Marconi - Pequeno - Fundamento DH
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DOS DIREITOS
HUMANOS
Marconi Pequeno*
do homem. Uma vez que o fundamento é, como vimos, aquilo que representa
a causa ou razão de ser de um fato, situação ou fenômeno, pode-se conside-
rar o fundamento dos direitos humanos como a essência que torna humano
o nosso ser.
É certo que o problema do fundamento dos direitos humanos não pa-
rece ser algo prioritário nas discussões e estudos elaborados sobre o tema.
Alguns autores consideram até mesmo impossível que a definição de um
fundamento único seja capaz de nos fazer superar os desafios representados
pela diversidade de culturas, hábitos, costumes, convenções e comporta-
mentos próprios às inúmeras sociedades. Além do que, a determinação de
apenas um fundamento seria incapaz de refletir as múltiplas noções do que
vem a ser o homem, sua natureza e constituição. Nesse caso, teríamos que
reconhecer que cada cultura poderia definir, a partir de seus próprios valo-
res ou hábitos, aquilo que melhor pode definir a essência do homem. Com
isso, poderíamos pensar como Bobbio (1982, p. 25) para quem “o problema
grave do nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não é mais o de
fundamentá-los e sim o de protegê-los”.
Talvez seja correto considerar que a grande questão que nos desafia não
é de caráter filosófico, histórico ou jurídico, mas sim político. O problema po-
lítico se revela do seguinte modo: como evitar que os direitos humanos sejam
violados, negados, ignorados. Ora, os direitos humanos somente adquirem
existência efetiva quando são vivenciados. Eis por que precisamos criar os
meios que tornem possível a sua realização. Afinal, quando falamos na ne-
cessidade de que esses direitos sejam praticados, isso já supõe que os mes-
mos têm uma causa ou razão de ser. Mas será que o problema referente à
fundamentação dos direitos humanos está mesmo resolvido? Trata-se de
uma questão com a qual nós não deveríamos mais nos preocupar? A respos-
ta é: nem o problema foi resolvido, nem essa questão deixou de ter impor-
tância, como indicam as múltiplas concepções do tema ao longo do tempo.
No transcorrer da história do pensamento, muitas foram as tentativas de
justificar a existência dos direitos humanos e de fundamentá-los. Uma delas
já se anuncia no século XVII com a idéia de que o homem naturalmente tem
direito à vida e à igualdade de oportunidades (Locke, 1978). Este preceito é
seguido pela noção de que todos os homens nascem livres e iguais (Rousseau,
1985) ou ainda pela afirmação de que os indivíduos possuem direitos inatos e
indispensáveis à preservação de sua existência. Os homens teriam, assim, di-
reitos decorrentes de sua própria natureza.
A atribuição de direitos naturais ao indivíduo se inspira na idéia de que
o homem é um ser provido de sensibilidade e razão, capaz de se relacionar
com o seu semelhante e de constituir as bases do seu próprio viver. Além dis-
so, ele é também caracterizado pela sua tendência à sociabilidade, autonomia
da vontade, capacidade de dominar os instintos e de seguir normas de condu-
ta moral. Todos esses elementos caracterizam a sua humanidade e servem
para justificar aquilo que marca a sua essência fundamental: a dignidade.
O fundamento dos direitos humanos está baseado na idéia de dignidade.
A dignidade é a qualidade que define a essência da pessoa humana, ou ainda
é o valor que confere humanidade ao sujeito. Trata-se daquilo que existe no
ser humano pelo simples fato de ele ser humano. Cada homem traz consigo a
forma inteira da condição humana, afirmava o filósofo francês Montaigne
(2000), ao se referir a esse elemento que nos define em nossa condição pró-
pria de ser. A idéia de dignidade deve, pois, garantir a liberdade e a autono-
mia do sujeito. Tal noção nos permite afirmar que todo ser humano tem um
valor primordial, independentemente de sua vida particular ou de sua posição
social. Eis por que o homem deve ser considerado como um fim em si mesmo,
jamais como um meio ou instrumento para a realização de algo (Kant, 1980).
O homem é um ser cuja existência constitui um valor absoluto, ou seja, nada
do que existe no mundo lhe é superior ou equivalente.
A dignidade é um valor incondicional (ela deve existir independentemen-
te de qualquer coisa), incomensurável (não se pode medir ou avaliar sua ex-
tensão), insubstituível (nada pode ocupar seu lugar de importância na nossa
vida), e não admite equivalente (ela está acima de qualquer outro princípio
ou idéia). Trata-se de algo que possui uma dimensão qualitativa, jamais
quantitativa. A dignidade possui um valor intrínseco, por isso uma pessoa
não pode ter mais dignidade do que outra.
Apesar de sua indiscutível importância, parece claro que nem sempre
podemos dizer com segurança o que significa essa noção. Não é fácil definir
de maneira ampla, satisfatória e inquestionável, o que vem a ser dignidade
humana. Assim como também acontece com alguns fenômenos como o tem-
po, o amor ou a felicidade, por exemplo, podemos até saber o que significa a
dignidade, porém nem sempre somos capazes de explicá-la. Todavia, ainda
que esta noção pareça confusa, complexa ou imprecisa, sempre é possível
perceber quando ela, a dignidade, é negada, violada, esquecida.
De fato, não precisamos saber definir dignidade humana para reconhe-
cer que ela existe como uma marca fundamental do sujeito. Por isso, não é
necessário compreender o que este termo significa para proteger os que têm
sua dignidade ameaçada. Defender, zelar, promover a dignidade do homem
já parece ser o bastante para tornar nossa vida social menos injusta e vio-
lenta. Portanto, mesmo que esse termo se revele pouco claro ou mesmo inde-
finível, parece evidente que somos capazes de reconhecer um comportamen-
to ou uma situação em que a dignidade é atingida. Assim é o que acontece,
por exemplo, quando constatamos o sofrimento de pacientes em filas de
hospitais públicos, a condição de exclusão a que são submetidos os mendi-
gos e crianças em situação de risco, o drama dos desempregados e outros
marginalizados sociais. Quando defendemos os direitos desses indivíduos,
nós o fazemos sempre em nome de uma dignidade que foi negada, esqueci-
da, violada. Desse modo, os direitos humanos são considerados fundamen-
tais porque são indispensáveis para que a pessoa possa viver com dignidade.
Mas, convém saber, em que se baseia essa idéia de dignidade.
Durante muito tempo a idéia de dignidade estava baseada exclusiva-
mente na crença da criação divina, isto é, na afirmação de que a essência do
homem residia no fato de ele ter sido criado à imagem e semelhança de
Deus. Ainda que essa noção continue a ser defendida por muitos, há ainda
os que concebem a dignidade não como produto da ordem divina, mas da
natureza racional do homem. O homem seria detentor de uma faculdade su-
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