Meu Vampiro - L. C. Almeida - Nodrm
Meu Vampiro - L. C. Almeida - Nodrm
Meu Vampiro - L. C. Almeida - Nodrm
Revisão:
Ana Paula Marques
Diana Burin
Gislene Maria Reis
Isabela Piperno
Dessa Rocha
Cilene Almeida
Edição:
Alessandra Cervetto
2024
ÍNDICE
SINOPSE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Descobrir que sou a parceira predestinada ao rei dos vampiros não
fazia parte dos meus planos. Não mesmo.
Uma humana comum não deveria ser a alma gêmea de um dos seres
mais poderosos que há! Nem ser capaz de ouvi-lo tagarelando na minha
mente. Nem ter um laço que faz com que sintamos tudo que o outro está
sentindo e que reclama se ficamos afastados alguns metros que seja.
A magia mais antiga e poderosa que existe decidiu que estaremos
ligados para sempre, mesmo sem nos suportarmos 99% do tempo...
Caos!
Sem contar que alguém tentou me matar e ainda não sabemos quem
foi. Ah! E ele ter uma parceira humana seria o escândalo do século, há toda
uma confusão familiar rolando e eu acabei de sair de um relacionamento
que me fez jurar nunca mais me aproximar de homem algum.
Quer saber como vamos lidar com tudo isso e ainda conseguir um
belo final feliz?! Embarque nessa aventura pelo mundo vampiro comigo!
Roman
“Me ajude”.
Assustado, eu levanto o rosto do meu livro e olho ao redor da
biblioteca, que está tão vazia quanto sempre esteve. Não encontro nada
além dos mesmos móveis que ocupam o espaço faz séculos.
Literalmente.
Franzo o cenho, sem entender. Poderia jurar ter ouvido um pedido de
ajuda... Uma voz feminina...
Não.
Impossível.
Ouvir pensamentos não é nenhuma novidade para mim, mas seria
incogitável acontecer aqui no Castelo, ainda mais agora. Todos os
funcionários já foram embora faz horas, não deve haver um humano sequer
em um raio de vinte quilômetros.
Talvez eu tenha bebido mais vinho do que deveria.
Bom, não seria a primeira vez.
Balanço a cabeça e volto a atenção para as páginas à minha frente.
Esta biografia de Churchill é razoavelmente precisa, mas ainda carrega uma
série de inconsistências óbvias para quem conheceu o velho Winston.
Encontrar erros em registros históricos se transforma em uma espécie de
passatempo estranho quando se assistiu a tudo da primeira fila e...
“Por favor”.
Interrompendo meus pensamentos, a voz soa mais clara do que antes,
muito alta para ser uma alucinação, ou um pensamento lido.
Fecho o exemplar sem ter avançado um parágrafo sequer e o
acomodo no aparador ao meu lado, apurando meus sentidos, tentando ouvir
algo.
Só encontro o silêncio.
Eu me levanto e examino o cômodo outra vez, sem perceber nada
fora do normal, nada além da organização impecável da minha equipe, que
faz questão de não deixar um único ácaro fora do lugar. As poltronas e
cortinas vermelho-sangue, ironia nada sutil, os velhos volumes
encadernados em couro nas prateleiras, a lareira que crepita, apesar de eu
não precisar do seu calor, os tapetes persas, os castiçais de ouro... Tudo
familiar.
Intrigado, caminho até a janela central e abro um dos vitrais. A
dobradiça range em protesto, entregando sua idade, indignada por eu ousar
perturbá-la no seu posto perene. O ar frio da noite me saúda, mas não
incomoda uma criatura noturna como eu. Ele me abraça, se enfiando entre
as minhas roupas, entre o meu cabelo, me lembrando que é uma força à
minha disposição, pronto para obedecer a qualquer ordem.
Sinto meu poder acordando, como um arrepio que percorre a minha
pele, vibrando em expectativa, sabendo que preciso dele.
Os terrenos do Castelo Rot se estendem até onde a vista alcança.
Busco qualquer indício de algo errado na propriedade e encontro apenas o
farfalhar das folhas, o riacho correndo, os pequenos animais vivendo a sua
vida...
Nenhum pedido de ajuda.
Nenhuma voz feminina.
Com certeza, estou imaginando coisas.
Fecho o vidro e, ao invés de caminhar de volta para a minha poltrona,
decido seguir direto para o quarto. Talvez o cansaço esteja me pregando
peças, afinal.
Saio para o corredor e começo a fazer o meu caminho para a ala leste,
mas não consigo dar dez passos antes de congelar mais uma vez.
“Socorro”.
Algo no tom de desespero faz uma angústia se espalhar pelo meu
peito. Uma sensação forte, estranha e inesperada. Bastante inesperada.
Nunca me abalo. Nunca. Em nenhuma situação. Emoções são fraquezas
humanas, não se aplicam a mim.
“Eu não quero morrer”.
Praguejo alto e preciso apoiar uma das mãos na parede de pedra para
sustentar o impacto que me atinge. É quase como se fosse eu em perigo, eu
pedindo socorro, a minha vida em risco.
Não é uma maldita alucinação.
Não pode ser.
Preciso fazer alguma coisa, ainda que não saiba bem o quê...
Mas preciso.
E rápido.
Esfrego a frente da minha camisa, como se isso pudesse acalmar a
queimação ali, respiro fundo em busca de forças e abro a janela mais
próxima. Dessa vez, não penso duas vezes: aceito a oferta do vento e deixo
que ele me leve voando pela floresta escura.
Se há algo, ou alguém aqui, tenho de descobrir.
“Onde você está?”, penso como uma súplica para a escuridão,
desejando que a noite pudesse me ajudar.
Para o meu total espanto, a voz me responde... dentro da minha
cabeça. Como se estivesse falando dentro da minha cabeça, alto e claro.
Não é uma mente em que eu me embrenho para ler, é uma frase anunciada
diretamente para mim. De um modo que nunca havia acontecido antes, em
séculos.
“O rio”.
Não.
Não é possível.
Ouvir pensamentos é parte da minha natureza — um dom, ou uma
maldição, com a qual eu nasci —, mas o “outro lado” não deveria me ouvir
de volta. Elas nunca me ouvem, ou respondem. Não é um diálogo.
Devo estar alucinando.
Só posso estar alucinando.
Para provar a mim mesmo que tudo não passa de uma peça pregada
pelo tédio da minha imaginação, sigo voando em direção ao riacho que
separa a minha propriedade das terras humanas.
Qualquer esperança de estar enganado desaparece assim que me
aproximo das águas negras e revoltas, sentindo um cheiro familiar que, com
certeza, não deveria sentir.
Sangue.
Humano.
Há alguém ferido, de fato.
Voo mais depressa, seguindo o cheiro que em outras épocas seria uma
tentação irresistível, mas que agora serve apenas para piorar a minha
agonia.
Farejo o ar e sigo para o norte... Quase saindo de Himmel e chegando
na fronteira com Almira.
Apesar da escuridão, meus olhos enxergam perfeitamente um corpo
estirado em uma das margens. Pouso com um baque surdo nas pedras que
cobrem o leito e examino a figura abandonada, tal qual uma boneca de
trapos.
Está de bruços, suas costas sobem e descem com dificuldade, mas
ainda respira. As calças finas e a blusa sem mangas não são, nem de longe,
proteção o suficiente para o clima que está fazendo. Tampouco a mancha de
sangue que se forma embaixo de sua cabeça é um bom sinal.
Eu me ajoelho ao lado da moça e afasto uma confusão de fios loiros,
tentando ver o seu rosto. Ela é jovem, os olhos estão fechados com força,
seus traços contorcidos em dor e os lábios entreabertos tentam ajudá-la a
respirar. É o próprio retrato da agonia.
Como chegou até aqui?
O que aconteceu com você?
Penso um pouco no que fazer... Não é do meu feitio sair resgatando
humanos, mas até então nenhum havia sido deixado nas minhas terras.
Além do que, se alguém do meu povo a encontrar, pensará que andei me
alimentando do jeito antigo, do jeito proibido. Dificilmente o
comportamento esperado de um soberano. As repercussões seriam um
pesadelo. Suficientes para uma deposição...
Não posso perder mais tempo.
Preciso tirá-la daqui.
Pego um lenço do bolso e uso para estancar o sangramento que
descubro vir do seu pescoço. Dois furos redondos e perfeitos vazam sangue
em profusão, me dando a prova irrefutável de que não estou lidando com
um mero acidente.
Não existem coincidências desta magnitude.
Alguém quer me incriminar.
“Frio”.
A jovem fala dentro da minha cabeça mais uma vez, seus lábios não
se movendo em nenhum momento. De alguma forma, está se comunicando
sem precisar dizer uma palavra sequer em voz alta.
Será que não se trata de uma humana?
Mas também nunca conheci outro ser que pudesse entrar na minha
mente, que ultrapassasse meus escudos assim.
“Muito frio”.
O tom da garota está ficando mais fraco, a preocupação com a
telepatia estranha terá de esperar. Tiro o meu casaco e cubro a figura
pequena, que estremece. O tecido também não deve estar quente, meu
corpo não tem calor algum para oferecer, mas conto que seja melhor do que
nada.
Passo um dos braços pelas costas, outro pelos seus joelhos e a
levanto. Ela é leve, frágil, como apenas os humanos conseguem ser.
Esperava que fosse abrir os olhos com a movimentação, mas suspeito
que todas as suas forças estejam concentradas em respirar, agarradas a um
fio de vida que parece prestes a arrebentar.
“Não morra”, ordeno, com firmeza.
“Vou tentar”, responde, com uma gotícula de voz.
RESPONDE!
Isso não é natural. E quando alguém que toma sangue para viver diz
isso, significa alguma coisa.
Mas, agora, tenho um problema maior com o qual lidar.
Busco a ajuda do vento da noite, dobro os joelhos, tomo impulso e
me lanço no céu, voando de volta para o Castelo o mais rápido que consigo.
Eu não vou deixá-la morrer.
A mera ideia de que possa morrer...
Não.
Não posso.
Pouso com um baque surdo direto na varanda do meu quarto, chuto
as portas duplas para quebrar a tranca e me apresso a colocá-la na minha
cama. Afasto o lenço apenas por tempo suficiente para ver que ainda está
sangrando sem parar. O veneno de quem a mordeu não vai deixar a ferida
cicatrizar, a menos que aplique o antídoto. E faça isso antes que ela fique
sem sangue nenhum.
Em nome de tudo que é mais sagrado!
Não era o que eu esperava para a minha segunda-feira.
Resgato o meu celular do bolso do paletó que está cobrindo-a e
chamo o último número discado, fazendo uma prece silenciosa para que ele
não esteja com uma das suas muitas... vamos chamar de namoradas.
— Rom? — Christian atende sonolento e eu respiro aliviado. É o
único em quem eu confiaria para me ajudar em um momento como esse.
— Preciso de você aqui — digo, com urgência, sem rodeios. —
Agora.
— Você está ferido? — pergunta e ouço seus barulhos se movendo do
outro lado, provavelmente se levantando. — Em perigo?
— Não, mas alguém largou um corpo humano nos terrenos —
resumo. — Um corpo mordido.
Ele pragueja alto.
— Morto? — pergunta, ao mesmo tempo em que ouço a voz da
humana na minha cabeça.
“Dói”.
“O que dói?”
“Tudo”.
“Aguente firme, por favor”.
Preciso estancar o sangramento, antes de qualquer outra coisa.
Depois, apagar suas lembranças e mandá-la de volta para o lugar de onde
veio, sem ninguém descobrir que esteve aqui.
Mandá-la viva, que fique claro.
— Apenas ferida por enquanto, mas precisamos de antídoto e da Lila
— acrescento. — E de cobertores!
— Cobertores? — Christian repete, sem me entender.
— Humanos sentem frio e nós não temos cobertores de verdade em
todo esse maldito castelo! — explodo, pensando no absurdo que é não
termos uma manta sequer.
Temos malditas armaduras, temos até uma guilhotina e uma berlinda,
e nenhum mísero edredom!
— Certo, certo. Eu tenho alguns aqui — informa em um tom
apaziguador, tentando me acalmar, e logo outra voz murmura ao fundo.
Assim que reconheço o tom, a minha preocupação se alivia mais um pouco.
— Lila está com você? — questiono. Se estiver, ótimo. Ela chegará
mais rápido do que se tivesse que buscá-la.
— Sim, chegaremos aí o mais breve possível — promete. — O Rom
precisa de nós! Coloque o seu casaco. — Ouço-o falando com ela e logo a
linha é cortada.
Quem diria que eu seria tão grato pela ligação estranha entre ele e sua
melhor amiga humana. E médica.
Calculo que irá levar ao menos uns vinte minutos para chegar do seu
apartamento aqui, principalmente porque não pode apenas sair voando do
centro da cidade, por mais nublada que a noite esteja.
Então, preciso mantê-la viva até lá.
Certo.
Fácil.
Eu consigo.
— Aguente firme — sussurro e ela suspira, um calafrio percorrendo o
seu corpo. Seguro o lenço com mais força sobre a sua ferida e uma das suas
mãos escapa por baixo do terno para segurar o meu pulso com firmeza.
Seu toque é gélido.
E me traz uma sensação estranha ao mesmo tempo.
Talvez porque humanos não costumam me tocar.
Eles nem gostam de se aproximar, seus instintos primitivos
reconhecendo o predador em mim.
Por um segundo, fico dividido entre continuar estancando seu sangue
e me afastar dessa reação inesperada... Talvez buscar algumas colchas dos
outros quartos para tentar aquecê-la mais.
Não.
A ideia de me afastar faz outra onda de agonia atingir meu peito,
como se alguma fera inesperada rugisse em protesto, contrariada.
Não posso me afastar.
Não posso deixá-la sozinha.
Eu me sento ao seu lado no colchão e, no mesmo segundo, ela chega
mais perto, se encolhendo contra mim. Puxo a cobertura da cama com a
minha mão livre e jogo por cima do seu corpo, de novo amaldiçoando o fato
de não ter algo mais quente.
“Eu vou morrer?”, ela pergunta, seu cenho delicado se franzindo no
meio do seu torpor.
“Não!”, garanto.
“Mas dói tanto...”.
“A dor já vai passar”.
“Promete?”.
“Prometo”.
Lila precisa chegar logo.
LOGO!
Conto cada respiração sôfrega que a humana consegue dar, dez por
minuto, longe do ideal. Estou contando a respiração 121 quando ouço a
aproximação da Ferrari de Christian pela estrada.
Um carro chamativo ridículo, que é a cara dele.
Meu melhor amigo estaciona cantando pneus, portas se abrem, os
dois conversam alguma coisa e seus passos seguem apressados pelos
degraus de pedra. Sinto o cheiro familiar do jovem, parecido com o de
todos da nossa espécie, mas com alguma nota mais irritante que combina
com a sua personalidade. Logo vem o cheiro de Lila, que é estranhamente
similar ao dele, apesar de humano. Minha teoria é que acabaram se
misturando por passarem tanto tempo juntos. Não é natural ser tão grudado
a alguém assim.
Esquisitos.
Tiro um momento para garantir que a minha mente esteja bem
fechada — nunca quero ler os pensamentos dessa dupla, muito menos se
agora puderem acabar dentro da minha cabeça também. A bagunça que
Christian faria... Seria o equivalente a ter alguém grafitando os meus
neurônios.
Logo eles invadem o meu quarto, Lila na frente com sua maleta em
mãos, Chris carregando uma pilha de cobertas atrás, ambos com expressões
preocupadas.
— Se afasta, Rom — ela ordena com seu jeito decidido usual, mas a
minha reação é completamente inesperada.
Eu a ataco.
Sem pensar.
Meus lábios se erguem em um sibilo ameaçador, veneno se acumula
na minha boca e minhas presas descem, prontas para a ação.
Chris larga as cobertas e corre para se postar entre nós, sibilando do
mesmo jeito, escondendo Lila atrás do seu corpo.
— O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? — ele grita, em uma pose
protetora, como se estivesse pronto para voar em mim se eu der mais um
passo sequer, pronto para a batalha.
A verdade... é que eu não sei o que estou fazendo.
Deve fazer décadas que não ataco ninguém.
Eu atacaria Lila? De verdade? A quem eu vi crescer e é quase uma
irmã mais nova? Ela ter ordenado que eu me afastasse da humana foi
alguma espécie de gatilho? Eu nunca sequer vi essa desconhecida.
Há algo errado aqui.
Muito errado.
Nada de arrancar a cabeça do amiguinho!
Roman
**
**
Roman
— Como você não fica todo travado depois de dormir no chão a noite
toda? — pergunto, enquanto descemos do Chiron para mais um dia na
Nobre Academia.
— Não sei do que está falando — desconversa, bebericando sua água
de mato nojenta.
— Uhum, claro. — Balanço a cabeça. — Lembre que hoje temos
aquela visita no Centro de Formação então, já que parece estar sofrendo de
perda de memória recente.
Ao invés de responder, me dá um aceno com o queixo que combina
bem com a fase do “Efeito Roman” que estamos. Tão divertido ver seus
alunos correndo e os outros professores subitamente ocupados, procurando
coisas nas suas pastas, ou checando seus celulares quando ele passa.
— Também tinha um “jantar com Nikolai” marcado na sua agenda...
— Sigo recitando seus compromissos, como a ótima assistente que estou
decidida a ser. Vou honrar cada uma das MUITAS coroas que vai me pagar
por este trabalho.
— Nós nos encontramos todas as terceiras quartas-feiras do mês, para
conversar sobre nossos governos.
— Seus... governos? — Eu paro de andar no mesmo segundo. —
Quando você diz “Nikolai”, não quer dizer...
— O rei de Himmel? Sim.
Eu começo a tossir, me engasgando mesmo sem estar tomando nada.
Ele até volta alguns passos para trás e dá alguns tapinhas desajeitados nas
minhas costas, de tão grande que é meu escândalo.
Uma surpresa dessas é difícil de engolir, poxa.
— Sei que vocês são frágeis, mas morrer engasgada com ar é demais
— reclama, impaciente.
— Você está me dizendo que vou jantar com Niko-lícia essa noite e
espera que eu não reaja? — questiono, quando consigo voltar a respirar, só
para ter certeza de que não entendi errado.
— Niko... — Estreita os olhos na minha direção, as íris alternando
entre o castanho e o vermelho como sempre acontece quando está prestes a
perder o controle. — O que foi que disse?
— Você já viu aquele homem? — Finjo me abanar. — Ele é uma
delícia.
— Isso... Isso é... — Parece sem palavras, pela primeira vez desde
que o conheci. — Inaceitável. — Se decide, voltando a andar pelo corredor
com passos apressados, querendo ir para longe de mim.
— Você tem olhos, sabe que ele é lindo — digo, quando consigo
alcançá-lo, meus perfeitos saltos novos me impedindo de correr como eu
gostaria.
— Eu não vou te levar nesse jantar! — anuncia, sem diminuir o
ritmo.
— Boa sorte tentando se concentrar sem eu estar por perto —
cantarolo e ele me lança um olhar irritado.
— Posso te levar para o palácio e ainda te deixar longe dele —
ameaça, parecendo muito satisfeito consigo mesmo pela solução que
arranjou.
— Adoraria te ver tentar ficar entre mim e a minha chance de jantar
com Nikolai em carne, osso e aqueles olhos azuis...
— HUMANA! — grita, interrompendo os meus pensamentos.
— Oi. — Sorrio com inocência e ele bufa exasperado, entrando no
anfiteatro onde será a sua aula.
Eu saltito ao segui-lo, tão feliz que nem a irritação que chega até mim
pelo elo me impede de rir sem motivo. Nem a ameaça de ser soterrada por
lembranças ruins impede a minha animação. Eu sinto falta do Palácio de
Gelo. Sinto falta de trabalhar para a família real. Além do mais, o
departamento dos agentes é bem longe da área privada. As chances de
encontrar Wilbur são quase nulas.
Vai ser legal!
Preparo tudo para que comece e vou me acomodar na minha cadeira,
para ficar sonhando em paz com a nossa visita de mais tarde. E continuo
sonhando, enquanto como meu sanduíche na sua sala, com ele reclamando
sobre seu escritório ficar cheirando a queijo. E enquanto ele dirige o Chiron
para o Centro de Formação.
— Você não deveria ter um segurança, sendo rei? — pergunto,
pensando que estamos indo sozinhos para uma visita pública, e não é assim
que as realezas deveriam agir. Eu criei esquemas de segurança vezes demais
para ficar tranquila com este nosso arranjo.
— Não há nada que possa me ferir. — Dá de ombros, sem uma gota
de preocupação.
— Nada mesmo?
— Tecnicamente, um vampiro mais forte poderia quebrar o meu
pescoço e me matar, mas não há um vampiro mais forte do que eu.
— Arrogante.
— Realista.
— E se alguém tentasse usar um machado para cortar sua cabeça
fora?
— Eu poderia usar minha telecinese para segurá-lo — responde,
desinteressado. — E me livrar de empalamentos. E proteger meu baço. E
para desviar balas. E para desviar mísseis.
— Oh, fodão! Lembre-se que, para te matar, bastaria alguém dar um
tiro em mim. Nem precisaria ser um míssil. — Pensando bem, talvez eu
precise de um segurança, ainda mais agora que não tenho mais Céline. —
Ter uma aeternus humana é mesmo cheio de vantagens...
— Pelo menos, não tenho que brigar com você pela última bolsa de
sangue — resmunga, me fazendo rir do absurdo dessa frase. — Inclusive,
bloqueie a minha agenda amanhã, preciso produzir mais para mim.
— Você não deu a patente como livre? — pergunto. — Não podemos
pedir umas bolsas na Vamp-Amazon para entregar?
— Eu não confio em ninguém para produzir o sangue que eu
consumo.
— Você é mesmo adorável — digo, em um tom que deixe claro que
não foi um elogio.
Mas, enquanto ele conversa com um adolescente, no canto do salão
que prepararam para nos receber no Centro de Formação para jovens
vampiros, eu acho adorável de verdade.
O garoto estava nervoso, tímido, com um livro aberto no colo, até
Roman se aproximar. Ele tem um fraco por nerds, já reparei isso na Nobre
Academia. Talvez porque ele mesmo seja um, com sua biblioteca enorme,
sua antropologia e as dúzias de doutorados escritos por ele que encontrei
nas pastas ridiculamente organizadas do seu notebook.
Suspeito que tenha alguém que lhe forneça documentos de identidade
falsos, para ter conseguido se matricular tantas vezes sem levantar
suspeitas. Alguém muito bom e discreto, inclusive. Como aqueles dos
vários esquemas que desmantelei ao longo dos anos.
Eu mesma vou precisar de documentos falsos em breve... Vou ter que
contratar algumas das pessoas que mandei para a cadeia...
Não.
A parte dos fios da vida é algo que não estou pronta para pensar.
Enquanto ele conversa com o garoto, eu fico com alguns dos
professores, exercendo o meu cargo de scriba e socializando, ainda sem
perder minha nova fama de assustadora. Ela é divertida!
O convite principal foi para que Roman falasse sobre como criou o
Blut-X e o projeto de lei para tornar proibido se alimentar dos humanos.
Alguns se encantaram pela sua aura de poder, outros se apaixonaram por
ele, todos ficaram boquiabertos com as histórias de tudo que fez, ainda que
fosse jovem para os padrões vampirescos.
Mas agora, testemunhar como está dando atenção ao jovem tímido, é
o que acaba comigo.
Ele está sendo legal.
Testo o nosso laço e encontro empolgação!
Não confiando para me servir de bebida em um coquetel de
vampiros, engulo a minha sede e finjo estar admirando as pinturas expostas
nas paredes do antigo prédio, para tentar chegar mais perto e ouvir a
conversa dos dois.
Como eu suspeitava, estão falando sobre livros.
Clássicos da literatura “humana”.
Meu fofo e arrogante pé no saco.
— Nosso rei é tão bonito, não é? — A vampira que o convidou para
estar aqui se posta ao meu lado, percebendo a direção onde estou olhando.
— Sabe, nós ainda não perdemos a esperança de que ele encontre sua
aeternus finis.
— Nós? — ergo uma sobrancelha.
— A comunidade, seus súditos — explica. — Tem que haver uma
vampira por aí para ele. O nosso soberano não pode ficar sem sua parceira.
Uma vampira.
Nem supõem que o par dele poderia ser um humano.
— Humm. — É só o que eu digo, sabendo que não posso falar muito
mais do que isso.
— Afinal, ele precisa deixar um herdeiro para continuar a sua
linhagem! — Segue tagarelando. — Os Prince têm sido nossos governantes
por milênios!
Espero que milênios seja um eufemismo. Porque eu tenho certeza de
que não vai sair um herdeiro da aeternus finis dele e que não vou deixar
Amadeo assumir esse trono. Nem por cima do meu cadáver.
— Humm — repito.
— Mas, claro, até que ele não encontre sua parceira, estamos felizes
por ter encontrado uma scriba com quem parece ter tanta... similaridade.
— Que bonito elogio. Agora, se me dá licença. — Dou um aceno de
queixo e me afasto.
Ok, então todos decidimos que eu sou tão assustadora quanto o meu
projeto de Drácula.
Vou culpar o laço por mais essa.
E por falar nele, vejo que está se despedindo do seu novo amigo e,
assim que fica em pé, todos se apressam a fazer suas reverências perfeitas e
profundas.
Começa a caminhar direto para a saída, então imagino que estamos
encerrando a visita.
— Esse é um lado seu que eu não esperava encontrar — provoco,
quando já estamos a sós no Chiron, a caminho de casa.
— Que lado?
— Você sendo legal com alguém. Agradável. Quase vi um sorriso
verdadeiro.
— Eu sorrio — diz, isso no seu tom seco, rabugento, e eu tenho
vontade de gargalhar na sua cara.
— Quando você quer debochar, ou principalmente aterrorizar, sim.
Mas poderia jurar que era um sorriso real, de diversão.
— Eu não sorrio para aterrorizar — se defende, fazendo uma careta
ofendida.
— Aposto que é por isso que você e o Niko-lícia são amigos. Porque
os dois têm essa vibe de bad boy de terno. — Ui, amo. “Odeio todos, mas
para ela sou um gatinho fofo” é meu ponto fraco na literatura e na vida.
— Não o chame assim! — protesta, mais uma vez. — E, de fato, os
soberanos humanos são informados sobre a nossa existência, dos
elementais, dos Knights, dos magos, dos...
— Não, não termine essa frase — eu imploro. — Ainda estou
absorvendo a parte do vampiro que mora na minha cabeça, obrigada.
— Como eu ia dizendo... — Revira os olhos para a minha
interrupção. — Quando fui informar a família real sobre a nossa existência,
descobri que ele era um jovem muito razoável e um ótimo parceiro de
esgrima. Acabamos nos aproximando. Algo fez com que eu me sentisse
bem na sua presença.
— Espero que eles tenham aceitado a notícia melhor do que eu.
— A rainha Luz me empurrou para perto de uma janela, para
descobrir se eu brilhava no sol — confessa e eu rio mais uma vez, meu
coração leve, de um jeito que nem me lembrava como era.
Feliz.
Apenas feliz.
— Ah, cara. Eu amo aquela garota — exclamo, ainda sem acreditar
que vou conhecê-los de verdade, depois de passar tantos anos vigiando-os,
cuidando da sua segurança, planejando esquemas para garantir que nada
lhes acontecesse.
— Garota não, precisa usar os termos corretos! — Ralha comigo. —
Sua majestade, a rainha Luz.
— Hey, eu me comportei perfeitamente bem em todas as coisas
sociais que me levou, não precisa ficar me dando lições de etiqueta. —
Aponto um dedo em acusação, minha felicidade cedendo um pouco de
espaço para a impaciência.
Vira seu rosto bonito para me encarar e o sinto deslizando para dentro
da minha mente, descobrindo como se sair bem é importante para mim,
assim como qualquer insinuação de que não faço um bom trabalho, por
menor que seja, acaba sendo um gatilho.
Foi uma das coisas que meu ex falou... Disse que só consegui o que
consegui graças a ele... Jogou todo o meu esforço no lixo...
E lá se foi a minha nuvem de felicidade.
— Tem razão, me desculpe — afirma, com sinceridade, me
surpreendendo.
— Espera aí. — Ergo as mãos em uma pose exagerada. — Você
acabou de dizer que eu tenho razão sobre algo?
— Não deixe que suba à cabeça.
— Ufa, já está voltando ao normal. — Finjo um suspiro de alívio alto
e ganho um dos seus olhares nada impressionados. — Preciso usar meu
manto de scriba?
— Não, nós tentamos passar despercebidos quando visitamos os
humanos.
— Droga, então não tenho nada chique-digno-de-realeza para usar. —
Me concentrei em comprar coisas práticas, para o trabalho, e não há muitos
looks “conheça a família real” em lojas de departamento. — Você precisa
avisar com um pouco de antecedência, quando pretende levar alguém para
um palácio!
— Podemos arranjar algo para você.
Espio o painel do carro.
— Em uma hora?
Ele pensa um pouco.
— Talvez eu tenha umas opções que possa usar.
— Seus vestidos vão ficar um pouco largos em mim.
— Tão engraçadinha — rosna.
— Mas eu apoio esse seu lado, todos deveríamos usar o que
quiséssemos.
— Sim, todos devem usar o que quiserem. — A energia quente, que
eu reconheço como a sua versão de diversão, chega até mim pelo laço. —
Apenas confie que eu tenho algo que lhe serve, ok?
Para a minha surpresa, eu confio. Me ocupo com o rádio pelo resto do
caminho, mudando as músicas enquanto discutimos os próximos
compromissos, implicando um pouco durante o processo.
Ou implicando muito.
Ele me acusa de bagunçar seus arquivos.
Eu o acuso de ser um pé no saco.
Ele teima em não querer cor nos seus slides.
Eu teimo que uma dose de cor nunca matou ninguém.
Ele reclama sobre não querer ir à confraternização do departamento.
Eu reclamo sobre ele ser um antissocial esnobe.
Nem vemos o tempo passar e já chegamos de volta ao castelo.
Ele faz um gesto me mandando segui-lo e nós vamos para o seu lado,
onde eu nem ouso pisar. Eu precisaria de um guia turístico para conhecer
todos os cantos desse lugar — e, francamente, morro de medo de acabar
encontrando uma masmorra, ou a rosa mágica que o mantém vivo, suspensa
em um vidro.
Passamos pelo seu quarto e continuamos até o fim do corredor, onde
há portas duplas. Sei que devo ficar longe do laboratório no porão, mas pela
sua hesitação ao girar a maçaneta, suspeito que esse também seja um dos
lugares de onde eu deveria manter distância.
Depois de respirar algumas vezes, ele finalmente as abre.
— A minha equipe sempre deixa tudo limpo, então não deve estar
com muita poeira.
— Você diz a equipe misteriosa que eu nunca vejo?
— Eles apenas vêm quando estamos no trabalho.
— São fadas mágicas? — questiono, sonhadora.
— Não, humana. — Bufa impaciente. — Não são fadas mágicas.
Que pena.
Entramos juntos no espaço desconhecido e vejo uma enorme cama
com dossel vermelho, móveis de madeira escura, e tudo que indica que este
era o quarto de alguém. Um retrato de duas pessoas usando trajes típicos
está pendurado bem no centro da parede principal e basta uma olhada para
eu deduzir onde estamos.
— Roman... Este era o quarto dos seus pais? — pergunto, porque os
traços do homem pintado ali são muito parecidos com os da figura à minha
frente.
— Sim — responde, de costas para mim, com a voz um pouco
estranha, caminhando para uma porta que fica no canto. — Você e minha
mãe tinham figuras semelhantes, acho que podemos encontrar um vestido
dela que lhe sirva.
— Não precisa! — protesto, porque não quero nem pensar em
despertar lembranças dolorosas nele. — Posso usar alguma outra coisa...
— Ela odiaria saber que tudo isso estava aqui, intocado — insiste,
entrando no outro cômodo e nos colocando diante de um estoque enorme de
peças.
Enorme.
Sem resistir, espio os cabides, descobrindo que algumas ainda estão
com as etiquetas. Decido focar nelas, para garantir que não o incomodarei
com memórias indesejadas.
Escolho um vestido preto simples, clássico, com um corte que me
lembra Audrey Hepburn. Talvez fique meio justo nos peitos, mas pode
funcionar com o sutiã certo. E ficará ótimo com meus saltos novos.
Viro para sair e o encontro olhando para o quadro com sua expressão
impassível. Até o laço está quieto...
— Você e ele eram iguaizinhos — comento.
— Ouço muito isso — afirma e acaba rompendo o controle que
estava tentando manter. A sua tristeza chega até mim, está afetado para
caramba e eu não gosto nada da sensação.
Olho ao redor do quarto, buscando uma distração e encontro a
perfeita.
— Uma adaga! — Ando até uma cômoda, onde a peça dourada está
em exibição em um lugar de honra, colocada em um suporte próprio. —
Não é amaldiçoada, nem nada do tipo, certo?
— Não, mas deve estar afiada.
Reviro os olhos.
— Estou falando sério! — ele insiste, preocupado. — Era do meu pai
e ele a mantinha sempre pronta para decapitar alguém.
Bonitinho.
— Eu sei lidar com uma adaga — garanto, sentindo uma nova onda
de saudade da minha Céline.
— Claro que sabe — debocha e eu abro um sorriso vencedor, de
quem está prestes a lhe ensinar uma lição valiosa.
Preste atenção, vampirão.
Em um piscar de olhos, eu a tiro do suporte, empurro Roman, o
imobilizo contra a parede e encosto a lâmina no seu pescoço, deixando-o
completamente dominado.
À minha mercê.
A ponta acariciando a sua jugular, faltando um milímetro para
perfurá-la.
— Você dizia... — provoco com um sorriso inocente, me deliciando
com a forma como os seus olhos estão arregalados, as íris todas vermelhas.
— O que está fazendo? — pergunta, com a voz mais rouca do que
nunca, num tom quase animalesco.
Eu dou um passo para trás e giro a faca entre os meus dedos, em um
gesto exibido que o faz soltar uma respiração surpresa, seus olhos ainda cor
de sangue, entregando o seu descontrole.
Ah, o doce sabor da vitória...
— Estou ensinando você a não subestimar um oponente.
Uma emoção diferente chega até mim.
Parece... fogo.
Um fogo capaz de me queimar toda se eu ousar inflamá-lo.
Dou um passo para frente, a mariposa atraída para a chama, mas o
movimento é suficiente para que se recupere, piscando algumas vezes, antes
de se afastar apressado na direção da porta.
— Sairemos em uma hora — avisa, com a postura tensa, de costas
para mim, sem coragem de me encarar. — E, humana?
— Sim?
— Pode ficar com a adaga.
Dois reis, duas rainhas, um jantar.
Roman
Roman
**
Humana
**
**
— Por favor, me diz que você tem alguma pista sobre o ataque? —
peço, enquanto nós escolhemos as nossas raquetes, entre as opções que
deixo em um armário da quadra.
Todas reforçadas, para quando exageramos um pouco no nosso
“entusiasmo”, ou quando nos enfiamos em um dos nossos argumentos
amigáveis, que sempre acabam com o que estiver à mão sendo atirado no
outro.
E depois dizem que não sei me divertir.
— Nenhuma pista — admite, com um suspiro. — Perguntei para
todos os nossos contatos de confiança, subornei quem precisava ser
subornado, ninguém sabe de nada.
— Talvez esteja na hora de eu me envolver — anuncio, inquieto, não
gostando nada desse silêncio.
Com o que estamos lidando?
— Não vai, não. — Joga uma bolinha na minha cabeça, me
obrigando a jogar outra com mais força de volta, desejando carregar uma
adaga comigo, assim como Amélie.
— Você não manda em mim, pirralho.
— Não mando, mas posso argumentar. — Recolhe do meu alcance
tudo que poderia ser atirado, antes de começar a provar o seu ponto. —
Primeiro, você não tem paciência para fazer perguntas discretas. Você
acabaria jogando nossos contatos do topo de prédios.
— Só fiz isso algumas vezes! — protesto.
— Segundo, você é um rei! Sair fazendo perguntas sobre ataques irá
atrair muito mais atenção do que deveria. — Odeio quando está certo.
Odeio tanto que cogito jogar minha própria raquete da sorte nele. —
Terceiro, uma humana sendo atacada no seu quintal é grave, ainda
precisamos manter o máximo de sigilo.
— Pare de agir como um adulto racional, está me assustando! —
reclamo e ele abre um enorme sorriso.
— Deixe comigo, por enquanto, e se concentre em digerir o pequeno
detalhe de ter encontrado sua aeternus, depois de tanto tempo. — Ergue as
sobrancelhas com malícia. — Com quem você está até dormindo de
conchinha, inclusive.
Vou ignorar essa parte.
— Sabe que não gosto de ficar de fora, de ter outros resolvendo os
meus problemas.
— Eu sei que não. — Começa a andar para a quadra, me obrigando a
acompanhá-lo. — Mas vou fazer o que for preciso. Mexerem com você é
como se tivessem mexido comigo.
— Está tentando me amolecer para que eu pegue leve?
— Você deveria pegar leve pela sua idade, velhote — provoca de
volta, correndo com sua velocidade sobrenatural para o seu lado da rede.
Vou destruir esse pirralho.
Faço o primeiro saque, a bola zumbindo no ar e não leva um segundo
para ela estar de volta, nosso ritmo tornando impossível qualquer um
acompanhar, além de nós dois.
— Ponto! — comemoro, depois de alguns minutos de rebatidas
perfeitas de ambos.
— Minha perna ainda não está boa, por culpa da sua namorada! —
reclama, o que só faz eu caprichar ainda mais no próximo saque.
Exatamente o que eu precisava para me distrair de laços, hormônios e
ameaças.
**
Humana
**
**
Humana
Entro no quarto e o encontro deitado, com um livro aberto no colo, a
expressão perfeitamente neutra no rosto ridículo.
Homem ridículo, com esses livros ridículos, lendo por aí sendo todo
ridiculamente sexy.
Pelo menos, está sempre vestido. Se aparecer lendo na minha frente,
sem camisa, eu não respondo por mim.
— Vai mesmo fingir que esteve aqui a noite toda? — Cruzo os braços
para enfrentá-lo e ele mantém sua expressão neutra.
— Não sei do que está falando.
NEM PISCA.
Safado.
— Só espero que não tenha ouvido nossa conversa. — Aponto um
dedo em ameaça, antes de ir para o seu closet, em busca do meu pijama.
Sim, eu mudei todas as minhas coisas para cá.
Não, não vou pensar sobre isso.
— Hipoteticamente, se eu estivesse lá, não daria para ouvir o que
conversaram! — grita de volta e eu reviro os olhos, seguindo para o
banheiro, para me trocar e tirar a maquiagem.
Hipoteticamente, sei.
Não vou admitir, nem sob tortura, mas saber que ele estava por perto
me ajudou a aproveitar ainda mais a noite deliciosa com Lila. Além do laço
estar mais calmo, não tive que me preocupar com ataques surpresa. Pude
apenas comer uma massa maravilhosa, na companhia de uma mulher
incrível que ficarei muito feliz de chamar de amiga.
E, dessa vez, aprendi a minha lição. Nada de me enfiar em um
relacionamento e cortar os laços com as minhas amizades, como acabei
fazendo antes.
Quando penso em todas as burradas...
Não.
Como diria minha avó: “não adianta chorar pelo leite derramado”.
Nem relacionamento vou ter.
Ponto final.
Me apresso a terminar de escovar os dentes, querendo ir para cama
logo. Amanhã é sábado, um dia especial para mim, e quero estar
descansada, relaxada.
Tenho que fazer tudo que quero, antes de irmos para a exposição de
“Arte Vampira”, onde sua majestade deverá fazer uma aparição. Torcendo,
desde já, para que seja menos dramático do que aquele baile que fomos,
amém.
Volto para o quarto e encontro as luzes já apagadas, Roman na pose
assustadora de estátua que usa para dormir. Ocupo o meu lado da cama e
ligo a TV, colocando em uma das minhas séries, antes de me aconchegar
nos travesseiros macios.
Que não parecem nada certos essa noite.
Viro para um lado, para o outro, tento afofá-los, mas algo não está
encaixando.
Depois de uma boa meia hora de incômodo, meu vampiro dá um
suspiro de impaciência e me puxa de encontro ao seu peito, sem falar nada,
me movendo até que eu esteja com a cabeça na curva do seu pescoço, na
pose exata que eu gosto.
Eu apago em segundos.
**
**
**
Humana
**
Roman
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Humana
— Ora, ora. Que surpresa. — Amadeo sorri, assim que abre a porta
da sua enorme mansão para nós. — Nossa honorável scriba e o menino
emo que queria ser um Prince?
Chris rosna, eu me apresso a me postar entre eles, antes que as coisas
comecem a fugir do controle rápido demais.
— Nenhum dos dois vai começar com essa besteira, eu quero apenas
conversar. — Ergo o queixo para encarar bem os vampiros ao meu redor. —
Me convide para entrar, por favor?
— Claro. — Estica o braço, fazendo uma reverência fajuta.
O metal da Céline contra a minha pele é reconfortante, assim como a
presença sólida de Chris próximo a mim, e eu me apego a isso para manter
minhas emoções neutras. Não quero preocupar Roman mais do que já deve
estar preocupado.
Imagina o tamanho das rugas na sua testa...
A casa de Amadeo é muito mais sombria do que o Castelo Rot. Toda
medieval, com paredes e pisos de pedra, armas expostas nas paredes, e até
armaduras enfeitando os corredores cavernosos.
Ele nos guia para uma espécie de sala de visitas, cheia de caças
empalhadas em exposição, que só não são mais apavorantes do que o retrato
do homem em cima da lareira.
Poderia apostar o meu bolo de aniversário delicioso que esse é o seu
pai. O querido que assassinou o próprio irmão, em busca de poder. Uma
graça.
— Gostariam de beber alguma coisa? — oferece, parecendo meio
perdido, olhando ao redor como se não estivesse acostumado a receber
visitas. — Água, café, vinho, sangue?
— Não, obrigada. — Faço uma careta, porque sou esperta demais
para aceitar qualquer coisa de alguém com essa vibe de vilão. Mesmo que a
vibe esteja bem menos gritante aqui, conosco a sós.
— Direto ao assunto então? — Ele se senta em uma poltrona que
parece ter sido feita da pele de algum bicho, cruzando as pernas algumas
vezes, entregando o seu desconforto. — A que devo a honra?
— Direto ao assunto — concordo com ele pela primeira vez na vida.
— Você me atacou semanas atrás e me largou nos terrenos do Castelo Rot
para incriminar Roman? — digo, à queima-roupa, e surpresa passa pelos
seus traços bonitos.
— Você foi atacada? — Franze as sobrancelhas, seu olhar caindo para
o meu pescoço, localizando as duas pequenas feridas que hoje estão à
mostra. — Por um de nós?
— Sim. — É Chris quem responde, examinando o rosto dele em
busca de sinceridade, exatamente como estou fazendo. — E sabemos bem
quem mais se beneficiaria, se Roman fosse culpado por cometer o crime
mais grave do nosso povo.
Para a minha surpresa, uma expressão diferente aparece em Amadeo,
seus traços se contorcendo em um misto de dor e mágoa.
— Eu não sou os meus pais — afirma, com os dentes travados,
tentando manter o controle, mas consigo ver a agonia por trás dos seus
olhos. — E estou cansado de pagar pelos erros deles.
— Não é como se você fizesse um esforço para mudar isso, cara —
digo, com honestidade. — Sendo tão desagradável, provocando Roman...
— Roman também não é nada agradável e ninguém invade a sua casa
o acusando de quebrar a principal regra entre nós — retruca. — Maior até
do que quando matamos um dos nossos — implica, se referindo ao caso do
Prince assassino.
Será possível que Amadeo seja apenas mais uma vítima nesse caos
todo?
Dou um passo para frente e olho bem nas suas íris vermelhas,
procurando qualquer indício de mentira, como se ele fosse um dos meus
suspeitos em interrogatório.
Ele sustenta a minha encarada e não encontro nenhum dos sinais
típicos de desonestidade.
— Não foi você — sentencio.
— Não, não foi — concorda, sem se intimidar. — Eu nunca cometi
um crime, apenas pago por eles.
Ugh.
Se isso fosse um livro, essa seria uma frase que eu grifaria.
— Se é tão inocente, por que aprendeu a fechar sua mente? —
inquiro, sem deixar o ritmo do interrogatório oscilar, para que não tenha
tempo de inventar uma história.
— Você não mede palavras, não é?
— Não mesmo — Chris ri, me dando um olhar de carinho, que eu
retribuo. Como não amar esse golden retriever gótico? — Agora,
desembuche.
— Responda, Amadeo, por favor — acrescento, porque esses
vampiros malucos se esquecem que estamos em Himmel. Nós usamos “por
favor” e “obrigada” aqui. Sempre.
— Eu não tenho que dar satisfações para você — diz com uma dose
de grosseria, mas eu reconheço que é um mecanismo de defesa. Chris não é
tão compreensivo, rosnando no mesmo segundo, esquecendo da leveza de
antes, dando um passo para frente, pronto para atacar.
Eu toco seu braço de leve, pedindo para que se acalme.
— Se a sua scriba te faz uma pergunta, você responde. — É só o que
diz, com sua mandíbula travada.
— Amadeo — chamo, em tom de aviso. — Se quer que as coisas
sejam diferentes, precisa agir diferente. Me explique, me deixe tentar
entender.
— Porque eu não queria Roman lendo minha cabeça e descobrindo
como eu me sinto sobre a minha vida de merda! — explode, ficando em pé
de súbito, esquecendo de toda sua pose. — Eu não queria que ele visse... —
Fecha os olhos, torturado. — Minha vergonha.
Ah.
Bem compreensível.
Não posso dizer que não faria o mesmo no seu lugar.
— E como aprendeu a fazer isso? — Deixo escapar a pergunta de
milhões, a que todos que conhecem Roman adorariam saber.
— Lady Evile me ensinou, ela era uma grande amiga da minha mãe.
— Agora seu rosto muda para uma expressão grave, solene, quase
preocupada. — Eu vou dizer isso porque realmente gosto de você, Amélie.
Precisa tomar cuidado com aquela mulher.
— Qual é o problema de vocês com senhoras fofas?! — exclamo,
exasperada e cansada desse discurso.
— Nós podemos sentir os poderes dos outros vampiros — Chris
explica. — Pense em lâmpadas de diferentes watts.
— Roman seria um enorme canhão de luz, Lady Evile seria um
refletor, alguns seriam luzinhas de Natal — Amadeo dá um olhar de
provocação óbvia para o meu amigo e eu perco o resto da minha paciência,
tirando Céline do cinto.
Dois pirralhos de duzentos anos de idade!
— O próximo que provocar o amiguinho ganha um beijo da minha
adaga na garganta — aviso. — E não estou blefando.
— Sabe que isso não nos mataria, não é? — Chris me lembra.
— Mas doeria, não doeria? — Ergo uma sobrancelha em deboche.
— Bastante.
— É o suficiente para mim.
— Garota, eu gosto mesmo de você — Amadeo exclama, Chris
recomeça a rosnar, mas eu mostro a Céline de novo e ele se cala como um
bom garoto. Bato com meu quadril no seu, mandando que se afaste, e me
posto na frente do vilão que estou descobrindo não ser tão vilão assim.
— Sinto muito por ter te acusado — respondo, com honestidade. —
E por você ter que lidar com tanto julgamento.
— Não é sua culpa. — Dá de ombros.
— Mas ainda sinto por você.
— E eu sinto que tenha sido atacada — acrescenta, relaxando pela
primeira vez desde que aparecemos na sua porta. — A propósito, como
conseguiu escapar do nosso rei para estar aqui?
— Quem disse que precisei escapar?
— Ele nunca te deixaria vir por vontade própria. Nem com o Prince
fajuto junto.
Chris parece pronto para voar e arrancar alguns membros do outro
homem, então decido que é hora de encerrar a nossa visita.
— Obrigada, Amadeo, de verdade. — Pisco para ele e lhe dou as
costas, começando a arrastar meu cão de guarda para a porta comigo.
— Volte mais vezes! Sozinha, de preferência! — grita para nós e eu
intensifico o meu aperto, antes que o senhor Yang coloque em prática todas
as ideias de tortura que devem estar passando na sua cabeça.
Seguimos para a sua Ferrari chamativa e só volto a soltar o ar
quando estamos na estrada, no caminho de volta para o castelo.
— Você acha mesmo que Lady Evile pode ter algo a ver com o
ataque? — questiono, repassando tudo que ouvi nos últimos minutos.
Minha mente ainda acha difícil aceitar que a doce senhora pode ser uma
vilã, mas se é tão poderosa quanto dizem...
— Ela teria o poder para isso, mas não consigo imaginar qual seria o
seu motivo — responde, com as sobrancelhas franzidas, tão confuso quanto
eu.
Eu também não faço ideia.
Suspiro, cansada.
— Obrigada por ter vindo comigo — digo para ele, que me dá um
dos seus sorrisos lindos. — E desculpe pelas ameaças de te esfaquear.
— Eu mereci. — Faz um gesto de dispensa, me mandando eu não me
preocupar.
— Hey, já que estamos aqui, vamos conversar sobre a minha próxima
tatuagem — peço, querendo mudar de assunto para algo mais leve durante o
resto do caminho.
Esfrego o peito, sentindo o peso de estar distante por tanto tempo,
que só diminui quando avisto nossa casa ao longe, se erguendo imponente.
— Não vai descer? — pergunto, quando estaciona.
— E encarar Roman? Nem pensar. — Finge um arrepio. — Espero
Lila aqui.
— Covarde — digo, de brincadeira.
— O termo correto é “precavido”.
Rio e me inclino para dar um beijo de despedida na sua bochecha.
Nem preciso abrir a porta para sair, porque ela é aberta com um movimento
brusco, que assusta nós dois.
Roman me pega com delicadeza e me coloca de pé, o laço vibrando
com preocupação. Ele me inspeciona em busca de ferimentos e eu reviro os
olhos.
— Ele se comportou? — pergunto para Lila, que não está tão
enlouquecida quanto eu imaginava, ainda parecendo a perfeita gêmea
perdida da Laura Harrier.
— Nada que umas ameaças não resolvessem — responde, inabalada
como sempre, enquanto eu sigo sendo examinada. — E o meu, se
comportou?
— Nada que umas ameaças não resolvessem.
— Hey! — Chris protesta do seu lugar ao volante. — Não falem
como se fôssemos seus poodles!
— Senta, Fifi! — brinca a médica, entrando no assento que eu
ocupava e murmurando um “boa sorte”.
Pela onda de sentimentos que dominam o meu vampirão e chegam
até mim, acho que vou precisar mesmo.
De muita sorte.
Beijos! Com presas! Finalmente!
Humana
**
Roman
Maluquice.
MALUQUICE.
Ela chamou de MALUQUICE.
O instante que mudou tudo para mim, que me fez entender,
finalmente, o que significa esse maldito aeternus finis, que me fez pensar o
quão inútil é lutar contra o laço, que me fez refletir sobre como perdemos
tempo durante essas semanas.
E ELA CHAMA DE “MALUQUICE”.
Agora que eu a provei, que sei como é o seu gosto, que descobri
todas as sensações que estarmos juntos desperta, não vou voltar atrás. Ainda
acho que temos todos os motivos para ficar longe, que nossa união vai
contra todas as leis da natureza, que será um pesadelo quando o mundo
souber, que ainda há a questão do herdeiro, mas não consigo me importar.
O lugar dela é mais do que ao meu lado.
É comigo.
Ela é irritante, mas é a minha humana irritante.
Perceber isso e, ao mesmo tempo, ouvi-la desdenhando do que deve
ter sido um dos momentos mais marcantes da minha existência, doeu de um
jeito que eu não esperava.
A minha única opção foi ficar em silêncio, para não dizer nada que
fosse me arrepender depois.
Ando de um lado para o outro na biblioteca, uma taça de vinho na
mão, desejando que o álcool humano tivesse mais efeito sobre mim. Pego o
meu celular para ligar para Chris, mas então lembro que ainda estou bravo
com ele. E com Lila. Não sei com qual dos dois estou mais bravo. Depois,
cogito falar com Nikolai, mas ele deve estar ocupado com Aurora em um
domingo. Então, deixo o aparelho de lado e vou me servir de mais uma
taça.
Ao menos, o laço me diz que a humana ainda está por perto, que está
tão confusa quanto eu e, principalmente, me diz com toda clareza que está
tão desesperada por mim, quanto eu por ela.
Ela só não consegue se permitir admitir.
E eu entendo, traumas como os seus não são fáceis de apagar. Essa
foi a única realidade que conheceu até hoje.
O que eu preciso é fazê-la entender que não sou como o seu ex, que
não sou um verme patético que vai trair sua confiança, deixá-la sem casa,
sem emprego, sem um coração.
Mas ela pode confiá-lo a mim.
Eu o protegerei com tudo que tenho.
O que mais quero é que seja feliz.
O meu celular apita com um lembrete da agenda que ela cadastrou,
sobre uma reunião que tenho agora para tratar sobre a distribuição de Blut-
X para alguns países da Oceania. Malditos fusos-horários confusos.
Sem tempo para mais nada, ligo o meu notebook, me obrigando a
manter minha atenção minimamente focada na equipe que conta comigo. O
assunto acaba se alongando mais do que gostaria e não ouço mais nada de
Amélie nesse tempo.
Já está tarde quando volto para o nosso quarto, me perguntando
quando foi que o espaço virou “nosso”, esperando encontrá-la dormindo.
Mas encontro a enorme cama vazia.
Sua televisão desligada.
O laço me diz que está na propriedade, então desço para a cozinha,
encontrando-a no caos que sempre fica depois do furacão humano passar
por lá. No entanto, não há nem sinal dela.
Um pensamento me ocorre e eu rosno.
Não.
Espero que ela não tenha feito isso.
Não é possível que tenha feito isso.
Marcho escada acima, virando para a ala onde a hospedava antes e
abro a porta do seu antigo quarto, encontrando-a na cama, com o seu celular
na mão.
— O que pensa que está fazendo? — rosno, impaciente, vendo que
está de pijama, com o rosto coberto por algo verde. Um dos seus hidratantes
que deixam o seu cheiro por todos os lugares, aposto.
— Jogando “Paciência”? — Mostra sua tela para mim, com as cartas
de baralho espalhadas, se fazendo de desentendida.
Os cabelos platinados estão empilhados no topo da cabeça, deixando
à vista o pescoço esguio que a sua blusa de alças não consegue esconder.
Por um segundo, esqueço de tudo que iria dizer, focando apenas em como
gostaria de mordê-la ali, bem onde estão as antigas cicatrizes.
Quero que todas as marcas no seu corpo sejam minhas.
— Não foi isso que perguntei. — Dou alguns passos mais para perto,
deixando o predador assumir. — Você estava planejando dormir aqui?
Longe de mim?
— Achei que fosse o que você queria. — Ela desvia o olhar e não
suporto que não esteja me encarando, que esteja perdida em tantos
sentimentos conflitantes que nem consiga escolher um para se focar.
Talvez o que mais predomina seja a sua incerteza por achar que estou
bravo — bom, mais bravo do que o normal — e, por isso, eu não iria querê-
la por perto.
Não há nada que possa fazer que me afastaria de você, Amélie.
— Não é o que eu quero — afirmo, decidido. — Vamos?
Ela ergue as sobrancelhas em surpresa, voltando a me encarar.
— Então, agora está falando comigo? — me enfrenta, de queixo
erguido, e eu solto o ar aliviado por ter feito algo certo.
Aí está a minha humana.
— Podemos continuar brigando, desde que você volte para o nosso
quarto.
O laço se aquece do seu lado quando ouve eu me referir ao espaço
como “nosso”. Seus olhos caem para a minha boca e o calor se intensifica.
Não preciso deslizar para dentro da sua mente para saber que está
recordando o nosso momento no telhado.
Eu preciso dar um jeito de chegar até ela.
De nos permitir viver essa história.
De podar cada uma das ervas daninhas e espinhos que teve de
cultivar ao seu redor, para afastar quem planejava lhe fazer mal.
E farei questão de que ainda honre sua tatuagem.
Ela ainda será dela mesma, porque o que irá mudar é que eu serei
dela também.
Não vou tirar nada.
Vou apenas somar.
I am mine.
You are mine.
— Tem certeza? — se certifica, antes de se levantar do ninho de
cobertas que arrumou ao seu redor.
— Certeza absoluta — garanto e algo na minha expressão consegue
convencê-la, porque fica em pé, vindo se juntar a mim, trazendo apenas o
seu celular.
Ela nunca mais irá dormir aqui.
— Ainda precisa me contar o que descobriu na sua pequena aventura
— peço, ao fazermos o caminho de volta para a minha ala.
— Se prepara, porque não foi pouca coisa.
Ela narra como Amadeo ficou surpreso e até consternado ao saber do
seu ataque. Que ele aprendeu a bloquear sua mente com Lady Evile e que o
próprio suspeita da velha senhora, inclusive. Explica também por que ele
fez isso e como se sente por ainda ter que pagar pelo crime covarde que o
seu pai cometeu.
— Será que não conseguimos um tipo de trégua? — pergunta,
desaparecendo no banheiro, possivelmente para lavar a gosma verde de seu
rosto.
— Trégua? — repito, testando o som da palavra.
— Não estou pedindo que convide Amadeo para jogar tênis, dividam
seus segredos e o chame de “priminho”! — resmunga e eu acabo indo me
postar à porta, observando-a fazer sua rotina noturna, gostando da
intimidade do ato.
— O que está pedindo então? — questiono, cruzando os braços.
— Que, usando as palavras dele, pare de fazê-lo pagar por crimes que
não cometeu. — Enxuga o seu rosto na toalha, se virando para mim com a
face limpa, mais linda do que nunca. — Pare de bani-lo de tudo. Não rosne
apenas por ele respirar na sua direção. E Amadeo irá parar de te provocar,
parar de andar por aí como um vilão de desenho animado, planejando a
dominação mundial.
— Você acha que pode conseguir tudo que quiser, não é? — Estreito
os olhos em acusação e ela nem tenta negar.
— Trégua, Roman. Vamos deixar Amadeo de lado e focarmos em
quem pode ser o culpado de fato — pede, passando por mim e jogando sua
toalha molhada na minha cara.
A pequena atrevida.
Trégua, certo.
Talvez eu possa cogitar dar uma chance ao rapaz.
De fato, objetivamente falando, a criança não deu nenhuma prova de
que compartilha da mesma índole do seu pai. O seu maior problema tem
sido sua atitude lamentável, mas eu poderia ser culpado do mesmo crime.
Então, teremos uma trégua entre os Prince.
Amélie e seu poder...
Penduro o tecido felpudo com cuidado, esticando-o na barra como ela
deveria ter feito. Escovo os dentes e lavo meu próprio rosto, antes de passar
no closet para colocar o meu pijama. Quando volto ao quarto, ela já está
acomodada, com uma das suas séries passando na enorme televisão.
— Hey. Você tem uma ex? — pergunta, do nada, ao me ver. — Ou
um ex?
— De onde veio isso agora? — retruco, tirando as suas pantufas do
meio do caminho e as colocando em um canto, onde ninguém irá tropeçar e
rachar a cabeça.
— Estava pensando se quem tentou me matar poderia ser uma paixão
antiga que, de alguma forma, descobriu que eu era a sua aeternus e se
ressentiu — sugere.
— Não é uma teoria ruim — concordo, me juntando a ela na cama,
mas preciso me apoiar na mesa de cabeceira quando uma onda de algum
sentimento ruim me atinge com força.
— Desculpa, mas te imaginar com outras pessoas me faz querer
cravar Céline em alguma coisa — admite e eu consigo reconhecer qual é o
sentimento néon da vez.
Ciúmes.
— Entendo. — Consigo me mover o suficiente para me deitar, apesar
da tensão no laço. — Eu tenho vontade de fazer muito mais do que apenas
cravar Céline no seu ex.
Inclusive, não devo adiar mais a visita que pretendo lhe fazer.
Um pequeno susto, sem nem derramar sangue.
Ou muito sangue.
Tempo o suficiente para dar um recado e recuperar alguns dos itens
importantes para a humana, como a sua adaga original.
— Pare de desviar do assunto e me responda! — ordena, impaciente
e, por mais que eu fosse gostar de torturá-la um pouco, sei que há chances
de que eu acabe com Céline cravada em alguma parte do meu próprio
corpo, se fizer isso.
— Tive alguns relacionamentos, sim — admito e me apresso a
acrescentar, sentindo a sua fúria: — Mas todos, absolutamente todos, já
encontraram seus aeternus.
Ela se acalma.
Não muito, mas se acalma.
— Todos? — repete, para se certificar.
— Todos — garanto. — É extremamente raro encontrar um vampiro
adulto, sem um aeternus. Você não tem nada que se preocupar.
— E humanos?
— Já viu como os alunos e os outros professores reagem à minha
presença. — Bufo em deboche. — Vocês ficam aterrorizados por nós.
— Nem todos! — Me cutuca com o controle remoto da sua TV. —
Eu e Lila não estamos nem aí, vampirão.
— Porque as duas têm uma veia psicótica — elogio, apagando as
luzes e colocando o meu celular de lado. — Sabia que ela ficou andando
atrás de mim com uma seringa cheia de tranquilizante?
— Ah, cara. Eu amo aquela garota. — Ri, começando a relaxar, e um
silêncio confortável cai entre nós. Nem está movendo suas cobertas, nem
afofando seus travesseiros, o que é um verdadeiro milagre.
“Não fique bravo comigo de novo”, ela pede, baixinho, deixando
transparecer uma vulnerabilidade rara.
“Não me assuste assim de novo”, sussurro de volta, enquanto ela me
escala, se acomodando no meu peito com a certeza de um gato que sabe que
o dono irá recebê-lo.
Ainda preciso descobrir quem a atacou, quem tentou me incriminar.
Tenho mais dezenas de preocupações que deveriam estar ocupando um
lugar de honra na minha mente, como descobrir uma forma de ajudar
Matteo a encontrar uma nova família.
No entanto, com a humana tão próximo, só consigo pensar em uma
coisa.
Mais do que sentir o laço...
Eu preciso dar um jeito para que ela o aceite.
**
**
Humana
**
Humana
— Por muito tempo foi um dos meus maiores sonhos, mas então tudo
aconteceu... — respondo com honestidade, dando um sorriso triste. — E eu
não estava bem, você sabe. Ficou difícil lembrar de sonhar, de fazer planos,
de me concentrar em qualquer coisa que não fosse apenas... sobreviver.
— Definitivamente, eu deveria ter arrancado alguns membros
daquele imbecil — rosna no seu tom mais feroz, o laço se enchendo com a
“irritação irritada” que já conheço tão bem.
— Roman, o desmembrador — brinco, em uma tentativa de relaxá-lo,
porque há momentos que parece um desenho animado, prestes a começar a
soltar fumaça pelas orelhas.
Roman, o nervosinho.
— Gosto deste título — afirma e eu reviro os olhos.
— Claro que gosta, você ama pagar de malvadão. — Coloco uma
mão no seu rosto, contra a sua bochecha, precisando tocá-lo de alguma
forma, antes de fazer a minha próxima pergunta. — E quanto a você?
Gostaria de ter filhos?
Ele esfrega sua pele contra o meu toque, fechando os olhos por um
segundo, bebendo da nossa conexão, antes de responder:
— Não ter nunca foi uma opção, o rei precisa de um herdeiro —
recita o discurso ensaiado que, com certeza, não é o que eu quero ouvir.
— Não estou perguntando para o rei, estou perguntando para o
Roman. — Deixo meu polegar fazer um movimento de vai e vem na sua
pele fria, um mármore perfeito sob meus dedos, tão surreal quanto bonito.
— Deve ser uma das experiências mais desafiadoras e gratificantes
que alguém pode viver. — Tenta dizer como se não fosse nada demais, mas
sinto o peso por trás das suas palavras, pela emoção do laço, pela forma
como evita os meus olhos.
Ele quer muito ser pai.
É claro como gosta de cuidar, de se preocupar, de prover. Sem contar
que deve querer uma família, depois da vivência que teve, de estar sozinho
há tanto tempo...
— A coisa de ser um filho geneticamente seu... — Começo, mas ele
logo me interrompe, voltando a me encarar.
— Não é uma questão para mim, nem a sucessão ser ligada a sangue
— afirma, decidido. — Até vocês, humanos, não fazem sucessão por
sangue em Himmel faz séculos. Nem os elementais, nem os magos, nem
os...
— Não! — Cubro sua boca, interrompendo o que iria dizer. — Ainda
não estou pronta para mais seres sobrenaturais, obrigada.
Com os olhos brilhando de malícia, suas presas arranham a minha
pele de leve e eu afasto a mão para ver a pequena gota de sangue ali,
fascinada. Sem me conter, sem pensar no que estou fazendo, volto-a para a
sua boca, oferecendo para que prove. Sua língua desliza por cada um dos
pequenos furos, bem devagar, como se fosse uma iguaria que quer saborear.
Aquele meu autocontrole perfeito? Agente secreta, faixa preta,
central de inteligência das missões, referência na equipe... Esquece. Quando
ele faz isso, eu viro apenas uma pilha de sensações, que irradiam de onde
está me tocando, para se espalhar por todo o meu corpo.
— Então, nós estamos na mesma página sobre filhos... — Me obrigo
a dizer, mesmo que a voz saia um pouco ofegante, tentando voltar nossa
conversa para o rumo certo.
Porque, olha, está faltando muito pouco para eu perder o controle de
vez. Muito, muito, muito pouco.
— Eu não me oponho à ideia — concorda, seus olhos brilhando de
diversão, percebendo o quanto me afetou.
— O que, no seu dicionário, é o equivalente a um “queria mais que
tudo” — devolvo.
— Queria mais que tudo... — imita meu tom, de brincadeira. — Que
você deixasse a cozinha habitável depois de usá-la.
— Falando em cozinha, estou com uma seeeeeeeeede. — Tento fazer
um biquinho, apelando descaradamente. O laço causa tanto, que tem que
servir para que faça coisas que não quero também, como levantar dessa
cama deliciosa e descer sessenta e três degraus! — Quanto me custaria te
fazer buscar água para mim, com sua coisa de velocidade sobrenatural? —
peço, caprichando na expressão doce.
Ele suspira, exasperado, mas sei que está funcionando.
— Suas pantufas no lugar certo por uma semana — negocia e, juro,
esse homem tem uma coisa com meus chinelos.
Roman, o maluco por organização.
— Negócio fechado! — concordo, mas me arrependo em seguida,
porque o sorriso que ele abre... É letal.
— Eu disse que buscaria, não disse que não te levaria junto —
anuncia com seu tom apimentado e, no segundo seguinte, ele nos levanta no
ar, disparando escada abaixo.
Seus braços me mantêm agarrada ao seu corpo enorme e enrosco
minhas pernas ao redor do seu quadril, só para garantir, dando um gritinho
empolgado, sentindo o castelo passando por mim.
Não é bem o que eu tinha pedido, mas vou aceitar. Voar ainda é a
parte que me deixa mais chocada em toda essa loucura. E uma das que eu
mais gosto.
Só perde para as fadas da arrumação.
Elas são as melhores.
Antes que eu perceba, estou sentada no balcão da cozinha, no mesmo
ponto daquela primeira noite, quando esquentou sopa para mim. Parece que
já se passaram anos, não semanas... Observo-o, enquanto pega dois copos
de um dos muitos armários. Enche o meu no dispenser de água que fica na
porta da geladeira, entregando para mim. Depois, desaparece na porta que
leva para o porão, onde fica seu laboratório supersecreto de vilão de
desenho animado.
Não, ainda não tive coragem de descer até lá.
O que os olhos não veem, o coração não sente, já dizia a minha avó.
O que não me passa despercebido é o fato de que fez tudo isso na sua
velocidade sobrenatural, que quase não a esconde mais quando estamos
sozinhos.
Um calor se espalha pelo meu peito... Está se sentindo à vontade na
minha presença. Ainda que eu tenha certeza de que preferiria ver toda a
filmografia da Disney, antes de admitir algo assim.
Cinco segundos depois, retorna com o seu copo cheio de um líquido
vermelho que só pode ser Blut-X, e bebe um longo gole, sem se importar
com o meu olhar atento.
É a primeira vez que se alimenta na minha frente.
Com certeza, está ficando bem à vontade.
— Quer um pouco? — oferece, com um erguer da sua sobrancelha
grossa.
— Nem pensar. — Faço uma careta e tomo mais da minha água.
Humana. Normal. Nada esquisita.
— Tem certeza? — desafia, sentindo minha curiosidade pelo laço. —
Parece que você quer.
Ok.
Talvez eu esteja um pouco curiosa.
Só um pouco.
— Isso tem gosto do quê? Refrigerante de framboesa? — pergunto,
só para irritá-lo, e ele bufa, todo ofendido. Que sacrilégio comparar sua
bebida revolucionária com algo tão humano quanto refrigerante!
— Prove e descubra.
— Não, obrigada.
— Azar o seu. — Dá de ombros, bebendo outro gole, deixando seus
lábios desenhados ainda mais vermelhos, brilhantes, apetitosos.
— Não tem mesmo sangue humano nisso? — questiono, ainda meio
fascinada, ainda meio incerta.
— Você não parece se importar quando o sangue humano que estou
provando é o seu — aponta, fazendo o meu corpo ronronar, graças às
lembranças.
Definitivamente, não me importo quando o sangue é meu. Mesmo
que mantenha seus arranhões superficiais para não me envenenar, já é mais
do que suficiente para me intoxicar de um jeito delicioso. Deve ter alguma
coisa mágica nas suas presas, não é possível.
— Eu também me julgo por isso, acredite — resmungo, fazendo-o
sorrir. — Tem coisas nesse treco que fariam mal para mim?
— É muito mais saudável do que o seu açúcar nojento com gotas de
cafeína.
Não sei se ele odeia mais o meu café ou as minhas pantufas. Como se
a sua água de mato e o seu SANGUE ARTIFICIAL não fossem os
problemas aqui.
— Talvez só um golinho...?
Apenas a minha dúvida já é suficiente para que se acenda em
expectativa.
Ele quer que eu prove.
Se aproxima com uma expressão de quem está aprontando algo,
como fez mais cedo, e para bem na minha frente, entre as minhas pernas.
Usa seu joelho para afastá-las mais e se posicionar ali, o mais perto que
seria possível.
Dá um gole pequeno dessa vez e inclina o rosto na minha direção, em
uma oferta clara, os olhos se tornando vermelho-vivo.
Ele quer que eu prove... direto da sua boca.
Isso muda tudo.
Minhas dúvidas desaparecem.
Não, não tenho como negar.
Eu quero.
Passo minha mão pelo seu pescoço e o puxo para mim com força,
colando as nossas bocas. O sabor explode na minha língua. Metálico, doce,
diferente de tudo que já provei.
Ou talvez seja o homem com os dedos cravados no meu quadril, me
fazendo deslizar pelo tampo de mármore, de encontro a ele.
Aprofundo nosso contato, intoxicada pelo gosto, recebendo a
enxurrada de sensações que vêm de estar sendo tocada pelo meu aeternus.
Não sei onde termina o seu sabor, onde começa o Blut-X, não sei se é a
combinação dos dois, mas sei que é tudo delicioso.
— Bom, não é?! — Sorri, arrogante, quando nos afastamos para que
eu possa respirar um pouco.
— Mais — ordeno, enroscando minhas pernas ao seu redor,
garantindo que estará exatamente onde eu quero.
Mais Blut-X?
Mais dele?
Não sei, mas preciso de mais.
Ele alcança seu copo abandonado para tomar outro pequeno gole,
antes de voltar a buscar minha boca, sua mão subindo para o meu cabelo, se
enrolando com uma força deliciosa. Nós nos perdemos um no outro,
devoramos um ao outro, até que o mundo desapareça.
Quando meu corpo começa a querer se esfregar ao seu, buscando
fricção, buscando alívio, eu me obrigo a me afastar alguns milímetros.
Encosto minha testa na sua, nossas respirações sôfregas se misturando, os
efeitos da conexão fluindo.
— Ainda não é melhor do que o meu café — brinco, para disfarçar o
quanto me afetou, e ele revira os olhos, sem acreditar em mim.
— Claro, claro — se exaspera, sem disfarçar a nota de carinho por
trás das suas palavras, aproveitando como estamos grudados para me pegar
no colo de volta e voar escada acima.
Consegue nos colocar na cama sem precisar me soltar, me deixando
encaixada no seu peito do jeitinho que eu gosto. Alcanço o controle e dou
play no filme, torcendo para que o desenho consiga distrair meus
hormônios.
Não funciona muito.
Principalmente, porque posso jurar que o vejo sorrindo em algumas
das cenas em que o Johnny aparece. Roman tem um fraco por humanos
adoráveis e um tanto exóticos, eu sei.
Quando uma gargalhada real escapa do seu peito, esqueço de pensar
que tentaram me matar, esqueço de pensar que ele nunca poderá me assumir
para o mundo, e me permito imaginar como seria se Matteo estivesse aqui,
vendo o filme com a gente.
Talvez pudéssemos transformar um dos quatrocentos e noventa e
nove quartos em um cinema. Outro seria o quarto dele, é claro, que o
deixaríamos decorar como quisesse. Nossa, ele iria amar a biblioteca de
Roman.
De manhã, nós três sairíamos juntos e poderíamos deixá-lo no Centro
de Formação, antes de irmos para o trabalho. Até ele ter idade para entrar
na própria Nobre Academia, para aprender com mestres como Francesco
Rossi, Zoe Saint e Dante Hayes.
Eu teria uma família.
E, pela primeira vez em muito tempo, me permito admitir que é
exatamente isso que eu quero.
**
**
Roman
**
No dia seguinte
Uma batida alta ecoa no quarto, antes que Lila abra uma fresta e enfie
o seu rosto para dentro.
— Posso entrar? — pergunta, meio incerta, a bobinha.
— É claro! — exclamo feliz, me levantando para encontrá-la.
Se ela achou que eu ia ficar do lado de Chris, está muito enganada.
Essa mulher salvou a minha vida! Não há tatuagens e charme o suficiente
naquele golden retriever que superem isso.
— Uau, Amélie! — Ela ofega ao me ver por completo, parando no
lugar para absorver minha aparência. — Você está uma verdadeira rainha
vampira!
Essa é uma boa definição. Estou usando um novo vestido preto, que
as fadas de Roman brotaram para mim, inteirinho bordado com brilhos
pretos que me fazem reluzir. Pena que o coitado quase não aparece, graças
ao manto vermelho-sangue que cobre tudo, feito no tecido mais rico e
pesado que já vi. Parece um veludo, mas tem um padrão intrincado aplicado
em toda sua extensão, sua cauda indo vários metros para trás, a gola tão alta
que passa os meus ouvidos, o fecho na frente tão elaborado que levei mais
tempo para decifrá-lo, do que levaria para invadir um sistema de segurança.
Ainda tem mangas amplas, com correntes aplicadas, que pesam mais do que
uma carga considerável no supino.
Combinei tudo com um coque alto, porque simplesmente não tinha
outro lugar para enfiar o meu cabelo e finalizei com a coroa perfeita,
cravejada de rubis, que combina bem com o dourado dos brincos que
entregaram junto com o vestido — e que são no formato de pequenas
adagas, muito similares a Céline, que descansa no meu cinto.
Um presente lindo do meu vampiro, aposto.
Usei as minhas maquiagens novas, combinando um batom rubi, com
um olho delineado que mataria Chris de inveja. Me inspirei em Ivelyn,
decidida a parecer tão sobrenatural quanto o meu par.
Se eu morrer hoje, vou partir desse mundo no estilo.
— E você está péssima — digo com preocupação, não gostando nada
de como a minha amiga parece exausta. Seus cachos, sempre tão brilhantes,
estão presos de qualquer jeito. Sua pele negra está marcada por olheiras que
nem a maquiagem conseguiu disfarçar. Mas, acima de tudo, ela parece
apagada.
É como... se estivesse com dor.
Uma dor que vem de dentro.
Puxo-a para mais um abraço, apertando com toda força, sem me
importar em amassar a minha ou a sua roupa, só desejando passar um pouco
do seu desconforto para mim, ou tentar lhe passar um pouco de conforto.
Quando nos afastamos, me dá um sorriso triste e endireita a minha
coroa, que tenho certeza de que já estava perfeita.
— Hoje não é sobre mim — anuncia, conseguindo evitar que as
lágrimas escorram. — Hoje é sobre você calando a boca de todo mundo,
mostrando que nós humanas somos demais.
— Mas você não está nem usando as cores do clã dele — aponto,
ainda preocupada, indicando o seu vestido branco, a única cor que nenhuma
família reivindicou.
— Estou fundando um novo clã! — brinca, rodando no lugar, fazendo
a saia ampla do seu vestido se abrir. — Já passo todos meus dias vestida de
branco mesmo.
— Lila — insisto.
— Não me faça borrar minha maquiagem — implora e eu solto um
suspiro, aceitando deixar o assunto de lado por enquanto. — Está nervosa?
— Nem um pouquinho.
— Ótimo, porque eu tenho antídoto suficiente para transformar
Roman em um humano, bolsas de Blut-X para manter a emergência do país
todo funcionando e uma ambulância de prontidão, para garantir.
— Uma ambulância? — repito, com a voz esganiçada. — Como você
conseguiu uma ambulância?
— Usando meus contatos. — Dá de ombros, como se não fosse
grande coisa. — Sua avó me ensinou uma expressão que eu amei... — Deus
me ajude só de pensar nessas duas juntas. — Você é minha casca de bala,
Amélie — afirma, com a voz cheia de carinho. — Nós estamos juntas
nessa. Com o grande bônus de que já tem sua alma gêmea, então não vai
foder nossa amizade.
Ah, Christian Yang.
Você me paga.
— Você quer que eu crave Céline nele? — ofereço, com meu melhor
sorriso inocente, sem me conter.
— Não! — ela ri. De verdade, dessa vez.
— Quer que eu o segure para você cravar Céline nele? — Porque ela
é das minhas, que gosta de resolver os problemas com as próprias mãos.
Daria uma ótima agente secreta.
— Talvez depois da sua cerimônia, enquanto todos estiverem
embasbacados por terem que se curvar a uma rainha humana.
Um arrepio me percorre.
A parte de ter pessoas me reverenciando é quase tão esquisita quanto
voar. Bem que Luz me avisou que seria bizarro nas primeiras vezes.
— Lembre-se que, mesmo que eu manche isso aqui de sangue... —
Levanto uma das pontas do manto. — Ninguém vai perceber! — Pisco para
ela, que consegue dar outro sorriso real, acalmando um pouco minha
preocupação.
Definitivamente, preciso bancar a cupida-psicopata.
E logo.
Outra batida na porta do nosso quarto ecoa alta e Lila vai atender para
mim, revelando Matteo em seu smoking muito fofo, com um lenço azul
combinando. As cores do seu clã original e que achei incrível que tenha
escolhido usar.
— Sua majestade pediu para avisar que estão prontos para você —
informa, todo solene e, se eu pudesse, apertaria suas bochechas.
FOFO.
— E aposto que ele pediu para você chamá-lo de Roman.
— É esquisito. — Puxa sua gravata. — Ele é o rei, sabe. — Só então
olha para mim de verdade. — Caramba, a senhora está linda. Senhora não...
— Balança a cabeça. — Majestade!
— Tente me chamar de Amélie — peço, porque o “majestade” se
referindo a mim também me dá arrepios.
O peso do que significa...
Não, nada de pensar nisso agora.
— E, se me chamar de senhora, leva uns petelecos, sobrinho
preferido — Lila ajeita a gravata dele com carinho, antes de lhe oferecer o
braço. — Me acompanha?
— Tu-tudo bem — gagueja, antes de aceitar a oferta dela e estufar o
peito, pronto para escoltá-la como um verdadeiro cavalheiro.
LINDO!
Descemos juntos os sessenta e três degraus, comigo lutando para
segurar o manto, usando todo meu treinamento físico para dar conta do
peso.
Paramos de frente para as portas duplas e meus dois acompanhantes
me ajudam a esticar o tecido, até que forme um círculo perfeito ao meu
redor.
— Vai dar tudo certo — Lila promete, olhando bem nos meus olhos.
— E não ouse morrer, ou vou dar um jeito de puxar o seu pé.
— Não deveria ser o contrário?
— Não me subestime — debocha, parecendo um pouco a Lila de
antigamente, antes de acenar em despedida e guiar Matteo para uma das
portas laterais.
Respiro fundo algumas vezes, tentando controlar o meu nervosismo.
Não tenho medo do que vamos fazer, mas tenho medo de que não
consigamos convencer todos do nosso laço, de acabar prejudicando Roman,
das repercussões para Matteo, de conseguirem impedir que eu e meu
vampiro vivamos o nosso felizes para sempre...
“Humana?”, ele chama, sentindo meu surto.
“Não estou pensando em fugir, Rom-lícia, não se preocupe”.
“Se tiver mudado de ideia, eu juro que cancelo tudo isso e nós
passaremos a noite vendo um dos seus desenhos ridículos, ou uma daquelas
séries com as risadinhas irritantes”.
“Você faria isso mesmo, não é?”, uma pergunta retórica, para a qual
já sei a resposta. “Eu não quero cancelar nada, eu quero mais que o mundo
saiba logo que o vampiro mais arrogante e implicante do mundo tem dona”.
“Dona”, tenta bufar exasperado, mas a emoção quente, que nunca
consegue disfarçar, é uma carícia gentil dentro de mim.
“Vamos lá, vampirão”, digo, divertida. “É hora de cumprirmos uma
profecia, salvar as criaturas e tudo mais”.
“Bom”, aprova. “Serei aquele olhando para você sem acreditar na
sorte que tem”.
“Está flertando comigo, Roman Prince?”.
“Estou”, responde, simplesmente e eu rio, fazendo um gesto para que
os guardas de prontidão abram as portas duplas.
É por momentos como esse que estou fazendo isso.
Por cada conversa maluca que tivemos na nossa mente.
Por cada vez que me curou.
Por cada vez que me mostrou como era ser amada de verdade.
É hora do show.
A orquestra começa a tocar alto assim que eu apareço, um som
intenso e ritmado, o Bolero de Ravel, que ouvimos no Chiron naquela noite
em que me levou para o meu apartamento decrépito.
A nossa música.
Assim que me veem postada ali, usando o manto reservado aos
aeternus dos Prince, não o de scriba, os convidados ofegam ruidosamente o
bastante para que eu ouça, como se tivessem ensaiado um coro.
Eu ergo o meu queixo, me obrigando a manter a compostura, e
começo a caminhar, sentindo o peso de todos os olhares em mim.
Uma emoção fervente chega pelo laço, sinto um pequeno puxão, e
busco pelos olhos vermelhos certos, neste mar de olhos vermelhos.
Meu vampirão está me esperando em pé, bem no centro da
concentração de pessoas, sua atenção tão cravada em mim que eu consigo
senti-la fisicamente.
Abaixo dos seus pés, para o meu espanto completo, há um gramado
verde, macio, perfeito, parecendo recém-plantado.
Ele plantou grama para mim...
Como a que eu tinha na minha casa...
“Jogo sujo”, reclamo, lutando com a emoção.
“Devo supor que gostou?”.
“Deve supor que vai se dar muito bem mais tarde”.
Um rosnado faminto chega até mim pelo elo e eu começo a andar um
pouco mais rápido, sentindo uma vontade súbita de apressar as coisas.
Quero que o “mais tarde” chegue logo.
Agora, a surpresa começa a se transformar em bochichos de
especulação, que eu trato de abafar, focando só no homem me aguardando
com seu traje tradicional, tão elaborado quanto o meu.
Acabo com o espaço entre nós e paro na sua frente, abrindo um
enorme sorriso, que ele logo retribui, conseguindo piorar ainda mais o
espanto de todos.
Sem hesitar, começa a dobrar o seu corpo enorme com toda graça e
elegância, se curvando em uma reverência profunda, me clamando na frente
de todos, me reconhecendo como aquela a quem deve todo o seu respeito.
Puxo o laço, já que não posso puxá-lo para mim.
Eu me apaixonei por um vampiro.
É isso.
Completamente apaixonada, rendida, entregue.
Mesmo se não existisse conexão nenhuma, eu ainda teria me
apaixonado por esse homem esnobe e arrogante, generoso e preocupado,
gentil e correto, inteligente e cheio de caráter.
Volta a se erguer, sem nunca cortar o nosso contato visual, e nossa
emoção é forte o suficiente para transbordar por todo o meu corpo, me
fazendo questionar como é possível que não soltemos fagulhas, fogos de
artifício.
“Eu sou seu”, afirma, com tanta convicção que ignoro todo o
protocolo e me lanço para abraçá-lo. Aperto-o com força, com todo meu
corpo, com a minha alma, como toda essa confusão de mantos.
“Eu e você, por toda nossa eternidade”, respondo com a mesma
certeza, me afastando, antes que comecemos a causar um escândalo ainda
maior.
Matteo está assistindo.
Comporte-se.
Roman dá um jeito de unir as nossas mãos, conseguindo encontrar
meus dedos mesmo no meio de todo aquele tecido, apertando de leve, antes
de se preparar para falar.
— Honoráveis clãs, amigos, majestades e altezas reais —
cumprimenta, olhando ao redor, sem nunca me largar. Eu também me
mantenho ao seu lado, de queixo erguido, a estátua de mármore humano
perfeita. — Acredito que já tenham percebido que este não é um simples
baile... — Faz uma pausa, deixando que a conversa se acalme. — Está é a
apresentação, formal e oficial, diante de todos vocês, da minha... — Se vira
para mim e dá outro enorme sorriso. — Aeternus finis.
A multidão explode em comentários com a confirmação. E poderia
jurar que ouvi um “essa é a minha neta!” entre o burburinho, além de um
“Go, Amelícia!” em uma voz que parece muito a de Luz Alice. Mesmo
assim, consigo manter minha atenção toda nele, em toda sua glória de olhos
vermelhos e presas à mostra.
— Depois de séculos, eu encontrei a minha alma gêmea — continua,
com sua voz mais grave, autoritária, a que usa nas aulas. — Pode parecer
estranho para alguns, mas quem somos nós para questionar os planos do
destino? Para questionar a sabedoria do laço? — As especulações começam
a diminuir quase que imperceptivelmente. — A profecia nos visitou para
dizer que deveria ser assim, que muitos virão depois de nós, e consideramos
uma honra sermos aqueles que vão abrir os caminhos. — Eu aceno em
concordância, porque se tem uma coisa que eu gosto é mandar qualquer tipo
de preconceito para o quinto dos infernos, obrigada. — Rogamos para que
aceitem nossa conexão, para que respeitem nossa união e, para que não
restem dúvidas...
“Pronta?”, pergunta, me deixando sentir sua preocupação. Está
cogitando seriamente me pegar nos braços e sair correndo daqui, sem olhar
para trás.
Roman, o dramático.
— Para que não restem dúvidas — eu assumo, antes que coloque o
seu plano em prática, para que entenda que estou nessa por livre e
espontânea vontade. — Nós nos comprometemos em resgatar, apenas por
essa noite, a Cerimônia de Comprovação.
O caos recomeça, maior do que nunca, a ponto de ser preciso que
Chris voe e grite um “SILÊNCIO” impressionante para que as coisas se
acalmem. A propósito, nem isso faz com que eu fique menos brava com ele.
Ajudou um pouco que pareça ainda mais miserável que Lila, sem nem um
pingo de delineador.
Mas só um pouco.
— Sim, eu sou humana — retomo minha fala, projetando minha voz
para que todos possam me ouvir. — Mas não tenho dúvidas de que o elo
que eu e vossa majestade dividimos seja real, não tenho dúvidas de que o
meu lugar é ao seu lado, e farei tudo ao meu alcance para honrar o presente
de ter sido escolhida para ser sua aeternus.
O silêncio agora é tão alto quanto o das aulas.
Caramba, deixei um bando de vampiros sem palavras.
E nem precisei ameaçar ninguém com Céline.
Se eu morrer agora, vai ser um belo anticlímax.
“Você dará uma ótima rainha”, diz, sua voz embargada, e eu sei que
odiaria se começasse a chorar na frente dos seus súditos. Então, me viro de
frente para ele, pronta para começar a tal cerimônia logo.
Sei que está sondando o laço, mas só vai encontrar certeza. Eu quero
isso. Eu quero ele. Eu quero nossa vida juntos, mesmo que venha com
vampiros malucos que adoram nos ver dormir.
Sem ter mais como adiar, ele suspira, dando seguimento ao nosso
plano, tentando ignorar o pavor que toma conta do seu peito.
Enrola um braço forte na minha cintura e me deixa deitar para trás,
expondo completamente o meu pescoço para quem quiser ver. Eu mantenho
meus olhos abertos, para que todos sejam capazes de monitorar minhas
reações.
Desliza a ponta do seu nariz de leve na pele fina dali, com um carinho
tão gentil que me faz derreter ainda mais no seu abraço. Planta um beijo
suave no ponto onde sei que irá me morder, porque é o ponto onde estão as
cicatrizes antigas.
“Última chance de desistir”, oferece, torcendo para que eu desista.
Não vai acontecer, bonitão.
“Eu sou teimosa demais para deixar algo tão bobinho quanto veneno
de vampiro me matar”, provoco e isso consegue fazê-lo soltar um dos seus
suspiros exasperados/carinhosos.
Está na hora.
Não há mais o que adiar.
Ele começa me arranhando, como fez das outras vezes, arrancando
apenas uma pequena prova. O meu sabor toca sua língua e isso, sim, é
suficiente para despertar o predador.
Adeus, hesitação.
O momento que suas presas se cravam em mim, cravam fundo, é algo
que nunca vou esquecer. Prazer e dor na proporção mais deliciosa. Seu
veneno na minha corrente sanguínea, se misturando à energia do laço que
corre ali, formando uma combinação tão boa que, por um segundo, eu me
pergunto se morri e essa é a minha versão do paraíso. Eu não me oporia se
fosse.
Quando ele suga uma pequena quantidade do líquido, eu me curvo na
sua direção, me oferecendo ainda mais, querendo continuar a senti-lo dentro
de mim.
Ele está dentro de mim.
Meu sangue é seu sangue.
Eu imagino que estamos chocando todos ao nosso redor, talvez
despertando uma fome antiga em alguns, mas nem presto atenção. Não
conseguiria. Não quando a sensação é tão deliciosa, tão certa, tão
intoxicante.
Não estou morrendo.
Sei que não.
A impressão é de que estou mais viva do que nunca.
Ele se afasta cedo demais para o meu gosto, com os olhos vermelhos,
a respiração ofegante, seus lábios tingidos do tom mais rico de rubro.
Nunca esteve tão bonito.
— Estou perfeita. — Sorrio para acalmá-lo, para mostrar a todos que
estou bem, que nada me aconteceu, além de quase ter uma espécie
sobrenatural de orgasmo.
Nosso laço é real.
Eu sabia.
TOMA ESSA, MITOLOGIA.
Lila se aproxima apressada para me fazer um curativo rápido, apenas
para estancar o sangramento, bem à vista de todos, para deixar claro que
não usa nenhum antídoto. Checa os meus sinais vitais em seguida, em seu
modo profissional, para me encarar em assombro quando acaba.
— Você está bem mesmo — dá o veredito que eu já sabia, mas que
faz Roman soltar o ar pela primeira vez, alívio o inundando.
Só então me permito ver a reação dos vampiros, das nossas
testemunhas. E preciso me controlar muito para não rir. Queria que eles
mesmos pudessem ver suas caras. Assombro em seus mais diversos
formatos, com doses de respeito e pitadas de choque completo.
Ah, eu adoro causar.
— Longa vida à rainha Amélie! — Amadeo puxa em voz alta, com
um sorriso verdadeiro no rosto, sendo o primeiro a se abaixar em uma
reverência profunda e respeitosa, que todos começam a imitar.
Todos mesmo. Até Luz e Ivelyn, que não precisariam se curvar por
também serem rainhas, assim como Nikolai.
Chris e Lila.
Lady Evile e minha avó.
Matteo.
— Longa vida à rainha Amélie! — entoam em coro, me fazendo
arrepiar, emocionar, e mais uma dúzia de sentimentos que nem sou capaz de
definir.
Rainha Amélie.
Essa sou eu.
Que loucura.
E, por último, se curvando pela segunda vez, também sem precisar,
está Roman. Nosso laço flui quente, brilhando com alegria pura, sem deixar
espaço para mais nada.
“É hora do seu final feliz, humana”, promete aquele que é a minha
profecia, a minha alma gêmea.
O meu vampiro.
Eu não estou pronta para me despedir!
Anos depois
Roman
— Nunca entendi por que gosta tanto dessa foto minha — reclama
Amélie, apoiando o seu rosto no meu ombro para espiar a imagem que
estou admirando, entre as muitas que enfeitam o console da nossa lareira.
O retrato pode ser simples, ela está apenas deitada na grama do nosso
quintal, gargalhando radiante de algo que Matteo disse. Mas a tirei no
primeiro final de semana depois daquele baile em que revelamos nosso laço
para o mundo, depois de passar por todo o nervosismo por conta da
Cerimônia de Comprovação. Nosso filho já estava com a gente, não
tínhamos mais ameaça nenhuma pairando sobre nós, então foi um dia de
paz. Quando se vive tanto quanto nós, se aprende que poucas coisas são
mais relevantes do que um dia de paz.
Essa foto é um marco. Um lembrete.
Tanto que guardo uma cópia na gaveta do meu escritório na Nobre
Academia, ainda que quase ninguém saiba disso, apenas para ter um pedaço
da nossa vida quando estou “longe”.
— Gosto de admirar o meu excelente trabalho de jardineiro —
debocho e ela revira os olhos, beliscando a minha bunda sem cerimônia.
— Veio aqui dentro só para isso? — brinca, passando as mãos pelo
meu pescoço, me puxando para um beijo que começa lento, sagrado, logo
se transforma em chama, em desespero.
Minha fome dela nunca passa.
Encosto as nossas testas quando nos afastamos, para nos
recuperarmos dos efeitos do laço, ofegantes e acesos, como sempre
acontece.
— Na verdade, vim buscar mais vinho. — Consigo forças para erguer
um dos braços, mostrando a garrafa que tirei da adega. — Mas me distraí
com a foto.
— Admirando a minha beleza? — sorri, passando a mão pelo meu
cabelo, ajeitando-o de volta ao lugar.
— E pensando como você não parece ter mudado nada, então talvez
nossa teoria esteja certa. — Para o meu alívio.
— Ter um fio da vida com um vampiro é o melhor skin care, me
sigam para mais dicas. — Sorri e dá um passo para trás, fazendo o laço
protestar. — Precisamos voltar para os nossos convidados — avisa, para
mim e para o aeternus.
— Precisamos? — questiono, me abaixando para deixar mais um
beijo rápido no seu pescoço, na sua cicatriz, sem resistir.
— Na última vez que espiei para fora, minha avó e Luz Alice
estavam tentando ensinar funk para metade da realeza sobrenatural da
Europa — resume e eu suspiro, conformado.
— Mais tarde então — prometo e ela faz uma expressão maliciosa,
entendendo o que quero dizer.
— Mais tarde — concorda, avisando que irá buscar o bolo na cozinha
e me despachando de volta para o nosso quintal, onde estamos oferecendo
um pequeno almoço de aniversário para Matteo.
Dessa vez, ele não está sozinho em um canto, lendo. Está no centro
da aula de dança improvisada, rindo com Lady Evile da tentativa patética de
Chris requebrar os quadris, seguindo os comandos das duas professoras
inesperadas.
Ele ainda lê mais do que seria saudável para qualquer um, mas
cresceu tanto, se desenvolveu tanto, que não consigo evitar a onda de
orgulho que me atinge. Logo começará seus estudos da Nobre Academia,
seguindo o seu plano de se tornar um escritor, e não preciso ser um mago
para profetizar que meu filho será um sucesso.
Ele é um em um milhão.
Enquanto sirvo o vinho em algumas taças, deixo o meu olhar passar
pelo espaço, pelo nosso pequeno círculo íntimo reunido. Ivelyn está
tentando ensinar Lila a andar de skate e suspeito que Aires esteja usando
seus poderes para não deixar ela cair, já que equilíbrio claramente não está
entre os dons da médica.
Aurora está brincando no balanço que colocamos em uma das
árvores, indo tão alto que faz Weston, seu Knight, e Nikolai quase
infartarem de preocupação. Dois homens formados tão apavorados que
chega a ser cômico.
Do outro lado, Amadeo bebe da sua taça, sua atenção cravada no que
a Imperatriz dos Magos e o seu guarda estão dizendo. Não sei se o seu
interesse é dirigido a ele, a ela, ou a ambos, mas o homem está rendido de
um jeito óbvio.
Como a profecia queria, nossos pequenos mundos se entrelaçaram.
Levo outra taça para o meu primo, que me dá um sorriso sincero de
agradecimento. Nossa relação progrediu bastante desde que se tornou meu
scriba, tenho de admitir.
Ainda que não seja tão bom quanto a minha scriba anterior.
Amélie, agora além de ter o título de rainha, também foi convidada
pela família real a retornar ao seu cargo na proteção da Coroa. Wilbur
abandonou o seu posto e o país, logo após a nossa visita. Um mistério e
uma pena, realmente. Pelo menos, teve a decência de retornar a Céline
original, antes do seu exílio.
Exílio acidental.
Com o qual eu não tive nada a ver.
E essa sempre será a minha versão oficial.
Eu e ela trabalhamos remotamente na maior parte dos dias, dividindo
um escritório para que o laço deixe que nos concentremos em paz, até eu
me aposentar, o que não deve demorar. Tenho certeza de que Sebastian
Durant assumirá bem o meu posto.
— Hora dos parabéns! — anuncia minha humana, chegando com o
bolo que fiz na noite passada, voltando para o quintal.
Apesar de termos vários convidados que não comem, ela faz questão
de manter um pouco das suas tradições. Graças a isso, a mesa que preparou
acabou sendo um misto improvável de coisas como Blut-X e um doce
brasileiro marrom que fez a rainha Luz gritar quando viu.
Não saberia repetir o nome daquilo nem se minha vida dependesse
disso. Português é uma língua dos infernos.
Matteo nem hesita ao ocupar o lugar de honra, enquanto todos se
reúnem ao redor. Aurora pede para subir no seu colo, animada pela
movimentação, começando a bater palmas mesmo antes dos parabéns,
fazendo todos rirem.
A cópia perfeita da mãe.
— Antes de começarmos e aproveitando que estamos todos reunidos,
queria dizer duas coisas... — O garoto chama a atenção para si, ajeitando
melhor a garotinha e tentando não demonstrar seu nervosismo.
Mas eu o conheço melhor que isso.
Seja o que for dizer, está deixando-o ansioso.
Busca o meu olhar e eu lhe dou um aceno de incentivo, mesmo que
não faça ideia sobre o que quer falar.
“Será que ele está bem?”, Amélie me pergunta, preocupada.
“Ele está bem”, garanto, apesar da minha própria ansiedade.
“AI, MEU DEUS. ELE VAI PEDIR PARA IR EMBORA, NÃO
VAI?”.
“Matteo ama a nossa família tanto quanto nós”, garanto. Para mim e
para ela.
— Primeiro. — Limpa a garganta e Aurora coloca as duas mãos na
sua bochecha, obrigando-o a fazer uma careta, conseguindo lhe dar forças
sem nem entender o que está acontecendo. — Quero agradecer a Roman e
Amélie por tudo que fizeram por mim, desde que me conheceram.
“ELE VAI TERMINAR COM A GENTE”.
Eu não respondo nada.
É claro que ele não vai.
Certo?!
— Eles me deram... — Balança a cabeça. — Uma vida nova. Uma
chance. Tudo.
Nossos convidados soltam um coro de “awns”, mas o meu canal com
Amélie está repleto de preocupação.
— Por isso, em segundo lugar... — Agora ele nos encara
diretamente. — Se eles quiserem... — Respira fundo, fazendo Aurora imitar
o seu gesto exagerado. — Se quiserem me ter como seu herdeiro, eu ficaria
muito honrado.
Alívio nos inunda.
Seguido por uma das maiores alegrias que já sentimos.
— Era isso? — Amélie está chorando de verdade, lágrimas de alegria
escorrendo pelo seu rosto perfeito. — Eu achei que fosse terminar com a
gente!
O queixo dele cai.
— Vocês são meus pais! — exclama, indignado. — Não existe
“terminar” com os pais!
É a primeira vez que nos chama assim.
Pais.
Ele nos vê como seus pais.
— Eu sou seu pai? — Aurora pergunta, cutucando a bochecha dele,
suavizando o momento que estava emocionando todos.
— Se não quiserem, eu vou entender, porque tem o tio Amadeo e...
— começa a argumentar, seus olhos buscando os meus com nervosismo.
— Não tem “tio Amadeo” nenhum, não! — O homem se intromete
para protestar, apesar de estar sorrindo orgulhoso. — Não fico bem de
coroa, valeu.
— Matteo — chamo, para acabar com o seu sofrimento de uma vez.
— Nada me faria mais feliz do que isso.
Agora são os seus olhos que se enchem de lágrimas não derramadas.
— Nem se Amélie deixasse as pantufas no lugar certo? — consegue
acrescentar, engolindo o choro com sua coragem, e fazendo a humana soltar
um “hey” ofendido.
— Vocês dois são parecidos demais para o meu bem — reclamo,
fazendo todos rirem. — Mas tem certeza disso? — preciso perguntar, me
certificar. Não quero que faça nada que não esteja pronto. É uma
responsabilidade grande demais.
— Certeza absoluta — concorda, com a determinação que sempre
teve, de quem sabe o que quer.
Controlo a minha emoção e me viro para os meus amigos, para as
pessoas mais importantes da minha vida.
— Rei Matteo, senhoras e senhores! — Puxo uma salva de palmas
que todos acompanham, Aurora caprichando nos gritinhos empolgados, e se
apressam a cumprimentá-lo, a parabenizá-lo.
Enquanto isso, minha humana vem me abraçar.
“Você tem um herdeiro!”, comemora, pulando nos meus braços. “Nós
estamos arrasando nessa coisa de final feliz, vampirão”.
Sim.
Nós estamos.
E temos séculos para sermos ainda mais felizes.
Fim
Olá, pessoa maravilhosa que chegou até aqui! MUITO obrigada, de
todo coração, por ter acompanhado a minha versão de um mundo vampiro!
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para a divulgação do meu trabalho s2
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Um abraço apertado,
Laura
Outras Obras