Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

PLATÃO - O Primeiro Alcibíades

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 31

É

UNIVERSIDADE F E D E R A L D O PARÁ

Reitor
Alex Bolonha Fiúza de Mello
Vice-Reitora
Regina Fátima Feio Barroso
Pró-Reitora de Administração
PLADO
Iracy de Almeida Gallo Rilxmann
Pró-Reitor de Ensino de Graduação e Administração
Académica
DIALOG
Licurgo Peixolo de Brilo
Pró-Reitora de Extensão
Ney Cristina Monteiro de Oliveira
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Roberto DalVAgnol
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento
Sinfifnio Brito Moraes

FEDRO - CARTAS
Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal
Sibele Maria Bilar de Lima Caetano
Chefe de Gabinete

PRIMEIRO ALCIBÍADES
Silvia Arruda Câmara Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Regina Fátima Feio Barroso
Membros
Raimundo Netuno Nobre Villas
João de Jesus Paes Loureiro
Marlene Rodrigues Medeiros Freitas
Andrea Kely Campos Ribeiro dos Santos
Maria das Graças da Silva Pena Tradução diteta do grego
Lais Zumero
Carlos Alberto Nunes
EDUFPA
EDITORA
UNIVERSITÁRIA
U F P A
Coordenação
Diretora
LaisZumero Benedito Nunes •
Divisão de Editoração
José dos Anjos Oliveira
2 Edição Revisada
a

Divisão de Distribuição e Intercâmbio


Wilson da Rocha Nascimento

Jy GRÁFICA UNIVERSITÁRIA LELIOJ A


o IOTF I , C A
UNIVERSITÁRIA
U F i> A
Belém - Pará
Diretor: JíjÇfeon Wagner e Silva Galvão
2007
Diretor de Arte-Final e Fotocomposição: Clemildo Raimundo Palheta
Diretor de Produção: José Maria Gomes
Diretor Comercial: Manoel do Carmo Silva
O PRIMEIRO
ALCIBÍADES

st. II

103 a I - Ó filho de Clínias, deves estar admirado de que,


tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o único que não
te abandonasse, quando todos se afastaram, apesar de
não te haver dirigido a palavra durante tantos anos em
que a turba te importunava com suas atenções. Não foi
humana a razão desse meu proceder, mas impedimento
divino, de cuja natureza oportunamente te falarei. E hoje,
que tal impedimento cessou, aproximo-me de t i com a
esperança de que, daqui por diante, não- mais se
manifeste. Durante todo esse tempo, observei como te
comportavas com'relação aos teus amigos. Por mais
numerosos e altivos que fossem, não houve um só que
104 a não saísse corrido pelo teu desdém. Vou explicar-te a razão
de ser de teu orgulho. Estás convencido de que não
necessitas de ninguém para nada, pois, tendo tudo com
larga margem de sobra, de nada virás a precisar, a
começar pelo corpo e a acabar pela alma. Em primeiro
lugar, julga§-te o mais belo e o mais alto dos cidadãos,
com o que há de concordar quem tiver olhos de ver; a
seguir, pertences a uma das mais esforçadas famílias de
tua própria cidade, a qual, por sua vez, é a maior da
b Hélade, e nela, por parte de pai, dispões de numerosos e
influentes amigos e parentes, todos eles dispostos aservir-te
na ocasião oportuna. Do lado materno, de igual modo,
contas com parentes n ã o menos numerosos que
influentes. Porém o que consideras de mais importância
que tudo é a influência de Péricles, filho de Xantipa, que
teu pai deixou como teu tutor e de teu irmão, o qual
pode fazer o que quiser tanto em nossa cidade como em
toda a Hélade e em muitas e poderosas nações bárbaras.
c Acrescentarei a isso que pertences ao número das pessoas
234 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 235

ricas, conquanto se me afigure que seja particularidade aumentar teu cabedal? estou certo de que escolherias
a que não das grande importância. Envaidecido por todas morrer. Vou dizer-te agora de que esperança vives. Estás _
essas vantagens, sobrepuseste-te aos teus admiradores, convencido de que logo que te apresentares para falar,
que aos poucos se afastaram de ti, o que não te passou b na assembleia dos atenienses - o que se dará dentro de
despercebido. Sei, portanto, muito bem, que te admiras poucos dias - imediatamente demonstrarás a todos que
de eu não desistir de amar-te, e te perguntas em que posso és mais merecedor de consideração do que Péricles ou
fundar minhas esperanças para persistir no meu intento, qualquer dos varões ilustres dos séculos passados,
quando todos os outros j á se retiraram. demonstração que te granjeará a autoridade suprema da
cidade entre os teus concidadãos. Uma vez assegurado o
I I - Alcibíades - Talvez ignores, Sócrates, que te poder entre nós, dominarás em todos os helenos, digo
d.antecipaste a mim de um quase nada, pois eu tinha melhor, não apenas nos helenos, mas nas populações de
precisamente a intenção de procurar-te para perguntar o c bárbaros que habitam o mesmo continente que nós. E
que pretendes e o que esperas, para me importunares se aquela divindade voltasse a falar e te dissesse que o
desse modo, obstinando-te em seguir-me por toda aparte. teu império deveria ficar circunscrito à Europa, não te
Em verdade, não atino com o que se passa contigo, e sendo permitido passar para a Ásia nem imiscuir-te nos
muito te agradeceria se me dissesses o que há. negócios 4e lá, tenho certeza de que não quererias viver
Sócrates - Se desejas saber, como dizes, o que se sob essa condição, j á que não te era possível encher o
passa comigo, ouve-me, como cumpre, com boa mundo todo - por assim dizer - com o ruído do teu
disposição. Vou falar como quem se dirige a quem se home e do teu poder. Estou convencido de que, com
dispõe a escutar e a não retirar-se antes do fim. exceção de Ciro e de Xerxes, ninguém mais se te afigura
Alcibíades - Está bem. Podes falar, merecedor de consideração. Que essa é a tua esperança,
e Sócrates - Toma cuidado, pois não seria de admirar tenho absoluta certeza; não se trata de conjecturas. E
que tanto me custe terminar, como começar. como estás ciente de que falo a verdade, decerto me
Alcibíades - Fala, meu caro Sócrates, que te ouvirei. d perguntarás: Muito bem, Sócrates; porém que relação
Sócrates - Vou falar, embora seja difícil a qualquer pode haver entre a explicação que me querias dar e o teu
pessoa apresentar-se em caráter de apaixonado a quem propósito de não me deixares? Ao que eu te responderia:
não se rende a nenhum dos seus admiradores. AEnHa" Ó caro filho de Clínias. e de Dinômaque, é quê sem a
assim, atrevo-me a expor meu pensamento. Se eu tivesse minha colaboração não te será possível levar a bom temfo
visto, meu caro Alcibíades, que te mostravas satisfeito todos esses projetos, tão grande é a influência que eu
com as vantagens que há momentos enumerei e que te "presumo ter sobre t i e tudo O que te diz respeito. Essa é
105 a contentarias com elas para o resto da vida, tenho certeza a razão, quero crer, de me haver a divindade impedido
de que há muito tempo j á teria arrefecido a afeição que durante tanto tempo de conversar contigo e de ter eu
te dedico. Vou revelar-te os teus verdadeiros pensamentos ficado à espera de sua permissão. E assim como pretendes
com relação a t i próprio, para que vejas como sempre demonstrar à cidade que és digno das maiores honrarias,
foste'objeto de minhas cogitações. Sou de parecer que e para de pronto alcançares poder absoluto sobre ela, eu
se algum dos deuses te dissesse: Ó Alcibíades, que também, do meu lado, espero provar-te que te soú
preferiras: continuar vivo com o que presentemente indispensável, e de tal forma indispensável que nem o
possuis, ou morrer agora mesmo, caso não te fosse possível teu tutor, nem teus parentes, nem ninguém mais se
236 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 237

encontra em condições de entregar-te em mãos o poder Ó Alcibíades, no momento em que os atenienses se


que tanto ambicionas, senão eu somente, com a ajuda reúnem para deliberar, por que motivo te apresentas para
da divindade, bem entendido. Quer parecer-me que ministrar-lhes conselhos? Não será por julgares que
enquanto eras jovem e não te achavas tão inflado por conheces melhor do que eles o assunto de que vão tratar?
essas esperanças, a divindade não me permitia conversar Que me responderias?
106 a contigo. Agora, porém, ela o consente, por estares em d Alcibíades - Decerto responderia que conheço o
condições de ouvir-me. assunto melhor do que eles.
Sócrates - Es, por consequência, bom conselheiro a
I I I - Alcibíades - Acho-te muito mais estranho respeito de assuntos do teu conhecimento?
"agora, Sócrates, depois de começares a falar, do que Alcibíades - Evidentemente.
quando me seguias sem dizer palavra, apesar de não ser Sócrates - E tudo o que conheces, não foi aprendido
pequena a estranheza que durante esse tempo me com outras pessoas ou descoberto por ti mesmo?
causavas. Quanto aos pensamentos que me atribuis e que Alcibíades - Como poderia ser de outra maneira?
aceitas, ao que parece, como matéria pacífica, de nada Sócrates - E poder-se-ia dar o caso de teres aprendido
me adiantaria protestar para convencer-te do contrário. ou encontrado alguma coisa sem que tivesses querido
Que fique assim mesmo. Admitindo-se, pois, que aprender com alguém, nem houvesses investigado por
alimento, de fato, esses projetos, de que modo, com a conta própria?
tua ajuda, conseguirei concretizá-los, e, sem ela, nada Alcibíades - De forma alguma. V
poderei fazer? Quererás explicar-me? Sócrates - E te resolverias a aprender ou a investigar
b Sócrates - Perguntas se eu posso dar-te num discurso alguma coisa que supusesses já ser do teu conhecimento?
longo a explicação pedida, como estás habituado a ouvir? Alcibíades - Nunca. ,
Não é esse o meu feitio. Todavia, penso que me será e Sócrates - E o que porventura sabes neste momento,
possível demonstrar-te a verdade do meu dito, bastando não houve tempo em que presumias ignorar?
para isso que me faças um pequeno favor. Alcibíades - Necessariamente.
Alcibíades - Estou pronto a atender-te, se não for Sócrates - Creio estar mais ou menos a par de tudo
muito difícil. o que aprendeste. Se eu omitir alguma coisa, nomeia-a.
Sócrates - Achas difícil responder a perguntas? Tanto quanto posso lembrar-me, aprendeste a ler e a
Alcibíades - Não, de fato. escrever, a tocar liraréTa lutar. Não quiseste aprender a
Sócrates - Então, responde. ^ tocar flauta. Isso é o que sabes, a menos que tenhas
Alcibíades - Interroga-me. aprendido mais alguma coisa escondido de mim, o que
c Sócrates - Vou fazê-lo, no pressuposto de alimentares me parece improvável, pois não saías de casa, nem de dia
os projetos que te atribuí. nem de noite, sem que eu o percebesse.
Alcibíades - Que seja, se assim o queres, para vermos Alcibíades - Não; só tive professores disso mesmo.
o que vais dizer.
Sócrates- Então, comecemos. Como disse, tencionas 107 a I V - Sócrates - Sendo assim, sempre que os
dentro de pouco apresentar-te aos atenienses em caráter atenienses sereunirem para discutir a respeito de alguma
de conselheiro. Suponhamos que, no instante preciso questão de ortografia, pretendes levantar-te para dar tua
de subires à tribuna, eu te detenha para perguntar-te: opinião?
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 239

Alcibíades - Não, por Zeus! Alcibíades - Sobre isso não, Sócrates.


Sócrates - Ou sobre o modo de pulsar a lira? Sócrates - Suponho que nada entendes da técnica
Alcibíades - Também não. da construção. Ou haverá outro motivo?
Sócrates - Eles não costumam, outrossim, deliberar d Alcibíades - Não; é esse mesmo.
na assembleia sobre as regras da luta? Sócrates - Então, a que negócios próprios te referes,
Alcibíades - É certo. de cuja discussão pretendes participar?
Sócrates - E n t ã o , a respeito de quê pretendes Alcibíades - Questões de guerra, Sócrates, e de paz,
aconselhá-los em suas deliberações? Não há de ser sobre ou qualquer outro negócio de estado.
construções. Sócrates-Já sei: é quando eles estiverem discutindo
Alcibíades - Não. com quem devem concluir paz, ou contra quem declarar
Sócrates - Melhor conselheiro do que tu, para esse guerra, e como levá-la a efeito?
caso, seria um arquiteto. Alcibíades - Isso mesmo.
Alcibíades - E certo. Sócrates - E que devem declará-la contra quem for
Sócrates - Nem, tampouco, quando estiverem mais conveniente?
tratando de adivinhação. Alcibíades - Sim.
Alcibíades - Não. e Sócrates - E no momento mais oportuno?
Sócrates - A esse respeito, u m adivinho leva Alcibíades - Perfeitamente.
vantagem sobre ti. Sócrates - E durante todo o tempo que lhes convier?
Alcibíades - Sem dúvida. Alcibíades - Isso mesmo.
Sócrates - Pouco importando que ele seja de grande Sócrates - Se os atenienses tivessem de decidir
ou pequena estatura, bonito ou feio, de nobre ou de vil contra quem fora preciso empenhar-se em luta, ou lutar
ascendência. só com as mãos, sem tocar no corpo, e sobre as regras da
Alcibíades - Sem dúvida. competição, quem lhes poderia dar melhores conselhos,
Sócrates - Para ser bom conselheiro, o que importa tu ou o pedótriba?
não é a riqueza, porém o saber. Alcibíades - O pedótriba, é claro.
Alcibíades - Como não? Sócrates - Saberás dizer-me em que se basearia o
Sócrates - Assim, quer seja rico, quer pobre o autor pedótriba para aconselhá-los a lutar com este ou aquele, ou
do conselho, n ã o faz diferença para os atenienses, a dissuadi-los de tal propósito, e a indicar-lhes o momento
quando se põem a deliberar a respeito da saúde pública; ^ oportuno e a maneira mais certa? Em outros termos: não
só exigem que o conselheiro seja médico. lhes diria que fora conveniente lutar contra quem lhes
Alcibíades - E com razão. ofereça maior probabilidade de vitória? Ou não?
Sócrates - Então, a respeito de que assunto poderás Alcibíades - Sim.
aconselhá-los, quando eles estiverem deliberando? 108 a Sócrates - E sempre que for melhor fazê-lo?
Alcibíades - Quando tratarem de seus próprios Alcibíades - Sim.
negócios. Sócrates - E na ocasião mais oportuna?
Sócrates - Referes-te, por exemplo, a construções Alcibíades - Perfeitamente.
navais, quando discutirem que tipo de navios é preciso Sócrates - Outro exemplo: por vezes, além de pulsar
construir? a cítara, não precisa o cantor acertar o passo ao canto?
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 241

Alcibíades - Sem dúvida. Assim como eu te indiquei o termo exato que se aplica à
Sócrates - Tudo isso no momento certo? execução, quando feita de acordo com as regras de outra
Alcibíades - Sim. arte - a ginástica - dize-me agora, por tua vez, que nome
Sócrates - E sempre que for melhor fazê-lo? tem na música o que é feito com todas as regras da arte.
Alcibíades - De acordo. Alcibíades - Creio que é músico.
Sócrates - Muito bem. Continua. E quando se
V - Sócrates - Pois bem; j á que empregas a mesma e atinge a excelência em matéria de paz e de guerra, de
expressão. Melhor, tanto com relação à luta como ao canto que modo a nomeias? Assim como nos outros casos deste
acompanhado de cítara, quero que me digas que nome o nome de músico ao que é excelente na música, e o de
dás-a esse melhor no canto? Eu, na palestra, dou-lhe o ginástico ao que sobreexcele em ginástica, procura agora
nome de ginástico. E tu, como designas o outro? designar também o melhor em questão de paz e de
Alcibíades - Não compreendo. guerra.
Sócrates Então, procura imitar-me. Eu responderia
T Alcibíades - Para ser franco, não sei.
que para mim o melhor é o absolutamente correto, sendo Sócrates - Ora, fora vergonhoso, se estivesses
correto tudo o que é feito de acordo com a arte. Aceitas falando com alguma pessoa e dando conselhos a respeito
isso? de alimentos, e dissesses que tal alimento era melhor do
Alcibíades - Aceito. que outro, em tal tempo ou em tal quantidade, e essa
Sócrates - Não é a ginástica uma arte? pessoa te perguntasse: Que entendes por melhor
Alcibíades - Como não? alimento, Alcibíades? não lhe responderias que era o mais
Sócrates - Digo, portanto, que em matéria de luta o sadio, muito embora não te apresentasses como médico?
melhor se denomina ginástico. No entanto, quando te formulam uma pergunta sobre
Alcibíades - Foi o que disseste. assunto que declaras conhecer e a respeito do que te
Sócrates - E não estará certo? 109 a apresentaste para falar como entendido, não te sentirias
Alcibíades - Parece-me que sim. envergonhado de n ã o saberes responder, ao te
Sócrates - Agora é tua a vez; precisas iniciar-te na formularem essa pergunta? O u n ã o te parece
dialética. Começo por perguntar-te que nome dás à arte vergonhoso?
que compreende o canto certo, o toque de cítara e o ritmo Alcibíades - Muito.
dos passos? Em conjunto, como se denomina? Ainda não Sócrates - Então reflete um pouco, e procura
saberás dizê-lo? ^ explicar em que consiste o melhor a respeito de paz,
Alcibíades - Ainda não. quando for preciso ser firmada, ou com relação à guerra
Sócrates - Tentemos por outro modo. Quais são as levada a cabo contra o adversário certo.
deusas que presidem a essa arte? Alcibíades - Por mais que reflita, não atino com a
Alcibíades - Estás pensando nas Musas, Sócrates? resposta.
Sócrates - Justamente. Como se chama a arte que Sócrates- Ora, quando estamos em guerra, não sabes
delas tira o nome? b as queixas que alegamos reciprocamente para justificá-la,
Alcibíades - Quero crer que te referes à .música. | e de que expressões nos valemos para esse fim?
Sócrates - E isso mesmo. Agora dize-me que nome ! Alcibíades - Sei! Que fomos enganados, ou nos
se dá ao que é excelente em relação à arte da música. ; fizeram violência, ou que nos tomaram algo.
242 Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 243

Sócrates - Continua. E como procedemos nessas


ocasiões? Procura a expressão que possa aplicar-se a todos Alcibíades - Mas se nunca houve tal professor! Não
os casos em particular. admites que por outros meios eu possa ter aprendido a
Alcibíades - Queres dizer, Sócrates, que em cada conhecer o justo e o injusto?
caso procedemos justa ou injustamente? Sócrates -< Sim, se o descobriste por t i mesmo.
Sócrates - E isso mesmo. Alcibíades - E achas que eu nunca poderia
Alcibíades - Mas a diferença é enorme! descobri-lo?
Sócrates - E então? Contra que a d v e r s á r i o s Sócrates - Sem dúvida; bastaria procurar.
aconselharias os atenienses a marchar para a guerra: Alcibíades - E não admites que o tenha feito?
contra os que procederam injustamente com eles, ou Sócrates - Sim, no caso de pensares que não o
contra os que obraram com justiça? conhecias.
c Alcibíades - Pergunta difícil, essa, de responder, Alcibíades - E não houve época em que eu pensava
Sócrates, pois ainda mesmo que alguém se dispusesse a dessa maneira?
atacar os que procederam com justiça, jamais o Sócrates - Muito bem. Poderás indicar-me esse
confessaria. 110 a tempo em que pensavas não conhecer a natureza do justo
Sócrates - Não seria legítima sua conduta, ao que e do injusto? Vejamos: no ano passado procuraste
parece. conhecê-lo, por imaginares que ainda o ignoravas? Ou
Alcibíades - Não, decerto; nem honesta, quero crer. pensavas j á conhecê-lo? Dize a verdade, para que não
Sócrates - Assim, tomarias a justiça como base de venhamos a falar em vão.
teus conselhos? Alcibíades - Bem; pensava sabê-lo.
Alcibíades - Necessariamente. Sócrates - E há três anos, e há quatro, ou há'cinco
Sócrates - Sendo assim, esse melhor que te pedi me anos, tua situação não era a mesma?
definisses, quando, se vai ou não se vai para a guerra, Alcibíades - Perfeitamente.
contra quem deve ser ou não deve ser declarada, e qual Sócrates - Antes desse tempo, ainda eras criança,
o momento mais oportuno de iniciá-la ou não, vem a ser não é verdade?
simplesmente o justo, não é verdade? Alcibíades - Sim.
Alcibíades - Evidentemente. Sócrates - Porém tenho certeza de que nessa época
imaginavas saber.
d V I - Sócrates - Mas, então, meu caro Alcibíades, Alcibíades - Certeza, como?
como não percebeste que ignoravas isso, ou dar-se-á o b Sócrates - Muitas vezes, no tempo de menino, em
caso de haveres frequentado, sem o saberes, algum casa do professor ou alhures, quando jogavas dados com
professor que te ensinou a distinguir entre o justo e o teus colegas ou te entregavas a qualquer outro
injusto? Quem é ele? Dize-me quem seja, e apresenta-me divertimento, não revelavas nenhuma indecisão com
a ele, para que eu também me aproveite de suas lições. respeito à natureza do justo e do injusto, mas em voz
Alcibíades - Estás zombando, Sócrates. alta e corajosamente chamavas fosse qual fosse dos teus
Sócrates - Não, pelo deus amigo de nós dois, cujo companheiros de mau e injusto e o acusavas de estar
e nome eu não invocaria em vão; se esse professor existe, roubando. Não é verdade?
dize-me como se chama. ' v
Alcibíades - E que deveria fazer, Sócrates, quando
me roubavam no jogo?
O Primeiro Alcibíades 245
Platão - Diálogos

Alcibíades - Sim.
Sócrates - Se nesse tempo ainda ignoravas se era
Sócrates - Se não é capaz de ensinar o mais fácil,
justo ou injusto o que te faziam, como perguntas o que
como poderá fazê-lo com o mais difícil?
deverias fazer?
Alcibíades - Penso que pode; o vulgo tem
Alcibíades - Por Zeus, n ã o o ignorava; sabia
capacidade para ensinar coisas mais difíceis do que esse
perfeitamente que estavam praticando comigo uma
jogo.
injustiça.
Sócrates - Que coisas?
Sócrates - Pelo que se vê, és de parecer que desde
111 a Alcibíades - Ora, aprendi com eles a falar grego,
criança conheces a natureza do justo e do injusto.
pois o certo é que não poderei indicar meu professor
Alcibíades - Sim; conhecia, realmente.
nessa matéria, se não for, justamente, o que te parece tão
Sócrates - E em que época a descobriste? Não, pouco recomendável.
decerto, no tempo em que pensavas conhecê-la. Sócrates - Sim, caro amigo; são ótimos professores
Alcibíades - Não, sem dúvida. de grego, dignos, nesse ponto, dos maiores encómios.
Sócrates - Quando, então, presumias ignorá-la?
Alcibíades - Por quê?
Pensa bem; não podes dizer em qúe tempo foi isso?
Sócrates - Por serem dotados das qualidades
Alcibíades - Com efeito, Sócrates, por Zeus! Não
indispensáveis aos bons professores.
sei o que dizer.
Alcibíades - Que queres dizer com isso?
Sócrates - Então não aprendeste tal coisa por a teres
Sócrates - Não sabes que a condição essencial para
descoberto.
ensinar alguma coisa é conhecê-la? Ou não?
Alcibíades - E o que parece.
b Alcibíades - Perfeitamente.
Sócrates - Mas há pouco disseste que não conhecias
Sócrates - E que os que conhecem essa coisa devem
isso por haver aprendido. Ora, se não o descobriste por
estar sempre de acordo, sem nunca divergirem de
ti mesmo, nem aprendeste com ninguém, de que modo
opinião?
e de onde te veio tal conhecimento?
Alcibíades - Sim.
Sócrates - Dirias que eles conhecem os assuntos em
V I I - Alcibíades - Decerto não respondi direito,
que estão em desacordo?
quando disse que o havia descoberto.
Alcibíades - De forma alguma.
Sócrates - Então, como deveria ter respondido?
Sócrates - E então? Acreditas que os do vulgo
Alcibíades - Creio que aprendi com todo o mundo.
venham a ficar em desacordo a respeito do que seja
Sócrates - Voltamos, assim, ao ponto de partida.
pausou pedra? Qualquer pessoa a quem te dirigires,
Com quem aprendeste? Dize-me. ' '
não te daria sempre uma única resposta e não correria
Alcibíades - Com todo o mundo.
c para o mesmo objeto, se se tratasse de apanhar um
Sócrates- Não te acolhes a professores recomendáveis,
pau ou uma pedra? E assim com tudo o mais, o que
com te refugiares entre o vulgo.
eu suspeito ser mais ou menos o que entendes por
Alcibíades - Como assim? O vulgo não é capaz de
falar grego..Ou não?
ensinar nada?
Alcibíades - E certo.
Sócrates - Nem sequer a jogar gamão, que é muito
Sócrates - Ora, como dizíamos, não é verdade que
menos difícil de aprender do que a justiça. Não pensas
nesse ponto todos estão de acordo entre si e cada um
desse modo?
246 Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 247

consigo mesmo, e que do mesmo modo não discrepam


Alcibíades - Sem dúvida!
publicamente e empregam sempre as mesmas expressões?
Sócrates - Por outro lado, quero crer que nunca
Alcibíades - Com efeito,
viste nem nunca ouviste dizer que os homens se
d Sócrates - É de presumir, portanto, que todos sejam
desaviessem a respeito do que é são ou do que é
excelentes professores nessa matéria.
Alcibíades - É certo. doentio,' a ponto de chegarem às vias de fato e de se
matarem?
Sócrates - Sendo assim, no caso de querermos
deixar alguém em condições de falar corretamente a b Alcibíades - Nunca.
língua grega, faríamos bem em encaminhá-lo para a Sócrates - Mas com relação a disputas sobre o justo
escola das multidões? e o injusto, embora talvez nunca tivesses presenceado
Alcibíades - Perfeitamente. nenhuma, estou certo de que j á ouviste referências a
muitos casos, principalmente em Homero. Conheces a
V I I I - Sócrates - Porém se não quiséssemos saber Ilíada e a Odisseia.
apenas o que é homem e o que é cavalo, mas que homens Alcibíades - Seguramente, Sócrates.
ou que cavalos são bons ou maus corredores, os da maioria Sócrates - O argumento desses poemas não é o
ainda seriam os mais indicados para no-lo ensinar? desacordo de sentimento sobre o justo e o injusto?
Alcibíades - De forma alguma. Alcibíades - É.
Sócrates - A melhor prova de que eles desconhecem ' Sócrates - Foi esse desacordo a causa das batalhas e
a o assunto e de que não são professores competentes nessa da morte de acaios e de troianos, bem como dos
matéria é nunca chegarem a um acordo entre eles c pretendentes de Penélope, na Odisseia.
mesmos. Alcibíades - É certo.
Alcibíades - Tens razão. Sócrates - Quero crer, também, que os atenienses,
Sócrates - E então? Se quiséssemos saber, não apenas lacedemônios e beócios, que morreram em Tânagra, bem
o que são os homens, porém que homens são sadios ou como posteriormente em Coronéia, onde também teu
doentes, estaria ainda a maioria em condições de no-lo pai Clínias veio a falecer, não foi outra a causa de tantas
ensinar? mortes e batalhas senão a desavença a respeito do justo
Alcibíades - Não, de fato. e do injusto, não é verdade?
Sócrates - E a prova de que eles são maus professores d Alcibíades - E muito certo.
nessa matéria, não a terias no fato de vê-los sempre em Sócrates - No entanto, apelas para esses mesmos
desacordo?
professoras, cuja i g n o r â n c i a és o p r i m e i r o a
Alcibíades - Sem dúvida. reconhecer.
Sócrates - E agora? A respeito de homens ou de
Alcibíades - É possível.
112 a negócios justos ou injustos, és de parecer que os da
Sócrates - Como poderemos convir, então, que sabes
multidão estão de acordo uns com os outros, ou cada
um consigo mesmo? o que seja a natureza da justiça e da injustiça, se aberras
Alcibíades - Pior ainda, Sócrates, por Zeus! tanto nas tuas respostas, por ser evidente que nem a
Sócrates - Não é sobre isso que se revela maior entre aprendeste com alguém, nem a encontraste por esforço
eles o desacordo? próprio?
Alcibíades - Pelo que dizes, não é possível.
248 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 249

e I X - Sócrates - Não percebes, Alcibíades, como te Sócrates - Quem se manifestou, portanto, sobre o
exprimes com pouca precisão? que ficou dito?
Alcibíades - A respeito de quê? Alcibíades - Do que admitimos, Sócrates, sou
Sócrates - De pensares que eu disse tal coisa. forçado a concluir que fui eu.
Alcibíades - Como assim? Não foste tu quem disseste Sócrates - E não ficou dito, também, que Alcibíades,
que eu nada sei a respeito do justo e do injusto? o belo, filho de Clínias, ignorando a natureza do justo e
Sócrates - Eu, não. do injusto, mas presumindo conhecê-la, pretendia
Alcibíades - Então fui eu? apresentar-se à assembleia para dar conselhos aos
Sócrates - Sem dúvida. atenienses a respeito de questões de que ele nada
Alcibíades - De que modo? entendia?
Sócrates - E o seguinte: suponhamos que eu te c Alcibíades - Parece.
perguntasse qual dos dois números é maior: um ou dois. Sócrates - Aplica-se ao nosso caso, Alcibíades, aquilo
Não responderias que dois é o maior? de Eurípides: ouviste isso de ti mesmo, não de mim; não
Alcibíades - Sem dúvida. fui eu que o disse, porém tu, que me acusas sem razão. O
Sócrates - Maior, quanto? que disseste é muito certo. E verdadeira loucura, meu
Alcibíades - Uma unidade. caro, levar avante o teu projeto de pretender ensinar aos
Sócrates - Qual de nós dois é o que diz que dois é outros o que nem sabes nem te deste ao trabalho de
uma unidade maior do que um? aprender.
Alcibíades - Eu.
113 a Sócrates - Logo, eu fui o que perguntei, e tu, o que d X - Alcibíades - Penso, Sócrates, que muito
respondeste? raramente os atenienses e os demais helenos discorrem
Alcibíades - Sim. em suas assembleias sobre o que seja mais justo ou mais
Sócrates - Sobre esse assunto, portanto, quem é que injusto. Para eles todos, trata-se de uma questão evidente
se manifesta: eu que pergunto, ou tu que respondes? por si mesma. Por isso, deixam-na de lado e consideram
Alcibíades - Eu. apenas as resoluções de que possam auferir maiores
Sócrates - E se eu te pedisse que me dissesses as vantagens. Segundo o meu modo de pensar, não é a
letras da palavra Sócrates, quem se manifestaria, eu ou tu? mesma coisa o justo e o vantajoso; muitos homens tiram
Alcibíades - Eu. grande proveito de injustiças por eles mesmos praticadas,
Sócrates - Falemos agora em tese: quando se enquanto outros, é o que penso, nada lucraram com
estabelece uma troca de perguntas e respostas, quem é terem sido justos.
que se manifesta, quem pergunta ou quem responde? e Sócrates - E então? Admitindo-se que o justo e o
Alcibíades - Parece-me, Sócrates, que é quem vantajoso sejam diferentes, terás a pretensão de saber o
responde. que é vantajoso para os homens, e a razão de o ser?
b Sócrates - Ora, em toda a nossa conversação Alcibíades - Por que não, Sócrates? Salvo se me
anterior, não era eu o único a perguntar? perguntares outra vez com quem o aprendi ou de que
Alcibíades - Era. modo o encontrei por m i m mesmo.
Sócrates - E tu eras o que respondias? Sócrates - Vês como te comportas? Se cometeres
Alcibíades - Perfeitamente. algum equívoco que possa ser refutado pelos mesmos
O Primeiro Alcibíades 251
250 Platão - Diálogos

Alcibíades - É evidente.
argumentos de que nos servimos antes, insistes, apesar
Sócrates - Logo, se fores capaz de convencer muitas
disso, em querer ouvir nova argumentação, como se os
pessoas reunidas, poderás, do mesmo modo, convencer
primeiros argumentos não passassem de vestes safadas,
uma só.
que já não poderias usar. Forçoso será que te apresentem
Alcibíades - Creio que sim.
101 a argumentos puros e imaculados. Não obstante, vou deixar
Sócrates - Se se tratar, é claro, de assunto do teu
de lado todo esse preâmbulo, para perguntar-te novamente
conhecimento.
onde aprendeste o que sabes sobre o útil, quem foi o teu
Alcibíades - E certo.
professor, e tudo o mais de há pouco, apresentado agora
Sócrates - A diferença, portanto, entre o orador que
de uma só vez. Mas, é evidente que vais voltar à situação
-v fala perante uma assembleia e o que discorre numa
anterior, sem poderes demonstrar que sabes isso por o
d conversa como a nossa, não consiste apenas em persuadir
teres descoberto por ti mesmo ou aprendido com alguém.
o primeiro muitas pessoas ao mesmo tempo, e o segundo,
Como, porém, te revelaste de paladar muito delicado, para
uma só, isoladamente?
b não teres necessidade de provar duas vezes os mesmos
Alcibíades - Parece que sim.
argumentos, desisto de procurar saber se conheces ou não
Sócrates - Muito bem; e já que se tornou evidente
conheces o que é útil aos atenienses, e apenas te
que o orador capaz de convencer muitas pessoas é também
formulo uma pergunta: o útil e o justo são idênticos
capaz de convencer uma só, exercita-te comigo e procura
ou distintos? Por que não demonstras o teu ponto de
demonstrar-me que nem sempre o justo é vantajoso.
vista interrogando-me, como eu fiz contigo, ou, se o
Alcibíades - Es violento, Sócrates.
preferires, desenvolvendo tu mesmo teu pensamento?
Sócrates - Pois só por violência vou provar-te
Alcibíades - Não sei, Sócrates, se tenho capacidade
precisamente o contrário daquilo que não quiseste
para apresentar em termos exatos o problema.
demonstrar-me.
Sócrates - Ora, meu caro; faze de conta que eu sou
Alcibíades - Então fala.
a assembleia e o povo. Forçosamente terás de convencer
Sócrates - Basta responderes ao que te perguntar,
na assembleia cada indivíduo isoladamente considerado,
e Alcibíades - Não; fala sozinho.
não é assim?
Sócrates - Como assim? Não admites que te possas
Alcibíades - Justamente.
deixar convencer por alguém?
c Sócrates - Não é possível a qualquer pessoa converter
Alcibíades - Quantas vezes for preciso.
ao seu modo de pensar ou um indivíduo apenas ou uma
Sócrates - E para ficares convencido, não é de
reunião de muitos indivíduos? Não é isso que se dá com
mister que tu mesmo declares que as coisas se passam
o professor de ginástica, que tanto ensina um aluno,
como eu disse?
como muitos?
Alcibíades - Penso que sim.
Alcibíades - Sim.
Sócrates - Então responde. Se não vieres a ouvir de
Sócrates - E a respeito de números, uma só pessoa
ti mesmo que o justo é vantajoso, nunca mais acredites
não poderá, do mesmo modo, convencer- um ouvinte
em ninguém.
apenas, ou muitos ouvintes?
Alcibíades - Não creio; mas vou responder ao que
Alcibíades - E isso mesmo.
me perguntares, por n ã o ver em que possa isso
Sócrates - Desde que essa pessoa, naturalmente, prejudicar-me.
conheça o assunto, isto é, bastando que seja matemático?
252 Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 253

115 a X I - Sócrates - É s bom adivinho. Então dize-me:


belo o auxílio prestado. Agora, procura saber se a coragem
segundo o teu modo de pensar, entre as coisas justas
algumas são vantajosas e outras não? é boa ou má. Reflete sobre isso. Que escolherias,, o bem
Alcibíades - Sim. ou o mal?
Sócrates - E então? Não haverá entre elas algumas Alcibíades - O bem.
d Sócrates - E, sem dúvida, o maior bem possível?
bonitas e outras que o não sejam?
Alcibíades - Que queres dizer com isso? Alcibíades - Sim.
Sócrates - Pergunto seja viste alguém cometer uma Sócrates - Do qual por modo nenhum desejarias
ação feia, porém justa. ver-te privado?
Alcibíades - Nunca. Alcibíades - Evidentemente.
Sócrates - Nesse caso, todas as ações justas são Sócrates - E o que me dizes da coragem? Por que
belas? preço consentirias em ficar dela privado?
Alcibíades - São. Alcibíades - Preferira não viver a ser cobarde.
Sócrates - E com relação às coisas belas, serão todas Sócrates - A teus olhos, portanto, a cobardia é o
boas, ou algumas o serão, com exclusão de outras? maior dos males.
Alcibíades - A meu ver, Sócrates, algumas coisas Alcibíades - É o que eu penso.
belas são más. Sócrates - Igual à morte, ao que parece.
Sócrates - E há coisas feias que sejam boas? Alcibíades - Perfeitamente.
b Alcibíades - Há. Sócrates - E o extremo oposto da morte e da
Sócrates - Que queres dizer com isso? cobardia, não será a vida e a coragem?
Exemplificando, não será o caso dos soldados na guerra, Alcibíades - Sim.
que vêm a morrer por ferimentos recebidos, quando saem e Sócrates - Disto, então, desejarias para ti o máximo,
em socorro de algum parente ou companheiro, enquanto e de seus contrários, o mínimo?
outros, que tinham o dever de fazer o mesmo, porém Alcibíades - Perfeitamente.
não o fazem, retiram-se incólumes? Sócrates - E isso, por considerares melhores aqueles,
Alcibíades - Perfeitamente. e estes piores?
Sócrates - Por outro lado, consideras má essa mesma Alcibíades - De acordo.
ação, por implicar morte e ferimentos, não é? Sócrates - Entre as melhores coisas, portanto,
Alcibíades - Sim. incluis a coragem, e, entre as piores, a morte?
c - Sócrates - Mas uma coisa é a coragem e outra, a Alcibíades - É o que eu penso.
morte, não é verdade? Sócrates - Assim, qualificas de bela a ação de
Alcibíades - Sem' dúvida. socorrer os amigos na guerra, enquanto ato de coragem.
Sócrates- Sendo assim, socorrer os amigos não pode Alcibíades - Penso que sim.
ser belo e feio ao mesmo tempo. Sócrates - Porém má, por causa da morte que se lhe
Alcibíades - Não, evidentemente. segue?
Sócrates - Considera agora se o que deixa bela essa Alcibíades - Sim.
ação, também não a deixa boa, como no caso anterior. Sócrates - Essa é a maneira certa de qualificar cada
Foste o primeiro a conceder que, como ato corajoso, era uma de nossas ações: à que produz mal darás o nome de má;
H6a porém terás de considerar boa a que produz algum bem.
/
O Primeiro Alcibíades 255
Platão - Diálogos

Alcibíades - É.
Alcibíades - É também o que eu penso.
Sócrates - Ainda te recordas do que concluímos a
Sócrates - E enquanto boa não será bela, e enquanto
respeito do justo?
má não será feia?
Alcibíades - Se bem me lembro, foi que quem pratica
Alcibíades - Sem dúvida.
uma ação justa, necessariamente realiza um ato belo.
Sócrates- Sendo assim, quando dizes que socorrer
Sócrates - Assim, as belas ações são boas?
os amigos na guerra é uma ação bela, porém má, é o
Alcibíades - São.
mesmo que dizeres que se trata de uma ação boa,
d Sócrates - E o que é bom é vantajoso?
porém má.
Alcibíades - E o que parece.
Alcibíades - Acho que tens razão, Sócrates.
Sócrates - E então? Quem o declara não és tu, e
Sócrates - Logo, nada belo, enquanto belo, é mau,
não sou eu o que pergunto?
nem nada feio, enquanto feio, é bom.
Alcibíades - Sou eu, realmente.
Alcibíades - E o que parece.
Sócrates - Logo, se alguém se levantasse para
aconselhar os atenienses ou os peparétios, por pretender
X I I - Sócrates- Considera de igual modo também
conhecer o que é justo e o que é injusto, e dissesse que
o seguinte: quem executa uma bela ação n ã o se
por vezes as coisas justas são feias, não te ririas dessa
comporta bem?
e pessoa, já que tu mesmo afirmas que o justo e o útil são
Alcibíades - Sim.
idênticos?
Sócrates - E os que se comportam bem, não são
Alcibíades - Pelos deuses, Sócrates, j á não sei o que
felizes?
falo; encontro-me^numa situação esquisita; quando me
Alcibíades - Como não?
interrogas, orasou de uma opinião, ora de outra.
Sócrates - E n ã o serão felizes por p o s s u í r e m
Sócrates - E ignoras, amigo, de onde te vem essa
algum bem?
perturbação?
Alcibíades - Perfeitamente.
Alcibíades - Completamente.
Sócrates - E só a l c a n ç a m esse bem por seu
Sócrates - Acreditas que se alguém te perguntasse
comportamento belo e bom?
se tens dois olhos ou três, duas mãos ou quatro, ou
Alcibíades - Sim.
qualquer coisa do mesmo teor, responderias ora de
Sócrates - Logo, comportar-se bem é bom.
um jeito, ora de outro, ou todas as vezes da mesma
Alcibíades - Sem dúvida.
forma?
Sócrates - E o bom comportamento será belo?
117 a Alcibíades - Conquanto já me encontre desconfiado
Alcibíades - É.
de mim mesmo, creio que daria sempre resposta idêntica.
Sócrates - Assim, mais uma vez o belo e o bom se
Sócrates - E a causa disso? Não é por conheceres o
nos revelam como idênticos.
assunto?
Alcibíades - É o que parece.
Alcibíades - Creio que sim.
Sócrates - Logo, se é válido o nosso raciocínio,
Sócrates - E evidente, portanto, que sempre que
sempre que acharmos que uma coisa é bela, teremos
respondes contraditoriamente, sem o quereres, é por
também de considerá-la boa.
desconheceres o assunto em debate.
Alcibíades - Forçosamente.
Alcibíades - Decerto.
Sócrates - E então? O que é bom não é vantajoso?
256 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 257

Sócrates - E não reconheces que varias em tuas Alcibíades - Sem dúvida.


respostas a respeito do justo e do injusto, do belo e do Sócrates - Percebes, portanto, que os erros na vida
feio, do ruim e do bom, do vantajoso e do desvantajoso? prática decorrem dessa modalidade de ignorância, que
Não é evidente que isso só acontece por ignorares o consiste na presunção de sabermos o que não sabemos?
assunto? Alcibíades - Que queres dizer com isso?
b Alcibíades - De acordo. Sócrates - Quando nos dispomos a fazer
determinada coisa, não é por estarmos certos de saber o
X I I I - Sócrates - E não será isso um caso geral? Se que fazemos?
alguém ignora determinado assunto, forçosamente Alcibíades - Sim.
vacilará na sua apreciação. e Sócrates - E, ao contrário: não recorre a outra pessoa
Alcibíades - É muito certo. quem tem consciência da própria ignorância?
Sócrates - E então? Sabes de que modo se sobe Alcibíades - Como não?
ao céu? Sócrates - Sendo assim, os ignorantes desse tipo
Alcibíades - Não, por Zeus! atravessam' a vida sem cometer erros, porque deixam ao
Sócrates - E revelas alguma indecisão acerca desse cuidado dos outros os assuntos que eles ignoram.
assunto? Alcibíades - É certo.
Alcibíades - Nenhuma. Sócrates - Se não são, portanto, nem os que sabem,
Sócrates - E a razão disso, conhecê-la, ou será preciso nem os ignorantes que sabem que não sabem, restam
que eu a revele? 118 a apenas os que, não sabendo, presumem saber.
Alcibíades - Dize qual seja. Alcibíades - São esses, realmente,
Sócrates - E que, amigo, ignorando o assunto, como •v Sócrates - E não é essa modalidade de ignorância a
ignoras, não presumes conhecê-lo. causa de todos os males e a mais repreensível das
Alcibíades - Que queres dizer com isso? ignorâncias?
c Sócrates - Raciocina comigo. Revelas-te perplexo Alcibíades - Sim.
naquilo que tens a certeza de ignorar? Por exemplo: sabes Sócrates - E quanto mais importante for o assunto,
muito bem que ignoras como se preparam os alimentos. mais nociva e vergonhosa será ela.
Alcibíades - Perfeitamente. Alcibíades - Muito!
Sócrates - E como te comportas a esse respeito? Pões-te Sócrates - E, agora, conheces assunto mais
a refletir sobre a maneira do preparo e te mostras importante do que o relativo ao justo, ao belo, ao bom e
vacilante, ou recorres a alguém que entenda do assunto? ao útil?
Alcibíades - Assim farei. Alcibíades - Nenhum.
Sócrates - E se estivesses viajando, ficarias atrapalhado Sócrates - E não é precisamente a respeito deles,
d por não saberes se era preciso virar o timão do leme para conforme o declaraste, que te mostras indeciso?
dentro ou para fora, ou, de preferência, recorrerias ao Alcibíades - Sim.
piloto e te deixarias ficar tranquilo? Sócrates - E se erras a respeito deles, não é evidente,
Alcibíades - Recorreria ao piloto. do que ficou dito, que não comente desconheces os
Sócrates - Logo, não vacilas a respeito do que 1
b assuntos mais importantes, como, desconhecendo-os,
ignoras, sempre que tens consciência de que o ignoras?' presumes conhecê-los?
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 259

Alcibíades - É o que parece. Sócrates - Pois bem: poderás apontar-me quem


Sócrates - A h , meu caro Alcibíades, de que doença Péricles j á deixou sábio, a começar pelos seus próprios
estás sofrendo! Vacilo em qualificá-la; todavia, j á que filhos?
estamos sós, é preciso que o diga. Coabitas, meu caro, e Alcibíades - Como, Sócrates! Se os dois filhos de
com a pior espécie de ignorância, o que tua conversação Péricles são deficientes!
te demonstrou, ou melhor, tu a ti mesmo. Por isso, Sócrates - Ou então o teu irmão Clínias?
atiras-te à política antes de te haveres instruído. Aliás, Alcibíades - Por que mencionares Clínias, esse
não és o único a sofrer de semelhante mal, mas quase
louco?
todos os que se ocupam com os negócios da República,
Sócrates - Bem; uma vez que Clínias é louco e os
com exceção de uns poucos e, naturalmente, do teu
filhos de Péricles, deficientes, por que motivo se descuida
tutor, Péricles.
ele de tua educação, sendo tu tão bem-dotado como és?
Alcibíades - Decerto é minha a culpa, por não
X I V - Alcibíades - Dizem, Sócrates, que ele não prestar atenção ao que ele diz.
aprendeu o que sabe por esforço próprio, porém no trato 119 a Sócrates - Então cita-me alguém entre os demais
e conversação com muitos sábios, entre os quais atenienses e estrangeiros, ou seja escravo ou homem livre,
Pitóclides e Anaxágoras; e agora mesmo, na idade a que se tenha tornado mais sábio com a convivência de
que chegou, mantém relações com Damão, para o Péricles, como eu poderia citar-te Pitodoro, filho de
mesmo fim. Isóloco, e Cálias, filho de C a l í a d e s , que muito
Sócrates - E então? J á viste ser alguém sábio em aproveitaram no convívio com Zenão e se tornaram varões
qualquer matéria e incapaz de transmitir a outrem o ( sábios e preclarosj para o que pagou cada um a Zenão
conhecimento de sua especialidade? Por exemplo: quem cem minas.
te ensinou a ler, não somente era sábio nessa matéria, Alcibíades - Por Zeus, não poderei fazê-lo.
como te deixou sábio nisso, a ti e a muitas pessoas mais Sócrates - Está bem. E quais são os teus planos a
que lhe aprouvesse ensinar, não é verdade? teu próprio resp.eito? Pretende^' continuar corno-'estás,
Alcibíades - Sim. ouaplicar-te a alguma coisa?
Sócrates - E tu, instruído por ele, és capaz, por tua
vez, de ensinar outras pessoas? b X V - Alcibíades - Isso é assunto para deliberarmos
Alcibíades - Perfeitamente. juntos, Sócrates. Aliás, compreendo o que dizes e
declaro-me de pleno acordo contigo. Nossos homens
Sócrates - O mesmo se dá com os professores de
públicos, com pouquíssimas exceções, se me afiguram
cítara e de ginástica?
de todo incompetentes.
Alcibíades - Sem dúvida.
Sócrates - E daí?
Sócrates - A melhor prova, portanto, que pode
Alcibíades -Se fossem cultos, os que se propusessem
alguém dar de que possui determinado conhecimento,
medir-se com eles teriam de instruir-se e exercitar-se como
é.ser capaz de transmitir a outrem esse mesmo
se tivessem de haver-se com atletas; como, porém, se
conhecimento.
c dedicam à política sem nenhum preparo prévio, por que
Alcibíades - E também o que eu penso. se exercitarem os outros e se cansarem em aprender?
260 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 261

Eu, de mim, sei perfeitamente que os excedo dê muito X V I - Sócrates - Logo, se formas o projeto de
em dotes naturais. tornar-te chefe da nossa gente, deves admitir como certo
Sócrates - Que proposição avançaste, meu caro! Não que terás de disputar o primado contra o Rei dos
. vai bem isso com o teu físico e demais qualidades. lacedemônios e o dos persas.
Alcibíades - Onde está o exagero, Sócrates, e por Alcibíades - É possível que tenhas razão.
que dizes isso? Sócrates - Não, hão, amigo! Enganei-me! E para
Mídias que deves olhar, o criador de codornas, e para
Sócrates - Sinto-o por ti e pela afeição que te dedico.
b outros que tais, que se abalançam a tratar dos negócios
Alcibíades - E a razão disso? >
da cidade tendo ainda na alma, como diriam as mulheres,
Sócrates - Por imaginares que a competição que tens
o corte de cabelo dos escravos, de tão incultos que são,
em mira diz respeito à gente daqui.
até mesmo no hábito externo, e que com o seu linguajar
Alcibíades - E a quem mais dirá respeito? bárbaro não vieram governar o povo, porém adulá-lo. E
d Sócrates - Isso é pergunta que possa fazer quem se para esses, digo, que deves olhar, sem te preocupares com
considerar magnânimo? c o modo de aprender o que é preciso ficares conhecendo
Alcibíades - Queres dizer que não é com eles que no momento em que te encontras na iminência de
eu terei de haver-me? v
principiar uma luta séria, e sem praticares o que fora de
Sócrates - Se te dispusesses a governar uma necessidade praticar antes de te iniciares nos negócios
trirreme prestes a entrar em combate, contentar-te-ias públicos.
com ser o mais hábil piloto da tripulação? Ou, de Alcibíades - Acho, Sócrates, que tens razão nesse
preferência, aceitando como natural essa superioridade, ponto, mas também sou de parecer que tanto os generais
não te compararias com os teus verdadeiros adversários, lacedemônios como o Rei dos persas em nada diferem
e não, como agora fazes, con) os companheiros de dos demais.
e campanha? A estes a tal ponto deves avantajar-te, que . Sócrates - Reflete mais de espaço, meu caro, no juízo
nem lhes ocorra a ideia de rivalizarem contigo; ao que acabas de emitir.
contrário, tratados como inferiores, lutarão ao teu lado Alcibíades - Sob que aspecto?
contra os inimigos. É o que farias, se de fato pretendes Sócrates - Em primeiro lugar, sobre se não virias a
realizar algo belo e, sobretudo, digno de t i e da cidade. d tomar mais cuidado contigo mesmo, no caso de teres
Alcibíades - E isso, realmente, o que pretendo fazer. medo deles e de os considerares adversários temíveis,
Sócrates - E considerarás suficiente seres superior do que se pensasses o contrário?
aos nossos soldados, sem lançares as vistas para os Alcibíades - É evidente que procederia dessa
comandantes dos inimigos, com o intuito de sobrepujá-los maneira, se me arreceasse deles.
em toda a linha, estudando-os e tomando tuas medidas Sócrates - E achas que esses cuidados te prejudicariam
em relação a eles? em alguma coisa? ^
120 a Alcibíades - A que inimigos te referes, Sócrates? Alcibíades - De forma alguma; ganharia imensamente
Sócrates - Ignoras que nossa cidade está em comisso.
constante guerra com os l a c e d e m ô n i o s e com o Sócrates - Sendo assim, tal modo de pensar te
Grande Rei? acarreta pelo menos esse prejuízo. .
Alcibíades - E certo o que dizes. Alcibíades - Tens razão.
262 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 263

Sócrates - Em segundo lugar, tudo faz crer que à raça dos Heráclidas? E tão grande, nesse sentido, é a
semelhante juízo não procede. superioridade do Rei dos persas, que nem se concebe a
Alcibíades - Como assim? possibilidade de suspeitar alguém que algum monarca
Sócrates - Em que raças há maior probabilidade de possa ser filho de outro rei. Daí ser a melhor guarda da
e encontrarmos as melhores naturezas, nas mais nobres rainha o próprio medo que ela inspira. Quando nasce o
ou nas inferiores? primogénito, herdeiro presuntivo da coroa, logo é
Alcibíades - Nas mais nobres, evidentemente. festejado o acontecimento por todo o povo e os próprios
Sócrates - E não é certo, também, que as boas governantes; daí por diante, todos os anos, no dia do
naturezas, quando bem cultivadas, chegam a alcançar a aniversário do príncipe, a Ásia inteira comemora a
perfeição na virtude? d efeméride com festejos e sacrifícios. Ao passo que quando
Alcibíades - Forçosamente. eu e tu nascemos, Alcibíades, nem mesmo os vizinhos,
' como diz o poeta cómico, o percebem. Desde o início,
X V I I - Sócrates - E s t a b e l e ç a m o s , então, u m não fica o príncipe real sob os cuidados de alguma ama
confronto entre eles e nós, começando por perguntar se sem préstimo, porém dos melhores eunucos do palácio,
os lacedemônios e o rei dos persas parecem ser de raça que tomam conta do recém-nascido e se esforçam por
inferior à nossa. Não é certo sabermos que aqueles deixá-lo fisicamente o mais belo possível, endireitando-lhe
descendem de Héracles e o outro dos Aquemênidas, e os membros e ajeitando-os, ofício esse que lhes granjeia
que a linha de Héracles e a dos Aquemênidas são tidas e na corte alta consideração. Quando os príncipes atingem
como originárias de Perseu, filho de Zeus? a idade de sete anos, dão-lhes mestres de equitação e o
121 a , Alcibíades - E a nossa, Sócrates, vai entroncar-se iniciam na caça. Com duas vezes sete anos, são entregues
em Eurísace, e a de Eurísace, em Zeus. aos chamados preceptores reais, pessoas escolhidas entre
Sócrates - E a nossa, nobre Alcibíades, em Dédalo, os persas de maior conceito e no vigor da idade, em
e, por intermédio de Dédalo, em Hefesto, filho de Zeus. número de quatro: o mais sábio, o mais justo, o mais
Porém no caso deles, a principiar por eles mesmos, trata-se 122 a moderado e o mais valente. O primeiro o instrui no
de uma sequência ininterrupta de reis que vão bater em magismo de Zoroastro, filho de Oromásio, que consiste
Zeus. Uns reinaram em Argos e na Lacedemônia; os no culto dos deuses. Ensina-lhe também a arte de reinar.
outros sempre reinaram na Pérsia e, muitas vezes, O mais justo o ensina a dizer sempre a verdade. O mais
mesmo, como presentemente, na Ásia, ao passo que nós moderado o ensina a não se deixar dominar por nenhum
b e nossos pais não passamos de simples particulares. prazer, para que se habitue a ser livre e rei, de fato, o que
Imagina só o ridículo a que te exporias, se na frente de começa pelo domínio das paixões, para delas não vir a
Artaxerxes, filho de Xerxes, quisesses fazer praça de teus ser escravo. O mais corajoso o ensina a ser intrépido e
antepassados, de Salamina, pátria de Euríseces, e de isento de medo, inculcando-lhe que temor é escravidão.
Egina, pátria de Ajaz! Examina bem, se além de inferiores b Ao passo que tu, Alcibíades, Péricles instituiu como teu
quanto ao berço, não o somos t a m b é m no que diz preceptor um dos seus escravos, Zópiro de Trácia, que
respeito à educação. Nunca ouviste falar na extensão das de tão velho se tornara imprestável. Poderia alongar-mc
propriedades dos reis dos lacedemônios, cujas esposas ainda em particularidades a respeito da criação de teus
ficam sob a guarda pública dos éforos, para evitar, na adversários e da maneira de educá-los; porém seria
c medida do possível, que venha a reinar alguém estranho cansativo; o que ficou dito basta para ilustrar tudo o mais
264 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 265

que se lhe segue. Quanto ao teu nascimento, Alcibíades, prata, principalmente os reis, aos quais toca em partições
e tua educação, bem como a de qualquer outro ateniense, frequentes o lote mais opimo. Acrescentemos a isso o
ninguém dá a menor importância, por assim dizer, com tributo, que não é pequeno, pago pelos lacedemônios.
exceção de algum dos teus apaixonados. Mas se quiseres b Todavia, com ser grande a riqueza dos lacedemônios,
considerar a riqueza, os divertimentos, as vestes quando comparada com a dos demais helenos, é nada
c luxuosamente enfeitadas, o uso de unguentos em confronto com a dos persas e do seu Rei. Contou-me
perfumados, o séquito numeroso de servidores e todos pessoa fidedigna, conhecedora da corte do Rei, que
os demais requintes da vida opulenta dos persas, ficarias atravessou um terreno fértil, da extensão de um dia de
envergonhado de t i mesmo, por perceberes quão longe jornada mais ou menos, a que os moradores da região
te encontras de alcançá-los. dão o nome de Cinto da rainha; h á outro, ainda,
denominado Véu, e outros mais, de primeira qualidade
X V I I I - Do mesmo modo, se lançares as vistas para todos eles, reservados para os adornos da rainha, e que
a t e m p e r a n ç a dos l a c e d e m ô n i o s , sua m o d é s t i a , c recebem denominação especificada, de acordo com os
amenidade, brandura, magnanimidade, disciplina, nomes de seus diferentes ornatos. Por isso ponho-me a
coragem, pertinácia, paixão do trabalho, amor da glória pensar que se alguém fosse dizer à mãe do rei, Améstride,
e o gosto das distinções que lhes é próprio, haverias de mulher de Xerxes: O filho de Dinômaque tenciona
d considerar-te menino em confronto com eles. Até mesmo declarar guerra a teu filho, sendo que o guardá-roupa
com relação à riqueza, se imaginas que nesse particular dela poderá valer cinquenta minas, se tanto, enquanto o
te sobressais, não interrompamos nosso paralelo, para filho tem uma propriedade em Erquia de menos de
que possas adquirir consciência de quanto realmente trezentos pletros, ela, sem dúvida se perguntaria,
vales. Se considerares sob esse aspecto a fortuna dos d admirada: Em que confia esse Alcibíades, para atrever-se
lacedemônios, serás obrigado a confessar que nós outros, a atacar Artaxerxes? e concluiria consigo mesma que ele
em relação a eles, ficamos muito atrás. Ninguém pode só conta para essa aventura com sua diligência e
entre nós competir com eles na extensão das propriedades sabedoria, as únicas coisas a que os helenos dão valor. E
e fertilidade das terras, tanto no seu próprio país como quando ela ouvisse dizer que o Alcibíades da ideia de
em Messênia; ou no número de escravos, principalmente semelhante empreendimento tem vinte anos
e hilotas, de cavalos e dos demais rebanhos criados por incompletos, que é de todo falto de instrução, e que, além
eles.nos pastos de Messênia. Deixando, porém, tudo isso e do mais, ao lhe dizer o seu admirador que antes de entrar
de lado, h á mais ouro e prata entre os lacedemônios do em luta com o rei precisaria instruir-se, aperfeiçoar-se e
que entre os demais helenos tomados em conjunto, pois exercitar-se, ele protestou, asseverando ser bastante para
desde muitas gerações é o que para lá converge de todo esse empreendimento o que já sabe, quero crer que ela
o mundo helénico e, por vezes mesmo, dos povos se mostraria espantada e perguntaria: com que, então,
bárbaros; porém de lá nunca sai nada. Como na fábula conta esse adolescente? E se lhe disséssemos que ele conta
123 a de Esopo, diz a raposa para o leão: estão bem visíveis as com sua beleza, estatura, nascimento, riqueza e dotes
marcas do dinheiro que entra na Lacedemônia, porém do espírito, decerto, Alcibíades, ela nos tomaria por
não se vê nenhuma do dinheiro que sai, do que podemos loucos, ao comparar todas essas vantagens com o que
inferir com segurança que, de todos os helenos, sejam ela própria es tá habituada a ver no meio dos s eus. E quer o
os habitantes da Lacedemônia os mais ricos em ouro e 124 a crer, ainda, que Lampido, filha de Leotiquides, mulher
266 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 267

de Arquidamo e mãe de Ágis, que foram todos reis, Sócrates - Não revelar nem hesitação nem tibieza,
revelaria igual admiração, depois de confronto idêntico, caro amigo.
ao saber que com toda a tua falta de preparo tencionavas Alcibíades - Isso mesmo, Sócrates.
entrar em luta com seu filho. Não achas que é humilhante Sócrates - Não é verdade? Porém raciocinemos
ajuizarem a nosso respeito as mulheres de nossos e juntos. Dize-me, não é fato que desejamos aperfeiçoar-nos
adversários com mais acerto do que nós mesmos? Não, o mais possível? Ou não?
b meu ditoso Alcibíades, déixa-te convencer por mim e pela Alcibíades - Sim.
inscrição de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo", porque os Sócrates - Em que virtude?
teus adversários são como eu te disse, não como os Alcibíades - Evidentemente, na que distingue os
imaginas, e só pela indústria e pelo saber nos será possível
homens bons.
sobrepujá-los. Se te descurares nesse sentido, terás de
Sócrates - Bons em quê?
desistir de alcançar nome e fama entre os helenos e os
povos bárbaros, que é o que parece desejar acima de tudo Alcibíades - Evidentemente, na gestão de seus
quanto possam desejar os homens. negócios.
Sócrates --Que negócios? A equitação?
X I X -Alcibíades - Não quererás dizer-me, Sócrates, Alcibíades - Não, é claro.
em que será preciso que me esforce? Mais do que em Sócrates - Para isso, recorreríamos ao tratador de
tudo, há grande viso de verdade nisso que afirmaste. cavalos.
C Sócrates - De muito bom grado; mas será preciso Alcibíades ~ E certo.
Sócrates - Referes-te a negócios náuticos?
que investiguemos juntos o melhor modo de nos
Alcibíades - Não.
aperfeiçoarmos, porque tudo o que eu vier a dizer a
respeito de educação não se aplica menos a mim do que Sócrates - A esse respeito, r e c o r r e r í a m o s aos
a ti. Só numa coisa eu levo vantagem sobre ti. marinheiros.
Alcibíades - Qual será? Alcibíades - Perfeitamente.
Sócrates - Meu tutor é melhor e mais sábio do que Sócrates - Que negócios poderão ser? E quem os
Péricles, que é o teu. executa?
Alcibíades - Quem é ele, Sócrates? Alcibíades - Os negócios com que se ocupam os
Sócrates - Foi Deus, Alcibíades, que até este dia me homens bons de Atenas.
impediu de conversar contigo; é a fé que tenho nele que 125 a Sócrates - Dás o qualificativo de bom aos indivíduos
me leva- a asseverar-te que só por meu intermédio sensatos ou aos insensatos?
chegarás a conseguir a glória ambicionada, Alcibíades - Aos sensatos.
d Alcibíades - Estás gracejando, Sócrates.
Sócrates - E cada um de nós é bom naquilo em que
Sócrates - E possível; de qualquer forma, falo a
verdade quando afirmo que todos os homens precisam é sensato?
esforçar-se, e nós dois, mais do que ninguém. Alcibíades - Sim.
Sócrates - E o insensato é ruim?
Alcibíades - No que me diz respeito, não te enganas.
Alcibíades - Como não?
Sócrates - Nem com relação a mim.
Sócrates - O sapateiro, por exemplo, é sensato com
Alcibíades - Então, que será preciso fazer?
relação à feitura de calçados?
Alcibíades - Perfeitamente.
Platão - Diálogos
O Primeiro Alcibíades 269

Sócrates - É bom, portanto, esse sapateiro?


• Alcibíades - Esses, não.
Alcibíades - Bom.
Sócrates - Isso é ofício do piloto.
Sócrates - E a respeito do preparo de roupas, é
Alcibíades - Sim.
destituído de senso o sapateiro?
d Sócrates - Referes-te, porventura, ao governo dos
Alcibíades - E
tocadores de flauta, com a direção dos cantores e dos
Sócrates - Logo, nisso ele é ruim?
coreutas?
Alcibíades - É
Alcibíades - De forma alguma.
Sócrates - Desse modo, de acordo com o nosso Sócrates -Isso faz parte do ofício do mestre do coro.
raciocínio, o mesmo indivíduo vem a-ser bom e mau?
Alcibíades - Perfeitamente.
Alcibíades - Parece.
Sócrates - E n t ã o , o que quererás dizer com a
expressão Ser capaz de servir-se de outros homens?
X X - Sócrates - Mas dirias que os homens bons
Alcibíades - Refiro-me aos que participam dos
são ruins?
negócios públicos, e que têm comércio entre si. O governo
Alcibíades - De forma alguma.
nas cidades é isso.
Sócrates - Então, a quem dás o nome de bom?
Alcibíades - Aos cidadãos capazes de governar. X X I - Sócrates - Quais são as características desse
Sócrates - Sim, governar; porém não cavalos. ofício? Por exemplo, se eu tornasse a perguntar-te, como
Alcibíades - E claro. o fiz há pouco, qual é a arte que deixa os homens capazes
Sócrates - Homens, então? de governar marinheiros em viagem?
Alcibíades - Sem dúvida. Alcibíades - A arte do piloto,
Sócrates - Homens doentes, porventura? e Sócrates - Os que participam do canto, a que h á
Alcibíades - Não! momentos nos referimos, que arte permite governá-los?
Sócrates - Ou navegantes, quem sabe? Alcibíades - A que h á pouco mencionaste, a
Alcibíades - Não me refiro também a esses.
disciplina coral.
Sócrates - Aos que trabalham na ceifa?
Alcibíades - Não. Sócrates - E os que participam da política, como
Sócrates - Aos que nada fazem, ou aos que fazem denominaremos a arte de governá-los?
alguma coisa? Alcibíades - Diria que é a arte de bem aconselhar,
Alcibíades - Aos que fazem algo, é o que eu digo. Sócrates.
Sócrates - Que é o que fazem? Procura explicar-mo. Sócrates - Como assim? Achas que a arte do piloto
Alcibíades - Os que t ê m comércio entre si e se consiste em aconselhar mal?
servem dos outros homens, no jeito em que vivemos nas Alcibíades - De forma alguma.
cidades. Sócrates - Porém em bem aconselhar?
Sócrates - Referes-te, portanto, ao governo de 126 a Alcibíades - E o que eu penso, para segurança dos
homens que se servem de outros? que viajam.
Alcibíades - Sim. Sócrates - Muito bem. E o bom conselho a que te
Sócrates - Por exemplo; o patrão dos remadores, , referiste, em que consiste?
quando marca o tempo de remar?
Alcibíades - Na boa administração da cidade e na
sua preservação.
270 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 271

Sócrates - E quais serão as coisas, cuja presença ou Sócrates - Ela também é que estabelece o acordo a
a u s ê n c i a condicionam a boa a d m i n i s t r a ç ã o e a esse respeito entre os particulares e as cidades?
p r e s e r v a ç ã o da cidade? Suponhamos que eu te Alcibíades - Sim.
perguntasse: Quais são as coisas que, por presentes ou Sócrates - E com relação a pesos, não se passa a
ausentes, regulam ou preservam o corpo? Dirias, decerto, mesma coisa?
que são: a saúde, quando presente, e a doença, enquanto Alcibíades - Evidentemente.
ausente. Não pensas desse modo? Sócrates - Então, em que consiste essa concórdia a
b Alcibíades - Penso. que te referiste, acerca de que se manifesta, e qual é a
Sócrates - E se me perguntasses: Que é o que pela ciência que a estabelece? Deve ser de tal natureza, que
sua presença deixa os olhos em bom estado? Do mesmo assim como faz com as cidades, faz com os indivíduos,
modo, eu te diria que é a vista, quando presente, e a quer seja cada um consigo mesmo, quer seja com todos
cegueira, quando ausente, e, com relação aos ouvidos, entre si?
diria que funcionam melhor se se conservam em boas Alcibíades - E precisamente assim.
condições com a ausência da surdez e a presença da Sócrates - Então, de que natureza é essa concórdia?
audição. Não te enfades com minhas perguntas e responde de
Alcibíades - E certo. e boa mente.
Sócrates - E com relação à cidade? Que é o que, Alcibíades - Sou de opinião que a amizade e a
presente ou ausente, a deixa em melhores condições e harmonia a que me referi devem ser como as que
mais bem administrada? condicionam a concórdia existente entre o pai e a mãe
c Alcibíades - Sou de parecer, Sócrates, que é quando afetuosos e seus filhos, o irmão e a irmã, a mulher e o marido.
reina amizade entre os cidadãos e se acham ausentes o
ódio e as sedições. X X I I - Sócrates - Achas mesmo, Alcibíades, que o
Sócrates - O que entendes por amizade: concórdia marido pode estar de acordo com a mulher sobre o modo
ou desavença? de fiar lã, no que ela é perita e ele desconhece de todo?
Alcibíades - Concórdia. Alcibíades - Não, decerto.
Sócrates - Qual é a arte que deixa concordes as Sócrates - Nem h á necessidade disso; trata-se de
cidades a respeito de números? trabalho de mulher.
Alcibíades - E a aritmética. Alcibíades - E certo.
Sócrates - E com relação aos particulares, não é 127 a Sócrates - E então? Poderá a mulher ficar de acordo
também a aritmética? com o marido a respeito de manobras da infantaria, coisa
Alcibíades - É. que ela nunca aprendeu?
Sócrates - E não é ainda por ela que cada um de Alcibíades - De forma alguma.
nós fica de acordo consigo mesmo? Sócrates - Provavelmente, dirias que se trata de
Alcibíades - Sim. ocupação de homens.
Sócrates - E por meio de que arte cada um fica de Alcibíades - Isso mesmo.
d acordo consigo mesmo, sobre qual seja maior, o palmo Sócrates - De acordo, por conseguinte, com o que
ou o cúbito, não é a arte dá medida? disseste, há conhecimentos próprios das mulheres, e
Alcibíades - Que outra poderia ser? outros pertinentes aos homens.
272 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 273

Alcibíades - Por que não? encontram. Segundo os teus próprios dizeres, ora se me
Sócrates - A esse respeito, portanto, não há concórdia afiguram presentes numas pessoas, ora ausentes.
entre os homens e as mulheres.
Alcibíades - Não. X X I I I - Alcibíades - Pelos deuses, Sócrates, j á não
Sócrates - Nem amizade, se amizade for concórdia. sei o que falo. E bem possível que eu esteja há muito
Alcibíades - Não, evidentemente. tempo nesse estado de ignorância, sem aperceber-me
Sócrates - Então, as mulheres não são amadas pelos disso.
homens, quando executam trabalhos que lhes são próprios, Sócrates - E preciso ter c o n f i a n ç a . Se aos
b Alcibíades - É o que parece. cinquenta anos tivesses percebido essa deficiência,
Sócrates - Nem os maridos pelas mulheres, quando e difícil te seria tomar qual quer medida para remediá-la.
estes executam os delas. Mas estás agora precisamente na idade em que cumpre
Alcibíades - Não. percebê-la.
Sócrates - Nem são bem administradas as cidades, Alcibíades - E os que a percebem, Sócrates, que
quando cada um faz o que lhe compete. . deverão fazer?
Alcibíades - Isso não, Sócrates! Acho que são. Sócrates- Responder ao que te pergunto, Alcibíades.
Sócrates- Como! Sem estar presente a amizade, cuja Se assim procederes e o deus o permitir - até onde posso
presença reconhecemos ser necessária para sua boa confiar no meu oráculo - tu e eu só teremos a lucrar.
administração, o que de outra forma não seria possível? Alcibíades - Nada mais fácil de alcançarmos isso,
Alcibíades - Eu diria, porém, que a amizade está no que depender apenas de eu responder.
c presente sempre que cada um faz o que lhe compete. Sócrates - Então responde: que significa a expressão
Sócrates - Não foi isso que disseste há pouco. E que Cuidar de si mesmo? Pois pode muito bem dar-se que
afirmas agora? Que pode haver amizade, se não houver 128 a não estejamos cuidando de nós, quando imaginamos
concórdia? Ou que pode haver concórdia a respeito do fazê-lo. Quando é que o homem cuida de si, mesmo? Ao
que alguns sabem e outros ignoram? cuidar de seus negócios, cuidará de si mesmo?
Alcibíades - Isso é impossível. Alcibíades - Parece que sim.
Sócrates - E quando cada um faz o que lhe compete, Sócrates - E então? Quando cuida alguém dos pés?
procede com justiça ou injustamente? E quando cuida do que é pertinente aos pés?
Alcibíades - Não compreendi.
Alcibíades - Com justiça, como não?
Sócrates - Não h á coisas que só se referem às mãos?
Sócrates - Sendo assim, quando os cidadãos se
O anel, por exemplo, com que outra parte do corpo se
comportam com justiça na cidade, n ã o h á amizade
relaciona, a não ser com o dedo?
entre eles?
Alcibíades - Com nenhuma.
Alcibíades - Necessariamente deve haver, Sócrates;
Sócrates - E o calçado, não se acha em idênticas
é o que eu penso,
relações com os pés?
d Sócrates - O que vêm a ser, então, essa amizade e
b Alcibíades - Perfeitamente.
essa concórdia a que te referiste, que terão de deixar-nos
Sócrates - E do mesmo modo as vestes e as cobertas,
sábios e discretos, para que nos tornemos homens bons?
com outras partes do corpo?
Não consigo saber em que consistem nem com quem se
Alcibíades - Sem dúvida."
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 275

Sócrates - Assim, quando cuidamos dos calçados, Alcibíades - Parece.


cuidamos igualmente dos pés? Sócrates - Sendo assim, não cuidas de ti mesmo,
Alcibíades - N ã o apanho bem o que disseste, quando cuidas de algo que te pertence.
Sócrates. Alcibíades - Não, de fato.
Sócrates- Como assim, Alcibíades? Não reconheces Sócrates - Pois, ao que parece, a arte que se ocupa
que cuidar de alguma coisa é fazer algo a seu respeito? conosco não é a mesma que se ocupa com o que nos pertence.
Alcibíades - Decerto. Alcibíades — E claro que não.
Sócrates - E sempre que o tratamento deixar essa
coisa melhor do que era antes, não dizes que ela foi bem X X I V - Sócrates - Agora dize-me: por meio de que
cuidada? arte poderemos cuidar daquilo que nos diz respeito?
Alcibíades - Digo. Alcibíades - Não saberei dizê-lo.
Sócrates - Qual é a arte que deixa melhores os e Sócrates - Num ponto, pelo menos, j á ficamos de
calçados? acordo: que não é a arte por meio da qual deixamos
Alcibíades - A arte do sapateiro. melhor qualquer coisa que nos pertença, mas a que nos
Sócrates - Assim, é por meio da arte do sapateiro deixamelhores a nós mesmos.
que cuidamos dos nossos sapatos? Alcibíades - E certo.
Alcibíades - Isso mesmo. Sócrates - Poderíamos saber que arte deixa melhores
Sócrates - E é a arte do sapateiro que cuida dos pés? os calçados, se não soubéssemos o que é calçado?
Ou será a que deixa melhores os pés? Alcibíades - Impossível.
Alcibíades - Esta última, sem dúvida. Sócrates - Nem. a que deixa melhores os anéis, se
Sócrates - E a arte que deixa os pés em melhores não conhecêssemos anel.
condições faz o mesmo com as demais partes do corpo? Alcibíades - Sem dúvida.
Alcibíades - Parece que sim.
Sócrates - E então? Poderíamos conhecer a arte que
Sócrates - Chama-se ginástica, pois não?
nos deixa melhores, se não soubéssemos o que somos?
Alcibíades - Exatamente.
\29 a Alcibíades - Impossível.
Sócrates - A ginástica, portanto, cuida dos pés, e a
Sócrates - Será porventura fácil conhecer-se a si
arte do sapateiro, daquilo que pertence aos pés,
mesmo - devendo ser considerado como de poucos
Alcibíades - É isso mesmo.
cabedais o autor daquela sentença do templo de Pito -
Sócrates - E a ginástica, não cuida também das mãos,
ou, pelo contrário, tarefa por demais difícil, que só está
enquanto a arte de fabricar anéis cuida do que pertence
às mãos? ao alcance de pouca gente?
Alcibíades - Sim. Alcibíades - Por vezes, Sócrates, quer parecer-me
que está ao alcance de qualquer pessoa; de outras vezes
Sócrates - E não cuida a ginástica do corpo, ao passo
que a arte de tecer, do que pertence ao corpo? afigura-se-me por demais difícil.
Alcibíades - É muito certo. Sócrates - Quer seja coisa fácil, quer difícil,
Alcibíades, o que é certo é que, conhecendo-nos,
Sócrates - Logo, a arte por meio da qual cuidamos
de uma determinada coisa é diferente da que se ocupa ficaremos em condições de saber como cuidar de nós
com o que pertence a essa coisa? mesmos, o que n ã o poderemos saber se nos
desconhecermos.
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 277

Alcibíades - É muito certo. Alcibíades - Com as mãos, também.


Sócrates - Então dize-me: de que modo será possível Sócrates - Ele usa, portanto, as mãos?
descobrir a e s s ê n c i a í n t i m a do ser? C om esse Alcibíades - Usa.
conhecimento saberíamos o que somos, o que sem ele Sócrates - E não usa também os olhos para cortar?
não nos será possível. Alcibíades - Também.
Alcibíades - Tens razão. Sócrates - E já não assentamos que h á diferença
Sócrates - Escuta, por Zeus! Com quem conversas entre a pessoa que usa uma coisa e a coisa por ela usada?
neste momento? não é comigo? Alcibíades - Assentamos.
Alcibíades - É. Sócrates - Logo, o sapateiro e o citaredo diferem
Sócrates - E Sócrates quem fala? e das mãos e dos olhos de que se servem.
Alcibíades - Perfeitamente. Alcibíades - Parece que sim.
Sócrates - E Alcibíades escuta?
Alcibíades - Sim. X X V - Sócrates - E não usa o homem todo o seu
Sócrates - E para conversar, Sócrates se vale da corpo?
palavra? Alcibíades - Perfeitamente.
Alcibíades - É evidente. Sócrates - Por conseguinte, uma coisa é o homem,
Sócrates - Logo, consideras a mesma coisa conversar e outra o seu próprio corpo.
e fazer uso da palavra? Alcibíades - Parece que sim.
Alcibíades - Perfeitamente. Sócrates - Que é, então, o homem?
Sócrates - Não difere o que usa alguma coisa da Alcibíades - Não sei o que diga.
coisa por ele usada? Sócrates - Pelo menos sabes que é o que se serve do
. Alcibíades - Que queres dizer com isso? corpo.
Sócrates - O sapateiro trabalha o couro com Alcibíades - Sei.
trinchete, sovela e outros instrumentos. 130 a Sócrates - E o que mais pode servir-se do corpo, se
Alcibíades - É certo. não for a alma?
Sócrates - S ã o , portanto, distintos a pessoa que corta Alcibíades - Nada.
e o instrumento que serve para cortar? Sócrates - E a alma, comanda?
Alcibíades - Como não? Alcibíades - Sim.
Sócrates - E não se dá o mesmo com o instrumento Sócrates - H á outra proposição, ainda, sobre a qual
do citaredo e o próprio citaredo? não pode haver divergência.
Alcibíades - Sim. Alcibíades - Qual é?
Sócrates - Pois foi isso que eu perguntei h á pouco, Sócrates - Que o homem só pode ser uma de três
se não consideras diferentes a pessoa que usa uma coisa coisas.
e a coisa por ele usada. Alcibíades - Quais são?
Alcibíades - Considero. Sócrates - A m a , corpo, ou ambos num só todo.
Sócrates - E que diremos do sapateiro: ele corta o > Alcibíades - E certo.
couro só com seus instrumentos ou também com as Sócrates - E não acabamos de concordar que o que
mãos? comanda o corpo é o homem?
278 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades

b Alcibíades - Acabamos. Alcibíades - Perfeitamente.


Sócrates - Será o corpo que dá ordens a si mesmo? Sócrates - Foi justamente isso que dissemos há
Alcibíades - De forma alguma. e pouco: quando Sócrates conversa com Alcibíades e troca
Sócrates - Dissemos que ele é governado. ideias com ele, não é a teu rosto, por assim dizer, que ele
Alcibíades - Sim. se dirige, mas ao Alcibíades real, que é, antes de tudo,
Sócrates - Então, o que procuramos não é o corpo. alma
Alcibíades - Parece que não. Alcibíades - E certo.
Sócrates - Será, porventura, o conjunto dos dois que
governa o corpo, e que viria a ser o homem? X X V I . - Sócrates - E a alma, portanto, que nos
Alcibíades - Pode ser que sim. recomenda conhecer quem nos apresenta o preceito:
Sócrates - De jeito nenhum! Se uma das partes não Conhece-te a ti mesmo.
governa outra, não h á possibilidade de vir a fazê-lo a 131 a Alcibíades - Parece.
reunião das duas. Sócrates - Por isso, quem conhece alguma parte do
Alcibíades - E muito certo, próprio corpo, só conhece algo de si mesmo, porém não
c Sócrates - Sendo assim, uma vez que o homem não se conhece.
é nem o corpo, nem o conjunto dos dois, só resta, quero Alcibíades - É certo.
crer, ou aceitar que o homem é nada, ou, no caso de ser Sócrates - N i n g u é m , portanto, como médico,
alguma coisa, terá de ser forçosamente alma. conhece a si mesmo, como não se conhece o pedótriba,
Alcibíades - E muito certo. enquanto professor de ginástica.
Sócrates - Haverá necessidade de demonstrar por Alcibíades - É isso mesmo.
maneira mais clara que o homem é alma? Sócrates - Muito mais longe, ainda, de conhecerem-se
Alcibíades - Não, por Zeus; a argumentação me estão os lavradores e os demais artífices; se desconhecem
parece suficiente. até mesmo o que se relaciona com as respectivas
Sócrates - Mesmo que n ã o seja exata, sendo profissões, mais distanciados se encontram de se
suficiente, é quanto nos basta. Maior p r e c i s ã o b conhecerem. Só têm conhecimento do que se refere ao
alcançaremos quando houvermos encontrado o que tratamento do corpo.
d deixamos provisoriamente de lado, para n ã o Alcibíades - Falas com acerto.
sobrecarregar a investigação. Sócrates - Ora, se a sabedoria consiste em conhecer-se
Alcibíades - De que se trata? a si mesmo, nenhum dos mencionados é sábio por efeito
Sócrates- O de que falamos há pouco, que primeiro da própria profissão.
precisaremos procurar saber o que seja o ser em si. Mas Alcibíades - Não é, de fato.
em vez do ser em si mesmo, procuramos a natureza de Sócrates - Essa, a razão de serem consideradas
cada ser em particular, o que talvez seja o bastante, pois vulgares as mencionadas profissões, e impróprias de
decerto é a alma aparte mais importante de nós mesmos. homens de prol.
Alcibíades - E fato. Alcibíades - É muito certo.
Sócrates - Devemos admitir, portanto, que quando Sócrates - Novamente: quem cuida do corpo, não
conversamos a sós, eu e tu, e trocamos ideias, são duas cuida de si mesmo, mas apenas do que lhe pertence,
almas que conversam? c Alcibíades - É o que parece.
Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 281

Sócrates - Porém o que cuida de sua fortuna, nem Sócrates - E a razão disso é que eu era o único
cuida de si mesmo, nem do que lhe pertence; encontra-se apaixonado de ti mesmo, enquanto os demais amavam
mais afastado, ainda, do que lhe diz respeito. apenas o que te pertence. Ora, o que te pertence
Alcibíades - E também o que eu penso. emurchece, ao passo que tu, propriamente dito, te
Sócrates - Sendo assim, o banqueiro não cuida do 132 a encontras no início da floração. Assim, se não te deixares
que lhe diz respeito. corromper pelo povo de Atenas, nem vieres a degenerar,
Alcibíades - E certo. jamais te abandonarei. O que eu receio acima de tudo é
Sócrates - Logo, se alguém se mostra apaixonado que, tornando-te apaixonado do nosso povo, venhamos
do corpo de Alcibíades, não é Alcibíades que ele ama, a perder-te. Foi o que já aconteceu com muitos atenienses
porém algo que pertence a Alcibíades. de nobre estirpe. Pois é de mui bela aparência a
Alcibíades - Dizes a verdade.
Sócrates - Só te ama quem amar tua alma. gente do hetói Erecteu, de alma grande.
Alcibíades - E o que necessariamente se conclui de
toda a tua exposição. , E preciso vê-la sem roupa. Importa, pois, que te precates,
Sócrates - Não é certeza vir a afastar-se de ti o amante de acordo com as minhas advertências.
de teu corpo, quando emurchecer a flor da mocidade? Alcibíades - Quais?
Alcibíades - E muito provável. b Sócrates - Exercita-te primeiro, caro amigo, e
Sócrates - Mas o que ama tua alma n ã o te aprende o que é preciso conhecer para te iniciares na
abandonará enquanto ela aspirar a aperfeiçoar-se? política; antes, n ã o . M u n i d o , desse modo, do
Alcibíades - E certo. contraveneno adequado, nada prejudicial te poderá
Sócrates - Ora bem: eu sou o que não te abandono, acontecer.
porém continuarei ao teu lado, quando todos se afastarem Alcibíades - Acho muito razoável o que me dizes,
de ti, depois de vir a perder o viço a mocidade. Sócrates. Porém desejo que me expliques de que maneira
Alcibíades - Fazes bem, Sócrates; espero que não podemos cuidar de nós mesmos.
me abandones. Sócrates - E possível que nesse domínio já tenhamos
Sócrates - Então, esforça-te para te tornares cada adiantado alguma coisa.'Pelo menos, já quase chegamos
vez mais belo. a um acordo, com relação ao que somos, não havendo,
Alcibíades - Hei-de esforçar-me. pois, perigo de, em vez de nos ocuparmos conosco,
cuidarmos do que não seja nós mesmos.
XXVTI - Sócrates - No que te diz respeito, o fato é Alcibíades - E certo,
que nunca existiu, ao que parece, senão um único c Sócrates - De seguida, assentamos que é da alma
apaixonado de Alcibíades, filho de Clínias, que é o seu que precisamos cuidar e para que devemos volver as vistas.
muito amado Sócrates, filho de Sofronisco e de Fenarete. Alcibíades - É claro.
Alcibíades - É verdade. Sócrates - Os cuidados com o corpo e com as
Sócrates - Não declaraste que se eu não te houvesse riquezas devem ser confiados a outras pessoas.
antecipado, tu tencionavas falar-me para me perguntar o Alcibíades - Perfeitamente.
motivo de ter sido eu o único a não abandonar-te? Sócrates - Porém de que modo alcançaremos o
Alcibíades - Declarei, realmente. conhecimento perfeito da alma? Sabido isso, ao que
282 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 283

parece, conhecer-nòs-emos a nós mesmos. Mas pelos Sócrates - Logo, se o olho quiser ver a si mesmo,
deuses, será que penetramos, de fato, no sentido precisará contemplar outro olho e, neste, a porção exata
profundo do excelente preceito de Delfos a que h á em que reside a virtude do olho, que é propriamente a
momentos nos referimos? visão.
Alcibíades - Que queres dizer com isso, Sócrates? Alcibíades - Perfeitamente.
d Sócrates - Vou explicar-te o que eu presumo seja o Sócrates - E com r e l a ç ã o à alma, meu caro
significado desse preceito e o conselho nele implícito. O Alcibíades, se ela quiser conhecer-se a si mesma, não
difícil é encontrar um termo de comparação; parece que precisará também olhar para a alma e, nesta, a porção
só a vista servirá para nosso intento. em que reside a sua virtude específica, a inteligência, ou
Alcibíades - Como assim? para o que lhe for semelhante?
Alcibíades - Parece-me que sim, Sócrates,
X X V I I I - Sócrates - Raciocina comigo. Se nos c Sócrates - Haverá, porventura, na alma alguma parte
dirigíssemos aos olhos, como se se tratasse de pessoas, e mais d i v i n a do que a que se relaciona com o
lhes apresentássemos o preceito Conhece-te a ti mesmo, conhecimento e a reflexão?
de que modo compreenderíamos o conselho? Não seria Alcibíades - Não há.
no sentido de levar os olhos a dirigir-se para algum objeto Sócrates - É a parte da alma que mais se assemelha
ao divino; quem a contemplar e estiver em condições de
em que eles pudessem ver a si próprios?
perceber o que nela há de divino, Deus e o pensamento,
Alcibíades - É claro,
com muita probabilidade ficará conhecendo a si mesmo.
e Sócrates - E qual é o objeto em que nos vemos,
Alcibíades - É certo.
quando o contemplamos?
Sócrates - Sem dúvida, porque os verdadeiros
Alcibíades - O espelho, Sócrates.
espelhos são mais claros do que o espelho dos olhos, mais
Sócrates - Acertaste. Porém nos olhos com que
puros e mais brilhantes; do mesmo modo, a divindade
vemos, não se encontra algo do mesmo estilo?
da melhor parte de nossa alma é mais pura e mais
Alcibíades - Perfeitamente. luminosa.
Sócrates - Como j á deves ter observado, o rosto de Alcibíades - É o que parece, Sócrates.
quem olha para os olhos de alguém que se lhe defronte, Sócrates - Olhando, portanto, para essa divindade,
133 a reflete-se no que denominamos pupila, como n u m e usando-a à guisa do melhor espelho das coisas humanas
espelho a imagem da pessoa que olha. para o conhecimento da virtude da alma, é a maneira
Alcibíades - É certo. mais acertada de nos vermos e reconhecermos a nós
Sócrates - Assim, quando um olho olha para outro mesmos.
e se fixa na porção mais excelente deste, justamente Alcibíades - É certo.
aquela que vê, ele vê-se a si mesmo?
Alcibíades - É evidente. X X I X - Sócrates - Mas, se carecermos desse
Sócrates - Porém não verá a si mesmo, se olhar para conhecimento de nós mesmos e dessa sabedoria,
qualquer outra parte do homem, ou para onde quer que poderemos conhecer o que nos diz respeito, tanto de
seja, menos para o que se lhe assemelha, bem como de mal?
b Alcibíades - É certo. Alcibíades - Como fora possível, Sócrates?
284 Platão - Diálogos 285
O Primeiro Alcibíades

d Sócrates - Parece-te, portanto, impossível que possa


Alcibíades - Muito!
alguém que não conheça Alcibíades saber se o que é de
Sócrates - E as pessoas no interesse das quais
Alcibíades é realmente dele.
Alcibíades - Fora de todo impossível, por Zeus! ele age?
Sócrates - Nem saber se o que é nosso é nosso Alcibíades - Também o serão.
mesmo, no caso de não nos conhecermos. Sócrates - Logo, ninguém poderá ser feliz, se não
Alcibíades - De forma alguma. for sábio e bom.
Sócrates - Ora, se não conhecemos o que é nosso, b Alcibíades - É certo.
Sócrates- Donde se colhe que os maus são infelizes.
não conheceremos, de igual modo, o que se lhe relaciona.
Alcibíades - Muitíssimo.
Alcibíades - Evidentemente.
Sócrates - Sendo assim, h á pouco não concluímos X X X - Sócrates - Sendo assim, não é ficando rico
com acerto, quando admitimos que uma pessoa pode que evitamos a infelicidade, porém tornando-nos sábios.
conhecer as coisas que lhe dizem respeito sem cqnhecer Alcibíades - Evidentemente.
a si própria, enquanto outras conhecem o que se relaciona Sócrates - As cidades, portanto, para serem felizes,
e com essas coisas. Todos esses conhecimentos parecem
não necessitam nem de muros, nem de trirremes, nem
ser privilégio de uma só pessoa e de uma única arte,
de estaleiros, Alcibíades, nem de população e tamanho,
relativamente à própria pessoa, suas coisas e as~coisas
mas de virtude.
que dependem destas.
Alcibíades - É fato.
Alcibíades - E certo.
Sócrates - Se quiseres, por conseguinte, administrar
Sócrates - Quem ignora, portanto, as coisas que lhe
os negócios da cidade com retidão e nobreza, terás de
dizem respeito, não há de conhecer, também, as dos outros.
c dar virtude aos cidadãos.
Alcibíades - E muito certo.
Alcibíades - Sem dúvida.
Sócrates - E se não conhece as dos outros, não Sócrates - E poderá alguém dar o que não tem?
conhecerá também as da cidade. Alcibíades - Como fora possível?
Alcibíades - Necessariamente. Sócrates - E n t ã o , primeiro precisarás adquirir
Sócrates - Um homem, nessas condições, nunca virtude, tu ou quem quer que se disponha a governar ou
poderá exercer a política.
a administrar não só a sua pessoa e seus interesses
Alcibíades - Não, evidentemente. particulares, como a cidade e as coisas a ela pertinentes.
Sócrates - Nem poderá ser bom economista. Alcibíades - Tens razão.
134 a Alcibíades - Não, sem dúvida.
Sócrates - Assim, o que precisas alcançar não é o
Sócrates - E n ã o sabendo o que faz, decerto poder absoluto para fazeres o que bem entenderes
cometerá erros?
contigo ou com a cidade, porém justiça e sabedoria.
Alcibíades - Seguramente. Alcibíades - E muito certo,
Sócrates - E cometendo erros, não se comportará d Sócrates - Se tu e a cidade procederdes com
pessimamente, tanto na vida particular como na pública? sabedoria e justiça, fareis obra grata à divindade.
Alcibíades - Como não? Alcibíades - Certamente.
Sócrates - E conduzindo-se desse modo, não será Sócrates - E como dissemos antes, como norma do
infeliz?
ação deveis ter sempre em mira o esplendor divino.
286 Platão - Diálogos O Primeiro Alcibíades 287

Alcibíades - É certo. X X X I - Sócrates - Sendo assim, meu precioso


Sócrates - Tendo-o, desse modo, diante dos olhos, Alcibíades, não é a tirania o desejável, nem para ti, nem
haveis de ver-vos e conhecer a vós mesmos e vosso para a cidade, se almejais ser felizes, porém a virtude.
próprio bem. Alcibíades - Tens razão.
Alcibíades - É certo. Sócrates - Antes de haver adquirido essa. virtude,
. Sócrates - E desse modo procedereis bem e com não é melhor, tanto para a criança como para o homem
acerto? feito, ser dirigido por superiores, em vez de governar?
Alcibíades - Sim. Alcibíades - E muito certo.
Sócrates - Estou pronto a dar-me como penhor em Sócrates - E o melhor não é também mais bonito?
como, assim procedendo, sereis felizes. Alcibíades - Sem dúvida.
Alcibíades - Penhor valiosíssimo. Sócrates - E o mais bonito não é mais conveniente?
Sócrates - E ao contrário: se viverdes com injustiça, c Alcibíades - Como não?
com a mira na escuridão sem Deus, vossas ações serão Sócrates - Logo, ao homem inferior, convém servir,
consemelhantes, corvos desconhecerdes avós mesmos. por ser isso melhor?
Alcibíades - É evidente. Alcibíades - Sim.
Sócrates - A escravidão é vício.
Sócrates - Porque, seja quem for, meu caro
Alcibíades - Sem dúvida.
Alcibíades, que tenha a possibilidade de fazer o que
Sócrates - E a condição livre, virtude?
bem lhe aprouver, se carecer de entendimento, quais
Alcibíades^ - Sim.
serão provavelmente as consequências para o indivíduo
Sócrates - Então, amigo, é preciso fugir da condição
ou para a cidade? Por exemplo: no caso de um doente
que pudesse fazer o que bem entendesse, porém não servil.
135 a tivesse cabeça de médico e procedesse como tirano sem Alcibíades - Mais do que tudo, Sócrates.
Sócrates - Adquiriste agora consciência de teu
ninguém ao seu lado para adverti-lo, que aconteceria?
estado? Consideras-te verdadeiramente livre, ou nílo?
Não é muito provável que acabaria por arruinar sua
Alcibíades - Penso ter perfeita consciência do
constituição?
que sou.
Alcibíades - Sem dúvida nenhuma. Sócrates - Nesse caso, sabes como libertar-te do
Sócrates - E num navio, se algum passageiro tivesse presente estado de coisas, que me abstenho de definir,
liberdade de proceder a seu bel-prazer, mas sem ser em homenagem à tua formosura,
dotado nem da inteligência do piloto nem de sua d Alcibíades - Sei.
experiência, j á pensaste no que lhe poderia acontecer e Sócrates - Como é?
aos seus companheiros de viagem? Alcibíades - Libertar-me-ei se o quiseres, Sócrates.
Alcibíades - E mais do que certo que todos viriam a Sócrates - N ã o te expressaste corre lamente,
perder-se. Alcibíades.
Sócrates - Do mesmo modo, em qualquer cidade, Alcibíades - Como deverei dizer?
b ou onde quer que haja autoridade e poder absoluto Sócrates - Assim: se Deus quiser.
carecentes de virtude, os resultados não serão maiores? Alcibíades - Pois que seja; falarei desse modo, com
Alcibíades - Fatalmente. o acréscimo, Sócrates, de que corremos o perigo de trocar
288 Platão - Diálogos

ILUSTRAÇÕES
os papéis: tu ficarás com o meu e eu ficarei com o teu. A
partir de hoje, não haverá possibilidade de evitarmos que
eu me torne teu preceptor, e tu passes a ser dirigido
por mim.
Sócrates - O generoso Alcibíades! Nesse caso, em "• — ,^--y

nada difere da cegonha o meu amor: depois de ter sido


criado no teu ninho um amor alado, passa este, por sua
vez, a tomar conta dele.
Alcibíades - Será assim mesmo; a partir de agora, •
passarei a meditar sobre a justiça.
Sócrates - Faço votos para que perseveres nesse
Acrópole de Atenas, santuário de Athena Parthenos,
intento; contudo, tenho meus receios, não por descrer vista do sudeste; no centro o Olympieion.
de tua natureza; é que, considerando a força de nosso (Sumário)
povo, temo que eu e tu venhamos a ser dominados
por ela.

Moeda grega -
coruja em
inscrição, cerca
de470 a.C.
(Folha de Rosto)

Capitel de Mileto, Berlim, Ares e Afrodite (Marte e Vénus)


século VI a.C. (detalhe) em colóquio amoroso. Afresco de
Pompeia, I Séc. d.C. (Pág. 44)
(Çolofão)

l l ^ o ^ o T d e n t e s de Pro„Mé, H i s l o ^ e * 1* Çr^e * W „ Traduzido do alemão


Simone Wallon. Paris: Presses Universitaires de France, 1960.

ii
ji
\

Busto de Sócrates. (Pág. 212)

Ilustração procedente de Sócrates


de Rodolfo Mondolfo.
São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972.

0 texto integral deste livro, traduzido diretamente do grego e de


autoria de Carlos Alberto Nunes, encontra-se em volume
manuscrito sob a guarda da Biblioteca Central da UFPA,
no cofre de obras raras:
Platão. (Pág. 140)
Ilustração procedente de cartão-
postal, cedido pelo coordenador
desta coleção.

Este livro foi impresso no ano de 2007, na cidade de Belém'/PA,


na Gráfica da UFPA, para a Editora da Universidade
Federal do Pará/EDUFPA. 0 tipo usado foi Baskerville T,
corpo 12/13. 0 papel do miolo é Pólen soft 80g,
o da capa êPrintmax 350g e o da sobrecapa Couchêfosco 150g.

Afrodite no banho. A deusa


se despindo. Terracota,
Berlim, por volta de 150 a.C.
(Pág. 118)

Atena sustentando Teseu.


Escada entalhada na rocha
Copa de Aison. Madri, cerca de
em Eleuses (Pág. 232)
400 anos a.C. (Pág. 288)

stSS^ — do aiemão por

Você também pode gostar