar nenhuma parte de mim, para ninguém.
Não importa o que o folclore dele diga, eu sou minha e apenas minha,
obrigada.
Essa conexão sem sentido vai sumir.
Tem que sumir.
Paro na cozinha minúscula apenas para pegar um copo de água e
cruzo o espaço da minha sala/quarto até a cama. Espio pelo papelão que uso
para cobrir a janela, uma parte boba esperando ver o Chiron ainda ali na
rua, mas não há nem sinal do esportivo.
Repito que é melhor assim, mas o aperto no meu peito piora.
É como se a minha pele formigasse.
Uma agonia se embolando e esmagando minhas entranhas.
Ligo a velha televisão e coloco um episódio de “Brooklin 99” para
passar, como faço todas as noites, mas não adianta. Toco o curativo do meu
pescoço, o lembrete de que eu não sonhei tudo isso, e deixo um suspiro
demorado escapar.
Algo me diz que essa será uma longa, longa noite.
Já dividimos neurônios, qual o problema de dividir um teto também...
Roman

Consigo chegar até metade do caminho antes de dar meia-volta.


Ela não pode ficar naquele lugar. Ninguém poderia! Por mais que aqui seja
Himmel, assaltos e outros crimes sejam quase inexistentes, ainda parece um
prédio prestes a desabar a qualquer momento.
Não.
Não posso permitir.
Ela acha que a vida dela virou de cabeça para baixo, mas a minha não
está muito diferente. Entre uma aeternus finis humana, o ataque nas minhas
terras e essa confusão de sentimentos do laço, me sinto a ponto de gritar. E
não acho que já tenha gritado em todos esses séculos de existência.
Dirijo o mais rápido que posso para voltar à região de Ilaria que nem
sabia existir até essa noite. Tão cinza e descuidada. Terei uma séria
conversa com Nikolai sobre este bairro deplorável.
Estaciono entre dois postes para que a escuridão me proteja e fico
com os olhos cravados na janela fechada com papelões, onde vi uma luz se
acender mais cedo.
Seu apartamento.
A lâmpada ainda está acesa, meio bruxuleante, talvez esteja vendo
TV. Sondo a nossa conexão e acho que está acordada. Encontro tanta
confusão que é difícil dizer com certeza. Cruzo os braços, me acomodo
melhor no assento e me preparo para passar a noite aqui.
E para não pensar sobre o que isso significa.
Fico com os olhos colados no seu prédio até o sol nascer. Penso em
mandar entregar um café da manhã, em alimentá-la, mas me obrigo a
lembrar de que deveria estar ignorando o nosso laço.
Eu deveria estar em casa, não aqui.
Cuidando da minha vida, ao invés de encarar um pedaço de papelão
como se ele tivesse me ofendido pessoalmente.
Mais algumas horas se passam, a cidade toda acorda, sua rua começa
a ficar movimentada de carros e pessoas, e sei que logo vão começar a
estranhar a minha presença.
Sem contar que tenho uma aula para dar. Nunca faltei um dia sequer
dos muitos trabalhos que tive, não pretendo começar agora.
Olho para a janela mais uma vez, testo a nossa conexão e ela não
parece com dor, ou com nada além de fome e confusão. Está bem, está tudo
bem.
Ainda estou debatendo sobre levar algum café quando a sua fome
passa. Ela comeu algo sem precisar da minha ajuda, como tem feito por
toda sua vida. E esse é o argumento que eu preciso para interromper esse
momento patético e sair daqui.
É apenas um laço idiota.
Ela não está em perigo.
Nada vai acontecer.
Ela viveu muitos anos humanos sozinha.
Irritando pessoas por aí.
Eu me obrigo a dar partida e manobro para cair no trânsito, antes que
mude de ideia. Ligo o som e troco a playlist de música clássica de sempre
para a bobagem rock mais barulhenta que encontro.
Espero que as baterias exageradas abafem a queimação que já
começa a nascer no meu peito. Paro no drive-thru de uma cafeteria qualquer
e peço o maior chá que eles têm, forte e sem leite.
Eu deveria tomar um pouco de sangue para tentar acalmar esses
malditos instintos primitivos, mas não há tempo para passar no castelo.
“Sua casa tem nome?”
A lembrança da noite passada me faz apertar o volante com mais
força. A queimação aumenta conforme me distancio e acredito que apenas
metade seja minha culpa.
Estou começando a reconhecer o que é meu e o que é dela. Porque
tudo que vem dela é mais... brilhante.
Como se as minhas emoções fossem todas em tons neutros e as dela
fossem uma explosão néon irritante. Até suas emoções ruins são néon.
Aumento ainda mais o volume da música e a voz da vocalista chega a
vibrar contra os meus vidros blindados. Seja lá quem for essa tal de
Darkify[2], aposto que estará gravada nos meus tímpanos pelo próximo
século.
Tento me concentrar na letra da canção, algo sobre um labirinto, até
estacionar na Nobre Academia Real de Ensino. Os alunos saem da minha
frente, os outros professores saem da minha frente e, pela primeira vez, sou
grato por isso.
Normalmente, me divirto em ver suas expressões assustadas.
Hoje, eu quero que fiquem apavorados se isso significa que vou ser
deixado em paz.
Tomo mais um longo gole do meu chá e sigo direto para o anfiteatro
onde eu acredito que será a minha aula. Não tenho certeza, estes espaços
parecem todos iguais, assim como os estudantes e suas caras de medo.
Preciso de um novo assistente e rápido, um que ao menos me diga
onde eu preciso estar.
Encontrar alguém para a posição não deveria ser uma tarefa difícil,
mas todos que entrevisto parecem ratinhos assustados, sem coragem nem de
me olhar nos olhos, quanto mais trabalhar ao meu lado.
Bichos frágeis e sentimentais.
Sempre me espanta que sejam a maioria neste planeta.
Entro em um dos enormes espaços e deve ser o lugar certo, pois todos
estão no silêncio habitual que encontro nas minhas aulas. Examino algumas
mentes e descubro que é a minha classe, de fato. Busco mais algumas e um
dos melhores alunos, senhor Durant[3], se não estou enganado, revisa suas
anotações do último conteúdo.
Perfeito.
Sei de onde parei.
Deveria dar um jeito de agradecer a esse menino.
Apoio meu chá no púlpito, pego uma das canetas para quadro branco
— porque hoje não teremos slides graças ao meu vexame organizacional
—, e respiro fundo.
A dor do meu peito me acompanha durante toda a minha explicação
sobre a organização social da Roma antiga. Eu tento me concentrar, mas é
uma palhaçada inútil, pois minha mente continua voltando para aquele
prédio em ruínas.
Na metade da aula, eu desisto.
— Acabamos por hoje — anuncio, me interrompendo do nada,
jogando a caneta na mesa e caminhando para fora do espaço. Os alunos
exclamam em surpresa, mas vou deixar para lidar com as consequências
depois.
Estou indo atrás de uma humana.
Uma humana!
Uma humana irritante e que debocha de tudo.
Não conheço o fundo do poço, mas deve ser bem parecido com este
momento.
Entro no meu carro, ainda praguejando, e ligo para Chris.
— Eu perdi o juízo — anuncio, assim que ele atende.
— Sempre soube que esse dia chegaria — responde com uma nota de
diversão e o ouço se desculpando com alguém, depois do barulho da sua
máquina de tatuar ser interrompido. Uma porta bate e sei que se mudou
para o seu escritório.
O desespero na minha voz deve estar pior do que eu imaginava.
— Estou falando sério — reclamo. — Essa coisa de aeternus finis...
Eu não quero.
— Você não quer? — Ele ri. — Se eu não te conhecesse tão bem,
diria que faltou a todas as suas aulas de história vampírica.
— Deve ter um jeito — teimo. — Alguma saída.
— Você faltou mesmo, não foi? Vamos lá, os elementais têm a sua
alquimia, os magos têm as profecias, nós temos nosso aeternus finis... Hey!
Não são os Knights que podem fazer essa coisa de conversar nas mentes
também? — divaga. — Será que você... deveria ser um Knight, mas era um
vampiro e deu uma pane no sistema que te fez ser esquisito assim?
— Foco, Chris! — reclamo, ao mesmo tempo que cruzo três faixas da
avenida principal, deixando um rastro de buzinas atrás de mim. — O que
suas fontes disseram sobre o ataque?
— Não consegui nenhuma informação — afirma, seu tom passando a
soar preocupado. — Por isso, vou dizer uma coisa que não vai gostar, então
se prepara. — Neste ponto, nada mais me abala. — Acho que deveríamos ir
ao baile de Lorde Hermes para darmos uma investigada.
— Eu odeio esses bailes — lembro-o, com um bufar impaciente.
Todos esses eventos sociais se tornam apenas cansativos depois da primeira
década.
— Eu sei, eu sei, mas você ainda é o rei e ainda precisa ir — insiste.
— E deveria levar Amélie.
— Não vou levar a humana para a convenção dos malucos!
— Poderia ajudar a descobrirmos quem a atacou! Leia algumas
mentes quando ela aparecer, eu posso ficar de olho em reações estranhas...
— sugere. — Quem decidiu te incriminar não é muito esperto, afinal
decidiu fazer isso justo contigo. Grandes chances de vê-la lá e se apavorar.
Podemos ter uma pista, cara.
— Mesmo que eu embarcasse no seu plano maluco, ela não iria
aceitar.
— Por quê?
— Porque, tecnicamente, nós combinamos que nos ignoraríamos até
a coisa do laço passar.
A linha fica em silêncio.
Mais silêncio.
Um longo e inesperado silêncio, já que Chris nunca cala a boca.
Então, ele começa a gargalhar.
Ri sem parar por vários minutos.
— Acabou? — pergunto, quando pausa para tomar ar.
— O plano brilhante de vocês era ignorar o laço? — Mais uma
rodada de risadas descontroladas. — Vocês são ridículos.
— Você nem tem um aeternus ainda, pirralho.
— Mas eu sou mais esperto do que pensar que a magia antiga mais
poderosa que existe simplesmente vai “passar”, como um resfriado, ou
aquela moda ridícula das pochetes de uns anos atrás que...
— Chris!
— Roman! — retruca, no mesmo tom.
— Tem algo de errado na nossa conexão. Nós não somos compatíveis
e nem estou falando apenas sobre o fator “humana”. — Acelero ainda mais,
desviando de um ônibus no último minuto, o pico de adrenalina ajudando a
me centrar. — E pense no escândalo que seria se vazasse que minha
aeternus não é uma vampira...
— Digo com amor, mas você não é compatível com ninguém, Rom-
Rom! — provoca. — E não precisa contar que ela é sua aeternus. Diga que
ela é sua... — Pensa um pouco. — Sua scriba! Isso! Você está procurando
por um assistente mesmo.
— Meus assistentes nunca receberam o cargo de scriba.
— Sempre há uma primeira vez.
— A humana confinada em um prédio cheio de vampiros... — Aperto
o volante até sentir o material cedendo ao meu toque. — Não, perigoso
demais.
— Eu estarei lá com vocês, não vou deixar ninguém tocar em um fio
de cabelo de Amélie — suaviza seu tom. — Além do mais, você ainda é
nosso rei. Se alguém tocar no que é seu, pode apenas quebrar um pescoço
ou dois.
— Tão simples — debocho.
— Onde ela está agora, afinal? — questiona e sussurra algo como
“ignorar, francamente”.
— Eu a deixei na sua casa ontem à noite... — Começo e não resisto a
acrescentar. — O lugar é um perigo. Um pardieiro.
— Se há alguém que pode resolver qualquer coisa, esse alguém é
você, Rei Príncipe. — Faz o trocadilho ridículo que adora com o meu
sobrenome. — Te vejo às 20h? No Castelo Rot?
— Ok. — Acabo concordando. E já me arrependendo.
— E Roman? — chama, antes que eu mude de ideia.
— Sim? — respondo, contrariado.
— Isso pode ser uma coisa boa. Não seja tão “você” e perca a chance
de aproveitar o presente que é encontrar o seu aeternus. — Abro a boca
para retrucar, mas ele me interrompe, adivinhando que eu estava prestes a
protestar. — Sei que vocês estão confusos, sei que é ainda mais confuso
com a coisa de ela ser humana, da comunicação mental e tudo mais, só... dê
uma chance.
— Esqueceu do detalhe que ela parece não me tolerar. — Suspiro.
— Porque você deve ter ficado o tempo todo rosnando, como faz com
qualquer pessoa que não seja eu!
— Eu não rosno para Lila.
— Rosnou naquela noite.
— Não foi minha culpa, foi essa maluquice de laço!
— Ela já te perdoou, eu ainda nem tanto. Nada que um charuto
cubano da sua coleção não resolva.
— Considere feito, te vejo à noite — respondo, me sentindo melhor.
Não sei se por conversar com ele, ou por ter chegado ao apartamento.
Ela está bem, em segurança, e isso acalma o laço.
Desligo e fico olhando para o seu prédio ridículo, caindo aos pedaços.
Depois que tirá-la daqui, vou dar um jeito de comprar esse negócio e
derrubar essa ameaça pública até que não sobre nem um grão de poeira
mais.
“Desço em alguns minutos”, sua voz chega até mim, me pegando de
surpresa. Encontro a sua janela e a vejo colocando o papelão de volta,
depois de espiar e me flagrar ali.
Deve ter sentido a minha aproximação, tão afetada quanto eu.
“Desce?”, questiono, sem entender. “O plano não era ignorar?”.
“Esse laço é pior do que um cachorro com fome. E, ao que tudo
indica, você é o melhor tipo de ração que existe”.
“Romântico”.
“Sério, cara! Qual é o problema desse negócio? Parece que tinham
arrancado um pedaço meu fora. Quando eu achei que estava melhorando,
percebi que era só porque você estava na minha janela”.
“Aeternus finis”, digo, simplesmente. “E acredito que nós
subestimamos a sua força”.
“Para resumir, isso não vai simplesmente desaparecer?”.
“Chris riu por cerca de seis meses quando eu lhe contei o nosso
plano”.
“Então, a menos que eu queira andar por aí com a sensação de que
cravei um punhal no peito, eu preciso que você esteja por perto. Ótimo”.
“Você já teve um punhal cravado no peito?”.
“Se esse laço tivesse uma cara, eu a socaria”, resume bem a situação,
ignorando a minha pergunta.
“Apresse-se, antes que eu tome uma multa”, peço, me distraindo de
imaginar a agoniante cena da sua figura frágil com um punhal no peito, de
fato.
Ela apenas bufa em resposta.
— Você sempre consegue o que quer, não é? — pergunta uns minutos
depois, assim que sobe no banco do passageiro, jogando uma mochila no
banco de trás.
— Acredite, nada disso é como eu quero — afirmo, categórico. —
Mas não posso mentir que não estou feliz por você não estar mais debaixo
dessa pilha de escombros.
— Não é tão ruim assim!
— De novo, pense como seria para você me deixar em um lugar que
acredita ser perigoso? — Começo e não preciso dizer mais nada para que
leve a mão ao peito, esfregando ali.
— Tudo bem, entendi. O punhal crava ainda mais fundo. — Descansa
contra o banco, parecendo exausta, grandes olheiras aparentes debaixo dos
seus olhos. — Eu não vou dizer que estava certo, mas eu... — Suspira. — A
verdade é que eu odeio esse lugar tanto quanto você. Odeio, odeio, odeio.
— Quem diria que concordaríamos em algo — afirmo, satisfeito pela
sua admissão. — Há algo mais que queira pegar, ou podemos seguir para a
minha casa? Sabe, onde não tem tétano no ar?
— Só se você a chamar pelo nome — cantarola e eu reviro os olhos.
— Há algo mais que queira pegar? — insisto.
— Não. — Faz uma careta e olha para o prédio com tanto desprezo
quanto eu. — E, se pudesse, nunca mais pisava aqui.
— Posso cuidar disso.
— Como assim? — Se vira para mim, choque estampado nas suas
feições bonitas. Tão bonitas que me tiram de órbita por um segundo.
Nem todo o cansaço consegue apagar o quanto ela é linda...
— Posso cuidar para que suas coisas sejam reunidas e despachadas
— digo, voltando a olhar para frente, disfarçando a cobiça da minha voz. E
a enterrando bem fundo dentro de mim.
— Mas ainda tenho alguns meses de contrato e a multa...
— Cuido disso também — interrompo, ainda sem coragem de encará-
la. Além de tudo, estou virando um covarde.
Que belo exemplo de soberano.
— Mesmo?
— Mesmo — repito.
— Por quê?
— Essa é a graça do nosso laço. — Dou de ombros. — Você estar
feliz e segura é o que ele quer. Essa é a verdadeira “ração”.
— Uau — exclama e uma onda de algo escuro começa a chegar até
mim, me obrigando a virar na sua direção. Eu a encontro perdida em
pensamentos e emoções.
E não são emoções néon.
São pesadas, cinzentas, carregadas de tristeza.
Não gosto disso.
— Posso começar a dirigir agora? — pergunto, tentando trazê-la de
volta, chamar sua atenção.
— Claro. — Acorda do seu transe e dá um pequeno sorriso, o
incômodo cedendo um pouco. — Então, você me chamou para morar
contigo. Muito saidinho da sua parte, depois de tão pouco tempo.
— Você tem alguma sugestão melhor? — Ergo uma sobrancelha em
desafio, ao mesmo tempo em que volto para o trânsito da cidade. — Ao
menos até a gente descobrir se há alguma forma de acabar com isso?
— Vai me deixar ficar com o seu quarto?
— Não.
— Vai me deixar pagar aluguel?
— Não — respondo e sei que vai protestar pela onda de indignação
que me atinge, enquanto ultrapasso uma fileira de carros. — Mas gostaria
de pedir que me ajude como assistente por um tempo — me apresso a
sugerir, deixando a ideia maluca de Chris escapar pelos meus lábios.
Eu deveria ter aprendido a não ouvir conselhos dele quando me
convenceu a fazer aquela viagem para Las Vegas. E tudo que fizemos nos
dias que ficamos lá. E todos os subornos que precisei pagar para encobrir o
que aconteceu.
— Assistente? — questiona, sem entender.
— Eu te disse que precisava de um.
— Disse, mas você nem sabe se eu tenho experiência, nem sabe o que
faço da vida!
— E o que você faz da vida?
— Na verdade, não quero falar sobre isso. — As sombras voltam a
espreitar o laço e ela cruza os braços, erguendo o queixo, pronta para me
enfrentar.
Como se eu fosse querer tocar em qualquer assunto que lhe faz mal...
Adoraria saber apenas para providenciar uma vingança bastante elaborada,
mas sou paciente. Na hora certa, ela vai me contar. E eu vou resolver.
— Tudo bem — concordo. — Pode negar se quiser, claro. Apenas
pensei que, como não está trabalhando no momento...
— A gente vai se matar se trabalhar junto — fala sem julgamento,
apenas constatando um fato.
— A gente, literalmente, não pode se matar — digo, focado em pegar
a saída certa para o Castelo Rot. — E os papinhos mentais, a conexão,
deixariam tudo mais fácil.
— Nem precisaríamos de e-mail — debocha, mas sei que está
considerando.
— Pelo menos, faça dinheiro dessa maluquice. — Tento apontar o
lado bom, por mais que seja péssimo em ser otimista. — Pode pedir o
salário que quiser, não é problema.
— Um milhão de coroas por hora.
— Conte com você para ser absurda.
— Um milhão de coroas por dia?
— Humana, estou tentando falar sério.
— Porque você sempre fala sério. — Começa a mexer no sistema do
carro e o rock de mais cedo soa tão alto que ela se apressa para abaixar,
praguejando uma enxurrada de palavrões. — Caramba, o que aconteceu
aqui?
— Uma tentativa de abafar o laço.
— Funcionou?
— Quem dera — resmungo e ela ri. — E sobre o trabalho? — Tento
recuperar o seu foco, que é tão ruim quanto o de Chris.
— Eu aceito fazer uma experiência, mas vai descontar uma quantia
do meu salário pelo aluguel — negocia, endireitando sua postura. — Só
para deixar claro. Você pode ser meu chefe, você pode ser até a minha alma
gêmea, mas nós não teremos um relacionamento... carnal.
— Claro que não vai haver nada de carnal! — exclamo, indignado
com a sua suposição.
— Sou muita areia para o seu caminhãozinho vampírico. — Pisca e
eu apenas lhe lanço um olhar nada impressionado. — Hey! Devagar com
essa sua irritação irritada, já disse.
— Faz parte do meu charme.
— Charme, chatice, semântica...
— Ok, talvez a gente dê um jeito de se matar.
— Confio em nós para isso — diz, com orgulho.
Estranha.
Estranha até para um humano.
— Então, temos um acordo?
— Você já é o equivalente a um papagaio acoplado ao meu cérebro,
qual o problema de ser o meu chefe também? — Faz um gesto de dispensa
com a mão e vou considerar isso como um “sim”.
— O trabalho não tem muito segredo, só alguns detalhes particulares
por conta da minha... — Procuro pelo termo correto. — Natureza.
— Ao invés de pegar uma xícara de café, devo pegar uma xícara de
sangue?
— Eu gosto de chá.
— Vampiros comem?
— Não precisamos, mas podemos — informo. — Prefiro bebidas,
comidas pesam um pouco.
— E essa nem é a entrevista de emprego mais estranha que eu já tive.
— Balança a cabeça. — Vamos lá, despeje as estranhezas.
— Para começar, essa noite haverá um baile e eu gostaria que me
acompanhasse como minha scriba.
— Qual é a de vocês e essas palavras estranhas? Himmeliano não é
bom o suficiente para sua alteza?
— Nossa linhagem é mais antiga do que Himmel.
— Esnobe! — Finge tossir. — Ok, então qual é a coisa do... Já
esqueci.
— Scriba — repito. — Só o que precisa saber é que este é um cargo
que justificaria você estar ao meu lado — resumo e aproveito para explicar
o resto. — Um representante de cada clã comparecerá com seus respectivos
parceiros, uma tradição para tentarmos manter nossa pequena comunidade
unida. — Deixo de lado a quantidade de drama que sempre acontece nesses
eventos. — Acaba sendo quase uma reunião de negócios, na verdade.
— Faz sentido eu te acompanhar — concorda. — Posso fazer isso.
— Mas tem uma parte que ainda não te contei — informo. —
Conversei com Chris mais cedo e ele acha que você estar lá seria uma boa
ajuda para tentarmos descobrir quem te atacou.
— Como assim? — Franze o cenho, confusa.
— Só pode ter sido outro vampiro e todos que teriam algum motivo
para me prejudicar estarão neste baile — explico. — Talvez te ver vá causar
alguma reação, ou disparar algum gatilho mental que eu poderei ler...
— É tipo uma missão de reconhecimento! Podemos mapear suspeitos
e identificar ameaças. — Ela se anima toda. Até demais para o meu gosto.
— Adorei.
— Acho que não entendeu o que eu disse. — Desvio o foco da
estrada, para que entenda o quanto falo sério. — Estou sugerindo que vá
para um lugar infestado de vampiros, onde talvez esteja um que quase te
matou.
— Eu entendi muito bem! — Amplia seu sorriso e começa a esfregar
uma mão na outra, como um vilão de desenho animado. — Vingança, baby!
Vamos pegar esse idiota.
— Esse era um daqueles momentos que você deveria ficar com medo
— aponto o óbvio, mas ela continua com sua expressão de antagonista,
prestes a destruir o mundo.
— Eu nunca tive medo de perigo. — Dá de ombros. — E você é o
rei. Ninguém vai fazer mal para a... aquele nome engraçado lá do rei.
— Sobre isso... — Faço uma pausa, pensando em como explicar. —
Nós não podemos contar para ninguém sobre o laço.
— Por quê? — Suas sobrancelhas se franzem. — Qual o problema
comigo?
— Não há problema nenhum com você, especificamente. — Deixo
bem claro. — Você ser humana será um escândalo e eu não quero lidar com
isso antes de descobrirmos quem te atacou. Seria uma distração grande
demais.
— Então, tem um problema comigo.
— A coisa de ter você dentro da minha cabeça é bem mais irritante
do que sua espécie, se quer a minha opinião.
— Depois eu que sou a romântica — resmunga e eu ignoro.
— Nós vamos te apresentar apenas como a minha scriba, para
justificar que esteja ao meu lado, e torcer para pegar o palerma que bolou
esse estratagema patético.
— Então, vou te ver sendo todo rei para cima dos outros já no nosso
primeiro dia juntos? — Ergue as sobrancelhas com uma malícia fingida. —
Sabe, homens poderosos podem despertar algo em uma mulher...
— Você é absurda. — Volto a olhar para a estrada de terra, que levará
direto ao castelo, todos os meus esforços empenhados em bloquear minhas
reações à ideia de “despertar” coisas nela.
— E que tal umas aulas de etiqueta vampírica? Eu devo fazer uma
reverência para você?
— Na verdade, como minha scriba, sim. Mas, como minha aeternus,
eu me curvaria a você.
— Sério? — indaga, sem esconder seu espanto.
— Eu nunca...
— Brinca. Tá, tá — completa e revira os olhos. — Mas precisa se
curvar a mim, mesmo sendo o rei e eu sendo a humana absurda?
— Tradicionalmente, o parceiro do sexo masculino se curva à
parceira do sexo feminino, mas nós temos vários casos de parceiros do
mesmo gênero, ou não-binários, que decidem como querem proceder, ou
escolhem que ambos se curvem.
— Que bonito! — Suspira. — Achei que vocês, velhotes, seriam
menos progressistas.
— Quando se vive por séculos, se aprende o que realmente importa.
— Amém, irmão. — Dá um tapinha no meu ombro, me fazendo
sibilar de irritação. — Mas ainda não sei fazer uma reverência, seja para
quem for.
— Lila pode te ensinar mais tarde — sugiro. — Chris irá conosco. E,
se ele vai, ela vai.
— Estranho.
— Estranho não é nem o começo.
— E o que eu tenho que vestir? Minhas roupas... — Ela começa a
contar, mas aquela energia densa, sombria, volta a cercá-la. — Digamos
apenas que não tenho muitas opções.
— Não adiantaria, você vai precisar de um traje típico.
— Ok, agora eu estou com medo.
— Você fica com medo apenas nas horas erradas.
— O medo é meu e eu vou tê-lo quando quiser! — reclama. — Onde
eu consigo o tal traje típico?
— Vou providenciar e pedir para entregarem em casa.
— Chame sua casa pelo nome! — cantarola mais uma vez.
— Vou providenciar e pedir para entregarem no Castelo Rot —
concedo, cansado demais para teimar.
— Bom garoto.
— Dificilmente posso ser definido como garoto. Ou como bom.
— Por favor, nunca me conte sua idade real. — Faz uma careta. —
Mas, com a última parte eu concordo.
— Tire a tarde para descansar, se ambientar e nos encontramos para o
baile à noite — continuo negociando, ignorando suas provocações. —
Amanhã, espero que me acompanhe nos meus compromissos na Nobre
Academia e faremos uma reunião para definir o seu salário, horários e tudo
mais.
— Parei de ouvir depois de “descansar”. — Ela deixa escapar um
longo bocejo. — Quer saber, vou dormir já e você faz a coisa de me
carregar por aí no melhor estilo vampirão fodão. Obrigada.
Achei que estivesse brincando...
Mas não estava.
Ela pega no sono em segundos.
E não acorda quando estaciono na garagem.
Eu cogito deixá-la dormindo ali mesmo.
Cogito seriamente.
Mas não a quero babando no meu Chiron.
E essa será sempre a versão oficial.
Eu a pego com cuidado e subo para o segundo andar, levando-a para
um dos quartos de hóspedes mais afastados do meu, sob os olhares curiosos
dos meus funcionários, que não estão acostumados a me ver por aqui no
meio do dia.
Muito menos com uma humana nos braços.
Ainda bem que todos têm acordos de confidencialidade mais sólidos
do que estantes de madeira maciça.
Assim que eu a coloco na cama, ela abraça um travesseiro e suspira
relaxada. Todo o meu incômodo das últimas horas também desaparece.
Ela está segura.
Ela está bem.
Ela está comigo.
Na verdade, posso pedir para Lila dar uma nova checada nela mais
tarde, antes de irmos para o baile. Sim, farei isso.
Eu me acomodo em uma das poltronas macias, apenas para o caso de
que acabe acordando sem saber onde está, pego o meu celular e providencio
o seu traje para essa noite.
Então, só vai me restar torcer para que tudo corra bem.
Se é que há alguma chance disso...
Um cosplay, muitas capas e todo o drama de um bom baile.
Humana

— Roman! — chamo, andando pelo corredor, segurando a confusão


de tecido nas mãos.
Uma enorme confusão.
O vestido de renda preta que ele mandou entregar foi fácil de decifrar.
Todo sóbrio, com mangas longas, gola alta, saído do catálogo “Moda
Gótica” mais próximo. Surpreendentemente do tamanho certo, que abraça
as minhas muitas curvas de um jeito tão lisonjeiro que há uma grande
chance de eu nunca mais usar outra coisa na vida. O sapato combinando foi
um grande bônus, se não contar a parte estranha de que sabia o tamanho do
meu pé. Eu teria de sair usando meus tênis ganhados de Lila, se ele não
tivesse pensado em tudo.
Controlador maluco.
Minhas maquiagens atuais se resumem a rímel e um batom, mas não
será um problema se pensarmos que estou indo a trabalho, que não preciso
impressionar ninguém.
Meu cabelo platinado, o último resquício de vaidade que não abri
mão, está preso em um coque apertado e usei um pouco do condicionador
que encontrei no banheiro para abaixar os fios.
Um grande avanço do meu estado de ontem.
O problema é essa espécie de... capa do Batman que eu devo usar. Ou
seria um xale? Ou é apenas a colcha da cama e eu que estou enganada de
que faz parte do look?
— Roman! — chamo de novo, mas não tenho resposta, então desço a
enorme escadaria, para descobrir se já está no saguão.
— Hey, humana! — É Chris quem aparece, vindo da cozinha, com
Lila a reboque.
— O nome dela é Amélie! — A moça lhe dá uma cotovelada dolorida
e sorri para mim. — É bom te ver bem! Como está se sentindo?
— Melhor, obrigada. — Retribuo o sorriso. — E você, garota, está
linda!
E ela está mesmo.
Veste um longo de renda preta similar ao meu, então imagino que seja
alguma espécie de tradição. O mais curioso é o tipo de lenço em um tom de
púrpura jogado nos seus ombros. É parecido com o tecido confuso que
estou arrastando, mas bem mais simples. Quase uma echarpe.
— Você também fica muito bem quando não está envenenada. — Ela
acaba com o espaço entre nós e puxa a minha gola, depois o curativo,
espiando a ferida. — Sem sinal de infecção. Teve febre? Mal-estar?
— Não e não.
— Comeu?
— Um prato enorme da melhor carbonara da minha vida apareceu, do
nada, na mesa do meu quarto quando saí do banho.
— Isso acontece muito por aqui — Chris ri e eu me permito analisá-
lo também.
Parece muito vampiresco em um terno, colete e camisa pretos, com
um lenço no lugar da gravata, preso por um alfinete prateado e um tipo de
xale jogado em cima do ombro, ambos no mesmo tom púrpura de Lila. Seus
cabelos longos foram amarrados em um rabo de cavalo, há um traço de
delineador nos seus olhos, as únicas tatuagens à mostra são as das mãos e
suas unhas estão pintadas de preto.
Acho que é a pessoa mais estilosa que já conheci.
— As cores do meu clã — conta, percebendo a minha inspeção,
tocando o tecido roxo. — Cada uma das famílias tradicionais tem o seu
próprio tom.
— E devo supor que a cor do vampirão supremo é o vermelho-
sangue. — Mostro a confusão nas minhas mãos. — Faz sentido.
Chris assobia baixo, pegando a tenda de circo para analisar,
parecendo impressionado.
— Ele te deu o manto cerimonial completo! — exclama.
— Ahn... o que isso quer dizer?
— Quando Roman levou os outros assistentes em compromissos
oficiais, eles usaram apenas lenços simples como o meu — explica, ainda
embasbacado. — Este manto é a segunda veste de maior honra, destinada
apenas ao braço direito do rei. Ao segundo em comando, digamos assim.
Honra maior do que essa só...
— Deixa eu adivinhar — interrompo. — Só a capa do Batman
destinada ao aeternus finis dele.
— Olha só você, já toda por dentro do assunto. — Lila me dá um
empurrão de brincadeira. — Andou falando com a sua avó?
— Tá brincando? — Um arrepio me percorre. — Essa é uma
conversa que eu nunca quero ter com ela.
— Nunca? — Franze o cenho para mim.
— Se souber sobre a coisa do laço, vai ter um ataque do coração.
Seria o equivalente a dizer para uma adolescente que uma das Lioness[4] é
minha alma gêmea.
— Mas você estar aqui significa que pararam com a bobeira de tentar
ignorar o laço. — Todos os traços de Chris se franzem em uma expressão
de deboche. — Sabe, foi uma péssima ideia, mesmo para uma humana.
— Eles tentaram ignorar? — Lila faz uma careta. — Até eu sei que
isso é uma loucura!
— Hey, me dá um desconto. Sou nova na vida vampira! — me
defendo. — Eu nem faço ideia de como vestir esse negócio que é todo
importante, solene, tradicional, blá-blá-blá.
— Posso ajudar — Chris se adianta, mas um rosnado duplo o faz
congelar no lugar. Pisco surpresa até entender que metade veio de Lila e
metade do patamar do segundo andar. — Não, não posso. — Ele ergue as
mãos em uma pose de rendição dando alguns passos para trás.
Garoto esperto.
Lila tem cara de quem saberia como desmembrar um corpo.
Sem deixar vestígios.
E falando em seres capazes de desmembramentos... Olho para cima e
encontro Roman parado, me encarando com uma expressão ainda mais
enfezada do que o normal. Mas não é isso que chama a minha atenção...
É a sua roupa.
— Ai, meu Deus! — Começo a rir, sem me conter. — O que você
está usando?
— Meu traje cerimonial — responde, com seu tom entediado de
sempre.
— Você está parecendo um cosplay de vampiro! — debocho, sem me
conter, e ele pula do andar superior para o chão.
Literalmente.
Não usa os degraus, apenas se lança no ar e aterrissa à minha frente
com um baque, antes de se erguer com um movimento fluido, elegante, se
desenrolando até se esticar em toda a sua altura intimidante.
Ainda bem na minha frente.
A milímetros de distância.
O meu humor desaparece porque, não, ele não está parecendo um
cosplay. Eu retiro tudo o que disse. De perto, não tem nada a ver com uma
fantasia. Parece muito, muito real.
Ele está intimidante.
Impressionante.
Impactante.
Tanto que nem me envergonho pela análise que meus olhos decidem
fazer, de um modo bem descarado.
Sua calça preta perfeitamente ajustada, seu colete com detalhes
bordados no tom de sangue, o lenço que combina e a capa... A capa é o
centro do show, com uma daquelas golas levantadas e altas, feita de um
tecido pesado, com fechos prateados antigos e rebuscados, se prendendo no
seu pescoço.
Ele sente o que estou sentindo, todo o meu fascínio, e um sorriso
arrogante se abre no seu rosto ao descobrir que me deixou sem palavras.
— Você dizia...? — debocha.
— Que ela acha que você está bem tradicional. — Lila tenta
contornar a situação, tenta me salvar do constrangimento, e eu aproveito a
deixa para dar um passo para trás. Coloco uma boa distância entre nós,
quase me escondendo às costas da outra garota.
— Bem tradicional — concordo, limpando a garganta e cobrindo as
minhas bochechas com as mãos, para que não veja quão corada estou. — E
por que me fez subir e descer a maldita escada se poderia apenas pular
todas as vezes? — mudo de assunto. De propósito.
— Não vou pular de uma altura dessas com você! — protesta,
indignado.
— Por que não?
— Porque é perigoso.
— Sem graça.
— Realmente, sou um estraga-prazeres por te manter viva —
resmunga e parece perder a paciência de vez comigo, pegando o
emaranhado de tecido da minha mão e sacudindo para esticá-lo. Então,
coloca-o sobre os meus ombros com um floreio, prendendo um fecho
elaborado, que eu não tinha reparado ainda, na altura do meu peito. Demora
para deixá-lo bem centralizado e tira o seu tempo para arrumar a parte do
pescoço, seus dedos se arrastando na pele dali, sua expressão tão intensa
que nem preciso checar nosso laço para saber que agora é ele quem está
afetado.
Por mim.
Cometo o erro de buscar as suas íris e é neste segundo que tudo
muda. Algo muito maior nos prende no lugar, presos no olhar um do outro,
presos por uma força invisível... Subjugados. Tê-lo tão próximo, seu calor,
seu cheiro... é como se o laço vibrasse. A sensação é tão primitiva, tão
instintiva, que nem percebo quando o puxo com força para mim, obrigando-
o a dar um passo na minha direção...
O seu movimento súbito me apavora e eu quebro a conexão estranha
entre nós, me afastando e desviando o rosto.
— Isso foi... — Lila começa a dizer, olhando para nós com um misto
de espanto e fascínio.
— Quente. — Chris completa, com um enorme sorriso no rosto.
— Podemos ir? — peço, envergonhada, sem a menor condição de
continuar tocando neste assunto.
— É claro. — O próprio Roman responde e me oferece o braço em
um gesto digno de quem deve ter frequentado a sociedade lá nos tempos de
Julia Quinn.
Penso em alguma desculpa para não aceitar a sua gentileza, sem
confiar no que o laço vai aprontar se nós nos tocarmos, mas não consigo
inventar nada. Tento me desvencilhar da montanha de tecido ao meu redor,
até achar o meu braço soterrado.
— Eu tenho mesmo que usar isso? — reclamo, finalmente me
libertando o suficiente para me juntar a ele.
— Tem — responde, fingindo estar inabalado, mas eu sinto algo
chegar até mim quando o toco, mesmo que seja por cima da sua manga.
O laço já estava feliz com a nossa proximidade antes, agora está
ronronando dentro do meu peito. Parece que eu engoli um vibrador.
Daqueles bons, potentes...
Do que eu estava falando mesmo?!
Ah, é. Capas.
— Mas vai amassar toda no carro!
— Não vamos muito longe. — Tenta me tranquilizar do seu jeito
estranho e, ao invés de ir para a garagem, nós seguimos para a porta da
frente, onde uma limusine com motorista nos aguarda.
— Uau — exclamo impressionada. E me impressiono mais quando o
engravatado faz uma reverência para Roman, evitando seus olhos, enquanto
segura a porta aberta.
Ele é mesmo um rei.
As pessoas fazem reverências quando o veem!
Christian ajuda Lila a entrar e meu vampirão faz o mesmo, me
auxiliando com a maluquice de capa, ainda que tenha a sua própria para se
preocupar.
Esses seus momentos de gentileza... Deve ser culpa do laço o
obrigando, certeza.
Durante o caminho, os dois homens vão listando suspeitos do meu
ataque e Lila vai me explicando tudo o que pode sobre etiqueta vampira. No
fim das contas, nem preciso aprender a fazer reverências. Como a tal
“scriba”, só precisaria me curvar ao meu chefe, mas como chegaremos
juntos, não há necessidade. Fora isso, de acordo com ela, basta eu ficar
colada ao lado de Roman que ninguém me causará problemas.
— Ele é diferente, quando está no papel de rei, do que quando está
com a gente — sussurra para mim e eu imagino que o “gente” se refira a ela
e Chris. — Se prepara.
Realmente, o trajeto é curto e não devem ter passado nem quinze
minutos antes da limusine estacionar. Sinto a mesma empolgação que sentia
antes de uma das minhas missões, um misto de medo com adrenalina.
É hora do show.
— Vamos lá, vamos descobrir quem foi o idiota que tentou me matar
e fazê-lo pagar — anuncio, animada.
— Ela não está falando sério, está? — Chris pergunta, me lançando
um olhar chocado.
— Eu nunca brinco! — imito a voz do meu vampiro de estimação e
pisco para eles, descendo assim que a porta é aberta, sem esperar pela ajuda
de ninguém.
Estamos em uma enorme propriedade, toda pintada em um tom de
verde esmeralda. Não é um castelo, mas é ridiculamente gigante, com
jardins esculpidos e podados, tochas de verdade servindo como iluminação
e uma fileira de homens usando uniformes da mesma cor do lugar.
Guardas!
Com lanças nas mãos!
Chris e Lila descem em seguida e se juntam a mim, discutindo
alguma coisa sobre ele lhe dever uma por estar vindo a “mais uma
convenção das bruxas”.
Então, é a vez de Roman e eu entendo, no mesmo segundo, o que ela
quis dizer sobre ele ser diferente. Assim que se ergue, saindo da escuridão
do interior do carro, não há nem sinal do cara que fez sopa para mim.
Esse homem aqui, com essa aura de poder, essa postura de predador,
essa expressão tão fechada que parece quase feroz... É um rei em toda sua
glória.
Mas o principal, o que me faz soltar uma exclamação alta, são os seus
olhos... Não estão mais escuros, pretos.
Estão vermelhos.
Vermelho-sangue.
Até a energia que emana do laço é diferente. Eu não ousaria deslizar
para dentro da sua mente agora, de jeito nenhum. Está tão intenso, tão
elétrico, que eu aposto que me daria algum tipo de choque.
E adoraria isso.
Assim que o veem, todos os “guardas” se curvam em um movimento
ensaiado, uma reverência sincronizada, batendo suas lanças no chão em
saudação.
Caramba.
Ele começa a andar com passos elegantes, a capa ondulando atrás de
si e eu me apresso a segui-lo de perto, sem dizer uma palavra.
Subimos alguns degraus de pedra, até chegarmos ao patamar da
mansão, e as portas duplas se abrem assim que ele se aproxima. Sem que
precise sequer diminuir o seu ritmo e sem que ninguém precise tocá-las.
Ele fez isso?
Com tipo... sua mente vampiresca?
Faço um esforço para não parecer impressionada, tento manter minha
expressão neutra, minha concentração de soldado que aperfeiçoei tão bem
nos anos em que estive... Não, não vou pensar nisso agora.
Roman entra no enorme salão e as conversas cessam como mágica.
Em uma coreografia de arrepiar, as dezenas de pessoas se curvam em
reverências simultâneas, todos os homens inclinando seus troncos, as
mulheres se abaixando com graciosidade. Espio Lila e Chris e eles
permanecem nas suas posições, parados alguns passos atrás de nós, então eu
faço o mesmo.
Eu não confiaria em mim mesma para abaixar usando todo esse
tecido ao meu redor.
Os convidados só voltam a se erguer quando Roman recomeça a
andar e o ar parece zumbir com antecipação. Cada passo do seu sapato ecoa
contra o piso e todos abrem caminho para que ele siga o seu trajeto até sei-
lá-onde.
Sinto seus olhos sobre mim, mas ninguém ousa dizer uma palavra, ou
esboçar uma reação maior à minha presença. Sigo sem ter coragem de ousar
checar o laço, concentrada em manter a pose perfeita que estou tentando
exibir, queixo erguido e expressão fechada, minha capa ajudando a dar uma
dose de drama.
Logo entendo para onde estamos indo: para um enorme trono preto,
cheio de pedras preciosas, que está em uma plataforma elevada, contra uma
das paredes. Acima, um enorme estandarte com um brasão intrincado
brilha, no tom do clã que está nos recebendo, eu imagino.
O rei dos vampiros sobe na estrutura e vira para se sentar com toda
sua elegância, fazendo o tecido esvoaçar ao seu redor. Se acomoda e eu me
posto ao seu lado, juntando as mãos na frente do corpo, em uma pose
solene.
Será que está certo assim?
Será que há algo mais que eu deveria fazer?
Roman está ocupado em esquadrinhar a multidão, olhando bem para
algumas pessoas, se demorando em outras. Para mim, parecem ser
escolhidas aleatoriamente, mas para ele deve fazer algum sentido. A
similaridade é que todos desviam o rosto e se remexem inquietos no lugar
quando são escolhidos.
Sabem que ele está lendo suas mentes.
Que maluquice.
Quando se dá por satisfeito, acena com o queixo, um movimento
sutil, e as conversas recomeçam. Um quarteto de cordas, que eu ainda não
havia notado, começa a tocar em um dos cantos, Lila e Chris começam a
conversar com um casal e taças são distribuídas por alguns garçons. É como
se nada tivesse acontecido...
“Todos os vampiros mais poderosos do mundo esperaram um aceno
do seu queixo para voltarem a respirar?”, pergunto, incrédula.
“Eu sou o soberano deles. É questão de respeito”.
“Pff, arrogante”.
“Eu poderia deixá-los sem respirar a noite toda”.
“Que comandante bonzinho nós temos”.
“‘Roman – O Piedoso’ soa bem. Melhor do que meu avô, ‘Vladir – O
Empalador’.”
“Por favor, me diz que isso é um dos seus sobrenomes e não que ele
empalava pessoas mesmo”.
“Me lembre de te dar um livro sobre a nossa família, é uma leitura
adorável”.
“Claro, vou amar ler sobre todos os empalamentos na cama, antes de
dormir, para ter ótimos sonhos”.
“Meu bisavô era conhecido como ‘Dragomir, O Eviscerador’.
Também é um verdadeiro conto de fadas”.
“Não há mulheres nessa família querida?”.
“Ah, tivemos ‘Carmen, A Enforcadora’ lá pelo século XVII. E a
adorável Catherine, que tinha uma coleção de baços expostos na sala de
jantar”.
“Baços humanos...? Não! Quer saber, não responda”.
“Vocês são tão sensíveis”.
Quem olhasse de fora nem imaginaria que estamos tendo todo esse
papo escatológico, nossas expressões ainda impassíveis, entediadas.
“Isso é divertido! Podemos falar mal da comida sem ninguém ouvir”.
“Não servirão comida e fique longe das taças se não quiser provar o
sangue que eu faço”.
“Eca”, exclamo. “Então, vamos ficar aqui fazendo cosplay de pilastra
e mais nada? Isso não deveria ser um baile?”.
“Estamos reunidos, as pessoas estão conversando, há bebida... É um
baile”.
“Mas ninguém está conversando com você”.
“Estão esperando que eu os chame”.
“Cara, você é mesmo um arrogante”, bufo em voz alta e ele se vira
para me dar uma encarada nada impressionada. “Ok, admito que essa coisa
de olhos vermelhos é bem legal”.
Ele pisca, voltando a olhar para frente.
“Esqueci que estava assim”, fica em silêncio alguns minutos. “Eu
odeio ficar assim”.
“Você pode mudar quando quiser?”.
“Sim”.
“Como?”.
“Do mesmo jeito que eu posso voar e me alimentar de sangue?”.
“Ok, justo”, concordo, tentando me lembrar de aceitar que caí de cara
na página 183 de um livro de fantasia. “E aí, leu as mentes da galera? Com
quem eu tenho que usar uma página do manual do vovô Vlad?”.
“Ninguém se incriminou por enquanto”.
“Você leu direito?”.
“Não há jeito certo ou errado, é só ler”.
“Sempre que eu vejo alguém criticando um dos meus livros
preferidos, eu tenho certeza de que a pessoa leu errado”.
Ele bufa na minha mente, uma emoção quente chegando até mim
pelo laço, mas que logo se transforma em algo gélido, que faz eu me
encolher em mim mesma.
Caramba.
Custa todo o meu esforço para não estremecer.
Tento entender de onde veio isso e vejo um senhor mais velho se
aproximando. Suas vestes são no mesmo tom das decorações e parece
muito mais... selvagem do que os demais.
Ele para e espera.
Roman faz um aceno minúsculo com o queixo e o homem abre um
sorriso feio, presas amareladas à mostra. É a primeira vez que vejo presas...
— Majestade. — Ele faz uma reverência que, de alguma forma,
consegue parecer zombeteira. — Estou honrado que nos presenteou com a
sua presença.
— Lorde Hermes — cumprimenta, entediado.
— Não vai me apresentar a sua nova scriba?
— Não.
Eu ADORARIA rir, mas me contento em erguer uma sobrancelha em
um gesto universal de “e daí?” quando o homem volta sua atenção para
mim.
— Não nos passou despercebido a sua natureza incomum.
Porque ser humana é “incomum”.
Claro.
— E seu ponto é? — Roman pergunta, com a voz gélida.
— Nenhum, nenhum. — Ergue as mãos em uma pose de rendição. —
É apenas curioso.
Roman não fala nada.
Nem eu.
Ainda faço questão de lhe lançar um olhar irritado.
— Vejo por que a escolheu, parecem ser bastante... compatíveis. — O
que significa que estou sendo tão estoica e rabugenta quanto o meu Drácula.
Ótimo.
O tal lorde Hermes faz uma reverência e posso ter imaginado coisas,
mas acho que seu olhar se demorou no meu pescoço por alguns segundos,
antes de se afastar.
“Não gostei dele”.
“Ele não é gostável”.
“Ele olhou para o meu pescoço”.
“Todo mundo aqui vai olhar para o seu pescoço, humana”.
“Selvagens”.
“Não foi ele quem te atacou”.
“Ele faz bem o tipo sinistro”, acrescento em seguida: “Se bem que
você é o mais sinistro de todos, então não sei se faz muito sentido
seguirmos nessa linha de investigação”.
“A mente dele é fraca, consegui lê-la como um livro de criança”, diz,
ignorando o meu comentário. “Tenho que me preocupar com aqueles de
quem eu não consigo ler tanto... como ela”.
“Ela?”, repito, incrédula, ao notar para onde está olhando.
Porque a “ela” em questão é uma senhora que deve ter zilhões de
anos, está dando um sorriso gentil, tem os cabelos brancos e usa um vestido
cheio de babados, em um tom suave de amarelo. Ela mal parece conseguir
ficar em pé, quanto mais me atacar.
“Ela”, insiste.
— Majestade. — A voz da senhora sai como um fiapinho estridente
ao se inclinar para a reverência. — Lady Scriba.
Me mantenho congelada no lugar, por mais que minha vontade seja
mandar ela se sentar e perguntar se quer uma água ou um chá. Ou uma dose
de... O+? AB- é mais saboroso?
— Lady Evile. — Roman cumprimenta e dá um aceno de queixo,
autorizando que se aproxime. Eu não posso dar um tapa na sua cabeça,
mandando que tenha mais respeito, não é?!
— Gostaria apenas de reforçar o convite para que compareça ao meu
baile de outono. Será nos jardins, uma noite adorável. Sabe como a sua mãe
amava aquele espaço...
— Estarei lá — afirma e ela dá um sorriso enorme, como se ele
tivesse lhe dado a melhor notícia do mundo.
— Que alegria! — exclama, radiante. — Obrigada, majestade. Vou
chamar uma orquestra completa agora que sei que teremos a sua presença.
— Acena com o máximo de empolgação que consegue, antes de se afastar
com dificuldade.
“Essa é sua grande vilã?”.
“Não se deixe enganar pelas aparências”.
“Ela mal consegue segurar a taça!”.
“Ainda está no topo da minha lista de suspeitos”.
“Você é maluco”.
“Sou racional, ao invés do seu sentimentalismo barato”.
“Ela, ao menos, teria algo a ganhar te incriminando?”
“Talvez”.
“Talvez”, imito seu tom na minha cabeça. “Eu colocaria Lila na
minha lista antes dessa mulher”.
“Lila nem é vampira”.
“Meu ponto, exatamente”, resmungo, me mexendo de um lado para o
outro, impaciente, e ele apenas bufa em resposta.
As próximas pessoas que se aproximam são todas “normais”, para um
grupo de vampiros. Alguns querem discutir com Roman questões de
disputas de território, negócios tediosos, picuinhas ridículas entre clãs e até
algumas que me lembram que estamos em Himmel, tratando das iniciativas
de caridade que os vampiros apoiam. Pelo que percebi, eles têm uma
predileção por ajudar bancos de sangue e hospitais.
As ironias.
O tempo todo Roman é direto e prático, com poucas palavras,
enchendo nosso laço de tédio. Até eu estou entediada. E com meus
dedinhos esmagados.
No próximo baile, virei de tênis.
Começo a cantarolar na minha cabeça, enquanto ouço um papo
irritante de uma senhora com roupas em um tom enjoativo de laranja,
falando sobre como Roman deveria, se possível, por favor, se não for causar
muito problema, se tiver tempo livre, se não... blá-blá-blá, visitar o Centro
de Formação dos vampiros e blá-blá-blá.
A pobre mulher deu mil voltas para fazer um pedido razoável.
Todo mundo parece aterrorizado por ele.
“Espera! É por isso que eu não te acho tão ridiculamente intimidante
igual ao resto do mundo, não é? Por causa do laço!”.
“Seu laço sabe que não tem nada a temer de mim”.
“Mas o laço não deveria me fazer gostar de você também? Sem
ofensas!”.
Ele bufa de novo.
— Minha scriba entrará em contato para agendar a visita — responde
para a mulher, que estava aguardando, e ela dá um único aceno, antes de
sair correndo.
“Adorável”, debocho.
“Tão adorável quanto você cantarolando músicas de comerciais sem
parar?”.
“Talvez a gente possa pedir devolução do nosso laço, ele só pode ter
vindo com defeito. Sabe, aquela coisa dos sete dias para se arrepender de
uma compra?”.
“E em qual SAC, exatamente, você está pensando em reclamar?”.
“Para o deus dos vampiros?”.
“O mais próximo que temos disso sou eu e...” ele interrompe o que ia
dizer, uma onda gélida me atingindo tão forte que preciso fechar minhas
mãos em punhos por baixo da capa, para conter o arrepio que me percorre.
Ódio.
Cru.
Se eu tinha alguma dúvida de que algo estava prestes a acontecer, o
fato de Chris sair de onde estava, para vir se postar do outro lado de Roman,
é indício mais do que suficiente. Até Lila está encarando a porta com uma
expressão assassina.
Ah, não.
Lá vem mais drama.
Também vou começar a lidar com os meus problemas assim: saindo
voando!
Humana

Um homem se aproxima, com uma roupa toda preta, sem nenhuma


cor, de nenhum clã. A menos que a cor do seu clã seja o preto?
O mais curioso é que, ao contrário de todo o resto dos vampiros, este
não parece nada intimidado. Ele é jovem, talvez um pouco mais novo que
Roman, e lindo.
Um sorriso letal enfeita o seu rosto perfeito, ao cruzar o salão de
queixo erguido. Ao invés de se dirigir ao seu soberano, tem os olhos
vermelhos em mim, caminhando na minha direção.
A energia que me atinge pelo laço é tão aterrorizante que, pela
primeira vez, eu entendo a coisa de como Roman bota medo nos outros. Sua
hostilidade emana como ondas, um leão rosnando prestes a atacar a jugular
da sua presa, sem piedade.
Quando está a poucos passos de distância, o inimigo estende a mão
como se fosse me cumprimentar, mas minha alma gêmea rabugenta voa
para se postar entre nós. Me esconde atrás do seu corpo e sibila com fúria.
— Eu só queria me apresentar à sua nova scriba, priminho.
Priminho?
Eles são família?
— Toque nela e eu quebro o seu pescoço — Roman fala com uma
calma aterrorizante e, como alguém que está dentro dele, sei que não é uma
ameaça em vão.
Mesmo assim, o outro homem gargalha.
— Sempre tão simpático. — Ele se inclina para o lado e sorri para
mim. — Prazer, Amadeo Prince.
— O prazer é todo seu — retruco, dando um passo para a frente, me
desvencilhando da minha muralha de proteção ranzinza, para encará-lo de
queixo erguido.
— Gostei dela. — Comete o grande erro de falar para Roman e
ampliar o seu sorriso de deboche.
A fúria no laço quase me coloca de joelhos.
O rei dos vampiros sibila de novo e mostra um par de presas afiadas,
para a minha surpresa.
Então...
Descobri que gosto de presas.
E não, não vamos pensar no que isso significa.
— O que você quer? — Rom pergunta, com um rosnado.
— Apenas ver como está, conhecer sua nova scriba, matar a saudade,
coisas de família, sabe?! — Faz um gesto com a mão, fingindo desinteresse.
— Família — Chris bufa com desdém, atraindo a atenção do tal
Amadeo para si.
— Não adianta o quanto queira ser um Prince, querido, você não é.
— O que está escondendo, Amadeo? — Roman insiste, dando mais
um passo para frente, com uma pequena ruga de preocupação na sua testa, o
cenho franzido.
— Ora, eu nunca esconderia algo do meu nobre soberano — debocha
com ironia, mas o meu treinamento em interrogatórios me faz reconhecer
todos os sinais de que está mentindo.
E ainda é um péssimo mentiroso.
Quem é esse homem?!
Meu chefe também não parece acreditar na resposta e estou vendo o
caos se formar. Preciso intervir e rápido. Não importa que eu não conheça o
mundo dos vampiros, um líder de nação saindo no soco com um idiota
nunca é bom, em cultura nenhuma.
“Não faça uma besteira”, tento ordenar, mas ele não parece me ouvir.
Do jeito mais discreto que consigo, busco sua mão e aperto seus
dedos frios com os meus.
Isso parece ter o mesmo efeito de puxá-lo da tomada, interrompendo
seu ciclo de fúria. Ele vira seu rosto para mim e a confusão do laço se
acalma assim que nossos olhos se encontram.
“É isso que esse cara quer. Te provocar e te fazer perder o controle na
frente de todas essas pessoas. Não deixe que ele saia vitorioso”.
Depois de dar o meu recado, solto sua mão, evitando que a situação
fique ainda mais estranha. Vai que existe alguma regra de que o scriba não
pode tocar no rei!
Roman olha para baixo, para os meus dedos, por alguns segundos,
antes de se voltar para o tal Amadeo. Agora que está sob controle, emana
ondas de desprezo que conseguem ser ainda mais assustadoras, lhe dando
uma encarada capaz de congelar o verão do Rio de Janeiro todinho.
— Eu não serei tão misericordioso da próxima vez, criança —
desdenha, com seu tom gélido.
As narinas do outro homem se inflamam, suas mãos se fecham em
punhos, mas não fala nada.
Isso parece satisfazer Roman, que começa a fazer o seu caminho para
a saída, sua capa esvoaçando. Como eu não sou rainha de nada, aproveito
que tenho que marchar para fora e me coloco no caminho do tal Amadeo,
apenas para esbarrar com força no seu ombro. Ele deveria se dar por
agradecido que Céline ficou no apartamento do meu ex-lixo-humano, ou
minha adaga se tornaria melhor amiga da sua jugular.
— Oops! Desculpe. — Abro o meu melhor sorriso e sigo meu
vampirão, com Chris e Lila nos meus calcanhares.
Conforme vamos passando, todos vão fazendo reverências, e um
burburinho nos segue.
Imagine o tanto de fofoca que vai rolar agora!
A limusine está esperando na porta e acho que Roman vai abrir e logo
desaparecer no interior luxuoso, mas ele me espera, estendendo a mão para
me ajudar a subir. Até enrola os panos da minha tenda de circo por mim.
Assim que todos nos acomodamos e o carro começa a se mover, eu
me viro para os três, cheia de expectativa.
— E então? — começo. — Quem vai me explicar o que foi isso?
— Os lados da família de Amadeo e Roman são rivais antigos —
conta Chris, parecendo meio incerto. — Eles sempre foram os segundos na
linha de sucessão. Caso o Prince no poder não pudesse oferecer um
herdeiro, eles assumiriam.
— Isso até... — Lila começa e se interrompe.
E ninguém mais fala nada.
— Até? — insisto.
— Até o pai dele matar o meu — Roman responde e uma onda de
tristeza me atinge com tanta força que preciso me dobrar para tentar contê-
la. — E minha mãe, por causa do laço. E não vamos mais falar sobre isso.
Um silêncio pesado perdura durante todo o trajeto, mas a tristeza que
chega até mim é o que me mantém calada. Paralisada. Dominada.
Roman me olha como se me desafiasse a falar qualquer coisa, as íris
atormentadas por saber que eu estou sentindo o que está sentindo, por eu
saber o tamanho da sua dor.
Grande o suficiente para me fazer querer chorar.
— Roman — eu chamo quando a limusine estaciona, alcançando a
sua mão, mas ele a puxa com força, fugindo do meu toque.
— Não me siga! — grita com a ferocidade de um animal acuado e eu
me encolho com o choque.
Ele abre a porta com um movimento brusco e desaparece na
escuridão da noite. Quando desenrolo a capa o suficiente para conseguir
descer e segui-lo, eu o vejo disparando para cima, no ar.
Voando.
Chris desce em seguida e eu seguro o seu braço, antes que suma pelo
ar também, porque preciso de mais respostas.
— Me diz que aquele idiota não está mais na linha do trono, ou eu
mesma vou gastar meu réu primário. — Isso se eu for pega, é claro. Confio
em mim mesma para bolar o crime perfeito. E com os meus contatos para
apagar qualquer rastro que escapar.
— Roman se certificou de que fossem banidos da linha de sucessão e
do conselho. Amadeo nem deveria estar lá essa noite. — Os olhos dele são
tristeza pura ao olhar para o céu, onde o seu melhor amigo desapareceu. —
Ele era praticamente uma criança, Amélie, e convocou uma reunião com os
lordes. Enfrentou todos e defendeu o seu caso, até conseguir o que queria.
— Balança a cabeça. — Depois disso, o meu pai tentou trazê-lo para ficar
com a gente, mas ele se recusou. Continuou morando aqui. Sozinho.
Sempre encarou tudo sozinho. — Abaixa a voz para sussurrar. — Mas hoje
ele tinha você, de quem ele não pode esconder a dor. Alguém decidida a
defendê-lo. E isso deve tê-lo assustado mais do que qualquer outra coisa.
— Dê um pouco de tempo ao cara. — Lila também opina, fazendo
uma careta. — Essa coisa de aeternus, por si só, é apavorante.
— Nem me diga — suspiro, sentindo minha cabeça rodar com todas
essas informações. — E foi assim que vocês acabaram amigos? Seus pais
eram próximos?
— Sim. — A expressão de Christian se suaviza. — Eles são
padrinhos de Roman, então acabamos crescendo juntos, apesar de ele ser
mais velho e eu ser um “pirralho que só sabia azucriná-lo”. Palavras dele,
claro.
Consigo imaginar uma versão adolescente do homem que conheço
hoje, usando termos como “azucrinar”, enquanto faz um dos seus biquinhos
irritados.
Algo quente se espalha pelo meu peito e me surpreendo ao perceber
que é carinho. Carinho por essa figura tão complexa.
— Que bom que ele tem sua amizade. — Consigo dar um sorriso
sincero, minha voz embargando um pouco. — Vocês querem entrar? Não
sei se devo oferecer, já que eu mesma sou uma hóspede aqui, mas...
— Não se preocupe, tenho plantão amanhã cedo. — Lila tenta me
salvar mais uma vez, vindo até mim e me abraçando com força. — Se serve
de consolo, a coisa que eu mais ouvi essa noite foi que o rei tinha
encontrado a scriba perfeita para ele.
— Em uma humana?! — digo, sem acreditar muito.
— Pensa que já estão acostumados a ver uma de nós por aí. — Ela
mostra a si mesma, piscando para mim. — E tente descansar, você ainda
está se recuperando.
— Pode deixar — prometo.
O que eu mais quero é tirar esse sapato e me jogar na minha nova
cama macia.
— Sério, você é tão assustadora quanto ele. — Christian se aproxima
e me abraça também. — Os dois parados naquele palanque, com suas caras
de que adorariam colocar fogo em tudo e ainda fariam isso com um sorriso?
Impagável.
— Vou considerar como um elogio, obrigada — brinco e fico na
ponta dos pés para retribuir o seu abraço, mas um sibilar irritado vem de
algum ponto ao nosso lado.
— Engasguei com uma mosca — Lila fala, tossindo de um jeito
exagerado, tentando disfarçar que foi ela quem rosnou.
Hummm.
Certo.
Um drama vampiresco de cada vez, por favor.
Aceno em despedida para eles, que começam a voltar para a limusine,
até que uma parte da nossa conversa me volta à mente.
— Hey, Chris — chamo e ele se vira para mim, metade do seu corpo
para dentro, metade para fora. — Por isso é um problema tão grande vazar
que a aeternus dele é uma humana, não é?! Nós não podemos nos
reproduzir, então o rei não terá um herdeiro e Amadeo...
Não precisa responder nada.
Sua expressão é resposta suficiente.
— Mesmo se você fosse vampira, também não haveria garantias de
que teriam filhos — afirma, tentando me tranquilizar. — Além disso,
Amadeo foi excluído da linha de sucessão.
— Mas este seria um ótimo argumento para ele tentar reverter a
sentença... — Olho para cima, esperando ver Roman voando contra a Lua,
mas não há nem um mosquito no ar, quanto mais um homem gigantesco...
— Enfim, obrigada por me contar.
— Me ligue se precisar, ok? — oferece, antes de acabar de entrar no
carro.
Aceno para eles e sigo para a casa que, de repente, parece grande
demais, sombria demais, assustadora demais, pesada demais. E estou
apenas começando a descobrir todas as histórias que estas paredes
carregam.
Subo os degraus da escada, mas o barulho dos meus saltos me deixa
ainda mais a ponto de explodir. Culpa de toda bagunça dentro de mim, da
agonia dele, misturada com a distância que parece nos enlouquecer sempre
que nos afastamos. Imagina quando ele está distante nível “Estratosfera”,
como agora?!
O tal aeternus vai ter um treco.
Paro no meio do caminho para tirar os saltos, agarro a capa como
posso e começo a correr. Quem sabe meu sedentarismo não consiga fazer o
laço infartar? Ou ao menos ficar exausto a ponto de CALAR A BOCA.
Bato a porta do quarto atrás de mim e esfrego o peito. Tiro toda essa
confusão de roupas até ficar apenas com a minha calcinha e poder me enfiar
em uma camiseta larga e gasta, com estampa da Black Road[5]. Uma das
poucas que me restou e apenas porque eu a estava usando no fatídico dia
que perdi tudo.
Pronto.
Acrescentei mais essa lembrança ao monte caótico dentro de mim.
Fico andando de um lado para o outro, sem parar, sabendo que não
vou me acalmar até o bendito voltar para casa. Ou pelo menos pousar no
telhado. Isso deve servir, deve ser proximidade o suficiente.
Deveria criar um poleiro para ele na minha janela, para quando ele
precisar fazer essa coisa de ficar do lado de fora. Daria até para se pendurar
de ponta cabeça!
Rio sozinha da minha maluquice e me recosto contra a porta,
deslizando até o chão, pronta para ouvir quando seus passos subirem as
escadas.
Fico parada, em silêncio, desejando ainda ter o meu celular para
poder ver algum episódio antigo de uma das minhas séries-conforto. Quem
me atacou poderia ter poupado o pobre iPhone, poxa...
Repasso todos os acontecimentos do dia, tudo que descobri,
esfregando o peito até que a agonia dentro de mim se acalma. A fera
enjaulada relaxa. Ouço passos suaves e cada um consegue me acalmar
ainda mais. Eles param na frente da minha porta e eu prendo a respiração,
aguardando.
Mas as batidas não vêm.
Ouço um barulho abafado, como se ele também estivesse se
recostando contra a madeira. As sombras mudam e eu poderia apostar que
se sentou no chão, como eu.
Um rei na minha porta.
Um que parece estar mais calmo, para o meu alívio.
Apenas fecho os olhos e deixo o meu corpo desfrutar da sensação boa
que é ter o nosso laço saciado.
Ele está aqui.
Ele está bem.
Tudo está bem.

**
Roman

— Pronta para o seu primeiro dia de trabalho? — pergunto, quando


ela desce as escadas na manhã seguinte, usando as mesmas roupas que Lila
providenciou.
Talvez não tenha outras?
Se for o caso, preciso dar um jeito de resolver.
— Não, não, não. — Ela me lança um olhar irritado e coloca as mãos
na cintura, em uma óbvia pose de repreensão. — Vamos começar com você
pedindo desculpas por ter gritado comigo ontem.
Sua irritação chega até mim pelo laço e eu sinto um estranho orgulho
brotando do meu lado.
Nunca me enfrentam assim...
— Me desculpe — digo, com sinceridade. — E me desculpe por tudo
que teve que presenciar.
— Essa parte não foi sua culpa. — Faz um gesto de dispensa com a
mão. — Eu também sairia voando por aí se pudesse, depois de passar a
noite com aquele bando de malucos.
— Sobre isso, eu preciso dizer que... — Limpo a garganta, achando
as palavras difíceis de pronunciar. Coloco as mãos nos meus bolsos, depois
para trás das costas, e ela se diverte ao testemunhar o meu desconforto.
— Você quer me elogiar, dizer que eu me saí muito bem, que sou a
melhor scriba que poderia ter — brinca, deixando a irritação de lado.
— Tecnicamente, você é a única que eu já tive.
— Porque é esperto o suficiente para acertar de primeira. — Pisca
para mim, indo se servir do café que fiz especificamente para ela. — Agora,
trate de me dizer que eu me saí muito bem. Com todas as palavras.
— Você se saiu muito bem, quando não estava cantarolando músicas
daqueles comerciais irritantes — acrescento, fazendo com que revire os
olhos.
— Sabe qual foi a minha parte preferida? — questiona, colocando
uma quantidade obscena de açúcar na sua xícara. Como se essa bebida
nojenta precisasse de mais ajuda para se tornar intragável.
— Quando acabou? — sugiro, porque foi a minha parte preferida,
sem dúvidas.
— Acho que “acabou” é um termo muito forte para nós sairmos porta
afora, sem olhar para trás. — Prova um pouco do líquido preto e decide que
precisa elevar ainda mais os seus níveis de glicemia, despejando outra
colher. — Mas esse, com certeza, está no meu “Top Três”.
— E qual seria a “Posição Um”, ele pergunta com medo da resposta.
— Não com tanto medo quanto no momento que percebi ter dormido no
chão do corredor, apenas para acalmar o maldito laço que odiou a forma
como saí voando e a deixei sozinha.
Lição aprendida graças a horas acomodado em uma pedra gelada.
— A minha parte preferida foi todo o seu combo vampiresco, com a
roupa, os olhos vermelhos e as presas — confessa, para a minha surpresa.
Nem tento esconder o espanto, porque sua resposta foi inesperada
demais.
— Você gostou? — repito, sem acreditar.
Ela deveria ter ficado apavorada, enojada, não ter gostado.
Humana estranha.
E que só fica mais estranha quanto mais a conheço.
— Claro — exclama, bebericando seu açúcar com uma pequena dose
de café. — Você tem poderes mágicos, Roman! Isso é sensacional.
— Normalmente, tenho mais controle, não deixo as presas
aparecerem — resmungo, tomando um gole do meu chá que acabou
esfriando, culpa da minha distração pela sua chegada.
— Não parecia nada controlado quando pulou na minha frente para
me defender do Lorde-Pé-No-Saco — provoca, mas tem razão.
Ele dizer que “gostava dela” foi um gatilho como senti poucas vezes
ao longo da minha existência. Se dependesse dos meus pensamentos, eu
teria arrancado a língua de Amadeo, apenas para que nunca mais pudesse se
dirigir à humana.
— Por que você interveio? — questiono, curioso, porque o seu toque
na minha mão foi a única coisa que me impediu de testar todos os títulos
dos meus antepassados. Começando pelo empalamento, até chegar ao baço
dele pendurado na minha sala de jantar.
— Imaginei que fazia parte do meu papel como sua scriba. — Dá de
ombros e vai abrir a minha geladeira, sem cerimônias, suspeito que em
busca de algo para comer. — Se quiser me agradecer por ter evitado a sua
ceninha, eu sei o jeito perfeito, inclusive — anuncia, depois de tirar um
prato de frutas e mordiscar algumas uvas.
— Eu não estava planejando — digo, por mais que eu suspeite que
não vá fazer diferença nenhuma.
— Quero que me mostre suas presas de novo — exige, olhando bem
nos meus olhos, o queixo erguido daquele jeito teimoso. Meu choque deve
ter sido tão grande que a atinge, porque ela começa a rir. — Não me julgue!
Eu sou neta da minha avó! E passei a vida lendo livros de fantasia! —
Mastiga mais algumas uvas, ainda rindo descaradamente de mim. — Já que
não vai me levar para voar, pode me dar a outra parte divertida, pelo menos.
— Não. — É só o que consigo dizer.
— Mostra! — repete.
— Não.
— Vou continuar insistindo, você sabe.
— Pode continuar insistindo a caminho do trabalho — afirmo,
despejando o resto do chá frio na pia. — Tenho uma aula agora, depois
precisamos conversar sobre o seu papel de scriba e os convites da noite
passada...
— Mostra! — cantarola, levando sua xícara consigo ao me seguir
para a garagem. Lembrete: comprar alguns copos térmicos com tampas,
antes que o ser irritante acabe se queimando todo.
— Depois, preciso que assine a entrega do seu apartamento — ignoro
seu pedido e pretendo continuar ignorando. — Já resolvi todo o resto.
— Mesmo? — Arregala os olhos e, dessa vez, o choque no laço é
todo dela.
— Mesmo.
— Ok, isso foi tão legal que vou te dar uns minutos de folga.
— Humana, a bondosa.
— Roman, o simpático.
— Vamos logo. — Empurro-a de leve, para que se apresse.
— Posso dirigir o Chiron?
— Não! — Pego a chave e destravo o veículo. — Mas você pode
comprar o que precisar, usando o cartão que estará na pasta com instruções
que vou te dar no meu escritório.
— Que tipo de coisas? — questiona, sem entender, levando a xícara
para dentro do meu Bugatti.
Algo me diz que vou ter que vendê-lo depois de hoje...
— Coisas que precisar para o trabalho, para as suas funções, ou que
humanos precisem para sobreviver — sugiro, sem querer dizer diretamente
que pode comprar roupas, porque não parece ter nenhuma.
Na verdade, ela não parece ter nada.
— Um dia, vai ter que parar de falar “humano” como se fosse
xingamento, sabe? — implica, ao mesmo tempo em que eu manobro para
fora da garagem.
— Humanos são irritantes.
— Você gosta da Lila e ela é humana!
— Eu não tive muita escolha. — Mais uma vez, tento voltar a sua
concentração para os assuntos sérios que precisamos discutir. — Vai ter que
providenciar roupas para as mais diversas ocasiões também. Antes que
proteste, quero que considere como um uniforme.
— Eu não ia protestar! — se defende. — Mas não faço ideia de onde
comprar mais capas esquisitas, ainda mais no seu tom de vermelho. Existe
uma Zara Vamp?
— Só precisa de uma capa de scriba. E, se um dia fôssemos contar
para o mundo que é minha aeternus... — Eu interrompo o que ia dizer,
apertando as mãos no volante para tentar controlar as emoções que
arranham a minha superfície, tentando escapar ao serem mencionadas.
— Ok, tem algo novo chegando pelo laço — nota ela, sua curiosidade
a fazendo se endireitar no banco, a caneca balançando perigosamente no
seu colo.
— Saudade, talvez — confesso, sabendo que não vai desistir de me
entender. — A minha aeternus deveria usar os trajes típicos da família
Prince. Os trajes que eram da minha mãe...
— Ah... — Coloca uma mão na minha coxa, em um gesto inocente,
de conforto, mas que faz o laço enlouquecer. — Eu sinto muito, Roman.
— Me fale sobre a sua família — peço, para distrair a minha mente
das lembranças dolorosas que estão tentando romper as comportas onde as
escondi há muito tempo. E que estão tentando lutar com a sensação do seu
toque em mim.
Ela percebe a confusão, porque se apressa a recolher os dedos. Apoia
sua xícara no console e se acomoda melhor, preparada para começar a
tagarelar.
— Minha avó, você conhece. Minha mãe, filha dela, voltou para o
Brasil depois de se casar com o meu pai. Ele é um francês apaixonado por
cozinha brasileira, então acabaram se conhecendo em um restaurante de
comida típica, aqui em Ilaria. — Um sorriso se espalha no seu rosto bonito.
— Brigaram pelo último torresmo e o resto é história.
— Torresmo — tento repetir. — Eu não faço ideia do que seja isso.
— Não consigo te imaginar comendo torresmo. — Ela gargalha e o
som é... prazeroso. — Mas não há nenhum grande drama familiar. Fiquei
aqui em Himmel para estudar, depois pelo trabalho, depois por uma pessoa
e, agora, por um vampiro. — Faz uma careta. — Céus, eu sou uma péssima
juíza de caráter. Pelo menos, você não pode esconder suas traições de mim,
com toda essa coisa de laço.
— Você foi traída? — questiono, atingido por uma onda de ira tão
forte que faz o carro cambalear para fora da pista.
— Algumas vezes e... ai! Devagar aí. — Ela esfrega o peito, sentindo
a minha fúria. — A menos que isso vá fazer você mostrar as presas. Se for
o caso, vá em frente.
— Qual é o nome dele? — Faço a única pergunta que importa.
— Por quê?
— Para eu fazê-lo pagar. — Definitivamente, vou começar pelo
empalamento, mas acredito que o evisceramento será meu favorito.
Bem. Devagar.
Bem. Bem. Bem. Devagar.
— Essa coisa todo protetor... — Faz um gesto me mostrando. — É
bem sexy, sabe?!
— Um nome, humana.
— Mostre as presas e eu te conto. — Tenta barganhar. — Se fizer as
presas e a coisa dos olhos vermelhos junto, te dou o nome e sobrenome.
— E eu posso cuidar dele?
— De um jeito bem doloroso?
— O único jeito possível.
— Tentador, mas não. — Suspira e eu espio para o seu lado, vendo
que agora está tocando a tatuagem do seu pulso. — Jurei para mim mesma
que ele não merecia mais nada de mim, nem minhas lágrimas, nem minha
raiva, nem mesmo minha vontade de fuçar nas suas redes sociais.
— Estou sentindo um pouco de ódio daqui.
— Eu o odeio por ter me feito chegar ao ponto de ter que prometer
isso — corrige e acho que faz sentido. Imagino que deva ter sido o motivo
para fazer essa tatuagem também.
Não quer se entregar novamente.
E acabou sendo atingida por uma magia que exige entrega total.
— Um nome — exijo, decidido a resolver isso por ela.
— Uma presa.
— Eu não consigo fazer aparecer apenas uma.
— E como faz elas aparecerem? Ou os olhos mudarem?
— Como você coloca a língua para fora? Ou pisca? — retruco e ela
coloca a língua para fora, de propósito.
O gesto é tão adorável que consegue extinguir a raiva em mim,
deixando algo muito mais quente assumir o seu lugar.
Ela tem razão.
Qualquer um que foi tolo o suficiente para perder uma mulher como
Amélie não merece nada além da minha pena...
Nada como descobrir sobre seus séculos de vida futuros, enquanto faz umas
comprinhas no shopping.
Humana

Tenho que admitir que o primeiro dia de trabalho está sendo


interessante. Divertido, até. As aulas de Roman foram surpreendentemente
fascinantes e a sua “pasta de informações” era tão completa (de um jeito
obsessivo ridículo) que consegui navegar pelo seu e-mail e pelos seus
compromissos sem problemas, enquanto ele aterrorizava os alunos com
tranquilidade.
Mas, sem dúvidas, a melhor parte é agora, comigo carregada de
cabides, passeando por uma enorme loja de departamentos, com ele a
reboque.
Sim.
Roman Prince está fazendo compras com uma humana.
Eu surtei com a perspectiva de ficar sozinha depois do ataque e
anunciei que ele iria comigo, porque, como soberano, é responsável por
tudo que os vampiros aprontam.
Ele nem protestou.
Apenas revirou os olhos e seguiu com o Chiron, seu queridinho, para
cá.
Acho que também pesou o fato de que nosso laço iria encher o saco
se a gente ficasse afastado.
Coisinha carente.
Chegando a um shopping chique no centro de Ilaria — que eu nunca
teria escolhido — ele comprou um chá, encontrou um sofá para se sentar e
ficou observando, enquanto eu navegava pelas araras.
Isso faz algumas horas. Ainda assim, recebo apenas tranquilidade
pelo nosso elo. Não há nem tédio. Ele só está aqui. Atento. Participando.
Bebendo sua água de mato.
— Talvez mais coisas de frio? Vocês, humanos, são frágeis — sugere,
fazendo uma senhora que passa nos dar um olhar chocado.
Nem me fale, tia.
— Ok, coisas de frio. — Começo a seguir na direção dos casacos,
deixando a minha pilha de vestidos, calças e blusas com ele. Dou alguns
passos e volto. — Você está bem mesmo? — pergunto, ainda sem acreditar
que o todo poderoso soberano dos vampiros está opinando sobre o meu
guarda-roupa.
— Por que eu não estaria? — retruca, erguendo uma das
sobrancelhas, bebericando seu chá que já deve estar frio. E ainda mais
nojento.
— São compras — eu o lembro, mas o homem nem pisca.
— Eu sei o que são compras, estou familiarizado com o conceito de
capitalismo. — Cruza as pernas, em uma pose relaxada.
— Seu cartão tem algum limite, Karl Marx?
— Acredito que o banco me ligaria se eu tentasse levar a loja inteira.
— Finge pensar, a ponta de um longo dedo batendo nos seus lábios, e um
riso nervoso escapa de mim.
— E você está bem em ficar aí, fazendo nada, enquanto eu vou ver
coisas de frio para o meu corpo humano frágil? — repito, para garantir.
— Por que está sendo mais estranha do que o normal? — questiona e
eu desisto de tentar entendê-lo, balançando a cabeça e indo escolher um par
de luvas.
Minha teoria é que você fica acostumado com coisas tediosas quando
se vive muito mais do que um humano normal. Quando se vive... ‘Até o pai
dele matar o meu. E minha mãe, por causa do laço’.
Por causa...
Do laço...
COMO EU NÃO ME ATENTEI A ISSO ANTES?
Largo as luvas no chão e corro até ele, me jogando ao seu lado no
pequeno sofá, o fazendo se sobressaltar com a minha chegada abrupta.
“Você disse que sua mãe morreu por causa do laço, você me disse que
um aeternus morre quando o outro morre, porque viver sem sua metade
seria intolerável”.
“Certo...”, concorda, meio incerto, sem saber aonde eu quero chegar.
“Eu tenho trinta e cinco anos, Roman! Isso quer dizer que vou viver
mais uns cinquenta e olhe lá”, começo a hiperventilar. “Então, você vai
morrer também! Eu encurtei a sua vida todinha! E aí você vai morrer e não
vai ter um herdeiro, porque eu tenho um útero humano, e aí aquele ridículo
do Amadeo vai ser rei e...”
“AMÉLIE!”, me chama pelo meu nome, sua mão tocando o meu
rosto de leve. “Respire, você está surtando”.
Dou uma longa inspiração.
Solto o ar.
Repito o processo algumas vezes.
E mais algumas vezes.
E mais algumas vezes.
“Aqui não é o lugar para termos essa conversa”, tenta desviar do
assunto, mas não tem chance ALGUMA de eu deixar essa passar.
“Ninguém está nos ouvindo!”, protesto. Só devem estar estranhando
por estarmos nos encarando de um jeito tão intenso, mas paciência.
Ele suspira.
“Eu tenho uma teoria sobre este assunto”.
“Qual?”.
“Todo ser vivo tem um fio da vida, uma representação da sua
trajetória neste mundo. Quando parceiros se unem, esses fios se juntam, se
tornam um só, seguindo a regra de que um não pode viver sem o outro”,
explica e eu aceno em concordância, pedindo que continue. “Agora, preciso
que pense no conceito de como tudo busca equilíbrio na natureza”, diz,
usando seu tom de professor. “Estamos falando de um cenário ideal, onde
não há circunstâncias atenuantes interferindo, como assassinatos,
envenenamentos...”. Deixa seu olhar cair para o meu pescoço, onde ainda
estou com os dois pontos falsos.
“Pare de enrolar!”.
“Se o fio do John dizia que ele viveria dez anos e o fio da sua
aeternus, Jane, dizia cinquenta anos, eles passam a ter um fio do tamanho
de trinta anos. Equilíbrio. Justiça”.
“E isso vale para mim?”, pergunto, esperançosa. Porque, se valer,
quer dizer que não vai morrer daqui algumas poucas décadas e Amadeo
pode ir se danar.
Mas também quer dizer que eu vou viver muito mais.
Eu vou viver... séculos?!
Caramba, preciso daquele absinto mais do que nunca.
“Eu não sei, não temos como saber já que não há outra de você.
Vamos ter de esperar para descobrir se o seu envelhecimento será mais
lento como o meu. Deve saber que não somos imortais.”
“Lembro de ouvir algo sobre vocês viverem mais, mas não viverem
para sempre”.
“Sim, mas se nossos fios se uniram, mesmo com a sua expectativa de
vida ridícula, ainda vamos ter muito tempo para irritar o outro”.
“Isso foi uma piada?”, pergunto, conseguindo sorrir, apesar de toda a
maluquice que acabou de despejar em mim.
“Foi minha tentativa de fazer você parar de me irritar”.
“Só uma última coisa”, começo e ele já estreita os olhos em
desconfiança. “Desculpe pela minha expectativa de vida ridícula ter
diminuído tanto a sua”.
Sua irritação se suaviza com as minhas palavras.
“Agora que você conhece o laço, acha que eu escolheria que fosse de
outro jeito?”.
— Você, literalmente, não pode viver sem mim — digo em voz alta,
deslizando para fora da sua mente, e cutucando a sua bochecha com a ponta
do meu dedo.
— Vá acabar suas compras — resmunga, tentando soar rabugento e
puxando o seu celular do bolso, mas nenhuma hostilidade chega até mim.
Eu te vejo, Roman Prince.
Não adianta se esconder, eu te vejo.
Acabo de pegar os itens da minha lista imaginária e me recuso a ir
para o lado das lingeries, por mais que eu precise delas. Honestamente,
depois da nossa conversa, preciso mesmo é de um banho quente e de, pelo
menos, um chocolate.
— É por causa dele que você tem tão poucas coisas — afirma, não
pergunta, enquanto passamos a minha montanha de peças no caixa.
Eu evito olhar para o valor da compra, focada em lembrar que é tudo
um uniforme. Vários uniformes. Belíssimos. Que preciso de um scarpin
Prada para andar ao lado do Drácula.
— Tecnicamente, a culpa foi minha por ter saído da nossa casa com
uma mochila e ter decidido não voltar para pegar nada — conto,
envergonhada.
O que mais me dói é não ter mais Céline, minha adaga. E meu
gramado.
Ah, o meu gramado...
— Por que não quis voltar?
— Muitos motivos. — Suspiro, esfregando a tatuagem em um gesto
quase inconsciente. — Porque eu não queria nada que me lembrasse dele.
Porque eu não queria vê-lo de novo. Porque voltar ao lar que construímos e
ele manchou seria doloroso demais...
— Um nome — ele me interrompe, “irritação irritada” flutuando pelo
laço de um jeito que está se tornando quase familiar.
— O lugar do passado é no passado. — A caixa se intromete,
ouvindo toda nossa conversa. — Ela está muito melhor agora, com o
senhor.
— Escute a moça, amor. — Pisco para ele. — Estou bem melhor
agora, com você. — Enrosco meu braço no seu e fico na ponta dos pés para
dar um beijo na sua bochecha, fingindo uma ceninha apaixonada.
A jovem solta um “awn” e Roman me lança um olhar difícil de
decifrar, um misto de exasperação com algo mais quente.
Irritação?
Ou seria... atração?!
Não, claro que não.
Só pode ser irritação.
— Vocês formam um lindo casal — elogia e eu deito a cabeça no seu
ombro, continuando a minha encenação, esfregando meu rosto no tecido
macio do seu terno caro.
— Ele é a minha alma gêmea — debocho, sabendo que apenas meu
vampiro vai entender a piadinha.
Como eu suspeitava, ele bufa e reúne todas as sacolas, com uma
pressa súbita de deixar a loja. Aceno em despedida para a atendente, antes
de me apressar para segui-lo, que mesmo carregando todas as minhas
compras, ainda consegue andar em uma velocidade impressionante.
Enquanto caminhamos juntos pelos corredores do shopping, reparo
em como todos os olhares se voltam para a sua figura intimidante. Bom, o
combo homem ridiculamente bonito + usando um paletó impecável +
carregando várias sacolas = bem difícil de resistir mesmo.
Ele decide parar em uma loja de vinhos e me deixa com as minhas
compras, sentadinha em um banco no corredor, de onde poderia “manter um
olho em mim”.
“Não saia daqui”, ordena, dentro da minha mente, me dando um olhar
sério.
“Sim, chefe”, brinco e ele apenas me dá uma das suas encaradas nada
impressionadas, antes de entrar no lugar chique.
Que os deuses nos livrem de tomar vinho de mercado.
Uma vendedora aparece no mesmo segundo para atendê-lo e o brilho
de interesse na sua expressão já faz algo se revirar em mim.
Ela anda perto demais para guiá-lo até uma das prateleiras e eu tento
abafar a irritação que começa a borbulhar.
Até acho que estou indo bem, controlando a fúria do laço, respirando
fundo para não acabar rosnando sozinha no meio de um espaço público.
Deslizo para dentro da mente dele e só encontro reflexões sobre Merlot e
Syrah. Bom garoto.
Mas então ela decide tocar o seu braço.
E eu viro uma explosão de fúria.
Roman sente no mesmo segundo, porque se vira para fora, me
lançando um olhar interrogativo.
“Tire a mão dela de você, antes que eu entre aí e a arranque com os
meus dentes”.
“Ciúmes?”.
“Sim”, afirmo, sem nem tentar disfarçar.
Para a minha surpresa, ele começa a caminhar para fora, sem nem
falar nada para a mulher. Ela tenta chamá-lo, mas é ignorada.
ÓTIMO.
Ele para na minha frente na maior tranquilidade, o mais próximo que
já vi de diversão no seu rosto esculpido. Eu sei que está satisfeito com a
ceninha, pronto para debochar da minha reação.
“Nem uma palavra”, ordeno.
“Eu não ia dizer nada”, finge uma expressão de inocência.
“Ótimo”.
“Ótimo”, concorda, ainda satisfeito demais para o meu gosto.
“Tente ficar menos felizinho também”, acrescento e ele apenas solta
um pequeno riso debochado, voltando a reunir todas as minhas compras.
Eu me imagino chutando sua canela.
Com força.
Seria lindo.
“Odeio esse laço”, resmungo, voltando a segui-lo, e alguma emoção
estranha chega até mim. Volto a atenção para ele, para tentar entender o que
foi agora, mas o seu rosto não está entregando nada.
Humm...
Estranho.
Voltamos ao Chiron e passamos um bom tempo sofrendo para
acomodar tudo no porta-malas minúsculo. Caímos no trânsito de Ilaria e sua
energia continua estranha. Pelo menos, dentro do carro, ele não vai poder
sair voando e me deixar falando sozinha.
— Hey, sabe o que você não me contou? — Começo a puxar um
assunto, para ver se consigo distraí-lo desse humor esquisito. — Se
conseguiu descobrir alguma coisa lendo as mentes no baile ontem.
— Não. — Dá um suspiro cansado. — Mas o problema é que não
consegui ler a mente do Amadeo e ele costumava gritar seus pensamentos
para mim.
Um arrepio percorre a minha coluna.
— Como ele fez isso? — questiono, com medo da resposta.
— Eu não sei — admite e suas mãos apertam mais o volante.
Se eu queria melhorar o seu humor, acho que não escolhi o assunto
certo...
— Então, nossa lista de suspeitos se resume a ele e aquele dono da
casa esquisito que me deu bad vibes?
— Lorde Hermes? — Se vira para me mostrar o seu revirar de olhos
caprichado. — Ele não é um suspeito.
— É sim — teimo.
— Nossa lista se resume a Amadeo e Lady Evile.
— Lady Evile não é uma suspeita! — protesto. — Ela é uma fofura!
— Não, ela não é.
— Sou boa em ler pessoas. — Cruzo os braços, tentada a lhe contar
toda a minha experiência em interrogatórios. A menos que aquela vovó
adorável seja uma psicopata que consegue esconder perfeitamente cada uma
de suas emoções, não foi a culpada.
Não foi!
— Melhor do que eu? — Ergue uma sobrancelha em desafio, todo
arrogante.
Sempre arrogante.
— Cala a boca e tira ela da sua lista!
— Não — fala, simplesmente, e liga o som do carro no último
volume. Aquele mesmo rock estridente do outro dia ecoa, deixando claro
que não quer conversar.
E fica assim durante todo o caminho para o Castelo Rot.
Deslizo para a sua mente e sei que está tentando não pensar em algo,
recitando todos os compostos que usa no seu Blut-X, um monte de nomes
que não entendo, só para me distrair.
Vou arrancar dele.
Mais cedo ou mais tarde.
Estaciona na garagem e desliga o motor, sem me encarar.
— Pode deixar que eu levo suas sacolas para cima. — Tenta me
dispensar, mas não vai ser tão fácil.
— Um cavalheiro — digo, sem me mover um centímetro sequer. —
Vai que eu rolo escada abaixo e quebro o meu pescoço, não é?!
Percebe que não vai se livrar de mim, então abre a porta e desce com
um suspiro exasperado. Eu desço também, enquanto ele pega todas as
compras e me dá um dos seus olhares.
Não.
Vou.
Desistir.
Digito o código na fechadura digital e, assim que passamos para o
saguão e ele não pode mais fugir voando, eu o encurralo, empurrando seu
enorme corpo contra a parede. Coloco um braço de cada lado seu e sei que
poderia se desvencilhar com a maior facilidade, mas me deixa fingir que
estou prendendo-o
— Desembucha, Drácula — ordeno, pegando-o de surpresa.
— Do que está falando? — Me enfrenta, sua atenção cravada em
mim, a expressão mais fechada do que nunca.
— Alguma coisa está te incomodando e eu quero saber o que é —
exijo e vejo algo brilhar nas suas íris. Um resquício do vermelho brigando
com o castanho. — Fale!
— Você disse que odeia o laço! — confessa em uma explosão, como
se não pudesse segurar as palavras dentro de si, como se elas tivessem
fugido da sua garganta.
Ah.
Então é isso.
Droga, eu e minha boca grande.
— Eu não odeio de verdade. — Dou um passo para trás, deixando os
meus braços caírem ao meu lado. — Só é muita coisa para assimilar, muitas
mudanças, principalmente quando a gente nem se gosta. — Balanço a
cabeça. — Você é obrigado a estar comigo, Roman.
— O laço apenas se certifica de que quem deveria estar na vida do
outro, se encontre. — Continua na sua pose de combate. — Não sei por
que, humana, mas nós precisávamos nos encontrar.
Eu sei que Himmel tem toda a sua crença de acreditar em destino,
mas isso já é um nível a mais. Não sei o que dizer, não sei nem o que
pensar, e o meu silêncio faz com que perca a paciência.
Pragueja algo em um tom baixo demais para eu ouvir e segue na
direção das escadas, desaparecendo no meu lado do castelo, provavelmente
para deixar as sacolas no meu quarto.
Alguns segundos depois, eu o vejo passar, indo para a biblioteca,
ajeitando um quadro que estava meio torto pelo caminho. Perfeccionista.
Nós precisávamos nos encontrar...
Por que eu, uma humana comum, teria que encontrar o fucking rei
dos vampiros? Um irritante e arrogante demais, que nunca sorri, ser
sobrenatural?
Preciso daquele chocolate mais do que nunca.
Sigo para a cozinha e abro a geladeira, encontrando-a cheia de
refeições prontas que não estavam ali antes.
As coisas realmente aparecem do nada aqui... Um castelo enorme
onde eu nunca vejo funcionário nenhum.
Outro de seus mistérios.
Decido comer algo saudável antes de me afogar em doces. Esquento
uma das embalagens, uma massa integral pela etiqueta, e levo com uma
taça de vinho chique para a enorme mesa da sala de jantar, junto com um
pedaço de cheesecake grande demais para o meu tamanho.
Devoro tudo em tempo recorde, ansiosa para subir para o meu quarto
e ver as minhas roupas novas. Arrumo cada peça com cuidado no closet
enorme, que ainda tem espaço de sobra para muito mais, decidida a ignorar
a impaciência do elo.
Um palmo de distância já seria distância demais para esse negócio.
Tomo um banho no chuveiro violento, coloco minha camiseta de
dormir e me acomodo na cama, esfregando o peito. Roman deve estar aqui
no Castelo ainda, porque o incômodo não está tão forte quanto ontem, mas
ainda é irritante.
Espero que eu consiga dormir.
Pego o notebook que ele me deu para o trabalho e uso para colocar
alguns episódios de “The Big Bang Theory”, tentando me distrair.
Não adianta muito.
Fico me revirando de um lado para o outro, afofando cada um dos
travesseiros, achando as cobertas quentes demais, depois ficando com frio
demais... Chego até a deitar com a cabeça para o lado dos pés da cama e
nada adianta.
Até um barulho soar no corredor.
Os passos estacionam na minha porta.
Levanto o rosto para ver, pela fresta de baixo, alguém parado ali. A
sombra se move e sei que acabou se sentando no chão mais uma vez.
Melhor.
Não é perfeito, mas é melhor.
Fecho os olhos e me permito relaxar.
Adagas são sexys!
Humana

— Como você não fica todo travado depois de dormir no chão a noite
toda? — pergunto, enquanto descemos do Chiron para mais um dia na
Nobre Academia.
— Não sei do que está falando — desconversa, bebericando sua água
de mato nojenta.
— Uhum, claro. — Balanço a cabeça. — Lembre que hoje temos
aquela visita no Centro de Formação então, já que parece estar sofrendo de
perda de memória recente.
Ao invés de responder, me dá um aceno com o queixo que combina
bem com a fase do “Efeito Roman” que estamos. Tão divertido ver seus
alunos correndo e os outros professores subitamente ocupados, procurando
coisas nas suas pastas, ou checando seus celulares quando ele passa.
— Também tinha um “jantar com Nikolai” marcado na sua agenda...
— Sigo recitando seus compromissos, como a ótima assistente que estou
decidida a ser. Vou honrar cada uma das MUITAS coroas que vai me pagar
por este trabalho.
— Nós nos encontramos todas as terceiras quartas-feiras do mês, para
conversar sobre nossos governos.
— Seus... governos? — Eu paro de andar no mesmo segundo. —
Quando você diz “Nikolai”, não quer dizer...
— O rei de Himmel? Sim.
Eu começo a tossir, me engasgando mesmo sem estar tomando nada.
Ele até volta alguns passos para trás e dá alguns tapinhas desajeitados nas
minhas costas, de tão grande que é meu escândalo.
Uma surpresa dessas é difícil de engolir, poxa.
— Sei que vocês são frágeis, mas morrer engasgada com ar é demais
— reclama, impaciente.
— Você está me dizendo que vou jantar com Niko-lícia essa noite e
espera que eu não reaja? — questiono, quando consigo voltar a respirar, só
para ter certeza de que não entendi errado.
— Niko... — Estreita os olhos na minha direção, as íris alternando
entre o castanho e o vermelho como sempre acontece quando está prestes a
perder o controle. — O que foi que disse?
— Você já viu aquele homem? — Finjo me abanar. — Ele é uma
delícia.
— Isso... Isso é... — Parece sem palavras, pela primeira vez desde
que o conheci. — Inaceitável. — Se decide, voltando a andar pelo corredor
com passos apressados, querendo ir para longe de mim.
— Você tem olhos, sabe que ele é lindo — digo, quando consigo
alcançá-lo, meus perfeitos saltos novos me impedindo de correr como eu
gostaria.
— Eu não vou te levar nesse jantar! — anuncia, sem diminuir o
ritmo.
— Boa sorte tentando se concentrar sem eu estar por perto —
cantarolo e ele me lança um olhar irritado.
— Posso te levar para o palácio e ainda te deixar longe dele —
ameaça, parecendo muito satisfeito consigo mesmo pela solução que
arranjou.
— Adoraria te ver tentar ficar entre mim e a minha chance de jantar
com Nikolai em carne, osso e aqueles olhos azuis...
— HUMANA! — grita, interrompendo os meus pensamentos.
— Oi. — Sorrio com inocência e ele bufa exasperado, entrando no
anfiteatro onde será a sua aula.
Eu saltito ao segui-lo, tão feliz que nem a irritação que chega até mim
pelo elo me impede de rir sem motivo. Nem a ameaça de ser soterrada por
lembranças ruins impede a minha animação. Eu sinto falta do Palácio de
Gelo. Sinto falta de trabalhar para a família real. Além do mais, o
departamento dos agentes é bem longe da área privada. As chances de
encontrar Wilbur são quase nulas.
Vai ser legal!
Preparo tudo para que comece e vou me acomodar na minha cadeira,
para ficar sonhando em paz com a nossa visita de mais tarde. E continuo
sonhando, enquanto como meu sanduíche na sua sala, com ele reclamando
sobre seu escritório ficar cheirando a queijo. E enquanto ele dirige o Chiron
para o Centro de Formação.
— Você não deveria ter um segurança, sendo rei? — pergunto,
pensando que estamos indo sozinhos para uma visita pública, e não é assim
que as realezas deveriam agir. Eu criei esquemas de segurança vezes demais
para ficar tranquila com este nosso arranjo.
— Não há nada que possa me ferir. — Dá de ombros, sem uma gota
de preocupação.
— Nada mesmo?
— Tecnicamente, um vampiro mais forte poderia quebrar o meu
pescoço e me matar, mas não há um vampiro mais forte do que eu.
— Arrogante.
— Realista.
— E se alguém tentasse usar um machado para cortar sua cabeça
fora?
— Eu poderia usar minha telecinese para segurá-lo — responde,
desinteressado. — E me livrar de empalamentos. E proteger meu baço. E
para desviar balas. E para desviar mísseis.
— Oh, fodão! Lembre-se que, para te matar, bastaria alguém dar um
tiro em mim. Nem precisaria ser um míssil. — Pensando bem, talvez eu
precise de um segurança, ainda mais agora que não tenho mais Céline. —
Ter uma aeternus humana é mesmo cheio de vantagens...
— Pelo menos, não tenho que brigar com você pela última bolsa de
sangue — resmunga, me fazendo rir do absurdo dessa frase. — Inclusive,
bloqueie a minha agenda amanhã, preciso produzir mais para mim.
— Você não deu a patente como livre? — pergunto. — Não podemos
pedir umas bolsas na Vamp-Amazon para entregar?
— Eu não confio em ninguém para produzir o sangue que eu
consumo.
— Você é mesmo adorável — digo, em um tom que deixe claro que
não foi um elogio.
Mas, enquanto ele conversa com um adolescente, no canto do salão
que prepararam para nos receber no Centro de Formação para jovens
vampiros, eu acho adorável de verdade.
O garoto estava nervoso, tímido, com um livro aberto no colo, até
Roman se aproximar. Ele tem um fraco por nerds, já reparei isso na Nobre
Academia. Talvez porque ele mesmo seja um, com sua biblioteca enorme,
sua antropologia e as dúzias de doutorados escritos por ele que encontrei
nas pastas ridiculamente organizadas do seu notebook.
Suspeito que tenha alguém que lhe forneça documentos de identidade
falsos, para ter conseguido se matricular tantas vezes sem levantar
suspeitas. Alguém muito bom e discreto, inclusive. Como aqueles dos
vários esquemas que desmantelei ao longo dos anos.
Eu mesma vou precisar de documentos falsos em breve... Vou ter que
contratar algumas das pessoas que mandei para a cadeia...
Não.
A parte dos fios da vida é algo que não estou pronta para pensar.
Enquanto ele conversa com o garoto, eu fico com alguns dos
professores, exercendo o meu cargo de scriba e socializando, ainda sem
perder minha nova fama de assustadora. Ela é divertida!
O convite principal foi para que Roman falasse sobre como criou o
Blut-X e o projeto de lei para tornar proibido se alimentar dos humanos.
Alguns se encantaram pela sua aura de poder, outros se apaixonaram por
ele, todos ficaram boquiabertos com as histórias de tudo que fez, ainda que
fosse jovem para os padrões vampirescos.
Mas agora, testemunhar como está dando atenção ao jovem tímido, é
o que acaba comigo.
Ele está sendo legal.
Testo o nosso laço e encontro empolgação!
Não confiando para me servir de bebida em um coquetel de
vampiros, engulo a minha sede e finjo estar admirando as pinturas expostas
nas paredes do antigo prédio, para tentar chegar mais perto e ouvir a
conversa dos dois.
Como eu suspeitava, estão falando sobre livros.
Clássicos da literatura “humana”.
Meu fofo e arrogante pé no saco.
— Nosso rei é tão bonito, não é? — A vampira que o convidou para
estar aqui se posta ao meu lado, percebendo a direção onde estou olhando.
— Sabe, nós ainda não perdemos a esperança de que ele encontre sua
aeternus finis.
— Nós? — ergo uma sobrancelha.
— A comunidade, seus súditos — explica. — Tem que haver uma
vampira por aí para ele. O nosso soberano não pode ficar sem sua parceira.
Uma vampira.
Nem supõem que o par dele poderia ser um humano.
— Humm. — É só o que eu digo, sabendo que não posso falar muito
mais do que isso.
— Afinal, ele precisa deixar um herdeiro para continuar a sua
linhagem! — Segue tagarelando. — Os Prince têm sido nossos governantes
por milênios!
Espero que milênios seja um eufemismo. Porque eu tenho certeza de
que não vai sair um herdeiro da aeternus finis dele e que não vou deixar
Amadeo assumir esse trono. Nem por cima do meu cadáver.
— Humm — repito.
— Mas, claro, até que ele não encontre sua parceira, estamos felizes
por ter encontrado uma scriba com quem parece ter tanta... similaridade.
— Que bonito elogio. Agora, se me dá licença. — Dou um aceno de
queixo e me afasto.
Ok, então todos decidimos que eu sou tão assustadora quanto o meu
projeto de Drácula.
Vou culpar o laço por mais essa.
E por falar nele, vejo que está se despedindo do seu novo amigo e,
assim que fica em pé, todos se apressam a fazer suas reverências perfeitas e
profundas.
Começa a caminhar direto para a saída, então imagino que estamos
encerrando a visita.
— Esse é um lado seu que eu não esperava encontrar — provoco,
quando já estamos a sós no Chiron, a caminho de casa.
— Que lado?
— Você sendo legal com alguém. Agradável. Quase vi um sorriso
verdadeiro.
— Eu sorrio — diz, isso no seu tom seco, rabugento, e eu tenho
vontade de gargalhar na sua cara.
— Quando você quer debochar, ou principalmente aterrorizar, sim.
Mas poderia jurar que era um sorriso real, de diversão.
— Eu não sorrio para aterrorizar — se defende, fazendo uma careta
ofendida.
— Aposto que é por isso que você e o Niko-lícia são amigos. Porque
os dois têm essa vibe de bad boy de terno. — Ui, amo. “Odeio todos, mas
para ela sou um gatinho fofo” é meu ponto fraco na literatura e na vida.
— Não o chame assim! — protesta, mais uma vez. — E, de fato, os
soberanos humanos são informados sobre a nossa existência, dos
elementais, dos Knights, dos magos, dos...
— Não, não termine essa frase — eu imploro. — Ainda estou
absorvendo a parte do vampiro que mora na minha cabeça, obrigada.
— Como eu ia dizendo... — Revira os olhos para a minha
interrupção. — Quando fui informar a família real sobre a nossa existência,
descobri que ele era um jovem muito razoável e um ótimo parceiro de
esgrima. Acabamos nos aproximando. Algo fez com que eu me sentisse
bem na sua presença.
— Espero que eles tenham aceitado a notícia melhor do que eu.
— A rainha Luz me empurrou para perto de uma janela, para
descobrir se eu brilhava no sol — confessa e eu rio mais uma vez, meu
coração leve, de um jeito que nem me lembrava como era.
Feliz.
Apenas feliz.
— Ah, cara. Eu amo aquela garota — exclamo, ainda sem acreditar
que vou conhecê-los de verdade, depois de passar tantos anos vigiando-os,
cuidando da sua segurança, planejando esquemas para garantir que nada
lhes acontecesse.
— Garota não, precisa usar os termos corretos! — Ralha comigo. —
Sua majestade, a rainha Luz.
— Hey, eu me comportei perfeitamente bem em todas as coisas
sociais que me levou, não precisa ficar me dando lições de etiqueta. —
Aponto um dedo em acusação, minha felicidade cedendo um pouco de
espaço para a impaciência.
Vira seu rosto bonito para me encarar e o sinto deslizando para dentro
da minha mente, descobrindo como se sair bem é importante para mim,
assim como qualquer insinuação de que não faço um bom trabalho, por
menor que seja, acaba sendo um gatilho.
Foi uma das coisas que meu ex falou... Disse que só consegui o que
consegui graças a ele... Jogou todo o meu esforço no lixo...
E lá se foi a minha nuvem de felicidade.
— Tem razão, me desculpe — afirma, com sinceridade, me
surpreendendo.
— Espera aí. — Ergo as mãos em uma pose exagerada. — Você
acabou de dizer que eu tenho razão sobre algo?
— Não deixe que suba à cabeça.
— Ufa, já está voltando ao normal. — Finjo um suspiro de alívio alto
e ganho um dos seus olhares nada impressionados. — Preciso usar meu
manto de scriba?
— Não, nós tentamos passar despercebidos quando visitamos os
humanos.
— Droga, então não tenho nada chique-digno-de-realeza para usar. —
Me concentrei em comprar coisas práticas, para o trabalho, e não há muitos
looks “conheça a família real” em lojas de departamento. — Você precisa
avisar com um pouco de antecedência, quando pretende levar alguém para
um palácio!
— Podemos arranjar algo para você.
Espio o painel do carro.
— Em uma hora?
Ele pensa um pouco.
— Talvez eu tenha umas opções que possa usar.
— Seus vestidos vão ficar um pouco largos em mim.
— Tão engraçadinha — rosna.
— Mas eu apoio esse seu lado, todos deveríamos usar o que
quiséssemos.
— Sim, todos devem usar o que quiserem. — A energia quente, que
eu reconheço como a sua versão de diversão, chega até mim pelo laço. —
Apenas confie que eu tenho algo que lhe serve, ok?
Para a minha surpresa, eu confio. Me ocupo com o rádio pelo resto do
caminho, mudando as músicas enquanto discutimos os próximos
compromissos, implicando um pouco durante o processo.
Ou implicando muito.
Ele me acusa de bagunçar seus arquivos.
Eu o acuso de ser um pé no saco.
Ele teima em não querer cor nos seus slides.
Eu teimo que uma dose de cor nunca matou ninguém.
Ele reclama sobre não querer ir à confraternização do departamento.
Eu reclamo sobre ele ser um antissocial esnobe.
Nem vemos o tempo passar e já chegamos de volta ao castelo.
Ele faz um gesto me mandando segui-lo e nós vamos para o seu lado,
onde eu nem ouso pisar. Eu precisaria de um guia turístico para conhecer
todos os cantos desse lugar — e, francamente, morro de medo de acabar
encontrando uma masmorra, ou a rosa mágica que o mantém vivo, suspensa
em um vidro.
Passamos pelo seu quarto e continuamos até o fim do corredor, onde
há portas duplas. Sei que devo ficar longe do laboratório no porão, mas pela
sua hesitação ao girar a maçaneta, suspeito que esse também seja um dos
lugares de onde eu deveria manter distância.
Depois de respirar algumas vezes, ele finalmente as abre.
— A minha equipe sempre deixa tudo limpo, então não deve estar
com muita poeira.
— Você diz a equipe misteriosa que eu nunca vejo?
— Eles apenas vêm quando estamos no trabalho.
— São fadas mágicas? — questiono, sonhadora.
— Não, humana. — Bufa impaciente. — Não são fadas mágicas.
Que pena.
Entramos juntos no espaço desconhecido e vejo uma enorme cama
com dossel vermelho, móveis de madeira escura, e tudo que indica que este
era o quarto de alguém. Um retrato de duas pessoas usando trajes típicos
está pendurado bem no centro da parede principal e basta uma olhada para
eu deduzir onde estamos.
— Roman... Este era o quarto dos seus pais? — pergunto, porque os
traços do homem pintado ali são muito parecidos com os da figura à minha
frente.
— Sim — responde, de costas para mim, com a voz um pouco
estranha, caminhando para uma porta que fica no canto. — Você e minha
mãe tinham figuras semelhantes, acho que podemos encontrar um vestido
dela que lhe sirva.
— Não precisa! — protesto, porque não quero nem pensar em
despertar lembranças dolorosas nele. — Posso usar alguma outra coisa...
— Ela odiaria saber que tudo isso estava aqui, intocado — insiste,
entrando no outro cômodo e nos colocando diante de um estoque enorme de
peças.
Enorme.
Sem resistir, espio os cabides, descobrindo que algumas ainda estão
com as etiquetas. Decido focar nelas, para garantir que não o incomodarei
com memórias indesejadas.
Escolho um vestido preto simples, clássico, com um corte que me
lembra Audrey Hepburn. Talvez fique meio justo nos peitos, mas pode
funcionar com o sutiã certo. E ficará ótimo com meus saltos novos.
Viro para sair e o encontro olhando para o quadro com sua expressão
impassível. Até o laço está quieto...
— Você e ele eram iguaizinhos — comento.
— Ouço muito isso — afirma e acaba rompendo o controle que
estava tentando manter. A sua tristeza chega até mim, está afetado para
caramba e eu não gosto nada da sensação.
Olho ao redor do quarto, buscando uma distração e encontro a
perfeita.
— Uma adaga! — Ando até uma cômoda, onde a peça dourada está
em exibição em um lugar de honra, colocada em um suporte próprio. —
Não é amaldiçoada, nem nada do tipo, certo?
— Não, mas deve estar afiada.
Reviro os olhos.
— Estou falando sério! — ele insiste, preocupado. — Era do meu pai
e ele a mantinha sempre pronta para decapitar alguém.
Bonitinho.
— Eu sei lidar com uma adaga — garanto, sentindo uma nova onda
de saudade da minha Céline.
— Claro que sabe — debocha e eu abro um sorriso vencedor, de
quem está prestes a lhe ensinar uma lição valiosa.
Preste atenção, vampirão.
Em um piscar de olhos, eu a tiro do suporte, empurro Roman, o
imobilizo contra a parede e encosto a lâmina no seu pescoço, deixando-o
completamente dominado.
À minha mercê.
A ponta acariciando a sua jugular, faltando um milímetro para
perfurá-la.
— Você dizia... — provoco com um sorriso inocente, me deliciando
com a forma como os seus olhos estão arregalados, as íris todas vermelhas.
— O que está fazendo? — pergunta, com a voz mais rouca do que
nunca, num tom quase animalesco.
Eu dou um passo para trás e giro a faca entre os meus dedos, em um
gesto exibido que o faz soltar uma respiração surpresa, seus olhos ainda cor
de sangue, entregando o seu descontrole.
Ah, o doce sabor da vitória...
— Estou ensinando você a não subestimar um oponente.
Uma emoção diferente chega até mim.
Parece... fogo.
Um fogo capaz de me queimar toda se eu ousar inflamá-lo.
Dou um passo para frente, a mariposa atraída para a chama, mas o
movimento é suficiente para que se recupere, piscando algumas vezes, antes
de se afastar apressado na direção da porta.
— Sairemos em uma hora — avisa, com a postura tensa, de costas
para mim, sem coragem de me encarar. — E, humana?
— Sim?
— Pode ficar com a adaga.
Dois reis, duas rainhas, um jantar.
Roman

Ela é uma humana, Roman.


Transforme esse laço em uma relação respeitosa, nada mais do que
uma relação respeitosa. Ignore o resto. Você sabe bem os motivos pelos
quais não deve confundir o que esse relacionamento pode ser. Não vá
contra as leis da natureza.
Foque no quanto a humana te enlouquece.
No quanto ela é irritante.
Em como ela colocou uma adaga no seu pescoço.
A adaga...
A destreza com que me atacou...
O momento mais excitante que passei em muitas décadas.
Balanço a cabeça e interrompo a confusão de coisas que estão
flutuando por ali desde que saí do antigo quarto dos meus pais. Ainda bem
que não a senti deslizando para dentro da minha mente desde então,
parecendo distraída demais com a visita ao Palácio de Gelo.
Estou checando as suas reações desde que chegamos à moradia
oficial da família real, mas ela segue tranquila. Animada, mas calma.
Caminha com seus passos seguros ao meu lado, os cabelos quase brancos
presos em um coque elegante.
Continua perfeitamente composta, até sermos escoltados para a sala
de jantar e suas majestades se levantarem das suas cadeiras para nos
cumprimentar. Então, um barulho esganiçado escapa do fundo da sua
garganta e parece ter se esquecido até de respirar, histeria chegando pelo
laço.
“Respire!”, ordeno e ela obedece, o pânico cedendo de leve.
— Roman. — O homem estende a mão para mim e eu aceito.
— Nikolai — cumprimento de volta, vendo Luz se aproximar logo
atrás, com o seu enorme sorriso no rosto.
— Ora, se não é o nosso vampiro preferido. — Ela se estica para me
dar dois beijos na bochecha e uma onda violenta de ciúme me atinge.
A humana de novo.
Suas emoções estão à flor da pele.
Eu me desvencilho o mais rápido que a educação me permite, me
controlando para não esfregar o peito, porque esse puxão foi dos doloridos.
“Vampiro preferido, humpf”, resmunga contrariada, para a minha
diversão.
— Deixem-me apresentá-los à Amélie Freitas Bernard, minha scriba,
ou a minha assistente, na falta de uma tradução melhor. — Faço um gesto
pedindo que se aproxime e ela se abaixa em uma reverência perfeita, que
faz uma nota de orgulho surgir no meu peito.
Ela daria uma excelente rainha.
— Majestades — fala em um tom solene, em voz alta, enquanto na
minha mente ela grita: “AI MEU DEUS, ROMAN. OLHA PARA ESSES
DOIS!”.
Uma rainha um pouco irritante, melhor dizendo.
“Estou olhando”.
— É um prazer conhecê-la, Amélie. — Luz a ajuda a se levantar,
puxando-a para um abraço. — Preciso dizer que amei o seu cabelo!
“ELA AMOU O MEU CABELO, ROMAN!”.
“Sabe, não imaginava que fosse possível alguém gritar tão alto sem
usar a voz”.
— Muito obrigada, majestade — agradece, com elegância.
— Gostariam de um vinho? — Nikolai oferece, indo até o decantador
na mesa, preparado especialmente para nós.
— Sim, por favor — respondo, só para garantir que ela não vá
chamá-lo pelo apelido ridículo que inventou.
“NIKO-LÍCIA VAI ME SERVIR VINHO, ROMAN”.
“Sabe que estou aqui, certo?! Vivendo as mesmas coisas. Não é como
se eu precisasse de uma narração em tempo real”.
— Você também é uma vampira? — Luz pergunta, com curiosidade
genuína, nos convidando a sentar com ela em um dos muitos sofás que
preenchem o espaço.
— 100% humana — Amélie diz, orgulhosa.
— Roman disse que seu sobrenome é Freitas? Alguma chance de ter
família brasileira? — puxa um assunto neutro, com a experiência
diplomática que lhe parece ser tão natural.
Ela responde em português, uma das poucas línguas em que não sou
fluente, e Luz abre um sorriso empolgado, as duas passando a conversar
sobre coisas que não entendo.
O rei se aproxima para oferecer uma taça para a humana e sei que o
movimento não tem nada de inapropriado, mas, para mim, é uns cinco
passos mais perto do que gostaria. Principalmente, pela emoção histérica
que chega pelo laço.
Acabo me levantando e o guiando para perto da janela, distante das
mulheres, que já parecem serem melhores amigas de infância pela
empolgação do papo.
— É ela, não é? — Nikolai pergunta sem rodeios, também me
servindo uma taça. Bem cheia.
Eu sei do que está falando.
Conversamos algumas vezes sobre o laço.
Mas não sei como percebeu tão rápido.
— O que nos entregou? — questiono, com curiosidade.
— Um segundo atrás, você me olhou como se quisesse usar a minha
pele para fazer tapete.
— Me desculpe — peço, com sinceridade e uma nota de vergonha. —
Mas sim, é ela — admito, porque não faz sentido mentir.
— Não imaginei que fosse possível ter o laço com uma humana. —
Perspicaz, como sempre.
— Não há nenhum caso documentado.
— Posso conversar com Sergei, ver se ele sabe algo sobre isso — diz,
se referindo ao seu mentor. Seu pai, para todos os sentidos práticos. Um
homem impressionante e intimidante.
— Na verdade, a avó dela é uma das maiores estudiosas sobre nós.
Suellen Freitas. — Ele dá um aceno, reconhecendo o nome.
— E por que a apresentou como sua scriba?
— Estamos mantendo em segredo, por enquanto. — Tomo um longo
gole da bebida rica, quase tão saborosa quanto meu Blut-X. — Imagine
como o meu povo vai reagir quando a informação vazar, a questão do
herdeiro...
— Uma decisão sensata — concorda. — E como está se sentindo
com tudo isso?
Penso um pouco em como responder. Me abrir não é algo que
costumo fazer, mas além de Chris, Nikolai é o meu amigo mais próximo.
Com a diferença de que é muito mais discreto e racional. E estou confuso o
suficiente para aceitar a oferta.
— Não é como eu achei que seria — confesso.
— Em qual sentido?
— Além da parte de ser humana? — Ele dá um sorriso de
compreensão por trás da sua taça. — Ela é enlouquecedora, Volkov. Me tira
do sério o tempo todo. Não é nada como eu pensei que a pessoa perfeita
para mim seria.
Agora Nikolai ri de verdade. Ri tanto que atrai a atenção das duas
mulheres. Imagino que esta seja uma intercorrência incomum até para a sua
esposa, que está nos encarando assustada.
Ergo a taça em um brinde imaginário para tranquilizá-las e parece
funcionar, porque voltam a conversar com os rostos próximos.
— Já acabamos de nos divertir às minhas custas? — questiono,
quando se interrompe em busca de ar.
E eu achando que ele seria mais maduro do que Chris...
— Perdoe-me, tive um déjà-vu da minha própria vida. — Ele se
recompõe, limpando algumas lágrimas do canto dos olhos. — Sinto lhe
informar, meu amigo, que Luz Alice sempre me deixa maluco, não
poderíamos ter menos coisas em comum e, ainda assim, ela é a mulher
perfeita para mim.
Ela é.
Qualquer um que passe mais de trinta segundos na presença dos dois
vê que é óbvio o quanto se amam. Se fossem vampiros, ali haveria um laço,
sem dúvidas.
— Como? — questiono. — Como vocês fazem funcionar?
— A primavera tem o outono, o verão tem o inverno. — Dá a
explicação mais subjetiva possível, arrancando um bufar impaciente de
mim.
— Desde quando você é tão poético?
— Sempre fui um deleite — afirma sério, com sua expressão fechada
e estoica, e dessa vez sou eu quem não tem outra opção, a não ser rir.
— Uma verdadeira alma sensível — debocho. — Mas tem uma
grande diferença entre vocês e nós. E nem estou falando sobre não serem de
espécies diferentes.
— Qual é o problema então?! — Coloca mais vinho na minha taça,
sentindo que vou precisar.
— Você sabe o suficiente sobre aeternus finis, sabe que nós não
tivemos uma opção. Ela mesma me lembrou disso.
Ele fica em silêncio, pensando no que dizer.
— Mas vocês estão juntos?
— Não — afirmo. — Nada aconteceu.
— Nada?
— Nada.
— Então, o laço apenas aproximou duas pessoas. Não muito diferente
de uma amizade.
— Bom, pensando assim...
— O que acontecer daqui para frente depende de vocês, será escolha
de vocês...
— Eu não vou deixar nada acontecer — afirmo, mais para mim do
que para ele.
— Você não tem curiosidade? De como seria estar com a pessoa certa
para você? Se seria diferente? Como seria beijá-la? Como seria...
— Está tudo bem? — pergunta a humana, do outro lado da sala,
provavelmente sentindo a intensidade dos meus sentimentos, que estão
ameaçando explodir.
Apenas por imaginar...
Imagina como seria...
Não!
— Estamos discutindo o ataque — respondo e ela faz uma careta,
comprando a minha história, por saber que o assunto é delicado o suficiente
para justificar a minha reação.
— Ataque? — Nikolai indaga.
— Uma das coisas que eu queria discutir com você, porque acho que
pode ter repercussões grandes o suficiente para chegar até os seus ouvidos.
— Conto como ela foi atacada, jogada nos meus terrenos para me
incriminar, como consegui manter segredo até agora, mas ainda não faço
ideia de quem esteja por trás de tudo.
— Vou avisar ao Ayres e a Ivelyn também, caso escutem alguma
coisa. Ainda não temos um novo contato com os Knights agora que Hero
encarnou, mas falarei com eles — Nikolai garante, se referindo à rainha dos
elementais e o seu parceiro, além dos seres míticos que protegem os
humanos. — Nós podemos ajudar de alguma forma?
— Apenas me avisem se alguém trouxer o assunto até vocês.
— Feito.
Conversamos sobre mais algumas questões práticas, fronteiras e
impostos, com as duas se juntando a nós para a parte séria da reunião. O
laço permanece quieto, focado, e eu acrescento ética profissional impecável
à lista de coisas que não acho tão irritantes na humana.
Uma lista que está crescendo rápido demais para o meu gosto.
— Não consigo parar de pensar que já te vi antes — Luz estreita os
olhos na direção de Amélie, inspecionando o seu rosto. — Nós nos
encontramos em algum evento?
— Em um evento não, majestade. — Balança a cabeça em negativa.
— Com o que você trabalhava antes de se juntar ao nosso Roman?!
O laço puxa com força.
Ela não gostou do “nosso”.
E ela não gostou de não ter gostado.
Sua mão passa a esfregar a tatuagem num gesto inconsciente.
— Bom, acho que para vocês dois não há problema contar. — Dá um
pequeno sorriso tímido. — Eu era coordenadora de inteligência do Serviço
Secreto Real. Eu trabalhava aqui, no palácio.
Três queixos caem.
O meu, inclusive.
Ela era... agente secreta?!
— Por isso! — Luz bate no seu joelho. — Nós aprovamos as fichas
de todos do Serviço Secreto e as fichas têm foto!
— Ah, eu não sabia disso — confessa a humana.
— Nos ajuda a saber se conhecemos a pessoa antes, ou a
reconhecermos, se houver o caso de algum impedimento — Nikolai
explica. — E por que você saiu do Serviço Secreto? — pergunta o que mais
quero saber.
Por que alguém que chegou tão longe na sua carreira, com um cargo
de tanto prestígio, acabaria sem emprego, morando naquela pocilga?!
Tristeza me atinge.
Uma tristeza que não é minha.
Forte, amarga, sombria.
Nada colorida como suas emoções de sempre.
Mais sombria do que tudo que já senti vindo dela.
E isso me faz perder o controle.
Meu corpo começa a tremer, um rosnado escapa da minha garganta.
Sinto o veneno se acumulando na minha boca, minhas presas descendo sem
aviso, prontas para matar quem quer que tenha causado isso.
— Hey, calma aí. — Ela se apressa para perto de mim, parando na
minha frente e segurando o meu rosto com as duas mãos. — Roman, estou
aqui. Estou bem. — Seus olhos se cravam nos meus, tentando me puxar de
volta. Minha respiração sai errática e eu a encaro, sem encará-la de fato.
“Drácula, você precisa voltar para mim agora”, diz na minha mente e
puxa o nosso laço. Com força. Com toda força que tem.
Eu aterrisso na realidade com um baque.
Tento fazer o movimento da respiração, foco no seu calor e, aos
poucos, retomo o controle. Obrigo minhas presas a se retraírem, minhas íris
a mudarem para o castanho, e engulo o veneno.
— Ok, o que foi isso? — Luz Alice pergunta, os olhos arregalados
por culpa da interação estranha entre nós, parecendo mais fascinada do que
assustada.
— Eu posso sentir tudo o que ele sente e vice-versa. Esse assunto me
deixa triste, ele sentiu, e entrou no modo “devo eliminar dolorosamente
pessoas que nem conheço, só porque elas fizeram minha aeternus finis
sofrer”.
— Aaaa, que coisa mais fofa — suspira. — E não precisamos falar
mais sobre o assunto! — Se apressa a acrescentar, para o meu alívio.
— Eu adoraria ajudar com a parte do “dolorosamente”. — Nikolai
enche a minha taça de novo e ainda bem que o meu corpo processa rápido o
álcool. Seria isso, ou entregar o Chiron nas mãos da humana.
O que não vai acontecer.
— Amélie não parece do tipo que precisa que lutem suas batalhas por
ela — Luz comenta e assume a direção da conversa, mais uma vez usando
suas habilidades diplomáticas excepcionais.
Conversamos mais alguns minutos, até anunciarem que é hora de
colocar Aurora na cama — e eles nunca perdem o ritual noturno com a sua
filha.
— Se voltar aqui sem Amélie... Bom, apenas não volte. — Luz se
despede de mim, indo abraçar o seu marido e eu poderia jurar que eu a ouvi
murmurar algo como Niko-lícia para ele.
Deus me ajude.
Me despeço do meu amigo — e do seu apelido que vou ter que
apagar do meu cérebro com água sanitária —, a humana faz uma última
reverência e damos a noite por encerrada.
— Eles nos convidaram para o aniversário da Aurora! — exclama,
quando nos afastamos pelos corredores do palácio.
— Não pense que vou deixar o assunto do seu passado de lado —
aviso, ainda afetado pela história do seu trabalho. Preciso descobrir o que o
idiota digno de pena tem a ver com isso. Porque eu sei que ele tem alguma
culpa.
— Só não hoje, ok?! — pede, com um suspiro. — Odeio revirar
minha pilha de traumas antes de dormir.
— Não hoje — concedo.
Mas em breve.
Eu vou saber de tudo.
E algo me diz que vou repensar o plano de não me vingar.
Chegamos à parte em que eles precisam dividir uma cama!
Dias depois

Roman

Entramos na garagem do Castelo, depois de um longo dia na Nobre


Academia e de reuniões infinitas do Conselho, enquanto a ouço dar sua
opinião sobre como poderíamos aplicar o fundo que os vampiros oferecem
para ajudar os humanos. Está exercendo a sua função de scriba com
maestria, transitando sem problemas entre os dois mundos, e minha vida
profissional nunca esteve tão organizada.
Enquanto a minha vida pessoal nunca esteve tão caótica.
Assim que saímos do Chiron, seguimos para os nossos lados opostos
do Rot. De repente, o meu quarto parece vazio demais. Quieto demais.
Desde quando não ter ninguém me irritando passou a ser uma coisa
ruim?
A queimação familiar começa a se espalhar pelo meu peito, o laço
irritado pela distância ridícula entre nós, e eu decido me ocupar. Começo
tomando um banho demorado, com a água tão quente que teria queimado
um humano. Passo no porão e tomo um grande copo de Blut-X. Subo para a
biblioteca e respondo alguns e-mails. Eu sairia para voar um pouco e gastar
energia, se não fosse piorar tudo.
Decido tentar dormir.
No meu quarto.
Porque me recuso a dormir mais uma noite em um corredor.
Eu sou um maldito rei, não devo dormir em um chão frio!
Nem que eu tenha que me algemar nessa cama, ou trancar a porta e
jogar a chave nos terrenos... Mal acabo de pensar isso e já estou a caminho
da saída, carregando meu travesseiro e uma das colchas para tentar deixar o
piso de pedras um pouco mais confortável.
Patético.
Se o mundo pudesse ver o poderoso Roman Prince agora.
Assim que piso no corredor, vejo a humana se aproximando com uma
expressão obstinada no rosto e sei que lá vem coisa...
— Isso é uma palhaçada — diz, assim que invade o meu quarto,
marchando para dentro como se o espaço fosse seu. — Chega dessa coisa
de sofrer toda noite. Você vai ficar do seu lado da cama, eu fico do meu, e
vamos ter um pouco de descanso decente, com esse maldito laço bem
caladinho.
— Acredite, eu não ia reclamar — resmungo, sentindo meus ombros
relaxarem. Ela está aqui, não vou precisar dormir na sua porta como um
cachorrinho, e tudo dentro de mim está tranquilo.
Com certeza, não vou reclamar.
Ela começa a arrumar o cobertor que trouxe e minha atenção acaba
caindo para o seu corpo. Está vestindo uma calça de moletom que eu aposto
ser minha e uma blusa justa de alças finas, que contorna cada uma das suas
curvas femininas.
Sou hipnotizado por uma parte da sua barriga que fica à mostra,
parecendo tão macia que minhas presas descem sem eu mandar, prontas
para se cravarem ali.
Eu as obrigo a se retraírem de volta no mesmo segundo.
Ainda bem que a humana não percebe, muito ocupada em
transformar minha cama em uma espécie de ninho.
— Não sei se essa é uma boa ideia — digo, temeroso pelas reações
que está despertando.
Imagina quando estivermos dividindo um único colchão...
— Dormir no chão realmente parece melhor. — Ela revira os olhos,
se acomodando contra os meus travesseiros, antes de bater no espaço vazio
ao seu lado. — Eu não mordo, sabe?
— Só esfaqueia.
— Como qualquer pessoa civilizada. — Sorri. — A menos que esteja
com medo? — Ergue uma sobrancelha em desafio e eu decido acabar logo
com isso.
Eu tenho autocontrole.
Nada vai acontecer.
— Medo de uma humana? — Eu bufo de impaciência e vou me
acomodar ao seu lado.
Não precisa significar nada. Não vamos nem nos encostar. Será como
dormir sozinho, com o bônus de não ter o maldito laço reclamando.
Alcanço meu celular e apago todas as luzes, a escuridão caindo sobre
nós. Coloco o aparelho na mesa de cabeceira, junto as mãos no peito e uso
toda a minha capacidade de não precisar respirar ou me mover.
Ela, ao contrário, vira para um lado, depois para o outro. Suspira.
Afofa os travesseiros. Resmunga. Se cobre. Se descobre. Se cobre pela
metade. Me enlouquece.
— Sossega! — explodo, finalmente.
— Eu não consigo dormir — reclama, com um suspiro.
— Dê um jeito de conseguir.
— Eu costumo dormir assistindo alguma coisa.
— Que coisa?
— Séries antigas que eu já vi zilhões de vezes.
— Por quê? — questiono, sem entender mais essa estranheza.
Humanos e seus hábitos esquisitos!
— Porque elas têm o balanço perfeito entre ocupar o meu cérebro o
suficiente para que eu não fique pensando nos problemas, erros passados e
cenários catastróficos, ao mesmo tempo que não prendem a minha atenção
o suficiente para eu querer ficar acordada para saber o que vai acontecer —
explica tudo isso em um fôlego só. — Porque já sei o que vai acontecer —
completa e eu pisco algumas vezes, tentando dar sentido às suas palavras.
— Você é estranha. — É só o que acabo dizendo.
— Disse o ser sobrenatural que toma sangue para viver — retruca, no
melhor “estilo Amélie”.
— Durma!
— Minha mente não cala a boca!
Pego o meu celular de volta, baixo um maldito aplicativo de
streaming, encontro uma série de comédia qualquer e o entrego para ela,
virando de costas. Ainda tem a audácia de apoiar o aparelho em mim,
deixando o começo de um episódio de algo chamado “Two and a Half
Men” passando.
Funciona como mágica.
Ela, finalmente, relaxa e para de se mover.
O som das risadas do seriado funciona como uma canção de ninar, o
laço está feliz, rodeado pelo cheiro da humana, e eu fecho os olhos, prestes
a ter a melhor noite de sono em muitos anos...

**
Humana

O frio me acorda e eu me amaldiçoo por ter ido dormir sem fechar a


janela. Pisco algumas vezes, fazendo os vitrais entrarem em foco, e vejo
que estão todos fechados. Se não foram as janelas... O ar-condicionado
talvez? Ou esqueci de pegar uma coberta?
Só então, as lembranças do dia anterior voltam com tudo.
A fonte do meu frio é o vampiro que eu estou agarrando. Grudada
mesmo, com as minhas pernas jogadas em cima das dele, uma das minhas
mãos no seu peito, meu rosto confortavelmente acomodado no seu ombro.
A milímetros de mim estão os traços esculpidos que poderiam muito
bem ser de uma estátua grega perfeita. Roman ainda está dormindo...
Aqui... Comigo... Na mesma cama...
O laço se superou nessa.
É a primeira vez que o vejo tão sereno, com o semblante tão relaxado,
então aproveito para catalogar cada detalhe seu.
Os lábios desenhados estão entreabertos, a barba escura começa a
despontar, seu nariz tem pequenas marquinhas, quase sardas, as ruguinhas
que não desaparecem da sua testa enfezada...
Maravilhoso.
Um pouco rústico, sim.
Mas quem o criou, com certeza, fez questão de caprichar no esboço,
de afiar cada aresta, de torná-lo o predador perfeito para atrair a atenção das
suas presas, para encantá-las.
Eu reclamo de muitas coisas desse laço maluco, mas do charme do
meu “predestinado”, eu não vou reclamar, não. Ele ainda tem aquele tipo de
beleza que tenho certeza de que só ficará mais impressionante com o passar
do tempo.
Por um minuto, eu me permito pensar como seria tocá-lo. Beijá-lo.
Sentir suas mãos em mim. Sentir seu corpo enorme em cima do meu.
Aposto que ele seria impetuoso, dominador... Que toda a sua intensidade
seria deliciosa...
O máximo que ouso fazer é encostar meu nariz no seu peito e respirar
fundo, o cheiro do seu perfume e da sua colônia bons o suficiente para
arrancar um gemido baixo de mim.
Ok, chega.
Já me envergonhei o suficiente.
Volto a me acomodar, determinada a dormir mais um pouco, mas algo
atrai a minha atenção. Sem entender bem a sensação estranha que me
atinge, meu olhar cai de volta para janela e eu me levanto com um pulo.
Tem alguém aqui.
Alcanço a adaga que deixei embaixo do travesseiro, enquanto Roman
estava distraído na noite passada, e meu movimento súbito acaba
despertando-o.
Ele também se levanta no mesmo segundo, me colocando atrás do
seu corpo. Suas presas estão à mostra, seus olhos vermelhos, um rosnado
ameaçador escapando da sua garganta.
Mas, agora, o vulto que antes estava ali, pairando, olhando
diretamente para nós, desapareceu.
— Você também viu aquilo, certo? — pergunto, ofegante, saindo de
trás das suas costas e andando até a janela.
— Humana! — ele ralha comigo, me puxando para si antes que eu
pudesse abrir e espiar para fora. — O que pensa que está fazendo?
— Tentando descobrir quem estava nos espionando! — exclamo e ele
revira os olhos, abrindo o vidro.
Olha para fora, para cima, e não encontra nada.
— Eu vou checar a propriedade — avisa. — Tranque a janela assim
que eu passar e não saia daqui.
— Me leva junto!
— Nem pensar.
— Roman! — protesto, mas ele já está se lançando no ar, tão rápido
quanto o nosso invasor, desaparecendo na noite escura.
Ao invés de fechar a janela como mandou, eu coloco a adaga entre os
dentes e escalo o parapeito, me pendurando ali o suficiente para conseguir
olhar para fora, para cima.
Nenhum sinal dele.
Ugh.
Irritante.
— Sério? — ele pergunta, me assustando ao aparecer do meu lado,
pairando no ar. — Custa me obedecer uma única vez?
— Custa não me tratar como uma...
— Humana frágil? — Ele me pega nos braços e voa para dentro,
pousando no chão antes que eu consiga aproveitar a carona.
— Achou alguma coisa? — questiono, ignorando o seu sermão.
— Nada. Quem quer que fosse, desapareceu assim que o flagramos.
— Tem que ser um vampiro, certo? Mais alguém do mundo mágico
sabe voar?
— Magos, elementais do ar e...
— Não, não quero saber. Drama vampírico primeiro, resto da galera
sobrenatural depois. — Me sento na ponta do colchão, sentindo a adrenalina
baixar. — Para um rei, você tem muita pouca segurança.
— Não é como se alguém tivesse tentado algo contra mim até hoje.
— Disse tudo. “Até hoje”. — Lanço um olhar sério. — Posso usar
uns contatos do serviço secreto para instalar algumas câmeras, um alarme...
Não vai fazer mal.
Espero seu protesto, mas ele suspira.
— Você tem razão. — Se senta ao meu lado. — Se tivéssemos
câmeras, teríamos registros.
— E talvez alguns guardas nos terrenos?
— Eu ainda posso me defender.
— Então pense que se, por acaso, alguém conseguir enfiar uma estaca
de madeira no seu coração, eu também morro!
Ele se encolhe todo, fazendo uma careta.
— Só para constar, enfiar uma estaca de madeira mata qualquer coisa,
não é exclusividade dos vampiros.
— Eu sei, eu assisti Hotel Transilvânia.
— Como é?
— Você nunca viu esse desenho?
— Desenho? — faz uma careta.
— Claro que o rei dos esnobes não assiste a desenhos. — Balanço a
cabeça. — Minha alma gêmea nunca assistiu a um dos meus filmes
preferidos. Qual o problema desse laço?
— Podemos voltar a falar do que importa? — ele pede, batendo com
o seu joelho no meu para chamar a minha atenção.
— Pelo menos, agora você pode admitir que não foi Lady Evile.
— Por que não? — Franze o cenho. — O rosto estava coberto.
— Senhorinhas não saem voando!
— Sim, elas saem.
— Senhorinhas sentem frio à noite!
— Não vou nem comentar esse argumento. — Ele se levanta,
começando a caminhar para a porta.
— Onde você vai? Precisamos falar sobre o invasor! — reclamo, mas
ele nem diminui o passo.
Estou sentindo pelo laço que está preocupado, tenso. Pelo menos,
serviu para que esquecesse um pouco da curiosidade com o meu passado,
que estava o dominando.
Ok, nada de se enfiar nesse buraco agora.
Acho que vou descer para os terrenos e procurar algumas pistas.
Depois, começar a esquematizar o nosso novo sistema de segurança. E,
mais tarde, enfiar um pouco de antropologia em adoráveis mentes jovens.
Preciso de um café.
Ou cinco.

**

— O que é isso? — pergunto, entrando no quarto para dormir e


congelando ao ver a adição que, com certeza, não estava aqui hoje cedo.
Pendurada na parede bem de frente para a cama, toda moderna e grande
demais...
— Se chama televisão, humana — Roman resmunga, já ocupando o
seu canto da cama. — Uma caixa onde passam imagens e saem sons.
— Adoro quando tenta ser engraçado. Tão desajeitado quanto um
cachorrinho andando em duas patas. — Alcanço o controle que está na
minha mesa de cabeceira e ligo o aparelho, vendo todos os streamings do
mundo instalados ali. — Você colocou uma TV no seu quarto para eu ver
séries!
— Para você parar de reclamar e dormir.
— Você me deu um presente!
— Eu me dei um pouco de paz.
— Não me faça gostar de você, Roman.
— Não seria uma decisão sensata para nenhum de nós.
— Não, não seria. — Suspiro e dou um passo para frente, meio sem
jeito. Cruzo e descruzo os braços, como se não soubesse o que fazer com
eles. Então, fecho os olhos e apenas deixo as palavras escaparem. —
Obrigada. Eu amei o meu presente.
— Não foi um presente — repete, mas poderia jurar que suas
bochechas esculpidas ficaram menos pálidas. Acho que isso é a sua versão
de corar...
— Você fica menos irritante quando está me mimando — cantarolo.
— Mais uma palavra sobre isso e eu jogo a maldita TV pela janela.
— Toque na minha TV e eu vou cutucar a sua amígdala com a minha
adaga. — Sorrio e fecho bem as cortinas, bem mesmo, antes de ir deitar do
seu lado. Não quero ninguém me vendo dormir dessa vez! — E quando ela
foi instalada? As coisas realmente aparecem do nada nessa casa!
— Eu já disse, os funcionários vêm quando estamos no trabalho.
— Ainda prefiro a versão “fadas mágicas”. — Chuto minhas pantufas
para longe, subindo para me acomodar na cama, colocando a nova Céline
debaixo do travesseiro. — A propósito, nós precisamos fazer uma
checagem de antecedentes na sua equipe.
— Não, não precisamos. — Ele alcança seu celular para apagar todas
as luzes, como ontem, enquanto eu escolho qual série vamos ver. Acho que
vou seguir na minha maratona “Two and a Half Men”.
O episódio começa e eu relaxo contra os travesseiros. Ou tento
relaxar, porque Roman se deita daquele jeito que o faz parecer uma estátua
e o laço começa a vibrar com curiosidade.
Ainda não desistiu de falar sobre o meu passado.
Sei que pedi para não falarmos antes de dormir, mas sua impaciência
é irritante o suficiente para não dar para ignorar.
— Vai, pergunta — ordeno, exasperada. — Sei que passou o dia todo
querendo falar sobre isso.
— Passei o dia todo trabalhando — corrige, com seu tom ofendido.
— Aquelas crianças são exaustivas.
— Por que você decidiu ensinar antropologia, se odeia tanto?
— Eu sei que você está tentando mudar de assunto.
— Seja um cavalheiro e me deixe mudar de assunto, então! —
brinco, lhe dando uma cotovelada. — Eu aposto que foi porque você ama
fazer bebês estudantes chorarem.
Pega um travesseiro e bate em mim de leve, de brincadeira, me
fazendo gargalhar. Ok, talvez esteja ficando melhor nessa coisa de ser
divertido.
— Não posso ficar muito tempo em um mesmo círculo, em uma
mesma função. Antes da Nobre Academia, eu passei anos implementando a
produção em massa do sangue artificial... — comenta. — Costumo fazer
um rodízio entre ciências exatas, biológicas e humanas. E chegou a vez das
humanas.
Imagina ser inteligente assim?!
Que ódio.
— Como você lida com a coisa de envelhecer mais devagar do que
todo mundo? Falando no sentido prático, tipo tirar passaporte? Ou pessoas
que te conhecem e estranham como não tem cabelos brancos ainda?
— Himmel ajuda a nos acobertar, eu mudo a minha aparência e
vocês, humanos, morrem rápido. — Bufa. — Se alguém me reconhece,
basta eu falar que sou Roman Prince Júnior, ou Roman Prince Neto.
— E você vai fazer isso por mim também, certo? Me acobertar.
— Sempre — garante com tanta certeza, tão solene, que eu apenas
aceno com a cabeça, acreditando na sua promessa.
Vou focar na parte que talvez tenha tempo para ler todos os livros que
quero, se vou viver por mais uns séculos.
Talvez.
— Podemos te envelhecer um pouco com maquiagens, quando for
ver os seus pais, ou a sua avó e... — Ele fica em silêncio e algo pesado
chega até mim pelo laço. — Não tinha pensado em como vai ser para você.
— Suas sobrancelhas se franzem. — Sinto muito.
— Eu não sinto — acabo confessando uma coisa que percebi hoje,
enquanto refletia sobre como essa se tornou a minha vida.
— Não? — indaga, surpreso.
— Você é minha alma gêmea, irritante e pé no saco, tenho vontade de
enfiar alho na sua garganta...
— Alho não nos faz mal! — interrompe e agora sou eu quem lhe bate
com o travesseiro. E nem foi de leve.
— Mas sinto que essa conexão é muito maior do que eu, sabe? Viver
isso... — Eu puxo o laço com gentileza, apenas o suficiente para que a
conexão vibre. — Me fez sentir de novo, me tirou de um lugar ruim, me
deu um rumo, um trabalho, um lar, uma companhia...
Sei que minha tristeza está chegando até ele, toda a sensação de perda
que venho trazendo comigo já faz um tempo, as lembranças amargas que
me fazem buscar o meu pulso e esfregar a tatuagem.
— Você sente falta dele? — pergunta e eu penso um pouco para
responder.
— Eu sinto falta de duas coisas.
— Se você disser sexo, eu vou vomitar.
— Você não come nada para poder vomitar.
— Sou esperto, dou um jeito.
— Não sinto falta do sexo. — Reviro os olhos. — Quer dizer, eu
sinto falta de sexo, não do sexo que eu tinha. Não sei se fez sentido.
— Chega de falar sobre sexo!
— Roman, O Puritano. — Invento mais um título para provocá-lo e,
pela sua expressão, acho que esse é o que menos gostou até hoje. O que
significa que é o que mais vou usar, claro. — Mas eu sinto falta de toque.
— Toque?
— Sabe, dar as mãos, carinho, abraços, beijos... Cara, eu amo um
bom beijo. Longo, daqueles de corpo inteiro, em que nada mais importa,
além de se perder na outra pessoa...
— E a segunda coisa? — interrompe, como eu sabia que faria. Ele
preferiria beber um dos meus copos de café cheios de açúcar, do que me
ouvir descrever beijos.
— Sinto falta do gramado da minha casa — confesso. — Eu amava
deitar na grama, deixar o sol me esquentar, às vezes com uma brisa, sempre
silencioso. Acho que tinha alguma coisa no contato com a natureza que me
descarregava.
— Grama — repete, como se tentasse fazer a palavra ter algum
sentido.
— Grama — confirmo.
— Estranha — murmura e se vira de lado, me encarando com toda a
sua atenção. — E você saiu do seu trabalho, abriu mão de ser agente, por
causa dele, não foi?
— Porque ele era o meu chefe — confirmo suas suspeitas, usando
todo o meu controle para manter as lembranças abafadas. — Eu não poderia
continuar convivendo com o babaca todo dia, ainda mais depois que jogou
na minha cara que eu só consegui o meu cargo por sua causa.
Agora o laço é pura raiva.
Olhos vermelhos me encaram com fúria.
Como no palácio, parece prestes a iniciar um Armageddon.
Eu me encolho, afetada pela sua energia, e a minha careta de dor o
faz recuar, respirando algumas vezes até que consiga se acalmar.
— Você o denunciou, certo? — pergunta, quando consegue retomar o
controle, as íris voltando a ser castanhas.
— Não tinha por que denunciar, não tinha a ver com trabalho —
sussurro e torço para que não dispare mais seus gatilhos.
— Eu vou resolver isso — afirma, parecendo ter substituído sua fúria
por obstinação.
Não sei qual é a pior.
— Não, não vai.
— Humm. — É só o que diz.
— Se você fizer algo, eu vou saber — ameaço.
— E você acha que isso é um impedimento?
— Cala a boca e veja a série — ordeno, me virando para ficar de
frente para a TV, decidida a encerrar o papo.
Ele se mantém quieto como mando, mas o laço ainda está gritando.
Deslizo um segundo para a sua mente e encontro vários cenários vingativos
sendo planejados...
— Roman! — reclamo.
— Humana! — imita o meu tom.
— Desisto. — Viro de costas, decidida a dormir, apesar do ser com
força sobre-humana estar planejando uma carnificina ao meu lado.
E uma parte minha, uma que eu admito não ser racional, gosta de ter
alguém bravo por mim, tentando defender a minha honra, alguém que se
importe.
Sempre soube que podia lutar minhas próprias batalhas.
Mas ter companhia nas trincheiras, com certeza, torna tudo mais
fácil...
Descobrindo que tenho um fraco por vampiros com ciúmes.
Roman

— Olha só para eles dormindo agarradinhos, tão bonitinhos e... Hey!


— A voz conhecida chega até mim e eu desperto para encontrar Chris
dando um olhar indignado para a humana, a adaga de estimação dela
cravada na sua coxa.
Bom dia para os dois também.
— Agradeça por eu gostar de você e mirar na sua perna — ela
resmunga, ainda sem abrir os olhos, aninhada contra mim como se eu fosse
o colchão mais confortável do mundo.
Sendo honesto, o laço está tão satisfeito que também não me sinto
muito inclinado a me mover em um futuro breve. Além disso, a humana é...
cheirosa. E macia. E todo o seu calor espalhado em mim faz a minha pele
gelada parecer quase normal.
Não.
Nada de me mover.
— Vocês se merecem, juro — ele resmunga, tirando o metal da sua
carne e fazendo uma careta para a bagunça de sangue que escorre pela sua
perna. — Eu gostava desses shorts, Amélie!
Temos que reconhecer a sua mira impecável.
Ela encontrou a artéria femoral dele sem esforço algum.
Himmel deve fazer um ótimo trabalho treinando os seus agentes
secretos.
— Pense nisso na próxima vez que decidir invadir a minha casa —
respondo por ela, ainda inabalado, apesar do escândalo.
É bem difícil me preocupar com o que quer que seja agora, nem com
a vergonha por termos sido flagrados abraçados. E a cura sobrenatural de
Christian logo terá fechado a ferida, sem cicatrizes.
Dramático.
— É nosso dia de jogar tênis, idiota — resmunga, jogando Céline de
volta na nossa direção e eu ergo uma mão para pegá-la no ar.
Se atingisse Amélie, eu o faria engolir a lâmina.
— Você poderia ter batido na porta e ninguém sairia ferido. —
Aponto o óbvio, permitindo que meus braços se apertem um pouco mais ao
redor dela, depois de deixar a adaga na mesa de cabeceira.
— Eu disse que a gente precisava de uma segurança melhor — a
humana resmunga, esfregando seu rosto no meu peito, também não
parecendo nada envergonhada por termos uma plateia.
— Não sei se fico feliz ou assustado por ver vocês sendo... fofos? —
Chris pergunta, como se não tivesse certeza de que deveria usar esta
palavra. Eu não imaginaria alguém usando esse termo para se referir a mim,
de fato. — Isso quer dizer que estão juntos? Quais são suas intenções com o
meu amigo, Amélie? Ele é um moço de família, sabe.
Ainda bem que confisquei Céline.
Aposto que, dessa vez, ela não iria mirar na coxa.
— Por que ele ainda está aqui?! E falando! — A humana suspira, sua
voz de sono fazendo meu interior se revirar com alguma nota prazerosa.
— Não vou sair até Roman levantar! — protesta. — Não posso
atrasar, tenho que estar no estúdio em duas horas.
— E eu não vou levantar até você sair do meu quarto e esperar na
sala de estar, como um bom convidado obediente.
— Juro que, às vezes, você fala comigo como se eu fosse um filhote
de cachorro.
— Que bom que deixei isso claro.
A humana ri, como se eu tivesse feito uma piada, e o laço se
espreguiça, satisfeito, saciado.
“Você não imagina se seria diferente? Beijá-la?”, a voz de Nikolai
aparece na minha mente, mas eu trato logo de afastá-la. Não posso pensar
nisso com ela tão próxima. Nem precisaria deslizar para dentro do meu
cérebro, ou checar o laço, bastaria que sentisse a reação física bastante
óbvia do meu corpo.
Ereção matinal.
Nada além de ereção matinal.
— Odeio vocês. — Ele nos dá as costas e começa a fazer seu
caminho de volta para baixo, resmungando algo sobre “chutar a minha
bunda” na quadra.
Ele pode tentar.
É sempre engraçado quando ele tenta.
— Hora de levantar — anuncio, porque realmente preciso ir para a
nossa partida, se não quiser me atrasar para a minha primeira aula depois.
Mas ela não se move.
— Shiu, estou dormindo.
Suspiro.
— Humana — digo, me esforçando para o meu tom sair sério, por
mais que eu também fosse adorar seguir aqui, fingindo que o resto do
mundo não existe.
— Ok, ok. — Ela grunhe em protesto, mas rola para o seu lado da
enorme cama. — Vá jogar seu tênis, eu vou fazer o meu café da manhã e
começar a pensar em um sistema de segurança decente, que impeça
vampiros de ficarem nos vendo dormir!
— Ainda não sei se é necessário — afirmo, me levantando antes que
a falta do seu calor seja perturbadora o suficiente a ponto de eu arrastá-la
para perto de novo, ignorando todos os meus compromissos. — Sabe que
eu posso lidar com qualquer ameaça — garanto.
Ainda mais se a vida dela estiver em perigo.
Não há limites de até onde eu iria para protegê-la.
— Então, umas câmeras vão filmar você acabando com a tal ameaça
e poderemos rever comendo pipoca depois. — Ela também se levanta e se
espreguiça, fazendo a blusa que está usando subir, revelando sua barriga
macia, que faz uma curva deliciosa no elástico do moletom.
Minhas presas descem com tanta força que acabam furando o lado de
dentro da minha boca.
Isso não acontecia desde que eu era um adolescente...
Engulo o gosto de sangue e tento controlar a minha pulsação sem que
ela perceba... Tarde demais. Ela me lança um olhar curioso e eu me apresso
a mudar de assunto. Qualquer assunto. Qualquer coisa que não sejam as
minhas reações dignas de um rapazote na puberdade.
— Vai ficar bem sozinha? Você pode usar o banheiro daqui, se quiser
— me pego oferecendo, sem pensar. — Talvez deixar suas roupas no meu
armário, para que não tenha que ficar atravessando o castelo sozinha.
Tenho sérias dúvidas se isso foi melhor do que a súbita explosão de
hormônios. Poderia jurar que era mais articulado do que isso. Mais esperto.
Com certeza, menos pueril.
— Você está sendo legal, Roman Prince? — Ergue uma sobrancelha
em deboche, minha oferta súbita e ridícula servindo para desviar sua
atenção.
— Apenas não acho que é seguro te deixar zanzando por aí. — Cruzo
os braços. — Até resolvermos essa ameaça, quero você à minha vista.
— Eu vou ao cabeleireiro hoje, retocar o meu loiro. — Ela joga seus
fios prateados e bagunçados para trás, fingindo uma adorável pose afetada.
— Vai comigo até lá também? E lavar a minha roupa mais tarde?
— Temos funcionários para fazer a lavanderia. — Eu a lembro. —
Funcionários que não deixam as peças espalhadas por aí, inclusive.
— As fadas não merecem lidar com calcinhas alheias! — protesta.
E, agora, estou pensando nela usando nada além de uma calcinha
vermelha e os seus saltos... Então, pueril passou a ser o meu modo padrão.
Nada preocupante.
— VOCÊS ESTÃO TRANSANDO AÍ EM CIMA? — Chris grita,
interrompendo nosso papo, e acho que é melhor eu me apressar, antes que
ele me irrite a ponto de treinar meu empalamento usando uma raquete de
tênis.
— Eu vou ficar bem — promete, com um sorriso, e faz um gesto
mandando que eu me apresse. — Vá logo, ou o intrometido vai voltar aqui
para cima.
— Ande com Céline então.
— Seu desejo é uma ordem — brinca, sem fazer ideia de quais são os
meus desejos de fato.
E de como todos envolvem minha boca em cada parte do seu corpo.

**

— Por favor, me diz que você tem alguma pista sobre o ataque? —
peço, enquanto nós escolhemos as nossas raquetes, entre as opções que
deixo em um armário da quadra.
Todas reforçadas, para quando exageramos um pouco no nosso
“entusiasmo”, ou quando nos enfiamos em um dos nossos argumentos
amigáveis, que sempre acabam com o que estiver à mão sendo atirado no
outro.
E depois dizem que não sei me divertir.
— Nenhuma pista — admite, com um suspiro. — Perguntei para
todos os nossos contatos de confiança, subornei quem precisava ser
subornado, ninguém sabe de nada.
— Talvez esteja na hora de eu me envolver — anuncio, inquieto, não
gostando nada desse silêncio.
Com o que estamos lidando?
— Não vai, não. — Joga uma bolinha na minha cabeça, me
obrigando a jogar outra com mais força de volta, desejando carregar uma
adaga comigo, assim como Amélie.
— Você não manda em mim, pirralho.
— Não mando, mas posso argumentar. — Recolhe do meu alcance
tudo que poderia ser atirado, antes de começar a provar o seu ponto. —
Primeiro, você não tem paciência para fazer perguntas discretas. Você
acabaria jogando nossos contatos do topo de prédios.
— Só fiz isso algumas vezes! — protesto.
— Segundo, você é um rei! Sair fazendo perguntas sobre ataques irá
atrair muito mais atenção do que deveria. — Odeio quando está certo.
Odeio tanto que cogito jogar minha própria raquete da sorte nele. —
Terceiro, uma humana sendo atacada no seu quintal é grave, ainda
precisamos manter o máximo de sigilo.
— Pare de agir como um adulto racional, está me assustando! —
reclamo e ele abre um enorme sorriso.
— Deixe comigo, por enquanto, e se concentre em digerir o pequeno
detalhe de ter encontrado sua aeternus, depois de tanto tempo. — Ergue as
sobrancelhas com malícia. — Com quem você está até dormindo de
conchinha, inclusive.
Vou ignorar essa parte.
— Sabe que não gosto de ficar de fora, de ter outros resolvendo os
meus problemas.
— Eu sei que não. — Começa a andar para a quadra, me obrigando a
acompanhá-lo. — Mas vou fazer o que for preciso. Mexerem com você é
como se tivessem mexido comigo.
— Está tentando me amolecer para que eu pegue leve?
— Você deveria pegar leve pela sua idade, velhote — provoca de
volta, correndo com sua velocidade sobrenatural para o seu lado da rede.
Vou destruir esse pirralho.
Faço o primeiro saque, a bola zumbindo no ar e não leva um segundo
para ela estar de volta, nosso ritmo tornando impossível qualquer um
acompanhar, além de nós dois.
— Ponto! — comemoro, depois de alguns minutos de rebatidas
perfeitas de ambos.
— Minha perna ainda não está boa, por culpa da sua namorada! —
reclama, o que só faz eu caprichar ainda mais no próximo saque.
Exatamente o que eu precisava para me distrair de laços, hormônios e
ameaças.
**
Humana

— Ele reclamou o jogo inteiro que acabaria perdendo porque você o


esfaqueou — Roman conta com um bufar impaciente, enquanto
caminhamos pelos corredores da Nobre Academia. — Então, por favor,
tente não o esfaquear em dias de tênis.
— Tecnicamente, esfaquear é para facas — provoco. — Eu não usei
uma faca.
— Humana... — rosna, em tom de aviso.
— Ok, nada de enfiar a Céline nele — concordo, com um suspiro
contrariado. Porque Christian Yang mereceu. Não sei qual é a tara desses
vampiros com ficar vendo os outros dormirem! — E só porque você pediu
“por favor”.
— Nem Céline, nem nenhuma outra adaga.
— Nem nenhuma outra adaga — repito, odiando como já me conhece
bem.
Sabendo exatamente o que eu estava pensando, ele me dá um olhar
que faz um dos alunos ao nosso lado se encolher todo, deixando escapar um
barulho apavorado, antes de fugir para a direção oposta.
— A culpa foi sua dessa vez — Roman se defende. — Falando sobre
adagas no meio das crianças.
— Uhum, claro.
Nem foi sua vibe psicótica.
Claro que não.
Entramos na sala e o silêncio sepulcral de sempre nos recepciona.
Faço a minha rotina de preparar sua aula, enquanto ele beberica o seu chá e
finge estudar as anotações que já sabe de cor.
Duas horas sobre antropologia física depois, os alunos estão saindo e
eu estou desmontando tudo, quando uma sombra para na minha frente. Ergo
o rosto para encontrar um dos estudantes sorrindo para mim, um jovem que
sempre me dá uns olhares demorados e nada sutis.
— Olá! — cumprimenta, empolgado. Deve ser uns dez anos mais
jovem do que eu, mas não se deixa intimidar por isso. Nem pelo fato de que
nunca trocamos uma palavra sequer.
— Olá — respondo, com simpatia. Ele merece pontos só por ter
coragem de se aproximar, com o meu cão de guarda parado apenas alguns
passos de distância. — Posso ajudá-lo?
— É senhorita Bernard, certo?
— Pode me chamar de Amélie — ofereço e o puxão no laço é tão
forte que quase preciso me segurar na mesa para não me desequilibrar.
“Não, ele não pode”, Roman resmunga, fingindo checar seu celular,
mas ouvindo cada palavra.
— Queria saber se tem mais uma cópia do texto que usamos na aula
passada? Vai parecer piada, mas juro que o meu cachorro comeu o meu —
amplia o seu sorriso jovial, zombeteiro, charmoso.
“Ele nem tem um cachorro!”, protesta o meu vampiro, indignado, sua
hostilidade começando a fervilhar.
— Claro!
Ignoro a voz que está imitando o pobre rapaz na minha mente (“Meu
cachorro mi-mi-mi”) e procuro a folha em questão na minha pasta, com
dúzias de materiais diferentes, até achar a certa.
— Aqui. — Eu entrego o sulfite com o que precisa e seu rosto se
ilumina como se eu tivesse lhe dado um pedaço de bolo de cenoura com
cobertura de chocolate.
É bonitinho, vai.
— Obrigado, você é uma salva-vidas.
“Ela não vai poder te salvar quando eu colocar minhas mãos em você,
rapaz”, continua Roman, que abandonou o fingimento do celular e agora
está com a sua atenção toda em nós.
— Imagina. Posso te ajudar com algo mais? — ofereço, querendo
tirá-lo daqui logo, antes que meu Lestat perca a paciência de vez.
“Pode ajudar cuidando do cachorro imaginário dele que vai ficar
órfão quando eu acabar”.
Preciso cobrir a mão com a boca, para esconder o sorriso ridículo que
luta para tomar conta do meu rosto.
— Eu e uns outros alunos vamos beber algo no bar da Avenida
Principal hoje, se quiser relaxar depois do trabalho...
Não preciso nem ouvir a voz na minha cabeça.
Depois dessa, Totó vai ficar órfão com certeza.
Até que ele esperou bastante.
No seu lugar, eu não teria deixado uma aluna sequer se aproximar.
Dez passos de distância no mínimo, por favor, e ninguém se machuca,
obrigada.
Roman se junta a nós em uma velocidade nada natural e se posta ao
meu lado, cruzando os braços. Endireita sua coluna, se esticando em toda a
sua altura, em toda a sua enorme constituição intimidante.
O pobre garoto estremece.
— A senhorita Bernard está no seu ambiente de trabalho, no seu
horário de trabalho e o seu assédio é totalmente inapropriado e
desrespeitoso — afirma, com a voz gélida o suficiente para que o rapaz
questione todas as suas escolhas de vida.
Não tem como as pessoas acharem que Roman é humano quando
seus olhos brilham assim, com as íris vermelhas lutando para vir à tona.
Elas têm que reconhecer o predador que espreita por trás da fachada
perfeitamente composta, não é possível.
— Eu... — O jovem começa, mas perde as palavras, olhando para
mim desesperado, em busca de ajuda.
— Está tudo bem — tranquilizo-o. — Você pode ir agora.
Ele dá alguns passos para trás, como se tivesse medo de nos dar as
costas. Apenas quando já está perto da porta, se vira e sai correndo.
Alguém vai ter pesadelos essa noite.
Agora que estamos sozinhos, uma dose de calmaria chega até mim,
lenta e reconfortante. Porque esse laço tem um senso de humor sádico.
— Ok, vá em frente. — Roman ergue o queixo para me enfrentar,
ainda parado bem próximo a mim. — Pode reclamar pela minha “ceninha”.
— Não.
— Não?
— Não.
— Não vai dizer que eu aterrorizo crianças?
— Não — repito.
— Por que não? — questiona, me encarando como se eu não
estivesse fazendo o menor sentido para ele, seus olhos cravados no meu
rosto, sua atenção perfurante.
— Porque estou fazendo o que me pediu e me colocando no seu lugar
— afirmo, na maior calma. — Se a ruiva da terceira fileira te chamar para
sair, como sei que ela gostaria de fazer, a Céline vai lhe fazer uma visita.
— Você trouxe a Céline para cá?
Eu a tiro da minha bota com um floreio rápido e antes que ele
perceba, colo nossos corpos, frente a frente, respiração com respiração, a
ponta da lâmina na sua barriga, afundada apenas o suficiente para que ele
sinta a pressão, se sinta dominado.
Agora, suas íris ficam vermelhas de verdade.
E não acho que é porque quer me matar.
É uma fome muito mais... lasciva.
Droga.
— Diga que você não sairia com a ruiva da terceira fileira —
murmuro, bem próxima a ele, nossos lábios quase se tocando. — Diga.
— Eu nem percebi que há uma ruiva na terceira fileira — sussurra de
volta e vejo sua mão se mover. Primeiro tocando a lâmina, deslizando até
alcançar o meu braço, meu ombro, até chegar ao meu pescoço e se enrolar
ali. — Diga que não sairia com aquele moleque, mesmo se eu não estivesse
aqui.
Será que suas presas estão abaixadas?
Eu sentiria se o beijasse?
Ele aperta o meu pescoço de leve, eu me colo mais a ele, me
derretendo contra o seu corpo. Sem que eu perceba o que estou fazendo,
meu rosto tomba para o lado, lhe dando mais acesso. Fecho os olhos,
bêbada pela sua proximidade, seu toque, seu cheiro, por tudo que está
chegando até mim pelo laço...
Ofego alto quando sinto algo arranhando a pele dali, duas pontas
finas que me arrepiam do jeito mais delicioso, e meu coração bate rápido
com a expectativa.
Me morda.
Me beije.
Me reivindique.
— Responda — ordena, no meu ouvido, com a voz tão rouca que
nem parece real mais.
O predador assumiu.
— Eu não sairia com ele. — Consigo dizer, com a voz ofegante,
amando cada segundo desse nosso jogo perigoso.
A sensação de algo me arranhando só não é melhor do que a prova da
sua excitação contra a minha barriga, testemunha de que está tão afetado
quanto eu.
Que ele me quer tanto quanto eu o quero...
E eu o quero tanto...
Tanto...
Aqui, agora...
Tudo...
Toda...
— NÃO! — Dou um passo para trás, o peso do que estava
acontecendo, finalmente, conseguindo atingir meu lado racional,
conseguindo se sobrepor aos efeitos do aeternus.
Meus malditos traumas são páreo até para a magia mais forte que
existe...
Não ouso encará-lo.
Nem precisaria.
Estou sentindo o seu tormento.
Está na hora de reafirmar os nossos limites, para o bem de nós dois.
O laço começa a se revirar dentro de mim, como se adivinhasse o que
estou prestes a fazer e não estivesse nada feliz comigo por isso.
Eu também não estou, querido.
Volto a encará-lo, encontrando sua expressão totalmente neutra, a
fachada composta de quem sempre foi mestre em esconder suas emoções.
Eu te vejo, Roman Prince.
Assim como você me vê.
— Sabe por que eu a fiz na mão esquerda? — Mostro a tatuagem do
meu pulso e o vejo travar ainda mais o seu maxilar, sentindo o rumo que
esta conversa irá tomar.
— Porque é a mão que um noivo teria que segurar para colocar a
aliança — afirma, não pergunta, me decifrando como se eu fosse um livro
que já leu várias vezes, que tem os capítulos desvendados e decorados.
— Mesmo que eu decida cometer uma burrada de novo, uma parte de
mim sempre será minha. E, acredite, eu não tenho o menor interesse em
cometer o mesmo erro tão cedo — afirmo, não sei se mais para mim, ou
para ele. — Assim como você não é apenas Roman. Você é um soberano,
você tem o peso de toda uma nação nos seus ombros. Isso aqui... — Faço
um gesto, mostrando nós dois. — Não pode acontecer. Sabe que não pode.
— Você é uma humana. — Esfrega o rosto, deixando escapar um
suspiro exasperado, como se tivesse se esquecido desse pequeno detalhe. —
É claro que nada pode acontecer.
— Foi apenas o aeternus falando. — Tento racionalizar. — Não
precisamos transformar isso em um problema. Nossa parceria funciona bem
como está.
— Foi apenas o aeternus. — Ergue o queixo, decidido, com sua
teimosia indefectível, nem um pingo de mágoa à vista na sua expressão
altiva. — Não será um problema, podemos encerrar essa conversa ridícula.
Dá as costas para mim e sai andando, sem me esperar.
Decido lhe dar uns minutos sozinho, porque também preciso de um
tempo.
Espero que não vá longe. Eu, ele e o laço já estamos irritados o
suficiente, não precisamos acrescentar distância a essa equação maluca.
Assim que encosto na parede, tentando recuperar meu fôlego, meu
celular novo começa a tocar. Tiro o aparelho do bolso do blazer,
estranhando que alguém esteja tentando falar comigo.
— Alô? — atendo, meio incerta.
— Amélie, é a Lila! — Uma voz conhecida chega até mim,
informando no seu tom eficiente, e eu relaxo. — Tenho que fazer uma
meniscectomia agora, mas queria te convidar para jantar comigo hoje. Só
nós duas!
— Noite das garotas? — questiono, me animando.
— Exatamente! Preciso aproveitar agora que tenho uma amiga que
sabe sobre o lado sangrento da minha vida.
— Uma taça de vinho e a chance de reclamar do meu vampiro é tudo
que eu preciso — admito, com honestidade.
— Perfeito. — Ela ri. — Te pego às 19h, ok?
— Combinado.
Nos despedimos e encerramos a ligação.
— Para o cabeleireiro agora? — pergunta, voltando a se materializar
ao meu lado, vindo sabe-se lá de onde. Juro que dia desses vou descobrir
que também pode ficar invisível.
— Você não vai comigo! — aviso, sem nem conseguir imaginar sua
figura intimidante ocupando uma das cadeiras do salão de bairro que
frequento.
— Já te disse, até pegarmos quem está por trás disso, você não vai
sair das minhas vistas.
Ok.
Então, nada de contar para ele, por enquanto, sobre a minha noite
com Lila.
— Eu vou te deixar no carro! — ameaço. — Leve um dos seus livros
enormes para se entreter.
— Não se esqueça de deixar uma fresta do vidro aberta, como se eu
fosse o seu pinscher.
— Nada de comer os meus papéis da faculdade, Totó.
Ele rosna e eu minto para mim mesma que voltamos ao normal, que
os últimos minutos nunca aconteceram, que estar nos seus braços não
pareceu a coisa mais certa que já vivi.
Que o pedaço de pele onde ele tocou não está vibrando até agora...

**

— Roman! — chamo, assim que saio do nosso banheiro


compartilhado, sentindo que ele está próximo, apesar de não estar no nosso
quarto.
— Na biblioteca — responde de volta e eu sigo para lá, meus saltos
ecoando alto no corredor cavernoso.
Empurro a pesada porta de madeira que estava entreaberta e entro no
ambiente que é o sonho de qualquer um que goste de ler. Prateleiras e mais
prateleiras, que vão do chão ao teto, cobertas de títulos. Poltronas macias.
Uma lareira crepitando. Aquela luz aconchegante. Paraíso.
Roman segue mergulhado nas páginas que está lendo, girando uma
taça de vinho nos dedos longos, e tem algo ridiculamente sexy em um
homem com um livro na mão.
— Só para avisar que estou saindo — digo, me esforçando para
manter a minha voz neutra, apesar da enxurrada de reações que vê-lo está
me causando.
É como se o laço estivesse me puxando, fisicamente, para ele. Bastou
ter um pequeno gostinho de Roman para ficar sedento por mais, para se
tornar um viciado.
— Saindo? — Finalmente levanta o rosto do volume encadernado nas
suas mãos e seus olhos ficam vermelhos no mesmo segundo.
Eles se incendeiam ao me ver.
Começa a inspeção pelo meu cabelo recém-retocado e escovado,
passa para a minha maquiagem elaborada com batom vermelho-sangue,
desce para o meu minivestido preto, com um decote generoso e que acaba
no topo das minhas coxas, chegando a uma bota de cano alto que completa
o visual.
Estava me sentindo linda antes, mas com a forma como está me
olhando agora... Eu me sinto irresistível.
A emoção que vejo no seu rosto? Não é culpa de aeternus finis
nenhum.
É ele.
Homem.
Desejo puro e cru.
Antes de falar qualquer coisa, ele se move na sua velocidade
sobrenatural e se posta atrás de mim, sua mão se enrolando no meu
pescoço, seus lábios no meu ouvido.
— Humana... — sussurra e seus dedos se apertam, o arranhão
familiar de duas pontas finas acariciando a minha pele. — Você está uma
tentação.
Uma tentação.
Céus.
Eu conseguiria lidar com um “bonita”.
Um “linda” me faria ofegar.
Mas “uma tentação”?
Eu sou obrigada a me recostar contra o seu peito, a deixar minha
cabeça deitar no seu ombro, expondo o meu pescoço.
Sua resposta é me puxar mais contra o seu corpo, seu nariz passeando
pela minha mandíbula, parando no ponto exato onde a minha pulsação
vibra.
— Não me diga que vai no tal bar com os alunos — rosna no meu
ouvido, mordiscando ali e arrancando um gemido baixo de mim.
— Vou apenas jantar com Lila. — Consigo falar, minha voz saindo
ofegante. — E não ouse dizer uma palavra sobre isso — afirmo, antes que
pense em protestar.
— Eu não vou me desculpar por tentar te proteger. — Seu braço me
aperta, sua voz ficando mais rouca a cada segundo. — Não sei se lembra,
mas alguém tentou te matar.
— Eu não vou parar de viver por isso.
— E se alguém tentar de novo?
— Estaremos em um restaurante lotado — argumento, ao mesmo
tempo que encontro sua mão livre e a coloco contra a minha barriga, sem
pensar, apenas querendo mais do seu toque.
Precisando de mais.
— Agora isso não faz parte do que “não pode acontecer”? —
provoca, usando as minhas palavras contra mim, em um tom tão sensual
que me deixa ronronando. Principalmente, quando começa a deslizar seus
dedos para baixo, em um movimento lento e deliberado.
Nem respondo, apenas aproveito a sensação.
Descendo...
Descendo...
Tocando a barra do tecido, entrando por baixo, alcançando a minha
pele...
— Amélie! — Lila chama do andar de baixo e nós nos
desvencilhamos de um pulo, como se tivéssemos sido pegos no flagra.
Em nome de tudo que é mais sagrado!
O que nós estávamos fazendo?
Sinto o meu rosto queimar e me apresso a descer a escadaria, antes
que ela venha atrás de nós. E porque quero fugir também, óbvio.
Eu mesma digo que precisamos de limites e eu mesma quebro os
limites. Que bonito.
Desço os sessenta e três degraus correndo, apesar dos meus saltos, e
solto um bufar irritado ao lembrar da sua voz falando que iria acabar
“abrindo a cabeça”. Me obrigo a desacelerar o ritmo até encontrá-la parada
no hall, com Chris ao seu lado, parecendo tão feliz quanto Roman.
— É até estranho ouvir meu nome, meu cérebro já está começando a
achar que eu chamo “humana”. — Tento brincar para disfarçar e ela nos dá
um olhar desconfiado, enquanto Chris dá um grande sorriso zombeteiro,
esquecendo sua irritação por alguns segundos.
— Vocês estavam transando de novo! — ele acusa e eu reviro os
olhos.
— Acho que essa é a nossa deixa para ir. — Lila me salva de ter que
responder. Juro, a mulher veio para esse mundo só para me salvar.
— Vemos vocês mais tarde! — Acenamos despedidas para os dois
vampiros e eu caminho para fora, decidida a aproveitar a minha noite.
É isso.
Não vou nem me lembrar de quem é Roman Prince.
Vocês imaginam Roman Prince fazendo guerra de farinha? E assando um
bolo?
Roman

— Nós vamos fazer isso mesmo? — Chris me pergunta, do topo de


um dos prédios que escolhemos para nos esconder. Alto o suficiente para
manter nossa discrição, mas baixo o suficiente para que ainda possamos
manter um olho nelas.
— Você tem uma sugestão melhor? — questiono de volta, mantendo
meus olhos na avenida movimentada onde a Ferrari dele está parada em um
semáforo, com Lila ao volante.
— Sei que eu deveria dizer algo como “esperarmos em casa até elas
voltarem”, mas tenho vontade de vomitar só de pensar nisso. — Suspira. —
Nós vamos apenas nos certificar de que elas estejam em segurança, não é?
— Exato. — Pulo para o próximo telhado, com ele me seguindo de
perto, assim que o carro volta a acelerar. — Se alguém inventar de fazer
algo contra ela, vou sentir e estar perto o suficiente para intervir. É um
plano perfeitamente racional — reafirmo, mais para mim, do que para ele.
— E vai saber se tiver algo errado com Lila também, certo? — pede,
esperançoso.
— Eu sinto tudo, Chris — repito, enquanto voamos para o próximo,
que é um pouco mais alto, usando a escuridão como nossa parceira.
Nem consigo me preocupar com ser visto agora.
Podemos alegar ser dois malucos fazendo parkour.
Humanos fazem coisas bem mais esquisitas.
— Sobre essa coisa de sentir... Estava pensando como será quando eu
encontrar a minha aeternus — ele diz, quando paramos no próximo
semáforo. — Como acha que será a minha relação com Lila?
— Vocês são amigos, continuarão sendo amigos. — Tento consolá-lo,
por mais que eu saiba não ser simples assim. É difícil de explicar o quanto a
conexão do laço é forte. Se ele encontrar sua aeternus, não acho que ainda
conseguirão passar tanto tempo juntos. Ser amigos, sim. Mas passar
grudados cada momento que não estejam no trabalho, como agora? Difícil.
O conceito de não ter o “combo Lila e Chris” é estranho até para
mim, nem imagino como será para os dois.
— Amigos — repete a palavra, com uma expressão que não consigo
decifrar, como se o termo o ofendesse de alguma forma.
— Você queria ser mais do que amigo? — questiono, com
curiosidade, pulando para o telhado do próprio restaurante, uma construção
de três andares, que serve uma ótima comida italiana.
— Eu só comecei a me perguntar... — comenta, seu foco nas
mulheres que estão descendo do carro, atraindo os olhares dos manobristas
e dos outros clientes. Lindas, de fato. — Se você pode ter uma aeternus
humana, talvez eu possa também.
— Mas já teria acontecido, não?! — Me sinto na responsabilidade de
ser a sua voz da razão.
— Eu não sei... — Suspira, se sentando no chão sujo sem se importar,
assim que elas desaparecem porta adentro. — Mas não consigo me
imaginar sendo de outra pessoa.
Eu me recuso a sentar neste antro de sujeira com ele, então puxo
minhas calças um pouco e me agacho na sua frente.
— Pode ser que nunca encontre a sua, pode ser que Lila seja o seu
destino...
— E daqui algumas décadas ela morre e eu fico sozinho? — indaga,
cheio de medo nos olhos, e eu nem ouso me colocar no seu lugar, para não
acabar no mesmo estado.
— Todos tinham certeza de que eu nunca encontraria a minha e olha
eu aqui, seguindo-a como um cachorrinho. — Abro os braços, mostrando a
situação ridícula onde nos enfiamos. — E, posso te prometer, se um dia
descobrirmos que vocês dois têm alguma chance, qualquer chance, eu vou
ajudar.
Ele acena em concordância, escolhendo acreditar nas minhas
palavras. Talvez precise acreditar nelas.
“ROMAN PRINCE!”, a voz da humana grita dentro da minha mente,
do nada, e eu me encolho um pouco.
Estudo o laço e não encontro medo, nem perigo, apenas irritação,
então me mantenho calado, tentando não entregar a minha presença.
“Roman Prince, o laço está relativamente calmo, então você só pode
estar aqui em algum lugar!”.
— Elas sabem que nós as seguimos — digo para Chris, que me lança
um olhar assustado.
— Como? — questiona, sem entender.
— O laço não reclamou pela distância — explico e sua expressão se
suaviza, voltando a assumir a diversão de sempre.
— Deixa eu adivinhar... — Finge pensar um pouco. — Elas não estão
felizes?
“Você é impossível! IMPOSSÍVEL!”.
— Lila eu não sei, a humana está furiosa.
Ele ri.
— Ela é perfeita para você.
A naturalidade com que diz isso me pega de surpresa.
— O que quer dizer?
— Meu velho amigo, um dia você vai perceber o que até os seus
súditos já estão percebendo. — Me dá uns tapinhas condescendentes nas
costas, que eu não gosto nada.
— Que seria... — Faço um gesto, pedindo que continue, depois que
coloco um passo de distância entre nós.
— Que seria algo que terá de entender sozinho, porque se eu disser,
vai ficar todo irritado, me empurrar daqui de cima e precisará apagar um
monte de mentes humanas que viram um homem voando pelo centro de
Ilaria... — Balança a cabeça, fingindo pesar. — Sabe que você tem uma
bela veia dramática.
— Eu não sou dramático — resmungo, voltando a me erguer.
— Você me jogou do topo da Torre Eiffel porque eu estava te
irritando — recorda, se postando ao meu lado, observando o horizonte da
cidade comigo. — E do topo do Empire State, só porque eu queria ir
naquele karaokê no Soho.
— Você passou meia hora cantando um rap ridículo de “vamos,
vamos, vamos”.
— E, no fim das contas, nós fomos!
— Para você ver a que ponto eu chego para te fazer calar a boca.
— Ou a que ponto você chega para demonstrar seu amor por mim. —
Ele joga um braço por cima dos meus ombros e dá um beijo na minha
bochecha.
“Lila mandou dizer que vai ficar muito brava se você jogar Chris do
telhado”, a voz da humana chega à minha mente e eu suspiro, recolhendo a
mão que estava prestes a empurrá-lo pelo beiral.
E pensar que acreditei que a maior tortura da minha noite seria passar
mais algumas horas dividindo uma cama com ela...

**
Humana
Entro no quarto e o encontro deitado, com um livro aberto no colo, a
expressão perfeitamente neutra no rosto ridículo.
Homem ridículo, com esses livros ridículos, lendo por aí sendo todo
ridiculamente sexy.
Pelo menos, está sempre vestido. Se aparecer lendo na minha frente,
sem camisa, eu não respondo por mim.
— Vai mesmo fingir que esteve aqui a noite toda? — Cruzo os braços
para enfrentá-lo e ele mantém sua expressão neutra.
— Não sei do que está falando.
NEM PISCA.
Safado.
— Só espero que não tenha ouvido nossa conversa. — Aponto um
dedo em ameaça, antes de ir para o seu closet, em busca do meu pijama.
Sim, eu mudei todas as minhas coisas para cá.
Não, não vou pensar sobre isso.
— Hipoteticamente, se eu estivesse lá, não daria para ouvir o que
conversaram! — grita de volta e eu reviro os olhos, seguindo para o
banheiro, para me trocar e tirar a maquiagem.
Hipoteticamente, sei.
Não vou admitir, nem sob tortura, mas saber que ele estava por perto
me ajudou a aproveitar ainda mais a noite deliciosa com Lila. Além do laço
estar mais calmo, não tive que me preocupar com ataques surpresa. Pude
apenas comer uma massa maravilhosa, na companhia de uma mulher
incrível que ficarei muito feliz de chamar de amiga.
E, dessa vez, aprendi a minha lição. Nada de me enfiar em um
relacionamento e cortar os laços com as minhas amizades, como acabei
fazendo antes.
Quando penso em todas as burradas...
Não.
Como diria minha avó: “não adianta chorar pelo leite derramado”.
Nem relacionamento vou ter.
Ponto final.
Me apresso a terminar de escovar os dentes, querendo ir para cama
logo. Amanhã é sábado, um dia especial para mim, e quero estar
descansada, relaxada.
Tenho que fazer tudo que quero, antes de irmos para a exposição de
“Arte Vampira”, onde sua majestade deverá fazer uma aparição. Torcendo,
desde já, para que seja menos dramático do que aquele baile que fomos,
amém.
Volto para o quarto e encontro as luzes já apagadas, Roman na pose
assustadora de estátua que usa para dormir. Ocupo o meu lado da cama e
ligo a TV, colocando em uma das minhas séries, antes de me aconchegar
nos travesseiros macios.
Que não parecem nada certos essa noite.
Viro para um lado, para o outro, tento afofá-los, mas algo não está
encaixando.
Depois de uma boa meia hora de incômodo, meu vampiro dá um
suspiro de impaciência e me puxa de encontro ao seu peito, sem falar nada,
me movendo até que eu esteja com a cabeça na curva do seu pescoço, na
pose exata que eu gosto.
Eu apago em segundos.

**

— O que você está fazendo? — pergunta Roman, entrando na


cozinha depois da sua corrida, me encontrando cercada por ainda mais
bagunça do que o normal.
— Um bolo! — anuncio feliz, pegando os ingredientes do armário,
incluindo um pacote de pequenas velas coloridas que coloquei na lista de
compras que as fadas deixam na geladeira.
— Parece um bolo de aniversário. — Cruza os braços, me dando um
olhar desconfiado.
Eu aproveito a água da chaleira elétrica e coloco em uma xícara para
ele, para me distrair de quão delicioso fica todo suado, com a camiseta
grudada no seu torso definido.
Uma espiadinha.
Apenas uma espiadinha para ver o que está escondendo ali.
Não mataria ninguém, certo?
— Porque é um bolo de aniversário — digo, simplesmente, afastando
todos os outros pensamentos, pegando sua caixa com dezenas de tipos de
matos diferentes, que para mim parecem todos iguais. Nada mais broxante
para distrair o laço do que chás.
— De quem? — questiona e eu faço uma careta. Estava torcendo para
que não fosse tão perceptivo dessa vez... Doce ilusão.
— Meu — confesso e sinto o seu choque pelo laço, misturado com
uma emoção nada feliz. Nada, nada, nada feliz.
Seu silêncio é tão gritante que nem ouso encará-lo.
Roman está prestes a perder a linha.
— Hoje é seu aniversário? — pergunta, com a voz seca, e sou
obrigada a voltar a encará-lo, a enfrentar sua expressão gélida.
— Parabéns para mim? — brinco, para tentar amaciá-lo um pouco.
Não adianta.
— Por que não me contou? — pronuncia cada palavra pausadamente,
pontuando com uma dose extra de irritação irritada.
— Ahn, por que eu contaria? — Mal acabo de falar e ele está na
minha frente, segurando o meu rosto com as duas mãos, as íris totalmente
vermelhas.
— Eu quero saber tudo, humana.
— Por quê? — insisto e sua mandíbula trava.
— É sério?
— Muito sério — teimo. — Eu posso fazer o meu próprio bolo,
vampirão.
— Nunca disse que não podia! Mas, inferno, você não precisa fazer
tudo sozinha! — explode, dando um passo para mais perto, seu toque
deslizando para o meu pescoço, apertando de leve ali. — Você vai me
contar quando for algo especial para você. E vai me deixar te dar um
maldito bolo. Estamos entendidos?
— Devo esperar ursinhos, flores e chocolates também?
— Consigo ser mais criativo que isso — rosna. — Pare de tentar
desconversar e prometa, Amélie.
Ugh.
Ele usar o meu nome é golpe baixo.
— Eu... — suspiro. — Prometo.
— Ótimo. — Dá um passo para trás, me fazendo sentir falta das suas
mãos no mesmo instante. Porque sou uma verdadeira viciada, prazer.
— Mas tem certeza de que quer fazer um bolo? — indago, sem
acreditar muito. E tentando controlar a vontade de me abanar, sentindo um
calor súbito que talvez, talveeeez, tenha a ver com esse homem enorme me
tocando. — Não se esqueça que nós temos aquela exposição hoje.
— Se preferir, posso pedir para entregarem — oferece e sei que está
tentando esconder suas reações de mim também, o laço quieto demais para
ser normal. — Aposto que Oliver aceitaria um pedido de última hora.
Oliver...
Não é possível que esteja falando de...
— Oliver Marble?
— Sim.
— O chef estrelado do Hell’s Pepper?
— Sim.
— Ele faria um bolo para mim?
— Se eu pedisse, sim.
Balanço a cabeça.
Os benefícios da vida de um rei.
— Pode ser um bolo seu mesmo — concordo, porque algo feito por
ele teria mais valor até do que um chique, feito por alguém com trinta
estrelas Michelin. — Desde que você saiba como fazer.
— Já disse, há poucas coisas que não sou capaz de realizar. — Faz a
sua melhor expressão arrogante.
Aquela que eu adoro apagar do seu rosto.
— Ser simpático, entender referências de Hotel Transilvânia, o
conceito de brincadeira — continuo enumerando, até que algo atinge a
minha bochecha.
Olho para baixo e vejo a minha camiseta toda branca.
Espera aí.
Roman Prince jogou farinha em mim?
— Você acabou de dizer que eu não entendo o conceito de
brincadeira. — Seus lábios se erguem de um jeito debochado, quase um
sorriso verdadeiro.
Meu coração se aperta tanto que eu sinto como se o laço tivesse
acabado de se cravar ainda mais fundo, suas raízes se embrenhando em
cada canto que faltava. Se antes era feito de uma suave fita de cetim, agora
é um nó de corda náutica, feito para resistir a qualquer maremoto.
Apavorada com essa constatação, faço a única coisa madura
possível...
— Você mesmo dizia que nunca brincava, ó poderoso soberano. —
Eu pego um punhado de pó branco e jogo na sua cara, desviando do seu
próximo ataque, conseguindo atingir seu cabelo preto perfeito.
— Sabe que eu tenho o poder de declarar guerras! — Ele me enlaça
pela cintura e me segura para esfregar mais pelo meu rosto, comigo
gargalhando o tempo todo.
Antes que eu perceba, estou fugindo pelo castelo, com ele nos meus
calcanhares. Finge que não tem a sua velocidade sobrenatural, me deixando
ter uma boa dianteira, antes de me alcançar.
Acabo tropeçando em uma das muitas tapeçarias do hall e ele age
rápido para evitar a minha queda, voando para me segurar. Me prende nos
seus braços fortes, nos deixando mais colados do que jamais estivemos,
planando a alguns centímetros do chão.
Prendo a respiração ao sentir o peso do seu olhar tão próximo a mim,
o vermelho que está se tornando familiar, a temperatura gelada do seu corpo
que, de alguma forma, eu acho aconchegante.
Antes que eu possa decidir o que fazer, antes de aceitar que quero
tocá-lo mais do que tudo, ele toma a decisão por nós dois e se endireita,
voltando a apoiar os meus pés no chão, nos dando uma boa distância.
— Vá se limpar, eu termino o bolo — diz com a sua voz rouca,
evitando os meus olhos, a diversão esquecida.
— Tem certeza de que sabe o que está fazendo? — Ao invés de
responder, me mostra uma das suas melhores caretas de impaciência. —
Tudo bem, tudo bem, não está mais aqui quem falou — concordo, ajeitando
o vestido simples que estou usando de volta ao lugar. — Tem de reconhecer
que não é fácil imaginar o infame Roman Prince como o tipo que faz bolos
para pessoas...
— Para pessoas, não. — Dá as costas para mim, seguindo de volta
para a cozinha com sua postura tão altiva, como se nada tivesse acontecido.
— Apenas para você, humana.
E foi assim que o laço desmaiou de vez.

**

“O que é arte vampira, inclusive?”, pergunto, assim que todos se


levantam das suas reverências sincronizadas pelo salão onde está sendo a
exposição. “Não me diga que são feitas com... sangue”.
“São apenas artes feitas por vampiros”, bufa, exasperado, parando
para examinar uma tela abstrata que, com certeza, deve ter sido pintada com
sangue, retratando o que se parece muito com um enforcamento.
Adorável.
Quem diria que eu passaria o meu aniversário acompanhando a
minha alma gêmea vampira, em uma exposição onde a peça principal é uma
grande estátua de presas.
Nem a minha avó diria!
As voltas que a vida dá.
Eu me mantenho ao seu lado, começando a me acostumar com o peso
do meu manto de scriba nos ombros, me divertindo em parecer tão
ameaçadora quanto ele, enquanto deslizamos de peça para peça, observando
cada uma.
“Essa parece um dos empalamentos de vovô Prince”, opino sobre
uma aquarela particularmente gráfica e poderia jurar que ele teve que
encobrir sua risada com uma crise de tosse.
Vou arruinar sua reputação de malvadão se continuar assim.
Adoro.
Lorde Hermes, de quem eu ainda não gosto nada, logo pede
autorização para se aproximar. Ao seu lado, está a mulher do Centro de
Formação de jovens vampiros. Eles começam a conversar sobre alguém
chamado Matteo, um jovem que acabou de perder os pais e, sem perceber,
acabo me afastando um pouco do grupo, ainda atraída pelas obras de arte
assustadoras.
— Boa noite, Lady Scriba. — Uma voz masculina diz às minhas
costas e eu me viro de súbito, assustada, já sabendo quem vou encontrar.
Amadeo.
Seu sorriso debochado, ao contrário do de Chris, tem uma nota de
malícia, de algo que faz os pelos da minha nuca se arrepiarem.
Ah, eu não gosto nada desse cara.
Tudo que tem de bonito, tem de assustador.
— Estava boa até agora — respondo, mantendo meu queixo erguido,
e ele ri, parecendo deliciado.
— Você tem um ótimo senso de humor. — Brilha seus olhos
vermelhos de um jeito que eu aposto que é muito charmoso para quem não
o conhece.
Não vai funcionar aqui, bonitão.
— Oh, desculpe se pareceu que eu estava brincando. — Finjo sorrir
com simpatia. — Eu não estava.
— Você deveria me dar uma chance... — Estende a mão, em um
convite óbvio para que eu enrole meu braço ao seu. — Poderia se
surpreender, Amélie.
— Encoste um dedo nela e eu arranco a sua mão — Roman rosna, se
materializando ao nosso lado.
“Eu não sou boba, não iria tocar esse psicopata!”, tento dizer, mas
está muito ocupado com toda sua fúria para me ouvir.
— Nosso rei ameaçando um súdito? — Amadeo faz um barulho de
reprovação, sua expressão cínica me dando vontade de tirar Céline do cinto
e apresentar os dois. — Imagine o que achariam se isso vazasse?
Finge não estar afetado, mas recolhe sua mão, mudando-a para uma
pose de rendição, sem nunca abandonar seu semblante sorridente-maníaco.
— Achariam que você deve mais respeito a mim — responde Roman,
me deixando ver suas presas à mostra. — Fique longe e não teremos
problemas, criança.
— E me privar da sua adorável companhia? Que tristeza, priminho.
— Balança a cabeça, com um pesar exagerado, e estou começando a
suspeitar que não vai sair daqui com a sua cabeça grudada ao pescoço. —
Eu apenas gostaria de oferecer uma bebida para a sua adorável scriba.
— Não, obrigada — digo, deixando minha mão esbarrar de leve na
do meu vampiro, para tentar acalmá-lo. — E posso responder por mim
mesma, senhor.
— Então, venha até mim “por si mesma” um dia — oferece, sem um
pingo de senso de autopreservação. — Adoraria te conhecer longe do seu...
— Cuidado com suas próximas palavras — aviso. Eu usaria o termo
“cão de guarda”, mas sou a única que pode dizer algo assim e sair viva para
contar a história.
— Longe do seu chefe! — completa e logo faz uma reverência, indo
se juntar a Lady Evile, que abre um sorriso enorme ao vê-lo e se apressa a
ajeitar a gravata do homem.
Os dois são próximos?
Não sei se gosto disso.
Mas tenho problemas mais urgentes.
Roman segue possuído, então me coloco entre os dois, só para
garantir que o banho de sangue vá ficar para outra noite.
— Ainda achamos que foi ele? — questiono, falando o mais baixo
que consigo, para não sermos ouvidos. Infelizmente, dessa vez, não
podemos usar nosso canal mental e só ficar nos encarando, sem dizer nada.
Despertaria ainda mais suspeitas.
— Não tenho certeza, mas essa mente limpa artificialmente não deve
ser um bom sinal...
— Temos que ficar mais? — Estou com uma sensação estranha de
que todos estão com os olhos em nós, cochichando sobre nós.
Talvez porque estejam.
— Não. — Ele faz um gesto, pedindo para que eu passe na sua frente,
o acompanhando para a saída.
Ufa.
Deixamos para trás um rastro de reverências e fofocas e, juro, nunca
vi um povo para amar um drama tanto quanto esses vampiros.
“Além do mais, temos algo a fazer hoje ainda”, afirma e eu preciso
me esforçar para esconder minha expressão de surpresa.
“Nós temos?”.
“Sim, nós temos”.
Aniversários são tão mais legais no mundo dos vampiros.
Roman

— Antes de subirmos... — Eu mudo o peso de um pé para o outro,


parecendo muito menos o rei que eu deveria ser e muito mais ansioso do
que gostaria.
Tome tento, Roman Prince.
Você consegue ter mais controle.
E consegue ser menos patético.
Bem menos, por favor.
— Ah, isso vai ser bom — ela debocha, percebendo o meu
nervosismo, e eu lhe lanço um olhar irritado.
— Não faça eu me arrepender antes mesmo de começar — aviso,
sério.
— Ok, ok. — Se esforça para apagar a diversão do seu rosto,
plantando uma expressão séria na sua linda face. — Pronta para me
comportar. Vá em frente.
— Eu pensei em um presente, algo improvisado, porque você é uma
humana irritante que não faz o que deveria... — Deixo a minha exasperação
bem clara, faço questão. — Como avisar aos outros sobre o seu maldito
aniversário.
— Blá-blá-blá, qual é o presente?
Sempre, sempre irritante.
— Vem comigo — chamo, seguindo primeiro para a cozinha.
Ela apenas observa, enquanto corto um pedaço do bolo que preparei
mais cedo — um que ninguém deve saber que refiz algumas vezes até ficar
como eu gostaria —, colocando em uma pequena vasilha que caberá
perfeitamente no bolso do meu paletó.
— Posso aproveitar para tirar a minha capa? — pergunta, saltitando
ao meu redor, sem um pingo de paciência.
— Creio que seja melhor, de fato — concordo, porque o que vamos
fazer já é perigoso o suficiente sem a dose extra de tecido ao seu redor.
— Ainda bem, esse negócio me irrita. — Ela começa a lutar com o
fecho e eu logo dou um passo para frente, para intervir, antes que estrague a
peça centenária.
Paro um pouco mais próximo do que seria necessário e culpo nosso
aeternus finis, mais uma vez. Ele é um ótimo argumento para me ajudar a
evitar pensar em tudo que estou sentindo, em todo o meu desespero por essa
mulher.
Estou usando a magia mais respeitada como uma desculpa.
A que ponto cheguei...
Afasto esses pensamentos e abro a trava de prata, deixando meus
dedos deslizarem pelo seu pescoço, para desenroscar o tecido do seu longo
cabelo prateado. Estou conseguindo resistir à sua pele quente e macia, ainda
que seja um esforço hercúleo, mas então acho o seu pulso, o ponto onde a
sua corrente sanguínea indica vida, o ponto onde o meu instinto a morderia
se pudesse, e tudo desmorona.
Quero substituir a marca que está cicatrizando por uma minha.
— Suas presas... — sussurra ela, hipnotizada, e só então percebo que
elas se abaixaram de novo, sem que eu conseguisse controlar.
Nada assustada, levanta uma das mãos devagar, me dando a chance
de me afastar.
Mas eu não poderia.
Eu não quero.
Seus dedos hesitam um pouco, antes de fazer o que gostaria, e seus
olhos se erguem para mim, pedindo permissão. Uma que eu logo concedo.
Ela pode fazer o que quiser comigo.
Ela me tem na palma da sua mão.
Na ponta da sua adaga.
Toca meus lábios em um movimento lento, suave, afastando-os até
ser capaz de tocar em uma das minhas presas. A ponta é afiada o suficiente
para arranhá-la, mesmo ao menor resvalar, e ela observa, com uma
expressão fascinada, a pequena gota de sangue que aparece ali.
É superficial, tenho certeza de que nenhum veneno a atingiu, mas vê-
la marcada por mim faz meus instintos despertarem famintos.
Eu seguro o seu pulso com delicadeza e o trago para perto da minha
boca, mantendo nossos olhos cravados, nossa conexão fluindo com tanta
força que impede de nos afastarmos.
Íris vermelhas nas íris escuras.
Me movendo devagar, para que entenda o que estou prestes a fazer,
deixo a minha língua deslizar pela pequena gotícula, provando-a pela
primeira vez.
E o seu sabor explode no meu paladar.
Doce, rico, a melhor iguaria que já provei.
Nem todos os anos que estudei para criar o Blut-X, nem se eu ficasse
mais séculos estudando, conseguiria reproduzir a complexidade do seu
gosto.
Deliciosa.
Tão deliciosa.
Sua respiração ofega alto, seus olhos estão nublados de um desejo
cru, o nosso laço está vibrando com tanto desespero, que eu me sinto
prestes a perder o controle.
Nós precisamos de mais.
— Por favor — ela pede, em um sussurro hipnotizado.
E quem sou eu para negar qualquer um dos seus desejos?!
Dessa vez, levo seu antebraço à minha boca e deixo que as pontas
arranhem a pele fina do seu pulso. Dois filetes rubros escorrem, se
destacando contra a sua tez. Minha língua limpa um, em uma carícia
demorada, sem nunca quebrar o nosso contato visual, antes de passar para o
outro, sem deixar uma gotícula sequer.
Tão, tão deliciosa.
— Diga agora que quer limites entre nós — ordeno, aproveitando a
nossa proximidade, sem resistir em lembrá-la sobre todo o seu discurso de
que “nada pode acontecer”.
— Tão fácil dizer, tão difícil fazer — murmura, ainda em transe, sua
atenção toda na minha boca.
Então, eu uso toda a força em mim para me afastar e a soltar, antes
que decidisse fazer algo muito pior. Como beijá-la. E, acredite, a fera em
mim queria beijá-la mais do que tudo. Com as minhas presas abaixadas,
inclusive.
— Esse era o meu presente? — pergunta, depois de balançar a cabeça
algumas vezes, também recuperando o seu controle. — Preciso dizer que
adorei.
— Tinha pensado em te levar para voar, mas se você não quer... —
Começo, mas ela logo me interrompe, com um gritinho empolgado, saindo
correndo da cozinha.
Eu acabo rindo, indo atrás dela, desistindo de mandar que pare de
correr por aí, para não acabar rachando a cabeça.
Ela abre as portas duplas da varanda dos fundos e corre até o
parapeito, saltitando empolgada.
Talvez eu tenha acertado no presente.
— Vamos logoooooooo! — pede, ansiosa.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — pergunto, acabando com o
espaço entre nós com passos lentos, apenas para deixá-la ainda mais
impaciente.
— Absoluta! — Abre os braços, se preparando para que eu a pegue.
— O que está esperando? A torre liberar sua decolagem? Vai, vampirão!
Balanço a cabeça e me movo rápido o suficiente para que nem
perceba a minha aproximação, nos lançando no ar.
Ela se enrosca em mim por reflexo, seus braços no meu pescoço, suas
pernas na minha cintura, e um grito empolgado escapa ainda mais alto dos
seus lábios.
Eu nos mantenho acima do castelo, onde tenho certeza de que não
seremos vistos, meus sentidos todos atentos para o caso de termos mais
algum visitante indesejado. E tento não me deixar distrair pela sensação de
ter o seu corpo quente tão enrolado ao meu...
— Não fique aí parado! — reclama no meu ouvido, um sorriso
gigantesco iluminando o seu rosto bonito. — Me mostre do que é capaz.
— Lembre-se que foi você quem pediu! — aviso, antes de disparar
acelerado, circulando o castelo muito mais rápido do que deveria,
mergulhando entre as árvores, perto do rio onde a encontrei, descendo e
subindo como se fosse uma montanha-russa.
E ela ama cada segundo.
Seus sentimentos nunca estiveram tão néon, nunca tive tanta alegria
dentro de mim.
Eu a fiz feliz.
Decido nos levar até o topo da pequena colina que fica de frente para
o castelo, onde a vista é mais bonita, onde sempre venho para pensar, onde
parece que a Lua está mais próxima da Terra.
Minha capa se enrola ao nosso redor quando pousamos e ela ri,
tentando se desenrolar do tecido vermelho.
— Depois de “Hotel Transilvânia”, vou te fazer assistir “Os
Incríveis”! — fala, entre uma gargalhada e outra. — Tem uma cena sobre
capas que vai amar.
— Eu não vou assistir a desenhos, humana — protesto, acabando de
nos separar.
— Aposto que vai, se eu pedir com jeitinho. — Pisca para mim, antes
de se virar para a paisagem à nossa frente e respirar fundo, maravilhada. —
Momentos assim... — Faz uma pausa, absorvendo tudo. — Antes de te
conhecer eu me perguntava tanto qual era o lado bom de viver, sabe? O que
tinha de tão bom nesse mundo, para justificar todos os perrengues que
passamos. — Não é tristeza que chega até mim, para o meu alívio. É algo
mais reflexivo, profundo. — Mas, momentos assim, me fazem entender. Me
fazem acreditar que... Vale a pena.
Suas palavras me tocam tanto que não sei o que dizer. Então, tiro a
embalagem do bolso e entrego para ela, que ataca o seu bolo como se
estivesse delicioso.
E espero, de verdade, que esteja.
— Feliz aniversário, humana — sussurro e ela encosta sua cabeça no
meu ombro, dando um suspiro de contentamento.
Observando a noite.
Observando o nosso castelo.
Mergulhados na magia do laço.

**
Humana

— Humana? — Chris entra apressado na cozinha, nem meia hora


depois de eu ter mandado a mensagem, com Lila logo atrás dele. — Está
tudo bem? Você disse que era urgente.
— Tudo ótimo! — Sorrio para tranquilizá-los. — Só vou fazer uma
visita hoje e achei que seria inteligente te levar comigo.
— Eu? — Arregala os olhos, sempre destacados pelo delineador, que
combina bem com os cabelos soltos ao redor do seu rosto. — Eu mesmo e
não sua alma gêmea, com quem você anda grudada para cima e para baixo?
— Roman está na biblioteca, preparando aulas — falo, na maior
inocência.
— Humm — murmura, desconfiado. — Por que estou sentindo que
ele estar ocupado não é o único motivo para você querer a minha
companhia?
— Porque você é esperto — Lila responde, parecendo sacar que
tenho um plano em andamento.
Essa mulher é maravilhosa.
Minha girl crush, sem dúvidas.
— Porque o que vou fazer pode ser perigoso e ele, com certeza, não
me deixaria ir. — Capricho na expressão angelical. — Mas eu vou de
qualquer jeito, então decidi encontrar um meio-termo razoável e te chamar
para ser o meu segurança!
Nenhum dos dois parece muito impressionado comigo.
— E aonde você quer ir? — Lila pergunta, curiosa, também tentando
entender seu papel em todo esse meu esquema maquiavélico.
Bom, eu convoquei os dois em pleno domingo.
Eles merecem a minha total honestidade.
— Na casa do Amadeo — digo, baixinho, para que o meu vampiro
não escute.
Lila começa a gargalhar.
Chris me olha como se eu tivesse criado presas.
— Nem pensar. — Ele cruza os braços tatuados, fazendo uma
expressão de teimosia muito parecida com a do seu melhor amigo.
— Eu vou de qualquer jeito — aviso, imitando sua pose. — Se quiser
ir para me ajudar, ótimo. Se não, vou sozinha.
— Posso ir com você! — Lila oferece e Chris aperta a ponte do nariz,
em um gesto exasperado.
Já sei que vai topar me acompanhar. Ele nunca, nunquinha, deixaria
que ela fosse à toca do inimigo. Mas eu também não a colocaria em perigo.
Além do mais, tenho outros planos que requerem os talentos
levemente assustadores da médica.
— Queria te pedir para ficar aqui e garantir que Roman não vá atrás
de nós — explico.
— Preferia entrar em uma toca cheia de vampiros raivosos. — Nem
tenta esconder sua careta, sabendo que sua tarefa vai ser bem mais difícil do
que a nossa.
— Posso saber, pelo menos, por que nós vamos fazer uma insanidade
dessas? — Christian segue seu interrogatório, nada satisfeito.
— Porque encontramos Amadeo na exposição ontem e ele me disse
algo que ficou na minha mente — explico. — Sobre eu encontrá-lo sem o
meu cão de guarda, se quisesse conversar.
— Ele usou o termo “cão de guarda”? — Lila pergunta, com um
sorriso divertido.
— Essa parte foi por minha conta mesmo. — Dou de ombros. — Mas
vocês entenderam a moral da história.
— Há algo que eu possa dizer para te convencer a não fazer isso? —
o pobre homem pergunta, beirando o desespero.
— Não! — Nós duas respondemos em uníssono e ele fecha os olhos,
sabendo que seu destino está selado.
— Roman vai me matar.

**
Roman

Já lutei com seres mais poderosos do que eu.


Governo uma horda de criaturas sobrenaturais.
Liderei uma revolução que negou aos vampiros o seu instinto mais
primitivo.
Mas nada, em todas as minhas décadas de vida, me apavorou mais do
que estranhar a inquietação no laço, procurar pela minha humana e não a
encontrar.
— Calma aí, rabugento. — Lila toca o meu ombro, surgindo do nada,
e eu sibilo, mostrando os dentes. — Claro, claro. Vá em frente. Rosne o
quanto quiser.
— Onde ela está? — questiono, olhando ao redor da cozinha como se
a humana fosse aparecer magicamente de dentro da geladeira.
— Com Chris — informa, na maior tranquilidade. — E eu sou a sua
babá. Yay!
— Aonde eles foram? — pergunto, com a voz estrangulada,
escolhendo ignorar sua ironia.
— Não posso contar — diz, seguindo para a chaleira elétrica,
pegando duas xícaras no armário à sua frente.
— Lila! — ralho, em tom de aviso, o laço se inquietando mais a cada
segundo.
— Tem preferência por algum chá? — pergunta, analisando as
opções que tenho estocadas.
— Lila! — repito e ela suspira, escolhendo dois saquinhos, antes de
me dar um olhar impaciente.
— Amélie é perfeitamente capaz de cuidar de si mesma e Chris está
com ela, então sossegue.
Odeio fazer isso, sei que é uma invasão de privacidade, mas não
tenho outra opção. Eu preciso saber onde a humana está, então adentro a
sua mente para descobrir, sem cerimônias.
Ela me encara de queixo erguido, pensando em tudo menos no que eu
quero saber. Nem um vislumbre de Chris, ou de Amélie. Não importa quão
fundo eu cave, não encontro nada.
Sua mente é muito mais forte do que a de uma pessoa normal.
— Lila! — reclamo e ela nem pisca.
Sabendo que não vou tirar nada dali, saio da sua cabeça e começo a
seguir para a garagem. Posso procurá-la à moda antiga, posso ir a alguns
lugares...
Uma pequena mão se enrola no meu pulso, me impedindo de seguir.
— Eles levaram todas as chaves — ela avisa e eu praguejo alto.
— Vou voando então.
— Em plena luz do dia?
— O que, diabos, está acontecendo? — explodo e ela me empurra,
até que eu caia sentado em uma das cadeiras da cozinha.
— Você ainda é o rei, não pode sair espalhando o caos por aí.
— Eu posso fazer o que quiser.
Ela materializa uma seringa de algum lugar e sorri.
Essa sua veia psicótica é assustadora.
— Eu tenho tranquilizantes dos bons. — Bate com a ponta dos dedos
na ampola, exibindo-a para mim. — Forte o suficiente para derrubar um
elefante.
— E eu posso te desarmar em um piscar de olhos.
— Tente — sugere, calma. — Mas saiba que, se eu te dopar, você
estará desacordado e não sentirá mais o laço. Não saberá o que está
acontecendo.
Eles pensaram em tudo.
Dois gênios do crime e um Christian rendido demais para ser capaz
de impedi-las.
— Ao menos me diga o que eles foram fazer — exijo.
— Ha-ha! Nem pensar. Mas prometo que, se você sentir qualquer
coisa alarmante pela conexão maluca de vocês, eu te digo exatamente onde
encontrá-los. — Abro a boca e ela se apressa a acrescentar. — E nem pense
em mentir, eu sei quando a coisa do laço é real. Você se encolhe e faz
aquela expressão de que quer incendiar o mundo.
— Eu quero incendiar o mundo agora.
Ela apenas me dá um olhar nada impressionado.
Maldita obstinação.
Eu encontro a magia dentro de mim e concentro toda a minha atenção
em monitorar o que a humana está sentindo — nada além de determinação,
para o meu alívio. Dou um pequeno puxão no nosso fio, para garantir que
esteja prestando atenção nas minhas próximas palavras:
“Nós vamos ter uma conversa séria quando você chegar”, aviso.
“Então, é bom que chegue inteira”.
“Relaxe, vampirão. Não estou planejando matar nós dois hoje”.
“Isso deveria me confortar?”.
“Tome um chá e não enlouqueça Lila”.
“Tarde demais”.

**
Humana

— Ora, ora. Que surpresa. — Amadeo sorri, assim que abre a porta
da sua enorme mansão para nós. — Nossa honorável scriba e o menino
emo que queria ser um Prince?
Chris rosna, eu me apresso a me postar entre eles, antes que as coisas
comecem a fugir do controle rápido demais.
— Nenhum dos dois vai começar com essa besteira, eu quero apenas
conversar. — Ergo o queixo para encarar bem os vampiros ao meu redor. —
Me convide para entrar, por favor?
— Claro. — Estica o braço, fazendo uma reverência fajuta.
O metal da Céline contra a minha pele é reconfortante, assim como a
presença sólida de Chris próximo a mim, e eu me apego a isso para manter
minhas emoções neutras. Não quero preocupar Roman mais do que já deve
estar preocupado.
Imagina o tamanho das rugas na sua testa...
A casa de Amadeo é muito mais sombria do que o Castelo Rot. Toda
medieval, com paredes e pisos de pedra, armas expostas nas paredes, e até
armaduras enfeitando os corredores cavernosos.
Ele nos guia para uma espécie de sala de visitas, cheia de caças
empalhadas em exposição, que só não são mais apavorantes do que o retrato
do homem em cima da lareira.
Poderia apostar o meu bolo de aniversário delicioso que esse é o seu
pai. O querido que assassinou o próprio irmão, em busca de poder. Uma
graça.
— Gostariam de beber alguma coisa? — oferece, parecendo meio
perdido, olhando ao redor como se não estivesse acostumado a receber
visitas. — Água, café, vinho, sangue?
— Não, obrigada. — Faço uma careta, porque sou esperta demais
para aceitar qualquer coisa de alguém com essa vibe de vilão. Mesmo que a
vibe esteja bem menos gritante aqui, conosco a sós.
— Direto ao assunto então? — Ele se senta em uma poltrona que
parece ter sido feita da pele de algum bicho, cruzando as pernas algumas
vezes, entregando o seu desconforto. — A que devo a honra?
— Direto ao assunto — concordo com ele pela primeira vez na vida.
— Você me atacou semanas atrás e me largou nos terrenos do Castelo Rot
para incriminar Roman? — digo, à queima-roupa, e surpresa passa pelos
seus traços bonitos.
— Você foi atacada? — Franze as sobrancelhas, seu olhar caindo para
o meu pescoço, localizando as duas pequenas feridas que hoje estão à
mostra. — Por um de nós?
— Sim. — É Chris quem responde, examinando o rosto dele em
busca de sinceridade, exatamente como estou fazendo. — E sabemos bem
quem mais se beneficiaria, se Roman fosse culpado por cometer o crime
mais grave do nosso povo.
Para a minha surpresa, uma expressão diferente aparece em Amadeo,
seus traços se contorcendo em um misto de dor e mágoa.
— Eu não sou os meus pais — afirma, com os dentes travados,
tentando manter o controle, mas consigo ver a agonia por trás dos seus
olhos. — E estou cansado de pagar pelos erros deles.
— Não é como se você fizesse um esforço para mudar isso, cara —
digo, com honestidade. — Sendo tão desagradável, provocando Roman...
— Roman também não é nada agradável e ninguém invade a sua casa
o acusando de quebrar a principal regra entre nós — retruca. — Maior até
do que quando matamos um dos nossos — implica, se referindo ao caso do
Prince assassino.
Será possível que Amadeo seja apenas mais uma vítima nesse caos
todo?
Dou um passo para frente e olho bem nas suas íris vermelhas,
procurando qualquer indício de mentira, como se ele fosse um dos meus
suspeitos em interrogatório.
Ele sustenta a minha encarada e não encontro nenhum dos sinais
típicos de desonestidade.
— Não foi você — sentencio.
— Não, não foi — concorda, sem se intimidar. — Eu nunca cometi
um crime, apenas pago por eles.
Ugh.
Se isso fosse um livro, essa seria uma frase que eu grifaria.
— Se é tão inocente, por que aprendeu a fechar sua mente? —
inquiro, sem deixar o ritmo do interrogatório oscilar, para que não tenha
tempo de inventar uma história.
— Você não mede palavras, não é?
— Não mesmo — Chris ri, me dando um olhar de carinho, que eu
retribuo. Como não amar esse golden retriever gótico? — Agora,
desembuche.
— Responda, Amadeo, por favor — acrescento, porque esses
vampiros malucos se esquecem que estamos em Himmel. Nós usamos “por
favor” e “obrigada” aqui. Sempre.
— Eu não tenho que dar satisfações para você — diz com uma dose
de grosseria, mas eu reconheço que é um mecanismo de defesa. Chris não é
tão compreensivo, rosnando no mesmo segundo, esquecendo da leveza de
antes, dando um passo para frente, pronto para atacar.
Eu toco seu braço de leve, pedindo para que se acalme.
— Se a sua scriba te faz uma pergunta, você responde. — É só o que
diz, com sua mandíbula travada.
— Amadeo — chamo, em tom de aviso. — Se quer que as coisas
sejam diferentes, precisa agir diferente. Me explique, me deixe tentar
entender.
— Porque eu não queria Roman lendo minha cabeça e descobrindo
como eu me sinto sobre a minha vida de merda! — explode, ficando em pé
de súbito, esquecendo de toda sua pose. — Eu não queria que ele visse... —
Fecha os olhos, torturado. — Minha vergonha.
Ah.
Bem compreensível.
Não posso dizer que não faria o mesmo no seu lugar.
— E como aprendeu a fazer isso? — Deixo escapar a pergunta de
milhões, a que todos que conhecem Roman adorariam saber.
— Lady Evile me ensinou, ela era uma grande amiga da minha mãe.
— Agora seu rosto muda para uma expressão grave, solene, quase
preocupada. — Eu vou dizer isso porque realmente gosto de você, Amélie.
Precisa tomar cuidado com aquela mulher.
— Qual é o problema de vocês com senhoras fofas?! — exclamo,
exasperada e cansada desse discurso.
— Nós podemos sentir os poderes dos outros vampiros — Chris
explica. — Pense em lâmpadas de diferentes watts.
— Roman seria um enorme canhão de luz, Lady Evile seria um
refletor, alguns seriam luzinhas de Natal — Amadeo dá um olhar de
provocação óbvia para o meu amigo e eu perco o resto da minha paciência,
tirando Céline do cinto.
Dois pirralhos de duzentos anos de idade!
— O próximo que provocar o amiguinho ganha um beijo da minha
adaga na garganta — aviso. — E não estou blefando.
— Sabe que isso não nos mataria, não é? — Chris me lembra.
— Mas doeria, não doeria? — Ergo uma sobrancelha em deboche.
— Bastante.
— É o suficiente para mim.
— Garota, eu gosto mesmo de você — Amadeo exclama, Chris
recomeça a rosnar, mas eu mostro a Céline de novo e ele se cala como um
bom garoto. Bato com meu quadril no seu, mandando que se afaste, e me
posto na frente do vilão que estou descobrindo não ser tão vilão assim.
— Sinto muito por ter te acusado — respondo, com honestidade. —
E por você ter que lidar com tanto julgamento.
— Não é sua culpa. — Dá de ombros.
— Mas ainda sinto por você.
— E eu sinto que tenha sido atacada — acrescenta, relaxando pela
primeira vez desde que aparecemos na sua porta. — A propósito, como
conseguiu escapar do nosso rei para estar aqui?
— Quem disse que precisei escapar?
— Ele nunca te deixaria vir por vontade própria. Nem com o Prince
fajuto junto.
Chris parece pronto para voar e arrancar alguns membros do outro
homem, então decido que é hora de encerrar a nossa visita.
— Obrigada, Amadeo, de verdade. — Pisco para ele e lhe dou as
costas, começando a arrastar meu cão de guarda para a porta comigo.
— Volte mais vezes! Sozinha, de preferência! — grita para nós e eu
intensifico o meu aperto, antes que o senhor Yang coloque em prática todas
as ideias de tortura que devem estar passando na sua cabeça.
Seguimos para a sua Ferrari chamativa e só volto a soltar o ar
quando estamos na estrada, no caminho de volta para o castelo.
— Você acha mesmo que Lady Evile pode ter algo a ver com o
ataque? — questiono, repassando tudo que ouvi nos últimos minutos.
Minha mente ainda acha difícil aceitar que a doce senhora pode ser uma
vilã, mas se é tão poderosa quanto dizem...
— Ela teria o poder para isso, mas não consigo imaginar qual seria o
seu motivo — responde, com as sobrancelhas franzidas, tão confuso quanto
eu.
Eu também não faço ideia.
Suspiro, cansada.
— Obrigada por ter vindo comigo — digo para ele, que me dá um
dos seus sorrisos lindos. — E desculpe pelas ameaças de te esfaquear.
— Eu mereci. — Faz um gesto de dispensa, me mandando eu não me
preocupar.
— Hey, já que estamos aqui, vamos conversar sobre a minha próxima
tatuagem — peço, querendo mudar de assunto para algo mais leve durante o
resto do caminho.
Esfrego o peito, sentindo o peso de estar distante por tanto tempo,
que só diminui quando avisto nossa casa ao longe, se erguendo imponente.
— Não vai descer? — pergunto, quando estaciona.
— E encarar Roman? Nem pensar. — Finge um arrepio. — Espero
Lila aqui.
— Covarde — digo, de brincadeira.
— O termo correto é “precavido”.
Rio e me inclino para dar um beijo de despedida na sua bochecha.
Nem preciso abrir a porta para sair, porque ela é aberta com um movimento
brusco, que assusta nós dois.
Roman me pega com delicadeza e me coloca de pé, o laço vibrando
com preocupação. Ele me inspeciona em busca de ferimentos e eu reviro os
olhos.
— Ele se comportou? — pergunto para Lila, que não está tão
enlouquecida quanto eu imaginava, ainda parecendo a perfeita gêmea
perdida da Laura Harrier.
— Nada que umas ameaças não resolvessem — responde, inabalada
como sempre, enquanto eu sigo sendo examinada. — E o meu, se
comportou?
— Nada que umas ameaças não resolvessem.
— Hey! — Chris protesta do seu lugar ao volante. — Não falem
como se fôssemos seus poodles!
— Senta, Fifi! — brinca a médica, entrando no assento que eu
ocupava e murmurando um “boa sorte”.
Pela onda de sentimentos que dominam o meu vampirão e chegam
até mim, acho que vou precisar mesmo.
De muita sorte.
Beijos! Com presas! Finalmente!
Humana

Quando Roman começa a examinar até o meu couro cabeludo em


busca de ferimentos, decido que já é o suficiente.
— Sossega, eu estou bem! — reclamo e isso faz com que ele desperte
do seu torpor obsessivo.
A preocupação muda para irritação, os olhos escuros ficam
vermelhos e o medo do seu aeternus se transforma em fúria. A próxima
coisa que percebo é que estou nos seus braços, disparando no ar, voando
para cima, até o telhado da torre mais alta.
Pousa ali com toda sua elegância e eu amaria aproveitar a vista, se
não estivesse prestes a ter a maior D.R. da história das D.Rs.
— O que. Você. Estava. Pensando?! — pergunta, dando um passo
para trás, colocando uma distância entre nós que passa um recado bem
óbvio.
Achoooo que já descobriu onde eu fui.
E achoooo que não gostou muito.
— Nós precisávamos de respostas! — tento me defender e me
equilibrar em cima das telhas ao mesmo tempo, o vento começando a soprar
forte entre nós.
— E decidiu que ia atrás delas sozinha? — questiona, com mágoa
escorrendo de cada uma das palavras.
— Você é um maldito rei, não pode fazer o que quiser! — lembro-o,
torcendo para que me encare, para que me olhe e diga que estamos bem.
Odeio a sensação de que esteja bravo comigo.
— Posso fazer o que eu quiser — teima comigo, sem ceder, como o
vampiro cabeça-dura de sempre.
— Não, não pode — insisto. — Eu estou bem, nada me aconteceu.
Podemos, por favor, deixar isso para lá?!
— Não! Não podemos! — Abre os braços, exasperado, e sinto um
medo irracional de que vá cair, por mais que eu saiba que pode voar. — E
se tivesse acontecido? Han? E se Amadeo fosse culpado, se tentasse te
atacar de novo?
— Eu levei o Chris! — argumento, mas sei que não adianta.
— Você deveria ter me levado!
— De novo, você é o rei! O rei! — Dou um passo para frente,
cutucando o seu peito com força. — Além do mais, você e Amadeo têm
toda essa história rolando. Ele não iria contar nada, se estivesse comigo!
— Você nem me avisou que iria sair! — Segue na sua espiral de
protestos, chegando ainda mais perto de mim, como se não tivesse gostado
da distância, mesmo estando bravo.
— Você não me deixaria ir! — Acabo com mais alguns centímetros
também, atraída pelo seu magnetismo.
— Porque era perigoso!
— Nada. Aconteceu — repito, pausadamente, sentindo meu coração
acelerar por motivos que não tem nada a ver com os muitos metros entre
mim e o chão.
— Você sabia o que faria comigo!
— E você deveria saber que sempre vou te proteger, mesmo que isso
inclua te deixar bravo!
— Você é impossível!
— E você não manda em mim!
Um rosnado escapa da sua garganta, ele acaba de vez com qualquer
espaço entre nós, segura o meu rosto com as duas mãos e me beija.
O primeiro beijo entre duas almas gêmeas.
No segundo em que nossos lábios se tocam, o resto do mundo deixa
de existir. Se eu achava que o laço estava cravado fundo antes, nada se
compara com o que está acontecendo no meu peito agora. É como se o
aeternus assumisse o meu corpo todo, como se incendiasse cada uma das
nossas células. Como se uma espiral dourada saísse de dentro de nós e nos
envolvesse. Como se o nosso mero toque fosse suficiente para disparar
fogos de artifício.
A magia de um contrato cósmico sendo selado.
Minhas mãos se enrolam ao seu redor, porque não quero que acabe,
não quero me separar, não quero deixar de senti-lo contra mim.
Não começamos devagar, nós nos devoramos famintos, como se já
nos conhecêssemos, com a familiaridade de dois corações que estão se
tornando um só.
Ele me segura firme, me mantém contra si, me domina. As faíscas
entre nós nem me deixam sentir o frio da sua pele. O seu sabor tem algo
metálico, forte, intoxicante, que me deixa rendida.
Arrepios. Conexão.
Ainda não é suficiente.
Passo minha língua pelos seus dentes, em um pedido silencioso e
desesperado. Ele logo atende, deixando suas presas se abaixarem. Não ouso
abrir os olhos para ver, nada pode quebrar este momento, mas eu as sinto
contra os meus lábios, arranhando até arrancar duas gotas de sangue, que
ele devora com um rosnado.
Minhas mãos tentam puxá-lo ainda mais, mas não há espaço algum.
Nós nos fundimos em uma confusão de toques, de energia, até que o meu ar
acabe e eu precise nos desvencilhar, por mais que me doa.
Sinto que pousamos de volta ao telhado — tínhamos começado a
levitar sem perceber —, e só então consigo encará-lo. Os seus cabelos estão
uma bagunça, seus caninos ainda despontam dos lábios inchados, os olhos
tão vermelhos que reluzem como sangue líquido. Ferozes, selvagens,
famintos. Parece que fizemos muitos mais do que beijar por alguns minutos.
O meu próprio corpo está vibrando, fazendo o pensamento ridículo de “é a
primeira vez que me sinto viva” passar pela minha mente.
— Caramba — exclamo e toco a minha boca, sem acreditar que tudo
o que acabei de sentir tenha sido real. Nem a droga mais forte deve causar
tantas coisas diferentes ao mesmo tempo.
Se já não acreditasse que magia existe, teria acabado de me tornar
uma crédula.
— Isso foi... — Roman começa, tão atordoado quanto eu, sua voz
saindo ainda mais grossa e rouca do que quando acorda.
— Uma maluquice — tento completar, mas assim que digo a palavra,
sei que fiz algo errado.
Ele se retesa todo.
A fascinação desaparece do seu rosto.
O ar fica gélido ao nosso redor, o vento se agitando.
— Uma maluquice — repete, parecendo ofendido.
Mas é uma maluquice!
Foi apenas um beijo!
Não deveria ser assim!
Não deveria fazer o maldito mundo todo explodir!
— Roman... — chamo e quase consigo ver suas muralhas de proteção
subindo ao seu redor, prontas para me manter afastada, para guardá-lo a
qualquer custo.
— Preciso trabalhar, vamos descer.
“Roman”, repito na sua cabeça, para ele tentar lembrar que nós somos
conectados, que não pode me afastar, mas meu vampiro apenas enrola um
braço na minha cintura e nos joga no ar, pousando em um segundo no piso
de pedra da varanda.
Usa sua velocidade sobrenatural para desaparecer dentro do castelo,
sem dizer mais uma palavra sequer, e eu suspiro desanimada.
— É sério? — digo para o vazio, sem ganhar uma resposta.
Estava odiando a ideia de que estivesse bravo comigo, então fui lá e o
deixei ainda mais bravo!
Genial!
Também acabo entrando e sigo direto para a cozinha, que deve ser o
lugar mais seguro neste momento, porque ele quase nunca pisa ali. Tomo
um longo gole de água, evitando ceder à vontade de procurar aquela famosa
garrafa de absinto, pensando no que fazer.
Pensando.
Pensando.
E pensando, sem chegar à conclusão alguma.
Meu cérebro não consegue se focar em nada além do nosso beijo, das
sensações, de como foi sentir o seu gosto pela primeira vez. E em como eu
quero fazer tudo de novo. E em como eu quero fazer muito mais.
Então, mudo para todos os motivos pelos quais eu não deveria fazer
nenhuma dessas coisas e minha cabeça começa a rodar.
Esfrego a minha tatuagem, sem a menor ideia de como vou resolver
essa bagunça.

**
Roman

Maluquice.
MALUQUICE.
Ela chamou de MALUQUICE.
O instante que mudou tudo para mim, que me fez entender,
finalmente, o que significa esse maldito aeternus finis, que me fez pensar o
quão inútil é lutar contra o laço, que me fez refletir sobre como perdemos
tempo durante essas semanas.
E ELA CHAMA DE “MALUQUICE”.
Agora que eu a provei, que sei como é o seu gosto, que descobri
todas as sensações que estarmos juntos desperta, não vou voltar atrás. Ainda
acho que temos todos os motivos para ficar longe, que nossa união vai
contra todas as leis da natureza, que será um pesadelo quando o mundo
souber, que ainda há a questão do herdeiro, mas não consigo me importar.
O lugar dela é mais do que ao meu lado.
É comigo.
Ela é irritante, mas é a minha humana irritante.
Perceber isso e, ao mesmo tempo, ouvi-la desdenhando do que deve
ter sido um dos momentos mais marcantes da minha existência, doeu de um
jeito que eu não esperava.
A minha única opção foi ficar em silêncio, para não dizer nada que
fosse me arrepender depois.
Ando de um lado para o outro na biblioteca, uma taça de vinho na
mão, desejando que o álcool humano tivesse mais efeito sobre mim. Pego o
meu celular para ligar para Chris, mas então lembro que ainda estou bravo
com ele. E com Lila. Não sei com qual dos dois estou mais bravo. Depois,
cogito falar com Nikolai, mas ele deve estar ocupado com Aurora em um
domingo. Então, deixo o aparelho de lado e vou me servir de mais uma
taça.
Ao menos, o laço me diz que a humana ainda está por perto, que está
tão confusa quanto eu e, principalmente, me diz com toda clareza que está
tão desesperada por mim, quanto eu por ela.
Ela só não consegue se permitir admitir.
E eu entendo, traumas como os seus não são fáceis de apagar. Essa
foi a única realidade que conheceu até hoje.
O que eu preciso é fazê-la entender que não sou como o seu ex, que
não sou um verme patético que vai trair sua confiança, deixá-la sem casa,
sem emprego, sem um coração.
Mas ela pode confiá-lo a mim.
Eu o protegerei com tudo que tenho.
O que mais quero é que seja feliz.
O meu celular apita com um lembrete da agenda que ela cadastrou,
sobre uma reunião que tenho agora para tratar sobre a distribuição de Blut-
X para alguns países da Oceania. Malditos fusos-horários confusos.
Sem tempo para mais nada, ligo o meu notebook, me obrigando a
manter minha atenção minimamente focada na equipe que conta comigo. O
assunto acaba se alongando mais do que gostaria e não ouço mais nada de
Amélie nesse tempo.
Já está tarde quando volto para o nosso quarto, me perguntando
quando foi que o espaço virou “nosso”, esperando encontrá-la dormindo.
Mas encontro a enorme cama vazia.
Sua televisão desligada.
O laço me diz que está na propriedade, então desço para a cozinha,
encontrando-a no caos que sempre fica depois do furacão humano passar
por lá. No entanto, não há nem sinal dela.
Um pensamento me ocorre e eu rosno.
Não.
Espero que ela não tenha feito isso.
Não é possível que tenha feito isso.
Marcho escada acima, virando para a ala onde a hospedava antes e
abro a porta do seu antigo quarto, encontrando-a na cama, com o seu celular
na mão.
— O que pensa que está fazendo? — rosno, impaciente, vendo que
está de pijama, com o rosto coberto por algo verde. Um dos seus hidratantes
que deixam o seu cheiro por todos os lugares, aposto.
— Jogando “Paciência”? — Mostra sua tela para mim, com as cartas
de baralho espalhadas, se fazendo de desentendida.
Os cabelos platinados estão empilhados no topo da cabeça, deixando
à vista o pescoço esguio que a sua blusa de alças não consegue esconder.
Por um segundo, esqueço de tudo que iria dizer, focando apenas em como
gostaria de mordê-la ali, bem onde estão as antigas cicatrizes.
Quero que todas as marcas no seu corpo sejam minhas.
— Não foi isso que perguntei. — Dou alguns passos mais para perto,
deixando o predador assumir. — Você estava planejando dormir aqui?
Longe de mim?
— Achei que fosse o que você queria. — Ela desvia o olhar e não
suporto que não esteja me encarando, que esteja perdida em tantos
sentimentos conflitantes que nem consiga escolher um para se focar.
Talvez o que mais predomina seja a sua incerteza por achar que estou
bravo — bom, mais bravo do que o normal — e, por isso, eu não iria querê-
la por perto.
Não há nada que possa fazer que me afastaria de você, Amélie.
— Não é o que eu quero — afirmo, decidido. — Vamos?
Ela ergue as sobrancelhas em surpresa, voltando a me encarar.
— Então, agora está falando comigo? — me enfrenta, de queixo
erguido, e eu solto o ar aliviado por ter feito algo certo.
Aí está a minha humana.
— Podemos continuar brigando, desde que você volte para o nosso
quarto.
O laço se aquece do seu lado quando ouve eu me referir ao espaço
como “nosso”. Seus olhos caem para a minha boca e o calor se intensifica.
Não preciso deslizar para dentro da sua mente para saber que está
recordando o nosso momento no telhado.
Eu preciso dar um jeito de chegar até ela.
De nos permitir viver essa história.
De podar cada uma das ervas daninhas e espinhos que teve de
cultivar ao seu redor, para afastar quem planejava lhe fazer mal.
E farei questão de que ainda honre sua tatuagem.
Ela ainda será dela mesma, porque o que irá mudar é que eu serei
dela também.
Não vou tirar nada.
Vou apenas somar.
I am mine.
You are mine.
— Tem certeza? — se certifica, antes de se levantar do ninho de
cobertas que arrumou ao seu redor.
— Certeza absoluta — garanto e algo na minha expressão consegue
convencê-la, porque fica em pé, vindo se juntar a mim, trazendo apenas o
seu celular.
Ela nunca mais irá dormir aqui.
— Ainda precisa me contar o que descobriu na sua pequena aventura
— peço, ao fazermos o caminho de volta para a minha ala.
— Se prepara, porque não foi pouca coisa.
Ela narra como Amadeo ficou surpreso e até consternado ao saber do
seu ataque. Que ele aprendeu a bloquear sua mente com Lady Evile e que o
próprio suspeita da velha senhora, inclusive. Explica também por que ele
fez isso e como se sente por ainda ter que pagar pelo crime covarde que o
seu pai cometeu.
— Será que não conseguimos um tipo de trégua? — pergunta,
desaparecendo no banheiro, possivelmente para lavar a gosma verde de seu
rosto.
— Trégua? — repito, testando o som da palavra.
— Não estou pedindo que convide Amadeo para jogar tênis, dividam
seus segredos e o chame de “priminho”! — resmunga e eu acabo indo me
postar à porta, observando-a fazer sua rotina noturna, gostando da
intimidade do ato.
— O que está pedindo então? — questiono, cruzando os braços.
— Que, usando as palavras dele, pare de fazê-lo pagar por crimes que
não cometeu. — Enxuga o seu rosto na toalha, se virando para mim com a
face limpa, mais linda do que nunca. — Pare de bani-lo de tudo. Não rosne
apenas por ele respirar na sua direção. E Amadeo irá parar de te provocar,
parar de andar por aí como um vilão de desenho animado, planejando a
dominação mundial.
— Você acha que pode conseguir tudo que quiser, não é? — Estreito
os olhos em acusação e ela nem tenta negar.
— Trégua, Roman. Vamos deixar Amadeo de lado e focarmos em
quem pode ser o culpado de fato — pede, passando por mim e jogando sua
toalha molhada na minha cara.
A pequena atrevida.
Trégua, certo.
Talvez eu possa cogitar dar uma chance ao rapaz.
De fato, objetivamente falando, a criança não deu nenhuma prova de
que compartilha da mesma índole do seu pai. O seu maior problema tem
sido sua atitude lamentável, mas eu poderia ser culpado do mesmo crime.
Então, teremos uma trégua entre os Prince.
Amélie e seu poder...
Penduro o tecido felpudo com cuidado, esticando-o na barra como ela
deveria ter feito. Escovo os dentes e lavo meu próprio rosto, antes de passar
no closet para colocar o meu pijama. Quando volto ao quarto, ela já está
acomodada, com uma das suas séries passando na enorme televisão.
— Hey. Você tem uma ex? — pergunta, do nada, ao me ver. — Ou
um ex?
— De onde veio isso agora? — retruco, tirando as suas pantufas do
meio do caminho e as colocando em um canto, onde ninguém irá tropeçar e
rachar a cabeça.
— Estava pensando se quem tentou me matar poderia ser uma paixão
antiga que, de alguma forma, descobriu que eu era a sua aeternus e se
ressentiu — sugere.
— Não é uma teoria ruim — concordo, me juntando a ela na cama,
mas preciso me apoiar na mesa de cabeceira quando uma onda de algum
sentimento ruim me atinge com força.
— Desculpa, mas te imaginar com outras pessoas me faz querer
cravar Céline em alguma coisa — admite e eu consigo reconhecer qual é o
sentimento néon da vez.
Ciúmes.
— Entendo. — Consigo me mover o suficiente para me deitar, apesar
da tensão no laço. — Eu tenho vontade de fazer muito mais do que apenas
cravar Céline no seu ex.
Inclusive, não devo adiar mais a visita que pretendo lhe fazer.
Um pequeno susto, sem nem derramar sangue.
Ou muito sangue.
Tempo o suficiente para dar um recado e recuperar alguns dos itens
importantes para a humana, como a sua adaga original.
— Pare de desviar do assunto e me responda! — ordena, impaciente
e, por mais que eu fosse gostar de torturá-la um pouco, sei que há chances
de que eu acabe com Céline cravada em alguma parte do meu próprio
corpo, se fizer isso.
— Tive alguns relacionamentos, sim — admito e me apresso a
acrescentar, sentindo a sua fúria: — Mas todos, absolutamente todos, já
encontraram seus aeternus.
Ela se acalma.
Não muito, mas se acalma.
— Todos? — repete, para se certificar.
— Todos — garanto. — É extremamente raro encontrar um vampiro
adulto, sem um aeternus. Você não tem nada que se preocupar.
— E humanos?
— Já viu como os alunos e os outros professores reagem à minha
presença. — Bufo em deboche. — Vocês ficam aterrorizados por nós.
— Nem todos! — Me cutuca com o controle remoto da sua TV. —
Eu e Lila não estamos nem aí, vampirão.
— Porque as duas têm uma veia psicótica — elogio, apagando as
luzes e colocando o meu celular de lado. — Sabia que ela ficou andando
atrás de mim com uma seringa cheia de tranquilizante?
— Ah, cara. Eu amo aquela garota. — Ri, começando a relaxar, e um
silêncio confortável cai entre nós. Nem está movendo suas cobertas, nem
afofando seus travesseiros, o que é um verdadeiro milagre.
“Não fique bravo comigo de novo”, ela pede, baixinho, deixando
transparecer uma vulnerabilidade rara.
“Não me assuste assim de novo”, sussurro de volta, enquanto ela me
escala, se acomodando no meu peito com a certeza de um gato que sabe que
o dono irá recebê-lo.
Ainda preciso descobrir quem a atacou, quem tentou me incriminar.
Tenho mais dezenas de preocupações que deveriam estar ocupando um
lugar de honra na minha mente, como descobrir uma forma de ajudar
Matteo a encontrar uma nova família.
No entanto, com a humana tão próximo, só consigo pensar em uma
coisa.
Mais do que sentir o laço...
Eu preciso dar um jeito para que ela o aceite.

**

Na manhã seguinte, já tenho um plano montado.


Mas vou precisar de ajuda.
É hora de perdoar a minha outra humana e recrutá-la para o meu lado
desta batalha.
— Lila! Sei como vai me recompensar por ontem — digo, assim que
ela atende o seu telefone.
— Eu não estava planejando te recompensar por nada — responde,
com sua honestidade habitual.
— Agora está.
— Acabei de atender uma mãe que acha que vacinas são coisa do
diabo, é melhor não testar a minha paciência ou eu mesma vou fazer um
pentagrama para conjurar Satanás e sua arma carregada de antivirais
MALÉFICOS QUE OUSAM SALVAR VIDAS! — respira fundo e eu me
controlo para não rir. Aposto que daria um jeito de me colocar no meio
desse pentagrama se eu risse agora.
— Eu quero cortejar a humana. — Ouço o barulho de algo caindo do
outro lado da linha, seguido por alguns pedidos de desculpas. — Está tudo
bem?
— O que foi que você disse?
— Eu quero cortejar a humana, mas não sei do que humanos gostam
exatamente. Então, pensei que você poderia me dar algumas instruções
gerais?
— Eu não sei se começo pela parte de quem ainda fala “cortejar” ou
pela parte de você, finalmente, admitir que gosta da humana.
— Lila, eu tenho tanta paciência para enrolação quanto você.
— Certo, certo. — Quase posso vê-la endireitando a sua postura,
como sempre faz quando se prepara para algo sério. — Pegue um bloco,
uma caneta e comece a anotar. Porque você, majestade, tem muito o que
aprender.
Manual da conquista e do cortejo de humanas – Por Roman Prince.
Roman

— Nós vamos ter um encontro — anuncio, tentando não pensar em


como as palavras soam bobas e juvenis.
Próximo passo: convidá-la para o baile do colégio.
— Um encontro? — repete Amélie, parando de tirar os sapatos e
olhando para a porta do quarto, como se estivesse calculando a rota de fuga
mais próxima. — Eu ouvi direito?
— Ouviu perfeitamente bem — afirmo, decidido. — Um encontro
como manda a tradição, aqui e agora, para você não poder arranjar uma
desculpa. Ou, como disse Lila, para que não possa “me dar um bolo”.
— Eu não iria te “dar um bolo”! — Tenta protestar, mas uma careta a
entrega. — Ok, talvez eu fosse.
— Não precisa se preocupar, será apenas um jantar e filme, como
vocês humanos costumam fazer. — Desapareço dentro do closet e volto
com seu único casaco mais grosso, segurando-o aberto para que vista por
cima da camisa que usou durante o nosso dia de trabalho.
— Achei que fôssemos ficar aqui! — exclama, mas passa seus braços
pelas mangas, como estou pedindo.
— Vamos ficar no Castelo Rot, mas não do lado de dentro. — Tento
piscar, sendo charmoso como Lila mandou, mesmo que não tenha certeza
como fechar e abrir as pálpebras possa impressionar alguém.
Ainda assim funciona, porque ela ofega.
Preciso aprender a ouvir mais aquela garota.
— Nós vamos voar? — pergunta, empolgada.
— Até o topo da colina — informo e lhe estendo a mão em um
convite que deveria ser óbvio, mas que a faz me encarar confusa.
— O que está fazendo?
— É um encontro — repito.
— Então, você quer... dar as mãos?!
— Não precisamos fazer nada que não queira — ofereço, mantendo
meu braço esticado. — Mas, Amélie, você mesma me disse que sentia falta
de toque.
— Ugh, odeio quando você me chama de “Amélie”. E quando escuta
o que eu digo. — Balança a cabeça, mas enrola seus dedos quentes nos
meus, a sensação da sua pele tão diferente da minha.
Aperto de leve e faço a próxima coisa que Lila ordenou...
Eu sorrio.
A humana tropeça de leve nos seus próprios pés e eu me apresso a
segurá-la, puxando-a para mais perto de mim, o laço todo eriçado do seu
lado.
— Tudo bem? — pergunto.
— “Bem” é um termo muito relativo — murmura, entredentes, mas
me deixa guiá-la pela escada, para a varanda principal que já havia deixado
aberta, à nossa espera.
— Pronta? — pergunto, sentindo-a vibrar com expectativa.
— Pronta!
Dessa vez, eu passo um braço pelos seus joelhos, outro pelas suas
costas e a aconchego contra o meu peito, antes de nos lançar ao ar.
Circulo o castelo, apenas para a sua diversão, porque gosto dos
gritinhos empolgados que dá quando estamos voando. O vento da noite,
meu velho amigo, é gentil conosco, nos conduzindo até a colina com um
planar suave.
— O que é tudo isso?! — questiona, curiosa, quando pousamos.
A clareira desabitada agora tem um enorme cobertor onde arrumei
comidas para ela, junto com alguns travesseiros e pequenas lâmpadas
penduradas nas árvores. Na frente de tudo, está a enorme tela branca, que
servirá como fundo para o projetor emprestado de Christian.
— Jantar e filme, como eu disse. — Solto seu pequeno corpo para
que vá inspecionar o meu arranjo, enquanto fico uns passos para trás, com
as mãos nos bolsos, aguardando.
Espero que ela goste.
— Isso é... — Começa e juro que se o termo “maluquice” for dito, eu
mesmo me esfaqueio com Céline. — Isso é incrível, Roman — admite ao se
virar para mim com um grande sorriso.
— Bom, vamos nos sentar então. — Faço um gesto com a mão,
pedindo que se adiante, tentando disfarçar como sua aprovação fez algo se
agitar dentro de mim.
Cada dia mais juvenil.
— Roman Prince, o soberano dos vampiros, vai se sentar no chão! —
Ela ri, se acomodando de pernas cruzadas e batendo no espaço vazio ao seu
lado. — Que filme vamos ver?
— Lila tinha sugerido algo que se chama “A Princesa Prometida”,
aparentemente um clássico. — Ajusto as minhas calças, antes de me abaixar
com o máximo de dignidade que a situação permite. — Mas achei que
poderíamos ver aquele que você sempre fica tagarelando sobre.
— Hotel Transilvânia? — Agora, seus olhos brilham. — Eu disse que
acabaria te convencendo a ver desenhos! — gargalha, sem nem tentar
esconder que está zombando de mim.
— E é por isso que trouxe tantas garrafas de vinho — resmungo,
alcançando a primeira e servindo em duas taças, enquanto ela se ocupa em
procurar o tal desenho no seu celular.
Assim que os créditos iniciais começam, aceita a bebida e começa a
atacar a comida, escolhendo a torta de brócolis como eu sabia que faria —
tem uma inclinação vegetariana que ainda não percebeu.
Seus olhos nem piscam ao olhar para a tela, hipnotizada pela história,
a noite está agradável e eu sinto que está relaxada, tranquila, como eu
planejava.
Está tudo correndo bem.
— Gostaria de saber de onde vocês tiraram essa ideia de que nós nos
transformamos em morcegos! — reclamo, acabando envolvido pelo enredo
absurdo. — Criaturinhas nojentas.
— Shiu! — ralha comigo, passando a atacar os chocolates.
Logo se dá por satisfeita e começa a fazer o seu ritual de afofar os
travesseiros sem parar. Suspirando, eu escolho um deles e coloco no meu
colo, mandando que se deite, antes que passe meia hora fazendo a mesma
coisa.
Parece funcionar, porque ela se aquieta. Movo minhas mãos para os
fios prateados e enrosco meus dedos ali, começando a massagear seu couro
cabeludo em um ritmo distraído.
— O que está fazendo? — pergunta, mas não se move um centímetro
sequer. Sei que está gostando, o laço está vibrando de contentamento.
— Ouvi dizer que se chama cafuné.
— Você está fazendo cafuné?
— Sim.
— Por quê?
— Carinho, humana — falo, como se fosse óbvio. — Você deveria
tentar, qualquer animal gosta.
— Você se acha muito esperto, não é?
— Sou um gênio por alguns padrões. — Sigo com a minha carícia,
hipnotizado com quanto o movimento a relaxa. — Quer que eu pare? —
ofereço, apenas para provocá-la.
Ela bufa, sem dar o braço a torcer.
— Qual é o próximo passo? Flores? — debocha.
— Não, você não é uma garota de flores — respondo, sem pestanejar.
— Tenho outra coisa em mente, mas vai levar um pouco mais de tempo do
que eu gostaria.
Plantar um gramado para ela, como o que tinha na sua casa, será uma
tarefa e tanto. Talvez eu pudesse tentar contato com alguns elementais de
terra para agilizar o processo...
Paciência é uma virtude.
E virtuoso, eu não sou.
— Devo ter medo? — questiona, se movendo mais contra o meu
toque.
— Sempre. — Continuo o cafuné, um silêncio confortável caindo
entre nós, enquanto prestamos atenção na história. — O humano da Mavis é
tão irritante quanto você.
— Eu adoro o Jonatan!
— Claro que adora, ele é seu irmão perdido.
Ela ri, satisfeita, aposto que considerou um elogio.
Não foi.
— Hey, está confortável sentado aí? Não quero que trave a coluna.
Na sua idade, sabe, deve ser um problema — tagarela, mas estou sentindo
uma dose de vergonha.
Talvez ela queira que eu me deite ao seu lado?
E esse foi o modo que encontrou para pedir?
De qualquer jeito, não é uma ideia que eu recusaria.
Movo nós dois até conseguir deixá-la deitada à minha direita, nossos
rostos próximos. Ela está me encarando, esquecendo do seu filme, então
aproveito para me aproximar, sondando suas reações para ver o que quer.
Encontro apenas desejo.
Começo minha exploração deixando o meu nariz deslizar pelo seu
pescoço, sentindo o seu delicioso cheiro familiar. Mordisco de leve ali,
traçando um caminho de arrepios, para deixar um beijo demorado na sua
pulsação.
Então, puxo-a para o meu peito e volto uma mão para o seu cabelo,
enquanto a outra a abraça e descansa na sua cintura, por baixo do seu
casaco, direto na sua pele. Começo a fazer um movimento de vai e vem,
porque ela é macia demais para resistir.
“Roman”, diz, em um tom que eu aposto que deveria ser um aviso,
mas acaba saindo um ronronar perfeito.
“Shiu, estou fazendo carinho”.
“Deus me ajude”, finge reclamar e relaxa contra mim ao mesmo
tempo, seu laço se espreguiçando saciado.
Feliz.
Ela acaba dormindo antes do final do filme e eu aproveito mais
alguns minutos da sua proximidade, antes de nos levantar com cuidado para
não a despertar, e nos lançar no ar, retornando ao castelo.
Eu a coloco na nossa cama e, mesmo que esteja em sono profundo,
ligo a TV em uma das suas séries. Tiro suas botas, pego Céline para colocar
debaixo do seu travesseiro como gosta e ajeito o cobertor por cima do seu
corpo.
Tão linda.
Antes que eu possa me afastar para me trocar, ela segura o meu braço,
me impedindo de sair.
“Fique”, pede, me dando um déjà-vu da noite em que a encontrei. E
eu não poderia deixar de obedecer.
Chuto meus sapatos e escalo o colchão, indo para o meu lado. Mal
acabo de me deitar e ela já dá um jeito de se acomodar no meu peito,
soltando um longo suspiro satisfeito.
Nunca tive um encontro humano antes...
Mas aposto que esse foi um dos bons.

**
Humana

— Por que vamos voltar ao Centro de Formação? — pergunto,


enquanto ele dirige o Chiron pelo trânsito de Ilaria, depois de deixarmos a
Nobre Academia Real. Não imaginei que fôssemos sair, não tinha nada na
sua agenda programado para hoje à tarde. Estava planejando fazer a minha
lavanderia e talvez comprar mais algumas roupas pela internet, agora que
recebi o meu primeiro pagamento.
Planos necessários, inclusive.
Uma garota precisa de calcinhas.
— Lembra daquele menino com quem fiquei conversando na nossa
última visita? Matteo? — explica e eu ofego em surpresa, juntando todos os
pedaços de informações que ouvi nos últimos dias.
— Aquela fofura é o Matteo? — Uma onda de tristeza cai sobre mim,
ao entender do que estamos falando. — Foi ele quem perdeu os pais?
— Sim.
— Mas... Mas... — Balanço a cabeça. — Como?!
Na minha cabeça, ainda é difícil assimilar que vampiros possam
morrer. Ainda mais vampiros que deveriam ser relativamente jovens, se
deixaram um garoto tão novinho para trás.
— Eu não os conhecia, mas pelo que soube, tiveram seu filho quando
eram mais velhos e eram aeternus, então os dois se foram de uma vez.
Ah, aeternus. Não sei se essa coisa de morrerem juntos é uma benção
ou uma maldição.
— Pobre criança. — Tenho que engolir o embargo na minha
garganta, para não me debulhar em lágrimas aqui, a poucos minutos de
chegarmos em um compromisso oficial.
Por mais que eu não veja meus pais tanto quanto gostaria, eles estão a
apenas uma ligação, ou um voo, de distância. A ideia de nunca mais poder
ouvir a risada deles, de nunca mais poder abraçá-los, de não comer aquela
bagunça de cuscuz que fazem juntos... Dói. Dói tanto que eu pego o meu
celular na bolsa e mando uma mensagem rápida, dizendo que os amo.
Roman deve ter sentido o rumo da minha mente, porque uma das suas
mãos abandona o volante para apertar o meu joelho, em um gesto de
conforto. Sei que não deve ser um assunto fácil para ele também, a
quantidade de recordações que deve despertar... Acabo movendo meus
próprios dedos, enrolando-os aos seus e apertando forte, tentando retribuir
um pouco de consolo.
— E tem alguém para cuidar dele? — consigo perguntar, depois de
recuperar uma migalha do meu controle. — Alguém que poderá assumir
sua guarda?
— Ainda não encontramos ninguém. — Suspira, com uma tristeza
bem diferente da sua pose tão controlada. — Ele está ficando no Centro,
mas não é uma solução definitiva. Não temos nem estrutura, nem pessoal
para isso. — Impotência chega até mim pelo laço e eu sinto que ele está
decidido a fazer alguma coisa.
— É uma causa pessoal para você, não é? — externo as minhas
suspeitas. — Pelo que te aconteceu?
— Eu não deveria ter ficado sozinho e Matteo também não deve —
afirma, com tanta certeza, que me faz decidir que vou ajudá-lo, seja como
for.
Vamos achar uma solução.
Juntos.
— Existem orfanatos vampiros? — indago, sondando nossas opções,
mas ele balança a cabeça em negativa.
— Não há muitos casos de órfãos jovens, graças à nossa expectativa
de vida. — Ele estaciona na frente do lugar e só então eu percebo que ainda
estamos com os dedos entrelaçados, apertados com força, por nós dois.
Deve ser efeito daquela coisa de “encontro”.
Para a minha total surpresa, ele levanta nossas mãos até os seus lábios
e deixa um beijo suave nas costas da minha. Provavelmente, a coisa mais
doce que um homem já fez comigo. Melhor do que isso, só se ele tivesse
combinado com a parte de deixar suas presas me arranharem.
Não, não vamos pensar no que essa tara por sangue diz sobre mim.
Vou deixar para me preocupar se eu desenvolver uma vontade súbita de
provar Blut-X.
Eca.
Nós nos desvencilhamos em seguida e ele dá um pequeno sorriso
arrogante, sentindo o quanto me afetou e adorando cada segundo.
Vampiro ridículo.
Desço do carro apressada, precisando colocar um pouco de distância
entre nós. Ele me segue, fazendo uma pausa para ajeitar o seu terno até que
esteja a imagem do soberano perfeito. Eu também planto a minha expressão
de scriba no rosto, e só então nos encaminhamos juntos para a entrada do
espaço.
A aparência pública perfeita, porque toda nossa confusão está retida
nos confins do laço. Não importa a fachada que apresentemos para o
mundo, temos o nosso pequeno universo próprio, onde há apenas
honestidade.
Esse segredo compartilhado me faz sorrir sozinha.
Sou a única que conhece o verdadeiro Roman Prince.
Cada sentimento. Cada pensamento.
Todos os lados bons que não mostra para ninguém.
As vulnerabilidades do homem.
Os medos do rei.
E, agora, o garoto assustado que se enxerga em Matteo.
“O que é isso?”, pergunta, sem conseguir identificar o que eu estou
sentindo.
Não ouso responder, porque suspeito que seja algo muito mais
preocupante do que um simples carinho...
Para a minha sorte, a mesma mulher da visita anterior aparece na
nossa frente, nos recepcionando e nos levando para o grande pátio onde os
jovens estão reunidos em uma espécie de hora do recreio. Não demora para
notarmos Matteo. Ele se destaca por ser o único que está lendo, sozinho em
um canto, enquanto os outros estão espalhados em pequenos grupos, rindo e
conversando.
Mesmo sendo jovens, se curvam em reverências ao notarem a
presença do seu soberano. Roman ruma direto para o garoto, que abre um
enorme sorriso ao perceber a aproximação. Eles logo começam a conversar
e eu me obrigo a ficar onde estou, lhes dando um pouco de espaço.
E porque adoro observar a interação dos dois.
Roman parece quase humano, não o líder sobrenatural, encarando o
garoto com gentileza.
Calma, coração.
Sei que temos séculos de vida, mas pega leve.
A coordenadora logo chama a atenção do homem e o guia para um
outro grupo de adolescentes mais velhos. Aproveito a deixa para me
aproximar de Matteo, sentindo uma necessidade súbita de conhecê-lo
melhor.
Ele voltou a se sentar no chão, então faço o mesmo, sem pensar muito
no que significa para uma scriba.
Dane-se a etiqueta.
— Hey — cumprimento e ele me encara assustado, mas com uma
nota de curiosidade.
— Lady Scriba — faz menção de se levantar para uma reverência,
mas eu o impeço, pedindo para que continue sentado.
— Matteo, certo? — pergunto e ele balança a cabeça, confirmando.
— E você é uma humana de verdade! — exclama, sem se conter, e
parece arrependido em seguida, abaixando a cabeça para desviar o olhar. —
Me desculpe.
— Nada que se desculpar. — Eu rio. — Sou 100% humana e nada
ofendida por isso.
— Você não tem medo? — pergunta, baixinho, ainda encarando os
seus tênis simples e gastos, seu cabelo escuro ajudando a esconder seu
rosto. — De estar no meio de...
— Vampiros? Nenhum — garanto e ergo a minha calça alguns
centímetros, mostrando Céline descansando no cano da minha bota. —
Além disso, sou durona.
— Legal! — exclama, impressionado, e eu me mudo para mais perto,
para provar o meu ponto de que não me importo, nem um pouco, por estar
cercada de seres que poderiam sugar todo o meu sangue.
Bom senso nunca foi o meu forte.
— Você gosta de ler? — pergunto, tocando a capa do exemplar nas
suas mãos, que é diferente do que estava lendo na nossa última visita.
— Sim, mas as opções daqui são uma mer... — Consegue se segurar
antes de praguejar. — Escassas.
Eu rio mais uma vez.
— Você não tem um Kindle? Ou um celular para ler e-books?
— Meus pais não eram exatamente ricos, nem acreditavam muito em
tecnologias humanas — explica e aposto que, se a sua pele sobrenatural o
deixasse corar, suas bochechas estariam vermelhinhas de vergonha.
TÃO FOFO.
— Posso resolver isso.
Puxo a minha bolsa e reviro toda a bagunça até tirar o meu próprio
Kindle novo dali. Ainda não comprei calcinhas, mas o Kindle eu garanti.
Sou uma garota com as prioridades certas.
Estendo-o na direção do menino, que o pega com reverência, depois
de piscar assustado.
— Para você. — Deixo claro. — Um empréstimo, até que tenha o seu
próprio. E já assinei aquele sistema do Unlimited, então pode alugar
quantos quiser.
Só preciso lembrar de excluir os poucos romances que tinha baixado.
E de ligar o controle de faixa etária, depois de descobrir quantos anos,
exatamente, Matteo deve ter na conversão humana.
Talvez cento e treze sejam treze?
— Eu não posso aceitar. — Tenta me devolver, mas eu faço um gesto
de dispensa com a mão.
— Sua scriba ordena que você aceite — anuncio, com toda pompa, e
ele ri da minha idiotice.
— Acha que conseguimos encontrar alguns livros de fantasia? —
questiona, cheio de expectativa.
— Milhões!
Eu explico como usar o aparelho em um tutorial rápido e como
separar os títulos por categorias. Para a minha surpresa, ele quer ler
justamente histórias sobre vampiros.
Alô, Edward Cullen!
— Eu quero ser escritor um dia — confessa para mim, sua pequena
mãozinha rolando faminta pelos títulos de literatura infantojuvenil,
alugando tudo que encontra.
— Aposto que você será — digo e ele interrompe sua busca para me
encarar cheio de esperança.
— Mesmo?
— Mesmo — confirmo. — Porque todos os grandes autores
começaram como grandes leitores e você, Matteo, já é um grande leitor.
Ele fica em silêncio, me encarando com o rostinho cheio de emoções,
como se quisesse absorver as minhas palavras, como se estivesse fazendo
um desejo para que fossem verdade.
Vontade de apertar essas bochechas!
— Você é legal — admite e, para um pré-adolescente, esse deve ser o
maior elogio possível.
— Diga isso para o meu chefe na próxima vez que encontrá-lo. —
Dou uma cotovelada de brincadeira nele, que me presenteia com outro
sorriso, e começamos a falar sobre os livros que estamos buscando.
É assim que Roman nos encontra vários minutos depois. Satisfação
chega até mim pelo laço, seus sentimentos menos sombrios e muito mais
quentes dessa vez. Estão quase se tornando coloridos. Juro que o cinza
parece azul, se eu prestar bastante atenção.
Bagunço os cabelos do menino uma última vez e deixo os dois se
despedirem, lhes dando um pouco de privacidade. Roman se agacha ao seu
nível e conversam algumas coisas, sérias pelas suas expressões. Matteo dá
um aceno solene e depois mostra o Kindle na sua mão, o que arranca um
sorriso do meu vampiro.
Ugh, seus sorrisos...
Quando acabam, ele se junta a mim perto da saída, aguardamos as
reverências e seguimos para o Chiron em silêncio. Nossa conexão me diz
que nós dois estamos afetados demais para falar.
— Ele é um bom menino — comento, assim que entramos na
segurança do carro, ficando sozinhos. Roman está tão atordoado que nem
parece se lembrar de que deveria dar partida.
— Ele é — suspira, em concordância, e é como se eu pudesse ver as
engrenagens do seu cérebro funcionando a todo vapor.
— Nós temos que fazer alguma coisa — digo, decidida, sabendo que
é nisso que está pensando. Buscando uma saída, um final feliz.
Tem que ter um final feliz.
— Sim. — Ele se vira para mim, com determinação emanando como
ondas do seu corpo. — Eu queria muito adotá-lo, Amélie. Não é como se eu
fosse ter um herdeiro, você sabe, e nenhuma criança deveria ficar sozinha.
— Despeja as palavras, sem nem parar para respirar. — Nenhuma criança
deveria ter que se preocupar em se criar, deveria ter o medo de estar sozinho
neste mundo. Eu ainda tinha o meu dinheiro, mas Matteo não tem nada e...
Seguro seu rosto com as duas mãos e interrompo o seu discurso com
um beijo. Um beijo longo, demorado, com tudo que eu tenho. Línguas,
mãos e almas. Não me importo que estejamos em público, não me importo
que alguém poderia nos ver, não me importo que deveria ser apenas sua
scriba aqui.
Eu preciso da nossa conexão.
Como da primeira vez, o mundo desaparece. Eu saio do meu corpo,
flutuando circundada, sustentada, pela energia do aeternus.
— O que foi isso? — pergunta, ofegante, com sua testa encostada na
minha, quando eu me afasto em busca de ar. Íris vermelhas me encaram,
desfocadas, o aeternus vibrando de alegria.
— Você estava sendo incrível — reclamo e ele sorri. SORRI.
Puxo seu rosto de novo e o beijo, sem resistir.
Ele assume o controle, me dominando com sua língua, com seus
lábios, com suas mãos, tomando tudo, me fazendo cogitar seriamente
escalar o painel do carro, arrancar suas roupas e não deixar nada entre nós.
Imagina como seria a sensação de tê-lo dentro de mim...
— Vai ser sempre assim? — questiono, tentando voltar para a Terra,
meu corpo tão aceso que parece ter passado por uma descarga elétrica.
— Terá de continuar me beijando para descobrir — provoca, com o
seu sorriso arrogante. — A propósito, humana, teremos nosso segundo
encontro essa noite.
Em nome do todo poderoso Drácula, como se o primeiro não tivesse
sido suficiente para me deixar ainda mais perdida.
— Vamos ver Hotel Transilvânia 2? — brinco, para disfarçar minha
excitação.
— Existe uma continuação? — Faz uma careta, finalmente se
recuperando o suficiente para dar partida e manobrar para fora do
estacionamento.
— São quatro filmes, dois curtas e acho que há uma série de
desenhos também — informo, eficiente, e nem precisa voltar seu rosto para
mim, para eu saber que está revirando os olhos.
— Na verdade, pensei que poderíamos fazer uma visita ao lixo do seu
ex, apavorar ele um pouco e pegar a Céline original de volta — conta, com
um brilho assassino no olhar.
Meu queixo cai.
Não sei o que estava esperando, mas com certeza não era isso.
— Jura?
— Juro.
— Você faria isso?
— Difícil vai ser você me tirar de lá sem arrancar algum membro do
idiota.
Penso um pouco...
Até concluir que não há nada que pensar.
— Eu topo! — Mal anuncio e ele já vira o carro com tudo no mesmo
segundo, fazendo uma conversão proibida, cantando pneus.
Não vou nem pensar em como ele sabe qual o endereço de Wilbur,
mas não levamos dez minutos para estacionar na frente da casa que vivi
durante tantos anos.
“Hey, Roman”, chamo, assim que desliga o motor, precisando
encerrar o nosso assunto anterior, antes de embarcarmos na nossa próxima
bagunça.
“Sim?”.
“Se você adotar o Matteo, não poderia fazê-lo ser o seu herdeiro?”.
“Eu não sei”.
“Acho que você conseguiria convencer qualquer um a qualquer
coisa”, falo, com honestidade.
“Vou estudar algumas opções, prometo”.
“Se o mundo soubesse que sou sua aeternus, eu iria amar adotá-lo
com você”.
Nem sei se disse a última parte pelo laço, mas sei que me pego
desejando que esse pudesse ser o meu futuro, enquanto desço do carro e me
preparo para encarar o meu passado.
O doce sabor da vingança... Que livramento, amiga!
Roman

Faço questão de que ela mesma toque a campainha da pequena casa


— que já viu dias melhores. Se eu tivesse que apostar, diria ser Amélie
quem mantinha esse lugar. O gramado que ela amava agora não passa de
um grande matagal. Esse verme não parece se dar ao trabalho nem de tirar o
próprio lixo. Fileiras de latas de cerveja enfeitam o pórtico da entrada, ao
lado de uma cadeira de balanço gasta. Também há caixas de pizza
empilhadas, formando um banquete para as moscas que ali sobrevoam.
— Nojento — exclamo e ela concorda, o rosto perfeito contorcido em
uma expressão de desgosto.
— Ele nunca ligou muito para limpeza, mas imaginei que contrataria
alguém para fazer o trabalho que eu fazia — comenta, ao mesmo tempo que
começamos a ouvir passos vindos do lado de dentro.
É agora.
Sondo sua reação pelo laço, mas encontro apenas coragem. Está de
queixo erguido e com a expressão firme, pronta para uma batalha. Nem está
tocando sua tatuagem, no gesto inconsciente que costumava ser como um
tique nervoso.
Está decidida.
E não creio que já tenha sentido tanto orgulho de alguém.
Para demonstrar isso, busco sua mão e entrelaço nossos dedos,
apertando com força, como fizemos no carro. Ela aperta de volta e me dá
um sorriso que diz “eu consigo”.
É claro que ela consegue.
Ela conseguiria fazer qualquer coisa.
Uma chave destranca a fechadura, a maçaneta é girada e, finalmente,
eu me vejo cara a cara com o homem que machucou minha aeternus finis.
O laço rosna enfurecido, pedindo que eu faça doer tanto quanto doeu
nela. Que eu faça doer mais. Uma vingança lenta e cruel.
Veneno se acumula na minha boca e preciso travar os dentes para
impedir que as minhas presas desçam. O predador está pronto para assumir
e se divertir, mas preciso lembrar que não é sobre mim.
Este momento é dela.
— Ames! — ele exclama ao ver minha humana, seu rosto inchado e
vermelho se abrindo em um enorme sorriso tão nojento quanto a sua
varanda.
— Wilbur — responde, seca, e nada impressionada.
Seu olhar de desprezo é páreo para o meu.
— Tentei te ligar, mas você mudou seu número?! — Estende os
braços, como se fosse abraçá-la, mas ela dá um passo para perto de mim,
desviando do contato.
— Sim, eu mudei. — Dá toda uma ênfase na última palavra,
implicando que muito mais mudou.
E como mudou.
Ele deixa as mãos caírem ao lado do seu corpo, sem entender sua
recusa. Como se não pudesse conceber a ideia de que Amélie não quer que
ele a toque.
Nunca mais vai encostar um dedo nela, verme.
— Esse é Roman Prince. — Aproveita a deixa para me apresentar e,
apenas então, ele percebe a minha presença.
O ar caloroso desaparece.
Seu rosto idiota se contorce em uma careta desagradável.
Ótimo.
— O noivo — acrescento, porque acredito ser o equivalente humano
mais próximo da relação que temos. Vou guardar o termo “casados” para
quando assumirmos nosso aeternus para o mundo.
Porque nós vamos assumir.
Depois do que ela disse sobre Matteo?
Eu vou para a guerra se for preciso, lutar até fazer com que aceitem
que a minha aeternus finis é ela.
Humana. Irritante. E minha.
Vou lhe dar uma aliança e uma festa tradicional, se quiser. E teremos
a cerimônia em que estará vestida com o manto tradicional dos Prince —
não o de scriba, mas aquele reservado para a minha rainha —, e eu poderei
reverenciá-la na frente de todos, clamando-a diante dos meus súditos.
Para sempre.
— Noivo? — pergunta o ex, embasbacado e surpreso, sua voz saindo
com um ruído estrangulado.
Ah, que lindo som.
— Sim — afirmo, tranquilo, sustentando sua encarada e deixando
que ele me analise de cima abaixo.
Sei que está sentindo o que todos os humanos sentem... Perigo. Algo
primitivo os avisa de que não devem se aproximar, de que sou uma ameaça.
Nunca foi tão verdade quanto agora.
Quando chega ao meu rosto, deixo que minhas íris mudem de
castanho para vermelho em um piscar, retornando ao normal em seguida,
apenas por tempo o suficiente para que dê alguns passos para trás,
apavorado.
E estamos apenas começando.
— Eu só vim buscar as minhas coisas, — Amélie retoma as rédeas da
conversa, decidida, e faz menção de entrar na casa.
Então, o idiota tem a brilhante ideia de colocar um braço no batente,
impedindo a sua passagem. Um rosnado escapa da minha garganta, feroz e
letal. Dou um passo para frente, pronto para lhe ensinar algumas boas
maneiras, e ele encolhe no lugar, se apressando a se justificar:
— Eu não estava esperando visitas — guincha, desesperado. — A
casa não está arrumada, sabe, uma bagunça. Talvez possam voltar outro dia
e...
“Ele está mentindo”, ela me diz e eu concordo. Além de tudo, é um
péssimo mentiroso. Como esse covarde conseguiu um cargo no serviço
secreto? Preciso trocar uma palavra com Nikolai sobre o seu departamento
de Recursos Humanos lastimável.
Não queria deslizar para dentro dessa mente fétida — se eu acabar
tropeçando em alguma lembrança dele com Amélie não vai ser bonito —,
mas não tenho outra opção.
Preciso entender o que está escondendo.
Basta um segundo de investigação para eu descobrir qual é o
problema, me retirando logo de dentro dessa pilha de lixo. Se fosse
possível, esfregaria álcool em gel no meu próprio cérebro, para apagar a
sensação de ter encostado nele. Tão nojento quanto a bagunça da sua porta.
“Ele vendeu as suas coisas”, aviso e solto sua mão, para estalar as
minhas juntas, pronto para lhe dizer, ou mostrar, umas boas verdades.
Mas ela é mais rápida.
— Você vendeu a Céline? — rosna, tão feroz quanto eu, e ele
arregala os olhos, surpreso pela sua reação. Abre e fecha a boca algumas
vezes, como se não soubesse o que responder.
Hum...
Não.
Paciência nunca foi o meu forte.
Usando a minha velocidade sobrenatural, eu acabo com o espaço
entre nós, antes que sequer perceba a minha aproximação, o empurrando
contra a parede, sem poupar nada da minha força.
O barulho alto do seu corpo esmagado contra o cimento é música
para os meus ouvidos e o vejo perder o ar, uma expressão de dor no seu
rosto.
— Ela. Fez. Uma. Pergunta — digo pausadamente, em um tom claro
de ameaça, e reparo que está começando a ficar roxo.
Talvez eu esteja apertando demais o seu pescoço, cortando sua
respiração e tudo mais. Ainda assim, não o solto. Não consigo.
Bom, acidentes acontecem.
Uma pena, realmente.
— Roman. — A mão da humana se posta no meu ombro, com um
pedido claro, e eu me obrigo a soltá-lo depois de alguns segundos.
Contra a minha vontade, que fique claro.
Vê-lo curvado, ofegante, em busca de ar, deveria ajudar a me
acalmar. No entanto, ainda parece simplório demais.
— Você não levou nada quando foi embora, depois não voltou para
buscá-las, achei que não as queria — ele suplica, quando consegue
recuperar seu fôlego. — Podemos falar a sós, Ames?
— Amélie — corrige, sem se abalar. — E não, não podemos.
“Ele não devia dizer nome nenhum”, resmungo e ouço sua risada
dentro da minha cabeça.
Que bom que alguém está se divertindo.
O homem volta a se erguer e esboça um resquício de dignidade,
tentando endireitar sua postura, fingindo coragem.
— Você está sendo mantida a força por esse homem?
Agora ela ri em voz alta, bem na sua cara.
“Imagina um mundo em que você fosse capaz de me obrigar a fazer
alguma coisa?”.
“Eu começaria te fazendo colocar as malditas pantufas no lugar
certo”, resmungo e ela ri mais.
— Não, eu não estou sendo mantida a força por ninguém. — Balança
a cabeça, ainda se divertindo com a ideia. Se divertindo um pouco demais
para o meu gosto.
— Se um dia quiser conversar... — sugere o idiota e não posso nem
dizer “só por cima do meu cadáver”, porque estamos muito próximos de
que o cadáver seja ele.
Ninguém sentiria a sua falta.
— Eu não quero — Amélie anuncia, com firmeza, sem uma gota de
dúvida. — E me deixe te dizer exatamente o que vai acontecer agora... —
Dá um passo para frente, o encarando de perto. — Você vai vender essa
casa e vai me dar metade do dinheiro, porque ela é tão minha quanto sua. E
terá uma semana para encontrar Céline e mandar entregá-la na Nobre
Academia Real, aos cuidados do professor Prince. Depois, quero que nunca,
eu repito, nunca mais sequer se lembre de que eu existo. Estamos
entendidos?
Ele fica quieto, assustado e confuso.
Pisca sem parar, abrindo e fechando a boca.
Ela o surpreendeu e não foi pouco.
Esse palerma realmente achou que ainda tinha algum controle sobre
Amélie. Aposto que se arrependeu ao se ver sozinho, ao perceber que tinha
perdido a melhor coisa que havia lhe acontecido e, quando a encontrou na
sua porta, deve ter sido arrogante o bastante para pensar que teria voltado
para que continuassem de onde pararam.
Patético.
Tão patético.
Até para os padrões humanos.
— Responda — ordeno, com toda autoridade, e isso parece fazê-lo
despertar do seu transe.
— Entendi — murmura, contrariado, e eu deixo meus olhos ficarem
vermelhos outra vez, me demorando um pouco mais, até que solte um
gritinho ridículo.
Bons pesadelos, idiota.
— Que bom! Nos vemos nunca mais — cantarola Amélie, feliz, se
virando para pegar minha mão na sua, caminhando com passos decididos
para o carro, sem olhar para trás uma vez sequer.
“Não deveríamos ir embora deixando-o com todos os membros que
tinha quando chegamos”, reclamo e ela aperta mais os seus dedos.
“Ele é um covarde orgulhoso, que tinha certeza de que poderia me ter
de volta quando quisesse, mas acabou de descobrir que não será assim”,
resume, seu tom leve e alegre. “E ainda está me observando ir embora em
um Bugatti, com o homem mais bonito que já existiu. Acredite, isso é uma
vingança pior do que os empalamentos do vovô Vlad”.
“Você deveria ter dito que eu tenho um castelo também”, brinco,
emprestando um pouco das suas emoções néon para me acalmar.
“Droga, o castelo era uma boa”, finge um suspiro exagerado. “Melhor
do que isso, só se pudéssemos contar sobre a coisa de ser rei. E do seu
tamanho”.
“Você nunca viu o meu tamanho”, eu a lembro, mudando toda a
minha concentração para não deixar que meus pensamentos nada
apropriados cheguem até o laço.
Não posso pensar na relação entre ela e nenhuma parte da minha
anatomia. Especialmente, essa parte, que parece estar concentrando todas
as minhas terminações nervosas neste momento.
“Não vi, mas senti muito bem”, a frase chega até mim tão baixo que
nem sei se queria que eu ouvisse.
“Você pode sentir mais, quando quiser”, ofereço, sem ser capaz de me
conter.
“Está flertando comigo, Roman Prince?”, provoca de volta, ao
pararmos no lado do passageiro do Chiron e eu abrir a porta para ela,
caprichando na nossa cena para o seu ex.
— Estou. — Não tenho problemas para admitir em voz alta, me
inclinando para deixar um beijo no seu pescoço. Termino com um tapa na
sua bunda, quando se desvencilha para entrar.
Ao contrário de mim, sua reação explode pelo laço, antes que pudesse
escondê-la. Ela gostou. Bastante. Tanto quanto eu.
Antes que o show saia do nosso controle, fecho a porta e dou uma
última olhada na direção da casa. O homem ainda está ali, lançando um
olhar assassino na nossa direção.
Aceno para ele, dando um enorme sorriso com um vislumbre de
presas, para garantir que terá mesmo sua dose de pesadelos. Um dos lados
bons de ser uma criatura sobrenatural é ter a certeza de que ele não contará
para ninguém, pelo simples motivo de que ninguém acreditaria.
Talvez eu possa voltar no meio da noite.
Aparecer flutuando sempre faz com que percam o juízo.
Satisfeito com o meu plano, ocupo meu posto no lado do motorista,
acelerando o motor, antes de cairmos no trânsito da cidade.
— Achei que o primeiro encontro tinha sido bom, mas vai ser difícil
superar esse, vampirão — diz toda animada, quase saltitando no banco de
empolgação com o que acabamos de fazer.
— Ameaçar pessoas é sempre divertido — concordo e talvez eu
esteja começando a entender o que Chris disse sobre ela ser perfeita para
mim...

**
Humana

Assim que chegamos ao Castelo Rot, eu me refugio na cozinha,


precisando colocar minha confusão de pensamentos e sentimentos em
ordem.
Estou muito, muito surpresa com o que fui capaz de fazer.
Eu enfrentei Wilbur!
Eu o mandei vender a bendita casa, finalmente!
Meus pais não vão nem acreditar quando eu contar.
Algo me diz que dará um jeito até de recuperar a Céline original, de
tanto que Roman o assustou. Foi perfeito, tudo perfeito.
Mas tem uma outra grande bagunça ocupando espaço na minha
cabeça. Uma bagunça enorme, cheirosa, com um par de presas e que parece
estar decidida a me enlouquecer.
Depois de tomar dois copos de água e mais uma vez me questionar se
é hora de encontrar aquela garrafa de absinto, decido que ligar para Lila é a
decisão mais saudável. Para o bem da minha dignidade e do meu fígado.
Preciso apenas de uma dose de sensatez.
— Por algum motivo maluco, Roman Prince parece estar decidido a
me conquistar — explodo, assim que ela atende à ligação, uma risada
chegando até mim do outro lado da linha.
— Eu sei — responde, tranquila, e a ouço murmurando algo ao fundo
para Christian. Uma porta bate e suspeito que tenha mudado de cômodo,
para ter mais privacidade.
Como se os vampiros enxeridos não tivessem sua super audição.
— Você sabe? — questiono, surpresa e curiosa pela sua resposta.
— Eu o ajudei — explica a pequena traidora, seu tom indicando que
não vê problema nenhum em estar no meio disso.
— Lila! — protesto, indignada.
Esse homem sozinho, parado, sem nem respirar, já seria um perigo.
Mas com ajuda do cérebro maligno dela? Tenho certeza de que não terei a
menor chance.
— Qual é o problema? — questiona, ainda sem se abalar. — Ele é
sua alma gêmea, garota!
— Eu sei!
— E me pediu ajuda.
— Como se precisasse...
— E eu amo os dois e quero vê-los felizes — fala isso de um jeito tão
prático, tão objetivo, que sei que nem adiantaria protestar. Teimosia é um
traço bem comum por aqui. — A propósito, como ele está se saindo?
— Ridiculamente bem. — Suspiro. — Se estava difícil resistir antes,
agora...
— Então, não resista.
— Você sabe como as coisas acabaram na última vez que decidi dar
uma chance para os meus malditos sentimentos burros!
A linha fica em silêncio.
Eu já a conheço o suficiente para saber que está pensando nas suas
próximas palavras, ponderando com calma qual será o seu argumento.
E sei que vai ganhar essa discussão.
Não consigo imaginar Lila perdendo nada.
— Chris me contou sobre o que conversaram com Amadeo, sabe?
Sobre ele pagar por crimes que não cometeu. — Começa, tomando um
rumo bem inesperado. — Amélie, você está fazendo o mesmo com Roman.
Obrigando-o, e a você mesma por tabela, a pagar por crimes que outra
pessoa cometeu!
Agora, sou eu quem fica em silêncio.
Maldita mente genial.
Ela tem toda razão...
Eu estou fazendo isso...
— Adoro quando estou certa! — ela cantarola, satisfeita. — E é
melhor se preparar, porque mandei Roman dar um jeito de aparecer com o
mínimo de roupa na sua frente e já tive que examiná-lo uma vez. Sei o que
está escondendo por baixo daquelas camisas engomadas... — Um rosnado
me escapa, alto e ameaçador. — Calminha, calminha. Foi apenas uma
opinião imparcial, juro.
— Desculpe — peço, tentando respirar para controlar o laço. — É
mais forte do que eu.
Ô, conexão maluca, Lila não quer nada com Roman!
Sossega!
— É tão forte que você deveria parar de se torturar e aproveitar o
homem literalmente feito para ser seu!
— E quanto a você? — retruco, no mesmo tom provocativo.
— O que tem eu? — se faz de desentendida.
— O que conversamos sobre você e Chris viverem pelo menos um
pouco desse tesão reprimido todo, antes que um aeternus apareça para ele?
Se aparecer, o que eu duvido muito. O laço deve ser esperto o
suficiente para ver que são a tampa e a panela. Não tem como “a magia
mais antiga e poderosa” ser tão burra.
— Nós não temos esse tipo de relação, já disse — reclama, tão na
defensiva que só prova o meu ponto de “tesão reprimido”. Quando,
finalmente, derem o braço a torcer, aqueles dois vão quebrar algumas
camas.
— E eu já disse que não acredito! — insisto. — Você está, ou não, na
casa dele agora?
— Estou — admite, contrariada. — Mas não quer dizer nada!
— E não passou as últimas noites aí também?
— Sim, só que...
— E não tem vontade de esquartejar qualquer um que pense em
chegar perto do seu Chris?
— Grande coisa — afirma, entredentes, seu ódio tão claro quanto o
amor dele por delineador e esmalte preto.
— Sua negação é ainda pior do que a minha — rio, sem me conter.
— Com a pequena diferença de que eu não tenho uma alma gêmea
predestinada! — explode, com uma nota de mágoa. — Muito pelo
contrário, na verdade. Esse conceito ridículo é quem vai tirá-lo de mim.
— Se fosse você no meu lugar, aconselharia para que eu aproveitasse
enquanto posso — afirmo e ela sabe que é verdade. — Vai dizer que não
tem um pinguinho de curiosidade para descobrir se sua química vai além da
amizade?
— A curiosidade matou o gato.
— Mas não o vampiro — debocho. — Pare de pensar demais e me
ligue amanhã para contar como foi traçar cada uma daquelas tatuagens com
a sua língua!
— Humanos são mesmo irritantes — resmunga, em um tom
rabugento, mas juro que identifico uma nota de carinho por baixo de tudo,
antes que desligue.
Faça eles se pegarem, Universo.
Nunca te pedi nada, vai.
Volto para o quarto, ainda me perguntando o que deve estar
acontecendo com aquele par improvável, e encontro o segundo filme de
Hotel Transilvânia na tela da minha TV, esperando por mim.
Ah, Roman.
Encaro o homem enorme, esticado na cama, mexendo no seu celular,
com medo de que tenha seguido o conselho de Lila, mas está totalmente
vestido, para o meu alívio.
Talvez tenha desistido dessa coisa de me conquistar, amém. Há um
limite para o que o autocontrole de uma garota pode aguentar...
Sei que assistir ao desenho é o seu jeito de me consolar, de me fazer
relaxar depois do dia maluco que tivemos. Então, me apresso no banho,
antes de me juntar a ele.
As luzes já estão apagadas e, dessa vez, nem espera eu me deitar,
estica seus braços para me alcançar, me puxando de encontro ao seu peito
com sua força sobrenatural.
— O que foi isso? — pergunto, surpresa.
— Uma tentativa de evitar que comece a fazer seu ritual irritante de
afofar travesseiros e ficar virando de um lado para o outro.
— Você me acha adorável. — Cutuco o seu peito com a ponta do
controle, antes de dar play no filme.
— Adorável é uma gíria humana para irritante?
— Ah, talvez o termo que esteja procurando seja “sensacional”, então
— brinco, largando-o na mesa de cabeceira, antes de me deitar de volta.
— Assista ao seu filme — ordena, tentando ralhar comigo, ao mesmo
tempo que passa os braços ao meu redor, me apertando com mais força.
Só faço como manda, porque realmente gosto dessa história.
Não porque seu abraço derrete meu cérebro.
Claro que não.
— Humanos e vampiros não podem mesmo ter filhos? — pergunto,
vendo a cena em que aquela fofura do Denis nasce. — Esquece, eu também
assisti “Amanhecer” e não vou correr esse risco. Eles foram bem... gráficos
com a Bella. Trauma de uma geração, sabe?!
Ele fica em silêncio. O laço fica impossivelmente quieto também. O
que só pode significar que está tentando esconder algo de mim.
Não, não, vampirão.
Nem pensar.
Escalo mais o seu corpo e me deito com o queixo no seu peito para
encará-lo bem de perto, de um jeito que sempre me ajuda a compelir que
faça o que quero.
— Desembucha — agora sou eu quem ordena, com firmeza, para que
entenda que não vai conseguir fugir. Ainda mais depois que vejo a dúvida
nos seus olhos.
Seja lá o que estiver pensando, está deixando-o nervoso. E eu não
gosto nada disso.
— Você queria ter filhos? — consegue falar, finalmente, as palavras
escapando da sua garganta à força, suas sobrancelhas se franzindo de
preocupação.
Ah.
Talvez ele tenha ouvido o que eu disse sobre Matteo, afinal...
Você teria coragem de provar Blut-X?
Humana

— Por muito tempo foi um dos meus maiores sonhos, mas então tudo
aconteceu... — respondo com honestidade, dando um sorriso triste. — E eu
não estava bem, você sabe. Ficou difícil lembrar de sonhar, de fazer planos,
de me concentrar em qualquer coisa que não fosse apenas... sobreviver.
— Definitivamente, eu deveria ter arrancado alguns membros
daquele imbecil — rosna no seu tom mais feroz, o laço se enchendo com a
“irritação irritada” que já conheço tão bem.
— Roman, o desmembrador — brinco, em uma tentativa de relaxá-lo,
porque há momentos que parece um desenho animado, prestes a começar a
soltar fumaça pelas orelhas.
Roman, o nervosinho.
— Gosto deste título — afirma e eu reviro os olhos.
— Claro que gosta, você ama pagar de malvadão. — Coloco uma
mão no seu rosto, contra a sua bochecha, precisando tocá-lo de alguma
forma, antes de fazer a minha próxima pergunta. — E quanto a você?
Gostaria de ter filhos?
Ele esfrega sua pele contra o meu toque, fechando os olhos por um
segundo, bebendo da nossa conexão, antes de responder:
— Não ter nunca foi uma opção, o rei precisa de um herdeiro —
recita o discurso ensaiado que, com certeza, não é o que eu quero ouvir.
— Não estou perguntando para o rei, estou perguntando para o
Roman. — Deixo meu polegar fazer um movimento de vai e vem na sua
pele fria, um mármore perfeito sob meus dedos, tão surreal quanto bonito.
— Deve ser uma das experiências mais desafiadoras e gratificantes
que alguém pode viver. — Tenta dizer como se não fosse nada demais, mas
sinto o peso por trás das suas palavras, pela emoção do laço, pela forma
como evita os meus olhos.
Ele quer muito ser pai.
É claro como gosta de cuidar, de se preocupar, de prover. Sem contar
que deve querer uma família, depois da vivência que teve, de estar sozinho
há tanto tempo...
— A coisa de ser um filho geneticamente seu... — Começo, mas ele
logo me interrompe, voltando a me encarar.
— Não é uma questão para mim, nem a sucessão ser ligada a sangue
— afirma, decidido. — Até vocês, humanos, não fazem sucessão por
sangue em Himmel faz séculos. Nem os elementais, nem os magos, nem
os...
— Não! — Cubro sua boca, interrompendo o que iria dizer. — Ainda
não estou pronta para mais seres sobrenaturais, obrigada.
Com os olhos brilhando de malícia, suas presas arranham a minha
pele de leve e eu afasto a mão para ver a pequena gota de sangue ali,
fascinada. Sem me conter, sem pensar no que estou fazendo, volto-a para a
sua boca, oferecendo para que prove. Sua língua desliza por cada um dos
pequenos furos, bem devagar, como se fosse uma iguaria que quer saborear.
Aquele meu autocontrole perfeito? Agente secreta, faixa preta,
central de inteligência das missões, referência na equipe... Esquece. Quando
ele faz isso, eu viro apenas uma pilha de sensações, que irradiam de onde
está me tocando, para se espalhar por todo o meu corpo.
— Então, nós estamos na mesma página sobre filhos... — Me obrigo
a dizer, mesmo que a voz saia um pouco ofegante, tentando voltar nossa
conversa para o rumo certo.
Porque, olha, está faltando muito pouco para eu perder o controle de
vez. Muito, muito, muito pouco.
— Eu não me oponho à ideia — concorda, seus olhos brilhando de
diversão, percebendo o quanto me afetou.
— O que, no seu dicionário, é o equivalente a um “queria mais que
tudo” — devolvo.
— Queria mais que tudo... — imita meu tom, de brincadeira. — Que
você deixasse a cozinha habitável depois de usá-la.
— Falando em cozinha, estou com uma seeeeeeeeede. — Tento fazer
um biquinho, apelando descaradamente. O laço causa tanto, que tem que
servir para que faça coisas que não quero também, como levantar dessa
cama deliciosa e descer sessenta e três degraus! — Quanto me custaria te
fazer buscar água para mim, com sua coisa de velocidade sobrenatural? —
peço, caprichando na expressão doce.
Ele suspira, exasperado, mas sei que está funcionando.
— Suas pantufas no lugar certo por uma semana — negocia e, juro,
esse homem tem uma coisa com meus chinelos.
Roman, o maluco por organização.
— Negócio fechado! — concordo, mas me arrependo em seguida,
porque o sorriso que ele abre... É letal.
— Eu disse que buscaria, não disse que não te levaria junto —
anuncia com seu tom apimentado e, no segundo seguinte, ele nos levanta no
ar, disparando escada abaixo.
Seus braços me mantêm agarrada ao seu corpo enorme e enrosco
minhas pernas ao redor do seu quadril, só para garantir, dando um gritinho
empolgado, sentindo o castelo passando por mim.
Não é bem o que eu tinha pedido, mas vou aceitar. Voar ainda é a
parte que me deixa mais chocada em toda essa loucura. E uma das que eu
mais gosto.
Só perde para as fadas da arrumação.
Elas são as melhores.
Antes que eu perceba, estou sentada no balcão da cozinha, no mesmo
ponto daquela primeira noite, quando esquentou sopa para mim. Parece que
já se passaram anos, não semanas... Observo-o, enquanto pega dois copos
de um dos muitos armários. Enche o meu no dispenser de água que fica na
porta da geladeira, entregando para mim. Depois, desaparece na porta que
leva para o porão, onde fica seu laboratório supersecreto de vilão de
desenho animado.
Não, ainda não tive coragem de descer até lá.
O que os olhos não veem, o coração não sente, já dizia a minha avó.
O que não me passa despercebido é o fato de que fez tudo isso na sua
velocidade sobrenatural, que quase não a esconde mais quando estamos
sozinhos.
Um calor se espalha pelo meu peito... Está se sentindo à vontade na
minha presença. Ainda que eu tenha certeza de que preferiria ver toda a
filmografia da Disney, antes de admitir algo assim.
Cinco segundos depois, retorna com o seu copo cheio de um líquido
vermelho que só pode ser Blut-X, e bebe um longo gole, sem se importar
com o meu olhar atento.
É a primeira vez que se alimenta na minha frente.
Com certeza, está ficando bem à vontade.
— Quer um pouco? — oferece, com um erguer da sua sobrancelha
grossa.
— Nem pensar. — Faço uma careta e tomo mais da minha água.
Humana. Normal. Nada esquisita.
— Tem certeza? — desafia, sentindo minha curiosidade pelo laço. —
Parece que você quer.
Ok.
Talvez eu esteja um pouco curiosa.
Só um pouco.
— Isso tem gosto do quê? Refrigerante de framboesa? — pergunto,
só para irritá-lo, e ele bufa, todo ofendido. Que sacrilégio comparar sua
bebida revolucionária com algo tão humano quanto refrigerante!
— Prove e descubra.
— Não, obrigada.
— Azar o seu. — Dá de ombros, bebendo outro gole, deixando seus
lábios desenhados ainda mais vermelhos, brilhantes, apetitosos.
— Não tem mesmo sangue humano nisso? — questiono, ainda meio
fascinada, ainda meio incerta.
— Você não parece se importar quando o sangue humano que estou
provando é o seu — aponta, fazendo o meu corpo ronronar, graças às
lembranças.
Definitivamente, não me importo quando o sangue é meu. Mesmo
que mantenha seus arranhões superficiais para não me envenenar, já é mais
do que suficiente para me intoxicar de um jeito delicioso. Deve ter alguma
coisa mágica nas suas presas, não é possível.
— Eu também me julgo por isso, acredite — resmungo, fazendo-o
sorrir. — Tem coisas nesse treco que fariam mal para mim?
— É muito mais saudável do que o seu açúcar nojento com gotas de
cafeína.
Não sei se ele odeia mais o meu café ou as minhas pantufas. Como se
a sua água de mato e o seu SANGUE ARTIFICIAL não fossem os
problemas aqui.
— Talvez só um golinho...?
Apenas a minha dúvida já é suficiente para que se acenda em
expectativa.
Ele quer que eu prove.
Se aproxima com uma expressão de quem está aprontando algo,
como fez mais cedo, e para bem na minha frente, entre as minhas pernas.
Usa seu joelho para afastá-las mais e se posicionar ali, o mais perto que
seria possível.
Dá um gole pequeno dessa vez e inclina o rosto na minha direção, em
uma oferta clara, os olhos se tornando vermelho-vivo.
Ele quer que eu prove... direto da sua boca.
Isso muda tudo.
Minhas dúvidas desaparecem.
Não, não tenho como negar.
Eu quero.
Passo minha mão pelo seu pescoço e o puxo para mim com força,
colando as nossas bocas. O sabor explode na minha língua. Metálico, doce,
diferente de tudo que já provei.
Ou talvez seja o homem com os dedos cravados no meu quadril, me
fazendo deslizar pelo tampo de mármore, de encontro a ele.
Aprofundo nosso contato, intoxicada pelo gosto, recebendo a
enxurrada de sensações que vêm de estar sendo tocada pelo meu aeternus.
Não sei onde termina o seu sabor, onde começa o Blut-X, não sei se é a
combinação dos dois, mas sei que é tudo delicioso.
— Bom, não é?! — Sorri, arrogante, quando nos afastamos para que
eu possa respirar um pouco.
— Mais — ordeno, enroscando minhas pernas ao seu redor,
garantindo que estará exatamente onde eu quero.
Mais Blut-X?
Mais dele?
Não sei, mas preciso de mais.
Ele alcança seu copo abandonado para tomar outro pequeno gole,
antes de voltar a buscar minha boca, sua mão subindo para o meu cabelo, se
enrolando com uma força deliciosa. Nós nos perdemos um no outro,
devoramos um ao outro, até que o mundo desapareça.
Quando meu corpo começa a querer se esfregar ao seu, buscando
fricção, buscando alívio, eu me obrigo a me afastar alguns milímetros.
Encosto minha testa na sua, nossas respirações sôfregas se misturando, os
efeitos da conexão fluindo.
— Ainda não é melhor do que o meu café — brinco, para disfarçar o
quanto me afetou, e ele revira os olhos, sem acreditar em mim.
— Claro, claro — se exaspera, sem disfarçar a nota de carinho por
trás das suas palavras, aproveitando como estamos grudados para me pegar
no colo de volta e voar escada acima.
Consegue nos colocar na cama sem precisar me soltar, me deixando
encaixada no seu peito do jeitinho que eu gosto. Alcanço o controle e dou
play no filme, torcendo para que o desenho consiga distrair meus
hormônios.
Não funciona muito.
Principalmente, porque posso jurar que o vejo sorrindo em algumas
das cenas em que o Johnny aparece. Roman tem um fraco por humanos
adoráveis e um tanto exóticos, eu sei.
Quando uma gargalhada real escapa do seu peito, esqueço de pensar
que tentaram me matar, esqueço de pensar que ele nunca poderá me assumir
para o mundo, e me permito imaginar como seria se Matteo estivesse aqui,
vendo o filme com a gente.
Talvez pudéssemos transformar um dos quatrocentos e noventa e
nove quartos em um cinema. Outro seria o quarto dele, é claro, que o
deixaríamos decorar como quisesse. Nossa, ele iria amar a biblioteca de
Roman.
De manhã, nós três sairíamos juntos e poderíamos deixá-lo no Centro
de Formação, antes de irmos para o trabalho. Até ele ter idade para entrar
na própria Nobre Academia, para aprender com mestres como Francesco
Rossi, Zoe Saint e Dante Hayes.
Eu teria uma família.
E, pela primeira vez em muito tempo, me permito admitir que é
exatamente isso que eu quero.

**

Mais um dia caótico na vida de uma reles scriba.


A situação de Matteo ainda não saiu da minha cabeça, nem da cabeça
de Roman. Eu o peguei listando os pontos que poderia discutir com o
conselho sobre a adoção do garoto e sobre a linha de sucessão. E mais uma
lista que não me deixou ver, mas que poderia jurar que tinha um “aeternus”
escrito no topo.
Minha esperança boba é que esteja buscando opções para que aceitem
a humana, para que reconheçam nosso laço.
Ele estaria prestes a começar uma verdadeira revolução.
Deuses vampiros, que ele não acabe deposto.
Por mais que eu esteja na campanha para aceitar Amadeo, ainda não
quero que ele chegue ao poder. Seria como deixar o seu pai assassino
vencer. E minha meta nesta vida é não deixar os caras maus vencerem.
Nunca.
Depois de acabarmos as aulas, tivemos reuniões e mais reuniões
sobre Blut-X, principalmente para espalhar mais fábricas que possam
produzi-lo ao redor do mundo. É tanta coisa que quando, finalmente,
chegamos ao Castelo Rot, estou exausta.
Roman me deixa tomar banho primeiro porque, sim, apesar de termos
quinhentos banheiros nesse lugar, dividimos o mesmo. Mais uma das belas
peculiaridades da nossa relação.
Ele diz que é por uma questão de segurança.
Eu digo que é porque os sabonetes dele são mais cheirosos.
Coisas de marca, nada de escolher o que estiver em promoção no
supermercado. Como não amar?
Assim que saio, usando meu pijama de sempre, ele avisa que deixou
um prato quente me esperando na cozinha. Tem mais algumas ligações para
fazer antes do seu próprio banho, então desaparece na biblioteca.
Desço e vejo a mesa posta me esperando, completa com sousplat,
talheres, taça de vinho e um prato fumegante de risoto de pera com
gorgonzola.
Aparentemente, hoje é dia de mimar a humana!
Adorei.
Até coloco a louça na máquina de lavar e deixo a cozinha arrumada
quando acabo, para retribuir a gentileza. Se ele continuar sendo bonzinho
assim, vou inclusive colocar minha pantufa no lugar certo.
Sou uma ótima roommate.
Volto para o quarto e escuto o barulho do chuveiro ligado. Vou
ocupar meu lado da cama e pego o controle, pronta para colocar Hotel
Transilvânia 3 para assistirmos. Ele pode rosnar o quanto quiser, mas sei
que está adorando a nossa pequena maratona.
A água é cortada e, logo em seguida, a porta do banheiro é aberta, me
assustando. Porque não deu tempo para que se trocasse...
Olho na sua direção e todos, absolutamente todos, os meus
pensamentos coerentes desaparecem. Porque Roman Prince está usando
apenas uma toalha enrolada no quadril.
E mais nada.
— Esqueci de levar meu pijama para dentro. — Passa inabalado por
mim, ignorando minha expressão catatônica ao marchar para o closet, me
dando uma visão completa da sua frente.
E Lila tinha razão.
Eu não estava preparada para isso.
Seu torso é definido, não rasgado como alguém que passa os dias na
academia, mas com a solidez de quem se mantém ativo há décadas. A pele
de mármore é totalmente lisa, brilhando irreal na luz fraca do ambiente,
com seus contornos esculpidos por um artista talentoso. Cada sulco, cada
cerro, exige a minha admiração.
O laço ruge faminto.
Roman é exuberante.
Se vira de costas para entrar no seu armário e exibe as costas firmes,
com dois furinhos no fim da coluna, um detalhe adorável em toda essa
solidez. A toalha não consegue disfarçar o contorno generoso da sua bunda,
nem das coxas enormes. Tudo nele é enorme.
Uma estátua desfilando e fazendo um show apenas para mim.
Realmente, meu laço tem um gosto impecável.
Desaparece da minha vista e só então eu volto a respirar, fazendo um
esforço real para retomar o fôlego.
Calma, Amélie.
Eu sempre dormi em cima dele e nada aconteceu. Não é porque agora
sei o que está escondendo debaixo das camisetas brancas que usa na cama,
que vou perder a linha.
O homem é uma geladeira, sim.
Mas posso lidar com isso.
Estou bem.
Está tudo bem.
Tenho autocontrole, sou uma mulher madura, de trinta e seis anos.
Fico repetindo isso até que volte para o quarto, usando apenas uma
boxer. Aí eu desisto.
Ele me olha.
Eu queimo.
Fim.
— Eu sei o que está fazendo — acuso, vendo-o marchar para pegar
seu celular na mesa de cabeceira, desligando todas as luzes.
— O que eu estou fazendo? — pergunta, com uma inocência fingida,
ao se deitar ao meu lado com toda essa quantidade de músculos à mostra.
— Me torturando! — exclamo, com a voz esganiçada.
— Humm... — murmura, se virando de lado e levando a ponta do seu
dedo para a parte macia da minha barriga que está à mostra. — Na minha
opinião, isso é uma tortura. — Desliza seu toque por ali, justo por uma das
partes que mais me deixa superconsciente, que me faz sentir falta do
metabolismo da juventude, do colágeno. — Se eu pudesse te morder,
começaria por aqui.
— Você pode me morder. — Me pego dizendo, hipnotizada com o
rastro de calor que a sua mão fria consegue causar.
— Posso? — repete, se certificando, mas já se movendo para pairar
em cima do meu corpo, se encaixando entre as minhas pernas.
Essa posição...
Socorro.
So.
Co.
Rro.
— Sim! — Minha permissão sai mais como uma súplica e nem me
envergonho por isso. Não com ele onde está, perto de onde está, USANDO
SÓ UMA MALDITA BOXER. — Afinal, sabe o que dizem de terceiros
encontros...
Não sei por que digo isso.
Por que eu disse isso?
Agarrar o homem seria mais sutil!
É oficial.
Meu bom senso sumiu junto com as suas roupas.
— Isso conta como encontro? — continua sua exploração, distraído,
seu dedo passeando pela minha pele como se a mera textura fosse algo
fascinante.
— Eu já jantei, vamos ver um filme, é um encontro — anuncio, com
a voz tão afetada que parece que engoli uma lixa, um saco de pedras, um
pacote de areia.
— Humm. — Se ergue nos seus braços, deixando seu rosto se
aproximar da minha barriga, seu nariz se demorando ao sentir o meu cheiro.
— E o que vocês, humanos, dizem sobre terceiros encontros?
— Esquece — digo, para tentar manter um último resquício de
controle. Sei que, se as palavras saírem da minha boca, já era.
— Conte — ordena e escolhe este momento para deixar seus caninos
furarem a pele do meu abdômen, um rosnado escapando da sua garganta ao
provar o meu sangue.
Ele estava certo.
Ótimo lugar para morder.
— Ah! É quando os humanos, normalmente, passam para, sabe, o
próximo passo — balbucio, contorcendo meu corpo em uma oferta
descarada.
Ninguém poderia me julgar.
— Próximo passo? — repete, sem entender, franzindo suas
sobrancelhas, antes que sua expressão se ilumine em compreensão. — Ah,
quando eles fodem.
Ouvi-lo falando isso é como uma carícia.
Uma bem íntima.
Para piorar, segue sua exploração, subindo mais, nos deixando face a
face, pairando sem soltar todo o seu peso, nos encostando apenas para que
eu possa senti-lo.
Pele.
Frio.
Conexão.
— É isso que você quer, Amélie? — pergunta, movendo o seu quadril
contra mim, em uma provocação dolorosa e deliciosa.
— Eu quero te ver — peço, para começar, e ele logo entende,
deixando suas presas descerem, os olhos vermelhos brilhando como os de
um gato na escuridão.
Sim.
É assim que eu gosto.
Esse é meu aeternus.
Minhas mãos sobem para o seu cabelo e eu enrosco os dedos nos fios
ali, mantendo-o bem parado. Primeiro, deixo nossos lábios se resvalarem de
leve. Depois, deixo minha língua provocar a ponta de um dos seus caninos,
até que eu sinta o gosto metálico.
Só então voltamos a nos beijar, assinando nosso contrato, selando
nosso destino, com o meu sangue.
Chega de esperar.
Ele sente a minha certeza e isso o faz abandonar toda a sua
compostura também. Sua boca desce até o ponto do meu pescoço onde eu
tinha sido mordida antes e deixa suas presas arranharem ali, apagando as
recordações, criando novas.
Sua mão desliza por baixo da minha blusa, exigente, dominante. Sua
força sobrenatural consegue me erguer com um braço, enquanto a outra se
livra do tecido. Minha calça de moletom é a próxima a sumir. A calcinha de
algodão desaparece.
Sondo o laço, mas encontro um desejo tão desesperado que qualquer
preocupação com a minha aparência soaria ridícula. Enrosco minhas pernas
ao redor do seu quadril e uso todo o meu treinamento para conseguir
inverter nossas posições.
Agora, é a minha vez.
Subo nas suas pernas, deslizo o tecido da sua boxer e, depois de
admirá-lo por uns bons segundos, sem acreditar na minha sorte, faço o que
o laço tem me pedido desde que abri os olhos naquela noite, vendo-o pela
primeira vez.
Me entrego por completo.
Não há mais nada entre nós.
Nem roupas. Nem dúvidas. Nem medos. Nem ressalvas.
Primeiro, ele deixa que eu conheça cada canto do seu corpo. Me
delicio com seus gostos, suas texturas, descobrindo os pontos que o fazem
chamar o meu nome, os movimentos que minha língua precisa fazer para
que se contorça debaixo de mim, para que puxe o meu cabelo da forma
mais deliciosa.
Antes que eu consiga levá-lo ao ápice, ele reassume o controle. Me
subjuga, deixando os meus braços para cima, entregue. Me encara como se
eu fosse um banquete que está prestes a deliciar. Não deixa uma parte
minha sequer sem ser tocada, apreciada, acariciada. Me apresenta sensações
que eu nem sabia ser capaz de sentir. Mordidas se misturam com beijos.
Lambidas se mesclam com provocações. Ele atiça cada terminação nervosa,
arrepia cada centímetro, até me deixar implorando.
Nós esquecemos a luta por controle e mergulhamos em uma confusão
desesperada de toques e respirações ofegantes. Envolvo minhas pernas no
seu quadril, decidida a tomá-lo por completo de uma vez por todas, sem ser
capaz de esperar um segundo sequer.
— Roman — clamo e ele rosna, atendendo ao meu pedido, acabando
com a nossa tortura.
No momento em que ele se enterra todo dentro de mim, o laço acaba
de cravar suas garras. Meu coração deixa o meu peito e se muda para o seu.
Aqui.
Aqui é o seu lugar.
— Amélie — solta em uma respiração, uma oração, uma prece,
começando a se mover sem nunca interromper nosso contato visual, sem
nunca afastar nossos lábios, nossas testas coladas porque todo contato é
pouco.
Me segura com tanta força que sinto como se não estivéssemos mais
no colchão, sinto como se estivéssemos flutuando.
Eu.
Ele.
E o laço.
Um momento congelado no tempo, que demora uma eternidade e um
piscar de olhos. Uma galáxia de sensações dentro do seu quarto, que cresce
até culminar em uma explosão simultânea, que nos destrói e nos cura.
Terno.
Bonito.
Uma cerimônia que nos transforma em “nós”.
— Isso foi... — começo, ofegante, mas meu cérebro ainda está
recebendo menos sangue que deveria.
— Não diga maluquice! — implora, me interrompendo, e eu balanço
a cabeça, rindo.
— Eu ia dizer perfeito!
— Posso aceitar perfeito — concorda e as rugas do seu rosto nunca
estiveram tão relaxadas, seus olhos vermelhos nunca estiveram tão doces.
Nós não nos afastamos, não poderíamos nem se quiséssemos, o fio
que nos une tão interligado que seria doloroso. Ficamos congelados em
perfeição, uma fotografia de sentimentos que vou guardar para a nossa
pequena eternidade.
Meu fim eterno.
É hora de respostas! Façam suas apostas!
Humana

Acordar nos seus braços tem um significado diferente nesta manhã.


Para ele também, se a forma como está sorrindo é algum indício.
E, em nome de Edward Cullen, ele está sorrindo para valer.
De verdade.
Para mim.
— Seu estômago humano, quando decide reclamar, consegue ser
mais irritante que a dona — afirma, usando nossa conexão para sentir a
minha fome, antes de dar um beijo suave e demorado no meu cabelo.
Ugh.
Roman sendo doce.
Tão ruim quanto o Roman selvagem de ontem.
Eu nunca tive uma chance, não é?!
— Sosseguem vocês dois, já vou comer. — Suspiro, mas não faço
menção de me levantar, não quando seu frio é tão aconchegante.
Deixo uma trilha de beijos, começando pelo seu pescoço e subindo
para o seu maxilar afiado, mergulhando no seu cheiro tão indefectível,
esquecendo de qualquer coisa que não seja o vampiro enorme e delicioso à
minha disposição.
— Humana? — chama, seus braços se apertando ao meu redor com
força.
— Sim? — respondo contra a sua pele, continuando a minha
exploração, mordiscando de leve, desejando poder ter presas afiadas para
prová-lo também.
Mais um item para a lista de coisas que é melhor eu não analisar
muito, que eu mesma me julgo por pensar.
Pelo menos, tenho consciência da minha maluquice.
Vivo em um mundo em que sou a alma gêmea de um rei vampiro,
posso desenvolver uma tara por presas, obrigada.
— Se eu pudesse escolher a minha aeternus, ainda escolheria você —
sussurra e eu congelo em choque, parando no meio de uma lambida
especialmente deliciosa.
Minha primeira reação é pensar que ouvi errado. Só posso ter ouvido
errado. Levanto o rosto para encará-lo, mas encontro seus olhos decididos.
Sem um pingo de brincadeira, sem um pingo de dúvida.
Ele falou sério?
É sério que ele falou sério?
— Vou gritar para o mundo que você é minha — continua, no seu
tom feroz e letal, como se já não tivesse me surpreendido o bastante. —
Chega de nos esconder.
— Mas... Mas... — Meu espanto faz as palavras desaparecerem. —
As repercussões... — Balanço a cabeça, tentando recobrar o raciocínio.
Não, não funciona.
— Nós conseguimos lidar com o que quer que seja — afirma, com a
certeza de quem planeja trucidar qualquer um que ouse ficar no seu
caminho. — Vamos bolar um plano, vamos fazê-los aceitar e vamos adotar
Matteo juntos.
Preciso me sentar.
E colocar um pouco de distância entre nós, para ver se meus
neurônios param de suspirar por tempo suficiente para formarmos um
pensamento coerente.
— Mas, se fizermos isso, então eu seria... Eu seria... — Me engasgo,
como se doesse soltar a palavra. — Rainha?
— Rainha Amélie — repete, parecendo gostar de como soa, dando
um sorriso de aprovação. — Amélie, a irritante — acrescenta uma
provocação, sem resistir, aliviando o clima entre nós, me puxando de volta
para perto.
— Tente dizer isso com menos carinho, para eu poder ficar brava, e...
— reclamo, mas paro de falar, porque agora é ele quem congela no lugar,
no meio do movimento. Se senta de súbito, parecendo prestar atenção em
algo.
— Tem um carro se aproximando da propriedade — anuncia, e uma
onda de medo desperta entre nós, fluindo entre os dois lados da conexão.
Pelo menos, não deve ser um vampiro, certo?
Se fosse, poderia apenas invadir voando.
Droga, o dia está claro.
Um vampiro não poderia vir voando.
Ah, mas eu não tenho um segundo de paz.
— Hoje é dia de tênis? — pergunto, torcendo esperançosa que seja a
apenas a Ferrari de Chris.
Uma garota pode sonhar!
Principalmente quando a dita garota estava torcendo por uma
repetição da noite passada, antes que começássemos as obrigações do dia...
— Não, ele mandou uma mensagem mais cedo, cancelando.
CANCELANDO POR QUE ESTÁ OCUPADO PELADO COM
LILA?!
Ok, foco.
Ameaça inesperada primeiro, fofocas depois.
— Quem pode ser então? — insisto, sentindo um arrepio nada bom
na minha espinha, me conformando de que não terei um segundo round de
Rom-lícia tão cedo.
— Eu vou descobrir — garante, se levantando, as rugas de
preocupação mais profundas que nunca. — E, você, fique aqui — ordena
por cima do ombro, desaparecendo dentro do closet. Se veste na sua
velocidade sobrenatural e dispara escada abaixo em um piscar de olhos.
Ele achou mesmo que eu ficaria aqui, esperando obediente?
Roman, o bobinho.
Seja quem for, ou o que for, estarei ao seu lado.
Sempre.
Também me troco o mais rápido que consigo, enfiando Céline no cós
da calça e me apressando na rotina do banheiro, ansiosa para encontrá-lo
logo.
Estou acabando de escovar os dentes, quando sinto um puxão tão
forte no peito que acabo me dobrando, perdendo o fôlego.
O laço.
Há algo errado com Roman.
Muito errado.
Eu voo pela escada, apavorada com o medo que chega até mim.
Tenho certeza de que vou encontrar alguma coisa como ele sendo
eviscerado por um monstro, tamanho é o seu pavor.
Meus dedos estão cravados em Céline, prontos para matar primeiro,
perguntar depois, mas eu o encontro em pé no meio da sala, parecendo
perfeitamente inteiro. Todas as tripas no lugar.
Assim que ouve meus passos, ele se vira e anuncia quatro palavras
que justificam bem a sua reação. Piores do que um monstro, na minha
humilde opinião.
— Sua avó está aqui.
Eu olho ao redor e, com certeza, a mulher formidável sentada em um
dos sofás, sorrindo para mim, é a mulher que me criou. Está com os
mesmos cabelos brancos soltos, usando uma túnica colorida, muitos colares
e a mesma pose digna de uma rainha que sempre teve. Meu coração se
aperta com um misto de saudade, alegria e, sobretudo, surpresa.
O que ela está fazendo aqui?
Como ela me achou?
No Castelo Rot!
— Amélia — pronuncia a versão em português do meu nome e abre
os braços, esperando que eu a abrace. Obrigo meus pés a darem alguns
passos à frente, fazendo o que está pedindo, sentindo seu perfume familiar
me envolver.
Ela me aperta com força contra si e eu retribuo do mesmo jeito, a
onda de carinho em mim tão forte que consegue até abafar os outros
sentimentos. Os outros sentimentos de nós dois, inclusive.
Céus, eu amo essa mulher maluca.
Que se despencou do Brasil até aqui.
E simplesmente bateu na porta do rei dos vampiros.
— Vovó. — Tento engolir a minha emoção, me sentando ao seu lado,
não confiando nas minhas pernas para sustentar o meu peso. — Como...
Como...
— Como eu sabia onde te encontrar? — completa por mim, dando
uma risadinha divertida, nada afetada pela estranheza da situação.
— Bom... sim. — Podemos começar por essa pergunta, entre as
duzentas que estão passando pela minha cabeça.
— Precisamos esperar nossa próxima convidada chegar, para que eu
comece com as explicações. — Bate na minha bochecha com carinho, antes
de se virar para Roman. — Majestade, se importaria em me oferecer um
refresco?
— Refresco — ele repete, ainda catatônico, em pé, perdido no meio
da sua sala de estar. — Certo, refresco.
Consegue se obrigar a andar, caminhando em velocidade humana
para a cozinha, em busca de “refrescos”. Espero que não volte com Blut-X,
porque a maluca ali acabaria bebendo feliz, tenho certeza.
“Estarei ouvindo tudo”, garante, para o meu alívio. Porque não estou
pronta para ter essa conversa sozinha.
Nunca estarei pronta, na verdade.
“Traga algum suco, nada de Blut-X”, afirmo, para o caso de estar em
choque demais para raciocinar.
“Eu consigo imaginá-la bebendo o sangue dos seus inimigos de
canudinho”, diz, com um tom de assombro e respeito.
Uma ótima descrição de vovó, com certeza.
Ela está olhando ao redor, admirando tudo, parecendo muito tranquila
para quem está na casa de uma criatura sobrenatural das mais poderosas,
vivenciando o assunto que estudou durante a maior parte da sua vida.
— A senhora está bem? — pergunto, enquanto ele não volta.
— Nunca estive melhor — exclama, plena. — E nem preciso
perguntar sobre você, não é?
— Como assim? — questiono, cada vez mais curiosa pelas suas
reações, pelo sorriso espertinho que está tentando esconder, por esse ar de
empolgação que está tentando controlar.
— Amélia, você sabe por que eu decidi estudar vampiros? —
questiona, se voltando para mim com toda sua atenção, seu rosto tão
parecido com o meu que chega a ser assombroso.
— Ahn... — Penso um pouco, tentando recuperar essa memória, mas
não encontro nada. — Na verdade, acho que a senhora nunca me contou.
— Meu bem... — Pega minhas mãos nas suas, seus dedos frágeis, sua
pele fina e macia. — Tudo começou por sua causa.
Por...
Ela disse...
Por mim?!
“ROMAN!”.

**
Roman

Minha humana grita e eu preciso me controlar para não sair voando.


Apresso o passo o máximo que consigo, dentro dos limites do normal, sem
querer assustar a senhora, mas também sem ser capaz de deixar Amélie
esperando.
Equilibro a bandeja com uma jarra de suco e alguns copos, nem me
lembrando de quando foi a última vez que tive de servir alguma visita. Se é
que já fiz isso em algum momento da minha existência.
Ainda mais uma visita tão inesperada quanto essa.
Suellen Freitas na minha casa.
Meses atrás, essa seria a reviravolta mais improvável — na época em
que eu ainda tinha controle sobre a minha vida, quando não havia sido
varrido pelo terremoto Amélie.
Estou descobrindo que gosto de uma dose de caos.
Quem diria?
As duas ainda estão na mesma posição, a senhora Freitas parecendo
animada, a minha aeternus em um estupor — que está prestes a piorar,
porque estou ouvindo mais uma aproximação, o cheiro que o vento traz
deixando claro que não se trata de nenhum outro membro da sua família.
— Há um vampiro na propriedade — anuncio, sem nem me
preocupar em esconder o termo da nossa visitante. Ela sempre soube sobre
nós e está prestes a saber mais.
Não sei o que veio fazer aqui, mas vou lhe contar tudo.
Preciso disso, se vou pedir a sua benção...
Se vou pedir a mão de Amélie...
— Ora, mas já não era sem tempo — sua avó aprova, sabendo quem
é o novo convidado antes mesmo de mim. — Abra a porta, sim, majestade?
“O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?”, a humana pergunta,
quase histérica.
“Não faço a menor ideia”, digo, com honestidade.
Só sei que me transformei em um mordomo, aparentemente.
Deixo a bandeja em cima da mesa de centro e sigo para a entrada do
castelo. Assim que giro a maçaneta das portas duplas, encontro a última
pessoa que esperava ver.
Lady Evile.
Ela se curva em uma reverência, antes de se erguer com um enorme
sorriso no rosto enrugado.
— Majestade, sempre bom revê-lo — cumprimenta com a sua voz
fina, dando passos lentos para dentro, parecendo muito mais a doce
velhinha que Amélie acredita que seja, muito menos a vampira poderosa
que eu sei ser.
Nosso laço se enche de surpresa, dos dois lados, ao observar as
senhoras trocarem um abraço apertado, de quem se conhece faz tempo,
assim que Lady Evile entra na sala de estar.
“Estou ficando apavorada”, a humana diz e eu não poderia concordar
mais. Tem algo grande se desenrolando bem debaixo do meu teto. E há
poucas coisas que me encolerizam mais do que ser deixado no escuro.
— Será que alguém pode explicar o que está acontecendo? — Uso
minha autoridade para questionar, retomando o controle da situação.
Lady Evile olha para a outra mulher e lhe dá um sorriso de incentivo,
fazendo um gesto para pedir que comece a falar primeiro.
— Pensei tanto em como seria essa conversa, mas agora que a hora
chegou, já não sei por onde começar. — A senhora Freitas demonstra
nervosismo pela primeira vez, espiando a neta com incerteza.
— Ela disse que decidiu estudar vampiros por minha causa! — acusa
Amélie e eu queria poder segurar a sua mão, enquanto temos essa conversa.
Porque estou sentindo que não iremos gostar nada do que estamos prestes a
ouvir.
— Comece pela profecia — sugere a vampira, atraindo minha
atenção para si.
— Profecia? — Ergo uma sobrancelha em desconfiança, me sentando
em outro sofá, de frente para as convidadas.
“Venha aqui, por favor”, peço.
“Só porque você pediu ‘por favor’”, encontra forças para brincar,
mesmo com todas as suas incertezas.
Minha humana corajosa.
Mas, se vamos falar sobre magia, quero ela perto de mim. Os magos
não costumam se misturar com vampiros, as duas classes vêm se
desentendendo faz séculos. Minha esperança é que quando a nova
imperatriz assumir, consigamos ter um diálogo melhor.
Isso se eu ainda for o soberano. Se não acabar deposto depois de
propor ainda mais mudanças. E de anunciar minha rainha humana.
Como se banir o consumo de sangue humano já não tivesse sido
guerra o suficiente para toda uma vida.
Amélie atende ao meu pedido, se levantando para se juntar a mim.
Sem ser capaz de me conter, trago-a ainda para mais perto, passando um
braço pela sua cintura, para que deslize de encontro ao meu corpo.
As duas senhoras se iluminam ao nos ver juntos. Acredito ser seguro
afirmar que nossa relação não foi o problema que as trouxe aqui.
No entanto, nossa proximidade parece ser o incentivo que sua avó
precisava para começar a falar, depois de respirar fundo algumas vezes, em
busca de coragem.
— Anos atrás, ainda no Brasil, fui procurar o que nós chamamos de
videntes — começa Suellen, trançando seus dedos no colo, fazendo suas
muitas pulseiras tilintarem. — Eu tinha acabado de perder o meu marido,
me vi sozinha com a minha filha, e queria... Não sei, acho que queria algo
que me desse esperança. — Dá um sorriso triste, que entristece a minha
humana também, e eu aperto a sua cintura, tentando confortá-la.
Lady Evile serve um copo de suco para a sua amiga, que aceita com
as mãos trêmulas, bebendo um longo gole, antes de continuar narrando a
história.
— A consulta estava indo bem, a mulher dizia apenas coisas
genéricas sobre como ela via um futuro brilhante para mim... — Faz um
gesto de desdém. — Mas então, tudo mudou. Foi como se algo a possuísse.
Seus olhos saíram de foco, sua voz mudou, e ela começou a escrever, sem
nem olhar para o que estava registrando...
Escrever... Uma profecia, de fato.
As palavras são a fonte de magia dos magos.
E, quando uma profecia quer vir à tona, não há quem seja capaz de
controlá-las. Perdi as contas de quantas vezes tive que interromper
conversas com magos, para que registrassem as palavras que os atingiram
para selar o destino de alguém. Talvez essa vidente fosse uma maga
verdadeira, que não compreendia seus poderes.
— A senhora ainda tem o registro? — pergunto e ela dá outro sorriso
triste. Alcança uma pequena bolsa que estava abandonada ao seu lado e tira
um papel amassado dali.
Segura-o entre os seus dedos com força e lança um olhar para Lady
Evile, que acena com o queixo. Só então o estende na direção da neta.
Amélie me dá um olhar significativo, se levantando para alcançá-lo,
medo e incerteza chegando pelo elo.
“Leia também”, pede, voltando a se postar ao meu lado, desdobrando
a nota amarelada com cuidado. Uma caligrafia apressada aparece,
organizada em estrofes, quase como um poema.

Os destinos dos humanos e das criaturas se reuniram.


Decidiu-se que era hora de uma trégua entre as linhagens.
O elixir da paz será criado.
A filha da sua filha se unirá àquele diferente de todos que já comandaram
os vampiros.
O soberano se unirá àquela que carrega toda coragem.
A magia mais antiga foi convocada para testemunhar a sentença.
Serão os primeiros e abrirão os caminhos.
Sanguíneos, humanos, elementais,
cavaleiros, magos.
As barreiras cairão.
É hora dos mundos se tornarem um.
A era dos preconceitos se foi.
Pelo seu laço, o equilíbrio estará selado.

— Parece uma profecia, de fato — sentencio, começando a ter uma


suspeita do que está acontecendo. E não sei se gosto do que Amélie terá de
encarar, se minhas suposições se confirmarem.
— Sim, pensei a mesma coisa quando li — Lady Evile concorda
comigo. — Dois seres que viriam para selar a paz entre vampiros e
humanos, a disputa que já dura séculos demais. — Ela fica em pé,
parecendo não ser capaz de se manter sentada. — O destino dos vampiros
escreveu a criação do Blut-X para ser o início de tudo, o destino dos
humanos ofereceu um dos seus, a magia das almas gêmeas entrou no pacto
para garantir que tudo estaria selado e, a partir de então, todas as criaturas
sobrenaturais encontrariam uma trégua — explica, fazendo uma espécie de
tradução para nós, mostrando que já refletiu bastante sobre as palavras, que
é íntima delas.
— Agora sou eu quem precisa de um refresco — diz a humana, sendo
atingida por uma enxurrada de pensamentos conflitantes.
Ela entendeu que a profecia se refere a nós.
Eu me apresso a encher um copo, entregando para ela, que bebe tudo
de uma vez só, se engasgando de leve.
— Tudo bem, pode continuar — pede, retomando um pouco do seu
controle.
E pensar que estamos apenas começando. Talvez, mais tarde, eu
mesmo lhe dê um pouco daquele absinto do qual tanto fala.
— Depois que a vidente acordou, nem se lembrava de ter escrito
nada. Peguei o papel e saí de lá, decidida a entender melhor essas palavras,
a entender o seu significado. — A senhora Freitas também se remexe no
lugar, sem conter sua energia. — Não sabia se algo aconteceria de fato com
a “filha da minha filha”, mas a forma como a mulher agiu... Parecia tão real.
— Se inclina na nossa direção, incapaz de se manter parada. — Foi então
que eu comecei a estudar sobre os vampiros, que eu soube da fama de
Himmel, e decidi mudar para cá.
— Uma noite, a vi na biblioteca de Ilaria, cercada de livros sobre o
assunto e decidi investigá-la, temendo pela proteção do nosso povo,
querendo descobrir o quanto sabia. — Lady Evile assume a narrativa. —
Acabamos virando amigas com o passar do tempo, até que confiou em mim
o suficiente para mostrar a profecia, e me senti obrigada a revelar a minha
natureza. Nós decidimos unir forças desde então.
— E por que você a ajudaria? — desconfio, sim, e nem tento
esconder a minha desconfiança.
— Porque as palavras soaram pessoais para mim, desde a primeira
vez que as li. — Lady Evile ergue o queixo, me enfrentando, algo no que eu
disse despertando o seu poder. — Eu fui apaixonada por uma maga,
majestade. E nunca nos permitiram viver isso. Se existisse a chance de uma
trégua, de ajudar outros a não passarem pela dor que eu passei... — Bate no
seu peito, a mágoa clara em sua expressão. — Faria tudo, tudo o possível
para ajudar.
A senhora Freitas alcança a mão da sua amiga e a puxa para que volte
a se sentar, passando um braço protetor ao redor dos ombros frágeis.
— Fomos pedir ajuda a um Knight, para que me ensinasse a bloquear
a mente, porque não poderíamos deixar que você descobrisse antes da hora.
Você era jovem, mas já era tão poderoso... — A vampira continua falando,
antes que tenhamos a chance de dizer qualquer coisa. — Então, Amélie
nasceu, a filha da sua filha, como dito, e nós passamos a monitorar tudo
ainda mais de perto. O laço estava agindo, nenhum dos dois nunca foi capaz
de deixar Himmel...
— Ela foi trabalhar para o humano que tinha mais acesso a você,
enquanto você sentia que gostava de ficar próximo ao rei de Himmel... —
Agora a senhora Freitas sorri. — Quando, na verdade, se sentia bem porque
estava perto da minha neta.
Nós dois apertamos a mão um do outro ao mesmo tempo, atordoados
com mais essa revelação. Pelo menos, Nikolai irá se deleitar com essa
história...
— Tentamos fazer os dois se encontrarem várias vezes. — Trocam
um olhar cúmplice. — Um jantar que eu te convidei em um restaurante
humano e você não entendeu nada? Ou, Amélie, quando sua avó te arrastou
para um simpósio sobre ciências? Tudo parte dos nossos planos.
— Vocês já tinham se visto várias vezes, mas o laço não se firmava.
— A senhora Freitas deixa seus ombros caírem e não preciso deslizar para
dentro da sua mente para saber que está se recordando de uma lembrança
dolorosa. — Enquanto isso, nenhum dos dois conseguia ser feliz de fato. E,
então, Amélia começou a definhar e nós ficamos com medo do que poderia
acontecer...
A fase que ela não estava bem.
Quando perdeu o sentido de viver.
Não resisto e a pego no colo, abraçando-a contra o meu peito, sem me
importar que temos uma plateia, precisando senti-la, me lembrar de que
agora está bem, que nós nos encontramos, que não será machucada de
novo...
— No nosso desespero, decidimos testar uma das nossas teorias. —
Lady Evile nos encara com carinho. — Se aeternus só poderiam ser
formados entre vampiros, enganaríamos o laço, te transformando em
vampira por alguns momentos.
— O veneno... — suspiro, entendendo e tentando me obrigar a não
ficar irritado, tentando focar que tiveram a melhor das intenções ao QUASE
MATAREM A MINHA ALMA GÊMEA.
— Foi você quem me mordeu?! — Amélie exclama, se levantando do
meu abraço, indignação fluindo do seu corpo.
— Nós tínhamos pouquíssimos minutos, precisávamos te morder,
atrair Roman para perto, garantir que o laço fosse formado e que ele te
salvasse, antes que você morresse. — Sua avó também se levanta, se
aproximando com cautela. — Entenda, nós ficamos por perto o tempo todo,
nós teríamos interferido se fosse preciso, mas ele apareceu sem que nós
precisássemos fazer nada.
— A senhora tentou me matar! — reclama, com dor na voz, e eu me
levanto também, me colocando às suas costas, postando as mãos nos seus
ombros em apoio.
— Eu tentei te salvar! — ela responde, com uma dose de desespero.
— Quanto mais estudei, quanto mais soube sobre aeternus finis, mais tinha
certeza de que precisava uni-los!
— Acompanhamos como você se recuperou, a nomeação como
scriba para disfarçar a ligação, juntos na Nobre Academia... — Lady Evile
faz um gesto, mandando que voltemos a nos sentar, nos acalmar. — Vimos
os dois dormindo juntos...
— Era a senhora na janela? — acusa, seus ombros se tensionando
debaixo do meu toque. — E eu te defendi! Disse que não poderia ser você!
— Tudo que fizemos foi para o bem. — A vampira se vira, mudando
para se dirigir a mim. — Eu também gosto de você, criança. E gostava tanto
da sua mãe... — afirma e sei que está sendo sincera. — É para o bem que
estamos aqui hoje, mais uma vez.
— Para entender por que não tornaram seu aeternus público até agora
— explica sua avó.
— Porque nós sabemos que as reações serão uma bagunça! —
Amélie nos defende. — Uma bagunça ainda maior do que essa que vocês
aprontaram!
— Aeternus é a magia mais poderosa que há, ninguém poderá ficar
contra um laço verdadeiro — intervém Lady Evile, nada envergonhada pela
reprimenda.
— Mas eles irão acreditar que ela é minha aeternus? Até onde sabem,
não existe laço entre humanos e vampiros — argumento, entrando na
conversa. — Vão achar que estou me alimentando do jeito proibido, que
estou mantendo-a por perto apenas por isso.
— Vocês podem provar que têm o laço! — Lady Evile sugere, mas
desvia o olhar, passando a não ter coragem de me encarar.
— Como? Matando um, para o outro morrer? — sugiro, com ironia.
“Sempre um romântico”, resmunga e eu deixo uma risada escapar
pela nossa conexão. Posso sempre contar com ela para me fazer rir, mesmo
nas horas mais improváveis.
— Existe uma cerimônia antiga, mas tão dramática quanto essa
opção... — A Lady começa, mas eu a interrompo antes que consiga dizer
qualquer coisa, adivinhando exatamente o que iria propor.
— Não — afirmo, decidido.
Nenhuma chance.
Nenhuma.
— Qual cerimônia? — A humana irritante pergunta e eu aperto seu
ombro com força, em um pedido silencioso.
“Não, Amélie, por favor”.
— O veneno de um vampiro é tóxico para outro, um mecanismo de
defesa, e que ajuda a evitar que a gente se sugue — explica e eu rosno em
advertência, apenas para ser ignorado. — Antigamente, na Cerimônia de
Comprovação, os parceiros se mordiam...
— Porque quando os fios da vida se unem, há um pouco de cada um
em cada corpo, então os verdadeiros aeternus seriam imunes. — A senhora
Freitas complementa, demonstrando que sabe ainda mais do que eu
suspeitava. — Como uma vacina, um antídoto.
— Mas a cerimônia foi banida porque muitos jovens tolos
confundiam qualquer atração básica com o laço e acabavam intoxicados. —
Bufa, exasperada. — Os clãs amam um motivo para se digladiar, sua
majestade sabe bem.
— Dê um baile nos terrenos do Castelo Rot e convide os clãs,
Roman! Convide as famílias reais dos humanos, dos elementais, e o novo
representante dos Knights para serem testemunhas. — Sua avó se anima
toda. — Faça a reverência e depois a Cerimônia da Comprovação. Quando
virem que ela segue viva, mesmo com a sua mordida, ninguém irá
questioná-los.
— Eu não vou morder Amélie! — explodo. — Se algo der errado...
— Balanço a cabeça, fazendo um esforço consciente para nem imaginar. —
Vocês perderam o juízo.
— Nós somos aeternus, não há dúvidas quanto a isso — sussurra a
humana, se sentando, tentando absorver tudo. — Se fosse resolver... Se
pudéssemos ficar juntos, sem empecilhos...
— Mas nunca foi testado com um humano antes! — Começo a andar
de um lado para o outro, passando a mão pelo cabelo, nervoso com o que
estão me pedindo.
Agora que eu a tenho...
Depois do que vivemos ontem...
Perdê-la me mataria, sem nem precisar do laço para isso.
— Teremos Lila do lado e a mesma coisa que usaram para me salvar
da primeira vez — teima, como a pequena teimosa que sempre é. — Pense
em como seria podermos viver isso. Pense no que significaria para Matteo.
Matteo.
Paro de andar e fecho os olhos.
Matteo...
Deixo meus ombros caírem em derrota.
Matteo.
— E se eu não conseguir parar? — sussurro, porque conheço bem o
seu sabor. O menor dos gostos já é capaz de me enlouquecer, quem dirá se
puder furá-la, se puder beber direto de uma das suas veias, sentir seu sangue
pulsando vivo, quente, doce...
— Uow, devagar! — pede, sentindo a minha fome, tão forte e
desesperada que volta a se levantar, para segurar o meu rosto com as duas
mãos. — Sei que consegue se controlar, você inventou o autocontrole,
vampirão.
Não quando se trata dela.
— E se reclamarem por eu ter mordido um humano?
— Será óbvio que não quer fazer mal a ela. — Lady Evile se
intromete, mais uma vez. — Se ela morrer, você morre.
— Nós vamos fazer isso — anuncia, decidida, fazendo aquela coisa
de me encarar do jeito que sempre consegue me obrigar a ceder aos seus
pedidos.
Ela me tem na palma da sua mão.
— Amélie — tento uma última vez, mas ela cola os nossos corpos,
me mergulhando no seu calor, me envolvendo com a sua certeza.
— Majestade, eu quero viver o meu “felizes para sempre” — ela
sorri, com lágrimas não derramadas nos olhos. — Você é minha profecia,
meu destino. Eu precisei quase morrer para te encontrar. Não há nada capaz
de nos separar. — Encosta sua testa na minha. — Nada. Nada. Nada.
Pela primeira vez, em todos os meus séculos de vida, faço uma prece
a qualquer energia que possa me ouvir...
Deixe que ela tenha o seu final feliz.
Deixe que esse seja o nosso final feliz.
Se não for por um final feliz, eu nem saio de casa!
Humana

Ainda é muito, muito doido pensar na reviravolta que a minha vida


deu. Minha avó. E Lady Evile. Juntas.
De certa forma, eu e Roman estávamos certos. Ela era culpada, mas
não era a vilã.
O plot twist de milhões.
Descobri que, esse tempo todo, dona Suellen não estava no Brasil,
estava aqui, em Ilaria, apenas trabalhando no seu plano maléfico. E, posso
estar enganada, mas acho que o carinho daquelas malucas vai além de uma
simples amizade.
Shippo, não vou negar.
As duas estão sozinhas há tempo demais.
Só espero que não tentem juntar mais ninguém.
Cupidas psicopatas.
Como se não bastasse, agora estamos na aventura de planejar, em
tempo recorde, o baile que pode acabar me matando. Bem legal. Uma festa
com uma dose de suspense. Agatha Christie teria amado.
Fazer os convites foi o primeiro passo para dar andamento ao nosso
plano de nos assumirmos para o mundo. Cada um dos clãs foi convocado,
assim como os vampiros do conselho e todos que são relevantes na sua
sociedade dramática.
Decidimos não convidar meus pais. Primeiro porque não teriam
tempo de chegar do Brasil até aqui, mas, principalmente, porque eles não
sabem sobre todo o rolê vampírico, nem quero que saibam. Deixe que
vivam felizes na sua ignorância, pensando que vovó tem apenas um hobby
esquisito, não todo o peso de uma profecia nos seus ombros.
Nem que a filhinha deles é a chave para trazer a paz às criaturas
míticas. Eu, Amélie, aquela que consome açúcar e desenhos demais. E que
tem uma adaga como bichinho de estimação.
Vai entender a lógica dos tais destinos.
Mas, decidimos seguir o conselho das velhas malucas e convidar
todas as autoridades que pudermos, para servirem como nossas
testemunhas, mesmo tão em cima da hora.
A nova imperatriz dos magos ainda não assumiu seu posto, nem é do
tipo que gosta de receber visitas, então lhe enviamos um convite por escrito.
Lady Evile prometeu que conversaria com seus contatos no mundo dos
Knights, para que também enviassem um representante.
Ivelyn, a rainha dos elementais, parecia saída diretamente de um livro
de fantasia. Tem o cabelo que nunca vou conseguir ter, nem que eu o pinte
todo dia. Seus fios são prateados de fato, prata líquida pura, assim como
seus olhos. Se não bastasse, tinha um dragão feito de fogo dormindo aos
seus pés, como um cachorrinho obediente. Descobrir que ela foi criada
como humana foi bem difícil de acreditar, a mulher é intimidante da cabeça
aos pés, ainda que extremamente simpática.
Aires, seu marido, também tinha o mesmo ar sobrenatural da esposa.
Soube que controla o ar e parece ser feito disso, tão etéreo e calmo.
E, sim, dragões existem.
A mera lembrança faz o meu olho começar a piscar de nervoso.
Os próximos foram Niko-lícia e Luz. O soberano gargalhou, nada
ofendido, ao saber que Roman frequentava tanto o palácio por minha causa.
Para minha surpresa, a loira ainda me arrastou para o cofre real e me
fez sair de lá com uma coroa, uma coroa de verdade, de presente. Não
adiantou eu dizer que Lady Evile me ensinou que soberanos vampiros não
costumam usar joias do tipo.
— Toda rainha precisa de uma coroa, Amélie! — disse. E, quando
Luz Alice manda, você obedece. É assim que o mundo funciona.
Quanto a Amadeo, fiz questão de irmos convidá-lo pessoalmente. Ele
me deu pêsames tão sinceros quando contamos sobre o aeternus que acabei
rindo, não vou negar. Fora isso, a visita correu muito bem. Só precisei
ameaçar os dois com Céline uma vez, o que considerei uma grande vitória,
obrigada.
O Prince caçula se fingiu de blasé, dizendo que não sabia se iria, mas
eu apenas disse que se, não aparecesse, faria Roman nomeá-lo como seu
novo scriba, agora que terei de me aposentar.
Nunca vi alguém concordando tão rápido com algo.
Lila e Christian foram o caso mais delicado de todos, principalmente
porque não estão se falando. E eu nem achei que algo assim fosse possível!
Até os nossos planos de contar para eles sobre como despertamos o laço
humano/vampiro teve que ser postergado.
Os dois estão miseráveis sem o outro, mas aceitaram comparecer à
cerimônia, desde que não precisassem interagir. Claro que decidimos
ignorar esse pequeno detalhe, vamos dar um jeito nisso, nem se tivermos
que trancá-los em um quarto e só os soltarmos quando fizerem as pazes. Ou
podemos fazer Roman morder Lila, para tentar despertar a conexão dos dois
de uma vez.
Talvez eu também seja meio cupida-psicopata.
Então, chegamos à véspera do baile, faltando apenas falar com o
convidado mais importante.
Matteo.
Decidimos que vamos apenas pedir sua guarda, neste primeiro
momento. A luta pela sua inserção na linha sucessória virá apenas quando e
se ele quiser. Jogar o peso de ser um soberano sobre o garoto seria injusto
demais. E não queremos que ache que estamos neste processo de adoção só
para termos um herdeiro. Não quando isso não poderia estar mais distante
da verdade.
“Pronta?”, Roman me pergunta, apertando a minha mão de leve, nós
dois parados à porta do quarto provisório do menino, no Centro de
Formação.
“O que acha que ele vai dizer?”, devolvo a questão, deixando que
sinta como estou com medo.
Ele me deixa sentir que está ainda mais apavorado.
“Não sei, mas encontraremos um jeito de ajudá-lo de qualquer
forma”, promete e eu aceno com o queixo.
“Vamos lá”, anuncio, tentando reunir coragem por nós dois, batendo
na porta com firmeza.
Não demora para que Matteo abra, nos recepcionando com o Kindle
na mão e um franzir de sobrancelhas. Quando vê que somos nós, abre um
pequeno sorriso, antes de se curvar em uma reverência.
— Podemos entrar? — peço e ele dá um passo para o lado, nos dando
permissão para o espaço apertado, mas que está perfeitamente arrumado.
Ainda mais para um adolescente. O meu quarto na adolescência era o
equivalente a um buraco negro.
É como se fosse um mini Roman.
Eu me sento no lençol esticado da cama, com meu vampiro ao meu
lado, e o garoto ocupa a única cadeira que há no quarto, ao lado da
escrivaninha.
Mais uma onda de nervosismo chega até mim.
— Vocês estão estranhos — diz, fazendo uma careta arrependida em
seguida, se esquecendo dos seus filtros. — Com todo respeito.
Amo esse seu lado.
Vamos nos dar tão bem.
— Não nos ofendemos — garanto e decido ser honesta, direta.
Parte de mim se ressente pela minha avó não ter sido sincera comigo,
mesmo que eu tenha entendido sua lógica. Antes de Roman, eu teria
acreditado se ela me dissesse que sou a prometida de um vampiro?
HA!
Eu teria chamado o psiquiatra mais próximo.
— Temos algo sério para conversar com você, então estamos
nervosos — admito, voltando a pegar a mão de Roman na minha.
— Nervosos de falar algo comigo?! — exclama, surpreso.
— Sim... — começo, porque o meu vampiro parece estar ansioso
demais para qualquer coisa. — Matteo, como você se sentiria se nós
pedíssemos a sua guarda?
— Não queremos substituir seus pais. — Ele desperta para
acrescentar, usando sua própria experiência nessa situação delicada. — Só
queremos cuidar de você, te ajudar até que seja um adulto...
O garoto fica em silêncio, olhando para a tela bloqueada do seu
Kindle, perdido em pensamentos por alguns segundos, sem esboçar
nenhuma reação.
Ugh! Esse laço está me deixando mal-acostumada. É difícil não saber
exatamente o que outra pessoa está pensando.
Nós aguardamos, cheios de expectativa, por mais alguns momentos,
deixando que reflita o quanto quiser. Quando volta a nos encarar, vejo que
está tentando manter suas expectativas sob controle, mascarar sua
verdadeira emoção.
“Garoto corajoso”, elogia Roman, com uma nota de carinho, e eu dou
um pequeno puxão no laço em resposta.
— Estão falando sério? — indaga solene, unindo suas mãos em uma
pose que o deixa parecendo um mini CEO prestes a fechar um negócio.
— Muito sério — garante o meu vampiro, endireitando a sua postura
também. — Você é um jovem brilhante, que vai muito longe, e nós
adoraríamos ajudá-lo a chegar lá.
A resposta faz o menino se acender.
Todo o seu rosto se ilumina em um sorriso.
“Mandou bem!”, aprovo e agora é ele quem estica o laço, quase
fazendo um carinho.
Estou esperançosa.
Talvez nós consigamos ser pais.
Talvez nós consigamos até ser bons nisso.
— Eu... — Começa Matteo, mas interrompe sua sentença no meio,
analisando as palavras com cautela.
— Pode pedir um tempo para pensar, se quiser — sugiro e ele
balança a cabeça, em negativa, seus cabelos começando a ficar longos
demais.
— Eu iria gostar de passar um tempo com vocês — anuncia, com
uma diplomacia invejável.
— Tem mais uma coisa que precisamos lhe contar — diz Roman, no
mesmo tom. — Daremos um baile amanhã, no Castelo Rot. Podemos
entender se decidir ir mais devagar, mas seria muito importante para nós se
estivesse presente.
— Um baile? — Franze o seu cenho, sem entender, e eu troco um
olhar com meu... namorado? Noivo? Marido? Todos esses títulos parecem
tão pequenos, tão mundanos...
Meu.
E pronto.
— Um baile onde iremos revelar para o mundo nosso aeternus finis
— informo, sem disfarçar o orgulho da minha voz.
Poder chamar “Roman, o delicioso” de meu é incrível. Aquela coisa
que ele fez noite passada com a língua, ou aquela posição que conseguiu
nos encaixar usando a sua força... Sensacional.
Droga, Amélie.
Hora errada para lembrar disso.
— Mas ela é humana! — Deixa escapar, cobrindo a boca, em
seguida, e dessa vez eu me permito rir.
Roman irá passar bons bocados com a gente.
Mal posso esperar.
— Por isso não será apenas um baile, será uma boa dose de drama e...
— Começo a explicar, mas antes que eu possa contar sobre a parte da
Cerimônia de Confirmação, Matteo acrescenta:
— Eu não ligo que você seja humana — afirma, erguendo seu
pequeno queixo. — E, se é importante para vocês, eu quero estar lá.
— Ficamos muito felizes — digo, tentando não me emocionar com
esse vampirinho e a forma como me aceita tão livremente, de coração tão
aberto.
A tal profecia pode estar certa, nossa missão deve ser mesmo iniciar
toda essa coisa de aceitação.
Tudo bem, por mim.
Lucrei um Roman Prince nessa.
— Mas não tenho roupa para um baile. — Faz uma careta, tirando um
fiapo imaginário dos seus jeans gastos.
Tem tanto quanto eu tinha quando Roman me resgatou, isso é óbvio,
mas prometo para mim mesma que nunca mais lhe faltará nada. Nada. Nem
incentivo, nem apoio, nem carinho, nem roupas, nem livros, nada.
— Podemos dar um jeito. — É a vez de Roman prometer. — Agora,
podemos te ajudar a arrumar as suas coisas?
— É apenas uma mochila — admite, com vergonha, apontando para a
peça surrada em um canto.
— Mais fácil ainda — brinco, para aliviar o clima, me levantando
para pegá-la, sendo imitada pelos dois vampiros. — Vamos, então?
Meu coração, dessa vez nem posso culpar o laço, dá um puxão com a
força de um cabo de aço quando Roman estende a mão e o garoto aceita,
enrolando seus dedinhos aos do homem, para saírem juntos.
Minha família.
Minha própria família.

**
No dia seguinte

Uma batida alta ecoa no quarto, antes que Lila abra uma fresta e enfie
o seu rosto para dentro.
— Posso entrar? — pergunta, meio incerta, a bobinha.
— É claro! — exclamo feliz, me levantando para encontrá-la.
Se ela achou que eu ia ficar do lado de Chris, está muito enganada.
Essa mulher salvou a minha vida! Não há tatuagens e charme o suficiente
naquele golden retriever que superem isso.
— Uau, Amélie! — Ela ofega ao me ver por completo, parando no
lugar para absorver minha aparência. — Você está uma verdadeira rainha
vampira!
Essa é uma boa definição. Estou usando um novo vestido preto, que
as fadas de Roman brotaram para mim, inteirinho bordado com brilhos
pretos que me fazem reluzir. Pena que o coitado quase não aparece, graças
ao manto vermelho-sangue que cobre tudo, feito no tecido mais rico e
pesado que já vi. Parece um veludo, mas tem um padrão intrincado aplicado
em toda sua extensão, sua cauda indo vários metros para trás, a gola tão alta
que passa os meus ouvidos, o fecho na frente tão elaborado que levei mais
tempo para decifrá-lo, do que levaria para invadir um sistema de segurança.
Ainda tem mangas amplas, com correntes aplicadas, que pesam mais do que
uma carga considerável no supino.
Combinei tudo com um coque alto, porque simplesmente não tinha
outro lugar para enfiar o meu cabelo e finalizei com a coroa perfeita,
cravejada de rubis, que combina bem com o dourado dos brincos que
entregaram junto com o vestido — e que são no formato de pequenas
adagas, muito similares a Céline, que descansa no meu cinto.
Um presente lindo do meu vampiro, aposto.
Usei as minhas maquiagens novas, combinando um batom rubi, com
um olho delineado que mataria Chris de inveja. Me inspirei em Ivelyn,
decidida a parecer tão sobrenatural quanto o meu par.
Se eu morrer hoje, vou partir desse mundo no estilo.
— E você está péssima — digo com preocupação, não gostando nada
de como a minha amiga parece exausta. Seus cachos, sempre tão brilhantes,
estão presos de qualquer jeito. Sua pele negra está marcada por olheiras que
nem a maquiagem conseguiu disfarçar. Mas, acima de tudo, ela parece
apagada.
É como... se estivesse com dor.
Uma dor que vem de dentro.
Puxo-a para mais um abraço, apertando com toda força, sem me
importar em amassar a minha ou a sua roupa, só desejando passar um pouco
do seu desconforto para mim, ou tentar lhe passar um pouco de conforto.
Quando nos afastamos, me dá um sorriso triste e endireita a minha
coroa, que tenho certeza de que já estava perfeita.
— Hoje não é sobre mim — anuncia, conseguindo evitar que as
lágrimas escorram. — Hoje é sobre você calando a boca de todo mundo,
mostrando que nós humanas somos demais.
— Mas você não está nem usando as cores do clã dele — aponto,
ainda preocupada, indicando o seu vestido branco, a única cor que nenhuma
família reivindicou.
— Estou fundando um novo clã! — brinca, rodando no lugar, fazendo
a saia ampla do seu vestido se abrir. — Já passo todos meus dias vestida de
branco mesmo.
— Lila — insisto.
— Não me faça borrar minha maquiagem — implora e eu solto um
suspiro, aceitando deixar o assunto de lado por enquanto. — Está nervosa?
— Nem um pouquinho.
— Ótimo, porque eu tenho antídoto suficiente para transformar
Roman em um humano, bolsas de Blut-X para manter a emergência do país
todo funcionando e uma ambulância de prontidão, para garantir.
— Uma ambulância? — repito, com a voz esganiçada. — Como você
conseguiu uma ambulância?
— Usando meus contatos. — Dá de ombros, como se não fosse
grande coisa. — Sua avó me ensinou uma expressão que eu amei... — Deus
me ajude só de pensar nessas duas juntas. — Você é minha casca de bala,
Amélie — afirma, com a voz cheia de carinho. — Nós estamos juntas
nessa. Com o grande bônus de que já tem sua alma gêmea, então não vai
foder nossa amizade.
Ah, Christian Yang.
Você me paga.
— Você quer que eu crave Céline nele? — ofereço, com meu melhor
sorriso inocente, sem me conter.
— Não! — ela ri. De verdade, dessa vez.
— Quer que eu o segure para você cravar Céline nele? — Porque ela
é das minhas, que gosta de resolver os problemas com as próprias mãos.
Daria uma ótima agente secreta.
— Talvez depois da sua cerimônia, enquanto todos estiverem
embasbacados por terem que se curvar a uma rainha humana.
Um arrepio me percorre.
A parte de ter pessoas me reverenciando é quase tão esquisita quanto
voar. Bem que Luz me avisou que seria bizarro nas primeiras vezes.
— Lembre-se que, mesmo que eu manche isso aqui de sangue... —
Levanto uma das pontas do manto. — Ninguém vai perceber! — Pisco para
ela, que consegue dar outro sorriso real, acalmando um pouco minha
preocupação.
Definitivamente, preciso bancar a cupida-psicopata.
E logo.
Outra batida na porta do nosso quarto ecoa alta e Lila vai atender para
mim, revelando Matteo em seu smoking muito fofo, com um lenço azul
combinando. As cores do seu clã original e que achei incrível que tenha
escolhido usar.
— Sua majestade pediu para avisar que estão prontos para você —
informa, todo solene e, se eu pudesse, apertaria suas bochechas.
FOFO.
— E aposto que ele pediu para você chamá-lo de Roman.
— É esquisito. — Puxa sua gravata. — Ele é o rei, sabe. — Só então
olha para mim de verdade. — Caramba, a senhora está linda. Senhora não...
— Balança a cabeça. — Majestade!
— Tente me chamar de Amélie — peço, porque o “majestade” se
referindo a mim também me dá arrepios.
O peso do que significa...
Não, nada de pensar nisso agora.
— E, se me chamar de senhora, leva uns petelecos, sobrinho
preferido — Lila ajeita a gravata dele com carinho, antes de lhe oferecer o
braço. — Me acompanha?
— Tu-tudo bem — gagueja, antes de aceitar a oferta dela e estufar o
peito, pronto para escoltá-la como um verdadeiro cavalheiro.
LINDO!
Descemos juntos os sessenta e três degraus, comigo lutando para
segurar o manto, usando todo meu treinamento físico para dar conta do
peso.
Paramos de frente para as portas duplas e meus dois acompanhantes
me ajudam a esticar o tecido, até que forme um círculo perfeito ao meu
redor.
— Vai dar tudo certo — Lila promete, olhando bem nos meus olhos.
— E não ouse morrer, ou vou dar um jeito de puxar o seu pé.
— Não deveria ser o contrário?
— Não me subestime — debocha, parecendo um pouco a Lila de
antigamente, antes de acenar em despedida e guiar Matteo para uma das
portas laterais.
Respiro fundo algumas vezes, tentando controlar o meu nervosismo.
Não tenho medo do que vamos fazer, mas tenho medo de que não
consigamos convencer todos do nosso laço, de acabar prejudicando Roman,
das repercussões para Matteo, de conseguirem impedir que eu e meu
vampiro vivamos o nosso felizes para sempre...
“Humana?”, ele chama, sentindo meu surto.
“Não estou pensando em fugir, Rom-lícia, não se preocupe”.
“Se tiver mudado de ideia, eu juro que cancelo tudo isso e nós
passaremos a noite vendo um dos seus desenhos ridículos, ou uma daquelas
séries com as risadinhas irritantes”.
“Você faria isso mesmo, não é?”, uma pergunta retórica, para a qual
já sei a resposta. “Eu não quero cancelar nada, eu quero mais que o mundo
saiba logo que o vampiro mais arrogante e implicante do mundo tem dona”.
“Dona”, tenta bufar exasperado, mas a emoção quente, que nunca
consegue disfarçar, é uma carícia gentil dentro de mim.
“Vamos lá, vampirão”, digo, divertida. “É hora de cumprirmos uma
profecia, salvar as criaturas e tudo mais”.
“Bom”, aprova. “Serei aquele olhando para você sem acreditar na
sorte que tem”.
“Está flertando comigo, Roman Prince?”.
“Estou”, responde, simplesmente e eu rio, fazendo um gesto para que
os guardas de prontidão abram as portas duplas.
É por momentos como esse que estou fazendo isso.
Por cada conversa maluca que tivemos na nossa mente.
Por cada vez que me curou.
Por cada vez que me mostrou como era ser amada de verdade.
É hora do show.
A orquestra começa a tocar alto assim que eu apareço, um som
intenso e ritmado, o Bolero de Ravel, que ouvimos no Chiron naquela noite
em que me levou para o meu apartamento decrépito.
A nossa música.
Assim que me veem postada ali, usando o manto reservado aos
aeternus dos Prince, não o de scriba, os convidados ofegam ruidosamente o
bastante para que eu ouça, como se tivessem ensaiado um coro.
Eu ergo o meu queixo, me obrigando a manter a compostura, e
começo a caminhar, sentindo o peso de todos os olhares em mim.
Uma emoção fervente chega pelo laço, sinto um pequeno puxão, e
busco pelos olhos vermelhos certos, neste mar de olhos vermelhos.
Meu vampirão está me esperando em pé, bem no centro da
concentração de pessoas, sua atenção tão cravada em mim que eu consigo
senti-la fisicamente.
Abaixo dos seus pés, para o meu espanto completo, há um gramado
verde, macio, perfeito, parecendo recém-plantado.
Ele plantou grama para mim...
Como a que eu tinha na minha casa...
“Jogo sujo”, reclamo, lutando com a emoção.
“Devo supor que gostou?”.
“Deve supor que vai se dar muito bem mais tarde”.
Um rosnado faminto chega até mim pelo elo e eu começo a andar um
pouco mais rápido, sentindo uma vontade súbita de apressar as coisas.
Quero que o “mais tarde” chegue logo.
Agora, a surpresa começa a se transformar em bochichos de
especulação, que eu trato de abafar, focando só no homem me aguardando
com seu traje tradicional, tão elaborado quanto o meu.
Acabo com o espaço entre nós e paro na sua frente, abrindo um
enorme sorriso, que ele logo retribui, conseguindo piorar ainda mais o
espanto de todos.
Sem hesitar, começa a dobrar o seu corpo enorme com toda graça e
elegância, se curvando em uma reverência profunda, me clamando na frente
de todos, me reconhecendo como aquela a quem deve todo o seu respeito.
Puxo o laço, já que não posso puxá-lo para mim.
Eu me apaixonei por um vampiro.
É isso.
Completamente apaixonada, rendida, entregue.
Mesmo se não existisse conexão nenhuma, eu ainda teria me
apaixonado por esse homem esnobe e arrogante, generoso e preocupado,
gentil e correto, inteligente e cheio de caráter.
Volta a se erguer, sem nunca cortar o nosso contato visual, e nossa
emoção é forte o suficiente para transbordar por todo o meu corpo, me
fazendo questionar como é possível que não soltemos fagulhas, fogos de
artifício.
“Eu sou seu”, afirma, com tanta convicção que ignoro todo o
protocolo e me lanço para abraçá-lo. Aperto-o com força, com todo meu
corpo, com a minha alma, como toda essa confusão de mantos.
“Eu e você, por toda nossa eternidade”, respondo com a mesma
certeza, me afastando, antes que comecemos a causar um escândalo ainda
maior.
Matteo está assistindo.
Comporte-se.
Roman dá um jeito de unir as nossas mãos, conseguindo encontrar
meus dedos mesmo no meio de todo aquele tecido, apertando de leve, antes
de se preparar para falar.
— Honoráveis clãs, amigos, majestades e altezas reais —
cumprimenta, olhando ao redor, sem nunca me largar. Eu também me
mantenho ao seu lado, de queixo erguido, a estátua de mármore humano
perfeita. — Acredito que já tenham percebido que este não é um simples
baile... — Faz uma pausa, deixando que a conversa se acalme. — Está é a
apresentação, formal e oficial, diante de todos vocês, da minha... — Se vira
para mim e dá outro enorme sorriso. — Aeternus finis.
A multidão explode em comentários com a confirmação. E poderia
jurar que ouvi um “essa é a minha neta!” entre o burburinho, além de um
“Go, Amelícia!” em uma voz que parece muito a de Luz Alice. Mesmo
assim, consigo manter minha atenção toda nele, em toda sua glória de olhos
vermelhos e presas à mostra.
— Depois de séculos, eu encontrei a minha alma gêmea — continua,
com sua voz mais grave, autoritária, a que usa nas aulas. — Pode parecer
estranho para alguns, mas quem somos nós para questionar os planos do
destino? Para questionar a sabedoria do laço? — As especulações começam
a diminuir quase que imperceptivelmente. — A profecia nos visitou para
dizer que deveria ser assim, que muitos virão depois de nós, e consideramos
uma honra sermos aqueles que vão abrir os caminhos. — Eu aceno em
concordância, porque se tem uma coisa que eu gosto é mandar qualquer tipo
de preconceito para o quinto dos infernos, obrigada. — Rogamos para que
aceitem nossa conexão, para que respeitem nossa união e, para que não
restem dúvidas...
“Pronta?”, pergunta, me deixando sentir sua preocupação. Está
cogitando seriamente me pegar nos braços e sair correndo daqui, sem olhar
para trás.
Roman, o dramático.
— Para que não restem dúvidas — eu assumo, antes que coloque o
seu plano em prática, para que entenda que estou nessa por livre e
espontânea vontade. — Nós nos comprometemos em resgatar, apenas por
essa noite, a Cerimônia de Comprovação.
O caos recomeça, maior do que nunca, a ponto de ser preciso que
Chris voe e grite um “SILÊNCIO” impressionante para que as coisas se
acalmem. A propósito, nem isso faz com que eu fique menos brava com ele.
Ajudou um pouco que pareça ainda mais miserável que Lila, sem nem um
pingo de delineador.
Mas só um pouco.
— Sim, eu sou humana — retomo minha fala, projetando minha voz
para que todos possam me ouvir. — Mas não tenho dúvidas de que o elo
que eu e vossa majestade dividimos seja real, não tenho dúvidas de que o
meu lugar é ao seu lado, e farei tudo ao meu alcance para honrar o presente
de ter sido escolhida para ser sua aeternus.
O silêncio agora é tão alto quanto o das aulas.
Caramba, deixei um bando de vampiros sem palavras.
E nem precisei ameaçar ninguém com Céline.
Se eu morrer agora, vai ser um belo anticlímax.
“Você dará uma ótima rainha”, diz, sua voz embargada, e eu sei que
odiaria se começasse a chorar na frente dos seus súditos. Então, me viro de
frente para ele, pronta para começar a tal cerimônia logo.
Sei que está sondando o laço, mas só vai encontrar certeza. Eu quero
isso. Eu quero ele. Eu quero nossa vida juntos, mesmo que venha com
vampiros malucos que adoram nos ver dormir.
Sem ter mais como adiar, ele suspira, dando seguimento ao nosso
plano, tentando ignorar o pavor que toma conta do seu peito.
Enrola um braço forte na minha cintura e me deixa deitar para trás,
expondo completamente o meu pescoço para quem quiser ver. Eu mantenho
meus olhos abertos, para que todos sejam capazes de monitorar minhas
reações.
Desliza a ponta do seu nariz de leve na pele fina dali, com um carinho
tão gentil que me faz derreter ainda mais no seu abraço. Planta um beijo
suave no ponto onde sei que irá me morder, porque é o ponto onde estão as
cicatrizes antigas.
“Última chance de desistir”, oferece, torcendo para que eu desista.
Não vai acontecer, bonitão.
“Eu sou teimosa demais para deixar algo tão bobinho quanto veneno
de vampiro me matar”, provoco e isso consegue fazê-lo soltar um dos seus
suspiros exasperados/carinhosos.
Está na hora.
Não há mais o que adiar.
Ele começa me arranhando, como fez das outras vezes, arrancando
apenas uma pequena prova. O meu sabor toca sua língua e isso, sim, é
suficiente para despertar o predador.
Adeus, hesitação.
O momento que suas presas se cravam em mim, cravam fundo, é algo
que nunca vou esquecer. Prazer e dor na proporção mais deliciosa. Seu
veneno na minha corrente sanguínea, se misturando à energia do laço que
corre ali, formando uma combinação tão boa que, por um segundo, eu me
pergunto se morri e essa é a minha versão do paraíso. Eu não me oporia se
fosse.
Quando ele suga uma pequena quantidade do líquido, eu me curvo na
sua direção, me oferecendo ainda mais, querendo continuar a senti-lo dentro
de mim.
Ele está dentro de mim.
Meu sangue é seu sangue.
Eu imagino que estamos chocando todos ao nosso redor, talvez
despertando uma fome antiga em alguns, mas nem presto atenção. Não
conseguiria. Não quando a sensação é tão deliciosa, tão certa, tão
intoxicante.
Não estou morrendo.
Sei que não.
A impressão é de que estou mais viva do que nunca.
Ele se afasta cedo demais para o meu gosto, com os olhos vermelhos,
a respiração ofegante, seus lábios tingidos do tom mais rico de rubro.
Nunca esteve tão bonito.
— Estou perfeita. — Sorrio para acalmá-lo, para mostrar a todos que
estou bem, que nada me aconteceu, além de quase ter uma espécie
sobrenatural de orgasmo.
Nosso laço é real.
Eu sabia.
TOMA ESSA, MITOLOGIA.
Lila se aproxima apressada para me fazer um curativo rápido, apenas
para estancar o sangramento, bem à vista de todos, para deixar claro que
não usa nenhum antídoto. Checa os meus sinais vitais em seguida, em seu
modo profissional, para me encarar em assombro quando acaba.
— Você está bem mesmo — dá o veredito que eu já sabia, mas que
faz Roman soltar o ar pela primeira vez, alívio o inundando.
Só então me permito ver a reação dos vampiros, das nossas
testemunhas. E preciso me controlar muito para não rir. Queria que eles
mesmos pudessem ver suas caras. Assombro em seus mais diversos
formatos, com doses de respeito e pitadas de choque completo.
Ah, eu adoro causar.
— Longa vida à rainha Amélie! — Amadeo puxa em voz alta, com
um sorriso verdadeiro no rosto, sendo o primeiro a se abaixar em uma
reverência profunda e respeitosa, que todos começam a imitar.
Todos mesmo. Até Luz e Ivelyn, que não precisariam se curvar por
também serem rainhas, assim como Nikolai.
Chris e Lila.
Lady Evile e minha avó.
Matteo.
— Longa vida à rainha Amélie! — entoam em coro, me fazendo
arrepiar, emocionar, e mais uma dúzia de sentimentos que nem sou capaz de
definir.
Rainha Amélie.
Essa sou eu.
Que loucura.
E, por último, se curvando pela segunda vez, também sem precisar,
está Roman. Nosso laço flui quente, brilhando com alegria pura, sem deixar
espaço para mais nada.
“É hora do seu final feliz, humana”, promete aquele que é a minha
profecia, a minha alma gêmea.
O meu vampiro.
Eu não estou pronta para me despedir!
Anos depois

Roman

— Nunca entendi por que gosta tanto dessa foto minha — reclama
Amélie, apoiando o seu rosto no meu ombro para espiar a imagem que
estou admirando, entre as muitas que enfeitam o console da nossa lareira.
O retrato pode ser simples, ela está apenas deitada na grama do nosso
quintal, gargalhando radiante de algo que Matteo disse. Mas a tirei no
primeiro final de semana depois daquele baile em que revelamos nosso laço
para o mundo, depois de passar por todo o nervosismo por conta da
Cerimônia de Comprovação. Nosso filho já estava com a gente, não
tínhamos mais ameaça nenhuma pairando sobre nós, então foi um dia de
paz. Quando se vive tanto quanto nós, se aprende que poucas coisas são
mais relevantes do que um dia de paz.
Essa foto é um marco. Um lembrete.
Tanto que guardo uma cópia na gaveta do meu escritório na Nobre
Academia, ainda que quase ninguém saiba disso, apenas para ter um pedaço
da nossa vida quando estou “longe”.
— Gosto de admirar o meu excelente trabalho de jardineiro —
debocho e ela revira os olhos, beliscando a minha bunda sem cerimônia.
— Veio aqui dentro só para isso? — brinca, passando as mãos pelo
meu pescoço, me puxando para um beijo que começa lento, sagrado, logo
se transforma em chama, em desespero.
Minha fome dela nunca passa.
Encosto as nossas testas quando nos afastamos, para nos
recuperarmos dos efeitos do laço, ofegantes e acesos, como sempre
acontece.
— Na verdade, vim buscar mais vinho. — Consigo forças para erguer
um dos braços, mostrando a garrafa que tirei da adega. — Mas me distraí
com a foto.
— Admirando a minha beleza? — sorri, passando a mão pelo meu
cabelo, ajeitando-o de volta ao lugar.
— E pensando como você não parece ter mudado nada, então talvez
nossa teoria esteja certa. — Para o meu alívio.
— Ter um fio da vida com um vampiro é o melhor skin care, me
sigam para mais dicas. — Sorri e dá um passo para trás, fazendo o laço
protestar. — Precisamos voltar para os nossos convidados — avisa, para
mim e para o aeternus.
— Precisamos? — questiono, me abaixando para deixar mais um
beijo rápido no seu pescoço, na sua cicatriz, sem resistir.
— Na última vez que espiei para fora, minha avó e Luz Alice
estavam tentando ensinar funk para metade da realeza sobrenatural da
Europa — resume e eu suspiro, conformado.
— Mais tarde então — prometo e ela faz uma expressão maliciosa,
entendendo o que quero dizer.
— Mais tarde — concorda, avisando que irá buscar o bolo na cozinha
e me despachando de volta para o nosso quintal, onde estamos oferecendo
um pequeno almoço de aniversário para Matteo.
Dessa vez, ele não está sozinho em um canto, lendo. Está no centro
da aula de dança improvisada, rindo com Lady Evile da tentativa patética de
Chris requebrar os quadris, seguindo os comandos das duas professoras
inesperadas.
Ele ainda lê mais do que seria saudável para qualquer um, mas
cresceu tanto, se desenvolveu tanto, que não consigo evitar a onda de
orgulho que me atinge. Logo começará seus estudos da Nobre Academia,
seguindo o seu plano de se tornar um escritor, e não preciso ser um mago
para profetizar que meu filho será um sucesso.
Ele é um em um milhão.
Enquanto sirvo o vinho em algumas taças, deixo o meu olhar passar
pelo espaço, pelo nosso pequeno círculo íntimo reunido. Ivelyn está
tentando ensinar Lila a andar de skate e suspeito que Aires esteja usando
seus poderes para não deixar ela cair, já que equilíbrio claramente não está
entre os dons da médica.
Aurora está brincando no balanço que colocamos em uma das
árvores, indo tão alto que faz Weston, seu Knight, e Nikolai quase
infartarem de preocupação. Dois homens formados tão apavorados que
chega a ser cômico.
Do outro lado, Amadeo bebe da sua taça, sua atenção cravada no que
a Imperatriz dos Magos e o seu guarda estão dizendo. Não sei se o seu
interesse é dirigido a ele, a ela, ou a ambos, mas o homem está rendido de
um jeito óbvio.
Como a profecia queria, nossos pequenos mundos se entrelaçaram.
Levo outra taça para o meu primo, que me dá um sorriso sincero de
agradecimento. Nossa relação progrediu bastante desde que se tornou meu
scriba, tenho de admitir.
Ainda que não seja tão bom quanto a minha scriba anterior.
Amélie, agora além de ter o título de rainha, também foi convidada
pela família real a retornar ao seu cargo na proteção da Coroa. Wilbur
abandonou o seu posto e o país, logo após a nossa visita. Um mistério e
uma pena, realmente. Pelo menos, teve a decência de retornar a Céline
original, antes do seu exílio.
Exílio acidental.
Com o qual eu não tive nada a ver.
E essa sempre será a minha versão oficial.
Eu e ela trabalhamos remotamente na maior parte dos dias, dividindo
um escritório para que o laço deixe que nos concentremos em paz, até eu
me aposentar, o que não deve demorar. Tenho certeza de que Sebastian
Durant assumirá bem o meu posto.
— Hora dos parabéns! — anuncia minha humana, chegando com o
bolo que fiz na noite passada, voltando para o quintal.
Apesar de termos vários convidados que não comem, ela faz questão
de manter um pouco das suas tradições. Graças a isso, a mesa que preparou
acabou sendo um misto improvável de coisas como Blut-X e um doce
brasileiro marrom que fez a rainha Luz gritar quando viu.
Não saberia repetir o nome daquilo nem se minha vida dependesse
disso. Português é uma língua dos infernos.
Matteo nem hesita ao ocupar o lugar de honra, enquanto todos se
reúnem ao redor. Aurora pede para subir no seu colo, animada pela
movimentação, começando a bater palmas mesmo antes dos parabéns,
fazendo todos rirem.
A cópia perfeita da mãe.
— Antes de começarmos e aproveitando que estamos todos reunidos,
queria dizer duas coisas... — O garoto chama a atenção para si, ajeitando
melhor a garotinha e tentando não demonstrar seu nervosismo.
Mas eu o conheço melhor que isso.
Seja o que for dizer, está deixando-o ansioso.
Busca o meu olhar e eu lhe dou um aceno de incentivo, mesmo que
não faça ideia sobre o que quer falar.
“Será que ele está bem?”, Amélie me pergunta, preocupada.
“Ele está bem”, garanto, apesar da minha própria ansiedade.
“AI, MEU DEUS. ELE VAI PEDIR PARA IR EMBORA, NÃO
VAI?”.
“Matteo ama a nossa família tanto quanto nós”, garanto. Para mim e
para ela.
— Primeiro. — Limpa a garganta e Aurora coloca as duas mãos na
sua bochecha, obrigando-o a fazer uma careta, conseguindo lhe dar forças
sem nem entender o que está acontecendo. — Quero agradecer a Roman e
Amélie por tudo que fizeram por mim, desde que me conheceram.
“ELE VAI TERMINAR COM A GENTE”.
Eu não respondo nada.
É claro que ele não vai.
Certo?!
— Eles me deram... — Balança a cabeça. — Uma vida nova. Uma
chance. Tudo.
Nossos convidados soltam um coro de “awns”, mas o meu canal com
Amélie está repleto de preocupação.
— Por isso, em segundo lugar... — Agora ele nos encara
diretamente. — Se eles quiserem... — Respira fundo, fazendo Aurora imitar
o seu gesto exagerado. — Se quiserem me ter como seu herdeiro, eu ficaria
muito honrado.
Alívio nos inunda.
Seguido por uma das maiores alegrias que já sentimos.
— Era isso? — Amélie está chorando de verdade, lágrimas de alegria
escorrendo pelo seu rosto perfeito. — Eu achei que fosse terminar com a
gente!
O queixo dele cai.
— Vocês são meus pais! — exclama, indignado. — Não existe
“terminar” com os pais!
É a primeira vez que nos chama assim.
Pais.
Ele nos vê como seus pais.
— Eu sou seu pai? — Aurora pergunta, cutucando a bochecha dele,
suavizando o momento que estava emocionando todos.
— Se não quiserem, eu vou entender, porque tem o tio Amadeo e...
— começa a argumentar, seus olhos buscando os meus com nervosismo.
— Não tem “tio Amadeo” nenhum, não! — O homem se intromete
para protestar, apesar de estar sorrindo orgulhoso. — Não fico bem de
coroa, valeu.
— Matteo — chamo, para acabar com o seu sofrimento de uma vez.
— Nada me faria mais feliz do que isso.
Agora são os seus olhos que se enchem de lágrimas não derramadas.
— Nem se Amélie deixasse as pantufas no lugar certo? — consegue
acrescentar, engolindo o choro com sua coragem, e fazendo a humana soltar
um “hey” ofendido.
— Vocês dois são parecidos demais para o meu bem — reclamo,
fazendo todos rirem. — Mas tem certeza disso? — preciso perguntar, me
certificar. Não quero que faça nada que não esteja pronto. É uma
responsabilidade grande demais.
— Certeza absoluta — concorda, com a determinação que sempre
teve, de quem sabe o que quer.
Controlo a minha emoção e me viro para os meus amigos, para as
pessoas mais importantes da minha vida.
— Rei Matteo, senhoras e senhores! — Puxo uma salva de palmas
que todos acompanham, Aurora caprichando nos gritinhos empolgados, e se
apressam a cumprimentá-lo, a parabenizá-lo.
Enquanto isso, minha humana vem me abraçar.
“Você tem um herdeiro!”, comemora, pulando nos meus braços. “Nós
estamos arrasando nessa coisa de final feliz, vampirão”.
Sim.
Nós estamos.
E temos séculos para sermos ainda mais felizes.

Fim
Olá, pessoa maravilhosa que chegou até aqui! MUITO obrigada, de
todo coração, por ter acompanhado a minha versão de um mundo vampiro!
Se possível, por favor, deixe uma avaliação na Amazon! Ajuda muito
para a divulgação do meu trabalho s2
Ah! E se quiser saber mais sobre as minhas histórias, você encontra
todos os meus e-books em https://amz.run/91fa. E todos os meus livros
físicos em www.editoralampejo.com.br. Se quiser tirar alguma dúvida, ou
apenas conversar, você me encontra no e-mail:
laura.almeida@editoralampejo.com.br ou nos Instagrams @autoralcalmeida
/ @alauralandia.

Espero te ver no meu próximo lançamento!

Um abraço apertado,

Laura

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Sim, Chef
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[1]
Bailarino protagonista do livro Ballet para Dois de L. C. Almeida.
[2]
Banda protagonista dos livros “A Garota do Cowboy” e “A Canção de um Beijo”, de L. C.
Almeida.
[3]
Protagonista do livro “Harmonia Perigosa” de L. C. Almeida.
[4]
Banda pop feminina protagonista da série Lioness de L. C. Almeida, Ani Marques e Diana Burin.
[5]
Banda de rock protagonista da série Conto de Fadas Rock’n Roll de L. C. Almeida.

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