Judaísmo Rabínico
Judaísmo Rabínico
Judaísmo Rabínico
I - Enquadramento
1. Antecedentes históricos do séc. I
BIBLIOGRAFIA
BROWN, Raymond E. – J. FIZMYER – R. MURPHY (ed.), The New Jerome Biblical Commentary, 2.ª
ed., Geoffrey Chapman, London 1989, II.75:91ss (trad. bras. Comentário Bíblico de
S.Jerónimo).
FREND, W. H. C., The Rise of Christianity, DLT, London 1984.
JOHNSON, Paul, A History of the Jews, Phoenix, Orion Books, London 1994.
LOURENÇO, João, O Mundo Judaico em que Jesus Viveu, UC Editora, Lisboa 2005(?).
SHÜRER, Emil, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, 2 vol., ed. Revista por
Geza Vermes, T. & T. Clark, Edinburgh 1987.
1) O Exílio
A Deportação para a Babilónia deu-se no ano 587 a.C.; o Regresso, no reinado de Ciro, em 537
a.C. Foram cinquenta anos de Exílio ao longo dos quais é possível perceber uma abertura crescente,
no interior do povo, à dimensão universalista da sua Fé (cfr Is 49, 6; 53, 12; 56, 3; 60, 1; 65, 17; ...).
Mas com o Regresso sobreveio gradualmente uma «regressão» teológica. Talvez a tolerância dos
persas tenha tornado inconveniente e aparentemente ingrata qualquer atitude mais ostensiva de
missão. Talvez o reduzido número dos que regressaram à Palestina tenha afastado quaisquer
veleidades triunfalistas e vontade de proselitismo. Foi ganhando corpo, por isso, uma vida religiosa
fechada, que colocava o acento na manutenção da identidade étnica, cultural e religiosa através do
cumprimento minucioso da Lei. «Yahveh torna-se de novo um deus tribal» 1.
3) Os Asmoneus
Quem dirigiu o combate contra o império selêucida foi SIMÃO MACABEU, de família sacerdotal.
Mas Simão foi assassinado no ano 135 a.C., juntamente com dois dos seus filhos. A dinastia
sobreviveu, porém, na pessoa de outro filho JOÃO HIRCANO (135–104 a.C.) que, após algumas
dificuldades iniciais,
lançou numa série de campanhas agressivas contra os seus vizinhos com o duplo objectivo de
restaurar as fronteiras da Terra Prometida, ou seja, as fronteiras do reino de David,
assegurando que só quem cresse no Deus único nela viesse a habitar. Primeiro foram
subjugados os samaritanos (128 a.C.). Siquém e o Monte Guerizim, com o seu templo, foram
arrasados. Jerusalém libertava-se assim de uma alternativa à sua supremacia religiosa. Os
samaritanos consideravam-se descendentes directos de Israel, pretensão contestada pelos
judeus da Judeia por considerarem que eles se haviam casado com gente pagã por altura do
exílio, perdendo a sua pureza étnica... Por fim, a própria cidade da Samaria foi destruída,
como castigo pelos seus habitantes se terem aliado em determinado momento aos Selêucidas
(c. 107 a.C.). Nada de menos surpreendente, portanto, que judeus e samaritanos não se
falassem no tempo de Jesus (cfr Jo 4, 9). 3
ARISTÓBULO (104-103 a.C.), filho de João Hircano, subordinou partes da Galileia e da Itureia ao
domínio judaico. A Judeia assumia-se agora como reino independente, e o sumo sacerdote tornara-se
em tudo um rei — embora não seja possível confirmar se o título chegou a ser usado antes da subida
de Alexandre Janeu ao poder.
ALEXANDRE JANEU (103-76 a.C.) conduziu o reino a um ponto alto de prosperidade. Contratou
mercenários gentios para combater nas suas guerras. Completou a conquista da Galileia e subjugou as
cidades gregas estabelecidas pelos Selêucidas além Jordão.
Quando faleceu, deixou um reino quase tão extenso como o de Salomão, e maior do que alguma
vez os judeus voltariam a ter até aos tempos de hoje. Jerusalém havia se tornado um centro de poder
respeitado, no Mediterrâneo Oriental; fiel da balança entre os Ptolomeus, o que restava dos domínios
dos Selêucidas e a Parta.
Mas apesar de uma aparência cosmopolita, o reino de Janeu não criou laços de boa vizinhança.
Diz Flávio Josefo que a independência permitiu aos judeus separarem-se dos outros povos 4. Agora,
quando os gentios entravam na sua esfera de domínio, as autoridades judaicas recusavam-lhes o
direito de praticarem as suas tradições. A política dos Asmoneus foi dura e consequente. Dava a
escolher aos povos conquistados a alternativa de perderem a sua terra ou de se tornarem judeus.
Parece que mesmo as cidades gregas se submeteram a esta exigência. Só de Pela temos informação de
que resistiu. A Galileia, com os seus terrenos férteis, tornou-se um pólo de atracção para colonos
judeus, e estes, pouco a pouco, transformaram em maioria a minoria judia local.
A entrada destes povos recém-convertidos representou, no entanto, um crescimento carregado de
ambiguidades. Os habitantes de origem não judaica odiavam sobre eles exercido por Jerusalém, e por
isso acolheram, mais tarde, de bom grado, a chegada dos romanos, optando em muitos casos pelo
domínio de Roma. A Idumeia viria a ser o único desses povos integrados pelos Asmoneus que,
segundo Flávio Josefo, se quis manter sob domínio de Jerusalém. E foi da Idumeia que, depois de
várias vicissitudes, os judeus acabariam por receber a dinastia de Herodes.
4) Herodes
Nos Idos de Março de 44 a.C. Júlio César foi assassinado. Os assassinos fugiram para o Oriente e
um deles, Cássio, apoderou-se da província da Síria e das suas legiões. Antipater II e seu filho
Herodes recolheram 700 talentos em seu apoio, na Judeia e Galileia. Um ano depois Antipater foi
envenenado por um sequaz de Hircano. Para se antecipar às reacções previsíveis, Hircano ofereceu a
sua neta Mariamme em casamento a Herodes.
Os Partos invadiram, entretanto, a província romana da Síria e apoiaram a causa de Antígono —
filho de Aristóbulo II e portanto sobrinho de Hircano II. Antígono depôs Hircano II e durante três
anos assumiu os títulos de sumo sacerdote e de rei (40-37).
Herodes fugiu para Roma e aí tornou-se amigo Marco António e mais tarde de Octávio, que viria
assumir o título de César Augusto. Em 40 a.C., o Senado proclamou-o «Rei da Judeia». Mas só três
anos depois, com o auxílio de tropas romanas, ele conquistou finalmente o reino que lhe fora
atribuído. Roma permitiu-lhe então alargar o seu domínio para norte, sobre a Samaria.
Era a suprema afronta para o povo judeu. Por imposição dum império gentio, e com o apoio no
terreno de tropas estrangeiras, um homem da raça dos povos anteriormente dominados, um
«convertido» da política dos Asmoneus, tornara-se rei do Povo Eleito!
Atleta, mestre da intriga política, autocrata sem escrúpulos HERODES (37-4 a.C.) foi um rex
socius de Roma, com plena autonomia na política doméstica e direito a recolher tributos, mas
dependia do Imperador em questões de guerra e de negócios externos. O seu reino pode ser dividido
em três períodos:
37-25 a.C. - anos de consolidação do poder, marcados pela eliminação fria e sistemática de
todos os que podiam contestar o seu poder (entre os quais um cunhado, a sua própria esposa,
Mariamme, e a sua sogra).
25-13 a.C. - inicia um gigantesco projecto de obras públicas, construindo teatros, hipódromos,
ginásios, banhos públicos, novas cidades e até templos dedicados à memória do imperador.
Um povo (etnia) com longa tradição Um conjunto de povos, unidos por uma
cultural e religiosa. administração romana e uma cultura
comum helénica.
Visão do mundo: um universalismo
etnocêntrico, condicionado pela Visão do mundo: um universalismo
fidelidade à Aliança. Donde uma cultural, centrado na cultura helénica (o
tendência fortemente autocrítica resto é barbárie).
Fragmentação de propostas:
Saduceus
Zelotas (Sicários)
Fariseus
(Herodianos)
Essénios
João Baptista
... e Jesus
3. Facções do Judaísmo Palestiniano do séc. I
BIBLIOGRAFIA
BROWN, R. E. – J. FIZMYER – R. MURPHY (ed.), The New Jerome Biblical Commentary, Geoffrey
Chapman, 2London 1989 (tr. bras. Comentário Bíblico de S. Jerónimo).
JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus. Pesquisas de história econômico-social no período
neotestamentário, Ed. Paulinas, São Paulo 1983 (trad. da 3ª ed. alemã; original Jerusalem
zur Zeit Jesu, Göttingen, 1969).
THEISSEN, G., The First Followers of Jesus. A Sociological Analysis of the Earliest Christianity,
SCM, London 1978 (original alemão Soziologie der Jesusbewegung: Ein Beitrag zur
Enstehungsgeschichte der Urchristentums, Munich 1977 — existe uma trad. francesa na
Biblioteca João Paulo II).
QUADRO I
Referidos por Plínio o Moço6, assim como por Filão de Alexandria e Flávio Josefo 7, sabia-se
pouco a seu respeito até à descoberta dos célebres Manuscritos do Mar Morto. Hoje, a maioria dos
especialistas concorda em identificar os membros da Comunidade de Qumran com os Essénios.
A hipótese mais aceite coloca as suas origens por volta do ano 167 aEC. Uma passagem de um
dos manuscritos sugere que o momento de ruptura se deu no reinado de Antíoco Epifânes (4QpNah).
Talvez se possa identificar esta facção nascente com a ala hassídica da revolta dos Macabeus (cfr I
Mac 2, 42). Os hassîdim, ou «piedosos«, enfurecidos com as blasfêmias dos judeus favoráveis ao
domínio selêucida e com a substituição do Sumo Sacerdote Jasão, da linhagem de Sadoc, por
Menelau, que não era dessa linhagem, associaram-se à revolta dos Macabeus. A sua motivação era,
por isso, essencialmente de ordem religiosa e não estavam dispostos a tolerar cedências por razões
políticas. Surge então, segundo os escritos dos essénios, uma figura cujos contornos históricos estão
ainda hoje envoltos em mistério. Conhecido pelo título honorífico, Mestre da Justiça (referência a Joel
2, 23), é apresentado como personalidade irradiante e de uma grande espiritualidade. À sua presença
se deve a consolidação da identidade do movimento. As tentativas empreendidas por alguns
comentadores de o apresentar hoje «como tendo sido o messias, e de afirmar que terá sido crucificado
e que regressou à vida, ou de o considerar [em termos de mensagem] precursor de Jesus Cristo não
têm qualquer fundamento» 8. Foi, isso sim, ele quem consumou a ruptura com os outros apoiantes dos
Macabeus.
A ruptura terá ocorrido no ano 152 aEC em virtude, possivelmente, de Jónatas Macabeu ter
aceite das mãos de Alexandre Epifanes, filho de Antíoco, o cargo de sumo sacerdote — os Macabeus
eram de linhagem sacerdotal mas não da linhagem de Sadoc (cfr I Mac 10, 18-21 e, nos mss. de
Qumran, 1QpHab). Um segundo motivo para a ruptura terá sido também o facto dos Macabeus não
terem restaurado o velho calendário solar e terem, portanto, mantido a marcação das festas com base
no calendário lunar — prática inovadora introduzida sob o domínio de Antíoco Epifanes.
O Mestre e os seus discípulos terão sido expulsos por ocasião da grande festa anual da Expiação,
o Yom Kippur (1QpHab 5, 10-11; 9, 9). Mas, apesar de perseguido e exilado, tudo indica que o Mestre
morreu de morte natural e que as expectativas entretanto por ele alimentadas se orientavam menos
para si mesmo do que para a vinda de um futuro Messias.
De acordo com os dados da arqueologia, a comunidade de Qumran foi devastada por um fogo e
destruída por um terramoto, seguindo-se um período de abandono de 30 a 40 anos. O início desse
período coincidiu aproximadamente com o tempo em que Roma começou a exercer o seu domínio
tutelar sobre a Judeia (c. 67-63 aEC). A «povoação» só voltou a ser ocupada nos primeiros anos da
nossa era, mantendo-se vigorosa até ao ano 68 EC.
A linguagem dos qumramitas comprova a sua oposição aos romanos (chamavam-nos os kittim,
ou os das trevas). Por fim, os membros da comunidade vieram a associar-se à revolta contra o Império
Romano desencadeada nos últimos anos da década de 60, e foram varridos da história. Mas não sem
que antes tivessem escondido cuidadosamente os seus manuscritos nas grutas onde, quase dois
milénios depois, foram descobertos em estado muito diversificado de conservação. Diga-se de
passagem que alguns manuscritos tinham já sido encontrados no tempo de Origines (séc. III EC);
outros apareceram c. 785 EC; outros ainda terão, provavelmente, sido recolhidos e estudados em data
que hoje não é possível precisar, tendo contribuído para o pensamento de uma seita judaica chamada
os Caraítas.
A relação exacta entre os essénios e João Baptista, por um lado, e a sua influência quer na
mensagem de Jesus Cristo quer na estruturação do Cristianismo nascente, são motivo ainda de
polémica. Mas se não deixam de ser surpreendentes as semelhanças, são marcadas também as
diferenças. Sobretudo no que diz respeito à relação com os estrangeiros. Vejamos, por isso, algumas
características deste movimento.
Só os israelitas tinham acesso à comunidade de Qumran. A entrada fazia-se mediante uma série
de «escrutínios» conduzidos por um «supervisor». Seguia-se uma purificação ritual e dois anos de
9 Ibid.
de levarem por diante a Sua obra. Um deles seria Ungido por Deus como Sumo Sacerdote,
restabelecendo a linhagem de Sadoc, outro como Rei, restabelecendo a linhagem de David.
2) Fariseus
O nome (gr. Pharisaioi, aram. Perisayê, hebr. Perusîm) parece ter significado originalmente «Os
Separados», título talvez atribuído por se lhes reconhecer a vontade de evitarem qualquer contacto
com os gentios, os impuros, os pecadores e até com judeus dignos mas menos observantes da Torah.
O movimento terá surgido de entre os escribas e doutores da Lei ao longo do período helenista, e é
referido como grupo organizado já no tempo de Jónatas Macabeu (c. 150 a.C.). É provável que o
movimento tenha estado, de início, associado aos hasîdîm (hebr. «os piedosos») que apoiaram a
revolta dos Macabeus («Então juntou-se a eles um grupo de assideus, israelitas valentes, todos eles
cheios de zelo pela Lei» – I Mac 2, 42; cfr. 7, 12-25).
O movimento era de cariz essencialmente laical e atribuía valor normativo não só à Torah escrita
como também à Torah oral. Compunham esta tradição oral os «dizeres dos pais», considerados
vedação protectora erguida em torno da Lei e mais tarde recolhidos na Mishná. Influenciados talvez
por algumas das ideias helenistas que combatiam, os Fariseus encaravam os deveres e proibições da
Torah como paideia (ou formação segura) de uma vida piedosa. Esta atitude levou-os a os separarem-
se, com alguma sobranceria, dos ‘am ha’ares, «o povo da terra», «gente que desconhece a Lei» (Jo 7,
49).
Caracterizava-os a observância meticulosa do sábado, das regras de pureza ritual, do
dízimo, como questões de orgulho ancestral. Todavia, por causa dessa ênfase nas
interpretações orais, os fariseus provaram ser capazes de se adaptar a novas circunstâncias e
revelaram uma vitalidade e uma flexibilidade que fez deles os «liberais» da época.
Movimento de inspiração essencialmente religiosa, os Fariseus exerceram grande influência
sobre os demais judeus em virtude do seu saber e da sua piedade, apesar de, provavelmente,
nunca terem sido mais do que 6.000. Para além da interpretação da Torah, acreditavam numa
certa liberdade humana sob o controle da providência divina, na ressurreição geral, nos anjos,
na vinda do Messias, e no regresso de Israel e das suas tribos no final dos tempos.
Embora um movimento essencialmente religioso, o Farisaísmo acabou por se envolver em
questões políticas [durante o período dos Asmoneus]. […] Opuseram-se por diversas vezes
aos Saduceus […].
A perspectiva religiosa do Farisaísmo deixou marca permanente no Judaísmo. Após a
destruição de Jerusalém [70 d.C.], quando o culto do Templo deixou de ser possível, foram
fariseus quem reanimou os sobreviventes. A sua tradição deu então origem ao Judaísmo
rabínico e persiste, até certo ponto, no Judaísmo ortodoxo dos nossos dias. […] A avaliação
feita dos Fariseus nos evangelhos cristãos, redigidos possivelmente nas últimas décadas do
século I, foi condicionada pelo contexto apologético e é excessivamente negativa, pois não
lhes reconhece a influência construtiva que de facto tiveram na evolução da espiritualidade
judia.10
3) Sicários / Zelotas
Multiplicidade de grupos, aparentados pelo estilo de actuação violenta que preconizavam. Sem
unidade orgânica até à primeira grande revolta contra a tutela romana (66-70 EC). Bandos
nacionalistas, organizados em torno de chefes carismáticos, e armados de punhais (sicae, donde o
nome sicarii, embora as autoridades preferissem classificá-los simplesmente de lestai, ou bandidos).
Assassinavam figuras de relevo que consideravam colaboradores dos romanos, normalmente, por
ocasião de grandes ajuntamentos públicos. A violência e o desprezo com que o último dos
procuradores romanos, Géssio Floro (64-66), tratou a população judaica levou à formação dum
movimento de Zelotas, assim chamados em virtude do zelo fanático com que se opunham ao domínio
romano na Galileia e na Judeia. Foi desse movimento de revolta que explodiram os confrontos
armados em 68 e 135 (I e II Guerra Judaica).
1. Queda de Jerusalém
Paralelamente aos acontecimentos da vida de Jesus, e como pano de fundo quer da sua execução,
quer das tensões enfrentadas pelas comunidades judeocristãs na Palestina, desenvolve-se ao longo do
séc. I da nossa era uma profunda crise política e religiosa entre o judaísmo palestiniano e as forças
romanas ocupantes. A presença romana era tanto mais odiosa quanto se viu representada por
sucessivos procuradores que se revelaram politicamente incompetentes e economicamente
gananciosos. A sua actuação em nada contribuiu para apaziguar o orgulho nacional da população ou
apaziguar o ambiente de revolta que se respirava.
Cerca de quarenta anos depois da morte de Jesus, entre os anos 66-70, a tensão atingiu o rubro
com uma insurreição geral. Flávio Josefo, judeu filo-romano, defendeu a tese de que houve uma
conspiração contra o domínio do Império, liderada pelos Zelotas. Os historiadores hoje duvidam da
objectividade dessa análise. Os dados disponíveis apontam para «uma guerra nacionalista e popular
contra o domínio de Roma. Uma guerra que se apresentou, simultaneamente, como luta social contra
uma aristocracia economicamente favorecida e acolhedora do poder romano.» 11
A CRONOLOGIA DOS ACONTECIMENTOS:
66 d.C. – Nero concedeu maiores direitos aos gentios de Cesareia do que aos judeus. Os
helénicos construíram lojas diante das portas da sinagoga, bloqueando o acesso. O
procurador, Floro não interveio e, pouco depois, exigiu à tesouraria do Templo de
Jerusalém um tributo especial de 17 talentos. A comunidade judaica em Jerusalém,
num gesto de sarcasmo, passou entre os seus membros um cesto a pedir ofertas para o
procurador «indigente». Insultado, Floro entregou parte da cidade aos seus militares
para saquearem. Houve mortos e os judeus refugiaram-se no recinto do Templo,
cortando os acessos. Sem força suficiente para tomar o Templo, Floro retira-se para
Cesareia e a revolta alastra rapidamente. Uma tentativa de intervenção do governador
romano da Síria é repelida.
67 – O Imperador Nero ordena a reconquista sistemática do território, e nomeia para tal os
generais Vespasiano e Tito. Em Jerusalém as facções judaicas desentendem-se e lutam
entre si. Segundo a tradição, a comunidade cristã de Jerusalém emigra, nesta altura,
para Pela, na Transjordânia.
68 – Morte de Nero. Vespasiano isola Jerusalém do resto do território.
69 – Vespasiano dá início ao cerco de Jerusalém, mas, aclamado Imperador pelas legiões do
Oriente, parte para Roma e deixa a campanha em mãos do filho, Tito.
70 – Inicia-se o ataque a Jerusalém. Em Agosto os romanos saqueiam, derrubam e queimam
o Templo. Em Setembro ganham controle da cidadela. A violência e a mortandade são
aterradoras.
71 – Cortejo triunfal de Tito em Roma. Traz consigo a menorah, candelabro de sete ramos,
retirado do Templo de Jerusalém.
74 – Um pequeno núcleo de forças judaicas resiste na fortaleza de Massada. Só quatro anos
após a queda de Jerusalém as tropas romanas conseguem forçar a entrada da
fortificação. Encontram morta quase toda a guarnição de 960 pessoas, que se havia
Calcula-se que um terço da população judaica da Palestina terá perecido nesta Primeira Guerra
Judaica conta o Império Romano — cerca de 600.000 pessoas, segundo cálculos de Flávio Josefo e de
Tácito.
Décadas depois, entre os anos 132 e 135, eclodiu nova revolta na Palestina, dirigida por Simenon
ben Coseba. Aclamado Messias pelo Rabi Aquiba, o mestre mais influente da época, foi-lhe atribuído
o título de Bar Cocba, ou filho da estrela. Outros, porém, acusaram-no de ter desviado o povo (veja-
se, por exemplo, o Talmude) e chamaram-no por isso Bar Cosiba, ou filho das mentiras. 12
Mais uma vez os romanos intervieram em força e esmagaram a insurreição da forma metódica e
total que lhes era própria. Calcula-se que tenham morrido cerca de 850.000, nesta Segunda Guerra
Judaica. A população da Palestina de origem judia, ainda mal reconstituída do desastre nacional da
guerra anterior, foi literalmente dizimada. Os seguidores de Bar Cocba foram mortos ou vendidos
como escravos. Sobre as ruínas da velha Jerusalém, sistematicamente saqueada e demolida, os
romanos edificaram uma nova cidade inteiramente helenizada a que deram o nome de Colonia Aelia
Capitolina. Colónia romana, com santuários dedicados a Júpiter Capitolino, a Juno e a Minerva, era
vedado o acesso, sob pena de morte, a qualquer homem circuncidado13. Vibrou-se assim um golpe
profundo na consciência e sentido de identidade do povo judeu cujas repercussões se fizeram sentir
inclusivamente no interior do Cristianismo. A comunidade cristã, que se considerara até então parte
da matriz social e cultural do Judaísmo, cortou nessa altura o cordão umbilical que a prendia ainda à
Palestina e a Jerusalém e passou a assumir abertamente o diálogo com as culturas gentílicas
envolventes, nomeadamente com a cultura helénica que então predominava no Império Romano.
12 Ibid., 125.
13 Ibid.
14 Cf. H. KÜNG, op.cit., 129.
Após um período de definição interna de poderes e de alargamento de influência externa, a
escola de Jamnia iniciou um processo de uniformização das leis e opções doutrinais no interior do
Judaísmo. E fê-lo, naturalmente, segundo a tradição do farisaísmo moderado.
* AS ESCRITURAS? Os rolos da Torah passaram a assumir o relevo antes atribuído ao altar dos
sacrifícios, e o estudo da Torah — juntamente com a oração e as boas obras — substituiu o
culto do Templo.
* OS ESCRIBAS? Os rabis tornaram-se os sucessores da casta sacerdotal; o estatuto de rabi,
atingido no termo de um processo de formação, foi substituindo o estatuto hereditário do
sacerdote e do levita.
* A SINAGOGA? O espaço em que se realizavam as assembleias locais, a oração e outras
expressões da vida comunitária passou a substituir o Templo de Jerusalém. 15
Ao longo do tempo a religião nacionalista cede por completo o lugar à religião da Torah:
* Jerusalém apaga-se em favor da Diáspora e os seus centros culturais.
* O território pátrio (Palestina) apaga-se em favor de uma pátria espiritual que é a vida e a fé
judaicas assumidas em obediência à Torah.
* A unidade nacional cede lugar a uma pureza ritual e moral que transcende todas as nações.
* A Bíblia cede lugar à tradição normativa: Mishná e o Talmude.
Apesar da dificuldade que representou o facto de os seus membros terem sido espalhados pelas
nações do mundo, o Judaísmo conseguiu manter ao longo dos séculos a sua identidade em virtude de
três factores essenciais:
* A Torah oral, fixada no Talmude.
* Uma língua comum — hebraico, aramaico, yidish.
* A autoridade dos rabis.
Mas, a acompanhar o povo judeu ao longo do seu percurso geográfico e histórico, encontramos o
fenómeno malévolo e obscuro do anti-semitismo. Entre os motivos do anti-semitismo pré-cristão
destacam-se os seguintes:
* O monoteísmo radical da sua religião e a consequente rejeição de imagens provocam uma
tensão permanente com o ambiente cultural circundante
* A afirmação agressiva de uma história de salvação etnocêntrica conduz a reacções mútuas de
exclusão.
* A circuncisão é encarada como uma prática bárbara pela cultura helénica, que tanto valor
atribui à beleza e harmonia do corpo humano.
* As regras de pureza alimentar e as leis que regulam o convívio com os gentios impedem a
participação dos judeus em muitas actividades comuns, como as festas, e a realização de
casamentos mistos.
15 Ibid.