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2486 A Assustadora Historia Da Medicina Richard Gordon

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CAPÍTULO

Hipócrates e tudo o mais



A história da medicina não é o testamento de idealistas à procura da saúde e da
vida, assim como a história do homem não é mais gloriosa do que uma lista de
irracionalidade brutal e egoísta com lampejos espasmódicos de sanidade.
A história da medicina é, em grande parte, a substituição da ignorância por
mentiras. Esse vagar errante por becos sem saída pode ser uma progressão útil,
quando os mais inteligentes e impacientes caminhantes encontram um caminho
melhor. “Muitas descobertas notáveis foram feitas por homens que, seguindo os
passos da natureza com os próprios olhos, acompanharam-na por caminhos
tortuosos, mas quase sempre seguros, até alcançá-la na sua cidadela da verdade”,
disse o homem que descobriu a circulação do sangue.
Em cada geração, desde 1600, esses individualistas legaram à humanidade
algum avanço biológico, não relacionado com o progresso árido dos benfeitores
convencionais. O fato de as suas descobertas terem sido, de um modo geral,
ameaçadas por perigos insuspeitados, provocando doenças inesperadas e morte,
só contribui para dar mais interesse à história.
Os desbravadores das grandes extensões deste vale de lágrimas formam um
grupo especial: todos inteligentes, alguns astutos, os de mais sorte abençoados
com inspiração ou intuição, muitos deles simplesmente classificadores
obsessivos dos homens e dos micróbios, ou simplesmente dotados de grande
destreza manual. Suas cabeças acadêmicas zumbiam com abelhas que, às vezes,
adoçavam com mel o pão da aflição. Eles se confundiam com os ilusionistas. A
medicina sempre se revestiu do manto cintilante das realizações, enquanto
continuava miseravelmente despida de descobertas importantes. Estas são ao todo
uma dúzia, relacionadas no fim do livro, para que os leitores inteligentes possam
testar a própria percepção.
(O leitor inteligente, tendo chegado até aqui, há tanto tempo de pé na biblioteca
ou na livraria, pode pensar que indo agora diretamente ao fim do livro vai poupar
trabalho e dinheiro.)

AQUI ESTÃO OS DRAGÕES


A mais antiga história da medicina é extremamente tediosa. O egípcio Imhotep (c.
2980 a.C.) combinou a conveniência do médico com a arte de construtor de
monumentos para o faraó Zoser, tendo construído a magnífica pirâmide Step de
Sakkarah para o uso gracioso de seu paciente real, quando este ficou fora do
alcance de qualquer tratamento. O imperador chinês, Fu-Hsi (c. 2900 a.C.) hoje
seria um famoso praticante da medicina alternativa, fazendo suas acupunturas e
dirigindo o fluxo corpóreo do Yang e do Yin. Essas são as forças opostas da vida
e da morte, do macho e da fêmea, da força e da fraqueza, do sol e da lua. O Yang
nada no coração cheio de sangue e nos pulmões, o Yin ressoa nas entranhas ocas e
na bexiga. Que curiosa e persistente bobagem!
O imperador Huang Ti (c. 2650 a.C.) descobriu a circulação do sangue 4.278
anos antes de William Harvey — se é que ele realmente existiu. Os imperadores
flutuam no ar rarefeito da história chinesa como dragões. No seu misto de história
e lenda, talvez os chineses antigos vacinassem contra a varíola aspirando a
pústula seca pelas narinas. Talvez realmente alimentassem crianças retardadas,
com deficiência da tireóide, com a tireóide tirada de carneiros. Talvez eles
gostassem da cannabis, empregassem massagistas cegos e tomassem banhos frios,
e talvez pudessem diagnosticar todas as doenças com um leve estudo do pulso.
Tudo isso é muito remoto para nos entusiasmar e muito oculto para aprender. A
única certeza que temos é de que os antigos chineses, como a massa da
humanidade antes do século XIX, viviam e morriam apenas com a terapêutica da
tradicional e fútil feitiçaria. Felizmente, o homem sempre teve o ópio para
anestesiar a mente, a uva para reconfortá-lo.
Os gregos substituíram o Yang e o Yin por humores. O sangue, o muco, a bile
amarela e a negra, a saúde dependia da harmonia disso tudo num dado momento.
O médico mais importante era Galeno (c. 132-200 d.C.). Ele era um homem
autoritário, com resposta para tudo e, desse modo, estabeleceu o padrão de
personalidade para nossa profissão. Ele observou que as artérias continham
sangue, não ar. Era especialista em ferimentos (cirurgião dos gladiadores) e
previu os transplantes, notando que o coração continuava a bater quando retirado
do corpo (nos sacrifícios). A ditadura de seu dogma reinou na medicina por 15
séculos. Em 1559, O Colégio Real de Medicina de Henrique VIII quase liquidou
um homem de Oxford que ousou duvidar de sua infalibilidade.
Galeno praticava entre os romanos, que consideravam a medicina profissional
infra dignitatem. Seu Celsus (c. 50 d.C.) era um nobre e bem-dotado médico
amador, lisonjeado na literatura com o título de Cicero medicorum. Sua elegante
enciclopédia, De Medicina, foi agraciada com a distinção eterna de fazer parte
dos primeiros livros impressos em 1478. Celsus dava aulas sobre operações de
hérnia e de amígdalas ("devem ser descoladas em toda a volta, com os dedos, e
arrancadas”), vislumbrou as sombras da insania e cardiacus, que pairavam
ameaçadoras sobre a humanidade, antecipou Harvey (junto com o imperador
Huang Ti) com sua intuição efêmera do sanguis cursus revocetur, e nos ensinou
os sinais da inflamação — calor, rubor, tumor, dolor. Chega de latim.
Charaka, Susruta, Alcameon, Empédocles, Pitágoras e Aristóteles são estrelas
distantes, tremeluzindo no espaço exterior da história da medicina, mas que não
precisam ser magnificadas.

A BOMBA DE TEMPO DE HIPÓCRATES


Todo mundo conhece Hipócrates (460-370 a.C.). Isso por causa do seu
Juramento, que poucos médicos sabem de cor, ou lembram, a não ser a proibição
de fazer sexo com as pacientes. Os Preceitos que adornam o Juramento advertem
os praticantes da medicina contra cobrar demais, vestir-se com elegância
excessiva e usar perfume, ao mesmo tempo aconselhando um corte de cabelo
decente e unhas aparadas, encorajando a suposição de um modo agradável de
tratar os pacientes (a expressão em inglês, bedside manner, nos foi legada pelo
Punch, em 1884).
Como Watt inventou o motor a vapor, Hipócrates inventou a medicina clínica. É
um mecanismo simples, a aplicação prática da observação inteligente. O que
importa é o homem doente, não as teorias do homem sobre a doença. E o paciente
todo deve merecer atenção, bem como o ambiente que o cerca — medicina
holística que foi moda há 21 séculos.
Primeiro Hipócrates:
— Ele encostava o ouvido no peito para ouvir a fricção das membranas inflamadas, nos casos de pleurisia,
que soavam como couro novo.
— Ele notou o nariz aguçado, os olhos fundos, as orelhas frias da face próxima da morte, a facies
hippocratica, usada por Falstaff em Henrique V, quando seu nariz ficou agudo como uma pena e com o
“balbucio de campos verdes".
— Ele meditou sobre a respiração estranha de um homem agonizante, desde o caso de “Filisco, que vivia ao
lado do muro e caiu de cama no primeiro dia de febre aguda... mais ou menos no meio do sexto dia, ele
morreu. A respiração era o tempo todo como a de um homem tentando se refazer de um esforço, e
espaçada e profunda”.
Esses famosos últimos suspiros ressurgiram em 1818 em Dublin.
John Cheyne (1777-1836) descreveu um caso de apoplexia. “Durante vários dias sua respiração foi
irregular, parava completamente por um quarto de minuto, então começava muito fraca, depois
gradualmente ficava pesada e rápida e, aos poucos, parava outra vez. Essa revolução no estado da sua
respiração durava mais ou menos um minuto.” Vinte e oito anos depois, William Stokes (1804-78) despertou
novamente a atenção dos médicos de Dublin, e os nomes desses dois escoceses émigrés foram para
sempre ligados ao termo respiração “Cheyne-Stoking" — uma deficiência no centro respiratório do cérebro
— que fazia os médicos balançarem a cabeça, o anúncio certo do fim.
— Hipócrates descobriu que o alcatrão (um anti-séptico) detinha a supuração dos ferimentos. Ele retirava o
pus, alinhava fraturas e corrigia deslocamentos da coluna.
— Ele estabeleceu o principio: “Nossa natureza é o médico das nossas doenças”. O que significa que a
maioria das pessoas melhora, de um modo ou de outro.
Hipócrates nasceu na ilha grega de Cos, na costa da Turquia, e ensinava sob um
olmo (digno de ser visto por turistas). Ele nos deu a palavra “aforismo". Ele criou
412 aforismos, tais como:
A vida é curta, a arte é longa. (Uma frase deprimente, gravada nas entradas das escolas de medicina.)
A oportunidade é passageira, a experiência perigosa, o julgamento difícil. (O mesmo que a primeira.)
Casos desesperados precisam de remédios desesperados.
Os velhos suportam melhor o jejum, depois os de meia-idade, os jovens suportam mal e as crianças pior do
que todos. (Daí a fortuna representada por livros com dietas para a meia-idade.)
Não julgue as fezes por sua quantidade, mas por sua qualidade. (“Duas vezes em volta do recipiente e
pontiaguda nas duas extremidades", era o que um velho médico rural considerava erradamente o perfeito.)
O sono que põe fim ao delírio é bom, sono fora de hora e sonolência indicam doença, bem como cansaço
sem motivo.
Os velhos ficam doentes com menor freqüência que os jovens, mas levam suas doenças para o túmulo.
A morte súbita é mais comum no gordo do que no magro.
Se uma mulher saudável pára de menstruar e sente enjôo, está grávida. (Nós todos sabemos essas coisas.
Mas Hipócrates foi o primeiro a saber.)
O “Pai da Medicina” foi um ancestral desastroso. Ele nos deixou a tradição
hipocrática. Ou seja: qualquer leigo que diga a um médico como fazer seu
trabalho está cometendo uma impertinência ultrajante. Qualquer interferência nos
meios que contribuem para a devoção desinteressada de qualquer médico aos
seus pacientes é chocantemente imoral.
Hipócrates teria se admirado com a declaração de Platão de que ele era a
Autoridade da Saúde na Área de Cos. O próprio Marco Aurélio teria hesitado em
descer do Capitólio para dizer a Galeno que seu orçamento ia ser cortado. Eheu
fugaces! No fim do século XX, a medicina proliferou tanto e seu custo cresceu
tanto, que um tratamento adequado está muito além dos meios dos sofredores
assustados e, no futuro, estará além dos meios de qualquer cidadão sofredor e
pagador de impostos. A não ser que os médicos aprendam a praticar economia,
além da medicina, Hipócrates se tornará redundante, porque ninguém mais poderá
se dar ao luxo de ficar doente.
Hipócrates brilha elegantemente na galeria de estátuas antigas dos homens de
medicina, com sua barba crespa e testa franzida para os males da humanidade
(pode ser vista no Museu Britânico) Freqüentemente ele está usando o cajado de
Esculápio, o deus da cura, com a serpente enrolada. Na desordem e confusão do
Olimpo, Esculápio era filho de Apolo (médico dos deuses) e de Coronis (ninfa).
Ele era tão bom na sua profissão que enfureceu Plutão, por diminuir a população
do Hades, e o rei dos infernos o explodiu com um relâmpago. Ele pode ser visto
na Tate Gallery, no quadro de Sir Edward Poynter, de 1880, que representa a
clínica de Esculápio: um jardim murado com fontes cantantes e o arrulho das
pombas, as pacientes, quatro mulheres voluptuosas, completamente nuas, bem
providas de seios e de mons veneris, sendo o único sofredor um homem, que
mostra ao médico o calcanhar dolorido do pé esquerdo. Homem de sorte, o velho
Esculápio.
Hipócrates escreveu 100 livros, embora fosse tão plausível a idéia de atribuir
sua obra a várias pessoas quanto dizer isso de Shakespeare.

A IMPOPULARIDADE DA MORTE
Timor mortis conturbat me — a idéia da morte me deixa morto de medo,
exclamou William Dunbar (?1465-?1530), o Chaucer escocês, se é que tal
transmigração é possível. Esse temor compreensível criou a religião e a
medicina.
A antiga igreja católica era contra os médicos. Eles interferiam no negócio da
morte. Os corpos aninhados em volta de suas torres de marfim enfatizavam o fato
de que a recepção dos seus patronos seria tão calorosa no céu quanto o castigo
dos outros, no inferno. A causa da doença era, evidentemente, o pecado, seu
tratamento era a oração, o jejum e o arrependimento. Os santos dirigiam o corpo.
Santa Blaise se encarregava da garganta, Santa Brígida dos olhos, e Erasmo das
entranhas, Santo Dympna era o psiquiatra, São Lourenço especializava-se em
dores nas costas, São Fiacre, em traseiros doloridos (ele deu o nome à pequena
carruagem francesa). São Roque distribuía as pragas, São Vito tinha sua dança, O
Fogo de Santo Antonio assava os membros, acesos pela infecção ou pelo
envenenamento pelo ergot do pão de centeio. A primeira operação de transplante
foi feita pelos santos gêmeos, Cosme e Damião, que substituíram a perna ulcerada
de um homem branco pela de um negro morto recentemente (de Sedano
representou isso no seu quadro). Os gêmeos foram decapitados em 303 d.C.,
acusados de serem empecilhos não-ortodoxos.
Pior ainda, o corpo humano era considerado sagrado e a dissecação proibida
(os muçulmanos continuam com essa crença). Desse modo, o conhecimento do
corpo permaneceu à flor da pele.
Galeno reclamava que um médico sem anatomia era um arquiteto sem um plano,
mas ele também tinha de se contentar com a dissecação dos macacos da Berbéria,
que enfeitam hoje Gibraltar. Trotula (c. 1050), uma das “damas obstetras de
Salerno” (as outras eram Abella, Constanza e Rebeca), escreveu De Mulierum
Passionibus, foi celebrizada de Navarra a Paris na canção “Dame Trot” pelo
famoso trovador Ruteboeuf, mas mesmo assim tinha de dissecar porcos. Ela se
consolava com o fato de os porcos serem iguais aos homens, por dentro. No outro
lado do Mediterrâneo, na escola de medicina de Alexandria, fundada em 332
a.C., Herófilo e Erasístrato (c. 300 a.C.) já tinham a solução anatômica: eles
dissecavam vivos os criminosos da prisão real. “Sem dúvida, o melhor método
para aprender", escreveu Celso, aprovando.
A anatomia estava morta e a medicina nasceu morta. A religião é sem dúvida a
Coisa Boa, oferecendo os meios valiosos para instalar sobre os ombros do
homem auto-afirmativo o peso de alguém mais importante do que ele, com um
conjunto excelente de regras com as quais, na maior parte das vezes, ele não
consegue dirigir sua vida, oferecendo esperança, consolo, orientação e
humildade, além da maravilhosa arquitetura da Basílica de São Pedro e do Taj
Mahal. Mas ela sufocou a medicina durante 15 séculos.

OLÁ, RENASCIMENTO!
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um anatomista casual. A rainha conserva em
Windsor seu encantador desenho de um casal cortado ao meio, fazendo sexo.
Estão de pé, e o desenho apresenta em corte longitudinal o pênis firmemente
inserido na vagina, com nervos vigorosos transmitindo o prazer para a medula
espinhal do homem, seu coração bombeando o sêmen para fora do escroto por um
longo tubo espinhal e o útero dela ligado ao mamilo. O detalhe que acompanha o
desenho, um pênis cortado como uma lingüiça, mostra corretamente as cavernas
esponjosas, inundadas de sangue durante a ereção. A outra ilustração,
representando a genitália feminina, faz lembrar a robustez da entrada de uma
catedral. Tudo uma concepção razoável dos eventos.
Em Paris, o estudante de medicina Andreas Vesalius (1514-64) encontrou, fora
dos muros de Louvain, perto de Bruxelas, onde nasceu, um patíbulo onde
balançava um esqueleto dissecado completo com ligamentos. Ele correu para
casa com aquela preciosidade — qualquer esqueleto humano era uma avis rara
— e iniciou sua carreira, que culminou com um anfiteatro anatômico lotado, em
Pádua (Ticiano pintou o quadro). A perfeição artística do belo atlas anatômico de
Vesalius, De Humanis Corporis Fabrica, mostra os corpos esfolados, os
músculos abrindo-se como pétalas de uma flor, a vivacidade vigorosa dos tenistas
de Wimbledon. Ele destronou bravamente Galeno, depois de descobrir que a
mandíbula era um único osso, não dois, que o esterno é formado por três ossos,
não sete, e que os filhos de Adão não têm uma costela a menos, e portanto Eva
deve ter vindo de algum outro lugar. Tudo isso provocou a ira dos que, desde o
começo do mundo, se julgavam importantes.
A heresia e a blasfêmia persistiam como disfarces pomposos para oprimir a
liberdade da palavra, a qual sempre escolhe assuntos que provocam
implicitamente nos opressores um mal-estar secreto. O próprio Papa Urbano VIII
devia perder o sono, imaginando que talvez Galileu estivesse certo, e e pur si
muove. Michael Servetus (1509-53) foi queimado vivo por Calvin, numa fogueira
alimentada por seus livros, por ter descoberto a circulação pulmonar. Vesalius foi
obrigado a abandonar a anatomia quando tinha 30 anos, e foi ser médico da corte
em Madri. Ele dissecou um nobre espanhol, que se moveu alarmantemente sob o
bisturi, o que provocou a ira da Inquisição, que o condenou a uma peregrinação
expiatória a Jerusalém, na qual o navio naufragou e ele morreu de fome na ilha
grega de Zante. Depois de Vesalius, vieram Eustáquio (1510-74) e Falópio
(1523-62), famosos por suas trompas, a primeira no ouvido médio, a outra na
pélvis feminina.
No século XI, Salerno, da Dame Trot, foi o primeiro centro de excelência
médica, uma expressão usada hoje para designar a si próprios por Guy, Bart,
Tommy etc. Esse balneário popular veio a ser a original Cintas Hippocratica, um
ponto de reunião para médicos, numa bela paisagem e isenta de impostos.
Napoleão fechou a escola de medicina em 1811. Não existe mais, como o resto da
velha Salerno, depois do bombardeio para o desembarque dos aliados em 9 de
setembro de 1943.
A escola de medicina de Salerno foi suplantada em excelência, durante o
século XIII, pela escola de Montpellier, e depois pela de Leyden, perto de Haia,
fundada por Guilherme de Orange em 1575. A estrela de Leyden era Hermann
Boerhaave (1668-1738), um médico prático que lecionava elegantemente em
latim, e atraiu estudantes até da America, estendeu sua clínica particular até a
China e deixou dois milhões de florins. Durante um breve período, Montpellier
abrigou o bêbado, errante, agressivo e arrogante Paracelso (1668-1738) de
Zurique, que começava suas aulas queimando as obras de Galeno e desdenhava os
médicos tradicionalistas, seus contemporâneos, médicos com mantos de veludo e
que falavam latim. “Eu não agrado a ninguém, exceto aos doentes que curo”,
gabava-se ele, com razão. Montpellier produziu o único papa médico, João XXI,
que morreu quando o teto lhe caiu em cima.
Sessenta e cinco anos depois de Vesalius se tornar seu professor de anatomia e
cirurgia, Pádua ensinou William Harvey (1578-1657), de Folkstone, que era
baixo, moreno, com cabelos crespos, agitado e falante e que voltou para casa para
trabalhar no Hospital São Bartolomeu e para James I e Charles I.
Todo mundo sabia que o sangue se movia, fosse pela observação da artéria de
uma ovelha abatida, fosse pela tendência do homem para matar e ferir seus
semelhantes (Harvey sempre usava uma adaga no cinto). Até o século XVII,
imaginava-se que o sangue saía e entrava, como as marés. Em 1628, Harvey
demonstrou que ele percorria um caminho circular, como a música da década de
1930.
Havia uma dúvida: como o sangue voltava ao coração através da carne?
Galeno havia dito que ele passava de um lado para o outro do coração. “Somos
levados a admirar o maravilhoso artesanato do Todo-Poderoso”, comentou
Vesalius, sarcasticamente, “que faz o sangue se escoar do ventrículo direito para
o esquerdo por passagens invisíveis ao olho humano”. A resposta tantalizou os
estudantes de Harvey durante 32 anos.
O microscópio foi inventado acidentalmente por um óptico holandês que
introduziu duas lentes num tubo. Antony van Leeuwnhoek (1632-1723), de Delf,
explorou a invenção — ele tinha 247 microscópios e foi o primeiro homem a ver
o próprio espermatozóide. O microscópio, de Marcello Malpighi (1628-94), de
Bolonha, revelou o elo que Harvey procurava, mostrando o corpo todo percorrido
por capilares minúsculos que canalizavam as artérias para as veias. A partir de
então, o corpo foi alegremente examinado ao microscópio e estudado pela
anatomia por toda a Europa.

CORPO E ALMA
Nosso corpo é o mesmo velho corpo do homem primitivo. É sujeito às mesmas
velhas doenças. Nossos crânios são ainda os mesmos nos quais os antigos bem-
intencionados, com uma lógica dolorosa, faziam buracos para aliviar dores de
cabeça ou libertar os demônios da loucura. As múmias sofreram de apendicite,
artrite e dentes estragados. (Para mumificar, insere-se um gancho no nariz para
retirar o cérebro, abrem-se os flancos e rega-se, como um frango no forno, com
especiarias e sal durante 70 dias.) Até os dinossauros tinham problemas de
coluna.
Os cadáveres eram a terra comum na qual a medicina pastava e engordava. O
material era filantropicamente fornecido por criminosos, para os quais a
dissecação sangrenta assustava mais do que a ameaça da forca. Quando o estoque
ficava baixo, em Edimburgo, para o cintilante professor Robert Knox (1791-
1862), Burke e Hare sempre podiam desenterrar alguém para ajudar. O problema
desses dois homens era a preguiça. Para não ter de acompanhar enterros, evitar
cautelosamente os parentes do morto e cavar no escuro, com pás de madeira para
não fazer ruído, eles embriagavam corpos vivos com uísque, estrangulavam e os
vendiam por 7,10 libras cada um. Era enorme o número de “ressurrescionistas”,
até que a Lei Britânica da Anatomia, em 1832, substituiu o preenchimento de um
formulário por voluntários visionários. Houve um grande debate em Montreal, em
1875, quando o tifo dizimou os ocupantes de uma escola/convento, e as freiras e
crianças foram roubadas antes que os pais americanos chegassem para levar os
corpos para casa.
Os anatomistas gravaram seus nomes em nós, com o mesmo amor com que os
namorados gravam os seus nas árvores. Nós abrigamos as criptas de Lieberkühn,
no envoltório dos intestinos. O círculo de Willis, que é a junção das artérias na
base do crânio. A ampola de Vater, que guarda a extremidade do duto biliar. O
forame de Wilson, uma abertura no peritônio, abaixo do fígado. A fossa de
Rolando, no cérebro, e a bainha de Schwann, nos nervos. O saco de Douglas,
atrás do útero, o canal de Alcock, na pélvis ("não na vagina”, zombam os
estudantes de medicina). O nervo de Bell, no peito, o músculo de Santorini, na
face, o ligamento de Poupart, na virilha, o triângulo de Scarpa, na coxa... Você
encontra, dá seu nome à descoberta. Esse egoísmo exuberante fez de nós gloriosos
Panteões ambulantes para os maiores médicos de cinco séculos. E por que não?
Nesse meio tempo os médicos fizeram a vontade da igreja, procurando a alma,
porém nem Sir Thomas Brown, das universidades de Oxford, Montpellier, Pádua
e Leyden, conseguiu encontrá-la. René Descartes (1596-1660), que promoveu
l’homme-machine (o homem era um deux-chevaux, Deus, seu Criador, com o
Espírito Santo no tanque), descobriu a alma na glândula pineal, uma gotícula atrás
do principal ventrículo do cérebro. Ninguém sabe o que faz a glândula pineal,
mas nos faz mais felizes à luz clara do sol, portanto talvez ele estivesse certo.
William Harvey escreveu em Exercitatio Anatomica de Motu Cortis et
Sanguinis in Animalibus.
É bem possível que o movimento do sangue no corpo se processe desse modo. Todas as partes devem ser
alimentadas, aquecidas e ativadas pelo sangue, perfeitamente vaporoso, mais quente e, por assim dizer,
nutriente. Por outro lado, em certas partes o sangue precisa ser resfriado, espessado e figurativamente
usado. Dessas partes ele volta ao ponto de partida, ou seja, o coração, como para a sua fonte ou o centro
da economia do corpo, para ser restaurado ao seu estado anterior de perfeição. Então, com o calor natural,
poderoso e abrasador, uma espécie de armazém de vida, ele é reliquefeito e impregnado com espíritos e (se
posso dizer assim), adoçado. Do coração ele é redistribuído, E tudo isso depende do movimento de pulsação
do coração.

Hoje, isso é descrito desse modo:



EXCITAÇÃO ELÉTRICA DO CORAÇÃO
Miocárdio em funcionamento (sem marcapasso)
Alterações no potencial da membrana:
Fase 4
Potencial de repouso (-90 mV)
Potencial próximo do equilíbrio-K
Cientificamente, embora seja deprimente, não passamos de sacos à prova
d’água cheios de produtos químicos carregados de eletricidade, que um dia
sofrem uma pane de força. Assim são os nossos cães, os pássaros no jardim, os
elefantes no zoológico, os camundongos na cozinha, os peixinhos dourados, as
libélulas nas rosas, a unicelular ameba que nos dá desinteria, o vírus da gripe. Ao
contrário deles, ao contrário até dos macacos que saltam de galho em galho, logo
abaixo de nós na árvore da evolução, nós sabemos que vamos morrer.
“Este corpo não pode ser tudo que eu sou — esse é o brado humano”,
reconhece C. P. Snow. Assim a humanidade concebeu a vida eterna, de uma
mistura de medo e vaidade. E Deus tornou-se uma feliz criação humana, como
Mickey Mouse.
“Onde há três médicos, há dois ateus”, diz o provérbio medieval latino.
Contudo, certamente qualquer médico ficaria agradavelmente surpreso se
reacordasse numa nuvem, tocando harpa ao lado de Bertrand Russell, que
filosofou com firmeza: “Quando eu morrer, vou apodrecer”, 97 anos antes que
isso acontecesse.
CAPÍTULO 2

Homem, micróbios e história


O verão de 1894 foi terrível em Woking. Os marcianos aterrissaram. Eram


grandes como ursos, pele oleosa, dois olhos enormes e a baba escorria das bocas
repletas de tentáculos móveis como fios de cabelos. Não comiam nunca — não
tinham entranhas — mas injetavam sangue humano nas suas veias. Nunca dormiam
nem ficavam cansados. Gritavam “ulla, ulla, ulla, ulla!” o tempo todo, e se
reproduziam como botões de flores. Estenderam um tapete emaranhado de mato
vermelho que emitia raios quentes fatais e gás negro venenoso. Os invasores
avançaram pela bela estrada de Chobham e tomaram a sossegada Byfleet, a
despeito dos hussardos e dos Maxims. Weybridge caiu, Shepperton foi devastada,
a população de Londres fugiu para Bamet. Os marcianos continuaram seu caminho
assassino até Primrose Hill, onde todos contraíram uma doença e morreram. Eles
haviam conquistado o homem, mas não tinham nenhum fator de resistência às
bactérias que pululavam na Terra dos homens. Nossos germes nos salvaram.
Destruíram também o tapete de mato vermelho.

A GUERRA DOS MUNDOS


Por ocasião do nascimento de H.G. Welles, em 1886, ninguém conhecia a
existência do exército de micróbios na Terra. Quando ele morreu, em 1946, nós
os estávamos atacando aos poucos, com algumas vitórias. Os humildes
microorganismos herdaram a terra antes de nós, são em número infinitamente
maior do que nós, eles nos matam sorrateiramente, restringem nosso prazer
sexual, eles pilotaram nossa história e comandaram nossos pensamentos, eles nos
massacraram intermitentemente, eles nos reduzem ao medo abjeto e à
meticulosidade absurda, eles estarão aqui depois de nós. A descoberta desses
microorganismos na segunda metade do século passado foi uma materialização de
duendes, diabretes e feiticeiros que desde o início dos tempos dançam na
memória dos povos. É um mundo de insetos.
O décimo terceiro capítulo do Levítico é um manual perfeito de saúde pública.
Para o controle da lepra, as roupas do doente são queimadas — seja qual for a
utilidade ou o material — e gritando “impuro, impuro” ele desaparece no
isolamento. Casais com gonorréia enfrentam uma quarentena de uma semana, tudo
em que eles sentaram é lavado, incluindo suas selas. O homem sempre soube que
podia apanhar uma doença de outra pessoa ou de alguma coisa — mas apenas
vagamente, como imagina ainda que o vento frio traz reumatismo. O próprio
Hipócrates não chegou a conceber a idéia de infecção.
A febre era atribuída aos deuses, ou mais especificamente ao ar impuro —
malaria significa, em italiano, o tremor de frio provocado pelas emanações
venenosas dos Pântanos Pontine. Foram necessárias as pragas devastadoras da
Idade Média para que se começasse a suspeitar de que algo sólido pode transmitir
doenças de uma pessoa para outra. Em 1546, um médico jovial e poeta de Verona,
Hieronymus Fracastorius (1483-1553) dizia no De Contagione que as epidemias
que assolavam as margens do Lago Garda progrediam por meio de sementes
invisíveis. Essas sementes propagavam-se rapidamente, levadas pela respiração
ou pelo ar, ou por beber no mesmo copo ou dormir com a mesma mulher, por
meio de roupas, pentes, moedas, qualquer coisa infectada, que ele chamava de
“fomites”. Ele só não descobriu que as sementes eram vivas, tanto quanto ele.

Não aconteceu muito mais do que isso na conquista da infecção, até 17 de


setembro de 1683.

O nosso arrojado almofadinha de Delft, Antony van Leeuwenhoek, estava tão


na moda como o criador do microscópio quanto seu contemporâneo Stradivarius,
o fabricante de violinos. Naquele dia de setembro ele tirou restos de comida de
seus dentes e descobriu pequenos animais “mais numerosos do que a população
dos Países Baixos, todos se movimentando alegremente”. Eram bactérias nos seus
típicos aglomerados e cadeias, tão conhecidos hoje em dia. Esses “animalúculos”
persistiram na mente dos médicos como sendo gerados, a exemplo das larvas,
pela própria carne putrefata. Assim como os chineses supunham que os insetos
eram gerados pelo bambu molhado, as abelhas surgiam de vacas mortas e a lama
do Nilo, cozida pelo sol, produzia rãs e cobras, se não crocodilos.

Quando Francesco Redi (1626-97), da Toscana, antecipou a Sra. Pooter,


cobrindo a carne para protegê-la das moscas, ele acabou com as larvas. Elas não
brotavam espontaneamente. Omne Vivum ex ovo, anunciou ele, até uma larva tem
mãe e pai. Somente Homero teve a idéia antes:
“Mãe”, queixou-se Aquiles em Tróia, “tenho um medo terrível de que nesse
meio-tempo as moscas profanem o corpo de meu senhor Patroclos, pousando
nos ferimentos abertos e depositando vermes neles.”
“Meu filho”, Tetis o tranqüilizou, “vou providenciar para que as moscas
sejam afastadas, salvando-o assim dessas pestes que devoram os corpos dos
homens mortos em batalha.”
O tratamento preventivo da mãe Tetis consistia em ambrosia e néctar vermelho,
administrado pelo nariz.
As modas dos tratamentos aparecem tão absurdamente quanto na alta-costura.
Aquelas larvas que rastejavam repulsivamente em volta dos ferimentos só
estavam fazendo o bem. Avidamente elas limpavam os restos sépticos de pele
morta, de carne e de pus, e estão agora sendo recrutadas para atuar como abutres
não-tóxicos do corpo. Para uma infecção do ouvido externo, nada melhor do que
uma larva na orelha.

Ninguém foi muito adiante até a chegada do maior médico do século XIX, que
não era qualificado.

MEDICINA PASTEURIZADA

Em 1856, a indústria francesa de vinho praticamente fechou. Garrafa após garrafa


de vinho avinagrado era devolvida iradamente aos sommeliers, seu conteúdo
despejado nos esgotos, quebradas com desespero contra a parede. A cerveja
também estava horrível. Os vinhateiros de Bordeaux chamaram o professor de
química de Lille, uma autoridade em fermentação como Flaubert era, em Rouen,
autoridade em adultério.
Louis Pasteur (1822-95), do Jura, era filho de um curtidor de peles, veterano
da La grande armée. Em 1864, Pasteur descobriu que aquela trágica acidificação
do vinho não era produzida por alguma química maligna, mas por organismos
microscópicos vivos, gerados não pela própria bebida agradável, mas que
estavam no ar. O desastre enológico podia ser evitado matando os organismos, o
que podia ser feito aquecendo o lagar a 60 graus centígrados. Aquelas safras tão
bien chambrées foram consumidas com tanto alívio e alegria que a indústria
vinícola da França teve um lucro sem precedentes de 500 milhões de francos
naquele ano. Pasteur observou então que os fermentos da boa cerveja eram
esféricos, e os da cerveja azeda, elípticos, uma distorção provocada por
micróbios. Assim, ele pasteurizou a cerveja também.
Na mesma época, os lucros anuais da indústria francesa da seda caíram de 130
milhões para 8 milhões, porque o bicho-da-seda contraíra pébrine, doença da
pimenta-negra. O bicho-da-seda gosta de amora, mas as plantações de amoreiras
nas Montanhas Cévennes, do Languedoc, estavam se transformando em cidades
fantasmas, atacadas pela vermiculite. Desesperados e confusos, os sericultores
procuraram Pasteur.
Ele foi de Paris para Alais, no sul, e os presenteou com a descoberta de que a
epidemia não era causada por um micróbio vivo (era um protozoário, um
organismo unicelular como a ameba, que provoca a desinteria, mas naquele
momento ele não podia pôr as mãos nele). Pasteur, a flâcherie, diarréia do bicho-
da-seda. A cura para as duas consistia em separar os insetos que apresentavam os
pontos cor-de-pimenta — os camponeses os guardavam em garrafas com
conhaque, para mostrar aos entendidos — e higiene rigorosa da folha da
amoreira. Logo o farfalhar da seda foi ouvido em nossa terra.

É reconfortante pensar que a gênese da anestesia foi o costume de cheirar “éter


por brincadeira”, e que a bacteriologia — com suas benevolentes ramificações de
inoculação e antibióticos — foi um copo de vinho, uma caneca de cerveja e um
belo vestido. Nossos instintos para o prazer têm seus efeitos colaterais positivos.

Os gados bovino e ovino da França estavam passando por uma fase terrível,
também. Estavam sendo dizimados pelo antrax, extremamente doloroso. Em 1881,
a vacina contra o antrax, de Pasteur, reduziu a mortalidade por essa doença a 1%
entre as ovelhas e a 0,34% no gado bovino. Todas as galinhas apanharam cólera.
Pasteur viajou nos feriados e esqueceu no laboratório um espécime do fluido
bacteriano que infectava as galinhas, e saiu para uns dias de descanso. Ele voltou
para descobrir que sua cultura de bactérias em crescimento tinha enfraquecido, e
concluiu que era ideal para inoculação contra a epidemia — como durante outro
feriado, que veremos mais adiante, num clima menos ameno, o bolor da penicilina
cresceu satisfatoriamente para Alexander Fleming. É muito inteligente ganhar o
prêmio Nobel in absentia.
Com a medula de cães raivosos Pasteur criou a vacina que salvou a vida do
garoto pastor Juptile, eternizado na estátua que o mostra lutando contra um cão
raivoso, no 15º arrondissement. Ele enfeita o jardim nos fundos do Instituto
Pasteur, onde está enterrado nosso descobridor de micróbios vivos e da
inoculação científica para combater sua incessante campanha contra nós.
A mente de Pasteur foi a luz e o fim do túnel da infecção, que não tinha começo.
O valor em dinheiro das suas descobertas foi usado pela França para completar a
indenização exigida pela Alemanha pela guerra de 1870-71. Pasteur teve uma
vida simples, séria e espiritual, e fez tudo isso a despeito de ter sofrido um sério
derrame, em 1868. Sua filha de 12 anos morreu de febre tifóide, 15 anos antes de
ser descoberto o germe dessa doença. A aplicação do seu gênio ao leite, no
século XX, fez com que o nome de Pasteur passasse a aparecer na soleira de
todas as portas da Grã-Bretanha.

O MÉTODO NOS SEUS MICRÓBIOS


Em 1771, o sensato Dr. Tobias Smollett podia resumir francamente:
Existem armadilhas para nossas vidas em tudo que comemos e bebemos. O
próprio ar que respiramos está carregado de contágio.
Não podemos nem mesmo dormir sem correr o risco de uma infecção.

O francês Louis Pasteur ensinou aos médicos que as misteriosas "coisas”


infecciosas que transmitiam as doenças são coisas vivas. A classificação dos
tipos exatos dessas coisas foi um obstáculo demolido pela mente bem ordenada
dos alemães.

No outro lado da guerra de 1870 lutava Robert Koch (1843-1910), clínico


geral numa cidadezinha em Wollstein, na Renânia, que, farto de longas e duras
jornadas e pacientes rústicos, procurou diversão intelectual no microscópio.
Começou estudando um bacilo vigoroso descoberto em 1863 pelo francês
Casimir Davaine (1812-1882), especialista em tênia ou solitária. Com os olhos
objetivos de um médico do campo, Koch observou a tendência do bacilo para
formar cadeias infindáveis e desaparecer em esporos de longa duração e
sorrateira virulência. E que causava o antrax.

Essa foi a sensação médica de 1876. Robert Koch associou o germe à doença
como causa e efeito, um casamento patológico no qual ninguém havia pensado.
O antrax, no homem ou no animal, com as pústulas sangrentas na pele, a
"doença dos cardadores de lã” de rápido e letal desenvolvimento e que ataca os
pulmões, era atribuído aos miasmas do campo. Koch provou que o antrax era uma
infecção identificável, causada por um agente identificável. Melhor ainda, ele
tingiu com corantes de cores vivas esses inimigos invisíveis e descobriu o que
eles comiam enquanto proliferavam abundantemente no cativeiro (consommé de
carne, frio), e tirou fotografias espetaculares deles. "C’est un grand progrès!” foi
como Pasteur o saudou alegremente, quando foi a Londres para tentar a cultura de
uma forma de virulência atenuada do bacilo do antrax, para a vacina que salvaria
a carne e o queijo da França.
Koch escreveu os Postulados de Koch:
1 O germe causador da doença deve estar presente em todos os casos da
doença, e deve ser encontrado no corpo sempre que a doença aparecer.
2 Extraído do corpo, o germe deve crescer numa cultura pura de
laboratório, por várias gerações microbianas. (As bactérias não têm vida
sexual, elas se dividem em duas indefinidamente.)
3 Essa cultura deve transmitir a doença a um animal suscetível, ser recolhida
dele numa cultura pura e transmitir a doença para outro infeliz animal.

Essa prova de um micróbio específico causar uma doença específica continua


inviolada desde sua criação, em 1881, exatamente como o Túnel Mersey.

Em 1879, Albert Neisser (1855-1916), dermatologista de Breslau, descobriu o


gonococo. Armauer Hansen (1841-1912), de Bergen, justificou o Levítico
descobrindo o bacilo da lepra (a Noruega estava-se tornando uma nação de
leprosos). Em 1880, Pasteur descobriu o estreptococo e o estafilococo, que
causam vários tipos de infecções. Karl Joseph Eberth (1835-1926), um
patologista com barba espessa, de Halle, descobriu o bacilo do tifo. Em 1882,
Koch descobriu o micróbio causador da tuberculose. Aquele que mais tarde seria
seu sucessor no novo Instituto para Doenças Infecciosas, Friedrich Loëffler
(1852-1915), naquele mesmo ano descobriu os bacilos do mormo e, no ano
seguinte, com o impaciente Edwin Klebs (1834-1913), de Königsberg, o bacilo
da difteria.
Koch descobriu o bacilo da cólera em Berlim, em 1884, Albert Fränkel (1848-
1910) descobriu o da pneumonia e Arthur Nicolaier (1862-?) descobriu o bacilo
do tétano. Em 1886, Theodor Escherich (1857-1911), de Munique, que usava
barba em ponta, identificou o bacilo coli, que atacava os intestinos de todo
mundo. Erguendo a bandeira do Reino Unido, Sir David Bruce, em 1887,
descobriu o micróbio da febre de Malta, enquanto Anton Weichselbaum (1842-
1920), na Áustria, descobriu o micróbio da meningite. Em 1889, outro discípulo
de Koch, Richard Pfeiffer (1858-1945), em Breslau, descobriu o bacilo da gripe,
ou influenza, que infelizmente não causa a influenza. Em 1892, desfralda-se a
bandeira das listras e estrelas quando William Welch (1850-1934) descobriu o
terror dos exércitos, que despreza o oxigênio, o bacilo da gangrena gasosa. E em
1894 ergue-se a bandeira do sol nascente, quando n gordo Shibasaburo Kitasato
(1852-1931), também discípulo de Koch, descobriu, com o francês Alexander
Yersin (1862-?), o germe da peste bubônica, que espalhou o terror através dos
tempos.
Dezoito anos, e dezoito assassinos de massas identificados e encurralados.
Ó mundo invisível, nós o vemos,
Ó mundo intangível, nós o tocamos
Ó mundo não identificável, nós o identificamos
Inapreensível, nós o agarramos!

Os bacteriologistas podiam agora declamar a apóstrofe do ex-estudante de


medicina Francis Thompson (1859-1907) à vida espiritual, mas de modo mais
prático e útil. Robert Koch ganhou o prêmio Nobel em 1905, e suas cinzas
repousam no Instituto Koch, em Berlim.

PROVAVELMENTE APENAS UM VÍRUS

A doença do mosaico que assolou as plantações de tabaco, em 1892, e a febre


aftosa que atacou o gado, em 1898, indicavam que algumas doenças podiam ser
transmitidas sem bactérias. Era possível passá-las experimentalmente para um
fluido infectável, e isso significava passar pelo filtro impermeável a todos os
outros micróbios conhecidos. Os culpados seriam os vírus, que se reproduzem
(assexualmente, por fissão binária) somente no interior das células vivas. São
menores do que as bactérias e visíveis somente no microscópio eletrônico.
Alguns não são mais do que ácido nucléico envolto em proteína. Alguns são tão
simples que podem se cristalizar: substâncias químicas mas vivas, como nós.
Talvez tenhamos começado assim, como a espuma do limo viscoso do começo do
mundo.

Os vírus ameaçam as criaturas humanas com doenças desagradáveis e


perigosas, desde a poliomielite e a pneumonia até resfriados e verrugas.
Egoisticamente, nós nos vemos como alvo principal do exército vasto e voraz das
bactérias e dos vírus. Porém, os animais, os peixes, as flores e as árvores, insetos
e ostras, todos têm a saúde e a vida ameaçadas pela infecção. Seguindo o
princípio de Swift de que as pulgas têm pulgas menores que as picam, até as
bactérias ficam doentes e morrem, vítimas dos pequenos vírus bacteriófagos, que
parecem girinos, descobertos em 1915. Nós todos vivemos de alguma outra coisa.
Nosso mundo é um paraíso de parasitas.

O SHOW DA SALMONELA
Tantas bactérias e subespécies de bactérias estavam sendo descobertas no
reinado da Rainha Vitória e de seu neto, o Kaiser Guilherme, que exigiam uma
classificação numa lista telefônica microbiana. O grupo Salmonela, irrequieto,
abanando as caudas, compreende hoje mais de 1.000 espécies diferentes que
provocam infecção intestinal. Passaram a ser o tema das conversas quotidianas e
levaram o pânico ao povo e aos políticos da Grã-Bretanha, em 1988, provocando
a espetacular renúncia da subsecretária de saúde, Edwina Currie (1946).

O homem, com sua notável engenhosidade, criou fornos de microondas e


comida congelada, meios ideais para a propagação dos seus inimigos unicelulares
invisíveis. E seu confortável ar condicionado transformou numa ameaça assassina
os antes ignorados cocobacilos, que agora disseminam a doença dos legionários.
Como um recurso de economia, a alimentação das galinhas com suas próprias
fezes, ricas em salmonelas, transformou o ovo do desjejum dos ingleses em
Borgias levemente cozidos, levando as granjas da Inglaterra à ruína, como as
vinícolas francesas no passado. O primeiro a classificar as salmonelas foi Daniel
Elmer Salmon (1850-1914), um americano de porte distinto, de cabelos brancos,
sobrancelhas espessas, bigode aparado e barba em ponta. Fiquei intrigado quando
vi sua fotografia no Museu Wellcome de Medicina. Com qual pessoa notável se
parecia aquele guru das doenças intestinais? Até encontrar na rua seu sósia, o
amigo de todo mundo, o santo sanitário Coronel Saunders.

AS PRAGAS QUE NOS AMEAÇAM

A mentalidade germânica saltou para a classificação dos micróbios com a mesma


agilidade com que saltou para a metafísica ou o misticismo. A mentalidade
britânica explorou as doenças sobre as quais o sol jamais se põe.

O médico hindu Susruta (c. 500 d.C.) suspeitava que a malária era disseminada
não pelo ar, mas pelos mosquitos que zumbiam ao fim do dia (com a mesma
percepção com que suspeitava que os ratos mortos transmitiam a peste). Marco
Polo, no século XIII, observou os cortinados contra mosquitos, que mais tarde
velaram os sonhos, as paixões e o suor da insônia do Raj britânico. Os
professores togados de Cambridge eram atacados pela “febre dos pântanos", mas
continuaram, como todo o mundo, a ignorar os insetos que injetavam a febre
intermitente, até que em 6 de novembro de 1880 o oficial médico do exército
francês na Argélia, Alphonse Laveran (1845-1922), descobriu o parasita
unicelular plasmódio nos glóbulos vermelhos do sangue de doentes de malária.
O escocês Sir Patrick Manson (1844-1922) foi diretamente da Universidade de
Aberdeen para o Serviço de Alfândega da Marinha Imperial da China, chegando à
praia de Formosa numa noite escura de 1866. Três anos antes da descoberta de
Laveran ele afirmou, em Hong Kong, que os vermes filária de cinco centímetros
de comprimento causavam elefantíase, uma condição provocada pelo bloqueio
dos condutores da linfa humana que pode causar um edema gigantesco nos
membros e obrigar os homens a carregar os testículos num barril, para se
movimentarem. Além disso, ele descobriu que as pequenas e extremamente
móveis filarias larvais, que invadiam o sangue dos pacientes, eram sugadas à
noite pelos mosquitos Culex fatigans, depois incubadas neles e em seguida
passadas para outra pessoa. Ninguém acreditou.

Manson voltou para casa e fundou a Escola de Medicina Tropical de Londres.


Em 1894 ele conheceu o futuro Sir Ronald Ross (1857-1932), nascido na índia,
filho de um general, de pescoço grosso, com um bigode espetado de oficial não
comissionado, que acabava de desembarcar do navio P&O, de licença do Serviço
Médico da índia. Manson apresentou a ele, por meio do microscópio, o parasita
da malária do oficial francês da Argélia. O estudioso Ross, de volta ao seu
laboratório na frente da estátua da Rainha Vitória, voltou a encontrar o parasita
em 20 de agosto de 1897 no estômago do mosquito anofeles, que tem pontos
escuros nas asas.
Tamanho foi o júbilo do império britânico com a elucidação da doença que
devastava indiscriminada e impertinentemente os nativos e seus governantes de
capacetes de cortiça e abanadores para espantar os mosquitos, que essa data foi
denominada “dia da malária”, comemorada com enormes almoços no Instituto
Ross, em Putney. Ross também escrevia poesia, que agradou imensamente a
Osbert Sitwell. Outro bacteriologista/poeta foi Max von Pettenkofer (1818-1901),
da Bavária, parecido com Vitor Hugo, que cometeu suicídio. Von Pettenkofer
duvidava com tanto ardor da descoberta de Koch, em 1884 — que a cólera era
causada por um germe móvel, com a aparência de uma vírgula — que tomou
publicamente um copo inteiro de água contaminada. Ao contrário de Tchaikovsky,
ele saiu ileso.
A teoria de Sir Ronald Ross foi definitivamente comprovada por Manson. Ele
fez com que um jovem fosse picado por mosquitos, e o jovem apanhou a malária;
esse jovem era seu filho. O império imediatamente declarou guerra ao mosquito,
devastando seu habitat, matando-o em pleno vôo, protegendo seus alvos com
repelentes. Os americanos, como em duas outras ocasiões, acompanharam o
império nessa luta.

A companhia francesa que começou a construção do Canal do Panamá, em


1880, faliu em 1888. Tinha empregado 86.800 homens, dos quais 52.816
adoeceram e 5.627 morreram, quase todos de febre amarela. A febre amarela é
uma icterícia explosiva, uma doença viral transmitida pelo mosquito tigre,
listrado. Isso foi provado repetindo-se a tradição Manson por dois
bacteriologistas de Baltimore, James Carrol (1854-1907) e Jesse Lazear (1866-
1900), ambos picados por mosquitos infectados. (Carrol se curou, Lazear
morreu.)

O chefe de estratégia americana na guerra do canal foi o major Walter Read


(1851-1902), um bacteriologista da Universidade Johns Hopkins que já havia
exterminado o mosquito em Havana. Seu comandante de campo era o enérgico
Coronel William Crawford Gorgas (1854-1920), de Mobile, que havia
sobrevivido a um ataque inimigo quando servia como cirurgião do exército, no
Texas. O Coronel Gorgas entrou em ação com lança-chamas, grupos de ataque,
guerra química, armadilhas aquáticas e multas por abrigar o inimigo, matando
com clorofórmio todos os prisioneiros. O preço da sua ofensiva foi calculado em
10 dólares por mosquito. Quando o canal foi aberto, em 1913, a Zona do Canal —
em relação ao índice de mortalidade — era duas vezes mais saudável do que os
EUA na época.
A mosca tsé-tsé, com dois centímetros de comprimento, marrom, sugadora de
sangue, transmite aos seres humanos a doença do sono, uma das muitas do vasto
reservatório de doenças provocadas nos animais selvagens pelo protozoário de
cauda longa, o tripanossoma. O tripanossoma foi descoberto no sangue dos
doentes em 1849 por Sir David Bruce, depois que ele foi transferido de seu posto
em Malta para a Zululândia. A mosca tsé-tsé foi notada por David Livingstone
(1813-73), ex-operário de Glasgow, médico, missionário, explorador,
descobridor da grandiosa Catarata Vitória e que durante 30 anos sofreu de uma
fratura não soldada no braço, causada por uma mordida de leão. Ele vira a mosca
em 1857, 14 anos antes de se perder na selva.
Hoje, um terço das mortes no mundo tem alguma relação com moscas.

FÁBULAS FEBRÍFUGAS
Os acessos de febre da malária, de dois em dois ou três em três dias, indicam o
tempo necessário para que quatro tipos diferentes de parasitas realizem seu ciclo
reprodutor assexuado, no sangue. O ciclo sexual é realizado dentro do mosquito.
O quinino, com seu gosto extremamente amargo, era o remédio para a malária
desde o século XVII. Tradicionalmente era chamado de “chinchona”, por causa da
condessa Chinchon, que foi despachada com o marido da Espanha para o Peru e
se curou da malária com a casca da árvore quina-quina, nativa do lugar. A
eficiência da quina-quina foi descoberta por um paciente com febre alta. A única
água que ele encontrou para beber era de um pequeno lago, onde haviam sido
jogadas algumas dessas árvores e, por isso, era amarga demais para o paladar das
pessoas saudáveis. A condessa mandou moer a casca e generosamente a distribuiu
na cidade de Lima, antes de presentear benevolentemente a Espanha com o pó. (A
condessa morreu antes de o marido ser nomeado vice-rei do Peru; a segunda
mulher dele jamais ficou doente e continuou no Peru, mas a boa ficção é mais
estranha do que a verdade.) A “casca dos jesuítas”, importada e adulterada com
outras madeiras, foi então confiscada pela Europa inteira para curar a malária,
exceto por Oliver Cromwell, por motivos religiosos.

Na II Guerra Mundial, o Império Britânico podia proteger convenientemente


seus soldados com mepacrina, um medicamento que os inteligentes químicos
alemães haviam criado a partir dos corantes de cores vivas que eles sintetizaram
em Wuppertal, em 1930. Espalhou-se entre os soldados, como acontece com
qualquer medicamento obrigatório, o boato de que a mepacrina provocava
impotência. O rumor do bromido no chá dos soldados é tão velho quanto a
história dos dois Pensionistas de Chelsea admitirem que o medicamento
começava a fazer efeito. A mentira foi negada por meio de cartazes mostrando
paxás rodeados por suas mulheres, alegremente tomando os comprimidos e
declarando que jamais ficariam sem eles. Aparentemente isso convenceu os
soldados.
Agora temos melhores medicamentos preventivos contra a malária e melhores
inseticidas, mas temos ainda a malária. Não podemos acabar com todos os
mosquitos da Tailândia e da Malásia. E os parasitas estão começando a se
defender dos medicamentos. Exatamente como os germes combatidos pelos
homens na década de 1880.

LUZ DO SOL E LUAR


O sol que brilhava ininterruptamente sobre o império britânico preocupava
Whitehall tanto quanto o demônio preocupa o Vaticano. Os ingleses precisavam se
expor a ele — alguém precisava conter o cachorro louco — porém o sahib não
podia se arriscar a morrer de insolação. “Proteção adequada para a cabeça, os
espessos capacetes de polpa de madeira ou de cortiça são essenciais”, ensinava o
manual médico-padrão do império, no ano da batalha de El Alamein. “Forros
para proteger a nuca são importantes, bem como leques e guarda-sóis.” Os
americanos, que não tinham um império, andavam pela África toda com as
cabeças descobertas. Isso encorajou os oficiais médicos do General Montgomery,
na campanha do deserto, a se desfazer do capacete de cortiça, pois os espiões de
Hitler que observavam no outro lado das pirâmides informavam exatamente o
número dos soldados que chegavam da Grã-Bretanha contando os capacetes que
desfilavam pelas ruas do Cairo.

Esse medo do sol afetou o jogo favorito do império. As acomodações em


qualquer pavilhão de críquete, hoje em dia, bem como o do próprio Lord, não são
atingidas pela luz do sol. Os que ficam no lado oposto são obrigados a enfrentar o
perigo de uma insolação, nos lugares mais baratos, para assistir às partidas de
campeonato. Nas festas ao ar livre e piqueniques, as damas eduardianas
envolviam-se em musselina e tule e giravam seus guarda-sóis, defendendo-se da
gloriosa inconveniência. Do meio para o fim do século, gradualmente as damas
passaram a tirar toda a roupa sob os raios do sol, e agora estão-se vestindo outra
vez, freneticamente. A sabedoria de continuar mortalmente branca depois dos
feriados começa a ser aceita, em face da realidade comprovada do mal que o sol
pode fazer à pele.
A insolação não é causada pela luz do sol, mas por deficiência de sal. Isso foi
perfeitamente ilustrado por Sir Victor Horsley (1857-1916), o cirurgião de
cérebro, de Londres, que inventou a cem Horsley para controlar a hemorragia
craniana. A cera era uma adaptação da cera de modelagem. O pai de Horsley era
um membro da Academia Real que se opunha ferozmente aos modelos nus. Sir
Victor condenava também o fumo e o álcool. Ele afirmava com determinada
convicção que a insolação era causada pelos elegantes goles de bebida, e não sair
para o sol sem seu capacete de cortiça. Ele provou isso na Mesopotâmia, saindo
com a cabeça descoberta, e logo depois morreu de insolação.

ESTIMULANDO OS FAGÓCITOS
“O médico do futuro será um imunizador", ousadamente profetizou Sir Almroth
Wright (1861-1947), professor no Colégio de Medicina Militar Britânico, em
1900, e amigo do irlandês George Bernard Shaw. Mais tarde Shaw
freqüentemente tomava chá com Wright no Departamento de Inoculação do
Hospital Santa Maria, em Londres. Shaw se inspirou em Wright para criar seu
personagem estimulador de fagócitos, Sir Colenso Ridgeon, em Dilema de um
médico. Sir Almroth saiu do teatro no meio da peça, na noite de estréia.

A guerra da África do Sul, de 1899-1902, o primeiro dobre de finados para o


Império Britânico, não foi ganha com os rifles antiquados dos fazendeiros boers,
mas pelo bacilo da febre tifóide. Em cada grupo de mil soldados enviados para a
Cidade do Cabo, a febre tifóide matou 15, duas vezes mais do que o inimigo
conseguiu matar. Sir Almroth Wright criou a vacina, injetando o bacilo do tifo
atenuado para criar resistência ao bacilo verdadeiro. O exército zombou da
invenção. Sir Almroth desistiu. Na I Guerra Mundial, o exército teve tempo para
estudar a idéia e poucos morreram de febre tifóide, mesmo em Galipoli, assolada
pela doença. O exército foi vacinado contra tétano também, causado pela terra
que entrava nos ferimentos. Na II Guerra Mundial esse perigo praticamente não
existia porque os tanques, ao contrário dos cavalos, não defecam.
O cavalo inoculado, com sua tradicional boa vontade, produz uma grande
quantidade de anti-soro para combater os mesmos germes que estão dizimando
seus donos. Essa inoculação passiva não funcionou contra a pneumonia lobar.
Contra uma assassina de crianças, a difteria, funcionou. A difteria poderia ter sido
abolida pela inoculação ativa, como a febre tifóide, no exército, depois de 1926.
Mas ninguém se importou muito com o assunto até 1940, assim 50.000 civis, mais
do que na blitz, morreram desnecessariamente por descaso.

Sir Almroth Wright, aos 80 anos, sofreu a humilhação de negar sua


autoconfiança da juventude. Ele confessou, arrasado, para a Real Sociedade de
Medicina, a “necessidade de ignorar muita coisa na imunologia, considerada
como garantida”. As sulfas e a penicilina estavam massacrando os germes que ele
tão engenhosamente havia voltado contra eles mesmos. Ele teria morrido mais
feliz se tivesse visto a imunização desfechada contra os vírus do sarampo, da
rubéola (que ameaça a gravidez), da coqueluche, da pólio, da hepatite e das
mesmas doenças contra as quais ele lutou entre as guerras. A imunização está de
volta. Os germes podem-se voltar astuta e selvagemente contra seus atacantes
químicos, e o homem está interferindo com sua imunologia pela introdução dos
transplantes.

O DESEJO DE MATAR
Rara nos aterrorizar, nossos agressores unicelulares podem recorrer a aliados
poderosos. Os mosquitos são suas divisões voadoras. O rato, rápido e astuto, é
seu portador pessoal, cheio de pulgas ágeis. Os piolhos, com suas garras tenazes,
são os veículos blindados da infecção.

Nosso conhecido Hieronymus Frascatorius, de Verona foi o primeiro a


reconhecer o tifo exantemático, “a febre pintada", súbita, devastadora, com uma
erupção vermelha e um índice de morte de 20%. O americano Howard Taylor
Ricketts (1817-1910) descobriu que era causado por um dos organismos
semelhantes aos vírus que só existem no interior das células vivas e que foram
denominados rickettsias, em sua honra — muito justamente, porque ele morreu de
tifo exantemático, na Cidade do México, no mesmo ano da sua descoberta. A
rickettsia prowazeki é o organismo específico causador do tifo — e Stanislaus
Josef Mathias von Prowazeki (1875-1915), de Hamburgo, morreu dessa doença
também. Os micróbios são sugados do homem infectado pelo piolho, que salta
para outro hospedeiro humano e deposita suas fezes infectadas na pele, e o
homem começa a coçar desesperadamente o local. O pobre piolho fica vermelho
e morre também.

Ha! onde vais, pequeno rastejante!
Tua imprudência te protege muito pouco,
escreveu Robert Burns em “A um piolho”, com sua habitual e profunda simpatia
por todas as pequenas criaturas, com sua gratidão por seu exemplo, e (para um
inglês) com sua incapacidade de compreender.
O que traz piolho, traz tifo: guerra, seres humanos vivendo em promiscuidade,
sujeira, falta de água e material de limpeza, falta de uma camisa limpa para vestir.
Como “febre das prisões”, no século XVI, os piolhos mataram a metade dos
prisioneiros e esportivamente liquidaram os juízes, saltando para suas cadeiras.
Na prisão de Old Bailey, em 1750, executaram três juízes, o prefeito de Londres e
oito jurados. Deve ter havido muita risada na Prisão de Newgate.
Em 430 a.C., o tifo em Atenas complicou a Guerra do Peloponeso e matou
Péricles (pode ter sido a peste ou a varíola, não podemos confiar no diagnóstico
de Tucídides). Na Antióquia, em 1098, o tifo e a disenteria dizimaram os
cruzados, homens e cavalos. O medo generalizado da infecção fez maravilhas
para o índice de conversão ao cristianismo, especialmente porque o único recurso
da saúde pública era o exorcismo. Durante a Guerra dos Trinta Anos, os dois
lados posicionaram-se para a batalha de Nurenberg, em 1632, mas o tifo matou
tantos antes de começar a luta que tiveram de desistir.

O tifo atormentou os cavaleiros do Rei Charles, em Oxford, e em 1741


capturou Praga para Luís XV. Com o General Inverno e sua tenente, a disenteria, o
tifo conseguiu a retirada dos franceses de Moscou. (Foi a disenteria que acabou
com o cerco de Bagdá, em 1439, e o de Metz, em 1553, e o vitorioso de
Agincourt morreu do “fluxo sangüíneo" em Vincennes, em 31 de agosto de 1422.)
Lenin perdeu 3 milhões de novos camaradas com tifo, em 1918-22. O tifo
reforçou as selvagerias da II Guerra Mundial nos campos de concentração, nos
acampamentos de refugiados e nos postos do exército, embora os aliados tenham
derrotado o piolho antes dos nazistas, acabando com a epidemia em Nápoles, em
1944, usando o DDT, um inseticida que hoje faz eriçar os cabelos dos Verdes
como talos de centeio.
Uma epidemia de tifo entre os tecelões da Alta Silésia, em 1848, foi
investigada para os prussianos por Rudolf Virchow (1821-1902), do Charité
Hospital, de Berlim. Seu relatório denunciava tão detalhadamente as condições
higiênicas e de vida em geral dos habitantes do local, e propunha com tanta
clareza o estado generoso como único remédio, que os prussianos o despediram.
Ele foi eleito para o Reichstag, tendo como opositor Bismarck, organizou o
Serviço de Ambulâncias da Guerra Franco-Prussiana e fez dos esgotos de Berlim
motivo de inveja de toda a Europa.
Esse pequeno professor, fanfarrão e vigoroso, tornou-se um proeminente
médico europeu, o que primeiro descreveu a leucemia e era especialista em
embolia pulmonar, lúpus da face, gota, tatuagem e arqueologia de Tróia. Ele criou
a frase Ommis cellula e cellula — nenhuma doença cria as próprias células, todas
são células comuns do corpo humano, mas alteradas pela doença. Ninguém havia
pensado nisso antes. Quando Jean Louis Armand de Quatrefages (1810-92), do
Museu de História Natural de Paris, escreveu um panfleto qualificando os
prussianos como um bando de mongóis bárbaros (eles acabavam de bombardear
seu museu), Virchow, com fúria solene, lembrou a cor do cabelo e o formato dos
olhos dos 6 milhões de escolares alemães. Seu octagésimo aniversário foi
declarado feriado nacional; portanto, no fim, os prussianos o amaram.

A MORTE NEGRA
Agora as pulgas.

Albert Camus, em 1947 começava La Peste falando sobre Oran:


Quando saía da cirurgia, na manhã de 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux sentiu
alguma coisa macia sob o pé. Era um rato morto bem no meio do patamar da
escada. Num impulso de momento, ele o chutou para o lado e, sem pensar mais no
caso, continuou a descer a escada. Só quando estava na rua lembrou que não
deveria haver um rato morto no andar de sua cirurgia.
Quando voltou para casa, naquela noite, o Dr. Rieux encontrou um rato quase
morto, expelindo sangue pela boca. O animal deu um grito agudo e morreu. No dia
seguinte havia três ratos mortos no seu corredor. Logo dezenas deles foram
encontrados nas latas de lixo de Oran. Depois, milhares, por toda a parte. No fim
de duas semanas, num só dia 6.231 ratos haviam sido queimados pelo serviço
sanitário. Dois dias depois, foram 8.000. O povo começou a ficar preocupado.
Assim como os ratos abandonam o navio que está naufragando, a pulga
abandona o rato que está morrendo. Se o rato morre de peste, então o micróbio
Pasteurella pestis, pequeno, gordo, que forma uma cadeia e que infesta o sangue da
última refeição da pulga, fica nauseado — que nojo! — quando a pulga pica o
seguinte, quase sempre um homem. Daí a Morte Negra de 1348.
A Morte Negra começou nas praias do montanhoso Lago Issyk-Kul, a leste do
Mar de Arai, além de Tashkent, no canto entre a Rússia e a China, ao norte do
Himalaia. Em 1346, a Morte Negra estava matando indianos, armênios, tártaros e
curdos, o que não preocupou muito pessoa alguma na Europa. No ano seguinte ela
chegou á Criméia, depois a Messina, na Sicília, levada pelos ratos das galeras
genovesas. Em seguida, Gênova, Pisa e Veneza. Depois disso, nada mais podia
contê-la. No Natal de 1348 foi importada para a Inglaterra, através de Bristol, e
um ano depois tinha varrido as Terras Altas da Escócia. Os médicos armaram-se
com longos aventais de couro, luvas e protótipos das máscaras contra gases do
ano de 1939, com óculos de aviador e anti-sépticos aromáticos no tubo de ar. Os
pacientes queimavam ervas e cantavam salmos. A mortalidade entre os religiosos
que atendiam os doentes foi heróica.

Foi chamada Morte Negra porque os mortos ficavam pretos. Sangravam


horrivelmente ao nível da pele. Havia dois tipos, a bubônica, com os glânglios da
virilha e das axilas intumescidos como laranjas podres, os terríveis "bubos”, ou a
pneumônica, transmitida pela respiração, uma pneumonia hemorrágica, com morte
certa e rápida. Boccaccio observa:
Quantos homens valentes, quantas damas graciosas, tomavam o desjejum com a família e naquela mesma
noite jantavam com seus ancestrais no outro mundo.

Em covas abertas apressadamente eram enterrados os corpos putrefatos,


malcheirosos e ameaçadores, 25 milhões deles na Europa, um quarto da
população. Metade de Londres pereceu, talvez umas 50.000 pessoas. Ninguém
sabia o que causava a peste, mas acreditavam que os judeus estavam envenenando
os poços de água.

Teria sido tão horrível assim? Em 1988, dois cemitérios de emergência


cavados em 1348 foram encontrados em Londres, perto da Torre e em Smithfield.
Eram longas valas em camadas sensatamente cobertas de terra, para não enterrar
corpo sobre corpo. Os corpos eram cuidadosamente arrumados e cobertos com
uma fina camada de terra, com sepulturas separadas para as crianças. Esses
cemitérios demonstram um admirável senso de previsão dos responsáveis pela
cidade, quando a peste começava a chegar, vinda do oeste do país. Os 12.400
ocupantes das valas — possivelmente a maior parte das vítimas de Londres —
indicam que a tragédia foi menor do que conta a tradição.
Durante a década de 1330, a Europa já estava em recessão econômica, o
comércio praticamente estava parado e os preços caindo, guerras e desordens
urbanas prejudicavam o comércio, a colheita era precária e o preço dos alimentos
subia como um foguete. Veio a fome, e os pobres comiam os cachorros. Pelo
menos, a Morte Negra resolveu o problema de superpopulação da Europa.
Depois da batalha de Bosworth, em 1485, a coroação de Henrique VII foi
impedida pela doença do suor. Foi a única coroação adiada por causa de doença,
até a de Eduardo VII no verão de 1901. Sudor Anglicus era uma doença misteriosa.
Os doentes suavam e tremiam de frio, exalavam um cheiro estranho e
desagradável e morriam em urn dia. Foi registrada por John Caius (1510-73), o
médico que transformou o Gonville Hall, em Cambridge, em Gonville e Caius
College, praticamente fazendo de|e um colégio de medicina. Caius foi médico da
corte desde o reinado de Henrique VIII até o de Elizabeth I, mas um apóstata da
Reforma. Os colegas de Caius descobriram seus trajes católicos e os queimaram
em praça pública, e então ele levou seus colegas para a praça pública, presos ao
tronco. Seu túmulo na capela do colégio diz apenas: Fui Caius. Ele escreveu
também Of English Dogges.

Os sinos da praga soaram outra vez em Londres, em 1563, dizimando um quinto


dos seus 93.000 habitantes, e em 1575, 1593, 1603, 1625 e 1636, cada vez
diminuindo de 20.000 a população de Londres. A epidemia da Morte Negra mais
comentada na literatura é a Grande Peste de Londres.

Em 1661 a peste voltou à Turquia, em 1664 matou um quinto da população de


Amsterdã e chegou a Flandres. No mês de dezembro, dois franceses morreram em
Drury Lane, e no mês de junho do ano seguinte, Samuel Pepys escrevia:
Em Drury Lane eu vi duas ou três casas marcadas com uma cruz vermelha na porta, e a frase "O Senhor
tenha piedade de nós" — um triste espetáculo para mim, que o via pela primeira vez.

Ele comprou tabaco e mascou, para acalmar os nervos.


A cruz vermelha regulamentar tinha 30 centímetros de altura, a casa era selada
e vigiada por 40 dias, doentes e sãos aprisionados juntos, comida e medicamentos
deixados medrosamente na frente da porta. Os únicos visitantes eram os bravos
médicos que não haviam fugido de Londres com o rei, mulheres velhas,
“examinadoras”, cuja função consistia em descobrir os "sinais” nos corpos dos
mortos — manchas vermelhas na pele — para determinar do que tinham morrido,
e os enfermeiros que roubavam dos corpos e às vezes, impacientes, os
estrangulavam ou passavam o pus das suas feridas nas pessoas sãs para matá-las
depois.
Nathaniel Hodges (1629-88), um médico que descrevia com jovialidade
situações mais trágicas, conta com humor o caso da enfermeira que, depois da
morte de toda a família que ela tratava, saiu da casa carregando os objetos
roubados e caiu morta na rua. Outra enfermeira roubou a roupa do paciente
agonizante. Mas ele se recuperou e voltou à vida completamente nu.
O Dr. Hodges tornou-se imune à doença chupando pedaços de canela, enquanto
examinava os pacientes, comendo grandes quantidades de carne assada e picles
(“na verdade, naquele tempo melancólico havia na cidade grande abundância de
todas as coisas boas dessa natureza”) e tomando um copo de vinho branco, seco e
forte, da Espanha, antes do jantar, mais alguns copos durante a refeição e depois
do dia de trabalho “tomando com prazer minha bebida predileta, que me ajudava
a dormir e proporcionava a respiração fácil dos poros durante toda a noite. A
gratidão me obriga a fazer justiça às virtudes do vinho branco e sua merecida
classificação entre os principais antídotos”. Para ele, o melhor vinho era o de
meia-idade — limpo, fino, claro, vigoroso e com um leve sabor de nozes.

Nathaniel Hodges tratava seus pacientes com raízes de serpentaria da Virgínia,


sapo seco e doses da água da peste, do Colégio dos Médicos, uma mistura
absurda de 21 medicamentos. Quando a peste terminou ele ficou sem pacientes,
empobreceu, foi preso em Ludgate por dívidas e morreu na prisão, em 1688. Um
exemplo dos perigos da especialização radical.

“Tragam seus mortos!” soava a voz nas ruas, acompanhada pelo dobre dos
sinos, quando as ofertas eram atiradas aos montes nas valas. Os cães, suspeitos de
transmitir a peste, foram massacrados. Os ratos tiveram mais sorte. No úmido mês
de setembro de 1665, quando em Londres morriam 12.000 pessoas por semana,
os patriarcas da cidade mandaram acender fogueiras nas ruas durante três dias
seguidos, para purificar o ar. Mas o céu, chorando seus mortos, as extinguiu. Os
médicos não haviam concordado com essa idéia, que consideravam supérflua,
teatral e dispendiosa. Exatamente um ano depois, o Grande Incêndio levou
exatamente o mesmo tempo para provar que os médicos estavam errados.

O relato de Daniel Defoe, Diário do ano da peste, publicado cm 1722, era uma
artística obra de ficção, como Robinson Crusoe.
A FORMA DAS PESTES DO FUTURO
For mais de um século a peste bubônica matou indiscriminadamente em Malta,
Viena, Praga, Varsóvia e Copenhague. I.m 1720 dizimou quase metade da
população de Marselha. Na década de 1930 estava matando ainda em Uganda,
onde haviam plantado algodão e a semente armazenada aumentou sensivelmente o
número de ratos na região.
A peste começou a diminuir, mas houve quatro graves epidemias de gripe na
Grã-Bretanha, no século XVII, 10 no século XVIII, seis no século XIX e, no
século XX, a pandemia de 1918, que matou 0,5% da população da Grã-Bretanha
e dos EUA e 25 milhões de pessoas no mundo todo. A guerra, há pouco terminada,
havia matado 8.538.313 soldados, portanto o vírus da gripe matou três vezes mais
em um quarto do tempo que durou a guerra. Então esse tipo de vírus mortal da
gripe desapareceu. Talvez tenha recuado para os porcos, de onde pode voltar de
modo alarmante, como voltaram os vencidos da Grande Guerra.

Nada cura a gripe. Porém, hoje, os antibióticos podem evitar a pneumonia,


assim como podem deter o tifo, a disenteria e a peste bubônica. Na nossa parte
confortável do mundo, onde estamos acostumados com a limpeza e com os
médicos, e onde os bacteriologistas subiram de posto para se tornar
“microbiologistas”, os vírus atacam especialmente os computadores. Podemos
olhar com complacência para a peste.

Podemos?

Em 1967 o mundo se espantou com o aparecimento de uma nova doença. Era


trazida pelos macacos verdes importados para experiências de laboratório num
instituto de pesquisa em Marburg, na Alemanha Ocidental. Sete seres humanos
morreram, entre o pessoal do laboratório e as enfermeiras que trataram deles. Os
macacos trouxeram um vírus desconhecido da África Central, de algum lugar ao
norte do Lago Vitória, provavelmente originário da aranha de teia de túnel, um
inseto que, evidentemente, deve ser evitado. Dessa área — onde, infelizmente, o
sexo não é feito exclusivamente em colchões Terra dos Sonhos e atrás das
cortinas de Laura Ashley, quando terminam os programas da televisão — veio o
vírus da AIDS Não há cura para nenhum desses vírus importados. Nem vai haver
cura para outro, e mais outro, que aparecerão misteriosamente para nos dar mais
uma forma de morte...
H.G. Wells, um século mais tarde, confortavelmente instalado na máquina do
tempo, está muito ocupado com a série sobre os marcianos.
Existem algumas bactérias bondosas. Elas ajudam o crescimento dos legumes
que os homens comem, e da relva do pasto que o gado come. Sem as bactérias,
talvez jamais pudéssemos ter o prazer de comer ervilhas, feijão, nem o assado
dos domingos.




















CAPÍTULO 3
Descobertas no escuro

As grandes descobertas da medicina aconteceram sem que se tivesse a menor
idéia do que estava sendo descoberto.

O MÉDICO E A ORDENHADORA

Ouçam Thomas Hardy:


A estação se desenvolveu e amadureceu. Na casa do leiteiro Crick, o grupo de
empregadas e empregados vivia confortável e placidamente, até mesmo com
alegria. Sua posição era talvez a mais afortunada na escala social, começando
acima da linha em que termina a pobreza e terminando abaixo da linha em que
as convenções começam a prejudicar os sentimentos naturais, e as exigências
da moda acham pouco o suficiente.
A ordenha era feita muito cedo, e antes da ordenha vinha o desnata mento, que
começava um pouco depois das três. Um pouco depois do café da manhã houve
uma grande agitação na casa do leite. A centrífuga girava como sempre, mas a
manteiga não aparecia. Sempre que isso acontecia, tudo se paralisava. O leite
farfalhava no grande cilindro, mas nunca ouviam o ruído que esperavam ouvir.
Um vulto apareceu de repente na porta. Curiosa, a jovem saiu da penumbra
luminosa e singular para a luz que inundava o campo aberto. I.á estava um belo
cavalheiro com calça de couro de gamo e botas altas com esporas de prata, de
mais ou menos 45 anos, rosto saudável, cabelo claro e farto, boca bondosa e
cordial e olhos azuis zombeteiros. Os dentes, lábios e olhos da jovem
cintilavam à luz do sol, ela era outra vez a bela ordenhadora de cabelos louros
que tinha de se defender de todas as outras mulheres do mundo.
“Muito bem, minha bela, o que posso fazer por você?” disse ele. Fia se
curvou numa cortesia. “E como a chamam?"
“Tess”, senhor.
“É uma bênção que rosto tão lindo tenha escapado da sanha selvagem tio
animal pintado, a varíola”, disse ele, com um sorriso agradável.
“Mas eu não posso apanhar a varíola, senhor, porque já tive a varíola
bovina.”
O cavalheiro bateu com o punho fechado na palma da outra mão e exclamou
em voz muito alta, como um cisne espantado,
“Por Deus! Descobri!”
Ela quase saltou dos tamancos, de tão assustada.
Assim, um dos mais significativos escritores da Inglaterra (e um dos mais
insignificantes) descreve a descoberta da vacina por Edward Jenner (1749-1823).

O ÚBERE BENEVOLENTE
A pele das jovens ordenhadoras inglesas foi admirada e cantada em poemas e
canções desde o século XVI. No século XVIII, as ordenhadoras de
Gloucestershire começaram a descobrir — com mais resignação do que
aborrecimento, e nunca alarmadas — manchas nos seus braços e nas mãos que
todas as manhãs apertavam as tetas das vacas. As manchas eram causadas pelo
contato com as feridas da varíola bovina, uma infecção comum do úbere das
vacas leiteiras. Depois de uma semana, as manchas se transformavam em pústulas
e as jovens passavam por um mal-estar passageiro, como a gripe. Porém, uma vez
secas as feridas a cicatriz significava que estavam imunizadas contra a varíola
humana. E as únicas ordenhadoras que nunca apanharam a varíola bovina eram as
que, por sorte, sobreviveram à varíola humana.

Essa curiosidade imunológica era conhecida há anos naquela região — os


senhores de terras com seu brandy nos copos de cristal, os pequenos proprietários
rurais com seus cachimbos de argila sem dúvida discutiam o assunto em volta do
fogo, nas noites de inverno. Ora, em Dorset, em 1774, o fazendeiro Benjamin
Jesty havia infectado a mulher e o filho com a varíola bovina, transferindo o pus
diretamente do úbere inflamado. Em 1765, o Dr. Fewster havia até mesmo
chamado a atenção da Sociedade de Medicina de Londres para a rústica
coincidência, mas ninguém deli importância.

No sábado, 14 de maio de 1796, o Dr. Jenner, de Berkeley, um povoado na


margem do rio Severn, entre Gloucester e o próspero porto de tráfico de
escravos, em Bristol, apanhou uma porção de pus das feridas infectadas com
varíola bovina de Sarah Nelmes, filha de fazendeiro, e por meio de duas
pequenas ranhuras na pele do braço infectou James Phipps, de oito anos de idade.
Sarah tinha três pústulas abertas isoladas, de dois centímetros e meio de largura,
no dedo indicador, na ponta do polegar e no pulso da mão direita. Eram azuladas
com as bordas altas, e os gânglios das suas axilas estavam intumescidos. Sarah
havia arranhado a mão com um espinho e o ferimento inflamou gravemente, corno
o primeiro paciente de Florey tratado com penicilina, 145 anos depois.
Jenner havia estudado essa idéia durante 20 anos antes de se arriscar a fazer a
perigosa transferência. Durante esse tempo ele entediou tremendamente os sócios
do clube local, Convivio-Medico, talando no assunto. Os médicos, tomando seus
claretes, resmungavam, mandando Jenner ficar quieto — como Alexander
Fleming, 130 anos mais tarde, entediava os membros do Clube de Pesquisas, cm
Londres, falando sobre seu suco de bolor que dissolvia as bactérias. A diferença
era que Jenner gostava de imaginar a realização prática da sua idéia, e Fleming
não.

No dia lº de julho, Jenner arranhou levemente o braço do menino James com


pus de varíola humana. Nada aconteceu. Ele repetiu a dose depois de alguns
meses. Mais uma vez, nada aconteceu. Jenner acabava de inventar a vacinação
(nos antigos campos romanos, a vacca pastava e mugia). Mas Jenner não estava
desafiando cruel ou desnecessariamente o risco do fracasso, ou seja, da morte do
menino por varíola induzida no seu organismo. A inoculação com pus de varíola
humana, não com o pus da varíola bovina, já existia há muito tempo entre as belas
ordenhadoras.

Os chineses antigos talvez praticassem a inoculação contra a varíola aspirando


uma quantidade de pus. Os turcos certamente praticavam a inoculação há várias
gerações. Eles davam pequenas festas, nas quais velhas mulheres, usando agulhas,
os inoculavam com o veneno da varíola humana guardado numa casca de noz.
Essas funções sociais entusiasmaram a mulher do embaixador britânico em
Constantinopla, Lady Mary Wortley Montague (1689-1762). Ela tivera varíola aos
26 anos, e ficou desfigurada por toda a vida.

Agora a beleza se foi, e não existem mais amantes
Não existe nenhuma pomada capaz de salvar uma jovem trêmula?
suspira ela num poema patético.
Seu irmão mais novo tinha morrido de varíola. Ela resolveu determinadamente
inocular o filho de seis anos contra a varíola, em 18 de março de 1718. Lady
Montague avidamente importou a técnica dos turcos para a Inglaterra, onde foi
oferecida como o que chamavam escolha de Hobson — uma escolha sem
alternativa real — a seis criminosos condenados à morte. Acontece que foi uma
deliciosa alternativa para a forca. A satisfação dos médicos foi igual ao
desapontamento dos carrascos. Um dos condenados ocultou o fato de já ter tido
varíola humana e, portanto, já estar imunizado. Além disso, para controle clínico,
um deles recebeu o lendário tratamento dos chineses, aspirando as pústulas secas,
teve varíola muito fraca e se salvou da forca. Era uma jovem de dezoito anos.
Vários membros da família real, animados com o exemplo dos seus súditos
criminosos, foram inoculados também. Logo, todo mundo estava fazendo o
mesmo. Os médicos arranhavam levemente a pele do braço e passavam um fio de
linha embebido no pus da varíola humana. O que, com sorte, provocava uma
varíola leve e imunizava para toda a vida. Com pouca sorte, provocava uma
varíola virulenta e matava. A Igreja objetou, dizendo que estavam tirando o poder
das mãos de Deus.

A AMEAÇA PINTADA
O século XVIII foi o século do terror da varíola. No fim do século anterior tinha
havido epidemias na Inglaterra e na Nova Inglaterra onde, dizimando os pele-
vermelhas por atacado, ajudou os “caras-pálidas" a herdar a América. A varíola
atacava famílias inteiras. O autor de um diário, John Evelyn, em 1685 perdeu

duas filhas, Mary em março e Elizabeth em agosto. Aprendizes e meninos


espertos que procuravam emprego deveriam ter tido varíola, para evitar que
apanhassem a doença e a passassem para seus empregadores. As empregadas
domésticas anunciavam sua recuperação da doença com o mesmo orgulho com
que afirmavam sua sobriedade, os bares informavam que eram bem ventilados e
livres da varíola que matava uma em cada cinco pessoas que a apanhavam, e
quase todo mundo teve varíola. Em 1746, 3.236 londrinos morreram na
epidemia de varíola. As vítimas eram enterradas à noite, num clima de terror,
tendo uma carroça como carro fúnebre, o sino parando de tocar quando o
encarregado do enterro ficava sóbrio e fugia. Porém, as marcas da varíola eram
úteis para identificar maridos fujões e criminosos, como aconteceu com Dick
Turpin, em 1739.
Logo começaram a brotar em Londres inoculadores elegantes, como o quacre
Thomas Dimsdale (1712-1800), que foi chamado em 1768 para inocular
Catarina, a Grande, da Rússia e seu filho, o Grã-Duque Paulo. A idéia foi de
Voltaire. É difícil imaginar se isso reprimiu ou fortificou sua idéia de que os
médicos dão medicamentos que mal conhecem, para curar doenças que
conhecem menos ainda, para seres humanos dos quais não sabem absolutamente
nada. Dimsdale recebeu 10.000 libras adiantadas, 2.000 para despesas, uma
pensão de 500 libras e um baronato na Rússia. Uma aposta alta, mas os
pacientes não seriam seus únicos casos fatais se a coisa não desse certo
(Dimsdale preparou cuidadosamente seu caminho de fuga). Ele inoculou 200
russos, e seu primeiro paciente foi um menino, que a imperatriz ordenou fosse
rebatizado com o nome de “Vaccinoff”, o pobrezinho.

Robert Sutton (?1708-88) e seu filho Daniel inoculavam mais prudentemente


com uma picada, não uma incisão, e criaram casas confortáveis para a
inoculação, nos arredores de Londres, para o tempo do inevitável leve ataque
da doença, com comida farta, peixe, carneiro e aves (vinho, mas não chá ou
açúcar, incluído) a dois guinéus por semana. Tiveram 30.000 pacientes, com um
índice trivial de mortalidade de 4% e fizeram fortuna, a despeito da inveja dos
seus rivais inoculadores, da ira do Colégio Real de Medicina (Daniel não era
adequadamente qualificado) e do ultraje dos vizinhos da casa de inoculação.

Os inoculadores estavam curiosos sobre uma coisa estranha: a inoculação


nunca funcionava no paciente que já havia tido a varíola bovina. Jenner encontrou
a resposta. Sarah era o seu 16º caso de varíola bovina. Com os outros, vistos
durante 25 anos, ele formalizou a lenda de Gloucestershire:
— Pacientes de varíola bovina nunca apanham a varíola humana durante as
epidemias.
— Ordenhadoras que sobreviveram á varíola humana nunca apanharam varíola
bovina.
— Porém, os que têm varíola bovina podem ter essa varíola outra vez, duas ou
três vezes.
— E as ordenhadoras podem passar sua varíola bovina para as vacas.
A vacinação rapidamente tomou o lugar da inoculação por ser mais segura —
porque não causava varíola — e socialmente preferível, porque os doentes de
varíola bovina não podiam transmitir a varíola humana, e o paciente inoculado
com a forma fraca da varíola, podia. Em 1840, a inoculação passou a ser crime.
UM CAVALHEIRO DO CAMPO
Edward Jenner era filho do vigário de Berkeley, e sua mãe era filha do vigário
anterior. Com 13 anos foi ser aprendiz de um cirurgião na Chipping Sodbury, mas
tornou-se mais do que um clínico geral rural, uma prática arriscada. No Hospital
São George, em Hyde Park Corner, ele foi um dos melhores alunos de John
Hunter (1728-93), o homem que transformou a cirurgia de ofício de barbeiro em
ciência. Hunter era anatomista de criaturas grandes e pequenas, ele dissecava
desde abelhas até baleias. Os 13.000 espécimes do seu museu em Leicester
Square incluíam o famoso esqueleto do gigante irlandês, senhor Byrne, que Hunter
desejou durante toda a vida e acabou comprando por 500 libras, usado (Sir
Joshua Reynolds reproduziu a cena). Hunter era um escocês desdenhoso e cheio
de orgulho, um professor temido que, diziam os estudantes, tinha um esqueleto que
certa vez levou para a classe, para poder começar a aula dizendo: “Cavalheiros”.
Ele tinha sífilis, inoculada por ele próprio para provar que era diferente da
gonorréia (essa era a história que ele contava). E angina, sobre a qual sempre
observava: “Minha vida está nas mãos de qualquer salafrário que queira me
provocar e me irritar." Até que isso aconteceu numa reunião dos diretores do São
George. John Hunter foi enterrado em St Martin-in-the-fields, mas foi exumado
em 1859 e transportado para a Abadia de Westminster, todas as despesas da
remoção pagas pelo Colégio Real dos Cirurgiões.

“Por que pensar? Por que não tentar a experiência?” Era o que Hunter sempre
dizia — um aforismo que, no caso de Jenner, custou a ser aceito. Os dois
tornaram-se amigos pelo resto da vida. Hunter escreveu, em 1778, quando Jenner
foi abandonado pela mulher:
Devo confessar que fiquei satisfeito quando soube que você se casou com uma
mulher de fortuna. Mas deixe que ela vá, não pense mais nela. Vá trabalhar
para mim com um porco-espinho. Quero que apanhe um porco-espinho, no
começo do inverno, verifique o peso dele, deixe-o no seu jardim e arranje
algumas folhas, feno ou palha para que ele possa se cobrir, depois verifique seu
peso na primavera e veja quanto ele perdeu. Quero que mate um no começo do
inverno, para ver quanto está pesando, e outro na primavera, para ver quanta
gordura ele perdeu.
Nada melhor do que os espinhos de um porco-espinho para costurar um
coração partido. (A dama é um mistério, embora Kleanor Clutterbuck e Judith
Excell, de Wooton-under-Edge, apareçam brevemente na história da medicina
como herdeiras locais desejáveis, naquela época.) Jenner tocava flauta e escreveu
poesia — “Discurso para um tordo” e “Sinais de chuva”:
Os ventos vazios começam a soprar
As nuvens parecem negras, o vidro está abaixado
A fuligem cai, os spaniels dormem,
E aranhas saem das suas teias sorrateiramente.
e assim por diante.
Ele era um bondoso senhor rural e médico, que merecia respeito. Mais tarde
construiu uma pequena casa de campo para seu paciente experimental, James
Phipps, plantando pessoalmente as rosas do jardim. No próprio jardim, Jenner
transformou uma pequena casa de pedra com telhado de palha, feita para dar uma
aparência de selva ao local, num Templo da Vacina, onde atendia de graça os
doentes pobres. A essa altura ele estava transferindo de pessoa para pessoa, e a
vaca tomou-se redundante.

PARE A VACINAÇÃO AGORA!
Como qualquer idéia nova que desabrocha em qualquer sociedade ou instituição,
não demorou para que as portas se fechassem para Jenner. A Real Sociedade a
rejeitou altivamente:
Ele não devia arriscar sua reputação apresentando para o ilustre grupo de médicos algo que parecia tão
contrário ao conhecimento estabelecido e, ao mesmo tempo, tão incrível.

Talvez eles tenham zombado do título de 33 palavras de “Um Inquérito sobre as


Causas e Efeitos” etc. do seu livro fino e elegantemente escrito, que apresentava a
heresia com ilustrações coloridas das mãos elegantes das ordenhadoras, 7
shillings e 6 pence.

As pessoas tinham medo de serem transformadas em vacas:


Ali, mastigando uma haste de grama, estão Jem, Joe e Mary,
Nas suas testas, oh, horríveis chifres torcidos começam a brotar;
Lá está Tom com sua cauda, e o pobre William todo peludo,
Reclinado num canto, rumina o que comeu.

dizia a canção cômica.


Mas a vacinação venceu. Em 1800, 6.000 pessoas compartilharam a felicidade
das ordenhadoras. Em 1802, o Parlamento votou 10.000 libras para Jenner, em
1807 mais 20.000, uma generosidade histórica com o dinheiro dos contribuintes.
Ele se tornou um Homem Livre de Londres e médico de Oxford, e foi membro
honorário da Sociedade Real de Medicina, envergonhada da sua atuação anterior.
Quando, em 1813, Jenner implorou a Napoleão para libertar um parente
capturado, o Imperador exclamou: “Ah! C’est Jenner, je ne puis rien recuser à
Jenner." A resposta de Jenner a tudo isso foi: “E o que é a Fama? Um traseiro
dourado, para sempre castigado pelas flechas da maledicência", o que devia
ocorrer com freqüência a qualquer pessoa cujo nome aparecia nos jornais.
A varíola continuou a matar. Só os nobres podiam pagar a vacinação. A solução
era vacinar de graça as crianças, o que foi feito na Grã-Bretanha em 1840, e
tornado compulsório em 1853 (depois da Bavária, Dinamarca, Suécia,
Würtemburg e Prússia). Mas, para qualquer atividade, em qualquer parte da Grã-
Bretanha logo é criada uma sociedade para impedi-la. Hoje, a Associação Scotch
Whisky, em Edinburgh, bebe à saúde da Liga Nacional da Temperança, em
Sheffield; os Mestres da Caça à Raposa gritam “Tally-ho!”, através dos
Costwolds para a Liga Contra Esportes Cruéis, no Elephant and Castle; o Clube
Naval e Militar, em Picadilly, avista além do seu porto as xícaras de chá da Liga
da Amizade Internacional, em Ashton, e até o Colégio Real de Cirurgiões, em
Lincolns Inn Fields, tem de reconhecer a Associação de Pacientes, do East End.
Assim, o espírito de Jenner, em 1867, enfrentou a Liga Antivacinação.

Cortar com instrumento agudo o braço do seu bebê pequeno e saudável,
nascido há poucas semanas, e pôr nos cortes uma matéria imunda tinida de uma
vaca...
dizia a Liga.

O suficiente para fazer chorar um crocodilo.

A Liga organizou uma grande demonstração em 1885, o futuro Primeiro-


Ministro Belfour interveio, a vacinação tomou-se uma peça teatral com tema
político e, como todas as peças desse tipo, chegou até a direção do nosso
precário Serviço de Saúde. O script foi, a partir daí, escrito por Lewis Carroll.
Os Antis chegaram a conseguir a revogação da vacinação compulsória nas forças
armadas, no ano da Batalha do Somme.
Em 1899, os pais podiam objetar conscienciosamente contra a vacinação, a
respeito da qual a atitude do público passou a ser de apatia, só quebrada no caso
de alguma epidemia local. Mas a vacinação em massa venceu. Na II Guerra
Mundial, a Inglaterra teve apenas duas mortes por varíola. O triunfo de Jenner foi
paradoxalmente proclamado em 1946, quando o Ministro da Saúde da Grã-
Bretanha despertou para o perigo de que as mortes infreqüentes, provocadas pela
vacina, eram em maior número do que o perigo de mortes mais raras ainda,
causadas pela varíola. Assim, em 1948 foi suspensa a vacinação compulsória das
crianças, embora a vacinação voluntária continuasse sendo feita gratuitamente,
para provar a generosidade do Serviço Nacional de Saúde.
Em 1971, a vacinação voluntária rotineira das crianças foi abolida. Em 1977, a
varíola estava erradicada do mundo todo. Como é agradável terminar assim, com
uma simplicidade tão gratificante.
ALGUMA COISA NO AR
Jenner tinha feito a previsão, antecipando Pasteur:
A origem da varíola é uma matéria morta, de uma espécie peculiar.
E Jenner especulou, antecipando Robert Koch:
Não será certo imaginar que muitas das moléstias contagiosas que prevalecem
agora entre nós podem dever seu aparecimento não a uma origem simples, mas
composta? Por exemplo, é difícil imaginar que o sarampo, a escarlatina e a
inflamação ulcerosa da garganta, com pintas na pele, tenham todas vindo ria
mesma fonte, supondo alguma variedade nas suas formas de acordo com a
natureza tias suas novas combinações?

Jenner sabia tanto quanto uma vaca que a varíola era causada por um vírus. No
microscópio eletrônico, esse vírus tem a forma de um tijolo, um dos grandes do
grupo do ácido desoxirribonucléico. Ele cresce nos embriões de galinha, e a
varíola é visível no fim de três dias. O vírus da varíola bovina é muito parecido,
embora os vacinadores do mundo tenham se despedido das ordenhadoras e
passado a usar o vírus da varíola atenuado, fazendo-o passar pelo corpo de
vitelas.

Há um século, quando a cada ano eram identificados novos micróbios, os


médicos estavam ainda confusos a respeito dos germes. O conceito de infecção
não surgiu para eles como um glorioso nascer do sol, merecedor da contemplação
científica A explosão de descobertas, detonada por Robert Koch em 1876, foi tão
violenta que, ao invés de iluminar a antiquada estrutura do pensamento científico,
a reduziu a ruínas.
Até os antigos “fomites" de Hieronymus Frascatorius foram lembrados para
explicar aquelas misteriosas novas “partículas", as quais, ensinava vagamente o
Dr. Husband, de Edinburgh, 15 anos depois de Koch: “Segundo dizem, têm vida
própria, são capazes de se movimentar em fluidos, procurar alimento, crescer e
morrei Algumas opiniões profissionais conflitantes:
— O Dr. Parkes explicava que a infecção não era inevitável, porque algumas
pessoas não tinham no organismo o alimento adequado para essas partículas, ou
esse alimento já fora devorado por elas num ataque anterior.
— O Professor Hallier dizia que as partículas eram fungos.
— O Dr. Ross citava Darwin, insistindo em dizer que as partículas eram
pequenas partes modificadas que se soltavam de um indivíduo e produziam a
doença aderindo a outro indivíduo.
— O Dr. Richardson achava que elas retiravam oxigênio do sangue,
provocando a decomposição dos tecidos.
— O oficial médico do Conselho Privado calculava oficialmente: uma única
bactéria pode procriar 16.777.220 indivíduos a cada 24 horas.
A infecção, portanto, era um assunto sem argumentos definitivos, como é o câncer
hoje.
Porém, em meados do século certos desinfetantes, como o fluido do Dr. Condy,
começavam a ser usados abundantemente, e os desodorantes apareceram nos
manuais de saúde, antes de atingirem a sofisticação do uso nas axilas. Água de
Colônia era o perfume favorito para disfarçar o cheiro extremamente
desagradável e gangrenoso dos hospitais. Era preciso evitar que as
“fermentações” e as “putrefações” misteriosas produzissem seus nebulosos
contagia. Desse modo, o ácido carbólico, o permanganato de potássio e o cloro
passaram a ser usados, correta e eficientemente, para evitar a infecção pelos
germes que ninguém conhecia (Hipócrates tinha usado alcatrão).

O contato direto do desinfetante e do contágio era, também corretamente, visto


como essencial; a simples aspersão de ácido carbólico no ar do hospital era
acertadamente considerada inútil. O calor seco, a uma temperatura de 125 graus
centígrados, era recomendado como o desinfetante mais eficiente de todos, o
precursor da esterilização moderna. “Para maior segurança e para prevenir a
infecção e outras doenças, a população deve procurar limpeza, boa ventilação e
drenagem”, aconselhava acertadamente o oficial médico do Conselho Privado em
1866, “e o uso de água completamente pura para beber”. Florence Nightingale
havia previsto isso em Scutari. Para ela, a limpeza era tudo. Durante toda sua
longa vida, Florence Nightingale encarava os germes com o mesmo desprezo com
que via a supremacia masculina.

O BURRO MECÂNICO
Embora o inimigo fosse ainda desconhecido, a recomendação para matá-lo era o
“hospitalismo”: a infecção, o envenenamento do sangue e a gangrena negra, que
esvaziavam as salas de cirurgia nos cemitérios e clava aos sucessivos ocupantes
da mesa de operação uma chance pior do que a de um soldado em Waterloo.

Joseph Lister (1827-1912), filho de um comerciante de vinhos de Londres,


ainda estudante assistiu à primeira operação com anestesia realizada na Europa
por Robert Liston, no Hospital Colégio da Universidade em 1846. Lister estudou
a inflamação nas patas de sapos. Na sua opinião, a infecção fatal das incisões
cirúrgicas não era causada pelos vagos miasmas, como pensava a crença popular,
mas por algo sólido que flutuava no ar. Como Jenner, Lister antecipou Louis
Pasteur que, em 1864, identificou aquelas partículas invisíveis como coisas vivas
que acidificavam o vinho. Lister especulava que, se coisas sólidas faziam
apodrecer os vinhos que seu pai vendia, deviam provocar a putrefação das
incisões feitas por ele.

Lister tentou então destruir essa massa de germes variados no local em que o
bisturi do cirurgião facilitava sua entrada usando um desinfetante no campo
operatório. Ele escolheu o ácido carbólico que, sabia, tinha funcionado nos
esgotos de Carlisle. Nessa época Lister era professor de cirurgia na Enfermaria
Real de Glasgow, construída sobre um cemitério repleto de vítimas da epidemia
de cólera. Ele resolveu experimentar sua idéia em 12 de agosto de 1865,
aplicando panos embebidos em ácido carbólico na perna esquerda de Jimmy
Greenless, de 11 anos, que estava com fratura exposta da tíbia.

Em seguida, Lister adaptou vaporizadores usados para perfume, manejados por


um estudante, que durante todo o tempo vaporizava a mesa comum, coberta por
uma toalha com borlas como preparada para o chá da tarde, onde se processava a
operação. A equipe de cirurgia usava a mesma roupa com que chegava ao
hospital, e só o cirurgião arregaçava os punhos. Alguns cirurgiões usavam sempre
a mesma sobrecasaca para operar, com fios de sutura presos nas casas dos
botões, endurecidos com sangue e pus secos; quanto mais sujos, maior era a
clientela do cirurgião. A sala de operação tinha pias de cozinha com torneiras de
bronze, bancadas de banheiro com tampo de mármore para os vidros e toalhas,
bacias de louça com as esponjas cheias de sangue e um balde cheio de areia, que
era espalhada com uma pá no assoalho de madeira sujo de sangue. Um aquecedor
a carvão aquecia a sala no inverno e facilitava a alguns cirurgiões mais
conservadores o estancamento das hemorragias com ferro em brasa, como faziam
seus ancestrais elizabetanos.
Lister aperfeiçoou os vaporizadores de perfume, criando seu "burro mecânico”,
um tripé de madeira com um vidro de ácido carbólico vaporizado manualmente
por meio de uma alavanca (o qual pode ser visto no corredor do Colégio Real
dos Cirurgiões). Como não podia deixar de acontecer, logo passou a ser movido a
vapor, como as locomotivas e os navios. O desconforto provocado na equipe pela
nuvem constante de fenol no rosto, dia após dia, pode ser compreendido pelo
jardineiro que resolve vaporizar suas árvores frutíferas num dia de vento fone.
Em 1887, Lister abandonou o burro mecânico e voltou à gaze impregnada com
ácido carbólico.
Em 1871, Lister operou a axila real. A rainha Vitória estava com um abcesso de
15 centímetros de largura na axila esquerda, e pior do que a dor era a indignidade
de tal coisa na pessoa real. Na atmosfera impressionante da operação, feita com
anestesia local, infelizmente a rainha recebeu uma baforada do vaporizador no
rosto. “Eu sou apenas o homem que maneja os foles”, protestou, arrasado, o
assistente alvo da ira real. Lister se gabou delicadamente, depois da morte da
rainha: "Acredito que eu fui a única pessoa que jamais praticou no seu corpo
divino a arte da cirurgia.” Para os amigos, ele disse: “Cavalheiros, eu fui o único
homem que enfiou uma faca na rainha!”

No seu septuagésimo aniversário, Lister conheceu Pasteur, apresentado pelo


presidente Carnot, na Sorbonne. “Não existe no mundo todo um indivíduo a quem
a ciência deva tanto quanto ao senhor", disse Lister elegantemente para Pasteur.
Eles se beijaram e todos gritaram Vive! Nesse rasgar de seda acadêmico, Lister
era lorde há três meses, o primeiro da medicina.

FAZENDO A LIMPEZA
As idéias de Lister não abrangeram todos os problemas da sua profissão. Na
década de 1880, o cirurgião menos confuso de Londres admitiu relutantemente a
existência das bactérias, mas zombou da idéia de que podiam transmitir doenças
através das nossas mãos. Um médico com título de nobreza, no King’s College
Hospital que, descuidadamente, enfiou um dedo na incisão feita por Lister foi
violentamente empurrado pelo cirurgião para longe da mesa. A sanitização no
teatro operatório era considerada ridícula, efeminada e afetada, o equivalente à
limpeza do cepo do açougueiro ou do carrasco.
Robert Lawson Tait (1845-99), ginecologista na próspera cidade de
Birmingham, negava ferozmente que as bactérias fossem responsáveis pelo "pus
louvável” que pingava livremente das incisões cirúrgicas. Mas fazia questão de
lavar seu teatro operatório com água e sabão com o zelo de uma dona de casa, e
todos seus casos de ovariotomias sobreviveram. Eugène Koerbelé (1828-1915),
na Alsácia, flambava os instrumentos para suas ovariotomias, e Ernst von
Bergmann (1836-1907), em Berlim, esterilizava tudo com vapor. A idéia de
limpeza surgiu logo depois do começo da aceitação da divindade do cirurgião.
O método anti-séptico de Lister, que consistia em matar os germes na sala de
operação, foi substituído, no fim da sua vida, pela assepsia, que usava autoclaves
e água fervente para evitar que eles entrassem. Somente 15 anos depois da
operação de Jimmy Greenless, em Glasgow, William Steward Halstead (1852-
1922), no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, começou a praticar a cirurgia
asséptica em lugar da anti-séptica. Os aventais cirúrgicos eram previamente
fervidos e as luvas de borracha começaram a ser usadas em 1890, depois que o
professor Halstead notou que sua enfermeira-assistente, Miss Hampton, estava
manchando as mãos sensíveis para fazer a assepsia dos instrumentos. A
experiência foi tão bem-sucedida que o professor casou com ela no mesmo ano.
Porém, Lister lutou contra a nova idéia, como o criador de cavalos lutou contra o
automóvel, o coronel de cavalaria contra o tanque de guerra e como todos que se
opuseram ao seu burro mecânico.

Hoje a assepsia é tudo, todos os instrumentos são esterilizados remotamente


por meio de raios gama e acondicionados em envoltórios de papel, como o band-
aid; os cirurgiões usam uniformes, gorros, máscaras e luvas esterilizados que se
tornaram, para um devotado público de televisão, vestimentas cerimoniais como
os mantos e as casulas da Igreja.

A divisão da história da cirurgia em pré e pós-listeriana ainda venera Lister


por abrir os lugares sagrados do corpo — as juntas, o abdome, o peito e o crânio
— antigamente selados pelos demônios da infecção. Contudo, a identificação e a
aceitação da existência dos germes, no fim do século XIX, certamente teriam feito
isso, mesmo que Lister tivesse seguido o pai no comércio de vinho.
“Não vamos ouvir mais bobagens sobre Lister ter resolvido os problemas da
cirurgia pré-listeriana. Isso não é verdade”, escreveu indelicadamente Lawson
Tait em 1898. Talvez o mal-educado estivesse certo. Tiros no escuro tomam-se
desnecessários quando se espera pacientemente pelo nascer do dia. Contudo:
"Ninguém sabia como prevenir o perigo de uma picada de alfinete, nem como
fazer um curativo, até a vinda de Lister!”

UM OSSO DURO DE ROER


Todos estavam juntos no convés,
Para ver a construção de uma prisão-túmulo:
Todos fixavam em mim seus olhos frios
Que à luz da lua brilhavam.

Samuel Taylor Coleridge,


The Rime of the Ancient Mariner

Gengivas inchadas, esponjosas, arroxeadas, sangrando, hálito fétido, dentes


amolecidos e cuspidos, sangramento em volta dos pêlos do corpo, logo grandes
equimoses, juntas inchadas, hemorragia nasal, olhos injetados, vômito sangrento,
ferimentos não-cicatrizados, lassidão, fraqueza, insuficiência cardíaca e morte
súbita. Quando os valentes marinheiros saíam de Bristol, no século XVIII,
deixando o Dr. Jenner entre as ordenhadoras, tudo isso era tão comum a bordo
quanto o enjôo de mar.

Vasco da Gama, em 1497, o primeiro a dar a volta ao Cabo da Boa Esperança,


perdeu desse modo 160 homens de sua tripulação. A doença intrigou Fernando de
Magalhães, o primeiro a dar a volta ao Cabo Horn, em 1520. Um ano e três meses
depois de sair de Sevilha, após passar três meses de inverno em São Juliano, na
Patagônia, as gengivas dos seus homens “cresceram, cobrindo os dentes,
impedindo-os de se alimentar, e eles morreram de fome”. Jacques Cartier, de St.
Maio, descobridor do São l.ourenço, passou o inverno de 1535 ancorado no rio
Charles, que divide Quebec, e perdeu 50 homens em dezembro, quando essa
“doença desconhecida começou a se espalhar entre nós do modo mais estranho
jamais visto ou ouvido”. Em fevereiro, dos 110 tripulantes apenas 10 tinham
condições de trabalhar, outros 25 morreram em terra, em março, a despeito das
orações contínuas.
O veterano da Armada, Sir Richard Hawkins, autor de Voyage into the South
Sea, seguiu a esteira de Drake, para circunavegar o globo no Repentance
(rebatizado, por ordem da rainha Elizabeth I, com o nome de Daintie),
liberalmente aprovisionado em 1593, em Plymouth, com carne dc boi, de porco,
biscoitos e cidra, e foi atacado pela doença no Equador. Nos seus 20 anos no mar,
Sir Richard admitiu ter visto 10.000 casos.
O escorbuto era uma doença identificada pelo número de mortos. Os
comandantes se perguntavam se seria uma infecção dos misteriosos fomites ou
provocada pela preguiça evidente de suas vítimas, por miasmas demoníacos,
entre um convés e outro, o sal do ar, o trabalho duro, beijar mulheres em terra, a
comida. A ração diária na marinha, em 1615, era de 236 gramas de queijo, 118
gramas de bacon e 118 de manteiga, meio quilo de biscoitos, geralmente bichados
e “fedidos como mijo”, mas toleráveis com o meio litro de cerveja.
O escorbuto no mar era grave e rápido, raro entre os oficiais, até mesmo entre
os oficiais subalternos, atacando mais rapidamente nas viagens que começavam
na primavera. Nos porões-prisões ancorados ao largo de Woolwich, no Tâmisa, o
escorbuto era um carrasco muito ocupado. Os traficantes de escravos queixavam-
se que o número de vítimas da doença, nos seus navios superlotados, custava a
eles a perda de vidas valiosas. O escorbuto em terra era mais insidioso no seu
ataque às guarnições, às cidades cercadas, aos Países Baixos, ao norte da Rússia
e Escandinávia e às legiões romanas, quando elas atravessavam o Reno.

Felizmente para os romanos, os holandeses tinham uma erva curativa, bem


como os índios das margens do São Lourenço. Atônito com os casos dos índios
que se recuperavam numa semana, tomando chá de agulhas verdes de pinheiro,
Jacques Cartier mandou fazer o chá para sua tripulação e, satisfeito, viu todos
curados, sendo sua alegria maior pelo fato de não precisar repetir a desagradável
tarefa de abrir o corpo de um amigo morto na neve, sem descobrir a causa da
terrível doença.

LIMÕES E LIMAS

Naquela época, acreditava-se que, para cada doença enviada por sua ira, Deus,
misericordiosamente, plantava uma erva para curá-la. A medicina herbal ecoa por
toda a Bíblia.
O herbalista e barbeiro-cirurgião de James I, John Gerarde (1545-1612), em
1597 proclamou divinamente a descoberta da erva do escorbuto. Essa cochlearia
officinalis, com 30 centímetros de altura e flores brancas, que crescia perto do
mar, é uma das quadripétalas da família das crucíferas, parente dos nabos,
rabanetes, agrião, mostarda e goivo amarelo. O brado das ruas "compre a erva do
escorbuto!" era bastante comum em Middleton e no livro de Decker, The Roaring
Girl, de 1611. Em 1661 era possível comprar cerveja de erva do escorbuto. Em
1764, o avô de Byron, Almirante “mau tempo Jack”, prudentemente incluiu entre
as provisões do Dolphin, para a viagem ao redor do mundo, a erva do escorbuto
e cocos.
Os marinheiros estavam descobrindo que frutos tropicais comidos em terra
curavam o escorbuto a bordo. Laranjas azedas e limão eram a ração favorita de
Sir Richard Hawkins, e o cirurgião da Companhia das índias Orientais, John
Woodall (1569-1643), no The Surgeon Mate, em 1612, recomendava o
armazenamento de suco de limão a bordo de todos os navios da companhia. Os
holandeses preferiam Sauerkraut, e o Capitão Cook recomendava geléia de
cenoura e mosto de cerveja. Vinagre, para tomar ou lavar o convés, óleo de
vitríolo e enterrar o paciente até o pescoço, na terra fria, todos esses métodos
tinham seus defensores, embora mal orientados.

James Lind (1716-94), de Edimburgo, nove anos no mar, com a marinha,


bravamente denunciou as acomodações para os doentes, a comida rançosa, a água
imunda e deixou o mar para ser médico do Hospital Naval Haslar, em Portsmouth,
que em 1790 tinha ainda 1.754 casos de escorbuto. Lord Anson perdeu três
quartos da sua tripulação na viagem ao redor do mundo, em 1740-44. Em 1778, a
Frota do Canal, depois de 10 semanas no mar, tinha 2.400 casos de escorbuto.
Porém, em 1753, o Tratado sobre escorbuto, de Lind, determinou um curso entre
as supostas causas e supostas curas que flutuavam ainda no mar da ignorância.

Em 20 de marca de 1747, a bordo do Salisbury, voltando para casa, lendo


saído há um mês de Plymouth, Lind realizou uma experiência clínica. Doze
doentes de escorbuto, na enfermaria de bordo, na proa, alimentavam-se com
mingau no desjejum, caldo de carne de carneiro e pudim no almoço e sagu, passas
de Corinto e passas de uvas no jantar. Lind dava a cada um meio litro de cidra
por dia. Dois tomaram óleo de vitríolo. Dois, vinagre. Dois, água do mar. Dois
chuparam laranjas e limão, e dois um preparado de pó de alho, rabanete,
bálsamo-do-peru e mirra. Os dois que receberam laranjas e limão estavam aptos
para o trabalho dentro de seis dias, e passaram a tratar dos que continuavam
doentes.
Johannes Bachstrom (1686-1742), de Leyden, 13 anos antes havia declarado
que o escorbuto do mar e o de terra eram uma única doença que só tinha uma cura:
comer verduras Lind afirmou a mesma coisa:
O marinheiro ignorante e o médico culto sentem necessidade, igualmente, e com a mesma intensidade, de
vegetais verdes e das frutas frescas da terra.

Lind receitou suco de limão ou de lima.


Ele havia encontrado o remédio específico, sem idéia de tomo funcionava, para
uma doença cuja causa ninguém conhecia.
Um ano depois da sua morte, o almirantado concordou com ele. Duzentos
gramas de suco de limão, com 100 gramas e meio de açúcar, eram distribuídos
para toda a tripulação depois de seis semanas no mar. O escorbuto desapareceu
como o Holandês Voador.

Mais tarde, o suco de limão passou a ser preservado com a adição de um


quarto de seu volume de rum. Os donos de navios mercantes, a partir de 1854,
foram obrigados a “servir o suco de limão ou de lima à tripulação, sempre que os
homens haviam consumido alimentos salgados durante 10 dias”. As limas das
índias Orientais eram preferidas aos limões do Mediterrâneo e, por muito tempo,
a palavra passou a designar os ingleses nos portos da América (embora durante
um tempo os limeys fossem também os “novos amigos” que desembarcavam na
Austrália). As limas, estranhamente, não eram tão eficazes contra o escorbuto
quanto o limão. A viagem em busca do Pólo Norte, comandada por Sir George
Nares em 1875, quando só foi usado o suco de lima, teve casos de escorbuto, e a
de Sir Alexander Armstrong, em 1850, com suco de limão, não teve nenhum. Às
vezes, 85% dos pacientes de Florence Nightingale, em Scutari, tinham escorbuto,
apesar das rações de suco de lima, mas isso logo foi explicado pelo fato de as
limas terem ficado todas esquecidas em Balaclava. A humanidade teria de esperar
50 anos pela resposta certa.

O TEMPERO DA VIDA
As vitaminas são substâncias químicas caracteristicamente ausentes nos alimentos
que usamos. Foram inventadas em Cambridge, em 1912, por Sir Frederick
Gowland Hopkins (1861-1947). Os médicos mais antigos de Cambridge, como
eu, lembram ainda da exclamação murmurada “É Hopkins!” — como Pasteur ou
Lister — quando ele aparecia nos laboratórios de Bioquímica, entre os Colégios
de Pembroke e Downing.
Hopkins descobriu que uma pequena gota de leite podia tornar perfeita a dieta
que estava matando os ratos. Ele foi também o sogro póstumo de J. B. “Bons
Companheiros” Priestley.
Em 1907 foi provocado o escorbuto em cobaias, na Noruega. Os cientistas da
nutrição começavam a aprender que a alimentação humana não era
exclusivamente constituída por proteínas, gordura, carboidratos e minerais, mas
que misteriosamente era necessário algum aditivo. As cobaias de Hopkins tinham-
se desenvolvido muito bem só tomando leite. Mas quando alimentadas com os
elementos do leite, separados, elas morriam.

Em 1932 a vitamina C foi cristalizada por engano por Szent Györgi, na


Hungria, depois na América, retirada do suco de limão como ácido ascórbico.
Era uma substância química simples, que curava o escorbuto e identificava as
confusões a respeito da doença: o limão era mais eficaz do que a lima porque era
três vezes mais rico em vitamina C. Os oficiais, que se alimentavam melhor,
deixavam o porto com maior quantidade de vitamina C armazenada no corpo.
Toda a tripulação embarcava 11a primavera, ou seja, depois do inverno, quando
comia menos vegetais. A vitamina C é fabricada nos organismos de todos os
animais, exceto naquelas cobaias, no homem e nos macacos.

Em 1886, os holandeses preocupavam-se com o beribéri nas índias Orientais.


Beribéri, em cingalês, significa “Eu não posso”, indicando a fraqueza dos
músculos e das pernas inchadas que precedia a morte por insuficiência cardíaca.
O médico do exército holandês, Christian Eijkman (1858-1930), pensava que o
beribéri fosse uma infecção, até que a crise de 1897 o obrigou a alimentar as
galinhas do laboratório com restos de comida do hospital e elas contraíram
beribéri. Quando o arroz branco e polido dos curries e pudins era substituído
pelo arroz escuro e não-polido, de gosto desagradável, elas melhoravam. Ele
experimentou o arroz polido nas galinhas, complementando com gordura e sais
minerais. Não adiantou. Tentou arroz polido e um extrato do polimento do arroz, e
as galinhas logo voltaram a ciscar e a pôr ovos. Eijkman declarou, em 1901, que
os itens conhecidos da dieta necessitavam de um “algo mais” desconhecido, em
quantidades mínimas e sem valor nutritivo, para nos manter vivos. Mas ninguém
deu muita atenção. Seu algo mais era a vitamina B do germe do arroz, que era
retirado pelo polimento, saindo com a pele escura. Isso se tornou aparente só
depois que Hopkins aplicou sua imaginação ao enigma. Tudo acabou bem, e em
1929 eles ganharam o prêmio Nobel.
As outras vitaminas foram identificadas e sintetizadas antes de 1940. A
vitamina A no leite, na manteiga, nos ovos e no óleo do fígado de peixes prevenia
certas formas de cegueira. A vitamina B é formada por várias vitaminas dos
cereais e evita vários problemas graves da pele, pelagra (dermatite, diarréia e
demência) e o beribéri das galinhas de Eijkman e também de 40% da marinha
japonesa, entre 1878 e 1882. A vitamina D, que vem junto com a A, evita o
raquitismo; a K, nos vegetais verdes, evita hemorragias. Ninguém sabe o que faz a
vitamina E. Quando foi descoberta, em 1936, acreditaram que aumentava a
fertilidade, e os idosos médicos de Cambridge cantaram em uníssono:
Vitamina E é para mim!
Vamos acabar com a esperança da velhice
Tomando-a com o nosso chá.

No nosso mundo de boas moradias, saudável e hedonista, a insuficiência de


vitaminas atinge somente os decrépitos, que não podem ter uma dieta normal, e os
seguidores das novas modas, que não querem comer normalmente. Essa parte
triste da história de nossa dieta acontece predominantemente no Terceiro Mundo,
descoberto relativamente há pouco tempo. É uma terra da qual sabemos
vagamente que é repleta de florestas, onde chove sempre e nada cresce, onde
nada há para fazer senão sexo, onde os nativos usam paletós xadrez rasgados e
gravatas vistosas, enquanto assistem à televisão em branco e preto e ouvem
discos de vinil nas suas cabanas, sentados em cadeiras de plástico ou deitados em
almofadões, entre uma profusão de outros itens dos quais felizmente há muito
tempo nos desfizemos. Só a deficiência da vitamina A, ou ceratomalacia, cega
centenas de milhares de crianças todos os anos, mas ninguém faz muita coisa a
respeito disso.

A vitamina C não cura resfriados, ferimentos na cabeça nem elimina os efeitos


da bebida. A vitamina A não nos faz enxergar no escuro (desinformação da RAF,
em 1940 — na verdade era o radar). Uma overdose de vitamina A ou D pode nos
deixar doentes. Mas nenhuma vitamina pode nos tornar mais saudáveis. Elas não
podem aumentar a inteligência dos nossos filhos. Como não são distribuídas de
graça, são um desperdício pouco inteligente de dinheiro. Um primeiro-ministro
inglês do nosso tempo toma um comprimido de vitamina C todas as manhãs.
A DIGITALIS OU DEDALEIRA
"Se o inverno chega, pode a primavera estar longe?” foi a observação cretina de
Shelley, embora tenhamos de admitir que ele estava vivendo na Itália, nessa
época. Quando o inverno chega na Inglaterra a primavera está ainda muito além
do próximo Grande Nacional, e muitas vezes bem no meio da estação de críquete.
Mas quando os bosques ingleses usam maquiagem verde e a noite começa a
levantar sua saia, comemoramos nossa escapada dos perigos médicos do inverno,
aproveitando com prazer as ofertas maduras da terra — como amoras, aspargos e
batatas novas, hoje tão convenientemente trazidas de avião da Califórnia, do
Chile e do Egito.

Quando Shakespeare estava falando sobre “o manto verde na recém-chegada


primavera”, os ingleses tiravam o inverno do sangue tomando chá das ervas que
brotavam do serio: a margarida amarela, a aquática beldroega de Hampshire,
folhas de framboesa, ou comiam a geléia de amora negra da primavera anterior,
ou tomavam suco de nabo (que se extrai açucarando pedaços crus). Esses chás
eram, sem que ninguém soubesse, antiescorbuto, como o suco de lima de Lind,
admirável quando baixava o nível da vitamina C no sangue equinocial.

William Withering (1741-99) era um clínico geral rural, de Stafford, que


ganhava 100 libras por ano e que se mudou para Birmingham e passou a ganhar
1.000 libras por ano, mas que gostava de passear no campo. Birmingham era uma
próspera cidade industrial desde que fabricou 15.000 espadas para Cromwell,
por ocasião da Guerra Civil. Ela atraía os homens de espírito prático, como
Joseph Priestley, que descobriu o oxigênio, James Watt, que inventou a estrada de
ferro, William Herschel, que descobriu o planeta Urano, John Smeaton, que
construiu o farol de Eddystone, e Josiah Wedgwood, que fez as placas. Eles
criaram a Sociedade Lunar, que se reunia nas noites de lua cheia para discutir
ciência e filosofia. Withering era seu botânico. Seu livro A Botanical
Arrangement of all Vegetables Naturally Growing in Great Britain foi o enorme
sucesso do ano de 1776. Ele era médico-chefe do Hospital Geral de Birmingham.
Combinando os conhecimentos do epidemiologista que estudou a escarlatina e do
mineralogista que descobriu o carbonato de bário, ele criava cães, tocava flauta,
como Jenner, e como Jenner conversava com ordenhadoras.
Cavalgando nas suaves colinas de Shropshire em 1775, Withering encontrou
uma velha mulher que conhecia o segredo da cura da hidropsia nas pernas. Pernas
que não cabiam nas calças, ou que se arrastavam debaixo das saias, com pés que
não podiam ser calçados, melhoravam com seu chá de 20 ervas — quando o
paciente conseguia agüentar os vômitos violentos e a diarréia. Ela curava onde os
médicos locais não podiam curar. “Não era muito difícil para uma pessoa que
conhecia o assunto”, escreveu Withering, “perceber que a erva ativa só podia ser
a digitalis". Era o mesmo princípio divino contido na erva do escorbuto.
Nicholas Culpeper (1616-54) já havia indicado, em 1654, que a dedaleira
"adoçada com açúcar ou mel serve para limpar e purgar o corpo, tanto para cima
quanto para baixo”.
Withering imediatamente experimentou o chá nos seus pacientes, os pobres aos
quais ele dedicava uma hora por dia. Os doentes de hidropsia urinaram
copiosamente, um efeito omitido pela velha senhora de Shropshire. Quando soube
que o Diretor de Brasenose, Oxford, fora curado de hidropsia peitoral (efusão da
pleura) com a raiz da dedaleira, em 8 de dezembro de 1775, Withering
administrou chá de dedaleira a um construtor de 50 anos que sofria de asma e
excesso de fluidos no abdome, o qual “fez uma grande quantidade de água. Sua
respiração gradualmente ficou mais fácil, a barriga desapareceu e dentro de 10
dias ele começou a comer com enorme apetite”.

Ao contrário da velha senhora, Withering compreendeu que a hidropsia fora


bombeada para os esgotos de Birmingham pelo coração, estimulado pela
dedaleira. Como digitalis, o nome dado à dedaleira em 1542, a feitiçaria de
Wenlock Edge entrou respeitavelmente para a Farmacopéia de Edimburgo em
1783. O relato de Withering, História da dedaleira, foi o enorme sucesso de
1785. Por acaso ele havia descoberto o poderoso medicamento cardíaco cujos
vários derivados são usados até hoje.
Como Jenner, Withering atraiu oponentes ferrenhos. O Dr. Lettsom, de Londres,
matou oito pacientes com digitalis, incluindo Charles James Fox. Houve muitos
desastres devido ao fato de a hidropsia ser um sintoma, não uma doença. Pode ser
causada por insuficiência renal, tanto quanto por insuficiência cardíaca. Isso foi
estabelecido em 1827 pelo jovial, gorducho, operoso Richard Bright (1789-
1858), o explorador da Islândia, que foi da Universidade de Edimburgo para a
Guy’s, em Londres. A hidropsia na Guy’s era ainda considerada uma doença
isolada, como entre os camponeses de Withering, no Shropshire. Porém, Bright
viu uma conexão entre três itens: hidropsia, a albumina que aparecia em
quantidade anormal na urina dos pacientes e a deixava turva, quando aquecida, e
os rins rigidamente contraídos no iminente estado de post-mortem. “Depois de
uma vida de calorosa afeição, pureza imaculada e grande utilidade”, Bright
morreu de insuficiência cardíaca e vive para sempre na doença de Bright.

NASCIMENTO E MORTE
Lord Lister era bonito, robusto, gentil, impassível, resoluto e impermeável à
crítica ou ao ridículo. Ignaz Philipp Semmelweiss (1818-65), da Hungria, era
calvo, usava um bigode bem tratado, era excitável, sensível e louco. Quando
Lister era ainda estudante, em 1846, Semmelweiss era assistente na Primeira
Clínica Obstétrica de Allgemeines Krankenhaus, em Viena, o maior hospital do
mundo para pacientes internos. A Primeira Clínica ensinava estudantes de
medicina. A Segunda Clínica ensinava só parteiras. Na Primeira Clínica a febre
puerperal, que aparecia uma semana depois do parto provocando hemorragia,
trombose, peritonite, abscessos, septicemia e estupor, matava três vezes mais do
que na Segunda Clínica. Toda Viena sabia tão bem, como conhecia o preço do
Bratwurst, que as mulheres grávidas imploravam histericamente para dar à luz na
Segunda Clínica.

Semmelweiss notou que a febre puerperal imitava outra doença violenta que
matava os médicos desafortunados que cortavam os dedos nas autópsias. Ele
lembrou que cada mulher tinha um ferimento aberto, o útero, depois de livre da
placenta. Notou que os estudantes da Primeira Clínica vinham da sala de
anatomia, onde dissecavam cadáveres, e as parteiras da Segunda chegavam das
suas casas. Concluiu então, imediatamente: “A febre puerperal é causada pelo
transporte para as mulheres grávidas de partículas putrefatas derivadas de
organismos vivos, através dos dedos de quem as examina.”

Ele fez os estudantes lavarem as mãos com um desinfetante, cloreto de cálcio.


O índice de mortalidade na Primeira Clínica caiu de 18 para 1%. (Voltando a
Pasteur, isso foi 17 anos antes de ele identificar as “partículas putrefatas” como
micróbios e 19 anos antes de Koch relacionar os micróbios com as doenças.)
Como Jenner, Lister e Lind, Semmelweiss curou o que ele não sabia que estava
curando. Os obstetras vienenses deram tão pouca atenção ao seu tiro no escuro
quanto os cirurgiões de Londres deram ao de Lister.

Lister acabou como um membro fundador da Ordem do Mérito, com um


instituto, um memorial na Abadia de Westminster e uma estátua no lado de fora do
prédio da BBC. Semmelweiss acabou num asilo para loucos em Budapeste, onde
morreu em 15 dias. Ele havia cortado o dedo na sua última operação e o
ferimento infeccionou, e a gangrena invadiu seu corpo e o matou com um abscesso
nos pulmões, exatamente como as vítimas da febre puerperal. Setenta anos mais
tarde, entre as mulheres que davam à luz, três contraíam a febre, e entre 100 com
febre, três morriam. Semmelweiss conseguiu contê-la, mas foram as sulfas que a
erradicaram.

UM BOM LAR PARA UMA CAUSA PERDIDA


O verão de 1940 acordou as torres sonhadoras com o alarme de ataque aéreo. A
guerra começava a se fazer sentir. A Inglaterra há nove meses tateava no escuro
do blackout, e naquela primavera tinha cantado: "Vamos estender nossa roupa
para secar na linha Siegfried.” Agora, manteiga, carne, chá e gasolina estavam
racionados, o scotch era difícil de encontrar e 15 dias depois do começo oficial
da guerra, com os panzers cruzando as fronteiras dos países vizinhos, os alemães
chegaram a Boulogne, na França. Seguindo a tradição de Drake, o críquete
continuava a ser jogado no Parks.

Ao sul do Parks, num anexo do Departamento de Patologia da escola de


medicina de Oxford, que geralmente abrigava cobaias e ratos de laboratório, uma
construção de garrafas de limonada de cabeça para baixo, comadres, tubos de
borracha, tubos de vidro, uma estante de mogno de Bodleian, uma centrífuga para
leite, banheira, caixa de correspondência de bronze e campainha elétrica — o que
teria feito a delícia do lápis de Heath Robinson — estava fabricando o
medicamento mais necessário do século.

O professor de patologia era Howard Walter Florey (1898-1968), australiano


de Adelaide, parecido com Glenn Miller. Ele chegou a Oxford depois de ter sido
professor de patologia em Sheffield, em 1935, e como muitas vassouras novas no
mundo acadêmico varreu seus assistentes para a Biblioteca de Ciência,
encarregando-os de procurar pesquisas esquecidas ou abandonadas que
merecessem uma revisão.

Florey notou que uma parte do trabalho realizado pelo professor Alexander
Fleming, no Hospital Santa Maria, em Londres, em 1929, talvez devesse ser
examinada. Fleming estava estudando o germe estafilococo, causador de
furúnculos, carbúnculos, abscessos, infecção de feridas, osteomielite, mastite,
pneumonia, septicemia e morte. Ele estava examinando as variações de cor nas
colônias amarelas brilhantes dos estafilococos que cresciam no ágar nutritivo nas
placas de Petri, rasas e redondas. Essas mudanças de cor eram mais acentuadas
quando os micróbios cresciam ao ar livre do que no incubador.
Aparentemente, o professor Fleming foi passar férias na Escócia, quando
terminou a experiência, e deixou as placas de Petri empilhadas num balde com um
forte anti-séptico. Porém, a placa de cima havia escapado sem que ele notasse, e
durante sua ausência de um mês o bolor o invadiu e começou a devorar os
estafilococos. O professor chamou o bolor de Penicillium (escova) e,
engenhosamente, o usou para limpar as placas de Petri daqueles germes irritantes
e contaminadores, como estafilococos e outros mais comuns que causam a
pneumonia, a gonorréia e a difteria. Assim, ele poderia cultivar o puro Bacillus
influenzae, que é imune a penicillium e que causa bronquite e sinusite, às vezes
meningite, mas nunca a gripe.

Florey notou que a penicillium do seu colega podia ser redirecionada para
atacar aqueles germes comuns, mas ferozes, no interior do corpo. Seu químico, o
alemão-russo Ernst Chain (1906-1979), cultivou o bolor em lêvedo de cerveja e
extraiu o suco e, em 12 de fevereiro de 1941, Florey experimentou o resultado na
Enfermaria Radcliff, num policial com septicemia estafilocócica resultante de um
ferimento na boca, quando podava os arbustos do seu jardim. A penicilina
produzida na estante de livros bodleiana era tão pouca que tiveram de subir de
bicicleta a ladeira até o Departamento de Patologia, levando a urina do paciente
para fazer uma nova dose.

O paciente morreu, mas a experiência foi um sucesso. Florey restringiu seus


esforços à tentativa de salvar a vida de crianças, que podiam ser tratadas com
doses menores do precioso líquido. Sua equipe planejou passar o bolor na roupa
e fugir, se os alemães aparecessem no High. Ele publicou seus primeiros
resultados na revista Lancet de 28 de agosto de 1940. Para surpresa de Florey, no
dia 2 de setembro Alexander Fleming (1881-1955) apareceu em Oxford. Ainda
não estava atrasado.
Fleming teve sorte. Aquela placa de Petri no Hospital Santa Maria (encontra-se
agora no Museu Britânico) foi exposta em um tios horríveis meses de agosto da
Grã-Bretanha, a temperatura ideal para o crescimento do bolor. O bolor não caiu
do céu, mas subiu do laboratório no andar inferior, onde o colega de Fleming
estava estudando os diversos tipos de bolor. Fleming Ignorava o potencial da
penicilina porque sua mente estava atrás de uma cortina, mesmo no mais versátil e
inventivo laboratório de microbiologia da Europa, sob a autoridade rigorosa de
Sir Almroth Wright. Para Florey, as cortinas estavam abertas. O fato de que
germes “comuns” invasores podiam ser mortos no sangue por substâncias
químicas foi definitivamente estabelecido em Wuppertal, um mês antes de Hitler
dominar a Alemanha, pelo professor Gerhard Domagk (1895-1964) e várias
centenas de ratos.

I.G. Farbenindustrie, na Renânia, sempre fabricou belos corantes. Um obscuro


químico vienense chamado Gelmo, em 1908, havia sintetizado a sulfonamida, que
o chefe de Domagk, o químico professor Heinrich Hörlein (1882-1954)
rapidamente transformou numa substância tenaz, de um vermelho muito vivo. Em
1919, dois americanos, sem muito entusiasmo, tentaram usá-la para matar
bactérias em tubos de ensaio, pondo em prática a idéia de um alemão que, em
1913, havia usado corante vermelho como desinfetante da pele.

Foi o professor Hörlein quem teve a inspiração de usar a sulfonamida como


anti-séptico no interior do corpo. Foi o sonho da moda. Em toda a Alemanha, os
químicos estavam sintetizando compostos capazes de curar, com a tenacidade dos
seus antepassados na identificação das bactérias, na década de 1880, mas sem
resultado. Os químicos eram animados pela descoberta de Paul Ehrlich (1854-
1915), de Frankfurt, em 1909, da famosa injeção 606 de arsênico (“A bala
mágica”) para matar o espiroqueta da sífilis no sangue. E os químicos da I.G.
Farben, em 1930, já haviam transformado um corante amarelo vivo no
medicamento mepacina, para matar os parasitas da malária no sangue.
Hörlein encarregou seus químicos Mietzsch e Klarer de sintetizar inúmeros
compostos diferentes contendo sulfonamida, que Domagk sistematicamente dava
aos ratos que ele havia infectado com 25 bactérias comuns. Estas incluíam o
bacilo da TB, gonococos, pneumococos, meningococos e o estreptococo, o germe
causador da amigdalite, escarlatina, febre puerperal, erisipela, de infecções de
ferimentos e o fatal envenenamento do sangue. Todos os ratos morreram. Domagk
era o arquétipo do homem com avental branco.
De acordo com a tradição da firma, I.G. Farben patenteou a sulfonamida no dia
de Natal de 1932. Na véspera de Natal, Domagk notou que 12 dos ratos
Infectados com estreptococos de um homem que estava morrendo de septicemia
estavam vivos e muito bem dispostos. Um composto chamado sulfanilamida tinha
funcionado.
Domagk ganhou o prêmio Nobel em 1939, mas Hitler não queria que os
alemães fossem contaminados com prêmios estrangeiros, e Domagk foi preso pela
Gestapo. Hörlein foi aprisionado pelos americanos em 16 de agosto de 1945. I.G.
Farben fabricou também o gás zyklon-B, usado pela SS para matar seus
prisioneiros. Ele foi julgado em Nürenberg, em 1947, mas foi libertado. Enquanto
isso, os britânicos haviam se apossado da patente quando a guerra começou, e
desenvolveram a eficaz sulfanilamida antiestreptocócica no composto
sulfapiridine, eficaz contra a pneumonia. A penicilina que fora cultivada por
Florey em comadres do hospital foi fabricada pelos americanos em barris de
cerveja, e assim havia o bastante para os exércitos de Eisenhower e Montgomery,
no Dia D. Os americanos, como a I.G. Farben, patentearam o processo e, daí em
diante, ficaram com todo o dinheiro.

Ironia, teu nome é progresso.

Florey e Fleming dividiram o prêmio Nobel de 1945, mas mal conseguiram


conversar. Então Fleming de repente pensou que era Robert Bruce. O pequenino,
seco, astuto, inarticulado, incompreensível escocês viajou pelo mundo todo como
o salvador da humanidade, o descobridor da penicilina, e dominou
completamente o coração dos clubes femininos americanos. Florey se aposentou
com magnífica solenidade acadêmica.

Quem foi o pai da penicilina? Florey e Fleming foram o esperma e o ovo?


Quem se lembra ainda das palavras do grande médico eduardiano Sir William
Osler: “Na ciência, o crédito vai para o homem que convence o mundo, não para
o homem que teve a idéia em primeiro lugar”?
E quem se lembra ainda das ordenhadoras de Gloucestershire e dos meninos de
Shropshire que, inteligentemente, evitavam que seus cortes fossem infectados
fazendo um curativo com pão embolorado?











CAPÍTULO 4
A conquista da dor

A anestesia foi a brilhante idéia de dois dentistas espertos da Nova Inglaterra,


dispostos a ganhar dinheiro.

BRINCADEIRAS COM O GÁS HILARIANTE E


COM O ÉTER
Esta é uma história contada e recontada. Na manhã de quarta-feira, 11 de
dezembro de 1844, em Hartford, Connecticut, Horace Wells (1815-48), 29 anos,
bonito, gorducho e de costeletas escuras — inventor de uma solda sem sabor para
firmar dentes falsos, que falhou, apesar da garantia financeira de um paciente —
sentou na própria cadeira de dentista para que seu colega, o Dr. Riggs — que deu
o nome à doença de Riggs que provoca a queda de todos os dentes —, extraísse
seu dente siso dolorido. Eles acabavam de deixar Union Hall, onde Gardner
Quincy Colton (1814-98), atendendo a um pedido especial, havia feito uma
exibição privada do “óxido nitroso ou gás hilariante”, que, na noite anterior,
havia alegrado uma palestra muito anunciada como sendo “sob todos os aspectos,
um evento elegante”.
Colton era um estudante reprovado de medicina que vivia da ciência popular. O
admirável desejo de aprender e a falta do que fazer em casa, à noite, que não
fosse ouvir ou tocar piano, fazia com que esse tipo de palestra fosse muito
popular, especialmente quando acompanhada por lampejos elétricos, explosões
químicas e odores desagradáveis convincentes.
O óxido nitroso foi criado em 1772 por Joseph Priestley (1733-1804). Ele era
um ministro presbiteriano, constrangedor e ímpio, em Birmingham, e seu livro,
História da Corrupção do Cristianismo, foi queimado pelo carrasco em Dort, em
1785. Filho de um comerciante de tecidos de Yorkshire, sem nenhuma educação
científica, Priestley tornou-se o “Pai da química moderna... que jamais
reconheceu sua filha” (porque apegou-se cegamente â teoria de que a matéria
continha um misterioso flogiston, o material do fogo).

Quando Priestley aceitou o convite para jantar, em julho de 1791, para


comemorar a importância da queda da Bastilha para Birmingham, um bando de
desordeiros invadiu sua casa, destruiu seus papéis e seus aparelhos. Ele se mudou
para Londres, para ser o pregador matinal em Gravel Pit, Hackney, onde suas
opiniões sobre a Bíblia não foram bem recebidas, e então emigrou para a
Pensilvânia. Um ano antes de descobrir o óxido nitroso, Priestley havia extraído o
oxigênio puro da atmosfera, que misteriosamente aumentava a claridade do fogo
das velas e alongava o tempo de vida dos ratos. Ele inventou a água gasosa.
Sir Humphrey Davy (1778-1829) gostava de inalar óxido nitroso para curar
suas dores de cabeça. “Uma sensação agradável... idéias vividas passam rápidas
pela mente, e o controle dos movimentos é completamente destruído, fazendo cair
dos meus lábios abertos a máscara do gás.” Um nativo do leste, Davy, foi o
descobridor do K [potássio], Na [sódio], Ba [bário], Sr [estrôncio], Ca [cálcio],
Mg [magnésio] e Cl [cloro], e era um professor educado que dirigia o elegante
Instituto Pneumático, perto de Bristol. Ele inventou a lâmpada dos mineiros.

Davy achou que o óxido nitroso podia ser útil para operações cirúrgicas.
Porém, apesar de ter segurado os membros dos pacientes e ouvido seus gritos
quando era um jovem aprendiz de cirurgião em Penzance, não fez nada a respeito.
Limitou-se a borrifar o óxido nitroso em Robert Southey, Samuel Taylor
Coleridge e Roget, do Thesaurus, que o aspirava entre goles de champanhe e
dizia que o fazia sentir-se como o som de uma harpa.
O pôster de Quincy Colton, em Hartford, citava tentadoramente Southey
(poeta): “A atmosfera do mais alto de todos os céus possíveis deve ser composta
desse gás.” Ele fazia a pessoa “Rir, Cantar, Dançar, Falar ou Brigar etc., de
acordo com o traço predominante do seu caráter”. É sempre divertido ver as
pessoas agindo como tolas. Oito homens fones sentavam na primeira fila, para
proteger o público do frenesi dos doze jovens que se ofereciam para inalar o gás
da bolsa de borracha e que, como uma precaução contra a vulgaridade, deviam
ser todos cavalheiros extremamente respeitáveis.

Um desses cavalheiros era Sam Cooley, um empregado de farmácia, que


alegremente começou a correr como doido entre os bancos. Mais tarde, olhando
atônito para suas canelas e joelhos ensangüentados, exclamou: "Um homem pode
entrar numa briga e nem perceber que está ferido.” E acrescentou: “Se um homem
estivesse seguro, poderia se submeter a uma cirurgia sem sentir nenhuma dor no
momento."

Cooley acabava de anunciar o fiat lux da anestesia. Horace Wells estava entre
o público. “Então, o homem pode extrair um dente sem sentir dor, com o gás
hilariante?”, pensou ele. Na manhã seguinte ele pôs a idéia em prática. “Uma
nova era da extração de dentes!” Exclamou, depois. Como no caso do homem que
inventou uma ratoeira mais aperfeiçoada, o mundo com dor de dente fez fila na
frente da sua porta. Depois de um mês ele foi para Boston, para ganhar mais
dinheiro.

Seu antigo sócio, William Thomas Green Morton (1819-68), tinha estudado no
Colégio de Cirurgia Dental de Baltimore e trabalhado algum tempo no Hospital
Geral de Massachusetts, em Boston, fundado por John Collins Warren (1778-
1856) em 1811. Morton apresentou Wells a Warren, que de boa vontade organizou
uma demonstração para extrair o dente de um aluno de Harvard. Foi um fracasso.
Todos riram. Wells voltou para Hartford, matou um paciente, perdeu o interesse
pelo óxido nitroso, desistiu da odontologia.
Passemos agora para o cão spaniel de Morton.

O éter era “óleo doce de vitríolo” para seu descobridor, em 1540, o botânico
alemão Valerius Cordus (1515-44). Seu Dispensatorium, de 1535 foi a primeira
farmacopéia publicada e campeã de vendas (35 edições). Rebatizado com o nome
de aether em 1730, o vapor pungente, aspirado, havia soltado o catarro de três
séculos. Morton leu na Matéria Medica de Pereira, de 1839, que Michael
Faraday (1791-1867) havia notado, em 1818, que o éter anestesiava como o
óxido nitroso. Por toda a parte as pessoas estavam se deliciando com “farras de
éter”, a alternativa da festa de gás de Colton, ambos ancestrais dos coquetéis de
nossos dias. A anestesia, como a embriaguez, nasceu do desejo eterno do homem
de escapar de si mesmo, e felizmente escapou de ser sacrificada num ato de
infanticídio pelos cruéis puritanos.
Roubando abertamente a idéia de Wells, Morton experimentou o éter no
cachorro que “amoleceu completamente nas suas mãos e permaneceu insensível a
todos seus esforços para acordá-lo, mexendo nele e beliscando-o”. Dois minutos
depois, e o fiel Nig estava tão esperto como sempre! Morton continuou a
experiência no cão, em si mesmo e nos seus aprendizes. Tudo no maior segredo.
Ele queria patentear o processo e fazer fortuna.

Morton ofereceu cinco dólares, no porto de Boston, para quem quisesse servir
de cobaia, mas ninguém se interessou. Na noite de 30 de setembro de 1846, Eben
H. Frost apareceu no consultório de Morton com uma tremenda dor de dente,
aspirou éter num lenço e, quando acordou, seu dente estava no chão.

Dezesseis dias depois, Morton deu éter para o Hospital Geral de Massachusetts
para que John Warren extraísse um tumor venoso da mandíbula esquerda de
Gilbert Abbot, de 21 anos. Morton se atrasou 15 minutos. “Como o doutor Morton
ainda não chegou, suponho que deve estar ocupado com outra coisa”, disse
Warren, secamente, para o imponente grupo de médicos que esperava a
demonstração. Todos riram outra vez.

Warren se sentou, bisturi em riste. Momento dramático! Morton entrou


apressado, com seu novo inalador, um globo de vidro contendo uma esponja
embebida em éter, com válvulas de couro para garantir o fluxo unidirecional para
os pulmões do paciente. Sucesso! Warren dirigiu-se aos que assistiam:
“Cavalheiros, isso não é uma farsa.” Fim da gênese da anestesia.
O mecanismo do triunfo de Morton era simples. O éter é mais poderoso do que
o óxido nitroso, que tem maior probabilidade de provocar asfixia antes da
anestesia.
A boa notícia viajou rapidamente. Na tarde de segunda-feira de 21 de
dezembro de 1846, Robert Liston (1794-1847), “dedos de relâmpago”, realizou a
primeira operação sob anestesia na Europa, no University College Hospital, ao
norte de Londres. O cirurgião era um escocês com l,84m de altura, capaz de
amputar uma perna em dois minutos e meio. Com o paciente acordado, a rapidez
do cirurgião era tão misericordiosa quanto a do carrasco. Liston segurava o
bisturi ensangüentado com os dentes, como um açougueiro, para ficar com as
mãos livres e economizar tempo, e orgulhosamente marcava o cabo dos bisturis
de amputação como um pele-vermelha marcava o número de vítimas no seu
tacape.
Liston amputou a perna direita enquanto Peter Squire, dono de uma farmácia
em Oxford Street, aplicava o éter com a esponja dentro do inalador, que parecia
um copo de vinho do porto. “Cavalheiros, este truque ianque ganha de longe do
mesmerismo”, admitiu o cirurgião vaidoso, irônico e agressivo, com grande e
significativa generosidade. No quadro que representa essa operação histórica
felizmente o artista, não o cirurgião, remove a perna errada.

SALVE ESTA HORA FELIZ! CONQUISTAMOS A DOR! Essa foi a manchete do People’s
London Journal. Até o Natal daquele ano, o mesmerismo — do nome de Franz
Anton Mesmer, de Viena, o hipnotizador da moda em Paris, que emitia
“magnetismo animal” — ou ópio, ou cannabis, mandrágora ou bebida alcoólica
eram usados nas cirurgias, todos com mais compaixão do que esperança. Os
assírios faziam a pessoa ficar inconsciente pressionando as artérias carótidas no
pescoço. Helena de Tróia oferecia ânforas de repente. Os chineses, em 2000 a.C.
fabricavam uma droga do sono com pó de jasmim e rododendro. A marinha usava
uma mordaça embebida com rum, o exército fazia morder uma bala. Nada
funcionava. Era tão desanimador quanto as massagens de terebintina na barriga
dos doentes de cólera, feitas por Florence Nightingale, e tão ineficaz quanto o
atual tratamento do câncer. Não havia alternativa para a coragem.
Antes da primavera de 1847, o velho cirurgião de Napoleão, Joseph François
Malgaigne (1806-65), especialista em rótula, havia registrado cinco anestesias
com éter em Paris. Johann Friedrich Dieffenbach, um velho cirurgião plástico,
havia administrado éter em Berlim. Em Edimburgo seu inovador foi James Syme,
primo de Robert Liston. Nikolai Pirogoff administrou éter, em São Petersburgo,
pelo reto. O Conselho de Saúde de Zurique o proibiu por ser perigoso.
A famosa velocidade de cirurgiões como Pirogoff e Liston — comparados com
virtuosos do violino ou duelistas — de um momento para outro tomou-se tão fora
de moda quanto a pequena carruagem de duas rodas.

BOAS AÇÕES E FINAIS INFELIZES


Nesse meio-tempo, Morton precisava de um secretário. Há três meses ele
praticamente não dormia, nem comia. Seu milagre estava em todos os jornais, e os
médicos da Nova Inglaterra queriam pôr as mãos nele. Morton coloriu seu éter
fluido e o chamou de “Letheon”. Qualquer coisa para guardar o segredo até ser
concedida a patente. Então ele anunciada para o mundo todo, começaria a
fabricação em massa dos seus inaladores, presentearia com eles os cirurgiões
mais eminentes e as instituições de caridade, e “enviaria vários de alto preço aos
principais soberanos da Europa”. (Mais tarde, Fabergé poderia ter aproveitado a
idéia.) Morton escreveu panfletos e contratou vendedores para vender o
anestésico de costa a costa. Ofereceu sociedade a Horace Wells (Wells recusou).

Foi então que apareceu Charles Thomas Jackson (1805-80). Era químico e
geólogo de Boston, e Morton fora seu pensionista. Jackson inventou o telégrafo
elétrico, antes de Morse, em 1836, e o algodão-pólvora antes de Schönbien, em
1846. Foi declarado louco em 1873.

Morton, prudentemente, embora um tonto evasivo, havia pedido o conselho de


Jackson sobre a química do éter, antes da operação de Warren. Agora Jackson
afirmava ter sugerido o éter a Morton. Ele era o verdadeiro pai da anestesia e
queria 500 dólares, ou 10% dos lucros. Morton, astutamente, concordou em
partilhar com ele a patente. Jackson pertencia ao mundo científico de Boston, e
Morton sabia que os cientistas de Boston o consideravam “um homem de pouca
cultura e pouca ciência” — muito bem, Boston também pensou assim de Jacob
Bigelow (1787-1879), de Harvard, o botânico e médico que, em 1832, salvou
Boston da cólera (100 mortes contra 3.000 na cidade de Nova York). E os
dentistas de Boston, enciumados, estavam todos contra ele. A sociedade com
Jackson seria o mesmo que um casamento respeitável.
A patente número 4.848 foi concedida em 12 de novembro de 1846.
Comoção!

Os dentistas de Boston e o Massachusetts General Hospital estavam ofendidos


com o fato de o éter ter-se tornado “um medicamento secreto”. “Muitos relutam
em concordar com a conveniência de restringir, por meio de patente, o uso de um
agente capaz de mitigar o sofrimento humano", lamentou altivamente Bigelow.
Morton ficou arrasado. Jackson, de repente, se lembrou das patentes européias.
Exigiu uma parte dos lucros, do contrário enviaria naquela mesma noite, por um
navio-correio, uma carta à Academia de Ciências de Paris reivindicando seu
direito de único descobridor. (Ele enviou a carta.) Ninguém deu importância ao
Escritório de Patentes dos EUA, nem mesmo o exército e a marinha, na guerra do
México, aos quais Morton se ofereceu para “eterisar” os feridos à razão de dois
centavos por cabeça. De seis em seis meses, os advogados creditavam a Morton e
Jackson o lucro líquido da anestesia nos EUA. No fim dos primeiros seis meses
eles estavam a zero.

Antes do fim do seu ano de triunfo, Morton havia tomado o caminho enevoado
da eterna desesperança. Dissipou o resto da vida não concedendo aos outros os
benefícios da anestesia, mas reivindicando-os para ele mesmo. Três vezes entrou
com uma petição junto ao congresso, que formou um Comitê Especial, que não
resolveu nada.

Em 1852, Crawford Williamson Long (1815-78) anunciou calmamente que


desde março de 1842 realizava cirurgias superficiais usando o éter como
anestésico, quase cinco anos antes de Morton. Long era um médico rural muito
popular em Jefferson, Geórgia. Outro clínico geral da zona rural também farejou o
sucesso da anestesia. Henry Hill Hickman (1800-30), de Shifnal, Shropshire,
havia publicado experiências em filhotes de cachorro com o resultado de
animação suspensa usando dióxido de carbono em 1824. Sua proposta insistente
para que fosse usada a insensibilidade por meio de gases na cirurgia, na
Inglaterra e em Paris, então o centro da moda da ciência, foi tristemente refutada
por todos, de Carlos X da França para baixo.
Crawford Long atribuiu o fato de evitar a publicidade a uma cautela natural, à
escassez de operações de grande vulto na clínica rural e ao risco de confusão com
o mesmerismo dos curandeiros. Porém, sua filha acrescentou: “Em toda a região
corria o rumor de que ele possuía um medicamento estranho com o qual ele podia
fazer dormir e cortar em pedaços sem que a pessoa percebesse o que estava
acontecendo. Se houvesse alguma fatalidade, ele seria linchado.”
Morton tornou-se fazendeiro.
Em 19 de abril de 1854, o Senado aprovou um projeto de lei para recompensar
Morton, e em 21 de abril a Câmara dos Deputados o rejeitou. Ele foi recebido
pelo presidente Pierce, que elaborou um plano para ele, aconselhando-o a
processar um cirurgião do governo, ao invés de lutar contra o governo que não
podia ser processado. Morton ganharia e o governo pagaria os custos da ação.
Morton perdeu e o governo ganhou. Morton faliu, sua fazenda foi confiscada, sua
família passou fome, sua reputação foi ridicularizada, suas lembranças ficaram
amargas, sua saúde decaiu, sua vida ficou vazia. Como diversão, em julho de
1868 ele viajou de Boston para Nova York para processar a Atlantic Monthly,
mas caiu morto no Central Park. Wells era agora vendedor de chuveiros, viciou-
se em clorofórmio, foi preso por jogar ácido em duas prostitutas na Broadway
(com o nome de John Smith) e em 23 de janeiro de 1848 morreu de hemorragia na
Prisão Tombs, depois de cortar a artéria femoral com uma navalha. Foi então
eleito membro honorário da Sociedade Médica de Paris.

Seu busto encontra-se na Place des Etats Unis, perto do Arco do Triunfo, ao
lado de um triste pedestal que espera ainda a estátua do General Pershing, da I
Guerra Mundial. A placa diz: Au dentist American Horace Wells inovateur de
l’anaesthesie chirurgical.

A lógica francesa é inexpugnável.

CLOROFÓRMIO E RELIGIÃO
Sir James Young Simpson, baronete (1811-70), sétimo filho de um padeiro,
Professor de Parteiras, accoucheur do comércio de carruagens, Médico da
Rainha Vitória na Escócia, santificado por uma capela particular construída na
sua casa quadrada de granito que dava para o Firth of Forth, atraía para os hotéis
locais uma clientela de 80.000 libras por ano. Ele era um Festival de Edimburgo
em todos os dias do ano.
No dia 4 de novembro de 1847, depois do jantar, Sir James e seus dois jovens
assistentes da Enfermaria Real de Edimburgo tomaram clorofórmio, ao invés de
vinho do porto. Inalando o bouquet, os dois jovens médicos começaram a dar
gargalhadas, a gritar e tentaram atirar as cadeiras e a mesa pela janela, depois
deslizaram para o chão e adormeceram. "Muito mais forte do que o éter",
observou o corpulento professor, adormecendo também ao lado deles.
A abençoada lua-de-mel do éter tinha acabado. O cheiro desagradável, a
irritação dos pulmões, as crises de vômito dos pacientes, a necessidade das
máscaras desajeitadas de vidro e uma quantidade enorme do anestésico levaram
os médicos à procura de outras varinhas mágicas para a anestesia. O clorofórmio
era rápido. A inconsciência era imediata, e não gradual. Cheirava bem, e seu
efeito era mais duradouro, mais forte, era mais barato e de administração mais
simples. Bastava uma borrifada num gorro de dormir ou numa luva, ou uma
esponja embebida no anestésico, e podiam cortar qualquer coisa. Meia colher de
chá de clorofórmio, num lenço dobrado sobre o nariz, exorcizavam as dores do
parto que atormentavam as mulheres desde Eva e escandalizaram o clero
(masculino) da Escócia.

“Entre dores darás à luz teus filhos”, ordenava o Gênesis. “Privar os ouvidos
de Deus dos gritos profundos e angustiados” da mãe em trabalho de parto,
pregavam eles, é garantir que ela jamais amará o filho pelo qual jamais sofreu.
Ah, sim, dizia Simpson, igualmente piedoso (que tinha duas Bíblias da família na
sua sala de jantar). Mas a frase seguinte manda o homem ganhar com sofrimento o
pão de cada dia, porém não estavam todos se deliciando com suas tortas de
miúdos e purê de batatas?

Os religiosos discutiram sobre a tradução da palavra “sofrimento”. Ele os


corrigiu: "Não significa a sensação de dor, mas o grande esforço muscular em que
consiste o trabalho de parto, sendo o útero mais poderoso e os obstáculos
mecânicos muito mais numerosos do que os que tem de suportar, por exemplo, a
vaca doméstica.” O exemplo da vaca não adiantou. Aquelas pessoas
ameaçadoramente virtuosas e perigosamente bem-intencionadas (que estão
sempre ao nosso lado) continuaram a dissentir até 7 de abril de 1853, quando
John Snow (1813-58) administrou clorofórmio à la reine, à rainha Vitoria, para o
parto sem dor do Príncipe Leopold, concedendo respeitabilidade ao Gênesis.

Como Jackson, em Boston, roubou de Morton o crédito pela descoberta do éter,


assim também um cirurgião escocês, que virou químico, calvo, de barba espessa,
David Waldie (1813-89), estendeu a mão para as honras conferidas a Sir James
Simpson. O clorofórmio é um composto pouco sofisticado: CHCl3, tão simples
quanto o éter (C2H5)2O e mais simples do que o simples C2H5OH da universal
alegria engarrafada do homem, o álcool. O clorofórmio foi preparado em 1831
independentemente em Paris, Alemanha e no Estado de Nova York. Foi
experimentado como anestésico, em animais, pelo fisiólogo francês Pierre-Jean-
Marie Flourens (1794-1867), que descobriu o centro regulador da respiração no
cérebro) nove meses antes de Simpson experimentar nele mesmo. Já havia
embriagado muita gente em Nova York.
Waldie foi quem primeiro falou sobre o clorofórmio com Simpson, na
Sociedade Médico-Cirúrgica de Edimburgo, em outubro de 1847. Waldie
trabalhava para a Companhia de Apotecários em Liverpool, e havia visto a
fórmula no Dispensatório dos Estados Unidos, para atender ao pedido de um
médico local que estava tentando fazer soltar o catarro de Liverpool com outra
coisa que não o éter. Waldie prometeu a Simpson uma amostra, mas quando
chegou em casa encontrou seu laboratório destruído pelo fogo. Quando Simpson
proclamou o clorofórmio para o mundo (comprado em Duncan e Flockhart, ao
lado da Princes Street), uma semana depois do seu jantar com anestésico, Waldie
viu-se reduzido a uma insignificante nota de rodapé.

O ressentimento sobreviveu ao detrator. “Ele ficou com uma parte maior na


introdução do clorofórmio do que a do Dr. Jackson na introdução do éter",
declarou John Snow — um elogio tremendamente precário. Waldie morreu ainda
zangado, mas rico, em Calcutá, depois que seu Linlithgow nativo pôs as coisas no
devido lugar com uma placa que diz: “A ele pertence a distinção de ter sido o
primeiro a recomendar e tornar praticável o uso do clorofórmio para aliviar o
sofrimento humano.”

Também estavam ressentidos 117 quilômetros ao sul, em Dumfries. A


amputação da perna direita do garçom de 36 anos, Harley Street, por Robert
Liston, no University College Hospital, teve grande publicidade em Londres.
Porém, no sábado anterior fora realizada discretamente a primeira operação com
anestesia da Europa, na Enfermaria Real de Dumfries e Galloway, realizada por
William Fraser (1819-63), cirurgião a bordo do Acadia, que chegou ao porto de
Liverpool às 9:15 da manhã, três dias antes, trazendo a boa notícia sobre o
desempenho de Morton, vinda de Boston, via Halifax. Talvez todos eles
merecessem o conselho amistoso de Simpson: “Jamais guarde ressentimento. É
tão desconfortável quanto uma bolsa de água quente, fria.”

O clorofórmio logo substituiu o éter em toda parte. Contudo, certos sádicos


desavisados persistiam em aprovar as palavras de Florence Nightingale: “O
ardor do bisturi é um poderoso estimulante, e é melhor ouvir um homem gritando
com toda a força do que vê-lo mergulhar silenciosamente para o túmulo”,
ordenava Sir John Hall (1795-1866), principal oficial médico na Criméia.
W.E. Henley faz a apreciação, na década de 1870:

Vejam-me esperando — esperando a faca
Mais um pouco e num instante vou saltar com a tempestade
O espesso, doce mistério do clorofórmio
A embriaguez escura, como morte-em-vida.
E sua utilidade nas duas extremidades da operação é indicada por George
Bernard Shaw, em 1906:
O clorofórmio fez muitas diabruras. Permitiu que qualquer tolo se tomasse
cirurgião.

A EVAPORAÇÃO DO CLOROFÓRMIO
O clorofórmio tinha um problema. Matava rapidamente, matava rápida,
inesperada e indiscriminadamente. A primeira vítima foi Hannah Greener, quinze
anos e em perfeita saúde, em Newcastle, 28 de janeiro de 1848, durante a
remoção de uma unha do pé. É claro que clorofórmio demais mata qualquer um,
como qualquer coisa em demasia. Porém, logo descobriram que o coração podia
parar de repente, logo no começo da administração do anestésico — “síncope do
clorofórmio". Ninguém sabia por quê. Isso provocou uma grande desordem em
Hyderabad, no dia 25 de janeiro de 1889.

O duque e a duquesa de Connaught estavam distribuindo prêmios na escola de


medicina, naquele remoto posto acadêmico do império onde o sol jamais se põe.
O diretor da escola (Serviço Médico do Exército em Bengala) afirmava que sua
escola era melhor do que muitas da Europa, e que haviam descoberto que “não
existe essa coisa de síncope do clorofórmio”. Fizeram isso matando com uma
superdose 128 cachorros vira-latas adultos. Ele aconselhava as escolas de
medicina de Londres a continuar com o éter, que eles sabiam controlar.
A Lancet interessou-se pelo assunto. Cartas e artigos defrontavam-se
grandiosamente nos números semanais da revista que viajava a bordo dos navios-
correio P&O. O Nizam de Hyderabad, esportivamente ofereceu 1.000 libras para
a Lancet enviar um especialista e testar sua teoria. A Lancet enviou um
farmacologista eminente, que passou um telegrama dizendo NENHUMA PARADA
DO CORAÇÃO, depois de matar 490 cães, cavalos, macacos, cabras, gatos e
coelhos. A Lancet orgulhosamente sugeriu que seu homem tinha virado nativo.
Como sempre acontece na medicina, os médicos continuaram a discutir e os
pacientes continuaram a morrer.
O clorofórmio não é inflamável — ao passo que o éter é explosivo —, o que
recomendava seu uso nas batalhas e nos ataques aéreos. Na II Guerra Mundial o
éter foi superado por um fluido para limpar a seco, inflamável, o tricloretileno
(os tintureiros adoraram e se embriagavam cheirando os tanques). Depois da
guerra, como certas marcas de chocolate e de sorvete, o clorofórmio nunca mais
apareceu.

O TRAPO E A GARRAFA
A anestesia produziu aparelhos mais engenhosos até mesmo do que a horticultura.
John Snow foi o primeiro anestesista profissional do mundo. Natural de
Yorkshire, o mais velho dos nove filhos de um fazendeiro, morava no Soho e
trabalhava no Hospital São George, em Hyde Park Comer, dando 10 anestesias
por semana. Em 1847 inventou um inalador portátil de éter, do tamanho de um
livro grosso, com um dispositivo de banho-maria para vaporizar o anestésico, que
era derramado num recipiente com uma placa em espiral, do qual o paciente
inalava o vapor mais pesado do que o ar por um tubo longo e flexível. Uma
máscara triangular, com uma válvula, cobre a boca e o nariz — na monografia de
Snow, a boca e o nariz de uma bela jovem com deliciosos cachos de cabelo.
Snow aplicou uma mente científica ao novo assunto que havia surgido por acaso e
por especulação, e que podia facilmente ter-se perdido na superstição e na falsa
medicina. Ele escreveu Sobre o clorofórmio e outros anestésicos, e caiu morto
ao terminar o último parágrafo.
Joseph Thomas Clover (1825-82), barba espessa e sempre de sobrecasaca,
seguiu Snow como o mais procurado anestesista de Londres. Ele clinicava no
Hospital Westminster e tinha entre seus pacientes Robert Peel, o ex-Napoleão III,
a futura rainha Alexandra e Florence Nightingale, possivelmente para intimidá-lo.
Ele inventou um inalador de clorofórmio no qual uma dose era vaporizada por
uma seringa e bombeada por um fole numa bolsa do tamanho de uma fronha. Tudo
isso apavorava os pacientes nervosos. Esse método desprendia 4,5% de
clorofórmio no ar, o primeiro anestésico a ser medido. Ele inventou também a
"muleta de Clover”, que mantinha erguidas as pernas da paciente anestesiada
quando o cirurgião precisava alcançar o períneo.
Os vários aplicadores de anestesia usados na segunda metade do século XIX
iam desde uma simples máscara de flanela com armação de arame, que podia ser
levada dentro de uma cartola, até um reservatório ornamental como um bule de
chá para o óxido nitroso que estava voltando a ser usado. Alguns tinham bolas
como os pulverizadores de perfume para bombear o ar no vidro com clorofórmio,
outros tinham espécies de manivelas que movimentavam engrenagens, ou bolsas
de borracha como bolas de futebol, mas o francês Louis Ombrédanne (1871-
1956) usava uma bexiga de porco.

Seu compatriota Paul Bert (1830-86) em 1879 inventou o carro anestésico,


forte e hermeticamente fechado, com dez pequenas aberturas que podiam
acomodar doze pessoas, incluindo o paciente. A equipe cirúrgica ficava sujeita a
uma grande pressão do ar e o paciente à alta pressão do óxido nitroso da bolsa
que ficava debaixo da mesa de operação. O ar era refrigerado no verão e passava
por água quente no inverno, e quando começava a diminuir alguém assobiava para
avisar o homem encarregado da bomba, que ficava no lado de fora. O carro se
movia sobre rodas e chegava a todos os hospitais de Paris, até que em 1883 os
passageiros conseguiram jogá-lo na pilha de ferro velho. Os médicos tiveram
mais sorte do que os três balonistas que Paul Bert fez subir para estudar a
inalação de oxigênio. Só um deles voltou com vida.

Depois da I Guerra Mundial a anestesia passou a ser feita passando óxido


nitroso comprimido e oxigênio de cilindros para o éter e, ás vezes, clorofórmio
contido em vidros. Essa foi a invenção simples de “Cocky" Boyle (1875-1941)
que, com “Gloomy" Hoover (1896-1986) adornou a anestesia no Hospital de São
Bartolomeu, em Londres. Sir Ivan Magill (1888-1986) havia aplicado a anestesia,
durante a guerra, para Sir Harold Gilles, que inventou a cirurgia plástica em
Sidcup. Para evitar que o rosto deformado se tornasse um campo de batalha para
o cirurgião e o anestesista, Magill inseria um tubo no nariz, que passava pelo céu
da boca, pela língua e pelas cordas vocais até a traquéia. Desse modo não havia
impedimento entre a parte inferior do cilindro de oxigênio e os alvéolos
esponjosos dos pulmões do paciente. Foi uma conveniência muito bem recebida
pelos anestesistas, que passavam muito tempo lutando para evitar que o paciente
morresse sufocado.
A despeito dos aparelhos, cada vez mais aperfeiçoados, o anestesista
continuava como a figura desprezada, “o homem do pedaço de pano e da garrafa",
garrafa de clorofórmio no bolso traseiro da sobrecasaca, pedaço de pano no outro
bolso para pingar o anestésico, ganhando 10% dos honorários do cirurgião, o
Fígaro, o Admirável Crichton, o Jeeves do teatro operatório.

AS HONRAS DA ACADEMIA
Em 1937 surgiu entre os mestres de Oxford o primeiro professor de anestesia da
Europa, para grande ultraje de todo o corpo docente. O dinheiro veio de Lord
Nuffield, que já havia escandalizado Oxford com a produção em massa tio
automóvel Morris Minor (“Oxford é o Quartier Latin de Cowley", chique de
morrer). Nuffield levou bola preta no clube de golfe local, por isso ele o comprou
e instalou seu parceiro de golfe na Cadeira de Anestesia. O novo professor era
Sir Robert Reynolds Macintosh (1897-1989), inventor do laringoscópio
aperfeiçoado, que já havia provado sua habilidade administrando uma anestesia
perfeita com gás no seu benfeitor. Sir Robert tinha uma ótima clínica em Harley
Street com três máquinas de gás e dois Bentleys por anestesista, maldosamente
chamada pelos invejosos de “Companhia Mayfair de Gás, Luta e Sufocação".
Então o Serviço Nacional de Saúde criou anestesistas consultores como qualquer
outra pessoa, e eles fundaram a Faculdade de Anestesia e, finalmente, seus
membros chegavam ao hospital dirigindo carros iguais aos dos cirurgiões.

A América tinha já um professor, Ralph Milton Waters (1883-1979), em


Madison, Wisconsin. Ele introduziu o gás ciclopropano, com as desvantagens de
ser tremendamente explosivo e horrivelmente dispendioso. Também o “Pentotal”,
que mudou a terrível indução da anestesia de sufocação controlada para uma
pequena picada no braço. (Se o anestesista conseguia acertar a veia: “Você tomou
gás na sua operação?” perguntou a mulher, no ônibus. “Não, eles não usam mais o
gás”, respondeu a amiga, "Um cara chega, enfia uma agulha nas costas da sua mão
quatro ou cinco vezes, e você dorme.”)
“A local” era usada desde 1884, injetada no músculo, em determinados nervos,
na medula ou simplesmente passada na superfície do olho, da língua ou do nariz.
O poder mágico da cocaína foi famosamente explorado pelo vienense Carl Koller
(1857-1944), cirurgião de olhos. Se Freud não tivesse saído de férias com sua
noiva, na ocasião, teria se tornado um aclamado pioneiro anestesista e poupado
ao mundo muita introspecção angustiosa.
Os anestésicos para uso local eram muito usados porque produziam
insensibilidade e paralisia sem os inconvenientes gerais do narcótico e sem a
necessidade de um hábil anestesista. Porém, a anestesia "local" é obstinadamente
local e quase sempre o paciente prefere o sono, mais arriscado. O problema foi
resolvido por Sir Walter Raleigh (1552-1618). Em 1595, viajando para o
Orinoco, Sir Walter conheceu o veneno paralisante que os nativos da América do
Sul usavam nas flechas, um xarope feito de uma trepadeira que mais tarde foi
chamado de “curare". As mesas de operação do mundo todo estão agora repletas,
dia e noite, de pessoas submetidas ao equivalente à picada do dardo envenenado
de uma zarabatana. A paralisia provocada oferece ao cirurgião um corpo flácido,
enquanto uma pequena quantidade de algum anestésico moderno, como o halotano,
provoca um sono superficial. A extrema economia de anestésico nas cesarianas,
para não prejudicar o bebê, muitas vezes tem como resultado uma paciente
completamente acordada e paralisada durante todo o tempo da operação. Os
tribunais concedem uma indenização tão generosa a esse tipo de agonia mental e
física que qualquer mãe que se queixe de ter passado por ela pode trazer à
lembrança de toda uma enfermaria de parturientes que elas também sofreram sem
merecer.

Essa combinação épica de sono e paralisia que transformou a anestesia foi


experimentada por Harold Randall Griffith (1896-1985) em Montreal, em 1942.
Porém, o escritor francês Joris-Karl Huysmans foi quem teve a idéia pela
primeira vez. Em 1884, escrevendo sobre as observações de Edgar Allan Poe a
respeito da influência depressiva do medo sobre a vontade, Huysmans acrescenta:


Que afeta como um anestésico
que paralisa os sentidos e o curare que
inutiliza os nervos motores.


Ora, ora.
Ninguém sabe como os anestésicos funcionam. Mas ninguém sabe por que nós
dormimos.
CAPÍTULO 5
A bengala com cabo de ouro

O médico do século XVII era inútil, mas decorativo. Casaco de cetim abotoado,
calça de couro até abaixo dos joelhos, meias de seda e sapatos com fivela,
babados de renda, peruca inteira, balançando uma bengala comprida com cabo
oco de ouro, cheio de vinagre aromático de Marselha. Era le vinaigre de quatre
voleurs, a mistura eficaz usada por quatro ladrões de corpos aprisionados durante
a epidemia de peste em Marselha e que nunca foram infectados. Era aspirado
repetidamente para imunizar o médico contra a infecção e dar a ele tempo para
pensar. A bengala tornou-se seu símbolo, a varinha mágica de Esculápio.

POMPA E TRISTE CIRCUNSTÂNCIA


A bengala de cabo de ouro, de 1827, é a biografia indiscreta de uma bengala com
brasão de armas usada sucessivamente por cinco médicos da moda, depois de
1689. Primeiro foi John Radcliffe (1650-1714), que deu a Oxford a Câmera
Radcliffe, a Biblioteca Radcliffe e a Enfermaria Radcliffe. Era médico de
Guilherme III, que era impaciente, rabugento, bebia muito e devorava as raras
ervilhas verdes sem oferecer nenhuma à rainha. Não era fácil tratar o rei. Para
sangrá-lo, o médico precisava de autorização do Conselho Privado. O arrogante
Radcliffe teve uma desavença com Sir Godfrey Kneller por causa de uma porta de
jardim usada pelos dois. “Sir Godfrey pode fazer o que quiser com a porta,
exceto pintá-la.” Ao que o artista respondeu, através do seu cavalariço: “Diga ao
doutor Radcliffe que posso aceitar qualquer coisa dele, menos cuidados
médicos.” Muito bem, comentaram rindo os freqüentadores de Taverna em Fleet
Street, onde Radcliffe despendia generosamente parte das 5.000 libras que
ganhava por ano (mais tarde, Sir Godfrey pintou a cena).
O guinéu chegou com a restauração, arredondando os honorários dos médicos,
pagos pelos nobres, em 6s8d. Embora só tivesse sido cunhado depois de 1813, o
guinéu continuou como a elegante unidade monetária dos médicos até a divisão
decimal do dinheiro, em 1971. As despesas de viagem por carruagem eram
extras. A consulta de um médico de Londres em Pitlochry custava 1.500 guinéus.
Quando tinha 60 anos, Radcliffe se apaixonou e foi alvo de charges na imprensa.
Quando a rainha Anne morreu ele estava com gota, e o Parlamento o culpou por
não atendê-la, mas Radcliffe se desculpou devidamente, morrendo três meses
depois.
“Nunca li Hipócrates em toda a minha vida”, disse Radcliffe secamente para
um jovem médico que perguntou se ele lia Hipócrates em grego. “O senhor não
precisa”, disse imediatamente o jovem. “O senhor é o próprio Hipócrates.”
Assim, Richard Mead (1673-1754) providenciou para ser herdeiro da clínica e
da bengala com cabo de ouro de Radcliffe. Mead começou a curar as pessoas
pelo correio, escrevendo receitas por meio guinéu, na Coffee House, em Covent
Garden, sem se dar ao trabalho de ver os pacientes. No fim do dia ele ia para
Batson. Ganhava 7.000 libras por ano. “O doutor Mead”, disse o doutor Johnson,
“viveu mais tempo em plena luz do sol do que qualquer outro homem."

A bengala que amaciava as palmas daqueles médicos de dedos de ouro está


agora no Colégio Real de Médicos, fundado por Thomas Linacre (1461-1524),
um Fellow de All Souls, Oxford, que conseguiu com Henrique VIII carta patente
para os clínicos, em 1518, 22 anos antes de os cirurgiões conseguirem. O Colégio
tinha autoridade para expulsar da prática médica os charlatães, monges, artesãos
e mulheres que “provocavam sofrimentos intensos, danos e destruição em muitos
súditos do Rei, especialmente àqueles incapazes de discernir os charlatães dos
verdadeiros médicos”. Essa autoridade era realmente exercida: em 1630 e 1637
mandou cortar as orelhas de dois curandeiros não-qualificados. O Bispo de
Londres foi apaziguado com a permissão de continuar a licenciar médicos com a
mesma liberdade com que ordenava sacerdotes. O Colégio Real de Médicos,
onde está exposta a bengala com cabo de ouro, fica hoje perto do Zoológico.
Outros valiosos decoradores de dois séculos da medicina:

— O médico do doutor Johnson, William Heberden (1710-1801), que
descreveu a angina pectoris e os nódulos de Heberden (artrite nas pontas dos
dedos).

— O excêntrico e rígido quacre Thomas Hodgkin (1789-1866), considerado no
Guy’s como o tipo de pessoa que eles não queriam na sua equipe de médicos.
Ele se contentou com o cargo de curador do Hospital-Museu, onde descobriu,
em espécimes patológicos, o aumento simultâneo do baço no abdome e
glândulas linfáticas espalhadas pelo corpo. Durante 33 anos ninguém deu
atenção a essa correlação, até que o médico do Guy’s, Sir Samuel Wilks
(1824-1911) a ressuscitou e honestamente a denominou doença de Hodgkin.

— A doença que provoca tontura, desequilíbrio e surdez de um dos ouvidos,
descrita por Prosper Menière (1799-1862), da Instituição de Surdos-mudos de
Paris, um mês antes de morrer de gripe.

— Sir William Withey Gull, baronete (1816-90), médico da rainha Vitória,
sensatamente suspeitava da eficácia de todos os medicamentos e escreveu
Reumatismo Tratado com Água de Menta. Ele tratou o príncipe de Gales de
febre tifóide (não existia tratamento), e criou aforismos:

Não uma febre tifóide, mas um homem com febre tifóide.
(O médico trata um paciente, não uma doença.)
Selvagens explicam, a ciência investiga.
Sobre uma neurótica difícil: a senhora X é ela mesma multiplicada por quatro.

Um século depois, Sir William tornou-se alvo de acusações absurdas dos


caçadores do herói folclórico inglês Jack, o Estripador. Naquele outono sinistro
de 1888 Gull estava com 71 anos, havia sofrido uma crise de isquemia cerebral
um ano antes e padecia de artrite em todo seu corpo napoleônico. O que sugere
que ele devia ter meios mais confortáveis de passar as noites do que se
escondendo nas vielas de Whitechapel, iluminadas a gás, esfaqueando prostitutas.
Ele deixou 344.000 libras, um recorde na profissão.

— Sir William Richard Gowers, de Yorkshire (1845-1915), neurologista, foi o


primeiro a usar a “lanterna mágica", o oftalmoscópio, para examinar a retina do
olho, e definiu o trato de Gowers na medula espinhal.
— Sir Hans Sloane 0660-1753), o médico que tinha um jardim exótico em
Chelsea e fundou o Museu Britânico, deu nome à Praça Sloane, à Avenida
Sloane e ao Hans Crescent, todos na rua do Harrods, também Sloane Rangers.

O DIAGNÓSTICO É TUDO
Os médicos da era vitoriana eram brilhantes na identificação de todas as doenças
cuja cura eles desconheciam por completo.
— Percussão. O musical Leopold Auenbrugger (1722-1809), filho do
taverneiro de Graz, aplicou a forma de verificação da quantidade de vinho nos
barris do seu pai — batendo na madeira com as pontas dos dedos — para
descobrir a existência de fluidos no peito dos pacientes. Os médicos vienenses
consideraram o método ultrajante e sem dignidade. Jan Nicholas Corvisart
(1755-1821), médico de Napoleão, achou esplêndida a idéia e em 1808 a
espalhou por toda Paris — como Sir Samuel Wilks, honradamente dando
crédito ao seu autor.
— Auscultação. Para ouvir o coração e os pulmões, todos os médicos, desde
Hipócrates, encostavam o ouvido no peito do paciente. Esse método foi
descrito por René Theóphile Hyacinthe Laénnec (1781-1826) como “não
somente ineficaz, mas inconveniente, indelicado e, nos hospitais, até mesmo
desagradável". Muitos médicos pousavam a cabeça sobre colos suaves e
adormeciam. Assim, em 1816 Paris produziu outro auxiliar do diagnóstico
quando Laënnec atendeu uma jovem de seios tão avantajados que ele
impulsivamente enrolou uma folha de papel, ouviu de uma distância decente e
inventou o estetoscópio. O primeiro era um rolo oco de madeira, passou para
uma corneta acústica e depois para o conhecido estetoscópio para os dois
ouvidos, equivalente à bengala do cabo oco de ouro.

— O pulso. Era difícil medir a pulsação antes de surgirem os ponteiros de


segundos dos relógios de bolso. O ex-estudante de medicina Galileu (1564-
1643) media seu pêndulo pelas batidas de seu coração, depois inteligentemente
inverteu a idéia, passando a medir o pulso pelo movimento do pêndulo. Um
professor de Pádua, Sanctorius Sanctorius (1561-1636), em 1625 inventou o
pulsilógio, um relógio de pulso que depois de dois séculos foi aperfeiçoado em
Lichfield por Sir John Floyer (1649-1734), passando a marcar os minutos.
Sanctorius passou grande parte da vida sentado numa máquina de pesar para
ver quanto peso ganhava com cada refeição, antecipando a ciência do
metabolismo do século XX e a obsessão em perder peso.
— A temperatura. Galileu havia inventado um termômetro, Sanctorius o
aperfeiçoou para ser usado em seres humanos, mas tinha 33 centímetros de
comprimento e precisava ser chupado durante 20 minutos. O estudioso Sir
Thomas Clifford Allbutt (1836-1925), o original Dr. Lydgate de George Eliot
em Middlemarch, o reduziu a algo que as enfermeiras podiam guardar no
bolso. Carl Reinhold August Wunderlich (1815-77), de Württenberg, inventou o
gráfico da temperatura e, em 1868, compreendeu que a elevação da temperatura
do corpo humano que ele registrava não era, necessariamente, como se pensava
na época, uma doença. “Ele encontrou a febre como uma doença e a deixou
como um sintoma."
Benjamin Rush (1745-1813), o Hipócrates da Pensilvânia, um quacre
contrário à guerra, à escravatura, aos enforcamentos e ao álcool (atitude
muito boa para sua clínica), foi signatário da Declaração da Independência e
declamou: “A medicina é minha esposa e a ciência minha amante.” (“Não
acho que essa violação do sétimo mandamento seja lisonjeira para a dona
dos seus afetos", comentou Sir Oliver Wendell Holmes, de Boston.) Rush
descobriu que a inflamação era o efeito da doença, e não a cama.
Wunderlich e Rush tiveram uma visão bastante clara da infecção, antes que a
microbiologia prática no fim do século XIX a tornasse tão pouco notável
quanto uma fotografia.

— Raios X. Wilhelm Konrad Röntgen (1845-1922), professor de física em


Würzburg, na Bavária, trabalhando até mais tarde numa noite de sexta-feira,
8 de novembro de 1895, notou que alguns cristais distantes iluminavam-se
no laboratório escuro quando a eletricidade passava pelo tubo de vácuo que
ele estava usando dentro de uma proteção de papelão. Ele afastou mais os
cristais do tubo.

Novamente se acenderam. Pôs um livro entre eles e a corrente elétrica. Um


pedaço de madeira. Depois, placas de metal. Continuaram a brilhar. Pôs a
mão no meio. Mein Gott! Seus ossos ficaram visíveis. Ganhou o prêmio
Nobel em 1901. Röntgen era um homem simples, triste, sonhador e modesto
que detestava a publicidade, e deu as 50.000 kroner do prêmio Nobel para
sua universidade, recusou chamar os raios de Röntgen e a explorá-los
comercialmente, disse a todo mundo que o Kaiser ia perder a guerra e
morreu sozinho e na pobreza.
Pierre Curie (1859-1906) e sua mulher polonesa, ex-governanta de crianças,
Mane Sklodowska Curie (1867-1934), descobriram o rádio em 1897. Pierre foi
atropelado em Paris, e Marie morreu de anemia causada por exposição ao rádio.
UMA PEÇA ANTIGA
Entre o discreto estalar das elegantes poltronas de couro, o tilintar do cristal, o
suave farfalhar do Times nos clubes masculinos de Pall Mall estão estranhas
peças antigas que nem os membros mais antigos sabem identificar. A banqueta
forrada de veludo com borlas, para a gota, debaixo da confortável poltrona do
clube, permitia ao dedo grande do pé, enfaixado e tão sensível que o zumbido de
uma mosca era antecipado com alarme, ser mantido abençoadamente na
horizontal.
Muitas doenças têm clubes, com endereços e telefones, desde os Alcoólatras
Anônimos e Tratamento da Artrite até as Doenças Venéreas. Algumas doenças
crônicas se transformaram em clubes informais, uma camaradagem entre os
membros para compensar o triste fato de não haver tratamento para elas. No
começo do século XX os sanatórios para tuberculosos, nos Alpes suíços,
ofereciam a camaradagem do refeitório militar durante a guerra, com um índice de
mortalidade bastante inquietante. A gota era a doença própria dos clubes de
cavalheiros. Suas vítimas, homens claudicantes, com o pé enfaixado, de muletas,
gordos, corados, mal-humorados e imponentes, inflamavam a imaginação de
Gillray, Rowlandson e de todos os cartunistas, como as juntas dos seus próprios
dedos grandes do pé.

Era uma zombaria mal orientada. Sir Thomas Browne descobriu, em meados
do século XVII, que: “Quantos homens famosos, imperadores e pessoas cultas são
exemplos dessa doença, provando que não é uma doença de tolos, mas de homens
sensatos e de valor.” Seis admiráveis vítimas dessa doença histórica:

— Byron. (“A gota, que enferruja as juntas aristocráticas.”)

— W.S. Gilbert. ("Um gosto pela bebida combinado com gota o havia
curvado para sempre.”)

— Jaroslav Hasek, O Bom Soldado Svejk. (“O coronel... se transformou,


depois de um ataque de gota, de um cordeiro pacífico num tigre feroz... ele
rugia com a voz terrível de um homem assado lentamente num espeto: 'Saiam
todos! Tragam-se um revólver!”’)

— Sydney Smith, humorista. (“Observo que a gota ama ancestrais e


genealogia. São necessárias cinco ou seis gerações de cavalheiros ou nobres
para dar a ela a força máxima.")
— James Thomson, poeta. ("A gota insone aqui conta os cantos dos galos, um
lobo agora o mastiga, agora uma serpente o pica.”)
— Anthony Trollope. (“Velhos cavalheiros geralmente são mal-humorados.
A gota e aquela outra coisa, vocês sabem.”)
A gota é sem dúvida uma doença dos literatos.
Havia gota nos esqueletos do tino 3 d.C, nos Costwolds. Os romanos engoliam
a propensão para a gora com o chumbo dos seus copos de vinho. “Os pobres
raramente têm gota", observava o The Heaven of Health, em 1584. Isso porque os
pobres viviam de pão de cevada e queijo, ao passo que a classe dos gotosos
comia proteína, que contribuía para a doença. O vinho do porto acendia o pavio.

Thomas Sydenham (1624-89) escreveu Tratado sobre a gota, em 1863, onde


diz: “A vítima vai para a cama e dorme com boa saúde. Mais ou menos às duas da
manhã é acordada por uma dor forte no dedo grande do pé... é tão acentuada a
sensibilidade da parte afetada que não suporta o peso das cobertas nem a
vibração de passos no chão do quarto. A noite é passada em tortura e insônia...”
O médico escreveu com tanta percepção clínica porque sofria horrivelmente de
gota também.

Sydenham, de Wynford Kagle, em Dorset, descreveu graficamente todas as


doenças. A coréia de Sydenham, “a dança de São Vito”, nas crianças infectadas
por estreptococos, foi um dos seus originais. Ele notou a diferença entre o
sarampo e a escarlatina. “O sarampo geralmente ataca crianças... inquietação,
sede, falta de apetite, língua esbranquiçada (mas não seca)... e no quarto dia
aparecem no rosto e na testa pequenas manchas vermelhas, como picadas de
mosquitos”.

Língua esbranquiçada? Talvez Sydenham tenha notado também os pontos


brancos na boca, que permitem um diagnóstico precoce, dois séculos antes de
Henry Koplic (1858-1927), do Hospital Monte Sinai, em Nova York.
Sydenham é chamado de “Hipócrates inglês”, porque ele eliminou as teorias, o
misticismo e a magia que infestavam a medicina daquele tempo. Reviveu a idéia
de Hipócrates de tratar o paciente na própria cama, por causa do que ele via e o
que sabia. Ele preferia Dom Quixote aos livros de medicina. Além disso, possuía
o supremo dom clínico de reconhecer quando podia fazer o melhor possível por
um paciente e para sua reputação simplesmente não fazendo coisa alguma.
Seu ardente pupilo foi o médico-pirata Thomas Dover, que contraiu varíola e
tratou a febre com o método de Sydenham de quarto frio, ar fresco, nada de
cobertas e doze garrafas de cerveja fraca a cada 24 horas. Ele distribuía ópio
para todos, temperado com açafrão, canela e cravo. Sydenham era modesto,
impassível, distante, compassivamente prestando contas a Deus por seus
pacientes. Fora um dos capitães de cavalaria de Cromwell e tinha uma das
admiráveis qualidades de Cromwell, a de farejar a merda no vento da história.

Depois de Sydenham, a política externa da Grã-Bretanha estabeleceu


oficialmente a gota com o Tratado Methuen, de 1703. O objetivo era atrair os
portugueses para fora da França, estabelecendo um imposto de sete libras por 253
galões de vinho do porto contra 55 libras por 253 galões de clarete. Os
cavalheiros ingleses podiam agora tomar garrafas de vinho do porto à noite, uma
vez que não tinham nada para fazer depois de ler o último volume de Pamela,
exceto conversar à mesa do jantar até desaparecerem debaixo dela.

Com a louvável igualdade social da nossa era, a gota agora é acessível a seis
entre 1.000 britânicos.

O Tratado Methuen foi anulado em 1835.

A TESTA FEBRIL
Três dos eixos centrais da medicina não eram médicos. Charles Darwin era um
naturalista navegador, Louis Pasteur era um químico industrial e Florence
Nightingale era enfermeira.
Florence Nightingale (1820-1910) é lendária pelos motivos errados. Até a
lâmpada da Dama está errada, iluminando ora a antiga nota de 10 libras, ora a
faixa de pedestres na frente da porta do culto Clube Ateneu, para cavalheiros, em
Pall Mall. Ao longo dos seis quilômetros e meio de corredores que compunham
as enfermarias de Scutari, ela balançava uma lâmpada de pano do exército turco,
enrugada como uma lanterna chinesa, com uma vela de luz amarelada na base.
Com a outra mão ela segurava as três essências da política: saber o que queria
saber, saber quem podia dar a informação e saber quanto teria de esperar por ela.
Podia ter governado o país tão bem quanto Lord Palmerston, se não tivesse ido
diretamente para a cama, quanto voltou da Criméia, de onde não levantou durante
50 anos. Florence Nightingale tinha muitas outras peculiaridades, como bater
irritadamente as tampas abertas das privadas.
Quando foi posto em andamento o destino de Churchill como Primeiro Lord do
Almirantado, em 1911, Florence Nightingale foi lançada pela Instituição para
Cuidar de Senhoras Respeitáveis em Circunstâncias Desafortunadas, Harley
Street, nº 1, um ano antes da Guerra da Criméia. Ela era a superintendente, com o
toque de Branca de Neve entre os Sete Anões. Imediatamente despediu o médico
residente, passou a encomendar os mantimentos por atacado do Fortnum e os
vegetais, por sacos, do Covent Garden; fazia ela própria a geléia, instalou
elevadores para alimentos, água quente e campainhas para as pacientes, matou os
ratos, os camundongos e outros parasitas e eliminou o perigo das explosões de
gás. Em seis meses Florence Nightingale diminuiu pela metade o preço da estada
das senhoras internadas. Ela sabia como conseguir o que queria: “Se um conserto
não for feito, eu acampo com minhas 12 pacientes no meio da Praça Cavendish e
deixo que a polícia e o comitê venham me prender como desocupada.”

Ela só podia ser inglesa. Os Nightingale, de Embley House, em Hampshire,


eram viajantes elegantes (Florence nasceu em Florença, podia se chamar Rimini),
e da alta sociedade de Londres (metade de um andar do Hotel Carlton, na
temporada, duas filhas apresentadas à corte). Florence Nightingale conhecia
Sidney Herbert, o Secretário na guerra (não da guerra, ele tomava conta dos
livros). Uma vigorosa atividade política conseguiu do gabinete de Lord Aberdeen
o voto unânime para sua promoção de Harley Street para superintendente do
Estabelecimento de Enfermagem feminina do Hospital Geral Inglês, na Turquia, e
dentro de uma semana ela partiu de Dover com 40 enfermeiras.
Florence Nightingale reorganizou imediatamente o hospital, que fora criado
pelo exército simplesmente pintando de branco as paredes internas do quartel
Selinie, em Scutari. E um prédio enorme, com quatro torres, uma em cada canto,
que pode ser visto de Istambul, no outro lado do Bósforo (a paklava doce turca é
deliciosa, e o raki é uma variação do gim tônica). Florence Nightingale cintilou
intensamente, destacando-se do resto da guerra, que nada tinha de organizada. Em
seguida, organizou os uniformes e a alimentação do exército britânico local,
gastando nos bazares de Constantinopla as 30.000 libras concedidas pelo Times,
depois de ter organizado o embaixador britânico, que havia planejado construir
uma igreja protestante com esse dinheiro.
Quando a dor e a angústia franziam a testa, Florence Nightingale tinha coisas
mais importantes para fazer do que ser um anjo de bondade. Estava sempre
organizando o enterro dos pacientes — bem como suas cartas para casa —, mas
deixava o trabalho sujo das enfermarias para as enfermeiras sujas. Para ela, eram
mulheres “velhas demais, fracas demais, bêbadas demais, sujas demais, calejadas
demais ou incapazes de fazer qualquer outra coisa”. As suas enfermeiras haviam
embarcado com ela, em Dover, para o inimaginável, por 12 shilings por semana,
mais um quarto de litro de cerveja no almoço e um copo de Marsala no jantar.
Três anos depois da guerra da Criméia, as ordens de Florence Nightingale para
elas apareceram em Notas de Enfermagem, um pequeno volume que trazia na
contracapa da segunda edição de 1895 os nomes de dois outros livros, igualmente
práticos, Pig-Skiing or Hog-Hunting, do capitão Baden-Powell, Cricket, Jerks
in from Short Leg, de Quid, e as conveniências da estrada de ferro de Bailey para
homens e mulheres.
— Não faça do seu quarto de doente uma corrente de ar para toda a casa.

— Comparações estatísticas absurdas são feitas na conversa comum pelas


pessoas mais sensatas para benefício dos doentes.

— As médias de mortalidade só nos dizem que tantos por cento vão morrer. A
observação deve nos dizer quais desses cem vão morrer.

— Ajude o doente a variar seus pensamentos.



— Os pacientes não gostam de enfermeiras que usam roupas farfalbantes.
Sobre esse assunto, Florence Nightingale acrescenta: — Eu gostaria também
que as pessoas que usam tecidos transparentes pudessem ver a indecência dos
próprios vestidos como os outros os vêem. Uma mulher respeitável,
inclinando-se para a frente, vestida com esse tipo de tecido, se expõe tanto
para o paciente deitado quanto qualquer dançarina da ópera no palco.
Mas ninguém jamais dirá a ela essa verdade desagradável.

A luz do gênio é percebida em lampejos. Ela escreveu também Notas sobre


Enfermagem para as Classes Trabalhadoras.

Na cama, em South Street, Mayfair, Florence Nightingale organizou o


Departamento Médico do Exército, a Escola Nightingale para Enfermeiras, no
Hospital St. Thomas, e o serviço sanitário da índia. Recebeu visitantes da Sala do
Gabinete das nossas embaixadas, dos palácios episcopais e do Palácio de
Buckingham com a ordem do Mérito, pouco antes da sua morte. Um dos visitantes
era de Oxford:
Primeiro venho eu; meu nome é Jowett.
Não há nenhum conhecimento que eu não saiba.
Sou mestre desse colégio.
O que eu não sei não é conhecimento.

O qual queria levá-la para Balliol e casar com ela.

Há alguns anos escrevi um romance no qual indico que Florence Nightingale,


por suas declarações quando tinha 41 anos (“Acredito que eu sou como um
homem ... Minha experiência com as mulheres é quase tão grande quanto a
Europa. E bastante íntima também. Eu vivi e dormi na mesma cama com
condessas inglesas e moças prussianas do campo... Nenhuma mulher despertou
mais paixão entre as mulheres do que eu".) era lésbica. Essa denúncia tornou-se
um brinquedo popular no play-ground da literatura. O lesbianismo é tão
irrelevante para uma pessoa com as qualidades de Florence Nightingale quanto a
sensibilidade a correntes de ar. Para ela, teve uma vantagem. Impediu que casasse
com Jowett.

A MULHER MÉDICA
Muliebrity era uma necessidade tradicional no tratamento dos doentes. Para sua
cura, sua função era mais duvidosa. Sir William Jenner (1815-98) — o médico
que usou o burro mecânico para vaporizar ácido carbólico na axila da rainha
Vitória, e espirrou o ácido no rosto dela — durante a resplandescente meia-idade
de Florence Nightingale dizia, choroso, que tinha só uma filha, mas preferia
seguir seu enterro do que vê-la se tomar uma estudante de medicina. O próprio
Lister criou objeções ao projeto de dar seu nome à nova cadeira de cirurgia em
Glasgow: "Considerando as relações que a nova cadeira terá com o ensino das
mulheres.” O resto dos profissionais da medicina necessariamente sensatos não
concordou com a idéia de a morte ser preferível a aprender como evitá-la.
Elizabeth Blackwell (1821-1910), filha de um religioso refinador de açúcar,
com uma família de nove filhos e quatro tias solteiras em Bristol, emigrou para
Nova York quando tinha 11 anos. Aos 26, depois de ser rejeitada pela escola de
Filadélfia e outras nos EUA, Elizabeth entrou para o Colégio de Medicina
Genebra, NY. Formou-se como primeira da classe, estabelecendo um padrão de
aplicação acadêmica que as estudantes de medicina se esforçam para superar. Sua
primeira dificuldade foi encontrar moradia, porque as donas das pensões
negavam-se a alugar quartos para moças desacompanhadas. Em 1857, Elizabeth
Blackwell fundou a Enfermaria Nova York para Mulheres Indigentes, dirigida por
mulheres. Ela comandou as enfermeiras durante a Guerra Civil. Solteira, adotou
uma órfã.

Elizabeth Garrett Anderson (1836-1917) foi a primeira dama da medicina


britânica, e Sophia Jex-Blake (1840-1913), uma das primeiras escocesas (embora
em Edimburgo as mulheres fossem segregadas na escola). Na I Guerra Mundial,
mulheres médicas receberam patentes de oficiais do exército britânico, com
divisas nos punhos, como os homens. Agora as estudantes de medicina na Grã-
Bretanha são em maior número do que os homens. E se as mulheres reclamam de
discriminação em certas especialidades, como cirurgia, isso se deve à realidade
biológica de que um cirurgião só precisa de alguns segundos para fazer um filho,
mas as mulheres levam um pouco mais de tempo. A Igreja da Inglaterra, no
momento, sofre de uma neurose ridícula em relação a mulheres sacerdotes; isso,
sob o disfarce de argumentos teológicos, litúrgicos e sociais, expressa o temor
bem fundado dos partidários de Sir William Jenner de que as mulheres possam
tomar seu lugar.





O COMEÇO DA MEDICINA
Os médicos aventuraram-se no século XX munidos de armas muito leves.
Receitavam mercúrio para sífilis e tinha, digitalis para reforçar o coração, iodo
para bócio, cólquico para a gota, cloral para os nervosos, um alcalóide de
pomegranato para tênia ou solitária. A partir de 1867 passaram a ter nitrato de
amil para angina, e foi Thomas Sydenham quem pela primeira vez receitou ferro
para a anemia. Os livros grossos de medicina de 1900 são tão precisos no que diz
respeito ao diagnóstico quanto os de hoje, mas todos os capítulos são trágicos
porque falta a eles o final feliz do tratamento eficaz.

Claude Bernard (1813-78), filho do dono dos vinhedos de onde vinha o


Beaujolais, quando era um jovem assistente de farmácia em Lyons escreveu uma
comédia musical — A rosa do Ródano — que foi um sucesso tão grande de
bilheteria que ele se dedicou ao teatro e escreveu a peça em cinco atos, Artur da
Bretanha, e a apresentou para a opinião do crítico parisiense Saint-Marc
Girardin, que o aconselhou a estudar medicina.

Bernard era um médico laboratorista, um pesquisador cuidadoso. “Tire sua


imaginação, como tira seu casaco, quando entrar no laboratório, mas a retome
novamente, como veste o casaco, quando sai dele.” Em 1857 ele descobriu que o
fígado produz açúcar, independente do açúcar que o indivíduo ingere. Então os
órgãos do nosso corpo não eram um ajuntamento diverso, cada um funcionando
para destruir e expelir substâncias químicas ingeridas. Eles podiam criar suas
substâncias químicas, por meio das quais um órgão podia ajudar o outro. Bernard
chamou a isso le milieu intérieur — o clima existente dentro de nós, como existe
fora. Essa introspecção introduziu a endocrinologia na medicina.
Claude Bernard também destronou o estômago do seu posto de monarca da
digestão e instalou o pâncreas como seu príncipe poderoso. Estudou a função
pancreática implantando uma cânula num cachorro roubado, que escapou e voltou
para o dono, um inspetor de polícia. Os antivivisseccionistas de 1850 então
discordaram da idéia de permitir que a inteligência excepcional e as idéias
originais de Claude Bernard viessem a beneficiar a humanidade presente e futura.
Felizmente, o inspetor de polícia ficou do lado dele. A mulher de Bemard também
não o compreendia.
Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) era também um pesquisador muito hábil,
cuja descoberta da salivação do cachorro ao ver ou farejar o alimento, ou até
mesmo ao ouvir uma campainha, deu o nome ao freqüentemente adaptado “reflexo
condicionado” de Pavlov. Contudo, a fama devia ser de Diderot, que escreveu em
O sobrinho de Rameau, um século antes:
Ele tinha uma máscara igual ao rosto do Tratador das Focas, mais tarde pediu
emprestado o amplo manto de um lacaio. Ele pôs a máscara no rosto. Vestiu o
manto. Chamou o cão, o acariciou e deu a ele um biscoito. Então, mudando
rapidamente de roupa, ele não era mais o Tratador das Focas, mas Bouret, e
chamou o cão e o chicoteou. Com menos de dois ou três dias repetindo essa farsa,
de manhã à noite, o cão aprendeu a fugir de Bouret, o General-Fazendeiro, e a
correr para Bouret, o Tratador das Focas.

GLÂNDULAS MUSICAIS
Robert James Graves, de Dublin (1796-1853), um homem de ação que foi preso
na Áustria como espião e esmagou uma rebelião no Mediterrâneo, observou em
1835:

Palpitações longas e violentas nas mulheres, todas com uma peculiaridade em
comum, o aumento da glândula tireóide... os olhos assumem um aparência
singular, pois parecem aumentados, de modo que quando ela dorme, ou tenta
fechá-los, as pálpebras não se fecham.

Desse modo, ficamos conhecendo para sempre a doença de Graves, provocada


por uma hiperatividade da tireóide.

A glândula pituitária, na base do cérebro, tornou-se, mais tarde, “a regente da


orquestra endócrina", um conjunto de sete instrumentos. Foi Harvey Williams
Cushing (1869-1939), professor de cirurgia no Hospital Johns Hopkins e em
Harvard, quem iniciou a orquestra. Ele começou identificando a pituitária em
1912 e descreveu a síndrome de Cushing em 1932, na qual o doente apresenta o
rosto redondo como a lua.

Thomas Addison (1793-1860), filho de um merceeiro, um homem rude que foi


de Newcastle para a Guy's, em Londres, em 1849, deu seu nome â anemia fatal
sem causa conhecida, a “anemia perniciosa”. Em 15 de março de 1855 ele
descreveu para a Sociedade Médica do Sul de Londres uma segunda doença de
Addison, uma disfunção das glândulas endócrinas supra-renais que provocava
pigmentação da pele e risco de vida. Essa foi a overture não ouvida da orquestra
endócrina. Addison teve a infelicidade, partilhada por outro homem de Guy’s,
Thomas Hodgkins, de estar tão adiante do seu tempo que ninguém deu atenção ao
seu estudo. Ele sofreu uma crise de melancolia e logo depois morreu, em
Brighton.
Em 1935, os médicos estavam equipados com injeções de fígado contra a
anemia perniciosa. Em 1922, Sir Frederick Banting (1891-1941) e Charles
Herbert Best (1899-1978) os armaram com insulina contra a diabetes. Eles
podiam ainda usar como munição as vitaminas de Sir Gowland Hopkins, e tocaiar
as doenças com as inoculações de Sir Almroth Wright.
A medicina se desfazia lentamente dos seus valores vitorianos de dieta,
evacuação regular, caldo de carne, descanso e silêncio, um regime tão repousante
que, para algumas mulheres, significava imobilidade durante três meses, deitadas
na cama sem visitas, jornais ou cartas, o único alívio sendo o realejo no fim da
ma. Pacientes com mais sorte eram despachadas em viagens para lugares
ensolarados, um modo conveniente para o médico se livrar delas.
Até a segunda metade do século XX, a farmácia dos médicos continuou como
um pente de balas vazio. Agora começavam a aparecer os armeiros. Hoje temos
antibióticos eficazes, medicamentos contra pressão alta, contra arritmia,
antieméticos, antidepressivos e anticonvulsivos, esteróides contra artrite,
broncodilatadores, diuréticos, cicatrizantes das úlceras estomacais e duodenais,
medicamentos contra a doença de Parkinson e drogas citotóxicas contra o câncer.
As leucemias da infância perderam seu terror, e algumas doenças selvagemente
fatais — como o seminoma dos testículos — perderam seu caráter maligno.
Vivemos mais tempo e melhor. O efeito desse avanço vitorioso é menos de júbilo
universal do que a reclamação generalizada de nossos políticos no sentido de que
vencer essa guerra significa a falência do Serviço Nacional de Saúde e o aumento
do lucro das indústrias farmacêuticas.

A HÉLICE DUPLA
Desde 1799, a cervejaria Green King, de Bury St. Edmunds, fornece Cerveja
Abbot aos estudantes de graduação de Cambridge. Ela flui deliciosamente no
Eagle Pub, em Botoph Lane, perto do Laboratório Cavendish e na frente da Escola
de Medicina, na Downing Street, onde os mais inteligentes costumavam almoçar.
Para os estudantes de medicina, os físicos e químicos do Cavendish eram um
grupo diferente, que teve uma das muitas especulações mundiais confirmadas pela
descoberta da hélice dupla da molécula ADN.
A estrutura foi descrita em 1953 pelo americano James Dewey Watson (1928) e
o inglês Francis Harry Compton Crick (1916). A idéia não era nova, e data de
1519. Francisco I da França, um ano antes do seu encontro com Henrique VIII, no
Field of the Cloth of Gold, começou a construir o Château de Chambord. No meio
da torre da casa da guarda há uma magnífica escada em espiral como duas hélices
superpostas, que nunca se encontram. No centro há aberturas decorativas que
permitem enxergar de uma hélice para a outra. Pode ser vista nos dias de visita
dos Châteaux do Loire. (Muscadet é excelente, e os rillettes de porc locais são
muito agradáveis antes do essencial linguado do Loire au berre blanc.)
A escada dupla, em Cambridge, tinha no lado externo dois corrimões sinuosos
de fosfato de sacarose, os degraus são compostos das bases adenina, tiamina,
guanina e citosina, unidas em pares pelo hidrogênio, que representa o eixo central.
A espiral é chamada ADN — ácido desoxirribonucléico. O ARN é o padrão para
as proteínas que formam as células do corpo, de desenhos variados, mas todas
com escadas espirais de ADN.

A descoberta do esqueleto arquitetônico do ADN deu origem a um livro de


suspense fascinante, leve, erudito, escrito por James Watson, no gênero de
Dorothy Sayers, na época.

Os personagens são:


— (1) O próprio. O intruso de Chicago nos aconchegantes e esnobes claustros
de Cambridge. Extremamente inteligente, ambicioso, impetuoso, intuitivo,
encantadoramente gauche, sociável, com uma queda para viagens ao exterior.

— (2) Francis Crick, de Mill Hill, em Londres, de fala rápida e sonora com
uma risada trovejante, entendido em teorias sobre a estrutura da proteína,
incentivado por Watson para continuar a investigar as idéias numerosas que
nascem no seu cérebro. Recentemente casado pela primeira vez, morando perto do
único restaurante chinês de Cambridge.
— (3) Maurice Hugh Frederick Wilkins (1916), biofísico no King’s College, no
Strand, Londres. Solteiro e cavalheiro inglês.

— (4) Rosalind Franklin (1920-58). A Dama Negra dos Cromossomos.


Newnham, depois pesquisa do carvão. Especializou-se primeiro em metais e
minerais. Usou essa técnica para investigar o ADN, independentemente. No
laboratório Maurice Wilkins, do Kings, que aceitava mulheres cientistas com a
intrigada obediência com que os fazendeiros, durante a guerra, recebiam as Moças
de Land. De uma família judia de banqueiros ricos, morava no elegante bairro de
South Ken e viajava para o exterior em terceira classe com pouco dinheiro, para
conhecer o mundo. Solteira, não amada e, ao que parece, ninguém gostava dela.
— (5) Linus Carl Pauling (1901), professor de química no Instituto de
Tecnologia da Califórnia, candidato ao prêmio Nobel, vítima de McCarthy, a
ameaça invisível.
O enredo era a corrida para descobrir o mistério do ADN, que todos temiam
fosse ganha pelo poderoso e rico americano Pauling. Há ciúmes fascinantes,
duplicidades, conspirações, vaidades e atitudes teatrais. Watson odiava os
vestidos de Rosalind Franklin e seu mau gosto de intelectual afetada, criticava
seus penteados, sua maquiagem e a achava mal-humorada, intolerante e rabugenta.
Insistia em chamá-la de “Rosy”, o que a deixava furiosa. No Cavendish ele se
consolava dizendo que “o melhor lugar para uma feminista era no laboratório de
outra pessoa”.

A descrição de uma visita de Watson ao King’s, no Strand:


De repente Rosy veio do outro lado do balcão do laboratório, que nos
separava, e caminhou para mim. Temendo que, na sua fúria, ela me atacasse, eu...
recuei rapidamente para a porta aberta.

O assalto — quem sabe, assassinato? — foi evitado pela cavalheiresca


intervenção de Maurice Wilkins. Essa cena desagradável jamais teria acontecido
entre médicos, embora um comunicado do presidente na Sociedade Real de
Medicina, em 1963, mencione troca de socos entre Sir Peter Freyer e Hurry
Fenwick, devido a uma controvérsia sobre métodos de remoção da próstata.
O professor de física de Cavendish era Sir William Lawrence Bragg (1890-
1971), prêmio Nobel de física com sua cristalografia dos raios X, em 1915. Como
qualquer chefe de laboratório, ele devia preferir uma vida calma às rusgas e
entusiasmos dos seus assistentes mais novos, cujo trabalho, ele sabia por
experiência, podia estremecer o mundo ou ser completamente sem valor. Porém,
Sir Lawrence sentiu-se na obrigação de contribuir com um prefácio para o livro
desdenhoso de Watson, A hélice dupla, no qual ele usa uma franqueza parecida
com a do diarista Pepys. Evidentemente, ele era um mestre da atenuação solene.
Watson venceu a corrida. Ou foi ejetado para o posto? A investigação dos
cristais de ADN por meio dos raios X, feita por Rosy, começou a desembaraçar
sua estrutura molecular, entre janeiro de 1951 e junho de 1952. No dia 6 de
fevereiro de 1953, Wilkins (de modo pouco elegante) mostrou uma das
radiografias de Rosy para Watson, que exclamou: “Veja, aqui está a hélice, e
aquela maldita mulher não a vê.” Então, talvez Rosy tenha sido a primeira a
descobrir a idéia reprodutora do século. Mas, no meio do entusiasmo, ninguém
lembrou de perguntar. Ela nunca se conformou. Morreu de câncer na primavera de
1958, aos 37 anos. Trinta e quatro anos depois, a English Heritage resolveu pôr
uma placa no seu apartamento.
A Hélice Dupla foi brevemente proclamada por Watson e Crick num artigo de
900 palavras, na revista Nature, de abril de 1953. Porém, Crick já havia
anunciado: “Nós encontramos o segredo da vida!” tomando sua cerveja Abbot,
durante o almoço no Eagle.

GENES
A genética é uma matéria tão opaca e tediosa quanto a filosofia teológica, mas,
como essa filosofia, contém o segredo da vida eterna.


— A hereditariedade está nos cromossomos, entre fios de cabelos negros e
muito crespos, obviamente vistos no microscópio, dentro do núcleo de cada
célula.

— Esses fios de cabelos têm 44 pares de cromossomos, e dois mais, um


cromossomo X mais um X, nas mulheres, e um cromossomo X mais um Y, nos
homens.

— Todas as células de qualquer corpo têm o mesmo número de cromossomos


idênticos, exceto as células sexuais, que têm mais a metade desse número. Quando
esses cromossomos sexuais femininos e masculinos se encontram, depois do
encontro do homem com a mulher, se o Y gosta mais do Y, eles têm um menino, se
gosta mais de um X, uma menina.

— Os cromossomos consistem em genes.



— Os genes são compostos de várias hélices de ADN, de comprimentos
diferentes. São grupos de muitos nucleotídeos, que são substâncias químicas
constituídas de nitrogênio, açúcar pentose e fosfato. A ordem desses nucleotídeos
diferencia um gene do outro.
—Os genes de cada pessoa são diferentes de todos os outros, exceto no caso de
gêmeos idênticos.
O número de células no corpo é três, seguido por doze zeros, uma porção. O
ADN em cada célula tem mais ou menos dois metros de comprimento. Se for
desenrolado completamente, pode ir à Lua e voltar 8.000 vezes. É bastante fino.
Os geneticistas gostam de dar essa informação para mostrar a dificuldade do
estudo que herdaram.
Mesmo assim, a genética começa a estruturar um mapa chamado genoma, que
mostra quais os genes que refletem várias doenças. Cada gene anormal,
responsável por uma determinada doença, está sempre no mesmo lugar do seu
cromossomo. Desse modo, é possível identificar o gene que causa, por exemplo, a
anemia falciforme em cada cromossomo examinado. Os entusiastas podem-se
movimentar com uma seringa tirando amostras de sangue nos casamentos e nos
funerais.

RETROCESSO AO DARWINISMO
Como Lister descobriu a assepsia, sem saber coisa alguma sobre estreptococos,
e Lind curou o escorbuto sem conhecer a vitamina C, assim também Darwin
fundou a genética, sem saber coisa alguma sobre o ADN.

Charles Robert Darwin (1809-82) passou cinco anos, desde o Natal de 1831,
navegando pelos mares do sul a bordo do HMS Beagle, de 242 toneladas, 90 pés
de comprimento, três mastros, o tamanho de um iate de um dos mais modestos
milionários. Uma vez que viajava com 73 passageiros, não deviam ter muito
conforto. Ele navegou de Devon até o Rio, deu a volta no Cabo Horn e fez escala
na Nova Zelândia e na Austrália, antes de passar pelo Cabo da Boa Esperança e
voltar para casa, atravessando novamente o Atlântico Sul até o Brasil, antes de
chegar a Falmouth, no dia 2 de outubro de 1836. Em 16 de setembro de 1835
Darwin aportou nas ilhas Galápagos, na costa do Equador, no oceano Pacífico, e
lá ele viu a eternidade nos tentilhões.
Galápago é a palavra espanhola para tartaruga. Nas ilhas, Darwin encontrou
tartarugas enormes, do tamanho de porcos de raça. Darwin explorou as 12 ilhas
Galápagos durante um mês. Descobriu, entusiasmado, que os répteis, pássaros,
peixes, insetos e plantas das ilhas eram um pouco diferentes dos que existiam no
resto do mundo. Eram até diferentes de ilha para ilha. Os tentilhões tinham bicos
curtos e fortes para quebrar as nozes, numa das ilhas. Em outra, onde não havia
nozes, seu bicos eram mais delicados, próprios para apanhar insetos. Bicos
longos para encontrar as larvas, em outra ainda. Os tentilhões viviam em função
dos seus bicos, que haviam evoluído através de gerações e gerações para comer o
que existia no lugar em que viviam. Darwin achou que devia haver alguma coisa
nessa particularidade.
Quando desembarcou, Darwin recebeu uma herança de 5.000 libras por ano.
Comprou uma casa enorme em Downe, Kent, além de Orpington (aberta à
visitação, bom pub local). Nela passou 23 anos pensando nos tentilhões das
Galápagos, antes de publicar A origem das espécies por meio da seleção natural,
em 1859. Foi abalado pela ameaça inesperada de perder a glória de sua
descoberta, surgida em junho, antes da publicação do seu livro, na pessoa de
Alfred Russell Wallace (1822-1913), um naturalista que tivera a mesma idéia. Foi
como Rosy e Watson.

A suspeita de que os animais e as plantas do mundo não eram réplicas idênticas


dos originais criados na oficina celeste há muito tempo se esboçava na mente
humana, desde a Babilônia (onde se interessavam pela variedade das crinas dos
cavalos). Essas mentes incluíam as de Bacon, Buffon, Goethe, Lamarck, Herbert
Spencer e Sir Charles Lyell. Lyell era um geólogo, que deu a Darwin a idéia de
interpretar a continuação do presente por meio da evolução do passado. Idéias
genéticas ocorreram também ao monge Gregor Johann Mendel (1822-84), da
Morávia, que cruzou as variedades de ervilhas comuns, plantadas por ele em
Brno, em 1853, e que permaneceram invisíveis no ar científico até o fim do
século. Ocorreu também ao avô de Darwin, Dr. Erasmus. Nesse meio tempo,
Darwin havia casado com uma prima em primeiro grau, teve 10 filhos, dos quais
sete sobreviveram, e finalmente foi vitimado pela hipocondria.
A afirmação de Darwin de que Sir Thomas Browne havia sugerido, no seu
Religio Medici, que o Gênesis não era tão confiável quanto os horários das
estradas de ferro vitorianas foi considerada uma afronta da ciência à Igreja. A
discussão chegou ao auge em 30 de junho de 1860, entre os soluços e desmaios
das senhoras, no Museu da Universidade, ao lado de Parks, em Oxford.
A Igreja tinha um caso. Todos sabiam que o mundo fora criado em 4004 a.C., às
9 horas da manhã de domingo, 23 de outubro, como havia calculado uns dois
séculos antes o arcebispo de Armagh e vice-chanceler da Universidade de
Cambridge. Assim, em quem acreditar? Em Darwin ou na palavra de Deus?
“Soapy Sam” Willberforce, bispo de Oxford, saiu em campo para “arrasar
Darwin” na trigésima reunião anual da Associação Britânica para o Avanço da
Ciência, convenientemente realizada na frente da casa episcopal. O bispo
repudiou sarcasticamente um dos que duvidavam de modo hostil da Igreja: “Será
através da sua avó ou do seu avô que o Sr. Huxley afirma descender dos
macacos?” A vespa científica, com seu pince-nez, Dr. Thomas Henry Huxley
(1825-95), replicou: “Certamente eu preferiria descender de um macaco do que
de um homem que prostitui sua educação e sua eloqüência à adoração do
preconceito e da mentira.” Esse atrevimento era tão chocante quando jogar tinta
nas meias do falecido Dr. Amold Rugby. Um dos detratores de Darwin na hora do
chá, em Oxford, era o vice-almirante Robert Fitz Roy, ex-capitão do Beagle, que
havia lido um artigo sobre “Tempestades britânicas” e agora brandia sua Bíblia
com fúria violenta contra o antigo companheiro de bordo, e que cinco anos depois
cortou a própria garganta.

O pensamento de Darwin continua conosco. As vítimas da anemia falciforme


ultrapassavam em número os sobreviventes da malária. E hoje existem brancos e
negros no planeta porque as pessoas com pele negra levam mais tempo para
fabricar — através da luz do sol — a vitamina D nos seus organismos. A falta da
vitamina D causa raquitismo e osteomalacia. Quando o homem deixou o sol
equatorial para o norte frio, à procura de alimento, só os de pele branca
sobreviveram e se multiplicaram, tornando-se cada vez mais brancos. (Isso pode
ser bobagem. As mulheres asiáticas, na Grã-Bretanha, ficam com os ossos
quebradiços porque comem chapattis, que contém fitato, o qual evita a absorção
da vitamina D. Mas isso também pode ser tolice. Assim são as alarmantes piadas
da medicina.)

O ALARMANTE FUTURO DA MEDICINA


A ciência moderna deu ao mundo a possibilidade da evolução rápida, através
da genética prática, bem como a possibilidade de sua destruição rápida e total
através das armas nucleares.

Agora nós agarramos as doenças por suas moléculas. Pode ser identificado o
gene que causa — por exemplo — a anemia falciforme hereditária. Ou a
hemofilia, ou a fibrose cística. Ou a coréia de Huntington, que permite uma saúde
perfeita na juventude, depois condena seu herdeiro a 10 anos de demência e
morte. Todas essas vítimas não-nascidas podem ser poupadas por meio do aborto,
ou talvez evitadas pela escolha genética dos parceiros. “Tendo observado os
hábitos de casamento dos homens durante alguns anos, não estou otimista sobre o
futuro dessa forma de abordagem”, resolveu o professor de medicina de Oxford,
Sir David John Weatherall (1933). Acrescenta, também sensatamente, ao lobby
dos que acham que os pacientes-devem-decidir: “Pais (e pacientes) procuram o
médico esperando ajuda, e o conselheiro muitas vezes deve estar preparado para
oferecer conselho ativo, a fim de ajudar e partilhar da tomada de decisão. Na
verdade, o clínico sensível geralmente nota o alívio dos pais quando uma parte do
peso de uma decisão tão importante é retirada dos seus ombros.”

A falha de sermos mortais, caro Brutus, não está em nós, mas nos nossos genes.
É triste para a medicina o fato de os nossos esforços para prevenir certas doenças
terem sido até aqui inúteis e confusos. Cigarros e álcool matam, bem como a
glutonaria e a preguiça, mas muitas pessoas com excesso de peso chegam a uma
idade avançada sem nenhum exercício além o de erguer o braço para acender a
luz. Estamos começando a ver agora os genes causadores da diabetes, do câncer
do cólon, da hipertensão, do enrijecimento das artérias. Logo apanharemos e
jogaremos fora os genes que provocam outras doenças “comuns”. Mais tarde,
seremos capazes de implantar outros, mais desejáveis. Se um casal quer filhos
ruivos como Mozart e inteligentes como Einstein, que joguem críquete como Jack
Hobs, sem problema. O homem estende a mão para a suprema habilidade de
controlar o ambiente e a si mesmo. A utopia paira, ameaçadora, no ar.
Isso se tornará tão importante para a humanidade que haverá programas de
televisão sobre o assunto. Os grandes e os bons, que querem ser maiores e
melhores, vão se reunir em grandes convenções. Pessoas importantes expressarão
suas crenças e seus preconceitos mais profundos, que geralmente são permutáveis.
Os políticos, para quem a eternidade é a próxima eleição, semearão idéias
floridas para ganhar votos. A tolerância será explodida alegremente pelas dignas
organizações familiares que confundem a importância da vida humana com a sua.
Como o aborto e a pesquisa do embrião, o compromisso moral vai evoluir para
leis que salvem as aparências, acreditando que estão salvando suas almas. Nossa
inteligência cria problemas que nossa inteligência não sabe resolver. Volta,
Sócrates, pedimos desculpas pela cicuta.





CAPÍTULO 6
Os barbeiros demoníacos

A cirurgia moderna foi inventada pela pólvora.

HONRAS DE BATALHA
Através do avanço inexorável da civilização, os golpes de espadas e
lançamento de flechas foram superados, mais ou menos em 1450, pela pólvora e
pelos tiros. Suas vantagens foram reconhecidas imediatamente. Era um modo mais
eficiente e menos trabalhoso de mutilar e matar seres humanos, o que convidava à
engenhosidade na sua aplicação e necessitava de implementos que logo se
tornaram de baixo custo e que podiam ser produzidos em profusão. Acabou
rapidamente com a Guerra dos Cem Anos e com o feudalismo. Mais tarde,
confirmou a superioridade dos americanos sobre os peles-vermelhas e o domínio
da África pelos europeus, no século XIX, devido à sua eficiência nas mãos dos
poucos contra os muitos que não a possuíam.
As avarias provocadas pela pólvora ocuparam os cirurgiões do renascimento
tanto quanto as provocadas pela sífilis. Ferimentos a bala e feridas eram as mais
comuns e óbvias desgraças da humanidade. Uma espada ou uma alabarda abre o
corpo com um golpe limpo, mas a bala de uma arma complica o assalto militar
com carne queimada e pedaços de chumbo e de tecido no interior do corpo. A
rainha Elizabelh felizmente contratou para cuidar de Hawkins e Drake seu
cirurgião militar Thomas Gale (1507-86), cujo livro An Excellent Treatise of
Wounds Made with Gonneshot contradizia todos os outros cirurgiões da Europa, em
1563, afirmando que a bala suja não era tão quente quanto o cautério purificador.
Sua majestade foi também muito bem servida no mar, na luta contra a Armada, por
William Clowes (1549-1604), que, em 1591, disse a mesma coisa no seu A
Profilable and Necessarie Book of Observations for All Those that Are Burned With the
Flame of Gumpowder Etc and also for Curing of Wounds Made with Musket and
Caliver Shot and Other Weapons of Warre Commonly Used at this Day both by Sea and
Land.
Os reis franceses que vieram depois, Francisco I (que morreu em 1547, com 53
anos), Henrique II (que morreu em 1559, de um ferimento durante uma justa
amistosa com um escocês), Francisco II (que casou com Mary, rainha da Escócia,
aos 14 anos e morreu de um abscesso no ouvido com 17 anos, em 1560), Carlos
IX (que morreu de tuberculose, aos 24 anos, em 1574) e Henrique III (assassinado
aos 38 anos, em 1589) tiveram mais sorte, nessa época de inovação, com a
presença do seu cirurgião do exército Ambroise Paré (1510-90), o Pai da
Cirurgia Moderna.
Naquela época os ferimentos a bala eram tratados com óleo fervente, mas certa
noite, durante o ataque de Francisco I a Turim, em 1537, o óleo acabou e Paré
passou a aplicar uma emulsão de ovos, água de rosas e essência de terebintina.
Depois de uma noite, ansiosa e insone, de manhã Paré viu, aliviado, que seus
pacientes estavam vivos, et tant mieux!, quase sem febre e sem dor. Os pacientes
tratados com óleo fervente estavam inchados, agonizantes e morrendo. A partir de
então Paré abandonou o óleo fervente, adicionou gordura de cachorro à sua
mistura, vermes e óleo de lírio e caminhou pela enfermaria dizendo humildemente
“Je le pansay, Dieu le guarit"— eu apliquei o curativo, Deus fez a cura.
Paré era outro irrepreensível médico-aforista. Dois dos seus aforismos
merecem ficar guardados na mente dos estudantes de medicina:
— Nunca perca a esperança no paciente, mesmo (quando os sintomas apontam
para uma fatalidade.

— Aquele que se toma cirurgião por amor ao dinheiro não conseguirá nada.

Paré era outro médico prático, como Hipócrates, que preferia aprender com os
pacientes, não com os livros. Nos 10 dias entre o ferimento de Henrique II, no
combate singular, e sua morte, Paré procurou o melhor tratamento, dissecando
quatro cabeças humanas recentemente decapitadas, gentilmente cedidas por
criminosos locais. Um huguenote suspeito, ele sobreviveu ao massacre do Dia de
São Bartolomeu, em 1672, graças à proteção da câmara do real mandante da
matança. “Não é razoável que uma pessoa que vale um mundo inteiro de homens
seja assassinada assim”, admitiu Carlos IX. Paré misericordiosamente aboliu a
castração como cura rotineira das hérnias masculinas.

UM BENFEITOR DA CIRURGIA
A guerra continuou a ser um estímulo admirável e consistente para o
desenvolvimento da cirurgia. Quanto maior e mais profundo o ferimento,
provocado pelo aperfeiçoamento das técnicas de matar, mais hábeis e mais
informados ficavam os cirurgiões. O imperador foi ferido apenas uma vez em suas
campanhas, na batalha das Pirâmides, em 1789, quando levou um coice do
próprio cavalo no pé. Seu cirurgião era Dominique Jean Larrey (1766-1842), “o
homem mais virtuoso que já conheci”, para o qual ele deixou 100.000 francos e
concedeu a dignidade de barão por ter matado os cavalos dos oficiais para
alimentar os feridos.
Larrey inventou a "ambulância voadora”, uma caixa leve sobre duas rodas,
puxada por dois cavalos, para retirar os feridos do campo de batalha, ao invés de
deixá-los para morrer até a luta terminar. Cirurgião-chefe de la grande armée,
Larrey teve uma vida muito ocupada (1.900 feridos em Abukir, 200 amputações
por dia em Borodino). Ele próprio foi ferido cm Waterloo, foi cirurgião de Luiz
Filippe e estava esperando em Les Invalides, com seu uniforme de gala, quando
Napoleão voltou de Santa Helena.
No outro lado, em Waterloo, estava Sir Charles Bell (1774-1842), um escocês
que morava na Soho Square, artista hábil e pescador com isca artificial, o homem
que separou os nervos sensores dos motores, uma descoberto tão importante
quanto a da circulação do sangue, por Harvey. Ele é popularmente conhecido pela
paralisia parcial da face de Bell. Era filho de Manse, vivia bem e morreu pobre.
Sir Charles operava imparcialmente amigos e inimigos, com duas horas de sono
por noite:

É impossível descrever o quadro de miséria humana que eu linha sempre ante
meus olhos. Enquanto eu amputava a perna de um homem na altura da coxa, 13
muros feridos esperavam para ser operados... Era estranho sentir minha roupa
engomada com sangue e meus brados exaustos com o esforço de manejar o bisturi!

Oito dias depois da batalha ele visitou o campo da luta.

A vista do campo, os ataques galantes, as cargas, os episódios individuais de
iniciativa e valor me fizeram lembrar o sentido, para o mundo, da palavra vitória
e o que significa Waterloo. Mas isso tudo passa. Uma visão sombria e
desagradável da natureza humana é a conseqüência inevitável de ver todas as
partes do todo como eu vi — como fui obrigado a ver.

Certamente.
A cirurgia retribuiu a inspiração da guerra, tornando-a menos letal. A tala para
imobilizar o membro quebrado, desenhada pelo filho de um galês especialista em
fraturas ósseas, o fumante inveterado e com gorro de pano Hugh Owen Thomas
(1843-91), clínico geral nos bairros pobres de Liverpool, foi introduzida para
fraturas compostas do fêmur em 1916 e, em 1918, havia reduzido o índice de
mortalidade de 80% para 20%. O tio do Kaiser, o cirurgião Friedrich von
Esmarch (1823-1908), insistia nas bolsas de instrumentos para curativos durante a
Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. Ele inventou uma enorme atadura de
borracha para retirar todo o sangue da perna, antes da operação, facilitando a vida
do cirurgião. Nikolai Ivanovitch Pirogoff (1810-81), o russo inovador do éter, foi
o cirurgião militar que, como Florence Nightingale na Criméia, irritou as
autoridades insistindo em medidas de maior conforto para os médicos e
introduzindo enfermeiras de guerra, onde antes só havia enfermeiros.
Na I Guerra Mundial, as forças dos EUA tiveram 234.300 feridos, dos quais
14.500 morreram devido aos ferimentos. O que significa que 219 800
sobreviveram, 6,25%. Na II Guerra Mundial só o exército dos EUA teve mais do
dobro de feridos, 572.027, e 25.493 deles morreram em virtude dos ferimentos,
4,5%.
Um modo mais confortável de matar seu semelhante é o automóvel. O
departamento do governo britânico responsável pelo controle das estradas
anunciou orgulhosamente que o total de 4.655 mortes por ano em acidentes de
automóvel havia caído para o nível de 43 anos antes. Nas ruas da Grã-Bretanha,
em 1930, 4% dos que foram feridos morreram. Em 1960, 2% dos feridos
morreram, Em 1990, 1,6% morreu. Portanto, a cirurgia faz também motoristas
melhores.

TODOS OS CIRURGIÕES DO REI


A história dos cirurgiões é mais encorajadora e mais consecutiva que a do
médicos, porque no começo eles eram um bando de barbeiros que cortava e
barbeava com um pouco mais de ousadia. Ambroise Paré era originário da cidade
têxtil de Laval, filho de barbeiro, irmão de barbeiro e barbeiro. Em 1500, Paris
distinguia com esnobismo os barbeiros-cirurgiões dos “cirurgiões acadêmicos, de
mantos compridos". O mesmo acontecia na sociedade no tempo da Madame de
Pompadour, entre a alta noblesse de robe e a feudal noblesse d’épée. A faculdade de
medicina da Universidade de Paris, acrescentada às de Divindade, Artes e
Direito, no século XII, por Luiz VII, elevou o posto dos barbeiros em 1503,
acolhendo-os, e não aos cirurgiões de mantos longos, que a faculdade detestava.
Esses cirurgiões tiveram de sair e se juntar aos clínicos. Os médicos clínicos de
Paris, ça va sans dire, desprezavam todos os tipos de cirurgiões.
Os barbeiros dos clubes da Inglaterra haviam formado guildas em todas as
cidades, como os merceeiros, os negociantes de fazendas e os comerciantes de
artigos para homens, e subiram socialmente quando Thomas Vicary (1495-1561)
convenceu seu paciente, Henrique VIII, a promover todos eles a cirurgiões. Sua
majestade graciosamente criou a Companhia dos Barbeiros-Cirurgiões Unidos,
em 1540 (Holbein pintou a ocasião). Era basicamente um sindicato exclusivo e
fechado, com o encorajamento do uso de dois criminosos enforcados por ano para
praticar anatomia. Seu emblema era o poste com listras vermelhas e brancas dos
barbeiros, que significavam o curativo e a sangria. Os escoceses ganharam uma
concessão semelhante, em 1506, de James IV, mas com direito a só um criminoso
por ano, embora tivessem conseguido o monopólio do uísque em Edimburgo.
Depois de quase 150 anos, os cirurgiões de Londres começaram a sentir que os
barbeiros não eram de modo algum o tipo de pessoas com quem eles desejavam
conviver, e resolveram pedir a Carlos II o divórcio, que foi finalmente concedido
por George II, em 1745, quando eles se tornaram a nova Companhia de
Cirurgiões, construíram o Salão dos Cirurgiões, no Old Bailey, e começaram a
jantar agradavelmente em boa companhia.

A INFELIZ FRATURA DE POTT


O ano de 1756 foi muito movimentado para os planejadores da cidade de
Londres. A Ponte de Westminster foi aberta, como a segunda de Londres, em 1750
(Canaletto a pintou), e a ponte Pitt estava programada para começar a ser
construída em 1760 (depois tomou o nome de Blackfriars). Ao sul do Tâmisa,
novas estradas se delineavam, irradiando de Lambeth Marshes: saindo de
Lambeth Horse Ferry, siga em frente até passar o palácio do arcebispo, então vire
à direita, no Dog and Duck, para tomar a Rodovia Kennington e Surrey, ou vire
para a esquerda, passando pela Alsmhouse Fishmonger para a Velha Estrada Kent,
Canterbury, os portos do Canal e a comunidade européia.
O tempo de três horas que o rei levava para ir de Whitehall a Greenwich Palace
foi sensacionalmente reduzido em três quartos. O pedágio, um penny por
carruagem, meio penny um cavalo. Percival Pott (1714-88), cirurgião do Hospital
São Bartolomeu — que dava para o Mercado de Gado de Smithfield, no centro da
cidade — em janeiro daquele ano de futuro tão promissor passava a cavalo pela
Velha Estrada de Kent, para cruzar a ponte de Londres, a caminho de casa, em
Bow Lane, quando caiu e sofreu uma fratura de Pott.
O tratamento para fraturas expostas era necessariamente heróico: amputação.
Deitado na lama, rodeado pelos londrinos curiosos, Pott olhou para as duas
pontas da sua tíbia que haviam rasgado a pele. Com impassividade profissional,
ele enviou um mensageiro para Westminster, no outro lado do rio, para trazer
rapidamente dois carregadores de liteiras com seus varais. Enquanto esperava
comprou uma porta, e quando os carregadores chegaram esbaforidos ele mandou
que a pregassem nos varais, fez com que o deitassem cuidadosamente sobre ela e
partiram para Bow.
Estavam preparando os instrumentos para a amputação quando um colega de
Bart chegou e disse que não ia haver operação. A delicadeza do transporte e a
imobilização da fratura tiveram como resultado uma possibilidade de não ser
preciso amputar a perna, uma operação que Pott disse, estremecendo, ser “terrível
de agüentar e horrível de ver”. Ele escapou da infecção, que teria sido letal, ficou
na cama e escreveu Sobre Fraturas.
Pott era um cirurgião sociável e próspero, com uma clientela invejável, que
incluía Samuel Johnson e David Garrick. Legou ao mundo a doença de Pott
(deformação da coluna provocada por abscessos tuberculosos nos ossos), o tumor
fofo de Pott (da infecção do crânio), o aneurisma de Pott, a gangrena de Pott e o
câncer dos limpadores de chaminés (provocado pela fuligem no escroto e que deu
origem à Lei do Limpador de Chaminés, de 1788, para poupar as crianças que
desciam pelas chaminés das lareiras dos nobres). Ele é lembrado principalmente
pela fratura de Pott. É um deslocamento com fratura, logo acima do tornozelo, em
nada parecida com a sofrida por Pott.
A fratura de Colles, que sofremos quando estendemos instintivamente os braços
para a frente quando caímos, atinge o rádio acima do pulso e provoca a
deformação “garfo de mesa”, descrita em 1814 por Abraham Colles (1773-1845),
de Dublin. Em 1839, Lord Melrose ofereceu a Colles um baronato, mas ele,
modestamente, recusou.

OS ANTIGOS MESTRES
John Abernethy (1764-183D era um cirurgião rude. Quando substituiu Percival
Pott, no São Bartolomeu, aconselhou aos vereadores obesos da cidade: “Vivam
com seis pence por dia e tratem de ganhá-lo." Às mulheres dos vereadores,
também com excesso de peso, aconselhou: “Madame, compre uma corda de
pular.” A respeito das filhas apertadas nos espartilhos e com problemas de prisão
de ventre, ele dizia. “Ora, madame, sabe que há mais de 30 metros de entranhas
apertadas debaixo dos espartilhos das suas filhas? Vá para casa e corte a cinta, dê
uma oportunidade justa à natureza, e não vai mais precisar dos meus conselhos.”
Abernethy ligou a artéria carótida, no pescoço, para conter a hemorragia, e a
artéria ilíaca, no intestino, para conter o aneurisma.
Ninguém havia tentado isso antes. Antes da anestesia e da assepsia, o abdome
era tão inviolável quanto os cofres do banco da Inglaterra. “Ele formou uma época
na história da sua profissão”, disse o Edinburgh Medical Journal, cumprimentando
generosamente um londrino.
Ele era um cirurgião que detestava operar. Certa vez seu assistente o encontrou
“na sala dos médicos, depois de uma operação, com os olhos cheios de lágrimas,
lamentando o possível fracasso do que acabara de ser obrigado a fazer por
necessidade e pelas regras da cirurgia”. Tinha outra fraqueza. “Conheci uma
pessoa que era a prova viva do poder do tóxico, de tal modo que rae deixou
incrédulo, pois era um cirurgião, e tinha tomado uma grande quantidade de ópio”,
escreveu de Quincy sobre John Abernethy em Confissões de um inglês comedor de
ópio. Ele continua citando: “Eu admito,” disse ele, “que digo bobagens, e,
segundo, admito que não falo tolices por princípio, nem com intenção de lucro,
mas única e simplesmente”, disse ele — "única e simplesmente” — (repetiu três
vezes) “porque estou embriagado com ópio, todos os dias.”
Tudo que Abernethy não podia operar ele tratava com uma pílula azul, que
movimentava os intestinos. Numa noite de sábado ele disse a uma jovem que
havia tratado durante semanas a mãe viúva, paciente dele: "Eu testemunhei sua
devoção e bondade para com sua mãe. Estou precisando de uma esposa, e acho
que você é exatamente a pessoa que me serve. Eu estou sempre muito ocupado, e
por isso não tenho tempo para fazer a corte. Pense no assunto até segunda-feira”.
Funcionou.
Sir Astley Paston Cooper (1768-1841), no outro lado do Tâmisa, no Guy’s, era
entusiasticamente cortês. Com isso ganhava 15.000 libras por ano e pagava 600
libras por ano para seu mordomo, que controlava a fila na sala de espera do seu
consultório. Naquele tempo podia-se calcular o sucesso de um cirurgião pelo
número de carruagens que enchiam a rua do seu consultório. Em 1820, Astley
Cooper extraiu um quisto superficial da cabeça de George IV e determinou que o
preço por cortar o rei era um baronato (Lawrence pintou o quadro). Todas as
manhãs, Sir Astley conscienciosamente praticava, dissecando corpos durante duas
horas antes do seu desjejum (chá e dois pãezinhos quentes). Ele era um receptador
que pagava muito bem aos ladrões de corpos que exigiam, no mínimo, oito
guinéus por corpo, o que era possível obter na França por 5 shillings. Sir Astley
disse cortesmente aos médicos, no Comitê Seleto de Anatomia da Câmara dos
Comuns, em abril de 1828: “Não existe ninguém, seja qual for sua posição no
mundo, que eu não dissecaria se pudesse.” Um pensamento quase tão apavorante
quanto o de perder sua cadeira na câmara.
A rica clientela de Sir Astley Cooper foi herdada por Sir Benjamin Collins
Brodie (1783-1862), cirurgião do Hospital São George, em Hyde Park Comer,
que nessa época estava sendo reformado para se tomar o encantador e bem
situado hotel que é hoje. O próprio Sir Benjamin é lembrado pelo abscesso de
Brodie (crônico, da tíbia) e a doença do seio de Brodie (grande, mas benigno).
Em 1858, Sir Benjamin tornou-se o primeiro presidente do Conselho Geral de
Medicina, cujo objetivo, todos sabiam, era desgraçar publicamente os médicos
que assediavam suas pacientes sexualmente ou as horizontalizavam. O uso mais
consistente do CGM consistia em regulamentar o ensino da medicina, erradicando
os caubóis da profissão que não conseguiam figurar no Registro oficial, a lista que
confere aos médicos os direitos tão necessários de assinar atestados de óbito.
Antes do CGM, só um terço dos médicos britânicos havia se interessado em
figurar no registro.
No outro lado do Solway Firth estava James Syme (1799-1870), sogro de Lord
Lister. Ele foi imortalizado pela amputação Syme do pé. Nascido em Princes
Street, sendo seu pai um colaborador do Signet, Syme era essencialmente um
homem de Edimburgo que “jamais desperdiçava uma palavra, ou um pingo de
tinta ou uma gota de sangue”. Tomou-se professor de cirurgia em Edimburgo, ele
mesmo determinando a pensão de 300 libras por ano para o titular da cadeira, um
bom negócio, uma vez que seu antecessor estava então com 81 anos. Quando era
estudante, com uma queda para química, Syme notou que a borracha dissolvida em
petróleo impermeabilizava os tecidos. Se ele tivesse explorado sua descoberta,
nos dia de chuva nós todos estaríamos usando as nossas symes, não as
mackintoshes.
No outro lado do Canal, a contratura que dobra os dedos para a palma da mão
estava sendo tratada, em 1832, pelo Barão Guillaume Dupuytren (1777-1835).
Dupuytren era o pior tipo de cirurgião. Vaidoso, desdenhoso, autoritário,
inescrupuloso, ele operava en pantoufles e repetia provocadoramente, embora com
razão: “Eu já me enganei, mas muito menos do que qualquer outro cirurgião." E
também — o que era também irritante — era um operador magnífico e
extremamente bondoso para com seus pacientes.
A primeira operação de contratura realizada pelo Barão Dupuytren foi num
comerciante de vinho de Paris, mas depois disso o cirurgião absteve-se de fazer
essa cirurgia até encontrar um corpo com essa deformidade, no qual pudesse
praticar. A operação persiste até hoje, a condição é comum, sendo um dos
pacientes mais ilustres Margareth Thatcher. Atualmente suspeita-se que seja outra
reação auto-imune, como o reumatismo.
Dupuytren era mesquinho. Quando estudante de medicina, tirava gordura dos
corpos para acender sua lâmpada de leitura. Quando uma duquesa o presenteou
com uma bolsa bordada à mão, como uma prova carinhosa de gratidão por ele ter
salvo sua vida, ele disse secamente que o preço era 5.000 francos. Então,
sorrindo, ela tirou cinco notas de 1.000 francos da bolsa e a devolveu a ele,
dizendo com voz arrulhante que agora continha exatamente aquela quantia, e o
quanto ele era modesto. Dupuytren era o “bandido do Hôtel Dieu”, que deixou
uma fortuna. Em algum tempo ele talvez tenha tido charme, uma vez que, na
juventude, era mantido por uma mulher rica de Toulouse e, depois, por um oficial
de cavalaria.
No outro lado do Atlântico, em Filadélfia, Philip Syng Physick (1768-1837) foi
o Pai da Cirurgia Americana. Formado em Edimburgo, aluno de John Hunter, de
Londres, em 1826 inventou o ânus artificial. William Wardell Mayo (1819-1911),
de Manchester, foi o pai dos cirurgiões americanos William James (1861-1939) e
Charles Horace Mayo (1865-1939), e os três fundaram a Clínica Mayo em
Rochester, Minnesota, o equivalente cirúrgico do Museu Guggenheim de arte, na
Quinta Avenida.

A CIVILIZAÇÃO DA CIRURGIA
Sir James Paget (1814-99) era filho de um cervejeiro, um estudante pobre, um
jornalista-médico amador, que chegou a ganhar 10.000 libras por ano e foi o único
cirurgião que apareceu num musical de Gilbert e Sullivan. O coronel Calverley
canta em Patience a coragem de Lord Nelson, a bordo do Victory, o gênio de
Bismarck, criando um plano, e a "calma de Paget pronto para fazer a trepanação”.
Uma honra igual ao seu posto de Sargento Cirurgião da Rainha Vitória.
Paget nos deixou a doença dos ossos de Paget (espessamento do crânio,
obrigando a pessoa a comprar chapéus cada vez maiores) e a doença do mamilo
(câncer). A voz de Paget soava constantemente nos salões de conferências. “Eu
divido as pessoas em duas classes — os que já ouviram e os que não ouviram
James Paget”, dizia Gladstone em coro com W.S. Gilbert. Com 29 anos Paget foi
nomeado Curador do Colégio de Medicina São Bartolomeu, e casou. Sua mulher
estremecia na casa do curador com os gritos dos pacientes antes da anestesia, no
teatro de operações que ficava ao lado.
“Um cirurgião deve possuir três coisas diferentes. Isto é, um coração de leão,
olhos de falcão e mãos de mulher”, dizia John Halle (?1529-?1568), cirurgião e
poeta. Isso era tudo que os cirurgiões podiam oferecer aos pacientes naquela
época. Eles eram artistas inspirados pela anatomia. Agora são decoradores de
interiores que modificam a disposição do mobiliário do corpo à luz brilhante da
ciência. As cavidades do corpo não assustam mais, elas os atraem, nenhum tecido
tem segredos para o bisturi, os órgãos são transplantados como objetos de uso, a
cirurgia microscópica é tão comum quanto a televisão, a cirurgia de conforto —
quadris, joelhos, calos, veias varicosas —, mais do que a cirurgia da
sobrevivência, é tão prosaica que as pessoas reclamam quando não são
submetidas a elas prontamente.

OS CANTEIROS
“Não usarei o bisturi, jamais, nas pessoas que têm pedras, mas deixo esse
trabalho para os especialistas dessa arte”, diz Hipócrates, defensivamente, no seu
Juramento.
As pedras da bexiga datam de mais de 7.000 anos, como provam as que foram
encontradas nas múmias do Egito. Os árabes e os hindus da antiguidade abriam o
corpo para retirar as pedras, depois Celso e Paracelso fizeram o mesmo. No
século XVI havia litotomistas ambulantes, como malabaristas e latoeiros. Piere
Franco (1505-70), um huguenote expulso de Florença para Lausanne, tirava
habilmente as pedras por cima ou por baixo (ele confessou que o fracasso
significava fugir dos parentes para salvar a própria vida). Frère Jacques de
Beaulieu (1651-1719) retirava as pedras pelo lado do corpo e dava aos pobres o
dinheiro que recebia. O franciscano Frère Jean de Saint Côme (1703-81) inventou
uma faca de superfície mais lisa, e garantia 90% de cura. O cirurgião de Newton e
de Pope, William Cheselden (1688-1752), fazia a extração em um minuto, ou, num
dia melhor, em 54 segundos. Muitos escaparam da operação, como Pepys, em 7 de
março de 1665. “Logo eu fui verter água, só pensando nos meus testículos que,
por acidente, eu podia ter machucado, como faço sempre — mas quando urinei
saíram duas pedras, eu as senti e olhei para a minha urina, mas não senti dor
quando elas saíram.”
Na década de 1860, os médicos cortesãos de Napoleão III procuravam evitar
que fosse conhecida a existência de uma pedra enorme na bexiga, que fazia o
imperador andar com as pernas curvadas e que o fez desmaiar duas vezes, depois
de uma noite bastante movimentada com sua amante. A pedra obstruía as
passagens até o pênis e o impediu de inaugurar o Canal de Suez, em 1869. Os
médicos diziam que o imperador sofria de reumatismo, mas a imprensa zombava
dessa afirmação. Até os repórteres sabiam que não se trata reumatismo com
cateteres.
O imperador recusava o uso de uma sonda exploratória, e comandou seu
exército na Guerra Franco-Prussiana, de 1870-71, com toalhas enfiadas na calça,
como fraldas. Quando Napoleão fugiu da terceira república para se juntar à
imperatriz Eugênia, nos arredores de Londres, os cirurgiões da rainha Vitória
foram mais severos do que os franceses. Nos dia 2 e 6 de janeiro de 1873 a pedra
foi amassada dentro de Napoleão pelo urologista Sir Henry Thompson, baronete
(1820-1904), fundador do crematório Golder’s Green (Millais fez o quadro), que
10 anos antes havia ensaiado em Leopoldo I da Bélgica. Joseph Clover aplicou o
clorofórmio. Todos ficaram felizes com o fim da aflição de oito anos do
imperador Napoleão, mas infelizmente três dias depois ele morreu. Essa história
aconteceu no prédio onde está hoje o clube de golfe suburbano de Chislehurst.

CIÊNCIA DOMÉSTICA
O ano é 1923:
Eu estava olhando para o teto, minha testa molhada de suor frio.

Eu cruzava meus dedos com força, para evitar que toda a sensação
desaparecesse deles.
Depois de algum tempo, ouvi três gemidos vindos do quarto acima do meu e,
então, outra vez o ruído de passos. Compreendi que a operação tinha começado.
Eu podia imaginar o bisturi, a grande incisão, a frieza insensível de tudo aquilo.
Durante o que me pareceram horas intermináveis, olhei para o teto. De repente,
houve uma grande comoção no quarto acima do meu. A mesa foi arrastada
rapidamente. Os passos soavam em todo o quarto. A operação estaria terminada?
Não. Alguma coisa estava errada. Um homem desceu correndo a escada e chamou
um táxi. Num momento ouvi as rodas partirem velozes na rua e, logo depois,
voltaram. Ele fora apanhar alguma coisa e subiu a escada correndo...
Então, quando olhei para cima vi, com horror, uma pequena mancha vermelha
aparecer no teto branco. Eu sabia que era sangue. A mancha tinha o tamanho de
uma moeda de cinco shillings. Cresceu até ficar do tamanho de um prato. O
vermelho ficou mais vivo e, finalmente, uma gota pingou na coberta branca da
minha cama. Caiu como um pedaço de chumbo. Eu mal podia respirar. Outra gota
caiu com o som surdo de uma pedra...
Chega!
A heroína da aventura sanguinária era uma dama delicada, que fazia tratamento
para os nervos numa clínica de Londres. A experiência a curou imediatamente.
A cirurgia moderna é tão técnica que precisa ser feita em teatros operatórios
complexos, com equipes especializadas e monitores e gráficos luminosos. Todo o
aparelhamento seria um enigma para os leigos se não aparecesse constantemente
na televisão. Até a década de 1930 a grande cirurgia era realizada em salas
provisórias, nas clínicas instaladas em antigas residências urbanas confortáveis
adaptadas ou na casa do paciente. Amígdalas e até mesmo apêndices eram
removidos na mesa da cozinha. Lord Lister operava por toda a cidade de Londres,
seu “burro mecânico” mal disfarçado sob sua roupa, saindo de casa, em Regent's
Park na sua berlinda. Sua chegada era recebida pelos vizinhos do paciente com
estremecimentos, piadas e a mesma satisfação com que o povo curioso recebia em
Tyburn o carrasco com seu equipamento.
O autor da história de horror da dama neurótica foi Sir Frederick Treves,
baronete (1853-1923), que operou o rei Eduardo VII, que tinha então 50 anos, no
dia 24 de junho de 1902. O rei estava com dores na barriga e foi examinado por
Lord Lister, que diagnosticou peritiflite. Esta era uma denominação vaga para uma
inflamação localizada dos intestinos, de cuja cura Treves foi pioneiro removendo
o apêndice desde 1887. Em 1889, Charles McBumey (1845-1913), do Hospital
Roosevelt, em Nova York, elucidou a condição centralizando o diagnóstico no
“ponto de McBumey”, entre o umbigo e o quadril, sensível à ponta do dedo do
cirurgião nos casos de apendicite aguda.
Foi muito inconveniente porque coincidiu com a coroação, marcada para dois
dias depois, porque o rei disse que não podia ser adiada como uma reunião de
tiro ao alvo em Sandringham. “Então, sire, o senhor irá à Abadia como um
cadáver”, disse o cirurgião. Não havia outra solução. O adiamento era de fato
algo quase inimaginável, com todos aqueles monarcas estrangeiros e príncipes
que já estavam na Estação Vitória. O palácio de Buckingham cambaleou sob o
peso dos problemas, como, por exemplo, o que iam fazer com o caviar? Podia ser
guardado no gelo, bem como as 2.500 codornizes, mas as perdizes e as costeletas
teriam de ser dadas aos pobres. Cestos repletos de comida foram enviados para
as instituições de caridade e, na tarde seguinte, em Whitechapel, comeram
consommé de faisan aux quenelles et cotelettes de bécassines à la Soiwaroff. A
coroação foi transferida para 9 de agosto, e se o caviar agüentou até essa data só
os reis abissínios estavam presentes para consumi-lo.
Eduardo VII foi operado em casa. Foi andando para a mesa de operação. A
rainha Alexandra segurou a mão dele até terminar a aplicação da anestesia, e
voltou a segurá-la um pouco antes dele voltar à consciência. O paciente real
salvou um grande número de vidas do diagnóstico vago de peritiflite, dando à
operação de Treves o éclat que seus descendentes deram ao jogo de pólo.
Treves não era um cortesão, ia para a cama às 10 horas da noite e levantava às
6 da manhã para escrever. Era amigo de Thomas Hardy, tinha carta de marinheiro
e podia ter capitaneado o iate real tão bem quanto operava. Seu estilo literário era
incisivo e seco, como convinha a um cirurgião. Sua história do Homem Elefante,
de quem se tornou amigo no Hospital Londres, foi um sucesso de bilheteria no
West End e na Broadway, porém, infelizmente, quando isso aconteceu Treves
estava morto e seus direitos autorais já prescritos.

UMA EXPRESSÃO DE CORAGEM


O adultério foi a origem da cirurgia plástica há 2.000 anos, na índia. Essa
infração era levada muito a sério pelos hindus, que cortavam o nariz do culpado.
A deformação social e facial era reparada com a pele da face ou da testa, cortada
como se corta uma folha e costurada sobre o orifício. A operação foi aperfeiçoada
em Bolonha, em 1597, por Gasparo Tagliacozzi (1546-99), que soltava três lados
de um pedaço de pele do braço, prendia o braço sobre o nariz e, quando o enxerto
pegava, soltava o braço, cortando a parte da pele ainda presa a ele. Há um século
amadores faziam isso na Sicília. Branca de Catânia era o “homem de grandes
habilidades que aprendeu a arte de restaurar um nariz, usando a pele do braço do
paciente ou pregando sobre o orifício o nariz de um escravo”.
A Igreja ficou tão ofendida com o fato de Tagliacozzi aperfeiçoar a obra de
Deus que seu corpo foi exumado do túmulo num convento e enterrado em terra não
consagrada. Tudo isso contribuiu para dar má fama à reposição do nariz. Em
1788, a cirurgia plástica da face foi considerada pecaminosa e proibida em Paris.
Johann Friedrich Dieffenbach (1792-1847), um ex-cavalariano de Mecklenberg,
cortava os músculos do olho para curar estrabismo (com sucesso) e os músculos
da língua para curar a gagueira (um fracasso). No Charité Hospital, em Berlim,
ele começou a reconstruir rostos afetados por trauma ou tumor e a fechar palatos
fendidos. Sem anestesia, o paciente sentava de frente para uma janela, a cabeça
segura por um assistente, e o mandavam respirar fundo, com bochechos e pausas
para respirar, entre as incisões. Dieffenbach era amigo de Heine e do rei
Guilherme IV da Prússia, que freqüentemente assistia às operações na companhia
de toda a família.
Em Londres, Sir William Fergusson (1808-77) operou com sucesso 134 palatos
fendidos e 400 lábios leporinos. Fora obrigado a emigrar de Edimburgo, onde
James Syme não desperdiçava nem uma gota da sua próspera clínica particular.
Sir William acreditava que em “uma grande coisa quando, por meio da prevenção,
pode-se salvar até a ponta de um polegar”. Isso traduzia o conservantismo
misericordioso, quando a amputação era praticada com o entusiasmo da Rainha de
Copas de Alice. Sir William era também um virtuoso do violino e um hábil
litotomista. "Olhe com atenção", disse um dos assistentes, “porque se piscar vai
perder a operação inteira”.
A cirurgia plástica moderna foi um subproduto da pólvora. Foi criada em 1917
por um cirurgião com tendências artísticas, Sir Harold Delf Gillies (1882-1960),
no feio subúrbio de Sidcup, em Londres, no recém-construído Queen’s Hospital,
que hoje fica entre o túnel Blackwall e o túnel do Canal.
“Uma bela mulher merece ser mantida bela e jovem enquanto tem idade para
desfrutar a beleza e a juventude", disse Harold Gillies, em 1957, corrigindo a
Paris de 1788 e a obra de Deus, seu Criador. Gillies era neozelandês, cirurgião da
garganta, descendente de Eduardo Lear (Livro do Nonsense) capitão da RAMC em
1915. Um cirurgião de maxilares, do Hospital Americano em Paris, emprestou a
ele um livro recentemente chegado da Alemanha. “Como era uma guerra bastante
informal, o inimigo aparentemente não se importava que soubéssemos o bom
trabalho que estava fazendo nas fraturas do maxilar e ferimentos próximos da
boca.” Assim, o autor do livro, Lindemann, inaugurou, por meio de Gillies, uma
especialidade que levantou o moral das forças britânicas e americanas nas duas
guerras contra seu país.
O astro da cirurgia britânica era Sir Arbuthnot Lane (especializado em cólon),
que encorajou Gillies em Sidcup. A Gillies juntou-se o artista com tendência para
a cirurgia, Hemy Tonks (1862-1937), antes cirurgião interno dc Sir Frederick
Treves no Hospital Londres. Em 1917, Tonks era professor na Escola Slade de
Belas-Artes, instrutor de Augustus John e de William Orpen, mas tomou-se
membro do Colégio Real de Cirurgiões em 1888 e agora voltava à antiga
profissão no RAMC. Tonks desenhava os ferimentos, os reparos e os resultados e,
sem dúvida, contribuiu para aperfeiçoar a parte artística dos enxertos de Gillies,
das abas e pedículos de pele como os de Tagliacozzi.
Excêntrico, rabugento, bom jogador de golfe e bom pescador, Gillies teve sua
fama suplantada na II Guerra Mundial por outro neozelandês, seu primo, o
cintilante e autocrata Sir Archibald Hector McIndoe (1910-60), com seu “Clube
da Cobaia”, de pacientes da RAF, em East Grinstead, sul de Londres. Talvez as
repetidas operações necessárias nos rostos daqueles pacientes justificassem a
frequente imperfeição dos resultados. Talvez o trabalho menos sensacional dos
cirurgiões plásticos nas queimaduras e nas mãos tivesse mais valor. Porém, um
jovem na cabine de um Spitfire sentia-se mais encorajado sabendo que havia
cirurgiões capazes de reparar sua horrível mutilação.
Entre as guerras a cirurgia plástica cresceu e depois delas, floresceu. Novos
rostos, novos narizes, sem problema (os narizes delicadamente arrebitados de
McIndoe eram imediatamente reconhecíveis no outro lado das luzes da ribalta ou
nas mesas de jantar). As mulheres começaram a ficar tão exigentes quanto aos
seios que podiam ser encomendados por tamanho, como sutiãs. “Muitas vezes,
quando estava fazendo um lift, eu me sentia culpado, como se aquilo fosse só para
fazer dinheiro. Contudo, esse sentimento não se justifica, se com isso podia trazer
nem que fosse um pouco de felicidade a uma alma que precisa dela”, dizia
Gillies, para se encorajar. Talvez a felicidade seja transitória e o ressentimento
melancólico retirado do seu rosto seja transferido para alguma outra coisa, ou
para outra pessoa.

CIRURGIA DE MANCHETE
Em 3 de dezembro de 1967, no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, o
professor Christian Neethling Barnard (1922) realizou o primeiro transplante de
coração, combinando assim as forças humanas naturais e emocionais com uma
intensidade shakespeareana. Em 25 de novembro de 1974 ele aperfeiçoou seu
método, realizando o primeiro transplante de coração duplo. A idéia não era nova.
Ocorreu a John Hunter dois séculos antes, em Londres, onde um dente humano que
ele transplantou numa crista de galo pode ser visto hoje no Colégio Real de
Cirurgiões.
Nosso corpo morto é como o “ovo do cura” do antigo ditado inglês: algumas
partes são excelentes, mas outras deixam muito a desejar. Porém, a parte saudável
não pode substituir imediatamente outras partes iguais doentes, porque o corpo
rejeita violentamente os que ultrapassam o portão imunológico. Em 23 de
dezembro de 1954, no Hospital Peter Brent Brigham, em Boston, um rim saudável
foi transplantado de um irmão (nós só precisamos de um rim para viver) para
outro, que tinha dois rins doentes, dando a ele uma sobrevida de nove anos.
Porém, esses irmãos eram gêmeos idênticos. O truque do transplante consiste em
combinar os tecidos do doador e do receptor, depois usar os novos medicamentos
imunossupressores que podem fazer artificialmente gêmeos idênticos de todos
nós. Esses medicamentos anulam a recepção hostil até que o novo hospedeiro se
acostume com o visitante, e então eles passam a viver felizes juntos. Rins,
pulmões, corações e fígados são agora trocados entre seres humanos vivos e
mortos com a benevolência de presentes de Natal.
O novo rim não é implantado no lugar do anterior, mas na pelve. A “colheita” é
grotesca até mesmo para os médicos experientes. O cirurgião, chamado com
urgência por uma organização que nunca dorme, explica cuidadosamente para a
equipe local que não vai ser um episódio de cirurgia convencional. O anestesista
entra com o paciente na maca — rosado, quente, respirando regularmente graças
ao respirador artificial, coração batendo, mas morto. O cirurgião faz uma incisão
com a generosidade de uma autópsia, retira o coração, os pulmões, os rins, o
fígado e, já que está com a mão na massa, outras partes úteis, como pâncreas ou
uma glândula supra-renal. Tudo é acondicionado no gelo para o transporte
dramático por helicóptero ou entre as luzes piscantes dos carros de polícia para
os receptores, que já foram chamados, com suas valises, para o hospital de
transplante mais próximo. O anestesista desliga o respirador. O corpo fica
cinzento e frio, e coberto por um suor inesperado. É levado então para o
necrotério e a equipe cirúrgica toma café num silêncio pensativo.
Para que essa descrição não me traga a vergonha de contribuir para que seja
rasgado algum cartão de doador — um programa idiota da televisão mostra uma
infinidade de cartões rasgados — por favor, acreditem, o indivíduo já está
completamente morto.
A “morte cerebral” só é declarada depois de testes que verificam as mais
baixas funções vitais, sem obter nenhuma resposta. O cartão de doador é algo
muito valioso. Qualquer ser humano vítima de ferimentos fatais ou hemorragia
cerebral pode, com sublimidade bíblica, dar a vida com sua morte.

O AVANÇO HISTÓRICO DA MEDICINA E DA


CIRURGIA
Bom, mas limitado. Cinzas para cinzas, pó para o pó, se o câncer não acabar
conosco, a arteriosclerose acaba.
CAPÍTULO 7

O sexo e seus inconvenientes


O mundo todo ama o amor, mas ele nos traz as desagradáveis inconveniências
da gravidez e da doença.

A DOR DO SEXO
A história da contracepção é tristemente previsível. Começou alegremente com
Boswell. O homem que Johnson considerou muito digno de pertencera um clube,
era também muito gonorréico. James Boswell teve 19 crises de gonorréia,
começando antes do seu primeiro encontro com Johnson, em 1763, quando tinha
22 anos, e terminando em 1795, quando foi carregado para casa por um membro
do clube literário com retenção aguda da urina, e logo sucumbiu a 35 anos de uso
exagerado das vias urinárias. Boswell teve 12 filhos, cinco deles ilegítimos. O
único tratamento eficaz para a gonorréia era aplicado nas estenoses que apareciam
abaixo da bexiga, depois da instalação da infecção crônica da uretra. Era feito por
meio de sonda, inserindo no pênis tubos curvos de metal, que Boswell detestava a
ponto de desmaiar. Outra figura literária que não gostava desse tratamento era
Thackeray.
Boswell era um grande defensor da camisinha. Ele podia comprá-la
convenientemente em Leicester Square, sob o signo do Sol Nascente, camisinhas
desenhadas para cavalheiros, feitas com tripa de carneiro ou cabra, temperadas,
perfumadas, com 20 centímetros de comprimento, delicadamente fabricadas em
moldes de vidro pelas mãos da proprietária, a senhora Phillips. As de melhor
qualidade, “Baudruches Superfinas”, eram amarradas na extremidade superior
com fitas que podiam ter as cores nacionais. (Podem ser vistas, descuidadamente
espalhadas no chão, entre cascas de ostras, ossos de galinha e barbatanas no
Rake’s Progress de 1736, em Hogarth.)
É pena que a obsessão dos ingleses pelas gravatas dos clubes não tenha esse
mesmo gosto. O azul vivo e o vermelho da Brigada de Guardas, o brilho do sol e
o vermelho do tomate no MCC, o salmão e o pepino do Garrick Club teriam
contribuído para o embelezamento artístico de um desempenho necessariamente
deselegante. Para os fregueses mais cautelosos a senhora Phillips tinha seu
"Duplo superfino”, feito com a superposição e a colagem de dois cecos, a
extremidade fechada do intestino grosso do carneiro. Essa tripa ovina profilática
foi pela primeira vez anunciada como “um aparelho para a prevenção dos
inconvenientes das aventuras amorosas”, no The Tatler de 12 de maio de 1709.
Boswell não gostava das camisinhas. “Armadura" que diminuía seu prazer com
as Lizzies, Nannies, Louisas, Megs, suas aventuras amorosas por toda a cidade de
Londres, fosse nas tavemas de Covent Garden e no Strand, com joelhos trêmulos,
por seis pence, no Parque St. James e na ponte de Westininster, ou com a jovem
Alice Briggs, de 17 anos, no jardim do número 10 de Downing Street (antes de se
tornar propriedade oficial). Boswell preferia o tipo feito de linho, que precisava
ser molhado antes (ele molhava no canal do Hyde Park). Eram mais econômicas
que as Baudruches da senhora Phillips, porque podiam ser lavadas na lavanderia
de camisinhas em St. Martin Lane, dirigida por Jenny. Boswell era um péssimo
exemplo para a publicidade das camisinhas a favor da saúde pública, mas apenas
pela inconveniência não incomum de nunca ter uma com ele quando precisava.
O jingle dos bares a favor das camisinhas exaltava sua proteção contra “os
males de Shankers, ou Cordee, ou Buboes Dire!” Mas mencionava o perigo
secundário da “barriga grande e o bebê chorão”, e aí estava o problema do futuro.

EVITANDO O ASSUNTO
A divergência entre o entusiasmo do ser humano pelo prazer do sexo e a idéia
da reprodução humana sempre provocou um debate acalorado. A Igreja Católica
Romana preocupa-se razoavelmente com a santidade da vida humana, e ao mesmo
tempo expressa sua autoridade interferindo com as funções fundamentais do nosso
corpo. Segurar a congregação pelos testículos é um meio mais eficaz de conseguir
lealdade do que fazer os fiéis comerem peixe todas as sextas-feiras. A
contracepção alternativa, que consiste em controlar o ritmo da menstruação,
prolongar o período de amamentação e praticar o coitus interruptus pode ser
correta sob o ponto de vista religioso, mas é uma roleta russa copulatória.
Em 1798, o Reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834) sugeriu que, se o
mundo continuar a copular na mesma razão dos dias atuais, no fim de algum tempo
terá cometido suicídio por inanição. Os únicos itens animadores que, segundo ele,
poderiam adiar esse resultado eram ocupações insalubres, trabalho rigoroso,
pobreza extrema, falta de tratamento das doenças, cidades grandes, excessos,
doenças, epidemias, guerras e fome. O genial Malthus (pai de três filhos) não era
malthusiano. Era contra a contracepção, e recomendava ao mundo que procurasse
salvar a própria pele por meio da repressão moral, que todos fossem encorajados
a levar a idade do consentimento para o casamento. Era um remédio absurdamente
otimista para uma ameaça tão terrível. Outras pessoas, igualmente racionais, viam
a repressão mecânica, ao invés da moral, como mais atraente e mais eficaz. Isso
provocou escândalo.
O subsecretário de Estado dizia, a favor dos ofendidos, no Guidhall, no verão
de 1877:
Na minha opinião este é um livro sujo, imundo, e a prova é que nenhum ser
humano permitiria que fosse posto sobre sua mesa, nenhum marido inglês
decentemente educado permitiria que sua mulher o visse. O objetivo do livro é
permitir que as pessoas pratiquem o sexo, mas não para ter aquilo que, na ordem
da Providência, é o resultado natural dessa prática.
O título era Frutos da Filosofia, ou o Companheiro Particular dos Jovens Casais,
do doutor americano Charles Knowlton (1800-50). Hora publicado no ano
anterior (com ilustrações), em Bristol, por Henry Cook, condenado a dois anos de
trabalhos forçados. Também com problemas estavam Charles Bradlaugh (1833-
91), ex-menino de recados e ex-soldado da cavalaria, um membro do parlamento
independente que se recusou a jurar sobre a Bíblia parlamentar, foi expulso da
Casa pelo sargento-de-armas e preso durante dois dias sob o Big Ben (sem
dúvida, sem poder dormir). Ele foi excluído do parlamento quatro vezes, e por
cinco vezes foi eleito pela persistente e sensata cidade de Northampton, centro da
indústria de calçados, até que o parlamento se cansou e ele representou sua cidade
até a morte.
E Anne Besant (1847-1933), separada do marido vigário, depois teosofista, que
descobriu o novo Messias (Jeddu Krishnamurti, de Madras, de 14 anos, que ela
adotou e fez desfilar pelo mundo todo de 1910 a 1925, e que costumava sair do
próprio corpo quando dormia). Ela formou com Bradlaugh a Companhia Editora
do Pensamento Livre, deliberadamente para republicar Frutos da filosofia.
Os dois foram condenados a seis meses de prisão e a uma multa de 200 libras,
revogada na instância de apelo, mas apenas tecnicamente, devido a um erro verbal
da acusação. Os juízes advertiram que se repetissem a ofensa, eles não
escapariam. Bradlaugh vendeu os volumes confiscados com o carimbo de
RECUPERADAS DA POLÍCIA, um bom golpe publicitário, e a brochura de Anne, de
1877, A Lei da População, vendeu 175.000 unidades. Quando um dermatologista de
Leeds, Henry Arthur Allbutt (1846-1904), publicou seu livro de seis pence O
manual da esposa, em 1886, o Conselho Geral de Medicina tirou seu nome do
Registro Médico por conduta antiprofissional, mas ele foi compensado pela venda
do livro, que rendeu meio milhão de libras.
O Guildhall de 1877 ecoava no Old Bailey de 1960. Diz o procurador-geral
Mervyn Griffith-Jones:
O livro está repleto de palavrões. As palavras "copular" e “copulação"
ocorrem não menos de 30 vezes. Eu contei. “Vulva”, M vezes, “testículos", 13
vezes, “fezes” e “ânus” seis vezes cada um, “pênis”, quatro vezes, “urinar”, três
vezes, e assim por diante.

Ele acentuou a qualidade dessa lista escandalosa não usando as palavras
técnicas que eu usei, mas as comuns, que ele certamente usava nos fins de semana.
Foi o julgamento do Amante de Lady Chatlerly que atraiu a atenção encantadora do
procurador-geral, preocupado com a possibilidade de algum empregado seu ler o
livro — numa era em que o barato tweeny estava sendo substituído pelo twin-tub,
mais barato ainda.
A moral é de um modo geral uma expressão da história e da geografia. Qualquer
coisa vale, mas não em toda parte. Os hindus não podem beber, mas têm várias
mulheres, os cristãos podem-se embriagar quantas vezes quiserem, mas estão
presos, como disse Saki, “ao costume ocidental de uma mulher e quase nenhuma
amante”. Nos EUA, em 1933 era errado brindar o aniversário de Washington, mas
em 1934 era um gesto patriótico. Nas ilhas Fiji, na década de 1830, até o
canibalismo era socialmente aceitável, separando-se o cérebro, como um petisco,
para as mulheres.
“Mas existem duas moralidades”, disse Flaubert. "Uma é bonita e convencional,
invenção dos homens e muda constantemente, um amontoado de nadas prosaicos e
absurdos, que fazem tanto barulho quanto os imbecis que a inventam. Mas a outra
vive naquela eternidade que está à nossa volta e acima de nós, como os campos e
os bosques e o céu azul espalhando seu brilho pela Terra.”
A moralidade que é tão inconseqüente quanto aquele tagarela imbecil do Show
Agricultural de Flaubert é impressionante. Ela incita com enorme celeridade a
condenação solícita das infrações cotidianas, quando perpetradas por outros.

A CAMISINHA ENTRA NA POSSE DOS SEUS


DIREITOS
A vulcanização da borracha, em 1843, fez milagres para a camisinha, bem como
para as bolas de golfe. Na década de 1920 as camisinhas tinham a resistência
tranqüilizadora e vigorosa dos pneus do Daimler. Não formavam volumes
vergonhosos nos bolsos, como os cigarros hoje em dia. Eram armazenadas em
lugares invisíveis pelos farmacêuticos, o que levava ao ritual de ler os rótulos de
fortificantes, comida para crianças e pastilhas para a tosse até a farmácia ficar
vazia. As camisinhas eram distribuídas mais aberta e mais adequadamente à alta
sociedade pelos antepassados dos cirurgiões, os barbeiros (“E alguma coisa de
uso pessoal, senhor?”), o que explica a moda de cabelos muito curtos para os
homens, no começo deste século.
Nossa Florence Nightingale do leito nupcial foi Charlotte Carmichael Stopes
(1880-1959), com quem Deus falou pessoalmente em 1920 entre as árvores de seu
jardim, em Leatherhead. Seu livro Amor no casamento vendeu 1.000 exemplares
por semana. Sua observação incidental de que a mulher deve prender o marido
entre suas pernas durante o ato de amor provocou a crítica de um membro do
parlamento australiano: “Deixem que nós, em nome da verdadeira e normal
masculinidade e da verdadeira e normal feminilidade e, sem dúvida, em nome do
Império Britânico, nos esforcemos para controlar a imaginação a qualquer preço.”
Marie Stopes era PhD de Munique, e seu primeiro casamento em Montreal, com
um botânico americano, foi anulado em 1916 porque depois de cinco anos ela eia
ainda virgo intacta. Com o apoio eficaz de Arnold Bennett, H.G. Wells e a
contralto Clara Butt, Marie Stopes abriu, em 1921, uma Clínica para as Mães, em
Islington, onde se inseriam pessários de borracha nas mulheres da classe
trabalhadora. Tudo acabou entre lágrimas e libelos. O arcebispo de Westminster,
Cardeal Bourne, fez uma doação pessoal de 400 libras, e a igreja católica liberou
10.000 libras para apoiar o Dr. Halliday Gibson Sutherland (1882-1960), que
explicou: “Os instintos comuns e decentes dos pobres são contra essas práticas...
os pobres são as vítimas naturais daqueles que querem fazer experiências em
outras pessoas”.
São os pobres que levam a culpa. Era um momento importante demais na
história da contracepção para ser sujeito ao egoísmo insuportável e à avidez de
Marie Stopes.
As camisinhas receberam seu nome em inglês, condom, por causa do doutor ou
possivelmente coronel Condom, um inglês, ou talvez francês, e talvez cortesão de
Carlos II, ou que talvez nunca tenha existido. O melhor que o dicionário de latim
pode nos oferecer é condo, “inserir, enfiar”, também engarrafar frutas. O mais
perto que o dicionário Oxford chega é condoma, um antílope listrado com chifres
em espiral. Condom (população 6.781), entre Bordeaux e Toulouse, orgulha-se do
seu armagnac e o bispo Bossuet, da sua catedral de St. Pierre, que em 1669 foi
chamado a Paris por Luís XIV para ensinar francês ao delfim.
Ninguém costumava chamar as camisinhas de condons. Os americanos, pouco
poéticos, inundaram a II Guerra Mundial com as “borrachas", enquanto os
ingleses faziam piadas pré-coito sobre “Amor livre com F L [Free Love]
maiúsculos”. A palavra só entrou nas conversas respeitáveis na época da senhora
Thatcher, junto com “dinheiro”. A camisinha ergue-se suprema, outra vez como
objeto de uso sanitário. Seus oponentes, envergonhados, dificilmente podem agora
bradar sobre a santidade da vida humana, quando o sexo sem camisinha pode
extinguir o mundo todo com a AIDS. Existe até um “Femidom”, que parece um
forro para caixa.

UMA QUESTÃO DE VIDA E NASCIMENTO
A popularização da pílula, em meados do século XX, foi um liberador das
mulheres equivalente à calandra em meados do século XIX. Tudo que as mulheres
precisam agora é uma boa memória e estar suficientemente sóbrias para engolir a
pílula. Até mesmo isso torna-se supérfluo com a “pílula do dia seguinte”. Porém,
essa lembrança atrasada desperta a excitação ética, perturbando completamente o
status quo, ao invés de preveni-lo. Uma pílula depois do ato é como um aborto,
que acende a fúria dos virtuosos, ao ponto de as pessoas respeitáveis marcharem
pela Ria com faixas e cartazes, envergonhando os membros do parlamento com
fotografias intra-uterinas de embriões que parecem chupar o dedo, um hábito que,
felizmente, eles não têm.
Regnier de Graaf (1641-73) descobriu a concepção. Esse anatomista holandês é
lembrado no folículo de Graaf, os nódulos na superfície dos ovários que abrigam
os ovos fertilizados. Até então todos concordavam com Aristóteles que o esperma
fazia tudo sozinho. Antes disso, a humanidade levou um tempo incrível para
compreender a conexão sexual.
O aborto é tão antigo quanto a concepção. Em 18 de julho de 1938 Aleck
William Bourne (1886-1974), filho de um ministro wesleyano, ginecologista
consultor em Londres, de respeitabilidade cristalina e austera personalidade, foi
indiciado no Old Bailey por usar um instrumento para provocar aborto. A pena
máxima era de trabalhos forçados para toda a vida. Isso tudo estava contido em
Ofensas Contra a Pessoa, lei de 1861, seção 58. Mas o juiz achou que o aborto
era uma ofensa contra a lei comum inglesa, mesmo antes da existência do
parlamento. Hipócrates também era contra. “Não darei à mulher um pessário para
provocar o aborto”, diz o seu Juramento. Essa promessa foi defenestrada, como a
que a vem em seguida, “Manterei pura e santa minha vida e minha arte”.
Em 14 de junho, às 10 horas da manhã, Boume fez um aborto, no Hospital St.
Mary, em Paddington, de uma menina de 14 anos, grávida de seis meses, que fora
violentada duas vezes, imobilizada por dois guardas montados, de folga, depois
de ser convidada para ver uma égua com cauda vermelha no estábulo da Parada
dos Guardas Montados, em Whitehall. O Hospital St. Thomas, no outro lado do
rio, recusou-se a atendê-la, dizendo que o feto podia ser um futuro primeiro-
ministro. Os pais da menina, confusos, eram tão respeitáveis que não conheciam
nenhuma daquelas mulheres velhas, tradicionais nas vielas de Londres, com suas
agulhas de tricô. Três anos antes, Bourne havia feito a mesma coisa para uma
jovem de 15 anos. Seu assistente, prudentemente, saiu da sala de operação,
recusando-se a tomar parte numa coisa ilegal. Dessa vez Bourne avisou o
procurador-geral de que ia fazer o aborto. No fim do seu dia de trabalho, naquela
noite, dois detetives chegaram ao hospital para levá-lo à delegacia de polícia de
Paddington.
Quando a liberdade de Bourne dependia de argumento do perigo de vida para a
jovem, seu advogado usou o argumento como defesa. A vida dela estaria em
perigo se sua saúde corresse perigo? Devia ser posta em perigo por uma vida
inteira de sofrimento? Se estão preservando sua vida, devem também preservar
sua saúde, do contrário, quem sabe se ela pode morrer? “Era um lado da questão
jamais abordado”, observou o juiz, constrangido. Ou seria justificada a suspeita
de que Bourne estava violando a lei abertamente, para mudar a lei?
O juiz, os advogados e os jurados reconsideraram suas idéias, prontos para
inocentar o acusado, o que 10 homens e duas mulheres fizeram em 40 minutos,
depois de dois dias de julgamento. Foi a glorificação do bom senso, uma
qualidade injustamente não cantada pelos poetas. O veredicto foi a partida para
idéias sensatas sobre o aborto, que foram legalizadas em 1967, a despeito dos
princípios mais profundos, dos preconceitos, do puritanismo e da pomposidade. A
única falha na história é a suspeita de que a heroína fosse uma “garota de meia
coroa”, que fazia ponto ao lado do posto da guarda.
As circunstâncias do caso Bourne repetiram-se em Dublin, quando uma menina
de 14 anos, violentada, foi a Londres para fazer o aborto, mas voltou para casa
obedientemente quando o procurador-geral conseguiu aprovação de um recurso
para evitar que o aborto fosse feito. Isso foi em fevereiro de 1992. Os irlandeses
conseguiram revogar o julgamento.
Na América do Sul, a causa mais comum de morte de mulheres com menos de
50 anos é o aborto ilegal.
O filósofo que “Em volta dele muitos embriões, muitos abortos jazem" enfrenta
uma confusão insistente e sem dignidade sobre a determinação do momento
sagrado do começo da vida. Quando é que a criança começa a ter uma vida
separada, antes de aparecer chorando e vomitando nos braços da parteira? O
momento de alegre união entre o esperma e o ovo não é adequado, porque tontos
deles, como a união matrimonial, duram pouco tempo. Na Grã-Bretanha, nós
sensatamente deixamos o assunto para a Câmara Alta. Com a lei da Fertilização e
Embriologia Humanas, os membros do parlamento resolveram criar a vida
humana na 24ª semana depois do ato sexual que determinou a concepção,
realizando assim, em 8 de outubro de 1990, o que Deus fez no sexto dia.
Os casais que concebem filhos que não desejam refletem os casais que querem
filhos mas não podem ter. O problema destes últimos tem sido resolvido pelos
ginecologistas com menor alarde e esforço. As pessoas autoritárias fazem mais
objeções ao fato de as outras fazerem o que elas acham que não devem ser feito,
ao invés de procurar realizar o que acham que devem.

A MÁCULA
Em 1492 Colombo descobriu a América. Depois da sua volta, em 1493, o Velho
Mundo descobriu uma nova doença. Ela foi precariamente catalogada por Nicolo
Leoniceno (1428-1524), professor de física em Ferrara. Pústulas dolorosas nas
partes privadas, espalhando-se pelo corpo e pela face, erupções, úlceras, bolhas,
pústulas negras, carbúnculos, juntas inchadas e muito doloridas, lassidão, febre,
decomposição da carne, cegueira e morte, com os sintomas persistindo durante
anos nos sobreviventes. Giovanni di Vigo (1460-1520), cirurgião do Vaticano
quando Michelangelo fazia a decoração, em 1514 escreveu um livro que teve boa
venda, Pratica in Arte Chirurgica Copiosa (52 edições), que ensinava: “Essa
doença é contagiosa, especialmente quando apanhada por meio da cópula de um
homem com uma mulher suja.”
Essa conexão com o ato sexual havia sido posta em dúvida, previamente,
porque a doença “infectava os que eram religiosos”.
Hieronymus Frascatorius, de Verona, descobridor do fomite infeccioso,
escreveu em 1530 um longo poema virgiliano:
Primeiro ele teve bolhas de aparência horrível,
Primeiro teve dores estranhas e passou noites em claro;
Dele a doença recebeu seu nome,
Os pastores das vizinhanças apanham a chama devastadora.
Finalmente na cidade e na corte ela foi conhecida,
E atacou o monarca ambicioso no seu trono.


O herói do poema era:

Um pastor certa vez (confie na fama antiga)
Teve esse mal-estar, e Syphlus é seu nome.
Mil novilhas naqueles vales ele alimentou
Mil ovelhas aos belos rios levou.

(A tradução para o inglês foi feita pelo poeta laureado de 1692, Nahum Tate,
que traduziu também “Enquanto os pastores guardavam seus rebanhos à noite”.)
E assim a sífilis tomou-se o ameaçador epônimo de quatro séculos. O título do
poema de Frascatorius é Sobre a Doença Francesa. Giovanni di Vigo, algum tempo
antes, havia anotado no seu livro: “Os franceses a chamam de doença de Nápoles,
porque os soldados a levaram de Nápoles para a França. Os napolitanos a
chamam de doença francesa, porque apareceu na primeira vez que foram a
Nápoles e, assim, outras línguas a chamam por outros nomes.” Nessa explosão de
nacionalismo infeccioso era a doença polonesa para os alemães, a doença alemã
para os poloneses, a doença francesa para os espanhóis e a doença turca para
todos com um conhecimento vago de geografia (os britânicos, como era de
esperar, ficaram do lado dos espanhóis e dos napolitanos). Ninguém pensou em
culpar os haitianos e cubanos, que haviam providenciado a diversão dos homens
de Colombo em terra.
“Esse pecado sujo é sempre acompanhado por essa doença suja, que hoje
chamamos de pox", disse Wiseman em Mr. Badman. “Uma doença tão nojenta e
malcheirosa, tão infecciosa para o corpo todo e tão ligada a esse pecado que
dificilmente tem algo em comum com as mulheres sujas, que elas têm mais ou
menos alguns sinais dela para sua vergonha.”
Se você fuma, pode ter câncer do pulmão. Se você bebe, pode ter cirrose do
fígado. Se faz sexo, pode apanhar uma doença transmitida sexualmente, como
pode apanhar uma gripe por suas atividades sociais. Receber de braços abertos
essa infecção como o castigo adequado ao crime — como todos os que
concordaram com Bunyan, desde 1680 — é uma cruel expressão da cretinice
puritana.
O cirurgião francês Baro Dupuytren, um homem de trato difícil, tinha uma
abordagem mais caridosa. “Você esteve com prostitutas?” “Não, como pode
pensar uma coisa dessas?”, respondia o paciente. “Pois então elas estiveram com
você”, dizia Dupuytren.
A sífilis mais tarde floresceu menos ameaçadora. Brotava com um “cancro”,
florescia com uma erupção vermelho vivo, depois adormecia no esquecimento até
o outono da vida, quando brotava outra vez sob a forma de aneurismas, falta de
equilíbrio, loucura com mania de grandeza, além de características estranhas nos
filhos. Um processo mnemônico para estudantes:

Havia um jovem de Herne Bay
Que pensou que a syph tinha ido embora.
Agora ele tem tabes,
E filhos com pernas tortas
E pensa que é a Rainha de Maio.

ASSUNTO DE FAMÍLIA
Muitas figuras históricas e homens importantes foram considerados vítimas da
sífilis. Isso sé deve, talvez, às manias de grandeza que ocorriam neles
naturalmente. Henrique VIII era um dos suspeitos, por causa da grande quantidade
de filhos nascidos mortos e outros doentes — a sífilis é transmitida através da
mãe, supostamente infectada pelo pai — e por suas úlceras e seu comportamento
geral. É irônico condenar Oscar Wilde à morte por sífilis. Ele morreu de um
abscesso no cérebro, que começou no ouvido e que aumentou o sofrimento de
Reading Gaol. O pai de Oscar, Sir William Wilde (1815-76), de Dublin, foi um
pioneiro das doenças do ouvido, autor de Cirurgia do ouvido (também da Narrativa
de uma Viagem à Ilha da Madeira) e o inventor da incisão Wilde no osso mastóide,
para os casos de infecção do ouvido. O ativo Sir William tratava os pobres num
estábulo não usado em Dublin, era comissário do recenseamento inglês e
descobriu habitações pré-históricas nos pântanos. Ele escreveu sobre a infecção
do ouvido: “Nunca podemos dizer como, quando ou onde ela vai terminar.”
Quando terminou para seu filho, com uma operação muito dispendiosa, em Paris,
em 1900, Oscar suspirou: “Ora, muito bem, acho que terei de morrer além dos
meus recursos.”
Os descendentes de Sir Winston Churchill preocupam-se com seu pai, Lord
Randolph (“Randy Pandy”) Churchill, que supostamente tinha sífilis. A acusação
aparece na biografia de 1925 escrita pelo horrível Frank Harris, que, segundo
Oscar Wilde, “era recebido em todas as grandes casas — uma só vez". Harris
conta que Lord Randolph, quando estudava em Oxford, num jantar com Jowett, no
Balliol, em 1869, sentiu uma coisa estranha dentro da calça. Ansiosamente
perguntou ao criado onde ficava o banheiro. “Sim, lá estava uma espinha redonda
e muito vermelha.” Depois de uma noite de bebedeira no Bullingdon Club, Randy
Pandy supostamente acordou num quarto imundo ao lado de uma mulher velha e
suja, grisalha, com dentes longos e amarelos no maxilar superior, que balançaram
quando ela disse. “Ah, benzinho, você não vai me deixar?” (Frank Harris foi
também um renomado littérateur e menteur.)
No verão de 1893, depois de ter sido secretário na índia e Ministro da Fazenda,
Lord Randolph consultou seu médico em Grosvenor Square, queixando-se de
dificuldade para falar, tremor na língua, dormência no braço esquerdo,
desequilíbrio, violência, apatia, delírios e confusão, e o diagnóstico razoável foi
de estado avançado da sífilis.
Porém, a sífilis é um assassino fantasmagórico e um mímico muito ágil. O
médico da rainha Vitória, Sir William Gull, advertia seus alunos: “Por mais
espertos que sejam, certamente vão ter dificuldade para identificar a tísica, a
sífilis e a sarna.”
Era impossível dizer com certeza quem tinha ou não sífilis antes de 1906,
quando August von Wassermann (1866-1925), de Berlim, inventou seu prático
exame de sangue, a famosa “reação Wassermann”. O Treponema pallidum, o
micróbio fino, espiralado, que entra no corpo como um saca-rolhas e causa todos
os problemas, foi descoberto em Hamburgo, em 1906, pelo filho de um
taverneiro, o zoólogo Fritz Richard Schaudinn (1871-1906). Foi outra expressão
do gênio alemão, na época, para descobrir novos micróbios, igual à dos
britânicos para descobrir novas colônias.
O tratamento da sífilis não havia se modificado desde Giovanni di Vigo.
Resumia-se em “Uma noite de Vênus e uma vida inteira de mercúrio”. O mercúrio
era usado externa ou internamente, as duas administrações diluídas em esperança.
A única medida tomada pela saúde pública contra a sífilis foi a proibição de
banhos mistos na Alemanha.
O mercúrio foi substituído pelo arsênico com a injeção 606, de Erlich, em
1909, mas esse tratamento, embora muito mais eficaz, era ainda limitado e incerto.
Em 1942, descobriu-se que o Treponema pallidum (como o gonococo, que tanto
incomodou Boswell) era suscetível à penicilina. Em 26 de junho de 1944, três
semanas depois do Dia D, a América retribuiu a invasão da Europa pelos
micróbios levados por Colombo adotando oficialmente a penicilina e depois
fabricando-a em massa para o tratamento da sífilis no exército americano.
“Existem somente duas doenças que eu posso curar com certeza, a gota e a
sífilis”, declarou alegremente um médico de Londres que consultei para uma
dessas duas doenças. Nos clubes masculinos do século XVIII, em Pall Mall, ele
teria sido um médico adorado e muito ocupado.


A HISTÓRIA INTERESSANTE DA OBSTETRÍCIA E
DA GINECOLOGIA
Não há história. As mulheres que aceitavam alegremente a recomendação do
procurador-geral — ter aquilo que, na ordem da providência, é o resultado natural
do ato sexual — eram tradicionalmente atendidas por parteiras. Estas seguiam as
instruções do The Byrth of Mankynde, traduzida (via latim) por Thomas
Raynalde (c. 1540) do livro alemão de Eucharius Röslin (c. 1513) Rosengarten,
que foi durante 14 séculos a única atualização do tratado romano de obstetrícia do
memorável Soranus (78-117 d.C.). De acordo com as ilustrações do Rosengarten,
a mãe sentava ao lado da sua cama, entre parentes e parteiras, com a saia até os
tornozelos, gemendo sobre uma banqueta de parto, com a bacia e a jarra prontas
para lavar o bebê, enquanto o astrólogo olhava pela janela e fazia o horóscopo do
feto.
No século XVIII surgiu o parteiro, igualmente detestado pelos seus colegas
cirurgiões (orgulho) e pelas parteiras (ciúmes).
“Um brutamontes, um cavalão de parteiro”, era como uma parteira de
Haymarket chamava o amigo de Tobias Smollett, William Smellie (1697-1736),
de Pall Mall. Smellie era um expoente do fórceps obstétrico, o tire-tête inventado
por Peter Chamberlen (1560-1631) Chamberlen era um huguenote fugido de Paris,
que teve sucesso em Londres a ponto de atender a rainha Henrietta Maria, mulher
de Carlos I, quando ela abortou em 1628 e a parteira desmaiou de medo. Os
Chamberlen eram de uma família de médicos (eles fizeram o parto da rainha
Anne, em 1692) que guardaram o segredo do fórceps por 125 anos. Um
descendente o vendeu em 1693 para um holandês, filho de Hendrick van
Roonhuyze (1625-?), o mestre da cesariana. Smellie cobria as lâminas do seu
fórceps com couro, para poupar à mãe o estalido metálico das duas hastes quando
ele estava trabalhando. Ensinou o uso do fórceps a milhares de estudantes, usando
uma boneca com a cabeça para cima, na bacia óssea da pelve de um esqueleto
feminino, por três guinéus por aula.
A ginecologia foi inventada pelos americanos. Originou-se no sul para reparar
os danos da obstetrícia na zona rural, especialmente entre as escravas. A primeira
remoção do ovário foi feita em dezembro de 1809 (sem anestesia), em Kentucky,
por Ephraim McDowell (1771-1830), que havia estudado em Edimburgo. A
paciente foi a mulher de um fazendeiro, a senhora Jane Todd Crawford, que tinha
um cisto ovariano, viajou 96 quilômetros a cavalo da sua casa de madeira até a
mesa de operação, tinha 47 anos e viveu até os 78.
O belo James Marion Sims (1813-83), do Alabama, desenhou a posição de
Sims (inclinado para a frente e para a esquerda, muito encolhido, o braço
esquerdo dependurado atrás das costas. Ele teve a idéia quando viu uma mulher
que havia caído do cavalo) e o espéculo vaginal de Sims (adaptado de uma colher
dobrada), que podia ver uma mulher “como nenhum homem jamais viu antes".
Marion Sims inventou a operação para reparar a fístula vazante entre a bexiga e a
vagina, e levou sua técnica para a Europa, em 1861, quando saiu dos EUA fugindo
da Guerra Civil. Ele a demonstrou para o veterano de Napoleão, o barão Larrey, e
imediatamente estendeu sua prática do Hudson ao Elba. Sims mudou-se para Nova
York para fundar o Hospital para Mulheres, em 1855, e sua estátua está no Bryant
Park, na rua 42, atrás da Biblioteca Pública.
A ginecologia, como a cirurgia, teve seus modismos. Acreditava-se que o útero
era flutuante, como os rins, e cirurgicamente, segundo Sir Clifford Allbutt,
“enfiado num pedículo ou encostado numa vareta”. Pessários de borracha com a
forma de colares de cavalos eram inseridos na vagina para dores da pelve e para
evitar a queda do útero. A histerectomia e a clitoridectomia foram praticadas nos
anos 1900 com a mesma facilidade com que Sir Arbuthnot Lane fazia suas
colectomias. Certa vez perguntei a um ginecologista extremamente hábil,
respeitado e rico, quais as conclusões fascinantes a que ele havia chegado a
respeito das mulheres depois de uma vida inteira do trabalho com elas. Ele
pensou profundamente e disse: “A mulher é um bípede com prisão de ventre e
dores nas costas."
CAPÍTULO 8
Becos sem saída

Entre as grandes descobertas da medicina está a descoberta, quase sempre


atrasada, de que alguns tratamentos são completamente inúteis.

CÓLON, PARADA COMPLETA


As pessoas preocupam-se especialmente com a vida sexual e com os intestinos.
Sir “Willie” Arbuthnot Lane (1856-1943), do Hospital Guy’s, em Londres,
tomou-se o gênio redentor dos intestinos, como o professor Sigmund Freud (1859-
1939), de Viena, foi deliciosamente o redentor do sexo.
O cólon é um tubo com 7,5 centímetros de largura e 1,5 metro de comprimento,
que continua dos intestinos, a partir do apêndice. Ele sobe até as costelas e vira
para a esquerda, antes de descer novamente até o reto e o ar livre. Tem um forro
absorvente e uma parede muscular para empurrar as coisas. Seu conteúdo são os
resíduos do alimento digerido pelas substâncias químicas do organismo, a bile e
uma grande quantidade de bactérias, na maior parte inócuas. A mistura é pegajosa
e malcheirosa, mas não sensacionalmente pior do que a caspa.
O forro aveludado do cólon absorve água e medicamentos. Antes de a
aplicação de medicamentos em gotas, por via endovenosa, tornar-se segura e
eficaz, durante a II Guerra Mundial, a reposição necessária de líquidos no corpo
doente era feita pelo cólon. Era moda então administrar aos pacientes
enfraquecidos enemas nutrientes, alguns extremamente complicados, uma
verdadeira salada dada pelo reto.
A sombria ameaça do cólon paira sobre a humanidade desde o século XIV,
quando o “clister" entrou no fundamento e na linguagem. Em 1622, Massinger e
Decker chamavam o médico rudemente de “Tubo fedorento de clister”. Porém, no
século seguinte a prática entrou na moda para os adeptos das dietas exigentes,
como existem hoje.
Pope escrevia elegantemente no The Dunciad, em 1728:

No consultório esiá a linda Cloacina,
E ministra para Jove com as mais puras mãos...
Ela muitas vezes o favoreceu e favorece ainda.
Renovado pela força generosa do excremento
Como que lubrificado com os sucos mágicos para o curso.
Vigoroso ele se levanta, pelos eflúvios fortalecido
Absorvendo nova vida, e faz a limpeza malcheirosa.

(Pope tinha o humor espasmódico de um estudante de medicina. Do contrário,
como poderia ter escrito sobre o leito de morte da rainha de George 11, Carolina:
Aqui jaz envolta em quarenta mil toalhas
A única prova de que Carolina tinha intestinos.)

O século XVIII produziu também quadros deliciosos de damas ajoelhadas com
as nádegas nuas, atendidas por suas criadas com o que pareciam ser
vaporizadores de frutas domésticos do século XIX.
No começo do século XX, uma conspiração entre médicos e pacientes criou a
“auto-intoxicação”. Suspeitava-se que venenos não identificados eram absorvidos
pelo cólon preguiçoso, provocando sintomas igual mente vagos como mãos frias e
úmidas, orelhas frias e azuladas, lassidão, dores pélvicas nas mulheres e, segundo
Willie, um terrível cheiro de túmulo. Porém, ele acrescenta, com mais alegria:
“De certo modo, as pessoas ruivas parecem ser relativamente imunes aos efeitos
da estase intestinal.” Sorte de Sarah Bemhardt.
Um cólon cheio atraía Willie como a vitrine do açougue atraía um
revolucionário faminto. Às vezes ele apresentava “as rugas de Lane”, que ele
alisava com calor. Sua incisão abdominal ia das costelas ao púbis, bem no centro,
para poder ver melhor o que estava acontecendo. Ele recomendava a lubrificação
do cólon com meio litro de creme e dormir de bruços, imitando os selvagens
africanos, cujos cólons atiravam como as balas pom-pom do general Kitchener.
Willie era bonito, com um bigode luxuriante, sarcástico, com o gosto nativo de
Ulster por pregar peças, grande dançarino, e desenhava os próprios instrumentos
(que ele gostava que fossem práticos). Ele recomendava:
O espartilho inglês é desastroso porque exerce uma pressão constritora no
abdome, na margem costal inferior, e acentua a tendência das vísceras de se
deslocar para baixo. O espartilho francês, com as barbatanas retas, é menos
prejudicial e, quando bem feito e bem aplicado, serve para exercer uma pressão
moderada na parte inferior do abdome.

Pode-se verificar isso comparando as mulheres de Renoir com as de
Gainsborough.
Então Willie conheceu Ilya Mechnikoff (1845-1916), de Odessa. O professor
Mechnikoff ganhou o prêmio Nobel em 1908 e, em 1903, escreveu La Vie
Humaine, um título balzaquiano para seu tratado, no qual prova que o cólon é tão
desnecessário para o corpo humano quanto as asas para os porcos. O
revolucionário Willie instituiu imediatamente o Reino do Terror, guilhotinando o
cólon nas duas extremidades e atirando-o nas chamas do incinerador do Guy’s.
O cólon foi proscrito como um esgoto venenoso, que infectava o resto do corpo
com reumatismo, tuberculose, câncer e uma porção de outras coisas. Um menino
que confundiu a porta de Willie com a da clínica de laringologia teve seu cólon
removido, ao invés das amígdalas. Um homem que cortou o próprio pescoço, mas
não morreu, não teve seu cólon removido, mas mandou remover o da sua mulher
para melhorar seu gênio e fazer a vida dos dois mais feliz.
Os pacientes adoravam, como Jove. É reconfortante identificar dentro do
próprio corpo um bode expiatório para todas as imperfeições físicas e
psicológicas.
Um ano depois, os pacientes voltavam com os mesmos sintomas enumerados
por Willie.
Isso continuou até 1913, quando os médicos começaram a suspeitar que o cólon
estava cheio de bobagens. Disse então Sir James Frederick Goodheart, baronete
(1845-1916), médico do Guy’s:

Encorajados por nós, os médicos, centenas de milhares de seres humanos
gravaram em suas mentes a idéia de que nasceram neste mundo com o objetivo
principal de evacuar uma vez por dia.

Willie recuou para o óleo de oliva, óleo de fígado de bacalhau e parafina
líquida, a respeito dos quais “posso garantir com certeza que nenhum outro
remédio já fez tanto bem à raça humana”. Ele recomendava que devíamos
esquecer as cadeiras, agachar com as coxas encostadas na barriga, como aqueles
selvagens colonialmente eficientes. Dizia aos seus colegas no Guy’s que deviam
abrir os intestinos duas vezes por dia. Fundou a Nova Sociedade da Saúde, que
tinha entre suas atividades a redação de artigos para os jornais; assim, em 1933
ele retirou o próprio nome do Registro médico. Um homem obcecado como Willie,
com as melhores intenções, pode causar tanto mal quanto o Barba Azul com as
piores intenções.
Willie foi atropelado durante o blackout do tempo de guerra, na frente do
Athenaeum Club, em Pall Mall, e morreu com 86 anos, ainda acreditando que o
cólon devia estar sempre vazio como o armário da Mãe Hubbard dos contos
infantis. Ele ganhava 10.000 libras por ano. Um velho cirurgião disse sobre o
trabalho de Willie: “Tem o sabor do misticismo céltico, o que talvez revele sua
origem irlandesa.” Talvez tudo não passasse de uma brincadeira de Willie.

CIRURGIA À LA MODE
Os pacientes que escapavam de Willie com seu cólons intactos corriam o risco
de um tratamento também drástico dos rins, por cirurgiões igualmente enérgicos.
Os rins provocavam os mesmos sintomas, flutuando no abdome como balões de ar
na véspera do Ano Novo. Outra epidemia intra-abdominal foi a das misteriosas
adesões entre os órgãos escorregadios, vastamente diagnosticadas e atacadas com
igual ferocidade. Mais tarde foi descoberto que essas adesões são extremamente
raras e, na maior parte, inofensivas, e quase sempre provocadas pelo talco com
silicone das luvas dos cirurgiões. “As & As”, amígdalas e adenóides — até a
década de 1960 era uma operação recomendada para uma miscelânea de doenças
infantis e se tomou uma cerimônia rotineira de expurgo. Surpreendentemente,
Willie era contra essa operação sangrenta, traumática e perigosa, recomendando,
em lugar dela, exercícios respiratórios que toda a família devia fazer, deitada de
costas, depois do chá.
A patologia da moda nos anos 1920 eram os focos sépticos, bolsas de pus
escondidas por toda a parte, desde os seios paranasais à pelve, extirpadas por
meio de pedaços de carne cortados e ossos raspados. A ilusão persistiu até a
quimioterapia se tomar a última palavra, e a septicemia sair de moda. Depois
disso, a moda eram as operações para a remoção de cadeias de nervos
simpáticos, para curar os espasmos do intestino ou das artérias. A cirurgia sem
seus cultos ficaria tão desfalcada quanto Paris sem suas coleções.
Hoje em dia continuam a ser realizadas operações inúteis com a mesma
freqüência, mas infelizmente ninguém vai saber quais são elas enquanto não forem
abandonadas em favor de outras.

NO ESCURO DE UM FRASCO
Os pintores do século XVII gostavam de reproduzir os interiores das casas
holandesas. “A visita do médico”, de Jan Steen, de Delf, mostra a filha pálida no
seu quarto pouco confortável, animada pela mãe ansiosa, enquanto o médico
inteligente ergue contra a luz um frasco com a urina dela, como um enófilo
calculando o “corpo” do clarete. O “Médico da Água”, de David Teniers, o
Jovem, examina com uma atenção feroz um frasco enchido por uma mulher velha e
tristonha, com suas compras, e o “Mal d’Amour”, de Gerard Dou, mostra uma
jovem bonita ricamente vestida e um médico jovem e belo, vestido com peles, que
segura o pulso flácido dela enquanto os dois olham para a urina da paciente com
extrema ternura.
A uroscopia era o exame da moda, especialmente para verificar a presença de
clorose, a doença verde, morbo virgineo, a nêmesis das adolescentes apaixonadas.
A clorose foi descrita pela primeira vez em 1554, por Johannes Lange (1485-
1565), médico do Eleitor do Palatinado, quando a filha de um amigo começou a
recusar bons pretendentes:

Seu rosto, que no ano anterior destacava-se pela cor das faces e pelo vermelho
dos lábios, parece desprovido de sangue, tristemente pálido, o coração estremece
com cada movimento do corpo e as artérias das suas têmporas pulsam e ela tem
crises de dispnéia quando dança ou sobe escadas, seu estômago detesta comida,
especialmente carne, e as pernas, especialmente nos tornozelos, ficam edematosas
à noite.

Uma descrição admirável da anemia por deficiência de ferro, provocada pelo
começo da menstruação e por uma dieta inadequada. O tratamento recomendado
por ele: “Recomendo às virgens atacadas por essa doença que procurem o mais
depressa possível viver com um homem e copular.”
Para os uroscopistas, o frasco redondo era a bola de cristal onde eles podiam
ler qualquer coisa. O ato de examinar urinas pálidas, escuras óu espumosas
certamente deve ter ensinado aos mais observadores alguma coisa sobre a
equanimidade do rim que as produz. O cardiologista de Londres, Sir Thomas
Lauder Brunton (1844-1916), conta, em 1892:
Na cidade de Leeds vivia um curandeiro sem nenhuma instrução profissional,
mas muito conhecido por suas curas maravilhosas e, especialmente, por seu poder
de diagnosticar as doenças de pacientes que nunca vira antes simplesmente
examinando sua urina.
Um cirurgião célebre, o senhor X, curioso por descobrir o método do
curandeiro disse que queria estar presente a uma das consultas, e o homem acedeu
prontamente, lisonjeado com a atenção de um homem tão importante. Logo depois
que o Sr. X se sentou, uma mulher chegou com um vidro de urina, que entregou ao
curandeiro. Ele olhou para ela, depois para o vidro, ergueu-o para a luz, sacudiu e
disse: “É do seu marido?” “Sim, senhor." “Ele é bem mais velho do que a
senhora?" “Sim, senhor.” “É alfaiate?” “Sim, senhor.” “Tome”, disse ele,
estendendo para ela uma caixa com comprimidos, “diga a ele para tomar um
comprimido todas as noites, durante uma semana, e um bom copo com água fria
todas as manhãs, que logo ficará bom.” Assim que a mulher saiu, o Sr. X voltou-se
para o curandeiro, curioso para saber como ele havia adivinhado tudo aquilo.
“Bem, o senhor compreende”, disse o curandeiro, “ela é uma mulher jovem,
parece estar bem de saúde e bem forte, e eu adivinhei que a água não era dela. Vi
a aliança no seu dedo e fiquei sabendo que é casada, e pensei que provavelmente
a água era do marido. Se ele fosse da mesma idade que ela, era pouco provável
que estivesse doente, por isso achei que devia ser mais velho. Adivinhei que é
alfaiate porque o vidro não estava fechado com uma rolha, mas com um pedaço de
papel enrolado e amarrado com linha de um modo que só um alfaiate teria feito.
Os alfaiates não fazem exercício, e por isso são muito sujeitos à constipação.

Tive certeza de que ele não devia ser uma exceção à regra, por isso dei alguns
comprimidos para abrir os intestinos.” “Mas como sabia que ela era de S?” “Ah,
Sr. X, o senhor mora há tanto tempo em Leeds e não conhece a cor do barro de S?
Foi a primeira coisa que eu vi nos sapatos assim que ela entrou."

Assim também, um cirurgião de Edimburgo, em 1880, diagnosticou um paciente
como um sargento que havia há pouco tempo dado baixa do regimento sediado em
Barbados: o homem agiu respeitosamente, mas ficou com o chapéu na cabeça,
como fazem no exército, e ele estava com elefantíase, que se apanha em Barbados,
mas não nas Terras Altas. Elementar, meu caro Joseph Bell (1837-1911). Como
Conan Arthur Doyle (1859-1930) foi um dos seus alunos, Bell se tomou Sherlock
Holmes.
Os uroscopistas duraram até meados do século XIX, quando o misticismo da
urina evaporou de uma solução recentemente descoberta, mas pouco romântica,
formada por várias e complexas substâncias químicas.

HISTÓRIA SANGRENTA
Ele disse que para aquelas águas tinha vindo Para apanhar sanguessugas, por
ser velho e pobre O trabalho perigoso e cansativo!
E tinha passado por muitas dificuldades:
De lago em lago ele vagava, de colina em colina;
Abrigando-se, com a ajuda de Deus, por escolha ou acaso,
E desse modo ganhava honestamente seu sustento

escreveu Wordsworth em 1807, sobre “O apanhador de sanguessugas”, cujos
olhos eram orbes negras ainda muito cheias de vida, que girava a água lamacenta
em volta dos seus pés para encontrá-las, mas infelizmente as sanguessugas tinham
ido embora recentemente.
As sanguessugas estiveram sempre muito ocupadas sugando todas as doenças da
humanidade desde 900 d.C., até 1953, quando foram aplicadas em Stálin, mas ele
morreu. As sanguessugas podiam ter nomes de médicos, ou médicos podiam se
chamar sanguessugas, e em inglês a palavra leech significa “curar”. O ditado de
São Lucas: “Médico, cura a ti mesmo" é "Leech, leech a ti mesmo” no Evangelho
Lindisfarne, de 950 d.C., e em 1386 Chaucer estava perguntando sensatamente
porque uma pessoa com um “perfeito leech" precisava procurar outros leeches na
cidade.
A hemófaga sanguessuga Hirudo medicinalis tem cabeça pequena, corpo
achatado, costas negras ou verde-oliva com seis linhas amarelas e barriga
cinzenta, com pintas escuras. Tem quatro centímetros de comprimento, mas
aumenta para 15 quando está-se alimentando. Tem ventosas nas duas
extremidades, 10 estômagos de cada lado, um órgão do paladar (para sangue) na
parte superior do esôfago e a boca em forma de ferradura com três dentes
cartilaginosos, segundo dizem, cada um deles capaz de apunhalar como um punhal
italiano estocado. A sanguessuga tem um orifício sexual feminino, além de um
pênis numa bainha, mas este fica descoberto quando ela morre. A Hirudo
medicinalis é uma das 650 espécies de sanguessugas que existem no mundo (as
mais fortes sugadoras são as da floresta tropical da Amazônia), e uma das 16
espécies britânicas, e é uma das espécies oficialmente em extinção.
Na história da sangria, as sanguessugas eram tiradas da água uma hora antes de
serem usadas, para aumentar seu apetite, e postas num copo de vinho que era
virado bruscamente sobre a carne do doente. Depois de 15 minutos ficavam
repletas de sangue e se desprendiam, como se estivessem dormindo, mas podiam
ser acordadas com água fria. Para fazê-las vomitar, a fim de serem recicladas,
usava-se sal na água. Quando se tinha poucas sanguessugas, o aplicador cortava
as caudas delas, e elas sugavam com o sangue saindo pela outra extremidade, até
o paciente ficar exangue. Se elas ficavam agarradas na carne, o dono espalhava
sobre elas a fumaça de cabelos queimados, ou inseria um fio da crina de cavalo
entre a sugadora e o sugado. Se o paciente ou o médico por acaso engolia uma, o
antídoto era graxa de sapateiro com vinagre.
As sanguessugas eram o barômetro dos camponeses, agitando-se no vidro antes
da chuva e tentando fugir de dentro dele antes
do trovão. As sanguessugas medicinais eram devoradas pelas sanguessugas de
cavalos. Em 1822, Londres importou de Bordeaux e de Lisboa — com outros
produtos mais agradáveis — 7.200.000 sanguessugas a meia coroa cada uma. Os
ingleses estavam ainda importando 2.000 por ano a seis pence cada uma, em
1940. Desde então, a demanda quase desapareceu.
Em 1825, a França exportou 10 milhões de sanguessugas para uso doméstico.
Em 1833, a França precisou importar 41.500.000 sanguessugas, por causa da
energia “exsangüinária” de François-Joseph-Victor Broussais (1772-1838), um
bretão que passou de sargento a cirurgião no exército de Napoleão. Como Willie
Lane, ele só sabia diagnosticar uma doença: gastroenterite. Era adepto do
“Sistema Brunoniano” de John Brown (a vida depende do estímulo constante do
corpo), e resolveu que era somente o calor excessivo que inflamava as
substâncias químicas do corpo. A cura de Broussais consistia em controlar o calor
fazendo jejum e aplicando sanguessugas, 50 de cada vez, por toda a pele.
Broussais havia demonstrado uma grande habilidade com a machadinha de guerra,
quando era um jovem soldado, e como um soldado velho e rabugento incitava seus
seguidores a derramar torrentes de sangue. Eles economizavam o preço das
sanguessugas abrindo as veias.

SEDE DE SANGUE
A sanguessuga era o animal de estimação do médico porque era o modo mais
suave de fazer sangria, apropriado para mulheres, crianças e pacientes que
pagavam a consulta. Os guerreiros teutões do século I usavam suas mulheres e
mães para sugar seus ferimentos mais delicadamente ainda. A sangria mais
vigorosa virou moda no século XVII, e o sangue pingava nas tigelas de estanho
dos cirurgiões, aplicadas de lado na pele, ou nos copos de sangria venezianos,
guardados como jóias de família. Um homem pagava meia coroa para ser
sangrado, mas uma dama, de cama, custava 10 shillings. O pobre Rei Carlos II
levou um tempo enorme, inconsciente e desconfortável até morrer, sendo
sangrado, tomando enemas, suando e vomitando. Sangrar, purgar, provocar o
vômito e o suor era o tratamento médico padrão, que só começou a ser modificado
depois da metade do século XIX. Os médicos não tinham idéia do que deviam
fazer com os pacientes, mas fosse o que fosse, parecia sensato libertá-los de
qualquer modo daquilo que os afligia.
John Coakley Lettsom (1744-1815) era um médico da Geórgia tão ocupado que
precisava de três pares de cavalos por dia para atender 82.000 pacientes por ano,
os quais lhe rendiam 12.000 libras, uma casa perto do Guildhall e uma
propriedade em Kent. Era filho de um plantador de algodão das Antilhas, com
uma herança genética muito interessante: era um dos dois únicos sobreviventes de
sete pares de gêmeos.
Lettsom nobremente libertou sua herança material — escravos negros — e foi
para Edimburgo aprender medicina. Cheio de entusiasmo, fundou a atual
Sociedade de Medicina de Londres em 1773 e uma dezena de instituições de
caridade, incluindo a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por
Pequenas Dívidas, e — com grande visão — a Sociedade Real Humanitária para
ressuscitação dos aparentemente mortos. Inteligentemente, ele ficou ao lado de
Jenner, na luta pela vacinação. Era um quacre alto e magro, vestia-se com
simplicidade, gostava de vinho e de mulheres e decentemente dava consultas de
graça aos homens do clero e aos literatos. Dirigia sua clinica apoiado nos
seguintes princípios:
Quando os pacientes vêm a mim,
Eu os purgo, sangro e faço suar,
Então — se eles resolvem morrer,
O que é da minha conta? Eu Lettsom.

A sanguessuga reapareceu recentemente para comer os coágulos de sangue da
cirurgia plástica e retirar o sangue de hematomas e olhos roxos.

FINAIS TRISTES
“Tratamento”, começa um livro de medicina de 1904, quando chega a uma
determinada parte do capítulo sobre pneumonia lobar:
O paciente deve ficar de cama... a dieta deve consistir em leite e caldo de
carne, ou caldo de carneiro administrado em pequenas quantidades,
freqüentemente nos primeiros estágios, os intestinos devem funcionar...
Discursa esperançosamente sobre:

Algumas sanguessugas ou aplicação de gelo, cataplasma de linhaça com alguns
grãos de mostarda, ou flanelas quentes molhadas em terebintina e torcidas... os
estimulantes são provavelmente nossos assistentes mais importantes nas
circunstâncias, e o brandy deve ser dado na quantidade de 4, 6 ou 8 onças por
dia.

Termina soturnamente:

A única esperança de atalhar rapidamente a doença está na descoberta de um
soro antipneumocócico eficaz.

Até o fim da década de 1930, os livros de medicina com instruções sobre a
pneumonia eram tão ineficientes quanto os da década de 1900. Até mesmo no ano
de Pearl Harbor uma enfermeira com imaculado vestido azul, avental e touca
engomada demonstrava para a minha classe o uso das “ventosas”. Com a
elegância de quem faz um bordado, ela criava elevações do tamanho de um ovo na
pele dos pacientes com um copo de vinho no qual fora feito o vácuo por meio do
calor, sendo esse seu tratamento preferido para congestão pulmonar, para a qual o
livro que usávamos na época recomendava ainda a prática de sangria do século
XVII e “a aplicação de seis sanguessugas sobre o fígado”.
Um soro antipneumocócico foi descoberto, mas as esperanças de 1904 não
foram realizadas. Sir Almroth Wright, em 1911, foi chamado para erradicar a
pneumonia entre os nativos que trabalhavam nas minas de ouro de Rand — era um
desperdício para os patrões brancos — e tentou inutilmente repetir com a
pneumonia a inoculação vitoriosa que tinha usado contra a febre tifóide. Incapaz
de prevenir a pneumonia, Sir Almroth armou-se, no Hospital Santa Maria, no
intervalo entre as duas guerras, com um soro criado em cavalos infectados com
pneumonia para curar a doença.
Mas eram muitas as variedades de pneumococos para que ele pudesse definir
seu alvo, e a arma geralmente falhava. A pneumonia continuou a ser “a amiga dos
velhos”, que rápida e misericordiosamente os livrava das dores e sofrimentos da
idade, mas também matou com a mesma rapidez e selvageria seu neto de 18 anos,
que foi enrolado num casaco-pneumonia, isolado por um lençol desinfetado
dependurado na porta, palha foi espalhada no corredor, para abafar o ruído dos
passos, e nada além disso puderam fazer por ele. O jovem arquejou com o rosto
azulado durante os sete dias da crise, quando a temperatura caiu e as esperanças
reviviam ou não. A pneumonia nos jovens era um drama cruel, porque a tragédia
não era inevitável.

PONTAS SOLTAS
Na pneumonia os pulmões se solidificam, na tuberculose — tísica, a palavra
grega para desgaste — ficam cheios de cavernas. Geralmente ela se anuncia
quando o doente cospe sangue. "Eu conheço a cor desse sangue! É sangue arterial.
A cor não me engana. Aquela gota de sangue é minha sentença de morte. Eu vou
morrer”, clamou dolorosamente John Keats (1795-1821), quando teve a primeira
hemoptise.
Keats sabia do que estava falando, pois havia se formado no Hospital Guy’s em
1816. Seu irmão Tom morreu de tuberculose pulmonar em 1818, e ele havia
tomado conta da mãe, antes de ela morrer da mesma doença, em 1810. Keats tinha
a propensão familiar e a exposição à doença. Anne, Emily e Charlotte Brontë
tossiam uma na cara da outra, em Yorkshire, e morreram tuberculosas, bem como
Robert Louis Stevenson cm Samoa, D. H. Lawrence na Provença e George
Orwell, imediatamente depois de terminar de escrever 1984. O Dr. William
Somerset Maugham (1874-1965), formado em St. Thomas em 1897, teve
tuberculose durante a I Guerra Mundial, mas — de algum modo, não inesperado
— não só se recuperou completamente como escreveu Sanatorium.
Os sanatórios, em 1929, ganharam o prêmio Nobel — de literatura. A Montanha
Mágica, de Thomas Mann, destaca personagens que podiam estar viajando na
primeira classe de um transatlântico, mas estão viajando para a eternidade nos
Alpes suíços, seu médico, o brilhante e jovial Hofrat, andando na ponte de
comando.
Um sanatório era um instrumento útil para os escritores, especialmente quando
os ocupantes do barco que naufragava estavam animados com a spes phthisica, a
misteriosa esperança sintomática que vive eternamente no coração do ser humano
que está cuspindo catarro profusamente em vasilhas com tampa, como canecas
alemãs de cerveja. As emoções despertavam inquietas na imobilidade obrigatória
do sanatório, que devia ser obedecida ao ar livre, dia e noite. Todos
aconchegados em longas espreguiçadeiras aquecidas, contando para passar o
tempo apenas com as refeições cuidadosamente elaboradas e a tomada da
temperatura, com inexorável pontualidade, a alta distante ou improvável e a morte
como uma invasora irritante da reunião íntima.
O primeiro sanatório para tuberculosos foi aberto por Hermann Brehmer (1826-
99) nas Montanhas Sudetas, em 1959. Depois, começaram a aparecer
regularmente, de Davos ao Adirondacks, mais numerosos entre os spas das
Montanhas Taunus, que se erguem ao lado do Reno. Essa esperança de que o ar
frio e seco podia curar os pulmões foi expressa pela primeira vez pelo Hospital
Real de Banho de Mar, fundado por John Lettsom em 1796 para crianças
escrofulosas, em Margate, um balneário favorito dos britânicos.
A idéia evoluiu baseada na suposição de que o repouso absoluto no ar frio e
rarefeito abafava o fogo do metabolismo e facilitava a respiração, descansando o
pulmão inflamado e ajudando a cicatrização das cavidades. A alternativa para os
que ficavam em casa era o pneumotórax artificial, que consistia em encher de ar,
por meio de uma agulha, os espaços normalmente imperceptíveis entre as paredes
do tórax e os pulmões, secando o pulmão doente.
Nenhum tratamento comunal ou pessoal tinha muito resultado, nem tampouco a
moda das doses de óleo de fígado de bacalhau, creosoto, iodo, arsênico e ouro. A
“peste branca” continuava a sua colheita: Chekhov, Chopin, Aubrey Beardsley,
Katherine Mansfield, Modigliani, Kafka e o doutor Laënnec, o inventor do
estetoscópio. Era “A consumpção dos jovens na flor da idade, quando o calor do
sangue é ainda vigoroso”, como disse Richard Morton (1637-98) na sua
Phthisiologia, em 1689.
Jean-Antoine Villemin (1827-92), professor na escola de medicina do exército
francês, em Val-de-Grâce, recebeu o crédito de descobrir, em 1868, que a
tuberculose era infecciosa. Ele infectou coelhos. Porém, o doutor Tobias Smollett,
de visão muito clara e muito suscetível à infecção, em 1771 insistia em dizer:

Não podem negar que muitas doenças são infecciosas, a própria consumpção é
extremamente infecciosa. Quando uma pessoa morre dessa doença na Itália, a
cama e os lençóis são destruídos, os outros móveis são expostos ao tempo e o
apartamento lavado com cal, antes de ser ocupado por outra pessoa. Certamente
concordarão que nada recebe a infecção mais rapidamente e nada a conserva por
mais tempo do que cobertores, travesseiros de penas e colchões. É a morte! Como
posso saber quais os objetos miseráveis que estão aninhados na cama em que
estou deitado agora!

O próprio professor Villemin dizia sensatamente: “O soldado tísico é para seu
companheiro de quartel o que o cavalo com mormo é para seu companheiro de
varal.” Mas isso foi 14 anos antes de Koch identificar o bacilo da tuberculose e
antes de Pasteur seguir o mesmo caminho, por isso ninguém deu atenção.

FINAL FELIZ
As terapias antigas para a pneumonia desapareceram, como as superstições de
não misturar flores vermelhas e brancas nos hospitais (é prenúncio de morte),
deixar flores nas enfermarias durante a noite (elas consomem oxigênio) ou pregar
a lista dos casos em “perigo de vida” na porta do hospital. ("No portão e
morrendo suavemente”, disse uma enfermeira irlandesa sobre a condição de um
paciente.)
Vários tratamentos de desesperada futilidade desapareceram na década de
1940, como a parafernália das carruagens antes do vapor, a agonia das operações
antes dos anestésicos, a carnificina das guerras mundiais antes de serem
consideradas contra a lei, devido ao temor mútuo da bomba H. Hoje podemos ter
pneumonia em casa. Os suíços puderam transformar seus sanatórios em hotéis
elogiados pelas varandas em todos os quartos, com belas e extensas vistas para a
sesta depois do almoço, ao calor do sol de montanha.
Septicemia, difteria, febre tifóide, tifo, gonorréia, erisipela e outras serpentes
mortais do nosso Paraíso foram caçadas e vencidas com antibióticos. A
engenhosidade do homem chega até a adaptar os medicamentos à nova resistência
adquirida por esses inimigos cheios de recursos. A medicina eficaz começou na
véspera de Natal de 1932, quando Domagk, na Renânia, percebeu que os
camundongos infectados com estreptococos, mas tratados com sulfanilamida, iam
viver até o Dia de Natal.

FIM DE UMA DISCUSSÃO?
Sem experiências com animais, como a de Domagk, conduzidas legalmente e
com o sentimento de humanidade sem o qual não teríamos nenhum médico, esses
medicamentos não teriam conseguido tantas maravilhas. Os antivivisseccionistas,
com mais confusão do que crueldade para com seus semelhantes sofredores, não
precisam concordar com Aldoux Huxley:

Não sou um desses tolos que pensam que uma vida vale tanto quanto outra,
simplesmente porque é uma vida, que um gafanhoto é tão bom quando um cão e um
cão é tão bom quanto um homem. Devemos reconhecer uma hierarquia na
existência.

Mas precisam notar o argumento de defesa apresentado pelo professor Heinrich
Horlein, chefe de Domagk, no julgamento de Nürenberg, em 1948:

Ele tomou parte na luta para a liberdade no campo da ciência, contra os planos
de Hitler e Göring de proibir a vivissecção com objetivo científico.

Podemos conhecer um idealista pelas pessoas com quem ele anda.
CAPÍTULO 9
Práticas estranhas

A medicina, como a política, é um ímã com grande força de atração para


profundas convicções de metal falso.

MEDICINA CASEIRA
Curas tidas antigamente como infalíveis:

— 1. Hérnias pediátricas. Tire a roupa da criança, procure um galho novo de
freixo, corte longitudinalmente e mantenha-o aberto com cunhas, empurre a
criança para dentro da abertura, envolva o galho com terra e enfaixe com força.
Mas se a fenda continua aberta, a hérnia também continua. Praticada em Selborne,
em 1776, embora Gilbert White, com completa falta de caridade, tenha derrubado
as árvores de freixo para aumentar seu jardim.

— 2. Verrugas. Toque cada verruga com uma pedra diferente, ponha as pedras
numa bolsa, deixe cair a bolsa a caminho da igreja, quem encontrar vai ficar com
todas as suas verrugas. Ou procure um homem que nunca viu o próprio pai e peça
para locar no seu casaco. Como profilaxia, nunca deixe seus filhos tocarem na
água onde foram cozidos ovos.

— 3. Caxumba. Tire o cabresto do burro, ponha no paciente e o conduza em


volta do chiqueiro dos porcos. Repita três vezes.

— 4. Coqueluche. Tome água no crânio de um bispo, se conseguir encontrar.


Isso era em Co Cavan, em 1830. Em Co Cork, esterco de ovelha fervido em leite
era um medicamento eficaz. Ou apanhe um peixe, ponha a cabeça dele na boca do
paciente e devolva o peixe ao rio, levando a doença. Ou passe o paciente por
baixo e por cima de um burro, repetindo nove vezes.

— 5. Terapia da batata. Para resfriado, pendure meias cheias de batatas


quentes no pescoço ou passe uma batata assada na cabeça. Uma batata ema no
bolso evita reumatismo. Se falhar, durma com o cachorro, que vai absorver o
reumatismo e ficar aleijado, embora isso possa aborrecer a Sociedade Protetora
dos Animais. Para obter vigor sexual, amasse batatas cruas, cenouras, repolho e
hortelã (fez maravilhas para a rainha de Sabá, e explicou a um herbalista
americano a propensão dos ingleses de usar molho de hortelã na carne de carneiro
e nas batatas), batatas com ervilhas são contraceptivos (bem, elas reduzem a
fertilidade dos ratos), embora as mulheres mexicanas prefiram batatas-doces.
Uma massagem com batata é o modo mais fácil de se livrar de verrugas.
— 6. Encantamentos. O talismã de Sir Walter Scott era o amuleto com o qual
Saladino, disfarçado em médico, curou o cruzado Ricardo I. Acabou como uma
pedra vermelha numa moeda de Eduardo IV, de propriedade dos Lockhart de Lee,
Yorkshire, o “Lee Penny”, tão poderoso que a água em que era mergulhado
brevemente adquiria fortes poderes curativos. Quando a cidade de Newcastle a
pediu emprestada durante a epidemia, no reinado de Carlos I, o povo teve de
depositar 6.000 libras como garantia de seguro. Medidas preventivas contra
doenças exigiam a compra de pregos de caixões mortuários, pele de cobra, a pata
dianteira direita de uma lebre, e — especialmente contra envenenamento — a
pedra bezoar, uma concreção do intestino da cabra selvagem da Pérsia (ou da
lhama do Peru, menos eficaz). Vermelho era a cor curativa, flanela vermelha para
garganta inflamada, um decente vinho da Borgonha para anemia. O “pó da
simpatia” era o sulfato de cobre, aplicado curativamente em meados do século
XVII na arma, não no ferimento. As pessoas inteligentes usavam ainda braceletes
de cobre para evitar reumatismo e outras doenças, com a mesma esperança inútil
dos que alimentavam um amor não correspondido.

TOMANDO AS ÁGUAS
O que a literatura inglesa do século XVIII teria feito sem Bath? “Oh, nunca se
pode ficar cansado de Bath!”, arrulhava Jane Austen, eficientemente usando-a
para cenário de Northanger Abbey. Bath era um encantador cenário de fundo,
convidando um enredo forte, com um elenco de personagens inteligentes, com
senso de humor, rabugentos, mundanos e amorosos. Fielding, Fanny
Burney, Sheridan, Oliver Goldsmith, Robert Southey, Waltcr Savage Landor,
Wiliam Cowper, Wordsworth e Waltcr Scott, todos eles usaram Bath. E por que
não? Bath borbulhava como um sabonete moderno!
Em 1830, Mr. Pickwick reservou quartos no segundo andar do Royal Crescent,
por dois meses, para esquecer Bardell v Pickwick. Ele tomava 150 gramas de
água antes e depois do café da manhã, e declarava solenemente que se sentia
muito melhor. “O que alegrava muito seus amigos, embora eles nunca tivessem
ouvido dizer que havia alguma coisa errada com ele.” A famosa opinião de Sam
Weller sobre as águas: “Têm um gosto acentuado de ferro quente.”
O meio milhão de galões de água de Bath jorra a uma temperatura de 48 graus
centígrados. Os visitantes podem-se lavar com a água, ou conscienciosamente
tomá-la, mas nem uma coisa nem outra tem qualquer efeito medicinal. Como as
águas das fontes de outros encantadores cantinhos da Europa, os minerais
dissolvidos nelas são uma adição desnecessária à dieta normal, e sua carícia
morna produz somente uma calma quase sensual.
Tobias George Smollett (1721-1771) praticava em Bath, onde sua falta de
sucesso foi agravada pela perda da popularidade quando escreveu Um Ensaio
sobre o Uso Externo das Águas, insinuando que as águas de Bath não eram mais
miraculosas do que as de qualquer outro lugar. Ele as analisa em Humphrey
Clinker, em 1771.

A água contém somente um pouco de sal e terra calcária, misturadas numa quantidade tão insignificante que
só pode ter um efeito mínimo, se tiver algum, na economia animal. Sendo assim, acho que merece um gorro de
bobo da corte todo aquele que, pelas poucas vantagens dessa fonte, sacrifica seu tempo precioso, que devia ser
empregado tomando remédios mais eficazes.

Acrescenta ele que tomar banho naquela água é se arriscar a apanhar o “mal do
rei", o escorbuto, o câncer e a varíola. Ele também não gostava da arquitetura de
Bath.
“Smelfungus” Smollett tinha razão. Mas o Sr. Pickwick também. É sempre
agradável sentir-se melhor, mesmo quando não é verdade.
Os romanos construíram Bath, mas seu Barão Haussmann foi o jogador Richard
“Beau” Nash quem, segundo Oliver Goldsmith, costumava viajar numa carruagem
fechada puxada por seis cavalos cinzentos, com batedores, lacaios e trompas, e
que fundou as Salas de Reunião e inspirou a John Wood as belas praças calçadas
com pedras, as ruas e os crescentes. Nash era um paciente difícil:

No dia seguinte, quando o médico o visitou e perguntou se ele havia seguido
suas prescrições, o belo homem respondeu: “Não, para dizer a verdade, doutor,
não segui. Por minha honra, se as tivesse seguido teria quebrado o pescoço, pois
eu as joguei pela janela do meu quarto.”

Como o Rei de Bath, Nash abria os bailes extravagantes, insistia para que todos
se comportassem e se vestissem decentemente, supervisionava a moral das jovens
senhoras e liquidava os salteadores de estrada, e como o Barão Haussmann, em
Paris, morreu pobre, em 1762. Seu humor sobreviveu, como uma legenda de
caricatura em 20 de dezembro de 1797.
Uma lei do parlamento, em 1597, concedeu o “direito ao uso gratuito dos
banhos, em Bath, aos doentes e impotentes pobres da Inglaterra” mas esses
inconvenientes Mendigos de Bath desapareceram com a revogação da lei, em
1714. No século XVIII, o Salão Pump oferecia aos elegantes a cura elegante do
reumatismo e da gota, e para qualquer outra coisa inventada por suas imaginações
doentias. Na alvorada brumosa da medicina científica do século seguinte, a fama
do poder curativo das águas naturais aos poucos se dissolveu. Mesmo assim, as
pessoas continuaram a fazer viagens longas nas novas estradas de ferro para tomar
águas nas estações de águas, porque é agradável compartilhar um tratamento
indolor num ambiente agradável, na companhia de companheiros de sofrimento
com os quais é socialmente aceitável discutir os sintomas detalhadamente.
Os gregos tiveram a idéia da estação de águas em 8 a.C. com o culto da
“incubação”, que consistia em dormir nas Esculápias, os templos do Deus da
Cura. Os pacientes viajavam para Cos, Pergamos ou Atenas, sacrificavam um
carneiro, tomavam um banho e dormiam fraternalmente juntos entre as colunas
abertas para o escuro da noite. Durante a noite, Esculápio materializava-se numa
luz ofuscante, cobras lambiam as pálpebras dos doentes que, de manhã, voltavam
para casa curados. Os pacientes resistentes ficavam, tomando a água e banhando-
se nas fontes, seguindo a dieta, fazendo massagem e exercício. O preço era uma
réplica em ouro ou prata da parte doente do corpo. Esculápio era, na verdade, o
sacerdote local, que dirigia o espetáculo das visões e desempenhava um
repertório de pequenas curas. O sistema foi preservado ao pé da letra em
Lourdes, que não cura ninguém, mas fornece uma organização de cunho comercial
para satisfazer a esperança humana e aliviar o desespero com a água da cintilante
ilusão.
As correntes subterrâneas dos spas continuaram a fluir para irrigar os spas dos
nossos dias, igualmente sem nenhum poder terapêutico. Uma camaraderie
semelhante, reforçada pelas diárias astronômicas, emprega um regime de rigorosa
abstinência que reduz admirável e orgulhosamente o peso, um efeito que dura um
mês ou dois, depois que são liberados para as deliciosas obrigações sociais da
gula. As dietas que alimentam os spas e engordam revistas e jornais são
supérfluas. O segredo de perder peso é simples e barato: coma menos e não beba
álcool.
Uma coisa boa nos foi legada pelo estabelecimento medicinal de Bath do século
XVIII. O doutor William Oliver (1695-1764) deixou para seu cocheiro de
confiança, Atkins, a receita do biscoito de sua criação, crocante, fino, branco e
seco. Com o apoio de Beau Nash, Oliver havia fundado em 1742 o Hospital Bath
de Água Mineral e escreveu Um Ensaio Prático Sobre o Uso e Abuso dos Banhos
Quentes nos Casos de Gota. Ele morreu de gota. Um esperto Banho Oliver
aproveita todos os poderes da água de Bath, especialmente com uma fatia de
queijo, um vidro de aipo fresco, nozes em picles e um copo de vinho do porto.

BANHO DE LAMA
O belo e andrógino James Graham (1745-94) ex-estudante de medicina de
Edimburgo, foi um dos mais gordos curandeiros a se aproveitar da credulidade
humana em todos os tempos. (O curandeiro, em inglês quack, é a abreviação de
quacksalver, um homem que anuncia seus ungüentos.) Em meados de 1780 Graham
abriu seus banhos de terra em Londres, ao lado de Haymarket. Uma placa mostra
quatro mulheres nuas com chapéus elegantes entrando em poços quadrados, sob o
olhar atento de Graham, com um menino ao lado, para jogar a terra com a pá. Essa
suposta terapia reapareceu na década de 1930 com a máscara de lama, que
infelizmente não faz nada para o rosto. Uma curiosidade de Isherwood, em
Berlim, que sobreviveu aos nazistas e à guerra é a luta de mulheres na lama. Elas
usavam roupas de banho e toucas de banho de borracha, os espectadores na
primeira fila recebiam longos aventais protetores e, às vezes, durante a luta, um
ou outro seio saltava da roupa.
Graham dirigiu a primeira clínica de infertilidade de Londres, utilizando o
Leito Celestial como seu Templo da Saúde, armado no Adelphi, recém-
construído, ao lado do Tâmisa. A cama era do tamanho de uma mesa de bilhar,
“de brocado adamascado sobre quatro colunas espiraladas de cristal enfeitadas
com grinaldas de flores de metal dourado". Era perfumado com especiarias
árabes, e no quarto ao lado a orquestra tocava o tempo todo. Os lençóis de seda
eram roxos e o colchão de crina da cauda de garanhões ingleses.
A cama podia ser inclinada de acordo com o gosto da pessoa, e fachos de luz
iluminavam no dossel as figuras de Cupido, Psiquê e Hímen, além de um par de
pombos arrulhantes. O mecanismo consistia num conjunto de ímãs debaixo da
cama. Para usar a cama uma vez pagava-se 100 libras. “O êxtase supremo que as
pessoas desfrutam no Leito Celestial é realmente espantoso e jamais sequer
pensado neste mundo”, garantia Graham. “Os estéreis certamente tornam-se férteis
quando são fortemente agitados no prazer do amor”. De manhã, ele tomava o
pulso dos fregueses, oferecia o café da manhã e os “mandava embora cheios de
esperança, sem esquecer de recomendar para enviarem outros clientes”.
O Templo da Saúde (entrada, seis guinéus), que logo se mudou para o elegante
Pall Mall, era todo de espelhos, luzes ofuscantes, dragões lançando chamas,
música escondida e perfumes vaporizados no ar. Oferecia banhos magnetizados
“para dissipar a melancolia e mitigar a alegria extravagante”. Várias são as
descrições:
Acima da porta dos quartos principais, sob os compartimentos abobadados do
teto e de cada lado dos arcas do centro do salão, havia bengalas, cometas
acústicas, óculas, muletas etc. deixadas e expostos como os mais honrosos troféus
pelos surdos, fracos, paralíticos, emaciados, etc. que, tendo sido curadas, não
precisam mais desses objetas.

Um século depois, a gruta de Lourdes usou a mesma tática. “O quê? Não tem
nenhuma perna de pau?”, murmurou Anatole France.
Graham vestido com seu manto fazia palestras com o grande final de choques
elétricos no público, produzidos por fios escondidos debaixo das almofadas das
cadeiras. A eletricidade acabava de chegar na medicina verdadeira. Os pacientes
dos hospitais de Londres faziam tratamento de choque para quase todas as
doenças. Graham era assistido por Deusas da Saúde com mantos diáfanos, uma
das quais, Emma Lyons, subiu bastante na vida, tomando-se a Lady Hamilton de
Lord Nelson.
James Graham havia praticado seu tipo de medicina em Filadélfia e em Bath.
Em 1779, em Aix-la-Chapelle, ele tratou a duquesa de Devonshire, uma presa
fácil para os curandeiros, que gostou tanto do seu tratamento que o introduziu na
sociedade londrina. Em 1782, a sociedade londrina o destronou. O Templo foi
fechado, o Leito vendido para algum casal eternamente feliz, Graham voltou para
Edimburgo, foi preso na Tollbooth por caluniar os magistrados, converteu-se à
religião, enlouqueceu e “ficou despido na terra durante várias horas, em nove dias
sucessivos”. Sua lama não o salvou, e ele morreu.
Graham devia ter-se limitado a suas recomendações complementares de janelas
abertas, ar livre, exercício, dieta frugal e contenção na bebida:

O vinho do porto é certamente um dos maiores reforços ou elemento de união
do gado social da Grã-Bretanha. O grande coagulador e provocador de vômito de
todos esses rebanhos numerosos e devoradores de tudo, uma das causas principais
da gota, cálculos, reumatismo, asma e apoplexias!

Ele teria desfrutado o respeito de João Batista, como o precursor por dois
séculos dos ensinamentos austeros do Colégio Real de Médicos.
Mas quem teria dado ouvidos?

UM TOQUE MACIO
O ano de 1660 foi muito atarefado para Carlos II. Ele tocou 6.725 dos seus
novos súditos para curar o Mal do Rei. Essa doença era a escrófula, uma infecção
tuberculosa dos gânglios linfáticos do pescoço que se caracteriza por nódulos
entre o maxilar e a parte superior do estemo. Pouca coisa se podia fazer até a
invenção da estreptomicina, pela qual o professor Shelman Abraham Waksman
(1888-1973), da Universidade Rutgers, ganhou o prêmio Nobel em 1952 (em
1941 ele inventou também a palavra “antibiótico”).
Carlos II era tão entusiasmado pelo Toque Real quanto por suas amantes.
Durante seu reinado, 92.107 pacientes ajoelhados receberam o toque, o rei num
trono com dossel, flanqueado por religiosos e cortesãos com uma fila dupla de
guardas reais com alabardas atuando como recepcionistas. O historiador vitoriano
da medicina, John Cordy Jeafferson (1831-91), observou:

A sensação extraordinária de um grupo de miseráveis tirados dos seus canis e
levados a Whitehall, levados para o contato pessoal com o soberano — sua idéia
de grandeza!

Lembrando Montaigne aos seus leitores:

Aqueles truques de macacos são a causa principal do efeito, seduzindo nossa
imaginação para acreditar que aquelas formalidades tão estranhas e desajeitadas
só podem ter origem em alguma ciência misteriosa. Sua própria inanidade lhes
confere reverência e peso.

Todos partiam segurando a “peça do toque”, um anjo de ouro especialmente
feito para a ocasião, que representava um benefício mais realista.
Eduardo, o Confessor, começou o tratamento do toque mais ou menos em 1045,
embora Clóvis, em 949 d.C. o tivesse estabelecido na França com uma
popularidade que persistiu até Carlos X que, na sua coroação, tocou 121
pacientes em 1824 — o ano em que a ciência, através de Sadi Carnot, estabeleceu
a segunda lei da termodinâmica. Na Inglaterra a cura desapareceu com a rainha
Anne, que tocou Samuel Johnson, quando ele tinha dois anos, sem sucesso.
Guilherme III havia tocado um grande número, mas com a admirável invocação:
“Que Deus lhe dê boa saúde e mais juízo.”
O mecanismo desse remédio era Deus agindo por meio do direito divino. O
gorducho irlandês Valentine Greatrakes (1628-66), um velho soldado de
Cromwell, não viu razão por que Deus não podia agir através dele. Valentine
transmitia os eflúvios que se erguiam dos fermentos do seu corpo massageando
suavemente, mas usava também cataplasmas de cenoura. Franz Anton Mesmer
(1734-1815), da Suíça, reviveu a terapia, depois de descobrir que era carregado
de magnetismo animal.

O MESMERISMO
Mesmer era um médico respeitável em Viena, casado com uma mulher rica; ele
gostava de saraus musicais de Mozart. Um dia conhecem o professor Maximilian
Hell, que sabia curar com magnetos. Mesmer imediatamente dispensou os
magnetos, descobrindo que podia magnetizar tudo com as pontas dos seus dedos,
homens, mulheres, cachorros, seu Apfeltasche. “Eu mesmo magnetizei o sol uns 10
anos atrás”, explicava ele, modestamente, a um médico que lhe perguntou por que
ele recomendava banhos ao ar livre.
Em 1778, uma das comissões de Maria Theresa investigou a prática de Mesmer
e deu a ele 24 horas para sair de Viena. Foi uma emigração lucrativa. Depois de
passar algum tempo em Spa, ele foi para Paris, onde, na rua Montmartre,
hipnotizava senhoras vestido com um temo lilás, tocando gaita de boca e
sacudindo uma batuta. Sua clínica no Hotel Bullion, como a de James Graham em
Pall Mall, era decorada com tapetes, espelhos, música invisível e incenso no ar.
Tinha tubos magnéticos nos quais as mulheres se encostavam, de mãos dadas, até
a entrada dos assistentes magnetizadores. Estes eram jovens fortes e bonitos que
“seguravam as pacientes entre os joelhos” e massageavam ao longo das suas
colunas, no pescoço e nos seios. Isso provocava soluços, puxões de cabelos,
risos, gritos, berros, ataques e, insensibilidade. Os casos mais graves eram
atendidos só por Mesmer, no seu quarto.
Ele teve seus fracassos. A única esperança para a pneumonia do senhor Campan
era um dos três remédios ao lado dele, na cama: uma jovem morena, uma galinha
preta e uma garrafa velha. “Senhor,” disse a senhora Campan para Mesmer, “se a
escolha é indiferente, por favor, tente a garrafa vazia”, mas não funcionou. Luis
XVI nomeou uma comissão especial de investigação, embora Maria Antonieta
achasse Mesmer adorável. “L‘imagination fait tout, le magnétisme nul", foi como a
comissão o cumprimentou. Mesmer deixou a França durante a Revolução.
O magnetismo animal, que era a força do hipnotismo de Mesmer, apareceu
também em John Elliotson (1791-1868), em Londres, o qual provocou um transe
nas jovens irmãs Elizabeth e Jane O’Key e, segurando um ímã, as fez andar atrás
dele por toda a sala. Ele adotou a frenologia, o diagnóstico do caráter pelo
formato da cabeça, o que é o mesmo que avaliar o desempenho de um carro usado
passando a mão na capota. Os médicos não gostaram, uma vez que, na época,
Elliotson ocupava a primeira Cadeira de Medicina da Universidade, da qual foi
demitido em 1838. Mas teve uma compensação quase imorredoura:
Um amigo bondoso o levou ao meu leito, de onde provavelmente eu jamais teria
levantado se não fosse por sua habilidade e seus cuidados constantes... e como
não quis aceitar nada a não ser meu “obrigado”, deixem que eu registre tudo aqui,
escreveu W.M. Thackeray, em 1850, dedicando-lhe Pendennis.
O escocês James Easdale (1808-59), do Serviço Médico da índia, em 1845
hipnotizou com sucesso 26l prisioneiros hindus para operações cirúrgicas, mas
quando voltou para casa descobriu que os escoceses eram menos suscetíveis a
esse tipo de tratamento. A esperança desesperada do mesmerismo de aliviar a
agonia da intervenção cirúrgica evaporou no ano seguinte com a descoberta do
vapor de éter. Outro escocês, James Braid (1795-1861), suspeitava que o
hipnotismo era uma manobra de “colusão e ilusão”. Ele descobriu que qualquer
pessoa impressionável pode ficar em transe olhando para um objeto brilhante. O
ilustre neurologista Jean-Martin Charcot (1825-93), no Hospital da Salpêtrière,
em Paris, hipnotizava mulheres jovens com sintomas de paralisia histérica, para
os quais, ele notou, elas demonstravam la belle indifférence. Charcot era um
showman, e a diferença entre a paciente e a atriz, e entre o médico e o produtor,
era mais flexível do que devia ser. Em 1886, entre seu público estava Sigmund
Freud, como um presságio. O hipnotismo ainda é usado para influenciar fumantes
suscetíveis.
O pequenino Émile Coué (1857-1926), de Nancy, com sua barba em pêra, levou
o hipnotismo para o mercado de atacado, chamando-o de auto-sugestão. Ele
conseguia encher um salão com mulheres devotadas que, de mãos dadas,
exclamavam: “Todos os dias e de todos os modos, estou ficando cada vez
melhor.” Coué dizia então que elas não podiam soltar as mãos mesmo que
quisessem, e tinha razão. “Agora pensem, eu posso”, dizia ele, e elas podiam. Isso
conferiu a ele uma fama mundial, até que, em Londres, em 1922, seu público ficou
histérico e ele teve de fugir. O hipnotismo continuou como um número de teatro
musicado, com voluntários sensíveis escolhidos entre o público, até ser morto
pela televisão como os malabaristas e as focas ensinadas.

HERBALISMO
Cães doentes comem grama. O homem podia, de modo mais inteligente,
escolher as ervas para aliviar várias dores, evitando as que podiam envenená-lo.
A abundância convidativa desse tipo de medicamento levou Pedacius Dioscórides
(54-68 d.C.), um cirurgião grego que marchava com o exército de Nero, a
classificá-las. Seu livro De Matéria Medica Libri Quinque teve tanto sucesso que
continuou a ser vendido por 16 séculos. As ervas eram as armas dos médicos. No
reino de Elizabeth I, os livros sobre ervas tinham gravuras delicadamente
coloridas representando as plantas que seus autores cultivavam em aromática
profusão.
O livro do herbalista, astrólogo e cromwelliano Nicholas Culpeper,
extremamente popular, O Médico Inglês, de 1653, prescreve mais de 500 plantas,
da agrimônia à iúca, para curar uma quantidade de males humanos, desde picadas
de cobra até gases. Culpeper foi a fada malvada no fundo do jardim das ervas. O
Colégio Real de Médicos havia publicado uma Pharmacopaeia latina, em 1618,
com 2.140 remédios, entre eles comprimidos de víbora seca, pulmões de raposa,
rãs vivas, óleo de lobo e olhos de caranguejo, acrescentando às edições
posteriores crânio de enforcado, urina humana e placenta, ninhos de andorinhas e
uísque irlandês. No seu Diretório Médico, de 1649, Culpeper copiou a
Pharmacopaeia, traduziu para o inglês e zombou dela. O Colégio ficou
escandalizado:

Em dois anos de trabalho de bêbado ele transformou o livro dos Apotecários de Gallimawfred numa
comédia... e (para dar à sua embriaguez e ao seu parasitismo uma recompensa de trinta shillings), tentou
ridicularizar as famosas sociedades dos apotecários e dos cirurgiões.

A lacuna entre o herbalismo e a medicina se abrira.
Ela cresceu regularmente, mas de modo menos explosivo, até a publicação,
pelo Conselho Geral de Medicina, da primeira Pharmacopaeia Britanica, em 1864,
que é hoje o Formulário Nacional, encontrado no bolso de todos os serventes de
paletó branco. O mistério foi extraído do herbalismo pelos bioquímicos, foi
sintetizado e padronizado, como a morfina da papoula, a digitalis da dedaleira e o
ácido ascórbico contra o escorbuto, do limão. As ervas não passam de fósseis
enterrados debaixo da rica mina dos medicamentos feitos pelo homem, onde nós
trabalhamos com tanta gratidão e assiduidade.
Os herbalistas existem ainda hoje, com sua crença de que as plantas ao natural
são melhores do que as substâncias feitas pelo homem. Eles citam tônicos herbais
que faziam maravilhas para velhas senhoras, o que é compreensível, uma vez que
eram dissolvidos em álcool quase com a força do gim. Citam alegremente os
desastres, como a talidomida, para provar que as curas químicas escondem
perigos desconhecidos. Certo. Se a aviação fosse abandonada depois do primeiro
desastre de avião, o sofrimento do mundo seria tolerável, comparado ao abandono
dos medicamentos científicos em favor das flores que crescem na primavera.
Os nazistas eram herbalistas fanáticos, calorosamente encorajados por Julius
Streicher, que nós enforcamos em 1946.

O POMO DA DISCÓRDIA
“Malditos sejam, vocês não me conhecem? Eu sou a senhora Mapp, a que
conserta ossos!” gritava a “Louca Sally”, da sua carruagem puxada por quatro
cavalos, os lacaios com suas encantadoras librés, na Velha Estrada de Kent.
Vestia um roupão largo, e tudo indicava que havia se servido generosamente da
água de Genebra e fora confundida por uma multidão ameaçadora com uma das
recentes amantes de George II, como Nell Gwyn, que tempos atrás havia
transformado a ira do povo em aplauso entusiasmado ao dizer: “Eu sou a
prostituta protestante.”
Todos em Londres conheciam a gorda e feia Sally Mapp. Há uma canção a seu
respeito na peça em Lincoln’s Inn Fields, The Husband’s Relief. Sua irmã Lavinia,
em 1728, foi a estrela da Ópera do mendigo, depois fez Ofélia e casou com o
terceiro duque de Bolton. Sally dava consultas duas vezes por semana na Grecian
Coffee House. Em 1736, recebia 100 guinéus por ano, da cidade de Epson, para
morar na cidade e consertar ossos elegantes. Casou com um lacaio que a espancou
durante 15 dias, depois desapareceu com todo seu dinheiro. Morreu esquecida e
pobre em Seven Dials, e vive para sempre na parte superior do quadro de
Hogarth, Os coveiros, entre dois dos médicos que, com enormes cabeleiras
brancas, cheiram delicadamente os cabos de ouro das suas bengalas.
Sir Hans Sloane, então presidente do Colégio de Cirurgiões, a elogia:
As curas realizadas pela consertadora de ossos de Epson são muitas para serem
enumeradas: suas ataduras são extraordinariamente limpas e bem-feitas, e sua
habilidade para reduzir deslocamentos e fraturas é maravilhosa. Ela curou
pessoas que estavam inválidas há 20 anos.

Percival Pott não demonstra o mesmo entusiasmo:

Nós todos lembramos que os absurdos e a impraticabilidade de suas promessas
e compromissos não satisfaziam de modo algum as expectativas e a credulidade
dos que a procuravam, isto é, pessoas de todos os níveis e graus, desde o mais
baixo mecânico até os escalões mais altos da sociedade, muitas das quais não
hesitavam em acreditar piamente nas afirmações mais extravagantes de uma
mulher ignorante, bêbada e selvagem, e chegavam até mesmo a solicitar sua
companhia, parecendo ter prazer com ela.

Essas duas opiniões resumem o relacionamento da medicina com a osteopatia,
inventada em 1874 pelo doutor Andrew Taylor Still (1828-1917), em Kansas
City. Ele concluiu que todas as doenças eram causadas por defeitos na estrutura
do corpo, o que ele havia aprendido no tratado sobre os peles-vermelhas
“ressuscitados” por Burke e Hares, do centro-oeste. Manipulem os
desalinhamentos que o paciente fica curado, dizia ele. Em 1934 ele despertou a
atenção da Casa dos Lordes, na Inglaterra, quando seus nobres seguidores
queriam que os osteopatas fossem legalmente registrados como médicos. O comitê
municipal, para onde o projeto de lei fora desviado pelos importantes médicos
Lordes Dawson e Moynihan, fez coro com os médicos e não concordou com a
idéia de aprovação pelo Parlamento do licenciamento dos osteopatas para
diagnosticar e curar doenças. “Não seria seguro e nem apropriado”, resolveu o
conselho com desprezo.
Foi um jato de frio realismo no entusiasmo por Herbert Atkinson Barker (1869-
1950), Filho de um médico legista de Lancashire, sem instrução superior, que
havia ganho um bom dinheiro como osteopata da moda, em Londres, e foi sagrado
cavaleiro por Lloyd George, em 1922. Barker tinha o apoio do Daily Express, de
Lord Beaverbrook, que incitou o protesto do público contra a exclusão do seu
anestesista do Registro, em 1911, por ajudar um médico não qualificado e contra a
recusa do exército aos seus serviços médicos para atender os feridos em 1917. O
arcebispo de Canterbury, que guarda ainda esse antigo poder, era tido como o
criador de Barker Doutor em Medicina Lambeth, porém sua intervenção divina
não conseguiu realizar o casamento legal de Barker com o Conselho Geral de
Medicina.
“Ele possuía o dom de curar", admite o Dicionário Nacional de Biografia,
falando de Herbert Barker. Seria ótimo que outras pessoas também tivessem. Não
é um dom concedido, mas conquistado pela inteligência e pelo trabalho árduo.

UMA GOTA NO OCEANO


O doutor John Brown (1735-88), de Edimburgo, ex-teólogo, resolveu o mistério
da vida. A vida acontecia e continuava por meio do estímulo fornecido ao corpo
humano por alimento, movimento, calor, emoção, pensamentos e coisas
semelhantes. Se o estímulo fosse exageradamente aumentado, provocava doenças
“estênicas”, que podiam ser tratadas com sedativos. Se fosse diminuído, causava
as doenças “astênicas”, que exigiam excitação. Esse era o “Sistema Brunoniano”,
que dividiu de tal modo a opinião da classe médica a ponto de a cavalaria de
Hanover ser chamada em 1802 para dispersar uma manifestação violenta que
durou dois dias, na Universidade de Göttingen. O tratamento recomendado por
Brown era ópio e álcool, em grandes quantidades. Ele próprio se tratava com
vinho, cinco copos em rápida sucessão, e isso o matou. Mais tarde, com grande
ingratidão, atribuíram a ele um número de mortes superior ao da Revolução
Francesa e das Guerras Napoleônicas combinadas.
A reação ao método de Brown veio de Samuel Christian Friedrich Hahnemann
(1755-1843), de Leipzig, que em 1810 inventou a homeopatia. Ele concluiu que os
medicamentos só deviam ser tomados em doses mínimas. Como Paracelso, era um
homem do “pêlo do próprio cão". Se a beladona provoca manchas avermelhadas,
toma-se beladona para a escarlatina. Com mais lógica, ele afirmava que só se
devia fazer um tratamento de cada vez.
A doutrina homeopática viajou para a América onde, mais tarde, foi dissecada
pelo doutor Oliver Wendell Holmes como “uma mistura confusa de engenhosidade
perversa, falsa erudição, credulidade imbecil e hábil deturpação”. Mesmo assim,
seu criador morreu milionário, em Paris. Existem ainda adeptos de Hahnemann na
medicina que, como religiosos apóstatas, têm sua igreja no Hospital Real
Homeopático de Londres. Se nossa rainha acredita na homeopatia, é porque segue
a tradição real. Quando a rainha Adelaide consultou um homeopata, Guilherme IV
ordenou ao médico real, Robert Keate (1777-1857):

“Examine a receita que ele der a ela para ver se a rainha pode tomar sem
perigo.”

Eu prometi fazer isso, e quando recebi a receita, eu disse: “Ah, majestade, ela
pode tomar durante sete anos que, no fim desse tempo, não terá tomado nem um
grama de medicamento.”

A realeza é sujeita a distúrbios como qualquer um de nós. Nós todos temos o


mesmo corpo, como lamentava Henrique V na noite anterior à batalha de
Agincourt.

FICÇÃO CIENTÍFICA
A medicina alternativa deve ser vista em perspectiva. Do contrário, ela
desaparece sob o horizonte.
“Alternativa” é a palavra da moda para fazer parecer importante o que não tem
nenhum significado. Ela serve para enfeitar um misto de misticismo medieval,
bobagem herbalista, lixo dietético, brinquedos elétricos, superstição, sugestão,
ignorância e pura fraude.
Podemos tentar a aromaterapia, que cheira bem, a dançaterapia, que é divertida,
a ioga e a meditação, que nos proporcionam uma noite tranqüila, a iridologia,
quando temos à mão olhos que valem a pena ser olhados, a quiromancia, que
submete nosso destino às linhas fibrosas nas palmas das nossas mãos, o
exorcismo, quando se consegue convencer o padre e a ciência cristã, para quem
quer viver perigosamente.
Podemos evocar da fumaça do dragão da história chinesa as forças vitais do yin
e do yang e apunhalá-las, efetuando com a acupuntura a contra-irritação do antigo
cataplasma de mostarda, que os médicos aplicavam no peito, na barriga e no
traseiro. Podemos mandar uma gota do nosso sangue — ou do sangue do nosso
gato — para uma “caixa negra” com um mostrador e botões, a qual nos dá um
diagnóstico. Esse instrumento foi defendido na alta corte de justiça, cm 1960,
porque seu inventor acreditava nele, como exemplo do antigo princípio legal de
que, se você pensa que é inocente, então deve ser inocente.
“É realmente seguro para mim procurar uma pessoa sem qualificação para a
medicina?”, pergunta o guia ricamente ilustrado da saúde alternativa. E responde:
"Fico tentado a sugerir que faça a você mesmo outra pergunta, em lugar dessa:
‘Será seguro procurar o meu médico?’ Os medicamentos atuais são tão poderosos
que se alguma coisa sair errada, os efeitos do remédio podem ser piores do que a
doença. Resumindo, a medicina natural é mais segura simplesmente porque não
confia tanto nos medicamentos artificiais.”
Minha nossa!
Se você está doente, precisa de tratamento científico. As únicas doenças que os
“curandeiros” curam são as que seus clientes imaginativos não têm.
A relação da medicina com o charlatanismo é a mesma da astronomia com a
astrologia. O que as estrelas predizem para os leitores de jornais é inofensivo,
mas o lançamento de um ônibus espacial ou de um satélite, orientado pela
astrologia, ao invés da astronomia, seria desastroso. Mas a humanidade sofre de
uma fascinação eterna pelos charlatães. Talvez porque todos nós gostemos de
pensar que sabemos mais do que nossos médicos. Talvez porque:

O paciente, como um homem que se afoga, agarra qualquer graveto e espera
encontrar no mais ignorante o alívio que o médico, com toda sua ciência, não
pode dar, como observou o Spectator; em 26 de julho de 1714.
Talvez porque:

Sua vantagem enorme sobre a ciência é o falo de o amor pelo mistério estar
profundamente implantado no coração humano,

como sugeriu a Revista Britânica de Medicina, em 1911.
Talvez porque:

O mundo geralmente é contrário
A todas as verdades que vê e ouve,
Mas engole as bobagens e a mentira
Com avidez e gula,

como observou Samuel Butler.
Talvez porque, como suspirava Plínio:

Minus credunt quae ad suam salutem pertinent, si intelligunt. (As pessoas
acreditam menos em assuntos relativos à sua saúde quando os compreendem.)

O doutor Carl Reinhold August Wunderlich (1815-77), de Leipzig, previa em
1858:

Se o médico sofre às vezes injustiça ou incompreensão, se seu trabalho honesto
uma vez ou outra é ignorado ou até desdenhado, ele deve lembrar que aos olhos
majestosos da Natureza o indivíduo não é nada. E por mais deprimido que possa
se sentir quando intrigantes e charlatães anunciam em altas vozes seus sucessos
efêmeros, ele pode estar certo de que esses presunçosos serão suplantados, no
fim, pelos espinhos da consciência. Pois a ciência natural é uma força que avança
orgulhosa e silenciosamente, da qual as esferas mais ameaçadas por ela sequer
têm conhecimento.

Não perca seu tempo com os vagabundos na praia selvagem da ciência.
CAPÍTULO 10
Freud, a governanta inglesa
e o cheiro de pudim queimado

Entre 1905 e 1914, Sigmund Freud publicou, em Viena, quatro casos para
estabelecer no mundo médico ignorante, indiferente ou desdenhoso a seriedade de
sua percepção original da personalidade humana.

DORA, O PEQUENO HANS, O HOMEM-RATO E O


HOMEM-LOBO
Dora, 18 anos, queria cometer suicídio para se vingar da família e da vida, que
não a compreendiam. Seu pai (que Freud havia tratado de sífilis, não
psiquiatricamente) desejava a mulher do vizinho. O vizinho desejava Dora. A mãe
de Dora era fria e distante, e mais interessada na Küche do que nos Kinder.
Assim, Dora identificou-se com a mulher do vizinho e se apaixonou pelo pai.
Édipo típico!
Depois de três meses revivendo os sonhos dela já desaparecidos e
desembaraçando as confusões familiares por meio da psicanálise, Dora transferiu
o amor incestuoso para Freud. Então interrompeu o tratamento. Desapareceu,
garantindo que estava melhor. Mas na verdade não estava, raciocina Freud. Estava
simplesmente experimentando “uma fuga para a saúde”. O tratamento analítico de
Freud foi publicamente atacado na primavera seguinte, chamado de “masturbação
mental", uma palavra forte demais, pouco ouvida em Baden-Baden. O caso não
resolvido deixou Freud balançando a cabeça durante anos. Mais tarde, a pobre
Dora procurou um psiquiatra rival, mas morreu de causas naturais, sexualmente
frígida, solteira e não amada.
Hans, cinco anos, esperneava e gritava para não dar seu passeio matinal no
parque, porque tinha medo de ser mordido pelos cavalos. A recusa eminentemente
razoável era uma barricada que disfarçava o motivo secreto, que foi descoberto
por Freud. O caso nos oferece um diálogo clássico na imensa obra de Freud:

MÃE: (despindo-se) O que você está olhando?
HANS: Só queria ver se você também tinha um pipi.
MÃE: É claro. Você não sabia?
HANS: Não, achei que como você é tão grande, seu pipi devia ser do tamanho
de um pipi de cavalo.

Freud não precisou pensar muito para resolver que o pequeno Hans tinha medo
do pai, que tinha um pipi maior do que o dele, e que o pequeno Hans queria
inserir seu pipi na mamãe, por isso transferiu o medo para os cavalos, que tinham
pipis apavorantes, maiores do que os de toda a família combinados.

MÃE: Se fizer isso (brincar com seu pipi), eu o levo ao médico para cortar seu
pipi e, então, como você vai fazer pipi?
HANS: Com o meu traseiro, (Indica o pipi ) Por que você não põe seu dedo
aqui?
MÃE: Porque não se deve fazer isso.
HANS: (Rindo) Mas é tão divertido!

Quando, mais tarde, seu pai perguntou porque ele estava rindo do pipi da irmã,
Hanna, Hans respondeu: “Porque o pipi dela é tão bonitinho." Um garoto sensato.
Nos feriados, entre os românticos lagos das montanhas, ele quis dormir com sua
amiga de 14 anos, Mariedl. A família não se opôs, mas Freud balançou a cabeça.
Para Freud era motivo de orgulho expor, através do alegre Hans, a sexualidade
dos sexualmente imaturos. Mas durante o tratamento de Hans, exceto por uma
única conversa de Freud com o pai, ele começou a suspeitar que a família se
preocupava demais com os seus pipis. O pipi devia dominar as conversas da
família tanto quanto a televisão domina hoje, quando os pais são igualmente
indiscretos e maliciosos sobre os pipis dos filhos, o que hoje é chamado de .seu
papel sexual. Mais tarde o pequeno Hans, com 20 anos e músico elegante, voltou
a se encontrar com Freud, mas felizmente tinha-se esquecido de tudo aquilo.
O Homem-Rato era oficial do exército tio Imperador Franz Josef. Durante as
manobras em 1907 ele ouviu, no quartel, a história de um antigo castigo chinês, no
qual uma vasilha cheia de ratos era presa ao traseiro do criminoso e os animais só
podiam se livrar roendo a carne e saindo pelo ânus. O instinto dos rodentes pela
anatomia obcecou de tal modo o oficial que ele ficou confuso e com tendências
suicidas. Freud atribuiu isso ao fato de ele ter explorado a genitália de sua
governanta, quando era pequeno. Depois de um ano, Freud curou o Homem-Rato,
bem a tempo de ele ser morto na I Guerra Mundial.
O Homem-Lobo sonhava constantemente que a árvore no lado de fora do seu
quarto estava cheia de lobos, ao invés de pássaros. Tão razoavelmente quanto
Chapeuzinho Vermelho, ele adquiriu uma fobia por lobos. Freud descobriu que
tudo se devia ao fato de ele ver os pais fazendo sexo, quando era pequeno.
“Porém, Freud estranhamente ignorou a preferência do Homem-Lobo adulto pelo
sexo anal”, murmura um biógrafo. O Homem-Lobo era um rico proprietário de
terras russo que em 1914 estava visitando Viena, ficou pobre com a Revolução de
1917 e, por isso, Freud, generosa mente, não cobrou nada dele.
Mais tarde, o Homem-Lobo culpou Freud por convencê-lo a não voltar para a
Rússia e reclamar seus bens dos comunistas (Freud tinha motivos psicológicos,
não políticos, para aconselhá-lo a não correr esse risco absurdo), e conseguiu um
emprego numa companhia de seguros em Viena. O Homem-Lobo continuou a
desfrutar a vantagem do tratamento grátis mesmo depois da II Guerra Mundial,
quando analistas americanos o procuravam como turistas procuram as pirâmides.
E foi muito bom, porque esses casos permanecem com valiosa magnitude nas
memórias de Freud, por mais grotescas que sejam as formas com que se erguem
do deserto do inconsciente.
“No final de 1892”, revela outro dos inúmeros biógrafos superficiais de Freud,
“ele falhou também com a senhorita Lucy R., uma governanta inglesa que sofria de
fadiga generalizada e do sintoma curioso de ser perseguida pelo cheiro de pudim
queimado.”

TERÇA-FEIRA, 6 DE SETEMBRO DE 1892


Berggasse, Viena. Uma rua larga, tranqüila, 800 metros de comprimento,
noroeste de Viena, além do Schotten Ring. Estende-se do Allgemeines
Krankenhaus (onde Ignaz Semmelweiss sozinho derrubou a febre puerperal), com
o Instituto Anatômico (causador da febre) na esquina, até o cais Franz Josef, no
Canal Danúbio. O número 19 é um prédio cinzento, fachada pesada de concreto
trabalhado, a entrada maciça sob um arco, com largura suficiente para a passagem
de uma carruagem, ostentando um frontão triangular achatado, como uma
lembrança de última hora, e o medalhão com a placa teutônica com o número
branco sob fundo negro. À direita da porta trabalhada de carvalho maciço, um
toldo protege a vitrina de um açougue com carne de vitela e salsichas vienenses
gordas e albinas em embalagens perfeitas.
De pé no corredor de ladrilho está uma jovem inglesa, o rosto rosa pálido, nariz
arrebitado, vinte e poucos anos, o cabelo castanho preso no alto da cabeça sob um
chapéu de palha sépia, o corpo esbelto coberto por fina cambraia marrom, punhos
justos, mangas bufantes, sem nenhum broche ou laço da gola alta até a ponta dos
sapatos pretos. Um xale marrom de malha cobre seus ombros, as mãos são
protegidas por luvas de algodão marrom, leva uma pequena bolsa cor de ferrugem
dependurada no cotovelo e um guarda-chuva fechado.
“Guten Morgen! Mein Name ist Miss Lucy Robinson", ela informa à mulher de
vestido negro de bombazina que a atende.
É conduzida a uma sala entre o térreo e o primeiro andar.
“Er wird jeden Augenblick bier sein."
“Danke!"
Miss Lucy está sozinha, sentada com as costas muito retas, as mãos cruzadas no
colo, na ponta de um sofá confortável coberto até o chão por um tapete persa de
desenho intrincado, que se estende um metro para cima, sobre o papel simples da
parede. Sobre o sofá estão duas almofadas de veludo, um cobertor dobrado e um
travesseiro quadrado. Um grande número de pequenos quadros com molduras
pesadas — primitivas, pensa ela —, uma porção de estatuetas espalhadas pela
sala, que parecem chinesas e egípcias antigas. Janelas altas dão para um pátio
com três árvores, e o inevitável aquecedor vienense de cerâmica descansa num
canto. Quando a irmã de Freud, Rosa, mudou-se, mais tarde, ele adicionou esse
consultório ao apartamento de 18 cômodos no andar superior. Em 1895, Freud
constava da lista telefônica. Ele fez daquela casa um endereço famoso no mundo
todo. Morou ali até 1938.
Passos apressados no andar de baixo. Surge um homem amistoso, gorducho, não
chegado ainda à meia-idade, com terno escuro e gravata clara, farta cabeleira
negra e uma bela barba (ele ia diariamente ao barbeiro). Ninguém parece lembrar
que Freud também foi jovem um dia.
— Quer me dar der Regenschirm? Es ist schöns Wetter. Nunca tive uma
paciente da Inglaterra, Miss Robinson — disse Freud, desculpando-se, apanhando
o guarda-chuva. — É um país que admiro muito. Dei ao meu filho, que nasceu o
ano passado, o nome de Oliver, em honra a Cromwell, seu grande Lord Chanceler,
até 1688.
— Lorde Protetor — corrigiu ela, como se estivesse instruindo uma criança
pouco inteligente sobre o estilo histórico. — A Restauração foi em 1660. Em
1688 foi a Revolução Gloriosa.
— Ah, muito obrigado. Por que veio de tão longe, da tranqüila Inglaterra, para
Viena, a fim de ensinar os filhos do Dr. Schmitt?
— Meu pai quer que eu seja cosmopolita. Ele é o Reverendo Horace Robinson,
vigário de Slaughter-on-the-Marsh, nos Costwolds. É uma cidadezinha
encantadora — a igreja, de São Lourenço, é quase toda do século IX — mas um
pouco isolada entre os trigais e as plantações de batata. A estrada de ferro mais
próxima passa por Birmingham.
— O campo inglês é famoso por sua beleza — diz ele, dei içada mente. —
Basta ver os quadros de Turner.
— Constable — corrigiu ela outra vez. — Eu acho que meu pai queria diminuir
o número de filhas solteiras. Ele tem sete.
Freud se interessou imediatamente.
— Amou intensamente seu pai alguma vez?
— Sim, quando era pequena.
Freud balança a cabeça, pensativa mente.
— Ele sempre me deixava comer a parte de cima do seu ovo cozido, de manhã.
— Quer deitar no sofá? — convidou Freud.
— Das ist sehr freundlich von Ihnen.
— Por favor, dê-me seu chapéu... talvez queria desabotoar o sapato. Muito
bem... — Indo diretamente ao assunto: — Sente-se sempre cansada?
— Acho que simplesmente não estou dormindo tanto quanto preciso — disse
Miss Lucy, calmamente, deitando-se. — A casa é espaçosa e arejada, a comida,
devo acrescentar, é excelente, mas meu quarto dá para o Bahnhof. Naturalmente,
durmo com as janelas abertas. Para ter ar fresco.
Freud sentou-se numa poltrona de veludo verde, ao lado de uma das
extremidades do sofá, com uma banqueta forrada de veludo para os pés.
— Por acaso não estará com clorose? Isso provoca cansaço nas jovens.
— O Dr. Schmitt exclui a possibilidade de clorose. Ele insistiu para que eu
viesse consultá-lo.
— Ele é um dos entusiastas do meu método — disse Freud, carinhosamente. —
Estudamos juntos no Hospital da Salpêtrière, em Paris, há seis ou sete anos, com
o famoso Dr. Charcot.
— Eu sei. O Dr. Schmitt sempre conta, durante as refeições, que ambos viram o
Dr. Charcot curar imediatamente com o hipnotismo uma jovem paralisada. A
causa da paralisia me fascina. Seu noivado com um homem que ela não amava.
Freud balançou a cabeça afirmativa e vigorosamente.
— O Dr. Schmitt termina a história dizendo que aquele caso revelou ao senhor,
como num relâmpago, o poder do inconsciente.
Freud sorriu.
— Ele tem um talento para o exagero.
— Exatamente o que o Dr. Schmitt diz a respeito do Dr. Charcot.
— O Dr. Schmitt tem também um talento para o cinismo. Essas histórias
corriam por toda Paris... Mas a idéia que o Dr. Charcot me transmitiu foi
suficiente. A paciente em si não passou de... como posso dizer? Uma ilustração no
seu livro. Das versteht sich — acrescentou defensivamente.
Miss Lucy franziu os lábios.
— Eu também tenho pensado nessa idéia. A mente inconsciente.
— Talvez ajude se me contar — convidou ele.
— Certamente jamais ocupou nenhum pensamento consciente na minha casa —
informou ela. — Meu pai teria ficado extremamente confuso se alguém o
mencionasse. Ele reluta em discutir até mesmo “a vontade” e “a consciência”.
Não que alguém em Slaughter-in-the-Marsh fale no assunto com muita frequência.
Numa paróquia no interior da Inglaterra, o vigário tem de ser um homem prático.
Os pobres, os doentes e os pecadores são identificados com maior solidez. — Ela
respirou fundo. — Eu via a mente como um relógio.
Freud ergueu as sobrancelhas.
— Um relógio suíço de cuco. Olhamos para os ponteiros sem pensar, olhamos
para cima quando o cuco aparece e começa a cantar, mas tudo que vemos ou
ouvimos do relógio é movido por uma mola forte, completamente invisível. Para
mim, isso parece o trabalho da mente inconsciente.
— Muito bem! E a senhora, Miss Robinson, tem seu encantador talento nacional
para minimizar as coisas. Suponho que é uma comparação lógica, embora simples
— admitiu, cortesmente. — Agora, o cheiro de pudim queimado — achou que
convinha ir direto ao ponto. — Que tipo de pudim?
— Às vezes pudim de arroz queimado. Às vezes pudim de pão com manteiga
queimado — é um pudim para crianças que usamos na Inglaterra, doutor, muito
gostoso. Às vezes pudim de sebo queimado. Ou rocambole de geléia queimado.
— Isso acontece durante a noite? — Freud segurava uma folha de papel. — Eu
gostaria de ouvir seus sonhos.
— Meus sonhos? — ela virou cabeça para trás e olhou para ele.
— “Mas eles voaram, esquecidos, como o tempo, um regato que na sua corrida
incessante leva embora todos seus filhos.”
— Shakespeare — ele balançou a cabeça, afirmativamente.
— Hinos. Antigos e Modernos.
— Muito obrigado, Miss Robinson. Quer por favor escrever todos seus futuros
sonhos para mim, logo que acordar, de manhã?
— Se o sr. assim o deseja. Preciso lembrar de ter um bloco e um lápis
apontado, esta noite, na minha mesa de cabeceira. — Cruzou as mãos
delicadamente sobre o estômago, com as luvas dobradas sobre a bolsa, ao seu
lado. — O Dr. Schmitt disse que o senhor ia tocar em assuntos que, em companhia
diferente, podem parecer extremamente indelicados. Tive a impressão de que ele
achou a idéia muito divertida.
— Devo dizer que a grande maioria das neuroses graves das mulheres têm
origem no leito conjugal — disse ele, com afetada indiferença. — Um argumento
que vou desenvolver no meu livro Estudos sobre a Histeria, a ser publicado no
próximo ano.
— No leito conjugal? Que eu tenho tanta probabilidade de conhecer quanto o
leito do oceano.
Freud foi lisonjeiro.
— A modéstia é um atributo encantador em qualquer mulher recém-casada.
— Não se trata de modéstia. Nada nos leva tão efetivamente à realidade
temporal quanto ser membro de uma família numerosa, mantida pelo mundo
espiritual. É tão impossível casar com uma governanta sem dinheiro quanto
montar uma potranca manca.
Ele protestou delicadamente.
— Mas sem dúvida na Inglaterra uma “boa família” é um dote inestimável.
Basta ler os livros de Charles Thackeray.
— William Makepeace. Não. A filha de um vigário não é socialmente
estimulante para a classe dos ricos. É um artigo de fé aceito universalmente que o
clero deve ser convidado para o chá, que pode ser delicioso, com sanduíches de
pepino e bolo, mas nunca para a cerimônia socialmente correspondente de um
jantar.
— Suponho que é virgo intacta.
— Minha nossa, não. Se Deus nos dá de presente algo que a humanidade inteira
deseja usar com avidez — às vezes com fervor alarmante — seria contra o
espírito religioso, ou pior ainda, idiota, não usá-lo. O senhor não emudeceria o
canto matinal dos pássaros tapando seus ouvidos, não pintaria suas janelas de
preto para esconder a luz do sol, não se absteria nervosamente dos saborosos
morangos com creme que Deus nos manda no verão.
Freud balançou a cabeça, solenemente.
— Das versteht sich von selbst. O princípio do prazer.
— Por que fazer do prazer um princípio? — Ela parecia intrigada. — É
bastante delicioso do modo que é. E há tão pouco!
Ocorreu a ele uma idéia instrutiva.
— Se posso dizer assim, a sexualidade é uma liga poderosa, que transmite
tensão àquela mola tensamente enrolada que gira incessantemente, que faz
funcionar seu relógio cuco. Uma liga que chamamos de libido.
— Parece o nome de um jogo de criança.
— Posso garantir que as crianças, até mesmo os bebês, sabem como se joga.
Miss I.ucy continuou calmamente.
— Eu tenho um amigo na Inglaterra. Sim, o capitão Bracewell-Gregory. Dos
Dragões Ligeiros. Ele me viu indo para a igreja, quando passava a cavalo, e
passou a assistir às Matinas todos os domingos, na primeira fila, cantando muito
alto. Meu pai não pôde deixar de notar e, mais tarde, conversando com ele, teve a
impressão de que o capitão Bracewell-Gregory era um homem profundamente
religioso, e permitiu que ele me levasse a piqueniques.
Freud, pensativamente, passou a mão na barba perfumada.
— Ich habe mich entschlossen. Temos um caso de inveja do pênis.
Ela franziu levemente a testa.
— Eu não acho que invejei o pênis do capitão Bracewell-Gregory. Na verdade,
admito que o considerei injustamente conveniente para ele nos nossos
piqueniques, pois só precisava ficar de pé atrás de uma árvore, ao passo que eu
tinha de sentar nos calcanhares entre os arbustos. Mas achei que era um órgão
muito desajeitado, e quanto aos anexos, ora, é como a tabuleta de um agiota
dependurada na roupa de baixo. Não, eu não o invejei de modo algum — informou
ela, com firmeza.
— Seu problema pode ser também a expressão do complexo de Édipo —
respondeu Freud, anotando alguma coisa com sua caneta-tinteiro.
— Não sei o que quer dizer. Numa escola feminina não se aprendem os
clássicos.
— Resumindo, como vocês dizem tão bem na Inglaterra, todo menino deseja
casar com a mãe. Para isso, evidentemente, primeiro precisa matar o pai. Ele teme
que o pai queira evitar as duas coisas mandando castrá-lo. Aplica-se também às
mulheres, quando é chamado complexo de Eletra. Eletra é uma peça teatral de
Sófocles, um escritor grego do qual já deve ter ouvido falar. Esses impulsos, é
claro, inflamam-se como o fogo do nosso mundo, muito abaixo da superfície
pacata e que ignora sua existência — explicou ele.
— Espero que sim! Trinchar o peru de domingo é exercício de esgrima
suficiente para qualquer pater Familias.
— Deve compreender que nós todos temos em nossas mentes o Ego que reprime
os desejos sinistros tio Id.
— Como papai e nós, suas filhas.
— O Ego é completamente controlado pelo Superego.
— Como mamãe.
Freud levantou-se.
— Teremos outra consulta no próximo mês. Depois dos seus sonhos. Há um
motivo escondido no fundo da sua mente para o cheiro de pudim queimado, Miss
Robinson. Exatamente como devia haver um motivo para o rei Alfredo queimai os
bolos.
— Se o senhor diz. Tenho certeza de que havia uma razão inconsciente até
mesmo para Napoleão incendiar Moscou — disse ela graciosamente, sentando e
apanhando os sapatos.

TERÇA-FEIRA, 18 DE OUTUBRO DE 1892


— Wie ist heute das Wetter? Não saí esta manhã.
— Bastante frio. Devo deitar no sofá? Aqui estão os meus sonhos. — Miss
Lucy tirou da bolsa um rolo de papel almaço amarrado com uma fita amarela. —
Copiei minhas notas escritas a lápis, esta manhã, enquanto as crianças faziam os
exercícios escritos.
Ela tirou os sapatos. Freud sentou na poltrona de veludo examinando as folhas
escritas, cobertas com calcografia e sublinhadas em vermelho.
— Você sonhou que estava num balão! — notou ele, mal disfarçando o
entusiasmo. — Suponho que sempre sonha que está voando? Esses sonhos são
comuns e devem ser interpretados como expressão de desejo sexual.
— Desculpe, mas não estou entendendo, doutor.
— Bem, muitas mulheres sonham com balões voando no céu — explicou ele. —
Por causa da propriedade notável do órgão masculino de se levantar, desafiando
singularmente a lei da gravidade.
— É estranho que diga isso — concordou ela, deitando confortavelmente no
sofá. — Foi exatamente o que eu disse ao capitão Bracewell-Gregory, dos
Dragões Ligeiros, em um dos nossos piqueniques. Ele explicou, achando muita
graça, que seu Hampton...
— Hampton?
— Hampton Wick. Um bairro de Londres. No Tamisa, peito de Hampton Court.
Freud não entendeu.
— Rima com “prick”, uma palavra usada pelo capitão Bracewell-Gregory para
descrever o órgão que o senhor mencionou. É uma rima comum entre as pessoas
comuns. Se não me engano, “ostentar o Hampton” é quando eles mostram o órgão
para uma pessoa do sexo oposto sem que ela queria ver. O capitão Bracewell-
Gregory acha que o Hampton levanta como uma peça de artilharia sendo
apontada, depois de ver o alvo. Ele fez um observação engraçada a respeito de
ele estar montado sobre suportes redondos como bolas.
— Verzeihem Sie! Acendi um charuto. Sempre me esqueço, quando tenho
pacientes.
— Por favor, pode fumar. Acho que o que provocou meu sonho foi o fato de o
Dr. Schmitt voltar tarde de um jantar com os médicos e tentar voar escada acima.
Freud suspirou.
— Ele é um bom homem, mas não é inimigo da garrafa. Quanto a mim —
admitiu, virtuosamente — tenho medo, como seu duque de Clarence, de me afogar
numa dose de conhaque.
— Malmsey — Miss Lucy remexeu os dedos dos pés sob as meias brancas de
algodão. — O senhor parece que dá uma ênfase exagerada aos instrumentos da
união sexual — disse ela, com firmeza. — Meu pai nos fez ler as Cartas ao seu
filho, de Lord Chesterfield, onde em alguma parte do contexto ele diz: O prazer é
momentâneo, a posição ridícula e o preço infame.
— Richtig! Você sonhou que eu estou apontando seu guarda-chuva para você.
— Freud continuou a ler as folhas escritas. — Esse é o meu pênis. Bem como o
maneio que você vê na minha outra mão, as fontes entre as quais eu me aproximo
de você, os peixes que no seu sonho saltam delas. Você está segurando um balde e
saindo pela porta de uma igreja grande, as duas coisas representando seus órgãos
genitais.
— Não posso falar pelo senhor, doutor, mas falando dos meus pertences, não
vejo nenhuma semelhança.
— Pistolas são pênis, bem como rifles, espadas, lanças, lápis e canetas —
disse Freud com ardor, a caneta tremendo, na vertical. — Armários, fomos,
navios, caramujos, qualquer coisa oca é a muliebria — continuou ele,
controlando com dificuldade o entusiasmo pelas próprias idéias. — Seus sonhos,
Miss Robinson, são a realização deliciosa dos seus desejos sexuais, das
frustrações dos seus impulsos durante o dia. Esses desejos aparecem em todos os
seus sonhos, mas sempre disfarçados.
— Mas, sem dúvida, isso aconteceu com Johann Strauss há 20 anos?
— Wie bitte? — perguntou Freud, secamente.
— No aniversário da senhora Schmitt, o doutor Schmitt teve a bondade de me
convidar para acompanhá-los ao Theater an der Wien, onde assistimos Die
Fledermaus. Eu prestei muita atenção, porque só havia ido à opera uma vez antes,
para ver Gondoliers, do senhor Gilbert, no Teatro Savoy, em Londres. No baile
do príncipe Orlofsky, no segundo ato, lembro-me especialmente da cena em que o
herói, o belo Herr von Eisenstein, sua bela mulher Rosalinde e sua criada
namoradeira, Adele, juntos se divertem a valer. Mas estão todos com máscaras! O
senhor compreende, doutor — concluiu ela, triunfante —, ninguém sabe a
identidade do outro, por mais improvável que isso possa parecer. Não é
exatamente assim que o senhor diz que nossos pensamentos agem nos sonhos?
— É possível — disse Freud, bruscamente.
— A música é tão contagiante. O Dr. Schmitt, ao que parece, gosta de me ouvir
cantar quando me acompanha ao piano.
— Na primeira consulta, esqueceu sua bolsa.
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
— Tem razão. Tive de voltar de Wahringer Strasse, quando os cavalos da
carruagem pública estavam chegando na esquina.
— Isso foi uma proposta sexual para mim.
Ela ergueu as sobrancelhas delicadas.
— Então deve ter sido uma proposta extremamente distraída.
— Não pode ser interpretada de outro moda — informou Freud,
confidencialmente. — Você transferiu uma dependência emocional do seu pai para
mim. Você está apaixonada por mim.
— E tudo isso é a causa do cheiro de pudim queimado?
— Sem dúvida.
— Talvez eu devesse ter mencionado antes, mas estava tão ansiosa para falar
sobre meus sonhos — minhas irmãs e eu conversamos sobre nossos sonhos no
café da manhã, é incrível como nossos sonhos podem ser fascinantes, ao passo
que os dos outros são incrível e literalmente tediosos, mas suponho que para o
senhor os sonhos fazem parte do seu trabalho diário, como tosses e ferimentos
para os outros médicos — eu ia contar que a cozinheira da senhora Schmitt está
tentando, às escondidas, fazer uma receita de sachertorte para o aniversário do
doutor, até agora sem sucesso, e depois ela queima as provas no pátio dos fundos,
debaixo da minha janela, quando a família se retira à noite.
Silêncio.
— Pelo que pude ver da sua personalidade, Miss Robinson, acho que descobriu
o diagnóstico perfeitamente correto para o seu caso — admitiu ele, com alívio
inconsciente.
— Muito obrigada, doutor Freud — disse ela, agradecida, levantando do sofá.
— Eu gostei muito de despejar tantas coisas para o senhor, coisas que, de outro
modo, eu teria escondido para sempre do mundo. O capitão Bracewell-Gregory,
dos Dragões Ligeiros, por exemplo. Isso me fez sentir muito melhor, mental e
fisicamente. E suas teorias sobre o inconsciente e o ato sexual são completamente
fascinantes. Tenho certeza de que se o senhor continuar com essas conversas vai
ter muitos clientes e ficará famoso. Auf Wiedersehen!

O FANTASMA DE FREUD
Todos já ouviram falar de Freud, tanto quanto de Deus. Sua “palavra”, expressa em uns
três milhões de palavras, jaz agora como arquivos empoeirados e não consultados nos
porões da psiquiatria. A fabricação das suas teorias foi sem dúvida glória suficiente.
Freud, modestamente e com razão, citou seu amigo vienense Christian Friedrich Hebbel,
o soturno dramaturgo de meados do século XIX, quando diz que ele próprio
“perturbou o sono do mundo”. E o olho aberto e sonolento do mundo descobriu
que há muito mais no mundo do que se pode ver. Ou teria sido Freud apenas o
Julio Verne das vinte mil léguas submarinas nas profundezas do consciente?
A sombra de Freud diminui à medida que o céu sexual fica mais claro. Os
segredos horríveis de seu divã são hoje programas de televisão. Freud teve
dissidentes. Carl Gustav Jung (1875-1961), de Zurich, separou-se dele em 1911 e
lavou a libido. O vienense Alfred Adler (1870-1937) concluiu que os meninas, na
verdade, não querem fazer sexo com suas mães. Henry Havelock Ellis (1850-
1939), de Croydon, reclassificou Freud como um artista, não um cientista. O
jovial e vaidoso Wilhelm Stekel (1868-1940) alegremente definiu seu
relacionamento com Freud como “um anão no ombro de um gigante pode ver mais
além do que o gigante”. E Freud observou: “Talvez seja verdade, mas um piolho
na cabeça de um astrônomo não pode”.
Os ensinamentos de Freud foram ativamente propagados por seus fantasmas,
que caminharam prosperamente pelos sonhos do mundo, especialmente os dos
americanos. Os analistas continuam a aliviar das vidas dos lutadores e dos
desgarrados o peso de seus problemas elaboradamente acondicionados,
problemas que deviam chocar a família e os amigos, mas que só provocam tédio.
A psicanálise tem uma coisa estranha, é a única cura para qualquer condição que
funciona falando sobre essa condição. O que é uma grande vantagem sobre a
medicina: não tem efeitos colaterais.

A MENTE INCONQUISTÁVEL DO HOMEM


Freud acelerou uma transformação dolorosamente lenta na medicina, a
transformação da loucura em doença. Antes do século XIX, os insanos nada
tinham a perder a não ser suas correntes. Os piores eram perigosos e aterradores,
os melhores inofensivos mas irritantes, os mais inconvenientes aqueles da nossa
família. Mulheres e homens loucos eram mantidos presos a correntes, dois deles
no Bicêtre Hospital, em Paris, durante 40 anos, até 24 de maio de 1798. Então
Philippe Pinel (1745-1826) chegou para tirar as correntes dos 49 internados, e os
levou para médicos igualmente inteligentes, amigos seus. Pinel lutava por essa
libertação desde 1792, quando o instrumento muito ativo do doutor Guillotin
começou a ceifar Paris. A Assembléia Nacional participou da sua compaixão, mas
em tempos tão perigosos como aquele Pinel foi atacado pela multidão alarmada,
até os monstros libertados aparecerem para salvá-lo.
“Bedlam”, o epônimo para o qual o Hogarth’s Rake finalmente progrediu, foi o
Hospital de Santa Maria de Belém, fundado pelo xerife de Londres, em 1247, uma
escala de viagem para bispos e cânones. Em 1402 ele abrigava lunáticos em
Bishopsgate, perto da Torre. Depois da dissolução dos mosteiros, Henrique VIII o
deu de presente à cidade de Londres para servir de hospício. Em 1675 foi
reconstruída ao lado do London Wall e o público pagava entrada para ver os
loucos, como no zoológico. Isso continuou até 1815. A mesma facilidade era
oferecida em 1784 pela “Torre dos Lunáticos”, em Viena.
O quacre e comerciante de chá e café, de Yorkshire William Tuke (1732-1822),
em 1796 asilou os loucos da região em York Retreat. Não havia correntes, “nem
camisas de força, algemas, grilhões nas pernas, nem os vários outros instrumentos
de couro e de ferro, incluindo mordaças e parafusos, para forçar a abrir a boca
dos infelizes que não queriam ou não podiam se alimentar”. Foi o primeiro
asylum, uma bela palavra grega, um santuário, um lugar inviolável de refúgio,
pena que seja sobrecarregada com sugestões pejorativas, como a palavra
suburbia.
Os vitorianos espalharam asilos pelos campos da Inglaterra, construções altas
de tijolos vermelhos e argamassa, como as novas universidades. Os vastos
prédios tinham sempre uma vista maravilhosa, hortas enormes, cozinhas e
lavanderias imensas e corredores intermináveis, tudo para proporcionar trabalho
diversificado e simples para os internos. As portas eram trancadas, as janelas
abertas, mas só alguns centímetros, as correntes dos vasos sanitários ficavam
dentro de canos, para evitar enforcamentos, os homens raramente viam as
mulheres e, assim, os humanos passavam suas vidas de loucura, confortavelmente
camuflados da vista do povo.
Felizmente, os asilos ofereciam pouco tratamento médico. Começavam a
duvidar da eficácia do ópio tradicional, da cânfora, beladona e vinagre, dos
cataplasmas de mostarda ou de cantárida na cabeça, enemas, eméticos e duchas
frias. Em 1935, os medicamentos provocavam convulsões nos esquizofrênicos,
porque acreditavam que a esquizofrenia e a epilepsia não podiam coabitar no
mesmo cérebro. A ECT — terapia de eletroconvulsão — mais tarde passou a ser
aplicada com depressores, menos violentamente, sob anestesia, durante a II
Guerra Mundial, mais branda ainda quando os anestesistas passaram a usar o
veneno paralisante, o curare, de modo que a terapia da convulsão podia ser feita
sem as convulsões.
Depois da guerra apareceram os medicamentos antidepressivos, ansiolíticos,
hipnóticos, poderosos tranqüilizantes e sais de lítio para estabilizar os maníaco-
depressivos. Uma população que afirma, indignada, que é perfeitamente sã agora
devora drogas psicotrópicas, como se estivesse pondo açúcar nos flocos de
milho. Os asilos se transformaram em hospitais mentais, que depois se tomaram
hospitais e então as portas foram escancaradas para libertar os pacientes
drogados na comunidade, que é o mundo cruel.
Nossos lunáticos assassinos e perigosos estão presos em prisões mentais. Os
inofensivos estão escondidos nas enfermarias psiquiátricas. O resto pode dormir
nas ruas, que pouco nos importamos. O pensamento são sobre a insanidade
retrocedeu para 1547.



CAPÍTULO 11
Alunos estudiosos, alunos faltosos e
favoritos dos professores

É isso que faz do estudante de medicina a figura mais desagradável da
civilização moderna. Falta de respeito e de boas maneiras

George Bernard Shaw, O Dilema do médico.

A PIEDADE COMO MOTIVO


Ouçam Charles Dickens:

"Nada como dissecar, para abrir o apetite,"

disse o senhor Bob Sawyer, olhando em volta da mesa.

O senhor Pickwick estremeceu levemente.

“A propósito, Bob”, disse o senhor Allen, “você já terminou a perna?"

"Quase", respondeu Sawyer, servindo-se da metade de uma galinha, enquanto


falava. “Ir muito musculosa para uma perna de criança.”

“É mesmo?" perguntou o senhor Allen, calmamente.

"Muito", disse Bob Sawyer, com a boca cheia.


"Eu deixei meu nome na lista para um braço, no seu hospital”, disse o senhor
Allen. “Vamos fazer um trabalho em conjunto, cada um com uma parte, e a lista
está quase cheia, só que não encontramos ninguém que queira a cabeça. Gostaria
que você ficasse com ela.”
"Não”, disse Bob Sawyer, “não posso me dar a esse luxo, é muito caro."
“Bobagem!" disse Allen.
“K verdade", respondeu Bob Sawyer. “Eu poderia ficar com um cérebro, mas
nunca com toda a cabeça." “Silêncio, cavalheiros, por favor”, disse o senhor
Pickwick, "as senhoras estão voltando.”

Caros estudantes de medicina! Caro Dickens! Na sua época, como percebiam
superficialmente essas qualidades alarmantes. O doutor John Brown (1810-82),
de Edimburgo, identificou o paradoxo 14 anos depois:
Não pensem que os estudantes de medicina não têm coração. Eles não são melhores nem piores do que
vocês. Superam seus horrores profissionais e fazem seu trabalho, e neles a piedade — como emoção,
terminando nela mesma, ou, na melhor das hipóteses, em lágrimas e num longo e profundo suspiro —
empalidece, enquanto a piedade, como motim, é fortalecida e ganha força e objetivo. É bom para a natureza
humana que seja assim.

Quando a vida e a morte se transformam no seu pão de cada dia, é razoável


considerá-las tão prosaicas quanto os sanduíches do hospital.

ERGUENDO-SE ACIMA DISSO


Quatro estudiosos da medicina:
— Sir Thomas Browne (1605-82) era inteligente demais para ser apenas um
clínico geral em Norwich, mas ficou naquele lugar agradável com a catedral
normanda durante 46 anos porque preferia uma vida tranqüila, colecionando e
estudando as borboletas e as relíquias do local, meditando sobre a morte e tendo
10 filhos. Para passar o tempo ele escreveu Religio Medici, em 1642, onde
examina a tensa relação entre ciência e religião de modo tão sensato que deu
origem, três anos mais tarde, ao Index de livros proibidos da Igreja Católica
Romana.

“Eu não peço emprestadas as regras de minha religião a Roma ou Genebra, mas
aos ditames da minha razão”, diz Browne, com altivez. Ele compartilhava da
descrença dos fazendeiros da Anglia oriental na teoria do fruto proibido. “No
mesmo capítulo, quando Deus o proíbe, está claramente explicado que as plantas
do campo não haviam brotado, pois Deus não havia ainda ordenado a chuva
sobre a terra.” Sir Thomas balançava a cabeça duvidando do Dia do Julgamento,
que para ele parecia uma extensão dos Tribunais de Norwich. Quando ele foi
sagrado cavaleiro, Carlos II teve de ir a Norwich para lhe conferir o título.
Quando a pira funeral se apaga e é feita a última oração e os homens dão o
último adeus aos Amigos enterrados, “Quem sabe o destino dos seus ossos?” Sir
Thomas faz essa pergunta em O enterro da urna. Seus ossos foram tratados em
1840 para retirar toda a medula, e ficaram expostos nos Hospitais de Norfolk e de
Norwich até 1922. Ele odiava a feitiçaria e, em 1664, deixou Norwich por algum
tempo para providenciar o enforcamento de Amy Duny e Rose Cullender ao lado
da estrada, em Bury St. Edmunds.
— Oliver Wendell Holmes (1809-94) foi o Autocrata da mesa do café da
manhã e professor de anatomia em Harvard durante 35 anos. Em 1843 ele sugeriu
que a febre puerperal, mortal, era contagiosa e podia ser evitada se os médicos
lavassem as mãos e trocassem de roupa antes de atender a uma paciente. Isso foi
quatro anos antes de lgnaz Semmelweiss dizer a mesma coisa em Viena. Em
Boston, essa crítica gratuita sobre higiene pessoal escandalizou o meio médico.
Uma longa vida permitiu ao Autocrata se proclamar vitorioso, depois de Pasteur e
Koch: “Um pequeno exército de micróbios marchou para apoiar minha posição."

Quando William Morton criou o éter, em Boston, o Autocrata observou a


respeito do batismo da nova substância:
Todos querem ter uma parte na grande descoberta. Tudo que farei é dar uma ou
duas sugestões quanto ao nome... acho que o estado do paciente devia se chamar
“Anestesia”. Isso significa insensibilidade, especialmente do sentido do tato.
Por sorte descartando antinêurico, neurolepsia e neuroestase, Holmes previu
que a palavra “anestesia seria repetida por todas as raças civilizadas da
humanidade”, Depois que a rainha Vitória inalou clorofórmio quando deu à luz o
príncipe Leopoldo, a moda era dar esse nome às meninas. Vinte anos depois:
“Senhor, posso apresentar sua companheira para o jantar? Minha filha,
Anestesia.”
— Sir William Osler, baronete (1849-1919) de Bond Head, Ontario, foi
sucessivamente professor de medicina em Montreal (quando tinha 25 anos), em
Filadélfia, Baltimore e Oxford. Ele era jovial e bondoso, com um belo bigode de
leão marinho, e foi o descobridor dos nódulos de Osler (nas pontas dos dedos,
nos casos de infecção cardíaca), e era casado com a neta de Paul Revere.
Demonstrava tanto entusiasmo por sua profissão que “entrava na sala de autópsia
com a expressão feliz do jovem Sófocles dirigindo o coro da vitória, depois da
batalha de Salamis”, o que não devia ser fácil. Um professor muito conceituado e
prolífico explicador (730 livros e artigos científicos), Sir William foi o Francis
Bacon da medicina (o efeito modificador do adjetivo é considerável, como
observou Thomas Mann, quando Goethe foi descrito como o Voltaire alemão). Em
1900, Osler aconselhava a exterminação indolor de todas as pessoas com mais de
60 anos. Esse pronunciamento, em Baltimore, vindo de um médico tão endeusado,
provocou verdadeiros “ataques" na imprensa americana. Essa conveniência para a
humanidade já fora sugerida no romance de Anthony Trollope, O período fixo,
publicado no ano da morte do autor, 1882 (a história se passa em 1980, era
aplicada uma dose de morfina, depois as veias eram abertas e o indivíduo
descansava num banho quente. Seja como for, isso acontecia na Nova Zelândia).

Ambos foram profetas de visão limitada. Não é necessário especificar que há


gente demais no mundo e que todos querem estacionar seus carros. A população
do globo está explodindo com 250.000 bebês por dia, o que no ano 2000
acrescentará mais um bilhão aos nossos atuais 5,3 bilhões, ou uma China. No
próximo século a população do globo terá triplicado, ou apenas duplicado, se
tivermos sorte. Enquanto isso, os povos do hemisfério norte, mais econômicos
reprodutivamente, viverão cada vez mais por meio dos milagres da medicina
moderna, mas numa decrepitude cada vez maior. Não pode estar longe o tempo em
que as estruturas ambulantes e caquéticas de Zimmer sejam mantidas dentro de um
cordão de isolamento ou despachadas aos montes.

A estabilidade da civilização exige uma cadeia de Hotéis Terminais, isolados


num cenário maravilhoso, como os sanatórios para tuberculosos da década de
1930, jantares supremos, espetáculos teatrais e dança, tudo de graça, incluindo
bebidas, fichas de jogo e sexo (quando for possível), até que uma noite, com gás
cianídrico no sistema de ar condicionado, todos os residentes desaparecerão
suave e rapidamente, como o superaventureiro Baker na caça ao Snark. Isso é
previsto pela Sociedade pelo Direito de Morrer, nos EUA, embora tenhamos de
admitir que eles levam a morte desnecessariamente a sério.
O ardor de Trollope e de Sir William pela idéia desapareceu em sincronia com
os 50 anos de ambos.
— John Locke (1632-1704) era médico há 16 anos quando publicou Um Ensaio
sobre a Compreensão Humana.

DOUTORES EM LITERATURA
A profissão médica tem uma atração histórica para a profissão das letras, que
nunca chama durante a noite, nem em tempo inclemente, e permite ao escritor
beber quanto quiser ao almoço.
Médicos-escritores fazem parte do celeiro das estantes de livros: François
Rabelais (c. 1495-1553), Conan Doyle, de Vere (“Lagoa Azul”) Stacpoole (1863-
1951), Francis Brett Young (1884-1954), A.J. Cronin (1896-1981), Somerset
Maugham. Esse número é surpreendentemente ultrapassado por Keats, Robert
Bridges (1844-1930), Tliomas Campion (1567-1620), Abranham Cowley (1618-
1667), George Crabbe (1754-1832), Schiller (1759-1805) e outros poetas
médicos. Talvez por julgarem que a intensa fascinação da juventude pelos seres
humanos e pela eternidade será mais vantajosamente expressa na profissão de
médico, financeiramente menos arriscada.
Anton Chekhov (1860-1904), que descobriu com prazer que “o palco é uma
amante barulhenta, vistosa e insolente”, foi lisonjeado pelo consultor psiquiátrico
da mídia, Anthony Clare (b 1942) como “O único capaz de usar o material da
medicina e elevá-lo aos níveis de grande arte. Fora isso, a medicina geralmente
cria escritores medíocres". Osborne Henry Mavor (1888-1951), professor de
medicina em Glasgow, escreveu sob o pseudônimo de James Bridie peças cheias
de humor, prolixas, levemente no estilo de Chekhov, como O anatomista (sobre
Robert Knox e Burke e Hare), e um artigo definitivamente científico sobre o
centro anatômico, O Umbigo, que, segundo ele descobriu, pode ser atacado por
oito doenças.
O doutor Peter Mark Roget (1779-1869) fundou a escola de medicina de
Manchester e a Universidade de Londres, investigou a água potável de Londres,
inventou a régua de logo-logaritmo, escreveu sobre fisiologia e teologia e, em
1852, produziu o Roget Thesaurus. Era polimatemático, poli-historiador,
pantólogo, enciclopedista, prodígio de aprendizado, mina de informação,
enciclopédia ambulante e dicionário falante. O doutor Samuel Smiles (1812-
1904) complementou esse serviço útil com Auto-ajuda. O Dr. Thomas Bowdler
(1754-1825), de Edimburgo, “bowdlerizou" Shakespeare.

INDIVIDUALISTAS
O magnífico cirurgião de Yorkshire, Lord Moynihan (1865-1936), fez a palestra
Linacre em Cambridge em maio de 1936 sobre “Alunos faltosos". Moyniham era
um cirurgião campeão, numa época em que geralmente só a habilidade do
operador estava entre a vida e a morte do paciente. “Nada no artesanato de
qualquer arte é mais perfeito e belo do que a arte da cirurgia”, disse ele, num
desafio aberto ao Balé Real. Ele deu o nome à “calha Moynihan” nos intestinos e
ao fórceps Moynihan da vesícula. Seu pai era sargento e ganhou a Cruz da Vitória,
na Criméia. Quinze médicos que encontraram coisa melhor para fazer:
— Andrew Boorde (?1490-1549) escreveu O Pequeno Polegar, estudou medicina em Montpellier, entrou
para a ordem dos monges cartuxos, depois foi bispo sufragâneo de Chichester em 1521. Como o original Merry
Andrew, ele antecipou os hábitos modernos, fazendo discursos humorísticos nos fins dos jantares nas feiras,
escrevendo um livro de frases na língua da Cornualha, em galés, castelhano, holandês e romani, e com o
Breviário da Saúde dá conselhos sobre dieta, compra de casas, finanças pessoais, moda, sexo, corrida e sono.
Como agente secreto de Cromwell, foi enviado à Espanha, em 1535, para descobrir o que o povo pensava de
Henrique VIII. Não gostou de Glasgow, onde praticou a medicina por pouco tempo: “Não confie em nenhum
escocês, pois ele vai enganá-lo com palavras lisonjeiras, e tudo é falso.” Morreu na prisão.

— Georges Benjamin Clemenceau (1841-1929) exerceu a medicina em Montmartre, antes de ensinar


francês para meninas em Stratford, Connnecticut, e foi Primeiro-Ministro e Ministro da Guerra em Paris em
1917.

— Henry Faulds (1844-1930), de Glasgow, dirigiu durante 10 anos o Tsukiji Hospital, em Tóquio, onde
inventou a identificação pelas impressões digitais. As primeiras foram impressas em 1889 sobre desenhos dos
10 dedos feitos por gravadores japoneses. O que o seu contemporâneo. Sir Arthur Conan Doyle, teria feito
sem ele?

— Richard Jordan Gatling (1818-1903), da Carolina do Norte, inventou o fuzil Gatling que disparava 350
tiros por minuto.

— William Gilbert Grace (1848-1915), de Gloucestershire e Inglaterra não precisa identificação em nenhum
livro inglês.

— Joseph Ignace Guillotin (1738-1814) foi eleito para L 'Assemblé nationale em 1789, onde deu origem â
mais impressionante demonstração de democracia da história: o homem do povo podia ser decapitado como a
aristocracia O homem do povo, até então, era simplesmente enforcado. A invenção do doutor Guillotin podia
também substituir a punição cruel do desmembramento do condenado amarrado a quatro cavalos, quando o
carrasco tinha de cortar as juntas dos braços e das pernas do prisioneiro se os cavalos se cansassem.

Guillotin era um intrometido, com ares de benfeitor, que fez parte da comissão de Luís XVI para investigar o
magnetismo animal de Anton Mesmer, e era entendido em ventilação. Ele inventou a guilhotina, que foi
desenhada por seu colega Antoine Louis (1723-92), descobridor do ângulo de Louis, situado dois centímetros e
meio abaixo do estemo. A primeira foi construída pelo alemão fabricante de clavecinos, Tobias Schmidt. Sua
terminologia imita a elegância dos termos franceses para o esporte do esqui: o mouton, ou perna de carneiro, o
peso de 35 quilos que faz descer a lâmina, o declic, ou interruptor, que o bourreau, ou carrasco, aperta para
aplicar a lâmina ao paciente e que é empurrado contra o bascule, ou balanço, que imediatamente balança a
lâmina no sentido horizontal, sobre o pescoço preso na lunette, ou círculo de madeira. A cabeça é então segura
pelos cabelos, ou, no caso de calvície, pela orelhas, por te photographe, escondido atrás de uma tela à prova
de sangue. Se a Inglaterra tivesse adotado a guilhotina - em Halifax, no reinado de Eduardo III, as
decapitações foram numerosas - o membro escondido da equipe da execução seria sem dúvida “o guarda da
porta."

A primeira operação do “doutor” Guillotin foi em 25 de abril de 1792, na Place de Grève, mas logo passou
para a prática particular em 1939. O prisioneiro nunca sabia a data, sabia apenas que não podia perder a
cabeça no domingo ou nos jours fériês. Então, na hora mais negra, as guardas da prisão aproximavam-se
silenciosamente, sem sapatas, para abrir a porta, acordar o prisioneiro, dar a de um copo de rum e um cigarro e
devolver suas roupas civis, inclusive o chapéu. Quando o doutor Guilhotin recebia dois pacientes em seguida, a
cabeça alimentada ainda pela última pulsação do coração podia continuar à frente das eventos. Charlolte
Corday é famosa por seu corado post mortem e vários médicos gritavam para algumas cabeças cortadas,
tendo obtido reações encorajadoras.

Às 5:30 de uma manha em junho de 1905, a cabeça do condenado, separada do corpo, caiu aos pés de um
médico. Pálpebras e lábios continuaram a piscar e a se comprimir durante alguns segundos. Então, quando o
médico disse o nome do decapitado as pálpebras se ergueram lentamente, “como acontece na vida cotidiana,
com as pessoas despertadas das próprios pensamentos”, e os olhos se fixaram nos olhos do médico. Depois
disso, os croissants devem ter sido mastigados pensativamente. O doutor Guillotin morreu em casa, vítima de
carbúnculo.

- Sir Goldsworthy Gurney (1793-1985) era um cirurgião da Cornualha tão engenhoso que inventou o
refletor, o maçarico de óxido-hidrogênio, um piano que tocava em copos musicais, o navio a vapor a jato, a
carruagem de 1829 movida a vapor, que fazia uma média de 24 quilômetros por hora na viagem completa
Londres-Bath-Londres, um extintor de incêndios para as minas de carvão, uma lâmpada sinalizadora, um
método para os marinheiros identificarem os faróis e o aquecedor Gumey, para aquecer a Casa dos Comuns.

— Sir Leander Starr Jameson (1853-1917) está enterrado em Matopo Hills, de frente para Bulawayo, visto
do sul, ao lado do seu grande amigo Cecil Rhodes, que o levou para a Rodésia. Em 29 de dezembro de 1895 o
“doutor Jim” liderou seu ataque no Transvaal, para Iibertar o grupo de britânicos reunidos para apanhar o ouro
e os diamantes e que estavam sendo tratados ferozmente pelos boers. O colapso se deu no dia do Ano-Novo.

— David Kinloch (1559-1617), obstetra e poeta, quando viajava de Dundee foi aprisionado pela Inquisição
espanhola e condenado a ser queimado vivo. A execução foi adiada porque o Grande Inquisidor ficou doente.
Kinlock enviou, por meio de um dos guardas de prisioneiros da inquisição, um bilhete dizendo que era médico e
talvez pudesse ajudar. Ele curou o Grande Inquisidor e, ungido com sua gratidão, voltou para casa, na Escócia.
Bem, isso é o que conta a British Medicai Journal de 1" de maio de 1926.

— O reverendo Francis Thomas McDougall (1817-86), cirurgião, remou pela universidade de Oxford, foi
bispo de Sarawak e, depois de repelir um ataque de piratas chineses, em 1862, descreveu para o The Times,
com detalhes, sua arma feita em Londres, cano duplo, carregada pela culatra. “Era uma arma extremamente
mortal, com grande poder de tiro, precisão e rapidez. Nunca negou fogo em 80 tiros, e acredito que poderia
atirar mais 80 com o mesmo efeito.” Esse testemunho não agradou às instituições religiosas, que prezavam
seus gramados tranqüilos, suas pacíficas mesas de chá e os princípios humanistas em casa.

— Jean Paul Marat (1743-93), apunhalado no banho por Carlota Corday, era formado em medicina por St.
Andrews, Escócia. Estava no banho para aliviar a coceira do eczema.
— Francis Moore (1657-1715), clínico em Lambeth, Londres, em 1701 fundou o Old Moore's Almanac.

— James Parkinson (1755-1824) foi acusado de conspirar para assassinar George III, no teatro, com um
dardo envenenado, atirado por uma espingarda de ar comprimido. Ele deu seu nome à doença de Parkinson.
— James Startin (1806-72), dermatologista de Londres, descobriu um modo barato e eficiente para engomar
chapéus de feltro.

— Sir Charles Wyndham (1841-1919), de Liverpool, um dos cirurgiões de Lincoln na Guerra Civil, voltou
para a Inglaterra e foi trabalhar no teatro. É lembrado pelo teatro Wyndham, no West End, embora seu nome
verdadeiro fosse Culverwell. Foi sagrado cavaleiro por Eduardo VII, em 1902, quando foi relutantemente
conferida aos médicos e atores a honra de penetrar naquele círculo fechado dos cavalheiros.

E cinco que se distinguiram mais na área pessoal que na da medicina, onde não conseguiram se qualificar:
— O émigré armênio Michael Arlen (1895-1956), autor do romance da moda em 1924, O Chapéu Verde,
estudou medicina em Edimburgo. Ele era "mais brilhantina do que brilhante", segundo o The Times.

— Hector Berlioz (1803-69), o filho romântico de um médico de Grenoble, que enfureceu o pai porque
detestava a medicina.

— Johann Wolfgang Goethe (1749-1833) abandonou as aulas de medicina em Strasburg, mas em 1786 fez a
valiosa descoberta do osso intermaxilar, no maxilar superior.

— Christopher Isherwood (1904-86) estudou medicina no King’s College, em Londres, de 1928 a 29.

— Cecil Scott Forester (1899-1966) estudou no Guy's Hospital, mas lançou Hornblower.

OS MALCOMPORTADOS
Doze médicos piratas passaram pelos séculos XVII e XVIII. O que teve mais
sucesso nas duas ocupações foi Thomas Dover (1660-1742). Tinha um gênio tão
terrível que jamais conseguia um número suficiente de subordinados para fugir
com o resultado do saque. Em 1709, como capitão do Duke, tendo saído há um
ano de Bristol onde comandava o Duchess, Dover saqueou Guaiaquil, no
Equador, e curou da peste 172 dos 180 homens de sua tripulação abrindo-lhes as
veias dos braços e deixando-os sangrar até desmaiar. A caminho de casa, salvou
Alexander Selkirk (Robinson Crusoe) da ilha de Juan Fernandez, depois voltou
para Boston e continuou a praticar a medicina, obesamente rico.
Como todos os médicos, Dover tinha uma cura favorita, que só combinava com
a doença dos pacientes que tinham sorte. A cura era mercúrio, por isso ele ficou
conhecido como o “Doutor Mercúrio”. Ele inventou o pó de Dover, um remédio
para tosse que consistia na mistura de ópio e da raiz brasileira da ipecacuanha,
que lisonjeiramente para ele sobreviveu na farmácia britânica até a era da
penicilina. Dover era um pirata da honrosa tradição de Drake. A Inglaterra é uma
nação de piratas bem-sucedidos, cujo produto dos saques, o império britânico,
sobreviveu durante o mesmo tempo do pó de Dover.
Os médicos assassinos são memoráveis por sua espantosa incompetência. O Dr.
Crippen, de Hilldrop Crescent, Londres, em 1910 enterrou a mulher no porão
(exceto a cabeça, que até hoje não apareceu). O Dr. Buck Ruxton, perto de
Blackpool, em 1935 fez em pedaços a mulher e a criada, no banho, atribuindo o
sangue na passadeira da escada, nas cortinas, na sua roupa e nas camisolas delas a
um corte na mão, feito quando abria uma lata de pêssegos. O Dr. Pritchard, de
Glasgow, matou a mulher e a sogra em 1865 com acônito, e assinou as certidões
de óbito (causas das mortes, apoplexia e febre tifóide). O Dr. Palmer, de Rugeley,
deu estriquinina a um amigo das corridas de cavalo, em 1855, depois tentou
roubar o estômago dele durante a autópsia. O Dr. Cream, do Canadá, matou várias
prostitutas de Londres, em 1891, com estriquinina, o modo mais espetacular, com
convulsões violentas. Evidentemente, tudo que esses médicos precisaram para
matar foi uma modesta habilidade profissional.

OS BEM-COMPORTADOS
Céline (doutor Louis-Ferdinand Destouches, 1894-1961) pensava: “A medicina
é uma profissão individual. Quando a praticamos entre os ricos, parecemos
lacaios, e entre os pobres, parecemos ladrões.” As pessoas acostumadas a serem
tratadas como indivíduos importantes dificilmente se ajustam ao papel de ser
apenas um corpo. Mais alarmante ainda, que desastre para todos a sua invalidez,
ou, que perda indizível a sua morte! Churchill ordenava decisivamente que seus
dois médicos e suas doenças combinassem com suas idéias. Felizmente, foi
assistido por lord (“Charlie Saca-rolhas") Moran (1882-1977), um homem
confortavelmente apreciador da própria importância.
O médico de Hitler era o gordo e calvo Theo Morell (1886-1948), que foi
promovido de médico da moda em Berlim, especialista em dermatologia,
venereologia e impotência e que tratava com choques elétricos, a um dos
membros impopulares do séquito do Führer. Dia sim, dia não, Hitler abaixava a
calça do uniforme para Morell injetar vitaminas no Führerrumph. Durante a
guerra, a cerimônia passou a ser realizada cinco vezes por dia. Desde 1936,
quando Hitler reocupou a Renânia e mostrou para a Europa que estava falando
sério (pateticamente ineficiente), até 1945, quando se matou e à sua noiva e seu
cão, Morell secreta mente complementava as vitaminas com grandes doses de
anfetamina. Isso deixava o paciente “descansado, alerta, ativo e imediatamente
pronto para o dia... alegre, falante, fisicamente ativo e ficando acordado até altas
horas da noite”. Hitler tomava uma dose extra quando recebia más notícias. Tudo
que Churchill tomava era uísque.
Os médicos de Bismarck precisavam dominar respeitosa mente um apetite que
todas as noites devorava caviar para criar uma sede de canecas e canecas de
cerveja forte, sem o que ele não podia dormir. Os médicos de Frederico, o
Grande, precisaram despertar no paciente o entusiasmo pelo suco de taraxaco,
para substituir seu almoço favorito de sopa muito condimentada, carne russa em
brandy, milho italiano com alho e torta de enguia. Os de Luís XIV tinham de
manter quieta a blenorragia de sua majestade. Os médicos de George III tinham a
dura tarefa de remediar sua loucura.
De 1765 a 1810 o pobre rei George sofreu cinco acessos de loucura — uivando
como um cão, excitado, falando com os mortos invisíveis, perseguindo as damas
de companhia — cada um com a duração de seis meses, o último até sua morte,
em 1820, aos 82 anos. A doença evidentemente tinha complicações políticas que
foram tratadas com a regência de George IV, em 1811. Os médicos reais tratavam
o rei com os métodos da época, respeitavelmente imobilizando-o com camisas de
força. Era uma loucura causada por porfiria, uma disfunção metabólica, como a
diabete e a gota. Ele era uma disfunção química, não um rei. Mas o porfírio só foi
descoberto no sangue em 1863.
O médico pessoal da rainha Vitória era Sir James Reid, baronete (1849-1923),
um clínico geral enfadonho de Aberdeen, que ela havia conhecido em Balmoral e
que parecia um ovo de Páscoa com fartas suíças grudadas nos lados. Reid estudou
em Viena, por isso oferecia a atração de falar o alemão do falecido príncipe
Alberto, com o sotaque do seu devotado John Brown do Highland, que também
era paciente dele (Brown foi um mártir em todos os sentidos).
Quando Reid foi nomeado seu médico, em 1881, a rainha estava com boa saúde,
embora com algum excesso de peso, um pouco de reumatismo e gases (ela comia
demais e misturava uísque no clarete). Exercendo sua prerrogativa real de
hipocondria em Balmoral, Windsor ou Osborne, ela chamava seu médico mal
pago seis vezes por dia, ou o fazia interromper suas férias e, quando Reid estava
em viagem de núpcias, ela escreveu, tranqüilizando-o: "Os intestinos estão
funcionando perfeitamente.” Essa intimidade era inteiramente médica e, sem
dúvida, regiamente desfrutada. Ela criou Reid, do círculo pessoal da rainha.
Sir James tinha na corte uma influência de tirar o fôlego. Nenhum médico
britânico era recebido sem sua aprovação. Quando Gladstone se aposentou, em
1894, a rainha fez com que Reid escolhesse para substituí-lo Lord Rosebery, ao
invés de Sir William Harcourt, por “ter salvo a saúde da rainha”. Reid era um
esnobe na oficina do esnobismo. Ele considerava a ordem de Knight Bachelor, ou
Jovem Cavaleiro, apropriada “para todo tipo de homem comum”, e fez pé firme
por uma KCB, ou cavaleiro comandante de Bath, seis degraus acima na Ordem de
Precedência, e que ele recebeu depois do almoço, em Balmoral, em 1895, com
uma espada escocesa de dois guines.
Como a diversão favorita da rainha era ver bebês descendo ou almas subindo,
Sir James era seu companheiro natural ao lado dos aristocráticos leitos de parto e
leitos de morte. Ele executou as instruções carinhosas da rainha para os funerais
dos parentes, das criadas e de seu cão. Quando a rainha morreu, em 1901, havia
encarregado secretamente Sir James de se aproximar do caixão e pôr na mão
esquerda da morta o retrato de John Brown, morto há 18 anos, e uma mecha dos
cabelos dele. Sir James só há pouco tempo havia conseguido diagnosticar uma
hérnia e um grave prolapso do útero na sua paciente real Nos seus 20 anos de
médico comum e médico extraordinário ele jamais viu a rainha sem roupa. Eu
gostaria de saber se aconteceu o mesmo com seu querido Brown de Highland.
Na segunda-feira, 20 de janeiro de 1936, o rei George V estava morrendo em
Sandringham, onde os relógios eram sempre adiantados em uma hora (Eduardo
VII dera essa ordem para garantir a pontualidade de suas competições de tiro, 20
anos atrás). O médico real era Lord Dawson, de Penn (1864-1945), encantador,
sensível, jovial, impaciente, entusiasta da eutanásia, cortesão experiente e político
manipulador. Estava acostumado com os jornais, assinava os boletins expostos na
frente do Palácio de Buckingham, para informar ao povo a saúde precária de seus
governantes, e foi honrado, muito acima da sua profissão, com o título de
Conselheiro Privado.
Em volta dele, naquela noite, estavam o príncipe de Gales (por ar), Cosmo
Lang, o esnobe arcebispo de Canterbury e Ramsay McDonald, o agitado Primeiro-
Ministro. No jantar, Dawson escreveu nas costas de um cardápio sua imortal
sugestão de imortalidade: “A vida do rei caminha serenamente para seu fim.”
(Não se pode criar uma coisa como essa enquanto se toma sopa. Sem dúvida,
Dawson criou e poliu a frase enquanto, lá em cima, o paciente real estava ainda
comendo e bebendo.)
Enquanto essas notícias chegavam ao povo ansioso, através da BBC, o príncipe
de Gales, os duques de York e Kent e o secretário particular do rei reuniram-se
para planejar os funerais. Assim que se livrou do arcebispo, no quarto do rei,
Dawson se viu sozinho com a “calma e bondosa” rainha Mary e o nervoso
príncipe de Gales. Cinquenta anos depois foi revelado que eles já haviam
combinado com Dawson que ele não precisava se esforçar para manter o rei vivo.
Assim, às onze horas Dawson injetou uma dose alentada de morfina e cocaína na
jugular distendida do rei, o que acabou com ele quando faltavam cinco minutos
para a meia noite.
A hora final do rei era a hora do The Times. Dawson queria que a notícia fatal
fosse dignificada pelo The Times, com o editor já avisado por Lady Dawson para
reservar o meio da primeira página, e não anunciada pelo rádio, aquele parvenu,
do qual ele já devia estar farto naquela noite. O príncipe de Gales ficou histérico
e não parava de abraçar a rainha, até subir ao trono e mandar atrasar de uma hora
todos os relógios de Sandringham. Mais tarde, naquele ano, Dawson foi
promovido na Lista de Honra, desse modo estabelecendo o título de Visconde
como o padrão para regicídio na Grã-Bretanha.















CAPÍTULO 12
O corpo político

Pense no que significa a nossa nação...
Democracia e bons encanamentos.

John Betjeman,
“In Westminster Abbey".

A SAÚDE PÚBLICA
As Condições Sanitárias da População Trabalhadora na Grã-Bretanha foi
publicado em 1842 por Sir Edwin Chadwick (1801-90), comissário da Lei dos
Pobres, favorito de Jeremy (“a maior felicidade para o maior número”) Bentham,
advogado e engenheiro sanitário autodidata, criador dos encanamentos Cawnpore,
em 1871, homem de várias atividades e intimidador, protótipo defensor do meio
ambiente, que era ainda conhecido como o céu e a terra.
As condições da população trabalhadora eram péssimas. Os romanas foram um
povo limpo, os Tudor construíram encanamentos, mas os semeadores e fiandeiros
da antiga vida rural da Inglaterra, “levados pelas ventos do céu”, haviam trocado
as páginas de Thomas Hardy pelas de Arnold Bennett. Metade da nação havia
deixado os senhores rurais e o trabalho no campo para trabalhar nas fábricas,
amontoando-se nos bairros pobres e sujos da cidade. O índice de mortalidade,
que havia caído no período de 1780 a 1810, atingiu um pico perigoso. Os
cemitérios
atrás das igrejas transformavam-se em prósperas estalagens. Os corpos eram
exumados e enterrados em valas comuns, ou (diziam) transformados em pó de
osso, e o quarto era alugado para outro. As criptas das igrejas estavam lotadas
como latas de sardinha. Preocupado com o cheiro da cidade, o Dr. George
(“Cemitério”) Walker (1807-84), de Drury Lane, lançou seu protesto com o livro
Recolhidos dos cemitérios, e foi acusado de impiedade. Chadwick o apoiou e, em
1850, o Parlamento decretou que os religiosos podiam ser enterrados no porão da
igreja.
Em seu livro, As condições sanitárias, Chadwick definia a pobreza e a doença
como dois lados da mesma moeda. Porém, não se pode ver os dois lados de uma
moeda ao mesmo tempo. Nada foi feito para melhorar qualquer uma das duas
condições. Por sorte houve um grande surto epidêmico de cólera em 1847. Como
Saul e Davi, o tifo matou milhares, mas a cólera matou centenas de milhares. A
cólera matou 10.000 moradores de Londres naquele verão, suplantando todas as
outras epidemias habituais da estação. Quinhentos morreram nos viveiros
humanos do Soho, onde o excremento humano se misturava ao dos animais nas
pedras das ruas e o esgoto se misturava com a água potável. Essas eram as “cortes
da cólera”, de Florence Nightingale, que tratou das vítimas no Hospital
Middlesex, perto do Soho. Florence Nightingale sabia que a cólera era causada
pela sujeira e curada com a limpeza. Com desdém, considerava uma superstição
passageira a idéia de que a cólera se disseminava por contágio (os germes ainda
não tinham sido inventados). Como todas as suas opiniões, essa era vigorosa e
persistente, mesmo quando havia evidência inquestionável do contrário.
O parlamento ficou tão assustado com a epidemia de cólera que aprovou a Lei
da Saúde Pública em 1848. Essa lei determinava a criação de uma Diretoria Geral
de Saúde, da qual faziam parte Chadwick e Lord Shaftesbury (1801-85), o
incansável filantropo e campeão dos lunáticos, mulheres que trabalham e meninos
limpadores de chaminés. Shaftesbury foi o fundador (incentivado por Dickens)
das escolas para os pobres, dos abrigos para as crianças de rua, onde eram
vestidas, calçadas e aprendiam os princípios da Bíblia, e depois eram deportadas
para a Austrália.
A diretoria foi um fracasso. Um oficial médico da saúde foi nomeado para
Londres (a moderna Liverpool já tinha o seu), porém por mais enérgicas que
fossem suas recomendações não tinha ninguém para fazer o trabalho. Com exceção
de Sir Edwin Chadwick, que conseguiu notoriedade política sem igual, até
Edwina Curie cometer um erro. O The Times de 1o de agosto de 1854 dizia, a
respeito do plano de Chadwick de bombear para o centro de Londres a água do
Surrey: “Preferimos arriscar uma epidemia de cólera e outras mais a sermos
oprimidos pela diretoria de saúde." Em 15 de junho de 1983 The Times citou o
próprio artigo, num comentário sobre a dieta para controlar nossa epidemia de
doença coronária, acrescentando ironicamente: “Talvez muitos de nós guardem
ainda esses sentimentos.” Nós guardamos.
Em 1853 Chadwick foi demitido, e cinco anos depois a Diretoria de Saúde foi
absorvida pelo Conselho Privado. Em 1854 John Snow, anestesista da rainha
Vitoria, convencido de que a cólera era transmitida pela água, arrancou a
alavanca de uma bomba pública na Broad Street, no Soho. A cólera parou. (Como
nas melhores histórias médicas, isso foi inventado por seu biógrafo. Snow
explicou modestamente que a mortalidade decresceu porque todos tinham fugido
da cidade. Um ato tão impressionante de saúde pública, mesmo fictício, conferiu a
John Snow, em 1955, a honra de dar seu nome a um bar local, provavelmente
fazendo se torcer no túmulo aquele inimigo fanático da bebida alcoólica.)
Em 1872 surgiu outra Lei da Saúde Pública, com 343 seções dedicadas à
purificação da água, esgotos com água corrente, ruas limpas, moradias saudáveis,
recolhimento de lixo, inspetores dos alimentos, mercados limpos e enterros sob as
condições mais sanitárias possíveis. Aumentou o volume das opiniões a favor de
leis contra os seres humanos naturalmente sujos infectarem outros seres humanos.
Um cirurgião da Enfermaria Sunderland Eye, Reginald Orton (1819-62), estendeu
sua prática para exigir a revogação da lei do imposto sobre janelas, em 1851 (ele
também inventou o bote salva-vidas). O visitante da saúde nasceu em 1888, para
ensinar as mães a cuidar dos filhos. Na década de 1900 foram regulados a
profissão de parteira e o trabalho de crianças nas fábricas, e tornou-se obrigatória
a notificação de nascimentos e doenças infecciosas. Em 1904 foi infligido às
escolas britânicas o deprimente Comitê sobre Deterioração Física, inspirado na
surpresa escandalizada dos generais, na Guerra dos Boers, quando descobriram
que metade dos seus recrutas não tinha condições físicas para lutar. Depois de
1916, qualquer um podia exigir legalmente o tratamento anônimo da gonorréia.
Enquanto isso, os EUA começavam a sanitizar vigorosamente o grande número de
imigrantes que chegavam ao país.
Os políticos agora saltaram alegremente para o meio ambiente. O problema é
duplo:

— Aumento de CO2 do óleo e do carvão, que ultrapassa sua absorção normal pela vegetação cada vez
mais rara. Isso prejudica a atmosfera da Terra, impedindo a saída do calor do sol.
— Compostos de fluoreto emitidos por geladeiras e vaporizadores do tipo aerossol destmem o O3 da
camada de ozônio da atmosfera.
O que permite a passagem dos raios ultravioleta que provocam câncer de pele e catarata.

Para combater tudo isso usamos produtos sem chumbo e renunciamos ao
aerossol para vaporizar nossos móveis e nossas axilas. Os canos de escapa mento
dos carros prejudicam a atmosfera tanto quanto os nossos. Uma vaca contribui
para o efeito estufa emitindo 200 litros de gás metano por dia. Nós, os 5,3 bilhões
de seres humanos, somos menos flatulentos mas ganhamos de longe das vacas. Se
eu fosse um político idealista de olhos verdes, minha divisa seria: "Salvem o
mundo! Peidem dentro de uma camisinha!”

MENTIRAS, MENTIRAS AMALDIÇOADAS E


ESTATÍSTICAS
William Farr (1807-83) estudou medicina em Paris e passou a vida no
escritório do Registro Geral. Seu livro, Estatística Vital, em 1837 deu à medicina
um instrumento invisível tão potente quanto o microscópio. Os nascimentos,
casamentos e mortes de uma nação podem revelar ao estatístico muita coisa que
permite compreender e evitar os males do país. Esse tipo de aritmética desperta
muita desconfiança. Florence Nightingale dizia, com o dedo em riste: “Para
compreender os desígnios de Deus devemos estudar estatística, pois ela é a
medida do seu propósito.” O professor Theodor Billroth (1829-94), de Viena, o
primeiro cirurgião a remover o estômago, ironizava: “A estatística é como as
mulheres, espelhos da verdade e da virtude mais pura, ou como prostitutas, para
serem usadas à vontade do freguês.” O público desdenha: “Ora, pode-se provar
qualquer coisa com a estatística.” Mas só para aqueles que não compreendem a
estatística.
“Névoa por toda a parte. Névoa rio acima, onde ele corre entre as ilhotes
verdes e os campos; névoa rio abaixo, onde ele corre, poluído, entre as fileiras de
navios...” Os archotes do meio dia cederam lugar aos lampiões de gás acesos
muito cedo, mas a neblina espessa cobria ainda as mas de Londres, misturada com
a fumaça condensada de miríades de chaminés e penetrada pela chuva negra da
fuligem. Bleak House só precisou ser reescrita em 1956, depois da Lei do Ar
Limpo. Essa lei foi inspirada por um “Londres especial” dickensiano, em 1952,
que durou quatro dias e matou de bronquite 4.000 pessoas. Em 1952, o total de
mortes por bronquite em Londres e no País de Gales foi de 27.268, em 1987 foi
de 9.821, uma diferença alentadora de 17.447. Mas o público manteve a
estatística na linha encarregando-se da própria poluição, elevando o número de
mortes por câncer do pulmão de 14.218, em 1952, para 35.128 em 1987, uma
correção de 20.910.
O ameaçador “Capitão de todos esses homens da morte”, de Bunyan, não é mais
a consumpção, mas o câncer. A descoberta, em 1950, da salvaguarda contra uma
das suas formas mortais — e contra o ataque dos companheiros do Capitão,
isquemia cardíaca, pressão alta, gangrena das pernas e bronquite — foi sem
dúvida uma ocasião para ser comemorada com dança e vinho medicinal nos
hospitais. Na verdade, o público reclamou soturnamente. Não acreditava em
estatística. Seus argumentos subiram como fumaça: é tarde demais para evitar,
meu avô tem 90 anos e fuma 40 cigarros por dia, se deixar vou engordar, e quem
quer viver para sempre? Os políticos sentaram sobre as mãos ou as torceram, ou
ainda as estenderam para os fabricantes de cigarros, que têm todo o direito de dar
lucro a seus acionistas, mas não de usar o dinheiro para negar e ridicularizar uma
descoberta médica que salva nossas vidas, perante um público de ávidos
descrentes.
O que é a saúde? “Um estado de completo bem-estar físico, mental e social e
não apenas a ausência de doença ou enfermidade”, define a Organização Mundial
de Saúde, que não faz estatísticas mas ajuda tanto quanto a garantia de que a
felicidade só existe no céu.

A SAÚDE NACIONAL
O Serviço Britânico Nacional de Saúde foi fundado por Bismarck. O Chanceler
de Ferro, o piloto derrubado por Sir John Tenniel, na charge do Punch, em 1890,
conseguiu fazer com que o difícil Reichstag aprovasse, entre 1883 e 1889, leis
que criavam esquemas de seguros contra doenças, contra acidentes provocados
pelas máquinas cada vez mais numerosas e contra invalidez crônica entre os
trabalhadores do novo Império Alemão de Guilhenne I. O mundo jamais vira
coisa igual. Cem anos depois, quase o mundo inteiro tinha algo parecido. “Dê ao
trabalhador o direito de trabalhar, desde que ele tenha saúde. Cuide dele quando
ficar doente. Tome conta dele quando ficar velho”, disse Bismarck, tão
admiravelmente quanto Keir Hardie.
Bismarck estabeleceu o Ortskrankenkassen, fiando de seguro contra doenças
locais, com dois terços financiados e completamente controlado pelos
trabalhadores, que pagavam diretamente os médicos e laboratoristas. Antes de
descer a escada de piloto do Kaiser Bill, Bismarck declarava que seu Seguro
Social era uma realização alemã mais importante do que a unificação de 1871,
com a qual ganhou o respeito do povo. Estava convencido de que a perspectiva de
uma pensão na velhice manteria os trabalhadores satisfeitos para sempre.
O Chanceler das Finanças do governo liberal de Asquith, em 1908, era Lloyd
George (1863-1945). “O povo” estava tão perto de seu coração quanto “os
duques” estavam da sua maldição. Seu primeiro orçamento, em 1909, foi, como
era de esperar, “para o povo”, portanto indigesto para os nobres amigos dos
duques da Casa dos Lordes. Eles não o aceitaram e determinaram eleições gerais
em 14 de janeiro de 1910, depois do que Lloyd George, sensatamente, foi
descansar na Côte d’Azur.
Lloyd George enviou um funcionário subalterno do Tesouro, W. J. Braithwaite
(1875-1938), filho de um pastor protestante que se tomou especialista em imposto
de renda, à Alemanha para descobrir como Bismarck havia feito tudo aquilo. Na
manhã de terça-feira, 3 de janeiro de 1911, Braithwaite chegou a Nice pelo
expresso noturno. Lloyd George o convidou a se juntar a alguns amigos, no porto,
e enquanto bebiam, eles o ouviram falar durante horas (prudentemente, haviam se
distanciado da banda do porto). Sob o famoso sol de inverno da Riviera, acima
do calmo e ainda não poluído Mediterrâneo, possivelmente tomando Pernod e
comendo pequenas azeitonas pretas, foi concebida a Lei Nacional de Seguro de
Saúde de 1911, que cresceu e se transformou na Lei do Serviço Nacional de
Saúde de 1946. Não existe nenhum cais em Nice, mas A.J.P. Taylor, que conta a
história, acha que a reunião no cais melhora muito a narrativa.
A saúde do povo era para Lloyd George um item solene, que ele transformou em
evangelho. Antes de Lloyd George, o potencial da saúde para angariar votos
nunca fora levado em conta. A fome trazia a revolução, mas a doença era um
sofrimento particular, muito além dos medicamentos da política. A descoberta de
Lloyd George criou o culto moderno da saúde, contemporâneo do transporte de
massas, propaganda das massas e diversão das massas.
Naturalmente, alguns seres humanos saudáveis e bondosos sempre se
preocuparam com os doentes. Os membros do Parlamento, em 1834, fizeram
emendas na lei dos pobres para criar enfermarias nos asilos, onde os pobres
locais podiam morrer. Benfeitores particulares fizeram grandes doações em
dinheiro aos hospitais para os velhos, como o Guy’s ou Thomas ou São
Bartolomeu, que foi fundado pelo monge Rahere em 1123 e refundado por
Henrique VIII, para os pobres doentes, que começavam a se tomar um problema
incômodo nas ruas de Londres. Nos saguões de todos os hospitais do país existem
longas listas com os nomes dos que foram imortalizados por suas doações,
geralmente em termos razoáveis, e é pena que o socialismo tenha arrogantemente
eliminado a caridade da medicina no Serviço Nacional de Saúde. Não vai mais
haver o Dia da Bandeira, com enfermeiras bonitas batendo em latas, para angariar
donativos.
Houve uma dolorosa separação entre esses orgulhosos hospitais, onde os
médicos aplicavam seus conhecimentos de graça e as enfermeiras sua devoção
por muito pouco, e os asilos para os pobres onde eles definhavam com humilde
esperança. Os hospitais voluntários podiam escolher seus pacientes, favorecendo
os poucos casos agudos e interessantes em detrimento dos casos crônicos. Com
arrogante tradicionalismo britânico, essa separação persistiu entre os hospitais
voluntários e os municipais até a madrugada pintada de vermelho do Serviço
Nacional de Saúde.
Os médicos anteriores a Lloyd George já estavam nas folhas de pagamento de
certas sociedades, como Oddfellows ou os Druidas, ou eram empregados pelos
sindicatos dos mineiros e dos ferroviários, ou ainda dirigiam seus próprios clubes
de saúde (os membros que conseguiam novos sócios ganhavam 25% de
comissão). Um funcionário que ganhava meia coroa por ano valorizava o paciente
e o médico aos olhos do público — a não ser aqueles que consumiam uma garrafa
de medicamento por semana, o sindicalista que gostava de tratá-lo como
empregado e as mulheres que mandavam nele como se fosse um criado. Sempre se
encontrará na prática da medicina um grande número de gananciosos e mal-
educados.
I.loyd George resolveu fazer mais do que os alemães. Ofereceu ao eleitorado
“nove pence por quatro pence”, o que parecia um bom negócio. Todos os
trabalhadores que recebiam menos de três libras por semana pagavam quatro
pence, seus empregadores três pence, o Estado dois pence e o médico ganhava
seis shillings por ano. Os alemães haviam contribuído com nove pence e tinham
de pagar os três primeiros dias de tratamento, que na Grã-Betanha eram de graça.
Bismarck concedia o benefício-matemidade de seis semanas, mas Lloyd George
determinou uma concessão de 30 shillings para a maternidade, uma vez que para
os britânicos a gravidez não era doença. Mulheres casadas, não grávidas, crianças
e donos dos próprios negócios não recebiam benefícios, embora lhes fosse
permitido o seguro privado de saúde. Tanto na Alemanha quanto na Grã-Bretanha
o pagamento era compulsório, dedutível do ordenado e envolvia os correios,
cartões e selos. Na Inglaterra havia uma respeitosa confusão quanto ao lato de as
duquesas serem obrigadas a inscrever suas criadas no plano de saúde.



OPINIÕES PROFISSIONAIS

Os médicos objetaram violentamente. Comícios gigantes de médicos foram
realizados em Manchester e no Queen’s Hall, em Londres, onde eles cantavam
“Rule Britannia''. Os médicos diziam que o paciente seria obrigado, contra sua
vontade, a consultar o médico escolhido pelo governo, o que era contra a ética.
Além disso, ia arruinar as clínicas particulares. Corria o rumor de que médicos
trapaceiros da Escócia estavam se mudando para a Inglaterra. Levas de
estrangeiros doentes estariam atravessando o Canal para tratamento de graça à
custa do contribuinte britânico. Os pacientes que constavam das listas do governo
estavam morrendo porque os médicos, sobrecarregados de trabalho, não podiam
atendê-los e, além disso, as salas de espera não tinham nenhum aquecimento. A
confusão toda serviu para projetar os médicos nos comitês de controle e aumentar
seus honorários. Como a maioria dos alvoroços britânicos, esse também se
acalmou. "Os médicos lamberam suas feridas, e as duquesas, seus selos”,
concluiu E.S. Turner.
O Ministério da Saúde, fundado em 1919, era um amontoado burocrático de
governo local e comércio de seguro de saúde que minimizou sua ineficiência
criando o Conselho Consultivo para planejar a melhoria da saúde da nação. O
major-general Dawson, da Academia Real de Medicina e Cirurgia, havia feito
várias conferências sobre o assunto, e quando deu baixa foi eleito presidente.
Logo tomou-se Lord Dawson, e mais tarde matou o rei. Ele também achava que
Hitler era um cara legal e que os desempregados deviam ser submetidos
compulsoriamente a tratamento de choque.
O relatório Dawson, de 1920, descrevia as linhas básicas de um serviço de
saúde que abrangia de professores a farmacêuticos. Seriam criados "centros
primários de saúde”, com leitos para os clínicos gerais tratarem seus pacientes, e
“centros secundários de saúde” para os pacientes que não melhoravam. Pacientes
com doenças infecciosas ou mentais seriam isolados, e todos deviam ter uma ficha
médica detalhada. Os médicos iam dirigir o show, como soldados e marinheiros
dirigiam o exército e a marinha (“A prática de pôr os qualificados sob controle
dos não-qualificados precisa acabar”, era um dos modos de ver o Serviço Civil.)
O gráfico do plano Dawson foi riscado com lápis políticos de várias cores.
Neville Chamberlain (1869-1940) tomou-se Ministro .da Saúde em 1924, e em quatro
anos conseguiu a aprovação do Parlamento para 21 projetos de leis de reformas
do plano e aboliu os dispendiosos quadros de guardiães locais que aplicavam as
leis dos pobres, misturando-os confusamente com as leis que regiam a medicina.
Na II Guerra Mundial, com o espírito admirável que começou a planejar o Dia D
em Dunquerque, a saúde permanente e a felicidade do povo britânico foram
estudadas intensivamente. O relatório Beveridge, de 1942, postulava um Serviço
Nacional de Saúde. O relatório refletia uma retificação bastante atrasada da
injustiça social há tanto tempo suportada pelos britânicos ou um reconhecimento
tardio da crença arraigada de que todas as coisas desagradáveis da vida —
doença, educação, desemprego, pensões, água da torneira, estradas, lixeiros,
trens, museus, policiais, funerais — deviam ser pagas por Outra Pessoa Qualquer.
O fato de que essa Pessoa, no fim, era sempre “Ele”, jamais passou pela mente do
povo.
A profunda e contínua preocupação com a saúde da nação foi usada pelos
trabalhistas para vencer as eleições de 1945, e outro galés chegou com outro
plano de saúde. Os médicas objetaram violentamente.
Nye Bevan (1897-1960) arranjou tudo com Charlie “Saca-rolhas” e Charles
Hill (1904-1989), secretário da Associação Britânica de Medicina, famoso
também como o “Doutor do rádio”, de rica fraseologia (como “pequenos
trabalhadores de casacos negros”, quando queria dizer os “chatos”). Nye Bevan
percebeu que o caminho para a medicina para todos, independente do preço, era
"tapar com ouro as bocas dos médicos”. Dois fósseis de 1948 estão tão vivos e
suculentos hoje quanto whistables recém-abertos.
O número mágico “9/11os” nos contratas dos médicos significa que nove dos 11
meios-dias de cada semana de trabalho (no tempo de Nye Bevan todo mundo
trabalhava nas manhãs de sábado, se dá para acreditar) você trabalhará por um
salário, para o Serviço Nacional de Saúde, mas pode ter uma clínica particular
nos restantes 2/11os que incluem domingo, o fim do dia, o nascer do dia e altas
horas da noite, se tiver forças suficientes e se for suficientemente ambicioso. A
outra mordaça de ouro de Nye era um “prêmio ao mérito”, dado secretamente por
seus colegas médicos e acrescentado ao seu salário e à sua pensão. Qualquer
companhia da cidade que premiasse seus diretores com a mesma discreta
generosidade teria de enfrentar uma turbulenta reunião anual dos acionistas,
seguida pela chegada do esquadrão contra a fraude.
O Serviço Nacional de Saúde foi inaugurado na segunda-feira. 5 de julho de
1948, com a banda dos mineiros tocando de madrugada “O Happy Morn”. Já
funcionava eficientemente há nove anos.
Entre 3 de setembro e 3 de novembro de 1939 o governo britânico previa
600.000 mortos e 1.200.000 feridos em ataques aéreos. O Ministério da Saúde
precisava de 3.000.000 de leitos hospitalares imediatamente. (O número total de
baixas na guerra foi de 60.000 mortos e 235.000 feridos, embora até a diminuição
da blitz, em 1941, tenham morrido mais civis do que militares na Grã-Bretanha.)
Assim, o governo inaugurou o Serviço Médico de Emergência, tendo o Ministro
da Saúde como ditador e pagador. O Serviço Médico de Emergência na realidade
era dono de todos os hospitais britânicos, e acrescentou aos que corriam perigo
de serem bombardeados, enfermarias pré-fabricadas e teatros operatórios que se
estendiam pelos campos verdes, enquanto centros especiais eram criados para
cirurgia do tórax, do cérebro, dos membros e cirurgia plástica, o serviço de
transfusão de sangue foi nacionalizado, o serviço de patologia racionalizado e os
“asilos” vitorianos transformados em movimentados hospitais-escolas. Os
canadenses, depois os ianques ergueram seus hospitais sofisticados, que ficaram
para socorrer seus anfitriões.
A única diferença fundamental entre o Serviço Médico de Emergência e o
Serviço Nacional de Saúde foi a abolição do sistema de Lloyd George de painéis
determinados para os clínicos gerais. Assim como a diferença fundamental entre o
estado de guerra e o do Bem-estar foi a bem-vinda ausência das ambas.

PACIENTES PROBLEMÁTICOS
“O desejo de tomar remédio é talvez o fator principal que diferencia o homem
dos animais’’, observou Sir William Osler. Ninguém havia notado isso antes. O
gênio britânico tem uma capacidade infinita de tomar comprimidos. Lendo os
jornais de 1949 verificamos que o país inteiro estava pedindo dentes de graça,
perucas e pernas artificiais, com estepes. Nye Bevan imaginou que o tratamento
gratuito daria tanta saúde aos eleitores e tão rapidamente que o serviço médico
desapareceria, como o estado na imaginação de Engel sobre o comunismo. Essa
completa falta de espírito mundano indica que Bevan realmente havia alcançado o
topo como funcionário sindicalista do Sul de Gales.
O maior surto de desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde, como a
enfermagem profissional emergindo da Guerra da Criméia, foi inesperado. Os
hospitais se humanizaram. A doença do paciente não era mais considerada
propriedade do médico. O paciente não era mais recebido friamente, despido,
confinado ao leito e às comadres e depois, numa certa manhã, posto numa maca
por dois estranhos e levado a outro estranho que o punha para dormir e, alguns
dias depois, recebia suas roupas e era mandado para a fila do ônibus. Os
pacientes que ousavam fazer perguntas recebiam a resposta benevolente do
médico: “Sua doença tem um nome muito comprido em latim que você não
entenderia."
Agora a comida era preparada como se alguém fosse realmente comer. As
enfermarias perderam o rigor e a disciplina das prisões. “Na frente de cada cama,
confrontando o paciente moribundo, estava uma televisão. A televisão ficava
ligada de manhã à noite”, escreveu Aldous Huxley em 1932, e o Serviço Nacional
de Saúde logo alcançou o Admirável mundo novo.
A maior parte dos planos de saúde das nações reflete sua atitude médica. De
acordo com o plano britânico, o paciente particular paga para não esperar e o
paciente do Serviço Nacional de Saúde espera para não pagar. Os canadenses
regulam os honorários dos médicos e dos hospitais, e a maioria reembolsa os
pacientes. Os americanos tratam do substrato social e deixam que o resto, ou seus
empregadores, comprem seus seguros-saúde. Um canadense custa duas vezes mais
do que um britânico, e um americano quase três vezes mais, para se manter com
saúde. O Serviço Nacional de Saúde oferece um bom valor por menos dinheiro
porque não tem opção.
Em 1909 Lloyd George declarou: “este é um orçamento de guerra, com o fim de
levantar fundos para a guerra contra a pobreza e a doença". Em 1960, Knoch
Powell fez “a desanimadora descoberta que todos os ministros da saúde fazem no
começo ou logo depois do começo do seu mandato, que o único assunto que ele
terá de discutir com os médicos é dinheiro". Saúde melhor — bem, melhores
serviços — significa impostos mais altos, politicamente o caminho para Beachy
Head.
O Serviço Nacional de Saúde, como o carro feito numa tarde de sexta-feira,
precisa de consertos desde o começo. Suas comissões de inquérito trazem os
maiores nomes do pós-guerra do nosso país: Guillebaud, Maud, Porritt, Gillie,
Cranbrook, Bonham-Carter, Salmon, Seebohm, Robinson, Crossman, Castle,
Powell e... bem... Cogwheel. O Serviço Nacional de Saúde foi reformado em
1974 com tanta eficiência que, cinco anos mais tarde, teve de ser reformado outra
vez. Desde então tem sido reformado uma vez ou outra, dependendo do que
aparece nos jornais da manhã. Em 1990. o governo resolveu que devia ser
adequadamente reformado. Deveria se transformar num servido pago para
pacientes particulares, só que ninguém pagou coisa alguma. Os médicos objetaram
violentamente.
Nunca a legislação foi tão necessária. Nunca foi tão pouco desejada", lamentou
o ministro.
Nem o porta-voz médico da senhora Thatcher nem o senhor Major, nem o
senhor Kinnock, mas Lloyd George, em 1911.

TRIUNFO E DESASTRE
As doenças ardentes da juventude foram apagadas, as brasas da idade
confinadas, as facilidades da vida engenhosamente melhoradas, multiplicadas e
espalhadas, os doentes ficam bons e ficam doentes outra vez. Os velhos de hoje
são os mortos de ontem.
O leitor inteligente com certeza compreendeu que o potencial da medicina é
infinito, as exigências da medicina não devem sofrer restrições, mas os recursos
para a medicina são limitados. A não ser que um político destemido consiga um
acordo não-político entre os três. a história da medicina, como a história do
mundo em 1066 e Tudo o Mais, volta ao marco zero.
Um pequeno passo para um
homem, um salto gigantesco
para a humanidade

1 A circulação do sangue, descrita para Charles I por William Harvey, em


1628, muito respeitosamente.
2 Vacinação contra a varíola, descoberta por Edward Jenner em 1796,
depois que a ordenhadora de faces coradas de Gloucester deu a pista: “Oh, não
senhor, mas eu não posso apanhar varíola porque, o senhor compreende, já tive a
varíola bovina.”
3 A teoria da evolução em 1859, de Charles Darwin, que passou cinco anos
extremamente desconfortáveis navegando pelos mares do sul com 73 outros
passageiros no HMS Beagle, de 27 metros e meio de comprimento e 242 toneladas,
para criá-la.
4 A anestesia, inventada por dois dentistas da Nova Inglaterra em meados
dos anos 1840, com a idéia razoável de ganhar uma fortuna com ela.
5 Anti-sepsia na cirurgia, inventada por Lord Lister, com seu vaporizador de
ácido carbólico movido a vapor, o “burro mecânico”, em 1865.
6 A descoberta dos micróbios por Pasteur, Koch e uma porção de alemães
de mente bem ordenada nos atarefados últimos 20 anos do século XIX.
7 Medicamentos para curar infecções, descobertos por Gerhard Domagk, na
Renânia, um mês antes da invasão de Hitler, em 1933. Foram as sulfonamidas que
levaram Florey à descoberta da penicilina, em Oxford, no ano da Batalha da Grã-
Bretanha (Fleming pouco teve a ver com isso).
8 Vitaminas, vestígios nos alimentos clinicamente notáveis por sua ausência,
observadas por Sir Frederick Gowland Hopkins em Cambridge, em 1912.
9 Raios X, descobertos acidentalmente pelo modesto e sonhador Wilhelm
Röntgen, em Würzburg, em 1895, e a descoberta do rádio por Pierre e Marie
Curie, de Paris e Varsóvia, em 1898.
10 As dominadoras glândulas endócrinas, localizadas no corpo entre 1854 e
1922 por Claude Bernard, da Sorbonne, que descobriu que nós temos um milieu
intérieur, por Banting e Best, de Toronto, a insulina, e por Harvey Cushing, de
Baltimore, a pituitária.
11 Psiquiatria — Freud, na década de 1890.
12 A configuração da molécula de ADN, a hélice dupla de Crick e Watson,
de Cambridge, na década de 1960, a década em que o homem começou a explorar
sua química interior e o espaço exterior.

Disso podemos ter certeza, que a ciência, obedecendo à lei


da humanidade, sempre trabalhará para estender as fronteiras da vida.

Louis Pasteur,
inaugurando o Instituto Pasteur, em 1888.

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