2486 A Assustadora Historia Da Medicina Richard Gordon
2486 A Assustadora Historia Da Medicina Richard Gordon
2486 A Assustadora Historia Da Medicina Richard Gordon
A IMPOPULARIDADE DA MORTE
Timor mortis conturbat me — a idéia da morte me deixa morto de medo,
exclamou William Dunbar (?1465-?1530), o Chaucer escocês, se é que tal
transmigração é possível. Esse temor compreensível criou a religião e a
medicina.
A antiga igreja católica era contra os médicos. Eles interferiam no negócio da
morte. Os corpos aninhados em volta de suas torres de marfim enfatizavam o fato
de que a recepção dos seus patronos seria tão calorosa no céu quanto o castigo
dos outros, no inferno. A causa da doença era, evidentemente, o pecado, seu
tratamento era a oração, o jejum e o arrependimento. Os santos dirigiam o corpo.
Santa Blaise se encarregava da garganta, Santa Brígida dos olhos, e Erasmo das
entranhas, Santo Dympna era o psiquiatra, São Lourenço especializava-se em
dores nas costas, São Fiacre, em traseiros doloridos (ele deu o nome à pequena
carruagem francesa). São Roque distribuía as pragas, São Vito tinha sua dança, O
Fogo de Santo Antonio assava os membros, acesos pela infecção ou pelo
envenenamento pelo ergot do pão de centeio. A primeira operação de transplante
foi feita pelos santos gêmeos, Cosme e Damião, que substituíram a perna ulcerada
de um homem branco pela de um negro morto recentemente (de Sedano
representou isso no seu quadro). Os gêmeos foram decapitados em 303 d.C.,
acusados de serem empecilhos não-ortodoxos.
Pior ainda, o corpo humano era considerado sagrado e a dissecação proibida
(os muçulmanos continuam com essa crença). Desse modo, o conhecimento do
corpo permaneceu à flor da pele.
Galeno reclamava que um médico sem anatomia era um arquiteto sem um plano,
mas ele também tinha de se contentar com a dissecação dos macacos da Berbéria,
que enfeitam hoje Gibraltar. Trotula (c. 1050), uma das “damas obstetras de
Salerno” (as outras eram Abella, Constanza e Rebeca), escreveu De Mulierum
Passionibus, foi celebrizada de Navarra a Paris na canção “Dame Trot” pelo
famoso trovador Ruteboeuf, mas mesmo assim tinha de dissecar porcos. Ela se
consolava com o fato de os porcos serem iguais aos homens, por dentro. No outro
lado do Mediterrâneo, na escola de medicina de Alexandria, fundada em 332
a.C., Herófilo e Erasístrato (c. 300 a.C.) já tinham a solução anatômica: eles
dissecavam vivos os criminosos da prisão real. “Sem dúvida, o melhor método
para aprender", escreveu Celso, aprovando.
A anatomia estava morta e a medicina nasceu morta. A religião é sem dúvida a
Coisa Boa, oferecendo os meios valiosos para instalar sobre os ombros do
homem auto-afirmativo o peso de alguém mais importante do que ele, com um
conjunto excelente de regras com as quais, na maior parte das vezes, ele não
consegue dirigir sua vida, oferecendo esperança, consolo, orientação e
humildade, além da maravilhosa arquitetura da Basílica de São Pedro e do Taj
Mahal. Mas ela sufocou a medicina durante 15 séculos.
OLÁ, RENASCIMENTO!
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um anatomista casual. A rainha conserva em
Windsor seu encantador desenho de um casal cortado ao meio, fazendo sexo.
Estão de pé, e o desenho apresenta em corte longitudinal o pênis firmemente
inserido na vagina, com nervos vigorosos transmitindo o prazer para a medula
espinhal do homem, seu coração bombeando o sêmen para fora do escroto por um
longo tubo espinhal e o útero dela ligado ao mamilo. O detalhe que acompanha o
desenho, um pênis cortado como uma lingüiça, mostra corretamente as cavernas
esponjosas, inundadas de sangue durante a ereção. A outra ilustração,
representando a genitália feminina, faz lembrar a robustez da entrada de uma
catedral. Tudo uma concepção razoável dos eventos.
Em Paris, o estudante de medicina Andreas Vesalius (1514-64) encontrou, fora
dos muros de Louvain, perto de Bruxelas, onde nasceu, um patíbulo onde
balançava um esqueleto dissecado completo com ligamentos. Ele correu para
casa com aquela preciosidade — qualquer esqueleto humano era uma avis rara
— e iniciou sua carreira, que culminou com um anfiteatro anatômico lotado, em
Pádua (Ticiano pintou o quadro). A perfeição artística do belo atlas anatômico de
Vesalius, De Humanis Corporis Fabrica, mostra os corpos esfolados, os
músculos abrindo-se como pétalas de uma flor, a vivacidade vigorosa dos tenistas
de Wimbledon. Ele destronou bravamente Galeno, depois de descobrir que a
mandíbula era um único osso, não dois, que o esterno é formado por três ossos,
não sete, e que os filhos de Adão não têm uma costela a menos, e portanto Eva
deve ter vindo de algum outro lugar. Tudo isso provocou a ira dos que, desde o
começo do mundo, se julgavam importantes.
A heresia e a blasfêmia persistiam como disfarces pomposos para oprimir a
liberdade da palavra, a qual sempre escolhe assuntos que provocam
implicitamente nos opressores um mal-estar secreto. O próprio Papa Urbano VIII
devia perder o sono, imaginando que talvez Galileu estivesse certo, e e pur si
muove. Michael Servetus (1509-53) foi queimado vivo por Calvin, numa fogueira
alimentada por seus livros, por ter descoberto a circulação pulmonar. Vesalius foi
obrigado a abandonar a anatomia quando tinha 30 anos, e foi ser médico da corte
em Madri. Ele dissecou um nobre espanhol, que se moveu alarmantemente sob o
bisturi, o que provocou a ira da Inquisição, que o condenou a uma peregrinação
expiatória a Jerusalém, na qual o navio naufragou e ele morreu de fome na ilha
grega de Zante. Depois de Vesalius, vieram Eustáquio (1510-74) e Falópio
(1523-62), famosos por suas trompas, a primeira no ouvido médio, a outra na
pélvis feminina.
No século XI, Salerno, da Dame Trot, foi o primeiro centro de excelência
médica, uma expressão usada hoje para designar a si próprios por Guy, Bart,
Tommy etc. Esse balneário popular veio a ser a original Cintas Hippocratica, um
ponto de reunião para médicos, numa bela paisagem e isenta de impostos.
Napoleão fechou a escola de medicina em 1811. Não existe mais, como o resto da
velha Salerno, depois do bombardeio para o desembarque dos aliados em 9 de
setembro de 1943.
A escola de medicina de Salerno foi suplantada em excelência, durante o
século XIII, pela escola de Montpellier, e depois pela de Leyden, perto de Haia,
fundada por Guilherme de Orange em 1575. A estrela de Leyden era Hermann
Boerhaave (1668-1738), um médico prático que lecionava elegantemente em
latim, e atraiu estudantes até da America, estendeu sua clínica particular até a
China e deixou dois milhões de florins. Durante um breve período, Montpellier
abrigou o bêbado, errante, agressivo e arrogante Paracelso (1668-1738) de
Zurique, que começava suas aulas queimando as obras de Galeno e desdenhava os
médicos tradicionalistas, seus contemporâneos, médicos com mantos de veludo e
que falavam latim. “Eu não agrado a ninguém, exceto aos doentes que curo”,
gabava-se ele, com razão. Montpellier produziu o único papa médico, João XXI,
que morreu quando o teto lhe caiu em cima.
Sessenta e cinco anos depois de Vesalius se tornar seu professor de anatomia e
cirurgia, Pádua ensinou William Harvey (1578-1657), de Folkstone, que era
baixo, moreno, com cabelos crespos, agitado e falante e que voltou para casa para
trabalhar no Hospital São Bartolomeu e para James I e Charles I.
Todo mundo sabia que o sangue se movia, fosse pela observação da artéria de
uma ovelha abatida, fosse pela tendência do homem para matar e ferir seus
semelhantes (Harvey sempre usava uma adaga no cinto). Até o século XVII,
imaginava-se que o sangue saía e entrava, como as marés. Em 1628, Harvey
demonstrou que ele percorria um caminho circular, como a música da década de
1930.
Havia uma dúvida: como o sangue voltava ao coração através da carne?
Galeno havia dito que ele passava de um lado para o outro do coração. “Somos
levados a admirar o maravilhoso artesanato do Todo-Poderoso”, comentou
Vesalius, sarcasticamente, “que faz o sangue se escoar do ventrículo direito para
o esquerdo por passagens invisíveis ao olho humano”. A resposta tantalizou os
estudantes de Harvey durante 32 anos.
O microscópio foi inventado acidentalmente por um óptico holandês que
introduziu duas lentes num tubo. Antony van Leeuwnhoek (1632-1723), de Delf,
explorou a invenção — ele tinha 247 microscópios e foi o primeiro homem a ver
o próprio espermatozóide. O microscópio, de Marcello Malpighi (1628-94), de
Bolonha, revelou o elo que Harvey procurava, mostrando o corpo todo percorrido
por capilares minúsculos que canalizavam as artérias para as veias. A partir de
então, o corpo foi alegremente examinado ao microscópio e estudado pela
anatomia por toda a Europa.
CORPO E ALMA
Nosso corpo é o mesmo velho corpo do homem primitivo. É sujeito às mesmas
velhas doenças. Nossos crânios são ainda os mesmos nos quais os antigos bem-
intencionados, com uma lógica dolorosa, faziam buracos para aliviar dores de
cabeça ou libertar os demônios da loucura. As múmias sofreram de apendicite,
artrite e dentes estragados. (Para mumificar, insere-se um gancho no nariz para
retirar o cérebro, abrem-se os flancos e rega-se, como um frango no forno, com
especiarias e sal durante 70 dias.) Até os dinossauros tinham problemas de
coluna.
Os cadáveres eram a terra comum na qual a medicina pastava e engordava. O
material era filantropicamente fornecido por criminosos, para os quais a
dissecação sangrenta assustava mais do que a ameaça da forca. Quando o estoque
ficava baixo, em Edimburgo, para o cintilante professor Robert Knox (1791-
1862), Burke e Hare sempre podiam desenterrar alguém para ajudar. O problema
desses dois homens era a preguiça. Para não ter de acompanhar enterros, evitar
cautelosamente os parentes do morto e cavar no escuro, com pás de madeira para
não fazer ruído, eles embriagavam corpos vivos com uísque, estrangulavam e os
vendiam por 7,10 libras cada um. Era enorme o número de “ressurrescionistas”,
até que a Lei Britânica da Anatomia, em 1832, substituiu o preenchimento de um
formulário por voluntários visionários. Houve um grande debate em Montreal, em
1875, quando o tifo dizimou os ocupantes de uma escola/convento, e as freiras e
crianças foram roubadas antes que os pais americanos chegassem para levar os
corpos para casa.
Os anatomistas gravaram seus nomes em nós, com o mesmo amor com que os
namorados gravam os seus nas árvores. Nós abrigamos as criptas de Lieberkühn,
no envoltório dos intestinos. O círculo de Willis, que é a junção das artérias na
base do crânio. A ampola de Vater, que guarda a extremidade do duto biliar. O
forame de Wilson, uma abertura no peritônio, abaixo do fígado. A fossa de
Rolando, no cérebro, e a bainha de Schwann, nos nervos. O saco de Douglas,
atrás do útero, o canal de Alcock, na pélvis ("não na vagina”, zombam os
estudantes de medicina). O nervo de Bell, no peito, o músculo de Santorini, na
face, o ligamento de Poupart, na virilha, o triângulo de Scarpa, na coxa... Você
encontra, dá seu nome à descoberta. Esse egoísmo exuberante fez de nós gloriosos
Panteões ambulantes para os maiores médicos de cinco séculos. E por que não?
Nesse meio tempo os médicos fizeram a vontade da igreja, procurando a alma,
porém nem Sir Thomas Brown, das universidades de Oxford, Montpellier, Pádua
e Leyden, conseguiu encontrá-la. René Descartes (1596-1660), que promoveu
l’homme-machine (o homem era um deux-chevaux, Deus, seu Criador, com o
Espírito Santo no tanque), descobriu a alma na glândula pineal, uma gotícula atrás
do principal ventrículo do cérebro. Ninguém sabe o que faz a glândula pineal,
mas nos faz mais felizes à luz clara do sol, portanto talvez ele estivesse certo.
William Harvey escreveu em Exercitatio Anatomica de Motu Cortis et
Sanguinis in Animalibus.
É bem possível que o movimento do sangue no corpo se processe desse modo. Todas as partes devem ser
alimentadas, aquecidas e ativadas pelo sangue, perfeitamente vaporoso, mais quente e, por assim dizer,
nutriente. Por outro lado, em certas partes o sangue precisa ser resfriado, espessado e figurativamente
usado. Dessas partes ele volta ao ponto de partida, ou seja, o coração, como para a sua fonte ou o centro
da economia do corpo, para ser restaurado ao seu estado anterior de perfeição. Então, com o calor natural,
poderoso e abrasador, uma espécie de armazém de vida, ele é reliquefeito e impregnado com espíritos e (se
posso dizer assim), adoçado. Do coração ele é redistribuído, E tudo isso depende do movimento de pulsação
do coração.
Ninguém foi muito adiante até a chegada do maior médico do século XIX, que
não era qualificado.
MEDICINA PASTEURIZADA
Os gados bovino e ovino da França estavam passando por uma fase terrível,
também. Estavam sendo dizimados pelo antrax, extremamente doloroso. Em 1881,
a vacina contra o antrax, de Pasteur, reduziu a mortalidade por essa doença a 1%
entre as ovelhas e a 0,34% no gado bovino. Todas as galinhas apanharam cólera.
Pasteur viajou nos feriados e esqueceu no laboratório um espécime do fluido
bacteriano que infectava as galinhas, e saiu para uns dias de descanso. Ele voltou
para descobrir que sua cultura de bactérias em crescimento tinha enfraquecido, e
concluiu que era ideal para inoculação contra a epidemia — como durante outro
feriado, que veremos mais adiante, num clima menos ameno, o bolor da penicilina
cresceu satisfatoriamente para Alexander Fleming. É muito inteligente ganhar o
prêmio Nobel in absentia.
Com a medula de cães raivosos Pasteur criou a vacina que salvou a vida do
garoto pastor Juptile, eternizado na estátua que o mostra lutando contra um cão
raivoso, no 15º arrondissement. Ele enfeita o jardim nos fundos do Instituto
Pasteur, onde está enterrado nosso descobridor de micróbios vivos e da
inoculação científica para combater sua incessante campanha contra nós.
A mente de Pasteur foi a luz e o fim do túnel da infecção, que não tinha começo.
O valor em dinheiro das suas descobertas foi usado pela França para completar a
indenização exigida pela Alemanha pela guerra de 1870-71. Pasteur teve uma
vida simples, séria e espiritual, e fez tudo isso a despeito de ter sofrido um sério
derrame, em 1868. Sua filha de 12 anos morreu de febre tifóide, 15 anos antes de
ser descoberto o germe dessa doença. A aplicação do seu gênio ao leite, no
século XX, fez com que o nome de Pasteur passasse a aparecer na soleira de
todas as portas da Grã-Bretanha.
Essa foi a sensação médica de 1876. Robert Koch associou o germe à doença
como causa e efeito, um casamento patológico no qual ninguém havia pensado.
O antrax, no homem ou no animal, com as pústulas sangrentas na pele, a
"doença dos cardadores de lã” de rápido e letal desenvolvimento e que ataca os
pulmões, era atribuído aos miasmas do campo. Koch provou que o antrax era uma
infecção identificável, causada por um agente identificável. Melhor ainda, ele
tingiu com corantes de cores vivas esses inimigos invisíveis e descobriu o que
eles comiam enquanto proliferavam abundantemente no cativeiro (consommé de
carne, frio), e tirou fotografias espetaculares deles. "C’est un grand progrès!” foi
como Pasteur o saudou alegremente, quando foi a Londres para tentar a cultura de
uma forma de virulência atenuada do bacilo do antrax, para a vacina que salvaria
a carne e o queijo da França.
Koch escreveu os Postulados de Koch:
1 O germe causador da doença deve estar presente em todos os casos da
doença, e deve ser encontrado no corpo sempre que a doença aparecer.
2 Extraído do corpo, o germe deve crescer numa cultura pura de
laboratório, por várias gerações microbianas. (As bactérias não têm vida
sexual, elas se dividem em duas indefinidamente.)
3 Essa cultura deve transmitir a doença a um animal suscetível, ser recolhida
dele numa cultura pura e transmitir a doença para outro infeliz animal.
O SHOW DA SALMONELA
Tantas bactérias e subespécies de bactérias estavam sendo descobertas no
reinado da Rainha Vitória e de seu neto, o Kaiser Guilherme, que exigiam uma
classificação numa lista telefônica microbiana. O grupo Salmonela, irrequieto,
abanando as caudas, compreende hoje mais de 1.000 espécies diferentes que
provocam infecção intestinal. Passaram a ser o tema das conversas quotidianas e
levaram o pânico ao povo e aos políticos da Grã-Bretanha, em 1988, provocando
a espetacular renúncia da subsecretária de saúde, Edwina Currie (1946).
O médico hindu Susruta (c. 500 d.C.) suspeitava que a malária era disseminada
não pelo ar, mas pelos mosquitos que zumbiam ao fim do dia (com a mesma
percepção com que suspeitava que os ratos mortos transmitiam a peste). Marco
Polo, no século XIII, observou os cortinados contra mosquitos, que mais tarde
velaram os sonhos, as paixões e o suor da insônia do Raj britânico. Os
professores togados de Cambridge eram atacados pela “febre dos pântanos", mas
continuaram, como todo o mundo, a ignorar os insetos que injetavam a febre
intermitente, até que em 6 de novembro de 1880 o oficial médico do exército
francês na Argélia, Alphonse Laveran (1845-1922), descobriu o parasita
unicelular plasmódio nos glóbulos vermelhos do sangue de doentes de malária.
O escocês Sir Patrick Manson (1844-1922) foi diretamente da Universidade de
Aberdeen para o Serviço de Alfândega da Marinha Imperial da China, chegando à
praia de Formosa numa noite escura de 1866. Três anos antes da descoberta de
Laveran ele afirmou, em Hong Kong, que os vermes filária de cinco centímetros
de comprimento causavam elefantíase, uma condição provocada pelo bloqueio
dos condutores da linfa humana que pode causar um edema gigantesco nos
membros e obrigar os homens a carregar os testículos num barril, para se
movimentarem. Além disso, ele descobriu que as pequenas e extremamente
móveis filarias larvais, que invadiam o sangue dos pacientes, eram sugadas à
noite pelos mosquitos Culex fatigans, depois incubadas neles e em seguida
passadas para outra pessoa. Ninguém acreditou.
FÁBULAS FEBRÍFUGAS
Os acessos de febre da malária, de dois em dois ou três em três dias, indicam o
tempo necessário para que quatro tipos diferentes de parasitas realizem seu ciclo
reprodutor assexuado, no sangue. O ciclo sexual é realizado dentro do mosquito.
O quinino, com seu gosto extremamente amargo, era o remédio para a malária
desde o século XVII. Tradicionalmente era chamado de “chinchona”, por causa da
condessa Chinchon, que foi despachada com o marido da Espanha para o Peru e
se curou da malária com a casca da árvore quina-quina, nativa do lugar. A
eficiência da quina-quina foi descoberta por um paciente com febre alta. A única
água que ele encontrou para beber era de um pequeno lago, onde haviam sido
jogadas algumas dessas árvores e, por isso, era amarga demais para o paladar das
pessoas saudáveis. A condessa mandou moer a casca e generosamente a distribuiu
na cidade de Lima, antes de presentear benevolentemente a Espanha com o pó. (A
condessa morreu antes de o marido ser nomeado vice-rei do Peru; a segunda
mulher dele jamais ficou doente e continuou no Peru, mas a boa ficção é mais
estranha do que a verdade.) A “casca dos jesuítas”, importada e adulterada com
outras madeiras, foi então confiscada pela Europa inteira para curar a malária,
exceto por Oliver Cromwell, por motivos religiosos.
ESTIMULANDO OS FAGÓCITOS
“O médico do futuro será um imunizador", ousadamente profetizou Sir Almroth
Wright (1861-1947), professor no Colégio de Medicina Militar Britânico, em
1900, e amigo do irlandês George Bernard Shaw. Mais tarde Shaw
freqüentemente tomava chá com Wright no Departamento de Inoculação do
Hospital Santa Maria, em Londres. Shaw se inspirou em Wright para criar seu
personagem estimulador de fagócitos, Sir Colenso Ridgeon, em Dilema de um
médico. Sir Almroth saiu do teatro no meio da peça, na noite de estréia.
O DESEJO DE MATAR
Rara nos aterrorizar, nossos agressores unicelulares podem recorrer a aliados
poderosos. Os mosquitos são suas divisões voadoras. O rato, rápido e astuto, é
seu portador pessoal, cheio de pulgas ágeis. Os piolhos, com suas garras tenazes,
são os veículos blindados da infecção.
A MORTE NEGRA
Agora as pulgas.
“Tragam seus mortos!” soava a voz nas ruas, acompanhada pelo dobre dos
sinos, quando as ofertas eram atiradas aos montes nas valas. Os cães, suspeitos de
transmitir a peste, foram massacrados. Os ratos tiveram mais sorte. No úmido mês
de setembro de 1665, quando em Londres morriam 12.000 pessoas por semana,
os patriarcas da cidade mandaram acender fogueiras nas ruas durante três dias
seguidos, para purificar o ar. Mas o céu, chorando seus mortos, as extinguiu. Os
médicos não haviam concordado com essa idéia, que consideravam supérflua,
teatral e dispendiosa. Exatamente um ano depois, o Grande Incêndio levou
exatamente o mesmo tempo para provar que os médicos estavam errados.
O relato de Daniel Defoe, Diário do ano da peste, publicado cm 1722, era uma
artística obra de ficção, como Robinson Crusoe.
A FORMA DAS PESTES DO FUTURO
For mais de um século a peste bubônica matou indiscriminadamente em Malta,
Viena, Praga, Varsóvia e Copenhague. I.m 1720 dizimou quase metade da
população de Marselha. Na década de 1930 estava matando ainda em Uganda,
onde haviam plantado algodão e a semente armazenada aumentou sensivelmente o
número de ratos na região.
A peste começou a diminuir, mas houve quatro graves epidemias de gripe na
Grã-Bretanha, no século XVII, 10 no século XVIII, seis no século XIX e, no
século XX, a pandemia de 1918, que matou 0,5% da população da Grã-Bretanha
e dos EUA e 25 milhões de pessoas no mundo todo. A guerra, há pouco terminada,
havia matado 8.538.313 soldados, portanto o vírus da gripe matou três vezes mais
em um quarto do tempo que durou a guerra. Então esse tipo de vírus mortal da
gripe desapareceu. Talvez tenha recuado para os porcos, de onde pode voltar de
modo alarmante, como voltaram os vencidos da Grande Guerra.
Podemos?
O MÉDICO E A ORDENHADORA
O ÚBERE BENEVOLENTE
A pele das jovens ordenhadoras inglesas foi admirada e cantada em poemas e
canções desde o século XVI. No século XVIII, as ordenhadoras de
Gloucestershire começaram a descobrir — com mais resignação do que
aborrecimento, e nunca alarmadas — manchas nos seus braços e nas mãos que
todas as manhãs apertavam as tetas das vacas. As manchas eram causadas pelo
contato com as feridas da varíola bovina, uma infecção comum do úbere das
vacas leiteiras. Depois de uma semana, as manchas se transformavam em pústulas
e as jovens passavam por um mal-estar passageiro, como a gripe. Porém, uma vez
secas as feridas a cicatriz significava que estavam imunizadas contra a varíola
humana. E as únicas ordenhadoras que nunca apanharam a varíola bovina eram as
que, por sorte, sobreviveram à varíola humana.
A AMEAÇA PINTADA
O século XVIII foi o século do terror da varíola. No fim do século anterior tinha
havido epidemias na Inglaterra e na Nova Inglaterra onde, dizimando os pele-
vermelhas por atacado, ajudou os “caras-pálidas" a herdar a América. A varíola
atacava famílias inteiras. O autor de um diário, John Evelyn, em 1685 perdeu
“Por que pensar? Por que não tentar a experiência?” Era o que Hunter sempre
dizia — um aforismo que, no caso de Jenner, custou a ser aceito. Os dois
tornaram-se amigos pelo resto da vida. Hunter escreveu, em 1778, quando Jenner
foi abandonado pela mulher:
Devo confessar que fiquei satisfeito quando soube que você se casou com uma
mulher de fortuna. Mas deixe que ela vá, não pense mais nela. Vá trabalhar
para mim com um porco-espinho. Quero que apanhe um porco-espinho, no
começo do inverno, verifique o peso dele, deixe-o no seu jardim e arranje
algumas folhas, feno ou palha para que ele possa se cobrir, depois verifique seu
peso na primavera e veja quanto ele perdeu. Quero que mate um no começo do
inverno, para ver quanto está pesando, e outro na primavera, para ver quanta
gordura ele perdeu.
Nada melhor do que os espinhos de um porco-espinho para costurar um
coração partido. (A dama é um mistério, embora Kleanor Clutterbuck e Judith
Excell, de Wooton-under-Edge, apareçam brevemente na história da medicina
como herdeiras locais desejáveis, naquela época.) Jenner tocava flauta e escreveu
poesia — “Discurso para um tordo” e “Sinais de chuva”:
Os ventos vazios começam a soprar
As nuvens parecem negras, o vidro está abaixado
A fuligem cai, os spaniels dormem,
E aranhas saem das suas teias sorrateiramente.
e assim por diante.
Ele era um bondoso senhor rural e médico, que merecia respeito. Mais tarde
construiu uma pequena casa de campo para seu paciente experimental, James
Phipps, plantando pessoalmente as rosas do jardim. No próprio jardim, Jenner
transformou uma pequena casa de pedra com telhado de palha, feita para dar uma
aparência de selva ao local, num Templo da Vacina, onde atendia de graça os
doentes pobres. A essa altura ele estava transferindo de pessoa para pessoa, e a
vaca tomou-se redundante.
PARE A VACINAÇÃO AGORA!
Como qualquer idéia nova que desabrocha em qualquer sociedade ou instituição,
não demorou para que as portas se fechassem para Jenner. A Real Sociedade a
rejeitou altivamente:
Ele não devia arriscar sua reputação apresentando para o ilustre grupo de médicos algo que parecia tão
contrário ao conhecimento estabelecido e, ao mesmo tempo, tão incrível.
Jenner sabia tanto quanto uma vaca que a varíola era causada por um vírus. No
microscópio eletrônico, esse vírus tem a forma de um tijolo, um dos grandes do
grupo do ácido desoxirribonucléico. Ele cresce nos embriões de galinha, e a
varíola é visível no fim de três dias. O vírus da varíola bovina é muito parecido,
embora os vacinadores do mundo tenham se despedido das ordenhadoras e
passado a usar o vírus da varíola atenuado, fazendo-o passar pelo corpo de
vitelas.
O BURRO MECÂNICO
Embora o inimigo fosse ainda desconhecido, a recomendação para matá-lo era o
“hospitalismo”: a infecção, o envenenamento do sangue e a gangrena negra, que
esvaziavam as salas de cirurgia nos cemitérios e clava aos sucessivos ocupantes
da mesa de operação uma chance pior do que a de um soldado em Waterloo.
Lister tentou então destruir essa massa de germes variados no local em que o
bisturi do cirurgião facilitava sua entrada usando um desinfetante no campo
operatório. Ele escolheu o ácido carbólico que, sabia, tinha funcionado nos
esgotos de Carlisle. Nessa época Lister era professor de cirurgia na Enfermaria
Real de Glasgow, construída sobre um cemitério repleto de vítimas da epidemia
de cólera. Ele resolveu experimentar sua idéia em 12 de agosto de 1865,
aplicando panos embebidos em ácido carbólico na perna esquerda de Jimmy
Greenless, de 11 anos, que estava com fratura exposta da tíbia.
FAZENDO A LIMPEZA
As idéias de Lister não abrangeram todos os problemas da sua profissão. Na
década de 1880, o cirurgião menos confuso de Londres admitiu relutantemente a
existência das bactérias, mas zombou da idéia de que podiam transmitir doenças
através das nossas mãos. Um médico com título de nobreza, no King’s College
Hospital que, descuidadamente, enfiou um dedo na incisão feita por Lister foi
violentamente empurrado pelo cirurgião para longe da mesa. A sanitização no
teatro operatório era considerada ridícula, efeminada e afetada, o equivalente à
limpeza do cepo do açougueiro ou do carrasco.
Robert Lawson Tait (1845-99), ginecologista na próspera cidade de
Birmingham, negava ferozmente que as bactérias fossem responsáveis pelo "pus
louvável” que pingava livremente das incisões cirúrgicas. Mas fazia questão de
lavar seu teatro operatório com água e sabão com o zelo de uma dona de casa, e
todos seus casos de ovariotomias sobreviveram. Eugène Koerbelé (1828-1915),
na Alsácia, flambava os instrumentos para suas ovariotomias, e Ernst von
Bergmann (1836-1907), em Berlim, esterilizava tudo com vapor. A idéia de
limpeza surgiu logo depois do começo da aceitação da divindade do cirurgião.
O método anti-séptico de Lister, que consistia em matar os germes na sala de
operação, foi substituído, no fim da sua vida, pela assepsia, que usava autoclaves
e água fervente para evitar que eles entrassem. Somente 15 anos depois da
operação de Jimmy Greenless, em Glasgow, William Steward Halstead (1852-
1922), no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, começou a praticar a cirurgia
asséptica em lugar da anti-séptica. Os aventais cirúrgicos eram previamente
fervidos e as luvas de borracha começaram a ser usadas em 1890, depois que o
professor Halstead notou que sua enfermeira-assistente, Miss Hampton, estava
manchando as mãos sensíveis para fazer a assepsia dos instrumentos. A
experiência foi tão bem-sucedida que o professor casou com ela no mesmo ano.
Porém, Lister lutou contra a nova idéia, como o criador de cavalos lutou contra o
automóvel, o coronel de cavalaria contra o tanque de guerra e como todos que se
opuseram ao seu burro mecânico.
LIMÕES E LIMAS
Naquela época, acreditava-se que, para cada doença enviada por sua ira, Deus,
misericordiosamente, plantava uma erva para curá-la. A medicina herbal ecoa por
toda a Bíblia.
O herbalista e barbeiro-cirurgião de James I, John Gerarde (1545-1612), em
1597 proclamou divinamente a descoberta da erva do escorbuto. Essa cochlearia
officinalis, com 30 centímetros de altura e flores brancas, que crescia perto do
mar, é uma das quadripétalas da família das crucíferas, parente dos nabos,
rabanetes, agrião, mostarda e goivo amarelo. O brado das ruas "compre a erva do
escorbuto!" era bastante comum em Middleton e no livro de Decker, The Roaring
Girl, de 1611. Em 1661 era possível comprar cerveja de erva do escorbuto. Em
1764, o avô de Byron, Almirante “mau tempo Jack”, prudentemente incluiu entre
as provisões do Dolphin, para a viagem ao redor do mundo, a erva do escorbuto
e cocos.
Os marinheiros estavam descobrindo que frutos tropicais comidos em terra
curavam o escorbuto a bordo. Laranjas azedas e limão eram a ração favorita de
Sir Richard Hawkins, e o cirurgião da Companhia das índias Orientais, John
Woodall (1569-1643), no The Surgeon Mate, em 1612, recomendava o
armazenamento de suco de limão a bordo de todos os navios da companhia. Os
holandeses preferiam Sauerkraut, e o Capitão Cook recomendava geléia de
cenoura e mosto de cerveja. Vinagre, para tomar ou lavar o convés, óleo de
vitríolo e enterrar o paciente até o pescoço, na terra fria, todos esses métodos
tinham seus defensores, embora mal orientados.
O TEMPERO DA VIDA
As vitaminas são substâncias químicas caracteristicamente ausentes nos alimentos
que usamos. Foram inventadas em Cambridge, em 1912, por Sir Frederick
Gowland Hopkins (1861-1947). Os médicos mais antigos de Cambridge, como
eu, lembram ainda da exclamação murmurada “É Hopkins!” — como Pasteur ou
Lister — quando ele aparecia nos laboratórios de Bioquímica, entre os Colégios
de Pembroke e Downing.
Hopkins descobriu que uma pequena gota de leite podia tornar perfeita a dieta
que estava matando os ratos. Ele foi também o sogro póstumo de J. B. “Bons
Companheiros” Priestley.
Em 1907 foi provocado o escorbuto em cobaias, na Noruega. Os cientistas da
nutrição começavam a aprender que a alimentação humana não era
exclusivamente constituída por proteínas, gordura, carboidratos e minerais, mas
que misteriosamente era necessário algum aditivo. As cobaias de Hopkins tinham-
se desenvolvido muito bem só tomando leite. Mas quando alimentadas com os
elementos do leite, separados, elas morriam.
NASCIMENTO E MORTE
Lord Lister era bonito, robusto, gentil, impassível, resoluto e impermeável à
crítica ou ao ridículo. Ignaz Philipp Semmelweiss (1818-65), da Hungria, era
calvo, usava um bigode bem tratado, era excitável, sensível e louco. Quando
Lister era ainda estudante, em 1846, Semmelweiss era assistente na Primeira
Clínica Obstétrica de Allgemeines Krankenhaus, em Viena, o maior hospital do
mundo para pacientes internos. A Primeira Clínica ensinava estudantes de
medicina. A Segunda Clínica ensinava só parteiras. Na Primeira Clínica a febre
puerperal, que aparecia uma semana depois do parto provocando hemorragia,
trombose, peritonite, abscessos, septicemia e estupor, matava três vezes mais do
que na Segunda Clínica. Toda Viena sabia tão bem, como conhecia o preço do
Bratwurst, que as mulheres grávidas imploravam histericamente para dar à luz na
Segunda Clínica.
Semmelweiss notou que a febre puerperal imitava outra doença violenta que
matava os médicos desafortunados que cortavam os dedos nas autópsias. Ele
lembrou que cada mulher tinha um ferimento aberto, o útero, depois de livre da
placenta. Notou que os estudantes da Primeira Clínica vinham da sala de
anatomia, onde dissecavam cadáveres, e as parteiras da Segunda chegavam das
suas casas. Concluiu então, imediatamente: “A febre puerperal é causada pelo
transporte para as mulheres grávidas de partículas putrefatas derivadas de
organismos vivos, através dos dedos de quem as examina.”
Florey notou que uma parte do trabalho realizado pelo professor Alexander
Fleming, no Hospital Santa Maria, em Londres, em 1929, talvez devesse ser
examinada. Fleming estava estudando o germe estafilococo, causador de
furúnculos, carbúnculos, abscessos, infecção de feridas, osteomielite, mastite,
pneumonia, septicemia e morte. Ele estava examinando as variações de cor nas
colônias amarelas brilhantes dos estafilococos que cresciam no ágar nutritivo nas
placas de Petri, rasas e redondas. Essas mudanças de cor eram mais acentuadas
quando os micróbios cresciam ao ar livre do que no incubador.
Aparentemente, o professor Fleming foi passar férias na Escócia, quando
terminou a experiência, e deixou as placas de Petri empilhadas num balde com um
forte anti-séptico. Porém, a placa de cima havia escapado sem que ele notasse, e
durante sua ausência de um mês o bolor o invadiu e começou a devorar os
estafilococos. O professor chamou o bolor de Penicillium (escova) e,
engenhosamente, o usou para limpar as placas de Petri daqueles germes irritantes
e contaminadores, como estafilococos e outros mais comuns que causam a
pneumonia, a gonorréia e a difteria. Assim, ele poderia cultivar o puro Bacillus
influenzae, que é imune a penicillium e que causa bronquite e sinusite, às vezes
meningite, mas nunca a gripe.
Florey notou que a penicillium do seu colega podia ser redirecionada para
atacar aqueles germes comuns, mas ferozes, no interior do corpo. Seu químico, o
alemão-russo Ernst Chain (1906-1979), cultivou o bolor em lêvedo de cerveja e
extraiu o suco e, em 12 de fevereiro de 1941, Florey experimentou o resultado na
Enfermaria Radcliff, num policial com septicemia estafilocócica resultante de um
ferimento na boca, quando podava os arbustos do seu jardim. A penicilina
produzida na estante de livros bodleiana era tão pouca que tiveram de subir de
bicicleta a ladeira até o Departamento de Patologia, levando a urina do paciente
para fazer uma nova dose.
CAPÍTULO 4
A conquista da dor
Davy achou que o óxido nitroso podia ser útil para operações cirúrgicas.
Porém, apesar de ter segurado os membros dos pacientes e ouvido seus gritos
quando era um jovem aprendiz de cirurgião em Penzance, não fez nada a respeito.
Limitou-se a borrifar o óxido nitroso em Robert Southey, Samuel Taylor
Coleridge e Roget, do Thesaurus, que o aspirava entre goles de champanhe e
dizia que o fazia sentir-se como o som de uma harpa.
O pôster de Quincy Colton, em Hartford, citava tentadoramente Southey
(poeta): “A atmosfera do mais alto de todos os céus possíveis deve ser composta
desse gás.” Ele fazia a pessoa “Rir, Cantar, Dançar, Falar ou Brigar etc., de
acordo com o traço predominante do seu caráter”. É sempre divertido ver as
pessoas agindo como tolas. Oito homens fones sentavam na primeira fila, para
proteger o público do frenesi dos doze jovens que se ofereciam para inalar o gás
da bolsa de borracha e que, como uma precaução contra a vulgaridade, deviam
ser todos cavalheiros extremamente respeitáveis.
Cooley acabava de anunciar o fiat lux da anestesia. Horace Wells estava entre
o público. “Então, o homem pode extrair um dente sem sentir dor, com o gás
hilariante?”, pensou ele. Na manhã seguinte ele pôs a idéia em prática. “Uma
nova era da extração de dentes!” Exclamou, depois. Como no caso do homem que
inventou uma ratoeira mais aperfeiçoada, o mundo com dor de dente fez fila na
frente da sua porta. Depois de um mês ele foi para Boston, para ganhar mais
dinheiro.
Seu antigo sócio, William Thomas Green Morton (1819-68), tinha estudado no
Colégio de Cirurgia Dental de Baltimore e trabalhado algum tempo no Hospital
Geral de Massachusetts, em Boston, fundado por John Collins Warren (1778-
1856) em 1811. Morton apresentou Wells a Warren, que de boa vontade organizou
uma demonstração para extrair o dente de um aluno de Harvard. Foi um fracasso.
Todos riram. Wells voltou para Hartford, matou um paciente, perdeu o interesse
pelo óxido nitroso, desistiu da odontologia.
Passemos agora para o cão spaniel de Morton.
O éter era “óleo doce de vitríolo” para seu descobridor, em 1540, o botânico
alemão Valerius Cordus (1515-44). Seu Dispensatorium, de 1535 foi a primeira
farmacopéia publicada e campeã de vendas (35 edições). Rebatizado com o nome
de aether em 1730, o vapor pungente, aspirado, havia soltado o catarro de três
séculos. Morton leu na Matéria Medica de Pereira, de 1839, que Michael
Faraday (1791-1867) havia notado, em 1818, que o éter anestesiava como o
óxido nitroso. Por toda a parte as pessoas estavam se deliciando com “farras de
éter”, a alternativa da festa de gás de Colton, ambos ancestrais dos coquetéis de
nossos dias. A anestesia, como a embriaguez, nasceu do desejo eterno do homem
de escapar de si mesmo, e felizmente escapou de ser sacrificada num ato de
infanticídio pelos cruéis puritanos.
Roubando abertamente a idéia de Wells, Morton experimentou o éter no
cachorro que “amoleceu completamente nas suas mãos e permaneceu insensível a
todos seus esforços para acordá-lo, mexendo nele e beliscando-o”. Dois minutos
depois, e o fiel Nig estava tão esperto como sempre! Morton continuou a
experiência no cão, em si mesmo e nos seus aprendizes. Tudo no maior segredo.
Ele queria patentear o processo e fazer fortuna.
Morton ofereceu cinco dólares, no porto de Boston, para quem quisesse servir
de cobaia, mas ninguém se interessou. Na noite de 30 de setembro de 1846, Eben
H. Frost apareceu no consultório de Morton com uma tremenda dor de dente,
aspirou éter num lenço e, quando acordou, seu dente estava no chão.
Dezesseis dias depois, Morton deu éter para o Hospital Geral de Massachusetts
para que John Warren extraísse um tumor venoso da mandíbula esquerda de
Gilbert Abbot, de 21 anos. Morton se atrasou 15 minutos. “Como o doutor Morton
ainda não chegou, suponho que deve estar ocupado com outra coisa”, disse
Warren, secamente, para o imponente grupo de médicos que esperava a
demonstração. Todos riram outra vez.
SALVE ESTA HORA FELIZ! CONQUISTAMOS A DOR! Essa foi a manchete do People’s
London Journal. Até o Natal daquele ano, o mesmerismo — do nome de Franz
Anton Mesmer, de Viena, o hipnotizador da moda em Paris, que emitia
“magnetismo animal” — ou ópio, ou cannabis, mandrágora ou bebida alcoólica
eram usados nas cirurgias, todos com mais compaixão do que esperança. Os
assírios faziam a pessoa ficar inconsciente pressionando as artérias carótidas no
pescoço. Helena de Tróia oferecia ânforas de repente. Os chineses, em 2000 a.C.
fabricavam uma droga do sono com pó de jasmim e rododendro. A marinha usava
uma mordaça embebida com rum, o exército fazia morder uma bala. Nada
funcionava. Era tão desanimador quanto as massagens de terebintina na barriga
dos doentes de cólera, feitas por Florence Nightingale, e tão ineficaz quanto o
atual tratamento do câncer. Não havia alternativa para a coragem.
Antes da primavera de 1847, o velho cirurgião de Napoleão, Joseph François
Malgaigne (1806-65), especialista em rótula, havia registrado cinco anestesias
com éter em Paris. Johann Friedrich Dieffenbach, um velho cirurgião plástico,
havia administrado éter em Berlim. Em Edimburgo seu inovador foi James Syme,
primo de Robert Liston. Nikolai Pirogoff administrou éter, em São Petersburgo,
pelo reto. O Conselho de Saúde de Zurique o proibiu por ser perigoso.
A famosa velocidade de cirurgiões como Pirogoff e Liston — comparados com
virtuosos do violino ou duelistas — de um momento para outro tomou-se tão fora
de moda quanto a pequena carruagem de duas rodas.
Foi então que apareceu Charles Thomas Jackson (1805-80). Era químico e
geólogo de Boston, e Morton fora seu pensionista. Jackson inventou o telégrafo
elétrico, antes de Morse, em 1836, e o algodão-pólvora antes de Schönbien, em
1846. Foi declarado louco em 1873.
Antes do fim do seu ano de triunfo, Morton havia tomado o caminho enevoado
da eterna desesperança. Dissipou o resto da vida não concedendo aos outros os
benefícios da anestesia, mas reivindicando-os para ele mesmo. Três vezes entrou
com uma petição junto ao congresso, que formou um Comitê Especial, que não
resolveu nada.
Seu busto encontra-se na Place des Etats Unis, perto do Arco do Triunfo, ao
lado de um triste pedestal que espera ainda a estátua do General Pershing, da I
Guerra Mundial. A placa diz: Au dentist American Horace Wells inovateur de
l’anaesthesie chirurgical.
CLOROFÓRMIO E RELIGIÃO
Sir James Young Simpson, baronete (1811-70), sétimo filho de um padeiro,
Professor de Parteiras, accoucheur do comércio de carruagens, Médico da
Rainha Vitória na Escócia, santificado por uma capela particular construída na
sua casa quadrada de granito que dava para o Firth of Forth, atraía para os hotéis
locais uma clientela de 80.000 libras por ano. Ele era um Festival de Edimburgo
em todos os dias do ano.
No dia 4 de novembro de 1847, depois do jantar, Sir James e seus dois jovens
assistentes da Enfermaria Real de Edimburgo tomaram clorofórmio, ao invés de
vinho do porto. Inalando o bouquet, os dois jovens médicos começaram a dar
gargalhadas, a gritar e tentaram atirar as cadeiras e a mesa pela janela, depois
deslizaram para o chão e adormeceram. "Muito mais forte do que o éter",
observou o corpulento professor, adormecendo também ao lado deles.
A abençoada lua-de-mel do éter tinha acabado. O cheiro desagradável, a
irritação dos pulmões, as crises de vômito dos pacientes, a necessidade das
máscaras desajeitadas de vidro e uma quantidade enorme do anestésico levaram
os médicos à procura de outras varinhas mágicas para a anestesia. O clorofórmio
era rápido. A inconsciência era imediata, e não gradual. Cheirava bem, e seu
efeito era mais duradouro, mais forte, era mais barato e de administração mais
simples. Bastava uma borrifada num gorro de dormir ou numa luva, ou uma
esponja embebida no anestésico, e podiam cortar qualquer coisa. Meia colher de
chá de clorofórmio, num lenço dobrado sobre o nariz, exorcizavam as dores do
parto que atormentavam as mulheres desde Eva e escandalizaram o clero
(masculino) da Escócia.
“Entre dores darás à luz teus filhos”, ordenava o Gênesis. “Privar os ouvidos
de Deus dos gritos profundos e angustiados” da mãe em trabalho de parto,
pregavam eles, é garantir que ela jamais amará o filho pelo qual jamais sofreu.
Ah, sim, dizia Simpson, igualmente piedoso (que tinha duas Bíblias da família na
sua sala de jantar). Mas a frase seguinte manda o homem ganhar com sofrimento o
pão de cada dia, porém não estavam todos se deliciando com suas tortas de
miúdos e purê de batatas?
A EVAPORAÇÃO DO CLOROFÓRMIO
O clorofórmio tinha um problema. Matava rapidamente, matava rápida,
inesperada e indiscriminadamente. A primeira vítima foi Hannah Greener, quinze
anos e em perfeita saúde, em Newcastle, 28 de janeiro de 1848, durante a
remoção de uma unha do pé. É claro que clorofórmio demais mata qualquer um,
como qualquer coisa em demasia. Porém, logo descobriram que o coração podia
parar de repente, logo no começo da administração do anestésico — “síncope do
clorofórmio". Ninguém sabia por quê. Isso provocou uma grande desordem em
Hyderabad, no dia 25 de janeiro de 1889.
O TRAPO E A GARRAFA
A anestesia produziu aparelhos mais engenhosos até mesmo do que a horticultura.
John Snow foi o primeiro anestesista profissional do mundo. Natural de
Yorkshire, o mais velho dos nove filhos de um fazendeiro, morava no Soho e
trabalhava no Hospital São George, em Hyde Park Comer, dando 10 anestesias
por semana. Em 1847 inventou um inalador portátil de éter, do tamanho de um
livro grosso, com um dispositivo de banho-maria para vaporizar o anestésico, que
era derramado num recipiente com uma placa em espiral, do qual o paciente
inalava o vapor mais pesado do que o ar por um tubo longo e flexível. Uma
máscara triangular, com uma válvula, cobre a boca e o nariz — na monografia de
Snow, a boca e o nariz de uma bela jovem com deliciosos cachos de cabelo.
Snow aplicou uma mente científica ao novo assunto que havia surgido por acaso e
por especulação, e que podia facilmente ter-se perdido na superstição e na falsa
medicina. Ele escreveu Sobre o clorofórmio e outros anestésicos, e caiu morto
ao terminar o último parágrafo.
Joseph Thomas Clover (1825-82), barba espessa e sempre de sobrecasaca,
seguiu Snow como o mais procurado anestesista de Londres. Ele clinicava no
Hospital Westminster e tinha entre seus pacientes Robert Peel, o ex-Napoleão III,
a futura rainha Alexandra e Florence Nightingale, possivelmente para intimidá-lo.
Ele inventou um inalador de clorofórmio no qual uma dose era vaporizada por
uma seringa e bombeada por um fole numa bolsa do tamanho de uma fronha. Tudo
isso apavorava os pacientes nervosos. Esse método desprendia 4,5% de
clorofórmio no ar, o primeiro anestésico a ser medido. Ele inventou também a
"muleta de Clover”, que mantinha erguidas as pernas da paciente anestesiada
quando o cirurgião precisava alcançar o períneo.
Os vários aplicadores de anestesia usados na segunda metade do século XIX
iam desde uma simples máscara de flanela com armação de arame, que podia ser
levada dentro de uma cartola, até um reservatório ornamental como um bule de
chá para o óxido nitroso que estava voltando a ser usado. Alguns tinham bolas
como os pulverizadores de perfume para bombear o ar no vidro com clorofórmio,
outros tinham espécies de manivelas que movimentavam engrenagens, ou bolsas
de borracha como bolas de futebol, mas o francês Louis Ombrédanne (1871-
1956) usava uma bexiga de porco.
AS HONRAS DA ACADEMIA
Em 1937 surgiu entre os mestres de Oxford o primeiro professor de anestesia da
Europa, para grande ultraje de todo o corpo docente. O dinheiro veio de Lord
Nuffield, que já havia escandalizado Oxford com a produção em massa tio
automóvel Morris Minor (“Oxford é o Quartier Latin de Cowley", chique de
morrer). Nuffield levou bola preta no clube de golfe local, por isso ele o comprou
e instalou seu parceiro de golfe na Cadeira de Anestesia. O novo professor era
Sir Robert Reynolds Macintosh (1897-1989), inventor do laringoscópio
aperfeiçoado, que já havia provado sua habilidade administrando uma anestesia
perfeita com gás no seu benfeitor. Sir Robert tinha uma ótima clínica em Harley
Street com três máquinas de gás e dois Bentleys por anestesista, maldosamente
chamada pelos invejosos de “Companhia Mayfair de Gás, Luta e Sufocação".
Então o Serviço Nacional de Saúde criou anestesistas consultores como qualquer
outra pessoa, e eles fundaram a Faculdade de Anestesia e, finalmente, seus
membros chegavam ao hospital dirigindo carros iguais aos dos cirurgiões.
Que afeta como um anestésico
que paralisa os sentidos e o curare que
inutiliza os nervos motores.
Ora, ora.
Ninguém sabe como os anestésicos funcionam. Mas ninguém sabe por que nós
dormimos.
CAPÍTULO 5
A bengala com cabo de ouro
O médico do século XVII era inútil, mas decorativo. Casaco de cetim abotoado,
calça de couro até abaixo dos joelhos, meias de seda e sapatos com fivela,
babados de renda, peruca inteira, balançando uma bengala comprida com cabo
oco de ouro, cheio de vinagre aromático de Marselha. Era le vinaigre de quatre
voleurs, a mistura eficaz usada por quatro ladrões de corpos aprisionados durante
a epidemia de peste em Marselha e que nunca foram infectados. Era aspirado
repetidamente para imunizar o médico contra a infecção e dar a ele tempo para
pensar. A bengala tornou-se seu símbolo, a varinha mágica de Esculápio.
O DIAGNÓSTICO É TUDO
Os médicos da era vitoriana eram brilhantes na identificação de todas as doenças
cuja cura eles desconheciam por completo.
— Percussão. O musical Leopold Auenbrugger (1722-1809), filho do
taverneiro de Graz, aplicou a forma de verificação da quantidade de vinho nos
barris do seu pai — batendo na madeira com as pontas dos dedos — para
descobrir a existência de fluidos no peito dos pacientes. Os médicos vienenses
consideraram o método ultrajante e sem dignidade. Jan Nicholas Corvisart
(1755-1821), médico de Napoleão, achou esplêndida a idéia e em 1808 a
espalhou por toda Paris — como Sir Samuel Wilks, honradamente dando
crédito ao seu autor.
— Auscultação. Para ouvir o coração e os pulmões, todos os médicos, desde
Hipócrates, encostavam o ouvido no peito do paciente. Esse método foi
descrito por René Theóphile Hyacinthe Laénnec (1781-1826) como “não
somente ineficaz, mas inconveniente, indelicado e, nos hospitais, até mesmo
desagradável". Muitos médicos pousavam a cabeça sobre colos suaves e
adormeciam. Assim, em 1816 Paris produziu outro auxiliar do diagnóstico
quando Laënnec atendeu uma jovem de seios tão avantajados que ele
impulsivamente enrolou uma folha de papel, ouviu de uma distância decente e
inventou o estetoscópio. O primeiro era um rolo oco de madeira, passou para
uma corneta acústica e depois para o conhecido estetoscópio para os dois
ouvidos, equivalente à bengala do cabo oco de ouro.
Era uma zombaria mal orientada. Sir Thomas Browne descobriu, em meados
do século XVII, que: “Quantos homens famosos, imperadores e pessoas cultas são
exemplos dessa doença, provando que não é uma doença de tolos, mas de homens
sensatos e de valor.” Seis admiráveis vítimas dessa doença histórica:
— Byron. (“A gota, que enferruja as juntas aristocráticas.”)
— W.S. Gilbert. ("Um gosto pela bebida combinado com gota o havia
curvado para sempre.”)
Com a louvável igualdade social da nossa era, a gota agora é acessível a seis
entre 1.000 britânicos.
A TESTA FEBRIL
Três dos eixos centrais da medicina não eram médicos. Charles Darwin era um
naturalista navegador, Louis Pasteur era um químico industrial e Florence
Nightingale era enfermeira.
Florence Nightingale (1820-1910) é lendária pelos motivos errados. Até a
lâmpada da Dama está errada, iluminando ora a antiga nota de 10 libras, ora a
faixa de pedestres na frente da porta do culto Clube Ateneu, para cavalheiros, em
Pall Mall. Ao longo dos seis quilômetros e meio de corredores que compunham
as enfermarias de Scutari, ela balançava uma lâmpada de pano do exército turco,
enrugada como uma lanterna chinesa, com uma vela de luz amarelada na base.
Com a outra mão ela segurava as três essências da política: saber o que queria
saber, saber quem podia dar a informação e saber quanto teria de esperar por ela.
Podia ter governado o país tão bem quanto Lord Palmerston, se não tivesse ido
diretamente para a cama, quanto voltou da Criméia, de onde não levantou durante
50 anos. Florence Nightingale tinha muitas outras peculiaridades, como bater
irritadamente as tampas abertas das privadas.
Quando foi posto em andamento o destino de Churchill como Primeiro Lord do
Almirantado, em 1911, Florence Nightingale foi lançada pela Instituição para
Cuidar de Senhoras Respeitáveis em Circunstâncias Desafortunadas, Harley
Street, nº 1, um ano antes da Guerra da Criméia. Ela era a superintendente, com o
toque de Branca de Neve entre os Sete Anões. Imediatamente despediu o médico
residente, passou a encomendar os mantimentos por atacado do Fortnum e os
vegetais, por sacos, do Covent Garden; fazia ela própria a geléia, instalou
elevadores para alimentos, água quente e campainhas para as pacientes, matou os
ratos, os camundongos e outros parasitas e eliminou o perigo das explosões de
gás. Em seis meses Florence Nightingale diminuiu pela metade o preço da estada
das senhoras internadas. Ela sabia como conseguir o que queria: “Se um conserto
não for feito, eu acampo com minhas 12 pacientes no meio da Praça Cavendish e
deixo que a polícia e o comitê venham me prender como desocupada.”
— As médias de mortalidade só nos dizem que tantos por cento vão morrer. A
observação deve nos dizer quais desses cem vão morrer.
A MULHER MÉDICA
Muliebrity era uma necessidade tradicional no tratamento dos doentes. Para sua
cura, sua função era mais duvidosa. Sir William Jenner (1815-98) — o médico
que usou o burro mecânico para vaporizar ácido carbólico na axila da rainha
Vitória, e espirrou o ácido no rosto dela — durante a resplandescente meia-idade
de Florence Nightingale dizia, choroso, que tinha só uma filha, mas preferia
seguir seu enterro do que vê-la se tomar uma estudante de medicina. O próprio
Lister criou objeções ao projeto de dar seu nome à nova cadeira de cirurgia em
Glasgow: "Considerando as relações que a nova cadeira terá com o ensino das
mulheres.” O resto dos profissionais da medicina necessariamente sensatos não
concordou com a idéia de a morte ser preferível a aprender como evitá-la.
Elizabeth Blackwell (1821-1910), filha de um religioso refinador de açúcar,
com uma família de nove filhos e quatro tias solteiras em Bristol, emigrou para
Nova York quando tinha 11 anos. Aos 26, depois de ser rejeitada pela escola de
Filadélfia e outras nos EUA, Elizabeth entrou para o Colégio de Medicina
Genebra, NY. Formou-se como primeira da classe, estabelecendo um padrão de
aplicação acadêmica que as estudantes de medicina se esforçam para superar. Sua
primeira dificuldade foi encontrar moradia, porque as donas das pensões
negavam-se a alugar quartos para moças desacompanhadas. Em 1857, Elizabeth
Blackwell fundou a Enfermaria Nova York para Mulheres Indigentes, dirigida por
mulheres. Ela comandou as enfermeiras durante a Guerra Civil. Solteira, adotou
uma órfã.
O COMEÇO DA MEDICINA
Os médicos aventuraram-se no século XX munidos de armas muito leves.
Receitavam mercúrio para sífilis e tinha, digitalis para reforçar o coração, iodo
para bócio, cólquico para a gota, cloral para os nervosos, um alcalóide de
pomegranato para tênia ou solitária. A partir de 1867 passaram a ter nitrato de
amil para angina, e foi Thomas Sydenham quem pela primeira vez receitou ferro
para a anemia. Os livros grossos de medicina de 1900 são tão precisos no que diz
respeito ao diagnóstico quanto os de hoje, mas todos os capítulos são trágicos
porque falta a eles o final feliz do tratamento eficaz.
GLÂNDULAS MUSICAIS
Robert James Graves, de Dublin (1796-1853), um homem de ação que foi preso
na Áustria como espião e esmagou uma rebelião no Mediterrâneo, observou em
1835:
Palpitações longas e violentas nas mulheres, todas com uma peculiaridade em
comum, o aumento da glândula tireóide... os olhos assumem um aparência
singular, pois parecem aumentados, de modo que quando ela dorme, ou tenta
fechá-los, as pálpebras não se fecham.
A HÉLICE DUPLA
Desde 1799, a cervejaria Green King, de Bury St. Edmunds, fornece Cerveja
Abbot aos estudantes de graduação de Cambridge. Ela flui deliciosamente no
Eagle Pub, em Botoph Lane, perto do Laboratório Cavendish e na frente da Escola
de Medicina, na Downing Street, onde os mais inteligentes costumavam almoçar.
Para os estudantes de medicina, os físicos e químicos do Cavendish eram um
grupo diferente, que teve uma das muitas especulações mundiais confirmadas pela
descoberta da hélice dupla da molécula ADN.
A estrutura foi descrita em 1953 pelo americano James Dewey Watson (1928) e
o inglês Francis Harry Compton Crick (1916). A idéia não era nova, e data de
1519. Francisco I da França, um ano antes do seu encontro com Henrique VIII, no
Field of the Cloth of Gold, começou a construir o Château de Chambord. No meio
da torre da casa da guarda há uma magnífica escada em espiral como duas hélices
superpostas, que nunca se encontram. No centro há aberturas decorativas que
permitem enxergar de uma hélice para a outra. Pode ser vista nos dias de visita
dos Châteaux do Loire. (Muscadet é excelente, e os rillettes de porc locais são
muito agradáveis antes do essencial linguado do Loire au berre blanc.)
A escada dupla, em Cambridge, tinha no lado externo dois corrimões sinuosos
de fosfato de sacarose, os degraus são compostos das bases adenina, tiamina,
guanina e citosina, unidas em pares pelo hidrogênio, que representa o eixo central.
A espiral é chamada ADN — ácido desoxirribonucléico. O ARN é o padrão para
as proteínas que formam as células do corpo, de desenhos variados, mas todas
com escadas espirais de ADN.
Os personagens são:
— (1) O próprio. O intruso de Chicago nos aconchegantes e esnobes claustros
de Cambridge. Extremamente inteligente, ambicioso, impetuoso, intuitivo,
encantadoramente gauche, sociável, com uma queda para viagens ao exterior.
— (2) Francis Crick, de Mill Hill, em Londres, de fala rápida e sonora com
uma risada trovejante, entendido em teorias sobre a estrutura da proteína,
incentivado por Watson para continuar a investigar as idéias numerosas que
nascem no seu cérebro. Recentemente casado pela primeira vez, morando perto do
único restaurante chinês de Cambridge.
— (3) Maurice Hugh Frederick Wilkins (1916), biofísico no King’s College, no
Strand, Londres. Solteiro e cavalheiro inglês.
GENES
A genética é uma matéria tão opaca e tediosa quanto a filosofia teológica, mas,
como essa filosofia, contém o segredo da vida eterna.
— A hereditariedade está nos cromossomos, entre fios de cabelos negros e
muito crespos, obviamente vistos no microscópio, dentro do núcleo de cada
célula.
RETROCESSO AO DARWINISMO
Como Lister descobriu a assepsia, sem saber coisa alguma sobre estreptococos,
e Lind curou o escorbuto sem conhecer a vitamina C, assim também Darwin
fundou a genética, sem saber coisa alguma sobre o ADN.
Charles Robert Darwin (1809-82) passou cinco anos, desde o Natal de 1831,
navegando pelos mares do sul a bordo do HMS Beagle, de 242 toneladas, 90 pés
de comprimento, três mastros, o tamanho de um iate de um dos mais modestos
milionários. Uma vez que viajava com 73 passageiros, não deviam ter muito
conforto. Ele navegou de Devon até o Rio, deu a volta no Cabo Horn e fez escala
na Nova Zelândia e na Austrália, antes de passar pelo Cabo da Boa Esperança e
voltar para casa, atravessando novamente o Atlântico Sul até o Brasil, antes de
chegar a Falmouth, no dia 2 de outubro de 1836. Em 16 de setembro de 1835
Darwin aportou nas ilhas Galápagos, na costa do Equador, no oceano Pacífico, e
lá ele viu a eternidade nos tentilhões.
Galápago é a palavra espanhola para tartaruga. Nas ilhas, Darwin encontrou
tartarugas enormes, do tamanho de porcos de raça. Darwin explorou as 12 ilhas
Galápagos durante um mês. Descobriu, entusiasmado, que os répteis, pássaros,
peixes, insetos e plantas das ilhas eram um pouco diferentes dos que existiam no
resto do mundo. Eram até diferentes de ilha para ilha. Os tentilhões tinham bicos
curtos e fortes para quebrar as nozes, numa das ilhas. Em outra, onde não havia
nozes, seu bicos eram mais delicados, próprios para apanhar insetos. Bicos
longos para encontrar as larvas, em outra ainda. Os tentilhões viviam em função
dos seus bicos, que haviam evoluído através de gerações e gerações para comer o
que existia no lugar em que viviam. Darwin achou que devia haver alguma coisa
nessa particularidade.
Quando desembarcou, Darwin recebeu uma herança de 5.000 libras por ano.
Comprou uma casa enorme em Downe, Kent, além de Orpington (aberta à
visitação, bom pub local). Nela passou 23 anos pensando nos tentilhões das
Galápagos, antes de publicar A origem das espécies por meio da seleção natural,
em 1859. Foi abalado pela ameaça inesperada de perder a glória de sua
descoberta, surgida em junho, antes da publicação do seu livro, na pessoa de
Alfred Russell Wallace (1822-1913), um naturalista que tivera a mesma idéia. Foi
como Rosy e Watson.
Agora nós agarramos as doenças por suas moléculas. Pode ser identificado o
gene que causa — por exemplo — a anemia falciforme hereditária. Ou a
hemofilia, ou a fibrose cística. Ou a coréia de Huntington, que permite uma saúde
perfeita na juventude, depois condena seu herdeiro a 10 anos de demência e
morte. Todas essas vítimas não-nascidas podem ser poupadas por meio do aborto,
ou talvez evitadas pela escolha genética dos parceiros. “Tendo observado os
hábitos de casamento dos homens durante alguns anos, não estou otimista sobre o
futuro dessa forma de abordagem”, resolveu o professor de medicina de Oxford,
Sir David John Weatherall (1933). Acrescenta, também sensatamente, ao lobby
dos que acham que os pacientes-devem-decidir: “Pais (e pacientes) procuram o
médico esperando ajuda, e o conselheiro muitas vezes deve estar preparado para
oferecer conselho ativo, a fim de ajudar e partilhar da tomada de decisão. Na
verdade, o clínico sensível geralmente nota o alívio dos pais quando uma parte do
peso de uma decisão tão importante é retirada dos seus ombros.”
A falha de sermos mortais, caro Brutus, não está em nós, mas nos nossos genes.
É triste para a medicina o fato de os nossos esforços para prevenir certas doenças
terem sido até aqui inúteis e confusos. Cigarros e álcool matam, bem como a
glutonaria e a preguiça, mas muitas pessoas com excesso de peso chegam a uma
idade avançada sem nenhum exercício além o de erguer o braço para acender a
luz. Estamos começando a ver agora os genes causadores da diabetes, do câncer
do cólon, da hipertensão, do enrijecimento das artérias. Logo apanharemos e
jogaremos fora os genes que provocam outras doenças “comuns”. Mais tarde,
seremos capazes de implantar outros, mais desejáveis. Se um casal quer filhos
ruivos como Mozart e inteligentes como Einstein, que joguem críquete como Jack
Hobs, sem problema. O homem estende a mão para a suprema habilidade de
controlar o ambiente e a si mesmo. A utopia paira, ameaçadora, no ar.
Isso se tornará tão importante para a humanidade que haverá programas de
televisão sobre o assunto. Os grandes e os bons, que querem ser maiores e
melhores, vão se reunir em grandes convenções. Pessoas importantes expressarão
suas crenças e seus preconceitos mais profundos, que geralmente são permutáveis.
Os políticos, para quem a eternidade é a próxima eleição, semearão idéias
floridas para ganhar votos. A tolerância será explodida alegremente pelas dignas
organizações familiares que confundem a importância da vida humana com a sua.
Como o aborto e a pesquisa do embrião, o compromisso moral vai evoluir para
leis que salvem as aparências, acreditando que estão salvando suas almas. Nossa
inteligência cria problemas que nossa inteligência não sabe resolver. Volta,
Sócrates, pedimos desculpas pela cicuta.
CAPÍTULO 6
Os barbeiros demoníacos
HONRAS DE BATALHA
Através do avanço inexorável da civilização, os golpes de espadas e
lançamento de flechas foram superados, mais ou menos em 1450, pela pólvora e
pelos tiros. Suas vantagens foram reconhecidas imediatamente. Era um modo mais
eficiente e menos trabalhoso de mutilar e matar seres humanos, o que convidava à
engenhosidade na sua aplicação e necessitava de implementos que logo se
tornaram de baixo custo e que podiam ser produzidos em profusão. Acabou
rapidamente com a Guerra dos Cem Anos e com o feudalismo. Mais tarde,
confirmou a superioridade dos americanos sobre os peles-vermelhas e o domínio
da África pelos europeus, no século XIX, devido à sua eficiência nas mãos dos
poucos contra os muitos que não a possuíam.
As avarias provocadas pela pólvora ocuparam os cirurgiões do renascimento
tanto quanto as provocadas pela sífilis. Ferimentos a bala e feridas eram as mais
comuns e óbvias desgraças da humanidade. Uma espada ou uma alabarda abre o
corpo com um golpe limpo, mas a bala de uma arma complica o assalto militar
com carne queimada e pedaços de chumbo e de tecido no interior do corpo. A
rainha Elizabelh felizmente contratou para cuidar de Hawkins e Drake seu
cirurgião militar Thomas Gale (1507-86), cujo livro An Excellent Treatise of
Wounds Made with Gonneshot contradizia todos os outros cirurgiões da Europa, em
1563, afirmando que a bala suja não era tão quente quanto o cautério purificador.
Sua majestade foi também muito bem servida no mar, na luta contra a Armada, por
William Clowes (1549-1604), que, em 1591, disse a mesma coisa no seu A
Profilable and Necessarie Book of Observations for All Those that Are Burned With the
Flame of Gumpowder Etc and also for Curing of Wounds Made with Musket and
Caliver Shot and Other Weapons of Warre Commonly Used at this Day both by Sea and
Land.
Os reis franceses que vieram depois, Francisco I (que morreu em 1547, com 53
anos), Henrique II (que morreu em 1559, de um ferimento durante uma justa
amistosa com um escocês), Francisco II (que casou com Mary, rainha da Escócia,
aos 14 anos e morreu de um abscesso no ouvido com 17 anos, em 1560), Carlos
IX (que morreu de tuberculose, aos 24 anos, em 1574) e Henrique III (assassinado
aos 38 anos, em 1589) tiveram mais sorte, nessa época de inovação, com a
presença do seu cirurgião do exército Ambroise Paré (1510-90), o Pai da
Cirurgia Moderna.
Naquela época os ferimentos a bala eram tratados com óleo fervente, mas certa
noite, durante o ataque de Francisco I a Turim, em 1537, o óleo acabou e Paré
passou a aplicar uma emulsão de ovos, água de rosas e essência de terebintina.
Depois de uma noite, ansiosa e insone, de manhã Paré viu, aliviado, que seus
pacientes estavam vivos, et tant mieux!, quase sem febre e sem dor. Os pacientes
tratados com óleo fervente estavam inchados, agonizantes e morrendo. A partir de
então Paré abandonou o óleo fervente, adicionou gordura de cachorro à sua
mistura, vermes e óleo de lírio e caminhou pela enfermaria dizendo humildemente
“Je le pansay, Dieu le guarit"— eu apliquei o curativo, Deus fez a cura.
Paré era outro irrepreensível médico-aforista. Dois dos seus aforismos
merecem ficar guardados na mente dos estudantes de medicina:
— Nunca perca a esperança no paciente, mesmo (quando os sintomas apontam
para uma fatalidade.
— Aquele que se toma cirurgião por amor ao dinheiro não conseguirá nada.
Paré era outro médico prático, como Hipócrates, que preferia aprender com os
pacientes, não com os livros. Nos 10 dias entre o ferimento de Henrique II, no
combate singular, e sua morte, Paré procurou o melhor tratamento, dissecando
quatro cabeças humanas recentemente decapitadas, gentilmente cedidas por
criminosos locais. Um huguenote suspeito, ele sobreviveu ao massacre do Dia de
São Bartolomeu, em 1672, graças à proteção da câmara do real mandante da
matança. “Não é razoável que uma pessoa que vale um mundo inteiro de homens
seja assassinada assim”, admitiu Carlos IX. Paré misericordiosamente aboliu a
castração como cura rotineira das hérnias masculinas.
UM BENFEITOR DA CIRURGIA
A guerra continuou a ser um estímulo admirável e consistente para o
desenvolvimento da cirurgia. Quanto maior e mais profundo o ferimento,
provocado pelo aperfeiçoamento das técnicas de matar, mais hábeis e mais
informados ficavam os cirurgiões. O imperador foi ferido apenas uma vez em suas
campanhas, na batalha das Pirâmides, em 1789, quando levou um coice do
próprio cavalo no pé. Seu cirurgião era Dominique Jean Larrey (1766-1842), “o
homem mais virtuoso que já conheci”, para o qual ele deixou 100.000 francos e
concedeu a dignidade de barão por ter matado os cavalos dos oficiais para
alimentar os feridos.
Larrey inventou a "ambulância voadora”, uma caixa leve sobre duas rodas,
puxada por dois cavalos, para retirar os feridos do campo de batalha, ao invés de
deixá-los para morrer até a luta terminar. Cirurgião-chefe de la grande armée,
Larrey teve uma vida muito ocupada (1.900 feridos em Abukir, 200 amputações
por dia em Borodino). Ele próprio foi ferido cm Waterloo, foi cirurgião de Luiz
Filippe e estava esperando em Les Invalides, com seu uniforme de gala, quando
Napoleão voltou de Santa Helena.
No outro lado, em Waterloo, estava Sir Charles Bell (1774-1842), um escocês
que morava na Soho Square, artista hábil e pescador com isca artificial, o homem
que separou os nervos sensores dos motores, uma descoberto tão importante
quanto a da circulação do sangue, por Harvey. Ele é popularmente conhecido pela
paralisia parcial da face de Bell. Era filho de Manse, vivia bem e morreu pobre.
Sir Charles operava imparcialmente amigos e inimigos, com duas horas de sono
por noite:
É impossível descrever o quadro de miséria humana que eu linha sempre ante
meus olhos. Enquanto eu amputava a perna de um homem na altura da coxa, 13
muros feridos esperavam para ser operados... Era estranho sentir minha roupa
engomada com sangue e meus brados exaustos com o esforço de manejar o bisturi!
Oito dias depois da batalha ele visitou o campo da luta.
A vista do campo, os ataques galantes, as cargas, os episódios individuais de
iniciativa e valor me fizeram lembrar o sentido, para o mundo, da palavra vitória
e o que significa Waterloo. Mas isso tudo passa. Uma visão sombria e
desagradável da natureza humana é a conseqüência inevitável de ver todas as
partes do todo como eu vi — como fui obrigado a ver.
Certamente.
A cirurgia retribuiu a inspiração da guerra, tornando-a menos letal. A tala para
imobilizar o membro quebrado, desenhada pelo filho de um galês especialista em
fraturas ósseas, o fumante inveterado e com gorro de pano Hugh Owen Thomas
(1843-91), clínico geral nos bairros pobres de Liverpool, foi introduzida para
fraturas compostas do fêmur em 1916 e, em 1918, havia reduzido o índice de
mortalidade de 80% para 20%. O tio do Kaiser, o cirurgião Friedrich von
Esmarch (1823-1908), insistia nas bolsas de instrumentos para curativos durante a
Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. Ele inventou uma enorme atadura de
borracha para retirar todo o sangue da perna, antes da operação, facilitando a vida
do cirurgião. Nikolai Ivanovitch Pirogoff (1810-81), o russo inovador do éter, foi
o cirurgião militar que, como Florence Nightingale na Criméia, irritou as
autoridades insistindo em medidas de maior conforto para os médicos e
introduzindo enfermeiras de guerra, onde antes só havia enfermeiros.
Na I Guerra Mundial, as forças dos EUA tiveram 234.300 feridos, dos quais
14.500 morreram devido aos ferimentos. O que significa que 219 800
sobreviveram, 6,25%. Na II Guerra Mundial só o exército dos EUA teve mais do
dobro de feridos, 572.027, e 25.493 deles morreram em virtude dos ferimentos,
4,5%.
Um modo mais confortável de matar seu semelhante é o automóvel. O
departamento do governo britânico responsável pelo controle das estradas
anunciou orgulhosamente que o total de 4.655 mortes por ano em acidentes de
automóvel havia caído para o nível de 43 anos antes. Nas ruas da Grã-Bretanha,
em 1930, 4% dos que foram feridos morreram. Em 1960, 2% dos feridos
morreram, Em 1990, 1,6% morreu. Portanto, a cirurgia faz também motoristas
melhores.
OS ANTIGOS MESTRES
John Abernethy (1764-183D era um cirurgião rude. Quando substituiu Percival
Pott, no São Bartolomeu, aconselhou aos vereadores obesos da cidade: “Vivam
com seis pence por dia e tratem de ganhá-lo." Às mulheres dos vereadores,
também com excesso de peso, aconselhou: “Madame, compre uma corda de
pular.” A respeito das filhas apertadas nos espartilhos e com problemas de prisão
de ventre, ele dizia. “Ora, madame, sabe que há mais de 30 metros de entranhas
apertadas debaixo dos espartilhos das suas filhas? Vá para casa e corte a cinta, dê
uma oportunidade justa à natureza, e não vai mais precisar dos meus conselhos.”
Abernethy ligou a artéria carótida, no pescoço, para conter a hemorragia, e a
artéria ilíaca, no intestino, para conter o aneurisma.
Ninguém havia tentado isso antes. Antes da anestesia e da assepsia, o abdome
era tão inviolável quanto os cofres do banco da Inglaterra. “Ele formou uma época
na história da sua profissão”, disse o Edinburgh Medical Journal, cumprimentando
generosamente um londrino.
Ele era um cirurgião que detestava operar. Certa vez seu assistente o encontrou
“na sala dos médicos, depois de uma operação, com os olhos cheios de lágrimas,
lamentando o possível fracasso do que acabara de ser obrigado a fazer por
necessidade e pelas regras da cirurgia”. Tinha outra fraqueza. “Conheci uma
pessoa que era a prova viva do poder do tóxico, de tal modo que rae deixou
incrédulo, pois era um cirurgião, e tinha tomado uma grande quantidade de ópio”,
escreveu de Quincy sobre John Abernethy em Confissões de um inglês comedor de
ópio. Ele continua citando: “Eu admito,” disse ele, “que digo bobagens, e,
segundo, admito que não falo tolices por princípio, nem com intenção de lucro,
mas única e simplesmente”, disse ele — "única e simplesmente” — (repetiu três
vezes) “porque estou embriagado com ópio, todos os dias.”
Tudo que Abernethy não podia operar ele tratava com uma pílula azul, que
movimentava os intestinos. Numa noite de sábado ele disse a uma jovem que
havia tratado durante semanas a mãe viúva, paciente dele: "Eu testemunhei sua
devoção e bondade para com sua mãe. Estou precisando de uma esposa, e acho
que você é exatamente a pessoa que me serve. Eu estou sempre muito ocupado, e
por isso não tenho tempo para fazer a corte. Pense no assunto até segunda-feira”.
Funcionou.
Sir Astley Paston Cooper (1768-1841), no outro lado do Tâmisa, no Guy’s, era
entusiasticamente cortês. Com isso ganhava 15.000 libras por ano e pagava 600
libras por ano para seu mordomo, que controlava a fila na sala de espera do seu
consultório. Naquele tempo podia-se calcular o sucesso de um cirurgião pelo
número de carruagens que enchiam a rua do seu consultório. Em 1820, Astley
Cooper extraiu um quisto superficial da cabeça de George IV e determinou que o
preço por cortar o rei era um baronato (Lawrence pintou o quadro). Todas as
manhãs, Sir Astley conscienciosamente praticava, dissecando corpos durante duas
horas antes do seu desjejum (chá e dois pãezinhos quentes). Ele era um receptador
que pagava muito bem aos ladrões de corpos que exigiam, no mínimo, oito
guinéus por corpo, o que era possível obter na França por 5 shillings. Sir Astley
disse cortesmente aos médicos, no Comitê Seleto de Anatomia da Câmara dos
Comuns, em abril de 1828: “Não existe ninguém, seja qual for sua posição no
mundo, que eu não dissecaria se pudesse.” Um pensamento quase tão apavorante
quanto o de perder sua cadeira na câmara.
A rica clientela de Sir Astley Cooper foi herdada por Sir Benjamin Collins
Brodie (1783-1862), cirurgião do Hospital São George, em Hyde Park Comer,
que nessa época estava sendo reformado para se tomar o encantador e bem
situado hotel que é hoje. O próprio Sir Benjamin é lembrado pelo abscesso de
Brodie (crônico, da tíbia) e a doença do seio de Brodie (grande, mas benigno).
Em 1858, Sir Benjamin tornou-se o primeiro presidente do Conselho Geral de
Medicina, cujo objetivo, todos sabiam, era desgraçar publicamente os médicos
que assediavam suas pacientes sexualmente ou as horizontalizavam. O uso mais
consistente do CGM consistia em regulamentar o ensino da medicina, erradicando
os caubóis da profissão que não conseguiam figurar no Registro oficial, a lista que
confere aos médicos os direitos tão necessários de assinar atestados de óbito.
Antes do CGM, só um terço dos médicos britânicos havia se interessado em
figurar no registro.
No outro lado do Solway Firth estava James Syme (1799-1870), sogro de Lord
Lister. Ele foi imortalizado pela amputação Syme do pé. Nascido em Princes
Street, sendo seu pai um colaborador do Signet, Syme era essencialmente um
homem de Edimburgo que “jamais desperdiçava uma palavra, ou um pingo de
tinta ou uma gota de sangue”. Tomou-se professor de cirurgia em Edimburgo, ele
mesmo determinando a pensão de 300 libras por ano para o titular da cadeira, um
bom negócio, uma vez que seu antecessor estava então com 81 anos. Quando era
estudante, com uma queda para química, Syme notou que a borracha dissolvida em
petróleo impermeabilizava os tecidos. Se ele tivesse explorado sua descoberta,
nos dia de chuva nós todos estaríamos usando as nossas symes, não as
mackintoshes.
No outro lado do Canal, a contratura que dobra os dedos para a palma da mão
estava sendo tratada, em 1832, pelo Barão Guillaume Dupuytren (1777-1835).
Dupuytren era o pior tipo de cirurgião. Vaidoso, desdenhoso, autoritário,
inescrupuloso, ele operava en pantoufles e repetia provocadoramente, embora com
razão: “Eu já me enganei, mas muito menos do que qualquer outro cirurgião." E
também — o que era também irritante — era um operador magnífico e
extremamente bondoso para com seus pacientes.
A primeira operação de contratura realizada pelo Barão Dupuytren foi num
comerciante de vinho de Paris, mas depois disso o cirurgião absteve-se de fazer
essa cirurgia até encontrar um corpo com essa deformidade, no qual pudesse
praticar. A operação persiste até hoje, a condição é comum, sendo um dos
pacientes mais ilustres Margareth Thatcher. Atualmente suspeita-se que seja outra
reação auto-imune, como o reumatismo.
Dupuytren era mesquinho. Quando estudante de medicina, tirava gordura dos
corpos para acender sua lâmpada de leitura. Quando uma duquesa o presenteou
com uma bolsa bordada à mão, como uma prova carinhosa de gratidão por ele ter
salvo sua vida, ele disse secamente que o preço era 5.000 francos. Então,
sorrindo, ela tirou cinco notas de 1.000 francos da bolsa e a devolveu a ele,
dizendo com voz arrulhante que agora continha exatamente aquela quantia, e o
quanto ele era modesto. Dupuytren era o “bandido do Hôtel Dieu”, que deixou
uma fortuna. Em algum tempo ele talvez tenha tido charme, uma vez que, na
juventude, era mantido por uma mulher rica de Toulouse e, depois, por um oficial
de cavalaria.
No outro lado do Atlântico, em Filadélfia, Philip Syng Physick (1768-1837) foi
o Pai da Cirurgia Americana. Formado em Edimburgo, aluno de John Hunter, de
Londres, em 1826 inventou o ânus artificial. William Wardell Mayo (1819-1911),
de Manchester, foi o pai dos cirurgiões americanos William James (1861-1939) e
Charles Horace Mayo (1865-1939), e os três fundaram a Clínica Mayo em
Rochester, Minnesota, o equivalente cirúrgico do Museu Guggenheim de arte, na
Quinta Avenida.
A CIVILIZAÇÃO DA CIRURGIA
Sir James Paget (1814-99) era filho de um cervejeiro, um estudante pobre, um
jornalista-médico amador, que chegou a ganhar 10.000 libras por ano e foi o único
cirurgião que apareceu num musical de Gilbert e Sullivan. O coronel Calverley
canta em Patience a coragem de Lord Nelson, a bordo do Victory, o gênio de
Bismarck, criando um plano, e a "calma de Paget pronto para fazer a trepanação”.
Uma honra igual ao seu posto de Sargento Cirurgião da Rainha Vitória.
Paget nos deixou a doença dos ossos de Paget (espessamento do crânio,
obrigando a pessoa a comprar chapéus cada vez maiores) e a doença do mamilo
(câncer). A voz de Paget soava constantemente nos salões de conferências. “Eu
divido as pessoas em duas classes — os que já ouviram e os que não ouviram
James Paget”, dizia Gladstone em coro com W.S. Gilbert. Com 29 anos Paget foi
nomeado Curador do Colégio de Medicina São Bartolomeu, e casou. Sua mulher
estremecia na casa do curador com os gritos dos pacientes antes da anestesia, no
teatro de operações que ficava ao lado.
“Um cirurgião deve possuir três coisas diferentes. Isto é, um coração de leão,
olhos de falcão e mãos de mulher”, dizia John Halle (?1529-?1568), cirurgião e
poeta. Isso era tudo que os cirurgiões podiam oferecer aos pacientes naquela
época. Eles eram artistas inspirados pela anatomia. Agora são decoradores de
interiores que modificam a disposição do mobiliário do corpo à luz brilhante da
ciência. As cavidades do corpo não assustam mais, elas os atraem, nenhum tecido
tem segredos para o bisturi, os órgãos são transplantados como objetos de uso, a
cirurgia microscópica é tão comum quanto a televisão, a cirurgia de conforto —
quadris, joelhos, calos, veias varicosas —, mais do que a cirurgia da
sobrevivência, é tão prosaica que as pessoas reclamam quando não são
submetidas a elas prontamente.
OS CANTEIROS
“Não usarei o bisturi, jamais, nas pessoas que têm pedras, mas deixo esse
trabalho para os especialistas dessa arte”, diz Hipócrates, defensivamente, no seu
Juramento.
As pedras da bexiga datam de mais de 7.000 anos, como provam as que foram
encontradas nas múmias do Egito. Os árabes e os hindus da antiguidade abriam o
corpo para retirar as pedras, depois Celso e Paracelso fizeram o mesmo. No
século XVI havia litotomistas ambulantes, como malabaristas e latoeiros. Piere
Franco (1505-70), um huguenote expulso de Florença para Lausanne, tirava
habilmente as pedras por cima ou por baixo (ele confessou que o fracasso
significava fugir dos parentes para salvar a própria vida). Frère Jacques de
Beaulieu (1651-1719) retirava as pedras pelo lado do corpo e dava aos pobres o
dinheiro que recebia. O franciscano Frère Jean de Saint Côme (1703-81) inventou
uma faca de superfície mais lisa, e garantia 90% de cura. O cirurgião de Newton e
de Pope, William Cheselden (1688-1752), fazia a extração em um minuto, ou, num
dia melhor, em 54 segundos. Muitos escaparam da operação, como Pepys, em 7 de
março de 1665. “Logo eu fui verter água, só pensando nos meus testículos que,
por acidente, eu podia ter machucado, como faço sempre — mas quando urinei
saíram duas pedras, eu as senti e olhei para a minha urina, mas não senti dor
quando elas saíram.”
Na década de 1860, os médicos cortesãos de Napoleão III procuravam evitar
que fosse conhecida a existência de uma pedra enorme na bexiga, que fazia o
imperador andar com as pernas curvadas e que o fez desmaiar duas vezes, depois
de uma noite bastante movimentada com sua amante. A pedra obstruía as
passagens até o pênis e o impediu de inaugurar o Canal de Suez, em 1869. Os
médicos diziam que o imperador sofria de reumatismo, mas a imprensa zombava
dessa afirmação. Até os repórteres sabiam que não se trata reumatismo com
cateteres.
O imperador recusava o uso de uma sonda exploratória, e comandou seu
exército na Guerra Franco-Prussiana, de 1870-71, com toalhas enfiadas na calça,
como fraldas. Quando Napoleão fugiu da terceira república para se juntar à
imperatriz Eugênia, nos arredores de Londres, os cirurgiões da rainha Vitória
foram mais severos do que os franceses. Nos dia 2 e 6 de janeiro de 1873 a pedra
foi amassada dentro de Napoleão pelo urologista Sir Henry Thompson, baronete
(1820-1904), fundador do crematório Golder’s Green (Millais fez o quadro), que
10 anos antes havia ensaiado em Leopoldo I da Bélgica. Joseph Clover aplicou o
clorofórmio. Todos ficaram felizes com o fim da aflição de oito anos do
imperador Napoleão, mas infelizmente três dias depois ele morreu. Essa história
aconteceu no prédio onde está hoje o clube de golfe suburbano de Chislehurst.
CIÊNCIA DOMÉSTICA
O ano é 1923:
Eu estava olhando para o teto, minha testa molhada de suor frio.
Eu cruzava meus dedos com força, para evitar que toda a sensação
desaparecesse deles.
Depois de algum tempo, ouvi três gemidos vindos do quarto acima do meu e,
então, outra vez o ruído de passos. Compreendi que a operação tinha começado.
Eu podia imaginar o bisturi, a grande incisão, a frieza insensível de tudo aquilo.
Durante o que me pareceram horas intermináveis, olhei para o teto. De repente,
houve uma grande comoção no quarto acima do meu. A mesa foi arrastada
rapidamente. Os passos soavam em todo o quarto. A operação estaria terminada?
Não. Alguma coisa estava errada. Um homem desceu correndo a escada e chamou
um táxi. Num momento ouvi as rodas partirem velozes na rua e, logo depois,
voltaram. Ele fora apanhar alguma coisa e subiu a escada correndo...
Então, quando olhei para cima vi, com horror, uma pequena mancha vermelha
aparecer no teto branco. Eu sabia que era sangue. A mancha tinha o tamanho de
uma moeda de cinco shillings. Cresceu até ficar do tamanho de um prato. O
vermelho ficou mais vivo e, finalmente, uma gota pingou na coberta branca da
minha cama. Caiu como um pedaço de chumbo. Eu mal podia respirar. Outra gota
caiu com o som surdo de uma pedra...
Chega!
A heroína da aventura sanguinária era uma dama delicada, que fazia tratamento
para os nervos numa clínica de Londres. A experiência a curou imediatamente.
A cirurgia moderna é tão técnica que precisa ser feita em teatros operatórios
complexos, com equipes especializadas e monitores e gráficos luminosos. Todo o
aparelhamento seria um enigma para os leigos se não aparecesse constantemente
na televisão. Até a década de 1930 a grande cirurgia era realizada em salas
provisórias, nas clínicas instaladas em antigas residências urbanas confortáveis
adaptadas ou na casa do paciente. Amígdalas e até mesmo apêndices eram
removidos na mesa da cozinha. Lord Lister operava por toda a cidade de Londres,
seu “burro mecânico” mal disfarçado sob sua roupa, saindo de casa, em Regent's
Park na sua berlinda. Sua chegada era recebida pelos vizinhos do paciente com
estremecimentos, piadas e a mesma satisfação com que o povo curioso recebia em
Tyburn o carrasco com seu equipamento.
O autor da história de horror da dama neurótica foi Sir Frederick Treves,
baronete (1853-1923), que operou o rei Eduardo VII, que tinha então 50 anos, no
dia 24 de junho de 1902. O rei estava com dores na barriga e foi examinado por
Lord Lister, que diagnosticou peritiflite. Esta era uma denominação vaga para uma
inflamação localizada dos intestinos, de cuja cura Treves foi pioneiro removendo
o apêndice desde 1887. Em 1889, Charles McBumey (1845-1913), do Hospital
Roosevelt, em Nova York, elucidou a condição centralizando o diagnóstico no
“ponto de McBumey”, entre o umbigo e o quadril, sensível à ponta do dedo do
cirurgião nos casos de apendicite aguda.
Foi muito inconveniente porque coincidiu com a coroação, marcada para dois
dias depois, porque o rei disse que não podia ser adiada como uma reunião de
tiro ao alvo em Sandringham. “Então, sire, o senhor irá à Abadia como um
cadáver”, disse o cirurgião. Não havia outra solução. O adiamento era de fato
algo quase inimaginável, com todos aqueles monarcas estrangeiros e príncipes
que já estavam na Estação Vitória. O palácio de Buckingham cambaleou sob o
peso dos problemas, como, por exemplo, o que iam fazer com o caviar? Podia ser
guardado no gelo, bem como as 2.500 codornizes, mas as perdizes e as costeletas
teriam de ser dadas aos pobres. Cestos repletos de comida foram enviados para
as instituições de caridade e, na tarde seguinte, em Whitechapel, comeram
consommé de faisan aux quenelles et cotelettes de bécassines à la Soiwaroff. A
coroação foi transferida para 9 de agosto, e se o caviar agüentou até essa data só
os reis abissínios estavam presentes para consumi-lo.
Eduardo VII foi operado em casa. Foi andando para a mesa de operação. A
rainha Alexandra segurou a mão dele até terminar a aplicação da anestesia, e
voltou a segurá-la um pouco antes dele voltar à consciência. O paciente real
salvou um grande número de vidas do diagnóstico vago de peritiflite, dando à
operação de Treves o éclat que seus descendentes deram ao jogo de pólo.
Treves não era um cortesão, ia para a cama às 10 horas da noite e levantava às
6 da manhã para escrever. Era amigo de Thomas Hardy, tinha carta de marinheiro
e podia ter capitaneado o iate real tão bem quanto operava. Seu estilo literário era
incisivo e seco, como convinha a um cirurgião. Sua história do Homem Elefante,
de quem se tornou amigo no Hospital Londres, foi um sucesso de bilheteria no
West End e na Broadway, porém, infelizmente, quando isso aconteceu Treves
estava morto e seus direitos autorais já prescritos.
CIRURGIA DE MANCHETE
Em 3 de dezembro de 1967, no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, o
professor Christian Neethling Barnard (1922) realizou o primeiro transplante de
coração, combinando assim as forças humanas naturais e emocionais com uma
intensidade shakespeareana. Em 25 de novembro de 1974 ele aperfeiçoou seu
método, realizando o primeiro transplante de coração duplo. A idéia não era nova.
Ocorreu a John Hunter dois séculos antes, em Londres, onde um dente humano que
ele transplantou numa crista de galo pode ser visto hoje no Colégio Real de
Cirurgiões.
Nosso corpo morto é como o “ovo do cura” do antigo ditado inglês: algumas
partes são excelentes, mas outras deixam muito a desejar. Porém, a parte saudável
não pode substituir imediatamente outras partes iguais doentes, porque o corpo
rejeita violentamente os que ultrapassam o portão imunológico. Em 23 de
dezembro de 1954, no Hospital Peter Brent Brigham, em Boston, um rim saudável
foi transplantado de um irmão (nós só precisamos de um rim para viver) para
outro, que tinha dois rins doentes, dando a ele uma sobrevida de nove anos.
Porém, esses irmãos eram gêmeos idênticos. O truque do transplante consiste em
combinar os tecidos do doador e do receptor, depois usar os novos medicamentos
imunossupressores que podem fazer artificialmente gêmeos idênticos de todos
nós. Esses medicamentos anulam a recepção hostil até que o novo hospedeiro se
acostume com o visitante, e então eles passam a viver felizes juntos. Rins,
pulmões, corações e fígados são agora trocados entre seres humanos vivos e
mortos com a benevolência de presentes de Natal.
O novo rim não é implantado no lugar do anterior, mas na pelve. A “colheita” é
grotesca até mesmo para os médicos experientes. O cirurgião, chamado com
urgência por uma organização que nunca dorme, explica cuidadosamente para a
equipe local que não vai ser um episódio de cirurgia convencional. O anestesista
entra com o paciente na maca — rosado, quente, respirando regularmente graças
ao respirador artificial, coração batendo, mas morto. O cirurgião faz uma incisão
com a generosidade de uma autópsia, retira o coração, os pulmões, os rins, o
fígado e, já que está com a mão na massa, outras partes úteis, como pâncreas ou
uma glândula supra-renal. Tudo é acondicionado no gelo para o transporte
dramático por helicóptero ou entre as luzes piscantes dos carros de polícia para
os receptores, que já foram chamados, com suas valises, para o hospital de
transplante mais próximo. O anestesista desliga o respirador. O corpo fica
cinzento e frio, e coberto por um suor inesperado. É levado então para o
necrotério e a equipe cirúrgica toma café num silêncio pensativo.
Para que essa descrição não me traga a vergonha de contribuir para que seja
rasgado algum cartão de doador — um programa idiota da televisão mostra uma
infinidade de cartões rasgados — por favor, acreditem, o indivíduo já está
completamente morto.
A “morte cerebral” só é declarada depois de testes que verificam as mais
baixas funções vitais, sem obter nenhuma resposta. O cartão de doador é algo
muito valioso. Qualquer ser humano vítima de ferimentos fatais ou hemorragia
cerebral pode, com sublimidade bíblica, dar a vida com sua morte.
O mundo todo ama o amor, mas ele nos traz as desagradáveis inconveniências
da gravidez e da doença.
A DOR DO SEXO
A história da contracepção é tristemente previsível. Começou alegremente com
Boswell. O homem que Johnson considerou muito digno de pertencera um clube,
era também muito gonorréico. James Boswell teve 19 crises de gonorréia,
começando antes do seu primeiro encontro com Johnson, em 1763, quando tinha
22 anos, e terminando em 1795, quando foi carregado para casa por um membro
do clube literário com retenção aguda da urina, e logo sucumbiu a 35 anos de uso
exagerado das vias urinárias. Boswell teve 12 filhos, cinco deles ilegítimos. O
único tratamento eficaz para a gonorréia era aplicado nas estenoses que apareciam
abaixo da bexiga, depois da instalação da infecção crônica da uretra. Era feito por
meio de sonda, inserindo no pênis tubos curvos de metal, que Boswell detestava a
ponto de desmaiar. Outra figura literária que não gostava desse tratamento era
Thackeray.
Boswell era um grande defensor da camisinha. Ele podia comprá-la
convenientemente em Leicester Square, sob o signo do Sol Nascente, camisinhas
desenhadas para cavalheiros, feitas com tripa de carneiro ou cabra, temperadas,
perfumadas, com 20 centímetros de comprimento, delicadamente fabricadas em
moldes de vidro pelas mãos da proprietária, a senhora Phillips. As de melhor
qualidade, “Baudruches Superfinas”, eram amarradas na extremidade superior
com fitas que podiam ter as cores nacionais. (Podem ser vistas, descuidadamente
espalhadas no chão, entre cascas de ostras, ossos de galinha e barbatanas no
Rake’s Progress de 1736, em Hogarth.)
É pena que a obsessão dos ingleses pelas gravatas dos clubes não tenha esse
mesmo gosto. O azul vivo e o vermelho da Brigada de Guardas, o brilho do sol e
o vermelho do tomate no MCC, o salmão e o pepino do Garrick Club teriam
contribuído para o embelezamento artístico de um desempenho necessariamente
deselegante. Para os fregueses mais cautelosos a senhora Phillips tinha seu
"Duplo superfino”, feito com a superposição e a colagem de dois cecos, a
extremidade fechada do intestino grosso do carneiro. Essa tripa ovina profilática
foi pela primeira vez anunciada como “um aparelho para a prevenção dos
inconvenientes das aventuras amorosas”, no The Tatler de 12 de maio de 1709.
Boswell não gostava das camisinhas. “Armadura" que diminuía seu prazer com
as Lizzies, Nannies, Louisas, Megs, suas aventuras amorosas por toda a cidade de
Londres, fosse nas tavemas de Covent Garden e no Strand, com joelhos trêmulos,
por seis pence, no Parque St. James e na ponte de Westininster, ou com a jovem
Alice Briggs, de 17 anos, no jardim do número 10 de Downing Street (antes de se
tornar propriedade oficial). Boswell preferia o tipo feito de linho, que precisava
ser molhado antes (ele molhava no canal do Hyde Park). Eram mais econômicas
que as Baudruches da senhora Phillips, porque podiam ser lavadas na lavanderia
de camisinhas em St. Martin Lane, dirigida por Jenny. Boswell era um péssimo
exemplo para a publicidade das camisinhas a favor da saúde pública, mas apenas
pela inconveniência não incomum de nunca ter uma com ele quando precisava.
O jingle dos bares a favor das camisinhas exaltava sua proteção contra “os
males de Shankers, ou Cordee, ou Buboes Dire!” Mas mencionava o perigo
secundário da “barriga grande e o bebê chorão”, e aí estava o problema do futuro.
EVITANDO O ASSUNTO
A divergência entre o entusiasmo do ser humano pelo prazer do sexo e a idéia
da reprodução humana sempre provocou um debate acalorado. A Igreja Católica
Romana preocupa-se razoavelmente com a santidade da vida humana, e ao mesmo
tempo expressa sua autoridade interferindo com as funções fundamentais do nosso
corpo. Segurar a congregação pelos testículos é um meio mais eficaz de conseguir
lealdade do que fazer os fiéis comerem peixe todas as sextas-feiras. A
contracepção alternativa, que consiste em controlar o ritmo da menstruação,
prolongar o período de amamentação e praticar o coitus interruptus pode ser
correta sob o ponto de vista religioso, mas é uma roleta russa copulatória.
Em 1798, o Reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834) sugeriu que, se o
mundo continuar a copular na mesma razão dos dias atuais, no fim de algum tempo
terá cometido suicídio por inanição. Os únicos itens animadores que, segundo ele,
poderiam adiar esse resultado eram ocupações insalubres, trabalho rigoroso,
pobreza extrema, falta de tratamento das doenças, cidades grandes, excessos,
doenças, epidemias, guerras e fome. O genial Malthus (pai de três filhos) não era
malthusiano. Era contra a contracepção, e recomendava ao mundo que procurasse
salvar a própria pele por meio da repressão moral, que todos fossem encorajados
a levar a idade do consentimento para o casamento. Era um remédio absurdamente
otimista para uma ameaça tão terrível. Outras pessoas, igualmente racionais, viam
a repressão mecânica, ao invés da moral, como mais atraente e mais eficaz. Isso
provocou escândalo.
O subsecretário de Estado dizia, a favor dos ofendidos, no Guidhall, no verão
de 1877:
Na minha opinião este é um livro sujo, imundo, e a prova é que nenhum ser
humano permitiria que fosse posto sobre sua mesa, nenhum marido inglês
decentemente educado permitiria que sua mulher o visse. O objetivo do livro é
permitir que as pessoas pratiquem o sexo, mas não para ter aquilo que, na ordem
da Providência, é o resultado natural dessa prática.
O título era Frutos da Filosofia, ou o Companheiro Particular dos Jovens Casais,
do doutor americano Charles Knowlton (1800-50). Hora publicado no ano
anterior (com ilustrações), em Bristol, por Henry Cook, condenado a dois anos de
trabalhos forçados. Também com problemas estavam Charles Bradlaugh (1833-
91), ex-menino de recados e ex-soldado da cavalaria, um membro do parlamento
independente que se recusou a jurar sobre a Bíblia parlamentar, foi expulso da
Casa pelo sargento-de-armas e preso durante dois dias sob o Big Ben (sem
dúvida, sem poder dormir). Ele foi excluído do parlamento quatro vezes, e por
cinco vezes foi eleito pela persistente e sensata cidade de Northampton, centro da
indústria de calçados, até que o parlamento se cansou e ele representou sua cidade
até a morte.
E Anne Besant (1847-1933), separada do marido vigário, depois teosofista, que
descobriu o novo Messias (Jeddu Krishnamurti, de Madras, de 14 anos, que ela
adotou e fez desfilar pelo mundo todo de 1910 a 1925, e que costumava sair do
próprio corpo quando dormia). Ela formou com Bradlaugh a Companhia Editora
do Pensamento Livre, deliberadamente para republicar Frutos da filosofia.
Os dois foram condenados a seis meses de prisão e a uma multa de 200 libras,
revogada na instância de apelo, mas apenas tecnicamente, devido a um erro verbal
da acusação. Os juízes advertiram que se repetissem a ofensa, eles não
escapariam. Bradlaugh vendeu os volumes confiscados com o carimbo de
RECUPERADAS DA POLÍCIA, um bom golpe publicitário, e a brochura de Anne, de
1877, A Lei da População, vendeu 175.000 unidades. Quando um dermatologista de
Leeds, Henry Arthur Allbutt (1846-1904), publicou seu livro de seis pence O
manual da esposa, em 1886, o Conselho Geral de Medicina tirou seu nome do
Registro Médico por conduta antiprofissional, mas ele foi compensado pela venda
do livro, que rendeu meio milhão de libras.
O Guildhall de 1877 ecoava no Old Bailey de 1960. Diz o procurador-geral
Mervyn Griffith-Jones:
O livro está repleto de palavrões. As palavras "copular" e “copulação"
ocorrem não menos de 30 vezes. Eu contei. “Vulva”, M vezes, “testículos", 13
vezes, “fezes” e “ânus” seis vezes cada um, “pênis”, quatro vezes, “urinar”, três
vezes, e assim por diante.
Ele acentuou a qualidade dessa lista escandalosa não usando as palavras
técnicas que eu usei, mas as comuns, que ele certamente usava nos fins de semana.
Foi o julgamento do Amante de Lady Chatlerly que atraiu a atenção encantadora do
procurador-geral, preocupado com a possibilidade de algum empregado seu ler o
livro — numa era em que o barato tweeny estava sendo substituído pelo twin-tub,
mais barato ainda.
A moral é de um modo geral uma expressão da história e da geografia. Qualquer
coisa vale, mas não em toda parte. Os hindus não podem beber, mas têm várias
mulheres, os cristãos podem-se embriagar quantas vezes quiserem, mas estão
presos, como disse Saki, “ao costume ocidental de uma mulher e quase nenhuma
amante”. Nos EUA, em 1933 era errado brindar o aniversário de Washington, mas
em 1934 era um gesto patriótico. Nas ilhas Fiji, na década de 1830, até o
canibalismo era socialmente aceitável, separando-se o cérebro, como um petisco,
para as mulheres.
“Mas existem duas moralidades”, disse Flaubert. "Uma é bonita e convencional,
invenção dos homens e muda constantemente, um amontoado de nadas prosaicos e
absurdos, que fazem tanto barulho quanto os imbecis que a inventam. Mas a outra
vive naquela eternidade que está à nossa volta e acima de nós, como os campos e
os bosques e o céu azul espalhando seu brilho pela Terra.”
A moralidade que é tão inconseqüente quanto aquele tagarela imbecil do Show
Agricultural de Flaubert é impressionante. Ela incita com enorme celeridade a
condenação solícita das infrações cotidianas, quando perpetradas por outros.
A MÁCULA
Em 1492 Colombo descobriu a América. Depois da sua volta, em 1493, o Velho
Mundo descobriu uma nova doença. Ela foi precariamente catalogada por Nicolo
Leoniceno (1428-1524), professor de física em Ferrara. Pústulas dolorosas nas
partes privadas, espalhando-se pelo corpo e pela face, erupções, úlceras, bolhas,
pústulas negras, carbúnculos, juntas inchadas e muito doloridas, lassidão, febre,
decomposição da carne, cegueira e morte, com os sintomas persistindo durante
anos nos sobreviventes. Giovanni di Vigo (1460-1520), cirurgião do Vaticano
quando Michelangelo fazia a decoração, em 1514 escreveu um livro que teve boa
venda, Pratica in Arte Chirurgica Copiosa (52 edições), que ensinava: “Essa
doença é contagiosa, especialmente quando apanhada por meio da cópula de um
homem com uma mulher suja.”
Essa conexão com o ato sexual havia sido posta em dúvida, previamente,
porque a doença “infectava os que eram religiosos”.
Hieronymus Frascatorius, de Verona, descobridor do fomite infeccioso,
escreveu em 1530 um longo poema virgiliano:
Primeiro ele teve bolhas de aparência horrível,
Primeiro teve dores estranhas e passou noites em claro;
Dele a doença recebeu seu nome,
Os pastores das vizinhanças apanham a chama devastadora.
Finalmente na cidade e na corte ela foi conhecida,
E atacou o monarca ambicioso no seu trono.
O herói do poema era:
Um pastor certa vez (confie na fama antiga)
Teve esse mal-estar, e Syphlus é seu nome.
Mil novilhas naqueles vales ele alimentou
Mil ovelhas aos belos rios levou.
(A tradução para o inglês foi feita pelo poeta laureado de 1692, Nahum Tate,
que traduziu também “Enquanto os pastores guardavam seus rebanhos à noite”.)
E assim a sífilis tomou-se o ameaçador epônimo de quatro séculos. O título do
poema de Frascatorius é Sobre a Doença Francesa. Giovanni di Vigo, algum tempo
antes, havia anotado no seu livro: “Os franceses a chamam de doença de Nápoles,
porque os soldados a levaram de Nápoles para a França. Os napolitanos a
chamam de doença francesa, porque apareceu na primeira vez que foram a
Nápoles e, assim, outras línguas a chamam por outros nomes.” Nessa explosão de
nacionalismo infeccioso era a doença polonesa para os alemães, a doença alemã
para os poloneses, a doença francesa para os espanhóis e a doença turca para
todos com um conhecimento vago de geografia (os britânicos, como era de
esperar, ficaram do lado dos espanhóis e dos napolitanos). Ninguém pensou em
culpar os haitianos e cubanos, que haviam providenciado a diversão dos homens
de Colombo em terra.
“Esse pecado sujo é sempre acompanhado por essa doença suja, que hoje
chamamos de pox", disse Wiseman em Mr. Badman. “Uma doença tão nojenta e
malcheirosa, tão infecciosa para o corpo todo e tão ligada a esse pecado que
dificilmente tem algo em comum com as mulheres sujas, que elas têm mais ou
menos alguns sinais dela para sua vergonha.”
Se você fuma, pode ter câncer do pulmão. Se você bebe, pode ter cirrose do
fígado. Se faz sexo, pode apanhar uma doença transmitida sexualmente, como
pode apanhar uma gripe por suas atividades sociais. Receber de braços abertos
essa infecção como o castigo adequado ao crime — como todos os que
concordaram com Bunyan, desde 1680 — é uma cruel expressão da cretinice
puritana.
O cirurgião francês Baro Dupuytren, um homem de trato difícil, tinha uma
abordagem mais caridosa. “Você esteve com prostitutas?” “Não, como pode
pensar uma coisa dessas?”, respondia o paciente. “Pois então elas estiveram com
você”, dizia Dupuytren.
A sífilis mais tarde floresceu menos ameaçadora. Brotava com um “cancro”,
florescia com uma erupção vermelho vivo, depois adormecia no esquecimento até
o outono da vida, quando brotava outra vez sob a forma de aneurismas, falta de
equilíbrio, loucura com mania de grandeza, além de características estranhas nos
filhos. Um processo mnemônico para estudantes:
Havia um jovem de Herne Bay
Que pensou que a syph tinha ido embora.
Agora ele tem tabes,
E filhos com pernas tortas
E pensa que é a Rainha de Maio.
ASSUNTO DE FAMÍLIA
Muitas figuras históricas e homens importantes foram considerados vítimas da
sífilis. Isso sé deve, talvez, às manias de grandeza que ocorriam neles
naturalmente. Henrique VIII era um dos suspeitos, por causa da grande quantidade
de filhos nascidos mortos e outros doentes — a sífilis é transmitida através da
mãe, supostamente infectada pelo pai — e por suas úlceras e seu comportamento
geral. É irônico condenar Oscar Wilde à morte por sífilis. Ele morreu de um
abscesso no cérebro, que começou no ouvido e que aumentou o sofrimento de
Reading Gaol. O pai de Oscar, Sir William Wilde (1815-76), de Dublin, foi um
pioneiro das doenças do ouvido, autor de Cirurgia do ouvido (também da Narrativa
de uma Viagem à Ilha da Madeira) e o inventor da incisão Wilde no osso mastóide,
para os casos de infecção do ouvido. O ativo Sir William tratava os pobres num
estábulo não usado em Dublin, era comissário do recenseamento inglês e
descobriu habitações pré-históricas nos pântanos. Ele escreveu sobre a infecção
do ouvido: “Nunca podemos dizer como, quando ou onde ela vai terminar.”
Quando terminou para seu filho, com uma operação muito dispendiosa, em Paris,
em 1900, Oscar suspirou: “Ora, muito bem, acho que terei de morrer além dos
meus recursos.”
Os descendentes de Sir Winston Churchill preocupam-se com seu pai, Lord
Randolph (“Randy Pandy”) Churchill, que supostamente tinha sífilis. A acusação
aparece na biografia de 1925 escrita pelo horrível Frank Harris, que, segundo
Oscar Wilde, “era recebido em todas as grandes casas — uma só vez". Harris
conta que Lord Randolph, quando estudava em Oxford, num jantar com Jowett, no
Balliol, em 1869, sentiu uma coisa estranha dentro da calça. Ansiosamente
perguntou ao criado onde ficava o banheiro. “Sim, lá estava uma espinha redonda
e muito vermelha.” Depois de uma noite de bebedeira no Bullingdon Club, Randy
Pandy supostamente acordou num quarto imundo ao lado de uma mulher velha e
suja, grisalha, com dentes longos e amarelos no maxilar superior, que balançaram
quando ela disse. “Ah, benzinho, você não vai me deixar?” (Frank Harris foi
também um renomado littérateur e menteur.)
No verão de 1893, depois de ter sido secretário na índia e Ministro da Fazenda,
Lord Randolph consultou seu médico em Grosvenor Square, queixando-se de
dificuldade para falar, tremor na língua, dormência no braço esquerdo,
desequilíbrio, violência, apatia, delírios e confusão, e o diagnóstico razoável foi
de estado avançado da sífilis.
Porém, a sífilis é um assassino fantasmagórico e um mímico muito ágil. O
médico da rainha Vitória, Sir William Gull, advertia seus alunos: “Por mais
espertos que sejam, certamente vão ter dificuldade para identificar a tísica, a
sífilis e a sarna.”
Era impossível dizer com certeza quem tinha ou não sífilis antes de 1906,
quando August von Wassermann (1866-1925), de Berlim, inventou seu prático
exame de sangue, a famosa “reação Wassermann”. O Treponema pallidum, o
micróbio fino, espiralado, que entra no corpo como um saca-rolhas e causa todos
os problemas, foi descoberto em Hamburgo, em 1906, pelo filho de um
taverneiro, o zoólogo Fritz Richard Schaudinn (1871-1906). Foi outra expressão
do gênio alemão, na época, para descobrir novos micróbios, igual à dos
britânicos para descobrir novas colônias.
O tratamento da sífilis não havia se modificado desde Giovanni di Vigo.
Resumia-se em “Uma noite de Vênus e uma vida inteira de mercúrio”. O mercúrio
era usado externa ou internamente, as duas administrações diluídas em esperança.
A única medida tomada pela saúde pública contra a sífilis foi a proibição de
banhos mistos na Alemanha.
O mercúrio foi substituído pelo arsênico com a injeção 606, de Erlich, em
1909, mas esse tratamento, embora muito mais eficaz, era ainda limitado e incerto.
Em 1942, descobriu-se que o Treponema pallidum (como o gonococo, que tanto
incomodou Boswell) era suscetível à penicilina. Em 26 de junho de 1944, três
semanas depois do Dia D, a América retribuiu a invasão da Europa pelos
micróbios levados por Colombo adotando oficialmente a penicilina e depois
fabricando-a em massa para o tratamento da sífilis no exército americano.
“Existem somente duas doenças que eu posso curar com certeza, a gota e a
sífilis”, declarou alegremente um médico de Londres que consultei para uma
dessas duas doenças. Nos clubes masculinos do século XVIII, em Pall Mall, ele
teria sido um médico adorado e muito ocupado.
A HISTÓRIA INTERESSANTE DA OBSTETRÍCIA E
DA GINECOLOGIA
Não há história. As mulheres que aceitavam alegremente a recomendação do
procurador-geral — ter aquilo que, na ordem da providência, é o resultado natural
do ato sexual — eram tradicionalmente atendidas por parteiras. Estas seguiam as
instruções do The Byrth of Mankynde, traduzida (via latim) por Thomas
Raynalde (c. 1540) do livro alemão de Eucharius Röslin (c. 1513) Rosengarten,
que foi durante 14 séculos a única atualização do tratado romano de obstetrícia do
memorável Soranus (78-117 d.C.). De acordo com as ilustrações do Rosengarten,
a mãe sentava ao lado da sua cama, entre parentes e parteiras, com a saia até os
tornozelos, gemendo sobre uma banqueta de parto, com a bacia e a jarra prontas
para lavar o bebê, enquanto o astrólogo olhava pela janela e fazia o horóscopo do
feto.
No século XVIII surgiu o parteiro, igualmente detestado pelos seus colegas
cirurgiões (orgulho) e pelas parteiras (ciúmes).
“Um brutamontes, um cavalão de parteiro”, era como uma parteira de
Haymarket chamava o amigo de Tobias Smollett, William Smellie (1697-1736),
de Pall Mall. Smellie era um expoente do fórceps obstétrico, o tire-tête inventado
por Peter Chamberlen (1560-1631) Chamberlen era um huguenote fugido de Paris,
que teve sucesso em Londres a ponto de atender a rainha Henrietta Maria, mulher
de Carlos I, quando ela abortou em 1628 e a parteira desmaiou de medo. Os
Chamberlen eram de uma família de médicos (eles fizeram o parto da rainha
Anne, em 1692) que guardaram o segredo do fórceps por 125 anos. Um
descendente o vendeu em 1693 para um holandês, filho de Hendrick van
Roonhuyze (1625-?), o mestre da cesariana. Smellie cobria as lâminas do seu
fórceps com couro, para poupar à mãe o estalido metálico das duas hastes quando
ele estava trabalhando. Ensinou o uso do fórceps a milhares de estudantes, usando
uma boneca com a cabeça para cima, na bacia óssea da pelve de um esqueleto
feminino, por três guinéus por aula.
A ginecologia foi inventada pelos americanos. Originou-se no sul para reparar
os danos da obstetrícia na zona rural, especialmente entre as escravas. A primeira
remoção do ovário foi feita em dezembro de 1809 (sem anestesia), em Kentucky,
por Ephraim McDowell (1771-1830), que havia estudado em Edimburgo. A
paciente foi a mulher de um fazendeiro, a senhora Jane Todd Crawford, que tinha
um cisto ovariano, viajou 96 quilômetros a cavalo da sua casa de madeira até a
mesa de operação, tinha 47 anos e viveu até os 78.
O belo James Marion Sims (1813-83), do Alabama, desenhou a posição de
Sims (inclinado para a frente e para a esquerda, muito encolhido, o braço
esquerdo dependurado atrás das costas. Ele teve a idéia quando viu uma mulher
que havia caído do cavalo) e o espéculo vaginal de Sims (adaptado de uma colher
dobrada), que podia ver uma mulher “como nenhum homem jamais viu antes".
Marion Sims inventou a operação para reparar a fístula vazante entre a bexiga e a
vagina, e levou sua técnica para a Europa, em 1861, quando saiu dos EUA fugindo
da Guerra Civil. Ele a demonstrou para o veterano de Napoleão, o barão Larrey, e
imediatamente estendeu sua prática do Hudson ao Elba. Sims mudou-se para Nova
York para fundar o Hospital para Mulheres, em 1855, e sua estátua está no Bryant
Park, na rua 42, atrás da Biblioteca Pública.
A ginecologia, como a cirurgia, teve seus modismos. Acreditava-se que o útero
era flutuante, como os rins, e cirurgicamente, segundo Sir Clifford Allbutt,
“enfiado num pedículo ou encostado numa vareta”. Pessários de borracha com a
forma de colares de cavalos eram inseridos na vagina para dores da pelve e para
evitar a queda do útero. A histerectomia e a clitoridectomia foram praticadas nos
anos 1900 com a mesma facilidade com que Sir Arbuthnot Lane fazia suas
colectomias. Certa vez perguntei a um ginecologista extremamente hábil,
respeitado e rico, quais as conclusões fascinantes a que ele havia chegado a
respeito das mulheres depois de uma vida inteira do trabalho com elas. Ele
pensou profundamente e disse: “A mulher é um bípede com prisão de ventre e
dores nas costas."
CAPÍTULO 8
Becos sem saída
CIRURGIA À LA MODE
Os pacientes que escapavam de Willie com seu cólons intactos corriam o risco
de um tratamento também drástico dos rins, por cirurgiões igualmente enérgicos.
Os rins provocavam os mesmos sintomas, flutuando no abdome como balões de ar
na véspera do Ano Novo. Outra epidemia intra-abdominal foi a das misteriosas
adesões entre os órgãos escorregadios, vastamente diagnosticadas e atacadas com
igual ferocidade. Mais tarde foi descoberto que essas adesões são extremamente
raras e, na maior parte, inofensivas, e quase sempre provocadas pelo talco com
silicone das luvas dos cirurgiões. “As & As”, amígdalas e adenóides — até a
década de 1960 era uma operação recomendada para uma miscelânea de doenças
infantis e se tomou uma cerimônia rotineira de expurgo. Surpreendentemente,
Willie era contra essa operação sangrenta, traumática e perigosa, recomendando,
em lugar dela, exercícios respiratórios que toda a família devia fazer, deitada de
costas, depois do chá.
A patologia da moda nos anos 1920 eram os focos sépticos, bolsas de pus
escondidas por toda a parte, desde os seios paranasais à pelve, extirpadas por
meio de pedaços de carne cortados e ossos raspados. A ilusão persistiu até a
quimioterapia se tomar a última palavra, e a septicemia sair de moda. Depois
disso, a moda eram as operações para a remoção de cadeias de nervos
simpáticos, para curar os espasmos do intestino ou das artérias. A cirurgia sem
seus cultos ficaria tão desfalcada quanto Paris sem suas coleções.
Hoje em dia continuam a ser realizadas operações inúteis com a mesma
freqüência, mas infelizmente ninguém vai saber quais são elas enquanto não forem
abandonadas em favor de outras.
NO ESCURO DE UM FRASCO
Os pintores do século XVII gostavam de reproduzir os interiores das casas
holandesas. “A visita do médico”, de Jan Steen, de Delf, mostra a filha pálida no
seu quarto pouco confortável, animada pela mãe ansiosa, enquanto o médico
inteligente ergue contra a luz um frasco com a urina dela, como um enófilo
calculando o “corpo” do clarete. O “Médico da Água”, de David Teniers, o
Jovem, examina com uma atenção feroz um frasco enchido por uma mulher velha e
tristonha, com suas compras, e o “Mal d’Amour”, de Gerard Dou, mostra uma
jovem bonita ricamente vestida e um médico jovem e belo, vestido com peles, que
segura o pulso flácido dela enquanto os dois olham para a urina da paciente com
extrema ternura.
A uroscopia era o exame da moda, especialmente para verificar a presença de
clorose, a doença verde, morbo virgineo, a nêmesis das adolescentes apaixonadas.
A clorose foi descrita pela primeira vez em 1554, por Johannes Lange (1485-
1565), médico do Eleitor do Palatinado, quando a filha de um amigo começou a
recusar bons pretendentes:
Seu rosto, que no ano anterior destacava-se pela cor das faces e pelo vermelho
dos lábios, parece desprovido de sangue, tristemente pálido, o coração estremece
com cada movimento do corpo e as artérias das suas têmporas pulsam e ela tem
crises de dispnéia quando dança ou sobe escadas, seu estômago detesta comida,
especialmente carne, e as pernas, especialmente nos tornozelos, ficam edematosas
à noite.
Uma descrição admirável da anemia por deficiência de ferro, provocada pelo
começo da menstruação e por uma dieta inadequada. O tratamento recomendado
por ele: “Recomendo às virgens atacadas por essa doença que procurem o mais
depressa possível viver com um homem e copular.”
Para os uroscopistas, o frasco redondo era a bola de cristal onde eles podiam
ler qualquer coisa. O ato de examinar urinas pálidas, escuras óu espumosas
certamente deve ter ensinado aos mais observadores alguma coisa sobre a
equanimidade do rim que as produz. O cardiologista de Londres, Sir Thomas
Lauder Brunton (1844-1916), conta, em 1892:
Na cidade de Leeds vivia um curandeiro sem nenhuma instrução profissional,
mas muito conhecido por suas curas maravilhosas e, especialmente, por seu poder
de diagnosticar as doenças de pacientes que nunca vira antes simplesmente
examinando sua urina.
Um cirurgião célebre, o senhor X, curioso por descobrir o método do
curandeiro disse que queria estar presente a uma das consultas, e o homem acedeu
prontamente, lisonjeado com a atenção de um homem tão importante. Logo depois
que o Sr. X se sentou, uma mulher chegou com um vidro de urina, que entregou ao
curandeiro. Ele olhou para ela, depois para o vidro, ergueu-o para a luz, sacudiu e
disse: “É do seu marido?” “Sim, senhor." “Ele é bem mais velho do que a
senhora?" “Sim, senhor.” “É alfaiate?” “Sim, senhor.” “Tome”, disse ele,
estendendo para ela uma caixa com comprimidos, “diga a ele para tomar um
comprimido todas as noites, durante uma semana, e um bom copo com água fria
todas as manhãs, que logo ficará bom.” Assim que a mulher saiu, o Sr. X voltou-se
para o curandeiro, curioso para saber como ele havia adivinhado tudo aquilo.
“Bem, o senhor compreende”, disse o curandeiro, “ela é uma mulher jovem,
parece estar bem de saúde e bem forte, e eu adivinhei que a água não era dela. Vi
a aliança no seu dedo e fiquei sabendo que é casada, e pensei que provavelmente
a água era do marido. Se ele fosse da mesma idade que ela, era pouco provável
que estivesse doente, por isso achei que devia ser mais velho. Adivinhei que é
alfaiate porque o vidro não estava fechado com uma rolha, mas com um pedaço de
papel enrolado e amarrado com linha de um modo que só um alfaiate teria feito.
Os alfaiates não fazem exercício, e por isso são muito sujeitos à constipação.
Tive certeza de que ele não devia ser uma exceção à regra, por isso dei alguns
comprimidos para abrir os intestinos.” “Mas como sabia que ela era de S?” “Ah,
Sr. X, o senhor mora há tanto tempo em Leeds e não conhece a cor do barro de S?
Foi a primeira coisa que eu vi nos sapatos assim que ela entrou."
Assim também, um cirurgião de Edimburgo, em 1880, diagnosticou um paciente
como um sargento que havia há pouco tempo dado baixa do regimento sediado em
Barbados: o homem agiu respeitosamente, mas ficou com o chapéu na cabeça,
como fazem no exército, e ele estava com elefantíase, que se apanha em Barbados,
mas não nas Terras Altas. Elementar, meu caro Joseph Bell (1837-1911). Como
Conan Arthur Doyle (1859-1930) foi um dos seus alunos, Bell se tomou Sherlock
Holmes.
Os uroscopistas duraram até meados do século XIX, quando o misticismo da
urina evaporou de uma solução recentemente descoberta, mas pouco romântica,
formada por várias e complexas substâncias químicas.
HISTÓRIA SANGRENTA
Ele disse que para aquelas águas tinha vindo Para apanhar sanguessugas, por
ser velho e pobre O trabalho perigoso e cansativo!
E tinha passado por muitas dificuldades:
De lago em lago ele vagava, de colina em colina;
Abrigando-se, com a ajuda de Deus, por escolha ou acaso,
E desse modo ganhava honestamente seu sustento
escreveu Wordsworth em 1807, sobre “O apanhador de sanguessugas”, cujos
olhos eram orbes negras ainda muito cheias de vida, que girava a água lamacenta
em volta dos seus pés para encontrá-las, mas infelizmente as sanguessugas tinham
ido embora recentemente.
As sanguessugas estiveram sempre muito ocupadas sugando todas as doenças da
humanidade desde 900 d.C., até 1953, quando foram aplicadas em Stálin, mas ele
morreu. As sanguessugas podiam ter nomes de médicos, ou médicos podiam se
chamar sanguessugas, e em inglês a palavra leech significa “curar”. O ditado de
São Lucas: “Médico, cura a ti mesmo" é "Leech, leech a ti mesmo” no Evangelho
Lindisfarne, de 950 d.C., e em 1386 Chaucer estava perguntando sensatamente
porque uma pessoa com um “perfeito leech" precisava procurar outros leeches na
cidade.
A hemófaga sanguessuga Hirudo medicinalis tem cabeça pequena, corpo
achatado, costas negras ou verde-oliva com seis linhas amarelas e barriga
cinzenta, com pintas escuras. Tem quatro centímetros de comprimento, mas
aumenta para 15 quando está-se alimentando. Tem ventosas nas duas
extremidades, 10 estômagos de cada lado, um órgão do paladar (para sangue) na
parte superior do esôfago e a boca em forma de ferradura com três dentes
cartilaginosos, segundo dizem, cada um deles capaz de apunhalar como um punhal
italiano estocado. A sanguessuga tem um orifício sexual feminino, além de um
pênis numa bainha, mas este fica descoberto quando ela morre. A Hirudo
medicinalis é uma das 650 espécies de sanguessugas que existem no mundo (as
mais fortes sugadoras são as da floresta tropical da Amazônia), e uma das 16
espécies britânicas, e é uma das espécies oficialmente em extinção.
Na história da sangria, as sanguessugas eram tiradas da água uma hora antes de
serem usadas, para aumentar seu apetite, e postas num copo de vinho que era
virado bruscamente sobre a carne do doente. Depois de 15 minutos ficavam
repletas de sangue e se desprendiam, como se estivessem dormindo, mas podiam
ser acordadas com água fria. Para fazê-las vomitar, a fim de serem recicladas,
usava-se sal na água. Quando se tinha poucas sanguessugas, o aplicador cortava
as caudas delas, e elas sugavam com o sangue saindo pela outra extremidade, até
o paciente ficar exangue. Se elas ficavam agarradas na carne, o dono espalhava
sobre elas a fumaça de cabelos queimados, ou inseria um fio da crina de cavalo
entre a sugadora e o sugado. Se o paciente ou o médico por acaso engolia uma, o
antídoto era graxa de sapateiro com vinagre.
As sanguessugas eram o barômetro dos camponeses, agitando-se no vidro antes
da chuva e tentando fugir de dentro dele antes
do trovão. As sanguessugas medicinais eram devoradas pelas sanguessugas de
cavalos. Em 1822, Londres importou de Bordeaux e de Lisboa — com outros
produtos mais agradáveis — 7.200.000 sanguessugas a meia coroa cada uma. Os
ingleses estavam ainda importando 2.000 por ano a seis pence cada uma, em
1940. Desde então, a demanda quase desapareceu.
Em 1825, a França exportou 10 milhões de sanguessugas para uso doméstico.
Em 1833, a França precisou importar 41.500.000 sanguessugas, por causa da
energia “exsangüinária” de François-Joseph-Victor Broussais (1772-1838), um
bretão que passou de sargento a cirurgião no exército de Napoleão. Como Willie
Lane, ele só sabia diagnosticar uma doença: gastroenterite. Era adepto do
“Sistema Brunoniano” de John Brown (a vida depende do estímulo constante do
corpo), e resolveu que era somente o calor excessivo que inflamava as
substâncias químicas do corpo. A cura de Broussais consistia em controlar o calor
fazendo jejum e aplicando sanguessugas, 50 de cada vez, por toda a pele.
Broussais havia demonstrado uma grande habilidade com a machadinha de guerra,
quando era um jovem soldado, e como um soldado velho e rabugento incitava seus
seguidores a derramar torrentes de sangue. Eles economizavam o preço das
sanguessugas abrindo as veias.
SEDE DE SANGUE
A sanguessuga era o animal de estimação do médico porque era o modo mais
suave de fazer sangria, apropriado para mulheres, crianças e pacientes que
pagavam a consulta. Os guerreiros teutões do século I usavam suas mulheres e
mães para sugar seus ferimentos mais delicadamente ainda. A sangria mais
vigorosa virou moda no século XVII, e o sangue pingava nas tigelas de estanho
dos cirurgiões, aplicadas de lado na pele, ou nos copos de sangria venezianos,
guardados como jóias de família. Um homem pagava meia coroa para ser
sangrado, mas uma dama, de cama, custava 10 shillings. O pobre Rei Carlos II
levou um tempo enorme, inconsciente e desconfortável até morrer, sendo
sangrado, tomando enemas, suando e vomitando. Sangrar, purgar, provocar o
vômito e o suor era o tratamento médico padrão, que só começou a ser modificado
depois da metade do século XIX. Os médicos não tinham idéia do que deviam
fazer com os pacientes, mas fosse o que fosse, parecia sensato libertá-los de
qualquer modo daquilo que os afligia.
John Coakley Lettsom (1744-1815) era um médico da Geórgia tão ocupado que
precisava de três pares de cavalos por dia para atender 82.000 pacientes por ano,
os quais lhe rendiam 12.000 libras, uma casa perto do Guildhall e uma
propriedade em Kent. Era filho de um plantador de algodão das Antilhas, com
uma herança genética muito interessante: era um dos dois únicos sobreviventes de
sete pares de gêmeos.
Lettsom nobremente libertou sua herança material — escravos negros — e foi
para Edimburgo aprender medicina. Cheio de entusiasmo, fundou a atual
Sociedade de Medicina de Londres em 1773 e uma dezena de instituições de
caridade, incluindo a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por
Pequenas Dívidas, e — com grande visão — a Sociedade Real Humanitária para
ressuscitação dos aparentemente mortos. Inteligentemente, ele ficou ao lado de
Jenner, na luta pela vacinação. Era um quacre alto e magro, vestia-se com
simplicidade, gostava de vinho e de mulheres e decentemente dava consultas de
graça aos homens do clero e aos literatos. Dirigia sua clinica apoiado nos
seguintes princípios:
Quando os pacientes vêm a mim,
Eu os purgo, sangro e faço suar,
Então — se eles resolvem morrer,
O que é da minha conta? Eu Lettsom.
A sanguessuga reapareceu recentemente para comer os coágulos de sangue da
cirurgia plástica e retirar o sangue de hematomas e olhos roxos.
FINAIS TRISTES
“Tratamento”, começa um livro de medicina de 1904, quando chega a uma
determinada parte do capítulo sobre pneumonia lobar:
O paciente deve ficar de cama... a dieta deve consistir em leite e caldo de
carne, ou caldo de carneiro administrado em pequenas quantidades,
freqüentemente nos primeiros estágios, os intestinos devem funcionar...
Discursa esperançosamente sobre:
Algumas sanguessugas ou aplicação de gelo, cataplasma de linhaça com alguns
grãos de mostarda, ou flanelas quentes molhadas em terebintina e torcidas... os
estimulantes são provavelmente nossos assistentes mais importantes nas
circunstâncias, e o brandy deve ser dado na quantidade de 4, 6 ou 8 onças por
dia.
Termina soturnamente:
A única esperança de atalhar rapidamente a doença está na descoberta de um
soro antipneumocócico eficaz.
Até o fim da década de 1930, os livros de medicina com instruções sobre a
pneumonia eram tão ineficientes quanto os da década de 1900. Até mesmo no ano
de Pearl Harbor uma enfermeira com imaculado vestido azul, avental e touca
engomada demonstrava para a minha classe o uso das “ventosas”. Com a
elegância de quem faz um bordado, ela criava elevações do tamanho de um ovo na
pele dos pacientes com um copo de vinho no qual fora feito o vácuo por meio do
calor, sendo esse seu tratamento preferido para congestão pulmonar, para a qual o
livro que usávamos na época recomendava ainda a prática de sangria do século
XVII e “a aplicação de seis sanguessugas sobre o fígado”.
Um soro antipneumocócico foi descoberto, mas as esperanças de 1904 não
foram realizadas. Sir Almroth Wright, em 1911, foi chamado para erradicar a
pneumonia entre os nativos que trabalhavam nas minas de ouro de Rand — era um
desperdício para os patrões brancos — e tentou inutilmente repetir com a
pneumonia a inoculação vitoriosa que tinha usado contra a febre tifóide. Incapaz
de prevenir a pneumonia, Sir Almroth armou-se, no Hospital Santa Maria, no
intervalo entre as duas guerras, com um soro criado em cavalos infectados com
pneumonia para curar a doença.
Mas eram muitas as variedades de pneumococos para que ele pudesse definir
seu alvo, e a arma geralmente falhava. A pneumonia continuou a ser “a amiga dos
velhos”, que rápida e misericordiosamente os livrava das dores e sofrimentos da
idade, mas também matou com a mesma rapidez e selvageria seu neto de 18 anos,
que foi enrolado num casaco-pneumonia, isolado por um lençol desinfetado
dependurado na porta, palha foi espalhada no corredor, para abafar o ruído dos
passos, e nada além disso puderam fazer por ele. O jovem arquejou com o rosto
azulado durante os sete dias da crise, quando a temperatura caiu e as esperanças
reviviam ou não. A pneumonia nos jovens era um drama cruel, porque a tragédia
não era inevitável.
PONTAS SOLTAS
Na pneumonia os pulmões se solidificam, na tuberculose — tísica, a palavra
grega para desgaste — ficam cheios de cavernas. Geralmente ela se anuncia
quando o doente cospe sangue. "Eu conheço a cor desse sangue! É sangue arterial.
A cor não me engana. Aquela gota de sangue é minha sentença de morte. Eu vou
morrer”, clamou dolorosamente John Keats (1795-1821), quando teve a primeira
hemoptise.
Keats sabia do que estava falando, pois havia se formado no Hospital Guy’s em
1816. Seu irmão Tom morreu de tuberculose pulmonar em 1818, e ele havia
tomado conta da mãe, antes de ela morrer da mesma doença, em 1810. Keats tinha
a propensão familiar e a exposição à doença. Anne, Emily e Charlotte Brontë
tossiam uma na cara da outra, em Yorkshire, e morreram tuberculosas, bem como
Robert Louis Stevenson cm Samoa, D. H. Lawrence na Provença e George
Orwell, imediatamente depois de terminar de escrever 1984. O Dr. William
Somerset Maugham (1874-1965), formado em St. Thomas em 1897, teve
tuberculose durante a I Guerra Mundial, mas — de algum modo, não inesperado
— não só se recuperou completamente como escreveu Sanatorium.
Os sanatórios, em 1929, ganharam o prêmio Nobel — de literatura. A Montanha
Mágica, de Thomas Mann, destaca personagens que podiam estar viajando na
primeira classe de um transatlântico, mas estão viajando para a eternidade nos
Alpes suíços, seu médico, o brilhante e jovial Hofrat, andando na ponte de
comando.
Um sanatório era um instrumento útil para os escritores, especialmente quando
os ocupantes do barco que naufragava estavam animados com a spes phthisica, a
misteriosa esperança sintomática que vive eternamente no coração do ser humano
que está cuspindo catarro profusamente em vasilhas com tampa, como canecas
alemãs de cerveja. As emoções despertavam inquietas na imobilidade obrigatória
do sanatório, que devia ser obedecida ao ar livre, dia e noite. Todos
aconchegados em longas espreguiçadeiras aquecidas, contando para passar o
tempo apenas com as refeições cuidadosamente elaboradas e a tomada da
temperatura, com inexorável pontualidade, a alta distante ou improvável e a morte
como uma invasora irritante da reunião íntima.
O primeiro sanatório para tuberculosos foi aberto por Hermann Brehmer (1826-
99) nas Montanhas Sudetas, em 1959. Depois, começaram a aparecer
regularmente, de Davos ao Adirondacks, mais numerosos entre os spas das
Montanhas Taunus, que se erguem ao lado do Reno. Essa esperança de que o ar
frio e seco podia curar os pulmões foi expressa pela primeira vez pelo Hospital
Real de Banho de Mar, fundado por John Lettsom em 1796 para crianças
escrofulosas, em Margate, um balneário favorito dos britânicos.
A idéia evoluiu baseada na suposição de que o repouso absoluto no ar frio e
rarefeito abafava o fogo do metabolismo e facilitava a respiração, descansando o
pulmão inflamado e ajudando a cicatrização das cavidades. A alternativa para os
que ficavam em casa era o pneumotórax artificial, que consistia em encher de ar,
por meio de uma agulha, os espaços normalmente imperceptíveis entre as paredes
do tórax e os pulmões, secando o pulmão doente.
Nenhum tratamento comunal ou pessoal tinha muito resultado, nem tampouco a
moda das doses de óleo de fígado de bacalhau, creosoto, iodo, arsênico e ouro. A
“peste branca” continuava a sua colheita: Chekhov, Chopin, Aubrey Beardsley,
Katherine Mansfield, Modigliani, Kafka e o doutor Laënnec, o inventor do
estetoscópio. Era “A consumpção dos jovens na flor da idade, quando o calor do
sangue é ainda vigoroso”, como disse Richard Morton (1637-98) na sua
Phthisiologia, em 1689.
Jean-Antoine Villemin (1827-92), professor na escola de medicina do exército
francês, em Val-de-Grâce, recebeu o crédito de descobrir, em 1868, que a
tuberculose era infecciosa. Ele infectou coelhos. Porém, o doutor Tobias Smollett,
de visão muito clara e muito suscetível à infecção, em 1771 insistia em dizer:
Não podem negar que muitas doenças são infecciosas, a própria consumpção é
extremamente infecciosa. Quando uma pessoa morre dessa doença na Itália, a
cama e os lençóis são destruídos, os outros móveis são expostos ao tempo e o
apartamento lavado com cal, antes de ser ocupado por outra pessoa. Certamente
concordarão que nada recebe a infecção mais rapidamente e nada a conserva por
mais tempo do que cobertores, travesseiros de penas e colchões. É a morte! Como
posso saber quais os objetos miseráveis que estão aninhados na cama em que
estou deitado agora!
O próprio professor Villemin dizia sensatamente: “O soldado tísico é para seu
companheiro de quartel o que o cavalo com mormo é para seu companheiro de
varal.” Mas isso foi 14 anos antes de Koch identificar o bacilo da tuberculose e
antes de Pasteur seguir o mesmo caminho, por isso ninguém deu atenção.
FINAL FELIZ
As terapias antigas para a pneumonia desapareceram, como as superstições de
não misturar flores vermelhas e brancas nos hospitais (é prenúncio de morte),
deixar flores nas enfermarias durante a noite (elas consomem oxigênio) ou pregar
a lista dos casos em “perigo de vida” na porta do hospital. ("No portão e
morrendo suavemente”, disse uma enfermeira irlandesa sobre a condição de um
paciente.)
Vários tratamentos de desesperada futilidade desapareceram na década de
1940, como a parafernália das carruagens antes do vapor, a agonia das operações
antes dos anestésicos, a carnificina das guerras mundiais antes de serem
consideradas contra a lei, devido ao temor mútuo da bomba H. Hoje podemos ter
pneumonia em casa. Os suíços puderam transformar seus sanatórios em hotéis
elogiados pelas varandas em todos os quartos, com belas e extensas vistas para a
sesta depois do almoço, ao calor do sol de montanha.
Septicemia, difteria, febre tifóide, tifo, gonorréia, erisipela e outras serpentes
mortais do nosso Paraíso foram caçadas e vencidas com antibióticos. A
engenhosidade do homem chega até a adaptar os medicamentos à nova resistência
adquirida por esses inimigos cheios de recursos. A medicina eficaz começou na
véspera de Natal de 1932, quando Domagk, na Renânia, percebeu que os
camundongos infectados com estreptococos, mas tratados com sulfanilamida, iam
viver até o Dia de Natal.
FIM DE UMA DISCUSSÃO?
Sem experiências com animais, como a de Domagk, conduzidas legalmente e
com o sentimento de humanidade sem o qual não teríamos nenhum médico, esses
medicamentos não teriam conseguido tantas maravilhas. Os antivivisseccionistas,
com mais confusão do que crueldade para com seus semelhantes sofredores, não
precisam concordar com Aldoux Huxley:
Não sou um desses tolos que pensam que uma vida vale tanto quanto outra,
simplesmente porque é uma vida, que um gafanhoto é tão bom quando um cão e um
cão é tão bom quanto um homem. Devemos reconhecer uma hierarquia na
existência.
Mas precisam notar o argumento de defesa apresentado pelo professor Heinrich
Horlein, chefe de Domagk, no julgamento de Nürenberg, em 1948:
Ele tomou parte na luta para a liberdade no campo da ciência, contra os planos
de Hitler e Göring de proibir a vivissecção com objetivo científico.
Podemos conhecer um idealista pelas pessoas com quem ele anda.
CAPÍTULO 9
Práticas estranhas
MEDICINA CASEIRA
Curas tidas antigamente como infalíveis:
— 1. Hérnias pediátricas. Tire a roupa da criança, procure um galho novo de
freixo, corte longitudinalmente e mantenha-o aberto com cunhas, empurre a
criança para dentro da abertura, envolva o galho com terra e enfaixe com força.
Mas se a fenda continua aberta, a hérnia também continua. Praticada em Selborne,
em 1776, embora Gilbert White, com completa falta de caridade, tenha derrubado
as árvores de freixo para aumentar seu jardim.
— 2. Verrugas. Toque cada verruga com uma pedra diferente, ponha as pedras
numa bolsa, deixe cair a bolsa a caminho da igreja, quem encontrar vai ficar com
todas as suas verrugas. Ou procure um homem que nunca viu o próprio pai e peça
para locar no seu casaco. Como profilaxia, nunca deixe seus filhos tocarem na
água onde foram cozidos ovos.
TOMANDO AS ÁGUAS
O que a literatura inglesa do século XVIII teria feito sem Bath? “Oh, nunca se
pode ficar cansado de Bath!”, arrulhava Jane Austen, eficientemente usando-a
para cenário de Northanger Abbey. Bath era um encantador cenário de fundo,
convidando um enredo forte, com um elenco de personagens inteligentes, com
senso de humor, rabugentos, mundanos e amorosos. Fielding, Fanny
Burney, Sheridan, Oliver Goldsmith, Robert Southey, Waltcr Savage Landor,
Wiliam Cowper, Wordsworth e Waltcr Scott, todos eles usaram Bath. E por que
não? Bath borbulhava como um sabonete moderno!
Em 1830, Mr. Pickwick reservou quartos no segundo andar do Royal Crescent,
por dois meses, para esquecer Bardell v Pickwick. Ele tomava 150 gramas de
água antes e depois do café da manhã, e declarava solenemente que se sentia
muito melhor. “O que alegrava muito seus amigos, embora eles nunca tivessem
ouvido dizer que havia alguma coisa errada com ele.” A famosa opinião de Sam
Weller sobre as águas: “Têm um gosto acentuado de ferro quente.”
O meio milhão de galões de água de Bath jorra a uma temperatura de 48 graus
centígrados. Os visitantes podem-se lavar com a água, ou conscienciosamente
tomá-la, mas nem uma coisa nem outra tem qualquer efeito medicinal. Como as
águas das fontes de outros encantadores cantinhos da Europa, os minerais
dissolvidos nelas são uma adição desnecessária à dieta normal, e sua carícia
morna produz somente uma calma quase sensual.
Tobias George Smollett (1721-1771) praticava em Bath, onde sua falta de
sucesso foi agravada pela perda da popularidade quando escreveu Um Ensaio
sobre o Uso Externo das Águas, insinuando que as águas de Bath não eram mais
miraculosas do que as de qualquer outro lugar. Ele as analisa em Humphrey
Clinker, em 1771.
A água contém somente um pouco de sal e terra calcária, misturadas numa quantidade tão insignificante que
só pode ter um efeito mínimo, se tiver algum, na economia animal. Sendo assim, acho que merece um gorro de
bobo da corte todo aquele que, pelas poucas vantagens dessa fonte, sacrifica seu tempo precioso, que devia ser
empregado tomando remédios mais eficazes.
Acrescenta ele que tomar banho naquela água é se arriscar a apanhar o “mal do
rei", o escorbuto, o câncer e a varíola. Ele também não gostava da arquitetura de
Bath.
“Smelfungus” Smollett tinha razão. Mas o Sr. Pickwick também. É sempre
agradável sentir-se melhor, mesmo quando não é verdade.
Os romanos construíram Bath, mas seu Barão Haussmann foi o jogador Richard
“Beau” Nash quem, segundo Oliver Goldsmith, costumava viajar numa carruagem
fechada puxada por seis cavalos cinzentos, com batedores, lacaios e trompas, e
que fundou as Salas de Reunião e inspirou a John Wood as belas praças calçadas
com pedras, as ruas e os crescentes. Nash era um paciente difícil:
No dia seguinte, quando o médico o visitou e perguntou se ele havia seguido
suas prescrições, o belo homem respondeu: “Não, para dizer a verdade, doutor,
não segui. Por minha honra, se as tivesse seguido teria quebrado o pescoço, pois
eu as joguei pela janela do meu quarto.”
Como o Rei de Bath, Nash abria os bailes extravagantes, insistia para que todos
se comportassem e se vestissem decentemente, supervisionava a moral das jovens
senhoras e liquidava os salteadores de estrada, e como o Barão Haussmann, em
Paris, morreu pobre, em 1762. Seu humor sobreviveu, como uma legenda de
caricatura em 20 de dezembro de 1797.
Uma lei do parlamento, em 1597, concedeu o “direito ao uso gratuito dos
banhos, em Bath, aos doentes e impotentes pobres da Inglaterra” mas esses
inconvenientes Mendigos de Bath desapareceram com a revogação da lei, em
1714. No século XVIII, o Salão Pump oferecia aos elegantes a cura elegante do
reumatismo e da gota, e para qualquer outra coisa inventada por suas imaginações
doentias. Na alvorada brumosa da medicina científica do século seguinte, a fama
do poder curativo das águas naturais aos poucos se dissolveu. Mesmo assim, as
pessoas continuaram a fazer viagens longas nas novas estradas de ferro para tomar
águas nas estações de águas, porque é agradável compartilhar um tratamento
indolor num ambiente agradável, na companhia de companheiros de sofrimento
com os quais é socialmente aceitável discutir os sintomas detalhadamente.
Os gregos tiveram a idéia da estação de águas em 8 a.C. com o culto da
“incubação”, que consistia em dormir nas Esculápias, os templos do Deus da
Cura. Os pacientes viajavam para Cos, Pergamos ou Atenas, sacrificavam um
carneiro, tomavam um banho e dormiam fraternalmente juntos entre as colunas
abertas para o escuro da noite. Durante a noite, Esculápio materializava-se numa
luz ofuscante, cobras lambiam as pálpebras dos doentes que, de manhã, voltavam
para casa curados. Os pacientes resistentes ficavam, tomando a água e banhando-
se nas fontes, seguindo a dieta, fazendo massagem e exercício. O preço era uma
réplica em ouro ou prata da parte doente do corpo. Esculápio era, na verdade, o
sacerdote local, que dirigia o espetáculo das visões e desempenhava um
repertório de pequenas curas. O sistema foi preservado ao pé da letra em
Lourdes, que não cura ninguém, mas fornece uma organização de cunho comercial
para satisfazer a esperança humana e aliviar o desespero com a água da cintilante
ilusão.
As correntes subterrâneas dos spas continuaram a fluir para irrigar os spas dos
nossos dias, igualmente sem nenhum poder terapêutico. Uma camaraderie
semelhante, reforçada pelas diárias astronômicas, emprega um regime de rigorosa
abstinência que reduz admirável e orgulhosamente o peso, um efeito que dura um
mês ou dois, depois que são liberados para as deliciosas obrigações sociais da
gula. As dietas que alimentam os spas e engordam revistas e jornais são
supérfluas. O segredo de perder peso é simples e barato: coma menos e não beba
álcool.
Uma coisa boa nos foi legada pelo estabelecimento medicinal de Bath do século
XVIII. O doutor William Oliver (1695-1764) deixou para seu cocheiro de
confiança, Atkins, a receita do biscoito de sua criação, crocante, fino, branco e
seco. Com o apoio de Beau Nash, Oliver havia fundado em 1742 o Hospital Bath
de Água Mineral e escreveu Um Ensaio Prático Sobre o Uso e Abuso dos Banhos
Quentes nos Casos de Gota. Ele morreu de gota. Um esperto Banho Oliver
aproveita todos os poderes da água de Bath, especialmente com uma fatia de
queijo, um vidro de aipo fresco, nozes em picles e um copo de vinho do porto.
BANHO DE LAMA
O belo e andrógino James Graham (1745-94) ex-estudante de medicina de
Edimburgo, foi um dos mais gordos curandeiros a se aproveitar da credulidade
humana em todos os tempos. (O curandeiro, em inglês quack, é a abreviação de
quacksalver, um homem que anuncia seus ungüentos.) Em meados de 1780 Graham
abriu seus banhos de terra em Londres, ao lado de Haymarket. Uma placa mostra
quatro mulheres nuas com chapéus elegantes entrando em poços quadrados, sob o
olhar atento de Graham, com um menino ao lado, para jogar a terra com a pá. Essa
suposta terapia reapareceu na década de 1930 com a máscara de lama, que
infelizmente não faz nada para o rosto. Uma curiosidade de Isherwood, em
Berlim, que sobreviveu aos nazistas e à guerra é a luta de mulheres na lama. Elas
usavam roupas de banho e toucas de banho de borracha, os espectadores na
primeira fila recebiam longos aventais protetores e, às vezes, durante a luta, um
ou outro seio saltava da roupa.
Graham dirigiu a primeira clínica de infertilidade de Londres, utilizando o
Leito Celestial como seu Templo da Saúde, armado no Adelphi, recém-
construído, ao lado do Tâmisa. A cama era do tamanho de uma mesa de bilhar,
“de brocado adamascado sobre quatro colunas espiraladas de cristal enfeitadas
com grinaldas de flores de metal dourado". Era perfumado com especiarias
árabes, e no quarto ao lado a orquestra tocava o tempo todo. Os lençóis de seda
eram roxos e o colchão de crina da cauda de garanhões ingleses.
A cama podia ser inclinada de acordo com o gosto da pessoa, e fachos de luz
iluminavam no dossel as figuras de Cupido, Psiquê e Hímen, além de um par de
pombos arrulhantes. O mecanismo consistia num conjunto de ímãs debaixo da
cama. Para usar a cama uma vez pagava-se 100 libras. “O êxtase supremo que as
pessoas desfrutam no Leito Celestial é realmente espantoso e jamais sequer
pensado neste mundo”, garantia Graham. “Os estéreis certamente tornam-se férteis
quando são fortemente agitados no prazer do amor”. De manhã, ele tomava o
pulso dos fregueses, oferecia o café da manhã e os “mandava embora cheios de
esperança, sem esquecer de recomendar para enviarem outros clientes”.
O Templo da Saúde (entrada, seis guinéus), que logo se mudou para o elegante
Pall Mall, era todo de espelhos, luzes ofuscantes, dragões lançando chamas,
música escondida e perfumes vaporizados no ar. Oferecia banhos magnetizados
“para dissipar a melancolia e mitigar a alegria extravagante”. Várias são as
descrições:
Acima da porta dos quartos principais, sob os compartimentos abobadados do
teto e de cada lado dos arcas do centro do salão, havia bengalas, cometas
acústicas, óculas, muletas etc. deixadas e expostos como os mais honrosos troféus
pelos surdos, fracos, paralíticos, emaciados, etc. que, tendo sido curadas, não
precisam mais desses objetas.
Um século depois, a gruta de Lourdes usou a mesma tática. “O quê? Não tem
nenhuma perna de pau?”, murmurou Anatole France.
Graham vestido com seu manto fazia palestras com o grande final de choques
elétricos no público, produzidos por fios escondidos debaixo das almofadas das
cadeiras. A eletricidade acabava de chegar na medicina verdadeira. Os pacientes
dos hospitais de Londres faziam tratamento de choque para quase todas as
doenças. Graham era assistido por Deusas da Saúde com mantos diáfanos, uma
das quais, Emma Lyons, subiu bastante na vida, tomando-se a Lady Hamilton de
Lord Nelson.
James Graham havia praticado seu tipo de medicina em Filadélfia e em Bath.
Em 1779, em Aix-la-Chapelle, ele tratou a duquesa de Devonshire, uma presa
fácil para os curandeiros, que gostou tanto do seu tratamento que o introduziu na
sociedade londrina. Em 1782, a sociedade londrina o destronou. O Templo foi
fechado, o Leito vendido para algum casal eternamente feliz, Graham voltou para
Edimburgo, foi preso na Tollbooth por caluniar os magistrados, converteu-se à
religião, enlouqueceu e “ficou despido na terra durante várias horas, em nove dias
sucessivos”. Sua lama não o salvou, e ele morreu.
Graham devia ter-se limitado a suas recomendações complementares de janelas
abertas, ar livre, exercício, dieta frugal e contenção na bebida:
O vinho do porto é certamente um dos maiores reforços ou elemento de união
do gado social da Grã-Bretanha. O grande coagulador e provocador de vômito de
todos esses rebanhos numerosos e devoradores de tudo, uma das causas principais
da gota, cálculos, reumatismo, asma e apoplexias!
Ele teria desfrutado o respeito de João Batista, como o precursor por dois
séculos dos ensinamentos austeros do Colégio Real de Médicos.
Mas quem teria dado ouvidos?
UM TOQUE MACIO
O ano de 1660 foi muito atarefado para Carlos II. Ele tocou 6.725 dos seus
novos súditos para curar o Mal do Rei. Essa doença era a escrófula, uma infecção
tuberculosa dos gânglios linfáticos do pescoço que se caracteriza por nódulos
entre o maxilar e a parte superior do estemo. Pouca coisa se podia fazer até a
invenção da estreptomicina, pela qual o professor Shelman Abraham Waksman
(1888-1973), da Universidade Rutgers, ganhou o prêmio Nobel em 1952 (em
1941 ele inventou também a palavra “antibiótico”).
Carlos II era tão entusiasmado pelo Toque Real quanto por suas amantes.
Durante seu reinado, 92.107 pacientes ajoelhados receberam o toque, o rei num
trono com dossel, flanqueado por religiosos e cortesãos com uma fila dupla de
guardas reais com alabardas atuando como recepcionistas. O historiador vitoriano
da medicina, John Cordy Jeafferson (1831-91), observou:
A sensação extraordinária de um grupo de miseráveis tirados dos seus canis e
levados a Whitehall, levados para o contato pessoal com o soberano — sua idéia
de grandeza!
Lembrando Montaigne aos seus leitores:
Aqueles truques de macacos são a causa principal do efeito, seduzindo nossa
imaginação para acreditar que aquelas formalidades tão estranhas e desajeitadas
só podem ter origem em alguma ciência misteriosa. Sua própria inanidade lhes
confere reverência e peso.
Todos partiam segurando a “peça do toque”, um anjo de ouro especialmente
feito para a ocasião, que representava um benefício mais realista.
Eduardo, o Confessor, começou o tratamento do toque mais ou menos em 1045,
embora Clóvis, em 949 d.C. o tivesse estabelecido na França com uma
popularidade que persistiu até Carlos X que, na sua coroação, tocou 121
pacientes em 1824 — o ano em que a ciência, através de Sadi Carnot, estabeleceu
a segunda lei da termodinâmica. Na Inglaterra a cura desapareceu com a rainha
Anne, que tocou Samuel Johnson, quando ele tinha dois anos, sem sucesso.
Guilherme III havia tocado um grande número, mas com a admirável invocação:
“Que Deus lhe dê boa saúde e mais juízo.”
O mecanismo desse remédio era Deus agindo por meio do direito divino. O
gorducho irlandês Valentine Greatrakes (1628-66), um velho soldado de
Cromwell, não viu razão por que Deus não podia agir através dele. Valentine
transmitia os eflúvios que se erguiam dos fermentos do seu corpo massageando
suavemente, mas usava também cataplasmas de cenoura. Franz Anton Mesmer
(1734-1815), da Suíça, reviveu a terapia, depois de descobrir que era carregado
de magnetismo animal.
O MESMERISMO
Mesmer era um médico respeitável em Viena, casado com uma mulher rica; ele
gostava de saraus musicais de Mozart. Um dia conhecem o professor Maximilian
Hell, que sabia curar com magnetos. Mesmer imediatamente dispensou os
magnetos, descobrindo que podia magnetizar tudo com as pontas dos seus dedos,
homens, mulheres, cachorros, seu Apfeltasche. “Eu mesmo magnetizei o sol uns 10
anos atrás”, explicava ele, modestamente, a um médico que lhe perguntou por que
ele recomendava banhos ao ar livre.
Em 1778, uma das comissões de Maria Theresa investigou a prática de Mesmer
e deu a ele 24 horas para sair de Viena. Foi uma emigração lucrativa. Depois de
passar algum tempo em Spa, ele foi para Paris, onde, na rua Montmartre,
hipnotizava senhoras vestido com um temo lilás, tocando gaita de boca e
sacudindo uma batuta. Sua clínica no Hotel Bullion, como a de James Graham em
Pall Mall, era decorada com tapetes, espelhos, música invisível e incenso no ar.
Tinha tubos magnéticos nos quais as mulheres se encostavam, de mãos dadas, até
a entrada dos assistentes magnetizadores. Estes eram jovens fortes e bonitos que
“seguravam as pacientes entre os joelhos” e massageavam ao longo das suas
colunas, no pescoço e nos seios. Isso provocava soluços, puxões de cabelos,
risos, gritos, berros, ataques e, insensibilidade. Os casos mais graves eram
atendidos só por Mesmer, no seu quarto.
Ele teve seus fracassos. A única esperança para a pneumonia do senhor Campan
era um dos três remédios ao lado dele, na cama: uma jovem morena, uma galinha
preta e uma garrafa velha. “Senhor,” disse a senhora Campan para Mesmer, “se a
escolha é indiferente, por favor, tente a garrafa vazia”, mas não funcionou. Luis
XVI nomeou uma comissão especial de investigação, embora Maria Antonieta
achasse Mesmer adorável. “L‘imagination fait tout, le magnétisme nul", foi como a
comissão o cumprimentou. Mesmer deixou a França durante a Revolução.
O magnetismo animal, que era a força do hipnotismo de Mesmer, apareceu
também em John Elliotson (1791-1868), em Londres, o qual provocou um transe
nas jovens irmãs Elizabeth e Jane O’Key e, segurando um ímã, as fez andar atrás
dele por toda a sala. Ele adotou a frenologia, o diagnóstico do caráter pelo
formato da cabeça, o que é o mesmo que avaliar o desempenho de um carro usado
passando a mão na capota. Os médicos não gostaram, uma vez que, na época,
Elliotson ocupava a primeira Cadeira de Medicina da Universidade, da qual foi
demitido em 1838. Mas teve uma compensação quase imorredoura:
Um amigo bondoso o levou ao meu leito, de onde provavelmente eu jamais teria
levantado se não fosse por sua habilidade e seus cuidados constantes... e como
não quis aceitar nada a não ser meu “obrigado”, deixem que eu registre tudo aqui,
escreveu W.M. Thackeray, em 1850, dedicando-lhe Pendennis.
O escocês James Easdale (1808-59), do Serviço Médico da índia, em 1845
hipnotizou com sucesso 26l prisioneiros hindus para operações cirúrgicas, mas
quando voltou para casa descobriu que os escoceses eram menos suscetíveis a
esse tipo de tratamento. A esperança desesperada do mesmerismo de aliviar a
agonia da intervenção cirúrgica evaporou no ano seguinte com a descoberta do
vapor de éter. Outro escocês, James Braid (1795-1861), suspeitava que o
hipnotismo era uma manobra de “colusão e ilusão”. Ele descobriu que qualquer
pessoa impressionável pode ficar em transe olhando para um objeto brilhante. O
ilustre neurologista Jean-Martin Charcot (1825-93), no Hospital da Salpêtrière,
em Paris, hipnotizava mulheres jovens com sintomas de paralisia histérica, para
os quais, ele notou, elas demonstravam la belle indifférence. Charcot era um
showman, e a diferença entre a paciente e a atriz, e entre o médico e o produtor,
era mais flexível do que devia ser. Em 1886, entre seu público estava Sigmund
Freud, como um presságio. O hipnotismo ainda é usado para influenciar fumantes
suscetíveis.
O pequenino Émile Coué (1857-1926), de Nancy, com sua barba em pêra, levou
o hipnotismo para o mercado de atacado, chamando-o de auto-sugestão. Ele
conseguia encher um salão com mulheres devotadas que, de mãos dadas,
exclamavam: “Todos os dias e de todos os modos, estou ficando cada vez
melhor.” Coué dizia então que elas não podiam soltar as mãos mesmo que
quisessem, e tinha razão. “Agora pensem, eu posso”, dizia ele, e elas podiam. Isso
conferiu a ele uma fama mundial, até que, em Londres, em 1922, seu público ficou
histérico e ele teve de fugir. O hipnotismo continuou como um número de teatro
musicado, com voluntários sensíveis escolhidos entre o público, até ser morto
pela televisão como os malabaristas e as focas ensinadas.
HERBALISMO
Cães doentes comem grama. O homem podia, de modo mais inteligente,
escolher as ervas para aliviar várias dores, evitando as que podiam envenená-lo.
A abundância convidativa desse tipo de medicamento levou Pedacius Dioscórides
(54-68 d.C.), um cirurgião grego que marchava com o exército de Nero, a
classificá-las. Seu livro De Matéria Medica Libri Quinque teve tanto sucesso que
continuou a ser vendido por 16 séculos. As ervas eram as armas dos médicos. No
reino de Elizabeth I, os livros sobre ervas tinham gravuras delicadamente
coloridas representando as plantas que seus autores cultivavam em aromática
profusão.
O livro do herbalista, astrólogo e cromwelliano Nicholas Culpeper,
extremamente popular, O Médico Inglês, de 1653, prescreve mais de 500 plantas,
da agrimônia à iúca, para curar uma quantidade de males humanos, desde picadas
de cobra até gases. Culpeper foi a fada malvada no fundo do jardim das ervas. O
Colégio Real de Médicos havia publicado uma Pharmacopaeia latina, em 1618,
com 2.140 remédios, entre eles comprimidos de víbora seca, pulmões de raposa,
rãs vivas, óleo de lobo e olhos de caranguejo, acrescentando às edições
posteriores crânio de enforcado, urina humana e placenta, ninhos de andorinhas e
uísque irlandês. No seu Diretório Médico, de 1649, Culpeper copiou a
Pharmacopaeia, traduziu para o inglês e zombou dela. O Colégio ficou
escandalizado:
Em dois anos de trabalho de bêbado ele transformou o livro dos Apotecários de Gallimawfred numa
comédia... e (para dar à sua embriaguez e ao seu parasitismo uma recompensa de trinta shillings), tentou
ridicularizar as famosas sociedades dos apotecários e dos cirurgiões.
A lacuna entre o herbalismo e a medicina se abrira.
Ela cresceu regularmente, mas de modo menos explosivo, até a publicação,
pelo Conselho Geral de Medicina, da primeira Pharmacopaeia Britanica, em 1864,
que é hoje o Formulário Nacional, encontrado no bolso de todos os serventes de
paletó branco. O mistério foi extraído do herbalismo pelos bioquímicos, foi
sintetizado e padronizado, como a morfina da papoula, a digitalis da dedaleira e o
ácido ascórbico contra o escorbuto, do limão. As ervas não passam de fósseis
enterrados debaixo da rica mina dos medicamentos feitos pelo homem, onde nós
trabalhamos com tanta gratidão e assiduidade.
Os herbalistas existem ainda hoje, com sua crença de que as plantas ao natural
são melhores do que as substâncias feitas pelo homem. Eles citam tônicos herbais
que faziam maravilhas para velhas senhoras, o que é compreensível, uma vez que
eram dissolvidos em álcool quase com a força do gim. Citam alegremente os
desastres, como a talidomida, para provar que as curas químicas escondem
perigos desconhecidos. Certo. Se a aviação fosse abandonada depois do primeiro
desastre de avião, o sofrimento do mundo seria tolerável, comparado ao abandono
dos medicamentos científicos em favor das flores que crescem na primavera.
Os nazistas eram herbalistas fanáticos, calorosamente encorajados por Julius
Streicher, que nós enforcamos em 1946.
O POMO DA DISCÓRDIA
“Malditos sejam, vocês não me conhecem? Eu sou a senhora Mapp, a que
conserta ossos!” gritava a “Louca Sally”, da sua carruagem puxada por quatro
cavalos, os lacaios com suas encantadoras librés, na Velha Estrada de Kent.
Vestia um roupão largo, e tudo indicava que havia se servido generosamente da
água de Genebra e fora confundida por uma multidão ameaçadora com uma das
recentes amantes de George II, como Nell Gwyn, que tempos atrás havia
transformado a ira do povo em aplauso entusiasmado ao dizer: “Eu sou a
prostituta protestante.”
Todos em Londres conheciam a gorda e feia Sally Mapp. Há uma canção a seu
respeito na peça em Lincoln’s Inn Fields, The Husband’s Relief. Sua irmã Lavinia,
em 1728, foi a estrela da Ópera do mendigo, depois fez Ofélia e casou com o
terceiro duque de Bolton. Sally dava consultas duas vezes por semana na Grecian
Coffee House. Em 1736, recebia 100 guinéus por ano, da cidade de Epson, para
morar na cidade e consertar ossos elegantes. Casou com um lacaio que a espancou
durante 15 dias, depois desapareceu com todo seu dinheiro. Morreu esquecida e
pobre em Seven Dials, e vive para sempre na parte superior do quadro de
Hogarth, Os coveiros, entre dois dos médicos que, com enormes cabeleiras
brancas, cheiram delicadamente os cabos de ouro das suas bengalas.
Sir Hans Sloane, então presidente do Colégio de Cirurgiões, a elogia:
As curas realizadas pela consertadora de ossos de Epson são muitas para serem
enumeradas: suas ataduras são extraordinariamente limpas e bem-feitas, e sua
habilidade para reduzir deslocamentos e fraturas é maravilhosa. Ela curou
pessoas que estavam inválidas há 20 anos.
Percival Pott não demonstra o mesmo entusiasmo:
Nós todos lembramos que os absurdos e a impraticabilidade de suas promessas
e compromissos não satisfaziam de modo algum as expectativas e a credulidade
dos que a procuravam, isto é, pessoas de todos os níveis e graus, desde o mais
baixo mecânico até os escalões mais altos da sociedade, muitas das quais não
hesitavam em acreditar piamente nas afirmações mais extravagantes de uma
mulher ignorante, bêbada e selvagem, e chegavam até mesmo a solicitar sua
companhia, parecendo ter prazer com ela.
Essas duas opiniões resumem o relacionamento da medicina com a osteopatia,
inventada em 1874 pelo doutor Andrew Taylor Still (1828-1917), em Kansas
City. Ele concluiu que todas as doenças eram causadas por defeitos na estrutura
do corpo, o que ele havia aprendido no tratado sobre os peles-vermelhas
“ressuscitados” por Burke e Hares, do centro-oeste. Manipulem os
desalinhamentos que o paciente fica curado, dizia ele. Em 1934 ele despertou a
atenção da Casa dos Lordes, na Inglaterra, quando seus nobres seguidores
queriam que os osteopatas fossem legalmente registrados como médicos. O comitê
municipal, para onde o projeto de lei fora desviado pelos importantes médicos
Lordes Dawson e Moynihan, fez coro com os médicos e não concordou com a
idéia de aprovação pelo Parlamento do licenciamento dos osteopatas para
diagnosticar e curar doenças. “Não seria seguro e nem apropriado”, resolveu o
conselho com desprezo.
Foi um jato de frio realismo no entusiasmo por Herbert Atkinson Barker (1869-
1950), Filho de um médico legista de Lancashire, sem instrução superior, que
havia ganho um bom dinheiro como osteopata da moda, em Londres, e foi sagrado
cavaleiro por Lloyd George, em 1922. Barker tinha o apoio do Daily Express, de
Lord Beaverbrook, que incitou o protesto do público contra a exclusão do seu
anestesista do Registro, em 1911, por ajudar um médico não qualificado e contra a
recusa do exército aos seus serviços médicos para atender os feridos em 1917. O
arcebispo de Canterbury, que guarda ainda esse antigo poder, era tido como o
criador de Barker Doutor em Medicina Lambeth, porém sua intervenção divina
não conseguiu realizar o casamento legal de Barker com o Conselho Geral de
Medicina.
“Ele possuía o dom de curar", admite o Dicionário Nacional de Biografia,
falando de Herbert Barker. Seria ótimo que outras pessoas também tivessem. Não
é um dom concedido, mas conquistado pela inteligência e pelo trabalho árduo.
Eu prometi fazer isso, e quando recebi a receita, eu disse: “Ah, majestade, ela
pode tomar durante sete anos que, no fim desse tempo, não terá tomado nem um
grama de medicamento.”
FICÇÃO CIENTÍFICA
A medicina alternativa deve ser vista em perspectiva. Do contrário, ela
desaparece sob o horizonte.
“Alternativa” é a palavra da moda para fazer parecer importante o que não tem
nenhum significado. Ela serve para enfeitar um misto de misticismo medieval,
bobagem herbalista, lixo dietético, brinquedos elétricos, superstição, sugestão,
ignorância e pura fraude.
Podemos tentar a aromaterapia, que cheira bem, a dançaterapia, que é divertida,
a ioga e a meditação, que nos proporcionam uma noite tranqüila, a iridologia,
quando temos à mão olhos que valem a pena ser olhados, a quiromancia, que
submete nosso destino às linhas fibrosas nas palmas das nossas mãos, o
exorcismo, quando se consegue convencer o padre e a ciência cristã, para quem
quer viver perigosamente.
Podemos evocar da fumaça do dragão da história chinesa as forças vitais do yin
e do yang e apunhalá-las, efetuando com a acupuntura a contra-irritação do antigo
cataplasma de mostarda, que os médicos aplicavam no peito, na barriga e no
traseiro. Podemos mandar uma gota do nosso sangue — ou do sangue do nosso
gato — para uma “caixa negra” com um mostrador e botões, a qual nos dá um
diagnóstico. Esse instrumento foi defendido na alta corte de justiça, cm 1960,
porque seu inventor acreditava nele, como exemplo do antigo princípio legal de
que, se você pensa que é inocente, então deve ser inocente.
“É realmente seguro para mim procurar uma pessoa sem qualificação para a
medicina?”, pergunta o guia ricamente ilustrado da saúde alternativa. E responde:
"Fico tentado a sugerir que faça a você mesmo outra pergunta, em lugar dessa:
‘Será seguro procurar o meu médico?’ Os medicamentos atuais são tão poderosos
que se alguma coisa sair errada, os efeitos do remédio podem ser piores do que a
doença. Resumindo, a medicina natural é mais segura simplesmente porque não
confia tanto nos medicamentos artificiais.”
Minha nossa!
Se você está doente, precisa de tratamento científico. As únicas doenças que os
“curandeiros” curam são as que seus clientes imaginativos não têm.
A relação da medicina com o charlatanismo é a mesma da astronomia com a
astrologia. O que as estrelas predizem para os leitores de jornais é inofensivo,
mas o lançamento de um ônibus espacial ou de um satélite, orientado pela
astrologia, ao invés da astronomia, seria desastroso. Mas a humanidade sofre de
uma fascinação eterna pelos charlatães. Talvez porque todos nós gostemos de
pensar que sabemos mais do que nossos médicos. Talvez porque:
O paciente, como um homem que se afoga, agarra qualquer graveto e espera
encontrar no mais ignorante o alívio que o médico, com toda sua ciência, não
pode dar, como observou o Spectator; em 26 de julho de 1714.
Talvez porque:
Sua vantagem enorme sobre a ciência é o falo de o amor pelo mistério estar
profundamente implantado no coração humano,
como sugeriu a Revista Britânica de Medicina, em 1911.
Talvez porque:
O mundo geralmente é contrário
A todas as verdades que vê e ouve,
Mas engole as bobagens e a mentira
Com avidez e gula,
como observou Samuel Butler.
Talvez porque, como suspirava Plínio:
Minus credunt quae ad suam salutem pertinent, si intelligunt. (As pessoas
acreditam menos em assuntos relativos à sua saúde quando os compreendem.)
O doutor Carl Reinhold August Wunderlich (1815-77), de Leipzig, previa em
1858:
Se o médico sofre às vezes injustiça ou incompreensão, se seu trabalho honesto
uma vez ou outra é ignorado ou até desdenhado, ele deve lembrar que aos olhos
majestosos da Natureza o indivíduo não é nada. E por mais deprimido que possa
se sentir quando intrigantes e charlatães anunciam em altas vozes seus sucessos
efêmeros, ele pode estar certo de que esses presunçosos serão suplantados, no
fim, pelos espinhos da consciência. Pois a ciência natural é uma força que avança
orgulhosa e silenciosamente, da qual as esferas mais ameaçadas por ela sequer
têm conhecimento.
Não perca seu tempo com os vagabundos na praia selvagem da ciência.
CAPÍTULO 10
Freud, a governanta inglesa
e o cheiro de pudim queimado
Entre 1905 e 1914, Sigmund Freud publicou, em Viena, quatro casos para
estabelecer no mundo médico ignorante, indiferente ou desdenhoso a seriedade de
sua percepção original da personalidade humana.
O FANTASMA DE FREUD
Todos já ouviram falar de Freud, tanto quanto de Deus. Sua “palavra”, expressa em uns
três milhões de palavras, jaz agora como arquivos empoeirados e não consultados nos
porões da psiquiatria. A fabricação das suas teorias foi sem dúvida glória suficiente.
Freud, modestamente e com razão, citou seu amigo vienense Christian Friedrich Hebbel,
o soturno dramaturgo de meados do século XIX, quando diz que ele próprio
“perturbou o sono do mundo”. E o olho aberto e sonolento do mundo descobriu
que há muito mais no mundo do que se pode ver. Ou teria sido Freud apenas o
Julio Verne das vinte mil léguas submarinas nas profundezas do consciente?
A sombra de Freud diminui à medida que o céu sexual fica mais claro. Os
segredos horríveis de seu divã são hoje programas de televisão. Freud teve
dissidentes. Carl Gustav Jung (1875-1961), de Zurich, separou-se dele em 1911 e
lavou a libido. O vienense Alfred Adler (1870-1937) concluiu que os meninas, na
verdade, não querem fazer sexo com suas mães. Henry Havelock Ellis (1850-
1939), de Croydon, reclassificou Freud como um artista, não um cientista. O
jovial e vaidoso Wilhelm Stekel (1868-1940) alegremente definiu seu
relacionamento com Freud como “um anão no ombro de um gigante pode ver mais
além do que o gigante”. E Freud observou: “Talvez seja verdade, mas um piolho
na cabeça de um astrônomo não pode”.
Os ensinamentos de Freud foram ativamente propagados por seus fantasmas,
que caminharam prosperamente pelos sonhos do mundo, especialmente os dos
americanos. Os analistas continuam a aliviar das vidas dos lutadores e dos
desgarrados o peso de seus problemas elaboradamente acondicionados,
problemas que deviam chocar a família e os amigos, mas que só provocam tédio.
A psicanálise tem uma coisa estranha, é a única cura para qualquer condição que
funciona falando sobre essa condição. O que é uma grande vantagem sobre a
medicina: não tem efeitos colaterais.
“Eu não peço emprestadas as regras de minha religião a Roma ou Genebra, mas
aos ditames da minha razão”, diz Browne, com altivez. Ele compartilhava da
descrença dos fazendeiros da Anglia oriental na teoria do fruto proibido. “No
mesmo capítulo, quando Deus o proíbe, está claramente explicado que as plantas
do campo não haviam brotado, pois Deus não havia ainda ordenado a chuva
sobre a terra.” Sir Thomas balançava a cabeça duvidando do Dia do Julgamento,
que para ele parecia uma extensão dos Tribunais de Norwich. Quando ele foi
sagrado cavaleiro, Carlos II teve de ir a Norwich para lhe conferir o título.
Quando a pira funeral se apaga e é feita a última oração e os homens dão o
último adeus aos Amigos enterrados, “Quem sabe o destino dos seus ossos?” Sir
Thomas faz essa pergunta em O enterro da urna. Seus ossos foram tratados em
1840 para retirar toda a medula, e ficaram expostos nos Hospitais de Norfolk e de
Norwich até 1922. Ele odiava a feitiçaria e, em 1664, deixou Norwich por algum
tempo para providenciar o enforcamento de Amy Duny e Rose Cullender ao lado
da estrada, em Bury St. Edmunds.
— Oliver Wendell Holmes (1809-94) foi o Autocrata da mesa do café da
manhã e professor de anatomia em Harvard durante 35 anos. Em 1843 ele sugeriu
que a febre puerperal, mortal, era contagiosa e podia ser evitada se os médicos
lavassem as mãos e trocassem de roupa antes de atender a uma paciente. Isso foi
quatro anos antes de lgnaz Semmelweiss dizer a mesma coisa em Viena. Em
Boston, essa crítica gratuita sobre higiene pessoal escandalizou o meio médico.
Uma longa vida permitiu ao Autocrata se proclamar vitorioso, depois de Pasteur e
Koch: “Um pequeno exército de micróbios marchou para apoiar minha posição."
DOUTORES EM LITERATURA
A profissão médica tem uma atração histórica para a profissão das letras, que
nunca chama durante a noite, nem em tempo inclemente, e permite ao escritor
beber quanto quiser ao almoço.
Médicos-escritores fazem parte do celeiro das estantes de livros: François
Rabelais (c. 1495-1553), Conan Doyle, de Vere (“Lagoa Azul”) Stacpoole (1863-
1951), Francis Brett Young (1884-1954), A.J. Cronin (1896-1981), Somerset
Maugham. Esse número é surpreendentemente ultrapassado por Keats, Robert
Bridges (1844-1930), Tliomas Campion (1567-1620), Abranham Cowley (1618-
1667), George Crabbe (1754-1832), Schiller (1759-1805) e outros poetas
médicos. Talvez por julgarem que a intensa fascinação da juventude pelos seres
humanos e pela eternidade será mais vantajosamente expressa na profissão de
médico, financeiramente menos arriscada.
Anton Chekhov (1860-1904), que descobriu com prazer que “o palco é uma
amante barulhenta, vistosa e insolente”, foi lisonjeado pelo consultor psiquiátrico
da mídia, Anthony Clare (b 1942) como “O único capaz de usar o material da
medicina e elevá-lo aos níveis de grande arte. Fora isso, a medicina geralmente
cria escritores medíocres". Osborne Henry Mavor (1888-1951), professor de
medicina em Glasgow, escreveu sob o pseudônimo de James Bridie peças cheias
de humor, prolixas, levemente no estilo de Chekhov, como O anatomista (sobre
Robert Knox e Burke e Hare), e um artigo definitivamente científico sobre o
centro anatômico, O Umbigo, que, segundo ele descobriu, pode ser atacado por
oito doenças.
O doutor Peter Mark Roget (1779-1869) fundou a escola de medicina de
Manchester e a Universidade de Londres, investigou a água potável de Londres,
inventou a régua de logo-logaritmo, escreveu sobre fisiologia e teologia e, em
1852, produziu o Roget Thesaurus. Era polimatemático, poli-historiador,
pantólogo, enciclopedista, prodígio de aprendizado, mina de informação,
enciclopédia ambulante e dicionário falante. O doutor Samuel Smiles (1812-
1904) complementou esse serviço útil com Auto-ajuda. O Dr. Thomas Bowdler
(1754-1825), de Edimburgo, “bowdlerizou" Shakespeare.
INDIVIDUALISTAS
O magnífico cirurgião de Yorkshire, Lord Moynihan (1865-1936), fez a palestra
Linacre em Cambridge em maio de 1936 sobre “Alunos faltosos". Moyniham era
um cirurgião campeão, numa época em que geralmente só a habilidade do
operador estava entre a vida e a morte do paciente. “Nada no artesanato de
qualquer arte é mais perfeito e belo do que a arte da cirurgia”, disse ele, num
desafio aberto ao Balé Real. Ele deu o nome à “calha Moynihan” nos intestinos e
ao fórceps Moynihan da vesícula. Seu pai era sargento e ganhou a Cruz da Vitória,
na Criméia. Quinze médicos que encontraram coisa melhor para fazer:
— Andrew Boorde (?1490-1549) escreveu O Pequeno Polegar, estudou medicina em Montpellier, entrou
para a ordem dos monges cartuxos, depois foi bispo sufragâneo de Chichester em 1521. Como o original Merry
Andrew, ele antecipou os hábitos modernos, fazendo discursos humorísticos nos fins dos jantares nas feiras,
escrevendo um livro de frases na língua da Cornualha, em galés, castelhano, holandês e romani, e com o
Breviário da Saúde dá conselhos sobre dieta, compra de casas, finanças pessoais, moda, sexo, corrida e sono.
Como agente secreto de Cromwell, foi enviado à Espanha, em 1535, para descobrir o que o povo pensava de
Henrique VIII. Não gostou de Glasgow, onde praticou a medicina por pouco tempo: “Não confie em nenhum
escocês, pois ele vai enganá-lo com palavras lisonjeiras, e tudo é falso.” Morreu na prisão.
— Henry Faulds (1844-1930), de Glasgow, dirigiu durante 10 anos o Tsukiji Hospital, em Tóquio, onde
inventou a identificação pelas impressões digitais. As primeiras foram impressas em 1889 sobre desenhos dos
10 dedos feitos por gravadores japoneses. O que o seu contemporâneo. Sir Arthur Conan Doyle, teria feito
sem ele?
— Richard Jordan Gatling (1818-1903), da Carolina do Norte, inventou o fuzil Gatling que disparava 350
tiros por minuto.
— William Gilbert Grace (1848-1915), de Gloucestershire e Inglaterra não precisa identificação em nenhum
livro inglês.
— Joseph Ignace Guillotin (1738-1814) foi eleito para L 'Assemblé nationale em 1789, onde deu origem â
mais impressionante demonstração de democracia da história: o homem do povo podia ser decapitado como a
aristocracia O homem do povo, até então, era simplesmente enforcado. A invenção do doutor Guillotin podia
também substituir a punição cruel do desmembramento do condenado amarrado a quatro cavalos, quando o
carrasco tinha de cortar as juntas dos braços e das pernas do prisioneiro se os cavalos se cansassem.
Guillotin era um intrometido, com ares de benfeitor, que fez parte da comissão de Luís XVI para investigar o
magnetismo animal de Anton Mesmer, e era entendido em ventilação. Ele inventou a guilhotina, que foi
desenhada por seu colega Antoine Louis (1723-92), descobridor do ângulo de Louis, situado dois centímetros e
meio abaixo do estemo. A primeira foi construída pelo alemão fabricante de clavecinos, Tobias Schmidt. Sua
terminologia imita a elegância dos termos franceses para o esporte do esqui: o mouton, ou perna de carneiro, o
peso de 35 quilos que faz descer a lâmina, o declic, ou interruptor, que o bourreau, ou carrasco, aperta para
aplicar a lâmina ao paciente e que é empurrado contra o bascule, ou balanço, que imediatamente balança a
lâmina no sentido horizontal, sobre o pescoço preso na lunette, ou círculo de madeira. A cabeça é então segura
pelos cabelos, ou, no caso de calvície, pela orelhas, por te photographe, escondido atrás de uma tela à prova
de sangue. Se a Inglaterra tivesse adotado a guilhotina - em Halifax, no reinado de Eduardo III, as
decapitações foram numerosas - o membro escondido da equipe da execução seria sem dúvida “o guarda da
porta."
A primeira operação do “doutor” Guillotin foi em 25 de abril de 1792, na Place de Grève, mas logo passou
para a prática particular em 1939. O prisioneiro nunca sabia a data, sabia apenas que não podia perder a
cabeça no domingo ou nos jours fériês. Então, na hora mais negra, as guardas da prisão aproximavam-se
silenciosamente, sem sapatas, para abrir a porta, acordar o prisioneiro, dar a de um copo de rum e um cigarro e
devolver suas roupas civis, inclusive o chapéu. Quando o doutor Guilhotin recebia dois pacientes em seguida, a
cabeça alimentada ainda pela última pulsação do coração podia continuar à frente das eventos. Charlolte
Corday é famosa por seu corado post mortem e vários médicos gritavam para algumas cabeças cortadas,
tendo obtido reações encorajadoras.
Às 5:30 de uma manha em junho de 1905, a cabeça do condenado, separada do corpo, caiu aos pés de um
médico. Pálpebras e lábios continuaram a piscar e a se comprimir durante alguns segundos. Então, quando o
médico disse o nome do decapitado as pálpebras se ergueram lentamente, “como acontece na vida cotidiana,
com as pessoas despertadas das próprios pensamentos”, e os olhos se fixaram nos olhos do médico. Depois
disso, os croissants devem ter sido mastigados pensativamente. O doutor Guillotin morreu em casa, vítima de
carbúnculo.
- Sir Goldsworthy Gurney (1793-1985) era um cirurgião da Cornualha tão engenhoso que inventou o
refletor, o maçarico de óxido-hidrogênio, um piano que tocava em copos musicais, o navio a vapor a jato, a
carruagem de 1829 movida a vapor, que fazia uma média de 24 quilômetros por hora na viagem completa
Londres-Bath-Londres, um extintor de incêndios para as minas de carvão, uma lâmpada sinalizadora, um
método para os marinheiros identificarem os faróis e o aquecedor Gumey, para aquecer a Casa dos Comuns.
— Sir Leander Starr Jameson (1853-1917) está enterrado em Matopo Hills, de frente para Bulawayo, visto
do sul, ao lado do seu grande amigo Cecil Rhodes, que o levou para a Rodésia. Em 29 de dezembro de 1895 o
“doutor Jim” liderou seu ataque no Transvaal, para Iibertar o grupo de britânicos reunidos para apanhar o ouro
e os diamantes e que estavam sendo tratados ferozmente pelos boers. O colapso se deu no dia do Ano-Novo.
— David Kinloch (1559-1617), obstetra e poeta, quando viajava de Dundee foi aprisionado pela Inquisição
espanhola e condenado a ser queimado vivo. A execução foi adiada porque o Grande Inquisidor ficou doente.
Kinlock enviou, por meio de um dos guardas de prisioneiros da inquisição, um bilhete dizendo que era médico e
talvez pudesse ajudar. Ele curou o Grande Inquisidor e, ungido com sua gratidão, voltou para casa, na Escócia.
Bem, isso é o que conta a British Medicai Journal de 1" de maio de 1926.
— O reverendo Francis Thomas McDougall (1817-86), cirurgião, remou pela universidade de Oxford, foi
bispo de Sarawak e, depois de repelir um ataque de piratas chineses, em 1862, descreveu para o The Times,
com detalhes, sua arma feita em Londres, cano duplo, carregada pela culatra. “Era uma arma extremamente
mortal, com grande poder de tiro, precisão e rapidez. Nunca negou fogo em 80 tiros, e acredito que poderia
atirar mais 80 com o mesmo efeito.” Esse testemunho não agradou às instituições religiosas, que prezavam
seus gramados tranqüilos, suas pacíficas mesas de chá e os princípios humanistas em casa.
— Jean Paul Marat (1743-93), apunhalado no banho por Carlota Corday, era formado em medicina por St.
Andrews, Escócia. Estava no banho para aliviar a coceira do eczema.
— Francis Moore (1657-1715), clínico em Lambeth, Londres, em 1701 fundou o Old Moore's Almanac.
— James Parkinson (1755-1824) foi acusado de conspirar para assassinar George III, no teatro, com um
dardo envenenado, atirado por uma espingarda de ar comprimido. Ele deu seu nome à doença de Parkinson.
— James Startin (1806-72), dermatologista de Londres, descobriu um modo barato e eficiente para engomar
chapéus de feltro.
— Sir Charles Wyndham (1841-1919), de Liverpool, um dos cirurgiões de Lincoln na Guerra Civil, voltou
para a Inglaterra e foi trabalhar no teatro. É lembrado pelo teatro Wyndham, no West End, embora seu nome
verdadeiro fosse Culverwell. Foi sagrado cavaleiro por Eduardo VII, em 1902, quando foi relutantemente
conferida aos médicos e atores a honra de penetrar naquele círculo fechado dos cavalheiros.
E cinco que se distinguiram mais na área pessoal que na da medicina, onde não conseguiram se qualificar:
— O émigré armênio Michael Arlen (1895-1956), autor do romance da moda em 1924, O Chapéu Verde,
estudou medicina em Edimburgo. Ele era "mais brilhantina do que brilhante", segundo o The Times.
— Hector Berlioz (1803-69), o filho romântico de um médico de Grenoble, que enfureceu o pai porque
detestava a medicina.
— Johann Wolfgang Goethe (1749-1833) abandonou as aulas de medicina em Strasburg, mas em 1786 fez a
valiosa descoberta do osso intermaxilar, no maxilar superior.
— Christopher Isherwood (1904-86) estudou medicina no King’s College, em Londres, de 1928 a 29.
— Cecil Scott Forester (1899-1966) estudou no Guy's Hospital, mas lançou Hornblower.
OS MALCOMPORTADOS
Doze médicos piratas passaram pelos séculos XVII e XVIII. O que teve mais
sucesso nas duas ocupações foi Thomas Dover (1660-1742). Tinha um gênio tão
terrível que jamais conseguia um número suficiente de subordinados para fugir
com o resultado do saque. Em 1709, como capitão do Duke, tendo saído há um
ano de Bristol onde comandava o Duchess, Dover saqueou Guaiaquil, no
Equador, e curou da peste 172 dos 180 homens de sua tripulação abrindo-lhes as
veias dos braços e deixando-os sangrar até desmaiar. A caminho de casa, salvou
Alexander Selkirk (Robinson Crusoe) da ilha de Juan Fernandez, depois voltou
para Boston e continuou a praticar a medicina, obesamente rico.
Como todos os médicos, Dover tinha uma cura favorita, que só combinava com
a doença dos pacientes que tinham sorte. A cura era mercúrio, por isso ele ficou
conhecido como o “Doutor Mercúrio”. Ele inventou o pó de Dover, um remédio
para tosse que consistia na mistura de ópio e da raiz brasileira da ipecacuanha,
que lisonjeiramente para ele sobreviveu na farmácia britânica até a era da
penicilina. Dover era um pirata da honrosa tradição de Drake. A Inglaterra é uma
nação de piratas bem-sucedidos, cujo produto dos saques, o império britânico,
sobreviveu durante o mesmo tempo do pó de Dover.
Os médicos assassinos são memoráveis por sua espantosa incompetência. O Dr.
Crippen, de Hilldrop Crescent, Londres, em 1910 enterrou a mulher no porão
(exceto a cabeça, que até hoje não apareceu). O Dr. Buck Ruxton, perto de
Blackpool, em 1935 fez em pedaços a mulher e a criada, no banho, atribuindo o
sangue na passadeira da escada, nas cortinas, na sua roupa e nas camisolas delas a
um corte na mão, feito quando abria uma lata de pêssegos. O Dr. Pritchard, de
Glasgow, matou a mulher e a sogra em 1865 com acônito, e assinou as certidões
de óbito (causas das mortes, apoplexia e febre tifóide). O Dr. Palmer, de Rugeley,
deu estriquinina a um amigo das corridas de cavalo, em 1855, depois tentou
roubar o estômago dele durante a autópsia. O Dr. Cream, do Canadá, matou várias
prostitutas de Londres, em 1891, com estriquinina, o modo mais espetacular, com
convulsões violentas. Evidentemente, tudo que esses médicos precisaram para
matar foi uma modesta habilidade profissional.
OS BEM-COMPORTADOS
Céline (doutor Louis-Ferdinand Destouches, 1894-1961) pensava: “A medicina
é uma profissão individual. Quando a praticamos entre os ricos, parecemos
lacaios, e entre os pobres, parecemos ladrões.” As pessoas acostumadas a serem
tratadas como indivíduos importantes dificilmente se ajustam ao papel de ser
apenas um corpo. Mais alarmante ainda, que desastre para todos a sua invalidez,
ou, que perda indizível a sua morte! Churchill ordenava decisivamente que seus
dois médicos e suas doenças combinassem com suas idéias. Felizmente, foi
assistido por lord (“Charlie Saca-rolhas") Moran (1882-1977), um homem
confortavelmente apreciador da própria importância.
O médico de Hitler era o gordo e calvo Theo Morell (1886-1948), que foi
promovido de médico da moda em Berlim, especialista em dermatologia,
venereologia e impotência e que tratava com choques elétricos, a um dos
membros impopulares do séquito do Führer. Dia sim, dia não, Hitler abaixava a
calça do uniforme para Morell injetar vitaminas no Führerrumph. Durante a
guerra, a cerimônia passou a ser realizada cinco vezes por dia. Desde 1936,
quando Hitler reocupou a Renânia e mostrou para a Europa que estava falando
sério (pateticamente ineficiente), até 1945, quando se matou e à sua noiva e seu
cão, Morell secreta mente complementava as vitaminas com grandes doses de
anfetamina. Isso deixava o paciente “descansado, alerta, ativo e imediatamente
pronto para o dia... alegre, falante, fisicamente ativo e ficando acordado até altas
horas da noite”. Hitler tomava uma dose extra quando recebia más notícias. Tudo
que Churchill tomava era uísque.
Os médicos de Bismarck precisavam dominar respeitosa mente um apetite que
todas as noites devorava caviar para criar uma sede de canecas e canecas de
cerveja forte, sem o que ele não podia dormir. Os médicos de Frederico, o
Grande, precisaram despertar no paciente o entusiasmo pelo suco de taraxaco,
para substituir seu almoço favorito de sopa muito condimentada, carne russa em
brandy, milho italiano com alho e torta de enguia. Os de Luís XIV tinham de
manter quieta a blenorragia de sua majestade. Os médicos de George III tinham a
dura tarefa de remediar sua loucura.
De 1765 a 1810 o pobre rei George sofreu cinco acessos de loucura — uivando
como um cão, excitado, falando com os mortos invisíveis, perseguindo as damas
de companhia — cada um com a duração de seis meses, o último até sua morte,
em 1820, aos 82 anos. A doença evidentemente tinha complicações políticas que
foram tratadas com a regência de George IV, em 1811. Os médicos reais tratavam
o rei com os métodos da época, respeitavelmente imobilizando-o com camisas de
força. Era uma loucura causada por porfiria, uma disfunção metabólica, como a
diabete e a gota. Ele era uma disfunção química, não um rei. Mas o porfírio só foi
descoberto no sangue em 1863.
O médico pessoal da rainha Vitória era Sir James Reid, baronete (1849-1923),
um clínico geral enfadonho de Aberdeen, que ela havia conhecido em Balmoral e
que parecia um ovo de Páscoa com fartas suíças grudadas nos lados. Reid estudou
em Viena, por isso oferecia a atração de falar o alemão do falecido príncipe
Alberto, com o sotaque do seu devotado John Brown do Highland, que também
era paciente dele (Brown foi um mártir em todos os sentidos).
Quando Reid foi nomeado seu médico, em 1881, a rainha estava com boa saúde,
embora com algum excesso de peso, um pouco de reumatismo e gases (ela comia
demais e misturava uísque no clarete). Exercendo sua prerrogativa real de
hipocondria em Balmoral, Windsor ou Osborne, ela chamava seu médico mal
pago seis vezes por dia, ou o fazia interromper suas férias e, quando Reid estava
em viagem de núpcias, ela escreveu, tranqüilizando-o: "Os intestinos estão
funcionando perfeitamente.” Essa intimidade era inteiramente médica e, sem
dúvida, regiamente desfrutada. Ela criou Reid, do círculo pessoal da rainha.
Sir James tinha na corte uma influência de tirar o fôlego. Nenhum médico
britânico era recebido sem sua aprovação. Quando Gladstone se aposentou, em
1894, a rainha fez com que Reid escolhesse para substituí-lo Lord Rosebery, ao
invés de Sir William Harcourt, por “ter salvo a saúde da rainha”. Reid era um
esnobe na oficina do esnobismo. Ele considerava a ordem de Knight Bachelor, ou
Jovem Cavaleiro, apropriada “para todo tipo de homem comum”, e fez pé firme
por uma KCB, ou cavaleiro comandante de Bath, seis degraus acima na Ordem de
Precedência, e que ele recebeu depois do almoço, em Balmoral, em 1895, com
uma espada escocesa de dois guines.
Como a diversão favorita da rainha era ver bebês descendo ou almas subindo,
Sir James era seu companheiro natural ao lado dos aristocráticos leitos de parto e
leitos de morte. Ele executou as instruções carinhosas da rainha para os funerais
dos parentes, das criadas e de seu cão. Quando a rainha morreu, em 1901, havia
encarregado secretamente Sir James de se aproximar do caixão e pôr na mão
esquerda da morta o retrato de John Brown, morto há 18 anos, e uma mecha dos
cabelos dele. Sir James só há pouco tempo havia conseguido diagnosticar uma
hérnia e um grave prolapso do útero na sua paciente real Nos seus 20 anos de
médico comum e médico extraordinário ele jamais viu a rainha sem roupa. Eu
gostaria de saber se aconteceu o mesmo com seu querido Brown de Highland.
Na segunda-feira, 20 de janeiro de 1936, o rei George V estava morrendo em
Sandringham, onde os relógios eram sempre adiantados em uma hora (Eduardo
VII dera essa ordem para garantir a pontualidade de suas competições de tiro, 20
anos atrás). O médico real era Lord Dawson, de Penn (1864-1945), encantador,
sensível, jovial, impaciente, entusiasta da eutanásia, cortesão experiente e político
manipulador. Estava acostumado com os jornais, assinava os boletins expostos na
frente do Palácio de Buckingham, para informar ao povo a saúde precária de seus
governantes, e foi honrado, muito acima da sua profissão, com o título de
Conselheiro Privado.
Em volta dele, naquela noite, estavam o príncipe de Gales (por ar), Cosmo
Lang, o esnobe arcebispo de Canterbury e Ramsay McDonald, o agitado Primeiro-
Ministro. No jantar, Dawson escreveu nas costas de um cardápio sua imortal
sugestão de imortalidade: “A vida do rei caminha serenamente para seu fim.”
(Não se pode criar uma coisa como essa enquanto se toma sopa. Sem dúvida,
Dawson criou e poliu a frase enquanto, lá em cima, o paciente real estava ainda
comendo e bebendo.)
Enquanto essas notícias chegavam ao povo ansioso, através da BBC, o príncipe
de Gales, os duques de York e Kent e o secretário particular do rei reuniram-se
para planejar os funerais. Assim que se livrou do arcebispo, no quarto do rei,
Dawson se viu sozinho com a “calma e bondosa” rainha Mary e o nervoso
príncipe de Gales. Cinquenta anos depois foi revelado que eles já haviam
combinado com Dawson que ele não precisava se esforçar para manter o rei vivo.
Assim, às onze horas Dawson injetou uma dose alentada de morfina e cocaína na
jugular distendida do rei, o que acabou com ele quando faltavam cinco minutos
para a meia noite.
A hora final do rei era a hora do The Times. Dawson queria que a notícia fatal
fosse dignificada pelo The Times, com o editor já avisado por Lady Dawson para
reservar o meio da primeira página, e não anunciada pelo rádio, aquele parvenu,
do qual ele já devia estar farto naquela noite. O príncipe de Gales ficou histérico
e não parava de abraçar a rainha, até subir ao trono e mandar atrasar de uma hora
todos os relógios de Sandringham. Mais tarde, naquele ano, Dawson foi
promovido na Lista de Honra, desse modo estabelecendo o título de Visconde
como o padrão para regicídio na Grã-Bretanha.
CAPÍTULO 12
O corpo político
Pense no que significa a nossa nação...
Democracia e bons encanamentos.
John Betjeman,
“In Westminster Abbey".
A SAÚDE PÚBLICA
As Condições Sanitárias da População Trabalhadora na Grã-Bretanha foi
publicado em 1842 por Sir Edwin Chadwick (1801-90), comissário da Lei dos
Pobres, favorito de Jeremy (“a maior felicidade para o maior número”) Bentham,
advogado e engenheiro sanitário autodidata, criador dos encanamentos Cawnpore,
em 1871, homem de várias atividades e intimidador, protótipo defensor do meio
ambiente, que era ainda conhecido como o céu e a terra.
As condições da população trabalhadora eram péssimas. Os romanas foram um
povo limpo, os Tudor construíram encanamentos, mas os semeadores e fiandeiros
da antiga vida rural da Inglaterra, “levados pelas ventos do céu”, haviam trocado
as páginas de Thomas Hardy pelas de Arnold Bennett. Metade da nação havia
deixado os senhores rurais e o trabalho no campo para trabalhar nas fábricas,
amontoando-se nos bairros pobres e sujos da cidade. O índice de mortalidade,
que havia caído no período de 1780 a 1810, atingiu um pico perigoso. Os
cemitérios
atrás das igrejas transformavam-se em prósperas estalagens. Os corpos eram
exumados e enterrados em valas comuns, ou (diziam) transformados em pó de
osso, e o quarto era alugado para outro. As criptas das igrejas estavam lotadas
como latas de sardinha. Preocupado com o cheiro da cidade, o Dr. George
(“Cemitério”) Walker (1807-84), de Drury Lane, lançou seu protesto com o livro
Recolhidos dos cemitérios, e foi acusado de impiedade. Chadwick o apoiou e, em
1850, o Parlamento decretou que os religiosos podiam ser enterrados no porão da
igreja.
Em seu livro, As condições sanitárias, Chadwick definia a pobreza e a doença
como dois lados da mesma moeda. Porém, não se pode ver os dois lados de uma
moeda ao mesmo tempo. Nada foi feito para melhorar qualquer uma das duas
condições. Por sorte houve um grande surto epidêmico de cólera em 1847. Como
Saul e Davi, o tifo matou milhares, mas a cólera matou centenas de milhares. A
cólera matou 10.000 moradores de Londres naquele verão, suplantando todas as
outras epidemias habituais da estação. Quinhentos morreram nos viveiros
humanos do Soho, onde o excremento humano se misturava ao dos animais nas
pedras das ruas e o esgoto se misturava com a água potável. Essas eram as “cortes
da cólera”, de Florence Nightingale, que tratou das vítimas no Hospital
Middlesex, perto do Soho. Florence Nightingale sabia que a cólera era causada
pela sujeira e curada com a limpeza. Com desdém, considerava uma superstição
passageira a idéia de que a cólera se disseminava por contágio (os germes ainda
não tinham sido inventados). Como todas as suas opiniões, essa era vigorosa e
persistente, mesmo quando havia evidência inquestionável do contrário.
O parlamento ficou tão assustado com a epidemia de cólera que aprovou a Lei
da Saúde Pública em 1848. Essa lei determinava a criação de uma Diretoria Geral
de Saúde, da qual faziam parte Chadwick e Lord Shaftesbury (1801-85), o
incansável filantropo e campeão dos lunáticos, mulheres que trabalham e meninos
limpadores de chaminés. Shaftesbury foi o fundador (incentivado por Dickens)
das escolas para os pobres, dos abrigos para as crianças de rua, onde eram
vestidas, calçadas e aprendiam os princípios da Bíblia, e depois eram deportadas
para a Austrália.
A diretoria foi um fracasso. Um oficial médico da saúde foi nomeado para
Londres (a moderna Liverpool já tinha o seu), porém por mais enérgicas que
fossem suas recomendações não tinha ninguém para fazer o trabalho. Com exceção
de Sir Edwin Chadwick, que conseguiu notoriedade política sem igual, até
Edwina Curie cometer um erro. O The Times de 1o de agosto de 1854 dizia, a
respeito do plano de Chadwick de bombear para o centro de Londres a água do
Surrey: “Preferimos arriscar uma epidemia de cólera e outras mais a sermos
oprimidos pela diretoria de saúde." Em 15 de junho de 1983 The Times citou o
próprio artigo, num comentário sobre a dieta para controlar nossa epidemia de
doença coronária, acrescentando ironicamente: “Talvez muitos de nós guardem
ainda esses sentimentos.” Nós guardamos.
Em 1853 Chadwick foi demitido, e cinco anos depois a Diretoria de Saúde foi
absorvida pelo Conselho Privado. Em 1854 John Snow, anestesista da rainha
Vitoria, convencido de que a cólera era transmitida pela água, arrancou a
alavanca de uma bomba pública na Broad Street, no Soho. A cólera parou. (Como
nas melhores histórias médicas, isso foi inventado por seu biógrafo. Snow
explicou modestamente que a mortalidade decresceu porque todos tinham fugido
da cidade. Um ato tão impressionante de saúde pública, mesmo fictício, conferiu a
John Snow, em 1955, a honra de dar seu nome a um bar local, provavelmente
fazendo se torcer no túmulo aquele inimigo fanático da bebida alcoólica.)
Em 1872 surgiu outra Lei da Saúde Pública, com 343 seções dedicadas à
purificação da água, esgotos com água corrente, ruas limpas, moradias saudáveis,
recolhimento de lixo, inspetores dos alimentos, mercados limpos e enterros sob as
condições mais sanitárias possíveis. Aumentou o volume das opiniões a favor de
leis contra os seres humanos naturalmente sujos infectarem outros seres humanos.
Um cirurgião da Enfermaria Sunderland Eye, Reginald Orton (1819-62), estendeu
sua prática para exigir a revogação da lei do imposto sobre janelas, em 1851 (ele
também inventou o bote salva-vidas). O visitante da saúde nasceu em 1888, para
ensinar as mães a cuidar dos filhos. Na década de 1900 foram regulados a
profissão de parteira e o trabalho de crianças nas fábricas, e tornou-se obrigatória
a notificação de nascimentos e doenças infecciosas. Em 1904 foi infligido às
escolas britânicas o deprimente Comitê sobre Deterioração Física, inspirado na
surpresa escandalizada dos generais, na Guerra dos Boers, quando descobriram
que metade dos seus recrutas não tinha condições físicas para lutar. Depois de
1916, qualquer um podia exigir legalmente o tratamento anônimo da gonorréia.
Enquanto isso, os EUA começavam a sanitizar vigorosamente o grande número de
imigrantes que chegavam ao país.
Os políticos agora saltaram alegremente para o meio ambiente. O problema é
duplo:
— Aumento de CO2 do óleo e do carvão, que ultrapassa sua absorção normal pela vegetação cada vez
mais rara. Isso prejudica a atmosfera da Terra, impedindo a saída do calor do sol.
— Compostos de fluoreto emitidos por geladeiras e vaporizadores do tipo aerossol destmem o O3 da
camada de ozônio da atmosfera.
O que permite a passagem dos raios ultravioleta que provocam câncer de pele e catarata.
Para combater tudo isso usamos produtos sem chumbo e renunciamos ao
aerossol para vaporizar nossos móveis e nossas axilas. Os canos de escapa mento
dos carros prejudicam a atmosfera tanto quanto os nossos. Uma vaca contribui
para o efeito estufa emitindo 200 litros de gás metano por dia. Nós, os 5,3 bilhões
de seres humanos, somos menos flatulentos mas ganhamos de longe das vacas. Se
eu fosse um político idealista de olhos verdes, minha divisa seria: "Salvem o
mundo! Peidem dentro de uma camisinha!”
A SAÚDE NACIONAL
O Serviço Britânico Nacional de Saúde foi fundado por Bismarck. O Chanceler
de Ferro, o piloto derrubado por Sir John Tenniel, na charge do Punch, em 1890,
conseguiu fazer com que o difícil Reichstag aprovasse, entre 1883 e 1889, leis
que criavam esquemas de seguros contra doenças, contra acidentes provocados
pelas máquinas cada vez mais numerosas e contra invalidez crônica entre os
trabalhadores do novo Império Alemão de Guilhenne I. O mundo jamais vira
coisa igual. Cem anos depois, quase o mundo inteiro tinha algo parecido. “Dê ao
trabalhador o direito de trabalhar, desde que ele tenha saúde. Cuide dele quando
ficar doente. Tome conta dele quando ficar velho”, disse Bismarck, tão
admiravelmente quanto Keir Hardie.
Bismarck estabeleceu o Ortskrankenkassen, fiando de seguro contra doenças
locais, com dois terços financiados e completamente controlado pelos
trabalhadores, que pagavam diretamente os médicos e laboratoristas. Antes de
descer a escada de piloto do Kaiser Bill, Bismarck declarava que seu Seguro
Social era uma realização alemã mais importante do que a unificação de 1871,
com a qual ganhou o respeito do povo. Estava convencido de que a perspectiva de
uma pensão na velhice manteria os trabalhadores satisfeitos para sempre.
O Chanceler das Finanças do governo liberal de Asquith, em 1908, era Lloyd
George (1863-1945). “O povo” estava tão perto de seu coração quanto “os
duques” estavam da sua maldição. Seu primeiro orçamento, em 1909, foi, como
era de esperar, “para o povo”, portanto indigesto para os nobres amigos dos
duques da Casa dos Lordes. Eles não o aceitaram e determinaram eleições gerais
em 14 de janeiro de 1910, depois do que Lloyd George, sensatamente, foi
descansar na Côte d’Azur.
Lloyd George enviou um funcionário subalterno do Tesouro, W. J. Braithwaite
(1875-1938), filho de um pastor protestante que se tomou especialista em imposto
de renda, à Alemanha para descobrir como Bismarck havia feito tudo aquilo. Na
manhã de terça-feira, 3 de janeiro de 1911, Braithwaite chegou a Nice pelo
expresso noturno. Lloyd George o convidou a se juntar a alguns amigos, no porto,
e enquanto bebiam, eles o ouviram falar durante horas (prudentemente, haviam se
distanciado da banda do porto). Sob o famoso sol de inverno da Riviera, acima
do calmo e ainda não poluído Mediterrâneo, possivelmente tomando Pernod e
comendo pequenas azeitonas pretas, foi concebida a Lei Nacional de Seguro de
Saúde de 1911, que cresceu e se transformou na Lei do Serviço Nacional de
Saúde de 1946. Não existe nenhum cais em Nice, mas A.J.P. Taylor, que conta a
história, acha que a reunião no cais melhora muito a narrativa.
A saúde do povo era para Lloyd George um item solene, que ele transformou em
evangelho. Antes de Lloyd George, o potencial da saúde para angariar votos
nunca fora levado em conta. A fome trazia a revolução, mas a doença era um
sofrimento particular, muito além dos medicamentos da política. A descoberta de
Lloyd George criou o culto moderno da saúde, contemporâneo do transporte de
massas, propaganda das massas e diversão das massas.
Naturalmente, alguns seres humanos saudáveis e bondosos sempre se
preocuparam com os doentes. Os membros do Parlamento, em 1834, fizeram
emendas na lei dos pobres para criar enfermarias nos asilos, onde os pobres
locais podiam morrer. Benfeitores particulares fizeram grandes doações em
dinheiro aos hospitais para os velhos, como o Guy’s ou Thomas ou São
Bartolomeu, que foi fundado pelo monge Rahere em 1123 e refundado por
Henrique VIII, para os pobres doentes, que começavam a se tomar um problema
incômodo nas ruas de Londres. Nos saguões de todos os hospitais do país existem
longas listas com os nomes dos que foram imortalizados por suas doações,
geralmente em termos razoáveis, e é pena que o socialismo tenha arrogantemente
eliminado a caridade da medicina no Serviço Nacional de Saúde. Não vai mais
haver o Dia da Bandeira, com enfermeiras bonitas batendo em latas, para angariar
donativos.
Houve uma dolorosa separação entre esses orgulhosos hospitais, onde os
médicos aplicavam seus conhecimentos de graça e as enfermeiras sua devoção
por muito pouco, e os asilos para os pobres onde eles definhavam com humilde
esperança. Os hospitais voluntários podiam escolher seus pacientes, favorecendo
os poucos casos agudos e interessantes em detrimento dos casos crônicos. Com
arrogante tradicionalismo britânico, essa separação persistiu entre os hospitais
voluntários e os municipais até a madrugada pintada de vermelho do Serviço
Nacional de Saúde.
Os médicos anteriores a Lloyd George já estavam nas folhas de pagamento de
certas sociedades, como Oddfellows ou os Druidas, ou eram empregados pelos
sindicatos dos mineiros e dos ferroviários, ou ainda dirigiam seus próprios clubes
de saúde (os membros que conseguiam novos sócios ganhavam 25% de
comissão). Um funcionário que ganhava meia coroa por ano valorizava o paciente
e o médico aos olhos do público — a não ser aqueles que consumiam uma garrafa
de medicamento por semana, o sindicalista que gostava de tratá-lo como
empregado e as mulheres que mandavam nele como se fosse um criado. Sempre se
encontrará na prática da medicina um grande número de gananciosos e mal-
educados.
I.loyd George resolveu fazer mais do que os alemães. Ofereceu ao eleitorado
“nove pence por quatro pence”, o que parecia um bom negócio. Todos os
trabalhadores que recebiam menos de três libras por semana pagavam quatro
pence, seus empregadores três pence, o Estado dois pence e o médico ganhava
seis shillings por ano. Os alemães haviam contribuído com nove pence e tinham
de pagar os três primeiros dias de tratamento, que na Grã-Betanha eram de graça.
Bismarck concedia o benefício-matemidade de seis semanas, mas Lloyd George
determinou uma concessão de 30 shillings para a maternidade, uma vez que para
os britânicos a gravidez não era doença. Mulheres casadas, não grávidas, crianças
e donos dos próprios negócios não recebiam benefícios, embora lhes fosse
permitido o seguro privado de saúde. Tanto na Alemanha quanto na Grã-Bretanha
o pagamento era compulsório, dedutível do ordenado e envolvia os correios,
cartões e selos. Na Inglaterra havia uma respeitosa confusão quanto ao lato de as
duquesas serem obrigadas a inscrever suas criadas no plano de saúde.
OPINIÕES PROFISSIONAIS
Os médicos objetaram violentamente. Comícios gigantes de médicos foram
realizados em Manchester e no Queen’s Hall, em Londres, onde eles cantavam
“Rule Britannia''. Os médicos diziam que o paciente seria obrigado, contra sua
vontade, a consultar o médico escolhido pelo governo, o que era contra a ética.
Além disso, ia arruinar as clínicas particulares. Corria o rumor de que médicos
trapaceiros da Escócia estavam se mudando para a Inglaterra. Levas de
estrangeiros doentes estariam atravessando o Canal para tratamento de graça à
custa do contribuinte britânico. Os pacientes que constavam das listas do governo
estavam morrendo porque os médicos, sobrecarregados de trabalho, não podiam
atendê-los e, além disso, as salas de espera não tinham nenhum aquecimento. A
confusão toda serviu para projetar os médicos nos comitês de controle e aumentar
seus honorários. Como a maioria dos alvoroços britânicos, esse também se
acalmou. "Os médicos lamberam suas feridas, e as duquesas, seus selos”,
concluiu E.S. Turner.
O Ministério da Saúde, fundado em 1919, era um amontoado burocrático de
governo local e comércio de seguro de saúde que minimizou sua ineficiência
criando o Conselho Consultivo para planejar a melhoria da saúde da nação. O
major-general Dawson, da Academia Real de Medicina e Cirurgia, havia feito
várias conferências sobre o assunto, e quando deu baixa foi eleito presidente.
Logo tomou-se Lord Dawson, e mais tarde matou o rei. Ele também achava que
Hitler era um cara legal e que os desempregados deviam ser submetidos
compulsoriamente a tratamento de choque.
O relatório Dawson, de 1920, descrevia as linhas básicas de um serviço de
saúde que abrangia de professores a farmacêuticos. Seriam criados "centros
primários de saúde”, com leitos para os clínicos gerais tratarem seus pacientes, e
“centros secundários de saúde” para os pacientes que não melhoravam. Pacientes
com doenças infecciosas ou mentais seriam isolados, e todos deviam ter uma ficha
médica detalhada. Os médicos iam dirigir o show, como soldados e marinheiros
dirigiam o exército e a marinha (“A prática de pôr os qualificados sob controle
dos não-qualificados precisa acabar”, era um dos modos de ver o Serviço Civil.)
O gráfico do plano Dawson foi riscado com lápis políticos de várias cores.
Neville Chamberlain (1869-1940) tomou-se Ministro .da Saúde em 1924, e em quatro
anos conseguiu a aprovação do Parlamento para 21 projetos de leis de reformas
do plano e aboliu os dispendiosos quadros de guardiães locais que aplicavam as
leis dos pobres, misturando-os confusamente com as leis que regiam a medicina.
Na II Guerra Mundial, com o espírito admirável que começou a planejar o Dia D
em Dunquerque, a saúde permanente e a felicidade do povo britânico foram
estudadas intensivamente. O relatório Beveridge, de 1942, postulava um Serviço
Nacional de Saúde. O relatório refletia uma retificação bastante atrasada da
injustiça social há tanto tempo suportada pelos britânicos ou um reconhecimento
tardio da crença arraigada de que todas as coisas desagradáveis da vida —
doença, educação, desemprego, pensões, água da torneira, estradas, lixeiros,
trens, museus, policiais, funerais — deviam ser pagas por Outra Pessoa Qualquer.
O fato de que essa Pessoa, no fim, era sempre “Ele”, jamais passou pela mente do
povo.
A profunda e contínua preocupação com a saúde da nação foi usada pelos
trabalhistas para vencer as eleições de 1945, e outro galés chegou com outro
plano de saúde. Os médicas objetaram violentamente.
Nye Bevan (1897-1960) arranjou tudo com Charlie “Saca-rolhas” e Charles
Hill (1904-1989), secretário da Associação Britânica de Medicina, famoso
também como o “Doutor do rádio”, de rica fraseologia (como “pequenos
trabalhadores de casacos negros”, quando queria dizer os “chatos”). Nye Bevan
percebeu que o caminho para a medicina para todos, independente do preço, era
"tapar com ouro as bocas dos médicos”. Dois fósseis de 1948 estão tão vivos e
suculentos hoje quanto whistables recém-abertos.
O número mágico “9/11os” nos contratas dos médicos significa que nove dos 11
meios-dias de cada semana de trabalho (no tempo de Nye Bevan todo mundo
trabalhava nas manhãs de sábado, se dá para acreditar) você trabalhará por um
salário, para o Serviço Nacional de Saúde, mas pode ter uma clínica particular
nos restantes 2/11os que incluem domingo, o fim do dia, o nascer do dia e altas
horas da noite, se tiver forças suficientes e se for suficientemente ambicioso. A
outra mordaça de ouro de Nye era um “prêmio ao mérito”, dado secretamente por
seus colegas médicos e acrescentado ao seu salário e à sua pensão. Qualquer
companhia da cidade que premiasse seus diretores com a mesma discreta
generosidade teria de enfrentar uma turbulenta reunião anual dos acionistas,
seguida pela chegada do esquadrão contra a fraude.
O Serviço Nacional de Saúde foi inaugurado na segunda-feira. 5 de julho de
1948, com a banda dos mineiros tocando de madrugada “O Happy Morn”. Já
funcionava eficientemente há nove anos.
Entre 3 de setembro e 3 de novembro de 1939 o governo britânico previa
600.000 mortos e 1.200.000 feridos em ataques aéreos. O Ministério da Saúde
precisava de 3.000.000 de leitos hospitalares imediatamente. (O número total de
baixas na guerra foi de 60.000 mortos e 235.000 feridos, embora até a diminuição
da blitz, em 1941, tenham morrido mais civis do que militares na Grã-Bretanha.)
Assim, o governo inaugurou o Serviço Médico de Emergência, tendo o Ministro
da Saúde como ditador e pagador. O Serviço Médico de Emergência na realidade
era dono de todos os hospitais britânicos, e acrescentou aos que corriam perigo
de serem bombardeados, enfermarias pré-fabricadas e teatros operatórios que se
estendiam pelos campos verdes, enquanto centros especiais eram criados para
cirurgia do tórax, do cérebro, dos membros e cirurgia plástica, o serviço de
transfusão de sangue foi nacionalizado, o serviço de patologia racionalizado e os
“asilos” vitorianos transformados em movimentados hospitais-escolas. Os
canadenses, depois os ianques ergueram seus hospitais sofisticados, que ficaram
para socorrer seus anfitriões.
A única diferença fundamental entre o Serviço Médico de Emergência e o
Serviço Nacional de Saúde foi a abolição do sistema de Lloyd George de painéis
determinados para os clínicos gerais. Assim como a diferença fundamental entre o
estado de guerra e o do Bem-estar foi a bem-vinda ausência das ambas.
PACIENTES PROBLEMÁTICOS
“O desejo de tomar remédio é talvez o fator principal que diferencia o homem
dos animais’’, observou Sir William Osler. Ninguém havia notado isso antes. O
gênio britânico tem uma capacidade infinita de tomar comprimidos. Lendo os
jornais de 1949 verificamos que o país inteiro estava pedindo dentes de graça,
perucas e pernas artificiais, com estepes. Nye Bevan imaginou que o tratamento
gratuito daria tanta saúde aos eleitores e tão rapidamente que o serviço médico
desapareceria, como o estado na imaginação de Engel sobre o comunismo. Essa
completa falta de espírito mundano indica que Bevan realmente havia alcançado o
topo como funcionário sindicalista do Sul de Gales.
O maior surto de desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde, como a
enfermagem profissional emergindo da Guerra da Criméia, foi inesperado. Os
hospitais se humanizaram. A doença do paciente não era mais considerada
propriedade do médico. O paciente não era mais recebido friamente, despido,
confinado ao leito e às comadres e depois, numa certa manhã, posto numa maca
por dois estranhos e levado a outro estranho que o punha para dormir e, alguns
dias depois, recebia suas roupas e era mandado para a fila do ônibus. Os
pacientes que ousavam fazer perguntas recebiam a resposta benevolente do
médico: “Sua doença tem um nome muito comprido em latim que você não
entenderia."
Agora a comida era preparada como se alguém fosse realmente comer. As
enfermarias perderam o rigor e a disciplina das prisões. “Na frente de cada cama,
confrontando o paciente moribundo, estava uma televisão. A televisão ficava
ligada de manhã à noite”, escreveu Aldous Huxley em 1932, e o Serviço Nacional
de Saúde logo alcançou o Admirável mundo novo.
A maior parte dos planos de saúde das nações reflete sua atitude médica. De
acordo com o plano britânico, o paciente particular paga para não esperar e o
paciente do Serviço Nacional de Saúde espera para não pagar. Os canadenses
regulam os honorários dos médicos e dos hospitais, e a maioria reembolsa os
pacientes. Os americanos tratam do substrato social e deixam que o resto, ou seus
empregadores, comprem seus seguros-saúde. Um canadense custa duas vezes mais
do que um britânico, e um americano quase três vezes mais, para se manter com
saúde. O Serviço Nacional de Saúde oferece um bom valor por menos dinheiro
porque não tem opção.
Em 1909 Lloyd George declarou: “este é um orçamento de guerra, com o fim de
levantar fundos para a guerra contra a pobreza e a doença". Em 1960, Knoch
Powell fez “a desanimadora descoberta que todos os ministros da saúde fazem no
começo ou logo depois do começo do seu mandato, que o único assunto que ele
terá de discutir com os médicos é dinheiro". Saúde melhor — bem, melhores
serviços — significa impostos mais altos, politicamente o caminho para Beachy
Head.
O Serviço Nacional de Saúde, como o carro feito numa tarde de sexta-feira,
precisa de consertos desde o começo. Suas comissões de inquérito trazem os
maiores nomes do pós-guerra do nosso país: Guillebaud, Maud, Porritt, Gillie,
Cranbrook, Bonham-Carter, Salmon, Seebohm, Robinson, Crossman, Castle,
Powell e... bem... Cogwheel. O Serviço Nacional de Saúde foi reformado em
1974 com tanta eficiência que, cinco anos mais tarde, teve de ser reformado outra
vez. Desde então tem sido reformado uma vez ou outra, dependendo do que
aparece nos jornais da manhã. Em 1990. o governo resolveu que devia ser
adequadamente reformado. Deveria se transformar num servido pago para
pacientes particulares, só que ninguém pagou coisa alguma. Os médicos objetaram
violentamente.
Nunca a legislação foi tão necessária. Nunca foi tão pouco desejada", lamentou
o ministro.
Nem o porta-voz médico da senhora Thatcher nem o senhor Major, nem o
senhor Kinnock, mas Lloyd George, em 1911.
TRIUNFO E DESASTRE
As doenças ardentes da juventude foram apagadas, as brasas da idade
confinadas, as facilidades da vida engenhosamente melhoradas, multiplicadas e
espalhadas, os doentes ficam bons e ficam doentes outra vez. Os velhos de hoje
são os mortos de ontem.
O leitor inteligente com certeza compreendeu que o potencial da medicina é
infinito, as exigências da medicina não devem sofrer restrições, mas os recursos
para a medicina são limitados. A não ser que um político destemido consiga um
acordo não-político entre os três. a história da medicina, como a história do
mundo em 1066 e Tudo o Mais, volta ao marco zero.
Um pequeno passo para um
homem, um salto gigantesco
para a humanidade
Louis Pasteur,
inaugurando o Instituto Pasteur, em 1888.