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Obrasescolhidas 07 Viei

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MAY 3 1990

COLECÇÃO
DF. CLÁSSICOS
SA' QA COSTA

LIVRARIA
SÁ DA COSTA
EDITORA
LISBOA
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P.E ANTÓNIO VIEIRA

OBRAS
ESCOLHIDAS
PREFÁCIOS E NOTAS
DE ANTÓNIO SÉRGIO
E HERNÂNI CIDADE
VOLUME vn
OBRAS Y&RIAS (V)
e
P. António Vieira

OBRAS ESCOLHIDAS
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA
Autores portugueses Autores estrangeiros
A venda :

SA DE MIRANDA — Obras completas, 2 volumes


F.MANUEL DE MELO — Cartas Familiares, selecção
JOÃO DE BARROS — Panegíricos
TOMAS A. GONZAGA — Marília de Dirceu e mais poesias
DESCARTES — Discurso do Método, Tratado das Paixões
da Alma
DIOGO DO COUTO — O Soldado Prático
FREI LUÍS DE SOUSA — Anais de D. João III, 2 volumes
HOMERO — Odisseia, 2 volumes
FREI ANTÓNIO DAS CHAGAS — Cartas Espirituais, selecção
M." DE SÉVIGNÉ Cartas Escolhidas —
ANTÓNIO FERREIRA — Poemas Lusitanos, 2 volumes

HEITOR PINTO Imagem da Vida Crista, 4 volumes
FRANCISCO RODRIGUES LOBO — Poesias, selecção
MARQUESA DE ALORNA — Poesias, selecção
MARQUESA DE ALORNA — Inéditos, selecção
FILINTO ELÍSIO —
Poesias, selecção
LA BRUYÊRE —
Os Caracteres
AFONSO DE ALBUQUERQUE — Cartas, selecção
FRANCISCO XAVIER DE OLIVEIRA — Cartas, selecção
GIL VICENTE — Obras Completas, 6 volumes
BOCAGE — Poesias, selecção
AMADOR ARRAIS — Diálogos
HOMERO — Ilíada, J volumes
JOSÉ DA CUNHA BROCHADO — Cartas, selecção
DIOGO DE PAIVA DE ANDRADA — Casamento Perfeito
FRANCISCO RODRIGUES LOBO — Corte na Aldeia
JOÃO DE BARROS — Décadas, selecção, 4 volumes
DIOGO BERNARDES — Obras Completas, J volumes
CANCIONEIRO DA AJUDA — volume I
CAMÕES — Obras Completas, 5 volumes
FREI LUÍS DE SOUSA — Vida de D. Frei Bartolomeu dos
Mártires, 3 volumes
DIOGO DO COUTO — Décadas. 2 volumes
HOMERO — Poemetos e Fragmentos
FONTES MEDIEVAIS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL —
volume /

LUÍS A. VERNEY — Verdadeiro Método de Estudar —


5 volumes
BERNARDIM RIBEIRO — Obras Completas, 2 volumes
P.' ANTÓNIO VIEIRA — Obras Escolhidas — volumes l a Vil

A seguir :

P.' ANTÓNIO VIEIRA — Obras Escolhidas — volume VIU


Cada volume 25S00 — Tiragem especial de 100 ou 100
exemplares, numerados e rubricados. 00(00
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

0
P. António Vieira

OBRAS ESCOLHIDAS
com prefácios e notas de

António Sérgio
e Hernâni Cidade

VOLUME VII

OBRAS VÁRIAS (V)


VÁRIA

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MAY 3 1990

LIVRARIA SÁ DA C OSTA - EDITORA


Rua Garrett, 100-102 LISBOA
Desta obra tiraram-se 200 exemplares
em papel Leorne, da Companhia do Pa-
pel do Prado, numerados e rubricados.

Todos os exemplares são autenticados


com a rubrica dos editores

Propriedade da
LIVRARIA SA DA COSTA Editora

1 9 5 3
Composto e Impresso
GRÁFICA SANTELMO
Rua 3. Bernardo. B4
LISBOA
PREFACIO

Os escritos de Vieira insertos neste volume


são de variedade justificativa do 'título com
que o apresentamos aos leitores. Tem esta
variedade o mérito de nos pôr em convivên-
cia com a multiplicidade de facetas de uma
das almas mais ricas que entre nós têm ful-
gido. É o homem de olhos cravados no fu-
turo, que já vimos ter procurado decifrar
no significado do texto bíblico e das Trovas
de Bandarra e agora tenta ver prognosticado
no cometa que apareceu no Céu da Baía. É
o teólogo de subtil dialéctica e larga erudi-
ção, ao mesmo tempo capaz de tratar pro-
blemas de especulação teológica, tal como a
distinção que se deve admitir entre as três
divinas Pessoas, e de fundamentar sobre
abundante informação um juízo acerca de de-
voção que desassombradamente desaprova
— a da Via sacra, rememorando as passos
que se atribuíam à Virgem, depois da tra-
gédia do Calvário. É o patriota e o missio-
nário que, mesmo sobre livro de escritor da

VII
ordem da sua
rival —
a dominicana es- —
quece o que motiva desunião, para dar re-
levo ao que afirma e suscita convergência.
Ê o pregador barroco, enamorado do jogo
das ideias subtis e das formas brilhantes, não
obstante raro deixar de aproveitar o jogo
para comunicar alguma coisa de mais subs-
tancial —um pouco da riqueza da sua alma,
de tão viva e sentida experiência humana.
Ê o poeta capaz de voos que não surpreen-
dem apenas pela elegância da forma perfeita,
senão também pelo estremecimento verdadei-
ramente lírico que os suscita —
e transmi-
tem. E também não falta, aqui e além, a
aresta fina da sua ironia, mesmo quando se
dirige aos mais altos poderes. No caso pre-
sente — Memorial feito ao Príncipe Regente
— a ironia afia seu gume na amargura de
áulico desgraciado
Ei-lo quase todo — meio astrólogo, teólo-
go, missionário, orador, poeta, patriota, áu-
lico, e em todos estes aspectos, com o encan-
to aliciante da expressão, o interesse huma-
no, ia dizer, o espectáculo emocionante da
sua vida espiritual e anedótica, a lição mais
de uma vez paradigmática da sua grande al-
ma vigorosa, na inteligência e na vontade.
E este católico que traja a roupeta inaciana

vm
e se mantém cuidadosamente dentro das bali-
zas do dogma, depois de o termos visto na
destemida defesa dos Cristãos-novos, aqui o
topamos discorrendo livremente sobre uma
devoção que a sua inteligência culta repelia.
Este áulico habituado às fórmulas da vene-
ração inspiradora de hiperbólicas lisonjas, ei-
-lo erecto na sua dignidade, que um humor
levemente mordaz sabia defender.

*
, * *

Mas atentemos mais demoradamente em


alguns aspectos que melhor merecem a nossa
curiosidade.
Vieira reflecte no primeiro escrito que dele
aqui inserimos — Voz de Deus ao Mundo, a
Portugal e à Baía — a crença quase comum
no seu sécido, de que era no céu que mais de
uma vez Deus inscrevia os avisos que enten-
dia comunicar aos homens. Digo quase
comum, porque há quem o não aceite —e o
próprio Vieira cita e tenta refutar as objecções
de Escalígero contra a confiança nos juízos
astrológicos (Vid. pág.
2J-30) . Um
cometa
como o aparecido em
1ÓQ5 sobre o céu da
Baía, monstro de %ão prodigiosa grandeza
como era, entendia o jesuíta que com algum

IX
fim e não por acaso havia de ter sido man-
dado e mostrado. O fim é que «os mortais,
entrando dentro de si mesmos e levantando
o pensamento ac Autor e Governador do Uni-
verso, rever enceiem seu poder e temam seus
juízos. » Não criara Deus no princípio do
Mundo esses mensageiros dos seus avisos,
como lhe ensina S. João Damasceno, sem que
lho desminta a astronomia do tempo; pro-
du-los sempre que seja necessário, depois
que cessou a voz dos Profetas, manifestar por
eles, por essa «.linguagem universal de maior
majestade e horror», os avisos decretórios
que a todos interessa conhecer.
Mas se os cometas são apenas enviados
para grandes avisos, aos planetas — ou estre-
las, como então se diz — não nega Vieira in-
fluência e poder sobre os acontecimentos do
Mundo — e nisto ainda ele está com muitos
dos homens mais cultos do seu tempo, que
com tal influência conciliam a doutrina da li-
berdade humana, como os católicos nossos
contemporâneos com ela conciliam todas as
forças que se exercem sobre a vontade — ata-
vismos de raça ou família, tanto como dispo-
sições de temperamento ou condições de am-
biente moral ou físico. Neste mesmo escrito
(p. 18) se refere ele à conjunção de Saturno

x
e Júpiter, ocorrida em 1683, da qual «todos
os matemáticos antigos esperam grande mu-
dança de domínios.» Mas se por mais de uma
vez P. Vieira recorre a provas astrológicas em
e

suas congeminações sobre o futuro, é preciso


dizer em abono da sua inteligência que uma
das autoridades sobre que baseia, por exem-
plo, a sua utopia do Quinto Império é, além da
de Manuel Bo carro, a do famosíssimo Képler
(Képlero, como ele lhe chama) que lhe anun-
,

cia, por sinais astrológicos, a destruição do im-


pério do Turco. Hinc victoria religionis chris-
tianae supra turcicam astrologice concluditur
— transcreve do célebre astrónomo, cuja
ele
ciência é bem sabido não estar ainda liberta
de vestígios astrológicos (1). E não aceita
igualmente a intervenção dos astros no nosso
destino o seu contemporâneo Dr. António de
Sousa de Macedo, uma das inteligências mais
lúcidas e cultas do tempo? «A nós movem-nos
os elementos; os elementos são regidos pelos
astros; os astros obedecem a Deus; a última
causa é Deus» — diz o célebre político e ju-

(1) Vid. Palavra de Pregador empenhada e defendida


em um discurso apologético oferecido secretamente à
Rainha, i.° vol. da ed. dos seus Sermões, pela Ag. Geral
do Ultramar ( 2 & ed. p. 2S6).
.

XI
risconsulto em sua Lusitânia liberata, onde
aliás não faltam citações de profecias astroló-
gicas de matemáticos, entre as quais as do
mesmo Dr. Manuel Bocarro Francês, em que
Vieira se apoia.
Em face de tudo isto, já podemos ver que
ê apenas aparente a repulsa a que ele parece
condenar a chamada Astrologia Judiciária, na
pág. i deste volume, chamando-lhe inútil, in-
trutuosa e vã. Assim a considera certamente
em suas abusões, não no princípio sobre que se
fundamenta: os cometas mensageiros de avi-
sos divinos; os planetas e estrelas elementos
que influem sobre os destinos dos homens,
embora não lhes anulando a liberdade essen-
cial, nem actuando sem permissão ou determi-
nação da Providência divina.
O que Vieira, como os matemáticos antigos
a quem cita, vê anunciado pela Voz de Deus
ao Mundo, são alterações nas altas esferas que
o comandam, quedas e ascensões de imperan-
tes, pois os golpes dos cometas são sobretudo
fulminados às cabeças «...e veja [o Mundo]
se está aparelhado e disposto em toda a parte
para grandes mudanças e novidades, assim
pela pouca ou nenhuma justiça das coroas que
o governam, como pelos poucos fiadores com
que se acham as vidas dos mesmos príncipes:

XII
uns sem nenhuma sucessão, outros com um só
sucessor e outros sem esperança de o ter, bas-
tando que falte uma destas colunas, para que
se mude o sistema do mundo político.»
(Pág. i8).
f
Se a política internacional entra assim tão
vivamente nas preocupações de Vieira, é so-
bretudo porque ela anima de realidades con-
cretas a grande perspectiva da velha utopia
que o levara aos cárceres da Inquisição e de
que não se desprendia ainda, trinta anos pas-
sados sobre a sua amarga decepção (Vià. vol.
an%erior) Ao interpretar a Voz de Deus a Por-
.

tugal, de novo afirma a sua fé nos prognósticos


que anunciam que «de Lisboa há-de ir a ruína
do Turco», «de um reino pequeno, cheio de
perturbação, hão-de sair aqueles que Deus tem
guardado para o fim desta empresa». A auda-
ciosa quimera é agora mais vagamente expres-
sa e sobretudo desacompanhada das circuns-
tâncias que a tomaram escandalosa ; mas se a
cautela lhe podou a ramagem e floração ma-
gníficas, deixou intactos a raiz e o tronco, ao
mesmo nos escritos dirigidos ao público. Ape-
nas põe Vieira agora o acento no anúncio dos
longos sofrimentos que hão-de preceder a gló-
ria esplêndida do Quinto Império. Esse anún-
cio fora dado em 1680 por «cometa da mais

XIII
agigantada estatura de quantos tinham assom-
brado o Mundo-»; repetira-se 15 anos depois,
no cometa que lhe provoca o presente escrito.
A todos os seus contemporâneos cumpria pre-
parar-se para o castigo com que Deus havia
de purgar a Portugal, neste tão enfermo corpo
de viciosos humores com que está corrupto.»
(Pág. 33).
O mesmo dever corre à Baía. «Deus que
com a espada na mão ( o cometa tinha a forma
de espada) lhe está bradando ao coração e aos
ouvidos», já em 1618 lhe tinha enviado aná-
logo aviso, que se verificou na longa miséria
da guerra e da ocupação.
Vieira, mesmo falando do Céu, tem os olhos
na Terra — escreveu Castilho, no paralelo,
todo feito de contrastes, entre ele e Bernardes.
Apenas lembramos a frase do aliás artificiosís-
simo paralelo, para chamar a atenção para
quanto, no trecho respeitante à Baía, alude a
realidades históricas que lhe são contempo-
râneas. As muralhas de que a cidade se havia
cingido, as minas que com tanto afã tinha pro-
curado, o salitre que se ia buscar ao Sertão
— tudo isto põe de manifesto como, nos
escritos de Vieira, mesmo nos que mais pare-
cem sugeridos por interesses transcendentes
estão sempre à vista os aspectos concretos do

XIV
mundo a que ele tem por tantos laços presos o
coração e o cérebro.

Outro escrito que merece atenção é o inti-

tulado Lágrimas de Heraclito. Não é fácil apli-


car à defesa duma causa maior agilidade de
inteligência, nem mais abundantes recursos de
cultura, nem mais comunicativo poder de ex-
pressão.
Atente-se no modo como Vieira entra na
contenda, na atitude de mais graciosa cortesia
perante o contendor. Depois, por que hábil
manobra dialéctica ele faz do riso de Demó-
crito, que o seu confrade preferira defender,
uma prova da verdade da sua tese que o —
Mundo era mais digno de lágrimas do que de
riso: «Demócrito não ria; chorava por outro
modo.)) E adiante, estabelecida a progressão
de intensidade da dor —
a que desabafa em
lágrimas, a que as congela e seca, a que se
exprime em riso —
, acrescenta, com mais ori-

ginalidade: «Porque para chorar não são pre-


cisos os olhos, e não seria próvida a Natu-
reza se, havendo sido a origem de tantos pe-
sares, lhes desse um só desafogo. Heraclito
chorava com os olhos; Demócrito chorava
com a boca; o pranto dos olhos é mais fino;
o da boca é mais mordaz.»

xv
Mas cumpria-lhe defender tnais directamen-
tea atitude de Heraclito, e então, feita, para
tal,a necessária transição, ei-lo que nisso se
empenha, confiado, pelo merecimento da cau-
sa, «que será tão justa a sentença, que Demó-
crito saia chorando e Heraclito rindo.»
Não é preciso dizer que Vieira, tomando a
defesa de Heraclito, regressa a si próprio, à
sua larga experiência da vida, que de modo
nenhum lhe fora motivo de riso, como o im-
plicava a sua mesma situação na terra onde
falava, espécie de exílio que o abrigava con-
tra a perseguição de inimigos poderosos e a
indiferença da corte para cuja formação tanto
contribuíra. Eis o que ele nos diz, em elegante
movimento oratório
«Que é este mundo, senão um mapa univer-
sal de misérias, de trabalhos, de perigos, de
desgraças, de mortes? E à vista de um tea-
tro imenso, tão trágico, tão funesto, tão la-
mentável, aonde cada reino, cada cidade e
cada casa continuamente mudam a cena,
aonde cada sol que nasce é um cometa, cada
dia que passa um estrago, cada hora e cada
instante mil infortúnios que homem haverá
,

(se acaso é homem) que não chore...?»


Informa-o Séneca de que «Demócrito ria,
porque todas as cousas humanas lhe pare-

XVI
ciam ignorâncias ; Heraclito chorava, porque
todas lhe pareciam misérias». Conclui, com
a sua habitual agilidade mental: «Logo,
maior razão tinha Heraclito de chorar que De-
mócrito de rir; porque neste mundo há mui-
tas misérias que não são ignorâncias e não há
ignorância que não seja miséria [...] todas as
ignorâncias que se cometem no mundo, as que
se fazem, as que se dizem, as que se cuidam,
todas são misérias, porque todas se cometem
por erro do entendimento ou por desordem da
vontade, e este erro e esta miséria não só é
miséria, mas a maior miséria, porque direita-
mente se opõe à luz e ao império da razão,
na qual consiste toda a nobreza e felicidade
do homem.»
E é sempre com esta força persuasiva que
o discurso prossegue até o fim, não sem que
lhe ocorra ainda o célebre verso virgiliano
Sunt lacrimae rerum. que assim comenta
. .

*Não residem as lágrimas só nos olhos que


vêem os objectos, mas nos mesmos objectos
que são vistos. Ali está a fonte, aqui está o
rio...»

Há vivo, elegante jogo neste duelo do in-


signe esgrimista, admirável presteza e vigor
na no domínio do verbo, na técni-
dialéctica,
ca da persuasão, na graça a que dificilmente

XVII
se resiste, e ninguém mais esmeradamente
cultiva do que o autor destes conceitos,
que no mesmo discurso ocorrem, de puro gos-
to barroco, com suas simetrias e correspondên-
cias, tudo requebros formais que implicam
aquilo mesmo que fica explicito — o cuidado
que ele punha na captação do seu público:
nA primeira introdução e disposição de
quem quer persuadir, ensinada e usada de to-
dos os oradores, é conciliar a benevolência do
teatro [...] O agricultor, para colher os fru-
tos, rega as plantas; o impressor, para im-
primir as letras, molha o papel. E assim o
deve fazer com lágrimas quem quer impri-
mir os seus afectos e colher o frirto das suas
persuasões.»

*
*

As composições poéticas latinas que inseri-


mos neste volume são todas as publicadas por
Seabra &
Antunes nas Obras Inéditas, em
0
185J, as insertas no 3. vol. da edição das Car-
tas de 174.6, e ainda as que encontrámos na
Biblioteca de Évora.
A tradução foi feita por quem subscreve es-
tas linhas,mas nos passos menos fáceis pas-
sou sob olhos peritissimos. Ao Sr. Dr. J. Ma-

XVII í
nuppella, por sua mais paciente e longa aten-
ção, aqui afirmamos o nosso mais vivo re-
conhecimento.
Cremos que, na medida em que uma tra-
dução pode revelar o interesse da substância
ou fazer adivinhar a beleza da forma do ori-
ginal, a que publicamos dos poemas de Vieira
poderá informar desta quase desconhecida fa-
ceta do seu multiforme espirito.
Quase desconhecida, mas adivinhável. Há
trechos em seus sermões que são de pura es-
sência poética, e em maior abundância outros
que põem a toda a evidência o artista não ape-
nas apto para a subtileza intelectual, mas de
permeabilíssima sensibilidade ante os valores
estéticos das coisas como das expressões que
melhor as revelem ou transfigurem em beleza.
Eram, aliás, mais gerais do que se pensa a
aptidão e o gosto pela poesia entre os prosa-
dores seiscentistas. E já não falamos de
D. Francisco Manuel de Melo ou Francisco
Rodrigues Lobo, de Jacinto Freire de Andra-
de ou Manuel de Faria e Sousa, menos obri-
gados a continência e reserva perante a lição,
em geral pagã, dos poetas do Lácio. Referi-
mo-nos a religiosos como Fr. Bernardo de
Brito e até aos de compleição bem mística,
como esse melífluo Bernardes, com justa fa-

XIX
ma de infinitamente mais atento às coisas do
Céu do que às da Terra. Este último não sa-
bemos se compôs versos latinos; sabemos que
os traduziu em preciosos versos portugueses,
de lavra que denuncia esmeros artísticos de
quem no original apurava o gosto, de quem,
nas belas formas que ele cria directa ou indi-
rectamente criadas por Deus —
formas da
Vida ou da Arte —
complacentíssimamente
regalava de volúpia ouvidos e olhos.
De Vieira, além dos há versos em
latinos,
português e espanhol. Em italiano
não se sabe
se os terá composto, apenas se não poderá du-
vidar de que seria capaz de os compor, pois
dominava suficientemente a língua mais que
todas musical, para poder nela pregar nos púl-
pitos mais afamados de Roma.
Em latim não se contentou o seu virtuosis-
mo de escrever prosa perfeita, e desde os 18
anos, em que lhe foram confiadas as Cartas
ânuas que a sua província mandava ao Geral
da Companhia. Compôs os versos que vão
adiante e cuja beleza, originalidade e graça
não julgamos impossível adivinhar através da
tradução. Graça e finura nos epigramas que
permutou com P.' Mestre Luís de Sá, que em
férias de lente de prima de Teologia neles se
deleitava em sua quinta da Alegria, nus mar-

xx
gens do Mondego. Dali mandava em presen-
tes vários —
papéis cheios de versos latinos
ou cabazes cheios de peixe do rio o sinal—
da sua simpatia aos Jesuítas instalados na re-
sidência de Vila Franca, um pouco a jusante
da sua; e entre eles, com mais rendidas home-
nagens, ao maior de todos
e

P. Vieira a —
suavizar-lhe um exílio da Corte, já sob vigi-
lância da Inquisição, que em breve o faria
recolher aos seus cárceres.
Poesia de fresca inspiração romântica e de
fina forma parnasiana, como aquela em que
canta o mês de Março. Não a há no século tão
expressiva do sentimento da natureza, quase
extinto no tempo em que os escritores se com-
praziam sobretudo no mundo das formas da
imaginação que sobrepunham ao mundo das
,

formas da vida. É atentar em trechos como


aquele em que a vária cor das flores é dada
por formas transpostas como estas: a alvura
distende os lírios, o jacinto espalha cerúleos
gemidos... Na primeira expressão, é nova a
fina captação do fenómeno quinestésico , da
verdade psico-fisiológica de uma sensação de
cor modificando uma experiência espacial; na
segunda, é nova, imprevista a síntese da im-
pressão de tristeza e impressão de cor. Repa-

XXI
re-se ainda no trecho, de tão fresco sabor vir-
giliano
«Saltam (os cabritos) álacres, e com festi-
vas cabriolas erguem as altas cabeças para o
combate (o ardor lhes basta a suprir os chi-
fres) ; sustentam-se sobre as extremidades das
patas, atiradas para trás, e é numa tensão de
todo o corpo que combatem. A testa bate na
testa do adversário —
e ressoa a pancada
inerme. Assistem em roda os pais barbudos,
e com suas expressões atentas açulam as iras.
Mas já o pastor obriga os contendores, fati-
gados, a abandonar o campo e com a voz,
como medianeira, faz-se a paz, e os combates
terminam em grato jogo.'»
Do grau de perfeição técnica e linguística
destas composições asseguram-nos latinistas
de competência muito superior à nossa. É a
suficiente para não hesitarmos em publicá-
-las, convictos de que, longe de marear a
glória do escritor, têm antes o mérito de mais
lhe matizar a polícroma irradiação.

Não será preciso dizer que também neste


volume foi mister corrigir muito do texto im-
presso por Seabra & Antunes, e o português

XXII
assim como o latino. Trabalho difícil, quanto
a este, pois raríssimas vezes a citação em
Vieira é acompanhada de qualquer indicação
de proveniência, sendo mais de uma vez ne-
cessário descobrir o próprio autor, sob de-
signações genéricas como — o poeta...
Não se tratando, embora, de edição crítica,
fez-se toda a diligência possível para que fos-
sem autênticamente e integralmente de Vieira,
em substância e forma, as páginas que se vão
ler.

Oxalá que os mil cuidados postos neste tra-


balho de confronto e correcção sejam um dia
autorizadamente considerados como insufi-
cientes! Isso implicaria a minuciosa atenção
que lhes descobrisse, com o demérito da insu-
ficiência, o méritodo esforço positivo, e seria
deste uma recompensa que em geral se não
pode esperar da crítica, por demais dispersa
e apressada, para ser atenta.

Lisboa, XI-Q52.

Hernâni Cidade

xxiii
VOZ DE DEUS AO MUNDO, A PORTUGAL
E À BAIA
Juízo do cometa que nela foi visto em
27 de Outubro de 1695 e continua até
hoje, 9 de Novembro do mesmo ano

VOZ DE DEUS
Não se este juízo astronómico, porque não
chama
é nosso intentoexaminar ou definir a natureza, a
matéria, o nascimento, o lugar, as instâncias, os
aspectos, os movimentos, nem algumas das outras
5 circunstâncias em que curiosamente se empregam as
observações da astronomia, e muito menos a dura-
ção e ocaso deste prodigioso meteoro, pois ainda
estão pendentes. Também
se não chama astrológico
este juízo, porque, reputando nós, com os mais sá-
io bios e prudentes professores da mesma arte, quão
inútil, infrutuosa e vã seja aquela parte da astro-
logia, que com o nome de judiciária costuma entre-
ter os discursos e enganar as esperanças ou fantasias
dos homens, não só seria crime contra a Providência
15 do Altíssimo, mas desprezo de seus avisos tão mani-
festos, diverti-los a considerações ociosas, em que
se confundam e percam os efeitos próprios e saudá-
veis que deve e pode produzir em nós uma causa
tão notável e tão notória.

i
Voi. vii - n. j
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Porque, se o poeta gentio, falando dos trovões que


cada dia ouvimos, teve justa razão para dizer:

...humanas motura tonitrua mentes.

que ânimo haverá tão duro que se não mova com


5 a vista de um portento tão extraordinário? E que
entendimento tão rude e contumaz, que se não per-
suada e conheça claramente que um monstro de tão
prodigiosa grandeza não foi criado sem algum fim,
nem mandado e mostrado acaso, mas para que os
io mortais, entrando dentro de si mesmos e levantando
o pensamento ao Autor e Governador do Universo,
reverertceiem seu poder e temam seus juízos?
Deste motivo e não da curiosidade, deve nascer o
racional e justo desejo que todos têm de saber com
15 quem fala e o que diz esta portentosa figura; pois a
vemos sair ao teatro do Mundo, quando ele em toda
a parte se acha tão disposto e tão armado para
alguma grande tragédia. E esta é, cristão leitor, a
razão por que ao juízo do cometa presente ou ao
20 mesmo cometa interpretado, dei o segundo nome de
Voz de Deus. Se acaso o não entendes assim e és do
número daqueles que chamam aos cometas causas
naturais e não reconhecem neles outro mistério ou
documento mais alto, eu te afirmo que essa mesma
25 incredulidade e dureza é já um efeito fatal do mesmo
cometa e princípio dos castigos que por ele e com
ele pode ser nos venham anunciados.

3. Trad.: ...05 trovões que hão-de abalar as mentes


humanas. Ovídio, Metamorphoeoh, I, 35.

2
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.« ANTÓNIO VIEIRA

Nos dias que precederem ao juízo final, diz a


Suma Verdade que haverá alguns homens tão incré-
dulos que zombem dos sinais que então serão vistos
no Céu, e não fazendo caso deles, continuem a viver
5 no mesmo descuido do fim e passatempos do Mundo,
como de antes viviam. Mas os verdadeiros efeitos
daqueles mesmos sinais castigarão sem remédio esta
sua obtinação, por não quererem dar crédito aos
avisos do Céu. Assim o podem temer hoje os que
io atribuem a puros efeitos da natureza os que verda-
deiramente são vozes de Deus.
Quando se ouviu em Jerusalém a voz do Céu com
que o Eterno Padre respondeu a uma oração pública
que Cristo, Senhor nosso, lhe fizera em presença
15 de muito povo, refere o evangelista São João que,
sendo aquela voz clara e inteligivelmente articulada,
o vulgo que a ouvira dizia que fora um trovão:
Turba ergo, quce stabat et audierat, dicebat toni-
trum esse factum. Assim é na interpretação dos
20 cometas: não só o vulgo, mas os que se prezam de o
não ser, chamam-lhe efeitos das causas segundas,
e verdadeiramente são vozes da Primeira Causa.
Sobre a suposição desta verdade e de serem os
cometas vozes de Deus, se funda todo o discurso
25 deste papel; a sua suposição, para que ninguém a
duvide, é tão certa e recebida, que nela concordam
sem discrepância os Santos Padres, os teólogos, os
filósofos, os históricos, os matemáticos, e com eles
o consenso universal de todo o género humano, fun-

18-19. Trad.: A turba que estava presente e tinha


ouvido, dizia ter jeito um trovão. Evangelho de S. João,
XII, 29.

3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dado na longa experiência e contínua observação


dos cometas, depois que começaram a aparecer no
Mundo; porque em nenhuma história sagrada ou
profana se faz memória ou menção de que fosse
5 visto cometa, senão no primeiro ano da olimpíada
dezassete, que corresponde ao ano 480 antes do
nascimento de Cristo. E daqui se pode formar um
novo e não vulgar argumento, de que se prova que
os cometas, como dizia, são língua ou voz de Deus,
10 o qual desde aquele tempo começou a falar e avisar
aos homens por meio destes sinais do Céu, costu-
mando de antes falar-lhes por outros modos, como
diz S. Paulo, muitos e diversos: midtifariam, mul-
tisque modis olim Deus loquem patribus.
15 Séneca, no Livro VII das Questões Naturais,
atribui estes esquecimentos ou silêncio dos cometas
a não se ter ainda observado com certeza o nasci-
mento, curso e ocaso deles. Esta razão, porém, não
subsiste nem é verosímil, porque, se em dois mil anos
20 depois se observaram os cometas com tanta pon-
tualidade, muito mais e melhor se podiam observar
em três mil e seiscentos anos, que tantos tinham já
corrido desde o princípio do Mundo; principalmente
sendo as vidas naquele tempo tanto mais largas,
25 e os Caldeus (entre os quais nasceu a astrologia)
tão prezados e tão amantes desta ciência, que, como

13-14. Trad.: Tendo Deus falado antigamente muitas


vezes e de muitos modos a nossos pais... S. Paulo, Epís-
tola aos Hebreus, I, 1.
15. É no Livro VII, cap. III, que Séneca se refere ao
estudo dos cometas como relativamente recente. Datava
dos Gregos, nada, por exemplo, deles dizendo os Egípcios.
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

escreve Beroso, lendo por tradição que havia de


haver dois dilúvios, um de água, outro de fogo, para
que ela se não afogasse ou queimasse em algum
deles e se perpetuasse nos vindouros, a deixaram
5 entalhada em
duas grandes colunas de matéria
diferente, uma
de barro, que se conservasse contra
o fogo, e outra de pedra contra a água. Esta ciência
se entende que a receberam os Caldeus de Adão,
que a tinha infusa por Deus com as demais; e seria
io imperfeita nesta parte, se, havendo cometas, lhe
faltasse o conhecimento deles.
E quando nada disto fosse, ao menos de Salomão,
o mais sábio de todos os homens, e da sua escola
que tinha em Jerusalém, não podia deixar de manar
15 e propagar-se esta notícia, e que entre as graves
questões sobre que era consultado de todo o Mundo,
a dos cometas e sua significação não fosse uma
delas.
Digo, pois, que a razão mais verosímil de falta-
20 rem as notícias dos cometas no discurso de tantos
séculos, não foi por negligência ou desatenção dos
históricos, senão porque verdadeiramente em todas
aquelas idades não houve cometas, reservando Deus
este modo de linguagem para falar por ela ao Mundo
25 nos tempos posteriores destinados de sua Provi-
dência.
No princípio, falava Deus aos homens por si
mesmo, como a Adão, Caim, Noé, Abraão, Moisés

1.Beroso escreveu em grego a História da Caldeia e


Assíria, de que apenas se conservavam fragmentos que
Escalígero recolheu, no século XVI, das obras de Séneca,
Josefo, Eusébio, Vitrúvio e outros. Viveu no século
III A. C.

5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

c outros patriarcas. Depois que se introduziram no


Mundo os reis, que foi mil e oitocentos anos depois
da criação, falava Deus aos mesmos reis por visões
e figuras,ou em sonhos ou acordados, como a Faraó,
5 Abimelech, Nabucodonosor e Baltasar. Mais adiante,
falava pelos profetas, que duraram alguns séculos;
e por meio de seus oráculos mandava anunciar, ou
de palavra aos reis e reino de Israel, ou por escrito
aos de Tiro, Babilónia, Egipto e Assíria e outros, as
io calamidades impendentes com que os havia de cas-
tigar, e de que estão cheios os livros dos mesmos
profetas.
Finalmente, depois que os profetas cessaram,
começou Deus a falar pelos cometas, que é a lin-
T5 guagem universal de maior majestade e horror de
que usa extraordinàriamente a seus tempos e em
casos graves, como se não pode duvidar seja o
presente.
Confirma-se esta conjectura, não levemente, com
20 a mesma
cronologia dos tempos, porque, depois que
acabaram os profetas, então começaram os cometas.
Os cometas começaram, como temos dito, no ano de
480 antes do nascimento de Cristo e os profetas
tinham acabado quarenta anos somente antes; por-
25 que Malaquias, que foi o último dos profetas, profe-
tizou no reinado de Dario Histaspes, quinhentos e
vinte anos antes do dito nascimento. De sorte que,
tendo Deus falado primeiro por si mesmo, depois por
visões e mais adiante pelos profetas, ultimamente

26. Dario, Histaspes de sobrenome, por seu pai, nas-


ceu, na verdade, entre 558-550 A. C.

6
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.* ANTÓNIO VIEIRA

falou pelos cometas, que também são visões e pro-


fetas mudos do que Deus nos quer dizer.
Nem favorece pouco este pensamento a sentença
expressa de São João Damasceno, comua, como
5 parece, na sua idade, o qual, no livro segundo De
Fide Orthodoxa, Capítulo I, diz assim: Aggignuntur
frequenter cometes signa queedam, quce quidem non
sunt ex Us, quce ab initio rerum jacta sunt, sed
jussu divino certis temporibus conflantur, ac rursus
10 dissolvuntur Quer dizer que os cometas não foram
.

criados no princípio do Mundo, como foi opinião de


muitos, mas que o mesmo Deus os produz de novo
e os mostra ao Mundo como sinais decretórios do
que abaixo diremos, e depois os torna a desfazer
15 como e quando é servido.
Esta sentença, diz Tannero que é digníssima de
todo o filósofo cristão, e como tal a seguem Oviedo
e Arriaga, todos três insignes filósofos deste século;
matemáticos de grande
e antes e depois deles muitos
20 nome, os quais coerentemente acrescentam que os
cometas nos seus cursos são governados por anjos;
com que fica retirada a dificuldade, até agora inven-
cível, do movimento irregular dos cometas e desfeita
juntamente, na escola de Aristóteles, a opinião da
25 matéria e modo com que diz são formados; não

6. Lib. II. De Fide Orthodoxa, cap. 1.


16. Tannero (Matias)historiador afamado da
era
Companhia de Jesus, ordem a que pertencia. È, na ver-
dade, citado por Oviedo e Arriaga, também jesuítas, que
pensam como ele a respeito dos cometas. O
primeiro fala
deles no seu Cursus Philosophicus, tomo I, Controvérsia
Única — De Ceelo, III, iç; o segundo na sua obra do
mesmo título, Disputatio Única —
De Ccelorum natura,
Subsectio II, 22-23. 1

7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

sendo fácli de crer nem de entender que os vapores


da terra e exalações do mar, subindo de tão diversos
lugares de um e outro elemento, sem causa superior
que os disponha e ordene, eles naturalmente e por si
5 mesmos se ajuntem e se ajustem entre si, e se con-
densem e acendam em tal lugar e em tal composição
e em tal figura, e que esta a conservem ou variem
com tal uniformidade, como se vê nos cometas.
E como Deus, e não a natureza, é o supremo Artí-
10 fice destas grandíssimas estátuas ou gigantes de
fogo, e lhes dá a matéria e forma como e quando é
servido, não é muito que lhes destinasse o nasci-
mento para certa idade do Mundo, em que os expu-
sesse a nossos olhos, e que esta seja a razão de faltar
15 em tantos séculos a memória e notícia dos cometas.
Mas porque o nosso intento não é disputar ques-
tões, posto que esta não seja tratada, o certo e
indubitável é que, de qualquer sorte que os come-
tas se formem e ou os houvesse ou não desde o
20 princípio do Mundo, Deus como Autor da natureza
e supremo Senhor e Governador do Universo, usa
deles a seu beneplácito, e que por meio destes sinais
nos fala e nos avisa.
Assim como para fé e testemunho de não haver
25 outro dilúvio, tomou Deus e nos deu por sinal o
arco celeste (ou houvesse de antes o dito arco, ou
começasse desde então, como quer a glosa e outros
autores) da mesma maneira, ou haja havido come-
;

tas ou não até aquele tempo, estes são hoje os


50 sinais e caracteres grandes do Céu, com que Deus
nos significa e notifica seus decretos. De onde tam-
bém se segue que o conceito comum que o Mundo
tem formado das significações destes sinais do Céu,
é o verdadeiro significado deles; porque de outra

5
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

maneira seria ociosa e inútil a ostentação dos mes-


mos cometas.
Nem se pode presumir da sabedoria e providência
divina, queira falar e admoestar aos homens por
15 linguagem que eles não entendam. Assim falou aos
Magos por meio da estrela a que Santo Agostinho
chama língua ccelorum —
língua do Céu; e assim
falava aos filhos de Israel, como diz David, pela
coluna da nuvem —
In columna nubis loquebatur
10 ad eos; não porque a estrela ou coluna falasse com
vozes dearticuladas, mas porque eram sinais de
Deus, cujo verdadeiro significado entendiam os
homens. Neste mesmo sentido diz o profeta que os
prodígios do Egipto foram palavras dos sinais de
15 Deus: Posuit in eis verba signorum suorum; e por-
que os Egípcios e o seu rei Faraó, endurecidos, não
quiseram entender as palavras daqueles prodigiosos
sinais, por isso pereceram todos —
o rei e o reino.
Fique logo assentado como suposição certa e infa-
20 lível, que o presente cometa é uma voz de Deus, do
género daquelas que David dividiu em suas espécies:
Vox Domini super aquas: Deus majestatis intonuit...
Vox Domini in virtute: Vox Domini in magnificen-
tia; Vox Domini confringentis cedros... Vox Domini

25 inter cedentis flammam ignis; Vox Domini concutien-


tis desertum, etc.

15. Trad.: Pôs neles as palavras dos seus sinais.


Salmo C IV, 27.
22-26. Trad.: Voz do Senhor sobre as águas, o Deus da
majestade trovejou [...]. Voz do Senhor em poder: Voz do
Senhor em magnificência; Voz do Senhor que quebra os
cedros [...] Voz do Senhor que divide a chama do fogo;
Voz do Senhor que abala o deserto... Salmos XXVIII, 3-8.

9
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

As vozes formadas no monte Sinai, ardente quando


Deus estava e falava nele, diz o texto que as via
todo o povo: Populus autem videbat vocês; e não
diz que as ouvia, se não que as via; porque estas
5 vozes de Deus ouvem-se com os olhos; e pois os
olhos de todo o Mundo estão vendo este grande
sinal e portento do Céu, ouça primeiro o Mundo o
que lhe dizem as suas vozes, depois as ouvirá Por-
tugal e ultimamente a Baía.

10 VOZ DE DEUS AO MUNDO

O Mundo ou se pode considerar como mundo


natural, ou como mundo político, e com um e outro
fala este cometa, ou voz de Deus. O que diz ou o
que significa ao mundo natural, são intemperanças
15 do ar, ventos, tempestades, naufrágios, secas, este-
rilidades, fomes, terramotos, pestes e todas as outras
calamidades mais que ordinárias, a que está exposta
a nossa mortalidade.
Este é o sentimento comum de todos os filósofos
20 e astrólogos, com Ptolomeu e Aristóteles fundados
na experiência, a qual em tantos anos depois deles
O modo destes efeitos
está muito mais aprovada.
com uma semelhança acomodada
explica Képlero
segundo a opinião comum; porque, assim como os
25 humores nocivos do corpo humano concorrem e se
ajuntam em um lugar onde geram algum apostema,
assim as exalações sublimares, viscosas, secas, cras-
sas e pingues, se ajuntam na parte onde se acende

3. Trad.: O povo, porém, via vozes... Êxodo, XX, 18.

IO
OBRAS ESCOLHIDAS DO /V ANTÓNIO VIEIRA

o cometa, e daquele grande apostema saem os influ-


xos de que se causam estes perniciosos efeitos.
Os cometas do ano de 538, 945 e 1347 causaram
secas, esterilidades e fomes, e uma delas foi tão

5 grande, tão extraordinária e cruel, como refere


Idácio, que a miserável gente se cortava as próprias
carnes e as comia, para sustentar de algum modo a
vida ou dilatar a morte.
Os cometas do ano de 400 antes da Redenção, e
IO os de 983 e 1530, depois de Cristo, causaram inun-
dações, e cresceu tanto o mar em diversas partes,
que na Grécia sobverteu algumas ilhas inteiras, que
nunca mais apareceram; e em Holanda, Zelândia e
Brabante muitas cidades, de que ainda hoje se vêem
15 no meio do mar os cumes das torres. Os cometas do
ano de 1254 e 1268, causaram tempestades de ven-
tos furiosíssimos; e este último com tanto excesso,
que a força e ímpeto dos tufões na Germânia não só
arrancava as árvores e as casas e as levava pelos
20 ares, mas tirava de seus lugares os montes, ou os
arrasava.
Os cometas do ano de 64 e 1298 causaram ter-
ramotos; e não falando no primeiro que derribou e
assolou muitas cidades na Acaia e Macedónia, como

6. Idácio,que foi bispo em Aquis Flaviis (Chaves)


viveu de 395, aproximadamente, até 470. Não podia
escrever no seu Chronicon (que abarca história apenas
de 379 a 468) sobre acontecimentos ocorridos depois da
sua morte. Ou o nome foi errado pelo copista ou Vieira
viu a notícia noutro autor incorporado no mesmo volume
em que Idácio viria em primeiro lugar, como sucede no
volume que consultei na Academia das Ciências de Lisboa.

II
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

escreve Séneca, o segundo, tendo aparecido nos


últimos dias de Novembro daquele ano, em
dia de
Santo André, abalou de repente todo o globo da
Terra, e no mesmo momento em diversas partes e
5 regiões do Mundo caíram os edifícios com infinitas
ruínas.
Os cometas de 603, 626, 745 e 983 causaram pes-
e a do cometa de 1347, que foi universal, fez
tes;
tal estrago, que em três anos que durou, como refere
10 Petrónio, matou a terceira parte de todo o género
humano. E sendo todos estes acontecimentos tão no-
táveis e tremendos, o que muito se deve agora
advertir é que a maior parte dos sobreditos cometas,
como consta dos autores que os observaram, igua-
15 laram na grandeza ao que temos presente; para que
repare, considere e tema o Mundo quais podem ser
seus efeitos, se forem, como naturalmente parecem,
iguais à proporção de sua grandeza —
e esta é a
primeira significação desta voz de Deus ao Mundo.
20 A segunda, e que mais pertence ao governo e con-
servação, ou ruína do mesmo mundo político, se
divide em três partes: a primeira, significa guerras;
a segunda, mudança de impérios; a terceira, morte
de príncipes.
25 Quanto à significação das guerras no presságio
dos cometas, ouça a cabeça do mesmo Mundo o que
experimentou nas suas, e seja pela melhor voz da
língua romana no primeiro das Geórgicas:

10. O nome deve estar errado, mas não sei corrigi-lo.


Nenhum dos Petrónios que pude conhecer escreveu sobre
o assunto.

12
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

Non alias coelo occiderunt plura sereno


Fulgura, nec diri toties arsere cometae.
Ergo inter sese paribus concurrere telis
Romanas acies iterum videre Philippi,
5 Nec fuit indignum superis bis sanguine nostro
. /Emathiam, et latos Haemi pinguescere campos.

0
cometa do ano de 480 antes de Cristo (que,
como dizemos, foi o primeiro de que há notícia nas
histórias) anunciou a guerra e exércitos de Xerxes
10 contra a Grécia, a qual começou com o maior e mais
estrondoso aparato que viu o Mundo, e acabou com
igual infelicidade. O cometa do ano de 346 também
influiu as guerras em que Potideia no Ilírico foi
expugnada por Parmenião, general de El-rei Filipe
15 de Macedónia, e Tebas, pátria de Hércules, famo-
síssima metrópole da Beócia, totalmente arrasada
por Alexandre, seu filho, com morte de noventa mil
homens e trinta mil prisioneiros. A guerra de Esti-

1-6. Tradução:

Em tempo algum caíram do céu sereno mais raios


Nem tantas vezes arderam funestos cometas.
Por isso atacar em-se entre si com armas iguais
Viram os [campos] filípicos os exércitos romanos.
Nem aos deuses foi indecoroso duas vezes com nosso sangue
Fecundar a Macedónia e os vastos campos do Hemo.

Geórgicas, I, 487-492.

9. Xerxes, rei da Pérsia de 485 a 465 A. C, filho de


Dario, acima citado, invadiu a Grécia, mas foi derrotado
em Salamina.
13 e seg. Potideia e Tebas são cidades gregas. Hér-
cules é o herói mitológico a que se atribuem os trabalhos
ou seja o combate contra monstros vários, de que obteve
vitória. Filipe da Macedónia e seu filho, o genial Alexan-
dre, que lhe sucedeu no trono e foi dos maiores conquis-

*3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

liçãocontra os Getas também foi anunciada pelo


cometa de 405. A de Carlos Martelo contra os Sar-
racenos pelo cometa de 726. A do Imperador Lotário
contra seus irmãos, pelo cometa de 843. A do grande
5 Tamorlão contra a Ásia pelo cometa de 1240. E ape-
nas tem havido cometa que não anunciasse guerras,
- como também se pode conjecturar do que temos
diante dos olhos, pois se mostra em todo o Mundo
em figura de espada.
10 E que os cometas prognostiquem igualmente mu-
danças de impérios, não há cousa mais vulgar na
opinião comum, nem mais célebre nas Escrituras.
Tácito, no Livro XIV, falando do cometa que apa-
receu no tempo de Nero: Inter quce et sidus cometes
15 cffulsit, de quo vulgi opinio est tanquam mutationem
regis portendat. Lucano no Livro I, 528-529, da
Farsália:

iadores da Antiguidade, é sabido que submeteram a Grécia,


antes de o último levar os seus exércitos de vitória em vitó-
ria até à Índia. Estilicão, que foi general do imperador
romano Honório, procurou deter a ruína do império romano
do Ocidente, defendendo a Itália de invasões de Bárbaros.
Foi condenado à morte em 408. Carlos Martel, ou melhor.
Martelo era maire do Palácio no tempo em que os Sarra-
cenos invadiram a França, depois de ocupada a Península
Ibérica. Derrotou-os em Poitiers, esmagando-os como com
um martelo — e de aí o seu sobrenome — , salvando a
civilização cristã ameaçada (669-741). O Imperador Lotá-
rio, do Império Romano do Ocidente, viveu de 799 a
855. Tamorlão ou Tamerlão ou Timourleng, foi um
grande conquistador tártaro, que, depois de vencer os
Turcos em Anayre (Ásia Menor) em 1402, morreu quando
marchava à conquista da China (1336-1405).
14-16. Trad.: Entretanto fulgiu um corneta, astro que 4
opinião do vulgo prognosticar mudança de reinante. Tá-
cito, Annalium, lib. XIV, 22.
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

crinemque timendi
Sideris et terris mutantem Regna cometem.

E Sílio Itálico, Livro VIII:

non unus crine corusco


5 Regnorum eversor rubuit lethale cometes.

E Valério Flaco, Livro VI:

Iratoque vocati
A Jove fa tales in regna injusta comete.

Onde se deve notar que disse in regna injusta


io com grande juízo; porque, sendo oráculo do Espírito
Santo que Regnum a gente in gentem iransfertur
propter injustitias, contra os reinos que se possuem
ou governam injustamente, se acendem no Céu os
cometas que lhes prognosticam as mudanças. A mu-
15 dança da República Romana e o princípio do Impé-
rio dos Césares, foi prognosticado pelo cometa do
ano de 44 antes de Cristo, o qual cometa ou sua
imagem se colocou em Roma no templo entre os

1-2.Trad.: e a cabeleira do astro terrível e o cometa


que na terra muda os reinos. Lucano, Farsália, 528-529.
4-5. Trad.: Não só um cometa destruidor de reinos
mortífera mente fulgiu, de cabeleira coruscante. Sílio Itá-
lico, Púnica, VIII, 638-639.

7-8. Trad.: E chamados por Júpiter iracundo


os cometas fatais aos reinos injustos.

Valério Flaco, Argonautica, V, 607-608.

11-12. Trad.: O reino é transferido de povo para povo


por virtude das injustiças. Eclesiástico, X, 8.

13
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

deuses, como Cometes in uno totius


refere Plínio:
orbis loco colitur in templo Romce, admodum faus-
tus divino Augusto; mas posto que fausto para ele,
fatal e infaustíssimo para a República. A mudança
5 do Império da Ásia para a Grécia, pela vitória de
Alexandre contra Dario, também a prognosticou o
cometa do ano de 336. A mudança e total destruição
da República dos Hebreus por Tito e Vespasiano, o
cometa do ano de 70, depois da Redenção. A mu-
ro dança da liberdade de Itália e Reino dos Longo-
bardos, que a dominaram, o cometa do ano de 570.
A mudança do Império Persiano conquistado pelos
Sarracenos, o cometa do ano de 632. A mudança do
Império Romano Ocidental, transferido de Roma e

1-3. Trad.: Umcometa sobremaneira feliz para o di-


vino Augusto foi venerado num só lugar de todo o orbe
num templo de Roma. C. Plínio Segundo, Naturalis His-
toria, Lib. II, cap. 25.
6. Refere-se ao mesmo Alexandre da Macedónia, a
que acima alude. Na sua marcha triunfal até o Indo,
venceu Dario, rei da Pérsia, pai de Xerxes, também acima
citado.
8. Tito e Vespasiano, filho e pai, foram os chefes
militares que reduziram, em tempos de Nero, os Judeus
à obediência ao Império Romano, contra o qual se tinham
revoltado.
10. Os Longobardos ou Lombardos, sob o comando de
Alboino, invadiram a Itália no século VI e al se estabe-
leceram, de começo com todas as violências e desordens
de uma invasão de bárbaros anárquicos.
13. Por Sarracenos ou Ismaelitas são designados os
Maometanos. É sabido que os Maometanos, no século VII,
animados de ambições imperialistas que o proselitismo
religioso estimulava, alastraram o seu império por toda a
Ásia Menor, Arábia, Pérsia e Egipto.


OBRAS ESCOLHIDAS DO P* ANTÓNIO VIEIRA

passado a França e Alemanha no tempo de Carlos


Magno, o cometa do ano de 800. A mudança do
Império Oriental conquistado em Constantinopla
pelos Latinos, o cometa do ano de 1201, em que
5 também teve princípio o Império dos Tártaros e a
divisão do Império de Trapizonda; e para que em
uma mudança compreendamos muitas, e as maiores
que viu e ainda padece o Mundo na África, na
Ásia e na Europa, o cometa do ano de 603, seis
10 meses inteiros esteve ameaçando o nascimento de
Mafamede, cujas armas e infame lei em espaço de-
mais de mil anos sujeitaram tantos reinos e pro-
víncias, quantas nelas têm perdido os Cristãos e os
Gentios também.
15 Ponha agora os olhos o Mundo em si mesmo, e
faça a prudente reflexão que deve sobre o estado

1. Carlos Magno foi, na verdade, no ano de 800


coroado imperador do Império Romano do Ocidente, pelo
papa Leão III, que igualmente lhe submeteu o do Oriente,
pois que não havia imperador em Constantinopla, gover-
nado por uma mulher — Irene.
3. O Império Oriental ou Império Romano do Oriente,
com a capital em Constantinopla, para o distinguir do
Império Romano do Ocidente com a capital em Roma,
existiu desde que o Imperador Teodósio (| 395) dividiu o
Império Romano em dois, legando o do Ocidente a Honório
e o do Oriente a Arcádio, seus filhos, até que, em 1453,
foi conquistado pelo sultão otomano Maomé II.
6. O Império grego de Trapizonda ou Trebizonda foi
fundado por Aléxis Coménio (1081-1118), igualmente fun-
dador da dinastia dos Coménios, que teve a glória de
salvar e reconstituir o Império do Oriente. Tem o nome
da cidade que era sua capital, situada nas costas do Mar
Negro.
10. Ameaçando o nascimento... quer dizer: anun-
ciando como uma ameaça o nascimento...

17
Vot VII - Fl. 2
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

em que ao presente se acha; e veja se está apare-


lhado e disposto em toda a parte para grandes
mudanças e novidades, assim pela pouca ou ne-
nhuma justiça das coroas que o governam, como
5 pelos poucos fiadores com que se acham as vidas
dos mesmos príncipes; uns sem nenhuma sucessão,
outros com um só sucessor e outros sem esperança
de o ter; bastando que falte uma destas colunas
para que se mude o sistema do mundo político. E se
io as estrelas têm sobre ele algum poder ou significa-
rão, todos os matemáticos antigos concordaram em
que, depois da conjunção de Saturno e Júpiter, que
foi no ano de oitenta e três deste século, haverá
grande mudança de domínios. Assim o refere Argó-
15 lio nas suas Efemérides, sendo muito para notar que
não faz outra notação em todas elas; as palavras com
que o diz são as seguintes, foi. 363: Cum celebretur
conjunctio superiorum Saturni et Jovis in trigono
igneo, antiquorum consensu mutationes magnce con-
20 tingent et generales constitutiones , ac de facili Domi-
norum mutationes.
E para que passemos à terceira parte da signi-
ficação dos cometas, saiba também o Mundo que
o
golpe que eles ameaçam (ainda que não tenham
25 figura de espada, como o nosso), sempre ou quase
sempre é fulminado às cabeças por Deus. Isto é o
que deixei de declarar na senjtença alegada de

17-21. Trad.: Quando se realize a conjunção dos astros


superiores, Saturno e Júpiter, num circulo de fogo, acon-
tecerão, segundo os antigos, grandes transformações, cria-
ção geral de novas instituições, e também mudanças de
governantes. Andreae Argoli Ephemerides Juxta Tychonis
hypotheses. Pág. 363 do Tom. III, ed. de Lion, MDCLIX.

18
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

S. João Damasceno, onde expressa e distintamente


afirma que os cometas são instituídos por Deus
para significar a morte dos príncipes e reis:
Aggignuntur autetn frequenter cometce, signa quee-
5 dam interituum Regum. O mesmo diz a Sibila Eri-
treia no texto que mais abaixo hei-de citar, e há
mais de mil e quinhentos anos que assim o tinha
notado Suetónio na morte do Imperador Cláudio,
da qual diz: Pressagia mor tis ejus fuerunt exortus
10 crinitce stelke, quam cometem vocant. E era esta
opinião tão assentada entre os Romanos, que, apare-
cendo um cometa no tempo de Nero, todos logo,
como escreve Cornélio Tácito, começavam a tratar
de quem lhe havia de suceder no Império: Vulgus
75 passim, quasi eo jam depulso, quisnam deligeretur
inquirebat. Mas o que mais confirma este geral con-
ceito e suposição dos homens é a multidão dos exem-
plos. O cometa do ano de Cristo 14 (para que o
digamos assim) matou a Augusto César; o do ano
20 de 70 a Vitélio; o de 203 a Severo; o de 363 a Juliano
Apóstata; o de 454 a Teodósio; o de 571 a Alboino,
rei dos Longobardos; o de 837 a Pepino, rei de

4-5. O
passo Aggiguntur, etc, tem sua tradução na
frase do texto que imediatamente o precede.
5. Vid. pág. 37.
9-10. Trad.: Os presságios da morte deste foram o sur-
gir de uma estrela com cabeleira que chamam cometa.
Suetónio, Divus Claudius, 4.6.
14-16. Trad.: A cada passo o vulgo, como se ele já esti-
vesse banido, inquiria sobre quem seria o eleito. Tácito,
Annalium Lib. XIV, 22.
19-21. Augusto César (63 A.C.-14); Vitélio (11-59);
Juliano Apóstata (331 ou 32-363) foram imperadores
romanos, como Teodósio, já acima referido.

10
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

França; o de 1214 a Vilhelmo, rei de Escócia; o de


1301 a André, rei da Hungria; o de 1458 a Ladislau,
rei de Hungria; o de 1458 a Afonso, rei de Nápoles e
outros muitos reis e imperadores que deixo, todos
5 mortos debaixo de diferentes cometas; ou natural-
mente e de doença, como os últimos que referi; ou
por traição e aleivosia, como Cláudio, morto com
veneno; ou violentamente, como o Imperador Maurí-
cio, morto às mãos de Focas juntamente com três
10 filhas; ou por desastre, como Filipe, o Formoso, rei
*
de França, morto da queda de um cavalo andando à
caça; ou por intemperança, como Amura tes, grão-
-turco, farto de vinho e tão merecedor que o ma-
tasse Mafoma como Cristo; ou por alguma veemente
15 paixão, como o Imperador Otão II, que morreu de
tristeza, sendo melhor que fora de contrição.
Isto é o que costumam influir os cometas sobre as
vidas reais; e o que hoje deve fazer todo o príncipe
de juízo e cristandade à vista deste nosso, é ver-se
20 nele como em um espelho de moralidade, de que não

1-3. Vieira refere-se a Vilhelmo ou Guilherme o Leão, a


André III, a Ladislau V (este rei da Hungria e não da
Polónia, como ocorre na ed. de Seabra e nos Mss.) e a
Afonso I.
8-9. O Imperador Maurício, do Império Romano do
Oriente, foi, com efeito, morto com suas duas filhas, não
às mãos, mas por manobra de Focas, que para lhe suceder
lhes promoveu a condenação.
12. Dos quatro imperadores turcos deste nome a refe-
rência deve ser ao IV, o que mais abusou do vinho e
outros prazeres. Viveu no tempo de Vieira (1611-1640).
15. Otão II foi imperador da Alemanha, de 973-983.

20
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

estão isentos os príncipes, antes mais sujeitos. O Im-


perador Vespasiano, vendo o cometa do ano de 76,
que era crínico, disse jocosamente que não vinha
para ele, senão para o rei dos Partos, que usavam
5 grandes gadelhas; mas o efeito mostrou que para o
mesmo que o desprezava vinha destinado.
Cuide cada um dos príncipes em particular (e me-
lhor será se se persuadir a isso) que para ele é
enviado este sinal do Céu, e com ele fala; e quando
10 se não ache com alma e consciência tão disposta
como Santo Eduardo, rei de Inglaterra, cuja morte
também a anunciou um cometa, que foi o de 1066,
ao menos procure imitar ao Imperador Ludovico Pio,
o qual, vendo o cometa do ano de 839, desde logo,
15 sem enfermidade, se aparelhou para morrer e acabou
a vida tão piamente, como merecia o nome que lhe
deu a fama. Carlos Magno, aparecendo em sua vida
o cometa de 814, perguntou a Eginhardo, seu filó-
sofo e matemático, que significava aquele cometa.
20 E como lhe respondesse com as palavras de Jere-
mias, mal interpretadas: Et a signis Cceli nolite me-
tuere quce timent gentes, o santo e prudente impera-
dor lhe respondeu, que ele não temia aquele sinal,
senão a Deus, que o avisava por ele, para que ajus-
25 tasse as contas que lhe havia de dar, como verda-

2.Vid. nota da pág. 16.


13. Ludovico Pio, primeiro deste nome, imperador do
Ocidente, era filho de Carlos Magno. Morreu em Junho
de 840. A data da ed. de Seabra vem errada — 639 deve
ser 839.
18.Na Vita Caroli Magni, que se atribui a Eginhardo,
não há referência a tal episódio, posto não faltem os pro-
dígios que assinalam ou anunciam a morte do Imperador.
21-22. Trad.: E não temais os sinais do Céu, como teme
o povo. Jeremias, X, 2.

21
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

deiramente deu, morrendo no mesmo tempo. Igual


foi a prudência do Imperador Carlos V, que sempre
anda junta com os grandes corações. Viu o cometa
do ano de 1556, e, inferindo dele que era chegado
5 o fim de sua vida, fez-lhe este verso:

His ergo indiciis me mea fata vocant.

Képlero na sua profecia diz que debalde temeu


CarlosV aquele cometa, porque viveu alguns anos
depois dele; e eu dissera que, porque o temeu, por
10 isso viveu, porque c condição da morte fugir dos
que a temem; ou verdadeiramente generosidade de
Deus não executar o golpe nos rendidos.
Imitem pois a estes dois grandes Carlos todos os
príncipes, e nenhum se fie da sua idade nem se
jj engane com o seu poder, por grande que seja; por-
que, para desfazer em um momento as maiores
potências do Mundo, não haverá mister o nosso
cometa já alegado de Xerxes. Entre a gente militar
c de serviço constava o seu exército de cinco milhões
20 de homens e cinco mil naus de guerra; e vinha tão
soberbo com este imenso aparato, que, porque se
lhe perderam duas ou três naus em uma tormenta
no Helesponto, mandou lançar um grilhão naquele
mar e dar-lhe cem açoutes; porém Deus o açoutou
25 a ele, acudindo pela injúria do seu elemento com
tal demonstração, que, perdida toda a armada naval
e a maior parte do exército de terra, vencido e
fugindo ignominiosamente, tornou Xerxes para a

Trad.: Assim
6. com tais indícios, os meus fados
chamam por mim.
18. Vid. pág. 13.

22
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Pérsia, onde não muito depois o matou um seu pró-


prio capitão; e estes foram os efeitos daquele pri-
meiro e fatal cometa.

VOZ DE DEUS A PORTUGAL

5 A primeira cousa que diz a Portugal a voz de


Deus é que entenda o mesmo Portugal que este
cometa fala particularmente com ele. Para prova
desta proposição, importa que nos ponhamos com
a memória um pouco mais atrás e vejamos o cui-
10 dado que tem a Suma Providência de anunciar a
este Reino seus acontecimentos com sinais do Céu.
No ano de 1577, preparando-se em Portugal a
jornada de El-rei D. Sebastião à África (como no
tempo de Jeroboão, também rei moço), estava o
15 Reino e a Corte dividida em duas opiniões: a dos
moços e aduladores, que seguisse o rei a deliberação
ou apreensão de seus grandes espíritos; e a dos
velhos e sisudos, que reconheciam as perigosas con-
sequências, e aconselhavam o contrário. A um de-
20 les se conta perguntou o Rei de que cor era o medo;
ao que ele respondeu:
— Da cor da prudência.

14. Refere-se ao rei judaico Jeroboão, que, colocado


por Salomão, muito novo ainda, numa alta situação admi-
nistrativa, sendo-lhe profetizada por Abias a sua futura
soberania, não quis esperar a morte de Salomão e promo-
veu uma revolução, que foi sufocada. Reinou mais tarde,
tendo sido o primeiro soberano do reino setentrional de
Israel.
22. Esta resposta atribui-se ao duque de Alba, que em
Guadalupe se encontrou com D. Sebastião, para, em con-

*3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Senão quando aparece neste tempo um grande


cometa, como mandado por Deus para decidir a
questão. Todos o viam, e a cada um parecia da cor
dos seus olhos e do seu afecto. Os aduladores,
5 fazendo do nome verbo, diziam que o mesmo
cometa desde o Céu estava bradando ao Rei que
cometesse a empresa, e dizendo-lhe Deus por ele:
Cometa, cometa. Assim se creu e com tão cegos
aplausos, que, partido o escudo das sagradas quinas,
io já iam bordadas ao lado delas nos docéis (que de-
pois foram lutos) as armas imperiais de Marrocos.
Partiu, enfim, a armada, e deu-se a infeliz batalha,
sucedeu a morte de El-rei D. Sebastião ou a falta
dele, que é o mesmo; e este foi o efeito daquele
15 cometa, que durou até o fim do ano.
Sustentava-se ainda Portugal com o nome de reino
na velhice de Dom Henrique, e esperava que na
morte nomeasse sucessor natural. Mas para a catás-
trofe da tragédia e para o triste e lamentável fim
20 da fatalidade, faltava segundo aviso do Céu e se-
gundo cometa.
Assim apareceu outro no ano de 1580. Morreu
Dom Henrique, e o Reino que em outro Dom Hen-
rique tinha começado com cinco coroas aos pés e
25 uma na cabeça, herdado sem direito, comprado sem
preço e conquistado sem guerra por estes três títulos
(ou por outros, no tribunal divino mais juntos) ficou
cativo e sujeito ao rei estranho, não por menos
espaço que de sessenta anos inteiros, nos quais

formidade com a ordem que Filipe II lhe tinha dado, lhe


aconselhar a desistir da empresa de Alcácer Quibir.
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÔNIO VIEIRA

tantas quebras e perdas da defunta monarquia foi


pagando lentamente nos ossos dela a dívida dos
castigos a que os dois cometas fatais a tinham con-
denado.
5 Se eu, ó Portugal, te não conhecera, à vista do
presente cometa te não havia de dizer outra pala-
vra, senão que te lembrasses somente das lágrimas
ainda mal enxutas, que por aqueles dois mal enten-
didos e pior interpretados choraste. Mas porque
io quinze anos antes deste fui testemunha ocular do
pouco caso que fazes destes avisos do Céu e vozes
de Deus, só te trarei à memória os escândalos do
teu juízo, os erros da tua ignorância e até da tua
presumida fé a pouca coerência.
15 No ano de 1680, apareceu no meio da barra de
Lisboa, como entrando por ela, o cometa da mais
agigantada estatura de quantos tinham assombrado
o Mundo, segundo a descrição de todas as histórias
e as medidas e instrumentos da matemática. E que
20 efeitos causaria naquele maior povo de Espanha
aquele prodígio ou monstro do Céu? (Disse povo
por reverência e desculpa de tamanha cabeça, cujo
juízo ficou então dissimulado ou encoberto) O efeito
.

foi, como se aquela figura fora a celeste nau Argos,

25 ou nela entraram em Portugal, pela barra do seu


famoso Império, os primeiros descobridores do
Oriente carregados das riquezas do Indo e Ganges.
Celebraram os poetas o novo assunto com versos
panegíricos e festivos, fazendo gala ou desprezo
50 dos medos a que chamavam do vulgo, se algum
havia, prognosticando triunfos e felicidades; e por-
que era insigne no burlesco aquele autor, que até
nos novíssimos do Juízo e Inferno tinha sonhado
chistes e motivos de riso, foi festejado com parti-

*5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

cular aplauso este soneto, que antes de arrependido


fez aos cometas:

A venir el cometa por coronas,


Ni clérigo, ni frayle nos dexara,
5 Y el tal cometa irregular quedara
En el ovillo de las cinco Zonas.
Tienenle sin porque las mas personas
Por malquisto dei ceptro y de la Tiara;
Y è visto gran cometa de luz clara.
10 No hartarse de lacayos y fregonas.
Yo è visto diez cometas veniales,
A
quien desesperados los doctores
Maldixeron, porque eran cordiales.
Tres cometas è visto de aguadores,
IS Uno de ricos, siete de oficiales,
Y ninguno de suegras y habladores.
Quem cuidara que escreveu esta afronta, por não
dizer blasfémia, dos sinais do Céu, uma pena cristã,
posto que jocosa, falando tão timoratamente dos
20 cometas os poetas gentios que deixamos alegados?
Ao menos desta sua incredulidade deverão inferir
os poetas portugueses, como o Mantuano, 03 ocul-
tos juízos de Deus, com que permite que não sejam
cridas as Cassandras, quando quer que sejam abra-
25 sadas as Tróias:

Ora dei jussu non unquam credita teucris.

Mas também disse David em verso que as signi-


ficações destes sinais do Céu e vozes de Deus, só

3-16. Este soneto é de Quevedo (D. Francisco Quevedo


Villegas) e vem inserto no Parnaso Espanol, Musa VI, .

com o número XIV.


26. Trad.: Os lábios em que, por mandado de Deus,
os Troianos não acreditavam. Virgílio, Eneida, II, 247.

20
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.* ANTÓNIO VIEIRA

as entendem os que o temem: dedisti timentibus te

significationem, ut jugiant a jacie arcus.


Não faltavam então (como eu também vi) não
só como timoratos mas como sábios alguns que cho-
5 ravam o de que estes loucos se riam; porém estes
também se alargavam com a filosofia moderna de
Júlio César Escalígero, sem reparar que os dogmas
que vêm do Setcntrião, só pela influência do clima
e terra donde nascem raramente são seguros. Zomba
10 este, mais gramático que filósofo, de todos os que
até agora chamamos dá
efeitos dos cometas, e lhes
nome, não só de ridículos mas de gente de pouco
juízo. E porque também sei que alguns que têm
grande presunção do seu e rebentam de prudentes,
75 ou seguem ou ostentam o mesmo ditame, e o argu-
mento em que se fundam não deixa de ter aparên-
cia, justo será que o desfarçamos. Diz pois assim
Escalígero na Exercitação LXXIX, contra Car-
dano: Multi itaque sunt a nobis cometes visi, quos
20 nulla usquam tota in Europa subsecuta est permeies
mortalium. Et multi clarissimi viri suo fato functi
sunt, multi eversi Principatus pessumdat-e família?
,

illustrissimcB sine ullo cometa? indicio. Quer dizer que

1-2. Trad.: Deste aos que te temem um sinal, para


que fugissem da face do arco. Salmo, LIX, 6.
19-23. Trad.: E assim muitos cometas têm sido por nós
vistos, que em nenhuma parte da Europa foram seguidos
de qualquer calamidade de mortais; muitas notáveis indi-
vidualidades cumpriram o seu fado, muitas soberanias
foram subvertidas, arruinadas muitas famílias ilustres, sem
anúncio de qualquer cometa. Vid. Exotericarum Exerci-
tationum, Lib. XV —De subtilitate ad Hieronimum Car-
da num, Exercitatio LXXIX.
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

muitos cometas foram vistos em Europa, sem que


nela se seguissem mortes de príncipes nem outras
calamidades referidas; e pelo contrário, que morre-
ram muitos príncipes e se arruinaram muitos estados
5 e extinguiram famílias ilustríssimas sem indício de
algum cometa. Segue-se logo, demonstrativa e expe-
rimentalmente, que os cometas não são causa dessas
calamidades e mortes.
Primeiramente digo que de acontecerem semelhan-
do tes mortes, calamidades e guerras, sem precederem
cometas, não se segue que os cometas não sejam
sinais delas, porque Deus não é obrigado a dar sem-
pre sinais do que determina fazer, antes quando
o faz sem dar sinais, é sinal de que está mais irado
15 e de que seus decretos são absolutos. Nem menos
se segue esta consequência de não se verem os efeitos
dos cometas, quando os cometas se vêem, porque
muitas vezes os mesmos cometas são causa e ocasião
de se impedirem os seus efeitos. E isto acontece
20 quando os castigos que Deus ameaça são condicio-
nais e nos avisa primeiro com estes sinais do Céu,
para que por meio da penitência (ou orações de
algum justo) os evitemos. Assim se viu no pregão
de Jonas contra Nínive, o qual ninguém dirá que
25 não era verdadeiro sinal de sua assolação, porque
lhe faltou o efeito.
Demais disto, a eficácia dos cometas é como a dos
venenos, que uns matam logo, outros mais tarde,
posto que logo influem no corpo natural ou político
50 o que depois se há-de colher e seguir. E quanto
à demonstração ou experiência de que vimos o
cometa em Europa e não vimos em Europa esses
efeitos, bem se vê quão ridículo argumento é e quão
indigno de um homem cosmógrafo; como se no

28
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

resto do Mundo, que excede dez vezes a grandeza


de Europa, não houvera reis, reinos e províncias
que se experimentem as calamidades que em
em
Europa não se vêem ou sabem, e como se Deus o
5 não fora mais que dos Europeus!
Mas esta doutrina e suas inferências são mui
próprias de escola escalígera, na qual aprendeu seu
filho Joseph Escalígero a dizer, no Livro da Emenda
dos Tempos, que Cristo não nascera em Dezembro,
10 senão no equinócio outonal, isto é, em Setembro,
e o prova o Evangelho de S. Lucas, em que se
que na noute do nascimento estavam os pas-
diz
guardando os seus gados no campo, o que
tores
não podia ser em tempo de tanto frio. Assim julgam
15 os Escalígeros os climas do Mundo pelos da sua
Germânia, e o que lá não se vê nem usa, cuidam
que não pode ser em outra parte!
Pudera aqui juntar a autoridade de S. João Da-
masceno a respeito da morte dos príncipes, a de
20 Santo Tomás, a de S. Boaventura, os dois doutores
da Igreja de maiores experiências do Mundo, como
mais chegados aos nossos tempos, os quais ensinam
o mesmo. Mas como os Escalígeros são tão evan-
gélicos, já me contentarei com que creiam o que

8. No capítulo De anno natali Domini, que no livro de


José Escalígero —De emendatione temporum —
é consa-
grado à data do nascimento de Jesus, que o autor não
admite fosse a 25 de Dezembro, não encontrei, entre os
variadíssimos argumentos invocados, o argumento da tem-
peratura, a que V. se refere. Vid. p. 541 e seg. da ed.
de 1529.

29
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

disse Cristo pelo mesmo S. Lucas, que alega: Surget


gens contra gentem, eí regnum adversus regnum,
et terreemotus magni erunt per loca, et pestilencice,
jantes, terroresque de Cozlo, et signa magna erunt.
5 Com pode desenganar a fantasia
estas palavras
humana os seus discursos, crer a olhos abertos que
as guerras, fomes, pestes e as outras calamidades
são efeitos dos terrores e sinais do Céu, com que
ele nos ameaça e avisa para que temamos a Deus.
io Referidas desta forma os que chamei escândalos
do juízo e erros da ignorância, não me esqueço que
também acusei a pouca coerência da presumida fé
portuguesa. E esta é a que, estando vendo com os
olhos abertos os sinais do Céu, ela contudo nos cega
Í5 e nos engana. Desde o ano de mil seiscentos e qua-
renta, tendo-se acreditado os nossos antigos vaticí-
nios com a experiência dos sucessos, de tal maneira
cremos os outros alegres e felizes, que, estando jun-
tamente escritos e estampados os tristes e calami-
20 tosos, havendo estes de preceder primeiro e sendo
muito para temer o amor-próprio sempre cego, ou
os não vê ou não quer crer, que é a maior cegueira.
Muitos dos vaticínios alegam as Escrituras Sagra-
das e seus autores, mas um só nota o livro e capí-
25 tulo, que é o XXIV, de Isaías, muito notável pelo
que profetiza e muito mais por dizer nele o mesmo
profeta que contém um segredo que só guarda
para si. Este segredo, como consta do mesmo texto,

4. Trad.: Levantar-se-á nação contra nação e reino


contra remo, e haverá grandes terramotos por várias par-
tes, e pestes, fomes e terrores e sitiais espantosos vindos
do Céu. Evangelho de S. Lucas, XXI, 10-11.

30
OBRAS ESCOLHIDAS DO P ANTÓNIO VIEIRA
.''

se contém nas palavras do número 14. °, 15." c 16.",


que são: Hi levabunt vocem suam, atque laudabuni:
cum glorificatus fuerit Dominus, hinnient de mari:
propter hoc in doctrinis grorificate Dominum: in
5 insulis maris glorificate nomen Domini Dei Israel.
A finibus terrcB laudes audivimus, gloriam justi:
et dixi: Secretum meum mihi, secretum meum mihi.
Atèqui as palavras do profeta. Quer dizer que
depois de ficarem poucos homens no Mundo, estes
10 poucos levantarão a sua voz e louvarão a Deus,
quando for glorificado, rinchando os seus cavalos
no mar; e que nas ilhas do mesmo mar pregarão
a Fé do verdadeiro Deus; e que toda essa glória
de Cristo, por antonomásia o Justo, sairá dos fins
15 da Terra; e que nisto está encoberto e consiste o
segredo de Isaías.
Declarando, pois, este segredo, dizem os nossos
vaticínios que os fins da Terra são Portugal, como
verdadeiramente é; que os cavalos que hão-de rin-
20 char no mar são os seus navios, cavalos de madeira,
que com a sua altilharia hão-de atroar o mar Medi-
terrâneo; que as ilhas onde hão-de pregar a Fé de
Deus e glórias de Cristo são as do arquipélago do
mesmo mar, fronteiras a Constantinopla; e que tudo
25 isto se cumprirá, quando os Portugueses forem a
conquistar os Turcos, de cuja conquista estão cheios
os ditos vaticínios. Concorda com eles Salutivo, que

2-7. Trad.: Estes levantarão a sua voz e cantarão lou-


vores;quando o Senhor tiver sido glorificado, darão rin-
chos desde o mar. Por esta razão glorificai o Senhor na
doutrina, nas ilhas do mar glorificai o nome do Senhor
Deus de Israel. Ouvimos louvores desde os confins da
terra, glória do justo; e disse: O meu segredo pertence-me,
o meu segredo pertence-me. Isaías, XXIV.
27. Sobre Salutivo, ver pág. 21 do vol. anterior.

31
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

profetizou com evidência a desunião de Portugal,


e encontro do seu embaixador com o de Castela em
Roma em dia de S. Bernardo, e expressamente diz
que de Lisboa há-de ir a ruína do Turco; e o mesmo
5 diz Esdras, falando literalmente dela no Livro IV,
Cap. XII, v. 30, notando que de um reino pequeno,
cheio de perturbação, hão-de sair aqueles que Deus
tem guardado para o fim desta empresa: Hi sunt,
quos servavit Altissimus in finem suum, hoc est,
10 regnum exile turbationis plenum.
As esperanças destes fins tão gloriosos são as que
enganam aos Portugueses, não lendo, nem fazendo
caso do que fica antecedente ao mesmo capítulo
de Isaías, nem fazendo a devida consideração da
15 causa; porque, além de o seu reino ser tão pequeno,
hão-de ser eles tão poucos. Começa o dito capítulo
com um horrendo exórdio, dizendo: Ecce Dominas
dissipabit terram et nudabit eam.
Saibam todos que Deus há-de assolar a terra
20 e despovoá-la de seus habitadores; e certamente,
Portugal, que o que depois deste prólogo se segue,
folgara eu muito de to não dizer, nem descobrir a
teus olhos um retrato tão triste e lastimoso, como
é o das trabalhosas disposições por onde hão-de
25 começar estas tuas futuras felicidades; mas os mes-
mos oráculos e predições donde colhemos este ulti-
mdo fim tão glorioso e para desejar, nos estão jun-
tamente dizendo ou ameaçando alguma tribulação
e castigo muito para temer.

8-10. A trad. do passo bíblico precede-o no texto.


17-18. Trad.: Eis que o Senhor dissipará a terra e a des
nudard. Isaías, XXIV, t.

32
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

Se olhares, Portugal, para ti, achar-te-ás muito


cheio de vícios e pecados, que te fazem totalmente
merecedor de seres digno instrumento de tão santa
empresa, como a conquista da Terra Santa; e por
5 esta causa a primeira disposição para ela será algum
castigo geral, com que purifique Deus e purgue este
tão enfermo corpo de viciosos humores com que
está corrupto.
Antes de Josué entrar na conquista não de outra,
10 senão desta mesma terra que nós havemos de con-
quistar, mandou fazer alto a todo o povo de que
se havia de formar o exército, e que todos se cir-
cuncidassem. Assim fará Deus nesta ocasião, cor-
tando primeiro com a espada, que mostra já desem-
.75 bainhada, e circuncidando os vícios dos Portugueses,
para que vão santificados à conquista da Terra
Santa.
Aos que Deus mandava executar obras grandes
de seu serviço, chamava-os seus santificados: Ego
20 mandavi sanctificatis meis. E tais é bem que sejam
os que hão-de ser instrumentos da maior obra, que
sua divina Providência tem destinado e guardou
para os poucos que há-de escolher dos mais.
Para a mesma empresa desta conquista escolheu
25 Deus a Moisés, e antes disto lhe apareceu em uma
sarça de fogo que ardia e não se queimava; donde
lhe disse que, antes de chegar àquele lugar, des-
calçasse primeiro os sapatos; porque aquela terra
era terra santa: terra enim, in qua stas, terra sancta

19-20. Trad.: Eu dei ordem aos meus santificados.


Isaías, XIII, 3.
29. Trad.: ...a terra em que estás ê santa. Êxodo,
III. 5.

33
Vol. VII — Fl. 3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

est. O mesmo nos está Deus dizendo desde a sarça


ardente deste cometa, para que nos dispamos de
tudo o que ofende seus divinos olhos; e descalços,
penitentes, compungidos e humildes vamos pisar
5 aquela Terra Santa, que ele pisou com seus sagrados
pés e regou com seu preciosíssimo sangue.
Horrendas são as calamidades que neste capítulo
anuncia o profeta; mas não é justo se calem, para
que todos tenham notícia delas e delas se colha o
io fruto que Deus pretende.
Diz, pois, o profeta Isaías que a terra estará infic-
cionada de seus habitadores, por não quererem
guardar as leis divinas: Terra infecta est ab habita-
toribus suis, quia transgressi sunt leges, mutaverunt
15 jus, dissipaverunt fcedus sempiternum. Declara que
por esta razão de os homens não guardarem as leis
de Deus, a maldição virá sobre a Terra e a tragará
e assolará, e ficará reduzida a muito poucos homens:
Propter hoc maledictio vorabit terram, et peccabunt
20 habitatores ejus, ideoque insanient cultores ejus, et
relinquentur homines pauci.
Diz mais que haverá fome e esterilidade, e que
estarão secos e tristes os campos, e que se ouvirão
pelas ruas os clamores sobre quem há-de alcançar
25 um pouco de sustento, descrevendo tudo isto o pro-
feta com amplificações notáveis debaixo do nome

13-15. Trad.: A terra ficou infeccionada pelos seus habi-


tadores, porque transgrediram as leis, mudaram o direito e
romperam a aliança sempiterna. Isaías, XXIV. 5.
20-22. Trad.: Por esta causa a maldição há-de devorar a
terra, hão-de pecar os seus habitadores, e por isso enlou-
quecerão os seus cultores e poucos homens hão-de ficar.
Isaías, XXIV, 6.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

das vinhas e das vindimas: Luxit vinde mia, infir-


mata est vitis, ingemuerunt omnes qui lostabantur
cor de [...] Clamor erit super vino in plateis: trans-
latum est gaudium terra.
5 Diz mais que será abatida e passará grande detri-
mento a cidade da vaidade (veja Lisboa se lhe
quadra o nome no tempo e luxo de hoje) e que na ;

mesma cidade se fecharão as portas das casas, não


havendo quem entre por elas, e que toda será redu-
io zida a uma solidão, com que parece significa peste:
Attrita est civitas vanitatis, clausa est omnis domus,
nullo introeunte (...) relida est in urbe solitudo, et
calamitas opprimet portas.
Diz, finalmente, que os efeitos destas calamidades
15 serão: ficarem depois delas tão poucos homens vivos,
quão poucas são no olival as azeitonas depois da
colheita, e na vinha os cachos depois da vindima:
Quia hcec erunt in médio terrce, in médio populo-
rum, quomodo si paucce oliva, quce remanserunt
20 excutiantur ex olea, et racemi, cum fuerit finita
vindemia.

1-4.Trad.: Chorou a vindima, adoeceu a vide, gerne-


ram todos quantos se alegravam do coração [...]. Haverá
nas ruas clamor por causa do vinho; desterrou-se o prazer
da terra. Isaías, XXIV, 7 e n.
11-13. Trad.: Está demolida a cidade da vaidade, fecha-
das todas as suas casas, ninguém nelas entrando. Isaías,
XXIV, 10. Ficou dentro da cidade uma solidão e a cala-
midade oprimirá as suas portas. Ibid. 12.
18-21. Trad.: Porque estas coissa hão-de verificar-se no
meio da terra, no meio dos povos, como quando algumas
poucas de azeitonas, que ficaram, são sacudidas da oli-
veira, e os cachos, ao acabar a vindima. Isaías, XXIV, 13.

35
^COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

A estas palavras se segue, imediatamente o se-


gredo de Isaías, revelado depois em Jerusalém e
em Roma e descoberto por particular providência
aos que Deus há-de dispor para tão alto fim com
5 os antecedentes castigos, nos quais perecerão os
muitos que o mesmo profeta chama doudos: Insa-
nient cultores ejus; e ficarão os poucos que tiverem
obrarem com juízo, como homens: Et relinquentur
e
homines pauci: para que veja cada um entre a espe-
10 rança futura e perigo presente, em que actualmente
estamos, se lhe está melhor emendar-se e ficar vivo
com os poucos, ou acabar e perecer com os muitos.
Isto é o que me pareceu advertir a Portugal de
tão longe por ocasião do cometa que estamos vendo,
15 tão irmão do que ele viu e desprezou na grandeza,
na cor e na espada. E se acaso me disser alguém
da sua parte que vêm estas advertências tarde depois
de quinze anos, respondo que outros quinze anos
antes se representaram a Faraó as visões das vacas
20 e das espigas, em que se seguiram aos sete anos da
fartura os outros sete de fome, e no fim deles não foi
intempestivo nem inútil o conselho de José a Faraó;
que o repetir Deus o mesmo sucesso futuro em duas
visões, era confirmação de ser infalível o efeito do
25 que anunciavam e de não haver de tardar muito:
Quod autem vidisti secundo ad eamdem rem perti-
nens, firmitatis indicium est, eo quod fiat sermo Dei,
et velocius impleatur.

26-8. Trad.: E quanto ao segundo sonho que viste, e


que diz respeito a uma mesma cousa, é um sinal certo
de que se há-de executar a palavra de Deus, e que mais
prontamente se cumprirá. Génesis, XLI, 32.
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

O mesmo digo do primeiro e segundo cometa c


da primeira e segunda espada. É verdade que a
mortandade que profetiza Isaías, de que hão-de
escapar poucos, mais parece que demonstra fome e
5 peste que guerra; mas tudo o que mata e tira a
vida, ainda que não seja na guerra, é espada. Assim
David, no meio da peste que escolheu por menos
mal, viu o anjo no ar com a espada desembainhada.
O cometa que nós estamos vendo em forma de
io espada, nasce no Oriente; o que Portugal viu tam-
bém em forma de espada, assim em respeito do
céu como da terra, nascia no Ocidente; e por tudo
parece que falou a Sibila, quando disse:

Sole sub occiduo vero vocitata cometa


15 Stella relucebit gladii mortalibus index
Et famis, et mortis, praeclarorumque virorum,
Atque ducum interitus magnorum, nobiliumque.

As novas que aqui chegaram ultimamente de Por-


tugal são de esterilidade e fome;mas como a fome
20 faz os seus efeitos e estragos nos pobres e nos pe-
quenos, e a Sibila fala dos grandes, poderosos e
ilustres, fique a explicação e aplicação deste oráculo
a Lisboa, que a pode fazer de mais perto, como
eu pela mesma razão me passo à Baía.

14-17. Trad.: A poente reluzirá como um


gládio uma
estrela chamada cometa, anúncio para os mortais de 'fome
e mortes e desaparecimento de preclaros varões, grandes
e nobres chefes, Brettano Sibyllina Oracula, ed. de Paris,
1599, p. 242.

37
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DÁ COSTÁ

VOZ DE DEUS À BAÍA


Se as vozes e avisos de Deus pelas línguas dos
cometas são favores da sua Providência, não podia
a cidade do Salvador, antes de experimentar os tra-
5 balhos do resto do Mundo, ser menos favorecida do
cuidado e patrocínio de tão soberano nome, sendo a
Baía uma colónia tão notável daquele Reino ou Im-
pério que o mesmo Deus chamou seu.
No fim do ano de mil seiscentos e dezoito apare-
10 ceu um cometa na Baía, que foi visto em todo o
Mundo e observado de todos os matemáticos, como
consta de seus memoriais. Era um formoso meteoro,
o qual, como precursor do Sol, amanhecia três horas
antes no mesmo Oriente. A sua grandeza se estendia
15 até à quarta parte do hemisfério; a figura era de
uma perfeitíssima palma, a cor das folhas da mesma
árvore, depois que o Sol, que a seguia, lhe amadu-
recia a verdura. Todos naturalmente diziam que a
palma prognosticava vitória; mas o mesmo cometa,
20 que direito e levantado se mostrava no Brasil como
palma, na Europa, inclinado e atravessado, repre-
sentava a figura de um alfange de fogo; e tudo
era porque, debaixo das neves e gelos da Holanda,
como nas entranhas e fornalhas do Etna, se estava
25 no mesmo tempo forjando e acendendo um vulcão,
que havia de abrasar a Baía e o Brasil.
Foi o caso que, no ano de mil seiscentos e nove,
reinando Filipe III e sendo primeiro ministro da
monarquia o duque de Lerma, fez Espanha trégua
30 com Holanda por espaço de nove anos, nos quais
à imitação da Companhia Oriental se ordenou e
levantou no Banco de Amsterdão outra com o nome
de Ocidental, e com intento de conquistar primeiro

38
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

a Baía e depois o resto do Brasil, tanto que se


acabasse o tempo da trégua. Este se acabou no fim
do ano de mil seiscentos e dezoito, e no mesmo
fim pontualmente apareceu o fatal e enigmático
5 cometa. O primeiro golpe da figura do alfange des-
carregou sobre a Baía, como cabeça do Estado,
com uma poderosa armada, e a conquistou sem
armas, porque ela não as tinha; e não conservado,
mas lançado dali o inimigo, com segundo e maior
io poder, quase sem contradição nem resistência, levou
também Pernambuco e o Recife mais defensável,
mas igualmente mal defendido. Foram consequên-
cias desta desatinada fatalidade a Paraíba, o Rio
Grande, o Ceará e o Maranhão, para o da parte
15 do Norte; e da parte do Sul com maiores e mais
custosos intervalos tudo o que corre por costa até o
grande rio de S. Francisco, com que no mapa da
América apareceu ametade do Brasil com o nome
de Nova Holanda, ganhado no mesmo tempo, como
20 tão importante, o reino de Angola, na oposta Etió-
pia, de cujo triste sangue, negras e infelizes almas
se nutre, anima, sustenta, serve e conserva o Brasil.
Toda esta torrente de desgraças e infortúnios,
posto que com frequentes socorros de Portugal, Cas-
25 tela e Itália, durou por espaço não menos que de
trinta anos; não tendo, porém, número, nem ca-
bendo nas histórias que se escreveram, as mortes,
os estragos, os incêndios, as ruínas, as perdas, as
destruições de casas riquíssimas, de famílias ilustres,
30 e o que mais era para sentir, de honras em todo
o tempo sagradas, agora afrontadas e profanadas
por suma crueldade e violência, sem distinção de
sexo, nem de idade; ardendo entretanto a mais per-
tinaz e furiosa guerra que nunca viu o Mundo, cem

39
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tréguas de Inverno nem de Verão, de dia nem de


noute, de campanha aberta, nem bosque cerrado;
as baterias, os cercos, os assaltos, os encontros con-
tínuos, batalhas na terra, batalhas no mar, no mar
5 armadas derrotadas, na terra os exércitos des-
as
perdendo-se sempre de uma e outra parte
feitos;
o poder, mas de ambas nunca perdida a esperança,
para que fosse a guerra sem fim, como o serão as
cinzas da famosa e formosa Olinda, competidora
10 quando viva (fora de Lisboa) não só da Baía,
mas até de Goa, quando mais florente.
Isto é o que prognosticava o cometa da Baía;
e todos estes horrores tão medonhos, os que enco-
briam as sombras daquela palma; a qual, porém,
15 não esquecida da sua melhor figura, chegado o ano
de 1654, se mostrou tão verdadeiramente palma e
tão prodigiosamente vitoriosa, que, levantando-se e
pelejando só as relíquias dos Pernambucanos contra
toda a Nova Holanda defendida e presidiada com
20 dezanove fortes reais, a venceram toda de Norte a
Sul e de cabo a cabo, reconquistando em dois dias
tanta terra, quanta se não podia andar a bom passo
em quatro meses.
Mas se aquele teu primeiro cometa, ó Baía, de-
25 baixo da figura de palma, dissimulava e encobria
trinta anos inteiros de tantos trabalhos, calamidades,
assolações, perdas irreparáveis, que ainda duram,
e tantos rios de sangue e mortes sem número; o que
agora tens diante dos olhos em figura de espada,
50 que cuidas que te pode prognosticar e que te está
dizendo Deus por ele?
Antes de eu o ver, chegaram os ecos do seu apa-
recimento a este meu deserto, publicando que era
horrendo e formidável; mas logo no dia seguinte

40
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

se mudaram estes medos e prognósticos infaustos


em auspícios felizes, dizendo os que melhor deviam
entender-lhe a linguagem, que nada tinha de for-
midável nem horrendo; e presumindo que clara-
5 mente o provavam, por ele ser claro e não rubi-
cundo, e sem sinal nem mancha alguma de sangui-
nolento, antes diáfano, transparente e limpo, como
palma não fora da mesma cor e como
se a sobredita
se a espada, por ser reluzente não ferisse!
io Queira Deus que não sejam estes intérpretes jo-
viais como Séneca, que, por adular o seu discípulo
Nero, disse que o cometa que apareceu no seu
tempo tirara a infâmia ou má opinião com que os
cometas andavam infamados: Cometis detraxit infa-
15 miam. Mas esta adulação tão indigna da inteireza
e severidade estóica, veio ele a pagar com a vida,
mandado matar ou morrer pelo mesmo Nero, só
com eleição, por ser seu mestre, de escolher o gé-
nero de morte. O cometa do ano de 146 antes de
20 Cristo, não era rubicundo nem escuro, senão muito
claro, como refere o mesmo Séneca:Clarum lúmen
et niíens; mas nem por isso deixou de ser fatal e
infausto às duas famosas cidades de Cartago e
Corinto, ambas destruídas e assoladas no mesmo
25 tempo. O cometa do ano de 44, também antes de
Cristo, foi claríssimo. Dele diz Plínio: Id oriebatur
circa undecimam horam diei clarumque et omnibus
terris conspicuum fuit; e se acaso esta claridade

14-15. Trad.: Tirou a infâmia aos cometas. Séneca,


Questiones Naturales, Lib. Vil, XVII.
21-22. Trad.: Lume claro e resplandecente.
26-28. Trad.: Nascia este cerca da undécima hora do
dia e foi claro e visível a todas as terras. Plínio, Historia
Naturalis, Liv. II, cap. XXV.

41
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

demonstrava que Júlio César, cuja morte acompa-


nhou, havia de ser colocado entre os deuses, a mesma
morte foi tão desastrada, improvisa e cruel como
todos sabem. O cometa do ano de 392 depois de
5 Cristo, além da morte do Imperador Valentiniano,
prognosticou grandes males a todo o Mundo; e a
sua claridade era tanta, que não cedia à da estrela
da alva, junto da qual saía. Uma e outra cousa
diz Nicéforo: Tum vero et prodigia insólita visa sunt,
10 quce futura orbi mala portenderunt: primo namque
inopinata et insolens stella in coslo prope Luciferum
refulgens apparuit, quce quia propter coruscantes
rádios ingens erat, et lúcida, non admodum Lucifero
cessit. Não pudera dizer mais Nicéforo, se escrevera

15 o horóscopo do nosso cometa e lhe levantara a


figura na mesma hora do seu nascimento.

5. Valentiniano II foi imperador de Roma de 364 a


392, ano em que morreu assassinado por ordem do seu
tutor Arbogasto.
9-14. Eis o latim de Nicéforo Calisto, em sua Ecclesias-
tica Historia, Liv. XVIII, cap. XXXVII, D, um pouco
diferente do de Vieira, que o abreviou: Tum vero et pro-
digia insólita visa sunt, quce -futura orbi mala portende-
runt: primum namque inopinata et insolens stella in coelo
medice noctis tempore prope Luciferum refulgens apparuit
circa eum ipsum qui Zodiacus dicitur circulum. Et quod,
propter coruscantes rádios, ingens et lúcida esset, non
admodum Lucifero cessit. É desta lição que damos a
tradução que segue:
Então foram vistos prodígios insólitos, que anuncia-
vam co orbe males futuros: primeiro, apareceu refulgindo
no céu, pela meia-noite, uma inopinada estrela desco-
nhecida, perto da Estrela de Alva, junto daquele mesmo
circulo chamado o Zodíaco. E porque, por virtude dos
raios coruscantes, fosse enorme e lúcida, não foi muito
inferior à Estrela de Alva.

42
OBRAS ESCOLHIDAS DO P< ANTÓNIO VIEIRA

Em conclusão, persuade-se à Baía que não há


cometa que não prognostique grandes calamidades;
e isto é o que lhe ameaça e está dizendo Deus pela
voz do cometa presente. Tertuliano no Livro Ad Sca-
5 pulam, tendo referido vários cometas daquele tempo,
diz: Omnia hcec signa sunt imminentis ires Dei; que
todos são sinais da iminente ira de Deus. Claudiano:

Et numquam ccelo spectatum impune cometem...

E Manílio:

IO Numquam futilibus exeanduit ignibus aether.

Donde veio a ser provérbio entre os Gregos:


Nidlus cometes visus, qui malum non ferat. Nunca
foi visto cometa que não trouxesse e prognosti-
casse mal.
15 Nem faz contra a verdade universal desta expe-
chamarem-se felizes e faustos alguns come-
riência
tas; porque, ainda que o fossem para certos prín-
cipes e nações, para outras, que deram matéria a
essas fortunas, todos foram fatais e infaustíssimos.
20 Os que mais se celebram em toda a Antiguidade são
os de Alexandre Magno, Mitrídates e Augusto César;
mas o pimeiro foi o incêndio de Ásia, o segundo o

6. Trad.: Tudo isto são sinais de iminente ira de


Deus. Tertuliano —
Ad Scapulam, cap. III.
8. Trad.: E nunca um cometa foi impunemente
olhado no céu. Carmen XXVI, v. 243.
10. Trad.: Nunca o éter se acendeu com fogos fúteis.
Manílio, Astronomiam, Liv. I, p. 27 da ed. de 1600.
12. A trad. do passo é a que o texto nos dá.
21. Mitrídates o Grande foi o rei do Ponto, de 128
a 63 A. C. Lutou contra os Romanos até à morte —
vinte e sete anos quase ininterruptos.

43
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

flagelo de Itália e o terceiro o jugo de todo o Mundo.


Acrescento que nos tais casos, até os vassalos do
príncipe triunfante são calamitosos na sua felicidade;
porque, se os estranhos padecem as vitórias, os vas-
5 salos sustentam as guerras, os soldados com o sangue
das veias e os que não são soldados com o dos tri-
butos; e não só os vencidos, senão também os ven-
cedores, como a lima quando corta o ferro, todos
padecem. E se estes são os efeitos dos cometas faus-
10 tos, felizes e propícios, quais serão os dos infaustos,
infelizes e perniciosos?
Vindo ao nosso cometa, a primeira circunstância
com que apareceu foi que, sendo em figura de
espada, mostrava só a lâmina ou a folha, mas não
15 os cabos ou punhos dela; e isto mesmo que ocul-
tava, aparecendo, o faz mais tenebroso. Os punhos
e cabos da espada que vem do Céu, não os meneia
um só impulso, nem os governa uma só mão, senão
duas, uma invisível, outra visível; a invisível, que
20 é a de Deus, e a visível, que é a do inimigo; e sendo
que este se vê e conhece ou pela pessoa ou pela
nação; no caso do nosso cometa e da sua espada, se
ignora e encobre.
Antes da famosa batalha dos Hebreus contra o
25 exército de Madião, contava um soldado a outro
que vira em sonhos rodar do Céu um meteoro, o
qual, dando nas tendas do seu general, as derru-
bava e punha por terra; ao que, respondendo, o
companheiro disse: Non est hoc aliud, nisi gladius
50 Gcdeonis. Isto não é nem significa outra cousa,

26. Vid. Juízes, VIII. O que, segundo o texto bíblico,


o soldado contara era que em sonho lhe parecia ver um
pão de cevada cozido debaixo do rescaldo, que rolava
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

senão a espada de Gedeão, e verdadeiramente Ge-


deão era o que governava as armas dos Hebreus.
Deu-se enfim a batalha de noute, e as vozes que se
ouviram entre o som das trombetas eram somente:
5 Hic est gladius Domini et Gedeonis: Esta é a espada
de Deus e de Gedeão. De sorte que, sendo a espada
uma só e a mesma, os punhos e os cabos dela eram
meneados por duas mãos —
a de Deus e a de Ge-
deão. Porém, isto que pública e claramente se sabia
io daquela espada, na do nosso cometa está totalmente
oculto, porque, ainda que sabemos que uma das
mãos que a move é a invisível de Deus, a visível é
do inimigo, ou de Gedeão, que a há-de menear jun-
tamente, não sabemos qual seja ou qual haja de ser.
15 Este é o estado a que nos tem reduzido aquela
dificultosa política que há tantos anos observamos
depois da guerra universal de Europa. Não há nem
pode haver resolução mais cristã nas guerras que a
neutralidade; porque é querer paz com todos; mas,
20 debaixo desta resolução ou cristandade, está escon-
dido o maior perigo ou um dos maiores. Se não quero
fazer companhia, arrisco-me a ficar só, segundo a
sentença de Salomão: Vce soli. Se quero ser amigo
de todos, arrisco-me a ter a todos por inimigos,

para baixo e se deixava cair sobre o campo dos Madia-


nitas; e, tendo chegado a uma tenda, a sacudiu e con-
trastou e lançou de todo por terra. Respondeu o outro
[...] Isto não é outra coisa, senão a espada de Gedeão.
5. No texto não vem Hic est, ou seja — Este é.
Gladius Domini etc. traduz-se: A espada do Senhor e
Gedeão. Vers. 13 e 14; vers. 20.
23. Trad.: Ai do que está só!

45
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

segundo a sentença de Cristo: Qui non est mecum,


contra me est; e é terrível género de perplexidade
temer sem saber a quem, e bastando um só inimigo
para o temor, não haver algum entre tantos para a
5 cautela.
Isto é o que ameaça à Baía o seu cometa, enco-
brindo-lhe nos punhos da espada qual é a mão visí-
vel de que se pode recear. Onde deve muito advertir
o mesmo receio, que qualquer que for esta mão,
10 ainda que seja muito fraca, como há-de menear a
espada juntamente com a de Deus, é impossível
resistir-lhe.
O mesmo Gedeão que alcançou a famosa vitória,
era tão fraco, que actualmente se estava fazendo o
75 para fugir dos Madianistas; mas como a
alforje
espada com que pelejou era de Gedeão, e juntamente
de Deus, não teve resistência. E será grande des-
graça, Baía, que prezando-te de cristã, não enten-
das uma verdade que conhecerão até os Gentios.
20 O mais invencível homem que houve no Mundo
foi Aquiles, caldeado na lagoa Estígia, e por isso
impenetrável a todas as armas; e contudo matou-o
Páris, que nenhuma cousa tinha de valente. Porque?
Porque estando (dizem os Gentios) com a seta
25 embebida no arco para fazer tiro a Aquiles, veio o
deus Apolo, e, ajuntando a sua mão com a de Páris,

1-2. Trad.: Quem não é por mim é contra mim.


21. Aquiles foi um dos heróis mitológicos da guerra
de Tróia. Sua mãe, Tétis, mergulhara-o na lagoa Estígia
para o tornar invulnerável; porém, como ficasse sem ser
tocado pela água milagrosa o calcanhar por onde ela lhe
pegou, foi por aí que com uma seta o matou Páris, outro
herói troiano.

46
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

saiu de ambas a seta com tal força, que lhe não


pôde a suma valentia; o mesmo sucederá a
resistir
qualquer mão, por fraquíssima que seja, e que
mova os punhos da espada que vemos.
5 Isto é o que nos encobriu o cometa. Vejamos
agora o que nos descobre; assim como encobriu os
copos da espada, assim descobre a folha até à ponta.
E qual será, Baía, a significação?
Se, apartando os olhos do Céu, os ponho em ti,
10 parece-me que a significação é de guerra; porque
vejo que abres fossos e levantas muros. Mas quando
vejo nascer o cometa, como nasce entre os avisos da
aurora, entendo que se está rindo desta tua fábrica.
Os muros, como o cinto, não são muros enquanto
75 se não fecham; e quando a necessidade que há deles
espere os quarenta anos que demanda a obra, contra
o Céu, que combate lá de cima, não valem muros.
Mais te digo, e é que, considerando-te ou fingindo-
-te murada, ainda assim vestida de pedra e cal, te
20 não podem defender os teus muros; porque tu não
estás sempre onde eles te cercam. A Baía, como as
outras cidades do Brasil, só seis meses de ano estão
sobre a terra; os outros seis andam em cima da água,
indo e vindo de Portugal; e nesta campanha imensa
25 do Oceano mal te podem defender os muros que cá
ficam, não te digo só dos ventos e tempestades, mas
de outros perigos e encontros mais para temer que
os elementos; e como à ida nos teus frutos levas as
delícias para o gasto, e à vinda no retorno trazes as
30 vaidades para o luxo, não é tão devota esta nave-
gação, que convide à sua defensa os anjos da
guarda.
Qual será logo a verdadeira significação desta
espada?

47
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Diz Manílio que o certo juízo dos cometas se há-de


fazer,olhando para os sinais e para os efeitos:

Seu Deus instantis fati miseratus, in orbem


Signa per affectus, ccelique incendia mittit.

io Os efeitos que vimos na terra deste sinal do Céu,


foram três mortes mais repentinas que apressadas,
nas quais se compreenderam ambos os sexos, mas-
culino e feminino, e ambos os estados — eclesiástico
e secular; e o eclesiástico primeiro, porque Deus cos-
10 tuma começar os castigos por sua causa: Incipit
judicium a domo Dei. E se acaso tem parado estes
efeitos (o que eu não sei neste deserto), David decla-
rou com certeza o misericordioso motivo desta sus-
pensão: Nisi conversi fueritis, gladium suum vi-
75 brabit.
Este castigo é condicional e está Deus com a
espada levantada e ameaçando o golpe, esperando
a ver se nos emendamos; ou para ferir e cortar com
a espada, ou para a meter na bainha. Dizem os que
20 têm mais aguda vista que, assim como esta espada
escondeu os punhos, assim está com a ponta, ou
tocando ou apontando para a constelação chamada
Hidra.
A hidra é aquela bicha de sete cabeças que nasce
25 da água, como declara o mesmo nome, e por mar

3-4. Trad.: Ou Deus, compadecido da fatalidade imi-


nente, manda ao orbe sinais por meio de perturbações e
incêndios do Céu. Ob. cit. Lib. I, p. 27 vv. 25 e 26.
10-11. Trad.: Começa p castigo pela Casa do Senhor.
14-15. Trad.: Se não fordes convertidos, o seu gládio
há-de vibrar.
24. No Ms. da Biblioteca Nacional n.° 8579, que traz
o apógrafo deste escrito, vem uma nota marginal que
diz: São as doenças que há na Baía.

48
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

veio ao Brasil haverá dez anos. Como tem sete cabe-


ças e outros tantos venenos, por isso se não tem
atinado com a origem e qualidade do mal, nem com
o remédio dele; e se desde o princípio em que entrou
5 no Brasil esta bicha, continuara até hoje, quão des-
povoada e acabada estaria a Baía, e tudo o mais de
que ela é cabeça!
Isto é o que descobre a espada do Céu, e (com
particular mistério e energia) no mesmo tempo de
io outros descobrimentos. Quando íamos descobrir os
enganos da fama, descobriu-nos o Céu os desen-
ganos da vida; não estão as minas nos cerros, estão
no Céu. Estes ameaços do Céu também são e se
chamam minas; e o pior é que imos buscar o salitre
15 ao sertão, quando o deixamos na cidade. O salitre
de que se acendeu o fogo daquela espada, são os
pecados da Baía; e senão, ouça ela a prova desta
verdade no seu e tantas vezes alegado cometa,
.

quando apareceu o de 1618. Uns chamaram-lhe


20 terror e outros error dos que assim o cuidavam.
Vivia então Erício Puteano, o qual, excitando a
questão entre um e outro nome tão parecidos e tão
contrários, primeiro perguntou a si:

Error hic, an terror fallax, qui dira cometis


25 Fata dedit?

14. O que se pensava do salitre, sal de que se faz a


pólvora, diz-se na pág. seguinte, linhas 8-9.
21. Erício Puteano escreveu numerosas obras. Não
me foi possível, nas que pude haver à mão, encontrar
o passo citado por Vieira.
24-25. Trad.: Foi erro ou terror mentiroso que atribuiu
aos cometas funesta fatalidade?

49
Vol. VII - Fl. 4
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DÀ COSTA

E depois, respondendo tão prudente como cristã-


mente, concluiu com esta sentença:

Terror hic, haud error fallax: scelus omne cometa est.

Não é erro falso, senão terror verdadeiro, que causa


5 este cometa do Céu; porque os vapores com que ele
arde e de que o seu fogo se sustenta, são os pecados
que lá sobem da terra; e todo o pecado é cometa:
Scelus omne cometa est. O
salitre com que no In-
ferno arde o fogo e no Céu se acendem os cometas,
10 são os pecados: no Inferno os dos mortos, no Céu
os dos vivos; e este mineral não se cria nos cerros
e desertos inocentes do sertão, mas nasce e cresce
até o Céu, nos vícios e escândalos das cidades, tanto
mais, quanto mais populosas.
15 Olhe agora a Baía para o Céu e para si, e veja se
das suas portas a dentro, e fora delas, em todo o
seu Recôncavo, há pecados ocultos e públicos; e se
os achar, como achará muitos, e grandes, senão é
cega,não seja surda à voz de Deus, que com a
20 espada na mão lhe está bradando ao coração e aos
ouvidos. Mas se acaso não entender estes brados
(que para tudo há entendimentos na Baía, e não os
mais rudes), ouça com a atenção que o caso pede
os intérpretes da mesma voz de Deus, que são os
25 pregadores. O seu zelo, ajudado daquela espada de
fogo, será como o de Elias; e nesta ocasião por

3. É terror, não erro mentiroso: toda a maldade é


cometa.
17. Recôncavo é a bacia geográfica banhada pela
baía que dá o nome a cidade do Salvador.

50
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

eficácia dela ganharão e recuperarão as suas prega-


ções o fruto que em tantas outras costumam perder.
O maior milagre da eloquência que viu o Mundo,
foi quando, vindo Átila, rei dos Hunos, com podero-

5 síssimo exército deliberado a destruir Roma, o Papa


Leão I lhe falou com tal eficácia, que o fez desistir
da empresa e voltar atrás com todo o exército. E per-
guntado o bárbaro pelo motivo desta retirada tão
alheia da sua condição e soberba, respondeu:
io — Porque junto àquele homem vi outro, que com
a espada desembainhada me ameaçava a morte, se
lhe não obedecia: Quemdam alium, Mo loquente,
reveritum esse, sibi stricto gladio minitantem mor-
tem, nisi leoni obtemperarei.
15 Que poderá logo não persuadir aos ouvintes, por
bárbaros que sejam, um pregador cristão, quando
vejam juntamente, não a um homem, nem a um
anjo, senão ao mesmo Deus com a espada desem-
bainhada na mão, ameaçando a morte, a quem não
20 executar o que lhe ouvirem?
Agora, agora, oradores evangélicos, agora é o
tempo de aproveitar da ocasião! Assim o fez o
mesmo Cristo, quando em Jerusalém, caindo a Torre
de Siloé, oprimiu com a sua ruína e matou alguns
25 homens. —
Pois sabei —
disse o Senhor que —
aqueles que morreram, não eram os mais devedores,
mas para que os que estão endividados com Deus

4. Foi em
434 que este flagelo de Deus, como foi
chamado, invadiu as terras do Império do Oriente e do
Ocidente, tendo sido Santa Genoveva que o afastou de
Paris, como o Papa Leão I o afastou de Roma.
12-14. O texto é precedido da sua tradução.

51
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

por maiores pecados saibam que lhes há-de suceder


o mesmo, se não fizerem penitência: Putatis quia et
ipsi debitores fuerint prazter omnes homines habi-
tantes in Hierusalem? Non, dico vobis: sed si pozni-
5 tentiam non egeritis, omnes similiter peribitis.
Grande consolação para os interessados na morte
dos que derribou o primeiro golpe do nosso cometa,
e grande razão de temor para os que o mesmo Senhor
chama mais devedores, quando a divina justiça os
io vem executar com a espada na mão pelas dívidas!
Tertuliano, famoso jurisperito, diz que este é o
tempo de acudirem a Deus e de suspenderem a sua
ira com embargos os pregadores: Omnia hoec signa
sunt imminentis irce Dei, quam necesse est quoquo
15 modo possumus, annunciemus et preedicemus. Lem-
brem-se os pregadores, que não por outro, senão
pelo mesmo título, são médicos universais da repú-
blica; e quão grande crime seria do médico, se por
não entristecer o enfermo, lhe não declarasse o seu
20 perigo e o deixasse morrer sem sacramentos.
O santo Frei João Capistrano, tomando por tema
o cometa do ano de 1460, foi o Jonas de toda a
Germânia, e com o terror daquele sinal do Céu con-
verteu e ganhou para ele infinidade de almas. Ainda
25 é mais notável o exemplo que refere Santo Agos-
tinho da pregação de um bispo de Constantinopla,
em ocasião que sobre aquela cidade apareceu outro

2-5. Evang. de S. Lucas, XIII, 4 e 5. A tradução


deste passo é a que no nosso texto o precede.
13-15. Trad.: Tudo isto são sinais da iminente ira de
Deus, que nos é necessário, por qualquer modo possível,
anunciar e pregar.

52
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

cometa: Omnes ad ecclesiam conjugicbant: non


capiebat multitudinem locus: baptismum extorquc-
bat quisque a quo poterat: non solum in ccclesia, sed
etiam per domos, per viços et plateas salus sacra-
5 menti exigebatur, ut fugeretur ira non prcesens uti-
que, sed futura. Havia na cidade muitos gentios,
que, tendo conhecimento da lei de Cristo, não aca-
bavam de se fazer cristãos; mas à vista do cometa
e do que sobre ele pregava o zeloso prelado, todos
io fugiam para as igrejas, em que não cabiam, não só
pedindo o baptismo a vozes, mas obrigando por
força a que logo, logo, os baptizassem. E não espe-
ravam a ser baptizados na igreja pelos sacerdotes,
senão que em suas casas e pelas ruas se baptizavam
15 uns aos outros; e isto, diz o santo, não para fugirem
da ira de Deus presente, senão da futura.
Se isto fizerarn em Constantinopla os Gentios, que
será bem que façam os Cristãos na Baía? Se aque-
les temiam assim a Deus, à vista de um cometa
20 muito menor que o que vemos, onde está o nosso
temor e a nossa cristandade?
0 segundo baptismo dos Cristãos, depois de fal-
tarmos ao que prometemos no primeiro, é o sacra-
mento da penitência; e esta é a nova e urgente oca-
25 sião que nos dá o Céu, para que todos os que temem
a Deus examinem muito particularmente suas cons-
ciências e, confessando-se geralmente de todos seus
pecados com verdadeira contrição, esperemos todos,
assim preparados com humildade e resignação, o que
30 a divina justiça '(que sempre será misericórdia) se
servir ordenar de nós.

1-6. A trad. do passo vem adiante, da linha 9-16.

53
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Não sejam estas confissõescomo as ordinárias,


que, sendo tão frequentes na Baía, se vê delas tão
pouco fruto. Acabem-se os ódios, reconciliem-se as
inimizades, perdoem-se as injúrias, componham-se
5 as demandas, restitua-se a fazenda mal aquirida,
e a fama. Paguem os poderosos o suor que estão
devendo aos pequenos; cessem as opressões dos po-
bres,que clamam ao Céu, e cesse o luxo e vaidade
que se sustenta do seu sangue. Dêem-se as esmolas,
IO que muito aplacam a Deus, e não só aos que as
pedem pelas portas, senão também, e muito mais,
aos que a portas fechadas padecem necessidades.
Guarde-se a imunidade das pessoas, lugares e bens
eclesiásticos, que são próprios de Deus, que os dá e
15 os tira, e castiga como sacrílegos os que se atrevem
a tocar neles. Enfim, Baía, que se veja em ti tal
reforma de justiça, tal melhora de costumes e tal
emenda nas vidas, que assim como hoje te quadra
o nome de civitas vanitatis, assim mereças o de
20 civitas justi!
E porque a pecados escandalosos e públicos se
deve satisfação também pública, veja públicas peni-
tências o Céu em tuas ruas, e públicas deprecações
Cristo, Senhor e Redentor nosso, diante de seus
25 altares. Estas se devem fazer com maior aparato de
tristeza, compunção e arrependimento, que outros
exteriores. Em
todas as paróquias, em todos os con-
ventos religiosos e também em todas as casas par-
ticulares, em cada uma será bem se tome todos os
50 dias certa hora do dia ou da noite, em que se rezem
as ladainhas ou o terço do rosário ou outras orações;

19-20. Trad.: Cidade da vaidade... Cidade do Justo.

54
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

e que assista a este exercício toda a família, sem


excepção de pessoa; os senhores e os servos, os amos
e os criados, os pais e os filhos, e ainda os mais
pequeninos; para que ponha os olhos Deus na sua
5 inocência.
E não nos pareça que faremos muito, sendo cris-
tãos, pois os Ninivitas,que eram os gentios, até os
animais cobriram de cilício e fizeram jejuar e abster
dos pastos. Dizem muitos santos que a cidade de
io Nínive verdadeiramente foi subvertida, como Jonas
lhe tinha profetizado; porque a Nínive, que fez peni-
tência, já não era aquela cidade, senão outra muito
diversa. O mesmo sucederá, ó Baía, se tomares o
mesmo conselho; sê outra, e confia em Deus, cuja
15 condição se não muda; que, se te ameaça pecadora,
não te castigará penitente. Entende que o que pre-
tende Deus com o terror deste cometa, não é casti-
gar-te, senão emendar-te; e só te castigará, se te não
emendares. Ouve a Santo Agostinho, falando do
20 cometa de Constantinopla: Voluit Deus terrere civi-
tatem et terrendo emendare, terrendo convertere,
terrendo mundare et terrendo mutare.
Aquela espada de fogo, tão digna de causar horror,
pode cortar como espada e pode queimar como fogo.
25 Mudemos nós e emendemos a vida, que Deus mu-
dará e emendará a sentença. Não nos quer Deus
medir pelo seu supremo direito, senão sujeitar-se ao
nosso: Novit Deus mutare sententiam, si tu noveris
emendare delictum. Mostrar-se-nos armado, e com

20-22. Trad.: Quis Deus aterrar a cidade, e aterrando


emendar, aterrando converter, aterrando purificar, ater-
rando mudar.
28-29. Vid. Domini Aurelii Augustini Operum... Tomo
IX, 332-

55
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

espada na mão, quando não quer guerra, senão paz


connosco, é política do seu amor. Quer capitular
debaixo das armas, para tirar de nós melhores con-
dições.
Seja assim, e reduzamos todas as condições a uma
só: —
de nunca mais, nunca mais o ofender, de
nunca mais o desobedecer, de nunca mais o deixar,
de nunca mais o desagradar, de nunca mais querer,
desejar, estimar, nem amar cousa alguma desta
vida, nem ainda da outra, que não seja o mesmo
Deus por toda a eternidade, etc.

FINIS, LAUS DEO, VIRGINIQUE MATRI

5<5
VOZ APOLOGÉTICA

VIA SACRA POR OUTRA VIA


mais breve, mais fácil, mais segura, mais útil

Proémio

Com termos de perguntar e pedir (que são os


que mais obrigam), me manda V. S. dizer meu
sentimento acerca da nova devoção da Via Sacra,
tão bem recebida da nossa corte e tão estendida
5 e multiplicada, que já não cabe nela. A questão
não só é curiosa, mas útil, e, como logo se verá,
dificultosa, na qual eu antes quisera ouvir que res-
ponder. Mas como V. S. me protesta por parte do
aproveitamento de muitas almas, desejosas de seguir
io o melhor, sem imperfeição nem escrúpulo, não posso
eu deixar de satisfazer a tão pio e santo desejo,
dizendo sobre a proposta (salvo meliori judicio)
tudo o que sentir, com clareza e sinceridade, que
professo e devo.
15 Esta matéria, Senhor, posto que tão vulgarizada,
envolve muitos pontos não vulgares: uns perten-
centes à substância, outros ao uso, no qual uso a
mesma substância se pode corromper, se não for
tão regulada como convém. A uns e outros respon-
do derei neste papel (que não poderá ser tão breve

57
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

como eu quisera) . E para o fazer com a ordem e


distinção necessária, o dividirei em cinco partes.
Na primeira, examinarei a origem desta devoção
e os fundamentos dela. Na segunda, mostrarei suas
5 excelências, que são muitas e grandes. Na terceira,
apontarei os perigos e inconvenientes que podem
ocorrer no seu exercício. Na quarta, proporei os
remédios ou cautelas, com que se podem evitar ou
diminuir. E na quinta e última, redu-
finalmente,
zo zirei tudo a um
meio ou via também sagrada, com
que os mesmos e maiores frutos da Cruz, mais fácil
e mais seguramente se possam conseguir e lograr.
A suposição sobre que falarei não é nem pode
ser outra que o mesmo livrinho, intitulado Via
15 Sacra, que V. S. me remeteu, impresso aqui na
nossa língua e traduzido, como nele se diz, da cas-
telhana. Não traz nome de autor, e por isso me
fica maior confiança para dizer com liberdade meus
sentimentos, pois não posso adular nem ofender a
20 quem não conheço. Se em alguma cousa me apartar
do seu parecer, perdão é que nós damos e pedimos,
os que escrevemos: Veniam petimus, damusque
invicem; e cada um deve supor do outro que ama
mais a verdade que o seu juízo.
25 Porque se quão pouco posso fiar do meu, tudo o
que disser neste discurso, procurarei vá confirmado
com com Concflios, com San-
Escrituras Sagradas,
tos Padres, com a
doutrina dos teólogos mais clás-
sicos e com as antigas e modernas memórias da His-
30 tória Eclesiástica mais autêntica. Pelo que, arri-
mado a colunas tão sólidas e fortes, ninguém me

22-23. Trad.: Pedimos e damos reciprocamente vénia.

58
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. r ANTÓNIO VIEIRA

estranhará que faça pouco ou nenhum caso de


outras considerações aparentemente pias e verda-
deiramente fabulosas, que em voz ou em estampa
sc costumam semear indiscretamente nas orelhas
5 rudes do vulgo, sempre desejoso de novidades, de
cada uma das quais podemos dizer o que S. Jeró-
nimo: Favorabilis interpretatio mulcens aures po-
puli, non tamen vera.
Duvidei se me com citar à margem as
contentaria
10 autoridades que prometo, como em terras pouco
cultivadas da língua latina usam muitos escritores
de nossos tempos; mas como a matéria em algu-
mas partes é controversa e requer maior e mais
presente evidência dos testemunhos que se alegam,
15 julguei que não devia privar deles o corpo do dis-
que lhe dão vigor;
curso, pois são os ossos e nervos
e de tanto melhor vontade me
persuado a este modo
de contextura, quanto creio serão mais gratas à
erudição e gosto de V. S. as mesmas sentenças, ou
20 dos autores latinos na sua fonte original, ou dos
gregos e hebraicos na primeira, e menos remota
interpretação do que em qualquer outra da nossa
língua, por mais fiel que seja, em que, quando se
guarde a pureza da verdade, sempre se perde a
25 graça da energia.
E quando este papel passasse das mãos de V. S.
a sujeitos sem conhecimento de língua latina (ou
daquele conhecimento que só basta a entender o
sonido e não o sentido), nem por isso lhes será de
50 embaraço essa mesma lição. A este fim procurei

7-8. Trad.: Interpretação favorável, que acaricia os


ouvidos do povo, mas não verdadeira.

59
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que uma e outra língua vão escritas em diferente


e muito distinto carácter, e que fosse o discurso
tecido e seguido em tal forma, que, assim como os
que navegam o Oceano vêem no meio dele muitas
5 ilhas, e, sem as tocar, seguem direitamente sua der-
rota, assim os que lerem esta escritura, sem mais
diligência que deixar o que virem escrito de outra
letra e sem mudar nem perder o fio da narração,
entenderão em português muito claro tudo que nela
io se diz em latim algumas vezes escuro.
Deus nosso Senhor, por cujo maior serviço e
glória tomo este trabalho, pelos merecimentos de
sua sacratíssima Cruz e de sua Santíssima Mãe, que
tão constantemente o assistiu ao pé dela, se digne
15 de me mover nesta ocasião a pena com todo aquele
espírito e graça, quanto é necessária nas obras boas
para persuadir as melhores.

Primeira parte

CAPITULO I

Examinu-se a origem da devoção da Via Sacra


e fundamentos dela

O livrinho já alegado (que é o nosso texto) diz


na página sétima que a devoção da Via Sacra con-
20 siste em visitar doze cruzes, postas em diferentes
lugares, e caminhar por elas os mesmos passos que
Cristo, Senhor nosso, andou de casa de Pilatos até
ao monte Calvário; e na mesma página sétima e
oitava ajunta as seguintes palavras: A esta devoção

60
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. - ANTÓNIO VIEIRA

deu princípio a puríssima Virgem Mãe de Deus,


em Jerusalém, depois de ter deixado o seu aman-
tíssimo Filho sepultado em o santo sepulcro: nela
se exercitou todo restante de sua vida, que foram

5 quinze annos, conforme a opinião de alguns santos.


Ninguém pode haver tão rude ou tão injusto intér-
prete desta proposição, que, por ter dito que a
devoção da Via Sacra consiste em visitar doze cru-
zes e andar os mesmos passos que Cristo, nosso
io Senhor, andou, desde o Pretório de Pilatos, até o
monte Calvário, e sobre isso dizer que a Virgem
Mãe de Deus deu princípio a esta devoção no
mesmo dia da sepultura de seu benditíssimo Filho,
e a exercitou por toda a sua vida; ninguém (digo)
r5 haverá, que interprete tão rude e maquinalmente
esta proposição, que imagine diz ou quer dizer seu
autor, que a Senhora levantasse na cidade de Jeru-
salém outras dozes cruzes, para fazer nelas ou por
elas as mesmas estações. O que se quer dizer (e o
20 menos que se pode dizer) é que a Virgem, em todo
o tempo de sua vida, visitava aqueles santos luga-
res de Jerusalém com suma reverência e piedade,
pelo mesmo modo com que diz o tinha feito depois
de o deixar sepultado. E isto é o que eu somente
25 suponho.
A verdade, pois, desta história, assim quanto ao
princípio dela no dia da sepultura do Senhor, como
quanto à continuação do mesmo exercício por toda
a vida de sua Santíssima Mãe, é o que agora have-
30 mos de examinar; e para o fazer com a exacção
que a matéria e sua antiguidade requer, no dis-
curso de tantos anos, quantos a Senhora sobreviveu
à morte de seu benditíssimo Filho, ainda que não
fossem mais que quinze, segundo a opinião que

61
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

segue o autor, será necessário distinguir miuda-


mente este mesmo tempo; porque só tomado por
partes se poderá averiguar com clareza e sem confu-
são o muito ou pouco fundamento com que tudo o
5 referido se afirma.
Compreendendo assim todo o sobredito tempo
dentro dos limites que se supõem, desde seu prin-
cípio até o fim, a mais cómoda divisão que se pode
e deve fazer, segundo o que lemos no Evangelho
10 e fora dele, é distinguindo as cinco diferenças ou
partes seguintes:
A primeira, desde o ponto em que Cristo, Senhor
nosso, foi enterrado na sepultura até a manhã de
sua Ressurreição.
15 A segunda, desde o dia da Ressurreição até o
oitavo, em que o Senhor apareceu a Santo Tomé
com os outros apóstolos e lhes mostrou as chagas.
A terceira, desde este dia por todo o resto dos
quarenta até a Ascensão.
20 A quarta, desde o dia da Ascensão até o dia da
vinda do Espírito Santo.
A última, desde a vinda do Espírito Santo até o
dia do trânsito e Assunção da Senhora.
Se neste tempo se contaram quinze ou mais anos,
25 posto que esta segunda opinião seja mais comum e
recebida, é questão que não faz ao caso. O que
sinto e digo sobre a presente é que assim o haver
dado a Virgem princípio à devoção da Via Sacra,
como o haver continuado o mesmo exercício por
jo todo o restante de sua vida, uma e outra cousa se
afirma sem fundamento, nem certo, nem provável,
nem ainda verosímil, como agora provarei por
tempos e partes da divisão proposta.

62
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

CAPITULO II

Mostra-se que a Senhora não deu princípio à devo-


ção da Via Sacra depois da sepultura de seu Filho,
nem até a manhã da ressurreição

Posto que esta conclusão seja negativa, e de sua


natureza, como as mais deste género, dificultosa de
provar, nós a provaremos fàcilmente coarctando o
tempo, e não com uma testemunha, senão muitas, e
5 todas maiores de toda a excepção. A primeira seja
o evangelista S. João, o qual ao pé da cruz, cons-
tituído herdeiro de seu Divino Mestre e filho segundo
de sua Santíssima Mãe, com o morgado de a ampa-
rar e servir, diz expressamente, que desde aquela
io hora a recolheu e levou para sua casa: Et ex illa
hora accepit eam discipulus in sua. A palavra sua,
sem outro substantivo ou adito, quer dizer sua casa:
por onde muitos comentadores trasladam In —
suam domum. Com a mesma frase disse o mesmo
15 S. João que, na Encarnação do Verbo, viera Deus
a sua casa, e que os seus o não receberam: In pró-
eum non receperunt. Porque, ainda
pria venii, et sui
que Deus é Senhor de todo o Mundo, o povo de
Israel era a sua casa particular, que ele tinha fun-
20 dado desde Abraão; e do mesmo termo usa a Igreja
no Itinerário, onde os que peregrinam pedem a
Deus os torne a trazer a sua casa em paz: Ut cum
pace, salute et gáudio revertamur ad própria.

10-11. Trad.: E desde aquela hora o discípulo a teve em


sua casa.
22-23. Trad.: E com paz, saúde e alegria voltemos para
casa.

63
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

Nem faz contra esta inteligência, que é a mais


literal, o reparocom que argúi Beda que S. João
não tinha casa, pois era um dos que disseram:
Ecce nos reliquimus omnia, porque a casa que
5 S. João chama sua, era a de Maria Salomé, viúva
de Zebedeu, sua mãe, com a qual o filho vivia.
E posto que não fosse a casa sua quanto ao domí-
nio, era sua quanto à habitação; e para esta casa
recolheu e acompanhou S. João a Senhora, como
io ele diz, desde aquela hora; porque as horas dos
Hebreus constavam de três horas das nossas, e
Cristo espirou pouco depois, à hora da nona, e foi
sepultado à da véspera.
Dirá alguém, porventura, que, ainda que S. João,
15 desde aquela hora, acabados os ofícios do enterro,
levasse e acompanhasse a Senhora até sua casa,
ou neste mesmo caminho ou depois, podia a pie-
dosíssima Virgem ir dar princípio à sua nova devo-
ção da Via Sacra, e fazer as estações dela desde o
20 Pretório ao Calvário. Mas este subterfúgio imagi-
nário, além das incoerências e indecências que
contém, como abaixo veremos, se desfaz com outras
autoridades muito mais expressas e claras, que
agora referiremos, e todas ou por boca ou da boca
25 da mesma Senhora.
No capítulo décimo do primeiro livro das Reve-
lações de Santa Brígida apareceu a esta santa a
Virgem Maria, e, depois de lhe referir com parti-
cularidade tudo o que seu Filho e a mesma Senhora
50 tinham padecido na sua paixão, chegando final-
mente ao descendimento da cruz e sepultura, conta

4. Trad.: Eis que abandonamos tudo.


21. Por indecências entenda-se coisas inadequadas.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTÓNIO VIEIRA e

desta maneira o que ali passou: Ego cum linteo mm


extersi vulnera et membra ejus; et clausi óculos
et os ejus, quce in morte fuerunt aperta; deinde
Posuerunt eum in septdchro. O quam libenter posita
5 fuissem viva cum Filio meo, si fuisset voluntas ejus!
His completis, venit ille bónus Joannes, et duxit me
in domum: Eu —
diz a Senhora com a minha —
toalha enxuguei as chagas de todo o corpo de meu
Filho, e lhe cerrei os olhos e a boca, que na morte
io ficaram abertos; e depois o puseram na sepultura.
Oh quão de boa vontade eu me sepultaria viva com
o meu Filho, se fosse essa a sua vontade!
Acabadas estas cousas, chegou-se junto a mim o
bom João, e levou-me para casa. Veja-se agora se
15 a Senhora fora dali ao Pretório de Pilatos, e do
Pretório por tantas ruas de dentro e fora de Jeru-
salém ao monte Calvário, onde ainda estava levan-
tada a cruz, e a terra banhada no sangue fresco
do seu Filho, se o diria também! Pelo mesmo modo
20 fala a Senhora na tragédia da Paixão, que escreveu
há mil e trezentos anos o grande doutor da Igreja
•S. Gregório Nazianzeno, chamado por antonomásia

o Teólogo. Despede-se ah a Virgem de seu Filho,


deixando-o no sepulcro, e diz assim:

25 En, te relicto, Nate, solo, excedimus


Eam ipsam in aedem destinatam foeminis,
Et aedem, cui in provinciam
Filii
Me Nate, cum nos aequius
tradidisti,
Esset sepulchro in valle juxta assistere.
(Naz. Trag. de Chr. Pat.)

7-1 1. O presente texto é a tradução do passo que o


precede com excepção das duas últimas linhas, cuja tra-
dição é: Feito isto, veio aquele bom João e levou-me
para casa.

VoL VII — Fl. 5


COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Apartamo-nos, Filho, de Vós, deixando-Vos só, e


nos retiramos à casa destinada para as mulheres,
que é a mesma casa daquele filho, a cujo cuidado
e governo Vós, meu Filho, me entregastes, quando
5 fora mais justo que eu me não apartasse deste vale,
e assistisse de mais perto à Vossa sepultura.
Assim diz a Senhora naquela famosa tragédia
grega, intitulada Christus Patiens. E noutro diálogo
também da Paixão, escrito por Santo Anselmo,
10 em que as pessoas que falam são a Virgem Maria
e o mesmo Santo, diz à Virgem estas palavras:
Et cum Joannes me ad civitatem ducere vellet,
et a sepulchro amovere, lacrimans rogavi: Chore
Joannes, non farias mihi injuriam, ut me separem
i§ a dulcíssimo Filio meo Jesu, quoniam hic expectare
vellem, donec moriar. Et iterum omnes fleverunt;
Joannes vero me tandem in civitatem introduxit.
E querendo-me João levar para a cidade e apar-
tar-me do meu dulcíssimo Filho, Jesus; porque qui-
20 sera ficar aqui com ele até morrer. Choraram todos
outra vez; porém João finalmente me introduziu
na cidade.
Note-se a palavra introduxit, a qual inclui a jor-
nada do Calvário, que não estava dentro da cidade,
25 senão fora e longe.

Tradução dos versos precedentes.


1-6.
18-22. A trad. que vem no texto de Vieira está muti-
lada. Ei-la na íntegra: E como João me quisesse conduzir
à cidade e afastar-me do sepulcro, pedi, com lágrimas:
Querido João, não me faças a injúria de me separar do
meu dulcíssimo filho, Jesus, pois aqui desejaria ficar, até
morrer. Choraram todos, etc. (como no texto).

66
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. c ANTÓNIO VIEIRA

Destes dois testemunhos tão expressos de S. Gre-


gório Nazianzeno e Santo Anselmo, um grego, outro
latino; um antiquíssimo, outro menos antigo, e tão
uniformes em tudo, se colige com moral evidência
5 ser istomesmo que dizemos comum sentir, e como
tradição da Igreja em todos os tempos: nem dois
padres da mesma Igreja de tão eminente doutrina
e santidade atribuiriam tais palavras à Mãe de Deus,
referindo-as por sua boca, e em seu nome, se as
10 não reputaram por muito certas, qualificadas e ver-
dadeiras, e dignas de tão soberano e infalível
Oráculo.
E porque não pareça que desprezamos as autori-
dades e conjecturas modernas, entre as muitas que
15 pudera alegar, quero só pôr aqui a do P. e Cornélio
à Lápide, um do mais literais e sólidos comen-
tadores da Escritura do nosso século, por ser fun-
dada no Evangelho e na mesma história do sepul-
cro de Cristo.
20 Diz o Evangelista S. Mateus que entre as mulhe-
res devotas que seguiram e acompanharam o Se-
nhor, assistiram no Calvário Maria Madalena, Maria
Jacob e Maria Salomé, mãe dos filhos de Zebedeu;
e depois que José depositou o Sagrado Corpo no
25 sepulcro e o cerrou com aquela grande pedra e se
apartou dali, acrescenta logo o Evangelista, que
Maria Madalena e a outra Maria estavam assen-
tadas defronte do mesmo sepulcro: Eral autem ibi
Maria Magdalena et altera Maria, sedentes contra
'
50 sepulchrum. Onde se deve reparar, e com muito
fundamento, por que razão sendo as Marias três,
Madalena, Jacob e Salomé, só as primeiras duas
ficaram ali assentadas, e a terceira não? Ao que se
responde que a terceira Maria era Maria Salomé,

67
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mãe de S. João, a qual não ficou com as outras,


porque acompanhou e levou a Senhora para sua
casa. E esta é a segunda conjectura, em que mais
se firma o dito autor: Videtur ergo quod mater

5 filiorum Zebedcei, scilicet, Salomé, videns Jesum a


viris sepeliri, quasi non habens, quod ultra Jesu
impenderet, moesta domum redierit, aut Beatam
Virginem domum reduxerit. E verdadeiramente que
se não pode assinar outra razão de diferença mais
io provável, e mais natural do caso; pois esta Maria
nem era menos devota, nem menos obrigada ao
Sepultado que as outras duas, e só o fazer compa-
nhia a sua Santíssima Mãe e a levar para sua casa,
a podia apartar louvàvelmente das outras e da con-
75 templação do sepulcro.

CAPITULO III

A estes testemunhos de autoridade se acrescentam


outros motivos de necessidade e decência

O primeiro motivo de necessidade foi achar-se a


Senhora naquela hora mui diminuída e enfraquecida
de forças, e não capaz, ainda que quisesse, de tornar
ao lugar do sepulcro, ao Pretório de Pilatos e dali
20 ao monte Calvário, e desde outra vez a casa de

4-8. Trad.: Parece pois que a mãe dos filhos de Zebe-


deu, ou seja Salomé, vendo que Jesus era sepultado pelos
homens, como se não tivesse, além de Jesus, nada mais
de que cuidasse, ou voltou, triste, para casa, ou acompa-
nhou a casa a Bem-aventurada Virgem.

68
OBRAS ESCOLHIDAS DO P; ANTÓNIO VIEIRA

S. João; nem omesmo S. João, a quem devia


novos respeitos, nem sua mãe e os demais lho con-
sentiriam.
Tinha a Virgem Santíssima passado toda a noite
5 antecedente não só em vigia, mas com aflição e
angústia das novas da prisão de seu Filho, levado
com tanto tropel de justiças aos tribunais de ambos
os pontífices.,com a viva consideração das afrontas
e injúrias que neles e pelas ruas padecera, vendido
10 de um discípulo e desamparado de todos. Tinha
com coração de Mãe, e tal
assistido todo aquele dia
Mãe, às duas lastimosíssimas tragédias dos açoutes
e coroação de espinhos, à pronunciação da cruel
sentença e ao horrendo espectáculo da execução
15 dela, vendo sair o seu Filho entre dois ladrões com
o afrontoso madeiro às costas, e caído com o peso
diante de seus olhos. Tinha perseverado em pé ao
pé da cruz com a alma crucificada nela, encravada
com os mesmos cravos, atormentada com os mes-
20 mos tormentos, afrontada com as mesmas afrontas
e morta com a mesma morte, e só viva para a poder
sentir e chorar dignamente, quanto só ela conhecia.
Enfim, havia vinte e quatro horas nesta hora, que
aquela virginal humanidade, a mais delicada que
25 Deus criou neste Mundo, excepta só a que ela criou
a seus peitos, sem alimento, sem alívio e sem mo-
mento de descanso, estava atravessada com a espada
que lhe profetizou Simeão, a qual não era outra
senão a que em três horas acabava de tirar a vida
30 ao mais forte de todos os filhos dos homens. E quem
hcfverá que se persuada, ou creia, que um corpo tão
fatigado, e mais quando deixava a alma no sepul-
cro, tivesse forças nem passos para andar tão com-
pridas estações, nem ainda coração para as repetir?

69
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

Tudo o que tão longe podia ir buscar a desconso-


lada Mãe, eram as relíquias do sangue preciosíssimo
do Filho de Deus e seu; mas essas levava a Senhora,
consigo, igualmente unidas à divindade do sangue
5 que tinha recolhido, como fica dito, quando lhe
enxugou as feridas. Com este se podia consolar ou
magoar; pois não era suposto, corno o da túnica
de José, mas o próprio das veias de seu Filho,
tomado em suas entranhas em outro tal dia como
io aquele. E com esta consideração é mais de crer
passaria então a Senhora de Jerusalém a Nazaré,
que com o corpo tão debilitado outra vez ao Cal-
vário.
Santa Brígida, por revelação da mesma Virgem,
75 S. Boaventura, S. Bernardo, S. Lourenço Justi-
niano e outros graves autores, referem vários passos
em que a Senhora, posto que constantíssima no espí-
rito, vencida do peso da dor e enfraquecida das
forças corporais, ou totalmente caiu em terra, ou
20 foi necessário que a sustentassem, para que não
caísse. E nomeadamente Adricómio e outros cosmó-
grafos da Terra Santa escrevem que, na subida do
monte Calvário, se vêem ainda hoje as ruínas de
uma igreja, chamada Santa Maria de Espasmo, edi-
25 ficada naquele lugar em memória, como é tradição,
de um notável delíquio que ali padeceu a Mãe San-
tíssima.
Nesta suposição, é ainda mais evidente a demons-
tração de que, depois de tantas horas e tantos passos

21. Adricómio escreveu Theatrum Terrae Sanctae et


Biblicarum Historiarum. Colónia, 1722.

70
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

de maior aflição e pena, quantos sucederam desde


a cruz até o sepulcro, não ficaria a Senhora com
vigor nem alento para começar, nem intentar de
novo tão trabalhosa e dilatada peregrinação.
5 Mas porque estes efeitos exteriores, posto que não
pertencem à perfeição e virtudes do espírito, senão
à enfermidade natural do corpo, ainda assim são
controversos entre excelentes teólogos, eu me con-
tenteide indústria com o que somente referi acima,
io de que ninguém duvida. E basta para abundantís-
sima prova deste primeiro motivo.
O segundo não é menos eficaz; porque pertence à
modéstia e decência pessoal de tão soberana Majes-
tade. Quando se acabaram os ofícios do sepulcro,
15 era o fim do dia e princípio da noute; porque, depois
de o Senhor espirar à hora de nona, que são as
da tarde, foi José ab Arimatea pedir licença a
três
Pilatos para depor da cruz o sagrado Corpo. Man-
dou Pilatos certificar-se por um capitão da sua
20 guarda, se verdadeiramente estava já morto; fez-se
o exame no Calvário, veio a resposta, deu-se a
licença (que noutro passo seria negócio e despacho
de muitos dias), comprou José holandas e Nicode-
mos mirra e aloés para envolver e ungir o Defunto,
15 segundo o uso daquela nação; fez-se a vagarosa
função do descendimento da cruz e deposição do
corpo. Ungiu-se, envolveu-se, levou-se ao sepulcro;
em tudo isto se gastaram as outras três horas,
e
que só restavam em vinte e cinco de Março. Com
50 que é certo que, ao cerrar o sepulcro, se cerrou
também o dia, e sobreveio a noute. Assim o obser-
vou S. Gregório Nazianzeno, na tragédia acima
citada, onde introduz a Senhora encomendando a

71
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

diligência, porque se chegava a noute, com estas


palavras:

At obsecro vos, quotquot hic estis, una


Manu hoc in unum incumbite ocius,
5 Nam res requirit, noctis et crepusculum.

(Naz. sup.)

S.Marcos diz que, quando veio José, era tarde:


Cum jam sero esset, venit Joseph; e S. João dá
por razão de se tomar o sepulcro de José, e não
10 outro, o estar perto a se acabar o dia do Pares-
ceves: Ibi ergo propter Paresceven Judceorum, quia
juxta erat monumentum, posuerunt Jesum.
De sorte que, quando a Senhora se despediu do
sepulcro, começava já a noute, e de nenhum modo
15 era decente à modéstia e recato de tal Pessoa, que
de noute andasse pelas ruas de Jerusalém e de noute
saísse fora das portas da cidade e se metesse, posto
que com bom intento, por estradas de tão mau
nome, e que por entre ossos e caveiras de justiçados
20 subisse a um lugar tão funesto e medonho, onde só
se atrevem a ir àquelas horas mulheres de vida per-
dida e de artes suspeitosas. O lugar já estava san-
tificado, a jornada era pia e santa, mas a hora
intempestiva e indecente. E para que nos dê a

3-5. Trad.: Aías peço-vos, a quantos aqui estais, apli-


cai-vos só a isto, e em perfeita união, porque assim o exige
o que cumpre fazer e o crepúsculo nocturno.
7. S. Marcos, XV, 42.
11 -12. Trad.: Em do Parasceves (Pre
razão de ser o dia
paração) dos Judeus, depuseram a Jesus neste sepulcro,
porque estava próximo. S. João, XIX, 42.

72
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.< ANTÓNIO VIEIRA

prova a mesma Senhora no mesmo dia, e com as


mesmas circunstâncias, consultemos o mesmo divino
Oráculo, e ouçamos o que responde.
No diálogo já alegado da Paixão, pergunta Santo
5 Anselmo à Virgem Maria, se na noute antecedente
responde a Virgem, que não.
assistira a seu Filho; e
Pois, piíssima Senhora —
insta o Santo —
se Vós O
amáveis tão entranhàveknente, porque O não assis-
tistes em uma noute tão trabalhosa? —
Porque era
10 noute —
respondeu a Senhora —
e não era conve-
;

niente que àquela hora se achassem mulheres fora


de casa. Enfim, perguntada em que casa estava en-
tão, respondeu, que na casa de sua prima, a mãe
de João Evangelista.
15 As palavras do dito diálogo com as mesmas per-
guntas e respostas entre Anselmo e Maria, são as
que se seguem:
Anselmus: Dic, piissima mater, fuisti tunc cum
itto?
20 Maria: Non.
Anselmus: Quare, cum eum tantum diligeris?
Maria: Instabat nox, et non expediebat, ut mu-
lieres tunc foris inuenirentur
Anselmus: Ubi ergo, dulcíssima, fuisti tunc?
25 Maria: Fui in domo sororis mece matris Joannis.
Evangelistce.
E se naquela noute, em que o Senhor, desampa-
rado de todos, tanto padeceu, foi conveniente que
prevalecesse o recato e modéstia da Mãe a todas as
30 razões e impulsos do amor com que desejava ar-
dentemente ir assistir a seu Filho, só porque não
era decente andar fora de casa de noute, ainda que
fosse, como era, dentro da cidade, que decência
seria, ou que razão podia haver, para que a mesma

73
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Senhora, quando seu Filho já não padecia e des-


cansava no sepulcro, onde o deixava, fosse de
noute, não buscá-lo a ele, senão os lugares em que
tinham estado, e não só dentro da cidade, senão
5 fora dela, e por estradas tão pouco seguras e cheias
de horror, como as daquele monte, até de dia
funesto e temeroso?
Assim que, de tudo o sobredito, não só por tan-
tas autoridades e Escrituras, mas pela impossibili-
TO dade moral da Senhora e pelo decoro e decência
(que sempre se deve observar e supor era todas suas
acções), se conclui manifestamente não ser certo
nem provável, nem ainda verosímil, que a Virgem
puríssima, como se diz no lugar citado, desse prin-
15 cípio à devoção da Via Sacra em Jerusalém, depois
de ter deixado a seu amantíssimo Filho sepultado
em o santo sepulcro. O mais que chegam a dizer
alguns contemplativos é que a Senhora, vindo do
sepulcro, que estava junto à cruz, a adorou, etc.

CAPÍTULO IV

Prossegue-se a demonstração acima até a manhã


da ressurreição

20 Desde a hora do sepulcro do Senhor até a manhã


de sua ressurreição, intervieram duas noutes e um
dia: a noute da sexta-feira para sábado, e o dia
do sábado, que logo se seguiu, e a noute do sá-
bado para o domingo. De uma e outra noute não
25 é necessário falar, porque já fica provado que a
Senhora não fez aquela peregrinação de noute; que
a não fizesse naquele dia, nem andasse nele os

74
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

passos da Via Sacra, ó ainda mais certo e mais


evidente, por ser sábado, e tal sábado. A Santís-
sima Virgem, como Santíssima, e como Mãe da-
quele Filho, que disse: Non veni solvere legem, sed
5 adimplere, era observantíssima da Lei, a qual
ainda então não estava derrogada, nem publicada a
nova; e um dos preceitos do sábado era que nin-
guém pudesse andar em tal dia, mais que certo
número de passos, o qual número se chamava cami-
10 nho de sábado, como se lê nos Actos dos Apóstolos:
...qui est juxta Jerusalém, sabbati habens iter; e
a esta limitação de passos aludiu Cristo, quando,
profetizando a ruína de Jerusalém e a fugida de
seus moradores, disse: Orate, ut non fiat fuga ves-
15 tra in hyeme, vel sabbatto. Vejamos agora quan-
tos eram os passos que determinava o preceito do
sábado, e quantos os passos que havia do Pretório
de Pilatos até o monte Calvário.
S. Jerónimo, na Questão Décima da Epístola a
20 Algazia, alegando a Rabi Akabi e Rabi Simeon e
Rabi Hellel, define que no sábado se podiam so-
mente andar dois mil pés naturais, que fazem qua-
tro centos passos. Adricómio, na sua diligentíssima
e exacta descrição da cidade de Jerusalém, diz que
25 do Pretório de Pilatos até o monte Calvário há mil
trezentos e vinte e um passos. Logo, não podia a
Senhora andar naquele dia todo este caminho, nem

4-5. Trad.: Não vim derrogar a Lei, senão dar-lhe


cumprimento. S. Mat., V, 17.
11. Trad.: ...que está perto de Jerusalém, à distância
da jornada dum sábado. Act. dos Apóst., I, 12.
14-15. Pedi que se não realize a vossa fuga no Inverno
nem ao sábado. S. Mat., XXIV, 20.

75
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

instituir ou continuar nele por si mesma a Via


Sacra, senão quebrando a Lei, a qual é a primeira
e a maior de todas as devoções, e não se deve dei-
xar nem violar por nenhuma outra. E como se não
5 possa dizer sem blasfémia, nem imaginar sem erro,
que a Senhora quebrava a Lei, a qual devia guar-
dar por razão do escândalo, ainda que estivesse
desobrigada dela, como guardou a da purificação,
segue-se que nem andou nem podia andar naquele
10 dia os passos da Via Sacra, que se supõe ter an-
dado, e continuado sempre. E deste mesmo princí-
pio se confirma irrefragàvelmente, que nem aca-
bada a função do sepulcro, pôde andar os mesmos
passos; porque o sábado, e a sua observância ao
15 pôr do Sol do sábado, e a função do sepulcro
acabou ao pôr do Sol.
Confirma-se esta observância da Senhora com as
das três Marias, das quais diz o Evangelista que,
tanto que vieram do sepulcro, preveniram logo os
20 unguentos e espécies aromáticas, para irem ungir
o Senhor, como foram, na madrugada do domingo;
porém que ao sábado não saíram de casa por obser-
var o preceito: Revertentes, paraverunt aromata et
unguenta, et sabbato quidem siluerunt, secundum
25 mandai um.
Note-se a palavra siluerunt, calaram-se; porque
na frase hebrea calar-se significa não se mover.
Quando Josué mandou para o Sol, dizendo: Sol,
ne movearis, no hebreu está: Sol, tace; e quando

23-25. Trad.: De volta, prepararam os aromas e bál-


samos, e no sábado estiveram em repouso, segundo a Lei.
S. Lucas. XXIII, 56.
28-29. Trad.: ô Sol, não te movas. Sol, cala-te.

76
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Cristo, na barca de S. Pedro, mandou parar a


tempestade, também disse ao mar; obmutesce.
De maneira que as Marias, com serem
tão devotas
e fervorosas, que antecipavam a prevenção dos un-
5 guentos no dia antes, e no dia depois, não espera-
ram que amanhecesse de todo para ir ungir o
sagrado Corpo; contudo em todo o dia do sábado,
por observância do preceito, nem para visitar o
sepulcro e se consolar com sua visita se moveram
10 ou deram um passo; para que se veja se a Senhora,
que era a que dava e devia dar maior exemplo,
excederia tanto os passos da Lei, e a quebrantaria
pública e escandalosamente em dia por todos os
títulos tão sagrado, só pela devoção da Via Sacra!
15 Não seria a Virgem imaculada, se tal via fizesse
ou andasse contra a Lei de Deus; pois só dos que
andam pela via da mesma Lei, tinha dito seu pai
David: Beati immaculati in via, qui ambulant in
lege Domini.
20 S. Gregorio Nazianzeno, seguindo esta mesma
doutrina, na sua tragédia introduz as pessoas de
que se compunha o coro dela, exortando-se a que
se recolhessem do sepulcro a observar a lei do sá-
bado, que começava ao pôr do Sol da sexta-feira.
25 Além deste primeiro e principal motivo, acrescentam
o do temor e perigo de serem presas ou maltratadas
pelos inimigos de Cristo, que então andavam tão
furiosos. Mas esta razão, que também era muito
considerável naquelas circunstâncias, ficará para o

2. Trad.: Emudece.
18-19. Trad.: Bem-aventurados, no caminho, os que
andam na lei do Senhor. Salmo CXVIII, 1.

77
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

capítulo seguinte, onde tem seu próprio lugar.


As palavras de Nazianzeno são estas:

Probe mones tu, nec secus quam dixeris


Fiet, eonunc nos, o Hera, ire nos convenit,
5 Ut sepulchro non remotae longius
Quidquid erit observemus, et totum diem
Demus quieti crastinum, ut lex praecipit.

E dois versos mais abaixo:

Cernite profectae hinc vos ut obsequamini


IO Mori recepto; eamus, et demus locum
Prius sepulchro, quam hostium aliquis proximus
Nos deprehendat.

E alguém quiser saber qual foi o exercício da


se
Mãe Santíssima em todo aquele dia, digo que o do
75 dia e o de uma e outra noute foi o da consideração
da sua soledade com todos aqueles afectos .de dor,
de ternura, de mágoa, de amor e de saudade, que
a memória e ausência de um tal Filho podia excitar
no coração de tal Mãe. Assim o celebra e lamenta
20 justamente a piedade dos fiéis em muitas igrejas da
Cristandade; e parece que o mesmo S. João, que
acompanhou a Senhora, o viu assim no seu Apoca-
lipse. Viu primeiramente aquela grande mulher, a

3-7. Trad.: Bem


aconselhas, Senhora, e nada em con-
trário do que dizes se fará, que nos convém ir para tal
lugar que, não muito afastados do sepulcro, observemos
tudo o que acontecer e consagremos todo o dia ao repouso,
como a Lei preceitua.
9-12. Trad.: Apartai-vos daqui, para que obedeçamos ao
costume estabelecido: vamos e deixemos o sepulcro, antes
que qualquer dos do partido dos inimigos nos surpreenda.

tf
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. c ANTÓNIO VIEIRA

quem chama Milagre do Céu; viu que com grandes


dores paria um filho, a quem esperava tragar um
dragão, mas ele lhe escapava das unhas: e viu que
logo se davam à mesma Mulher duas asas de uma
5 grande águia, com que ela se retirava para um
deserto. A mulher é a Virgem Mãe; as dores do
parto, as que padeceu ao pé da cruz; o dragão, a
morte de seu Filho, da qual escapou ressuscitado;
as asas da grande águia, o amparo de S. João, que
10 retirou a Senhora para sua casa; e a mesma casa
o deserto, onde naquele dia e naquelas duas noutes,
passou em soledade. E esta é a devoção em que a
Virgem Maria, não com os passos do corpo, mas
com os da contemplação e do espírito, correu muito
l§ devagar, e só consigo e com seu Filho, não somente
a Via Sacra do Pretório ao Calvário, mas todos os
outros lugares e estações igualmente sagrados e con-
sagrados com o Sangue e tormentos de sua Paixão.
Nem com a morte de Cristo, nem com a sua
20 ressurreição cessou o perigo e temor dos que o
seguiram, antes cresceu mais a tempestade. No dia
do sábado, depois de morto e sepultado o Senhor,
foram os príncipes dos sacerdotes e fariseus ern
corpo de tribunal (como escreve S. Mateus) pedir
25 soldados a Pilatos, para que fossem guardar o se-
pulcro, alegando que se lembravam que aquele
Enganador (assim chamavam a quem lhes pregava
a verdade) tinha dito, estando ainda vivo, que
havia de ressuscitar ao terceiro dia; e que temiam
50 que seus discípulos o roubassem, e dissessem que
era ressuscitado. No dia seguinte, que foi o da
ressurreição, sendo avisados dela pelos mesmos sol-
dados e do que tinha sucedido no sepulcro, fizeram
novo conselho e. assentaram que subornassem com

79
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dinheiro os soldados e lhes prometessem segurança


de Pilatos, para que afirmassem que, estando eles
dormindo, vieram com efeito os discípulos, e viram
tinham roubado o corpo. Não contentes, como diz
5 S. Severino, de ter morto o Mestre, e maquinando
também de destruir aos discípulos: Non contenti
interfecisse Magistrum, discípulos etiam perdere
moliuniur, criminados desta forma, e divulgado
por esta cidade o crime, e provado com tantas tes-
10 tem unhas que, para o intento dos juízes, tanto im-
portava serem falsas como verdadeiras, foi tão
grande o temor dos Apóstolos, que todos onze ao
oitavo dia, em que o Senhor foi reduzir a incredu-
lidade de Tomé, estavam escondidos em uma casa,
15 e com as portas trancadas, como refere S. João:
...et fores essent clausce, ubi erant discipuli congre-
gati propter metum judceorum... E quando os dis-
cípulos tinham tão justas causas para não ousarem
a sair, nem aparecer em público, bem se vê que
20 não seria prudência, senão temeridade, que o fi-
zesse a Mãe, expondo-se a si e a eles, e neles a toda
a Igreja (que então consistia em tão pequeno reba-
nho) à fúria e voracidade dos lobos, que tão desa-
finadamente raivavam pelos acabar e consumir.
25 Já tinham metido em uma torre a José, como
refere Santo Anselmo, por ter dado sepultura a
Cristo, não lhe valendo o salvo conduto de Pilatos,
tão covarde em não defender sua autoridade na

6-8. Trad.: Não contentes de ter morto o Mestre, tam-


bém maquinam perder os discípulos.
16-17. Trad.: ...e estivessem fechadas as portas onde os
discípulos estavam reunidos, por virtude do medo dos
Judeus...

80
OBRÀS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

prisão dos discípulos, como o tinha sido na morte


do Mestre. E
posto que a Virgem e S. João, por
particular providência do Crucificado, tinham assis-
tido e escapado ao pé da cruz sem descomposição

5 violenta, bem lembrada estava a Senhora, como


revelou a Santa Brígida, das palavras injuriosas e
sacrílegas, com que no mesmo lugar, por ser conhe-
cida por Mãe de seu Filho, havia sido desacatada;
nem S. João esquecido do perigo, em que, largando
10 ds últimos vestidos nas mãos dos que por eles o
tinham preso, se salvou como de naufrágio; pois
o mesmo S. João tinha sido, em sentença de Baró-
nio e outros muitos, aquele mancebo, de quem diz
S. Marcos: Rejecta sindone, nudus profugit ab eis.
75 Todas estas razões tinha a Virgem, por antono-
másia Prudentíssima, para dispensar nesta ocasião
com a sua piedade e com o seu amor, como já
tinha dispensado em não ir com as Marias ao sepul-
cro; e as mesmas deve reconhecer todo o bom juízo
20 para não crer nem se persuadir que em tais dias,
sendo tão conhecida a Senhora por Mãe de Cristo,
fosse aparecer publicamente diante do Pretório e
seus guardas, e dali por tantas ruas de dentro e
fora de Jerusalém ao monte Calvário. Quanto mais
25 que, sendo comum sentir de todo o Colégio Apos-
tólico, que convinha, ainda às maiores colunas dele,
retirar-se nesta ocasião, e esconder-se, era muito
conforme à modéstia e humildade da Virgem, ainda
quando no contrário não houvesse perigo, seguir
50 o mesmo ditame, e mais quando nele intervinha o

14. Trad.: Largando o lençol, lhes escapou. S. Marcos,


XIV, 52.

8t
Vol. VII - FL 6
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

novo respeito de S. João e a segurança da casa em


que vivia; e sobre tudo a autoridade de S. Pedro,
destinado a cabeça da Igreja, de quem a Senhora se
não havia de apartar no menor movimento, mas
5 reverenciá-lo e obedecê-lo em tudo.
Com excelente distinção disse S. Bernardo, escre-
vendo ao Papa Eugénio, que todas as cousas há-de
fazer o homem espiritual com três considerações: a
primeira, se é lícita; a segunda, se é decente; a
io terceira, se é conveniente: Spiritualiter homo omne
opus suum trina consideratione prceveniet: prima,
an liceat; deinde, an deceat; postremo, an expediat.
Já vimos que sair a Virgem em público nestes três
dias, e andar as ruas de Jerusalém e estações da
15 Via Sacra, nem era decente nem conveniente.
Agora acrescento que também se podia muito duvi-
dar se era lícito, não por razão da obra, enfim,
que era justa e pia, senão por ocasião do escândalo.
Para as acções humanas escandalizarem, não é ne-
20 cessário que sejam injustas; basta que humana e
moralmente possam ser reputadas por tais, princi-
palmente quando há fundamento para isso. Justa-
mente podia Cristo negar o tributo a César, como
supremo Senhor e Filho de Deus que era; e con-
25 tudo, porque esta soberania divina ainda não estava
conhecida no Mundo, para que o mesmo Mundo
se não escandalizasse, mandou a S. Pedro que
pagasse por ambos: Ut autem non scandalizemus
eos, ...da eis pro me et te. Da mesma maneira nes-
30 tes primeiros dias da morte e ressurreição de Cristo,
ainda não crida em Jerusalém, senão entre muito

28-29. Trad.: Mas para que os não escandalizemos...


dâ-lho por mim e por ti. S. Mateus, XVII, 26.

82
OURAS ESCOLHIDAS DO P.
r
ANTÓNIO VIEIRA

raros, a divindade dc Cristo; porque a condenação


e a morte fora pública e a ressurreição estava ocul-
tada e escurecida, a reputação em que ainda estava
o Senhor, era de enganador, sacrílego e usurpador
5 do nome de Filho de Deus; a presunção e a ver-
dade de tudo isto estava da parte dos juízes e
contra o réu, tendo obrigação o povo de seguir a
sentença e definição do seu pontífice e príncipes dos
sacerdotes: e nestas suposições e circunstâncias, que
io eram as que naqueles dias existiam, parece não
podia a Senhora ir venerar os lugares daquelas
estações sem grande escândalo de todos os que a
vissem; donde se segue que lhe não era lícita tal
devoção e que se devia abster dela, posto que
75 cresse e lhe constasse do contrário.
Bem cria e lhe constava à mesma Senhora que
seu Filho não era sujeito à Lei da circuncisão; e
com ser um preceito tão rigoroso e de tanta dor de
ambos, o circuncidou contudo por evitar o escân-
20 dalo, como douta e gravemente resolve o P. e Soa-
res: Quamvis per se —diz ele —
non fuerit necessa-
rium parentibus Christi puerum circumcidere, per
accidens tamen ad vitandum scandalum, mérito
existimari potuisse necessarium; quia cum partus
25 esset manifestus omnibus, miraculum autem con-
ceptionis esset occultissimum, non potuisset non
generari grave scandalum, si circumcisio fuisset
prcetermissa.
O mesmo resolve o mesmo sapientíssimo doutor
50 acerca da purificação da Senhora, à qual também

21-28. Trad.: Posto que «per se» não tenha sido neces-
sária aos pais de Cristo a circuncisão do Menino, contudo,
uper accidens», para evitar o escândalo, com razão poderia

83
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

constava com evidência da pureza virginal de seu


admirável parto, e que na mesma lei estava excep-
tuado no Êxodo naquelas palavras: Omne primo-
genitum, quod aperit vulvam. E no Levítico com
5 as palavras: Mtdier, si suscepto semine pepererit
masculum: e contudo se sujeitou ao preceito da
purificação a Virgem puríssima; porque, sendo o
mistério oculto, era manifesto o escândalo, se se
não purificasse; e se, para evitar o escândalo, teve
10 obrigação a Senhora de se sujeitar a uma lei a que
por nenhum outro título era obrigada, muito maior
obrigação lhe corria de se abster naqueles dias de
uma devoção meramente livre e voluntária, a que
não a obrigava preceito algum, e se podia seguir
75 dela grave escândalo.
E daqui mesmo se aperta mais o perigo acima
ponderado, antes se infere outro muito maior; por-
que não há dúvida que neste caso ficou a Senhora
exposta, no foro exterior, às penas, quando menos,
20 arbitrárias dos príncipes dos sacerdotes; porque
sendo, segundo a sua sentença, crime de lesa-ma-
jestade divina aquilo por que tinham crucificado a
Cristo: Quia Filium Dei se fecit; assim como hoje,
quando se queima um herege, seria suspeito da

julgar-se necessário; porque, como o parto fosse de todos


conhecido, e o milagre da concepção fosse oculto, não seria
possível evitar-se grave escândalo, se a circuncisão fosse
adiada. Suar. Com. ad Quaestiones 32. D. Thomae.
3-4. Trad.: Todo o primogénito que abre a vagina...
Cap. XIII, 2.
5-6. Trad.: A mulher, se, recebido o sémen, der à luz
uma criança do sexo masculino... Cap. XII, 2.
23. Trad.: Porque se inculcou filho de Deus. S. João,
XIX, 7.

84
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTONIO VIEIRA

mesma heresia e gravemente punido quem lhe


venerasse as cinzas ou fizesse romarias ao lugar do
suplício; assim podiam condenar a Senhora pela
devoção das estações e Calvário, posto que verda-
5 deiramente justas e diante de Deus santíssimas.
Justa era, segundo toda as leis divina, humana e
natural, a defensa de Cristo no Horto; e contudo
mandou o Senhor a S. Pedro que embainhasse a
espada, dizendo: Omnes enim, qui acceperint gla-
10 dium, gladio peribunt; não porque fosse profecia,
como quiseram, ou porque seja consequência que
todo o que mata violentamente, violentamente
morra, senão porque aquele era o texto, disposição
e pena da Lei, à qual Pedro ficava sujeito no foro
15 exterior, posto que a resolução fosse heróica, a
defensa justa e a acção louvável.

CAPITULO V

Outra razão de desproporção e dissonância com


que não convinha à Senhora naqueles dias da
ressurreição o exercício da Via Sacra

Não dizem os Evangelistas que o Ressuscitado


aparecesse a sua Santíssima Mãe, e a razão que
tiveram para este silêncio foi porque o seu intento
20 era provar autênticamente a 'verdade da ressur-
reição, e as mães nas causas dos filhos não são
testemunhas legais. Contudo, é tradição da Igreja,

9-10. Trad.: Em verdade, todos os que tomarem a es-


pada, à espada morrerão. S. Mateus, XXVI, 52.

8-5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

recebida e celebrada por todos os Padres, que a


primeira pessoa a quem apareceu ressuscitado e
glorioso foi à mesma Senhora, para que, assim
como tinha sido a primeira nas dores, o fosse tam-
5 bém nas consolações, conforme a profecia de David:
Secundum multitudinetn dolorum meorum in corde
meo, consolaiiones tuce Icetificaverunt animam
meam. O
que a saudosíssima Mãe pedia a seu ben-
de sua ausência era que
dito Filho nestes três dias
10 os abreviasse quanto fosse possível, repetindo-lhe
amorosamente aquelas palavras dos Cânticos: Re-
vertere. Similis esto, dilecte mi, caprece, hinnuloque
cervorum. E as do profeta Isaías: Accelera spolia
detrahere, festina prcedari. As quais, uma e ou-
15 tras, explica e aplica excelentemente Ruperto,
abade, neste tríduo: Tridui quidem tempus breve
est, sed dilectce et columbce tuce desideranti et ge-
menti vulnerata mente, non satis, dilecte mi, festi-
natum est: abbrevia hoc ipsum triduum etc.
20 (Ruperto). Bem sei, meu Filho e Senhor, que não
pode faltar a verdade da vossa palavra, com que
prometestes estar na sepultura três dias: o que vos
pede o meu amor, a minha dor, os meus gemidos

6-9. Trad.: Alegraram-na as consolações a alma, na


proporção das numerosas dores do coração. Salmo
XCIII, 19.
11-13. Trad.: Volta. Sê semelhante, ó meu amado, à
cabra montesa e ao veadinho. Cântico dos Cânticos, II, 9.
13-14. Trad.: Apressa-te a tirar os despojos; não te
demores a fazer a presa. Isaías, VIII, 3.
16-19. Trad.: Três dias são, na verdade, tempo breve;
mas, ó meu aviado, para a tua dilecta e desejosa pomba
gemebunda, ferida como tem a alma, não é bastante
apressares-te: reduz o próprio tríduo.

86
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

e as minhas saudades,que os abrevieis, quanto a


é
mesma verdade e vos apresseis a tirar
permitir,
esses despojos do limbo e aparecer vencedor da
morte diante de meus olhos.
5 Assim o fez o amantíssimo Filho, tomando dos
dias que se podiam partir somente parte, e apare-
cendo à Senhora na madrugada do terceiro, com
que ambos ficaram ressuscitados. Então se cumpriu
o texto profético: Surge, Domine, in requiem tuam;
io tu et arca sanctificationis tuce. Ressuscitai, Senhor,
dos trabalhos passados e alheios de Vós ao des-
canso Vosso; mas não só Vós, senão também con-
vosco aquela que Vos trouxe em suas entranhas.
Se de Jacob diz a Escritura que, quando soube ser
15 vivo seu filho José, que tinha chorado morto, res-
suscitou seu espírito: Revixit spiritus ejus; que
nova vida e que nova alma se infundiria no espí-
rito da Mãe santíssima com a vista do Filho ressus-
citado, e como cantaria então com maiores júbilos:
20 Exultavit spiritus meus in Deo salutari meo.
Nenhum santo há que se atreva a declarar os
extremos de alegria e gosto inefável, com que a
Cheia de Graça foi também Cheia de Glória nestes
dias dos seus maiores prazeres. E eu só quis, e me
25 foi necessário, apontar historicamente o pouco que
fica dito, para que se julgue, se diriam e concorda-
riam bem com as alegres páscoas as estações do
Pretório e do Calvário, e os passos da cruz ou doze

Trad.: Ergue-te, Senhor, e entra no teu descanso;


16.
tu e a arca da tua santificação. Salmo CXXXI, 8.
9-10. Trad.: Reviveu o seu espírito. Génesis, XLV, 27.
20. Trad.: Exultou o meu espírito em Deus, que me
dá saúde,

8?
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

cruzes, que se diz continuou a Senhora nestes mes-


mos dias.
Tudo tem seu tempo, diz o Espírito Santo:
Omnia tempus habent; e a primeira cousa que fez
5 o Autor da natureza e dos tempos, na criação do
Mundo, foi dar a cada tempo o que é seu: as trevas
à noite e a luz ao dia. Tempus flendi et tempus
ridenti. Há tempo de chorar e tempo de alegrar,
prossegue o mesmo Espírito Santo; e isto é o que
io fez sua santíssima Esposa a Virgem Maria, e isto
é o que devia fazer. Na morte de seu Filho chorou,
na sua ressurreição alegrou-se; sumamente triste na
morte, sumamente alegre na ressurreição e suma-
mente ordenada em um e outro afecto do seu amor,
15 segundo a diferença de um e outro tempo.
A Via Sacra e repetição dos passos que Cristo
andou em sua paixão, é muito santa e pia; mas
naqueles dias tão alegres era imprópria e intempes-
tiva, e por desproporcionada e dissonante.
isso
20 Quando Pedro e S. João, avisados da Mada-
S.
lena, foram correndo ao sepulcro no dia da ressur-
reição, diz o mesmo Evangelista, e nota muito, que
o sudário estava envolto separado, e posto a uma
parte do sepulcro: Separatim involutum in unum
25 locum. E porque assim, e não estendido e desco-
berto? O santo sudário não é uma imagem tão mi-
raculosa, tão devota e tão sobremaneira venerável?
Pois por que razão o Senhor, quando ressuscita, a
deixa envolta, separada e posta à parte?

4. Ecles., III, z.
7-8. Ib., V, 4.
24-25. Trad.: Dobrado num lugar à parte. S. João,
XX, 7.

88
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÔNIO VIEIRA

Porque era o dia da ressurreição; e ainda que a


imagem fosse muito devota, muito venerável e sa-
cratíssima, não era para aquele dia; era para o dia
da sua paixão, e não para os dias da Páscoa. E se
5 Cristo, que tudo punha em seu lugar, fez esta sepa-
ração e distinção de dias a dias, não é de crer que
a Senhora, que tanto imitava seus passos, a não
fizesse, e seguisse outros.
Quando a Madalena, depois de morrer Lázaro,
10 saiu de casa, todos disseram que ia chorar o seu
irmão à sepultura; mas, depois de ressuscitado, e
muito menos entre os primeiros alvoroços e para-
béns da ressurreição, ninguém houve que tal dis-
sesse nem imaginasse. Há, porém, quem diga e
15 creia que, entre os aplausos e júbilos da ressurreição
de seu Filho, iria a Virgem Maria no mesmo, e em
todos aqueles dias ao Pretório de Pilatos, para reno-
var a memória dos açoutes e coroas de espinhos; 'e
às ruas e praças de Jerusalém, para contemplar na
20 cruz às costas, e na afrontosa companhia dos que
também levavam as suas; e ao monte Calvário,
para se lastimar com os cravos, para se traspassar
com a lança, para se amargar com o fel. Se o anjo
ainda estivera no sepulcro, bem podiam chegar aos
25 ouvidos da Senhora as vozes tanto do caso, com que
a Igreja nos diz que só ele bradava:

Sat funeri, sat lacrymis,


Sat est datum doloribus;
Surrexit extinctor necis,
S° • Clamans coruscans angelus.

27-30. Trad.: Basta de luto, basta de lágrimas, / É bas-


tante o que às dores foi dado; / Ressuscitou quem matou
a morte, / — Assim brada o anjo coruscante.

89
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mas o vulgo sempre ignorante, e nunca mais


ignorante que quando presumido de devoto, en-
tende e penetra tão mal a força e propriedade deste
repetido sat est, que chega a crer se festejaria me-
5 lhor nesta ocasião, não só a ressurreição com a cruz,
senão uma ressurreição de Cristo com doze ressur-
reições de cruzes. Tudo isto hoje, e entre nós, é
muito louvável; mas naqueles
dias não tinha lugar,
porque era fora de tempo, antes contra o decoro,
io contra a formosura e contra a majestade do tempo.
E já que estamos com a Madalena, e na Via
Sacra, peçamos-lhe (como lhe pergunta a Igreja)
que nos diga o que viu na rua: Dic nobis, Maria,
quid vidisti in via?
r5 O que viu e diz que viu a Madalena, é o que se
resume nestas palavras: Sepiâchrum Christi viven-
tis etgloriam vidi resur gentis, Angélicos testes, su-
darium, et vestes: Vi o sepulcro de Cristo vivo, vi
a glória do seu corpo ressuscitado, vi os anjos tes-
20 temunhas da ressurreição, e vi o sudário e vestes,
que já não eram mortalhas, senão despojos da
morte.
— Isto é o que vistes, Madalena? E vistes mais
alguma cousa?
25 — Não. —
Pois sabei que vieram muitos séculos
depois de vós, os que viram muito mais. Viram o
sepulcro, viram os anjos, viram o Ressuscitado e
suas glórias, viram o júbilo e alegria vossa e das
outras Marias, que nem a vós nem a elas cabia nos
30 corações; viram a mesma nos Apóstolos e Discípulos,
que todos triunfavam de prazer e rebentavam de
gosto; viram os aplausos e as aclamações dos Pa-
triarcas e Profetas tirados do seio de Abraão, que
todos (e entre eles o Esposo José) davam mil vivas

90
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. c ANTÓNIO VIEIRA

a seu Libertador, e infinitos parabéns à Mãe da


ressurreição de seu Filho. E no meio de todas estas
enchentes de glórias, como se a Senhora se não
dera por bastantemente satisfeita dos gostos presen-
5 tes, sem a presença ou companhia das penas pas-
sadas, dizem que no mesmo tempo saía a Virgem
daquele paraíso de deleites celestiais pelas ruas de
Jerusalém, e começava desde o Pretório de Pilatos
até o cimo do monte Calvário, e por todo este
io comprido caminho ia contando os passos da paixão
de seu Filho, não por ver e venerar o sacratíssimo
sangue seu, que já então estava recolhido todo às
veias, mas para notar e contemplar os lugares onde
fora derramado. Estava então o ressuscitado Senhor
15 naquela mesma terra, e não ignorava a Santíssima
Mãe, como Secretária de todos seus mistérios, onde
estivesse; e têm para si estes devotos que, em vez
da Senhora o ir ver e buscar onde estava, quisesse
antes e se contentasse mais de ir visitar os lugares
20 onde estivera!
Oh Sol, oh pedras, que não quero chamar nesta
O
ocasião criaturas racionais ou sensitivas! Sol eclip-
sou-se, as pedras quebraram-se na paixão e morte
de Cristo; e se alguém se atrevesse a dizer que no
25 dia da ressurreição repetiriam o Céu e a Terra estas
mesmas demonstrações de obséquio e reverência a
seu Senhor; como aquentaria o Sol, e como não se
levantariam as pedras, contra quem tal injúria lhe
fizesse? Cristo deixou as mortalhas na sepultura! e
50 Jsto seria querê-loamortalhar outra vez; seria ajun-
tar a ressurreição com a morte, a noute com o dia,
a glória com a pena, a tristeza com a alegria e as
lamentações e os heus com as aleluias.
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

CAPITULO VI

Responde-se a uma objecção, que parece


bem fundada

Dir-me-ão que a memória da paixão de Cristo,


como sempre é santa e aceita ao Senhor, assim seria
muito naquele dia e dias, posto que tão alegres e
gloriosos.
5 Mal conhece as propriedades da glória, nem
ainda as da verdadeira alegria, quem assim filo-
sofa. A grande e verdadeira alegria, depois das
dores, traz consigo o esquecimento delas, posto que
fossem grandes: Mulier cum parií tristitiam habet...
io cum autem pepererit, jam non meminit pressurce
propter gaudium, qui natus est homo in mundum.
A sua Mãe aludiu Cristo —
diz Ruperto — quando
usou desta comparação.
Cristo, nosso Redentor, nasceu duas vezes: uma
15 da Mãe sem dores, e outra da lousa do sepulcro
com dores da mesma Mãe: Qui natus olim e Vir-
gine, nunc e sepulchro nasceris; e foi tal a alegria
deste segundo parto, posto que tão doloroso, que
não seria tão grande como foi, se não trouxera con-
20 sigo o esquecimento das mesmas dores.
O esquecer-se nestes dias a Senhora das dores da
cruz, foi obséquio devido à ressurreição do Filho.
Não parecia que estava o coração da Mãe inteira-

9-1 1. Trad.: A mulher, ao parir, sente tristeza; quando,


porém, acabou de parir, não lembra mais tal aperto, por-
que nasceu novo homem ao Mundo. S. João, XVI, 21.
16-17. Trad.: Nasces agora do sepulcro, tu que outrora
nasceste da Virgem.

Ç2
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

mente contente, se ainda nele tivessem lugar memó-


rias dos trabalhos passados. É atributo singular da
glória o esquecimento de tudo o que pode dar ou
deu pena. Assim o diz uma e outra vez Isaías,
5 falando da glória do Céu: Oblivioni traditce sunt
angusties priores... et non erunt in memoria prior a,
et non ascendent super cor; sed gaudebitis et exul-
tabitis usque in sempiternum. E a razão deste es-
quecimento é, diz S. Jerónimo, não porque total-
10 mente se perca a memória dos trabalhos passados
(que seria defeito no entendimento) mas porque a
,

grandeza da glória encherá tão inteiramente toda a


alma, que não deixará nela lugar de se lembrar ou
cuidar neles: Obliviscentur malorum non oblivione
15 memorice, sed successione bonorum. (S. Hier.)
No dia da ressurreição sucedeu a glória às penas
e alegria às tristezas, e nem a glória da Senhora
seria tão celestial como era, nem a alegria tão
excessiva como merecia a cousa, se o mesmo ex-
20 cesso de alegria e glória não enchesse e inundasse
de tal maneira aquela puríssima alma e suas potên-
cias, que apagasse e extinguisse na memória toda
a lembrança, no entendimento todo o cuidado e na
vontade todo o afecto de quanto tinha passado,
25 absorta e penetrada toda do gosto, do gozo, do
júbilo e da fruição do bem presente.
Este total esquecimento da cruz, da morte e pai-
xão do Filho, era o maior crédito da glória e alegria

6-9. Trad.: Foram dadas ao esquecimento as pri-


meiras angústias... e não persistirão na memória as pri-
meiras desgraças, nem subirão ao coração, antes folgareis
e exultareis para sempre... Isaías, LXV, 16-18.
14-15. Trad.: Esquecer-se-ão dos males, não por perda
da memória, mas pela sucessão das felicidades.

93
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

da Mãe, e não a memória e recordação intempes-


tiva, do que tão impróprio era da dignidade e ame-
nidade daqueles formosos dias. Como se disseram
os que dizem o contrário que, assim como a Se-
5 nhora, na paixão, se contentava com a fé da ressur-
reição, assim se consolaria, agora na ressurreição,
com as memórias da paixão. Se a Senhora instituiu
a chamada Via Sacra e lhe mediu os passos, levan-
tando uma baliza no Pretório, outra no Calvário
io contra os descuidos do esquecimento, foi para nós
e para nossos dias, e não para si nem para aqueles.
A segunda razão desta diferença é a conformi-
dade da vontade da Senhora com a de seu Filho,
o qual quis que a solenidade da sua ressurreição
15 fosse toda festiva, alegre e gloriosa, e que os ins-
trumentos suspendidos nos salgueiros de Babilónia
se passaram todos às palmas de Sião para celebrar
e cantar seu triunfo, como a Libertador do univer-
sal cativeiro.
20 É excelente a figura chamada dos retóricos
prosopopeia, com que o mesmo Senhor, por boca
de David, fala com os mesmos instrumentos músicos
e lhes dá ordem que se temperem e afinem antes
de ser manhã; porque ele há-de ressuscitar de ma-
25 drugada: Exurge, gloria mea; exurge, psalterium
et cythara; exurgam dilucido. Como se dissera: Se
até agora, ó instrumentos de festa e alegria, pela
tristeza de minha paixão, estivestes destemperados
e mudos, alerta, que se chega a hora de vos desfa-
50 zerdes todos em som de glórias e harmonia de

25-26. Trad.: Levanta-te, glória minha, levantai-vos,


saltério e citara; erguer-me-ei ao amanhecer. Salmo,
LVI, 9.

94
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

aplausos; porque, ao arraiar da aurora, hei-de ama-


nhecer antes do Sol e ressuscitar triunfante.
Estes foram os júbilos fervorosos e ardentes com
que ressuscitou o espírito do Filho, e esta a vera
5 e ffigi es ou o retrato original da alma da Mãe, sem-
pre uniforme com ele.
Ricardo Vitorino, com alto e engenhoso pensa-
mento, chamou à Virgem Maria Species Christi:
espécie de Cristo.
io As espécies, como ensina a Filosofia, são umas
imagens naturais que os objectos mandam às potên-
cias, e sem serem vistas, nos fazem ver e conhecer
os mesmos objectos assim como é cada um, ou
como está naquele tempo: se vivo, vivo; se morto,
15 morto; se triste, triste: se alegre, alegre. Tal foi
a alma da Senhora na morte e na ressurreição, na
tristeza e na alegria de seu Filho, sempre conforme
e uniforme com ele, como espécie com o seu
objecto.
20 Ponhamos outra semelhança mais vulgar, e que
todos percebam. O mais puro e cristalino espelho
de Cristo neste Mundo foi o coração de sua Mãe;
e assim como o espelho por uma natural e inse-
parável conformidade representa sempre e em tudo
25 a imagem de quem nele se vê, assim a Senhora
representava e exprimia em si todos os afectos inte-
riores ou efeitos exteriores, que na Sagrada Huma-
nidade de Cristo, segundo a diferença dos tempos
e a disposição de sua providência, variavam. Isto
50 quer dizer nos Cânticos: Ego dilecto meo, et ad me
conversio ejus, porque se representava o Filho na

30-31. Trad.: Eu sou para o meu amado e é para mim


que ele se volta. Cânt. dos Cânt., VII, 10.

95
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Mãe por natural reflexão, como em espelho; mas


por uma transformação tão interior e íntima, que
não só se representava, mas se convertia nela: Et
ad me conversio ejus.
5 Agora pergunto se Cristo, Ha sua ressurreição,
conservou no interior algum ressaibo das penalida-
des passadas, ou deu algum passo no exterior pela
mesma via ou caminho por onde levou a cruz?
Das penalidades é certo que nenhuma conservou,
io porque não fora perfeitamente glorioso seu corpo,
como sempre foi sua alma; dos passos também ele
quis que nos constasse, posto que deu e andou
muitos. Foi ao Horto em trajos de hortelão, para
enxugar as lágrimas da Madalena; foi ao castelo
15 de Emaús em trajos de peregrino e acompanhou
pelo caminho os Discípulos desesperados para os
confirmar na Fé; foi uma e outra vez em seu pró-
prio hábito ao Cenáculo, onde estavam os Após-
tolos escondidos, para animar seu temor; foi aonde
20 apareceu às três Marias: foi aonde apareceu a
S. Pedro. E posto que, se aparecera no Pretório,
onde foi condenado, nas ruas, por onde foi levado,
e no Calvário, onde foi crucificado, fizera mais
pública demonstração e prova da sua ressurreição,
25 nem apareceu em tal Pretório, nem pôs os pés em
tais ruas, nem quis subir outra vez a tal monte.
Donde se segue que a Senhora, que em tudo seguia
e adorava seus passos, e como espelho de suas
acções as retratava todas enfim, de nenhum modo
50 andaria em todos aqueles dias tais estações, antes
fugiria até com o pensamento de lugares que seu
Filho tanto abominava, considerando-os como sa-
crílegos pelas afrontas que neles recebera, e não

96
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

como consagrados pelo sangue que neles derra-


mara.
Enfim, concluo que a Senhora não saía nestes
dias a fazer tal Via Sacra, nem andar tais passos;
15 porque a glória e alegria da ressurreição a cercou
ou pôs de cerco, para que não pudesse sair.
O Salmo 29 todo é claramente do mistério da
ressurreição. Fala nele primeiramente Cristo ressus-
citado, e dá graças ao eterno Pai de lhe haver dado
10 vitória dos inimigos que lhe deram a morte: Exal-
tabo te, Domine, quoniam suscepisti me, nec delec-
tasti inimicos meos super me. Prossegue a mesma
acção de graças, dizendo que desceu sua alma ao
Inferno e que de lá saía triunfante: Domine, eduxisti
15 ab inferno animam meam; salvasti me a descen-
dentibus in lacum. Diz que a véspera daquele dia
será toda de tristeza e lágrimas; porém a madru-
gada de alegria: Ad vesperum demorabitur fletus,
et ad matutinum Icetitia. Diz que não se converterá
20 seu corpo em pó, mas que sairá incorrupto da
sepultura: Quce utilitas in sanguine meo, dum des-
cendo in corruptionem? Nunquid confitebitur tibi
pulvis?

10-12. Trad.: Hei-de exaltar-te, Senhor, porque me


recebeste e não comprazeste meus inimigos sobre mim.
Salmo XXIX, 1.
14-16. Trad.: Senhor, tiraste-me a alma do Inferno,
puseste-me a salvo dos que descem ao lago. Ib., 4.
18-19. Na véspera estaremos em lágrimas e de manhã
em alegria. Ib., 6.
21-23. Trad.: De que aproveita o meu sangue, se desço
à corupção? Porventura dirá o pó o teu louvor? Ib., 10.

97
Vol. VII - Fl. 7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Até qui falou o Filho com o Pai, agora fala a


Mãe com o Filho: Convertisti planctum meum in
gaudium tnihi; conscidisti saccum meum, et cir-
cumdedisti me Icetitía: ut cantet tibi gloria mea,
5 et non compungar. Trocastes-me, Senhor, o pranto
em gozo, e as lágrimas em júbilos; e não só me
despistes o luto, mas para sempre mo rasgastes;
porque ressuscitado à vida imortal, já não porei
outro; e finalmente cercastes-me de alegria, para
io que perpetuamente vos cante, glória minha, e me
não compunja.
Se a piedosíssima Mãe se não havia de compun-
gir, como havia de ir ao Pretório de Pilatos, onde
seu Filho com toda a propriedade foi pungido da
15 coroa de espinhos? E como havia de ir ao monte
Calvário, onde com maior crueldade foi pungido
vivo com os cravos, e até depois de morto da
lança? Pois para que a Senhora se não fosse lasti-
20 mar com estas compunções, cercou toda o Filho
na sua ressurreição, e lhe fez um cerco de alegria:
Circumdedisti me ketitia ut non compungar.
Alguma máquina terão os da opinião contrária
para romper este cerco verdadeiramente festivo;
25 mas para se defender das forças de autoridades e
razão, com que todo este discurso fica fortificado
e guarnecido, nenhuma.

2-5. Trad.: Converteste o meu pranto em alegria; ras-


gaste o meu saco e todo me envolveste de alegria; para que
a minha glória te cante e eu não seja atormentado.
Salmo XXIX, 12-13.

08
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTONIO VIEIRA c

CAPITULO VIII

Prova-se que no resto dos quarenta dias até a


ascensão de Cristo, ainda que a Senhora tivesse
dado princípio à devoção da Via Sacra, a não
podia continuar

Na manhã da ressurreição disse o anjo que apare-


ceu no sepulcro às Marias, que fossem logo dar a
nova aos Apóstolos e lhes dissessem que se par-
tissem para Galileia, porque o Senhor ressuscitado
5 se adiantaria a esperar por eles, e que lá o veriam;
e acrescentou o mesmo anjo, para que não duvi-
dassem que assim lhes prometia e certificava: Et
cito euntes, dicite discipulis ejus quia surrexit; et
ecce prcecedit vos in Galilaam; ibi eum videbitis,
IO ecce prcedixi vobis.
Indo as Marias com este recado, para que elas
também o confirmassem como testemunhas de vista,
apareceu-lhes o mesmo Senhor em sua própria
pessoa no caminho. Recomendou-lhes a mesma di-
75 ligência, mudando, porém, ou emendando no re-
cado uma palavra e trocando-a com outra de maior
benignidade e amor; porque, onde o anjo tinha dito:
Dizei a seus discípulos, disse o Senhor: Dizei a
meus irmãos: Ite, nuntiate fratribus meis, ut eant
20 in Galilceam, ibi me videbunt.

7-10. Trad.: E que


ide logo e dizei aos seus discípulos
ele ressuscitou; e ei-lo que vai adiante de vós para a Gali-
leia; lá o vereis; reparai que assim eu vos predisse. S. Ma-
teus, XXVIII, 7.
19-20. Trad.: Ide, anunciai a meus irmãos que vão à
Galileia, onde me verão. Ib., V, 10.

99
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Com ordenar assim naquela manhã, e o


isto se
intimar um e o confirmar de sua boca o
anjo,
mesmo Cristo, os Apóstolos nem naquele dia, nem
nos oito seguintes passaram a Galileia, nem o Se-
5 nhor esperou que fossem lá, para que o vissem,
senão que no mesmo dia, no mesmo lugar onde
estavam, se lhes mostrou visível, e ali o viram antes
e depois outras vezes; para que nos não admiremos
que os decretos humanos se mudem talvez dentro
10 de poucas horas, pois podem ocorrer novas causas,
como aqui ocorreram. A primeira e universal foi o
temor e perigo dos Apóstolos, a quem não era se-
guro o sair do seu encerramento, enquanto os mares
estavam tão alterados. A segunda, particular, e de
15 maior cuidado, a ausência e tardança de Santo
Tomé, que andava desgarrado e incrédulo, dando
por bem empregados o Senhor oito dias de espera
e de suspensão de todo o seu governo só por ganhar
um homem.
20 Passados estes oito dias, em cumprimento do que
deles se tinha ordenado, partiram os Apóstolos para
Galileia (e também a Virgem Santíssima se passou
para lá) que era diferente província da de Judeia,
e muito distante de Jerusalém, como antigamente
25 fizera S. José, quando tornou do Egipto. Donde se
segue que, enquanto ali se deteve a Senhora, que
foram quase todos os quarenta dias que restavam
até a ascensão, nem continuou nem pôde continuar
as estações da Via Sacra de Jerusalém, que se supõe
30 tinha já começado e continuado sempre.
Que a Virgem passasse com os Apóstolos a Gali-
leia, não o declaram os Evangelistas, mas é sem
dúvida; porque consta que com eles foi S. João, o
qual não havia de deixar a Senhora só, nem a

100
OBRAS ESCOLHIDAS DO P: ANTÓNIO VIEIRA

mesma Senhora se havia de apartar de sua compa-


nhia, como depois veremos que fazia em outras
maiores peregrinações, principalmente, sendo esta
para Galileia, pátria sua e de seu benditíssimo Fi-
5 lho, a qual o Senhor quis honrar com sua gloriosa
presença; e sendo os Apóstolos também galileus, na
sua terra, e entre os seus naturais, como nota
S. Crisóstomo, estariam mais livres do temor dos
Judeus. Em Judeia e Jerusalém tinha Cristo e a
io sua escola muitos inimigos (como têm todas as cor-
tes) e quando não houvera este motivo, bastava o
;

tumulto e confusão de tamanho povo, ainda que


não fora tão mau, para ser conveniente e necessário
que todos se retirassem a algum lugar mais solitário
15 e quieto, onde sossegadamente e sem perturbação
gozassem da presença de Cristo, e conseguissem os
importantíssimos fins, para os quais desde o pri-
meiro dia de sua ressurreição lhes mandara o Se-
nhor intimar este retiro. S. Mateus diz nomeada-
20 mente que este lugar de Galileia era um monte: In
Galikzam in montem, ubi constituerat Mis Jesus.
Este monte entendem comummente os santos e ex-
positores que foi o Tabor, onde o Senhor já mos-
trara as primícias de sua glória. Então se lembra-
25 riam S. Pedro, S. João e Sanflago de quão
propriamente e em seu lugar se lhes tinha dado
aquele antigo aviso: Nemini dixeritis visionem,
donec Filius Hominis a mortuis resurgat, e de crer
20-21. Trad.: ...para a Galileia, para o alto dum monte,
onde Jesus lltes ordenara. S. Mateus, XXVIII, 16.
22-23. Lyra, Dionisius, Bonaventura, Jansenius. (Nota
de Vieira )
27-28. Trad.: A ninguém direis o que vistes, enquanto o
Filho do Homem não ressurgir de entre os mortos. S. Ma-
teus, XVII, 9.

IOT
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

é que neste glorioso monte não teria saudades a


Senhora do monte Calvário.
As pessoas que concorreram a Galileia para ali
ver o Senhor e o viram, diz S. Paulo que foram
5 mais de quinhentas: Deinde visus est plusquam
quingentis frairibus. Nova razão para que no mesmo
tempo não carecesse do favor que se franqueava a
tantos, a que fora única na fé e na dor, e o era no
amor e no merecimento.
io Não se comunicava o Senhor neste monte de
Galileia pelo mesmo estilo com que o fizera em
Jerusalém; mas com a diferença que declara S. Je-
rónimo, comparando o monte Sion com ele: In
altero pro consolatione timentium videbatur et vi-
j§ debatur breviter, rursusque ex oculis tollebatur; in
altero autem tantce familiaritatis erat, et perseveran-
ut cum ipsis pariter vesceretur. Quer dizer que,
tice,

em Jerusalém, só para consolar e animar o temor


dos Discípulos aparecia o Senhor; mas brevemente,
20 e logo desaparecia. Porém em Galileia era com
tanta familiaridade e perseverança que não só es-
tava e conversava muito devagar, mas também
comia com eles.
Estes são os muitos argumentos com que S. Lucas
25 diz que provou o Senhor a verdade de sua ressur-
reição: Quibus et prcebuit se ipsum vivum in multis
argumentis, deixando-se ver, ouvir e tocar;
isto é,
para que se desenganassem que era corpo e não
espírito, e a fé se ajudasse com os testemunhos

5-6. Trad.: Depois foi visto por mais de quinhentos


irmãos. Epist. de S. Paulo aos Coríntios, XV, 6.
26-27. Trad.: Aos quais se mostrou vivo com muitas
provas. Actos dos Apóstolos, I, 3.

J02
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. 1 ANTÓNIO VIEIRA

dos três sentidos de maior evidência —


vista, ouvido
e tacto — e também com o mais material de todos,
que foi o de comer juntamente com eles.
Deste argumento, como mais natural, fez muito
5 particular conta S. Pedro, quando pregou ao pri-
meiro gentio, alegando em prova e demonstração,
de que Jesus Cristo, de quem lhe dava notícia,
ressuscitara verdadeiramente: Hunc Deus suscitavit
tertia die, et dedit eum tnanijestum fieri, non omni
io populo, sed testibus prceordinatis a Deo, nobis, qui
manducavimus et bibimus cum iUo postquam resur-
rexit a mortuis. E a razão de ajuntar o Senhor o
comer às outras provas de sua ressurreição, diz
Santo Tomás, que foi para se mostrar verdadeira-
15 mente vivo por todos os actos da vida vegetativa,
sensitiva e racional: a racional, discorrendo e ale-
gando; a sensitiva, vendo ouvindo e apalpando; a
vegetativa, comendo. E nestes dias, em que o Se-
nhor se mostrou tão humano, quem pode duvidar
20 que honraria muitas vezes a pobre mesa de sua
santíssima Mãe com maior gosto do que no convite
de Marta, pois estava contemplado de outra melhor
Maria, e com maior majestade que servido dos an-
jos no deserto, como triunfador do Demónio com
25 maior vitória?
Finalmente, o mais eficaz e irrefragável funda-
mento com que se demonstra que a Senhora havia
de assistir, e com efeito assistiu, a seu benditíssimo

8-12. Prad.: A este ressuscitou Deus ao terceiro dia e


quis que se manifestasse não a todo o povo, mas às teste-
munhas a quem anteriormente o havia ordenado, a nós
que com ele comemos e bebemos, depois que ressuscitou
de entre os mortos. Act. dos Apóst., X, 40-41.
25. S. Tomás, p. 3, Qoest. 15, art. 5. (Nota de Vieira).

J03
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Filho em Galileia juntamente com os Apóstolos, é


o segundo e principal fim por que o Senhor ali os
chamou e ajuntou, depois de os confirmar na fé de
sua ressurreição. Assim como Deus, para dar a Moi-
5 sés a Lei Escrita e o instruir em todos os preceitos
e cerimónias dela, o teve consigo quarenta dias no
monte Sinai, assim Cristo, para dar aos Apóstolos
a nova forma e ideia da Lei da Graça, os quis ter
também consigo neste monte de Galileia por outros
io quarenta dias, que é o que diz S. Lucas: Per dies
quadraginta apparens eis, et loquens de regno Dei.
Aqui, e por todo este tempo, como sentenciosamente
disse Tertuliano, esteve o Senhor ensinando aos
Apóstolos o que eles haviam de ensinar: Cum dis-
15 cipulis apud Galilceatn ad dies quadraginta egit, do-
cens eos, quce docerent: e desta doutrina de Cristo,
como de sua primeira fonte, manaram todos os prin-
cípios da Fé, que por contínua tradição, passando
deles a seus sucessores, como Lei não escrita, mas
20 vocal, posto que muitas cousas dela depois se escre-
vessem autênticamente nos livros do Testamento
Novo. Aqui lhes explicou mais claramente o misté-
rio secretíssimo da Santíssima Trindade, de que só
tiveram notícia e fé explícita os Patriarcas da Lei
25 da Natureza, e escrita, mandando-lhes que bapti-
zassem aos que cressem, em nome do Padre, do
Filho e do Espírito Santo, e lhes declarassem que a
segunda destas três Pessoas encarnara e se fizera
homem para remir por meio de sua morte o género
50 humano, e abrir as portas do Céu, até então cer-
radas; e que prometessem o mesmo Céu e a vida

io-ii. Trad.: Por quarenta dias lhes aparecendo e


falando do Reino de Deus. Act. dos Ap., I, 3.

104.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

eterna aos que guardassem a sua Lei. Assim mesmo


lhes ensinou as diferenças de ritos, que nela se
haviam de observar: como a circuncisão se havia
de mudar em baptismo; o sacerdócio de Arão no
5 de Melquisedech; os sacrifícios de animais no de
seu Corpo e Sangue; o sábado em domingo; o ma-
trimónio, até então puro contrato, em sacramento;
número dos outros sacramentos, suas matérias,
e o
formas e ministros; e os graus e dignidades da jerar-
10 quia eclesiástica. Que o remédio do pecado depois
do baptismo era o sacramento da penitência; e que
não só eram pecados as obras e palavras, senão
também os pensamentos e omissões; e que para
qualquer pecador se converter de qualquer deles
25 não bastavam só as forças naturais do alvedrio sem
os auxílios da graça.
A conferência, pois, e inteligência destes e de to-
dos os mistérios que os Apóstolos haviam de pregar,
não só aos da sua nação, senão a todas as do
20 Mundo, foram as lições que na escola do monte de
Galileia lhes ensinou o novo e divino Legislador,
Cristo. E como a Senhora não havia de subir ao
Céu em companhia de seu Filho, mas havia de ficar
ainda neste Mundo para consolação e exemplo dos
25 fiéis, e como um Oráculo divino e primeira Coluna
da Fé, a quem todos recorressem em suas dificul-
dades e dúvidas, não só foi conveniente, mas neces-
sário que a Senhora assistisse neste apostólico con-
clave, e que nele ouvisse tudo que Cristo ensinava
30 e mandava; e que sua puríssima alma, como mais

25. Rupert lib. 2 et 5 in Sant. August. Serm. 6 de


Temp.; S. Bas. I de Virtut. B. V'.; Eusébio Emisseno,
Serm. 3. Nativ.; Ambrósio, I 6, de Instit. Virg. C. 7.
(Nota de Vieira)

105
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

disposta e capaz de todas, recebesse maiores lumes


e mais altas ilustrações daqueles e de outros mis-
térios, que no sacrário de seu peito, como nova e
melhor Arca do Testamento, ficassem depositados.
5 Todo este magistério ou ofício de ensinar, que a
Senhora havia de exercitar depois da subida de seu
Filho ao Céu, é fundado na doutrina comum dos
Santos Padres; e não só recebida e confirmada pe-
los teólogos antigos, mas grandemente ampliada
IO pelos modernos. Por isso é chamada a Senhora
Mestra dos Mestres, e Apóstola dos Apóstolos, e
Evangelista dos Evangelistas.
Deixo as autoridades dos santos, muitas e eloquen-
tíssimas, com que nesta matéria se alargam; mas não
25 posso calar as palavras de Santo Ambrósio, por
serem tão próprias do nosso caso, e suas circunstân-
cias, como é dizer este grande doutor da Igreja,
que a razão de S. João Evangelista se levantar
tanto sobre os outros na sublimidade de tudo o que
20 escreveu, foi por ser doméstico da Virgem santís-
sima e ter dentro de sua casa a aula de todos os
mistérios e sacramentos do Céu: Unde non mirum
prce cceteris locutum mysteria divina, cui prcesto
erat aula coelestium sacramentorum.
25 Enquanto a sabedoria encarnada ensinou neste
Mundo, esteve cerrada esta aula, e como muda;
mas, tanto que o Senhor subiu ao Céu, então se
abriu —
diz Ruperto —
para os sagrados Apósto-
que iam aprender e ouvir nela mistérios tão
los,

50 sublimes e esquisitos, quais nunca tinham ouvido,

22-24. Trad.: De onde não é para admirar que mais do


que os outros falasse dos mistérios divinos, aquele que
frequentava a aula dos sacramentos celestes.

TOÔ
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ' ANTÓNIO VIEIRA

nem dantes eram capazes para os entender: Quan-


diu Filius hominis manere debuit minoratus paulo
minus ab angelis, fere tandiu fuit Beatce Virgini
tempus lacendi; ubi autem gloria et honore corona-
5 tus est Filius hominis, resurgendo, et in ccelum as-
cendendo, ex tunc eidem Beatce Virgini fuit tempus
loquendi, et hoc amicis, hoc est sanctis apostolis, et
talia loquendi, qualia prius portare non potuissent.
E como e9te fosse o fim para que a sapientíssima
io Virgem ficou no Mundo, suprindo e como substi-
tuindo a cadeira de seu Filho, daqui se infere com
evidência o que o mesmo Ruperto disse noutro lu-
gar, a saber: que quando os Apóstolos foram cha-
mados por Cristo a Galileia nos dias de sua ressur-
15 reição, foi também a Senhora em sua companhia;
e que imaginar e dizer o contrário, seria erro e
ignorância indigna de todo o entendimento cristão:
Nunquid vce tunc, quando undecim discipuli abie-
runt in Gálilceam, sicut constituit illis Dominus, Ma-
20 riam prceterierunt, et absque Ma videnti eum ado-
raverunt? Absit. A força desta última palavra diz

1-8. Trad.: Por todo o tempo em que o Filho do


Homem manteve diminuído para menor categoria do
se
que a angélica, foi para a Bem-aventurada Virgem tempo
de se calar; logo, porém, que o Filho do Homem foi
coroado de glória, ressurgindo e subindo ao Céu, foi dado
então para a Bem-aventurada Virgem tempo de falar, ora
aos amigos, ora aos santos Apóstolos, e de falar de tais
cousas quais primeiro eles não tinham podido aprender.
Ruperto, I, 2. in Math.
18-21. Trad.: Porventuramesmo quando os onze discí-
pulos se ausentaram para a Galileia, conforme o Senhor
lhes ordenou, foram sem Maria e adoraram-no, sem que
ela o soubesse? Inconcebível! Ruperto I, 7 de Divin. Off.
c. 25.

IO/
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

mais que a tradução. Sendo pois certo que a Se-


nhora foi e esteve o resto destes quarenta dias em
Galileia, com a mesma certeza se conclui que em
todo aquele tempo nem fez as estações da Via Sacra
5 de Jerusalém, nem as podia fazer.

CAPÍTULO IX

Que a Senhora não pôde continuar a Via Sacra


desde o dia da ascensão até o Espírito Santo

No mesmo dia em que Cristo se despediu dos


Apóstolos, e se partiu para o Céu, lhes mandou que
10 se não saíssem de Jerusalém, e que ah esperassem
a vinda do Espírito Santo, que seu eterno Padre
havia de mandar sobre eles, como lhes tinha pro-
metido: Prcecepit eis ab Hierosolymis ne discede-
sed expectarent promissionetn Patris, quam
rent,
15 per os meum; quia Joannes quidem
audistis, inquit,
baptizavit aquam, vos autem baptizabimini Spiritu
Sancto, non post muitos hos dies.
Em cumprimento deste preceito se foram todos
para um cenáculo, ou sala grande, que Nicéforo e
20 Cedreno dizem que era da mesma casa onde mo-
rava S. João Evangelista; posto que Barónio tem

13-17. Trad.: Ordenou-lhes que não saíssem de Jeru-


salém, mas que esperassem a promessa do Padre, «que
ouvistes— —
disse ele da minha boca; porque João, na
verdade, baptizou água, vós, porém, sereis baptizados no
Espirito Santo, não muito depois destes dias». Act. dos
Apóstolos, I, 4-5.

WH
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

por mais provável ser de outro João por sobrenome


Marcos, também discípulo do Senhor.
As pessoas de que se compôs esta sagrada con-
gregação, como diz S. Lucas, eram por todas cento
5 e vinte, em que entravam algumas mulheres, de
que só nomeia por seu nome a S. Pedro no primeiro
lugar, e os mais Apóstolos, e no último a Virgem
Maria: e todos diz que unidamente estavam perse-
verando em oração: Hi omnes erant unanimiter
io perseverantes in oratione cum miãieribus, et Maria,
matre Jesu. Do qual modo de falar se vê a razão,
cortesia e reverência com que o Evangelista no-
meou a Senhora naquele lugar, significando que
todos estavam acompanhando-a e assistindo-a,
15 como a Mãe de seu Mestre e Senhor. Assim conti-
nuaram até o de Pentecostes, em que desceu sobre
eles o Espírito Santo com as circunstâncias que
descreve o mesmo S. Lucas, das quais, e de toda
esta história se colhe que, no espaço destes dez dias,
20 nenhum dos que ali estavam congregados saiu do
cenáculo, e conseguintemente, que nem a Senhora
em todos eles pôde andar as estações da Via Sacra,
como ponderaremos.
Primeiramente, ainda que o preceito foi que não
25 saíssem da cidade —
Ab Hierosolymis ne discede-
rent— da qual podiam não sair, ainda que saíssem
da casa, o Senhor entendeu por cidade, não a ci-
dade toda, senão um só lugar da cidade, em que
haviam de esperar juntos, e assim o entenderam os
50 mesmos discípulos, pois todos se ajuntaram no

9-1 1. Trad.: Todos eles estavam perseverando em ora-


ção, juntamente com as mulheres e Maria, mãe de Jesus.
Act. dos Apóst., I, 14.

ZOO
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

mesmo cenáculo, e não em casas diversas, havendo


entre eles muitos que as tinham própria. E uma
vez que este foi o sentido do preceito, a palavra
ne discederent os obrigava a não sair daquele lugar,
5 onde se tinham congregado como com efeito fize-
ram; e assim diz o Evangelista que estavam, quando
desceu o Espírito Santo: Erant omnes pariter in
eodem loco.
A mesma continuação de estar e perseverar no
10 mesmo lugar, sem sair dele, se declara mais nas
palavras do Evangelho do mesmo S. Lucas: Sedete
in civitate, quoadusque induamini virtute ex alto.
Onde o mandar-lhes o Senhor que se assentassem,
até que fossem revestidos da virtude do Espírito
l§ Santo, não significa sítio ou postura do corpo, senão
perseverança e assistência de lugar, isto é, que esti-
vessem de assento no mesmo lugar, sem se apartar
dele, e não que em a oração com que se haviam
de preparar para receber o Espírito Santo, a fizes-
20 sem assentados; porque o uso dos Hebreus era orar
em pé. Neste sentido diz também o texto que o
Espírito Santo encheu toda a casa, onde estavam
assentados: Replevit totatn domum, ubi erant se-
dentes, isto é, onde tinham perseverado de assento;
25 e a mesma significação tem dizer que o Espírito
Santo se assentou sobre cada um deles: Sedit supra
singulos eorum, para mostrar, como explica S. Cri-
sóstomo, que vinha para permanecer com os Após-
tolos, e não se apartar deles nem da Igreja. Final-

30 mente, esta mesma continuação e perseverança se

7-8. Trad.: Eram todos igualmente no mesmo lugar.


11-12. Trad.: Ficai vós na cidade, até que sejais reves-
tidos da virtude do Alto. S. Lucas, XXIV, 49.

IIO
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. c ANTÓNIO VIEIRA

exprime na narrativa textual da história, onde se


diz que todos estavam no cenáculo, não só orando
mas perseverando na oração: Hi omnes erant per-
severantes unanimiter in oratione. E nota Cornélio
5 à Lápide, que no texto original grego, em que
S. Lucas escreveu, a palavra que corresponde a
perseverantes, não só quer dizer perseverança de
qualquer modo, senão perseverança assídua, cons-
tante, persistente, tenaz em cousa que espera e
io tarda, sem se apartar do começado, nem afrouxar
ou remeter do fervor, suportando com paciência e
fortaleza a moléstia, o trabalho, o tédio de esperar:
Perseverantes grcece significai esse assiduum; per-
sistire, insistire rei cuidam arduce et prolixee, nec

15 ab ea discedere, sed sustinere et fortiter super are


moléstias, labores, tcedia, tentationes, etc.
Além desta formalidade do preceito, a mesma
matéria dele obrigava aos congregados a não se
apartarem nem saírem do lugar onde estavam, sob
20 pena de se arriscarem a perder o bem que espe-
ravam, se sucedesse vir o Espírto Santo, quando
algum ou alguns estivessem ausentes. Se soubessem
que havia de vir, como veio dali a dez dias, então
não havia perigo para fazerem alguma ausência e
25 saírem do cenáculo nos nove antecedentes; mas o
Senhor de indústria lhes encobriu o termo e os dei-
xou suspensos, dizendo-lhes somente que não seriam
muitos os dias que tardasse a vir: Non post muitos
hos âies, para que a mesma suspensão e temor de
50 que podia vir, como veio, de repente, os tivesse
sempre em vela com o cuidado e esperança, de
qualquer dos dias, e qualquer das horas podia ser
a da sua vinda. Nem mais nem menos, como na
parábola dos servos, que esperam pelo Senhor, lhes

in
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

disse Cristoque estivessem sempre com as tochas


acesas e prevenidos: Quia qua hora non putatis,
Filius hominis veniet.
E se desta maneira perseveraram todos os congre-
5 gados, sem sair nem se mover daquele lugar, qual
seria a perseverança da Benditíssima Virgem, que
era o exemplo e exemplar de todos? Eles espera-
vam o Espírito Santo como servos, ela esperava o
mesmo Espírito Santo como Esposo: e sendo a
10 Virgem por excelência a Virgem Prudentíssima,
claro está que não havia de sair do cenáculo nem
dar fora dele outros passos, por mais devotos, pios
e santos que fossem; porque no mesmo tempo não
pudesse acontecer o que aconteceu às virgens im-
75 prudentes, que, enquanto foram a outra parte, veio
o Esposo: Dum autem irent (...) venit Sponsus.
Segue-se logo com evidência, que nestes dez dias
que se contaram entre a ascensão de Cristo e a
vinda do Espírito Santo, não fez a Senhora a Via
20 Sacra.

CAPITULO X
Que depois da vinda do Espirito Santo não con-
tinuou a Senhora a Via Sacra de Jerusalém por
toda a vida

Não nego depois da vinda do Espírito


que,
25 Santo, mais depois que as perseguições
e muito
contra Cristo e seus discípulos deram algumas tré-

2-3. Trad.: Porque à hora que não cuidais, virá o


Filho do Homem. S. Lucas, XII, 40.
16. Trad.: Enquanto foram (...) veio o Esposo.
S. Mateus, XXV, 10.

112
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

guas e cessaram em parte (que nunca acabaram


de todo) os inconvenientes acima apontados, em
alguns dias de sua vida visitasse a Senhora os sagra-
dos lugares da paixão e morte de seu Bendito Filho,
5 e entre eles, ou juntamente ou só, os que deter-
minam os passos da Via Sacra. O que somente
digo, e não em dúvida, é que a Senhora os não
continuou, nem pôde continuar por toda a sua vida,
como se supõe.
io Santo Ildefonso (que é entre os Santos o que
mais em particular tocou este ponto) diz assim em
um sermão da Assunção da Senhora: Sine dúbio
loca Dominica nativitatis, passionis et sepultura
frequenter circuiens invisere cupiebat; in iisdem
15 locis lacrymas fundebat, et sanctissimi oris sui
oscula dulcíssima imprimebat. Quer dizer que a
Virgem Santíssima desejava visitar frequentemente
os lugares do nascimento, paixão e sepultura de
seu Filho; e que nestas devotas estações derramava
20 muitas lágrimas e venerava com todas as demons-
trações de afecto os mesmos lugares.
Não diz o Santo que a Senhora visitasse e andasse
só a via dos caminhos do Pretório ao Calvário, mas
todos os lugares da paixão, que começam no Horto,
25 regado com tanto sangue, e acabam na sepultura,
onde o Senhor se deteve mais horas que em todos
os outros. Não reparo na palavra cupiebat, que

12-16. A trad. deste trecho é, aproximadamente, o


passo seguinte, só mais afastado na última clásula: e im-
primindo os dulcíssimos beijos da sua santíssima boca.

Vol. VII - Fl. 8


COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

mais denota frequência de desejos que de execução.


O que resta de advertir é que, em dizer que visitava
também os lugares do nascimento, dá testemunho,
sem lho pedirmos, que as estações da Via Sacra
5 não eram de toda a vida da Senhora; pois pere-
grinava a Belém, em que necessàriamente de ida,
estada e volta havia de gastar muitos dias. O de-
mais diz o mesmo Santo que só o sabe Deus e o
arcanjo S. Gabriel, que sempre servia e acompa-
10 nhava a Senhora. E também se pode ter por sem
dúvida (como sempre podem muitos os que assis-
tem ao lado das majestades) que o mesmo S. Ga-
briel procurasse nestas jornadas as de frequentes
visitas de Nazaré, para repetir aquela soberana
15 missão, para a qual entre todas as jerarquias dos
anjos fora ele o escolhido. Nem a mesma Senhora
se faria muito de rogar para refrescar com a vista
as suavíssimas memórias deste divino sacrário, e
tornar a entoar nele com os mesmos júbilos o seu
20 cântico de Magnificai, sendo então peregrina na-
quela mesma casa, que depois com tão estupendo
milagre quis também fosse peregrina.
Não foram estas sós as ausências que impediam
as estações da Via Sacra; outros impedimentos maio-
25 res tiveram, e de muito mais largo tempo, em toda
a vida da Senhora. E posto que a matéria, como
tão antiga e não tratada, seja escura, as luzes que a
Sagrada História acendeu, nos ilumiarão estas, aju-
dadas sempre da cronologia dos tempos e anais
50 eclesiásticos.
Menos de um ano depois da ressurreição de
Cristo,que foi no vinte e cinco de seu nascimento,
e no dezanove do imperador Tibério, por ocasião
dos milagres dos Apóstolos, principalmente S. Pe-

114
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

dro e S. João, com que muitos milhares se conver-


tiam, e das disputas e vitórias de Santo Estêvão
contra as sinagogas dos Libertinos, Cirenenses,
Alexandrinos e outros sectários, levantou em Jeru-
5 salém tal perseguição contra os Cristãos, que todos,
exceptos os Apóstolos, saíram daquela cidade e se
passaram às províncias de Judeia e Samaria, e de-
las não se dando por seguros, a outras mais remo-
tas e estranhas: uns por conselho dos mesmos Após-
10 tolos, que sabiam quanto importa amainar as velas
na fúria da tempestade; outros por violência dos
príncipes dos sacerdotes, cujo ódio mais principal-
mente se estimulava contra os antigos devotos e
amigos de Cristo. Entre estes foram metidos em
15 uma barca sem vela nem remo os três irmãos tão
célebres no amor do mesmo Senhor, Maria Mada-
lena, Marta e Lázaro, e juntamente com Marcela, a
que disse: Beatus venter, e José que o serviu com o
seu sepulcro. Donde se faz muito provável que a
20 Senhora, lembrada do meio que Deus tomara para
livrar a seu Filho das mãos de Herodes, cujo filho
do mesmo nome então reinava em Judeia, se reti-
raria também com outros desterrados: e ajuda não
pouco a esta conjectura o sepulcro de Maria Salomé,
25 mãe de S. João, que hoje se venera em Itália na
cidade de Véroli, com tradição continuada desde
aquele tempo, de que, fugindo desta mesma perse-
guição, fora para aquela terra onde acabara a vida;
e sendo sua a mesma casa, onde juntamente com
50 ela vivia a Senhora, verosímil é que ambas se reti-

18. Trad.: Bem-aventurado o ventre. S. Lucas,


XI, 17.

"5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

rassem, e que desse conselho fosse o Filho de am-


Mas quando não tenha sucedido assim,
bas, S. João.
e a Virgem Santíssima ficasse em Jerusalém, quem
haverá que se persuada da sua mais que humana
5 prudência e caridade, que em tempos tão perigosos
para a Igreja que então nascia, se pusesse todos os
dias nas ruas e praças mais públicas de Jerusalém,
e desde o Pretório onde Pilatos disse: Ecce Homo,
como se dissesse também: Eis aqui sua Mãe, lhe
10 fosse contando e seguindo os passos, até o monte
Calvário?
Ambos estes argumentos se apertam mais com o
que S. Paulo escreve de si, e S. Lucas dele. Diz de
si S. Paulo que era tão grande inimigo dos Cristãos,

15 que os perseguia até a morte, prendendo quantos


podia descobrir, homens e mulheres, para os levar em
ferros a Jerusalém, onde fossem castigados: Hanc
viam persecutus sum usque ad mortem, alligans
et tradens in custodias, viros, ac mulieres, ut addu-
20 cerem inde vindos in Hyerusalem, ut punirentur.
Onde nota S. Crisóstomo, que a razão, ou a mal-
dade de Saulo não querer que os réus que ele pren-
dia, fossem castigados em Damasco ou em outras
cidades, e por outros ministros senão em Jerusalém,
25 e pelos príncipes dos sacerdotes, era o conhecimento
que tinha do seu maior ódio, crueldade e raiva, a
qual se não fartaria com menos que com tirar a
vida a todos os Cristãos, assim como a tinham tirado
a Cristo, e por isso confessava que os perseguira até
50 a morte.
Isto é o que diz S. Paulo de si. O que diz S. Lu-

17-20. A tradução deste passo é o que imediatamente


o precede.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

cas dele, ainda tem maiores circunstâncias: Saulus


auiem devastabat Ecclesiam; per domos intrans et
trahens, viros ac mulieres, trabedat in custodiam.
Não só diz que perseguia Saulo a Igreja, senão que
5 a devastava, palavra que mais significa o poder e
assolação de um exército, que tudo mete a fogo e a
sangue, que o furor e fúria de um homem; o qual
era tão audaz e excessivo, que, sem respeito a qua-
lidade nem a sexo, entrava por todas as casas e dela
io tirava presos homens e mulheres. O termo de que
usa o original grego ainda explica mais; porque
quer dizer domesticatim, ou per singulas domos:
Isto é, que corria, entrava e esquadrinhava uma
por uma todas as casas de Jerusalém, sem perdoar
15 a nenhuma. Veja-se agora se lhe escaparia a casa
de Maria Salomé ou de S. João, a qual por todos
os títulos era a mais indiciada ou suspeitosa. E como
poderia a Senhora, que morava nela, salvar-se deste
incêndio universal, senão passando-se, como Lot,
20 a outra Segor, sem parar nem voltar os olhos a
Jerusalém? Tinha para isso o conselho de seu Filho,
o qual disse: Cum autem persequentur vos in civi-
tate ista, fugite in aliam. E tinha não só um, mas
muitos exemplos do mesmo Senhor, que em seme-
25 lhantes perigos se retirou para os desertos de Efraim,
para Cesareia de Filipe, e para outros lugares ou

1-3. Trad.: Mas Saulo devastava a Igreja; entrando


pelas casas e arrastando homens e mulheres, fazia-os
meter na cadeia. Act. dos Apóst., VIII, 3.
20. Segor foi a cidade escolhida por Lot para nela
se refugiar da destruição a que haviam sido condenadas
Sodoma e Gomorra. Génesis, XIX, 19-23.
22-23. Trad.: Quando vos perseguirem numa cidade, fugi
para outra. S. Mateus, XX, 23.

II 7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

ou fora da jurisdição de Jeru-


secretos e escondidos,
salém, enquanto não chegava a sua hora. E como lhe
constava à Senhora que seu Filho a tinha já cano-
nizado por mártir nos tormentos de ao pé da cruz,
5 e não queria que padecesse outro martírio violento,
em que as mãos sacrílegas dos homens se atreves-
sem ao decoro de sua Pessoa, quem pode duvidar
que nesta ocasião, enquanto durava a força da tem-
pestade, se recolhesse a algum porto mais seguro?
io E se isto é o que dita e persuade com demonstração
a prudência, em que juízo pode caber, que neste
mesmo tempo, em que não havia homem nem
mulher que dentro em casa escapasse, a Senhora
todos os dias saísse da sua casa publicamente, e
15 fossea andar a Via Sacra? Os termos com que
falava S. Pedro e os poderes das suas provisões
contra os que seguiam a Cristo, era prender os
homens e mulheres da via: ...si quos invenisset hujus
vice, viros ac mulieres; e é cousa não só estranha,

20 mas ridícula, que sobre esta via acrescentasse a


Senhora então outra via, e sobre tão manifesto pe-
rigo, outro mais manifesto, qual era o da Via
Sacra.
No ano 39 de Cristo, o primeiro do imperador
25 Calígula e os três anos depois da conversão de
S. Paulo, veio a Jerusalém o mesmo Apóstolo
para ver a S. Pedro, como ele refere no capítulo
primeiro da Epístola aos de Galácia, e diz que não
viu então em Jerusalém onde se deteve quinze dias,
30 outro Apóstolo mais que a Pedro e a Jacobo, irmão
do Senhor, que no estilo de falar dos Hebreus é o

18-19. Trad.: ...se os achasse desta via (profissão)


homens e mulheres. Act. dos Apóstolos, IX, 2.

Il8
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

mesmo que primo: Post annos tres veni Hierosoly-


mam videre Petrum, et mansi cvpud eum diebus
quindecim. Alium autem apostolorum vidi nemi-
nem, nisi Jacobutn, fratrem Domini. Donde se colhe
5 que também neste tempo não estava a Senhora em
Jerusalém; porque, se ali estivera, assim como
S. Paulo diz que vira o irmão do Senhor, com
muito maior razão diria que vira a Mãe do Senhor,
nem deixaria de fazer muito honorífica menção e
io gloriar-se muito desta soberana vista. O fim de ir
ver Paulo a S. Pedro, não foi para o conhecer pelas
afeições do rosto, sobre as quais neste lugar faz
uma elegantíssima descrição S. Jerónimo; mas foi
Paulo, diz o Santo, ver a Pedro com a mesma ten-
75 ção com que nós hoje lemos a Paulo, isto é, para
o consultar: Nec puto apostólica fuisse gravitatis,
cdiquid humanum in Petro voluerit aspicere. His
oculis Paulus vidit Cepham, quibus nunc a pru-
dentibus, quibusque Paulus ipse conspicitur.
20 E se Paulo em Jerusalém consultava a S. Pedro,
quem duvida que também havia de consultar o Orá-
culo da Virgem Maria, se ah estivera? Assim refere
Lúcio Dextro, contemporâneo de S. Jerónimo, no
seu Crónico dedicado ao mesmo Santo, que o Após-
25 tolo S. Tiago, tornando de Espanha e tendo pre-
gado de caminho em França, Bretanha e Veneza,
foi dali a Jerusalém a consultar sobre matérias
gravíssimas a Virgem Maria, e a S. Pedro: Ex His-
pânia rediens Jacobus Galliam invisit, et Britaniam,

1-4. Trad.: De ai a três anos vim a Jerusalém, para


ver a Pedro, e fiquei com ele quinze dias; e dos outros
Apóstolos não vi a nenhum, senão a Tiago, irmão do
Senhor. Epístola aos Gálatas, I, 18 e 19.
16-20. A ideia deste passo tradu-la o que o precede.

Iiç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

et Venetiarum oppida, ubi prcedicat, et Hierosoly-


mam revertitur de gravissimis rebus consultaturus
Beatam Virginem et Petrum. Não estava logo em
Jerusalém a Senhora no ano 39 de Cristo, em que
5 lá foi S. Paulo.
Todos os que com S. Bernardo, Cartusiano e
outros têm por legítimas as cartas de Santo Inácio,
mártir, terceiro bispo de Antioquia depois de S. Pe-
dro, que andam impressas no primeiro tomo da
10 Biblioteca dos Padres Antigos, duas delas para a
Virgem Santíssima com nome de Maria de Jesus,
e uma da Senhora em resposta ao mesmo santo
Bispo, todos, digo, os que receberam estas cartas,
também estão obrigados a crer que saiu a Virgem
15 de Jerusalém naquele tempo, e que passou a Antio-
quia a visitar os cristãos daquela insigne igreja,
onde primeiro que em Roma teve a sua cadeira o
Vigário de Cristo, e onde se começaram a chamar
cristãos os que até então se chamavam discípulos.
20 A carta da Senhora é a seguinte: Ignatio dilecto dis-
cípulo, humilis ancilla Christi Jesu. Quce a Joanne
audisti et didicisti, vera sunt; illa credas, et illis
inhareas, et cristianitatis votum firmiter teneas, et
mores et vitam voto conformes. Veniam autem cum
25 Joanne, te, et qui tecum sunt visura: sta in fide, viri-
liter age, nec te commoveat persecutionis austeritas,
sed valeat ut exultet spiritus tuus in Deo salutari
tuo. Amen. A Ignácio, amado discípulo, a humilde
escrava do Senhor. Todas as cousas que ouvistes e
30 aprendestes de João são verdadeiras, estas haveis
de crer, e conservar firmemente a profissão do cris-
tianismo que recebestes, conformando a vida e os
costumes com a mesma profissão; eu em companhia
de João irei a ver-vos, e a todos os que estão con-

120
OBRAS ESCOLHI DAS DO 1
J
. AN 1 ONIO VI LI KA

vosco. Perseverai na fé, obrai varonilmente e não


vos mova a austeridade da perseguição; mas pre-
valeça e se alegre vosso espírito em Deus, vosso
Salvador. Amen.
5 Até aqui a carta e a promessa de a Virgem San-
tíssima passar a Antioquia, que não podia faltar,
assim como o prometeu.
Mas porque graves autores duvidam com bons
fundamentos da legimidade desta carta, deixando
io a viagem de Antioquia em opinião, é certo e sem
dúvida que a Senhora em companhia de S. João
passou a Êfeso, cidade metrópole da Ásia Menor,
onde alguns querem que, por virtude da verdadeira
Rainha do Céu, fosse derribado o famosíssimo tem-
l§ pio de Diana Efesina, chamada da gentilidade,
como consta da Escritura, Regina Cosli. Desta jor-
nada faz expressa menção o já citado Lúcio Dextro,
dizendo no ano de Cristo 41: Eodem anno Joannes
Theologus, comiiante Beata Virgine, Ephesum pro-
20 ficiscitur. Mas a autoridade irrefragável, e que tira
toda a dúvida, é o testemunho do Concílio Efesino,
o qual, na Epístola Sinodal ao clero de Constanti-
nopla, diz assim, no capítulo sexto: Nceestorius
impice hcereseos instaurator in Ephesiorum civitate,
25 quam Joannes Theologus et Sacra Virgo Deipara
quandoque incoluerunt, constituto a Sanctorum
Patrum et Episcoporum costu, ultro seipsum abalie-

18-20. Trad.: No mesmo ano S. João, acompanhado da


Bem-aventurada Virgem, parte para Éfeso.
23-27. Trad.: Nestório, fundador de ímpia heresia na
cidade de Éfeso, que S. João e a Santa Virgem Mãe de
Deus por algum tempo habitaram, constituída a assem-
bleia dos Santos Padres e dos Bispos, espontaneamente
dela se apartou.

121
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

navit.Nas quais palavras afirma o sagrado Con-


que a Virgem Mãe de Deus e S. João Evan-
cílio
gelista viveram na cidade de Êfeso, exagerando o
crime da heresia de Nestório, com a circunstância
5 de se ter apartado da união da Igreja na mesma
cidade em que S. João a tinha fundado com sua
doutrina, e a mesma Mãe de Deus santificado com
sua presença. Quanto tempo ali a Senhora se deti-
vesse, não se sabe ao certo, posto que não podia ser
io breve, sendo a Ásia Menor a sorte do apostolado
de S. João, debaixo de cujo governo e direcção
estava o bispo da mesma cidade de Êfeso, o pri-
meiro dos sete a quem S. João escreveu em nome
de Cristo as sete epístolas ditadas pelo Espírito
15 Santo, no segundo e terceiro capítulo do seu Apo-
calipse. Mas para evidência do nosso intento basta
constar que a Senhora em todo o resto de sua vida,
depois da morte e sepultura de seu Filho, não esteve
sempre em Jerusalém para continuar, como se su-
20 põe, a Via Sacra do Pretório ao Calvário, pois fez
esta larga ausência, e tantas outras, tão forçosas,
como fica dito.

CAPÍTULO XI

Prova-se com razões gerais, que, ainda quando a


Virgem Maria estava em Jerusalém, não continuou
25 sempre, nem devia continuar a Via Sacra

O assunto deste capítulo fica demonstrado por


partes no discurso de todos os precedentes: agora
o provaremos em geral com razões totalmente intrín-
secas à Pessoa e à matéria, sem dependências dos
30 acidentes do tempo, em que muitas das referidas se

122
OBRAS ESCOLHIDAS DO P* ANTÔNIO VIEIRA

fundaram. Digo, pois, que, ainda que a Virgem


Maria residira pacificamente por todo o resto da
sua vida na cidade de Jerusalém, ou em outra notá-
vel do Mundo, nem à modéstia e decoro pessoal da
mesma Virgem, nem ao exemplo que devia dar
e deixar a Bendita entre as mulheres a todas as do
mesmo sexo, convinha, nem era decente, que todos
os dias saísse, e fosse vista em público a continuar
a Via Sacra...

™3
PARECER
sobre a distinção que se deve admitir
entre as três divinas Pessoas

Pergunta-se se entre as três divinas Pessoas se pode


admitir menor distinção que aquela com que
comummente se dizem realiter distintas?

A razão de duvidar parecem ser os dois argumentos


seguintes, aque responde o P. e António Vieira

Primeiro argumento

Tudo o que é de fé, ou na Escri-


está expresso
tura, ou definido pela Serem as divinas
Igreja.
Pessoas realiter distintas, não está expresso na Es-
critura, nem definido pela Igreja. Logo, não é de
5 fé que sejam realiter distintas. De onde se segue
que se pode admitir nelas outra menor distinção.
Admitida a maior, distingue-se a menor: não está
expresso na Escritura, nem definido pela Igreja,
quanto à mesma palavra realiter, concedo; quanto

Nota —
Diz o editor Seabra que deste erudito Parecer
declara o P.° André de Barros não se ter encontrado o
restante. Mas nas Vozes Saudosas, onde afirma ser feita a
declaração e estar impresso o Parecer, não se encontra
nem uma nem outra cousa, fi o 3. 0 vol. das Cartas
(MDCCXLVI) que o insere.

124
OBRAS ESCOLHIDAS DO P: ANTÓNIO VIEIRA

ao sentido da mesma palavra, nego; porque as


palavras tres sunt, qui testimonium dant in Cozlo,
alia est Persona Patris, alia Filii, alia Spiritus
Sancti, etc. significam distinção de pessoas realiter
distintas; e posto que a Igreja o não tenha declarado
assim com a mesma palavra realiter, tem-no decla-
rado com outras equivalentes quanto ao sentido.
Esta declaração consta da acepção comum e tradi-
ção dos doutores teólogos católicos, que assim o
entenderam, depois que nas escolas se introduziu a
palavra realiter. De aqui se segue que a proposição
de quem afirmasse o contrário mereceria a cen-
sura de herética.

Segundo argumento

A oposição contraditória não é menor que a rela-


tiva. Em Deus admitem-se predicados de seu género
contraditórios sem distinção do sujeito realiter dis-
tinto: logo, também na
relativa; e por consequência,
ainda que o Pai se não distinga do Filho com tal
distinção, ele será Pai, e o Filho, Filho.
Admitida a maior e menor, nega-se a consequên-
cia, a qual, ainda que tenha grande força in creatis,
in divinis não é assim. A razão de diferença é por-
que, assim como a Filosofia discorre e infere sobre
os seus princípios, que são naturais, assim a Teo-
logia filosofa sobre os seus, que são sobrenaturais
e de fé. E se estes se encontram com alguma conse-
quência, deve-se entender que não é boa, e negar-se
essa consequência. Exemplo: em Deus não implica

27. Por se encontram entenda-se estão em contra-


dição.

I2 5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

pluralidade de Pessoas; em Deus há três Pessoas; logo


não implica haver quatro. A consequência ex objecto
parece boa, mas há-se de negar; porque do prin-
cípio da Fé consta que não são mais que três. Do
5 mesmo modo: Cristo não está no sacramento do
baptismo, e contudo comunica a graça; logo, bem
a pode comunicar no sacramento da eucaristia,
ainda que não esteja nele. Distingue-se a conse-
quência: pode, id est, poderá, concedo; pode, id est,
io de facto assim o faz, nego; porque do princípio da
Fé consta o contrário.
Destes dois exemplos se colhe a diferença com
que se há-de responder ao argumento principal;
porque se os sacramentos são obras de Deus e da
15 omnipotência e liberalidade divina, que faz as cou-
sas de um modo, podendo-as fazer de outro, assim
pudera comunicar a graça no sacramento da euca-
ristia sem estar nele, como no do baptismo e nos
demais; ainda que nesse caso, figurado só como
20 possível, de Cristo causar a graça no sacramento da
eucaristia, sem estar nele realmente presente, o
sacramento não seria o mesmo que hoje cremos e
adoramos. Porém nas cousas que pertencem à natu-
reza e Pessoas divinas, não é assim; porque Deus
25 não é obra da omnipotência e liberalidade divinas;
porque Deus não se fez a si mesmo, nem se podia
fazer de outro modo do que é; e constando-nos a nós
pela Fé o que Deus é quanto à natureza e quanto
às Pessoas, sobre estes dois princípios se hão-de
50 negar ou conceder as consequências de qualquer
argumento.
Diz um princípio da Fé que Deus é Ente simpli-
císsimo sem divisão ou distinção alguma, e contudo
verificam-se de Deus predicados contraditórios;

126
OBRAS ESCOLHIDAS DO P: ANTÓNIO VIEIRA

logo havemos de conceder que, para predicados


contraditórios em Deus, não é necessária distinção
real.
Pelo contrário, diz outro princípio que as Pessoas
5 divinas se distinguem realiter; logo, havemos de
negar que baste outra menor distinção, para que
o Paiseja Pai, e o Filho seja Filho; porque em
Deus, como dizia, não tem lugar o que pode ou o
que parece que pode ser, senão o que é; e assim,
io ainda que dos argumentos, filosoficamente conside-
rados, parece se infere bem outra cousa, nos mes-
mos argumentos, teologicamente tomados, se há-de
negar isso mesmo; porque a Teologia é ciência
fundada em princípios de Fé, e não pode tirar nem
75 admitir consequências que se encontram com eles.

127
LÁGRIMAS DE HERACLITO
defendidas em Roma contra o riso
de Demócrito

Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e


vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano, qui
sua terga videt, choraria o mesmo riso. Não des-
confia o pranto, não, da sua causa; inveja só ao

Nota — Na academia que havia em Roma, e no palácio


da sereníssima rainha de Suécia, Cristina Alexandra, com
a assistência de muitos cardeais e monsenhores, se pro-
pôs um problema no ano de 1674, cujo argumento foi
este: Se o Mundo era mais digno de riso ou de lágrimas;
e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demó-
crito, que ria sempre, ou Heraclito, que sempre chorava.
E encarregando-se estes dois pontos aos padres António
Vieira e Jerónimo Catâneo, ambos da companhia de
Jesus, para cada um defender a parte que escolhesse,
deu o padre António Vieira a eleição ao padre Catâneo,
o qual tomou para si o riso de Demócrito, e ficando ao
Padre Vieira a causa das lágrimas de Heraclito, a de-
fendeu engenhosa e elegantemente em língua italiana,
que depois se traduziu na espanhola, e agora na portu-
guesa, tirada do original italiano por Dom Francisco
Xavier José de Meneses, conde da Ericeira, do conselho
de Sua Majestade, sargento general de batalha dos seus
exércitos e deputado da Junta dos Três Estados.
(Nota do P. e André de Barros)
2-3. Trad.: que vê as suas próprias costas. Esta divin-
dade romana era representada com dois rostos.

128
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem


neste grande teatro no traje da verdade (sempre
nua), sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas
vestido, ornado e armado de uma tão superior elo-
5 quência, que o riso se ria do pranto, não é mere-
cimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido,
ornado e armado o riso. Riem-se os prados, e saiu
vestido de flores: ri-se a aurora, e saiu ornado de
luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a Anti-
10 guidade Risus VesUe et Vulcani, entre tantos re-
lâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não
julgará ao miserável pranto, cego, atónito e ful-
minado? Tal é a fortuna ou a natureza destes dois
contrários. Por isso nasce o riso na boca, como
15 eloquente; o pranto nos olhos, como mudo. Mas se
interdum lacrymce pondera voeis habent, assim
mudo e com lágrimas, assim triste e vestido de luto
(como costumavam os réus no senado da antiga
Roma) se apresenta hoje o pranto diante da majes-
20 tade do sólio real e tribunal rectíssimo dos seus
eminentíssimo juízes, não presumindo que há-de
alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a
piedade e comiseração, que nunca negaram aos mi-
seráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnâni-
35 mos.
Entrando, pois, na questão, se o Mundo é mais
digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo
Mundo tem mais razão quem ri como ria Demó-
crito, ou quem chora como chorava Heraclito, eu

10. Trad.: risos de Vesta e de Vulcano. (Vesta era a


deusa do fogo e Vulcano o deus do Inferno)
16. Trad.: algumas vezes as lágrimas têm a eloquên-
cia da voz —
escreveu Ovídio.

I2Q
Vol. VII — FI. 9
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

para defender, como sou obrigado, a parte do


pranto, confessarei umacousa, e direi outra. Con-
fesso que a primeira propriedade do racional é
o digo que a maior impropriedade da razão
risível; e

5 é o riso. O
riso é o sinal do racional, o pranto é o
uso da razão. Para confirmação desta que julgo
evidência, não quero mais prova que o mesmo
Mundo, nem menor prova que o Mundo todo.
Quemconhece verdadeiramente o Mundo, precisa
10 mente há-de chorar; e quem ri ou não chora, não o
conhece.
Que é este Mundo, senão um mapa universal de
misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de
mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico,
15 tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada
cidade e cada casa continuamente mudam a cena,
aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia
que passa um estrago, cada hora e cada instante
mil infortúnios; que homem haverá (se acaso é
20 homem) que não chore? Se não chora, mostra que
não é racional; e se ri, mostra que também são
risíveis as feras.
Mas se Demócrito era um homem tão grande en»
tre os homens e um filósofo tão sábio, e se não só
25 via esteMundo, mas tantos mundos, como ria?
ele ria, não deste nosso Mundo,
Poderá dizer-se que
mas daqueles seus mundos.
E com razão; porque a matéria de que eram com-
postos os seus mundos imaginados, toda era de riso.
30 É certo, porém, que ele ria neste Mundo, e que se
ria deste Mundo. Como, pois, se ria ou poderia
rir-se Demócrito do mesmo Mundo e das mesmas
cousas que via e chorava Heraclito? A mim, Se-
nhores, me parece que Demócrito não ria, mas que

no
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um


ao seu modo.
Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito
ria sempre; logo nunca ria. A consequência parece

5 difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os

filósofos, nasce da novidade e da admiração; e,


cessando a novidade ou a admiração, cessa' também
o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários des-
concertos do Mundo, e o que é ordinário e se vê
10 sempre não pode causar admiração nem novidade,
segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não
havia matéria que lhe motivasse o riso.
Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a
rir de alguma cousa que visse ou encontrasse de

15 novo; porque sempre, e em todo o lugar ria; e,


quando saía de casa, já saía rindo. Logo, ria do
que já sabia; logo, ria sem novidade, nem admi-
ração; logo, o que nele parecia riso não era riso.
Confirma-se mais esta verdade com o motivo e
20 intenção de Demócrito, porque não pode haver riso
que se não origine de causa que agrade; tudo o de
que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito,
mas queria mostrar que lhe desagradava. Logo, não
se ria; e, se não se ria, que era o que fazia, a que
25 todos chamavam riso? Já disse que era pranto, e
que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora
vede:
Há chorar com lágrimas e chorar com riso: cho-
rar com
lágrimas é sinal de dor moderada; chorar
50 sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com
riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova
da primeira e segunda diferença de chorar com lá-
grimas ou sem elas, é notável o exemplo que refere
Heródoto de Psamnito, rei do Egipto.

131
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Perdendo Psamnito o reino, viu em primeiro


lugar suas filhas vestidas como escravas, e não cho-
rou; viu depois seu filho primogénito descalço e
carregado de ferros, com as mãos atadas e um freio
5 na boca, e não chorou; vendo este mesmo Psam-
nito, e com o mesmo coração, que um seu antigo
criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas.
Oh grande rei e grande intérprete da natureza!
Chora com lágrimas a miséria do criado, e sem
io lágrimas a desgraça dos filhos! Assim respondeu ele
à pergunta de Cambises: Domestica mala erant
maiora; quam ut possem ea deflere. Com o mesmo
pensamento, não menos régio nem menos varonil,
Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada,
15 proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes
assim:

Quid effuso genas fletu rigatis?


Levia perpassae sumus, si flenda patimur.

11-12. Trad.: Os males domésticos eram demasiadamente


grandes para que eu os pudesse chorar. Heródoto, His-
toria, Thalia (Liv. III).
17-18. Assim na i.» edição Vieira confiou de mais na
memória. É Andrômaca e não Hécuba que, na tragédia
Troades, de Séneca, diz:

Quid maesta Phygia turba, laceratis comas


Miserumque tunsa? pectus effuso genas
Fletu rigatis? Levia perpassae sumus,
Si fleenda, patimur.

O que significa: Por que razão, triste turba da Frigia,


lacerais as cabeleiras? E magoando o mísero peito, banhais
de lágrimas as faces? • Leves desgraças sofremos, se as
podemos chorar.

J]2
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

A dor moderada solta as lágrimas, a grande as


congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos não
é grande dor; por isso não chorava Demócrito.
E como era pequena demonstração da sua dor não
5 só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para
declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.
Nada digo que seja contrário aos princípios da
verdadeira filosofia e da experiência. A mesma
causa, quando é moderada e quando é excessiva
10 produz efeitos contrários; a luz moderada faz ver;
a excessiva faz cegar; a dor, que não é excessiva,
rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte
a tristeza, se«é moderada, faz chorar; se é exces-
siva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exem 1
15 pio: a alegria* excessiva faz chorar, e não só destila
as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas
ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre
do cativeiro, apareceu ao seu exército, que era o
romano: In Icetitiam tota castra effusa sunt, ut pro
20 gáudio militibus omnibus lacrymce manarent —
diz Plutarco in Fab.). Pois se a excessiva alegria
é causa do pranto, a excessiva tristeza porque não
será causa do riso? A ironia tem contrária signifi-
cação do que soa; o riso de Demócrito era ironia
25 do pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso
era nascido de tristeza, e também a significava;
eram lágrimas transformadas em riso por metamor-

19-20. Trad.: Todo o acampamento se expandia em ale-


gria, ao ponto que de alegria as lágrimas corriam a todos
os soldados. Plutarco, Vita Parallelce— Fabius Maximus.

133
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

fosis da dor; era riso, mas com lágrimas, como


aquele de quem disse Estácio:

...lacrymosos impia risus


Audiit.

5 Na guerra morrem muitos soldados rindo; e a


razão é —diz Aristóteles —
porque são feridos no
diafragma. Não ria Demócrito, como contente, ria
como ferido; recebia dentro do peito todos os gol-
pes do Mundo, e, tão malferido, ria.
io Os olhos com injustiça se poderão queixar desta
minha filosofia. O pranto chama va-se assim, por-
que se batiam as mãos uma com a outra, quando
se chorava; porque para chorar não são precisos os
olhos, e não seria próvida a natureza, se, havendo
15 sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só
desafogo. E se choram as mãos, a boca porque não
há-de chorar? Heraclito chorava com os olhos, De-
mócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é
mais fino, o da boca é mais mordaz; e este era o
20 pranto de Demócrito. De sorte que, na minha con-
sideração, não só Heraclito, mas Demócrito cho-
rava, só com a diferença de que o pranto de Hera-
clito era mais natural, o pranto de Demócrito mais
esquisito; e tudo merece este Mundo, digno de no-
25 vos e esquisitos prantos, para ser bastantemente
chorado.
Mas porque esta minha suposição me separa do
problema e pode parecer que, como muitas vezes
sucede, me aparta da opinião comum, para fugir da

3-4. Trad.: A impia ouviu risos lacrimosos. Estácio,


Thebaida, Liv. VI, 164-165.

134
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

dificuldade, seja embora o riso de Demócrito, ver-


dadeiro e próprio riso; apareçam em juízo um e
outro filósofo, para que, ouvidos ambos, se veja
claramente a razão de cada um, e confio do mere-
5 cimento da causa que será tão justa a sentença, que
Demócrito saia chorando e Heraclito rindo.
Séneca, no livro De Tranquilitate , falando destes
dois filósofos, dá razão, porque sempre ria um e
chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic,
io quoties in publicum processerat, jlebat, tile ridebat.
Huic omnia quce agimus, miserice, Mi ineptice vide-
bantur. Demócrito ria, porque todas as cousas
humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito cho-
rava, porque todas lhe pareciam misérias: logo,
15 maior razão tinha Heraclito de chorar que Demó-
crito de rir; porque neste Mundo há muitas misérias
que não são ignorâncias, e não há ignorância que
não seja miséria.
As misérias e os trabalhos que padecem os mor-
20 tais,ou por obrigação da natureza, ou por remédio
da fortuna, ou por sustento da vida, ou por conser-
vação do estado particular e público, são misérias,
mas não são ignorâncias, porque as governa a pru-
dência, por necessidade, por conveniência, por
25 honra e por decoro.
Pelo contrário, todas as ignorâncias que se come-
tem no Mundo, as que se fazem, as que se dizem,
as que se cuidam, todas são misérias, porque todas
se cometem ou por erro do entendimento ou por

9-12. Trad.: Este, sempre que aparecia em público,


chorava, aquele ria; tudo quanto jazemos parecia a este
misérias, àquele inépcias. De Tranquilitate vitcB, cap. XV.

135
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

desordem da vontade; e este erro e esta desordem,


não só é miséria, mas a maior miséria, porque direi-
tamente se opõe à luz e ao império da razão, na
qual consiste toda a nobreza e felicidade do homem.
5 Aquelas misérias causam ao homem dores e traba-
lhos, estas o fazem verdadeiramente miserável e
infelice; e suposto que umas e outras sejam dignas
de lágrimas, as lágrimas das ignorâncias são lágri-
mas de pior cor; estas fazem corar o rosto, aquelas
io não. Foi esta distinção achada com alta filosofia
pelo engenho de Ovídio nas lágrimas de Penteu:

Essemus miseri sine crimine, sorsque querenda,


Non celanda foret: lacrimaeque pudore carerent
(Met. lib. III, 251-252)

15 E como nem todas as misérias são ignorâncias e


todas as ignorâncias são misérias, e as maiores mi-
sérias, muito maior matéria e muito maior razão
tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir;
antes digo que só Heraclito tinha toda a razão e
20 Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas
eram o assunto de Heraclito, e o de Demócrito só
uma parte delas; e como toda a miséria é causa da
dor, enenhuma dor pode ser causa do riso, o riso
de Demócrito não tinha causa nem motivo algum
25 que o justificasse.
Pode ser que me responda algum metafísico que
Demócrito distinguia nas ignorâncias, aquilo que é

12-13. Trad.: Seriamos miseráveis sem culpa, e a nossa


sorte, digna de ser lamentada, não teríamos de a calar,
nem as lágrimas nos envergonhariam.

136
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

ignorância daquilo que é miséria; e que se ria das


misérias, não como misérias, mas como ignorâncias.
Porém esta distinção, de mais de ser indigna de um
fisósofo moral, é falsa e impossível, por ser contra
5 a natureza e essência do riso. O ridículo ou o
objecto do riso, como define Aristóteles — Est
turpe sine dolore — , é uma tal deformidade que
exclui todo o motivo de dor; e como a ignorância
precisamente está sempre unida com o motivo da
io dor, que é a miséria, por isso nem é nem pode ser
matéria do riso.
Esta é a verdadeira e sólida razão por que no
juízo de todos os filósofos se inventou a comédia.
Viram os sábios das repúblicas que para desafogo,
15 divertimento e alegria dos povos, era necessária
alguma matéria de riso; e porque o riso não podia
nascer da deformidade ou vício verdadeiro, pela
união natural que tem com a dor, que fizeram?
Inventaram sàbiamente as ficções da comédia,
20 para que o ridículo da imitação, como suposto e
não verdadeiro, ficasse separado da dor.
Um aleijado com um pé de pau, uma velha decré-
pita e trémula, um pobre remendado e enfermo,
um cego e um frenético, um insensato no teatro,
25 fazem rir. E porque?
Porque aqueles defeitos são supostos e não ver-
dadeiros; que, se fossem verdadeiros, seriam motivo
de comiseração e não de riso; e como os defeitos e
vícios de que ria Demócrito eram verdadeiros de-
50 feitos e verdadeiros vícios, não tinha o seu riso
algum motivo. Mas, se não tinha motivo, como ria?

6-7. Trad.: É torpe sem dor.

137
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Ria-se por abuso intolerável do motivo oposto,


colocando o riso sob o motivo do pranto; ria-se
das verdadeiras misérias e do verdadeiro motivo da
dor: filosofia inumana e contrária a toda a razão,
5 e praticada unicamente na escola dar inveja, da qual
diz o poeta:

Risus abest, nisi quem visi movere dolores.

E se o fim destes dois filósofos (como verdadei-


ramente era) foi manifestar ao Mundo o desconcerto
io do seu estado e persuadir aos homens o erro dos
seus juízos, a desordem dos seus desejos, e a vaidade
das suas fadigas; também para este fim tinha muito
maior razão Heraclito de chorar que Demócrito
de rir.
75 A primeira introdução e disposição de quem quer
persuadir, ensinada e usada de todos os oradores,
é conciliar a benevolência do teatro. Esta conciliava
Heraclito e não Demócrito; porque quem chora, las-
tima, e quem ri, despreza; e a compaixão concilia
20 amor, o desprezo ódio e aborrecimento. Quem ri,
exaspera; quem chora, enternece; e quem quer im-
primir os seus afectos e a sua doutrina nos corações,
não deve endurecê-los, deve abrandá-los. O agricul-
tor, para colher os frutos, rega as plantas: o impres-

25 sor, para imprimir as letras, molha o papel.


E assim o deve fazer com as lágrimas, quem quer

7. Trad.: O riso é ausente, a não ser o que ê


movido pelas dores da expressão. Ovídio, Metamorfoses,
Liv. II.

I 38
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

imprimir os seus afectos e colher o fruto das suas


persuasões.
Ulisses, naquela sua famosa oração contra Ajace,
na contenda das armas de Aquiles, podendo fiar-se
5 tanto da sua copiosa eloquência, adornou o seu
exórdio com lágrimas; e porque não as tinha ver-
dadeiras, chora va-as fingidas:

...manuque simul veluti lacrymantia tersit


Lumina.

io Não de outra sorte devia fazer Demócrito, ainda


que fosse contrao jocoso do seu génio. Devia apro-
veitar-se da boca, não para rir, mas para humede-
cer os olhos e fingir as lágrimas. Assim o ensina
com a sua natural agudeza aquele mestre que pro-
15 fessou em Roma a arte de conciliar o amor e de
abrandar os corações:

Si lacrimae (neque enim veniunt in tempore semper)


Deficient, uda lumina tange manu.

Quanto à força e eficácia de persuadir, muito


20 mais fortemente apertava e persuadia Heraclito cho-
rando, que Demócrito rindo; porque quem ri, ate-
nua e alivia os males; quem chora, os crescenta e
faz mais sensíveis e pesados; quem ri, mostra que
são dignos de zombaria; quem chora, prova que

8-9. Trad.: E ao mesmo tempo com a mão limpou os


olhos, como se os molhassem lágrimas. Ovídio, Met.,
Liv. XIII.
17-18. Trad.: Se as lágrimas (nem sempre vêm a tempo)
faltarem, humedece os olhos com a mão molhada. Ovídio,
Arte de Amar, Liv. V.

7JO
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

são dignos de lástima; quem ri por exemplo e por


simpatia, move a rir; quem chora por exemplo e
com razão, ensina a chorar; porque, se os meus
males são tais que movem a contínuas lágrimas aos
5 outros, quanto mais os devo eu chorar, pois os
padeço?
Finalmente, Demócrito ria sempre, e Heraclito
sempre chorava. E este sempre também era por
parte de Heraclito, e contra Demócrito. Por parte
io de Heraclito, porque ser o seu pranto contínuo o
fazia mais eficaz: contra Demócrito, porque' o seu
riso contínuo o fazia ridículo.
Não é minha a censura nem é nova, mas apo-
tegma antiqmssimo do filósofo Plutarco.
15 O riso —dizia ele —
se é pouco, passa; se é
muito, ofende. Cícero, como se vê nas suas orações,
respondia muitas vezes rindo aos argumentos da
parte contrária, «que é solução muito fácil, quando
os argumentos são difíceis. Mas que louvores deram
20 a Cícero deste seu riso?.
Disse-o Plutarco. Sendo Cícero cônsul, e defen-
dendo Murena, riu muito, como costumava, da
doutrina dos Estóicos, e não podendo sofrê-lo
Catão, lhe disse publicamente: Dii boni, quam
25 ridiculum consulem habemus. Com muita mais
causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridí-
culo, e zombando do juízo dos outros, expunha o
seu à zombaria.
Os meninos riem-se muito fàcilmente, e os dou-
50 dos sempre se riem. E
diz Aristóteles que os meninos

24-25. Trad.: Bons deuses! Que ridículo cônsul nós


temos! Plutarco, Vita Parallelce, p. 236 da ed. de 1723.

140
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

se riem porque têm pouco siso; e os loucos, porque


de todo o não têm; e creio verdadeiramente que
não faço grande ofensa a Demócrito; porque um
homem que de um mundo via muitos mundos, era
5 sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a
fantasia; e quem se havia de mover a um tal riso?
Não assim o pranto de Heraclito, que, por ser
contínuo, se fazia mais forte e eficaz: Lacryma cito
siccatur, prczsertim in alienis malis — diz Túlio.
lo E sendo o pranto de Heraclito pelos males alheios,
sem que nunca se secassem as suas lágrimas, que
coração haveria tão duro e obstinado, que se não
abrandasse e rendesse a um tal pranto? Eram as
lágrimas de Heraclito como a água, que, caindo
15 pouco a pouco, vai limando suavemente os már-
mores, e enfim os rompe. Não digo eu somente
os mármores:

Lacrymis adamanta movebis,

diz atrevida, mas verdadeiramente Ovídio. As lá-


20 grimas, como lhes chamou o melhor filósofo da Gré-
cia, são sangue da alma; e este (não é o outro
fabuloso) é o que lavra os diamantes. O coração
mais diamantino, como tantas vezes se queixava
Agamenon, foi o de Aquiles; e contudo confiava e
25 presumia Briseide, que, sem dizer uma só palavra
(como fazia Heraclito) com as suas lágrimas somente

8-9. Trad.: Depressa o pranto seca, principalmente


nos males alheios.
18, Trad.: Com lágrimas movereis o que é duro como
o diamante.

141
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

o despedaçaria e o desfaria em pó: assim o diz ela,


na discreta carta 'escrita ao mesmo Aquiles:

Sis licet immitis, matrisque ferocior undis,


Ut taceam, lacrymis comminuere meis.

5 Tal era a eficácia invencível do pranto de Hera-


clito, e tal a debilidade' ridícula do riso de Demó-
crito!
Não quero, contudo, que seja minha a sentença
entre estes dois filósofos. Seja de outro filósofo, que
lo os iguale em autoridade e ciência. O grande filósofo
Dion, como refere Estobeu, falando do pranto e do
riso, conclui assim: Mihi sane fácies magis videtur
ornari lacrymis, quam risu: lacrymis enim ut plu-
rimum bona aliqua doctrina conjungitur risui vero ,

l§ lascívia; et flendo quidem nemo sibi concitavit


autorem contumelice, ridendo autem spem ejus auxit.
Esta é a sentença.
Mas, deixando já o riso de Demócrito afogado
no pranto de Heraclito, para acabar o meu primeiro
20 argumento, busco outra vez a prova universal do
Mundo. Que esperança, que lugar pode ter neste

3-4. Trad.: Ainda que sejas duro e mais feroz do que


as ondas maternas (Aquiles era filho de Vénus, gerada da
espuma do mar) cale-me embora, serás abrandado pelas
minhas lágrimas. Ovídio, Epist. de Briseida a Aquiles.
12-17. Trad.: Sem dúvida se me afigura que a face mais
se orna com as lágrimas do que com o riso. Às lágrimas,
com efeito, frequentemente se liga alguma boa doutrina,
ao riso, porém, a lascívia; e chorando ninguém cha-
mou a o autor da afronta, ao passo que, rindo, aumen-
si
tou-lhe a esperança. Estobeu (compilador grego do
século IV ou V), Sententia ex thesauris grcecorum delec-
tcB, Nuptialia prcecepta, Ser. LXXII.

142
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Mundo oriso, se todo o Mundo chora e ensina a


chorar? Choram os homens como racionais e sensi-
tivos, e ainda as cousas sem razão e sem sentido
choram; estas são as lágrimas que o príncipe dos
5 poetas chamou profundamente lágrimas de todas as
cousas.

Sunt lacrymae rerum, et mentem mortalia tangunt.

Mneid. I, 462.

Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêem


os objectos, mas nos mesmos objectos que são vis-
15 tos. Ah está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as
lágrimas, aqui correm; e se as mesmas cousas que
não vêem, choram, quanto mais razão tem o ho-
mem que vê e se vê? Não quero o testemunho dos
miseráveis, não, só quero o dos mais ditosos.
15 Quem há neste Mundo tão favorecido ou tão
divinizado pela sua fortuna, que possa presumir de
não ter que chorar? Aqueles mesmos que mais riem
por fora, mais choram por dentro. Aqui tínhamos
antigamente em Roma um cortesão chamado Eros,
20 o qual chorava sempre, não tanto os males próprios,
quanto os bens alheios. E diz assim Marcial:

Quam multi faciunt, quod Eros, sed lumine sicco!


Pars maior lacrymas videt, et intus habet.

7. Trad.: Há lágrimas das coisas e o que é mortal


toca os corações.
23-24. Trad.: Quantos fazem o mesmo que Eros, mas de
olhos enxutos! A maior parte vê as lágrimas (alheias) e
recalca dentro (as próprias). Marcial, Epigrama 80 —
De Erote.

H3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Oh se este intus se visse! São as lágrimas como


as águas do rio Alfeu; este rio umas vezes caminha
descoberto, outras se oculta por debaixo da terra,
mas sempre corre: as lágrimas plebeias deixam-se
5 ver; as lágrimas equestres, senatórias e consulares,
são invisíveis, mas lágrimas. Das lágrimas que se
derramaram nas exéquias de Germânico, dizia Tá-
cito: et periisse Germanicum nulli jactantius moerent,
quam qui maxime laetantur. O contrário é mais
io comum e mais verdadeiro: Qui jactantius Icetantur,
maxime moerent. Mas quando ninguém chorasse,
nem por nem
por dentro; quando este Mundo
fora
e todos os homens rissem, então todo o Mundo e
todos os homens seriam mais dignos de comiseração
15 e de lágrimas: Quid enim miserius misero, non mi-
seret se ipsum?
E tudo isto não basta, Senhores, para que a
se
causa do pranto tenha merecido a seu favor os
vossos votos, em nome do mesmo pranto apelarei
20 eu da sentença para aquele justíssimo tribunal para
quem apelou Apeles. Vencido em um concurso de
pintores —
Appello (disse) aã tribunal Natura.
E porque os animais vivos se enganavam com os
que ele havia pintado, e as aves com os frutos, a
25 Natureza fez a Apeles a justiça que lhe tinham

8-9. Trad.: Ninguém mais espectaculosamente lamen-


tará a morte de Germânico, do que os que com ela màxi-
mamente se alegram. Tácito, Anales. II, 77.
13-16. Trad.: Que há de mais miserável do que o misero
que de si mesmo não tem misericórdia?
22. Trad.: Apelo para o tribunal da Natureza.

144
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

negado os homens. Assim o faço eu, se não vencer


o pranto: appello ad tribunal Natura.
Seja meu intérprete o historiador da mesma Natu-
reza: Flens animal costeris imperaturum et a suppli-
5 ciis vitam auspicatur; unam tantum ob culpam, quia
natum est. Nasce o homem, diz Plínio, já chorando,
e sem outra culpa mais que haver nascido, fica con-
denado a perpétuo pranto. Começa a vida e o
pranto juntamente, para que saiba que se vêm a
io este Mundo vêm para chorar. O mais, aprenderá
depois, porque é arte. Para o pranto nasce já ensi-
nado, porque é natureza: Non aliud natura sponte
quam flere. Esta é a sentença irrefragável da Natu-
reza e esta a natureza dos mortais. É o homem
15 risível, mas nascido para chorar; porque se a pri-
meira propriedade do racional é o risível, o exercício
próprio do mesmo racional, e o uso da razão é o
pranto.
E se alguém me replicar que, se o homem não
20 risse, ficaria ociosa a potência do
contra o fim rir
da mesma Natureza, a uma instância tão forte não
posso responder só como filósofo natural (como
observei em todo este discurso), mas responderei
como Respondo e pergunto: Se o
filósofo cristão.
25 homem pela transgressão não tivesse perdido a feli-
cidade em que foi criado, choraria ou não? É certo
que nunca chorariam os homens, se fossem con-

4-6. Trad.: 0 animal que há-de imperar sobre os


outros entra na vida com prantos que auguram suplícios
pela só culpa de haver nascido. Plínio, o segundo, Historia
Naturalis, Proémio do Liv. VII.
12-13. Trad.: Chorar espontâneamente è próprio da Na-
tureza.

H5
Vol. VII — Fl. 10
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

servados naquele estado, e as lágrimas que agora


há, não as haveria então. Logo, se na felicidade
daquele tempo estaria ociosa a potência do chorar,
na miséria deste tempo esteja ociosa a potência
5 do rir. Etc.

146
MEMORIAL FEITO AO PRÍNCIPE RECENTE
DOM PEDRO
sobre os seus serviços e os de seu irmão
juntamente

Senhor: —
Foi Vossa Alteza servido mandar que
Gonçalo Ravasco acostasse ao seu requerimento
certidão das mercês que se fizeram a seu pai, Ber-
nardo Vieira Ravasco. E porque esta interlocutória
5 é mais própria da razão e justiça de Vossa Alteza,
apresenta o P.° António Vieira, por parte do dito
Bernardo Vieira Ravasco, outras duas certidões:
—uma das mercês que se lhe desfizeram e outra
das mercês que se lhe não fizeram.

io Certidão das mercês que se não fizeram a


Bernardo Vieira Ravasco

No assento da mercê que se fez ao dito Bernardo


Vieira Ravasco, de lhe suceder seu filho, por sua
morte, no ofício de secretário de estado do Brasil,
i$ se diz que, além dos seus serviços militares e polí-
ticos, lhe faz Vossa Alteza a dita mercê, em consi-
deração dos serviços de seu irmão o P. e António
Vieira, que por várias vezes foi a França, Holanda
e Roma a negócios de muita importância.
20 E porque a justiça e razão pede sejam presentes
a Vossa Alteza os ditos serviços do P. e António

H7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Vieira, se apontam aqui sumàriamente, para que se


veja a proporção que tem com eles a dita mercê, c
são por maior os seguintes:
Desde o ano de 40 serviu o P. e António Vieira
5 de pregador de Sua Majestade; e este ofício, se ele
o não exercitara com tão pouca suficiência, costu-
mam premiar os reis com os acrescentamentos que
mostram os exemplos ordinários de Castela e mui-
tos de Portugal.
10 No ano de 41, pelos apertos em que se achava
o Reino com as guerras de Castela e Holanda, ele
foi o primeiro que sugeriu a Sua Majestade e deu
por escrito o meio de se fazer uma Companhia
Oriental e outra Ocidental.
15 Feita esta segunda, houve com que se restaurou
Pernambuco e Angola, e teve com que se sustentar
o Reino; e se se fizera a primeira, também se res-
taurara a índia, ou, quando menos, se não perdera
o que nela tínhamos.
20 No ano de 46, foi mandado por Sua Majestade
a França e Holanda, para assistir à composição
da paz, e principalmente para informar a Sua Ma-
jestade dos negócios de todas as embaixadas, como
fazia; e devia ser com algum acerto, porque ordi-
25 nàriamente se conformava Sua Majestade com o
seu parecer.
No mesmo ano, com um papel que mandou a
Portugal, impediu que se não desse aos Franceses
uma nossa fortaleza de África.

28. Impediu que se não desse equivale a impediu que


se desse. É construção, já usada no latim, determinada
mais pelo desejo íntimo do que pela fórmula exterior.

148
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

No ano de 47, esteve nomeado para companheiro


de Dom Luís de Portugal na embaixada de Munster,
que não teve efeito.
No mesmo ano tornou a França, de onde impediu
5 a vinda do príncipe de Condé a Portugal, com
que queria o Cardeal Mazarino satisfazer-nos, em
lugar do duque de Orleães, que de cá se pedia;
sendo este negócio de tanta consequência, que no
tal caso se perdia a soberania da Coroa, a qual
10 soberania sacrificavam à necessidade de votos dos
ausentes. E passando a Holanda, obrou com tanta
satisfação, que Sua Majestade lhe mandou patente
e carta de crença, para ficar em lugar de Francisco
de Sousa Coutinho, de que se escusou, por ser exer-
15 cicio público tão alheio do seu estado e hábito.
No ano de 49, tornando a Lisboa, avisou a Sua
Majestade, pelas conjecturas do que tinha visto, que
Segismundo, governador de Holanda em Pernam-
buco, havia de ir sitiar a Baía, como com efeito
20 foi de aí a três meses; e não tendo a Fazenda Real
com que aprestar a armada que lá foi do conde de
Vila Pouca, nem dando os conselheiros arbítrio com
que se pudesse remediar esta falta e necessidade,
o P. e António Vieira em três horas negociou tre-
25 zentos mil cruzados efectivos, com que a dita
armada se aprestou, foi e fez levantar o sítio.
No ano de 50, foi mandado por Sua Majestade a
Roma, a tratar o casamento do príncipe Dom Teo-
dósio com a filha única de El-rei de Castela, que

2. Refere-se à assembleia reunida em Munster para


estabelecer a chamada Paz de Westfália.
5 e 24. Vid., desta colecção, Cartas (I), págs. LXIX e
61-62.

H9
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

hoje é rainha de França, levando ordem para ir


de Roma a Madrid.
Na mesma jornada lhe cometeu Sua Majestade
a diversão e levantamento de Nápoles que se lhe
5 oferecia, com poderes absolutos de resolver por si,
sem outro conselho nem recurso o dito negócio,
para o qual achou em Itália seiscentos mil cru-
zados, com ordem ao tesoureiro que os dispendesse
à sua disposição, e que por um simpes escrito do
10 P. e António Vieira se lhe levariam em conta; mas
tudo se conservou em ser, por não terem sólido
fundamento as ofertas dos Napolitanos.
E porque no mesmo tempo veio sobre Portugal
a armada do parlamento de Inglaterra, e se temia
15 outra de Castela, por via de Hamburgo e Amster-
dão, meteu o P. e Vieira em Portugal cinquenta mil
cruzados de munições, de que havia grande neces-
sidade, em uma de três fragatas de guerra, que
também se fabricaram por sua ordem.
20 No mesmo ano saiu de Roma no meio dos cani-
culares, com evidente risco da vida, obrigado da
grande potência que então tinha Castela naquela
Cúria. A ocasião foi haver sabido El-rei de Castela
os intentos de Nápoles, por revelação, como se crê,

3-12. Ler sobre o assunto o vol. Cartas (I) desta colec-


ção, pág. LXXXI, e também História de António Vieira,
por Lúcio de Azevedo, I vol., págs. 175-176 da i. a ed.
13-14. Foi, na verdade, em 1650 que a esquadra dos
Parlamentários ingleses, ancorada em Cascais, ameaçou
Lisboa por neste porto se haverem acolhido os Príncipes
Palatinos — Roberto, general do rei da Grã-Bretanha,
mandado justiçar por Cromwel, e seu irmão Maurício.
Fez-se de novo ao mar, logo que foi contra ela, em defesa
dos direitos de hospitalidade, a esquadra portuguesa que
fora mandada auxiliar os navios dos mesmos Príncipes.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

do sujeito Sebastião César, nomeado no mesmo


tempo embaixador de França, a quem se deram
as instruções do Padre António Vieira, como ao
P. e António Vieira as suas.
5 Foi instrumento desta expulsão e instrução o
duque do Infantado, embaixador de Castela, o qual
disse ao geral da Companhia que o seu rei lhe orde-
nava em todos os estafetas que não consentisse ao
P. e António Vieira em Roma, e que se ele, geral,
io o não fazia sair, ele, embaixador, o havia de man-
dar matar.
No ano de 51, foi eleito para ir a Sabóia tratar
o casamento do Príncipe com uma filha daquela
casa, o que ele dissuadiu, por não ser conveniente,
15 estando presente à conferência o mesmo príncipe.
Em todas estas jornadas (em que o P. e António
Vieira passou sete vezes o canal de Inglaterra, duas
o golfo de Leão, e quatro atravessou a França e a
maior parte de Inglaterra e Holanda) se não devem
20 passar em silêncio duas cousas:
A primeira, os contínuos riscos de vida em que
andava metido, não havendo lugar para ele seguro,
nem no mar, nem na terra, por então termos em
toda a parte muitos inimigos sujeitos a Castela e à
25 casa de Áustria, e principalmente os Castelhanos,
os quais, por benefício da paz, não só tinham minis-
tros em todas as cortes, portos e nações, senão muito
séquito nelas, assim de naturais, como de estran-
geiros.
50 A segunda, a pouca e nenhuma despesa que o
P. e António Vieira fazia nestas jornadas, nas quais
nunca tratou de autoridade, nem comodidade, con-
tentando-se com um mochila que lhe tirava as botas
e restituindo outra vez à fazenda real o que lhe
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

sobejava das ajudas de custo, que ele não aceitava


senão muito limitadas.
Basta para prova do seu desinteresse que, man-
dando Sua Majestade ao marquês de Nisa, embai-
5 xador de Paris, lhe desse para seus livros até vinte
mil cruzados, ele não aceitou dois tostões para com-
prar um diurno.
No mais tempo da vida de Sua Majestade, em que
o P. e Vieira residiu em Lisboa, não estava ocioso
io no serviço real, porque, além das quotidanas con-
ferências com Sua Majestade, assistia em quase
todas as juntas secretas dos negócios mais graves,
não havendo nenhum que se lhe não comunicasse e
havendo muitos que só dele se fiavam, e para isso
15 tinha cifra particular, de que só tinha notícia Pedro
Fernandes Monteiro.
No mesmo ano, com parecer da junta que cha-
mavam nocturna, foi eleito e nomeado para ir a
Madrid a tratar de algum ajustamento, que não
20 teve efeito, por grave enfermidade que lhe veio.
No mesmo ano trabalhou quanto é notório, para
que se efectuasse a separação da Casa de Sua Al-
teza, tão necessária à conservação do Reino.
"E posto que o P.* António Vieira foi um dos
25 criados nomeados para o serviço de Vossa Alteza e
dos mais próximos à pessoa, só este lugar não teve
efeito, nem depois memória.
Por esta causa, entrando a governar o senhor
rei Dom Afonso, o desterrou logo, sendo ele o pri-

15-16. Era desembargador da Casa da Suplicação, Con-


selheiro e Procurador da Fazenda e Juiz da Inconfidência,
deputado da Junta dos Três Estados e Ministro do Des-
pacho, (f 1672).

'5*
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

meiro dos desterrados; e no mesmo desterro o man-


dou matar por um de seus valentes, Fulano Cami-
nha, de que o avisou João Nunes da Cunha, para
que se retirasse.
5 E posto que escapou da morte, não se livrou de
outros trabalhos e afrontas da vida, mais sensíveis
que ela, procurados pelo mesmo governador, cui-
dando todos que no seguinte se restaurassem, pois
eram padecidos por tão honrada causa.
io No ano de e
António Vieira buscar o
69, foi o P.
seu remédio a Roma, não podendo alcançar uma
carta de favor de Vossa Alteza para o embaixador
de Portugal; mas neste mesmo desamparo achou
naquela Cúria e seus príncipes tanta aceitação, que
15 nela português algum a teve maior.
E quando se pudera dar por satisfeito com esta,
que outros reputam por grande felicidade, por ter
aviso que Vossa Alteza não ouvira com muito
agrado havê-lo feito a rainha de Suécia seu pre-
20 gador, no mesmo ponto tratou de deixar Roma,
sendo-lhe necessário, para o deixarem vir, fingir
uma enfermidade, que só se podia curar com os
ares pátrios. E com efeito se passou logo a Portugal,
onde, posto que não fosse tão bem agasalhado, nem
25 por isso está arrependido, tendo pela maior fortuna
de todas o estar perto dos reais pés de Vossa
Alteza.

3. Refere-se ao futuro i.° Conde de S. Vicente


(1619-1677). Foi membro do Conselho de Guerra e depois
do de Estado. Foi ainda Vice-rei da Índia. Partilhando
a ideia de Vieira, entendia só poderia ela ser salva pela
Companhia de Navegação que o jesuíta propunha se orga-
nizasse para o Oriente com dinheiro de Christãos-novos.

153
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Em cinco anos, e meio que esteve em Roma, sem-


pre serviu a Portugal nas batalhas das línguas do
mundo, que não são as que fazem menos guerra.
Das cartas escritas a Dom Rodrigo de Meneses e
5 Pedro Zuzarte, para lerem a Vossa Alteza, haverá
bastantemente constado qual era o seu zelo e o
que no mesmo tempo meditava e tratava, como
também constou a Vossa Alteza depois, sendo só o
seu intento que nas que se representavam conve-
10 niências da Casa Real, pudesse Vossa Alteza esco-
lher o que fosse melhor.
Finalmente, na continuação de um dos negócios
que aqui se insinua, de dois anos a esta parte serviu
o P. e António Vieira a Vossa Alteza de oficial de
15 secretaria a Francisco Correia, que poderá dar não
pequeno testemunho do seu sacrifício, ainda maior
na estimação de quem se lembrasse da diferente
confiança que dele faziam os senhores reis, pais de
Vossa Alteza.
20 Estes são, por maior os serviços do
Senhor,
P. e António Vieira em
38 anos, tão baixamente
avaliados nos registos das mercês de Vossa Alteza,
que só se alegam por parte do merecimento, para
se dar a um filho do proprietário o ofício de seu

25 pai, que nenhum rei de Portugal negou.


E porque o P. e António Vieira só conhece o seu
zelo e sabe o que obrou e padeceu em serviço do
seu rei, assim como não pede mercês por seus ser-

4. D. Rodrigo de Meneses fora gentil-homem da


Câmara do Infante D. Pedro e regedor das Justiças.
Grande amigo de Vieira, que lhe escreveu inúmeras cartas.
5. P. e Pedro Zuzarte, S. J., foi missionário na índia
e, em 1677, procurador da Província do Japão,

154
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

viços, assim sente muito que haja certidões em


que que estão premiados em seu irmão, e
se diga
com tal prémio; por esta causa fez este breve resumo
dos ditos serviços, e lhe chama certidão das mercês
5 que ao dito seu irmão se não fizeram.

Certidão das mercês que se desfizeram ao dito


Bernardo Vieira Ravasco

A primeira foi a do mesmo ofício de secretário


de Estado do Brasil; porque se lhe dividiu a parte
io maior dos peões e percalços, e isto por três prin-
cípios:
Primeiro, a relação que se instituiu de novo no
passam agora grande parte
dito Estado, pela qual se
das provisões que de antes pertenciam ao governo.
15 Segundo, os dois governos de Pernambuco e Rio de
Janeiro, os quais se levantaram com todos os pro-
vimentos que faziam os vice-reis e governadores
gerais, levando consigo Pernambuco todas as capi-
tanias do Norte e Rio de Janeiro as do Sul; com
20 que o secretário, que agora se chama de Estado,
quase vem a ser só da Baía. Terceiro, ter avocado
a si o Conselho Ultramarino todas as patentes de
oficiais de guerra, de capitão para cima, que de
antes pertenciam àquela secretaria. E ainda ficará
25 mais defraudado o dito ofício, se os dízimos de todo
o Estado do Brasil se rematarem em Portugal, como
é fama se pretende introduzir.
Da mesma maneira pertencia ao dito Bernardo
Vieira a propriedade do ofício de escrivão da
30 câmara da Baía, de que era a proprietária Dona Ca-
tarina Ravasco, sua irmã, por lhe ter dado para
dote em satisfação de um alvará de seu pai; o qual

155
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

ofício, sendo dela, se deu aos parentes de seu


marido, cujo não era.
Assim mais lhe pertencia, como herdeiro do
desembargador Simão Álvares de la Penha, por sua
5 irmã Dona Leonarda de Azevedo, o ofício de pro-
curador da Fazenda de Pernambuco, de que era
proprietário; e sem embargo deste direito, foi já
vendido duas vezes, uma por dezoito mil cruzados,
outra por catorze.
io Sobretudo tomaram ao dito Bernardo Vieira vinte
mil cruzados em dinheiro de contado, que tinha
nesta cidade, a título de empréstimo para apresto
das naus da índia; e não só pelo dito empréstimo
se lhe não faz mercê alguma, como é costume, mas
15 há 14 anos que se lhe está devendo totalmente a
dita quantia, de que tem recebido maiores perdas
do que ela vale, por haver de comprar os forne-
cimentos do seu engenho no Brasil por subidíssimos
preços, e tomar dinheiro a câmbio para pagar a
20 seus acredores, com que sua fazenda se tem dimi-
nuído.
Estas são, Senhor, as duas certidões que o
P." António Vieira oferece por parte de seu irmão,
para que, mandando-as Vossa Alteza pôr na balança
25 de sua razão e justiça, se veja o que cada uma delas
pesa.

156
MEMORIAL PARA SUA ALTEZA
Senhor. — Representa a Vossa Alteza o P. e An-
tónio Vieira, que o desembargador Simão Álvares
de la Penha, proprietário do ofício de provedor da
Fazenda de Pernambuco, casado com D. Leonarda
5 de Azevedo, sua irmã, se perdeu no mar com cinco
filhos, vindo do Brasil para este Reino, e sendo
seus legítimos herdeiros o pai, irmão e sobrinhos
do dito padre, o ofício se vendeu por quinze mil cru-
zados; e vinte mil cruzados que chegaram a Por-
ro tugal da fazenda dos defuntos, pertencentes aos
ditos herdeiros, se tomaram por empréstimo para a
Fazenda Real, de que em nove anos se lhes não
tem pago cousa alguma.
Representa mais que Rui de Carvalho Pinheiro,
75 proprietário dos ofícios de escrivão da Câmara e
Órfãos da Baía, foi privado dos ditos ofícios, e sua
Majestade El-rei D. João fez mercê da propriedade
deles a D. Catarina Ravasco, irmã do dito padre,
com obrigação que Rui de Carvalho Pinheiro,
20 filho do defunto, casasse, como casou, com ela:
e porque ambos são mortos sem filhos,

Pede o dito P. e António Vieira a Vossa


Alteza lhe faça mercê dos ditos ofícios de
escrivão da Câmara e órfãos da Baía, para
25 um de seus sobrinhos, filhos de Bernardo
Vieira Ravasco, seu irmão.
E. R. M.

r 57
MEMORIAL RECOMENDANDO
A PEDRO TEVE BARRETO

A mercê que se pede a Vossa Paternidade, é


queira patrocinar a pretensão do Cónego Pedro de
Teve Barreto, com o Cardeal e mais sujeitos que a
Vossa Paternidade parecer, para a dignidade que
5 pretende de chantre da sé da Baía, que está vaga,
por ser o dito cónego capelão fidalgo de Sua Ma-
jestade e estar servindo na dita Sé há dezanove
anos, e ser o mais antigo cónego que nela há, e ter
todas as partes e qualidades necessárias. E sobre-
io tudo o amparo de Vossa Paternidade, a quem espera
dever esta fortuna, já que em tantos anos não tem
logrado nenhuma, pela desgraça do seu sobrenome,
assim como foi Teve, não ser Tem.

158
APROVAÇÃO É CENSURA
feita por ordem de Sua Alteza à 3. a parte da
«História de S. Domingos» da Província de Por-
e
tugal, reformada pelo P. Frei Luís de Sousa

Senhor: — Intitula-se este livro — Terceira Parte


da História de S. Domingos, particular do Reino e
Conquistas de Portugal, reformada em estilo e
ordem, e amplificada em sucessos particulares, por
5 Frei Luís de Sousa, filho do convento de Benfica.
E posto que, sem mais exame, bastavam para a
qualificação de toda a obra os dois nomes que se
lêem na fachada —um tão esclarecido no Mundo e
tão benemérito da universal Igreja, como é o do
10 Patriarca S. Domingos, e é e será sempre o de sua
sagrada religião; outro tão conhecido em Espanha,
e tão benemérito da Nação e língua portuguesa,
como é o do P. e Frei Luís de Sousa —
obedecendo
contudo à ordem de Vossa Alteza, li com particular
15 atenção esta Terceira Parte, e me parece tão digna
de sair logo à luz, como o julgaram com maior
suficiência os censores da Primeira e da Segunda.
E se me fora lícito estranhar alguma cousa, é só o
tempo em que ela atègora, depois dos dias de seu
20 autor, esteve sepultada com ele.
Toda a história é mestra da vida. Esta é mestra
da vida e da história. Da vida, porque todos os

159
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DÁ COSTÁ

estados do Reino têm muito que aprender nos exem-


plos gloriosos que aqui se referem, não estrangeiros,
mas próprios e naturais, daqueles mesmos a quem
sucedemos, e por isso de mais fácil imitação, e sem
5 desculpa.
Para as religiosas é esta história espelho, para
os religiosos estímulo, e para todos os que profes-
samos observância regular, ou repreensão ou louvor.
Nem se encerra só o fruto dela dentro dos claustros
io e muros das religiões; porque também o podem
colher mui copioso os que vivem fora deles. Aqui
verão os ministros de Vossa Alteza os grandes pro-
gressos que as bandeiras de Cristo, igualmente com
as armas de Portugal, faziam em todo o século
15 passado nas Conquistas do Oriente, cuja memória
se não pode ler sem dor. E é a maior de todas a
conhecida insensibilidade com que ou se desprezam
tamanhas perdas, ou se lhes dificultam os remédios.
Crescia aquela Monarquia, enquanto crescia a Fé;
20 e crescia a Fé, enquanto os ministros dela eram
assistidos dos que o são dos reis, e enquanto os
mesmos reis tinham por tão suas as conquistas da
Igreja, como a dilatação do próprio Império. Por
onde disse com muita razão o autor desta mesma
25 História, na Dedicatória da Primeira Parte, ser
tão própria toda dos reis portugueses, que se lhe
tirassem o título de S. Domingos, ficaria mais deles
que Assim entenderam os religiosíssimos prín-
dele.
que tudo o que se dá a Deus, se recebe com
cipes,
50 usura, sendo pelo contrário política não só errada
mas ímpia, cuidar que se podem aumentar os esta-
dos com o que se tira a quem os dá. Isto é o que
ensina e persuade a presente História, enquanto
mestra da vida.

160
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTÓNIO VIEIRA e

É também, como dizia, mestra da mesma his-


tória; porque nela sevêem juntamente praticadas
todas as suas leis, na verdade da narração, na
ordem dos na pontualidade dos tempos,
sucessos,
5 dos lugares, das pessoas, e na notícia e ponderação
dos motivos e causas de tudo o que se obrou ou
omitiu, louvando sem ambição nem lisonja o que
é digno de louvor (que é quase tudo), e castigando
sem sangue alguns defeitos, dos quais se compõe,
IO não menos, a perfeição da história.
O estilo é claro com brevidade, discreto sem afec-
tação, copioso sem redundância, e *tão corrente,
fácil e notável, que, enriquecendo a memória e
afeiçoando a vontade, não cansa o entendimento.
15 Faltam geralmente nas histórias das religiões
aqueles casos e nomes estrondosos, que por si mesmo
levantam a pena e dão grandeza e pompa à nar-
ração; por onde notou o mestre da facúndia romana
ser mais fácil dizer as cousas sublimes com majes-
20 tade, que as humildes com decência. E nesta parte
é admirável o juízo, discrição e eloquência do autor;
porque, falando em matérias domésticas e fami-
liares (como são particularmente as que se obram
e executam à sombra da clausura monástica), todas
25 refere com termos tão iguais e decentes, que nem
nas mais avultadas se remonta, nem nas miúdas
se abate, dizendo o comum com singularidade, o
semelhante sem repetição, o sábio e vulgar com
novidade; e mostrando as cousas (como faz a luz)
50 cada uma como é, e todos com lustre.

18. Refere-se a Cícero, grande orador romano (mes-


tre da facúndia).

IÓI
Vol. VII — Fl. 11
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

A linguagem, tanto nas palavras como na frase,


puramente da língua em que professou escrever,
é
sem mistura ou corrupção de vocábulos estrangeiros,
os quais só mendigam de outras línguas os que são
5 pobres de cabedais da nossa, tão rica e bem dotada,
como filha primogénita da latina. Sendo tanto
mais de louvar esta pureza no P. e Frei Luís, quanto
a sua lição em diversos idiomas e as suas largas
peregrinações em ambos os mundos o não puderam
zo apartar das fontes naturais da língua materna, como
acontece aos rios que vêm de longe, que sempre
tomam a cor*e sabor das terras por onde passam.
A propriedade com que fala em todas as maté-
rias, é como de quem aprendeu na escola dos olhos.

75 Nas do mar e navegação, fala como quem o passou


muitas vezes; nas da guerra, como quem exercitou
as armas; nas das cortes e paço, como cortesão e
desenganado; e nas da perfeição e virtudes reli-
giosas, como religioso perfeito. Por isso a sua reli-
20 gião sapientíssima neste Reino, como em toda a
parte, entre tantos sujeitos eminentes nas outras
letras, escolheu com alto conselho um tal cronista,
entendendo que a arte de falar com propriedade em
tudo o que abraça uma história, não se estuda
25 nas academias das Ciências, senão na Universidade
do Mundo. O grande conhecimento que o P.* Fr.
Luís de Sousa teve no mesmo Mundo, se mostra
bem em o haver finalmente deixado. E este é o
documento geral que se lê em toda a sua História,
30 tão digno de ser imitado dos que nasceram e se
criaram com semelhantes obrigações, quanto é
certo que, assim nos primeiros estudos, como nas
últimas resoluções, terá poucos imitadores. Servirá,
porém, este exemplar para confusão dos que o

162
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

lerem. E como ele escreveu na Primeira, Segunda e


Terceira Parte desta Históriaacções de tão
as
heróicos sujeitos, assim será um dos mais excelen-
tes, que andarão escritos na Quarta.
Este é o meu parecer.
Neste Colégio de Santo Antão da Companhia de
Jesus, em 28 de Setembro de 1677.

l6 3
CENSURA
in opere P. Didaci Lopes, Societatis jesu,

nimirum: «Harmonia Scripturas Divinas»,


régio jussu, anno 1645

Sacrae Scripturae Harmoniam a R. P. D. Didaco


Lopes, Societatis Jesu, emodulatam (sic jubente Ré-
gio Sena tu) legi et perpendi. Opus sane indefessi
laboris et immensi studii, nec minoris (quod ipse
expertus sum) in re concionatoria emolumenti.
Praestant hic novo ordine dispositae, novis coloribus
animatae, omnium, de quibus narrat historia, anti-
quas imagines, non sine voce et motu (quod hujus
penicilli miraculum est), quippe quorum dieta et
facta ad censoriam trutinam vocantur sub venera-
bili judicio quatuor et viginti doctorum, quos

Tradução:
Li e examinei atentamente, por ordem da Real Mesa
Censória, a «Harmonia da Sagrada Escritura», elaborada
pelo Rev. Sr. P. e Diogo Lopes, da Companhia de Jesus.
Ê obra, na verdade, de indefesso trabalho e imensa apli-
cação, e, segundo a minha própria experiência pessoal,
de proveito na actividade oratória. Avultam nela as anti-
gas imagens de quantas coisas são objecto de narrativa
histórica, dispostas como estão por nova ordem, anima-
das de novas cores, e não sem voz e movimento (o que
constitui maravilha deste pincel), porquanto os seus di-
tos e feitos são pesados na balança censória, sob o
venerável juízo de vinte e quatro doutores, que a Igreja

164
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Ecclesia insigniores veneratur. Ex his fontibus pu-


ríssimos doctrinae latices sine labore haurire, et
copiosissime effundere, nec non (quae hujus tempo-
ris est annona) subtiliter instillare poterunt evan-
gelici oratores, tum qui ex próprio, ut aiunt, penu,
tum qui .praesidia, aut egestate ex alieno vivunt.
Illisenim totae Patrum sententiae, prout ab ipso
fonte manarunt, fideliter transcribuntur; istis, vero
copiosissimorum judiciorum subsidio, rerum, sen-
tentiarum et concionum thesauri, quibus hae pagi-
nas locupletantur, abunde patent, et absque sudore
eruuntur. In hoc volumine (seu, ut verius dicam,
in hac bibliotheca selecta et manuali) aperitur
studiosis omnibus amplíssima seges conceptuum,
nova (quamvis de veteri thesauro) et varia dis-
cendi ac dicendi matéria; unde pro genii et ingenii
diversitate (quae vix multo rum librorum est optio)
liberum erit unicuique stylum et auctorem eligere.

venera como mais insignes. Os puríssimos mananciais


destas fontes poderão os oradores evangélicos, tanto os
que vivem, como se diz, dos próprios recursos, como os
que precisam de auxílio ou, por virtude de sua pobreza,
se mantêm do alheio, hauri-los sem custo, derramá-los
com abundância, e também insinuá-los com subtileza
(o que constitui a novidade destes tempos).
Para os primeiros, na verdade, tão fielmente como
nasceram da própria fonte, são transcritas as senten-
ças dos Santos Padres; para estes últimos, com o subsí-
dio dos juízes copiosíssimos, ficam abertos, com sua
abundância, os tesouros das coisas, sentenças e sermões
de que estas páginas estão cheias. Neste volume, (ou, para
que melhor diga, nesta biblioteca selecta e manual) fica ao
dispor de todos os estudiosos messe amplíssima de con-
ceitos, nova (se bem de velho tesouro) e vária matéria
de ensino e exposição; de onde cada um terá a liberdade
de escolher o estilo e autor, segundo a diversidade do
génio e do engenho (opção difícil com muitos livros)

ió 5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Si quaeras altas mentis profunditatem, habes Ter-


tulianum, Philonem, Clementem Alexandrinum,
Zenonem Veronensem; si maturum cum subtilitate
judicium, Augustinum, Ambrosium, Cyrillum, Gre-
5 gorium Nicenum; si eloquentiae oceanum, Chrysos-
tomum; si flumen, Nilum; si majestatem sententia-
rum, Leonem; si acumen, Chrysologum, Rupertum;
si pietatem, Bernardum, Guerricum, Arnoldum; si

moralia, Magnum Gregorium; si allegorica, Anasta-


to sium; si litteram et perpetuum commentarium,
Hieronymum, Hugonem, Carthusianum, Abulen-
sem, Caietanum, Lyram. Et inter horum (inter
dicam, an supra?) nobilíssimas doctorum vocês,
ipsius harmoniae auctor identidem auditur, qui
15 acutas ita premit, ut superare, et graves ita sequi-
tur, ut excedere videatur. Breviter clarus, acute
solidus, mature elegans. Tantum subtiles quasdam
inanitates in hoc opere desiderabis (o! ne desideres
oro) quo vitio nostrae statis laborant ingenia, ad

Se procuras a profundidade de alta inteligência, tens


Tertuliano, Filo, Clemente de Alexandria, Zenão Vero-
nense; se juízo amadurecido com subtileza, Agostinho,
Ambrósio, Cirilo, Gregório Niceno; se um oceano de elo-
quência. Crisóstomo; se um rio, Nilo; se a majestade das
sentenças. Leão; se a agudeza. Crisólogo, Ruperto; se a
piedade, Bernardo, Guerrico, Amoldo; se questões mo-
rais, Gregório Magno; se alegorias, Anastácio; se a letra
e o perpétuo comentário, Jerónimo, Hugo, Cartusiano,
Abulense, Caetano, Lyra. E entre as vozes nobilíssimas
destes doutores (ou acima delas) , ouve-se amiúde o
Autor da própria harmonia, que faz pressão sobre as
agudas e acompanha as graves, para que pareça superar
aquelas e exceder estas. Claro com brevidade, sólido com
agudeza, elegante com ponderação. Apenas em vão dese-
jarás (peço-te, porém, que não desejes) certas futilidades
subtis, vício em que caem os engenhos da nossa idade.

166
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

illudendos hominum potius, quam ad Scripturae sen-


sos enucleandos, non sine magna veritatis jactura,
néscio an repertas, an inventas; sed doctrinam ve-
ram, firmam, sanam, qualem ab Apostolo. Quamo-
5 brem opus judico dignissimum, cui prodire in
lucem non modo a regia Majestate liceat, sed impe-
retur, ad splendorem regni, ad communem utilita-
tem Ecclesiae et morum normam; contra quos, et
orthodoxam fidem nihil in hac harmonia auditur,
io quod a tanto nomine dissonet.
In Régio Collegio. D. Antonii, 2 die augusti 1645.

Antonius Vieira.

mais para iludir os sentidos dos homens do que para


aclarar o da Escritura, não sem grande dano da ver-
dade, e não sei se achadas, se inventadas; em vez disso,
doutrina verdadeira, sólida, sã, como de apóstolo.
Por tudo isto, julgo esta obra muito digna de que
lhe seja, não apenas permitida, senão ordenada por Sua
Majestade a publicação, para esplendor do Reino, para
comum utilidade da Igreja e norma dos costumes, contra
os quais, como contra a Fé ortodoxa, nada nesta harmo-
nia se ouve, que destoe de tão grande nome.
Real Colégio de Santo Antão, 2 de Agosto de 1645.

António Vieira
VERSOS LATINOS

PIXIS, SEU CÓRTEX EUCHARISTICUS


Pyxidem eucharisticam e suberis cortice miro
artificio fabrefactam, et sculpturae artis legibus
ingeniosissime inventam, conditamque a Patre
Sebastiano de Novais, Societatis Jesu, canebat,
modulatissime, merum fundens ab ore meios,
P. Antonius Vieira, ut in divinis, sic in huma-
nioribus litteris apprime excultus

Quo me Musa rapit? longumque relictus Apollo


Extinctos iteram, juvenes, quos lusimus, ignes,
Frigentemque aetate, jubet recalescere flammam?
Corticis est quae forma senem pulcherrima vatem
Concipere Aonios effceta mente furores,
Suspensamque lyram, fractumque resumere plec-
[trum
Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes.

Tradução:
A P1XIDE OU A CORTIÇA EUCARÍSTICA
P. e António Vieira, com eximia cultura, tanto nas letras
divinas como nas humanas, cantava harmoniosamente,
derramando de sua boca pura melodia, a pixide fabricada
de cortiça e, segundo todas as leis da arte da escultura,
imaginada e executada pelo P. e Sebastião de Novais, da
Companhia de Jesus
Para onde me arrebata a Musa? Porventura Apolo, por
muito tempo abandonado, manda reacender os motejados,
extintos fogos da juventude, a flama que arrefece com a
idade? É a forma de cortiça que, por sua beleza, levou o
velho vate a conceber na mente cansada os furores aónios,
a retomar a lira suspensa e o plectro quebrado e a relem-
brar num carme as fontes esquecidas.

168
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Corticis est! non ficta cano; vos, lumina, testes,


Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago.
Corticis est. Oh quanta sacer miracula córtex
Et certantque patentia tectis!
tegit, et prodit,

5 Mysteri jam clara fides: si talia cerno


Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est
Divinas potuisse manus? De cortice pyxis,
(Nomine maius opus, solique aequabile tanti
Ingenio de cortice fabrica surgit,
artificis)

io Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro,


Mármore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles.
Fundamenta locat córtex, de cortice membra
Assurgunt, córtex calycem, cortexque columnas
Erigit, excelsos córtex sinuatur in arcus;
15 Cortice pyramides crescunt, fastigia córtex

É, na verdade, de cortiça! Eu não


canto cousa inven-
tada. Com efeito, vós, testemunhas; vós,
olhos, sois
mãos, apalpastes. A imagem não iludiu. É de cortiça!
Oh! quantos milagres a sagrada cortiça a um tempo
oculta e revela! e como o que é patente se opõe ao que
é escondido! É já clara a fé misteriosa: se reconheço que
a arte perecedora realizou tais prodígios, de que maravi-
lhas condignas é de crer sejam capazes as mãos divinas?
Surge da cortiça uma píxide (obra maior do que o nome
e só igual ao engenho de tão grande artista); surge da cor-
tiça uma obra, que Vulcano se não teria atrevido a tirar
do ferro,nem Dédalo do ouro, nem Praxiteles do már-
more, nem Apeles a realizar com seu pincel.
Acortiça estabelece a base, de cortiça se erguem as
peças, se elevam o cálice e as colunas, de cortiça partem
a recurvar-se os arcos excelsos; sobem pirâmides de cor-
tiça, é a cortiça que culmina no ponto mais alto e é em

l6ç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Culminat, angelici spirant in cortice vultus.


Cortice poma tument, nascuntur cortice flores,
Pallentes flores omnes, sed forma colorem
puro cortice pingit.
Distinguit, variatque, ac

5 Quid miram? Et molles radiant e cortice gemmse,


Corticeaeque inter volucres vivuntque, volantque,
Fusaque non liquido crepitacula cortice pendent;
Muta silent, at muta tamen tinnire videntur.
Adderet ars sonitum, jussum est ex arte silere,
w Praesentem confessa Deum. Stat cortice firmo
Ara sacro subjecta oneri, quam textilis extra
Circumdat bombix, et divite cortice vestit
Arte labora tus phrygia. De cortice supra
Candelabra putes duro tornata metallo,
75 Hinc, atque hinc longis funalibus alta coruscant,

tuiti(,aque respiram os vultos angélicos. De cortiça tumes-


cem os pomos, de cortiça nascem flores, todas de cor
pálida, mas a forma, em pura cortiça, lhes distingue,
varia e pinta a cor.
Que admira? De cortiça radiam brandas gemas, entre
as quais vivem e voam aves de cortiça e pendem campai-
nhas que em cortiça, apesar de não líquida, foram fun-
didas. Estas estão silenciosas, posto que, mesmo assim
mudas, pareçam vibrar. Poderia a arte acrescentar o
som, mas intencionalmente foi disposto que em seu silên-
cio afirmassem a presença de Deus.
Ergue-se o altar de sólida cortiça, sobrepujado pelo
peso sagrado, e circunda-o exteriormente a seda, rica-
mente tecida com arte da Frigia. Em cima, os candelabros,
posto que de cortiça, julgá-los-íeis torneados em duro
metal, cintilando, aqui e ali, com longos braços que sus-

770
OBRAS ESCOLHIDAS DO P/ ANTÓNIO VIEIRA

Sustentantque faces, ardet sine lumine córtex.


Cera fluit, guttaeque haerent, et flammea sursum
Lingua tremit, cineresque cadunt, fumique vaporant
Indemni flamma. Ignis erat, si flamma noceret.
5 Intertexta novo discurrens faseia ludo
Totum serpit opus, seu vivi corticis anguis:
Hic certoque errore meantes
latet, hic exit,
Implicat ac solvit nodos, quos plurima cudit
Littera, et arcanos aperit doctissima sensus,
IO Corticeamque animat molem, redditque loquentem.
Ipsa caput tollens camerato cortice sistít,

Dimidiumque cavo caelum de cortice pandit,


Convexoque tholo claudit. Supereminet alto
Vértice crux tríplice clavo, tituloque trilingui,
l$ Et terno pendentis adhuc torrente cruoris,
Stipiteque implexo, nodisque simillima verae,

tentam velas, em que


a cortiça arde sem luz. Escorre cera,
pendem gotas, treme em cima a língua flamejante, caem
cinzas e sobem fumos, sem prejudicar a chama. Era o
fogo, se a chama queimasse.
Uma faixa entretecida, discorrendo em não visto
jogo, serpenteia por toda a obra, como cobra de cortiça
viva. Aqui se oculta, ali se mostra, ata e desata com
erro calculado os nós entremeados, em que se inscrevem
várias letras, que revelam, doutíssimas, os misteriosos
sentidos e animam de eloquência a branda cortiça.
A mesma serpe, erguendo a cabeça, se detém no ponto
em que a cortiça se arqueia e um hemisfério celeste se
abre da parte côncava da cortiça, e se fecha em zimbório.
Sobrepujando a tudo, ergue-se, no alto vértice, uma
cruz com três cravos, uma legenda trilingue e um tríplice
fio de sangue, escorrendo; dir-se-ia verdadeira, pela rusti-
cidade da haste e dos nós; apenas mais leve.

171
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

At sola levitate minor. Stat plena doloris


Hinc mater, matrisque novus stat filius inde,
Et córtex in utroque gemit. Quo tenderei ultra
Non habuit suspensa manus. Stetit hic opus, hic ars:
5 . Ars operi finem imponens, finemque opus arti.
Mirantur totam, mirantur lumina partes,
Et molem sine mole stupent; nam machina tanta
Se minor, et maior (dictu mirabile!) tota
Cogitur in cubitum. Dubitet ne coeca fateri
io Religio immensum, parvo qui clauditur orbe,
Non visumque Deum visa de pyxide credat.
Sic ténues olim telas ducebat Arachne,
Discernens digito (si vera est fama) sagaci,
Quae fugerent óculos, formas visaeque negarent

Junto da cruz, ergue-se, dolorosa, a Mãe, de um lado,


e do outro o novo filho, e em ambos a cortiça geme.
Não teve a mão, suspensa, aonde mais se estender! De-
teve-se a obra onde parou a arte, a arte impondo o
fim à obra, a obra à arte impondo o fim.
Os olhos admiram o todo e admiram as partes, e ficam
estupefactos ante a grandeza sem grandeza; porquanto
tão grande máquina, maior e menor do que ela mesma,
toda se reduz — coisa admirável! — a um côvado de ta-
manho! Não duvide assim a cega religião confessar imenso
o Deus que se encerra em estreito orbe, e creia, perante a
Píxide visível, no Deus invisível.
Assim em tempos antigos tecia Aracné ténues teias,
distinguindo, se é verdadeira a fama, com dedo sagaz
formas que fugiriam aos olhos e que, ainda que vistas,
negariam podê-lo ser. Ali, saídos de singelo fio, eram de

I 72
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Posse videri. Illic ingentes stamine parvo


Cernere erat muros, urbes, montesque gigantesque,
Et mana, et terras, vastíssima corpora mundi.
Ac mundum late totum, non mole minorem,
5 Sed magnum, aequalemque sui, nubesque volantes
Desuper, atque altas claudentia sidera nubes.
Nec premitur natura loco: se tota, suasque
Agnoscit partes, spatiisque extenditur aequis.
Hoc opus, hos ausus, quos est mentita vetustas,
io Hic novitas manifesta probat. Fit fabula verax,
Non tenui filo verax, sed cortice crasso,
Materiaque rudi, tanta est in cúspide virtus,
Subtilique manu ludentis gratia cceli;
Materiam non vincit opus, sed crescit ab illa.

75 Sic manus omnipotens, quae ca?li ex fragmine solem


Condiderat, de limo hominem formavit, ut ipse
Ultima fama suae foret, et labor ultimus artis.

ver ingentes muros, cidades e montes e gigantes, mares


e terras, vastíssimos corpos do mundo. E o mundo, na
imensidade do seu todo, não menor em sua mole, antes
grande, igual a si próprio, nuvens voando em cima e os
astros impedindo a ascensão a outras mais altas. Nem a
natureza se aperta num lugar; ela se reconhece a si mesma
e às suas partes, e por espaços iguais se dilata.
Está obra, estes audaciosos empreendimentos que a
Antiguidade fabulou, têm sua prova na novidade que está
à vista. Torna-se a fábula verdadeira, não em ténue fio,
senão em cortiça espessa e matéria rude, tanta virtude
se encerra no canivete e na subtil mão de quem na graça
do Céu se desenfada; a obra não vence a matéria, mas é
dela que surge. Assim a mão omnipotente que de um
fragmento do Céu fabricara o Sol, formou do limo o
homem, para que ele próprio fosse a última glória, o
último trabalho da sua arte.

173
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Ergo age, magne Deus, qui parvo magnus in


[orbe es,
Teque fores maior, si posses crescere; sedem
Gaude implere datam, soliumque ascendam veren-
[dum
Non ferit haec óculos radiantibus aula columnis,
5 Clara micante auro, flammasve imitante pyropo,
Sed stupor et pallor veneranda palatia vestit;
Nimirum decet haec obscurum regia solem.
Corticeam ne sperne domum, concede renatum
Excipiant, quales natum excepere penates.
io Est panis domus ista tui. Praesepe tegebat
Arcebatque nives córtex, sub cortice prima
Ubera suxisti, et fletu maduere recenti
Corticeae tabulae, tanti cunabula regis.
Vellere sub niveo pastorem te esse memento,
75 Cerne tuas, qui pascis, oves, et sanguine signas.

Eis, pois, óDeus imenso, imenso na pequenez do orbe,


e que a próprio ultrapassarias, se tivesses podido cres-
ti

cer: digna-te habitar na morada que te é dada, e suba


eu ao sólio temibilíssimo. Esta sala não fere os olhos com
radiosas colunas no claro esplendor do ouro fulgurante,
no flamejar dos carbúnculos. Mas o espanto, o' palor
reveste os palácios venerandos; certamente é esta régia
sala que convém ao Sol que se esconde.
Não desprezes a morada de cortiça; concede que rece-
bam o Renascido os mesmos Penates que receberam o
Nascido. É esta a casa do teu pão. A cortiça protegia o
presepe e expulsava as neves, sob a cortiça mamaste pela
primeira vez e pranchas de cortiça, berço de tão grande
rei, se humedeceram com o teu primeiro choro. Lembra-te
de que foste pastor, coberto de nívea lã, olha as ovelhas

174
OBRAS ESCOLHIDAS DO ?.
e
ANTÓNIO VIEIRA

Gaude habitare humilem (et fastas damnabis ubique)


Pastoris demore casam. Sub cortice pastor
Defendit, toleratque hiemes, de cortice fontem,
Lacque bibit, córtex pastoram est tota suppellex.

5 Vosque, animae, generosa cohors, quas lampade


[caeca
Alma fides praeit, et mentem sensusque sequentes
Voce catenatos obscuras sistite ad aras,
Dulcis ubi sine fraude dolus, sine corpore candor
Attonitos idem gustatus ludit, et idem
io Non gustatus alit, vos certe numine plenum
Corticem adorate, atque novis accumbite mensis.
Grandia in exíguo convivia cortice claudit.
Sacramentum ingens: panisque, caroque, Deusque
(Quae tria divina? sunt omnia fercula mensae)
l§ Omnia sub triplici velantur tegmine, nam sub

que apascentas e marcas com teu sangue. Digna-te habi-


tar a cabana do pastor, humilde como de costume (e por
toda a parte condenarás as faustosas) Debaixo da cor-
.

tiça o pastor afronta e tolera os invernos, por cortiça


bebe a água e o leite, de cortiça é toda a sua baixela.
E vós, almas, generosa coorte, a quem, de lâmpada
cega, precede a alma Fé, reprimindo-vos pela palavra
a mente e seu séquito de sentidos encadeados, junto
aos obscuros altares, onde um suave dolo sem fraude e um
candor sem corpo, nos ilude o que dele é saboreado, e nos
alimenta, assombrados, o que o não é, adorai vós a cortiça
toda cheia da Divindade, e abeirai-vos de novas mesas.
Grandioso banquete se encerra na exígua cortiça. O sacra-
mento ingente: o pão e a carne, e Deus (que são todas
as três iguarias da divina mesa), todas são cobertas sob

22. Lanterna cieca é a designação italiana da lanterna


dos mineiros, porque projecta a luz num só sentido.

'75
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Pane caro, sub carne Deus, sub cortice panis


Macta, obtecta latent. Vocat ad convivia córtex;
Córtex nutrit apes, et apes ad dulcia castas
Tela vocat córtex. Huc crebro examine mentes
5 Instigate pias, circumque volate frequentes.
Cessate exsuctos rores de flore caduco
Sugere, clausa liquat alium haec alvearia florem
Et fragrant meliore thymo. Vos sugite mella,
Vos haurite favos, vobis haec claustra redundant:
io Non rarae hic sterili sudant de cortice guttae,
Melle fluit córtex, currunt de cortice fontes,
JEterni fontes et mellea ilumina manant.
Huc ávida properate siri, sitit ipse sitim fons,
Hauririque ardet, ceu turgeat ubere mater.
75 Nocte, dieque patet, nec janua clauditur ulli;

tríplice véu, todas —sob o pão a carne, sob a carne Deus,


e sob a cortiça o pão —
se escondem sacrificadas e cober-
tas. A cortiça convida ao banquete; a cortiça nutre as
abelhas, chama as castas abelhas às doces ferroadas.
Instigai para aqui em espesso enxame as almas piedo-
sas e voai em torno, assíduas. Deixai de chupar os enxu-
tos orvalhos da flor caduca, outra flor estas colmeias con-
vertam em líquido, rescendam em aroma do melhor tomi-
lho. Sugai vós o mel, hauri vós os favos, em vosso pro-
veito transbordem estas clausuras. Não raras gotas aqui
exsudam da cortiça estéril, flui a cortiça em mel, dela
escorrem fontes, manam eternas fontes e rios de mel.
Vinde pressurosas com ávida sede, que a própria fonte
tem sede da sede, ardentemente anseia por ser haurida,
como a mãe de túrgidos seios. Está patente de dia e noite,
nem a porta se fecha a quem qijer que seja; porque se

176
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Quod si, quas posuit sola hic reverentia, valvas

Cardine contingat, revoluto cernere clausas,


Horresce, o quisquis, pallensque, atque ore trementi
Incisum (sic mandat amor) lege cortice carmen:
Siste gradum, infelix, latet hic mors; non ego
[tnensam.
Mens tua mutavit; factum est ex melle uenenum.

acontecer que, rodada a couceira, vejas fechados os baten-


tes que só a reverência ali colocou, treme de horror, e
pálido e de lábios trementes, quem quer que tu sejas,
lê este dístico insculpido na cortiça, como b manda o
amor.
Suspende o passo, infeliz! Aqui se esconde a morte;
não eu, senão a tua mente mudou a mesa; o mal se con-
verteu em veneno.

Nota — Deste poema há várias versões e uma em vários


passos diferente é a do Ms. da Biblioteca de Évora. Não
vale, porém, a pena cotejá-las, visto que não é nossa
intenção fazer uma edição crítica. A nossa lição é a de
Seabra, que reproduz a publicada nas Vozes Saudosas
(1736), p. 207.

177
Vol. VII — Fl. 12
CATHARIN/E LUSITAN/È
Britânicas Reginas

Epithalamium canit, promiscuum, amatorium,


suspirans, lastum, nauticum, fatidicum

idem Pater Antonius Vieira

Ergo dies prospera advenit, qua tuta per undas


Vela dare, et Lysiae procul ire a finibus inter
Tot desideria, et nunquam intermissa suomm
Vota parat, pátrios linquens Catharina penates,
Et nimium hen longe positos visura britanos!

Tradução:
A CATARINA LUSITANA,
Rainha da Grã-Bretanha,

canta o epitalâmio misto, amatório, suspirante, alegre,


náutico, anunciador do futuro

o P. e António Vieira

Chegou, enfim, o próspero dia em que Catarina se pre-


para para em segurança desfraldar as velas através das
ondas e ir-se, por entre os desejos e ininterruptos votos
dos seus, para longe dos confins da Lísia, deixando os
pátrios Penates para ver os Britânicos, ai de nós, tão
remotamente situados!

Nota —
A biografia de Vieira mostra mais de um rasgo
da sua afeição por D. Catarina, filha de D. João IV, que
por seu turno vivamente estimava o dedicado servidor de
seu pai.

r
78
COLECÇÃO DÊ CLÁSSICOS SÀ DÁ COSTA

hoc tandem nobis, Hymenaee, dedisti,


Scilicet
Ut Catharina procul nostris discederet oris,
Absentemque absens ut Lysia chara videret,
Et desideriis concussa fidelibus iret
5 In questus, thalamos prope damnatura beatos.
Eripit heu nobis prsedatis Anglia quidquid
Dulce animis, charumque facit; nam pignore in uno
Gaudia, deliciaeque absunt, et tota voluptas
Exulat; irnmo animum quisquis sibi credit abesse,
io Deteriore sui, nec vivere parte laborat.
Connubiale decus tibi fausta, Britânia, tollis
Dum tibi nupta ingens, tasdasque, ignesque jugales
una potentis,
Associat, regisque toros beat
Ut regum veniant utroque a sanguine noti,
15 Progénies auctura orbem, dominareque gentes.

Com efeito, Himeneu, isto nos deste: Catarina afas-


tando-se para longe da cara Lísia, ambas reciprocamente
se vendo ausentes, e ela, impelida pelos fiéis anelos, rom-
pendo em queixumes, como disposta a condenar o feliz
tálamo. A Inglaterra — ai de nós!— arrebata e deixa-nos
despojados de quanto é doce e caro às almas, porquanto
num único penhor se ausentam júbilos e delícias, se exila
todo o prazer, ou antes, cada um crê tê-lo abandonado a
própria alma e nem pensa em viver com a pior parte do
seu ser.
Tu, Bretanha feliz, levas-nos a glória conjugal, uma
vez que a ti a excelsa esposa associa os fachos e os fogos
das bodas, e, única, torna feliz o leito do Rei poderoso,
para que do real sangue de um e outro provenham des-
cendentes, provenham gerações que ampliem o Orbe e
dominem os povos.

170
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTÓNIO VIEIRA
r

Qualis honos! quotque ostentat pulcherrima dotes!


Hac nempe augetur numeras maiorque dearum
Conspicitur còetus: quartam radiare sororem
Optarent Charites, decimamque accedere vellent
5 Pierides, Pallasque sibi annumerare secundam.
Verum omnes inter felicibus addita fatís
Prima venit, primumque jubar, primumque professa
Numen adest, partesque tenet Catharina priores,
Nec reliquas haec vera deas victoria fallit.
io Quo tamen a superis plus accipit illa decoris,
Cunctorumque plus ânimos, et pectora raptat,
Hoc magis hic retinenda fuit; dare vincula amoris
Debuit heu profugae sua Lysia; littore classis
Solvere ne posset, retinacula corda dedissent.

Que honra! Quantos dotes ostenta a mais que todas


pulcra! Por ela, na verdade, é aumentado o número das
dpusas e mais amplo se apresenta o seu concílio. As Gra-
ças desejariam que uma quarta irmã com elas esplen-
desse, as Musas quereriam que uma décima Musa se lhes
juntasse e Palas que uma segunda surgisse. Oferecida,
porém, entre todas, por fados propícios, é a primeira a
vir e, uma vez aparecida, é a primeira estrela de alva, o
primeiro nume que se apresenta; Catarina detém a prima-
zia e nem esta verdadeira vitória engana as outras deusas.
Porque, todavia, ela recebe dos Imortais maior quinhão
de dignidade e mais arrebata os ânimos e os corações de
todos, por isso mesmo mais houve de ser aqui detida; a
sua Lísia, ai de nós!, teve de alargar à prófuga os seus
vínculos de amor; para que a armada não pudesse afas-
tar-se do litoral, teriam os corações dado as amarras.

180
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Sed quid
sollicitis juvat indulgere querellis?

Si dum curas alimus, jam classis eundi


tot
Certa suis properat committere carbasa ventis,
Egregiam vectura nurum! Vada caerula ponti
5 Exultant, stagna alta rosis et flore comanti
Certatim vernasse putes, versoque tenore
Jam ver purpureum salsas regnare per undas.
Vos mini caerulei, precor, o vos plaudite fluctus,
Dum ciassem laeto potius sequor omni, dumque
10 Jam conversa hilari saliunt praecordia motu.
Ite fretum qua pandit iter, qua numina cursum
Indulgent, qua se vestris mana alta carinis
Submittunt, qua nectarios vada salsa liquores
Puppibus inspergunt et mille per oscula fluctus
rj Assiliunt, prorasque a vide contingere gaudent.

Mas de que aproveita condescender com queixas insis-


tentes? Se enquanto tantos cuidados alimentamos, já a
armada, certa de partir, se apressa em confiar aos ventos
as velas que hão-de transportar a egrégia noiva! Exultam
os flancos cerúleos do mar; julgaríeis que os fundos abis-
mos florescessem em primaveras de rosas, de flores de
grandes penachos e que, transgredida a lei, já através das
vagas reina a purpúrea estação.
Ó cerúleas ondas, peço-vos, rasgai-vos diante de
mim, enquanto, mais alegre do que ninguém, eu sigo a
armada, e enquanto, já convertidas, as entranhas me
saltam com jubiloso movimento! Sulcai o mar por onde
a rota se estende, por onde os deuses favorecem o cami-
nho, por onde o mar alto se submete às vossas quilhas,
por onde os salsos pegos espargem nectáreas águas sobre
as popas que as ondas assaltam com mil ósculos e gulo-
samente se regozijam de atingir as proas!

181
OBRAS ESCOLHIDAS DO PS ANTÓNIO VIEIRA

Sic te, diva potens Cypri, sic lúcida fratres


Sydera Lidaei, sic te regnat ipse frementum
Ventorum pater, et plácidos tibi praebeat austros,
Classis arnica, tibi quae credita numina debes.
5 Reginam incolumem hanc o reddere finibus anglis
Atque animae totum nostrae servare memento!
Ipse faces praecans felicia fcedera junxit,
Qui thalami, amor, noctisque per undas
ccelestis
Monstret sed chara dies ubi fulserit, idem
iter,

io Ventilei alarum motu praegnantia vela,


Molliat ut ventos, et blanda syderibus aura
Pacatam ducat vada per Neptunia ciassem.
At vos, Nereydes, qua
se praetoria puppis
Moverit, circum nine inde natantes
ite álacres, et

15 Sternite mollc fretum, laetaque ad gaudia sancti


Connubii, miscete hilares per stagna choreas
Gratantes pariter nuptaeque, Angeloque marito.

Assim, ó armada amiga, te governe a deusa poderosa


de Chippre, os irmãos Lideus, lúcidos astros, o próprio pai
dos ventos vibrantes; eles te propiciem plácidos austros, a
ti que tens de restituir valores divinos, a ti confiados.

Oh! Empenha-te em entregar esta rainha incólume à terra


inglesa, em guardar o que é tudo para a nossa alma!
Aquele mesmo celeste amor conjugal, que reuniu os fachos,
imprecando uma aliança feliz, esse mostre o caminho do
tálamo através das ondas nocturnas, mas quando fulgir o
claro dia, então com o movimento das asas sopre as velas
(antes) enfunadas e assim abrande os ventos e uma aura
suave conduza, através das ondas neptunianas, a armada
afagada pelos astros.
E vós. Nereidas, ide álacres por onde tenha sulcado a
nau almiranta, e em volta dos navegantes, de um e outro
lado, aplanai o mole oceano e aos ledos júbilos do santo
enlace misturai, através dos abismos, as danças alegres,
em felicitações tanto à Noiva como ao Anjo seu marido.

182
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Mox fidium ad sonitum pulsate ad nubila cantum,


Fundite dulce meios, magnorum ad sydera regum
Ferte toros; resonat placidis Hymenaeus in undis,
Dum zephiri adspirant, sedataque marmora ponti
5 Otia sopitis peragtint secura procellis.
Discite, o felix Catharina, accendere taedas
Augustas cui diva parat Concórdia, cuique
In sacras pax alma faces inspirai amoris
Sydereos ignes; sanctos firmare hymeneos,
io Qui valeant, teneantque aeterno in foedere dextras.
Tolle corona tuum coelo caput, accipe ab alto
Sceptra manu stellata pollo: conspirat Olympus
In thalamos, Regina, tuos, dant signa favoris
Numina ut inceptis adsint, et vota fecundent
75 Lysia ut ingenti laetentur, et Anglia sorte,
Iliaeque invidiae stimulis rumpantur Ibero.

Depois, ao som das harpas, fundi em canto a suave


melodia até as nuvens, erguei os tálamos dos grandes reis
até os astros. Ressoa Himeneu nas plácidas ondas, en-
quanto os zéfiros brandamente sopram e, tranquilas, as
águas do mar, adormecidas as procelas, passam ócios
seguros.
Aprendei, ó feliz Catarina, a acender faehos augus-
tos a quem a deusa Concórdia prepara, a quem a alma
Paz inspira, para as sagradas bodas, os fogos sidéreos do
amor; aprendei a consolidar himeneus que perdurem, man-
tenham as dextras em aliança eterna. Levanta a cabeça
coroada até o Céu, aceita do alto Pólo o ceptro na mão
estrelada. O Olimpo favorece, Rainha, o teu tálamo, os
deuses dão sinais propícios de que hão-de assistir a quanto
se empreender, e tornar fecundos os votos, para que a
Lísia e a Inglaterra rejubilem com a sorte magnífica e as
ilhargas sejam ao Espanhol rompidas pelos acúleos da
inveja.

183
DESCRIPTIO MENSIS MARTI
a R. do admodum Patre Antonio Vieyra

Martius egreditur pátrio de numine Marte


Saepe tonans, bellumque ferens nasoentibus arvis,
At nunc pacis amans. Ostendunt nubila ccelum,
Sol aperit vultum, depulsoque agmine toto
5 Armato, fugiunt hyemes, quas Caucasus horrens
Excipit imbelles, tenebrosoque occulit antro.
Stat Pontus, fluctusque silent, nec littora circum
Rauca sonant, placidi terram amplectuntur amicam,
Despumantque iras, atque oscula raollia figunt.
jo Ludunt Nereydes, ludit Delphinus, et omnes
(Insultans tumidumque pecus) consistere Proteus
Jussit oves; quas ipse jacens sub rupe sonora

Tradução:
DESCRIÇÃO DO MÊS DE MARÇO
pelo muito Rev. do Padre António Vieira

Março deriva do deus Marte, seu pai, frequentemente


trovejante, fazendo guerra às searas nascentes, porém,
agora, enamorado da paz. As nuvens deixam ver o céu.
O Sol mostra seu rosto, e, expulso todo o armado exér-
cito, fogem os invernos que o Cáucaso horrendo recolhe,
imbeles, e oculta em antro tenebroso. O mar está sosse-
gado, calam-se as vagas, nem ressoam ao longo dos rou-
cos litorais, abraçam, plácidas, a terra amiga, perdem a
espumarada das iras e dão beijos suaves. Brincam as
Nereidas, binca Delfim, e todo o saltante e túmido reba-
nho Proeteu ordena se amanse como ovelhas, as quais
ele próprio, jazendo sob o alcantil sonoro, contém imóveis

!i4
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DÁ COSTA

Continet immotas, et tarda mulcet avena.


Fiat Zephyrus blande, et tepidam dum sibilat auram
Terra calet,panditque sinus, fontesque liquati,
Ouos pigrae tenuere rigentia vincula brumse,
5 Sponte fluunt, pretiosi olim sitientibus agris
Nunc saturis viles. Dulcem Philomela dolorem,
Alternans sudae breviora silentia noctis,
Pervigil in questus fallitque augetque canendo.
Auditur; somnosque fovet, quos excitat ipsa.
io Ipsa chorum ducit, post coetera turba sororum
Quaeque suos modulata sonos (sunt organa rívi)
Accento plaudunt vario, properamque salutant
Cantibus auroram. Tum fusas, ardore magistro,
Insistunt operi, et nidos ad pignora condunt
15 Tur gentes inter, sed adhuc sine tegmine, ramos.
Prata virent, gravidoque ortum de caule fatigat
Florida progénies, scindensque tumentia claustra

e suaviza com avena de prolongado som. Zéfiro respira


brandamente, e enquanto faz sibilar a tépida aura, a
terra aquece, e abre os seios, e fluem espontâneas e lique-
feitas as fontes, até agora mantidas na imobilidade, pelos
braços enregelantes da bruma; ontem preciosas, pela rari-
dade, para os campos sedentos, são hoje, por sua abun-
dância, de baixo valor para os campos saturados. Filo-
mela, alternando com os silêncios da noite serena, mais
breves, vigilantíssima, engana com doces queixumes,
quando o não aviva, o doce sofrimento. É ouvida e pro-
picia os sonos a que ela mesma convida. É ela que dirige
o coro, depois que a restante turba das irmãs, cada uma
modulando suas notas (os ribeiros são. instrumentos)
aplaudem com vário acento e saúdam em cânticos a
Aurora, que se apressa. Então, dispersas, em ardoroso
impulso, aplicam-se ao trabalho, e constroem, para seus
filhos, entre a ramaria, ninhos que vão crescendo, ainda
sem cobertura. Verdejam os prados e a florida progénie
esforça-se por fazer sair os rebentos do grávido caule; e,
cindindo os túrgidos claustros, nasce nua, mas em nudez

i85
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Nuda oritur, sed nuda omnes induta colores.


Nigrescunt violae, distendit lilia candor,
Purpura Narcisum vestit, seruitque Hyacinthus
Caeruleos gemitus; pallent solemque sequuntur
5 Maiori partu quos edidit herba gigantes.
Implet gramineum pompa ambitiosa theatrum,
At caput attollens Rosa supra excelsior omnes,
Ceu viridi Regina thoro pudibunda superbit.
Quam spinosa acies defendit plurima circum
10 Audacesque manus strictis mucronibus arcet!
Vivit ager totus, nec toti spiritus unus,
Aut similis fácies. Nam verso copia cornu,
(Quod larga dat Flora manu) late omnia pingit
Culta, inculta simul. Spernit, calcatque viator
75 Plebeios mille, et certo sine nomine flores.
Numina quid memorem sudatae provida vitae

que se pinta de todas as cores. Negrescem as violetas, a


alvura dilata os lírios, a púrpura reveste o narciso e o
jacinto espalha cerúleos gemidos; empalidecem e seguem
o Sol os gigantes que a erva gerou com parto mais gran-
dioso. Uma ambiciosa pompa enche o teatro vegetal, mas
a rosa, que levanta a cabeça mais alta que todas as
flores, como pudibunda rainha se gloria em seu verde
tálamo.
Que esquadrão de espinhos defende, em tomo, a muitas
e com picos em riste afasta as mãos audaciosas Todo o
!

campo vive, e não é um único o sopro vital do todo, nem


uma única a sua face. Porquanto, entornada a cornucópia
(que Flora oferece com larga mão), tudo largamente pinta,
ao mesmo tempo o cultivado e o inculto. O viandante
despreza e calca mil flores plebeias e sem nome certo.
Para quê lembrar os próvidos numes da vida traba-

l86
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Queis hominum labor, et ruralia munera curae?


Nondum flava Ceres, viridi redimita corona
Spem segetis magnam agricolae promittit avaro,
Qui praematuris jam compleat horrea votis.
5 Bacchus ovat, sectae vites lacrymantia siccant
Vulnera, pro ferro pulchras in palmite geminas
Foenore multiplici, plenosque datura racemos.
Pinguia Pan laetis aperit pastoribus arva
Invitatque pecus: distendunt ubera matres,
10 Ouae pulsata premunt labiis properantibus agni.
Sed vos, o durum genus, atque a ventre petulcum,
Praecipites haedi, quid spernitis ubera plena?
Prosiliunt álacres et festis saltibus alta
Exertant capita ad pugnam (pro cornibus ardor
15 Sufficit) ; attractis retro vix unguibus imis
Pendent, et toto connixi corpore certant.

lhosa, a quem cabe o cuidado do labor dos homens e das


fainas rurais?
Ceres, ainda não flava, cingida de verde coroa, promete
grande esperança de colheita ao lavrador ávido, que já
com prematuros votos enche os celeiros. Canta Baco de
alegria, as vides secam as feridas lacrimosas, que hão-de
produzir, pelos cuidados da poda, e com juro múltiplo,
formosos gomos na vara e cachos abundantes. Pã abre aos
felizes pastores fartas pradarias e convida o gado; as mães
avolumam os úberes, que os cordeiros com beiços sôfregos
puxam e sugam.
Mas vós, ó dura geração, brincalhona desde o ventre
materno, temerários cabritos, porque desprezais os úberes
túrgidos? Saltam álacres e com festivas cabriolas erguem
as altas cabeças para o combate (o ardor basta a suprir
os chifres), sustentam-se sobre a extremidade das patas,
atiradas para trás, e é numa tensão de todo o corpo que

187
OBRAS ESCOLHIDAS DO P: ANTÓNIO VIEIRA

Frons frontem quatit adversam, sonat ictus inermis.


Circunstant, adduntque intentis visibus iras
Barbati Patres. Sed jam discedere campo
Pastor agit fessos, baculoque ac voce sequestra
Fit pax, et grato solvuntur praelia ludo.
Martius hax: nec plura canam. Sic mensis amicus
Incipit, et totus felix praeluditur annus.

combatem. A testa bate na testa do adversário e ressoa a


pancada inerme. Assistem em roda e com suas expressões
atentas açulam as iras os pais barbudos. Mas já o pastor
obriga os combatentes fatigados a abandonar o campo, e
com o cajado e com a voz como medianeira faz-se a paz,
e os combates terminam em grato jogo.
Eis o que é Março. Nem cantarei mais. Assim começa
o mês amigo e toda a felicidade do ano é assim preludiada.

Nota — Este poema,


que a edição de Seabra não insere,
apresenta-se num
dos apógrafos existentes na Biblioteca
Municipal de Évora com variantes, cujo pormenorizado
conhecimento devo ao Sr. Dr. Armando Nobre de Gusmão,
seu distinto director. De todas as variantes há uma que
sobretudo vale a pena fixar. É a que altera o passo Vivit
ager...
Assim ocorre no Ms. citado:

Vivit ager totus, nec toti spiritus unus


Aut similis fácies alit, idem atque alter ubique,
Diversas animas. Nam verso copia cornu...

A negativa nec repele o conceito panteísta que sem ela


teríamos perfeitamente expresso neste passo: um único
sopro vital... alimenta, por toda a parte o mesmo e dife-
rente, as diversas almas.

l88
Reverendis. mo Patri Aloysio de Saa, cister-
Fr.
ciensis Famílias Ornamento, in Sacra
illustri

Theologia Doctori et Primário jamdudum Ma-


gistro Sapientiss. 0 Academias Decano, ac saepe
Vice-Rectori emeritiss. 0 , ad maiora in Deo
destinato

Rescribit Elegia

Quam mihimisisti, Pater o charissime, chartam,


Illa fuit vere côngrua charta mihi;
Nam, quam ferre solet, mihi detuht illa salutem,
Dum mihi, magna satis, côngrua dona tulit.
5 Forsitan et pelagus, quas nunc mihi ferre nequibit,
Fertilior pélago fert tua charta dapes.
Errat at in titulo, nam me vocat illa Magistrum,

Tradução:
Ao Rev. mo Padre Fr, Luis de Sá, ornamento ilustre da
família cisterciense, doutor na Sagrada Teologia, antigo e
sapientíssimo Lente de Prima de Teologia, Decano e
frequentemente emérito Vice-reitor da Universidade, des-
tinado para coisas maiores em Deus,

Responde a Elegia
A carta que me enviaste, preclaro Padre, foi-me, na
verdade, oportuna, pois me deu a saúde que costuma
trazer, ao oferecer-me os grandes e apropriados presentes.
Porventura mais fértil do que o mar, traz-me ela os man-
jares que o mar agora me não poderá trazer. Está, porém,
errada no endereço, pois me chama mestre, quando eu

Nota — Vide nota da pág. 194.

i8ç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Discipulus vellem cum magis esse tuus.


Ah nimium titulo tua littera peccat eodem,
Quem dare debuerat littera nostra tibi.
Te semper populi primum agnovere Magistrum,
5 Jamque alii, docuit quos tua lingua, docent.
Primanae aequali cathedrae dominaris honore.
Doctaque quam doctos dat tua lingua sonos!
Proh quali ingenio Triados secreta resolvis,
Quae sol um hac nobis cognita luce patent.
io Te sunt mira ti meliori jure Saulem,
Qui te censorem promeruere suum;
Ille sacros inter dedit olim oracula vates,
Ille tamen vates non sacer ante fuit.
At tu, vena sacroquem ditior irrigat cestro,
15 Innuit et nomen cum gravitate salem,
Rex vatum visus, meritamque aptare coronam
Vatibus, ex multis, qui placuere tibi.

Te rediisse probum, et vatem rediisse fateris

mais desejava ser teu discípulo. Que grande erro ela


comete, no mesmo título que a minha a ti deveria dar!
A ti é que sempre todos reconheceram por mestre, e já
outros que a tua eloquência ensinou, por seu turno vão
ensinando.
Brilhas com o prestígio adequado à cátedra de prima.
Quão doutas notas emite a tua língua douta! Com que
engenho resolves os segredos da Trindade, que apenas com
luz tal se nos patenteiam!
Com mais direito te admiram como a Saul aqueles que
te mereceram como seu censor; proferiu ele outrora orá-
culos, entre os vates sagrados, sem que ele próprio o
houvera sido. Tu, porém, a quem irriga veia mais pre-
ciosa que o cestro sagrado e o próprio nome gravemente
faz lembrar o sal, pareces o rei dos vates e dos que mais te
agradaram cinges a merecida coroa. Confessas que te tor-

18. Ver epigrama da pág. 195.

IÇO
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Te vatem, et pariter credimus esse probum.


In calamo probitas, calamus probitate relucet,
Non calamo es quoquam, nec probitate rninor.
Hoc probat exemplum, quo, tu pater oprime, vires,
5 Et probat hoc calamus, quo tua fama volat.
Ergo probum rediisse tuum est, probitatis et hujus,
Non inter nostros degere causa fuit:
Nec quia tu nostris te vatibus inseris, unus
Es vates; vates magnus Apollo facit.
10 Hausisti fontes, rupit quos ungula saxo,
Nec tantum ad vatem concha Vieira satis.
Stellarum Phcebus paterem tibi mittet ab astris,
Ut tibi, quae Phcebo concha propinei aquas.
Te mea pasto rum faceret neque concha poetam,

naram probo e poeta, a ti que uma e outra cousa cremos


que de natureza és. Probidade no cálamo, que dela reluz.
Nem no cálamo nem na probidade quem quer que seja te
leva vantagem. Prova-o o exemplo de virtudes em que tu,
bom Padre, esplendes, e o cálamo por que a tua fama voa.
Assim, por ti próprio és probo, e de tal probidade não foi
causa a tua passagem por nossa casa; nem és vate porque
convives com vates nossos, que a vates é o grande Apolo
quem os cria.
Hauriste as fontes que o casco (do Pégaso) fez reben-
tar da pedra, nem para um vate é bastante a concha
Vieira. Febo te enviará dos astros taça de estrelas, para
que a ti ofereça a água a mesma taça que a propina a
Febo. Nem a minha taça pastoril te poderia fazer poeta,

26. É sabido que vieira como nome comum designa


uma pequena concha de marisco, muito usada pelos romei-
ros. Daí o jogo verbal, a que o nome do jesuíta mais de
uma vez se prestou.

IÇI
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

Dignam se attactu non facit illa tuo.


Si tamen ista tuum tetigesset concha labellum,
Áurea, quae fuerat fictilis illa foret.

Te quod eras rediisse mihi tua littera dicit


5 Esseque Sylvanum.Jam piget esse deum?
Umbrosas quondam coluerunt di quoque sylvas,
Amphrysi coluit clarus Apollo nemus.
Desine tu Mondam, sed jam, turbare querelis.
Nam sonat in Mondam cur tua lingua triplex?
IO Lingua triplex quondam nomen confecit Jesu,
Sic notum hoc toto nomen in Orbe fuit;
Tu celebras Ligni triplici quoque carmine partem,
Et triplici in Mundi parte legendus eris.
Dat tibi grata triplex, tríplices quoque gratia cantus,
15 Unicaque est aliis, sed tibi in ore triplex.

nem pode ser digna do teu contacto. Se contudo tal con-


cha houvera tocado o teu lábio, tornar-se-ia áurea, apesar
de feita de barro.
Diz-me a tua carta que voltaste a ser o que eras —
Silvano. Já o ser deus é motivo de desagrado? Também
antigamente os deuses habitavam as umbrosas florestas
e o claro Apolo habitou o bosque de Anfriso.
Cessa, e já, de turbar o Mondego com tuas queixas!
Na verdade, por que razão a tua tríplice Hngua ressoa
para o Mondego? Outrora, três línguas formaram o nome
de Jesus e assim tal nome em todo o Mundo foi conhecido.
Semelhantemente, tu celebras num carme a parte do trí-
plice lenho, e nas três partes do Mundo vais ser lido.
Uma tríplice graça, bem grata, te dá tríplices cantos,
e se para os outros é uma só, é para ti, em tua boca,
tríplice.

1. Na ed. das Cartas de 1746: Digna ideo attactu


non fuit illa tuo.
9. Ver nota da pág. 196.

1Ç2
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTÓNIO VIEIRA e

Sed quid ego admiror? factus si Monda trilinguis


Oscula dat terrae qua tua villa jacet.
Et velut ille solet tibi laetior esse trilinguis,
Gratior et nobis jure trilinguis ades.
5 non es, sed Apollinis arae,
Illius interpres
Maiores tituli conveniuntque tibi.

Non solum vives bis septem lustra: Poetis,


Nam solet innumeros currere vita dies
At ego dum vivam, dum spiritus hos reget artus
io Mille tibi titulis obsequiosus ero.
Vale.

Mas porque me admiro eu? Pois não oscula um Mon-


dego trilingue a terra em que a tua vila jaz? Assim como
ele costuma ser-te mais alegre quando trilingue, assim
tu, quando trilingue, mais grata nos fazes a tua presença.
Não é dele que és intérprete, senão do altar de Apolo,
e maiores títulos, por isso, te cabem. Não viverás apenas
duas vezes sete lustros. Aos poetas não costuma a vida
correr ao longo de inúmeros dias, mas enquanto eu viver,
enquanto o espírito me reger as articulações, por mil
tíulos te serei obrigado. Vale!

Nota — Este poema foi transcrito do apógrafo da


Biblioteca da Universidade de Coimbra.

IÇ3
Vol. VII — FI. 13
EPIGRAMAS

Reverendo admodutn Patri Doctori in Sacra Theo-


logia sapientisimo et primarice caihedrce Magistro
digníssimo ter máximo,
FR. ALOYSIO DE SA,

carmine trilingui emodulanti furtum Monda,


qui brachium crucis in Villa Franca avulsit,
exundans

To ta crucis titulo stat prisca scientia, totam


Cum triplici in lingua faris, habere probas.

Nota — «No mês de Agosto de 1664 se achava o P. e An-


tónio Vieira na quinta de Vila Franca, do Colégio de Coim-
bra, em companhia de muitos padres do recolhimento e
do padre Manuel de Magalhães, seu prefeito; o qual lhes
tinha ordenado por assunto dos versos, que haviam de
fazer, uma cruz de forma rústica que se achava em certa
paragem da dita quinta, à qual o Mondego em uma en-
chente tinha levado o braço direito. Neste mesmo tempo
se achava também de férias, na sua quinta da Alegria,
o Rev. mo P. e Mestre Dr. Fr. Luis de Sá, religioso de
S. Bernardo e lente de prima de Teologia na Universi-
dade, o qual a 14 do dito mês foi visitar o P. e António
Vieira e mais padres, a Vila Franca. E vendo que tinham
feito vários epigramas ao dito assunto, e o faziam a ele
juiz, para dar o prémio assinalado ao que estivesse mais
bem feito, o dito padre o dividiu pelos primeiros três
epigramas, pelos julgar de igual merecimento.» (Nota —
da r* edição, extraída do Ms. que contém os versos).
2. É sabido que era em três línguas —
hebraico,
grego e latim — a inscrição que foi posta por Pilatos na
cruz em que Cristo foi crucificado —
Jesus Nazareno rei
dos Judeus.

TQ4
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.< ANTÓNIO VIEIRA

Tradução:

Ao Rev. mo P. e Fr. Luís de Sá, sapientíssimo Doutor na


Sagrada Teleogia e dig. m ° e eminente Lente de prima,

cantando em carme trilingue o furto do Mondego,

que, transbordando, arrancou um dos braços da cruz


de Vila Franca.

Toda a antiga ciência da Cruz está de pé na legenda:


toda tu mostras possuir, ao exprimir-te em três línguas.

Reverendíssimo P. D. Ludovico de Sa

qui, cum nostram adiret villam, lactis carminibus a


nostratibus Lusis, non solum ea triplici idiomate seu
tergeminis laudibus extulit, sed in hcec prorumpit: —
«Vim santo e poeta».

Te sanctum esse probas, cum te, Ludovice, trilin-


[guem
Ostendis, vatem nec minus esse probas.
Solum cui donum concedit Spiritus istud,
Tam variis linguis farier ille potest.
Qui venerande Pater, videt esse trilinguem,
te igitur,
Spiritus hoc, dicet, pectore Sanctus adest.
Spiritus hic etiam dat mentem, animumque poetis,
Hic sanctum et vatem te probat esse simul.

4. Farier, por fari, é forma arcaizante, usada, posto


que raramente.

195
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Tradução:

Ao Rev. mo Sr. P. e Luís de Sá, que, ouvindo ler aos


nossos os versos lusitanos, não somente em tríplice idioma
e tríplice louvor os gabou, senão que exclamou: —Vim
santo e poeta.

Provas que és um santo, quando, Luís, te mostras


trilingue, e não menos provas que és um vate. Só aquele
a quem o Espírito concede este dom se pode exprimir
em tão várias línguas. Aquele, pois, que vê que dominas
três línguas, dirá: o Espírito Santo está presente neste
coração. É ele que dá aos poetas o espírito e a alma; Ele
que mostra que tu és ao mesmo tempo santo e poeta.

In illud epistolaR. P. M. Ludoirici de Sa:


«Cum sancto sanctus eris».

Alter in alterius si mores demigrat usu,


Saepius huc, possim sanctus ut esse, veni.

Tradução:

Ao passo da epistola do Rev. P. e M. tTt Luis de Sá:


«Em companhia de santo, serás santo»
Se alguém, por virtude do hábito, toma os costumes de
outrem, vem aqui com mais frequência, para que eu possa
tornar-me santo.

TÇÓ
OBRAS ESCOLHIDAS DO P:'ANTÓNIO VIEIRA

In illud epistola R. P. M. Ludovici de Sa:

«O Mondego, que sempre aqui traz a cara de alegria,


ma causou com me dar essas desculpas em três
línguas, porque aqui chega já trilingue».

In pelagum Mondam plácido se evolvere cursu,


Et propre te liquida currere dicis aqua.
Currere si tua mi suasisset charta, putarem
Suspensa ad cantus stare fluenta tuos.

Tradução:

Dizes que o Mondego caminha para o mar em plácido


curso e que perto de ti corre com límpidas águas. Se a
tua carta me não tivesse dito que corre, eu julgaria que
tudo quanto flui se queda suspenso ante os teus cantos.

Reverendíssimo P. M. D. Ludovico de Sa, triplicem


Monda linguam adscribenti

5 E villa sanctum bene se rediisse probavit,


Linguarum donum qui tibi, Monda, dedit.

Tradução:

Ao Rev. mo P. e M. tre Luís de Sá, atribuindo três línguas


ao Mondego

Bem mostrou ter regressado da vila santo, aquele que


te presenteou, ó Mondego, com o dom das línguas.

797
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

Reverendíssimo P. M. D. Ludovico de Sa,

se vatem et sanctum e villa reddisse affirmanti.

Et probus, et vates, villa hac abiisse fateris,


In crucis obsequium carmen utrumque probat.
Non tairien hoc nostrum dicetur; múnus utrumque
In villam attuleras, villa et utrumque refers.

Tradução:

Ao Rev. mo Snr. Ps M. tre Luís de Sá,

afirmando que voltou da vila poeta e santo.

Confessas que voltaste da vila probo e poeta; uma


e outra coisa as prova o carme em honra da Cruz. Tal
afirmação não a faremos nós; tu tinhas trazido para a
vila um e outro talento, e um e outro tornas a levar.

Reverendo admodum P. D. Ludovico de Sa, sapien-


tissimo primarice Theologicz Magistro:

5 Orpheus, Amphion dulce modulamine vivos


Traxerunt, trahitur carmine Monda tuo.
Sed tibi jam cedant cantus Amphionis Orpheique;
Única língua illis, sed tibi lingua triplex.

Tradução:

Ao Rev. mo Snr. P. e Luís de Sá, sapientíssimo Lente de


Prima de Teologia

Orfeu e Anfião com doce melodia atraíram vivos;


pelo teu carme é atraído o Mondego. Cedam perante ti
os cantos de Anfião e Orfeu. Tinham eles apenas uma lín-
gua, enquanto tu possuis três.

iç8
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÔNIO VIEIRA

In illud epistola R. P. F. Ludovici de Sa:


«A satisfação do Mondego, ainda que é de côngruo,
seria grande rigor de justiça esperá-la de con-
1
digno» ( )

Qui tam digna sui, mihi côngrua munera misit,


Quae mare, vel tellus non mihi forte daret;
Condigna huic cceli debentur munera, quando
Nec mare, nec tellus quae dare possit, habet.
Tradução:
Aquele que enviou presentes tão dignos de si, e para
mim tão convenientes, e que jamais, porventura, nem a
Terra nem o Mar me dariam, são-lhe devidos condignos
presentes do Céu, uma vez que nem o Mar nem a Terra
possuem que possam dar- lhe.

Reverendíssimo P. ac sapientissimo D. R. Aloisio de


Sa, primário Theologice moderatori ac Magistro
amplíssimo, sacratur
EPIGRAMMA
Ad illud epistola: — «A tinta é branca, porque é a
própria água do Mondego».

5 Rursus aquam nobis dederat quam Monda, remittis,


Nam tua Mondanis charta notatur aquis.
Ergo si Amphion sistebat ilumina, quando
Áurea currebat pectine fila chelys:
Tu longe aurato superas Amphionis plectro;
io Non tantum sistit, sed redit unda retro.

(*) O P. M. Luís de Sá quer dizer que, se bem haja


o Mondego oferecido o que lhe compete —
peixes das suas
águas —seria de justiça que oferecesse o que melhor
correspondesse à dignidade de Vieira.
io. Volta atrás a onda, porque Vila Franca era a
montante da Vila de Frei Luís.

100
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Tradução:

Ao Rev. m ° P. e e sapientíssimo Dr. Fr. Luis de Sá, Vice-


-reitor e Lente de Prima de Teologia, é consagrado o

Epigrama:

Tomas a dar água que o Mondego nos dera, pois em


águas do Mondego é escrita a tua carta. Assim, se Anfião
detinha os rios ao passar o arco pelas áureas cordas da
cítara, tu de muito longe ultrapassas o áureo plectro de
Anfião: a onda não apenas se suspende; volta atrás.

Reverendíssimo P. ac sapientíssimo D. F. Aloysio


de Sa, primário Theologice Moderatori ac Magistro
amplíssimo

SACRATUR EPIGRAMMA
Ad illud epistola: — «Dá o Mondego essas desculpas
em três línguas».

Dum Crucis intendis celebrare encomia, tanto


Sufficiens operi Monda trilinguis adest.
At tua dum subiit mini mens attollere facta,
Nec triplex praesto est, nec mihi lingua duplex.
Et mérito, quaecumque tuis est laudibus impar,
Nec centena satis si mihi lingua foret.

Tradução:

Enquanto ensaias celebrar os encómios da Cruz, para


tão grande empresa te assiste, suficiente, o Mondego
trilingue. A mim, porém, se me ocorre a ideia de exaltar
acções tuas, não podem valer-me nem duas nem três lín-
guas. £ com razão, pois qualquer língua é inadequada aos
teus louvores, e cem línguas que eu tivesse não bastariam.

200
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Reverendíssimo P. ac sapientissimo Domino F.


Aloysio de Sa, primário Theologice Moderatori ac
Magistro amplíssimo, dicatur

EPIGRAMMA
Ad ília verba epistoles: — «Dá o Mondego essas des-
culpas em três línguas».

In triplici melior lingua canis alter Apollo


Villae Ignatiadum brachia fracta crucis.
Lingua triplex etíam titulum crucis explicat almae:
Hoc Christo arrisit ponere lemma cruci.
Si crucis in dextra titulum modo poneret, unum
Lemma crucis triplex hoc epigramma foret.

Tradução:

Ao Rev. mo Padre e sapientissimo Snr. Fr. Luís de Sá,


Vice-reitor e eruditíssimo Lente de prima de Teologia, é
dedicado o epigrama àquilo das palavras da epístola...:
Em três línguas melhor cantas, qual outro Apolo, os
braços quebrados da cruz da vila dos Inacianos. Tam-
bém é em uma língua tríplice que está escrito o título
que à cruz salvadora foi grato a Cristo pôr como lema.
Se apenas no braço direito da cruz se pusera o título, seria
este epigrama o seu único lema.

Reverendíssimo Patri sapientissimo Sacra Theologice


Doctori et primário Magistro

Lugebant erepta sibi solatia fratres,


Qua? dedit una dies, abstulit una dies.
Ipsi etiam colles, et flumine Monda quieto
Absentem lacrymis te modo voce dabat.
Attamen in cantus, festivaque gaudia luotus
Vertitur, absentem dum tua metra trahunt.

201
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Tradução:

Choravam os irmãos consolações a si arrebatadas, que


um dia nos trouxe outro dia nos levou. As próprias coli-
nas e o Mondego, de plácida corrente, em suas lágrimas
há pouco te lembravam ausente, mesmo na voz. Mas eis
que o luto se converte em cânticos e festivos júbilos, logo
que os teus versos trazem junto de nós o ausente.

Reverendíssimo P. ac sapientissimo D. Aloysio de


Sa, primário Theologice moderatori ac Magistro
amplíssimo sacratur

EPIGRAMMA

Ad illud epistoles: —
«A tinta é branca, porque é a
própria água do Mondego».

Mondae scribis aqua nobis, facunde Magister,


Ipsaque Castalias littera vincit aquas.
Sed mirum calamo Mondae satis esse liquores,
Cum petat immensum copia tanta mare.
Tradução:
EPIGRAMA

àquilo da epistola: uA tinta è branca, porque ê a própria


água do Mondego»:

Escreves em águas do Mondego, é facundo Mestre, e


a própria carta vence as águas de Castália. Mas é ma-
ravilhoso que para tal calamo sejam bastantes as águas
do Mondego, quando a abundância (do que ele tem de
Escreves em águas do Mondego, ó facundo Mestre, e

2D2
EPIGRAMAS SOBRE O MESMO ASSUNTO,
publicados na ed. das «Cartas», III vol. (1746)

R. mo P. M. Fr. Aloysio de Saa Villam Francam


invisenti

Quis novus hic nostris succedit sedibus hospes?


Ecquis Jesuadum vult decorare domum?
Fallor? An hasc eadem ludunt insomnia mentem?
Vera meis oculis objicitur fácies,
5 Dum tamen aspicio nostra intra limina saeptum,
Atque inter nostros te, Ludovice, choros;
Omnia laetitia video gestire: triunfans
Laetatur visu Franca superba tuo.
Laetantur montes, rident jam floribus arva
io Et nova de gravido palmite gemina tumet.
Et Monda auríferas laetius instillat, et agros
Ad villam plácido dum fluit amne beat.
Vive diu, Ludovice, et nostris annue votis;
Nestoreorum superest sic tua vita dies.

19. Nestor é o mais velho dos chefes presentes no


cerco de Tróia. Segundo Homero, tinha 300 anos de idade.
O texto dos epigramas insertos desta à página 214 apa-
recem com algumas variantes, em geral menos exactas, no
códice 2795, da Biblioteca da Universidade de Coimbra,
cujo conhecimento devemos e agradecemos ao seu ilustre
Director, Prof. M. Lopes de Almeida.
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Tradução:
Ao Rev. mo P. M. Fr. Luis de Sd, ao visitar Vila Franca

Que novo hóspede entra em nossa casa? Quem quer


honrar a casa dos Jesuítas? Engano-me? Porventura me
iludem a mente estas mesmas visões? Contudo, a verda-
deira face se apresenta ao meu olhar, quando, por entre o
limiar, vejo a cerca e a ti, Luís, entre os nossos. Tudo
vejo saltar de prazer. Vila Franca alegra-se, triunfante,
soberba com tua presença. Alegram-se os montes, abrem-
-se os campos no riso das flores e novos gomos tumescem
da videira grávida. E o aurífero Mondego penetra mais
alegremente, derrama a ventura pelos campos, fluindo em
plácida corrente junto da vila.
Vive por muitos anos, Luís, satisfaz os nossos votos;
assim a tua vida ultrapasse os dias dos Nestores.

Eidem
quod ViUam Francam inviserit, et múnus cutn car-
minibus miserit ex villa sua vulgo «da Alegria»

Cum nostram, Ludovice, venis clarissime villain


Exque tua mittis munera dupla mihi;
Munificus, praesensque facis miracula tanta,
Nomen ut immutent utraque villa suum,
Villam namque tuam faciunt tua munera Francam
Et nostra haec tecum quid, nisi laetitia est?

Tradução:
Ao mesmo,
porque, tendo visitado Vila Franca, da sua casa de campo,
vulgarmente chamada «da Alegria», enviou um presente
acompanhado de versos
Quando, ilustre Luís, vens à nossa vila e da tua me
envias duplas dádivas, fazes, com tua munificência e com
tua presença, tais milagres, que uma e outra vila trocam
seus nomes, pois os teus dons fazem da tua a Vila Franca
e esta nossa, contigo, que é senão Vila da Alegria?

204
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. e ANTÓNIO VIEIRA

Eidem

Lusitanutn, CasteUanum et Latinum Monda


trilingui adscribenti

Audio cura Lysiam nativo carmine Musam,


Auriferum —
dico —
sic colit ista Tagum.
Audio cum latios romano turbine versus,
Hanc —
dico —
infla vit Tybridis aura tubam.
Audio cum hispanae ventosa tonitrua linguae,
Cum caneret, dico: sic quoque Betis erat.
Audivi et fallor. Tuus est hic Monda trilinguis
Et Beti et Tibri ditior, atque Tago.

Tradução:

Ao mesmo,
ao escrever, ao Mondego, em três línguas — português,
castelhano e latim

Quando ouço a Musa Lísia, em carme vernáculo, digo:


Assim ao Tejo aurífero. Quando ouço ver-
ela presta culto
sos latinos com veemência romana, digo: A aura inchou a
tuba do Tibre. Quando ouço o ventoso troar da língua
espanhola, digo: Assim era também o Bétis (quando can-
tava) .

Ouvi mas engano-me. É antes o teu Mondego trilingue,


mais rico do que o Bétis, o Tibre e o Tejo.

205
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Eidem

trilingui sermone qucerenti, cur in Villa Franca


Positce cruci Monda dexterum brachium abstuierit

Dum Villam Francam Monda alluit altior undis


Forte crucis dextero brachio obesse ferunt.
Arripuit Vates calamum, et sermone trilingui
Quaenam causa foret carmine disseruit.
5 Hanc inscribendam meliori jure putarem
Esse cruci Christi, quam fuit illa necis,
Nam totidem linguis scripta, et nuntia laeta
Dum loquitur, digna est scribi in Evangelio. fe
v"n *'

La e tu
nuntium

Tradução:
Ao mesmo,
ao perguntar em discurso trilingue por que razão o Mon-
dego levara o braço direito à cruz que se ergue em
Vila Franca

Contam que o Mondego, ao correr junto de Vila Franca


com onda mais alterosa, arrancou por acaso o braço direito
da cruz, e logo o poeta empunhou o cálamo e, em dis-
curso trilingue, dissertou em verso sobre qual fora a
causa. Creio que a este poema com melhor direito caberia
ser inscrito na Cruz de Cristo de que o da sua morte,
porquanto, escrito em igual número de línguas, é digno
de ser escrito no Evangelho, enquanto comunica alegres
novas.

8. Trad. da nota ao lado: Evangelho quer dizer:


alegre nova.
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

Eidem

Aã illud epistoles Sua R. mae : «Nunquid Saul inter


prophestas?»

Non es, crede, Saul, tractas dum carmina censor.


Sponte Saul cedit, cedit Apollo tibi.
Hic caput obscura quondam ferrugine texit,
Lumina nec sua sunt ausa videre crucem.
Sed tu electa cruci, claríssima Ph«be, sacrasti
Carmina, ab ingenio lúcida facta tuo.

Tradução:

Ao mesmo,
ao passo da epistola de Sua Rev. ma : «Pois quê? Saul entre
os profetas?!»

Acredita: Não és Saul, enquanto tratas como censor


os carmes. Saul, tal como Apolo, espontaneamente te cedeu
o passo. Outrora, este cobriu a cabeça de escura ferrugem
e nem seus olhos ousaram ver a cruz. Mas tu, ó preclaro
Febo, sagraste os escolhidos carmes da cruz, que o teu
engenho tornou lúcidos.

X. Vid. igual referência a Saul como censor na pág. 190.

207
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Eidem,

in illud epistoles: «Se bebera pela concha do Vieira,


viera mui concho»

Non mea concha tibi Divino côngrua Vati est,


Nec venam ut satiet sufficit arcta tuam:
negat pariter dare flumina Pindo
Fictilis illa
Áurea cui Pindus pocula sponte dedit.
Hac tamen ipse Midas si concha forte bibissest,
Áurea ab attactu, dives et ipsa foret.

Tradução:

Ao mesmo,
ao passo da epistola: «Sc bebesse pela concha de Vieira,
viera mui concho.»

Não é adequada a minha concha a divino vate como


tu, nem, de exígua, ela basta a satisfazer a tua veia.
De barro como é, diz que não dão rios ao Pindo aqueles
a quem o Pindo espontaneamente deu copos de ouro.
Contudo, se acaso o próprio Midas tivesse bebido por
esta concha, também ela se tomaria áurea e rica pelo con-
tacto.

Na ed. das Cartas, acima citada, ocorre bibisset;


5.
mas o sentido parece justificar a lição do Ms. de Coimbra
— bibisses. Se tu, qual o próprio Midas... Midas, foi,
segundo a Mitologia, um rei da Frigia, que obteve de
Baco o privilégio de transformar em ouro tudo quanto
tocasse.

208
OBRAS ESCOLHIDAS DO P." ANTÓNIO VIEIRA

Eidem,

in illud epistola: «Vão essas queixas em três línguas;


porque aqui vai o Mondego já trilingue»

Per tua rura vado, si Monda trilinguis amoene


Labitur, et triplici circuit ore domum.
Murmurat absentem pulchra te degere villa,
Murmuret utque magis, tema per ora sonat.
Nam cum Jesuadis sis maximus inter amicos,
Doctaque gens docto sit bene grato viro,
Orpheo non alium, sed te vada sistere mavult,
Nostra ut florescat libera villa tibi.

Tradução:

Ao mesmo,
ao passo da epistola: «Vão essas queixas em três línguas,
porque aqui vai o Mondego já trilingue.»

Passeio através dos teus campos, se o trilingue Mon-


dego escorre amenamente e com tríplice boca envolve a
casa. Murmura a vila que tu passes o tempo ausente, e,
para que maior seja o murmúrio, por três bocas ele ressoa.
Porquanto, como tu sejas com os Jesuítas o melhor entre
os amigos e as pessoas cultas se sintam bem com o amigo
culto, a nossa vila prefere que tu, não diferente de Orfeu,
faças deter as ondas, para florescer, livre, para ti.

20Ç
Vol. VII - Fl. 14
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÀ DA COSTA

Eidem,

in illud epitoks: «Fão essas queixas em três


línguas...'»

Carmina das triplicem pulchre resonantia linguam


Et Mondae assimilem te tua Musa facit
Ergo tibi tria Regna petent, nec Gradeia jactet
Urbes jam vatem quae petiere suum.
j

Tradução:

Ao mesmo,
sobre o passo da epístola: «Vão essas queixas em três
línguas...»

Ofereces carmes que formosamente ressoam em três


línguas, e a tua Musa te torna semelhante ao Mondego.
Por isso três reinos te disputam, e nem já a Grécia gabe
as cidades que reclamaram o seu vate.

3-4. Refere-se Vieira às cidades que disputaram ter


sido o berço de Homero.

mo
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. r ANTÓNIO VIEIRA

Eidetn,

in illud epistoke: «Oferece o Mondego, o que pode


ser não possa dar hoje o mar»

Dum mittit xenium Vates pro flumine, pisoes .

Dono offert, salsi quos alit unda maris:


Hos Mondae attribuit pelagoque negare videtur.
Munere sic vatis celsior ille mari est.
Hinc doctrinam aliam Sophiae discetis alumni:
Jam donare aliquis, quo caret, ipse potest.
Munera cum vates naturam det super ipsam,
Hic próprio flumen finxit ab ingenio.

Tradução:

Ao mesmo,
ao passo da epístola: «Oferece o Mondego o que pode
ser não possa dar o mar»

O Vate, ao enviar-me uma dádiva em nome do rio, ofe-


rece-me peixes que a onda do mar salgado alimenta. Atri-
bui-os ao Mondego, e parece negá-los ao Oceano. Assim, na
dádiva do Vate, é aquele superior ao mar. Daqui, ó
alunos da Sabedoria, aprendeis outra doutrina: Já alguém
pode dar aquilo de que ele próprio carece. Quando um
poeta dá presentes que estão acima da sua natureza, faz,
pelo próprio engenho, a figura do rio.

211
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Eidem et in idem

Oceanus Mondae tradit modo sponte ooronam,


Datque catenatas in sua vinela manus
Nam quod Monda tulit, valuit non mittere Pontus.
Dat siquidem pisces, quos negat oceanus,
Nihil mirum est. Quondam pisces flutabat Arion
Fluminis ad ripas carmine, voce, lyra;
Nunc Mondai cum plectra movet Ludovicus ad
[umbras,
Huc quoque conveniunt agmina blanda maris.

Tradução:

Ao mesmo, e sobre o mesmo assunto

Agora o Oceano espontaneamente entrega ao Mondego a


coroa e lhe dá as mãos encadeadas para as cordas; por-
quanto o que o Mondego traz não o pôde o mar enviar.
Se, na verdade, nos dá os peixes que o Oceano recusa,
não é de admirar. Outrora, Arion com seu carme, ao som
da voz e da lira, atraía os peixes até às margens do rio;
agora que Luís move os plectros para as sombras do Mon-
dego, aqui afluem também os brandos exércitos do mar.

5. Arion foi célebre grego (VII séc. A. C.)


poeta
de quem se diz que foi salvo num
naufrágio pelos delfins,
atraídos pelo encanto da sua música.

212
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Eidem et in idem

Postquam Monda crucem propriis evexit in undis,


Deseruit salsas undique conger aquas;
Namque videns sacram stellato in vértice Puppem
De fluvio factum credidit esse mare.
Vel novus Amphion, decus et nova gloria Phoebi,
Ad Mondam pelagi monstra canendo trahit.

Tradução:

Ao mesmo e sobre o mesmo assunto

Depois que o Mondego afogou a cruz em suas próprias


ondas, por toda a parte o congro desertou das salsas
águas; porquanto, ao ver a sagrada nau no pego estre-
lado, julgou que de rio se convertera em mar. Ou por-
ventura novo Aníião, honra e nova glória de Febo, atrai,
cantando ao Mondego os monstros do Oceano.

De Anfião, músico mitológico, disse-se que construiu


5.
os muros de Tróia, atraindo ao som da música as pedras,
que por si mesmas se colocavam.
O sentido do epigrama é que o congro, que era parte
do presente oferecido a Vieira pelo Mondego, na ficção de
Luís de Sá, abandonara o mar pelo Mondego, ao julgar
que este se transformara em mar, vendo nele imersa a
cruz, que metaforiza em nau sagrada.

213
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DÁ COSTA

Eidem et in idem

Quos negat Oceanus pisoes mihi, Monda, dedisti:


Quis credet! Monda est largior Oceano.
Tradução:
Ao mesmo, sobre o mesmo assunto

Tu, Mondego, deste-me os peixes que o Oceano nega.


Quem o há-de crer? O Mondego é mais generoso do que o
Oceano.

Eidem
In ittud epistoles «.Como serrano e do monte me
entendi com o Mondego»
Cum te Sylvanum memoras, Deus ipse videris;
Numina enim Sylvas incoluere suas.
5 Amphrisi ad Sylvas latuit semotus Apollo,
Et Mondae ad Sylvas alter Apollo lates.
Adde, quod ille polum stellata prole parentum
Jactat, et astra tibi dant meliora genus.

Tradução:
Ao mesmo,
àquilo da epistola: «Como serrano e do monte me
entendi com o Mondego.»

Quando te evocas Silvano, pareces o próprio deus.


Os numes, com efeito, habitavam os seus bosques. Apolo,
afastado, esconde-se junto do bosque de Anfriso, e tu,
outro Apolo, escondes-te junto dos bosques do Mondego.
Acrescenta que aquele semeia o Pólo da prole estelar de
parentes seus, e a ti melhores astros dão a geração.

6. Vid. referência ao mesmo passo, na pág. 192.


Silvano era, entre os Latinos, o deus das florestas e dos
campos.

214
OUTROS EPIGRAMAS
In morte D. M atice de Atayde

Pro tumulo incomptos mirari desine versus


Sub tumulo totum conditur ingenium.
Vive iteram, ut scribas, ne moesto in mármore dormi,
Sola potes tumulo scribere digna tuo..

Tradução:
Na morte da Snr. a D. Maria de Ataíde
Não queiras atentar em versos sem graça, em face do
túmulo. Sob o túmulo todo se esconde o engenho. Vive
de novo, para escreveres; não durmas no triste mausoléu,
pois só tu podes escrever coisas dignas do teu túmulo.

A d multorum poetarum epitaphia in laudem


ejusdem.

Frigent, Atayde, laudes, sed parce poetis.


Quid poterant magnum dicere, si ipsa taces?

3. Em Ms. da Biblioteca de Évora ocorre muto em


vez de moesto.
5-6. No mesmo Ms. estes versos apresentam a seguinte
variante:

Quod Thaides Laudes tenuere ignosce Poetis.


Quid poterant nagnum dicere, si ipsa jacet?
Perdoai aos poetas que tenham reduzido os louvores de
[Taíde.
Que poderiam dizer de grande, se ela mesma é morta?
Informa o códice citado que estes versos andam impres-
sos no livro intitulado Memoria fúnebres, que se impri-
miu em Lisboa, na Oficina Craesbekiana, ano de 1650.

*'5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Tradução:

Aos epitáfios de muitos poetas em louvor da mesma

Regelam, de tão frios, Ataíde, os louvores, mas perdoa


aos poetas.Que poderiam eles dizer de grande, se tu
mesma estás calada?

A d puerum nomine Leonardum.

Si fueris virtute leo, si nardus odore,

Tu leo, tu nardus, tu Leonardus eris.

Tradução:

A um menino de nome Leonardo

Se fores leão na energia e nardo no odor,


Serás leo, serás nardo, serás Leonardo.

Ad connubium felicissimum D. Catharitus cum


rege Anglia, Carolo II.

Bis centum imperii CC duplex auguror annos.


^Eternos faciet si converterit unum.

II

Desine jam toto divisos orbe Britannos


Dicere: sic toto Britannia jungitur orbi.

216
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÓNIO VIEIRA

Tradução:

Ao felicíssimo casamento de D. Catarina com o rei de


Inglaterra, Carlos II

Auguro no duplo CC duzentos anos de império. E se se


converterem num único, fá-los-á eternos.

II

Não digas mais que os Britânicos estão separados de


todo o orbe, pois assim a Bretanha a todo o orbe fica
ligada.

Ad jesuitam quemdant aragonensem, qui altitudinis


corporis causa vocabatur Pater .ZEternus, et dicebat
quod Aragonia tertiam longam habebat syllabam:

Quod mutet producta suas Aragonia leges,


Cum sciat Mternum sic voluisse Patrem,
Non dolet Emmanuel; a quo producta fatemur
Omnia produci syllaba nonne potest?

Tradução:

A certo jesuíta aragonês, que pela altura de corpo era


chamado o «Padre Eterno» e dizia que «Aragonia» tinha
a terceira sílaba longa:

Que Aragonia prolongada mude as suas leis, ao saber


que assim o quis o Padre Eterno, não se penaliza Manuel.
Pois não poderá ser prolongada (ou produzida) uma
sílaba por aquele por quem confessamos foram produzidas
todas as coisas?
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Nota do Ms. eborense: Este dístico que fez o


P. Ant.° Vieyra, da Companhia de Jesus, à morte
do P. João Paulo Oliva, da mesma Companhia
de quem a fama celebrava acções heróicas, tanto
na redução dos infiéis, como no exemplar de sua
vida, que toda foi no exercício de mortificações, e
tinha sido Geral da Companhia:

Zita Joannis erat, vox Pauli, fructus olivae.


Vitaque voxque labitur; fructus in orbe manet.

Tradução:

A vida era de João, a voz de Paulo, o fruto da oliveira.


A vida e a voz extinguiram-se; o fruto fica no orbe.

Nota do Ms. eborense: —


Duvidando um sujeito
pronunciar breve ou longa a penúltima sílaba do
nome do rio Eufrates, resolveu-se a dizê-la breve,
sendo longa, ao que fez o P." Vieira este notável
dístico:

Venit ad Eufratem, subitoque, exterritus, restit.

Ut ciclo transirei, corripuit fluvium.

Tradução:

Chegou ao Eufrates e de súbito, receoso, parou.


Para passar depressa, abreviou o rio,

2l8
OBRAS ESCOLHIDAS DO P.' ANTÔNIO VIEIRA

Nota do Ms. eborense: — Indo o P.' Vieira embar-


cado em uma canoa, viram uma cousa em cima da
água; e, alegrando-se muito os remeiros, che-
gando-se ao pé, viram que era uma cabaça, a
que ele fez este dístico:

Si una tot illusit vacuata cucurbita mentes,


Plena quid efficeret si foret illa mero?

Tradução:

Se uma cabaça completamente vazia encheu de ilusões as


[mentes,
Que faria se estivesse cheia de vinho?

Nota do Ms. eborense: —


Estando um estudante na
sua classe declinando gelu, entrou um passarinho.
Largou a declinação , e se inclinou ao passarinho,
que apanhou e a quem o admirável P. c António
Vieira ]ez de repente este dístico:

Gymnasium ingreditur brumali tempore passer


Dcclinare gelu forte volebat avis.

Tradução:

Um pardal entra numa escola em tempo invernoso.


Porventura queria a ave declinar gelu.

4. O picante do dístico está no trocadilho feito com


a expressão declinare gelu, que se pode entender no sen-
tido próprio —
enunciar as formas da palavra latina gelu,
em português gelo, e no de diminuir a sensação do frio.

2IQ
VERSOS EM PORTUGUÊS E CASTELHANO

SONETO
que mandou Bernardo Vieira a seu irmão
o Padre Vieira

Se queres ver do mundo um novo mapa.


Oitenta anos atenta desta cepa,
Por onde em ramos a cobiça trepa,
E emaranhada faz do tronco lapa.

Morde com dentes, por não ter mais papa;


Com a língua fere, com as mãos decepa;
Soldado e povo livra da carepa,
Que na tarde e manhã raivoso rapa.

Olhos de água, as faces de tulipa;


E cada pé de pau uma garlopa;
Com um só remo corpo de chalupa.
O bofe muito, e muito pouca a tripa,
E a minha musa, porque nela topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Nota — Este soneto apresenta-se com variantes em vários


apógrafos, entre os quais os das Biblioteca Geral da Uni-
versidade de Coimbra e Municipal de Évora, mas a forma
que damos nesta edição, aqui ou além aproveitando lição
diferente da de Seabra, é sem dúvida a mais correcta.
RESPOSTA
do Padre António Vieira pelos mesmos
consoantes

Vê, Bernardo, da eternidade o mapa,


Deixa do velho Adão a geral cepa.
Pelo lenho da Cruz ao Empírio trepa,
Começando em Belém da pobre lapa.

5 Mais que rei pode ser, e mais que papa,


Quem de seu coração vícios decepa;
Que a grenha de Sansão toda é carepa,
E a gadanha da morte tudo rapa.

A flor da vida, se é na cor tulipa,


IO De seus anos também se faz garlopa,
Que os corta, como ao mar corta a chalupa.

Não há mister que o ferro corte a tripa,


Se na parte vital o fado topa,
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

221
DÉCIMAS

à Infanta Dona Isabel, filha de El-Rei


Dom Pedro II, na ocasião em que matou
um javali em Salvaterra

Quarteto

Salió Vénus Lusitana,


Que de Apolo embidia el arte,
A ser afrenta de Marte
En fatigas de Diana.

Decimas

5 Yo, que en las selvas nasci,


Por padre y por sangre bruto,
Pagando el mortal tributo
El ser de bruto perdi.
Si en la vida javali,

Nota — No códice CXIII, 1-21 da Biblioteca Municipal


de Évora, ocorre, «Matando a Senhora Infanta D. Isabel
um javali em Salvaterra, deu o P. e António Vieira o
seguinte mote, que ninguém quis glosar, por se não poder
dizer na glosa o que fica dito no mote.

222
COLECÇÃO DÊ CLÁSSICOS SA DA COSTA

Al morir fuy racional,


Pues, moriendo a mano tal,
Fué con tan discreta suerte,
Que supe escoger la muerte,
Para quedar inmortal.

II

Tanta es de Diós la piedad,


Mayor de sus atributos,
Que à los hombres y à los brutos
Ha de salvar su bondad.
Hoy confirma esta verdad
De Salvaterra la historia,
Pues con inmortal memoria,
Perdiendo un bruto la vida,
Por la gracia de la herida
Ha alcanzado eterna gloria.

III

De tal mano amena zado,


No quise intentar la huida,
Por morir de la herida,
Que es revivir coronado;
Y si bruto me hizo el hado,

4-5, 8-9. No mesmo Ms. há duas notas: a 1.» ao


verso 4-5: Alude a Carlos V —
saber morir es la maior
hazana; a 2.» aos versos 8-9: Alude al verso de David — 1

Homines etc. jumenta salvemus, Domine».


15. No Ms. de Évora — radiado...

22$
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

No fué fruto mi sentir.


Hombres, que amais el vi vir,
Aprended de mi cordura,
Que no hay vida mas segura,
5 Que un honrado morir.

Todo elpoeta se engana


Y me perdone Su Alteza;
Mejor salió desta empresa
El bruto, que en sangre bafia;
io Que si es la mayor hazana
Saber dei Mundo salir,
Entre el herido y el herir
Fué la hazana singular,
No de quien pudo matar,
15 Mas dei que supo morir.

H4.
APÊNDICE

MARTIUM MENSEM
a R. admodum P. M. Antonio Vieyra, Oratorum

lectissimo, Poetarum cultíssimo, datum ac


redditum, fatetur, ex voto antidorale idyllion

Dum sic nativos peramcenas frontis honores


Martius ingenio fertque refertque tuo;
Dum videt expressos cognata in imagine flores,
Gramineosque sinus, arboreasque comas;
5 Dum soles melius splendescere, mitius Euros
Spirare, et fluvios lenius ire, notat;
Dum capit argutos, vocalia murmura, cantus;
Dum stupet in picto ludere rure pecus:
Dum Cererem capiti vindes aptare coronas,
io Et vitem, exsecto palmite, flere videt;
Dum Veris próprios animato emblemate vultus,
Et faciem in speculo deperit ipse suam;
Gaudet in archetypas se prorupisse figuras,
Naturas artífices dum putat esse manus.
75 Martius hic idem est, votis meta única. Quamquam
Sit datus ille mini, redditus ipse sibi est.

Nota — Este poema vem nos Mss. e na própria ed. das


Cartas de 1746 como de Vieira, mas dos seus primeiros
versos (1-4) se depreende que foi feito a Vieira e não por
Vieira, o que aliás a explicação do título não desmente.
Deve ter sido provocada pela leitura da poesia Des- —
criptio mensis Martii —
que publicamos na pág. 184.

225
Vol. VII — Fl. 15
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Tradução:

O MÊS DE MARÇO
pelo tn. t0 Rev.*0 P. M. António Vieira, o mais erudito dos
oradores, o mais culto dos poetas; idílio dado e retribuído,
confessa-se, por voto de reciprocidade

Enquanto assim Março traz e mostra ao teu engenho


as galas nativas da ameníssima fronte; enquanto ele vê
as flores estampadas segundo a conhecida imagem, os
recôncavos ervosos e as frondes arbóreas; enquanto
observa que os sóis resplandecem mais, que mais mei-
gamente os Euros respiram e com mais brandura desliza
o rio; enquanto capta cantos subtis, murmúrios vocais;
enquanto admira o gado a brincar nos campos coloridos;
enquanto vê Ceres cingindo a cabeça de verdejantes gri-
naldas e a florescer a vide, depois de cortada a vara;
enquanto surpreende o rosto da Primavera em mosaico
animado e a sua face no espelho; rejubila de se expandir
em figuras-arqueótipos, julgando que são as mãos dos
artífices da natureza.
É este o mesmo Março, único objecto dos votos. Posto
que a mim seja dado, a ele próprio se restitui.

226
OBRAS ESCOLHIDAS DO P. ANTÓNIO VIEIRA
e

O códice da Biblioteca Municipal de Évora, já


citado, atribui a Vieira a seguinte sextilha, com a
nota que inserimos:

Na morte do Sereníssimo Rei de Portugal


D. Afonso VI, fez o venerável e muitas vezes
grande P. e António Vieira, da Companhia de
Jesus, esta

Sextilha Heróica

Já Senhor e fui Marido;


fui Rei, fui
Sem Reino, sem Mulher, sem Liberdade.
Tanto importa não ser, como haver sido.
Aos Portugueses deixo esta verdade,
5 A meu Irmão Dom Pedro este memento.
Este é de Afonso VI o testamento.

227
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Em códice da Biblioteca Geral da Universidade


de Coimbra atribui-se a Vieira o soneto que segue,
do mais perfeito gongorismo:

A UM PAPAGAIO QUE ESTAVA NO PAÇO


SONETO

íris parlero, Abril organizado,


Ramilhete de plumas con sentido,
Hybla con habla irracional alado;
>

Primavera con piés, jardin alado;

Quando dei ayre libre enamorado


Barbaramente hablavas, oy polido
Preso te veyo, y en vano divertido
Con la tema de nunca estar callado.

Tu en palácio bien visto, y con cadena?!


(Quantos lloran la lastima que toco!)
Hablas bien; ser discreto te condena.

Porque no buelas, gritas como loco.


Grita pues, que de Palacio es pena
Quexarse mucho los que buelan poco.

Nota —«Do Ms. 2795, fls. 382 v. Encontra-se também


no Ms. 318, fls. 144, com variantes. Este soneto encontra-se
impresso, com variantes, a pág. 254 do 3. 0 vol. da Fénix
Renascida, edição de 1746, e também na Ars Poética de
Manuel de Azevedo, tomo pág. 150. Esta última
obra também lhe dá por autor o P. e António Vieira. Ainda
se encontra no Ms. 392, fls. 153.» —
Nota do Prof. M. Lo-
pes de Almeida.

228
I

EPIGRAMAS PUBLICADOS PELO P. e FRANCISCO


ANTÓNIO MONTEIRO
(Cartas, III vol., 174-6)

Rev. mo Fratri Aloysio de Saa


mae
in illud Epistoles Suce Rev.

«Não sirvo senão de intérprete do Mon-


dego, e se não sou dos Setenta, vou-me che-
gando para eles.»

Bis septem tibi lustra param mihi dicis abesse;


Et quereris, mecum quaere ea lustra tibi

Tradução:

Dizes que pouco te falta para duas vezes sete lustros;


e queixas-te. Procura atingi-los em minha companhia.

1. Na frase a que responde o primeiro epigrama, joga


o P. e Mestre Luís de Sá com o duplo sentido do número
setenta — idade de que se aproxima e número dos intér-
pretes ou tradutores do Velho Testamento, autores da
versão para grego, chamada dos Setenta, confiada por
Ptolomeu Filadelfo (283-282 antes de Cristo) a número
aproximado de letrados judeus (72). É de todas a mais
antiga e a mais célebre.

22Q
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Rev. m0 P. e Fr. Aloysio de Saa


mae
in illud Epistola Suce Rev.
«Nunquid Saul inter Prophetas?»

Non es, crede, Saul, tractas dum carmina censor;


Sponte Saul cedit, cedit Apollo tibi.
Hic caput obscura quondam ferrugine texit,
Lumina nec sua sunt ausa videre crucem,
Sed tu electa cruci, clarissime Phcebe, sacrasti
Carmina ab ingenio lúcida facta tuo.

Tradução:

Não és, crê, Saul, enquanto tratas de poesia como cen


sor; espontâneamente Saul, tanto como Apolo, te cede a
primazia. Outrora cobriu este de escura ferrugem a cabeça,
e nem seus olhos ousaram fixar a Cruz, ao passo que tu,
claríssimo Febo, a ela consagraste escolhidos carmes, que
o teu engenho tornou lúcidos.

3. Todo o versoé decalcado sobre o das Geórgicas, de


Virgílio — Cum
caput obscura nitidum ferrugine texit
(Geórgicas, Lib. I, 467). O poeta refere-se ao Sol como
tendo-se compadecido da morte de César, cobrindo a nítida
cabeça com obscura ferrugem. Semelhantemente — diz
Vieira —
perante a Cruz, na morte de Cristo, Apolo, ou
seja, segundo a Mitologia, o Sol, se cobriu e não ousou
fixá-lacom seus olhos.
Devo ao meu ilustre colega da Faculdade de Letras
de Lisboa, Prof. Rebelo Gonçalves, a interpretação deste
verso de Vieira, só possível com o conhecimento do passo
virgiliano. Aqui lhe rendo os meus agradecimentos.

Nota: —
Estes dois epigramas insere-os igualmente o
códice 456-A da Biblioteca da Academia das Ciências, onde
o leitor pode ver toda a série de composições metrificadas
em torno da cruz mutilada, pela cheia do Mondego — as
do Dr. Luís de Sá e as dos companheiros de Vieira.

230
ÍNDICE
Pág.
Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baia
Voz de Deus i

Voz de Deus ao Mundo 10


Voz de Deus a Portugal 23
Voz de Deus à Baía 38
Via apologética. Via sacra por outra via... Proémio 57
Capítulo I 60
» n 63
» III 68
» IV 74
» V 85
» VI 92
» VII 99
» VIII 108
» IX 112
» X 122
Parecer sobre a distinção que se deve admitir entre
as Três Pessoas Divinas 124
Lágrimas de Heraclito 128
Memorial feito ao Príncipe Regente Dom Pedro ... 147
Memorial feito a Sua Alteza 157
Memorial recomendando a P. e Teve Barreto 158
Aprovação e Censura 159
Censura 164

Versos latinos
Pixis, seu Córtex eucharisticus . 168
Catharinae Lusitaniae Britanicae Reginae 179
Descriptio Mensis Martii 184
Elegia a Fr. Luís de Sá 189
Epigramas 194
Epigramas sobre o mesmo assunto 203
Outros epigramas 215
Versos em português e castelhano 220
Apêndice 225

231
CORRECÇÕES E ADITAMENTOS

Da velha pontuação, sobretudo excessiva em vírgulas,


da edição utilizada alguma coisa
para a composição,
escapou à revisão, que confiamos à emenda dos leitores.
Apenas aqui apontaremos algumas formas que devem
substituir as imperfeitas do texto: Pág. 132, linha 12 —
maiora, ... Penúltima linha — cabeleiras, e... P. 133,
1. 19 — romano, P. ... 191, 1. 16-17 — reluz; nem...
P. 177, 11 — amor:
1. ... P. 205, 1. 6 — dico,...

De lapsos ortográficos pedimos a correcção Ptolemeu


e Proteu das formas incorrectas das pp. 10 e 184; e substi-
tua-se senão por se não em p. 50 1. 18, e vêm por vem em
p. 145, 1. 9 e 10. De maior relevo são os lapsos:

Pág. 24 1. 27 juntos em vez de justos.


» 48 » 10 causa em vez de casa.
» 76 » 14-15 observância ao pôr do Sol em vez de
observância começa ao pôr do Sol.
92 II qui em vez de quia.
144 » 16 miseret em vez de miserente.
149 » IO de votos em vez de os votos.
185 » 22 braços em vez de laços.
209 )) 18 amigo em vez de homem.
212 » 2 vinela em vez de vinda.
224 » I fruto em vez de bruto.

Na pág. 183 a trad. dever ser: harpas, elevai o canto


às nuvens, derramai a suave melodia. O último verso da
pág. 203 deve começar: Nestoreos superei...

233
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Na pág. 202 está repetida a última linha, apenas


a i. a palavra, com a forma escrever, devendo completar a
linha precedente.
Pág. 12, 1. 13-15: No Ms. 8579 dos Reservados da
Biblioteca Nacional, ocorre: ...nê que o maior dos sobre-
ditos cometas, como consta dos autores que os observa-
ram, iguala em grandeza...». Porventura a lógica do con-
texto nem assim ficará perfeita, exigindo a negativa não
igualou, ou, no nosso texto, não igualaram...
Pág. 39, 1. 8-10: Por não conservado, mas lançado en-
tenda-se, em sentido activo, que os inimigos (os Holan-
deses), em vez de se conservarem na Baia, se lançaram
dali a novas conquistas (Pernambuco e Recife)
Pág. 46, 1. 14: Por actualmente entenda-se nessa oca-
sião.
Pág. 124. No códice 456-A da Academia das Ciências de
Lisboa é assim introduzido o Parecer que inserimos: Argu-
mento do P. e M. tre Dr. Fr. Martinho Pereira, religioso da
Ordem de Cristo, e resposta do P. e António Vieira (1663).
Na discussão tomaram parte vários teólogos e entre eles
Fr. Martinho Torrecillas, que já conhecemos do Prefácio
ao volume II das Obras várias, p. XXIX.
Pág. 206, v. 5-8: Este passo esclarece o sentido dos
versos 4-6 da p. 201.
Pág. 217, antepenúltima linha: o Manuel a que se alude
é o jesuíta P. e Manuel Álvares, autor da gramática latina
chamada alvaristica, de voga mundial.

234

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