CALVINO, Italo - Por Que Ler Os Clássicos
CALVINO, Italo - Por Que Ler Os Clássicos
CALVINO, Italo - Por Que Ler Os Clássicos
I (1923-1985)
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POR QUE LER OS CLÁSSICOS •
• POR QUE LER OS CLÁSSICOS
fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecio- do se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se co-
nando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emi- mo inconsciente coletivo ou individual.
le Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon- Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado
Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros
uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descre- permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma
veu num belíssimo ensaio. perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o
Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na encontro é um acontecimento totalmente novo.
idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita
pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da ju- importância. De fato, poderíamos dizer:
ventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer
outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao pas- 4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descober-
so que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) mui-
ta como a primeira.
tos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então
esta outra fórmula de definição: 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma
releitura.
2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma ri- A definição 4 pode ser considerada corolário desta:
queza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma
riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-Iaspe- 6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo
la primeira vez nas melhores condições para apreciá-Ias.
que tinha para dizer.
De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas -Aopasso que a definição 5 remete para uma formulação mais
pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o
explicativa, como:
uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo)
formativas no sentido de que dão uma forma às experiências fu- 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós tra-
turas, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, zendo consigo as marcas das leituras que precederam a nos-
esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de be- sa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas
leza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recor- culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na lingua-
demos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro gem ou nos costumes).
na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já
fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem ha- Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os mo-
víamos esquecido. Existe uma força particular da obra que conse- dernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não pos-
gue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. so esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a
A definição que dela podemos dar então será: significar durante os séculos e não posso deixar de pe~g~ntar-me
se tais significados estavam implícitos no texto ou se sao mcru.sta-
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência parti- ções, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, n~o?OSSO d~ixar
cular quando se impõem como inesquecíveis e também quan- de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkzano,
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que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro ver ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola
e fora de contexto. Se leio Pais efilhos de Turgueníev ou Os pos- deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número
suídos de Dostoíevskí não posso deixar de pensar em como essas de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você pode-
personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias. rá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a
A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que
em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será de- contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.
mais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-
mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A se com aquele que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente
escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que
historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre
nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em
todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Do-
questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Exis-
cumentos de Pickwick e a propósito de tudo cita passagens pro-
te uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a in-
vocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com epi-
trodução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como
sódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a
cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer
verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick
e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que
numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia
pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que:
de clássico muito elevada e exigente:
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma
nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as 10. Chama-se de clássico um livro que se configura como
repele para longe. equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sa- Com esta definição nos aproximamos da idéia de livro total,
bíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma
(ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que
primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particu- jean-jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspi-
lar). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como ra um irresistível desejo de contradizê-Ia, de criticá-Ia, de brigar
sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano ternperamen-
pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tal, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo
tipo: não posso deixar de incluí-Ia entre os meus autores. Direi portanto:
9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhe- 11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indife-
cer por ouvir dizer, quando são lidos dejato mais se reve- rente e que serve para definir a você próprio em relação e
lam novos, inesperados, inéditos. talvez em contraste com ele.
Naturalmente isso ocorre quando um clássico "funciona" co- Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clás-
mo tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se sico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade.
a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por de- (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o
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