PLATÃO - O Primeiro Alcibíades
PLATÃO - O Primeiro Alcibíades
PLATÃO - O Primeiro Alcibíades
UNIVERSIDADE F E D E R A L D O PARÁ
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PRIMEIRO ALCIBÍADES
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CONSELHO EDITORIAL
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Lais Zumero
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EDUFPA
EDITORA
UNIVERSITÁRIA
U F P A
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Diretora
LaisZumero Benedito Nunes •
Divisão de Editoração
José dos Anjos Oliveira
2 Edição Revisada
a
st. II
ricas, conquanto se me afigure que seja particularidade aumentar teu cabedal? estou certo de que escolherias
a que não das grande importância. Envaidecido por todas morrer. Vou dizer-te agora de que esperança vives. Estás _
essas vantagens, sobrepuseste-te aos teus admiradores, convencido de que logo que te apresentares para falar,
que aos poucos se afastaram de ti, o que não te passou b na assembleia dos atenienses - o que se dará dentro de
despercebido. Sei, portanto, muito bem, que te admiras poucos dias - imediatamente demonstrarás a todos que
de eu não desistir de amar-te, e te perguntas em que posso és mais merecedor de consideração do que Péricles ou
fundar minhas esperanças para persistir no meu intento, qualquer dos varões ilustres dos séculos passados,
quando todos os outros j á se retiraram. demonstração que te granjeará a autoridade suprema da
cidade entre os teus concidadãos. Uma vez assegurado o
I I - Alcibíades - Talvez ignores, Sócrates, que te poder entre nós, dominarás em todos os helenos, digo
d.antecipaste a mim de um quase nada, pois eu tinha melhor, não apenas nos helenos, mas nas populações de
precisamente a intenção de procurar-te para perguntar o c bárbaros que habitam o mesmo continente que nós. E
que pretendes e o que esperas, para me importunares se aquela divindade voltasse a falar e te dissesse que o
desse modo, obstinando-te em seguir-me por toda aparte. teu império deveria ficar circunscrito à Europa, não te
Em verdade, não atino com o que se passa contigo, e sendo permitido passar para a Ásia nem imiscuir-te nos
muito te agradeceria se me dissesses o que há. negócios 4e lá, tenho certeza de que não quererias viver
Sócrates - Se desejas saber, como dizes, o que se sob essa condição, j á que não te era possível encher o
passa comigo, ouve-me, como cumpre, com boa mundo todo - por assim dizer - com o ruído do teu
disposição. Vou falar como quem se dirige a quem se home e do teu poder. Estou convencido de que, com
dispõe a escutar e a não retirar-se antes do fim. exceção de Ciro e de Xerxes, ninguém mais se te afigura
Alcibíades - Está bem. Podes falar, merecedor de consideração. Que essa é a tua esperança,
e Sócrates - Toma cuidado, pois não seria de admirar tenho absoluta certeza; não se trata de conjecturas. E
que tanto me custe terminar, como começar. como estás ciente de que falo a verdade, decerto me
Alcibíades - Fala, meu caro Sócrates, que te ouvirei. d perguntarás: Muito bem, Sócrates; porém que relação
Sócrates - Vou falar, embora seja difícil a qualquer pode haver entre a explicação que me querias dar e o teu
pessoa apresentar-se em caráter de apaixonado a quem propósito de não me deixares? Ao que eu te responderia:
não se rende a nenhum dos seus admiradores. AEnHa" Ó caro filho de Clínias. e de Dinômaque, é quê sem a
assim, atrevo-me a expor meu pensamento. Se eu tivesse minha colaboração não te será possível levar a bom temfo
visto, meu caro Alcibíades, que te mostravas satisfeito todos esses projetos, tão grande é a influência que eu
com as vantagens que há momentos enumerei e que te "presumo ter sobre t i e tudo O que te diz respeito. Essa é
105 a contentarias com elas para o resto da vida, tenho certeza a razão, quero crer, de me haver a divindade impedido
de que há muito tempo j á teria arrefecido a afeição que durante tanto tempo de conversar contigo e de ter eu
te dedico. Vou revelar-te os teus verdadeiros pensamentos ficado à espera de sua permissão. E assim como pretendes
com relação a t i próprio, para que vejas como sempre demonstrar à cidade que és digno das maiores honrarias,
foste'objeto de minhas cogitações. Sou de parecer que e para de pronto alcançares poder absoluto sobre ela, eu
se algum dos deuses te dissesse: Ó Alcibíades, que também, do meu lado, espero provar-te que te soú
preferiras: continuar vivo com o que presentemente indispensável, e de tal forma indispensável que nem o
possuis, ou morrer agora mesmo, caso não te fosse possível teu tutor, nem teus parentes, nem ninguém mais se
236 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 237
Alcibíades - Sem dúvida. Assim como eu te indiquei o termo exato que se aplica à
Sócrates - Tudo isso no momento certo? execução, quando feita de acordo com as regras de outra
Alcibíades - Sim. arte - a ginástica - dize-me agora, por tua vez, que nome
Sócrates - E sempre que for melhor fazê-lo? tem na música o que é feito com todas as regras da arte.
Alcibíades - De acordo. Alcibíades - Creio que é músico.
Sócrates - Muito bem. Continua. E quando se
V - Sócrates - Pois bem; j á que empregas a mesma e atinge a excelência em matéria de paz e de guerra, de
expressão. Melhor, tanto com relação à luta como ao canto que modo a nomeias? Assim como nos outros casos deste
acompanhado de cítara, quero que me digas que nome o nome de músico ao que é excelente na música, e o de
dás-a esse melhor no canto? Eu, na palestra, dou-lhe o ginástico ao que sobreexcele em ginástica, procura agora
nome de ginástico. E tu, como designas o outro? designar também o melhor em questão de paz e de
Alcibíades - Não compreendo. guerra.
Sócrates Então, procura imitar-me. Eu responderia
T Alcibíades - Para ser franco, não sei.
que para mim o melhor é o absolutamente correto, sendo Sócrates - Ora, fora vergonhoso, se estivesses
correto tudo o que é feito de acordo com a arte. Aceitas falando com alguma pessoa e dando conselhos a respeito
isso? de alimentos, e dissesses que tal alimento era melhor do
Alcibíades - Aceito. que outro, em tal tempo ou em tal quantidade, e essa
Sócrates - Não é a ginástica uma arte? pessoa te perguntasse: Que entendes por melhor
Alcibíades - Como não? alimento, Alcibíades? não lhe responderias que era o mais
Sócrates - Digo, portanto, que em matéria de luta o sadio, muito embora não te apresentasses como médico?
melhor se denomina ginástico. No entanto, quando te formulam uma pergunta sobre
Alcibíades - Foi o que disseste. assunto que declaras conhecer e a respeito do que te
Sócrates - E não estará certo? 109 a apresentaste para falar como entendido, não te sentirias
Alcibíades - Parece-me que sim. envergonhado de n ã o saberes responder, ao te
Sócrates - Agora é tua a vez; precisas iniciar-te na formularem essa pergunta? O u n ã o te parece
dialética. Começo por perguntar-te que nome dás à arte vergonhoso?
que compreende o canto certo, o toque de cítara e o ritmo Alcibíades - Muito.
dos passos? Em conjunto, como se denomina? Ainda não Sócrates - Então reflete um pouco, e procura
saberás dizê-lo? ^ explicar em que consiste o melhor a respeito de paz,
Alcibíades - Ainda não. quando for preciso ser firmada, ou com relação à guerra
Sócrates - Tentemos por outro modo. Quais são as levada a cabo contra o adversário certo.
deusas que presidem a essa arte? Alcibíades - Por mais que reflita, não atino com a
Alcibíades - Estás pensando nas Musas, Sócrates? resposta.
Sócrates - Justamente. Como se chama a arte que Sócrates- Ora, quando estamos em guerra, não sabes
delas tira o nome? b as queixas que alegamos reciprocamente para justificá-la,
Alcibíades - Quero crer que te referes à .música. | e de que expressões nos valemos para esse fim?
Sócrates - E isso mesmo. Agora dize-me que nome ! Alcibíades - Sei! Que fomos enganados, ou nos
se dá ao que é excelente em relação à arte da música. ; fizeram violência, ou que nos tomaram algo.
242 Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 243
Alcibíades - Sim.
Sócrates - Se nesse tempo ainda ignoravas se era
Sócrates - Se não é capaz de ensinar o mais fácil,
justo ou injusto o que te faziam, como perguntas o que
como poderá fazê-lo com o mais difícil?
deverias fazer?
Alcibíades - Penso que pode; o vulgo tem
Alcibíades - Por Zeus, n ã o o ignorava; sabia
capacidade para ensinar coisas mais difíceis do que esse
perfeitamente que estavam praticando comigo uma
jogo.
injustiça.
Sócrates - Que coisas?
Sócrates - Pelo que se vê, és de parecer que desde
111 a Alcibíades - Ora, aprendi com eles a falar grego,
criança conheces a natureza do justo e do injusto.
pois o certo é que não poderei indicar meu professor
Alcibíades - Sim; conhecia, realmente.
nessa matéria, se não for, justamente, o que te parece tão
Sócrates - E em que época a descobriste? Não, pouco recomendável.
decerto, no tempo em que pensavas conhecê-la. Sócrates - Sim, caro amigo; são ótimos professores
Alcibíades - Não, sem dúvida. de grego, dignos, nesse ponto, dos maiores encómios.
Sócrates - Quando, então, presumias ignorá-la?
Alcibíades - Por quê?
Pensa bem; não podes dizer em qúe tempo foi isso?
Sócrates - Por serem dotados das qualidades
Alcibíades - Com efeito, Sócrates, por Zeus! Não
indispensáveis aos bons professores.
sei o que dizer.
Alcibíades - Que queres dizer com isso?
Sócrates - Então não aprendeste tal coisa por a teres
Sócrates - Não sabes que a condição essencial para
descoberto.
ensinar alguma coisa é conhecê-la? Ou não?
Alcibíades - E o que parece.
b Alcibíades - Perfeitamente.
Sócrates - Mas há pouco disseste que não conhecias
Sócrates - E que os que conhecem essa coisa devem
isso por haver aprendido. Ora, se não o descobriste por
estar sempre de acordo, sem nunca divergirem de
ti mesmo, nem aprendeste com ninguém, de que modo
opinião?
e de onde te veio tal conhecimento?
Alcibíades - Sim.
Sócrates - Dirias que eles conhecem os assuntos em
V I I - Alcibíades - Decerto não respondi direito,
que estão em desacordo?
quando disse que o havia descoberto.
Alcibíades - De forma alguma.
Sócrates - Então, como deveria ter respondido?
Sócrates - E então? Acreditas que os do vulgo
Alcibíades - Creio que aprendi com todo o mundo.
venham a ficar em desacordo a respeito do que seja
Sócrates - Voltamos, assim, ao ponto de partida.
pausou pedra? Qualquer pessoa a quem te dirigires,
Com quem aprendeste? Dize-me. ' '
não te daria sempre uma única resposta e não correria
Alcibíades - Com todo o mundo.
c para o mesmo objeto, se se tratasse de apanhar um
Sócrates- Não te acolhes a professores recomendáveis,
pau ou uma pedra? E assim com tudo o mais, o que
com te refugiares entre o vulgo.
eu suspeito ser mais ou menos o que entendes por
Alcibíades - Como assim? O vulgo não é capaz de
falar grego..Ou não?
ensinar nada?
Alcibíades - E certo.
Sócrates - Nem sequer a jogar gamão, que é muito
Sócrates - Ora, como dizíamos, não é verdade que
menos difícil de aprender do que a justiça. Não pensas
nesse ponto todos estão de acordo entre si e cada um
desse modo?
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O Primeiro Alcibíades 247
e I X - Sócrates - Não percebes, Alcibíades, como te Sócrates - Quem se manifestou, portanto, sobre o
exprimes com pouca precisão? que ficou dito?
Alcibíades - A respeito de quê? Alcibíades - Do que admitimos, Sócrates, sou
Sócrates - De pensares que eu disse tal coisa. forçado a concluir que fui eu.
Alcibíades - Como assim? Não foste tu quem disseste Sócrates - E não ficou dito, também, que Alcibíades,
que eu nada sei a respeito do justo e do injusto? o belo, filho de Clínias, ignorando a natureza do justo e
Sócrates - Eu, não. do injusto, mas presumindo conhecê-la, pretendia
Alcibíades - Então fui eu? apresentar-se à assembleia para dar conselhos aos
Sócrates - Sem dúvida. atenienses a respeito de questões de que ele nada
Alcibíades - De que modo? entendia?
Sócrates - E o seguinte: suponhamos que eu te c Alcibíades - Parece.
perguntasse qual dos dois números é maior: um ou dois. Sócrates - Aplica-se ao nosso caso, Alcibíades, aquilo
Não responderias que dois é o maior? de Eurípides: ouviste isso de ti mesmo, não de mim; não
Alcibíades - Sem dúvida. fui eu que o disse, porém tu, que me acusas sem razão. O
Sócrates - Maior, quanto? que disseste é muito certo. E verdadeira loucura, meu
Alcibíades - Uma unidade. caro, levar avante o teu projeto de pretender ensinar aos
Sócrates - Qual de nós dois é o que diz que dois é outros o que nem sabes nem te deste ao trabalho de
uma unidade maior do que um? aprender.
Alcibíades - Eu.
113 a Sócrates - Logo, eu fui o que perguntei, e tu, o que d X - Alcibíades - Penso, Sócrates, que muito
respondeste? raramente os atenienses e os demais helenos discorrem
Alcibíades - Sim. em suas assembleias sobre o que seja mais justo ou mais
Sócrates - Sobre esse assunto, portanto, quem é que injusto. Para eles todos, trata-se de uma questão evidente
se manifesta: eu que pergunto, ou tu que respondes? por si mesma. Por isso, deixam-na de lado e consideram
Alcibíades - Eu. apenas as resoluções de que possam auferir maiores
Sócrates - E se eu te pedisse que me dissesses as vantagens. Segundo o meu modo de pensar, não é a
letras da palavra Sócrates, quem se manifestaria, eu ou tu? mesma coisa o justo e o vantajoso; muitos homens tiram
Alcibíades - Eu. grande proveito de injustiças por eles mesmos praticadas,
Sócrates - Falemos agora em tese: quando se enquanto outros, é o que penso, nada lucraram com
estabelece uma troca de perguntas e respostas, quem é terem sido justos.
que se manifesta, quem pergunta ou quem responde? e Sócrates - E então? Admitindo-se que o justo e o
Alcibíades - Parece-me, Sócrates, que é quem vantajoso sejam diferentes, terás a pretensão de saber o
responde. que é vantajoso para os homens, e a razão de o ser?
b Sócrates - Ora, em toda a nossa conversação Alcibíades - Por que não, Sócrates? Salvo se me
anterior, não era eu o único a perguntar? perguntares outra vez com quem o aprendi ou de que
Alcibíades - Era. modo o encontrei por m i m mesmo.
Sócrates - E tu eras o que respondias? Sócrates - Vês como te comportas? Se cometeres
Alcibíades - Perfeitamente. algum equívoco que possa ser refutado pelos mesmos
O Primeiro Alcibíades 251
250 Platão - Diálogos
Alcibíades - É evidente.
argumentos de que nos servimos antes, insistes, apesar
Sócrates - Logo, se fores capaz de convencer muitas
disso, em querer ouvir nova argumentação, como se os
pessoas reunidas, poderás, do mesmo modo, convencer
primeiros argumentos não passassem de vestes safadas,
uma só.
que já não poderias usar. Forçoso será que te apresentem
Alcibíades - Creio que sim.
101 a argumentos puros e imaculados. Não obstante, vou deixar
Sócrates - Se se tratar, é claro, de assunto do teu
de lado todo esse preâmbulo, para perguntar-te novamente
conhecimento.
onde aprendeste o que sabes sobre o útil, quem foi o teu
Alcibíades - E certo.
professor, e tudo o mais de há pouco, apresentado agora
Sócrates - A diferença, portanto, entre o orador que
de uma só vez. Mas, é evidente que vais voltar à situação
-v fala perante uma assembleia e o que discorre numa
anterior, sem poderes demonstrar que sabes isso por o
d conversa como a nossa, não consiste apenas em persuadir
teres descoberto por ti mesmo ou aprendido com alguém.
o primeiro muitas pessoas ao mesmo tempo, e o segundo,
Como, porém, te revelaste de paladar muito delicado, para
uma só, isoladamente?
b não teres necessidade de provar duas vezes os mesmos
Alcibíades - Parece que sim.
argumentos, desisto de procurar saber se conheces ou não
Sócrates - Muito bem; e já que se tornou evidente
conheces o que é útil aos atenienses, e apenas te
que o orador capaz de convencer muitas pessoas é também
formulo uma pergunta: o útil e o justo são idênticos
capaz de convencer uma só, exercita-te comigo e procura
ou distintos? Por que não demonstras o teu ponto de
demonstrar-me que nem sempre o justo é vantajoso.
vista interrogando-me, como eu fiz contigo, ou, se o
Alcibíades - Es violento, Sócrates.
preferires, desenvolvendo tu mesmo teu pensamento?
Sócrates - Pois só por violência vou provar-te
Alcibíades - Não sei, Sócrates, se tenho capacidade
precisamente o contrário daquilo que não quiseste
para apresentar em termos exatos o problema.
demonstrar-me.
Sócrates - Ora, meu caro; faze de conta que eu sou
Alcibíades - Então fala.
a assembleia e o povo. Forçosamente terás de convencer
Sócrates - Basta responderes ao que te perguntar,
na assembleia cada indivíduo isoladamente considerado,
e Alcibíades - Não; fala sozinho.
não é assim?
Sócrates - Como assim? Não admites que te possas
Alcibíades - Justamente.
deixar convencer por alguém?
c Sócrates - Não é possível a qualquer pessoa converter
Alcibíades - Quantas vezes for preciso.
ao seu modo de pensar ou um indivíduo apenas ou uma
Sócrates - E para ficares convencido, não é de
reunião de muitos indivíduos? Não é isso que se dá com
mister que tu mesmo declares que as coisas se passam
o professor de ginástica, que tanto ensina um aluno,
como eu disse?
como muitos?
Alcibíades - Penso que sim.
Alcibíades - Sim.
Sócrates - Então responde. Se não vieres a ouvir de
Sócrates - E a respeito de números, uma só pessoa
ti mesmo que o justo é vantajoso, nunca mais acredites
não poderá, do mesmo modo, convencer- um ouvinte
em ninguém.
apenas, ou muitos ouvintes?
Alcibíades - Não creio; mas vou responder ao que
Alcibíades - E isso mesmo.
me perguntares, por n ã o ver em que possa isso
Sócrates - Desde que essa pessoa, naturalmente, prejudicar-me.
conheça o assunto, isto é, bastando que seja matemático?
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O Primeiro Alcibíades 253
Alcibíades - É.
Alcibíades - É também o que eu penso.
Sócrates - Ainda te recordas do que concluímos a
Sócrates - E enquanto boa não será bela, e enquanto
respeito do justo?
má não será feia?
Alcibíades - Se bem me lembro, foi que quem pratica
Alcibíades - Sem dúvida.
uma ação justa, necessariamente realiza um ato belo.
Sócrates- Sendo assim, quando dizes que socorrer
Sócrates - Assim, as belas ações são boas?
os amigos na guerra é uma ação bela, porém má, é o
Alcibíades - São.
mesmo que dizeres que se trata de uma ação boa,
d Sócrates - E o que é bom é vantajoso?
porém má.
Alcibíades - E o que parece.
Alcibíades - Acho que tens razão, Sócrates.
Sócrates - E então? Quem o declara não és tu, e
Sócrates - Logo, nada belo, enquanto belo, é mau,
não sou eu o que pergunto?
nem nada feio, enquanto feio, é bom.
Alcibíades - Sou eu, realmente.
Alcibíades - E o que parece.
Sócrates - Logo, se alguém se levantasse para
aconselhar os atenienses ou os peparétios, por pretender
X I I - Sócrates- Considera de igual modo também
conhecer o que é justo e o que é injusto, e dissesse que
o seguinte: quem executa uma bela ação n ã o se
por vezes as coisas justas são feias, não te ririas dessa
comporta bem?
e pessoa, já que tu mesmo afirmas que o justo e o útil são
Alcibíades - Sim.
idênticos?
Sócrates - E os que se comportam bem, não são
Alcibíades - Pelos deuses, Sócrates, j á não sei o que
felizes?
falo; encontro-me^numa situação esquisita; quando me
Alcibíades - Como não?
interrogas, orasou de uma opinião, ora de outra.
Sócrates - E n ã o serão felizes por p o s s u í r e m
Sócrates - E ignoras, amigo, de onde te vem essa
algum bem?
perturbação?
Alcibíades - Perfeitamente.
Alcibíades - Completamente.
Sócrates - E só a l c a n ç a m esse bem por seu
Sócrates - Acreditas que se alguém te perguntasse
comportamento belo e bom?
se tens dois olhos ou três, duas mãos ou quatro, ou
Alcibíades - Sim.
qualquer coisa do mesmo teor, responderias ora de
Sócrates - Logo, comportar-se bem é bom.
um jeito, ora de outro, ou todas as vezes da mesma
Alcibíades - Sem dúvida.
forma?
Sócrates - E o bom comportamento será belo?
117 a Alcibíades - Conquanto já me encontre desconfiado
Alcibíades - É.
de mim mesmo, creio que daria sempre resposta idêntica.
Sócrates - Assim, mais uma vez o belo e o bom se
Sócrates - E a causa disso? Não é por conheceres o
nos revelam como idênticos.
assunto?
Alcibíades - É o que parece.
Alcibíades - Creio que sim.
Sócrates - Logo, se é válido o nosso raciocínio,
Sócrates - E evidente, portanto, que sempre que
sempre que acharmos que uma coisa é bela, teremos
respondes contraditoriamente, sem o quereres, é por
também de considerá-la boa.
desconheceres o assunto em debate.
Alcibíades - Forçosamente.
Alcibíades - Decerto.
Sócrates - E então? O que é bom não é vantajoso?
256 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 257
Eu, de mim, sei perfeitamente que os excedo dê muito X V I - Sócrates - Logo, se formas o projeto de
em dotes naturais. tornar-te chefe da nossa gente, deves admitir como certo
Sócrates - Que proposição avançaste, meu caro! Não que terás de disputar o primado contra o Rei dos
. vai bem isso com o teu físico e demais qualidades. lacedemônios e o dos persas.
Alcibíades - Onde está o exagero, Sócrates, e por Alcibíades - É possível que tenhas razão.
que dizes isso? Sócrates - Não, hão, amigo! Enganei-me! E para
Mídias que deves olhar, o criador de codornas, e para
Sócrates - Sinto-o por ti e pela afeição que te dedico.
b outros que tais, que se abalançam a tratar dos negócios
Alcibíades - E a razão disso? >
da cidade tendo ainda na alma, como diriam as mulheres,
Sócrates - Por imaginares que a competição que tens
o corte de cabelo dos escravos, de tão incultos que são,
em mira diz respeito à gente daqui.
até mesmo no hábito externo, e que com o seu linguajar
Alcibíades - E a quem mais dirá respeito? bárbaro não vieram governar o povo, porém adulá-lo. E
d Sócrates - Isso é pergunta que possa fazer quem se para esses, digo, que deves olhar, sem te preocupares com
considerar magnânimo? c o modo de aprender o que é preciso ficares conhecendo
Alcibíades - Queres dizer que não é com eles que no momento em que te encontras na iminência de
eu terei de haver-me? v
principiar uma luta séria, e sem praticares o que fora de
Sócrates - Se te dispusesses a governar uma necessidade praticar antes de te iniciares nos negócios
trirreme prestes a entrar em combate, contentar-te-ias públicos.
com ser o mais hábil piloto da tripulação? Ou, de Alcibíades - Acho, Sócrates, que tens razão nesse
preferência, aceitando como natural essa superioridade, ponto, mas também sou de parecer que tanto os generais
não te compararias com os teus verdadeiros adversários, lacedemônios como o Rei dos persas em nada diferem
e não, como agora fazes, con) os companheiros de dos demais.
e campanha? A estes a tal ponto deves avantajar-te, que . Sócrates - Reflete mais de espaço, meu caro, no juízo
nem lhes ocorra a ideia de rivalizarem contigo; ao que acabas de emitir.
contrário, tratados como inferiores, lutarão ao teu lado Alcibíades - Sob que aspecto?
contra os inimigos. É o que farias, se de fato pretendes Sócrates - Em primeiro lugar, sobre se não virias a
realizar algo belo e, sobretudo, digno de t i e da cidade. d tomar mais cuidado contigo mesmo, no caso de teres
Alcibíades - E isso, realmente, o que pretendo fazer. medo deles e de os considerares adversários temíveis,
Sócrates - E considerarás suficiente seres superior do que se pensasses o contrário?
aos nossos soldados, sem lançares as vistas para os Alcibíades - É evidente que procederia dessa
comandantes dos inimigos, com o intuito de sobrepujá-los maneira, se me arreceasse deles.
em toda a linha, estudando-os e tomando tuas medidas Sócrates - E achas que esses cuidados te prejudicariam
em relação a eles? em alguma coisa? ^
120 a Alcibíades - A que inimigos te referes, Sócrates? Alcibíades - De forma alguma; ganharia imensamente
Sócrates - Ignoras que nossa cidade está em comisso.
constante guerra com os l a c e d e m ô n i o s e com o Sócrates - Sendo assim, tal modo de pensar te
Grande Rei? acarreta pelo menos esse prejuízo. .
Alcibíades - E certo o que dizes. Alcibíades - Tens razão.
262 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 263
Sócrates - Em segundo lugar, tudo faz crer que à raça dos Heráclidas? E tão grande, nesse sentido, é a
semelhante juízo não procede. superioridade do Rei dos persas, que nem se concebe a
Alcibíades - Como assim? possibilidade de suspeitar alguém que algum monarca
Sócrates - Em que raças há maior probabilidade de possa ser filho de outro rei. Daí ser a melhor guarda da
e encontrarmos as melhores naturezas, nas mais nobres rainha o próprio medo que ela inspira. Quando nasce o
ou nas inferiores? primogénito, herdeiro presuntivo da coroa, logo é
Alcibíades - Nas mais nobres, evidentemente. festejado o acontecimento por todo o povo e os próprios
Sócrates - E não é certo, também, que as boas governantes; daí por diante, todos os anos, no dia do
naturezas, quando bem cultivadas, chegam a alcançar a aniversário do príncipe, a Ásia inteira comemora a
perfeição na virtude? d efeméride com festejos e sacrifícios. Ao passo que quando
Alcibíades - Forçosamente. eu e tu nascemos, Alcibíades, nem mesmo os vizinhos,
' como diz o poeta cómico, o percebem. Desde o início,
X V I I - Sócrates - E s t a b e l e ç a m o s , então, u m não fica o príncipe real sob os cuidados de alguma ama
confronto entre eles e nós, começando por perguntar se sem préstimo, porém dos melhores eunucos do palácio,
os lacedemônios e o rei dos persas parecem ser de raça que tomam conta do recém-nascido e se esforçam por
inferior à nossa. Não é certo sabermos que aqueles deixá-lo fisicamente o mais belo possível, endireitando-lhe
descendem de Héracles e o outro dos Aquemênidas, e os membros e ajeitando-os, ofício esse que lhes granjeia
que a linha de Héracles e a dos Aquemênidas são tidas e na corte alta consideração. Quando os príncipes atingem
como originárias de Perseu, filho de Zeus? a idade de sete anos, dão-lhes mestres de equitação e o
121 a , Alcibíades - E a nossa, Sócrates, vai entroncar-se iniciam na caça. Com duas vezes sete anos, são entregues
em Eurísace, e a de Eurísace, em Zeus. aos chamados preceptores reais, pessoas escolhidas entre
Sócrates - E a nossa, nobre Alcibíades, em Dédalo, os persas de maior conceito e no vigor da idade, em
e, por intermédio de Dédalo, em Hefesto, filho de Zeus. número de quatro: o mais sábio, o mais justo, o mais
Porém no caso deles, a principiar por eles mesmos, trata-se 122 a moderado e o mais valente. O primeiro o instrui no
de uma sequência ininterrupta de reis que vão bater em magismo de Zoroastro, filho de Oromásio, que consiste
Zeus. Uns reinaram em Argos e na Lacedemônia; os no culto dos deuses. Ensina-lhe também a arte de reinar.
outros sempre reinaram na Pérsia e, muitas vezes, O mais justo o ensina a dizer sempre a verdade. O mais
mesmo, como presentemente, na Ásia, ao passo que nós moderado o ensina a não se deixar dominar por nenhum
b e nossos pais não passamos de simples particulares. prazer, para que se habitue a ser livre e rei, de fato, o que
Imagina só o ridículo a que te exporias, se na frente de começa pelo domínio das paixões, para delas não vir a
Artaxerxes, filho de Xerxes, quisesses fazer praça de teus ser escravo. O mais corajoso o ensina a ser intrépido e
antepassados, de Salamina, pátria de Euríseces, e de isento de medo, inculcando-lhe que temor é escravidão.
Egina, pátria de Ajaz! Examina bem, se além de inferiores b Ao passo que tu, Alcibíades, Péricles instituiu como teu
quanto ao berço, não o somos t a m b é m no que diz preceptor um dos seus escravos, Zópiro de Trácia, que
respeito à educação. Nunca ouviste falar na extensão das de tão velho se tornara imprestável. Poderia alongar-mc
propriedades dos reis dos lacedemônios, cujas esposas ainda em particularidades a respeito da criação de teus
ficam sob a guarda pública dos éforos, para evitar, na adversários e da maneira de educá-los; porém seria
c medida do possível, que venha a reinar alguém estranho cansativo; o que ficou dito basta para ilustrar tudo o mais
264 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 265
que se lhe segue. Quanto ao teu nascimento, Alcibíades, prata, principalmente os reis, aos quais toca em partições
e tua educação, bem como a de qualquer outro ateniense, frequentes o lote mais opimo. Acrescentemos a isso o
ninguém dá a menor importância, por assim dizer, com tributo, que não é pequeno, pago pelos lacedemônios.
exceção de algum dos teus apaixonados. Mas se quiseres b Todavia, com ser grande a riqueza dos lacedemônios,
considerar a riqueza, os divertimentos, as vestes quando comparada com a dos demais helenos, é nada
c luxuosamente enfeitadas, o uso de unguentos em confronto com a dos persas e do seu Rei. Contou-me
perfumados, o séquito numeroso de servidores e todos pessoa fidedigna, conhecedora da corte do Rei, que
os demais requintes da vida opulenta dos persas, ficarias atravessou um terreno fértil, da extensão de um dia de
envergonhado de t i mesmo, por perceberes quão longe jornada mais ou menos, a que os moradores da região
te encontras de alcançá-los. dão o nome de Cinto da rainha; h á outro, ainda,
denominado Véu, e outros mais, de primeira qualidade
X V I I I - Do mesmo modo, se lançares as vistas para todos eles, reservados para os adornos da rainha, e que
a t e m p e r a n ç a dos l a c e d e m ô n i o s , sua m o d é s t i a , c recebem denominação especificada, de acordo com os
amenidade, brandura, magnanimidade, disciplina, nomes de seus diferentes ornatos. Por isso ponho-me a
coragem, pertinácia, paixão do trabalho, amor da glória pensar que se alguém fosse dizer à mãe do rei, Améstride,
e o gosto das distinções que lhes é próprio, haverias de mulher de Xerxes: O filho de Dinômaque tenciona
d considerar-te menino em confronto com eles. Até mesmo declarar guerra a teu filho, sendo que o guardá-roupa
com relação à riqueza, se imaginas que nesse particular dela poderá valer cinquenta minas, se tanto, enquanto o
te sobressais, não interrompamos nosso paralelo, para filho tem uma propriedade em Erquia de menos de
que possas adquirir consciência de quanto realmente trezentos pletros, ela, sem dúvida se perguntaria,
vales. Se considerares sob esse aspecto a fortuna dos d admirada: Em que confia esse Alcibíades, para atrever-se
lacedemônios, serás obrigado a confessar que nós outros, a atacar Artaxerxes? e concluiria consigo mesma que ele
em relação a eles, ficamos muito atrás. Ninguém pode só conta para essa aventura com sua diligência e
entre nós competir com eles na extensão das propriedades sabedoria, as únicas coisas a que os helenos dão valor. E
e fertilidade das terras, tanto no seu próprio país como quando ela ouvisse dizer que o Alcibíades da ideia de
em Messênia; ou no número de escravos, principalmente semelhante empreendimento tem vinte anos
e hilotas, de cavalos e dos demais rebanhos criados por incompletos, que é de todo falto de instrução, e que, além
eles.nos pastos de Messênia. Deixando, porém, tudo isso e do mais, ao lhe dizer o seu admirador que antes de entrar
de lado, h á mais ouro e prata entre os lacedemônios do em luta com o rei precisaria instruir-se, aperfeiçoar-se e
que entre os demais helenos tomados em conjunto, pois exercitar-se, ele protestou, asseverando ser bastante para
desde muitas gerações é o que para lá converge de todo esse empreendimento o que já sabe, quero crer que ela
o mundo helénico e, por vezes mesmo, dos povos se mostraria espantada e perguntaria: com que, então,
bárbaros; porém de lá nunca sai nada. Como na fábula conta esse adolescente? E se lhe disséssemos que ele conta
123 a de Esopo, diz a raposa para o leão: estão bem visíveis as com sua beleza, estatura, nascimento, riqueza e dotes
marcas do dinheiro que entra na Lacedemônia, porém do espírito, decerto, Alcibíades, ela nos tomaria por
não se vê nenhuma do dinheiro que sai, do que podemos loucos, ao comparar todas essas vantagens com o que
inferir com segurança que, de todos os helenos, sejam ela própria es tá habituada a ver no meio dos s eus. E quer o
os habitantes da Lacedemônia os mais ricos em ouro e 124 a crer, ainda, que Lampido, filha de Leotiquides, mulher
266 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 267
de Arquidamo e mãe de Ágis, que foram todos reis, Sócrates - Não revelar nem hesitação nem tibieza,
revelaria igual admiração, depois de confronto idêntico, caro amigo.
ao saber que com toda a tua falta de preparo tencionavas Alcibíades - Isso mesmo, Sócrates.
entrar em luta com seu filho. Não achas que é humilhante Sócrates - Não é verdade? Porém raciocinemos
ajuizarem a nosso respeito as mulheres de nossos e juntos. Dize-me, não é fato que desejamos aperfeiçoar-nos
adversários com mais acerto do que nós mesmos? Não, o mais possível? Ou não?
b meu ditoso Alcibíades, déixa-te convencer por mim e pela Alcibíades - Sim.
inscrição de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo", porque os Sócrates - Em que virtude?
teus adversários são como eu te disse, não como os Alcibíades - Evidentemente, na que distingue os
imaginas, e só pela indústria e pelo saber nos será possível
homens bons.
sobrepujá-los. Se te descurares nesse sentido, terás de
Sócrates - Bons em quê?
desistir de alcançar nome e fama entre os helenos e os
povos bárbaros, que é o que parece desejar acima de tudo Alcibíades - Evidentemente, na gestão de seus
quanto possam desejar os homens. negócios.
Sócrates --Que negócios? A equitação?
X I X -Alcibíades - Não quererás dizer-me, Sócrates, Alcibíades - Não, é claro.
em que será preciso que me esforce? Mais do que em Sócrates - Para isso, recorreríamos ao tratador de
tudo, há grande viso de verdade nisso que afirmaste. cavalos.
C Sócrates - De muito bom grado; mas será preciso Alcibíades ~ E certo.
Sócrates - Referes-te a negócios náuticos?
que investiguemos juntos o melhor modo de nos
Alcibíades - Não.
aperfeiçoarmos, porque tudo o que eu vier a dizer a
respeito de educação não se aplica menos a mim do que Sócrates - A esse respeito, r e c o r r e r í a m o s aos
a ti. Só numa coisa eu levo vantagem sobre ti. marinheiros.
Alcibíades - Qual será? Alcibíades - Perfeitamente.
Sócrates - Meu tutor é melhor e mais sábio do que Sócrates - Que negócios poderão ser? E quem os
Péricles, que é o teu. executa?
Alcibíades - Quem é ele, Sócrates? Alcibíades - Os negócios com que se ocupam os
Sócrates - Foi Deus, Alcibíades, que até este dia me homens bons de Atenas.
impediu de conversar contigo; é a fé que tenho nele que 125 a Sócrates - Dás o qualificativo de bom aos indivíduos
me leva- a asseverar-te que só por meu intermédio sensatos ou aos insensatos?
chegarás a conseguir a glória ambicionada, Alcibíades - Aos sensatos.
d Alcibíades - Estás gracejando, Sócrates.
Sócrates - E cada um de nós é bom naquilo em que
Sócrates - E possível; de qualquer forma, falo a
verdade quando afirmo que todos os homens precisam é sensato?
esforçar-se, e nós dois, mais do que ninguém. Alcibíades - Sim.
Sócrates - E o insensato é ruim?
Alcibíades - No que me diz respeito, não te enganas.
Alcibíades - Como não?
Sócrates - Nem com relação a mim.
Sócrates - O sapateiro, por exemplo, é sensato com
Alcibíades - Então, que será preciso fazer?
relação à feitura de calçados?
Alcibíades - Perfeitamente.
Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 269
Sócrates - E quais serão as coisas, cuja presença ou Sócrates - Ela também é que estabelece o acordo a
a u s ê n c i a condicionam a boa a d m i n i s t r a ç ã o e a esse respeito entre os particulares e as cidades?
p r e s e r v a ç ã o da cidade? Suponhamos que eu te Alcibíades - Sim.
perguntasse: Quais são as coisas que, por presentes ou Sócrates - E com relação a pesos, não se passa a
ausentes, regulam ou preservam o corpo? Dirias, decerto, mesma coisa?
que são: a saúde, quando presente, e a doença, enquanto Alcibíades - Evidentemente.
ausente. Não pensas desse modo? Sócrates - Então, em que consiste essa concórdia a
b Alcibíades - Penso. que te referiste, acerca de que se manifesta, e qual é a
Sócrates - E se me perguntasses: Que é o que pela ciência que a estabelece? Deve ser de tal natureza, que
sua presença deixa os olhos em bom estado? Do mesmo assim como faz com as cidades, faz com os indivíduos,
modo, eu te diria que é a vista, quando presente, e a quer seja cada um consigo mesmo, quer seja com todos
cegueira, quando ausente, e, com relação aos ouvidos, entre si?
diria que funcionam melhor se se conservam em boas Alcibíades - E precisamente assim.
condições com a ausência da surdez e a presença da Sócrates - Então, de que natureza é essa concórdia?
audição. Não te enfades com minhas perguntas e responde de
Alcibíades - E certo. e boa mente.
Sócrates - E com relação à cidade? Que é o que, Alcibíades - Sou de opinião que a amizade e a
presente ou ausente, a deixa em melhores condições e harmonia a que me referi devem ser como as que
mais bem administrada? condicionam a concórdia existente entre o pai e a mãe
c Alcibíades - Sou de parecer, Sócrates, que é quando afetuosos e seus filhos, o irmão e a irmã, a mulher e o marido.
reina amizade entre os cidadãos e se acham ausentes o
ódio e as sedições. X X I I - Sócrates - Achas mesmo, Alcibíades, que o
Sócrates - O que entendes por amizade: concórdia marido pode estar de acordo com a mulher sobre o modo
ou desavença? de fiar lã, no que ela é perita e ele desconhece de todo?
Alcibíades - Concórdia. Alcibíades - Não, decerto.
Sócrates - Qual é a arte que deixa concordes as Sócrates - Nem h á necessidade disso; trata-se de
cidades a respeito de números? trabalho de mulher.
Alcibíades - E a aritmética. Alcibíades - E certo.
Sócrates - E com relação aos particulares, não é 127 a Sócrates - E então? Poderá a mulher ficar de acordo
também a aritmética? com o marido a respeito de manobras da infantaria, coisa
Alcibíades - É. que ela nunca aprendeu?
Sócrates - E não é ainda por ela que cada um de Alcibíades - De forma alguma.
nós fica de acordo consigo mesmo? Sócrates - Provavelmente, dirias que se trata de
Alcibíades - Sim. ocupação de homens.
Sócrates - E por meio de que arte cada um fica de Alcibíades - Isso mesmo.
d acordo consigo mesmo, sobre qual seja maior, o palmo Sócrates - De acordo, por conseguinte, com o que
ou o cúbito, não é a arte dá medida? disseste, há conhecimentos próprios das mulheres, e
Alcibíades - Que outra poderia ser? outros pertinentes aos homens.
272 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 273
Alcibíades - Por que não? encontram. Segundo os teus próprios dizeres, ora se me
Sócrates - A esse respeito, portanto, não há concórdia afiguram presentes numas pessoas, ora ausentes.
entre os homens e as mulheres.
Alcibíades - Não. X X I I I - Alcibíades - Pelos deuses, Sócrates, j á não
Sócrates - Nem amizade, se amizade for concórdia. sei o que falo. E bem possível que eu esteja há muito
Alcibíades - Não, evidentemente. tempo nesse estado de ignorância, sem aperceber-me
Sócrates - Então, as mulheres não são amadas pelos disso.
homens, quando executam trabalhos que lhes são próprios, Sócrates - E preciso ter c o n f i a n ç a . Se aos
b Alcibíades - É o que parece. cinquenta anos tivesses percebido essa deficiência,
Sócrates - Nem os maridos pelas mulheres, quando e difícil te seria tomar qual quer medida para remediá-la.
estes executam os delas. Mas estás agora precisamente na idade em que cumpre
Alcibíades - Não. percebê-la.
Sócrates - Nem são bem administradas as cidades, Alcibíades - E os que a percebem, Sócrates, que
quando cada um faz o que lhe compete. . deverão fazer?
Alcibíades - Isso não, Sócrates! Acho que são. Sócrates- Responder ao que te pergunto, Alcibíades.
Sócrates- Como! Sem estar presente a amizade, cuja Se assim procederes e o deus o permitir - até onde posso
presença reconhecemos ser necessária para sua boa confiar no meu oráculo - tu e eu só teremos a lucrar.
administração, o que de outra forma não seria possível? Alcibíades - Nada mais fácil de alcançarmos isso,
Alcibíades - Eu diria, porém, que a amizade está no que depender apenas de eu responder.
c presente sempre que cada um faz o que lhe compete. Sócrates - Então responde: que significa a expressão
Sócrates - Não foi isso que disseste há pouco. E que Cuidar de si mesmo? Pois pode muito bem dar-se que
afirmas agora? Que pode haver amizade, se não houver 128 a não estejamos cuidando de nós, quando imaginamos
concórdia? Ou que pode haver concórdia a respeito do fazê-lo. Quando é que o homem cuida de si, mesmo? Ao
que alguns sabem e outros ignoram? cuidar de seus negócios, cuidará de si mesmo?
Alcibíades - Isso é impossível. Alcibíades - Parece que sim.
Sócrates - E quando cada um faz o que lhe compete, Sócrates - E então? Quando cuida alguém dos pés?
procede com justiça ou injustamente? E quando cuida do que é pertinente aos pés?
Alcibíades - Não compreendi.
Alcibíades - Com justiça, como não?
Sócrates - Não h á coisas que só se referem às mãos?
Sócrates - Sendo assim, quando os cidadãos se
O anel, por exemplo, com que outra parte do corpo se
comportam com justiça na cidade, n ã o h á amizade
relaciona, a não ser com o dedo?
entre eles?
Alcibíades - Com nenhuma.
Alcibíades - Necessariamente deve haver, Sócrates;
Sócrates - E o calçado, não se acha em idênticas
é o que eu penso,
relações com os pés?
d Sócrates - O que vêm a ser, então, essa amizade e
b Alcibíades - Perfeitamente.
essa concórdia a que te referiste, que terão de deixar-nos
Sócrates - E do mesmo modo as vestes e as cobertas,
sábios e discretos, para que nos tornemos homens bons?
com outras partes do corpo?
Não consigo saber em que consistem nem com quem se
Alcibíades - Sem dúvida."
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 275
Sócrates - Porém o que cuida de sua fortuna, nem Sócrates - E a razão disso é que eu era o único
cuida de si mesmo, nem do que lhe pertence; encontra-se apaixonado de ti mesmo, enquanto os demais amavam
mais afastado, ainda, do que lhe diz respeito. apenas o que te pertence. Ora, o que te pertence
Alcibíades - E também o que eu penso. emurchece, ao passo que tu, propriamente dito, te
Sócrates - Sendo assim, o banqueiro não cuida do 132 a encontras no início da floração. Assim, se não te deixares
que lhe diz respeito. corromper pelo povo de Atenas, nem vieres a degenerar,
Alcibíades - E certo. jamais te abandonarei. O que eu receio acima de tudo é
Sócrates - Logo, se alguém se mostra apaixonado que, tornando-te apaixonado do nosso povo, venhamos
do corpo de Alcibíades, não é Alcibíades que ele ama, a perder-te. Foi o que já aconteceu com muitos atenienses
porém algo que pertence a Alcibíades. de nobre estirpe. Pois é de mui bela aparência a
Alcibíades - Dizes a verdade.
Sócrates - Só te ama quem amar tua alma. gente do hetói Erecteu, de alma grande.
Alcibíades - E o que necessariamente se conclui de
toda a tua exposição. , E preciso vê-la sem roupa. Importa, pois, que te precates,
Sócrates - Não é certeza vir a afastar-se de ti o amante de acordo com as minhas advertências.
de teu corpo, quando emurchecer a flor da mocidade? Alcibíades - Quais?
Alcibíades - E muito provável. b Sócrates - Exercita-te primeiro, caro amigo, e
Sócrates - Mas o que ama tua alma n ã o te aprende o que é preciso conhecer para te iniciares na
abandonará enquanto ela aspirar a aperfeiçoar-se? política; antes, n ã o . M u n i d o , desse modo, do
Alcibíades - E certo. contraveneno adequado, nada prejudicial te poderá
Sócrates - Ora bem: eu sou o que não te abandono, acontecer.
porém continuarei ao teu lado, quando todos se afastarem Alcibíades - Acho muito razoável o que me dizes,
de ti, depois de vir a perder o viço a mocidade. Sócrates. Porém desejo que me expliques de que maneira
Alcibíades - Fazes bem, Sócrates; espero que não podemos cuidar de nós mesmos.
me abandones. Sócrates - E possível que nesse domínio já tenhamos
Sócrates - Então, esforça-te para te tornares cada adiantado alguma coisa.'Pelo menos, já quase chegamos
vez mais belo. a um acordo, com relação ao que somos, não havendo,
Alcibíades - Hei-de esforçar-me. pois, perigo de, em vez de nos ocuparmos conosco,
cuidarmos do que não seja nós mesmos.
XXVTI - Sócrates - No que te diz respeito, o fato é Alcibíades - E certo,
que nunca existiu, ao que parece, senão um único c Sócrates - De seguida, assentamos que é da alma
apaixonado de Alcibíades, filho de Clínias, que é o seu que precisamos cuidar e para que devemos volver as vistas.
muito amado Sócrates, filho de Sofronisco e de Fenarete. Alcibíades - É claro.
Alcibíades - É verdade. Sócrates - Os cuidados com o corpo e com as
Sócrates - Não declaraste que se eu não te houvesse riquezas devem ser confiados a outras pessoas.
antecipado, tu tencionavas falar-me para me perguntar o Alcibíades - Perfeitamente.
motivo de ter sido eu o único a não abandonar-te? Sócrates - Porém de que modo alcançaremos o
Alcibíades - Declarei, realmente. conhecimento perfeito da alma? Sabido isso, ao que
282 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 283
parece, conhecer-nòs-emos a nós mesmos. Mas pelos Sócrates - Logo, se o olho quiser ver a si mesmo,
deuses, será que penetramos, de fato, no sentido precisará contemplar outro olho e, neste, a porção exata
profundo do excelente preceito de Delfos a que h á em que reside a virtude do olho, que é propriamente a
momentos nos referimos? visão.
Alcibíades - Que queres dizer com isso, Sócrates? Alcibíades - Perfeitamente.
d Sócrates - Vou explicar-te o que eu presumo seja o Sócrates - E com r e l a ç ã o à alma, meu caro
significado desse preceito e o conselho nele implícito. O Alcibíades, se ela quiser conhecer-se a si mesma, não
difícil é encontrar um termo de comparação; parece que precisará também olhar para a alma e, nesta, a porção
só a vista servirá para nosso intento. em que reside a sua virtude específica, a inteligência, ou
Alcibíades - Como assim? para o que lhe for semelhante?
Alcibíades - Parece-me que sim, Sócrates,
X X V I I I - Sócrates - Raciocina comigo. Se nos c Sócrates - Haverá, porventura, na alma alguma parte
dirigíssemos aos olhos, como se se tratasse de pessoas, e mais d i v i n a do que a que se relaciona com o
lhes apresentássemos o preceito Conhece-te a ti mesmo, conhecimento e a reflexão?
de que modo compreenderíamos o conselho? Não seria Alcibíades - Não há.
no sentido de levar os olhos a dirigir-se para algum objeto Sócrates - É a parte da alma que mais se assemelha
ao divino; quem a contemplar e estiver em condições de
em que eles pudessem ver a si próprios?
perceber o que nela há de divino, Deus e o pensamento,
Alcibíades - É claro,
com muita probabilidade ficará conhecendo a si mesmo.
e Sócrates - E qual é o objeto em que nos vemos,
Alcibíades - É certo.
quando o contemplamos?
Sócrates - Sem dúvida, porque os verdadeiros
Alcibíades - O espelho, Sócrates.
espelhos são mais claros do que o espelho dos olhos, mais
Sócrates - Acertaste. Porém nos olhos com que
puros e mais brilhantes; do mesmo modo, a divindade
vemos, não se encontra algo do mesmo estilo?
da melhor parte de nossa alma é mais pura e mais
Alcibíades - Perfeitamente. luminosa.
Sócrates - Como j á deves ter observado, o rosto de Alcibíades - É o que parece, Sócrates.
quem olha para os olhos de alguém que se lhe defronte, Sócrates - Olhando, portanto, para essa divindade,
133 a reflete-se no que denominamos pupila, como n u m e usando-a à guisa do melhor espelho das coisas humanas
espelho a imagem da pessoa que olha. para o conhecimento da virtude da alma, é a maneira
Alcibíades - É certo. mais acertada de nos vermos e reconhecermos a nós
Sócrates - Assim, quando um olho olha para outro mesmos.
e se fixa na porção mais excelente deste, justamente Alcibíades - É certo.
aquela que vê, ele vê-se a si mesmo?
Alcibíades - É evidente. X X I X - Sócrates - Mas, se carecermos desse
Sócrates - Porém não verá a si mesmo, se olhar para conhecimento de nós mesmos e dessa sabedoria,
qualquer outra parte do homem, ou para onde quer que poderemos conhecer o que nos diz respeito, tanto de
seja, menos para o que se lhe assemelha, bem como de mal?
b Alcibíades - É certo. Alcibíades - Como fora possível, Sócrates?
284 Platão - Diálogos 285
O Primeiro Alcibíades
ILUSTRAÇÕES
os papéis: tu ficarás com o meu e eu ficarei com o teu. A
partir de hoje, não haverá possibilidade de evitarmos que
eu me torne teu preceptor, e tu passes a ser dirigido
por mim.
Sócrates - O generoso Alcibíades! Nesse caso, em "• — ,^--y
Moeda grega -
coruja em
inscrição, cerca
de470 a.C.
(Folha de Rosto)
ii
ji
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