Leitura Espirita Edi 18 Resumida
Leitura Espirita Edi 18 Resumida
Leitura Espirita Edi 18 Resumida
Não faz muito tempo, tínhamos o privilégio de A Revista Leitura Espírita se mobilizou para pre-
contar com novos e lúcidos textos de Hermínio Mi- parar esta homenagem a Hermínio Miranda, com a
randa, fossem artigos, em jornais e revistas espíri- colaboração de alguns de seus inumeráveis admi-
tas, fossem em apaixonantes livros. A temática era radores. São textos escritos sempre com o coração,
variada e atendia à expectativa de ansiosos leitores, mas que apontam para alguns dos variados aspec-
espíritas ou não. Em 2013, aos 93 anos, Hermínio se-
tos da vida ou da obra de Hermínio Miranda.
guiu por novos caminhos na espiritualidade e nos
deixou um roteiro luminoso: a imensa obra que es- E conseguimos garimpar, para nossos leitores,
creveu. Restaram alguns parcos textos, inconclusos algumas pérolas ainda inéditas de nosso melhor
alguns, outros que não tiveram tempo de ser envia- escriba; textos ainda atuais e preciosos que Hermí-
dos à publicação. nio não tivera a oportunidade de publicar.
Em janeiro próximo, dia 5, comemoraremos o Materializa-se, pois, nestas páginas, todo nosso
centenário de nascimento do ilustre filho de dona reconhecimento e carinho por esse iluminado es-
Helena e seu Reduzindo, nascido em 1920 na pe-
pírito, que se intitulava apenas como escriba, talvez
quena Volta Redonda, que ainda não se tornara co-
na tentativa de não tornar tão transparente toda a
nhecida pela Siderúrgica que revolucionou a nossa
sua grandeza intelectual e espiritual, mas cuja bio-
indústria e nos trouxe tanto desenvolvimento, em-
grafia incrivelmente atual o primeiro historiador do
presa que daria a Hermínio o emprego e a tranqui-
cristianismo sintetizou, num brevíssimo texto: “Era
lidade para se dedicar ao que realmente gostava
de fazer: estudar os complexos mistérios da huma- um homem bom, repleto do Espírito Santo e de fé,
nidade e torná-los simples e compreensíveis para que carreou ao Senhor considerável multidão” (At
seus leitores. 11,24).
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Expediênte:
Coordenação editorial
Alexandre Rocha
alexandre.mrocha@hotmail.com
Coordenação administrativa
Magno Azevedo
contato@leituraespirita.org
Edição Especial:
H e r m í n i o M i ra n d a Comercial
Silvia Beraldo
comercial@leituraespirita.org
Projeto gráfico
Criativa Comunicação
www.criativacomunicacao.com.br
Sumário
Apresentação
Um homem bom – Marta Chiarelli de Miranda
De Bernardo a Hermínio – Mauro Camargo
O desafio das religiões – Hermínio Miranda
– Confia em Jesus! – Lygia Barbiére
Lembranças e previsões do futuro da humanidade – Carlos Villarraga
O cristianismo espírita de Hermínio Miranda – Jáder Sampaio
Uma crônica para um escriba – Eduardo Lima
O embrulhinho morno – Ana Maria Miranda
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Hermínio,
um homem
bom
A convite desta revista, Marta, filha de Hermínio Miranda, a
segunda na ordem cronológica, trouxe seu testemunho filial
como uma bela homenagem.
Muitos certamente conhecem o vasto currí- Palavras nem sempre são precisas, mas, se
culo de Hermínio Corrêa de Miranda como es- tivesse que mencionar algumas que sintetizas-
critor espírita, autor de mais de quarenta obras sem a personalidade e o caráter de meu pai,
sobre o assunto, além de cinco traduções, do seriam elas: bondade, sensatez e determinação.
francês e inglês para o português. Em vista de De nossa longa convivência, alguns fatos mar-
cantes permanecem indeléveis na memória,
se completarem cem anos desde o seu nasci-
como se fossem videoclipes. O primeiro diz res-
mento, recebi de Alexandre Rocha o pedido
peito a um passeio no pequeno quintal da casa
para que escrevesse algumas páginas sobre
de Volta Redonda, na rua 26, número 33, quando
o Hermínio, meu pai. Das muitas impressões
eu era bem pequena, e ele me mostrou que as
guardadas com todo carinho na memória, ocor-
folhas do tomateiro tinham o mesmo cheirinho
reu-me registrar neste artigo alguns fatos da
do fruto. Até os dias de hoje, aquele aroma ca-
sua trajetória, desde os tempos de colégio no racterístico me faz transportar para o momen-
interior do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, sua to despretensioso da minha primeira infância e
projeção na esfera profissional e as primeiras in- pensar no temperamento tranquilo e discreto
cursões na literatura brasileira, até ele se tornar de meu pai, no seu interesse pela natureza. Nes-
o escritor tão aclamado no meio espírita. se fluxo de recordações, surge o dia em que me
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ensinou a dar o laço nos cordões do sapato e, mais época não passava de um vilarejo, cuja população tal-
tarde, a nadar. Era ele que me ajudava com as tarefas vez não chegasse aos mil e quinhentos habitantes, e
de matemática e tinha a habilidade de descomplicar onde “não havia prefeito, nem delegado, médico, juiz
a matéria tão temida por tantos estudantes. de direito ou padre”, conforme palavras dele, e mui-
to menos uma boa escola primária. Foram tempos
Partimos agora do cenário de Volta Redonda,
onde Hermínio nasceu, em 5 de janeiro de 1920, e,
diga-se de passagem, eu também, 29 anos mais A experiência, tanto
tarde. Meu pai era o primogênito do casal José
Reduzindo e Helena Corrêa de Miranda, que teria
no campo profissional,
mais dez filhos, a saber, oito homens e duas mu- quanto pessoal,
lheres. Meu avô foi chefe de estação e telegrafista
da Estrada de Ferro Central do Brasil. Era um ho- foi enriquecedora para
mem que teve poucas oportunidades de estudo, todos nós.
mas, segundo meu pai, expressava-se muito bem,
tanto na língua falada quanto na escrita, e tinha
difíceis para uma família numerosa. “Não tínhamos
uma bela caligrafia. A mãe fora educada em colégio
o supérfluo, mas o essencial nunca nos faltou”, dizia
de freiras, em Taubaté, e era católica, tendo criado
meu pai com gratidão. Ele demonstrara desde cedo
os filhos de acordo com os preceitos da religião. Meu
o gosto pelos livros e pelo estudo, o que não passou
pai, assim como os demais irmãos, recebeu os sa-
despercebido pelo padrinho de crisma, José Junquei-
cramentos da Igreja Católica e assistia às missas do-
ra, que ofereceu lhe custear o curso primário no inter-
minicais com assiduidade. Foi a minha avó Helena
nato do Colégio Santa Maria, em Baependi, no sul de
quem o alfabetizou e lhe passou as primeiras noções
Minas Gerais. Aos onze anos de idade, foi encaminha-
de aritmética, como se dizia. Volta Redonda àquela
do àquela pacata e tradicional cidadezinha mineira,
onde concluiu, dois anos mais tarde, o primário, com
louvor. Desde então meu pai se afeiçoou ao sul de Mi-
nas, onde mais tarde construiria uma casa espaçosa,
no centro da cidade vizinha, Caxambu, para passar as
temporadas de verão com a família.
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Hermínio e sua f ilha Marta
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das, as suas estão certas”. Trans- em 1959. Apesar dos trabalhos
crevo em seguida um pequeno literários bem acolhidos pela crí-
trecho do romance, p. 36. tica mais competente, meu pai,
durante a estada em Nova York,
Daí é que Josué come-
começou a se interessar pela li-
çou a se familiarizar com a fre-
teratura não ficcional. Conta que,
guesia, a desatrelar a língua en-
numa pilha de livros de bolso
vergonhada de matuto. Com
numa livraria daquela cidade,
mais um pouco estava escreven-
encontrou o seguinte título: Você
do tudo, embora com as letras
vive além da morte, de Harold
meio desajeitadas, graúdas e
sem direção certa.
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Sherman. Sobre essa obra escreveu seu primeiro em dia que ele procurou lidar com as adversida-
ensaio crítico a ser publicado no Reformador, em des sem se deixar abater. Tinha o hábito de medi-
setembro de 1958. A partir de então passou a se tar, diariamente, no silêncio de seu quarto. Nomes
dedicar mais e mais às obras de cunho espírita e, de parentes e amigos que lhe pediam conselhos
em 1967, lançou Os procuradores de Deus, primei- eram anotados no caderno de preces. Nas suas
ro livro voltado ao público espírita. conversas com Deus, tranquilizava-se e ao mesmo
Admito que nem sempre falássemos a mesma tempo rogava por aqueles que passavam por mo-
linguagem quando o assunto era religião, mas ja- mentos difíceis. Era assim que renovava as forças
mais discutíamos. A afinidade que havia entre nós para continuar o seu caminho.
era quanto ao gosto pelas artes e pela literatura,
Até os últimos dias de vida, em companhia
pela música clássica e também popular, pela cul-
da querida esposa que tanto o incentivou na car-
tura e língua estrangeiras, o respeito pelo ser hu-
mano e o carinho pelas crianças. Era característico reira profissional e literária, mostrou-se grato, reco-
em meu pai tratar com a mesma consideração nhecendo-se um homem feliz e realizado. Os tem-
desde a mais simples pessoa até a mais importan- pos modestos em companhia dos pais e irmãos no
te. Um de seus poemas preferidos, o qual copiou interior do Rio de Janeiro não o desanimaram. Pelo
para mim nas primeiras páginas de um diário que contrário, serviram para impulsioná-lo a vencer por
me presenteou quando completei quinze anos, meio do estudo e do trabalho. A convivência com o
era “Se”, de Rudyard Kipling, e ressalto aqui as pa- pai e o avô Hermínio será sempre motivo orgulho
lavras que bem ilustram esse traço nobre de sua e alegria para mim e minha filha, Flavia. A ele e à
personalidade: “Se és capaz de, entre a plebe, não minha mãe sou eternamente grata por tudo que
te corromperes e, entre reis, não perder a natura- nos proporcionaram. Onde quer que esteja, pai,
lidade [...]”.
na graça de Deus, quero crer que olha por mim e
A vida, todos sabemos, não passa “em branca nos abençoa, como sempre. Um dia haveremos de
nuvem” (para lembrar Francisco Otaviano), e com retomar nosso passeio pelo jardim e sentir nova-
meu pai não seria diferente. Compreendo hoje mente o perfume das folhas do tomateiro
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De Bernardo
a Hermínio
por Mauro Camargo
Enric já perdera a conta de quanto tempo esta- dade. Então Enric se agarrava à fé em São Bernar-
va galopando por entre os vales e desfiladeiros do do e desistia, ao menos por instantes, de morrer.
Ariége. Partira em fuga do sopé de Montségur no
Enric vivera a infância próximo à abadia cister-
meio da madrugada na direção de Toulouse e as
ciense de Clairvaux, onde Bernardo havia forjado
montanhas já haviam ficado para trás quando o dia
a linha de conduta monástica através de seus tex-
começou a amanhecer. Agora podia ver os campos
tos e, principalmente, por seus exemplos de seve-
cobertos de gelo ao redor e só então entendeu que ridade, há mais de cem anos. Morrera em 1153 e,
não sentia frio, nem fome, nem cansaço, apenas até agora, 1244, parecia ainda estar vivo. A fama e
vontade de fugir, não propriamente da região, mas os exemplos deixados pelo monge arrebataram
de si mesmo e de sua covardia. Muitas vezes pensa- a confiança do jovem Enric, que o tomara como
ra em jogar seu cavalo em alguma grota profunda santo de devoção. Trabalhara com o pai e o irmão
e acabar com a vida, mas, todas as vezes que esse como pedreiros da abadia até a morte misteriosa
ímpeto o movia, vinha na sua mente a imagem do do pai. O corpo foi achado sem vida na cama, sem
seu santo protetor, com sua bondade e sua severi- sinais de doença ou violência física. Desnorteado,
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abandonou o trabalho e a prote- mesmos, e demonstrava isso in-
Enric se
ção dos monges, deixando lá seu cansavelmente, bem como acon-
irmão, e saiu pela vida como um selhava seu santo protetor. Jurara
errante, trabalhando onde pu- a vida por eles. Jurara amor eter-
desse, guerreando, arando a ter- no e proteção a Adea, e os entre-
agarrava à
ra, construindo casas, ou as des- gara à morte. fé em São
truindo.
Estavam todos sitiados e iso- Bernardo e
Viveu assim até conhecer os lados, cercados pelo exército de
bons homens e boas mulheres mais de seis mil homens da rai-
desistia, ao
de Montségur, a quem a história nha e pela persistência de Hugo menos por
acostumou a chamar de cátaros. d’Arcis, o legado papal. Viviam
Lá também conheceu Sebah, o com o mínimo de comida e so-
instantes, de
famoso guerreiro Sebah, além mente as nevascas precoces mi- morrer.
de seus amigos Thierry, Jaume tigaram a sede constante daque- cumprindo ordens papais, assim
e Laurant, que lhe ensinaram las pessoas, que há mais de oito
como seus soldados. Outro tan-
todos os caminhos secretos do meses não tinham mais liberda-
to era de crentes, que seguiam a
monte, além de tantas outras coi- de de ir e vir. Por todo este tempo,
fé cátara, mas que não faziam os
sas. Viera para a região seguindo e por saber caminhos secretos e
severos votos dos bons homens
o nobre falido Pierre-Roger de perigosos que o faziam um fan-
e boas mulheres, seus líderes.
Mirepoix, de quem era soldado, e tasma até chegar no cume, ou
Por fim, lá estavam estes últi-
ali conhecera Adea, filha de outro de lá sair, se tornara um infiltra-
mos líderes do movimento, como
soldado, por quem se apaixonara do, fazendo de conta ser aliado
perdidamente. Quando o exér- do exército, mas levando aos per- Bertrand Martin e Guillabert de
cito da rainha Branca de Castela feitos e perfeitas toda informação Castres, exercendo o papel de ali-
chegou para cercar mais uma que conseguia no murmurinho cerces daquela crença tão pura
vez o monte, Pierre-Roger pediu dos soldados, além de alimen- e lutando dia-a-dia pela sobrevi-
para que ele se infiltrasse entre tos, o quanto pudesse carregar. vência, muito mais de uma ideia
os inimigos, o que não foi tão difí- O próprio Hugo d’Arcis, o legado do que de si mesmos e seus se-
cil para sua esperteza, mesmo sa- papal, por saber de suas habilida- guidores. Todos viviam em condi-
bendo dos riscos. Tinha motivos des como guia, o incumbira de ções precárias, porém, iniciados
de sobra para dar a vida por eles, encontrar caminhos para seus e crentes sofriam menos, por-
porém, agora, traíra a todos. soldados, mas ele sempre conse- que sabiam que todo sofrimento
guira burlar o pedido e esconder bem suportado era um passapor-
Quem era ele afinal? O que fi-
suas trilhas secretas. te para a perfeição, que os levaria
zera com sua promessa de man-
ter os refugiados avisados dos No alto dos 200 metros de ro- a não mais necessitar reencarnar
movimentos e tramas do exército cha íngreme, uma comunidade no mundo material, tão contami-
que os sitiava? Tinha por aquele de cerca de 500 pessoas sobrevi- nado pelos defeitos humanos. A
povo uma veneração tão grande via como era possível. A maioria força que estes demonstravam
quanto por Bernardo de Clair- era constituída por famílias de fazia com que nobres e soldados
vaux, ou São Bernardo. Um povo nobres da região que foram des- tivessem ainda mais coragem
que amava a Deus sobre todas tituídos de títulos e riquezas pela em continuar a defesa, por mais
as coisas e ao próximo como a si usurpação dos reis da França difícil que fosse.
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Quanto tempo resistiriam? Enric havia sido preso no dia ser perdoado pela igreja, ainda
Para sempre, ele sabia. Não havia anterior, denunciado que foi pelo ganharia algumas moedas para
como serem derrotados, porque próprio padre Jöe, que agia como poder partir, se quisesse. Então
estavam protegidos por escarpas ele, porém em sentido contrário, rapidamente seu pensamento
intransponíveis e bastava um pu- se infiltrando entre os cátaros, traçou um plano simples: levaria
nhado de soldados para proteger mas ajudando o exército da rai- os alpinistas até o ponto planeja-
o único ponto fraco da defesa: nha. Preso e condenado à morte, do e, enquanto esperavam que
a crista da torre. Era uma rocha fingira aceitar o suborno propos- ele continuasse sua missão, se-
que distava cerca de oitocentos to por Hugo d’Arcis para levar al- guiria até o castelo e revelaria a
metros do cume, rodeada de es- pinistas por um caminho secreto trama a Pierre-Roger, seu chefe
carpas com oitenta a cem me- até muito perto da rocha da torre. e comandante do pequeno exér-
tros de altura, portanto, metade Depois deveria subir até a guarda cito de Montségur. As moedas
da altura da vila que se formara que cuidava da defesa do local e ainda serviriam para comprar
no alto de Montségur. Uma trilha avisar que já estava na hora de se alimento para os refugiados. Po-
estreita levava da vila até o pe- prepararem para a fuga. Deve- rém, as palavras que o padre sus-
queno platô que se formava no riam depor armas aos alpinistas e surrou em seus ouvidos, depois
cume da crista da torre, onde, se fugirem pelas cordas que trouxe- que Hugo d’Arcis saiu, o desnor-
fosse tomado, poderia ser mon- ra o inimigo. O caminho que En- tearam. Um abismo se abriu aos
tada uma trébuchet, a temível ric conhecia, se revelado, deixaria seus pés. A culpa o desarmou. É
máquina de guerra que destruía uma franja íngreme de encosta claro que ele teria uma maneira
à distância. de não mais de 30 metros para de impedir sua contratraição.
ser escalada até o cume. Ainda Percebendo seu animal exaus-
Enric já avistava as muralhas
assim uma pequena guarnição to, desmontou e deixou que este
de Toulouse, para além do cauda-
seria suficiente para proteger o fosse até um pequeno córrego
loso Garonne, quando freou seu
local, porque o caminho era es- que logo desaguaria no Garon-
cavalo abruptamente. O animal
treito e mais do que uma pessoa ne. Ele também foi até o riacho
estava exausto e seu suor fazia
não conseguia passar ao mesmo e lavou o rosto com a água gela-
vapores envolverem o cavalei-
tempo. Segundo o padre Jöe, da e depois chorou. Que vida era
ro, que assim parecia mais um
a guarda estaria composta por aquela que o destino lhe impu-
fantasma, uma aparição, do que
soldados que queriam fugir, e nha? Como Deus permitiu que
um ser humano. O que ele havia
que também foram subornados. fosse obrigado a fazer o que fez?
feito? Trocara o amor de Adea e
Além de fugirem, receberiam o Assim que teve este pensamen-
a confiança de toda aquela gen-
perdão por seus pecados e uma to, a figura do seu santo protetor,
te por um punhado de moedas
boa quantidade de moedas de que havia morrido há quase cem
de ouro? Ou foram as palavras
ouro, mas precisavam deixar anos, mas que deixara uma mar-
daquele padre em seu ouvido,
suas armas para demonstrarem ca tão pronunciada do seu traba-
sussurrando horrores do seu pas-
boa-fé. lho que parecia ainda estar vivo,
sado? Como Jöe de Chambres, o
brotou mais uma vez em seu
padre sinistro, que convivia livre- A sentença de morte pouco
pensamento.
mente também com os cátaros, assustava Enric, porque, de certa
descobrira aquele segredo tão forma, passara a vida a procurá- – Então Deus é o culpado? –
bem guardado? É claro que não -la, devido aos pecados que ator- pareceu ouvir, nos fundos porões
foram as moedas de ouro que o mentavam seu passado. Se cola- da alma. – Então suas decisões
fizeram trair. borasse, porém, além de viver e não o trouxeram até aqui?
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Castelo cátaro
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aqueles que pouco sabem das um telhado ou uma parede, ele teve a impressão de que iria no-
tramas dos superiores, e logo co- corria a consertar. Todos sabiam vamente desfalecer, tamanha a
meçou a entender ainda mais o que o final estava próximo e Enric emoção. Imediatamente reuniu
que fizera. Descobriu que, assim viu as pessoas que mais gostava forças e ajoelhou-se, para, logo
que os soldados que guardavam serem mortas pelas pedras que em seguida, ouvir:
a crista da torre depuseram ar- insistiam em destruir aquelas vi-
mas, os alpinistas os mataram. – Vamos, meu amigo, parece
das inocentes. Adea estava em
Jöe de Chambres não queria cor- que você está sofrendo muito
sua pequena casa cuidando do
rer riscos e quanto menos pesso- com seus erros revelados. Todos
pai, ferido em uma das batalhas
as soubessem de suas tramas era para tentar recuperar o domínio erramos, e todos precisamos as-
melhor, então combinou uma da crista da torre, quando uma sumir nossos erros e continuar. É
coisa e fez outra. No mesmo dia, grande pedra passou pelo telha- hora de continuar – falou aquele
uma tropa de soldados do exér- do e destruiu tudo. homem, estendendo a ele a mão
cito, muito bem armada, subiu generosa para que levantasse.
Como o coração oprimido Depois que Enric estava em pé,
pelo caminho que ele revelara e
pela dor, elevou os olhos ao céu perguntou – Está pronto para
tomou o ponto estratégico de de-
escuro e nebuloso daquele fi- continuar?
fesa. Ainda no mesmo dia come-
nal de madrugada e rogou para
çou o trabalho de levar para cima
que Deus também o levasse logo Enric ficou aturdido com
as peças da trébuchet. O fim da
dali. Enric não sabe o que aconte- aquela presença. Como ele, um
resistência cátara em Montségur
ceu. Só sabe que ouviu a batida pecador, que cometera tantos
havia começado.
surda que a trébuchet produzia erros, podia receber a graça de
Desesperado, Enric subiu até quando uma pedra ela lançada ter aquele santo ao seu lado, cha-
o castelo, no alto da montanha e e, logo em seguida, tudo escure- mando-o para continuar. Ficou
contou toda a verdade a Bertrand ceu. Também não sabe quanto confuso e demorou a responder.
Martin, o principal líder entre os tempo ficou tudo escuro. Parecia Fechou os olhos e colocou o ros-
cátaros da vila e, imediatamente, que estava apenas envolto pela to entre as mãos, começando a
foi perdoado, para que seu cora- escuridão e pelo silêncio, porém, chorar. Então ouviu sua voz nova-
ção sangrasse ainda mais. Ber- em dado momento, percebeu mente.
trand pediu a ele que a ninguém que, bem distante dele, uma pe-
– Você quer continuar? Eu sei
mais contasse aquele segredo, quena luz acendeu. Era como se
quanto deve ser difícil...
porque poderia ser morto pelos fosse a luz de uma lâmpada a
soldados e a comunidade preci- óleo, tênue, com esforço tentan- – Sim, meu santo. Estou pron-
saria de toda ajuda possível. Enric do vencer a escuridão. Aos pou- to. Com o senhor ao meu lado,
tinha vontade de entregar aque- cos a luz foi se aproximando e, estou pronto para tudo.
le padre maldito, que se fazia mesmo que ela não conseguisse
passar por amigo, mas Bertrand vencer totalmente as trevas que – Eu não sou santo, meu amigo,
parecia o proteger. Por bonda- o envolviam, trevas que Enric sou apenas um homem que ten-
de ou ingenuidade? Não tinha entendia vir do seu próprio co- ta servir a Deus como pode.
como saber, mas aceitou seu pe- ração, conseguiu perceber que
– Não... não... O senhor é São
dido e viveu os últimos dias de um homem trazia esta lâmpada
Bernardo, de quem eu sou devo-
sua vida tentando ajudar como na mão, caminhando diretamen-
to – falou Enric, comovido.
podia. Cada vez que uma pedra te na sua direção. Quando este
jogada pela trébuchet derrubava homem chegou ao seu lado, ele
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– Ah! Sim... eu soube que um – Ora, a amizade sempre care- bre tudo o que relembrou. Sabe
dia eu fui Bernardo de Clairvaux. ce de alguma devoção. O princi- que tenho minhas dúvidas sobre
Já me falaram isso. Mas hoje sou pal é que somos amigos – falou a validade das regressões. Temos
outra pessoa, Henrique. Creio Hermínio. – Quando estive entre muito a conversar...
que você ainda está preso ao os cátaros, mesmo que antes do
– Então vamos conversar, meu
passado, por isso me vê como final trágico que tiveram, não es-
amigo. Foi muito forte o que lem-
um dia já fui. Talvez esteja muito távamos no mesmo campo de
brei e não tenho condições de
cansado... Prefere descansar ou luta e, de certa forma, lamento
continuar hoje, mas podemos
podemos continuar? por isso. Parece que minha curio-
conversar.
sidade por eles é uma tentativa
Enric não entendeu, a princí-
modesta de recuperar o que um – Então venha – falou Hermínio,
pio. Ficou ainda alguns segun-
dia não compreendi totalmen- ficando em pé e arrumando os
dos tentando organizar os pen-
te. óculos que teimavam em desli-
samentos e com o rosto entre
zar pelo rosto. – Vamos tomar um
as mãos, até que finalmente – Ah! Mas você mesmo escre- café.
entendeu o que estava aconte- veu em seu livro sobre os cátaros
cendo. Respirou profundamente o que Bernard falou sobre eles: Este conto de ficção é uma
e olhou para seu santo protetor, “se lhes perguntarem qual é a modesta, muito modesta, home-
Bernardo de Clairvaux, que esta- sua fé, ela é totalmente cristã, se nagem a este grande homem.
va pacientemente sentado em lhes ouvirem as conversas, não Entre tantos livros excelentes,
uma cadeira ao seu lado, usan- há nada de mais inocente; e seus ele escreveu o melhor livro que
do uma calça cinza, uma camisa atos estão em harmonia com as conheço sobre os cátaros, onde
branca e uma blusa de lã xadrez. palavras”. me baseei quase que totalmen-
Tinha as pernas cruzadas e um te para escrever o livro Ombra e
sorriso amigo no rosto. – Fico feliz por ter reconhecido Lutz. Os cátaros e a heresia ca-
isso naquela vida. Porém, Henri- tólica é uma obra-prima, assim
– Hermínio? – perguntou, já co- que, estou mais interessado em
como foi sua vida de estudos e
meçando a sorrir.
tudo o que acabou de me contar. dedicação ao espiritismo: uma
– Sim, meu amigo, Hermínio Quero saber não apenas dos fa- obra-prima do bem.
Corrêa de Miranda. Você fez uma tos, mas das tuas emoções, sen-
regressão espantosa e me con- timentos. Quero saber o que está
tou muitas coisas sobre o seu sentindo agora, no presente, so-
passado entre os cátaros. Vai aju-
dar muito no trabalho deste ve-
lho escrevinhador...
Você fez uma
– Ainda lembro, meu santo –
regressão
falou Enric, ou agora Henrique, espantosa e me
sorrindo. Hermínio Miranda era
seu velho amigo e já sabia que
contou muitas
um dia, na época dos cátaros, coisas sobre o 1
Personagens do romance Ombra
seu passado
ele fora Bernard de Clairvaux, ou e Lutz, publicado pela editora La-
châtre. 1 Como eram chamados os
São Bernardo. – Então já fui seu
entre os cátaros
iniciados na crença cátara.
devoto! De certa forma continuo
sendo.
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O desafio das
religiões
por Hermínio Miranda
Em 1965, Hermínio Miranda traduziu para o português a obra God bless the
devil, de autoria de seu amigo J. Luiz Rodriguez, que foi publicada com o título
de Muito além da morte, sob os protestos do tradutor, que preferia manter o
título original, Deus abençoe o diabo. Além de traduzi-la, Hermínio escreveu
belíssima “Introdução”, cujo excerto publicamos abaixo, abordando uma das
reiteradas preocupações de Hermínio em seu trabalho como escritor.
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Todas as filosofias religiosas mente a escala de valores sobre a clo: idealismo nobre e puro – con-
dignas desse nome são funda- qual se apoiavam seus impulsos quista de posições mundanas e
mentalmente espiritualistas. Co- iniciais. poder temporal, e finalmente –
locam o espírito humano no cen- manutenção do poder, em sacri-
É claro, pois, que, após montar
tro de suas cogitações, a fim de fício dos ideais primitivos.
esse dispositivo político, ligado
que daí possam inferir o procedi-
a interesses vultosíssimos, O mal não é, evidentemente,
mento do homem perante o seu
torna-se a organização religiosa das religiões em si, ou seja, na
semelhante e em face do ser su-
fundamentalmente oposta, em sua pureza original, que quase
perior, evidentemente implícito
essência e em propósitos, aos todas têm um código ético supe-
na mecânica das leis universais.
objetivos espirituais originários. rior e buscam incutir no homem
Ocorre, porém, que quase todas
Estes, no entanto, continuam a sadios princípios morais que o
as religiões, se não todas, vão a
ser pregados – até mesmo com atraiam para novos planos evolu-
pouco e pouco, imperceptivel-
inegável honestidade, em muitos tivos. O grande problema é a re-
mente, se convertendo em pode-
casos – mas já esvaziados de nitente ignorância do homem a
rosas organizações políticas, eco-
seu verdadeiro conteúdo ético, respeito da sua própria natureza
nômicas e sociais, amplamente
porque não se apoiam nta exem- espiritual. E por essa ignorância
divorciadas dos objetivos a que se
plicação. O dilema é então cruel fatal podemos, sem dúvida, cul-
propunham de início. No fim de
e inevitável: ou a organização re- par a intransigência dogmática
algum tempo – medido aqui em
ligiosa retorna à sua pureza pri- dos códigos religiosos que, bor-
unidades de séculos – atingem
mitiva e abdica do poder político, dados à volta das doutrinas pri-
um estágio que poderíamos cha-
social e econômico, para reacen- mitivas, desejam impor obediên-
mar de burocratização religiosa;
der a chama do ideal já sufocada cia cega, em lugar de aceitação
transformam-se em instrumento
pelas cinzas, ou sobrepõe os in- consciente e livre exame, às mais
de poder e opressão. O proseli-
teresses terrenos aos sonhos dos absurdas concepções.
tismo não é mais impulsionado
pelo desejo puro e simples de es-
seus fundadores, desvirtuada de
uma vez de suas finalidades espi-
O mal não é,
timular a evolução espiritual do
rituais. evidentemente,
homem, mas, sim, pela inescapá-
vel condição de sobrevivência da A história da humanidade está
das religiões
organização em si mesma. As for- cheia de exemplos ilustrativos. em si, ou seja,
ças legítimas do apostolado hu- Cada vez que um vulto messiâ- na sua pureza
milde dos primeiros tempos se nico de grande porte inicia um
original
degradam num insaciável desejo movimento religioso, para relem-
de dominação, intransigência e brar mais uma vez ao homem sua
intolerância, subvertendo total- condição espiritual, reabre-se o ci-
21
Uma preciosa lição
reafirmada durante
toda uma vida: – Confia
em Jesus!
22
Todos conhecem os homens e também polemista, político e em todas as grandes questões
superiores pela vida que levam pacificador. religiosas e seculares da época.
e pelo que fazem e falam. Her- Por ordem de tempo, conside-
Aconteceu que Bernardo de
mínio carregava na essência as ra-se o último dos pais da Igreja.
virtudes que um dia consolidou Claraval, mesmo sendo um mon- Um seu editor, falecido em 1707,
como São Bernardo de Clara- ge contemplativo, teoricamente Mabillon, escreveu sobre ele: “É
val. destinado a viver para sempre o último dos pais, mas iguala os
em regime de clausura, entrou maiores”.
Confesso que fiquei verdadei- de tal forma no concreto da rea-
ramente impressionada quando lidade da sua época, a ponto de Agora vocês imaginem o que
descobri que o Hermínio, com significa encontrar esse mesmo
participar de várias polêmicas in-
quem convivi de maneira tão ter- homem, mais de 800 anos de-
ternas e externas da Igreja.
na e próxima, um dia já havia sido pois, comprando um pãozinho
literalmente um santo. No ano de 1115, o seu abade, na padaria!
de nome Estevão, mandou-o
Para quem não conhece, Ber- Efetivamente, só vim a ter co-
com doze companheiros fundar,
nardo de Claraval. nascido no cas- nhecimento de toda esta histó-
no vale do Absíntio, aquilo a que
telo de Fontaine em 1090, perto ria quando me convidaram pela
Bernardo chamou Vale Claro (em
de Dijon, na França, e desencar- primeira vez a fazer uma pales-
francês, Clair Vaux) – de onde
nado em 1153, pertencia a uma tra sobre o amigo que caminha-
surgiu o nome Claraval. E assim,
família nobre, que muito se assus- va junto comigo nas manhãs do
tou com sua decisão radical de do alto do mosteiro, por muito Parque das Águas de Caxambu.
seguir Jesus como monge cister-
muitas mães
Alguém tão simples e modesto, a
ciense, membro de uma ordem despeito de sua imensa enverga-
religiosa monástica católicat ben
editina reformada – os chamados
e esposas dura espiritual, que jamais men-
afastavam
cionou tal fato em nossas muitas
monges brancos, como ficaram conversas. Hermínio tinha acesso
conhecidos, devido à cor de seu
hábito.
os filhos e a várias de suas encarnações, fa-
lava nelas como quem comenta
Bernardo de Claraval é consi-
maridos do sobre o dia em que assistiu a um
derado pela família cistercien- santo, tamanho filme no cinema. Mas nunca me
contou que já havia sido santo.
se um segundo fundador, pois
atraía muitos para a Ordem da era seu carisma O máximo que me revelou foi
qual fazia parte. Conta-se, inclu-
que já tinha andado “por aqui” na
sive, que muitas mães e esposas tempo Claraval irradiou a luz do
época do Cristo. Deu-me um livro
afastavam os filhos e maridos do cristianismo. Sua intensa luz re-
de presente e disse: “veja se você
santo, tamanho era seu carisma e fletia-se também em seus escri-
me encontra por aqui.” Mas esta
poder de atração. Para se ter uma tos, como o Tratado do Amor de
já é história para uma próxima re-
ideia, todos os irmãos, primos Deus e o Comentário ao Cântico
vista.
e amigos o seguiram! Homem dos Cânticos. Escreveu nume-
de oração, destacou-se como Fato é que até então imagina-
rosas obras, milhares de cartas,
pregador, prior, místico, escritor, va eu que os santos eram seres
mais de 300 sermões; interveio
fundador de mosteiros, abade, de pura luz, seres ascensiona-
em todas as disputas doutrinais,
conselheiro de papas, reis, bispos dos que jamais voltariam a pisar
23
neste orbe depois de encerrada olhar. Uma das histórias que pectivos descontos, horas extras,
a tarefa onde haviam sido assim bem exemplificam a profundi- eventuais gratificações. Isto fei-
reconhecidos e condecorados. dade, a intensidade, a força da fé to, realizava-se a distribuição dos
Mas não. Hermínio foi santo e que Hermínio carregava dentro respectivos valores dentro de um
conviveu entre nós como ser hu- de si data de 1942. envelope, com nome, número
mano comum. Passou por dores, de registro e demonstrativo dos
Com a inauguração da Com-
dificuldades, provas e expiações valores a serem pagos a cada
panhia Siderúrgica Nacional,
como cada um de nós. Teve pro- funcionário. Todos os envelopes
em Volta Redonda, Hermínio,
blemas de coração, perdeu parte eram colocados em ordem alfa-
então com 22 anos, resolvera se
da audição, experimentou difi- bética e cuidadosamente enfilei-
transferir do banco em que tra-
culdades para andar. rados dentro de algumas caixas.
balhava para a nova e promisso-
Ficavam dispostos na primeira
A grande diferença é que o es- ra estatal brasileira, ocupando
caixa os envelopes de pagamen-
pírito que verdadeiramente con- um dos cargos de contador. A
to dos funcionários cujos nomes
solidou seu aprendizado carrega empresa, que já começou gran- começavam de A a F. A seguir, na
na alma a marca indelével deste de, já naquela época emprega- caixa seguinte, de G a L, e assim
aprendizado. Assim, mesmo em va muitos operários. O grupo sucessivamente.
sua mais pura humildade, Her- dos contadores era reduzido,
mínio sempre se destacou pela composto por nosso querido Naquela manhã de pagamen-
sua grandeza. E, na sua grandeza, escriba, mais três ou quatro co- to, com todos os funcionários
sempre exemplificou com a pró- legas. Eram eles os responsáveis reunidos, ansiosos por receber
pria vida a importância da fé. Esta por todos os pagamentos. seus salários, Hermínio começou
era sua grande marca, na minha a chamar a partir da letra A: Abe-
opinião. Ora, fazer o pagamento de lardo, Abílio... Um a um, cada fun-
um quadro numeroso de fun- cionário ia recebendo seu enve-
Ele era alguém tão serena- cionários, sem os recursos atuais lope fechado e assinando no livro
mente convicto em sua certeza
mesmo em
o recebimento, depois saíam fe-
de que somos seres incondicio-
lizes com o dinheiro no bolso.
nalmente amparados pela sabe-
doria do Pai Maior, que o próprio sua mais pura Acontece que naquele dia um
Cristo vela por nós, incansável, humildade, imprevisto aconteceu. Após al-
Hermínio
que, em sua última conversa com guns minutos de distribuição dos
a filha mais velha, Ana Maria (que envelopes, um funcionário tocou
um dia tão gentilmente repartiu sempre se no ombro de Hermínio e falou:
destacou pela
esse presente comigo), dois dias – Doutor Hermínio, no meu en-
antes de seu desencarne, ele dis- velope o dinheiro não bate com
se: “Filha, quando se sentir sozi-
nha, ou nervosa, ou com coisas
sua grandeza o valor descrito. Meu pagamento
está errado.
demais para fazer e se vir perdi- que a informática nos oferece,
Hermínio olhou, preocupado
da, pára, ore, creia. Confia em Je- não era tarefa das mais fáceis.
pela aflição do companheiro, e in-
sus. Entrega tudo a ele. Ele vai te Era necessário que, com alguns
terrogou os demais funcionários
apresentar a solução”. dias de antecedência, fossem
que já haviam recebido os seus
calculados um a um os salários
E assim era Hermínio. Alguém envelopes, pedindo que conferis-
dos funcionários, com seus res-
que vibrava fé com um simples sem se alguém recebera um va-
24
lor maior do que o que lhe cabia.
Como ninguém se manifestasse,
virou-se para o colega prejudica-
do e lhe pediu que esperasse um
pouco mais, para que, após a dis-
tribuição de todos os envelopes,
pudesse decidir o que fazer.
25
Lembranças e
Previsões do Futuro
da Humanidade
por Carlos Orlando Villarraga
26
Hermínio Miranda é grande admirador da doutora Helen Wam-
bach, que inclusive serviu de inspiração para algumas de suas obras,
como Nossos Filhos são Espíritos. Uma das principais contribuições
da psicóloga estadunidense foi utilizar a análise estatística em re-
gressões a vidas anteriores de uma massa grande de indivíduos.
Um dos discípulos da célebre doutora, Chet Snow, decidiu utilizar o
mesmo método, mas projetando no futuro cerca de 1.200 indivíduos
em transe. O resultado dessa instigante pesquisa foi publicado em
sua obra Mass dreams of the futur (Sonhos em massa do futuro) e
revela a inesperada concordância dos relatos em relação ao futuro
da humanidade, num planeta devastado por intempéries e pela cri-
se climática. Esse trabalho inspirou o célebre artigo Lembranças do
Futuro, em que Hermínio Miranda narra essa curiosa pesquisa para
seus leitores do Brasil.
Como será o futuro da humanidade no ano 2100 . Comunidades new age habitando colinas on-
ou 2300? Haverá mais riqueza com melhor distri- duladas cobertas de árvores e arbustos ou perto do
buição? A humanidade tornar-se-á mais pacífica? litoral no meio de jardins muito bem conservados.
Mais saudável? Mais educada? Em que condições O clima era temperado e o ar fresco. Frutas, vege-
estará o meio ambiente? Como será a alimenta- tais e peixes faziam parte de sua dieta.
ção?
. Urbanos high tech, a maioria morando em cida-
No seu texto intitulado “Lembranças do Futu- des artificialmente fechadas, em domos ou bolhas,
ro”,1 Hermínio Miranda apresenta os resultados ou parcialmente subterrâneas, pois a atmosfera ex-
das pesquisas realizadas, entre 1980-1988, por He- terna estava poluída. Os alimentos consistiam de
len Wambach, Ph.D. e Chet Snow, Ph.D., utilizando nutrientes em pó dispensados por uma máquina,
técnicas de hipnose para progressões da memória alimentos embalados e vitaminas em bolinhas.
em sujeitos estadunidenses, sobre as condições so-
. Sobreviventes rurais, morando em condições
ciais e ambientais no período de 2100-2200 e 2300-
similares às do século XIX. Carne de boi, frango, pei-
2500.
xe e alguns animais caçados faziam parte da dieta
Dependendo da descrição do ambiente externo junto com alguns vegetais.
em que os sujeitos se encontravam e do tipo de ali-
Porque diferenças tão grandes nessas descri-
mentação, os depoimentos podem ser classifica-
ções sobre as condições futuras da nossa socieda-
dos em quatro grandes grupos:2
de e meio ambiente? Será que podemos predizer
Habitats fora da superfície terrestre, seja em es- o que vai acontecer? “Como é possível o conheci-
tações espaciais orbitando a Terra, em naves espa- mento do futuro? Como saber que as coisas futu-
ciais ou em colônias experimentais em outros pla- ras sucederão?”.3 Essas perguntas foram elabora-
netas. Seus alimentos eram artificiais embalados das por Allan Kardec na apresentação de sua teoria
ou em pílulas. da presciência. Kardec explica que Espíritos adian-
27
tados, em momentos de emanci- das Nações Unidas e que tem . Aumento da intensidade e fre-
pação da alma, “têm a faculdade como objetivo principal sintetizar quência da seca em diversas re-
de abranger por si mesmo, um e divulgar o conhecimento mais giões
período mais extenso e vê, como avançado sobre as mudanças
. Aumento do risco de doenças
se fossem presentes, os aconteci- climáticas que afetam o plane-
transmitidas por vectores
mentos desse período”,4 incluin- ta, apontando as causas, riscos e
do o futuro. Porém tal faculdade consequências para os seres hu- Outro estudo do IPCC, o Re-
“é inerente ao estado de espiritu- manos e para o meio ambiente. latório Especial sobre Mudança
alização ou, se o preferirmos, de Nos últimos anos, o IPCC tem Climática e Terra,9 publicado em
desmaterialização”5 da pessoa.
publicado vários relatórios sobre agosto de 2019, trata especifica-
Por isso, a diferença nas descri-
diversos aspectos das mudanças mente das emissões dos Gases de
ções. “Talvez mesmo esse pen-
climáticas. Um deles, o Relatório Efeito Estufa (GEEs) provenientes
samento possa ser apenas um
Especial sobre o Aquecimento do uso da terra, ressaltando a re-
projeto, um desejo, que pode não
Global de 1,5 C,8 publicado em lação com mudanças climáticas,
ter seguimento; daí os frequen-
agosto de 2018, apresenta os pos- desertificação, degradação da
tes erros de fato e de data nas
síveis efeitos no ano 2100 do au- terra, segurança alimentar e flu-
previsões”.6 E Kardec nos adverte
mento de 1,5 a 2,0 C na tempera- xos desses gases em ecossiste-
que “as predições circunstancia-
tura média do planeta. Entre eles mas terrestres. E apresenta vários
das não podem oferecer certeza,
dados para nossa reflexão:
e não devem ser aceitas senão
como probabilidades”.7 Por essa . 25-30% de todos os alimentos
razão, as descrições sobre as fu-
turas condições do planeta Terra,
com essa visão produzidos são perdidos ou
desperdiçados.
realizadas pelos sujeitos em es- mais ampla e
consciente da
. A agricultura, a silvicultura e
tado hipnótico, são probabilida-
outros tipos de uso da terra re-
des do que pode vir a acontecer,
porque dependem das nossas realidade atual, presentam 23% das emissões
possamos,
humanas dos GEEs
decisões atuais, pelo exercício do
nosso livre arbítrio.
efetivamente,
. 500 milhões de pessoas já vi-
28
mais ácidos e menos produtivos e a aceleração que pode afetar turo da humanidade dependerá,
e as consequências, caso as emis- as funções da natureza. O rela- portanto, do modo como serão
sões dos gases do efeito estufa tório constata que, dos cerca de usadas essas novas tecnologias e
continuem nessa escalada, serão: oito milhões de espécies de ani- das mudanças que forem realiza-
mais e plantas na Terra, até um das na organização social.
. Na Europa, leste da África, An- milhão de espécies estão agora
Um estudo realizado, pelo
des tropicais e Indonésia, pe- ameaçadas de extinção, e mui-
reconhecido Instituto Ambien-
quenas geleiras perderão mais tas delas se extinguirão dentro
tal de Estocolmo,13 sobre os
de 80% de sua massa até 2100, de apenas algumas décadas. Os
possíveis cenários do futuro da
nos piores cenários de emissão. cientistas também chamam a
humanidade, baseado nas ten-
Isto aumentará o risco para as atenção de que essas perdas vão
dências e politicas atuais, mos-
pessoas, com deslizamentos de influenciar na produção dos nos-
tra três possíveis caminhos:
terra, avalanches, desabamen- sos alimentos, no ar que respira-
tos de pedras e enchentes mos, na água que bebemos. . Mundo convencional em
que as forças de mercado e as
. Aumento da acidificação da Essas previsões científicas
água do mar. nos apresentam um cenário fu- reformas políticas dos grupos
turo bastante desolador. Daí a dominantes continuam favore-
. Degelo do permafrost em vá-
importância de aprofundarmos cendo uma pequena minoria
rias regiões liberando bilhões
nosso conhecimento sobre es- da população.
de toneladas de CO2 e meta-
sas questões socioambientais a . A barbárie é o cenário pessi-
no
fim de que, através de um olhar mista, que pode evoluir para o
Em maio de 2019, o IPBES mais consciente dessa realida- colapso, no qual o crescimento
(Plataforma Intergovernamental de, possamos atuar de modo da crise econômica e ambien-
Político-Científica sobre Biodi- mais assertivo. Ou seja, a fim de tal leva a sociedade a uma es-
versidade e Serviços Ecossistê- que, com essa visão mais ampla piral de conflitos fora de contro-
micos) publicou o estudo mais e consciente da realidade atual, le, prejudicando a estabilidade
abrangente que já foi feito sobre possamos, efetivamente, dire- das instituições.
biodiversidade no planeta Terra.11 cionar nossas ações, de impacto
. A grande transição visualiza
Ele avaliou cifras impactantes so- individual ou coletivo, no sentido
uma transformação profunda
bre o declínio da biodiversidade de proporcionar mais esperança
do que temor sobre o futuro. nos valores da sociedade, bem
como no modelo de desenvol-
Essas previsões
A atual organização social e o
vimento, priorizando a quali-
modo como as tecnologias de-
dade de vida, o consumo cons-
científicas nos senvolvidas vêm sendo aplicadas
ciente, a conservação do meio
apresentam
são frutos da ideologia prepon-
ambiente, a solidariedade e a
derante. “A Humanidade realizou
equidade global, potencializan-
um cenário até hoje incontestáveis progres-
do assim todas as dimensões
futuro bastante
sos; os homens, por sua inteli-
da sustentabilidade.
gência, chegaram a resultados
29
às situações cotidianas em socie- mente no lucro econômico. A do sistema alicerçado no ego-
dade. Allan Kardec visualizou esse consequência desse pensamen- centrismo e consumismo exa-
último caminho para a humani- to equívoco, no plano físico, re- cerbados, para um modelo mais
dade ao citar: “Resta-lhes ainda sulta em descuido, desperdício, humanista e sustentável, que
um imenso progresso a realizar: poluição e depredação do meio procure o bem-estar físico e espi-
o de fazerem que entre si reinem ambiente e, no plano social, na ritual do ser humano e das outras
a caridade, a fraternidade, a so- tremenda desigualdade e injusti- espécies com as quais convive-
lidariedade, que lhes assegurem ça social. Portanto, se quisermos mos neste planeta.
o bem-estar moral”.14 Para isso uma sociedade justa, devemos
Otto Scharmer, professor do
acontecer devemos praticar as contribuir para a implantação de
Instituto Tecnológico de Massa-
leis morais apresentadas por Kar- um novo modelo de desenvolvi-
chussets, sugere algumas prá-
dec em O livro dos Espíritos. Es- mento que leve em considera-
ticas em benefício do futuro da
sas leis regem os relacionamen- ção não só o aspecto econômico,
humanidade:
tos de um modo geral, sejam eles como também o aspecto social
entre seres encarnados, desen- e ambiental. As leis morais, apre- Coloque o discurso em práti-
carnados, com as outras espécies sentadas por Kardec no “Livro ca; transforme-se em um mes-
e com Deus. Não depende só do Terceiro” de O livro dos Espíritos, tre da observação e da escuta;
intelecto, mas principalmente servem de fundamento para mantenha-se em diálogo cons-
do desenvolvimento e expressão cada um dos três pilares do mo- tante com o universo; esteja
dos nossos sentimentos em favor delo de desenvolvimento susten- disposto a mudar a si mesmo
do próximo. “Devemos desenvol- tável: o crescimento econômico, primeiro, caso queira tentar
ver e aprimorar cada vez mais a a preservação do meio ambiente mudar os outros; e jamais de-
consciência de participação na e a justiça social. Obtemos, nas sista, pois você não está sozi-
vida social, em harmonia com o leis do progresso e do trabalho, nho nessa jornada.16
legítimo pensamento da Doutri- a orientação para agirmos em
Nós, da espécie humana, che-
na, que não quer o espírita fora relação ao progresso econômico;
gamos num ponto em que so-
do mundo, mas dentro do mun- nas leis de conservação, reprodu-
mos capazes de impactar o meio
do, ajudando a transformá-lo”.15 ção e destruição, encontramos
ambiente de forma irreversível,
Devemos participar mais ativa- a orientação para a preservação
cujos efeitos estão sendo devas-
mente nos debates e organiza- do nosso meio ambiente físico e
tadores sobre todas as espécies
ções que procuram melhorar espiritual e, nas leis de sociedade,
existentes no planeta. Portanto,
as condições da sociedade e do igualdade, liberdade, amor, justi-
devemos nos alfabetizar com re-
meio ambiente. E, como prova- ça e caridade, a orientação para
lação ao impacto de nossas ações
velmente estaremos reencarna- estabelecer as bases das institui-
sobre o meio ambiente e sobre
dos, neste planeta, nas próximas ções de uma sociedade justa.
as outras espécies. “Hoje, apesar
gerações, certamente sofrere-
Sabemos que a busca pelo co- de amplos e detalhados diagnós-
mos as consequências de nos-
nhecimento deve ser incessante ticos sobre a situação cada vez
sas ações assertivas, ou de nossa
e, nesse caso, vital para nossa so- mais precária dos ecossistemas,
inépcia, ao lidar com essas ques-
brevivência. Nesse sentido, em- não se percebe um senso de ur-
tões de tão relevante importân-
basados em muito estudo e com gência que oriente a tomada de
cia para todos nós.
muita propriedade, devemos decisões no rumo certo”.17 Preci-
O modelo atual de desenvol- promover a mudança da men- samos desenvolver esse senso
vimento está focado exclusiva- talidade atual, que reforça a ideia de urgência para agirmos o mais
30
pronto possível no sentido de evi- à obra! Sem medo, sem desâni- munidade que vivo, de contribuir
tarmos maiores desequilíbrios mo, com coragem, arregacemos ativamente para fortalecer as ins-
nos ecossistemas que sustentam as mangas e trabalhemos, com tituições das quais faço parte, de
a vida em nosso planeta. afinco, em prol desse futuro de levar uma vida mais simples que
esperança, de vida. O futuro de- tenha um menor impacto no
O futuro da humanidade está pende da minha mudança de
meio ambiente.
em nossas mãos. Sim, nossas, comportamento, de criar novos
porque estamos encarnados e, hábitos mais alinhados com as O que você gostaria, poderia e
no momento, a missão é nos- leis divinas, de ser um exemplo deveria fazer para ajudar na cons-
sa! A quem muito é dado, muito de comportamento ético com trução de um futuro melhor para
será cobrado!18 Portanto, mãos minhas atitudes dentro da co- a humanidade?
Referências bibliográficas:
(1) Miranda, Hermínio C. As duas faces da vida. 4. Ed. Bragança Paulista. Lachatre, 2013 Pag.183-193
(2) Snow, Chet. Mass dreams of the future. 4. Ed. USA. Deep Forest Press, 1998. Pag. 116,124,125,134, 141
(3) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVI. Item 1.
(4) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVI. Item 5.
(5) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVI. Item 8.
(6) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVI. Item 7.
(7) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVI. Item 16.
(8) IPCC. Special Report. “Global Warming of 1.5 C. Summary for policy makers“.
(9) IPCC. Climate Change and Land. Summary for Policy Makers
(10) IPCC. Special Report on the Ocean and Cryosphere in a changing climate. “Summary for policy makers”.
(11) IBPES. Summary for policymakers of the global assessment report on biodiversity and ecosystem services.
(12) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVIII. Item 5
(13) Stockholm Environment Institute. Global Scenarios and Human Choice. Pp. 21-37.
(14) Kardec, Allan. A Gênese. 19. Ed. São Paulo. LAKE, 1999. Cap. XVIII, item 5.
(15) Amorim, Deolindo. O Espiritismo e os Problemas humanos. 1a Ed. São Paulo. U.S.E. Editora, 1985, p. VIII.
(16) Scharmer, O.. Liderar a partir do futuro que emerge. 1a Ed. Rio de Janeiro. Elsevier, 2014, pp. 184-187.
(17) Trigueiro, André. Espiritismo e ecologia. 1a Ed. Rio de Janeiro. FEB, 2009, p. 46.
31
O cristianismo
espírita de
Hermínio Miranda
por Jáder Sampaio
32
Conheci pessoalmente o Her- Seus vínculos familiares são muito sucesso hoje, em meio aos
mínio na década de 80, quando muito fortes, como, por exemplo, jovens, porque a grande parte de-
ele veio a Belo Horizonte – MG a sua ligação com a mãe. Li algu- les não frequentou os catecismos,
convite da Aliança Municipal Es- res que ele, como Léon Denis, nem as igrejas, mercê da contra-
pírita para tratar de mediunida- tornou-se espírita por convicção, cultura e de uma mentalidade
de. Ele já havia enviado um Diálo- mas evitou comunicar à mãe por laica nas escolas, que beira o an-
go com as sombras autografado algum tempo. ticristianismo. É proibido falar do
para meu pai, em função de um cristianismo, mas não é proibido
Hermínio era imensamente
caso de desobsessão de um criticar as teologias com o avanço
discreto, recolhido mesmo. Ele
amigo que havia sido feito pelo das ciências. Nossos filhos veem
não gostava de expor, e às vezes
Grupo Emmanuel, se eu entendi o cristianismo, filosofia mãe de
lia em vez de falar suas ideias.
direito o que aconteceu. O fato é todos os humanismos ocidentais,
Para sua sorte, ele escrevia mui-
que o autógrafo está no livro, que já com um preconceito ignorante
to bem, então, mesmo lendo, ele
começa a ficar amarelado. de quem não gostou, mas tam-
captava a atenção dos interessa-
bém não provou. Os jovens cris-
Nossa dirigente de reunião era dos no espiritismo.
tãos brasileiros geralmente tri-
fã, e acompanhava o que ele es-
crevia desde os tempos do Refor- muitos de lham o caminho da fé, e não o da
razão, ou, como bem falou Allan
seus textos
mador. Comprava os livros que lia
com avidez e comentava nas reu- Kardec, o da fé raciocinada.
niões mediúnicas com satisfação. parecem uma Na primeira parte de Os procu-
conversa com
Depois ficamos sabendo que ele radores de Deus, o primeiro livro
publicou também naquela revis- publicado por ele, talvez seja o
ta sob pseudônimo: João Marcus.
o leitor; quem que mais nos mostra essa luta in-
leu a maioria
Os textos, geralmente crônicas terna contra os princípios que ele
com base em pensamentos cris-
bebeu na igreja. Ensinos do Cris-
tãos, foram agrupadas e publica-
das depois no livro Candeias na
dos seus livros to, dogmas teológicos, discussões
33
cação, outros sentidos, além dos são de cristãos que foram, de temos uma
cinco mais conhecidos? Afinal, certa forma, varridos da história.
sobrou algo dos ensinos cristãos Ele abriu uma porta de leitura e
vertente da
que sobreviveu ao ataque da filo- diálogo aos que se interessam literatura
sofia e das ciências? em algo mais que apenas usar o
cristianismo como uma fonte de
produzida por
Na obra de Hermínio, portanto, princípios morais. Ao estudar o
ele que merece
ser lembrada
não se encontra uma cisão entre cristianismo histórico, colocando
o cristianismo e os tempos con- a doutrina frente a frente com o
temporâneos. Influenciado por modus vivendi dos mais diferen-
ao longo das
comemorações
Allan Kardec, ele se propõe a es- tes hereges ou protestantes na
crever uma nova forma de com- história, ele possibilita ao leitor
preender a doutrina cristã nos a compreensão de uma plurali-
nossos dias, de colocá-la de fren- dade de jeitos de ser cristão no
do centenário
te com a ciência, “uma sem rir e a mundo histórico, costurada com demérito, Hermínio está sempre
outra sem temer”. o instrumental teórico espírita. lendo e comentando outros au-
tores, especialistas, analistas, in-
É nessa nova incursão nos Assim temos uma vertente da
teressados no mesmo objeto de
pensamentos cristãos que te- literatura produzida por ele que
estudo que ele. Com essa posição
mos o que há de mais original, merece ser lembrada ao longo
intelectual, de certa forma ele re-
mas também o que mais contri- das comemorações do centená-
toma Allan Kardec, que é o pri-
bui com o pensamento espírita rio de nascimento.
meiro espírita que conheço que
na obra do “escriba”. Ele não se
Acho que me atrevo a classifi- também dialoga com escritores,
circunscreveu à leitura e inter-
car o livro O evangelho de Tomé: jornalistas de sua época e outros
pretação do Novo Testamento
texto e contexto, como o mais he- autores, até mesmo inimigos das
canônico, mas se interessou pelo
rege de seus livros. Ele apresenta ideias espíritas.
cristianismo como movimento,
ao autor o gnosticismo, que se
repleto de grupos em conflito de O evangelho de Tomé traz a
tornou pauta nos meios acadê-
ideias uns com os outros. história do texto, uma reflexão
micos após a descoberta de papi-
informada sobre o gnosticis-
Talvez Hermínio seja o primei- ros, em Nag Hammadi, no Egito,
mo, uma posição de Hermínio
ro autor que se identifica como guardados por milhares de anos Miranda sobre algumas dou-
espírita a estudar e divulgar os e alguns deles descobertos por trinas gnósticas, o texto em si e
textos gnósticos, as doutrinas acaso por agricultores em uma comentários interpretativos do
heréticas, como forma de expres- gruta. texto. Obviamente, Hermínio se
Outra coisa que um estudioso interessa pelas ideias similares
deve tomar nota é que Hermínio às espíritas que vão surgindo,
não se arvora a interpretar sozi- como o diálogo com os ‘mortos’,
nho os novos textos cristãos re- a questão do mal e a inutilidade
cém-encontrados nos primeiros do docetismo. Ao mesmo tempo
séculos. Ele busca a companhia em que critica alguns dogmas,
de especialistas, como Elaine Pa- ele tem a habilidade de mostrar
gels, e a compartilha com os lei- ao leitor o que há de comum, o
tores. Em vez de se enclausurar fundo de tela cristão que se man-
dentro da interlocução apenas tém em meio aos gnósticos. As
com os autores espíritas, sem diferenças entre gnósticos e orto-
34
doxos justifica a “caça às bruxas” Outro livro sobre a história das
feita ao longo da história? Parece pessoas e das ideias do cristianis-
que não. mo que não pode deixar de ser ci-
tado é Os cátaros e a heresia ca-
Outro ator histórico cristão
tólica. Denso, o livro trata de uma
marcante nas letras do escriba é
imensa comunidade cristã que
Paulo de Tarso, quiçá Lutero tam-
vivia na região da Occitânia, ao
bém. Paulo aparece no primeiro
sul da França, e que tinha muitas
volume de As marcas do Cristo,
ideias similares às espíritas, qua-
publicado pela FEB, e Lutero, no
se mil anos antes do nascimento
segundo. Léon Denis já havia se
de Allan Kardec. Esse é um dos
interessado antes de Hermínio
livros do qual se pode lançar mão
pelos autores protestantes, em
para discutir se o espiritismo é ou
seu Cristianismo e espiritismo,
não uma doutrina cristã. Se a te-
mas Hermínio vai mais longe, ele
ologia vencedora na história, que
procura a dimensão humana e
Hermínio chama de heresia cató-
social de seus personagens, além
lica, for considerada como a base
das ideias. Outros autores entra-
consideramos
identitária do cristianismo, então
ram na questão do protestantis-
o espiritismo não seria cristão.
o cristianismo
mo, como Antônio Lima, Yvonne
Contudo, se consideramos o cris-
Pereira e até mesmo Rochester,
em sua
tianismo em sua multiplicidade
em seu excelente Os luminares
de doutrinas, ou seja, incorporar-
tchecos, onde trata de John Huss
e Jerônimo de Praga.
mos a ele as doutrinas vencidas
na história, como o arianismo, o
multiplicidade
Miranda se posiciona pessoal- gnosticismo e o catarismo, boa de doutrinas,
mente em temas imensamente parte das ideias espíritas não ou seja,
polêmicos, principalmente no compartilhadas com o catolicis-
seu Cristianismo: a mensagem mo são encontradas na história incorporarmos a
esquecida, no qual trata do Jesus do cristianismo. Então, o espiri-
mítico contra o Jesus histórico. É tismo é uma opção cristã, fora da
ele as doutrinas
um livro corajoso, na minha opi- caixinha. A história dos cátaros vencidas na
nião, porque ele trata de ideias já começa com o envio de são
sedimentadas em nossa cultura Bernardo (será mesmo santo?)
história
escolar. Se nos distrairmos,
brasileira pelos séculos de coloni- para dialogar sobre as diferenças,
talvez nem aprendamos o
zação e império católicos. Consi- e termina com um banho de
que foram os cátaros, ou os
dero o livro muito importante no sangue, um verdadeiro genocídio
albigenses, tamanha a eficiência
questionamento do Jesus-Deus, sob a influência eclesiástica nos
da espada para a extinção das
construído por cristãos de cultura exércitos de nobres franceses,
culturas. O que sobreviveu desse
possivelmente romana, instituí- principalmente. A palavra
episódio infeliz foi parcialmente
do a ferro e fogo pelo imperador substituída pela espada, para
recuperado e recontado por He-
Constantino, o nunca declarado o fim de toda uma cultura
mínio no livro.
cristão que se imiscuiu nos as- regional cristã. Tudo isso aparece
suntos cristãos de sua época e apenas em duas ou três frases Ainda em meio aos estudos
elegeu uma doutrina vencedora na boca dos nossos professores cristãos de Hermínio Miranda,
para apoiar politicamente. de história em nossa formação encontramos um opúsculo que
35
se focaliza em uma das maio- nós, psicólogos, costuma ser si-
res diferenças entre católicos e nônimo de inseguro, ele desvalo-
protestantes (evangélicos, como rizou Hermínio, dizendo que não
nos nossos dias) e os espíritas: a estava atualizado.
reencarnação. A reencarnação
Dedico este texto que escrevo
na Bíblia, publicada pela edito-
para ele. Hermínio nunca se arro-
ra Pensamento, é um pequeno
gou a fazer trabalho acadêmico.
compêndio das principais passa-
Ele nunca desejou ser especialis-
gens evangélicas que sugerem
ta, nem se obrigou a acompanhar
a volta do espírito à vida corpo-
as discussões dos atuais especia-
ral, sempre com a linguagem de
listas em cristianismo ao redor do
cronista e a argumentação clara,
mundo para se fazer ouvido por
acessível a todos os que se dispu-
eles. A proposta de trabalho dele
serem a pensar.
pode ser bem exposta com o tí-
Certo de que esquecerei, o últi- tulo da coluna que ele manteve
mo livro que gostaria de comen- durante anos na revista Reforma-
tar é uma tradução, acompa- dor: “Lendo e comentando”.
nhada de um volume explicativo
Aposentado, ele se dispôs a
inicial. A história triste, psicogra-
dedicar boa parte de sua vida a
fado pela médium norte-ameri-
ler e comentar o que desconhe-
cana Pearl Curran e ditado pelo
cíamos, o que estava apenas em
espírito de Patience Worth, é
língua inglesa, o que sabíamos
uma história de imenso valor lite-
pouco e a integrar todo esse co-
rário que aborda personagens do
nhecimento, com seus recur-
tempo de Jesus e o próprio Jesus.
sos, à proposta espírita. Ele não
É uma espécie de canção, escrita
escreveu para os acadêmicos,
em forma de prosa, com imagens
mas para si mesmo e para nós.
belíssimas. Deve ter consumido
Sua literatura é uma espécie de
muitas horas de trabalho de Her-
viagem em busca de si mesmo,
mínio, fora a aventura de locali-
uma aventura ao mesmo tempo
zação de um original em língua i Jáder dos Reis Sampaio é espírita e
psicológica e de coerência com nessa seara se dedica a tarefas como
inglesa para ser lido e traduzido.
suas ideias. Hermínio é o católico mediunidade, pesquisa, oratória,
Seus exemplares se esgotaram e escrita de livros e artigos, tradução
que se enamorou da noiva que de clássicos do espiritismo, além da
não foram reimpressos até o mo-
temia não vir a ser aceita pela direção de instituições e organização
mento. de eventos. Na área acadêmica, é
mãe, e passou a vida redesco-
psicólogo do trabalho, com laureada
Há alguns anos, li um estudan- brindo a beleza e a sabedoria de carreira desenvolvida.
te de mestrado ou doutorado em sua esposa, cantando em verso
ii Pagels fez parte da equipe de tra-
história que fez um comentário e prosa e explicando a si mesmo
dutores da biblioteca copta de Nag
após ser convidado a ler o último por que valeu a pena. Hammadi e é autora de, entre muitas
livro acima. Arrogante, o que para obras sobre o assunto, Os evangelhos
gnósticos, publicado pela Cultrix, em
língua portuguesa, a partir de 1990.
36
Uma crônica
para um escriba
por Eduardo Lima i
38
Allan Kardec desencarnou em culto, disciplinado e um grande O mestre de Lyon sabia, por
Paris, em 31 de março de 1869. estudioso do magnetismo. Ti- exemplo, que a ciência, a des-
Corria uma quart a-feira de des- nha publicações importantes e peito da aparência orgulhosa e
pedida do inverno e de chegada participava de várias entidades da voz jactanciosa, era uma ati-
da primavera na cidade que, à científicas. Apresentava-se, com vidade humana que se transfor-
época, era provavelmente a mais toda a justiça, como um discípulo mava com o tempo. Sabia que a
importante capittal cultural do de um gigante como Pestalozzi. doutrina que estava descobrindo
mundo. Ele tinha apenas 64 anos Compreendia e participava ati- e sistematizando não seria facil-
de idade. Pouco mais de uma dé- vamente dos grandes dramas mente aceita nos meios acadê-
cada antes, ao investigar as me- sociais que envolviam as institui- micos. De fato, compreendia as
sas girantes e o conteúdo intelec- ções políticas e eclesiásticas do razões teórico-metodológicas
tual que o fenômeno produzia, seu tempo. Tem-se ainda uma desta negação, sabendo situá-
ele se espantou. As mesas não boa noção de sua personalidade -las de modo inequívoco; ou seja,
estavam apenas flutuando, elas quando se sabe que ele era do- ele simplesmente compreendeu
também se comunicavam. tado de um ceticismo saudável e bem os amplos significados do
materialismo de seu tempo e foi
que foi denominado “bom senso
Kardec não demorou para en- além dele.
encarnado”. Por fim, ele guarda-
tender que dali poderia emergir
uma doutrina capaz de ressigni- va com muita clareza em seu es-
ficar os fundamentos da ciência pírito algo especialíssimo: os va- Sabia que
e das religiões na medida em lores atemporais e universais da
que também responderia a algu- moral do Cristo.
a doutrina
mas das mais fundamentais in- Na prática, Kardec estabelece que estava
dagações da filosofia. Em outros a organização e a interpretação
termos, ele compreendeu que dos dados empíricos tendo em
descobrindo e
se tratava de um singularíssimo vista o comportamento dos fenô- sistematizando
objeto de estudo que poderia
impulsionar uma grave mudan-
menos, a repetição controlada, a não seria
facilmente"
resolução de problemas e uma
ça no conhecimento humano.
rica análise do conteúdo e dos di-
Com efeito, o fenômeno ainda
demonstraria possuir vontade
versos mecanismos de produção aceita nos meios
acadêmicos
das mensagens. Elabora pesqui-
própria e, até mesmo, ser capaz
sas de campo, investigações qua-
de sugerir para o próprio pesqui-
litativas e lança mão de uma es- O resultado é que, em 1857, ao
sador indicações de método na
crita acadêmica dotada de rigor publicar O livro dos Espíritos, Kar-
pesquisa e correções nos resul-
conceitual e consistência teórica. dec anuncia que havia desvelado
tados do trabalho. Que tipo de
Além disso, de um modo brilhan- o mundo espiritual, através de ri-
homem seria capaz desta per-
te, entende a necessidade da gorosos métodos experimentais.
cepção e de estudar algo desta
criação de inéditos protocolos de A velha senhora grega, a Metafí-
natureza? Qual seria o seu méto-
pesquisa ao mesmo tempo em sica, já não estaria presente, dado
do?
que apresenta uma percepção que, a partir daquele momento,
Quando decidiu investigar as sofisticada a respeito dos me- a vida após a morte também po-
mesas girantes, Kardec já era um andros epistêmicos do conheci- deria – e deveria – ser examinada,
pensador maduro, muitíssimo mento humano. através dos métodos das ciências
39
naturais que haviam impressio- resolveram: é o livro da vida, é o e o devir, teceu uma sofisticada
nado o mundo e normatizado livro da humanidade. crítica contra o cristianismo.
o conhecimento. O livro, é claro,
Recebei, Sr., meus cumpri- Em termos políticos, o mundo
ainda ofertou novos sentidos
mentos pela maneira como clas- atravessaria duas guerras mun-
para as tradicionais fundamen-
sificastes e coordenastes os ma- diais e, entre elas, entrou em tre-
tações religiosas da humanida-
teriais fornecidos pelos próprios vas profundas quando milhões
de. Dogmas, hierarquias, obras
Espíritos: tudo é perfeitamente atenderam ao chamado anti-ilu-
sagradas, rituais e fé cega de-
metódico, tudo se encadeia bem minista de Hitler. Nesse período,
veriam ser substituídos por um
e vossa introdução é uma obra até mesmo os herdeiros ideoló-
entendimento de que a moral e
prima de lógica, de discussão e gicos dos jacobinos e dos giron-
as atitudes cristãs – ambas per-
de exposição. dinos olvidaram suas lutas contra
meadas por nossa capacidade
os antigos monarcas autoritários
de raciocinar e de fazer uma ci- O que mais pode ser dito?!
e cobriram o planeta com dita-
ência benevolente – formariam
o caminho seguro. Além disso, Esse foi Allan Kardec e esse foi duras. A ciência, que deveria ter
as milenares indagações éticas o seu trabalho. Quantos homens combatido as chagas da existên-
cia, gerou armas de destruição
da humanidade encontrariam seriam capazes de fazer o que ele
em massa e o fantasma de um
novos meandros. Isso significa fez? Entretanto, algo ocorreu.
terceiro conflito global assombra-
que a obra de Kardec propôs
Na cidade de Paris, a 31 de ria a humanidade até a segunda
algo que é muitíssimo extrava-
março de 1869, em uma quarta- metade do século XX.
gante até para os dias atuais:
-feira de despedida do inverno e
uma aliança epistemológica Para muitos estudiosos, a con-
de chegada da primavera, com
entre a ciência e a religião na
apenas 64 anos de idade, ele fa- clusão é que a Deusa Razão – ao
medida em que avança na filo- contrário do que entendiam os
leceu.
sofia. filósofos iluministas – não foi ca-
Após o seu desencarne, as cha- paz de evitar esses horrores. Para
Victorien Sardou escreveu
madas ciências humanas ganha- outros, existia uma questão mais
uma das mais primorosas cartas
ram contorno e cientificidade ao profunda e dolorosa: onde esta-
da história da doutrina espírita.
mesmo tempo em que começa- va Deus no momento em que
Seu entendimento resumido
vam a explicar com profundidade os campos de concentração fi-
sobre O livro dos Espíritos é, por
o homem e a sociedade. As ideias zeram o seu trabalho macabro?
múltiplas razões, belo e impres-
de Darwin e de Marx incendia- Por fim, para a imensa maioria,
sionante.
ram o mundo, enquanto Freud o que tivemos é que o século XX
É o livro mais interessante e e Jung invadiram a complexida- entrou para a história como uma
mais instrutivo que tenho lido. de da mente humana. A química era de incertezas, de gigantescas
É impossível que ele não tenha também avançou profundamen- tragédias e de imensos avanços
grande repercussão: todas as te no entendimento da nature- científicos. Em suma, se o mun-
grandes questões da metafísica, za e, na física, a genialidade de do novamente fosse assombrado
de moral, ali estão elucidadas de Newton teria que dividir espaço por fantasmas, logo um cientista
maneira mais satisfatória: todos com novas perspectivas relati- ergueria a sua voz materialista e,
os grandes problemas ali são vísticas e quânticas. Na filosofia, se um filósofo almejasse uma éti-
resolvidos, mesmo aqueles que Nietzsche procurou inverter o ca universal, teria que enfrentar o
os mais ilustres filósofos não platonismo e, situando o niilismo fim dos valores supremos.
40
A doutrina espírita, como o outro modo, os magnos avanços Hermínio pesquisador torna-
próprio Kardec entendeu, preci- dos saberes da humanidade do va-se um profundo conhecedor
saria necessariamente acompa- século XX, assim como as suas da bibliografia de cada área a
nhar estas novas perspectivas. novas angústias existenciais, pre- que se dedicava. Dialogava com
Entretanto, isso só poderia ser cisariam, mais uma vez, ficar face os principais pesquisadores do
feito por alguém com as raras a face com as grandezas do co- mundo em seus respectivos
qualidades do mestre de Lyon e nhecimento dos espíritos. campos. Compreendia os rigores
que também percebesse certas conceituais que devem permear
Hermínio Corrêa de Miranda
perspectivas. as investigações sérias. Manteve,
nasceu em Volta Redonda, no
Primeiramente, seria necessá- Rio de Janeiro, no dia 5 de janei-
rio compreender em profundi- ro de 1920. Com 37 anos de ida-
dade o trabalho de Kardec para, de, tornou-se espírita e, quando
Hermínio – deve
depois, tendo-o como referência retornou à verdadeira pátria, em ser dito – não foi
irrevogável, ir além dos seus limi- 8 de julho de 2013, deixou-nos
tes. O segundo passo também uma vasta obra que, partindo
um pesquisador
exige muito. Deveria ser alguém do trabalho de Kardec, avança profissional.
que necessariamente entendes- em campos como, por exem-
se o real significado desses limi- plo, a psiquiatria, a psicologia, a
Entretanto, foi
tes. Isso não é, em absoluto, uma pedagogia, a história, a teologia, capaz de realizar
tarefa óbvia. Não se trata de de- a literatura e o magnetismo. Al-
vassar a obra do discípulo de Pes- guns de seus livros, como Nossos
investigações
talozzi e apontar anacronismos Filhos são Espíritos, são clássicos que são capazes
ou não conformidades de dados até mesmo fora do meio espíri-
em face das novas descobertas ta.
de impressionar
científicas. Isso seria simplista.
Hermínio – deve ser dito – não
Por fim, quem almejasse essa durante décadas, um pequeno
foi um pesquisador profissional.
tarefa teria que conhecer e sele- grupo prático de pesquisas no
Entretanto, foi capaz de realizar
cionar bem a gigantesca fortuna campo mediúnico. Desenvolveu
investigações que são capazes
crítica da produção espírita pós- trabalhos na área do magnetis-
de impressionar olhos treinados
-Kardec. mo e da regressão de memória.
no ambiente acadêmico. E, para
Realizou preciosos estudos de
Diante destes três pontos, o além do que é possível aprender
casos de mediunidade. Traduziu,
que está em jogo é um entendi- com o conteúdo formal dos seus
comentou ou resgatou trabalhos
mento profundo de que a dou- livros, Hermínio – para a sorte dos
cruciais de outros pesquisadores.
trina espírita, necessariamente, seus leitores – também narrava
Empreendeu estudos históricos
teria muito a dizer para os novos a história destes trabalhos. Isso
que reintroduziram o providen-
conhecimentos do século XX, afi- possibilita compreender, ainda
cialismo no caminhar da huma-
nal como bem disse Sardou, nela mais, os seus métodos, observar
nidade e na vida de alguns dos
“todos os grandes problemas ali o impacto social positivo de suas
seus principais atores sociais. Por
são resolvidos, mesmo aqueles obras, assim como conhecer cer-
fim, possuía um bom senso que
que os mais ilustres filósofos não tos traços do seu caráter verda-
lhe permitia interpretar com rigor
resolveram: é o livro da vida, é o deiramente humilde, mas tam-
as suas fontes de pesquisa.
livro da humanidade.”. Dito de bém firme na defesa do bem.
41
Destacar alguma obra de Her- do uso de métodos que Kardec segundo Kardec, para além da
mínio Corrêa de Miranda é, para aprovaria, afinal, ele lançou mão micro e das metanarrativas,
nós, uma tarefa quimérica. Essa dos mesmos protocolos. Todavia, existe um minucioso planeja-
impossibilidade deve ser expli- se Kardec precisou estabelecer mento reencarnatório que for-
cada, pois se relaciona a uma as bases e apresentar as inéditas nece aos espíritos as suas mis-
qualidade crucial da sua vas- concepções espíritas acerca do sões e os seus planos de ação
ta produção. Cada livro, de um céu e do inferno – o que, diga-se, social, sejam eles individuais ou
modo especial, repousa dentro era uma tarefa gigantesca e ain- coletivos. E o que poderia sur-
de algum dos limites do univer- da perigosa em face do poder da gir se memórias de outras vidas
so infinito que Allan Kardec nos igreja do seu tempo – Hermínio fossem resgatadas pelas mãos
legou. Hermínio não pesquisava analisou as suas ricas experiên- de um hábil magnetizador
por pesquisar. A leitura de mui- cias de décadas de diálogos com que também soubesse usá-las
tas das suas obras conduz, inva- os espíritos, e avançou em algu- como fonte de pesquisa?
riavelmente, à percepção de que mas percepções que não foram
De fato, ao incorporar os pre-
ele avança para novas veredas ao possíveis ao seu mestre. Yvonne
ceitos da doutrina espírita à his-
mesmo tempo em que a obra do estava corretíssima!
tória, o caminhar da humanida-
discípulo de Pestalozzi, nem por
um instante, se perde no hori- E o que dizer de um estudo de ganha um novo brilho nas
zonte. de caso mediúnico, como o que mãos de Hermínio. Com ele, po-
deu origem ao magnífico livro demos revisitar a vida de Paulo
Talvez, o momento em que Diversidade dos carismas? E se e Lutero, de Hitler ou Napoleão,
este fato fique mais evidente te- conhecemos o que Kardec disse de César ou de Fénelon, de G. W.
nha sido quando Yvonne do Ama- sobre o diagnóstico dos médicos Carver ou de alguma outra per-
ral Pereira, após conhecer o livro que examinaram os possessos de sonalidade da própria doutrina.
Diálogos com as sombras, afir- Morzine, certamente, indagamos Com isso, invariavelmente, tem-
mou que se tratava de uma pes- o que ele teria considerado a res- -se uma historiografia que não
quisa que Kardec não escreveu. peito do trabalho de gênios como vislumbra somente o mundo
Parece-nos indubitável que Her- Freud e Jung. Não podemos sa- terreno, mas toda a amplitude
mínio elaborou o trabalho fazen- ber o que Kardec diria, mas pode- que cerca a trajetória espiritual
mos consultar livros como: Con- da alma humana ao longo dos
domínio Espiritual, Alquimia da séculos. O que dizer afinal de
Cada livro, de um Mente, A Memória e o Tempo ou obras primorosas e impressio-
modo especial, Autismo. Jamais esqueceremos a nantes como Os senhores do
mundo, As marcas do Cristo,
repousa dentro
tremenda impressão positiva de
As sete vidas de Fénelon, Guer-
um amigo psiquiatra, após a lei-
de algum dos tura destes livros do Hermínio.
rilheiros da intolerância, O pe-
queno laboratório de Deus e Eu
limites do E se a nouvelle histoire france- sou Camille Desmoulins? Lem-
universo infinito
sa e a british social history inglesa brando que esta última está,
impulsionaram a historiografia sem nenhuma dúvida, entre as
que Allan Kardec profissional para uma busca da melhores pesquisas já realiza-
nos legou
história total; qual seria a contri- das sobre a realidade da reen-
buição que a ideia de reencar- carnação através da regressão
nação poderia fornecer? Afinal, de memória a vidas passadas. E
42
o que falar de um romance his- -feira, mas, é claro, ambos estão
tórico absolutamente tocante, bem vivos. E estão não somen-
como A dama da noite, escrito a te porque são espíritos imortais,
partir de relatos reais da vida dos mas porque suas obras continu-
espíritos que ele, diligentemente, am iluminando as nossas vidas.
recolhia em suas sessões mediú- Através delas, podemos com-
nicas?
preender melhor a nossa era de
Hermínio, em semelhança a incertezas e todos os avanços do
Allan Kardec, dominava vários nosso tempo. Entendemos que
idiomas e isso o permitiu não so- cada um, a seu tempo, deixou se-
mente pesquisar com excelência, mentes imorredouras que flores-
mas traduzir obras espantosas cem aqui e ali, com uma beleza
Allan kardec
como A história triste, escrita impressionante. Livros que ensi-
pela médium Pearl L. Curran. Um nam, confortam e curam a alma
texto no qual o espírito, Patience do mundo. O que ainda pode-
Worth, narra a história de Jesus
mos dizer sobre trabalhos dessa
fazendo uso de um inglês arcaico
natureza e magnitude? Gostaría-
e denso. O texto nos deixa imer-
mos muito de falar mais e tanto
sos na geografia e na cultura da
ainda precisa ser dito, entretanto,
época do Cristo e, quando retor-
paro.
namos, conhecemos um pouco
mais do mundo e dos ensina- Quase consigo ouvir a voz de
mentos daquele que os espíritos
Hermínio dizendo com sere-
disseram a Kardec ser o guia e o
na franqueza: – Não faz assim,
modelo da humanidade.
por favor. Não me compare de
Todavia, Hermínio não nenhum modo ao mestre de
escrevia somente livros, há Lyon. Não faz isso comigo. Fui
centenas de artigos. Através apenas um escriba que amava ler
deles, percebemos um viajante e escrever e que tentou de algu-
do século XX que está sempre ma forma contribuir com a dou- Desenho ilustrativo
atento para algum fato, alguma trina. Se desejas dizer algo sobre de Jesus
43
O embrulhinho
morno
Ao relembrar um episódio de vida do Velho
Escriba (ainda jovem...)
por Ana Maria Miranda
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Meu maior amigo, sua perfeição, espiritualmente,
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missão, e se entregou de corpo das coisas de seu Pai. Cada um desapontamentos que dei quan-
e alma às coisas do Senhor e às dos fios tem uma história... e do, um dia, nos encontrarmos
Suas palavras. Com esta reso- quantas histórias... de novo com a graça de Deus, e
lução, você se descobriu: “Sou bem mais humilde, menos hu-
De minha parte, quando che-
aquele que procura viver cons- mana e mais espírito, você verá
gar a hora, ampare-se para rece-
ciente de estar, onde quer que que seu embrulhinho morno, de-
esteja, na presença de Deus”. sembrulhado, de cabelos bran-
Simples assim, como você e Ele Sinto-me de você, cos e até talvez arqueada pela
eram simples. sou em você e, vida, continua, a cada dia, pedin-
do ao Pai para me dar você como
Mas você faz 100 anos e sabe, a cada dia que pai, sempre, e já sei o que Ele vai
passa, continuo
mais do que nunca, que o tempo
me responder: “Minha filha, onde
não conta.
há amor, não há separação”...
Sinto-me de você, sou em você
tentando parecer
Assim, descansarei meu espí-
e, a cada dia que passa, continuo mais com você. rito e continuaremos juntos na
Mas você é
tentando parecer mais com você. eternidade...
Mas você é unico. Preciso me
convencer disso... unico. convencer Meu anjo em forma de gente,
parabéns. Sei que você está ain-
O Senhor sabia disso e por disso[...] da mais junto a seu Pai e estar
este motivo, no ano em que você mais próximo d’Ele é tudo que
completa 100 anos desta vida, re- você queria...
ber um abraço aprisionado des-
novo a Ele, com toda humildade,
de que voltou para casa. Seu primeiro embrulinho mor-
minha eterna gratidão pelos pre-
sentes da vida que Ele me deu há no...
Será que preciso te dizer que
76 anos, o orgulho de ter sido sua te amo mais ainda e percebo que
filha e por sua indelével presença meu “imenso amor” de antes
neste meu pequeno mundo tão é tão pequeno diante do senti-
distante do seu universo espiritu- mento de hoje?
al, atemporal e sem fronteiras.
De resto, na sua sempre irre-
O tempo passa célere por aqui, torquível humildade, sopre da
(agora) velho escriba, e assim, eternidade sobre mim um pouco
quem sabe, num de seus pró- de seu incrível espirito... Pode ser
ximos aniversários, eu já esteja sob a forma de pingos de uma
por aí para junto comemorarmos chuva não esperada, pelo voo de
com todos os que o amam e os um pássaro ou por uma repen-
que você tanto amou, a bênção e tina brisa desalinhando meus
lição que sua vida foi para todos cabelos. Sejam quais forem suas i
“Embrulhinho morno” é a
nós. Quanta sabedoria, amor e mensagens em voos alados, expressão carinhosa usada por
humildade você encerra no seu entenderei. E, enquanto espe- Hermínio Miranda, na obra Nos-
coração e nesses cabelos brancos ro, continuarei lutando para ser sos filhos são espíritos, para des-
que a vida soube tingir à medida digna de ter sido de você. Peço crever sua primeira filha, que
que crescia seu conhecimento desculpas pelas preocupações e acabava de nascer.
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